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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SETE OSSOS E UMA MALDIÇÃO / Rosa Amanda Strausz
SETE OSSOS E UMA MALDIÇÃO / Rosa Amanda Strausz

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SETE OSSOS E UMA MALDIÇÃO

 

                           Crianças à venda.Tratar aqui

Todos disseram que Marialva era louca e desalmada quando ela pôs os filhos à venda. Até o padre tentou demovê-la de idéia tão cruel. Mas nada adiantou. A mulher era obstinada. “Quero que eles tenham um futuro melhor que o meu”, ela repetia.

       Olhando bem para o lugar, quem poderia condená-la? Um casebre miserável, perdido numa curva do rio, sem eletricidade, sem comida, sem dinheiro, sem remédio, sem nada por perto. Tinha parido nove filhos. Só restavam cinco quando decidiu vendê-los. Não queria mais ver criança morrendo de fome e doença em seus braços sem que pudesse fazer nada para impedir.

       O primeiro a partir foi Tião, levado por uma família americana. Um mês depois da viagem, chegou carta com foto do menino, limpo e sorridente, bem vestido e já mais gordinho, no meio de brinquedos e livros novos, e abraçado a seus novos pais. Marialva enxugou as lágrimas e teve certeza de que fazia a coisa certa.

       Em seguida, foram Francineide, para o Rio de Janeiro, e Ronivon, para Curitiba.

       Com o dinheiro da venda dos três, Marialva comprou uma cabra, três galinhas, um cobertor para as noites frias, sabão de tomar banho e uma panela nova.

       O seguinte seria Fabiojunio, que já estava encomendado por uma família que vivia em Cruz Alta, uma cidade próxima. O casal chegaria dali a dois dias e Marialva se esforçava para dar banho no menino e torná-lo mais apresentável.

       — Vê se não chora quando eles chegarem, senão eu te mato, viu? E nada de se sujar porque o sabão já está acabando. Tem que ficar limpo até depois de amanhã. Melhor nem se mexer muito, fique quieto dentro de casa.

       Fabiojunio olhava os preparativos meio assustado. Mas as fotos dos irmãos cercados de conforto, carinho e comida já o tinham convencido. Tanto Tião quanto Francineide e Ronivon pareciam muito felizes. Assim, quando chegou o casal, despediu-se da mãe e de Simara — a irmã mais velha —, engoliu o choro e entrou no carro de seus novos pais.

       — Mãe, a senhora não achou esses dois aí meio esquisitos, não? — perguntou a menina assim que o carro sumiu na estrada.

       — Bobagem, menina. Rico é tudo esquisito mesmo.

       Mas, no fundo, achou que a filha tinha razão. Não sabia dizer direito o que era — se a expressão meio vazia do casal, o jeito que eles tinham de olhar, meio fixo, sempre para frente, a maneira de se moverem, lenta demais.

       Bobagem, repetiu mentalmente. Eram os mais ricos, os que tinham pago mais caro. Olhou para as notas em cima da mesa. Dava para comprar um monte de sabão e botar Simara para lavar roupa para fora.

       O problema era justamente a filha, que não parava de tagarelar. Menina inconveniente. Tinha dez anos, só por isso não dava mais para vendê-la. Ninguém queria criança grande assim. Pois que ficasse quieta e ajudasse a fazer o dinheiro render — porque aquele era o último.

      

Isso era o que Marialva pensava. Menos de um mês depois da partida de Fabiojunio chegou uma carta. Trazia uma foto do menino e mais dinheiro ainda. A mulher ficou radiante.

       — Eles devem estar mesmo muito encantados com Fabinho para mandarem essa dinheirama toda — disse ela arregalando os olhos.

       Simara, sempre desconfiada, examinava a fotografia.

       — Mãe, olha só...

       Mas a mulher arrancou a foto de sua mão.

       — Olha só digo eu, Simara! Sempre foi lindinho, o seu irmão. Mas com essas roupas... Benza Deus! Parece um príncipe.

       Na foto, o menino estava de pé, em meio a um imenso jardim sem flores, mas com o gramado muito bem cuidado, ao fundo do qual se via um casarão com a fachada ornamentada. Vestia sapatos pretos de verniz, meias brancas, terninho azul-marinho combinando com a bermuda, camisa branca de colarinho e gravata de cetim cinza-claro. O cabelo estava penteado para trás, cheio de goma.

       Simara não se convencia. Todos os outros irmãos enviavam fotos em que apareciam cercados de brinquedos, em parques, comendo doces, rindo, abraçados com a nova família. Fabiojunio não. Estava sozinho, de pé, com os braços estendidos ao longo do corpo, no meio daquele jardim imenso. Parecia triste.

       Simara insistiu no assunto, mas Marialva proibiu a filha de prosseguir.

       — Gente chique é assim. Não fica pulando e gritando. Ele está é ficando educado — encerrou a conversa.

      

No mês seguinte, a mesma coisa. Mais um envelope entregue pelo correio. Dentro, nem um bilhete. Só mais dinheiro e outra foto.

       Agora, Fabiojunio aparecia de pé em um quarto amplo e ricamente mobiliado. Estava diante de uma cama alta, de dossel talhado em madeira escura, e ao lado de uma escrivaninha cuidadosamente arrumada. Não havia brinquedos à vista. A roupa não era a mesma da foto anterior, mas muito parecida. E a expressão do menino também, embora parecesse ainda mais pálido e tristonho.

       — Ele não está feliz — constatou Simara em voz alta, sabendo que a mãe não a ouviria. Estava ocupada demais fazendo planos para o dinheiro que chegara. Já dava até para pensar em comprar um fogão de verdade, com bujão de gás e tudo. E teria comida para fazer todos os dias.

       Na verdade, teve muito mais do que isso. Todo mês chegava novo envelope com uma foto e mais dinheiro. Cega pela boa sorte repentina, mal olhava para o filho impresso no papel. Ia direto para o maço de notas, contava-as avidamente, sorria e fazia mais planos.

       Apenas Simara estava cada vez mais intrigada. A cada foto que chegava, parecia-lhe mais evidente que havia algo muito estranho ocorrendo ao irmão. Sempre o mesmo tipo de roupa, os ambientes luxuosos — mas antiquados e soturnos —, e a expressão ausente, o olhar mortiço, a postura imóvel.

       A última foto era ainda mais impressionante. Solitário, sentado à cabeceira de uma mesa imensa, de madeira escura e polida, Fabiojunio não olhava para a baixela de prata à sua frente, nem para a louça filetada de ouro, nem para os talheres de cabo de madrepérola. Seu olhar tampouco se dirigia para o fotógrafo. Parecia fixar-se num ponto impossível, distante, muito além da realidade.

       Intrigada com aquilo, Simara foi até a casa do padre e pediu-lhe emprestada sua lente de aumento. Já tinha visto o objeto algumas vezes depois das aulas de catecismo. Parecia mágico, com seu poder de ampliar pequenos detalhes. Quando era menor, adorava pegar a lente e observar a ponta de seu polegar, descobrindo as finas linhas que desenhavam redemoinhos em seus dedos.

       Mas, agora, não havia tempo para brincar. Botou a foto sob o vidro da lente e examinou-a detidamente. Nem precisou procurar muito. Bastou-lhe focalizar os olhos do irmão para encontrar a explicação de sua expressão vazia: estavam furados. No lugar das córneas, havia apenas dois buracos negros, redondos e perfeitos.

       Com um grito apavorado, Simara chamou o padre. O homem fez o sinal-da-cruz e prontificou-se a acompanhar a menina até a residência do casal que tinha levado Fabiojunio embora. Foi só o tempo de pegar uma pesada cruz de prata, um vidro de água benta e o dinheiro da passagem de ônibus. Com o envelope nas mãos, a menina o seguiu até a rodoviária.

      

Cruz Alta ficava a apenas sessenta quilômetros de distância. Duas horas de viagem na condução velha e malcuidada. Simara sacolejava pela estrada, impaciente. O padre, no entanto, ignorava a ansiedade da menina e traçava cuidadosamente seu roteiro. Iriam primeiro à igreja local buscar informações sobre a família. Se possível, levariam o pároco junto com eles até a casa. As fotos diziam claramente que se tratava de um caso de bruxaria e não queria enfrentar uma novidade daquelas sozinho.

       Chamava-se padre André, era jovem e destemido. Mas também inexperiente e humilde o suficiente para admitir que não tinha a menor idéia do que fazer quando encontrasse o estranho casal.

       Não custaram a encontrar a igreja nem a conseguir falar com o padre Leal, um velhinho simpático, que cuidava da paróquia havia mais de trinta anos.

       — Estamos com sorte — confidenciou o padre André a Simara. — Há tanto tempo aqui, ele deve conhecer a família.

       O padre Leal, no entanto, ficou perplexo ao ver o endereço que Simara lhe mostrava.

       — Deve haver algum engano, meus filhos. Esse endereço não existe.

       Com um pressentimento ruim, Simara insistiu:

       — É muito importante, padre. Por favor, nos ajude a encontrar essa família.

      — Mas estou lhe dizendo, filha. Conheço o lugar, não existe casa nenhuma nesse endereço. Essa rua não passa de uma velha estrada abandonada. Nem carroça passa mais por lá.

       Até então, o padre André só observava a conversa. Mas decidiu intervir:

     — Padre Leal, temos motivos muito sérios para procurar essa casa — disse, enquanto abria o envelope e espalhava as fotos sobre a mesa.

       — Veja isso.

       O velho pároco examinou as fotos com as mãos trêmulas enquanto ouvia o relato da história feito por Simara. Por fim, deteve-se na que mostrava Fabiojunio no jardim. Após observá-la por alguns instantes, mergulhou a cabeça entre as mãos, murmurando:

       — Não consigo acreditar...

       Simara não se conteve e perguntou:

       — O senhor conhece essa casa?

       O religioso deu um profundo suspiro. Estava pálido e limitou-se a acenar afirmativamente com a cabeça. Mal conseguia falar.

       Mas a menina era determinada. E não queria perder mais tempo.

       — Então, nos leve até lá. Acho que meu irmão está correndo perigo.

       O religioso limitou-se a balbuciar:

       — Seu irmão está morto.

       Padre André não se deu por vencido.

       — Precisamos da sua ajuda. Talvez ainda possamos salvá-lo. Tenho certeza de que se trata de um caso de bruxaria.

       O velho o interrompeu:

       — Vou levá-los até o local.

       Assim que entraram no velho Dodge Dart do pároco, este olhou para o padre André e disse:

       — Preparem-se para ver uma coisa terrível.

       Com o rosto amargurado, o religioso deu a partida no carro e recusou-se a responder a qualquer pergunta durante o trajeto. Cerca de vinte minutos depois, saiu da estrada principal e tomou um caminho abandonado e coberto de mato pelo qual o veículo avançava com dificuldade crescente. Quanto mais andavam, mais ermo tornava-se o local. Estava claro que havia muito tempo que ninguém passava por ali.

       Finalmente, pararam num ponto a partir do qual seria impossível prosseguir com o carro. O mato era tão alto que batia no peito dos dois homens e cobria a cabeça de Simara. Saltaram, e o religioso suspirou:

       — A partir daqui, teremos que seguir a pé.

       Nem Simara nem padre André ousaram abrir a boca. Apesar do sol quente da tarde, a luminosidade do lugar tinha um toque pouco natural. E um silêncio sepulcral envolvia o caminho, como se ali não houvesse vida: nem insetos, nem animais, nem mesmo vento.

       Depois de uns dez minutos de caminhada, uma clareira abriu-se abruptamente. À frente do grupo, surgiu um imenso terreno abandonado. Nem mesmo mato crescia ali, como se a terra tivesse sido amaldiçoada.

       Ao olhar para a cena, Simara deu um grito. Reconheceu, ao longe, o casarão ornamentado. No entanto, à sua frente, erguia-se uma ruína, abandonada havia muitos anos em meio ao terreno desolado.

       Não havia dúvida nenhuma, era a casa da foto. Ou era a casa como teria sido muitas décadas atrás.

       — Vamos até lá — disse Simara energicamente. Ainda não conseguia acreditar no que via.

       Partiu na frente, seguida pelos dois religiosos, ambos empunhando suas cruzes.

       Não tinha medo. Não sentia nada além de uma urgência imensa e de uma esperança meio improvável de ainda encontrar o irmão. Abriu o pesado portão com um safanão e foi entrando. Deparou-se com o saguão de entrada, o mesmo que já tinha visto nas fotos. No entanto, agora, as paredes estavam descascadas, as vidraças das janelas, quebradas, a bela escadaria de madeira que conduzia ao segundo andar, destruída. E não existia mais nenhum dos móveis luxuosos que serviam de cenário para as poses de Fabiojunio.

       Viu, logo à esquerda, o que deveria ter sido a sala de jantar. A mesa, a mesma onde o irmão aparecera na última foto, ainda estava lá. Comida por cupins, não passava de um monte de madeira podre, coberta por uma espessa camada de poeira e fungos.

       Cada vez mais transtornada, percorreu todos os cômodos do térreo até sair no pátio dos fundos, de onde podia se ver um antigo cemitério familiar e nove tumbas.

       Correu para lá.

      

Não teve dificuldade em reconhecer o estranho casal que levara seu irmão nas fotografias amareladas que decoravam as duas primeiras sepulturas. Ali, estava a data da morte deles, ocorrida cerca de cinqüenta anos antes. Próximos das tumbas principais — as mais ricas e enfeitadas — havia sete pequenos jazigos. O último era evidentemente recente e foi para ali que Simara correu. Sobre o túmulo, um nome: Fabiojunio, a última foto que tinha sido enviada à família e a data: apenas uma semana atrás.

       Não tinha mais nada para ser visto ali. Tudo o que Simara queria era voltar para casa e contar para a mãe o que tinha descoberto. Deu meia-volta e saiu enxugando as lágrimas enquanto andava cada vez mais rápido, seguida pelos dois religiosos que ainda empunhavam suas cruzes, sem saber muito bem o que fazer com elas.

      

A viagem de volta foi lenta e silenciosa. O ônibus quebrou duas vezes e Simara só chegou em casa no dia seguinte. Achava que encontraria a mãe preocupada, mas a velha senhora estava radiante quando abriu a porta para a filha.

       — Por que você não disse que ia visitar seu irmão? — perguntou a mulher com um sorriso.

       Antes que a menina pudesse responder, a mãe mostrou-lhe um novo envelope.

       — Olha só, acabou de chegar! Veio com uma carta. E com ótimas notícias.

       Simara avançou para o envelope. A primeira coisa que viu foi a foto. Uma foto dela, vestida com roupas elegantes e antiquadas, de pé, braços estendidos ao longo do corpo, no pátio dos fundos da casa, onde havia o cemitério, embora a foto não mostrasse cemitério algum. Só um bonito jardim, com o gramado muito bem cuidado e árvores frondosas ao fundo.

       Antes que pudesse se recuperar do susto, a mãe perguntou:

       — Leu a carta? Eles ficaram encantados com você!

       E completou, sorridente:

       — E vêm buscá-la hoje mesmo, à noitinha. Você nem imagina como me pagaram bem!

       Diante do olhar apavorado da menina, Marialva franziu o cenho e engrossou a voz:

       — Já para o banho. Está na hora de você também aprender a ser chique.

                         Devolva minha aliança

Pedro e Antônio foram criados na mesma rua, ao fim da qual havia um pequeno cemitério. Pequeno mesmo, assim como a cidade, que não passava de mil habitantes.

       Costumavam brincar por lá durante o dia, apesar das advertências das mães. Elas sabiam respeitar o campo santo e não gostavam nem um pouco de ver os meninos chegarem em casa carregando as flores que tinham surrupiado de um enterro.

       Eles nem ligavam. À luz do dia, o cemitério parecia mais um parquinho cheio de cruzes brancas. Volta e meia derrubavam uma, enquanto brincavam de pique.

       À noite, no entanto, não se aventuravam por lá. Todo mundo sabia que as almas penadas acordavam quando os vivos iam dormir.

       Quer dizer... não se aventuravam enquanto ainda tinham uns dez, onze anos. Assim que começaram a crescer um pouco mais, foi dando aquela vontade doida de experimentar coisas novas. E desafiar o medo é uma delas. Sentir até onde vai o próprio pavor, o coração disparado, a respiração acelerada até quase não caber mais nos pulmões, os olhos arregalados a ponto de pularem para fora, até dar uma vontade de rir e gritar ao mesmo tempo.

       Aos poucos, começaram a explorar o cemitério ao anoitecer. Pedro, que sempre foi o mais medroso, mal conseguia permanecer ali dois minutos e já queria voltar. Tirando uma lâmpada meio mortiça pendurada acima do portão, não havia luz nenhuma lá dentro. Era preciso acostumar os olhos à escuridão. Só então, conseguiam enxergar alguma coisa, mesmo assim apenas sombras. Mas o pior era o silêncio absoluto, que fazia com que qualquer ruído parecesse imenso: mosquito zumbindo, rato passando, sapo coaxando, vento uivando, folhas de árvore farfalhando.

       Antônio também morria de medo. Mas gostava da sensação. Um dia, tropeçou numa cruz que ainda não tinha tido tempo de ficar bem agarrada no chão. O pé dele enganchou na madeira e ele caiu de bruços na terra fofa e úmida, que tinha sido posta ali naquele dia. Pedro, tonto de pavor, tentou agarrar o amigo e, na escuridão, acabou cravando as unhas das mãos geladas em seu tornozelo. Antônio nem teve tempo de pensar, foi no reflexo. No que sentiu a mão nervosa tentando agarrar seu pé, desferiu um coice de arrancar até defunto da cova. Acertou direto no queixo de Pedro.

       Na escuridão e no susto, nenhum dos dois sabia direito o que estava acontecendo. Só que era preciso sair dali o mais rapidamente possível. O cheiro da terra revolvida parecia cada vez mais forte. Antes que mais alguma coisa acontecesse, conseguiram se levantar e correr.

       Só ao chegar à rua, puderam compreender o que tinha de fato acontecido. O queixo aberto de Pedro não deixava nenhuma dúvida com relação à assombração que tinha tentado agarrar o amigo.

       O problema é que, a partir daquele dia, Antônio ficou impossível.

       — Cara, você viu só? Meti o pé na cara da alma penada!

       — Alma penada coisa nenhuma, idiota. Você deu um coice na minha cara — retrucava Pedro.

       — Mas eu achava que era uma assombração, não achava? E se fosse tinha dado um coice nela do mesmo jeito.

       Pronto. Ninguém segurava mais o convencimento do cara. Agora, já acreditava — e contava para quem quisesse ouvir — que foi mesmo a mão do defunto enterrado naquele dia que tinha agarrado seu pé. Desfilava pela escola, todo herói e, a cada relato, aumentava um pouco a história. Tinha dado até para ver um pouquinho da cara do morto, com os olhos já meio furados de vermes e os cantos da boca esverdeados. As unhas dele tinham crescido depois da morte e estavam mais compridas que as de uma mulher.

       Pedro já estava cansado daquele falatório. Dias depois, estavam novamente os dois passando diante do cemitério por volta das onze horas da manhã. Chegava um enterro novo.

       — Vamos lá ver? — chamou Antônio.

       Pedro concordou. Era uma noiva, ainda vestida de branco. Tinha morrido no dia do casamento, antes de começar a cerimônia. Resolveram acompanhar o féretro, só por curiosidade e porque a falecida era linda.

       O caixão já tinha baixado à sepultura, e o coveiro jogava terra por cima, quando um rapaz transtornado, provavelmente o noivo, deu um passo à frente e jogou a aliança dentro da cova.

       Sem se importar com isso, o funcionário municipal continuou seu serviço.

       Pedro e Antônio ainda ficaram por ali um tempo, comentando o jeito das pessoas e fazendo piada até que todos se foram. Também já se preparavam para partir quando Pedro viu uma coisa brilhando ao pé da cruz branca. Chegou mais perto e constatou: era a aliança que tinha ficado ali, enterrada só pela metade.

       Mais tarde, já na escola, Antônio sugeriu:

       — Vamos voltar lá e pegar a aliança? Aquilo é ouro. Dá pra vender.

       Mas Pedro, já cansado das exibições do amigo, teve outra idéia.

      — Hoje à noite, você vai buscar.

       E completou:

       — Sozinho.

       — Que é isso, cara, tá brincando?

       — Ué, você não é o herói que chutou a cara do defunto recém-enterrado? Não é o destemidão do pedaço? Pois vai lá à noite. Vou avisar o pessoal. Dessa vez, você vai ter platéia de verdade.

       Antônio ainda tentou escapar. Mas não teve jeito. Pedro já estava convocando a turma para o espetáculo.

      

Dez para a meia-noite, cinco colegas, Pedro entre eles, esperavam Antônio na porta do cemitério. O menino não se atrasou. Afinal, agora não podia voltar atrás. Além de mentiroso, ia ser chamado de covarde.

       Passou pelo grupo com um olhar superior e mergulhou na escuridão, morto de medo.

       Por sorte ou azar, a lua estava quase cheia. Não estava tão escuro como da outra vez. Era melhor para enxergar o caminho e chegar mais rapidamente à sepultura da noiva. Mas, por outro lado, a luz mortiça da lua jogava uma luminosidade sobrenatural por cima dos túmulos e das cruzes brancas. E, desta vez, Antônio estava sozinho. Pedro tinha ficado com o grupo esperando por ele no portão do cemitério.

       De onde estava, ainda podia ouvir ao longe as risadas dos companheiros. No entanto, com o vento e o silêncio da noite, as vozes lhe chegavam distorcidas, como se viessem mesmo de outro mundo.

       Decidiu ser rápido e não desviar o pensamento do seu objetivo. Caminhou até a sepultura da noiva e logo viu o anel.

       Seria impossível não vê-lo. Embora a luz da lua fosse pálida, a aliança brilhava como se refletisse o sol. Daria para encontrar o lugar guiado apenas pelo clarão. Sem nem pensar direito no que fazia, estendeu a mão e pegou a jóia.

       O problema é que os meninos viam tudo de longe. E Mariana, uma das meninas do grupo, resolveu fazer uma gracinha. Engrossou a voz e disse:

       — Antônio, me dá seu dedinho que vou pôr a aliança nele.

       Era uma piada. Mas, com a distância, o silêncio e o vento leve da noite, o som chegou distorcido aos ouvidos de Antônio. Parecia mesmo que a noiva defunta falava com ele.

       Todo o pavor que tinha controlado até aquele momento eclodiu como uma bomba de adrenalina. Só não berrou porque a garganta estava tão contraída que nenhum som sairia dali. Mas correu, correu como se tivesse mil pernas e uma só mão — fechada com força sobre a prova de sua valentia.

       Chegou ofegante ao portão, olhou para o grupo e estendeu a mão para exibir a comprovação de sua coragem. Mas a mão estava vazia.

       Na correria, tinha perdido a aliança.

       No fim das contas, o passeio macabro terminou em risada. Antônio sabia que seria o alvo de chacotas por algum tempo. Mas nem se importava tanto assim. Só queria chegar em casa, dormir e esquecer.

      

No começo, não pareceu tão difícil. Sua mãe já dormia, mas tinha deixado um lanche sobre o fogão. Aos poucos, a sensação do leite morno descendo pela garganta foi reduzindo a velocidade das batidas de seu coração e o sono foi chegando.

       Teve a sensação de adormecer antes mesmo de botar a cabeça no travesseiro.

       Subitamente, acordou no meio da noite, totalmente desperto. O quarto estava gelado, o que não era comum naquela época do ano. Não havia vento, a janela estava fechada. Ainda assim, a temperatura caía a cada minuto, a ponto de provocar calafrios.

       Então, veio o medo. Veio concentrado, como se todo o pavor das aventuras da noite lhe chegasse de uma só vez. Sentiu-se observado e fechou os olhos com força. Sabia o que veria se os abrisse. Tinha certeza. Era ela, a noiva. Podia sentir sua presença, seus olhos vazios cravados nele, seu corpo imóvel de pé no quarto.

       E, desta vez, não era uma brincadeira da Mariana. Era a voz da morta mesmo que se fazia bem audível.

       — Devolva minha aliança.

      

Assim como chegou, a aparição partiu. No minuto seguinte, o quarto já recuperara sua temperatura e tudo parecia tão completamente normal que Antônio chegou a acreditar que tinha sonhado. Logo, seus olhos ficaram pesados e voltou a mergulhar no sono.

       Procurou Pedro logo na manhã seguinte e contou-lhe tudo. O amigo não levou a história a sério.

       — Você deve ter sonhado. Do jeito como saiu apavorado do cemitério...

       — Pode ser. Mas eu preferia encontrar logo o tal do anel e devolver para a moça. Sabe como é...

       Pedro riu. E, por via das dúvidas, resolveu acompanhar o amigo até o cemitério. Afinal, a manhã estava linda, ensolarada. E eles não tinham mesmo nada mais interessante para fazer.

       O problema é que nem a luz do sol ajudava. A aliança tinha desaparecido. Vasculharam tudo, refizeram dez vezes o caminho que Antônio percorrera na noite anterior e nada. Nem sinal de anel.

       À noite, Antônio estava inquieto. Tomou um chá de capim-cidreira para acalmar e foi para a cama. Assim como na noite anterior, dormiu rapidamente.

       Mas, como na noite anterior, despertou antes da madrugada. O mesmo ar gelado em seu rosto, a mesma certeza de que havia uma presença em seu quarto, a mesma convicção de que era a noiva e a mesma voz.

       — Devolva minha aliança!

       Na manhã seguinte, acordou exausto. Pedro notou o abatimento do amigo.

       — Aconteceu de novo, cara.

       — Não é possível.

       — É. E dessa vez não foi sonho. Foi a defunta mesmo.

       Os dois voltaram ao cemitério e novamente perderam o dia tentando encontrar a aliança. Impossível. Parecia que ela havia sido tragada pela terra.

      

A aparição retornou por mais quatro noites seguidas. Sempre igual. Os mesmos olhos vazios, a mesma boca que não se mexia enquanto falava, as mesmas mãos caídas ao longo do corpo. Finalmente, na sexta-feira à noite, a noiva disse:

       — Se você for até a minha cova amanhã à meia-noite e me pedir desculpas, prometo que não volto nunca mais. Mas vá sozinho.

       Desta vez, Antônio a viu desaparecer lentamente, enquanto o quarto retomava sua temperatura habitual. E decidiu ir.

       Na noite seguinte, cumpriu o prometido. Dirigiu-se sozinho ao cemitério, enfrentou a escuridão e o pavor e chegou ao local do encontro marcado.

       Realmente, pretendia pedir desculpas à noiva. Além disso, pensava em rezar também alguns padre-nossos e ave-marias como garantia. Mas, assim que se aproximou da sepultura, sentiu o já conhecido ar frio gelar sua espinha. Não teve coragem de olhar para trás. Sabia que ela estava ali e que não o deixaria fugir.

       Queria rezar, queria pedir desculpas. Mas a garganta se apertava de tal modo que não permitia a passagem de som nenhum. Sufocava de pavor. Queria falar e não podia, queria gritar e não podia, queria respirar, mas até isso era impossível.

       Então, correu. Correu de olhos fechados para não ver o que sabia que estava ali. Correu tropeçando, enlouquecido, estendendo os braços para a frente como se pudesse agarrar uma salvação. Correu sabendo que nunca mais conseguiria dormir.

       Subitamente, sentiu que seu pé se prendia em alguma coisa e, no momento seguinte, seu rosto estava mergulhado num monte de terra recém-revolvida. O cheiro da morte entrou profundamente por suas narinas. Queria se levantar, mas o pavor o imobilizava. Dobrou os joelhos, tentando ficar de gatinhas, mas um puxão forte o derrubou novamente de bruços. Foi então que ouviu um baque surdo e sentiu uma dor terrível no dedo anular da mão esquerda. Em seguida, percebeu que a criatura tinha partido. Uma paz imensa tomava conta do ambiente. Os mortos dormiam seu sono infinito, e Antônio já conseguia se mover.

       Levantou-se devagar e olhou para a mão esquerda. Seu dedo tinha sido decepado. Embrulhou a mão ensangüentada na camisa e foi andando lentamente para casa.

      

Pela primeira vez em muitos dias, sentiu que dormiria sem sobressaltos. Deixou que sua mãe cuidasse do ferimento e lhe desse um copo de leite morno. Foi para a cama e logo adormeceu, exausto.

       No meio da noite, no entanto, seus olhos se abriram como se alguém tivesse ordenado que fosse assim. A mulher estava parada à sua frente.

       No entanto, agora, ela sorria. Um sorriso vazio, isolado do resto do rosto, que permanecia inexpressivo. E, desta vez, a mão esquerda não estava caída ao longo do corpo. Acenava para ele, como se desse um “tchauzinho” em câmera lenta.

       Antônio não pôde deixar de notar: o dedo esquerdo da noiva exibia uma reluzente aliança de ouro.

 

               Os três cachorros do senhor Heitor

Quando Zé Luiz apareceu morto, atrás do banco da pracinha, a cidade toda correu para ver. Até aí, nenhuma novidade. Cidade pequena é assim mesmo. Morte é sempre notícia. Todo mundo quer olhar, dar palpite, fazer comentários e, no fundo, dar graças a Deus porque não foi ninguém da própria família.

       Quanto pior a desgraça, mais a cidade se agita. E, naquela manhã de vinte e nove de outubro, a pracinha parecia um formigueiro. Veio gente até dos sítios e fazendas vizinhas. Todo mundo queria ver o pequeno cadáver.

       Era mesmo impressionante. No chão, sobre o gramado, estava caído o corpo de um menino clarinho, franzino, de cerca de dez anos. Todos o conheciam. Era Zé Luiz, o mesmo que vivia correndo para cima e para baixo pela cidade inteira, até de noite, porque não temia nada, nem alma penada nem ladrão e bandido.

       Mas, agora, o rosto de Zé só mostrava medo. Os olhos arregalados, a boca totalmente aberta, os dedos das mãos crispados. Quem o visse podia jurar que ele tinha morrido de susto.

       A multidão se revezava para espiar o morto, e cada um saía dando seu palpite sobre o evento misterioso. O corpo não apresentava nenhum ferimento. Até onde se soubesse, o menino não tinha doença nenhuma. Só uma coisa era certa: ele deve ter visto uma coisa terrível antes de morrer.

       Uma menina bem pequena, de cerca de cinco anos, se esgueirou por entre as pernas dos curiosos e chegou bem perto do corpo caído. Foi ela quem observou as marcas de dentes nos braços e no pescoço do mortinho.

       — Um cachorro mordeu o Zé — anunciou ela.

       Fez-se um silêncio repentino na praça. Quem estava perto agachou-se para ver melhor. A menina tinha razão. Eram três marcas de mordida: nos dois braços e no pescoço. Pareciam produzidas por dentes de cachorro.

      

O corpo foi enviado para a cidade vizinha porque em Bambuzal não havia Instituto Médico Legal para fazer a autópsia. Três dias depois, chegou o resultado. Zé Luiz tinha sofrido uma parada cardíaca, possivelmente provocada por fortíssima emoção, já que não era portador de nenhuma cardiopatia anterior. As marcas de mordida eram muito superficiais, não tinham chegado a ferir a pele. Aparentemente, não tinham ligação com o óbito.

       À noite, Marcelo, Tito e Rosana reuniram-se na pracinha, como faziam sempre. Tinham treze anos e conheciam Zé Luiz. O assunto, como não podia deixar de ser, era a morte misteriosa. Ou o assassinato, como suspeitavam.

       — Foi bem ali que ele foi encontrado — apontou Rosana.

       Foram até o local, um dos menos iluminados da praça. A lua já começava a minguar, mas ainda refletia luz suficiente para que pudessem observar o gramado. Mas não havia nada ali que pudesse ser encontrado. Só o canteiro de plantas, agora um pouco amassado. Além disso, nenhum deles tinha a menor vocação para detetive. Só queriam entender a morte do colega.

       — Esse lugar me dá arrepios — comentou Tito.

       Não era para menos. Um vento gelado começava a soprar, levantando do chão algumas folhas secas e balançando suavemente os galhos das árvores.

       — Vamos sair daqui — sugeriu Rosana.

       Ninguém protestou.

       Foram caminhando em silêncio pelas ruas já escuras. Afastaram-se do centro e continuaram a andar, sem muita noção de para onde ir, só para respirar o ar da noite, cansar o corpo e chamar o sono. Foi Marcelo quem reparou primeiro.

       — Alguém se mudou para a casa de dona Zezé...

      

A casa de dona Zezé era considerada assombrada pelos moradores da região. A mulher era uma velha meio doida, que vivia trancada com oito cachorros. As janelas ficavam sempre fechadas, e a porta raramente se abria.

       Quando dona Zezé morreu, ninguém se deu conta. Só muitos dias mais tarde, um vizinho estranhou a falta dos latidos. Bateu a campainha, chamou e, diante do silêncio e do mau cheiro que já escapava pelas frestas da janela, decidiu arrombar a porta. Encontrou a velha e os oito cães mortos.

       Era estranho que alguém tivesse se mudado para lá. Até onde soubessem, ninguém com juízo teria comprado o imóvel. Mesmo que não conhecesse a má fama do lugar, bastava olhar para o jardim ressecado, as paredes descascadas e o aspecto tétrico da casa para evitá-la.

       Mas o fato é que havia luz lá dentro, embora todas as janelas estivessem fechadas. E um som familiar, como se cães ganissem baixinho.

       — Cruz-credo, vamos sair daqui — pediu Tito, assustado.

       Rosana concordou rapidamente. Só Marcelo ainda queria ficar mais um pouco. Além de não ser medroso, estava intrigado com a morte do menino. De alguma maneira, suspeitava de que a falta de punição do culpado (porque ele não tinha a menor dúvida de que havia um culpado) colocava a vida de todos em risco.

       Decidiu voltar lá no dia seguinte.

       Sozinho.

      

Antes das sete da manhã, Marcelo já estava de tocaia no jardim da casa maldita. Passou pelo portão sem fazer barulho, aproximou-se de uma janela fechada e colou o ouvido nas persianas de madeira, tentando escutar algum som. Nada. A casa parecia tão vazia quanto tinha estado nos últimos anos.

       Respirou fundo e tirou do bolso uma chave de fenda. Pretendia forçar um pouco a janela. Encaixou a ponta da chave entre duas persianas e iniciou um delicado movimento de alavanca até sentir a madeira cedendo sob a pressão. Até que foi fácil. Estava podre e soltou-se sem fazer nenhum ruído. Pegou cuidadosamente a lâmina de madeira e retirou-a de seu encaixe. Agora, já tinha uma boa fresta por onde espiar.

       No entanto, antes que pudesse saciar sua curiosidade, ouviu um estalido às suas costas. Virou-se rapidamente. Deu de cara com um homem alto, ladeado por três imensos cães negros.

       O sujeito era grisalho e tão magro que parecia uma caveira coberta por uma fina camada de pele. No meio do rosto descarnado, emoldurado por uma barba rala e branca, só se destacavam dois olhos arregalados, carregados de fúria em estado bruto. Curiosamente, os cães tinham o mesmo olhar fixo e raivoso.

       — O que você está fazendo aí, menino?

       Saída da boca de tal figura, a voz era surpreendentemente calma.

       Lentamente, os cães se aproximaram de Marcelo e formaram um semicírculo em torno dele. Acuado, o menino tentou manter o sangue-frio e respondeu:

       — Estou procurando pela dona Zezé.

       O homem permaneceu impassível.

       — Dona Zezé morreu faz muito tempo. Sou filho dela.

       Sem alterar a voz, sempre mansa, prosseguiu:

     — Gostaria de entrar?

       — Não, muito obrigado. Só estava de passagem mesmo.

       Marcelo estava sem ar. Só pensava numa maneira de sair dali. Tinha sido muito imprudente em espionar a casa maldita sem contar a ninguém.

       — Quando quiser, venha me fazer uma visita — disse o homem. — Meu nome é Heitor.

       — Prazer, me chamo Marcelo. Mas agora tenho que ir mesmo. Com licença — disse o menino, tentando manter a respiração sob controle.

       A um sinal de Heitor, os cachorros se afastaram e deixaram Marcelo passar. Foi caminhando lentamente até a estrada, tentando parecer muito natural e tranqüilo. Só quando já estava a uns cem metros da casa, saiu em disparada.

      

Pronto, agora já sabia quem morava na casa maldita. E tinha certeza: era o assassino. O olhar de Heitor — e o dos cães — não deixava nenhuma dúvida. O problema era provar.

       Quando relatou sua aventura matinal aos amigos, foi crivado de perguntas. Todos queriam detalhes. Mas não havia muito o que dizer. Só uma impressão, forte demais, de que o perigo estava ali. E estava à espreita.

       Necessitaria reunir muita coragem para voltar lá. E teria que fazê-lo sozinho. Tito e Rosana avisaram logo: estamos fora!

       Os dias foram passando e a tranqüilidade voltou à pequena cidade. Cerca de um mês mais tarde, a morte do menino já se diluía entre outras novidades: o casamento de uma viúva com um rapaz vinte anos mais novo, a surra que a mulher do padeiro tinha dado nele, o sofrimento da mocinha da novela das oito.

       Só Marcelo ainda sentia-se inquieto. E era esse o assunto da conversa que mantinha com Tito. Era uma bela noite de lua cheia e passeavam pela praça enquanto esperavam a chegada de Rosana. Tito, sempre cauteloso, não queria mais se meter no assunto.

       — Você não é detetive, nem a polícia conseguiu descobrir nada de errado. O Zé morreu de susto. É triste, mas é verdade. Deixa isso pra lá.

       Marcelo não se convencia. Esperava que Rosana chegasse para apoiá-lo, mas a amiga estava demorando. Melhor mesmo era ir para casa e estudar para a prova do dia seguinte. Prova de história, sua matéria preferida. Tinha andado tão absorvido no mistério da casa de dona Zezé que mal tinha olhado os livros.

      

Na manhã seguinte, não saiu de casa. Ainda estudava o último capítulo quando Tito chegou à sua casa, esbaforido.

       — Vem correndo. Você não vai acreditar!

       Marcelo ainda tentou fazer algumas perguntas. Era impossível. Tito o arrastava, com os olhos arregalados e mal conseguia articular uma palavra. Cerca de dois quarteirões adiante, viu uma pequena multidão defronte a uma construção abandonada. Tito o arrastou pelo meio das pessoas, tropeçando em todo mundo, até chegar aos fundos da casa inacabada. Caído no chão estava o corpo de Rosana.

       Tinha os olhos arregalados, como se tivesse acabado de presenciar uma cena terrível, a boca aberta de pavor e os dedos crispados. Marcelo afastou os curiosos com alguns safanões, aproximou-se da morta e pegou seus braços. Em cada um deles, havia uma marca de mordida de cão. Afastou os longos cabelos de Rosana e constatou outra marca no pescoço.

       Olhou para Tito. Não tinha mais dúvidas. O assassino era o mesmo.

       Foi tirado dali pelo delegado, um sujeito gordo e preguiçoso, que agradecia a Deus todas as manhãs por ter sido lotado numa cidadezinha tão calma. A morte de Rosana, em circunstâncias tão misteriosas quanto as que cercavam as do menino no mês anterior, não o agradava em nada. Só aborrecia.

       — Vamos sair daqui, deixem a polícia fazer seu trabalho —resmungava o delegado como se falasse para todos e, ao mesmo tempo, para ninguém.

       Marcelo não se segurou:

       — Que trabalho? Até hoje ninguém descobriu nada sobre a morte do Zé!

       Estava indignado. Já se preparava para começar um discurso de protesto quando viu, ao longe, uma figura conhecida. Era o senhor Heitor, cercado por seus três cães negros, que olhava fixamente para ele.

       Foi o suficiente para secar toda a saliva que havia em sua boca. Uma sensação ruim, de estar sendo dominado por aquele rosto imóvel, o paralisava. Dava vontade de gritar: “Foi ele!!!” Vontade de bater no delegado que olhava para o outro lado e não percebia a presença maligna. Vontade de apontar o culpado para a multidão. Mas parecia que o senhor Heitor era invisível e só Marcelo podia vê-lo. Estava ali, parado, com seus olhos incendiados destacados no rosto inexpressivo. Tão soturno que só podia ser ele o culpado. E ninguém via nada. E Marcelo não conseguia articular uma só palavra. Mudo. Paralisado. Como se tivesse sido hipnotizado, aprisionado no fundo de um poço onde só havia pânico.

       Foi tirado do transe pelo delegado.

       — Sai daí, menino, deixa a polícia trabalhar.

       Ainda sob efeito da paralisia, Marcelo tentou indicar o culpado, sua mão se moveu muito lentamente. Lentamente demais.

       Quando conseguiu apontar para o lugar certo, o senhor Heitor já tinha desaparecido.

      

Denunciar o verdadeiro assassino tornou-se uma obsessão para Marcelo. Vigiava a casa maldita de dona Zezé, estudava todos os caminhos que passavam por lá, pesquisava a história familiar dela: Maria José Peçanha Bastos. Mas nada fazia muito sentido. Tirando alguns casos de loucura, a trajetória dos Peçanha Bastos era muito parecida com a de todos daquele lugar, quase todos netos de gente que se remediara no campo e vira os filhos renegarem a lavoura para se tornarem barbeiros, alfaiates ou comerciantes.

       O senhor Heitor foi o quinto filho de dona Zezé, e o único sobrevivente. Todos os outros morreram ainda crianças.

       A campana na porta da casa também não rendera muitas informações úteis. Se durante os vinte e sete dias de vigilância o senhor Heitor saíra de casa, foi nas horas em que Marcelo tinha se distanciado dali. Durante todo o tempo da vigia, a casa permanecera trancada e silenciosa. O único sinal de vida era a luz que se acendia ao cair da noite e que podia ser entrevista pelas frestas das persianas. Mais nada.

       No entanto, Marcelo sabia que alguma coisa aconteceria naquela noite. A lua estaria cheia, assim como estivera na ocasião das outras mortes. Preparou-se cuidadosamente para pegar o assassino em flagrante. Vestiu roupas escuras, que o camuflariam nas sombras da noite. Calçou seu tênis mais silencioso. Pegou às escondidas a espingarda de seu pai, verificou se estava carregada, passou a tira de couro pelo peito e ajustou-a para que a arma ficasse bem presa às suas costas.

       Assim que abriu a porta de casa, um vento gelado passou por dentro de sua roupa como se fosse uma cobra escorregadia. Mas sabia que não poderia ceder ao temor. Se o fizesse, mais cedo ou mais tarde seria a próxima vítima.

       Por volta das nove da noite, partiu em direção à casa maldita. Ficaria ali, de vigia, até que o assassino aparecesse.

       Acomodou-se numa moita próxima ao portão e dispôs-se a esperar o tempo que fosse necessário. Levantou o pulso esquerdo para ver as horas mas, droga, tinha esquecido o relógio.

       A casa permanecia fechada. Apenas as persianas deixavam entrever a luz mortiça interior. A estrada, totalmente deserta. O jeito era aguardar.

       Deixou que o tempo escoasse lentamente, como sempre acontece nessas ocasiões em que nada acontece e a gente só espera. A noite estava estranhamente silenciosa. Sapos, grilos, corujas, cães, gatos, toda a fauna que costuma distrair a escuridão com seu canto noturno emudecera. Não havia som de passos, nem de vento, nem de bater de asas. Uma espessa camada de silêncio parecia comprimir seus ouvidos.

       Até a luz da lua cheia parecia diferente, mais brilhante. Esperar, imóvel, naquelas condições, provocava um entorpecimento nos sentidos, tudo começava a parecer meio irreal, como um sonho. Mas Marcelo não ousava se mexer. Temia que qualquer movimento provocasse um ruído que pareceria estrondoso em meio à quietude do lugar.

      

Foi tirado do torpor por um som que parecia vir de muito longe. Prestou mais atenção. Alguém vinha chegando pela estrada. E não estava sozinho. Agora podia perceber mais nitidamente o barulho de passos meio arrastados e também o som característico de patas de cachorro. Tirou a espingarda do ombro e colocou-se em posição de tiro, ainda protegido pela moita. E foi dali que viu tudo.

      

Antes mesmo que os visitantes entrassem em sua linha de visão, percebeu que a porta da casa se abria. O senhor Heitor postou-se na soleira. Obviamente, esperava por sua presa. Poucos segundos depois, Marcelo foi surpreendido pela chegada de um estranho séquito.

       Diante do portão, estava um menino de seus dez anos de idade. Dois dos cães o prendiam com os dentes, cada um por um braço. O terceiro mordia sua garganta. Os três animais vinham andando de costas, puxando o menino que, de tão apavorado, nem pensava em reagir.

       Estava assustado, mas vivo, constatou Marcelo. O fato lhe deu uma dose suplementar de coragem. Antes que o grupo chegasse à soleira da porta, onde o aguardava o senhor Heitor, Marcelo levantou-se, com a espingarda já preparada, e disparou.

       O primeiro tiro acertou o cachorro que agarrava a garganta do menino. O bicho caiu morto. A um sinal do senhor Heitor, os outros dois soltaram a presa e pularam na direção de Marcelo. Com mais um tiro, conseguiu acertar o segundo. Mas não teve tempo para acabar com o terceiro. Imenso, pesado como a mais profunda noite e forte como um animal sobrenatural, o cão derrubou-o sem a menor dificuldade e prendeu sua garganta entre os dentes. A última coisa que Marcelo pôde ver antes que a cara do bicho ocupasse todo o seu campo de visão foi o menino fugindo pela estrada.

       Nem a morte dos cães nem a fuga de sua quase vítima abalaram a impassibilidade do senhor Heitor. Da soleira da porta, de onde não tinha se movido durante toda a cena, o homem deu apenas um assovio curto. Obediente, o imenso cão negro conduziu Marcelo ao interior da casa.

      

Para surpresa do menino, embora os móveis fossem velhos e gastos, e apenas uma lâmpada pendesse do teto, tudo parecia cuidadosamente organizado. A mesa estava posta para o jantar com dois pratos de louça florida com as bordas lascadas, uma jarra cheia de um líquido dourado, semelhante a chá, toalha e guardanapos de adamascado branco e amarelo meio puído. Tanto a sala quanto os objetos estavam limpos e arrumados, a toalha passada a ferro e os guardanapos dobrados por dentro de argolas de alpaca.

       A aparente normalidade da casa só contrastava com o odor nauseabundo que parecia vir do segundo andar. Marcelo espichou um olho para a escada. Não dava para ver nada. Os últimos degraus estavam mergulhados na mais completa escuridão. Mas podia identificar claramente o cheiro: uma mistura de lodo, mofo e corpos em decomposição.

       Assim que a porta se fechara atrás do menino, o cão soltara sua garganta. Agora, estava calmamente deitado debaixo da mesa, como um cachorro doméstico qualquer. Marcelo não ousava se mexei. Apenas seus olhos vasculhavam o ambiente em busca de uma saída — que evidentemente não existia. Estava trancado na companhia do senhor Heitor e do cão que lhe restara.

       Sem alterar sua fisionomia impassível, o homem chegou ao pé da escada e olhou para a escuridão. Em seguida, gritou para alguém que deveria estar no segundo andar:

       — Mamãe, o menino já chegou.

       Embora Marcelo não ouvisse nenhum som vindo de cima, o homem falou, como se respondesse à presença invisível:

       — Está bem.

       Em seguida, virou-se para Marcelo, apontou para a escada e disse:

       — Suba.

      

Impossível. Suas pernas não respondiam a comando nenhum, nem subir, nem fugir, nem mesmo tremer. Parecia que o ar tinha se tornado mais denso de repente. Pesado, quase oleoso, tornava os movimentos lentos, mais lentos, muito lentos. Marcelo se lembrou de um trabalho escolar feito com gesso. Era assim mesmo. Primeiro, mergulhou o pó branco na água e foi mexendo a mistura, que parecia leite. Aos poucos, o líquido foi se tornando mais espesso, e mais, e mais, até virar quase pedra.

       Era exatamente isso que parecia acontecer com o ar à sua volta agora. Não, era mais fluido, imperceptível, um veículo facilitador do movimento. Outra lembrança: agora estava correndo pela rua, fugindo de uma pedrada que Rosana teimava em acertar nele. Tudo era tão fácil. O medo ajudava a risada, que impulsionava as pernas, que fazia o corpo atravessar o ar feito uma flecha. Um prazer intenso.

       Mas agora sabia que nunca mais haveria prazer no medo. Estava paralisado. A voz do senhor Heitor chegava a seus ouvidos como se viesse de muito longe. E repetia: Suba! Mas não havia mais movimento, não havia mais corpo nem vontade. Só o ar que virava pedra à sua volta.

       Foi quando sentiu os dentes do cachorro em sua garganta. Uma mordida suave, mas firme, como as que as cadelas costumam dar nos filhotes para obrigá-los a fazer alguma coisa que não querem. O cão o puxava. E ele o seguia.

       Botou o pé no primeiro degrau, sabendo que, ao chegar ao topo da escada, só haveria escuridão.

       E mais nada.

 

               Dentes tão brancos

Andréia entrou em casa às três de manhã e encontrou sua mãe em pânico.

       — Minha filha, o que aconteceu?

       — Não sei.

       Não era mentira. E estava perturbada demais para inventar uma desculpa qualquer.

       — Como não sabe? Você sai de casa dizendo que vai a uma festa na casa da Mariana, desaparece sem dar notícias, deixa todo mundo preocupado e ainda diz que não sabe?

       A mãe estava realmente furiosa.

       — Eu fui à festa na casa da Mariana — defendeu-se Andréia.

       — Como foi se ninguém viu você lá?

       — Eu estava lá — insistiu a menina.

       — Até agora? — berrou a mãe, que, evidentemente, não acreditava na versão da filha.

       — Até agora.

       — E pode explicar como nem a Mariana, nem suas amigas, nem ninguém viu você na festa?

       A mãe era puro desatino. Andréia nunca tinha feito uma coisa dessas antes. Mas parecia que o bom comportamento pregresso não lhe trazia nenhuma vantagem.

      

O fato é que Andréia não sabia dizer o que tinha acontecido. Não que lhe falhasse a memória. Lembrava bem cada detalhe da noite. O problema era encontrar as palavras. Sentia-se esquisita, flutuante, como se tivesse sido jogada num mundo totalmente desconhecido. Estava com medo. Muito medo. Mas não saberia explicar exatamente do quê. Apenas sabia que uma coisa terrível tinha acontecido. Alguma coisa cujos desdobramentos ainda não conseguia prever.

       Tentou reordenar os fatos da noite em sua mente. Talvez assim conseguisse uma explicação para tudo aquilo.

      

Tinha chegado cedo à casa de Mariana. A festa ainda não tinha começado, e a amiga estava no quarto se arrumando. Dirigiu-se ao jardim, que estava especialmente bonito para a ocasião. Não que fosse uma festa especial: não era. Mas Mariana transformava qualquer reunião de amigos num grande baile. Não lhe faltava dinheiro para isso. Nem bom gosto. Nem criatividade.

       A festa do dia era à fantasia e tinha como tema a Morte. Cada qual deveria imaginar uma maneira interessante de passar dessa para melhor e inventar uma fantasia que combinasse com sua idéia.

       Marcelo já tinha avisado que iria de pijama: queria morrer dormindo. Mirela providenciara trajes de aviadora: achava lindos os acidentes trágicos. Beatriz aplicara dúzias de camélias em seu vestido, em homenagem à Dama das Camélias, a pianista que tinha sido levada embora pela tuberculose.

       Andreia pensara em alguma coisa bem romântica. Queria morrer de amor. Dissolver-se em paixão. Por isso, decidiu alugar um traje de época, um luxuoso vestido que imitava os usados no século XVI, decotadíssimo, armadíssimo, muito sensual.

       Prendeu os cabelos cacheados num coque no alto da cabeça, deixando à vista a nuca. Pegou o pó-de-arroz da mãe e passou uma generosa camada no rosto, no colo e no pescoço. Ficou branquíssima. E linda.

       Agora, sim, parecia uma musa de poeta romântico, dessas que morrem virgens, jovens e belas, e carregam para o túmulo o coração do amado. Pelo menos, era assim que se sentia quando chegou à casa de Mariana.

      

Como a amiga ainda não tinha descido, decidiu circular pelos jardins, ainda desertos àquela hora. Havia apenas alguns músicos que terminavam de montar seus instrumentos no palco armado em meio ao gramado. Assim que se aproximou, teve sua atenção despertada para um deles, um jovem de beleza incomum que ensaiava algumas notas ao violino enquanto o resto do grupo ligava fios às caixas de som. Alto, magro, com cabelos ruivos que lhe caíam até a cintura e vestido com um smoking, o rapaz parecia indiferente ao atarefamento dos colegas. Tocava, de olhos fechados, uma melodia capaz de emocionar qualquer pessoa, até mesmo Andréia, mais chegada a um rock, um metal pesado ou qualquer coisa que tivesse mais ritmo do que som.

       A música do rapaz não tinha batida, mas fazia bater mais forte seu coração. Não como imagem poética, mas como fato incontestável. Surpreendida pela suave taquicardia provocada pela música, a menina aproximou-se do grupo e ficou escutando.

       Subitamente, como se percebesse a presença dela, o rapaz interrompeu seu ensaio e abriu os olhos.

       — Ah, por favor, não pare — pediu a menina. — Eu estava gostando.

       O violinista limitou-se a sorrir. Nossa! Como era bonito. De tudo, o que mais chamava a atenção era sua pele, tão branca e luminosa que parecia a cúpula de um abajur. Andréia perguntou-se que marca de pó-de-arroz ele teria passado para obter um efeito tão impressionante.

     Embora o palco estivesse a alguns metros de Andréia, com apenas um salto, ele colocou-se ao lado dela. Foi um movimento estranho. Ele não tinha a elasticidade de um gato. Pelo contrário, parecia meio duro ao mover-se. Lembrava mais um vôo sem suavidade. Ou uma aparição fantasmagórica.

       Mas não era um fantasma quem lhe sorria tão encantadoramente.

       — Você gosta do som do violino? — perguntou o rapaz. E Andréia percebeu um par de olhos cor de violeta cintilando na escuridão.

       — Não exatamente. — Andréia não conseguia mentir. — Mas fiquei fascinada com a melodia que você estava tocando. Que música é essa?

       O rapaz deu um suspiro profundo.

       — É uma composição minha.

       — Jura?

       Ele sorriu, melancólico. A luz violeta tinha desaparecido de seus olhos.

       — Fiz para a mulher que eu amava.

       Agora, seus olhos estavam negros como a mais profunda noite. E Andréia, totalmente encantada, não resistiu à indiscrição.

       — O que aconteceu com ela?

       Subitamente, o sorriso apagou-se do rosto do rapaz.

       — Ela morreu.

       Andréia estava desconcertada.

       — Lamento... — gaguejou.

       Mas a curiosidade foi mais forte, e ela perguntou:

       — Morreu de quê?

       — De amor.

       O tom da voz do rapaz a surpreendeu. Não estava mais triste. Era sonhador, etéreo, apaixonado. Como sua fantasia. Tinha vindo vestida para morrer de amor.

       Pareceu que o rapaz compreendeu tudo, sem que ela dissesse nada.

       — Você vai ficar comigo esta noite — disse ele.

       Não perguntou. Não era um pedido. Ele não quis saber se ela já tinha ficado com alguém antes (não tinha). Simplesmente constatou o que já estava escrito nos olhos de Andréia.

       Sem saber bem o que dizer, a menina perguntou seu nome. Ele voltou a sorrir, novamente luminoso.

       — Eu me chamo “Seu Amor”. E você?

       Que dizer numa hora dessas?

       — Puxa, que coincidência, eu também.

       Ainda ia dizer alguma coisa, mas “Seu Amor” a interrompeu:

       — Nada disso. Você se chama “Meu Amor”.

       E cravando os olhos nos dela, completou:

       — Você é minha, “Meu Amor”.

      

Andréia podia ter dito que não. Podia ter percebido que tudo aquilo era esquisito demais e pulado fora. Mas o amor é sempre meio estranho e ela estava apaixonada. Quando “Seu Amor” disse “Você é minha”, sentiu-se totalmente inundada de felicidade. E quando isso acontece, a única coisa que a gente consegue dizer é “Sim”. A paixão nos transforma em criaturas meio sem vocabulário. “Não”, “mais ou menos”, “talvez”, tudo isso desaparece da nossa boca. E ela passa a ser ocupada por um SIM imenso, completamente refratário à razão.

       Por isso, ela olhou no fundo dos olhos dele e respondeu:

       — Sou. Sou sua.

       Num impulso amoroso, estendeu a mão para tocar o rosto dele. Mas “Seu Amor” recuou.

       — Tenho que voltar para o ensaio.

       Em seguida, ficou novamente muito sério e disse:

       — Vá para trás daquela árvore e não deixe ninguém vê-la. À meia-noite, quando terminar o show, irei buscá-la.

       Andréia não entendeu direito o motivo do pedido, mas “Seu Amor” foi bem claro.

       — Se alguém vir você aqui, vou fazer de conta que não a conheço. Não saia de lá até que eu vá buscá-la, compreendeu?

       Totalmente tomada pela vontade de dizer SIM, a menina concordou.

      

Viu a festa de longe, como se fosse um sonho. Deixou-se hipnotizar pelo som mágico do violino de tal maneira que não sentiu o tempo passar. Quando deu por si, o jardim estava deserto, os músicos desarmavam a aparelhagem e “Seu Amor” caminhava em sua direção.

       Antes mesmo que pudesse pensar em alguma coisa para dizer, foi enlaçada pela cintura e percebeu que o braço dele era tão rígido quanto seu corpo. Parecia mais um gesto de imobilização do que um abraço. Assustada, tentou recuar, mas “Seu Amor” acendeu a chama violeta de suas pupilas e disse:

       — Não tenha medo.

       Sem afrouxar o braço que segurava firmemente a cintura da menina, aproximou sua boca para um beijo. Mas a menina estava realmente assustada e virou o rosto. Neste momento, ele riu.

       Não foi como antes. Antes, só tinha sorrido, o que dava a seu rosto, já belo, uma luz ainda mais especial. Agora, ele riu mesmo, abrindo os lábios e deixando à vista uma boca totalmente desdentada.

       Tomada por forte sentimento de repulsa, Andréia tentou gritar. Mas, como nos pesadelos, sentiu que a voz estava presa em sua garganta.

       — Não grite, “Meu Amor”. Eu só quero um beijo seu.

       Agora, o rapaz segurava firmemente seu rosto, de modo que a menina não conseguia olhar para outro lado ou desviar-se. “Seu Amor” voltou a rir com vontade, exibindo as gengivas vermelhas.

       — Você estava apaixonada por mim ou pelos meus dentes?

       Apesar da risada, a expressão do rosto dele era de pura raiva. Apertou o rosto de Andréia com mais força e inquiriu:

       — Vamos, responda! Sem dentes eu não sirvo? Que porcaria de amor é esse que não resiste a uma pequena falha?

       Sem fôlego, a menina não conseguia responder. Queria apenas sumir dali. Rezava para que alguém aparecesse, mas os últimos músicos já tinham partido. Estava absolutamente só com “Seu Amor” no jardim agora às escuras.

       Cada vez mais raivoso, ele prosseguiu:

       — Pois eu quero um beijo seu. E quero também seus dentes, todos eles. Quero esses dentes da cor da lua cheia.

       Diante do terror da menina, cujo rosto permanecia preso entre os dedos do rapaz, “Seu Amor” sibilou:

       — Está com medo? Não se queixe, minha querida, você é uma garota de sorte. Destino pior teve a que me cedeu a pele, a que me deu os ossos, a linda menina que me doou esses belos olhos cor de violeta, ou sua amiga Karina, de quem herdei essa bela cabeleira.

       Andréia sufocou um grito de pavor. Lembrou-se de Karina e do indescritível sofrimento da amiga, submetida a uma quimioterapia que lhe podara os longos cabelos ruivos. Começou a chorar.

       “Seu Amor” ficou calado por alguns minutos, como se fosse muito divertido observar sua presa. Finalmente, suspirou:

       — De você, “Meu Amor”, só quero os dentes.

       Antes que Andréia pudesse esboçar qualquer reação, ele a beijou.

       Os lábios do rapaz eram gelados. No entanto, no momento em que suas bocas se uniram, todo o medo desapareceu. Andréia foi tomada por uma suave tontura e percebeu que seu corpo relaxava. Era uma fraqueza que fazia seus joelhos dobrarem e toda a sua vontade desaparecer. Só percebia o som de seu coração, como um tambor selvagem repercutindo pelo corpo todo, cada vez mais forte, até que sua vista escureceu.

       Quando deu por si, estava caída no chão. Não havia ninguém por perto. Levantou-se e foi andando para casa a pé, ainda tonta.

      

No dia seguinte, acordou melhor. Parecia, de fato, que tudo não passara de um pesadelo. Animada, levantou-se e vestiu-se para ir à escola. O cheiro de café fresco feito pela mãe e do pão quentinho chegava até o quarto onde a menina se arrumava. Penteou os cabelos, prendeu um coque no alto da cabeça e sorriu para o espelho.

       Foi então que percebeu a falta de um dente, o incisivo superior do lado esquerdo. Deu um grito apavorado e levou a mão à boca. O canino superior do lado direito saiu na sua mão. Tateou a arcada. Estavam todos moles, pendurados na gengiva como roupas no varal em dia de ventania.

       Antes que pudesse gritar, ouviu a voz da mãe que anunciava:

       — Andréia, chegaram flores para você!

       A senhora entrou no banheiro carregando uma braçada de rosas cor de violeta, salpicadas por vinte e oito rosas brancas.

       Havia um cartão. E dizia:

       “Jamais esquecerei seu sorriso. Vinte e oito dentes perfeitos, faltando apenas os de siso — que nascerão mais tarde. Mas quem precisa de siso quando chega à idade em que sonha em morrer de amor? Vinte e oito também são os dias que formam o ciclo da lua. Assim que ela voltar a brilhar em toda a sua plenitude, retornarei para dar em você um beijo perfeito. Com todos os dentes.

       “Seu Amor.”

 

                     O chapéu de guizos

Ouço vozes. Sempre ouvi, desde muito criança. Para mim, nunca existiu nada de excepcional nisso. Aprendi a dialogar com elas, a perceber quando estavam só zoando de mim, quando falavam sério, ou quando refletiam apenas a solidão de seres exilados num mundo que ainda hoje não consigo adivinhar qual seja.

       No entanto, agora ando assustado; Pela primeira vez. Não tinha medo quando, aos três anos, escutava uma mulher pedindo socorro no meio da noite. Nem quando, aos cinco, ouvi minha avó, que tinha morrido três meses antes, avisar meu pai para pegar uns papéis que estavam numa caixa de madeira escura no fundo do armário. Nem tampouco quando, aos sete, uma mulher cantava bem baixinho cantigas de ninar.

       Agora, tenho treze anos. E, pela primeira vez, estou apreensivo com as vozes. Para falar a verdade, a que me dá medo é só uma voz: a do chinês. Esse cara não é normal. E não consigo acreditar que ele seja totalmente do bem.

       Como sei que a voz vem do chinês? Porque a ouvi pela primeira vez assim que encontrei a estatueta de louça, guardada no fundo de um baú cheio de coisas que tinham pertencido a minha avó.

       Eu estava sozinho em casa e resolvi dar uma espiada nele. Sempre gostei de coisas antigas e ali dentro tinha uma incrível quantidade de quinquilharias. Bijuterias descascadas, xícaras lascadas, fotos, lenços já meio comidos por traças. Foi justamente um desses lenços que me chamou a atenção. Estava bem manchado, como se tivesse sido guardado sem lavar. E servia de embrulho para alguma coisa. Desdobrei cuidadosamente o pano e descobri, no meio dele, uma pequena imagem de louça: era o chinês.

       Não era uma imitação de obra de arte antiga. O chinês usava roupas ocidentais, apenas um pouco antiquadas. Lembrava muito o senhor Chan, o velho quitandeiro que vendia verduras a minha avó quando eu era bem pequeno. O senhor Chan tinha sido misteriosamente assassinado quando eu tinha apenas cinco anos, mas eu ainda me lembrava do rosto dele.

       Não devia ter mais de dez centímetros de altura e, tirando a semelhança com o quitandeiro, nada nele chamava a atenção, com exceção de seu chapéu. Parecia mais uma peça de vestuário medieval, daquelas usadas pelos saltimbancos. Era alto, listrado, cheio de pontas e com minúsculos guizos, que tilintavam quando a gente sacudia a imagem.

       Não sei por que, mas o som me arrepiou. No entanto, em vez de embrulhar novamente a estatueta e devolvê-la ao seu lugar, levei-a para o meu quarto e deixei-a sobre a mesa do computador.

      

À noite, quando eu me preparava para dormir, dei uma espiada na peça. Os olhos do sujeito estavam brilhantes e, embora eu não tivesse tocado nele, os guizos começaram a tilintar. Subitamente, uma voz ecoou pelo quarto:

       — Sua mãe não vai gostar nem um pouco de saber que você mexeu naquele baú...

       Era o chinês. E ele estava certo. Minha mãe já tinha me proibido de ficar fuçando armários e gavetas que não fossem minhas. Decidi escondê-lo. Como se adivinhasse meus pensamentos, a voz prosseguiu:

       — Me ponha debaixo do seu travesseiro. Coisas extraordinárias acontecerão...

       Minha intuição dizia que eu não deveria fazer aquilo. Embora parecesse apenas esquisito, o chinês tinha uma aura maléfica que até um leigo poderia perceber. Mas a curiosidade foi maior. Acomodei a imagem entre a fronha e o travesseiro, deitei-me e adormeci imediatamente.

       Tive uma noite aparentemente tranqüila, o que não era normal. Geralmente, eu tinha sonhos agitadíssimos. No entanto, agora era como se minha mente tivesse passado a noite mergulhada no mais profundo silêncio. Ou como se todas as lembranças tivessem sido apagadas da minha memória.

       — Coisas extraordinárias, sei... — resmunguei ao levantar, com o pescoço ainda meio dolorido.

      

Assim que pisei na calçada, ainda sonolento e atrasado para a primeira aula, cruzei com o gato branco de dona Lineusa, nossa vizinha. O bicho devia ter fugido de casa. Não podia deixá-lo ali. Era o xodó da velha. Ao me ver, o gato arrepiou-se de um jeito que chegou a dar medo.

      — Calma, bichinho, venha cá. Vou levá-lo para casa — eu murmurei enquanto o segurava firmemente.

       O problema é que o gato parecia endemoniado. Ou apavorado, quem vai saber? E não parava de se debater. Tive que segurá-lo com mais força, para evitar que rasgasse meus braços com as unhas.

       Finalmente, consegui imobilizá-lo. O bicho me olhava com os olhos vermelhos de ódio e medo enquanto eu mantinha uma das mãos em torno de seu pescoço. Tão macio e quente, o pescoço do bichinho. Aos poucos, meus dedos foram se contraindo. Era irresistível apertar um pouquinho mais, sentir não apenas o pêlo macio e a musculatura trêmula, mas também as vértebras do final da coluna. Apertar e deslocar um pouco, sentir os ossos cederem sob a força dos meus dedos e ver os olhos do bicho, cada vez mais vermelhos, estufarem como se fossem saltar do crânio, ver a boquinha cada vez mais aberta, sentir a respiração chegando ao fim. Não sei quanto tempo permanecemos assim. Só que, quando o larguei na calçada, estava morto.

       Não era como se eu estivesse sonhando. Eu sabia o que estava fazendo. Só não havia nenhuma emoção, nem medo, nem culpa, nem nada. Exatamente como a noite anterior, mergulhada no mais profundo silêncio interno. E também não houve voz nenhuma. Nada, nada, nada. Só o gato morto. Por mim.

      

Assim que depositei o corpo do bicho em frente à casa de dona Lineusa, toda a paz foi-se embora. Todo o pavor abateu-se sobre mim de uma só vez. Céus, o que eu tinha feito? E por quê? Apavorado, com medo de mim mesmo, saí correndo. Corri até chegar à escola, com o coração disparado e a cabeça completamente confusa.

       Estranhamente, eu não estava atrasado. Mais estranhamente ainda, durante todo o dia fui acompanhado por uma sorte extraordinária. Apesar dos fatos desconcertantes da manhã, tirei dez numa prova de matemática para a qual nem sequer tinha estudado. Ganhei uma bicicleta na rifa da cantina — e nem me lembrava de ter comprado o bilhete. Meu casaco, que estava perdido, foi encontrado. Todas as meninas pareciam encantadas comigo, riam de tudo o que eu falava, me rodeavam no recreio, me tratavam como se eu fosse o cara mais interessante, bonito e especial do colégio.

       Finalmente, quando já estava chegando em casa, dei de cara com dona Lineusa, que vinha sorrindo, comovida, em minha direção. Sem que eu entendesse o motivo, a velha me abraçou, emocionada.

       — Já me contaram tudo, meu filho.

       Gelei.

       — Tudo? — Eu só conseguia gaguejar.

       — Tudo. Um homem que passava por aqui de manhã cedo viu quando você tentou salvar meu gatinho.

       — Mesmo? — Meu espanto não tinha limites.

       — Ele contou como você foi carinhoso com o Fofinho, como tentou reanimá-lo. Infelizmente, não foi possível. Alguém fez uma crueldade terrível com ele.

       Eu só queria desaparecer dali bem rápido. Mas, antes de me desvencilhar dos agradecimentos da velha, me ocorreu perguntar:

       — A senhora conhece o homem que me viu na calçada?

       — Nunca o vi por aqui. Era um senhor chinês.

      

Entrei em casa ventando e corri para o quarto, disposto a quebrar a imagem em mil pedaços. Puxei o travesseiro da cama com violência, sacudi a fronha e deixei cair no chão o embrulho. Apesar da queda, o objeto rolou suavemente pelo tapete, permitindo que o tecido se desenrolasse sem pressa e que seu conteúdo se revelasse aos poucos.

       Sem prestar muita atenção, peguei um martelo e ergui-o bem alto, para dar mais impulso ao golpe. Mas, ao ver a imagem desembrulhada, minha mão ficou paralisada.

       Diante de mim, sobre o tapete, estava caída a imagem de um gatinho de louça branca. A figura, em si, não teria nada de incomum, não fosse o estranho chapéu de guizos encaixado no alto de sua cabeça.

 

                     Sete ossos e uma maldição

Se não fosse pelos pesadelos que vinha tendo nos últimos dias, Clara não acreditaria na orientação recebida da tia. Mas eles não falhavam. Toda noite, uma mulher surgia no meio de seus sonhos e sussurrava: “Meus ossos.” Não conseguia ver o rosto da mulher, nem mesmo suas roupas. Só uma silhueta ameaçadora. E apavorante. Invariavelmente, acordava ensopada de suor frio.

       Por isso, quando a tia, que era espírita, mandou que queimassem todos os móveis e objetos de seu quarto, não protestou.

       Nem poderia, depois de ter visto o que viu: a velha em transe, olhos esbugalhados, a boca muito aberta, com uma voz embolada, ordenando a destruição de seu quarto. Era a primeira vez em que ia à sessão espírita que seus pais freqüentavam. E eles só a tinham levado até lá depois que Clara relatara os estranhos sonhos que a andavam assaltando. O vulto apavorante. A voz aflita, nervosa: “Meus ossos.”

       Foi a tia quem matou a charada. Segundo ela, uma vizinha invejosa teria jogado sobre seu quarto uma mistura macabra feita de ossos pulverizados e ervas daninhas. Magia negra mesmo. Agora, o jeito era jogar tudo fora, queimar bem queimado, e defumar o quarto com as ervas que a vovó incorporada na tia indicava.

       Ninguém na família ousava contestar as orientações que a tia recebia quando estava incorporada. Ela era como que a sacerdotisa que revelava os mistérios para todos. Às vezes, recebia uma vovó, outra vezes, um caboclo, até mesmo um exu já tinha tomado seu corpo para dar um recado urgente.

       Por todas essas evidências, Clara não reclamou quando viu seus móveis, suas bonecas, o travesseiro, diários, tudo jogado numa grande fogueira no quintal.

       Para compensar a tristeza, ganhou um quarto novo, todos os seus livros em novas edições e seis bonecas, cada uma mais bonita do que a outra. Estava justamente arrumando a estante quando percebeu uma caixa fechada no chão do quarto. Com tantas novidades, provavelmente, não tinha percebido o pacote.

       Ao abri-lo, teve uma surpresa. Era mais uma boneca. Incrivelmente bonita. Grande, como um bebê de verdade, mas era uma mocinha, com trajes típicos de dançarina espanhola, um vestido de seda vermelha com rendas pretas e uma mantilha rendada também preta, a boca muito vermelha, e uns olhos muito negros, brilhantes como estrelas cadentes. Deu-lhe o nome de Muriel.

       Não ficava sentada como as outras, com as pernas duras esticadas para a frente. Um mecanismo de arame dava a seu corpo uma extraordinária flexibilidade.

       Clara sentou-a entre as outras bonecas e um ursinho, com as pernas cruzadas numa pose sensual e as mãos nos cabelos, como se os ajeitasse para ir a uma festa.

       Linda, linda.

      

Naquela noite, não teve a visão do vulto. Mas foi acordada por uma gargalhada estridente. Uma gargalhada de mulher. Sentou-se na cama, sobressaltada, mas não havia nada no quarto. Confiante nos poderes da tia, voltou a dormir, pensando que talvez uma mulher bêbada tivesse feito barulho na rua.

       Pela manhã, no entanto, ao lado de uma de suas bonecas novas, havia um punhado de cabelos. Cabelos de náilon. Após um exame rápido, verificou que Amelinha, uma boneca de ar meigo e vestido xadrezinho azul-claro, tinha tido parte de seus cachos arrancados.

       Chamou a mãe correndo. Mas esta não lhe deu muita atenção. “Essas bonecas de hoje em dia são muito mal-acabadas mesmo”, resmungou, enquanto terminava de se arrumar para ir para o trabalho.

      

Durante algum tempo, nada especial aconteceu. Mas, cerca de uma semana depois, sonhou novamente com a gargalhada. E, ao acordar, encontrou Dinda, uma boneca com ar de tia velhinha e boa, com um corte profundo na garganta.

       Nesse dia, decidiu arrumar novamente as bonecas. Tirou todas da estante, arrumou seus cabelos, disfarçou a careca de Amelinha com um lenço, botou um laço de fita no pescoço de Dindinha, passou um pano em cada uma para tirar a poeira e voltou a colocá-las na estante.

       Deu dois passos para trás para observar melhor o conjunto. Muriel voltou a chamar sua atenção. Sem dúvida, era a mais impressionante. Ao contrário das outras, possuía um olhar vivido e inquieto. Clara andou pelo quarto enquanto observava as bonecas. Parecia que só os olhos de Muriel a acompanhavam. E teve também a impressão de que o sorriso da espanhola estava mais aberto, como se fosse estourar numa gargalhada a qualquer momento.

       “Que bobagem”, pensou. “Ando impressionada demais com esses sonhos.”

       Mas, nos dias seguintes, a idéia começou a tomar forma em sua mente. A cada manhã, uma das bonecas aparecia maltratada. Era um dedo arrancado, um olho furado, a cabeça virada para trás, braços e pernas numa posição totalmente diferente daquela em que a menina a havia colocado. Só Muriel parecia cada vez mais viçosa, em sua pose orgulhosa, soberana da estante, sorriso paralisado e os olhos que seguiam Clara por todo o quarto.

       Consultou a mãe, que consultou a tia, que consultou os espíritos. E o resultado de tantas consultas foi surpreendente.

       Um dia, foi chamada à sessão onde a tia reinava soberana. Ali estava novamente a velha, com seu olhar esgazeado, a voz embolada e o pesado silêncio que impunha ao fim de cada frase.

       — Qual é o problema? — perguntou o espírito incorporado na tia. Dessa vez, não era a vovó que sempre lhe enviava orientações. Clara não conhecia a entidade. A voz era mais grossa, como a de uma mulher bêbada. E possuía sotaque espanhol. Nada agradável. Ainda assim, era a única pessoa — se é que se pode chamá-la assim — a quem Clara poderia pedir ajuda.

       — Alguém, ou alguma força maligna, está maltratando minhas bonecas — explicou a menina. E, antes que pudesse expor suas desconfianças com relação a Muriel, foi cortada pela voz grossa.

       — É você.

       — Como assim? — Clara achou que não tinha compreendido a explicação.

       — A força maligna é você.

       Subitamente, a entidade sorriu e seus olhos semicerrados brilharam na sala escura. Era o sorriso e o olhar de Muriel.

       Clara recuou, assustada.

       — Quem é você? — perguntou, quase gritando e recuando ainda mais. Foi contida pelos braços amorosos da mãe e dos outros participantes da sessão.

       Ninguém ali acreditaria se ela dissesse que a entidade incorporada era um ser maligno. E foi este mesmo ser quem falou, sem tirar o sorriso do rosto.

       — Esta menina está possuída.

       Clara jamais esqueceria da expressão no rosto da mãe. Uma mistura de horror e pena, mas jamais de dúvida. O que as entidades incorporadas na tia diziam era sempre a verdade absoluta.

       Percebeu que não havia mais ninguém a quem pedir socorro.

      

Foi trancada no quarto. Ela e suas bonecas. Ela e Muriel, cujos olhos negros faiscavam perigosamente. Mas Clara não teve medo. Encarou o pequeno ser que lhe sorria da estante e agarrou-a pelos cabelos.

       Sem pestanejar, atirou a boneca com força contra a parede.

       Nada aconteceu.                                                          

       Muriel caiu no chão, com seu jeito de boneca, sem alterar o sorriso nem seu olhar de carvão em brasa. Clara pegou, então, seu canivete suíço e cravou-o no coração da boneca. Já fora de si, foi rasgando a borracha macia que imitava pele, rasgando as roupas, o véu, raspando cabelos, furando a boneca, queria acabar com Muriel, eliminar sua força maligna.

       Por fim, exausta, olhou para as tiras de borracha e tecido que se espalhavam pelo chão. Estava, ali, ofegante, observando o estrago que tinha feito, quando um objeto branco chamou sua atenção. Estava embolado nas tiras de borracha. Aproximou-se e puxou-o com a ponta dos dedos: era um osso, um pequeno osso.

       À medida que vasculhava os restos da boneca, descobria outros semelhantes. Absurdamente pequenos para serem de gente, mas com o formato exato de ossos humanos: dois fêmures, um crânio, caixa torácica, artelhos, bacia e uma omoplata.

       Sete ossos recheavam a boneca.

      

Estava tão atônita com a descoberta que não se surpreendeu com a brusca abertura da porta de seu quarto. Dali, a entidade de sotaque espanhol e sua mãe a observavam. Foi a coisa estranha quem disse:

       — Não falei? Foi ela quem destruiu as bonecas. Essa menina está possuída.

       E após uma pausa:

       — Vamos cuidar dela, não é mamãe?

       Clara nem gritou.

       Sabia que não adiantaria.

       Olhou para a entidade incorporada na tia e viu apenas seus olhos, negros e brilhantes como pequenas contas de carvão em brasa.

 

                     O fruto da figueira velha

Denise não acreditava em casa mal-assombrada. Não há nada que dez baldes de tinta fresca não resolvam, costumava dizer. Além disso, ficou louca quando viu o casarão à venda. Era simplesmente espetacular. Tinha um excelente terreno para fazer jardim e quintal, três salas imensas, cinco quartos, três banheiros e vários cômodos que poderiam ser adaptados. O lugar perfeito para uma recém-casada que pretendia ter muitos filhos.

       Velha era, até demais. Exigiria um bocado de reformas. Mas o preço era incrivelmente baixo. Jamais conseguiria comprar uma casa daquelas tão barato.

       Não foi difícil convencer o noivo a trocar o sonho de um pequeno apartamento de sala e quarto por uma mansão maravilhosa. Compraram o imóvel e levaram um ano inteiro fazendo obras. Ao fim do período, tinham uma casa simplesmente deslumbrante. A antiga fachada descascada agora exibia uma alegre pintura amarela. Portas, janelas e pisos tinham sido recuperados. Cômodos que antes cheiravam a mofo deixavam passar fartas lufadas de ar fresco. Canteiros de flores e ervas aromáticas substituíam o terreno baldio que antes rodeava a casa. Tinham capinado e replantado tudo.

       Denise só manteve uma antiga figueira. Era simplesmente magnífica com seu tronco forte e uma profusão de galhos. Quem chegasse à casa, veria, em primeiro lugar, a figueira, que reinava, soberana, na entrada. Em seguida, prestaria atenção à moradia impecavelmente reformada.

       Agora, ali, tudo era claro, colorido e cheirava bem.

      

Verdade que a vizinhança ainda evitava o lugar. Até mesmo o carteiro relutava em se aproximar. Mas nada impediu o jovem casal de mudar-se para lá logo após a lua-de-mel.

       Denise ainda se lembrava bem do dia da mudança, os dois pegando carona no caminhão e olhando as ruas com uma curiosidade infantil. Foi nessa ocasião que ela reparou na igrejinha que ficava a poucos quarteirões da casa. Uma graça. Apesar de sua arquitetura antiguinha, era obviamente nova, com a pintura ainda fresca e um sino que ainda reluzia.

       Denise e Tiago capricharam na primeira noite que passaram na nova residência. Montaram uma bela mesa no jardim e serviram ali um jantar especial, com toalhas bordadas, talheres novos, flores e velas.

       Apaixonado, o casal tomou uma taça de champanhe, enquanto admirava a propriedade e engolia a comida feita por eles mesmos — que nem estava tão boa assim, mas nem ligaram.

       Nenhum dos dois era bom cozinheiro. O romantismo foi o suficiente para ignorarem o bife duro e o arroz mal cozido. Mas, na hora da sobremesa, foi impossível engolir o pudim. Feito com todo o amor do mundo — mas nenhuma técnica culinária —, foi deixado de lado logo depois da primeira colherada. Estava intragável.

       O jeito era rir do desastre. Rir muito, jogando a cabeça para trás, olhando a lua e dando muitos beijos.

       Foi assim, com a cabeça jogada para trás e plena de felicidade, que Denise percebeu que a figueira estava repleta de frutos. À luz do luar, os figos brilhavam, cintilantes e convidativos.

       Nem pestanejou. Correu para a árvore e colheu o mais bonito. Seria a sobremesa certa para aquela noite perfeita — só estragada por um errinho de nada na receita do pudim. Voltou para a mesa rindo e mordendo a fruta. Estava deliciosa. Madura, carnuda e doce como a melhor das sobremesas. Comeu uma metade, deu a outra ao marido, e foram dormir.

      

Nada explicaria o terrível pesadelo daquela noite. A brisa estava fresca, o quarto arejado, os lençóis eram novos e macios, o jantar tinha sido leve e ela estava muito feliz. Tratava-se de uma realidade tão perfeita que era consigo mesma que Denise sonhava. Sonhava que estava dormindo em sua casa nova, ao lado de seu marido, depois de um alegre jantar no jardim.

       No sonho, experimentava passar o peito do pé de leve sobre o lençol. Ia sentindo a maciez do tecido como um carinho até que seu pé tocasse o corpo de Tiago. Então, voltava para a posição inicial e começava tudo de novo. Deslizar a pele pelo algodão fresco, tocar a perna do marido, recolher o pé.

       No entanto, num desses movimentos, esbarrou numa coisa diferente. Em vez da suavidade do tecido ou do calor do corpo de Tiago, seu pé tocou numa superfície áspera e úmida, como um osso recoberto por escamas geladas. Abriu os olhos, sobressaltada, e viu uma criatura sentada em sua cama, entre ela e o marido.

       Não dava para saber ao certo do que se tratava, se bicho ou assombração. O corpo, muito magro, era recoberto de couro rugoso. A coisa eslava sentada de cócoras, com os joelhos dobrados, mas não da maneira como uma pessoa encolhe as pernas. E os pés e mãos, mais parecidos com garras, lhe diziam que aquilo, decididamente, não era humano.

       Nem precisaria dizer, bastava olhar o rosto. A cabeça pendia do pescoço e girava em todas as direções como a de uma galinha. Mas os olhos estavam cravados nela. Miúdos, brilhantes, tão estúpidos quanto cruéis.

       Embora a coisa não a tocasse com as mãos, Denise sentia a garganta comprimida de tal modo que não conseguia gritar. Tampouco podia mover o corpo. Muda e paralisada, viu quando a criatura abriu a boca — seria aquilo um sorriso? — e lhe disse:

       — Gostaria de saber quem a autorizou a roubar minhas frutas.

       Denise queria se defender. Não tinha roubado nada. A casa era sua. Mas a voz não saía. A criatura, no entanto, pareceu ler seus pensamentos.

       — A casa é sua? — Uma risada debochada ecoou pelo quarto. — Quem lhe contou um absurdo desses? Esta casa me pertence. Ela e tudo o que está dentro dela.

       Antes que Denise pudesse retrucar, o estranho ser pulou para o chão e completou, sibilando:

       — Inclusive você.

      

Dizem que quando uma pessoa morre vê toda a sua vida passar diante dos olhos numa fração de segundo. Coisa parecida aconteceu com Denise. De repente, tudo o que já tinha ouvido falar a respeito de fenômenos sobrenaturais passou por sua mente ao mesmo tempo. Informações às quais jamais dera a menor importância. Histórias que sempre julgara pertencerem ao folclore e às crendices populares. Subitamente, tudo fazia sentido, tudo parecia totalmente real.

       Figueiras são as casas do diabo, sempre lhe dizia sua avó. O tinhoso escolhe essas árvores como moradia porque elas foram amaldiçoadas por Jesus.

       Denise nunca dera muito crédito às histórias da avó. Tivesse prestado atenção nelas, teria desconfiado do casarão tão barato, do pavor que a vizinhança manifestava do local. Mas nunca tinha sido supersticiosa.

       — Superstição? — debochou o diabo, lendo seus pensamentos. — Ora, minha querida, você é minha propriedade e está em meus domínios. E roubou uma fruta da minha árvore. Vai ter que devolvê-la.

       Sentada na cama, quase sufocando de pavor, Denise não conseguia responder, nem se mover, nem sequer respirar direito.

      

Quando o grito se soltou de sua garganta, Tiago deu um pulo. Já era manhã alta. Sentada na cama, Denise uivava como um bicho selvagem, na mesma posição em que estivera enquanto o demônio lhe falava as coisas horríveis que escutara. Teria dormido daquele jeito? Sentada? Não era possível. A impressão era de que fora tirada dali, inconsciente, e acabara de ser devolvida a seu quarto.

       Tiago tentava acalmá-la. Dizia mil vezes que tudo não passara de um pesadelo. Mas nada adiantava. Denise ainda sentia inteiro o horror da presença, como se a besta apenas tivesse se tornado invisível, mas continuasse ali.

       Desde essa noite, não conseguiu mais dormir direito. Mal anoitecia, seu coração ficava pesado, cheio de pressentimentos. O sono era interrompido a toda hora por sustos que a faziam abrir os olhos na escuridão. Não via nada diferente no quarto, mas tinha certeza de que o demônio estava ali, com seus olhos estúpidos e cruéis fixados nela.

       E foi assim, noite após noite. Denise emagreceu, ganhou olheiras profundas, tornou-se frágil e nervosa. Nada lembrava a jovem apaixonada e cheia de vida que se casara tão pouco tempo atrás.

       Dois meses mais tarde, teve uma notícia. Estava grávida. Em vez de ficar feliz, como era de se esperar, caiu no choro. Não sabia por que, mas tudo o que aquela gravidez lhe dava era um medo imenso. Como para confirmar seus piores presságios, naquela noite, o bicho medonho voltou.

       Estava quase adormecendo quando sentiu que garras ásperas e frias tocavam seu rosto. Mesmo sem abrir os olhos, sabia quem estava a seu lado. Podia sentir seu hálito metálico e ouvir seus passos cambaleantes.

       — Não adianta fingir que está dormindo. Sei que você me escuta — disse a coisa, com sua voz falsamente meiga.

       Não era faz-de-conta. Denise não conseguia se mexer, nem falar, nem gritar. E foi assim, paralisada, que escutou a voz do demônio pela última vez.

       — Não quero perturbá-la demais, minha menina — começou ele, pigarreando. — Mulheres grávidas devem ser deixadas em paz. A última coisa que eu desejaria era que esse doce fruto que você carrega no ventre azedasse por conta de seu nervosismo.

       O peçonhento pulou para o chão, e continuou falando enquanto andava de um lado para outro, balançando a cabeça, mas sem jamais tirar os olhos de sua presa.

       — Mas, pense bem, minha linda. Agora, você terá uma chance de ouro de pagar a dívida que tem comigo. Você ficou com meu fruto. Eu fico com o seu. Tudo muito justo. Basta que você me entregue a criança e prometo não voltar a perturbar seu sono.

       Mesmo impossibilitada de mover-se ou gritar, Denise agitou-se de tal maneira que seu interlocutor começou a rir.

       — Ora, ora, não entendo por que tamanha indignação. Estou lhe propondo um pagamento absolutamente justo pelo roubo que você cometeu. E, na verdade, não é bem uma proposta. Estou apenas lhe dando a chance de comportar-se com dignidade e de corrigir seu erro. Se você não me entregar essa criança por bem, farei exatamente o que você fez comigo: invadirei seus domínios e a tirarei de você como quem arranca uma fruta do galho.

       Dado o recado, o demônio desapareceu. E cumpriu sua promessa. Não apareceu mais nos meses seguintes.

      

A ausência do tinhoso não acalmou Denise. Quanto mais se aproximava a data do parto, mais tudo lhe parecia um pesadelo real.

       Um dia, Tiago passava pela rua, preocupado com o estado da esposa, quando viu a igrejinha. Era a mesma que tinham avistado no dia da mudança. Estava aberta. Da rua, era possível perceber que não havia ninguém ali dentro. Assim mesmo, resolveu entrar e rezar um pouco.

       O interior da pequena igreja era mal iluminado. Mal dava para perceber direito os detalhes da construção. Mas era evidentemente nova ou tinha sido recém-reformada porque, em vez do aroma adocicado de incenso que costuma impregnar as igrejas, ali o que predominava era cheiro de tinta fresca.

       Tiago aproximou-se do altar, ajoelhou-se e, antes mesmo de fazer o sinal-da-cruz e começar a rezar, viu que um homem se aproximava. Era o padre. Parecia bastante jovem.

       — Posso ajudá-lo? — perguntou o pároco. Sua voz era suave e inspirava confiança.

       O rosto de Tiago iluminou-se. Sim, se havia alguém que podia ajudar naquela situação era um padre. Contou-lhe tudo o que acontecera, sem omitir nenhum detalhe. Por fim, foi tranqüilizado pelo jovem religioso.

       — Meu filho, não se preocupe com mais nada. Agora, esse assunto está em minhas mãos. Hoje à noite, farei uma visita a sua esposa e conversarei com ela.

      

À noite, conforme o prometido, o pároco lhes fez uma visita. Novamente, ouviu toda a história, agora contada por Denise. E repetiu as mesmas palavras que já tinha dito a Tiago:

       — Não se preocupe mais com isso, minha filha. O poder que eu represento é muito forte. Ninguém roubará aquilo que só pertence a meu senhor. Assim que a criança nascer, virei buscá-la. Ela ficará comigo na igreja. Lá, ela estará a salvo.

       Embora jovem, o padre transmitia imensa segurança e fé. A voz era puro conforto; os olhos, só doçura. Denise sentiu imediatamente que podia confiar nele. A partir daquele dia, não teve medo de mais nada. O demônio não perturbava mais seu sono, ela se alimentava bem e chegava até mesmo a cantarolar enquanto comprava as roupinhas para o bebê e decorava seu quarto.

       Ao fim do nono mês, teve seu filho, um menino forte e saudável. Nem chegou a levá-lo para casa. Embrulhou-o numa manta de lã azul-clarinha, como o céu, e saiu diretamente do hospital para a igreja, onde o padre já a esperava.

       — O senhor acha que ele vai precisar ficar muito tempo aqui? — perguntou, aflita por ter que se separar do bebezinho.

       — Não, minha filha. Basta que ele durma aqui esta noite. Amanhã cedo, iremos batizá-lo. Depois disso, já estará consagrado e intruso nenhum conseguirá aproximar-se dele.

       Aliviada, Denise deu um beijo na testa do menino e foi para casa, seguida de Tiago.

      

Na manhã seguinte, bem cedo, foram para a igreja, acompanhados dos padrinhos. Denise estava ansiosa, mas feliz. Tiago torcia para que o pesadelo tivesse logo um fim. Já estavam decididos a mudar de casa e começar vida nova bem longe dali.

       Era esse o assunto dentro do carro, onde os dois casais riam para tentar disfarçar a tensão. Denise já estava até pensando que talvez pudessem se mudar para outra casa antiga.

       — Desde que tenha uma boa igreja por perto — completava o padrinho, que nunca tinha levado aquela história de figueira muito a sério.

       — A verdade é que sempre ficamos impressionados demais com as forças do mal — dizia a madrinha. — Acho que o maior poder que elas têm vem do nosso próprio medo. Quando decidimos enfrentá-las, não resistem.

       — Bem, talvez não seja bem assim — ponderou Tiago, que ainda guardava bem vivos os gritos apavorados da mulher nas piores noites.

      Mas o padrinho interveio:

       — Ora, Tiago, se não fosse assim, o tal demônio teria aparecido nesta noite mesmo para buscar a criança. Ele apareceu?

       Denise admitiu que não. Nada lhe perturbara o sono.

       — Pois então — teimou o padrinho. — Vocês ficaram impressionados demais com essa história.

       A conversa seguia tão animada que o grupo chegou ao fim da rua sem ter parado na porta da igreja.

       — Passamos do ponto — disse Tiago, ainda rindo. — Vamos ter que voltar.

       Fizeram a manobra no carro e retornaram, desta vez prestando atenção. Mas não viram igreja nenhuma.

       — Tem certeza de que é aqui? — perguntou a madrinha.

       — Claro! — respondeu Tiago, já apreensivo.

       Passaram novamente pela rua toda. Não havia sinal de igreja por ali.

       Toda a tranqüilidade de Denise tinha desaparecido. Sem dar ouvidos às ponderações dos padrinhos, saltou do carro e começou a correr a calçada de cima para baixo como uma louca.

       Finalmente parou, com os olhos arregalados, fixos num ponto de um terreno baldio. Todos a seguiram.

       No centro do terreno, imaculadamente limpo, só havia uma pequena planta. Uma muda de figueira com cerca de cinqüenta centímetros de altura.

     Ao lado da muda, um fiapo de lã azul misturado com a terra denunciava que alguma coisa tinha sido enterrada ali.

 

                       A procissão

Eram quatro amigos, todos estavam na mesma rua deserta no meio da madrugada, mas foi só Adriano quem viu a procissão.

       Nem Tomé, nem Carlos, nem Marita perceberam o motivo da perturbação do amigo, que parou, de repente, com os olhos arregalados na direção do fim da rua. Bem ali, na curva, ele viu surgir um estranho grupo de mulheres.

       Elas vinham em passos lentos, com as cabeças cobertas por véus negros e círios acesos nas mãos. No entanto, ao contrário de uma procissão normal, não havia nenhum santo à frente do grupo. Nenhuma delas rezava ou carregava um terço. Simplesmente vinham descendo a rua, em silêncio absoluto, sem olhar para os lados ou desviar de seu caminho.

       Ali, havia mulheres de todas as idades. Desde as muito idosas até meninas. Algumas eram mesmo extraordinariamente bonitas, com a pele cintilante sob a luz fraca da lua. Mas todas exibiam a mesma expressão oca, o mesmo rosto impassível, embora não desprovido de um toque de maldade.

       Sim, porque o conjunto não despertava ternura ou compaixão, mas medo. Alguma coisa absolutamente ameaçadora emanava dali. Adriano sentiu um arrepio desagradável. Mas ainda não estava realmente assustado. Ainda não tinha percebido que só ele conseguia ver a horrível procissão.

       — Céus, o que será aquilo? — perguntou ele em voz alta, crente que todos viam a mesma coisa.

      Ninguém entendeu coisa nenhuma.

       — Aquilo o quê? — perguntaram os amigos, olhando na mesma direção de Adriano, e vendo apenas a rua deserta.

       Mas o menino mal conseguia falar. A lenta aproximação das mulheres o apavorava. Quanto mais elas chegavam perto, mais ele percebia detalhes que teria preferido ignorar. Agora, tinha certeza de que não se tratava de uma procissão comum. E também de que aquelas mulheres não estavam exatamente vivas. Não sabia bem o que era aquilo. Mas não eram pessoas de carne e osso.

      

Ficou ali, totalmente estatelado, enquanto o cortejo passava diante dele. De nada adiantaram os chamados dos amigos. Ele não conseguia falar nem explicar coisa alguma. Parecia hipnotizado.

       Aos poucos, começou a distinguir alguns rostos conhecidos. Dona Dedé, uma mulher mal-humoradíssima que trabalhava no mercado. Mas também Altamira, a avó de um amigo que havia morrido uns cinco anos antes. E Viviane, uma menina que tinha se mudado para uma cidade vizinha fazia tempo.

       Aquilo não fazia o menor sentido!

       Mas sua surpresa foi completa quando percebeu, já entre as últimas fileiras, a avó e a mãe de Marita. Pior, a própria Marita estava ali, com a expressão tão vazia e cruel quanto a das outras.

       Não parecia a sua amiga, sempre tão sorridente e meiga. A Marita que desfilava sob o véu negro era evidentemente um ser maligno, embora parecesse tão etérea e flutuante no meio da procissão.

       A Marita fantasma (pois àquela altura, ele não tinha explicação melhor para o estranho fato) passou por Adriano e por si mesma sem se dar ao trabalho de desviar o olhar.

       Completamente atordoado, o menino olhou para o lado. Ali estava Marita, em carne e osso, evidentemente preocupada com o nervosismo dele.

       Voltou a olhar para a procissão. Ali estava Marita, feito um zumbi.

       Mas as surpresas ainda não tinham terminado.

       Na última fileira da procissão, duas mulheres seguravam pelas mãos o único menino do grupo, que as acompanhava sem demonstrar surpresa ou medo. Não demonstrava nada. Tinha a fisionomia tão apática quanto a das mulheres. A única coisa que chamava a atenção em seu jeito era o modo de levar a mão ao pescoço a todo momento.

       Só quando o cortejo já ia longe, Adriano conseguiu falar. Mesmo assim, não teve coragem de contar tudo. Não conseguiria contar para Marita que a tinha visto ali juntamente com a mãe e a avó.

       Ainda assim, foi a ela que dirigiu a pergunta que o intrigava:

       — Você tem idéia do que possa ser isso?

       Mas Marita parecia tão surpresa quanto ele.          

       — E o menino, é alguém que a gente conhece? — quis saber Tomé.

       — O rosto não me era estranho — disse Adriano. — Parecia um menino da terceira série, um lourinho, magrelo, sabe qual é?

     — Acho que sei. Ele mora na minha rua — disse Marita.

      

No dia seguinte, eles souberam tudo sobre o garoto. Chamava-se Nando, tinha dez anos, estava mesmo na terceira série, morava mesmo na rua de Marita.

       E tinha sido encontrado morto pela manhã, em sua cama. Aparentemente, morrera engasgado durante a noite. O médico, chamado às pressas para tentar salvá-lo, encontrou um pequeno pedaço de osso preso em sua garganta.

       Não é preciso dizer o quanto Adriano ficou assustado com a notícia. Mal tinha conseguido dormir depois de ter visto o cortejo macabro. Aquela notícia, logo pela manhã, só confirmava suas suspeitas: fosse o que fosse que tivesse visto na noite anterior, era maligno. E ele precisava descobrir sua origem.

       Nem Carlos, nem Tomé, nem Marita concordavam com ele. No opinião dos três, melhor seria esquecer a estranha visão.

       — Não é bom se meter com essas coisas — insistiu Carlos. — Isso tem cara de magia negra.

       — Também acho — apoiou Marita. — Minha avó sempre me avisou para ficar bem longe de bruxarias.

       A menção à avó despertou a atenção de Adriano.

       — Ela costuma conversar essas coisas com você? — perguntou ele.

       — Minha avó vem de um lugar onde todo mundo acredita em assombração, bruxaria, essas coisas — explicou Marita. — Ela é cheia de superstições.                                        

       — Mas ela entende disso? — insistiu Adriano.

       — Entende um bocado — afirmou a menina. — Mas não me conta quase nada. Sempre que pergunto, ela diz que, quando chegar à idade certa, vou saber tudo o que preciso.

       — O que precisa saber para quê? — perguntou Tomé.

       — Não sei, ela não diz.

       Adriano ainda queria saber muitas coisas da amiga, principalmente se ela havia comentado alguma coisa com a avó a respeito da procissão da noite anterior. Mas, subitamente, a mãe de Marita apareceu e mandou a menina de volta para casa. Parecia zangada, como se não lhe agradasse ver a filha em companhia dos amigos. E Marita obedeceu muito rapidamente, meio assustada, como se soubesse muito bem que não deveria estar ali.

      

Adriano ficou cismado. Não gostou do jeito como a mãe de Marita o tinha encarado. Era um olhar ruim. Foi para casa e tentou botar as idéias em ordem.

       Não havia nenhuma dúvida: a avó, a mãe e Marita estavam na procissão. Mas a menina também estava ao lado dele. Então, aquela era um cortejo de almas, de almas de pessoas vivas, que continuavam a cuidar de seus afazeres enquanto uma parte delas voava para longe. Mas para quê? Que sentido teria aquilo?                                            

       Depois de muito matutar, tomou uma decisão arriscada. Dirigiu-se à casa de Marita. Não sabia muito bem o que pretendia investigar, mas se havia uma resposta, só poderia ser encontrada na casa das três mulheres.

      

Marita morava com a mãe, a avó e um cachorro numa casa meio afastada, rodeada por uma cerca de tabique que ocultava o movimento interno de quem passasse pela rua. Não que precisasse. Quase ninguém andava por ali.

       Adriano nunca tinha passado do portão, que cedeu a um leve toque de sua mão, e surpreendeu-se com a pobreza e o desleixo do lugar. O pequeno pátio da frente estava tomado pelo mato alto e poças de lama. A pintura da parede estava descascada em muitos pontos e muito suja em toda a sua extensão. Na parte lateral da casa, roupas velhas e encardidas balançavam-se num varal. Embora o sol estivesse a pino, o lugar dava arrepios.

       Mal tinha dado dois passos, Adriano ouviu uma voz áspera e pouco hospitaleira:

       — O que você quer?

       Era a avó.

       — Queria falar com Marita.

       — Ela não pode atender. Vá embora — disse a velha, enquanto caminhava na direção dele.

       Era a mesma da procissão, Adriano não tinha a menor dúvida. À luz do sol, reconheceu as unhas sujas e compridas, o cabelo desgrenhado preso na nuca, a pele enrugada e cheia de pêlos embaixo do nariz, feito um bigode.

       Antes que pudesse pensar num pretexto para ficar mais um pouco e observar melhor o lugar, sentiu que a mulher lhe cravava as unhas no braço e o conduzia até o portão.

       — Vá embora — repetiu a mulher. — Não gostamos de visitas.

      

À tarde, na escola, Marita parecia assustada.

       — Por favor, não volte lá em casa — pediu a ele. — Minha avó fica muito brava.

       — Bom, ela não me faria nenhum mal, faria?

       — Não conte com isso — respondeu a menina, com a voz ainda mais amedrontada.

       Adriano fez a pergunta de propósito. Queria dar espaço para que a amiga se abrisse. Tinha certeza de que ela sabia de alguma coisa. Mas Marita trancou-se e não falou mais nada.

       Ele estava se dirigindo à sala de aula, quando foi parado por uma antiga faxineira.

       — Fique longe dessa menina, meu filho — aconselhou a mulher.

       Intrigado, decidiu interrogar a senhora.

       — Mas o que há de errado com ela?

       — Você não sabe? — perguntou a mulher, espantada, como se a resposta fosse óbvia. E, baixando a voz, quase sussurrando, e olhando muito para os lados como se temesse ser surpreendida por alguém, confidenciou:

       — Elas são matitas. Todas elas.

       Adriano já tinha ouvido falar nas matitas pereiras, mas sempre julgara que fosse superstição do povo. Eram mulheres bruxas, com um incrível poder para praticar o mal. Até onde sabia, era uma espécie de maldição que passava de mãe para filha, mas, em algumas regiões do país, acreditava-se que podia também atingir os homens.

       — O que a senhora sabe sobre isso? — perguntou, ansioso.

       A velha afastou-se resmungando.

       — Deixe de ser curioso e fique longe delas.

      

Mal conseguiu se concentrar nas aulas. Volta e meia espiava Marita com o rabo do olho. Não parecia nada bruxa. Sempre tinha sido uma amiga leal e doce. Além disso, suas roupas limpas e sua aparência bem cuidada não combinavam nem um pouco com o ambiente desleixado que tinha visto em sua casa.

       Alguma coisa lhe dizia que a amiga não participava do destino macabro de sua família. Ou, pelo menos, que, se pudesse escolher, escaparia dele.

       O problema era abordar o assunto com Marita, que sempre parecia tão assustada e fugidia quando ele tentava ir mais fundo.

       Quando tocou o sinal de fim de aula, tentou falar novamente com a amiga. Mas ela novamente se esquivou. E dessa vez foi bastante firme.

       — Chega, Adriano! Esqueça isso, por favor.

      

Como esquecer? Como apagar da memória a procissão, a casa decadente, a morte do menino, o contraste entre o ambiente lúgubre do casebre e o luminoso sorriso de Marita? Nada fechava, nada combinava com nada.

       Algumas noites mais tarde, suas dúvidas ficaram ainda mais aguçadas. Estava andando por uma estrada próxima àquela onde tinha visto a procissão. Apesar da escuridão medonha, andava distraído e enfiado em seus pensamentos. Ia pelo meio da rua deserta, nenhum carro ou gente passava por ali àquela hora. Ia chutando pedrinhas, tão ocupado com suas perguntas sem respostas que nem se preocupou em olhar para a frente.

       Quando percebeu, uma mulher passava a seu lado. Depois, outra. E mais outra. Todas tão silenciosas, nem mesmo seus passos faziam barulho. Continuou andando sem erguer os olhos, mas tinha certeza: estava caminhando pelo meio da procissão. Um arrepio desagradável percorreu sua pele. Detestava admitir, mas estava com medo. Sentia muitas pessoas cruzando seu caminho. Elas não desviavam. Nem ele. Cada mulher que passava, era como uma lufada de vento frio.

       Eram muitas, muitas mais do que da vez anterior. No entanto, quanto mais se aproximava do centro do grupo, o medo ia desaparecendo. Aos poucos, toda a emoção se dissipava. Nem medo, nem alegria, nem curiosidade. Só a vontade de continuar caminhando, sem parar, sem sentir, sem pensar.

       Estar cercado pelas mulheres misteriosas era perigoso, bem que ele sabia. Mas não conseguia decidir-se a ir para a margem da estrada e deixá-las passar, como da última vez. Ali, no meio delas, percebia a terrível energia que emanava de suas almas. Era irresistível.

       Depois de caminhar algumas dezenas de metros em meio às mulheres, toda a sua vontade havia desaparecido. Queria apenas continuar andando pelo meio do grupo sem pensar, sem sentir, simplesmente se deixando conduzir.

       Se pudesse raciocinar com clareza, perceberia que ali estava uma pista para compreender o que ocorria com Marita. O fato é que estar no meio da procissão nada tinha de aterrorizante, pelo contrário. Seu corpo estava leve, sua cabeça não se preocupava com nada, nenhum pensamento o perturbava. Um estranho prazer tomava conta de Adriano. O prazer de não ter que decidir, de se diluir em meio à multidão.

       Talvez Marita não se opusesse à avó e à mãe porque secretamente gostasse dos passeios noturnos. Talvez soubesse que ali estava alguma coisa terrivelmente maligna, mas não conseguisse resistir.

       Adriano também não resistia. Deixava que os pensamentos deslizassem por sua mente sem se prender a nenhum deles.

       Foi então que viu, já no fim da fila, Marita e sua mãe. Continuou andando na direção delas, na direção do fim da procissão. Passou pelas duas, que não lhe dirigiram sequer um olhar. Passou pelas últimas mulheres. E finalmente percebeu que já tinha atravessado toda a extensão do cortejo. Agora estava de novo sozinho na estrada.

       Tivesse ainda juízo — ou algum poder sobre sua própria vontade — teria sumido dali o mais rapidamente possível. Mas estar novamente sozinho lhe deu uma angústia imensa e inexplicável. Queria voltar para o grupo. Queria dissolver-se no nada mais uma vez.

       Por isso, no lugar de correr para longe das mulheres, voltou-se e foi atrás delas. Cada vez mais rápido e mais ansioso para chegar.

       Não precisou se esforçar muito. O grupo parou, sem se virar, esperando por ele. Quando Adriano alcançou as últimas mulheres, sentiu mãos frias agarrarem seus braços com firmeza.

       Retomou a caminhada, agora aliviado, leve, esvaziado de todo e qualquer sentimento. E não se impressionou nem mesmo quando viu, à margem da estrada, seu corpo caído no chão.

       Uma estranha felicidade tomou conta de sua alma. Sabia muito bem que deveria lutar contra ela e correr o mais rápido que pudesse para ocupar novamente seu corpo.

       Mas não resistiu.

 

                   Morte na estrada

Por favor, não me entenda mal. Mas não gosto de meninas. Acho esquisito o jeito delas, sempre gritando demais, rindo demais, olhando a gente e cochichando. Sempre acho que estão rindo de mim. Tenho alguns colegas que já beijaram. Eu tenho nojo. E também medo de que a menina ria de mim.

       Mas esse medo foi a minha perdição. Vou contar o que aconteceu.

       Imagino que todo mundo conheça a história da assombração da estrada. Eu conhecia desde pequeno. Meus pais também. Era assim: uma família viajava de carro quando surgia uma mulher desesperada à beira da estrada. Pedia socorro, dizia que tinha um carro caído na ribanceira próxima dali com três crianças feridas dentro dele. A família parava e ia até o local. Ao chegar lá, descobria um carro acidentado. De fato, havia três crianças feridas, mas vivas. Ao volante, estava a mãe delas, morta — e era a mesma mulher que tinha pedido socorro na estrada.

       O fato de já ter escutado a história inúmeras vezes não livrou nem a mim nem a minha família de passarem por uma situação muito parecida.

       Voltávamos de viagem. Uns dias muito divertidos no sítio de um amigo de meu pai. Vínhamos, no carro, ainda relaxados, brincando e já fazendo planos para o próximo feriado. Estávamos a pouca distância de casa quando vimos uma mulher na beira da estrada. Era bonita, bem vestida, do jeito como se arrumam as mulheres elegantes mesmo quando estão de férias. Calça jeans, camisa branca, cabelo comprido preso num rabo-de-cavalo, poucas jóias. Mas não foi nada disso que nos chamou a atenção. Foi o desespero dela.

       A mulher gesticulava, chorava, gritava, tudo ao mesmo tempo.

       Meu pai quase passou por ela sem parar, mas minha mãe gritou:

       — Pelo amor de Deus, Luís! Vamos socorrer a mulher!

       Ele nunca contrariava minha mãe.

       Assim que parou o carro, uns dez metros adiante, a mulher veio correndo até nós. Chegou com os olhos arregalados, sem fôlego.

       — Um acidente! Um acidente terrível! — dizia ela enquanto apontava para baixo de um barranco que margeava a estrada.

       Antes que ela completasse o que queria dizer, minha mãe saltou do carro e correu na direção em que a mulher indicava.

       — Corre, Luís! Tem mesmo um carro lá embaixo! — gritou minha mãe, aflita.

       — As crianças! Três crianças lá dentro... — completou a mulher, ainda arquejando.

       Meu pai largou o volante e dirigiu-se para o local, seguido de perto por minha mãe e por mim. Não olhamos para trás, para ver se a mulher nos acompanhava.

       Não acompanhava.

       Ao chegar lá, o rosto angustiado, com o rabo-de-cavalo desfeito pelo impacto, mas os olhos tão arregalados de pavor como tínhamos visto na estrada, era o da mulher ao volante.

       Morta.

       E, de fato, no banco de trás, três crianças choravam. Estavam machucadas, mas vivas.

      

Nem vou me dar ao trabalho de descrever como foram as horas seguintes. Telefonemas, ambulância, hospital, uma confusão terrível. Só muito tempo depois, chegaram os avós dos meninos — que aliás, eram dois meninos e uma menina da minha idade — e tomaram conta de tudo, assim pudemos voltar para casa.

       Levou um bom tempo para que as imagens do acidente e da mulher assombrada saíssem da minha cabeça. Uns três anos, acho. Não que eu tenha esquecido a história, mas parei de ter pesadelos, o que já era alguma coisa.

       Um dos mais freqüentes era uma cena que acontecera no hospital. A situação já estava sob controle, os médicos começaram a chegar e a levar as crianças para a enfermaria. Foi quando a menina, cujo rosto eu não conseguia ver direito, porque estava muito machucado, agarrou-se em mim. Ela me abraçou, agarrou meu pescoço. Estava muito assustada. Eu também. Mas achei que ela queria me beijar.

       O rosto ensangüentado dela me deu um nojo tamanho que a empurrei com força. Ela acabou caindo no chão, de onde foi levada, aos berros, pelos médicos.

       A cena ficou gravada na minha memória. E voltava sempre em forma de pesadelo, cada vez mais agoniado.

       Num dos primeiros dias em que eu consegui relaxar, e vinha andando pela rua calmamente, a caminho de casa, vi uma menina parada na calçada, perto da minha casa. Estava de calça jeans, blusa branca e com o cabelo preso num rabo-de-cavalo.

       Mesmo com uma roupa tão simples, ela chamava a atenção. Tem gente que é assim, parece que tem um ímã que atrai a gente. Dá vontade de ficar olhando.

       Só quando cheguei bem perto, notei que havia alguma coisa errada com ela. Acho que era a expressão do rosto, bonita, mas estranhamente vazia. Só bem mais tarde, notei seus dedos, longos e trêmulos como as antenas de um inseto. Mas, aí, já foi tarde demais.

       Eu disse “oi” e sorri. Não sabia por que, mas a desconhecida me dava vontade de ser gentil. Queria me aproximar dela.

       — Estava esperando você chegar, Tico — disse ela em resposta ao meu cumprimento.

       Disse assim, sem mais nem menos. Como se eu a conhecesse há muito tempo.

       — Você sabe meu nome? — perguntei, meio espantado.

       — Claro.

       — A gente se conhece?

       — Não tenho tempo para perguntas. Preciso que você venha comigo.

       Ela não parecia aflita. Mais por curiosidade do que por outro motivo, resolvi segui-la.

       Andamos em silêncio por um tempo. Até que não resisti e perguntei o nome dela.

       — É Dolores, não lembra? Mas pode me chamar de Dodô. Todo mundo chama.

       Eu não lembrava. E comecei a ficar preocupado. Já estávamos quase saindo da cidade, e Dodô não dizia nada. Só caminhava, sem olhar para os lados e sem prestar atenção em mim.

       Aquilo foi me deixando aflito. Tentei puxar assunto.

       — Não me lembro de onde conheço você... — gaguejei.

       Dolores se limitou a dar uma risadinha seca, que logo desapareceu de seu rosto.

       — Não lembra mesmo? — Um leve tom de deboche ao fundo.

       Nunca fui bom em manter o autocontrole. Não sabia por que, mas a situação me dava calafrios. Engrossei a voz.

       — Se você não me explicar direitinho o que está acontecendo, paro por aqui mesmo.

       Ela não pareceu abalada com minha voz alta e quase esganiçada, voz de quem está assustado.

       — Não seja idiota. Já estamos chegando.

       Aquilo mexeu com meu orgulho. Decidi ser firme e prosseguir sem demonstrar maiores medos.

       O problema é que há uma grande distância entre o que a gente pretende demonstrar e o que realmente acontece com nossos nervos.                                  

       Quer saber o que acontecia com os meus? Basta imaginar um minhocário lotado. Milhões de minhocas rebolando ao mesmo tempo, umas esbarrando nas outras, umas se enroscando nas outras. Talvez isso dê uma imagem mais exata do que ocorria com meus nervos.

       Mas resolvi contrariar a multidão de vermes molengos na qual se transformara meu sistema nervoso. Firmei a voz e disse:

       — Tá bom. Vamos lá.

       A voz saiu mais fina do que eu gostaria. Mas não tremeu.

      

Depois de uma caminhada mais longa do que eu imaginava que pudesse suportar, finalmente, Dodô parou. Parou à beira da estrada, a cerca de dois quilômetros de onde eu tinha visto o acidente que matara a mãe das três crianças.

       Foi só então que me lembrei nitidamente de onde a conhecia. Era a menina que chorava no banco de trás do carro, a mesma que tínhamos levado para o hospital. Olhando bem para seu rosto, ainda se podiam ver algumas cicatrizes. Mas era difícil reconhecer. A menina à minha frente não dava nojo, não tinha o rosto deformado, não estava em pânico. Era bonita, tranqüila e ligeiramente perturbadora.

       Dodô parou à beira da estrada e ficou olhando para um ponto lá embaixo, no barranco.

       — O que tem ali? — perguntei.

       — Por que não vai até lá e vê? — sugeriu ela, as mãos ainda mais nervosas, como se fossem estrangular alguém.

       Um pavor medonho, o sangue gelado, mas eu tinha que ir. E fui. Desci com cuidado a ribanceira e consegui vislumbrar algumas ferragens retorcidas lá embaixo.

       Não era hora de fugir. Obriguei minhas pernas a descerem mais um pouco, meus olhos a não se fecharem e minha garganta a não berrar de pavor.

       Havia uma motocicleta lá embaixo. O corpo de um rapaz, ainda de capacete, jogado no meio do mato. Pela posição das pernas, dobradas para trás, e pelo peito que não se mexia, dava para adivinhar que estava morto.

       Uma menina estava enroscada no banco do carona. E parecia ainda viva. Ao me aproximar, percebi a calça jeans e o cabelo preso no rabo-de-cavalo. Era a menina da estrada, eu tinha certeza. Mas não fugi, decidido a salvá-la.

       Cheguei perto dela, vi que respirava, passei os braços em torno de seu corpo e levantei-a. Assim que comecei a subir a ribanceira, senti que os seus dedos envolviam meu pescoço como uma planta que cresce rápido demais.

       — Calma, já vamos chegar — tentei falar. Mas era cada vez mais difícil. Seus dedos, nervosos como as antenas de um inseto, apertavam cada vez mais minha garganta.

       Antes que eu pudesse tentar me desvencilhar, vi seus olhos muito abertos. E um sorriso, que se abria à medida que suas mãos se fechavam.

      

                     O elevador

O prédio era bem antigo. Oito andares. À época da construção, foi considerado um dos mais luxuosos da cidade. Em 1930, nenhum edifício tinha oito andares, porque ninguém queria subir tanta escada, e elevador custava muito caro. Além disso, as pessoas tinham medo de subir tão alto naquela caixa de madeira — que, ainda por cima, nos primeiros tempos, vivia enguiçando. Por isso, além de elevador, o prédio também possuía um ascensorista, que trabalhava uniformizado, vestido como se fosse um general em dia de festa.

       Isso tudo meu pai me explicou assim que entramos na lata velha, que subiu rangendo os sete andares que nos levariam ao nosso novo apartamento. Novo é modo de dizer. Estava caindo de podre. Desde que ficara desempregado, meu pai morava mal. Cada casa dele durava pouco tempo, porque logo era despejado por falta de pagamento do aluguel. Ali, não ia ser diferente. Ainda bem. De todos os lugares esquisitos em que ele tinha se enfiado, aquele ali era disparado o pior.

       Não era só por causa do cheiro — um cheiro de mofo e poeira. Nem por causa das lâmpadas fracas dos corredores. Nem por causa dos muitos apartamentos vazios. Mas a combinação de tudo isso dava ao prédio um ar meio lúgubre.

       Logo na primeira noite, fui despertado por um barulho terrível. Parecia que uma máquina muito velha tinha sido posta em movimento. A coisa rangia, trincava, estalava. De repente, um ruído forte de pancada e o silêncio voltou. Mas foi por pouco tempo. Uns vinte minutos depois, a barulheira recomeçou.

       Só podia ser o elevador. E pilotado por algum vizinho bêbado ou maluco, porque a coisa não parava. Subia, descia, bufava, estalava. Dava uns minutos de pausa e começava tudo de novo.

       Não dava para dormir daquele jeito. E foi me dando um mau humor. Um mau humor que só crescia. Quando isso acontece, eu esqueço tudo: prudência, cuidado, educação. A raiva sobe até a minha cabeça como um elevador de última geração: direto, sem paradas e sem interrupções.

       Por isso, pulei da cama e fui direto para o corredor mal iluminado. O elevador estava parado no meu andar. Vazio, quietinho e silencioso. Xinguei meia dúzia de palavrões e voltei para a cama.

       Mal senti o lençol cobrir meus ombros e o barulho recomeçou. Desta vez, movido por uma raiva mais racional, abri a porta bem devagar e espiei pela fresta. O elevador continuava lá, no meu andar, tão parado quanto antes. Parecia que estava me provocando.

       Quando o dia amanheceu, eu era só nervos. Nenhuma capacidade de raciocínio, nenhuma idéia brilhante, nenhum sono. Só uma irritação medonha. Resolvi fazer uma inspeção mais cuidadosa no prédio. Vistoriei todos os corredores, o que tinha sido a recepção — e agora não passava de um hall abandonado —, as entradas de serviço, o compartimento da lixeira. Não havia nada que pudesse fazer um barulho daqueles durante a noite.

       Já estava quase desistindo quando vi um homenzinho entrar no prédio. Muito velho, encurvado e malvestido, não deu pela minha presença e dirigiu-se diretamente ao pequeno pátio que ficava atrás do prédio. Ia andando e resmungando, como fazem as pessoas já meio sem juízo. Resolvi segui-lo.

       Vi quando abriu uma portinhola ao lado da lixeira — cuja existência eu não tinha percebido — e tirou dali uma vassoura, um esfregão, um balde e alguns panos sujos. Droga. Era só o faxineiro. Pelo estado dos corredores e da escada, sempre imundos e encardidos, eu nunca imaginaria que o prédio tivesse um.

       A falta de sono estava me deixando tonto. Achei que era melhor deixar minhas investigações para mais tarde e fui para casa tentar dormir.

       Já era quase noite quando acordei. Meu pai chegava de mais um dia sem trabalho e sem vontade de conversar. Me deu cinco reais e pediu para que eu fosse ao mercado comprar dois pacotes de sopa instantânea e uns pães. Seria nosso jantar.

       Pelo menos, os corredores estariam limpos e sem aquele terrível cheiro de poeira e mofo. Mas, ao sair de casa, percebi que o faxineiro não tinha sequer passado por ali. O chão continuava encardido e fedorento; os degraus da escada, cobertos por uma camada de décadas de sujeira.

       Além de intrigado, fiquei mais irritado ainda. Fiz as compras, jantei com meu pai, nós dois em silêncio. Ele foi dormir e fiquei zanzando pela sala sem sono.

       Às onze e meia, tudo permanecia em silêncio. Mas, para ter certeza de que a noite seria mesmo tranqüila, fui vistoriar o prédio mais uma vez. Subi as escadas até o oitavo andar, espiei todas as saídas para o telhado. Então me dirigi ao térreo, bati nas paredes em busca de portas falsas, fui para o pátio escuro, verifiquei que a porta da lixeira estava bem trancada. Olhei melhor para a portinhola do quarto de limpeza. A construção era mais recente do que o prédio. Como se fosse um puxadinho. A porta não era tão velha quanto as outras. Forcei um pouco a fechadura e, para minha surpresa, ela se abriu.

       Havia ali um interruptor e acendi a luz. Era um pequeno quarto, com as paredes cobertas por estantes de tábua cheias de produtos de limpeza. Óleos de vários tipos, graxa, lustradores, polidores de metal, cera, diversos tipos de esponjas, estopas e flanelas, ferramentas. Ao contrário do que se podia imaginar, ali dentro tudo estava impecavelmente limpo e arrumado.

       Fiquei intrigado. Onde o faxineiro usaria todos aqueles produtos? Evidentemente, não era no prédio. Peguei uma lata de polidor de metais e sacudi. Estava quase vazia, o que indicava que seu conteúdo tinha sido gasto em algum lugar. A mesma coisa aconteceu com quase todas as outras latas e os vidros.

       Eu estava tão entretido na inspeção que não percebi logo uma caixinha atrás de uma das latas. Era pequena, de madeira, com algumas flores pintadas na tampa. Não combinava com o lugar. Tentei abrir. Estava trancada. Tive que forçar a madeira com uma chave de fenda que se encontrava pendurada na parede e ela cedeu.

       Decididamente, o velho faxineiro era biruta. Era uma caixinha de costura, com linhas, agulhas, dedais, também muito bem organizada como todo o resto. Num dos compartimentos, havia vários botões dourados, desses que se usavam antigamente em uniformes militares.

       Distraído, não percebi o tempo passar. Só me dei conta da hora quando um relógio, desses com som de carrilhão, começou a badalar. Na quinta batida do gongo, ouvi o primeiro estalo. Era a máquina. E dali, do quarto de limpeza, dava para ouvir muito mais nitidamente de onde vinha o barulho. Logo começou a movimentar-se com seu rangido característico. Mas muito mais alto. Quase ensurdecedor. Parecia que eu estava dentro da engrenagem.

       Comecei a tatear as paredes em busca da origem do som. Uma delas, a que ficava encostada na construção antiga, vibrava mais do que as outras. O ruído seco das pancadas que dei indicava que era uma parede falsa. Mas não descobria como abri-la.

      Foi quando vi, no meio das ferramentas, uma chave de fenda de tamanho fora do comum. Parecia mais um pé-de-cabra. Achei que seria boa para forçar os cantos da parede e tentei tirá-la do lugar.

       A chave resistiu. Não estava pendurada, como parecia estar. Puxei com mais força e ela se levantou, permanecendo presa por uma das pontas, como se fosse uma alavanca. E era mesmo. Assim que consegui levantá-la completamente, o barulho das engrenagens parou subitamente e foi substituído por outro, semelhante ao de uma grade se abrindo. Em seguida, a parede falsa deslizou suavemente para o lado, deixando à mostra o interior de uma cabine de elevador com as luzes apagadas.

       Mesmo no escuro, dava para perceber que o elevador era magnífico. A caixa toda revestida de tecido adamascado; um tapete de veludo no chão; o painel, de madeira trabalhada pintada de dourado. Devia ser o elevador original, do tempo em que o prédio era o mais luxuoso da cidade.

       Apesar do medo que começava a se infiltrar sob a minha pele, não resisti e resolvi olhar de perto. Queria ver se a máquina funcionava mesmo — e aonde ia dar. Entrei e comecei a procurar o botão da luz. Não sei se apertei o botão errado ou se alguma força sobrenatural agia sobre o mecanismo. Mas, subitamente, as luzes se acenderam, a grade dourada se fechou com um estrondo e a cabine começou a subir, fazendo o barulho que eu ouvia todas as noites.

       Embora o edifício tivesse apenas oito pavimentos, o elevador passou do último andar e subiu mais um pouco, passando por um longo vão fechado. De repente, parou. Parou diante de uma parede branca, sem porta e sem saída. E as luzes se apagaram, deixando tudo numa escuridão medonha.

       Estendi os braços, tentando alcançar o painel e apertar algum botão que acendesse a luz ou fizesse a máquina andar novamente, mas minhas mãos esbarraram em um obstáculo. Parecia uma pessoa. Um homem, possivelmente. Eu tinha tocado seu ombro direito, que estava vestido numa espécie de casaco de lã áspera, mas de boa qualidade, provavelmente bordada com fios metálicos. Apertei o ombro e senti apenas ossos. Se fosse mesmo um homem, seria muito magro. Apertei novamente. Magro demais. Não havia sinal de carne, só ossos duros e rígidos.

       Com o ar já começando a me faltar, decidi tirar a criatura do caminho e empurrei-a com força. Mas o único resultado foi ficar com minha mão esquerda presa entre seus dedos. Dedos sem carne. Só ossos. Finos, duros, pontudos, que entravam sem dificuldade no meu pulso e quase me faziam gritar de dor.

       Consegui reunir alguma coragem para dizer:

       — Me deixe sair daqui.

       Mas a criatura não se movia nem permitia que eu me mexesse. Dei-lhe mais um safanão e senti seus dedos cravados na minha garganta. Agora eu sabia: ia morrer ali. Sem ajuda, sem socorro, e ninguém jamais descobriria meu corpo.

       Tudo o que lembro vai até aí. Acredito que tenha desmaiado. Quando dei por mim, estava do lado de fora do quarto de limpeza, caído no chão do pátio sujo. Já amanhecia. Levantei e olhei para meu pulso, que exibia as marcas de cinco dedos num vermelho quase roxo. Nem precisei de espelho para adivinhar que meu pescoço devia estar na mesma situação. Tomado de raiva, fui para a porta do quartinho e forcei a fechadura. Nada. Parecia colada com cimento. Bati, soquei, esmurrei. Estava assim, no meio da minha luta contra a portinhola, quando percebi alguém às minhas costas. Era o faxineiro que, zangado, perguntava o que eu queria ali.

       Quase avancei no homem. Aos berros, exigi que ele me contasse o que havia ali dentro, que tipo de assombração criava ali. Como o velho só resmungasse, sem dizer coisa com coisa, agarrei-o pelo pescoço e mandei que abrisse a portinhola.

       Com um olhar de puro ódio, ele obedeceu. Abriu a porta com uma pequena chave e afastou-se para que eu pudesse entrar. Para minha surpresa, era um quartinho imundo, com vassouras e panos sujos jogados de qualquer jeito dentro de baldes encardidos.

       — Já viu tudo o que queria? Então, suma daqui e me deixe fazer meu trabalho — rosnou o velho.        

       Ainda quis lhe fazer algumas perguntas, mas sabia que ele não responderia a nenhuma delas. Fui para casa, exausto, fazer um curativo no pulso e no pescoço. Tomei uma xícara de chá e caí na cama. Devo ter dormido o dia inteiro e parte da noite porque, quando acordei, tudo estava escuro e silencioso. Só meu pai roncava alto em seu quarto. Levantei, bebi um copo d'água e voltei para a cama.

       Comecei a dormir novamente, mas um barulho terrível me acordou. Estalos e rangidos. Olhei para o relógio. Meia-noite em ponto.

       Não conseguiria mais dormir.

 

                                                                                Rosa Amanda Strausz  

 

                      

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