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SETOR 27 - AMEAÇA NUCLEAR / Daniel Pedrosa
SETOR 27 - AMEAÇA NUCLEAR / Daniel Pedrosa

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SETOR 27 - AMEAÇA NUCLEAR

 

O professor Montenegro corria pelo túnel úmido e escorregadio projetado como rota de fuga para o laboratório de pesquisas nucleares sem sequer imaginar que os homens que vira através da câmera de segurança poucos minutos antes já estavam praticamente em seu encalço. Mesmo que conse­guisse escapar com vida de seus perseguidores, o cientista sabia em seu íntimo que jamais conseguiria esquecer a cena presenciada através da pequena tela em preto e branco do sistema fechado de TV. Para sua sorte, após o término do turno normal de trabalho, decidira permanecer envolvido com suas pes­quisas, enquanto os colegas desfrutavam de uma pequena pausa no refei­tório principal do primeiro pavimento. Exatamente no lugar onde foram atacados. Era um procedimento comum revezarem pausas, já que sempre estendiam o trabalho até a madrugada. Além de fortalecer o relacionamento entre os cientistas, a prática acabava por minimizar o incômodo caracterís­tico de quem passava horas trancado em um laboratório sem janelas, portas, ou qualquer outra ligação com o mundo exterior. Fora quase sempre assim: uma rotina monótona e estafante. Mas não naquela noite. Pelo sistema inte­grado de segurança - uma inovação presente em todas as dependências do centro de pesquisas - o professor pôde ver quando homens encapuzados entraram armados com fuzis e baionetas. Pareciam soldados envolvidos em um esquema estratégico de guerra. Chegaram silenciosos e, de forma banal, tiraram a vida dos pesquisadores. Uma ação tão rápida que se não estivesse com os olhos em frente ao monitor no exato momento do ocorrido, jamais teria percebido a tempo.


E este era o motivo pelo qual corria através daquele caminho. Para salvar sua vida e proteger seu mais importante segredo.

O túnel, com mais de quinhentos metros de comprimento e uma iluminação precária, composta apenas por poucos e fracos pontos de luz, era íngreme e dificultava a visibilidade. Perceber a presença de outras pessoas, mesmo que estivessem a uma distância considerada próxima, tornava-se difícil e por isso cada segundo era realmente precioso. Suas pernas fracas, pouco acostumadas a esforços daquele tipo, já ameaçavam ceder diante dos vários metros de subida que surgiam à sua frente. Os três andares que separavam o laboratório da superfície se mostravam agora ainda mais profundos do que quando chegara ao local pela primeira vez.

Já fazia sete anos desde que resolvera se dedicar às pesquisas milita­res naquela unidade. Não parecia grande coisa de início. Talvez apenas um delírio governamental motivado pela tendência mundial em desenvolver energias alternativas como aquela. Quando foi convidado a integrar a equipe, ninguém lhe havia informado ao certo o que pretendiam desenvol­ver ou criar. Agora, anos depois, sabia até onde haviam chegado. Era algo muito além do que um dia podiam imaginar, e muito além do que podiam se permitir. As pesquisas, inicialmente voltadas ao desenvolvimento da energia nuclear, haviam evoluído por dois caminhos: o primeiro se refletia no sucesso total do projeto, naquilo que realmente estavam procurando, a tecnologia de refinamento de urânio, um conhecimento até então desen­volvido por pouquíssimos países ao redor do mundo - um benefício incal­culável para a economia e a política da nação; e o segundo, em uma ameaça sem precedentes. Algo que por certo despertaria a ganância de qualquer um que soubesse de sua existência.

E foi exatamente o que aconteceu. Sem que ele soubesse, um dos pesqui­sadores que integravam sua equipe comunicara a descoberta a uma comissão de auditoria durante a visita ocorrida na última semana. Inocentemente, o homem selara seu destino, e o destino de todos aqueles envolvidos no traba­lho. Alguns militares sabiam que aquele grupo de cientistas jamais concorda­ria com suas intenções e por isso haviam organizado a investida.

Na verdade, aqueles homens gananciosos estavam certos sobre suas reações. No momento mais relevante de sua vida, e frente a algumas de suas mais importantes descobertas, o professor de quarenta e sete anos decidira agir com prudência e respeito. Não desejava ser conhecido como alguém responsável por invenções capazes de ferir a humanidade. Já ouvira no passado histórias sobre grandes decepções. Relatos sobre gênios como Santos Dumont, que no final da vida se desesperou ao per­ceber o poder destrutivo de sua invenção: Mas a guerra veio, apoderou-se de nossos trabalhos e, com todos os seus horrores, aterrorizou a humani­dade. Por um momento, as palavras do inventor vagaram tristes por sua memória. Não queria tais lembranças para si. Não daquela forma. Por isso carregava em sua mala o que restara de sua pesquisa. Papéis, discos de dados e uma pequena e perigosa caixa de chumbo.

Assustado, mas sem se abater por seus pensamentos, o professor jun­tou a mala sobre o peito e continuou avançando. Por mais que pudesse conhecer aquele caminho, saber de sua existência através dos incansá­veis treinamentos de evacuação, jamais se imaginara fugindo por ali. Não por aquele motivo. O forte movimento que imprimia a seu corpo fez com que derrubasse alguns dos papéis. Agachou para pegá-los e por um breve momento pôde ouvir as passadas rápidas daqueles que o perse­guiam através do túnel; estavam próximos, não podia perder mais tempo. Levantou-se e continuou a correr o mais rápido que podia.

Números decrescentes, pintados em uma das paredes do corredor, indicavam a distância que o separava da saída. O professor já havia passado pela indicação de cem metros fazia alguns segundos, e sabia que em breve chegaria ao galpão de isolamento. Tentava formular a melhor estratégia de fuga, o melhor caminho a seguir, mas pensar se tornara difícil. Sabia que os carros de fuga tinham combustível suficiente para duzentos e cinqüenta quilômetros; era pouco, mas o suficiente. Precisava chegar a uma cidade de grande porte. Um lugar onde pudesse se misturar à multidão e desaparecer por uns tempos. Era o que deveria fazer, até que a poeira baixasse e ele con­seguisse uma brecha para se afastar o bastante do seu algoz.

Chegou à frente de uma célula de vidro, uma caixa transparente capaz de reter qualquer radiação proveniente de vazamentos existentes no labo­ratório. Um trabalho notável de engenharia, equipado com os mais moder­nos sistemas de monitoramento. O professor entrou e imediatamente fechou a porta. Um potente sensor, preso ao mecanismo de abertura, só permitiria aos refugiados abrir a fechadura na total ausência de contami­nações por radiação; era um mecanismo de segurança, criado para garantir que a contaminação não saísse do laboratório. O professor acionou o botão de varredura e o som semelhante ao sopro de um forte ventilador deu início ao processo que durava cerca de quinze segundos. Ao fim daquele tempo, uma espessa porta de aço liberaria seu acesso ao mundo exterior. O desespero que o consumia trazia junto uma sensação de que aquela espera seguiria pela eternidade.

Porém, exatamente dentro do tempo estimado, um sinal sonoro indicou o fim do processo de varredura e a trinca automática liberou o acesso ao armazém.

Automaticamente todas as luzes se acenderam. O armazém de quase três metros de altura, vinte de comprimento e dez de largura surgiu diante dele. O lugar abrigava vários recursos necessários para fuga, todos disponí­veis e preparados para eventuais emergências. Dois jipes, roupas, medica­mentos, mantimentos, mapas, rádios e procedimentos diversos poderiam ser encontrados no interior da construção. Montenegro seguiu até um dos armários, pegou um molho de chaves, deixou sua mala sobre o capô de um dos jipes e seguiu até uma grande porta dupla que protegia o local. Abriu o cadeado e arrastando uma das portas sentiu a brisa da noite tocar seu rosto. O céu estava repleto de estrelas e algumas cigarras cantavam à luz da lua; era uma noite perfeita para caminhar, mas péssima para acobertar uma fuga. Mesmo cansado, o professor movimentou a pesada porta até que ela se abrisse por completo.

De repente, o sopro do mecanismo de varredura iniciou novamente seu ciclo de trabalho. Diferentemente de antes, o professor desejou que o tempo excedesse o planejado. Rapidamente, correu até um dos jipes, abriu o capô e retirou alguns fios do motor, pois não queria deixar para seus perseguidores recursos para que o seguissem. Pegou sua mala sobre o capô do outro jipe, abriu a porta e entrou. O som das trancas abrindo indicava que seu tempo havia se esgotado. Sem perder nem mais um segundo, ligou o motor. Dois soldados surgiram e, acompanhando o ronco forte do veículo, perceberam rapidamente o paradeiro do fugitivo. Armaram seus fuzis e dispararam à vontade.

O som dos vidros se quebrando e os estilhaços que atingiam o pro­fessor formavam uma cena assustadora. O professor engatou a marcha do jipe e, abaixado sob o painel, tentou partir em direção à porta. Aos solavancos, o veículo seguiu em uma curva fechada à esquerda ras­pando a lateral da porta no batente da entrada e seguiu em direção a uma pequena estrada. O professor levantou o corpo. Precisava enxergar o caminho para que pudesse seguir em frente. Mas sua vida ainda corria perigo. Em menos de três segundos, uma chuva de balas voltou a atingir o veículo. Os homens, parados em frente ao armazém, disparavam na direção do jipe que sumia na escuridão. Antes que Montenegro pudesse se considerar livre, um dos projéteis disparados pelos fuzis atravessou a lataria traseira do jipe, venceu a resistência dos finos bancos de tecido e atingiu suas costas, na altura do abdômen. O professor se curvou encos­tando o antebraço no ferimento e seguiu em direção à cidade.

Em frente à entrada do galpão, os soldados observavam sua fuga:

Me passe o rádio - disse um deles.

O mais novo dos dois pegou o aparelho que carregava preso à cintura e o entregou ao outro homem:

Comando? - disse ele levando o aparelho até o rosto.

Na escuta - respondeu uma voz grave.

Um deles conseguiu escapar.

Como, 'escapar'? - retrucou o homem. - Esta ação não foi autori­zada e, por isso, não pode haver sobreviventes. Eles eram apenas cientis­tas, deveriam ter sido eliminados, conforme ordens.

- Acho que ele descobriu quando chegamos, fugiu por uma das rotas de emergência e está seguindo em direção à capital. Acho que consegui­mos feri-lo, não deve fugir por muito tempo; teremos que colocar uma patrulha para interceptá-lo no final da rodovia.

Tudo bem. Pegue o que encontrar e lacre o local. Vou providenciar a patrulha. Em que carro ele está?

Em um jipe militar. Os vidros estão quebrados e a lataria está per­furada por tiros de fuzil, vai ser fácil encontrá-lo.

Ok! Acabem com o que foram fazer e voltem. Eu vou cuidar do fugitivo.

 

Em poucos minutos o professor já havia deixado a pequena estrada de terra batida que levavã às dependências do laboratório e seguia em direção à cidade. Uma mancha escura de sangue ocupava grande parte do avental branco que cobria sua roupa. Seu rosto transpirava, mas seu corpo parecia frio como mármore. Ele sabia que sua fuga havia falhado. Os soldados haviam conseguido o que queriam e, por certo, ele não sobre­viveria além daquele dia. As glórias, o reconhecimento nacional, o legado acadêmico, tudo o que imaginava para si até aquele momento parecia cada vez mais distante. Triste, o homem imaginava o futuro que ajudou a construir, sem a lembrança de sua história. Lágrimas desciam por seu rosto e seu coração; angustiado, já lamentava pelo que estava por vir.

Mas nada lhe faria desistir da missão que criara para si no exato ins­tante em que deixara o laboratório. Precisava evitar que tudo o que cons­truíra até aquele momento chegasse às mãos daqueles homens. Ao fim, este se tornara seu maior objetivo. Para isso, tinha um último trunfo: um obstáculo que os afastaria daquilo que despertara suas ambições. Mesmo sob a pressão de, antes de sair do laboratório, tê-los visto assassinar seus amigos, Montenegro conseguira esconder grande parte do que poderia ser usado por eles como um caminho para o resultado de suas pesqui­sas. Escondera quase todo o seu trabalho em um lugar onde somente ele e os homens que haviam sido mortos poderiam encontrar. Aquela era sua segurança, um esconderijo especial, algo que haviam projetado nos últimos dois anos para situações deste tipo. Sua garantia. E mesmo que encontrassem o esconderijo, de nada lhes serviria, agora levava consigo a chave para este segredo, um enigma digno de um grande estudioso, um de seus maiores orgulhos. Por isso precisava tirá-la dali e, de alguma forma, ocultá-la de seus perseguidores.

O jipe em alta velocidade deslizou pelo acostamento de terra da BR-060, levantando uma nuvem de poeira vermelha característica da região. Os vinte e dois quilômetros que separavam o laboratório da capital goiana pareciam mais distantes do que de costume. Os motoristas dos poucos car­ros que passavam pela pista oposta se assustavam com o dançar do veículo que parecia dirigido por um bêbado. O professor Montenegro cambaleava sobre o volante, tentando se manter na estrada, em busca da única pessoa em quem confiava.

Goiânia havia crescido muito desde que chegara. Uma cidade promis­sora que havia dobrado seu PIB nos últimos dez anos e rumava segura a uma participação mais ativa no cenário nacional. Em pouco tempo dupli­cara seus rebanhos, triplicara suas colheitas, e isso se refletia nas novas ruas e novas construções. Era nítido que a marcha do progresso estava chegando ao estado. No início, o professor ansiava pelo dia em que tivesse tempo de conhecer os projetos para seu futuro, mas com o trabalho e todo o resul­tado que havia encontrado, como muitas outras coisas, era algo em que deixara de pensar.

Abandonou a BR-060 em direção ao centro antigo da cidade; lá con­seguiria encontrar quem procurava: um amigo que o ajudaria em seu objetivo. Seguiu na avenida Anhanguera até próximo ao Bosque dos Buritis, entrando em uma pequena rua repleta de árvores. Diminuiu a velocidade e parou em frente a uma casa antiga. Desceu do carro com a pequena caixa nas mãos. Um portão baixo, com pouco mais de um metro de altura, protegia o quintal feito de ladrilhos. Montenegro transpôs a entrada, deu uma volta pela casa e parou em frente à porta da cozinha. Antes que pudesse gritar por ajuda, um homem baixo, magro e moreno veio assustado ao seu encontro:

Montenegro, o que aconteceu? - perguntou.

Olá, Augusto! Há quanto tempo...

Quem fez isso? - insistiu o homem que, amparando-o, tentava mantê-lo de pé. Mas, percebendo que seu esforço era vão, carregou-o para dentro da casa e o sentou numa cadeira na cozinha.

Preciso de sua ajuda, amigo - falou Montenegro com a voz entrecortada.

O que foi?

- Você tem que guardar isto - disse, entregando-lhe a caixa. - Precisa escondê-la de todos. Não deve entregá-la a ninguém. - Sua voz rouca afli­gia o amigo. - Preciso que me prometa que não vai entregá-la a ninguém.

Claro, Montenegro! - respondeu o homem.

Não! Preciso que me prometa, pela nossa amizade. Preciso que me prometa.

Eu prometo! - repetiu Augusto.

Ótimo, agora eu tenho que ir.

Como? Aonde você vai assim? - perguntou Augusto, assustado com a rapidez com que tudo acontecia. Sabia da natureza do trabalho do amigo, mas não acreditava que um dia algo como aquilo pudesse aconte­cer. - Você precisa ir a um hospital!

Não! Eu não posso arriscar que eles venham até aqui, tenho que atraí-los para outro lugar, longe desta caixa.

Mas, Montenegro...

Augusto - respondeu o professor segurando seu braço -, não posso mais mudar meu destino, mas posso evitar que encontrem o que fiz, e para isso preciso de sua ajuda. Por favor, me deixe sair, enquanto ainda tenho força para seguir em frente. Eu não tenho muito tempo.

Montenegro se levantou e atravessou a sala. Augusto o acompanhou até o jipe sem acreditar no que estava acontecendo. A razão pedia para que ele o segurasse, mas uma sensação mais forte lhe dizia para confiar. Mesmo pressentindo que aquele seria seu último encontro com o amigo, o homem preferiu deixar que ele se retirasse.

O professor entrou no jipe e, mesmo muito ferido, seguiu em direção à estrada. Ouvira no rádio a comunicação sobre uma barreira montada para prendê-lo e rumou decidido em sua direção. Sabia que seguir aquele caminho seria seu fim, mas entendia que era a única forma de desviar aqueles homens de seu verdadeiro objetivo. Estava decidido.

Era terça-feira, 11 de junho de 1978.

 

                   O Julgamento

Enquanto seguia em direção ao seu primeiro objetivo, Cardoso relem­brava o motivo pelo qual aceitara continuar naquela missão. Dentre todos os integrantes de sua equipe, ele era sem dúvida a pessoa em quem mais o major confiava. Um militar respeitado e dono de um status único, conquis­tado com muito trabalho e muita dedicação. Desde que chegara ao Setor, fazia mais de doze anos, ele já havia deparado com situações extremas, mas nada se comparava à que tinha pela frente. Algo capaz de selar definitiva­mente o futuro da organização: um segredo que estava prestes a ser reve­lado. Uma história guardada por décadas e que viria à tona com ou sem sua ajuda. Já fazia dois anos que toda a mudança havia começado. O estopim que os fizera chegar até aquele ponto era lembrado como o começo do fim. O dia em que o major estivera entre a vida e a morte.

O episódio que Cardoso conhecia apenas por meio de relatórios ofi­ciais soava como o atravessar de uma flecha em seu peito. Exatamente no período em que ele participava de um treinamento de elite, na região cen­tral do país, seu comandante enfrentara o maior desafio de sua história. A invasão ao depósito de Itaipu, uma perseguição implacável aos fugitivos e, por fim, um confronto que quase tirara sua vida. Cardoso se dava conta de que o caminho para o futuro se desenhara naquele momento, mas não se perdoava por não estar ali presente para ajudar um amigo.

Porém, por obra do destino ou até mesmo por compaixão das pessoas que ironicamente o perseguia, o major ainda estava vivo. Minutos antes de pedir para que Cardoso o ajudasse, o antigo militar confidenciara a verdade por trás da história descrita no relatório e isso fora talvez o que ajudara em sua decisão. Não havia relatos oficiais que evidenciassem o fato, mas o militar garantiu que devia sua vida à ação dos civis até aquele momento considerados inimigos do Setor. Um fato inesperado que colo­cara à prova toda a sua lealdade. Frente a isso, Cardoso sabia que a missão designada para si o colocaria à mercê das leis que ele mesmo defendia. Um crime consciente que a razão o impedia de evitar. Preparado como poucos, o homem de trinta e seis anos era, agora, uma das peças mais importantes da operação que em breve seria colocada em prática.

O Sedan preto que guiava fez uma curva fechada saindo da marginal Pinheiros em um dos acessos da pista local. Seu destino era uma audiên­cia pública, o julgamento de um caso típico dos bairros carentes da capi­tal. De um lado, um homem de trinta e nove anos, acusado de assassinar uma jovem de quinze. Sua vizinha, a quem vira crescer desde os sete e pela qual manifestava um desejo enlouquecido. Segundo testemunhas, o homem, que costumava cercar a jovem em seus retornos da escola, fazia propostas indecentes e oferecia-lhe presentes para que saísse consigo. Sua mãe, uma mulher sozinha e viciada em bebida, por algumas vezes tentara defender a filha, mas sua vida miserável e angustiante não lhe propor­cionava forças para ajudá-la. Personagens de uma sociedade indiferente aos seus problemas, mãe e filha avançaram por meses sem que qualquer instituição lhes prestasse apoio. Até o momento em que o pior aconteceu. E a jovem, em uma tarde de inverno, apareceu estrangulada em um dos terrenos baldios de um bairro pobre da região sul da grande São Paulo.

Do outro lado, o Estado, representado pela figura do agora promotor Luiz Fernando de Oliveira Castro, o mesmo homem que havia dois anos presenciara o tiro desferido contra o corpo do major, em frente a uma casa no bairro de Santa Tereza, na cidade do Rio de Janeiro. A pessoa que Cardoso procurava.

O militar parou o carro em frente ao Fórum Criminal Mário Guimarães, um dos maiores da América Latina, e seguiu diretamente para o salão onde transcorria o julgamento. A sala de audiências, mesmo sendo uma das mais modernas do país, lembrava os antigos cenários de julgamentos. Cardoso entrou em silêncio, preocupado em não ser percebido, e sentou-se em uma das cadeiras vagas, destinadas aos observadores. Alguns alunos de direito, professores, familiares e vizinhos da vítima ouviam atentos o desenrolar do julgamento que já se encaminhava para o final. Fernando acabara de se levantar da mesa designada ao promotor e discursava efusivamente:

- Caros jurados - dizia ele -, este homem, de maneira inescrupulosa, cometeu um crime bárbaro e assustador. Desde o dia em que conhecera a vítima, havia mais de sete anos, o acusado com seu comportamento demonstrava intenções maliciosas e imorais em relação à pequena jovem. Intenções estas que, por muitas vezes, foram motivo de discussões e bri­gas, chegando, por conseguinte, a resultar em denúncias formais junto à autoridade pública. Porém, por um fato intrigante, talvez uma análise errônea da qual se desconhece a origem, estes representantes da justiça consideraram a denúncia apenas um corriqueiro registro de intriga social. Não o bastante, frente a este episódio, um dos delegados que atendera à mãe da vítima, sem se colocar a par dos fatos agravantes de um caso que por certo culminaria em um crime de natureza repugnante, sugeriu que a mulher não tornasse a procurá-lo sem provas concretas, já que a ausên­cia destas faziam com que ele, um representante da justiça, perdesse seu tempo com denúncias nada substanciais.

Todos ouviam atentos ao discurso final de Fernando. O promotor que conseguira ganhar casos importantes nos últimos meses já se tornara uma espécie de celebridade jurídica, um profissional respeitado pelos colegas e admirado pelos jovens estudantes de direito. Sua fama corria a cidade e todos esperavam que mais uma vez ele mostrasse seu talento. Após longas horas de depoimentos, apresentação de evidências e conclu­sões inquestionáveis sobre o caso, aquele parecia ser o momento em que seria desferido seu golpe final.

Alguns centímetros acima do piso, em uma cadeira esculpida em madeira maciça e em frente a uma elegante mesa de mogno, o juiz aguar­dava a conclusão do promotor. A seu lado, poucos metros à direita, o acu­sado. Um homem branco, muito forte, com os cabelos raspados e uma tatu­agem que lhe cobria metade do pescoço, aguardava seu destino de cabeça baixa, cercado por guardas fortemente armados. Do outro lado, como em uma arquibancada, sete pessoas comuns, escolhidas por seu comporta­mento exemplar junto à sociedade, ouviam atentas. Elas viviam ali uma das experiências mais assustadoras de suas vidas. Aquele era um cenário que levariam dias, até meses, para esquecer. Amedrontados, torciam para que tudo acabasse de forma pacífica e que o homem que estavam prestes a julgar esquecesse seus rostos assim que deixassem aquele local.

Fernando bebeu um pouco da água que estava no copo sobre a mesa, terminou sua breve pausa e continuou:

- Pois bem, hoje, estamos frente a evidências que concretizam os temores de uma mãe, sozinha, vítima de um sistema incapaz de proteger sua família, mesmo depois de suas mais sinceras súplicas. Surpreendentemente, por sugestões de alguns colegas, estas evidências poderiam ser atenuadas, tendo em vista a postura questionável de uma mulher vulnerável ao vício mais comum entre nós, brasileiros. Não, meus caros jurados, afirmo que o assunto não pode ser simplesmente eviden­ciado como um ato equivocado de um homem movido pela sua origem animal; aqui, estamos falando de um crime bárbaro, sem possíveis atenu­ações. Lembro que, assim como regem as mais antigas histórias da humanidade, não cabe a nós julgar o perfil ou a personalidade de alguém, mas sim a veracidade dos fatos trazidos a nosso conhecimento. E, para nós, os fatos aqui apresentados são destroços de uma tragédia que não pode ser mais evitada. São evidências incontestáveis de que o homem aqui pre­sente, a pessoa sentada naquela cadeira - disse apontando para o acusado -, o homem conhecido por muitos como "Alemão", é o responsável pela dor de uma família. Uma perda que nem mesmo o tribunal mais justo poderá devolver aos braços dessa mãe.

As pessoas pareciam admiradas. Jamais haviam pensado ou se colo­cado no lugar de vítimas daquela forma. De fato, aquele homem à frente deles trouxera-lhes argumentos irrefutáveis. Atento, o acusado acompa­nhava os passos do promotor. Mesmo com a cabeça baixa e o rosto virado em direção ao chão, recebia cada palavra, cada frase, como um golpe des­ferido em seu corpo. As mesmas palavras que encantavam a todos no tri­bunal, a ele, pareciam feri-lo. Toda sua chance de liberdade parecia estar sendo carregada por aquele discurso como folhas ao vento. Por dentro, uma raiva muito forte o consumia.

Fernando continuou:

Por isso, não devemos manter em nossa sociedade indivíduos que pos­sam corromper a justiça que juramos defender. A mesma justiça pela qual alguns de nós nos colocamos em risco a cada dia de nossas vidas. O que peço a vocês é que imaginem uma parte de suas vidas, talvez a melhor parte, aquela pela qual se dedicaram e na qual imaginaram um futuro, arrancada em segundos de seus corações. Um pesadelo do qual todos os dias imaginam acordar e com o qual deparam todas as manhãs. Nada no mundo pode ser pior. Por fim, senhores, jamais poderemos esquecer que a ninguém pertence o direito de interferir no curso natural da vida. Obrigado.

O tribunal foi tomado por alguns segundos de silêncio. Jurados, ofi­ciais e visitantes refletiam por alguns instantes sobre o discurso do pro­motor, até que o presidente da sessão os interrompeu:

Senhores, peço a todos que aguardem; entraremos em recesso por dez minutos e então retornaremos para divulgar a decisão final.

Acompanhado por alguns guardas, o juiz saiu da sala.

O homem acusado do crime, ainda mais tenso, aguardava pelo que parecia ser a eternidade. As palavras de Fernando, as mesmas que haviam instigado a reflexão de todos naquela sala, soavam-lhe como uma ofensa e isso o incomodava. Para Alemão, o julgamento havia se tornado um evento humilhante. Mesmo enquanto esteve preso, em seu entendimento, jamais havia sido agredido daquela forma e jamais havia admitido tama­nho desrespeito. Por um breve momento, seu pensamento estava distante da absolvição, parecia convencido a ferir o promotor. Se fosse condenado, conhecia pessoas capazes de ajudá-lo a agir contra homens como aquele. Para ele, era evidente que qualquer resultado negativo daquele julga­mento era fruto do discurso daquele homem. Ele piorara sua situação.

Do outro lado, Fernando aguardava, sentado à mesa da promotoria. Ele organizava alguns dos documentos quando o juiz voltou, carregando um pequeno envelope. Todos na sala aguardavam ansiosos pelo que estava por vir e por isso o Magistrado não demorou em se pronunciar:

- Nem sempre conseguimos encontrar oportunidades de aplicar a justiça sobre o que acontece em nossa sociedade. Muitos dos crimes que se sucedem em uma grande cidade por vezes não chegam ao conhe­cimento de tribunais como este, o que compromete em muito a idéia de uma sociedade completamente amparada. Mas quando isto ocorre, me orgulha julgar acontecimentos que revelam a verdade de forma tão clara e límpida, através de teses tão bem elaboradas. Parabéns a todos que compuseram este tribunal, pois talvez seja um dos melhores que já presidi. E com um desfecho inquestionável, declaramos o senhor Valter Silva Costa, conhecido como Alemão, culpado pelo crime de assassinato da jovem Danielli Passos e consequentemente condenado a trinta anos de reclusão em penitenciária de segurança máxima.

Em poucos minutos as pessoas mudaram seus semblantes e um sor­riso, seguido de uma tímida euforia, envolveu toda a sala. Alguns se cum­primentavam enquanto outros apenas se mostravam orgulhosos e satis­feitos. Em meio ao clima festivo, um dos guardas se distraiu e o homem que estava sendo acusado pôde sair da cadeira em direção ao promotor. Ele estava transtornado, consumido por uma raiva ensandecida. Cardoso, que estava bem ao fundo da sala, previu o ataque que estava para aconte­cer, levantou-se e correu em direção a Fernando. O militar esperava que a rapidez adquirida em seu treinamento fosse suficiente para evitar o pior.

Alemão, mesmo algemado, pulou sobre a mesa da promotoria, dire­tamente ao encontro de Fernando. Em um único movimento, agarrou fortemente o pescoço do advogado que caiu de costas no chão, já com a respiração interrompida.

Sem entender, Fernando sufocava nas mãos de um assassino em pleno tribunal. Ele tentava afastar o corpo, do homem, mas sua força, potencializada pelo peso de seu corpo tornava qualquer reação impos­sível. Foram vários segundos de desespero, até que Cardoso conseguisse se aproximar. Vencendo o guarda-corpo que separava os advogados da área para visitantes, o militar surgiu desferindo um golpe perfeito sobre a nuca do criminoso. Imediatamente, Alemão soltou o promotor e caiu. Fernando, que já havia sido ameaçado antes, mas nunca atacado dire­tamente, levou a mão ao peito, tentando recuperar sua respiração. O criminoso, mesmo momentaneamente ferido pelo golpe de Cardoso, olhou-o nos olhos, com a nítida intenção de ameaçá-lo. Era uma cena frustrante para o que parecia ser um de seus melhores trabalhos.

- Você está bem? - perguntou Cardoso tentando ajudá-lo.

Sim - respondeu Fernando enquanto se levantava. - Obrigado!

Não há de quê.

Os guardas se aproximavam, agitados, tentando proteger o promo­tor, mas sua interferência já não mais era necessária. Com um aceno dos braços ele fez com que recuassem.

Se me dão licença - disse Fernando arrumando suas roupas. - Acho que já passou da hora de sair.

Com o militar ao seu lado Fernando organizou os documentos do pro­cesso em uma pasta preta e, entre uma multidão assustada, se dirigiu à saída. Cardoso percebera que aquele não era o melhor momento para conversar, mas não podia perder a oportunidade de abordar o promotor. Por isso o seguiu até a porta. Seu tempo era pouco e precisava aproveitá-lo bem:

Olha - disse Fernando enquanto caminhava. - Sei que me ajudou e já lhe agradeci por isso, mas se continuar me seguindo, serei obrigado a achar sua atitude preocupante.

Me desculpe, senhor Fernando - respondeu Cardoso -, sei que não é o melhor momento para conversarmos, mas o tempo está se esgotando e preciso que ouça o que tenho a lhe dizer.

E quem é você?

Meu nome é Antonio de Lima Cardoso. Mas todos me chamam de Cardoso.

Desculpe-me, senhor Cardoso, mas não estou com cabeça para conversar, acabo de ser ameaçado em um tribunal do Estado e, acredite ou não, isto me incomodou muito. Marque uma hora com minha secre­tária e quem sabe até o final da semana podemos conversar.

Infelizmente o final da semana já será tarde. Tenho ordens expres­sas do major para contatá-lo o mais rápido possível.

Por um momento, Fernando imaginou ter ouvido coisas. Havia quase dois anos ninguém o abordava sobre o que aconteceu, e parecia impossível que viessem a fazê-lo:

Você disse 'major'?

Exatamente, senhor.

Depois de tudo, para sua própria segurança, ele e Gabrielle haviam decidido manter segredo sobre o ocorrido. Fernando não sabia se aquele homem realmente tinha as informações sobre as quais falava e por isso precisava se prevenir:

Não conheço nenhum major, não sei de quem está falando - res­pondeu apreensivo. - Agora me deixe ir, tenho que me recompor para a audiência de amanhã.

Não se preocupe, senhor Fernando, o major me alertou que vocês negariam conhecê-lo. Por isso me entregou isto - disse Cardoso, reti­rando um envelope do bolso e entregando-o ao promotor. - O que tem que fazer é seguir as instruções descritas no conteúdo deste envelope.

Mas por quê?

Não tenho detalhes. Tudo o que o senhor precisa saber encontrará neste envelope - respondeu Cardoso. - E mais uma coisa.

Fale.

Tem que manter nossa conversa e tudo o que ler em segredo. Pelo menos até encontrar o major. Ele esclarecerá todos os seus questiona­mentos.

É só isso? - perguntou Fernando, claramente insatisfeito.

Sim, senhor. Desculpe-me por ser insistente, mas o assunto é de suma importância.

Claro!

Até logo, senhor!

Até logo.

Fernando abriu o envelope enquanto descia as escadarias do fórum. Para sua surpresa, o papel continha um endereço e instruções para um encontro. Não tinha a menor idéia de que se tratava tudo aquilo, mas sua percepção aguçada lhe dizia que desde já deveria se preocupar.

 

                    Pedra do Baú

O suor escorria do rosto de Gabrielle, enquanto suas mãos segura­vam fortemente o pino preso ao grande paredão de pedra. A mais de mil e novecentos metros acima do nível do mar, seu coração batia acelerado e seus braços, embora cansados, resistiam fortemente ao esforço de um caminho no qual poucas pessoas no país seriam capazes de se arriscar. Era fim de tarde e, por alguns segundos, a jovem resolvera interromper a subida para admirar a vista maravilhosa que sua posição lhe oferecia do Vale do Paiol. Era realmente algo fascinante, uma visão digna dos mais belos poemas e das mais emocionantes histórias. Um cenário que lhe tra­zia equilíbrio, paz e tranqüilidade.

Depois de muito adiar, a jovem historiadora retomava sua rotina de aventuras pelo desafio que mais adorava. Desde que enfrentara os mis­térios sob as águas de Itaipu, Gabrielle não sabia o que era correr perigo ou mesmo colocar sua capacidade à prova; e isso lhe fazia falta. Dois anos e muitos meses de estudo lhe causaram atrasos, mas não conseguiram evitar que chegasse até ali. A escalada por algumas das mais difíceis vias existentes no complexo da Pedra do Baú não era apenas um exercício, mas um desafio aos seus limites e que fazia com que ela se sentisse melhor do que nunca. Foram necessários meses de treinamento para que reto­masse sua forma física e com isso a jovem esbanjava força. Sua confiança era visível e seus limites, quase inexistentes. Por isso, mesmo ao fim de uma trajetória de mais de três horas de escalada, Gabrielle decidira por ampliar seu desafio. Queria ir além.

A via chamada de Learning to Fly, talvez a mais difícil de todas as existentes no complexo, se mostrara convidativa e Gabrielle não hesitou. Já havia pelo menos meia hora que a decisão tomada por ela e seu ins­trutor os colocara no novo caminho e, até aquele momento, tudo trans­corria conforme o planejado. A corda presa aos pinos e aos mosquetões fixos à montanha garantia sua segurança e fazia tudo parecer fácil. O pôr do sol no horizonte tornava a escalada ainda mais empolgante, e a bela recompensa que os esperava no topo preenchia seu entusiasmo. Mas o tempo era curto e, mesmo com o auxílio das lanternas que traziam nas mochilas, os dois sabiam que manter uma escalada de tamanha dificul­dade durante a noite não seria aconselhável. Precisavam terminar a via na próxima hora se quisessem evitar riscos desnecessários.

Ao pé da montanha, sem que Gabrielle soubesse, Cardoso acompa­nhava com um binóculo cada metro de sua escalada. Assim que cumprira seu primeiro objetivo, entregando o envelope a Fernando, o militar par­tira em busca da jovem; trinta e duas horas depois, já a havia encontrado. Para sua surpresa, descobriu que Gabrielle praticava uma atividade um tanto incomum para uma garota.

E então, está cansada? - provocou o instrutor.

Antes de responder, Gabrielle sorriu. Achava Silvio um grande amigo e sempre se divertia com sua companhia. O homem era uma lenda do esporte, escalava havia mais de quinze anos e desde então abrira várias vias e caminhos nunca antes percorridos por pés humanos. Viajava por várias regiões do país e jamais se vangloriava de suas habilidades. Conhecia os perigos e sabia que qualquer descuido poderia custar-lhe a vida. Era uma pessoa cautelosa e Gabrielle confiava em seus instintos. Ele respirou fundo e, não ouvindo a resposta, continuou:

- Vamos, não temos o dia todo!

Homens são sempre iguais - retrucou Gabrielle. - Se preocupam em romper desafios, mas não sabem admirar e saborear suas conquistas. De que vale tanto esforço se não curtimos cada minuto da sensação que estamos experimentando?

Sempre filosofando. Se eu não a conhecesse, diria que é uma jovem frágil e romântica. - Silvio enxugou o rosto com uma pequena toalha que carregava em um dos bolsos da mochila enquanto Gabrielle girava a mão, agarrando forte a corda que os segurava. - Vamos, minha jovem, o tempo é curto.

Seguiram rumo ao topo da grande pedra. Não faltava muito e em breve poderiam descer de rapel pelo paredão, de volta ao ponto de partida.

Silvio prendeu sua corda no próximo pino fixo na parede e reiniciou a escalada. Seus sapatos especiais aderiam à superfície da montanha e a subida seguia sem problemas. A corda que amarrava os dois alpinistas mantinha-os a uma distância mínima e por várias vezes os sustentava, dando folga a seus braços e pernas.

Após alguns minutos, entraram em uma grande fresta, onde não havia pinos de escalada previamente instalados. Era comum a ausência deles em alguns trechos e por isso Silvio carregava consigo peças sobressalentes. Precisava instalá-los em uma das fendas da parede se quisessem continuar. O alpinista olhou ao redor procurando um lugar adequado para fixá-lo e não demorou a encontrar. Alguns metros abaixo, Gabrielle aumentava a distância entre as cordas, prevendo os movimentos do amigo. Esta era uma operação arriscada e, quando necessário, sempre ficava a cargo do treinador. A ela restava esperar e garantir sua segurança.

Como sempre fazia, Silvio balançou o corpo, criando o impulso necessário para que pudesse alcançar a fenda ideal. Então, flexionando os joelhos, saltou. Tudo parecia correto, mas desta vez, motivado talvez pelo cansaço e quem sabe pelas horas contínuas de escalada, seu corpo não correspondeu como esperava. O instrutor se lançou à frente, mas suas mãos não conseguiram alcançar o lugar que pre­tendia. Sem apoio, ele perdeu o equilíbrio e caiu. Gabrielle tentou segurá-lo, mas a corda que havia sido alargada para permitir seu salto não tencionou antes que Silvio passasse por ela. Sem controle, o alpi­nista bateu várias vezes contra o sólido paredão de pedra, até que a corda o parasse seis metros abaixo.

Gabrielle parecia não acreditar. Quedas eram comuns em escaladas, e para isso carregavam um sistema de segurança especial. O antiquedas havia funcionado, mas não o suficiente. Mesmo assustada, a historiadora sabia que precisava agir. Somente ela poderia ajudar o alpinista naquele momento. Por um instante observou o amigo, aguardando que rea­gisse. Não havia som ou movimento e então ela percebeu que ele estava machucado. Seus olhos acompanhavam o homem preso à corda sem que ela soubesse exatamente o que fazer:

Silvio, Silvio, fale comigo!! - disse ela com a voz trêmula.

Gabrielle - respondeu o instrutor, ainda atordoado pela queda.

Você está bem?

Acho que quebrei o ombro, estou sentindo muita dor.

O que faremos?

Você vai ter que me levar para baixo e me guiar até o início da via. Para um lugar onde eu possa caminhar.

De que jeito? - retrucou Gabrielle. - Eu não tenho força para você segurar.

Não se preocupe, use o freio da corda e os grampos presos à parede para me levar até a primeira parada; de lá, eu posso descer pela corda até a base da montanha.

Mas eu não sei se consigo!

Calma, garota! - disse Silvio tentando disfarçar a forte dor. - Ah... Essa não é minha primeira queda e tenho certeza de que não será a última; com calma, conseguiremos sair dessa.

Sem alternativas, Gabrielle cedeu ao apelo do amigo. Nas quase duas horas que se seguiram, a jovem guiou Silvio pela face da monta­nha até um lugar seguro. Por várias vezes, sua confiança estivera aba­lada. O medo de deixar a vida de seu instrutor escapar pelos dedos era constante, mas Silvio, mesmo machucado, participava do resgate orien­tando habilmente seus movimentos. Ao fim da descida, quase todos os visitantes presentes no complexo aguardavam pelos dois. Na base da montanha, junto a um carro de socorro, os médicos também assistiam a tudo, preparados para levar o alpinista ao hospital mais próximo. Junto a eles, Cardoso, que havia chamado o socorro no momento em que vira o ocorrido, aguardava Gabrielle.

Assim que Silvio pisou na base da Pedra do Baú, o silêncio foi rompido por aplausos e vivas. Gabrielle chegou em seguida tentando, já com dificuldade, se manter de pé. Seu rosto sujo e cansado manti­nha um sorriso tímido motivado apenas pelo reconhecimento ao seu esforço. Assim que pôde, ela abraçou o amigo contra o peito, quase se esquecendo de seu ferimento.

Para onde vão levá-lo? - perguntou logo que o colocaram na maca.

Ao Hospital de São Bento do Sapucaí, que é o mais próximo. Pode encontrá-lo lá.

Obrigada! - respondeu a jovem sorrindo.

Não há de quê - respondeu o motorista, que continuou -, e para­béns, você fez um ótimo trabalho.

Gabrielle sorriu novamente e se afastou da multidão em meio a cumprimentos e gestos de apoio. Com dificuldade, seguiu em direção a seu carro.

Cardoso, que observava à distância, seguiu em sua direção:

Espero que seu amigo esteja bem - disse assim que a alcançou.

Obrigada - respondeu a jovem. - Acho que ele vai ficar bem. Em breve.

Desculpe-me pela intromissão; meu nome é Cardoso. Fui enviado pelo major para lhe entregar uma mensagem.

Gabrielle parou ao lado de seu jipe.

Major?

Exatamente. Ele pediu que a abordasse em um lugar onde não pudéssemos ser vistos e lhe entregasse isso - disse estendendo-lhe uma das mãos.

O que é? - perguntou a jovem quase automaticamente.

Infelizmente não posso lhe dar outras informações. O que sei é que precisa seguir as instruções contidas neste envelope.

Algo com o que eu deva me preocupar?

Realmente não tenho autorização para lhe dizer.

Tudo bem, obrigada.

Se me permite dizer - continuou Cardoso -, fiquei impressionado com sua habilidade em escaladas e a forma como tratou o acidente. Meus parabéns.

Obrigada - respondeu Gabrielle, abrindo a porta do jipe. - Se é tudo, acho que preciso ir ver meu amigo.

Claro.

Gabrielle ligou o jipe e saiu. Durante o caminho, abriu o envelope e o que viu foram instruções para um encontro. Pensou em Fernando: havia alguns meses não o via. Sentia saudades, mas aprendera a controlar seu sentimento. Se o major a chamara, a chance de que ele estivesse por lá seria grande. Sabia que um novo encontro não seria uma simples recep­ção, mas, mesmo assim, não faltaria por nada.

 

                     O Setor

Fernando dirigiu por quase cinqüenta quilômetros antes de chegar ao lugar marcado para o encontro com o major. No envelope que havia recebido de Cardoso, as instruções eram claras: dezoito horas, na fábrica abandonada próximo ao quilômetro trinta e dois da SP-70. O advogado saiu da rodovia Ayrton Senna acessando uma pequena estrada de terra e, por entre árvores e folhagens, dirigiu seu carro até o portão de ferro que protegia a propriedade. Quando chegou, a entrada estava aberta, não havia carros e nem mesmo pessoas para recebê-lo. Atravessou o portão e seguiu, parando em uma das vagas que no passado servira como estacio­namento para a direção executiva do lugar. Designações de cargos pin­tadas no piso resistiam ao tempo e Fernando identificou cada uma delas assim que desceu do veículo. Percebendo que estava sozinho, o advogado atravessou o pátio e seguiu rumo à entrada principal do prédio.

O sol do fim de tarde atravessava os vidros quebrados da antiga fábrica, como fachos de luz vindos de potentes holofotes. As paredes com tinta descascada e reboque caído confirmavam os anos de abandono a que o lugar, por muito tempo esquecido, havia sido exposto. O galpão era alto e extenso, medindo mais de cem metros de comprimento e cinqüenta de largura, com antigas pontes rolantes próximas ao teto, móveis de escritório espalhados pelo ambiente e algumas máquinas operatrizes muito antigas. Os passos de Fernando produziam o som característico de lugares vazios e o eco ressoava em seus ouvidos. Não havia sinais da presença de outras pessoas, a não ser por uma luz diferente, uma claridade que provinha do centro do galpão.

Enquanto caminhava, Fernando se lembrou do dilema que o consu­mira. Mesmo antes de sair de casa, o advogado pensara por várias vezes em não atender ao chamado do major. Da última vez que se envolvera com aquelas pessoas, colocara sua vida em risco e a chance de algo seme­lhante ocorrer em um novo encontro era muito maior do que uma sim­ples coincidência. A cicatriz que lhe ficara na perna desde aquele dia em Itaipu não o deixava esquecer de como tudo havia acontecido. Por sorte, no passado, ele e Gabrielle conseguiram escapar praticamente ilesos do que poderia ser o fim de suas histórias. Mas sua curiosidade e também o respeito que tinha pelo major pareciam falar acima da razão. A chance de conhecer mais sobre o Setor 27 e seus segredos era algo único e impossí­vel de se desconsiderar. Por isso resolveu seguir em frente para entender do que se tratava esse novo mistério.

Fernando imaginava ainda poder estar novamente ao lado de Gabrielle; nos últimos tempos, o contato com a historiadora se tornara difícil e complicado. Depois do episódio às margens da lagoa, Gabrielle parecia fiel à promessa de nunca mais se envolver amorosamente. Mesmo tentando se aproximar, nos últimos dois anos, tudo o que Fernando conseguira foram encontros casuais e totalmente descompromissados. Nunca imaginou que isso pudesse acontecer, mas, diante dos fatos, estava nítido que a jovem realmente o esquecera.

Seguiu, passando por uma linha de máquinas, até o lugar de onde partia a luz. Previamente, alguém abrira espaço por entre o lixo, for­mando um círculo de quase cinco metros. Uma mesa repousava no cen­tro da abertura e uma potente luminária presa a um pedestal clareava sua superfície. Mais uma vez, Fernando considerou ter ficado em casa; algo ali não lhe cheirava bem e o galpão vazio aumentava suas dúvidas. Estava prestes a sair quando o som de uma voz fez com que parasse:

- Fico feliz que tenha atendido a meu pedido, Sr. Fernando.

Por entre algumas caixas, o major, em trajes negros, como sempre havia sido visto por Fernando, surgiu seguido por um homem carregando uma maleta. Este segundo homem era alguém que ele não conhecia.

Muito obrigado - continuou o major.

Fernando assentiu com a cabeça e respondeu:

Ficaria mais tranqüilo se soubesse do que se trata.

Não vai demorar, senhor Fernando - respondeu o militar mais alguns minutos e todos estarão aqui. Assim, poderemos começar.

Enquanto falavam, o homem que acompanhava o major seguiu até a mesa, abriu a mala e retirou dela um notebook. Habilmente, conectou o aparelho a uma antena e colocando-o sobre a mesa iniciou uma conexão.

Neste momento, novos passos foram ouvidos no galpão: desta vez, vin­dos de duas direções. O homem que acompanhava o major retirou da cin­tura uma metralhadora portátil e aguardou até que o som se aproximasse. Porém, assim que os novos visitantes foram vistos, o homem recolheu sua arma. O primeiro a chegar foi Cardoso; segundos depois, Gabrielle.

Mesmo prevendo que Gabrielle estivesse presente, Fernando foi tomado de surpresa com sua chegada. A jovem estava mais bonita do que nunca e seus olhos não conseguiram disfarçar a admiração:

Olá, Gabrielle! - disse em tom firme.

A jovem por um instante também sentiu a saudade lhe apertar o peito, mas controlando rapidamente seus sentimentos respondeu formalmente:

Oi, Fernando, como vai?

Mais duas pessoas se uniram ao grupo nos minutos que se seguiram. Uma mulher descendente de orientais, de cabelos curtos e um semblante sério; e um homem jovem forte e de cabelos arrepiados.

Assim que o último deles se aproximou o major rompeu o silêncio que reinava no galpão:

Bem - disse ele já que estamos todos aqui, não vamos mais per­der tempo. O que tenho para lhes contar é de extrema importância e não deve ser mais adiado. Cada minuto que permanecermos aqui só fará aumentar nossa exposição, e não devemos correr riscos além do aceitável.

De modo intuitivo, o grupo havia formado um círculo, e agora todos ouviam ao comandante:

Em primeiro lugar, gostaria de lhes fazer uma apresentação formal.

Gabrielle olhou para Fernando sinalizando imediatamente diferen­ças na postura do militar. Os dois só conheciam o major por sua patente; e, nas poucas vezes em que conversaram, ele jamais se mostrara disposto a apresentações. Aquela atitude certamente os surpreendia.

Estas são hoje - continuou o major - as únicas pessoas em quem confio dentro do Setor e as únicas que acredito não terem ainda sido con­taminadas pelo mal que estamos enfrentando.

Os militares se ajeitaram em suas posições, e então o major continuou:

Tenente Cardoso. Um dos mais antigos homens de minha equipe. O oficial responsável pelas principais ações de campo realizadas pelo Setor. Um amigo confiável: corajoso e seguidor das regras.

Cardoso assentiu com a cabeça e o major prosseguiu:

Sargento Douglas - disse apontando agora para o homem que operava o computador sobre a mesa -, um especialista em comunicações e espiona­gem, um homem treinado na arte de passar despercebido, de ser invisível.

Douglas, atento à tela do computador, permaneceu com a cabeça baixa enquanto o major continuava:

Tenente Patrícia - disse apontando para a bela oriental nossa engenheira especialista e piloto, uma mulher com sólidos conhecimentos e alto poder de concentração. E, por fim, sargento Henrique, nosso perito em combate e armamento.

Fernando e Gabrielle correram os olhos por entre o grupo, as pessoas pareciam apreensivas por estarem ali, algo lhes dizia que passavam por um momento difícil. O major fez uma pausa e continuou:

Quanto a mim, eu sou o major Alencar, membro do Setor há trinta e dois anos e subcomandante, responsável por todas as atividades de investida e abordagens em campo.

Havia muito tempo o major não expunha sua patente a civis daquele modo. Na verdade, nunca o fizera; era como se confirmasse, aos quatro ventos, a existência de uma unidade secreta, o que jamais imaginava um dia acontecer. Porém, o que estava prestes a revelar era algo muito mais imprevisível. Durante muito tempo, pensara em alternativas para que tal atitude não fosse necessária, mas estas não existiam. Os civis à sua frente eram agora sua última saída.

O sol da tarde já se punha no horizonte, e a única fonte de luz naquele momento era a que refletia sobre a mesa ao redor da qual todos espera­vam. O major olhou cauteloso para seus companheiros, como se pedisse que depositassem sobre ele sua total confiança e então prosseguiu:

O que pretendo lhes dizer hoje pode parecer inacreditável - disse olhando para os dois. - Algo que jamais imaginaram e do qual infeliz­mente nunca pudemos nos orgulhar.

Ele fez uma curta pausa e continuou:

Há quase cinqüenta anos nosso país sofreu, talvez, um dos maiores golpes de sua história. Um golpe que nos dias atuais jaz esquecido por muitos, mas que ainda se mantém claro na memória daqueles que vive­ram, quem sabe, os piores momentos de suas vidas. Por conta de uma decisão do alto comando militar, o presidente João Goulart foi deposto, cedendo lugar ao regime mais repressivo da história. Muitas justificativas se faziam presentes nos discursos das autoridades responsáveis pelo ato: profundas mudanças nas relações políticas, no ordenamento jurídico- constitucional e na esfera socioeconômica. Mas nada que pudesse expli­car o que se sucedeu nos anos seguintes. O desenvolvimento do país foi evidente. Ajudado por outras nações que se diziam interessadas em con­ter a expansão mundial do comunismo, o Brasil conseguiu criar estrutura e desenvolver conhecimentos essenciais para um país de futuro. Mas a que custo? A repressão política, criada para conter possíveis interven­ções ao novo governo, muitas vezes não representou atos de civilidade e, menos ainda, de progresso.

Todos olhavam atentos e surpresos para o discurso do major. Até mesmo os militares ao seu lado jamais o haviam visto falar sobre o assunto daquela forma. Nem em missões ou mesmo nos treinamentos que ministrava aos novatos.

Durante os primeiros anos de ditadura, uma estratégia de vigilân­cia e intervenção foi montada pela inteligência. Polícias especializadas em combater o "inimigo interno", como eram chamados os revolucionários da época, foram criadas por todo o território nacional. Para ser mais preciso, cada estado e cada território existente no Brasil, àquela época, foi incum­bido de criar um destacamento que pudesse conter manifestações passíveis de comprometer o futuro do nosso governo. Vinte e três estados e mais três territórios criaram esses destacamentos. Alguns bem-organizados outros nem tanto; mas todos, sem exceção, detinham poder delegado para agir contra as chamadas organizações armadas de esquerda. Vinte e seis des­tacamentos no total. Vinte e seis grupos reprimindo atos de vandalismo e apreendendo todo e qualquer tipo de material subversivo.

O major fez outra pequena pausa, caminhou lentamente ao redor da mesa e então continuou:

Imaginem vinte e seis grupos reunindo todos os dias objetos e documentos que pudessem comprometer pessoas e organizações. Pilhas de documentos e objetos que poderiam expor parte do próprio governo. Isso preocupou pessoas do alto escalão; muitos imaginavam o que seria do regime se tudo aquilo fosse revelado, se caísse em mãos erradas, ou quem sabe na mídia internacional. Bem, como de fato era algo que pode­ria acontecer, era também uma hipótese a ser levada em conta pela inte­ligência. E foi o que aconteceu. Depois do primeiro caso de vazamento de informações, um ano após o início do regime, o comitê de inteligên­cia e os homens do alto escalão resolveram prevenir novas exposições de informação e criaram outra unidade. Uma unidade que seria responsável por agrupar, organizar e salvaguardar tudo o que fosse apreendido pelos 26 departamentos. Uma unidade que fosse independente de qualquer dos estados e que tivesse ação efetiva em toda a nação. Esta unidade ficou conhecida como Setor 27.

Fernando e Gabrielle entreolharam-se: percebiam agora do que se tratava, tudo com o que estavam envolvidos e a dimensão de toda a orga­nização. O major continuou:

É obvio que o nome do setor foi escolhido como seqüencial aos vinte e seis departamentos existentes, mas sua abrangência era diferente, total­mente estratégica e essencial. Somente realizávamos trabalhos de investida em campo se houvesse a necessidade de grande sigilo. Éramos chamados quando nem mesmo o Estado podia saber do que se tratava. E armazená­vamos tudo o que era essencial. Aos poucos fomos montando depósitos e armazém, cujos sistemas de segurança se equiparavam aos mais modernos do mundo. Identificações automáticas, controles digitais e de informática, sinais de alarme por rádio. Informações importantes desapareciam da noite para o dia em nossas mãos e jamais eram encontradas.

Informações como aquelas que encontramos na represa há dois anos? - perguntou Fernando.

Correto, Sr Fernando. Informações como aquelas, até então essen­ciais à sobrevivência da ditadura - respondeu o major, que continuou. - Enfim, os anos se passaram, e fizemos nosso trabalho de forma digna e profissional. Fomos os melhores. Nada nos escapava e tudo o que guar­dávamos permanecia escondido em total segurança.

Mas... - completou Gabrielle.

Exatamente, minha cara - concordou o major -, mas o tempo pas­sou e muitas coisas mudaram. Assim que a ditadura caiu e os departa­mentos foram reformulados, o Setor 27 foi o único que se manteve de pé. Por conter a chave para tudo o que acontecera durante as décadas do regime, ele se tornou essencial para a segurança das pessoas que per­maneciam na ativa das polícias e dos quartéis. Até aí tudo transcorria na normalidade. Porém, o tempo não deu trégua e nos últimos anos não restaram pessoas interessadas em manter tais segredos. Por ordem do alto escalão, desde então, as verbas do setor foram cortadas e pouco ou quase nenhum reforço nos foi enviado - disse olhando para Henrique. - Entramos em declínio e por isso estamos prestes a revelar todos os nossos segredos, e quem sabe nos tornarmos os maiores vilões da história.

Alguns se olhavam enquanto outros simplesmente baixavam suas cabeças:

Eu sei que este é um destino inevitável para nós e sobre o qual já venho refletindo nos últimos dez anos. Não podemos mais esconder tudo aquilo que está sob nossa guarda; e isso deve ser evidentemente revelado. Ações de novos governos cobram esta atitude e todos os que estão aqui acreditam que este futuro é inevitável. Na velocidade correta, tudo o que temos a revelar pode e será benéfico ao nosso país. Acreditamos nisso, mas isso não é o que nosso comandante quer de nós. O coronel respon­sável pelo setor não admite que sejamos revelados e por isso resolveu agir de uma forma com a qual não concordamos. É aqui que vocês entram. E é por isso que estamos aqui.

Gabrielle e Fernando se olharam novamente; o que vinha pela frente por certo não os agradaria. Envolver-se com assuntos militares era algo perigoso. Temiam, como muitos, por sua segurança:

E exatamente do que se trata? - perguntou Fernando.

Sargento Douglas? - disse apreensivo o major.

Estamos seguros, senhor. Pode continuar.

- Ao saber dos problemas de caixa que enfrentaríamos, nosso coman­dante resolveu se prevenir. Cuidar do assunto através de suas decisões pessoais. Ele não quer o fim do setor e para isso não impõe limites.

O major virou a tela do notebook na direção de Fernando e Gabrielle. A tela apresentava um desenho do mapa do Brasil com quatro círculos que piscavam intermitentemente e um "X" que permanecia o tempo todo brilhando na cor vermelha.

Esses locais posicionados no mapa indicam a localização dos depó­sitos que criamos durante todos esses anos. Eles são monitorados durante as 24 horas do dia, exceto aquele, em vermelho, que era o da lagoa de Itaipu, hoje desativado.

Fernando engoliu em seco, pois sabia que teve participação no que havia acontecido.

Temos ordens de desativar três dos depósitos existentes e reunir ape­nas o que existir de mais importante em um deles, o que ainda estamos por definir. Será uma reformulação completa, em que informações importan­tes serão reveladas ou então eliminadas para sempre de nossa história. Uma ordem coerente com a proposta do setor e diante da qual não tivemos sur­presa. Porém, ao concluirmos a análise inicial, objetivando a unificação dos depósitos, percebemos algo que não estava previsto neste trabalho. Dois dos nossos depósitos foram violados antes de chegarmos ao local. Havia marcas e sinais da presença de pessoas em seu interior.

Roubo? - perguntou Fernando.

Foi o que pensamos, mas não havia sinal de arrombamento ou de trancas forçadas. Era como se a pessoa tivesse a chave.

Então foi um de vocês - completou Gabrielle.

Foi o que nos pareceu - continuou o major. - E foi também a con­clusão que levamos ao coronel, solicitando a abertura de investigações.

Mas ele se negou! - completou o tenente Cardoso.

Exatamente - disse o major. - Ele se negou a abrir um inquérito interno e nos reprimiu por tentar investigar, dizendo que aqueles que fossem a fundo nesta história estariam desobedecendo às ordens supe­riores e com isso seriam punidos. Alegou que temos poucos homens e que seria uma ação de desperdício. Ele agiu como se o Setor não fizesse mais parte de um estado maior: desconsiderou as leis e determinou suas próprias regras.

Era evidente que aquelas palavras não eram ditas pelo militar de maneira tranqüila e confortável. Alencar dividia naquele momento a res­ponsabilidade pelas ações que desenvolveriam em um futuro próximo. O oficial não planejara de antemão aquele discurso, mas sabia exatamente o que deveria ser dito:

Mas, mesmo percebendo que não teríamos como convencê-lo do contrário - continuou o major -, nós não desistimos. Durante um mês, procuramos identificar entre todos os membros do setor pessoas que esti­vessem dispostas a descobrir a verdade por trás das invasões. Pessoas que estivessem dispostas a contrariar a ordem do coronel, mesmo sabendo que tal decisão poderia lhes custar a vida. Assim, formamos este grupo, com o objetivo de descobrir a verdade sobre o que está para acontecer.

Ótimo, major. Creio que sabemos o que os traz até aqui, mas não exatamente o que traz a mim e Gabrielle - afirmou Fernando.

É muito simples. Assim como passamos a vigiar cada movimento do coronel, cada viagem e cada reunião, o mesmo está sendo feito conosco. Não temos como seguir em busca de provas sem que nossa ausência seja notada. Então, por sugestão de um de nós - disse olhando para Douglas -, avaliamos a possibilidade de envolver pessoas não pertencentes ao setor em nossa operação. Pensamos que civis poderiam fazer este trabalho sem que fossem notados. Seria uma possível solução, para que continuásse­mos a busca sem que pudessem nos descobrir.

Muitos poderiam ser escolhidos - interrompeu Cardoso -, mas pelo que analisamos vocês são os mais indicados. Têm as habilidades físicas necessárias e também uma capacidade diferenciada de resolver enigmas. Achamos que o motivo das invasões não é evidente e por isso será necessária uma investigação minuciosa. Precisaremos de ajuda para descobrir os culpados. - O tenente sorriu e então continuou: - Como viram em Itaipu, somos bons em guardar coisas, mas ruins em entender seu significado.

Precisamos de pessoas capazes de entender o que está por trás das intenções do coronel e por isso vocês são necessários - completou o major. - E, acima de tudo, eu confio em vocês.

Gabrielle olhou para Fernando. Em seu íntimo, a jovem sabia que o que falavam dos dois não era exagero. Se a necessidade de recrutar pes­soas para ajudar naquele trabalho fizera com que seus nomes surgissem como referência, é porque faziam jus à escolha.

Antes que pudessem responder, Douglas os interrompeu:

Senhor!

Sim! - respondeu o major.

Estou interceptando uma comunicação, parece que um helicóptero está vindo para cá. Acho que suspeitam de nós.

Quanto tempo?

Talvez, três ou quatro minutos.

E quem são? - peiguntou o major, olhando ao redor de todo o prédio.

Não sei exatamente, mas não parecem ser do Setor.

Ok, reunião terminada - gritou o militar. - Saiam todos, inclusive vocês dois, e rápido!

Mas o que está acontecendo? - perguntou Fernando.

Pensamos que estaríamos seguros aqui, mas parece que estávamos enganados. Não podemos esperar mais, a decisão de nos ajudar está nas mãos de vocês, agora vocês sabem do que se trata e conhecem o suficiente para decidir. Espero poder contar com sua ajuda.

Mas... - Gabrielle tentou argumentar, mas foi imediatamente interrompida.

Desculpem, não temos mais tempo para conversar - continuou o major -, é melhor saírem rápido. Receberão instruções em breve e pode­rão decidir o que fazer. Vou esperar até que me respondam.

O major se afastou, parando alguns metros à frente:

Cardoso - disse antes de sair cuide dos dois!

Sim, senhor! - respondeu o militar.

Alencar saiu pelos fundos do galpão, seguido por três de seus homens. Cardoso conduziu Gabrielle e Fernando até a saída, evitando que ficassem para trás. Em dois minutos e meio, todo o galpão estava vazio. Abandonado como nos últimos anos.

Enquanto guiavam pela estrada de terra, Gabrielle e Fernando pude­ram avistar dois helicópteros pousando no estacionamento principal da fábrica. Seus corações batiam acelerados. O breve encontro, cujo objetivo era lhes trazer esclarecimento, havia trazido mais dúvidas do que espe­ravam ter. A proposta de ajudar o Setor era algo estranho e misterioso. Enfim, tinham uma decisão a tomar e se quisessem saber mais, deveriam ir além daquele dia.

 

Os dois helicópteros modelo Super Puma, com suas camuflagens especiais, pousaram na fábrica instantes após todos saírem. Em poucos segundos, soldados ocuparam quase todo o prédio em busca de suspeitos ou pistas que pudessem levá-los até quem procuravam.

Nada foi encontrado.

O oficial responsável pela operação esbravejava contra um de seus comandados e o culpava pela imperdoável falta de precisão demonstrada durante a operação. Mais uma vez os havia perdido. Nesse instante, um soldado, mais precisamente o operador de instrumentos do primeiro helicóptero, se aproximou dos dois:

Senhor!

O que é soldado, não vê que estou ocupado - respondeu o homem.

Me desculpe, senhor, mas é que temos uma informação importante.

Do que se trata?

- Antes de chegarmos à fábrica, passamos por dois carros que seguiam pela estrada. A princípio não pensamos em interceptá-los, pois o galpão era o alvo principal; porém, por precaução, a pedido do tenente, tiramos algumas fotos e, a partir de uma delas, conseguimos identificar parte da placa de um deles. Não parece muito, mas pode nos levar a algum lugar.

O capitão sorriu, olhou ao redor e viu que nada mais poderia fazer naquele lugar. Bateu no ombro do soldado com a intenção de um cum­primento e continuou:

- Muito bem, soldado, ótimo trabalho. Não temos mais nada a fazer aqui, vamos voltar e ver o que sua foto pode nos dizer.

 

                     SOVREMENNY

Em um quarto escuro e apertado, a milhares de quilômetros de dis­tância do território brasileiro, Hamid Kedar revisava os planos de sua investida. O homem de quase quarenta anos de idade sabia que ele e seus irmãos teriam apenas uma única chance de conseguir realizar aquilo que haviam planejado, e por isso relia incansavelmente cada página de seu engenhoso trabalho. Desde que se infiltrara na equipe de manutenção responsável pela conservação dos navios de guerra russos, sua vida se resumira em descobrir uma forma de subjugar o rígido sistema de segu­rança de uma das bases militares mais importantes do país e por isso precisava se certificar de que nada lhe havia passado despercebido. Na verdade, esta era a missão que lhe haviam designado desde que fora con­duzido a este novo mundo: combater nações pecadoras que traziam dis­córdia e ganância à humanidade.

Quando ainda criança, em sua cidade natal, Hamid fora vítima de um ataque que tirara a vida de toda a sua família. Durante uma bonita noite de inverno, enquanto brincava com amigos em um terreno perto de casa, sons desconhecidos surgiram de repente abafando por completo a alegria dos pequenos. Luzes cruzavam o céu a uma velocidade impres­sionante e terminavam sua trajetória causando explosões assustadoras. As crianças sabiam que o país passava por problemas, percebiam no sem­blante de seus pais que algo realmente não ia bem, mas jamais imagina­vam que aquilo pudesse acontecer.

Uma das luzes passou a alguns metros acima de suas cabeças caindo exatamente no bairro em que moravam.

Hamid e seus amigos foram imediatamente jogados ao chão pela força do impacto. O som era assustador e a claridade momentaneamente lhes cegou os olhos. Assim que se recuperou, o pequeno menino soltou as sandálias dos pés e correu o mais rápido que pôde em direção a sua casa. Mais da metade da rua jazia em chamas. Pessoas corriam e gritavam, temendo por novos ataques. O desespero o consumiu fazendo com que tentasse se aproximar do portão. O calor era intenso e as chamas, mesmo à distância, queimavam sua pele.

Mais um míssil cruzou o céu atingindo outra rua do bairro. Hamid temia por sua vida. O menino enxugou as lágrimas do rosto e, abando­nando suas últimas esperanças, correu em direção ao deserto.

Dois dias depois, uma milícia o encontrou desmaiado, à sombra de uma grande pedra. Quase sem vida, Hamid foi levado por eles a um campo de treinamento militar e, desde então, aqueles homens se torna­ram sua família. Eles lhe ensinaram a religião, o estudo e a guerra. Hamid tornara-se um soldado de Deus, com uma missão e um caminho muito claro a trilhar.

Este era o motivo de estar ali. Vingar seus pais através de uma missão sagrada era a razão de todo o seu esforço.

Hamid olhou preocupado para seu relógio de pulso. O tempo era a base de todo o plano e teriam que realizar cada etapa dentro do planejado para obter sucesso. O contingente da base estava reduzido ao mínimo, a maioria dos soldados estava reforçando a guarda das comemorações da Páscoa Ortodoxa e por isso a ocasião era a mais indicada. Os diver­sos atentados ocorridos durante as últimas comemorações do segundo maior evento do país eram responsáveis por toda a movimentação mili­tar nas ruas, e, por conseqüência, menos de vinte militares faziam a segu­rança naquela noite.

Conforme o combinado, vinte e cinco invasores chegariam com bar­cos a remo pelo lado leste do cais. Protegidos pelo escuro da noite encon­trariam Hamid e juntos eliminariam cada um dos vigilantes, permitindo a eles levar o que pretendiam.

Hamid desceu do alojamento em direção ao local combinado. Faltavam menos de três minutos quando ele os avistou.

Assim que se encontraram, Nasim e Jafar, líderes do grupo, o abra­çaram e beijaram sua face. Como combinado Hamid entregou a eles dois mapas e dois rádios. Apesar de receberem os comunicadores, todos sabiam que o silêncio do rádio só poderia ser quebrado em situação de extrema necessidade.

Como definido, então, o grupo se dividiu. Precisavam cumprir os objetivos em menos de sessenta minutos. Esse era o tempo planejado para a abertura das comemorações e, com certeza, o momento mais vulnerável da noite. Com vigílias pelas ruas e pessoas esperando pela abertura das igrejas, o país revertia sua atenção ao evento e tornava enfraquecidas suas instalações. Hamid seria o responsável por encontrar o objetivo princi­pal, Nasim pelo transporte e Jafar por eliminar a comunicação entre a base e o comando.

Em poucos segundos, todos desapareceram em meio à escuridão. O cronômetro estava girando.

 

A base russa mantinha uma sala de comunicação e monitoramento responsável pelo contato com os centros de comando. Alexander e Yurik eram os soldados responsáveis pela guarda do local durante aquela noite e até aquele momento não haviam registrado qualquer movimento incomum. Dois soldados de físicos claramente opostos: Alexander era baixo, magro e muito jovem, enquanto que Yurik era um grandalhão que facil­mente passaria por um lutador de vale-tudo. Era a primeira vez que rea­lizavam a vigilância em parceria, mas logo ficou claro que seus interesses eram ainda mais distintos do que suas aparências. Como já se aproximava da meia-noite, Yurik resolvera tirar um cochilo. O grandalhão sentou-se em uma cadeira e, colocando os pés sobre uma das mesas da sala, apa­gou rapidamente. Alexander, por sua vez, preocupado em acompanhar a abertura das igrejas, ligou o televisor existente na sala e Sintonizou-o no canal mais popular do país.

O programa mostrava agora visões aéreas de cada uma das principais igrejas da Rússia. Alexander, tradicionalista por influência da família, acompanhava atentamente as reportagens, mesmo sabendo que aquela não era sua maior prioridade. Desde que entrara para o Exército e que iniciara a faculdade de direito, tornara-se difícil continuar a participar de eventos; o país estava mudando, os reflexos da abertura da economia ainda os assolaria por um bom tempo e ele tinha consciência de que seu envolvimento como cidadão precisava ser político, e não religioso.

O som do ronco vindo do canto da sala tirava sua atenção e o evi­dente descaso do colega de turno indicava que a noite seria solitária e barulhenta. Em sua opinião este era o problema que afligia o país naquele momento, a disciplina e o compromisso com as responsabilidades não eram mais os mesmos. Pessoas como Yurik se aproveitavam da situação e faziam com que rumassem para um caminho ainda menos promissor. O país precisava conter isso e Alexander tinha intenção de estar à frente quando tudo acontecesse. Não vivera os momentos de glória da nação no passado, mas por certo seria um dos responsáveis pela virada desse jogo - e, para isso, estava se preparando.

Do outro lado da porta, sem que os dois soldados soubessem, Jafar tentava imaginar quantos deles resguardavam a sala. No caminho até ali, seu grupo havia eliminado nove militares, sendo que a maioria deles estava acompanhando as comemorações ou agrupada em pequenas rodas de bate-papo. Nove soldados abatidos e apenas uma baixa em sua equipe, o saldo havia sido positivo; mas o momento mais importante estava por vir. Se não conseguissem eliminar os soldados da sala antes que acionassem o alarme, a investida teria um final trágico. Jafar sabia que um comunicado de emergência faria com que os russos viessem à sua procura e, se isso acontecesse, as chances de sobrevivência seriam míni­mas. Além disso, o sigilo era também um fator decisivo para que o plano fosse concluído com sucesso.

Um dos homens de Jafar posicionou uma escuta na porta. Os sons que percebia indicavam que mais de uma pessoa estava na sala. Era impossível saber exatamente quantos eram. Alguém parecia dormir e o barulho do seu ronco era ensurdecedor. O líder pensou em como seria a abordagem, mas apenas uma alternativa apresentava-se viável. Entrariam em três e rapidamente cada um atacaria um quadrante da sala. Um dos soldados atacaria os inimigos da esquerda, o outro os inimigos da direita e Jafar ficaria com os do meio.

Assim que recebeu a ordem, um dos homens golpeou a porta, fazendo com que ela fosse ao chão.

 

Ao ouvir o som da invasão, Alexander sacou sua arma e atirou em direção à entrada. Jafar, que avançava à frente do grupo, percebeu sua ação e sem pensar jogou-se ao chão, escapando por pouco do disparo. O homem que vinha em seguida não teve a mesma sorte e caiu atingido pelo projétil. Por um instante Alexander achou que pudesse combater os invasores, mas só se deu conta da ação de Jafar quando uma terrível dor consumiu seu abdômen. Logo após escapar do primeiro disparo, o líder dos invasores apontou sua arma em direção a ele e atirou, fazendo com que caísse quase imediatamente.

 

Yurik, que dormia profundamente, caiu da cadeira e, ao perceber a situação, tentou se proteger atrás de um dos arquivos. Sua arma não estava consigo. Para que pudesse se acomodar melhor enquanto dormia, ele a havia deixado sobre a mesa. Não entendia que diabos aqueles homens faziam na sala de comunicação, a base nunca antes havia sido invadida e, de repente, sem aviso, eles estavam ali. Olhou ao redor, viu Alexander ser baleado e cair sobre os computadores. Realmente eles não estavam querendo conversa. Sabia que o alarme geral estava do outro lado da sala e percebeu que seria arriscado tentar alcançá-lo. Temia por sua vida, mas ela era agora o que menos importava: precisava avisar a todos que estavam sendo atacados. Correu em direção ao alarme, bastava apertar aquele botão e tudo estaria resolvido, seu trabalho estaria concluído.

Jafar varreu os olhos pela sala e não conseguiu encontrar o segundo soldado. A ação fora tão instantânea que ele o perdera de vista. Olhou para a porta e pôde perceber que um de seus homens estava ferido. Apoiou um dos braços para se levantar, mas, antes que conseguisse fazê-lo, o segundo soldado surgiu, correndo em sua direção. Jafar ergueu sua arma e disparou novamente, atingindo o homem no peito.

Yurik só viu que o homem estava em seu caminho quando já era tarde. Armado, ele disparou em sua direção. O soldado sentiu como se sua pele estivesse queimando, mas conseguiu ainda continuar. Passou pelo homem, ouviu outros disparos, sentiu seu corpo jogado para o lado e caiu. Da porta, um dos soldados também havia disparado. Yurik ainda olhava fixo para o botão do alarme quando seus olhos escureceram.

 

Em poucos minutos a sala de comunicação havia sido tomada.

Do outro lado da Base, Nasim e seus homens observavam o destróier russo protegidos pelo escuro da noite. A máquina de guerra da classe Sovremenny com mais de seis mil toneladas repousava inativa havia muito tempo no ancoradouro e por isso sua aparência não era de longe a mais vigorosa. Na verdade, o imponente navio de guerra estava em fase final de manutenção e por isso não dispunha de qualquer dispositivo de combate acoplado a sua carcaça. Nem mesmo um sistema de segurança reforçado era necessário, já que os armamentos comumente instalados no destróier estavam desmontados e encaixotados, aguardando o tér­mino da atividade. Esta era, na realidade, a principal atribuição da base: reformar e conservar navios militares. Durante o tempo em que Hamid esteve participando das atividades de manutenção em embarcações, três daqueles destróieres haviam sido reformados. Até então não houvera a chance de realizar a investida, porém, era chegada a hora e a missão estava bem traçada.

Se tudo estivesse correndo a contento, Jafar já teria inutilizado a cen­tral de comunicação e chegaria o momento de agir. Nasim sinalizou para seus homens e estes então se espalharam cobrindo boa parte do espaço ocupado pelo barco.

Obedecendo ao segundo sinal, os homens invadiram o destróier. Um a um, os poucos soldados que montavam guarda foram eliminados. A tranqüilidade da noite e a certeza de que os maiores riscos estavam dire­cionados a possíveis atentados às comemorações da Páscoa Ortodoxa traziam aos soldados uma vulnerabilidade que foi facilmente aproveitada pelos invasores. Em menos de dez minutos, os cinco soldados responsá­veis pela guarda do cais não eram mais problema.

Assim que assumiu a ponte de comando, Nasim chamou um de seus homens e, entregando-lhe a planta do navio, pediu para que removesse os sistemas ativos de rastreamento. Saiu então com outros dois em dire­ção ao deque principal para o encontro de seu mais difícil desafio.

O lugar onde antes estivera instalado o principal canhão do destróier era agora uma abertura que dava acesso a um dos compartimentos de carga. Nasim se aproximou e, medindo a dimensão da abertura, consta­tou o que já imaginava. Era insuficiente para aquilo que iriam carregar. Rapidamente, o homem pegou um spray e marcou sobre o piso um retângulo de quase quinze metros. Enquanto o fazia, seus homens se aproxi­maram com dois potentes maçaricos a gás. Eles acenderam as chamas e Nasim observou apreensivo. Teriam menos de cinqüenta minutos para ampliar a abertura e transformá-la em uma enorme porta.

 

Hamid sabia que o principal dentre os três objetivos daquela inves­tida estava em suas mãos. Durante as várias noites que passara estu­dando a rotina da base, muito do que descobrira mudara o que seria seu plano inicial.

Para que o mundo soubesse da seriedade de suas intenções precisa­vam de um novo aviso, algo ainda maior do que outros haviam conse­guido. Qualquer ação de menor intensidade jamais repercutiria à altura de suas intenções.

As ogivas nucleares soviéticas eram protegidas em bases pratica­mente impossíveis de serem invadidas. Por um tempo, pareceu que não encontrariam outro caminho, mas o destino colocara um homem em seu caminho, um homem de um país distante. Um país no qual poderiam entrar sem grandes dificuldades, um lugar estratégico, onde poderiam construir um novo e mais eficiente plano. Porém, o tempo e os recursos necessários para que encontrassem o sucesso precisavam estar alinhados e disponíveis. Não tinham como encontrar as ogivas russas, mas os mís­seis lançadores estavam ao seu alcance. Os principais armamentos dos navios em manutenção na base, além de armamentos terrestres, eram descarregados e armazenados em enormes depósitos. As ogivas nucleares eram os únicos que seguiam para bases de segurança máxima.

Hamid chegou em frente ao depósito de armamentos acompanhado por dez homens. Já era de seu conhecimento que a guarda do local con­tava, em situações de normalidade, com um contingente de apenas qua­tro soldados. Passar pelos guardas seria apenas parte da dificuldade; o que realmente o preocupava era o sistema de segurança que protegia os armamentos.

Dois homens estavam em frente ao prédio, guardando a porta princi­pal. Para que pudesse surpreendê-los o grupo teve que contornar o pátio. Os homens conversavam cobertos pela fumaça dos cigarros que segura­vam entre os dedos. A conversa em voz alta encobria o som dos movi­mentos, permitindo que se aproximassem com certa facilidade. Hamid sinalizou para que de dois em dois seus homens atacassem os vigias. Então, em um movimento conjunto, quatro dos invasores avançaram.

Utilizando uma prática de ataque em campo - exaustivamente treinada em simulações - dois deles seguraram os guardas, enquanto os outros, munidos de facas, tiravam suas vidas. Hamid se aproximou, satisfeito com o que havia visto, o plano estava quase concluído; atrás do portão estava seu objetivo principal. Em breve estariam rumando a seu destino e ninguém mais poderia detê-los.

Por um instante o silêncio do rádio foi quebrado:

Hamid! - chamava Jafar preocupado.

O que foi? - respondeu o líder. - Não havíamos combinado de manter silêncio até o final da operação?

Sim, mas estamos na sala de comunicação e o comando pede informa­ções do armamento. Já falamos com eles, mas solicitam que seja confirmado o código de defesa do depósito de armamentos. Parece que se trata de um código fornecido pelo computador a cada espaço definido de tempo.

Ok, tente ganhar algum tempo. Ainda não entramos no galpão, assim que tivermos o código retorno a falar contigo.

- Ok!

No interior do depósito, outros dois soldados compunham a última barreira de proteção para os armamentos. Dimitri e Krigor eram os dois soldados mais novos incorporados à base e por isso estavam no posto considerado administrativo. Cuidar de um computador e de uma porta era encarado por todos como um serviço pouco nobre para militares de alto treinamento. Mas a dupla de brincalhões do quartel sempre acabava recebendo os trabalhos mais monótonos e solitários. Os comandantes sabiam que se os colocassem em conjunto com a tropa, a desatenção seria coletiva. Os dois não tinham limites, por isso sempre acabavam em pos­tos de guarda distantes ou enclausurados. Dimitri, o soldado responsá­vel pela confirmação dos códigos de segurança, não entendia por que a sala de comunicação ainda não havia solicitado a informação. Sabia que se não passasse a informação ao comando em tempo, teria que cumprir punições e responder a intermináveis relatórios. Já estava na mira do sar­gento e não queria aumentar ainda mais sua exposição. O painel princi­pal do sistema de segurança piscava intermitente, indicando o número de confirmação. Pelo procedimento correto, após a informação fornecida, o sistema central retornaria ao módulo de monitoramento e só voltaria a solicitar a informação em um período de seis horas.

Krigor não quis perder a oportunidade de irritar o companheiro:

Tá com dificuldades visuais, não percebeu o pisca-pisca?

Não enche, eles deveriam ter ligado há mais de dez minutos, esta porcaria de interfone não toca e também não faz ligação, só recebe. Vou precisar anotar o número e ir até lá.

Aproveita e me traz um sanduíche! - provocou Krigor.

Você não tem limite mesmo, seu panaca! Por isso é que a gente sempre pega as porcarias de serviços nos piores lugares e nos piores dias - respondeu Dimitri enquanto terminava de anotar os números em um papel e seguia em direção à porta.

Enquanto acompanhava Dimitri sair pela porta principal Krigor sor­riu. Não estava preocupado. Mais seis meses e largaria aquela porcaria de lugar. Se havia algo do que se arrependia era de ter se metido no milita­rismo: "Maldita hora que dera ouvidos a seus pais" - pensou.

De repente, um barulho vindo de fora interrompeu seus pensamen­tos. Instantaneamente, o soldado sacou sua arma e correu em direção à porta. Ao tentar abri-la, percebeu de que se tratava o som. Disparos de fuzil atingiram o metal, fazendo com que ele caísse ao chão, recuando e se escondendo. Não sabia descrever exatamente o que vira, mas parecia que soldados haviam cercado o lugar e que Dimitri jazia caído ao cen­tro do pátio. Como era possível, acabara de irritar o colega e segundos depois o via morto no pátio. Não era para ser assim, haviam combinado de cumprir o período obrigatório como militares e depois tentar o futuro em Moscou. Faltavam apenas seis meses. Agora isso, o que estava aconte­cendo, quem eram aqueles homens?

Procurou por outra saída. Nada! O maldito posto de guarda só exis­tia para atender ao interfone e fornecer o número do código à sala de comunicação. Não tinha saída, teria que enfrentá-los. Mas quantos eram? Três, quatro? Era impossível dizer exatamente. Engatilhou o fuzil, preci­sava pensar! Novos disparos, um barulho ensurdecedor.

Mirou na direção do pátio e correu. Seus disparos acertaram um dos inimigos. Mas não eram três, já contava sete, talvez oito. Sentiu uma dor forte no calcanhar. Não podia desistir, faltavam seis meses. Esquivou-se para a direita e acertou mais um deles. Precisava alcançar as árvores. Sentiu outro impacto, desta vez na altura do peito. Fraqueza. Faltavam seis meses.

Krigor caiu.

 

Hamid sabia que tinha pouco tempo. Se não fornecessem os números ao comando, tropas seriam enviadas para investigar. Precisava agir rápido. Sabia que eram apenas dois soldados no interior do depósito, mas não que­ria arriscar a vida de mais homens. Precisaria deles para tripular o navio e executar todo o planejamento. Pediu para que seus homens retirassem os corpos do chão e os levasse para o interior do bosque que circundava a base. Não seria prudente deixá-los à vista. Recuou e chamou o restante do grupo para o pátio; deveriam planejar a investida, para evitar perdas des­necessárias. O grupo discutia estratégias quando de repente o som da porta do depósito se abrindo os surpreendeu. Rapidamente todos se viraram e notaram um soldado que caminhava olhando para um pedaço de papel. Hamid sacou sua arma, desferindo três tiros em seu peito.

O homem caiu imóvel. Percebendo a situação, Hamid se aproximou. Se estivesse correto em suas suspeitas, aquele papel deveria conter os números do código de segurança. Ele ajoelhou aos pés do soldado e pegou o papel. Dois soldados o acompanharam e pararam a seu lado. Naquele momento, um novo som vindo novamente da porta foi ouvido. Os homens ao lado de Hamid puderam avistar um segundo soldado saindo. Imediatamente sacaram seus fuzis e dispararam em direção ao portão.

O homem cambaleou e, deixando a porta entreaberta, correu nova­mente para o interior do depósito.

Hamid recuou e pediu para que seus homens se posicionassem ao redor do pátio. O soldado teria que sair. Ele conhecia o lugar e sabia que não haveria alternativa. Com sua arma, disparou novamente, atingindo o interior do depósito. Era questão de tempo.

Segundos depois o soldado saiu disparando. Seu olhar parecia de um jovem obstinado. Com seu primeiro tiro, derrubou um dos homens. Hamid sabia do risco, mas não poderia perder mais ninguém. Com precisão, acertou-lhe a perna. Mesmo mancando, o soldado continuou, corria em zigue-zague rumo ao bosque. Novos tiros, outro homem caído. Como era possível? Precisavam acertá-lo antes que outros tom­bassem. Um dos homens que retornavam do bosque viu o que aconte­cia. Empunhou o fuzil e disparou.

 

O computador ainda sinalizava o código quando Hamid entrou no depósito. Pelo rádio, ele já havia passado o código de segurança e aguar­dava pela resposta de Jafar. Três minutos depois, o silenciar do sistema indicava que haviam conseguido. Sem perder mais tempo, Hamid digitou o código de abertura que havia conseguido durante sua permanência na base e abriu o depósito.

Centenas de armas estavam armazenadas no local, mas apenas uma o interessava. Seus homens o seguiram até algumas caixas que ficavam no final do corredor. Com a ajuda de uma enorme empilhadeira carregaram uma das caixas sobre uma grande carroceria de madeira.

Seguiram com a caixa para o navio, pois já tinham o que vieram buscar.

 

Enquanto Nasim aguardava a chegada dos outros dois grupos, confe­ria evolução dos preparativos para a partida. Surpreendentemente, o car­regamento dos materiais que haviam trazido e as principais manutenções realizadas no destróier não tinham levado mais do que quarenta e cinco minutos. O abastecimento havia sido completado e a abertura estava per­feitamente concluída. Mesmo sendo antigo, o navio contava com um sis­tema de comando simples, possível de ser operado com poucos homens e por isso pouco ou quase nada neste aspecto precisaria ser feito. Sua manu­tenção estava além da fase intermediária, o que garantia que os sistemas de navegação e propulsão já haviam sido revisados. Faltavam, sim, pinturas, instalações internas e armamentos, mas tinham outros planos para isto.

Hamid chegou praticamente no mesmo instante em que Jafar subia ao convés. Com a ajuda do guindaste de manutenção a enorme caixa de madeira foi embarcada no compartimento de carga e os homens, ade­quadamente acomodados.

Assim, pouco mais de uma hora após o início da investida, o Destróier deixava a base russa rumo ao oceano Pacífico.

 

                   Segredos na História do Brasil

A manhã estava quente e os raios de sol já penetravam pelas jane­las do antigo sobrado quando Fernando despertou. O reencontro com o major e a revelação de segredos sobre a história do Setor haviam-lhe tra­zido uma intranqüilidade característica do contato com aquelas pessoas, e por isso sua noite não fora das melhores.

Após dois anos sua vida havia retornado aos padrões normais, mas de repente tudo parecia voltar à tona. A uma velocidade impressionante, Alencar envolvera a ele e Gabrielle em um problema que jamais imagina­vam existir. Não era para ser assim; no último encontro que haviam tido com o major, navegando sobre as águas da baía de Guanabara, palavras ditas por ele haviam deixado claro que aquela não era a forma como o Setor conduzia seus trabalhos: "... para sorte de vocês, o que viram não existe mais. Portanto, se guardarem este segredo, não serão uma ame­aça ao Setor...". O som de cada uma daquelas letras ainda ecoava em sua mente. Fernando se lembrava desse dia e, por isso, o reencontro lhe parecera tão estranho. Para que o major os procurasse e revelasse segredos daquela forma, algo de grave realmente deveria estar acontecendo.

O jovem advogado caminhou até a cozinha e ligou a cafeteira. A casa estava limpa, mas não havia muito para comer. Imediatamente ele se lem­brou da lista de compras deixada por Cida, sua diarista. Já fazia mais de uma semana que ela o avisara sobre a despensa fantasma e, mesmo assim, a lista permanecia presa pelo ímã de uma pizzaria na porta da geladeira. Por certo continuaria ali por mais algum tempo. Preparou algumas tor­radas e depois de alguns minutos já havia feito seu desjejum. Sua vida mudara bastante desde então; seu comportamento no trabalho, apesar de não ser o mesmo, ainda lhe rendia o título de funcionário mais dedicado. Aquela estranha obsessão por competência e perfeição já não o acompa­nhava como antes, mas nem por isso Fernando deixava algo incompleto. De fato, a vida como promotor estava lhe proporcionando mais tempo para se dedicar a si mesmo. Ainda estava se acostumando, mas com cer­teza este lhe parecia ser um modo melhor de viver.

Tirou seu carro da garagem e por um comando de voz acionou o destino de seu GPS. O dispositivo programado para interagir com o condutor lhe desejou um bom-dia e disse para que seguisse em frente por cento e vinte metros. Por um instante, seu pensamento voltou ao passado, quando viajava com a família em um antigo Volkswagen. Era surpreendente como o mundo havia evoluído em duas ou três décadas. Sorriu e, como em um transe, se lembrou de seu pai que, por certo, se ainda estivesse a seu lado, adoraria ver tal tecnologia...

O GPS novamente repetiu:

Por favor, siga cento e vinte metros e depois faça uma curva à direita. Chegada ao destino em trinta e cinco minutos.

Fernando despertou, acelerou o carro e obedeceu ao comando.

Seu novo escritório de trabalho era mais elegante e mais espaçoso do que o antigo. Mesmo localizado no centro da cidade e em um prédio com mais de três décadas, proporcionava conforto e segurança. O andar acarpetado contava com salas individuais para quinze promotores e uma secretária para atendê-los. Ângela era o nome da profissional responsável por assessorar a procuradoria criminal. Há mais de vinte anos no cargo, aquela mulher realmente conhecia o trabalho e sabia como fazê-lo com eficiência. Mesmo próximo de sua aposentadoria, mantinha um estilo discreto e muito elegante. Fernando chegou, puxou uma cadeira e, sen­tando-se diante dela, disse seu costumeiro cumprimento:

Bom dia, Ângela, como está nesta manhã?

Excelente, Dr. Fernando. Soube que foi muito bem na audiência da jovem. Meus parabéns!

Sim. Obrigado! Tivemos alguns problemas de segurança no final, mas fora isto correu tudo bem. Algum recado para mim, alguém ligou?

Não, senhor! Deixei em sua mesa a correspondência e alguns papeis para serem assinados. Sua agenda hoje está mais tranqüila, sem audiên­cias. Acredito que poderá colocar a casa em ordem.

Ótimo - respondeu Fernando, levantando-se. - Se precisar, estarei na minha sala.

Papéis e mais papéis. Realmente seu trabalho se baseava principalmente em tratar com burocracias. Por cerca de três horas, Fernando obedeceu à regra de despachar documentos e examinar processos. Antes de sair para o almoço, porém, voltou a pensar sobre o ocorrido no dia anterior. Pelo que havia entendido, o major esperava dele e de Gabrielle uma resposta sobre sua participação nesta nova investigação do Setor. Com um sentimento semelhante ao que tivera pela manhã, desejou por um instante não partici­par de nada. Mas a preocupação do militar parecia tê-lo contagiado e por isso temia que dar ouvidos a seu desejo não fosse possível.

Sem muitas idéias sobre por onde começar, Fernando pegou o tele­fone e ligou para Ângela:

Pois não, doutor - respondeu a secretária.

Ângela, por acaso você se lembra daquela minha amiga historiadora?

Ah! Sim, Gabrielle.

Isto. Assim que eu voltar do almoço preciso falar com ela! Você poderia, por favor, tentar localizá-la?

Claro, pode deixar.

Obrigado.

Seu almoço, como de costume, foi tranqüilo. Assim que retornou a sua mesa o telefone tocou:

Doutor Fernando?

Sim, Ângela.

Me desculpe, mas infelizmente não será possível conversar com a senhorita Gabrielle hoje. Ela está em uma conferência durante todo o dia, inclusive seu celular está desligado.

Tudo bem, Ângela, e você conseguiu o endereço de onde está acon­tecendo o evento?

Sim, senhor, é no mesmo local do novo trabalho dela.

Ótimo, então eu sei onde é.

Fernando chegou à Pinacoteca do Estado quando o relógio marcava pouco mais das três horas da tarde. Vendedores ambulantes ocupavam parte da rua em frente ao prédio, e várias pessoas caminhavam com suas compras pelas calçadas. Alguns tinham como destino a Estação da Luz, enquanto outros apenas seguiam em direção ao centro da cidade. O dia ainda estava quente e bastante agradável, era propício para compras e também um convite para visitas aos pontos turísticos da cidade.

Após encontrar uma vaga no pátio reservado à construção, Fernando seguiu a caminho da bilheteria. Havia muito tempo não visitava o museu. Desde que rompera o noivado com Gabrielle, seus passeios, mesmo que poucos, tinham como destino lugares bem diferentes. O motivo não estava ligado diretamente a uma possível falta de interesse por cultura, ao contrário, o prédio construído no final do século XIX e inaugurado como museu no início do século XX, hoje repleto de artigos de arte, sempre lhe despertara interesse. Suas obras eram únicas e algumas delas inclusive merecedoras de visitas freqüentes. O fato é que o lugar sempre lhe tra­zia lembranças de Gabrielle. O maior sonho da jovem era um dia poder trabalhar entre aquelas paredes, se envolver com as grandes obras e suas maravilhosas histórias. Enfim, após muita dedicação, Gabrielle conse­guira realizar seu sonho. Depois de recuperar o quadro imperial, con­tendo os selos raros, a jovem se tornara uma celebridade no meio, uma descobridora de tesouros, uma reconhecida exploradora. Com o status alcançado não foi difícil atingir seu objetivo, e hoje ela desfrutava de uma nova e merecida posição.

Como sempre, Fernando ficara sabendo do sucesso de Gabrielle atra­vés de revistas e boletins de entidades voltadas ao estudo da História. Uma situação que de algum modo o desapontava, mas que ao mesmo tempo lhe trazia orgulho. Em sua opinião, Gabrielle era dedicada e mere­cia tal reconhecimento; o advogado apenas lamentava não estar ao seu lado nesse momento. Mas um pedido do major novamente os colocava lado a lado e por isso precisava encontrá-la.

Comprou um ingresso e entrou no amplo hall com móveis de madeira de lei. De fato o prédio muito lhe agradava, robusto, com tijo­los à vista, tinha um ar medieval e aconchegante. Perguntou no balcão de informações sobre o evento do qual Gabrielle participava e a mulher indicou o auditório principal.

Fernando desceu o elevador panorâmico observando um chafariz engraçado. Mulheres enormes, deitadas em uma banheira e com água saindo pela boca e pelos bicos dos seios, não lhe parecia algo comum, mas a arte contemporânea sempre surpreende; assim, esboçando um tímido sorriso, ele preferiu não tirar conclusões sobre o tema.

Deixou o elevador no piso térreo e seguiu até a grande porta de aço que protege a entrada do auditório. Ao lado, preso à parede por uma chapa de acrílico, um cartaz indicava o evento em andamento.

 

               Seminário Estadual de História

               das 8h às 16h

               Palestras

               As Grandes Personagens da História do Brasil

               Doutor Carlos Rodrigues de Souza

               Tesouros Escondidos na História do Brasil

               Gabrielle Souza Galvão, Historiadora

 

Fernando abriu a porta com cuidado e entrou. O auditório estava com a ocupação quase máxima. Os poucos assentos que ainda se encon­travam vagos, entre os cento e cinqüenta disponíveis, estavam em sua maioria nas primeiras e últimas fileiras. Fernando sorriu ao ver Gabrielle no palco. Vestida com um terno escuro e com os cabelos presos, a jovem transparecia uma formalidade diferente da que ele estava acostumado a ver. Um pequeno som, emitido pelo fechamento da pesada porta de metal, fez com que a jovem se virasse e assim notasse sua presença; porém, como é normal em ocasiões formais, Gabrielle não mudou seu comportamento e continuou o que estava a dizer:

- Bem, da mesma forma como evidências incontestáveis nos reve­lam que o país atravessou em sua história períodos de riqueza, como os ciclos do ouro, das esmeraldas, da borracha, do café, outros relatos, não menos verídicos, nos levam a concluir que muito se perdeu desde que o país foi colonizado.

Na tela branca, ao fundo do palco, um slide projetava o mapa topo­gráfico do Brasil sem grandes detalhes. Assim que concluiu sua frase, Gabrielle pressionou um botão no pequeno dispositivo que carregava em suas mãos e no mesmo momento vários pontos dourados, similares a estrelas de sete pontas, foram surgindo em vários lugares do mapa.

Expedições em busca do El Dorado - continuou a jovem. - Galeões Naufragados ao longo de toda a costa, famosos roubos de obras de arte em vários museus do país, jóias imperiais desaparecidas, grandes heran­ças e, cedendo quem sabe ao esporte mais popular do planeta, o desapa­recimento da taça Jules Rimet. - Gabrielle fez uma pausa e então conti­nuou. - Nosso país, senhores, não é rico somente em recursos naturais, nossa história tem sem dúvida vários tesouros a serem redescobertos. Peças tão ou até mesmo mais fascinantes do que o próprio quadro impe­rial dos selos olho de boi.

Mais uma vez a imagem projetada sobre a tela mudava reproduzindo agora a bela moldura descoberta por Fernando e Gabrielle sob a represa de Itaipu. A jovem historiadora terminava sua apresentação mostrando a todos sua mais famosa conquista. Realmente, aquele objeto e seu evi­dente carisma a tornaram uma celebridade no meio acadêmico.

Isso é tudo - disse sorrindo. - Obrigada!

Fernando também sorriu: aquela moça realmente mudara desde que haviam se conhecido. Era notória sua nova realidade. Enquanto alguns dos professores e historiadores que assistiam à palestra se apro­ximavam para cumprimentá-la, Fernando saiu, permitindo que ela des­frutasse seu momento.

Gabrielle retribuía a todos os cumprimentos, sem nem mesmo saber quem eram algumas daquelas pessoas. De fato, nos últimos meses, sua vida havia se transformado em uma grande loucura. Eventos, palestras e debates haviam se tornado algo constante em sua agenda. Depois que uma renomada revista publicara seu artigo de pós-graduação em um for­mado pouco acadêmico, porém de grande valor promocional, a jovem se tornara uma desbravadora de tesouros, em um país carente de autopro­moção. Uma popularização da história nacional acabara por acontecer e por isso muitos de seus colegas queriam cumprimentá-la.

Mas era como se o feitiço virasse contra o feiticeiro. Ela, que no pas­sado tanto reclamara da ausência de Fernando em sua vida, sentia-se agora de certa forma também ausente de si mesma. Até mesmo a escalada desastrosa que fizera no último final de semana era algo que havia muito não acontecia. Um momento raro.

Mesmo sobre os holofotes daquele momento, a única coisa que lhe vinha à cabeça era encontrar Fernando e sentir-se, quem sabe, um pouco mais próxima de si mesma. Não lhe parecia divertido ter-se tornado uma pessoa pública. Agora, algumas palavras que ouvira de seu pai, o deputado, lhe pareciam sábias: "quem empresta a vida à sociedade, por conseguinte, cede à pouca liberdade da qual um dia o homem anônimo usufruiu".

Contudo, não conseguia mais vê-lo por entre a multidão.

Após alguns minutos, depois de atender a todos, a jovem saiu. Tinha uma suspeita de onde podia encontrá-lo.

O auditório ficava no primeiro piso da Pinacoteca, Gabrielle atra­vessou sua porta, cruzou o corredor e subiu pelas escadas até o segundo andar. Uma porta de vidro segregava um ambiente cuidadosamente controlado onde algumas das obras de arte estavam expostas. Assim que entrou, a jovem pôde ver Fernando, parado em frente a uma das paredes, admirando uma obra.

A imagem que ele observava era um antigo quadro pintado a óleo; uma tela de noventa e sete por cento e oitenta e cinco. A paisagem repre­sentada no quadro era o pano de fundo para uma cena triste que se desenrolava numa estrada de terra batida. No chão, bem no centro do caminho, um homem com a cabeça banhada em sangue segurava uma antiga garrucha enquanto seu cavalo tentava reanimá-lo. A impressio­nante dedicação retratada no animal era inútil, já que seu jovem dono jazia sem vida. Gabrielle olhou o quadro, que já conhecia como a palma de sua mão, e por costume conferiu a legenda: Fim de Romance - Antonio Parreiras -1912.

Parou então ao lado de Fernando e depois de alguns segundos se pronunciou:

Imaginei que o encontraria aqui.

Faz muito tempo que não vejo este quadro - respondeu Fernando. - Se me lembro bem, já faz mais de quatro anos.

É uma obra magnífica.

Costumávamos ficar horas admirando estes trabalhos - continuou o advogado. - Enfim, seu sonho foi realizado, acredito que esteja muito feliz!

Estou, com certeza.

Ser a Restauradora Chefe do museu mais tradicional e antigo da cidade é uma atribuição única. Todas as grandes peças de arte da História passarão por suas mãos em breve, e, pelo que me lembro, trata-se daquilo que você sempre sonhou! - Fernando desviou o olhar do quadro e fitou Gabrielle por um instante, então, retornando o olhar a seu ponto de ori­gem continuou: - Só gostaria de saber por que você não me parece tão empolgada...

Você me conhece - respondeu a jovem. - Ficar trancada em uma sala não é o meu forte. Acho que ainda estou me acostumando.

Claro, já ia me esquecendo, parabéns pela palestra, vejo que está cada vez mais conquistando admiradores.

Gabrielle sorriu:

Aposto que veio aqui falar sobre o pedido do major.

Eureka!

Venha, vamos descer até o laboratório.

 

A porta de entrada do laboratório de restauração da Pinacoteca, toda em vidro temperado, estava guardada por uma fechadura de metal, equi­pada com um teclado alfanumérico. Algumas das obras ali armazenadas, além de serem únicas, tinham valor inestimável, e a segurança objetivava manter distante toda e qualquer ameaça ao patrimônio.

Gabrielle parou em frente à entrada e digitou seu código. Quase ime­diatamente, o mecanismo emitiu um sinal sonoro e liberou a entrada. Ela entrou, acendeu as luzes e seguiu até sua mesa. Prateleiras com obras de arte, balcões de trabalho, computadores e materiais químicos dos mais diversos ocupavam grande parte da sala. Para evitar acidentes com as obras, as luminárias eram enclausuradas em redomas de vidro e os materiais, protegidos por sistemas anti-incêndio. Livros, papéis e pergaminhos repousavam desordenadamente sobre a escrivaninha. A jovem recolheu parte do material e ligou seu computador. Enquanto Fernando procurava um banco para se sentar a seu lado, ela retirou da gaveta um envelope que havia recebido pelo correio naquela manhã:

O que é isso? - perguntou Fernando assim que viu o envelope.

Chegou hoje, o segurança da Pinacoteca recebeu e me entregou - respondeu a jovem, enquanto aguardava o start de sua máquina.

E do que se trata?

Não sei. Tive medo de ver sozinha; não sabia o que podia encontrar e por isso resolvi esperar que você chegasse.

Fernando sentou a seu lado, o perfume de seus cabelos distraía sua atenção. Após alguns instantes, o jovem falou:

E como sabia que eu viria?

Não sabia, apenas suspeitava. Achei a história um tanto quanto esquisita. Depois de quase dois anos, não imaginava encontrar o major novamente, ainda mais por conta de um assunto como este. Suspeitei que também estivesse curioso.

Como não estar? - respondeu Fernando sorrindo.

Com a ajuda de um estilete, Gabrielle abriu o envelope. Um pen drive, uma apostila e um chip de celular foi tudo o que conseguiu encontrar.

Bem, vamos descobrir do que se trata essa história em alguns segundos.

Gabrielle pegou o pen drive e o inseriu no computador. Automaticamente uma tela com instruções surgiu no monitor:

 

Passe o dedo sobre a leitora

 

Por um instante Gabrielle hesitou, sua máquina não tinha um leitor de digitais e por isso a mensagem parecia incorreta. Mas, poucos segun­dos depois, a jovem percebeu uma luz retangular piscando na lateral do pen drive. Instintivamente levou indicador ao local, passando-o lenta­mente. O computador emitiu o som de um bip e seu nome surgiu na tela:

 

Identificação Positiva - Gabrielle Souza Galvão

 

Então, automaticamente a máquina iniciou a reprodução de um vídeo. Na imagem, o major aparecia sentado em frente a uma mesa de escritório. Ao fundo, um grande armário metálico era tudo o que se podia ver. Olhando diretamente para a câmera, o major iniciou seu discurso:

Gabrielle e Fernando, fico contente que tenham conseguido ver este vídeo. Não sei em que condições ocorreu nosso encontro e nem o quanto consegui transmitir a vocês. Espero que estejam bem e torço para que o conteúdo deste vídeo possa persuadi-los a nos ajudar.

Fernando se ajeitou no banco em que estava, enquanto o major continuou:

Em primeiro lugar, peço que mantenham a atenção no que vou comunicar, pois o dispositivo onde armazenamos este vídeo contém um sistema de segurança, mais precisamente um vírus, que permite apenas que este vídeo seja reproduzido uma única vez. Após esta transmissão, o dispositivo se tornará inútil para vocês, ou qualquer pessoa que tenha a intenção de conhecer seu conteúdo. Imagino que as informações míni­mas previstas para nossa reunião já sejam de seu conhecimento. A expli­cação do que realmente se trata o Setor 27, seus objetivos e suas intenções devem ter-lhes esclarecido muitas dúvidas. Por isso, pretendo me ater apenas à questão pela qual precisei recrutá-los.

O major tinha em suas mãos uma apostila semelhante à que Gabrielle havia retirado do envelope. Ele a levantou em direção à câmera e então continuou:

No documento anexo em seu envelope há informações confiden­ciais que não devem ser divulgadas a quaisquer pessoas em quem ima­ginem confiar. Não costumamos dividi-las com civis, mas no caso de vocês a necessidade pede que façamos de modo diferente. Peço-lhes que peguem o material para que possamos continuar.

Gabrielle pegou a apostila e colocou-a sobre a mesa, em um local onde os dois pudessem ver:

O Setor 27 - continuou o major ao longo de seus quarenta anos de existência, manteve cinco grandes depósitos, onde segredos nacionais e internacionais permaneceram guardados, longe dos olhos de civis, da mídia, de políticos e até mesmo de grande parte da corporação a que fazemos parte. Apenas alguns poucos de nós sabiam de sua existência. Durante este período, mais de cem mil itens foram catalogados e armaze­nados em suas dependências. Itens dos mais diversos e alguns dos quais imagino terem conhecido pessoalmente. Porém, nos últimos dez anos, pouco ou quase nada do que lá estava armazenado foi removido, e estes lugares foram monitorados por nós apenas à distância. Até que um dia duas pessoas revelaram a localização de um deles, o que desencadeou algo preocupante.

Fernando ajeitou-se na cadeira, tinha consciência de sua participação em tudo o que estava ouvindo. O major continuou:

Entre as fotos que receberam, um mapa revela a região onde se encontram estes depósitos. Não achei pertinente fornecer a vocês a loca­lização exata, antes que pudesse confirmar que nos ajudariam.

Gabrielle sorriu, começava a conhecer aquele homem e prever seu comportamento:

Após o ocorrido em Itaipu - prosseguiu o major - meu superior, o coronel Castro, recebeu uma visita de homens do governo que através de um monitoramento remoto haviam detectado ações militares não auto­rizadas na região. Eles o procuraram, pois não tinham conhecimento de que ainda possuíamos recursos para executar tais investidas. Conheciam o Setor como uma área administrativa e suspeitaram então do que estáva­mos fazendo. Sem nos proporcionar quaisquer oportunidades de defesa, informaram nessa visita a definitiva interrupção do fornecimento de ver­bas ao Setor. Os incentivos que já eram mínimos seriam cortados em no máximo dois anos. Em resumo, nossas operações deveriam se encer­rar. Teríamos que esvaziar os depósitos, revelar parte de seus segredos e incinerar o restante de todo o seu conteúdo. Uma ação coerente com o discurso de nossos líderes e complementar ao caminho que, como nação, estamos traçando. Bem, era o que parte de nós acreditava.

O major, num gesto de desconforto causado pelo que viria a dizer, passou a mão pelo rosto e então continuou:

Indignado, o coronel Castro negou-se a executar o que havia sido pedido, contrariou ordens e iniciou o que descrevo como uma rebelião interna. Isso, até os últimos seis meses. Neste último período, como se tivesse mudado de opinião, como se tivesse passado a acreditar em tudo o que criticara no passado, o coronel ordenou o fechamento dos depósitos. Passamos então a planejar a retirada e a destruição dos materiais. Com um plano estruturado, iniciamos os trabalhos. Mas algo parecia errado. De maneira oculta, os pensamentos iniciais do coronel ainda estavam presentes nos corredores do Setor. Existia em nosso grupo uma divisão. Pessoas que apoiavam o coronel e achavam que seria necessário se rebe­lar; enquanto outras entendiam que nosso dever estava cumprido e que nossa história havia chegado ao fim.

Fernando e Gabrielle mantinham os olhos atentos ao vídeo. De certa forma, a explicação parecia confundi-los. Tinham dúvidas, mas aguarda­vam para ver até onde o major iria chegar.

Então, em um dos dias que trabalhava no planejamento das remo­ções, recebi a visita de um dos nossos homens de maior confiança. Douglas, que acompanhara parte do planejamento junto à equipe do coronel, percebera uma atitude suspeita em seu comportamento. Ele decidiu nos procurar e revelou que nosso comandante havia planejado uma missão para retirar de um dos depósitos uma peça específica. Algo que poderia ser usado para tornar a rebelião que muitos pleiteavam em um evento real. Com estas informações, tivemos certeza das atitudes cri­minosas de nosso comandante. Estava comprovado que o coronel não agia mais conforme nossas leis.

O desalento nos olhos de Alencar era evidente, mesmo no vídeo seu rosto transparecia a decepção que o consumia naquele momento. Ele fez mais uma breve pausa e então continuou:

O fato é que mesmo com a certeza de que crimes estariam aconte­cendo, não tínhamos provas concretas que pudessem ratificar tais acusa­ções. Passamos então a monitorar os movimentos do coronel, mas desco­brimos que ele havia feito o mesmo conosco. De repente, nos tornamos reféns de nossas próprias estratégias e ficamos praticamente sem alter­nativas. Não conseguíamos prosseguir com as investigações, e com isso o coronel pode avançar com seu plano. Foi quando um de nós teve uma idéia. Algo diferente do que costumamos fazer, mas que se bem condu­zido poderia dar resultado. Ele sugeriu que convidássemos os respon­sáveis pela fantástica fuga em Itaipu para que localizassem e retirassem do depósito o objeto que o coronel tanto deseja. Se estas pessoas conse­guissem cumprir esta missão no tempo certo, evitariam que algo de pior viesse a acontecer. Vocês são estas pessoas.

Gabrielle esboçou um breve sorriso, enquanto Fernando acompa­nhava a narrativa, atento às palavras do militar:

Somos uma unidade secreta, nem mesmo o mais alto escalão do governo sabe da nossa existência e por isso não temos muitas alternati­vas. Desde que encontrei vocês na represa, tenho refletido sobre os rumos do setor e acho que chegou a hora de tomarmos uma atitude. Em anexo ao relatório existem cópias de documentos enviados pelo coronel que aumentam nossas suspeitas sobre suas intenções, além de nomes e paten­tes das pessoas envolvidas. Espero poder contar com vocês. No momento isto é o máximo de informações que posso fornecer, mas espero que seja suficiente. Se estiverem interessados em nos ajudar, no envelope existe um chip para celular. É só utilizá-lo!

O monitor escureceu e, após alguns segundos, uma mensagem de reinicialização surgiu na tela do computador.

Gabrielle sorriu desta vez com mais intensidade. O espírito de aven­tura parecia tomar conta de seu corpo, como sempre acontecia quando desafios surgiam em sua vida. Fernando, ponderando sobre as possíveis conseqüências da participação dos dois naquele evento, sabia que ele seria o único que poderia convencer a jovem do contrário. Era a alternativa mais prudente, mas, para sua própria surpresa, não era o que ele desejava.

O que achou? - perguntou Fernando.

Acho que podemos confiar no que ele diz e na possibilidade de terem uma rebelião no Setor. Tenho quase certeza de que algo assim, nos dias de hoje, seria contido rapidamente, mas não consigo imaginar os estragos que poderia causar. Pessoas feridas, mortas talvez; parece arris­cado deixar que levem o assunto adiante.

Você tem razão - respondeu Fernando -, mais uma vez acho que ficamos sem saída!

A jovem pegou o chip e, segurando-o entre os dedos, o ofereceu a Fernando:

Gostaria de lhe fazer as honras - disse sorrindo.

Fernando retirou o moderno smartphone do bolso e, removendo a tampa do celular, posicionou o chip em um dos dois soquetes disponí­veis. Fechou novamente o aparelho e depois o reiniciou.

Assim que encontrou a rede telefônica o celular começou a tocar!

Mesmo antes de atender, Fernando já sabia quem estaria do outro lado da linha; assim que a ligação foi completada Cardoso se identificou.

Então, um novo endereço e um novo encontro foram agendados.

 

                     Rumo à Capital

O capitão Vitor sabia que sua função estava entre as menos desejadas de todas aquelas possíveis a um integrante militar. Desde que aceitara o compromisso que lhe fora oferecido pelo próprio ministro da Defesa, seu pensamento estivera focado em como desempenhar a tarefa, com dedi­cação exemplar e a devida competência. Evangélico desde a juventude, o homem de quarenta e seis anos, com um metro e noventa, pele negra e costas largas, sabia que, para ele, a oportunidade de comandar pessoas não era, o seu maior desafio dentre todos. Condenar irmãos de armas era, acima de tudo, o que mais o consumia.

Já se passavam mais de cinco anos desde aquela manhã de sábado em que fora chamado ao gabinete do Estado Maior. O ministro, que o conhecera ainda garoto e acompanhara toda sua trajetória, o esperava com todo o discurso previamente planejado.

- É um dos poucos a quem confio até mesmo minha vida, Vitor - disse-lhe o ministro em tom eloqüente. - Não me surpreenderia se recu­sasse minha oferta, mas lhe serei muito grato se a aceitar.

Vitor pensou por alguns segundos, sabia o que aquela posição lhe traria de glórias e, muito mais, o que lhe traria também de problemas. Mesmo assim, com um sorriso mal-disfarçado no rosto, consentiu.

Cinco anos se passaram: período em que condenara muitos homens, identificara conspirações, espionagens e delinquências. Nunca se imagi­nara naquele papel, mas depois desse tempo percebia que era o homem certo para tal trabalho. Realmente o ministro soubera a quem escolher.

Assim que entrou em seu escritório, o oficial responsável pela Corregedoria do Exército avistou um envelope sobre sua mesa. Durante todo o dia anterior e boa parte da madrugada, dois de seus melhores homens tiveram como obrigação identificar a placa do carro fotografado durante a investida à fábrica na periferia de São Paulo. A foto que viram, horas após retornarem da ação, estava embaçada pelo efeito da poeira que se levantava da rua em que os carros trafegavam. O movimento pre­judicou a imagem e foi sugerida uma correção digital para que o borrão pudesse se tornar algo visível e identificável. Em uma primeira correção, mostrada a ele no dia anterior, o máximo que se podiam ver era a letra D no início da placa, muito pouco para quem tinha a esperança de relacio­nar o veículo a um nome, e, quem sabe, um fugitivo.

Sentou-se na cadeira e pousou a mão sobre o envelope. Uma nova tentativa fora realizada e o resultado estava ali em sua mesa, pronto para ser avaliado.

Aquele talvez fosse seu caso mais difícil. Desmascarar e acusar um dos homens mais temidos da ditadura era algo complicado até mesmo para ele. Por diversas vezes, desde que chegara à Corregedoria, rece­bera denúncias e informações sobre ações irregulares realizadas sob seu comando. Algumas recentes e outras referenciando antigos delitos, estes ainda mais difíceis de investigar. Não conseguia entender como um homem pudera, por tantos anos, esconder crimes aliando-se a pes­soas que o protegiam, e protegiam seus segredos. Sempre que Vitor che­gava a algum lugar, suas pistas se esvaíam como a névoa no amanhecer com a chegada do sol.

Olhou mais uma vez para o papel pardo sobre a mesa. Com o pouco de humor que ainda lhe restava, sorriu. Uma foto era sua melhor pista em cinco anos. Um papel colorido e amassado. Tinha medo de abri-lo e de nada encontrar.

Pegou o estilete em um suporte de metal que estava sobre a mesa e rasgou o envelope, tirando dele três papéis. Em um deles, a foto com­pleta, mostrava que o trabalho feito por seus homens poderia receber um prêmio. Dos sete caracteres que compunham a placa, cinco podiam ser identificados quase que nitidamente. Nos outros papéis, uma lista de cem veículos e seus proprietários. Os milhões de veículos da cidade haviam se tornado apenas cem. O que parecia ser um número expressivo, na verdade, era um achado. Cruzaria endereços, dados pessoais, anteceden­tes militares, contas e transações bancárias, viagens, o que fosse preciso para descobrir, entre aquelas pessoas, quem se encaixava no perfil para se envolver com o coronel Castro.

 

Fernando e Gabrielle chegaram ao hangar que Cardoso lhes havia indi­cado poucos minutos antes do horário combinado. A noite lhes trouxera esclarecimentos e eles já aceitavam sua participação na operação idealizada pelo major sem grandes temores. Restava agora entender mais claramente qual seria seu objetivo, o que buscavam e onde deveriam procurar.

A habilidade em desvendar mistérios que era atribuída aos dois como sua principal qualidade, além da confiança ratificada pelas palavras do major, já os havia trazido até ali, mas isso por si não era o suficiente. Tinham que conhecer as pistas e os fatos relevantes de todo o assunto; só assim conseguiriam encontrar o que procuravam. A expectativa era de que alguém do Setor, a pessoa que os encontrasse no hangar aquela manhã, fosse o mensageiro de tais informações. Haviam paralisado suas vidas por um instante e não podiam desperdiçar tempo.

De fato, estar ali naquele dia implicara astutas negociações. Para Gabrielle, o mais difícil até aquele momento tinha sido convencer o cura­dor da Pinacoteca sobre a necessidade de sua ausência. Problemas fami­liares haviam sido alegados: precisava cuidar de parentes doentes que viviam no interior. Algo que lhe daria pouco mais de uma semana. O curador olhou em seu rosto, tentando testá-la, mas os poucos meses de trabalho na instituição não foram suficientes para que ele percebesse a falsidade de seu relato. Então, como um bom líder, ele teve de ser inclu­sive empático a sua causa. Já a Fernando bastou apenas avisar Ângela, sua eficiente secretária, para que todos os seus compromissos fossem dele­gados ou desmarcados. Para ele, que mudara um pouco de opinião em relação ao fanatismo por trabalho, esta investigação seria como uma nova válvula de escape. Um exercício de inteligência pertinente à ocasião.

O hangar que abrigava três aviões e um pequeno helicóptero estava deserto. Os dois aguardavam em frente ao prédio quando Cardoso surgiu por uma das portas. Logo atrás vinham o sargento Henrique e a tenente Patrícia. Os três vestiam trajes comuns e pareciam estar com pressa. Cardoso seguiu na direção dos dois, enquanto os demais entravam em uma das aeronaves que estava no local.

Bom dia, obrigado por virem! - disse, sorrindo.

Bom dia, Cardoso - responderam os dois apertando sua mão.

Nosso avião em breve estará pronto. Assim que nos avisarem, pode­mos seguir viagem.

Claro - respondeu Fernando. - Para onde exatamente estamos indo?

Brasília - respondeu Cardoso. - Vamos para a capital Federal. Temos um trabalho e também um compromisso por lá.

Sei! - concordou Gabrielle curiosa. - E podemos saber do que se trata?

Com certeza, mas precisamos embarcar antes. Assim que estiver­mos a caminho, eu lhes explico.

Tenente - disse Henrique, se aproximando. - O avião está limpo, já podemos embarcar.

Com pequena bagagem de mão, Fernando e Gabrielle embarcaram no antigo King Air. Trinta minutos depois estavam deixando São Paulo.

O King Air é com certeza um dos aviões executivos mais utilizados no mundo. Com capacidade para até nove passageiros, propicia conforto e segurança, viajando a uma velocidade média de 550 km/h.

Na cabine, a tenente Patrícia acabara de concluir a programação do piloto automático que os levaria até Brasília e anunciava a todos que já se encontravam em voo de cruzeiro. Três horas era o tempo previsto para a viagem, o suficiente para que pudessem saber mais sobre o que estavam procurando. Os cinco passageiros que dividiam a cabine tinham um des­tino comum e precisavam alinhar seus objetivos. Assim que a estabilidade foi anunciada, Cardoso soltou seu cinto e se aproximou de Fernando. Ele estava no assento ao lado de Gabrielle, e à frente de Henrique. O sargento também se aproximou, formando o que parecia um pequeno círculo.

Enfim, Cardoso se manifestou:

Como já devem ter percebido, todos os nossos movimentos preci­sam ser discretos e cuidadosos.

Todos concordaram.

O homem responsável pelo Setor, conhecido por todos como coro­nel Castro, temo em dizer, tem agido de forma inadequada nos últimos meses. Atitudes pouco recomendadas e deveras suspeitas estão sendo presenciadas por vários dos integrantes de nossa unidade. Todos nós sabemos que em breve o Setor deixará de existir, mas parece que poucos de nós aceitam isto de forma pacífica. Esta transição está sendo perigosa e não podemos nos distrair nem por um instante.

Cardoso respirou e então prosseguiu:

Como já sabem, há pouco mais de dois meses, um de nossos homens interceptou uma comunicação feita pelo coronel e a entregou ao major, com a intenção de alertá-lo sobre um possível crime a ser cometido nos próximos dias. Este homem, que conquistou nossa confiança com suas atitudes, foi apresentado a vocês durante nosso encontro há dois dias: o sargento Douglas. Ele interceptou uma comunicação do coronel, nego­ciando a venda de artigos guardados pelo setor.

Artigos? - perguntou Fernando. - Que tipo de artigos?

Não sabemos! - continuou Cardoso. - Podem ser armas, docu­mentos, informações ou qualquer outra coisa. Este é o motivo de nossa viagem; precisamos descobrir do que se trata essa venda e, se possível, impedir que ele consiga realizá-la.

O que exatamente vocês sabem? - perguntou Gabrielle.

Pouco. Na comunicação interceptada pelo sargento, o comprador demonstrou especial interesse por um artigo cujo nome não foi pronun­ciado por eles, algo que, em palavras ditas pelo coronel, poderia mudar a história do Setor e até mesmo do país. Depois de algumas investigações, descobrimos a localização do artigo, mas não sua real utilidade. A ques­tão é que algo com essa magnitude não pode sair de nossas mãos, precisa continuar guardado e sob a responsabilidade das pessoas corretas.

O avião balançou ao cruzar uma pequena área de turbulência, fazendo com que o grupo se ajeitasse melhor em seus assentos. Cardoso ainda aguardava que o balanço cessasse quando Fernando se pronunciou:

E como podemos garantir que ele não venda esse tal artigo se nem sabemos exatamente do que se trata? - perguntou Fernando.

Vocês conseguiram conquistar a confiança do major participando de um evento inusitado em nosso trabalho. A descoberta que fizeram há dois anos e as informações que carregaram com vocês depois daquele incidente mostraram a capacidade de que podem dispor para desven­dar mistérios. Temos acompanhado seus passos nos últimos dois anos e durante esse tempo percebemos que vocês sabem como conduzir situ­ações de risco. Além disso, cumpriram o que haviam prometido, man­tendo toda a nossa organização em segredo. Creio que, com nossa ajuda, vocês irão descobrir facilmente qual é o artigo de que estamos falando.

- Vocês estavam nos monitorando? - bradou Gabrielle, praticamente desconsiderando o rumo da discussão.

Sim, é uma prática monitorar pessoas envolvidas com o Setor - respondeu Cardoso levemente constrangido. - Sempre que alguém tem acesso a documentos ou artigos que possam nos levar a público, é moni­torado. Apenas um procedimento padrão.

Fernando e Gabrielle observaram o militar. De certa forma já sus­peitavam que estavam sendo monitorados, mas a revelação clara da ver­dade parecia assustá-los. Fernando respirou fundo e se pronunciou, reto­mando a linha da discussão:

Como conseguiram desviar a atenção de todos para que pudésse­mos viajar? Pelo que sabemos, vocês também estão sendo monitorados.

Além de proteger antigos segredos, o Setor nos últimos anos passou a participar de algumas operações especiais. Para justificar nossa exis­tência, alguns de nossos integrantes saem em missões conjuntas, com o objetivo de treinar e acompanhar possíveis situações de risco. Quando planejamos a ação de vocês, alinhamos o cronograma com um evento internacional. Hoje haverá uma recepção na residência oficial da presi­dente para uma comitiva liderada pela secretária de defesa norte-americana. Ela e alguns senadores estão visitando os países sul-americanos em uma missão diplomática de dez dias. O Brasil é seu primeiro destino. A secretária é a terceira pessoa mais importante do governo e precisa de uma proteção especial. Nós seremos os responsáveis por sua prote­ção durante esta noite - concluiu Cardoso, referindo-se a ele e Patrícia. - Enquanto estivermos na residência oficial do presidente com todas as atenções voltadas à recepção, vocês poderão entrar no depósito e investi­gar a única pista que temos sobre o que o coronel está negociando.

Depósito? - indagou Gabrielle. - Que tipo de depósito?

Do mesmo tipo que vocês visitaram há dois anos! - respondeu Cardoso sorrindo.

Naquele instante, o aviso de "apertar os cintos" foi acionado. Fernando olhou pela janela e pôde ver o Congresso Nacional. Henrique sinalizou para que eles voltassem a seus lugares e todos perceberam que a conversa seria adiada. Pelo menos até que o avião pousasse.

 

                     Um Novo Depósito

A idéia de visitar um novo depósito, semelhante ao que Gabrielle e Fernando conheceram sob as águas de Itaipu, mudava completamente a visão que os dois tinham sobre aquilo de que estavam participando.

Enquanto seguiam pelo caminho que ligava o aeroporto internacio­nal à cidade de Brasília, o casal imaginava o que essa nova aventura ainda estaria por lhes proporcionar. De certa forma, Fernando e Gabrielle já haviam percebido que estavam se envolvendo em uma disputa intensa e perigosa, um momento crítico que por certo culminaria em um con­fronto direto e ameaçador. Mas, para eles, algo ainda maior deveria estar em jogo. Principalmente para a jovem historiadora, a sensação era de que aquela disputa não afetaria somente o equilíbrio do Setor e das pessoas envolvidas em seus trabalhos. O que estaria por vir traria resultados sig­nificativos e, possivelmente, esclarecimentos para o país. Como já ouvira falar antes e como Cardoso havia repetido, a existência de outros depó­sitos era sinônimo de novos segredos e novos tesouros para a História. Parte do que havia se perdido durante o longo período de ditadura pode­ria, dependendo do resultado que obtivessem, ser recuperada ou per­dida para sempre. Talvez por isso o major a tenha procurado. Ele sabia o quanto ela se importava.

Estavam sentados no banco de trás de um antigo Ômega CD de cor preta, semelhante aos veículos utilizados pelo Setor em todos os lugares do país. Fernando permanecia calado, observando a conhecida paisagem. Já fazia algum tempo que não visitava Brasília. Uma cidade que, em sua opinião, apresentava com maior clareza o contraste social existente no país. Palácios e maravilhosas construções dividindo espaço com ruas sujas e prédios decadentes.

Cruzaram o eixo monumental rumo ao Palácio do Planalto e a paisa­gem mudou por completo. Um cenário moderno belo e reluzente se mos­trava imponente em cada construção das quadras nobres da cidade. O imenso jardim da Esplanada dos Ministérios reluzia seu gramado em um tom verde difícil de ser encontrado até mesmo nas regiões de tempera­turas mais estáveis do país. Os dois abaixaram os vidros por um instante, contemplando a beleza em que se tornara a visão inicial do arquiteto Lúcio Costa. Já fazia mais de cinqüenta anos que aquele homem havia vencido o concurso que decidira sobre o desenho da futura capital do país e, mesmo depois de tanto tempo, seus traços ainda pareciam moder­nos. Alguns metros à frente, puderam confirmar que realmente estavam no coração político do país. Mais de cinco mil manifestantes ocupavam parte do gramado em frente ao Palácio, impelidos em protesto direcio­nado às políticas de reforma agrária.

Um carro de som, entre o intervalo de músicas de rock nacional dos anos oitenta, anunciava aos manifestantes o planejamento de permane­cerem por dois dias acampados em frente à sede do governo. Ficariam ali até que fossem recebidos pela Presidente. Policiais cercavam o grupo, como precaução a possíveis tumultos, enquanto alguns armavam barra­cas e levantavam tendas decoradas com faixas e cartazes.

Gabrielle e Fernando acompanhavam o movimento pela janela do veículo que acabara de chegar ao fim da grande avenida. Henrique retor­nou e então seguiu por uma das marginais, parando em um terreno que ficava em frente a um dos prédios dos ministérios.

O eixo monumental da cidade de Brasília tem uma característica curiosa na parte considerada como lado leste. A avenida que cruza, de uma extremidade a outra, toda sua extensão, fica alguns metros acima de suas ruas marginais. Pode-se dizer que sua posição é como a de um platô, em relação à base dessas ruas vizinhas. Por isso, os prédios dos ministérios que repousam à beira desse grande platô têm alguns andares construídos entre estes dois pisos. Visto de cima, esta curiosidade quase não é percebida; mas, quando se olha das ruas laterais, é possível notar tal diferença.

Por isso Henrique havia parado naquele local. Era como uma entrada de serviço para um dos ministérios. Fernando encarou Gabrielle, dei­xando claro que sabia exatamente onde estavam.

Este é o ministério da Defesa - disse ele surpreso.

Exatamente - confirmou Cardoso.

Você está me dizendo que o depósito de vocês está localizado den­tro do Ministério da Defesa?

Não exatamente - continuou Cardoso. - Na verdade, o acesso para o depósito é que fica no Ministério, sob o jardim principal do Eixo. Oculto sob um belo e majestoso gramado e com apenas um acesso pos­sível, dentro desse prédio.

Cardoso sorria. Parecia satisfeito pelo fato de ter surpreendido seus dois convidados. Gabrielle, mesmo estudando a fundo a história do país, jamais imaginara que algo daquela magnitude pudesse estar escondido sob um prédio público, com acesso até mesmo a visitantes. Após uma pausa o tenente continuou:

Durante esta noite, enquanto estivermos fazendo a segurança dos senadores e da secretária de defesa norte-americana, vocês entrarão no depósito. Nós lhes forneceremos os cartões de acesso, comunicadores e um mapa que indicará exatamente o que devem procurar. O depósito está oculto há muito tempo e poucas pessoas sabem de sua existência. Na verdade acredito que poucos (ou ninguém) que trabalham neste pré­dio atualmente sabem que ele existe. Se há algo em que realmente nos destacamos é no trabalho de manter o sigilo das informações. De qual­quer forma, conseguiremos uma maneira segura para que vocês entrem, e saiam trazendo aquilo de que precisamos. Vocês terão pouco mais de meia hora, o que deve ser suficiente.

Nós vamos sozinhos? - perguntou Gabrielle.

Não! O sargento Henrique irá com vocês. Ele nos acompanha como agente de apoio e, por isso, enquanto eu e a tenente estivermos na recep­ção aos visitantes norte-americanos, ele poderá acompanhá-los. Vocês terão comunicadores que os manterão em contato constante conosco.

Comunicadores?

Sim, através deles vocês receberão instruções durante todo o tempo. De nós e principalmente do sargento Douglas, que está em São Paulo. Ele será nosso operador.

E a que horas exatamente vai ser isso?

Próximo às dez da noite! - confirmou o militar. - Elaboramos um plano que permitirá a vocês entrarem disfarçados no prédio. Vocês terão o tempo de que falamos para encontrar o depósito, recolher o objeto que procuramos e então retornar sem maiores problemas. O major conseguiu encontrar brechas na segurança que serão aproveitadas por nós durante esta ação. Já providenciamos todos os recursos necessários, agora é só entrar, pegar o que quer que esteja no local indicado e sair.

Só isso? - perguntou Fernando em um tom irônico.

Só! - respondeu Cardoso sorrindo.

 

A mais de mil quilômetros de Brasília, em uma sala na sede do Setor 27, o coronel Castro aguardava por informações sobre a negociação que estava prestes a realizar. Mesmo tendo certeza de que todo o seu plano seguia conforme havia imaginado, o militar tinha em seu íntimo a cons­ciência de que apenas uma suspeita era suficiente para que tudo fosse perdido. Castro pegou o telefone celular sobre a enorme mesa negra que ocupava parte da sala e olhou em torno o lugar que lhe servia de residên­cia. Levantou-se e então caminhou em direção ao hall.

Desde há muito tempo o coronel fora o singular ocupante daquele escritório. O local era amplo, agradável e se caracterizava por uma sala com dois ambientes distintos: o primeiro, basicamente informal, com dois sofás, um belo tapete e uma pequena mesa de centro, todo rodeado por estantes de madeira, recheadas de livros e documentos; o segundo, de onde acabara de sair, era verdadeiramente o local que usava para exercitar seu comando, alguns quadros com imagens de oficiais militares, cadeiras e a enorme mesa negra era tudo o que ali havia. A janela ao fundo, coberta por uma grossa persiana, permanecia sempre fechada, o que tornava o ambiente escuro e ameaçador. Por toda a sua vida, aquele fora o lugar que Castro chamara de lar. Poucos sabiam, mas seus quarenta e cinco anos de dedicação às Forças Armadas haviam sido cumpridos em sua totalidade dentro do Setor 27.

Assim que ingressara na Academia Militar, aos dezessete anos de idade, o jovem prodígio fora identificado entre diversos cadetes como tendo o perfil adequado para comandar uma das áreas que seriam criadas no novo estado. Depois de tudo acertado, os comandantes saíram à procura de jovens capazes de operacionalizar o que imaginavam ser um novo modelo de censura nacional. Nos anos que se seguiram, Castro foi preparado ao lado de outros para cumprir um destino diferente e especial: comandar uma equipe competente rumo à mudança de que tanto se ouvia falar.

Em uma das paredes, uma foto em preto e branco mostrando um grupo de militares em formação ainda trazia à sua lembrança a tropa de oficiais que se formara em sua época. Poucos ainda viviam e menos deles ainda permaneciam em serviço. De fato, sua era chegara ao fim. Mas, diferentemente do que imaginara, durante toda a sua vida não haveria recompensa, homenagem ou agradecimento público por seus serviços. A intenção do novo comando era depor a ele e ao Setor de forma oculta e vergonhosa. Dispensá-los como se nunca tivessem representado nada.

Estes pensamentos já o consumiam nos últimos dois anos. Desde que aqueles homens bem-vestidos, aqueles malditos burocratas, cruzaram os corredores do Setor em direção a sua sala: Quem eram eles? Que experiência tinham? O que sabiam eles sobre segurança nacional?, ele se perguntava.

Um toque do telefone que trazia na mão rompeu o silêncio da sala e o afastou de seu pensamento:

Bom dia, coronel - cumprimentou-o uma voz, assim que ele atendeu.

A linha está segura?

Sim, senhor! Eu chequei pessoalmente.

Pode falar! - respondeu Castro friamente.

Como previsto, eles estão a caminho de Brasília. Acredito que já tenham inclusive chegado.

Ótimo! Eles desconfiam de algo, sabem que estou ciente de suas operações?

Não, senhor. Estamos monitorando todos os seus passos e tenho certeza de que estão agindo conforme planejamos.

E os compradores?

Também estão a caminho senhor! Devem chegar em dois ou três dias.

- Ótimo!

Desculpe questioná-lo novamente, senhor, mas não seria arriscado negociar com essas pessoas? Não sabemos o que podem fazer caso não tenhamos o que eles querem. Na verdade, não temos nem certeza se o objeto existe de verdade. E se existir, não seria arriscado entregá-lo?

Já discutimos isto várias vezes! - disse o coronel irritado. - Eu sei o que estou fazendo!

Claro, senhor, me desculpe - disse o homem, desligando o telefone constrangido.

Além do mais - continuou o coronel após desligar -, não temos nada a perder.

 

                   Entregadores

Na central de operações do Setor 27, pelo menos três agentes faziam o trabalho de monitoramento naquela noite. Entre eles, o sargento Douglas, um dos homens de confiança do major, aguardava o momento de se comunicar com o grupo liderado por Cardoso. Sempre que inte­grantes do setor eram enviados a missões como aquelas, agentes eram colocados em prontidão para que todos os movimentos fossem acom­panhados e todos os recursos necessários estivessem disponíveis. Estes agentes especialistas em comunicações eram conhecidos como operado­res de campo. Douglas tinha experiência nesse trabalho, conhecia o objetivo do grupo e por isso tornara-se o candidato perfeito.

Durante a tarde haviam feito o primeiro contato com os cinco já instalados em um dos hotéis próximo ao lago Paranoá. Através de uma ligação telefônica o tenente relatou a Douglas que até aquele momento tudo transcorrera de acordo com o planejado. O grupo aferiu então os próximos passos e confirmou a decisão de se dividir rumo à próxima fase do ousado plano.

Confirmando as suspeitas de Fernando, o plano preparado por Cardoso estava longe de ser algo simples ou até mesmo mediano. Motivado pela necessidade de manter ocultas as ações do Setor, cada um dos passos definidos pelo tenente era um elenco de perigos e incertezas. Todos os movimentos que partiam do grupo precisavam estar ocultos sobre relatos falsos e por isso notícias seriam manipuladas durante sua investida. Só assim passariam despercebidos.

Cardoso e Patrícia já haviam seguido em direção à recepção dedicada à comitiva norte-americana, local onde manteriam uma atividade de fachada, enquanto Henrique, Fernando e Gabrielle rumavam ao depó­sito. A sorte estava lançada e dali para frente cada movimento impensado poderia colocar tudo a perder.

Como parte do plano, Henrique, Gabrielle e Fernando haviam rece­bido um veículo, mais precisamente uma minivan chinesa, com o símbolo de um famoso restaurante da cidade. A idéia era utilizá-la como disfarce, um pretexto para entrar nas dependências do ministério. Era comum que algumas vezes na semana funcionários do alto escalão ficassem em reu­nião até a madrugada e pedissem comida pronta. O major descobrira a informação através de amigos e esta era a brecha que usariam naquela noite. Com um pedido falsificado por Douglas, entrariam no estaciona­mento simulando serem funcionários do restaurante, descarregariam um carrinho de alimentos e seguiriam até o depósito. Estando lá, rumariam até o local indicado por Douglas, descobririam qual peça levar e com o pouco tempo que lhes restava retornariam ao ponto inicial. O objeto seria escondido no carro de alimentos, transferido até a minivan e então retirado do prédio. Um plano difícil, porém, plausível. Cabia a Henrique liderá-los, fazer com que entrassem no prédio sem serem percebidos; e a Gabrielle e Fernando, com seus conhecimentos e deduções, cabia inter­pretar o que poderia ter tamanho poder.

Eles portavam aparelhos intra-auriculares para comunicação, cartões para acesso, tablets para guiá-los e armas para sua defesa. Tudo estava pronto.

 

Em sua casa, o major Alencar terminava de lacrar o pacote que talvez contivesse o último comunicado que faria em sua vida. O relógio marcava vinte e duas horas e trinta minutos de uma terça-feira quente de outono e nada parecia tirar sua apreensão. O comandante sabia que em poucos minutos o plano, como ele havia elaborado, estaria sendo colocado em prática e por isso temia não sobreviver às conseqüências. Desafiar o Setor e principalmente a figura do coronel Castro era uma ação necessária, mas potencialmente fatal. O militar nunca havia se imaginado como um rebelde, alguém capaz de realizar ações contra superiores do modo como estava prestes a fazer. Sua vida correria perigo e por isso precisava enviar sua última contribuição ao futuro.

Lentamente, o militar desceu as escadarias de seu prédio rumo à portaria. Rinaldo era o porteiro naquela noite e seria o mensageiro res­ponsável pelo destino daquele pacote. Após cumprimentá-lo, Alencar lhe entregou o objeto com instruções claras para seu destino. O homem deveria guardá-lo por uma semana e então, caso o major não o requisi­tasse de volta nesse período, despacharia a encomenda pelo correio em vias normais. O homem aceitou o trabalho que lhe fora atribuído e como gratificação recebeu uma nota de cinqüenta reais.

Em silêncio, Alencar retornou ao seu apartamento.

 

O céu estava limpo e apenas o vento frio do fim de noite fazia com que os militares de plantão não caminhassem pelo jardim do Palácio da Alvorada. A iluminação especialmente projetada para aumentar a beleza do lugar e a visão do lago Paranoá encantavam os olhares daqueles que participavam da recepção. O prédio projetado por Oscar Niemayer, e que foi o primeiro a ser inaugurado na cidade, estava repleto de visitan­tes. Seus pilares em formato característico, e que ao longo dos tempos se tornaram símbolo da cidade, recebiam parte da iluminação e brilha­vam com a imponência característica das residências oficiais. Havia pelo menos uma hora, Cardoso participava do grupo de segurança alocado no jantar oferecido à secretária de Estado norte-americana e seus sena­dores. Naquele momento, os convidados degustavam entradas e aperitivos ao redor da piscina enquanto aguardavam que o jantar fosse servido. O evento, que contava com a presença de alguns dos principais minis­tros, militares e a própria presidente, tinha como objetivo demonstrar o desejo em firmar parcerias militares e econômicas entre os dois países. A secretária de Estado, que estava em missão diplomática aos países do Mercosul, escolhera o Brasil como primeiro destino e principal parceiro.

A ascensão política que o Brasil obtivera durante os últimos anos e sua presença marcante no mercado de energia fora o maior responsável por sua presença e suas intenções diplomáticas.

Na verdade, o evento planejado para aquela noite apresentava pouco risco aos presentes. O acompanhamento de uma força de elite durante o evento se baseava mais em uma formalidade do que na suspeita de algum possível atentado. Mesmo sendo uma das pessoas mais importantes no governo norte-americano, e de ser a terceira pessoa na linha de sucessão direta à presidência, a secretária e até mesmo os senadores não traziam histórico de possíveis riscos em suas viagens.

Por isso, Cardoso acompanhava a tudo em uma posição privilegiada: no jardim do palácio, bem ao fundo. Dali podia ver Patrícia, os agentes norte-americanos e todo o movimento. Ele era o último homem entre a casa e o lago, e dali sabia que seria possível acompanhar tudo o que viesse a acontecer durante a investida, enquanto as pessoas importantes, pre­sentes no local, saboreavam sua excelente refeição.

Naquele mesmo instante, com o carro parado em um dos terre­nos em frente ao prédio do Ministério da Defesa, Henrique, Gabrielle e Fernando aguardavam. Depois de estudar detalhadamente todo o sistema de segurança, os três sabiam que, se não seguissem à risca o planejamento e se não pudessem contar com a ajuda de Douglas, seria impossível ir além da entrada.

O prédio oferecia apenas três acessos, e por isso a equipe de segu­rança se encontrava em vantagem no caso de invasões. Qualquer um dos pontos escolhidos para a investida estaria repleto de soldados em pou­cos minutos, caso um dos seguranças disparasse o alarme. Cardoso havia pensado nesta possibilidade e por isso escolhera o subsolo como cami­nho. Ali, diferentemente das entradas oficiais sob o platô, a visão era mais complicada e a comunicação, um tanto deficiente. O sinal de Douglas indicaria o momento exato da ação e, se tudo corresse como planejado, o sentinela responsável pela guarda do portão receberia uma mensagem telefônica, autorizando a entrada de um carro originário de um dos res­taurantes mais tradicionais da cidade.

No interior da minivan, os três aguardavam este sinal. O relógio marcava vinte e duas horas e trinta minutos quando Douglas conectou o Grupo:

Henrique, na escuta?

Positivo, prossiga!

Há cerca de quinze minutos o sentinela recebeu o comunicado de sua entrada. Temos uma brecha na segurança de acordo com o planejado. Vocês poderão entrar com o carro e seguir as indicações do tablet para encontrar o local. Caminhem conforme as coordenadas.

Ok, Douglas. E as câmeras?

As câmeras serão paralisadas por cinco minutos em uma posição em que vocês não sejam vistos, é o tempo máximo que consigo para entrarem.

Positivo, vamos entrar.

 

A noite fria e entediante parecia o desfecho perfeito para um dia nada produtivo na vida de Hugo. O jovem militar engajado era um dos sol­dados mais antigos a cumprir o serviço de vigia no posto de guarda do subsolo do ministério. Há pouco mais de dois anos ele realizava aquele trabalho e sabia que as intermináveis noites eram sempre rodeadas de um fastio quase insuportável. Porém, quando recebeu o comunicado de que um carro do restaurante Belutti estaria chegando com uma entrega especial para os oficiais em serviço, seu ânimo mudara sensivelmente. Na verdade, um dos entregadores do restaurante era seu antigo conhecido e estas entregas sempre lhe rendiam presentes. Enfim, o dia que parecera ruim a princípio rumava então para um desfecho mais interessante.

Uma briga com a namorada que havia lhe rendido uma pequena cicatriz era talvez o principal motivo de seu evidente desânimo. A jovem temperamental, como todas as da sua idade, em um momento de ins­tabilidade emocional, havia arremessado um controle remoto em sua direção. Hugo, percebendo o movimento com certo atraso, ainda tentou se desviar, mas sem sucesso recebeu o impacto do objeto no rosto. Uma lembrança eterna que carregaria da, agora, antiga namorada. Por isso, uma boa e suculenta massa viria bem a calhar. Por um instante, seu pen­samento foi interrompido pelo piscar de um farol. Bem na hora, pensou. Eles raramente se atrasam.

Sem pestanejar, o sentinela abriu a porta permitindo que a minivan entrasse no subsolo. A área, de tamanho equivalente ao de duas quadras de futebol, tinha também dois andares. O andar inferior estava ocupado por alguns carros estacionados, além de caixas com material para escri­tório. No segundo pavimento alguns armários e um estreito corredor era o que se podia identificar. Henrique guiou o carro até próximo a uma pequena escada que ligava os dois andares e parou. A entrada havia sido permitida e agora estavam a poucos minutos de seu objetivo.

Assim que desceu do carro, Hugo o recebeu segurando uma pequena prancheta.

Trocaram de carro? - perguntou o soldado.

Temos dois agora - respondeu imediatamente Henrique. - Negócio crescendo, sabe como é!

O Marco não veio hoje? - continuou Hugo, preenchendo um for­mulário de entrada para o veículo.

Na verdade estamos treinando novas pessoas enquanto ele faz algu­mas das entregas - disse Henrique apontando para Fernando e Gabrielle, que agora saíam do carro. - Como disse, o negócio está crescendo.

Bom para vocês, porque eu vou ficar sem minha massa. O Marco sempre me traz alguma coisa, estranho ele não ter vindo com vocês!

Enquanto Henrique conversava com o sentinela, Fernando e Gabrielle agiam naturalmente. Abrindo a porta traseira da minivan, os dois inicia­ram o descarregamento de um carro de alumínio, semelhante aos utiliza­dos para serviço de quarto de luxuosos hotéis. No interior, completando o disfarce, algumas embalagens contendo alimento repousavam aguar­dando uma possível inspeção do sentinela. Além de manter a integridade do disfarce que utilizavam, o carro seria útil, caso encontrassem algo real­mente grande para trazer.

Como esperado, Hugo caminhou até a traseira da minivan e sinalizou com um movimento para que abrissem a porta. Somente neste momento percebeu que entre as pessoas estava uma das jovens mais bonitas que já vira. Gabrielle sorriu ao perceber seu entusiasmo, fazendo com que ele se sentisse um tanto constrangido.

Espaguetti ao polpetoni - pronunciou Fernando ao abrir a porta do pequeno carro. - Um dos melhores da cidade.

Ok! - concluiu Hugo, satisfeito com o que via.

A ausência de seu amigo Marco e do costumeiro prato extra de espa­guete fazia aquela abordagem parecer desnecessária.

Sabem o caminho? - continuou ele sem grande entusiasmo.

Sem problemas! - confirmou Henrique.

Sendo assim, aqui está o cartão de acesso aos elevadores - disse Hugo, entregando a eles um cartão magnético. - Vejo vocês na volta!

 

                   Poeiras ao Vento

Henrique ligou o tablet e acessou a planta baixa do edifício do Ministério. A entrada no prédio fora concluída com sucesso e os três seguiam agora em direção ao depósito. A interferência do sentinela havia sido mínima e a habilidade por eles demonstrada nos improvisos os con­duzira sem problemas até a rampa do segundo pavimento. Enquanto Fernando empurrava o carro de alumínio para o interior do prédio, Henrique e Gabrielle interpretavam o mapa e suas indicações. Segundo o caminho mostrado no aparelho, eles ainda se encontravam distantes da entrada. Seria preciso atravessar a base do prédio e então seguir até o lado sul, onde encontrariam a porta que dava acesso ao depósito.

Deixaram a rampa, entrando em um corredor de paredes azuis e com um portão construído de telas firmemente soldadas. No portão, encontraram o primeiro sistema de segurança. Sem grandes problemas, Henrique encostou no leitor magnético o cartão que o sentinela lhes havia entregado e, imediatamente, o acesso foi liberado. Alguns passos à frente, dois elevadores indicavam o caminho até os escritórios. O mapa pedia para que passassem por eles, seguindo adiante e virando à direita, três metros à frente. Fernando olhou para o elevador: seria impossível atravessá-lo e seguir o caminho indicado pelo computador. Uma porta, ou quem sabe uma passagem, seria a única explicação. Obedecendo à indicação, o grupo vasculhou corredor até encontrar uma porta metálica, protegida por um novo sistema de segurança. Imediatamente, Henrique acessou o leitor magnético utilizando o cartão de acesso fornecido pelo sentinela. A máquina leu o código e, produzindo um sinal sonoro com­posto por dois bipes, negou a liberação.

Cartões de acesso programáveis não eram mais uma novidade tec­nológica; na verdade, seu uso freqüente fizera com que a tecnologia se tornasse acessível e quase sempre segura. O cartão fornecido a eles na entrada estava programado para acesso único ao corredor de elevadores, e não às áreas de segurança. Douglas sabia disso e, portanto, programara um cartão com acesso ilimitado que fora entregue a Henrique. O soldado sacou o cartão de um dos bolsos e segundos depois já havia transpassado o novo obstáculo.

Estamos dentro! - comunicou Henrique.

Ok! Aguardo contato de chegada ao alvo - respondeu Douglas.

Quanto tempo acha que temos? - perguntou Fernando assim que ouviu a resposta no comunicador.

Meia hora, talvez quarenta minutos - respondeu Henrique. - Não podemos ficar muito tempo. Levantaria suspeita.

Não gosto da idéia de entrar sem autorização em um prédio oficial do governo - continuou Fernando enquanto caminhavam. - Não sei se sabe, mas infringir leis para um advogado nem sempre é algo muito fácil. Somei minhas infrações até agora e acho que já chegou a pelo menos cinco anos de reclusão.

Não tem problema, eu levo um refrigerante nas visitas de domingo pra você! - retrucou Gabrielle, se esforçando para conter o som de uma gargalhada. Havia tempos não ouvia tais pérolas ditas por Fernando.

Não se preocupe, em breve estaremos em segurança - completou Henrique sorrindo.

O corredor em que se encontravam copiava em acabamento o lugar que haviam deixado para trás, a diferença era que este se estendia por pelo menos vinte metros. A cada dois ou três metros havia portas e estas, sem sistemas de segurança, conduziam a almoxarifados e escritórios quase abandonados. O mapa indicava para que seguissem em frente e foi o que fizeram, caminhando até a última porta.

Ao transpor a porta, um novo almoxarifado surgiu. Prateleiras reple­tas de caixas de arquivo morto, materiais de manutenção e fios elétricos ocupavam cada um dos espaços de uma sala que incomodava os visitan­tes pelos corredores apertados e a ausência de janelas.

É aqui! - disse Henrique.

Fernando, que por conta do espaço reduzido deixara o carro do lado de fora, respondeu:

Aqui? Este é o grande depósito?

Parece que sim, pelo menos é o fim da linha para o mapa do prédio. Não existe outra sala desenhada na planta oficial - respondeu Henrique.

Qual é a localização exata do objeto que estamos procurando?

- A informação indica G5.

E o que isto significa? - perguntou Gabrielle.

Pelo que sei esta é a indicação de um corredor e talvez uma divisó­ria de armazenamento, uma prateleira ou algo assim.

Se for realmente isto - respondeu Fernando -, é uma confirmação de que estamos no lugar errado. Não existe aqui qualquer indicação de corredor, quadra ou prateleira; esse lugar não passa de um arquivo morto.

Estranho - continuou Henrique caminhando pelo lugar -, não temos como ter errado, o trajeto estava detalhado no mapa.

Talvez haja outra entrada - comentou Gabrielle.

Pode ser! - concordou Fernando. - Uma entrada que pudesse man­ter o local em segredo: uma passagem oculta.

Ela não estaria no mapa, mas como saberíamos onde procurar? - perguntou Henrique.

Saliências, talvez? - respondeu Gabrielle. - Uma porta teria dife­renças de superfície com as paredes.

Se tirarmos os armários... - completou Henrique antes de ser inter­rompido.

Acho que sei! - interrompeu Fernando.

Gabrielle olhou para o advogado e percebeu que seu semblante demons­trava confiança enquanto caminhava observando atentamente a sala.

Esta sala me lembra um dos meus primeiros casos como promo­tor - continuou Fernando. - Um caso cuja prova principal para con­denarmos um criminoso estava baseada no local por onde ele havia acessado a cena do crime. Naquele caso, o criminoso havia cometido um delito de arrombamento, seguido por morte. A casa de campo em que ele entrou estava havia muito tempo fechada e, ao invadi-la, ele imaginou que não correria riscos. Sendo assim, não atentou para o fato de que na propriedade havia um caseiro que escutou barulhos na casa e foi verificar o que era. O homem o assassinou e saiu pela porta, dei­xando os objetos da casa intactos.

Fernando caminhava entre os corredores e olhava para o chão, pro­curando por algo que os dois não sabiam o que era. Ele continuava a proferir sua história:

Horas depois o caseiro foi encontrado pela mulher e a polícia isolou o local. Havia muito pó na casa e pegadas por todos os lados. Inicialmente imaginou-se que o homem tivesse chegado à casa e caminhado em círculo, como em uma atitude transtornada e por fim teria se matado. O fato estava quase dado por concluído quando um dos investigadores percebeu próximo a uma das janelas que o pó acumulado havia se deslocado continuamente no sentido de fora para dentro, como se uma corrente de ar o houvesse empur­rado para o interior da casa. Bingo! A janela havia sido aberta.

Gabrielle sorriu, entendera enfim até onde Fernando os estava con­duzindo. Começou também a caminhar, estava à procura de indícios semelhantes ao que ele havia descrito.

Que suicida - disse ele, sorrindo, pois percebia que estava prestes a pronunciar uma frase sutilmente contraditória. - Em sã consciência entraria em uma casa, abriria a janela, fecharia a janela e depois se mata­ria. Enfim, depois de exames de DNA em materiais deixados pelo invasor no jardim, eles encontraram o culpado.

Henrique também participava do pequeno jogo, estava surpreso com o faro investigativo do casal. Indícios começavam a explicar por que o major tanto insistira para que eles estivessem presentes naquele grupo, e que de certa forma fossem tratados como os principais desmistificadores presentes na missão.

Bem... - pronunciou-se Gabrielle após alguns segundos. - Sendo assim, acho que encontramos nossa janela!

No fundo da sala, junto à parede da esquerda de quem entrava pela porta, Gabrielle permanecia parada. Próximo a seus pés, partículas de poeira se amontoavam formando uma pequena elevação no piso. Era como se alguém as tivesse puxado com uma vassoura até que se amon­toassem. Fernando se aproximou de seu ombro e sussurrou um "muito bem" em seu ouvido. Um pequeno arrepio subiu por suas costas... Já fazia muito tempo que seus corpos não se aproximavam tanto.

Quem disse que um advogado não tem utilidade em investidas militares ou, dependendo do ponto de vista, em expedições históricas? - disse Fernando num tom convencido.

Como sempre, um ego mal resolvido! - sorriu Gabrielle. - Mas como vamos saber se é aqui?

Temos que afastar estes armários - concluiu Fernando. - Pode nos ajudar, Henrique?

Claro! - concordou ele. - Com certeza.

Durante alguns minutos, os três retiraram caixas, removeram pastas e afastaram móveis. Todo trabalho fez com que a sala se tornasse um lugar ainda mais bagunçado e uma parede estranha surgiu à sua frente. A pintura e o reboque não indicavam que ali pudesse haver uma entrada, mas o rodapé, apodrecido na parte em que tocava o chão, sinalizava que algo diferente poderia estar cuidadosamente escondido.

Fernando tocou a parede que sem grande esforço se movia como uma lâmina fina de madeira, uma placa de revestimento facilmente destrutível. Olhou para Henrique e Gabrielle com um sorriso e então socou o objeto até que se quebrasse em uma dúzia de pedaços.

Uma espessa porta de ferro surgiu diante deles. Com um ar de satis­fação, visivelmente compartilhado com Gabrielle, o jovem percebeu que de fato gostava daquelas aventuras. Descobrir lugares escondidos, revelar segredos à humanidade parecia uma droga viciante. A adrenalina, o entu­siasmo, a energia, sensações tantas vezes demonstradas por Gabrielle em suas viagens e em suas aventuras, realmente pareciam algo contagiante. Gabrielle, não menos entusiasmada, vibrava a seu lado.

Um novo sistema de acesso era o que separava os três de mais um mistério. Henrique guardou o tablet e com o cartão liberou novamente a entrada. A porta destravou movendo alguns poucos centímetros. Fernando a abriu e deparou com uma escada.

Pegando uma lanterna que carregava consigo, Gabrielle desceu. Alguns degraus abaixo chegou a um hall com dimensões de cinco por dez metros. Iluminando com a luz da pequena lanterna, Gabrielle per­cebeu que existia um veículo no lugar. Algo que se parecia uma carroça. Procurou pelas paredes por alguma presença de luz e após acionar o interruptor viu onde realmente estavam.

O hall iluminado confirmou as dimensões por ela percebidas, mas sua altura era uma surpresa. O teto era alto, se distanciando mais de oito metros em relação ao chão; no topo, um enorme alçapão metálico pare­cia uma solução projetada como entrada para qualquer coisa que hou­vesse ali dentro. A carroça, na verdade, se tratava de uma pequena carreta, engatada a um trator. O alçapão que por certo fora coberto pelo lado de fora, soterrado após o isolamento do depósito, permitia a entrada de objetos que eram então transportados por aquele veículo. Era evidente que nada mais funcionava, mas pensar nas operações do lugar quarenta anos antes lhes dava idéia da importância que um dia tivera o Setor 27.

Gabrielle, empolgada com toda a história, seguiu até uma das extre­midades do depósito e parou em frente ao que parecia uma grande caixa de energia. A sua frente a escuridão predominava. A jovem abriu a pequena porta de metal e acionou os mais de vinte disjuntores encon­trados ali.

Vários sons de chaves de força se engatando foram ouvidos um após outro. A seqüência de sons foi sucedida pelo iluminar de cada um dos corredores do gigantesco depósito em que agora eles se encontravam. Compridos corredores, divididos por enormes prateleiras e caixas, se estendiam metros e metros por baixo da terra. Analisando o caminho que haviam percorrido, Fernando percebeu que o lugar estava situado abaixo do jardim localizado diante do Palácio do Planalto. Eles já haviam estado naquela cidade muitas vezes, mas jamais puderam imaginar que algo assim existisse.

Mesmo deslumbrados, sabiam que em pouco tempo precisavam estar de volta. Cumprimentaram-se, recolheram suas coisas e começa­ram a procurar.

 

Bruno observava atentamente os monitores e o painel de controle da sala de segurança do prédio do ministério. Manter os olhos fixos em todas aquelas imagens, sem sequer cochilar por alguns minutos, exigia toda a sua atenção e todo o seu empenho. A noite ainda estava começando e, como todas as outras, não parecia nada além de um período entediante e cansativo de vigia. O prédio era guardado por uma equipe de nove sol­dados, um sargento e um oficial. Naquele exato momento apenas ele e outros dois soldados estavam de guarda, enquanto os demais, além do sargento e do tenente, já se haviam recolhido. Em média, a cada duas horas os postos eram revezados e quem estava de serviço poderia descan­sar. Para ele faltava pouco menos de dez minutos. Quando o momento chegasse, a ronda com os três substitutos e o sargento chegaria e ele pode­ria enfim curtir suas quatro horas de sono.

Sono este que fora do serviço já não lhe era tranqüilo. Há quem diga que a vigília é um grande sofrimento, mas não para ele. Desde que um de seus irmãos se metera com pessoas de índole duvidosa, sua vida pessoal se tornara um grande inferno. Na última vez, tivera que recolher o jovem menino em uma festa onde todos praticamente estavam à mercê de apro­veitadores. Drogas, bebidas, tudo a disposição e sem grandes cobranças. Era assustador como a vida de alguém parecia se perder em tão pouco tempo. Por isso o trabalho era talvez sua única alternativa de descanso e, estando ali, a preocupação parecia se afastar. Por saber de sua obrigação, não se sentia culpado por não estar presente. Mais uma piscada de olho e sua concentração foi interrompida por um bipe. Era um sinal estranho, diferente do que estava acostumado a ouvir. Bruno se aproximou da tela até que conseguisse ler claramente a mensagem:

 

             Código 294 - Entrada Irregular (Possível Defeito)

             Clique para ver detalhes

 

- Quê? - perguntou ele sem entender.

Mesmo ocupando o posto há mais de seis meses, jamais havia depa­rado com aquele código. Levando o mouse sobre a mensagem, acionou o botão de detalhe:

 

Tempo de último acionamento da porta: 14 anos, 3 meses, 9 dias, 4h34'. Verificar possível defeito. Acesso liberado pelo car­tão 398754.

 

Bruno pegou o telefone:

Que beleza! Agora é que eu não tô entendendo mais nada.

- Alô!

Sargento Pereira?

- Sim!

Soldado Bruno, senhor! Tenho um alerta de evento incomum no sistema, algo que nunca vi antes!

Evento incomum?

Sim, senhor, o sistema é programado para comunicar todos os eventos incomuns ocorridos nos dispositivos de segurança e nas entradas ou acessos. Atraso de abertura, erro de leitura de cartão, tentativa tripla de acesso negado e, neste caso, acesso liberado de porta há muito tempo inativa.

Muito tempo? Quanto?

Quatorze anos, senhor.

Quatorze anos?!

Sim, senhor!

Mas se isso é praticamente a data na qual o sistema foi instalado, esta porta nunca foi aberta?

Parece que não, senhor.

Aguarde que eu estou indo para aí!

 

                         G5

O silêncio no rádio de Cardoso já se estendia por intermináveis vinte minutos. Mesmo sabendo que restringir comunicações era uma prática comum em operações daquele tipo, o militar aguardava por notícias que lhe pudessem trazer a certeza de que tudo se passava conforme o pla­nejado. A presença de civis em uma operação como aquela era o que lhe causava a maior preocupação, um fato que, se descoberto, poderia facilmente trazer problemas insolúveis a Fernando e Gabrielle. Libertar soldados de invasões a unidades era algo possível, o que já havia conse­guido em outras oportunidades. O motivo era o seguinte: sempre que estes cometiam supostos crimes, eram imediatamente mandados de volta a suas unidades de origem e julgados por tribunais militares. Já no caso dos dois, se fossem pegos pelos seguranças do Ministério, o destino seria diferente. Tribunais e delegacias comuns, algo que envolveria mídia e polícia de rua.

Mas a presença deles era essencial para a missão e o risco, necessário. Cardoso já estava se acostumando com os dois, a ponto de confiar em suas decisões. A coragem que vira em Gabrielle e a astúcia notada no dis­curso de Fernando durante o recrutamento foram suficientes para perce­ber que eles estavam longe de ser um casal comum. Eram competentes e por isso estavam ali. Com o rumo tomado pelo setor nos últimos tempos, não haveria outra chance de encontrarem o que o coronel procurava sem ceder a esta necessária exposição. Era preciso colocar na equipe pessoas aptas para decifrar grandes mistérios. Só assim poderiam penetrar em um sistema de segurança baseado em códigos e conhecimentos capazes de manter segredos ocultos por séculos.

Esta era a base de toda a inteligência política no momento em que o Setor foi idealizado, manter idéias e conceitos ocultos sobre códigos mui­tas vezes indecifráveis. Códigos estes protegidos também pela falsa sensa­ção de importância, o que justificava os depósitos e o armazenamento de tantos objetos e quinquilharias. Tudo era parte de uma ação intencional que os permitia manter, em meio a peças insignificantes, objetos e infor­mações de valor inestimável. Como descobrir estes objetos entre tantos era uma tarefa difícil e muitas vezes demorada. Entre todos, somente o coronel sabia o significado exato destas relíquias, e por isso precisavam de uma alternativa. Fernando e Gabrielle eram essa alternativa.

Enquanto a ansiedade motivava e conduzia os pensamentos de Cardoso, o tempo corria. Se não recebesse um comunicado em breve, teria que ir ao encontro dos três.

 

No depósito, Gabrielle ainda estava impressionada com a imagem que tinha pela frente. Por diversas vezes em sua vida, a jovem historiadora estivera com seu pai em visitas pela capital do país, mas jamais imaginara que seus passeios aconteciam sobre um depósito de materiais da antiga ditadura. De fato, nem mesmo seu pai, um político influente à época, ou qualquer outro representante do poder legislativo, sabia da existência de tais depósitos. O fim do regime carregara consigo as pessoas detentoras de tais informações e com elas a sanidade de administração do que era agora um dos maiores acervos históricos do país.

Seguida por Fernando e Henrique, a jovem caminhava a passos cur­tos e lentos tentando se encontrar em meio às diversas relíquias que via à sua frente. Caixas lacradas, pequenos veículos, papéis, livros, máquinas de impressão, armas, móveis... Décadas de trabalho haviam reunido um acervo de objetos capazes de contar histórias e segredos. Era como se tives­sem voltado muitos anos no tempo. Tudo remetia ao passado, à história.

- Temos pouco tempo! - disse Henrique interrompendo o silêncio. - Temos que estar de volta à minivan em vinte e cinco minutos, e até lá precisamos encontrar o que viemos buscar, levá-lo conosco e ocultar a passagem. Ainda faltam alguns dias para começarem a esvaziar o depó­sito e até lá tudo precisa permanecer escondido.

Como eles pretendem esvaziar tudo isso? - questionou Gabrielle.

Existe uma operação especial, com pessoas treinadas. Deve ser feito à noite, como se fosse uma obra, uma construção.

E o que será feito de tudo isso? - perguntou Fernando, também curioso e impressionado com o que via.

Parte será incinerada, parte será espalhada por ferros-velhos do país e algumas coisas serão divulgadas na mídia sem grande publicidade. Em resumo: vai tudo se dissolver como pó!

Mas pode haver objetos importantes e únicos por aqui.

Eu sei - respondeu Henrique. - Alguns serão preservados, mas nada que ligue estes objetos ao Setor pode ser recolhido por alguém. Esta exposição pode ser um risco para as pessoas e até mesmo para a demo­cracia. Muitos segredos devem continuar ocultos, e é para isso que nós trabalhamos.

- Mas...

Me desculpe, senhora, recebemos ordens e devemos cumpri-las. Nosso tempo é curto e estamos invadindo uma unidade militar, acho que podemos ter esta conversa em outro momento. Além disso, acredito que o major seria a melhor pessoa para debater sobre o fato, caso lhe interesse.

Gabrielle sabia do que se tratava o assunto; muitos segredos e infor­mações, e algumas delas até mesmo comprometedoras, ocupavam aque­las prateleiras. Era um passado enterrado, algo que, pelo desejo de alguns, deveria permanecer esquecido. A seu ver, tudo não passava de um crime contra a nação e contra a História.

 

O sargento Pereira era um homem tranqüilo e bastante sensato. Conhecido como um dos militares mais experientes em serviço, era tal­vez o detentor do maior respeito e obediência dos soldados subordinados. Todos sabiam que se o sistema de segurança dentro do Ministério estivesse com problemas, Pereira deveria ser chamado. Software, hardware, logística de movimentação, todo o tipo de informação poderia ser retirado daquele homem. Assim que entrou na sala de segurança, o veterano acessou os comandos para identificar a possível causa da mensagem.

Quatorze anos? - falou em voz alta.

Sim, senhor! - respondeu o soldado. - Três meses e nove dias, sem contar as horas.

Uma coisa é verdade, trata-se de um evento realmente incomum. Você checou o nome de registro do cartão de acesso?

Não, senhor, vou checar agora.

Bruno digitou números no teclado da máquina e após alguns segun­dos respondeu:

Brigadeiro Cagliari, senhor. Pelo que consta aqui, já está na reserva há pelo menos doze anos.

Que ótimo, uma entrada irregular de um militar da reserva e de alta patente. Só pode ser encrenca. Quem nós temos no prédio?

Eu, o senhor, o tenente, Cláudio no térreo e Hugo no portão do subsolo.

Peça para o Hugo fechar o portão e me encontrar no elevador. Onde fica essa porta?

Não sei, senhor. Pelo sistema que ela está interligada, parece que é no subsolo. Nível 3.

Então peça para ele me encontrar na frente do elevador, lá mesmo no subsolo. Em cinco minutos - disse Pereira saindo da sala.

Ok! - respondeu Bruno apreensivo.

 

Henrique comandava o grupo em direção ao corredor indicado como localização no tablet. Desta vez, a indicação fazia mais sentido. Cada um dos corredores tinha letras que os identificavam; a partir dali, podia-se caminhar passando por quadras identificadas por números.

Os três caminharam alguns metros até encontrar o corredor que procuravam e então saíram em busca da quadra identificada por G5. A cada metro era possível ver novos objetos, novas relíquias. Vasos, quadros, esculturas em madeira, imagens de santos católicos; possi­velmente roubadas de igrejas e depois recuperadas pelo setor. Tudo ali, de certa forma, conquistava a atenção e admiração de Gabrielle. Por um instante a jovem parou. Em um dos espaços que eram divi­didos por colunas e prateleiras, pôde perceber traços conhecidos em quadros que estavam acomodados sobre caixas. Eram trabalhos do famoso pintor brasileiro Cândido Portinari, considerado um dos mais importantes do país.

Gabrielle parou. Admirava a vida e o trabalho daquele artista e encontrar seus quadros desaparecidos era algo que nunca pudera imagi­nar. A qualidade e a conservação das obras era algo surpreendente, na sua maioria protegidas por plásticos e isopores, permaneciam intactas nos últimos anos. Afastando-se de Henrique em um movimento involuntá­rio, causado pela surpresa da visão inesperada, a jovem se pronunciou:

Chumbo! - disse com olhar enigmático.

Enquanto falava, Gabrielle tocou a moldura de um dos quadros. Sempre que deparava com obras de Portinari, a mente da jovem era inun­dada pela história daquele renomado artista. O homem, conhecido por retratar cenas peculiares da cultura nacional, tinha fama mundialmente reconhecida e uma história de vida triste.

O quê? - perguntou Fernando, percebendo seu interesse pelo local.

Estas obras são de Portinari - continuou Gabrielle -, um dos maio­res artistas do país. Um homem que morreu aos 59 anos vítima de seu maior amor.

Mesmo sem entender as palavras de Gabrielle, Fernando esperou. Conhecia seu olhar e por isso sabia que a jovem continuaria com a história.

Ele morreu por intoxicação avançada de chumbo - relembrou Gabrielle. - O material-base contido nas tintas que ele usava nas pin­turas. Mesmo depois de saber que estava doente, ele continuou a pintar, contrariando recomendações médicas.

São realmente muito bonitos! - confirmou Fernando, admirando a figura de um menino sentado com a mão sobre um dos joelhos.

Era o Menino de Brodowski, um dos quadros desaparecidos de Portinari.

É inacreditável. Como algo tão belo pode trazer a morte a alguém? - continuou.

Dois anos depois que soube da doença - prosseguiu Gabrielle Portinari foi agraciado com o nascimento de sua primeira neta. Uma menina linda e muito saudável. Mesmo sabendo que voltar aos quadros o mataria, o pintor, então encantado com a menina, voltou a trabalhar desenhando quadros com a imagem da pequenina continuamente. Um a cada mês até sua morte, um ano e meio depois.

Gabrielle se emocionava sempre que se lembrava daquela história. Seu amor pelo tema era tamanho que um frio lhe percorria a espinha a cada vez que o citava.

Vamos, Gabrielle - disse Fernando, pegando seu braço -, se tiver­mos tempo, voltamos para pegar um deles.

Gabrielle cedeu ao apelo de Fernando e juntos retornaram ao corredor.

No caminho havia também espaços vazios. A ocupação do depósito não ultrapassava setenta por cento de sua totalidade. Por certo, a inter­rupção do regime em meados da década de oitenta descontinuara seu abastecimento e obrigara os responsáveis a fechar o lugar antes de preen­chê-lo até o máximo.

Henrique parou em frente à indicação G5. Segundos depois, Fernando e Gabrielle pararam a seu lado.

O local era composto por um piso de palites de uma dimensão de dez por dez metros. Como em outras quadras, o que se viam eram caixas, prateleiras e armários. Não havia carros, máquinas ou algo de tamanho exagerado. Fernando percebeu que não seria possível saber do que se tra­tava sem que vasculhassem o local e por isso foi o primeiro a se manifes­tar. Assim que subiu, sobre o piso de palite, os três ouviram um pequeno bipe no comunicador interauricular:

Henrique?

Na escuta, Douglas!

Monitorando as câmeras do prédio eu percebi um movimento dife­rente no portão do subsolo e na sala de segurança. O guarda trancou a porta e está seguindo na direção de vocês. Levando em consideração uma revista completa no prédio, vocês devem ser revelados em no máximo vinte minutos. Talvez menos.

Vinte minutos?

Positivo, e isto pode ser o menor dos problemas.

Prossiga.

Ele esteve observando a minivan e, depois de fazer uma ligação, deve ter percebido que vocês não são funcionários do restaurante. O retorno pelo subsolo não é mais uma opção.

E qual seria a outra?

Não tenho a planta do depósito e por isso não posso afirmar, mas deve haver alguma saída alternativa. Uma entrada de ar, algum caminho que possa ser visto por dentro.

Ok, vou tentar encontrar.

A situação pouco favorável parecia agora realmente fora de controle. Henrique sabia que serem presos era uma opção inaceitável e para isso precisava agir rapidamente.

Vocês ouviram - disse ele olhando em direção aos dois. - Temos menos de vinte minutos. Proponho que eu saia à procura de outra saída, enquanto vocês procuram pelo que viemos buscar. Assim que encontrar algo eu volto aqui e então saímos. O que acham?

Os dois assentiram positivamente:

Ótimo! Boa sorte! - concluiu Henrique antes de sair em direção ao fundo do depósito.

 

No Palácio da Alvorada, Cardoso acompanhava toda a comunica­ção. Como temia, a vida dos civis estava em risco, era preciso que algo fosse feito. A recepção parecia tranqüila e sua ausência a partir daquele momento não seria tão percebida. Apenas um sinal foi suficiente para que Patrícia soubesse de suas intenções. O militar deixou seu posto e seguiu em direção ao carro que os levara até ali. Pelo rádio, confirmou a Douglas que seguiria ao encontro dos três.

 

                         Os Vigilantes

Hugo subia as escadas que levavam ao elevador principal indignado com sua desatenção. Os procedimentos para liberação do acesso ao pré­dio eram claros e conhecidos; já os havia lido diversas vezes e não era admissível que cometesse uma falha como aquela. Dois garçons metidos a espertos, acompanhados de uma jovem de beleza tão evidente, real­mente não combinavam com o perfil dos antigos entregadores do res­taurante Belluti. Um soldado experiente como ele deveria ter percebido que algo de suspeito estava acontecendo e ter investigado mais profun­damente. Devido a seu erro, o jovem não era mais dono das decisões e a pedido do sargento Pereira acabara por revistar o veículo. Um contrato de aluguel no porta-luvas e um símbolo preso por ímã na lataria eram a denúncia da fraude. A posterior ligação para o restaurante só confirmou o que já era visível: aqueles três não eram entregadores. Na verdade, era impossível descobrir de quem realmente se tratavam.

Estava claro que aquele seria um dos piores dias de sua vida. Sua testa ainda latejava pelo impacto do controle remoto voador e, além disso, havia falhado em proteger seu posto. A coisa realmente não ia bem. Terminou de seguir pelas escadas e atravessou a porta de segurança. Não podia demorar, deveria encontrar com o sargento em frente ao elevador para que tentassem, juntos, procurar por entre os corredores a porta que havia sido misteriosamente liberada pelos invasores.

O sinal sutil de um sino indicou a chegada do elevador. As portas se abriram e Pereira não demorou a questioná-lo:

Como isso aconteceu, Hugo? - perguntou Pereira enquanto eles caminhavam. Havia vários corredores no subsolo e o sargento seguia para o primeiro deles.

Sinto muito, senhor, não percebi que eles não eram quem diziam ser - respondeu Hugo, enquanto o seguia. - Eu não cumpri corretamente o procedimento e os deixei passar.

Você sabe no que isso pode acabar, não sabe?

Sim, senhor.

Tribunais militares - continuou Pereira, sacando sua arma do col- dre e engatilhando. Indicou então para que Hugo, que carregava um fuzil, fizesse o mesmo. - Prisões e até mesmo exoneração.

Eu sei, senhor.

Bem, vamos tentar fazer com que não chegue tão longe. Só que para isso precisamos pegá-los e levá-los sob custódia o quanto antes.

Positivo, senhor.

Pereira encostou seu corpo sobre o canto de uma das paredes que davam acesso ao corredor. Projetou então a cabeça alguns centímetros, tentando identificar ali a presença dos invasores. O lugar era claro e favo­recia a visão. Com a arma em mãos sabia que, se preciso fosse, deveria atingi-los primeiro nas pernas e depois em regiões fatais. Não pretendia chegar a tanto, mas o faria para evitar futuros problemas.

Sem perceber qualquer vulto no lugar, o militar girou o corpo, parando em frente a um grande corredor repleto de portas. Felizmente para Gabrielle, Fernando e Henrique aquele não era o lugar por onde haviam passado. Pereira escolhera o caminho oposto, o que o levaria a vários destinos, antes que pudesse encontrar os três.

 

Gabrielle ficara estática por alguns segundos. O que lhe parecia até então uma das maiores salas de tesouro que já encontrara na vida acabara por se transformar em uma prisão sem possibilidade de escapatória. Fernando já revirava algumas das caixas, quando a jovem voltou a si e subiu sobre as palites. O local, mesmo parcialmente organizado, não fornecia qualquer pista do seu conteúdo ou do motivo pelo qual as coisas ali se encontravam. Sem per­der muito tempo, o advogado espalhava peças, relatórios, disquetes e outros artigos pelo chão, formando fileiras de materiais aparentemente inúteis e desnecessários. A jovem agora acompanhava sua metodologia de procura sem questionar o que pudesse estar entre aqueles objetos.

Por sete a oito minutos os dois continuaram até que tudo estivesse espa­lhado pelo chão e sobre as palites. O lugar era agora uma grande bagunça de papéis e objetos curiosos. Cuias de chimarrão, relatórios, peças de compu­tador, jogos de tabuleiro, um cubo colorido, disquetes, suportes para papel, pastas de documentos e até um violão. Eram diversas coisas que lhe pareciam comuns a casas e escritórios, mas nada que pudesse colocar o Setor em evi­dência ou que proporcionasse ao coronel recuperar seu prestígio.

Quanta quinquilharia! - exclamou Fernando.

Uma missão e tanto - disse a jovem - encontrar alguma coisa importante em meio a tanto lixo. Realmente um desafio à altura do cére­bro de um gênio!

O que no meio deste monte de coisas pode mudar a história do país, salvando o Setor 27 e tornando-o novamente importante?

Não sei, disse ela. Talvez uma informação, ou algum outro segredo.

Talvez uma cuia de chimarrão de um milhão de dólares - brincou Fernando.

Engraçadinho - respondeu Gabrielle. - Esqueceu que estamos sendo perseguidos?

Mesmo interagindo com as brincadeiras de Fernando, Gabrielle sabia que a situação não estava a seu favor. Tinha medo de que os vigi­lantes chegassem e por isso tentava se concentrar nos objetos à sua frente.

Disquetes? - continuou Fernando.

Podem conter de tudo, não temos como saber o que têm dentro nem se são o que estamos procurando.

Um violão então - disse ele pegando o instrumento e girando-o no ar sobre a própria cabeça. Era um antigo Giannini, adornado com adesi­vos estranhos e bem coloridos.

Gabrielle percebeu o raciocínio lúdico de Fernando e conseguiu entender o ele pretendia. Estava manuseando os objetos, tentando identificar alguma coisa que os ligasse a todos os documentos espalhados à sua frente. Por um minuto a jovem deduziu que tais objetos eram como artigos de distração usados em ambientes de alto estresse mental. Objetos talvez usados por cien­tistas para criar intervalos de pensamento durante o exercício da pesquisa.

Enquanto se dava conta dos fatos e acompanhava os movimentos de Fernando, percebeu entre os adesivos presos ao violão um círculo envolto por várias elipses dispostas em quatro direções. Ela sabia do que se tra­tava aquele símbolo. Todos no mundo já o haviam visto algumas vezes, e Fernando também. Ela caminhou em sua direção e, pegando o instru­mento de sua mão, girou-o sinalizando para ele o que havia percebido. Imediatamente Fernando compreendeu, era o símbolo de um átomo e de seu núcleo. Energia nuclear, uma tecnologia dominada por poucas pessoas no mundo, um sinal internacional de poder e conhecimento, algo procurado e desejado por muitas nações em todo o mundo.

Bingo! - gritou Fernando.

Devem ser documentos de experiências, relatórios científicos de algum período da História - respondeu Gabrielle.

Mais precisamente da década de setenta - continuou Fernando pegando um dos relatórios que estavam datados. Agora, vasculhando melhor entre eles, era possível perceber que alguns traziam uma marca-d'água com a mesma imagem encontrada no violão.

Período dos projetos nucleares brasileiros, da compra das usinas de Angra 1 e Angra 2, e também da corrida mundial para a tecnologia de refinamento de urânio.

-Você acha que...

Só pode ser isso. Poucos países no mundo detêm esta tecnologia, é um conhecimento que pode ser facilmente vendido por milhões de dólares.

Ou quem sabe negociado por um pouco de poder, um pouco mais de expressividade política.

Não conseguiremos levar tudo, precisamos achar algo que nos dê mais informações sobre do que realmente se trata. Algo que possa nos direcionar no entendimento de tudo isso.

O relatório de apreensão, como aqueles que vimos na represa. Eles falavam sobre como os objetos foram apreendidos, onde e quando.

- Vamos procurar - concordou Fernando já se passaram mais de quinze minutos, não nos resta muito tempo.

Neste instante ouviu-se um ruído vindo do caminho por onde haviam entrado. Era como se uma grade tivesse caído ao chão. Gabrielle parou seus movimentos olhando na direção do companheiro. No mesmo instante os dois perceberam que seu tempo havia se esgotado.

 

Henrique corria pelas extremidades do depósito, quando uma idéia estranha preencheu seu pensamento. O tempo que tinham era uma incóg­nita e por isso precisava saber exatamente quando a equipe de segurança viria a seu encontro. Por um instante lhe ocorreu que seria útil montar um pequeno dispositivo capaz de avisar o momento exato em que os homens entrassem no depósito. Mudou então de direção e seguiu até a escada por onde havia descido. Subiu rapidamente chegando até a sala que continha os arquivos. O local estava deserto, da mesma forma como fora deixado. Henrique saiu, andou até a porta e tentou trazer o carro do restaurante para dentro. Desistiu ao perceber que perderia muito tempo. Procurou entre as prateleiras algo que havia visto assim que chegara ao local, eram cabos e fios de cobre possivelmente usados na manutenção corretiva do sistema elétrico do prédio. Pegou um deles e desenrolando-o amarrou a uma das prateleiras que haviam esvaziado.

Voltou então à escada e, em um movimento lento e silencioso, puxou a prateleira fazendo com que ela ficasse em frente à entrada, impedindo a passagem. Ainda desenrolando o fio, desceu até o depó­sito, amarrando a outra ponta ao pino que travava as grades laterais da carreta. Terminou a ação soltando os outros pinos. Agora apenas um deles mantinha a grade suspensa. Sorriu satisfeito com sua pequena armadilha e voltou à procura da nova saída. A ação lhe havia consumido alguns minutos preciosos, precisava ser ainda mais rápido para encontrar o tal sistema de ventilação.

 

Hugo e Pereira já haviam passado por quase todos os corredores e aberto quase todas as portas do piso térreo sem encontrar qualquer sinal dos invasores. Mais de quinze minutos já haviam se passado e os dois sabiam que quanto mais tempo demorassem em encontrar a porta, mais difícil seria capturá-los. Pereira ainda tentava entender como era possível existir uma passagem dentro do prédio ligada ao sistema de segurança e que não fosse de seu conhecimento. Ainda mais algo tão antigo. Em seu pensamento só havia uma explicação possível. Pelo que sabia, as travas de segurança integradas ao sistema de controle computadorizado provinham não só da instalação de novas fechaduras, mas também de um sistema individual, ainda mais antigo, ligado a um painel eletrônico de luzes que ficava na sala central. Quando o novo sistema foi instalado, já havia algumas portas protegidas e elas foram ligadas aos computado­res diretamente desse painel, ou seja, não haviam sido vistas fisicamente pelos instaladores do novo sistema.

Mas de fato aquilo não importava naquele momento, ele precisava encontrar aquelas pessoas antes da próxima meia hora, senão, segundo o procedimento, o alto comando deveria ser notificado:

Não nos restam muitos lugares, senhor. Tem certeza de que estão neste andar? - perguntou Hugo, interrompendo seu pensamento.

Tenho. O computador não soube indicar exatamente qual era a porta, mas ela está ligada aos sistemas deste piso. Eles têm que estar aqui.

Talvez no corredor dos arquivos, senhor - continuou Hugo. - Pouca gente vai lá. Somente o estoquista e o pessoal da manutenção. Permanece fechado praticamente durante todo o dia.

Fica longe?

Não, senhor, eu o levo até lá.

Hugo apertou o passo em direção ao corredor. Havia se esquecido do lugar porque era pouco utilizado pelo pessoal do prédio. Atravessaram os corredores que haviam investigado e dois minutos depois estavam de frente para a fechadura de segurança por onde Fernando, Henrique e Gabrielle haviam passado. Pereira acionou a fechadura com seu cartão e empurrou a porta para que se abrisse por completo. Enquanto os dois aguardavam protegidos pelo batente da entrada, as luzes se acenderam e o corredor ficou totalmente iluminado. Com cautela, ambos entra­ram. Imediatamente, Hugo viu o carrinho do restaurante deixado por Fernando e sinalizou em silêncio para que Pereira soubesse que estavam no lugar correto. A passos sorrateiros caminharam até chegar à porta.

Notaram não haver qualquer barulho no interior da sala e por isso continuaram avançando. À primeira vista, o local usado para estoque de materiais de manutenção e formulários antigos estava muito desorgani­zado. Caixas pelo chão, fios e latas espalhados e, para a surpresa dos dois, pedaços de parede destruída:

O que aconteceu aqui? - perguntou Hugo.

Parece que eles reviraram a sala e quebraram a parede - respondeu Pereira indicando com a mão uma das prateleiras vazias. Por trás dela era possível ver parte da parede que havia sido destruída e também a entrada de uma porta.

De onde veio esta porta? - exclamou Hugo. A cada minuto o jovem concluía que aquele realmente não era o seu dia. Pessoas invadindo o prédio em seu turno, portas ocultas e aquela maldita dor de cabeça.

Teremos que procurar a resposta para esta pergunta depois. Agora precisamos encontrar aquelas pessoas - disse Pereira colocando sua pis­tola no coldre e seguindo em direção à entrada.

Ele continuou:

Me ajude a retirar esta prateleira. Vamos ver o que está por trás dessa entrada.

Hugo colocou seu fuzil encostado na parede e junto com o sargento apoiou as mãos sobre o móvel. Após uma breve contagem de sincronia os dois puxaram. No mesmo instante, um som alto semelhante ao de obje­tos caindo e batendo uns contra os outros ecoou pelo depósito, chegando rapidamente a seus ouvidos.

Acabavam de anunciar sua presença; agora, os invasores sabiam que eles estavam ali.

 

                   Caminhos Estreitos

Fernando e Gabrielle estavam próximos de encontrar algo impor­tante quando ouviram aquele barulho. Não sabiam dizer como, mas os dois tinham a certeza de que o som anunciava a presença dos homens que os estavam procurando. O tempo realmente havia acabado.

Diante dos dois, sobre o piso, repousava uma infinidade de papéis, pastas e objetos. Espalhados de forma desorganizada não facilitavam sua decisão. Precisavam escolher o que carregar, o que de fato lhes traria novas e importantes informações sobre as intenções do coronel quanto ao programa nuclear. Imaginavam que o relatório da missão seria talvez o que lhes trouxesse maior esclarecimento. Mas qual deles era?

Começaram a revirar, procurando por algo que não conheciam. Não conseguiriam ler cada um dos papéis que ali se encontravam e por isso precisariam contar com a sorte. Cada vez que um dos dois revirava a grande massa de material tudo se espalhava, fazendo com que o lugar se tornasse ainda mais confuso. Fernando jogou o conteúdo de uma das cai­xas pelo chão. Chaves, charutos, fitas, pesos de papel; vários materiais de escritório se amontoavam em meio à pilha de quinquilharias. O tempo era curto e precisavam achar aquela pasta; sem ela nem mesmo qualquer outro objeto faria diferença.

Gabrielle o acompanhava com um ímpeto não menos dedicado. De repente, uma voz firme tomou conta do ambiente. Por um instante a jovem pensou que seu coração pararia, mas rapidamente percebeu que Henrique surgia no corredor.

Conseguiram?

Droga, você me assustou! - exclamou a jovem. - Que barulho foi aquele?

Uma pequena sinalização que eu criei para que soubéssemos quando eles chegassem - respondeu Henrique.

Parece que deu certo - completou Fernando. - Espero que tenha encontrado a saída.

Encontrei! Não diria que é bem uma saída, mas vai servir. Seria muito bom que nos apressássemos.

Já sabemos do que se trata - disse Gabrielle, tentando ser rápida.

Mas precisamos encontrar um relatório que explique melhor toda a missão. Algo que nos dê mais informações sobre o local onde tudo foi apreendido e as pessoas que estavam envolvidas.

Pasta de cor parda com uma faixa preta ao centro. Texto Arial 12, papel A4 em duas vias. Uma acompanha o material apreendido e a outra segue para aprovação do oficial responsável. A segunda é incinerada após avaliação - disse Henrique, aparentemente repetindo um texto decorado.

O quê? - indagou Fernando.

Procedimento padrão para arquivamento de material sigiloso - continuou Henrique, revirando os papéis do chão. - Todos no setor têm que saber como proceder para concluir missões.

Ficou evidente nas palavras de Henrique que ele já havia passado muitas horas preenchendo relatórios e arquivando materiais. Os traba­lhos administrativos do setor não eram uma exclusividade de um ou outro integrante e, por isso, todos conheciam bem aquele método. Henrique começou a revirar as caixas, à procura de um objeto agora conhecido. Fernando e Gabrielle continuaram a abrir espaço entre todos os itens como já vinham fazendo. O tempo para eles corria aparentemente mais rápido do que o normal.

A desorganização já se estendia para além da área delimitada pelo corredor quando Henrique sinalizou o que havia encontrado:

Aqui está! - disse o militar, retirando uma pasta grossa e pesada do fundo de uma das gavetas; ela estava oculta em meio a outros materiais.

Vejam! Exatamente de acordo com as descrições que dei.

Que ótimo! - sibilou Fernando. - Sempre fui adepto a procedimen­tos; não sei o que seria da nossa vida sem eles.

Gabrielle se levantou e, pegando a pasta da mão do sargento, alertou:

Vamos! Já passou da hora de sairmos daqui.

Atendendo a seu chamado, Henrique seguiu em direção ao corre­dor que os levaria à saída. A jovem disparou em seu encalço, enquanto Fernando também os seguia de perto. Os três agora tinham um novo objetivo: saírem ilesos daquele lugar.

 

Henrique corria pelos corredores do depósito sem nem mesmo se certificar de que os dois civis o acompanhavam. O sargento sabia que haviam exposto o acervo secreto a pessoas não autorizadas, e que aquilo por certo traria pesadas conseqüências ao comando do Setor. Se fossem presos, seriam ligados ao fato e suas vidas correriam um sério perigo. Além de conter tópicos sobre confecção de relatórios, os procedimen­tos do Setor também tinham instruções sobre punições administrativas e legais para quem expusesse os segredos que guardavam. Este na verdade era o maior dos crimes previstos para seus integrantes.

-Vamos rápido! - gritou aumentando a velocidade dos passos.

Precisavam chegar ao último dos corredores. Este ficava à esquerda da porta por onde haviam entrado. Se estivessem na superfície, era como se rumassem em direção ao Palácio do Planalto.

Cruzaram um corredor com um monte de tecidos vermelhos que lembravam bandeiras e uniformes revolucionários. Gabrielle, mesmo ofegante, corria os olhos em cada cenário com expressão quase melan­cólica. Mais uma vez tivera uma riqueza histórica próxima de suas mãos sem, no entanto, poder tocá-la. Ajudar o major a descobrir algo impor­tante lhe trouxera a esperança de encontrar recompensas, mas isto agora estava fora de cogitação.

Depois de passar por vários dos corredores, os três chegaram ao que parecia ser uma entrada de ar, com noventa centímetros de largura por noventa de altura, e que ficava a quase dois metros do piso. Henrique já havia colocado caixas que permitiam a alguém de estatura média alcan­çar a abertura e também já havia retirado a grade que servia de proteção.

Chegamos! - disse ele apontando para o lugar.

Aonde vai dar isso? - perguntou Fernando.

Na verdade, eu ainda não descobri! - respondeu Henrique, esbo­çando um pequeno sorriso. - Mas realmente acredito que em breve vamos saber. Não temos muito tempo, mas suponho que as damas devem seguir primeiro - continuou, sinalizando para Gabrielle.

Dispenso a etiqueta desta vez - afirmou a jovem. - Pode ir primeiro!

Henrique retirou da bolsa uma lanterna, subiu nas caixas e entrou pela abertura, desaparecendo no escuro da tubulação. Segundos depois, Gabrielle e Fernando o seguiram.

 

Pereira não conseguia se perdoar por tamanha inocência. Uma pra­teleira obstruindo uma entrada como aquela só poderia fazer parte de alguma armadilha. Como não percebera? Já havia feito perseguições e treinamentos de campo suficientes para saber do que se tratava aquilo. Sem perder tempo, empunhou sua arma e começou a descer as escadas. Hugo o acompanhava de perto, sem saber o que enfrentariam no fim da descida. E realmente jamais poderiam ter imaginado.

A expressão no rosto daqueles homens era difícil de descrever. O depósito que ficara oculto sob seus pés nos últimos anos e que agora surgia à sua frente era como uma miragem aos olhos de um viajante alu­cinado. Não conseguiam acreditar que um lugar como aquele pudesse existir sem que eles sequer suspeitassem.

O que é isso, sargento? - perguntou Hugo boquiaberto.

Não sei, meu rapaz, mas não deve ser nada bom! Nada bom! - E Pereira contemplava tudo à sua frente, quase sem acreditar. - Uma coisa que aprendi durante esses anos é que nunca é bom descobrir algo que outros não sabem, e eu acho que acabamos de fazer isso.

Como estas coisas vieram parar aqui?

Na verdade elas sempre estiveram aqui, e este é o grande problema. Se não sabíamos é por que realmente não deveríamos saber. O fato é que estamos oficialmente encrencados.

Mas nós não...

Não tem 'mas', soldado! Somos praças e não falaremos nada sobre o assunto até que tenhamos instruções superiores, positivo?

Sim, senhor! - concordou Hugo.

Ótimo.

Mas e os invasores? - perguntou o soldado.

Precisamos detê-los antes que saiam. Se não estamos autorizados a saber - concluiu ele engatilhando sua arma eles também não estão.

Hugo olhou para o superior e não reconheceu a expressão de seu rosto. O assunto tomara proporções maiores do que podiam imaginar e isto modificara o comportamento do sargento. Os dois correram para o interior do depósito. Ao fundo, era possível ouvir vozes. O som, con­duzido pelos diversos corredores e também favorecido pelo silêncio do ambiente, indicava exatamente de onde o barulho estava vindo. Não demoraria até que os encontrassem.

 

Gabrielle seguia Henrique, engatinhando pela tubulação de ar criada para permitir a liberação de parte da umidade existente no depósito. Esta era a preocupação dos engenheiros que haviam projetado o lugar: per­mitir que o ar circulasse reduzindo ao mínimo sua umidade. Por estar embaixo de toneladas de terra e grama, a possibilidade de infiltrações era grande e ao longo do tempo isso poderia destruir por completo tudo o que ali se encontrava. Uma forma de conter este fenômeno era necessária e por isso as tubulações existiam. Um termo-higrômetro analógico anali­sava o ambiente e, abrindo automaticamente algumas válvulas, permitia uma troca de ar que ajudava a conter os excessos. Um sistema simples e de eficácia discutível, mas o máximo que se conseguiu para o lugar com a tecnologia de quando fora construído.

Uma crosta negra de pó, além de pequenos resíduos de sujeira, já havia tomado por completo a roupa dos três.

Eca! - exclamou Gabrielle. - Trinta anos de sujeira e ácaros acumu­lados na minha roupa. Vou ter de tomar uns dez banhos para me livrar de tudo isso.

Realmente um fato super-relevante na nossa situação atual - res­pondeu Fernando em tom de ironia. - Vamos dar uma paradinha, acho que podemos conseguir um lenço umedecido para resolver seu problema!

Schiii! - interrompeu Henrique. - Estou ouvindo alguma coisa.

Os segundos de silêncio que se seguiram foram preenchidos pelo som de algum objeto de metal batendo na parede dos dutos.

São armas? - perguntou Fernando.

Possivelmente! - respondeu o soldado. - Temos que ir mais rápido.

Os três seguiram ainda mais rápido. Suas mãos e joelhos doíam sem­pre que entravam em contato com as paredes ásperas e cheias de corrosão dos antigos dutos. O lugar era escuro, e a única iluminação provinha da lanterna que Henrique carregava. Venceram mais alguns metros do que parecia ser uma subida e chegaram a uma pesada tampa de metal.

-Venha, Fernando, rápido! Ajude-me a empurrar essa tampa antes que eles cheguem mais perto - sibilou Henrique assim que tocou o obstáculo.

Fernando passou ao lado de Gabrielle e chegando ao lugar onde estava Henrique posicionou-se para ajudá-lo. Apoiando as mãos sobre a tampa e imprimindo uma grande força, os dois liberaram a abertura.

 

                   Os Sons do Planalto

Cardoso seguia pela avenida que liga o Palácio da Alvorada à Esplanada dos Ministérios a uma velocidade surpreendente. O Sedan preto, do mesmo modelo utilizado pelo Setor em todo o território nacional, por muito pouco não saíra da pista na última das rotatórias pela qual ele passara. Todo seu empenho em tentar chegar ao prédio do Ministério da Defesa tinha como justificativa maior o compromisso assumido com o major de conduzir ileso o casal de civis que os acompanhava naquela missão.

Passou rapidamente por um condomínio de luxo. As luzes e a tranqüi­lidade do lugar mostravam o quanto seu trabalho era importante. Manter tudo em sigilo, guardar segredos e ocultar mistérios era o que, por muitas vezes, mantinha a sociedade em harmonia. Aquele era o pensamento de todos no Setor, e o dele também. Agir de forma diferente, porém, era a nova ordem. Por muito tempo, a maioria das pessoas responsáveis pelo Setor acre­ditava que sua missão era justificada a todo custo e isso agora havia mudado. A experiência vivida pelo major durante a missão de Itaipu mudou o modo como ele e muitos outros viam tudo aquilo. Por isso os civis estavam ali, eles poderiam ser a chave para um faturo diferente, para um Setor livre das ações muitas vezes inescrupulosas do coronel. O fato é que, para derrubar o poder do comandante, o grupo liderado pelo major precisava de provas capazes de criar este novo momento, esta nova ordem.

Cardoso passou a toda velocidade por um cruzamento com a mente repleta desses pensamentos. Sob o paletó, acionando o comunicador, ini­ciou a conversa com Douglas:

Douglas, é Cardoso. Onde eles estão?

Ainda não sei, senhor! - respondeu o rapaz, transmitindo ner­vosismo na voz. - Já faz quatro minutos que não consigo contato, eles devem estar dentro de algum lugar que bloqueia o sinal do comunicador.

Eu estou a caminho. Se conseguirem sair, precisam de alguém para tirá-los de lá rapidamente. Assim que conseguir contatá-los me avise.

Sim, senhor! - respondeu o operador.

O carro de Cardoso fez uma curva fechada à esquerda, derrapando na areia acumulada na pista e por pouco não perdendo o controle. O tenente guiava sem pensar em sua segurança. O tempo era curto e preci­sava alcançá-los antes que fosse tarde demais.

 

Uma brisa fria e revigorante preencheu a entrada do túnel assim que a porta foi aberta. Fernando, Henrique e Gabrielle estavam agora na praça em frente ao Congresso Nacional e sabiam que os militares em seu encalço não lhes permitiriam sequer um segundo de descanso. Os três saíram da tubulação e imediatamente procuraram a melhor opção para a fuga. A distância até a construção mais próxima era de quase trezentos metros e eles perceberam que por aquele caminho seriam interceptados antes de alcançar um local seguro. Mais próximo a eles, porém, estava o acampamento dos manifestantes que Fernando avistara pela manhã. Ao vê-los, o advogado imediatamente decidiu por onde seguir:

Para o acampamento! - gritou.

Sem nem mesmo pensar, Gabrielle a Henrique atenderam a seu chamado e correram na mesma direção. Assim que alcançaram as pri­meiras barracas, os três ouviram um som zunindo, cruzando acima de suas cabeças.

Os homens tinham silenciadores e estavam atirando.

 

Hugo e Pereira deslizavam pela imunda tubulação de ar do depó­sito, cientes de que estavam próximos de capturar os fugitivos. Mesmo com a escuridão do lugar prejudicando o avanço, sabiam, pelo barulho que chegava a seus ouvidos, que o grupo não estava longe. Parando por um instante, Pereira sacou do bolso um pequeno cilindro metálico, com alguns milímetros de rosca em uma das extremidades. Era um silenciador específico para a arma que carregava. O sargento tinha como orientação nunca causar pânico nos ambientes do Ministério e por isso carregava o dispositivo. Se precisasse abordar alguém ou até mesmo atirar, o silencia­dor o ajudaria a não fazer grandes escândalos, a não assustar as pessoas.

Prendeu o dispositivo à arma e continuou sua subida. Hugo o acom­panhava de perto e percebeu quando o superior modificou a arma. Seu fuzil não portava o mesmo dispositivo e por isso precisava evitar disparos quando chegassem ao fim do túnel. De fato, os dois não sabiam aonde aquela tubulação os levaria e precisavam ser cautelosos.

O local era realmente sujo e asqueroso; os dois seguiam lentamente quando perceberam uma leve brisa invadir suas narinas. O grupo havia chegado ao final do túnel e a essa altura já deveriam estar correndo em fuga. Pereira aumentou sua velocidade e em segundos despontava em frente ao Congresso Nacional. Observando rapidamente o cenário a sua volta, o experiente sargento encontrou seus fugitivos. Os três corriam em direção a um enorme acampamento de manifestantes que repousava silencioso no gramado central do eixo monumental de Brasília.

Sem perder tempo, Pereira apontou sua pistola em direção ao grupo e realizou três disparos. Precisava detê-los antes que saíssem de sua vista.

 

Gabrielle abaixou a cabeça em um reflexo rápido. Sabia que aquela ação seria inútil se realmente os disparos fossem em sua direção, mas era o máximo que conseguia fazer naquele momento.

O grupo, agora guiado por Fernando, corria entre barracas, lonas e sacos de dormir espalhados por toda a extensão do acampamento. A manifestação era enorme e o acampamento, um dos maiores que já haviam visto nos últimos anos. A maioria das pessoas dormia, sem saber que, agora, todos próximos a eles corriam risco de vida. Em um zigue-zague frenético, os três fugitivos venciam metros e metros à sua frente.

Mais dois tiros passaram próximos a eles, atingindo o moirão de uma das barracas. Por sorte, as pessoas estavam deitadas e não sofreram qual­quer arranhão. Fernando sentiu um alívio ao perceber que não havia sido atingido, mas rapidamente se deu conta de que não poderiam mais fugir em meio a tantas pessoas. Se não fizessem imediatamente alguma coisa, manifestantes sairiam feridos e quem sabe até mortos daquele lugar.

Novamente Fernando pensava em uma forma de fugir. Não sabia por que, mas descobrira com o tempo que era bom em encontrar alternati­vas em momentos de extrema pressão e risco. Por um instante, mesmo enquanto corria, pensou em possibilidades, reviu por um instante o cená­rio que haviam presenciado pela manhã em busca de alguma solução. Tinha que haver algo. Pulou sobre alguém que dormia fora de uma das barracas. Ia tão rápido em sua corrida que só ouviu um reclamar distante. Seria bom se todos estivessem acordados, pensou. Então, uma idéia surgiu em sua mente: havia algo que realmente poderia ajudá-lo.

Correu os olhos adiante e rapidamente encontrou o que procurava. Mudou bruscamente de direção e, com o corpo levemente curvado, seguiu um pouco mais à direita. Mesmo estando quase cem metros à frente de seus per­seguidores, não podia arriscar estar em uma posição que proporcionasse uma mira certeira. Gabrielle o seguia de perto e Henrique vinha em seguida.

O que vamos fazer? - perguntou a jovem. - Eles estão muito perto!

Acho que sei o que podemos tentar! - gritou Fernando. - Não pare de correr, só mais alguns metros.

Ao ouvir as palavras de Fernando, Henrique se deu conta de que, mesmo que conseguissem se esconder, os três precisariam de ajuda. No mesmo momento, o soldado contatou Douglas pelo rádio:

Douglas! Estamos em fuga pela avenida central em frente ao Congresso, precisamos de transporte. - Sua voz era ofegante e chegava fragmentada à central de comunicação.

Ok - respondeu o controlador. - Cardoso está a poucos minutos daí. Tentem manter a localização.

Vai ser difícil - respondeu Henrique, que mesmo em situação extrema emitiu um pequeno sorriso. Sabia que se Douglas soubesse o que se passava, não faria tal sugestão. - Mas vamos tentar.

Mais dois tiros se perderam no ar sem nada atingir. Fernando sabia que, em meio a tantas barracas, seria difícil que seu perseguidor os acertasse, mas, para que fugissem, precisavam sair à rua e lá eles seriam alvo fácil. Foi com esse pensamento que chegaram ao caminhão de som. O mesmo que haviam ouvido pronunciar palavras de ordem e tocar músicas pela manhã. Fernando bateu com a mão em uma das grandes caixas acústicas que equipavam o carro e, contornando-o, chegou ao simplificado painel de comando.

Henrique e Gabrielle pararam a seu lado e imediatamente percebe­ram sua intenção. Rapidamente, o jovem acionou a chave principal do potente aparelho sonoro e, levando o volume ao máximo, acionou a tecla play do aparelho de CD. Sem parar para ver o resultado, os três continua­ram sua corrida se embrenhando ainda mais acampamento adentro.

Não se passaram mais do que dois segundos até que a noite fosse preenchida por um som quase ensurdecedor:

 

Eiii menino branco, o que é que você faz aqui? Subindo o morro pra tentar se divertir!! Eu já disse que não tem, e você ainda quer mais? Por que você não me deixa em paz?

 

Legião Urbana? - perguntou Gabrielle. - Que é isso, flashback?

Ótimo - disse o advogado sorrindo. - Era só o que me faltava. Crítica musical a essa altura!

No instante em que Fernando pronunciou estas palavras, pessoas começaram a sair de suas barracas. O potente equipamento de som fazia sua parte, preenchendo os ouvidos de todos com o pop rock nacional típico de manifestações daquele tipo. Em pouco tempo, vários deles, de pé e em meio a tudo, fizeram com que o lugar parecesse um grande e confuso formigueiro.

 

... em vez de luz, tem tiroteio no fim do túnel! Uoou... sem­pre mais do mesmo. Não era isso que você queria ouvir...

 

Agora, ao som de música, os três sabiam que poderiam sair dali sem que fossem vistos. Seguiriam pelo gramado por mais alguns metros e depois de alguns segundos sairiam pela direita, em direção à rua. Se o plano improvisado desse certo, eles não seriam pegos pelos vigilantes.

Pereira saiu do túnel sem dificuldades e imediatamente iniciou a perseguição aos fugitivos. Hugo vinha em seu encalço empunhando o fuzil e pronto para utilizá-lo se fosse necessário. Não era mais possível ver os fugitivos, mas os dois sabiam exatamente para onde haviam ido. Era nítido que estavam tratando com pessoas inteligentes. Uma fuga no meio da multidão era a maior possibilidade de obterem sucesso. Frente a tantas pessoas, disparos contra os fugitivos deveriam ser feitos com mais cautela, para evitar possíveis complicações. Se Pereira e Hugo errassem e acabassem ferindo uma pessoa, não saberiam como tudo poderia acabar.

Mas era também evidente a necessidade de perseguir aqueles inva­sores, independente da situação em que se encontravam. Os fugitivos haviam penetrado em uma unidade militar sem autorização e por certo carregavam objetos ou informações importantes. Sendo assim, deveriam ser detidos a qualquer custo.

Só dispare ao meu comando! - gritou Pereira enquanto subia em direção ao acampamento. - Não queremos que essas pessoas acordem e nos deem ainda mais trabalho.

Sim, senhor - respondeu Hugo, assentindo. Não iria de forma alguma desobedecer às ordens; sabia que se fizesse mais uma besteira aquele dia seria conhecido definitivamente como a pior de toda a sua vida.

Entraram acampamento adentro. Centenas de barracas e tendas for­mavam um cenário totalmente desfavorável à perseguição. Até mesmo a pouca luz do ambiente trazia vantagem aos fugitivos. Mais uma vez Pereira correu os olhos à procura do trio; em poucos segundos os viu correndo entre todo aquele monte de lona, ferro e madeira. Firmou então a perna na grama fofa e, fazendo mira, fez novos disparos.

Uma fumaça subiu do lugar onde havia mirado. O máximo que con­seguira atingir fora um mourão que sustentava uma das barracas. Sem desanimar, disparou novamente na direção dos fugitivos. Realmente não teria como explicar um depósito como aquele se não os levasse consigo. Tantos anos protegendo o lugar e nunca havia percebido que ele existia. Esbarrou em uma mesa improvisada, derrubando panelas e alimentos pelo chão, Hugo vinha em seu encalço e aumentou a bagunça, fazendo com que algumas pessoas acordassem assustadas.

Ainda os avistava, agora um pouco mais perto. Preparou-se para mais um tiro, na esperança de que ferisse pelo menos um dos fugitivos. De repente, os três mudaram bruscamente de direção, tirando sua con­centração e fazendo com que os disparos varassem a noite sem atingir qualquer alvo. Não estava certo, mudar de direção daquela forma sina­lizava que estavam tramando alguma coisa. Um homem levantou no momento em que passavam, reclamava de ter sido chutado por alguém. Os dois nem sequer se deram conta do manifestante que, levando um empurrão, caiu sobre uma das barracas.

Sem identificar o que realmente os fugitivos pretendiam, Pereira e Hugo continuavam. Estavam mais perto e em breve eles não consegui­riam mais escapar. Ao fim do acampamento, um campo aberto os espe­rava, e lá nada os protegeria.

De repente, um som preencheu o acampamento.

 

Eiii menino branco, o que é que você faz aqui? Subindo o morro pra tentar se divertir!! Eu já disse que não tem, e você ainda quer mais, por que você não me deixa em paz?

 

Era uma música...

Mas estava alta, muito alta.

Em segundos, pessoas começaram a se levantar e a sair. Pereira ten­tava passar entre elas, esbarrava em alguns e pisava em outros. Um dos homens ao ver as armas gritou:

Estão armados, colocaram policiais armados infiltrados no meio do acampamento!

Ao ouvir a frase outros se manifestaram; não era o que haviam com­binado. Não trariam problemas em sua manifestação, mas exigiam que o espaço lhes fosse cedido. Mais gritos:

Fora! Fora!

Imediatamente os dois pararam. Por um momento Pereira se viu em meio a dezenas de manifestantes. Ao longe, os fugitivos seguiam seu curso. A última vez que conseguiu vê-los seguiam em direção à avenida.

Era oficial: ele os havia perdido. Precisava agora sair daquela enras­cada em que se havia metido.

 

Cardoso dirigia a toda velocidade quando seu rádio recebeu uma comunicação mascada. O som parecia o da voz de Henrique pedindo por ajuda. O militar esperou por alguns segundos, para ver se repetiam a mensagem, mas o que chegou a seus ouvidos foi a resposta de Douglas:

OK - respondeu o controlador. - Cardoso está a poucos minutos daí. Tentem manter a localização.

Estavam vivos, foi sua primeira conclusão. Ao ouvir a resposta, aper­tou ainda mais o pé no acelerador do Sedan.

Douglas, onde eles estão?

Em frente ao Congresso, em meio a um acampamento de mani­festantes. Siga pela avenida, margeando o lugar que eles o encontraram. Devem sair a qualquer momento.

Positivo!

Cruzou um farol vermelho.

O Sedan agora seguia rápido em direção ao eixo monumental. Cardoso passou ao lado do Palácio do Planalto e subiu a avenida paralela ao Congresso. O lugar estava silencioso e não era possível imaginar o que ocorria entre os corredores do gigantesco acampamento. Diminuiu a velocidade e, quase parando, esperou que o grupo aparecesse. Não ouvira o primeiro comunicado e por isso não sabia se realmente os encontraria naquele lugar; se eles estavam realmente ali.

Mas não demorou até que suas dúvidas se dissipassem. O silêncio da noite foi preenchido pelo som ensurdecedor de uma música. Com um reflexo, desviou o olhar para o lugar de onde partia o barulho e então pôde vê-los. Eles corriam em fuga. Um sorriso preencheu-lhe o rosto! Pelo comunicado de Douglas, os três sabiam de sua presença e por certo seguiriam em sua direção.

Pessoas começaram a sair das barracas preenchendo os espaços vazios e também o silêncio do acampamento. Cardoso sorriu, percebendo a jogada inteligente praticada pelos três. Não demorou para que deixassem o acampamento em direção à rua. No mesmo instante Cardoso parou o carro, destravou as portas e embarcou os fugitivos.

Antes que sumissem por entre os prédios da cidade, Fernando pôde ver os soldados em meio à multidão. Por certo, aquela noite para eles não seria das melhores.

 

                   Navegando pelo Atlântico

Hamid contemplava a noite úmida e silenciosa do Atlântico, certo de que faltava pouco para que sua missão fosse considerada um verdadeiro sucesso. Depois de anos planejando um dos maiores atentados da histó­ria, o comandante que estava à frente da tripulação do destróier russo sabia que a obediência às regras e o respeito ao tempo era tudo de que precisava para que seu objetivo fosse integralmente cumprido.

Desde que haviam deixado o litoral da Rússia, muito já havia sido feito. E tudo, praticamente tudo, da forma como haviam previsto. Poucas eram as pessoas de seu grupo que sabiam de todas as etapas que compu­nham a investida e, por isso, a tranqüilidade com que tudo se desenrolava surpreendia até seu idealizador.

O roubo do destróier, a primeira de todas as missões, fora concluída com sucesso e isso já era motivo para comemoração. Depois de terem saído de águas territoriais russas, as maiores preocupações de Hamid se mostraram desnecessárias. A navegação por rotas clandestinas, planejada para despistar os possíveis perseguidores, fora tranqüila; as esperadas represálias nem sequer chegaram a acontecer. Durante dois dias, o grupo navegou por lugares desconhecidos e nada nem ninguém sequer os abor­dou. Quem sabe pela incompetência de seus perseguidores ou talvez pela relação sempre conturbada entre países como Rússia, Coréia e Estados Unidos, que ocultavam a ocorrência de roubos militares, tudo se tornara mais fácil. O fato é que já haviam seguido por uma distância capaz de lhes trazer confiança e agora aquelas nações nada poderiam fazer contra eles. Por uma ou duas vezes ainda foi possível ouvirem, através das trans­missões realizadas por rádio, notícias tímidas sobre um possível roubo à base russa. Os comunicados especulavam que piratas haviam efetuado tal manobra e que o fruto de suas ações seria usado como arma para amea­çar e seqüestrar pequenos barcos ao sul da África. Não, Hamid sabia que não seria dessa forma.

Por fim, entre confusões, orgulhos e desapreços, o grupo seguia levando seu valoroso espólio. Eles agora possuíam uma arma poderosa e sabiam muito bem o que fazer para usá-la.

Nos dias que se seguiram, muito trabalho ainda precisou ser desen­volvido. Antes de passarem pela eclusa do canal do Panamá, o grupo pre­cisava disfarçar o navio, torná-lo nada mais do que uma grande embar­cação cargueira. Para isso, tinham levado a bordo vários materiais de manutenção. Tintas, serras, furadeiras, maçaricos, muito com o que se trabalhar. Nasim havia treinado pessoas capazes de reconstruir o des­tróier caso fosse necessário e isso lhes servira bem. Homens treinados em operações de manutenção e transformação, tudo planejado de forma dedicada e majestosa.

Enfim, após dias e noites trabalhando em uma transformação externa completa, chegaram ao canal do Panamá em um barco civil. Cruzaram as águas doces do rio e chegaram ao Atlântico, como se carregassem mate­riais de exportação de origem chinesa. Algo comum e que gerava pouco questionamento nas raras abordagens que sofriam.

Já viajavam pelo Atlântico havia algum tempo e começavam a entrar em águas sul-americanas. Em poucos dias estariam no lugar combinado, à espera do objeto essencial para sua missão. Dali em diante teriam duas ou três oportunidades de realizar o que haviam planejado, mas apenas uma lhes bastava.

Nasim se aproximou, oferecendo uma bebida ao colega.

Obrigado! - disse Hamid aceitando.

Estamos adiantados um dia no cronograma - comentou Nasim. - Vamos chegar antes do planejado e talvez tenhamos que esperar.

E o alvo?

Já está em deslocamento, e até lá ainda teremos, pelo menos, duas oportunidades. E, se tudo correr bem, precisaremos de apenas uma delas.

O transporte está preparado?

Sim! Já fizemos as modificações necessárias na abertura do con­vés, e quando precisarmos abri-lo, a operação será rápida e tranqüila. Quando tivermos o dispositivo, é só instalá-lo e programar o alvo.

E quanto à tripulação?

Todos já terminaram suas tarefas de preparação e agora aguardam nossa chegada. Sabem o que fazer e como fazer. Estamos tranqüilos tam­bém em relação a isso.

Ótimo! - respondeu Hamid. - Estamos chegando ao fim, meu irmão. Estamos próximos de concluir nosso objetivo e de enfrentar nosso destino!

Assim como os que nos sucederam, seremos lembrados eterna­mente! - concluiu Nasim.

O navio seguia seu curso sem qualquer interferência. Aqueles homens tinham nas mãos uma possibilidade de mudar o destino de muitas pes­soas e até mesmo de todo o mundo. Suas razões eram contestadas e até mesmo consideradas como delírio de loucos, mas sua competência mos­trava-se superior à identificada em muitas pessoas de sanidade inquestio­nável. Por isso, a possibilidade de sucesso em sua jornada era algo claro e possível. Não precisariam contar com sorte ou coincidência, o que os tornava um perigo ainda maior.

 

O capitão Vitor ainda dormia quando seu celular tocou.

Seu treinamento militar, idealizado para que ele se mantivesse atento a todo o momento, já o havia condicionado de forma disciplinada e por isso o capitão não demorou a despertar para atender à ligação. Era início da madrugada e, como de costume, ele estava em casa com a família.

A indicação de um número confidencial a piscar no identificador do aparelho mostrava que algo de importante parecia estar acontecendo. Não era comum que o responsável pela Corregedoria do Exército fosse acionado naquele horário; mas se alguém estava a sua procura, era por­que a situação exigiria medidas superiores.

Vitor! - disse ele ao atender ao telefone.

Boa noite, capitão - respondeu a voz do outro lado da linha. - Desculpe-me por incomodá-lo, senhor, mas acho que o senhor precisa ser informado de uma ocorrência.

De que se trata?

Tivemos uma invasão ao prédio do Ministério nesta noite e, pelo que tudo indica, alguns militares estão envolvidos.

E qual era o objetivo do grupo?

Aí é que está a questão, senhor! Parece que existia um depósito oculto no prédio, um lugar que nem mesmo os responsáveis pela segu­rança conheciam e que foi violado pelas pessoas que fizeram a operação. A princípio eles nem mesmo quiseram falar sobre o caso comigo, mas como eu disse que não o incomodaria se não soubesse exatamente do que se tratava eles resolveram me dizer. Parece algo realmente estranho.

Quem já foi acionado?

Ninguém ainda, senhor. O responsável pela segurança parece ser um militar experiente que, frente ao ocorrido, comunicou o caso apenas a seus superiores. Os oficiais de alta patente acharam por bem avisar à Corregedoria antes de divulgar o ocorrido oficialmente.

Tudo bem - respondeu o capitão diga a eles que eu vou direto para lá. E peça para que não mexam em nada, não deixem que ninguém envolvido saia do prédio e que continuem sem divulgar o ocorrido.

O homem do outro lado da linha ouvia atentamente as orientações de Vitor e transcrevia suas palavras em uma folha de papel. O militar fez uma breve pausa e então continuou:

Mande um helicóptero me esperar logo pela manhã e envie uma equipe-padrão para analisar o local imediatamente. Pelo que você está me informando, estamos próximos de encontrar as evidências que eu havia tanto esperava. Parece que, depois de muito tempo, nossos amigos do Setor cometeram uma falha.

 

                   Café com Mistérios

Fernando despertou com o som estridente de um telefone. Era um aparelho antigo, daqueles ainda utilizados apenas em cabeceiras de quar­tos de hotel. Já passava um pouco das oito horas da manhã e o sol no Planalto Central brilhava forte, fazendo com que seus olhos ardessem.

Alô! - disse ele afônico ao telefone. Sua boca estava seca, dificultando-lhe a fala.

Bom dia, dorminhoco! - respondeu Gabrielle rapidamente. - Eles ligaram aqui, avisando que estão nos esperando no café. Passo aí em três minutos.

Não pode ser em três e meio? - perguntou o jovem com ar de pro­vocação.

Ha! Ha! - ironizou a moça antes de desligar.

Por conta do episódio ocorrido na noite anterior, uma dor latejante ainda lhe castigava as pernas e os joelhos. O evento turbulento havia enfim acabado, mas deixara marcas pelo caminho. O grupo, que fora res­gatado na avenida central dos ministérios, chegara ao hotel usado como base para as operações um pouco depois da meia-noite. Conduzidos por Cardoso até o estacionamento subterrâneo, os três seguiram direto para seus quartos, tentando evitar que fossem filmados por câmeras, ou reco­nhecidos por alguém que soubesse do ocorrido. Não era possível pre­ver de que forma os militares tratariam o caso e por isso precisavam ser cautelosos. Era provável que um comunicado contendo suas fotos ou no mínimo a fisionomia captada por algumas das câmeras do prédio seriam repassado aos policiais em toda a cidade. Isto tornaria sua estada difícil e sua fuga seria ainda mais arriscada.

Antes de decidirem subir para seus quartos, muitas possibilidades foram discutidas, mas apenas três delas pareciam possíveis: retornar a São Paulo do mesmo modo como haviam chegado, embarcando no avião pilotado pela tenente Patrícia; procurar um esconderijo em uma das pequenas cidades próximas; ou permanecer no hotel, até que as coisas de certa forma esfriassem. Após uma breve discussão não sem as eventuais divergências, a decisão fora permanecer e esperar por mais um dia.

Muitos aspectos favoreciam os argumentos de Gabrielle, que defen­dera intensamente a possibilidade. Em primeiro lugar, Cardoso ainda precisava voltar ao Palácio da Alvorada para concluir a missão referente à segurança da secretária norte-americana. O álibi de sua presença na cidade precisava ser sustentado, principalmente, após o acontecido. Em segundo, pela preocupação de haver patrulhas nos aeroportos e nas estra­das. A possibilidade era algo que não podiam desconsiderar e que por certo lhes traria problemas, já que carregavam documentos militares. Em terceiro, precisavam analisar o material recolhido durante a ação. Era pri­mordial saber se precisavam encontrar mais alguma coisa na cidade, ou se o relatório os conduziria a outro destino. Evidentemente, aquilo que o coronel tanto procurava não se tratava de um relatório de missões executadas por seus homens. Ali naquele lugar, o que existia era uma pista de suas intenções. Como dizia o antigo professor de Gabrielle, o caminho para a verdade está em se descobrir as intenções existentes por trás de cada objeto, e por trás de cada fato escondido na história. Descobrir as intenções de cada um que um dia se envolveu com tudo aquilo é de fato o que traz à tona toda a verdade. Para descobrir tais intenções, a jovem precisava de tempo e recurso; não podia sair a esmo. O desespero não os levaria a lugar nenhum.

Enquanto se vestia para o café daquela manhã, Fernando lembrava claramente de toda aquela discussão. A força e a segurança com que Gabrielle convencera a todos faziam com que ele se lembrasse das aven­turas pelas quais haviam passado. E do relacionamento que haviam cons­truído. Um vaivém interminável cercado de incertezas e intolerâncias marcara grande parte da vida conjunta dos dois. Maturidade era o que faltava àquele casal. Duas pessoas que se completavam em tudo aquilo que se propunham a fazer, mas cuja cobrança por atenção e por exclusi­vidade tornava a convivência difícil e sacrificante.

Um som de batidas na porta fez com que se apressasse. Amarrou o tênis lembrando-se da corrida em meio ao grupo de manifestantes. Não sabia por que, mas sua mente lhe dizia que era ali que deveria estar. Em ações como aquela e ao lado da mulher que tanto admirava. Sorriu e se levantou, caminhando até a porta. Com o perigo encoberto por uma névoa de adrenalina, a sensação de estar de volta a uma grande aventura era realmente inebriante.

Até que enfim! - disse Gabrielle, assim que ele abriu a porta. - Achei que ia me fazer esperar a manhã toda.

Bela e elegante como sempre, a jovem o esperava impaciente. Seu cabelo molhado e o olhar cativante derrubavam a serenidade de qual­quer mortal.

Também acho uma alegria vê-la tão bela, segura e sem ferimentos nessa extraordinária manhã - disse Fernando.

Obrigada - respondeu a jovem, beijando-lhe o rosto. - Este é pelo elogio e também por nos tirar do sufoco ontem!

Fernando sorriu; sabia que apesar de todo o estresse ocasionado pela fuga e pelas recentes descobertas, a idéia do som lhe renderia reconheci­mentos. A voz da jovem agora era mais suave. Com um sorriso ela tomou seu braço e ambos desceram para o desjejum.

O restaurante do hotel ficava em um mezanino de formato triangular com vista para a portaria. Assim que chegou, Fernando avistou os agentes do Setor em uma mesa estrategicamente posicionada próximo a um dos cantos. Mesmo com o lugar parcialmente vazio, eles haviam decidido se sentar um pouco distante da mesa principal; afinal, não seria bom que se expusessem desnecessariamente.

Bom dia - disse Fernando vindo se sentar ao lado do grupo. - Combinamos alguma coisa que eu não saiba? - Sua voz era baixa e pouco entusiasmada.

Mão - respondeu Cardoso. - Acho que nenhum de nós conseguiu dormir direito esta noite. A operação não saiu exatamente como imagi­návamos e por isso estamos decidindo o que fazer.

Gabrielle havia contornado a mesa, e já se sentava em outro lugar.

Alguma novidade sobre o depósito? - continuou Fernando. - Notícias na mídia? Algum boletim sobre o assunto?

Não, há cerca de meia hora checamos com Douglas e nada foi comunicado à imprensa ou a qualquer departamento de polícia da região. Parece que eles estão conduzindo o assunto internamente.

O que vamos fazer, então? - perguntou Fernando.

Precisamos monitorar durante o dia para saber como eles irão agir - respondeu Cardoso. - Henrique fará isto, enquanto Patrícia procura uma forma de transporte segura para nos tirar da cidade. Ela vai checar o avião ou quem sabe outra coisa. Tem que ser algo seguro e que siga por um caminho limpo. Quanto a mim, ficarei com vocês, tentando avaliar o que conseguimos descobrir em meio a toda essa bagunça.

Ontem vocês falaram em avaliar os objetos que havíamos encon­trado - continuou Patrícia. - Não sei de quanto tempo precisa, mas acho que, se tirarmos o dia de hoje para isso, poderemos partir amanhã pela manhã para o nosso próximo destino. Seja ele qual for.

Acho que um dia é mais do que suficiente! - respondeu Gabrielle.

Ótimo! - concluiu Cardoso. - Vou subir para o meu quarto e fazer algumas ligações para falar com a equipe de segurança da comitiva norte-americana. Nós nos encontraremos na sala de conferência dentro de uma hora e meia. Já pedi para prepararem o lugar com alguns recursos de comunicação e pesquisa; acho que teremos lá tudo o que vamos pre­cisar. Não podemos perder tempo; assim que o Coronel descobrir que o depósito foi invadido, vai colocar pessoas para ocultar o que estamos procurando. O quanto antes soubermos o que ele nos está escondendo, maior a chance de evitarmos possíveis conseqüências. Não sei do que se trata o assunto, mas saber que existe tecnologia nuclear envolvida nessa trama me deixa ainda mais preocupado. Ficaremos no hotel enquanto Henrique e Patrícia preparam nossa partida; sairemos amanhã cedo!

Todos concordaram e em poucos minutos apenas Fernando e Gabrielle ainda permaneciam na mesa do restaurante. Os dois terminaram seu desjejum entre conversas e sorrisos e então voltaram a seus quartos.

A sala de conferências do hotel era equipada com vários recursos, todos muito úteis ao trabalho que executariam. Uma mesa retangular de madeira, rodeada por várias cadeiras, tinha sobre o tampo um compu­tador ligado à internet, um projetor de multimídia e um telefone equi­pado com viva voz. Quando Gabrielle e Fernando cruzaram a porta de entrada, perceberam que Cardoso já havia chegado e naquele momento terminava uma ligação. Gabrielle depositou sobre a mesa o relatório que haviam trazido na noite anterior e ocupou uma das cadeiras. Fernando também se acomodou e os dois passaram a ouvir o que seria o final da conversa que logo perceberam ser direcionada ao major.

Claro, senhor! - disse o tenente ao vê-los. - Eles acabaram de che­gar e acho importante que saibam disso. Só um minuto que vou colocar a ligação no viva voz para que todos possamos ouvi-lo.

Ao toque de um botão, Cardoso colocou a ligação em conferência.

Bom dia! - falou o major.

Bom dia, senhor! - responderam simultaneamente Fernando e Gabrielle.

Em primeiro lugar, gostaria de me desculpar com vocês pelo ocor­rido ontem. Tínhamos planejado uma ação silenciosa e não esperávamos expor vocês da forma como aconteceu. Espero que possam nos desculpar.

Não há o que desculpar, major! - respondeu Gabrielle olhando para Fernando. A jovem sorria timidamente. - O motivo de estarmos participando deste trabalho vale muito mais do que os perigos que esta­mos correndo. Além disso, já fazia algum tempo que não participávamos de perseguições, estávamos com saudades.

Gabrielle sabia claramente dos perigos que estavam correndo e da pos­sibilidade de destruírem suas vidas se algo desse errado. Mas a jovem não se intimidava e julgava que a falta de humor tornaria tudo ainda mais difícil.

Mesmo assim - continuou o major - o risco que correram foi além do necessário. Nosso planejamento deveria ter previsto a trava de segurança instalada na porta. Uma falha que ainda vai nos causar muitos problemas. - Fez uma pausa e continuou: - Já tomamos algumas providências para que vocês não sejam identificados, mas um dos depósitos foi exposto, e isto era algo que nunca antes havia acontecido. Por sorte, me parece que eles vão tratar o assunto internamente, o que nos dará um pouco mais de tempo.

Certo! - sibilou Fernando.

Em breve me juntarei ao grupo, mas antes vocês precisam saber de uma coisa.

Pode falar, senhor - respondeu Gabrielle.

O Setor entrou em uma espiral de declínio e o que era uma possi­bilidade, a cada dia, vem se tornando uma certeza. Nesta manhã recebi a informação de que o coronel estará se deslocando para uma reunião fora do Setor logo após o almoço. Não sei com quem ele irá se reunindo e nem mesmo onde isso acontecerá, mas acho que tem a ver com o que estamos procurando. Por isso ficarei ainda hoje na sede do Setor e tentarei desco­brir algo. Assim que souberem para onde as novas pistas os levarão, me avisem para que eu possa acompanhá-los.

Quase que involuntariamente todos assentiram com a cabeça, como se fosse possível ao major vê-los naquele momento.

Espero que possam descobrir algo, antes que seja tarde. Não con­fio nas intenções do coronel. Ele sempre foi um homem rígido e muitas vezes intransigente, mas eu nunca o havia percebido dessa forma. Não gosto da maneira como as coisas estão se desenrolando e não quero que todos paguem a conta pela insanidade que ele tem demonstrado. Por isso, peço que tomem cuidado!

Com esta frase e uma breve despedida o major terminou a ligação.

 

                   Descobertas

O Super Puma pousou no estacionamento da sede do Ministério da Defesa trazendo o capitão Vitor no meio da manhã. Em versão militar, com capacidade para transportar dezesseis soldados; e, em sua versão executiva, com muito conforto, a aeronave que era responsável pela loco­moção de ministros, senadores, e até mesmo do próprio presidente, sur­preendeu as várias pessoas que aguardavam para entrar no edifício, que permanecia fechado desde a madrugada.

Assim que desceu do aparelho, o capitão foi cercado por alguns solda­dos. Eles já o aguardavam e o conduziram até o hall principal do prédio. Do lado de fora, funcionários, curiosos e algumas equipes de reportagem, que aguardavam por respostas havia mais de uma hora só viram o vulto do capitão cruzando à sua frente, caminhando entre os vários homens que o protegiam. Aquela seria para eles uma manhã de muitas perguntas e poucas respostas. Ao cruzar a porta de entrada, Vitor percebeu que suas ordens haviam sido cumpridas à risca. O local estava praticamente vazio, apenas um único homem permanecia no salão: um rapaz branco, de boa estatura e extremamente magro, que vestia um terno riscado e um sapato lustroso. Ao ver Vitor, o jovem caminhou em sua direção.

Bom dia, senhor! - disse ele cumprimentando o superior. Seu nome era Jefferson e ele era o assessor pessoal do militar. Era o mesmo homem com quem tratara do assunto desde seu início.

Bom dia - respondeu Vitor secamente, sem estender a mão para o cumprimento.

O homem então seguiu em direção ao elevador principal, indicando o caminho:

Por aqui, senhor.

Vitor o seguiu e, caminhando lado a lado, perguntou:

O que descobriram?

A equipe chegou há cerca de duas horas e está investigando as evi­dências. Temos um carro com digitais, algumas pegadas de sapatos novos e um carrinho de restaurante abandonado. As imagens das câmeras que poderiam tê-los filmado foram apagadas e a única pessoa que os viu fez uma descrição confusa dos invasores. Parece que tinha uma mulher entre eles que tirou sua atenção - concluiu com um meio sorriso.

Que ótimo! - respondeu o capitão visivelmente decepcionado. Os dois já haviam entrado no elevador e agora desciam até o subsolo. O capitão continuou: - De quem são as digitais?

Ainda não sabemos. Enviamos para a central e eles estão procu­rando no banco de dados para identificar os nomes. Devem responder nos próximos minutos.

Quero saber a resposta assim que lhe enviarem!

Sim, senhor.

Quantas testemunhas nós temos?

Apenas dois homens. Eles perseguiram os fugitivos, mas foram despistados.

Os dois saíram do elevador e agora seguiam pela escada em direção à porta de entrada do depósito.

Despistados? - perguntou o capitão, intrigado.

Isto. Parece que foram cercados por manifestantes no momento da perseguição e acabaram perdendo os fugitivos de vista. Passaram por maus bocados e deram a sorte de os militantes acampados na praça deci­diram não os terem agredido. Eles poderiam ter sido linchados.

Ao entrar no corredor, Vitor percebeu algumas evidências. O carrinho de restaurante parado em frente à porta estava isolado por uma fita ama­rela. Ele passou pelo objeto e entrou na sala, cruzou os corredores aperta­dos do pequeno almoxarifado e, cruzando a porta, desceu até o depósito. A visão do lugar fez com que seus olhos brilhassem. Em relatórios, conversas e até mesmo depoimentos; Vitor tomara conhecimento sobre a existência de lugares como aquele, mas nunca em sua vida imaginou que pudessem realmente existir, ou que sequer viesse a encontrá-los. Uma emoção dife­rente das que tivera no passado o consumia de uma maneira que jamais imaginava. Era quase impossível acreditar que, em mais de quarenta anos, ninguém jamais desconfiara de alguma coisa.

O trator e a carreta que haviam servido de aviso para os fugitivos continuavam no mesmo lugar em que os haviam deixado; após cruzar o salão de entrada, era possível ver investigadores da equipe trabalhando e os vigilantes Hugo e Pereira. Os dois estavam sentados em cadeiras trazi­das dos escritórios e apresentavam alguns ferimentos pelo corpo, já tra­tados com bandagens. Vitor estava parado ao lado deles, contemplando o lugar quando Jefferson o interrompeu:

Estes são os homens que os perseguiram, senhor - disse ele apon­tando para os dois. - Estão de plantão já há mais de vinte e quatro horas.

Quase sem dar importância ao que o jovem havia dito o capitão se pronunciou:

Encontramos, Jefferson! Nunca imaginei que veria este lugar, mas enfim nós o encontramos.

Jefferson não sabia exatamente do que se tratava, mas aguardou até que ele continuasse.

Registre a identidade de todas as pessoas que tiveram acesso a este lugar e explique a elas que estamos diante de um assunto confidencial, capaz de colocar em risco a segurança do país. Diga que qualquer infor­mação sobre o assunto pode ser considerada crime contra a nação, e deixe claro que, neste caso, a punição aplicada é reclusão permanente.

Sim, senhor! - respondeu o rapaz.

O que se aplica também a você! - completou o oficial.

Claro, senhor! - respondeu ele novamente.

Hugo, Pereira e os outros militares próximos a eles também ouvi­ram a ordem. Todos já imaginavam que uma orientação como aquela seria repassada a eles e não lhes parecia surpresa o que tivessem que fazer. Mesmo cansado e com alguns hematomas causados pelo confronto que tivera na noite anterior, Pereira sabia que não sairia dali até que conver­sassem, e por isso se pronunciou:

Bom dia, capitão - disse ele se levantando. - Sou o sargento Pereira, senhor. Eu conduzi a perseguição contra os invasores ontem à noite.

Vitor virou na direção do sargento e o cumprimentou:

Bom dia, Sargento! - disse. - Espero que, em meio a tudo o que aconteceu, você tenha algo de interessante a me dizer.

Nos minutos que se seguiram, Hugo e Pereira reproduziram em pala­vras tudo o que havia se passado nas últimas horas. À medida que os dois avançavam em sua narrativa, tornava-se claro para Vitor que toda a ope­ração fora conduzida com o auxílio de pessoas internas. Pessoas conhecedoras do funcionamento do sistema de segurança das unidades e com acesso ao sistema integrado das forças armadas. Restava a ele descobrir quem estava por trás de tudo aquilo.

Terminado o relato dos acontecimentos, Vitor pediu aos dois que aguardassem por instruções e pessoalmente foi verificar o depósito.

Caminhando entre os corredores do lugar, o militar se surpreendia a cada passo. Dentre tudo o que haviam encontrado, o depósito era a melhor das pistas. Durante todo o tempo em que assumira a Corregedoria, a procura por evidências dos crimes cometidos pelo coronel Castro fora nada mais do que uma busca inútil. Nunca antes havia encontrado algo que pudesse usar contra ele, algo que pudesse se transformar em uma prova de que, durante todos os anos de ditadura, aquele homem usara recursos e materiais da nação para benefício próprio; e por interesses que iam além da missão que estava proposto a desempenhar. Por certo, boa parte do material ali armazenado nada lhe traria além de conhecimento sobre a história do país, mas era possível que, entre tantos objetos, provas de crimes pudessem ser encontradas. O único receio era que a ação da noite anterior tivesse retirado do depósito provas contra ele. Se este fosse o principal objetivo da missão realizada pelos invasores, e estes tivessem tido sucesso em sua empreitada, pouco ou nada lhe restaria. Trinta e seis horas era o tempo que lhe restava para encontrá-los. Esta era a média de tempo para que o rastro de um fugitivo fosse apagado e para que se tor­nasse ainda mais difícil encontrá-lo.

Senhor! - disse Jefferson. O jovem havia se afastado dele por um momento e voltava agora com alguma informação importante.

O que foi? - respondeu o militar.

As digitais, senhor! Não existe registro das digitais no banco de dados de nenhum dos estados - disse ele ofegante. - Se não temos ima­gens e as digitais agora não podem ser comparadas, temo em concluir que nossos suspeitos são como fantasmas. É como se eles não existissem.

Parado em frente a um dos espaços de armazenagem, Vitor apenas ouviu a informação. A sua frente havia várias armas caseiras, empilha­das de forma organizada sobre um grande engradado de ferro. Material revolucionário que por certo fora apreendido durante o período da dita­dura, pensou o capitão. Não sabia por que os comandantes anteriores não haviam apenas destruído tudo aquilo. Manter depósitos como aquele era algo dispendioso e não trazia qualquer benefício aparente. Nada além de objetos que lhes trariam no máximo um elo entre pessoas em busca de uma mesma coisa. Ferir a ditadura.

Enquanto Vitor observava tudo à sua volta, seu assistente aguardava por uma resposta. O homem, concentrado em seus pensamentos, nem mesmo dirigia o olhar ao jovem.

Ligação... - sibilou Vitor, deixando fugir-lhe o pensamento. - Com o que podemos fazer uma ligação?

De repente, uma idéia invadiu-lhe o pensamento e o capitão se lem­brou da investida à fábrica, ocorrida dias antes em São Paulo. Uma reunião em lugares expostos e agora um depósito revelado. O movimento de pes­soas ligadas ao coronel nas últimas semanas estava mostrando-as menos cautelosas. Algo realmente importante estava acontecendo e Vitor se via envolvido em uma descoberta difícil de interpretar. Havia suspeitos que não existiam e uma lista com nomes. Quem sabe um dos proprietários daqueles carros pudesse de alguma forma estar envolvido também com este novo incidente. Os nomes podiam sim ter um elo com a ação que via à sua frente. Para isso os depósitos existiam, para romper esses elos, evitar que segredos e ações fossem antecipados ou até mesmo revelados.

Existe uma lista - disse ele ao assistente - em São Paulo. Uma lista de nomes ligados às placas de alguns carros que fugiam de uma ação que fizemos cerca de quatro dias atrás. Peça que lhe mandem essa lista e cruze os nomes com os registros das últimas vinte e quatro horas em Brasília. Movimentações bancárias, compras com cartões de crédito, registros em hotéis, passagens de aviões, ônibus, tudo o que puder. Se alguém daquela lista estiver na cidade, pode ser que encontremos nosso suspeito. É ape­nas uma possibilidade, mas é o melhor que temos no momento.

Ouvindo as palavras do superior, Jefferson se virou e saiu em direção à saída.

E... Jefferson - disse o Capitão, interrompendo imediatamente sua caminhada.

Sim, senhor!

Quando terminarmos aqui - o militar fez uma pausa e continuou - sele o lugar, libere o prédio e garanta que ninguém entre, até que saiba­mos o que está acontecendo e como vamos proceder.

Entendido, senhor.

Preciso falar com o ministro sobre isto, mas sem informações sufi­cientes só viríamos a lhe trazer preocupações. Precisamos saber o que está acontecendo, e rápido!

 

                   Um Novo Caminho

Quatro horas após Fernando, Gabrielle e Cardoso entrarem na sala de conferência, as mais de setecentas folhas do relatório de missão, res­gatado pelo grupo, ainda permaneciam espalhadas sobre a mesa. Nomes, datas, códigos e informações específicas sobre tecnologia nuclear, desen­volvida em laboratório secreto, haviam sido minuciosamente examina­dos por eles e agora faziam parte de conhecimento que carregariam con­sigo dali para frente.

Envolvida por tudo o que acabavam de descobrir e com a expectativa de encontrar um novo caminho em sua investigação, Gabrielle escrevia no quadro possíveis fatos que ligavam temas e acontecimentos que com­punham a história. No computador, ao fundo da sala, Cardoso manipu­lava informações da Internet com a intenção de enriquecer ainda mais toda a pesquisa. O militar se surpreendia cada vez mais com a habilidade investigativa do casal e se empolgava sempre que novas conclusões eram intuídas. Em voz alta, a jovem conduzia o raciocínio do grupo em busca de um desfecho para tudo o que haviam estudado durante aquele dia.

Recapitulando - continuou Gabrielle -, em 1978, o coronel orde­nou a invasão a uma base que, pelo que entendemos, está oculta sob a fachada de um barracão de madeira nos arredores da cidade de Abadia de Goiás.

Isso! - completou Fernando sentado diante da mesa. - Uma base que abrigava alguns dos cientistas mais brilhantes do país e que era res­ponsável pelo desenvolvimento da tecnologia de refino do urânio. Um projeto que, em meados da década de setenta, foi considerado um dos mais importantes investimentos do país.

Exatamente - confirmou Gabrielle. - Uma época em que a corrida pelo conhecimento e o domínio desse tipo de tecnologia, inicialmente considerada como sendo limpa e de baixo custo, era algo essencial e que movia várias nações na direção do mesmo objetivo.

Cardoso acompanhava o raciocínio dos dois, recostado desajeitada­mente numa das cadeiras. Gabrielle traçara uma linha do tempo, dese­nhada e preenchida por eles com várias informações sobre o assunto.

O lugar, pelo que pudemos identificar - continuou Fernando era um dos mais modernos já construídos para desenvolver esse tipo de conhecimento, e que funcionou por quase cinco anos.

Nesse período - interrompeu a jovem -, os cientistas passaram por várias etapas de reclusão, sendo visitados apenas por comissões de análise e alguns poucos colegas de profissão. Colegas que também estudavam o assunto, mas de forma pública; sempre monitorados por comitivas de países mais desenvolvidos. Eram dois grupos semelhantes em seus traba­lhos, porém distintos em seus objetivos.

Eles coexistiam com a intenção de restringir o status das pesqui­sas ao âmbito nacional, evitando especulações, proibições ou problemas diplomáticos - concluiu Cardoso, também participando da discussão. - Enquanto os homens do laboratório em Goiânia evoluíam e exploravam os estudos sem restrições, os outros agiam de forma aberta e ao mesmo tempo controlada.

Correto novamente! - concordou Gabrielle. - Um trabalho para pessoas únicas que, acredito, esperavam deixar seus nomes na história como vanguardistas de sua geração. Pessoas reconhecidas por seu inte­lecto e por sua contribuição à sociedade científica. - Gabrielle virou-se e, pegando um dos papéis da mesa, quase como se lamentasse, continuou: - Mas, pelo que foi descrito no relatório, acabaram por ser considerados criminosos e até mesmo terroristas.

O memorando que encontramos comunica a intenção desses homens em vender a tecnologia de refino, combinada a um conheci­mento de seu uso para a geração de energia. Ela evidencia o negócio através de uma investigação feita por agentes internacionais e relata que países do hemisfério sul seriam os possíveis compradores. Algo que em minha opinião soa um tanto improvável - disse Fernando. - Um relato que se parece mais com uma desculpa para acusá-los por crimes do que com um ato verdadeiro de traição.

É do que suspeito também - continuou a jovem. - Sabemos que em junho de 1978 a invasão ao depósito pôs fim à suposta traição dos cientistas, mas ao mesmo tempo provocou certo incômodo às entidades responsáveis pelo controle dos órgãos oficiais. Um reporte desastroso ao então presidente do Cenen, sobre alguns dos conhecimentos desenvol­vidos na unidade e recolhidos pelos militares, trouxe decepção à comu­nidade científica. O refino do urânio em sua tecnologia de ultracentrifugação, o manuseio e a armazenagem do material radioativo, além de experiências para seu uso na geração de energia, foram sim realizados pelo grupo alocado no laboratório; porém, era algo semelhante ao que já se sabia publicamente. Uma informação desproporcional ao investi­mento aplicado. Pouco para o que haviam se comprometido a fazer e para o tempo que lhes foi despendido.

Aí é que surge o grande mistério! - exclamou Cardoso.

Exatamente! - concordou de novo Gabrielle. - Um laboratório que atuou por cinco anos, com os maiores recursos e as melhores pessoas, podia sim ir além de tudo o que estava relatado. E suspeitamos de que foi o que fizeram. Segundo trechos esparsos nestes documentos, os cientistas utilizaram o urânio refinado de uma maneira ainda mais segura encon­trando um caminho para atenuar inclusive sua forma radioativa após o uso. Essa tecnologia, talvez ainda mais importante do que a que estavam propostos a criar, não foi encontrada pelos militares do Setor. Parece que os reportes oficiais não estavam completos.

Pode ser, mas eu apostaria em uma forma encontrada pelos cien­tistas para ocultar essas informações, algo a que somente eles tivessem acesso. Uma senha de computador ou quem sabe um cofre oculto. Creio que estas informações, estes resultados não reportados ainda podem estar no laboratório, isolados e selados pelos militares do setor. Algo que permanece escondido até hoje - completou Fernando o que nos leva a suspeitar de que seja isto o que coronel procura para usar como moeda de troca. Um objeto que mudaria definitivamente o rumo da história e consequentemente reverteria o declínio do Setor.

No passado, os militares responsáveis pela investida não consegui­ram ir além do que descreveram no relatório; mas, hoje, com as tecnolo­gias atuais, seria possível resgatar muito do que foi perdido. Eles conse­guiriam facilmente ir mais longe.

E eu aposto que o desaparecimento do cientista responsável pelo experimento, o doutor Montenegro, que ocorreu na noite da investida, tem a ver com o que ficou escondido. Ele, diferentemente dos outros, era o único que tinha acesso a todo o trabalho e por isso pouco restou para que pudessem investigar. Os interrogatórios das pessoas presas se mos­traram inúteis e acho que apenas este homem tinha consigo a possível chave para todo o mistério.

Gabrielle olhou para Fernando e sorriu. As conclusões e o trabalho que realizavam juntos parecia sempre aproximá-los.

Por fim, a missão foi encerrada como uma das piores realizadas pelo Setor - acrescentou Cardoso.

Algo que deve ter ficado engasgado na garganta do coronel durante todos esses anos - concordou Fernando.

O fato é que, de alguma forma, o coronel acredita ser possível res­gatar esta tecnologia e quem sabe vendê-la a alguém por um bom preço.

Mas por que ele precisaria do relatório, ou de algo que estivesse no depósito?

Não sei - respondeu Gabrielle. - Na verdade não acredito que pre­cise de algo que estivesse lá. Acho que ele se referia ao local e ao depósito como um código. Assim, se alguém no Setor estivesse ouvindo suas con­versas ou comentários, não saberia exatamente do que se tratava. Pode ser que ele tenha deixado passar algo: informações, objetos. Talvez até mesmo algo que ainda não tenhamos descoberto, mas não duvido que ele ainda tenha a cópia do relatório do qual Henrique nos falou no depósito - concluiu ela, olhando para Cardoso.

Mas a segunda cópia é apenas para conhecimento e deve ser incine­rada depois de sua leitura - disse o militar.

Acho que não neste caso, meu caro - concordou Fernando com a jovem.

E quanto aos roubos? - perguntou Cardoso.

Os alvos possivelmente se tratavam de artigos de valor que pudes­sem ser vendidos no mercado negro - respondeu Fernando. - Peças cata­logadas e fáceis de encontrar. Nada relacionado ao laboratório.

Enquanto os dois falavam, Gabrielle pensava em como relacionar tudo o que haviam visto a uma pista que pudesse ter escapado de sua investigação. Após alguns instantes, algo lhe pareceu pertinente:

Tem um trecho que fala de cada um dos cientistas - disse ela. - O que sabemos do Montenegro?

Ele era uma pessoa sozinha - falou Cardoso, resgatando entre os papéis da mesa o que parecia ser um breve resumo da personalidade do cientista. - Um gênio que deixou a família para se dedicar à ciência. A única referência de alguém do seu convívio é a de um homem, de nome Augusto Campos. Alguém que constava em seu registro como possível responsável no caso de um acidente no trabalho.

Talvez este tal Augusto conheça alguma informação da qual o coro­nel não se deu conta - deduziu Gabrielle. - É normal para alguém como um cientista ter amigos a quem confie seus segredos. Eles na verdade pre­cisam de pessoas assim para que possam dividir a responsabilidade por grandes feitos ou até mesmo das grandes decepções.

Gabrielle, refletindo, caminhou em direção a uma das paredes da sala e após uma breve pausa continuou:

Aposto que conseguimos encontrar a fórmula para refinar o urânio antes do coronel. Basta descobrirmos mais sobre Montenegro, seu amigo e sua história.

É uma possibilidade - continuou Fernando. - Que tal falarmos com ele?

Qual a idade desse homem, Cardoso? - perguntou Gabrielle.

Pelos meus cálculos, uns sessenta e cinco.

Então há grandes chances de ainda estar vivo - falou Gabrielle. - Alguma coisa me diz que, se conseguirmos encontrá-lo, saberemos onde Montenegro escondeu o resultado de suas pesquisas. E se fizermos isso antes do coronel, podemos evitar que ele prossiga com a tal transação.

Acho que pode dar certo! - concordou Fernando.

Segundo o relatório, ele vive em Goiânia - completou Cardoso. - O mesmo lugar onde se encontra o depósito.

Sendo assim - disse Gabrielle -, sugiro que preparemos a bagagem. Vamos conhecer Goiânia.

 

                   Corporação Leons

Os raios de sol refletidos nas janelas espelhadas dos luxuosos prédios comerciais da região sul da cidade de São Paulo anunciavam que o fim de tarde se aproximava. Ao volante de um dos carros que seguiam pela pista expressa da marginal Pinheiros, o sargento Douglas guiava atento, acompanhando de perto um dos veículos oficiais de propriedade do Setor. A seu lado, o major Alencar não escondia o semblante rígido que já fazia parte de sua rotina havia um bom tempo. Mesmo sem saber para onde rumavam, e nem mesmo qual era o objetivo desenhado pelo coro­nel durante os últimos meses, Alencar permanecia preocupado. A notícia passada pelo grupo enviado a Brasília, ao contrário de suas expectati­vas, trouxera-lhe ainda mais dúvidas quanto à intenção daquele homem. Estava claro a todos que a verdade não seria amena nem tampouco tranquilizadora. Mas a informação de que dispositivos nucleares poderiam fazer parte de toda a trama articulada pelo comandante tornava tudo ainda mais complicado. Precisavam saber rapidamente em que solo esta­vam pisando e por que o coronel considerava o assunto tão sigiloso.

Passavam naquele momento próximo ao Parque Burle Marx. O tra­jeto desenhado pelo Sedan preto indicava que seu destino seria o centro empresarial. Douglas estava atento a tudo e mantendo-se sempre pró­ximo ao carro que seguiam, não permitindo que o motorista o despis­tasse. Fora assim desde que haviam saído da sede do Setor, quase uma hora atrás. O que se sabia até aquele momento era que o coronel seguia para uma reunião externa, possivelmente com os homens com quem negociava artigos desaparecidos do Setor. Era uma informação impor­tante e o único motivo pelo qual o major havia decidido segui-los. O carro deixou a marginal e através de uma via de acesso exclusiva chegou ao que seria seu destino final.

O centro empresarial de São Paulo foi inaugurado em 1977 por iniciativa de um grupo internacional que havia se instalado no Brasil pelo menos sete anos antes. O complexo de escritórios abriga também shopping centers e restaurantes. No total, sete prédios compõem o lugar que é conhecido como referência quando o assunto é do ambiente corpo­rativo. Segurança e tecnologia permitem às empresas ali instaladas reali­zarem suas operações de forma prática e profissional. Contratos, acordos, informações guardadas ou partilhadas dentro daquelas paredes seriam dificilmente conhecidas por pessoas não autorizadas.

O Sedan preto passou pela cancela de segurança e seguiu direto para um dos estacionamentos existentes no subsolo. Passando também pela cancela e sem perder tempo, Douglas seguiu o veículo.

-Ali - apontou o major indicando um lugar vago. - Pare ali.

Douglas obedeceu; o sargento que já acompanhara o superior em outras oportunidades conhecia sua personalidade e sabia como reagir a suas ordens. O Sedan parou algumas vagas à frente e em poucos segundos o coronel saiu em direção a um dos elevadores.

Ele está saindo - disse o major. - Vou segui-lo para sabermos qual é o seu destino final. Me espere aqui.

Sim, senhor - assentiu Douglas.

Castro trazia consigo uma pasta e caminhava a passos firmes em direção a um dos prédios. Sob a proteção dos carros, o major o seguiu sem ser notado.

Quando o coronel chegou ao quinto andar de um dos blocos do complexo o lugar estava praticamente vazio. Apenas uma jovem secretá­ria, identificada como Dora, estava no balcão de informações da empresa. Acima de sua cabeça, fixado numa enorme parede decorada por placas de madeira envernizada, estava um símbolo formado por triângulos sobre­postos e um nome: Leons Importadora.

Bom dia, senhor! - disse a moça. - Eles o esperam na sala de reuniões.

Bom dia! Obrigado! - respondeu o coronel.

O lugar ostentava luxo em todas as instalações. Uma mesa retangular, toda construída em mármore negro espanhol, com quase oito metros de comprimento, guarnecida por cadeiras de madeira e couro e com papéis particularmente organizados em cada um dos nove lugares marcados, além de belos quadros e esculturas, formavam um cenário perfeito digno de lugares especiais. Uma tela à frente, um pequeno púlpito e um sistema moderno de projeção completavam a decoração.

Quatro dos nove lugares estavam ocupados quando o coronel entrou. Homens bem-vestidos com idades entre cinqüenta e sessenta anos já o esperavam. Seus semblantes eram sérios e eles nem sequer se mexeram quando ele entrou.

Desculpem-me pelo atraso - disse o coronel, tomando um dos lugares restantes à mesa. - Com o trânsito que temos nesta cidade é impossível chegar a algum lugar no horário combinado.

Nós sabemos como é isso, coronel - respondeu um dos homens. Era talvez o mais velho dentre eles, tinha os cabelos totalmente brancos, um rosto tranqüilo e ocupava a cabeceira da mesa. - Atrasos acontecem, mas ambos sabemos o quanto isto pode incomodar.

Eu compreendo - desculpou-se o coronel levemente constrangido. - Mas não se preocupem, pois seremos rápidos em nossa conversa. Eu trouxe algo novo para que vocês possam negociar sem nenhum risco, obras que estão desaparecidas já há bastante tempo e que não trarão qualquer atenção da mídia ao grupo. Vocês podem ficar tranquil...

Acredito - interrompeu o homem - que você sabe que não lhe cha­mamos aqui hoje para falar de novos negócios, não é mesmo, coronel? Nós dois sabemos que existe algo que você prometeu a um de nossos clientes, mas que ainda não está em seu poder.

Sim. Eu sei - disse o coronel. - Mas eu já disse a vocês que trarei em tempo e...

Mais uma vez o homem o interrompeu. Os outros presentes à mesa olhavam atentos a reação do homem que sentava ao lado deles; sabiam que não era de confiança e estavam cautelosos diante de qualquer possí­vel reação de sua parte.

Há mais de vinte anos - continuou o homem em tom calmo e com um semblante sereno - nós comercializamos vários itens a seu pedido. Uma parceria que tem rendido a nós e a você muito lucro e muita visibi­lidade. Nossos interesses têm sido atendidos e nossas relações, crescido ao longo de todo este tempo.

Neste momento, com o homem a pronunciar frases mais longas, era possível perceber um sotaque europeu em sua entonação:

Por esse motivo, e somente por esse motivo - continuou ele -, faz mais de seis meses que decidimos aceitar uma negociação que você nos propôs. Algo arriscado até mesmo para um grupo profissional e cuida­doso como o nosso.

O coronel tentou interromper as palavras do homem, mas mediante um firme levantar de mão de seu interlocutor foi impedido de continuar.

Você terá sua oportunidade - continuou o homem. - Este negó­cio, que nos obrigou a estabelecer relações com compradores perigosos pelo mundo, a meu ver, teve um sucesso além do que pudemos imaginar. Conseguimos um montante de dinheiro surpreendente na transação e, ainda assim, nossos compradores aceitaram retirar o produto em terri­tório brasileiro. Eles nos pagaram e não nos deixaram sequer a obrigação arriscada de transportar o produto para outro continente. Porém, nosso prazo expira em dois dias e nós ainda não temos a mercadoria que nego­ciamos, e que você nos prometeu entregar há pelo menos dois meses. O que temos são desculpas e principalmente confusões que não queremos e não iremos administrar.

Eu entendo - interrompeu o coronel. - Mas conseguimos reverter a situação. Colocamos um plano em prática há dois dias e tenho certeza de que encontraremos a mercadoria desta vez. As pessoas envolvidas nesta nova operação sabem como decifrar os segredos que nos impediram de encontrar o que procurávamos.

Em dois dias? - perguntou o homem.

Sim, em dois dias.

Estas pessoas não são como os compradores que conhecemos, coronel. São idealistas religiosos que não medem as conseqüências de seus atos; um passo em falso e eles explodem você no meio da rua.

Estou lhes dizendo, em dois dias teremos a mercadoria.

Para sua e para nossa segurança, espero que você esteja certo - con­cluiu o homem se levantando.

Eu trouxe outras... - mais uma vez o coronel foi interrompido.

Deixe aí - disse o homem se virando. Ele já havia chegado à porta e estava prestes a sair. - Pedirei para que um dos meus avaliadores dê uma olhada. Não podemos perder o foco, precisamos da mercadoria em dois dias. Até lá, nossas reuniões e nossos negócios serão interrompidos.

O homem deu dois passos e novamente parou:

Tem mais uma coisa, coronel. Não sei se percebeu, mas seu carro foi seguido até aqui. Espero que seus problemas internos não nos com­prometam também.

O homem saiu, seguido pelos outros que estavam presentes na sala.

Assim que teve certeza de que estava sozinho, o coronel pegou o celu­lar e discou para um dos números de sua agenda:

Pode falar, coronel! - respondeu uma voz ao telefone.

Nosso tempo está se esgotando. Assim que tiver uma oportunidade, faça o que combinamos. Está na hora de o major se tornar útil para o que planejamos.

Sim, senhor! - respondeu o homem.

 

O major Alencar havia seguido o coronel até um dos prédios de escritórios do complexo e agora aguardava que ele retornasse ao carro. No tempo em que ficara na espreita, sentado em um dos confortáveis sofás do hall, o experiente militar acompanhara todo o deslocamento do comandante através das câmeras de segurança instaladas sobre um dos balcões de atendimento. A distância, foi possível ver quando Castro des­ceu no quinto andar do edifício e entrou numa importadora. Leons era o nome gravado na parede do hall. Mesmo sem saber qual era ao certo a relação do coronel com a empresa, era possível imaginar qual seria a par­ticipação de pessoas como aquelas em negócios do Setor. Por certo não haveria autorizações ou regras de condutas capazes de justificar o que trouxera o militar até ali. Se estivesse correto, aquela seria a prova de que desde muito tempo Castro cometia crimes contra a nação.

O tempo havia passado desde então e fazia pelo menos trinta minu­tos que o major não via qualquer imagem do militar nos monitores. Se não fosse por sua posição privilegiada em frente ao único elevador de acesso ao andar, Alencar começaria a suspeitar que o houvesse perdido. Sentado no sofá, o militar fingia ler o jornal do dia que fora deixado por alguém que estivera ali momentos antes dele. Como previra, após alguns minutos, o coronel passou, caminhando rapidamente em direção ao esta­cionamento. Qualquer que fosse o motivo de ele ter estado naquele lugar, o encontro estava terminado. Alencar se levantou e seguiu também até o estacionamento; se precisasse de mais informações, voltaria durante a noite com alguns homens e, de posse de um mandado, investigaria os possíveis atravessadores.

O major chegou ao carro no momento em que o Sedan levando Castro saía do estacionamento. Abriu a porta e sentou-se. Virando de lado, procurou pelo cinto de segurança.

Precisamos descobrir qual a procedência dessa Leons Importações...

Neste momento, antes que pudesse compreender o que havia acon­tecido, suas palavras foram interrompidas por uma dor aguda em sua perna. Imediatamente, seu corpo foi tomado por uma sensação de dormência que há muito não sentia. Nos poucos segundos de consciência que lhe restaram, ainda foi possível se lembrar o que aquilo significava. Sedaram-no, e ele passaria pelo menos doze horas desacordado. Ao fundo, ainda foi possível ouvir uma voz conhecida vinda do banco a seu lado.

Me desculpe, major, mas precisamos do senhor.

 

                   A Brisa do Paranoá

A noite já caía em Brasília quando Fernando, Grabrielle e Cardoso saíram da sala de conferências onde estavam reunidos. De fato, o dia havia sido produtivo, e eles agora já sabiam qual destino deveriam seguir. Segundo o documento que haviam estudado, a investida ocorrida na década de setenta ao laboratório secreto do governo teria sido um sucesso, se não fosse pelo fato de o elemento principal - o fruto de toda a pesquisa - não ter sido recuperado pelos homens que ali estiveram.

Estava evidente que muitos artigos haviam sido apreendidos, parte deles inclusive havia sido identificada por Fernando e Gabrielle durante sua visita ao depósito sob o eixo monumental; mas um objeto - conhe­cido como a razão da pesquisa - havia de fato ficado para trás. Outras investigações posteriores foram conduzidas pelos militares, em busca do referido objeto, mas apenas duas conclusões foram possíveis: ou de fato o fruto da pesquisa fora tirado do laboratório antes da chegada dos homens enviados pelo coronel, ou fora escondido de forma majestosa pelo cientista responsável do grupo, o professor Montenegro.

Se a primeira das opções fosse verdadeira, nada havia a se fazer, mas se o resultado do experimento ainda estivesse escondido, Fernando e Gabrielle certamente o encontrariam. Gabrielle acreditava nesta possibi­lidade: para ela o objeto ainda estava no laboratório, à espera de alguém que pudesse desvendar seu mistério. Se ao menos o professor Montenegro não houvesse desaparecido, teriam como chegar às pistas com mais facili­dade. Mas o homem responsável pelo laboratório não deixara sequer um reles sinal do que poderia ter-lhe acontecido. Na ficha individual do pro­fessor, apenas o endereço de um amigo era o que se conseguia encontrar. O geólogo Augusto Campos. A única pessoa com quem o professor se comunicava durante sua estada na cidade de Goiânia, o homem que fora seu amigo nos anos em que ficara recluso em busca da técnica por trás da utilização da energia nuclear.

Isso era o que agora o grupo sabia. Mas o que de fato os preocupava era não saber se o coronel estava à frente de toda aquela manobra. Se de fato o líder do Setor soubesse mais sobre o paradeiro das informações desenvolvidas pelo professor, poderia chegar antes deles àquele objetivo. Precisavam ser ágeis e seguir as pistas que ainda lhes restavam.

Agora sabemos do que se trata, mas estamos longe de conseguir chegar ao fim de tudo isso - falou Gabrielle enquanto entravam no elevador.

Você tem razão - concordou Fernando se formos até o labora­tório sem novas pistas, tenho certeza de que não encontraremos nada além do que está descrito no relatório. Precisamos de alguma informação que não está aqui, algo que tenha passado despercebido pelos homens do Setor quando estiveram lá.

Mas o quê? - perguntou Cardoso. - Eles reviraram o lugar todo e não encontraram qualquer evidência.

Não deve estar lá! - concluiu Gabrielle. - O professor deve ter dei­xado alguma pista com alguém, algo que pudesse levar as pessoas certas até suas descobertas. Pessoas como ele, que desenvolvem conhecimento para a humanidade - sempre encontram um jeito de proteger suas descobertas e deixá-las nas mãos de alguém que saberá como usá-las corretamente.

Só nos resta o tal de Augusto - continuou Fernando. - Eles eram amigos o suficiente para guardarem segredos deste tipo entre si.

Me parece meio óbvio - continuou Gabrielle. - Se o amigo mais próximo do professor tivesse alguma coisa escondida, com certeza o coronel já o teria encontrado e descoberto do que se trata.

Não sei - completou Fernando. - Ao que me parece, não temos muita escolha. Ou o laboratório ou o geólogo.

O elevador chegara ao seu andar. Por segurança, todos do grupo esta­vam no terceiro. Fernando desceu do elevador e os três pararam em um pequeno hall. Uma luz automática foi acionada, iluminando o lugar que não tinha janelas ou qualquer outra fonte de luz natural.

Vamos tentar primeiro o geólogo e depois vamos ao laboratório - respondeu Gabrielle. - Uma conversa de colega para colega pode trazer novas informações.

Então está decidido - disse Cardoso, antecipando-se às novas dis­cussões. -Vamos nos encontrar no restaurante dentro de duas horas para novas instruções. Já falei com Patrícia e Henrique e eles estarão por lá para nos contar o que descobriram. Será nossa última reunião antes de partir para o próximo destino.

Os dois assentiram e após um cumprimento de despedida seguiram para seus aposentos. Estavam cansados e precisavam de um banho antes do jantar.

 

Duas horas depois, o grupo já estava reunido no restaurante. Dessa vez haviam escolhido uma mesa isolada, em uma sacada com vista para o belo jardim do hotel. Era difícil para eles acreditar que pessoas em uma missão como a que estavam envolvidos pudessem se hospedar em um lugar tão refinado.

Cardoso lhes havia feito um pedido. Era importante que fizessem o possível para se manterem ocultos entre os hospedes, de forma que não fossem reconhecidos durante sua estada. Todos faziam o possível para respeitar o que o líder havia pedido, mas era difícil para Gabrielle passar despercebida.

A jovem historiadora estava linda naquela noite. Com uma saia que lhe caía abaixo dos joelhos e uma blusa de alças, era impossível que não fosse notada. Mesmo na presença de todos, Fernando a acompanhava com um olhar especial. Estar novamente ao lado da jovem, com a adre­nalina que os havia arrebatado, estava se tornando um vício frenético e incontrolável. Uma vida de aventura e romance ao seu lado era algo que lhe passava pela cabeça a todo o momento. Mesmo com suas conquistas e seu mundo de reconhecimento naquilo que sabia fazer de melhor, faltava-lhe a presença de seu único e grande amor. Um lamento do qual podia se livrar a qualquer momento; afinal, ela estava praticamente ao seu lado. Algumas poucas palavras e saberia o quanto essa possibilidade estava próxima ou distante. Porém, um receio de que a jovem não retribuísse seus sentimentos tornava mais confortável a permanência da dúvida.

Já haviam feito seus pedidos e agora, acompanhando os movimentos do ambiente, discutiam as alternativas:

E então, Henrique - perguntou Cardoso -, como estão os jornais, a mídia e os comunicados internos? O que sabem sobre o acontecido na sede do Ministério?

Passei o dia todo lendo jornais, acessando notícias de Internet, che­cando os boletins internos do Exército e assistindo a noticiários - res­pondeu o sargento, em voz baixa e de forma discreta. - Foram poucas as notícias divulgadas. O que predominou nos noticiários foi o fato de o prédio ter ficado fechado durante toda a manhã. A justificativa anun­ciada por todos foi um vazamento de gás, Um vazamento que por nota oficial demorou quase cinco horas para ser contido.

Pelo visto nossas medidas de contenção acabaram por minimi­zar as investigações - interveio Patrícia. - Parece que eles não quiseram divulgar o fato.

Mais ou menos - continuou o sargento. - Pela manhã, passei um tempo em frente ao prédio do Ministério e o que vi não me agradou muito. Por volta das dez horas da manhã, um helicóptero pousou no estacionamento do prédio e ninguém mais além do capitão Vitor, desceu da cabine em direção ao subsolo. Acho que ele foi chamado assim que soube que a invasão havia sido realizada por militares. Por certo ele vai ligar toda a operação ao Setor.

Vitor! - sibilou Cardoso, surpreso. - Nunca aconteceu de as infor­mações chegarem a ele tão rápido. Isso reduz ainda mais o nosso tempo, precisamos ser rápidos e resolver este assunto antes que ele descubra o que está acontecendo.

Quem é Vitor? - perguntou Fernando.

O oficial maior da Corregedoria do Exército, o homem de con­fiança do ministro. Alguém que tenta revelar os segredos do Setor há muito tempo. Um homem astuto e difícil de despistar.

No que ele poderia nos atrapalhar? - indagou Gabrielle. - Se não foram divulgadas notícias, nomes e nem mesmo comunicados internos sobre o assunto, dificilmente poderíamos ser localizados.

Não é bem assim. Este homem é diferente, ele tem meios de nos encontrar e por isso precisamos ser rápidos e seguir ao lugar indicado pelo relatório. Deixamos muitos vestígios no depósito e isto pode facilmente trazê-lo até nós - respondeu Cardoso. Seu rosto estava tenso, diferente­mente do que se via momentos antes. - E quanto à saída? - continuou ele, agora dirigindo sua pergunta a Patrícia. - Parece que não teremos muitos problemas com nossa aparência, já que não foram divulgados retratos falados ou imagens de câmeras internas. Podemos usar o avião?

Acredito que não será possível - respondeu Patrícia. - A secretária norte-americana parte amanhã e a segurança do aeroporto está refor­çada. Como nosso destino não é tão afastado, sugiro partirmos de carro logo cedo. Acho que não teremos problemas em ir por esse caminho, mas gostaria de usar o trânsito matinal como cobertura. Pode ser útil no caso de uma abordagem inesperada. Podemos sair no mesmo horário do voo da secretária, as atenções estarão todas voltadas para a comitiva, o que também nos trará maior segurança.

Ótimo! - respondeu Cardoso assentindo. - Vamos ficar por mais esta noite e amanhã cedo saímos.

Todos concordaram.

Por mais uma hora, o grupo comeu e conversou sobre o dia. Fernando e Gabrielle relataram muitas das informações que haviam descoberto e agora todos estavam cientes dos próximos passos. O grupo sabia de seu papel e da responsabilidade que traziam consigo. Precisavam descobrir as intenções do coronel para que pudessem impedir a venda de documentos importantes para o país. As investigações haviam avançado a contento até aquele momento e por certo teriam sucesso em sua missão.

 

O céu de outono claro e limpo arrebanhou dois admiradores. Logo após o fim do jantar, Fernando decidiu convidar Gabrielle para um pas­seio por entre os jardins do hotel.

As intenções por trás de seu convite eram desconhecidas até mesmo por seu consciente. Na verdade, se tornara impossível para ele estar perto de Gabrielle sem desejar ter aquela mulher entre seus braços. Durante os últimos anos, a distância mantida entre os dois refreava um desejo impetuoso de aproximação. Em resumo, o fato de não vê-la, de não tê-la por perto, era como um antídoto para o amor que o jovem sentia. Uma droga capaz de controlar seus impulsos somente até o momento em que seus olhos a encontravam.

Os dois agora caminhavam por um piso de concreto, entre os jardins e as piscinas do luxuoso hotel. O amarelo desbotado das poucas luzes que iluminavam o lugar sombreava seus rostos enquanto uma brisa vinda do lago Paranoá refrescava seus corações:

Que lindo lugar! - exclamou Gabrielle, rompendo o silêncio que durara até aquele momento. - Nem parece que tantas decisões difíceis são tomadas em uma cidade como esta.

Política! - respondeu Fernando. - Um mal necessário.

Nunca imaginei que a vida nos colocaria lado a lado de maneira tão surpreendente - continuou a jovem. - Na noite em que decidimos nos separar pensei que seria para sempre, e agora percebo que alguma coisa teima em nos reunir.

Eu nunca quis me separar de você - respondeu Fernando em tom de justificativa. - Tudo bem, de certa forma eu não me dediquei com­pletamente ao nosso relacionamento, mas você sabe que minha carreira sempre foi importante para mim. Mesmo hoje, com o pensamento dife­rente, ainda acredito que precisamos dividir as coisas.

Eu entendo! - respondeu Gabrielle.

Os dois interromperam a caminhada e agora paravam às margens do lago. Do lugar onde conversavam era possível ver a ponte JK, destacada pelo projeto de luzes que a adornava. A jovem respirou fundo, e então continuou:

Depois que consegui o cargo de restauradora no museu, percebi o quanto o trabalho pode significar para alguém. Detesto admitir, mas pode ser que eu estivesse errada - disse ela sorrindo. Sabia que o fato de admitir a possibilidade provocaria seu antigo noivo.

Pode ser - falou ele, também sorrindo. - Parece engraçado, mas somente esta possibilidade já me tranqüiliza bastante.

Fernando recuou lentamente e parou a uma pequena distância das costas de Gabrielle. Enquanto olhavam o lago, que já refletia naquele momento a luz brilhante da lua, ele deslizou a mão por suas costas, por seus ombros e a abraçou. Com os rostos encostados, os dois contempla­vam agora a bela paisagem.

Sinto saudade do seu abraço - disse Fernando.

Em silêncio, a jovem se aconchegou, sentindo a força e o desejo do homem que a abraçava. Para ela, a paixão que nutria por Fernando era uma chama impossível de ser apagada. Sempre que estava a seu lado, era como se o calor incandescente lhe tirasse por completo a razão.

Eu também sinto falta de seu abraço! - respondeu a jovem. - Muito mais do que você imagina.

Em um movimento lento Gabrielle girou o corpo fazendo com que seus olhos encontrassem os olhos de Fernando. Sutilmente tocou seus lábios em um beijo de amor sincero.

Folhas caíam das árvores, embaladas pela brisa vinda do lago ilumi­nado. Sem resistir, ambos haviam se rendido a uma paixão maior. A noite traria para eles momentos que haviam muito tempo não viviam. Depois de anos separados, estariam novamente juntos em corpo e coração.

 

                     Velhos Amigos

O som de uma música digitalizada despertou o capitão Vitor de seu sono. Era a segunda vez na semana que o militar recebia ligações no celu­lar antes mesmo de ter feito seu desjejum. Ele levantou da cama e com apenas um esticar de braço alcançou o aparelho.

Vitor - disse pouco entusiasmado.

Bom dia, capitão! Aqui é o Jéferson. Desculpe-me por acordá-lo tão cedo. Fizemos o que nos pediu e parece que encontramos a pessoa.

De quem se trata?

O nome dele é Fernando, senhor, é um advogado. Na verdade um promotor de justiça, residente em São Paulo. Uma pessoa de certo renome.

Vitor caminhou até a janela e enquanto ouvia as informações ao tele­fone abriu as cortinas. O dia estava nublado, mas a imagem da Capital Federal aparecia nítida à sua frente. Protegendo os olhos da claridade, ele continuou:

E o que mais sabemos dele?

Não tem qualquer antecedente nem nada de que possamos suspei­tar. Na verdade ele é uma espécie de exemplo de bom comportamento.

Sabemos onde ele está?

Sim, senhor. Cruzamos os dados dos donos das cem placas que nos passou, com dados de compras, utilizações de documentos, passagens de viagens e registros de hotéis em Brasília nas últimas vinte e quatro horas e descobrimos onde ele está hospedado. Para confirmar, checamos o registro de digitais no sistema da polícia e os dados dele. Assim como aconteceu com as digitais que encontramos no depósito, os registros não existem, foram apagados. Tenho quase certeza de que é ele o homem. O espaço aéreo naquela região está fechado durante toda a manhã, por conta de uma visita da secretária norte-americana, e por isso não podere­mos utilizar o helicóptero. Já mandei um carro até aí para pegá-lo. Neste momento já deve ter chegado à portaria.

Bom trabalho, Jefferson. Vamos conversar com este tal de Fernando - respondeu o capitão desligando o telefone.

Enfim, informações concretas chegavam ao conhecimento de Vitor. O capitão sabia que aquele dia estaria por vir. Tinha certeza de que os responsáveis pelo Setor deixariam uma brecha em suas ações e por isso acompanhara de perto todos os seus passos. Sem perder tempo, o mili­tar se preparou para sair. O terno escuro, roupa padrão de suas saídas a campo, era complementado pelo coldre equipado com uma pistola modelo Imbel. Em poucos minutos Vitor tomou uma ducha, vestiu-se e desceu até o piso térreo.

Seu carro chegou à frente do hotel onde Fernando e Gabrielle esta­vam hospedados vinte minutos após a ligação feita por Jefferson. Na entrada o jovem assessor aguardava ao lado de dois jipes com vários sol­dados armados. A ordem determinada por ele era para que entrassem em busca do homem, que agora se tornara seu principal suspeito pela inva­são no depósito, apenas no momento em que o capitão estivesse presente. O Sedan preto cruzou a portaria e imediatamente os dois jipes seguiram em seu encalço, até que todos chegassem ao hall de entrada.

Vitor desceu do carro a passos rápidos e imediatamente foi acompa­nhado por quatro soldados equipados com fuzis. Jefferson saiu do jipe e, apressando o passo, chegou a seu lado. Ele trazia uma foto com o rosto da pessoa que procuravam. Juntos, todos caminhavam agora em direção à recepção.

Ele ainda está aqui? - perguntou Vitor enquanto caminhava.

Não sabemos, senhor. Não fizemos contato com o hotel formal­mente; pensamos que seria arriscado, pois poderia alertá-los de nossa presença.

Em que quarto?

Trinta e oito.

Vamos entrar.

Enquanto um dos soldados seguia para a recepção, com o objetivo de comunicar a ação de segurança, Vitor, Jefferson e mais três deles seguiam em direção aos quartos.

Cruzaram o hall no sentido da ala norte.

Um casal que seguia em direção ao restaurante se desviou do grupo encostando-se a uma das paredes. Militares armados era algo que de fato não lhes trazia sensação de segurança.

Seguiram pelo corredor até as escadas, vencendo os degraus rapida­mente até chegar ao andar que indicava o quarto 38. O corredor acarpetado e os lustres com lâmpadas de luz de iodo conferiam ao lugar um ar de seriedade e conforto.

Em resposta ao gesto das mãos de Jefferson um dos três soldados retirou da bolsa o que parecia uma fita de espessura maior do que cinco milímetros. O dispositivo de alta sensibilidade era um dos mais precisos equipamentos de invasão utilizados pelo Exército. O soldado retirou uma proteção de um dos lados e colou a fita no batente da porta. A porta tinha tranca interna e, mesmo que conseguissem a chave, todos sabiam que seria impossível abri-la.

O militar prendeu então a ponta de um fio a um pequeno termi­nal existente na fita e, ao toque de um botão, provocou uma explosão. Imediatamente, a porta de madeira se desprendeu do batente, deixando livre o acesso do grupo ao quarto.

O soldado armado foi o primeiro a entrar. Rapidamente afastou a porta e correu em direção ao quarto. Vitor e Jefferson aguardavam o momento seguro de avançar.

Depois de alguns segundos o soldado retornou:

Não tem ninguém, senhor - disse ele ao capitão.

Como, não tem ninguém? - respondeu Vitor instintivamente.

O quarto está vazio, senhor. Quem passou a noite aqui já se foi.

Vitor entrou no quarto. Seu semblante enrijecido demonstrava a insatisfação de mais uma vez não ter encontrado as pessoas que se pro­punha a perseguir. O tempo era essencial em ações como aquela e atra­sos só faziam com que precisassem trabalhar ainda mais. Se tivesse sorte, pistas ainda poderiam denunciar o planejamento dos criminosos e isso o ajudaria a ganhar algumas horas. Com sua experiência em perseguições era normal encontrar vestígios capazes de recolocá-los rapidamente na trilha dos fugitivos e nada lhe custava tentar.

Lentamente, ele caminhou pelo quarto tentando identificar algo que pudesse lhe trazer alguns esclarecimentos. A cama desarrumada, dois tra­vesseiros e alguns cabelos compridos espalhados sobre os lençóis indica­vam que Fernando não estivera sozinho. Duas pessoas haviam passado a noite ali e dormido na mesma cama. O militar correu os olhos pelo ambiente e percebeu que poucas pistas haviam sido deixadas. Sabonetes do hotel, pequenos frascos de xampu e papéis. Vitor agachou próximo a um dos lixeiros e recolheu um papel deixado para trás; percebeu então como os encontraria. Um pequeno cartão amassado indicava que os hospedes do quarto 38 haviam usado um dos computadores em rede do hotel. Vitor pegou o papel e o entregou a Jefferson.

Descubra qual dos computadores eles usaram, e depois me traga um especialista em sistemas. O tempo é curto, precisamos encontrá-los. E rápido!

Sim, senhor - respondeu Jefferson saindo do quarto.

 

A quase duzentos quilômetros do hotel, o carro conduzido pela tenente Patrícia seguia seu rumo em direção à cidade de Goiânia. Era um C4 Picasso com um ano de uso conseguido em uma das locadoras de veículos da cidade. Um carro espaçoso preparado para carregar até sete pessoas e que fora alugado a partir de uma das identificações falsas de Cardoso. Um recurso seguro, que sempre era utilizado em ações sigilosas.

Por sugestão do tenente, haviam deixado o hotel antes do horário de abertura do café. Preocupado com a notícia de que o capitão Vitor rondava pela cidade, o militar decidira por antecipar sua saída para um horário próximo do amanhecer. Cardoso sabia da astúcia de Vitor e por isso não queria correr qualquer risco. O homem que os perseguia era uma preocupação constante para os integrantes do Setor não só por sua posição como diretor de um órgão capaz de investigá-los, mas tam­bém pelo fato de ser conhecido como alguém persistente e muito aplicado. Fernando e Gabrielle se surpreenderam quando o telefone tocou e Cardoso lhes anunciou a mudança de planos. Eles ainda dormiam lado a lado e não tiveram sequer tempo de reunir todos os seus pertences. A ação que parecia inusitada aos civis não passara de uma rotina para os companheiros militares. Eles se encontraram no hall do hotel em poucos minutos e sem grandes problemas saíram em direção à estrada.

Horas depois os cinco seguiam seu caminho à procura de Augusto. Há muito tempo empregado como curador em Goiânia, o geólogo tinha dois endereços registrados e conhecidos: um era sua residência no lado norte da cidade e o outro, um museu denominado Zoroastro Antigua. Assim que saíram do hotel, Gabrielle se encarregou de fazer uma ligação, tentando encontrá-lo. A tentativa até então se mostrara vã, já que ninguém atendia em nenhum dos dois endereços indicados. O fato fizera com que o grupo optasse por um dos destinos, e agora rumavam para o museu Zoroastro, localizado no centro cívico de Goiânia.

O carro seguia pela BR-060 enquanto Fernando tentava unir os peda­ços daquele quebra-cabeça. Um laboratório destinado a pesquisas nucle­ares, revelado na cidade onde ocorrera o maior acidente do gênero no Brasil, não lhe parecia nenhuma surpresa. Se os vestígios deixados pelo acidente do Césio 137 eram ou não resultados do experimento, era algo que dificilmente o grupo descobriria, mas saber que seria possível encon­trar explicações para o fato era uma nova possibilidade interessante em todo o contexto:

Alguma coisa não está certa - disse ele a Gabrielle, assim que con­cluiu seu raciocínio.

Os dois estavam sentados no banco do carro que fica atrás do moto­rista. A frente, Patrícia e Cardoso acompanhavam os quilômetros da estrada em silêncio; atrás, na última fileira de bancos, Henrique descan­sava com os olhos fechados.

O que é que não está certo? - perguntou Gabrielle.

Se a pesquisa desenvolvida pelo professor Montenegro tinha a fina­lidade de encontrar o melhor modelo para refinamento do urânio, por que o Setor invadiu o laboratório? Era uma pesquisa autorizada e reco­nhecida pelo governo.

Não sei - respondeu Gabrielle -, talvez os cientistas estivessem escondendo alguma coisa, informações sigilosas e importantes para a produção em grande escala. Normalmente a ciência não se identifica com a política, as velocidades e os interesses são quase concorrentes.

Pode ser - continuou Fernando. - Só que aí tem algo me inco­modando, não sei exatamente o que, mas acho que vamos descobrir em breve.

Nesse momento, o som de um telefone foi ouvido no veículo. Imediatamente Cardoso levou a mão a um dos bolsos, pegou o celular e o trouxe até o rosto.

Cardoso - disse ele. - Ok! Pode ser... Não. Vamos direto para o encontro de uma pessoa envolvida no caso. Ela fica em um museu no centro de Goiânia. Assim que tivermos novas informações, voltamos a entrar em contato... Certo.

Desligando o telefone, Cardoso dirigiu a palavra ao grupo:

Era Douglas - continuou. - Ele informou que a campana de ontem não teve bons resultados e que o major irá nos encontrar em nosso pró­ximo destino. Eu disse para onde estávamos indo e ele confirmou que em breve os dois estarão conosco.

Sem saber a verdade sobre as condições do major, todos assentiram. Em duas horas estariam em Goiânia, em busca de novas revelações.

 

O barulho ensurdecedor era sucedido pela falta de ar e um frio impossível de ser suportado. Era como despertar de um sono ruim, em direção a algo pior: a cena de um terrível pesadelo. A pele despida do major Alencar sentia um frio congelante, enquanto sua mente tentava entender como de fato ele chegara até aquele lugar.

A sala apertada e escura na qual ele agora se encontrava não tinha janelas e apenas uma saída era visível. Sentado em uma cadeira presa ao chão, totalmente sem roupas e com as mãos e pernas amarradas, o ex-militar se dava conta de que, além de prisioneiro, era alguém realmente odiado por seus inimigos. Tentava se lembrar do que acontecera desde o início, mas a pessoa à sua frente não lhe proporcionava descanso sufi­ciente para que pudesse pensar. Assim que sua mente conseguia nova­mente se encontrar, um novo jato de água frio atingia seu corpo.

Primeiro a falta de ar, depois a tontura, e então a dor e o frio. Assim que atingia sua cabeça, o jato violento penetrava em seus ouvidos e boca, causando falta de ar e tonturas; então, enquanto percorria seu corpo, vio­lentava sua pele, causando dor e frio, muito frio.

Mais uma vez! - dizia o homem parado próximo à entrada. Seu corpo estava recostado na parede, enquanto suas mãos seguravam um cigarro que queimava continuamente.

O que vocês querem?

Sempre que tentava se mover ou até mesmo se manifestar, o major era atingido por um novo jato, mais violento e ainda mais congelante. Sua tortura já se estendia por quase uma hora, quando o homem a interrompeu:

Chega - disse ele ao executor.

O silêncio reinou por alguns instantes. Aos poucos, o militar foi sen­tindo seu corpo. Seus dentes se debatiam e sua respiração era acelerada como a de um corredor ao final de uma estafante maratona.

Era impossível para Alencar prever quanto tempo havia dormido, ou até mesmo por quanto tempo havia sido torturado. Aos poucos sua mente conseguia relembrar o que de fato acontecera e quem havia traído a ele e a seus companheiros. Correu os olhos pela sala, tentando encon­trar Douglas, mas a iluminação fraca e um zumbido contínuo em seus ouvidos não permitia que ele reconhecesse qualquer pessoa. Cansado, baixou a cabeça e contemplou seu corpo, repleto de manchas vermelhas e antigas cicatrizes.

Seja bem-vindo, major! - disse uma voz conhecida. Mesmo naquele estado, era impossível não se lembrar.

O homem se aproximou e caminhando ao redor de seu prisioneiro continuou:

Sempre gostei desse tipo de abordagem, era a minha preferida. Não deixa marcas e mesmo assim consegue ferir consideravelmente rebeldes como você. Espero que esteja gostando, é como voltar aos velhos tempos, meu amigo.

Sem qualquer manifestação o major ouvia.

Foi muito inocente de sua parte achar que podia iniciar uma rebe­lião dentro do meu Setor sem que eu o descobrisse. Não acredito que pensou que eu fosse tão descuidado.

Não sei do que está falando - disse desta vez o major. Sua voz saía rouca e trêmula.

Eu sei de tudo o que acontece dentro do Setor, Alencar. Quem entra e quem sai. Mentiras sobre resultados de missões como aquela em Foz do Iguaçu. E principalmente, sei em quem devo ou não confiar... Diferentemente de você.

O major se lembrava da pergunta feita pelo coronel dias após o tér­mino da missão em Foz do Iguaçu. Na ocasião, Alencar havia omitido o fato de Fernando e Gabrielle terem sobrevivido e, pelo que percebia agora, alguém lhe contara a verdade sobre o assunto.

Mas não foi para dizer o que penso sobre você que eu o trouxe até aqui. O que me interessa neste momento - continuou o coronel enquanto caminhava - é a busca por um segredo; algo que há muito tempo eu venho tentando encontrar. Um objeto importante e que tem poder sufi­ciente para mudar a história deste país.

O coronel continuava a caminhar. Além do som de sua voz, o outro som que se ouvia era o da água a escorrer pelo piso em direção a um ralo no canto da sala. O major Alencar acompanhava as palavras de seu supe­rior e ele continuou:

Depois de anos tentando descobrir este objeto, percebi que a estra­tégia por nós adotada não nos levaria além de onde nos encontramos hoje. Percebi também que, mesmo sendo um bom comandante, minha franqueza em resolver enigmas me impedia de enxergar mais longe. "O que fazer então?", perguntei. Algumas noites pensando, trouxeram-me uma idéia inesperada. Lembrei-me da maravilhosa descoberta que você e "seus" civis perpetraram na Ilha Fiscal e então decidi o que fazer: usar especialistas nesta busca foi a resposta. Pessoas capazes de ver além do que olhos comuns conseguem enxergar.

Eles jamais vão ajudá-lo! - vociferou o major, deduzindo as inten­ções do comandante.

Ouvindo as palavras de Alencar, o coronel interrompeu seus passos. Levou então seu cigarro até a boca e, após uma longa tragada, continuou:

Foi o mesmo que pensei, meu caro. Mas então me ocorreu que não seria necessário que eles soubessem o que estavam fazendo. - Neste momento, o militar deu um breve e irônico sorriso. - Sem qualquer cons­trangimento ofereci a vocês parte da verdadeira história com o objetivo de criar um desafio impossível de ser recusado. Bastou que um de meus homens de confiança se infiltrasse em seu grupo com as informações cer­tas para que vocês acreditassem em tudo e aceitassem o que foi sugerido. Por fim, assim como eu esperava, vocês iniciaram a busca.

O major hesitou por um instante. Toda a participação de Douglas naquela história passava em sua mente como um filme em preto e branco. Apenas as imagens eram suficientes para confirmar as intenções do trai­dor. Era difícil admitir, mas haviam sido majestosamente enganados. Sem alternativas, Alencar se pronunciou:

Se você não conseguiu encontrar o que precisava, o que o leva a crer que eles conseguirão?

Como lhe disse, seus dois amigos conseguem ver além de onde pes­soas como nós estão acostumadas. Esta seja talvez a melhor qualidade dos dois. Sabendo disso, eu os enviei ao encontro das informações que precisavam; o início de uma trilha de migalhas. Agora é uma questão de tempo até que eles achem aquilo de que eu preciso.

Neste momento Alencar se deu conta que a missão de Brasília fazia parte de uma grande farsa.

Então você sabia que não havia nada escondido naquele depósito! - afirmou.

Claro, eu mesmo liderei a operação há muitos anos e sabia que o objeto de valor que procuro não está em nosso poder. Expor o depósito foi a única forma de fazer com que seus amigos acreditassem que eu estou à frente deles nessa busca. Infelizmente tenho que admitir que isso mos­tra uma certa incompetência de minha parte; não fui capaz de encontrar o objeto e, portanto, precisei deixar que vocês entrassem neste assunto com o auxílio de civis.

E o que você vai fazer comigo? - perguntou o major impaciente.

Você vai me ajudar no caso de seus amigos se recusarem a me entregar o que estão procurando - respondeu o coronel. - Na hora certa você será de grande utilidade; até lá, será meu convidado de honra. Curta a hospedagem.

Ao dizer estas palavras, o coronel saiu da sala, deixando Alencar sozi­nho. Sem dizer qualquer palavra, o major desabou em seus pensamentos. Cometera um engano terrível e agora, se seus homens não percebessem o que estava acontecendo, muitos iriam pagar.

 

                   Um Velho Soldado

O destróier russo repousava ancorado no porto internacional da cidade de Santos. Durante a madrugada, o gigantesco navio disfarçado com traços de um barco de transporte comum conseguira permissão da guarda costeira para atracar durante três dias. Sem grandes problemas, o capitão escolhera uma das áreas menos utilizadas do porto para realizar o procedimento padrão para embarcações internacionais e agora aguar­dava pelo próximo passo do plano há muito tempo construído. Faltava pouco para que chegassem ao ápice, para que encontrassem o destino que havia sido preparado para eles. A manhã já chegava a sua metade e Hamid decidiu ir até a ponte de comando. Ele e seus homens eram agora instrumento de um ser maior. Tudo estava preparado e dependiam ape­nas da peça principal. Algo que lhes traria o poder necessário para abalar as estruturas do maior símbolo capitalista da nova era.

Assim que chegou à ponte, Hamid recebeu um copo com café quente, bebida que não saboreava havia pelo menos uma semana. Jafar era quem comandava o barco naquele momento, e o recebeu com um compri­mento tradicional de seu povo:

As-Salamu Alaikum, Hamid.

Alaikum As-Salaam, Jafar - respondeu o irmão. - Como estão as coisas aqui fora, alguma novidade?

Não, Hamid! Esta parte do porto tem poucas pessoas, um ou dois barcos param por aqui durante o dia e ficam por pouco tempo. Acho que não teremos problemas.

E quanto ao vendedor, conseguiu falar com alguém?

Falei com eles há pouco mais de uma hora e a resposta que me deram é que a mercadoria estará conosco até amanhã. Não quiseram entrar em detalhes, mas algo me diz que poderemos ter problemas.

O alvo?

O alvo está se deslocando, mas ainda está a nosso alcance. Temos pelo menos três dias para completar o planejado.

Hamid caminhou até o vidro da ponte de comando. A altura do barco lhe permitia observar ao longe. Era possível ver depósitos aban­donados, com telhados parcialmente destruídos que evidenciavam um contraste com grandes construções de cooperativas importadoras de grãos. Algumas esteiras corriam de um lado a outro do porto, transpor­tando sacas e mais sacas de mercadorias, enquanto enormes guindastes enferrujados permaneciam fixos sobre resistentes blocos de concreto. O lugar era imenso, dezenas de quilômetros onde todo o tipo de negócio poderia acontecer. Por um momento, aquilo lhe parecia engraçado, pois, em breve, algo que nunca haviam visto antes aconteceria bem à frente de seus olhos. Hamid ficou imaginando de que forma aquelas pessoas, que já haviam visto tanta coisa, encarariam algo como aquilo.

De repente, os olhos de Hamid avistaram algo que não combinava com a paisagem. Cruzando a ponte do navio de uma ponta a outra, pro­curou por outras embarcações ancoradas próximas ao destróier. Não havia outras, estavam sozinhos.

Voltando ao lugar de onde saíra anteriormente, conferiu o que seus olhos tinham avistado. Jafar, que já havia percebido que algo o preocu­pava, observava agora tudo a seu lado. Sobre o piso de concreto sólido do antigo cais, um homem alto e forte caminhava na direção do navio. A passos largos deixava evidentes suas intenções. Sem qualquer convite, ele entraria no destróier para abordar os tripulantes. Percebendo o que estava para acontecer, Hamid depositou o café sobre a mesa de mapas e saiu pela porta externa.

Ponha dois homens armados com rifles e silenciadores na ponte. Se eu der o sinal, peça para que o derrubem.

 

Igor tinha consigo a certeza de que conhecia as características do barco que amanhecera ancorado no porto naquele dia. Como um bom e estudioso cidadão russo, o estivador residente no Brasil havia pouco mais de dez anos conhecia as características de um navio construído em seu país. Não era para menos, quando jovem, trabalhara na construção de muitas das embarcações da extinta União Soviética. Lá, aos dezesseis anos, participara de muitos trabalhos em um período em que seu país ainda mantinha uma estrutura que justificasse o medo norte-americano à tão comentada Guerra Fria.

Agora, próximo de seus cinqüenta, o homem maduro não admi­tia que toda a sua história de vida fosse motivo de desdém. Assim que chegou, logo pela madrugada, Igor comentou com seus companheiros aquilo que havia percebido e como aquele barco lembrava a ele o antigo trabalho em sua terra natal.

Uma arma de guerra potente e arrasadora - disse com orgulho.

Para sua surpresa, muitos de seus colegas riram e, entre murmúrios, soltaram uma frase que o deixou ainda mais furioso:

Se navios de transporte sucateados como esse fizerem parte da destruidora força militar da Rússia, até mesmo os escoteiros poderiam inva­dir seu país.

Por mais que parecesse brincadeira, Igor não admitia que lhe man­chassem a reputação. Fosse ela a sua ou a de seu país. Precisava tirar aquela história a limpo, provar que estava certo, e por isso decidiu ir até lá. Em seu pensamento, o que precisava era de uma boa conversa com o capitão do navio. Tinha certeza de que o homem era um dos seus, um soldado de seu país, e que o navio era realmente um antigo destróier. Talvez o governo o tivesse vendido a uma empresa privada, ou quem sabe usado para ações diferentes da própria corporação. O que ele precisava era de uma prova, um objeto qualquer que indicasse que o navio era uma antiga arma militar. Com certeza esfregaria aquilo na cara de todos aqueles que o haviam ofendido.

Sem grandes delongas, Igor seguia com seus pensamentos em dire­ção ao navio. As cores em nada favoreciam a máquina de guerra e quase o faziam rir à medida que se aproximava. Alguns metros antes de chegar até a escada de acesso, Igor pôde perceber um movimento na ponte de comando e um homem que descia as escadas. Como era de costume em visitas a embarcações, ele deveria seguir até o deque principal e esperar até que alguém viesse recebê-lo. Subindo as escadas que levavam ao local, Igor teve um leve pressentimento. Não havia marinheiros no deque e o profundo silêncio chegava a um vazio assustador. Assim que embarcou, um homem surgiu à sua frente. Era alto, com traços diferentes dos encon­trados no povo de sua terra. Quando muito, lhe parecia um indiano, ou quem sabe árabe. Confirmando suas expectativas, identificou que aquele era o mesmo homem que vira descendo minutos antes. Com um sorriso simpático, o estivador o cumprimentou:

Bom dia! Meu nome é Igor.

Bom dia - respondeu Hamid.

Seu sotaque em nada se assemelhava ao de Igor. Desde que soubera o destino final de sua missão, o estudo dos lugares e dos costumes do Brasil havia feito parte da longa estada na base russa, mas era impossível aprender entonações tão complicadas sem que alguém o orientasse. Ele pronunciava as palavras em português, mas com dificuldade.

Desculpe a minha intromissão - continuou Igor -, é que o seu navio se parece muito com uma embarcação que não vejo há muito tempo. De onde vocês são?

Turquia - respondeu Hamid. - Transportamos alimentos.

Alimentos?

Igor olhava tudo a sua volta. O barco que se parecia em várias de suas características com os destróieres russos, ao mesmo tempo, poderia se pas­sar facilmente como uma embarcação comercial. Turquia?, pensou ele.

Mas o que posso fazer pelo senhor? - indagou Hamid. A palma de sua mão esquerda colada ao corpo indicava aos homens que nada deve­riam fazer. A ele bastava um fechar de punhos para que estivador fosse derrubado.

Não sei - continuou Igor, caminhando em direção ao centro do deque. De repente, ao longe ele pôde perceber em um dos botes salva-vidas, parcial­mente descoberto, inscrições em letras do alfabeto cirílico. Por um instante suspeitou que o vazio, do barco não fosse coincidência e que aquele homem, por algum motivo, não queria que ele soubesse da verdade.

Antes de chegar até aqui - continuou cauteloso tinha certeza de que conhecia este barco. Acho realmente que me enganei. Se você diz que vem da Turquia... - fez uma pausa. - Eu sou russo e podia jurar que este barco tem as mesmas características de alguns dos nossos destróieres. Enganos acontecem.

Hamid por um instante retesou seu corpo. As palavras de Igor indi­cavam seu conhecimento em relação ao destróier e isso poderia lhe signi­ficar problemas no futuro. Não seria prudente deixar que aquele homem saísse do barco sem a certeza de que suas suspeitas eram nada mais do que pura coincidência.

O barco foi fabricado por um estaleiro localizado na Ásia - com­pletou rapidamente. - Pode ser que o projeto se assemelhe a alguns dos projetos russos. Mas posso lhe garantir, senhor, que este barco não é uma máquina de guerra.

Nisso você tem razão - respondeu Igor já caminhando de volta à escada. - Acho que vou ter que agüentar a gozação do pessoal por pelo menos uma semana. Eu disse a todos que provaria que este é um antigo barco russo, e pelo visto eu estava errado.

Desculpe-me por não poder ajudá-lo - disse Hamid.

Não tem problema, colega - respondeu Igor enquanto saía.

Suas mãos suavam. O homem à sua frente claramente escondia-lhe algo de importante e só lhe restava sair em busca de autoridades a quem pudesse contar toda a história. Uma pequena discussão entre colegas culminara em um contato indesejável e agora temia por sua vida. Mas, na ansiedade de estar em segurança, Igor cometeu um erro. Como era comum em sua cultura, decidiu que seria prudente parecer educado e cumprimentou Hamid:

Bolshoe spasibo - agradeceu.

Pazhaluista - respondeu Hamid.

Também por reflexo, Hamid havia respondido um agradecimento em russo. Entendia agora que seu convidado vira alguma coisa que con­firmava suas suspeitas. De fato, não podia deixá-lo sair, era arriscado, perigoso. Sem alternativas, levantou um dos braços, fechando o punho contra o rosto.

De um dos pontos mais altos do barco, um projétil disparado por um rifle de precisão partiu em direção a Igor, atingindo-o em uma das pernas. Imediatamente o homem caiu no chão do navio. Sentindo uma dor insuportável, Igor percebeu que cometera um erro terrível. Seu orgu­lho, motivado por uma brincadeira infantil, colocara-o frente a frente com a morte. Ele tentou se arrastar, mas imediatamente um novo disparo foi feito, fazendo com que o projétil passasse centímetros de seu corpo. Hamid, sem produzir qualquer movimento, esperou. Após alguns segun­dos, dois homens apareceram a seu lado.

Leve ele para baixo e tranque-o em um dos dormitórios. Não pode­mos deixar que saia e matá-lo agora pode levantar suspeita sobre nós. Quando tudo acabar decido o que fazer com ele.

Sim, senhor.

Os homens desapareceram levando Igor. Hamid, em meio a vários pensamentos, desejava que sua mercadoria chegasse o quanto antes. Situações como aquela poderiam se repetir, e talvez não fossem tão facil­mente resolvidas. Em sua mente estava claro que não era seguro ficar ancorado naquele lugar.

 

                   Museu Zoroastro

O carro alugado por Patrícia chegou à capital do estado de Goiás por volta do meio-dia. No porta-malas do veículo, caixas e valises acondicionavam artigos de apoio conseguidos pela tenente durante sua missão no dia anterior. Cordas, rádios, tablets, armas, explosivos e outros tantos itens usados pelo Setor em operações de campo eram a garantia de que qual­quer desafio encontrado pelo grupo na nova cidade seria vencido sem grandes dificuldades. A temperatura era agradável, mas as nuvens que se formavam no céu já escondiam os raios de sol e tornavam o dia meio cinza. Famintos e cansados, os viajantes trataram de ir comer e esticar um pouco as pernas em um shopping na entrada da cidade. Caminhando como pessoas comuns, não deixavam suspeita em relação à investida que haviam promovido há menos de quarenta e oito horas.

Terminada a refeição, decidiram, enfim, que o próximo passo seria rumar ao encontro de Augusto. O velho amigo do professor Montenegro era a melhor pista encontrada no relatório e talvez o principal coadju­vante naquela história. Fernando e Gabrielle suspeitavam de seu envol­vimento nas experiências do professor e a ausência de informações em toda a investigação demonstrava que muito ainda poderia ser descoberto.

Deixaram o shopping pouco depois das quatorze horas com destino ao local onde Augusto trabalhara nos últimos trinta anos. O Museu Estadual Professor Zoroastro Artiaga, conhecido por sua arquitetura art déco e con­siderado uma das principais construções do centro cívico da cidade de Goiânia, era praticamente a segunda casa do respeitado curador. O prédio, fundado em 1946 seguindo o estilo de construções que marcou a arquite­tura de sua época, como o estádio do Pacaembu e da torre da Central do Brasil no Rio de Janeiro, agora conservava em seu interior peças artísti­cas da história do estado. O caminho pelas ruas movimentadas da cidade seguiu tranqüilo até que Patrícia parou o carro em uma das vagas na praça em frente ao museu. Ali, árvores e flores decoravam o ambiente de maneira cuidadosa. Assim que o motor foi desligado, Cardoso, que sentava a seu lado, se virou e dirigiu a palavra a Fernando e Gabrielle:

Chegamos - disse ele pausadamente. - Acho melhor vocês dois entrarem sem nós. Vocês são civis e não devem atrair suspeitas. O que precisamos saber é se este tal de Augusto tem mais detalhes sobre as pesquisas. Algo que não esteja descrito no relatório. Talvez nomes, ou quem sabe o relato de confidencias feitas pelo professor Montenegro. Precisamos descobrir principalmente se o coronel já chegou até ele. Se isso aconteceu, precisamos garantir que nos conte tudo.

Quanto tempo temos? - perguntou Fernando.

Não sei - respondeu Cardoso. - Pelo que sabemos, o coronel pre­cisa resolver este assunto nos próximos dias, e agora, com Vitor no caso, pode ser que as coisas se apressem ainda mais.

Então não podemos mais perder tempo - concluiu Gabrielle. - Vamos ver o que conseguimos.

Os dois desceram e caminharam em direção à entrada do prédio.

Durante os poucos passos que levaram o casal até a porta do museu, Fernando relembrava da noite que havia passado ao lado de Gabrielle. Enquanto observava a jovem caminhando a seu lado, admitia a si mesmo que ela era de fato a grande paixão de sua vida. Os desencontros e desa­fetos sustentados durante os dois últimos anos, motivados pelo desejo de minar a paixão que nutriam um pelo outro, pareciam agora ainda mais responsáveis pelo sentimento que ele cultivava. Percebera finalmente que, mesmo encontrando formas de disfarçar a ausência daquela mulher em sua vida, sempre que estava ao seu lado, era como se tudo tivesse um sabor diferente, mais intenso.

Os dois subiram os degraus da entrada em meio aos pensamentos de Fernando e, assim que cruzaram a porta, foram abordados por uma garota. Era uma jovem com pouco mais de quatorze anos. Ela lhes ofere­ceu um pequeno panfleto com as atrações culturais da cidade e perguntou aos dois se queriam uma visita guiada pelo museu. Apesar de pequeno, o museu apresentava algumas curiosidades, proporcionando que a alu­nos de escolas públicas fossem monitores e guias quando o tempo vago lhes permitia. Gabrielle pegou o panfleto da mão da garota e agradeceu. Depois, declinou gentilmente a ajuda oferecida e entrou.

O lugar era realmente interessante. Boa parte da história do estado estava depositada ali, nas prateleiras, estantes e antigos balcões de vidro. Fernando acompanhava Gabrielle, sabendo exatamente qual seria seu comportamento durante aquele passeio. Se alguém pudesse ser consi­derado viciado em museus, esse alguém era Gabrielle; seu fascínio pela História era algo que realmente impressiona a qualquer estudioso. Sua facilidade em interpretar objetos antigos, quadros, escritas e tudo o que se refere ao assunto chegava a impressionar. Atentamente, a historiadora caminhou por entre objetos antigos, cristais e pedras expostas, vestimen­tas indígenas e até mesmo fósseis pré-históricos encontrados no estado de Goiás. O museu, eclético como deixava claro em sua proposta, era simples, porém extremamente bem-cuidado. Os objetos, adornos e até mesmo sua construção reformada demonstravam o zelo com o qual seu curador mantinha sua exposição. Gabrielle transpassou mais uma das salas e chegou até o setor onde várias prateleiras expunham artigos do interior do estado goiano. Animais empalhados, baús, armas e objetos usados em antigas casas eram o que compunha grande parte do acervo.

O esqueleto de um pequeno animal fixado a uma pedra e datado de mais de mil anos era outra das curiosidades. Gabrielle observou a tudo e, dando-se por satisfeita, voltou à entrada, onde a mesma garota que os havia recebido esperava por novos visitantes.

Parabéns! - disse Gabrielle a ela. - O museu é muito bonito e muito bem-cuidado.

Obrigada, senhora - disse a jovem -, mas eu apenas distribuo pan­fletos. Quem cuida de tudo aqui agora é dona Ana. Ela agora está substi­tuindo o curador anterior.

Substituindo? - perguntou Fernando surpreso.

É. Ele faleceu faz algumas semanas. Não era tão velho, mas sofria de alguns problemas. Não sei dizer o que era. Se quiser, posso chamar dona Ana para que vocês a conheçam - continuou.

Claro, seria um prazer - respondeu Gabrielle.

Ana não era uma museóloga diplomada. O máximo que conseguira foi uma formação em História, conquistada com muito esforço pessoal em meados da década de oitenta. Atualmente, a senhora, que lembrava tia Anastácia, personagem das histórias de Monteiro Lobato, era a substi­tuta de Augusto na curadoria do museu. Aos cinqüenta anos, aquela era sua recompensa por passar quase toda a vida trabalhando nas dependên­cias do lugar. De fato, fora a pessoa de confiança de Augusto, alguém que zelava por sua saúde e respeitava seus segredos. Segredos estes que já há algum tempo vinham lhe trazendo grandes preocupações.

Assim que dona Ana desceu as escadas, um sorriso tomou seu rosto. A imagem daquela jovem não lhe era desconhecida, já a havia visto algumas vezes em revistas de História. Lembrava dela como uma pessoa que em seus artigos bem escritos trazia magia, mistério e romance à história do país.

Não acredito - disse ela pegando em sua mão. - Você é a Gabrielle dos Segredos Escondidos na História do Brasil!?

Sou eu, e esse é meu amigo Fernando...

Eu adoro seus artigos - disse a mulher, abraçando-a. Não deixou nem mesmo que Gabrielle terminasse sua fala. - Adoro História, e você fala do assunto com tanta magia. Desculpe-me, mas eu preciso abraçá-la.

Gabrielle e Fernando sorriram. Aquilo já havia acontecido em outros lugares do país e estava se tornando cada vez mais comum na vida da jovem. Amantes de história costumavam agradecer a Gabrielle por incentivar e pro­mover o tema de um modo que jovens e adolescentes se encantavam. Era quase um dom, um presente. Trazer a história do país à mão e ao quotidiano dos brasileiros era algo que somente ela, através de matérias em revistas, e outros poucos escritores através de seus livros haviam conseguido.

Não tem problema, senhora! - disse ela sorrindo. - É sempre um prazer falar sobre História.

Estou tão surpresa - continuou Ana -, jamais imaginei que viria ao Zoroastro. Está pesquisando sobre a história de Goiás?

Não exatamente - respondeu Gabrielle um tanto constrangida. - Na verdade viemos à procura de uma pessoa. Um senhor chamado Augusto; achávamos que ele ainda fosse o curador do museu.

Por um momento o rosto de Ana contemplou o vazio; a pronúncia do nome de seu amigo trazia à tona recordações de todo o seu sofri­mento. Após alguns segundos, Ana recuperou a concentração e nova­mente se pronunciou:

Desculpem-me - disse ela. - A ausência dele é recente e por isso ainda não consegui me acostumar. Por favor, venham. Vamos até um lugar aonde podemos conversar melhor.

Ana caminhou em direção à escada que leva ao segundo andar do museu, seguida por Gabrielle e Fernando. Os dois a acompanhavam de perto, na esperança de que pudessem descobrir algo a respeito do mis­terioso amigo do professor Montenegro. A informação da morte recente de Augusto surpreendera aos dois, mas a presença daquela senhora ainda lhes trazia esperança. Ana subiu os degraus e atravessando um grande hall chegou a uma sala que ficava ao fundo da construção. Destrancando a porta com uma chave antiga, a mulher prosseguiu.

Assim que entraram na sala, Fernando e Gabrielle perceberam onde ela os havia levado. Os móveis rústicos e bem distribuídos, uma mesa ao fundo e uma estante de livros indicava que a sala pertencera ao curador do museu. Sobre a mesa uma placa com o nome de Augusto ainda per­manecia em local de destaque. Ana caminhou até o final da sala, contor­nou a mesa e, sentando-se, pediu aos dois que fizessem o mesmo.

O casal se acomodou e então, após alguns segundos, retomou o assunto do ponto em que haviam parado:

Lamento muito pela perda do curador - disse Gabrielle não sabía­mos que isso tinha acontecido e por isso viemos procurá-lo.

Não se preocupe, querida - respondeu Ana organizando rapida­mente a mesa. - Sempre aparecem pessoas por aqui procurando por ele. Antigos amigos, pesquisadores, alunos, sempre tem alguém que ainda não sabe do que aconteceu. Aos poucos vou me acostumando.

A mulher terminou a pequena arrumação e contemplando Gabrielle com mais zelo continuou:

Não sabia que você conhecia o professor Augusto...

Na verdade eu não o conhecia - respondeu Gabrielle. - Passei a conhecê-lo através de um documento a que tive acesso há alguns dias. Documentos sobre um assunto que ocorreu há muitos anos.

Novamente o rosto de Ana mudou. Dentre todos os defeitos que tinha, o que mais a incomodava era esse seu modo de reagir ao que lhe era apresentado. Era impossível esconder de alguém qualquer coisa que lhe trouxesse dúvida ou preocupação. Seu olhar e seu rosto sempre denun­ciavam imediatamente o que se passava em seu pensamento. Tentando sem sucesso disfarçar sua preocupação, a mulher respondeu:

Curioso! E eu poderia saber do que se trata?

É sobre um antigo amigo de Augusto - disse Fernando interrom­pendo a conversa. Percebeu, por sua experiência em conversar com pes­soas, que Ana sabia sobre aquilo de que estavam falando. - Professor Montenegro era o nome dele.

De fato, a mulher à sua frente conhecia bem aquele nome. Depois de muito tempo trabalhando ao lado de Augusto, tornara-se impossível não saber quem era Montenegro. Ana contemplou a sala com saudades e então, reanimada por alguns segundos de silêncio, respondeu:

Não sei se me lembro exatamente de alguém com este nome. Talvez seja algum amigo antigo.

Percebendo o receio da nova curadora, Gabrielle decidiu lhe falar franca e abertamente. Ana havia-lhe conquistado desde o primeiro momento em que se viram e a jovem sabia que confiar era a única alter­nativa:

Peço que nos desculpe, Ana - disse ela. - Sei que chegamos aqui assim de repente, buscando informações de uma pessoa que já se foi, mas estamos investigando antigos segredos e precisamos muito de ajuda.

Pelo tom das palavras ditas por Gabrielle, Ana relembrou momen­tos da vida do antigo curador. Mesmo tentando evitar que seus amigos percebessem, Augusto deixava escapar que era uma pessoa envolvida em segredos. Ela e tantos outros tentaram por muito tempo descobrir o que realmente acontecera com ele em seu passado, mas, infelizmente nunca tiveram sucesso. O amigo dedicado e carinhoso jamais deixara escapar mais do que pequenas pistas, frases e informações fragmentadas. Por um breve momento, algo lhe dizia que precisava dividir o que ouvira durante todos os anos da vida de Augusto com a mulher à sua frente. Quem sabe, para alguém como Gabrielle, toda aquela estória pudesse significar alguma coisa, trazer algum sentido. Mesmo refutando em seu consciente, Ana continuou:

Não sei - disse ela, passando a mão pelo rosto. - Augusto era uma pessoa fechada. Por mais que o conhecesse, jamais entendi o que se pas­sava em sua cabeça. Ele sempre nos distanciou de seus problemas, até mesmo sua família acabou sendo penalizada por sua decisão de viver sozi­nho - Uma única lágrima escorreu timidamente de seu rosto. - Quando o conheci ele era alguém alegre e sonhador; mas, ao fim da vida, pouco restou dessa sua personalidade. Eu sempre tive medo de que alguém um dia viesse a me perguntar alguma coisa sobre ele, e agora vocês aparecem.

Gabrielle percebia a tristeza na fala de Ana e somente após alguns instantes continuou:

O que estamos procurando - disse ela - pode causar um grande conflito internacional. Sei que pode parecer estranho, mas precisamos muito que nos ajude, Ana. Não temos outras pistas e nosso tempo está acabando.

Ana enxugou o rosto com uma das mãos e, com um profundo sus­piro, concordou:

Tudo bem - disse ela. - Vou lhes dizer o que sei.

 

                   Objetos que Falam

Assim que Fernando e Gabrielle deixaram o carro e seguiram em direção à entrada do museu, Cardoso decidiu atualizar o status da mis­são. Como regiam as ordens do Setor, toda a equipe em campo deveria se reportar ao operador designado a monitorá-la em períodos não menores do que doze horas e o tenente seguia isso à risca. Pela manhã haviam rea­lizado seu último contato com a base e agora era o momento de atualizar a comunicação.

Pegando seu celular do bolso direito da calça, o militar conectou a estação de monitoramento em São Paulo, em busca do sargento Douglas. Em menos de dois toques do telefone o operador atendeu:

Boa tarde, tenente - disse Douglas.

Boa tarde. Equipe comunicando reporte às quatorze horas e trinta e quatro minutos. Localização cidade de Goiânia, situação da equipe e equipamento Ok.

-Afirmativo! Reporte confirmado.

E então, Douglas, conseguiram novas informações?

Poucas, senhor - falou o operador em tom convincente. - Hoje pela manhã o major me pediu para que transmitisse a ele a nova posição de vocês. Ele tem informações recentes e pretende encontrá-los ainda hoje, para prosseguirem juntos com a investigação.

Ele pediu para que entrássemos em contato? - perguntou Cardoso.

Não, senhor - respondeu Douglas apreensivo. Sabia que o major estava sob o cárcere do coronel Castro e não podia deixar que os agentes percebessem seu envolvimento -, ele apenas me pediu para que regis­trasse a posição exata de vocês, pois quer encontrá-los pessoalmente.

Henrique irá comunicar nosso novo destino através do tablet - aceitou Cardoso - assim que tivermos certeza para onde estaremos indo. E o coronel?

Pelo que pudemos descobrir o prazo para a troca vence amanhã. O tempo dele está se esgotando, e o nosso também. As últimas informações mostram que ele pretende recolher o objeto de um dos lugares protegidos pelo setor nas próximas horas. Um grupo equipado para recolhimento de materiais foi solicitado por ele hoje de manhã. Não sabemos o local, mas suspeitamos que fica próximo de onde vocês estão neste momento.

Ele já deve saber o que os cientistas deixaram para trás - comentou Cardoso. - Deve ter informações que nós desconhecemos.

Não sei, senhor, mas é possível que isso seja verdade.

Positivo, Douglas. Se tivermos novidades eu volto a lhe comunicar.

Enquanto desligava o telefone, Cardoso mantinha seu pensamento nas palavras do operador. A cada passo que avançavam o tempo se esgo­tava. Para ele, as palavras de Douglas deixavam claro que o comandante do Setor já havia descoberto o segredo dos cientistas e que em breve teria o objeto que procuravam em suas mãos. A ação de Gabrielle e Fernando era a única chance que teriam de se igualar a eles nesta busca.

 

Na sede do Setor, ao lado da mesa de operações comandada por Douglas, o coronel Castro ouvia, satisfeito, a conversa. Enfim, as miga­lhas deixadas por ele ao longo de todas as últimas semanas haviam sido encontradas e plenamente entendidas pelos homens do major. Os civis estavam na pista certa e em breve encontrariam a chave para o que ele precisava. Como fizera desde o início daquela história, Douglas os con­vencera de forma impressionante. Era como se fossem conduzidos facil­mente pelo caminho planejado por ele. Sem pressa, Castro se levantou e seguiu até sua sala. Se as coisas continuassem naquele caminho, não demoraria a encontrar o que precisava.

 

Na sala da curadoria do Museu Professor Zoroastro, Fernando e Gabrielle aguardavam que Ana contasse sua história. Visivelmente ner­vosa, a assistente e velha amiga do curador Augusto tentava resgatar uma tranqüilidade que havia muito não estava presente em sua vida. Respirando pausadamente Ana continuou:

Augusto era uma pessoa maravilhosa - disse ela. - Quando o conheci, ainda jovem, jamais podia imaginar que ele se tornaria a pessoa triste e angustiada que um dia se tornou.

Gabrielle concentrou seu olhar no rosto de Ana, ela percebia na fala daquela mulher o quanto seria difícil dividir com eles o que estava prestes a dizer.

Eu comecei a trabalhar neste museu em meados da década de 1970. Quando cheguei aqui para trabalhar em um estágio, como a jovem que conheceram há pouco na entrada, Augusto já era o curador. Havia recebido a curadoria do próprio professor Zoroastro, o homem que deu nome a este museu. Nessa época, éramos todos jovens, com sonhos e ambições que por certo nos levariam além do que poderíamos imaginar. Todos, mas principalmente Augusto. Para ele, o futuro estava além deste museu, além desta cidade e quem sabe além deste país. Era uma época de transição para todos, chegávamos ao que parecia ser o fim da ditadura e isto trazia às pessoas do meio acadêmico como ele perspectivas diferentes das que tiveram nossos pais.

Ana fez uma pequena pausa. Então, olhando ao redor, levantou-se. Caminhou até chegar ao lado da estante e apoiando um braço numa das prateleiras continuou:

Naquela época, ele tinha um amigo, um pesquisador renomado, com diplomas e sonhos ainda maiores do que os dele. Um homem ambicioso, porém muito honesto. Alguém a quem Augusto confiaria a própria vida.

O professor Montenegro - conclui Gabrielle.

Sim - disse Ana assentindo com um movimento da cabeça, sem demonstrar surpresa. Ela então continuou:

Por quase três anos, Augusto se reunia com o professor Montenegro para discutir o resultado de suas pesquisas. Pelo que pude perceber nesse tempo, ele parecia se comportar como um conselheiro humanitário do cientista. Certa vez, antes de sair, aproximei-me da sala enquanto dis­cutiam e pude então ouvir uma parte do que conversavam. Enquanto Montenegro falava que sua descoberta deveria viajar aos quatro ventos e beneficiar de alguma forma a humanidade, Augusto lhe prevenia sobre os impactos negativos de suas descobertas chegarem a mãos erradas. Foi o ano em que Montenegro presenteou o curador com aquele quadro.

Ana apontou para a parede lateral da sala. Nela, apenas um quadro solitário ocupava uma pequena parte de todo o espaço. Acionando um interruptor próximo à mesa, Ana fez com que um jogo de luzes ilumi­nasse o objeto. Com um fundo pardo, como de um papel envelhecido, o quadro reluzia com escritas negras a frase de um dos mais famosos físicos da humanidade:

 

               Eppur si muove

               (Galileu Galilei)

 

Contudo, ela se move! - repetiu Gabrielle em um tom quase inaudível.

Imaginei que pudesse conhecer - disse Ana.

É a frase que Galileu disse quando saiu do tribunal após sua conde­nação. Ele se referia ao planeta Terra. Uma frase de protesto à censura e proibição de seus livros. Pode significar algo como: façam como fizerem, a verdade permanecerá inalterada - explicou Gabrielle.

Foi o período mais preocupante, um momento em que as conver­sas entre eles eram feitas de forma ainda mais cautelosa. Com o tempo, tive certeza de que naquele período os militares estavam pressionando Montenegro a lhes entregar algo que ele escondia.

O refinamento de urânio - interrompeu Fernando. Mesmo sendo apenas um observador naquele momento, conseguia entender como as coisas estavam se encaixando.

Não posso afirmar - disse Ana. - Nunca consegui descobrir do que exatamente eles falavam, até mesmo porque, menos de dois meses depois de ele ter-lhe entregado o quadro, o cientista sumiu e nunca mais foi visto.

Gabrielle assentiu com um movimento.

Nunca soubemos de fato o que aconteceu com ele - continuou Ana. - A única vez que perguntei ao professor sobre o assunto, a resposta que recebi foi que ele se envolveu em um acidente no laboratório e teve que ser removido para outra cidade. Não acredito que tenha sido ver­dade, mas foi a história que ele sustentou por todos estes anos.

E o que aconteceu depois disso? - perguntou Fernando.

A partir daí, a vida do professor Augusto se tornou um grande tormento. Sua personalidade e seu comportamento mudaram e ele passou a temer por sua vida.

Ana contornou a mesa e parando em uma das extremidades da sala retirou do antigo balcão de mogno um álbum. Nele, fotos tradicionais, tiradas ano a ano, mostravam a equipe completa do museu. A mulher abriu o álbum na foto de 1977 e o entregou a Gabrielle.

Esta é nossa foto anual antes do desaparecimento do professor Montenegro - disse ela. - Augusto é o último à esquerda. Na foto, o pro­fessor aparece com um sorriso austero ao lado de todos. Veja agora as próximas fotos.

Assim que passou para a foto posterior, Gabrielle pôde perceber a diferença. A aparência de Augusto, mesmo jovem, parecia ter sido atin­gida por um envelhecimento precoce. Um homem com semblante preo­cupado ocupava o lugar do antigo curador.

Elas se repetem, ano a ano - continuou Ana. - Com alguns momen­tos de melhora, mas com outros de um declínio evidente. Eu acredito que o passado o perseguiu até seus últimos dias. Como eu disse assim que vocês chegaram, ele sempre se preocupava em nos deixar fora de seus problemas, mas ainda assim, por vezes, pude perceber que alguns homens vinham interrogá-lo sobre as pesquisas do professor Montenegro. Eles o interrogavam por horas e às vezes até o levavam para depor em juízo. Assim foram por quase quinze anos, até que por algum motivo os homens pararam de aparecer.

Posso dizer - continuou Ana - que o professor conseguiu então ter tranqüilidade por vários anos de sua vida. Até alguns meses atrás.

Enquanto a mulher contava sua história, Fernando se levantou e caminhou até o quadro do qual ela havia falado. Estudando o objeto, o advogado tentou encontrar alguma novidade que pudesse relacioná-lo ao assunto que estavam tratando. Percebendo que uma poltrona estava postada de frente para o quadro, ele se sentou. Gabrielle ainda observava Ana, que estava agora sentada de volta à cadeira do curador.

Alguns meses? - Perguntou Gabrielle.

Sim! - continuou Ana. - Há aproximadamente cinco meses, as visitas voltaram a acontecer, com mais freqüência e com uma hostilidade ainda maior do que as que ocorriam no passado. Em um dos dias em que estava deixando o museu, na saída, percebi que um dos homens o arrastava para um furgão. Foi numa quarta-feira, e nós só voltamos a vê-lo na segunda.

Por que não chamaram a polícia? - perguntou Fernando.

Eu tentei convencê-lo de que era o melhor a fazer, mas ele não concordava. Quando por fim eu lhe disse que não mais daria ouvidos a seus pedidos e que envolveria os policiais por minha consciência, ele pediu por nossa amizade que eu não fizesse tal coisa. Quando perguntei o porquê, ele me pediu que confiasse em sua escolha, pois ele guardava um segredo cujo poder poderia ferir muitas pessoas, e que aquele era seu fardo. Algo que deveria carregar até o fim de seus dias.

Ele lhe disse mais alguma coisa antes de desaparecer? - perguntou Gabrielle.

Não! O que ele fez foi se sentar em frente a este quadro, assim como seu amigo faz agora - continuou Ana olhando para Fernando. - Na ver­dade, existiam dois lugares no museu onde o professor costumava fazer isto. Era como se os objetos que ele observava durante este tempo disses­sem a ele algo que nunca diriam a nós.

Ouvindo a frase dita por Ana, Gabrielle se levantou e caminhou até onde Fernando estava. Em um tom suave sussurrou em seus ouvidos:

O que acha do quadro?

Não sei - respondeu ele. Mantinha os olhos fixos no objeto enquanto falava. - Não parece ter nada de especial, é só um quadro que por certo tinha algum significado para os dois. Pode ser simplesmente uma associação ao momento pelo qual o professor Montenegro passava como também pode ser uma mensagem para que alguém possa encon­trar o tal segredo. Contudo, ela se move! - confirmou ele. - Ainda não consigo ver qual é a relação.

Gabrielle se levantou e seguiu em direção ao quadro. Com cuidado, afastou-o da parede, tentando ver se na sala havia algo que o objeto esti­vesse ocultando. Quando seus olhos enxergaram o quadrado ocupado por ele, não viram nada além da parede.

Eu já tentei isso - disse Ana - depois que o professor desapareceu, tentei encontrar uma relação dos acontecimentos com os objetos que ele tanto observava. Não encontrei qualquer pista do que pudesse estar acontecendo.

Você falou de outro lugar em que ele passava horas observando - comentou Fernando. - Onde exatamente fica?

-Venham, eu vou lhes mostrar - respondeu Ana, que, levantando-se, retornou pela direção de onde haviam chegado.

Seguida pelos dois visitantes, Ana caminhou até que chegassem de volta à entrada do museu. O assunto que agora abordava com Gabrielle não poderia ser tratado na presença de outras pessoas e por isso a mulher decidiu pelo encerramento antecipado do expediente. Não havia visitan­tes no local naquele momento, então Ana pediu à estagiária para que ela fechasse as portas. Assim que a jovem cumpriu sua ordem, Ana também pediu para que ela os deixasse, comunicando que estaria livre pelo resto do expediente. Instantes depois os três entravam nas dependências do piso térreo do museu sob a segurança de não serem incomodados.

Cruzando o corredor de entrada e passando pela exposição da Pré-História, chegaram então ao Espaço Natural. O lugar era talvez o mais simples entre os espaços expostos no museu. Três vitrais com pinturas ao fundo retratavam o clima do interior goiano. Neles, animais empalhados, armas, ferramentas utilizadas na extração de ouro e na subsistência dos antigos davam idéia de como fora o passado nas terras de Goiás. Gabrielle tinha observado o lugar assim que chegara, mas naquele momento não lhe parecera, dentre os acervos contidos ali, o que pudesse despertar maior curiosidade.

Esse é talvez um dos lugares menos visitados do museu - disse Ana assim que chegaram. - Na verdade, quando ele foi criado eu mesma achei que o espaço poderia ser mais bem aproveitado. O fato é que Augusto não deixava que nada fosse feito aqui nesta exposição. Por algum motivo, era a que ele mais se dedicava e da qual mais cuidava. Aqui - disse ela apon­tando para um conjunto de três cadeiras que estavam dispostas à frente de uma das estantes - era o lugar onde ele passava o restante das horas em que se dispunha a pensar. Antes de ele ter desaparecido, foi aqui que eu o vi pela última vez.

Assim que Ana indicou o lugar, Gabrielle se sentou.

Do lugar onde ela agora se encontrava, era possível ver apenas uma das três prateleiras que compunham o espaço. Nela, a pintura ao fundo retratava a imagem de montanhas, uma cerca de fazenda e um homem à procura de ouro. No chão, uma vala de terra era representada por um bloco possivelmente construído em gesso e, sobre o bloco, estavam dis­postos alguns objetos. Tabelas de avaliação do ouro extraído nas fazendas goianas, um separador de madeira, uma espada e um pequeno baú.

Imediatamente, a imagem do pequeno baú, fechado e disposto sobre a vala de terra, chamou a atenção de Gabrielle.

Você tem a chave desta prateleira? - perguntou ela a Ana.

Está comigo - respondeu a mulher. - Abri-la foi uma das primeiras coisas que fiz quando soube o que havia acontecido.

Arqueando o corpo, Ana abriu a fechadura de segurança do vidro e, arrastando-o para o lado, pegou o baú. Com cuidado, entregou a antiga peça a Gabrielle.

Tenha cuidado, por favor! - disse ela. - Essa peça tem pelo menos cem anos.

Gabrielle pegou o baú. Era realmente uma peça antiga, porém estava muito bem conservada. Toda entalhada em madeira e com fecho de ferro, o objeto parecia o lugar ideal para se guardar um segredo. Com cuidado, a historiadora moveu o fecho e abriu a caixa.

Vazia - disse Ana assim que a caixa foi aberta. - A caixa está vazia, sem qualquer marca, assim como o separador de madeira e tudo mais que está dentro desta prateleira. Como lhes disse, esta foi uma das pri­meiras coisas que eu fiz quando Augusto se foi. Mas infelizmente não encontrei nada.

Não era para ser tão fácil - interrompeu Fernando. - Se realmente existia algum segredo a ser escondido por dois renomados professores, eles jamais o fariam sem que tivessem certeza de que estaria seguro.

Tem que haver uma ligação - disse Gabrielle -, alguma coisa que ligue os dois lugares. Se eles eram tão importantes para o professor, devem de fato ter alguma ligação.

Por um instante Gabrielle se concentrou em toda a história que haviam lhe contado. Assim como fizera no passado, tentava entender nas intenções de quem construíra tudo aquilo que pistas de fato tentavam lhe deixar.

Galileu, um dos mais brilhantes físicos da humanidade, era inspira­ção para pessoas como Montenegro. Esconder um segredo sob a sombra de uma de suas frases era quem sabe a segurança que o cientista teria de que somente as pessoas certas encontrariam o que ele tentava man­ter longe dos cobiçosos. O latim não seria traduzido ou reconhecido por qualquer um e isto lhe traria a garantia de que as intenções também seriam, no mínimo, dignas como as suas.

Contudo, ela se move! - repetiu Gabrielle.

A sua frente, a pintura e uma vala. Sobre a terra, um trabalhador remexendo cada grão em busca de seu tesouro.

Como em um flash, percebeu:

Quando mesmo esta seção do museu foi construída? - perguntou a Ana.

Não sei, dois ou três anos depois que cheguei por aqui. Não me lembro exatamente, o que sei é que o professor acompanhou de perto sua construção.

Foi na mesma época em que o professor Montenegro sofreu o acidente?

Acredito que sim, talvez alguns meses depois.

-A terra! - exclamou Gabrielle sorrindo. - Contudo, ela se move!

A terra se move! - disse Fernando, acompanhando suas palavras.

-A base desta prateleira representa uma mínima fatia de todo o pla­neta e ela se move. O professor deve ter construído esta base de gesso para proteger o que estava escondendo, precisamos mover a terra para encon­trar o que procuramos. Precisamos retirar a proteção que ele construiu.

Por um instante Ana pareceu confusa; tentava entender a relação que a jovem historiadora havia criado. Aos poucos foi percebendo que suas palavras faziam sentido. Parecia-lhe agora que participava de uma das aventuras escritas por Gabrielle, realmente a jovem à sua frente refletia no olhar a emoção apaixonante de sua descoberta.

Você tem algo que possamos utilizar para quebrar o gesso? - per­guntou Fernando à curadora.

Tenho algumas ferramentas na sala de recuperação, um martelo e quem sabe um formão.

Onde fica?

Na sala ao lado da curadoria.

Em poucos minutos, Fernando subiu até a sala e retornou trazendo as ferramentas. Assim que chegou, Ana e Gabrielle se afastaram, cedendo espaço para que ele pudesse trabalhar.

Com cuidado, o advogado quebrou o antigo gesso que representava a terra dentro daquela prateleira, retirando os pedaços, para que não dani­ficasse o que estavam para encontrar. Aos poucos, o buraco aberto sob o gesso e, iluminado pelas lâmpadas da estante, revelou uma imagem curiosa. No piso, abaixo da estrutura construída em gesso, uma pequena porta apareceu. Fechada por um trinco simples, tinha suas bordas seladas por soldas semelhantes àquelas feitas em enormes construções de metal. Ao lado da porta, um relógio com um indicador media o que parecia ser o grau de radioatividade do que se encontrava naquele ambiente lacrado. No medidor era possível identificar três cores: verde, amarelo e vermelho. Naquele momento, o ponteiro estava sobre a região verde do marcador.

 

                       Novas Pistas

Após desligar o telefone, Cardoso, Henrique e Patrícia permanece­ram do lado de fora do museu, aguardando por novidades. O primeiro movimento aconteceu vinte minutos após a entrada de Fernando e Gabrielle, quando uma jovem que aparentava ser funcionária saiu pela porta da frente. Ela trancou a entrada e em seguida fixou um bilhete na porta, em um local que pudesse ser facilmente visto por possíveis visitantes. Cardoso imaginava o que havia escrito no papel e sabia que o museu permaneceria fechado pelo restante da tarde. Aquele era certa­mente um sinal de que o casal havia conseguido convencer quem esti­vesse lá dentro a ajudá-los. Cardoso sorriu; o plano traçado por eles parecia estar funcionando.

 

Dentro do museu, enquanto os olhos de Gabrielle contemplavam a nova descoberta, dúvidas despontavam em seu pensamento.

O que acha? - perguntou ela a Fernando.

Não tenho certeza - respondeu ele -, mas me parece que esta é a peça que faltava. Aquela de que falaram no relatório.

A jovem não tinha conhecimentos sobre física nuclear e por isso tudo lhe parecia perigoso. Ela agachou próximo à base da prateleira e então continuou:

Será que é possível removê-la daqui? Não corremos nenhum risco?

Fernando sabia dos perigos existentes no manuseio de materiais radioativos como o que supunha haver ali, e por isso não poderia excluir a possibilidade do risco. Ele se aproximou da jovem e tocando a superfí­cie da caixa tentou encontrar dispositivos que facilitassem sua abertura.

Eu sei pouco sobre este assunto - respondeu Fernando sem muita segurança -, mas se o sistema métrico internacional estiver sendo respei­tado neste medidor, o verde significa que está tudo bem. Neste caso, acho que podemos removê-lo, sim.

Do que mais precisamos?

Como não existem frestas, acho que teremos que remover a porta - concluiu Fernando. - Uma lixadeira ou quem sabe uma ferramenta de disco cortante daria conta do trabalho. Eu não me arriscaria a sair marte­lando esta porta, afinal, não sabemos se o que tem lá embaixo é frágil ou não. Precisamos fazer tudo com calma.

Ana, que acompanhava a conversa dos dois, sabia como poderiam abrir aquela caixa. Conhecia pessoas na cidade capaz de fazê-lo, e mesmo diante de uma grande dúvida desejava ajudar.

Eu conheço alguém! - disse ela surpreendendo os dois. Durante toda sua vida, trabalhara com um homem envolvido em um grande segredo e agora tinha talvez a oportunidade de entender tudo o que se passara em sua cabeça. Não sabia se sua atitude corresponderia à confiança que Augusto depositara nela no passado, mas tinha a certeza de que cedo ou tarde algo deveria ser feito. Com a ausência do curador nas dependências do museu seria questão de tempo até que seu segredo, o motivo de sua tortura, fosse enfim revelado. Para Ana, se a responsável por aquela descoberta fosse Gabrielle, a certeza de que o melhor seria feito era algo nítido e transpa­rente. Sob o olhar de seus novos amigos ela continuou:

Tenho um conhecido da família que trabalha com serralheria. E alguém em quem confio e acho que ele pode ajudar.

Se falarmos com ele - concordou Fernando sorrindo - para trazer as ferramentas adequadas pode dar certo. Ele fica longe?

Não! - respondeu Ana. - Acho que se ligar, ele chega em alguns minutos.

Ótimo - disse Gabrielle. - Então, vamos chamá-lo.

Em trinta minutos, o serralheiro de quem Ana havia falado chegou ao museu. Mario era um homem de idade avançada, mas com um espírito para o trabalho invejado por muitos. Ele parou o carro na praça cívica e, em instantes, com uma maleta na mão, já batia na porta do prédio. Ana esperava no hall de entrada e assim que ouviu o chamado abriu a porta.

Fechando mais cedo? - perguntou ele sorrindo.

Não, Marinho - respondeu Ana com um ar de seriedade encon­tramos uma coisa e gostaríamos que nos ajudasse a retirá-la de onde está. Trouxe as ferramentas que lhe pedimos?

Claro, só não sei ainda para que servirão. Pelo que me falou, parece que vamos abrir um carro blindado - disse ele, tentando amenizar a ten­são aparente.

É mais ou menos isso - disse ela, caminhando diante dele.

Assim que chegaram, Ana apresentou o amigo aos dois. O homem negro com cabelos grisalhos estranhou o ambiente ao perceber que partes da estante onde ficava o conhecido acervo do museu estavam espalhadas pelo chão. A cena só lhe confirmava que algo estranho tinha acontecido e parecia que precisavam da sua ajuda para pudessem resolver.

Que é isso, estão reformando o museu? - disse Mario, sorridente, estendendo a mão e cumprimentando o casal.

Não - respondeu Fernando sorrindo -, só estamos remodelando um pouco a vista do sertão.

Entendendo o comentário como engraçado, Mario respondeu:

Então, o que ficou para mim? Construir uma montanha? Ou quem sabe algumas árvor...

Mas o humor do homem desapareceu antes que pudesse completar sua frase. Assim que avistou o que lhe esperava, Mario levou a mão ao rosto em uma atitude de dúvida evidente. A caixa-forte monitorada pelo relógio colorido era algo que nunca antes havia visto, mas o modo com que foi condicionada entre as estruturas da prateleira lhe sinalizava que algo perigoso estava guardado além de sua porta. Ana conhecia bem o amigo e assim que percebeu sua atitude, interferiu:

Sei que parece estranho, Mario - disse ela -, mas precisamos muito de sua ajuda.

O homem transparecia sua dúvida, mas a firmeza com que Ana lhe falava era algo que poucas vezes havia presenciado. Ele percebera em seu pedido uma seriedade que ia além de possíveis explicações. Sem questio­nar, e confiando na mulher, ele decidiu ajudar.

Por pelo menos vinte minutos, o experiente serralheiro recortou o que podia ser considerado o sistema de selagem daquele compartimento. O marcador de radiação acoplado ao dispositivo oscilava durante o trabalho, mas em nenhum instante ultrapassava o limite de segurança. Enquanto manuseava o disco cortante em alta velocidade sobre as soldas, era possível ver que a tampa aquecia, muitas vezes se colorindo de um vermelho quase incandescente. O suor escorria de seu rosto a cada centímetro que vencia o difícil obstáculo, mas, somente ao fim de todo o cordão de solda, Mario parou.

- Está pronto - disse ele removendo os óculos escuros que cobriam seu rosto. - Para abrir é só retirar a tampa.

Fernando olhou para Ana e imediatamente a mulher entendeu qual era seu pedido. Como ficou combinado, antes da chegada do serralheiro, ao fim do trabalho ela deveria conduzi-lo até a saída, para que o homem não se comprometesse ainda mais com tudo o que estavam fazendo. Sem perder tempo, Ana tocou nos ombros de Mario e educadamente pediu a ele para que saísse. Mario concordou, percebendo que, para ele, aquela tarde deveria ser esquecida. No caminho até a porta, Ana sorriu agrade­cendo sua confiança. Depois retornou e em pouco tempo os três estavam novamente sozinhos no museu.

Afastando os restos de material das prateleiras, Gabrielle se aproxi­mou da abertura. Seu coração batia acelerado por saber que estava frente a frente com mais um segredo, mais uma história. Sem dificuldade, reti­rou a pequena porta agora solta pelo trabalho do serralheiro. Por um instante, a jovem conferiu o medidor de radiação que permanecia ao lado da abertura. O marcador se mantinha posicionado na região verde e isto a tranqüilizou. Voltando os olhos para a abertura, ela então pôde ver em seu interior que uma pequena caixa de cor negra repousava sobre uma folha de papel. Gabrielle pegou os objetos e, após ter certeza de que não havia mais nada, os levou até o balcão próximo dali.

O balcão, fechado com uma tampa de vidro, era usado como exposi­tor de rochas e artigos de madeira. Assim que a jovem depositou os obje­tos sobre sua superfície, Fernando e Ana se aproximaram. Os três agora estavam diante do segredo que escravizara Augusto por quase toda sua vida. Observando com atenção, era possível deduzir do que se tratavam os dois objetos. O papel era a planta detalhada de uma antiga construção que, segundo as descrições e legendas, pertencia a órgãos do governo. Gabrielle percebeu que se tratava do antigo laboratório de Montenegro e entregou o papel a Fernando:

É uma planta do laboratório - disse ela.

Fernando pegou o papel e o observou atentamente. Na folha cons­tavam desenhos e inscrições. De início, parecia descrever três andares de instalações, local dos laboratórios, dormitórios e áreas de uso comum. Algumas marcações curiosas podiam ser vistas em três localizações da planta. Eram como marcas, indicando pontos relevantes do lugar.

Parece que explica em detalhes o que tem lá dentro - respondeu Fernando enquanto observava o papel. - E tem algumas marcações estra­nhas, eu diria que parece algum tipo de mapa.

Pode ser! - respondeu Gabrielle. - Eu também já havia reparado, precisamos olhar com cuidado cada detalhe para tentar entender o que significa.

E quanto à caixa? - indagou Fernando, pegando o objeto.

Não sei, parece que está lacrada - respondeu Gabrielle.

Enquanto girava a pequena caixa nas mãos, Fernando percebia que em duas de suas faces existiam pequenos sulcos alinhados paralelamente, numa outra, um orifício e, na quarta, o entalhe de um símbolo radioativo. As duas faces restantes estavam lisas e sem quaisquer marcas perceptíveis.

Pelas marcações da superfície e pela característica da caixa, eu diria que ela é a razão da existência daquele medidor - disse ele apontando para a estante. - Acho melhor levarmos para o Cardoso dar uma olhada, ele deve conhecer algum especialista do assunto.

Pelo visto, achamos mesmo a peça que faltava - disse Gabrielle sorrindo.

Em meio a todo mistério, seu rosto transmitia a satisfação de mais uma descoberta. Ana, ali ao lado, acompanhava a jovem vitoriosa, mas viajava em outros pensamentos. Enquanto conversavam, a anfitriã reme­morava a história de um homem com a vida consumida por segredos.

Não consigo imaginar como estes dois objetos puderam consumir toda a vida de uma pessoa. Minar a genialidade e a magia de alguém que poderia ter sido uma das mentes mais brilhantes que eu já conheci - disse ela em um lamento. - Ele sacrificou sua vida por este segredo:

Pode lhe parecer estranho - respondeu Gabrielle, pegando a caixa das mãos de Fernando -, mas muitas vezes o futuro da humanidade depende da capacidade que algumas pessoas têm de se abster de sua vida em função de objetivos maiores. Para que outros possam viver em paz, muitos perecem frente a grandes desafios. Algumas destas pessoas se tor­nam ícones de uma causa enquanto outros desaparecem no anonimato. Quanto a nós, que poderíamos ser influenciados por uma de suas deci­sões, permanecemos em nossas vidas, sem saber que suas atitudes talvez tenham nos trazido segurança. Não sei exatamente do que se trata isto que encontramos, mas certamente a decisão de manter tudo escondido pelos anos que se passaram deve ser justificada por algum motivo muito importante. E prometo que, se confiar a nós estes objetos, vamos desco­brir qual é esse grande segredo.

Com um sorriso tímido, Ana ouvia as palavras de Gabrielle. Assim que a jovem concluiu sua fala, ela continuou:

Desde que vocês chegaram aqui e me disseram que procuravam por Augusto, tive certeza de que encontraríamos alguma coisa. Também não sei por que meu amigo manteve estes objetos escondidos por tanto tempo, mas tenho certeza de que se existe alguém que pode descobrir o que significam e que também é capaz de usá-los com sabedoria, este alguém é você.

Por um instante, os olhos de Gabrielle marejaram. Nos últimos tem­pos sua vida mudara. O respeito e a confiança que pessoas como Ana depositavam naquela jovem era algo difícil de explicar. Aquilo lhe trazia orgulho, mas também a sobrecarregava de responsabilidades.

- Obrigada, Ana! - disse ela, abraçando a curadora.

 

Minutos depois, Fernando e Gabrielle cruzavam a porta do museu Zoroastro em direção ao carro. Agora, levavam nas mãos a última peça do quebra-cabeça e precisavam chegar ao laboratório.

 

                   Informações Binárias

Conseguimos! - falou Fernando assim que chegaram ao carro.

Em seus rostos, era nítida a satisfação por terem encontrado mais uma peça do enigma.

Agora precisamos ir para o laboratório - continuou - para montar este quebra-cabeça e achar a experiência do professor Montenegro antes que o coronel o faça.

Pelo que pudemos entender - completou Gabrielle, enquanto se sentava em um dos bancos -, antes do incidente no laboratório, Montenegro e Augusto prepararam um esconderijo que fosse capaz de conter e monitorar a radioatividade dentro do museu. Alguma coisa os preocupava e, por segurança, eles criaram uma espécie de cofre. Quando a situação se complicou, resolveram usá-lo para guardar estes objetos.

Naquele momento, Gabrielle entregou os objetos a Cardoso. Admirado, ele pegou das mãos da jovem a caixa e a planta. Quando o major lhe dissera sobre a capacidade de aquelas pessoas descobrirem segredos, ele, assim como todos da equipe, de alguma forma, sentiram-se incomodados pelo fato de os civis serem considerados mais preparados do que os próprios integrantes do Setor. Naquele momento, porém, após ter visto o que fizeram durante a ação em Brasília e de que forma resga­taram um segredo há tanto tempo escondido, Cardoso rendeu-se à com­petência daqueles que o acompanhavam. Enquanto ele se distraía nesse pensamento, Fernando continuou:

Se observar em detalhe, a planta que encontramos indica todas as instalações que compõem a construção onde Montenegro trabalhava. Salas, áreas comuns, laboratórios. Sendo uma espécie de mapa, este papel pode guiar a pessoa que o possui até alguma coisa deixada lá, pelo professor.

Alguma coisa que deve ter relação com esta caixa que você está segurando - completou Gabrielle. - Se estes objetos foram deixados jun­tos, é porque de alguma forma estão ligados, e eu acredito que se seguir­mos este "mapa" descobriremos para que serve esta caixa.

Cardoso esticou o braço e entregou a caixa à Patrícia. A tenente, detentora de várias especialidades, além de piloto, era engenheira por for­mação. O líder conhecia sua capacidade de analisar peças corno aquelas e, sempre que precisava, consultava-a em suas missões. Patrícia pegou a caixa e manuseou-a por alguns instantes. Então, após aguardar, olhando seriamente para ela, Cardoso perguntou:

O que acha?

Parece chumbo! - disse ela. - Pela cor e pelo peso, o material do qual esta caixa é feita deve conter um percentual elevado de chumbo.

E o que terá aí dentro?

Eu apostaria em material radioativo. Pela descrição que eles nos fizeram do lugar em que estava armazenado e também pela forma como a caixa está lacrada, eu optaria por não abri-la.

Cardoso sorriu. Aquele era o modo peculiar de Patrícia, uma mulher de poucas palavras, avisar sobre o perigo de manusear aquele objeto. Virando então para o fundo do carro, atirou a folha sobre o colo de Henrique pedindo:

Escaneie isto pelo tablet e envie para o major. De preferência envie direto para o celular dele. Parece que encontramos o que viemos buscar. Parabéns, pessoal! - disse, dirigindo-se a Fernando e Gabrielle. - Fizeram um excelente trabalho.

Patrícia ligou o carro e eles deixaram o centro cívico de Goiânia. Era fim de tarde. Seu destino a partir dali seria uma pequena cidade das redon­dezas. Abadia de Goiás era, segundo o que haviam descoberto, a cidade que abrigava o tal laboratório. Coincidência ou não, ali estava enterrado o lixo tóxico de um dos maiores acidentes nucleares acontecidos no Brasil.

 

No hotel, o capitão Vitor aguardava que o técnico em computação encontrasse alguma informação capaz de colocá-lo novamente no encalço dos homens do setor. De pé, em frente ao lago Paranoá, ele contemplava o fim de tarde em uma das imagens mais bonitas da cidade de Brasília.

O dia, que começara com uma informação conclusiva sobre a investi­gação em que estavam envolvidos, estava se desenhando improdutivo. Os homens que haviam invadido o prédio do Ministério da Defesa tinham fugido sem deixar qualquer pista e, após tantas horas, seria praticamente impossível voltar a localizá-los. O capitão, que já havia recebido denún­cias de operações clandestinas executadas por aqueles militares, sabia que em menos de quarenta e oito horas uma nova troca seria feita. Não era possível prever o lugar nem mesmo a origem exata da mercadoria, mas o negócio estava entre os maiores que já investigara.

O vento que soprava, vindo do lago, invadia os jardins do hotel, movi­mentando as árvores e levantando uma fina poeira quando Jefferson se aproximou de seu comandante:

Senhor - disse ele anunciando sua presença.

Pode falar, Jefferson.

Acho que encontramos alguma coisa. Se puder me acompanhar até a sala de reuniões, eu lhe mostro.

Cinco minutos depois, os dois se uniram ao técnico e mais dois agen­tes na sala de reuniões no interior do prédio. Imediatamente Jefferson iniciou o relatório do que haviam descoberto. Atento às suas palavras, o técnico manuseava o computador, exibindo imagens relacionadas ao que o agente dizia.

Foi muito difícil encontrar resíduos de informação no disco rígido, senhor - iniciou Jefferson. - A pessoa que operou esta máquina durante a reunião que eles tiveram sabia muito bem como eliminar ves­tígios da memória principal. Por sorte, alguns históricos ainda ficaram gravados em memórias flutuantes e por isso foi possível saber o que estavam pesquisando.

E do que se trata, Jefferson? - perguntou o capitão visivelmente impaciente.

Em resumo, senhor, as pessoas que invadiram o depósito e que estavam usando este computador durante a reunião pesquisaram sobre tecnologias de desenvolvimento de energia nuclear. O que encontramos foram pesquisas relativas a matérias de jornais, acordos internacionais, tecnologia de refinamento e também sobre o acidente radiológico ocor­rido em Goiânia no ano de 1987.

O do Césio 137?

Exatamente, senhor. Não sei qual a relação entre desenvolvimento nuclear e este acidente, já que as informações existentes indicam que a causa principal foi o vazamento de elemento radioativo de uma máquina.

Por um instante, Vitor entendeu o que poderiam estar procurando. O militar não sabia exatamente do que se tratava, mas já havia ouvido pelos corredores a história de um antigo laboratório nuclear nos arredo­res da cidade de Goiânia. Na época do acidente, Vitor era apenas um aspi­rante, mas se lembrava das investigações militares realizadas em torno do ocorrido. Em sua mente ele desenhava possibilidades, mas precisava de informações que não estavam disponíveis naquele momento. A idéia de invadir a memória do computador havia dado certo, mas ele precisava consultar outra pessoa, para poder entender o que haviam descoberto.

Ótimo - disse ele interrompendo a explicação de Jefferson.

Mas tem mais coisas, senhor - respondeu o agente, tentando man­ter sua atenção.

Não será necessário saber mais - continuou o capitão. - Eu já sei para onde foram e suspeito o que estão procurando. Só preciso falar com um antigo professor da minha época de academia. Acho que você conse­gue encontrá-lo. O nome dele é Demétrio.

Perdão, senhor - disse Jefferson hesitante está se referindo ao general Demétrio?

Sim, ele mesmo - confirmou Vitor. - Preciso de uma ligação com ele urgente!

Sim, senhor - disse Jefferson antes de sair.

O general Demétrio era um dos homens mais importantes no comando militar nacional. Vitor fora seu aluno havia mais de vinte anos e sabia que se alguém conhecia informações secretas sobre aquele assunto, este alguém era ele. Mesmo não sendo um dos membros do Setor 27, Demétrio treinara alguns de seus integrantes e por isso conhecia muitos de seus segredos. Há muito tempo, Vitor havia cogitado a possibilidade de envolvê-lo em sua investigação, mas como não sabia exatamente o que estava procurando achou mais prudente seguir sozinho em sua busca. Agora, porém, que novos fatos surgiam, percebia que o conhecimento e a experiência daquele homem seriam essenciais ao processo. O tempo estava contra ele e, desta vez, falhar não era uma opção.

 

Douglas corria pelos corredores do setor em direção à sala do coronel Castro. Numa das mãos, uma pasta com material impresso se movimen­tava confusamente, acompanhando o chacoalhar de seu corpo. Enfim, os civis haviam encontrado a peça que faltava para que conseguissem completar a negociação, e era surpreendente que tivessem conseguido. Nem mesmo ele, o principal responsável por todo o envolvimento do casal em toda aquela história, achava que seria possível. Por muitos anos, integrantes do Setor, de várias formas, haviam tentado reaver os obje­tos pessoais do professor Montenegro, mas o trabalho se mostrara inú­til e dispendioso. Após inúmeras tentativas frustradas, porém, o coronel concluiu que algo diferente poderia ser feito e, como sempre, sua mente genial estava certa.

O operador de comunicação continuou sua corrida. Cruzou mais duas portas e, chegando ao final do último corredor, parou diante da sala que freqüentara assiduamente nas últimas semanas. O jovem bateu à porta e entrou.

Como de costume, o coronel estava sentado em sua cadeira, fumando um cigarro. A sala estava escura e nem mesmo o computador estava ligado. Uma pasta, semelhante à que Fernando e Gabrielle haviam encon­trado no depósito, estava aberta sobre a mesa.

Senhor, senhor - disse Douglas ofegante -, eles acharam, senhor. Eles acharam!

Um prazer indescritível tomou conta do coronel. O velho militar deu uma gargalhada assustadora e só ao fim desta perguntou:

E onde estão agora?

Indo para o laboratório, senhor. Devem chegar lá em uma hora.

Ótimo - continuou o coronel -, separe dois soldados bem treina­dos e peça para que levem o nosso prisioneiro até o meu helicóptero, e diga que vamos partir imediatamente. Se tivermos sorte, chegamos lá em menos de três horas.

Sim, senhor - respondeu o soldado.

E, Douglas.. - disse o coronel chamando sua atenção.

Sim, senhor.

Ótimo trabalho!

Obrigado, senhor! - respondeu ele antes de deixar a sala.

 

                     Abadia de Goiás

Patrícia parou o C-4 em frente ao Parque Estadual de Abadia de Goiás exatamente às dezenove horas. Para que sua presença em uma via expressa não atraísse a atenção de possíveis autoridades, a jovem tenente deixou a BR-060 e estacionou em uma das estradas secundárias, a uma distância em que lhes fosse possível observar as instalações. Segundo o relatório encontrado por Fernando e Gabrielle, no depósito embaixo do eixo monumental, aquele era o local onde o laboratório de Montenegro estava oculto e o lugar onde deveriam encontrar os experimentos secre­tos do cientista. No relatório, a localização exata era revelada por uma cabana em meio à vegetação rasteira de um dos terrenos que há alguns anos havia se tornado uma área de preservação ambiental do estado.

Depois de encontrarem os objetos escondidos pelo curador Augusto no museu Zoroastro, os dois estavam seguros de que achariam o que fora deixado para trás pelos militares. Aquela era a peça que faltava e o fato de tê-la nas mãos permitiria a eles evitar que mais um crime fosse cometido pelo coronel.

Cardoso abriu um dos vidros do carro e então foi possível ver através da janela, exatamente ao lado do parque, um dos prédios que compu­nham o Centro Regional de Ciências Nucleares. O lugar, protegido por guardas, tinha as paredes iluminadas e o estacionamento ocupado apenas por alguns poucos veículos.

No caminho até aquele destino, Henrique havia falado a todos sobre a história do Centro Nuclear. Um lugar construído com o objetivo principal de abrigar os resíduos tóxicos gerados no acidente de Goiânia, mas que com o tempo havia se tornado um centro de pesquisas provisionado com alguns dos melhores equipamentos do mundo. Ali, novas tecnologias desenvolvidas com base em elementos nucleares eram apresentadas e seus potenciais, tes­tados. Era uma tecnologia limpa, ressaltava o site de onde o militar buscara a informação. Algo discutível quando acontecimentos como o acidente de Chernobil, de Goiânia e principalmente do Japão eram lembrados. Seis mil toneladas de rejeitos sólidos estavam armazenadas naquele parque, e isso era, talvez, a maior de todas as suas contradições:

É aqui! - afirmou Patrícia, rompendo o silêncio. - Este é o lugar descrito no relatório.

Parece estar muito bem vigiado - comentou Henrique.

Tem que ser - completou Cardoso. - O material que armazenam aqui é suficiente para fazer um estrago considerável em qualquer lugar do mundo.

E como vamos entrar? - perguntou Henrique.

A localização exata não fica no Centro Nuclear, fica na área de preservação - respondeu Cardoso, saindo do carro em direção ao porta-malas. - E para chegarmos lá, basta que não sejamos vistos.

Incentivados pela ação de Cardoso, Fernando e Gabrielle saíram do veículo. Precisavam separar os materiais necessários para a sua cami­nhada.

O helicóptero que transportava o coronel Castro sobrevoava agora a região de Botucatu. Na cabine, o major Alencar viajava desacordado, preso a um dos confortáveis assentos de couro. Seu corpo, cheio de feri­das, resultado das incansáveis horas de tortura, estava coberto por um sobretudo de lã negra, e sua cabeça apoiada diretamente no vidro late­ral da porta. Douglas se aproximou do militar e tomando a pulsação de seu pescoço confirmou que ainda estava vivo. Pelos planos do coronel, o traidor em breve se uniria a seu grupo, e todos juntos seriam eliminados.

Sem saber o que lhe esperava, Alencar permaneceu imóvel. Quando se desse conta de seu destino, talvez já fosse tarde demais.

 

O general Demétrio era um dos oficiais do Exército de passado invejável, cujo poder era instituído por sua inteligência e perspicácia. Conhecido pela maioria dos graduados em serviço, o antigo chefe da Corregedoria e antecessor de Vitor era atualmente o responsável pelos investimentos voltados à modernização e equipagem de todos os quar­téis do país. Sua vida, agora, se resumia em viagens para o estreitamento dos relacionamentos com empresas civis, em busca de tecnologias ino­vadoras e contratos que fornecessem ao país o maior número possível de benefícios. Nada complicado para um homem que também fora, por muitos anos, instrutor de aspirantes a oficial em uma das mais qualifica­das escolas militares do país. Porém, durante os anos na Corregedoria do Exército, Demétrio ficara conhecido principalmente por sua habilidade em tratar de assuntos de alto sigilo. Muitas das vezes que algo surgia no panorama histórico que pudesse causar risco à segurança nacional, ele era requisitado. Vitor sabia disso e, portanto, havia decidido procurar seu antigo amigo. Precisava de mais informações sobre o destino dos fugiti­vos - e se havia alguém que soubesse a localização exata do antigo labo­ratório, este alguém era Demétrio.

O relógio já marcava vinte horas e trinta minutos quando o turbo-hélice, trazendo Demétrio de uma reunião realizada no Vale do Paraíba, interior de São Paulo, pousou no aeroporto internacional de Brasília. O general estava cansado, as negociações com uma empresa fabricante de armas, ocorridas no transcorrer daquele dia, apesar de produtivas, haviam sido duras. Enfim, uma grande parte dos armamentos de combate antiaéreo seria modernizada. O contrato milionário, mesmo criticado por muitos como desperdício do dinheiro público, era algo necessário. Com o país em constante crescimento e também com as freqüentes des­cobertas de petróleo em todo o território nacional, equipar e modernizar as forças armadas era uma questão de prioridade.

Após alguns minutos taxiando na pista do aeroporto, o avião modelo Brasília que trazia o general parou em um dos hangares da Força Aérea. Carregando sua pasta, Demétrio desceu as escadas. Mas antes que colocasse os pés no chão, teve uma surpresa. Um amigo o esperava:

Vitor? - disse o coronel. - Não sei se fico contente ou preocupado em vê-lo.

O capitão cumprimentou o amigo com uma continência e depois com um caloroso aperto de mão:

Sempre perspicaz, Demétrio - respondeu Vitor. - Sempre perspicaz.

É o meu trabalho, rapaz. E como está o ministro?

Muito bem, senhor. Deve estar em casa a essa hora; eu não queria incomodá-lo, por isso vim procurá-lo.

Para contar com sua presença em minha chegada, deve tratar-se de algo realmente importante. Suponho que não tenha sido somente para me cumprimentar que teve todo esse trabalho.

Não, senhor, realmente não foi só para isso que vim - confirmou Vitor.

O general caminhava em direção a um carro que o esperava no han­gar e Vitor seguia-o a passos rápidos:

Então, para que foi? - perguntou o general.

Preciso de uma informação e na verdade não tenho tempo de requisitá-la formalmente, então pensei em você.

Apesar de as palavras de Vitor soarem informais o general percebeu seu nervosismo. Um soldado o aguardava no carro, mas antes que che­gasse até a porta ele parou.

Fale, meu rapaz, não tenho a noite toda - disse.

Preciso saber se o laboratório nuclear de Goiânia do qual eu ouvia falar existe mesmo, e onde fica.

Por um instante o semblante de Demétrio mudou completamente. Poucos militares ainda vivos conheciam aquela história e, dos que ainda não sabiam, poucos teriam a coragem de perguntar. Deixando a pasta no interior do carro, Demétrio caminhou mais um pouco, distanciando-se do soldado e se aproximando um pouco da pista de taxiamento. O local estava iluminado por luzes de várias cores. Sons de turbinas vindos dos jatos que estavam no aeroporto cobriam parcialmente a voz de quem estivesse dis­posto a conversar e então o militar teve que falar um pouco mais alto:

Mas por que está me perguntando isso, Vitor? - indagou Demétrio.

Estou investigando o Setor 27, senhor, e me parece que eles estão querendo alguma coisa que está nesse tal laboratório.

Você sabe que não posso lhe falar deste assunto. O que aconteceu naquela região não pode ser jamais comentado, nem mesmo entre nós. Não temos provas de quem fez aquilo e por isso não existem registros disponíveis. O assunto foi resolvido da melhor forma e com o mínimo de baixas.

Eu sei, mas se eu não chegar lá em tempo hábil, pode ser que um novo problema aconteça na região. Algo que possa trazer tudo à tona novamente. Não só o incidente, mas também os motivos pelos quais aconteceu.

Não sei - respondeu Demétrio, num tom de indecisão.

Eu não estaria aqui, agora, se isso não fosse importante - conti­nuou Vitor. - Outras vidas correm perigo e, por isso, eu preciso saber.

Demétrio conhecia Vitor havia muito tempo e percebia a importân­cia do que lhe pedia. Mesmo negando uma antiga promessa, o general lhe contou:

Esta conversa jamais aconteceu.

Perfeito - respondeu o capitão, com seriedade.

O laboratório existe - continuou Demétrio. - Era um lugar espe­cializado no estudo de aplicações para tecnologia nuclear. Um homem chamado Montenegro comandava os experimentos, e os resultados que ele conseguiu foram surpreendentes. O problema é que um dos seus cien­tistas começou a compartilhar informações de maneira ilícita e então alguém invadiu o lugar. Não temos provas de quem foi, mas o grupo que invadiu o laboratório não deixou muito para investigarmos. Foi um ato criminoso de algum grupo da época. Alguns falavam em comunistas enquanto outros falavam em pessoas de dentro.

Vitor ouvia-o atentamente.

Quando o Setor 27 chegou para avaliar o ocorrido e recolher os experimentos, não acharam nada além de simples relatórios laborato­riais. O próprio professor Montenegro havia desaparecido, levado pelos criminosos que invadiram o lugar. Não sei como, mas quase nada mais foi encontrado, é como se tudo tivesse desaparecido por mágica.

E então?

E então que não existe mais nada naquele laboratório. O lugar está deserto!

Não creio, senhor! Nossas investigações apontam para novas evi­dências de que os homens do Setor voltaram a revirar este assunto, como se algo de novo tivesse sido descoberto.

-Vitor, o laboratório está selado!

Eu sei disso, senhor, e para que ele continue assim - completou Vitor - eu preciso saber onde ele está localizado.

Demétrio olhou na direção da pista e após alguns segundos continuou:

Os dejetos do acidente de Goiânia ficam no Centro Regional de Ciências Nucleares. Ao lado existe um parque estadual. Dentro do parque existe uma pequena construção de madeira, parecida com uma casa de dois cômodos. O laboratório está lacrado já há muitos anos, mas a casa marca a antiga entrada.

Ao ouvir as palavras do general, Vitor rapidamente agradeceu, virou-se e saiu. Sabia agora exatamente onde estavam. Era uma viagem curta e, se fosse de helicóptero, em cerca de uma hora estaria lá.

 

                     A Entrada

A noite estava clara e a lua brilhava iluminando o caminho quando Fernando, Gabrielle e os outros chegaram a uma pequena casa de madeira quase no centro do parque estadual. Em pouco mais de uma hora, através de trilhas possivelmente utilizadas por funcionários do parque, o grupo havia atravessado a vegetação que separava a construção da estrada.

Fernando foi o primeiro a entrar no lugar que lembrava as antigas casas de madeira construídas no interior de Goiás. Imprimindo certa força contra a porta, o advogado liberou espaço suficiente para que pudesse passar carregando sua mochila, agora equipada com material de apoio à nova expedição. A situação da casa era precária e até mesmo perigosa. Pelas condições em que se encontrava, nem mesmo oportunistas se inte­ressariam em habitá-la. A porta de madeira tinha partes quebradas e as paredes apresentavam buracos pelos quais era possível ver o que havia do lado de fora. A construção era composta por dois cômodos, que pareciam servir como depósito de ferramentas e materiais obsoletos, descartados pelos responsáveis à manutenção do parque. Antigas placas, caixas vazias, palites e pedaços de madeira. Fernando entrou com uma lanterna em punho, enquanto Gabrielle, Henrique e Cardoso traziam outras mochi­las contendo também material da expedição. Patrícia os acompanhava a certa distância, sempre com sua arma a postos, já que era responsável por manter segura a retaguarda do grupo.

Mesmo iluminando cada canto do lugar com a luz da lanterna, não era possível perceber onde estava, ou até mesmo se existia uma entrada para o antigo laboratório. O piso de toda a casa era feito de madeira e isso fez com que Fernando tivesse uma idéia. Ele caminhou até próximo de uma das paredes e pegando um pedaço de madeira que estava ali encos­tado começou a bater no chão. O som que se ouvia a cada batida era similar ao eco produzido pelo impacto em antigos azulejos. Sempre que Fernando produzia o som, Gabrielle encolhia os ombros, preocupada que alguém ouvisse o barulho e por acaso os descobrisse. Para sorte dela e de todos ali, aquilo não era possível; a construção habitada mais pró­xima daquela casa ficava a pelo menos um quilômetro de distância em quaisquer das direções para onde se olhasse.

Sem compactuar com a preocupação da companheira, Fernando seguiu batendo em todo o assoalho por vários minutos. A resposta se manteve a mesma até que no segundo cômodo, perto de uma grande pilha de palites, a batida produziu um som diferente. Imediatamente todos suspeitaram de que havia algo escondido sob aquela parte da casa. Então, com a luz da lanterna, Fernando indicou a eles o que deveria ser feito. Em poucos minutos, ele, Cardoso e Henrique removeram os obje­tos que cobriam um grande alçapão. Era uma porta quase imperceptível sem nem sequer uma alavanca à vista. Após removerem sobre o local o material apodrecido, e livrando-se dos insetos, os três juntos ergueram a porta basculante.

O que surgiu sob seus olhos foi uma escada de concreto. Sem qual­quer proteção adicional; o caminho seguia livre, degraus abaixo de onde o grupo se encontrava. O coração de Gabrielle bateu mais forte, não somente por participar de mais uma descoberta, mas também, e prin­cipalmente, pelo receio que sentia em avançar para o interior daquele laboratório. Sabia que o ambiente escuro e pouco acolhedor não propor­cionava qualquer segurança, mas que pouco podia ser feito. Precisavam entrar e descobrir o que estava escondido embaixo daquela antiga casa; e, por fim, saber qual fora o segredo deixado pelo professor Montenegro e qual risco as pessoas envolvidas com o Setor corriam naquele momento.

Enquanto observavam a abertura, Patrícia entrou na sala:

- Nada amistoso - disse a jovem oriental.

Precisamos descer, se quisermos evitar que o coronel faça a nego­ciação - respondeu Fernando.

Se formos juntos, não teremos problemas - completou Cardoso. - Temos tudo o que precisamos aqui e acho que temos tempo. Ninguém deve vir aqui durante a noite e faltam mais de oito horas para o amanhecer.

Eu concordo! - disse Gabrielle. - Já chegamos até aqui, agora não podemos voltar.

Todos estavam decididos. A busca chegava a um momento crucial e para que conseguissem evitar o pior era preciso seguir em frente. Gabrielle em um movimento sutil conferiu a bolsa que carregava. A pequena caixa de chumbo ainda estava ali, guardada consigo. Tinha certeza de que pre­cisaria do objeto que haviam encontrado no interior do museu e não podia arriscar deixá-lo para trás.

Cardoso desta vez foi o primeiro a descer. Com a arma em uma das mãos e a lanterna na outra, avançava cauteloso como se estivesse entrando em território inimigo. Após alguns degraus, o militar alcançou um pequeno hall. O lugar era apertado, com uma porta de metal de cor cinza, e com vários pontos de ferrugem em toda sua extensão. A porta estava fechada, mas os lacres de seguranças que a mantiveram segura por muitos anos estavam espalhados pelo chão. Fernando aproximou a lan­terna de um cadeado que estava serrado e caído sobre o piso. Dividido em duas partes, o objeto estava coberto de poeira, indicando que as pessoas que estiveram ali o haviam violado há algum tempo.

Alguém esteve aqui - disse Fernando. - Mas já faz pelo menos dois meses.

O lugar está aberto - completou Cardoso empurrando a porta. - Parece que não fomos realmente os primeiros a encontrá-lo.

Quando Patrícia atingiu o fim da escada, Cardoso já havia avan­çado além da entrada. A segunda sala era toda revestida por azu­lejos brancos antigos, com um grande painel repleto de relógios e o que parecia ser o fosso de um elevador. Cardoso acionou dois bastões luminosos e jogando-os no chão iluminou o local. A sala não tinha mais do que três por três metros e dava a eles a sensação de pertencer a um hospital. Analisando os relógios presos ao painel que tinha à sua frente, Fernando pôde perceber que faziam parte de um grande sis­tema de controle. Desenhadas na superfície do painel, linhas ligavam estes relógios a uma planta baixa, semelhante à que haviam encontrado no museu de Goiânia. Eram como um mapa, que indicava os lugares seguros ou perigosos do complexo. Mesmo depois de muitos anos, os indicadores marcavam com precisão os índices de radiação em todas as salas. O número total de relógios era doze: quatro para cada um dos três andares que desciam abaixo da superfície.

O mecanismo a que estavam acoplados parecia gerenciar um sistema de segurança e isolamento, possivelmente pronto para ser acionado ao primeiro sinal de contaminação radioativa. Fernando tentou identificar a sala anteriormente designada ao professor Montenegro, mas o mapa ligado aos relógios não indicava nomes, como o que havia visto no museu. Na verdade, o que estava à sua frente tinha acessos identificados em algumas das paredes que não estavam representados no mapa que haviam recolhido. Era um mapa diferente. De fato, aquilo não lhe seria útil naquele momento, precisava saber exatamente onde procurar e para isso tinha de consultar o mapa original. Antes de fazê-lo, resolveu con­firmar a situação de segurança de todo o complexo. Para tranqüilidade dele e do grupo, todos os relógios estavam sinalizando área verde em seus respectivos mostradores; isso indicava que seria seguro descer para os andares inferiores.

- Me ajude aqui - disse Fernando, falando com Gabrielle. - Preciso de luz para poder ler aquele mapa que encontramos no museu. Ele indica exatamente onde fica a sala do professor.

A jovem tentou se aproximar, mas foi interrompida por Henrique, que, estendendo o braço à sua frente, bloqueou sua passagem. No mesmo instante, o soldado se adiantou e entregou o tablet para Fernando.

Na tela do aparelho era possível ver a mesma planta baixa que Fernando e Gabrielle haviam encontrado no museu, só que ela agora era reproduzida em perspectiva através de um programa especial de proje­ção. A figura agora lhe proporcionava sensação de profundidade, dis­tância e movimento. Era possível ver um pequeno ponto indicando sua posição na tela do tablet. Fernando sorriu satisfeito; se havia algo que lhe encantava era tecnologia.

Ótimo - falou ele, virando o aparelho para que todos pudessem acompanhar enquanto falava. - Pelo que percebemos o lugar está seguro, sem vazamentos ou focos de contaminação radioativa. Esta é a sala em que estamos - disse apontando para a imagem do computador - e este fosso que temos à nossa frente é a única passagem para chegarmos aos andares de baixo.

Fernando fez uma pausa e continuou:

Pelo visto, o lugar também está sem energia e tenho certeza de que não conseguiremos religá-la por aqui. Odeio dizer isso - falou sorrindo -, mas vamos ter de descer por este buraco, sem elevador e no escuro. Alguém se habilita?

Gabrielle sorriu, sabia que Fernando não gostava de altura e aquele discurso lhe parecera até divertido. A jovem passou à frente do grupo, parando rente à abertura que servia de caminho para o elevador:

Não se preocupe - disse ela em tom irônico. - Venha comigo que eu cuido de você.

Todos riram, enquanto a jovem, que tinha prática de alpinismo, já tirava cordas da bolsa. Prendendo duas delas à pesada porta de aço que protegia a entrada do iaboratório, o grupo iniciou a descida até os anda­res inferiores. Os primeiros a entrar no fosso foram Cardoso e Gabrielle. Assim que seus corpos ficaram pendurados pela resistente corda de nylon, o militar lançou sinalizadores no vazio profundo que tinham pela frente. Os objetos luminosos caíram por quase quinze metros e então pararam, proporcionando uma visão espacial do que seria o objetivo final aonde deveriam chegar. A primeira coisa que Gabrielle checou, baseada em sua experiência, foi se a corda que estavam utilizando havia encontrado o fundo, na profundidade agora percebida pela luz dos sinalizadores. Olhando com atenção, era possível perceber parte da corda enrolada ao redor do objeto iluminado e isso a tranqüilizou. Apoiando-se em uma das paredes, a jovem iniciou a descida.

Assim que tocaram o piso iluminado, os dois perceberam do que se tratava. A superfície irregular que os suportava estava curvada com o peso de seus corpos, o que os levou a deduzir que estavam pisando sobre o teto do antigo elevador que dava acesso aos andares do laboratório. Pegando um dos sinalizadores que haviam arremessado, Cardoso locali­zou o alçapão de manutenção do elevador e, abrindo-o, teve acesso a uma grande caixa de metal.

Entrei! - gritou ele saltando. - Podem descer.

 

Merda! - vociferou o capitão Vitor. - Mas que droga, Jefferson!

Mesmo depois das diversas explicações ensaiadas pelo homem, o militar não conseguia entender como era possível que seu grupo ainda não tivesse partido em direção à cidade de Abadia de Goiás.

Desculpe, senhor! - repetiu Jefferson. - Já falei com todos os órgãos de aviação existentes. A Infraero, a Anac e até o comando regional, todos repetem a mesma coisa. Eles estenderam o bloqueio aéreo além da região central da cidade para garantir a segurança da comitiva pois, a viagem da secretária norte-americana teve um atraso considerável. Ela agora esta no aeroporto e enquanto seu avião não deixar o espaço aéreo da região Centro-Oeste, não será possível liberar a decolagem para qualquer aero­nave. Seja ela militar ou civil.

Somando várias horas de atraso na agenda acordada entre os dois governos, a comitiva liderada pela secretária norte-americana havia che­gado ao aeroporto minutos antes de Vitor e Demetrio conversarem. Por ordem dos vários comandos e respeitando os acordos assumidos, a liberação do espaço aéreo não seria realizada em menos de meia hora. Mesmo que saíssem de carro para Abadia, o grupo chegaria mais tarde do que se esperasse por mais aquele tempo. Como conhecedor das rotinas que envolviam situações daquele tipo, o capitão sabia que seria impossí­vel descumprir aquela ordem; e, se o fizesse, por certo seria interceptado antes mesmo de chegar ao destino. Além disso, causaria um problema sério para a relação diplomática entre Brasil e Estados Unidos. Mesmo assim, enquanto esperava, no hangar do aeroporto de Brasília, Vitor esbravejava:

- Faz cinco anos - dizia cinco malditos anos que estou atrás de pessoas do Setor 27, e agora que sabemos onde estão, tenho que esperar por causa de uma maldita burocracia diplomática. Faça alguma coisa, Jefferson!

O civil sacou o celular e saiu correndo em direção à porta do han­gar. Enquanto Vitor e outros militares aguardavam ao lado do enorme helicóptero, a pista do aeroporto permanecia vazia. Se aqueles gritos lhe fizessem ganhar pelo menos cinco minutos, já teria valido a pena.

 

                       O Laboratório

Em poucos minutos, todos estavam novamente reunidos no último pavimento do laboratório. A porta do elevador estava aberta e dava acesso a um corredor que, como no hall de entrada, era revestido de azulejos brancos em toda a superfície. Era impossível ver o teto, já que a distância dele até o piso era muito superior à de construções normais. Como o local estava agora repleto de barras luminosas soltas pelo chão, era pos­sível ver salas divididas por paredes, janelas de vidro e várias portas. As janelas eram a estratégia encontrada para que todos os pesquisadores pudessem ser vistos, mesmo quando em ambientes fechados. As paredes dividiam e suportavam a estrutura dos espaços e as portas separavam do corredor as salas reservadas para experimentos. Um banheiro e uma copa completavam os cômodos daquele andar.

Gabrielle observava tudo com atenção e tentava entender como seria a vida dos homens que passavam dias reclusos em lugares como aque­les. Os objetos encontrados no depósito em Brasília revelavam a neces­sidade do trabalho psicológico com pessoas internas naquele ambiente. Recreação, estudo, exercício, todo o tipo de atividade paralela auxiliava no controle da personalidade e do estresse de quem vivia muitos metros abaixo do solo, isolado de tudo.

Por conta da invasão e da exploração realizada pelos homens que haviam estado ali no passado, pouco ou quase nada restava no interior das salas. Apenas prateleiras, armários, cadeiras e mesas ainda permaneciam no local. Cardoso fez sinal para que Henrique e Patrícia explorassem as primeiras salas, enquanto Fernando, guiado por um ponto brilhante no mapa do tablet, caminhava até o final do corredor. Ali, ao que tudo indi­cava, encontrariam o laboratório utilizado pelo professor Montenegro.

O advogado caminhou sob a fraca luz proveniente dos sinalizadores e logo estava em frente à porta da antiga sala. O local media três por cinco metros. Nas laterais, perfazendo quase todo o seu contorno, uma enorme bancada de madeira, revestida de fórmica branca, permanecia no mesmo lugar onde o professor a havia deixado. Além dela, armários, um painel com antigos tubos de imagem, um relógio de parede e um enorme gabi­nete com fitas perfuradas saindo de seu interior era tudo o que encontra­vam à primeira vista.

Não tem nada aqui - exclamou Fernando abrindo um dos armá­rios. - Só móveis e antigos monitores.

Gabrielle estava próxima ao computador e retirando parte da fita perfurada que estava pendurada na máquina respondeu:

Não sei! Acho que temos que procurar um pouco mais.

Neste momento, Henrique e Patrícia se juntaram a eles na sala.

Nada nas outras salas - disse Henrique. - Móveis, algumas máquinas e antigas ferramentas. Não acredito que possa haver algo significativo por lá.

Cardoso, que abria algumas das gavetas da bancada enquanto ouvia os comentários do grupo, parou e por um momento tudo lhe pareceu muito confuso. Desde o início, a grande justificativa por trás de toda aquela operação estava baseada na busca de tecnologias que representa­vam um valor incalculável. Algo capaz de despertar o interesse do coronel a ponto de este expor o que por muito tempo fora seu mais importante segredo. O major descobrira ações ilegais realizadas por aquele homem e por isso decidira realizar uma busca pelo que ele tanto desejava. Agora, frente a frente com o que tinham encontrado, nada lhe parecia valer todo aquele esforço.

Não faz sentido - disse ele, tornando público seu pensamento -, deveríamos encontrar alguma coisa de valor. Algo que o coronel pudesse estar comercializando; assim, evitaríamos uma nova exposição do Setor. E até agora não achamos nada.

Enquanto todos olhavam surpresos para a sala abandonada, Gabrielle caminhava com sua lanterna, observando cada centímetro da antiga parede. A jovem sabia que algo havia passado despercebido pelos antigos militares e tentava descobrir o que poderia ter sido. Naquele momento sua calma era o que lhe traria a resposta. Pouco a pouco, a historiadora explorou cada canto da sala. A cada centímetro, sua confiança era enfra­quecida, como se não lhe fosse possível desvendar aquele mistério. Porém, de repente, seus olhos perceberam um objeto preso à parede. Era um quadro com as mesmas características daquele que haviam encontrado na sala de Augusto, dentro do museu Zoroastro. Levantando a lanterna, Gabrielle iluminou as palavras e as leu em voz alta:

 

                     A verdade é filha do tempo, e não da autoridade.

                                   (Galileu Galilei)

 

O pequeno quadro mais uma vez despertara sua atenção. O mesmo autor e as mesmas características encontradas no anterior. Iluminando bem as extremidades da moldura, Gabrielle falou:

O professor nos deixou sinais ligados por similaridade. O mesmo autor, o mesmo formato, mas frases diferentes. - Aproximando-se do objeto ela continuou - Ousaria dizer que nas costas deste quadro, como na do anterior, não encontraremos nada além de uma parede revestida por azulejos.

Assim que a jovem removeu o quadro, Fernando observou o espaço anteriormente ocupado pelo objeto. Para sua surpresa, era como se ela tivesse feito a previsão.

Nada - disse Fernando.

Como no outro - continuou ela. - Teremos que interpretar a frase para entender onde procurar.

A verdade é filha do tempo, e não da autoridade - disse ele. - O que podemos prever é que ele se referia novamente à repressão que estavam sofrendo. Como se a autoridade significasse tudo pelo que passavam. O fato de serem vigiados, de terem que ficar meses sem poder ir à superfície.

Gabrielle estava pensativa. Enquanto ela e Fernando conversavam, os outros olhavam atentos. Era impressionante a capacidade do casal quando se tratava de desvendar mistérios como aquele.

- Pode ser - continuou Gabrielle, devolvendo o quadro a seu lugar de origem. - Mas na frase anterior existia uma ligação entre o texto e algo físico. Se ele seguiu os mesmos padrões de construção, deve existir essa mesma relação aqui também.

Enquanto falava, Gabrielle continuava a observar cada detalhe da sala. Cada móvel e cada objeto.

"A verdade é filha do tempo, e não da autoridade" - repetiu ela. - Vamos professor, que tempo é este.

De repente, Gabrielle se lembrou do que havia visto logo que entrou na sala. Um objeto perdido. Distante da visão e da atenção de todos. Algo que, mesmo que fosse observado durante várias horas por dia, seria con­siderado como parte da paisagem.

Olhando para cima ela avistou, a metros do chão, o antigo relógio. Era um modelo de madeira, simples e aparentemente sem valor.

A verdade é filha do tempo - repetiu novamente, apontando agora para o objeto.

Naquele momento, Fernando percebeu que mais uma vez a jovem havia acertado. Gabrielle realmente era dotada daquilo que era preciso para fazer descobertas como aquela; era como se fizesse parte de seu eu, do que ela era.

Pegando uma das banquetas da sala e colocando-a sobre o tampo do balcão, Fernando tentou alcançar o objeto. Ao vê-lo fazendo aquilo, Henrique e Cardoso se aproximaram, auxiliando-o e suportando seu corpo para que ele pudesse alcançá-lo. Com cuidado, então, ele removeu o antigo relógio, revelando na parede uma pequena abertura no mesmo formato da caixa de chumbo que haviam trazido do museu. Gabrielle sorriu. O destino da caixa que carregava consigo era agora conhecido. Imediatamente entregou-a a Fernando que a encaixou no local sem gran­des dificuldades.

Nos cinco segundos que se passaram, nada foi ouvido nem visto pelo grupo. Porém, no instante seguinte, o laboratório e todos os seus andares adquiriram vida. As antigas lâmpadas fluorescentes existentes em todo o complexo acenderam simultaneamente em uma ação surpreendente. Uma claridade acima dos padrões normais chegou aos olhos de todos, causando-lhes um breve incômodo. Fernando desceu da banqueta, momentaneamente cego pela intensidade da luz, mas, em poucos segun­dos, já voltava a enxergar. Via agora com clareza a bancada, o quadro com a frase de Galilleu e a beleza incontestável de Gabrielle. O olhar da jovem, ao cruzar o seu, provocou nela um sorriso tímido e elegante.

Voilá - disse ela - "que se faça a luz".

Era incrível, a pequena caixa que haviam trazido consigo restaurara em poucos segundos a vida ausente em todo o complexo.

Deve ser uma bateria - disse Patrícia enquanto todos se reencontra­vam. - Uma bateria nuclear.

Essas coisas existem? - perguntou Fernando. - Achei que eram perigosas.

E são - continuou ela -, é a primeira vez que vejo uma desse tamanho e estável depois de tanto tempo. Pelo que sei, as baterias criadas até hoje ainda apresentam riscos e não podem ser utilizadas em escala. Foram criadas bate­rias nucleares do tamanho de moedas, só que nenhuma delas está disponível para uso. Os cientistas ainda devem levar anos para aperfeiçoá-las.

Pelo visto, nosso amigo professor estava adiantado em seu trabalho - respondeu Cardoso.

Parece que sim - concordou Patrícia.

De repente, o som de um bipe tomou conta da sala e no painel que abrigava vários tubos de imagem, um deles foi acionado. Após uma contagem regressiva, a imagem carismática de um homem apareceu na tela. O local onde ele estava era o mesmo laboratório onde eles agora se encontravam. O homem sorriu e iniciou sua fala:

Sejam bem-vindos! Meu nome é Montenegro...

O helicóptero trazendo o coronel pousou em uma clareira próxima da entrada do laboratório exatamente às vinte e três horas. A máquina negra, equipada com silenciadores, não foi sequer vista por vizinhos ou vigilantes do parque. Assim que a aeronave tocou o solo, o coronel, Douglas, dois soldados e o major desceram.

- Você e você - disse ele apontando para os soldados. - Já sabem o que fazer. Coloquem os explosivos nos andares sem deixar vestígios. Depois nos encontrem no último piso. O laboratório principal fica lá, e eles já o devem tê-lo encontrado. Quanto a você, Douglas, traga o major, ela será nossa moeda de troca.

Todos correram em direção à entrada certos daquilo que deveriam fazer. Naquele momento, o coronel teve uma certeza. Em breve, teria em suas mãos o maior e mais valioso segredo já guardado pelo Setor.

 

                   Professor Montenegro

A voz que saía de dois alto-falantes posicionados ao lado do painel de monitores do laboratório ecoava por todo o complexo. Apesar de a imagem ser em preto e branco, era possível perceber que o vídeo a que estavam assistindo havia sido feito ali mesmo onde eles agora esperavam. Surpresos, Fernando, Gabrielle e todos os presentes aguardavam as pala­vras do professor.

Depois de anunciar seu nome o homem continuou:

Este é o vídeo de backup número trinta e quatro, da equipe residente do Laboratório Nuclear de Pesquisas Complementares, o LNPeC. O obje­tivo deste vídeo é registrar a evolução dos experimentos realizados neste laboratório. Por conta dos riscos existentes no trabalho executado neste complexo, e também pela natureza sigilosa de nossos experimentos, um vídeo como este é periodicamente gravado e depois oculto sob segurança de um pequeno dispositivo nuclear criado por nossos próprios cientistas.

Naquele instante, o professor pegou sobre a bancada do laboratório uma caixa idêntica à que Fernando e Gabrielle haviam encontrado no museu. Ele segurou a caixa nas mãos e continuou:

Se você está assistindo a este vídeo, acredito que seja um cientista, ou quem sabe alguém com conhecimentos suficientes para interpretar os sinais deixados no caminho até este laboratório. Sinais que inicial­mente o levaram a esta caixa, e depois a este vídeo. - E após um breve sorriso ele continuou: - Este é um de nossos principais inventos, uma bateria nuclear do tipo não térmica. Ela usa a radiação para geração de calor e assim produz energia. Alguns cientistas a chamam de tecnologia Betavoltaics e nós a chamamos simplesmente de superbateria. Ainda não é possível reproduzi-la em grande escala, mas o isolamento tem-se com­portado de forma segura, e a produção de energia, em escalas superiores às que havíamos previsto.

O professor depositou novamente a bateria sobre a bancada e continuou:

Mas este é apenas um de nossos experimentos. Como nos outros vídeos, nosso objetivo é registrar não uma, mas todas as invenções pro­duzidas neste laboratório.

Gabrielle pegou um dos bancos e se acomodou. Aquela história pare­cia ir além do que imaginava e era preciso dedicar-lhe toda sua atenção.

Há exatos cinco anos este laboratório foi criado. O objetivo princi­pal desde sua criação foi o de desenvolver inovações, relacionadas ao uso da tecnologia nuclear. Com a compra realizada pelo governo do Brasil, de unidades de geração de energia e também da tecnologia de refinamento, surgiu a oportunidade de estudarmos estas possíveis inovações complementares. Pelo menos é assim que as chamamos - disse ele, caminhando até um dos armários de ferro no canto da sala. Ele fez uma pausa e con­tinuou: - Como sou o líder da equipe, é nesta sala que guardo os princi­pais registros dos estudos. Neste armário estão projetos experimentais de baterias, geradores, aparelhos médicos e outros tantos projetos derivados desta tecnologia.

Ao ver a imagem no vídeo, Fernando se aproximou do armário e abrindo a porta confirmou o que imaginava: o local estava vazio.

São informações colhidas através do esforço de toda a equipe envol­vida neste projeto. É um trabalho que traz orgulho e nos eleva ao patamar não só de usuários, mas também de desenvolvedores dessa tecnologia. Um status similar ao alcançado pelos países do primeiro escalão, algo relevante, mas que ainda não se trata de nossa maior conquista.

O professor desviou o olhar da câmera e, conversando possivelmente com quem filmava naquele momento, interrompeu o assunto:

Feche as persianas, Augusto - disse ele. - E a porta também.

Por um segundo Gabrielle sentiu um frio na boca do estômago. A jovem olhou para Fernando e, por um momento, os pensamentos dos dois coincidiam. Ambos sabiam quem estava com Montenegro naquele dia. O cientista desapareceu da tela por alguns segundos. Após o som da porta se fechando, retornou:

Ótimo! - disse ele. - Como estava dizendo, este não é nosso invento mais importante. Quando cheguei aqui o pedido maior, a verdadeira razão que justificava a abertura deste laboratório, era a criação de um dispositivo de destruição em massa. Uma ogiva nuclear.

De repente, todos no laboratório se olharam. O que ouviam era muito mais do que haviam imaginado. Uma ogiva nuclear representaria um perigo impensável para o país e para todos que estivessem ali envolvidos.

No início - continuou o professor - não imaginei que fosse pos­sível conseguir, e por isso conduzi os experimentos com a intenção de desenvolver inovações capazes de melhorar a vida das pessoas. Mas, com as cobranças e as interferências dos militares, através da ameaça do fechamento do laboratório, tivemos que retomar nossa meta principal. Então, após alguns meses, conseguimos completar a construção deste dispositivo. Assim que eu o vi concluído, me dei conta do que fizemos e percebi o erro que havíamos cometido. - O rosto do professor não apre­sentava mais a satisfação inicial. - Imediatamente busquei uma forma de escondê-lo. Minha intenção é fugir e após um tempo, quem sabe, resgatar o invento para então destruí-lo ou direcioná-lo às mãos de alguém em quem possa confiar. Mas como não sei qual será o resultado do que esta­mos planejando, deixei este vídeo e os sinais de que falei no início com a esperança de que alguém de confiança possa encontrá-lo no futuro e dar um destino digno ao que criamos.

Aqui - continuou Montenegro se aproximando agora do grande computador existente na sala - existe uma pequena tampa; ao removê-la, um pequeno teclado aparecerá. Ao digitarmos uma senha neste teclado, uma pequena abertura na parede irá revelar uma sala escondida e tam­bém a ogiva. Se chegaram até aqui, tenho certeza de que não será difícil descobrir qual é o código. Existem dois grandes físicos que eu admiro e que são unidos por um número, um algarismo que guarda semelhante importância em sua história. Um deles, vocês já podem imaginar; quanto ao outro, vou deixar que descubram. Só peço que, para o bem de vocês, não forcem a abertura, pois existe um dispositivo de segurança ligado a um pulso radioativo que pode contaminar o ambiente em que se encon­tram. Enfim, minha intenção é a de que este vídeo não tenha utilidade, pois eu mesmo pretendo reaver esta ogiva depois que julgar seguro. Vídeo trinta e quatro encerrado!

Com esta fala, o monitor voltou a se apagar, juntamente com o som e todas as luzes do painel.

A revelação feita pelo professor estava agora sendo assimilada por todos dentro do laboratório. Fernando, como todas as pessoas ali presen­tes, jamais pudera imaginar que a principal finalidade daquele lugar era a criação de dispositivos de destruição em massa. Desde que haviam des­coberto que o objeto de negociação do coronel tratava-se de dispositivos nucleares, ambos haviam interpretado como a possível venda de tecnolo­gias de manuseio e refinamento de substâncias radioativas, não a de uma ogiva pronta. O primeiro pensamento era se o grupo de Castro havia ou não chegado até a ogiva. Se, quando abrissem a porta secreta do laborató­rio, encontrariam o que Montenegro prometera ou apenas uma sala vazia.

O jovem advogado olhou para Gabrielle. Seus olhos denunciavam pensamentos semelhantes aos que pairavam em sua cabeça. Cardoso, Henrique e Patrícia observavam os dois civis, e instintivamente aguarda­vam seu próximo passo. Como o professor havia dito no vídeo, apenas as pessoas que conseguiram chegar até ali seriam capazes de desvendar e entender os números que compunham o antigo código.

Esta é uma revelação pela qual eu realmente não esperava - disse Fernando dirigindo-se a Gabrielle. - Acho que nos envolvemos com algo maior do que havíamos pensado.

Passando a mão no rosto, Gabrielle retomou seu pensamento. Estavam ali, frente a frente com toda aquela história, e precisavam pôr um fim a tudo. Restava saber se não haviam chegado tarde. Era uma grande loteria. Mas se algo como fora descrito pelo professor existisse, precisavam tirá-lo do alcance do coronel.

Senha?! - disse ela se aproximando do computador. - Uma senha relacionada às pistas deixadas no museu e aqui no laboratório.

A mente de Gabrielle era capaz de guardar mais informações do que a de qualquer outra pessoa. Em seu pensamento a jovem associava as palavras ditas pelo cientista a uma famosa história, utilizada como fer­ramenta para explicar a origem do calendário cristão. Ali Gabrielle via a única ligação possível entre as frases deixadas pelo professor e um con­junto de números que pudesse revelar a porta que estavam procurando. Assustada, não tinha certeza se deveria seguir em frente. Agora que sabia o que estavam por descobrir, destrancar um poder como aquele era talvez a coisa mais difícil que já fizera. Mas, ao mesmo tempo, não saber o des­tino de um dispositivo capaz de causar a morte de tantas pessoas e a des­truição de famílias era algo aterrorizante. O coronel poderia ter estado ali e, se isso de fato houvesse acontecido, eles precisavam saber. Não tinham o tempo a seu favor. Um dia ou apenas algumas horas podiam represen­tar o risco de serem encontrados.

O silêncio preenchia as salas vazias do laboratório enquanto a histo­riadora travava um combate com seu próprio raciocínio. Não era real­mente difícil para ela lembrar de fatos na história que marcavam perso­nalidades, pois sua vida era estudar cada uma delas. Gabrielle sabia que as principais informações que compunham códigos eram fatos relevantes, ou curiosidades ligadas às pessoas da história. Sabia o que Galileu carre­gava em sua biografia que pudesse ser usado pelo professor como inspi­ração para o código.

Galilleu, Arquimedes, Einstein, Newton - continuou ela se recom­pondo. - Esses são os maiores físicos da história. De alguma forma todos eles estão ligados. Mas dois destes homens viveram quase em uma mesma época. Na verdade, o ano da morte de um deles foi o mesmo ano do nas­cimento do outro.

O grupo olhava surpreso para a mulher que caminhava à sua frente. As informações pareciam fluir de uma mente diferente e especial.

Quando aprendemos o calendário moderno, o que chamamos de Gregoriano, precisamos referenciar o antigo calendário europeu criado por Júlio César e que é chamado de calendário Juliano. A principal dife­rença entre os dois é uma defasagem de dez dias. O calendário Gregoriano só foi adotado na Inglaterra alguns anos após o nascimento de Newton e por isso existe uma mística entre a data. Alguns defendem o nascimento do cientista ocorrido em 04 de janeiro de 1643 enquanto outros falam de 25 de dezembro de 1642. Assim, para aqueles que acreditam que Newton nasceu em 1642, fica a ligação mística entre a morte de Galileu, ocorrida exatamente no mesmo ano.

 

Gabrielle abriu a pequena tampa e observou o teclado numérico à sua frente. Mesmo sem saber o que os esperava além daquelas paredes, digitou a senha.

 

                   Um Encontro Indesejável

Imediatamente, o som de máquinas trabalhando preencheu o ouvido de todos. Ao fundo da sala, bem no encontro das paredes, um estalo fez surgir entre o rejunte dos azulejos uma pequena fresta. Então, com o ran­ger de antigas dobradiças, uma porta se abriu. Não tinha mais do que um metro e meio de altura por um de largura. Com as bordas até então escon­didas pela divisão dos azulejos, a abertura revelou uma pequena sala.

Gabrielle aproximou-se, seguida por Fernando. O coração dos dois batia acelerado, com a adrenalina injetada pela dúvida sobre a existência ou não do dispositivo nuclear anunciado pelo professor. Dentro da sala, uma segunda porta de chumbo, protegida apenas por uma alavanca, era a última fronteira entre presente e o passado. A exemplo do que haviam encontrado anteriormente, um relógio marcador de radiação indicava os níveis de contaminação além daquela entrada. Novamente, o ponteiro de indicação repousava sobre a parte verde do marcador, o que demonstrava que o local estava plenamente seguro. Fernando tocou no braço da jovem pedindo passagem e, então, abriu a porta.

Várias prateleiras de concreto, embutidas às paredes armazenavam apenas uma única caixa de acrílico. No interior da caixa era possível ver um cilindro metálico com o conhecido símbolo de radioatividade estam­pado em sua lateral. O objeto de pouco menos de sessenta centímetros de comprimento por quinze de diâmetro reluzia atingido pela claridade da iluminação no interior da pequena sala. Enfim, eles haviam chegado antes. Fernando pegou a caixa com cuidado e caminhando alguns passos colocou-a sobre uma das partes da enorme bancada. Todos se aproxima­ram para ver. Era impressionante estar na presença de uma arma com poder de devastação capaz de silenciar uma cidade. Com o passar dos anos, influenciado por reproduções cinematográficas de ficção, objetos como aquele se tornaram comuns, no entendimento e no vocabulário de quase todas as pessoas. Mas saber de sua existência e estar próximo de algo tão cruel representava novamente para eles o real perigo de armas daquele tipo para a humanidade.

Gabrielle se afastou. Seus olhos mareados denunciavam o temor que aquilo causava à jovem. Ela soubera durante toda a vida que a história não se constituía apenas de momentos dignos e atos nobres, mas estar frente a frente com uma das criações mais impressionantes e ao mesmo tempo anta­gônicas da humanidade ia além do que esperava para aquele momento.

O que faremos com isso? - perguntou Fernando rompendo o silên­cio. Ele encarava a ogiva, protegido apenas pela fina camada de acrílico da caixa. - Mantê-la aqui é muito arriscado. Alguém por acidente pode che­gar ao laboratório e pôr tudo a perder. Também não podemos entregá-la a qualquer um e nem mesmo descartá-la por aí.

Levá-la ao Setor seria loucura - continuou Cardoso -, estaria muito próxima do coronel e isso seria muito arriscado.

Só se entregarmos ao Vitor - interrompeu Patrícia. - De uma forma ou de outra, ele é quem está mais próximo dos chefes de Estado. Mesmo não estando do nosso lado, parece ser alguém em quem podemos confiar.

Por um momento Cardoso hesitou. Patrícia estava certa, o homem que os perseguia era talvez a única opção, o único em quem podiam confiar. Uma ironia, capaz de colocá-los frente a uma decisão, em uma encruzilhada.

Mas onde o encontraremos e como vamos nos aproximar dele sem que ele tente nos atacar? Pode ser arrisc...

De repente o som de um aplauso cobriu a voz do tenente, fazendo com que ele parasse. As palmas sólidas e constantes vinham do corredor. Todos, quase simultaneamente, olharam na direção de onde vinha o som. Ali, bem à sua frente, o coronel Castro os aplaudia efusivamente.

Assim que se deram conta da presença intrusa, Cardoso, Patrícia e Henrique imediatamente sacaram suas armas e apontaram na direção do oficial. Mesmo surpresos e com a pontaria firmada sobre o alvo, espe­raram até que algo acontecesse. Nos segundos que relutaram, o coro­nel manteve suas palmas e um sorriso que chegava a causar temor. Não demorou que o homem se pronunciasse:

Impressionante - disse ele, finalizando lentamente os aplausos. - Eu sempre, sempre achei impressionante o que mentes preparadas são capazes de realizar.

Sem se intimidar com as armas agora apontadas em sua direção, ele continuou:

As mentes mais brilhantes da humanidade sempre me intrigaram. Desde os primórdios algumas pessoas, e apenas algumas, parecem nascer com a habilidade de ver além do que nos é mostrado.

Enquanto o coronel falava, Fernando se posicionou à frente da caixa. Era possível que ele não tivesse ouvido o que vinham falando até aquele momento e se pudesse evitar que ele se interessasse por suas descobertas, seria mais prudente. Gabrielle, que estava a seu lado, fez o mesmo e com o corpo os dois agora cobriam o objeto. A frente deles, os soldados do Setor e agora seus amigos mantinham a arma empunhada na direção do coronel. O oficial continuou:

Há muito tempo, eu e algumas pessoas da minha equipe estamos tentando decifrar o segredo deixado pelo professor Montenegro. Um segredo capaz de trazer poder ou fortuna para quem quer que tenha a oportunidade de tê-lo nas mãos. Uma promessa feita ao país desde que este laboratório foi aberto.

Cardoso, por um instante, resolveu investir contra o oficial. Não tinha que ouvir daquele homem qualquer coisa que fosse. O Setor 27 jamais voltaria a ser o que era e por isso ele não lhe devia qualquer obe­diência. Cardoso ameaçou seguir em sua direção, mas foi interrompido por um alerta:

Eu não faria isso - disse Castro, espalmando a mão em sinal de alerta ao militar.

Não tenho por que te ouvir - vociferou Cardoso, seguindo em sua direção.

Mas com o movimento da mão, o coronel fez surgir às suas costas algo inesperado. Cardoso por um instante achou que seus olhos haviam-lhe pregado uma peça. Não conseguia entender nem mesmo acreditar na imagem. Douglas, o homem que os guiara até ali, surgiu, trazendo nos braços um homem desmaiado. No primeiro momento, foi difícil reco­nhecê-lo. Na verdade, Gabrielle foi a primeira pessoa a perceber:

Não! - disse a jovem, correndo em direção à porta. Desta vez foi Castro quem sacou uma pistola e apontou em sua direção.

Fique onde está, minha jovem - disse ele.

Fraco e quase desacordado, o major era apoiado por Douglas. Ao mesmo tempo, o traidor apontava uma arma na direção de sua cabeça.

Aliás - continuou o coronel -, fiquem todos exatamente onde estão. Eu gostaria de continuar falando, mas acredito que se ficarem se mexendo, isto se tornará muito mais difícil.

Cardoso, assim como Gabrielle e os outros, recuaram frente ao que estavam presenciando, era prudente saber o que o coronel pretendia. De nada lhes adiantaria iniciar um tiroteio naquele momento, além de colo­car em risco a vida do grupo e a do major, seus adversários poderiam atingir a ogiva, causando um acidente de proporções incontroláveis.

 

Naquele momento, dois helicópteros sobrevoavam a Capital Federal em direção à cidade de Abadia de Goiás. No interior de um deles, Vitor, seu assessor Jefferson e mais três soldados fortemente armados perma­neceriam por mais de meia hora, até que o piloto alcançasse seu destino. Preocupado, o chefe da Corregedoria do Exército torcia para que che­gassem em tempo de salvar a operação do desastre total. As investigações que realizara nas últimas semanas lhe davam sinais de que a maior e mais perigosa negociação realizada pelo coronel Castro estava para ser concluída. Ele precisava encontrá-lo antes que isso acontecesse. Precisava pôr um fim àquilo tudo, e esta era sua última chance.

 

                     Um Plano Perfeito

Por um instante o laboratório pareceu silenciar. Amparados pelo risco a que estavam expostos e pela imagem da situação em que o major se encontrava, todos aguardavam apreensivos pelas palavras que seriam ditas pelo coronel. Castro sorriu ironicamente e continuou:

Há muitos anos, eu e algumas pessoas percebemos que o futuro de nosso regime estava condenado. Não era possível prever quando, mas sabíamos que o Brasil modelado por nós seria substituído. Assim como o Setor 27, outras unidades do antigo regime estavam indo rumo a uma espiral de decadência desonesta. No fundo, todos em segredo lamenta­vam essa perda, mas apenas nós tivemos coragem de intervir. Em um plano baseado em brechas encontradas nas leis que nos regem, reunimos em segredo artigos de valor que seriam, no futuro, usados como fonte de recursos. Eles seriam a base que manteria nossas operações e assim garantiriam nossa força caso um novo golpe viesse a acontecer. O que existe neste laboratório é um desses objetos.

Fernando olhava Castro de forma surpresa. Percebia o sentimento de desespero que havia consumido aquele homem diante do futuro fatídico que o esperava. A ação que acabara de confessar tornava-o um traidor. Seus princípios e tudo pelo que lutara muitos anos não tinham qualquer valor, e ele agora era alguém prisioneiro do passado. Castro levantou a arma e sem permitir qualquer possibilidade de reação ao grupo continuou:

É assim que o Setor tem sobrevivido. A sombra dos três poderes. Poucos sabem de nossa existência e por isso nunca tivemos problemas.

Isso até os últimos anos. Recentemente, parece que o governo decidiu revelar nossos segredos e extinguir nosso poder. Mesmo sem onerarmos de forma alguma a folha de pagamento da união, pessoas acham que não somos mais úteis. Esses idiotas, filhos de uma nação fraca, não sabem o que somos e o que protegemos - vociferou o coronel.

Naquele momento, um dos soldados encarregados por Castro de posicionar explosivos em toda a estrutura se reuniu a eles. O grupo concluiu surpreso que mais pessoas estavam envolvidas naquela trama. Castro fez uma pausa e retomando o que falava no início continuou:

Desde que estivemos neste laboratório em uma ação oculta há muitos anos, talvez este tenha sido nosso maior desafio. Nossas tentativas de descobrir segredos como o do professor Montenegro fracassaram, mas nós nunca desistimos.

Vocês nunca souberam onde estava a ogiva? - perguntou Gabrielle surpresa.

Nós, não - concordou o coronel. - Mas alguém sabia.

Augusto! - concluiu Cardoso.

Augusto era nossa garantia de que o segredo seria encontrado e por isso acreditávamos que seria possível. Chegamos a persuadi-lo algumas vezes, mas o homem era resistente. Nossas conversas eram bem desagra­dáveis, mas tenho que confessar que geravam poucos resultados - con­cluiu o coronel repetindo novamente com um sorriso irônico.

-Até que vocês o mataram - disse Gabrielle em voz alta.

Eu diria que ele acabou se matando - retrucou o coronel. O oficial agora não estampava mais o sorriso irônico no rosto, sua expressão era dura e repressiva. - O Setor 27 há muito tempo enfrenta esta decadência desrespeitosa e eu venho mantendo este grupo com o dinheiro de objetos esquecidos. Isto tinha que ter um fim. Não podia mais esperar, e então decidi que era hora de desenterrar o artigo mais valioso que possuíamos.

Uma arma de guerra - interrompeu Fernando dessa vez.

Bravo - respondeu o coronel. - Nada neste mundo tem mais valor e traz mais respeito do que o poder bélico de um país. Veja o que ocorre no Irã ou na Coréia do Norte. Apenas a suspeita de que algum desses países venha dominar esta tecnologia assusta as potências mais poderosas do mundo. Imagine só saber que este poder é uma realidade.

-Você é um louco! - vociferou Gabrielle.

Parcialmente, minha cara - respondeu o coronel. - Mas como eu havia dito, mesmo não sabendo o local onde a ogiva estava escondida, nós nunca desistimos. Na última vez em que procuramos Augusto, ele se recusou a nos ajudar, e acho que como ele não estava mais tão jovem e nossos prazos já não eram tão extensos, fomos obrigados a colocar um fim na discussão. Para ser honesto, quando chegamos a este ponto, eu realmente achei que tudo estaria perdido. Do lado do comprador, o inte­resse já havia sido confirmado e a data de entrega, marcada; quanto a mim, não tinha o produto e nem mesmo um modo seguro de encon­trá-lo. Foi então que uma idéia me veio à cabeça. Lembrei-me de vocês dois e do magnífico trabalho que fizeram para encontrar aquele segredo escondido por Dom Pedro II. Naquela época, o major inocentemente achou que eu não desconfiaria do sumiço de vocês e me disse que haviam se perdido nas águas da baía de Guanabara. Besteira, eu sei muito bem distinguir uma verdade de uma mentira.

Gabrielle e Fernando olharam-se surpresos; de fato, todos haviam sido enganados.

Bem, foi aí que uma idéia me surgiu. Pessoas como vocês são espe­ciais. A capacidade que vocês têm de entender o passado e de descobrir segredos é uma qualidade rara e única. Propus então um desafio a um de meus homens de confiança. Juntos, encontraríamos a ogiva e man­teríamos o Setor 27 aberto, como venho fazendo em todos estes anos. Teríamos dinheiro e, ao mesmo tempo, exporíamos o país a um risco iminente. Seria a oportunidade de retomarmos a força perdida no pas­sado. Quando não se confia no governo, o poder militar ganha força e isso é o que precisamos.

Neste momento, Castro recuou e pegou o major pelo braço conduzindo-o até a porta. O homem que todos viam naquele momento não era sequer metade daquele que conheciam; estava fraco, cansado e com sedativos correndo-lhe pelas veias.

Enfim - disse ele retornando à porta de forma brilhante e em poucas horas, vocês desvendaram o enigma que por muito tempo nos afastou de nosso maior espólio. E eu só tenho a lhes agradecer.

Jogando o corpo do major ao chão e posicionando o cano da arma em sua cabeça o militar continuou:

Agora preciso que soltem suas armas para que, então, nossa história tenha um fim digno.

Uma dúvida pairava sobre todos. Entregar suas armas significaria perder a vida, mas permanecer ali naquele impasse poderia iniciar um desastre ainda maior. Cardoso pensou por um momento e então falou:

De que adianta entregarmos nossas armas? Você vai nos matar de qualquer forma. Não temos por que confiar em qualquer coisa que nos diga.

A frase pronunciada por Cardoso era como a reprise de um filme já previsto pelo coronel. Desde que decidira colocar os civis à procura do legado de Montenegro, Castro tentara planejar a melhor forma de arran­car das mãos deles o mais importante tesouro do Setor. Agora, chegava a hora de se certificar que seu plano funcionaria. Confiante, sabia que tudo o que havia planejado já estava pronto; era só uma questão de tempo sair dali com o que viera buscar.

Neste momento o segundo soldado se aproximou de Castro. Sua pre­sença ali indicava que o trabalho havia sido terminado. O coronel fez uma pausa e continuou:

Suponho que deveríamos então sair e decidirmos o que fazer com a ogiva, quem sabe disputá-la em um braço de ferro - falou o coronel sorrindo.

Enquanto ele falava, Cardoso mantinha a arma apontada em sua direção.

Besteira! - esbravejou o militar. - Você acha que eu desceria até aqui sabendo que vocês estariam no laboratório sem planejar uma forma de sair? Não conduzi o Setor por tanto tempo sendo inocente a esse ponto. Enquanto ouviam a explicação detalhada sobre os motivos de minhas ações, dois de meus homens plantaram explosivos em cada um dos anda­res, para o caso de não quererem colaborar. Se mesmo assim não conse­guirmos sua compreensão, nós usaremos seu amigo major como escudo e podemos então iniciar um tiroteio. Acho que já imagina qual será a ordem caso eu seja atingido.

Na sala, todos aguardavam a decisão de Cardoso. Ele era o militar mais experiente e por isso Fernando e Gabrielle confiavam em sua deci­são. A situação realmente tomara proporções além do que todos haviam imaginado. E não parecia mesmo haver saída. Cardoso conhecia bem o comportamento do coronel e sabia do que o militar seria capaz caso não atendessem ao seu pedido. O impacto de uma série de explosões pode­ria expor contaminantes existentes no laboratório, mas se alguma delas atingisse a ogiva, desencadearia uma explosão capaz de destruir toda a cidade de Goiânia. Seriam milhões de pessoas expostas a uma contami­nação radioativa de proporções inimagináveis.

Cardoso observou o cenário a sua volta; precisava tomar uma deci­são. Sua vida, a vida de todos ali presentes, mas principalmente a vida de milhares de pessoas estavam dependendo das ações daquele grupo.

Como vou saber que as pessoas não serão expostas ao perigo do que encontramos aqui? - perguntou.

Você sabe melhor do que ninguém que eu tenho compradores esperando por essa mercadoria e não tenho a intenção de me tornar um terrorista como estes malditos malucos. As pessoas com as quais nego­cio têm um objetivo maior do que ferir nosso país. Elas consideram que outras nações são culpadas por todas as desgraças do mundo e eu, na verdade, estou pouco me lixando para tudo isso. Se não vendermos isso para eles, outros venderão e lucrarão. É simples: eu entrego e eles arru­mam um jeito de estourar isso em algum lugar da América do Norte. Quando descobrirem que esta bomba foi negociada no Brasil, nosso governo ficará enfraquecido e teremos um novo momento na história. Se as coisas funcionarem conforme planejei, posso manter o Setor vivo por mais algum tempo ou quem sabe fazer com que este seja o estopim de um novo modelo governamental.

Castro parecia enlouquecido; suas palavras não faziam sentido e seu plano colocava em risco não somente ele, mas todos aqueles que viviam ao seu redor.

Quem sabe, assim, pessoas como nós serão mais valorizadas no futuro - continuou. - Homens que lutaram por uma causa e que deram a vida por seu país.

O coronel recuou e puxando o major pelo braço pressionou então a arma sobre sua cabeça. Seus olhos brilhavam em um delírio assustador. Ao seu lado, desorientado pelo efeito da droga que havia recebido, o major não conseguia reagir. Era difícil para ele até mesmo manter-se de pé.

E então, o que vai ser? - continuou o coronel. - Vamos chegar a um acordo ou precisaremos de uma ação mais rígida?

Sem opção, Cardoso jogou a arma aos pés do oficial:

Não podemos! - gritou Patrícia encarando-o.

Ele vai nos matar, tenente! - vociferou Henrique.

Abaixem as armas - ordenou Cardoso. - Não podemos enfrentá-los agora.

Mesmo sem concordar com o que estavam fazendo, Henrique e Patrícia retiraram a munição de suas armas lançando-as aos pés dos sol­dados que acompanhavam o coronel.

Muito bem, meus caros, esta é uma decisão sábia - disse ele com um sorriso de satisfação. Então, olhando para Douglas, continuou: - Pegue a caixa e vamos sair daqui.

Douglas entrou na sala e passando por entre eles chegou até a caixa. Antes que ele pegasse a caixa, Gabrielle segurou em seu braço. Imediatamente, Douglas olhou para seu rosto, cuja expressão era pura­mente de reprovação:

Como pode fazer isso? - indagou a jovem.

Antes que pudesse responder, Fernando colocou-se entre os dois, afastando a jovem do caminho. O que menos precisavam agora era que alguém levasse um tiro ou que as coisas, que já estavam fora do controle, se tornassem ainda piores.

Douglas pegou a caixa e saiu da sala. Violentamente, Castro empur­rou o major para dentro, fazendo com que ele caísse no chão. Gabrielle então se aproximou, amparando o amigo:

Não vou matá-los covardemente - disse o coronel. - Guerreiros como nós devem morrer no cumprimento do dever, assim podemos ser reconhecidos e condecorados.

O coronel se aproximou da porta e então, puxando-a em sua direção, trancou no interior da sala. Agora, Fernando e os outros só conseguiam ver a figura do homem através do vidro que separava a sala do corredor. Devido à proteção anti-radioativa que agora os separava, sua voz havia se tornado bem mais baixa: soava falha e quase inaudível.

Assim que sair do laboratório - disse ele - vou selá-lo através do impacto dos explosivos que foram colocados. A destruição não será sufi­ciente para expor a radiação além do seu interior, mas o necessário para que fiquem presos aqui. Esta explosão deve liberar radiação suficiente para que ninguém em sã consciência tente entrar neste lugar nos pró­ximos vinte, quem sabe trinta anos. Mas quando e se ocorrer de alguém encontrar vocês depois deste tempo, com certeza terá a dignidade de tratá-los com o respeito que merecem. Serão considerados heróis.

Sem mais palavras e com um breve aceno, o coronel saiu.

 

                     Uma Possível Saída

Nos primeiros momentos que se sucederam, a apreensão tomou conta de todos. Enquanto Gabrielle verificava o estado de saúde do major, os outros membros do grupo imergiam em seus pensamentos frente ao que lhes parecia a morte certa. Se as palavras desferidas pelo coronel antes de sua saída fossem realmente verdadeiras, em breve todos estariam soter­rados a mais de vinte metros de profundidade. A comunicação com o mundo exterior se tornaria impossível e por conseqüência das explosões a contaminação seria inevitável.

Não podemos ficar aqui parados - disse Henrique. - Temos que encontrar uma saída desta sala. Precisamos chegar ao fosso do elevador antes que o coronel acione os explosivos.

Todos se entreolharam. Sabiam do perigo que estavam correndo, mas não viam solução aparente. Nem mesmo Fernando demonstrava qualquer sinal de reação.

Não podemos sair agora - retrucou Cardoso enquanto se apro­ximava de Gabielle e do major. - Eles levaram nossas armas, e se nos virem no corredor, tenho certeza de que não pouparão esforços para que sejamos sumariamente eliminados. Na verdade acho que a idéia de nos deixarem para trás foi o melhor que nos aconteceu.

O melhor? - respondeu Henrique. - Como isso pode ter sido o melhor?

Eles não vão explodir todas estas bombas de que falaram antes de estarem seguros - completou Cardoso, enquanto examinava a sala. Ele sabia dos procedimentos existentes no setor, e imaginava o que Castro havia planejado. - Acho que temos entre doze e quinze minutos para que comecem a explodir e pelo menos mais sete para que toda a seqüência seja completada. Ajudaria se você programasse seu relógio e monitorasse o tempo até que tudo comece a voar pelos ares. Se os soldados seguiram os procedimentos criados pelo setor, ainda temos alguma chance de escapar.

Escapar - interrompeu Gabrielle. Ela amparava Alencar nos braços e parecia não acreditar que pudessem sair vivos daquela sala. - Escapar por onde? Se ele detonar esta tal bomba na entrada, será impossível sair. Vamos ficar presos aqui embaixo enquanto ele vende a maldita ogiva para pessoas que com certeza a utilizarão contra inocentes.

O major, apesar de estar sob efeito de drogas, ouvia tudo o que acon­tecia na sala. Mesmo cansado e praticamente sem forças tentou intervir:

Existe outra saída - disse ele com a voz embargada.

Imediatamente Gabrielle se aproximou de seu rosto. Sua intenção era poupá-lo, imaginava as torturas pelas quais ele havia passado e precisava evitar que ele ficasse ainda pior.

Major - disse ela -, por favor, major, não se esforce. O senhor está muito ferido.

Marcas pelo corpo, hematomas e cortes demonstravam tudo pelo que o homem havia passado antes de chegar até ali.

Existe outra saída - insistiu. Sua voz era rouca e muito baixa. - Tem que haver alguma rota de fuga...

Eu acho que ele está certo! - interrompeu Fernando, praticamente despertando de um transe. Lembrava-se do que vira na entrada no momento em haviam chegado.

Tem certeza? - perguntou Cardoso.

Acho que sim! - continuou ele. - Me empreste o tablet, Henrique.

Henrique retirou o tablet da mochila e o entregou a Fernando.

Lembram dos relógios que vimos na entrada do laboratório? Aqueles que monitoram as salas?

Sim - responderam alguns.

-Assim que eu olhei para o mapa que estava desenhado naquele pai­nel, percebi que não era o mesmo mapa que havíamos encontrado no museu. Aquele é diferente.

Diferente como? - perguntou Gabrielle.

Fernando ligou o tablet e, acessando o mapa digital, continuou:

O mapa que está desenhado na entrada do complexo tem algumas indicações de acesso em locais que em nosso mapa não constam. Naquele momento, me pareciam portas que davam para lugar nenhum. Agora acho que sei do que se tratam. São saídas!

Saídas? - exclamou Henrique em tom irônico. - A mais de vinte metros de profundidade, só se for para um rio ou quem sabe um estacio­namento subterrâneos.

Muito engraçado - continuou Fernando sem sorrir -, não repara­ram que este lugar não tem indicações para saídas de emergência ou até mesmo uma escada de serviço? Como acham que trouxeram todo este material para cá, através do elevador? Acho que existe sim uma saída e acho que o coronel não sabia. O relatório do Setor falava de uma fuga e de uma perseguição ao professor. Isso não seria possível se não existisse outra saída. Como o coronel não esteve aqui no laboratório durante a perseguição, ele não atentou sobre isso. Pelo que me lembro - continuou Fernando -, ela fica aqui.

Fernando virou o tablet na direção do grupo e apontou para um local do mapa. Imediatamente, acionado pelo toque de seu dedo, um ponto intermitente começou a piscar na tela.

Mas ali é o banheiro - falou Henrique. - A saída fica no banheiro?

Se me lembro bem - continuou Fernando -, existiam três dessas, uma em cada andar e na mesma posição.

Quanto tempo temos? - perguntou Cardoso.

Sete minutos para a primeira explosão e mais sete para ferrar tudo! - respondeu Henrique.

Ótimo - completou Gabrielle temos quatorze minutos para sair daqui e correr para uma saída que nem sabemos se existe. Só falta saber como.

Acho que eu sei! - interrompeu Patrícia - Como estamos do lado de dentro do laboratório, as dobradiças estão expostas para nós. Se conseguirmos algum objeto que sirva como uma talhadeira ou um apoio, podemos remover as dobradiças. Sem elas seria possível puxarmos a porta até que entortasse o suficiente para criar uma passagem.

E as janelas? - disse Gabrielle, tentando apresentar uma alternativa. - Não seria mais fácil quebrá-las?

São à prova de impacto, por conta da radiação - respondeu Patrícia. - Mesmo que tivéssemos armas seria quase impossível conse­guir quebrá-las.

Remover as dobradiças pode dar certo! - continuou Cardoso. - Major, o senhor vai ter que se mover para o outro lado, acha que consegue?

Sim! - disse o militar. - Preciso de ajuda, mas acho que consigo.

Os três homens juntos ajudaram o major a se mover; o militar cami­nhou até o outro lado da sala e sentou em um dos bancos. Cardoso con­tinuou:

Ele está bem, mas teremos que ajudá-lo. Não vai conseguir sair sozinho na velocidade que precisamos. Você precisa ficar de olho nele - disse dirigindo-se a Gabrielle - enquanto nós cuidamos da porta.

Está bem - respondeu a jovem.

Com todos dedicados a encontrar um objeto capaz de remover os pinos das dobradiças, o trabalho foi resolvido antes do esperado. Em pouco mais de um minuto, Henrique já havia arrancado um dos trilhos utilizados para apoiar as gavetas do balcão e eles agora serviam como ferramenta. Sem demora, a sala foi preenchida pelo barulho das batidas feitas por Cardoso.

O tempo estimado por Henrique estava se esgotando e, se o grupo não deixasse o complexo nos próximos minutos, seria o fim de toda aquela história.

 

O major Alencar estava confuso. Sua cabeça latejava continuamente, como se estivesse sendo martelada de forma firme e ritmada. Ele não sabia onde estava, mas se lembrava vagamente do que lhe acontecera nas últimas horas. Tudo parecia escuro e confuso. Espasmos contraíam seu corpo em espaços regulares, causando-lhe náuseas. Ele sabia que era preciso se manter acordado. Precisava sobreviver. Só ele sabia como des­cobrir o destino da bomba e onde seria o local de entrega. Sem aquela informação, seria impossível chegarem até o coronel.

Tentou manter os olhos abertos, mas o que via era um vulto, como um clarão a atravessar sua vista. Sabia que Gabrielle estava a seu lado, mas o rosto da jovem era um grande borrão, uma imagem distorcida em sua mente. Sentiu golpearem-lhe o rosto e as costas, a dor era insuportá­vel, como se uma faca atravessasse sua pele de dentro para fora. Por certo, suas costelas estavam quebradas e alguma hemorragia consumia-lhe por dentro. Alguém tentava mantê-lo acordado, mas o máximo que conse­guiam era fazê-lo sentir mais dor. Abaixou a cabeça e um novo enjôo lhe subiu da boca do estômago. Desta vez foi impossível resistir. Sem controle sobre seu corpo, o militar vomitou um líquido amarelo raiado de sangue.

Assim que levantou a cabeça, o rosto de Gabrielle lhe parecia mais nítido. Viu a jovem se afastar no impulso de fugir e em seguida retornar para ampará-lo. Seus olhos preocupados acompanhavam palavras con­tínuas que ecoavam confusas em seu ouvido, estavam embaralhadas e difíceis de entender.

 

Gabrielle tentava incansavelmente manter o major acordado. Enquanto Fernando e Cardoso batiam de maneira contínua contra as dobradiças da porta, a jovem tentava manter o militar consciente com palavras e também com leves tapas no rosto e nas costas. De fato, seu treinamento em alpi­nismo e esportes radicais a haviam preparado para lidar com situações de reanimação por frio ou drogas, mas não lidar com algo como aquilo. Ela estava nervosa e cansada, mas sabia que não podia desistir, afinal a vida dela e de todos naquele laboratório estava por um fio.

- Major! - gritava ela. - Precisamos que o senhor fique acordado! Por favor, major.

Era inútil, o homem parecia estar sob o efeito de remédios fortes e suas reações se pareciam muito mais com espasmos aleatórios do que com possibilidades de melhora. Por um minuto, o corpo do homem enri­jeceu, dando a Gabrielle a impressão de que ele havia melhorado; mas, segundos depois, com um impulso em sua direção, Alencar vomitou pró­ximo de seus pés.

Assustada, Gabrielle recuou, mas segundos depois voltou a chamá-lo:

Major, por favor! O senhor precisa nos acompanhar e para isso deve estar acordado. Tente, major, tente!

Mesmo parecendo um pouco melhor, algo de errado em seu corpo estava fazendo com que ele perdesse as poucas forças que lhe restavam. Incansável, Gabrielle mantinha seus olhos atentos a cada movimento dele.

Do outro lado da sala, a idéia de Patrícia estava dando certo. Fernando e Cardoso já haviam removido duas das três dobradiças, e agora tenta­vam entortar a porta o suficiente para que pudessem sair. O problema era o tempo, a ação havia lhes consumido importantes quatro minutos e agora estavam próximos do limite que haviam calculado.

Força! - gritava Cardoso.

Os três homens estavam com as mãos entre a porta e o batente e puxavam o aço numa tentativa de deformá-lo. Na primeira investida, a abertura que conseguiram criar não ultrapassava dez centímetros, um espaço ínfimo perto do que precisavam. Vendo a dificuldade dos três, Patrícia se uniu ao grupo e todos faziam mais força em direção à defor­mação da porta.

Não vamos conseguir - gritou Henrique. - Precisamos de mais tempo.

Não temos mais tempo, sargento - respondeu Cardoso. - Precisamos fazer isso no tempo que nos resta.

Fernando saiu por alguns segundos e retornou com a perna de metal de uma das bancadas. Ele havia percebido que quando soltavam a porta, esta retornava além do que já a haviam deformado. Ele entregou a barra para Patrícia e pediu para que, quando fizessem força, a militar colocasse o calço no ponto mais alto da abertura. Patrícia obedeceu e a investida seguinte lhes proporcionou uma abertura quase suficiente. Henrique percebeu que seria possível conseguirem e imediatamente retomou sua posição.

Só mais uma, vamos! - disse ele.

Com o último suspiro de força que restava a eles, os três puxaram a porta de forma impressionante. Patrícia imediatamente posicionou a trava e uma abertura um pouco maior de que cinqüenta centímetros sur­giu entre o batente e a parede.

- Conseguimos! - gritou Fernando. - Conseguimos!

Neste instante, um estrondo ensurdecedor ecoou no interior da construção. Uma grande nuvem de poeira invadiu a sala pela abertura que haviam feito, enquanto as luzes do complexo piscavam intermiten­temente. Cardoso, Fernando e Henrique recuaram em uma ação de puro reflexo, enquanto sentiam um zumbido contínuo nos ouvidos.

As explosões haviam começado.

 

O coronel e seus homens subiram pelo fosso do elevador sem gran­des dificuldades. Como o antigo militar conhecia aquela construção e já estivera ali outras vezes à procura da ogiva, fora prudente em trazer um motor elétrico capaz de erguê-los no retorno a superfície. A ogiva estava agora em seu poder e faltava pouco para que conseguisse dinheiro suficiente para agir de forma clandestina, mantendo firme sua postura contra aquilo que o país se tornara. Não admitia que chegassem àquele ponto, e com os recursos necessários sabia que seria possível reunir pes­soas com os mesmos pensamentos que os seus. Poria fim a tudo e pagaria justamente com a mesma ingratidão que lhe fora apresentada.

Seguiam agora pela trilha do parque em direção à clareira onde haviam deixado o helicóptero. Precisavam voltar ao setor e então se preparar para a troca que seria feita no dia seguinte. Estavam no limite do prazo estipulado pelos compradores e novos atrasos seriam injustificáveis. Quanto àquele grupo de traidores, receberiam um castigo digno da posição que ocupa­vam dentro do Setor. Sofreriam intermináveis sete minutos até que todos os explosivos fossem detonados, dez bombas de C4 posicionadas estrate­gicamente em todo o complexo: na entrada, nos reservatórios nucleares e nas principais salas. As explosões começariam do primeiro pavimento e os atingiria por último. Seria como uma tortura final.

O caminho que seguiam era diferente daquele trilhado por Fernando e por isso chegaram ao helicóptero em pouco mais de dez minutos. Castro se virou para Douglas e estendeu-lhe a mão. Imediatamente, o operador lhe entregou uma pequena caixa contendo apenas uma chave liga e des­liga e um botão vermelho em sua superfície. O coronel ligou a chave e o botão se acendeu.

- Que o pesadelo comece - disse.

E então pressionou o botão.

 

                       Explosões

Atenção! Isto não é um teste. Falha no isolamento! Primeiro andar, Setor A comprometido. Iniciando processo de fecha­mento das salas afetadas. Procurem as saídas de emergência mais próximas. Repito, isto não é um teste.

 

Assim que as luzes retornaram ao normal, o sistema de alto-falantes iniciou uma transmissão automática de segurança em todo o complexo. Por um momento, ninguém conseguiu associar o que havia acontecido. Nos segundos que se seguiram, a preocupação de que a explosão pudesse tê-los exposto à contaminação radioativa foi a única coisa que lhes pas­sou pela cabeça. A nuvem de poeira que invadira a sala dissipou-se aos poucos revelando que nenhum deles havia sofrido qualquer ferimento. Cardoso, que havia se jogado ao chão no momento da explosão, foi o primeiro se levantar.

Tem alguém ferido? - perguntou

Não - responderam Henrique e Fernando.

Conosco também está tudo bem! - completou Gabrielle.

Aqui também - afirmou Patrícia.

Quanto tempo temos para o fim das explosões? - perguntou o tenente a Henrique.

Seis ou sete minutos, senhor.

Se querem viver, senhores, apressem-se, não teremos outra chance.

Através da abertura, os seis saíram da sala. Fernando seguia na frente acompanhado pelas duas mulheres, enquanto Cardoso e Henrique carre­gavam o major. Mesmo parcialmente acordado, o oficial ainda demons­trava em seu estado o resultado dos maus-tratos e das agressões que havia sofrido. Sob efeito prolongado das drogas, conseguia caminhar somente com a ajuda dos homens que o apoiavam.

Seguiram pelo corredor em direção ao banheiro. O som vindo dos alto-falantes era estridente e ensurdecedor. A sirene tocava continua­mente, e só era interrompida pela mensagem padrão de isolamento das áreas e pelo aviso de evacuação. Fernando chegou ao banheiro e imedia­tamente pôde avistar na parede lateral a porta dupla que dava acesso à saída de emergência. Gabrielle e Patrícia também entraram, mas, antes que os outros chegassem, uma nova explosão ecoou pelo complexo.

Cardoso e Henrique, que ainda estavam no corredor naquele momento, sentiram imediatamente o impacto e perdendo o equilíbrio foram ao chão. O major, conduzido e apoiado totalmente sobre o ombro dos dois companheiros, caiu de costas sobre o piso, emitindo um grito de dor. Uma névoa causada pela sujeira acumulada nos diversos anos em que o laboratório ficara fechado, somada aos destroços resultantes da explosão, atingiu parcialmente o grupo, cobrindo seus corpos de uma poeira branca. Antes que eles pudessem se recompor o computador cen­tral emitiu uma nova mensagem que chegou a seus ouvidos através do som dos alto-falantes:

 

Atenção! Falha no isolamento! Primeiro andar, Setores A e B comprometidos. Unidade primária de armazenamento rompida. Iniciando processo de fechamento das salas afetadas. Procurem as saídas de emergência mais próximas.

 

Os ouvidos de Cardoso zuniam, a explosão havia-lhe tirado por com­pleto a orientação. Lentamente, o militar se ajoelhou e olhou ao redor. As luzes que agora funcionavam não passavam de vinte ou trinta por cento das existentes no complexo. Antes que pudesse se dar conta de tudo o que havia acontecido, o militar sentiu um braço amparando-o. Assim que levantou os olhos, conseguiu ver Fernando. Enquanto o advogado o ajudava, Patrícia e Gabrielle faziam o mesmo com seus companheiros caídos.

Sem perder mais tempo, os três foram conduzidos à entrada do túnel de evacuação. Assim que cruzaram a porta os dois soldados atingidos pela explosão se recompuseram, apenas o major continuava fraco, só que agora ele era amparado por Gabrielle e Fernando.

- Vamos, não acho que esta porta seja capaz de conter a radiação - disse Cardoso. - Temos que sair do complexo o quanto antes.

O túnel em que eles agora se encontravam parecia não ter fim. Luzes distantes iluminavam parcialmente o caminho que os conduziria de volta ao mundo dos vivos, e esperançosos eles continuaram a fuga. Seus corpos rapidamente eram invadidos por descargas de adrenalina provenientes da ação à qual participavam e essa força parecia ser a maior responsá­vel por seguirem em frente. Ao fundo, a voz conduzida pelo computa­dor central continuava a anunciar o fechamento das salas afetadas pelas explosões. Uns poucos minutos se passaram até que uma nova explosão fosse ouvida. Antes que eles pudessem se sentir salvos, uma mensagem diferente ecoou pelo túnel:

 

Atenção!Falha no isolamento!Risco de contaminação externa.

Todas as saídas do complexo serão seladas em três minutos.

 

Já haviam percorrido um terço do túnel, que media pouco mais de quinhentos metros. Não era preciso conhecimento científico para que eles soubessem o que estava acontecendo. Mesmo a saída pela qual eles agora corriam seria fechada no prazo anunciado pelo computador. Todos tinham menos de três minutos para que não ficassem presos ali, para sempre, como havia planejado o coronel. Não lhes restava muito, eles corriam por suas vidas.

 

Os dois helicópteros que transportavam a equipe liderada pelo capitão Vitor já sobrevoavam a cidade de Abadia de Goiás. Se fosse do conhecimento do capitão o que de fato acontecera durante os minutos que antecedera sua chegada, Vitor por certo teria interceptado a outra aeronave que seguia pelo caminho contrário do qual havia vindo. Ali na cabine, bem ao lado de Douglas, seguia a caixa contendo o mais perigoso dispositivo de destruição existente em todo o território brasileiro: a arma capaz de causar morte e sofrimento a centenas de milhares de pessoas.

Senhor, já temos visual com o parque - disse o piloto. - Estamos vendo duas casas de madeira, senhor, e não uma como haviam comuni­cado. São duas.

-Vamos posicionar soldados em cada uma das casas. Se eles aparecerem, devem ser capturados, não me importa como. Usem a força que for necessá­ria para isso. Não podemos correr o risco de eles fugirem dessa vez.

Positivo, senhor!

Obedecendo às ordens do capitão, os dois helicópteros se separaram

e soldados seriam posicionados em cada uma das construções.

 

Rápido - gritava Fernando.

Ele e Gabrielle agora carregavam o major. Por um momento, ele tentara substituir a jovem, fazendo com que ela seguisse à frente com as outras pessoas do grupo, mas ela se negara. Fazia questão de ajudá-lo. Era como se tivesse uma obrigação, uma dívida para com o homem que lhes poupara a vida muito tempo antes.

Era Cardoso então quem corria agora à frente do grupo. Preocupado em desobstruir possíveis obstáculos ou quem sabe abrir portas que esti­vessem fechadas, ele se distanciava de todos a cada passada. Não podiam perder tempo e era essencial que tivessem o caminho livre.

Quase dois minutos após o aviso de isolamento, Cardoso chegou ao final do túnel. Uma enorme porta metálica tinha sua entrada protegida por uma célula de vidro parecida com a entrada de um banco. Em seu interior, existia apenas um botão vermelho em uma das laterais. Era evi­dente que aquele espaço separava o lugar de onde ele se encontrava e a saída para o mundo. A questão era como funcionava e quanto tempo levaria para saírem. Como estava à frente de todos, Cardoso decidiu que seria prudente testar o dispositivo. O militar entrou então na célula e apertou o botão.

Imediatamente uma porta de vidro se fechou, fazendo com que seu corpo fosse totalmente isolado do ambiente externo. O processo de var­redura havia iniciado. Enquanto ele aguardava o término do ciclo, a voz digital voltou a atormentar seus ouvidos:

 

Atenção! Falha no isolamento! Risco de contaminação externa.

Todas as saídas do complexo serão seladas em 60 segundos. 59... 58... 57...

 

Quinze segundos era o tempo de ciclo do sistema de isolamento. Um sistema de segurança criado especificamente para evitar a saída de pes­soas contaminadas por elementos radioativos. O risco, caso acontecesse, era iminente e por isso o mecanismo precisava cumprir todo o período e só então liberar a saída. Quando o processo de varredura foi finalizado, Cardoso viu chegarem à porta Patrícia e Henrique. Por um segundo, com a sensação de que estava a salvo, o militar temeu então pela vida de seus companheiros. Ele não sabia, mas sua vida ainda corria perigo.

Assim que a porta para o mundo externo foi aberta, o que o tenente presenciou não lhe trouxe a tranqüilidade que esperava.

 

Era impossível não se desesperar ao som da contagem. Os alto-falantes anunciavam menos de quarenta segundos para isolamento total do complexo quando Henrique e Patrícia, ao mesmo tempo, entraram na cabine. O espaço era apertado e os dois praticamente tiveram que se espremer dentro da pequena caixa para que pudessem acionar o meca­nismo. Assim que a porta se fechou e o processo de varredura foi ini­ciado, seus pensamentos se voltaram para Gabrielle, Fernando e o major. Estava claro que não haveria mais tempo.

 

Enquanto corria, Fernando percebera que teriam apenas uma chance para sair. O tempo restante não lhes permitia qualquer alternativa, e um segundo poderia deixá-los entre a vida e a morte.

Deixem-me! - dizia o major, com a voz fraca. - Vocês precisam evitar que o coronel venda a bomba. Por favor, me deixem e salvem suas vidas.

Não - respondia Gabrielle. - Todos vamos sair, ninguém vai ficar para trás.

Mesmo afetado por seu estado, Alencar sabia o que se passava com a jovem a seu lado. Tomada por um sentimento de compaixão, Gabrielle se abstivera de preservar a própria segurança pela obrigação de salvar a vida de quem tinha em suas mãos. Era laudável sua atitude, porém, acima de suas vidas estava a necessidade de parar Castro. O major sabia como poderiam encontrar o coronel e precisava deixar uma última informação; sem ela, eles jamais conseguiriam.

Fernando - disse ele, enquanto corriam. - Quando saírem vocês precisam chegar até o centro empresarial, em São Paulo. Lá, no quinto andar do bloco D, existe uma importadora de fachada, são as pessoas que negociam as vendas feitas pelo coronel, e só eles sabem onde a troca vai acontecer. Vocês precisam arrancar deles a informação. Não podem deixar que a bomba saia do país!

Mesmo sob o efeito de tudo o que ocorria a sua volta, Fernando ouvira atentamente o que fora falado pelo major. De fato, não saberiam como encontrar Castro e Douglas quando saíssem dali. Tendo como principal objetivo salvar suas vidas, ficava evidente que não haviam pensado em qual seria a próxima etapa.

Pode deixar, major - respondeu Fernando. - Centro empresarial, bloco D, quinto andar.

Nesse instante, os três chegaram à porta. Por alguns segundos ainda puderam ver Patrícia e Henrique. Uma sensação de angústia tomou Gabrielle. Seria impossível que os três saíssem ao mesmo tempo. Um deles deveria ficar para trás. Nos alto-falantes, a contagem realizada pelo computador continuava:

 

                 Atenção! Falha no isolamento! Risco de contaminação externa.

                 Todas as saídas do complexo serão isoladas em 20 segundos.

 

Vocês devem ir! - disse o major.

Não - respondeu Gabrielle. - Não podemos deixá-lo.

Podem e devem - repetiu Alencar, agora olhando para Fernando.

O jovem, entendendo suas intenções, conduziu o militar até o apoio de uma das paredes e puxando Gabrielle pelo braço entrou na célula. Gabrielle se debatia sem perceber que se ficassem para trás, todos morreriam.

Não! - gritava desesperada. - Por favor, não!

Assim que Fernando apertou o botão, um sorriso tomou a face do antigo militar. Sem sinais de desespero, o major simplesmente sorria. Seu rosto não transmitia um sentimento de tristeza, mas sim de felicidade. Nos últimos anos, o fim do Setor trouxera também o fim de tudo aquilo pelo que se dedicara, e o homem que agora abria mão de própria vida temia, então, por seu esquecimento. Agora, frente ao que estava presen­ciando, Alencar agia como se tudo fizesse sentido. Jamais imaginara ter alguém sofrendo por sua vida, mas a dor de Gabrielle selara a certeza de que seria lembrado. Era mais do que podia esperar.

Nos segundos que se passaram, Gabrielle colocou a mão sobre a porta de vidro. Lágrimas escorriam de seu rosto ao perceber que se despedia de um amigo.

Do outro lado, o major pronunciava sua última palavra.

Sem qualquer dificuldade era possível ler em seus lábios muito mais do que ele queria lhes dizer:

Obrigado!

 

Assim que a porta externa se abriu, o que Fernando viu foram apenas flashes.

Enquanto Cardoso jazia desmaiado à sua frente, soldados segura­vam Patrícia e Henrique. Antes que pudesse correr ou mesmo proteger Gabrielle, o advogado sentiu uma forte dor na cabeça.

E então, a escuridão.

 

                     Novos Aliados

O sol da tarde já invadia o alojamento quando Fernando despertou. O teto branco como a neve, com pé direito superior a três metros, foi o que lhe fez perceber que não estava em uma construção conhecida. Sua cabeça doía muito e o único som audível era o de uma música sertaneja. O advogado levantou o corpo e, sentando na cama, levou a mão à nuca. Um curativo que ia do pescoço até a metade de sua cabeça protegia o lugar onde recebera a pancada.

Na pequena mesa ao lado de onde estava, havia um lanche e uma lata de suco deixados por alguém que, por certo, tratara de seus ferimen­tos durante as últimas horas. Vendo o alimento, Fernando percebeu que seu estômago reclamava e sua boca estava seca; instintivamente, o jovem pegou a bandeja e começou a comer.

Lentamente sua memória retornava e era possível se lembrar do que havia acontecido. A invasão ao laboratório, a descoberta da ogiva nuclear, a chegada do coronel Castro, a fuga do complexo e então o confronto com os soldados. Eles eram três quando havia chegado. Já haviam derru­bado Cardoso e mantinham os outros como prisioneiros. Assim que saíra do complexo, abalado pelo acontecido com o major e preocupado com o risco que Gabrielle corria, sua única reação foi investir contra os solda­dos. Mas antes que sua ação tivesse sucesso, antes mesmo que atingisse o primeiro deles, veio a dor e então a escuridão. Agora entendia o que havia acontecido, alguém o atingira assim que cruzou a saída com um compe­tente golpe que, além de derrubá-lo, causara-lhe um grande ferimento.

Mas ele estava vivo, o que o fazia deduzir que seus companheiros também estivessem. Possivelmente todos, menos o major Alencar. Não foram rápidos o bastante e por isso o militar ficara para trás. Fernando jamais se esqueceria daquela cena; aquilo seria um eterno pesadelo. Abandonar um homem para a morte, sem poder ajudá-lo, decidir entre sua vida e a vida de outra pessoa. Nos tribunais, a decisão sobre a liber­dade ou o cárcere nunca lhe trouxera dúvida, mas, naquele momento, na decisão sobre a vida ou a morte de uma pessoa era impossível não fraquejar. Porém, todos e até mesmo o major sabiam do risco a que as ações realizadas por eles estavam expostas. A fuga do complexo era uma necessidade urgente; precisavam encontrar o coronel e evitar que a ogiva fosse entregue aos compradores, mesmo que alguns ficassem para trás. Era imprescindível que revertessem a situação que eles próprios foram induzidos a criar. Fernando sabia que somente ele carregava a informa­ção capaz de conduzi-los ao coronel e por isso precisava ser rápido. O que ouvira do major em seu último minuto de vida era agora a única pista do destino de seu inescrupuloso inimigo.

O lugar onde estava parecia ser a enfermaria de um grande hospital. A sala estava vazia, somente ele ocupava uma das camas. Fernando se levantou, deixou a lata vazia de suco sobre a mesa e caminhou na direção de onde vinha a música. Ele não era realmente fã de sons como aqueles, mas já havia ouvido no rádio aquela canção. Se não estivesse enganado, a dupla se chamava Jorge e Mateus. Achava engraçada a velocidade com que novas duplas surgiam na mídia e explodiam tocando em estações de rádio por todo o país. Após alguns passos, chegou ao lugar de onde partia o som: era uma sala de enfermaria. Ali, uma enfermeira sentada em uma cadeira, preenchia papéis e ouvia um MP3 anexado a uma base com alto-falantes. Fernando leu no crachá que seu nome era Liliane; era uma mulher de meia idade, magra e com os cabelos curtos. Assim que Fernando chegou à porta, a mulher percebeu sua presença e se levantou imediatamente.

- Por favor, meu rapaz, você não pode se levantar tão rápido. Levou uma pancada muito forte na cabeça e precisa descansar.

Que dia é hoje? - perguntou Fernando, sem dar muita atenção às palavras da mulher. - Por quanto tempo eu dormi?

Hoje é sexta-feira e você dormiu por mais de quinze horas. Deveria estar contente, teve sorte de terem conseguido conter sua hemorragia antes de chegar aqui. Passou a noite repousando e ainda não precisou passar pelo interrogatório que seus amigos foram obrigados a fazer com o capitão - disse ela pegando Fernando pelo braço e levando-o até uma das cadeiras da sala para que se sentasse. - Se bem que, quando ele souber que acordou, tenho certeza de que virá correndo interrogá-lo.

Não temos tempo - respondeu Fernando. - Precisamos ir logo à procura do coronel.

Não sei exatamente do que está falando - continuou a mulher, afas­tando-se em direção ao fundo da sala -, mas tenho certeza de que pode esperar. O capitão pediu para que assim que você acordasse e que eu lhe desse os medicamentos, o senhor Jefferson fosse comunicado para que viesse buscá-lo.

Enquanto falava, a enfermeira revirava em uma das prateleiras uma bandeja de remédios. Após alguns instantes, ela retornou, trazendo dois comprimidos e um copo de plástico com água até a metade.

Tome - continuou -, são antibióticos para garantir que este feri­mento não venha a infeccionar.

Onde estão todos? - perguntou Fernando enquanto tomava os medicamentos.

No prédio da administração, do outro lado da rua - respondeu a enfermeira. - Eles têm uma sala de interrogatório no segundo andar. É onde interrogam as pessoas que cometem crimes militares. Na verdade, ainda não sei por que você está aqui, já que não é um militar.

Obrigado! - respondeu Fernando entregando a ela o copo vazio.

É meu trabalho - disse ela, indo novamente em direção ao fundo da sala e pegando o telefone. Então continuou: - Vou ligar para lá e avisar que já acordou, eles devem mandar alguém aqui para pegá-lo logo.

Mas quando Liliane se virou, a cadeira estava vazia, Fernando já havia saído.

 

O capitão Vitor não conseguia acreditar no que ouvira durante o interrogatório que fizera nas últimas quatro horas. Era nítido que os depoimentos relatados pelos suspeitos coincidiam, mas nada de con­clusivo poderia ser absorvido das diversas conversas que já tivera com cada um deles. Sentado em uma cadeira giratória, na sala de monitora­mento, tentava conectar informações para que pudesse, enfim, definir seu próximo passo.

O lugar, preparado para interrogar pessoas durante horas, era um dos recursos essenciais da sede da Corregedoria. A sala onde Vitor estava naquele momento tinha uma parede em pano de vidro com mais de dois metros de comprimento que dava visão para outros dois ambientes: duas salas com isolamento acústico onde os suspeitos podiam permanecer por horas. Dali, os interrogadores podiam ver seu comportamento, falar com eles por alto-falantes e também acessar as salas através de um corredor. Foi o que fizeram durante toda a manhã.

Haviam dividido o grupo em dois. Gabrielle ocupava sozinha a sala "A" enquanto Cardoso, Henrique e Patrícia ocupavam a sala "B". A inten­ção era evitar que militares treinados influenciassem no depoimento da civil que acompanhava o grupo. No início parecia claro que um deles estava sendo conduzido e por isso a separação parecia conveniente; porém, após conversar com todos, o discurso se mostrou idêntico e as coisas de certa forma fugiam ao controle.

"Ameaça Nuclear", esta era a expressão usada por Cardoso e que dei­xara Vitor preocupado. De começo, toda a conversa bem elaborada lhe parecera algo combinado para desviar a atenção das negociatas realizadas pelo Setor. Vitor sabia da venda de obras de arte, de relíquias e até mesmo de tecnologia e esta era a base da investigação; sendo assim, não tinha conhecimento de que armas de destruição em massa faziam parte desta lista. Poderiam ter inventado a história, já que foram pegos em uma uni­dade de pesquisa nuclear, mas a maneira como contavam e a coincidência dos relatos parecia ir além de uma mentira combinada.

O que acha? - perguntou ele a Jefferson. O jovem também estava na sala e observava atento cada movimento do grupo.

Detesto admitir, senhor, mas acho que eles estão dizendo a verdade. As histórias coincidem e, pela forma como estão envolvidos emocionalmente com o assunto, não parecem estar tentando nos enganar.

Se o que dizem for realmente verdade - disse o capitão, girando a cadeira em direção ao assistente você sabe o que significa?

Sim, senhor. Teremos que colocar todo o país em estado de alerta.

E proteger os chefes de Estado.

Principalmente a presidente.

Neste momento, o telefone tocou sobre a mesa da sala. Imediatamente Jefferson atendeu.

Pode falar!

Desculpe-me incomodar, senhor - disse o soldado que estava do outro lado da linha. - É que um homem tentou entrar no prédio e nós o detivemos. Ele chegou gritando pelo capitão e por outras pessoas que não conheço. Achei que seria certo ligar para o senhor antes que o recolhêsse­mos para a detenção, o nome dele é Fernando.

Fernando? Como ele chegou até aqui?

Não sei exatamente, senhor, parece que saiu escondido da enferma­ria e veio sozinho.

Não importa - respondeu Jefferson levem-no para a sala de interrogatório "A".

Sim, senhor! - respondeu o soldado.

Jefferson desligou o telefone e olhando para o major disse:

Parece que nossa bela adormecida enfim acordou!

Já fazia pelo menos quatro horas que Gabrielle aguardava na sala de interrogatório. Desde que haviam chegado às instalações militares durante a madrugada, todo o seu pensamento estava voltado à situa­ção enfrentada por Fernando. Assim que saíram da cidade de Abadia de Goiás, viajando em dois helicópteros militares, a jovem pôde perceber que a pancada recebida causara um corte profundo na cabeça de Fernando. Um dos soldados que faziam parte do grupo comandado por Vitor fizera os primeiros socorros, mas seria preciso que o levassem a um hospital para que fosse examinado e tratado adequadamente. E este foi o proce­dimento assim que pousaram. Naquele momento, Fernando fora sepa­rado do grupo e levado com urgência para a enfermaria enquanto os outros seguiam para um alojamento. Durante toda a noite que se seguiu, por mais que Gabrielle tentasse perguntar aos soldados sobre o estado de saúde de Fernando, pouco ou nada lhe fora revelado.

O dia amanheceu em meio à angústia causada pela falta de infor­mações e sua companhia agora era o silêncio daquele ambiente. Silêncio rompido apenas pela presença do capitão Vitor com quem conversara momentos antes. O homem, que estivera ali com o objetivo de esclare­cer os acontecimentos recentes, parecia inicialmente ser alguém impar­cial. Ele lhe perguntara coisas sobre o setor, sua possível participação em vendas de objetos históricos e negociatas que envolviam compradores internacionais. Fatos que, havia alguns dias, Gabrielle nem sequer des­confiava. A jovem historiadora decidiu contar a verdade: falou sobre a bomba nuclear, o laboratório e tudo o que lhes havia acontecido. Cético, o capitão pareceu considerar suas palavras uma alucinação, uma fantasia criada por uma mente fértil e criativa.

O militar saiu depois de conversarem e agora seus pensamentos pareciam consumi-la. Confortável era a palavra que vinha a sua mente naquele momento. O lugar era o que mais a incomodava. Uma sala com um sofá, espelhos, mesa com cadeiras. Revistas inúteis sobre astros de TV, água mineral, café e um tapete vermelho cobrindo o piso. Como era possível ficar ali, parada, em um lugar confortável, como se nada estivesse por acontecer? Como se Fernando não estivesse ferido em algum lugar, ou como se sua vida e a vida de milhares de pessoas não estivessem à mercê de um louco. "Maldito conforto", era o que sua mente lhe sugeria, fazendo conscientemente um exercício de lucidez.

Gabrielle se levantou do sofá e caminhou até um dos espelhos. Impaciente, bateu violentamente contra o objeto, que fez um barulho oco, como se absorvesse sua pancada.

Que droga! - gritou. - Estamos perdendo tempo! Onde está o Fernando? Precisamos dele para chegar até o coronel.

A jovem sabia que o major havia dito alguma coisa ao homem que amava, queria sim saber do que se tratava, mas seu coração ansiava de fato por vê-lo saudável e em segurança.

Assim que Gabrielle terminou sua frase, ouviu um som de chaves mexendo na fechadura da entrada. Segundos depois, um dos soldados abriu a porta e arremessou o corpo de um homem sala adentro. Sem acreditar, Gabrielle correu ao encontro de Fernando.

Você está bem? - perguntou, ajoelhando a seu lado e tomando-o em seus braços.

Estou - respondeu Fernando ofegante. Sua aparência, no entanto, atestava o contrário: estava pálido e visivelmente cansado. Ele retribuiu o abraço e beijando Gabrielle no rosto continuou: - Acordei e vim direto até vocês. Precisamos ser rápidos se quisermos chegar até o coronel, ele deve fazer a venda hoje. Como estão os outros?

Todos bem. Fomos separados há algum tempo, mas acho que pelo modo como fui tratada eles também devem estar bem.

Preciso falar com o Vitor, ele tem que nos deixar ir atrás da bomba. Somos os únicos que podemos chegar até ela agora que o major se foi.

Por um instante os dois se lembraram da morte do major, do túnel e do isolamento. Mesmo lembrando que o haviam deixado para trás e que o amigo jamais escaparia dali vivo, algo os tranqüilizava: era como se a última visão que haviam tido daquele homem transmitisse uma paz impossível de ser descrita. Gabrielle fez uma pausa e continuou:

O capitão Vitor já esteve aqui, mas não acreditou no que eu lhe dizia. Quem sabe agora você consegue convencê-lo a nos deixar ir atrás do coronel.

Neste mesmo instante, a porta de entrada da sala mais uma vez se abriu. Imponente, Vitor entrou e parando na frente dos dois se pronunciou:

Muito bem, meu jovem, se deseja tanto ir atrás do coronel, conte-me sua história.

Ao ver o capitão, o primeiro impulso de Fernando foi o de contar alguma história que o convencesse a deixá-los sair. Cansado e preocu­pado com o que estariam por enfrentar, parecia-lhe adequado que man­tivessem outras pessoas fora do caminho. Porém, as poucas palavras que Gabrielle havia lhe falado fizeram com que seus pensamentos mudassem. O relógio da sala marcava pouco mais de quinze horas e o tempo estava se esgotando para eles. Precisavam sair dali e encontrar o coronel onde quer que ele estivesse. Parado à sua frente, Vitor aguardava:

E então? Pelo que sei, não temos o dia inteiro!

Sem ocultar qualquer parte da história, Fernando descreveu o que acontecera desde o momento em que haviam sido abordados por Cardoso, até o momento em que atravessaram o corredor de fuga do laboratório. Atento, Vitor acompanhou toda a descrição feita pelo advo­gado analisando cada momento com base em sua participação em tudo.

A operação realizada pelos helicópteros em São Paulo, a fuga dos car­ros, o depósito que guardava vários dos objetos protegidos pelo setor, a saída às pressas do hotel em Brasília e por fim a descoberta da ogiva no laboratório de Abadia de Goiás. Tudo o que Fernando descrevera e como o fizera parecia, de certa forma, ir ao encontro do que o próprio capitão vivera e presenciara.

Por que participaram de tudo isso? - interrompeu o militar. - O que os levou a se envolverem com algo tão arriscado?

Não sei - respondeu Fernando olhando para Gabrielle. - O apelo de um homem que nos ajudou no passado, ou quem sabe o desejo de fazer mais do que simplesmente viver nossas vidas. Poderíamos estar em casa, curtindo tudo o que uma vida pacata e segura pode nos oferecer, mas não sei se conseguiríamos. Não depois de viver muito do que vive­mos até agora.

Acho que jamais conseguiremos estar fora de assuntos como este, capitão - interrompeu Gabrielle. - Não quando soubermos que nossa ajuda pode fazer diferença. E neste caso em especial, devemos isso ao major Alencar. Ele confiou em nós, abandonou o que tinha de mais importante e deu sua vida para que pudéssemos estar aqui. Acho que isso é mais do que suficiente.

Frente a tudo o que havia ouvido nas últimas horas, Vitor parecia se render. Acreditar nas pessoas que perseguira até aquele momento era a única alternativa, e quem sabe a última forma de chegar até o coronel Castro. O homem caminhou pela sala e parando em frente ao espelho continuou:

Não sei exatamente o motivo, mas acredito em vocês. Não se pare­cem com pessoas que colocariam sua vida em risco por algo que não acreditam e, muito mais do que isso, jamais desejariam ir atrás daquele homem se não estivessem de fato preocupados com o que pode aconte­cer. Só tenho uma dúvida. Como vamos saber para onde o coronel está levando a ogiva?

Eu sei como - respondeu Fernando. - Antes de morrer, o major me falou sobre um lugar onde os homens que negociavam com o coronel podem ser encontrados. Se formos rápido, acho que conseguimos con­versar com eles.

Ótimo - respondeu o capitão -, podemos enviar alguns homens com um mandado de busca e apreensão para averiguar e, se preciso, inva­dir o lugar. Não vai ser difícil fazer com que falem.

Não - interrompeu Fernando -, acho melhor deixar que eu e o Cardoso os encontremos. Pode ser que não consigamos fazê-los falar se tivermos que interrogá-los. Podemos barganhar e dar a eles tempo para se esconderem em troca da informação de que precisamos. Acho que esta é a única forma que teremos para conseguir. Neste caso, a segurança de milhares de pessoas vem em primeiro lugar.

 

Por um instante o capitão pensou sobre o que Fernando lhe falara. Realmente aqueles dois eram pessoas especiais, dotadas de habilidades diferenciadas e por isso ficava claro o motivo de Alencar tê-las escolhido. Estavam certos, se quisessem as informações, precisavam agir rápido e de forma inteligente. Mas faltavam garantias para que Vitor não perdesse as testemunhas que procurara nesses últimos cinco anos; agora que os prendera praticamente em um flagrante não podia permitir que simples­mente saíssem pela porta da frente.

Vocês estão certos - continuou -, mas não posso deixar que saiam sem garantias. Preciso de uma confissão de todos vocês, militares e civis. Preciso que contem tudo o que sabem sobre as ações do coronel e como a situação no Setor fugiu do controle. Se conseguir isso para mim, acho que podemos chegar a um acordo.

Não sei se entendeu bem, capitão - interveio Gabrielle -, temos uma situação de perigo iminente em nossas mãos e não temos tempo para falar em roubos ou rebeliões internas.

Eu entendi muito bem, mocinha! - vociferou o militar. - Mas exis­tem muitos outros crimes e quem sabe muitos outros perigos iminentes que podem surgir se eu não contiver as loucuras que este militar vem fazendo nos últimos anos. É muito simples, ou vocês me conseguem a confissão ou nada de saírem daqui. Se for preciso, mando meus homens atrás deles e deixo vocês aqui até as coisas se acalmarem, ou quem sabe até concordarem em me ajudar.

Fernando sabia que não teriam outra saída. Conseguir confissões de Cardoso e sua equipe naquele momento não seria difícil. Bastava falar a eles o que sabia e de que forma conseguiriam chegar ao coronel. Por certo iriam cooperar. Todos sabiam do que ele era capaz e detê-lo era seu principal objetivo:

Eu faço - disse o advogado -, consigo a confissão, desde que nos deixe à frente desta perseguição. Cardoso e seus homens conhecem o coronel melhor do que ninguém e sabem como ele deve agir. Nada mais justo do que nos deixar planejar tudo.

Sim, pode ser! - concordou o militar balançando a cabeça com um meio sorriso. - Você tem uma hora para me dar às confissões. E eu auto­rizo qualquer movimento que planejarem. Podem conhecer o coronel, mas eu vou ser responsabilizado por qualquer coisa que vier a acontecer, por isso não quero ter surpresas. Assim que me entregarem as confissões, eu os mando em um helicóptero para São Paulo com um de meus homens e em seguida os encontro na sede do comando do sudeste. Preciso avisar a presidente. Enquanto esta ogiva estiver em nosso território, ela deverá ficar em um abrigo de segurança.

Gabrielle encarou o militar e mesmo sem muita empolgação agrade­ceu sua ajuda. Vitor se levantou e caminhou em direção a saída, mas antes de cruzar a porta voltou a falar:

- Acho que teremos que trabalhar juntos, e se tudo o que disseram for verdade... Espero que Deus também trabalhe a nosso favor!

 

                       Um Novo Destino

A gravação dos depoimentos exigida por Vitor havia transcorrido de forma tranqüila e organizada. A alternativa colocada pelo capitão era insignificante frente ao que estava para acontecer e por isso ninguém contestou seu pedido. Com as evidências dos crimes militares praticados pelo coronel e a garantia de que o levaria à corte marcial, Vitor permitiu que a equipe se juntasse novamente.

Mas toda aquela burocracia havia consumido grande parte do tempo que lhes restava. Depois de escapar com vida das explosões ocorridas no laboratório, o grupo sabia que descobrir o paradeiro da ogiva era o que mais importava e cada minuto perdido tornava esta tarefa ainda mais difícil. Precisavam avançar com as investigações e isso fez com que se separassem. Não seria prudente que todos saíssem juntos em direção a um único destino. Enquanto Fernando e Cardoso seguiam em direção a São Paulo, Vitor tratava da segurança dos chefes de Estado e o restante do grupo se preparava para uma possível investida.

O helicóptero transportando os dois chegou ao centro empresarial às dezenove horas e trinta minutos. Eles desceram a rampa do heliponto seguidos por Jefferson, o homem de confiança de Vitor, e rumaram diretamente para o bloco indicado pelo major. Enquanto caminhavam, Cardoso mantinha em seu pensamento a certeza de que a segurança do país estava agora nas mãos daquele grupo. A ausência do major e a trai­ção de Douglas selaram o destino do Setor e com isso ficara para ele e Fernando a responsabilidade de colocar o "trem de volta aos trilhos". Ter o apoio de Fernando e Gabrielle era essencial para que a nova missão fosse completada e por isso o militar precisava ter certeza de que os últi­mos acontecimentos não os tinham abalado.

Vocês fizeram um ótimo trabalho! - disse Cardoso assim que desceram.

Pena que o resultado não foi aquele que esperávamos - respondeu Fernando a passos rápidos.

Cedo ou tarde ele encontraria a ogiva - continuou Cardoso -, mesmo que vocês não tivessem descoberto as pistas, ele acabaria encon­trando. E se não fosse por bem, era possível que explodisse o depósito e colocasse a vida de todos de perigo.

De certa forma foi o que ele fez! - concordou Fernando.

Eles corriam agora pela passarela que ligava os prédios ao heliponto. Fernando, parcialmente recuperado, conseguia acompanhar o militar alternando sua velocidade entre passadas rápidas e lentas:

Vocês fizeram o que deveria ser feito - continuou Cardoso.

Fernando concordava com suas palavras, sabia que todos haviam sido enganados e que aquele era o momento de se unirem ainda mais. Ele sorriu e colocando a mão no ombro do militar que havia se tornado seu amigo, continuou:

Não são uma ou duas bombas que vão nos parar, meu amigo. Se o coronel acha que vai nos fazer desistir, ele está muito enganado.

Cardoso concordou e, confiante, apressou o passo.

Mais uma coisa - disse num tom meio sério.

Fale! - respondeu Fernando.

Veja se resolve logo seu assunto com a Gabrielle, porque não se encontram muitos aviões como estes voando por aí.

Com uma risada, e um tanto constrangido, Fernando encerrou a conversa. Mesmo sendo indiscreto, Cardoso tinha razão.

O saguão do edifício estava praticamente vazio quando chegaram, apenas os guardas de plantão faziam a segurança do local. Antes de Fernando ou Cardoso abordá-los, Jefferson já lhes tomou a frente:

Deixe que eu falo com os seguranças - disse ele.

Educadamente, o civil abordou um dos atendentes. Eram dois homens e uma mulher. Apenas um deles estava armado e de pé ao fundo; os outros dois atendiam visitantes, sentados atrás do balcão.

Somos militares - pronunciou Jefferson. - Precisamos acessar uma das salas do prédio e precisamos de sua colaboração...

Sem de dar conta da atitude de Jefferson, Cardoso pulou a catraca de entrada e investiu contra o segurança armado. O homem não teve sequer tempo para reação. Com o ombro Cardoso golpeou seu peito, fazendo com que batesse violentamente contra a parede de concreto; e antes que pudesse sacar a arma, o militar pegou seu braço e apoiando-o sobre ele fez com que desenhasse uma meia lua sobre sua cabeça, caindo de cos­tas no chão de mármore do hall. Percebendo a ação, os soldados que os acompanhavam posicionaram suas armas fazendo com que os atenden­tes ficassem imóveis e assustados.

Desculpem, mas não temos tempo - disse Cardoso pegando a arma do coldre do segurança - e não podemos correr o risco de eles avisarem que estamos aqui.

E então, olhando para os soldados, apontou os seguranças e continuou:

Eles devem ficar imobilizados, nós vamos subir!

 

Vitor não sabia como abordar a presidente, mas, com a iminência de um incidente internacional, esta ação incomum se tornava não apenas necessária como também urgente. Ele, como maior envolvido no caso do Setor 27, tinha a responsabilidade de monitorar as ações de resgate da ogiva e principalmente garantir a proteção dos chefes de Estado. Por sorte, o ministro da defesa e outros membros da equipe do governo par­ticipavam de uma reunião agendada para o fim daquele dia, e esta parecia ser uma oportunidade adequada. Na verdade era uma espécie de come­moração dos resultados apresentados pelo país frente à crise mundial, situação que ainda perpetuava em grande parte do mundo. Depois da transição governamental tranqüila ocorrida na última posse, a apreensão causada pela possibilidade de uma reação negativa frente à primeira pre­sidente mulher da história, enfim, dera lugar a uma confiança tranquilizadora. Esta sensação renovava os ânimos de toda a cúpula governamen­tal e por isso uma comemoração parecia adequada.

A Granja do Torto era o palco da recepção e a chegada do Super Puma não pareceu motivo de surpresa para os visitantes. Vitor desceu do helicóptero antes mesmo que as hélices do rotor parassem. Habilmente, o militar atravessou a forte corrente de vento causada pela máquina de guerra e rumou para um carro que o esperava. Sem perder tempo, seguiu com o motorista até a recepção.

O ministro da Defesa conversava com um dos assessores presiden­ciais quando foi abordado:

Senhor, desculpe-me interrompê-lo - disse Vitor mas precisa­mos conversar.

O homem mais forte do Exército era de fato uma pessoa acessível, e Vitor o conhecia bem. Com tranqüilidade, ele voltou sua atenção ao militar.

Vitor? - disse ele sorridente - O que faz aqui?

É uma emergência, senhor. Precisamos conversar.

Ora, ora! - disse o ministro ao convidado. - Pelo visto parece algo importante.

O homem se afastou, permitindo a Vitor que lhe falasse:

É uma longa história, senhor, mas em resumo, precisamos levar a presidente a um dos abrigos. Acredito que o país pode sofrer um ataque nuclear a qualquer momento.

 

O quinto andar do bloco parecia estar vazio. Cardoso e Fernando desceram do elevador em uma pequena antessala com apenas uma mesa, possivelmente utilizada por uma secretária, ou alguém que recepcionasse os visitantes. Na parede atrás da mesa uma logomarca em tons prateados e algumas palavras descreviam o que por certo era o nome da empresa: Leons Importadora. Cardoso parou em frente à mesa e sacando uma arma da cintura entregou-a a Fernando. Sinalizou então para que seguisse por um dos lados.

Sabe usar isso? - perguntou em voz baixa.

Já usei algumas vezes - respondeu Fernando.

Ótimo, enquanto você entra pela direita, eu entro pela esquerda. Quem encontrar alguma coisa faz barulhos e o outro se aproxima.

Tudo bem!

Fernando entrou pela passagem da direita. Assim que cruzou a entrada, um corredor apareceu à sua frente. Com mais de quinze metros de comprimento, conduzia a várias salas menores e também a um amplo salão com mesas de escritório. Do outro lado do mesmo salão era possí­vel ver Cardoso, pois, apesar de separadas, as entradas conduziam inicial­mente a um mesmo lugar. O salão estava vazio e os dois perceberam que lhes restava investigar apenas as salas. Mesmo frente àquele cenário, não queriam acreditar na possibilidade de terem chegado tarde. Somente a idéia de perderem a única pista deixada pelo major e de estarem à mercê dos planos do coronel já os assuntava.

Uma a uma, as portas foram abertas, revelando salas escuras e vazias de qualquer vida. Ao fundo, Fernando percebeu fachos de luz cruzando a fresta da porta, acenou então para Cardoso e os dois se posicionaram prontos para uma investida. Assim que cessaram seus movimentos, uma voz vinda de dentro da sala atingiu seus ouvidos:

Entrem, por favor! - disse o homem.

Cardoso olhou para Fernando e, em uma reação automática, sinali­zou para que ele saísse da frente e encostasse na parede. Ele fez o que lhe foi pedido; depois de Cardoso ter repetido o mesmo movimento, os dois empurraram a porta, revelando um grande salão.

Podem entrar - disse a voz -, eu não vou reagir!

Fernando foi o primeiro a ficar frente a frente como ele. Era um homem idoso, de cabelos brancos e um notável ar de superioridade:

Estava me perguntando se, e quando, chegariam até mim - disse ele em um tom tranqüilo. Estava sentado em uma cadeira à cabeceira de uma grande mesa de reuniões.

Sabe quem somos? - perguntou Fernando.

Não exatamente, mas tenho minhas suspeitas - continuou. - Devem ser pessoas ligadas a um de meus contatos, o senhor Castro.

Coronel Castro - corrigiu Cardoso.

Que seja! Em que posso ajudá-los, cavalheiros?

Inicialmente, Fernando estranhara a presença daquele homem, mas precisava de informações e não importava quem as tivesse.

Em algum momento, dentro dessa última semana - disse Fernando -, o coronel Castro esteve aqui e acreditamos que tenha dado a ele instru­ções para encontrar algumas pessoas. Você se lembra?

É claro que me lembro, meu jovem! Se há algo de que me orgulho é da minha memória.

Ótimo - continuou Fernando. - Precisamos saber quem são essas pessoas e como podemos encontrá-las.

O homem levantou lentamente de sua cadeira e caminhou sem pressa; parou em frente a uma grande janela. Dali era possível ver parte do jardim que circundava o prédio e também os carros que cruzavam a marginal Pinheiros. Cardoso apontou à arma em sua direção, enquanto Fernando aguardava que ele respondesse à sua pergunta. Posando a mão sobre o beirai da janela o homem continuou:

Depois de alguns anos, meu rapaz, nossos instintos se tornam cada vez mais assertivos. Eles despontam em nosso interior e percebem sinais. Sinais que nos avisam sobre perigos e tentam limitar nossas ações. Às vezes, impulsionados por desejos de conquistas, avançamos estes sinais e não damos ouvidos a este instinto. Como resultado, atraímos para nós atenções e problemas ainda mais difíceis de administrar.

O homem falava calma e pausadamente:

Eu de certa maneira pressenti que essa venda me traria problemas, mas a remuneração ia além de qualquer outra coisa que já havíamos ven­dido. Quando falaram em ogivas nucleares, imaginei que seria um pro­duto como qualquer outro, mas eu mesmo me surpreendi com as coisas que passaram por minha cabeça. Pessoas podem morrer por algo que de certa forma chegará àqueles homens por minhas mãos.

O que você sabe sobre a venda? - perguntou Fernando impaciente.

O local e um nome. Possivelmente falso. Nada que possa denunciar alguém.

Nos dê o nome e o local.

Por um instante o silêncio tomou conta de todo o ambiente. Depois de alguns segundos o homem continuou:

-Vou precisar de dois dias para sair do país e desmontar este escritório.

Não sei se podemos - alertou Cardoso.

São as condições. Mesmo sabendo o que pode vir a acontecer, não posso me dar ao luxo de ficar à mercê de pessoas ligadas a estes compra­dores. Já que vou traí-los, preciso desaparecer.

Fernando olhou para Cardoso. De fato, somente eles sabiam a locali­zação daquele escritório e de quem se tratavam àquelas pessoas. Seria pos­sível ocultar estas informações por dois dias. Nem mesmo Jefferson, que os acompanhara até ali, tinha idéia de quem haviam encontrado. Cardoso movimentou a cabeça em um sinal de concordância e continuou:

Tudo bem, você tem seus dois dias.

O homem sorriu e contemplando o crepúsculo que cobria a cidade falou:

O envelope azul sobre a mesa tem o local e o horário da entrega. Espero que cheguem lá em tempo.

Fernando correu até a mesa e pegou o envelope. Rompeu seu lacre e retirou de dentro um cartão que dizia:

 

                 Porto de Santos - 22 h

 

O relógio marcava vinte horas e quinze minutos, o que significava que eles tinham menos de duas horas.

 

                     O Abrigo Presidencial

Em um sítio no litoral sul de São Paulo, o coronel Castro admirava o fruto de sua grande investida. Desde que ordenara a primeira invasão ao laboratório de Abadia de Goiânia havia mais de trinta anos, o militar sempre tivera a certeza de que seus segredos ainda não haviam sido total­mente desvendados. Agora, décadas após o ocorrido, tinha à sua frente uma prova incontestável. O professor Montenegro, um dos homens mais brilhantes de sua época, fizera por merecer toda a confiança depositada sobre ele e criara um protótipo funcional de uma ogiva nuclear. Mais de um megaton de poder destruidor. Um dispositivo capaz de arrasar tudo em um raio de no mínimo cinco quilômetros e infectar qualquer ser vivo a uma distância superior a vinte. A seu lado, Douglas sorria apreensivo. Uma sensação pouco agradável tomava conta de seu corpo. Até mesmo seus movimentos eram mais contidos.

Não pensei que existia realmente - afirmou ele.

Eu sempre soube, meu caro. Eu sempre soube - respondeu o coronel.

Não fico à vontade perto dessa coisa, por que não a entregamos logo àqueles extremistas e voamos para longe daqui?

É uma ação muito arriscada para realizarmos à luz do dia. Precisamos de cobertura para fazer a entrega sem levantar suspeita. Por isso combinamos durante a noite. Temos o lugar ideal e a distração per­feita, ninguém irá desconfiar.

-Você sabe o que eles pretendem fazer com isso? - indagou Douglas.

Não tenho a mínima idéia - respondeu Castro sorrindo.

A sala em que estavam não era muito grande. Ele se afastou da porta e, chegando próximo ao dispositivo, passou a mão pelo acrílico em um movimento continuo de vaivém:

Com certeza vão infiltrar em solo americano ou quem sabe euro­peu. Pouco me importa. Desde que sumam com isso de perto de nós, podem fazer com ele o que quiserem. - Castro parou por um instante; outra possibilidade já havia lhe passado pela cabeça, algo ousado sobre o qual preferia não pensar.

E se alguém aparecer? - continuou Douglas interrompendo seu pensamento. - O pessoal do major ou quem sabe outros?

A esta hora já devem estar todos mortos. Não teremos problemas - o coronel sorriu. - Depois que pegarmos nosso dinheiro, tudo vai ficar mais fácil, não precisaremos mais mendigar verbas. Basta sentar e espe­rar até que venham implorar nossa interferência na crise internacional que estará instituída. Depois do que ocorreu no depósito de Brasília e do aparecimento desta ogiva em solo estrangeiro, acho que será impossível que ainda queiram fechar o Setor. Ladrões invadindo um dos depósitos em plena capital nacional, uma bomba secreta vendida a terroristas. Isso com certeza justifica nossos serviços. E se mesmo assim não nos quiserem mais por lá, poderemos trabalhar no mercado negro e tornar a vida deste país tão infernal quanto necessário.

Mas e se descobrirem que estamos por trás disso?

Quem? - disse o militar em tom irônico. - Aqueles que nos viram estão mortos e aquele capitão Vitor não tem sequer provas a respeito de nossos movimentos. Fique tranqüilo, Douglas, nosso plano está se con­cretizando exatamente da forma como planejamos.

Espero que sim!

Chega de conversa, prepare as coisas. Está quase na hora de sairmos.

 

Vitor já estava a caminho de São Paulo e ainda se lembrava de como tudo acontecera durante a recepção. Depois de explicar a história ao ministro da Defesa, no jardim da Granja do Torto, sua única atribui­ção fora esperar até que o comunicado à presidente fosse oficializado. Apreensivo, o ministro se aproximou da líder maior e, pronunciando poucas palavras, a convenceu da necessidade de saírem. Sem mais expli­cações nem mesmo justificativas ambos caminharam em direção ao heli­cóptero presidencial, que partiria com destino ao abrigo. Assim que pas­saram por Vitor, foi possível pressentir no olhar da chefe de Estado um pedido. Deveria fazer tudo o que fosse possível para livrar a nação do iminente perigo.

"Vá, Vitor, e evite o pior, eu cuido da presidente" - estas foram as últimas palavras ditas pelo ministro antes de partir.

De repente, o telefone tocou, interrompendo imediatamente seu pensamento.

Vitor! - respondeu assim que abriu o aparelho.

Eles descobriram onde será a troca, senhor. Estamos voltando para o comando, e assim que pegarmos os outros, iremos para lá.

Esperem até que eu chegue, assim planejaremos a ação.

Infelizmente não será possível esperar, senhor. A troca será no porto da cidade de Santos em pouco mais de uma hora. Se não sairmos agora, será difícil chegar lá antes que tudo esteja terminado.

Leve reforços! - completou o capitão. - Vou mudar a rota e seguir direto para lá. Devo chegar logo depois de vocês.

Sim, senhor, já providenciamos tudo. Iremos em dois helicópteros e levaremos pelo menos seis homens das forças especiais. São os melhores que temos.

Ótimo. Peça para que coloquem caças da base aérea de Santa Maria em alerta e também a Marinha do porto de Santos; pode ser que precise­mos de ajuda.

Ok. Mandaremos as coordenadas do ponto de encontro para o piloto do seu helicóptero.

Ao fim das palavras pronunciadas por Jefferson, o militar desligou o telefone. Agora, seguindo ao encontro de todo o grupo, Vitor sabia que somente eles poderiam evitar o pior. Investidas em áreas populosas exi­giam ações de pequeno porte, com grupos especiais e muita cautela. Com o risco de uma explosão, todo cuidado seria necessário.

 

Qual é exatamente a situação, senhor ministro? - perguntou a pre­sidente.

Naquele momento, ela, o ministro e mais dois seguranças haviam aca­bado de entrar em um elevador de transporte, desenhado para conduzi-los até o abrigo de segurança presidencial. Uma construção secreta, localizada a quarenta e cinco quilômetros da cidade de Brasília. Acompanhados ape­nas pelo som dos cabos, que os transportavam para a construção subterrâ­nea com uma profundidade equivalente a um edifício de dez andares, eles discutiam qual era o real risco associado àquela ameaça.

-Ainda não temos todos os detalhes da operação, senhora presidente - respondeu o ministro. - Sabemos que um dispositivo nuclear foi rou­bado de um laboratório por um de nossos militares, e que ele agora pre­tende vendê-lo no mercado negro. A venda estaria programada para hoje, mas o local ainda não nos foi informado; acredito que dentro de minutos receberemos a informação exata.

Um dispositivo nuclear? O que seria, uma bomba?

Sim, senhora. Uma ogiva de aproximadamente 1,5 megatons de potência.

O elevador se abriu, e o grupo seguiu por um corredor com piso de concreto liso e bem iluminado.

Desculpe, ministro, mas seria melhor se falasse em uma linguagem que fosse equivalente ao meu conhecimento sobre a tecnologia - disse a presidente, enquanto caminhavam.

São unidades de potência destruidora, senhora. Neste caso podería­mos traduzir como uma bomba capaz de destruir tudo em um raio de pelo menos cinco quilômetros e contaminar uma área de pelo menos mais vinte. Dependendo da região em que explodisse, traria uma grande perda.

Puxando uma grande quantidade de ar para seus pulmões, a presi­dente percebeu parte do perigo que estavam correndo. Assim que cruza­ram a porta que levava à sala de comando do abrigo ela continuou:

Recebemos alguma ameaça oficial?

Não, senhora. Na verdade, assim que tivemos certeza de que a bomba existia, colocamos militares em alerta nas fronteiras e aeroportos. Não achamos que eles pretendem explodi-la em nosso território, mas precisamos nos prevenir.

Boa noite, senhora presidente. Boa noite, ministro - disse Demétrio.

O general aguardava os chefes de Estado nas dependências do abrigo e foi o primeiro a recebê-los. Depois que Vitor descobrira o que de fato acontecera em Abadia, sua primeira ação fora ligar para o amigo e pedir para que chefiasse a equipe de segurança. Sabia que o militar era um profundo conhecedor de estratégias militares e por isso contava com sua ajuda. Esclarecer possíveis intempéries e também conseguir o apoio necessário era fundamental à ação; portanto, pessoas de confiança eram necessárias. Demétrio cumprimentou os dois e prosseguiu:

Eu sou o general Demétrio e estou no comando do abrigo.

Obrigada, general Demétrio - respondeu a presidente, parando em um platô que dava visão para toda a sala. Era uma construção em meia-lua, com mais de dez metros de raio e várias telas de computador. Na parede à sua frente, um projetor reproduzia a imagem de satélite do quarto comando aéreo de São Paulo. Na imagem era possível perceber helicópteros e um pequeno grupamento de militares.

A presidente observou a sala e, após um reconhecimento rápido, retomou o assunto que discutiam:

Mas toda esta discussão me leva apenas a duas perguntas, senhor ministro. Como é possível roubar uma bomba que não temos e por que alguém de nossa própria equipe faria isso?

Acho que eu posso responder a essa pergunta, senhora presidente - interrompeu Demétrio.

Por favor, general - disse ela olhando em sua direção.

Há pouco mais de trinta anos, na mesma época em que as usinas de Angra dos Reis foram compradas, nosso país, a exemplo de vários outros, entrou em uma corrida pelo domínio da tecnologia nuclear. Vários estu­dos foram realizados e, depois de alguns meses de negociações, um labo­ratório avançado foi criado na cidade de Abadia de Goiás.

Abadia de Goiás não é a cidade onde armazenaram o lixo radioa­tivo do acidente do Césio?

Sim, senhora - concordou o general. Percebendo a intuição da pre­sidente, completou: - Mas não existem evidências físicas que identifiquem ligações do acidente de Goiânia com o laboratório. O fato é que o labo­ratório criado nessa cidade tinha por principal objetivo construir armas nucleares. Por trás de experimentos secundários de fachada, homens com um intelecto comparado aos melhores do mundo foram encarregados de nos colocar como um dos países capaz de construir bombas de destrui­ção em massa.

O general caminhou em direção a um dos computadores e continuou:

Mas algo aconteceu. Um grupo extremista invadiu o depósito quando os experimentos estavam quase concluídos e eliminaram os cien­tistas, roubando parte dos resultados. Frente a isso uma tropa foi enviada para investigar, mas nada ou quase nada foi concluído. Informações foram perdidas e os cientistas permaneceram desaparecidos.

Desaparecidos?

Sim, quase todos foram encontrados depois de algum tempo, mas nenhum deles estava vivo. Uma ação criminosa que levou consigo todo o conhecimento gerado em vários anos de trabalho. Ao fim, não foram encon­tradas evidências da construção de bombas ou experiências nucleares.

Mas parece que a bomba existia! - completou o ministro.

Não só existia, como é a ela que estamos procurando.

E o homem responsável pelo desaparecimento dos cientistas é o mesmo que ocultou a existência da bomba?

Sim, senhora, o nome dele é coronel Castro - disse o militar enquanto mudava as projeções para visualização de alguns documen­tos. No primeiro deles, a foto do coronel aparecia nítida ao lado de um grande currículo pessoal. - E ele também é o mesmo homem que ontem levou a bomba do laboratório.

Apontando um pequeno laser para a tela Demétrio, continuou:

Ele é o comandante de um grupo chamado Setor 27. E uma unidade secreta que foi responsável por guardar segredos do período de ditadura entre os anos de 1968 e 1984. Durante esse período, foram eles quem man­tiveram nossos maiores segredos em segurança.

A presidente ouvia atenta; figura atuante na época da ditadura, ela se lembrava claramente das ações que apreendiam materiais considerados subversivos e os faziam desaparecer para sempre.

O coronel Castro - continuou Demétrio - é o que chamamos de um ativo da corporação, alguém que viveu sua vida em função da missão que lhe foi determinada e por isso vem enfrentando problemas com as novas diretrizes.

Quais novas diretrizes?

O fechamento do Setor 27 - respondeu o ministro. - Há pouco mais de um ano, determinamos o fechamento do Setor e a imediata destinação de tudo o que permanecia sob sua guarda.

Destinação?

Sim, senhora - continuou Demétrio parte do material seria destruído e parte devolvido aos seus donos. O que fosse considerado de baixo risco seria devolvido e o contrário, incinerado ou simplesmente jogado fora.

-E?

Duas coisas motivaram esta ação. A redução dos recursos consu­midos pelos depósitos e a suspeita de que artigos de valor estavam sendo vendidos por pessoas do Setor 27.

Vendidos?

Sim, mesmo com a redução das verbas que autorizamos, as opera­ções desse grupo pareciam se manter normalizadas e por isso suspeita­mos da fonte de seus recursos.

Ele estava financiando a unidade com a venda dos depósitos?

Exatamente - afirmou Demétrio. - Porém, mesmo suspeitando disso, não conseguimos condená-lo por falta de provas concretas. Assim, quando resolvemos determinar uma data limite para que as operações fos­sem encerradas, o coronel parece ter resolvido sair do casulo. Ele se tornou uma ameaça. Achamos que ele pode estar fazendo esta ação simplesmente para conseguir recursos e desaparecer, mas não descartamos a possibili­dade de repressões àqueles que ordenaram o fechamento do setor.

Este homem enlouqueceu.

O fato é que, além de perigoso, ele ainda possui um dispositivo capaz de matar milhares de pessoas.

E onde podemos encontrá-lo?

Pouco antes de chegarem, recebemos uma ligação do capitão Vitor dizendo que o local da venda foi identificado como o porto da cidade de Santos. Esta imagem de satélite mostra o momento em que nossos homens saíram do quarto comando aéreo rumo ao porto, para tentar interceptar a venda. Ela ocorreu há pouco mais de vinte minutos e desde então estamos em contato com eles. Daqui poderemos acompanhar toda a operação.

O silêncio tomou conta da sala enquanto a tela mostrava soldados embarcando no helicóptero. Por muito tempo, os governos haviam nego­ciado a abertura de arquivos secretos e a revelação de antigos segredos militares. Em uma situação segura, a presidente encararia aquelas reve­lações de maneira positiva e necessária. Porém, frente a uma iminente ameaça, tudo era diferente.

 

                     Porto de Santos

O porto da cidade de Santos foi inaugurado em fevereiro de mil oitocentos e noventa e dois. Naquele ano, duzentos e sessenta metros de cais foram entregues à navegação mundial no lugar hoje conhecido como Valongo. Desde então, a estrutura criada para receber inicialmente navios a vapor cresceu, e acompanhando o desenvolvimento de todo o país chegou ocupar uma área superior a sete milhões de metros quadra­dos. Responsável por mais de vinte e seis por cento de toda a movimenta­ção portuária do país, Santos é assim considerado a maior porta de saída para produtos produzidos no Brasil. Intencionalmente, o coronel Castro escolhera bem o local de sua troca. Era simples, em meio a tanta grandio­sidade, ocultar uma caixa com menos de um metro quadrado.

Dezenas de barcos ancorados e uma extensão superior a dez quilôme­tros era o cenário que seria encontrado pelo grupo de busca. Fernando, Gabrielle e os outros não sabiam, mas já havia dois dias que a embarca­ção, trazendo os compradores, chegara ao local. Ancorado em uma região pouco movimentada do porto, o destróier aguardava pelo sinal que os levaria ao ponto onde a troca seria feita.

Enquanto aguardava a informação do vendedor, Hamid contemplava o céu escuro sobre a proa do destróier. Devido às diversas nuvens que pairavam sobre quase todo o litoral, não era possível se avistar estrelas, nem mesmo a Lua. O tempo não traria chuvas, mas a noite seria úmida e fria. Por um momento, o soldado se lembrou das noites que passara em solo russo e de tudo o que haviam planejado para chegar até ali. Estavam a um passo de concluir seu objetivo e de repente um pressentimento pareceu preocupá-lo. O poder que teria em suas mãos em breve era algo descomunal e por certo traria até eles pessoas capazes de tudo para fazer com que desistissem. Mesmo parecendo algo impossível, a própria noite lhe sinalizava que teriam problemas.

Após alguns instantes, Nasim chegou trazendo o telefone:

É ele! - disse.

Olá, Castro! - falou Hamid assim que pegou o aparelho.

Estou com o pacote e pronto para a troca - disse o coronel. - Chego no ponto de encontro em vinte e cinco minutos. Você está com o dinheiro?

Estou - respondeu Hamid -, mas pensei que viria até aqui.

Não. Se ainda quiser a troca, teremos que nos encontrar em um local um pouco mais movimentado.

Como queira - concordou Hamid, quase sem alternativa. - Qual é o local exato?

Área de embarque, no salão principal do terminal turístico. Vamos levar a entrega em uma mala negra. Você vai receber a bomba assim que me passar o dinheiro. Eu removi os explosivos para ter certeza de que não irá usá-la próximo a nós.

Ok, nós nos encontramos lá!

Hamid desligou o telefone e o entregou a Nasim.

Chegou a hora - disse ele ao companheiro. - Peça para que Jafar localize e monitore o alvo até chegarmos com o pacote. Não estou gos­tando desta noite, as coisas já estavam quietas demais... E agora essa mudança de planos.

Mudança de planos?

Junte cinco homens, teremos que ir à área de embarque para pegar a ogiva.

Mas o combinado era que trouxessem até aqui.

Eu sei, mas pelo visto as coisas não estão exatamente tranqüilas. Primeiro o atraso e agora essa mudança. Parece que nosso vendedor está tendo dificuldades.

Não se preocupe, Hamid - disse Nasim tentando acalmá-lo -, tudo acontecerá conforme planejamos.

E o marinheiro?

O ferimento a bala não foi fatal, nós o trancamos em uma sala lá embaixo. Ele tem água, mas como já faz um dia que não o alimentamos, deve estar fraco e faminto. Ainda não sei por que não quer eliminá-lo.

E faríamos o que com ele, jogaríamos ao mar? Não, seríamos desco­bertos facilmente. Ainda podemos precisar dele para alguma coisa; deixe que viva por enquanto.

 

Assim que os helicópteros transportando o grupo cruzaram a bar­reira da Serra do Mar, foi possível enxergar as luzes desenhando o perfil da cidade. O relógio de Fernando marcava vinte e uma horas e quarenta minutos, o que sinalizava pouco tempo para que a entrega fosse finali­zada. Nuvens pairavam por toda a cidade dificultando aos pilotos visua­lizar possíveis locais para pouso.

Águia um para central - disse Cardoso pelo rádio. - Solicito iden­tificação do ponto de entrega.

Os grupos estavam divididos de forma a ocuparem os dois apare­lhos. Enquanto Cardoso, Fernando e Gabrielle viajavam em um helicóp­tero com outros três soldados, Patrícia, Henrique e Jefferson seguiam em outra aeronave. Além deste grupo, Vitor também seguia para Santos e chegaria quase uma hora após terem pousado. Como de costume, a ope­ração era monitorada e auxiliada por uma base central. Nesta noite, esse trabalho era feito por Demétrio e seu grupo, localizados no abrigo presi­dencial em Brasília.

Todos os envolvidos na operação já haviam se equipado com armas, coletes e comunicadores. Antes de saírem, no momento em que se prepara­vam, Cardoso ainda tentou convencer Fernando e Gabrielle a participarem da ação em distância segura, mas seu esforço se mostrara em vão. Com o argumento de que não tinham os treinamentos necessários, o militar demonstrou uma preocupação pertinente por suas vidas e foi contraposto por palavras diretas da jovem Gabrielle: "Começamos isso juntos, tenente; se não fosse por nós, talvez nada disso estivesse acontecendo. Portanto, queira ou não, iremos com vocês até o fim". Nem mesmo Cardoso esperava um comportamento diferente; depois de conviver com os dois por algum tempo, o militar percebera que a fibra e a coragem que demonstravam era o alicerce que sustentava seus princípios. O desafio lhes trazia ainda mais coragem. Não que Gabrielle conhecesse bem armas de fogo ou ação milita­res; de fato, nem ela nem Fernando haviam participado de atividades como aquela antes de conhecerem o Setor. Esportes que simulavam confrontos armados e aulas de tiro eram o mais perto que haviam chegado de equipa­mentos como aqueles. Mas fora só. Mesmo sabendo como atirar, não seria com esta habilidade que iriam contribuir.

Águia um, aqui é central - respondeu Demétrio através do comu­nicador. - Não temos visão clara de satélite, por isso estamos consul­tando imagens de arquivo para tentar identificar posição e característica do transporte utilizado pelo comprador. Pela entrega estar marcada no porto, achamos que eles transportarão a bomba através de uma embar­cação. Resta identificar qual dentre tantas pode ser a que procuramos. Assim que tivermos a posição voltamos a conversar.

Positivo! - respondeu Cardoso.

Fernando olhou o relógio, faltavam poucos minutos para a entrega e deveriam cobrir vários quilômetros de cais se quisessem encontrar o barco. Mesmo que tivessem sorte, talvez já fosse muito tarde.

Precisamos nos dividir! - falou Cardoso. - Se começarmos pelas extremidades do porto e formos passando lentamente, talvez consigamos encontrar alguma embarcação suspeita.

Ok! - respondeu Jefferson no outro helicóptero.

O plano parecia funcionar, mas precisavam pensar mais, encontrar outras possibilidades. Fernando olhou para Gabrielle, sua expressão denunciava outro pensamento. Precisavam de outra idéia, precisavam mais do que simplesmente procurar. A jovem tirou o comunicador e falou próximo a seu ouvido:

Não é suficiente, não vai dar tempo!

O som do motor do helicóptero e do deslocamento dos rotores frag­mentava as palavras ditas por ela.

Eu sei - respondeu o advogado praticamente gritando. - Precisamos encontrar outra forma, deve haver um jeito de descobrir como o coronel pensaria.

E quais são as possibilidades? - ela perguntou.

Eles devem estar em algum navio, o mais fácil seria levar a bomba até eles.

Deve haver uns quinhentos barcos aqui no porto. Se for isso, será impossível encontrá-los.

Mas, ao mesmo tempo, me parece algo arriscado - completou Fernando. - Mesmo para alguém como o coronel, um encontro em ambiente inimigo tem seus riscos. O barco está oculto em meio a tantos outros e o coronel não teria como escapar caso algo desse errado.

Poderiam fazer a troca em algum galpão abandonado - afirmou Gabrielle.

Seria mais prudente...

Mas ele teria que preparar o perímetro; e pelo que sabemos, ele não teve este tempo - disse Cardoso.

Sentado perto dos dois, o militar ouvira a tudo e agora participava da discussão:

De certa forma, ele precisaria estar seguro e oculto ao mesmo tempo - continuou Fernando.

O que está sugerindo, um shopping center? - disse Gabrielle sorrindo.

De repente Fernando percebeu, havia um lugar. Talvez ali pudessem agir sem serem percebidos. Em meio à multidão estariam em segurança. Ao perceber sua expressão, Gabrielle pareceu assustada:

Espera aí, eu não estava falando sério sobre o shopping. Foi só para acompanhar o racio...

O embarque dos cruzeiros! - interrompeu Fernando. - Acho que podem estar lá.

Sentado perto dos dois, o militar ouvira a tudo e agora participava da discussão:

Pode ser! - afirmou Cardoso. - Não seria surpresa se o coronel fizesse algo assim; ele estaria seguro e poderia se esconder, fugir em meio a todos, caso precisasse.

Mas as pessoas estariam em perigo durante a troca - sibilou Gabrielle.

Podemos nos dividir - continuou Cardoso. - Enquanto Jefferson e os outros procuram pela embarcação ao longo do cais, nós seguimos para o terminal e procuramos por lá.

Em meio a tudo, aquela parecia a melhor coisa a fazer. Com uma ordem simples, Cardoso fez com que os helicópteros se separassem, seguindo cada um para o seu novo destino.

 

                      Área de Embarque

A lancha trazendo Hamid e Nasim ancorou na área reservada aos transatlânticos quinze minutos antes do horário agendado. Junto com eles, cinco homens selecionados para acompanhar a transação daquela noite tentavam disfarçar por entre as roupas escuras, os armamentos militares que carregavam. De acordo com as instruções de última hora definidas por Hamid, o grupo deveria se dividir e guardar as várias pos­sibilidades de fuga. Suas armas deveriam permanecer ocultas e somente seriam usadas na possibilidade de que algo fugisse ao controle. Dois dos soldados permaneceram embarcados assim que Hamid e seu grupo desceram da lancha. Na mão de um dos homens que agora caminhavam em direção ao salão principal do terminal, duas mochilas marrons levavam o equivalente a quatro milhões de dólares. Aquela era a quantia estipulada por Castro como pagamento por seus serviços.

Hamid sentiu o impacto da civilização assim que chegou à rua que separava os barcos da construção portuária. Dois gigantescos transatlânti­cos, com capacidade para mais de dois mil passageiros, estavam ancorados aguardando o embarque dos viajantes. Empilhadeiras seguiam de um lado para outro carregando grandes caixas de bagagens e alimentos que seriam consumidos durante o cruzeiro que seguiria pelo litoral brasileiro. Era final de temporada, mas as cabines estariam lotadas naquela noite.

- Não será fácil sair daqui - disse Hamid enquanto caminhava -, tem muita gente.

Vou posicionar os homens de maneira que estejamos cobertos - respondeu Nasim. - Se conseguirmos fazer a troca com rapidez, vai dar tudo certo.

Faça isso, peça para que se misturem de uma maneira que ninguém consiga identificá-los.

Pode deixar.

Em meio a todo o movimento, os cinco homens caminhavam sem serem percebidos.

Para eles, aquela noite tinha um objetivo muito diferente.

 

Douglas parou o carro em uma das vagas do estacionamento quase no mesmo momento que Hamid chegara com a lancha. O coronel Castro havia planejado a troca de forma minuciosa e a decisão de virem por terra fazia parte de sua tática de segurança. Helicópteros naquela região significavam a presença de celebridades e utilizá-los traria para ele e seus homens uma atenção desnecessária e perigosa. Depois de deixar o sítio próximo à cidade de São Vicente, o grupo seguiu direto para a área por­tuária de Santos com aquilo que era com certeza o objeto mais perigoso já transportado até aquele lugar. Se qualquer uma das centenas de pes­soas que ali esperavam pelo embarque soubesse o que aquele homem trazia até eles, jamais arriscariam suas vidas permanecendo a seu lado.

Através de uma alça na medida ideal de seu punho, Douglas carregava a caixa contendo a ogiva. O peso que levava consigo não condizia em míni­mas proporções com o poder acumulado naquele objeto. O grupo deixou o estacionamento, passando quase totalmente despercebido entre tantos turistas carregados de malas, e seguiu direto para o salão principal. Castro sabia que as chances de alguém interceptar sua venda eram mínimas.

Desde que descobrira essa forma de levantar verbas para o setor, já haviam ocorrido mais de cinqüenta trocas. Obras de arte, documentos de engenharia, informações... Todo o material que pudesse interessar a alguém era colocado à venda e depois entregue por ele. E, desde então, tudo acontecia de forma perfeita, exatamente como fora planejado. As pessoas o encontravam, traziam sua parte do dinheiro e levavam aquilo que haviam encomendado. Afinal, ninguém dava pela falta de algo que já estava desaparecido. Esta era a vantagem. Os itens protegidos pelo setor já haviam sido esquecidos havia muito tempo, ninguém mais os requisitava ou demonstrava qualquer interesse por sua existência. Durante as décadas em que o setor estivera à margem de toda a estrutura dos comandos milita­res, ele e somente ele fora o responsável por ainda sobreviverem. Era assim que agia e pensava, e não seria desta vez que o colocariam para trás.

O grupo entrou pelo corredor, e os homens de Castro imediata­mente subiram até o segundo andar. Ali, a visibilidade, mesmo parcial­mente encoberta em um dos lados do terminal, ajudaria a guiá-los até os compradores.

Castro atravessou a entrada principal e, cruzando uma das portas do saguão, chegou ao salão vermelho. Douglas estava a seu lado quando o militar esboçou um sorriso de satisfação. O lugar era perfeito. Centenas de pessoas ocupavam a área de quinhentos metros quadrados que com­punha o salão. A presença de turistas, além de funcionários, familiares e curiosos, trazia segurança à troca. Seria impossível que fossem encurra­lados em um lugar como aquele. Lojas, lanchonetes, poltronas e mesas também contribuíam para que o local fosse confuso e passível de desapa­recimentos. Os compradores não teriam espaço nem mesmo para tentar qualquer ação. Mesmo assim, para o caso de uma possível atuação ines­perada dos homens comandados por Hamid, Castro estaria preparado. A ogiva seria o maior risco. Poderiam optar em detoná-la ali mesmo, mas da forma como a havia condicionado aquilo seria impossível. Precisariam de explosivos potentes para detonar a reação em cadeia e o coronel os havia removido. A ogiva ainda serviria a seu propósito, mas não seria possível usá-la em sua presença. Sem pressa, os dois caminharam por alguns metros até encontrar duas poltronas vazias.

Sentaram-se para esperar. Em meio à multidão, crianças corriam e brincavam. Por um momento, Douglas teve uma sensação desconfortá­vel. Mesmo convencido de que aquelas pessoas não sofreriam a conse­qüência de um impacto, sabia que em algum lugar, em algum momento, pessoas estariam expostas ao poder destruidor do que trazia em suas mãos. De repente, seu pensamento foi interrompido por um som vindo do seu comunicador pessoal. Era uma interferência pequena, mas conhe­cida. O sinal era produzido quando alguém usando comunicadores compatíveis, porém em uma freqüência diferente; estava próximo. Mas quem? Preocupado, se levantou, depositando a caixa contendo a ogiva na poltrona em que estava sentado.

O que foi? - perguntou Castro.

Não sei - respondeu -, pode ser alguma coisa, mas preciso checar.

Tudo bem, mas seja rápido!

Douglas saiu e em poucos segundos desapareceu em meio à multi­dão que os cercava. Então, antes que Castro pudesse se acostumar com a solidão, uma voz de sotaque conhecido alcançou seus ouvidos. Ela vinha da poltrona atrás daquela em que estava sentado.

É um prazer vê-lo, Castro! - disse a voz pausadamente.

O prazer é todo meu - respondeu o coronel, sem nem mesmo mexer o corpo.

 

O helicóptero transportando Cardoso, Fernando e Gabrielle pou­sou em uma área designada a aeronaves, distante quinhentos metros do local da troca. Assim que a aeronave tocou o solo, os três acompanhados dos soldados saíram rapidamente em direção ao local em que supunham acontecer o encontro. Enquanto corriam pela rua pouco movimentada, Cardoso se deu conta de que os homens fardados que os acompanha­vam seriam facilmente reconhecidos e por isso pediu para que ficassem momentaneamente do lado de fora do terminal. Eles deveriam aguardar na entrada, e seriam acionados pelos comunicadores individuais, caso precisassem. Eles correram por cinco minutos e chegaram à área de estacionamento dos ônibus.

Entraram. Por um instante o coração de Gabrielle foi tomado por um sentimento forte de angústia. Eram centenas de pessoas que aguardavam no salão. Homens, mulheres e crianças sorriam, na expectativa de realizar um dos passeios mais maravilhosos de suas vidas, sem saber do risco a que estavam expostos. Assustada, continuou a caminhar. Sua distração fez com que esbarrasse em uma pequenina que cruzara à sua frente. Era uma menina sorridente, com idade entre três e cinco anos. Sem querer, Gabrielle havia derrubado uma pequena boneca que ela carregava em suas mãos. Era uma réplica da personagem Emília, de Monteiro Lobato. Gabrielle sorriu timidamente, pegou a boneca do chão e devolveu à menina. Ela agradeceu educadamente e partiu ao encontro de sua mãe. Ainda assustada, Gabrielle aproximou-se de Fernando e segurando firmemente seu braço disse:

Não podemos deixar que aconteça nada com eles. Eu nunca me perdoaria.

Seus olhos marejavam frente a tudo o que via.

Calma - respondeu Fernando. - Estamos aqui e nada vai acontecer.

 

                     A Troca

No abrigo presidencial Demétrio distribuía ordens, tentando orga­nizar as ações dos grupos que operavam no litoral da cidade de Santos:

Operador! - vociferava -, onde está o satélite? Preciso de imagens agora!

Me desculpe, senhor - falou o soldado que ocupava um dos diversos computadores da sala. Ele era integrante de um grupo de oito militares, responsáveis pela operação do abrigo. Praças e oficiais graduados, treina­dos para agir frente às mais diversas emergências. - O céu está encoberto e as imagens não estão nítidas; existe uma brecha que deve chegar ao porto em trinta minutos.

Nós não temos trinta minutos - reclamou o oficial, caminhando em direção ao outro militar. - Eles precisam de ajuda lá, e agora. Não sabemos o que está à espera deles naquele porto e precisamos ser rápidos. Como estão as imagens de arquivo?

As mais recentes têm trinta e duas horas, senhor - disse o outro. - Pelo que podemos identificar, existem vários barcos no porto que pode­riam servir de transporte para a saída de um objeto do tamanho que nos foi descrito. Precisamos vasculhar as imagens gravadas e ver se encontra­mos algo que possa denunciar qual deles seria.

Quanto tempo de imagem nós temos? E quantos barcos?

Temos seis horas de imagem, senhor, é o período que o satélite ficou gravando. Se observarmos as imagens em alta velocidade, podemos tirar conclusões em alguns minutos.

Enquanto o general tentava aprimorar recursos capazes de apoiar ao grupo de Cardoso, da parte superior da sala a presidente observava a toda a ação. A seu lado, o ministro também assistia a tudo o que se passava.

Quais as chances de acharmos essa bomba? - perguntou a líder.

Se as informações que recebemos estiverem corretas, acredito que temos cinqüenta por cento de chances de encontrá-la.

E se não conseguirmos?

Não existem garantias - respondeu o ministro -, mas materiais como estes são rastreáveis, e poucos países detêm tecnologia para desen­volver tais dispositivos. Se não conseguirmos recuperar a bomba e ela for detonada em algum país desenvolvido, podemos ser responsáveis pelo início de uma guerra.

E se ela não for detonada? Se for apreendida ou algo do gênero?

Neste caso, existe a chance de rastrearem o caminho que a ogiva percorreu e com isso chegariam até nós. Teríamos uma crise internacio­nal de altas proporções.

E o que mais podemos fazer?

Neste momento, apenas esperar que nossos homens consigam recuperá-la.

 

Castro viu o rosto de Hamid pela primeira vez no momento em que o terrorista deixou a poltrona que ocupava e sentou-se ao seu lado. Desde que haviam iniciado as transações, a única forma de contato entre eles fora através de e-mails e telefonemas e por isso aquele encontro soava perigoso. Na verdade, a política adotada por Castro se baseava em uma interação mínima no contato com as pessoas com as quais negociava. Seu negócio era meramente comercial; sendo assim, precisava ser profissional e direto. Assim que Castro ouvira a voz do negociante, percebera imedia­tamente quem era a pessoa com quem conversara no passado. Agora que sabia de sua presença, percebera também que em algumas das extremi­dades do salão homens vestidos de forma semelhante observavam tudo o que faziam. Hamid, tão experiente quanto o coronel, também se dava conta de que não estavam totalmente sozinhos.

Lugar interessante para troca de um objeto como este - disse o comprador.

Ele usava a língua inglesa como forma de comunicação, o que facili­tava também a conversa para o coronel. Para que não fossem percebidos, os dois falavam de forma lenta e pausada:

Não esperava que fôssemos a algum lugar deserto, não é mesmo, meu amigo Hamid? - respondeu o coronel, com um leve tom sarcástico. - Acho que ainda não somos tão próximos a ponto de confiarmos um no outro.

Hamid olhou ao redor, contemplou o ambiente e depois de alguns segundos respondeu:

Não lhe passou pela cabeça que eu poderia usar a bomba aqui mesmo? Pela quantidade de pessoas que circulam em um lugar como este, o impacto causaria uma repercussão significativa.

Eu sei que não somos seus inimigos, caro Hamid. Além do que, você precisaria de explosivos para detonar essa ogiva e lamento informá-lo de que eles não estão inclusos no pacote - respondeu o coronel. E continuou: - Você trouxe a quantia que combinamos?

Quatro milhões - afirmou o terrorista, olhando para Nasim. Imediatamente o companheiro deslizou a maleta por baixo da poltrona. - As malas estão sendo colocadas sob o assento do seu lado neste exato momento.

Sem perder tempo, Castro puxou uma das bolsas e conferiu. Quatro milhões de dólares em notas de cem ocupavam quase todas as duas valises.

Ótimo - disse ele pegando a caixa e a entregando ao comprador -, e aqui está o que lhe prometi.

Hamid pegou a caixa e abriu parcialmente a tampa.

Era surpreendente. Desde muito tempo ele sabia que bombas como aquela existiam, mas nunca tivera a oportunidade de ter uma em suas mãos. Era mágica a sensação de poder que o dispositivo lhe trazia. Agora, sim, faltava pouco para que chegassem ao fim de sua missão. Em breve, o mundo saberia que os pecadores sempre são castigados e que o poder de homens como ele jamais será contido.

Vejo que cumpriu o prometido - disse Hamid fechando a caixa. - Por um momento duvidei que o fizesse. O que não seria bom para nenhum de nós.

Eu sempre cumpro os acordos que estabeleço - respondeu o coro­nel enfático.

Mais um dia e teríamos que trocar de alvo - completou Hamid. - Ele não estaria mais ao meu alcance e um plano perfeito seria perdido.

Castro sabia que Hamid o estava testando e por isso não respon­deu. Já tinha o dinheiro e seu maior interesse naquele momento era sair daquele salão. Mesmo imaginando as intenções do terrorista, não preci­sava se envolver ainda mais com tudo aquilo. Se por um acidente alguém registrasse seu encontro, tudo o que havia planejado para o futuro pode­ria estar comprometido, e isso não era de forma alguma tolerável.

O coronel se preparou para sair, mas, antes que Hamid permitisse, Nasim surgiu em meio à multidão e parou em frente aos dois.

Em sua língua natal, o soldado sinalizou a seu líder que algo não estava correto.

 

O segundo helicóptero, carregando Jefferson, Patrícia e Henrique sobrevoava pela terceira vez as margens do canal existente na cidade Santos. Era difícil para o grupo, mesmo observando tudo de uma posi­ção privilegiada, encontrar algum barco suspeito nos mais de treze qui­lômetros de cais. Eram dezenas de embarcações diferentes em tamanho e características, capazes de carregar toneladas e toneladas de materiais. Para que conseguissem identificar entre elas uma particularidade capaz de denunciar intenções hostis, seria preciso astúcia e muita sorte.

Mais uma vez, Jefferson fazia comunicação com a central de opera­ções, requisitando ajuda:

- General Demétrio, já temos alguma imagem ou alguma informa­ção que possa nos ajudar?

Negativo - respondeu o oficial -, as nuvens ainda estão encobrindo nossa imagem e não conseguimos nenhuma informação interessante nos vídeos do arquivo; vocês estão pela própria conta.

Ok - respondeu o jovem. - Estamos sobrevoando novamente o porto e vamos tentar encontrar movimentos suspeitos. Com a escuri­dão e a quantidade de barcos que estão atracados está difícil identificar alguma coisa, mas não vamos desistir.

Tentem encontrar barcos que estejam atracados em lugares isola­dos, longe de paradas visivelmente ativas. Se tivessem que alugar embar­cações para transportar algo ilegal, o grupo tentaria permanecer no ano­nimato. Lugares isolados e barcos incomuns pode ser um início.

Ok, senhor. Voltamos a entrar em contato.

Jefferson olhou para o grupo. Todos pareciam concordar com as ins­truções passadas pelo comandante. Precisavam partir de um padrão, para que pudessem determinar possíveis suspeitos, e aquele parecia adequado.

 

Cardoso, Fernando e Gabrielle haviam se dividido assim que che­garam ao terminal. Para que pudessem cobrir em tempo hábil uma área com mais de trinta mil metros quadrados, precisavam ser rápidos, e se criassem três frentes, com certeza o fariam. Fernando ficou encarregado da área superior e estacionamentos, Cardoso com o setor de bagagens e os salões da ala oeste, enquanto Gabrielle se encarregava da ala leste. Com os rádios conectados, seria fácil se comunicarem caso um deles encon­trasse alguma coisa, e por isso continuaram. Mesmo sendo Cardoso o mais treinado para situações daquele tipo, foi Gabrielle quem localizou o coronel. Ele estava sentado em uma das poltronas no salão vermelho, próximo a alguns homens de aparência suspeita. Assim que Gabrielle os avistou, informou imediatamente pelo comunicador, para que se reunis­sem em frente à entrada do salão vermelho.

Onde ele está? - perguntou Cardoso, que foi o primeiro a chegar.

No fundo do salão, em uma poltrona. Quando o vi estava sozinho, mas agora parece estar conversando com um homem. Acho que a transa­ção está começando.

Precisamos pegá-los antes que a bomba saia do nosso alcance - continuou Cardoso. - Quantas saídas existem neste salão?

Neste momento, Fernando se uniu aos dois. Gabrielle esboçou um pequeno sorriso ao vê-lo, mas estava nervosa.

Não sei - continuou a jovem -, talvez quatro ou cinco saídas.

Não vamos conseguir cobrir todas as saídas e ainda seguir no encalço deles, vamos precisar de ajuda - continuou Cardoso.

Quantos são? - interrompeu Fernando.

Eu vi o coronel e mais dois homens próximos a ele.

E o Douglas?

Não estava lá.

Deve haver mais - disse Cardoso, caminhando até a entrada do salão.

A porta de vidro favorecia sua visão. Além disso, seu olhar treinado conseguia perceber, dentro do ambiente, outras pessoas envolvidas na troca. Eram soldados que apoiavam a segurança dos dois lados da nego­ciação, em posições estratégicas do salão. Atentos a todos os movimen­tos, os homens se denunciavam aos olhos de pessoas treinadas. Cardoso contou ainda outros cinco homens que possivelmente estavam ali pelo mesmo motivo que eles.

Definitivamente, sozinhos, não vamos conseguir pegá-los - disse ele assim que reencontrou os dois. - Eles são no mínimo oito, se contar­mos dos dois lados. Assim que nos virem, todos serão nossos inimigos e não teremos chance. Mesmo com vocês armados.

Fernando e Gabrielle entreolharam-se, sabiam que portavam armas, mas de fato não tinham muita prática em uma situação como aquela. Por isso torciam para não precisar usá-las.

Se colocarmos os soldados do comando especial protegendo três das portas, ainda ficaremos em desvantagem - afirmou Cardoso.

Precisavam encontrar rapidamente uma alternativa.

Foi então que Cardoso se deu conta de que o lugar estava protegido por seguranças e policiais. Pessoas responsáveis pela garantia de que nada perigoso embarcasse em um dos navios. Varrendo os olhos pelo salão, encontrou a sede da Polícia Federal.

Esperem aqui - disse ele -, acho que sei o que fazer.

O oficial Tarcílio, da Polícia Federal, inicialmente não acreditou na conversa daquele homem. Mesmo apresentando a ele uma credencial de militar da ativa, sua história sobre um contrabandista perigoso que aca­bara de organizar uma troca em pleno salão de embarque lhe parecia de certa forma improvável e surreal. O lugar era monitorado nas vinte e quatro horas do dia e, além disso, seguranças treinados para identifi­car possíveis criminosos circulavam atentos por todo o terminal. Seria praticamente impossível que alguém em sã consciência, conhecendo o terminal, se arriscasse em algo tão infantil.

Tentando parecer educado, Tarcílio resolveu consultar a imagem de uma das câmeras de segurança, para provar ao homem que estava enga­nado e que seria uma grande besteira fazer o que ele estava lhe pedindo. Em seu computador, o oficial alternou o acesso às câmeras até encontrar um ângulo favorável ao homem que ele lhe havia descrito. Era um senhor um pouco velho, porém com um porte físico acima da média. Tarcílio aproximou a câmera e pôde perceber quando o homem recebeu por baixo da poltrona uma valise marrom. Surpreso, o oficial da Polícia Federal aproximou ainda mais a imagem. Por certo o homem abriria a valise, e se conseguisse ver o que tinha lá dentro, poderia concluir se o homem à sua frente falava a verdade. Com o potente zoom da lente, Tarcílio aproximou a imagem até que pudesse ver as mãos do homem abrir a valise. Pausando a imagem, foi possível ver. Seus olhos piscaram rapidamente, procurando garantir que o que viam não era uma alucinação.

Tarcílio pegou o rádio e emitiu uma ordem direta:

Atenção, toda a equipe de segurança do terminal, aqui é o oficial responsável. Posicionem-se em todos os acessos do salão vermelho e aguardem novas ordens. Repetindo, posicionem-se em todos os acessos do salão vermelho e aguardem novas ordens.

- Quanto a você - disse o homem, desta vez olhando diretamente para Cardoso -, vou ajudá-lo. Mas, por favor, não transforme meu termi­nal em uma praça de guerra.

Cardoso assentiu. Antes de sair, ainda foi possível ver a imagem que Tarcílio havia congelado na tela do computador. No interior da bolsa que estava nas mãos de Castro havia milhares e milhares de dólares.

 

                     Em Meio à Multidão

Entendido! - confirmava Demétrio através do comunicador. - Tentem manter todos em segurança, não arrisquem detonar a bomba no meio de tantas pessoas. O desastre teria proporções gigantescas.

Cardoso acabava de reportar que haviam encontrado Castro e que investiriam contra ele e os terroristas. Era quase impossível prever as reações, mas, mesmo à distância, Demétrio percebia o que poderia vir a acontecer.

Ok, general - confirmou Cardoso -, vamos ter cuidado.

No andar superior do abrigo, a presidente acompanhava cada movi­mento. Sua visão sobre os fatos era turva e acabava por trazer-lhe uma insegurança inevitável. Assim que o oficial desligou o comunicador, ela desceu as escadas, chegando ao piso em que os operadores a tudo acom­panhavam.

Temos que ajudá-los, general - disse ela. - Vamos enviar aviões, navios, tropas, tem que haver um jeito de não deixar que fiquem sozinhos naquele terminal.

Não podemos - contestou o militar -, enquanto os terroristas acre­ditarem que podem fugir com a bomba, eles por certo não a detonarão. Não creio que seja a intenção deles realizar um atentado contra o nosso país. Precisamos fazer com que acreditem na possibilidade de fuga. Esse tipo de perseguição, senhora presidente, é como encurralar um gato: pre­cisamos deixar que ele tenha sempre uma saída, pois no momento em que ele se sentir cercado, nos enfrentará com todas as suas forças.

E o que faremos? Vamos ficar parados, assistindo a tudo, general? - indagou indignado o ministro.

Precisamos confiar neles, senhor. Nossa hora de agir vai chegar, mas neste momento eles são os únicos que podem ajudar.

 

Você nos traiu! - vociferou Hamid.

Após o aviso de Nasim, o terrorista percebeu algo que não havia visto momento antes. Homens uniformizados caminhavam em direção a cada uma das saídas do salão, guarnecendo cada uma das possíveis rotas de fuga do grupo. Daquela forma, seria impossível para eles deixarem o lugar. Irritado, continuou:

Desgraçado capitalista, você entregou nossas cabeças.

O coronel Castro inicialmente pareceu não entender. Por impulso, seus olhos acompanharam os de Hamid fixando a imagem que nem mesmo ele havia percebido. Policiais, seguranças e até mesmo alguns militares camuflados caminhavam em direção às saídas, fechando as por­tas entre eles e o mundo exterior.

Eu não traí ninguém! - gritou. - Alguém nos traiu.

Estão fechando as malditas saídas! - completou Nasim. - Precisamos fazer alguma coisa!

Naquele momento as pessoas presentes no salão começavam a perce­ber o comportamento do grupo. Aqueles que aguardavam nas poltronas ao lado das de Castro levantaram-se e saíram rapidamente dali. Eles agora se viam isolados alguns metros de quaisquer pessoas que os observassem. O coronel, em meio às reclamações em uma língua que não entendia, tentou encontrar uma saída. Em uma fração de segundos, muito podia ser feito, precisava pensar. Olhou ao redor, procurando um espaço des­protegido, um caminho em que fosse possível despistar quem os cercava. Neste momento, uma imagem o surpreendeu. Como que desafiando o impossível, o militar pôde ver, vindo em sua direção, uma figura conhe­cida. Cardoso caminhava ao seu encontro.

Como seria possível? Como o grupo havia escapado?

Voltando novamente sua atenção ao principal problema, Castro olhou ao redor e confirmou não haver alternativa. Por mais que ten­tasse encontrar um caminho, tudo parecia cercado. Em poucos instantes Cardoso estaria ali na sua frente e então seria tarde demais. Viajantes, vendedores, restaurantes, agências de turismo, balcões de informação, as saídas. Os militares ocupavam quase todos os lugares possíveis. O tempo era curto, mas teria que haver um ponto fraco em todo aquele cerco. Então, por um instante ele se lembrou. As pessoas eram o ponto fraco, era por isso que havia escolhido aquele lugar e era isso o que deveria usar a seu favor. Castro sacou o seu revólver e apontando em direção a uma das lanchonetes, disparou.

A reação foi imediata.

O som ensurdecedor dos disparos, potencializado pelo eco no ambiente fechado do salão, fez com que diversas pessoas recuassem assustadas, procurando entender o que estava acontecendo. Em poucos segundos os primeiros gritos sinalizando a presença de homens armados no terminal foram ouvidos. Como se tivessem sido acionados por um estopim os viajantes, até então ansiosos por seu embarque, passaram a se preocupar apenas com sua segurança. Um tumulto de força e proporções incontroláveis se iniciava.

Hamid, que havia sacado também sua arma, no momento em que percebera o movimento de Castro, entendia o porquê daquela ação e se surpreendia por não ter sido ele o responsável por tal ato. Olhando em direção a lanchonete que havia sido atingida pelo coronel, o terrorista pôde ver a astúcia do homem com quem havia tratado. Intencionalmente, Castro havia atingido um televisor que estava preso a uma prateleira com garrafas de bebidas. O resultado das faíscas sobre o material inflamável havia sido imediato e agora um princípio de incêndio tomava conta do lugar. Brilhante! Estava claro que em meio ao tumulto seria possível para eles escaparem do terminal. Aproveitando a situação, ele e Nasim segui­ram a onda que partia em direção à saída principal, enquanto o coronel seguia em direção ao cais.

 

Assim que voltou da sala de segurança, Cardoso reencontrou Fernando e Gabrielle em frente à entrada do salão vermelho. Eles haviam mantido a posição para garantir que o coronel Castro e também os supos­tos terroristas não saíssem de sua vista sem deixar rastros. No momento que reencontraram Cardoso, ele explicou exatamente como iriam agir. Havia convencido o responsável pela segurança a apoiá-lo, fechando as saídas do salão com todo o efetivo possível. Enquanto isso acontecia, eles fariam a investida, controlando a situação e prendendo os suspeitos. Um plano de simples entendimento, porém de difícil execução; Cardoso não explicara exatamente quem eram aquelas pessoas e também não refe­renciara seu histórico militar. Por certo enfrentariam resistência, e esta não era uma informação agradável para se passar ao responsável pela segurança do local.

Enquanto conversavam, os homens da segurança e também os sol­dados já se posicionavam, cercando as entradas e garantindo que Castro e seus homens não tivessem alternativa. Percebendo que o movimento estava acontecendo, Cardoso avançou, seguido por Gabrielle e Fernando, em direção ao salão.

Tem certeza de que querem entrar comigo?

Sem dúvida! - responderam os dois.

Já disse a vocês que se precisarem usar suas armas, não hesitem, alguns segundos podem custar uma vida.

Já entendemos - respondeu Fernando. Ele tocava a coronha da arma que carregava consigo. Faria o possível para mantê-la onde estava, mas se fosse preciso, não hesitaria. Gabrielle observava atenta. Por insis­tência de Fernando também carregava uma arma, de menor porte, mas devidamente carregada. Se precisasse usá-la, de fato estaria frente a um enorme problema.

O grupo entrou. Sabiam onde encontrá-los e, se tivessem sorte, não seria preciso sequer fazer um disparo. Cruzaram a porta e seguiram por entre algumas das mesas quando perceberam algo diferente acontecendo.

De repente, um círculo se formou ao redor dos homens. Pessoas se afas­tavam com medo de algo, ou de alguém. Cardoso tentou apertar o passo e, no instante seguinte, seus olhos encontraram a figura do coronel. Nesse momento foi possível perceber no rosto do militar a surpresa. O fato de vê-lo com vida parecia tê-lo paralisado, mas apenas por alguns segundos. Cardoso então se preparou para o confronto, mas, ao conferir o compor­tamento do inimigo, notou que sua atenção se voltava para um dos bares no salão. O coronel sacou sua arma e fez dois disparos, destruindo um enorme televisor.

Não foi difícil para Cardoso, Fernando e Gabrielle perceber a inten­ção do militar. Segundos após os disparos terem sido feitos, dezenas de pessoas correram na direção deles, em uma avalanche que derrubava tudo o que tinha pela frente. Mesas, cadeiras, malas e carrinhos de baga­gem caíam pelo chão, enquanto pessoas tentavam a qualquer custo deixar o lugar. Cardoso tentava avançar, mas sempre que o fazia era empurrado não por uma, mas por várias pessoas que seguiam na direção inversa, tentando alcançar a porta de saída. Fernando também tentava se manter de pé em meio ao tumulto, enquanto Gabrielle se protegia atrás de uma das pilastras.

Eles se separaram! - gritou Cardoso, percebendo que o coronel e os compradores agora seguiam em direções opostas.

Temos que nos dividir, só assim não os perderemos de vista.

Eu vou atrás do coronel! - gritou Cardoso.

Não! - respondeu Fernando em meio à gritaria do lugar. - A bomba é mais importante. Você precisa recuperá-la a todo o custo. Eu sigo o coronel e se puder tento detê-lo.

É perigoso!

Eu sei, mas não temos escolha.

Tente descobrir se ele sabe quais são as intenções dos terroristas. Precisamos saber o que eles pretendem, e talvez ele saiba.

Ok, vou ver se consigo!

Boa sorte, amigo! - respondeu Cardoso.

Para você também, boa sorte!

Mesmo sabendo que Fernando não seria páreo para um homem com o treinamento de Castro, Cardoso confiava em sua inteligência. De fato, não havia escolha. Se perdessem a bomba, as conseqüências por certo seriam catastróficas; mas se perdessem o coronel, o máximo que fariam era ter que procurá-lo novamente. Pensando assim, Cardoso assentiu e velozmente saiu na mesma direção dos terroristas.

- Tome cuidado! - disse enquanto saía. - Não se esqueça que ele é um militar treinado!

Segundos antes de os dois se separarem, Gabrielle observava toda a confusão. Enquanto uns conseguiam correr e acabavam deixando o salão rapidamente, outros terminavam feridos, caindo sobre cadeiras e muitas vezes sendo pisoteados pelas pessoas em fuga. Pensava em ajudar, mas sabia que correria o mesmo risco daqueles que pretendia salvar. A poucos metros de onde estava, um senhor caiu sobre um grande vaso que servia de adorno para o salão. Sua perna agora sangrava, e ele estava sendo atin­gido pelas pisadas das pessoas que vinham em sua direção. Esquecendo o risco, Gabrielle correu até ele. Entre cotoveladas e atropelos alcançou o homem, levando-o até próximo de uma das paredes. O homem pro­nunciou um agradecimento doloroso, enquanto segurava a perna ferida. Satisfeita, Gabrielle voltou a observar o salão. O lugar agora tinha o meio quase vazio, e vários amontoados de pessoas em cada uma das portas. No lugar onde a televisão havia sido atingida, um princípio de incêndio era visível, o que assustava ainda mais a todos. Não era possível que as pes­soas continuassem com aquilo sem que alguém saísse gravemente ferido. Gabrielle se levantou e começou a gritar para que tivessem calma, talvez não conseguisse a atenção de todos, mas era preciso tentar. Enquanto caminhava, percebeu um objeto conhecido caído no chão. A boneca da menina que tinha encontrado na entrada estava agora solta. Gabrielle procurou e pôde ver a menininha agachada embaixo de uma das mesas por onde algumas pessoas pulavam até a saída.

De repente, a onda de uma forte explosão a atingiu, fazendo com ela e os outros caíssem. Assustada, Gabrielle tentou identificar de onde viera o impacto e pôde perceber que a lanchonete agora estava totalmente des­truída. O fogo alcançara uma tubulação de gás causando a explosão que atingira parte do salão. Por sorte, a maioria dos viajantes tentava escapar pelo outro lado e, assim como ela, havia sofrido o impacto com intensi­dade reduzida.

Gabrielle se levantou. A garotinha continuava escondida debaixo de uma das mesas, mas dessa vez não foi difícil alcançá-la. Tomou-a em seus braços e, correndo em direção a um dos seguranças, entregou-a, pedindo para que ele a mantivesse em segurança. Contemplou o rosto da menina enquanto se afastava na direção de Fernando.

 

Hamid e Nasim acabavam de cruzar uma das portas do salão e agora caminhavam com seus soldados pelo cais, em direção à lancha que os havia trazido. Em seu caminho, um rastro de sangue havia sido deixado. O segurança que protegia a porta pela qual havia saído jazia morto com dois tiros no peito. Em meio ao tumulto, os soldados de Hamid o haviam surpreendido e agora nada mais poderia ser feito por ele. Já estavam a mais de oitenta metros de distância quando Cardoso conseguiu vencer a multidão e encontrá-los. Ele e mais um dos soldados da tropa de opera­ções especiais apontaram no cais e, antes mesmo de fazer qualquer alerta, dispararam em direção ao grupo.

O primeiro dos tiros atingiu Nasim, enquanto o outro fez tombar um dos soldados. Com o reflexo acionado pelo som dos disparos, Hamid e seus outros soldados se jogaram no chão, escondendo-se atrás de uma das carretas que transportavam as malas.

Disparos contínuos eram agora ouvidos na parte leste do cais. Os dois grupos, de Cardoso e de Nasim, desferiam um confronto armado a pouco mais de cem metros da área de embarque do terminal.

- Protejam-se! - gritava o líder dos terroristas enquanto procurava abrigo.

A lancha já era visível do lugar onde se encontrava. Porém, com os disparos naquela direção, seria muito arriscado alcançá-la. Precisava fir­mar posição e depois decidir como agiria. Assim que se sentiu protegido, percebeu que algo estava errado. Nasim não estava do seu lado e nem sequer era possível ouvir sua voz.

Nasim! - gritou. - Nasim!

Enquanto seus homens trocavam tiros com o inimigo, Hamid pôde ver o amigo caído no cais, fora da área onde agora se protegiam. Seu corpo sangrava e ele parecia respirar com muita dificuldade.

Venha, Nasim! - gritou. - Se arraste até aqui!

Os olhos de Nasim fitavam o amigo e com as poucas forças que lhe restavam ele começou a se arrastar em direção à carreta.

Agora, além de Cardoso, outros três soldados disparavam na direção dos fugitivos. O grupo estava posicionado entre a escada de embarque do navio e alguns ônibus parados próximos da porta.

-Venha, Nasim! - gritava Hamid.

Projéteis passavam próximos a seu corpo, e alguns até o atingiam de raspão. Hamid assistia a tudo, como se estivesse em um grande pesadelo. Assim que chegou até o lugar em que estavam protegidos, Hamid o segu­rou entre os braços.

Eu não consegui, Hamid - falava ele com dificuldade. - Não vou poder ir contigo até o fim, mas sei que conseguirá.

Não, vamos conseguir juntos. É nosso momento de glória, o momento para o qual vivemos. Vamos dizer ao mundo o que deve ser dito, seremos escutados.

Você vai! - concluiu Nasim em tom firme. - É o seu destino!

Por um instante, Hamid ainda pôde ver vida nos olhos do amigo que agora, descansava morto em seus braços.

Hamid fechou os olhos de Nasim e avaliou a situação em que se encontrava. Mesmo abalado com sua morte, sabia que havia escolhido um caminho sem volta e por isso precisava sair dali. A seu lado, apenas dois de seus soldados, e a mala que continha a ogiva. Sem pensar em sua vida, Hamid pegou a mala, posicionou-a sobre o peito e deixou a prote­ção da carreta.

Assim que Cardoso percebeu o que o homem que havia saído detrás da carreta carregava em seu peito, gritou a todos os soldados para que cessassem o tiroteio. Mesmo à distância, era possível prever o que aquela valise armazenava, e o dano que poderia causar caso fosse atingida:

Parem! Gritou ele, levantando-se e saindo também do lugar que, o protegia. Não atirem, podem atingir a ogiva.

Era evidente que o homem que carregava aquele objeto sabia que com o risco de ferir pessoas inocentes, os soldados jamais o atingiriam.

Cardoso, parado de pé no centro do cais, observava o homem que caminhava de costas, encarando-o durante todo o tempo. A seu lado, dois soldados davam-lhe cobertura, enquanto seus homens aguardavam por um sinal para que pudessem atingi-lo.

Consegue acertá-lo sem acertar a bomba? - perguntou Cardoso ao soldado que portava um rifle a seu lado.

O homem preparou a pontaria e prontamente respondeu:

Não posso garantir, senhor. Não desta distância. Mas, se autorizar, posso tentar.

Não! - respondeu. - É muito perigoso! Deixem que eles partam.

Mas, senhor - hesitou o soldado -, eles estão com a bomba.

Eu sei! Mas podemos ir até o helicóptero e alcançá-los no mar. Se formos rápidos, a vantagem deles não será problema.

Hamid e seus homens alcançaram a lancha e partiram em direção ao destróier.

Segundos depois, o helicóptero pegaria Cardoso e sua equipe, que prontamente se colocaria em seu encalço.

 

                     Confrontos

Fernando, ainda sentindo o ferimento da cabeça, teve dificuldades de acompanhar o deslocamento do coronel em meio a todo aquele tumulto. Mesmo tendo quase o dobro de sua idade, o militar se movimentava de forma surpreendente entre a confusão de turistas. Julgando-se a direção que seguia naquele momento, estava evidente que seu destino era a saída sul do terminal: uma das portas de embarque que tanto levavam ao cais quanto a quilômetros livres de rodovia que poderiam ser usados como rota de fuga para ele e seu dinheiro.

Castro passou entre um casal, esbarrando agressivamente na mulher que tentava se proteger. Imediatamente, seu acompanhante virou-se para tentar intimidá-lo, mas a única coisa que o coronel fez foi mostrar-lhe sua arma. O homem recuou, cedendo passagem. Fernando seguia próximo e só se deu conta que Gabrielle o acompanhava quando sentiu alguém lhe tocar o ombro.

Não podemos deixá-lo fugir! - gritou a jovem, enquanto corriam.

Era visível o medo das pessoas que, após a explosão da lanchonete lutavam, por sua segurança. Mas em meio a tudo isso, gritos de ordem pronunciados pelo coronel ainda abriam espaços entre a multidão:

Saiam da frente! - vociferava ele.

Assim que avistavam a arma em sua mão e percebiam de quem se tratava, os turistas se acotovelavam por entre o tumulto liberando um espaço até então inexistente.

Por um momento Fernando acreditou que a sorte estava do seu lado, quando observou que na saída para a qual o coronel se dirigia soldados o aguardavam. Todas as pessoas envolvidas naquela operação sabiam quem estava sendo procurado e se notassem sua presença colocariam fim à per­seguição que se desenrolava.

O coronel caminhava com veemência, seus olhos atentos buscavam a saída quase que automaticamente. O militar sabia que seria quase impos­sível para aquele grupo pegá-lo se conseguisse sair. Com violência, passou trombando com um grupo de jovens. De repente, seus olhos perceberam que a saída estava protegida; ele tentou mudar seu destino, mas entendendo que seria mais arriscado retornar, continuou. Sua cabeça agora latejava, não era mais jovem e por isso as ações de campo não eram mais algo que fazia com facilidade. Apressou o passo, tentando passar entre as pessoas que saíam, mas a maleta que carregava tornava sua fuga pouco ágil.

A poucos metros da saída, Castro percebeu que seria improvável pas­sar sem que fosse abordado. Um dos soldados o aguardava, e com tantas pessoas a seu lado, o coronel pensou em reféns. Mas antes mesmo que pudesse agir, sentiu um forte puxão no braço. Sua arma não estava mais em suas mãos.

Um segundo soldado participava da ação. De maneira ágil, subjugou o militar prendendo-o pelo braço e guiando-o até a saída. O terminal já tinha sido esvaziado em pelo menos metade, mas o tumulto ainda era grande; por isso, poucas pessoas percebiam o que estava realmente acon­tecendo. À distância, Gabrielle e Fernando tiveram a impressão de que pouco teriam para fazer, já que o homem agora estava sob a guarda de um dos soldados. Por isso caminharam mais lentamente em direção à saída. Por uma pequena fração de tempo, ambos confiaram que haviam presenciado a prisão do coronel e o fim de suas ações; mas era cedo para que pudessem comemorar.

- Fernando! - gritou então Gabrielle, observando o movimento que se seguia. - Alguma coisa está errada. Tem alguém lá.

Imediatamente Fernando desviou seu olhar em direção à saída. O jovem só teve tempo de ver a queda dos soldados que agora jaziam pelo chão. Pelo vidro, Fernando reconheceu ao lado do coronel o rosto de Douglas. O militar responsável pelas comunicações em suas missões estava à espreita e por isso pôde surpreendê-los. Sem qualquer reação, em meio a centenas de pessoas, eles partiram em direção ou lado sul do cais.

Mas não podiam deixar que partissem e por isso Fernando voltou a romper a montanha de pessoas que tinha à sua frente o mais rápido que podia. Logo atrás, Gabrielle acompanhava de perto seus passos, tentando impedir que alguém se colocasse entre os dois e assim fizesse com que se distanciassem. A situação havia mudado e o coronel estava saindo do alcance dos dois, talvez para sempre.

Fernando empurrou um homem, passou à frente de um grupo de idosos e conseguiu alcançar a saída. Os soldados estavam caídos, com manchas de sangue nas fardas, o que indicava que haviam sido atingidos por objetos perfurantes. Um deles ainda respirava, e, assim que percebeu, Gabrielle agachou a seu lado.

Calma - disse ela. - Vamos conseguir ajuda!

A jovem tentou falar com alguém, mas seu comunicador parecia sofrer uma interferência. Um chiado contínuo surgia sempre que era acionado. Ela decidiu então ficar a seu lado, pressionando o ferimento. Fernando checou o outro soldado, mas este não tivera a mesma sorte, o ferimento havia-lhe tirado a vida, talvez de modo rápido e quase indolor. O promotor caminhou alguns passos até o cais e conseguiu avistar Castro, que corria para o lado sul, sozinho. A maleta pesada parecia redu­zir sua velocidade e, assim, ele julgou que talvez pudesse alcançá-lo.

Peça para ele pressionar o ferimento - disse à Gabrielle. - Tem um posto médico lá dentro, consiga ajuda enquanto eu vou atrás do coronel.

Tudo bem! - respondeu a jovem. - Mas tome cuidado, por favor.

Seu olhar não escondia todo o amor que ela sentia por aquele homem e temia por sua vida. Mas o soldado, que estava ferido à sua frente, real­mente precisava de ajuda. Necessitavam de um médico e talvez alguém que pudesse reforçar a equipe que seguiria no encalço de Castro.

Fernando sorriu animado e correu na mesma direção em que o coro­nel havia ido. Gabrielle orientou o soldado sobre o que deveria fazer e tentou tranquilizá-lo, dizendo que traria ajuda. Mas antes que pudesse fazer o que haviam combinado, pressentiu que algo não estava certo.

Ainda agachada, percebeu quando Fernando foi derrubado. Detrás de uma das diversas carretas que carregavam mantimentos para o navio, Douglas surgiu, golpeando-o e fazendo com que caísse no chão.

 

Demétrio estava preocupado. Já fazia alguns minutos que não conse­guia contato com o grupo de Cardoso e isso indicava que algo certamente estava errado. Nem mesmo a varredura que fizera nas imagens de arquivo do porto havia evoluído e isso o levava a acreditar que estavam de volta à estaca zero de toda a ação. De acordo como as coisas estavam se condu­zindo, sem comunicação ou status das operações, seria necessário enviar tropas ao local, o que não parecia boa idéia. Caso os terroristas estives­sem dispostos a deixar de lado qualquer que fosse a causa que os movia, por conta de um risco iminente a que estivessem expostos, um incidente internacional de proporções devastadoras seria provável. Ele tinha cer­teza de que a intenção daqueles homens não era explodir a cidade de Santos, mas também tinha certeza de que, no caso de não conseguirem fugir, seria uma alternativa plausível para qualquer que fosse sua causa.

A presidente acompanhava a tudo de volta à parte superior da sala de comando. Mesmo surpresa com a possibilidade de um ataque terro­rista no país, encarava os fatos com sensatez, e percebia que a qualquer momento poderia se fazer necessária uma decisão de ordem nacional. Não desejava que esse momento chegasse, pois não teria alternativa. Em sua posição, decidir sobre o futuro das pessoas em momentos de glória ou de terror era algo inevitável, e isso não lhe permitiria falhas. Hesitar não era sequer outra possibilidade. Por certo cumpriria seu dever, mesmo que sua escolha não lhe trouxesse qualquer satisfação.

Águia dois chamando comando! - disse uma voz no rádio, inter­rompendo seu pensamento. - Águia dois chamando comando!

Comando na escuta - respondeu Demétrio.

Senhor, encontramos um navio suspeito e queremos solicitar ins­truções para abordagem - disse Jefferson. E continuou: - A localização é Latitude 23°55'54" Longitude 46°19'20". Parece uma embarcação militar modificada, porém não há registros conhecidos no casco. Aguardando ordem.

Um minuto, Águia dois - respondeu Demétrio.

Após desligar o áudio externo o militar continuou:

Operador, coloque a imagem do navio na tela.

O soldado na mesa do computador obedeceu ao comandante e, pela localização fornecida por Jefferson, colocou a imagem da embarcação na tela. Assim que viu o barco, Demétrio reconheceu as características mili­tares de sua construção. Não era possível identificar armas ou radares na proa, mas por certo aquele já havia sido um navio de guerra. A chance de ser aquele o transporte dos terroristas era grande e por isso o general pensou que não seria tão fácil abordá-lo; na verdade, poderia ser peri­goso. No mesmo momento, ele religou o comunicador.

Águia dois, digam-me exatamente onde vocês estão agora - per­guntou tenso.

Estamos sobrevoando o navio em círculos, senhor! - respondeu Jefferson. - E aguardando instruções.

-Vou acionar o posto da Marinha para enviar ajuda; até segunda ordem, afastem-se do barco - disse o general preocupado -, pode ser perigoso.

Antes que Jefferson pudesse responder, um grito, seguido de um estranho chiado ecoou pelos comunicadores ao mesmo tempo em que a comunicação foi cortada.

Algo de errado havia acontecido.

 

Quando Fernando conseguiu entender o que o havia atingido, Douglas já o tinha subjugado, e pressionava seu corpo com violência contra a parede.

- Odeio civis que se acham mais inteligentes do que os outros - disse o militar golpeando seu estômago com um soco.

O ar por um instante desapareceu. Fernando sentiu o golpe como se fosse desferido por um grande boxeador. O advogado não era iniciante em brigas, já havia enfrentado brutamontes muitas vezes, só que na maioria delas estava bem mais alerta do que os adversários. Desta vez, a situação era outra e o fato de ter sido pego de surpresa acabara por colocá-lo em desvantagem na luta. Ainda estava tonto com a pancada e seria difícil equi­librar o confronto.

Quando caiu, Fernando ainda pôde ver novamente o coronel Castro correndo para longe do terminal. Por certo, o militar experiente havia pedido a Douglas que lhe desse cobertura; assim, poderia escapar com mais facilidade. Se quisesse alcançá-lo, Fernando precisaria resolver rapi­damente suas diferenças com o soldado traidor.

E então - continuou Douglas -, vai ficar caído aí por muito tempo?

No momento em que terminou a frase, Douglas avançou, tentando chutar Fernando mais uma vez. O advogado rolou, desviando do golpe e colocando-se de pé.

Não tenho tempo para brigar! - disse ele a Douglas. - Preciso seguir seu comandante antes que ele faça mais alguma besteira.

Você não vai a lugar nenhum, meu caro - respondeu o militar.

Mais uma vez ele avançou. Mesmo esperando o golpe, Fernando não foi tão rápido, e agora o militar o agarrava pelo pescoço, fazendo-o sufo­car. Ele tentou se desvencilhar do braço que o envolvia, mas Douglas era forte o suficiente para sustentar sua posição vantajosa. Fernando pensou por alguns segundos, e apoiando o corpo de Douglas sobre os ombros, levantou-o do chão. Usando toda sua força, o advogado correu para trás, conduzindo o militar até a parede.

Douglas bateu violentamente contra o muro de concreto e imedia­tamente soltou o adversário. Fernando deu alguns passos para frente e, tossindo, colocou a mão no pescoço. Estava tonto e prestes a desmaiar. Douglas rapidamente se recompôs, mas antes que pudesse atacar nova­mente, uma voz fez com que parasse.

Não se mexa!

Era Gabrielle, e ela apontava um revólver calibre trinta e oito na dire­ção do militar com a mão trêmula e hesitante.

Não se mexa, ou eu atiro! - repetiu.

Douglas e Fernando olharam para a jovem. Estava claro que a arma em suas mãos não era algo comum a seu comportamento. Ninguém sabia se seria capaz de atirar caso fosse necessário.

- Calma, professora! - disse Douglas. - Ninguém precisa se machucar.

Com a experiência adquirida nos vários anos de treinamento, Douglas sabia que qualquer hesitação por parte da jovem lhe traria a oportunidade de atingi-la. Rapidamente levou a mão ao corpo, sacando a arma que carregava presa à cintura.

Fernando tentava recuperar sua voz, quando percebeu o que estava para acontecer. O jovem deu um passo à frente, mas, antes que pudesse dizer qualquer palavra, tiros ecoaram pelo terminal. Quase simultanea­mente, Gabrielle e Douglas caíram sobre o piso de pedras do cais.

 

De dentro da cabine principal do destróier russo, Jafar observava. Era a terceira vez que o helicóptero militar passava à sua frente. Por um momento, ele e todos a bordo achavam que o disfarce feito durante a viagem os protegeria e faria com que não fossem reconhecidos. De fato, esta era a esperança. Mas o comportamento daquele helicóptero denun­ciava claramente que haviam sido descobertos. Agora, a aeronave fazia movimentos circulares tendo sempre o navio como centro. Hamid não iria gostar se fossem presos antes de a missão ser concluída e Jafar pen­sava em agir. Não poderiam correr riscos e toda a ação realizada naquele momento seria justificada.

Sem perder tempo, chamou um dos soldados e correu em direção à sala de munições. Sabia o que fazer e se conseguisse concluir o que estava planejando, ganhariam o tempo suficiente para que Hamid chegasse com a bomba.

Ofegante, o homem que por um breve momento comandava o navio chegou até a sala das armas. Junto com o soldado pegou uma das caixas que estava no chão e, rapidamente os dois subiram a escada de volta à cabine de comando. Jafar esperou até que o piloto do helicóptero saísse de seu raio de visão e então caminhou para a sacada. Com a ajuda do soldado, retirou da caixa uma arma no formato de um enorme tubo. Depois, colocou-a sobre o ombro e esperou até que ele a carregasse com um míssil de curto alcance. Da lateral da arma, desdobrou uma pequena mira noturna; acionou um botão e ligou o dispositivo que por um instante produziu um pequeno zumbido. Ao fundo, o som do helicóptero indicava que ele se aproximava novamente de sua vista.

Jafar aguardou. E então, assim que a aeronave surgiu, acionou o gatilho.

O míssil saiu da arma sobre seus ombros com uma velocidade impressionante. Guiado pelo calor da aeronave, seguiu diretamente na direção do grupo liderado por Jefferson. O civil que falava ao telefone com o general Demétrio só teve tempo de soltar um grito de alerta antes que a aeronave fosse atingida. Assustado, o piloto ainda tentou evitar o impacto empurrando a manete e fazendo com que o helicóptero subisse a toda a velocidade.

Porém, o choque foi inevitável. Mesmo com a manobra rápida feita pelo piloto, o míssil atingiu parte da cauda do helicóptero, fazendo com que a aeronave perdesse o rotor. Sem controle dos movimentos, o helicóp­tero começou a rodopiar e perder altitude. Jefferson, Patrícia e Henrique, assim como todos que estavam dentro da cabine, tentavam se segurar nas laterais da aeronave que seguia em direção ao solo totalmente descontro­lada. Em uma última tentativa de amenizar o impacto da queda, o piloto forçou o manche para a direita, levando a aeronave na direção da água.

Distante pouco mais de trezentos metros do navio, a aeronave caiu no oceano.

Quando Jefferson percebeu o que havia acontecido, a água já invadia a cabine do helicóptero, que afundava rapidamente. Apenas ele, Henrique e um dos soldados do grupo de operações especiais estavam acordados. Patrícia e os outros não haviam resistido ao impacto e estavam total­mente inconscientes. O helicóptero estava próximo da margem e, se con­seguissem escapar da cabine, não seria difícil chegar a um lugar seguro. Rapidamente o soldado abriu a porta de emergência e, levando três dos feridos, o grupo saiu em direção ao cais. A idéia era que voltassem para resgatar os demais, mas, assim que chegaram à plataforma, não era mais possível ver o que restara da aeronave.

Inconformado, Henrique olhou para as pessoas que estavam ao seu lado. Patrícia, lefferson, o piloto e um dos soldados eram aqueles que haviam escapado da tragédia. Eles estavam vivos, mas o militar não con­seguiu sentir felicidade por tê-los resgatado. Sua mente só pensava nas outras pessoas que acabavam de perder.

Lentamente, o helicóptero de Cardoso se aproximava do local onde eles agora aguardavam. Mesmo abalados com o acontecido, era inevitá­vel: precisavam continuar.

 

Cardoso estava de volta à aeronave que os conduzira até o porto. Inicialmente, por conta de uma estranha interferência de rádio na região do terminal, foi difícil para ele definir qual seria o caminho tomado pelos terroristas. Porém, assim que se afastou em direção ao helicóptero, a situa­ção havia se normalizado e foi possível saber da embarcação suspeita. Ele rumava em direção ao barco comunicado por Jefferson, quando ainda à distância pôde ver o helicóptero que transportava seus amigos ser atin­gido pelo foguete disparado do navio. Um clarão no céu escuro e o movi­mento de rodopio do helicóptero em direção ao oceano fora a seqüência assustadora que havia presenciado. A primeira providência de seu piloto foi a de se afastar da área onde haviam sido atingidos. Não poderiam correr o risco de também serem alvejados e por isso precisavam se pre­venir. Rapidamente, o piloto contornou o barco a uma distância segura e só então rumou em direção aos feridos. Infelizmente nem todos haviam sobrevivido.

Águia dois - gritava Demétrio pelo rádio. - Águia dois, responda!

Eles caíram, senhor! - respondeu Cardoso. - Estamos próximos ao barco e confirmamos que Águia dois foi atingido e caiu no mar. Estamos indo ao seu encontro para prestar os primeiros socorros, mas precisamos de uma ambulância e também de reforços.

O rádio ficou mudo por alguns segundos e então Cardoso completou:

Precisamos do corpo de bombeiros e de ambulâncias também no terminal de passageiros. Tivemos um tiroteio. Ainda temos homens por lá e precisamos dar cobertura a eles.

Demétrio silenciou por um instante. A urgência da operação que haviam iniciado colocara em risco todos os envolvidos e causara mais incidentes em uma noite do que o que se vira nos últimos anos de paz no país. O fato é que não sabiam a quem estavam combatendo e nem exatamente o que pretendiam os inimigos. O grupo precisava reunir suas forças, calcular as baixas e replanejar o que fazer. Com a voz embargada, o general se pronunciou novamente no comunicador:

-Ajude os sobreviventes, Cardoso, e então avalie a situação. Relate-me tudo assim que for possível.

Ok, general! - respondeu Cardoso.

 

                     Terminal de Granéis

Fernando ainda sentia o efeito do golpe desferido por Douglas quando correu ao encontro de Gabrielle. Os pouco mais de quinze metros que separavam os dois pareciam quilômetros difíceis de serem vencidos. Nos segundos que se passaram até que pudesse tocá-la, uma sensação de perda, superior a tudo o que já havia lhe acontecido, era a única coisa que conseguia sentir. Todo o orgulho, fonte das barreiras criadas entre os dois, se tornava de repente um fator insignificante frente ao desespero de nunca mais poder ouvir a voz de quem tanto amava.

Douglas jazia sobre o chão úmido do cais, mas Fernando nem se deu conta de sua infelicidade. Assim que alcançou a jovem, ele a pegou nos braços, procurando o ferimento que havia lhe causado a queda. Na altura do abdômen, encontrou uma mancha vermelha de sangue. A roupa de Gabrielle não permitia que visse além e Fernando rasgou o pano com a força de seus braços. Um ferimento causado pelo tiro era o motivo de sua angústia. O pequeno pedaço de metal havia atravessado de uma extremi­dade a outra o corpo da jovem. Sua pele estava queimada, mas ela não apre­sentava sinais de perfurações internas. O ferimento capaz de causar grande dor, definitivamente, não lhe causaria a morte. Gabrielle havia perdido os sentidos com a força do impacto, mas voltou a si naquele momento.

O que aconteceu? - perguntou ela.

Você caiu - disse Fernando visivelmente emocionado. - Pensei que a havia perdido.

Gabrielle sorriu e, levando a mão à cintura, se lembrou do que havia acontecido. Sabia que estava frente a frente com o inimigo, mas não se lembrava de ter atirado contra ele. Não entendia como ela e principal­mente como Fernando haviam sobrevivido.

Se eu não atirei - continuou ela -, quem acertou o Douglas?

Antes que Fernando pudesse entender o que realmente havia se pas­sado uma voz chegou a seus ouvidos:

Eu atirei!

Fernando olhou para cima e pôde ver Vitor. O militar, que acabara de chegar ao terminal, seguira em direção à saída e despontara no cais no exato momento em que o confronto estava ocorrendo. Ao ver o momento de hesitação de Gabrielle, Vitor sacou sua arma e atirou na direção de Douglas no mesmo instante em que este disparava sua arma. O movi­mento fez com que Douglas errasse o alvo, atingindo Gabrielle de raspão. Além de eliminá-lo, Vitor salvara a vida da jovem.

De repente, frente à situação estável em que Gabrielle se encontrava, Fernando percebeu que o perigo não havia acabado. Precisava conti­nuar sua perseguição ao coronel se quisesse saber o que realmente estava acontecendo. Alguns militares que haviam chegado com o capitão Vitor se aproximaram dos dois com a intenção de prestar os primeiros aten­dimentos. Por segurança, após uma avaliação rápida, decidiram levar Gabrielle até a enfermaria para receber tratamento adequado. Fernando acariciou o rosto da jovem e ficou olhando enquanto ela seguia de volta ao terminal. Gabrielle sorriu: sabia que sua vida não corria perigo e pre­cisava transmitir a Fernando a segurança necessária para que ele seguisse em busca de seu objetivo. O jovem virou então na direção de Vitor e com a expressão decidida falou:

Ele ainda está aqui, capitão, eu tenho certeza. O coronel está aqui e sabe o que aqueles homens pretendem fazer. Temos que achá-lo antes que fuja para sempre.

Vitor sabia que o destino de todos estava nas mãos de Cardoso, mas concordava que precisavam encontrar o coronel se estivessem dispostos a ajudá-lo. Aquela era talvez a única maneira de entenderem as intenções dos terroristas e isto se mostrava essencial para que pudessem impedi-los.

Não sei quanto a você - disse o capitão assentindo mas eu não estou disposto a deixar que isso aconteça.

Concordando, Fernando se levantou e juntos os dois correram na direção em que Castro havia fugido.

 

Demétrio não parecia tão seguro após o relatório passado por Cardoso. A investida frustrada pela astúcia do grupo de terroristas e tam­bém pelo planejamento minucioso idealizado pelo coronel Castro havia consumido parte do tempo que tinham e isso de fato complicava ainda mais a difícil operação. Mesmo com a informação das baixas no Exército inimigo, pouco tinha sido conseguido pelo grupo que estivera no termi­nal e isso o obrigaria a traçar novas estratégias.

Todos no salão principal do abrigo nuclear aguardavam apreensi­vos pelas novas ordens que seriam transmitidas pelo experiente gene­ral. O militar caminhava entre os computadores, avaliando quais seriam os próximos passos. Não parecia prudente se precipitar e muito menos colocar a vida de outras pessoas em risco. Em meio ao tumulto gerado pelos terroristas, Cardoso e Fernando haviam se dividido e com isso ele agora tinha duas equipes distintas, agindo ao mesmo tempo. Enquanto Cardoso seguia os terroristas que carregavam a ogiva, Fernando prosse­guia na perseguição ao coronel. Demétrio parou, contemplando a tela que mostrava o enorme destróier russo, e por um instante pensou no terceiro grupo. A queda do helicóptero que transportava Jefferson, Henrique e Patrícia era outro problema com o qual precisava se preocupar.

Mantenham a linha aberta - disse aos operadores se tiverem algum sinal, tentem a comunicação. Precisamos de informações.

Os operadores, atentos às ordens, digitaram comandos em seus com­putadores e em alguns segundos já foi possível perceber um pequeno ruído de fundo proveniente dos alto-falantes.

Demétrio aguardava.

Por um instante pensou então em Vitor. O capitão também era uma peça importante naquele tabuleiro. Ele havia comunicado sua chegada havia poucos minutos e serviria de reforço a Fernando e Gabrielle durante a perseguição ao coronel. Se tivessem sucesso, em breve todos saberiam as reais intenções do militar e isto contribuiria diretamente para que pla­nejassem a melhor estratégia. Impaciente com os segundos de silêncio no rádio, o general se pronunciou:

Cardoso, na escuta?

Sim, senhor! - respondeu o militar.

Não vejo alternativa - continuou o general -, acredito que teremos que invadir o navio.

Positivo, senhor. Também é nossa opinião.

Pelo que sabemos, é prudente concluir que a bomba já esteja a bordo, e se quisermos evitar o pior, sem sermos percebidos, teremos que entrar para resgatá-la.

O general caminhou por entre os operadores com firmeza e impa­ciência. Seu rosto suava e suas pálpebras em alguns momentos tremiam. O rádio fez uma pausa, e após um ruído de interferência ele continuou:

Já falei com a Marinha e alguns mergulhadores estão a caminho. Quando estiverem em posição, invadimos todos juntos. Consegue posi­cionar seus homens a uma distância segura enquanto aguardamos?

É possível, senhor! - afirmou Cardoso. - Precisamos de alguns minutos, mas com certeza é possível.

Faça isso! Confirme posição quando estiverem prontos e aguardem novas ordens.

Positivo.

Não sei como explicar - concluiu o general antes de desligar -, mas algo me diz que devemos esperar o contato de seu amigo Fernando antes de agir.

O rádio silenciou novamente. Nas palavras de Demétrio estavam cla­ras suas intenções. Após a confirmação da morte de quatro dos tripulan­tes da aeronave, fato que se tornara o pior momento da missão, o general decidira por uma ação mais cautelosa. Em seu entendimento precisavam se reagrupar. Novas informações eram necessárias e, para isso, era fun­damental que se comunicassem com Fernando. As perdas não seriam em vão se a ameaça fosse contida, mas tudo dependeria de como agissem dali para frente.

No piso superior da sala de comando, a presidente aguardava pelo desfecho daquela história. A incerteza sobre as intenções dos terroristas era o que realmente a preocupava. Precisavam impedir que milhares de vidas fossem perdidas e era evidente que o tempo do qual dispunham estava se esgotando.

 

Jafar foi pessoalmente receber a lancha que trazia a encomenda. No momento em que a viu, sentiu imediatamente a ausência de Nasim.

Onde está nosso irmão? - perguntou a Hamid.

Não conseguiu - respondeu o homem.

Como "não conseguiu"? - perguntou ele segurando-o pela camisa.

Tivemos problemas e ele está morto! - respondeu Hamid empur­rando seu braço.

Jafar parou por um instante. Estavam tão perto de concluir o que haviam planejado e não seria possível para Nasim ver o grande momento. Temeu que também não fosse abençoado para assistir ao instante glo­rioso de sua vida. A razão plena de sua existência em um mundo pagão. Por alguns segundos, seu corpo permaneceu paralisado, imerso na força desses pensamentos. Até que Hamid tocou novamente sua mão.

Não vamos falhar, meu irmão! Falta pouco e não deixaremos que nada nos impeça.

Um homem desceu da lancha e parou ao lado dos dois. Trazia nas mãos a caixa onde a ogiva pousava tranqüila. Hamid pegou o objeto e o entregou a Jafar.

Instale a ogiva - disse faremos com que esta noite entre para a história da humanidade.

Jafar assentiu, e deixando seus medos de lado correu em direção ao depósito.

 

O cais do porto de Santos tem uma estrutura-padrão de segurança que protege as construções ao longo de toda a sua extensão. Portões guarnecidos por vigias armados separam as avenidas da cidade da rua cons­truída paralelamente à água e que é usada como ancoradouro dos bar­cos. Fernando e Vitor tinham acabado de passar por uma destas guaritas e agora se davam conta de que seria impossível para Castro atravessá-las sem dar qualquer explicação. Se quisesse sair da região portuária, o coronel deveria encontrar uma alternativa. O vigia que os havia barrado alguns minutos antes informara que um homem de comportamento estranho acabara de passar por ali. Segundo ele, o indivíduo carregava uma mala; assim que ele tentou revistá-lo, ele recuou, correndo na dire­ção oposta a que os dois haviam chegado. Sem perder tempo, eles segui­ram em frente, à procura do fugitivo.

O que Fernando viu assim que deixou a guarita poderia ser a expli­cação para as interferências de sinal que impediam a transmissão dos rádios. Uma gigantesca estrutura metálica ocupava parte da rua em que caminhavam. Era uma torre de energia criada para sustentar os fios que levavam eletricidade das hidrelétricas para toda a cidade de Santos. Uma pequena subestação aos pés da estrutura monitorava a transmissão dos milhares de volts que percorriam aquela rede. Ao lado, dividindo prati­camente o mesmo espaço, enormes silos indicavam que aquela era uma unidade de descarregamento e armazenamento de grãos. Um terminal de Granéis, como era conhecido. De onde estava, Fernando conseguia ver mais de quinze silos dispostos lado a lado de forma a armazenar centenas de toneladas de trigo, soja e outros grãos. Vitor correu na direção do mar e pôde ver que mais adiante o caminho seguia até um beco sem saída. Se quisesse encontrar uma brecha, Castro não teria como fazê-lo por ali.

Não tem saída! - disse assim que retornou.

Tem que haver uma saída - respondeu Fernando -, ele não pode simplesmente desaparecer.

Você ouviu o que o vigia disse: ou saímos pela guarita ou voltamos pelo terminal. Assim como nós, ele não tem muitas opções.

Mas tem de haver opção - insistiu Fernando. - Se não conseguimos vê-lo, é porque ele encontrou uma saída.

Só se ele pulou a cerca ou quem sabe cavou um túnel - disse o capitão impaciente.

O tom de ironia entoado por Vitor dava asas ao pensamento de Fernando. Não podiam desistir de encontrá-lo, não agora que estavam tão perto. Precisavam avaliar alternativas. Sua mente investigativa não parecia descansar nem sequer por um instante e isso lhe trazia certo orgu­lho pessoal. Atento, Fernando varreu o lugar até onde sua vista pudesse alcançar. Um navio estava parado no ancoradouro, mas não havia esca­das que permitissem embarcá-lo. Estruturas metálicas ao seu redor indi­cavam que havia esteiras aéreas para transporte de grãos, mas acessá-las faria com que o coronel se tornasse um alvo fácil; se pudesse, ele iria evitá-las. A cerca que Vitor havia citado era alta demais, até mesmo para alguém treinado como ele. Não havia saída visível e isso o preocupava. O som de máquinas trabalhando indicava que o material do navio estava sendo transportado, mas por onde?

Fernando subiu por uma escada e contemplou o pátio do terminal. Entre o mar e os silos, várias colunas metálicas sustentavam um com­plicado sistema de descarregamento. Bombas succionavam automatica­mente o material transportado pelos navios fazendo com que chegassem em segurança ao terminal. O som que ouviam indicava que as máquinas estavam trabalhando, mas não era possível ver o que carregavam. A esteira superior, opção de fuga que havia descartado inicialmente, estava parada e um cadeado impedia seu acesso. Ele desceu e caminhou sob a estrutura tentando entender como tudo aquilo funcionava. Por baixo, as colunas e vigas de aço formavam um grande e escuro labirinto. Acompanhando o som das máquinas, Fernando encontrou as esteiras; elas rolavam feroz­mente descarregando sua carga em uma grande caixa de metal. Uma balança era o que parecia. A carga era ali acumulada e só depois de registrar seu peso seguia até os silos. Mas a esteira aérea que conduzia os grãos até os silos estava parada. Como seria possível que o material fosse esco­ado com a esteira parada? Fernando se aproximou da balança e só então pôde ver uma pequena porta que conduzia a uma segunda esteira, só que esta era subterrânea. Agora, a frase descompromissada de Vitor parecia fazer sentido; o jovem olhou para o capitão e sorriu:

— Bem, capitão, parece que encontramos seu túnel.

Distante alguns quilômetros dali, Cardoso se reunia com os sobrevi­ventes do helicóptero abatido. Em meio ao terror da perda que haviam sofrido, Henrique, Patrícia e Jefferson tentavam se recompor e voltar ao objetivo principal de sua missão. Não era simples esquecer os fatos, mas muito ainda estava em jogo. Sabiam que o perigo era iminente e por isso não podiam sequer lamentar. De onde estavam, era possível ver niti­damente o navio dos terroristas, mas pouco ou quase nada além disso. Não sabiam quantos soldados havia naquela embarcação, quais armas portavam e, principalmente, se estavam dispostos a usar a ogiva contra eles. A ação era como um difícil jogo de xadrez. Precisavam esperar cada movimento do adversário para tentar entender que jogada ele pretendia executar. Atacar faria com que desprotegessem suas peças e isso podia fazer com que perdessem; esperar, no entanto, poderia retardar suas deci­sões até o ponto em que um xeque-mate seria inevitável. Cardoso ligou o rádio e se comunicou com o centro de comando. Pelo menos ali, aquela linha funcionava e era segura; assim, poderiam discutir ações e estraté­gias sem se preocuparem:

General - disse ele a Demétrio estamos em posição, senhor.

Posição confirmada - respondeu o general.

Cardoso fez uma pausa e continuou:

Estivemos conversando e parece que só temos dois caminhos, senhor. Por terra ou mar. Não arriscaria uma nova aproximação com helicópteros sabendo que eles têm artilharia anti-aérea.

Concordo! - respondeu o general. - Bombardeios e explosivos também são muito arriscados, podemos detonar a ogiva e colocar tudo a perder.

O que faremos?

Estive pensando e acho que podemos avançar pelos dois caminhos. Temos uma base da Marinha por perto e acredito que se colocarmos mergulhadores a uma distância segura, eles podem invadir o navio sem serem vistos, liberando espaço para vocês avançarem. Eles devem estar nos esperando, mas, se formos rápidos, conseguiremos subjugá-los antes que tentem alguma manobra.

Pode dar certo! - exclamou Cardoso olhando para os companheiros.

O fato é que precisamos ter certeza das intenções deles antes de agir. Temos que ter certeza de que eles não pretendem utilizar o dispo­sitivo contra nós, pois se esta for uma possibilidade, a invasão apenas apressaria a ação. Ele poderia facilmente detonar a bomba assim que o primeiro de seus homens fosse derrubado.

Em toda a sua vida como militar, Demétrio jamais se defrontara com uma situação como aquela. Um dilema que o colocaria entre a vida e a morte de centenas de milhares de pessoas. O militar parou por um instante e olhou para a presidente. Ela acompanhava suas palavras, pronta para a necessidade de qualquer decisão. Preocupado, virou-se novamente para a tela que mostrava imagens do barco algumas horas antes e continuou:

Vou colocar os mergulhadores em posição. E quanto a você, pre­pare seus homens.

Sim, senhor - respondeu Cardoso.

Vamos continuar investigando as imagens de arquivo para ver se encontramos alguma informação, enquanto aguardamos pelo contato de Fernando - continuou ele. - As decisões que tomarmos nos próximos minutos definirão o destino de milhares de pessoas. Se pudermos esperar até o último minuto para tomá-las, nós esperaremos.

 

Fernando desceu por uma escada estreita que levava ao corredor de transporte dois metros abaixo do nível da rua. A iluminação forte vinda de luzes amarelas revelou uma visão diferente assim que ele atingiu o último degrau. Como era de se esperar de alguém desacostumado a freqüentar fábricas ou mesmo depósitos daquele porte, o jovem se sur­preendeu com o que viu. O corredor, com pouco mais de um metro e meio de largura, se estendia por quase cem metros embaixo da rua. Ao centro, uma esteira metálica transportava continuamente toneladas de soja, levantando uma poeira fina que fazia com que o lugar sustentasse uma suave névoa. O som das engrenagens trabalhando dificultava ouvir qualquer movimento e por isso pensou que seria prudente avançar com cautela. Assim que Vitor chegou ao nível do corredor, os dois começaram a caminhar agachados.

O caminho que seguiam levava ao depósito de silos e consequente­mente à rua principal. Se o coronel Castro tivesse saído da construção, seria muito difícil que conseguissem encontrá-lo. Após alguns metros, a esteira entrava em uma abertura na parede e uma escada de manu­tenção possivelmente indicava a saída. Vitor desta vez foi o primeiro a subir, seguido de perto por Fernando. Apesar de terem conhecimentos e experiências militares totalmente diferentes os dois empunharam suas armas assim que chegaram à base dos silos. Ali, assim como no corre­dor de transporte, o ar era pesado por conta das pequenas partículas suspensas que embaçavam a visão. Era possível ver mais claramente, graças à boa iluminação, mas nem de longe o ambiente poderia ser con­siderado agradável.

Os dois caminhavam por uma plataforma que seguia de um lado para outro do depósito. Cerca de cinqüenta metros de pisos formados por grelhas metálicas que davam acesso à base dos silos. Acima deles toneladas de grãos estavam armazenadas. Esteiras, balanças, elevadores de carga, sistemas eletrônicos de controle, além de outros dispositivos mecânicos, enchiam o lugar e tornavam-se, naquele momento, opções de esconderijo. Fernando viu uma porta de saída, com uma placa que indi­cava o acesso à área de escritórios. Ele se aproximou e tentou abri-la, mas uma trava de segurança eletrônica impedia que alguém, que não fosse funcionário do lugar, o fizesse.

Acesso por chip! - disse a Vitor. - Sem o cartão é impossível passar. Se esse foi o caminho que ele escolheu, acho que ainda pode estar por aqui.

Aparentemente não havia outras portas de acesso e por isso Fernando imaginou que aquela era a única saída.

Deve ter uns cinco andares - respondeu Vitor. - Ele pode estar em qualquer um deles. Além disso, pode haver outras saídas.

Não! - insistiu Fernando. - Alguma coisa me diz que ele está por aqui. Vamos subir, ele deve estar em um dos andares, procurando alguém que possa liberar a saída.

De repente, antes que eles pudessem sair de onde estavam, um som ecoou pelo depósito. Um estalo ampliado pelo vazio dos corredores, mas inconfundível aos ouvidos. Alguém havia atirado ali dentro e era fácil prever quem. Fernando olhou para Vitor e sinalizou para que se escon­desse, pois se aquela realmente fosse a única saída, seguramente Castro deveria voltar e vir na direção dos dois.

 

                      Sem saída

Os mergulhadores enviados pela Marinha já haviam tomado suas posições. A menos de oitenta metros do destróier russo, um pequeno bote de borracha utilizava a escuridão da noite como camuflagem per­feita e por isso passava despercebido aos olhos dos vigias que transitavam pelo convés. Cardoso contara pelo menos cinco soldados armados e ima­ginava ainda haver outros no interior da embarcação. Um grupo grande, mas que seria facilmente subjugado por ele e seus homens caso a ordem de ataque fosse autorizada. O plano era claro: quatro mergulhadores subiriam com ventosas pela lateral do navio e em silêncio dariam conta dos vigilantes presentes no deque. Com o caminho livre para o restante do grupo, eles poderiam invadir o interior da embarcação em busca da ogiva. Seriam pelo menos oito homens fortemente armados e protegidos por coletes à prova de balas. Em seus cálculos teriam, após o alerta dis­parado no barco, dez minutos para encontrar a bomba e desarmá-la. Um tempo pequeno, mas talvez o único de que iriam dispor caso os terroris­tas optassem por utilizar a ogiva.

Negociar era uma das possibilidades, e foi o que Jefferson tentara nos últimos minutos. Através do rádio do helicóptero o civil testara dezenas de canais internacionais de comunicação na intenção de conseguir con­tato com os terroristas. Em nenhum deles obteve resposta; seu retorno era sempre um chiado típico do sistema de comunicação. Sem sucesso, Jefferson retornou ao grupo que se reunia no interior de um galpão vazio.

Sem chance! - disse ele. - Nossos amigos não querem conversa. Tenho certeza de que nos ouvem, mas eles não têm a menor intenção de nos responder.

E o movimento no barco continua o mesmo - completou Henrique. - Cinco vigias na ronda e nada mais. Nem mesmo parecem preocupados com a nossa presença.

Não sei - interrompeu Cardoso. - Esta confiança deles me preo­cupa. Eles não têm para onde fugir e nem mesmo se manifestam para pedir um resgate ou coisa do gênero. Tenho dúvida de quanto tempo teremos que esperar, mas torço para que não seja muito.

Enquanto o general não avaliasse as imagens e pudesse de alguma forma interpretar a intenção daqueles homens, o tempo seria seu car­rasco. Cada minuto parecia uma eternidade.

No interior do navio, Jafar terminava os preparativos para a conclu­são do plano principal. Da escotilha de entrada até a área em que esta­vam, Hamid havia organizado três barreiras armadas. Se os soldados brasileiros tentassem invadir o navio antes de concluírem o que haviam planejado, teriam que vencer todas para então chegar até o míssil. Hamid calculava que no máximo em vinte e três minutos iniciariam a contagem regressiva; se conseguissem manter a área segura durante aquele tempo, sua tarefa estaria completa.

 

Fernando e Vitor estavam agachados entre os motores que movimen­tavam as esteiras de transporte. De onde estavam, era possível ver a porta de saída e o elevador de carga. O aparelho utilizado para transportar pes­soas entre os andares se tratava de um mecanismo semelhante a um moi­nho de água. A diferença é que, neste caso, uma corrente de movimento contínuo girava conduzindo minúsculas plataformas entre os andares. Era como uma prancheta presa a um cabo de aço que se movimentava sem parar. Um sistema de transporte funcional, porém perigoso.

A idéia dos dois era esperar que Castro aparecesse; assim que o vissem, agiriam em dupla para cercá-lo. Alguns segundos se passaram e então puderam ouvir um som. Desta vez era algo parecido com um sinal digital ou uma campainha. De início Fernando não conseguiu dis­tinguir do que se tratava, mas, de repente, seus olhos perceberam um movimento na porta de saída. Lentamente a porta se abriu, revelando a figura de um homem de estatura média e idade entre trinta e cinco e quarenta anos. Ele usava um capacete, um uniforme e um cinto de fer­ramentas. Um mecânico de manutenção, ou quem sabe um técnico de instalações. Fernando acompanhou o movimento do homem, ele pare­cia estar conversando com uma segunda pessoa enquanto mantinha a porta entreaberta. Preocupado, o jovem olhou para Vitor. Se o coronel surgisse naquele momento, seria impossível evitar que aquele funcioná­rio se ferisse, precisava de alguma forma fazer com que ele voltasse. Não era seguro nem para ele nem para ninguém.

Fernando levantou e correu em direção à porta, pois precisava rapi­damente impedir que ele entrasse. Assim que o viu, o homem se assustou, poucos funcionários tinham acesso àquela área, e ele com certeza não era um deles. Fernando colocou a mão em seu peito e tentou argumentar:

Por favor, saia, não é seguro aqui! - disse.

Quem é você? O que faz aqui? - perguntou o homem surpreso.

Não tenho tempo de explicar - continuou -, por favor, saia e chame a polícia. Tem um homem perigoso aqui dentro e ele está armado.

O funcionário do depósito sorriu. De fato, um discurso como aquele vindo de um desconhecido soava muito mais como um golpe do que como um assalto. Quem em sã consciência roubaria grãos de trigo entrando de mãos abanando dentro de um depósito? Fernando percebeu que seria difí­cil convencê-lo e por isso tentou empurrá-lo em direção à saída.

Saia! - vociferava. - Você não...

De repente, seus olhos viram uma imagem diferente surgindo no ele­vador. Aos poucos, o corpo de um homem aparecia entre a divisão do piso em que estavam e o segundo andar. Primeiro os sapatos, as pernas e então todo o corpo. Castro trazia nos ombros a mala com o dinheiro recebido no terminal e nas mãos, além da arma, o crachá do empregado que baleara minutos antes. Assim que o viu, o militar apontou em sua direção, e antes mesmo de descer do elevador fez três disparos.

Fernando puxou a porta que estava entreaberta usando-a como escudo. Os projéteis atingiram a grossa chapa de aço e ricochetearam, acertando a parede de um dos silos. Vitor levantou de sua proteção e disparou também na direção do coronel. Castro, dando conta de sua des­vantagem, saltou do elevador caindo entre dois silos quase dez metros à frente deles. Percebendo o perigo que corria e assustado com os disparos, o mecânico, que até então discutia com ele, voltou para o corredor e cor­reu em direção à portaria. Fernando olhou rapidamente na direção de onde os tiros haviam partido e não vendo Castro fechou a porta. Depois agachou, protegendo-se entre as máquinas.

Assim que conseguiu se recompor, o coronel percebeu que algo estava errado. Uma dor latejante tomou conta de sua perna esquerda. O tiro disparado por Vitor o havia atingido. Consciente, rasgou a manga de sua camisa e amarrou no lugar. Antes que alguém se pronunciasse, ele falou:

Ora, ora, se não é o civil intrometido! E pelo visto não está sozinho.

Como vai, Castro? - interveio Vitor.

Muito bem - respondeu o coronel tentando esconder a dor. - Não vou mentir e dizer que estou contente em ver meu carrapato de farda, mas...

Vitor percebeu o que o militar queria dizer que durante os últimos anos ele ficara na sua cola, esperando que cometesse algum erro para enfim julgá-lo em uma corte marcial. Castro até então não deixara nenhuma brecha em suas ações, não até aquele dia.

Eu sabia que um dia você meteria os pés pelas mãos, meu caro - disse Vitor. - Era só uma questão de tempo.

Enquanto falava com os dois, Castro olhava ao redor. A conversa fazia com que ele ganhasse tempo e pudesse pensar numa forma de confundi-los. Sua posição era desfavorável, precisava chegar rápido à porta de saída, se ainda quisesse escapar. O som das máquinas desta vez foi rompido pelo jovem promotor.

-Vejo que conseguiu seu dinheiro, coronel! Espero que esteja satisfeito.

Ura pagamento merecido - retrucou ele. - Afinal, a mercadoria foi entregue.

Não sei como um homem que jurou defender seu país pôde agir da forma como você agiu, coronel. Você traiu a todos nós e colocou em risco a vida de milhares de pessoas - disse Fernando enquanto se deslocava para o outro lado da plataforma. Agora ele e Vitor cobriam as duas laterais.

Não fale besteira, garoto! - vociferou Castro, caminhando tam­bém. Mesmo sentindo dores, ele seguia em direção ao espaço entre os silos dez e onze. - Eu jamais colocaria pessoas em risco se não fosse pelo bem deste país!

As palavras de Castro traduziam para Fernando algo que ele já sus­peitava. O militar sabia das intenções dos terroristas. Não estaria ali se não tivesse certeza de que não corria risco. Precisava descobrir até quanto ele sabia.

Você quer me fazer acreditar que roubar uma bomba nuclear e entregá-la a terroristas não coloca em risco a vida de pessoas inocentes?

Uma ação irrisória - continuou. - Se as coisas ocorrerem do modo como planejamos, não teremos baixas além das que considero necessário. Para nós, o saldo será uma política diferente de segurança nacional, algo que trará de volta parte da independência que perdemos nos últimos anos.

Eu não estaria tão confiante, coronel, os terroristas estão cercados neste momento e ninguém vai sair do país com a bomba. Seu plano e o plano de seus amigos não terão o efeito que você imagina.

Nesse momento, Castro havia chegado ao lugar que pretendia. O espaço entre os silos era ocupado por um grande painel elétrico. Durante a discussão, aquele painel havia chamado sua atenção, e o militar imagi­nou que talvez pudesse usar os comandos como distração em sua fuga. Na porta de aço que protegia os comandos eletrônicos uma placa trans­mitia os dizeres:

 

               Acionadores das Portinholas

               Silos ímpares

 

Castro colocou a mão na fechadura e abriu a pequena porta; em seu interior, chaves de acionamento eletrônico indicavam que todo o meca­nismo era comandado por uma central computadorizada. O coronel procurou por uma chave de comando mestra e no canto inferior direito encontrou um botão que indicava operação manual. Virou a chave e as luzes do painel mudaram da cor verde para amarelo.

Neste momento, Fernando e Vitor já estavam próximos ao elevador por onde Castro havia descido. No lugar onde o militar agora se protegia era possível ver marcas de sangue no chão. Assim que percebeu o que havia acontecido, Vitor falou:

Parece que nós o atingimos, coronel, espero que não seja grave.

O coronel não respondeu, era um homem inteligente, sabia de sua desvantagem e por isso dedicava toda sua atenção a procurar um modo de sair daquele depósito. Fernando sabia que o tempo permitiria àquele homem encontrar uma saída, e ele precisava distraí-lo até que conseguis­sem o ângulo correto para um novo tiro. Vitor sinalizou para ele e andou mais alguns passos. No interior do depósito, o que se ouvia era somente o som das esteiras e máquinas trabalhando. Alguns segundos se passaram e enfim o coronel respondeu:

Esse é o problema com vocês! - disse ele. - Se julgam mais espertos do que todos. Se estes homens quisessem sair com a ogiva do país, jamais teriam vindo até tão longe e arriscado suas vidas. Seria mais fácil pedir para que nós a tirássemos daqui. Pessoas como essas não se movimentam sem planejar o lugar onde devem pisar. Eles têm um alvo, meu caro, e tenho certeza de que esta noite eles vão atingi-lo.

Um frio percorreu a espinha de Fernando. Um alvo significava o uso da bomba que haviam encontrado, a perda de vidas e um desastre de proporções jamais vistas no país. Castro fez uma nova pausa e continuou:

Por isso determinaram um prazo para a entrega da ogiva, se não a conseguissem nesse tempo, o alvo estaria fora do alcance. Eles próprios me disseram isso.

O coronel acionava agora os comandos do painel. Por um breve ins­tante, um sorriso irônico tomou conta de seu rosto:

O que me surpreende - continuou - é o fato de ainda não terem percebido o que está tão evidente. Se o idiota do Cardoso fosse um pouco esperto, perceberia que ele mesmo já esteve frente a frente com o alvo.

Naquele instante, Fernando não conseguiu traduzir as palavras de Castro, mas em poucos segundos tudo se tornou claro. As operações de segurança, o movimento militar no país e as notícias internacionais eram resultado de um único evento. Em Brasília, Cardoso fizera parte da comi­tiva responsável por garantir a segurança de pessoas importantes do cená­rio mundial. A secretária e os senadores norte-americanos eram o alvo perfeito. Em trânsito pelos países da América do Sul, levavam consigo a vulnerabilidade de cada um dos lugares por onde passavam. Pelo que Fernando se lembrava, eles haviam saído do país a pouco mais de um dia e isso significava que ainda estavam em território sul-americano. Mesmo sem saber agora em qual país estariam e como seria possível atingi-los, Fernando sentia que esta informação precisava chegar o quanto antes à central de comando. Ele tentou ligar o comunicador, mas, antes que pudesse verificar seu funcionamento, um som diferente do que ouvira até aquele momento chegou a seus ouvidos.

Uma a uma, sete das quatorze portinholas que mantinham os silos fechados foram se abrindo. O som de uma avalanche seguido por cor­redeiras de grãos que começaram a cair tomou conta do depósito. Em instantes, uma névoa mais densa ocupou cada espaço vazio do lugar tor­nando impossível se ver além de dois palmos. Com a respiração dificul­tada pelas partículas em suspensão, Fernando e Vitor começaram a tossir, tampando o rosto com a gola das blusas. Fernando tentou se movimen­tar, mas, nesse instante, um corpo caiu sobre ele, levando-o ao chão.

Com uma força surpreendente, Castro pressionava seu rosto contra a grade da plataforma. Fernando tentava gritar, mas era impossível fazê-lo pela forma como estava sendo segurado. Percebendo sua vantagem, Castro dobrou o joelho sobre seu peito e agora o pressionava ainda mais. Em um gesto de desespero, Fernando tentava alcançar alguma coisa com os braços, mas não encontrava nada além da própria grade.

Foi então que Vitor apareceu. Com um movimento rápido o mili­tar, que havia perdido segundos preciosos em meio a toda a poeira do ambiente, saltara sobre Castro, fazendo com que os dois rolassem, caindo da plataforma a uma altura de quase dois metros. O local onde haviam caído tinha pouco mais de quatro metros quadrados; era cercado por tubos, colunas de sustentação da plataforma e engrenagem de comando da esteira principal. Atordoados pela queda, ambos demoraram segun­dos para se recompor. Vitor foi o primeiro que atacou.

Assim que conseguiu se levantar, Vitor partiu para cima do coronel, deslocando seu corpo até que batesse violentamente contra um cano metá­lico preso à parede. O coronel sentiu o golpe, mas imediatamente respon­deu desferindo um soco no abdômen do capitão. Vitor recuou, percebendo que não seria fácil subjugá-lo, mesmo com um ferimento na perna.

Enquanto os dois lutavam, Fernando tentava se recuperar do golpe. Mais uma vez havia sido atingido, primeiro fora Douglas e agora o coronel. Precisava recuperar suas forças se quisesse ajudar Vitor. Procurou a arma a seu redor, ela havia caído de sua mão quando Castro o atacara. O advogado apoiou-se sobre um dos joelhos e começou a tatear a plataforma. Precisava encontrar sua arma em meio a toda aquela confusão.

- E então, capitão? - gritou Castro. Ele estava parado na frente de Vitor, tentando encará-lo em meio a toda aquela poeira. O ar pesado e a visão prejudicada faziam com que os dois fossem cautelosos. - Isso aqui não é tão simples quanto dar ordens de seu escritório confortável, não é mesmo?! Vocês não sabem o que é estar à frente. Em confrontos, não têm a mínima idéia do que fazer.

Vitor ouviu as palavras do coronel enquanto buscava alternativas. Seu treinamento era compatível com o adversário, mas as habilidades e experiências de combate do militar não poderiam ser comparadas. Sentia agora as dores causadas pela queda, o ombro latejava como se tivesse amortecido a queda de todo o corpo. Olhando ao redor, procurou algo que pudesse usar como arma. Sua pistola, assim como a de Castro, havia se perdido durante o conflito. Não demorou para que o coronel avan­çasse mais uma vez em sua direção.

Com um chute, Vitor foi deslocado para baixo da plataforma. Assim que caiu, Castro desferiu um golpe em direção a seu rosto. Com o braço, Vitor amorteceu o impacto. No mesmo instante, apoiou a perna no estômago de Castro e com toda sua força fez com que recuasse. A ação foi efetiva, mas não por muito tempo. Castro sumiu em meio a toda a névoa e retornou, desta vez com mais força e de maneira mais precisa. Vitor foi atingido na cabeça com força, fazendo com que perdesse par­cialmente os sentidos.

Sem perder tempo, Castro vasculhou o lugar à procura de algo que pudesse usar para pôr fim a sua vida. Era a forma de se livrar de um de seus problemas. Depois seria fácil encontrar o civil e livrar-se dele tam­bém. Em uma caixa de materiais sob a esteira encontrou um cano. Um golpe certeiro resolveria o problema. Quando o coronel se aproximou novamente de Vitor, o capitão estava tentando se levantar. Castro levan­tou o cano e desferiu seu golpe.

Mas antes que pudesse atingi-lo, alguma coisa aconteceu. Interrompendo seu movimento, o coronel percebeu que algo o havia acertado. Ele soltou o tubo e caiu sobre o piso. No alto da plataforma Fernando, empunhando sua arma, olhava para o homem que havia atingido.

Sobre o chão frio e em meio a toda a poeira, Castro sentia uma dor intensa. Enquanto seu cérebro percebia o cenário e tudo o que acontecia a sua volta, seu corpo cedia a um ferimento quase fatal. O militar ainda tentava produzir movimentos, mas era como se os comandos fossem totalmente desprezados.

Com os olhos, Castro acompanhou Fernando enquanto este descia até onde ele e Vitor se encontravam. Quando Fernando chegou até Vitor, alguns segundos depois, ele já estava sentado, apoiando o braço no chão sujo do depósito. Assim que se encontraram, o capitão sorriu agrade­cendo pela oportuna interferência. Fernando retribuiu o comprimento e então o ajudou a levantar.

Precisamos avisar ao comando qual é o alvo. Eles precisam fazer alguma coisa antes que seja tarde.

A névoa ainda era intensa, mas aos poucos começava a se dissipar.

Tome - disse Vitor entregando-lhe um celular. - Os rádios ainda não funcionam por aqui. O número do general está entre os primeiros da discagem. Saia daqui agora e ligue para ele. Eu cuido do coronel.

No chão, próximo aos dois, Castro continuava caído. Sua respiração estava ofegante e seus olhos contemplavam o vazio. O tiro desferido havia perfurado um de seus pulmões e se não fosse socorrido rapidamente, não sobreviveria.

Peça para que fechem estas malditas portinholas - falou o capitão - e chame uma ambulância. Não podemos deixar que ele sangre até morrer.

Pode deixar! - respondeu Fernando.

O advogado pegou o cartão de acesso em um dos bolsos de Castro e seguiu em direção à saída.

 

                     Decisões

Demétrio observava atentamente o desfile das imagens na gigante tela da sala de comando quando seu telefone particular tocou. Com toda a ação da qual participara na última hora, o militar se esquecera da pos­sibilidade de fazer contato com Vitor através daquela linha. O nome do amigo na pequena tela do aparelho fez com que se lembrasse e imediata­mente respondesse ao chamado.

-Vitor, fico contente que esteja bem! - disse ele sem perceber de ime­diato que a pessoa com quem falava não era o seu amigo.

Fernando, que estava do outro lado da ligação, respondeu:

General, quem esta falando é Fernando.

Fernando! - respondeu Demétrio surpreso. - E onde está Vitor?

Ele está bem, senhor, conseguimos deter o coronel e descobrir o que os terroristas pretendem.

A notícia de Fernando fez com que o general silenciasse. O som na sala não chegava a atrapalhar sua ligação, mas o comandante imediata­mente levantou a mão ordenando a todos que cessassem as atividades e ficassem em silêncio. Assim que conseguiu a atenção que desejava ele continuou:

E o que vocês descobriram?

A secretária e os senadores norte-americanos, senhor! - respondeu Fernando sem rodeios. - Eles pretendem lançar a ogiva contra a comitiva.

Desta vez as palavras ditas pelo advogado atravessaram o peito de Demétrio como a lâmina de uma espada. Como seria possível não terem percebido o objetivo de toda a ação? A arma certa, no lugar certo e no momento certo. Tudo agora fazia sentido. Era de conhecimento público que a comitiva norte-americana visitaria países do Mercosul durante aquela viagem e isso de fato permitiria que alguém com o poder de fogo suficiente e um planejamento adequado se aproveitasse da vulnerabili­dade desses países para atingir seus principais inimigos.

A distância das nações participantes do Mercosul em relação aos conflitos existentes na Europa e América do Norte dava a eles uma ilusó­ria sensação de segurança. Ali, atos de terrorismo eram raros e isso dava aos criminosos a possibilidade de despistar suas ações. Com isso, ferir um dos países mais ricos do mundo através da morte de pessoas importantes de seu governo era uma ação astuta e plenamente possível.

Enquanto Fernando falava, Demétrio caminhou até um dos opera­dores, colocou a mão direita em seu ombro e, através de gestos, pediu para que lhe informasse sobre a posição da comitiva naquele momento. Enquanto o operador teclava a uma velocidade impressionante as letras de seu computador Fernando continuou:

-Acho que estão se preparando para lançar algum foguete. Se estivermos prontos para impedi-los, senhor, sugiro que não percamos mais tempo.

- Bom trabalho, Fernando - respondeu o general. - Daqui para frente nós tocamos o assunto. Veja o que consegue fazer para ajudar Vitor enquanto buscamos a ogiva.

Concluindo tais palavras, Demétrio finalizou a ligação. Do outro lado da linha, em frente ao terminal de granéis, Fernando observava uma coluna de fumaça que subia ao céu, resultado do incêndio iniciado na área de embarque. Luzes coloridas provenientes dos carros de bombeiro e das ambulâncias iluminavam a noite em meio às centenas de pessoas que haviam fugido do tumulto. Elas agora aguardavam confiantes de que o perigo havia terminado. Fernando desligou o telefone e o colocou no bolso. Em seu pensamento o advogado sabia que a segurança que os cer­cava era apenas aparente.

A ele restavam agora duas alternativas: ou esperar que o grupo de Cardoso tivesse sucesso ou, quem sabe, encontrar um modo de ajudá-los. Dentre aquelas possibilidades só uma delas parecia ser a correta. Ele correu em direção a uma das ambulâncias; antes de tudo e mesmo contra sua vontade, precisava prestar socorro ao coronel.

Assim que desligou o telefone, o general voltou-se novamente para a tela principal da sala de comando. Seu olhar agora era ainda mais apre­ensivo, e seu rosto porejava suor.

Congele a imagem sobre o barco! - pediu ele a um dos operadores.

Se a intenção dos terroristas era atingir a comitiva norte-ameri­cana, precisariam de uma arma com proporções maiores do que as que Fernando havia imaginado. Um míssil capaz de percorrer mais de mil e quinhentos quilômetros, a uma velocidade superior à dos jatos comer­ciais; e isso não era um objeto comum e principalmente não era um objeto pequeno.

Demétrio olhou a imagem na tela e percebeu que no barco havia uma enorme abertura na proa, numa dimensão não condizente com o projeto-padrão de barcos como aquele. Ocultado por duas portas de aço, estaria ali ou um depósito de carga ou talvez uma plataforma de lança­mento improvisada.

Fechem a imagem na proa e avancem a gravação na velocidade máxima. Se as portas de carga se abrirem em algum momento, congelem!

O operador assentiu e fez o que Demétrio ordenava.

E minha localização, sargento? Conseguiu? - continuou ele virando o corpo na direção do homem para o qual havia inicialmente pedido as informações.

De acordo com a inteligência, senhor, a comitiva chegou a Santiago, no Chile, há cerca de duas horas, e está hospedada no centro da cidade.

A que distância estão do navio, sargento?

O operador fez cálculos e após alguns segundos respondeu:

Um mil e setecentos quilômetros, senhor!

A primeira vista, a distância parecia absurda, incapaz de ser atingida por alguma arma possível de ser disparada de um navio daquele porte. Mas existiam sim armas capazes de cumprir essa missão e Demétrio sabia disso.

Senhor - interrompeu outro operador -, temos uma imagem da porta aberta!

Aproxime-a - pediu Demétrio.

O operador mais uma vez executou a ordem e aproximou a imagem. Aos poucos, o monitor registrava o carregamento de dados e tornava nítida a abertura do convés. Ao ver o que estava por trás daquela porta, Demétrio não teve dúvida: precisavam invadir imediatamente aquela embarcação.

 

Da mesa na parte alta da sala de comando a presidente acompanhava cada movimento. Assim que Demétrio pediu uma ligação com o grupo de Cardoso para autorizar o início da invasão, ela percebeu o que deveria ser feito. Calmamente virou em direção do ministro da Defesa e comuni­cou sua primeira ordem desde que havia chegado ao abrigo:

Ministro - disse em um tom firme -, preciso que me consiga uma linha direta com a Casa Branca imediatamente. Não podemos mais man­ter esta operação oculta, o presidente norte-americano precisa saber o que está acontecendo.

 

Em uma mesa improvisada sobre caixotes encontrados no cais, o grupo comandado por Cardoso assistia às imagens enviadas pelo comando. Um tablet era a fonte receptora dos dados e o dispositivo de comunicação entre eles e o abrigo em Brasília. Patrícia, Henrique e Jefferson, apenas parcialmente recuperados do acidente, estavam posicionados à direita do tenente, enquanto outros três soldados permaneciam de pé, à esquerda. Era impossível para qualquer um deles, mesmo treinados para enfrentar situações daquele tipo, não se preocuparem com o que seus olhos estavam enxergando. Em meio a tudo o que acontecera, sabiam que a razão pela qual aqueles homens haviam chegado até ali não era um mero roubo de tecnologia, mas não esperavam algo como aquilo. Enquanto assistiam à imagem de satélite, a voz do general Demétrio ressoava, ampliada por pequenas caixas ligadas ao dispositivo:

É algum tipo de míssil balístico da categoria SS, fabricado na Rússia. Uma arma poderosa, normalmente lançada de caminhões, mas que me parece ter sido adaptada para este destróier.

E qual é o alcance?

Não sei, pode variar de acordo com o modelo. Eles têm o SS-25, o SS-27 e agora estão desenvolvendo em segredo um modelo mais avan­çado; na pior das hipóteses, ou seja, no caso do mais fraco, pode alcançar cinco mil quilômetros de distância a uma velocidade superior a quinze mil quilômetros por hora.

Mas como eles conseguiram uma arma como esta? - interrompeu Jefferson.

Há cerca de dez dias recebemos um comunicado sobre um roubo de armas soviéticas. Foi um comunicado-padrão, enviado a todos os paí­ses desenvolvidos e emergentes. Nele, as autoridades russas falavam sobre o assunto, mas garantiam que todos os dispositivos roubados eram obso­letos, estavam inoperantes e não portavam explosivos instalados. Acho agora que se trata do mesmo assunto. A ausência de explosivos deve ter feito com que os terroristas viessem até aqui buscar nossa ogiva, sabiam onde encontrar o míssil e, com a possibilidade de instalar nele uma arma tão poderosa, foram capazes de criar um plano.

Não conseguimos abatê-lo com caças? - perguntou Patrícia.

Não na velocidade que eles atingem, seria inútil tentar - respondeu Demétrio.

E bombardear aqui também causaria a morte de muitas pessoas inocentes - completou Cardoso.

Exatamente!

Mas - indagou Cardoso - e quanto ao esquema de segurança norte-americano, aos navios e todo o aparato tecnológico que eles levam com as comitivas ao redor do mundo?

Partindo do local em que estamos, o míssil seguirá um caminho por regiões de terra até o alvo. O principal esquema de segurança ianque é baseado em seus submarinos e porta-aviões, ancorados na costa dos países visitados pela comitiva. Não seria possível para eles, no tempo que teriam, interceptar a ogiva.

Quanto tempo até o míssil atingir a secretária e os senadores?

Entre sete e dez minutos.

Mas que droga - vociferou Henrique. - É muito rápido.

Por isso precisam entrar agora - respondeu o general.

O barco estava a menos de quinhentos metros de onde eles se encon­travam. Apreensivo, Cardoso olhou naquela direção. Em condições nor­mais, invadir uma embarcação como aquela não apresentaria qualquer dificuldade para aquele grupo. Todos já haviam participado de ações semelhantes muitas outras vezes e sabiam o que fazer. Mas agora era dife­rente, a vida de milhares de pessoas, além da chance de se evitar uma possível guerra mundial, era o que estava em jogo. Ao seu redor, todos aguardavam por um sinal, uma resposta para a ordem do general.

- Libere os fuzileiros - disse ele sem tirar os olhos do destróier. - Estamos entrando.

 

O suor escorria pelo rosto de Jafar enquanto ele digitava comandos em um painel de controle ligado ao sistema de lançamento do míssil. Hamid já havia ordenado que abrissem as portas improvisadas, que pro­tegiam o interior do navio, e agora olhava orgulhoso para o cenário que conseguira criar. Durante anos, sua vida se resumira em estudar vulnerabilidades na segurança da base russa, descobrir armas e criar caminhos que conduzissem seu grupo a uma ação capaz de levar ao mundo um sinal; uma mensagem. Os meses em que estivera isolado em um país desconhecido haviam-lhe trazido muito mais do que iluminação divina: trouxeram a resposta que tanto desejava. Todas as partes de seu plano haviam se juntado de maneira perfeita e especial. Uma base de desmonte de navios de guerra lhe trouxera o transporte, um depósito de armas obsoletas trouxera o míssil, e a ganância de um homem, a peça mais difí­cil de seu quebra-cabeça: a ogiva nuclear.

Enfim, tudo estava certo, a noite escura surgia entre as portas que se abriam e seu momento havia chegado.

 

A ordem finalmente havia sido concedida. Os três fuzileiros navais que aguardavam próximos ao destróier haviam recebido pelo rádio a confirmação necessária e agora seguiam em direção ao casco do navio. O tenente Paulo, responsável pelo grupo, não sabia exatamente qual era o motivo da ação, mas as ordens eram claras e objetivas. Os homens arma­dos que protegiam o convés daquele navio deveriam ser eliminados para que um segundo grupo tivesse espaço livre e invadisse o encouraçado por terra. O tempo era curto e não lhes permitiria falhas.

De longe, o antigo destróier não revelava sua identidade. A ausência dos canhões, característicos da embarcação, além das outras modifica­ções e pinturas feitas pelo grupo de Hamid, havia cumprido sua obriga­ção. Até mesmo os fuzileiros demoraram a perceber que aquela era real­mente uma máquina de guerra disfarçada. Assim que chegaram ao casco, os três liberaram os tanques de oxigênio que traziam nas costas durante o mergulho e deixaram que as pesadas peças afundassem no canal. De uma pequena bolsa que traziam presa à cintura retiraram luvas especiais equipadas com poderosas ventosas de borracha e as calçaram ainda na água. Poucos minutos depois, Paulo e os outros fuzileiros já subiam pelas paredes do destróier sem nenhuma dificuldade.

Um som de máquinas trabalhando alcançou seus ouvidos quando chegaram ao convés. Por entre o guarda-corpo lateral do navio, pude­ram ver grandes portas sendo abertas. Elas estavam poucos metros à sua frente. Um aparato improvisado era responsável pela elevação das enormes placas de aço. Paulo correu os olhos por todo o convés e conse­guiu encontrar apenas um dos guardas. Um dos fuzileiros que o acompa­nhavam acenou mostrando que havia mais deles espalhados em pontos estratégicos que favoreciam a vista para o cais. Como era de se imaginar, os terroristas não esperavam ser surpreendidos por ataques marítimos, suas preocupações com os helicópteros e os grupos de terra faziam com que estivessem vulneráveis. Paulo levantou a mão, ordenando aos outros fuzileiros que parassem de se movimentar. Apontando então na direção do vigilante que estava mais próximo sinalizou para que atirassem. Os homens retiraram as armas dos coldres presos às coxas e dispararam simultaneamente, abatendo o vigia que haviam visto. Sem qualquer outro tripulante à vista, os três pularam a guarda lateral do navio e chegaram ao convés. O enorme destróier estava totalmente escuro, a não ser por uma luz âmbar que surgia da abertura revelada pelas portas que agora estavam na vertical, totalmente abertas. Paulo pensou em se movimentar, mas o barulho de botas sobre o piso de metal indicava que mais seguranças estavam se aproximando. Antes que pudessem se esconder, vários dispa­ros vieram em sua direção.

Paulo pulou atrás de algumas cordas enroladas enquanto os outros fuzileiros tentavam se proteger a todo custo. Precisavam neutralizar aque­les homens e então disparar um sinalizador em direção ao céu. O tempo estava se esgotando e o que quer que estivesse acontecendo dependia da ação de seu time. O fuzileiro sinalizou novamente e um dos colegas cor­reu em direção à abertura. Enquanto corria, Paulo pôde ver a fonte dos disparos. Dois vigilantes que estavam na sacada um nível acima do con­vés principal, e outro posicionado em uma plataforma ainda mais alta próximo da escotilha sul. No mesmo instante em que Paulo conseguiu identificar os inimigos, o terceiro fuzileiro correu na direção oposta e sem sorte foi atingido, tombando próximo a um dos botes salva-vidas.

Enquanto todos os vigilantes o observavam, Paulo saiu de seu escon­derijo atirando. Um dos homens na sacada caiu atingido por seus dispa­ros, enquanto o outro tentava se proteger. Paulo rolou por entre correntes e caixas soltas pelo convés e se preparou para atirar novamente. Pretendia atingir o vigilante que estava próximo à escotilha sul, mas o homem tom­bou antes atingido pelo outro fuzileiro. Agora restava apenas um. Paulo sinalizou para que o colega que ainda estava de pé lhe desse cobertura e então correu na direção da escada que dava acesso aos pisos superiores. De repente, disparos surgiram de outra direção, atingindo seu protetor e deixando que ficasse ainda mais exposto. A contagem não estava certa, ainda restava um deles e agora ele estava sozinho contra os dois. Precisava pensar rapidamente.

Paulo olhou ao redor, tentando encontrar algo que pudesse ajudar. Por um instante, ele surgiu no raio de visão dos atiradores e novamente projéteis foram disparados em sua direção. Em um corredor lateral com menos de cinco metros ele estava encurralado.

Próximo dele havia apenas caixas. Paulo começou a abri-las. Peças desmontadas do navio e materiais para manutenção e pintura eram o que mais se via entre os objetos ali guardados. Uma, duas, três caixas e nada parecia servir. O som de botas no casco sobre ele indicava que um dos soldados estava agora exatamente sobre sua cabeça. Se fosse esperto, o sentinela o atingiria em poucos minutos. Paulo não queria arriscar e por isso continuou em busca de alternativas. Abriu mais uma das caixas e sorriu, tinha um plano. Pegou então um dos galões de removedor que surgiram à sua frente e o colocou sobre a caixa. Retornou alguns passos e revirando outra das caixas retirou panos secos manchados de tinta. Abriu o galão e tampou sua boca com panos embebidos no líquido inflamável. Parecia uma boa idéia, criar uma distração poderia lhe dar os segundos que precisava. O fuzileiro tirou o sinalizador que também carregava na bolsa e acionando-o, acendeu o coquetel que havia criado. O soldado estava na plataforma logo acima de onde se encontrava e Paulo sabia que em breve ele apareceria à sua frente. Sem perder tempo, o fuzileiro cor­reu em direção ao fim do corredor e, com um salto, surgiu diante do vigilante. Antes que o homem pudesse atingi-lo, Paulo lançou o coquetel improvisado na sua direção.

Assustado, o soldado atirou, atingindo a pequena bomba e fazendo com que o recipiente estourasse. Ajudado pelo fogo dos panos, o líquido incandesceu, caindo sobre o homem que agora ardia em chamas. Surpreso, o outro soldado que acompanhava a tudo metros acima dos dois se distraiu pelo tempo suficiente para que Paulo, mesmo parcial­mente atingido pelo mesmo líquido inflamável, também o derrubasse. Enquanto o homem em chamas saltava no mar, tentando salvar sua vida, o outro vigilante jazia sobre o convés.

Paulo, mesmo protegido pela roupa de mergulho, percebeu que o fogo queimava seus braços, resultado do ataque que havia realizado. Sem perder tempo, o fuzileiro correu até um dos extintores do convés e con­seguiu apagar as chamas antes que elas pudessem lhe causar mal maior. Caminhou então até um dos companheiros tombados em combate e reti­rando dele o sinalizador, lançou uma luz verde em direção ao céu. Sua missão estava cumprida.

 

No cais, Cardoso e seu grupo esperavam pelo sinal combinado. As portas que davam acesso ao sistema de lançamento já estavam totalmente abertas, mas a luz verde ainda não rompera o céu, indicando a eles que pudessem invadir o navio. A espera não era motivada por um receio do grupo em não conseguir neutralizar os inimigos que guarneciam a entrada, eles eram seis e isso os colocava em condição de igualdade. O motivo principal de esperarem as ações dos fuzileiros era a desvantagem causada pela posição privilegiada em que os terroristas se encontravam. Isso de certa forma faria diferença no confronto e o risco de perderem soldados seria aumentado. Não podiam arriscar que acontecesse, pois era evidente que aquela seria apenas a primeira barreira que enfrentariam até que chegassem à ogiva. Existiriam certamente mais soldados e mais barreiras até o objetivo. Quantas e onde era o que iriam descobrir. Após alguns minutos, o silêncio foi rompido pela voz de Henrique:

-Veja, senhor! - disse ele passando a Cardoso o binóculo que tinha nas mãos. - No convés principal, perto das portas.

Cardoso pegou o dispositivo equipado com visão noturna e pôde ver o primeiro dos terroristas abatido sobre o piso.

Eles chegaram! - exclamou.

A distância, ele e seus homens acompanharam a queda de um a um dos vigilantes, sem conseguir ver nenhum dos fuzileiros em ação. Após alguns minutos, um clarão, como a chama de uma fogueira foi vista atrás de uma das saídas de escapamento do navio. Então o sinal surgiu no céu, assim como haviam combinado.

Hora de agir - disse Cardoso seguindo em direção ao destróier.

 

O painel de controle de lançamento do míssil balístico era um antigo computador de tela monocromática anexado a uma estrutura metálica na base do silo de lançamento. Letras e números eram tudo o que se podia ver na tela que mais parecia a de um programa criado na década de mil novecentos e oitenta. Jafar digitava efusivamente sobre o teclado quando um dos soldados abordou a ele e Hamid:

Senhor! Senhor! - disse ele. - Perdemos contato com todos os homens que estavam no convés. De início eles relataram um ataque, mas já faz pelo menos dois minutos que não ouvimos sequer a respiração deles no rádio.

Hamid olhou para o amigo, que imediatamente entendeu o que ele tinha em mente.

Preciso de mais oito ou nove minutos, e então podemos lançar - disse Jafar.

Coloque quatro homens aqui embaixo com armas apontadas para a abertura caso alguém se arrisque a descer, e então confirme que os líde­res de barreira estão em suas posições. Conforme combinamos. Eles não terão alternativa que não seja entrar no barco. Podemos acabar com eles ou pelo menos retardá-los até que o lançamento seja feito. Agora vá! - gritou Hamid.

O homem saiu correndo em direção a uma das escadas, enquanto Hamid voltava sua atenção ao míssil.

Vá, Jafar! - disse ele. - Termine o que começou.

Assentindo com a cabeça, Jafar voltou à sua programação.

O portão improvisado estava totalmente aberto, e para garantir que não perderiam mais tempo ele acionou o levantamento do silo. Após o som de um grande estalo, o cilindro de quase dois metros de diâmetro iniciou sua elevação. Em menos de oito minutos ele estaria a noventa graus do solo; era o tempo ideal para que a programação fosse terminada.

 

                     As Barreiras

Na sala de comando, a presidente brasileira conversava com o líder norte-americano. A mulher que vivera conflitos políticos desde sua ado­lescência enxugava com um lenço o suor causado pelo nervosismo e pela tensão daquele momento. O tom de sua voz não era amigável e tranqüilo como o das últimas vezes em que havia conversado com o colega, e o desconforto era evidente em seu rosto. O lugar todo estava em silêncio, e suas palavras ecoavam nas paredes subterrâneas:

Não, senhor presidente - disse ela, num inglês perfeito -, isso está fora de cogitação. Não vou lhe passar as coordenadas da ameaça e per­mitir que bombardeie uma de nossas cidades. São milhares de vidas que estão em jogo.

Colocando uma das mãos sobre o guarda-corpo da plataforma ela aguardou até que ele respondesse. Todos acompanhavam a discussão sem qualquer manifestação e não demorou até que a presidente voltasse a falar:

Tire sua comitiva da capital chilena o mais rápido que puder - continuou.

Mesmo sem ouvir qualquer palavra dita pelo homem que estava do outro lado da linha, o grupo presente no abrigo percebia a situação em que estavam inseridos. Nunca haviam imaginado algo como aquilo, mas confiavam cada vez mais no comportamento de sua líder maior. A pre­sidente novamente aguardou até que ele respondesse e então continuou:

É uma medida preventiva, tenho homens trabalhando lá dentro e tenho certeza de que eles irão conter a ameaça. Tirá-los de lá é apenas mais uma garantia.

De fato, não poderiam se apoiar apenas nas ações realizadas pelo grupo de Cardoso, e era preciso fazer de tudo para que um incidente internacional de proporções inimagináveis não viesse a ocorrer.

Presidente, agora não importa de onde vieram as ogivas - conti­nuou ela -, cuide de suas pessoas que nós cuidaremos do resto. Tenho ciência de tudo o que está me expondo e sei exatamente quais conseqüên­cias poderemos enfrentar. Boa sorte - disse ela, após a última pausa - e que Deus nos ajude!

O silêncio que pairava na sala permitiu a todos ouvir o som do tele­fone sendo colocado sobre a mesa. A presidente encerrou a ligação e levantando a cabeça olhou para a imagem do barco terrorista que conti­nuava projetada na imensa tela.

A conversa não parece ter sido muito amigável, senhora presidente

comentou o ministro, quase imediatamente. Mesmo ouvindo parte da ligação, o responsável pela segurança precisava saber dos detalhes de seu desfecho.

Eles colocaram o país em DEFCOM 2 - disse a presidente -, uma prontidão de segurança que só está abaixo do estado de guerra propria­mente dito. Disseram claramente que vão nos responsabilizar caso algo aconteça à comitiva da secretária e dos senadores e exigiram saber de onde veio a ogiva.

Não podemos... - tentou intervir o ministro, mas com um levantar de mão a presidente continuou.

Eu lhes disse que trataríamos do assunto e que não lhes enviaría­mos qualquer informação até que tudo estivesse resolvido.

Quanto tempo eles levarão para evacuar a comitiva? - perguntou o ministro.

Pouco mais de meia hora - respondeu a presidente, que continuou.

Mas, isso não irá salvar a vida das pessoas que vivem naquela cidade. São centenas de milhares de cidadãos chilenos que estão correndo perigo.

Nossa única chance é garantir que o lugar não seja bombardeado. - Ela fez uma pausa e continuou: - Espero que nosso pessoal consiga evitar o pior.

O general, que ouvia a tudo próximo aos dois, aguardou por alguns instantes e, então, virando na direção de seus homens, ordenou:

- Quero um mapa na tela, onde eu possa ver o porto de Santos e o cami­nho até o alvo. Coloquem também um relógio regressivo de meia hora. Não podemos deixar que esse míssil atinja Santiago, custe o que custar!

 

Cardoso chegou à escada do navio sem dificuldade. O trabalho reali­zado pelos fuzileiros havia dado resultado e agora tinham o caminho livre. Tendo o tempo como o fator mais importante de sua investida, o grupo cruzou o convés diretamente para a abertura indicada por Demétrio. Se conseguissem invadir por aquela abertura, chegariam diretamente à base do silo e assim poderiam evitar um possível lançamento.

Henrique seguia à frente do grupo e foi o primeiro a ser visualizado pelos guardas que protegiam a abertura; mas antes que percebesse o que estava acontecendo, disparos vieram em sua direção. Jefferson, que vinha logo atrás, se jogou sobre o piso metálico do convés e imediatamente levou a mão à bolsa que carregava. Tirou de dentro uma granada de assalto e antes que pudesse usá-la, Patrícia segurou sua mão.

A ogiva - afirmou ela em tom de repressão - vai mandar a nós e a toda a cidade pelos ares se usar algum tipo de explosivo.

Todos estavam abaixados lado a lado, protegidos por uma divisória que havia pertencido à antiga configuração do navio.

Eles protegeram a abertura - continuou Patrícia - para que não conseguíssemos acessar a base do silo por este caminho. Vamos ter que entrar por uma das portas, cruzar as cabines e a casa de máquinas para chegar até lá.

Quanto tempo nós temos? - perguntou Cardoso a Henrique.

Ele era o especialista em armamentos e consequentemente o único do grupo treinado em operações de armas daquele porte. Somente ele poderia reverter o lançamento e desativar a ogiva caso fosse necessário. Se alguém de fato pudesse estimar o tempo restante para que os terroristas estivessem prontos, Henrique seria a melhor escolha. O silo, inicialmente configurado para transporte horizontal, já estava se movimentando para a posição de lançamento e ele pôde perceber o estágio de preparação em que se encontrava. Após alguns segundos, o cálculo havia sido concluído.

Dez minutos - disse ele - no máximo!

Tão rápido? - questionou Cardoso.

Eles já estão elevando o silo, o que significa que a ogiva está insta­lada e a programação quase pronta. Quando o ciclo de elevação estiver concluído, já estarão prontos.

-Vamos ter que nos separar! - gritou Cardoso, preocupado com que todos o ouvissem. - Temos que rapidamente achar uma entrada.

Eu, o civil e um dos soldados seguiremos pela direita do convés - disse Patrícia -; você, Henrique e o outro soldado pela esquerda. Existem portas em todos os níveis, mas duvido que estejam abertas.

-Não adianta-respondeu Cardoso -, teremos que tentar. Mantenham os rádios ligados, mas só abram o canal quando necessário, eles devem estar monitorando nossas comunicações e acredito que não seria interes­sante deixá-los informados.

Ok - responderam todos quase simultaneamente.

Checaram seus comunicadores e o grupo se separou.

Na parte externa, o navio parecia deserto e muito tranqüilo. Depois de encontrar três portas seladas pelos terroristas, Patrícia enfim chegou a uma abertura. Quando o grupo penetrou no interior do navio, perce­beu que as luzes haviam sido desligadas e o lugar cheirava a uma grande armadilha. Patrícia cruzou a primeira sala totalmente vazia e após alguns passos teve acesso a um pequeno corredor. O caminho seguia na direção da parte traseira do navio, exatamente o lugar onde se encontrava a ogiva. Lentamente, ela avançou, seguida por Jefferson e um dos soldados.

Mais alguns passos e a tenente parou. Bem à sua frente estava uma das curvas do corredor. Com o aceno de uma das mãos Patrícia indicou para que um dos companheiros avançasse. Era uma ação-padrão em que os integrantes do grupo se revezavam avançando cautelosamente. Assumindo a orientação para si, o soldado seguiu. Seus passos eram firmes e decididos, mas segundos depois que ele cruzou à sua frente, o som de um estrondo preencheu o lugar. Patrícia e Henrique se jogaram no chão, e imediata­mente tiros começaram a ser disparados na direção dos dois.

Patrícia levou a mão ao rádio e acionando um dos botões abriu a linha de comunicação.

- Eles plantaram explosivos - disse. - Plantaram explosivos e têm vigilantes na espreita.

 

A alguns metros dali, Cardoso, Henrique e o outro soldado ouviram a mensagem claramente. Eles também já haviam entrado e cruzavam naquele momento um dos refeitórios do navio. Mesas, cadeiras, além de vários uten­sílios de cozinha estavam espalhados pelo lugar, indicando que o local não havia sido usado pela tripulação durante a viagem. O refeitório era escuro, e a única iluminação provinha das pequenas lanternas que os três traziam consigo. Assim que a mensagem chegou aos ouvidos de Cardoso, o oficial sinalizou para que os três se separassem. Lentamente, eles foram avançando, varrendo o lugar pelas extremidades e pelo centro. O silêncio tornava o ambiente ainda mais apreensivo, e do modo como avançavam, pouco pode­riam fazer para evitar um possível confronto. Cardoso sabia que precisavam se proteger, mas com o pouco tempo que lhes restava isso não seria possível. Precisavam seguir, independentemente do que acontecesse.

Henrique parou após alguns passos indicando que havia encontrado alguma coisa. Cardoso, que acompanhava a certa distância, permaneceu imóvel sinalizando para o soldado que fizesse o mesmo. O refeitório tinha colunas que o dividia em três retângulos e agora cada um dos militares estava posicionado em um deles. Ao fundo, balcões para distribuição dos alimentos pareciam ser o único obstáculo entre eles e a porta. Pelo menos era o que haviam imaginado, antes de Henrique parar. Com movimentos cautelosos, Henrique agachou e tocou uma linha transparente que atra­vessava todo o lugar. Era uma linha de pesca, que passava quase imper­ceptível aos olhos.

Lentamente o militar seguiu a linha até a primeira das colunas e per­cebeu que estava amarrada a um acionador de explosivos plásticos. A coluna em que Henrique estava, assim como as outras, tinha uma quan­tidade significativa de explosivos. Com habilidade, Henrique removeu a todos um a um, até que os três pudessem se deslocar e ficar novamente juntos. Sabiam que encontrariam resistência em breve, mas estavam ali­viados por não terem caído na mesma armadilha em que o grupo de Patrícia havia caído. Cardoso cumprimentou-o com um toque no ombro, mas antes que pudessem comemorar algo aconteceu.

De repente, o som de passos ocupou parte do local e quase no mesmo instante uma granada cruzou o refeitório na altura de seus olhos. Como se estivesse em câmera lenta, os três viram a granada percorrer parte do espaço entre o balcão de alimentos e o lugar onde se encontravam. Jogando-se entre os objetos espalhados no refeitório Henrique gritou:

Granada! Para o chão!

Não seria possível quantificar a fração de segundos que permitira a eles não serem atingidos. Cardoso lançou o corpo sob uma das mesas, enquanto Henrique e o soldado se protegiam como podiam entre várias cadeiras.

O som da explosão varreu o refeitório e estilhaços da granada par­tiram em todas as direções. Faíscas características da colisão do metal contra metal fizeram o lugar brilhar por alguns segundos. Não demorou para que Henrique sentisse uma dor infernal partindo de sua panturrilha direita. Ele levou a mão à perna e tocou o estilhaço que estava parcial­mente introduzido em sua pele.

Porra! - gritou. - Acertaram minha perna!

Ao som da voz de Henrique, Cardoso avançou. Antes de se jogar ao chão, ele conseguira ver de onde havia partido a granada e, sem pensar nas conseqüências, seguiu naquela direção. Eram praticamente dez pas­sos que o separavam dos balcões de refeição. Cardoso correu. Esperava que os inimigos estivessem avaliando sua investida e por isso não teve receio. Avançou a uma velocidade impressionante e assim que cruzou o balcão viu parcialmente dois dos terroristas. Eles retiravam outra gra­nada de uma maleta e não se deram conta de que o tenente viera em sua direção. Cardoso, com duas pistolas em punho, se jogou de costas sobre o piso e disparou, surpreendendo os dois.

 

Patrícia tentava ver o soldado em meio a toda a fumaça causada pela explosão.

Preciso que atire na direção deles! - vociferou, enquanto entregava sua arma a Jefferson. - Enquanto você atira, eu puxo ele!

Tudo bem! - respondeu o agente.

Destravando a arma, ele então projetou o corpo além da curva, atirando sem parar. Os terroristas que atiravam do outro lado, perce­bendo os disparos e preocupados com sua segurança, recuaram. Patrícia, aproveitando os mínimos instantes de hesitação, correu até o corredor e puxou o soldado pelas pernas até onde estavam.

Com várias perfurações no corpo, o soldado das Forças Especiais não resistira. Por um momento Patrícia tentou reanimá-lo, mas sua ação fora em vão.

Como ele está? - perguntou Jefferson assim que recuou.

Está morto! - vociferou a jovem. Ela o havia enviado e por isso se considerava parcialmente culpada por sua morte.

Mas...

Jefferson tentou se manifestar, mas Patrícia o interrompeu:

Me passe uma de suas granadas - pediu ela estendendo a mão.

Jefferson abriu a mochila, pegou uma das granadas e entregou a ela.

Patrícia pegou o objeto de sua mão e retirando o pino aguardou por alguns segundos. Então, projetando rapidamente seu corpo após a curva, lançou a granada.

Uma nova explosão consumiu o corredor, só que desta vez fora cau­sada por outras pessoas.

Os três avançavam juntos. Depois de neutralizar os dois vigilantes com tiros precisos, Cardoso havia retornado para ajudar o amigo que havia sido atingido. Juntos, ele e o soldado haviam removido o estilhaço da perna de Henrique e agora caminhavam lado a lado. Mesmo machu­cado, o sargento sabia que não poderia ficar para trás; seu conhecimento seria necessário e esta era a razão pela qual se esforçava. Um pedaço de toalha retirado da despensa fazia pressão em um curativo improvisado em sua perna, mas a dor era intensa.

Está selada, senhor! - disse o soldado assim que chegou à porta anteriormente protegida pelos terroristas. - É uma porta de metal e tem soldas em todo o contorno; mesmo que descarreguemos toda a nossa munição, não será possível atravessá-la.

Era evidente que os homens que haviam feito aquilo não pretendiam voltar. Seu destino e tudo o que lhes importava era o resultado do plano que haviam iniciado. Cardoso conhecia ações como aquela e sabia do que os terroristas seriam capazes. Por um momento o militar pensou: precisava de alguma alternativa imediatamente. Henrique, apoiado em um dos balcões de refeição, sorriu quando Cardoso olhou em sua direção com um ar transgressor.

É possível? - disse.

Talvez - respondeu Henrique - Não sei o que tem atrás desta porta, mas, com o que tem de explosivos nestas colunas, a chance de a derrubar­mos é muito grande.

Temos menos de seis minutos.

Deixe comigo.

Arrastando a perna de um lado para outro, Henrique recolheu todos os explosivos localizados nas colunas do refeitório. Era realmente um exagero o que os terroristas tinham preparado para eles. Por um momento, percebeu que se tivessem caído na armadilha, pouco restaria dos três militares. Em menos de dois minutos, Henrique reposicionou os explosivos de forma que contornassem toda a porta. Em três pontos da massa explosiva, recolocou os detonadores, que seriam acionados por fios. Afastando-se até a primeira entrada do refeitório, os três sentaram- -se protegidos por cadeiras, mesas e um dos balcões que havia sido arras­tado até aquela distância. Henrique segurou a extremidade do fio que estava ligado aos detonadores e olhando para Cardoso falou:

Às suas ordens!

Cardoso olhou na direção da porta e tudo parecia normal. Retornou novamente o olhar para Henrique e com um aceno de cabeça autorizou a detonação.

Uma explosão ensurdecedora tomou conta do lugar. O navio, afe­tado pelo impacto, vibrou e produziu um barulho estranho e ressonante. Enquanto aguardavam que a fumaça causada pelos explosivos se dissi­passe, Henrique fazia sons, vibrando com a força do impacto.

Faz tempo que não me divirto tanto! - disse.

Não estamos nos divertindo - replicou Cardoso. - Precisamos achá-los e agora só temos três minutos.

Henrique conteve o riso, enquanto Cardoso percebia, por entre a fumaça, o estrago feito pelos explosivos. A porta havia desaparecido, e no seu lugar, uma enorme abertura havia sido criada.

Passagem liberada - disse Cardoso pelo rádio. - Avançamos mais um nível.

No último pavimento do navio, próximo à base do silo de lança­mento, Hamid sentiu um impacto surpreendente. No mesmo instante, Jafar parou de digitar nos antigos teclados do sistema de mísseis e olhou em sua direção.

Acha que eles passaram? - disse.

Não sei! - respondeu Hamid. - Continue seu trabalho e deixe que os homens cuidem de segurá-los. Mesmo que tenham passado pelas bar­reiras, não deixaremos que cheguem vivos até aqui.

Mas ... - continuou Jafar.

Quanto tempo nós temos?

O silo é antigo e está mais lento do que eu imaginava. Mais quatro ou cinco minutos e poderemos iniciar a contagem.

Faça seu trabalho, meu irmão; eu cuido deles. - Assim que termi­nou a frase, Hamid seguiu em direção aos invasores.

 

                     Área de Lançamento

Assim que ouviu o som da granada explodindo, Patrícia avançou para o local onde o soldado anteriormente havia sido abatido. Com a arma em punho, a tenente atirava continuamente, na direção que supu­nha estarem os terroristas. Sua intenção era intimidá-los para que tivesse tempo de conseguir proteção. O corredor estava tomado por caixas e armários que faziam uma barricada de segurança para os soldados e por isso seus tiros não os atingiam. Uma das paredes laterais estava toda des­truída por conta do impacto e Patrícia concluiu que aquele era o local em que haviam fixado o explosivo. No momento em que tentara resgatar o soldado, não havia percebido o cenário, mas agora se dava conta de que aqueles homens estavam encurralados. A militar interrompeu sua inves­tida ao perceber que não conseguiria atingir os inimigos e com um movimento rápido se protegeu atrás de um dos armários. Instintivamente, Jefferson havia acompanhado seu movimento e agora se protegia entre os pedaços de aço retorcido da abertura lateral.

O que está fazendo aqui? - indagou Patrícia em tom agressivo.

Não posso deixá-la sozinha!

Patrícia colocou a mão sobre o rosto, não acreditando. Jefferson por certo era um excelente auxiliar, mas seu comportamento indicava que jamais havia enfrentado qualquer confronto armado em sua vida.

Me passe as granadas e entre na sala - disse ela indicando o interior escuro da abertura.

Jefferson resmungou por um instante e em seguida esticou o braço, com a intenção de fazer o que a tenente havia mandado. Imediatamente, novos disparos saíram do fundo do corredor em direção aos dois. Patrícia voltou a se proteger atrás do armário ao mesmo tempo em que lefferson, assustado com o tiroteio, soltou a bolsa sobre o piso e se jogou para o interior da sala.

Droga! - vociferou Patrícia. - Você deveria ter jogado as granadas!

Desculpe! - respondeu Jefferson.

Patrícia por um instante pareceu indecisa sobre como agir. Seria arris­cado sair de sua proteção para alcançar a mochila. A distância não chegava a um metro, mas as conseqüências de um tiro poderiam colocar sua vida em risco. Após alguns segundos, os tiros haviam novamente cessado.

Acidentalmente Patrícia bateu com o cabo do fuzil contra o armário, fazendo com que o móvel balançasse. Ouvindo o som, os terroristas, vol­taram a atirar em sua direção, tendo seus projéteis impedidos de atingi-la apenas pela espessura do móvel feito de aço.

De repente, Patrícia percebeu o que poderia fazer. Se alcançasse as granadas e as arremessasse com precisão, os terroristas não teriam saída. Pondo-se de joelhos, a tenente apoiou o cabo do fuzil entre a lateral do corredor e o armário que a protegia. Com toda sua força, fez com que o móvel tombasse, até cair deitado no centro do corredor. Acompanhando o movimento do armário, Patrícia lançou seu corpo ao chão. O tamanho era perfeito, o móvel ocupava agora toda a largura do corredor a uma altura de quase setenta centímetros. Deitada sob a proteção do móvel caído, a tenente foi mais uma vez alvo dos tiros desferidos pelos terroristas. Eles atiravam em sua direção, mas o armário cumpria o papel de protegê-la, da mesma forma que fizera anteriormente. Agora, a mochila com as granadas estava próxima a seu corpo. Patrícia abriu o zíper e tirou duas das granadas. Então, assim que os tiros cessaram, tirou o pino, espe­rou e o atirou na direção dos terroristas.

Com uma precisão impressionante, as duas granadas lançadas por Patrícia fizeram uma curva no ar e caíram aos pés dos dois homens. Desesperados, os dois tentaram sair do esconderijo, mas o tempo de espera calculado por Patrícia fora crucial e em menos de dois segundos os dispo­sitivos explodiram.

Assim que a poeira causada pela explosão voltou a baixar, Patrícia foi até o lugar onde os homens haviam sido atingidos e percebeu que a porta no final do corredor, como todas as outras, havia sido soldada. Tinha ouvido no rádio que Cardoso e os outros tinham arrombado uma delas e pensou em fazer o mesmo. Mas faltavam-lhe os explosivos que o outro grupo havia encontrado e as duas granadas que restaram não dariam nem sequer para o começo.

Teremos que voltar e pegar o outro caminho - disse, esperando que Jefferson a respondesse, mas o silêncio que se seguiu causou-lhe preocupação.

Levando novamente a arma à posição de investida, Patrícia retornou. De repente se dava conta de que Jefferson não se manifestara desde que havia entrado na abertura e isso era preocupante. Cautelosa, entrou pelo que restara de uma antiga porta e imediatamente viu Jefferson agachado ao lado de um homem ferido. Ele se escondia em um dos cantos do que parecia um alojamento.

É um refém e está ferido - disse Jefferson. - Precisamos levá-lo conosco.

Patrícia olhou para o homem e viu o medo em seus olhos. Ele tinha uma atadura improvisada em uma das pernas e parecia bastante cansado. Imediatamente concluiu que ajudá-lo não parecia representar perigo.

Pode andar? - perguntou.

Posso, senhora - respondeu o homem. - Estou fraco, mas acho que consigo.

Então vamos! No caminho você me conta o que está fazendo dentro deste navio. Nosso tempo está se esgotando e não podemos ficar parados.

Enquanto os três caminhavam em direção ao refeitório que Cardoso havia descrito, Patrícia fez mais um comunicado:

Chegamos a um beco sem saída, vou voltar e seguir pelo caminho de vocês.

 

Cardoso e seu grupo haviam chegado à sala de máquinas do des­tróier. A distância percorrida por eles desde o episódio no refeitório indi­cava que aquela era a última barreira entre eles e o silo de lançamento. Os poucos minutos que ainda lhes restavam teriam que ser bem aproveita­dos para que pudessem impedir que o míssil fosse lançado.

A altura entre o piso e o teto daquela sala parecia tornar o lugar ainda mais imenso. Henrique calculou quase seis metros da posição onde esta­vam, que já era acima das máquinas, até o piso que por certo coincidia com o casco do navio. Toda a imensidão se justificava pelos dispositivos que o local acomodava: duas gigantescas turbinas, além de vários gerado­res. A porta por onde haviam entrado dava acesso a uma escada e então a outros pavimentos inferiores onde um emaranhado de engrenagens e tubos era ladeado por rampas e plataforma metálicas. Os motores esta­vam parados e o único barulho que ouviam era do sistema de elevação do silo. Ao fim da sala, uma porta bem maior do que aquela por onde haviam chegado levava à área de lançamento e também aos terroristas.

Cardoso desceu o primeiro lance de escadas e começou a caminhar em direção à próxima plataforma. Logo atrás vinha o soldado e também Henrique. Não haviam sequer atingido metade do caminho quando os primeiros disparos vieram em sua direção.

Algumas colunas de metal sustentavam as plataformas e foi entre elas que Cardoso se protegeu. Henrique e o soldado, que vinham alguns metros antes do tenente, recuaram, protegendo-se entre as máquinas.

Quantos restaram? - gritou Cardoso em meio ao tiroteio. Os pro­jéteis disparados na sua direção ricocheteavam na coluna, produzindo sons metálicos que faziam com que ele abaixasse a cabeça a cada disparo.

Não sei. Não devem ser mais de quatro ou cinco! - respondeu Henrique.

Da posição em que estavam, Henrique e o soldado podiam ver dois ati­radores. Eles miravam suas armas somente na direção de Cardoso; a impres­são que se tinha era de que não haviam visto os outros dois militares.

Me dê seu fuzil! - disse Henrique ao soldado.

Ele obedeceu e entregando a arma ao militar, esperou para ver qual seria sua reação. Henrique, mesmo com as fortes dores na perna, cami­nhou alguns passos até onde pudesse ver os terroristas com maior niti­dez. Eles estavam cerca de cinco metros abaixo dele, entre os eixos de transmissão dos motores. Cardoso permanecia no mesmo lugar e ainda estava vivo apenas por conta da proteção natural oferecida pela coluna que era apenas centímetros mais larga do que seu corpo.

O suor escorria pelo rosto de Henrique e ele sabia que teria apenas uma chance de atingir os terroristas; se errasse, eles saberiam onde ele estava, e então o avanço do grupo estaria comprometido. O jovem sar­gento colocou o cano da arma sobre a barra de proteção da plataforma e efetuou quatro disparos, atingindo três dos terroristas. Antes de entender de onde haviam vindo os tiros, os homens tombaram sobre o piso gelado da sala de máquinas. Imediatamente, outras duas pessoas surgiram em seu campo de visão. Eles estavam ocultos em meio a todas as instalações e se assustaram ao perceber que mais militares estavam no lugar. Henrique só teve tempo de rolar no piso, antes que os novos disparos seguissem agora em sua direção. Mas estes não passaram de quatro ou cinco, pois eram uma cobertura para a fuga dos inimigos.

Os terroristas estavam recuando.

 

Quando Hamid chegou à casa de máquinas, os quatro homens que faziam a guarda do lugar aguardavam atentos a chegada dos militares que havia vencido a primeira barreira. Não sabiam ao certo quantos eram, mas esperavam que o obstáculo anterior pudesse tê-los enfraquecido ou até mesmo eliminado.

Esperem que eles cheguem a uma área desprotegida e então atirem até que caiam - ordenou Hamid. - Não podemos deixar que avancem além deste ponto.

Obedecendo a ordem, o grupo permaneceu atento ao único acesso que ligava a sala de máquinas à área de serviço do refeitório. Não era pos­sível ver a porta por onde chegariam, mas a escada que descia da plata­forma estava totalmente visível. Não demorou para que um homem com arma em punho descesse por ali. Ele surgiu sozinho no campo de visão dos terroristas e eles concluíram que ninguém o acompanhava. Certo de que aquele era o último dos homens, Hamid ordenou que atirassem.

Assustado, o homem se protegeu entre as colunas de sustentação das plataformas e, por quase um minuto, foi castigado com os disparos des­feridos pelo grupo. Para Hamid, seria questão de tempo para que ele ten­tasse escapar, e então seria eliminado.

Mas não foi o que aconteceu. De repente, disparos surgiram de uma direção diferente daquela onde o homem se encontrava. Hamid deu um passo para a direita, protegendo-se entre as máquinas, e viu claramente quando três de seus homens tombaram. Sem perder tempo, sacou sua arma e disparou na direção de onde vieram os tiros, mesmo sem saber quem os havia disparado.

Foi o suficiente para que os inimigos hesitassem.

-Vamos voltar! - gritou ao último homem que restara em sua equipe antes dos dois desaparecerem no corredor escuro.

 

Cardoso saiu do esconderijo improvisado, seguindo em direção ao local do lançamento. Henrique e o soldado agora rumavam na mesma direção, ainda mais distantes do que estavam minutos atrás. Assim que chegou à porta, Cardoso pôde ver pelo pequeno corredor que os dois fugitivos haviam chegado à outra extremidade do compartimento de carga. Agora o silo estava entre eles. Cardoso tentou avançar para o com­partimento de carga, mas um som inesperado fez com que ele parasse. O silo havia atingido a posição de lançamento e a sirene de aviso começara a soar. Por um instante, seus reflexos foram anulados e ele hesitou. Estes poucos segundos foram suficientes para que os dois homens se voltassem na direção da porta e retomassem os disparos fazendo com que ele recuasse e não conseguisse avançar além da entrada.

Com as costas apoiadas na parede de aço gélido, Cardoso deparou com a realidade. O tempo havia acabado.

Poucos minutos haviam se passado desde que Hamid havia saído para tentar formar a última barreira e evitar que os militares chegassem ao local de lançamento. Jafar terminava a programação do míssil quando percebeu que seu companheiro corria às pressas em sua direção. Por um instante ele pensou em ajudá-lo, mas sua contribuição para a missão, a razão de ter chegado até ali, não havia sido concluída.

O silo acabara de atingir o ponto de lançamento e aguardava apenas a liberação da contagem para que o míssil balístico fosse lançado. A gló­ria, a realização e o reconhecimento por uma das missões mais importan­tes já realizadas por seu grupo estavam prestes a se tornar uma realidade. Depois que o míssil tivesse sido lançado, suas vidas não teriam mais ser­ventia e se colocariam rumo ao reconhecimento. Mesmo o mundo con­siderando insanidade ações como aquelas, tanto Jafar como seus com­panheiros tinham a certeza de que seus atos fariam parte de um plano maior, idealizado não por eles, mas por alguém além de sua compreen­são. Era assim que haviam lhe ensinado desde sempre e esta era sua única verdade. A importância da vida perdia sentido frente a tudo isso.

Lance o míssil, Jafar! - gritou Hamid assim que chegou a um local seguro. Ele e o outro homem agora atiravam em direção à porta de entrada, tentando evitar que os militares avançassem além daquele ponto.

Só mais alguns segundos e a programação estará completa - res­pondeu ele.

Não temos mais alguns segundos! Lance! - disse Hamid.

E então, algo aconteceu.

Disparos provenientes da abertura superior do compartimento de carga vieram na direção do grupo. Enquanto se preocupava com o avanço do militar à sua frente, Hamid havia se esquecido de guarnecer a aber­tura principal, exatamente o mesmo local por onde Cardoso e seu grupo haviam tentado sua primeira investida. Seu erro fora fatal. Sem defesa, os projéteis os atingiram em cheio, fazendo com que caíssem.

O último de seus homens fora o primeiro a cair. Preocupado com a entrada inferior, se tornara um alvo fácil a atiradores posicionados de cima. Seu corpo foi atingido por três tiros. Jafar, em frente ao sistema de comando do míssil, fora o segundo alvo e quase simultaneamente fora atingido. Sem saber como acontecera, tombou de costas com um feri­mento grave no peito. Ágil, Hamid ainda conseguiu se proteger entre partes metálicas do sistema de lançamento, mas isso não impediu que o atingissem num dos ombros.

Por um momento, Hamid se lembrou de sua infância. De seus pais e de sua vida, antes que ela fosse destruída pela guerra. A imagem de sua casa, que havia muito tempo desaparecera de sua mente, surgia nítida como em um filme. No portão, sua família lhe dava um último aceno. Pela primeira vez em muito tempo, lamentava pelo que perdera e por tudo o que havia acontecido. Sentiu que sua vida poderia, sim, ter sido diferente.

 

Novos disparos atingiram sua perna, libertando-o de seu transe. À sua frente, Jafar já respirava com dificuldade, com os olhos fixos no painel de comando. Som de soldados vindo em sua direção era o sinal de que o grupo estava avançando. No lugar onde antes Jafar trabalhava, um botão vermelho piscava de forma intermitente, parecendo hipnotizá-lo. Hamid entendeu o que via e decidiu o que iria fazer.

Então, com o pouco de força que restara em seu corpo, se levantou e seguiu em direção do painel.

 

Assim que Fernando comunicou ao general o que havia descoberto, o advogado não teve dúvida de que deveria se juntar ao grupo de Cardoso na perseguição aos terroristas. De fato, Fernando não sabia exatamente como ajudar, mas sabia que ficar ali aguardando não seria a melhor opção. Não foi difícil para ele, assim que reencontrou Vitor, convencê-lo de seguirem juntos até a embarcação. Antes de partirem, porém, os dois se asseguraram daquilo que mais lhes importava. Vitor se certificou de que o coronel Castro estaria aos cuidados de médicos e soldados mili­tares, enquanto Fernando, teve a certeza de que Gabrielle estava fora de perigo. A jovem, por sua vez, insistiu em seguir com os dois, mas os médi­cos que a atendiam conseguiram convencê-la de que sua cicatriz recente poderia abrir e sangrar, piorando o ferimento. Por fim, Gabrielle se viu persuadida e, com um beijo caloroso, desejou boa sorte a Fernando.

Durante o deslocamento até o local do cais onde o grupo realizava a operação, Vitor e Fernando ouviam atentamente os comunicados espaça­dos e confusos que eram transmitidos. Deduziam então que a seqüência de ataques desferidos pelos terroristas indicava que aqueles homens tinham como principal estratégia manter os soldados longe do silo. De início, parecia que haviam conseguido; porém, depois das investidas de Cardoso e Patrícia, estava certo de que não poderiam mais manter a posição inicial de combate. Suas barreiras haviam sido transpostas e nesse momento sua estratégia havia caído. Com isso, Fernando e Vitor sabiam que o Exército inimigo se tornara vulnerável e algo lhe dizia que poderiam então sur­preendê-los.

Assim que o helicóptero tocou o solo do cais, os dois saltaram, carre­gando Fuzis M964. Depois de uma pequena orientação realizada durante a viagem, o jovem advogado sabia exatamente como manusear a arma e não teria problemas no caso de precisar dispará-la. Sabiam que o tempo era curto e a decisão foi seguir até a abertura na parte superior do con­vés. Aquela parecia a forma mais rápida de acessar o local do confronto e ajudar o time de Cardoso. Assim que chegaram ao local, Vitor sinalizou para que se abaixassem na borda da abertura. Era possível ouvir tiros vin­dos do andar inferior. Luzes iluminavam o ambiente e permitiam avistar todos os terroristas.

- Acha que conseguimos atingi-los? - perguntou Fernando com a voz embargada.

Vitor normalmente daria voz de prisão a quem quer que estivesse perseguindo, só que daquela vez, mesmo que fosse possível, a razão lhe dizia o contrário. Com um acenar de cabeça, o velho militar respondeu à pergunta de Fernando e imediatamente os dois apontaram os fuzis na direção dos terroristas.

Restavam três deles, e suas atenções estavam voltadas a outros pro­blemas. Enquanto um deles digitava continuamente no painel de progra­mação do míssil, os outros dois tentavam de maneira eficiente evitar que a equipe de Cardoso avançasse.

Segundos depois de se posicionarem, Vitor e Fernando dispararam.

Os primeiros tiros atingiram um dos homens fazendo com que caísse imediatamente. O programador percebeu que algo estava errado, mas antes mesmo que pudesse reagir, foi abatido. O terceiro, possivelmente o comandante da equipe, percebendo que havia perdido seus homens, tentou se esconder, mas Vitor foi mais rápido. Um tiro o atingiu, antes que caísse sob a proteção de algumas placas metálicas do sistema de lan­çamento. Fernando viu quando Cardoso e seus homens olharam em sua direção e depois correram rumo aos terroristas. Ele sabia que os havia atingido, mas não tinha certeza da condição do comandante e do que ainda era capaz.

Preocupado, Fernando sinalizou para Vitor, que percorreu todo o contorno da abertura até encontrar um ponto em que pudesse vê-lo. Dali, o capitão fez novos disparos, atingindo suas pernas. Assustado, o homem se recolheu, e ele novamente o perdeu de vista. Então, sem qual­quer aviso, o homem surgiu, correndo em direção ao painel de controle.

 

Sob a revoada de projéteis, Cardoso e Henrique ainda tentavam pen­sar em alguma forma de subjugar os terroristas. Foi quando algo aconte­ceu. O som dos disparos não havia cessado, mas os projéteis não seguiam mais na direção do corredor de entrada do compartimento. Os terroris­tas, ou alguém ainda atirava, mas não em sua direção. Imediatamente, Cardoso deixou a segurança do local onde estava e alguns passos à frente pôde ver o que acontecia. Pequenas luzes percorriam a parte superior do grande compartimento, em direção ao local em que estavam os terroris­tas. Por um instante o tenente teve dúvida de quem o estava ajudando, mas logo percebeu que Fernando e Vitor estavam agachados próximos da entrada. Um sorriso se formou em seu rosto e, sem perder tempo, ele e seus homens correram na direção do silo.

 

Houve um intervalo e novamente disparos foram ouvidos. Cardoso continuou correndo, mas, antes que chegasse aos terroristas, um homem surgiu e deixando a proteção em que estava saltou sobre o painel de con­trole do míssil.

 

                     O Lançamento

O som contínuo produzido pela sirene anexada ao sistema de lança­mento mudou e agora tocava um sinal de intermitência. A contagem havia iniciado. Na tela de comando do painel, um relógio regressivo marcava menos de dez segundos para o lançamento. Cardoso pensou em mexer no painel de programação, mas antes que tentasse, foi alertado por Henrique: - Não dá tempo, precisamos nos proteger, ou seremos queimados! O compartimento estava praticamente vazio, a não ser pelos restos de madeira e metal que haviam sido removidos da abertura feita pelos terro­ristas no casco e do container que embalava o silo. Cardoso, Henrique e o soldado correram em direção a eles, tendo tempo apenas de se jogarem por entre as placas e a lateral do navio.

No instante seguinte, uma fumaça acinzentada saída da base do silo, seguida por labaredas incandescente, tomou conta de todo o comparti­mento. O fogo, redirecionado pelo piso inadequado para o lançamento daquele míssil, atingia as laterais do barco e também as placas que agora protegiam os três militares. Mesmo distantes do míssil quase dez metros, o calor era intenso e praticamente insuportável. Deitados no chão eles protegiam o rosto com a ajuda dos braços. Fernando, que via tudo da parte superior da abertura, não teve dúvida e junto com Vitor correu para um lugar onde pudessem estar protegidos.

Cinco segundos foi o tempo necessário para que o míssil vencesse a inércia de seu peso e então começasse a se deslocar. Partindo lenta­mente, a potente arma saiu do silo que a armazenava e cruzou a abertura do navio, aumentando sua velocidade a uma razão impressionante. O céu negro da cidade de Santos foi iluminado por uma chama vermelha seguida de um rastro de fumaça que se dissipava em meio às nuvens.

Imediatamente, os computadores da sala de comando em Brasília registraram o movimento, e agora o general Demétrio tinha um pequeno ponto vermelho se deslocando no telão à sua frente. Por um instante, o silêncio predominou na sala. Todos, inclusive a presidente, olhavam incrédulos, enquanto o pequeno ponto ganhava velocidade segundo após segundo.

Calcular tempo de impacto - ordenou o general.

Um dos operadores começou a teclar rapidamente em sua mesa e após alguns segundos um relógio apareceu na tela, ao lado daquele que sinalizava o tempo necessário para a evacuação da comitiva americana.

Sete minutos e doze segundos, senhor - disse o soldado.

No relógio que registrava a evacuação, o tempo era quase duas vezes o que o operador havia falado. A presidente sentiu seu coração acelerar. A perda iria muito além da comitiva, uma cidade de milhões de pessoas seria atingida e muitas vidas seriam dizimadas.

 

Cardoso se levantou assim que o míssil se afastou do navio. Seu corpo, assim como o de seus companheiros, estava coberto por uma poeira cinza proveniente da queima gerada pelo combustível sólido de lançamento. O lugar ainda estava tomado pela fumaça, mas as luzes do compartimento ainda permitiam enxergar a base de lançamento. Cardoso sinalizou para Henrique, e o sargento entendeu o que deveria fazer. O comando insta­lado no sistema de lançamento tinha a possibilidade de se conectar a um satélite e monitorar o deslocamento do míssil; em alguns casos, era pos­sível até mesmo destruir o míssil antes que este atingisse o alvo. Cardoso e Henrique, assim como outros militares do Setor, sabiam e conheciam estes dispositivos, já que haviam sido treinados em missões de cooperação com países que produziam armas como aquelas. Todos conheciam, mas Henrique era quem se especializara em armas de destruição em massa; portanto, ele era o único que poderia conectá-la.

General - disse Cardoso abrindo o sinal de seu rádio. - Não conse­guimos evitar o lançamento, mas ainda temos uma chance.

Nós monitoramos o lançamento - respondeu Demétrio. - Não sei o que podem fazer, mas façam rápido. Vocês têm menos de sete minutos.

Vamos conectar o sistema de lançamento ao satélite e tentar des­truir o míssil antes que atinja Santiago.

Na central de comando, um fio de esperança tomou conta de todos. Demétrio sentiu que ainda poderiam minimizar as perdas:

Do que precisa?

Se conseguirmos conectar, precisamos saber onde destruí-lo. Tem que ser um local onde não haja cidades e nem pessoas.

O ponto que identificava o míssil em movimento sobrevoava agora a cidade de Curitiba e o cronômetro na tela da sala de comando mar­cava seis minutos e trinta segundos para a explosão. Preocupado, o gene­ral sinalizou para que um dos controladores fizesse a análise pedida por Cardoso. Olhou então para a presidente, que observava atenta a cabine, e viu que ela assentia em sinal de aprovação. Aquela parecia ser a única saída, e não havia tempo para discutir.

Continue! - respondeu Demétrio. - Ligamos em um minuto.

Cardoso sinalizou para que Henrique começasse a operação. O mili­tar se aproximou do painel de comando, mas assim que chegou até ele, seu semblante automaticamente congelou. Cardoso percebeu a reação do companheiro e se aproximando foi acometido pela mesma reação. Parecia impossível acreditar no que viam.

Não pode ser, tenente! - exclamou Henrique.

O que foi? - perguntou Cardoso.

O painel, senhor! Está em cirílico, o alfabeto russo.

Na tela do computador, letras desconhecidas indicavam que o sis­tema de operação do silo fabricado pelos russos mantinha a linguagem nacional soviética como padrão. Cardoso viu as escritas sem acreditar.

Não tem como mudar? Não existe um menu ou algum código que consiga reiniciar o painel?

Henrique balançou negativamente a cabeça. Mesmo sendo exausti­vamente preparado para comandar armas como aquela, seria impossível em uma linguagem que desconhecia.

Por um instante, o silêncio tomou conta do destróier. Nem mesmo Fernando e Vitor, que agora observavam a ação da parte superior do con­vés e ouviam as palavras através do rádio, acreditavam que toda a perse­guição da qual haviam participado poderia terminar sem que conseguis­sem evitar o grande desastre.

Henrique esticou os braços com a intenção de fazer algo, mas logo percebeu que sem saber exatamente o que comandar, as conseqüências seriam ainda piores. Depois de tudo o que haviam feito, depois das des­cobertas de Gabrielle e Fernando, o grupo a quem havia sido confiado o desfecho da missão sentia-se com as mãos atadas diante da grande ame­aça. O tempo que lhe restava não permitia qualquer alternativa.

Henrique olhou para o céu e contemplou o rastro do foguete que agora não passava de pequenos pontos de fumaça na escuridão. A sensa­ção de impotência era algo que nunca sentira com tanta intensidade. Ele pensou em se comunicar e talvez traduzir parte do que via à sua frente, mas as letras desenhadas não eram sequer reconhecidas pelo militar. De repente, em meio ao desespero, uma voz os contatou através do rádio:

Cardoso, você não vai acreditar! - disse a voz feminina.

Fale, Patrícia.

Eu tenho alguém comigo que entende russo; chego até você em menos de trinta segundos.

Por um instante, o grupo não conseguia entender o que Patrícia estava falando. A informação parecia fragmentada, mas por certo haviam ouvido que alguém os poderia ajudar. De certa forma, o que havia acon­tecido ou como essa pessoa se juntara a eles não importava, desde que chegasse ao silo.

Sem perder tempo, a tenente desceu as escadas da plataforma cru­zando a casa de máquinas. Alguns corpos jaziam pelo chão, sinalizando que o combate deixara rastros por todo o navio. Acompanhada por Jefferson e Igor, o homem que haviam encontrado, a tenente chegou ofe- gante à porta do depósito. O lugar era enorme e por alguns segundos o cenário encontrado fez com que parassem. Percebendo a hesitação do grupo, Cardoso correu em sua direção na expectativa de entender como conseguiriam acessar o sistema russo. Ao ver o estivador, que estava apoiado no ombro de Jefferson, pôde perceber que mesmo fraco e aba­tido o homem se mostrava disposto a ajudar.

Sem perder tempo, Cardoso o amparou até que chegasse ao painel:

O que diz aí? - perguntou Henrique assim que o viu.

É um menu de abertura com quatro opções - respondeu o homem, visivelmente cansado e ofegante. - Monitorar Trajetória, Reprogramar Alvo, Abortar ou Desligar Sistema.

Abortar!

Igor tocou a tela e por alguns segundos um cursor ficou piscando de maneira intermitente. Depois, novas palavras em russo foram surgindo. Igor as traduzia quase que simultaneamente:

 

                   Conectando satélite... Concluído!

                   Digitar a senha de acesso.

 

Henrique procurou ao redor, senhas de acesso faziam parte do livro de operações que era designado ao mais alto posto da estação responsável pelos mísseis balísticos. Era o mesmo livro usado para programação e deveria estar ali, próximo a um dos terroristas. Não demorou a que visse a capa vermelha do livro próximo a Jafar. Henrique pegou o volume e começou a folhear, à procura do código.

No momento em que Henrique procurava o código, o silêncio do rádio foi quebrado:

Cardoso?

Sim, general!

O míssil acaba de passar pela cidade de Santa Maria. Mapeamos o trajeto e ele deve passar por Santa Fé, Córdova e Mendoza antes de atingir Santiago. Nossa melhor opção é destruí-lo entre Mendoza e Santiago, é onde ficam as cordilheiras andinas, não existem cidades ou vilarejos próximos.

Ok, senhor, e quando é isso?

Esta é a questão. Na velocidade em que o míssil se encontra, a explosão deverá acontecer exatamente trinta segundos antes de atingir Santiago. Se não der certo, não haverá uma segunda chance.

Vai dar certo, senhor - afirmou o militar. - Vai dar certo.

 

Henrique chegou aos códigos sem grande dificuldade. Os núme­ros de acesso cobriam quase toda a página e foi preciso a ajuda de Igor para que identificasse qual deles era o que estavam precisando naquele momento. Sem perder tempo, o jovem digitou a seqüência, que foi ime­diatamente recebida pelo satélite russo. Mais uma vez, o cursor da tela se deslocou, fornecendo novas informações:

Acesso Concedido...

Tempo para impacto 3:00... 2:59... 2:58...

 

No final da tela, novas opções apareciam, entre elas, iniciar comuni­cação com o míssil. Henrique e Igor selecionaram a opção e novamente o sistema pediu senhas de acesso. Abaixo do campo de senha, o relógio regressivo trabalhava:

 

         2:20... 2:19... 2:18...

 

Malditas senhas! - vociferou Henrique.

O jovem folheava compulsivamente o livro que tinha em seu poder. Sua concentração era evidente, o suor banhava todo seu rosto e as pala­vras de Cardoso soavam longe.

Tem que ser aos trinta segundos - gritava seu superior.

Igor ditou a nova senha e o computador iniciou a conexão.

 

         1:09...1:08...1:07...

 

Falha ao estabelecer conexão, segunda tentativa em dez segundos...

 

Os olhos do grupo não saíam da frente da tela. Cardoso parecia não acreditar no limite em que haviam chegado.

 

         0:57..0:56..0:55

 

Falha ao estabelecer conexão, terceira tentativa em dez segundos...

 

Em vinte segundos, não seria mais possível evitar o pior e todos sabiam onde levaria tamanho desastre.

 

         0:45.. 0:44.. 0:43..

 

Conexão estabelecida... Digite a opção desejada

Auto-destruição

Confirmar auto-destruição? S / NS

 

Em Brasília, todos acompanhavam o pequeno ponto vermelho que se deslocava pela grande tela ao centro do abrigo. O relógio de impacto regredia impiedoso e já atingia a marca de trinta e nove segundos. Por um instante todos ali dentro pediam em seu íntimo para que a luz desa­parecesse. O relógio regrediu segundo a segundo, e aos 28 segundos o pequeno ponto desapareceu.

 

Em meio ao céu negro da noite chilena, um enorme clarão, seguido de uma fumaça em forma de cogumelo, surgiu. Em um raio de oito qui­lômetros da explosão; não restara nada além de cinzas.

 

Na sala de recuperação da Pinacoteca do Estado, Gabrielle realizava os últimos preparativos para a apresentação daquela tarde. Já fazia três semanas que ela, Fernando e Cardoso haviam conduzido a operação de segurança no porto de Santos e mesmo depois desse tempo seu abdômen ainda não havia cicatrizado totalmente. A jovem historiadora parou em frente a um espelho que mantinha na sala e levantou a blusa para ver se tudo estava bem. A perfuração, suturada com cuidado por um cirur­gião plástico paulista, renderia mais uma pequena cicatriz em seu corpo já caprichosamente marcado por tantas aventuras. Sorrindo, Gabrielle constatou que não teria problemas se mantivesse o local medicado como já vinha fazendo. Arrumou então os cabelos e, dando mais um toque no seu belo visual, voltou às suas atividades.

Aquela era talvez a maior oportunidade de sua vida. Depois da explosão da ogiva sobre território chileno, muita coisa havia mudado na forma como as investigações do Setor 27 eram conduzidas e isso, de certa forma, a beneficiara. A presidente brasileira muito habilmente reunira o grupo do G7 e o governo chileno em um encontro extraordinário, cujo principal objetivo era apresentar os fatos de forma nítida e transparente. Quarenta e cinco mortos e uma área de quinhentos quilômetros qua­drados de contaminação nuclear foi a prestação de contas mostrada aos principais países do mundo.

Mesmo sendo considerado um grande desastre, o fato se mostrava uma tragédia inferior àquela que os terroristas pretendiam causar. Os países, apesar de coniventes com o que havia acontecido, exigiram do governo explicações sobre a origem da ogiva e ações de segurança capazes de evitar que atos como aquele voltassem a se repetir. Assim, um inqué­rito foi instaurado e novas tarefas foram designadas as pessoas que esta­vam envolvidas em tudo o que acontecera naquela semana.

 

Por isso Gabrielle se preparava. A abertura dos arquivos militares e principalmente a avaliação dos tesouros guardados nos depósitos do Setor 27 estavam agora sob sua responsabilidade. A presidente havia desig­nado a historiadora para a função de líder do trabalho de mapeamento e divulgação de tudo o que fora encontrado. Por duas semanas, Gabrielle comandara um seleto grupo de historiadores que juntos haviam catalo­gado cada peça do depósito revelado em Brasília.

Uma apresentação em PowerPoint exibida na tela do computador registrava os números do trabalho realizado naquela semana e também imagens dos principais objetos encontrados. As obras de Portinari eram a maior de todas as atrações. Grabrielle confirmou se tudo estava como havia deixado e inserindo um pen drive na máquina iniciou a gravação do arquivo.

Naquele instante, a campainha da porta de entrada tocou, indicando que alguém estava à sua procura. Assim que deixou a mesa, Gabrielle pôde ver a silhueta de Fernando através do vidro. A jovem abriu a fecha­dura e imediatamente foi surpreendida por um beijo caloroso. Fernando a tomara em seus braços antes mesmo que dissesse qualquer palavra. De fato, a paixão entre os dois renascera ainda mais intensa. O jovem advo­gado pegou um presente que havia escondido na entrada e, no momento em que Gabrielle abriu os olhos, deparou com um imenso buquê de rosas vermelhas.

Para desejar sorte à estrela dessa tarde.

Gabrielle sorriu e novamente o beijou.

São lindas! - disse. - Obrigada.

Fernando retribuiu o sorriso timidamente. Em sua mente, a lem­brança de quase ter perdido Gabrielle ainda resistia. No dia em que estivera ajudando Cardoso e os outros a bordo do destróier, mesmo depois de terem evitado que a ogiva caísse sobre a cidade de Santiago, uma avalanche de preocupações o havia atingido. E isso sempre voltava a sua lembrança. No derradeiro instante, quando percebeu que o perigo enfim havia sido contido, seus pensamentos se voltaram ao estado de saúde da jovem e ele seguiu a sua procura. Assim que a encontrou, já em um dos hospitais da cidade de Santos, Fernando pôde enfim se tranqüilizar. Medicada e em um sono profundo, a jovem já era considerada pelos médicos um caso estável, totalmente fora de perigo. Fernando sentou então a seu lado e permaneceu ali durante toda a noite, até que pudesse vê-la acordada.

Quanto ao coronel Castro, este não tivera a mesma sorte. A luta tra­vada no interior do depósito de grãos causara-lhe alguns traumatismos, e, desde então, o antigo comandante do Setor permanecia internado em estado grave, em coma induzido. Mesmo parecendo estranho, o esforço de mantê-lo vivo tinha como justificativa não apenas um gesto humani­tário, mas também a esperança de que seu depoimento revelasse seus cri­mes, causados por uma mente destorcida. Artigos ainda estavam desapa­recidos e de alguns deles somente o coronel poderia revelar o paradeiro.

Oito minutos - disse um dos organizadores que parou à porta naquele momento. - Entraremos ao vivo em oito minutos.

A apresentação oficial daquela tarde seria transmitida para todo o país, como uma satisfação pelos anos ocultos da ditadura, e por isso tudo precisava estar em perfeita ordem. Fernando sorriu e, dando um último abraço, permitiu que ela seguisse em direção ao auditório.

Gabrielle pegou o arquivo e caminhou, saindo pela porta de vidro que dá acesso ao corredor. Mesmo estando a menos de dez metros do auditório, a jovem não pretendia se atrasar. Mas, nesse momento, um funcionário da Pinacoteca surgiu, vindo rápido em sua direção.

Com licença, professora! - disse o jovem. - Chegou uma enco­menda urgente para a senhora e achei que daria tempo de lhe entregar antes de a apresentação começar. Se quiser, eu peço para o entregador voltar depois...

Não! - disse Gabrielle pegando o pacote de sua mão. - Pode deixar que eu recebo.

Era uma pequena caixa de papelão. Gabrielle procurou pelo nome do remetente, mas encontrou apenas uma abreviatura: MA. Fernando, que estava ao lado, percebeu sua hesitação e sinalizou, lembrando do pouco tempo que restava. Gabrielle assinou então o recibo e, agradecendo ao rapaz, guardou a encomenda na sala. No futuro, teria muito tempo para saber do que se tratava.

O auditório parecia um grande estúdio de TV, câmeras tomavam os corredores e os lugares estavam completamente ocupados. Assim que entrou no palco, Gabrielle se lembrou da importância de tudo o que haviam realizado. Era notório o significado da ação e das revelações conduzidas por ela, Fernando e os integrantes do Setor. Ocupando três dos lugares reservados estavam Cardoso, Patrícia e Henrique, que a tudo acompanhavam. Eles eram agora as principais pessoas do novo Setor 27, uma entidade preservada em suas características, mas incumbida de novas tarefas no cenário nacional. Um novo modelo de agência, sólida e muito mais alinhada com as aspirações do país. Cardoso sorriu ao ver a bela jovem e foi imediatamente golpeado em um dos braços.

Ei! - reclamou ele.

Este pássaro já tem dono! - disse Fernando, que acabava de sentar do seu lado.

Cardoso sorriu e abraçou o amigo.

Em todo o país, muitas pessoas aguardavam pela palavra daquela jovem mulher. Enfim, a verdade que ficara por décadas sob a proteção do Setor se tornaria pública e este era um marco na história da nação. Gabrielle seria a protagonista desta nova era. Alguém imparcial, compro­missado com a verdade e com muito a revelar.

 

                                                                                Daniel Pedrosa  

 

                      

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