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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SOB O SIGNO DO GRANDE URSO / Heinz G. Konsalik
SOB O SIGNO DO GRANDE URSO / Heinz G. Konsalik

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

Choveu a potes durante seis dias. Lençóis de água martelaram ininterruptamente a terra martirizada. As árvores erguiam-se no castanho-acinzentado da terra lavrada como se vergadas por algum punho de gigante. As cascas pendiam em farrapos, com a madeira avermelhada estilhaçada pelas granadas.

Em redor de enormes crateras agarravam-se ainda algumas gavinhas e arbustos, em parte já afundados no barro e quase sem folhas. No Verão de 1917, esta planície lamacenta não era mais do que um crivo deserto, uma terra de ninguém cheia de sangue e chumbo, uma zona de morte para tudo o que vivesse.

Os exércitos desdobravam-se em frente um do outro no solo de Artois e do Pas-de-Calais. Combatia-se. Batalhava-se em cada metro de terra gangrenada. Os estalidos e as detonações dos tiros ecoavam no ar. Quando os homens, interiormente convencidos de ambos os lados de que não deviam ser mais do que soldados, abandonaram os abrigos para se lançarem ao ataque, as metralhadoras matraquearam, a explosão das granadas e o assobio dos tiros abafou os gritos e os gemidos dos feridos e moribundos e, mais tarde, a água enlameada que alagava valas e trincheiras trouxe à superfície mortos inchados, que arrastou pela terra molhada.

Não parava de chover. Para se permanecer nas trincheiras e abrigos, tinha de se bombear a água. Era o que faziam os soldados do 159.° Regimento de Infantaria de Ontário. Fez-se silêncio na frente. Um silêncio quase fantasmagórico; também os alemães que ocupavam posições mais baixas bombeavam diligentemente, e enquanto se bombeava não se pensava em guerra. O alívio geral pairava no ar de uma forma quase tangível, espalhando pelas duas frentes uma espécie de paz e compreensão. É que os adversários só se tornavam inimigos ferozes quando a guerra rebentava, quando se tratava de sobrevivência ou de ideais. Rapazes ordeiros, talvez. Mas um estava aqui e outro ali. Era o inimigo. Assim era a guerra. Agora estava tudo calmo. E como ninguém pode ser infeliz eternamente, os soldados adaptaram-se de imediato a esse silêncio, entregando-se a afazeres banais, fumando, comendo e tentando remediar os grandes buracos que tinham nas meias. E sonhando. Naturalmente que sonhando com as suas casas. Com o amor. Com a mulher e os filhos. Agachando-se nos abrigos, tiravam as fotografias amarrotadas do bolso. À noite, nos abrigos completamente às escuras, escreveram cartas para casa. Homens rudes, que em todo o dia não haviam pronunciado uma única palavra mais afectuosa, com medo de que ela lhes afectasse a dignidade, lembravam-se agora de antiquíssimas fórmulas de amor e saudade, que passavam a tremer para o papel. Ao meu amor. Ao meu querido filho, à minha doce filhinha. Sejam fortes. Não tardo a regressar. Pensar em vós não me deixa morrer. Claro que com os camaradas todos se davam ares e até gracejavam sobre as mulheres, fazendo-se fortes, porque era assim que devia ser. Até na proximidade da morte.

 

 

 

 


Fora das trincheiras, na Sapa 9, William Rockwell encontrava-se no seu posto, ao lado da MG tapada, com a gola do casaco virada para cima e o capacete enterrado na cabeça. Ia estar ali de serviço das nove às onze. Tremendo um pouco, olhou para as posições dos alemães.

Pareceu-lhe ver de vez em quando qualquer coisa cinzento-esverdeada e reconheceu claramente o jacto fino de uma bomba de água. Aliás, também se ouvia ao longe o trabalhar do pequeno motor por entre o chapinhar e o gorgolejar da chuva contínua.

 

William Rockwell fechou os olhos claros. Óptimo, os boches bombeavam. As suas posições eram mais baixas do que as dos canadianos. Ainda bem. Enquanto tivessem água nas valas, estavam ocupados. Dois exércitos bombeavam e praguejavam, e Marte, a suar, tirou o capacete e trocou a armadura por uns calções de banho.

 

Tudo calmo. O cabo Rockwell passeou o olhar em volta. O céu estava carregado sobre o Artois. Aquelas paredes meio derrubadas e aquelas traves queimadas tinham sido outrora a aldeia de St. Jules. Quando o vento soprava de feição, ainda transportava o cheiro a queimado e a decomposição. A aldeia fora ocupada cinco vezes, ora por uns, ora por outros. Agora, St. Jules fora riscada do mapa.

 

Mais para sudeste, ficava Cambrai, onde havia uns dias atrás os panzers tinham entrado em acção, coisa que nunca sucedera até à altura. Devia ter sido medonho. A infantaria não tinha qualquer hipótese contra aqueles colossos, máquinas desalmadas que cilindravam tudo à sua passagem e giravam como piões sobre as trincheiras onde os soldados haviam procurado refúgio, até não restar mais do que uma papa. Desafiavam-se umas às outras como sáurios teleguiados. E no entanto, em cada uma destas máquinas assassinas havia seres humanos, com certeza também cheios de medo e raiva, com a indómita esperança de sobreviverem. Os camaradas tinham-lhe contado que quando se acertava a sério num panzer, os passageiros ficavam imediatamente carbonizados dentro do veículo, castanhos e estaladiços, como diziam no duro calão da guerra, que os ajudava a espantar o terror.

 

Na distância, onde a terra se fundia com o céu e a névoa e a chuva formavam um quadro aparentemente pacífico e suave, devia ficar Arras. Depois Calais, o mar, Inglaterra: Dover, Plymouth... A saudade arrebatou-o nas asas do vento até ao Canadá. Viu à sua frente os vastos campos de trigo, infinitos, reluzentes oceanos que balouçavam ao vento. E caminhos direitinhos apartavam as ondas; era uma terra simples, ordeira e maravilhosamente tranquila, clara e vasta, com a canção do vento e os zumbidos dos insectos. Para lá do horizonte, estendiam-se vastas florestas salpicadas de lagos encantadores. De Verão, o bosque era cinzento-prateado e verde-escuro salpicado de lilás: nunca só verde. E no Outono vestia-se de um púrpura flamejante, dominado pela inenarrável magnificência da cor do ácer. William nunca vira cores assim em mais nenhum lado.

 

Aos domingos, costumava-se pegar na bicicleta ou na carroça e ir a algum lago pescar. As mulheres preparavam o piquenique. Pensou em Jenny. Jenny, graciosamente acocorada numa manta estendida na margem, com a saia e o casaco azul-claros, sob os quais apareciam os tornozelos esguios e os pés pequenos metidos nos sapatos de verniz. O regaço acima das ancas ainda acentuava mais a cintura esbelta. Fora ele próprio que caçara o texugo da pequena gola de pele. Jenny enfeitara o chapeuzinho com uma pena patusca.

 

O seu cabelo castanho, que usava solto, só apanhado na nuca, brilhava ao sol como castanhas maduras.

 

William Rockwell gemeu baixinho. Beijara-a e pousara-lhe a mão no peito pequeno e firme, mas nessa altura Jim berrara da margem: «Papá, apanhei um!», e ele correra a ir ter com o filho para o ajudar a puxar a cana.

 

A sua mulher e o seu filho. Havia já uns bons dois anos que não os via. O narizinho de Jenny. Tudo nela era gracioso, e até a voz era límpida como a de uma criança. Mas Mrs. Rockwell sabia perfeitamente o que queria. Havia muita energia e vontade de viver naquele vulto pequenino. «Não te preocupes, querido William, cá nos arranjamos muito bem», escrevera ela na última carta. «Estou a ajudar na loja do Mr. Dobbs, enquanto a Lucille brinca com um carrinho de linhas ou com a boneca Millie. Está rechonchudinha, cheia de saúde, e manda um grande beijo ao paizinho. O Jim abraça-te de todo o coração. É claro que um garoto de onze anos já não dá beijos a ninguém - ou melhor, ainda não voltou a beijar ninguém. Tem cuidado. Rezamos por ti. Volta para a tua Jenny, que espera por ti!»

 

William suspirou. Sim, ela esperava. Tinha uma boa esposa e acreditava na sua fidelidade. Aí, havia camaradas que estavam bem pior. Claro que também havia muita imaginação quando se era obrigado a viver tão longe e de um modo tão desumano, mas muitos tinham razão para os seus receios. A guerra não trazia só desespero e morte, mas também feridas da alma, que não queriam sarar.

 

«Jenny», pensou William Rockwell, «Jenny, que faço eu aqui?! Por amor de Deus, que faço eu aqui?! Sou um soldado, mas esta é uma guerra entre europeus, nascida no Sudeste do seu continente. O que é que um soldado canadiano tem a ver com o assunto?!

 

Todavia, William também sabia que era insensato protestar. Sendo palco da devastação, a França era quem mais sofria. Também a Grã-Bretanha se opunha decididamente, até ao último homem, à grande loucura dos Alemães. Por isso, era natural que a província do Canadá descesse aos infernos em honra da pátria-mãe e de Sua Majestade o rei britânico Jorge V. A guerra também se travava na Bucovina, no Adige e no Isonzo, mas aqui a situação era crítica.

 

Ingleses e franceses combatiam com unhas e dentes, decididos a não ceder nem mais um palmo. Na Alemanha, os meios de subsistência já eram escassos. As pessoas tinham fome. Em qualquer altura, esperava -se que em breve, cairiam de joelhos. Depois, a ordem poderia regressar a toda a parte. Paz. Os afazeres quotidianos, os cuidados de todos os dias, as tardinhas em paz, a sensação incrivelmente maravilhosa de se poder percorrer uma estrada sem se servir de alvo.

 

William sonhava, e a saudade de Jenny provocou-lhe ondas de calor por todo o corpo. Os olhos claros velaram-se e o rosto cinzento corou um pouco. Eram as saudades e a lembrança da amada e das crianças que permitiam que se ultrapassasse o medo e o cansaço que arrancavam o soldado ao mais profundo desespero.

 

William chegou mesmo a sorrir ao imaginar o rosto de Jenny quando ele lhe dizia a brincar que sem dúvida estava mais gorda: assustada, incrédula e um tanto horrorizada, abria muito os olhos castanho-claros e fazia beicinho. Depois, percebia a piada, ssorria, abanava a cabeça com aquela patranha tão masculina e, às vezes, até lhe dava uma bofetada carinhosa. Sim, porque ela também se zangava...

 

Apesar dos sonhos, no entanto, o cabo William Rockwell permanecia alerta no seu posto. Escutava e espreitava como um animal selvagem faz. Como, de resto, tem de fazer, para garantir a sobrevivência. De repente, estremeceu. O que era aquilo? Ouvira qualquer coisa a tilintar! Não era muito alto, mas tinha um som inequivocamente invulgar. Na verdade, parecia alguém arrastando uma lata de conserva por cima das pedras. Claro que isso era completamente improvável e, portanto, não podia ser. «Estás a delirar, meu rapaz», disse William com os seus botões. «Endoideceste. Não fiques maluco de vez!»

 

Outra vez! Um matraquear e um rumorejar, de mistura com um resmungar irregular. Arrancou a lona da MG e engatilhou-a. Não se via nada. A chuva envolvia tudo e engolia a luz. Cansado, voltou a passear o olhar pelos terrenos em volta. Havia já alguns dias que ali naquelas crateras jaziam três alemães mortos. Ninguém ia lá buscá-los. O solo estava minado e encontrava-se ao alcance dos tiros. Mais para a direita, uma vala abandonada, à frente da qual teimava em crescer um bosquezinho de salgueiros, que durante o tiroteio devia ter sido protegido por um anjo da guarda bem poderoso. Praticamente só ele se erguia no cinzento, castanho e amarelo-pálido. Mas o barulho vinha de lá. Outra vez o mesmo matraquear! William Rockwell não queria cair no ridículo. O alarme precipitado era capaz de lhe valer o desprezo e o escárnio, até talvez alguma repreensão mais séria.

 

Como não era possível que uma lata de conserva andasse a passear no bosque de salgueiros, então... Atenção! Um cantil alemão também não produzia um som de lata quando batia nalguma coisa dura. Os boches teriam posto em movimento algum destacamento de tropas apesar daquele tempo dos diabos? Eram rapazes para isso!

 

Mantendo o sangue-frio, William apontou calmamente a metralhadora na direcção do barulho e apertou cuidadosamente o apito entre os lábios. Já se veria.

 

Ah! Parecia que alguma coisa metálica se movia e batia no chão, arrastando-se ao abrigo da chuva e do bosque de salgueiros. Oh, meu Deus! Estavam a transportar um lança-minas para as suas posições! Um lança-minas leve, mesmo assim capaz de acertar nos flancos das sapas 9 e 11, e possivelmente até da 14. E capaz de despedaçar o posto de comando da companhia em tiroteio directo. William apertou o gatilho da MG e fez fogo disperso, descarregando uma fita de munições por entre as folhas gotejantes do bosquezinho. Silêncio. Depois, surgiu do bosque uma coisa castanha, camuflada, que parecia rolar e que desapareceu numa trincheira vazia ainda antes de William conseguir perceber o que era. Sim, e tilintou outra vez!

 

Era o momento de tomar uma decisão. William Rockwell soprou energicamente no apito de alarme. A vala encheu-se de soldados. Toda a secção destapou as MGs e também o lança-granadas. Os telefones do

159.° Regimento de Infantaria tocaram em todo o sector. «Tudo calmo!», era o que diziam. Portanto, o alarme era só para a 3.a Companhia. Vigilância reforçada em toda a área!

 

O tenente Powell, comandante da 3.a Companhia, quis ouvir imediatamente o relatório de William. Era daquele tipo de homens baixos que compensa os centímetros que lhes faltam com uma elasticidade surpreendente. Parecia sempre pronto a agir, e todos os que o dominavam em altura sabiam da sua enorme tenacidade.

 

Disse castanho, informe e pesadão? perguntou com a sua voz clara.

 

Sim, meu tenente. Às vezes também tilintava.

 

Castanho, informe, a tilintar... ah... Vamos pensar. Tinha rodas ou lagartas?

 

Não deu tempo para ver, meu tenente. Desapareceu naquela trincheira.

 

Seria um tanque alemão camuflado?

 

Era muito pequeno para isso.

 

Powell franziu a testa e esfregou o nariz, gesto que fazia sempre que se concentrava.

 

Uma mina com controlo remoto? William Rockwell reflectiu:

 

É muito possível, meu tenente.

 

Se fosse assim, então a arma secreta camuflada devia ter-se extraviado. O mais provável era que o controlo remoto se tivesse avariado.

 

No entanto... uma incógnita era sempre uma ameaça. Assim pensavam todos e assim pensava o seu comandante, que, esticando-se pelo menos dois centímetros, disse:

 

Preciso de quatro voluntários. O primeiro sou eu. Vamos lá ver o que é e esmagar aquela coisa antes que ela nos esmague a nós!

 

Poucos minutos mais tarde, ficou demonstrado como se aproximara da verdade com a expressão «esmagar». A patrulha partiu, rastejou cautelosamente pelo terreno húmido, preparou as granadas de mão a um sinal de Powell e correu inclinada os últimos metros até à trincheira. Do abrigo alemão saíram alguns tiros zelosos mas pouco convencidos. A patrulha foi mais rápida. Então, viram o lindo presente que tinham!

 

A trincheira estava empapada até meio. Era, na verdade, um domicílio pouco convidativo. Na borda do atoleiro, em cima de uma roda partida, agachava-se a arma secreta dos boches. Os quatro voluntários esfregaram os olhos. Não podia ser!

 

Powell lançou a Rockwell um olhar de interrogação.

 

Estarei a delirar? perguntou. Rockwell dominou-se, antes de exclamar:

 

Um urso, meu tenente!

 

O cabo Micklewhite foi o primeiro a perceber o lado cómico da situação. Riu-se à socapa, ofegou, tentou fazer cara séria e desatou a rir a bandeiras despregadas.

 

O urso fitou as quatro figuras fardadas com um ar bastante maldisposto. Encontrara uma tigela que continha qualquer coisa doce e pegajosa e até mesmo uns pedacitos de algum petisco. E era excelente, porque havia muito mais espalhadas por ali.

 

Micklewhite sufocava, chorava, rebentava de tanto rir e os outros foram-se-lhe juntando um a um, primeiro Powell, depois Smith e por fim também William Rockwell, que ao princípio ficara um tanto embaraçado por ter dado o alarme.

 

O riso dos quatro ressoou pela terra atormentada como uma mensagem feliz. Os camaradas do 159.° Regimento de Infantaria ouviram-na. E também chegou às posições alemãs, fazendo surgir imediatamente alguns capacetes de aço, que voltaram a desaparecer. O urso ainda era quase bebé. Em todo o caso, parecia bastante mais pequeno do que o monstro que saíra ao encontro de William no Canadá, no meio de um bosque de murtas. Na altura, o urso examinara William e depois virara-lhe as costas sem mais aquelas E partira a trote! Desde então, William não acreditava tanto nas histórias de ursos sanguinários.

 

Era um verdadeiro ursinho de peluche. Sentado de um modo muito engraçado, piscava os olhos parecidos com grãos de café, tinha as orelhas pequenas e felpudas, o focinho afiado e bastante pegajoso e a barriga redonda, e estava perfeitamente imundo. A humidade transformara as bolinhas de lama seca que se lhe pegavam ao pêlo castanho numa pasta pegajosa cinzento-amarelada. Os homens puseram-se de cócoras e fitaram-no, olhos nos olhos. Ainda tinha a lata de conserva entre as patas grossas. Era uma lata de doce de pêssego da Fábrica Goudben & Co, de Los Angeles, proveniente do aprovisionamento das tropas canadianas, que muitas vezes as atiravam para o chão quando estavam vazias. De vez em quando, os atiradores também demonstravam nelas a sua pontaria.

 

Entre duas gargalhadas, o tenente Powell disse a rir:

 

Existem mais coisas entre o céu e a terra do que alguma vez sonhámos.

 

E Rockwell arquejou.

 

Em todo o caso, não é de certeza um ursinho de banho. Mais parece um porquinho no chiqueiro.

 

O bichinho não pareceu nada atrapalhado. Antes pelo contrário, estava na expectativa. Conhecia bem os homens. Sim, na verdade até sentira falta da sua companhia desde que aquela coisa lhe atingira a jaula onde estava a ser transportado. Fogo, estrondos, a mãe, que nunca mais se mexera. O outro ursinho que de repente ficara feito em pedaços.

 

Desaparecera tudo: o homem que lhes levava a comida, as pessoas que os olhavam embasbacadas, como estas aqui, e as grades. Absolutamente tudo. Então, desatara a correr, gemendo e resmungando. Mais tarde quando a fome começara a apertar, o instinto adormecido voltara a despertar nele. Procurar comida! Comer o que quer que crescesse e se mexesse. Petiscar e lamber coisas que sabiam tão bem como aquelas.

 

Rockwell estendeu o braço e coçou-o no local onde a cabeça se unia aos ombros redondos. O urso sentiu um certo desconforto, mas deixou-se tocar. As festinhas tinham-lhe feito muita falta. Na verdade, ainda devia estar sob a protecção da mãe. Se vivesse em liberdade, uma outra ursa teria com certeza adoptado o ursinho desprotegido, que a seguiria durante dois anos até saber andar definitivamente pelo seu próprio pé. Mas mal tinha sido desmamado quando a desgraça acontecera.

 

Olha, pequenino disse William num tom de voz suave, que os camaradas nunca lhe tinham ouvido, temos de te prender, percebes? Que me dizes de uma lata cheia de compota de abrunhos, ha?

 

O urso olhou-o na expectativa.

 

Quer levá-lo consigo? perguntou Powell.

 

Quero. Meu tenente, o cabo Rockwell informa humildemente que prendeu um urso castanho, muito novinho. Aguarda novas ordens!

 

Agora já não riam. Primeiro, tinha de se tomar uma decisão em relação ao animal. Segundo, era preciso voltar. E uma vez que já não existia tensão nem curiosidade, a distância a percorrer parecia subitamente muito maior e mais perigosa.

 

Powell virou-se para os outros dois homens.

 

A vossa opinião, Micklewhite, Smith? Depois de se entreolharem, ambos assentiram com a cabeça.

 

Não podemos deixá-lo aqui com meia dúzia de latas velhas, sir afirmou Micklewhite.

 

É um sítio dos diabos até para ursos pequenos acrescentou Smith.

 

Apesar de estar de cócoras, Powell esticou-se pelo menos dois centímetros.

 

Okay. Rockwell, já que descobriu esta mina ambulante, faça-me o favor de se desenvencilhar com a sua presa. Adeus. Vamos, rapazes!

 

Rockwell puxou o pêlo guedelhudo do ursinho, que ao princípio se mostrou impertinente e teimoso, não querendo abandonar a trincheira. Mas, depois, o sentido natural de obediência que ainda lhe corria no sangue fê-lo ceder. E o urso realizou então o primeiro milagre em St. Jules. Os alemães não dispararam quando a estranha tropa de choque rastejou de regresso, com Rockwell arrastando a presa atrás de si, embora nem sequer tivesse um cordel. Fosse por causa da chuva ou do riso, que talvez tivesse despertado alguma emoção neles, fosse porque tivessem visto o urso pelos binóculos e se houvessem comovido tanto como aqueles quatro homens que a vida endurecera, o certo é que não dispararam. Quatro homens e um urso chegaram sãos e salvos à sua trincheira, ao seu abrigo subterrâneo.

 

A algazarra foi inaudita. Nunca nenhum oficial superior tivera semelhante recepção. Iniciou-se imediatamente uma acção de distribuição que reuniu tantas latas de fruta, que Rockwell determinou que só se fossem dando ao urso a pouco e pouco, não fosse ele apanhar uma indigestão.

 

Como há-de chamar-se? perguntavam os homens, que estavam completamente fora de si e que achavam o aparecimento do urso não só um acontecimento invulgar como ainda por cima um bom presságio.

 

O bichinho parecia não achar nada desagradável todo aquele burburinho à sua volta. Acocorado, com um ar muito fotogénico, exibia precisamente a expressão engraçada e infantil que desperta o instinto de protecção em qualquer um.

 

Rockwell? perguntou Powell.

 

Proponho que só o baptizemos quando o conhecermos melhor sugeriu o seu descobridor. Até lá, podíamos chamar-lhe provisoriamente «Urso de St. Jules».

 

Powell assentiu.

 

Ninguém pode ter nada em contrário decidiu, nem o próprio Urso de St. Jules.

 

Como acontece sempre na frente, onde os combatentes devem ser absolutamente responsáveis, o rigoroso regulamento militar foi um pouco afrouxado. Com a morte rondando, superiores e subordinados andavam mais à vontade uns com os outros. Mas claro que os procedimentos tinham de ser mantidos. A disciplina era essencial. Os actos isolados e temerários podiam ser severamente punidos.

 

Assim, a 3.a Companhia do 159.° Regimento de Infantaria de Ontario não podia adoptar um ursinho sem mais nem menos. Além disso, quer se quisesse quer não, o resultado um tanto desagradável do alarme de Rockwell e da acção da patrulha tinha de ser comunicado.

 

Portanto, o tenente Powell esticou-se três centímetros, encheu o peito de ar, franziu a testa e ligou para o quartel-general do regimento.

 

Clark, o oficial-às-ordens do comandante, tentou imitar uma secretária competente, prometendo que transmitiria o recado ao coronel Perkins, que de momento estava ocupado. Mas Powell insistiu em falar pessoalmente com o coronel. Era urgente e importante, esclareceu em voz alta e cortante.

 

O coronel Perkins, a quem todos chamavam «Luckie» nas costas, se bem que o seu nome fosse Jack, chegou ao telefone.

 

O relatório foi apresentado de uma forma estritamente militar.

 

Fala o tenente Powell, sir A nova arma alemã, que ao princípio se pensava ser uma mina móvel, revelou-se à nossa patrulha na qualidade de um urso castanho, macho, de seis a oito meses de idade, aproximadamente.

 

O animal é prisioneiro da Terceira Companhia. O tenente Powell pede encarecidamente que o animal, chamado Urso de St. Jules, possa ser feito mascote da Terceira Companhia. A alimentação do urso será assegurada pelos efectivos do exército. O alarme dado foi anulado. A frente está calma. Nada de novo no sector!

 

Os antepassados irlandeses do coronel Perkins, todos pessoas excêntricas e esquisitas, deram uma grande gargalhada no céu. Alguns também no inferno. O diafragma de Perkins começou a formigar de um modo agradável. No entanto, esforçou-se por falar em voz séria:

 

O Urso de St. Jules fica detido pela Terceira Companhia por esta noite. Responsabilizo-o pela segurança do prisioneiro ordenou. Amanhã se decidirá o destino do dito prisioneiro.

 

Às ordens, meu coronel!

 

Veio ainda a conclusão, agora com o tom de intimidade das messes de oficiais:

 

O que é que ele come, Powell? A resposta não se fez esperar:

 

Pêssegos... Em todo o caso, os da Goudben e Co., sir.

 

Há muito que a 3.a Companhia andava irritada por haver outros regimentos com bodes por mascote, que até eram promovidos e andavam com uma espécie de fardas com galões. Um regimento tivera um porco cor-de-rosa e preto e um outro uma águia com um tratador só para ela. Mas claro, agora estava-se em guerra e os regulamentos eram mais apertados. No entanto, a ideia de serem acompanhados por um urso de carne e osso era perfeitamente cativante. Além disso, já era um milagre a criaturinha ter atravessado as linhas, escapando ao fogo e à destruição e encontrando comida onde, na verdade, já não havia nada. Não se deitava fora uma maravilha daquelas! Estavam impressionados: aquela criatura ingénua no meio das desumanas máquinas de guerra tinha qualquer coisa de muito cativante. Tal como um preso podia enternecer-se com um minúsculo ratinho que entrasse na sua cela, também aqui existia uma grande ternura pelo engraçado ursinho.

 

Mas havia um problema. Se fosse reconhecido como mascote, o urso seria oficialmente transferido para o quartel-general do regimento, não podendo ficar no abrigo da 3.a Companhia.

 

O Luckie disse que amanhã se decidirá o seu destino. A notícia correu de boca em boca.

 

Em primeiro lugar, o bichinho foi alimentado com carne enlatada e batatas e também recebeu uma pequena sobremesa de pêssego, mais uma dose suplementar.

 

O urso parecia um tanto desconcertado com tanta gente, mas nem por isso descontente. De certeza que sofrera com a solidão. Sabia-se lá o que se passava na cabeça de um animal bebé! Em todo o caso, devia ter tido medo com o bombardeamento, pois os animais possuíam o instinto do perigo. O medo das explosões, mesmo no caso dos cavalos e dos cães, que cresciam com as pessoas, só exteriormente podia domesticar-se. No fundo, nunca desaparecia.

 

Assim, rodeando o urso no abrigo subterrâneo, os homens adultos iam reflectindo. Um monstrinho de tão tenra idade, por exemplo, seria manso ou perigoso? Deixava-se correr à vontade como um cachorro ou seria melhor andar preso?

 

Arthur Shenessy, o lunático de serviço, que na vida privada escrevia livros ocultistas, defendeu energicamente que o urso devia andar amarrado, porque, enfim, um urso era um predador, e um urso pequeno não deixava por isso de ser um pequeno predador, e aquele parecia ter muita força...

 

Suspirando, Rockwell foi ao saco que trazia a tiracolo e fabricou logo ali uma espécie de trela. O Urso de St. Jules mostrou-se bastante indignado com a ideia, abanando-se e resmungando quando Rockwell tentou pôr-lhe a coleira provisória. Mas, de repente, tudo deixou de fazer sentido.

 

Já na parte da tarde tinham observado um avião inimigo a sobrevoar a sua posição. Um biplano de um motor. Um avião de reconhecimento veloz como um mosquito. De certeza que o piloto tirara fotografias nítidas do abrigo. Havia chumbo no ar.

 

Efectivamente, por volta das onze e meia da noite, aconteceu o que era ao mesmo tempo assustador e familiar: uma acção preventiva da artilharia, uma labareda, sinais luminosos, silvos, estrondos, rebentamentos e explosões. Do abrigo disparavam-se tiros, e uma trovoada brutal descia sobre as posições e os caminhos de aproximação dos alemães. As linhas de reabastecimento tinham de ser cortadas. Era extremamente importante. Os alemães já tinham pouco que comer. Cada cavalo que morria era esquartejado mesmo havendo perigo de vida e arrastado para trás das linhas, onde servia de repasto. Nem sequer os cães estavam a salvo da sua fome.

 

Os soldados encontravam-se sentados muito quietos nos abrigos. Pareciam petrificados. Um frio glacial que neutralizava sentimentos, saudades e até o medo, espalhava-se neles e percorria-lhes a espinha dorsal, fazendo-os erguer os olhos, que não viam nada. Estavam sentados ao ar asfixiante, impuro e cheio de fumo, debaixo da lona cuidadosamente fechada, que não deixava passar para fora nem um raio de luz do candeeiro metálico de estearina, que bruxuleava e fazia fumo em cima de um caixote. Estavam acocorados em tábuas debaixo da terra, com as armas ao alcance da mão, entre o barro húmido, traves e arames. Fumavam muito. Alguns rezavam baixinho.

 

Era a artilharia aliada que disparava, mas os abrigos inimigos só ficavam a cerca de duzentos metros de distância. E ninguém era infalível. Às vezes, calculava-se mal, e de repente eram as próprias tropas que ficavam na linha de fogo.

 

Quando a primeira vaga passou, alguns homens saíram do abrigo e foram juntar-se aos que estavam na trincheira, onde a sensação de estar preso numa ratoeira não era tão grande. Trincheiras e abrigos subterrâneos eram igualmente seguros contra os estilhaços das granadas, mas também não ofereciam qualquer protecção contra os disparos certeiros.

 

Os boches iniciavam agora o seu fogo de barragem! Os disparos soavam na outra direcção. As posições exactas dos canhões inimigos eram calculadas à luz relampejante de cada clarão. O ar sibilava e o ritual da formação militar, que em tais momentos é uma segurança, dominava tudo e todos.

 

Rockwell ficara no abrigo. O seu turno de sentinela chegara ao fim. Observando o ursinho, notou que este estava profundamente assustado. Os estrondos e a sensação de estar metido numa jaula despertaram várias recordações no bichinho. O medo de ter de enfrentar o mundo completamente sozinho fê-lo procurar uma saída ou um amparo. Recuando constantemente, abanava a cabeça de um lado para o outro. William Rockwell pensou reconhecer nos olhos do animal a expressão quase humana da miséria.

 

De repente, o ursinho encontrou calor e segurança. William Rockwell deslizou até ele e passou-lhe os braços à volta do corpo. O animal órfão aconchegou-se. No meio das explosões e dos estrondos, espalhou-se no urso a agradável sensação de que estava ali alguém a quem pertencia. Voltara a ter um lar. Um protector. Uma figura materna.

 

Quando o fragor se acalmou e os camaradas regressaram, William Rockwell ainda estava abraçado ao urso. Cumpria com zelo a sua missão de amigo e protector daquele companheiro guedelhudo e imundo.

 

Esta agora! exclamou um deles. Olhem-me só para o Rockwell. O rapaz tem um ursinho ao colo!

 

Eu cá preferia uma mocinha! gracejou um outro.

 

Calem-se lá! disse William rindo, enquanto o ursinho fazia uma expressão infantil de resmunguice. Vou pôr-lhe agora a coleira e dorme aqui esta noite. Chega. Amanhã veremos!

 

Está bem, rapaz anuíram os outros a rir. Não queremos fazer nada ao teu urso. Mas tem cuidado, não vá ele fugir para os boches! De certeza que faziam dele urso assado!

 

O urso fez um ruído entre a tosse e o assobio. William replicou orgulhosamente:

 

Façam-me o favor de ter muito cuidado. Ele percebe tudo! Depois, pôs a coleira ao urso, e desta vez o animal deixou-se prender sem resistência. Aquele era o seu amigo. Queria-lhe bem. Devia obedecer ao seu grande amigo como em tempos obedecera à mãe.

 

O urso dormiu bem. Ainda rezingou algumas vezes, provavelmente sonhando com os seus antepassados ou com alguma aventura, pois já vivera muito para a sua idade.

 

Na manhã seguinte, os camaradas do quartel-general avisaram os homens da 3.a Companhia de que o oficial-às-ordens do coronel Perkins saíra para uma «inspecção». Alvo: a 3.a Companhia.

 

Por isso, William Rockwell começou imediatamente a tentar pôr o urso o mais apresentável possível.

 

Já não chovia. Aliás, parara de chover ainda à noite. Agora, espessos tufos de nuvens percorriam ocasionalmente o céu impecavelmente límpido. O sol queimava através do ar lavado pela chuva. Como sempre, cheirava mal. Era um fedor a queimado, excrementos e também amoníaco, como acontece nas proximidades de alguma fábrica de gás. O solo estava impregnado com os gases dos disparos, restos de comida em decomposição, vapores exalados pelos mortos, que tinham sido enterrados à pressa, e a respiração bafienta da vegetação moribunda. O sol puxava o fedor da terra molhada, envolvia-o em humidade e lançava os vapores quentes, entorpecentes e repugnantes para o nariz de quem quer que ali estivesse.

 

Arthur Shenessy, o lunático, observava o urso com um ar zangado através dos óculos de níquel.

 

Que cheirete! afirmou.

 

Tu também cheiras mal! replicou William, irritado.

 

Os outros também caíram imediatamente em cima de Shenessy, aconselhando-o a preocupar-se mais com os seus fantasmas e espíritos do que com um urso tão simpático. Quem não gostava de animais não podia ser boa pessoa.

 

Quando eu era pequeno, chegou à nossa aldeia um domador com um grande urso castanho amestrado disse Arthur Shenessy. Um animal engraçadíssimo. Uma rapariga tocava tambor e ele dançava, punha-se em pé nas patas de trás e dançava. Estávamos fascinados. Houve um rapaz que deve ter-lhe atirado uma flecha por trás, mas só depois é que percebemos.

 

Fosse como fosse, o urso ficou furioso e avançou para os espectadores, e o homem não conseguiu detê-lo, apesar de nunca ter largado a corrente. Vocês não fazem ideia da força de um urso. Olhando para a distância onde se encontrava a sua infância, suspirou: Deu uma patada. Só uma. E atingiu o meu primo. O Robert ficou em sangue desde o pescoço e os ombros até à anca. Ficou cheio de cicatrizes para sempre e em permanente estado de choque.

 

Mas este urso é pequenino insistiu William. Shenessy fizera-lhe pena com aquela recordação horrível, mas era muito mariquinhas e injusto pôr as culpas no ursinho. Toda a gente tinha más recordações. E cada dia mais, raios!

 

Exijo que o urso saia daqui teimou Shenessy obstinadamente.

 

Etienne Guide, leiteiro e lutador amador em Montreal, mostrou ameaçadoramente a Shenessy os seus bíceps, e disse afavelmente que todos decidiriam democraticamente se o urso ia ficar ou não. Mas esqueceram-se de contar com o oficial-às-ordens John Clark.

 

Chegando com dois militares, comportou-se como se quisesse passar tudo em revista. Serpenteou briosamente pelos passadiços curvados de forma engenhosa entre o arame farpado, andou corajosamente direito ao lado das trincheiras, com o tronco servindo de alvo, examinou os vigamentos e inteirou-se do funcionamento do abastecimento e aprovisionamento. Fez ouvidos de mercador a comentários astutos como:

 

A gente do quartel-general só aparece quando O pior já passou. Por fim, mostrou as suas verdadeiras intenções, e exigiu ver o urso.

 

William Rockwell tirara o melhor possível os pedaços de barro do pêlo do urso. Achando que o seu bicho estava muito elegante, levantou-se ansiosamente.

 

O tenente Clark, porém, assumiu uma atitude convencional.

 

O tenente Powell, igualmente orgulhoso da sua mascote, adiantou-se garbosamente:

 

Caro camarada, apresento-lhe o Urso de St. Jules.

 

Clark observou o animal. O animal mirou-o com os seus olhos parecidos com botões. Não gostaram um do outro.

 

É então um urso bebé? perguntou Clark. Mas, caro camarada, faço-lhe notar que é um animal bastante grande, em todo o caso maior do que um cão pastor, por exemplo, ou do que um cão de fila.

 

Infelizmente, não temos aqui nenhum mais pequeno respondeu Powell com um ar zangado. Em qualquer caso, não suportava lá muito bem aquele macaco presumido que levava uma vida relativamente tranquila lá no quartel-general e ia para ali falar em voz troante. E quem insultasse o seu urso tinha primeiro de se haver com eles. O olhar que lançou aos seus homens mostrou-lhe que também era o que pensavam. Menos Shenessy, naturalmente, a cujo rosto barrento até subiu um pouco de cor.

 

No entanto, também Shenessy ia em breve perceber que não encontrara ali nenhum aliado, como ele, avesso a ursos. A um sinal de Clark, um dos seus acompanhantes avançou e exibiu briosamente duas latas de compota de abrunhos.

 

O urso semicerrou os olhos e fez de imediato uma expressão astuta e amistosa. Sem dúvida que reconhecera as latas.

 

Clark acendeu negligentemente um cigarro e descontraiu-se.

 

Hoje à noite, quando estiver escuro, o urso vai ser transportado para o quartel-general. O Luckie... ha... o nosso coronel quer vê-lo.

 

William Rockwell baixou a cabeça e pôs-se mais ou menos em sentido.

 

Powell esticou-se pelo menos três centímetros e declarou na sua voz mais límpida:

 

Sabemos que, como portador dessa ordem, só está a cumprir o seu dever. E claro que uma ordem é uma ordem. No entanto, vou acompanhar pessoalmente o urso e falar com o Luckie... ha... o nosso coronel sobre o seu futuro paradeiro.

 

Clark assentiu com uma expressão snobe.

 

Como queira, camarada. Mas se me é permitido um comentário pessoal, devo lembrar-lhe que um urso é apenas um urso e não um homem!

 

Nesse momento, o urso levantou-se impacientemente nas patas de trás. Na verdade, era bastante grande. E embora realmente só quisesse espreitar o conhecido conteúdo das latas e ajudar um pouco as pessoas a decidirem-se a dar-lhe um bocadinho, o facto é que de repente se ergueu à frente do tenente Clark quase como de homem para homem.

 

Clark apressou-se a abandonar o abrigo subterrâneo. William Rockwell afagou o pêlo guedelhudo do seu protegido e decidiu dar-lhe alguma coisa para comer. Claro que ainda era preciso ter-se algum cuidado. Evidentemente que um urso era um urso. Mas não assim! Não como aquele macaco queria dizer!

 

A chegada do correio era sempre um dos pontos altos do dia. Na retaguarda, era um verdadeiro acontecimento, com formação em quadrado e chamada solene dos nomes. Mas claro que isso não era possível nas linhas da frente, onde, porém, o secreto regozijo e a comoção com a chegada de uma carta ainda era maior O que tinham nas mãos era apenas um pedaço de papel. Mas a amada, a mãe, alguém que pensara neles, que se sentara para lhes escrever, vinha também um bocadinho na carta... Sê forte! Regressa bem! Não desanimes! Os votos de um outro mundo mais feliz davam ânimo aos soldados. E apesar de terem de viver quase como animais, ainda assim havia essas pontes para um futuro mais humano.

 

Homens rudes afagavam furtivamente o papel e traziam-no junto ao coração. E já muito mocetão insensível que achava que não precisava de ninguém vertera as suas lágrimas ao receber uma carta que não esperava. Um homem não chora. Mas com a morte tão perto e com a necessidade de tanta coragem, já não era preciso o excesso de fingimento indispensável na vida civil.

 

William Rockwell voltou a receber uma carta nessa manhã. Jenny escrevia frequentemente. Os camaradas invejavam-no por isso. Na carta vinha uma folha escrita por Jim. «Estou a crescer depressa, querido papá, e em breve terei idade para lutar pela justiça e liberdade dos povos. Mas claro que também desejo que a guerra acabe em breve, para que voltes para nós e digas a Mister Dobbs que não tem nada que se meter na minha vida. O teu filho, Jim.»

 

A última frase deu que pensar a William. Mr. Dobbs a meter-se na vida do Jim? Bom, Jenny ajudava na loja de Dobbs. E escrevia que o negócio prosperara muito. Mr. Dobbs acrescentara-lhe uma drogaria. E, de facto, a loja de Dobbs dava mesmo para a estrada que levava directamente ao lago. Sim, era a estrada por onde, em tempo de paz, os jovens soldados e os alunos do liceu costumavam andar a passear quando saíam do quartel ou tinham poucos trabalhos de casa para fazer. É claro que as raparigas também apareciam por lá puramente por acaso, de braço dado, tagarelando, de olhos baixos e olhares rápidos no momento certo.

 

«Ainda devem ir lá passear», pensou William. «Lá ainda há paz. Faltam alguns homens... que se calhar nem sequer fazem falta. Pensam que o mundo gira à sua volta porque sofrem e são obrigados a olhar a morte cara a cara, mas na verdade até podem nem ter deixado nenhum lugar vazio.»

 

Sentiu o coração apertado. Mr. Dobbs a «meter-se na vida» do filho? E Jenny não falava de mais sobre o seu trabalho e o maravilhoso Mr. Dobbs?

 

«A nossa Lucille já sabe uma canção infantil, aquela do Bob, e canta-a onde calha», escrevia ela. «Mister Dobbs ri-se imenso, porque ela ainda baralha muito a letra. Gostam muito um do outro. Ele está muito sozinho. Creio que sabes que a mãe dele morreu o ano passado. Penso muito em ti e tenho saudades tuas. É difícil estar sozinha. Sozinha com os miúdos, que também precisam do seu papá, sobretudo o Jim, que já é quase um homenzinho e não admite que lhe digam nada. Volta depressa. Um beijo. Tua, Jenny. Cortei o cabelo. Custava tanto a secar! Estava muito comprido. Da próxima vez mando-te uma fotografia. Vais gostar. Beijos. Tua, Jenny.»

 

Um calafrio percorreu William. Ela cortara o cabelo? Porquê? Uns cabelos castanhos lindíssimos, que brilhavam e caíam em cascata até às costas quando ela tirava os ganchos à noite. Depois, sentava-se em frente do toucador e escovava o cabelo. Muito escrupulosamente. Ficava aborrecida quando ele lhe beijava os ombros e lhe revolvia aquele esplendor leve e quente.

 

Dobbs. Raios! Uma criatura ruiva e enfadonha, tanto quanto William se lembrava. De bata branca, como um farmacêutico. Afectado e cheio de trejeitos. «Torço-lhe o pescoço se anda a atirar-se à minha Jenny», decidiu William rangendo os dentes. Mas por enquanto não podia fazer absolutamente nada. Só ter esperança.

 

Infelizmente, ali na frente, no estrangeiro, desconfiava-se por tudo e por nada e imaginava-se aquilo que não existia. Era sempre assim. Afinal de contas, se a sua Jenny tivesse de facto alguma coisa com aquele Dobbs, com certeza que manteria toda a história em segredo. Sim, claro que sim! E depois havia Jim. Um rapazinho esperto, a quem não devia escapar muita coisa.

 

William foi para junto do urso, que estava preso a um pilar de madeira e bastante maldisposto.

 

Então, meu velho? Não olhes para mim com um ar tão zangado disse ao seu protegido e novo amigo. Tens pouco que aguentar. E o amor também não te dá cuidados. Ainda não. Por isso, faz o favor de pôr uma cara mais simpática.

 

O urso agiu como se tivesse descoberto na barriga redonda qualquer coisa altamente interessante. Estava saciado e cansado e não queria que o perturbassem.

 

Achas que ela me engana, ursinho? perguntou William, coçando o pescoço do bichinho.

 

O urso olhou propositadamente na outra direcção. William riu-se, apesar de tudo.

 

Tens cá um feitiozinho! comentou. Vá, isso não é bonito. Hoje à tarde vamos levar-te ao coronel. Se não te portas bem, mandam-te embora. Percebes, ursinho?

 

O urso fitou-o e fechou os olhos até ficarem só duas pequenas fendas. Parecia que piscava o olho a William.

 

Está bem, ursinho. Vamos lá os dois.

 

O tenente Powell, o cabo Rockwell e o urso puseram-se a caminho logo que o crepúsculo violeta se transformou numa noite escura. A Lua brilhava no céu na fase crescente. Provavelmente, trouxera consigo a mudança do tempo. Tufos de nuvenzinhas. Estrelas cintilantes. A Via Láctea estava visível quando o estranho grupo partiu.

 

Atravessaram em ziguezague o arame farpado, os muros de arame farpado pelo meio dos quais serpenteavam pequenos caminhos, cujas bermas altas davam alguma cobertura. Galerias, abrigos, trincheiras e o enorme monte de terra que parecia ter sido escavado por uma toupeira gigante formavam um labirinto onde só os iniciados não se perdiam. Nas trincheiras, as armas estavam a postos e à entrada dos abrigos havia cestos de vime cheios de minas. William chamou os soldados. Estes ficaram assombrados. Das figuras que se aproximavam curvadas, uma delas corria nas quatro patas! Claro que a notícia do urso bebé já se espalhara como um rastilho. A história do prodígio até já chegara às linhas alemãs.

 

Ao princípio, o urso mostrara-se relutante Não estava disposto a sair. Mas agora que o seu novo dono o conduzia bem preso pela trela, trotava resignadamente ao seu lado.

 

Estava tudo calmo. A noite estava tranquila; quase tranquila de mais. Era a hora das patrulhas, das acções

e reconhecimento e também dos ataques surpresa a

algum canhão ou mesmo a algum depósito de víveres da frente.

 

Ao princípio, nos primeiros tempos da guerra das trincheiras, ambos os lados disparavam com muito espírito combativo. Mas tinham-se cansado e, no fundo, estavam resignados. O que tinha de ser feito era feito, mas sem entusiasmo. Para quê? Se continuasse assim, ou morriam ou envelheciam e ficavam grisalhos por ali, e isso aplicava-se tanto aos ingleses, franceses e americanos como aos alemães.

 

Rockwell notou que logo que passaram o troço mais perigoso, do outro lado subiram de repente alguns foguetes luminosos, que pairaram no céu estrelado, brancos e pálidos. E depois ouviram o barulho de um triplano. Era ele! O rapaz atrevido que atacava sempre as suas posições com disparos de MG. Um maluco que até ao momento conseguira escapar. Atiraram-se para o chão. Rockwell largou o urso, que desatou a correr.

 

O caçador voador passou em voo rasante pelas trincheiras e abrigos camuflados. A sua MG de bordo cantava. A terra salpicava e cobria os dois homens, que se apertavam contra o chão de rosto para baixo. O solo ainda estava húmido. Tinham medo e esperança. Quando tudo passou, Powell gritou:

 

O urso!

 

Desataram os dois a correr e Rockwell chamou:

 

Ursinho! Então, viram-no.

 

Estava inclinado sobre alguma coisa que prendia ao chão com uma pata e que guinchava. Um coelho! Um animal claramente enfraquecido ou ferido. Rockwell tentou libertá-lo, mas o urso defendeu-se energicamente.

 

Ora, Rockewll e Powell também já tinham comido coelho. Aliás, era uma delícia em vinho branco ou com molho de natas. Mas cru? Os dois soldados experientes engoliram em seco, percebendo, ao mesmo tempo, que aquele ursinho engraçado era um animal. Um predador, e não um brinquedo ou uma criança. Claro que não!

 

William Rockwell pegou na trela.

 

Ursinho, és um porco disse, resumindo a sua opinião.

 

Não é nenhum ursinho de peluche de um quarto de crianças comentou Powell. Nesse aspecto, o Shenessy tem razão. E nós também não devemos esquecê-lo nunca.

 

O coração ainda lhes batia desenfreado no peito. Ninguém podia ficar verdadeiramente calmo em situações de perigo como a que tinham passado. Mas agora o sangue voltava a correr-lhes livre e energicamente pelas veias. Estavam vivos. No meio de tanta desgraça, foram invadidos por uma sensação de felicidade. O avião mudara de rumo. Apareceram no quartel-general do regimento a sorrir, levando pela trela o ursinho, que já estava um tanto maldisposto. Aquele mandrião saciara-o completamente. Mas levara bastante tempo a deixar-se comer.

 

O coronel Jack Perkins recebeu imediatamente o pequeno grupo. O seu oficial-às-ordens, Clark, já o informara pormenorizadamente, e agora estava curioso.

 

Estejam à vontade, meus senhores disse, jovial, estabelecendo assim o tom da conversa. John Clark manteve-se cerimoniosamente um pouco atrás. Não queria ter nada a ver com o urso, mas a um sinal do seu superior deu um passo na direcção do animal e estendeu-lhe algumas tâmaras.

 

O urso olhou atentamente para aqueles bichinhos cómicos que cheiravam tão bem, provou-os, baloiçou a cabeça e soltou um pequeno suspiro. Tal como o gastrónomo inato descobre um dia o caviar ou as trufas, também ele acabava de fazer a grande descoberta culinária da sua curta vida. Tâmaras! Hmmmm! Que delícia! Olhou directamente para o coronel, cheio de simpatia. Coelho, e agora aquela delícia para sobremesa! Nada mau!

 

Clark, você enganou-me! Este animalzinho nem por sombras é maior do que um cão de fila gigante afirmou Perkins. Clark fez um ar um tanto embaraçado. De facto, o urso parecia mais pequeno Muito mais pequeno. Para ser franco, até mesmo mais pequeno do que um cão pastor.

 

Parecia maior à luz do dia asseverou. Powell deu uma gargalhada. Provavelmente Clark gostaria muito de o mandar para o diabo, tanto mais que o urso puxava agora a trela claramente na sua direccção. Devia haver mais tâmaras no sítio de onde tinham vindo as primeiras.

 

Fascinante declarou Luckie Perkins. Macho?

 

Indiscutivelmente, meu coronel afirmou Powell.

 

A mascote ideal para o Centésimo Quinquagésimo Nono Regimento de Infantaria acrescentou Perkins. Sabe uma coisa, cabo Rockwell? Vamos ficar com ele aqui. Como vê, o animal e o nosso bom camarada Clark simpatizaram muito um com o outro. Veja só como o bichinho tenta chegar junto dele! Com este comentário, Perkins estava ao mesmo tempo a vingar-se de todas as rebeldias e insubordinações dissimuladas a que, como todos os superiores, tinha de se sujeitar.

 

Nós também podemos tomar conta dele na Terceira Companhia alvitrou William, sentindo um grande pesar com a perspectiva de ficar sem o seu ursinho.

 

De onde terá vindo? cismou Perkins. Clark endireitou-se.

 

Num telefonema que fiz para o depósito de abastecimentos do exército, vim a saber por acaso que as tropas inglesas de Arras descobriram um jardim zoológico privado e vazio no parque de uma casa. O proprietário já o tinha desde mil novecentos e doze e abandonou-o há algum tempo.

 

Veja lá! exclamou Perkins. Temos de esclarecer a situação e a... ha... propriedade do urso que por enquanto fica aqui ao cuidado do Clark. É claro que vou arranjar alguém para o ajudar decidiu maliciosamente.

 

Sim, sir gritou Clark.

 

Lamento muito. Mas talvez ele venha a ser-lhe devolvido disse, virando-se novamente para o «descobridor» do urso. O mais tardar quando for retirado da linha da frente. E garanto-lhe que isso será muito em breve.

 

Powell e Rockwell puseram-se em sentido e este ultimo estendeu a extremidade da trela a Clark Enquanto ele pegava nela com o braço hirto, William agachou-se junto do seu querido urso castanho, sujo e desgrenhado, e abraçou-o.

 

Partiram. Lá fora, Powell puxou de um cigarro.

 

Abanando a cabeça, Rockwell murmurou:

 

Não é boa peça.

 

O nosso urso?

 

Não, o Luckie. Isto é, o coronel.

 

Ora, ora, William. Entreolhando-se sorriram tristemente. Em todo o caso, em breve retiraremos para a retaguarda. Mas ainda falta algum tempo.

 

^ A frase do costume: boas e más notícias. Lá dentro, Luckie decidia:

 

Pode ir para aquela barraca onde temos as reservas de combustível. Vou mandar chamar alguém

 

Eu posso fazer isso retorquiu Clark obstinadamente, abrindo a porta e arrastando o seu teimoso companheiro atrás de si. As tâmaras tinham acabado, raios!

 

Realmente, talvez tivessem dado resultado, pois o ursinho foi invadido por uma onda de desespero, um instinto primário na direcção de um ser que lhe pertencia e que o protegia e amava. Ainda há pouco o encontrara e já desaparecera! Onde estaria?!

 

O urso puxou a trela, que cedeu, e pôs-se imediatamente em movimento, farejando, correndo e deixando-se guiar pela bússola que tinha dentro do peito.

 

Powell fumava encostado num aterro.

 

William Rockwell contemplou o céu e voltou a baixar o olhar.

 

Estou a ter visões ainda conseguiu dizer quando o urso o alcançou. Precipitaram-se um para o outro. O bichinho, de pele grossa, não fazia ideia de que o homem, apesar de tão engenhoso e grande, tinha uma pele fininha e sensível. Assim, a criaturinha desgrenhada arranhou William amigavelmente primeiro nos ombros e depois no rosto, mas enquanto a farda amorteceu o golpe, o mesmo não aconteceu na cara, que logo começou a sangrar.

 

Powell estendeu o lenço a Rockwell. Este foi primeiro ao saco que trazia a tiracolo e arranjou uma nova trela a toda a pressa.

 

Bicho esperto afirmou. A sua expressão radiosa parecia iluminada por dez foguetes de sinalização.

 

Um rapaz inteligente elogiou Powell.

 

Mas não podemos dizer a ninguém que ele está outra vez connosco acrescentou Rockwell manhosamente.

 

E assim aconteceu que os três que tinham partido muito tarde regressaram às apalpadelas ainda era muito cedo. A noite estava tranquila e clara. Sentiam-se quase felizes. E, entretanto, o oficial-às-ordens Clark apanhava uma ensaboadela.

 

De manhã cedo, Clark telefonou a saber do urso, recebendo a resposta lapidar de que não havia ali nenhum urso. Pois, ele não estava no quartel-general do regimento? Oh, que pena! Não, o tenente Powell também não sabia de nada. Oxalá...

 

Ouviu-se um clique. A ligação voltara a cair. Ou seria que os da 3.a Companhia teriam feito de propósito?

 

Clark deixou-se cair num banquinho de madeira, pensando que de certeza que estavam a intrujá-lo. O melhor seria talvez ir até lá ver com os seus próprios olhos. Estava convencido de que o urso se encontrava com eles. E embora não o quisesse de volta, também não lhe agradava que o tomassem por parvo. Comunicou a Perkins as suas reflexões.

 

Como é que chegou a essa conclusão? perguntou este, sorrindo ironicamente.

 

Durante a conversa, ouviam-se uns rugidos. Claramente!

 

Devia ser algum brincalhão. Sabe, estamos em guerra, caro Clark. Pense um bocadinho nisso. Há coisas mais importantes do que ursos fugidos e oficiais-às-ordens melindrados! Se o urso estiver outra vez com a Terceira Companhia, então agora fica lá. Não vamos cair no ridículo. Entendido?

 

Merda! exclamou Clark. Excepcionalmente, Perkins não o repreendeu. Mas

 

fazia tenções de contar a história toda mais tarde no seu clube. A mulher também havia de se rir. Uma história magnífica! E ainda não chegara ao fim.

 

Fosse como fosse, claro que a 3.a Companhia não podia manter durante muito tempo o gato... ou melhor, o urso escondido com o rabo de fora. Nessa altura, a misericórdia do coronel seria perfeita. O bicho voltara para lá?! Que espanto! Então, por deliberação do regimento, o cabo Rockwell seria nomeado tratador oficial do urso. E o soldado Webbs seria apontado seu «conselheiro». Como dizia no cadastro que era zoólogo, devia perceber alguma coisa de ursos.

 

De facto, o simpático e discreto homem de meia-idade afirmara que tratara muito de animais antes de se ter alistado. Ninguém lhe perguntara porquê. Era como na Legião Estrangeira. Perguntava-se o menos possível.

 

Webbs, no entanto mostrou-se um desmancha-prazeres, dizendo que o animal devia ir para um jardim zoológico. Não era nenhum brinquedo e em breve deixaria de ser também companheiro de brincadeiras.

 

Daqui a um ano, faz-vos em papa afirmou. Os homens riram descuidadamente.

 

Daqui a um ano! Daqui a um ano já não estamos aqui. Ou então vamos a caminho de casa! Daqui a um ano! Meu Deus! Quem pensa com tanta antecedência?

 

Os zoólogos pensam com tanta antecedência replicou Webbs.

 

Só uma pessoa concordou com ele: Arthur Shenessy, o lunático «sobrenatural».

 

Assim, arranjou-se no abrigo subterrâneo um «nicho» para o Urso de St. Jules poder dormir. Rockwell verificou que o animal gostava de ser penteado com a escova. Se calhar, era uma sensação agradável para ele. Webbs disse que lhe fazia lembrar a mãe. Os homens construíram-lhe uma espécie de jaula que ficou mais confortável do que as suas próprias instalações. Rockwell já sonhava em arranjar-lhe um terreno grande no lago Hurão, com um viveiro de peixes. Mas, por enquanto, o urso era propriedade comum: a mascote dos dois mil quinhentos e setenta e três homens do 159.° Regimento de Infantaria de Ontario.

 

O que era o tempo? Apenas a paciência de suportar um dia atrás do outro e a esperança naquilo que ninguém poderia ter mais claro na cabeça, e que se chamava paz. Decorreram ainda muitos meses até a 3.a Companhia retirar para a retaguarda. E os que partiram já não foram tantos como os que tinham chegado. Era mais do que tempo de lhes dar um pouco de descanso e de preencher as fileiras depauperadas.

 

Entretanto, a mascote oficial do 159.° Regimento já se transformara numa espécie de lenda. O urso crescera a olhos vistos e estava sem qualquer dúvida do tamanho ao princípio idealizado pelo oficial-às-ordens Clark. Tornara-se um verdadeiro «soldado da frente»: indiferente a pequenos estalidos, cuidadoso mas não medroso e extremamente malcriado. Mas também era muito carinhoso, sobretudo em relação ao seu amigo William Rockwell, que tinha todo o cuidado com ele.

 

Inverno de 1917/18! Tudo o que fora planeado ao longo dos anos tinha agora o seu ponto alto. Os alemães morriam à fome. Os franceses e ingleses tinham conseguido cortar-lhes as linhas de abastecimento. A permanente paralisação da frente abalava o moral das tropas, tanto de um lado como do outro. O abrandamento pesava no ar. A resignação espalhava-se. U ódio, que fora tão intenso, esbatera-se. A disciplina afrouxava sob o perigo omnipresente e comum. Os soldados estavam fartos.

 

A «linha Siegfried» tornara-se o símbolo da estagnação. Já não existia o entusiasmo ardente das ofensivas de outrora. Só guerra de guerrilha. Uma guerra de guerrilha mortal e dura.

 

William Rockwell andava extremamente deprimido. Havia um mês que a sua Jenny não lhe escrevia. Ou seria que a correspondência se perdera? Já não se atrevia a admiti-lo. Tinha na cabeça uma imagem pavorosa. Passava as noites sobressaltado, imaginando ver à sua frente Jenny, sentada num quarto iluminado. A luz do candeeiro caía-lhe no cabelo castanho e dourava-o tão magicamente como muitas vezes vira em tempos felizes. Trabalhava, fazia croché; sim, fazia muitas vezes. Lucille, na imaginação de William, ainda bebé, brincava-lhe aos pés. Jim estava absorto num livro de aventuras. E quem se achava ali sentado de pantufas e cachimbo na mão, lendo o jornal num tom de grande satisfação? Dobbs!

 

Chegado o mais tardar a este quadro, William curvava-se, sentindo um nó no estômago. O coração também lhe doía. Sim, assaltava-o a certeza de que um outro tomara o seu lugar. Jenny não conseguia fingir. As suas cartas transbordavam de entusiasmo pelo hipócrita que se aproveitava dela, ou pior. Jim também empregava expressões fulminantes como: «Mister Dobbs construiu-nos dois papagaios. O meu ainda não voa. Temos de lhe aumentar a cauda. Mas o da Lucille I chegou mesmo lá acima. Mandámos uma mensagem aos anjos: que regresses são e salvo, querido papá.»

 

William chorara. Porque não? Todos ali acabavam por chorar. Em privado ou abertamente, o que havia ainda a perder?

 

William requererá uma licença. Era o que todos faziam. Mas de momento ninguém podia regressar à pátria. Portanto, dali para a frente, não havia nada a fazer senão cerrar os dentes, fazer cara alegre e fingir. Pelo menos durante o dia.

 

O Urso de St. Jules atafulhara bem a barriga no Outono. Agora passava o tempo no seu canto a dormitar ou a dormir como uma pedra. Seguia as leis da sua natureza. Acompanhava o ritmo da época do ano.

 

Webbs explicou aos homens que o urso não estava doente, e sim só a hibernar.

 

Na Primavera vai voltar a estar fresco que nem uma alface e, como nessa altura terá um ano e três meses, talvez nos ensine o que é o medo ironizou Webbs. Por mim, já vos avisei. Mas tenho de reconhecer que entretanto já me habituei ao bicho. Dá um ambiente tão humano a esta bestialidade toda, não é? Os homens riram-se, concordando. Até Arthur Shenessy, que de modo algum se habituara ao urso. Seria exagerado dizer que o urso dormiu todo o Inverno. Não, ainda deu um passeiozinho pela trela, aproveitando para fazer as suas necessidades de urso! Mas andava muito sossegado. Cumpria todas as funções a meio gás... menos crescer.

 

E como cresceu! Quando a Primavera chegou em força e o Urso de St. Jules rosnou cheio de energia, baloiçando-se e arrastando a corrente que entretanto lhe tinham posto, os soldados não se cansavam de dizer aquilo que as tias e os tios costumam dizer aos sobrinhos que já não vêem há muito tempo: Mas como estás crescido!

 

Desde o princípio que o consideravam mais do que um simples animal de estimação e que tinham mais do que a comovente sensação de possuir uma mascote invulgar. Só com a sua presença, aquele urso dava-lhes a certeza supersticiosa de que tudo correria bem. Era um talismã, uma mascote no verdadeiro sentido da palavra. E quando um ou outro caía e tinha de ser enterrado em terra estranha, quando mandavam os seus haveres à mulher, aos filhos ou à mãe ou uma carta à amada, mesmo assim acreditavam que tudo iria correr bem.

 

O Urso de St. Jules fazia o possível e o impossível para se distrair. Desenvolvera uma força que empregava de boa vontade mas, muitas vezes, desajeitadamente. Derrubava facilmente qualquer um e, quando alguém queria dar-lhe algum petisco, tinha de o fazer a uma certa distância. É que o jovem urso às vezes mordia. E um dedo não representaria para ele qualquer problema. Onde haveria de aprender sem um verdadeiro quarto de ursinhos, sem a mãe, que lhe teria dado uma tareia, sem irmãos, que não o teriam deixado sair da casca? Com Rockwell era carinhoso. De Webbs, o experiente tratador de animais, precavia-se. Era uma instituição de todo o sector. Depois das operações mais acaloradas, as outras companhias telefonavam sempre para a terceira.

 

Está vivo?

 

Está, está vivo.

 

Segundo o temperamento de cada um, os camaradas gritavam:

 

Hurra! Ou então: Aleluia!

 

Até os prisioneiros alemães tinham confidenciado que também havia quem se interessasse pelo urso do outro lado.

 

O alfaiate do 2.a Batalhão do Canadá enviou uma espécie de «farda de passeio», mas logo na primeira «prova» os homens tiveram de desistir de vestir a sua mascote a preceito. O urso portou-se extremamente mal, arrancou uma correia e agiu como se tudo não passasse de um jogo muito divertido entre ele e Rockwell. Webbs tornou a dizer que o animal devia estar num jardim zoológico. Mas Shenessy abanou a cabeça e decidiu fazer alguma coisa. Era verdadeiramente inacreditável a maneira como homens adultos, que lutavam contra a morte e o diabo, se deixavam atormentar por um urso malcriado!

 

«Chega!», pensou Arthur Shenessy. «Chega de palavras. Vou passar à acção. Ainda hão-de agradecer-me. Um dia destes esta criatura castanha provoca uma carnificina. Além disso, está a comer-nos os últimos víveres, o que também tem de se levar seriamente em conta. Nós com fome e o urso a encher a pança! Onde é que já se viu as pessoas morrerem à fome por amor a um animal?»

 

De facto, as provisões eram escassas. Muito escassas. Os alemães tinham tentado inverter a situação, pelo menos para se vingarem. Afinal de contas, os franceses e os ingleses também tinham sangue nas veias. Sem abastecimentos, estavam perdidos. Assim, as mercadorias iam rareando cada vez mais. Era tempo de apertar o cinto. A ração de um dia tinha de dar para dois. Só havia comida quente nos dias em que os carregadores conseguiam romper a barreira da artilharia inimiga. As últimas reservas do regimento desapareciam. Um golpe de sorte dos alemães dera cabo de um depósito de abastecimento. A expressão do coronel Perkins carregara-se a olhos vistos. O depósito era crítico.

 

À sua maneira, o urso tentava animar o seu homem preferido. Fitava-o com um ar de interrogação, abanava as orelhas e levantava-se nas patas de trás. Esta habilidade, que fazia de muito bom grado, valia-lhe sempre alguma recompensa. Mas agora, Rockwell abanava frequentemente a cabeça.

 

De qualquer forma, lamber doces e compotas era coisa que já não fazia. De frutos secos tâmaras e figos, nem falar. O pão de trigo era uma mercadoria farta e o corned beef estava rigorosamente racionado.

 

Webbs achava que os ursos eram sobretudo herbívoros ou que, em qualquer caso, se adaptavam bem a Uma alimentação mista. Em cativeiro, quase não precisavam de carne.

 


Vai ficar muito atrevido. Qualquer dia começa a sonhar com uma ursa. Nessa altura, já não haverá nada a fazer avisou.

 

Mas ele não conhece nenhuma contrapôs William.

 

Tem-na no sangue afirmou Webbs.

 

E... Quer dizer, quando?

 

Com quatro anos vai deixar de sonhar e começar a agir.

 

Até lá ainda falta muito.

 

Foi o que disseste há nove meses atrás, William.

 

Os alemães passam fome.

 

Nós também. William Rockwell assentiu.

 

Infelizmente, tens razão. Mas o coronel Perkins requereu alimentos ao comando do exército.

 

És ingénuo ou fazes-te? Não podem dar-nos o que não têm.

 

Às vezes sonho com o cheirinho dos bolinhos saídos da frigideira, fritos em manteiga, com doce de ácer por cima, escorregando devagar da colher...

 

És quase um poeta, rapaz!

 

Um poeta esfomeado, homem!

 

Arthur Shenessy também tinha fome. E uma grande vontade de esganar o urso «comilão». Assim, à noitinha, quando Rockwell estava de sentinela e o urso dormia enroscado no seu canto, dispôs-se a sacrificar uma fatia de pão com corned beef.

 

Shenessy inspirou profundamente. Estava sozinho com o urso. O coração batia-lhe desenfreadamente ao chegar aquele petisco ao focinho do animal.

 

O urso ainda respirou profundamente duas vezes. Depois, o cheiro chegou-lhe ao cérebro. Abriu os olhos. Estava ali! Aproveitando o momento em que o urso virou a cabeça para o pão, Shenessy soltou a corrente e desapareceu, deixando a jaula escancarada. Por precaução, colocou ainda um pedaço de corned beef junto da entrada e desatou a correr. Nem ele próprio sabia se tinha mais medo do urso se dos camaradas. Provavelmente dos últimos, que ainda o linchavam ou, em qualquer caso, lhe davam uma sova.

 

Porém, ninguém desconfiou de nada. Todos pensaram que Rockwell talvez não tivesse prendido bem o urso.

 

Assim, foi dado o alarme nocturno no sector da 3.a Companhia! O Urso de St. Jules desaparecera!

 

Pondo-se em sentido, Rockwell suplicou a Powell, entretanto promovido a primeiro-tenente, que o deixasse participar na equipa de buscas.

 

Powell estava carrancudo. Conhecia bem os seus homens. O moral das tropas sofreria um duro golpe se o urso não fosse encontrado. Os ratos abandonavam o navio que se afundava. Quem sabe o que significaria a fuga do urso!

 

Vacilava entre o dever de comunicar aos seus superiores a fuga da mascote do regimento e a esperança de encontrar o urso. Talvez ele até voltasse por si próprio, quem sabe?

 

Muitos voluntários, entre eles Rockwell e Webbs, naturalmente, acocoravam-se e rastejavam na escuridão, à escuta de algum som conhecido. Não viera um resmungo dali?

 

Não, fora só imaginação.

 

Não o encontraram e foram obrigados a regressar. Rockwell sentia-se abatido, cansado, culpado e profundamente triste. O desaparecimento do «seu» urso Parecia-lhe um símbolo da sorte perdida.

 

Até Shenessy era afectado pela consternação provocada pelo desaparecimento do animal.

 

Para cúmulo, precisamente no dia a seguir ao desaparecimento da mascote, o oficial-às-ordens Clark apareceu para lhes transmitir pessoalmente a agradável notícia de que a 3.a Companhia ia retirar para a retaguarda dois dias depois. Que explosão de alegria esta notícia teria normalmente desencadeado! Mas agora nada era normal. O urso fugira! Clark não se conteve e aproveitou para espetar algumas farpas, que culminaram no comentário de que não era exactamente uma grande habilidade prender um urso à custa de montanhas de petiscos.

 

E como no amor rematou sardonicamente. A qualidade do amante só se revela verdadeiramente quando não há mais nada para oferecer a não ser a si próprio.

 

Mas muitos amantes nem sequer com livros de cheques e dinheiro contado conseguem alguma coisa... neste caso, com tâmaras contrapôs Powell. Como o camarada.

 

Webbs tentou examinar o objectivo do urso de um ponto de vista mais científico. Sem dúvida que tinha fome, como todos eles. Mas de certeza que, depois da hibernação, um urso ainda tinha mais. Por consequência, devia ter ido procurar comida. Mas onde? Onde, em nome de Deus, haveria ainda alguma coisa comestível nas proximidades? Nem sequer os ratos tinham escapado.

 

E então deu-se o segundo milagre!

 

Com autorização de Powell, Rockwell e Webbs tinham partido novamente para a direita, na direcção de onde o urso aparecera da primeira vez. Se alguém lhes tivesse perguntado por que razão se davam a tanto trabalho só para voltar a capturar um urso insaciável, não teriam sabido responder. William, no entanto, tinha uma ideia firme e inabalável, quase uma certeza: a sua boa sorte pessoal dependia do urso. E Webbs? Ora, tinha pena de William. E sentia remorsos por andar sempre com a lengalenga do «jardim zoológico». E o certo era que o urso também lhe fazia falta. Tão simples como isso!

 

Rastejavam pelo solo seco e coberto de pó. O Sol já brilhava e aquecia. O céu estava a ficar azul quando partiram. Comprimindo-se contra o solo em decomposição, durante algum tempo não houve céu para eles.

 

O urso partira hesitantemente. Estava livre, mas nascera no cativeiro e habituara-se à companhia dos homens. Camuflado com o pêlo castanho, correu vagarosamente na noite apoiando-se nas almofadas das plantas das patas. Sentia-se perturbado e inseguro, mas o seu trotar ligeiro foi despertando gradualmente nele uma sensação de liberdade e independência que só superficialmente esquecera.

 

Por instinto, evitou os espaços abertos, limitando-se às depressões de terreno e aos aterros. De repente, houve um estalido, rebentou qualquer coisa e ele fugiu em pânico. Tocara-lhe! Não lhe fizera mal, mas tocara-lhe! E a terra salpicara-o. Tinha os olhos a arder.

 

Entreviu então qualquer coisa que lhe pareceu familiar e logo se encaminhou decididamente na sua direcção. A fome roía-lhe as entranhas. Era um lugar parecido com outros onde, quando era muito bebé, costumava encontrar comida.

 

Tratava-se de uma casa abandonada e em ruínas, os bocados de paredes e traves queimadas permaneciam de pé.

 

O urso rosnou baixinho e farejou em volta.

 

Sim, havia um vago cheiro muito prometedor.

 

Seguiu o nariz sensível. Cá estava! Um cheiro capaz de pôr um urso maluco. Uma mistura irreal de cheirinhos apetitosíssimos.

 

Todavia, à frente do seu focinho, entre as paredes e as tábuas quebradas, não havia nada a não ser areia, móveis de carvalho partidos e uns trapos. Não estava muito escuro. No entanto, não havia nada para ver, nada que valesse a pena ver. Mas aquele cheiro... Aquele cheiro!

 

Bateu-lhe qualquer coisa no olho direito. Irritado, esfregou-o com a pata. Rosnou, inquieto. Parecia quase um gemido. A humidade pegajosa da pata e aquele cheiro puseram-no subitamente fora de si.

 

Desatou a revolver a terra e a remexê-la com o focinho. A abertura apareceu, pondo uma escada à mostra.

 

O urso agachou-se. Hesitou por muito tempo. Tinha medo. O instinto dizia-lhe: possível armadilha!

 

Mas não acreditava que aquilo que cheirava tão irresistivelmente fosse alguma coisa de mal. Não na concepção do mundo de um urso. Por isso, ergueu-se graciosamente e deslizou pelos degraus abaixo. Directamente para o paraíso.

 

Havia um enorme amontoado de coisas. O urso dera com um depósito de abastecimentos havia anos abandonado por uma companhia francesa. Abandonado, esquecido, soterrado. Acontecia muito na guerra, que já não era um jogo de estratégia, com bandeirinhas no mapa e muitas possibilidades de entendimento, o que, na prática, significava falta de interesse, retirada e salvação. Cada qual cuidava primeiro de si. Cada destacamento pensava primeiro na sua própria sobrevivência.

 

O urso não ligou aos sacos de farinha e grãos de café, nem prestou atenção ao vinho e ao conhaque.

 

Esventrou um saco de milho com uma patada, remexeu num barril de manteiga rançosa, revolveu uns chouriços fumados e descobriu então o cheiro que o guiava, o melhor: sacos de frutos secos das colónias francesas.

 

Figos, tâmaras! O céu de qualquer urso!

 

Comeu e rebolou numa pilha de cobertores do exército. Com a pata, coçou suavemente a testa no lugar que agora lhe doía um bocadinho. Não conseguia chegar-lhe com a língua, era impossível. Mas agora a pata já não estava húmida. Sentia-se saciado e cansado. Talvez um bocadinho cheio de mais, mas não exageradamente. Um urso nunca comia de mais. Sabia quando devia parar. Pelo menos, quando devia parar depois de ter comido um bocadinho de mais.

 

O urso adormeceu sem, naturalmente, suspeitar da agitação que provocara.

 

Quando acordou de manhã, ainda estava cheio. Sentia-se pleno de força, excelente. Três sensações assaltaram-no e não o deixaram em paz até se levantar impacientemente do seu leito extramacio. Três sensações: Homem! Covil! Saque!

 

Prendendo o pequeno saco de tâmaras entre os dentes, bamboleou-se preguiçosamente até à escada, arrastou-o subindo os degraus de costas, saiu da casa e pôs-se a caminho em direcção ao amigo e ao seu recanto na jaula, onde vivia e se sentia bem.

 

Rockwell e Webbs tinham regressado muito desanimados. Esperavam, mas não sabiam o quê. Chegavam muitos telefonemas de soldados nervosos dizendo que achavam que tinham visto o urso. Em todo o caso, haviam visto mexer-se qualquer coisa castanha. Talvez não muito castanha, mas lá que se mexera não havia dúvida. E tinham ouvido roncar. Ou qualquer coisa parecida.

 

Não era por mal, mas a esperança fazia-os ter visões.

 

Chegou então uma chamada, desta vez muito concreta:

 

O urso está aqui! Vimo-lo nitidamente. Trazia qualquer coisa no focinho, mas houve um bombardeamento inimigo e ele deve ter ido procurar abrigo

 

Rockwell ficou electrizado e inteirou-se da posição exacta.

 

Hank gritou, chamando Webbs. Ele está aqui!

 

Foi então que se revelaram as diferenças de personalidade dos dois amigos. Webbs continuou desanimado, mas a nova esperança inflamou Rockwell. Webbs achava que a chamada era mais um engano como as outras, ou até talvez alguma brincadeira de mau gosto. Estava completamente exausto. Já apresentava os primeiros sintomas da disenteria provocada pela fome e por uma alimentação carente: barriga inchada, dores, diarreia, fraqueza, calafrios, desânimo.

 

A constituição de Rockwell era um tanto melhor. Além disso, a esperança dava-lhe asas. A recuperação do «seu» urso parecia-lhe vital. Não era só ele: também os camaradas se sentiam mais fortes com a presença da inocente criatura.

 

Parece verdade. Sei que é teimou. Desta vez é verdade!

 

Webbs abanou a cabeça.

 

Mas Powell, pequeno e corajoso, concordou com Rockwell:

 

Se já o encontrámos uma vez, havemos de o encontrar segunda declarou em voz muito clara e garbosa. E esticou-se alguns centímetros.

 

Assim, o primeiro-tenente Powell e o cabo Rockwell concordaram em que haviam de levar o seu urso para casa.

 

Rodeando-se de cuidados, abriram caminho até às posições da retaguarda. A região era-lhes completamente estranha e inquietante.

 

Deve ser por aqui observou Powell, que tinha com ele um esboço feito à mão da região e das posições.

 

Sim, meu primeiro-tenente. Mas onde?

 

Está ali a casa de que eles falaram! gritou Powell.

 

William semicerrou os olhos claros e ergueu-se um pouco. Tinha um ar muito alemão: louro, de ombros largos, barba loura e pele castanho-avermelhada. Naquele momento, parecia-se espantosamente com um herói do Oeste, um caçador de peles, um dos homens que tinham conquistado o Canadá.

 

E ali está o Urso de St. Jules, meu primeiro-tenente disse baixinho. Ele sabia!

 

Powell olhou na direcção indicada.

 

Não pode ser! cochichou. Na verdade, o urso serpenteava pelo terreno. Mas de costas! Arrastava qualquer coisa com os dentes. Quando os seus amigos humanos se aproximaram, largou o saco e desatou a correr. Não na sua direcção, mas para longe deles.

 

Urso chamou Rockwell. Sou eu, pequenino!

 

Seriam remorsos? O doce gosto da liberdade? Medo do castigo? O urso corria com os homens atrás. Quando chegaram ao saco, Rockwell abriu-o.

 

Macacos me mordam! exclamou quando °lhou lá para dentro.

 

- Valha-nos Deus, onde o terá achado? murmurou Powell.

 

O urso voltou a correr para a casa. Conhecia o caminho. Mas atrás dele soavam agora as vozes conhecidas- Não sabia o que havia de fazer. Quando chegou à casa em ruínas, sentou-se nas patas traseiras e apoiou as costas nos escombros de uma parede. Em caso de necessidade, lutaria. Era preciso esperar!

 

Os dois homens que conhecia aproximaram-se, cheios de falinhas mansas. Rosnou um tanto contra vontade, endireitou-se e preparou-se para morder. Nessa altura, o cheiro que tão bem conhecia chegou-lhe ao nariz. Não era cheiro a comida, e sim a gente. Familiar. Acolhedor.

 

William Rockwell estendeu cautelosamente a mão.

 

Tu estás ferido, urso disse baixinho numa voz muito, muito doce. Eles dispararam, não foi? Acertaram-te, não foi? Mas não é grave, pois não?

 

O urso deixou-se apanhar. William tirou a corrente do saco e prendeu-a à coleira. O urso deixou-se prender como um cachorro à trela. Powell olhava, espantado.

 

Vou ensiná-lo a andar de capacete de aço, meu primeiro-tenente acrescentou William num tom decidido.

 

Quase choraram de alívio. Tinham o seu urso outra vez!

 

E é claro que a grande descoberta não se fez esperar. Depois de terem examinado minuciosamente a sua mascote e verificado que talvez a ferida tivesse sido provocada por algum pequeno estilhaço de uma granada e que não acontecera mais nada, observaram tudo em volta rotineiramente, com os olhos de soldados experientes. Foi fácil descobrir o depósito de abastecimentos.

 

Ficaram especados como Moisés vendo a sarça a arder. A salvação! Era a salvação!

 

Agora já sei onde foi buscar as tâmaras comentou Powell.

 

Foi por estar satisfeito que se mostrou tão pacífico acrescentou Rockwell.

 

Temos de comunicar o acontecido reflectiu Powell.

 

Mas talvez possamos levar já um ou dois cobertores e umas latas de carne de porco, meu primeiro-tenente.

 

Fitaram-se um ao outro com os olhos húmidos.

 

Caramba, William! exclamou Powell. Primeiro vamos organizar um transporte em condições para a Terceira Companhia e depois apresentamos o nosso relatório. Afinal, foi o nosso urso que descobriu o depósito. Era o que mais faltava!

 

Boa ideia!

 

Esperemos que consigamos regressar sãos e salvos. Seria uma partida do destino não conseguirmos regressar estando na posse desta informação!

 

Havemos de conseguir.

 

Powell indicou o urso, que se deixava conduzir como uma cabra pela corda.

 

E se ele levantar dificuldades?

 

Puseram-se a pensar. A solução era clara.

 

Amarraram o urso a um pilar, atiraram-lhe uns cobertores e comeram primeiro uma refeição opípara, não se abstendo sequer de abrir uma garrafa de vinho, partindo-lhe o gargalo e filtrando o seu generoso conteúdo por um lenço, para uma lata.

 

Esperaram que escurecesse. Depois puseram-se os ires a caminho, carregados e contentes. Rockwell enchera os bolsos de tâmaras, e, quando o urso começava a fazer tolices, dava-lhe um fruto.

 

A chegada ao abrigo subterrâneo foi um triunfo. A notícia espalhou-se pela 3.a Companhia como um Estilho:

 

O urso está de volta. Descobriu um depósito de abastecimentos abandonado pelos franceses. Um depósito de abastecimentos esquecido, supostamente há muito destruído, do ano de quinze ou dezasseis. Mas cheiinho de provisões muito bem acondicionadas. Até o pão ainda se come. Tinham-no embalado em papel de alumínio. Vive lá France. Uma rapaziada de bom gosto!

 

À noite, transportaram uma parte dos despojos para o seu posto. No dia seguinte, levariam as provisões para a retaguarda o mais discretamente possível. Todos comeram e beberam. O milagre do urso tinha de ser festejado.

 

Shenessy estava estarrecido.

 

Ora esta! Que querido! Claro que ninguém sabia que fora ele que o soltara. Ele próprio oscilava entre o remorso e a formigante sensação de que deviam agradecer-lhe a ele, Arthur Shenessy, inimigo dos ursos e autor de escritos ocultos, toda aquela prosperidade.

 

Rockwell ofereceu-lhe um pacotinho de tâmaras.

 

Toma como prémio de consolação por termos outra vez connosco este urso fedorento disse-lhe William.

 

Pensando melhor, meteu o pacote pegajoso no bolso.

 

O inimigo teria notado alguma coisa? Ter-se-ia apercebido da animação e despreocupação dos homens da 3.a Companhia do 159.° Regimento de Infantaria de Ontario? Ou já estaria decidido?

 

De manhã, cerca de catorze horas antes da retirada planeada, quando já estavam a chegar substitutos para alargar as trincheiras, examinar os abrigos subterrâneos e mostrar o que valiam, os alemães atacaram. Em força. Em grande estilo.

 

O momento foi bem escolhido pelo inimigo. Estabeleceu-se a confusão, que no entanto logo se organizou. Todos tomaram as suas posições, excepto o urso, que saiu da jaula e foi refugiar-se na trincheira, onde se agachou, aterrorizado. Ouviu-se um disparo certeiro.

 

Shenessy viu o urso chegar. Ainda pensou vagamente no seu sentimento de vingança, mas depois o medo do bombardeamento e do possível assalto dos alemães sobrepôs-se a tudo o mais. A resposta foi um tiroteio intenso. A artilharia pusera-se a postos e corrigia o tiro. Foguetes luminosos riscavam o céu. Aviões roncavam. Homens gritavam, agonizavam, rezavam. Um inferno subjugava o céu e a terra.

 

No fim, ficou tudo na mesma. Mas houve muitos mortos. Micklewhite fora literalmente despedaçado por uma granada. Smith I ainda viveu uns minutos com a barriga esventrada. Os socorristas transportavam os feridos graves em macas para a retaguarda. Os camaradas ligavam pequenos ferimentos.

 

Onde estava Powell? Onde estava Shenessy?

 

O urso? Sim, o urso estava na trincheira, revolvendo como um doido um monte de terra, um bocado da parede da trincheira que cedera.

 

Incólume, Rockwell deu graças aos céus. Ainda tinha a pulsação elevada e o coração batia-lhe desenfreadamente, mas os sobreviventes já começavam a passar a ordem do dia.

 

O que fazia o urso? Porque é que escavava como um doido?

 

Aqui! berrou William Rockwell, quando viu uma perna.

 

Os camaradas acorreram. Logo surgiu uma pá. Começaram imediatamente a cavar, sem consideração pelo irritado urso, que não queria ser afastado.

 

Encontraram Powell e Shenessy. Nenhum deles estava ferido. Shenessy encontrava-se inconsciente e Powell abriu quase imediatamente os olhos, com uma expressão de puro terror. O resgate foi rápido graças ao urso, que agora não queria ser afastado de Shenessy. Como? Precisamente de Shenessy, que não gostava dele?

 

Rockwell resolveu o mistério à distância, mas calou-se muito bem caladinho. Shenessy tinha no bolso o pacotinho de tâmaras perfumadas, e William nunca mais dera nenhuma ao urso, pois queria usá-las para amansar o animal ou eventualmente para o recompensar. Havia muito tempo que tentava ensinar-lhe algumas habilidades, mas para isso era imprescindível haver recompensas. Webbs também o confirmara. Portanto, atirou-lhe tâmaras, que o urso se atarefou a comer.

 

Webbs! Onde estava Webbs?

 

Fora atingido. Ficara sem um antebraço até ao cotovelo. Já o tinham levado «lá para trás». William não voltou a ver o amigo. Nem sequer tinham trocado endereços. «Hei-de perguntar por ele depois», consolou-se William a si próprio.

 

Os sobreviventes reuniram-se, cheios de gratidão. No fundo, era um milagre alguém ter escapado a um ataque tão mortífero. E mais milagre ainda era o resgate de Powell e Shenessy.

 

Na manhã seguinte, deu-se a tão ansiada retirada da 3.a Companhia. Powell telefonara a comunicar a descoberta do depósito de abastecimentos e não se cansara de elogiar os feitos milagrosos do urso. O coronel Perkins ficara impressionado.

 

A cinco de Junho de 1918, os homens da 3.a Companhia apresentaram-se na formatura. Tinham aproveitado para limpar um bocadinho as fardas, envergavam os capacetes e tinham as botas engraxadas.

 

O coronel saiu do seu aquartelamento. Os homens puseram-se em sentido e o primeiro-tenente Powell gritou outras ordens em voz alta.

 

Luckie Perkins passeou o olhar pelos soldados e pestanejou. Estava comovido. E também apavorado. Eram jovens garbosos os que tinham ido para as trincheiras e a guerra vomitava agora de volta homens velhos, gastos e extenuados. E tão poucos! Quantos tinham caído ou estavam feridos com gravidade?

 

O coronel Perkins levou a mão à boina num gesto de saudação e gritou:

 

Bom dia, homens!

 

Bom dia, meu coronel responderam a uma só voz.

 

William Rockwell, tratador oficial do urso, e a mascote do 159.° Regimento de Infantaria encontravam-se um pouco à parte. Isto é, o urso puxava a corrente. Aquelas novas paragens punham-no nervoso.

 

Rockwell observava o urso receosamente. O seu amigo iria portar-se bem? Não sabia a força que tinha, mas era recomendável usar um casaco grosso e calças compridas para estar com o animal. Possuía realmente força. E era rebelde por natureza. Além disso, crescera mesmo muito. William Rockwell já não estava muito longe de dar razão ao seu camarada Webbs, quando lhe dizia que um urso não era animal que se tivesse em casa ou na frente de combate. No entanto, todo aquele cerimonial despertou o interesse do urso, que se acalmou, abanando apenas a cabeça de um lado para o outro. O coronel Perkins olhou em volta com um ar perfeitamente militar e disse: Homens começou a cinco de Junho de mil novecentos e dezasseis, faz hoje precisamente dois anos, Lorde Horatio Herbert Kitchener, conde de Cartum, marechal de campo britânico, naufragou ao largo das ilhas Orcades a bordo do couraçado Hamp shire, a caminho da Rússia. Nascera em mil oitocentos e cinquenta em Bally Longford, na Irlanda. Com ele entrou na imortalidade um dos grandes defensores da sua pátria e da justiça. Hoje, juntamente connosco, todo o mundo britânico recorda este herói, que con perspicácia e coragem dominou o fanatismo dos estadistas e saiu vitorioso da guerra dos Bóeres em mil no vecentos e dois. Lorde Kitchener, reorganizador do Exército britânico, é um grande exemplo para todos nós. Fiéis à tradição do nosso regimento, recordamos neste dia um dos homens mais corajosos do Império! Lorde Horatio Herbert Kitchener!

 

As espadas dos oficiais baixaram lentamente. A companhia permaneceu em sentido, como talhada em pedra. Eram os ritos da vida militar. Soldados experientes ouviam de olhos húmidos. O coronel continuou:

 

Devo reconhecer que o regimento escapou de um grande perigo. As estradas atrás de nós não passam de um monte de escombros. Colunas de abastecimentos foram imobilizadas e atacadas. Os tanques que conseguiram romper a barreira da artilharia, foram socorrer as posições mais essenciais. Vós sofrestes tudo isto na pele. Um urso poupou o nosso regimento à decisão mais terrível: recuar para não morrer à fome, ou avançar para uma morte gloriosa. Sim, a nossa mascote decidiu partir em busca de um depósito de abastecimentos!

 

William Rockwell não mudou de expressão mas o coração deu-lhe um salto. No fundo, estava muito divertido. Provavelmente, o coronel Perkins também. Aparecia-lhe frequentemente no olhar uma certa centelha, que traía o humor anglo-saxónico. «Decidiu partir em busca de um depósito»? Fugira, fora o que fora. Depois, o instinto guiara-o, porque tinha fome. Claro. A sua dedicação fora recompensada.

 

O coronel olhou para o urso. De certeza que estava a pensar se havia de se aproximar mais. Mas decidiu-se contra e continuou vigorosamente:

 

Assim, fiel camarada de inúmeras batalhas, agradecemos-te e prometemos cuidar sempre de ti. Visto que és a mascote do nosso regimento e nos reunimos hoje aqui no dia de Kitchener, vou cumprir de bom grado um outro dever para o qual até agora não tivemos vagar. No ano de mil novecentos e dezasseis, em Ontario, mudámos o nome do local chamado «Berlim» para «Kitchener», em honra e memória do marechal de campo britânico Kitchener. Não será lógico que, com todo o respeito e gratidão, demos também este honrado nome ao nosso bom camarada? «Urso de S. Jules», baptizo-te com o nome de «Kitchener»! O nosso urso Kitchener... três...

 

Os homens, em sentido, gritaram:

 

Hurra! Hurra! Hurra! E atiraram os capacetes ao ar.

 

William Rockwell teve de empregar todas as forças para segurar o homenageado, que estava a ficar demasiadamente agitado.

 

O pequeno Monday, uma espécie de homem dos sete instrumentos da retaguarda, montou um tripé para tirar a fotografia. Os soldados juntaram-se e apresentaram armas.

 

William Rockwell julgou chegado o momento de exibir as habilidades do seu urso. Ensaiara vezes sem conta, e gastara muitas guloseimas.

 

Não me deixes ficar mal, Kitchener implorou baixinho. Era tão difícil com um urso, cujo focinho não traía praticamente nada! Absolutamente nada.

 

Kitchener fez a expressão de todos os dias. Quando estão furiosos, os cães arreganham os dentes, os gatos eriçam o pêlo e os gansos abrem as asas. Seja por mímica seja por linguagem gestual, a maioria dos animais exprime-se inconfundivelmente, sobretudo quando sse preparam para atacar. Mas um urso não faz nada. Põe a mesma expressão de sempre, e de repente dá uma patada. Com os ursos, é preciso desenvolver-se uma espécie de sexto sentido. Além disso, Webbs tinha dito que de forma alguma eram fáceis de amestrar e que os engraçados números de circo com ursos vestidos esperneando em cima de uma bicicleta significavam muitas horas de trabalho do domador.

 

Rockwell fez um gesto a um camarada, que avançou e lhe apresentou um capacete de aço com o braço estendido. William deu a sua ordem com o coração a galopar. E enquanto o pequeno Monday desaparecia atrás da câmara debaixo do pano preto, Kitchener endireitou-se nas patas traseiras e levantou as da frente como um animal heráldico.

 

Enfiado debaixo do pano, Monday estendeu o braço para a tampa da objectiva e gritou:

 

Atenção! Vinte... vinte e um... obrigado! Tirou a tampa e voltou a colocá-la. A fotografia estava na caixa. A fotografia do século! Figuras robustas, con ’ sorrisos irónicos ou uma profunda emoção estampada ’ no rosto. William Rockwell, de olhos semicerrados com uma expressão inquieta, mas ao mesmo tempo orgulhosa. E Kitchener. De pé nas patas traseiras, acenando com um ar afável e com um capacete de aço a três pancadas na cabeça! Felizmente, não se via na fotografia que o urso sacudira de imediato o capacete e puxara impacientemente a corrente, o que obrigara William a dar-lhe algumas tâmaras à pressa para que se concentrasse enquanto as mastigava e cuspia.

 

O coronel não mandou logo retirar. Elevando novamente a voz, informou que o urso Kitchener era naquele momento elevado ao posto de cabo. E o seu tratador William Rockwell era promovido a sargento com efeitos imediatos. Embora o tratador tivesse subido um degrau na cadeia hierárquica, o seu afecto pela mascote iria permanecer o mesmo.

 

William pôs-se em sentido e fez uma expressão séria. Ser sargento sempre era qualquer coisa para um militar de carreira que mais tarde quisesse retirar-se da vida do exército para fundar uma colónia de castores

 

De momento, William Rockwell tentava sonhar o menos possível. Mesmo assim, tinha sonhos extremamente desanimadores. Jenny, a sua graciosa, doce mulher. Seria possível que ela o tivesse esquecido, enganado e abandonado? Que o houvesse deixado?

 

De cada vez que o correio chegava, o que agora acontecia mais regularmente devido a uma certa calmaria na frente, o coração de William começava a bater desenfreadamente. Os camaradas aproximavam-se sorridentes e liam-lhe passagens das cartas que tinham acabado de receber. Escrevendo da pátria, mulheres e filhos perguntavam insistentemente pelo urso, seu estado de saúde e suas andanças. William sorria, triste. Que simpático! Infelizmente, não para ele.

 

Mas, um dia, chamaram o seu nome. Sargento Rockwell! Está aqui correspondência para o cabo Rockwell. Entrego-lha mesmo assim?

 

William quase arrancou a carta das mãos do engraçadinho. Mas dominou-se muito a custo. Depois viu a letra um tanto inclinada de Jimmy. Sentiu o coração apertado e o sangue fugiu-lhe do rosto. Cambaleou. Combates, perigo de morte, eram coisas a que um homem podia habituar-se. Mas aquilo... Rasgou o envelope.

 

«Querido papá, escrevo hoje porque a mamã não pode escrever. Ainda está no hospital. Aqui há umas semanas, em Christina Street, um coche puxado por um cavalo atropelou a mamã, que ia de bicicleta. Partiu umas costelas e teve uma comoção cerebral. Só te escrevo agora porque ela já está bem e te manda um beijo e tu hás-de vir depressa para casa. É o que também deseja muito o teu querido filho Jim. A Lucille também te manda um beijo. Está em casa de Mistress Dobbs. Eu também estou em casa de Mistress Dobbs. I Mistress Dobbs quer escrever-te. Ela e o senhor! Dobbs casaram-se no mês passado. É muito simpática.» William deixou-se cair numa tarimba, sentindo-se de repente um rei naquele barracão onde só entrava ar fresco por pequenas portinholas no tecto, que cheirava mortalmente a suor, porcaria e transpiração, habitado por cento e vinte homens que à noite dormiam em sacos-cama amarelecidos, ressonando ou catando piolhos) com resultados duvidosos, no qual se ouviam as correrias dos ratos e os colchões eram verdadeiros instrumentos de tortura, de tão duros e cheios de covas e saliências. Estava em cuidado. Temia pela saúde de Jenny.I Por outro lado, como se sentia feliz! Indescritivelmente aliviado. Parecia-lhe que renascera. Jenny não o deixara. Sofrera um acidente. Era mesmo dela, tão pequenina e activa: montar na bicicleta e ir contra um veículo em movimento! «Podia ter morrido», pensou William, com o couro cabeludo arrepiando-se de horror. No entanto, ainda outra coisa se agitava no seu íntimo. A lembrança de Mrs. Dobbs veio à superfície. Mrs. Dobbs. Que nome celestial! Mrs. Dobbs e Mr. Dobbs. Que ideia fora a dele de achar que Dobs era um celibatário libidinoso? Segundo Jim, havia Mrs. Dobbs, que portanto era a esposa. E com certeza muito atenta, pois tomara conta das crianças. Agora estava tudo esclarecido. Entrara em desvario. A sua doce Jenny esperava-o. Traíra-a. Em pensamento, mas traíra-a. E não ao contrário.

 

Jenny! Jim! Lucille! Valha-me Deus, tenho uma família que espera por mim e porto-me como um idiota chapado!» As saudades atormentavam-no Apertou muito os braços contra o corpo, embalado num grande sofrimento e bem-aventurança.

 

O sargento Henry Wood entrou e fitou-o com um olhar de interrogação.

 

Más notícias, William? Passa-se alguma coisa? William ergueu o olhar velado para o camarada

 

Pelo contrário. Ou seja, não é bem assim. Ah, Henry, estou desnorteado. A minha mulher teve um acidente. Receio que um acidente bastante grave. Realmente não posso dizer que as notícias tenham sido boas.

 

Wood assentiu várias vezes. Compreendia muito bem os receios do camarada. Entendia-os como os entende qualquer um que tenha uma mulher amada em casa. Sabia como William se sentia.

 

-Não é muito fácil disse baixinho, mas o certo é que, se conseguirmos sobreviver mais umas semanas a este caos, em breve estaremos em casa.

 

Queres dizer que é o fim da guerra? Quero dizer... paz!

 

Nem acredito!

 

Vou passar três semanas na cama, ora sozinho, ora com a Jane. Woods sorriu, feliz e embaraçado.

 

O que é que fazes? És professor, não és? Dava aulas de FÍSÍCa e Matemática em Montreal. Meu Deus do céu, Henry, és um intelectual!

 

Aqui na frente é importante saber somar dois e dois, não? E cá para mim, a guerra está a acabar. Observa só os boches. As fileiras deles estão em efervescência. Nunca tantos deitaram fora as armas. Nunca houve tantos desertores como nos últimos tempos. Falam de expoliações, privações de direitos, obediência cega e embrutecimento do povo. Cheira-me a revolução e capitulação. A frente deles já há muito que não é tão impecável. Fizemo-los passar fome. No fundo, acaba por ser para bem deles. Estão nos últimos estertores.

 

O que é que vamos fazer ao Kitchener? perguntou William pensativamente. Se eu já tivesse a minha criação de castores, arranjava-lhe um espaço no lago Hurão, onde pudesse viver e envelhecer. O Webbs sempre disse que um urso precisa absolutamente de uma ursa, quando chega a altura...

 

Tanto quanto sei, o Powell tem uma propriedade enorme no lago Ontario. Não poderá construir lá um pequeno jardim zoológico privado?

 

Porque é que há-de ser o Powell? Afinal de contas, o Kitchener é meu protestou William Rockwell.

 

Henry Wood riu-se.

 

William, que parvoíce! O urso pertence ao Centésimo Quinquagésimo Novo Regimento de Infantaria de Ontario, o que, se não estou em erro, perfaz quase mil homens. Só nessa qualidade é que o Kitchener pode levar aqui uma vida sumptuosa na sua jaula, com uma alimentação de primeira.

 

Tens razão, mas apesar de tudo... Quando houver paz...

 

No entanto, o espírito combativo dos alemães ainda não esmorecera definitivamente, pois que se lançaram uma última vez numa ofensiva fanática. Poucas horas depois desta conversa, a frente voltou a entrar em acção e os corpos a comprimir-se contra o chão sulfuroso. Os alemães atacaram, arremessando tudo o que possuíam. Começara a ofensiva imperial de 1918. Era o último assalto de corações desesperados, exércitos destroçados, ideais despedaçados e sonhos passados.

 

A terra tremeu durante três semanas. Constantemente, monstruosamente, titanicamente. Quando havia uma pausa, os homens recobravam ânimo. Rastejavam para fora dos covis e saíam dos confortáveis abrigos subterrâneos e das trincheiras cheias de fumo. Assestavam a coronha no queixo e disparavam.

 

O mundo suspendeu a respiração mais uma vez, a última vez nesta guerra. As máquinas rotativas dos jornais de todos os países matraqueavam e cuspiam notícias para todos os que as esperavam. «A frente estremece.» «A oeste nada de novo.» «As linhas serão defendidas.» «A linha Siegfried desmorona-se.» «Aguenta-se!» «Desmorona-se!» «Aguenta-se!» A juventude sangrava. Em casa, as pessoas esperavam, sofriam e morriam de saudades.

 

O barracão da 3.a Companhia também não foi poupado. Muitos homens ainda morreram a pouco tempo do fim. Ouvia-se um matraquear, um ruído surdo, a luz e a escuridão. As pessoas habituam-se a quase tudo. Dizia-se que os alemães estavam outra vez a lançar gás tóxico. Ninguém podia andar sem máscara. Só Kitchener resistiu energicamente a qualquer tentativa de adestramento neste sentido. Agora já era um veterano de guerra. A sua tranquilidade era como um oráculo para os homens: no fim, tudo iria correr bem. Sobretudo na frente, dizia-se: «O Kitchener está de sent]nela. Não vai acontecer-nos nada.»

 

O decisivo Novembro de 1918 aproximava-se.

 

O mês em que o mundo poderia respirar aliviado e sentir-se livre do punho de ferro da guerra.

 

A ofensiva de Foch fez recuar as posições alemãs. Na Alemanha, os revolucionários agitavam-se. Os oradores gritavam as suas palavras de ordem do alto dos monumentos ou em cima de barris. As pessoas tinham dado tudo e estavam exaustas. A frente esvaída quebrou.

 

As pessoas ajoelharam-se de mãos postas: «Senhor, deixa que haja paz. Perdoa-nos os nossos pecados.» Um estremecimento percorreu a terra. Tudo parou!

 

Tudo parou... por fim! Os sinos tocaram. Os órgãos soaram. As pessoas acorreram aos serviços de acção de graças. E todos os que tinham perdido os seus entes queridos choravam sem parar ou calavam-se amarguradamente. A vida continuava. Para muitas mulheres, no entanto, a vida já acabara. Jovens pegavam no retrato dos noivos e pensavam que já eram umas velhas solteironas antes de terem realmente vivido. Mães cerravam os punhos e planeavam a sobrevivência num mundo em paz para si e para os filhos.

 

A onze de Novembro de 1918, foi assinado o armistício no bosque de Compiègne. Na carruagem de luxo do marechal Foch, o generalíssimo Foch e Matthias Erzberger assinaram, em nome dos seus respectivos povos, os catorze pontos de Wilson: evacuação dos territórios ocidentais ocupados e da margem esquerda do Reno, revogação das decisões dos tratados de paz de Brest-Litovsk e Bucareste e entrega do material bélico pesado e dos submarinos, que tinham sido o orgulho do kaiser alemão. Do programa faziam parte trabalhos de reconstrução nos territórios ocupados.

 

Mas apesar de haver um exército vitorioso, no fundo todos tinham perdido. Por todo o lado surgiam crises de política interna. Na Grã-Bretanha, a queda do governo liberal só foi evitada através da criação de um gabinete de guerra rigorosamente organizado. Em França, Clemenceau e o seu gabinete combatiam os motins. No parlamento austro-húngaro, os Chechenos e os Eslavos do Sul protestavam: o imperador Francisco José morrera em 1916 e o seu sucessor, Carlos I, não devia substituí-lo. Revolução de Outubro na Rússia e instauração do domínio soviético. Guilherme II foi para o exílio na Holanda, e as pessoas cantavam: «Arvore de Natal, árvore de Natal, o imperador foi despedido.» A república foi proclamada na Alemanha.

 

O 159.° Regimento de Infantaria de Ontario entrou em formação numa aldeola entre Maubeuge e Mons. Fazendo algumas pausas para engolir em seco devido à comoção, o coronel Perkins leu a proclamação de paz, depois de quatro anos assassinos. Os estandartes baixaram em memória dos mortos. O rufar do tambor ecoou surdamente e as paredes estragadas das pequenas casas pareceram estremecer mais uma vez. Mas num charco de água banhavam-se dois pardais, como se tivessem alguma mensagem feliz a transmitir. Estou orgulhoso de vós disse o coronel Luckie Perkins. O Centésimo Quinquagésimo Nono Regimento cumpriu sempre o seu dever, desde o assalto a Béthune e o inferno de Lorette até à resolução final em Cambrai e Arras. Durante este tempo, perdeu O triplo dos seus efectivos em mortos e oito vezes mais em feridos. Passou exactamente seis semanas na retaguarda, a recuperar forças. Sua Majestade o rei louvou-o oficialmente pela sua fidelidade e espírito de sacrifício. Sei bem que os números e os louvores não

dizem nada da coragem que cada um de vós teve de reunir. Separamo-nos, orgulhosamente conscientes de que fizemos o nosso melhor pela causa da paz mundial, da paz para a humanidade.

 

Fitou os rostos dos seus homens. Eram jovens à chegada. Agora, tinham as fisionomias duras, marcadas pelo horror da guerra. Apesar de tudo, a esperança brilhava já no seu olhar. As pessoas esquecem. Acabam por esquecer. Não completamente, pois fica sempre alguma coisa no sangue e na alma. Mas era magnífico ter escapado!

 

Perkins sorriu de esguelha e continuou: Sei que a minha alcunha é Luckie. Os coronéis não são assim tão tapados como os pintam. Luck... Sorte. Certamente que não fiz justiça ao nome... Quem poderia fazê-la, em tempo de guerra? Mas quero dizer o seguinte: quando voltarmos à nossa pátria distante, para mim será como despedir-me da minha) família. Ligámo-nos muito uns aos outros durante estes anos. Não devíamos perder o contacto. E agora penso na nossa fiel mascote, que entretanto se tornou um urso adulto. Sei que muitos homens o levariam de bom grado consigo. Sobretudo o soldado Shenessy, que desde que veio do hospital lhe faz todos os dias um pudim em agradecimento por ele lhe ter salvo a vida... Ouviram-se risinhos abafados nas fileiras como nos tempos da escola, quando o professor se prestava a alguma pilhéria. e o sargento Rockwell também tem lugar para ele na sua quinta. Talvez como uma espécie de cão de guarda dos seus castores? Mais risinhos. O meu querido oficial-às-ordens Clark de certeza que também gostaria de se ataviar com este tesouro... Era uma verdadeira maldade, pois Clark continuava a não querer nada com ursos que mordiam e balançavam as patas, e a não compreender que se fizesse tanto espalhafato à volta do animal. O coronel Perkins endireitou o cinto e continuou: Por muito fascinante que pareça andar com um urso nas paradas, e de certeza que outros regimentos ficariam verdes de inveja... é uma coisa impossível. O Kitchener é um predador. Levá-lo ou conservá-lo connosco seria ir contra os regulamentos e todas as normas dos regimentos e guarnições. Temos de decidir o seu destino. Pessoalmente, concordo com a insistente proposta do nosso camarada Webbs que infeliz mente muito ferido, não pode contribuir com os seus valiosos conselhos de perito. Portanto, defendo que demos o Kitchener a um jardim zoológico de primeira. Londres ofereceu-se para o receber. Como disse, ainda não foi dada a ultima palavra. Mas quero revelar aqui uma coisa: já fiz uma petição e, se tudo correr bem o Centésimo Quinquagésimo Nono Regimento de Infantaria vai ter um urso no seu brasão. O nosso Kitchener viveu...

 

Na verdade, já se realizara uma reunião com o primeiro-tenente Powell e o sargento William Rockwell. Depois de muitos vaivéns e consultas ao estado-maior e do engraçado comentário de Powell de que Kitchener devia ser uma Co. lda. Perkins lembrara-se do Jardim Zoológico de Londres.

 

Só não contara com o facto de que os soldados não tivessem ficado de braços cruzados. Um inquérito sobre o destino do talismã do regimento, símbolo do sangue-frio e da sobrevivência, revelara propostas muito curiosas. Tinham surgido catorze «padrinhos» que, partindo do princípio de que sustentar um urso custava uma determinada quantia, se ofereciam para contribuir com uma soma regular.

 

Além disso, o «padrinho» soldado Willkotts escrevera: «Para mais, o Kitchener ajudou-me a ficar noivo. A minha namorada, Sue, ficou tão entusiasmada com o meu amor pelos animais, que leu nas entrelinhas das minhas cartas, e finalmente disse que sim!» Um pateta comovente!

 

O cabo Leslie Redcalf escrevera: «A minha mulher, Katherine, autorizou-me a levar o urso comigo. Temos um pomar e alguma terra e água. Ele havia de se sentir bem connosco.» Katherine precisava de um aliado!

 

Mas o soldado Tyrone McClay levara-lhes a palma ao dizer: «Na vida civil, sou domador no Circo Barnum. O Kitchener podia andar de bicicleta ou no arame durante o meu número com os leões. Seria uma atracção única no campo do adestramento dos animais de grande porte, e estou certo de que um urso que já fez tanto seria com certeza um grande sucesso. O Kitchener vai aborrecer-se imenso num jardim zoológico. Além disso, deste modo poderia ganhar o seu próprio sustento.» Nem pensar!

 

O coronel Perkins tivera de beber alguns conhaques para se acalmar. Estavam todos malucos? «Se alguém pudesse ficar com o Kitchener, então seria eu», pensara, chamando-se imediata e energicamente à razão. Escrevera ao Jardim Zoológico de Londres uma carta muito longa, chamando a atenção para o facto de que o urso era muito especial e não um simples urso, o que provocara alguns abanar de cabeça da parte dos directores do jardim zoológico.

 

De qualquer forma, um urso jovem, na força da idade, era coisa que não se recusava. Aliás, andavam desesperadamente à procura de um exemplar assim, pois agora que a guerra terminara e que tudo voltava ao seu normal, algumas ursas melhor dito, quatro estavam mesmo a precisar dos cuidados de um macho. Eram necessárias novas gerações. Os jardins zoológicos da Europa tinham perdido muito com a guerra. Mas o que os fizera inclinar-se mais a seu favor fora a fotografia junta de um Ursus arctos de aspecto excelente, erguido nas patas traseiras, no meio de soldados que riam ou choravam, com um capacete enfiado na cabeça às três pancadas. Um animal excêntrico, sem dúvida. Era preciso examiná-lo primeiro.

 

Também era de doidos a espécie de «tratado» que acompanhava a carta e no qual se discriminavam alguns pontos que deviam reger os cuidados e o tratamento a prestar ao urso castanho, que ainda por cima se chamava Kitchener, como o herói da guerra.

 

Ponto 1: O Kitchener será acomodado em liberdade, numa área vedada, com instalações confortáveis.

Ponto 2: Terá um tratador experiente.

Ponto 3: Ser-lhe-á garantida uma alimentação rica, que levará em conta a sua preferência por doçarias, especialmente pudim de baunilha.

Ponto 4: O Kitchener será anualmente examinado por um veterinário e o seu estado geral de saúde será comunicado ao 159.° Regimento de Infantaria, em Ontario.

Ponto 5: Os membros do regimento que como tal se identifiquem, bem como suas famílias, terão entrada livre no Jardim Zoológico de Londres.

Ponto 6: O regimento encarregar-se-á de um quarto das despesas de alimentação de Kitchener.

Ponto 7: Será posta à disposição de Kitchener uma companheira, quando ele assim o exigir.

 

Os directores do jardim zoológico decidiram considerar toda aquela questão apenas um simpático capricho. Além disso, estavam interessados. Um urso assim não era muito vulgar. E as «condições» eram inteiramente aceitáveis. Sobretudo o Ponto 6.

 

Assim, Chuck Brady, do Jardim Zoológico de Londres, apareceu um dia do outro lado do canal. Na estrada de Calais, estava um daqueles dias primaveris

que não deixam as pessoas ficar sentadas à lareira a ler O Jornal. Os primeiros raios quentes de sol abriam caminho através do azul-cinzento do céu, fazendo desabrochar crocos amarelos e azuis. Os pássaros cantavam e trinavam efusivamente. As ruas da praça brilhavam. As pessoas podiam novamente andar à vontade, sem medo dos tiros. Ia-lhes no coração uma felicidade e uma alegria primaveris.

 

No quartel, o 159.° Regimento de Infantaria estava de partida. Os soldados esperavam impacientemente, mas o seu transporte ainda tinha de ser organizado. E isso demorava. Haviam recebido fardas melhores e estavam com um aspecto impecável, como novos. Só não conseguiam olhar-se nos olhos uns dos outros. Aí, não estava tudo direito e em ordem. Os veículos de transporte já tinham chegado. Era possível que não faltasse muito tempo para se fazerem ao mar.

 

E Kitchener? O seu urso? Tinham-no acomodado bem, mas ele era muito grande, forte e volúvel para conseguirem prendê-lo. Sem dúvida que ultimamente andava muito nervoso. Como todos os animais, pressentia as mudanças no seu meio ambiente. De certa forma, habituara-se aos estampidos e às explosões, que afinal de contas eram só barulho. Mas agora sentia o nervosismo, aquela ebulição mal dissimulada dos seus amigos humanos. Havia qualquer coisa que não estava bem. Por isso, balançava-se agitadamente das duas patas esquerdas para as duas direitas e assim sucessivamente e abanava a cabeça num desespero inconsciente. Mais uma separação. Qualquer coisa ameaçadora. Sentia-a, ele que nunca ultrapassara a horrível separação precoce da mãe e dos irmãos.

 

Chuck Brady examinou cuidadosamente o urso.

 

Está espantosamente bem alimentado afirmou.

 

Como «espantosamente»? ofendeu-se imediatamente William Rockwell. Acha que íamos deixar a nossa mascote oficial morrer à fome? Preferíamos morrer nós primeiro.

 

Está bem, meu caro acalmou-o Brady, num tom um tanto untuoso. Ele é mau?

 

Como mau?!

 

Tenho de me informar. Faz parte das minhas funções saber se este urso tem os requisitos certos para... ha... membro do nosso jardim zoológico que, como sabe, tem prestígio internacional.

 

Se fosse, também não o teríamos aqui. É verdade: o urso chama-se Kitchener e responde pelo nome.

 

Okay, okay. Portanto... Brady pegou numa banana e meteu-a por entre as grades da jaula. Kitchener, olha, toma disse em tom de bajulação.

 

O que fez Kitchener? Respondeu claramente com uma citação de Goethe. Não verbalmente, mas por gestos: ou seja, virou-se e mostrou o traseiro a Chuck Brady.

 

Não gosta de si comentou Rockwell maliciosamente.

 

Ainda vamos ser amigos disse Chuck fleumaticamente. Agora está nervoso. Desconfia de alguma coisa. Não vai ser fácil meter o Kitchener na jaula de transporte.

 

Não espere uma grande ajuda da nossa parte advertiu William Rockwell, sentindo crescer em si, para sua própria surpresa, uma profunda aversão, até mesmo um certo ódio por aquele londrino imperturbável. Claro que era injusto, e sabia-o. Não pode dar-lhe algum calmante? Ou um sedativo? perguntou.

 

Não, acho que seria inútil. Vou tentar atraí-lo Para a jaula de transporte.

 

Como?

 

Espero que ele tenha fome e depois ponho coisas de que ele gosta entre a jaula antiga e a nova. É o melhor de tudo no domicílio novo. Funciona sempre.

 

Como sempre? Rockwell já estava outra vez carrancudo. O Kitchener não é qualquer um! Mas, lembrando-se, fez uma proclamação, enquanto Kitchener era posto a dieta. Quem quiser dar alguma gulodice ao nosso Kitchener para despedida, pode fazê-lo agora. Todos os presentes de despedida devem ser entregues a William Rockwell.

 

A maioria dos homens já estava mentalmente a caminho de casa e dos seus entes queridos. O embarque começara. Mais umas horas, e deixariam para trás o espectro da Europa.

 

Apesar de tudo, ainda houve muitos a entregar bolos e doces, e Arthur Shenessy fez uma última vez o pudim de baunilha que, como se sabia, era a perdição culinária de Kitchener.

 

Shenessy ainda sentia alguns remorsos por ter sido o causador da fuga de Kitchener que, por outro lado, fora um grande bem, e isso era o importante. Em todo o caso, Kitchener não ficara mau; de contrário, não o teria salvo. Shenessy estava-lhe muito grato, apesar de não fazer a relação entre as tâmaras que na altura tinha no bolso e o verdadeiro motivo do urso. Nunca mais pensara nas tâmaras.

 

Assim, o pudim de Shenessy, a isca principal, foi colocado na jaula de transporte e, de facto, deu resultado. Kitchener correu de guloseima em guloseima, como uma criança à procura dos ovos da Páscoa, e só junto do prato vazio do pudim percebeu que estava de repente num outro domicílio, já fechado e pronto a partir.

 

William, Powell e Wood fitaram-no de expressões toldadas, mas a alegria de voltar a casa em breve superou a tristeza. Havia muito a fazer. Quanto a Kitchener era a melhor solução. O barco levou-o de Calais para Hover. Semicerrando os olhos claros, Rockwell murmurou:

 

- Adieu, Kitchener. Havemos de nos ver outra vez, meu velho! De certeza! Está prometido!

 

O barco apitou três vezes e o motor arfou. Desnorteado dentro da jaula, o urso rosnava e gemia. De repente, estava outra vez sozinho. Passavam-se coisas horríveis com ele. Balançava tudo. Mais tarde, umas figuras desconhecidas empurraram-lhe a jaula para uma outra caixa que rolava e roncava. Depois, abriram-lha, e viu à sua frente um grande espaço estranho. Muitas pessoas de cheiro diferente tagarelavam à sua volta.

 

A imprensa estava reunida. O «Urso da Frente» era notícia de primeira página. A guerra acabara. Agora já era possível voltar às histórias com originalidade. Sem dúvida que o veterano não estava muito bem-disposto nem se mostrava engraçado. Mas fora durante anos, ao longo das mais violentas batalhas, a mascote de um regimento canadiano.

 

- E agora vive aqui por caridade? - perguntou um repórter.

 

Mas Chuck Brady, que já gostava do urso, respondeu sobranceiramente:

 

- Por caridade, não. Paga o que come. Depois, a solidão. Kitchener estava cansado. Só

 

queria ter paz. A natureza exigia os seus direitos. Dormitou e depois adormeceu profundamente. E a sua alma de urso ficou mais leve. Era elegante e valente. Um dia acordou, e viu uma porta aberta. Dava para um parque lindíssimo, ao ar livre, onde cresciam arbustos e erva, com um enorme rego de água. Kitchener dirigiu-se para lá e bebeu. Delicioso! Atirou-se para o relvado. O sol brilhou-lhe na barriga quando esticou as quatro patas.

 

Contudo, havia lá outros, o que era verdadeiramente sensacional. Não, não com duas pernas, mas quatro patas grandes, castanhos, de pêlo comprido. Tal como um bebé sabe o que tem de fazer no peito da mãe, assim Kitchener sabia que aqueles seres eram senhoras ursas. Endireitando-se, examinou-as. Pareciam inofensivas e olharam-no de soslaio. Kitchener encheu o peito de ar e soltou um ronco profundo, vindo da barriga. Ainda não estava completamente acordado, mas era o suficiente. E sentiu-o claramente: cumprira-se o seu destino. Era um paxá!

 

Para impressionar as beldades, fez a sua grande habilidade: ergueu-se nas patas traseiras. As senhoras perderam a cabeça! E logo surgiu no recinto dos ursos do Jardim Zoológico de Londres uma nova situação. As senhoras desataram a lutar energicamente, defendendo a sua posição hierárquica, pois sabiam instintivamente que aquele magnífico exemplar escolheria a vencedora, a lady de mais categoria. A Primavera começara!

 

Quando Madame Tissot entrou no salão de festas, o barulho de vozes cessou instantaneamente, substituído por um silêncio cheio de expectativa. Parecendo absorver a agitação trémula da sala alta e clara, parou um pouco até todos os convivas a terem também partilhado.

 

Madame tomou o lugar no estrado. A um sinal seu, as notas do órgão encheram a sala. Alice baixou as pálpebras. Como sempre que o órgão começava a tocar, os olhos marejaram-se-lhe de lágrimas. Era puro reflexo, mas hoje havia realmente razão para estar comovida, triste e contente.

 

O coro do colégio já estava alinhado à direita do estrado. Raparigas sadias, graciosas, pequenas e grandes, de saias pretas compridas e blusas brancas com peitilhos de renda, cabelos louros, ruivos, castanhos e pretos com laços brancos e cor-de-rosa, faces coradas e olhares atentos. Encontravam-se ali reunidos muitos convidados de honra. O coro do colégio não podia fazer má figura. Herta Dorin, a maestrina, abriu os braÇos, como se fosse lançar a sua figura pequena na corrente da melodia, e as raparigas cantaram:

 

... e sabem-no cantores e pintores, e também o sabe outra gente. E quem não o pinta, canta-o. E quem não canta, sente-o no coração cheio de pura alegria!

 

Depois do último pianíssimo, Herta Dorin já tinha outra vez os olhos marejados de lágrimas, e a pequena condessa LafFert, que cantara o solo, recebeu um sorriso efusivo da sua professora preferida.

 

Madame Tissot levantou-se. Vestido preto, colarinho alto, alfinete de ouro ao peito. Com palavras sentidas, despediu-se das dez jovens que tinham completado com sucesso os seus estudos no colégio e que agora saíam para o mundo, de volta às suas famílias, consortes de noivos que já as esperavam nalgum abrigo antiaéreo, apesar de ser um luxo desprovido de sentido que uma mãe leviana e rica e um pai inconstante e rico arranjassem casamentos ricos a raparigas quase adultas.

 

Alice Kellenhusen era uma das dez jovens que recebia a última ensaboadela de Madame Tissot. Sabiam falar inglês e francês, dominavam os lavores mais requintados e percebiam um pouco de matemática, física e geografia para uso doméstico. Evidentemente que sabiam dançar, montar e jogar ténis. Sabiam receber, pôr uma mesa e ensinar e dar ordens aos criados. Sabiam tudo. Tinham recebido uma educação religiosa, de primeira qualidade. Um tesouro para qualquer casa.

 

Ao serem chamadas individualmente, cada uma delas avançou para receber o seu diploma. Mireille Gelin, a Magricela, Grit Rasmussen com o minúsculo nariz escandinavo e os caracóis louros, Annedore von Schack e Gundi Maffen. Estas quatro e Alice tinham-se tornado amigas íntimas. Agora, os seus caminhos separavam-se. Com dezoito anos, o mundo era delas. Queriam mudar tudo, ser completamente diferentes das jovens antes delas. Em todo o caso, estava-se em 1928. Já nada era como antigamente. As raparigas sabiam o que queriam. Usavam o cabelo curto e fumavam cigarros por compridas boquilhas.

 

Claro que haviam de se casar, mas já não se deixavam enganar. No seu círculo, as mulheres sempre tinham sido mais livres do que na classe média. Mas a educação num colégio suíço ainda lhes abria mais portas.

 

Quando avançou, Alice tropeçou ligeiramente, por sorte com o pé esquerdo, o que era um bom presságio.

 

Esboçando uma vénia, recebeu o diploma. Fitou fogosamente Madame Tissot durante dois segundos, antes de voltar a baixar os olhos escuros, e madame pensou novamente que aquela criatura encantadora e graciosa, de movimentos elegantes e espírito vivo tinha qualquer coisa de imponderável que, infelizmente, devia ter herdado do pai. Ouvira «esta história» dezenas de vezes.

 

A família de Alice não comparecera naquele dia festivo. Sabia-se que era órfã e que iria viver com os avós, que nunca deixavam a sua propriedade e que tinham mandado votos de felicidades, juntamente com o dinheiro para a viagem de comboio numa «carruagem para senhoras», em primeira classe.

 

Alice não estava nada contente por ir deixar Berna. Para uma rapariga que não tinha irmãos nem pais e só uns avós muito frios, fora magnífico encontrar ali calor, amizade e dedicação.

 

Mas era evidente que não devia mostrar que tinha um certo receio de regressar a ThieBendorf. Por isso, dominou-se e manteve a cabeça erguida. «Nada de medos! Isto já passa», pensou. «Seria ridículo se não passasse!»

 

À tarde, as quatro amigas ainda passearam mais uma vez ao longo da Rua da Justiça. A Praça do Urso, a Torre da Jaula: nomes que faziam sempre soar campainhas na cabeça de Alice. Uma recordação saudosa e arrebatadora da infância, do pai e da mãe e de um tempo que tinha de manter guardado dentro de si.

 

As raparigas tinham ao pescoço finas correntes de elos prateados com os símbolos da idade em que haviam orgulhosamente entrado aos treze anos: a adolescência.

 

Mais uma vez comeram gelado com natas e frutas, deram risadinhas e bisbilhotaram... como sempre. Mas tudo era diferente. A última vez. Todas suspeitavam de que os seus caminhos iam separar-se, talvez para sempre. Era preciso aprender a dizer adeus; mais tarde, teriam de o fazer frequentemente na vida.

 

Os pais de Grit e Annedore já as esperavam no hotel. Iam partir antes de Alice. Gundi ia visitar a imensa família que tinha na Suíça. Só Mireille foi acompanhar Alice à estação na manhã seguinte. Berna apresentava mais uma vez o seu lado mais formoso: as rosas e a margem do Aar, o Jardim Botânico e a catedral, os pitorescos becos da cidade velha e o sol banhando tudo. E François à entrada, com uma caixa de bombons e uma rosa na mão, um beijinho no rosto, a promessa de escrever muitas, muitas cartas. Talvez se tornassem a ver, quem sabe?

 

Abraços a Mireille, uma torrente de lágrimas, a carruagem, acenos. Ra-ta-ta, ra-ta-ta... O comboio partiu e encerrou-se um capítulo da sua vida.

 

Alice encostou-se e fechou os olhos. Mas logo na estação seguinte entrou a mulher de um pastor com um rapazinho irrequieto, de cerca de dez anos, mal’ criado e quezilento, que fez Alice congratular-se por não ter irmãos para lhe darem cabo da paciência.

 

Para onde vai? perguntou a jovem mulher do pastor.

 

Para casa. No Norte da Alemanha respondeu Alice com um ar taciturno.

 

Deve ser muito inquietante fazer uma viagem tão grande sozinha?!

 

Estou habituada a viajar.

 

Era verdade e não era. Em criança, sim, andava sempre de um lado para o outro. A sua mãe, filha de boas famílias, apaixonara-se ainda muito nova por um homem a quem a avó só chamava «o vagabundo» quando por acaso a ele se referia.

 

O vagabundo era o pai de Alice. Tinha dele uma lembrança vaga e desordenada: moreno, alto, escuro, enérgico, caracóis pretos, dentes brilhantes, braços fortes que levantavam a criança e a faziam rodar, ombros nos quais se podia montar. Severo ao exigir que ela treinasse isto ou aquilo: que fizesse flic-flacs, montasse, saltasse em cima do cavalo a galope ou dançasse no arame.

 

«Não é possível que não tenhas herdado algum do meu sangue circense, Liça», gemera muitas vezes, acabando a sorrir. O rosto terno da sua mãe iluminava-se quando esta lembrava: «A Liça também é minha filha, Eric. Tal como eu, precisa de tempo para aprender.»

 

Vai ter com os seus pais, não é? perguntou curiosamente a mulher do pastor. O rapazote esforçava-se por arrancar o puxador da janela.

 

Os meus pais já morreram.

 

Oh!

 

Alice conhecia bem aquela reacção. As pessoas emudeciam. Não se faziam muitas perguntas a uma orfã. Triste, triste. Sim, o pai fora mobilizado e morrera na Rússia, e a pequena empresa circense com as quatro caravanas e a tenda que era montada na praça das aldeias por todos os artistas, fora à falência. Havia muito poucos espectadores. E nada para comer nem comida para o urso, que era a grande atracção do Circo Moretti. Alice guardava no coração a lembrança do número antes do intervalo: o pai, vestido de Arlequim, fazia a corte à mãe, disfarçada de doce Colombina. Então o urso entrava na arena e perseguia a terna Colombina, que se refugiava no arame. Enquanto ela se equilibrava lá em cima, empunhando graciosamente um guarda-chuva de seda, desenrolava-se cá em baixo na arena uma luta entre o Arlequim e o urso, com perseguição e luta greco-romana, que o Arlequim ganhava E enquanto o urso jazia imóvel no pó, a Colombina e o Arlequim dançavam à sua volta. Depois, o animal levantava-se e todos os três recebiam os aplausos do público.

 

O urso, que era uma ursa, chamava-se Ursula. Quando os avós levaram a filha perdida e a neta para ThieBendorf, o pequeno mundo de Alice desaparecera como um sonho. Nem sequer lhe disseram o que tinham feito a Ursula.

 

A sua querida mamã já chegara doente, com tuberculose. A avó consultara médicos e mandara preparar chás de ervas. Alice, que só podia ver a mãe de uma distância segura, fora examinada. Depois de lhe friccionarem qualquer coisa nas costas, viera o resultado: «Graças a Deus, a criança não tem nada.» Depois, a mamã fora repousar no cemitério, no jazigo da família. Alice escondera o único retrato que tinha dos pais; a mamã com os olhos escuros muito grandes, o pai de chapéu alto. Estavam a rir-se de uma forma estranhamente orgulhosa, como a querer dizer: O que é que vocês sabem?!

 

Nunca mais se falou do Circo Moretti na família Kellenhusen. Os avós adoptaram Alice, que passou a chamar-se Alice Kellenhusen.

 

Quando a mulher do pastor saiu, levando com ela o rapazola, que pisou propositadamente Alice, entraram duas senhoras muito animadas, pairando incessantemente. Com aquele agradável barulho de fundo e o matraquear do comboio, Alice quase adormeceu.

 

Teve de mudar de comboio duas vezes. Quando por fim se sentou no comboio regional, agora claro que já não numa carruagem especial para senhoras mas num vagão normalíssimo de primeira classe, sentiu de repente saudades, melancolia ou fosse lá o que fosse. A paisagem era tão vasta, com campos, bosques e o horizonte muito pálido! Quando se debruçava na janela, o cheiro era diferente. Mais acre. A erva, vento e mar.

 

Quando saiu e o velho Budder tirou o boné, pegando-lhe na mala e conduzindo-a à carruagem onde Míene esperava que o mandassem partir, sentiu-se de repente muito alegre. «Apesar de tudo, tenho um lar», pensou. «Já não tenho pais, mas tenho um lar. Aqui, onde o olhar abarca todo o céu. Sou jovem. Tenho a vida à minha frente. Vou ser feliz!»

 

A minha bagagem! lembrou-se. Eu tinha despachado umas malas!

 

O chefe da estação trata disso disse Budder, com aquela pronúncia inacreditavelmente aberta do Norte da Alemanha. Depois o carro grande vem buscá-las.

 

Como é que vão as coisas, Budder?

 

Tudo bem. A senhora está com a febre dos fenos. De resto, tudo em ordem.

 

E em sua casa?

 

Ah, a minha mulher morreu há um ano. É a Vida! A minha filha foi para a cidade. O meu filho é Carpinteiro em Lúbeck. Tem uma casa muito grande e quatro filhos.

 

Meu Deus, Budder, não sabia da sua mulher! Ele calou-se.

 

Os campos ainda estavam despidos ao sol da Primavera, mas o bosque já tinha um fulgor verde-prateado, esse tom que não havia em nenhuma caixa de aguarelas e que os pintores pouco versados nunca conseguiam captar. O verde encantava-a.

 

Inspirando profundamente o ar perfumado, Alice decidiu novamente que ia ser feliz e não se deixar perturbar por trivialidades. No entanto, estava muito agitada quando o carro passou o largo portão e foi a calcar o cascalho até à entrada. Nas escadas, a avó abriu cerimoniosamente os braços. Ao seu lado, encontrava-se o avô, alto, arruivado e imóvel. Alice desceu da carruagem, subiu as escadas a correr, pegou na mão estendida da avó e beijou-a cortesmente.

 

Ao contrário do que seria de esperar, a avó parecia comovida, quase como se tivesse chorado ou quisesse reprimir as lágrimas. Alice sorriu, lembrando-se do comentário de Budder sobre a febre dos fenos da «senhora». Claro, a avó tinha as mucosas inchadas por causa do pólen e não de comoção pelo regresso da neta. E mesmo que estivesse comovida, de certeza que ninguém o notaria. Mantinha sempre a compostura Toda ela era autodomínio e formalidade. Seria impensável imaginar-se «avozinha». Deborah Maryrose Hawks era britânica e parecia saída de um livro de ilustrações. Cingindo Alice, deu-lhe um beijinho no rosto.

 

Bem-vinda, Alice. É bom estares de volta. O avô abraçou a sua única neta com calor.

 

Sim, bem-vinda, minha querida. É muito bom termos-te aqui outra vez disse.

 

Alice gostava muito dele, mas não o considerava um aliado. Não era exactamente dominado pela avó, mas a divisão do trabalho e das competências era muito rigorosa em ThieBendorf. E a educação era da esfera da avó.

 

Alice adaptou-se novamente ao ritmo da casa Kellenhusen. «É estranho», pensou. «Aqui sou novamente criança.»

 

Foi visitar a campa da mãe, onde depositou flores e tornou a sentir-se comovida pela recordação dessa mulher graciosa, que vagueara como uma luz errante durante a sua curta vida. Alice tinha várias recordações suas, mas a mais querida era a da figura ligeira que fugia do urso e se balançava cautelosamente no arame, tendo a colorida sombrinha como único apoio no ar. Sim, fora assim que vivera: com intensidade e fugazmente. Alice sabia muito bem o que significavam os olhares examinadores que a avó lhe lançava. Temia entrever na neta a herança não só do pai, mas também da mãe, que deitara fora tudo o que era boa educação, atenção e dever para ir atrás daquele mocetão. Por amor! Uma situação degradante, que punha as pessoas tão fora de si ao ponto de esquecerem todo o respeito.

 

Alice agachou-se junto à sepultura da mãe. Não sentia verdadeira tristeza: só uma grande comoção que também continha um pouco de autocompaixão.

 

À noite, quando, como rezava a tradição, se sentaram ao pé do fogão de sala, disse o avô:

 

A situação política agrava-se a olhos vistos. Estamos a cair num caos. Os radicais de esquerda e de direita andam em ebulição. Não é uma situação nada boa para nós. A tua avó, apesar de britânica, passou a guerra mundial aqui em ThieBendorf sem ser incomodada. Mas, entretanto, instalou-se uma forma de nacionalismo cego, que não prenuncia nada de bom.

 

A avó acrescentou:

 

Vivemos retirados do mundo, o que para nós é

bom e conveniente. Mas tu és jovem, uma menina

que deve conviver com os outros. Na sociedade apropriada, claro. Nem sequer os bailes têm nada de mal se forem realizados no sítio certo.

 

Já estive em bailes, avó.

 

Pois, também achava que sim. O que pensas de ires passar uns tempos a Londres com a tia Elizabeth? Ela vive na cidade e olha por ti.

 

A irmã da avó tem uma casa muito grande acrescentou o avô.

 

Alice hesitou.

 

Ah, não sei... O que gostaria de dizer era que não queria viver em casas estranhas e grandes: queria um lar, o calor de uma família, segurança e afecto. Mas calou esse comentário.

 

A avó sorriu no seu jeito controlado.

 

Numa palavra: já anunciámos a tua visita à tia Elizabeth. Ela é, como sabes, muito mais nova do que eu. A benjamim da família. O marido, o tio Ben, a quem todos chamam horrivelmente Big Ben, é um banqueiro de sucesso. Vivem numa casa muito grande e não têm filhos.

 

O avô sorriu:

 

Eu e a tua avó conhecemo-nos num baile em Londres.

 

Alice corou. Sabia que se depositavam esperanças na sua estada em Londres, onde talvez encontrasse o marido certo. Um marido de boas famílias, que apagasse a mancha que a mãe pusera na família com a sua estranha escolha.

 

Quando viajo? perguntou Alice.

 

Os avós respiraram de alívio. Provavelmente tinham pensado que a neta ia levantar dificuldades ou, pelo menos, criticar a escolha da nova residência.

 

Pensámos que talvez daqui a umas quatro semanas, se achares bem respondeu Deborah Kellenhusen, num tom de voz invulgarmente suave.

 

Afinal, os teus velhos avós também querem estar um tempo contigo acrescentou Heinrich Kellenhusen.

 

Alice ficou verdadeiramente surpreendida quando os viu engolindo lágrimas de comoção. Mas claro que eles a amavam, à sua maneira. Não sabiam muito bem tratar com jovens. O filho morrera-lhes com difteria ainda em criança. A filha abandonara-os por causa de um vagabundo. Agora tinham a neta, a única ponte entre eles e o futuro. Não queriam cometer nenhum erro. Mas qualquer um que passasse algum tempo com eles ficava com a impressão de que estava perante duas pessoas que se bastavam a si próprias.

 

Assim, Alice passou tranquilamente algumas semanas em ThieBendorf. Montou o Castanho, bebeu leite de cabra oferecido pela mulher do guarda-florestal, brincou com os dois cachorros minúsculos que Dinah, a cadela de caça, dera à luz, e calcorreou os campos com o avô.

 

Era bonito. Lindíssimo. Alice amava a vastidão da terra e a vida calma e pacata. Se o tempo estava bom, sentava-se num banquinho no parque, pintando a aguarela um codesso em flor. Voltara a falar em dialecto. A sua pele adquirira um tom acastanhado. Madame Tissot ficaria horrorizada. Achava a pele bronzeada uma vulgaridade. Mas Alice mirava-se ao espelho e via que lhe ficava bem.

 

Examinava-se com atenção: a testa alta e redonda, os olhos escuros e húmidos, muito grandes e vivos, o Nariz minúsculo e a boca pequena, com os lábios cheios e um tanto grossos, que lembravam um fruto.

 

O peito, sem ser grande, era bonito e curvo, a cintura fina e flexível e as ancas redondas. As pernas... oh, sim, as pernas! Nesse aspecto, Alice estava muito segura de si: eram especialmente bonitas. Até as suas colegas o tinham confirmado.

 

«Qualquer dia também tenho um homem a dizermo», pensou, corando. Claro que François, em Berna, nunca se atrevera a falar de pernas. Mas Alice sabia que havia homens que o faziam. Homens correctos. Homens adultos. Um homem que amasse uma mulher e a trouxesse guardada no seu coração... oh, sim! «Hei-de arranjar um homem assim», decidiu, ajeitando os caracóis escuros com ambas as mãos. «Hei-de segui-lo para onde ele quiser. E não vou deixar ninguém meter-se na minha vida. Ninguém. Como a mamã!» Belinda, do colégio, cuja mãe era uma actriz conhecida, tinha um «passado obscuro», fosse lá isso o que fosse. Em qualquer caso, ria-se sempre desdenhosamente quando as outras raparigas falavam do que esperavam do futuro.

 

Alguém dissera que Belinda fora seduzida pelo amante da mãe e que fugira com ele. Um homem muito mais velho, de quarenta anos! Era perfeitamente inacreditável! Além disso, alguma coisa se notaria. Havia de parecer um tanto depravada. Mas não, tinha o ar fresco e límpido de um pêssego pela manhã.

 

Fosse como fosse, alguma vantagem Belinda tinha sobre elas. O riso, talvez. E um conhecimento que às vezes se revelava em curtas frases: «Costuma começar com um beijo, que é, por assim dizer, a introdução», dizia ela.

 

A frase não saía da cabeça de Alice que, quando pensava nela, se sentia percorrida por uma agradável e arrepiante expectativa e agitação. Paixão! «Uma paixão como uma labareda, onde possa consumir-me... como a mamã», decidiu.

 

Antes de Alice partir para Londres, a avó chamou-lhe novamente a atenção.

 

Não és nenhuma herdeira rica, Alice, minha filha. Não te esqueças disso. Temos ThieBendorf arrendado. É uma grande responsabilidade, sobretudo para com as pessoas cuja existência depende de uma boa administração. Se tu e o marido que um dia hás-de ter... mas isso tem tempo... não quiserem ou não puderem explorar Thiefiendorf, tem de se arranjar um administrador capaz. O nosso jovem Mecksiepen talvez seja uma hipótese. Vem de uma boa família e já é muito hábil. Gostas dele?

 

Do Mecksiepen? Oh, avó, nem o vi bem. É tão... tão pequeno e rosado. Acho que não gostava de me casar com ele.

 

Foi a vez de Deborah Kellenhusen ficar embaraçada.

 

Alice, por favor não sejas tão vulgar. Ninguém espera que cases com o Mecksiepen. Aliás, tanto quanto sei, está noivo. Só gostava de saber onde é que as meninas de hoje em dia vão buscar estes modos tão modernos. Uma menina não se casa: é desposada. E não fala disso. Quando encontra o seu eleito, manobra cautelosamente de modo a que o escolhido peça a sua mão.

 

E como é que se faz isso, avó? perguntou Alice, interessada.

 

Deborah Kellenhusen observou brevemente a neta, bonita como uma estampa. Como era parecida com a mãe em momentos assim! O amor e o receio tomaram conta do coração da velha senhora. Sabia por experiência própria como era difícil refrear o desejo e a esperança. Como era pesada a impetuosidade da juventude. Mas era dever de uma senhora ser controlada e reservada.

 

- Como se faz, é coisa que hás-de saber no momento certo disse. Mas nunca te esqueças, minha filha, de que a iniciativa pertence sempre ao homem.

 

Alice suspirou.

 

Oxalá eu encontre alguém assim! E pensou em François, tão tímido e acanhado. «A ele, nunca o teria levado a declarar-se», reflectiu. Mas depois afastou este pensamento. «Também foi coisa que nunca quis. Ria-se muito alto no cinema. E tinha a mão muito húmida. Não, não, François era amoroso, mas pouco próprio para casar.»

 

Antes de Alice partir, ainda se chamou a costureira da casa. Vieram tecidos da cidade. Folhearam-se revistas de moda. Claro que Alice trouxera um lindo guarda-roupa da Suíça. Afinal de contas, Berna não ficava do outro lado da Lua. Mas havia algumas coisas a acrescentar. Sobretudo, um vestido de baile.

 

A Sra. Kellenhusen sugeriu um vestido cor-de-rosa vaporoso, de saia larga e folhos, mas aqui Alice foi invulgarmente peremptória, pois tinha na ideia um fato de alças de seda natural cor de champanhe, liso e direito de cima a baixo. A única coisa que tinha era que a saia era comprida atrás e só dava pelos joelhos à frente. Como uma cascata. Alice estava entusiasmada.

 

Não achas que parece um bocado um traje de teatro? perguntou a avó.

 

Acho que não. Mas vamos suprimir o laço de trás. Na verdade, não sei como é um traje de teatro retorquiu Alice, novamente com a mesma expressão ardente que assustava sempre a avó.

 

Desta vez, os avós levaram a neta à estação. Budder conduzia o coche no qual se ia à igreja ao domingo, puxado pelo Branco e pelo Castanho, que balançavam os seus traseiros bem nutridos à frente dos senhores.

 

A despedida foi tão controlada como a chegada umas semanas atrás. Alice deixou-se abraçar. O bigode do avô fazia cócegas. A avó cheirava a alfazema.

 

Como o comboio já estava a apitar, a avó abraçou-a mais uma vez.

 

Vou rezar por ti disse.

 

Alice corou uma e outra vez. Era, de certeza, o maior presente que Deborah Kellenhusen poderia dar-lhe. Mais tarde, quando o comboio já atravessava a região plana e os fios do telégrafo pareciam dançar e baloiçar, as palavras da avó não lhe saíam da cabeça. «Vou rezar por ti.» Tinha um bocadinho de medo do desconhecido. Mas também esperava muito dele. Sentia nitidamente que andava qualquer coisa no ar. Qualquer coisa que esperava por ela. «Só não posso deixar passar o momento certo. Meu Deus, ajuda-me, que eu faça tudo como deve ser feito», rezou.

 

Desculpe, disse alguma coisa? perguntou a senhora em frente, sentada no banco às riscas verdes, que cheirava a naftalina, pó e sabão.

 

«Devo ter mexido os lábios sem querer», pensou Alice. Falando alto, disse:

 

Estava a treinar uma frase inglesa. Glad to see you, Aunt Elizabeth. Será que é assim?

 

A senhora ergueu as sobrancelhas.

 

Depende. Se realmente tiver muito prazer em ver a tia... não é?

 

Não a conheço.

 

Oh! E vão buscá-la?

 

Certamente. O meu tio vai mandar um coche. Mas não tinha assim tanta certeza. Começou a ficar inquieta. E se de repente se visse completamente sozinha em Londres? Tinha a direcção dos parentes e a de um hotel sério, para o que desse e viesse. Mas, até ao momento, tinha sido sempre guiada e orientada por adultos. Ora, o tio Ben devia lá estar! Afastou aquele pensamento para o mais longe possível. E nem sequer lhe foi difícil fazê-lo, pois tudo era novo e excitante na sua primeira viagem de barco.

 

Quando embarcou em Bremerhaven, o coração bateu-lhe desenfreadamente dentro do peito. Estava tudo calmo, mas continuaria assim? E onde estava a cabina? A sala de refeições? O que se vestia para jantar? Quem se sentaria à mesa com ela?

 

Encostada à amurada enquanto a orquestra tocava. Vou Sair da Cidade e as pessoas que ficavam em terra acenavam e choravam ou atiravam os chapéus ao ar e rejubilavam, Alice olhou delicadamente à esquerda e à direita. As expressões eram as mesmas desse lado: doidas de alegria ou profundamente tristes. Embarcar num navio podia ser uma aventura e uma novidade, mas também significava dizer adeus por muito tempo, talvez para sempre.

 

A vida a bordo era elegante e divertida. Um camareiro muito atencioso mostrou-lhe a sua cabina. À mesa, ficou sentada com dois casais jovens e um mais velho, que se mostraram amavelmente reservados e assim permaneceram.

 

À tardinha, passeou no convés, como muitos outros. Claro que se dava conta dos olhares de apreciação dos homens. Com o casaco de veludo de seda castanho-claro, a saia de veludo ligeiramente mais clara e um lenço branco de seda sobre o cabelo curto, ficava realmente deslumbrante.

 

Orquestras tocavam em várias salas. Alice gostaria de lá ir, mas não se atrevia. Uma jovem sozinha devia mostrar-se muito reservada. Já Madame Tissot assim lho ensinara.

 

Entretanto, anoiteceu. O navio abria caminho como uma ilha fantástica iluminada e cintilante. Alice veio novamente cá fora e respirou profundamente.

 

Um vento fresco soprou e comprimiu-lhe a saia contra as coxas. Apertando o lenço branco de seda à volta da cabeça, ergueu os olhos para o céu, no qual voavam apressadamente nuvens cinzentas e densas que, tal como as cortinas de um palco, deixavam entrever as estrelas, o crescente da Lua e um bocadinho da Via Láctea.

 

Arrefecera. Alice arrepiou-se e virou-se para partir. Foi então que deu directamente com os olhos dele. Estava a cerca de dois metros. Louro, alto, de ombros largos. A luz de um candeeiro batia-lhe em cheio no rosto. Ele fitou-a e sorriu. Ao mesmo tempo, semicerrou os olhos, formando pequenas rugas. Embora tivesse um aspecto muito jovem, parecia forte e ponderado. Provavelmente por causa da sua figura. Os homens altos tinham sempre mais facilidade do que os outros em mostrar-se dominadores e decididos. François era de estatura média.

 

Sem dúvida um inglês de regresso a casa. Ou americano, talvez? Havia a bordo muita gente que falava inglês, e não faltavam americanos. Estava na moda visitar a Europa com muitos dólares no bolso. Aquele homem envergava calças aos quadrados, polainas brancas, um casaco creme e um laço às pintinhas. Em todo o caso, não era o tipo de vestimenta preferida pelos Alemães ou os Britânicos. Tudo isto passou pela cabeça de Alice apenas subconscientemente, pois de repente sentiu um grande calor espalhando-se-lhe pelo corpo.

 

- É uma pena que se tenha mexido. Gostaria de a ter pintado assim como estava. Lindíssima - disse ele. Sim, falava um inglês impecável, muito aberto, mas com um ligeiro sotaque francês.

 

Alice lembrou-se da sua boa educação. «Valha-me Deus, não vou agora portar-me como uma provinciana patetinha», pensou.

 

- Então é pintor?

 

Fora, de certa maneira, uma resposta pronta. Havia frases a que o melhor era responder com uma pergunta que as desmascarasse. Mas, para surpresa de Alice, ele replicou:

 

Ainda não. Mas hei-de ser um dia. Estou no melhor caminho para isso.

 

Em Inglaterra?

 

Não. Aí tenho outra missão a cumprir. Quer dançar?

 

Eu... ha... Ah, Madame Tissot, como se comportava uma jovem em tal situação?

 

Mas está gelada! Vamos já para dentro. Mas antes... desculpe, mas não resisto... está a ver aquela estrela? Apontou para o céu.

 

Alice olhou obedientemente na direcção indicada.

 

Qual?

 

Aquela que brilha com tanta intensidade. Tinha a cabeça ligeiramente inclinada e a boca entreaberta. Ainda entreviu a estrela, mas depois sentiu o desconhecido a abraçá-la e os lábios dele nos dela. O que fazia ele com a língua?!

 

Alice estava prestes a ter um desmaio. O melhor era deixar-se desfalecer. Ele apertou-a mais contra si. Ela cedeu, sentiu a coxa dele entre as pernas e o mar e a escuridão abateram-se sobre ela.

 

Ele largou-a e mirou-a nos olhos.

 

Como se chama?

 

Alice.

 

Eu chamo-me Jim Rockwell.

 

Quando pronunciou o seu nome, Alice sentiu como uma descarga eléctrica na consciência. Alice! Pareceu-lhe ouvir claramente a voz apreensiva da avó ou o tom de censura de Madame Tissot. Alice! Bem no seu íntimo sentiu o medo que a avó lhe transmitira com olhares inquiridores e uma educação estritamente convencional: alguma coisa entrara em ebulição dentro dela, e tinha de a reprimir, pois só lhe traria o castigo, a infelicidade e a morte. Castigo, infelicidade e morte, como no caso da sua mãe.

 

Soltou-se com um abanão. Sentindo-se acossada, correu até à porta que dava para o interior do navio, abriu-a com toda a força e percorreu apressadamente corredores e escadas, como se tivesse o diabo atrás dela. Um diabo chamado Jim.

 

Percebeu então que estava a despertar alguns olhares admirados. Ninguém fez nada. Um jovem beijara-a. Se o levara a isso, fora sem intenção. De resto, o que acontecera? Nada. Nada... a não ser aquele entorpecimento maravilhoso nas pernas e na barriga, o coração desenfreado e a fraqueza nos joelhos, que certamente não fora provocada apenas pela correria. Em qualquer caso, nunca tivera tais sintomas com François.

 

Alice esgueirou-se para dentro da cabina e contemplou o mar agitado pela janela redonda. «Sou jovem. A vida é emocionante. Há muita coisa que não se aprende nem no melhor colégio. Vou-me deitar e ler um bocadinho. A vida é bela!»

 

No entanto, à noite, acordou com uma sensação estranha, angustiante. O navio balouçava ligeiramente de um lado para o outro. Lá fora estava escuro. Alice Kellenhusen nunca se sentira tão alheia e afastada de tudo. A mãe teria passado o mesmo na caravana, entre dois lugares estranhos, deixando gente desconhecida a Caminho de mais gente desconhecida?

 

«Mas tinha o meu pai», pensou Alice. «O seu marido, que a protegia e amava. Por amor, deixou tudo, a casa paterna. Oh, deve tê-lo amado muito! A tua

filha tem uma ânsia infinita, mamã! Anseio por um grande amor. Eu também iria até ao fim do mundo com o ser amado, se ele assim o quisesse. Mas estou sozinha. Horrivelmente só e cheia de medo do que me espera. Será que algum dia conhecerei o homem certo, que queira saber de mim? Não sou nenhuma gata-borralheira, e ele não precisa de ser nenhum príncipe. Mas uma coisa é certa: não vou aceitar qualquer um! Nem nenhum estróina!»

 

Quanto mais o navio se aproximava do porto, mais inquieta Alice se sentia. Quase perdera aquela despreocupação da juventude, que confia em que as coisas acabam por resolver-se por si mesmas.

 

Todavia, inquietara-se em vão. A tia Elizabeth estava à sua espera em Portsmouth. O louro que a beijara permanecia invisível.

 

Chamaram o nome de Alice por um megafone. Ela apresentou-se e foi imediatamente abraçada por uma senhora elegantíssima, envolta numa nuvem de perfume e aroma de tabaco, que a inundou com uma torrente de frases inglesas, ditas no tom ligeiramente estridente e nasal cultivado pelas ladies britânicas.

 

Alice ficou estarrecida. A tia Elizabeth «Please, call me Bettie, my dear.» portanto a tia Bettie, não tinha absolutamente nada a ver com a avó. Primeiro, era de facto muito mais nova. Depois, vestia-se à última moda. Tinha a saia de vários comprimentos e perfeitamente à altura dos joelhos no sítio mais curto! Além disso, Alice viu nela a primeira raposa azul da sua vida. A pele, com a cauda e olhos de vidro na cabeça cuidadosamente tratada, envolvia luxuosamente os ombros de Bettie.

 

E ficou ainda mais espantada quando a tia Bettie conduziu a sobrinha-neta ao automóvel. O cabriole Maybach era fechado atrás. À frente, tinha uma espécie de lona enrolada.

 

No banco de trás, ladravam e rosnavam três minúsculos malteses brancos, com fitas vermelhas afastando-lhes o pêlo de pónei dos focinhos. Bettie Neary atirou a raposa azul para o lado e sentou-se ao volante. Alice entrou e recostou-se no assento, enquanto Bettie carregava no acelerador com o seu pé gracioso. A saia subira-lhe até meio da coxa. Alice ficou espantada. Então uma senhora podia sentar-se assim? Deixar que se vissem tanto as meias de seda cor de carne? Madame Tissot teria tido um chilique. E a avó aqui Alice sorriu sem dúvida que não teria confiado a neta a uma senhora com maneiras tão liberais. Bom, claro que não havia homens presentes.

 

Bettie observou brevemente a pequena com um olhar de través.

 

Estás a sorrir. Isso é bom afirmou. A vida não é nenhuma tragédia. Estava agradavelmente surpreendida, pois receara ter de tomar sob a sua protecção uma colegial detestável e submissa.

 

Porém, aquela Alice era realmente bonita. Com um bocadinho de ajuda mundana, ia levantar muito burburinho no mundo das debutantes londrinas. Bom, também houvera aquele escândalo com a mãe. Uma filha do circo. Uma filha do amor. Uma coisa assim não se apagava sem deixar rasto. Oxalá não fosse muito estouvada, pois não havia nada mais difícil do que conter uma jovem com o fogo no corpo.

 

Ora, logo se veria. Havia tempo. A época dos bailes não abria antes do Outono. O pai da jovem Alice era meio italiano. «Mesmo assim, tem sangue britânico do nosso lado», pensou Bettie.

 

Ela e o seu Big Ben tinham querido filhos ao princípio, mas depois de três insucessos tinham ficado só Os dois. Era engraçado ter agora de repente uma joVem «para orientar».

 

Os Neary viviam numa casa espaçosa na cidade, perto de Regent’s Park. O pessoal, encabeçado pelo mordomo, estava alinhado à entrada para saudar a hóspede, Miss Alice Kellenhusen.

 

À tardinha, o tio Ben chegou a casa. Era alto e magro, com o rosto de cavalo cheio de rugas, dentes compridos e cabelo ralo louro-grisalho. Quando se ria, parecia que ia morder. Mas era muito simpático. Ao jantar, perguntou a Alice:

 

Então qual é a primeira coisa que queres fazer em Londres?

 

Bettie riu-se.

 

Já fiz muitos planos: visitas, compras, passeios, viagens a Margate a banhos... ah! Muitos planos!

 

Mas tens de perguntar à Alice se lhe apetece fazer isso tudo observou Ben à sua enérgica esposa.

 

Apetece-te, Alice?

 

Claro, muito! Agradeço imenso a atenção.

 

Não, de nada. Mas, olha, se tiveres alguma proposta, diz, por favor!

 

Alice hesitou um pouco e depois disse, decidida:

 

Se puder ser, gostaria... quando calhar, claro que não tenho pressa... mas gostaria de ir ao Jardim Zoológico!

 

Bettie sorriu.

 

Ela não é um doce? perguntou ao marido, que também riu. Ponho-lhe aos pés a sociedade londrina, e o que é que ela quer? Ir ao Jardim Zoológico! Ah, isto é realmente refrescante. Não, Alice, não cores. Acho isso encantador. Verdadeiramente encantador. Claro que também vamos ao Jardim Zoológico... um dia destes.

 

«Eles não sabem, não podem saber, o que o jardim zoológico significa para mim», pensou Alice. «O jardim zoológico e o circo têm pontos em comum. É como se lá eu estivesse mais perto dos meus pais. Mas claro que não vou dizê-lo!»

 

No Jardim Zoológico de Londres, há muito que o urso Kitchener se tornara uma instituição, como Nessie, o monstro de Loch Ness, ou Robin dos Bosques, o vingador dos oprimidos. E o «urso do regimento» tinha uma vantagem inestimável: existia mesmo! Podia ser visitado e visto. Nos meses de Verão, passeava-se respeitavelmente ao ar livre, entre as suas damas.

 

Havia três ou quatro ursas, dependendo do facto de alguma delas já estar ocupada com os seus rebentos. Normalmente, eram três as damas que trotavam pelo parque.

 

Só aos cinco anos Kitchener usara plenamente os seus direitos conjugais. Antes disso, houvera apenas umas escaramuças, pois o seu instinto sexual ainda não estava completamente desperto.

 

A sua favorita chamava-se Rose. Kitchener limitara-se a esperar para ver que ursa ganhava a morosa batalha pelo papel principal na hierarquia feminina. Bom, Rose vencera. Era uma ursa temperamental, extremamente combativa e orgulhosa. O cabo dos trabalhos Para um urso simples como Kitchener.

 

Mas Rose conhecia os seus limites. Aquele rapaz forte, tão terno e rebelde, tinha de ser o seu senhor.

 

Sabia-o instintivamente, e os senhores do Jardim Zoológico tinham-no confirmado. Bastaria ele dar-lhe uma patada para a desfazer. Assim, deixava-se acariciar energicamente por ele e retribuía a paixão moderadamente, como lhe cabia enquanto vencedora do grupo das senhoras. Mas face às rivais, punha as garras de fora, mostrava as patas robustas e arreganhava os fortes dentes. Todas elas sabiam qual era o seu lugar. Primeiro estava Kitchener, depois Rose, que realmente pouco jus fazia ao seu poético nome, a seguir May, Mona e, por fim, Cynthia, que, apesar de ainda donzela, era sempre o bombo da festa.

 

Na verdade, não morriam de amores uns pelos outros. No estado selvagem, andariam sozinhos e só se reuniriam ocasionalmente, atraídos por algum despojo.

 

No Jardim Zoológico, andavam cautelosamente uns com os outros. Cada animal tinha o seu espaço, que até o mais forte de entre eles respeitava. No fundo, não estavam nada interessados uns nos outros, aqueles grandes ursos castanhos que se punham de pé nas patas traseiras de um modo tão engraçado quando o tratador lhes atirava a comida ou a empurrava com uma vara ao meio-dia. Além disso, tinham visitantes habituais, que também olhavam por eles e lhes levavam petiscos. Entregavam-nos ao tratador, que estranhamente se chamava Bear. Não se sabia se fora por acaso ou se o nome o influenciara na escolha da sua profissão.

 

Mr. Bear amava os seus ursos, mas ninguém poderia dizer com toda a certeza se o contrário também seria verdade. Não tinham expressão. Não possuíam nos focinhos quaisquer músculos que os ajudassem a manifestar o riso, a cólera ou o afecto. Na vida selvagens

 

1 Urso. (N. da T.)

 

um urso não precisava de mímica. Vivia sozinho e de modo algum estava interessado em dar-se com os da sua espécie. Portanto, para quê?

 

Mas havia uma altura em que gostava de conviver. Quando o urso adulto encontrava uma ursa e o amor até fazia faísca, aí faltava-lhe a arte da diplomacia e do jogo dos afectos.

 

Foi o que se passou com Kitchener, quando de repente foi assaltado por uma insuspeitada paixão por Rose. E a virginal Rose sentiu-se igualmente arrebatada por aquele rapaz que lhe foi ao encontro e se levantou bem alto. A Natureza seguiu o seu curso normal. Ao princípio, o jogo amoroso mais parecia uma feroz luta corpo a corpo. Rose estava habituada à vitória nas relações com as suas companheiras e ainda inflingiu uma derrota a Kitchener.

 

Assim, lutaram, apertaram e empurraram. Engalfinharam-se com as patas da frente e puseram os músculos em acção. Pareciam tal e qual dois lutadores num rinque. Só faltava quem arbitrasse o jogo. Mas nem pensar nisso. Não no calor daquela paixão.

 

Até Mr. Bear que, contra as mais estritas normas de segurança, ia muitas vezes limpar o recinto sem antes ter fechado os ursos, se manteve a uma distância segura, tão fascinado como cauteloso.

 

Sim, Kitchener incendiou-se de repente por Rose, mas não sabia o que estava a acontecer. No entanto, quando lhe sentiu o pêlo e as amorosas patas envolvendo-o, foi assaltado por uma paixão avassaladora. Uma imensa ternura percorreu-lhe as veias.

 

Rose, que ainda não reparara na mudança, continuava a lutar ferozmente. Mas ele já não mordia. Não, acariciava-a com as patas. Encostando o focinho ao dela, esfregou-o afectuosamente e acariciou-a. Rose reagiu. A aguerrida Pentesileia deu lugar à fêmea atraente, seguindo afectuosa e provocantemente o instinto eterno. E fê-lo bem.

 

Kitchener vogou num mar de prazeres. O seu navio tinha mastros de ouro, velas de seda purpúrea e um casco de estrelas prateadas. Já não era Kitchener, o urso do regimento, a atracção dos visitantes do Jardim Zoológico, e sim um archote em chamas, um instrumento da criação.

 

Só existiam Rose e Kitchener, Kitchener e Rose. Era Primavera, tanto lá fora na terra como dentro do coração. O romance dos ursos foi imenso e, infelizmente, tão fugaz como a maioria dos grandes romances. Durou três semanas e, como se sabe, três semanas podem ser muito tempo, às vezes mais do que uma vida inteira.

 

Depois, Rose voltou a partir e Kitchener retirou-se majestosamente para o território da sua preferência. Mas que ninguém diga que a ligação não serviu para nada. Olá se serviu! Três bebés ursos aguardavam agora a sua entrada no mundo.

 

Como já foi dito, Kitchener era uma celebridade. Portanto, a notícia da sua paixão foi amplamente divulgada nos jornais. Com o seu faro para o burlesco de todos os acontecimentos, os jornalistas alongaram-se na história deste velho guerreiro que, ao contrário dos outros animais do Jardim Zoológico, tinha um passado. No Canadá, todo um regimento marchava atrás dele, por assim dizer. De facto, ainda era a mascote do 159.° Regimento de Infantaria de Ontario-

 

E embora não pudesse estar com eles em carne e osso, o coronel Perkins, ao despedir-se, tivera um último gesto que o imortalizara ainda em vida: incluíra-o nas armas do regimento, que agora tinham a cabeça de um urso ao lado de uma folha de ácer e das fanfarras.

 

A consagração das armas fora um grande acontecimento, com desfile, discursos e um «Torneio de Futebol para a Taça Kitchener». E como aparecera um repórter britânico em Ontario, as fotografias e a história foram amplamente divulgadas nos jornais ingleses.

 

Os Britânicos sorriram, com a sua predilecção por actos assim excêntricos.

 

As gazetas também nunca deixaram de publicar os «Boletins de Saúde» que Mr. Bear e Chuck Brady, o especialista de ursos do Jardim Zoológico de Londres, redigiam anualmente. O 159.° Regimento de Infantaria também recebia relatórios precisos sobre o estado de saúde, pequenas indisposições, crescimento e condições gerais da sua mascote. E, justiça lhe seja feita!, o pagamento do regimento chegava sempre religiosamente a tempo e horas.

 

Quando Kitchener se apaixonou por Rose e até lhe cortou a respiração durante vinte e um dias e noites de loucura, evidentemente que o assunto também foi comunicado.

 

O coronel Powell, que substituíra Luckie Perkins, decretou imediatamente uma licença para todos. Além disso, redigiu-se um telegrama, que foi expedido sem demora.

 

A direcção do Jardim Zoológico de Londres não ficou grandemente espantada. No fundo, aquela cómica ideia dos malucos do Canadá até lhes dava publicidade, o que acabava por vender mais bilhetes. Por que razão haviam os directores de ser contra?

 

Portanto, o telegrama foi passado a Chuck Brady

que, por seu lado, o entregou a Mr. Bear com uma impressão de pedra e as palavras:

 

Telegrama para o Kitchener. Leia-lho em voz alta por favor! Proponho que a leitura seja feita solenemente amanhã, às dez horas.

 

Mr. Bear respirou profundamente, mas não disse nada. Era absolutamente a única pessoa que percebia alguma coisa de ursos, e sabia muito bem que Kitchener preferia de longe um pote de mel a um telegrama idiota. Estava-se nas tintas para o seu antigo regimento. Mas se era o que queriam e como eram eles que pagavam... porque não? Ordens eram ordens.

 

Assim, na manhã seguinte, Mr. Bear foi postar-se solenemente em frente do recinto dos ursos. Envergava uma bata nova, o que fora uma boa ideia, pois o manhoso Chuck Brady não se esquecera de avisar a imprensa. Já o esperavam alguns repórteres locais, sobretudo voluntários, com a esperança de conseguirem algum furo jornalístico.

 

Mr. Bear encheu o peito de ar, pôs o comprido papel à frente dos olhos e leu com a voz de um sargento comandando as tropas:

 

Votos de felicidades para o casamento stop Esperamos que a escolha seja feliz stop Estamos contigo em pensamento stop O tambor do nosso regimento compôs uma Marcha Kitchener stop William Rockwell tem outro filho chamado Percy stop Boas entradas na vida de casado stop Não sejas muito atrevido nem muito acanhado stop Um velho soldado e combatente da frente não conhece a capitulação stop Neste sentido, os oficiais e homens do 159.° Regimento de Infantaria de Ontario felicitam-te nas pessoas do coronel Powell e do teu velho amigo William Rockwell.

 

Kitchener desatou a correr e, na verdade, ninguém acreditou que ele tivesse ouvido. Mas, de repente, trepou para a sua pedra e deitou-se. Pousando o focinho húmido e ponteagudo nas patas, soltou claramente um estranho gemido. Os jornalistas agitaram-se. O animal teria realmente percebido? Sofreria com a separaÇão dos velhos camaradas? Os olhos de Kitchener não estavam também toldados? E aquele som alto não parecia mesmo um lamento?

 

À tarde, era o seguinte o título de uma gazeta: «Kitchener chorou quando recebeu o telegrama.» E numa gazeta cor-de-rosa lia-se mesmo: «Kitchener soluçou de saudades!»

 

Os visitantes acorreram. A velha senhora que o visitava sempre diariamente para lhe levar petiscos e um pudim duas vezes por semana era por isso conhecida por pudding lady, dava entrevistas, dizendo que Kitchener estava muito bem em Londres, mas que era natural que se comovesse com as notícias dos seus antigos companheiros. Acontecia a qualquer um. Mas até uma criança via como Kitchener era feliz. A direcção do Jardim Zoológico ficou-lhe eternamente agradecida.

 

Como acontece sempre, Kitchener foi desaparecendo gradualmente das notícias. A sua vida voltou a normalizar-se. Nas estações do ano mais bonitas, vivia cá fora. Mas no Inverno também gostava do ar puro.

 

Quando o novo dia começou, Mr. Bear já lhe servira o pequeno-almoço lá dentro. Cada animal tinha um lugar certo para a sua comida, e aí obedecia-se estritamente ao regulamento. Mr. Bear devia ter trancado a porta que dava para o exterior, de modo a poder linpar calmamente o recinto. Mas não o fez. De resto, Andava à vontade entre os seus ursos. Era verdade que Já houvera acidentes graves noutros jardins zoológicos Porque os tratadores tinham subestimado o perigo. Mas Mr. Bear estava convencido de que conhecia bem a sua gente. Quando Mr. Brady ou qualquer outro membro da direcção do Jardim Zoológico aparecia, então claro que cumpria à risca todas as normas. Os directores sorriam, e Mr. Bear também se permitia um ligeiro sorriso. Todos sabiam o que se passava, mas as aparências tinham de ser mantidas.

 

Mr. Bear também lhe pusera água fresca. No entanto, os ursos preferiam saborear deleitadamente a água um tanto suja do rego a beber a água puríssima da gamela. Preferiam a água dos regatos ou dos rios, provavelmente porque ainda lhes corria no sangue a herança dos antepassados. Quando queria descansar, Kitchener retirava-se para o seu canto, onde se enroscava aconchegadamente e adormecia na bem-aventurança, sonhando, resmungando um pouco e parecendo-se exactamente com as imagens dos ursinhos dos quartos das crianças.

 

Mas, coitado dele!, uma das senhoras ursas quisera instalar-se confortavelmente no seu canto! Provavelmente, estava no fim do tempo. Em qualquer caso, o veterinário teria sempre que fazer, pois Kitchener vigiava e defendia apaixonadamente o seu território.

 

Se não podia chamar seu a nenhum território de caça, então que ao menos tivesse um pequeno reino próprio. Por sorte, passava-se exactamente o mesmo com as ursas que, por isso, raramente se intrometiam. Exceptuando, naturalmente, o apaixonado romance de Rose e Kitchener, que começara em Maio e terminara em Junho, com a suave brisa do Verão.

 

No fim da sua breve hibernação, em Janeiro, Rose deu à luz três ursinhos que, de resto, mais pareciam três ratos pelados. Mas não interessava. Rose também não andava com eles por aí e mantinha-os estritamente vigiados. Por enquanto, ainda eram indefesos.

 

Mas, passados três meses, Rose fez a primeira excursão ao sol quente da Primavera com os rebentos que tivera de Kitchener.

 

Três engraçadas bolinhas rolavam atrás da sua mamã.

 

Os ursinhos eram tão redondos e bebés que só apetecia mimá-los e fazer-lhes festinhas.

 

Isso, no entanto, era coisa que Rose nunca permitiria. Bem pelo contrário, não tirava os olhos dos seus bebés. Nem Mr. Bear podia aproximar-se.

 

Rose fora separada dos outros ursos ainda antes do parto. Havia já um ano que tinha um espaço próprio, pois, se encontrasse outros ursos pela frente, talvez mesmo Kitchener, o pai das suas crias, atacaria de imediato e cegamente. E Kitchener, aquele mocetão, matá-la-ia. E aos filhos.

 

Crescido em cativeiro e habituado ao convívio com o homem, Kitchener era um animal bastante tratável. Mas a sua natureza permanecia a mesma. Em situações limite, os instintos primitivos despertavam e tornava-se um lutador. No Jardim Zoológico, comia com prazer as suas ementas vegetarianas, constituídas por legumes esmagados, fruta, um pouco de erva, pão e apetitosas sobremesas.

 

Por outro lado, se isso lhe parecesse necessário, poderia rasgar um animal de cima a baixo sem qualquer dificuldade. Estava acomodado, mas não verdadeiramente domesticado.

 

Por isso, Kitchener nunca viu a sua prole. O dia em que foi pai pela primeira vez foi para ele um dia como todos os outros.

 

O mesmo não se passou, porém, com o 159.° Regimento de Infantaria de Ontario onde, recebida a notícia, houve cerveja grátis na cantina. A bandeira canadiana foi içada nos edifícios da caserna. As licenças foram prolongadas até ao dia seguinte. Todos os soldados envergaram as fardas de saída muito bem escovadas e os sapatos engraxados. O dia ficou registado nos anais do regimento como as «Núpcias do Urso».

 

Porém, não deve deixar de ser dito que Kitchener
não foi fiel. Um ano de separação é muito.para um urso adulto que já lhe tomou o gosto. Tanto mais que tinha graciosas ursas à frente do nariz e dos olhos e era Maio outra vez e outra e outra. Os anos decorriam na terra.

 

O tempo passava para todos e também para os amigos de Kitchener dos dias da guerra.

 

O velho coronel Perkins enviuvara e retirara-se para a ilha do Príncipe Eduardo, onde o seu filho mais velho tirava da terra da quinta da família as batatas de casca vermelha e o mar batia na praia branco-prateada, onde se podia pescar e contemplar a distância ou ir visitar velhos amigos a Charlottetown e às vezes até dar um saltinho ao teatro.

 

O seu oficial-às-ordens Clark também abandonara o cargo havia muito e estava completamente retirado da cena militar. Nunca mais se soubera nada dele. Também nunca participou no culto Kitchener, o que era de esperar visto que nunca gostara do urso do regimento.

 

Dick Powell, inteligente e garboso oficial condecorado pela sua actuação na frente, progredira rapidamente e agora, ainda relativamente jovem, comandava o regimento com o posto de coronel.

 

William Rockwell concretizara os seus planos. Sim, tudo aquilo com que sonhara em França, tudo o que só podia acarinhar quando estava tão perto da morte, tremendo de frio, encharcado e aterrorizado, realizara-se plenamente. E nunca se esquecia de dar graças por isso. Em todo o caso, quase nunca. Aliás quando isso acontecia, bastava-lhe parar uns segundos para sentir de novo o desespero de outrora.

 

Nunca esqueceria o momento em que o comboio entrara em Sarnia. O seu coração, que resistira a tantos ataques, parecia ir falhar. Batia-lhe descompassadamente dentro do peito, parava e voltava a disparar como uma salva de artilharia. A banda dos bombeiros estava alinhada na gare. Os homens velhos ou muito novos que não tinham estado na guerra apresentavam-se briosamente com os seus uniformes. Rapariguinhas pequenas agitavam bandeirolas. Algumas empunhavam ramos de flores. Ao princípio, William nem queria acreditar que toda aquela pompa era para ele.

 

Mas sim! Quando descera da carruagem, a multidão que estava na gare, gritara: «Hurra!» Depois, vira Jenny, e o mundo estremecera por um momento.

 

Jenny, graciosa e atraente como sempre, precisamente a imagem que William invocava em tempos terríveis. Ao seu lado encontrava-se um rapagão alto, mais alto do que ela e já muito viril. Não podia ser o seu pequeno Jim?! E aquela que andava com passinhos pequenos de mão dada com Jenny, de um louro-dourado e face rosada, envergando um vestido cor-de-rosa, era naturalmente Lucille!

 

William pensara e registara tudo isto inconscientemente, pois já fora lançado para junto dos seus entes queridos através da pequena ala aberta pela multidão. Abraçando a mulher, apertara-a contra o coração como se quisesse esmagá-la. Ela, por seu lado, murmurara em voz baixa e cristalina:

 

William, meu amor!

 

Puxando-lhe a aba do casaco, Lucille trinara:

 

Papá!

 

Sorrira para Jenny por entre lágrimas. Sentindo um soluço crescendo-lhe dentro do peito, inclinara-se rapidamente para a filha pequena, que lhe lançara os braços roliços ao pescoço e lhe comprimira o rosto com o nariz húmido e quente e os lábios um tanto pegajosos de bombons.

 

Quando tornara a endireitar-se, virara-se para Jim, que se mantinha muito direito, como se tivesse engolido o cabo de uma vassoura, e que, sem qualquer expressão especial, só dissera energicamente:

 

Olá, papá, bem-vindo a casa. Os seus olhos brilhavam.

 

William abraçara-o:

 

Jim, meu rapaz!

 

Jim suspirara duas vezes, como uma criança que chorou muito.

 

O coro da escola cantara Glória, Glória, Aleluia! O presidente da Câmara saudara o filho da cidade que, felizmente, regressara. Dois outros habitantes de Sarnia tinham caído.

 

William apertara contra si os ramos de flores com a mão esquerda e passara o braço direito à volta da cintura de Jenny, sentindo as suas ancas arredondadas.

 

Deixaste crescer outra vez o cabelo. Ainda bem sussurrara-lhe ao ouvido.

 

Agora ficas connosco, papá? perguntara Jim.

 

Fico. Nunca mais nos separamos. Eu, pelo menos, não torno a partir garantira William aos seres amados.

 

Cumprira a sua promessa. Quando abandonara o serviço militar, o exército dera-lhe uma soma considerável. Fora-lhe também concedida uma linha de crédito. Com a pequena quinta que os pais lhe tinham deixado, começara a sua criação de castores. Tinham-se mudado para Port Hope, no lago Ontario,

 

Comprara mais alguma terra e iniciara um pequeno empreendimento agrícola. No decorrer dos anos, conseguira autorização para pescar salmões, quando estes seguiam contra a corrente no Verão, para desovar.

 

William Rockwell era feliz. Tinha tudo o que desejava. À tardinha, sentava-se no banco em frente da sua casa. O pequeno varandim de madeira dava para um jardim onde Jenny tinha uma horta e uma profusão de flores. Os Estios eram muito curtos. Os Invernos arrastavam-se, rigorosos e implacavelmente frios. O Verão era aprazível e o Inverno ensinava a apreciar o calor da lareira e o aconchego dos candeeiros.

 

Mais tarde, William adquirira uma cadeira de balouço. E quando pelo Verão se balouçava na varanda, espraiando a vista pelo jardim e pousando-a nos juncos que se inclinavam ao vento e nas aves aquáticas que esvoaçavam em formação cerrada, virando a uma ordem misteriosa, riscando grandes curvas no céu e voltando a mergulhar nos juncos, então pensava muitas vezes em França e nas solitárias horas de sentinela. Nos camaradas. No estranho acontecimento com o urso. Outros esqueciam, mas William lembrava-se de tudo, tudo. Kitchener, o talismã da sorte, vivia agora no Jardim Zoológico de Londres. Quando chegavam os boletins anuais de saúde, claro que William Rockwell era logo informado. Afinal de contas, fora designado «tratador honorário e vitalício do urso».

 

Tudo corria na perfeição. Jenny e William amavam-se ternamente. Havia muito que se convencera que não tinha nenhum rival em Mr. Dobbs. Aí, Jenny escolhera melhor. Uau!

 

Lucille era uma criança viva e irrequieta. Só uma gota de fel amargava o cálice da felicidade de William. A sua relação com Jim não era completamente irrepreensível. Não. Embora o jovem tivesse ficado contente quando o pai regressara, depois mantivera-se frio e reservado. O problema era que Jim fora o homenzinho da casa. Logo que havia a mais pequena diferença de opinião com Jenny, o rapaz intrometia-se, tomando Sempre o partido da mãe. Por outro lado, Jim percebia que não correspondia às expectativas nem às exigências do seu enérgico pai.

 

O jovem era, antes de mais, um sonhador. Apesar de saber ser atrevido e espirituoso, não achava grande piada à maioria das coisas que os homens costumavam fazer: pescar, caçar, jogar basebol, dizer disparates, beber cerveja, entrar em rodeos e cavaquear à volta das fogueiras dos acampamentos. Em vez disso, Jim pintava.

 

Quando admitiu pela primeira vez que gostava de ser pintor, o pai fitou-o como se ele tivesse aparecido vestido de mulher.

 

Pintor?! Jim! Pensa bem, por favor! Claro que podes pintar, mas nos tempos livres. Olha o tio Steve, que tocou flauta de bisel. Mas como um hobby. O que... o que é que pensas então? A nível de formação?

 

Há uma academia de arte em Montreal, papá. Peço-te encarecidamente que me deixes ir estudar para lá. Podia arranjar também um part-time, para não ficar muito caro. Gostava muito, papá.

 

Tens de perceber bem que não me mato a trabalhar para o meu filho ser pintor.

 

És contra?

 

Estou a dizer-te que não. Chega?

 

Jim não respondeu. Enfiou a cabeça entre os ombros e saiu.

 

Quando William procurou a concordância da mulher, só conseguiu um encolher de ombros

 

Ele é muito obstinado, William disse. Não acredito que o faças mudar de ideias se ele quiser mesmo a sério.

 

É um papa-açorda.

 

Aqui, contra o seu costume, Jenny encolerizou-se-

 

Não é nada gritou, fora de si. Só tem interesses diferentes dos teus e dos teus compinchas. É um homenzinho às direitas e vai ser um adulto com A grande. Nessa altura, vais ver, William Rockwell!

 

Foi a reconciliação que se seguiu que originou Percy? O certo é que ele nasceu nove meses depois. O regimento recebeu uma participação de nascimento e Kitchener também foi informado por telegrama do feliz acontecimento ocorrido na casa do seu tratador.

 

Para William, ter este segundo filho significava um renovar de esperanças. E para Jim, a sua chegada foi um verdadeiro golpe de sorte pois, de repente, o seu papá ficou mais tolerante. Deu-lhe mais liberdade e ouviu com atenção o professor de Desenho da escola de Jim, que afirmou que este era o aluno mais dotado que alguma vez tivera na sua disciplina.

 

Talvez seja bom ter um artista na família condescendeu William, dirigindo-se ao seu primogénito. Seja como for, já sabes que a casa dos teus pais está sempre aberta para ti, meu rapaz.

 

Tenho a certeza de que não vais arrepender-te, papá!

 

Daí em diante, a relação entre pai e filho melhorou a olhos vistos. Jim até acompanhou os pais a Toronto, por ocasião do Dominion Day. Era o primeiro de Julho de 1923. Como todos os anos, havia um cortejo festivo, no qual participavam todos os grupos étnicos do Canadá, com carros enfeitados e gente vestida a preceito.

 

De ambos os lados de Yonge Street apinhavam-se os espectadores, a quem a riqueza dos trajes, a diversidade das danças e dos arranjos de flores e a destreza dos músicos arrancavam grandes aplausos.

 

A terrível guerra que assolara a Europa já acabara ”avia quase cinco anos. Milhares de canadianos tinham tombado. Mas o tempo cura as feridas. As pessoas queriam esquecer. Evidentemente que havia uma delegação do 159.° Regimento de Infantaria no cortejo. ^ a orquestra militar também lá ia a marchar. William Rockwell e a família tinham lugares na tribuna de honra. E lá desfilavam todos: chineses, japoneses, cubanos, alemães apresentando o seu «Mardi Gras of Germany» com os calções e os trajes típicos da Baviera, associações francesas e britânicas... e Miss Canadá. Só os índios não estavam presentes. Não era muito agradável recordar essa nódoa escura na camisa branca da tolerância nacional.

 

O coronel Powell não perdera a oportunidade de marchar fardado à frente das suas tropas.

 

Papá! Papá! gritou uma rapariga da tribuna, não muito longe dos Rockwell.

 

E aconteceu: Jim Rockwell apaixonou-se pela primeira vez na sua vida.

 

Mabel Powell, uma jóia de rapariga, um tanto roliça, de quinze anos, com caracóis louros e o rosto rosado e bochechudo de um anjo, pareceu-lhe a verdadeira encarnação da beleza feminina.

 

Quando, mais tarde, foi apresentado a Mabel, Jim tinha as palmas das mãos húmidas. Disfarçadamente, limpou-as à camisa. Mabel estendeu-lhe amavelmente a mão. Ele balbuciou qualquer coisa, a que ela respondeu com arrogância. O que disse não foi com certeza nada de muito iluminado, mas Jim ficou em êxtase.

 

O ano passado o tempo estava melhor. E mais quente observou ela, fitando o perplexo Jim com um ar mauzinho, como se a culpa fosse dele.

 

Não se passou mais nada. Mas para um jovem que vinha de Port Hope, chegava para sonhar.

 

Andava com a imagem de Mabel no coração. Era bastante fiel e tomava constantemente novas formas ideais e melhoradas.

 

Nem mesmo Montreal e todas as novas impressões na Escola Superior de Arte conseguiram apagar-lhe completamente do pensamento o seu ídolo louro. Vira Mabel duas vezes à distância, mas ela nem lhe ligara. Uma das vezes estava com umas amigas, e, embora risse à socapa e pairasse como as outras, parecera a Jim muito mais séria e ajuizada. Da segunda vez, estava novamente na tribuna, por altura do Dominion Day. Jim não vira nada do cortejo. O coração galopava-lhe dentro do peito com a perspectiva de ir depois cumprimentá-la e falar com ela. Mas ela desaparecera como um relâmpago.

 

Na tentativa de se consolar e de se distrair, Jim virara-se frequentemente para outras jovens que, surpresa das surpresas!, não eram tão inacessíveis como a sua deusa. Bem pelo contrário. O formoso jovem louro de olhos claros, ombros largos e natureza sonhadora tinha um verdadeiro sucesso entre as senhoras. Só com a eleita é que nada!

 

Montreal era um outro mundo, muito próximo e, no entanto, quase exótico para as pessoas de Sarnia, Port Hope e Toronto. Montreal, com o seu acentuado cunho francês, era uma cidade indefinida, viva, cambiante, mais virada para o lado poético da vida, sobretudo quando, como no caso de Jim, se vivia na cidade velha, Vieux Montreal.

 

Jim atirou-se aos estudos com unhas e dentes. Já lhe chegara ter de lutar tanto para conseguir aquele Privilégio. Os elogios dos professores confirmaram-lhe que a sua decisão fora acertada.

 

A dona da casa onde estava era simpática, a comida mais do que suficiente e as raparigas pouco cheias de Melindres. Chamavam-se Sue e Jill e Sandra e Cherry. Gradualmente, Jim tornou-se um mestre do beijo e do cálculo de mais oportunidades.

 

Falava frequentemente francês. Andava com um chapéu de palha e um laço às pintinhas. No Verão, expunha os seus quadros nos relvados da Place du Dominion. Às vezes compravam-lhos, o que lhe permitia aumentar um pouco o seu magro pecúlio.

 

Quando, num destes dias, estava ao lado da estátua da rainha Vitória, espreitando algum comprador com um esplendoroso pôr do Sol e duas vacas num prado, passaram uns cavaleiros. O coração de Jim quase parou de bater. Mabel estava ali. Mais bonita do que nunca.

 

Da sua altura majestosa, mediu Jim e o seu pôr do Sol de cima a baixo. E desta vez mostrou interesse. Refreando o cavalo, chamou a atenção ao seu acompanhante, desmontou e entregou as rédeas ao antipático rapaz.

 

Parou à frente de Jim com as mãos na cintura. Com o fato de montar, parecia mesmo uma amazona.

 

Não é o pequeno Rockwell? perguntou.

 

Não. Sou o grande Rockwell. Jim achava-a bonita, mas na verdade não tão encantadora como imaginara.

 

E porque é que está aqui com estes quadros em vez de andar a criar castores?

 

Ora vejam!, até tinha informações sobre a família Rockwell.

 

Porque quem cria castores é o meu pai. Eu pinto.

 

Espero que se saia melhor a pintar castores do que vacas ou o nascer do Sol.

 

É um pôr do Sol. Estava a ficar ligeiramente irritado. Uma pessoa impertinente. Endireitando-se, olhou-a do alto da sua figura imponente. Não de muito alto, porque ela também era grande, mas, pelo menos, um bocadinho.

 

Tenho castores em casa. Devia ir visitar-me um dia destes sugeriu insolentemente. Havia raparigas com quem a grosseria dava resultado. Claro que não era o caso de Mabel Powell, mas sentia necessidade de a irritar.

 

Ela tornou a olhá-lo de cima a baixo. Depois, decidiu-se:

 

Diga-me depressa a sua direcção!

 

Jim enunciou o endereço quase como se não estivesse estarrecido.

 

Ela assentiu, mas sem sorrir.

 

Amanhã às quatro horas. Tenha vinho fresco. Girando nos calcanhares, montou no cavalo ruço e partiu, sem se dignar lançar-lhe um único olhar.

 

Jim devia estar feliz. O seu anjo-da-guarda resolvera ouvi-lo. Era até um certo triunfo. Se ela aparecesse!

 

Mas apesar da alegre expectativa, sentiu uma certa opressão. Pela primeira vez na vida, Jim compreendia que há desejos que é melhor nunca se realizarem, que o homem precisa de sonhar e que raramente uma paixão se transforma em amor a sério. A desilusão é inevitável.

 

Mabel apareceu pontualmente. Parecia imperturbável, como se tratasse de negócios. Estudava Física na universidade francófona, informou. Ao sentar-se, cruzou as pernas e Jim viu-lhe as ligas das meias. Enchendo-se de coragem, beijou-a. Ela pareceu gostar.

 

Nesta fase das suas relações, Jim compreendeu, desiludido, que a sua adorada Mabel não era diferente de Jill, Sue, Sandra ou Cherry. Uma rapariga bonita, que não se deixava impressionar.

 

Ainda se encontraram algumas vezes. Depois, ela começou a achá-lo muito cansativo e ele a considerá-la um tanto aborrecida. Separaram-se com toda a amizade. O coração e a alma de Jim estavam de novo livres e disponíveis.

 

Foi neste estado de espírito que Jim Rockwell iniciou a sua viagem à Europa. E aconteceu assim:

 

Um dia, recebeu em Montreal uma carta do pai. «Por cá, vai tudo bem», escrevia. «Gostava de falar contigo quando acabares o semestre. Achas que é possível? Imagina: o coronel Perkins apareceu aqui de surpresa!»

 

O coração de Jim deu um pequeno pulo receoso. Teria Mabel falado de mais? O coronel quereria acorrentar Jim na cadeia matrimonial? Estaria grávida?! Uma mulher experiente como Mabel?!

 

Mas logo leu na carta do pai as tranquilizantes linhas: «Tem a ver com o Kitchener. Ou melhor, com o alojamento do urso no Jardim Zoológico de Londres. Digo-te o resto de viva voz. Um abraço. Pai. A mamã, a Lucille e o Percy mandam beijinhos.»

 

«Ora esta! Que tenho eu a ver com o urso?», pensou Jim com os seus botões.

 

No fundo, achava aquele culto à volta do urso um disparate sem sentido. Por outro lado, comovia-o ver o pai, normalmente muito rígido, tão sentimental e devotado.

 

«Vamos lá a ver que sarilho é que o coronel arranjou ao meu pai.» O importante era que Mabel não lhe arranjara nenhum!

 

Três dias mais tarde, o ofegante comboio regional transportava Jim para Port Hope, no lago Ontario. As searas de trigo espraiavam-se na margem do lago. A criação de castores de William Rockwell, tão segura como a cadeia de San Quentin, ficava no meio dos juncos e dos canaviais, demarcada por estacas bem espetadas na terra, unidas por arame farpado entrançado.

 

Ali, à beira de um regato artificial, erguia-se a casa paterna de Jim, entre arbustos e flores. Um pouco mais longe, viam-se as casas dos trabalhadores, pois a exploração de William Rockwell aumentara e intensificara-se.

 

Melros e pardais trinavam nas copas das árvores.

 

A «Quinta Kitchener», como lhe chamavam havia alguns anos, era um pequeno paraíso.

 

William Rockwell tornara-se um homem abastado. Tinha a sorte do seu lado. Mas também era esperto. Tinha orgulho na sua obra e, sobretudo, na família. Reconciliara-se até com as inclinações poéticas do seu primogénito, pois vira que em círculos «melhores», como o do seu coronel, um curso na Escola Superior de Arte era coisa que caía muito bem. Portanto, porque não havia de ter um artista na família?

 

William gostava de comer e Jenny cozinhava bem. O seu corpo avolumara-se consideravelmente. A voz tornara-se-lhe mais forte. Quem não o conhecesse bem podia pensar que estava perante um brigão, um dominador.

 

Jenny, porém, cuja cintura continuava estreita como a de uma rapariguinha, conhecia bem o seu William. Bastava contemplar-lhe os olhos claros, que não conseguiam dissimular, que se turvavam de cólera como o lago quando havia tempestade e se iluminavam de alegria como a água batida pelo sol. Percebia-se então que tipo de pessoa era William Rockwell: um homem às direitas. Corajoso, obstinado, sensível. Claro que ninguém devia dar-se conta deste último aspecto.

 

William acabava de inspeccionar a sua criação de castores quando Jim chegou. Envergava um fato-macaco e calçava botas de borracha. Ao seu lado arrastava-se o pequeno Percy, vestido de maneira idêntica, mas com as botas completamente cobertas de porcaria.

 

Jenny abraçou o filho mais velho. Chegava-lhe mesmo até ao peito, e ele teve de se inclinar para lhe dar um beijo.

 

Mamã, o que é que fazes para ter sempre esse aspecto? Pediste a eterna juventude a alguma fada? gracejou, embora comovido.

 

Ele e o pai abraçaram-se, constrangidos.

 

Parecemos dois porcos saídos do chiqueiro. Camponeses a sério, não é verdade? perguntou William. Depois, dirigindo-se a Percy: O que é que o teu irmão vai pensar de ti?

 

A Lucille?

 

Está na escola. Em Toronto. Fica no colégio durante a semana. Não te dissemos isso nas cartas que te escrevemos?

 

Acho que não. Como a casa paterna se tornara distante! E, por outro lado, como era familiar e acolhedora! Querias falar comigo, pai?

 

Jenny protestou:

 

Nada disso! Primeiro vamos comer! Fiz costeletas com batatas assadas. E depois há gelado com doce de ácer. Está a teu gosto, Jim?

 

Oh, mamã, os meus manjares preferidos! Mais tarde, quando William acendeu o cachimbo e os dois homens se sentaram na varanda enquanto Jenny lavava a louça e Percy fingia ajudar a limpá-la, o pai explicou a situação:

 

Trata-se do Kitchener. Na verdade, cuidam bem dele. Aliás, o problema é menos com ele do que comigo. De certa forma, a minha vida está ligada à dele. Não sei se consegues compreender, Jim, mas fui assim uma espécie de pai para ele. E, depois, nunca mais quis saber. Não está certo largá-lo em Londres no meio de gente estranha, que não entende nada de nada. Sabem lá eles o que o Kitchener foi para todos nosO símbolo da sobrevivência. Reconheço que tenho sido um amigo miserável. Um bruto sem coração. Não é com meia dúzia de tostões que o assunto fica arrumado. Vais perguntar porque é que não me lembrei disto mais cedo. Olha, Jim, tive tanto que fazer na quinta! A juventude desconhece a virtude. Empalidecendo de repente, levou a mão ao peito, respirou com dificuldade e rapidez e fechou brevemente os olhos.

 

Papá, o que tens? Não te emociones tanto! O Kitchener não está muito bem no Jardim Zoológico de Londres?

 

A cor tornou a subir ao rosto de William.

 

Claro que sim. Tens razão. Mas é que são precisas novas instalações. E também há coisas a renovar no recinto ao ar livre. O coronel teve uma ideia. A onze de Novembro deste ano, portanto no nosso Dia do Kitchener, faz precisamente dez anos que acabou a guerra. Queremos celebrar esta data com uma festa de arromba. Vamos promover uma tômbola gigantesca e recolher donativos. As senhoras fazem bolos e café. Numa palavra: queremos arranjar dinheiro suficiente para não ter de se poupar na construção em Londres.

 

Acho bem. E qual é o meu papel? William hesitou um pouco.

 

Bem, meu rapaz, pensámos que talvez pudesses... ha... contribuir para a tômbola com um ou dois quadros pintados por ti. Talvez até com um urso!

 

Jim sorriu:

 

São muito finos!

 

Mas não é tudo. Os Londrinos precisam urgentemente do dinheiro. Além disso, gostava muito que a minha família tivesse um contacto directo com o Kitchener. Eu por mim viajava, mas nos últimos tempos... Não, não havia de ser muito bom.

 

Mas, papá, tens de ir ao médico!

 

Se não te importas, isso é comigo. Já passei coiSas bem piores!

 

E achas que eu devo...

 

Pois, deves! Eu e o coronel adiantamos o dinheiro. Depois logo o recuperamos. Tu sempre quiseste conhecer a boa e velha Europa. Até talvez possas passar um semestre em Paris e visitar o Louvre. E depois podes dar um saltinho a Londres, não te parece?

 

Meu Deus, seria estupendo!

 

Entregas o cheque, vês o Kitchener e saúda-lo da minha parte. Ele lá há-de compreender à maneira dele que és meu filho. A razão pura e fria não é tudo. William virou o rosto.

 

Jim ficou comovido. Conhecia mal aquele pai astuto e prático. Engolindo em seco, disse em voz sumida:

 

Não te preocupes, papá. Eu faço tudo direitinho. Não te esqueças de que cresci a ouvir histórias do Kitchener. Conheço-o bem.

 

Foi a vez de William Rockwell sorrir.

 

O coronel Perkins está a fazer uma crónica do nosso regimento. Entretanto, já não existe nenhum quartel em Sarnia. Foi tudo concentrado em Toronto. A geração dos nossos dias é uma geração de paz, com concepções completamente diferentes das nossas sobre a vida militar. Mas o coronel nunca está parado. É tão baixinho como enérgico. De resto, a filha vai casar em breve com um jovem primeiro-tenente. Já há um ano que estão noivos.

 

«Que lhes aproveite muito», pensou Jim. Oxalá ele tivesse mão firme. Talvez fosse aquele que lhe segurara o cavalo russo. «Ela é impecável, mas um bocadinho estouvada. Quando me casar, quero que seja com uma mulher como a mamã. Graciosa, traquinas, inteligente e muito doce e feminina. Alguma vez encontrarei alguém assim?»

 

No Outono do ano de 1928, o diabo andava à solta nas casernas do 159.° Regimento de Infantaria de Ontario. Instalara-se o caos e a desorganização, a que se seguiria uma limpeza e uma organização perfeitas. A palavra de ordem era: limpeza geral!

 

Os edifícios pareciam arrecadações devastadas No chão, nas escadas, nos quartos e no pátio empedrado corriam rios de água com sabão e lixívia de soda. Várias mãos de homem comandavam vassouras de giesta e escovas de esfrega e torciam panos do chão.

 

Sargentos berravam e ribombavam. Oficiais praguejavam e refugiavam-se na messe. Ou faziam alguma coisa de útil e vigiavam a limpeza das cocheiras.

 

O encarregado da cantina tinha longas conferências com o decorador da tropa. No ginásio, o orfeão ensaiava. A orquestra do regimento marchava no relvado em formação cerrada e treinava uma nova marcha. Uma turma de ginástica exercitava mais uma vez a sua artística pirâmide de oito homens. E no terreiro tomavam-se providências para a instalação da grande tômbola. Até havia dois carrosséis. Em resumo: Toronto agitava-se. O ar vibrava literalmente de nervosismo e tensão. Uma palavrinha dita na altura errada podia provocar uma explosão.

 

E então chegou o dia onze de Novembro de 1928. Havia dez anos que o armistício fora assinado no bosque de Compiègne, e durante uns minutos o mundo, agradecido, sustivera a respiração. Depois de quatro anos de amargura, tinham corrido lágrimas de alívio. E também lágrimas de profundo pesar pelos entes queridos, que nunca mais regressariam. Fora o dia em que as pessoas tinham caído de joelhos nas igrejas, agradecendo ao Senhor a bênção da paz.

 

Já tinham passado dez anos. A vida continuara, claro que as pessoas se lembravam da guerra, mas Pensavam nela como um acontecimento distante, uma aventura da juventude. Só os mutilados, os estropiados e os abandonados não esqueciam nem festejavam esse dia. Sofriam imóveis no seu canto. Esquecer faz bem, mas também é desumano. O mundo esquecera. Durante vinte e quatro horas as bandeiras tinham estado hasteadas, festejara-se e depois falara-se muito de que nem tudo correra como devia ter corrido. O tratado do bosque de Compiègne tivera consequências e desenvolvimentos imprevistos. Os trusts do aço tinham vendido acções a vinte e cinco e meio por cento, o cobre caíra e o salitre e o chumbo haviam subido. A agricultura florescera perigosamente. A bolsa era agora o campo de batalha no qual se vencia, se perdia e também se morria.

 

1918! Já tinham passado dez anos! Meu Deus! Içaram-se bandeiras, envergaram-se as melhores vestimentas, recordaram-se os soldados. Não era o suficiente? Afinal de contas, a vida continuava.

 

Não, os homens do 159.° Regimento de Infantaria não eram assim! Muitos deles haviam lá estado, tinham lançado granadas na linha da frente e haviam-se safado. Tinham visto camaradas morrer ao seu lado. De noite, não podiam esquecer o que lhes acontecera. Nem talvez durante o dia. Em todo o caso, nunca nas noites de insónia. Não, para estes homens, e também para os mais jovens a quem tinham contado as suas recordações, este era um dia festivo. Um dia santo.

 

Claro que era coisa que se mostrava o menos possível. Não, as pessoas andaram de um lado para o outro, beberam e mostraram-se especialmente barulhentas e alegres, sobretudo depois da parada e do desfile das bandeiras. E o coronel Powell não foi excepçãoTomara umas aspirinas para que a gota não o incomodasse tanto pelo menos naquele dia, e vagueava orgulhosamente pelo terreiro.

 

Foi uma festa plenamente conseguida, como era natural! Quando as coisas se planeavam e executavam ao pormenor, era difícil haver falhas, sobretudo tratando-se de soldados experientes.

 

William Powell encarregou-se da lista de donativos. Como de costume, Arthur Shenessy contribuiu com uma soma considerável. Em ocasiões destas, era sempre contactado em primeiro lugar, pois a sua contribuição elevava os donativos dos outros beneméritos. Para ele, era uma necessidade pois, na sua opinião, o urso Kitchener pagara a sua grosseira rejeição salvando-lhe a vida. O que podia um pobre homem fazer para mostrar a sua gratidão, senão rapar a carteira?

 

William e Shenessy cumprimentaram-se. Era sempre comovente quando dois velhos camaradas se encontravam. «Está velho», pensou William. E Arthur achou Rockwell com um ar pesado e doentio. Mas o constrangimento passou dali a um momento. Na verdade, tinham pouco a dizer um ao outro. Os seus interesses eram muito diferentes. William era um homem do campo e Arthur um citadino. No entanto, havia as experiências comuns, o medo da morte que tinham passado juntos, que formava uma cadeia mais forte do que o ferro e resistente para toda a vida.

 

O meu filho Jim está na Europa. Levou um cheque para o Jardim Zoológico de Londres. Na verdade, eu já deveria ter recebido notícias dele informou William, mas já se sabe como os jovens são hoje em dia. Faz-lhes falta a severidade da escola do nosso tempo.

 

Não a desejo a ninguém replicou Arthur Shenessy.

 

Eu também achava afirmou Jim, mas a mãe do Jim anda preocupada. Pensa sempre nele como uma criança pequena.

 

Claro que Jenny se preocupava. Mas não se notava nada ao vê-la a sorrir na sua tenda, servindo café e distribuindo os bolos pelos pratos, enquanto deitava um olho ao pequeno Percy, que andava por todo o lado metendo o nariz em tudo com o alegre consentimento de Lucille, que o levava pela mão.

 

Sim, Jenny andava preocupada mas, no fundo, estava convencida de que tudo correria bem com Jim. O seu filho mais velho! O homem que, quando era um catraio, se mantivera sempre ao seu lado quando tantas vezes se sentira fraca e desesperada. Aquele dia dedicado à paz também despertava dores antigas. Mas era sobretudo um dia de graças. E Jim havia de regressar um dia. «Não tarda muito, recebo carta dele», pensou Jenny. «De repente, aparece-me no meio do campo a olhar-me com aqueles olhos claros dos Rockwell e a gritar: ”Olá, mamã, cá estou eu outra vez.” Quem sabe? Até pode nem vir sozinho. Não é nada do outro mundo se conhecer uma rapariga ao seu gosto e encontrar o grande amor da sua vida. Um amor como o que existe entre mim e o pai. É o que lhe desejo. E desejo um neto para mim e para o William. Oh, sim! Do fundo do coração!»

 

Como está radiante, Mistress Rockwell observou o coronel Powell, intrometendo-se nos seus pensamentos. Importa-se de me dar um pedaço desta torta de maçã? Tem um aspecto excelente. Notícias do seu filho?

 

Jenny abanou a cabeça. O coronel suspirou.

 

Pois é, Mistress Rockwell, lá diz o velho ditado: Filhos criados, trabalhos dobrados. Quando já são capazes de voar sozinhos, deixamos de poder controlá-los tão bem, não é?

 

Jenny riu com vontade. Acertou em cheio!

 

Foi precisamente a onze de Novembro de 1928 que Jim Rockwell entrou no Jardim Zoológico de Londres para visitar finalmente o urso Kitchener e cumprir a promessa que fizera ao pai.

 

Na verdade, não se apressara tanto como o seu papá se calhar estava à espera. Mas viajar pela Europa era uma experiência única, um acontecimento excitante. As raízes estavam ali. A França transmitia precisamente a sensação que existia em Montreal. Para um filho, era uma comoção pensar nas histórias que o pai contara da Grande Guerra. Agora, de repente, pisava o mesmo chão manchado de sangue, via rios onde se combatera e outeiros em cujos sopés muita gente morrera em grande sofrimento. O tempo estendera enganosamente o seu manto sobre o campo de batalha. A Natureza vicejara misericordiosamente. Só os cemitérios militares, as lápides nos campos de batalha e alguns escombros de bunkers falavam ainda desse tempo desditoso.

 

Jim suspirou. Atravessara a Bélgica e também aí vira os vestígios da guerra. Esta viagem aproximava-o do Pai, com quem era tão parecido fisicamente.

 

Depois, na travessia, conhecera aquela rapariga. Alice. Alice no País das Maravilhas. Uma mulher encantadora. Ficara profundamente impressionado mal a vira.

 

«E depois portei-me como um idiota», censurou-se Jim pela centésima vez. «Atirei-me a ela como um animal no cio. Valha-me Deus, raparigas como a Mabel corromperam-me completamente! Será que já não consigo distinguir uma coquette de uma menina distinta?» Quando ela se afastara a correr, Jim sentira-se envergonhado. Mas realmente não podia ir a correr atrás dela e dizer: «Desculpe, não sabia o que fazia!» Portanto, bebera um uísque e esquecera o assunto.

 

Ainda pensava assim quando desembarcara. Depois, fora como que atingido por um relâmpago: «Tenho de a ver! Vou explicar-lhe tudo!» Mas nessa altura já ela desaparecera. Se calhar, até tinha sido um bem. Às tantas, acabava por ser mais uma desilusão, como o namoro com a sua outrora tão adorada Mabel.

 

Claro que Jim visitara primeiro a National Gallery de Londres. Era uma colecção única de obras de arte, e Jim oscilara entre o desânimo e a apaixonada esperança de um dia vir a ser um dos grandes, cujas pinturas as pessoas contemplariam devotamente nos museus e galerias.

 

O Palácio de Buckingham, Westminster Hall, o Parlamento... London City parecia garantir riqueza e segurança social. E as pessoas movimentavam-se como se cheias dessa certeza.

 

Como anunciara a sua visita, Jim foi recebido pessoalmente pelo director. Chuck Brady também o cumprimentou. Era uma honra para eles receber o filho do seu benfeitor canadiano, explicou o director. A sorrir, Brady contou-lhe que alguns grupos de turistas canadianos, de Ontario, já tinham exercido o seu direito de entrar de graça no Jardim Zoológico. Aliás, tinham ido imediatamente ver Kitchener.

 

Deve ser uma celebridade na sua terra disse, mas acredite que aqui também é. Quer que o acompanhe até ao urso?

 

Não, não. Obrigado. Prefiro ir sozinho. O regimento do meu pai festeja hoje o «Dia do Kitchener». É o jubileu dos dez anos. Não sou grandemente sentimental, mas sei que o meu pai gostaria muito que eu tentasse entrar em diálogo com o Kitchener. Afinal de contas, eu ainda era um rapazote quando o urso entrou na minha vida, se bem que brevemente.

 

Rindo todos, combinaram jantar juntos um daqueles dias. Depois, Jim deambulou por entre os animais. O dia estava bom. O sol brilhava e a corrente do golfo aquecia a Natureza. A folhagem das árvores já exibia as variegadas cores outonais. Ainda se viam abeIhões e borboletas esvoaçando no ar. Na casa dos papagaios, uma ave colorida trinava estridentemente.

 

Ignorando igualmente o cansaço sazonal que havia uns dias o assaltava, Kitchener corria pelo seu território. Ainda havia por ali alguns basbaques, e como às vezes lhe atiravam petiscos (o que, na verdade, era proibido, mas não fazia qualquer diferença a Kitchener), resolveu fazer a sua «actuação»: endireitando-se nas patas traseiras, acenou com as da frente. Como de costume, os basbaques juntaram-se extasiados à sua frente e lançaram-lhe os seus petiscos.

 

Foi assim que Jim Rockwell viu o urso Kitchener pela primeira vez. Susteve a respiração. Um gigante! Um monstro antediluviano! Grande como um grizzfy’! Poderoso! De meter medo! Bom, claro que o urso era muito mais pequeno dez anos atrás.

 

Jim observava o animal, fascinado. Seria imaginação sua ou Kitchener também o olhava fixamente?

 

1 Urso-pardo dos EUA. (N. da T.)

 

estavam ali outras pessoas, mas parecia não haver dúvidas. Quando o urso voltou a deixar-se cair confortavelmente nas quatro patas, ele e Jim fitaram-se um ao outro.

 

«Saudações do William Rockwell, meu velho», pensou Jim. «Tornaste-te para ele o símbolo da vida e da prosperidade. Na verdade, não és um simples urso, e sim a ideia de um urso. És grande, forte e muito impressionante, e vou contar o que vi no Canadá. Provavelmente, há muito que esqueceste os teus compinchas de outrora. Ou será que não? Estás a olhar para mim assim porque sou parecido com o meu pai naquela altura?»

 

Jim sorriu. «Não vou averiguar a alma do urso, mas talvez agora compreenda melhor o meu pai. Um homem afeiçoado a uma tal criatura não pode ser assim tão empedernido e super-homem como quer fazer crer. No fundo, só aprendeu a esconder a ternura. Mas isso percebe-se quando olha para a mãe ou faz alguma gracinha com ela. E também quando brinca com o Percy...» Jim voltou a sentir-se desanimado. Não, não queria ter ciúmes do irmãozinho, um rapazinho catita e às direitas.

 

«Hoje vão pensar todos em mim», reflectiu, «e o pai da Mabel há-de fazer um discurso com aquela voz tão nítida.» Respirou profundamente. «Não terei saudades? Meu Deus, tenho saudades!»

 

Foi então que viu a senhora vestida ao dernier cri da moda, com a graciosa rapariga ao seu lado. Fechou brevemente os olhos e abriu-os de novo, convencido de que a disposição sentimental acabava de lhe pregar uma partida.

 

Mas não. Ela ainda estava ali! A senhora dirigia-se sem pressas a um quiosque onde os visitantes podiam comprar amendoins e petiscos para os animais.

 

A rapariga estava parada, contemplando os ursos. Uma ursa parecia tê-la impressionado especialmente. Inclinando a cabeça para trás, fechou os olhos, cerrando-os com força, como se quisesse impedir as lágrimas de correr. Na verdade, até passou a mão pelo rosto.

 

Sem pensar mais, Jim avançou na sua direcção:

 

Não se sente bem, Alice? perguntou.

 

Ela sobressaltou-se e, ao reconhecê-lo, ficou muito corada e fez um movimento brusco, como se fosse desatar a fugir.

 

«Portanto, reconheceu-me», pensou Jim, «o que já não é mau.»

 

Não estamos aqui sozinhos. Não precisa de ter medo. Além disso, vou portar-me irrepreensivelmente. E peço-lhe muita desculpa pelo que aconteceu. Um comportamento imperdoável. Acredite que foi um impulso e que não costumo ser assim continuou ele.

 

Obrigado, estou bem murmurou ela, fazendo-o sentir novamente a necessidade de a tomar nos braços e de a beijar. Sim, todas as fanfarras tocavam ao assalto, mas ele limitou-se a tirar o chapéu, inclinando-se ligeiramente.

 

Jim Rockwell apresentou-se.

 

Já me tinha dito o seu nome replicou ela.

 

E a menina é Alice no País das Maravilhas.

 

Chamo-me Alice Kellenhusen.

 

Alemã?

 

Sim, com uma costela inglesa. Bom, não era lá muito conversadora.

 

Gosta de ursos, não é verdade?

 

Gosto. Tenho recordações de infância com ursos. Com uma ursa.

 

Que coincidência fantástica! Olha que de facto! Eu também tenho recordações de infância com um urso. Este aqui.

 

Como tinha um ar doce ao olhá-lo incredulamente! Naturalmente pensava que ele só estava a tentar arranjar tema de conversa.

 

Com aquele gigante ali?

 

Sim. Chama-se Kitchener. O meu pai conhece-o bem.

 

Não, de facto não parecia muito convincente. Ela ergueu as sobrancelhas. Claro que pensava que ele troçava dela. A senhora regressou e examinou Jim com um olhar apreciador.

 

Conheces este senhor, Alice? perguntou Bettie Neary na sua voz penetrante.

 

Alice cometeu um erro terrível. Empinando o nariz pequeno, retorquiu:

 

De vista. Até outro dia. Pegou no braço da tia-avó e afastou-se.

 

Jim fez menção de as seguir. Nessa altura, um dos dois gorilas que pareciam estar com vontade de treinar pugilismo no Jardim Zoológico pegou-lhe no braço:

 

Desculpe, tem lume? perguntou. Na realidade, a sua frase soou como: «Deixe as senhoras em paz se não quer que lhe aconteça nada de desagradável.»

 

Jim encolheu os ombros.

 

Vá para o inferno! disse em voz alta. Os dois matulões riram com gosto. «Se pensam que vou andar atrás delas como um imbecil, estão muito enganadas. Tenho raparigas que chegam e sobram», pensou Jim. «Além disso, ela é bastante taciturna. Ou será que não fala inglês fluentemente? Mas não é isso que interessa. Sabes uma coisa, Jim, meu velho? Ela não gosta de ti. Aceita a derrota... e cara alegre! Não consegues incendiar a boneca de porcelana com olhos de carvão em brasa. Ponto final.»

 

Na manhã do dia seguinte, no entanto, Jim já percebera claramente que se portara como um idiota chapado.

 

O que poderia fazer para amansar aquela rapariga tão atraente?

 

O tempo continuava bom. No céu de um azul profundo, vogavam nuvens brancas e densas. Algumas delas tinham as orlas cinzentas. Havia trovoada de Outono no ar e minúsculas moscas embatiam em pessoas e animais, cumprindo a sua curta vida.

 

Jim saiu com uma gabardina dobrada no braço e um panamá na cabeça. Talvez ela aparecesse no Jardim Zoológico, quem sabe?! Ao pé dos ursos, com os quais parecia ter também uma ligação especial.

 

Jim dirigiu-se ansiosamente ao recinto dos ursos. O coração batia-lhe desenfreadamente dentro do peito. Tinha quase a certeza de que ia encontrá-la. Mas além de uma barulhenta e divertida turma de alunos, não estava lá ninguém. Nenhuma maravilhosa donzela de cintura graciosa e arrebatador rosto de madona. Kitchener não se encontrava à vista. Enroscara-se no seu canto e estava a dormir.

 

Jim ficou desiludido. Era um disparate, mas não havia nada a fazer. Tinha o dia estragado.

 

Cerca de uma hora mais tarde, apareceu uma graciosa rapariga no mesmo local. Alice envergava o seu fato mais bonito e trazia um guarda-chuva no braço. Cheirava a Lenthéríc, o perfume da mulher sedutora, e oscilava entre a esperança e o temor. Tinha esperanças de que ele lá estivesse, aquele louro elegante, que a lançara numa agitação maravilhosa e avassaladora. Mas, por outro lado, temia um tal naufrágio.

 

Acreditara mesmo que ele estaria ali? Só porque lhe contara que o urso Kitchener fizera parte da sua infância?

 

Claro que não estava lá. Provavelmente, já nem pensava nisso. «Que idiota eu sou!», pensou Alice.

 

«Ainda bem que ninguém sabe como fui parva. Ainda bem que disse à tia Bettie que ia passear para o Queen Mary’s Rosegarden.»

 

Começaram a cair algumas gotas de chuva. Alice abriu o guarda-chuva. Os ursos não se viam. Que dia mais aborrecido!

 

Respirando profundamente, preparou-se para partir. «Se o destino voltar a pôr-me numa situação semelhante, vou tentar ser mais esperta», decidiu. Mas estava muito triste.

 

Uma senhora muito idosa aproximava-se devagar. Trazia um chapéu extravagante, cheio de flores e frutos. Tinha o rosto coberto de pó de arroz cor-de-rosa. Meia dúzia de caracóis brancos enroscavam-se-lhe na testa. Envergava um casaco com um ar muito coçado e uma saia cinzenta que lhe chegava quase até aos bicos dos sapatos.

 

- Estão todos a dormir - disse a fantástica senhora a Alice. - No Inverno, não há ursos para ninguém. Se quer vê-los bem-dispostos e frescos que nem uma alface, volte na Primavera, minha querida. Sabe, os ursos são animais espantosos. Adaptam-se muito melhor às estações do ano do que nós, supostamente tão inteligentes. - Alice assentiu. A senhora era muito amável, mas, uma vez que já estava a tentar engolir as lágrimas, preferia não ter companhia. - Está aqui sozinha? - perguntou a senhora, fitando Alice com um olhar inquiridor. - Conhece a história da Branca de Neve e da Rosa Vermelha? Eram duas meninas que tinham um grande urso castanho por amigo e companheiro de brincadeiras. E afinal o urso era um príncipe encantado.

 

- Não, não conheço.

 

- Também está à espera de algum príncipe? - perguntou perspicazmente aquela senhora tão extraordinária.

 

Alice corou.

 

- Conhece algum? - retorquiu, tentando gracejar.

 

- Isso agora! Sou a pudding-lady. Nunca ouviu falar de mim? Trago um pudim ao Kitchener duas vezes por semana. Pelo menos, nas estações mais quentes. Somos grandes amigos.

Alice sorriu o mais amavelmente possível e despediu-se da maluca da senhora. Pudim para um urso! Que disparate! Mas já estava farta de ursos.

 

No dia seguinte, no entanto, Alice e a pudding-lady voltaram a encontrar-se no Jardim Zoológico. Sorriram uma para a outra e Alice observou:

 

Vim cá outra vez porque me contou aquela história da Branca de Neve e da Rosa Vermelha. Quem sabe? Pode ser que hoje encontre mesmo um príncipe. E, no seu íntimo, pensou: «Era tão bom! Fui mesmo idiota! Se calhar já se foi embora. Ou pior ainda, anda a passear com outra.»

 

A velha senhora fez uma expressão ladina. Por acaso o príncipe não é louro, alto, de ombros largos, olhos cinzento-claros e com pronúncia canadiana?

 

Alice ficou sem fala. Só conseguiu fitar a inquietante pudding-lady com os olhos esbugalhados.

 

Esteve aqui uma pessoa assim há bocado, e contei-lhe que ontem conversei muito com uma jovem. Achou muito interessante.

 

E?

 

E o quê, minha querida?

 

Alice quase se engasgou de comoção.

 

Vai voltar?

 

Como hei-de saber? De qualquer forma, sugeri-lhe que regressasse mais tarde, por volta da hora a que esteve aqui ontem, minha querida. Se virá ou não... não sei. O tempo não está lá muito bom.

 

De facto, o tempo não era nada o indicado para uma visita ao Jardim Zoológico, pois um vento forte arrastava no céu nuvens pesadas e escuras e já tinham começado a cair algumas gotas grossas. Papéis e folhas secas rodopiavam nos caminhos. Pardais e tordos refugiaram-se apressadamente nos arbustos. O paraíso desaparecera. Os seus animais recolhiam-se.

 

Alice abriu o guarda-chuva, que se virou com a ventania.

 

Venha, vamos abrigar-nos ali! gritou a senhora, correndo para o quiosque onde se vendia comida para os animais, mas que nesse dia estava fechado.

 

Enquanto a chuva caía impiedosamente, transformando os caminhos em lamaçais, Alice sentia-se dividida entre a felicidade por ele ter lá ido e o desânimo por se haverem desencontrado. Mesmo assim, vigiava esperançadamente os caminhos, mas não se via ninguém.

 

A chuva parou de repente e o Sol apareceu, envolvendo o parque animal numa luz brilhante. Vapores exalavam-se dos arbustos e relvados. As flores do chapéu da pudding-lady, viradas pelo vento e molhadas pela chuva, endireitaram-se como por magia.

 

Nos contos, os príncipes aparecem sempre uma terceira vez observou a pudding-lady, tentando consolar Alice quando esta se despediu, desanimada.

 

Mas, às vezes, a realidade ainda é mais fascinante do que um conto de fadas.

 

Quando Alice ia a passar pela bilheteira junto à porta de entrada do Jardim Zoológico, flanqueada Por dois gigantescos elefantes, Jim Rockwell surgiu por de trás do pilar do arco do portão. O coração de Alice deu um salto. Ao mesmo tempo, apercebeu-se de que a sua apresentação não era a melhor para um encontro.

 

Tinha o chapéu na mão, e mesmo aí parecia completamente amarrotado. O fato molhado colava-se-lhe às coxas. O cabelo estava com o ar de não ter visto o pente naquele dia. O tecido e as varetas do guarda-chuva estragado pendiam como a plumagem de uma gralha doente. E ainda por cima o jovem sorria!

 

Alice teve vontade de voltar a ser insensata e desatar a correr. Mas desta vez Jim pegou-lhe no cotovelo e aproximou-se dela, agarrando nos destroços do guarda-chuva e usando-os como uma bengala, o que fez Alice sorrir.

 

Até que enfim! exclamou ele, inspirando profundamente. Não está um dia lindíssimo?

 

Como se quisesse troçar deles, o céu escureceu. Depois do aguaceiro anterior, caíram flocos de neve e saraiva.

 

Jim e Alice riram a bandeiras despregadas. E o riso lavou as preocupações e as desilusões do fracasso do primeiro encontro.

 

Jim resumiu tudo numa frase singela:

 

Desta vez, não vamos separar-nos mais! Suspirando, Alice concordou:

 

Não volto a fugir.

 

Passearam no jardim da Royal Botanic Society. O lago com os barcos a remos meio cheios de água Parecia situado no fim do mundo. Quais jóias numa Mulher bonita, as gotas de água brilhavam nalgumas rosas ainda abertas. Não se via vivalma quando, por fim, Jim tomou Alice nos braços e beijou a boca com que tanto sonhara. Não a apertou contra si; antes esperou que ela se inflamasse e se apertasse contra ele, correspondendo à sua terna agitação. Era um homem experiente, e estava ali uma mulher a quem valia a pena dar todo o sentimento e delicadeza que sabia dar. No dia seguinte, Jim Rockwell fez uma visita oficial à tia-avó Bettie, que o examinou e reconheceu imediatamente.

 

Esteve há pouco tempo no Jardim Zoológico ao pé dos ursos, não é verdade?

 

É isso mesmo, minha senhora.

 

Sabe que a nossa Alice teve um urso quando era pequena?

 

Quando era pequena? Um urso?

 

Tia Bettie, acho que é melhor eu contar isso ao Jim quando tivermos mais calma disse Alice a sorrir.

 

Jim fez oscilar elegantemente o copo de martini e recostou-se na poltrona, cruzando as pernas compridas.

 

Quero saber tudo sobre ti, Alice. E tu também deves conhecer-me bem. Não é que o filho de um agricultor de Ontario tenha muitos segredos... mas espero não só ter talento para pintar, como também vir a ser conhecido.

 

A tia Bettie esboçou um sorriso de aprovação. Aquele jovem agradava-lhe, mas não devia mostrar-se muito entusiasmada. Primeiro, era preciso obter informações sobre a sua família. Big Ben trataria do assunto. Assumira uma grande responsabilidade ao aceitar aquela jovem. Para se ter uma vida feliz não bastava ser atraente. Infelizmente. E ser pintor também não era inultrapassável. Talvez a família tivesse dinheiro. Desejava o melhor para a sua graciosa sobrinha.

 

Venha jantar connosco amanhã propôs, tentando ignorar o olhar profundo que o jovem lançava à sua sobrinha-neta. Nessa altura o meu marido tambem estará aqui. Vai ser muito agradável.

 

Jim baixou a cabeça.

 

Tenho de regressar a Paris confessou. Matriculei-me para o semestre de Inverno da Escola Superior de Arte. É um aperfeiçoamento dos meus conhecimentos indispensável para mim. Lançando um olhar suplicante a Alice: Mas eu volto. Na Primavera. Se esperares por mim...

 

Bettie Neary sorriu, aliviada.

 

E nós vamos aproveitar bem o tempo, não é, Alice? É uma decisão muito sensata, Mister Rockwell.

 

Alice inclinou a cabeça e pensou que o aguaceiro do dia anterior bem tivera um significado simbólico. Mas então Jim acrescentou:

 

No entanto, ainda vou ficar uma semana em Londres, e aceito o seu convite com muito prazer, minha senhora!

 

Portanto, o Sol voltou a brilhar. Uma semana, meu Deus! Era uma eternidade para dois apaixonados! Tinham tempo para observar todas as estrelas do céu, contar todas as histórias do mundo e trocar todas as ternuras de um grande amor romântico.

 

Vais comigo para o Canadá? Como minha mulher? perguntou Jim ao despedir-se, beijando as faces húmidas, as mãos, a testa, o pescoço e a boca trémula da sua adorada Alice.

 

Ela sorriu por entre lágrimas.

 

Já te contei que os meus pais eram nómadas, Jim. E se calhar a filha herdou alguma coisa deles. Claro que vou contigo. Se quiseres, vou contigo até ao fim do mundo.

 

O casamento de Jim Rockwell e Alice Kellenhusen realizou-se em Maio. Ben e Bettie Neary tinham insistido em que tivesse lugar em Londres, que ficava no centro do mundo, como Bettie dera a entender à sua irmã Deborah, quando esta ao princípio teimara que os dois deviam casar-se em ThieBendorf.

 

Minha querida Deborah, não me faças rir. Os convidados nunca dariam com a tua quintinha. Nem te passa pela cabeça o que havia de te acontecer! A imprensa em peso vai interessar-se por este «casamento ursino». Houve uma velhinha que contou tudo. É amiga íntima de um urso e toda a gente a conhece por pudding-lady dissera Bettie à irmã por telefone.

 

Isso parece-me um disparate, Elizabeth! Agora, todos tinham vindo. Bandeiras flutuavam no pórtico da vivenda clássica a nordeste de Regent’s Park, onde se erguiam as luxuosas casas dos ricos. O amplo vestíbulo era um mar de flores. Repórteres e curiosos tinham-se reunido na rua em frente da igreja. Um longo suspiro percorreu a multidão quando por fim surgiu o coche nupcial branco, puxado por quatro cavalos brancos.

 

A noiva envergava um vestido bordado branco e tinha o véu comprido coberto de lírios. Quando o noivo a ajudou a sair em Cutaway e ela se endireitou, exibia um ar tão gracioso e pálido que a multidão soltou novo suspiro. Jim pôs o chapéu alto e ofereceu o braço a Alice. Os sinos repicaram, saudando os seus primeiros passos enquanto casal, que dali em diante queria enfrentar junto todos os espinhos e compartilhar todas as alegrias da vida.

 

St. Margaret’s Church estava a transbordar. À esquerda e à direita do altar encontravam-se os avós de Alice e, naturalmente, os tios-avós Neary. Ao seu lado estavam sentados, muito sérios, William Rockwell e Jenny, que limpava disfarçadamente o nariz e os olhos. Lucille amuara por não poder ir também, mas tinha de tomar conta de Percy, que era muito pequeno para fe” zer uma viagem tão cansativa.

 

Nos bancos encontravam-se não só os muitos amigos e parentes das duas famílias, como também uma senhora muito idosa com um chapéu de flores de cortar a respiração, dezenas de vezes fotografada pelos repórteres. A pudding-lady

 

E quem eram as figuras um tanto acanhadas, ora citadinas ora rurais, que se apinhavam no fundo? Ora, quem fosse versado no assunto perceberia facilmente que o 159.° Regimento de Infantaria de Ontario mandara uma delegação. O coronel Powell escavara bem fundo na caixa do regimento e, juntamente com William Rockwell, fizera cuidadosamente uma lista dos felizardos que iriam viajar, pois, afinal, a festa realizava-se na cidade onde se encontrava a mascote do regimento. Assim, ao lado do altar, encontravam-se também dois robustos e jovens soldados, rígidos como estátuas, com a bandeira do 159.° Regimento. E outros oito homens rejubilavam, antecipando o grande bufete, o baile e a noite londrina do dia seguinte. Jim jurou à sua Alice amá-la e respeitá-la toda a vida, e Alice prometeu ao seu Jim fidelidade e obediência eternas. Depois, trocaram as alianças, o pastor abençoou a união, os convidados cantaram Louvai o Senhor e, ao som das notas festivas do órgão, todos saíram para o sol de Maio. O que aconteceu então foi, sem dúvida, pouco vulgar. O cortejo pôs-se em marcha, não directamente para casa dos Neary e sim para o Jardim Zoológico de Londres.

 

Aí, Kitchener, bem desperto da sua hibernação, voltara a pousar os indolentes olhos de urso em Rose, agora completamente na flor da idade e de novo pronta para a paixão e o amor.

 

Ambos ofegavam e se enroscavam, empurravam-se e davam encontrões um ao outro. As almas cândidas poderiam pensar que se tratava de um combate de morte. E, no entanto, o sentimento que os movia era o que garantia a continuidade do mundo e de toda a criação. O amor!

 

O amor em Maio... Jim estreitou a mulher, graciosamente ruborizada. William Rockwell, até ao momento pálido e com um ar cansado, ganhou cor e apertou a mão da sua Jenny. Os seus camaradas ou os filhos deles alinharam-se muito direitos e fizeram uma saúde a Kitchener e aos noivos, gritando três vezes:

 

Hurra!

 

Deborah Maryrose Kellenhusen, de seu nome de solteira Hawks, limitou-se a abanar a cabeça; aliás, o marido também não ficou muito bem impressionado. Entretanto, os Neary divertiam-se como uns loucos e os fotógrafos quase perdiam a cabeça de tão entusiasmados.

 

William trouxera boas notícias do Canadá.

 

A maior galeria de arte de Montreal ia fazer uma grande exposição das obras de Jim Rockwell. Quando Jim partira em viagem, já o dono da galeria entrara em contacto com o jovem artista. A ligação mantivera-se e agora, por assim dizer de um dia para o outro, Jim tornara-se famoso. Em todo o caso, um bocadinho famoso.

 

Portanto, não vais morrer à fome comigo, darling garantiu Jim ternamente à sua Alice. É pena não estarmos lá agora. O trevo desabrocha nos prados, branco como flocos de neve. Quem o viu uma vez, nunca mais esquece. É único no mundo. Vais aprender a amar o meu país, acredita.

 

Já o amo, pois tu também o amas retorquiu Alice.

 

William Rockwell levou disfarçadamente a mão ao coração. Doía-lhe. Era cada vez mais frequente.

 

«Mas a viagem foi muito cansativa», tranquilizou-se a si próprio, «e claro que um velhote como eu já vai tendo as suas maleitas. Isto não é nada. Além disso, esta situação é muito emocionante. O Kitchener. O meu pequeno grande urso.» De repente, voltou a ver tudo de novo: os rostos pálidos e enlameados, os camaradas caídos de olhos em fogo. Sim, pareciam fitá-lo pelos olhos destes filhos saudáveis e bem alimentados. O pensamento levou-o a Arras, a Cambrai. Era a terra onde pairavam nuvens verdes e tóxicas de gás. Ali, Leslie Rumbler, que arrancara a máscara do rosto porque lhe faltava o ar e lhe parecia que ia sufocar. E William voltara a apertar-lha contra o queixo com toda a força. No entanto, mais tarde morrera. Ali, Winnie Carter, que transportava a comida em Armentières e que, com um estilhaço na perna e uma bala no ombro esquerdo, arrastara o saco dos mantimentos para a frente antes de sucumbir. Sim, e ali Robert O’Conney, o melhor sapador de toda a companhia, que na altura, em 1917, descobrira um buraco na cerca de arame das linhas alemãs. Estavam todos ali outra vez. Webbs ria. O coronel Luckie Perkins gracejava. Lá no meio do horror, tinham-se apoiado uns aos outros, criando uma ligação mais forte do que a que existe entre irmãos. Clark! Shenessy! Smith! Guitry! Era como se os vivos e os mortos se apresentassem novamente nos seus postos. Cada um era responsável pelo outro e uma palavra resumia tudo: confiança!

 

William apertou o coração com a mão e soltou um gemido.

 

O que é, William? Inquieta, Jenny inclinou-se para ele.

 

Com o rosto cinzento, William apressou-se a desapertar o botão do colarinho.

 

As outras pessoas, fascinadas com o jogo amoroso dos ursos, não deram por nada. William respirou profundamente várias vezes e bateu energicamente no peito. Era uma coisa que ajudava quase sempre. Também desta vez deu resultado. Graças a Deus! Os jovens de Toronto ainda gritaram: For he is a jolly good folow E todos os convidados cantaram com eles. Depois, o cortejo nupcial abandonou o recinto dos ursos.

 

Chuck Brady e o tratador Bear ficaram preocupados. Um ajuntamento assim só enervava os animais, que eram sensíveis e percebiam logo que se passava alguma coisa fora do vulgar.

 

A noiva estava encantadora. E Kitchener voltara a ter imensa publicidade. Não se podia fazer nada.

 

Bom, ainda ficara lá o velho guerreiro canadiano. Não, não parecia muito velho, mas era magro e engelhado. E aquela ali pendurada no seu braço era com certeza a mulher, a mãe do noivo. Tão graciosa! Mesmo como a noiva! Bem se dizia que era frequente os filhos escolherem uma mulher parecida com a mãe. William estava comovido. Era tanta coisa junta! O seu Jim, que sempre permanecera um tanto afastado dele, pois passara os anos mais importantes longe do pai, esse filho casava-se agora e de certeza que em breve também teria filhos. «Meu Deus», orou William em silêncio, «que corra tudo melhor com ele: poupa-o à guerra!»

 

E ali estava o enorme urso castanho e guedelhudo que andava atrás dele quando era bebé, que lhes salvara a vida a todos e que se mostrara tão valente. Sim, valente! Porque é que um animal não havia de poder ser valente?

 

Ah, meu velho, portaste-te melhor do que eu! disse William para o urso. Quantos anos de vida tem um urso? Trinta. O Webbs dizia que nunca mais de trinta e cinco em cativeiro. Vais viver mais do que eu, amigo. Mas, pelo menos, encontrámo-nos outra vez. Adeus! Sê feliz!

 

Como é que te sentes, William? perguntou Jenny, preocupada.

 

Muito bem, minha pequena. Mas agora, vamos. De contrário, não estaremos presentes quando começarem os discursos. O teu velho William há-de viver cem anos. Pelo menos. Por isso, não te preocupes, por amor de Deus!

 

Jenny sorriu corajosamente. Sabia que o marido ficava irritado quando lhe falavam das suas maleitas. A doença não fazia parte da sua imagem do mundo. Assim, William Rockwell mostrou-se uma das pessoas mais divertidas na festa de casamento do filho mais velho. Ele e os camaradas até fizeram bastante barulho, pois quanto mais alto uma pessoa se ria e fanfarronava, melhor ocultava a insegurança, o nervosismo e tudo o que existia no desconhecido. Avivaram-se lembranças e contaram-se histórias. Os filhos cochichavam aventuras que os pais lhes tinham narrado quando as mães não estavam a ouvir. Houvera fogosas francesas e fleumáticas inglesas de temperamento dissimulado, Lous e Los, Georgettes e Rosettes, Vivians e Annes, das quais os pais não se tinham cansado de se gabar. Os homens que lá haviam estado e sabiam o que se passara, calavam-se muito bem calados. Não se deviam estragar as lendas. As histórias que ainda eram capazes de iluminar rostos que a vida endurecera tinham um fundo bom e verdadeiro, mesmo quando entravam um pouco no reino da fantasia.

 

Jenny fitou algumas vezes os homens ali reunidos. Estava preocupada, mas também se sentia feliz pelo marido. Eram a sua gente, na maioria agricultores dos extensos trigais, que metiam o arado à terra e malhavam o trigo: homens que se realizavam na singeleza da vida, que criavam raízes na sua terra como árvores frondosas, grandes e fortes.

 

O noivo dançou a primeira valsa com a noiva. Jim e Alice olhavam-se intensamente nos olhos, e o que viam era apenas felicidade e promessa. Depois de algumas voltas, os convidados também dançaram. William desafiou a mulher. Oh!, ainda era um excelente dançarino, se bem que ao fim de alguns minutos o ar lhe faltasse um bocadinho mais do que antes em tais ocasiões.

 

William sorriu. Ainda tinha na manga uma surpresa para o jovem casal. A quinta rendera o suficiente para lhe permitir comprar-lhes uma boa casa em Montreal. E ainda ficava que chegasse e sobrasse para Percy. Jim e a sua família haviam de começar a vida com o pé direito.

 

Para ser bem sincero, William agora até aceitava de bom grado o facto que antes o entristecera tanto: que o filho mais velho não queria ser agricultor. Na verdade, ainda se sentia muito jovem para arrumar as botas. «Ainda não tenho o passaporte para a grande viagem final», pensou William. «Às vezes, a ”bomba” não trabalha lá muito bem. Ocasionalmente, a perna com o estilhaço dói como o diabo. Mas ninguém saiu incólume da frente. Somos rapazes rijos. Não morremos assim com tanta facilidade.»

 

Os noivos retiraram-se a fim de se vestirem para a lua-de-mel. Evidentemente que iam passá-la a Paris, que Jim queria pôr aos pés da sua jovem esposa.

 

Também devíamos pôr-nos a andar disse William a Jenny. Sabes, minha querida, Londres não é uma cidade feia, mas não é Ontario. E o Percy faz-me muita falta. A Lucille também, claro, mas o Percy deve sentir-se muito abandonado, coitado!

 

Quando Jenny sorriu fazendo covinhas no rosto e ergueu a cabeça com o cabelo escuro para fitar o marido nos olhos, parecia uma rapariguinha.

 

O Percy deve estar muito bem... Ora, deixa-te de conversas, William Rockwell retorquiu ela. Confessa que tens saudades!

 

William riu-se.

 

Como me conheces bem, meu amor!

 


Devíamos contar a vida não por anos mas segundo as suas horas felizes. Mas quanto mais horas dá o grande relógio, mais pesada é a angústia que se instala nas almas, tornando as pessoas idosas mais sedentas de alegria e beleza do que as jovens, que podem ter tudo. William e Jenny tinham quatro netos: três de Alice e Jim, que era professor na Escola Superior de Arte, em Montreal, e que vendia os seus quadros por bom preço, e um de Lucille, que casara com um arquitecto e pusera alegremente de lado todos os seus planos profissionais e de independência.

 

Entretanto, Percy ficara mais alto do que o pai. Fazia tudo pela quinta, que um dia havia de administrar o melhor possível. A vida correra às mil maravilhas para William. Mas havia nele uma ânsia de viver que cada dia se tornava mais forte. Não, não lhe chegava viver de recordações. Tal como todos os seus camaradas, fora obrigado a sacrificar os anos da guerra, que tinham alimentado aquela fome nele.

 

Os sonhos do passado, que tinham tornado a guerra mais suportável, ainda permaneciam bem vivos. Havia vinte anos que a humanidade voltara a poder respirar em liberdade. Vinte anos desde o armistício. E já o mundo voltava a suspender a respiração. A loucura pairava no ar. O fanatismo penetrara nas fileiras do poder. A agressão e o rancor, a estupidez e a falsa tolerância encontravam-se e criavam terríveis condições para que o mundo voltasse a incendiar-se.

 

No entanto, apesar da atmosfera ameaçadora, o zé-povinho continuava a defender os seus interesses pessoais e a levar a água ao seu moinho como se fosse tudo um mar de rosas.

 

Quando William soube que o urso Kitchener adoecera, a notícia afligiu-o mais do que os títulos políticos das primeiras páginas dos jornais.

 

Kitchener estava doente! Um agricultor não era cheio de esquisitices. Os animais morriam, eram abatidos e comidos, serviam o homem em tudo. Mas Kitchener não era um animal qualquer, e sim o símbolo da sobrevivência, estreitamente ligado à sua própria existência, o mesmo que força, resistência e coragem. E milagre, quer este se chamasse acaso, quer destino.

 

O general Powell telefonou a William dizendo-lhe com a sua voz de clarinete que já enviara ao Jardim Zoológico de Londres uma quantia considerável, para o caso de a mascote do regimento ter de ser operada ou submetida a algum tratamento dispendioso.

 

Kitchener estava doente!

 

Uma manhã, Mr. Bear reparou que o seu querido gigante, estirado no seu canto, não estava, como de costume, a descansar pacata e preguiçosamente. Antes jazia respirando superficialmente, com o pêlo desgrenhado e os olhos baços.

 

Mr. Bear sabia que os ursos são muito robustos, afastando sem dificuldade qualquer pequena indisposição. Não se constipam e suportam muito bem uma alimentação a que não estejam habituados. Mas aquele urso estava doente. Ao vê-lo, agitou as patas, abriu a boca como se lhe faltasse o ar e lançou a Bear um olhar baço e suplicante, como se quisesse dizer: «Então não me ajudas?»

 

O veterinário do Jardim Zoológico acorreu. A imprensa apressou-se a divulgar o acontecido. Os relatórios sobre o urso Kitchener assemelhavam-se aos de um homem de Estado moribundo: «Kitchener tem a língua seca, gretada e inteiriçada. É sacudido por violentos arrepios. Suspeita-se de uma úlcera no estômago.» «Kitchener vai ser tratado com papas hidropáticas.» «Urso recebe codeína. Tratador Bear confia no vinho de condurango! Sopas de mucilagem e salada de carne! Médico naturalista recomenda nux vomica 3!» «Chamado veterinário de Birmingham. O professor Spring é uma sumidade no campo da zoologia!» «Regimento canadiano envia subsídio para o tratamento de Kitchener^. O urso vai fazer uma radioscopia!»

 

Kitchener submeteu-se a todos aqueles tratamentos desacostumados sem tugir nem mugir. Estava desorientado. Não sabia o que se passava com ele. Abanava a cabeça de um lado para o outro e roncava. Parecia quase humano, mas a sua reacção já não era de abandono.

 

Como se anuncia a morte de um urso? Kitchener já a enfrentara muitas vezes, quando estivera na linha da frente. Mas desta vez era diferente. Só sentia dores, vontade de dormitar, resignação.

 

O diagnóstico do professor Springs não podia ser mais claro: «Uma úlcera cancerosa em estado avançado no estômago, perto do piloro. Flatulência causada pelo aperto do acesso ao intestino. A análise feita ao estômago revelou a existência de ácido láctico e de uma massa semelhante a café, cor de chocolate, juntamente com uma carência grave em ácido clorídrico livre. Metástases...»

 

O director do Jardim Zoológico e o veterinário entreolharam-se com gravidade. Tinham de tomar uma decisão.

 

Uma dose considerável de morfina ia tornar-lhe a vida mais suportável. E, neste caso, uma dose a mais seria uma caridade disse Spring muito sério.

 

O director encolheu os ombros e afastou-se.

 

Quando as coisas são realmente arriscadas, nós, simples mortais, estamos sempre nas vossas mãos. O nosso único consolo é que os médicos também são mortais tentou ele gracejar.

 

Vós, simples mortais, empurrais sempre a decisão final para o pobre do médico contrapôs Spring.

 

O director saiu silenciosamente do escritório e dirigiu-se à sua casa, às portas de Londres.

 

Estou exausto disse à mulher. Este urso sempre foi o mais precioso dos nossos animais. O urso de um regimento.

 

Como assim? Foi?

 

O director inspirou profundamente.

 

Não falemos mais disso. Ela assentiu:

 

Mas não te esqueças de que hoje à noite vamos a casa dos Churchill, Eddie!

 

No Jardim Zoológico, Mr. Bear estava enlutado. Kitchener ainda vivia, mas Mr. Bear já estava de luto. Aquele já não era o robusto paxá do passado. Se bem que não o mostrasse, o facto é que crescera interiormente com aquele animal ao longo dos anos. As suas dores também o faziam sofrer e sentia-se de repente sozinho, pois Kitchener já. o abandonara. Sentado na sua sala como uma estátua chinesa em meditação, Mr. Bear esperava.

 

Kitchener jazia imóvel e indiferente no seu canto preferido. As ursas estavam nas jaulas. Os veterinários tinham chegado a acordo. Kitchener agonizava. A saliva escorria-lhe da boca. Os olhos vidrados fitavam o infinito. O pêlo castanho parecia sarnoso.

 

Os dois veterinários entreolharam-se e assentiram.

 

O telegrama recebido em Toronto, no 159.° Regimento de Infantaria de Ontario, dizia: «Kitchener morreu stop.» Foi a dezasseis de Julho de 1938.

 

Na Europa, a fatalidade já espreitava. Hitler dava seguimento à sua política da «conquista de novos espaços». Assinara um tratado anticomunista com o Japão e fundara o «eixo Berlim-Roma» com a Itália. O Exército alemão fora unificado sob o Comando Supremo das Forças Armadas e a Áustria anexada. Hitler já ordenara secretamente às forças armadas o «ataque à Checoslováquia», e a Conferência de Munique estava à porta. Chamberlain e Daladier ainda acreditavam que tudo poderia compor-se, mostrando alguma boa vontade para com o soberano castanho.

 

No entanto, em Inglaterra, as pessoas comoviam-se com a notícia da morte de Kitchener, o urso do regimento. Abanavam a cabeça. Os mais velhos pensavam de relance no tempo da guerra. Graças a Deus, tinha passado! O mundo não ia lá muito bem, mas na verdade alguma vez fora realmente bem? Não, cada um devia tentar tirar da vida pequenas alegrias e experiências e viver cada dia de novo, pois a existência compunha-se de muitos dias isolados e numerosos novos começos.

 

Os jornais publicavam fotografias de Kitchener nos seus tempos áureos, com Rose e acenando de pé nas patas traseiras; claro que também não faltou aquele retrato amarelecido que mostrava o engraçado animal de capacete de aço, posando com o seu regimento.

 

As pessoas sorriam e pensavam que ele realmente vivera bem a vida! Depois, como era natural, embrenhavam-se nas suas tarefas do dia-a-dia.

 

A consternação no Canadá também se manteve dentro dos limites. Naturalmente, todos tinham de morrer um dia. Claro que o general Powell mandou pôr as bandeiras a meia haste. Quem o fez foram os homens que tinham ido a Londres. Powell reuniu as suas tropas e proferiu algumas palavras sentidas. Ao morrer, Kitchener levara com ele um pedaço da sua própria vida. No entanto, cerrou os dentes, apertou os maxilares, esticou-se dois centímetros como de costume e pôs-se em sentido.

 

Nessa altura, William Rockwell esperava, deitado no leito largo e baixo. Percy, com o seu ar robusto e rural, parecia ter criado raízes aos pés da cama. Fitava o pai com os mesmos olhos claros que este tivera quando ainda respirava saúde e força. Agora, o olhar de William estava embaciado. Mas sorria serenamente para a sua pequena Jenny, cujo rosto pequeno e pálido parecia engelhado de aflição. As manchas vermelhas nas pálpebras diziam a William que ela estivera a chorar.

 

Como lhe tinham posto uma almofada a mais, William estava quase sentado na cama. Indirectamente, a guerra havia tanto terminada ainda o apanhara de surpresa. Um estilhaço infectara. Um coágulo de sangue, vagueando pelo organismo, atingira o coração.

 

Custava-lhe falar. Faltava-lhe o fôlego. No entanto, parecia-lhe que estavam todos a reagir com um certo exagero.

 

Percy?

 

Sim, papá?

 

Tu arranjas-te com a mamã?

 

Não te preocupes, papá!

 

Não. Filhos, uma filha, uma mulher amada, uma casa, o trabalho de uma vida, um pouco de bem-estar e muitas horas felizes... já foi alguma coisa. Bem posso dar graças. Gostaria de ter tido alguma saúde, mas não se pode ter tudo. Suspirou.

 

Jenny aproximou-se e limpou-lhe o suor da testa.

 

Jenny, foste sempre uma boa esposa.

 

Não fales assim... no passado, William Rockwell. Se fazes favor, põe-te bom disse ela o mais energicamente possível.

 

Ele riu-se.

 

Olha-me só para ela! Nunca teve papas na língua! Ouve sempre o que ela diz, Percy. Vale a pena. Eu sei.

 

Está bem, papá.

 

Jenny continuou William, fui muitas vezes um bruto. De certeza que te apeteceu muitas vezes puxar-me as orelhas, mas calaste-te e dali a pouco já estavas a rir outra vez. Não penses que nunca reparei nisso. Com uma mulher assim, um homem vai até ao fim do mundo. Com uma mulher como a mamã ao lado, Percy, um homem normal torna-se um vencedor. Lembra-te disto quando pensares em casar.

 

Está bem, papá!

 

Mas há ainda uma questão, William Rockwell observou Jenny o mais corajosamente possível, ajeitando-lhe as almofadas. Vou falar com franqueza. Não achas que devia chamar a querida Lucille e o nosso Jim? Só para eles te animarem um pouco.

 

Como quiseres. Faz isso. Que tragam os pequenos. Quero vê-los mais uma vez. Esgotado, William calou-se, arquejando baixinho.

 

Jenny atravessou o vestíbulo para o telefone. Aproveitando a ocasião, informou também o médico de que William piorara. Já não chorava. Receara muito por William. «Não tenho mais lágrimas», pensou. «Por agora. Talvez mais tarde elas voltem a correr e me consolem. De momento, preciso de todas as minhas forças para tornar mais leves as últimas horas e dias do meu querido marido.» Era claro para ela que William ia morrer.

 

E ele também o sabia.

 

Uma visita inesperada chegou antes dos filhos. O general Powell parou à porta.

 

Ora, ora, como vai o nosso doente? perguntou em voz forte, não deixando transparecer se o aspecto de William o impressionara.

 

William esboçou uma espécie de sorriso.

 

Não vou mentir retorquiu ironicamente. Já estive melhor.

 

Jenny puxou uma cadeira para perto da cama, fez um sinal com os olhos ao filho mais novo e ambos saíram do quarto. Jenny sabia o quanto aquela velha camaradagem significava para o marido. Uma mulher nunca poderia substituí-la. Devia ter muita força, pois manifestava-se até quase na morte, provavelmente em resultado do perigo que ambos tinham corrido juntos.

 

Já sabia que o velho Rockwell vai partir? Ou a sua visita não é de despedida? perguntou William.

 

Eu... bem... eu queria só fazer-lhe um assalto de surpresa...

 

Assalto... Ora, já não vale a pena assaltar-me. Não tenho forças.

 

Também não exagere, William!

 

Está bem. No fundo, não estou nada descontente.

 

Eu também não. Não pessoalmente. Mas o mundo não vai bem. A Europa é um barril de pólvora. E nós os dois sabemos por experiência própria que o Canadá não está longe da linha de fogo. Estou preocupado com todos os filhos, e também com o meu genro.

 

Tenho dois filhos e um genro murmurou Rockwell. Só peço a Deus que os poupe a esse destino.

 

Amen.

 

Mas o que o traz aqui, senhor general? Powell inspirou profundamente.

 

Bem. Queria dizer-lhe pessoalmente... Depois de vasculhar no bolso, pousou o telegrama de Londres na colcha da cama.

 

William Rockwell olhou-o de relance, mas sem o ler.

 

O Kitchener morreu?

 

Morreu. Já telefonei para Londres. Foi cancro. Não sofreu.

 

William Rockwell fechou os olhos. Quando voltou a abri-los, tinham um brilho pouco natural.

 

Quer dizer que o meu amigo foi antes de mim. Será que os ursos vão para o céu? Haverá lá algum cantinho para os ursos? Talvez uma espécie de jardim zoológico celestial, com um recinto para os ursos e rações diárias de abrunhos da marca Goudben & Co., de Los Angeles. Sabe como o encontrámos? O Micklewhite quase rebentou de riso. E nós de certeza que nunca fizemos um ar de parvos tão grande como naquele dia...

 

Eu ainda era tenente. Há semanas que chovia a cântaros. Os alemães não se cansavam de bombear acrescentou Powell sonhadoramente.

 

Lembro-me disso muitas vezes.

 

Eu também. Este ano, no Dia de Kitchener, vamos fazer uma festa e um grande desfile. Por isso, faça o favor de se pôr bom para se aguentar nas pernas.

 

William sorriu.

 

Não vamos enganar-nos. O meu relógio já não vai dar muitas mais horas. Estaria escrito que eu e o Kitchener íamos morrer ao mesmo tempo?

 

Quem sabe?

 

Gostaria de saber. Existem muitas perguntas para as quais não tenho resposta. William fechou os olhos. A mão fechou-se-lhe sobre a colcha e a sua pele ficou cinzenta. Era evidente que estava cheio de dores.

 

Powell levantou-se devagarinho e fez menção de se retirar em bicos de pés.

 

Mas William Rockwell sussurrou:

 

O desfile... Estarei lá em espírito. Powell virou-se e disse em voz alta e firme:

 

Eu sei. Sem a sua presença, o desfile não poderia realizar-se, meu amigo.

 

Jenny encontrava-se à sua espera no vestíbulo. Nos seus olhos estava espelhada toda a mágoa do mundo, e Powell passou-lhe o braço à volta dos ombros. Não podia consolá-la, mas demonstrava-lhe assim que também era dela uma parte da amizade que se desenvolvera entre ele e William Rockwell ao longo dos anos.

 

Uma delegação do 159.° Regimento de Infantaria de Ontario apresentou-se para o funeral de William Rockwell. No pequeno cemitério de Port Hope, as bandeiras baixaram ao som monocórdico dos sinos da igreja.

 

Lucille soluçava. Jenny e Jim encontravam-se lado a lado, hirtos e sérios, de olhos enxutos. O pároco ergueu a voz:

 

Podes ser grande, homem, mas és pequeno perante Deus. Eternamente unido à Natureza, passas desta vida para outra que nós, mortais, podemos apreender apenas através da nossa fé.

 

O general Powell avançou e disse:

 

William Rockwell, a tua alma esteve sempre aberta ao milagre. Soubeste reconhecer na mais inferior das criaturas a grande maravilha da Criação. Manter-nos-emos leais e fiéis a ti na morte, como tu sempre foste durante toda a tua vida. Descansa em paz, velho camarada!

 

Na gigantesca coroa do 159.° Regimento de Infantaria, tão grande que tinham de ser dois homens a transportá-la, encontrava-se presa uma pequena fotografia amarelecida: soldados em sentido; estavam magros e tinham o rosto radiante; no meio deles, um urso com um capacete de aço na cabeça.

 

Powell não faltou à sua palavra. No vigésimo aniversário de Compiègne, o desfile foi organizado em grande estilo. O general Powell estava de pé na tribuna, completamente cheia de veteranos e suas famílias. Os uniformes impecáveis dos soldados reluziam ao sol. A banda tocou briosamente a Marcha de Kitchener. As bandeiras agitavam-se ao vento. Tudo era cor e alegria. Nada faria pensar no lado sinistro da guerra, na despedida e na morte.

 

O auge deste onze de Novembro de 1938 teve lugar mais tarde, num círculo restrito.

 

Realizou-se no pátio da caserna, para onde voltaram os veteranos, muitos deles já com um pouco de gordura a mais na cintura e um tanto emperrados, pois os ossos não eram o que tinham sido e o reumatismo já ia atacando os músculos.

 

No lado aberto do quadrado, havia cadeiras para as senhoras. Com um casaco preto, muito pálida, Jenny Rockwell também ocupara aí o seu lugar. Portava-se corajosamente, como era próprio. Era missão das mulheres estar alerta e calar-se quando os homens voltavam a incendiar o mundo.

 

Jovens soldados fizeram a continência. Tambores rufaram. As bandeiras erguidas a meia haste foram içadas, agitando-se ao vento.

 

O general Powell, pequeno e muito direito, fez uma saudação para a distância, dando graças pelo seu amado país, com as cidades e as aldeias, os lagos, os campos infinitos, os Invernos glaciais e os Estios explodindo de fecundidade. Saudou os camaradas caídos e pensou em William Rockwell e na sua própria morte, que esperava ainda demorasse a chegar.

 

Homens! gritou em voz clara, esticando-se pelo menos dois centímetros. Homens! Todos nós temos a nossa própria vida, mas houve um tempo em que vivemos e sobrevivemos lado a lado. Foram anos intensos, que nos ligaram uns aos outros para sempre. Nessa altura, tínhamos mais um camarada que queremos recordar hoje. Era um urso, ao qual demos o nome de Kitchener. Naturalmente, um animal é um animal, e não pode nem deve ser considerado uma pessoa. Mas pergunto-me muitas vezes a mim próprio: o Kitchener era realmente um simples urso?

 

Todos riram. Powell continuou:

 

E sendo só um animal era, pelo menos, muito especial. Afinal, não é qualquer urso que pode pertencer a um regimento e fazer parte do seu brasão de armas. O Kitchener era leal, valente e esperto, boas qualidades para um soldado. As melhores, na minha opinião. Agora, a nossa mascote morreu. Mas não vamos esquecê-la.

 

Os tambores voltaram a rufar. O pano branco que tapava uma estátua foi retirado, e no pátio da caserna surgiu um novo monumento.

 

Sim, era Kitchener, tal como vivera, de pé nas patas traseiras, acenando com as da frente, no mínimo com cem quilos e, a partir desse momento, o que realmente já fora em vida: um símbolo.

 

Powell disse:

 

Todos nós vasculhámos as nossas algibeiras para podermos encomendar esta estátua. O artista que a executou chama-se Jan Steen, um amigo e colega de Jim Rockwell, cujo pai, como todos sabemos, estava especialmente ligado ao Kitchener. Ele descobriu-o, tratou dele e, mais tarde, visitou-o uma vez em Londres. Agora, o círculo completa-se. Três hurras pelo urso Kitchener.

 

O seu oficial-às-ordens passou-lhe um grande ramo de rosas amarelas, que ele entregou solenemente a Jenny Rockwell.

 

A festa chegara ao fim e a vida retomou o seu curso normal.

 

Pouco depois, o Jardim Zoológico de Londres adquiriu um outro urso. Não era tão poderoso como Kitchener nem, evidentemente, tão popular. No entanto, às vezes, um ou outro visitante perguntava:

 

Este é o urso do regimento da Primeira Guerra Mundial?

 

E Mr. Bear abanava tristemente a cabeça.

  

                                                                  Heinz G. Konsalik

 

 

                      

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