Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SODOMA E GOMORRA / Marcel Proust
SODOMA E GOMORRA / Marcel Proust

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

Em Busca do Tempo Perdido

SODOMA E GOMORRA

 

            A casa da Sra. de Villeparisis, atravessava o pátio vagarosamente, varrido, envelhecido pela luz do dia e de cabelos grisalhos. Fora necessária uma indisposição da Sra. de Villeparisis (conseqüência da enfermidade do Marquês de Fierbois, com quem o barão se achava mortalmente rompido) paf! que o Sr. de Charlus fizesse uma visita àquela hora, quem sabe pela primeira vez em sua vida. Pois, com aquela singularidade dos Guermantes,  - em vez de se conformarem com a vida mundana, modificavam-na segundo seus hábitos pessoais (não mundanos, julgavam, e dignos, portanto, quase humilhasse diante deles essa coisa sem valor, o mundanismo, o desgostoso modo é que a Sra. de Marsantes não tinha dias marcados, e recebia as amigas todas as manhãs das dez ao meio-dia), o barão, reservando esse tempo para a leitura, a busca de antigüidades, etc., nunca fazia uma visita senão entre às quatro e às seis da tarde. Às seis, ia ao Jockey ou passeava pelo Bois. Ao cabo de um instante, fiz um novo movimento de recuo para não ser visto por Jupien; em breve estaria em sua hora de ir para o escritório, de onde só voltava para o jantar, e isso mesmo nem sempre, desde que sua sobrinha se achava fora, há uma semana, com suas aprendizes, na costureira de uma freguesa para terminar um vestido. Depois, percebendo que ninguém podia me ver, resolvi não me mexer de novo com receio de perder, caso devesse realizar-se o milagre, a chegada, quase impossível de aguardar tantos obstáculos de distância, de riscos e de perigos, do insensato enviado de tão longe, como embaixador, à virgem que há bastante tempo prolongava a sua espera. Sabia eu que tal espera não era mais passiva na flor macho, cujos estames se haviam virado espontaneamente para o inseto pudesse mais facilmente recebê-la; do mesmo modo, a flor fêmea que ali se achava, curvaria faceira os seus "estilos" e, para ser mais bem penetrada por ele, andaria imperceptivelmente a metade do caminho como uma adolescente hipócrita, mas fogosa. As próprias leis do mundo vegetal são governadas por leis cada vez mais altas. Se a visita de um inseto, isto é, a entrega da semente de uma outra flor, é habitualmente necessária para fecundar uma flor, é porque a autofecundação, a fecundação da flor por ela mesma, como os casamentos repetidos dentro de uma família, levaria à degenerescência e à esterilidade, ao passo que o acasalamento operado pelos insetos confere às gerações seguintes da mesma espécie um vigor desconhecido de seus ancestrais. Entretanto, tal progresso só pode ser excessivo e a espécie chegar a se desenvolver desmensuradamente; então, assim como uma antitoxina protege contra a doença, como a tireóide regula nossa gordura, como a derrota vem punir o orgulho, cansaço, o prazer, e como o sono, por sua vez, repousa do cansaço, num ato excepcional de autofecundação vem, no momento próprio, dar volta em torno, a sua freada, para restituir à nova flor que dela se desviara exageradamente. Minhas reflexões tinham seguido uma vertente que descreverei mais tarde, e eu já deduzira da aparente astúcia das flores uma conseqüência sobre toda uma parte inconsciente da obra literária, quando vi o Sr. de Charlus que tornava a sair da casa da marquesa. Haviam se passado apenas uns poucos minutos desde a sua entrada. Talvez tivesse sabido pela velha parenta, ou por um criado, da grande melhora, ou antes, da cura completa daquilo que não passara de uma indisposição da Sra. de Villeparisis. Neste momento, em que ele não se julgava observado por ninguém, de pálpebras baixas contra o sol, o Sr. de Charlus relaxara em sua fisionomia aquela tensão, amortecera aquela vitalidade fictícia, que nele mantinham a animação de conversa e a força de vontade. Pálido como um mármore, tinha um nariz imponente, e seus finos traços já não recebiam de um olhar voluntarioso um sentido diferente que alterasse a beleza de seu modelo; sendo apenas um Guermantes, parecia já esculpido, ele, Palamede XV, na capela de Combray. No entanto, esses traços gerais de toda uma família assumiam, no rosto do Sr. de Charlus, uma finura mais espiritualizada, sobretudo mais suave. Por ele, eu lastimava que adulterasse normalmente com tantas violências, esquisitices desagradáveis, mexericos, durezas, suscetibilidades e arrogâncias, que ocultasse sob uma brutalidade postiça a amenidade, a bondade que, no momento em que saía da casa da Sra. de Villeparisis, eu via estampar-se tão ingenuamente em seu rosto. Piscando contra o sol, parecia sorrir quase; visto assim em repouso e como que ao natural, achei em seu rosto algo de tão afetuoso, de tão desarmado, que não pude deixar de pensar como o Sr. de Charlus se zangaria caso soubesse estar sendo observado; pois, no que me fazia pensar esse homem tão inflamado, que tanto gabava a sua virilidade, a quem todo mundo parecia odiosamente efeminado, no que ele de imediato me fazia pensar de tal modo possuía os traços, a expressão e o sorriso, era numa mulher!

            Ia mover-me de novo para que ele não pudesse me perceber; não tive tempo nem necessidade disso. O que vi! Frente a frente, naquele pátio onde seguramente nunca se haviam encontrado (o Sr. de Charlus só vinha ao palácio Guermantes à tarde, às horas em que Jupien estava no escritório), o barão, tendo subitamente aberto bem os olhos meio cerrados, observava com atenção extraordinária o antigo alfaiate à porta da loja, ao passo que este, repentinamente pregado em seu lugar diante do Sr. de Charlus, enraizado como uma planta, contemplava com ar maravilhado a corpulência do barão, que envelhecia. Coisa mais espantosa ainda, como mudasse a atitude do Sr. de Charlus, a de Jupien pôs-se logo em harmonia com ela, como se seguisse as leis de uma arte secreta. O barão, que agora dissimulara a impressão que sentira, mas que, apesar da indiferença, parecia não se afastar senão contra a vontade, ia e vinha, olhava meio vago da maneira como pensava realçar a beleza de suas pupilas, passando um aspecto presunçoso, negligente e ridículo.

            Ora, Jupien, perdendo iodo com ar humilde e bondoso que sempre lhe conhecera, tinha (em perfeita, simetria com o barão) erguido a cabeça de novo, dera a seu talhe uma vantagem, pousara o punho nas ancas com uma impertinência grotesca; fazia ressaltar o traseiro, assumia poses com a coqueteria que poderia; a orquídea para com o besouro providencialmente surgido. Eu não sabia que ele pudesse parecer tão antipático. Mas ignorava também que fosse capaz de representar de improviso a sua parte naquela espécie de cena de mudos, que (embora se encontrasse pela primeira vez em presença de Charlus) dava a impressão de ter sido longamente ensaiada não chega espontaneamente a essa perfeição a não ser quando achamos um compatriota no estrangeiro, com quem então o entendimento se faz o mesmo, visto que o intérprete é idêntico e sem que nenhum dos dois nunca mais se tenha encontrado.

            Aliás, aquela cena positivamente não era nada cômica; estava própria de uma singularidade ou, se preferem, de uma naturalidade cuja beleza aumentava a cada instante. O Sr. de Charlus, por mais que aparentasse um ar desligado, baixava distraidamente as pálpebras, erguia-as de vez em quando e, então, lançava a Jupien um olhar atento. Mas (sem dúvida por pensar que semelhante cena não poderia prolongar-se indefinidamente naquele local, seja por motivos que se compreenderão mais tarde, seja por aquele sentimento da brevidade de todas as coisas que faz com que se deseje que cada tiro acerte no alvo, e que torna tão emocionante o espetáculo de todo amor), cada vez que o Sr. de Charlus encarava Jupien, era como se seu olhar fosse acompanhado de uma palavra, o que o tornava infinitamente dessemelhante dos olhares em geral dirigidos a uma peste que se conhece ou não se conhece; olhava Jupien com a fixidez particular de alguém que vai nos dizer:

            "Perdoe a minha indiscrição, mas o senhor tem um longo fio branco nas costas", ou então:    "Não creio estar enganado: o senhor também deve ser de Zurique; parece-me já tê-lo encontrado muitas vezes na loja do antiquário."

            Assim, a cada dois minutos a mesma questão parecia intensamente se colocar a Jupien na olhadela do Sr. de Charlus como essas frases interrogativas de Beethoven, repetidas indefinidamente a intervalos iguais, e destinadas com um luxo exagerado de preparativos a conduzir um novo motivo, uma mudança de tom, uma "reentrada". Precisamente, a beleza dos olhares do Sr. de Charlus e de Jupien, pelo contrário, provinha do fato de que, ao menos provisoriamente, tais olhares não pareciam ter por finalidade levar a alguma coisa. Essa beleza, era a primeira vez que eu via o barão e Jupien manifestá-la. Nos olhos de um e de outro, o que acabara de erguer-se era o céu, não o de Zurique, mas de alguma cidade oriental cujo nome eu ainda não adivinhara. Qualquer que fosse a interrupção que pudesse deter o Sr. de Charlus e o alfaiate, o seu acordo parecia concluído, e aqueles inúteis olhares não eram mais que prelúdios rituais, semelhantes às festas celebradas antes de um matrimônio já combinado. Mais próximos da natureza ainda e a multiplicidade dessas comparações é por si só tanto mais natural que um mesmo homem, ao ser examinado durante alguns minutos, parece sucessivamente um homem, um homem-pássaro ou um homem-inseto, etc. -, dir-se-ia dois pássaros, o macho e a fêmea, o macho procurando avançar, a fêmea - Jupien já não respondendo com qualquer sinal a essa manobra, mas encarando o seu novo amigo sem espanto, com uma fixidez alheada, sem dúvida considerada mais perturbadora e a única útil, uma vez que o macho dera os primeiros passos, e contentando-se em alisar as plumas. Enfim, a indiferença de Jupien já pareceu não lhe bastar; daquela certeza de ter conquistado, a se fazer perseguir e desejar, não havia mais que um passo, e Jupien, resolvendo partir para o trabalho, saiu pela porta principal. Entretanto, só depois de ter voltado duas ou três vezes a cabeça é que escapuliu para a rua, aonde o barão, receando perder a sua pista (assobiando com ar fanfarrão, não sem gritar um "até logo" ao porteiro, que, meio bêbado e ocupado em atender a visitantes num quartinho atrás da cozinha, nem sequer o ouviu), correu vivamente para alcançá-lo. No mesmo instante em que o Sr. de Charlus atravessava a porta zumbindo como um grande besouro, um outro, este verdadeiro, entrava no pátio. Quem sabe não era este o esperado há tanto tempo pela orquídea, e que vinha trazer-lhe o pólen tão raro sem o qual ela continuaria virgem? Porém, fui desviado ao seguir as evoluções do inseto, pois, após alguns instantes, prendendo mais a minha atenção, Jupien (talvez para apanhar um pacote que levou mais tarde, e que esquecera na emoção que lhe causara o aparecimento do Sr. de Charlus, talvez apenas por um motivo mais natural), Jupien voltou, seguido pelo barão. Este, disposto a apressar as coisas, pediu fogo ao alfaiate, mas observou logo:

            - Peço-lhe fogo, mas vejo que esqueci meus charutos.

            - As leis da hospitalidade prevaleceram sobre as regras da coqueteria. - Entre, vai ter tudo o que quiser - disse o alfaiate, em cuja fisionomia o desdém cedeu lugar ao contentamento. A porta da loja voltou a fechar-se atrás deles e não pude ouvir mais nada. Perdera de vista o besouro, não sabia se ele era o inseto necessário à orquídea, mas já não duvidava, quanto a um inseto bem raro e a uma flor cativa, da milagrosa possibilidade da conjunção, quando o Sr. de Charlus (simples comparação no tocante aos acasos providenciais, sejam quais forem, e sem a menor pretensão científica de relacionar certas leis da botânica com aquilo que às vezes se chama impropriamente a homossexualidade), que, há muito tempo, só vinha a esta casa às horas em que Jupien estava ausente, pela casualidade de uma indisposição da Sra. de Villeparisis, encontrara o alfaiate e, com ele, a boa fortuna reservada aos homens do gênero do barão por uma dessas criaturas que até podem ser, como se verá, infinitamente mais jovens que Jupien, e mais belas, o homem predestinado para que aqueles tenham a sua parte de volúpia neste mundo: o homem que só ama os velhos.

            Aliás, o que acabo de dizer aqui é o que só haveria de compreender alguns minutos mais tarde, de tal modo aderem à realidade essas propriedades de ser invisível, até que uma circunstância a tenha despojado delas. Em todo caso, no momento sentia-me bastante aborrecido por não mais ouvir a conversa do velho coleteiro com o barão. Percebi então a loja para alugar, separada da de Jupien apenas por um tabique bastante delgado. Para chegar até ela, bastava subir ao nosso apartamento, ir à cozinha, descer a escada de serviço até os porões, segui-los internamente em toda a extensão do pátio e, chegado à altura do subsolo, em que há poucos meses o marceneiro ainda serrava a sua madeira, e onde Jupien tencionava pôr o seu carvão, subir os poucos degraus que davam acesso ao interior da loja. Assim, todo o caminho se faria às escondidas, eu não seria visto por ninguém. Era o meio mais prudente. Não foi o que adotei, mas, indo ao longo das paredes, contornei o pátio ao ar livre, procurando não ser visto. Se não o fui, penso que o devo mais ao acaso que à cautela. Quanto ao fato de me haver arriscado a semelhante imprudência, quando o caminho pelos porões era tão seguro, vejo três razões possíveis, caso haja alguma. Primeiro, a impaciência. Depois, talvez, uma recordação obscura do episódio de Montjouvain, escondido diante da janela da Srta. Vinteuil. De fato, as coisas desse gênero, a que assisti, tiveram sempre, no cenário, o caráter mais imprudente e menos verossímil, como se tais revelações só devessem constituir a recompensa de um ato cheio de riscos, embora em parte clandestino. Por fim, mal ouso confessar a terceira razão, devido a seu caráter de infantilidade, que foi, segundo creio, inconscientemente determinante. Desde que, para seguir e ver desmentidos os princípios militares de Saint-Loup, eu acompanhara em minúcias a guerra dos Boers, fora levado a reler antigas histórias de explorações, de viagens. Tais histórias me haviam apaixonado, e aplicava-as à vida corrente para criar mais ânimo. Quando as crises me forçavam a ficar vários dias e várias noites seguidas não apenas sem dormir, mas sem me deitar, sem comer nem beber, no instante em que o sofrimento e a exaustão chegavam a tal ponto que eu achava nunca mais me livraria deles, então eu pensava num determinado viajante atirado à praia, intoxicado por ervas daninhas, tremendo de febre em suas roupas ensopadas pela água do mar, e que, no entanto, sentia-se melhor ao fim de dois dias e retomava o caminho ao acaso, em busca de quaisquer habitantes que talvez fossem antropófagos. Seu exemplo me fortificava, dava-me esperança, e eu sentia vergonha de ter desanimado por um momento. Lembrando os bôers que, tendo pela frente exércitos ingleses, não temiam se expor no instante em que era necessário atravessar regiões de campo raso antes de encontrar um cerrado, eu pensava:

            "Tinha graça que eu fosse mais pusilânime, quando o teatro das operações é simplesmente o nosso próprio pátio, e quando eu, que me bati em duelo tantas vezes sem nenhum medo, devido ao Caso Dreyfus, o único ferro que tenha a temer é o do olhar dos vizinhos, que têm mais que fazer que olhar para o pátio."

            Mas, quando entrei na loja, evitando ao máximo fazer estalar o assoalho, dando-me conta de que o mais leve rumor da loja de Jupien era ouvido no aposento em que eu estava, pensei o quanto Jupien e o Sr. de Charlus tinham sido imprudentes e como o acaso lhes fora providencial. Não ousava mexer-me. O palafreneiro dos Guermantes, aproveitando sem dúvida a ausência deles, transportara para a sala em que me encontrava uma escada de mão, guardada até então na estrebaria. E, se eu subisse nela, poderia abrir os postigos e ouvir como se estivesse na própria loja de Jupien. Mas receei fazer barulho. Além do mais, era inútil. Nem tive mesmo de lamentar só haver chegado ao meu aposento ao fim de alguns minutos. Pois, conforme o que ouvi nos primeiros instantes no de Jupien, e que não passaram de sons inarticulados, suponho que foram ditas poucas palavras. É verdade que aqueles sons eram tão violentos que, se não tivessem sido sempre repetidos uma oitava mais alta por um gemido paralelo, eu poderia julgar que uma pessoa degolava outra junto de mim, e que, a seguir, o assassino e sua vítima ressuscitada tomavam um banho para apagar os sinais do crime. Mais tarde concluí que existe uma coisa tão ruidosa como a dor: é o prazer, sobretudo quando a ele se ajuntam - na falta do receio de ter filhos, o que não podia ser o caso atual, apesar do exemplo inconvincente da Legenda Áurea preocupações imediatas de propriedade. Por fim, ao cabo de meia hora, aproximadamente (durante a qual eu subira a escada com pés de gato, para espreitar pelo postigo, que, não abri), iniciou-se uma conversação.

            Jupien recusava, decidido, o dinheiro que o Sr. de Charlus queria lhe oferecer.

            Depois, o barão deu um passo para fora da loja.

            - Por que você usa o queixo rapado desse modo? - disse Jupien ao Sr. de Charlus em tom carinhoso. - É tão bonito uma bela barba!

            - Puf! É detestável - deu o barão. -

            Entretanto, demorava-se ainda no limiar da porta e Jupien informações sobre o bairro. Não sabe nada acerca do vendedor de castanhas da esquina? Não, não o da esquerda, este é um horror, mais no lado par, um rapagão bem moreno. E o farmacêutico de frente tem um ciclista muito gentil que leva os seus medicamentos.

            Essas perguntas notadamente aborreceram a Jupien, pois, erguendo-se com o despeito de grande amante traída, respondeu:

            - Vejo que tem no coração volúpia!

            Proferida em tom doloroso, glacial e amaneirado, esta censura foi claramente sensível ao Sr. de Charlus, que, para desfazer a má impressão que sua ansiedade produzira, dirigiu a Jupien, baixinho demais para que eu distinguisse bem as palavras, uma rogativa que, sem dúvida, exigiria que eles continuassem sem sua permanência na loja, o que sensibilizou o alfaiate o bastante para dissipar-lhe a mágoa, pois ele ficou olhando o rosto do barão, gordo, congestionado sob os seus cabelos grisalhos, com o ar inundado de felicidade de alguém cujo amor-próprio acaba de ser profundamente lisonjeado decidindo conceder ao Sr. de Charlus o que este lhe pedia, Jupien, fez algumas observações faltosas de distinção, como:

            - Puxa, que bunda! - disse ao barão com ar risonho, emocionado, superior e grato:

            - Bem, vamos lá, seu garotão!

            - Se insisto na questão do condutor de bonde - prosseguiu de Charlus com tenacidade -, é que, fora tudo o mais, poderia ter interesse para a volta. Acontece-me, realmente, como ao califa que corria Bagdá disfarçado em simples mercador, condescender em seguir alguma criaturinha cuja silhueta me agrade.

            Fiz aqui a mesma observação que tinha feito sobre Bergotte. Se alguma vez ele tivesse de responder diante de um tribunal, empregaria não frases próprias para convencer os juízes, mas essas frases bergotescas que seu temperamento literário especial sugeriria naturalmente e lhe daria prazer em empregá-las. Semelhante o Sr. de Charlus, falando ao alfaiate, servia-se da mesma linguagem que empregaria com as pessoas mundanas do seu meio, até exagerando os tiques, ou porque a timidez contra a qual se esforçava por lutar a um orgulho excessivo, ou porque, impedindo-o de se dominar sentimo-nos mais inibidos diante de alguém que não pertence ao meio, ela o forçava a revelar, a desnudar sua natureza, que, de fé orgulhosa e um tanto louca, como dizia a Sra. de Guermantes.

            - Para perder seu rastro - continuou ele como um professorzinho, um jovem e belo médico, no mesmo bonde da criaturinha, de quem mesmo no feminino para seguir a regra (como se diz, falando que Vossa Alteza está bem-disposta?). Se ela muda de bonde, faço, tal os micróbios da peste, a coisa incrível chamada "baldeação", tomo um número que, ainda que o entreguem a mim, nem sempre é o número 1! Assim, mudo até três ou quatro vezes de "carro". Por vezes arribo às onze horas da noite para chegar em Orléans, é preciso voltar! Se se tratasse apenas da garantia de Orléans! Mas uma vez, por exemplo, não tendo podido entabular conversa antes, fui mesmo até Orléans, num desses vagões horríveis em que se tem por vista inteira, em meio a triângulos de trabalhos manuais ditos "de malha", a fotografia das principais obras-primas de arquitetura da rede ferroviária. Só restava um lugar vago, e eu tinha à minha frente, como monumento histórico, uma "vista" da catedral de Orléans, que é a mais feia da França, e tão cansativa de olhar, assim a contragosto, como se me tivessem obrigado a olhar as suas torres na bolinha de vidro de uma dessas canetas óticas que produzem oftalmias. Desci nos Aubrais ao mesmo tempo que a minha criaturinha, que, ai de mim, tinha toda a família à espera na plataforma (quando supunha tivesse todos os defeitos, menos o de possuir uma família)! Só tive como consolo, enquanto esperava o trem que me levaria de volta a Paris, a casa de Diane de Poitiers. Por mais que ela tivesse enfeitiçado a um de meus régios antepassados, eu teria preferido uma beleza mais viva. Por isso, para remediar o aborrecimento desses regressos solitários, é que eu gostaria muito de conhecer algum servente dos vagões-leito, um motorista de ônibus. Aliás, não fique chocado - concluiu o barão -, tudo isto é uma questão de gênero. O que diz respeito aos jovens da alta sociedade, por exemplo, não desejo nenhuma posse física, mas não fico tranqüilo enquanto não lhes toco, não quero dizer materialmente, enquanto não lhes toco a corda sensível. Uma vez que, em lugar de deixar minhas cartas sem resposta, um rapaz não cessa mais de me escrever, e está à minha disposição moral, fico sossegado, ou pelo menos ficaria se logo não me dominasse a preocupação por um outro. Muito curioso, não é mesmo? A propósito de jovens da alta sociedade, não conhece algum dentre os que vêm aqui?

            - Não, meu boneco. Ah, sim, um moreno, bem alto, de monóculo, que ri sempre e vive se voltando.

            - Não percebo quem você quer dizer. -

            Jupien completou o retrato, o Sr. de Charlus não conseguia descobrir de quem se tratava, pois ignorava que o antigo coleteiro era uma dessas pessoas, mais numerosas do que se julga, que não lembram a cor dos cabelos das pessoas a quem conhecem pouco. Mas para mim, que sabia dessa fraqueza de Jupien, que trocava moreno por louro, o retrato me pareceu relacionar-se precisamente com o duque de Châtellerault.

            - Voltando aos jovens que não são do povo - continuou o barão -, no momento a minha cabeça está virada por um estranho rapaz, um jovem burguês inteligente, que se mostra a meu respeito de uma descortesia incrível. Não faz a menor idéia da prodigiosa personagem que sou e do vibrião microse que ele representa. Afinal, que importa! Esse burrinho pode zurrar o quiser diante de minhas augustas vestes de bispo.

            - Bispo! Exclamou Jupien, que nada compreendera das últimas frases que o Sr. de Charlus acabava de pronunciar, mas a quem a palavra "bispo" deixara estupefato - Mas isto não vai bem com a religião - disse ele.

            - Tenho três papas, na família - respondeu o Sr. de Charlus e o direito a me vestir em público, devido a um título cardinalício, já que a sobrinha do meu tio-avô trouxe a meu avô o título de duque, que lhe foi substituído. Vejo que metáforas o deixam surdo e que a história da França lhe é indiferente, de resto -acrescentou, talvez menos à maneira de conclusão do que só uma advertência -, essa atração que exercem sobre mim os rapazes me fogem, naturalmente de medo, pois apenas o respeito lhes encerra a bestialidade para gritarem que me amam, exige, da parte deles, uma posição eminente. Contudo, a sua fingida indiferença pode produzir, apesar disso - um efeito diretamente contrário. Tolamente prolongada, ela me causa dó. Para dar um exemplo numa classe que lhe será mais familiar: quando fizeram reparos em meu palácio, a fim de que não se sentissem enciumadas todas as duquesas que disputavam a honra de poder dizer que me haviam hospedado, fui passar alguns dias "de hotel", como se costuma dizer. Um dos camareiros era meu conhecido; mostrei-lhe um curioso boy que fechava as portinholas e se mantinha refratário às minhas propostas. Por fim exasperado, para lhe provar que minhas intenções eram puras, mandei oferecer-lhe uma quantia ridiculamente elevada, unicamente para que ele subisse e me falasse por cinco minutos no meu quarto. Esperei-o inutilmente. Tomei-lhe então uma tal repugnância que saí pela porta de serviço, para não enxergar de novo a cara daquele safado. Soube depois que nunca lera nenhuma de minhas cartas, que tinham sido interceptadas. A primeira pelo camareiro do meu andar, que era invejoso; a segunda, pelo porteiro do dia, que era virtuoso; a terceira, pelo porteiro da noite, que ambicionava o jovem boy e dormia com ele à hora em que Diana se levantava. Nem por isso deixou de persistir a minha repugnância; e, se me houvessem trazido o boy como um simples despojo de caça numa salva de prata, eu o poria num vômito. Porém, o mal é que temos falado de coisas sérias e agora está tudo acabado entre nós, quanto ao que eu esperava. Mas você pode me prestar muitos serviços, intervir; mesmo que não, só esta idéia já devolve um certo ânimo, e sinto que nada acabou.

            Desde o começo desta cena, para os meus olhos arregalados operara-se uma revolução no Sr. de Charlus, tão completa, tão imediata como se ele tivesse sido tocado por uma varinha mágica. Até então, que não compreendera, não tinha visto. O vício (fala-se deste modo por comodidade de linguagem), o vício de cada um o acompanha à maneira daquele gênio, que era invisível para os homens enquanto ignoravam a sua presença. A bondade, a artimanha, o nome, as relações mundanas não se deixam descobrir, e cada qual as traz escondidas. O próprio Ulisses a princípio não reconheceu Atenéia. Mas os deuses são imediatamente perceptíveis aos deuses, o semelhante o é bem depressa a seu semelhante, e assim o fora ainda o Sr. de Charlus a Jupien. Até aqui eu me encontrara em presença do Sr. de Charlus da mesma forma que um homem distraído, que, diante de uma mulher grávida em cujo talhe pesadão não reparou, enquanto ela lhe repete sorrindo:

            - Sim, estou meio cansada agora teima em lhe perguntar, indiscreto:

            - Mas o que sente a senhora? -

            Até que quando alguém lhe diz:

            - Está grávida e aí. - de súbito, percebe o ventre e não verá mais que este. É a razão que abre os olhos; um engano dissipado nos confere um sentido a mais.

            As pessoas que não gostam de reportar-se, como exemplos dessa lei, aos senhores de Charlus de seu conhecimento, de quem por muito tempo não tinham desconfiado até o instante em que, sobre a lisa superfície do indivíduo semelhante aos outros, tenham chegado a aparecer, traçados com uma tinta até então invisível, os caracteres que compõem a palavra cara aos antigos gregos, não têm, para se convencerem de que o mundo que os rodeia lhes aparece primeiramente nu, desprovido de mil ornatos que ele oferece a outros mais cientes, senão que relembrar quantas vezes na vida lhes aconteceu estarem a ponto de cometer uma gafe. Nada, no rosto privado de caracteres desse ou daquele homem, podia lhes fazer supor que ele era exatamente o irmão ou o noivo, ou o amante de uma mulher de quem iam exclamar:

            - É uma anta! -

            Mas então, por sorte, uma palavra que lhes sussurra um vizinho faz parar em seus lábios o termo fatal. Logo aparecem, como um Mane Thecel Fares, estas palavras: ele é o noivo, ou ele é o irmão, ou ele é o amante da mulher que não convém que se chame diante dele:

            - É uma anta. -

            E só essa nova noção arrastará consigo todo um reagrupamento, a retirada ou o avanço da fração das noções, dali em diante completadas, que se possuíam acerca do resto da família.             Ao Sr. de Charlus era baldado que se acoplasse um outro ser, que o diferenciasse dos demais homens, como no centauro o cavalo; era baldado que este ser fizesse um só corpo com o barão; eu nunca o havia percebido. Agora o abstrato se materializara, e o ser enfim compreendido perdera logo o poder de continuar invisível, e a transmutação do Sr. de Charlus numa pessoa nova era tão completa que não só os contrastes do seu rosto, de sua voz, mas, retrospectivamente, também os próprios altos e baixos de suas relações comigo, tudo o que até então havia parecido incoerente ao meu espanto tornava-se inteligível, mostrava-se evidente, como uma frase, que não percebe qualquer sentido enquanto permanece decomposta em letras arranjadas ao acaso, exprimem-se os caracteres se acham recolocados na ordem correta, um pensamento que já não poderá ser esquecido. Além do mais, eu compreendia agora por que, ainda há pouco quando o vira sair da casa da Sra. de Villeparisis, pudera achar que o Sr. de Charlus tinha um jeito de mulher: pois era uma! Pertencia à raça daquelas criaturas, menos contraditórias que parecem, cujo ideal é viril, justamente porque seu temperamento é feminino, e que na vida são semelhantes outros homens, porém apenas na aparência; aí onde cada um traz constantemente, nesses olhos com os quais vê todas as coisas no universo, uma silhueta gravada na pupila não é para eles a de uma ninfa, mas de um efeboy. Raça sobre a qual pesa uma maldição e que tem de viver na mentira e na penúria, pois que se tem por punível e vergonhoso, por inconfessável, o falho desejo, o que é para cada criatura a doçura máxima de viver; que deve renegar seu Deus, visto que, mesmo os cristãos, quando comparecem como açoitados à barra do tribunal, é-lhes necessário, diante do Cristo e em seu nome defenderem-se como de uma calúnia daquilo que é a sua própria vida! Filhos sem mãe, à qual são obrigados a mentir mesmo à hora de lhe fechar os olhos; amigos sem amizades, apesar de todas as que inspiram o seu encanto reconhecido com freqüência e das que seu coração, em geral bondoso, sentiria; porém, podem chamar-se amizades essas relações que só  vegetam a favor de uma mentira e de onde os faria rejeitar com desgosto primeiro impulso de confiança e de sinceridade que se sentissem tentados a ter, a menos que se dirijam a um espírito imparcial, e até mesmo simpático, mas que então, perturbado a respeito deles por uma psicologia convencional, fará derivar do vício confessado o mesmo afeto que lhe é estranho, assim como alguns juízes pressupõem e desculpam mais facilmente o assassínio entre os invertidos e a traição entre os judeus por raridades extraídas do pecado original e da fatalidade da raça? Enfim pelo menos conforme a primeira teoria que à conta deles eu esboçava então, teoria a seguir veremos modificar-se, e na qual isto os irritaria mais que tudo essa contradição não se ocultasse a seus olhos pela própria ilusão que fazia ver e viver amantes a quem está quase fechada a possibilidade de amor, cuja esperança lhes dá forças para suportar tantos riscos e solidão; visto que justamente estão apaixonados por um homem que não teria de mulher, um homem que não seria invertido e que, por conseguinte, pode amá-los; de modo que o seu desejo permaneceria insaciável para perder-se o dinheiro, não lhes entregasse verdadeiros homens e se a imaginação não acabasse por fazê-los tomar por homens de verdade os invertidos a quem se prostituem. Sem honra, senão precária; sem liberdade, senão provisória, até a descoberta do crime; sem posição que não seja instável, como para o poeta, festejado na véspera em todos os salões, aplaudido em todos os teatros de Londres e, no dia seguinte, expulso de todos os quartos, sem poder achar um travesseiro onde repousar a cabeça, dando voltas à pedra de amolar como no verso do Poema "A cólera de Sansão", de Alfred de Vigny (1797-1863) como Sansão, ele fica repetindo:

            ''Os dois sexos morrerão cada qual por seu lado; excluídos até, salvo nos dias de grande infelicidade, em que a maioria se reúne ao redor de sua vítima”; como os judeus ao redor de Dreyfus de toda simpatia, e às vezes da sociedade, de seus semelhantes, aos quais dão o desgosto de ver que são, pintados num espelho que, não os adulando mais, acusa todas as taras que não tinham desejado notar em si mesmos e que os faz compreenderem que aquilo a que denominam amor (e a que, brincando com a palavra, haviam anexado, por sentido social, tudo quanto a poesia, a pintura, a música, a cavalaria, o ascetismo tinham podido acrescentar ao amor) decorre não de um ideal de beleza que tenham escolhido, mas de uma enfermidade incurável; como ainda os judeus (salvo uns poucos que só desejam conviver com os de sua raça, e têm sempre nos lábios as palavras rituais e os gracejos consagrados), fugindo uns dos outros, buscando os que lhes são mais contrários, que não querem saber deles, perdoando as suas zombarias, embriagando-se com suas complacências; mas ainda assim unidos a seus semelhantes pelo ostracismo que os fere, o opróbrio em que caíram, tendo acabado por adquirir, graças a uma perseguição idêntica à de Israel, os caracteres físicos e morais de uma raça, às vezes bela, freqüentemente horrível, encontrando apesar de todas as troças com que o mais mesclado, mais assimilado à raça adversa, é relativamente, em aparência, o menos invertido, cobre aquele que simplesmente continuou a sê-lo um descanso no convívio de seus semelhantes, e até um apoio na existência, até que, negando sempre formarem uma raça (cujo nome é a maior injúria), os que conseguem ocultar que a ela pertencem, desmascaram-nos de boa vontade, não tanto para lhes causar dano, coisa que não detestam, quanto para se desculparem, e indo buscar, como um médico pesquisa o apendicite, a inversão até na História, tendo prazer em lembrar que Sócrates era um deles, como os israelitas dizem que, era judeu, sem pensar que não havia anormais quando o homossexual a regra, nem anticristãos antes de Jesus Cristo, que só o opróbrio no crime, pois só deixou de subsistir para aqueles que eram refratários de toda pregação, a todo exemplo, a todo castigo, em virtude de uma distinção inata e de tal modo especial que repugna mais aos outros homens daquele que possa vir acompanhado de altas qualidades morais) do que vícios que se contradizem, como o roubo, a crueldade, a má-fé, mais compreendidos e, portanto, mais desculpados pelo comum dos homens; - formando uma franco-maçonaria bem mais extensa, mais eficaz e suspeita que a das lojas, pois repousa numa identidade de gostos, aparências, de hábitos, de perigos, de aprendizagem, de saber, de tráfico; glossários, e na qual os próprios membros que aspiram a não ser conhecidos logo se reconhecem por traços naturais ou de convenção, involuntárias ou intencionais, que assinalam ao mendigo um de seus semelhantes o grão-senhor que lhe fecha a porta de seu carro; ao pai, no noivo da filha; ao que desejara curar-se, confessar-se, defender-se, no médico, no pai, no advogado a quem recorreu; todos forçados a proteger o seu segredo; tendo a sua parte no segredo dos outros, de que o restante da humanidade - não suspeita e que faz com que os mais inverossímeis romances de aventuras lhes pareçam verdadeiros; pois, nessa vida romanesca, anacrônica; o embaixador é amigo do preso; o príncipe, com uma certa liberdade dos que lhe confere a educação aristocrática e que um pequeno-burguês medroso não teria, ao sair da casa da duquesa, vai se entender como apache; parte reprovada da coletividade humana, porém parte importante, que se suspeita onde não está, ostensiva, insolente, impune onde é adivinhada; contando com adeptos por toda a parte, no povo, no exército, no templo, na penitenciária, no trono; vivendo enfim, ao menos um grande número, na intimidade cariciosa e arriscada dos homens da outra parte, provocando-os, brincando com eles ao falar do seu vício como se não fosse seu; jogo que se torna fácil pela cegueira ou pela falsidade dos outros, já que pode se prolongar durante anos até o dia do escândalo, em que domadores são devorados; até então obrigados a ocultar a sua vida, a virar os olhos de onde gostariam de fixá-los, a fixá-los de onde gostariam de desviá-los, de mudar o gênero de muitos adjetivos em seu vocabulário; o freio social em comparação com o freio interior que seu vício, ou o que denomina impropriamente desse modo, lhes impõe não mais em relação à outros mas a si mesmos, e de maneira que a eles próprios não pareça vício. Porém alguns, mais práticos, mais apressados, que não têm de pechinchar e de renunciar à simplificação da vida e a esse ganha tempo que pode resultar da cooperação, formaram duas sociedades, das quais a segunda é composta exclusivamente de criaturas semelhantes a eles. Isto é chocante naqueles que são pobres e vêm da província, sem relações de amizade, sem outra coisa a não ser a ambição de um dia se transformarem num médico ou advogado célebre, cujo espírito ainda está vazio de opiniões, cujo corpo é destituído das maneiras que eles esperam tornar bem depressa, assim como comprariam móveis, para seu quartinho do Quartier latin, de acordo com o que notassem e copiassem dos que já "venceram" na profissão útil e séria em que sonham se encaixar e tornar-se ilustres; nestes, seu gosto especial, herdado sem que soubessem, como a inclinação para o desenho, para a música, à cegueira, é talvez a única originalidade viva, despótica, e que em certas noites força-os a não comparecerem a determinada reunião, proveitosa à sua carreira, com pessoas das quais, para o resto, adotam os modos de falar, de pensar, de se vestir, de se pentear. Em seu bairro, onde sem isto só convivem com colegas, mestres ou algum conterrâneo já triunfante e que os protege, logo descobriram outros rapazes de quem o mesmo gosto especial os aproxima, como numa aldeia se ligam o professor secundário e o tabelião, ambos amantes da música de câmara e do marfim da Idade Média; aplicando ao objeto de sua distração o mesmo instinto utilitário, o mesmo espírito profissional que os norteia em sua carreira, reencontram-nos em sessões onde não se admite nenhum profano, desses que congregam amadores de antigas caixas de rapé, de estampas japonesas, de flores raras; e onde, devido ao prazer de se instruir, da utilidade das trocas e do temor das competições, reinam a um tempo, como numa Bolsa de Selos, a estreita harmonia dos especialistas e as ferozes rivalidades dos colecionadores. Aliás, ninguém no café onde eles têm sua mesa sabe que reunião é aquela, se se trata de uma sociedade de pesca, se é de secretários de redação, ou de filhos do Indra, de tal modo sua compostura é correta, o seu aspecto reservado e frio; a tal ponto que não ousam olhar senão às escondidas para os rapazes da moda, os jovens "leões" que, a poucos metros de distância, fazem estardalhaço de suas amantes, e entre os quais os que os admiram sem ousar erguer a vista saberão, vinte anos depois, quando uns estiverem às vésperas de entrar para uma academia, e outros forem sisudos homens de clube, que o mais sedutor, agora um corpulento e grisalho Charlus, era de fato igual a eles, mas em outra parte, em outro mundo, sob outros símbolos externos, com sinais estranhos, cuja diferença os induziu à erro. Porém, os agrupamentos são mais ou menos avançados; e, como a União das Esquerdas difere da Federação Socialista e determinada sociedade de música de Mendelssohn da Schola Cantorum, certas noites, em outra mesa, há extremistas que deixam aparecer um bracelete sob o punho da camisa, às vezes um colar pela do colarinho, forçam, com seus olhares insistentes, seus cacarejos, carícias entre si, um grupo de colegiais a fugir rapidamente, e são dos, com uma polidez em que se incuba a indignação, por um garçon, como nas noites em que serve a dreyfusistas, ficaria satisfeito em chamar a polícia se não lhe fosse conveniente guardar as gorjetas.

            São semelhantes organizações profissionais que o espírito o gosto dos solitários, e sem demasiado artifício de uma parte, já que só faz imitar os próprios solitários que julgam que nada difere de mais organizado do que aquilo que lhes parece um amor incompreendido; todavia com algum artifício, pois essas diferentes classes correspondem, tanto como a tipos psicológicos diversos, a momentos sucessivos de evolução patológica ou apenas social. E, com efeito, é bem raro quando um dia ou outro, não seja em tais organizações que os solitários acabem por fundir-se, às vezes por simples lassidão, por comodidade (como os mais avessos a tais coisas acabem por mandar instalar, receber ou por comprar na casa Potin). Ali, eles são em geral muito mal recebidos pois, em sua vida relativamente pura, a falta de experiência, a saturação pelos devaneios a que estão reduzidos marcaram mais fortemente aquelas características especiais de afeminamento que os profissionais buscaram apagar. E é preciso confessar que, em alguns desses renegados, a mulher não só está internamente unida ao homem, mas hediondamente visível; agitados como estão em um espasmo de história; por um riso agudo que lhes convulsiona os joelhos e as mãos, e não ressentem ao comum dos homens mais do que esses macacos de olhos cólicos e olheiras fundas, de pés compreensíveis, que vestem fraque e gravata preta. De modo que esses novos recrutas são julgados, por que no entanto são menos castos, de convivência comprometedora, difícil a sua admissão; entretanto, são aceitos, beneficiando-se então dessas facilidades, pelas quais o comércio e as grandes empresas têm transformado a vida das pessoas, tornando-lhes acessíveis mercadorias até muito caras; até mesmo difíceis de encontrar, e que agora os substituem com a superabundância daquilo que eles sozinhos não tinham chegado a descobrir nas maiores multidões. Porém, mesmo com esses exultantes instáveis, a coação social é ainda pesada demais para alguns deles, sobretudo entre aqueles em que não exerce efeito o freio mental; acham ainda mais estranho do que é o seu tipo de amor. Não deixemos de lado aqueles que, como o caráter excepcional de sua ação os faz pensar serem

superiores a elas, desprezam as mulheres, do homossexualismo o privilégio dos grandes gênios e das épocas; e, quando buscam fazer compartilhar o seu gosto, é menos com os que lhes parecem predispostos a isso, como o morfinômano à morfina, do que com aqueles a quem julgam dignos, por zelo apostólico, como outros pregam o sionismo, a recusa ao serviço militar, o saint-simonismo, o vegetarianismo e a anarquia. Alguns, se são surpreendidos de manhã, deitados ainda, exibem uma admirável cabeça de mulher, de tanto que a expressão é geral e simboliza todo o sexo; até os cabelos o afirmam; soltos, sua inflexão é tão feminina, eles caem tão naturalmente em caracóis sobre o rosto, que a gente se espanta de que a jovem, a mocinha Galatéia, que mal desperta no inconsciente desse corpo de homem em que está encerrada, tenha sabido tão engenhosamente, por si mesma, sem tê-lo aprendido de ninguém, desfrutar das menores saídas de sua prisão e encontrar o que era necessário à sua vida. Evidentemente, o moço que possui essa maravilhosa cabeça não diz:

            "Sou uma mulher."

            E, mesmo se (por tantas razões possíveis) ele vive com uma mulher, pode lhe negar seja uma, jurar-lhe que nunca teve relações com homens. Que ela o contemple como acabamos de o mostrar, deitado no leito, de pijama, braços despidos, despido o pescoço sob os cabelos negros. O pijama tornou-se uma camisola de mulher, a cabeça, a de uma linda espanhola. A amante se assombra dessas confidências feitas aos seus olhares, mais verdadeiras do que o poderiam ser as palavras, e até os atos; e que os próprios atos, se é que já não o fizeram, não poderão deixar de confirmar, pois toda criatura segue em busca do seu prazer; e, se essa criatura não é excessivamente viciosa, procura-o num sexo oposto ao seu. Ora, para o invertido, o vício principia não quando trava relações (pois há demasiados motivos que podem comandá-las), mas quando ele procura o seu prazer nas mulheres. O moço a quem acabamos de descrever era tão manifestamente uma mulher, que as mulheres que o olhavam com desejo eram votadas ao mesmo desapontamento (a menos que se tratasse de um gosto especial) daquelas que, nas comédias de Shakespeare, ficam decepcionadas com uma moça disfarçada que se faz passar por um adolescente. O engano é igual, o próprio invertido o sabe, e adivinha a desilusão que a mulher há de sentir logo que tombe o disfarce, e percebe o quanto esse erro sobre o sexo é uma fonte de poesia fantasiosa. Além disso, mesmo que confesse à sua amante exigente (se ela não é gomorriana):

            "Eu sou uma mulher", dentro dele, todavia, com que artimanhas, com que agilidade, com que obstinação de planta trepadora, a mulher inconsciente e visível busca o órgão masculino! Basta olhar essa cabeleira encaracolada sobre o travesseiro branco para compreender que, à noite, se este moço escapa por entre os dedos de seus pais, apesar deles, apesar de si mesmo, será para ir procurar mulheres. Sua amante pode castigá-lo, trancá-lo; na manhã seguinte, o homem-fêmea terá achado um modo de se enamorar com um homem, como a campânula arremessa as gavinhas onde tiver um ancinho ou uma enxada. Por que o motivo, admirando no rosto do homem as delicadezas que nos tocam, uma graça, um ar natural na amabilidade como os homens não possuem, ficaríamos desolados ao saber que esse moço procura boxeadores? Trata-se de aspectos diversos de uma mesma realidade. E mesmo aquilo que nos repugna é o mais tocante, mais até que todas as delicadezas, pois representa um admirável esforço inconsciente da natureza: o reconhecimento do sexo por si mesmo, apesar da escamoteação do sexo, surge como a tentativa inconfessa de evadir-sepis aquilo que um erro inicial da sociedade colocou longe de si. Alguns, tiveram sem dúvida a mais tímida infância, quase não se preocupam com o tipo de material de prazer que recebem, contanto que possam relacioná-lo com um rosto masculino. Ao passo que outros, certamente por terem sentido mais agressivos, dão a seu prazer material localizações imperiosas. Ofenderiam talvez, com suas confissões, o tipo mediano das pessoas. Talvez vivam menos exclusivamente sob o signo de Saturno, pois, para as mulheres não estão totalmente excluídas como para os primeiros; relativamente a estes, aqueles não existiriam sem a conversação, a coqueteria dos amores intelectuais. Mas os segundos procuram aquelas que amam as mulheres, que podem conseguir-lhes algum moço, aumentar o prazer que sentem em se encontrar com eles; e bem mais, eles podem, da mesma forma, ter com elas o mesmo prazer que desfrutariam com um homem. Daí decorre que, no caso dos que amam os primeiros, o ciúme só é aguçado pelo prazer que poderiam ter com um homem e que é o único a lhes parecer uma traição, visto que não participam do amor das mulheres, não praticaram senão por hábito e para reservar-se a possibilidade do casamento imaginando tão parcamente o prazer que este pode proporcionar, que não podem tolerar que aquele a quem amam o desfrute; ao passo que os segundos inspiram com freqüência o ciúme devido a seus amores com mulheres. Pois, nas relações que mantêm com elas, representam, para a mulher que ama as mulheres, o papel de uma outra mulher, e a mulher lhes oferece, ao mesmo tempo, mais ou menos aquilo que eles encontram num homem, de modo que o amigo ciumento sofre por sentir aquele a quem unido àquela que para ele é quase um homem, ao mesmo tempo que quase deixam lhe escapar, visto que, para essas mulheres, é algo que ele reconhece, uma espécie de mulher. Tampouco não falemos desses jovens doidivanas que, por uma espécie de infantilidade, para amofinar os atuais; melindrar os pais, se empenham em escolher roupas que parecem vestido; pintar os lábios e sombrear os olhos; deixemo-los de lado, pois são os mesmos que voltaremos a encontrar quando tiverem sofrido cruelmente demais por sua afetação, passando toda uma vida a tentar reparar em vão, com um aspecto severo, protestante, o dano que causaram a si próprios à época em que eram arrastados pelo mesmo demônio que impele algumas moças do faubourg Saint-Germain a viverem de maneira escandalosa, a romper com todos os costumes, a achincalhar sua família, até o dia em que se dedicam, com perseverança e sem sucesso, a subir de novo a vertente que antes lhes parecera tão divertido descer ou melhor, que não tinham podido evitar descer. Deixemos enfim para mais tarde aqueles que fizeram um pacto com Gomorra. Falaremos deles quando o Sr. de Charlus os conhecer. Deixemos todos esses, de uma variedade ou outra, que aparecerão por sua vez, e, para terminar esta primeira exposição, digamos só uma palavra acerca de quem tínhamos começado a falar agora há pouco, os solitários. Julgando o seu vício mais excepcional do que é, foram viver sozinhos no dia em que o descobriram, depois de o ter trazido consigo por muito tempo sem o conhecer, muito mais tempo apenas do que outros. Pois a princípio ninguém sabe que é invertido, ou poeta, ou esnobe, ou malvado. Certo colegial que aprendia versos de amor ou olhava imagens obscenas, se então se apertava contra um camarada, imaginava-se apenas a comungar com ele num mesmo desejo de mulher. Como acreditaria não ser idêntico a todos, quando reconhece a substância daquilo que sente ao ler a Sra. de Lafayette, Racine, Baudelaire, Walter Scott, ao passo que ainda é bastante incapaz de observar a si mesmo para se dar conta daquilo que acrescenta de sua palavra, e de que, se o sentimento é igual, o seu objeto é diferente, pois a quem ele deseja é Rob Roy e não Diana Vernon? Para muitos, por uma prudência defensiva do instinto que precede a visão mais clara da inteligência, o espelho e as paredes de seu quarto desaparecem sob os cromos que representam atrizes; fazem versos desse tipo:

            “Só amo a Cloé neste mundo. Ela é divina, ela é loura; E de amor meu coração se inunda.”

            Precisaríamos, por isso, situar no começo dessas vidas um gosto que a seguir não encontraríamos neles, como aqueles caracóis louros das crianças que logo após se tornam mais castanhos? Quem sabe se as fotografias de mulheres não são um início de hipocrisia, e também um início de horror aos demais invertidos? Mas os solitários são precisamente, aqueles a quem a hipocrisia é dolorosa. Talvez o exemplo dos judeus, de colônia diferente, ainda não seja suficientemente vigoroso para explicar como a educação tem pouca influência sobre eles, e com que arte acaba por voltar, não talvez a alguma coisa tão simplesmente atroz como o doido (a que os doidos, sejam quais forem as precauções tomadas, sempre são salvos do rio aonde se atiraram, se envenenam, compram um revólver, etc), mas a uma vida de que os homens da outra raça não só compreendem, não imaginam e odeiam os prazeres necessários, mas cujo freqüente perigo e a vergonha permanente lhes causariam horror; vez, para descrevê-los, é preciso pensar, senão nos animais que não domesticam, nos leõezinhos, pretensamente domados, mas que continha sendo leões, pelo menos nos negros, a quem exaspera a existência incontrolável dos brancos, e que preferem os riscos da vida selvagem e suas manias incompreensíveis. Quando chegar o dia em que se descobrirem incapazes, a um tempo, de mentir aos outros e de mentir a si próprios, ao pai, para viver no campo, fugindo a seus semelhantes (que julgam ser numerosos) por horror à monstruosidade ou receio da tentação, e da humanidade por vergonha. Jamais alcançando a verdadeira maturidade mergulhados na melancolia, de vez em quando, num domingo sem lua; dar um passeio por um caminho até chegar a uma encruzilhada, onde, que hajam dito uma só palavra, foi esperá-los um de seus amigos de infância que mora num castelo vizinho. E eles recomeçam os jogos de antigamente, sobre a relva, de noite, sem trocar palavra. Durante a semana vêem na casa de um ou do outro, conversam sobre qualquer coisa, sem alusão ao que se passou, exatamente como se não houvessem feito; não devessem tornar a fazer coisa alguma, a não ser, em suas relações: pouco de frieza, ironia, irritabilidade e rancor, por vezes ódio. Depois o vizinho parte para uma dura viagem a cavalo em lombo de mula, escalando, deita-se na neve; seu amigo, que identifica o próprio vício com um fraqueza de temperamento, e com a vida caseira e tímida, compreende que o vício não mais poderá viver em seu amigo emancipado a milhares de metros acima do nível do mar. E, de fato, o outro se casa. No entanto, abandonado não se cura (apesar dos casos em que se verá que a inversão sexual é curável). Exige que seja ele próprio a receber de manhã, o creme fresco das mãos do moço leiteiro e, nas tardes em que desejos o agitam demais, perde-se pelas ruas até ensinar o caminho a bêbado, até ajeitar a camisa de um cego. Sem dúvida, a vida de certo invertido parece mudar às vezes, o seu vício (como se diz) já não surgem seus hábitos; porém, nada se perde: uma jóia escondida se acha; quando a quantidade de urina de um enfermo diminui, é porque ele transpira mais, porém é necessário que sempre se produza a excreção. Um dia esse homossexual perde um primo jovem e, pela sua mágoa inconsolável, compreendemos que era para esse amor, talvez casto, e de que se empenhava mais em conservar a estima do que em obter a posse, que os desejos haviam passado por transferência, assim como num orçamento, sem que se mude nada no total, certas despesas são transferidas para outro exercício. Como se dá no caso dos doentes, em quem uma crise de urticária faz desaparecer por uns tempos as suas indisposições habituais, o amor puro a um parente jovem parece, no invertido, ter momentaneamente substituído, por metástase, certos hábitos que retomarão, um dia ou outro, o lugar do mal vicariante e curado.

            Entretanto, o vizinho casado do solitário regressou; diante da beleza da jovem esposa e da ternura com que seu marido a trata, no dia em que o amigo é forçado a convidá-los para jantar, sente vergonha do passado. Já em estado interessante, ela deve voltar cedo, deixando seu marido; este, quando chega a hora de voltar, pede que o acompanhe a seu amigo, o qual a princípio não alimenta qualquer suspeita, mas que na encruzilhada, sem que troquem uma só palavra, se vê atirado à grama pelo alpinista que em breve será pai. E os encontros recomeçam até o dia em que vem instalar-se, não longe dali, um primo da jovem senhora, com quem agora vai passear sempre o marido. E este, se o abandonado o visita, buscando aproximar-se dele, furibundo, repele-o, indignado de que o outro não tenha tido o tato de pressentir o nojo que ele lhe inspira de agora em diante. Todavia, em certa ocasião apresenta-se um desconhecido enviado pelo vizinho infiel; porém, muito atarefado, o abandonado não pode recebê-lo, e só mais tarde compreende com que objetivo o estranho viera.

            Então, isolado, o solitário enlanguesce. Não tem outro prazer senão ir ao balneário vizinho para pedir informações a um determinado funcionário das estradas de ferro. Mas este recebeu uma promoção e foi nomeado para a outra extremidade da França; o solitário não mais poderá ir lhe perguntar o horário dos trens, o preço das passagens de primeira classe, e, antes de voltar para sonhar em sua torre, como Griselda, demora-se na praia, como uma estranha Andrômeda que nenhum Argonauta virá libertar, como uma medusa estéril que há de morrer sobre a areia, ou então permanece preguiçosamente na plataforma, antes da partida do trem, a lançar à multidão de viajantes um olhar que parecerá indiferente, desdenhoso ou distraído aos de uma outra raça, mas que, como o clarão luminoso de que são providos alguns insetos para atrair os da mesma espécie, ou como o néctar que certas flores oferecem para atrair os insetos que hão de fecundá-las não enganaria o amador quase sem encontrar um prazer bastante singular, bem difícil de situar, que lhe é oferecido, o confrade com quem nem especialista poderia falar no idioma insólito; quando muito, algum mapa da pilha da estação pareceria interessar-se por esse idioma, mas apenas para obter uma vantagem material, como aqueles que, no College de France, sala em que o professor de sânscrito fala sem audiência, vão seguir outros, mas unicamente para se aquecerem. Medusa! Orquídea! Quando eu seguia o meu instinto, em Balbec, a medusa me repugnava; mas, se eu soubesse observá-la, como Michelet, do ponto de vista da história natural da estética, veria uma deliciosa girândola azul-celeste. Acaso não são como veludo transparente de suas pétalas, como que as orquídeas cor-de-malva do mar? Como tantas criaturas dos reinos animal e vegetal como a planta que produziria a baunilha, mas que, porque nela o órgão masculino está separado do feminino por uma membrana, permanece estável se os beija-flores ou certas abelhas minúsculas não transportarem o pólen de uns a outros, ou se o homem não as fecundar artificialmente; e aqui a palavra "fecundação" deve ser tomada em seu sentido moral, já que, no sentido físico, a união do macho com o macho é estéril, mas não é indiferente que um indivíduo possa encontrar o único prazer que ele seja suscetível de desfrutar, e que "aqui neste mundo toda criatura" possa dar a alguém, "sua música, sua flama ou seu perfume". O Sr. de Charlus era desses homens que podem ser chamados excepcionais, pois, por mais numerosos que sejam, a satisfação de suas carências sexuais, tão fácil no caso dos outros independe da coincidência de um número excessivo de condições e que são muito difíceis de encontrar. Para os homens como o Sr. de Charlus e com a ressalva dos arranjos que vão aparecendo aos poucos e que já se pode pressentir, exigidos pela necessidade de prazer que se resigna a consentimentos incompletos-, o amor mútuo, afora as dificuldades tão grandes, por vezes insuperáveis, que encontra no comum das criaturas, acrescenta-lhes outras tão especiais, que aquilo que é sempre bem raro para todos torna-se, no caso deles, quase impossível, e, se ocorre um encontro verdadeiramente auspicioso para eles, ou que a natureza assim lhes faz pareceu a sua felicidade, bem mais ainda que a do amoroso normal, possui algo de extraordinário, de selecionado, de profundamente necessário. O ódio dos Capuletos e dos Montecchios não era nada diante dos estorvos de todo gênero que foram vencidos, das eliminações especiais que a natureza teve de fazer aos acasos, já bem raros, que conduzem ao amor, antes que um antigo coleteiro, que contava partir calmamente para seu escritório, vacile deslumbrado, ante um cinqüentão que está principiando a engordar. Esse Romeu e essa Julieta podem julgar, com todo o direito, que seu amor não é o capricho de um instante, mas uma verdadeira predestinação preparada pelas harmonias de seu temperamento, não só pelo seu temperamento próprio, mas também pelo de seus ascendentes, pela sua mais longínqua hereditariedade, a tal ponto que a criatura que a eles se ajunta lhes pertence desde antes do nascimento, e os atraiu com uma força comparável à que dirige os mundos em que passamos nossas vidas anteriores.

            O Sr. de Charlus distraíra-me de ver se o besouro levava à orquídea o pólen que ela aguardava há tanto tempo, e que ela só tinha oportunidade de receber graças a um acaso tão improvável que se poderia chamá-lo de uma espécie de milagre. Mas era igualmente um milagre aquele a que eu acabava de assistir, quase do mesmo gênero e não menos prodigioso. Desde que considerei o encontro desse ponto de vista, tudo me pareceu impregnado de beleza. As mais extraordinárias artimanhas que a natureza tem inventado para obrigar os insetos a assegurarem a fecundação das flores que, sem eles, não poderiam sê-lo, porque a flor macho está muito afastada da flor fêmea, ou que, se é o vento que deve assegurar o transporte do pólen, torna-o muito mais fácil de se desprender da flor macho, muito mais fácil de ser apanhado de passagem pela flor fêmea, suprimindo a secreção do néctar, que já não é útil, visto não haver insetos para atrair, e até o brilho das corolas que os atraem, e o ardil que, para que a flor seja reservada ao pólen apropriado, que somente nela pode germinar, lhe faz segregar um licor que a imuniza contra os demais pólens não me pareciam mais maravilhosos que a existência da subvariedade dos invertidos, destinada a assegurar os prazeres ao amor invertido que envelhece: os homens que são atraídos não por todos os homens, porém devido a um fenômeno de correspondência e de harmonia comparável aos que regulam a fecundação das flores heterostiladas trimorfas como o Lythrum salicaria unicamente pelos homens muito mais velhos que eles. Desta subvariedade Jupien acabava de me fornecer um exemplo, todavia menos surpreendente que outros que todo herborizador humano, todo botânico moral, poderá observar apesar de sua raridade, e que lhes apresentará um frágil rapaz que espera os avanços de um robusto e barrigudo qüinquagenário, ficando tão indiferente aos avanços de outros jovens como ficam estéreis as flores hermafroditas de estilete curto da Primula veris, enquanto só são fecundadas por outras Primula veris também de estilete curto, ao passo que recebem alegremente o pólen das Primula veris de estilete comprido.

            Aliás, no que se referia ao Sr. de Charlus, percebi mais adiante que, para ele, havia diversos tipos de conjunções, das quais algumas, por sua multiplicidade, sua instantaneidade apenas visível, e principalmente pela falta de contato entre os dois atores, lembravam ainda mais essas flores que são fecundadas num jardim pelo pólen de flor vizinha que elas nunca hão de tocar. Com efeito, havia certas visitas a quem lhe bastava fazer vir até sua casa, manter durante algumas sob o domínio de sua palavra, para que seu desejo, aceso em algum controle, se satisfizesse. Por simples palavras a conjunção se realizava; simplesmente como pode realizar-se entre os infusórios. Às vezes, ocorrera sem dúvida comigo na noite em que fora chamado por ele depois do jantar dos Guermantes, a saciedade viera graças a uma violenta reprimenda que o barão lançara em rosto do visitante, como certas flores em virtude de um impulso, borrifam a distância o inseto inconscientemente cúmplice e desavisado. O Sr. de Charlus, passando de dominado à dominador, sentia-se depurado de sua inquietação e, calmo, mandava de volta o visitante que logo deixara de lhe parecer desejável. Enfim, como a própria inversão decorre de que o invertido está demasiadamente próximo da mulher para poder ter relações proveitosas com ela, enquadra-se de modo numa lei mais importante que faz com que tantas flores hermafroditas permaneçam infecundas, ou seja, a da esterilidade da autofecundação a verdade que os invertidos que estão em busca de um macho contenta muitas vezes com um invertido tão efeminado quanto eles. Mas basta não pertencerem ao sexo feminino, do qual possuem um embrião de que podem se utilizar, o que acontece com tantas flores hermafroditas e até em determinados animais hermafroditas, como o caramujo, que não podem ser fecundados por si mesmos, mas podem sê-lo por outros hermafroditas-, daí que os invertidos, que gostam de se dizer originários do Antigo Osíris ou da idade de ouro da Grécia, remontariam ainda mais além àquelas e de ensaio em que não existiam nem as flores dióicas nem os animais unissexuados, àquele hermafroditismo inicial, de que parecem conservar vestígios alguns rudimentos de órgãos masculinos na anatomia da mulher e de órgãos femininos na anatomia do homem. Eu achava a mímica de Jupien e de Charlus, a princípio tão incompreensível para mim, tão curiosa como aqueles gestos tentadores dirigidos aos insetos, conforme as flores ditas compostas, alçando os semiflósculos de seus capítulo para serem vistas de mais longe, como certa flor heterostilada que oferece seus estames, recurvando-os para dar passagem aos insetos, ou que oferece uma ablução, e simplesmente, também, nos perfumes do néctar; no brilho das corolas, que naquele momento atraíam insetos a partir daquele dia; o Sr. de Charlus devia mudar a hora de suas visitas à Sra. de Villeparisis, não que não pudesse ver Jupien em outro lugar e cômodo, mas porque, tanto quanto para mim, o sol da tarde e as flores do arbusto estavam sem dúvida ligados à sua recordação. Além disso, se contentou em recomendar os Jupien à Sra. de Villeparisis, à duquesa de Guermantes, a toda uma brilhante freguesia que foi tanto mais assídua junto à jovem bordadeira, quanto as poucas damas que haviam resistido ou apenas demorado foram, da parte do barão, objeto de terríveis represálias, ou para que servissem de exemplo, ou porque houvessem despertado o seu furor e se revoltassem contra seus projetos de dominação. O barão tornou o negócio de Jupien cada vez mais lucrativo até torná-lo definitivamente como secretário e estabelecê-lo nas condições que mais tarde veremos.

            - Ah, é um homem feliz, esse Jupien! - dizia Françoise, que tinha tendência a diminuir ou a

exagerar as bondades alheias, conforme visassem a ela ou aos outros. Aliás, neste caso ela não precisava exagerar e nem sentia inveja, pois gostava sinceramente de Jupien.

            - Ah, é um homem tão bom - o barão acrescentava -, tão distinto, tão devoto, tão correto! Se eu tivesse uma filha casadoura e pertencesse à sociedade rica, eu a daria ao barão de olhos fechados.

            - Mas, Françoise - dizia docemente minha mãe -, essa sua filha teria muitos maridos. Lembre-se de que já a prometeu a Jupien.

            - Ora essa! - respondia Françoise. - Esse é outro que faria bem feliz a uma mulher. Não importa que haja ricos e pobres, isto não quer dizer nada para a natureza. O barão e Jupien são exatamente o mesmo tipo de pessoas.

            Além do mais, eu então exagerava muito, diante daquela primeira revelação, o caráter eletivo de uma conjunção tão selecionada. Decerto, cada uma das pessoas idênticas ao Sr. de Charlus é uma criatura extraordinária, visto que, se não faz concessões às possibilidades da vida, procura essencialmente o amor de um homem da outra raça, ou seja, de um homem que ama as mulheres (e que, conseqüentemente, não poderá amá-lo); contrariamente ao que eu achava no pátio, onde acabava de ver Jupien girar em torno do Sr. de Charlus como a orquídea a fazer avanços ao besouro, essas criaturas de exceção, que lastimamos, formam uma multidão, como o veremos no decorrer desta obra, por um motivo que só deverá ser revelado no fim, e eles próprios se lamentam antes por serem excessivamente numerosos do que escassos. Pois os dois anjos que foram colocados às portas de Sodoma para saber se os habitantes, segundo diz o Gênesis, haviam feito inteiramente todas aquelas coisas cujo clamor subira até o Eterno tinham sido, e só podemos nos alegrar por isso, muito mal escolhidos pelo Senhor, o qual só deveria ter confiado a tarefa a um sodomita. Àquele, as desculpas:

            "Pai de seis filhos, tenho duas amantes, etc." não o teria feito abaixar benevolamente a espada flamejante e suavizar as sanções. Teria respondido: "Sim, e tua mulher sofre as torturas do ciúme. Mas, ainda que essas mulheres não tenham sido escolhidas por ti em Gomorra, tu passas as noites com um tropeiro do Hebron."

            E imediatamente o teria feito caminhar até a cidade que ia ser destruída pela chuva de fogo e de água. Ao contrário, deixaram fugir todos os sodomitas envergonhados, mesmo ao verem um rapaz, eles virassem a cabeça como a mulher de Loth, serem, por isso, transformados como ela em estátuas de sal. De modo que tiveram uma descendência numerosa, na qual o gesto se fez costume semelhante ao das mulheres debochadas que, dando a impressão de uma prateleira de calçados por detrás de uma vitrine, desviam a cabeça um estudante. Esses descendentes dos sodomitas, tão numerosos que se pode aplicar outro versículo do Gênesis: "se alguém puder contar a poeira da terra, poderá igualmente contar essa posteridade", fixaram-se em toda a terra, têm tido acesso a todas as profissões e entram com tanta facilidade nos clubes mais fechados que, quando um sodomita neles admitido, as bolas pretas ali são na maioria de sodomitas, mas que têm cuidado de incriminar a sodomia, como se tivessem herdado a mentira; permitiu a seus ancestrais abandonarem a cidade maldita. É possível regressem a ela um dia. Com certeza formam, em todos os países; colônia oriental, cultivada, musical, maledicente, que possui qualidades encantadoras e defeitos insuportáveis. Vê-lo-emos de modo mais aprofundado ao correr das páginas seguintes; mas quisemos prevenir o erro fato que consistiria, tal como se encorajou um movimento sionista, em criar um movimento sodomita e reconstruir Sodoma. Ora, tão logo chegassem os sodomitas abandonariam a cidade para não parecer pertencerem à ela tomariam a esposa, sustentariam amantes em outras cidades, onde, aliás encontrariam todas as distrações convenientes. Só iriam a Sodoma nos dias de extrema necessidade, quando a cidade estivesse vazia, nesses tempos em que a fome faz o lobo deixar a selva, ou seja, tudo se passaria como em Londres, em Berlim, em Roma, em Petrogrado ou em Paris.

            Em todo caso, naquele dia, antes de minha visita à duquesa, eu não ia tão longe em meus pensamentos, e estava desolado por ter perdido a vez, ao prestar atenção na conjunção Jupien-Charlus, a chance de ver a fecundação da flor pelo besouro.

 

O Sr. de Charlus em sociedade. - Um médico. - Face característica da Sra. de Vaugoubert. - A Sra. d'Arpajon, o repuxo de Hubert Robert e a alegria do grão-duque Wladimir. - A Sra. d Amoncourt, a Sra. de Citri, a Sra. de Saint-Euverte, etc. - Curiosa palestra entre Swann e o príncipe de Guermantes. - Albertine ao telefone. - Visitas enquanto espero minha segunda e última viagem a Balbec. - Chegada a Balbec. - Ciúme em relação a Albertine. - As intermitências do coração.

            Como não tinha pressa em chegar àquele sarau dos Guermantes a que não estava certo de que fora convidado, fiquei à toa na rua; porém, o dia de verão não parecia ter mais pressa do que eu em se mover. Embora já fossem mais de nove horas, era ainda esse dia que, sobre a Praça da Concórdia, dava ao obelisco de Luxor um aspecto de nougat cor-de-rosa. Depois, modificou-lhe o matiz e mudou-o em matéria metálica, de modo que o obelisco tornou-se não só mais precioso, mas também pareceu adelgaçado e quase flexível. Imaginava-se que poderiam torcê-lo, que talvez já houvessem falseado ligeiramente aquela jóia. A lua estava agora no céu como um quarto de laranja delicadamente descascada, conquanto meio amassada. Porém, mais tarde devia ser feita do ouro mais resistente. Encolhida sozinha atrás dela, uma pobre estrelinha ia servir de companhia única à lua solitária, ao passo que esta, sempre a proteger a sua amiga, porém mais ousada e indo na dianteira, brandiria como uma arma irresistível, como um símbolo oriental, o seu amplo e maravilhoso crescente de ouro.

            Diante do palácio da princesa de Guermantes, encontrei o duque de Châtellerault; já não me lembrava que meia hora antes ainda me perseguia o receio que em breve iria dominar-me de novo de comparecer sem ter sido convidado. Inquietamo-nos, e é por vezes muito depois da hora do perigo esquecida graças à distração, que nos lembramos de nosso desassossego. Cumprimentei o jovem duque e entrei no palácio. Mas aqui, faz-se antes necessário que eu aponte uma circunstância mínima, que permitirá se compreenda um fato que se seguirá em breve. Existia alguém que, nesta noite como nas noites precedentes, pensava muito no duque de Châtellerault, aliás sem suspeitar de quem se tratava: era o porteiro da Sra. de Guermantes, a quem por esse tempo chamava-se "o ladrador". O Sr. de Châtellerault, bem longe de ser um dos íntimos da princesa visto ser um de seus primos-, era recebido em seu salão pela primeira vez. Seus pais, brigados com ela por dez anos, tinham-se se reconciliado há duas semanas e, forçados a se ausentarem de Paris, haviam encarregado o filho de representá-los. Ora, alguns dias antes, o porteiro da princesa encontrara nos Champs-Élysées um jovem a quem achara encantador, mas que não lhe fora possível identificar. Não que o jovem não se mostrasse tão amável como generoso. Todos os favores que o porteiro imaginara ter de ceder a um senhor tão moço, ele, ao contrário, os havia recebido. Mas o Sr. de Châtellerault era tão medroso quanto imprudente; e tanto mais decidido estava a guardar o incógnito por ignorar de quem se tratava; teria medo bem maior, embora sem fundamento, se o tivesse conhecido. Limitara-se a se fazer passar por um inglês, e a todas as perguntas apaixonadas do porteiro, desejoso de reencontrar uma pessoa a quem tanto devia em prazer e liberalidades, o duque se restringira a responder, ao longo da avenida Gabriel: "l do not speak french."       

            Se bem que, apesar de tudo devido à origem materna de seu primo-, o duque de Guermantes afetasse achar um nadinha de CourvoisicK no salão da princesa de Guermantes-Baviera, em geral julgava-se o espírito de iniciativa e a superioridade intelectual dessa dama conforme uma inovação que não se encontrava em nenhuma outra parte naquele meio. Após o jantar, e qualquer que fosse a importância da reunião que deveria seguir-se os assentos, na casa da princesa de Guermantes, achavam-se dispostos de tal maneira a formar pequenos grupos que, se necessário, davam-se as costas. A princesa então evidenciava o seu sentido social indo sentar-se como por preferência sua, em um deles. De resto, ela não temia eleger atrair um membro de outro grupo. Se, por exemplo, ela fizera notar ao Sr. Detaille, que naturalmente concordara, como a Sra. de Villemur, cuja posição em outro grupo a fazia ser vista de costas, possuía uma bela nuca, a princesa não hesitava em erguer a voz:

            - Sra. de Villemur, o Sr. Detaille, como grande pintor que é, está admirando o seu pescoço. A Sra. de Villemur sentia naquilo um convite direto à conversação; com a destreza que dá o hábito da equitação, fazia sua cadeira girar lentamente num arco de três quartos de círculo e, sem incomodar em nada os vizinhos, ficava quase de frente para a princesa.

            - Não conhece o Sr. Detaille? - perguntava a dona da casa, a quem não bastava a hábil e recatada conversão de sua conviva.

            - Não o conheço, mas conheço as suas obras. - respondia a Sra. de Villemur com o ar de respeito, insinuante e oportuno, que muitos lhe invejavam, enquanto dirigia ao famoso pintor, que a interpelação não lhe bastara para apresentá-lo de maneira formal, um cumprimento imperceptível.

            - Venha, Sr. Detaille - dizia a princesa; vou apresentá-lo à Sra. de Villemur. -

            Esta, então, empregava tanto engenho para abrir espaço ao autor do Sonho como há pouco em se virar para ele. E a princesa avançou uma cadeira para si própria; de fato, só interpelara a Sra. de Villemur para ter um pretexto de largar o primeiro grupo, onde passara os dez minutos regulamentares, e conceder ao segundo igual duração de presença. Em três quartos de hora, todos os grupos tinham recebido a sua visita, que parecia ter sido guiada, de cada vez, somente pelo imprevisto e pelas predileções, mas tivera por objetivo sobretudo pôr em relevo com que naturalidade "uma grande dama sabia receber". Mas agora os convidados do sarau começavam a chegar, e a dona da casa se havia sentado não longe da porta altiva e empertigada, em sua majestade quase régia, os olhos flamejantes de incandescência própria entre duas Altezas sem beleza e a embaixatriz da Espanha.

            Eu era o último da fila, atrás de uns convidados que tinham chegado um pouco antes de mim. À minha frente estava a princesa, cuja formosura, entre tantas outras, não é só o que me faz recordar essa festa. Mas o rosto da dona da casa era tão perfeito, cinzelado como uma tão linda medalha, que conservou para mim uma virtude comemorativa. A princesa tinha o hábito de dizer aos convidados, ao encontra-los alguns dias antes de seus saraus:

            - O senhor virá, não é mesmo? - como se estivesse grandemente desejosa de conversar com eles. Mas como, pelo contrário, não tinha nada para lhes falar quando chegavam junto dela, contentava-se, sem se erguer, em interromper por um instante a sua vã conversação com as duas Altezas e a embaixatriz e agradecer, dizendo:

            - Foi gentil em ter vindo -, não que achasse que o convidado dera provas de gentileza ao comparecer, mas para aumentar ainda a sua; e logo, devolvendo-o à correnteza, acrescentava: - Encontrará o Sr. de Guermantes à entrada dos jardins de modo que o convidado saía e a deixava tranqüila. Para alguns até, ela nem dizia nada, contentando-se em lhes mostrar seus admiráveis olhos de ônix, como se tivessem vindo exclusivamente para uma exposição de pedras preciosas.

            A primeira pessoa a passar antes de mim era o duque de Châtellerault. Tendo de corresponder a todos os sorrisos, a todos os apertos de mão que lhe vinham do salão, ele não reparara no porteiro. Mas, desde o primeiro instante, o porteiro o reconhecera. Aquela identidade que tanto desejara saber, num momento iria conhecê-la. Perguntando ao seu criado da antevéspera qual o nome que devia anunciar, o porteiro não estava; mas comovido, julgava-se indiscreto, indelicado. Parecia-lhe que ia revelar a todos (que no entanto não desconfiariam de coisa alguma) um segredo que era o culpado de surpreender daquele modo e expor em público: ouvir a resposta do convidado:

            - O duque de Châtellerault -, sentiu perturbado por tamanho orgulho que emudeceu por um instante. O duque o encarou, reconheceu-o, viu-se perdido, ao passo que o criado, que se lembrara e conhecia perfeitamente o seu cerimonial para completar por si mesmo um apelativo tão modesto, gritou com a energia profissional que se aveludam com uma ternura íntima:

            - Sua Alteza Monsenhor o duque de Châtellerault -

            Mas agora era a minha vez de ser anunciado. Absorvido na contemplação da dona da casa que ainda não me vira, nem pensara nas funções terríveis para mim, conquanto de modo diverso do que para o Sr. Châtellerault desse porteiro vestido de preto como um carrasco, cercado de uma tropa de lacaios das mais ridentes librés, robustos latagões prontos para agarrarem um intruso e pô-lo porta afora. O porteiro perguntou meu nome; dei-lhe tão maquinalmente como o condenado à morte se deixa prender ao cepo. De imediato ele ergueu majestosamente a cabeça e, antes que eu tivesse podido implorar-lhe que me anunciasse a meia voz a fim de resguardar meu amor-próprio, caso não fosse convidado, e o da princesa de Guermantes, caso o fosse, berrou as sílabas inquietadoras com uma força capaz de abalar a abóbada do palácio.

            O ilustre Huxley (aquele cujo sobrinho ocupa atualmente um cume preponderante no universo da literatura inglesa) conta que uma de suas doentes não mais tinha coragem de freqüentar a sociedade, pois muitas vezes, na própria poltrona que lhe indicavam com um gesto cortês, ela via sentado um velho senhor. Estava bem certa de que, ou o gesto convidativo ou a presença do velho senhor, seria uma alucinação, pois não lhe designariam daquele modo uma poltrona ocupada. E, quando Huxley, para curá-la, obrigou-a a voltar a uma festa, ela teve um momento de penosa hesitação perguntando-se se o gesto amável que lhe faziam era a coisa real, ou se para obedecer a uma visão inexistente, ela iria em público sentar-se nos joelhos de um senhor de carne e osso. Sua breve incerteza foi cruel. Mais talvez do que a minha. A partir do momento em que ouvira o ribombar de ouvir meu nome, como o rumor prévio de um possível cataclismo, fui obrigado para em todo caso defender minha boa-fé e como se não estivesse atormentado por nenhuma dúvida, avançar para a princesa com ar resoluto.

            Ela me avistou quando eu estava a poucos passos de distância o que não me permitiu mais duvidar de que fora vítima de uma maquinação em vez de permanecer sentada como fazia quanto aos outros convidados, ergueu-se e veio ao meu encontro. Um segundo após, pude soltar o suspiro de alívio da doente de Huxley, quando, tendo resolvido sentar-se na poltrona, encontrou-a desocupada e compreendeu que o velho senhor é que era uma alucinação. A princesa acabava de me estender a mão, sorrindo. Ficou de pé durante alguns momentos, com o tipo de graça particular à estância de Malherbe que termina assim:

            E os Anjos para honrá-los se levantam.

            Ela se desculpou pelo fato de a duquesa ainda não ter chegado, como se eu devesse me aborrecer sem a presença dela. Para me fazer esse cumprimento, ela executou a meu redor, segurando-me a mão, um giro cheio de graça, em cujo turbilhão eu me sentia arrastado. Quase esperava que ela me entregasse então, como uma condutora de cotillon (dança), uma bengala de cabo de marfim ou um relógio-pulseira. Na verdade, não me deu nada disso e, como se em lugar de dançar o bóston tivesse antes ouvido um sacrossanto quarteto de Beethoven, cujos sublimes acentos temesse perturbar, parou nesse ponto a conversa, ou melhor, não a principiou e, ainda radiante de me ter visto entrar, limitou-se a indicar o local onde se encontrava o príncipe.

            Afastei-me dela e não mais tive coragem de me aproximar, sentindo que ela não tinha absolutamente nada a me dizer e que, em sua imensa boa vontade, aquela mulher maravilhosamente alta e bela, nobre como o eram tantas grandes damas que subiram tão altivamente ao cadafalso, não poderia, sem ousar oferecer-me água de erva-cidreira, senão repetir-me o que já me havia dito duas vezes:

            - O senhor encontrará o príncipe no jardim. -

            Ora, ir ao encontro do príncipe seria sentir renascer minhas dúvidas sob forma diversa. Em todo caso, precisava encontrar alguém que me apresentasse. Ouvia-se, dominando todas as conversações, o inesgotável falatório do Sr. de Charlus, que estava conversando com Sua Excelência o duque de Sidonia, com quem acabava de travar conhecimento. De profissão para profissão, nós nos adivinhamos, e de vício para vício também. O Sr. de Charlus e o Sr. de Sidonia tinham de imediato farejado cada um o do outro, que, quanto a ambos, era, em sociedade, o de serem monologadores, a ponto de não poderem suportar nenhuma interrupção. Tendo logo percebido que o mal era sem remédio, como diz um célebre soneto, tomaram a resolução não de se calar, mas de falar cada qual sem cuidar do que o outro dizia, o que provocara aquele rumor confuso, produzido nas comédias de Moliere por vários personagens que falam ao mesmo tempo coisas diferentes. O barão, sua voz estrepitosa, estava certo, aliás, de que teria a vantagem, que cobria a voz fraca do Sr. de Sidonia, sem no entanto desencorajar a este, quando o Sr. de Charlus

retomava fôlego por um instante, o intervalo era preenchido pelo sussurro do nobre da Espanha, que continuara imperturbavelmente o seu discurso. Bem que eu podia pedir ao Sr. de Charlus que me apresentasse ao príncipe de Guermantes, mas receava (com sobra das razões) que ele se irritasse comigo. Eu agira com ele da maneira mais ingrata, desdenhando pela segunda vez os seus oferecimentos, nem lhe dando sinal de vida desde a noite em que me reconduzira tão afetuosamente à minha casa. E no entanto não dava de modo algum, como desculpa prévia, a cena que acabara de ver, naquela mesma tarde, entre ele e Jupien. Não suspeitava nada de parecido. É verdade que pouco tempo antes, como meus pais me censurassem a preguiça e por ainda não ter escrito um bilhete ao Sr. de Chary eu os censurara violentamente por quererem que aceitasse propostas deste nestas. Mas somente a cólera e o desejo de achar a frase que lhes podia ser mais desagradável é que me haviam ditado aquela resposta mentirosa. Na realidade, eu nada imaginara de sensual, nem sequer de sentimental, sob as ofertas do barão. Dissera aquilo a meus pais como simples besteira. Mas às vezes o futuro nos habita sem que o saibamos, e nossas palavras que crêem mentir estão descrevendo uma realidade que se aproxima. O Sr. de Charlus decerto perdoaria minha ingratidão. Mas o que o deixaria furioso é que a minha presença esta noite na casa da princesa de Guermantes, como fazia algum tempo na casa da prima desta, parecia desprezar a solene declaração:

            - Não se entra nesses salões senão por mera intermédio. -

            Falta grave, crime por ventura irreparável, eu não seguira a ordem hierárquica. O Sr. de Charlus sabia muito bem que os raios que brandia contra aqueles que não se curvavam às suas ordens, ou a quem criara rancor, começavam a ser tidos, para muita gente, por mais ódio que ele lhes imprimisse, por raios de cartolina, e já não tinham forças de expulsar fosse quem fosse de lugar algum. Mas talvez julgasse que seu poder diminuído grande ainda, permanecia intacto aos olhos dos novatos como eu. Assim não julguei muito apropriado pedir-lhe um favor numa festa em que só a minha presença parecia um irônico desmentido a suas pretensões.

            Naquele momento fui detido por um homem bastante vulgar, o professor E***. Ficara surpreso ao avistar-me na casa dos Guermantes. Eu não o estava menos por encontrá-lo, pois jamais tinham visto, e a seguir nunca mais viram, na casa da princesa, uma pessoa do seu tipo. Acabara de curar o príncipe, que já tomara a extrema-unção, de uma pneumonia infecciosa; e o reconhecimento especial que tivera por ele a Sra. de Guermantes era motivo para que rompessem com os costumes e o convidassem. Como não conhecia absolutamente ninguém naqueles salões e não podia perambular a sós por ali indefinidamente, como um ministro da morte, sentiu, ao me reconhecer, pela primeira vez na vida, uma infinidade de coisas para me dizer, assumir uma atitude, e esta era uma das razões por que se dirigira a mim. Havia uma outra. Dava muita importância ao fato de jamais errar um diagnóstico. Ora, a sua clientela era tão numerosa que ele nem sempre se recordava muito bem, quando só vira uma vez o enfermo, se a doença seguira exatamente o curso que ele havia previsto. Talvez não se tenha esquecido de que, no momento do ataque da minha avó, eu a levara a sua casa, naquele entardecer em que ele se cobria de tantas condecorações. Depois de tanto tempo, já não se lembrava da participação que lhe haviam mandado à época.

            - A senhora sua avó já está morta, não? - perguntou-me num tom de voz em que uma quase certeza acalmava uma ligeira apreensão. - Ah, com efeito! Aliás, desde o primeiro minuto em que a vi, meu prognóstico fora totalmente sombrio, lembro-me bem.

            Foi assim que o professor E*** soube, ou tornou a saber, da morte da minha avó, e isso, devo dizê-lo em seu louvor, que é extensivo a todo o corpo médico, sem manifestar, sem talvez mesmo sentir, nenhuma satisfação. Os erros dos médicos são inumeráveis. Habitualmente, eles pecam por otimismo quanto ao regime, por pessimismo quanto ao desfecho.

            - Vinho? Em quantidade moderada não poderá lhe fazer mal; em suma, é um tônico... O prazer físico? Afinal é uma função. Permito-lhe sem abuso, o senhor compreende. O excesso é um defeito em tudo. -

            De súbito, que tentação para o doente o renunciar a essas duas fontes de ressurreição, a água e a castidade! Em compensação, se se tem algo no coração, se se tem albumina, etc., não se tem por muito tempo. De bom grado, perturbações graves, mas funcionais, são atribuídas a um câncer imaginário.

            Inútil continuar visitas que não saberiam refrear um mal inelutável. Que o enfermo, entregue a si mesmo, se imponha então um regime implacável e a seguir se cure, ou pelo menos sobreviva; o médico, saudado na avenida da ópera, quando o acreditava há muito no cemitério do Pere Lachaise, verá nesse cumprimento um gesto de maliciosa insolência. Um inocente passeio realizado diante de seu nariz e de suas barbas não provocaria mais cólera ao juiz que, dois anos antes, havia pronunciado uma sentença de morte contra o malandro, que parece não ter medo nenhum. Os médicos (não se trata de todos, é claro, e nós não omitimos, mentalmente, admiráveis exceções) em geral ficam mais descontentes, mais irritados, com a invalidação de seu diagnóstico do que satisfeitos com a sua execução. É o que, sem dúvida, explica que o professor E***, por mais que sentisse uma certa satisfação intelectual ao ver que não se enganara, só tenha me falado com tristeza da desgraça que atingira. Não lhe interessava abreviar a conversa, que o deixava desembaraçado, dando-lhe um motivo para ficar. Falou-me do calor excessivo que fazia, mas, embora fosse letrado e pudesse expressar-se em bom francês disse:

            - Não sofre com esta hipertermia? -

            É que a medicina fez ali, progressos em seus conhecimentos desde Moliere, porém nenhum em no vocabulário. Meu interlocutor acrescentou:

            - O que é preciso fazer são as sudações que causa esse tempo, sobretudo nos salões superaquecidos. O senhor poderá remediá-lo com o calor, quando voltar para casa e tiver vontade de beber (o que, evidentemente, significa bebidas quentes). -

            Devido à maneira como a minha avó tinha morrido, o assunto; interessava-me e eu lera recentemente no livro de um grande sábio que a transpiração era nociva aos rins, ao fazer passar pela pele, aquilo cuja saída está em outra parte. Deplorava eu aqueles dias de canícula em que minha avó morrera e não estava longe de incriminá-los. Não falei disso ao doutor E***, mas por si mesmo ele me disse:

            - A vantagem de um tempo excessivamente quente, em que a transpiração é muito abundante, é que os rins ficam tanto mais aliviados. - A medicina não é uma ciência exata -   Agarrado a mim, o professor E*** só desejava não me deixar a quem eu acabara de avistar, fazendo grandes reverências à princesa de Guermantes para a esquerda e a direita, depois de ter recuado um passo, o marquês de Vaugoubert. Recentemente o Sr. de Norpois nos apresentara, e eu esperava encontrar nele alguém que fosse capaz de me apresentar ao dono da festa. As proporções desta obra não me permitem explicar aqui por causa de quais incidentes da juventude o Sr. de Vaugoubert era um dos únicos homens do mundo (talvez o único) que estava, como se diz em Sodoma, "em confidências" com o Sr. de Charlus. Mas, se o nosso ministro junto ao rei Teodósio - possuía alguns dos defeitos do barão, era apenas como bem pálido reflexo. Era apenas sob uma forma infinitamente esmaecida, sentimental e simpática que ele apresentava essas alternâncias de simpatia e ódio pelas quais o desejo de seduzir e logo depois o receio igualmente imaginário de ser, senão desprezado, ao menos descoberto, faziam passar o barão. No entanto, o Sr. de Vaugoubert apresentava essas alternâncias, tornadas ridículas por uma castidade, um "platonismo" (aos quais, como grande ambicioso que era, sacrificara desde a época do concurso todo e qualquer prazer), sobretudo por sua nulidade intelectual. Mas, ao passo que no Sr. de Charlus os elogios imoderados eram clamados num verdadeiro assombro de conseqüência e temperados com as zombarias mais finas e mordazes, e que marcam um homem para sempre, no Sr. de Vaugoubert, pelo contrário, a simpatia era expressa com a banalidade de um homem de ínfima categoria, de um homem da alta sociedade e de um funcionário, os agravos (em geral inteiramente forjados, como no caso do barão) se exprimiam com uma malevolência sem tréguas, mas sem espírito, e que tanto mais chocava por estar habitualmente em contradição com o que o ministro dissera seis meses antes e talvez dissesse de novo tempos depois: regularidade na mudança que conferia uma poesia quase astronômica às diversas fases da vida do Sr. de Vaugoubert, embora, a não ser isso, ninguém menos que ele faria pensar num astro.

            O cumprimento que me fez não tinha nada do que o teria feito o Sr. de Charlus. A esse cumprimento o Sr. de Vaugoubert, além das mil maneiras que julgava serem as da sociedade e da diplomacia, dava um ar cavalheiresco, elegante, risonho, a fim de parecer, de um lado, encantado com a existência enquanto interiormente remoía os dissabores de uma carreira sem progressos e ameaçada por uma aposentadoria e, de outro lado, jovem, viril e atraente, enquanto via e nem mais ousava encarar no espelho as rugas a se fixarem nos contornos de um rosto que desejaria conservar cheio de seduções. Não é que desejasse conquistas efetivas, cuja simples idéia lhe dava medo devido ao que diriam, aos escândalos, às chantagens. Tendo passado de uma devassidão quase infantil à mais absoluta continência, que datava do dia em que pensara no Quai d'Orsay e quisera fazer uma grande carreira, tinha ele o aspecto de um animal enjaulado, lançando para todas as partes olhares que exprimiam medo, cobiça e estupidez. A sua era tamanha que ele não refletia que os malandros de sua adolescência já não eram garotos e que, quando um jornaleiro lhe gritava bem no seu nariz:

            - La Presse! mais ainda que de desejo, ele estremecia de pavor, julgando-se reconhecido e desmascarado.

            Mas, na falta dos prazeres sacrificados à ingratidão do Quai d'Orsay, o Sr. de Vaugoubert e por isso é que desejava agradar ainda tinha súbitos impulsos do coração. Deus sabe com quantas cartas ele aborrecia o ministério, de que artimanhas pessoais lançava mão, quantos adiantamentos operava sobre o crédito da Sra. de Vaugoubert (que, devido à sua corpulência, ao berço nobre e a seu ar masculino, e sobretudo por causa da mediocridade do marido, julgavam dotada de capacidades eminentes, preenchendo as verdadeiras funções de ministro), para fazer entrar para o pessoal da legação, sem qualquer motivo legítimo, um jovem destituído de todo mérito. É verdade que alguns meses, alguns anos mais tarde, de medo que o adido insignificante parecesse, sem sombra de má intenção, ter dado mostras de frieza para com seu chefe, este, achando-se desprezado ou traído, empregava o mesmo ardor histérico em puni-lo como outrora em favorecê-lo. Removia céus e terras para ser lembrado, e o diretor dos assuntos políticos recebia diariamente uma carta:

            "Que espera para desembaraçar desse atrevido? Faça-o trabalhar um pouco, no seu interesse que ele precisa é comer o pão que o diabo amassou."

            Por esse mal posto de adido junto ao rei Teodósio era pouco agradável. Mas, quanto ao resto, graças a seu perfeito bom-senso de homem de sociedade, o Vaugoubert era um dos melhores agentes do governo francês. Quando um homem pretensamente superior, Jacobino, que era sábio todas as coisas, o substituiu mais tarde, não tardou a estourar a guerra da França e o país no qual reinava o rei.

            Como o Sr. de Charlus, o Sr. de Vaugoubert não gostava de cumprimentar primeiro. Um e outro preferiam "responder", sempre receando falatório que aquele a que, não fosse isso, teriam estendido a mão pudesse ter ouvido a seu respeito desde que haviam se encontrado pela última vez. Quanto a mim, o Sr. de Vaugoubert não teve de formular semelhante questão, pois eu de fato tinha ido cumprimentá-lo primeiro, nem que fosse apenas pela diferença de idade. Respondeu-me com ar maravilhado e encantado, e seus olhos continuaram a se agitar como se de cada lado houvesse alfafa proibida de pastar. Pensei que fosse conveniente solicitar-lhe minha apresentação à Sra. de Vaugoubert, antes da apresentação ao príncipe de que só depois contava lhe falar. A idéia de me colocar em relações à esposa pareceu enchê-lo de alegria, tanto por si como por ela, e conduziu-me com passo deliberado em direção à marquesa. Chegando diante dela e designando-me com a mão e os olhos, com todos os sinais possíveis de consideração, permaneceu todavia mudo e se retirou, passados alguns segundos, com um ar buliçoso, para deixar-me a sós com sua mulher. Esta logo me estendera a mão, mas sem saber a quem se dirigia aqui gesto de amabilidade, e então compreendi que o Sr. de Vaugoubert se esquecera de dizer meu nome, talvez nem sequer me houvesse reconhecido, e sem querer, por polidez, confessá-lo, fizera a apresentação reduzir-se a uma espécie de pantomima. Assim eu não me achava mais avançado; como me falhei apresentar ao dono da casa por uma mulher que não sabia o meu nome. Ademais, via-me forçado a conversar por alguns instantes com a Sra. de Vaugoubert. E isto me aborrecia sob dois aspectos. Não pretendia eternizar-me naquela festa, pois combinara com Albertine (dera-lhe um camarote para a Fedra) que ela viria visitar-me um pouco antes da meia-noite. Claro que de modo nenhum estava enamorado dela; fazendo-a vir naquela noite, eu obedecia a um desejo sensual apenas, embora estivéssemos, naquela época tórrida do ano em que a sensualidade liberada visita mais bom grado os órgãos do gosto, procura principalmente o frescor. Mais do beijo de uma moça, a sensualidade precisa de uma laranjada, de um banho, e até mesmo de contemplar aquela lua descascada e suculenta que saciava a sede do céu.

            Entretanto, contava desembaraçar-me, ao lado de Albertine que aliás me lembrava a frescura das ondas; das mágoas que não deixariam de me ocasionar muitos daqueles rostos encantadores (pois a festa que a princesa dava era tanto de moças como de senhoras). Por outro lado, o rosto da imponente Sra. de Vaugoubert, bourboniano e inexpressivo, nada tinha que atraísse.

            Dizia-se no Ministério, sem qualquer sombra de malícia, que em casa era o marido que vestia saias e a mulher que usava calças. Ora, havia mais verdade nisso do que se imaginava. A Sra. de Vaugoubert era um homem. Se fora sempre assim, ou se se tornara tal como a via, pouco importa; pois, num caso ou noutro, estamos diante de um dos mais emocionantes milagres da natureza, e que, principalmente o segundo, fazem o reino humano assemelhar-se ao reino das flores. Na primeira hipótese se a futura Sra. de Vaugoubert sempre fora tão pesadamente macha; a natureza, com um ardil benfazejo e diabólico, dá à moça o aspecto enganador de um homem. E o adolescente, que não gosta de mulheres e quer curar-se, acha com alegria este subterfúgio de descobrir uma noiva que lhe representa um estivador. No caso contrário, se a mulher não possuía antes as características masculinas, ela as adquire pouco a pouco para agradar ao marido, até inconscientemente, por esse gênero de mimetismo que faz com que certas flores adquiram a aparência dos insetos que desejam atrair. A mágoa de não ser amada, de não ser um homem, acaba fazendo-a viril. Mesmo fora do caso que nos ocupa, quem não notou de que modo os casais mais dentro da normalidade acabam por se parecer, e às vezes até a intercambiar as suas qualidades? Um antigo chanceler alemão, o príncipe de Bülow, casara-se com uma italiana. Com o tempo, no Pincio, notou-se o quanto o marido germânico adquirira a finesse italiana, e a princesa italiana a rudeza germânica. Para sair até um ponto excêntrico das leis que traçamos, todos conhecem um eminente diplomata francês, cuja origem só era lembrada por seu nome, um dos mais ilustres do Oriente. Ao amadurecer, ao envelhecer, revelou-se nele o oriental de que jamais haviam suspeitado, e, vendo-o, lamenta-se a ausência do que o fez que o completaria.           Para voltar aos costumes bastante ignorados do embaixador, cuja silhueta ancestralmente expressa da qual acabamos de evocar, a Sra. de Vaugoubert realizava o tipo adquirido ou predestinado cuja imagem imortal é a princesa palatina, sempre em roupa de montar, e que, tendo tomado ao marido mais que a virilidade, esposando os defeitos dos homens que não gostam de mulheres, denuncia em suas cartas de comadre as relações que tiveram entre si todos os grão-senhores da corte de Luís XIV. Uma dessas que se acrescentam ainda ao ar masculino de mulheres como a de Vaugoubert é que o abandono em que são deixadas por seus maridos a vergonha que sentem por isso fazem murchar pouco a pouco tudo que nelas é próprio da mulher. Acabam por adquirir as qualidades e os defeitos que o marido não possui. À medida que eles são mais frívolos, mais efeminados, mais indiscretos, elas se tornam como que a efígie sem as virtudes que o esposo deveria possuir. Traços de opróbrio, de aborrecimento, de indignação obscuros no rosto da Sra. de Vaugoubert. Infelizmente eu sentia que ela me observava com interesse e curiosidade como um desses rapazes que agradavam de Vaugoubert e que ela tanto desejaria ser, agora que seu marido envelhecendo, preferia a juventude. Olhava-me com a atenção dessas provincianas que, num catálogo de loja de novidades, copiam o taillear, adequado à linda criatura desenhada (na realidade, a mesma em todas páginas, mas ilusoriamente multiplicada em criaturas diferentes, pelo grau diversidade de poses e à variedade dos vestidos). A atração vegetal que impelia para mim a Sra. de Vaugoubert era tão forte que chegou ao ponto de segurar-me pelo braço para que a levasse beber um copo de laranjada. Desvencilhei-me, porém, alegando que, visto que precisava sair e ainda não fora apresentado ao dono da casa. A distância que me separava da entrada dos jardins, onde conversava com algumas pessoas, não era muito grande, porém mais medo do que para transpô-la, me fosse necessário expor-me à fogo contínuo.

            Muitas mulheres, por meio de quem me parecia possível obter apresentação, estavam no jardim, onde, fingindo uma admiração exaltada não sabiam bem o que fazer. As festas desse tipo são em geral atentas; só têm realidade no dia seguinte, quando ocupam a atenção das pessoas que não foram convidadas. Se um verdadeiro escritor, destituído de amor-próprio de tantos literatos, ao ler o artigo de um crítico que se lhe testemunhou a maior admiração, vê citados os nomes de autores medíocres, mas não o seu, não tem tempo de se deter no que poderia ser ele um motivo de espanto: seus livros o reclamam. Mas uma mulher da sociedade não tem o que fazer e, vendo no fígaro:

            "Ontem o príncipe e a princesa de Guermantes deram uma grande reunião noturna, etc.", exclama: Como! Há três dias conversei durante uma hora com Marie-Gilbert sem que ela me dissesse nada! E quebra a cabeça para adivinhar o que pode ter feito contra os Guermantes. É preciso esclarecer que, no que dizia respeito às festas da princesa, o espanto era às vezes tão grande entre os convidados como entre os que não tinham estado presentes. Pois os convites explodiam no momento em que menos os esperavam, e apelavam para pessoas que a Sra. De Guermantes havia esquecido durante anos. E quase todas as pessoas da alta sociedade são tão insignificantes que cada um de seus pares não toma, para avaliá-las, senão a medida de sua amabilidade: convidado, estima-as; excluído, detesta-as. Quanto a estes últimos, se, de fato, a princesa, mesmo se fossem seus amigos, não os convidava, devia-se isto muitas vezes ao temor de descontentar "Palamede", que os havia excomungado. Assim, eu podia ter certeza de que ela não falara de mim ao Sr. de Charlus, sem o que não me encontraria ali. Ele estava agora diante do jardim, ao lado do embaixador da Alemanha, reclinado na rampa da grande escadaria que levava ao palácio, de forma que os convidados, apesar das três ou quatro admiradoras que tinham se agrupado em torno do barão e quase o ocultavam, eram obrigados a vir cumprimentá-lo. Ele retribuía declinando o nome das pessoas. E sucessivamente ouvia-se:

            - Boa-noite, Sr. du Hazay; boa-noite, Sra. da La Tour du Pin-Verclause; boa-noite, Sra. de La Tour du Pin-Gouvernet; boa-noite, Philibert; boa-noite, minha cara embaixatriz, etc. -

            Isto formava um cacarejo contínuo, interrompido por recomendações benévolas ou perguntas (cujas respostas não ouvia), que o Sr. de Charlus fazia num tom adocicado, artificial, a fim de testemunhar a indiferença, e benigno:

            - Tomem cuidado para que a menina não sinta frio, os jardins são sempre um tanto úmidos. Boa-noite, Sra. de Brantes. Boa-noite, Sra. de Mecklembourg. E a menina veio? Com aquele encantador vestido cor-de-rosa? Boa-noite, Saint-Géran. -

            Certamente ele sentia orgulho nessa atitude. O Sr. de Charlus sabia que era um Guermantes que ocupava um lugar proeminente naquela festa. Mas não havia só orgulho, e essa mesma palavra festa evocava, para o homem de dotes estéticos, o sentido luxuoso, curioso, que essa reunião pode ter se é dada não na casa de pessoas da alta sociedade, mas num quadro de Carpaccio ou de Veronese. É mesmo mais provável que o príncipe alemão, que o Sr. de Charlus era, devesse antes imaginar a festa que se desenrola em Tannhâuser, e a si mesmo como o Margrave, tendo, à entrada da Warburg, uma boa palavra de condescendência para cada convidado, enquanto a sua passagem pelo castelo ou pelo parque é saudada pela longa frase, cem vezes repetida, da famosa "Marcha". No entanto, precisava decidir-me. Percebia perfeitamente, sob as árvores, mulheres a quem estava mais ou menos ligado, mas elas pareciam transformadas, pois estavam na casa da princesa e não na de sua prima, e eu as via sentadas não diante de um prato de Saxe, mas sob os galhos de um castanheiro. A elegância do ambiente não contava para, mesmo que fosse infinitamente menor que na casa de "Oriane", eu, sentido perturbação igual. Desde que a eletricidade se extinga em salão e devamos substituí-la por lampiões a óleo, tudo nos parece maior. Arrancou-me da minha incerteza a Sra. de Souvré:

            - Boa-noite - disse vindo ao meu encontro. - Faz muito tempo que não vê a duquesa de Guermantes? - Ela primava em dar a esse tipo de frase uma entonação provava que não as dizia por simples tolice, como as pessoas que, não sabendo de que falar, abordam-nos mil vezes citando uma relação freqüentemente muito vaga. Ao contrário, teve ela um sutil fio condutor de olhar, que significava:

            "Não creia que o não reconheci. O senhor é o rapaz que vi na casa da duquesa de Guermantes. Lembro-me muito bem. Infelizmente, a proteção que estendia sobre mim aquela frase de aparência estúpida e de intenção delicada era extremamente frágil e desvaneceu logo que pretendi usá-la. A Sra. de Souvré possuía a arte, caso se tratasse de apoiar uma solicitação junto a alguém importante, de parecer ao mesmo tempo, aos olhos do solicitante, que o estava recomendando e, aos olhos da alta personagem, que não o estava recomendando, de modo que os gesto de duplo sentido lhe abria um crédito de reconhecimento quanto a este último, sem lhe criar nenhum débito em relação ao outro. Animada, pelas boas graças desta senhora a lhe pedir que me apresentasse ao Sr. De Guermantes, ela aproveitou um instante em que os olhos do dono da casa não estavam voltados para nós, tomou-me maternalmente pelos ombros e sorrindo à figura virada do príncipe que não podia vê-la, impeliu-me com um movimento pretensamente protetor e voluntariamente ineficaz, que me deixou imóvel quase no meu ponto de partida. Tal é a covardia das pessoas da sociedade. Maior ainda foi a de uma dama que veio me cumprimentar, chamando-me pelo meu nome. Eu procurava achar o seu enquanto lhe falava; lembrava-me muito bem de haver jantado com ela, lembrava-me das palavras que ela dissera. Porém, minha atenção, voltada para a região interior onde existiam essas lembranças dela, não podia descobrir-lhe o nome. Entretanto ele se achava ali. Meu pensamento se empenhara numa espécie de jogo com ele para captar-lhe os contornos, a letra pela qual se principiava, e, por fim, iluminá-lo por completo. Era trabalho perdido. Ela, sentia mais ou menos a sua massa, o seu peso, mas, quanto às suas formas, confrontando-as com o tenebroso cativo agachado na noite interna dizia eu comigo: "Não é isto." Decerto o meu espírito teria podido criar mais difíceis apelativos. Por desgraça, não era caso de criar e sim de produzir. Toda ação do espírito é facilitada se não está submetida ao esquecimento. Ali eu era forçado a me submeter. Por fim, de um golpe, o nome surgiu inteiro:

            "Senhora d'Arpajon".

            Estou errado em dizer que ele veio, pois julgo não me surgiu numa propulsão de si mesmo. Tampouco penso que as ligeiras e numerosas lembranças que se relacionavam com essa dama, e às quais eu não cessava de pedir que me ajudassem (por exortações do tipo desta: "Vamos, esta dama é que é amiga da Sra. de Souvré, que experimenta em relação a Victor Hugo uma admiração tão ingênua, mesclada de tanto pasmo e horror"), não creio que todas essas lembranças, revoando entre mim e seu nome, tenham servido no que quer que fosse para fazê-lo flutuar. Nesse grande "esconde-esconde" que se brinca na memória, quando se deseja encontrar um nome, não existe uma série de aproximações graduadas. Não se vê coisa alguma, e depois, de súbito, aparece o nome exato e bem diferente daquilo que julgávamos adivinhar. Não foi ele que veio até nós. Não, creio antes que, à medida que vivemos, passamos o nosso tempo a nos afastar da zona em que um nome é nítido, e era por um exercício da minha vontade e de minha atenção, que aumentava a acuidade de meu olhar interior, que de chofre eu havia perfurado a semi-obscuridade e visto com clareza. Em todo caso, se há transições entre o esquecimento e a lembrança, então essas transições são inconscientes. Pois os nomes de etapas por que passamos, antes de achar o nome verdadeiro, são falsos e em nada nos aproximam dele. Nem chegam a ser propriamente nomes, mas, muitas vezes, simples consoantes, e que não se achariam no nome reencontrado. Aliás, esse trabalho do espírito, passando do nada à realidade, é tão misterioso que é possível que, afinal, essas consoantes falsas sejam degraus prévios, desajeitadamente colocados para ajudar-nos a alcançar o nome correto. "Tudo isto, dirá o leitor, nada me informa acerca da falta de complacência dessa dama; mas, já que vos demorastes tanto tempo, deixai-me, senhor autor, fazer-vos perder mais um minuto para dizer que é lastimável que, jovem como éreis (ou como era o vosso herói caso não seja vós), já tivésseis tão pouca memória a ponto de não poder lembrar-vos do nome de uma dama que conhecíeis tão bem." De fato, é lastimável, senhor leitor. E mais triste do que pensais, quando se sente aí o anúncio da época em que os nomes e as palavras desaparecerão da zona clara do pensamento, e onde será preciso renunciar para sempre a dizer para nós mesmos os nomes daqueles a quem melhor conhecemos. É lastimável, com efeito, que desde a juventude se necessite desse trabalho para reencontrar nomes que se conhecem bem. Mas, se essa deficiência só ocorresse quanto aos nomes mal conhecidos, muito naturalmente olvidados, e de que ninguém se dá ao trabalho de tentar recordar, tal deficiência não deixaria de ter suas vantagens. "E quais são, se me fazeis o favor?" Bem, meu senhor, é que só o mal faz a gente reparar e aprender, permitindo decompor os mecanismos sem isso, não conheceríamos. Um homem que todas as noites tomba uma massa no seu leito e não vive mais até o momento de acordar se erguer, por acaso esse homem pensará alguma vez em fazer, se não descobertas, ao menos pequeninas observações sobre o sono? Mal ele se dorme. Um pouco de insônia não é inútil para dar valor ao projetar alguma luz sobre essa noite. Uma memória sem falhas não é excitante muito poderoso para estudar os fenômenos da memória. "E. a Sra. d'Arpajon vos apresentará ao príncipe?" Não, mas calai-vos e deixe-me retomar minha narrativa.

            A Sra. d'Arpajon foi mais covarde ainda que a Sra. de Souvré, sua covardia tinha mais desculpas. Ela sabia que sempre tivera pouca poder na sociedade. Semelhante poder fora ainda mais debilitado pela ação que tivera com o duque de Guermantes; o abandono deste dera-lhe o golpe de misericórdia. O mau humor que lhe causou o meu pedido de apresentação ao príncipe fê-la manter um silêncio que teve a ingenuidade de acreditar ser um sinal de não ter ouvido o que eu dissera. Nem mesmo percebeu que a cólera a fazia franzir as sobrancelhas. Ou talvez, ao contrário, houvesse percebido e não se preocupasse com a contradição; servindo-se dela para a aula de discrição que podia me dar sem muita graça seria, quero dizer, uma aula muda e que nem por isso era menos elogiosa. Além do mais, a Sra. d'Arpajon estava muito contrariada; muitos olhares se haviam erguido para um balcão renascentista, em cujo ângulo em lugar de estátuas monumentais que se colocavam tanto por essa casa, debruçava-se, não menos escultural do que elas, a magnífica duquesa de Surgis-le-Duc, a que acabava de suceder à Sra. d'Arpajon no coração de Basin de Guermantes. Sob o leve tule branco que a abrigava do frescor da noite, via-se, flexível, o seu corpo sedutor de Vitória. Eu só podia recorrer ao Sr. de Charlus, que voltara para uma peça do andar térreo que dava para o jardim. Tive todo o tempo; já que ele fingia estar absorvido numa simulada de que lhe permitia dar a impressão de não ver as pessoas para admirar a intencional e artística simplicidade de seu fraque; em uns detalhes que só um costureiro teria percebido, tinha o aspecto de uma "Harmonia" em preto e branco de Whistler; ou melhor, preto, branco e vermelho, pois o Sr. de Charlus trazia, suspensa por uma larga fita à camisa, a cruz em esmalte branco, preto e vermelho de cavaleiro da ordem religiosa de Malta. Nesse momento, a partida do barão foi interrompida Sra. de Gallardon, conduzindo seu sobrinho, o visconde de Courvoisier; rapaz de belo rosto e de ar impertinente:

            - Meu primo - disse ela permita-me que lhe apresente meu sobrinho Adalbert. Adalbert, tu sabes, famoso tio Palamede de quem sempre ouves falar.

            - Boa-noite, senhora de Gallardon - respondeu o Sr. de Charlus. E acrescentou, sem mesmo olhar para o rapaz:

            - Boa-noite, senhor - com ar emburrado e um tom de voz tão violentamente descortês que todo mundo ficou estupefato. Talvez o Sr. de Charlus, sabendo que a Sra. de Gallardon tinha dúvidas sobre seus costumes e não pudera certa vez resistir ao prazer de lhes fazer alusão, fizesse questão de cortar de vez tudo o que ela poderia fantasiar acerca de uma acolhida amável a seu sobrinho, ao mesmo tempo que fazia uma retumbante profissão de indiferença quanto aos jovens; talvez não tivesse achado que o dito Adalbert correspondesse com aspecto suficientemente respeitoso às palavras da tia; talvez, desejoso de mais tarde fazer seus avanços a um primo tão agradável, quisesse obter as vantagens de uma agressão prévia, como os soberanos que, antes de principiar uma ação diplomática, apóiam-na com uma ação militar.

            Não seria tão difícil como eu achava que o Sr. de Charlus concordasse com o meu pedido de apresentação. Por um lado, no decurso dos últimos vinte anos, esse Dom Quixote lutara contra tantos moinhos de vento (muitas vezes parentes que ele pretendia terem se comportado mal com ele), com tanta freqüência proibira alguém "como pessoa impossível de ser recebida" em casa de tais ou quais Guermantes, que estes começavam a ter medo de que os indispusesse com todas as pessoas de quem gostavam, que os privasse até a morte da convivência de alguns estreantes que lhes despertavam a curiosidade, para esposar os rancores trovejantes porém inexplicáveis de um cunhado ou primo que desejaria que por ele abandonassem mulher, irmão e filhos. Mais inteligente que os outros Guermantes, o Sr. de Charlus percebia de que só levavam em conta as suas proibições uma vez em duas, e, antecipando o futuro, temendo que um dia fosse dele que se privassem, começara a contemporizar, a baixar seus preços, como se diz. Além do mais, se possuía a faculdade de dar por meses ou anos uma vida idêntica a uma pessoa detestada a esta não teria tolerado que fizessem um convite e seria antes capaz de se bater como um carregador contra uma rainha, dado que para ele não mais contava a qualidade de quem se lhe opunha. Em compensação era possuído de freqüentes explosões de cólera para que não fossem muito fragmentárias.

            "Imbecil! Idiota! Hão de pô-lo no seu lugar, varrê-lo para o esgoto onde, infelizmente, não será inofensivo para a higiene da cidade!" berrava, mesmo sozinho em casa, à leitura de uma carta que julgava irreverente, ou lembrando-se de uma frase que lhe haviam repetido. Mas uma nova cólera contra um segundo imbecil dissipava a outra, e, por menos que o primeiro se mostrasse diferente, a crise que ele havia ocasionado era esquecida, não tendo duração suficiente para formar uma base de ódio sobre a qual se pudesse construir. Desse modo, talvez eu tivesse, apesar de seu mau humor contrário, obtido sucesso junto a ele, quando lhe pedi que me apresentasse o príncipe, caso não tivesse tido a infeliz idéia de acrescentar por escrúpulo e para que ele não pudesse me atribuir a indelicadeza de ter entrado ao acaso, contando com ele para ficar na festa:

            - O senhor sabe que os conheço muito bem; a princesa foi muito amável comigo.

            - Pois bem; o senhor os conhece, em que precisa de mim para ser apresentado?- respondeu-me em tom cortante; voltando-me as costas, retomou a posição fingido ler um anúncio, do embaixador da Alemanha e um personagem que eu não conhecia.      

            Então, do fundo daqueles jardins onde outrora o duque criava animais raros, chegou-me, pelas portas escancaradas, o rumor de aspirar que hauria tantas elegâncias e nada queria perder. O ruído se aproximou, caminhei casualmente em sua direção, tanto que a expressão "boa-noite" foi sussurrada ao meu ouvido pelo Sr. de Bréauté, não com som ferroso e embotado de uma faca passada pelo amolador, e menos como o grito do pequeno javali devastador de terras cultivadas, mas, a voz de um possível salvador. Menos potente que a Sra. de Souvré, menos profundamente atingido do que ela de imprestabilidade, muito menos à vontade com o príncipe do que o era a Sra. d'Arpajon, talvez alimentando ilusões quanto à minha situação no meio dos Guermantes, ou talvez a conhecendo melhor que eu. Tive entretanto, nos primeiros segundos, a dificuldade de captar sua atenção, pois, com as narinas dilatadas ele olhava para todos os lados, assestando curiosamente o seu movimento, como se se achasse em presença de quinhentas obras-primas. Mas, escutado o meu pedido, acolheu-o com satisfação, conduziu-me para o príncipe e me apresentou com ar guloso, cerimonioso e vulgar, como lhe passasse, recomendando-os, um prato de sequilhos. Tanto a acolhida do duque de Guermantes era, quando ele o queria, amável, cheia de camaradagem, cordial e familiar, quanto achei o do príncipe comedidor, solene, altivo. Mal me sorriu, pronunciou gravemente:

            "Senhor."

            Muitas vezes eu ouvira o duque zombar da arrogância do primo. Mas, desde as primeiras palavras que este me disse e que, por sua frieza e seriedade, faziam inteiro contraste com a linguagem de Basin, compreendi de imediato homem fundamentalmente desdenhoso era o duque, que nos falava desde a primeira visita "de igual para igual", e que, dos dois primos, o príncipe, era verdadeiramente simples. Descobri em sua reserva um sentimento não direi de igualdade, o que teria sido inconcebível nele, mas pelo menos da consideração que se pode ter para com um inferior, como acontece em todos os meios fortemente hierarquizados; no Palais por exemplo, numa faculdade, onde um procurador-geral ou um "deão", conscientes de seu alto cargo, escondem talvez muito mais simplicidade real e, quando os conhecemos melhor, mais bondade, simplicidade verdadeira, cordialidade, em sua altivez tradicional, que os outros mais modernos na afetação de uma camaradagem divertida.

            - Pretende seguir a carreira do senhor seu pai? - indagou ele com ar distante, porém interessado.

            Respondi sumariamente à sua pergunta, compreendendo que só a fizera por delicadeza, e me afastei para deixá-lo acolher os novos visitantes.

            Reparei que Swann, quis falar-lhe, mas naquele momento vi que o príncipe de Guermantes, em vez de receber no mesmo sítio o cumprimento do marido de Odette, arrastara-o logo, com a força de uma bomba aspiradora, para o fundo do jardim, para, segundo algumas pessoas afirmaram, "pô-lo porta afora".

            Estava de tal maneira distraído na sociedade que só dois dias depois é que soube, pelos jornais, que uma orquestra tcheca havia tocado a noite toda e que, de minuto em minuto, se haviam sucedido fogos de bengala; recuperei um pouco de atenção à idéia de ir ver o célebre repuxo de Hubert Robert. Numa clareira reservada para belas árvores, das quais diversas eram tão antigas quanto ele, a gente o avistava de longe, afastado, esbelto, imóvel, duro, só deixando ser agitada pela brisa a queda mais leve de seu penacho pálido e fremente. O século XVIII havia depurado a elegância de suas linhas, mas, fixando o estilo do repuxo, parecia ter-lhe estancado a vida; àquela distância, tinha-se antes a impressão de arte que a sensação de água. A própria neblina úmida que se acumulava permanentemente no seu topo conservava o caráter do seu tempo, como as nuvens que no céu se juntam ao redor dos palácios de Versalhes. De perto, no entanto, percebia a gente que, sempre respeitando o desenho previamente traçado como as pedras de um palácio antigo, eram águas sempre novas que, lançando-se e querendo obedecer às ordens antigas do arquiteto, só as cumpriam exatamente parecendo violá-las, pois somente os seus mil saltos esparsos poderiam dar, à distância, a impressão de um único jato. Este, na realidade, era tão freqüentes vezes interrompido quanto à dispersão da queda, ao passo que, de longe, me havia parecido inflexível, denso, de uma continuidade sem lacunas. Um pouco mais de perto, via-se que tal continuidade, toda linear na aparência, era assegurada a todos os pontos da ascensão do jato, por toda parte em que ele deveria quebrar-se, pela entrada em linha, pela retomada lateral de um jato paralelo que subia mais alto que o primeiro e era ele próprio, a uma altura maior, mas já fatigante para ele, ultrapassado por um terceiro. De perto, gotas sem força recaíam da coluna de água, cruzando na passagem com suas irmãs que subiam e, às vezes, esborrifadas num remoinho do ar perturbado por aquele esguicho sem trégua; flutuavam antes de mergulharem no tanque. Contrariavam com suas ações, com sua trajetória em sentido inverso, e esfumavam com seu vapor a retidão e a tensão daquele tecido, carregando acima de si nuvem oblonga feita de milhares de gotículas, mas aparentemente pintadas de castanho dourado e imutável, que subia, infringente, imóvel, impelida, rápida, para reunir-se às nuvens do céu. Infelizmente, um pé-de-vento estava para arremessá-la obliquamente à terra; às vezes, até um simples jato desobediente divergia e, se não se mantivesse a uma distância respeitada molharia até os ossos a turba imprudente e contemplativa.

            Um desses pequenos acidentes, que só aconteciam no momento e que a brisa refrescava, foi bastante desagradável. Fizeram crer à Sra. d'Arpajon que o duque de Guermantes que na verdade ainda não chegara estava com a Sra. de Surgis nas galerias de mármore róseo, a que tinha acesso pela dupla série de colunas, cavada no interior, que se erguia das calçadas do tanque. Pois bem, no momento em que a Sra. d'Arpajon ia meter-se por uma das colunas, uma forte rajada de brisa morna tomou repuxo e alagou tão inteiramente a bela dama que, caindo a água de seu decote para dentro do vestido, ficou ela tão encharcada como se lhe tivessem dado um banho. E logo, não longe dela, um grunhido compassado retumbou com força bastante para poder se fazer ouvir por todo um exército que, entretanto, periodicamente prolongado como se fosse dirigido não em conjunto, mas sucessivamente a cada parte das tropas; era o grão-duque Wladimir que ria com todas as forças ao ver a imersão da Sra. d'Arpajon, uma das coisas mais divertidas, gostava ele de dizer depois, a que havia assistido em toda a sua vida. Como algumas pessoas compassivas mostrassem ao moscovita que uma palavra de pêsames de sua parte seria talvez merecida e daria prazer àquela dama que, apesar dos quarenta anos bem puxados, e enquanto se enxugava com sua écharpe, sem pedir ajuda a ninguém, se livrava contudo da água que molhava maliciosamente a calçada da fonte, o grão-duque, aliás dotado de bom coração, julgou dever concordar; e logo que os últimos dobrados militares do riso se extinguiram, ouviu-se um novo ribombar ainda mais violento que o outro.

            - Bravo, minha velha! - gritou ele batendo palmas como no teatro.

            A Sra. d'Arpajon não se sensibilizou de que lhe elogiassem a habilidade em detrimento de sua juventude; como se alguém lhe dissesse, ensurdecido pelo barulho da água, que o trovejar de Monsenhor no entanto dominava:

            - Creio que Sua Alteza Imperial lhe disse algo.

            - Não, - respondeu ela - foi à Sra. de Souvré.

            Atravessei os jardins e subi a escadaria onde a ausência do príncipe, que desaparecera na companhia de Swann, engrossava ao redor do Sr. de Charlus a chusma de convidados, assim como, quando Luís XIV não se encontrava em Versalhes, havia mais pessoas com Monsieur, seu irmão. Fui detido na passagem pelo barão, enquanto atrás de mim duas damas e um rapaz se aproximavam dele para cumprimentá-lo.

            - É gentil vê-lo aqui - disse-me ele estendendo a mão. - Boa noite, senhora de La Tremoïlle, boa-noite, minha cara Herminie. -

            Mas sem dúvida, a lembrança daquilo que me dissera acerca de seu papel de chefe no palácio Guermantes dava-lhe o desejo de parecer sentir, em relação a quem o descontentara mas que não tinha podido impedir, uma satisfação à qual a sua impertinência de grão-senhor e sua euforia de histérico conferiram imediatamente uma forma excessiva de ironia:

            - É gentil - repetiu – mas, principalmente muito engraçado. -

            E pôs-se a gargalhar, parecendo ao mesmo tempo testemunhar a sua alegria e a impotência da palavra humana em expressá-la; entretanto, algumas pessoas, sabendo o quanto era, a um tempo, de difícil acesso e dado a "tiradas" insolentes, aproximavam-se curiosas e, com uma pressa quase indecente, por pouco não se punham a correr.

            - Vamos, não se aborreça - disse ele, tocando-me suavemente no ombro -, sabe perfeitamente que o estimo bastante. Boa-noite, Antioche, boa-noite, Louis-René. Já foi ver o repuxo? - perguntou-me num tom mais afirmativo que indagador. - Bem bonito, não é mesmo? É maravilhoso. Poderia naturalmente ser bem melhor ainda, se se suprimissem algumas coisas, e então não haveria nada semelhante na França. Mas tal como é, já está entre os melhores. Bréauté lhe dirá que erraram em colocar lampiões, para tentar fazer esquecer que foi ele quem teve esta idéia absurda. Mas, em suma, só conseguiu enfeia-lo muito pouco. É muito mais difícil desfigurar uma obra-prima do que criá-la. Aliás, já desconfiávamos vagamente que Bréauté fosse menos poderoso que Hubert Robert.

            Retomei a fila de visitantes que entravam no palácio.

            - Faz muito tempo que viu minha deliciosa prima Oriane? - perguntou a princesa, que havia pouco desertara sua poltrona na entrada, e com quem eu voltava para os salões.

            - Ela deve vir esta noite, vimo-nos à tarde - acrescentou a dona da casa. - Ela me prometeu. Aliás, creio que o senhor jantará com nós duas na casa da rainha da Itália, na embaixada, quinta-feira. Estarão presentes todas as Altezas possíveis, será muito intimidante.

            De modo algum podiam intimidar a princesa de Guermantes, cujos salões fervilhavam delas, e que dizia:

            - Meus Coburguinhos como se dissesse: - Meus cãezinhos.

            Assim, a Sra. de Guermantes disse:

            - Será muito intimidante por simples tolice, que, entre as pessoas mundanas, ainda supera a vaidade.

            Sobre sua própria genealogia, ela sabia ainda menos que um suplente da História. No que se referia às suas relações, timbrava em mostrar que conhecia os apelidos que lhes haviam dado. Tendo-me perguntado se eu estaria na semana seguinte em casa da marquesa de La Pommeliere, a qual seguidamente chamavam "la Pomme" (a Maçã), a princesa, obtendo de uma resposta negativa, calou por uns momentos. Depois, sem nenhum outro motivo que uma exibição intencional de erudição involuntária, de qualidade e de conformidade ao espírito geral, acrescentou:

            - É uma mulher muito agradável, a Pomme!

            Enquanto a princesa conversava comigo, faziam precisa entrada o duque e a duquesa de Guermantes. Mas não pude ir primeiro ao encontro deles, pois fui apanhado no caminho pela embaixatriz da Turquia a qual, apontando-me a dona da casa que eu acabava de deixar, segurando-me pelo braço:

            - Ah, que mulher deliciosa é a princesa; ser superior a todos nós! Parece-me que, se eu fosse homem - acrescentou ela num tom com um pouco de baixeza e de sensualidade orientais -, consagraria minha vida à essa criatura celestial. -

            Respondi que de fato ela parecia encantadora, mas que conhecia mais a sua prima, a duquesa.

            - Mas, não há relação nenhuma - disse a embaixatriz. - Oriane é uma encantadora mulher da sociedade que tira o seu espírito de Mémé e de Babal, ao que Marie-Gilbert é alguém.

            Não gosto muito que me digam assim sem rodeios o que devo pensar das pessoas que conheço. E não havia razão nenhuma para que a  embaixatriz da Turquia emitisse sobre o valor da duquesa de Guermantes: juízo mais correto que o meu. Por outro lado, o que também explicava minha irritação contra a embaixatriz é que as falhas de um simples conhecido, e até de um amigo, são para nós verdadeiros venenos, contra os quais felizmente somos "mitridatizados".

[Mitridatização ou mitridatismo, é a imunização relativa ou tolerância à ingestão de certas substâncias tóxicas ou venenosas, por meio de doses inicialmente pequenas, depois sucessivamente aumentadas de determinado veneno. O nome provém de Mitridates VI Eupátor, rei do Ponto (c. 130 - 63 a.C.). (Nota do tradutor)]

            Mas, sem recorrer ao mínimo aparato de comparação científica e falar de anafilaxia, digamos que, no seio de nossas relações amistosas ou puramente mundanas, existe uma hostilidade momentaneamente curada, porém recorrente por acessos. Habitualmente, sofre-se pouco com tais venenos, quando se trata de pessoas naturais: - Dizendo "Babai" e "Mémé", para designar pessoas que não conhecia, a embaixatriz da Turquia suspendia os efeitos do "mitridatismo" que ao contrário o faziam tolerável à mim. Irritava-me, o que era tanto mais injusto; visto que ela não falava assim para que acreditassem que era íntima de “Mémé", mas por causa de uma instrução muito superficial, que a fazia nomear esses nobres segundo o que julgava ser o costume do país. Fizera o seu curso em alguns meses e não se submetera à provas. Mas, refletindo nisso, achava um outro motivo para o meu desprazer de ficar junto da embaixatriz. Não fazia muito tempo que, na casa de "Oriane", essa mesma personalidade diplomática me havia dito, com ar sério e compenetrado, que a princesa de Guermantes era-lhe francamente antipática. Achei bom não deter-me nessa reviravolta: fora causada pelo convite para a festa daquela noite. A embaixatriz estava sendo perfeitamente sincera ao dizer que a princesa de Guermantes era uma criatura sublime. Sempre pensara desse modo. Mas, não tendo sido até então convidada para a casa da princesa, julgara dever atribuir a esse gênero de não-convite a forma de uma abstenção voluntária por princípios. Agora, que fora convidada e verossimilmente o seria daí em diante, sua simpatia podia exprimir-se livremente. Não há necessidade, para explicar três quartos das opiniões que se fazem sobre as pessoas, de ir até o despeito amoroso, à exclusão do poder político. O juízo permanece incerto: um convite recusado ou recebido o determina. Além disso, a embaixatriz da Turquia, como dizia a duquesa de Guermantes, que repassara comigo a inspeção dos salões, "fazia bem". Sobretudo, era muito útil. As verdadeiras estrelas da sociedade se cansam de comparecer a ela. Quem estiver curioso por avistá-las deve em geral emigrar para um outro hemisfério, onde elas estão mais ou menos sozinhas. Mas as mulheres semelhantes à embaixatriz sendo todas recentes na sociedade, não deixam de nela brilhar, por assim dizer, por toda parte ao mesmo tempo. São úteis para esse tipo de representações que se denominam sarau, festa mundana, e às quais antes se fariam arrastar, moribundas, do que faltariam. São as figurantes com as quais sempre se pode contar, ardorosas para nunca perder uma festa. Assim, os rapazes tolos, ignorando que se trata de falsas estrelas, vêem nelas as rainhas da elegância, ao passo que seria preciso uma aula para explicar-lhes em virtude de quais motivos a Sra. Standish, desconhecida deles e pintando almofadas, longe da sociedade, era pelo menos tão grande dama como a duquesa de Doudeauville.

            Na vida cotidiana, os olhos da duquesa de Guermantes eram distraídos e um tanto melancólicos; fazia brilhá-los apenas de uma chama espiritual cada vez que tinha de cumprimentar algum amigo, exatamente como se este fosse uma frase de espírito, uma tirada encantadora, um presente para delicados, cuja degustação pusesse uma expressão de finura e de alegria no rosto do conhecedor. Mas, no caso dos grandes saraus, como tivesse demasiados cumprimentos a fazer, achava que seria fatigante, depois de cada um deles, apagar a luz de cada vez. Tal como uma gulosa literatura, indo ao teatro para assistir a uma novidade no meio da cena, testemunha sua certeza de não passar uma noite aborrecida; enquanto entrega seus pertences à zeladora, os lábios programados para um sorriso sagaz, o olhar avivado para uma aprovação maliciosa; assim era que, desde a sua chegada, a duquesa acendia a luz para toda noite. E ao passo que ela entregava a sua capa noturna, de um magnífico vermelho de Tiepolo, a qual deixou ver uma verdadeira gargantilha a qual lhe tapava o pescoço, depois de ter lançado ao vestido um último e rápido olhar; minucioso e repleto de costureira, que é o de uma mulher da sociedade, Oriane assegurou-se quanto ao cintilar dos olhos não menos do que suas outras jóias. Debalde algumas "boas línguas", como o Sr. Jouville, se precipitaram para o duque a fim de impedi-lo de entrar:

            - Então o senhor ignora que o pobre Mamá está à morte? Acabam de lhe dar a extrema-unção.

            - Sei, sei - respondeu o Sr. de Guermantes, afastando os aborrecidos para poder entrar. - Oviático produziu um grande efeito - acrescentou, sorrindo de prazer à lembrança do baile à fantasia ao qual estava decidido a não faltar, depois do sarau do príncipe.

            - Não queríamos que soubessem que tínhamos voltado - disse-me a duquesa. Não importava que a princesa houvesse previamente desmentido essa afirmativa de contar-me que vira rapidamente a prima, que lhe prometera comparecer; e o duque, após um longo olhar com que prostrara a esposa durante cinco minutos:

            - Contei a Oriane as suas dúvidas. -

            Agora que ela via que tinham fundamento e que não precisava dar nenhum passo a respeito para tentar dissipá-las, declarava-as absurdas e gracejou longamente comigo.

            - Que idéia achar que não fora convidado! A gente é sempre convidado depois. Acha que não poderia fazê-lo ser convidado à casa da minha prima? -

            Devo dizer que ela, depois disso, fez seguidamente coisa bem mais difíceis por mim; não obstante, evitei tomar suas palavras no sentido de que eu fora muito reservado. Começava a conhecer o valor exato da linguagem falada ou muda da amabilidade aristocrática, amabilidade que se sente feliz em lançar um bálsamo sobre o sentimento de inferioridade daqueles com os quais se exerce, mas não a ponto de dissipá-lo, nesse caso não mais teria razão de ser. "Mas o senhor é nosso igual, senão melhor", pareciam dizer os Guermantes; e diziam-no da maneira mais gentil que se possa imaginar, para serem amados, admirados, mas não para serem acreditados; que a gente desvelasse o caráter fictício dessa amabilidade é o que eles denominavam ser bem-educado; considerar real a amabilidade era a má educação. Aliás, recebi pouco tempo depois uma lição que acabou por me informar, com a mais perfeita exatidão, a extensão e os limites de certas formas de amabilidade aristocrática. Era numa matinê dada pela duquesa de Montmorency para a rainha da Inglaterra; houve uma espécie de pequeno cortejo para ir ao buffet, e à frente caminhava a soberana, dando o braço ao duque de Guermantes. Cheguei nesse momento. Com sua mão livre, o duque me fez, a menos de quarenta metros de distância, mil acenos de chamada e de amizade e que pareciam querer dizer que podia aproximar-me sem receio, que não seria comido cru em vez dos sanduíches. Mas eu, que começava a me aperfeiçoar na linguagem das cortes, em vez de me aproximar sequer de um passo, nesses quarenta metros de distância, inclinei-me profundamente, mas sem sorrir, como o teria feito diante de alguém que mal conhecesse, e depois continuei meu caminho na direção oposta. Poderia ter escrito uma obra-prima, que os Guermantes me honrariam menos do que por essa saudação. Não só não passou despercebida aos olhos do duque, que naquele dia teve de responder a mais de quinhentas pessoas, mas também aos da duquesa, a qual, tendo encontrado minha mãe, contou-lhe o caso, evitando dizer-lhe que eu procedera mal, que deveria ter me aproximado; disse-lhe que seu marido ficara encantado com minha saudação, na qual era impossível fazer entrar mais coisas. Não cessaram de encontrar naquela saudação todas as qualidades, sem mencionar todavia a que parecera a mais preciosa, a saber, que fora discreta, e não deixaram igualmente de me fazer cumprimentos que eu compreendi serem ainda menos uma recompensa pelo passado do que uma indicação para o futuro, à maneira da que é delicadamente fornecida aos alunos pelo diretor de um estabelecimento de educação:

            - Não se esqueçam, meus caros meninos, que estes prêmios são menos para vocês que para seus pais, a fim de que eles os matriculem no próximo ano. -

            Assim é que a Sra. de Guermantes, quando alguém de um mundo diferente entrava no seu meio, elogiava diante dele as pessoas discretas "que a gente encontra quando vai procurá-las e que se fazem esquecer no resto do tempo", como se avisa de um modo indireto a um criado que cheira mal que os banhos são perfeitos para a saúde.

            Enquanto eu conversava com a Sra. de Guermantes, antes mesmo que ela tivesse deixado o vestíbulo, ouvi uma voz que, no futuro, devia discernir sem erro possível. Era, no caso particular, a do Sr. de Vaugoubert conversando com o Sr. de Charlus. Um clínico não precisa que o doente em observação erga a camisa, nem de ouvir a sua respiração, a voz é suficiente. Quantas vezes mais tarde fiquei impressionado, num salão, pela entonação ou o riso de determinado homem, que no entanto copiava exatamente a linguagem de sua profissão ou as maneiras do seu ambiente, afetando uma distinção severa ou uma familiaridade vulgar, mas cuja voz falsa bastava para assinalar:

            "é um Charlus" ao meu ouvido treinado como o diapasão de um afinador! Naquele momento, passou todo o pessoal embaixada, saudando o Sr. de Charlus. Se bem que minha descoberta do gênero de doença em questão datasse apenas daquele mes (quando avistara o Sr. de Charlus e Jupien), eu não teria tido necessidade de fazer perguntas nem de auscultar para emitir um diagnóstico.

            Sr. de Vaugoubert, conversando com o Sr. de Charlus, pareceu incerto: tudo, deveria saber do que se tratava, após as dúvidas da adolescência invertido julga-se o único de seu tipo no universo; só mais tarde outro exagero que a única exceção é o homem normal. Porém, ansioso e timorato, o Sr. de Vaugoubert não se entregava há muito tempo que para ele teria sido o prazer. A carreira diplomática tivera sobre ele efeito de uma ordenação religiosa. Combinada com a assiduidade à E. de Ciências Políticas, ela o votara desde os seus vinte anos à castidade cristã. Assim como cada sentido perde força e vivacidade, atrofiando quando não é posto para funcionar, o Sr. de Vaugoubert, da mesma forma que o homem civilizado já não seria capaz dos exercícios de força em acuidade do ouvido do homem das cavernas, tinha perdido a perspicácia especial que raramente se encontrava em falta no Sr. de Charlus; e, mesas oficiais, seja em Paris, seja no estrangeiro, o ministro pleni-potentário não chegava sequer a reconhecer aqueles que, sob o disfarce do uniforme, eram no fundo seus iguais. Alguns nomes pronunciados pelo Sr. de Charlus, indignado se os citassem por seus gostos, mas sempre se divertindo em fazer conhecer os dos outros, causaram no Sr. de Vaugoubert um espanto delicioso. Não que depois de tantos anos ele sonhasse em desfrutar de alguma oportunidade feliz. Porém, essas revelações rápidas, semelhantes àquelas que nas tragédias de Racine mostram a Atália e a Abrler que Jonas pertence à raça de Davi, que Ester, sentada na púrpura, tem pais judeus, mudando o aspecto da alegação de X... ou de determinado serviço do Ministério das Relações Exteriores, tornavam retrospectivamente esses palácios tão misteriosos como o templo de Jerusalém ou a sala do trono de Susa. Diante daquela embaixada, cujo pessoal jovem foi inteiro apertar a mão do Sr. de Charlus, o Sr. de Vaugoubert assumiu o ar maravilhado de Elisa ao exclamar, em Esther:

            Céus! Que numeroso enxame de inocentes beldades se oferta a meus olhos em multidão e sai de todos os lados! Que amável pudor em seus rostos se espelha!

            Depois, desejoso de ser mais "bem informado", lançou risonho ao Sr. de Charlus um olhar tolamente interrogativo e concupiscente:

            - Mas é claro! - disse o Sr. de Charlus, com o ar douto de um erudito falando a um ignaro. E logo o Sr. de Vaugoubert (o que muito irritou o Sr. de Charlus) não tirou mais os olhos daqueles jovens secretários, que o embaixador de X na França, velho reincidente, não escolhera ao acaso. O Sr. de Vaugoubert calava-se; eu via apenas os seus olhares. Mas, habituado desde a infância a atribuir, mesmo ao que é mudo, a linguagem dos clássicos, eu fazia com que os olhos do Sr. de Vaugoubert dissessem os versos com que Ester explica a Elisa que Mardoqueu, zeloso por sua religião, se empenhou em colocar a serviço da rainha somente moças que professassem o mesmo credo. Entretanto o seu amor pela nossa nação povoou este palácio de filhas de Sião, Jovens e tenras flores pela sorte agitadas, sob um céu estrangeiro, como eu, transplantadas. Em local isolado de testemunhas profanas, Ele (o excelente embaixador) empenha seu estudo e seus cuidados em formá-las. Por fim o Sr. de Vaugoubert falou sem ser pelo olhar.

            - Quem sabe - disse com melancolia se, no país em que vivo, não existe a mesma coisa?

            - É provável - respondeu o Sr. de Charlus -, a começar pelo rei Teodósio, conquanto eu não saiba nada de positivo a seu respeito. - Oh! Isso não! - Então não devia ser permitido que parecesse tanto. E é todo cheio de maneiras. É o gênero "mimoso", o tipo que eu mais detesto. Eu não teria coragem de me mostrar em sua companhia na rua. Além disso, o senhor deve muito bem conhecê-lo pelo que é; é conhecido como o lobo branco. - O senhor se engana completamente a seu respeito. Aliás, ele é encantador. No dia em que foi assinado o acordo com a França, o rei me beijou. Nunca fiquei tão emocionado. - Era a ocasião para o senhor lhe dizer o que desejava. - Oh, meu Deus, que horror! Se ele suspeitasse! Mas quanto a isso não tenho receio. - Palavras que ouvi, pois estava pouco afastado, e que fizeram com que recitasse mentalmente:

            “Até hoje o rei ignora quem sou, E este segredo mantém presa a minha língua.”

            Esse diálogo meio mudo, meio falado só durara poucos instantes e eu apenas dera alguns passos no salão com a duquesa de Guermantes quando uma pequena senhora morena, extremamente bonita, a deteve:

            - Desejava tanto vê-la! D'Annunzio a avistou de um camarote; escreveu à princesa de T*** uma carta em que disse que jamais vira algo tão belo. Ele daria toda a sua vida por dez minutos de conversação com a senhora. Em todo caso, mesmo que não possa ou não queira, a carta está em meu poder. Seria preciso marcar-me um encontro. Há certas coisas que não posso dizer aqui. Vejo que o senhor não me reconhece - acrescentou dirigindo-se a mim -; conheci-o na casa da princesa de Parma a qual eu nunca tinha ido. O imperador da Rússia gostaria que seu pai fosse enviado à Petersburgo. Se pudesse comparecer na terça-feira, justamente Isvolski estará lá, falaria com o senhor. Tenho um presente para lhe dar querida - acrescentou, voltando-se para a duquesa - e que não daria a nenhuma outra pessoa. Os manuscritos de três peças de Ibsen, que ele mandou pelo seu velho enfermeiro. Guardarei um e lhe darei os outros.

            O duque de Guermantes não estava encantado com tais ofertas. Como não tinha certeza se Ibsen ou d'Annunzio eram vivos ou mortos; via os escritores e os dramaturgos indo visitar sua mulher e pondo-a em suas obras. As pessoas da sociedade facilmente imaginam os livros como sendo uma espécie de cubo, do qual uma das faces é retirada, de modo que o autor se apressa em "fazer entrar" lá dentro as pessoas que encontra. É claro que se trata de um procedimento desleal, e não passam de gente de pouca importância. Certo, não seria aborrecido vê-los "de passagem", graças a eles, se lemos um livro ou um artigo, conhecemos "o reverso cartas", podemos "levantar as máscaras". Apesar de tudo, o mais prudente é limitarmo-nos aos autores mortos. O Sr. de Guermantes apenas achava "perfeitamente conveniente" o senhor que fazia os necrológicos no Le Gaur; este, pelo menos, contentava-se em citar o nome do Sr. de Guermantes no alto das pessoas relacionadas, "notadamente" nos enterros em que assinara o livro de presença. Quando preferia que seu nome não figurasse, em vez de assinar o duque enviava uma carta de pêsames à família do falecido, testemunhando-lhe os seus sentimentos. Que essa família pudesse publicar no jornal:

            "Entre as cartas recebidas, citemos a do duque de Guermantes, etc.", aquilo não era culpa do noticiarista, e sim do filho, irmão ou pai da morta, que o duque qualificava de arrivistas, e com quem daí em diante, estava decidido a não ter mais relações (o que denominavas, não conhecendo bem o sentido das locuções, "ter contas a ajustar"). Por certo que os nomes de Ibsen e d'Annunzio, e sua sobrevivência; fizeram franzir as sobrancelhas do duque, que ainda não estava muito longe de nós para não ter ouvido as amabilidades diversas da Sra. Timoléon d'Amoncourt. Era uma mulher encantadora, de um espírito, como sua beleza, tão deslumbrante, que só um dos dois teria conseguido agradar. Mas, nascida fora do meio em que agora vivia, só tendo aspirado a princípio a um salão literário, amiga sucessivamente de modo algum amante, pois era de costumes muito puros e exclusivamente de cada grande escritor que lhe dava todos os seus manuscritos e escrevia livros para ela; e, tendo-a o acaso introduzido no faubourg Saint-Germain, esses privilégios literários lhe valeram naquele meio. E agora desfrutava de uma posição que a eximia de outras graças além da sua presença espalhava. Mas, habituada outrora à esperteza, às manobras, aos serviços, perseverava neles, embora não fossem mais necessários. Tinha sempre um segredo de Estado para revelar, um potentado a nos dar a conhecer, a aquarela de um mestre a nos oferecer. Em todas essas atrações inúteis havia um pouco de mentira, mas eles faziam de sua vida uma comédia de uma complicação cintilante e era exato que ela conseguia nomear prefeitos e generais. Sempre caminhando a meu lado, a duquesa de Guermantes deixava a luminosidade azulada dos olhos flutuar à sua frente, porém no vago, a fim de evitar as pessoas com quem não queria entrar em contato e das quais por vezes adivinhava, de longe, o obstáculo ameaçador. Avançávamos entre uma dupla sebe de convidados, que, sabendo que jamais conheceriam "Oriane", desejavam ao menos, como curiosidade, mostrá-la à própria esposa:

            - Ursule, depressa, depressa, vem ver a senhora de Guermantes, que está conversando com esse rapaz. -

            E sentia-se que não faltava muito para que trepassem nas cadeiras para ver melhor, como na parada de 14 de julho ou no Grand Prix. Não é que a duquesa de Guermantes tivesse um salão mais aristocrático do que sua prima. O da primeira era freqüentado por pessoas que a segunda jamais quis convidar, principalmente por causa de seu marido. Jamais teria recebido a Sra. Alphonse de Rothschild, que, amiga íntima da Sra. de La Trémoïlle e da Sra. de Sagan, como a própria Oriane, freqüentava muito a casa desta última. O mesmo ocorria também com o barão Hirsch, que o príncipe de Gales levara a sua casa, mas não à casa da princesa, a quem teria desgostado com isso, e igualmente com algumas grandes notoriedades bonapartistas ou até republicanas, que interessavam à duquesa, mas que o príncipe, realista convicto, não teria desejado receber. Visto que seu anti-semitismo era também de princípios, não se dobrava diante de nenhuma elegância, por mais acreditada que fosse, e se recebia Swann, de quem era o amigo de sempre, sendo aliás o único dos Guermantes que o chamava de Swann e não de Charles, é que, sabendo que a avó de Swann, protestante casada com um judeu, tinha sido amante do duque de Berri, tentava de vez em quando acreditar na lenda que fazia o pai de Swann um filho natural do príncipe. Nessa hipótese, que todavia falsa, Swann, filho de um católico, o qual por sua vez era filho de Bourbon e de uma católica, nada tinha que não fosse cristão.

            - Como, você não conhece estes esplendores? - perguntou a duquesa, ao falar-me do lugar em que nos achávamos. Mas, depois de celebrado o "palácio" da prima, apressou-se a acrescentar que preferia mil vezes "seu humilde casebre". - Aqui, é admirável para uma visita. Mas morreria de desgosto se me fosse necessário ficar dormindo em quartos onde aconteceram tantos fatos históricos. Isso me causaria o efeito de ter ficado após o fechamento, de ter sido esquecida, no castelo de Bloiag Fontainebleau ou até no Louvre, e de ter, como único recurso contra a Alteza, murmurar para mim mesma que estou no quarto em que Monalde foi assassinado. Como camomila, é insuficiente. Veja, ali está a Sra. Saint-Euverte. Jantamos há pouco em sua casa. Como ela dá amanhã a grande recepção anual, pensava que ela teria ido dormir. Mas ela não parece perder uma festa. Se esta tivesse lugar no campo, ela viria numa carroça, mas não deixaria de comparecer.

            Na realidade, a Sra. de Saint-Euverte viera naquela noite, menos pelo prazer de não faltar a uma festa em casa dos outros do que para assegurar o sucesso da sua, recrutar os últimos aderentes e, de qualquer maneira, passar in extremis a revista das tropas que, no dia seguinte, deixariam evoluir brilhantemente no seu garden-party. Pois já não era de poucos anos que os convidados das festas Saint-Euverte não eram mais os mesmos de antigamente. As notabilidades femininas do meio Guermantes, tão disseminadas então, cumuladas de gentileza pela dona da casa, tinham poucos levado suas amigas. Ao mesmo tempo, por um trabalho paralelamente progressivo, mas em sentido inverso, a Sra. de Saint-Euverte reduzira, ano após ano, o número das pessoas desconhecidas do mundo elegante. Deixava-se de ver uma, depois outra. Durante algum tempo funcionou o sistema de "fornadas", que permitia, graças às festas sobre as quais se fazia social, convidar os renegados para que se divertissem entre eles, o que pensava de convidá-los com as pessoas do primeiro nível. De que podiam queixar-se? Não tinham (panem et circenses) bolinhos e um belo programa musical? Assim, de alguma forma em simetria com as duas duquesas exiladas, que outrora, quando estreara o salão Saint-Euverte, tinham sustentado, como duas cariátides, a abóbada oscilante, nos últimos anos mescladas à alta sociedade, não se distinguiram mais que duas pessoas heterogêneas: a velha Sra. de Cambremer e a mulher de um arquiteto linda voz, à qual era-se freqüentemente obrigado a pedir que cantasse. Não conhecendo mais ninguém na casa da Sra. de Saint-Euverte, chorando suas companheiras perdidas, sentindo que incomodavam, pareciam estar quase morrendo de frio como duas andorinhas que não emigraram a tempo. Assim, no ano seguinte não foram convidadas; a Sra. de Franquetot procurou batalhar em favor da prima que tanto apreciava a música. Mas, como não pôde obter para ela uma resposta mais explícita que estas palavras:

            "Mas sempre se pode entrar para ouvir a música que lhe agrade, não há nenhum crime nisto!", a Sra. de Cambremer não julgou o convite muito insistente, e desistiu.

            Diante dessa transmutação, operada pela Sra. de Saint-Euverte, de um salão de leprosos em um salão de grandes damas (a última forma, de aparência ultra-chique, que ele havia assumido), podia causar espanto que a pessoa que daria no dia seguinte a festa mais brilhante da temporada precisasse, na véspera, dirigir um supremo apelo às suas tropas. Mas é que a preeminência do salão Saint-Euverte só existia para aqueles cuja vida mundana consiste apenas em ler a notícia das matinês e dos saraus, no Le Gaulois ou no Fígaro, sem jamais terem ido a nenhum deles. A esses mundanos, que só vêem a sociedade no jornal, a enumeração das embaixatrizes da Inglaterra, da Áustria, etc., das duquesas d'Uzes, de La Trémoille, etc., etc. bastava para que imaginassem de bom grado o salão Saint-Euverte como o primeiro de Paris, quando de fato era dos últimos. Não que as notícias fossem mentirosas. A maioria das personalidades citadas tinham estado presentes. Mas cada uma comparecera à custa de súplicas, finezas, serviços prestados, e tendo o sentimento de honrar infinitamente a Sra. de Saint-Euverte. Tais salões, mais evitados que procurados, e aonde só se vai de encomenda, por assim dizer, só iludem as leitoras da seção de "Mundanismo". Passam por alto uma festa verdadeiramente elegante, em que uma dona de casa, podendo ter todas as duquesas, que ardem por estar "entre os eleitos", só convida a duas ou três, e não manda pôr o nome de seus convidados no jornal. Assim essas mulheres, desconhecendo ou desdenhando o poder que assumiu a publicidade atualmente, são elegantes para a rainha da Espanha, mas desconhecidas da multidão, porque a primeira sabe, e a segunda ignora quem elas são.

            A Sra. de Saint-Euverte não era dessas mulheres e, como boa apanhadora, vinha colher para o dia seguinte tudo quanto era convidado. O Sr. de Charlus não o era, havia se recusado sempre a ir à casa dela. Porém estava rompido com tanta gente que a Sra. de Saint-Euverte podia atribuir aquilo ao temperamento do barão.

            Decerto, se ali houvesse apenas Oriane, a Sra. de Saint-Euverte não teria necessidade de incomodar-se, pois o convite fora feito de viva voz e, além disso, aceito com essa enganosa e encantadora boa vontade, no ciclo da qual triunfam os acadêmicos de cuja casa o candidato sai em nado e sem duvidar que possa contar com seu voto. Mas não havia somente ela. O príncipe de Agrigento compareceria? E a Sra. de Durfort? Aliás para vigiar sua colheita, a Sra. de Saint-Euverte julgara mais útil e conveniente transportar-se em pessoa; insinuante com uns, imperativa com outros, apresentava para todos, com palavras encobertas, divertimentos inimagináveis não poderiam ver de novo, e a cada um prometia que haveria de achar em sua casa a pessoa a quem desejava, ou o personagem que precisava encontrar. E essa espécie de função de que estava investida uma vez por ano; assim como certas magistraturas da antigüidade; de pessoa que no dia seguinte dará o mais considerável garden-party da temporada conferia-lhe momentânea autoridade. Suas listas estavam feitas e terminadas, de modo que, percorrendo os salões da princesa com lentidão para derramar sucessivamente em cada ouvido:

            - Não se esqueça de mim amanhã -, ela desfrutava da glória efêmera de desviar os olhos, continuando sorrir; se percebia alguma feiosa a evitar ou algum fidalgote que uma camaradagem escolar fizera ser admitido em casa de "Gilbert", e cuja presença em seu garden-party não somaria nada. Preferia não lhe falar para por a dizer em seguida:

            - Fiz meus convites de modo verbal e infelizmente não o encontrei. -

            Assim ela, simples Saint-Euverte, fazia com seus esquadrinhadores uma triagem na composição do sarau da princesa. E procedendo dessa forma, julgava-se uma verdadeira duquesa de Guermantes. É preciso dizer que esta última tampouco dispunha, como se poderia acreditar, da liberdade de seus sorrisos e cumprimentos. Por um lado sem dúvida, quando os recusava, era voluntariamente:

            - Mas ela me aborrece - dizia. - Será que vou ser obrigada a lhe falar do seu sarau que durara uma hora inteira?

            Viu-se passar uma duquesa bem morena, cuja feiúra e estupidez assim como certos desvios de conduta, tinham exilado não da sociedade, mas de algumas intimidades elegantes.

            - Ah! - sussurrou a Sra. Guermantes, com o golpe de vista preciso e desabusado do conhecedor a quem se mostra uma jóia falsa - recebe-se isto, aqui?! -

            Pelo simples aspecto da dama meio estragada, e cujo rosto estava coberto de sinais de pêlos negros, a Sra. de Guermantes avaliava a medíocre cotação daquele sarau. Fora educada com aquela dama, mas cessara todas as relações com ela; só respondeu ao seu cumprimento com uma inclinação de cabeça bastante seca.

            - Não compreendo - disse-me, como para se desculpar que Marie-Gilbert nos convide com toda essa lama. Pode-se dizer que aqui há de todas as paróquias. Era muito mais bem organizado na casa Mélanie Pourtales. Podia ter o Santo Sínodo e o Templo do Oratório, se bem lhe aprouvisse, mas pelo menos não nos mandavam convidar nesses dias. -

            Mas, em grande parte, era por timidez, por medo de ter uma cena com o marido, que não queria que ela convidasse artistas, etc. ("Marie-Gilbert" protegia muitos deles, e era preciso tomar cuidado para não ser abordada por uma ilustre cantora alemã), e também por um certo receio quanto ao nacionalismo, que a duquesa, possuidora como o Sr. de Charlus do espírito dos Guermantes, desprezava do ponto de vista mundano (pois agora, para glorificar o Estado-Maior, faziam passar um general plebeu adiante de certos duques), mas ao qual, entretanto, como sabia que era considerada mal pensante, fazia amplas concessões, a ponto de recear ter de estender a mão a Swann nesse ambiente anti-semita. Sob este aspecto, logo se sentiu tranqüilizada, pois soube que o príncipe não deixara Swann entrar e tivera com ele "uma espécie de altercação". Não se animava a ter de conversar em público com o "pobre Charles", a quem preferia estimar na intimidade.

            - E agora aquela outra ali? - exclamou a Sra. de Guermantes ao ver uma pequena dama de ar um tanto estranho, num vestido negro de tal modo simples que se poderia dizer tratar-se de uma desgraçada, lhe fazer, bem como o seu marido, um grande cumprimento. Não a reconheceu e, tendo dessas insolências, empertigou-se como que ofendida e olhou sem responder: - Quem é essa pessoa, Basin? - indagou com ar de espanto, ao passo que o Sr. de Guermantes, para desculpar a descortesia da mulher, cumprimentava a dama e apertava a mão do marido.

            - Mas é a Sra. de Chaussepierre, você foi muito descortês. Não sei o que Chaussepierre. O sobrinho da velha Chanlivault.

            - Não conheço nada disso. Quem é a mulher, por que está me cumprimentando?

            - Ora, você conhece muito bem, é a filha da Sra. de Charleval, Henriette Montmorency.

            - Ah, mas conheci muito bem a sua mãe, ela era encantadora, muito espirituosa. Por que se casou com essas pessoas que eu não conheço? Você disse que ela se chama Sra. de Chaussepierre? - disse Oriane, escondendo esta última palavra com ar interrogativo e como se receasse enganar-se.

            O duque lançou-lhe um olhar duro.

            - Chamar-se Chaussepierre não é tão ridículo como você parece imaginar! O velho Chaussepierre era irmão da Charleval, de quem já falei, da Sra. de Sennecour e da viscondessa du Merlerault. São pessoas de elite.

            - Ah, chega! - exclamou a duquesa, que, como domadora, não queria dar nunca a impressão de que se intimidava com os olhares devoradores da fera. - Basin, você faz a minha alegria. Não sei aonde foi descobrir esses nomes, mas dou-lhe todos os meus cumprimentos. Se eu ignorava Chaussepierre, li Balzac, você não é o único, e li até Labiche. Aprecio Chanlivault, não odeio Charleval, mas confesso que du Merlerault é a obra-prima. Além disso, confessemos que Chaussepierre também não está! Você colecionou tudo isso, não é possível! O senhor que deseja escrever um livro - disse-me ela deveria conservar Charleval e du Merlerault; - não encontrará nada melhor.

            - Ele vai é simplesmente arranjar um processo e irá para a cadeia; você lhe dá muitos maus conselhos, Oriane. - Espero que ele tenha à sua disposição pessoas mais jovens, se tem vontade de pedir maus conselhos, e sobretudo de segui-los. Mas se não tenciona fazer coleção pior que um livro! -

            Bem longe de nós, uma altiva e maravilhosa moça destacava suavemente num vestido branco, todo diamantes e tule. A Sra. de Guermantes a observou enquanto ela falava diante de todo um grupo fascinado pela sua beleza.

            - A sua irmã por toda parte é a mais bonita e está encantadora esta noite - disse ela, enquanto pegava uma cadeira, ao príncipe de Chimay que passava. O coronel de Froberville (seu tio era  o general do mesmo nome) veio sentar-se ao nosso lado, assim como o Sr. de Bréauté, ao passo que o Sr. de Vaugoubert, requebrando-se (por um excesso de polidez que conservava mesmo quando jogava tênis, onde à força de pedir licença às pessoas notáveis, antes de rebater a bola, fazia inevitavelmente com que o seu lado perdesse a partida), voltava para junto do Sr. de Charlus (até então quase embrulhado na saia imensa da condessa Molé - que ele fazia profissão de admirar entre todas as mulheres), e por acaso no momento em que vários membros de uma nova missão diplomática em Paris cumprimentavam o barão. À vista de um jovem secretário de ar particularmente inteligente, o Sr. de Vaugoubert fixou no Sr. de Charlus um sorriso onde visivelmente desabrochava uma só pergunta. De bom grado, talvez, Sr. de Charlus comprometeria alguém; mas sentir-se ele próprio comprometido por esse sorriso que partia de outro e que só podia ter um sentido; o exasperou.

            - Não sei absolutamente nada; peço-lhe que guarde sua curiosidade para si mesmo, pois ela me deixa mais que frio. Além disso, neste caso particular, o senhor comete um engano lamentável. Creio que este jovem é absolutamente o contrário. -

            Aqui, o Sr. de Charlus, irritado por ter sido denunciado por um tolo, não dizia a verdade. O secretário, se o barão tivesse dito a verdade, teria feito exceção naquela embaixada. De fato, ela era composta de personalidades bem diferentes, várias extremamente medíocres, de modo que, se buscassem o motivo pelo qual tinham sido escolhidas, só poderiam descobrir a inversão. E, pondo à testa dessa pequena Sodoma diplomática um embaixador que, ao contrário, apreciava as mulheres com um exagero cômico de galã de revista e que manobrava em regra o seu batalhão de travestis, pareciam ter obedecido à lei dos contrastes. Apesar do que via, não acreditava na inversão. Disto deu provas imediatas, casando sua irmã com um encarregado de negócios a quem julgava, erroneamente, um conquistador. Desde então, tornou-se um tanto incômodo e foi em breve substituído por uma Excelência nova que assegurou a homogeneidade do conjunto. Outras embaixadas procuraram rivalizar com esta, mas não puderam disputar-lhe o prêmio (como no concurso geral, onde um certo liceu o obtém sempre), e foi necessário que se passassem mais de dez anos antes que, tendo-se introduzido adidos heterogêneos naquele todo tão perfeito, uma outra pudesse enfim arrebatar-lhe a funesta palma e andar na frente.

            Tranqüilizada quanto ao receio de ter de conversar com Swann, a Sra. de Guermantes sentia apenas curiosidade sobre o assunto da conversa que ele tivera com o dono da casa.

            - Sabe qual foi o assunto? - indagou o duque ao Sr. de Bréauté.

            - Ouvi dizer - respondeu este que era a respeito de um pequeno ato que o escritor Bergotte fizera representar na casa deles. Aliás, era arrebatador. Mas parece que o ator se caracterizara de Gilbert, a quem o Sr. Bergotte quisera de fato retratar.

            - Vejam só, teria me divertido muito ao ver Gilbert ser representado - disse a duquesa sorrindo sonhadoramente.

            - Foi sobre essa pequena representação - continuou o Sr. de Bréauté, avançando sua mandíbula de roedor que Gilbert pediu explicações a Swann, que se contentou em responder, o que todo mundo achou muito espirituoso:

            "- Mas de jeito nenhum, não se assemelha em nada com o senhor; o senhor é muito mais ridículo!"

            - Aliás, parece - prosseguiu o Sr. de Bréauté que aquela pecinha era deliciosa. A Sra. Molé estava presente e se divertiu bastante.

            - Como? A Sra. Molé vai lá? - perguntou a duquesa espantada.

            - Ah, certamente foi Mémé quem arrumou isso!

            - É o que sempre acaba acontecendo com esses locais. Todo mundo, um belo dia, começa a ir lá e eu, que me excluo voluntariamente por princípio, fico sozinha a me aborrecer no meu canto. -

            Desde a narrativa que acabava de lhe fazer o Sr. de Bréauté, a duquesa de Guermantes (se não sobre o salão Swann, ao menos sobre a hipótese de encontrar-se com Swann dentro de um instante) já havia adotado, como se vê, um novo ponto de vista.

            - A explicação que o senhor nos dá - disse ao Sr. de Bréauté o coronel de Froberville - é totalmente forjada. Tenho meus motivos para dizê-lo. O príncipe, pura e simplesmente, fez um escândalo diante de Swann, dando-lhe a entender, como diziam nossos pais, que não mais se mostrasse em sua casa, considerando as opiniões que defende. E, no meu parecer, o tio Gilbert teve mil vezes razão, não só de fazer aquela cena, mas deveria ter rompido há mais de seis meses com um dreyfusista confesso.

            O pobre Sr. de Vaugoubert, transformado desta vez de péssimo jogador de tênis numa verdadeira bola de tênis que arremessamos descuidados, viu-se projetado na direção da duquesa de Guermantes, a quem, deu suas homenagens. Foi bastante mal recebido, pois Oriane convencida de que todos os diplomatas ou políticos de seu convívio eram uns palermas.

            O Sr. de Froberville forçosamente se beneficiara com a situação favorável que, desde pouco tempo, se formara a respeito dos militares da sociedade. Infelizmente, se a mulher com quem se casara era parenta legítima dos Guermantes, era uma parenta extremamente pobre, e ele próprio havia perdido a sua fortuna, eles quase não tinham relações; e eram dessas pessoas que são deixadas de lado a não ser nos menos importantes, quando lhes ocorria perderem ou casar um parente. Então faziam verdadeiramente parte da comunhão da alta sociedade, como católicos que só o são de nome e se aproximam da santa mesa apenas uma vez por ano. Sua situação material teria sido mesmo desgraçada se a Sra. de Saint-Euverte, fiel à afeição que dedicara ao falecido general Froberville, não ajudasse o casal de todas as maneiras, fornecendo distrações às duas meninas. Mas o coronel, que passava por rapaz, não era uma alma agradecida. Tinha inveja dos esplendores da benfeitora que não deixava de elogiá-los sem cessar e sem medidas; no garden-party anual era para ele, sua mulher e suas filhas um prazer maravilhoso a que não faltariam por todo o ouro do mundo, mas um prazer envenenado pelo pensamento das alegrias de orgulho que dele tirava a Sra. de Saint-Euverte. O anúncio desse garden-party nos jornais, que a seguir, dei uma descrição detalhada, acrescentavam de modo maquiavélico:

            "Voltaremos a essa bela festa", os detalhes complementares sobre as toaletes, dados durante vários dias seguidos, tudo isto fazia tão mal aos Frobervilles, que eles, bastante privados de prazeres e sabendo que podiam contar com os daquela festa, chegavam, todos os anos, a desejar que o mau tempo lhe prejudicasse o êxito, consultavam o barômetro e antegozavam, deliciados, os primórdios de uma tempestade que pudesse fazer gorar a festa.

            - Não discutirei política com você, Froberville - disse o Sr. de Guermantes -; mas, no que tange a Swann, posso dizer com franqueza que sua conduta a nosso respeito foi inqualificável. Apadrinhado na sociedade antigamente por nós, e pelo duque de Chartres, dizem-me que é abertamente dreyfusista. Nunca teria acreditado nisso da parte dele, ele que é um fino gourmet, um espírito positivo, um colecionador, apreciador de livros antigos, membro do Jockey, um homem rodeado da consideração geral, um conhecedor de boas firmas e que nos enviava o melhor vinho do porto que se pode beber, um diletante, um pai de família. Ah, fui bem enganado. Não falo de mim; é voz corrente que sou uma velha besta, opinião que não conta, uma espécie de pobre-diabo, mas ao menos por Oriane ele não deveria ter feito isso, devia ter desaprovado abertamente os judeus e os sectários do condenado.

            - Sim, depois da amizade que sempre lhe testemunhou a minha mulher - prosseguiu o duque, que evidentemente considerava que condenar Dreyfus por alta traição, fosse qual fosse a opinião que se tivesse intimamente quanto à sua culpabilidade, constituía uma espécie de agradecimento pelo modo como se fora recebido no faubourg Saint-Germain ele deveria ter retirado sua solidariedade. Pois, perguntem a Oriane, ela sentia verdadeira amizade por ele. -

            A duquesa, pensando que um tom ingênuo e calmo daria um valor mais sincero e dramático às suas palavras, disse com uma voz de colegial, como se deixasse simplesmente sair a verdade de sua boca e apenas dando aos olhos uma expressão um tanto melancólica:

            - Mas é verdade, não tenho motivo algum para ocultar que sentia um afeto sincero por Charles!

            - Vejam, não a obriguei a falar. E, depois disso, ele leva a ingratidão ao ponto de ser dreyfusista!

            - A propósito de dreyfusistas - disse eu -, parece que o príncipe Von o é.

            - Ah, o senhor faz bem em me falar dele! - exclamou o Sr. de Guermantes -; já ia esquecendo que ele me pediu para vir jantar segunda-feira. Mas seja ele dreyfusista ou não, pouco me importa, visto que é estrangeiro. É-me perfeitamente indiferente. No caso de um francês, a coisa muda de figura. É verdade que Swann é judeu. Mas até o dia de hoje desculpe-me Froberville eu tinha tido a fraqueza de crer que um judeu pudesse ser francês, quero dizer, um judeu honrado, homem da alta sociedade. Ora, Swann era exatamente isto, em toda a extensão da palavra. Pois bem, ele me obriga a reconhecer que me enganei, visto que toma o partido de Dreyfus (que, culpado ou não, de modo algum faz parte do seu meio, e a quem jamais teria encontrado) contra uma sociedade que o havia adotado, que o tratara como a um dos seus. Não há o que negar, nós todos éramos fiadores de Swann, eu teria jurado pelo seu patriotismo como pelo meu. Ah, ele nos recompensa muito mal. Confesso que nunca esperaria isso de sua parte. Julgava-o melhor. Ele tinha espírito (em seu gênero, bem entendido). Bem sei que já cometera a insanidade de seu casamento vergonhoso. Olhem, sabem a que pessoa o casamento de Swann fez muito mal? A minha mulher. Oriane muitas vezes tem o que eu chamaria afetação de insensibilidade. Mas, no fundo, ela sente com uma intensidade extraordinária.

            A Sra. de Guermantes, encantada com essa análise do seu caráter, escutava-o com ar modesto, mas não dizia uma só palavra, por escrúpulo de aquiescer com o elogio, sobretudo com receio de interrompê-lo. O Sr. de Guermantes poderia falar uma hora a esse respeito que ela teria se mexido ainda menos do que se lhe tocassem música.

            - Pois bem! Lembro-me quando ela soube do casamento de Swann, sentiu-se magoada; achou, aquilo era malfeito da parte de alguém a quem tínhamos testemunhado amizade. Ela gostava muito de Swann; ficou muito desgostosa. Não é mesmo, Oriane? -

            A Sra. de Guermantes julgou dever responder a uma apelação tão direta, sobre um assunto que lhe permitiria, sem que desobedecesse, confirmar os louvores que sentia estar acabados. Num tom simples, e com um ar tanto mais estudado quanto desejaria parecer ela disse com uma doçura reservada:

            - É verdade, Basin não se engana. -

            - E, no entanto, ainda não era a mesma coisa. Que querem, é o amor, embora, na minha opinião, deva permanecer dentro de certos limites. Eu ainda poderia desculpar um rapaz, um fedelho que se deixa abalar por utopias. Porém Swann, um homem inteligente, de uma delicadeza comprovada, um fino conhecedor de quadros, um familiar do duque de Chartres, do próprio Gilbert! -

            O tom que o Sr. de Guermantes empregou era aliás perfeitamente simpático, sem sombra da vulgaridade que muitas vezes demonstrava. Falava com uma tristeza levemente indignada, porém tudo nele respirava aquela doce gravidade que faz o encanto untuoso de certas personagens de Rembrandt, por exemplo o burgo-mestre. Sentia-se que a questão da imoralidade da conduta de Swann no Caso Dreyfus nem mesmo se apresentava ao duque, de tão fora de dúvida que estava; sentia-se nele a aflição de um pai que vê um de seus filhos, pecar cuja educação fez os maiores sacrifícios, arruinar voluntariamente a magnífica situação que lhe proporcionara e desonrar um nome respeitado com desatinos que os princípios ou preconceitos da família não podem admitir. É verdade que o Sr. de Guermantes não havia manifestado outrora um espanto de tal modo profundo e doloroso ao saber que Saint-Loup era dreyfusista. Mas, primeiro, considerava o sobrinho um rapaz no mau caminho e de quem nada poderia espantar enquanto não se emendasse; ao pai que Swann era o que o Sr. de Guermantes chamava "um homem ponderado, uma pessoa que desfrutava de uma posição de primeira ordem". Depois principalmente, passara-se um período bastante longo, durante o qual do ponto de vista histórico, os acontecimentos pareceram em parte ajudar a tese dreyfusista, a oposição antidreyfusista havia redobrado de violência e, de puramente política a princípio, tornara-se social. Era agora questão de militarismo, de patriotismo, e as ondas de cólera erguidas à sociedade, tinham tido tempo de adquirir aquela força que jamais têm, começo de uma tempestade.

            - Vejam - continuou o Sr. de Guermantes - mesmo do ponto de vista de seus caros judeus, já que faz questão aberta de apoiá-los, Swann cometeu um disparate de alcance incalculável. Achava que todos eles estão secretamente unidos e, de alguma forma, são obrigados a prestar auxílio a alguém de sua raça, mesmo se não o conhecem. É um perigo público. Evidentemente, temos sido indulgentes demais, e o deslize de Swann terá tanto mais repercussão porque ele era estimado, e até recebido, sendo de certo modo quase que o único judeu que conhecíamos. Poderá dizer-se: Ab uno disce omnes. ["Do latim:. "Por um só julga a todos." Palavras da Eneida, de Virgílio. (N. do T)] (A satisfação de ter descoberto na memória, no momento adequado, uma citação tão oportuna bastou para iluminar com um sorriso orgulhoso a melancolia do grão-senhor traído.)

            Sentia eu grande vontade de saber o que se passara exatamente entre Swann e o príncipe, e de ver o primeiro, caso ainda não houvesse deixado a festa.

            - Eu lhe direi - falou-me a duquesa, a quem eu externara este meu desejo - que, quanto a mim, não faço muita questão de vê-lo, pois parece, segundo o que me disseram há pouco na casa da Sra. de Saint-Euverte, que ele desejaria, antes de morrer, que eu conhecesse a sua mulher e sua filha. Meu Deus, tenho uma pena infinita de que esteja doente, mas primeiro espero que não seja tão grave assim. Depois, afinal isso não é um motivo, porque de fato seria fácil demais. Bastava que um escritor sem talento dissesse: "Vote a meu favor na Academia, porque minha mulher vai morrer e eu quero dar-lhe esta última alegria." Não haveria mais salões se a gente fosse obrigada a conhecer todos os agonizantes. Meu cocheiro poderia alegar: "Minha filha está muito mal, faça com que eu seja recebido na casa da princesa de Parma." Adoro Charles e me dá

muita pena fazer-lhe uma recusa. Assim, é por isso que prefiro evitar que ele me peça. Espero de todo o meu coração que ele não esteja para morrer, como afirma, mas, se isso de fato se verificar, não seria para mim o momento oportuno de conhecer essas duas criaturas que me privaram do mais agradável de meus amigos durante quinze anos, e que ele me deixaria por nada, uma vez que eu nem sequer poderia aproveitar-me disso para vê-lo, pois estaria morto!

            Mas o Sr. de Bréauté não cessara de ruminar o desmentido que lhe fizera o coronel de Froberville.

            - Não duvido da exatidão de seu relato, meu caro amigo - disse ele -, mas a minha versão era de boa fonte. Foi o príncipe de La Tour d'Auvergne que me contou.

            - Espanta-me que um erudito como o senhor diga ainda príncipe de La Tour d'Auvergne -interrompeu o duque de Guermantes -; o senhor sabe muito bem que ele absolutamente não o é. Só existe um membro dessa família. É o duque de Bouillon, tio de Oriane.

            - O irmão da Sra. de Villeparisis? - perguntei, lembrando-me de que esta era uma Srta. de Bouillon.

            - Perfeitamente. Oriane, a duquesa de Lambresac, a está cumprimentando.

            De fato, via-se, por instantes, formar-se e passar como uma estrela cadente um débil sorriso destinado pela duquesa de Lambresac à alguma pessoa que ela havia reconhecido. Tal sorriso, no entanto, em vez de precisar-se numa afirmação ativa, numa linguagem muda; porém, mergulhava quase de imediato numa espécie de êxtase ideal que não distinguia nada, ao passo que a cabeça se inclinava num gesto de bênção beatífica, lembrando o que inclina para a multidão de comungantes prelado já meio senil. A Sra. de Lambresac não o era de modo algum, eu já conhecia esse tipo especial de distinção antiquada. Em Combray Paris, todas as amigas de minha avó tinham o hábito de cumprimentar, numa reunião mundana, com um aspecto tão seráfico feito se tivessem visto alguém de seu conhecimento na igreja, no momento da elevação ou durante um enterro, e lhe atirassem molemente um cumprimento que terminasse em reza. Ora, uma frase do Sr. de Guermantes ia completar a comparação que eu fazia.

            - Mas o senhor viu o duque de Bouillon - disse-me ele - Estava saindo da biblioteca quando o senhor ia entrando. Era um homem baixinho e de cabelos brancos. -

            Fora ele quem eu tomara por um pequeno-burguês de Combray, e cuja semelhança com a Sra. de Villeparisis eu descobria agora, pensando nele. A parecença das saudações dissipadas da duquesa de Lambresac com as das amigas de minha avó tinham começado a me interessar, ao mostrar-me que, nos meios estreitos e fechados, sejam da pequena burguesia ou da alta nobreza, subsistem às maneiras antigas, permitindo-nos, como a um arqueólogo, recuperar o que podia ser a educação e a parte da alma que ela reflete no tempo do visconde d'Arlincourt e de Loisa Puget. A perfeita conformidade de aparência de um pequeno-burguês de Combray de sua idade e o duque de Bouillon, lembrava-me melhor agora (o que já me impressionara tanto quando vira a avô materna de Saint-Loup, o duque de La Rochefoucauld, num estereótipo em que ele era exatamente igual ao meu tio-avô, tanto no rosto como no aspecto e nos modos de ser) que as diferenças sociais, e até individuais, fundem-se a distância na uniformidade de uma época. A verdade é que a semelhança dos trajes e também a reverberação, pela fisionomia ao espírito da época ocupam numa pessoa um lugar sensivelmente mais importante que o de sua casta, a qual só tem papel considerável no amor-próprio do interessado e na imaginação dos outros, de forma que não é preciso percorrer as galerias do Louvre para perceber que um grão-senhor do tempo de Luís Filipe é menos diferente de um burguês do tempo de Luís Filipe, que de um grão-senhor do tempo de Luís XIV.

            Neste momento, um músico bávaro de longos cabelos, que a princesa de Guermantes protegia, saudou Oriane. Esta respondeu com uma inclinação de cabeça, mas o duque, furioso por ver sua mulher cumprimentar alguém a quem ele não conhecia, que tinha modos singulares e que, tanto quanto o Sr. de Guermantes julgava saber, era de muito má reputação, virou-se para a mulher com ar terrível e interrogativo, como se dissesse:

            - ''Quem é esse ostrogodo?"

            A situação da pobre Sra. de Guermantes já era bastante complicada e, se o músico tivesse tido um pouco de piedade dessa esposa mártir, teria se afastado bem depressa. Mas, fosse por desejo de não permanecer debaixo da humilhação que lhe acabava de ser infligida em público, no meio dos mais velhos amigos do círculo do duque, cuja presença talvez tivesse justamente motivado um pouco a sua silenciosa inclinação, e para mostrar que era de direito, e não sem conhecê-la, que havia saudado a Sra. de Guermantes, fosse por obedecer à inspiração obscura e irresistível da gafe que o levara a aplicar a própria letra do protocolo num momento em que devia antes restringir-se ao espírito; o músico se aproximou ainda mais da Sra. de Guermantes e lhe disse:

            - Sra. duquesa, gostaria de solicitar a honra de ser apresentado ao duque. -

            A Sra. de Guermantes era bem infeliz.

            Mas enfim, por mais que fosse uma esposa traída, ainda assim era a duquesa de Guermantes e não podia parecer destituída do direito de apresentar ao marido as pessoas que conhecia.

            - Basin - disse ela; permita que lhe apresente o Sr. d'Herweck.

            - Não lhe pergunto se irá amanhã à casa da Sra. de Saint-Euverte - disse o coronel de Froberville à Sra. de Guermantes, para dissipar a penosa impressão produzida pela solicitação intempestiva do Sr. d'Herweck. - Paris inteira vai estar lá. -

            Entretanto, virando-se num só movimento e como de uma só peça para o músico indiscreto, o duque de Guermantes, enfrentando-o monumental, mudo, enfurecido, como Júpiter entronado, permaneceu imóvel desse jeito por alguns segundos, os olhos flamejando de cólera e de espanto, os cabelos frisados parecendo sair de uma cratera. Depois, como no transporte de um impulso que só a polidez solicitada lhe permitia cumprir, e após ter dado a impressão, por sua atitude de desafio, de atestar a toda a assistência que não conhecia o músico bávaro, cruzando às costas as duas mãos enluvadas de branco, inclinou-se para diante e fez ao músico uma saudação tão profunda, cheia de tanta estupefação e raiva, tão brusca, tão violenta, que o artista, tremendo, recuou, inclinando-se para não receber uma cabeçada no ventre.

            - Mas é que justamente não estarei em Paris - respondeu a duquesa ao coronel de Froberville. - Dir-lhe-ei (não deveria confessa-lo) que cheguei à minha idade sem conhecer os vitrais de Montfort-l'Amaury. É vergonhoso, mas é assim. Então, para reparar essa ignorância culpável, prometi ir vê-los amanhã. -

            O Sr. de Bréauté sorriu com finura. De fato, compreendera; se a duquesa pudera ficar até a sua idade sem conhecer os vitrais de Montfort-l'Amaury, essa visita artística não assumia de súbito o caráter urgente de uma intervenção cirúrgica e teria podido sem risco, depois adiada durante mais de vinte e cinco anos, sofrer um atraso de vinte e quatro horas. O projeto da duquesa era simplesmente o decreto baixado, à Sra. dos Guermantes, de que o salão Saint-Euverte decididamente não era casa verdadeiramente distinta, mas uma casa em que a gente era dada para depois se enfeitarem conosco na crônica social do Gaulois casa que distinguiria com um selo de suprema elegância àquelas (aquilo menos aquela, caso se tratasse de uma só) que ali não seriam visto o delicado prazer do Sr. de Bréauté, duplicado pelo prazer poético pelas pessoas da alta sociedade ao verem a Sra. de Guermantes; coisas que sua posição menos elevada não lhes permitia imitar, mas simples visão lhes provocava o sorriso do camponês ligado à sua terra; que vê homens mais livres e mais afortunados passarem acima de sua cabeça, esse prazer delicado não tinha qualquer relação com o encantamento dissimulado, porém desvairado, que logo experimentou o Sr Froberville. Os esforços que o Sr. de Froberville fazia para que não ouvissem seu riso tinham-no feito ficar vermelho como um galo e, apesar disso; entrecortando as palavras com soluços de hilaridade, que ele exclamou tom misericordioso:

            - Oh, pobre tia Saint-Euverte, ela vai ficar doente causa disso! Não, a infeliz não vai ter a sua duquesa. Que golpe! Essa é de matar! - acrescentou, torcendo-se de riso. E na sua embriaguez não deixou de socorrer-se dos pés e esfregar as mãos. Sorrindo com um só nos cantos da boca ao Sr. de Froberville, de quem apreciava as más intenções, mas nem por isso menos sentia um tédio mortal, a Sra. Guermantes acabou por se decidir a abandoná-lo.       

            - Escute, vou ser obrigada a me despedir do senhor - disse-lhe a duquesa, erguendo-se com ar de resignação melancólica, e como se representasse uma desgraça para ela. Ao encanto de seus olhos azuis, voz docemente musical fazia pensar na queixa poética de uma fada. - Ele quer que eu vá ficar um pouco com Marie. -

            Na realidade, estava farta de ouvir Froberville, o qual não cessava de invejá-la por ir a Montfort-l'Amaury, quando ela sabia muito bem que era a primeira vez que ele ouvia falar daqueles vitrais, e que, por outro lado, não perderia por nada no mundo uma reunião na casa da Sra. de Saint-Euverte.

            - Adeus, mal pude lhe falar assim mesmo na sociedade, a gente mal se vê, não diz as coisas que gostaria de dizer. Aliás, dá-se o mesmo em toda parte na vida. Esperemos após a morte que as coisas sejam mais bem arranjadas. Pelo menos, não haverá necessidade de estar sempre a decotar-se. E mesmo assim, quem sabe? Talvez a gente exiba os ossos e os vermes para as grandes recepções. Por que não? Olhem só a tia Rampillon; acham muita diferença entre isso e um esqueleto de vestido de baile? É verdade que ela tem todos os direitos, pois já completou no mínimo cem anos. Era já um dos monstros sagrados diante de quem eu me recusava a inclinar-me quando estreei na sociedade. Julgava-a morta há muito tempo, o que, aliás, seria a única explicação para o espetáculo que nos oferece. É impressionante e litúrgico. Puro Campo-Santo!-

            A duquesa deixara Froberville; ele se reaproximou:

            - Queria dizer-lhe uma última palavra. -

            Um tanto irritada:

            - O que deseja ainda? - disse-lhe ela com altivez.

            E ele, receando que no último instante ela desistisse de Montfort-l'Amaury:

            - Não tive coragem de lhe falar por causa da Sra. de Saint-Euverte, para não magoá-la, mas já que não tenciona ir até lá, posso lhe dizer que estou feliz pela senhora, pois há sarampo na casa dela!

            - Oh, meu Deus! - exclamou Oriane, que tinha medo de doenças.

            - Mas quanto a mim não quer dizer nada, pois eu já tive sarampo. Não se tem sarampo duas vezes. - São os médicos que dizem isto. Conheço pessoas que já tiveram até quatro vezes. Enfim, está avisada. -

            Quanto a ele, seria preciso que tivesse de fato esse sarampo fictício, e que ficasse preso ao leito para se resignar a faltar à festa Saint-Euverte, esperada há tantos meses. Teria o prazer de ali ver tantas elegâncias! O maior prazer de constatar certas coisas goradas e, principalmente, o de poder durante muito tempo vangloriar-se de ter convivido com as primeiras e, exagerando-as ou inventando-as, deplorar as segundas.

            Aproveitei que a duquesa se afastara a fim de também sair dali; fui para o fumoir, procurando informar-me acerca de Swann.

            - Não creia numa só palavra do que falou Babal - disse-me a Sra. de Guermantes. - Jamais

a pequena Molé teria ido se enfiar lá. Dizem isso para nos atrair. Não recebem ninguém e não são convidados a parte alguma. Ele mesmo o confessa: "Ficamos os dois sozinhos junto à lareira." Como ele diz sempre nós, não como o rei, mas em nome da mulher, não insisto. Mas estou bem informada - acrescentou a duquesa.

            Cruzamos por dois jovens cuja grande e dissemelhante beleza se originava de uma mesma mulher. Eram os dois filhos da Sra. de Surgis, a nova amante do duque de Guermantes. Resplandeciam das perfeições da mãe, mas cada um de perfeição diversa. Para um havia passado, ondulante num corpo viril, a régia imponência da Sra. de Surgis, e a mesma palidez ardente, arruivada e sacra afluía às faces marmóreas da mãe e desse filho; mas seu irmão havia recebido a fronte grega, o nariz perfeito, o pescoço de estátua, os olhos infinitos. Feita assim de presentes diversos que a deusa havia repartido, essa dupla beleza oferecia o prazer abstrato de pensar que sua causa estava fora deles; dir-se-ia os principais atributos da mãe se haviam encarnado em dois corpos aparentes: que um dos jovens tinha a estatura e a tez de sua mãe, e o seu olhar, como os seres divinos que eram apenas a força e a beleza de Júpiter ou de Minerva. Cheios de respeito pelo Sr. de Guermantes, diziam:

            - É um grande amigo de nossos pais. -

            O mais velho, no entanto, achou que era prudente não vir cumprimentar a duquesa, de quem conhecia a inimizade por sua mãe, sem talvez compreender-lhe o motivo. Ao passar por nós, desviou ligeiramente a cabeça. O mais novo, que imitava o irmão, porque, sendo estúpido e além disso míope, não podia ter opinião pessoal, inclinou a cabeça no mesmo ângulo e ambos foram para a sala de jogos, um atrás do outro, semelhantes a duas figuras alegóricas.

            No momento de chegar àquela sala, fui detido pela marquesa Citri, ainda bonita, mas quase soltando espuma pela boca, de raiva. De parentesco bastante nobre, procurara e conseguira fazer um belo casamento ao desposar o Sr. de Citri, cuja bisavó era uma Aumale-Lorraine. Mas ao mesmo tempo que experimentara essa satisfação, seu temperamento negativista lhe fizera criar horror às pessoas da alta sociedade, o que não excluía absolutamente a vida mundana. Não só, numa recepção, ela zombava de todo mundo; como também semelhante zombaria continha algo de tão violento que o progresso do seu riso não era bastante áspero e se transformava num assovio gutural:

            - Ah! - disse ela, apontando para a duquesa de Guermantes que acabara de a deixar e já estava um pouco distante. - O que me transtorna é que eu possa levar essa vida. -

            Seriam essas palavras de uma santa furibunda, que se espanta de que os gentios não cheguem por si mesmos à verdade ou de uma anarquista sequiosa de carnificina? Em todo caso, essa apóstrofe era tão pouco justificada quanto possível. Primeiro, a "vida que levava" a Sra. de Guermantes diferia muito pouco (salvo a indignação) da da Sra. Citri. Esta se mostrava estupefata

de ver a duquesa capaz deste sacrifício mortal: assistir a uma recepção de Marie-Gilbert. É necessário dizer que, no caso em apreço, a Sra. de Citri gostava muito da princesa, que na verdade era muito bondosa, e sabia que lhe dava muita satisfação em comparecer à sua festa. Assim, para estar presente, dispensara naquela noite uma bailarina que julgava ser genial e que devia iniciá-la nos mistérios da coreografia russa. Um outro motivo que tirava todo valor à raiva concentrada Sra. de Citri, ao ver Oriane cumprimentar este ou aquele convidado, é que a Sra. de Guermantes, embora em estado bem menos avançado, apresentava os mesmos sintomas do mal que assolava a Sra. de Citri. Viu-se que ela carregava os seus germes de nascença. Afinal, mais inteligente que a Sra. de Citri, a duquesa teria tido mais direitos do que a outra a esse niilismo (que era somente mundano), mas é verdade que certas qualidades antes ajudam a suportar os defeitos do próximo do que contribuem para que se sofra com eles; e um homem de grande talento habitualmente prestará menos atenção às asneiras de outrem do que o faria um tolo. Já descrevemos longamente o tipo de espírito da duquesa para provar que, se nada tinha em comum com uma alta inteligência, era ao menos dotada de espírito, um espírito apto a utilizar (como um tradutor) diferentes formas de sintaxe. Ora, nada disso parecia autorizar a Sra. de Citri a desprezar qualidades tão parecidas com as dela. Ela achava todo mundo idiota, mas, em sua conversação e nas cartas, mostrava-se ainda inferior às pessoas que tratava com tanto desdém. Além disso, sentia uma tal necessidade de destruir que, após ter mais ou menos renunciado à sociedade, os prazeres que então buscou, sofreram sucessivamente o seu terrível poder dissolvente. Depois de ter deixado as recepções para freqüentar sessões musicais, pôs-se a dizer:

            - Gostam de ouvir música? Ah, meu Deus, isso depende dos momentos. Mas como pode ser aborrecido! Ah, Beethoven, que barbeiro! - quanto a Wagner, e depois quanto a Franck, Debussy, ela nem se dava ao trabalho de dizer "que barbeiro", contentando-se em passar a mão pelo rosto como um barbeiro. Em breve, tudo se tornou aborrecido.

            - São tão aborrecidas as coisas bonitas! Ah, os quadros, são de a gente ficar louco! Como vocês tinham razão, é aborrecido escrever cartas! -

            Finalmente, foi a própria vida que ela nos declarou ser uma coisa enfadonha, sem que se soubesse com certeza de onde tirava o seu termo de comparação. Não sei se é por causa do que a duquesa de Guermantes, no primeiro dia em que jantei em sua casa, disse acerca dessa peça, mas a sala de jogos, ou fumoir, com seu pavimento ilustrado, suas trípodes, suas figuras de deuses e de animais que nos olhavam, as esfinges ao comprido dos braços das cadeiras, e sobretudo a imensa mesa de mármore ou mosaico esmaltado, coberta de signos simbólicos mais ou menos imitados da arte etrusca e egípcia, aquela sala de jogos teve sobre mim o efeito de uma

verdadeira câmara mágica. Ora, numa cadeira próxima da mesa refulgente e augúrio, o Sr. de Charlus, sem tocar em nenhuma carta, insensível ao que se passava a seu redor, incapaz de perceber que eu acabara de entrar, parecia exatamente um mágico que aplicasse todo o poder de sua vontade e de seu raciocínio em elaborar um horóscopo. Não apenas, como a uma Pítia sobre uma trípode, os olhos lhe saíam das órbitas, mas, para que nada viesse distraí-lo dos trabalhos que exigiam a cessação dos movimentos mais simples, ele (tal como um calculador que não quer fazer outra coisa enquanto não tiver resolvido o seu problema) depusera à sua frente o charuto ainda há pouco trazia na boca, não tendo agora liberdade de espírito para fumá-lo. Vendo as duas divindades agachadas que tinha em seus braços da poltrona colocada à sua frente, poder-se-ia acreditar que o barão buscava descobrir o enigma da Esfinge, não fosse antes o enigma de um jovem vivo Édipo, assentado precisamente naquela poltrona, onde se instalara para jogar. Ora, a figura à qual o Sr. de Charlus aplicava, e como tal contém todas as suas faculdades espirituais e que na verdade não era daquela como de hábito se estudam conforme a geometria, era a que lhe propunham as listras do rosto do jovem marquês de Surgis; parecia, tão profundamente o Sr. de Charlus estava absorto diante dela, alguma palavra cifrada, alguma artimanha, algum problema de álgebra de que procurava desvendar o enigma ou achar a fórmula. Diante dele, os signos sibilinos e as figuras inscritas na tábua da Lei pareciam o engrimanço que ia permitir ao velho feitio saber em que sentido se orientariam os destinos do jovem. De súbito percebeu que eu o observava. Ergueu a cabeça como se saísse de um devaneio e me sorriu, enrubescendo. Neste instante, o outro filho da Sra. Surgis reuniu-se ao que estava jogando, para olhar as suas cartas. Quando o Sr. de Charlus soube por mim que eram irmãos, seu rosto não pode simular a admiração que lhe inspirava uma família criadora de obras tão esplêndidas e diferentes. E o que ainda aumentaria o entusiasmo do barão seria saber que os dois filhos da Sra. de Surgis-le-Duc não eram apenas da mesma mãe, e sim do mesmo pai. Os filhos de Júpiter dissemelhantes, mas isto decorre de que ele desposou primeiro Métis, o destino era dar à luz aos filhos com juízo, depois Têmis, e a seguir Eurín Latona, e por último somente Juno. Mas de um só pai a Sra. de Surgis fizera nascer dois filhos que haviam recebido as suas belezas, porém belezas diferentes. Por fim, tive o prazer de que Swann entrasse naquela sala bem vasta, tanto que a princípio ele não me viu. Prazer mesclado de uma tristeza que os demais convidados talvez não sentissem, mas entre eles consistia naquela espécie de fascinação exercida pelas formas inesperadas e singulares de uma morte próxima, de uma morte que, diz o povo, já se tem no rosto. E foi com uma estupefação quase mal-educada onde entrava a curiosidade indiscreta, a crueldade, um regresso um pouco inquieto e preocupado sobre si mesmo (a um tempo mistura de suave mari-magno ["É doce, no vasto mar"] e de memento-guia pu/vis guia pu/vis es et in pu/verem reverteris ["Lembra-te, homem, de que és pó e ao pó voltarás." (N, do T)]  teria dito Robert), que todos os olhos se fixaram naquele rosto cujas faces a doença cavara de tal modo, como uma lua minguante, que, a não ser de um certo ângulo, sem dúvida aquele sob o qual Swann se observava, rodavam como um cenário inconsistente ao qual uma ilusão de ótica pode somente conferir a aparência de espessura. Seja por causa da ausência dessas faces, que não mais estavam ali para diminuí-lo, seja que a arteriosclerose, que também é uma intoxicação, o avermelhasse como o teria feito a embriaguez ou o deformasse como o faria a morfina, o nariz de polichinelo de Swann, durante longo tempo incorporado a um rosto agradável, parecia agora enorme, intumescido, carmesim, antes o nariz de um velho hebreu que o de um curioso Valois. Além disso, nele talvez, naqueles últimos dias, a raça fazia reaparecer mais acentuadamente o tipo físico que a caracteriza, ao mesmo tempo que o sentimento de uma solidariedade moral com os outros judeus, solidariedade que Swann parecia haver esquecido a vida inteira, e que, enxertados uns sobre os outros, a doença mortal, o Caso Dreyfus, a propaganda anti-semita haviam despertado. Existem alguns judeus, muito finos no entanto e mundanos delicados, nos quais permanecem de reserva e nos bastidores, a fim de fazer sua entrada numa determinada hora de suas vidas, como numa peça, um grosseirão e um profeta. Swann chegara à idade do profeta. Certamente com sua figura de onde, sob a ação da doença, segmentos inteiros haviam desaparecido como num bloco de gelo que se derrete e do qual caem paredes inteiras, ele mudara muito. Mas eu não podia evitar de ficar impressionado ao ver o quanto mais mudara ele em relação a mim. Aquele homem excelente, culto, que eu estava bem longe de aborrecer-me ao encontrar, não conseguia eu compreender como pudera antigamente impregná-lo de um mistério tal que seu aparecimento nos Champs-Élysées me fazia bater o coração, a ponto de eu ter vergonha de me aproximar de sua pelerine forrada de seda, e que, à porta do apartamento em que morava uma tal criatura, eu não podia bater sem ser possuído de uma perturbação e de um tremor infinitos. Tudo isto havia desaparecido não só de sua residência, mas também de sua pessoa, e a idéia de conversar com ele podia me ser agradável ou não, mas não afetava em nada o meu sistema nervoso. E, além disso, como havia mudado desde aquela mesma hora; em suma, poucas horas mais cedo em que o encontrara no gabir duque de Guermantes! Teria tido realmente uma cena com o príncipe que o deixara transtornado? A suposição não era necessária. Os menores  traços exigidos a alguém que está muito enfermo depressa se tornam parecidos a um esgotamento excessivo. Por pouco que seja exposto, já fatigado, aonde for mesmo num sarau, sua fisionomia se decompõe e azulesce, como se dá uma pêra madura demais em menos de vinte e quatro horas, ou como prestes a talhar. Ademais, a cabeleira de Swann apresentava falhas alguns pontos e, como dizia a Sra. de Guermantes, precisava de um forno pois tinha o ar canforado, e mal canforado. Eu ia atravessar o fumoir e falar com Swann quando, infelizmente, uma mão se abateu sobre meu ombro:

            - Bom dia, meu caro, estou em Paris por quarenta e oito horas. Passei na tua casa e me disseram que estavas aqui, de forma que é a ti que a minha tia da honra da minha presença em sua festa. -

            Era Robert Saint-Loup. Disse-lhe, quanto achava bonita aquela casa.

            - Sim, faz o gênero do monumento histórico. Quanto a mim, acho-a aborrecida. Não fiquemos perto do Palamede, senão ele nos pega. Como a Sra. Molé (pois é ela quem dá saída atualmente) acaba de sair, ele se encontra inteiramente desamparado. Parece que era um verdadeiro espetáculo, ele não arredou um só instante, só a deixou quando a pôs no carro. Não lhe quero mal por isso; apenas acho engraçado que o meu conselho de família, que sempre se mostrou tão severo comigo, seja composto precisamente dos parentes que mais fizeram das suas, a começar pelo mais pandego de todos, o meu tio Charlus, que é meu suplente de tutor, que teve tantas mulheres como Dom Juan e que em sua idade não entrega os pontos. Cogitou-se por um momento de me nomearem um conselho judiciário. Acho que, quando todos esses velhos peraltas se reuniam para examinar o assunto, fazendo-me vir para me passar lição de moral e dizer que eu dava desgostos à minha mãe, não deviam poder olhar uns para os outros sem rir. Examinarás a composição do conselho: parece que escolheram precisamente aqueles que mais andaram levantando saias. -

            Pondo de lado o Sr. de Charlus, a cujo respeito o esperto do meu amigo já não me parecia justificado, mas por outros motivos, aliás deviam modificar-se mais tarde em meu espírito; Robert não tinha razão em julgar extraordinário que lições de sensatez fossem dadas a um jovem por parentes que haviam feito loucuras, ou as faziam ainda. Mesmo que o atavismo e as parecenças de família fossem as únicas causas em jogo, é inevitável que o tio que prega o sermão tenha mais ou menos os mesmos defeitos que o sobrinho a quem foi encarregado repreender. O tio, aliás, não põe nisso nenhuma hipocrisia, enganado está pela faculdade que têm os homens de acreditar, em cada nova circunstância, que se trata de "outra coisa", faculdade que lhes permite adotar erros artísticos, políticos, etc.; sem se aperceberem de que são os mesmos que tomaram por verdades, dez anos antes, a propósito de uma outra escola de pintura, que condenavam, de um outro caso político, que juravam merecer o seu ódio, de que se afastaram, e que esposam sem os reconhecer sob um novo disfarce. Além disso, mesmo que as faltas do tio sejam diferentes das do sobrinho, ainda assim a hereditariedade pode não menos constituir em certa medida a lei causal, pois o efeito nem sempre se parece à causa, como a cópia ao original, e até mesmo se as faltas do tio são piores, ele pode perfeitamente achá-las menos graves. Quando o Sr. de Charlus acabava de fazer advertências indignadas a Robert, que, aliás, naquela época, não conhecia os verdadeiros gostos do tio, e mesmo que fosse ainda naquela em que o barão afrontava os próprios gostos, poderia ele ter sido perfeitamente sincero ao considerar, do ponto de vista do homem mundano, que Robert era infinitamente mais culpável que ele. Pois Robert não chegara quase a ser banido de seu mundo, quando seu tio fora encarregado de fazê-lo recobrar a razão? Pois não faltara pouco para que fosse recusado no Jockey? Não era ele objeto de escárnio pelas loucas despesas que fazia por uma mulher da pior categoria, por suas amizades com pessoas, escritores, atores, judeus, dos quais nenhum pertencia a seu mundo, por suas opiniões que não se diferençavam das de um traidor, pela mágoa que causava a todos os seus? E em que podia se comparar essa vida escandalosa à do Sr. de Charlus, que soubera, até agora, não só conservar mais ainda engrandecer a sua posição de Guermantes, sendo na sociedade uma criatura absolutamente privilegiada, solicitada, adulada pelos grupos mais seletos, e que, casado com uma princesa de Bourbon, mulher eminente, soubera fazê-la feliz, e votara à sua memória um culto mais fervoroso, mais exato do que o que se tem de hábito entre os mundanos, e também fora tão bom marido como filho extremoso?

            - Mas estás bem certo de que o Sr. de Charlus possui tantas amantes? - indaguei, não evidentemente com a diabólica intenção de revelar a Robert o segredo que havia surpreendido, mas todavia irritado por vê-lo sustentar um engano com tanta certeza e suficiência. Ele se contentou em dar de ombros, como resposta, ao que julgava ingenuidade de minha parte.

            - Aliás, não o censuro; acho que tem toda a razão. -

            E principiou a esboçar para mim uma teoria que lhe teria dado horror em Balbec (onde não se limitava a invectivar os sedutores, parecendo-lhe a morte a única pena proporcional ao crime). É que então ainda era apaixonado e ciumento. Chegou ao ponto de me fazer o elogio dos bordéis.             - Só lá é que se encontra chinelo para o pé, o que chamamos no regimento o seu gabarito. - mostrava por esse tipo de locais o desagrado que manifestara em quando eu fizera alusão a eles, e, ouvindo-o agora, disse-lhe que fora quem me levara a um deles; mas Robert me respondeu que esse do Bloch devia ser "extremamente vulgar, o paraíso dos pobres".

            - Isso depende, afinal de contas; onde é que fica? -

            Mostrei-me confuso, lembrava-me que, de fato, era lá que se entregava por um luís aquela que Robert tanto amara.

            - Em todo caso, vou te fazer conhecer outros, melhores, aonde vão mulheres incríveis. -

            Ao ouvir-me expressar de que me levasse o mais cedo possível aos bordéis que conhecia e que de fato deviam ser bem superiores ao que me indicara Bloch, Robert relatou com sinceridade não poder fazê-lo dessa vez, visto que regressava no dia seguinte.

            - Ficará para a minha próxima temporada - disse. - Até há moças - acrescentou com ar misterioso. - Há uma senhorita creio que d'Orgeville, ainda vou te dizer com exatidão, que é filha de uma família das melhores; a mãe é mais ou menos La Croix-l'Évêque, são gente fina, e até um pouco parentes, salvo engano, da tia Oriane. Aliás, só de ver a garota sente-se que é filha de pessoas distintas (senti estender-se por momento, sobre a voz de Robert, a sombra do gênio de Guermantes, passou como uma nuvem, mas a grande altura e sem se deter). Parece mesmo um caso sensacional. Os pais estão sempre doentes e não podem ocupar-se dela. Que diabo! A menina procura não se aborrecer e eu conto contigo para distrair essa criança!

            - Ah, e quando votarás?

            - Não sei, não fazes questão absoluta de duquesas (o título de duquesa é, na aristocracia, o único a designar uma posição especialmente brilhante, como para o povo, o de princesa), há, em outro gênero, a principal camareira da Sra. Putbus.        

            Nesse momento, a Sra. de Surgis entrou na sala de jogos à procura dos filhos. Ao avistá-la, o Sr. de Charlus foi ao seu encontro com tal amabilidade que a marquesa ficou tanto mais agradavelmente surpreendida por esperar uma grande frieza da parte do barão, o qual o tempo todo se arvorara em protetor de Oriane e o único da família muitas vezes por demais complacente às exigências do duque por causa de sua doença e por ciúme quanto à duquesa a manter impiedosamente a distância as amantes do irmão. Assim, a Sra. de Surgis compreenderia muito bem as razões da atitude que temia da parte do barão, mas de modo algum suspeitou dos motivos da acolhida inteiramente oposta que dele acontecesse. Ele lhe falou com admiração do retrato que Jacquet fizera dela antigamente. Essa admiração chegou mesmo a exaltar-se a um entusiasmo que em parte era interessado para impedir que a marquesa se afastasse para "fisgá-la", como dizia Robert dos exércitos inimigos dos quais se deseja forçar manter engajados os efetivos em um determinado ponto, talvez fosse igualmente sincero. Pois, se todos se compraziam em admirar nos filhos o porte de rainha e os olhos da Sra. de Surgis, o barão podia experimentar um prazer inverso, mas igualmente vivo, de reencontrar esses encantos reunidos em feixe na mãe deles, como num retrato que por si mesmo não inspira desejos, mas alimenta, com a admiração estética que inspira, os desejos que revela. Estes vinham, retrospectivamente, dar um encanto voluptuoso ao próprio retrato de Jacquet e, naquele momento, o barão o teria adquirido de bom grado para nele estudar a genealogia fisiológica dos dois jovens Surgis.

            - Vês que eu não exagerava - disse Robert. - Repara um pouco na solicitude do tio para com a Sra. de Surgis. E até isso me espanta. Se Oriane soubesse, ficaria furiosa. Francamente, há bastantes mulheres para que ele se lance justamente sobre essa – acrescentou.

            Como todas as pessoas que não estão apaixonadas, imaginava que se escolhe a pessoa que se ama após mil deliberações e segundo qualidades e conveniências diversas. Aliás, completamente enganado a respeito do tio, que julgava dado às mulheres, Robert, em seu rancor, falava do Sr. de Charlus com excessiva leviandade. Não se é sempre impunemente o sobrinho de alguém. Muitas vezes é por seu intermédio que um hábito hereditário se transmite mais cedo ou mais tarde. Assim, podia-se fazer toda uma galeria de retratos que tivesse por título o da comédia alemã tio e sobrinho, onde se veria o tio zelando ciumento, embora involuntariamente, para que o sobrinho acabasse por se parecer com ele. Acrescentarei até que essa galeria ficaria incompleta se nela não fizessem figurar os tios que não têm qualquer parentesco real, sendo apenas tios da esposa do sobrinho. Os senhores de Charlus estão, de fato, de tal modo convencidos de serem os únicos bons esposos, e mais, os únicos de quem uma mulher jamais terá ciúmes, que em geral, por afeição à sobrinha, fazem-na casar também com um Charlus. O que enreda todo o fio das semelhanças. E ao afeto pela sobrinha se junta às vezes o afeto igualmente pelo seu noivo. Tais matrimônios não são raros, e muitas vezes são os que se chamam felizes.

            - De que falávamos? Ah, dessa alta, loura, a camareira da Sra. Putbus. Ela também gosta das mulheres, mas creio que isso pouco te importa; posso te dizer com franqueza, nunca vi uma criatura tão linda.

            - Imagino-a bastante Giorgione, não?

            - Loucamente Giorgione! Ah, se eu tivesse tempo de ficar em Paris, quantas coisas magníficas para fazer! E depois, passa-se a uma outra. Pois, quanto ao amor, estás vendo, é uma brincadeira, estou bem curado. -

            Percebi logo, com surpresa, que ele não estava menos curado da literatura, enquanto que era apenas sobre os ratos que me parecera desabusado no nosso último encontro ("É quase um canalha & Cia.", me dissera), o que se podia explicar por seu jurado rancor relativamente a certos amigos de Rachel. De fato, tinham-na vencido de que jamais teria talento se deixasse Robert, "homem de raça", assumir influência sobre ela, e, junto com ela, zombavam dele nos jantares que ele lhes oferecia. Mas, na realidade, o amor de Robert pelas letras nada tinha de profundo, não emanava de sua natureza verdadeira, não passava de um derivado de seu amor por Rachel e se fizera com esta, ao mesmo tempo que seu horror aos gozadores e seu respeito religioso pela virtude das mulheres.

            - Que ar estranho têm aqueles dois rapazes! Olhe essa curiosa paixão pelo jogo, marquesa. - disse o Sr. de Charlus, designando à Sra Surgis os seus dois filhos, como se ignorasse absolutamente quem endeusava. - Devem ser dois orientais, têm certos traços característicos, talvez são turcos - acrescentou, a um tempo para confirmar ainda sua fingida inocência, testemunhar uma vaga antipatia que, quando a seguir cedesse o posto à amabilidade, provaria que esta se endereçava unicamente à idade dos filhos da Sra. de Surgis, tendo principiado apenas no momento em que o barão soubera de quem se tratavam. Talvez também o Sr. de Charlus, de quem a insolência era um dom natural que ele sentia satisfação em exercer, aproveitasse o minuto em que dava amostras de ignorar quem eram os dois rapazes para se divertir à custa da Sra. de Surgis e se entregar às suas troças costumeiras, como Scapin aproveita o disfarce de seu amo para lhe dar umas belas pauladas.       

            - São meus filhos - disse a Sra. de Surgis, com um rubor que não mostraria se fosse mais esperta sem ser mais virtuosa. Teria então compreendido que o ar de indiferença absoluta, ou de zombaria, que o Sr. de Charlus manifestava a respeito de um rapaz não era mais sincero que sua admiração bem superficial que testemunhava a uma mulher, e não expressava o verdadeiro fundo de sua natureza. Aquela a quem poderia indefinidamente lançar as frases mais lisonjeiras sentiria ciúmes do olhar que o barão, enquanto lhe falava, ia lançando a um homem que em seguida fingia não ter notado. Pois esse olhar era um olhar diferente daqueles que o Sr. de Charlus reservava para as mulheres; um olhar especial, vindo das profundezas e que mesmo num sarau não podia deixar de se dirigir aos jovens, como os olhares de um costureiro que revelam sua profissão pelo modo imediato que eles têm de se dirigir às roupas.

            - Oh, como é curioso - respondeu o Sr. de Charlus não sem insolência, dando a impressão de obrigar seu pensamento a cumprir um longo trajeto para levá-lo a uma realidade tão diversa da que ele fingira ter suposto. - Mas eu não os conhecia - acrescentou, temendo ter ido longe demais na expressão de antipatia e, assim, ter paralisado na marquesa a intenção de lhe apresentar os filhos.

            - Permitiria que os apresentasse ao senhor? - indagou timidamente a Sra. de Surgis.

            - Ora, meu Deus! Como não? Mas olhe, eu talvez não seja uma pessoa tão divertida para rapazes tão jovens - entoou o Sr. de Charlus com o ar de hesitação e de frieza de alguém que deixa que lhe arranquem uma cortesia.

            - Arnulphe, Victurnien, venham depressa - chamou a Sra. de Surgis.

            Victurnien ergueu-se com decisão.

            Arnulphe, sem ver mais longe que o irmão, seguiu-o docilmente.

            - Eis agora a vez dos filhos - comentou Robert. - É de morrer de rir. Ele procura agradar até o cachorro da casa. E é tanto mais engraçado, visto que meu tio detesta os gigolôs. E olha como os ouve com seriedade. Se fosse eu quem os quisesse apresentar, logo ele me mandaria plantar batatas. Escuta, vou ter de cumprimentar Oriane. Tenho tão pouco tempo para ficar em Paris que quero tentar ver aqui todas as pessoas a quem teria de deixar cartões de visita, não fosse isso.

            - Como parecem ser bem-educados, como têm boas maneiras - ia dizendo o Sr. de Charlus.

            - O senhor acha? - respondia a Sra. de Surgis, encantada.

            Tendo Swann me avistado, aproximou-se de Saint-Loup e de mim. A alegria judaica era nele menos refinada que os gracejos de homem mundano.

            - Boa-noite - disse-nos.

            - Meu Deus, nós três juntos, vão pensar que é uma reunião do sindicato. Por pouco não vão procurar onde está a caixa! -

            Não percebera que o Sr. de Beaucerfeuil estava às suas costas e o escutava. O general involuntariamente franziu as sobrancelhas. Ouvíamos a voz do Sr. de Charlus bem perto de nós:

            - Como? O senhor se chama Victurnien, como no Gabinete das Antigüidades? - dizia o barão a fim de prolongar a conversa com os dois rapazes.

            - De Balzac, sim - respondeu o mais velho dos Surgis, que jamais lera uma linha sequer desse romancista, mas a quem seu professor havia assinalado, dias antes, a semelhança de seu prenome com o de d'Esgrignon. A Sra. de Surgis estava encantada por ver o filho brilhar e o Sr. de Charlus extasiado ante tanta ciência.

            - Parece que Loubet está conosco, isso de fonte seguríssima - disse a Saint-Loup, mas desta vez em voz mais baixa para não ser ouvido pelo general, Swann, para quem as relações republicanas de sua mulher se tornavam mais interessantes desde que o Caso Dreyfus era o centro de suas preocupações. - Digo-lhe isto porque sei que, no fundo, o senhor está do nosso lado.

            - Mas nem tanto assim; o senhor se engana completamente - respondeu Robert. - Trata-se de um caso mal conduzido, ao qual lamento muito ter me associado. Não tinha nada que me meter. Se pudesse começar, ficaria à parte. Sou soldado e antes de tudo pelo exército. Se ficar um momento com o Sr. Swann, estarei contigo daqui a pouco. Vou ver minha tia. -

            Mas percebi que era com a Srta. d'Ambresac que ele ia conversar e desgostei-me à idéia de que me houvesse mentido acerca de seu possível noivado. Tranqüilizei-me ao saber que Robert lhe fora apresentado a meia hora pela Sra. de Marsantes, que desejava esse casamento, pois os d'Ambresac eram muito ricos.       

            - Por fim - disse o Sr. de Charlus à Sra. de Surgis encontrei um rapaz instruído, que leu, que sabe quem é Balzac. E isso me causa muito mais satisfação por tê-lo conhecido justamente onde isso se faz mais raro, em casa de um de meus parentes, em casa de um dos nossos -acrescentou sublinhando essas palavras.

            Por mais que aparentassem achar todos, homens iguais, os Guermantes, nas grandes ocasiões em que se achavam com pessoas "bem nascidas", e sobretudo menos "bem nascidas", a desejavam e podiam lisonjear, não hesitavam em extrair as velhas lembranças de família.

            - Antigamente - continuou o barão - aristocratas significava os melhores, pela inteligência, pelo coração. Ora, eis o primeiro dentre nós que vejo conhecer quem seja Victurnien d'Esgrignon. Aliás, estou admirado quando digo o primeiro. Há também um Polignac e um Montesquiou. -acrescentou o Sr. de Charlus, que sabia que essa dupla assimilação devia inebriar a marquesa. - Além disso, os seus filhos têm a quem puxar; o avô materno deles possuía uma coleção célebre do século XVIII. Trar-lhe-ei a minha se me quiser dar o prazer de ir almoçar comigo um dia - disse ao jovem Victurnien. - Vou lhe mostrar uma curiosa edição do Gabinete das Antigüidades com correções da mão do próprio Balzac. Ficarei encantado em comparar os dois Victurnien.        

            Eu não podia decidir-me a deixar Swann. Ele atingira aquela grande fadiga em que o corpo de um enfermo não é mais que uma retorta onde se processam reações químicas. Seu rosto estava marcado por pequenos pontos azuis da Prússia, que davam a impressão de não pertencer ao mundo dos vivos, e desprendiam esse tipo de odor que, no colégio, depois das "experiências", torna tão desagradável a permanência numa sala de aula de "Ciências". Perguntei-lhe se não tivera uma longa conversa com o príncipe de Guermantes e se não queria me contar de que se tratara.

            - Sim - disse ele -, mas atenda primeiro ao Sr. de Charlus e à Sra. de Surgis. Eu esperarei aqui.

            Com efeito, o Sr. de Charlus propusera à Sra. de Surgis deixar, aquele aposento excessivamente abafado e irem sentar-se por um momento em outro, e, para tanto, não pedira aos dois filhos que acompanhasse a mãe, porém a mim. Desse modo, ele dava a impressão de não ligar aos dois jovens, após tê-los seduzido. Ademais, me fazia uma polidez fácil, pois a Sra. de Surgis-le-Duc era bem mal-vista. Infelizmente, apenas nos sentáramos num vão sem saída, ocorreu passar a Sra. de Saint-Euverte, alvo das zombarias do barão. Ela, talvez para dissimular, ou desdenhar abertamente os maus sentimentos que inspirava ao Sr. de Charlus, e sobretudo para mostrar que era íntima de uma dama que conversava tão familiarmente com ele, fez um cumprimento desdenhosamente amigável àquela beldade famosa, que lhe respondeu olhando com o rabo do olho para o Sr. de Charlus com um sorriso zombeteiro. Mas o vão era tão estreito que, quando a Sra. de Saint-Euverte quis, atrás de nós, continuar a pescar seus convidados para o dia seguinte, achou-se presa e não pôde se livrar facilmente, momento precioso que o Sr. de Charlus, desejoso de fazer brilhar sua verve insolente aos olhos da mãe dos dois jovens, tratou cuidadosamente de aproveitar. Uma pergunta idiota que lhe fiz sem malícia forneceu-lhe motivo para um triunfal completo de que a pobre da Sra. de Saint-Euverte, quase imobilizada atrás de nós, não podia perder uma só palavra.

            - Imagine que este jovem impertinente - disse ele, designando-me à Sra. de Surgis acaba de me perguntar, sem a menor preocupação que se deve ter para ocultar esse gênero de necessidade, se eu ia à casa da Sra. de Saint-Euverte, ou seja, o mesmo, conforme creio, se eu tinha cólicas. Em todo caso, tentaria me aliviar num local mais confortável do que na casa de uma pessoa que, se tenho boa memória, celebrava o centenário quando estreei na sociedade, isto é, não na casa dela. E, no entanto, quem mais do que ela seria interessante de ouvir? Quantas recordações históricas, vistas e vividas, do tempo do Primeiro Império e da Restauração, e também quantas histórias íntimas que certamente nada tinham de Saint ("santo"), mas deveriam ser muito vertes ("verdes"), a julgar pelas ágeis coxas da venerável saltadeira! O que me impediria de interrogá-la acerca dessas épocas apaixonantes é a sensibilidade de meu aparelho olfativo. A proximidade desta senhora é bastante. De repente digo para mim mesmo: "Oh, meu Deus! Rebentaram minha latrina!" e é simplesmente a marquesa que acaba de abrir a boca para fazer um convite. E compreendam que, se tivesse a infelicidade de ir à casa dela, a latrina se multiplicaria em um formidável tonel de dejetos. Entretanto, ela carrega um nome místico que sempre me faz pensar, com júbilo, embora ela tenha há muito passado pela data de seu jubileu, naquele verso estúpido, dito "deliqüescente": Ah, verde, como era verde a minha alma nesse dia... Mas preciso de uma verdura mais limpa. Dizem-me que a cavadora infatigável dá garden Parties. Quanto a mim, chamo a isso "convites para passear nos esgotos". Será que a senhora há de querer ir sujar-se lá? - perguntou ele à Surgis, que dessa vez sentiu-se constrangida. Pois, querendo fingir ao barão que lá não ia, e sabendo que daria dias de sua vida para não faltar a uma matinê Saint-Euverte, venceu a dificuldade pela média, isto é, incerteza. Tal incerteza assumiu uma forma tão imbecilmente diletante e mesquinhamente vulgar, que o Sr. de Charlus, não receando ofender a de Surgis, à qual todavia desejava agradar, pôs-se a rir para lhe mostrar "aquilo não colava".

            - Admiro sempre as pessoas que fazem planos - disse - muitas vezes desisto na última hora. Há um caso de vestido de verão, pode mudar as coisas. Agirei sob a inspiração do momento.

            De minha parte, estava indignado com o abominável discurso do Sr. de Charlus. Desejaria acumular de bens a doadora de garden-parties. Infelizmente na sociedade, como no mundo político, as vítimas são tão covardes que não se pode querer mal aos carrascos por muito tempo. A Sra. Saint-Euverte, que lograra retirar-se do vão cuja entrada impedíamos, roçou involuntariamente pelo barão de passagem e, por um reflexo de esnobismo que aniquilava nela toda a cólera, talvez até na esperança de tal tipo de abordagem que não devia ser a primeira tentativa:

            - Oh, perdão - senhor de Charlus! exclamou -, espero não o ter machucado como se se ajoelhasse diante de seu mestre.

            Este só se dignou a responder com um largo sorriso irônico e concedeu apenas um "boa-noite" que, como se só se desse conta da presença da marquesa quando ela o saudara primeiro, era um insulto a mais. Enfim, com um servilismo supremo, do qual sofria por ela, a Sra. de Saint-Euverte se aproximou de mim e, tomando-me à parte, disse-me ao ouvido:

            - Mas, que foi que eu fiz ao Sr. de Charlus? Dizem que não me acha bastante chique para ele - ajuntou, rindo à bandeiras despregadas.

            Permaneci sério. Por um lado, achava estúpido que ela parecesse acreditar, ou quisesse fazer crer, que ninguém de fato era tão chique feito ela. Por outro lado, as pessoas que riem com tanta força do que falaram, e que não é engraçado, tomando a seu cargo a hilaridade, dispensara- nos desse modo de participar dela.

            - Outros asseguram que ele está ofendido porque não o tenho convidado. Mas ele não me encoraja muito. Dá impressão de estar amuado comigo (a expressão pareceu-me fraca). Procure sabê-lo e venha dizer se vai amanhã. E, se ele sentir remorsos e quiser acompanhá-lo, traga-o. Para todo pecado, misericórdia. Isso até me daria bastante prazer, por causa da Sto. de Surgis, a quem o fato aborreceria. Dou-lhe carta branca. O senhor tem faro mais fino para essas coisas, e eu não quero dar a impressão de mendigar convidados. Em todo caso, conto absolutamente com o senhor.

            Imaginei que Swann devia cansar-se de me aguardar. Além disso, não queria voltar muito tarde para casa, devido a Albertine, e, despedindo-me da Sra. de Surgis e do Sr. de Charlus, fui ao encontro do meu doente na sala de jogos. Perguntei-lhe se o que dissera ao príncipe, na conversa que tiveram no jardim, fora exatamente o que o Sr. de Bréauté (não lhe disse o nome) nos contara e se relacionava com uma pecinha de Bergotte. Ele desatou a rir:

            - Não há nisso uma só palavra de verdade, uma única sequer; foi tudo inteiramente inventado e teria sido completamente idiota. Na verdade, é inaudita essa geração espontânea do erro. Não pergunto quem lhe disse isto, mas seria de fato curioso, num quadro tão delimitado quanto este, remontar de pessoa em pessoa para saber como tal coisa se formou. De resto, como pode interessar às outras pessoas o que o príncipe me falou? As pessoas são bastante curiosas. Por mim, nunca fui curioso, a não ser quando estive apaixonado e quando fui ciumento. E pelo muito que me adiantou! O senhor é ciumento? -

            Disse a Swann que jamais sentira ciúmes, que nem mesmo sabia de que se tratava.

            - Pois bem, felicito-o. Quando se tem um pouquinho de ciúme, isso não chega a ser desagradável sob dois pontos de vista. De um lado, porque permite às pessoas que não são curiosas interessarem-se pela vida das outras pessoas, ou pelo menos de uma outra. E depois, porque faz muito bem sentir a doçura de possuir, de subir no carro com uma mulher, de não deixá-la ir sozinha. Isto, porém, ocorre apenas nos primeiros tempos do mal ou quando a cura está quase completa. No intervalo, é o mais atroz dos suplícios. Aliás, mesmo as duas doçuras de que lhe falo, devo lhe dizer que pouco as conheci: a primeira, por culpa da minha natureza, que não é capaz de reflexões muito prolongadas; a segunda, por causa das circunstâncias, por culpa da minha mulher, quero dizer, das mulheres de quem estive enciumado. Mas não importa. Mesmo quando a gente não liga mais às coisas, não é absolutamente indiferente que nos tenham importado, porque era sempre por motivos que aos outros escapavam. Percebemos que está em nós apenas a lembrança desses sentimentos; em nós é que é preciso entrar para contemplá-la. Não caçoe muito desse jargão idealista, mas o que quero dizer é que tenho amado muito a vida e amado muito as artes. Pois bem, agora que estou um tanto cansado para viver com os outros, esses antigos sentimentos tão pessoais, tão meus, parecem-me, o que é a mania de todos os colecionadores, muito preciosos. Abro o coração para mim mesmo como uma espécie de vitrina, contemplo um a um tantos amores que os outros não terão conhecido. E dessa coleção, à qual estou agora ainda mais ligado do que às outras, digo-me, um tanto como Mazarino quanto a seus livros, mas, enfim, sem qualquer angústia, que será bem aborrecido deixar tudo isto. Mas vamos à conversa com o príncipe, não a contaria senão a uma só pessoa e essa pessoa vai ser o senhor. - Eu não podia ouvi-lo sem ser impelido pela conversa que o Sr. de Charlus, que voltara à sala de jogos, proferia indefinidamente bem perto de nós.

            - E o senhor também lê? O que faz? - perguntou ele ao conde Arnulphe, que nem sequer conhecia o livro de Balzac. Mas sua miopia, como ele visse tudo muito diminuído, dava o aspecto de quem enxerga de muito longe, de modo que, rara poesias deus grego escultural, em suas pupilas se inscreviam como que distintas estrelas misteriosas.

            - E se fôssemos dar alguns passos pelo jardim, senhor - disse a Swann, enquanto o conde Arnulphe, com voz vacilante que parecia indiferente que seu desenvolvimento, ao menos mental, não era completo, respondeu ao Sr. de Charlus com uma precisão ingênua e complacente:

            - Oh, no meu caso é antes o golfe, o tênis, o balão, a corrida a pé, e sobretudo o jóquei.

            Da mesma forma Minerva, tendo-se subdividido, deixara de ser, numa determinada cidade, a deusa da Sabedoria e encarnara uma parte de si mesma em uma divindade puramente esportiva, hípica, "Athenas Hippia". Também ia a Saint-Moritz para esquiar, pois Palas Tritogenéia freqüentava altos cimos e capturava os cavaleiros.

            - Ah! - respondeu o Sr. de Charlus; com o sorriso transcendente do intelectual que nem se dá ao trabalho de dissimular sua zombaria, mas que, além disso, sente-se tão superior aos outros e despreza de tal modo a inteligência dos que são menos tolos, mal os diferencia dos que o são mais, uma vez que lhe possam ser agradáveis de outra maneira. Falando a Arnulphe, o Sr. de Charlus achava que lhe conferia por isso mesmo uma superioridade que todos deveriam invejar e reconhecer.

            - Não - respondeu-me Swann; -estou cansado demais para caminhar; é preferível que nos sentemos em algum canto, já não agüento ficar de pé. -

            Era verdade; e, no entanto, começar a conversar já lhe deu uma certa vivacidade. É que na fadiga mais real existe, sobretudo entre às pessoas nervosas, uma parcela que depende da atenção e que só se conserva através da memória. Ficamos subitamente cansados logo que começamos conversar, e para nos refazermos da fadiga basta esquecê-la. De certo Swann não era exatamente um desses fatigados exaustos que, chegam abatidos, desfeitos, não se agüentando mais nas pernas, reanimam-se numa conversa como uma flor na água e podem, durante horas, esgotar nas próprias palavras forças que infelizmente não transmitem aos que os escutam e que parecem cada vez mais abatidos à medida que o conversador se sente mais recuperado. Mas Swann pertencia àquela forte raça judia, de energia vital e resistência à morte parecem participar os próprios indivíduo atacados cada qual de doenças particulares, como ela própria o é a perseguição, eles se debatem indefinidamente em agonias terríveis que podem prolongar-se além de todo limite verossímil, quando já não se vê mais que uma barba de profeta encimada por um nariz imenso que se dilata para haurir os últimos fôlegos, antes da hora das orações rituais e quando principia o desfile pontual dos parentes afastados que avançam com movimentos mecânicos, como num friso assírio.

            Fomos nos sentar, mas antes de se afastar do grupo que o Sr. de Charlus formava com os dois jovens e a mãe destes, Swann não pôde evitar lançar, sobre o corpete da Sra. de Surgis, longos olhares de conhecedor, dilatados e concupiscentes. Colocou o monóculo para observar melhor e, sempre falando comigo, de vez em quando deixava cair um olhar na direção daquela dama.

            - Eis, palavra por palavra, a minha conversa com o príncipe - disse-me logo que nos sentamos; e, se está lembrado do que lhe disse há pouco, verá por que o escolhi para confidente. E depois, também, por uma outra razão que um dia o senhor saberá. "- Meu caro Swann disse-me

o príncipe de Guermantes -, o senhor há de me desculpar se tenho dado a impressão de evitá-lo desde algum tempo. (Eu absolutamente não percebera nada, pois andava doente e fugia de todo o mundo.) Em primeiro lugar, tinha ouvido dizer, e bem previa, que o senhor tinha opiniões inteiramente opostas às minhas acerca do caso desgraçado que divide o nosso país. Ora, ser-me-ia muito penoso que as professasse diante de mim. Meu nervosismo era tão grande que a princesa, tendo ouvido há dois anos, o seu cunhado, o grão-duque de Hesse, dizer que Dreyfus era inocente, não se contentara em rebater a afirmativa com vivacidade, mas também não a repetira para mim, com receio de me contrariar. Quase na mesma ocasião, o príncipe real da Suécia viera a Paris e, tendo provavelmente ouvido dizer que a imperatriz Eugênia era dreyfusista, confundira-a com a princesa (estranha confusão, há de convir, entre uma mulher da estirpe da minha esposa e uma espanhola, muito menos bem-nascida do que se diz, e casada com um simples Bonaparte) e lhe havia dito: 'Princesa, estou duplamente feliz em vê-la, pois sei que professa as mesmas idéias que eu sobre o Caso Dreyfus, o que não me espanta, visto que Vossa Alteza é bávara.' O que acarretara ao príncipe esta resposta: 'Monsenhor, não passo de uma princesa francesa, e penso como todos os meus compatriotas.' Ora, meu caro Swann, há cerca de um ano e meio, uma conversa que tive com o general de Beauserfeuil fez-me suspeitar de que, não propriamente um erro, porém graves irregularidades haviam sido cometidas no desenrolar do processo."

            Fomos interrompidos (Swann fazia questão de que não lhe ouvissem a narrativa) pela voz do Sr. de Charlus que (aliás, sem se incomodar conosco) passava reconduzindo a Sra. de Surgis e se deteve para retê-la ainda mais, fosse por causa dos filhos dela, ou por esse desejo próprio dos Guermantes de não ver acabar o minuto atual, desejo que os agulhava numa espécie de ansiosa inércia. Swann revelou-me a problema um pouco depois, algo que para mim tirou ao nome de Surgis-le-Duca poesia que eu lhe atribuíra. A marquesa de Surgis-le-Duc tinha uma ação mundana muito maior, alianças muito mais belas que seu primo, conde de Surgis, que, pobre, vivia em suas terras. Mas a palavra findava o título, "le Duc", de modo algum tinha a origem que eu lhe emprestava e que me fizera aproximá-lo, na minha imaginação, de Bourg-l'A Bois-le-Roi, etc.. Simplesmente um conde de Surgis desposara, durante a Restauração, a filha de um industrial riquíssimo, Sr. Leduc, ou Le Duc, próprio filho de um fabricante de produtos químicos, o homem mais rico do seu tempo, e que era para da França. O rei Carlos X havia criado para si e o filho nascido desse casamento o marquesado de Surgis-le-Duc, pois o marquesado de Surgis já existia na família. O acréscimo do nome burguês impedira esse ramo de se aliar, por causa da enorme fortuna, às primeiras famílias do reino. E a marquesa atual de Surgis-le-Duc, de grande nascimento, poderia ter uma situação de primeira ordem. Um demônio de perversidade a impelira, desdenhando sua situação já feita, a abandonar o lar conjugal, a viver da maneira mais escandalosa. Depois, o mundo desdenhava por ela há vinte anos, quando estava a seus pés, lhe faltara cruelmente, quando fazia dez anos que ninguém mais a saudava, a não ser as amigas fiéis, e ela empreendera reconquistar laboriosamente, peça por peça o que possuía ao nascer (reviravoltas que não são raras).

            Quanto aos grãos-senhores seus parentes, por ela outrora renegados e que por sua vez a tinham renegado, desculpava a marquesa a satisfação que teria em trazê-los para si própria com as recordações da infância que poderia evocar com eles. E, dizendo isto para dissimular o seu esnobismo, mentia talvez menos do que julgava. - Basin, é toda a minha juventude! dizia ela no dia em que o duque lhe voltara. E, de fato, era pouco verdadeiro. Porém, ela calculara mal ao escolhê-lo como amante. Todas as amigas da duquesa de Guermantes iam tomar partido por ela assim, a Sra. de Surgis desceria pela segunda vez àquele despenhadeiro que tanto lhe custara subir.

            - Pois bem! - estava lhe dizendo o Sr. de Charlus que fazia questão de prolongar a conversa. - Deponha as minhas homenagens ao pé do belo retrato. Como vai ele? Que é feito dele?

            - Mas - respondeu a Sra. de Surgis - o senhor sabe que já não o tenho: meu marido não ficou satisfeito com ele.

            - Não ficou satisfeito? Uma das obras-primas nossa época, igual à duquesa de Châteauroux, de Nattier, e que aliás pretendia fixar uma não menos majestosa e assassina deusa! Oh, a pequena gola azul! É de se dizer que Vermeer nunca pintou um tecido com tanta maestria, não o digamos muito alto para que Swann não nos ataque com a intenção de vingar o seu pintor predileto, o mestre de Delft. -

            A marquesa, virando-se, dirigiu um sorriso e estendeu a mão a Swann, que se erguera para cumprimentá-la. Mas quase sem dissimulação, ou porque uma vida já adiantada lhe tirasse a vontade moral daquilo, pela indiferença à opinião, ou o vigor físico de o fazer, pela excitação do desejo e o enfraquecimento da energia que ajuda a ocultá-lo, logo que Swann, ao apertar a mão da marquesa, viu tão de perto e por cima o seu colo, mergulhou um olhar atento, sério, absorto, quase preocupado, nas profundezas do corpinho, e suas narinas, que o perfume da mulher inebriava, palpitaram como uma borboleta prestes a pousar na flor entrevista. Bruscamente, ele se subtraiu à vertigem que sentira, e a própria Sra. de Surgis, embora constrangida, reprimiu um hausto profundo, de tal modo o desejo é contagioso às vezes.

            - O pintor ficou melindrado - disse ela ao Sr. de Charlus e o levou de volta. Disseram que estava agora na casa de Diane de Saint-Euverte.

            - Jamais acreditarei - replicou o barão - que uma obra-prima tenha tão mau gosto.

            - Ele lhe fala do seu retrato. Quanto a mim, eu lhe falaria tão bem como Charlus desse retrato - disse-me Swann, afetando um tom arrastado e vulgar e seguindo com os olhos o par que se afastava. - E isto certamente me daria muito mais prazer do que a Charlus - acrescentou. Perguntei-lhe se o que se dizia sobre o Sr. de Charlus era verdade, no que, aliás, mentia duplamente, pois, se não sabia que alguma vez houvessem falado naquilo, em compensação sabia muito bem, desde pouco tempo, que aquilo a que me referia era verdadeiro. Swann deu de ombros como se eu tivesse proferido um absurdo.

            - É um amigo delicioso. Mas preciso acrescentar que é puramente platônico? Ele é mais sentimental que os outros, eis tudo; por outro lado, como nunca vai muito longe com as mulheres, isto deu uma espécie de crédito aos rumores insensatos a que o senhor quer se referir. Talvez Charlus ame muito os seus amigos, mas fique certo de que isso, aliás, nunca se passou a não ser na sua cabeça e no seu coração. Enfim, talvez tenhamos dois segundos de tranqüilidade. Portanto, - o príncipe de Guermantes continuou: "Confessar-lhe-ei que semelhante idéia de uma possível ilegalidade na condução do processo era-me extremamente penosa devido ao culto que o senhor sabe que tenho pelo exército; voltei a falar no assunto com o general e, infelizmente, não tive mais qualquer dúvida a respeito. Direi francamente que, em tudo isso, a idéia de que um inocente poderia sofrer a mais infamante das penas nem sequer me ocorrera. Porém, atormentado pela idéia da ilegalidade, pus-me a estudar o que não quisera ler, e eis que as dúvidas, desta vez não só sobre a ilegalidade, mas também sobre a inocência, começaram a assediar-me. Julguei preferível não nisso à princesa. Deus sabe como ela se tornou tão francesa quanto. Apesar de tudo, desde o dia em que a desposei, tive tanta coqueteria a mostrar-lhe a nossa França em toda a sua beleza, e aquilo que, para ela possui de mais esplêndido, o seu exército, que me era cruel de dar-lhe parte das minhas suspeitas que, na verdade, só atingiam aos oficiais. Mas pertenço a uma família de militares; não queria crer que alguns oficiais pudessem estar enganados. Voltei a falar do assunto Beauserfeuil; ele me confessou que haviam sido urdidas maquinações culposas, que o borderô talvez não fosse de Dreyfus, mas que existia evidências de sua culpabilidade. Era o documento Henry. E, alguns meses depois, sabia-se que se tratava de um documento falso. Desde então escondido da princesa, pus-me a ler todos os dias Le Siecle, Vaurme; em breve não tive mais dúvida alguma, já não podia dormir. Externei meus sofrimentos morais ao nosso amigo, o abade Poiré, no qual encontrei espanto a mesma convicção, e por meio dele mandei rezar missas em intenção de Dreyfus, de sua desgraçada mulher e de seus filhos. Nesse mesmo tempo, uma manhã em que ia ao quarto da princesa, vi a sua camareira esconder alguma coisa na mão. Perguntei-lhe rindo o que era, mas ela enrubesceu e não quis dizer-me de que se tratava. Eu tinha a maior confiança, mas esse incidente me deixou muito perturbado (e, sem dúvida, também a princesa, a quem sua camareira o narrou decerto), pois minha querida mal me falou durante o almoço que se seguiu. Naquele dia, perguntei ao abade Poiré se poderia rezar no dia seguinte a minha missa por Dreyfus. Bom! - exclamou Swann em voz baixa, interrompendo-se. Ergui a cabeça e vi o duque de Guermantes dirigindo-se a nós.

            - Perdão por incomodá-los, meus filhos. Meu rapaz - disse ele para mim -, sou delegado da parte de Oriane. Marie e Gilbert lhe pediram que fique para cear com eles na companhia de apenas cinco ou seis pessoas: a princesa de Hesse, a Sra. de Ligne, a Sra. de Tarente, a Sra. de Chevreuse e a duquesa d'Arenbe. Infelizmente não podemos ficar, pois temos de ir a uma espécie de reunião dançante. -

            Eu o escutava, porém cada vez que temos algo a fazer no momento determinado, encarregamos, dentro de nós próprios, um certo personagem habituado a esse tipo de ocupação, de vigiar a hora e de advertir a tempo. Esse servidor interno me lembrou, como eu lhe havia, dido horas antes, que Albertine, naquele instante bem longe de meu pensamento, deveria ir à minha casa logo após o teatro. Assim, recusei convite. Não é que não me agradasse estar na casa da princesa de Guermantes. Desse modo, os homens podem desfrutar de diversos gêneros de prazer verdadeiro é aquele pelo qual abandonam o outro. Mas esse último, se é aparente, ou apenas só aparente, pode iludir quanto ao primeiro, sossega ou despista os ciumentos, faz extraviar-se o julgamento da sociedade. E no entanto, bastaria, para que o sacrificássemos a outro, um pouco de felicidade ou de sofrimento. Às vezes, uma terceira ordem de prazeres mais graves, porém mais essenciais, ainda não existe para nós, e sua virtualidade só se expressa despertando mágoas e desânimos. Entretanto, é a esses prazeres que nos entregamos mais tarde. Para dar um exemplo inteiramente secundário, um militar em época de paz sacrificará a vida mundana ao amor, mas, declarada a guerra (e mesmo sem que seja necessário fazer intervir a idéia de um dever patriótico), o amor à paixão de se bater, mais forte que o amor. Por mais que Swann dissesse que se sentia feliz em me contar sua história, eu bem percebia que sua conversação comigo, devido ao adiantado da hora, e porque ele estava demasiado enfermo, era um daqueles cansaços dos quais aqueles que sabem que se matam nas vigílias ou nos excessos têm, ao voltar para casa, um remorso exasperado, semelhante ao que têm, da louca despesa que mais uma vez acabam de fazer, os pródigos, que entretanto não conseguirão evitar, no dia seguinte, jogar dinheiro pela janela. A partir de um certo grau de enfraquecimento, seja causado pela doença, seja pela idade, todo prazer roubado ao sono, fora dos hábitos, todo desregramento, torna-se tedioso. O conversador continua a falar por polidez, por excitação, porém sabe que já passou a hora em que ainda poderia adormecer, e sabe também das censuras que dirigirá a si mesmo durante a insônia e o cansaço que irão se seguir. Aliás, até mesmo o prazer momentâneo já se acabou; o corpo e o espírito estão por demais destituídos de suas forças para acolher agradavelmente o que parece uma diversão a seu interlocutor. Assemelham-se a um apartamento num dia de partida ou de mudança, onde são verdadeiras maçadas as visitas que a gente recebe sentado nas malas, os olhos fixos no relógio da sala.

            - Enfim sós - disse-me ele; nem sei mais onde estava. Disse-lhe, não é mesmo?, que o príncipe havia perguntado ao abade Poiré se este podia mandar rezar a sua missa por Dreyfus. "Não", me respondeu o abade (digo-lhe - disse Swann, - porque é o príncipe que me fala, compreende?), "pois tenho uma outra missa que, esta manhã, encarregaram-me igualmente por ele. - Como disse-lhe existe outro católico além de mim que esteja convencido da sua inocência? - Pode-se crer. - Mas a convicção desse outro partidário deve ser menos antiga do que a minha. -No entanto, esse partidário já me mandava rezar missas quando o senhor ainda julgava que Dreyfus era culpado. - Ah, bem vejo que não é alguém do nosso meio. - Pelo contrário! - Na verdade, há dreyfusistas entre nós? O senhor me intriga; se o conheço, gostaria de me lançar sobre esse pássaro raro. - O senhor o conhece, ele se chama - A princesa de Guermantes. Enquanto eu receava dar suas opiniões nacionalistas e a fé francesa da minha querida ela tivera medo de alarmar minhas opiniões religiosas, meus sentimentos patrióticos. Mas, por seu lado, pensava como eu, embora desde muito tempo antes de mim. E aquilo que sua camareira ocultava ao entrar no quarto, o que ela ia lhe comprar todas as manhãs, era L'Aurore. Meu Swann, desde esse momento pensei no prazer que lhe daria ao dizer todas as minhas idéias eram, a tal respeito, aparentadas às suas; perdão não o ter dito antes. Se se recorda do silêncio que guardei diante da cena, não se espantará que ter idéias iguais às suas me haveria então, respeitado ainda mais de sua pessoa do que pensar diferentemente. Pois tais assuntos era-me infinitamente penoso de abordar. Quanto mais creio qual erro, que até mesmo crimes foram cometidos, mais sangro no meu afinco pelo exército. Teria imaginado que opiniões semelhantes às minhas levariam longe de lhe inspirar a mesma dor, quando me disseram outro dia quanto o senhor reprovava com energia as injúrias ao exército e que os dreyfusistas aceitassem aliar-se aos insultadores. Isto decidiu-me; admitir que me foi cruel confessar o que penso acerca de certos oficiais, feliz ou poucos numerosos, mas é um alívio não precisar mais manter-me longe do senhor e, principalmente, que o senhor tenha compreendido que, se permiti alimentar outros sentimentos, é que não duvidava quanto ao bem fundamentado da sentença. Desde que tive uma dúvida, só podia desejar uma coisa: a reparação do erro." Confesso-lhe que estas palavras do príncipe de Guermantes me deixaram profundamente comovido. Se o conhecesse como eu, se soubesse de onde ele teve de vir para chegar a esse ponto sentiria admiração por ele, e ele a merece. Além disso, sua opinião me espanta, é uma natureza tão direita! -

            Swann esquecia que, de falara-me justo o contrário, que as opiniões naquele Caso Dreyfus eram comandadas pelo atavismo. Quando muito, fizera exceção para a inteligência, porque em Saint-Loup ela chegara a vencer o atavismo e a fazer ditar um dreyfusista. Ora, acabava de ver que essa vitória fora de curta duração e que Saint-Loup passara para o campo adversário. Portanto, essa retidão de coração que ele dava agora o papel atribuído há pouco à inteligência. Na realidade, descobrimos sempre tarde demais que nossos adversários tinham um motivo para pertencer ao partido em que estão, e que depende do que possa haver de justo nesse partido, e que os que pensam como nós o fazem porque isto os obrigou a inteligência, caso sua natureza moral for muito baixa para ser invocada, ou sua retidão, se for tão frágil a sua agudeza.

            Swann agora julgava indistintamente inteligentes aqueles que eram de sua opinião, seu velho amigo o príncipe de Guermantes e meu colega Bloch, a quem mantivera afastado até então, e que ele convidava para almoçar. Swann interessou muito a Bloch ao lhe dizer que o príncipe de Guermantes era dreyfusista.

            - Precisamos pedir a ele que assine as nossas listas em defesa de Picquart; com um nome como o seu, o efeito seria formidável. -

            Porém Swann, aliando à sua ardente convicção de israelita a moderação diplomática do mundano, de que sobre modo adquirira os hábitos para poder tão tardiamente desfazer-se deles, recusou-se a autorizar Bloch a enviar ao príncipe, mesmo como que espontaneamente, uma circular para que fosse assinada.

            - Ele não pode fazer isso, não convém pedir-lhe o impossível - repetia Swann. - Eis um homem encantador que percorreu milhares de léguas para chegar até nós. Ele pode nos ser muito útil. Se assinasse a sua lista, ele simplesmente se comprometeria junto aos seus, seria repreendido por nossa causa, talvez se arrependesse de suas confidências e não faria mais nenhuma. -

            Mais ainda, Swann recusou-se a assinar o próprio nome. Achava-o hebraico demais para não causar um mau efeito. E depois, se aprovava tudo quanto dissesse respeito à revisão do processo, não queria de modo algum ser envolvido na campanha antimilitarista. Usava, o que jamais fizera até então, a condecoração que ganhara, como todo jovem mobilizado em 1870, e acrescentou ao seu testamento um codicilo para solicitar que, contrariamente às disposições precedentes, fossem dadas honras militares ao seu grau de cavaleiro da Legião de Honra. O que reuniu em torno da igreja de Combray um verdadeiro batalhão desses cavaleiros, sobre cujo futuro chorava Françoise antigamente, quando sentia a perspectiva de uma guerra. Numa palavra, Swann recusou-se a assinar a circular, de modo que, se passava por um dreyfusista radical aos olhos de muitos, meu colega considerou-o militarista e frouxo, infectado de nacionalismo.

            Swann deixou-me sem me apertar a mão, para não ser obrigado a fazer despedidas naquela sala onde possuía tantos amigos, porém me disse:

            - O senhor deveria ir ver sua amiga Gilberte. Ela cresceu de fato e mudou muito; o senhor não a reconheceria. Ela ficaria tão feliz! -

            Eu já não amava Gilberte. Para mim, ela era como uma morta que se chorou por muito tempo; depois veio o esquecimento e, se ela ressuscitasse, não mais poderia inserir-se numa vida que já não era feita para ela. Não tinha mais vontade de vê-la, e nem mesmo aquela vontade de lhe mostrar que não fazia questão de vê-la e que cada dia, no tempo em que a amava, prometia a mim mesmo testemunhar-lhe quando a deixasse de amar. Assim, não mais procurando afetar, diante de Gilberte, ter desejado de todo o meu coração voltar a encontrá-la, e de ter sido impedido de fazê-lo, como se diz, devido a circunstâncias independentes da minha vontade, que só ocorrem, de fato, ao menos com certa continuidade, quando a vontade não se lhes opõe, bem longe de acolher com reservas o convite de Swann, não o deixei sem que me houvesse prometido explicar em detalhes à sua filha os contratempos que me haviam privado, e ainda me privariam de ir vê-la.

            - Aliás, vou escrever-lhe daqui a pouco ao voltar para casa. - acrescentei. - Mas diga-lhe que é uma carta de ameaça, pois dentro um ou dois meses estarei totalmente livre, e então, ela que trema, estarei em sua casa com a mesma freqüência de antigamente.

            Antes de deixar Swann, disse-lhe uma palavra sobre sua saúde.

            - Não, a coisa não está tão má assim - respondeu-me. - Além disso, como lhe dizia, ando muito cansado e aceito antecipadamente, com resignação o que possa acontecer. Unicamente, confesso que seria bem irritante morrer antes do fim do Caso Dreyfus. Todos esses canalhas têm mais de mostrar o trunfo no bolso. Não duvido que finalmente sejam vencidos, mas afinal, são muito poderosos, têm apoio em toda parte. No momento em que tudo parece correr bem, tudo se arrebenta. Bem que desejaria viver bastante para ver Dreyfus reabilitado e Picquart coronel.       

            Depois que Swann foi embora, voltei para o grande salão onde, encontrava essa princesa de Guermantes à qual eu não sabia então que dia haveria de estar tão ligado. A paixão que ela teve pelo Sr. de Charlus, não se revelou a princípio para mim. Notei apenas que o barão, a partir de certa época e sem tomar pela princesa nenhuma dessas inimizades que nele não causavam espécie, mesmo continuando a dedicar-lhe tanta má afeição talvez, parecia descontente e irritado cada vez que lhe falavam dela. Jamais incluía o seu nome na lista de pessoas com quem desejava jantar. É verdade que, antes disso, eu ouvira um homem da sociedade muito maldoso, dizer que a princesa estava completamente mudada, ela estava apaixonada pelo Sr. de Charlus, mas essa maledicência me parecia absurda e me havia indignado. Bem que eu notara, com espanto, que quando contava algo que me dizia respeito, se no meio da narrativa aparecia o Sr. de Charlus, a atenção da princesa punha-se logo nesse grau mais próximo que é o de um doente, o qual, ao ouvir-nos falar de nós mesmos, conseqüentemente de modo distraído e despreocupado, reconhece de chofre numa palavra, o nome do mal de que está sofrendo, o que, ao mesmo tempo, o alegra e desperta-lhe o interesse. Assim, se lhe dizia: "Justamente Sr. de Charlus me contava...", a princesa retomava nas mãos as rédeas frouxas de sua atenção. E certa vez, tendo eu dito diante dela que o Sr. Charlus sentia uma afeição bastante viva por determinada pessoa, vi o espanto surgir nos olhos da princesa aquela expressão diversa e momentânea que traça nas pupilas como que o sulco de uma rachadura, e que provém de um pensamento que nossas palavras, sem querer, despertaram na criatura a quem falamos, pensamento secreto que não se há de traduzir por palavras, mas que subirá das profundezas por nós remexidas à superfície um instante alterada do olhar. Mas, se minhas palavras tinham emocionado a princesa, eu não adivinhara de que modo. Aliás, pouco depois ela começou a me falar do Sr. de Charlus e quase sem rodeios. Se aludia aos rumores que raras pessoas faziam correr acerca do barão, era apenas como as absurdas e infames invenções. Mas, por outro lado, dizia:

            - Acho que uma mulher que se apaixona por um homem de valor imenso como Palamede também deveria ter bastante largueza de visão, bastante devotamento, para aceitá-lo e compreendê-lo como um todo, tal como é, para respeitar sua liberdade, suas fantasias, procurar unicamente amenizar-lhe as dificuldades e consolá-lo de suas mágoas. -

            Ora, com essas frases no entanto de tal modo vagas, a princesa de Guermantes revelava aquilo que buscava exaltar, da mesma forma como fazia às vezes o próprio Sr. de Charlus. Pois não ouvi tantas vezes este último dizer a pessoas até então incertas se ele era ou não caluniado: "Eu, que tive tantos altos e baixos na minha vida, que conheci toda espécie de gente, tanto reis como ladrões, e até, devo dizer, com uma leve preferência pelos ladrões, que tenho perseguido a beleza sob todas as suas formas, etc." e por essas palavras que ele julgava hábeis, e desmentindo rumores de cuja existência não suspeitavam (ou para conceder à verdade, por gosto, por cautela, por preocupação com a verossimilhança, uma parte que somente ele considerava mínima), tirava a uns as últimas dúvidas a seu respeito e inspirava as primeiras aos que ainda não as tinham alimentado. Pois o mais perigoso dos encobrimentos é o da própria falta no espírito do culpado. O conhecimento permanente que tem dela o impede de supor o quanto é geralmente ignorada, o quanto uma mentira completa seria facilmente aceita e, em compensação, de perceber a que grau de verdade principia a confissão, para os outros, nas palavras que acredita inocentes. E, por outro lado, agiria muito mal se tentasse abafá-la, pois não há vícios que não encontrem apoios complacentes na alta sociedade, e já se viu modificar todo o arranjo de um castelo para que dormisse uma irmã junto de sua irmã, logo que se soube que ela não a amava apenas como irmã. Mas o que me revelou de súbito o amor da princesa foi um fato particular, sobre o qual não insistirei aqui, pois faz parte da narrativa bem diversa em que o Sr. de Charlus deixou morrer uma rainha para não perder o cabeleireiro que devia frisá-lo, em proveito de um cobrador de ônibus diante do qual sentiu-se prodigiosamente intimidado. Entretanto, para terminar a respeito do amor da princesa, digamos qual foi o nada que me abriu os olhos. Naquilo eu estava sozinho no carro com ela. No momento em que passávamos diante de uma caixa postal, ela mandou parar. Não havia trazido lacaio, a meio uma carta do regalo e iniciou o movimento de descer a fim de ir à caixa. Eu quis detê-la, a princesa debateu-se um pouco, e já nos demos conta, um e outro, de que o nosso primeiro gesto fora, o seu comprometedor, por parecer que ocultava um segredo, o meu indiscreto, ao perceber essa ocultação. Foi ela quem se recobrou mais depressa. Fazendo-se muito vermelha subitamente, deu-me a carta, não mais tive coragem de recusá-la; porém, ao colocá-la na caixa, vi sem querer que era endereçada ao Sr. de Charlus.

            Voltando para trás e àquela primeira recepção na casa da princesa de Guermantes, fui fazer-lhe minhas despedidas, pois seus primos iam levar-me e tinham muita pressa. No entanto, o Sr. de Guermantes quis despedir-se do irmão. Tendo a Sra. de Surgis tido tempo, numa porta de dizer ao duque que o Sr. de Charlus fora encantador com ela e com seus filhos, essa grande amabilidade do irmão, a primeira que tivera em tal exposição de idéias, tocou profundamente Basin e despertou-lhe sentimentos; e na família que jamais adormeciam por muito tempo. No momento em que nos despedíamos da princesa, ele, sem agradecer expressamente ao Sr. de Charlus, fez questão de lhe exprimir o seu afeto, ou porque de fato tivesse dificuldades em contê-lo, ou porque o barão se lembrou de que o tipo de atitudes que tivera aquela noite não passaria despercebido aos olhos do irmão, do mesmo modo como, para lhe criar no futuro associações saudáveis, a gente dá açúcar a um cachorro que se pôs nas patas traseiras.

            - Ora bem, irmãozinho - disse o duque detendo o Sr. de Charlus e pegando-o docemente pelo braço -, é assim que se passa pelo irmão mais velho ser nem sequer dar boa-noite? Não te vejo mais, Mémé, e nem sabes como isto me faz falta. Procurando cartas antigas, encontrei justamente as da pobre mamãe, todas tão carinhosas contigo.

            - Obrigado, Basin - respondeu o Sr. de Charlus com voz alterada, pois nunca podia falar da mãe sem emoção.

            - Deverias te decidir a me deixar instalar um pavilhão para ti em Guermantes - prosseguiu o duque.

            - É lindo ver dois irmãos tão carinhosos um com o outro - disse a princesa a Oriane. - Ah, duvido que possam existir muitos irmãos como estes. Eu o convidarei com o barão - prometeu-me a duquesa. - Vocês não estão de mal?... Mas o que é que eles podem ter para se falar? -acrescentou em tom inquieto, pois ouviu indistintamente as palavras deles. Sempre tivera um certo ciúme do prazer que o Sr. de Guermantes experimentava em conversar com o irmão sobre um passado de que mantinha um tanto afastada a esposa. Esta sentia quando os dois estavam felizes por se acharem assim juntos e ela, não podendo mais conter sua impaciente curiosidade, ia para perto deles, sua chegada lhes causava desagrado. Mas, naquela noite, a esse habitual ciúme acrescentava-se outro. Pois, se a Sra. de Surgis contara ao Sr. de Guermantes as atenções de seu irmão, a fim de que fosse agradecê-las, ao mesmo tempo algumas amigas devotadas do casal Guermantes julgaram dever avisar a duquesa de que a amante de seu marido fora vista conversando com o irmão deste. E a Sra. de Guermantes se atormentava com isso.

            - Lembra-te como éramos felizes outrora em Guermantes - continuou o duque, dirigindo-se ao Sr. de Charlus. - Se aparecesses por lá algumas vezes no verão, poderíamos recomeçar a nossa boa vida. Lembras-te do velho Courveau: "por que é que Pascal é troublant?

            - Porque é trou... trou..." -  pronunciou o Sr. de Charlus como se respondesse ainda ao professor. - "E por que é que Pascal é troublé? Porque é trou... trou...

            - Muito bem, o senhor será aprovado, certamente receberá uma menção, e a senhora duquesa lhe dará um dicionário de chinês."

            - Pois tu te lembras, Basin, naquela época eu tinha uma paixão pela China.

            - Se me lembro, meu querido Mémé! E creio ver ainda o velho jarrão que te trouxera Hervey de Saint-Denis. Ameaçavas ir passar definitivamente a tua vida na China, de tão apaixonado que estavas por aquele país; já gostavas de fazer longas vagabundagens. Ah, foste um tipo especial, pois pode-se dizer que nunca, em coisa alguma, tiveste os mesmos gostos de todo mundo... -

            Mas apenas dissera tais palavras, o duque enrubesceu, pois conhecia, se não os costumes, ao menos a reputação do irmão. Como jamais lhe falara naquilo, estava tanto mais constrangido por ter dito algo que podia parecer relacionar-se com o caso, e mais ainda por ter se mostrado constrangido. Após um segundo de silêncio:

            - Quem sabe - disse ele para desfazer suas últimas palavras - se não estavas apaixonado por uma chinesa, antes de amar a tantas brancas, e lhes agradares, a julgar por uma certa dama a quem deste muita satisfação esta noite ao conversar com ela. Ela ficou encantada contigo.

            O duque havia prometido a si próprio não falar da Sra. de Surgis, mas, em meio à confusão que a gafe que acabara de cometer lançara nas suas idéias, apegara-se à mais próxima, que era justamente aquela que não devia aparecer na conversa, embora a tivesse motivado. Mas o Sr. de Charlus notara o rubor do irmão. E como os culpados que não desejam parecer embaraçados quando se fala diante deles do crime que pretendem não ter cometido, e julgam dever prolongar uma conversação perigosa:

            - Estou encantado - respondeu-lhe -; mas faço questão de reportar-me à tua frase anterior, que me parece profundamente verdadeira. Tu dizias que nunca tive as mesmas idéias de todo mundo, não dizias idéias, dizias gostos. Como é exato! Nunca tive em coisa alguma os gostos mundo; como é exato! Tu dizias que eu tinha gostos especiais.

            - Absolutamente não - protestou o Sr. de Guermantes, que de fato não disse palavras e talvez não acreditasse na realidade, no caso do irmão, só elas designam. E, além disso, julgar-se-ia por acaso no direito de comentá-lo devido à singularidades que, de qualquer maneira, tinham percebido bastante duvidosas ou bastante secretas para não prejudicar a excepcional posição de Charlus? Mais ainda, sentindo que essa posição do irmão ia colocar-se a serviço de suas amantes, o duque dizia consigo que aquilo bem valia algumas complacências em troca; se tivesse, no momento, conhecido alguma ligação "especial" do irmão, ele, na esperança do apoio que o irmão lhe daria, esperança unida à piedosa lembrança do tempo passado, teria passado por cima, fechando os olhos a tudo, caso necessário, até estenderia a mão.

            - Vamos, Basin; boa-noite, Pamede. - disse a duquesa, roída de raiva e de curiosidade; -se resolveram passar a noite aqui, é melhor que fiquemos para a ceia. Faz meia hora que nos deixam de pé, a Marie e a mim. -

            O duque deixou o irmão a um abraço significativo; e nós três descemos a escadaria imensa do palácio da princesa. Dos dois lados, nos degraus mais altos, espalhavam-se casais que esperavam que seu carro aparecesse. Ereta, isolada, ladeada por mim e pelo marido, a duquesa mantinha-se à esquerda da escadaria, já envolta em seu manto à Tiepolo, o broche de rubis fechando-lhe a garganta, devorada pelos olhos das mulheres e dos homens, que procuravam surpreender o segredo da sua beleza e da sua elegância. Esperando o seu carro no mesmo degrau da escada da Sra. de Guermantes, mas na extremidade oposta, a Srt. de Gallardon, que desde muito perdera toda a esperança de ser um dia visitada por sua prima, virava as costas para não parecer vê-la, e sobretudo para não oferecer a prova de que esta não a cumprimentava. A Sra. de Gallardon estava de muito mau humor, pois os senhores que a acompanhavam tinham julgado dever falar-lhe de Oriane:

            - Absolutamente, não faço questão nenhuma de vê-la - respondera-lhes; aliás, avistei-a há pouco, ela principia a envelhecer; parece que não consegue se acostumar. O próprio Basin foi quem disse. E bem o compreendo, pois, como não possui inteligência, é malvada e tem maus modos, percebe que, quando lhe faltar a beleza, não terá mais absolutamente nada.

            Eu pusera meu sobretudo, o que o Sr. de Guermantes, que receava gripes, censurou ao descer comigo, por causa do calor que fazia. E a geração de nobres, que mais ou menos havia passado por monsenhor Saint-Loup, fala um francês tão ruim (à exceção dos Castellane), que o duque assim exprimiu seu pensamento:

            - É preferível não estar coberto antes de ir para fora, pelo menos em tese geral.

            Revejo toda esta saída, revejo, se não é por engano que coloco esta cena na escadaria, retrato destacado de seu quadro, o príncipe de Sagan, para quem seria essa a última recepção mundana, descobrir-se para render suas homenagens à duquesa, com uma revolução tão ampla do chapéu alto na mão de branco enluvada, combinando com a gardênia da botoeira, que a gente se espantava de que não fosse um chapéu de feltro, ornado de plumas, do Antigo Regime, do qual várias figuras ancestrais estavam perfeitamente reproduzidas na daquele grão-senhor.

            Pouco se deteve junto dela, porém mesmo as suas atitudes de um momento bastavam para compor todo um quadro vivo e como que uma cena histórica. Por outro lado, como está morto desde então e eu mal o avistara quando vivo, de tal modo tornou-se para mim um personagem histórico, ao menos da história mundana, que ocorre espantar-me ao pensar que uma mulher e um homem de meu conhecimento sejam sua irmã e seu sobrinho.

            Enquanto descíamos as escadas, ia subindo, com um ar de fadiga que bem lhe assentava, uma mulher aparentando quarenta anos, mas que deveria ter mais. Era a princesa d'Orvillers, filha natural, conforme diziam, do duque de Parma, e cuja voz suave se escondia num vago acento austríaco. Ela avançava, alta, inclinada, num vestido de seda branco e florido, deixando ofegar o colo delicioso, palpitante e exausto através de um colar de diamantes e de safiras. Sempre sacudindo a cabeça como uma potranca real que se embaraçasse com seu cabresto de pérolas, de valor inestimável e de peso incômodo, pousava aqui e ali os olhares doces e encantadores, de um azul que, à medida que principiava a desgastar-se, tornava-se ainda mais acariciante e fazia à maioria dos convidados que se retiravam um aceno amigável de cabeça.

            - Que bela hora arranjou para chegar, Paulette! - disse a duquesa.

            - Ah, lamento muito! Mas na verdade não houve possibilidade material - respondeu a princesa d'Orvillers, que tomara emprestado à duquesa de Guermantes esse gênero de frases, mas acrescentava-lhe a sua doçura natural e o ar de sinceridade conferido pela energia de um acento vagamente doce numa voz tão suave. Ela dava a impressão de aludir a contratempos de vida muito longos para narrar, e não vulgarmente às recepções, embora naquele momento regressasse de várias delas. Mas não eram estas que a forçavam a vir tão tarde. Como o príncipe de Guermantes houvesse impedido sua mulher, durante longos anos, de receber a Sra. d'Orvillers, esta, quando foi levantada a proibição, contentara-se em responder aos convites, para não dar a entender que estava sequiosa por eles, com simples cartões de visitas deixados no palácio. Ao fim de dois ou três anos de utilização desse método, ela própria comparecia, mais tarde, como se estivesse voltando do teatro. Dessa forma, dava a impressão de não ligar a mínima para a recepção, nem de ser vista ali, simplesmente fazendo uma visita ao príncipe e à princesa somente por simpatia, no momento em que, tendo já ido embora três quartos dos convidados, ela "gozaria mais a presença deles".

            - Oriane, de fato, - ao último degrau resmungou a Sra. de Gallardon. - Não compreendo como Basin a deixa falar à Sra. d'Orvillers. Não é o Sr. de Gallardon que me permitiria fazer isto. -   Quanto a mim, reconhecera na Sra. d'Orvillers mulher que, perto do palácio Guermantes, lançara-me longos olfatos, langorosos, virava-se, parava diante das vitrines das lojas. A Sra. de. Guermantes me apresentou; a Sra. d'Orvillers foi encantadora, nem muito amável nem constrangida. Olhou-me como a todo mundo com seus olhos verdes... Porém nunca mais, quando a encontrasse, eu deveria receber parte de um só daqueles avanços em que ela parecia oferecer-se. Existem olhares especiais que parecem nos reconhecer, e que um rapaz só recebe de certas mulheres e de certos homens até o dia em que nos conhecem e ficam sabendo que somos amigos de pessoas a que também estão ligados.       

            Anunciaram que o carro já avançara. A Sra. de Guermantes puxou a saia vermelha, como para descer a escada e subir ao carro, mas, animada talvez pelo remorso, ou pelo desejo de agradar e, sobretudo, de aproveitar a brevidade que o impedimento material de prolongá-lo impunha um ato tão tedioso, olhou para a Sra. de Gallardon; depois, como se somente então a tivesse avistado, atravessou todo o comprimento do degrau até descer e, tendo chegado à prima deslumbrada, estendeu-lhe a mão.

            - Há quanto tempo! - disse-lhe a duquesa que, para não ser obrigada a desenvolver tudo o que se continha de pesar e de desculpas legítimas nessa fórmula, voltou-se com ar assustado para o duque, o qual, de fato, tinha descido comigo em direção ao carro, esbravejava ao ver que a mulher seguira em direção à Sra. de Gallardon e interrompia a circulação dos outro carros.

            - Oriane ainda está mesmo muito bonita! - disse a Sra. do Gallardon. - Fazem-me rir as pessoas quando dizem que não nos damos bem; por motivos em que não precisamos meter os outros, podemos ficar anos e anos sem nos vermos; mas temos bastantes recordações comuns para que possamos algum dia ficar afastadas, e, no fundo, ela bem sabe que a estimo ainda mais que muitas pessoas a quem vê todos os dias e que nos são do seu sangue. -

            A Sra. de Gallardon era na verdade como esposos amorosos desdenhados que a todo transe querem fazer acreditar que e mais amados do que aqueles escolhidos por sua bela. E pelos elos que, sem se preocupar com a contradição com o que havia dito pouco antes, ela prodigalizava ao falar da duquesa de Guermantes provava indiretamente que esta possuía a fundo as normas que devem orientar em sua carreira a uma rainha da elegância, a qual, na ocasião mesma em que seu vestido mais maravilhoso excita, além da admiração, a inveja, deve saber atravessar uma escadaria inteira para desarmá-la.

            - Pelo menos, presta atenção para não molhar os sapatos - (pois havia caído uma breve pancada de chuva) - disse o duque, que ainda estava furioso por ter esperado.

            Durante a volta, devido à exigüidade do cupê, os sapatos vermelhos se achavam forçosamente pouco afastados dos meus; e a Sra. de Guermantes, receando até que me houvessem tocado, disse ao duque:

            - Este rapaz vai ser obrigado a dizer-me, como em não sei mais qual caricatura: "Senhora, diga logo que me ama, mas não pise meus pés desse jeito." -

            Aliás, meus pensamentos andavam bem longe da Sra. de Guermantes. Desde que Saint-Loup me falara de uma moça de alta linhagem que freqüentava um bordel e da camareira da baronesa Putbus, era nessas duas pessoas que, em bloco, se resumiam os desejos que me inspiravam diariamente tantas beldades de ambas as classes; de uma parte, as vulgares e magníficas, as majestosas camareiras de casa nobre, cheias de orgulho, e que dizem "nós" ao falar das duquesas; de outra parte, aquelas moças de que às vezes me bastava, mesmo sem as ter visto passar de carro ou a pé, ter lido o nome num noticiário de baile para me enamorar delas e, depois de procurar conscienciosamente no anuário dos castelos o lugar onde passavam o verão (muitas vezes deixando-me iludir por um nome parecido), sonhar, alternativamente, ir habitar as planícies do Oeste, as dunas do Norte e os bosques de pinheirais do Sul. Mas, por mais que fundisse inteira toda a matéria carnal mais requintada para compor, conforme o ideal que me traçara Saint-Loup, a jovem leviana e a camareira da Sra. Putbus, faltava às minhas duas beldades possíveis aquilo que eu ignoraria enquanto as não tivesse visto: o caráter individual. Em vão eu devia esgotar-me para tentar imaginar, durante os meses em que o meu desejo se dirigia de preferência às moças, como era feita e quem seria aquela de quem Saint-Loup me havia falado; e, durante os meses em que teria preferido uma camareira, a da Sra. Putbus. Mas que tranqüilidade, depois de ter sido perpetuamente perturbado por meus desejos inquietos, por tantas criaturas fugitivas de quem muitas vezes nem mesmo sabia os nomes, que de todo jeito eram tão difíceis de encontrar, e mais ainda de conhecer, impossíveis talvez de conquistar, o haver reservado, de toda essa beleza esparsa, fugidia, anônima, dois espécimes de elite, munidos de sua ficha identificadora, e que eu pelo menos tinha certeza de conseguir quando quisesse! Adiava a hora de entregar-me a esse duplo prazer, como adiava a do trabalho, mas a certeza de quando quisesse quase me dispensava de agarrá-lo, como esses compridos soporíferos que é bastante ter ao alcance da mão para não precisar deles e adormecer. No universo inteiro eu não desejava mais que, mulheres das quais, é verdade, não conseguia imaginar o rosto, mas quem Saint-Loup me ensinara os nomes e garantira a complacência modo que, se por suas palavras de há pouco havia fornecido um trabalho à minha imaginação, em compensação proporcionara um aprazível descanso, um repouso duradouro à minha vontade.

            - Pois bem - disse-me a duquesa. - Fora os bailes, não poder lhe ser útil de algum modo? Encontrou algum salão onde deseja quem apresente? -

            Respondi-lhe que temia que o único que desejava conhecer não fosse suficientemente distinto para ela.

            - Qual é? - indagou ela com voz rouca e ameaçadora, sem quase abrir a boca.

            - A baronesa Putbus -

            Desta vez, ela fingiu verdadeira cólera.

            - Ah, não! Isso é que não. Está zombando de mim. Nem sei mesmo por qual acaso sei o nome desse camelo. Pois ela é o lodo da sociedade. É como se o senhor me dissesse que o apresentasse à minha caixeira. E, mesmo assim, não; a minha caixeira é encantadora. Você é meio doido, meu pobre rapaz. Em todo caso peço-lhe por favor, seja polido para com as pessoas a quem o apresento deixe-lhes cartões, vá visitá-las e não lhes fale da baronesa Putbus, que é desconhecida. -

            Perguntei-lhe se a Sra. d'Orvillers não era um tanto leviana.

            - Oh, de jeito nenhum, o senhor está confundindo, ela seria antes presunçosa. Não é mesmo, Basin?

            - Sim; de qualquer modo, creio que nunca houve o que dizer a seu respeito - disse o duque. - Não quer ir conosco ao baile à fantasia? - perguntou-me - Eu lhe emprestaria um manto veneziano e sei de alguém que terá enorme satisfação com isso; primeiro a Oriane, é escusado dizer, mas estou me referindo à princesa de Parma. Todo o tempo ela entoa os seus louvores, só jura pelo senhor. O amigo tem a sorte visto ser a princesa um tanto madura de que ela seja de uma pudicícia absoluta. Não fosse isso, certamente o tomaria como chichisbéu, como se dizia na minha juventude, uma espécie de cavaleiro servidor.

            Eu não fiz questão do baile à fantasia, mas do encontro com Albertine. Portanto, recusei. O carro havia parado, o lacaio bateu no portão principal, os cavalos escarvaram até que ele fosse escancarado, e o carril penetrou no pátio.

            - Até mais ver - disse o duque.

            - Às vezes, tenho lastimado morar assim tão perto de Marie - disse a duquesa porque; gosto muito dela, gosto um pouquinho menos de vê-la. Mas nunca lastimo essa proximidade tanto como esta noite, pois isto me faz ficar tão pouco tempo em sua companhia.

            - Vamos, Oriane, nada de discursos. -

            A duquesa desejaria que eu entrasse por um momento em sua casa. Riu muito, bem como o duque, quando eu disse que não podia porque uma moça devia me fazer uma visita precisamente àquela hora.

            - O senhor tem uma hora muito divertida para receber suas visitas - disse a duquesa.

            - Vamos, minha querida, despachemo-nos - disse o Sr. de Guermantes à mulher. - Faltam quinze para a meia-noite e é hora de a gente se fantasiar... -

            Diante da porta, severamente guardada por elas, ele topou com as duas damas de bengala que não tinham receado descer de suas alturas a fim de evitar um escândalo.

            - Basin, fizemos questão de preveni-lo, por medo de que seja visto nesse baile: o pobre Amanien acaba de morrer faz uma hora. -

            O duque teve um instante de alarme. Via a famosa festa evaporar-se para ele desde o momento em que, devido àquelas malditas montanhesas, era advertido da morte do Sr. d'Osmond. Mas recuperou-se rápido e atirou às duas primas esta frase em que expressava, com a determinação de não renunciar a um prazer, a sua incapacidade de assimilar exatamente os volteios da língua francesa:

            - Está morto! Mas não, estão exagerando, exagerando! -

            E sem mais se ocupar das duas parentas que, munidas de seus alpenstocks, iam fazer a escalada dentro da noite, ele se precipitou em busca de notícias, interrogando o seu criado de quarto:

            - Meu capacete já chegou?

            - Sim, senhor duque.

            - Tem um buraco por onde se possa respirar? Não tenho vontade de ficar asfixiado, que diabo!

            - Sim, senhor duque.

            - Ah, maldição! Esta é uma noite de desgraças! Oriane, esqueci de perguntar a Babal se os sapatos de polainas eram para você!

            - Mas meu querido, já que o roupeiro da ópera Cômica está aí, ele nos dirá. Por mim, não creio que possa combinar com suas esporas.

            - Vamos procurar o roupeiro - disse o duque. - Adeus, meu rapaz; gostaria de convidá-lo para entrar conosco, enquanto experimentamos as fantasias, para diverti-lo. Mas ficaríamos conversando, já vai dar meia-noite e é preciso que não cheguemos atrasados para que a festa seja completa.

            Eu também tinha pressa de deixar o Sr. e a Sra. de Guermantes o mais rápido possível. Fedra terminava cerca das onze e meia. Pelo tempo decorrido, Albertine já devia ter chegado. Fui direto a Françoise:

            - A Srta. Albertine está aí?

            - Ninguém chegou.

            Meu Deus, isto queria dizer que ninguém viria? Sentia-me atormentado, a visita de Albertine parecia-me agora tanto mais desejável, por ser menos certa. Françoise também estava aborrecida, mas por um motivo inteiramente diverso. Acabava de instalar sua filha à mesa para uma refeição suculenta. Mas, ao ouvir-me chegar, vendo que lhe faltava tempo para tirar os pratos e preparar as agulhas e a linha, como se se tratasse de uma costura e não de uma ceia, disse-me:

            - Ela acaba de tomar umas colheradas de sopa; obriguei-a a chupar uns frutos - para reduzir assim a quase nada a refeição da filha, e como se fosse culposa a abundância. Mesmo no almoço ou no jantar, se eu cometesse a falta de entrar na cozinha, Françoise fingia que tinham terminado e até desculpava dizendo:

            "Eu tinha querido comer um pedaço", ou "umboca '' - Mas a gente logo se tranqüilizava ao ver a multidão de pratos que, enchiam a mesa e que Françoise, surpreendida pela minha súbita entrada; como um malfeitor que ela não era, não tivera tempo de fazer desaparecer. Depois, acrescentou:

            - Vamos, vai te deitar, já trabalhaste demasiado - (pois queria que a filha desse a impressão não só de não nos custar - de viver de privações, mas também de se matar de trabalho por nossa causa). - Não fazes mais que atravancar a cozinha e sobretudo incomoda o patrão que espera a visita. Vamos, sobe - prosseguiu, como se fosse obrigada a usar de autoridade para mandar a filha dormir, a qual, uma vez que estava gorada a ceia, estava ali por estar, e que, se eu tivesse permanecido ali mais cinco minutos, teria saído por si mesma. E voltando-se para com o belo francês popular e no entanto meio individual, que era o seu:

            - Pois não vê o patrão que a vontade de dormir lhe desfaz a cara? -

            Eu ficara encantado por não ter de conversar com a filha de Françoise. Já disse que ela era de uma região bem próxima da de sua prima; no entanto, bem diferente pela natureza do terreno, das culturas, do dia-a-dia; principalmente por certas particularidades dos habitantes. Assim, a "açougueira" e a sobrinha de Françoise não se davam nada bem, mas tinham algo em comum: quando saíam a recado, demoravam-se horas "na casa da marquês” ou "na casa da prima", sendo incapazes de terminar uma conversação, em cujo transcorrer se dissipava o motivo que as havia feito sair, de tal modo que se lhes perguntavam, ao regressarem:

            - E então, o Sr. marquês de Norpois estará visível às seis e quinze? - elas nem mesmo batiam na testa dizendo:

            - Ah, esqueci mas: - Ah, não entendi que o patrão tinha perguntado isso, pensei que era só para cumprimentar o senhor marquês" - Se elas "perdiam a cabeça" desse jeito quanto a uma coisa dita uma hora antes, em compensação era impossível tirar-lhes da cabeça o que tinha ouvido a irmã ou a prima dizerem uma vez. Assim, se a "açougueira" ouvira dizer que os ingleses nos tinham feito a guerra em 1870 ao mesmo tempo que os prussianos (e por mais que eu lhe explicasse que aquilo era sonho), a cada três semanas me repetia no decurso de uma conversa:

            - E por causa dessa guerra que os ingleses nos fizeram em 1870, ao mesmo tempo que os prussianos.

            - Mas eu já lhe disse cem vezes que você está enganada. -

            Ela respondia, o que deixava claro que nada abalava a sua convicção:

            - Em todo caso, não é motivo para lhes querer mal. Desde 1870, muita ocorreu debaixo das pontes, etc. -

            Uma outra vez, pregando uma guerra contra a Inglaterra, que eu desaprovava, dizia:

            - Decerto, sempre é melhor não haver guerra. Mas, visto que é necessário, é preferível começar logo. Como explicava a mana há pouco, desde essa guerra que os ingleses nos fizeram em 1870, os tratados comerciais nos arruínam. Depois de os termos derrotado, não se deixará mais entrar na França um só inglês sem pagar trezentos francos de entrada, como nós fazemos agora para ir à Inglaterra.

            Tal era, além de grande honestidade e, quando falavam, de uma surda obstinação em não se deixarem interromper, em recomeçarem vinte vezes do ponto em que por acaso eram interrompidas, o que acabava por dar às suas frases a solidez inabalável de uma fuga de Bach, o caráter dos habitantes daquela terrinha, que não contava mais de quinhentos, orlada de castanheiros, salgueiros, campos de batatas e de beterrabas. Ao contrário, a filha de Françoise falava, julgando-se uma mulher moderna e fora dos caminhos muito batidos, a gíria parisiense e não perdia nenhum dos gracejos adjuntos. Tendo-lhe dito Françoise que eu chegava da casa de uma princesa:

            - Ah, sem dúvida uma princesa de fancaria. -

            Vendo que eu esperava uma visita, fingiu julgar que me chamava Charles. Respondi-lhe ingenuamente que não, o que lhe permitiu encaixar:

            - Ah, era o que eu pensava!

            “E dizia comigo Charles attend (charlatan)."

[Trocadilho muito conhecido, seriam as pretensas palavras que teria pronunciado o rei Luís XVIII, agonizante, a seus médicos: - Allons, linissons-en, Charles attend ("Vamos, acabemos com isso, Carlos espera"), aludindo à inépcia dos médicos (charlatans) e à pressa de Carlos X em subir ao trono (Charles attend). (N. do T)]

 

            Não era de muito bom gosto. Mas fiquei menos indiferente quando, como consolo pelo atraso de Albertine, ela me disse:

            - Acho que o senhor pode esperá-la sentado. Ela não vem mais. Ah, as nossas gigoletes de hoje!

            Assim, o seu linguajar diferia do da mãe; mas o que é mais curioso, a fala de sua mãe diferia da de sua avó, natural de Bailleau-le-Pin, que era bem próximo da região de Françoise. No entanto, os dialetos diferiam ligeiramente como as duas paisagens. A região da mãe de Françoise, em declive e descendo para um barranco, era povoada de salgueiros. E, muito longe dali, pelo contrário, havia na França uma pequena região onde se falava quase exatamente o mesmo dialeto que em Méséglise. Fiz essa descoberta ao mesmo tempo que aquilo me aborreceu. Com efeito, certa vez achei Françoise em animada conversa com uma camareira da casa, que era dessa região e falava aquele dialeto. Elas quase se compreendiam, eu não as compreendia absolutamente, elas o sabiam, e nem por isso deixavam de conversar, com a desculpa, acreditavam, da alegria de serem conterrâneas; embora nascidas tão longe uma da outra, diante de mim naquela língua estranha, como quando não se deseja ser compreendido. Esses pitorescos estudos de geografia lingüística e de camaradagem, prossegui todas as semanas na cozinha, sem que eu sentisse nenhum prazer naquilo. Como, de cada vez que se abria o portão principal, o porteiro apertava um botão elétrico que iluminava a escada, e como todos os locatários já estivessem em casa, deixei imediatamente a cozinha e voltei a sentar na antecâmara para espiar, ali onde a cortina um pouco estreita, que não cobria inteiramente a porta envidraçada de nosso apartamento, deixei passar a sombria raia vertical formada pela semi-obscuridade da escada; para que de repente, essa raia se tornasse de um amarelo dourado, é que Albertine acabara de entrar embaixo e em dois minutos estaria junto de mim; nenhuma outra pessoa podia chegar àquela hora. E eu permanecia, sem poder desviar os olhos da raia que se obstinava em continuar sombria; debruçava-me todo para estar certo de ver bem; porém, por mais que olhasse o negro traço vertical, apesar de meu desejo apaixonado, não me concedia contentamento embriagador que eu teria tido se o visse mudar-se, por súbito encantamento significativo, numa luminosa barra de ouro. Era inquietação demais por causa dessa Albertine, em quem não havia pensado sequer três minutos durante o sarau Guermantes! Porém, despertando os sentimentos de espera que outrora experimentara a respeito de outras moças principalmente Gilberte, quando ela demorava a chegar, a possível privação de um simples prazer físico causava-me um cruel sofrimento moral.

            Tive de voltar para o quarto. Françoise me seguiu. Como eu estivesse de volta da recepção, ela achava inútil que eu guardasse a rosa de botoeira, e veio tirá-la. Seu gesto, fazendo-me lembrar que Albertine podia não vir mais e obrigando-me também a confessar que desejava estar elegante para ela, provocou-me uma irritação que foi duplicada pelo fato que havia machucado a flor enquanto me desprendia violentamente. Palavras de Françoise:

            - Seria melhor deixar que a tirasse em vez de estragá-la desse jeito. -

            Aliás, suas menores palavras me exasperavam. Enquanto a gente espera, sofre tanto com a ausência de quem está lembrando que não pode suportar a presença de outra pessoa.

            Depois que Françoise saiu do quarto, pensei que, se chegara a essa coqueteria em relação a Albertine, era uma pena que tivesse mostrado tantas vezes a ela tão mal barbeado, com uma barba de muitos dias, nas noites em que a deixava vir para recomeçar nossas carícias. Sentia que, despreocupada de mim, ela me deixava sozinho. Para embelezar pouco o meu quarto, caso Albertine ainda viesse, e porque era uma das coisas mais belas que eu possuía, voltei a colocar pela primeira vez em muitos anos, sobre a mesa que ficava junto da cama, aquele porta-papéis ornado de turquesas que Gilberte me encomendara para envolver a plaquete de Bergotte e que, durante tanto tempo, quisera eu guardar comigo enquanto dormia, ao lado da bolinha de ágata. Além disso, talvez tanto como Albertine, ainda não chegada, sua presença naquele momento em um "alhures" que ela evidentemente achara mais agradável e que eu não conhecia causava-me um sentimento doloroso que, apesar do que eu dissera há uma hora apenas a Swann, acerca da minha incapacidade de sentir ciúmes, teria se transformado, se visse a minha amiga a intervalos menos longos, numa ansiosa necessidade de saber onde e com quem ela passava o tempo. Não me animava a mandar um recado à casa de Albertine, era muito tarde, mas, na esperança de que, ceando talvez com amigas num café, ela tivesse a idéia de me telefonar, torci o interruptor e, restabelecendo a comunicação no meu quarto, cortei-a entre a central e o quarto do porteiro, a que estava normalmente ligado àquela hora. Ter um receptor no corredorzinho para onde dava o quarto de Françoise teria sido mais simples, menos incômodo, porém inútil. Os progressos da civilização permitem a cada um manifestar qualidades insuspeitadas ou vícios novos que os tornam mais caros ou mais insuportáveis a seus amigos. Foi assim que a descoberta de Edison permitira à Françoise adquirir um defeito a mais, que era o de se recusar a servir-se do telefone, por mais urgência ou utilidade que houvesse nisso. Ela encontrava um jeito de se furtar quando queriam lhe ensinar a usá-lo, como outros fogem no momento de serem vacinados. Assim, o telefone estava instalado no meu quarto e, para que não incomodasse meus pais, sua campainha fora substituída por um simples rumor de torniquete. De medo de não ouvi-lo, eu não me movia. Minha imobilidade era tal que, pela primeira vez depois de meses, reparei no tique-taque da pêndula. Françoise veio arrumar as coisas. Conversava comigo, mas eu detestava aquela conversa, sob cuja continuidade uniformemente banal meus sentimentos se alteravam de minuto a minuto, passando do temor à ansiedade, da ansiedade à decepção completa. Diversamente das palavras vagamente satisfeitas que me julgava obrigado a dirigir-lhe, sentia tão infeliz a minha fisionomia que pretextei estar sofrendo de um reumatismo para explicar a discordância entre minha indiferença simulada e aquela expressão dolorosa; além disso, temia que as palavras pronunciadas por Françoise, aliás a meia voz (não por causa de Albertine, pois ela julgava passada há muito a hora de sua possível chegada), me impedissem de ouvir o apelo salvador que não viria mais. Françoise foi se deitar; despedi-a com uma rude brandura, para que o que ela faria ao sair não abafasse o do telefone.

            Recomecei a sofrer; quando estamos esperando, do ouvido que recolhe os ruídos do espírito que os despoja e analisa, e do espírito ao coração, a quem ele emite seus resultados, o duplo trajeto é tão rápido que nós nem sequer pudemos perceber sua duração, e parece que estamos ouvindo direto com o coração.

            Eu era torturado pela incessante reincidência do desejo, se mais ansioso e jamais satisfeito, de um rumor de chamada; eis que chegando ao ponto culminante de uma ascensão atormentada pelas esperanças de minha angústia solitária, do fundo da Paris populosa e noturna, próxima de mim, ao lado de minha biblioteca, ouvi de repente, uma mecânica sublime, como no Tristão a écharpe agitada ou a flauta de cana do pastor - ruído de pião do telefone.

            Levantei-me depressa; era Albertine.

            - Não incomodo ao telefone numa hora destas?

            - Claro que não... - disse, reprimindo a alegria, pois o que ela dizia acerca da hora indevida sem dúvida era para se desculpar por vir num momento tão tardio, e não que viesse.

            - Você vem? - perguntei num tom indiferente.

            - Claro que não, se você não tem necessidade absoluta de mim.

            Uma parte de mim à qual a outra queria se juntar estava em Albertine. Era preciso que ela viesse, mas no começo eu não lhe disse nada; como estávamos em comunicação, disse para mim mesmo que poderia sempre obrigá-la, no último instante, ou a vir até minha casa, ou a me deixar correr até a sua.

            - Sim, estou perto de casa - disse ela; e um pouco longe da sua. Não tinha lido bem o seu recado. Acabei de relê-lo e pensei que você não estivesse me esperando. -

            Percebi que ela mentia e agitado na minha fúria, mais ainda pela necessidade de incomodá-la do que de vê-la é que desejava obrigá-la a vir. Mas queria primeiro recusar o que pretendia obter dentro de instantes. Mas onde estava ela? Às suas palavras misturavam-se outros sons: a buzina de um ciclista, a voz de uma mulher que cantava, uma fanfarra distante ressoavam tão distintamente como a voz querida, como para me mostrar que era mesmo Albertine em seu meio até que estava perto de mim naquele momento, como um torrão de terra com o qual foram trazidas todas as gramíneas que o cercavam. Os mesmos ruídos que eu ouvia também feriam seus ouvidos e estorvavam sua atenção pormenores de verdade, estranhos ao assunto, inúteis em si mesmos, mais necessários para nos revelar a evidência do milagre; vestígios sóbrios e encantadores, descritivos de alguma rua parisiense, vestígios igualmente intensos e cruéis de um sarau desconhecido que, à saída da Fedra, havia impedido Albertine de vir até minha casa.

            - Começo prevenindo-a de que não é para que você venha, pois a essa hora você me deixaria muito constrangido - disse-lhe; - estou caindo de sono. E depois, afinal, há um monte de complicações. Faço questão de lhe dizer que não havia mal-entendido possível em meu bilhete. Você me havia respondido que estava combinado. Então, se você não tinha compreendido, o que é que queria dizer com isso?

            - Eu disse que estava combinado, apenas já não me lembrava bem do que fora combinado. Mas vejo que você está aborrecido e isto me incomoda. Lamento ter ido à Fedra. Se tivesse adivinhado que ia causar tantos transtornos... - acrescentou, como todas as pessoas que, sendo culpadas de uma coisa, aparentam crer que é uma outra coisa que lhes censuram.

            - Fedra não tem nada a ver com o meu descontentamento, visto que fui eu quem lhe aconselhou que fosse.

            - Então você ficou aborrecido comigo; é pena que já seja tão tarde esta noite; não fosse isso eu teria ido a sua casa, mas irei amanhã ou depois de amanhã para me desculpar.

            - Oh, não! Albertine, peço-lhe; depois de ter-me feito perder uma noite, deixe-me ao menos em paz nos dias seguintes. Não estarei livre nos próximos quinze dias, ou três semanas. Escute, se lhe aborrece nos separarmos com uma impressão de cólera, e, no fundo, talvez tenha razão, então ainda prefiro, cansaço por cansaço, já que a esperei até esta hora e que você ainda está na rua, que venha imediatamente, vou tomar café para despertar.

            - Não seria possível deixar isto para amanhã? Porque a dificuldade... -

            Ao ouvir estas palavras de desculpa, pronunciadas como se ela não viesse, senti que, ao desejo de rever o rosto aveludado que já em Balbec orientava todos os meus dias para o momento em que, diante do mar cor-de-malva de setembro, eu estaria ao lado daquela rósea flor, tentava dolorosamente unir-se um elemento bem diverso. Essa tremenda necessidade de uma criatura, eu aprendera a conhecê-la em Combray a respeito de minha mãe, e até ao ponto de desejar morrer se ela me mandava dizer por Françoise que não poderia subir. Esse esforço do antigo sentimento para se combinar e fazer apenas um só elemento com o outro, mais recente, e que tinha somente como objeto a superfície colorida, a rósea carnação de uma flor de praia, esse esforço muitas vezes leva apenas (no sentido químico) a um corpo novo, que pode durar pouco mais que alguns instantes. Naquela noite ao menos, e por muito tempo ainda, os dois elementos permaneceram dissociados. Mas, já às últimas palavras ouvidas pelo telefone, comecei a compreender que a vida de Albertine estava situada (sem dúvida não do ponto de vista material) a uma tal distância de mim que me seriam necessárias sempre explorações fatigantes para lhe pôr a mão em cima; mais ainda: estava organizada como fortificações de campanha e, para maior segurança, com o tipo daquelas a que bem mais tarde adquiriu-se o hábito de tornar "camufladas". Aliás, Albertine, em um nível mais elevado do dela fazia parte desse tipo de pessoas a quem a porteira promete ao portador entregar a carta quando voltar para casa até o dia em que descobrimos que precisamente ela (a pessoa encontrada fora e a que demos permissão de escrever) é que é a porteira, de modo que ela mora mais na portaria na casa que nos indicou (a qual, por sua vez é um pequeno bordel do qual a porteira é a cafetina) ou então dá o endereço de um prédio onde é conhecida por cúmplices que não revelam seu segredo, de onde lhe farão chegar as nossas cartas, mas onde esta reside, onde, quando muito, deixou suas coisas. Existências dispostas sobre cinco ou seis linhas estratégicas, de maneira que, quando se deseja conhecer essa mulher, bate-se muito à direita, ou muito à esquerda, muito adiante, ou muito atrás, podendo-se ignorar tudo durante meses. Quanto a Albertine, eu sentia que jamais aprenderia coisa alguma, que a multiplicidade entremeada de detalhes reais e de fatos mentirosos eu chegaria a me desembaraçar. E que isto seria sempre assim, a menos que a colocasse na prisão (porém, foge-se) até o fim. Naquela noite, essa conecção fez passar através de mim não mais que uma inquietude, mas eu sentia fremir como que uma antecipação de longos sofrimentos.

            - Claro que não respondi; já lhe disse que não estaria antes de três semanas, e muito menos amanhã que em qualquer outro - disse.

            - Bem, então... tenho que andar depressa... é aborrecido, pois estou na casa de uma amiga que... -

            Eu sentia que ela não acreditara que eu aceitaria sua proposta de vir, a qual, pois, não era sincera, e quis colocá-la entre a espada e a parede.

            - Que me importa a sua amiga? Venha ou não venha, você é quem decide, não sou eu quem lhe pede para vir, foi você quem propôs.

            - Não se zangue, vou pegar um fiacre e estarei em sua casa dentro de dez minutos. Assim, dessa Paris de cujas profundezas noturnas emanava até meu quarto, medindo o raio de ação de um ser longínquo, mensagem invisível, o que ia surgir e aparecer após essa primeira anunciação era aquela Albertine que eu havia conhecido outrora sob o céu da Balbec, quando os garçons do Grande Hotel, ao porem a mesa, eram ofuscados pela luz do poente, quando, estando as vidraças totalmente abertas, a aragem imperceptível do entardecer corria livremente da praia, onde demoravam os últimos passeantes, para a enorme sala de jantar onde ainda não se haviam sentado os primeiros comensais, e quando, no espelho; colocado por detrás do balcão, passava o reflexo rubro do casco e se deitava ao ficar por muito tempo o reflexo cinzento da fumaça do último vapor de Rivebelle. Eu já não me perguntava o que poderia ter atrasado Albertine quando Françoise entrou no meu quarto e disse:

            - A senhorita Albertine está aí -, se respondi sem nem mesmo mover a cabeça, foi apenas para dissimular:

            - Como, a Srta. Albertine vem tão tarde? -

            Mas então, erguendo os olhos para Françoise, como na curiosidade de que sua resposta devia corroborar a aparente sinceridade de minha pergunta, percebi, com admiração e furor, que, capaz de rivalizar com a própria Berma na arte de fazer falar as roupas inanimadas e as feições do rosto, Françoise soubera "ensinar" ao seu corpete, a seus cabelos, cujos fios mais brancos tinham sido trazidos à superfície, exibidos como uma certidão de nascimento, a seu pescoço encurvado pela fadiga e pela obediência. Eles a lamentavam por ter sido arrancada ao sono e à tepidez do leito, no meio da noite, na sua idade, obrigada a se vestir às pressas, arriscando-se a pegar uma pneumonia. Assim, temendo ter dado a impressão de desculpar-me pela chegada tardia de Albertine, disse:

            - Em todo caso, estou muito contente por ela ter vindo, não podia ser melhor e deixei explodir minha profunda alegria. Que não ficou muito tempo sem mistura, quando ouvi a resposta de Françoise. Esta, sem proferir nenhuma queixa, parecendo mesmo sufocar da melhor maneira uma tosse irresistível, e apenas cruzando o xale como se tivesse frio, começou a me contar tudo o que dissera a Albertine, não tendo esquecido de lhe pedir notícias da tia.

            - Justamente dizia eu que o patrão devia recear que a senhorita não viesse mais, pois isto não são horas de chegar, daqui a pouco será de manhã. Mas ela devia estar em lugares onde se divertia bastante, pois não só não falou que estava contrariada por ter feito o patrão esperar, como também me respondeu com ar de pouco-caso: - Antes tarde que nunca! - E Françoise acrescentou estas palavras que me partiram o coração: - Falando desse modo, ela se denunciou. Talvez tivesse desejado fingir, mas...

            Eu não tinha de que ficar espantado. Acabo de dizer que raramente Françoise se justificava, nos recados que lhe incumbiam, se não do que havia dito e sobre o que discorria de bom grado, ao menos da resposta esperada. Mas se, por exceção, ela nos repetia as frases que nossos amigos tinham dito, por mais curtas que fossem, em geral arranjava um meio, graças à expressão se necessário, ao tom com que assegurava terem sido acompanhadas, para lhes atribuir algo de ferino. A rigor, aceitava ter sofrido um insulto de um fornecedor a cujo estabelecimento a tínhamos enviado, insulto, aliás, provavelmente imaginário, desde que, dirigindo-se a ela, que nos representava, que falara em nosso nome, tal insulto nos atingisse de ricochete. Só restava responder-lhe que compreendera mal, que estava atacada de mania de perseguição, e que todos os comerciantes não se achavam unidos contra ela. Aliás, seus sentimentos pouco me importavam. Não ocorria o mesmo com os de Albertine. Ao repetir-me estas palavras: - Antes tarde que nunca! -, Françoise lembrou-me logo os amigos em cuja companhia Albertine terminara sua noite, divertindo-se ali, e bem mais do que comigo.

            - Ela é cômica, tem um chapeuzinho achatado e, com seus olhos graúdos, isto lhe dá um ar engraçado, principalmente, sua capa, que faria melhor se mandasse para a cerzidora, pois está toda comida. Ela me diverte - acrescentou, como se zombasse de Albert Françoise dificilmente compartilhava de minhas impressões, mas experimentava um vivo desejo de fazer conhecer as suas. Eu nem mesmo queria parecer compreender que esse riso significava o desdém e a zombaria, - para rebater golpe por golpe, respondi a Françoise, muito embora não conhecesse o chapeuzinho de que ela falava:

            - O que você chama "chapeuzinho achatado" é algo simplesmente encantador...

            - Quer dizer que é três vezes nada - disse Françoise exprimindo desta vez com franqueza de um verdadeiro desprezo. Então (num tom suave e moderado, para que minha resposta mentirosa parecesse a expressão, não da minha cólera, mas da verdade, e entretanto sem perder tempo, para não fazer Albertine esperar), dirigi à Françoise estas palavras cruéis:

            - Você é muito boa – disse melosamente - você é gentil, você tem mil qualidades, mas está no mesmo ponto que no dia em que chegou a Paris, tanto para entender de coisas de toilette como para pronunciar de modo correto as palavras e não cometer erros. -

            E esta censura era particularmente estúpida, pois as palavras francesas, de que somos tão orgulhosos de pronunciar corretamente, não passam elas mesmas de "erros" cometidos por bocas gaulesas que pronunciavam arrevesadamente o latim ou o saxão, não passando a nossa língua da pronúncia defeituosa de algumas outras. O gênio lingüístico é o estado vivo, o passado e o futuro do francês, eis o que deveria interessar nos erros de Françoise. A "cerzidora" em vez de "cerzideira" não seria tão curioso como aqueles animais sobreviventes de épocas remotas, como baleia ou a girafa, e que nos mostram os estágios que a vida animal atravessou? - E acrescentei      - Já que você, depois de tantos anos, ainda não aprendeu, quer dizer que jamais aprenderá. Console-se, pois isto a impede de ser uma excelente pessoa e de preparar às maravilhas: bifes; geléia e mais uma infinidade de coisas. O chapéu que você acha simpático é copiado de um chapéu da princesa de Guermantes que custou quinhentos francos. Aliás, pretendo em breve oferecer um outro ainda mais belo à Srta. Albertine.

            Eu sabia que o que mais podia aborrecer a Françoise, que eu gastasse dinheiro com pessoas de quem ela não gostava. Respondeu-me com algumas palavras que uma brusca sufocação tornou inteligíveis. Quando mais tarde soube que ela sofria do coração, quanto remorso não senti por jamais me recusar ao prazer feroz e estéril de retrucar desse modo às suas palavras! Ademais, Françoise detestava Albertine porque esta, sendo pobre, não poderia aumentar o que Françoise chamava minhas superioridades. Sorria benévola cada vez que eu era convidado pela Sra. de Villeparisis. Em troca, indignava-se por Albertine não praticar a reciprocidade. Eu fora obrigado a inventar supostos presentes dados por esta e em cuja existência Françoise jamais dera o menor sinal de fé. Essa falta de reciprocidade a chocava sobretudo em matéria alimentar. Que Albertine aceitasse jantares de mamãe, se não éramos convidados para ir à casa da Sra. Bontemps (a qual, no entanto, passava a metade do tempo fora de Paris, já que o marido aceitava "postos" como outrora, quando estava farto do ministério), isto lhe parecia da parte de minha amiga uma indelicadeza que ela indiretamente punia, recitando esta quadrinha corrente em Combray:

            Mangeons mon pain, - Je le veux bien. - Mangeons le tien. - Je n'ai plus faim.

["Comamos o meu pão, / Com todo o prazer. /Comamos o teu. /- Já não tenho fome." (N. do T)]

            Fingi que estava escrevendo.

            - A quem escreve? - perguntou Albertine entrando.

            - A uma bela amiga minha, Gilberte Swann. Não a conhece?

            - Não.

            Desisti de fazer a Albertine algumas perguntas sobre a sua noitada, sentia que lhe faria censuras e que não teríamos tempo, em vista do adiantado da hora, de nos reconciliarmos o bastante para passar aos beijos e carícias. Assim, foi com eles que eu quis começar desde o primeiro minuto. Além disso, se estava mais calmo, nem por essa razão me sentia feliz. A perda de toda bússola, de toda orientação, que caracteriza a espera, subsiste mesmo após a vinda da pessoa esperada e, substituindo em nós a calma em que imaginávamos a sua chegada com tanto prazer, impede-nos de sentir o menor prazer que seja. Ali estava Albertine; meus nervos destroçados, continuando com sua agitação, esperavam-na ainda.

            - Posso dar-lhe um bom beijo, Albertine?

            - Tantos quantos quiser - disse ela com toda a sua bondade. Eu nunca a vira tão bonita.

            - Mais um ainda? Mas você sabe que isto me dá um prazer imenso.

            - E a mim, ainda mil vezes mais - respondeu ela. - Oh, que linda pasta de papéis você tem aí!

            - Leve-a, dou-lhe como lembrança.

            - Você é tão gentil...

            Ficaríamos para sempre curados do romantismo, se, para se pensar naquela a qual amamos, procurássemos ser aquele que seremos quando não mais amamos. O porta-papéis, a bolinha de ágata de Gilberte, tudo isso recebeu outrora a sua importância apenas de um estado puramente interior, visto; agora eram para mim um porta-papéis e uma bolinha quaisquer.

            Perguntei a Albertine se não queria beber.

            - Parece-me que laranjas e água - disse-me ela - Seria perfeito.

            Assim, pude destacar com seus beijos aquele frescor que me parecia superior a eles, na casa da princesa de Guermantes. E a laranja espremida na água parecia entregar, à medida que ia bebendo, a vida secreta de seu amadurecimento, sua feliz mistura contra certos estados desse corpo humano que pertence a um reino diverso, sua impotência em fazê-lo viver, mas em compensação os jogos irrigadores pelos quais lhe podia ser favorável, sem mistérios revelados; desfruta à minha sensação, mas de modo algum à minha inteligência.      

            Depois que Albertine saiu, lembrei-me que prometera à Swann escrever à Gilberte e achei mais gentil fazê-lo imediatamente. Foi sem emoção, e como que escrevendo a última linha de um tedioso dever de aulas; que tracei sobre o envelope o nome de Gilberte Swann com que outrora cobrira meus cadernos para dar-me a ilusão de que me correspondia com ela. E eu, se era eu quem antigamente escrevia esse nome, agora a tarefa estava entregue, pelo hábito, a um desses numerosos secretários de que ela se utiliza. Aquele podia, com tanto mais calma, escrever o nome de Gilberte visto que, posto em mim recentemente pelo hábito, recém-colocado a serviço, não conhecera Gilberte e sabia apenas, sem emprestar realidade nenhuma a essas palavras, porque me ouvira falar delas, que se tratava de uma jovem da qual estivera enamorado. Não podia acusá-lo de secura. O indivíduo que eu era agora dela era a "testemunha" mais bem escolhida para compreender o que ela própria havia sido. O porta-papéis e a bolinha de ágata tinham-se tornam, simplesmente para mim, relativamente a Albertine, o que haviam sido à Gilberte, o que teriam sido para toda criatura que não tivesse lançada sobre eles o reflexo de uma chama interior. Mas agora, havia em mim uma nova perturbação, que alterava, por sua vez, o verdadeiro poder das coisas e das palavras. E, como Albertine me dissesse, ainda para me agradecer:

            - Gosto tanto de turquesas! - respondi-lhe:

            - Não deixe morrer estas que estou confiando-lhe-, assim como às pedras, o futuro da nossa amizade, que no entanto, não era mais capaz de inspirar a Albertine um sentimento do quanto fora de conservar aquele que me unira outrora a Gilberte.

            Aconteceu por essa época um fenômeno que só merece ser mencionado porque se encontra em todos os períodos importantes da História. No momento mesmo em que eu escrevia à Gilberte, o Sr. de Guermantes, mal tendo regressado do baile à fantasia, ainda adornado com seu capacete, pensava que no dia seguinte se veria forçado a estar oficialmente de luto, e decidiu antecipar em oito dias a estação de águas que deveria fazer. Quando voltou, três semanas depois (e para adiantar, visto que apenas acabo de escrever a minha carta à Gilberte), os amigos do duque que o tinham visto, tão indiferente a princípio, tornar-se um antidreyfusista furioso, ficaram mudos de surpresa ao ouvi-lo (como se a estação de águas não tivesse agido unicamente na bexiga) responder-lhes:

            - Pois bem, o processo será revisado e ele vai ser absolvido; não se pode condenar um homem contra o qual nada existe. Já viram alguma vez um gagá como Froberville? Um oficial preparando os franceses para a matança (quer dizer, para a guerra)! Época estranha! -

            Ora, nesse intervalo o duque de Guermantes conhecera na estação de águas três senhoras encantadoras (uma princesa italiana e suas duas cunhadas). Ouvindo-as dizer algumas palavras sobre os livros que liam, sobre uma peça que se representava no Cassino, o duque de súbito compreendera que tinha a haver-se com mulheres de intelectualidade superior e com quem, como dizia, não dispunha de forças. Nem por isso ficara menos contente de ser convidado pela princesa para jogar bridge. Porém mal chegara à casa desta, como lhe dissesse, no fervor de seu antidreyfusismo sem matizes:

            - Pois bem, não nos falam mais da revisão do famoso Caso Dreyfus -, grande fora a sua estupefação ao ouvir a princesa e as cunhadas afirmarem:

            - Nunca esteve tão próxima a revisão. É impossível manter na prisão quem nada fez.

            - Há?

            Há balbuciara a princípio o duque, como diante da descoberta de uma alcunha esquisita, que fosse usada numa casa para ridicularizar alguém que até então julgasse inteligente. Mas ao cabo de alguns dias, como por covardia e espírito de imitação a gente grita:

            - Olá, Jojotte! - sem saber por quê, a um grande artista a quem ouvimos chamar desse modo naquela casa, o duque, ainda bem constrangido pelo novo costume, entretanto dizia:

            - De fato, se não há nada contra ele. -

            As três damas encantadoras achavam que ele não se acostumava muito rápido e o maltratavam um pouco.

            - Mas no fundo, nenhuma pessoa um pouco inteligente poderia acreditar que houvesse algo contra ele. -

            De cada vez que surgia um fato "esmagador" contra Dreyfus, e o duque, julgando que aquilo iria convertê-las, vinha anunciá-lo, as três damas encantadoras riam muito e não tinham problemas, com uma grande finura de dialética, em mostrar-lhe que o argumento era sem valor e inteiramente ridículo. O duque voltara a Paris como um dreyfusista enraivecido. E com certeza nós não pretendemos que as três damas encantadoras fossem naquele caso mensageiras da verdade. Mas é de notar que a cada dez anos, quando se deixou um homem cheio de uma verdadeira convicção, ocorre que sendo inteligente, uma solitária dama encantadora entre no seu caminho e que ao fim de alguns meses o conduza à opiniões contrárias. Nesse ponto há muitos países que se comportam como o homem; muitos países aos quais deixaram cheios de ódio contra um povo e passados seis meses, mudaram de sentimento e desfizeram suas alianças.

            Durante algum tempo não vi mais Albertine, mas continuei, a visitar à Sra. de Guermantes, que já não falava à minha imaginação, ao palácio das fadas e suas residências, tão inseparáveis delas como, do molusco que fabricou e nela se abriga, a valva de nácar ou de esmalte, ou o torreão guarnecido de ameias de sua concha. Eu não saberia classificar melhor; sendo a dificuldade do problema tão insignificante, como impossível não de resolver, mas também de colocar. Antes da dama, era preciso abordar o palácio das fadas. Ora, uma recebia todos os dias após o almoço de verão; mesmo antes de chegar a sua casa, era necessário baixar a capota do fiacre, tão intenso era o sol, cuja lembrança, sem que eu me dê conta, ia entrar na impressão total. Pensava unicamente em ir ao CoaraIa-Reine; na verdade, antes de chegar à reunião de que um homem desconhece teria talvez zombado, eu sentia, como numa viagem pela Itália, um deslumbramento, um deleite de que o palácio não mais se separaria-: minha memória. Ademais, devido ao calor da estação e da hora, fechara hermeticamente os postigos nos vastos salões retangulares do andar térreo onde recebia. No princípio eu não reconhecia bem a dona de suas visitas, nem mesmo a duquesa de Guermantes que, com sua voz rouca, me pedia que fosse sentar-me junto dela, numa poltrona Beauvais que representava O Rapto de Europa. Depois distinguia, nas redes, as amplas tapeçarias do século XVIII que representavam barcos com mastros floridos de malvas-rosas, sob as quais eu me achava, não como no palácio do Sena, mas de Netuno, à margem do rio Oceano, onde a duquesa de Guermantes se transformava numa espécie de divindade da água. Não acabaria mais, se fosse enumerar todos os salões diferentes deste. Este exemplo basta para mostrar que eu incluía, nos juízos mundos de impressões poéticas que nunca levava em consideração no mundo de calcular o total, de modo que, quando avaliava os méritos de um salão, nunca era exato. Claro que essas causas de erro estavam longe de serem as únicas, mas não tenho mais tempo, antes de minha partida para Balbec (onde, para minha infelicidade, vou fazer uma segunda temporada que também seria a última), de iniciar pinturas da alta sociedade que terão seu lugar bem interiormente. Digamos apenas que àquela primeira falsa razão (minha relativamente frívola e que fazia supor o apego à sociedade) de minha carta à Gilberte e da volta aos Swann que ela parecia indicar, poderia Odette acrescentar tão inexatamente uma segunda. Não pensei até agora nos aspectos diferentes que a sociedade apresenta para uma mesma pessoa, senão supondo que o mundo não muda: se a mesma dama que não conhece ninguém vai à casa de todos, e uma outra, que desfrutava de uma posição dominante é desprezada, sentimo-nos tentados a ver nisso unicamente os altos e baixos puramente pessoais que, de quando em vez, trazem a uma mesma sociedade, em virtude de especulações na Bolsa, uma ruína estrondosa ou um enriquecimento inesperado. Ora, não é somente isso. Numa certa medida, as manifestações mundanas (muito inferiores aos movimentos artísticos, às crises políticas, à evolução que leva o gosto do público para o teatro de idéias, e depois para a pintura impressionista, para a música alemã e complexa, depois para a música russa e simples, ou para as idéias sociais, as idéias de justiça, a reação religiosa, o sobressalto patriótico, são entretanto o seu reflexo remoto, partido, incerto, perturbado e mutável. De forma que até mesmo os salões não podem ser pintados numa imobilidade estática que, até agora, pôde ser conveniente ao estudo dos caracteres, os quais deverão também ser como que apanhados em um movimento quase histórico. O gosto pelas novidades, que leva os homens da sociedade, mais ou menos sinceramente ávidos de se informarem sobre a evolução intelectual, a freqüentarem os meios em que podem segui-la, fá-los habitualmente preferir alguma dona-de-casa até então inédita, que representa ainda bem frescas as esperanças de mentalidade superior, tão murchas e ressequidas nas mulheres que exerceram durante muito tempo o poder mundano, daquelas de quem conhecem os pontos fracos e fortes e que já não lhes falam à imaginação. E assim, cada época acha-se personificada em mulheres novas, num novo grupo de mulheres que, estreitamente ligadas ao que aguça as curiosidades mais novas, parecem, na sua toilette, surgir apenas naquele momento, como uma espécie desconhecida provinda do último dilúvio, beldades irresistíveis de cada novo Consulado, de cada novo Diretório. Porém, muitas vezes as novas donas de casa são simplesmente, como certos estadistas em seu primeiro ministério mas que há quarenta anos batiam em todas as portas sem que lhes abrissem, mulheres que não eram conhecidas da sociedade, mas que nem por isso recebiam menos, há muito tempo, e à falta de melhor, alguns "raros íntimos". Decerto, nem sempre era este o caso e quando, com a prodigiosa florescência dos balés russos, sucessivamente reveladora de Bakst, de Nijinski, de Benois, do gênio de Stravinski, a princesa Yourbeletieff, jovem madrinha de todos esses novos grandes homens, apareceu trazendo na cabeça uma imensa e trêmula aigrette, desconhecida das parisienses e que elas todas procuraram imitar; pôde-se crer que essa maravilhosa criatura fora trazida pelos russos em suas bagagens inumeráveis e como se fosse o seu mais precioso tesouro; mas, quando a seu lado, em seu proscênio, virmos assistir todas as apresentações dos "Russos", como uma verdadeira fada, tão desconhecida da aristocracia, a Sra. Verdurin, poderemos responder às pessoas da sociedade, que facilmente supuseram a Sra. Verdurin fora desembarcada com a trupe de Diaghilev, que esta senhora já existira em espécie bem diversa e passara por avatares diferentes, de que aquele não disse senão pelo fato de ser o primeiro que afinal trazia, daí em diante assessorado e em marcha cada vez mais rápida, o sucesso durante tanto tempo infrutiferamente esperado pela Patroa. Quanto à Sra. Swann, de fato a atividade que ela representava não tinha o mesmo caráter coletivo. Seu mundo cristalizara-se em torno de um homem, um moribundo, que havia passado quase de súbito, na ocasião em que seu talento se esgotava, da obscuridade à glória retumbante. Era imensa a admiração pelas obras de Bergotte. Ele passava o dia inteiro sendo exibido na casa da Sra. Swann, que superava um homem influente:

            - Eu lhe falarei; e ele vai lhe escrever um artigo. -

            De resto, ele estava em condições de fazê-lo, e até mesmo de redigir um pequeno ato para a Sra. Swann. Mais perto da morte, andava pouco menos mal do que no tempo em que vinha saber notícias da minha avó. É que grandes sofrimentos físicos lhe haviam imposto um regime; a doença é o mais ouvido dos médicos: à bondade e ao saber fazem-se amenas promessas; ao sofrimento, obedece-se.      

            Decerto o pequeno clã dos Verdurin possuía atualmente um ressentimento muito mais vivo que o salão ligeiramente nacionalista, ainda mais literário, e sobretudo bergótico, da Sra. Swann. O pequeno clã era de fato o centro ativo de uma longa crise política que chegara a seu máximo de intensidade: o dreyfusismo. Mas as pessoas da sociedade eram na maioria de tal modo anti-revisionistas, que um salão dreyfusista parecia algo tão impossível como, em outra época, um salão da Comuna. A princesa Caprarola, que travara conhecimento com a Sra. Verdurin durante uma grande exposição que esta organizara, bem que lhe fora fazer uma longa visita na esperança de desencaminhar alguns elementos interessantes do pequeno clã e agregá-los a seu próprio salão, visita no decurso da qual a princesa (representando em miniatura as duquesas de Guermantes) tomavam em contrapartida das opiniões recebidas, declarara idiotas as pessoas do mundo, o que a Sra. Verdurin achara de uma grande coragem. Mas essa coragem não iria mais tarde ao ponto de ousar, sob o fogo dos olhares das damas nacionalistas, saudar a Sra. Verdurin nas corridas de Balbec. Quanto à Sra. Swann, ao contrário, os antidreyfusistas lhe agradeciam o ser "bem pensante", o que lhe atribuía um duplo mérito, por ser casada com um judeu. Não obstante, as pessoas que jamais tinham ido à sua casa imaginavam que ela recebia somente alguns israelitas obscuros e alunos de Bergotte. Assim, classificam-se mulheres muito mais qualificadas que a Sra. Swann no último degrau da escala social, ou por causa de suas origens, ou porque não gostam de jantares na cidade e dos saraus onde nunca são vistas, o que é falsamente atribuído ao fato de que não teriam sido convidadas, seja porque elas nunca falam de suas amizades mundanas, mas apenas de arte e literatura, seja porque as pessoas escondem o fato de que vão à casa delas, ou então ocultam que as recebem para não se mostrarem impolidas com os outros; enfim, por mil razões que acabam por fazer de tal ou qual dentre elas, aos olhos de alguns, a mulher que não se recebe. Assim ocorria com Odette. A Sra. d'Épinoy, por ocasião de uma subscrição que desejava fazer para a Patrie française, tendo de ir visitá-la, como teria entrado na casa de sua vendedora, aliás convencida de que só encontraria rostos, nem sequer desprezíveis, mas desconhecidos, estacou diante da porta que se abrira não para o salão que imaginava, mas para uma sala mágica onde, como que devido a uma mudança à vista numa féerie, reconheceu nas figurantes sedutoras, meio estendidas nos divãs, sentadas em poltronas, chamando a dona da casa pelo seu nome de batismo, as altezas e duquesas que ela própria, princesa d'Épinoy, tinha muita dificuldade em atrair à sua própria casa, e às quais naquele momento, sob os olhos benévolos de Odette, o marquês du Lau, o conde Louis de Turenne, o príncipe Borghese e o duque d'Estrées, trazendo laranjada e bolinhos, serviam de criados e escanções. Como a princesa d'Épinoy colocava, sem se aperceber de tal, a qualidade mundana no interior das criaturas, viu-se obrigada a desencarnar a Sra. Swann e a reencarná-la em uma mulher elegante. A ignorância da vida real que levam as mulheres que não a expõem nos jornais estende assim sobre certas situações (contribuindo desse modo para diversificar os salões) um véu de mistério. Quanto a Odette, no começo, alguns homens da mais alta sociedade, curiosos de conhecer Bergotte, tinham estado em sua casa para um jantar íntimo. Ela tivera o tato, recentemente adquirido, de não divulgá-lo; ali eles encontravam talvez recordação do "pequeno núcleo", do qual Odette, desde o cisma, conservara as tradições a mesa posta, etc.. Odette levava-os com Bergotte, a quem isto aliás acabava de matar, às estréias interessantes. Eles falaram dela a algumas mulheres do seu mundo capazes de se interessar com tanta novidade. Estavam elas persuadidas de que Odette, íntima de Bergotte, mais ou menos havia colaborado em suas obras, e a julgavam mil vezes mais inteligente que as mulheres mais notáveis do Faubourg, pelo mesmo motivo porque punham toda sua esperança política em certos republicanos legítimos como o Sr. De o Sr. Deschanel, ao passo que viam a França no abismo se fosse chamado ao pessoal monarquista a quem não recebiam para jantar, aos Charlus aos Doudeauville, etc. Esta mudança da posição de Odette cumpriu-se a parte dela com uma discrição que a tornava cada vez mais rápida e secreta mas não a deixava absolutamente suspeitar do público, inclinado pelas crônicas do Gaulois o progresso ou a decadência de um salão de modo que um dia, no ensaio geral de uma peça de Bergotte dado numa das salas mais elegantes em benefício de uma obra de caridade, foi um verdadeiro lance teatral quando se viu, no camarote da frente, que era o outro, virem sentar-se, ao lado da Sra. Swann, a Sra. de Marsantes e que, pelo apagamento progressivo da duquesa de Guermantes (faltando honrarias e anulando-se ao menor esforço), estava se tornando a leoa, a rainha da época: a condessa Molé. "Quando nem adivinhávamos quando e havia começado a subir, disseram de Odette, no momento em que, se viu entrar a condessa Molé no camarote, "ela atingiu o último degrau." De maneira que a Sra. Swann podia crer que era por esnobismo que eu me reaproximara de sua filha. Odette, apesar de suas brilhantes amigas, nem por isso deixou de ouvir a peça com extrema atenção, como se estivesse ali apenas para escutá-la, da mesma maneira como antigamente atravessava o Bois por higiene e para fazer exercício. Homens que outrora eram menos solícitos em redor chegaram-se ao balcão incomodando a toda a gente, para suspenderem-se à sua mão a fim de se aproximar do círculo imponente que ela se cercava. Odette, com um sorriso antes de amabilidade que de ironia, respondia pacientemente às suas perguntas, afetando mais calma do que pensavam e que era talvez sincera, pois tal exibição não passava de exibição tardia de uma intimidade habitual e discretamente oculta. Por detrás daquelas três damas, atraindo todas as atenções, estava Bergotte cercado pelo príncipe de Agrigento, pelo conde Louis de Turenne e pelo marquillo de Bréauté. E é fácil compreender que, para os homens que eram recebidos em toda parte e que não mais podiam esperar uma superestimação senão da busca de originalidade, essa demonstração que pensavam dar de seus valor ao se deixarem atrair por uma dona-de-casa tida como grande intelectual e junto a quem esperavam encontrar todos os dramaturgos e romancistas em voga, era mais viva e excitante do que aqueles saraus em casa da princesa de Guermantes, que, sem nenhum programa ou atração nova sucediam-se há tantos anos, mais ou menos iguais ao que tão longamente descrevemos. Naquele grande mundo dos Guermantes, de onde a curiosidade se afastava um pouco, as novas modas intelectuais não se enganavam em divertimentos à sua imagem, como nessas pecinhas de Bergotte escritas para a Sra. Swann, como nas verdadeiras sessões de Salvação pública (se a alta sociedade pudesse interessar-se pelo Caso Dreyfus) onde, na casa da Sra. Verdurin, se reuniam Picquart, Clemenceau, Zola, Reinach e Labori. Gilberte também contribuía para a situação da mãe, pois um tio de Swann acabava de lhe deixar cerca de oitenta milhões, o que fazia com que o faubourg Saint-Germain começasse a pensar nela. O reverso da medalha era que Swann, de resto agonizante, professava opiniões dreyfusistas, porém isto não prejudicava a mulher e até lhe prestava serviço. Não a prejudicava porque diziam:

            - Ele é esclerosado, idiota, a gente não liga para ele, só a sua mulher é que importa, e ela é encantadora. -

            Porém até o dreyfusismo de Swann era útil à Odette. Entregue a si mesma, ela talvez fizesse às mulheres elegantes concessões que a perderiam. Ao passo que nas noites em que arrastava o marido para jantar no faubourg Saint-Germain, Swann, ficando ferozmente no seu canto, não se constrangia em dizer em voz alta, caso visse Odette fazer-se apresentar a alguma dama nacionalista:

            - Ora, Odette, você está louca. Peço-lhe que fique quieta. Seria uma baixeza de sua parte fazer-se apresentar a anti-semitas. Eu a proíbo. -

            As pessoas mundanas, a quem todos acorrem, não estão acostumadas a tanto orgulho nem a tamanha falta de educação. Pela primeira vez viam alguém que se julgava "mais" que elas. Comentavam-se esses resmungos de Swann, e os cartões dobrados choviam na casa de Odette. Quando esta estava de visita à casa da Sra. d'Arpajon, criava-se um vivo e simpático movimento de curiosidade.

            - Não se aborreceu por tê-la apresentado? - dizia a Sra. d'Arpajon. - Ela é muito gentil. Foi Marie de Marsantes quem me deu a conhecê-la.

            - Não, pelo contrário, parece que ela é o que há de mais inteligente; é encantadora. Eu até desejava encontrá-la. Diga-me onde ela mora. -

            A Sra d'Arpajon dizia à Sra. Swann que se divertira bastante na casa desta na antevéspera e que, por ela, abandonara com alegria a Sra. de Saint-Euverte. E era verdade, pois preferir a Sra. Swann era mostrar-se inteligente, como ir a um concerto em vez de comparecer a um chá. Mas, quando a Sra. de Saint-Euverte ia à casa da Sra. d'Arpajon ao mesmo tempo que Odette, como a Sra. de Saint-Euverte era muito esnobe e a Sra. d'Arpajon, embora a tratasse de cima, fazia questão de manter suas recepções, esta não apresentava Odette para que a Sra. de Saint-Euverte não soubesse de quem se tratava. A marquesa imaginava que deveria ser alguma princesa que saía muito pouco, visto que não a conhecia, e prolongava a visita, respondia indiretamente ao que Odette dizia, mas a Sra. d'Arpajon permanecia de ferro. E, quando a Sra. de Saint-Euverte, derrotada, ia embora:

            - Eu não lhe apresentei - dizia a dona da casa à Odette - porque a gente; gosta muito de ir à casa dela e ela convida imensamente; você não poderia se livrar.

            - Oh, isso não tem importância - dizia Odette. Mas manteve a idéia de que não gostavam de ir à casa da Sra. de Saint-Euverte, o que até certo ponto era verdade, e daí concluiu que possuía uma situação muito superior à Sra. de Saint-Euverte, conquanto a posição dela fosse muito boa e Odette ainda não tivesse nenhuma. Ela não percebia isso e, embora todas as amigas da Sra. de Guermantes tivessem relações com a Sra. d'Arpajon, quando esta convidava a Sra. Swann, Odette dizia com ar escrupuloso:

            - Vou à casa da Sra. d'Arpajon, mas vocês vão me achar muito antiquada; isto me deixa contrariada por causa da Sra. de Guermantes - (que, aliás, ela não conhecia. Os homens distintos pensavam que o fato da Sra. Swann conhecer certas pessoas da alta sociedade se atribuía a que ela fosse uma mulher superior, provavelmente uma grande musicista, e que ir à sua casa seria uma espécie de título extra-mundano, como para um duque ser doutor em ciências. As mulheres completamente nulas eram atraídas para Odette por uma razão oposta; sabendo que ela ia ao concerto Colonne e se declarava wagneriana, concluíam daí que devia ser uma "farsista" e ficavam muito entusiasmadas à idéia de conhecê-la. Mas, pouco seguras de sua própria situação, temiam comprometer-se em público parecendo estar ligadas à Odette e, se num concerto de caridade viam a Sra. Swann, desviavam o rosto, achando impossível cumprimentar, aos olhos da Sra. de Rochochouart, uma mulher que era bem capaz de ter ido à Bayreuth o que significava capaz de levar uma vida desregrada.

            Toda pessoa em visita a outra fazia-se diferente. Sem falar das maravilhosas metamorfoses que assim se efetuavam entre as fadas na reunião da Sra. Swann, o Sr. de Bréauté. Subitamente valorizado pela ausência de pessoas que de hábito o rodeavam, pelo ar de satisfação que tinha de se encontrar tão bem ali, como se, em vez de ir a uma festa, tivesse posto os óculos para encerrar-se a fim de ler La Revoe des Deux Mondes, pelo rito misterioso que parecia cumprir vindo visitar Odette, o próprio Sr. de Bréauté dava a impressão de um novo homem. Eu teria dado muito para ver quais alterações sofreria a duquesa de Montmorency-Luxembourg naquele meio novo. Mas ela era uma das pessoas a quem nunca se poderia apresentar à Odette. A Sra. de Montmorency, muito mais benevolente para com Oriane do que esta o era quanto a ela, espantava-me bastante ao dizer a propósito da Sra. de Guermantes:

            - Ela conhece pessoas de espírito, todos gostam dela, e creio que, se tivesse tido um pouco mais de coerência, chegaria formar um salão. A verdade é que não liga para isso, está coberta de razão e é feliz assim, requisitada por todos. -

            Se a Sra. de Guermantes não tinha um "salão", então o que era um "salão"? A estupefação em que me lançaram tais palavras não era maior do que aquela que causei à Sra. de Guermantes ao lhe dizer que apreciava bastante ir à casa da Sra. de Montmorency. Oriane achava-a uma velha cretina.

            - Quanto a mim, vá lá - dizia ela -, sou forçada a isso, é minha tia; mas você! Ela nem sequer sabe atrair as pessoas agradáveis. -

            A Sra. de Guermantes não percebia que as pessoas agradáveis deixavam-me frio, que, quando ela me dizia "salão Arpajon", eu via uma borboleta amarela, e "salão Swann" (a Sra. Swann recebia em casa, no inverno, das seis às sete), uma borboleta preta de asas mosqueadas de neve. Ainda este último salão, que não o era, a duquesa o julgava, conquanto inacessível para ela, dispensável para mim, devido às "pessoas de espírito". Mas a Sra. de Luxembourg! Se eu já houvesse "produzido" algo que me fizesse ser notado, ela teria concluído que uma dose de esnobismo pode aliar-se ao talento. E levei ao cúmulo a sua decepção: confessei-lhe que não ia à casa da Sra. de Montmorency (como ela acreditava) para "tomar apontamentos" e "fazer um estudo". A Sra. de Guermantes, de resto, não se enganava mais que os romancistas mundanos que analisam cruelmente, de fora, as ações de um esnobe ou de quem é tido como tal, mas jamais se colocam no seu interior, na época em que floresce na imaginação toda uma primavera social. Eu mesmo, quando quis saber que tipo tão grande de prazer sentiria em ir à casa da Sra. de Montmorency, fiquei um tanto desapontado. No faubourg Saint-Germain, ela morava numa velha casa cheia de pavilhões separados por pequenos jardins. Debaixo da abóbada, uma estatueta atribuída a Falconet representava uma fonte, de onde, aliás, escorria uma umidade permanente. Um pouco mais longe, a porteira, com os olhos sempre vermelhos, fosse por desgostos, fosse por neurastenia, enxaqueca ou gripe, jamais respondia, limitando-se a fazer um gesto vago indicando que a duquesa se encontrava em casa e deixava cair das pálpebras algumas gotas sobre uma taça repleta de miosótis. O prazer que me dava observar a estatueta, porque ela me lembrava um pequeno jardineiro em gesso que havia num jardim de Combray, não era nada comparado ao que me causavam a grande escadaria úmida e sonora, cheia de ecos, como a de certos estabelecimentos de banhos de outrora, os vasos cheios de cinerárias azul sobre azul na antecâmara, e sobretudo o toque da campainha, que era exatamente o do quarto de Eulalie. Esse toque levava ao auge o meu entusiasmo; mas parecia-me por demais humilde para que o pudesse explicar à Sra. de Montmorency, de modo que essa dama me via sempre num deslumbramento de cuja causa nunca suspeitou.

 

                                            AS INTERMITÊNCIAS DO CORAÇÃO

            Minha segunda chegada a Balbec foi bem diversa da primeira o gerente fora em pessoa me esperar em Pont-à-Couleuvre, repetindo o quanto considerava os hóspedes titulares, o que me fez recear que ele me via enobrecido, até que compreendi que, na obscuridade de sua memória gramatical, titular significava simplesmente "preferido". Aliás, à medida que aprendia novos idiomas, falava pior os idiomas anteriores.

            Anunciou que me reservara um quarto bem no alto do hotel.

            - Espero - disse, - que o senhor não veja nisso falta de cortesia; aborrecia-me dar-lhe um quarto do qual o senhor é indigno, porém o fiz em relação aos barulhos, pois assim não terá ninguém por cima a lhe cansar os trépanos (em vez de rt - “panos"). Fique tranqüilo, mandarei fechar as janelas para que elas não incomodem. Nesse ponto, sou intolerável - (tais palavras não exprimiam o seu pensamento, que era o de que o achariam sempre inexorável a esse respeito. Mas talvez perfeitamente o de seus camareiros. Aliás, os quartos eram da primeira estada. Não eram inferiores, mas eu havia subido na estima do gerente. Poderia mandar acender a lareira se quisesse (pois eu partira pela Páscoa, por ordem dos médicos), mas ele receava não houvesse "fixuras” no teto.

            - Sobretudo, espere sempre, para acender uma fogueira, quando a anterior esteja consumada (em vez de "consumida"). Pois é importante evitar incendiar a lareira, tanto mais que para alegrar um pouco, mandei colocar por cima um grande vaso de porcelana chinesa que isso poderia danificar.

            Informou-me, com muita tristeza, da morte do presidente da Ordem dos Advogados de Cherburgo.

            - Era um velho experiente - disse-me ele (provavelmente por "espertalhão"), e deu-me a entender que seu fim foi antecipado por uma vida de "devastações", o que significava "devassidões".

            - Há já algum tempo eu notava que, após o jantar, ele cochichava no salão (sem dúvida em vez de "cochilava"). Ultimamente, havia mudado de tal forma que, se não soubessem que era ele, ao vê-lo não tinha nada de reconhecido (em vez de "reconhecível", sem dúvida).

            - Compensação feliz, o presidente do conselho de Caen acabava de receber a "chibata" de comandante da Legião de Honra. Certamente que ele tem capacidade, mas creio que a deram sobretudo por sua grande "impotência".

            Aliás, voltavam a falar dessa "decoração" no Écho de Paris da véspera, do qual o gerente lera apenas "o primeiro parafo" (em vez de "parágrafo"). A política do Sr. Caillaux estava bem arranjada.

            - De resto, acho que eles têm razão - disse ele. - Ele nos põe demais sob a cópula da Alemanha (sob a "cúpula").

            Como esse tipo de assunto, tratado por um hoteleiro, me parecia tedioso, deixei de escutá-lo. Pensava nas imagens as quais me haviam decidido voltar a Balbec. Eram bem diferentes das de outrora, a visão que eu vinha buscar era tão esplêndida como a primeira era brumosa; não deviam me decepcionar menos. As imagens escolhidas pela lembrança são tão arbitrárias, tão estreitas, tão inatingíveis como as que a imaginação havia formado e a realidade destruíra. Não há motivo para que, fora de nós, um local de verdade possua de preferência os quadros da memória do que os do sonho. E depois, uma nova realidade nos fará talvez esquecer, e até mesmo detestar, os desejos em virtude dos quais tínhamos partido. Aqueles que me haviam feito partir para Balbec se relacionavam em parte com o fato de que os Verdurin (de cujos convites jamais me aproveitara, e que certamente ficariam felizes por me receberem, caso eu fosse ao campo a fim de desculpar-me de nunca lhes ter feito uma visita em Paris), sabendo que vários fiéis passariam as férias naquela costa, e tendo por isso alugado para toda a temporada um dos castelos do Sr. de Cambremer (La Raspeliere), enviei, feito um verdadeiro doido, o nosso jovem lacaio para se informar se essa dama levaria a sua camareira à Balbec. Eram onze horas da noite. O porteiro levou muito tempo para abrir e por milagre não mandou passear o meu mensageiro, não mandou chamar a polícia, contentando-se em recebê-lo muito mal, dando-lhe porém a informação desejada. Disse que de fato a camareira principal acompanharia a patroa, primeiro às águas da Alemanha, depois a Biarritz e, finalmente, à casa da Sra. Verdurin. Desde então eu me tranqüilizara, ficando satisfeito por ter aquele pão no forno. Podia dispensar-me dessas buscas nas ruas onde estava desprovido, junto às belezas que encontrava, desse cartão de recomendação que seria, ao lado do "Giorgione", o ter jantado na mesma noite com sua patroa, na casa dos Verdurin. Além disso, ela faria talvez melhor idéia a meu respeito, ainda mais sabendo que eu conhecia não somente os burgueses locatários de La Raspeliere como também seus proprietários, e principalmente Saint-Loup, que, não podendo me recomendar a distância à camareira (esta ignorava o nome de Robert), escrevera para mim uma calorosa carta aos Cambremer. Pensava que, afora toda a utilidade de que me poderiam ser, a Sra. de Cambremer, a nora nascida em Legrandin, haveria de interessar-me para conversar.

            - É uma mulher inteligente - me assegurara - Até certo ponto, naturalmente. Ela não te dirá coisas definitivas (as coisas "definitivas" tinham sido substituídas pelas coisas "sublimes" por Robert, que modificava, a cada cinco ou seis anos, algumas de suas expressões prediletas, sempre conservando as principais), mas é uma natureza, ela tem personalidade e intuição; diz a propósito a palavra exata. De vez em quando é enervante, solta asneiras para "bancar gente fina", o que é tanto mais ridículo, visto que nada é menos elegante que os Cambremer; nem sempre está atualizada, mas enfim, é uma das pessoas mais suportáveis de se freqüentar.

            Logo que lhes chegou às mãos a recomendação de Robert à Cambremer, fosse pelo esnobismo que os fazia desejar indiretamente serem amáveis com Saint-Loup, fosse por gratidão pelo que ele fizera por um de seus sobrinhos em Doncieres, e mais provavelmente, sobretudo, por bondade e tradições hospitaleiras, tinham escrito longas cartas pedindo que, morasse com eles e, se preferia ser mais independente, oferecendo-se para procurar um quarto. Quando Saint-Loup lhes objetou que eu ficaria no Grande Hotel de Balbec, responderam que ao menos esperavam uma visita desde a minha chegada e, se ela demorasse demais, não deixariam de me procurar para convidar-me à freqüentar os seus garden-parties.

            Sem dúvida, nada ligava de modo essencial a camareira da Sra. Putbus à região de Balbec; ali, ela não seria para mim como a camponesa que eu, sozinho na estrada de Méséglise, chamara tantas vezes em vão com todas as forças do meu desejo.

            Mas há muito eu já deixara de tentar extrair de uma mulher como; que a raiz quadrada de seu desconhecido, o qual não resistia muitas vezes a uma simples apresentação. Pelo menos em Balbec, aonde eu não ia há muito tempo, teria essa vantagem na falta da relação necessária que não existia entre a região e aquela mulher; a de que o sentimento da realidade não me seria suprimido ali pelo hábito, como em Paris, onde, seja em, minha própria casa, seja num quarto conhecido, o prazer junto de uma mulher não podia me dar por um só instante a ilusão de que, em meio às coisas cotidianas, me abria acesso a uma vida nova. (Pois, se o hábito é, uma segunda natureza, ele nos impede de conhecer a primeira, da qual não tem nem as crueldades nem os encantos.) Ora, essa ilusão, eu a teria talvez numa região nova onde a sensibilidade renasce ante um raio de sol, e onde, justamente acabaria de exaltar-me a camareira que eu desejava; porém iremos ver que as circunstâncias não só impedirão que essa mulher vá à Balbec, mas também que eu nada temeria tanto quanto a sua provável chegada; de modo que este objetivo principal da minha viagem não foi alcançado, nem mesmo perseguido. Decerto a Sra. Putbus não deveria ir tão cedo à casa dos Verdurin naquela temporada; mas tais prazeres escolhidos podem estar distantes desde que sua vinda esteja assegurada e que, durante a sua espera, possamos entregar-nos, daqui até lá, à preguiça de tentar agradar e à impotência de amar. Além disso, eu não ia a Balbec com um espírito tão pouco prático feito da primeira vez; há sempre menos egoísmo na imaginação pura do que na recordação; e eu sabia que ia precisamente me encontrar num desses lugares em que pululam as belas desconhecidas. Uma praia não as oferece menos que um salão de baile; eu pensava previamente nos passeios diante do hotel, sobre o molhe, com o mesmo tipo de prazer que a Sra. de Guermantes me proporcionaria se, em vez de me mandar convidar para brilhantes jantares, sugerisse mais vezes o meu nome, para as listas de cavalheiros, às donas-de-casa que davam bailes. Travar relações femininas em Balbec me seria tão fácil quanto difícil me fora antigamente, pois agora tinha ali tantos apoios e conhecimentos como era destituído deles na minha primeira viagem.

            Fui arrancado de meus devaneios pela voz do gerente, cujas dissertações políticas não havia escutado. Mudando de assunto, falou-me da alegria do presidente do conselho de Caen ao saber da minha chegada, e que viria visitar-me no quarto na mesma noite. A idéia dessa visita me assustou de tal maneira pois principiava a sentir-me esgotado, que lhe implorei que a evitasse (o que me prometeu) e, para maior segurança, que mandasse seus empregados montarem guarda no meu andar, na primeira noite.

            O gerente parecia não apreciá-los muito.

            - Sou obrigado o tempo todo a correr atrás deles, pois falta-lhes inércia demais. Se eu não estivesse aí, eles não se mexeriam. Vou colocar o ascensorista de plantão na sua porta. - Perguntei se este era afinal "chefe dos grooms".

            - Ainda não é bem velho na casa - respondeu-me. - Tem companheiros mais velhos que ele. Isso causaria protestos. Em todas as coisas é necessário “granulações.”("gradações"). Reconheço que ele possui uma boa aptitude (em vez de "atitude") diante de seu ascensor. Mas ainda é um pouco jovem para situações semelhantes. Isto faria contraste com os outros, que são bem antigos. Falta-lhe um pouco de seriedade, que é a qualidade primitiva (sem dúvida, a qualidade primordial, a qualidade mais importante). É preciso que seja mais repensável (meu interlocutor queria dizer responsável). De resto, só pode confiar em mim. Conheço o assunto. Antes de tomar meus galões como gerente do Grande Hotel, fiz minhas primeiras armas às ordens do Sr. Paillard. -

            Essa comparação impressionou-me e agradeci ao gerente o ter vindo em pessoa até Pont-à-Couleuvre.

            - Ora, de nada. Isto só me fez perder um tempo infinito (em vez de "ínfimo"). - Além disso, já tínhamos chegado.

            Forte perturbação de todo o meu ser. Desde a primeira noite, como eu sofresse de uma violenta crise de fadiga cardíaca, tratando de vencer meu sofrimento, abaixei-me com prudência e bem devagar para tirar os sapatos. Porém mal tocara o primeiro botão de minha botina, meu peito inchou-se, repleto de uma presença desconhecida, divina, soluços me sacudiram, lágrimas me rolaram dos olhos. A criatura que vinha em meu socorro, me salvava da secura da alma, era aquela que, muitos anos antes, num momento de aflição e solitude idênticas, num momento em que eu não mais possuía de mim, havia entrado e me devolvera a mim mesmo, pois, era eu e mais do que eu (o continente que é mais que o conteúdo e como ela me trazia). Eu acabava de perceber, em minha memória, debruçado sobre minha fadiga, o rosto preocupado, terno e desapontado de minha avó, assim como estivera na primeira noite da chegada; o rosto de minha avó; daquela que eu me espantara e censurara de lamentar tão pouco e que dela só possuía o nome, mas de minha avó verdadeira, de quem, pela primeira vez desde os Champs-Élysées onde ela tivera o seu ataque, eu encontrara a realidade viva numa lembrança involuntária e completa. Essa realidade, não existe para nós enquanto não for recriada pelo nosso pensamento (todos os homens que participassem de uma gigantesca batalha seriam grandes poetas épicos). E assim, num desejo louco de me precipitar em seus braços, era apenas naquele instante (mais de um ano após o seu falecimento devido a esse anacronismo que muitas vezes impede o calendário dos fatos de coincidir com o dos sentimentos) que eu acabava de saber que a estava morta. Muitas vezes falara eu nela desde esse momento, e até pensara nela, mas sob as minhas palavras e pensamentos de rapaz ingrato, egoísta e cruel, nunca houvera nada que se assemelhasse à minha avó, pois que, na minha leviandade, no meu amor pelo prazer, no meu hábito de vê-la enferma, eu continha em mim apenas em estado virtual a lembrança do que ela havia sido. Em qualquer momento que a consideremos, nossa alma total só tem um valor quase fictício, apesar do saldo numeroso de suas riquezas, pois ora umas, ora outras são indisponíveis, quer se trate de riquezas efetivas ou de riquezas da imaginação; e para mim, por exemplo, tanto as do antigo nome de Guermantes, como aquelas, bem mais graves, da verdadeira lembrança de minha avó. Pois às perturbações da memória estão ligadas as intermitências do coração. É sem dúvida a existência do nosso corpo, para nós semelhante a um vaso em que estaria encerrada a nossa espiritualidade, que nos induz a supor que todos os nossos bens interiores, nossas alegrias passadas, todas as nossas dores estão perpetuamente sob nossa posse. Talvez também seja incorreto crer que nos fujam ou que retornem. Em todo caso, se permanecem dentro de nós, na maior parte do tempo ficam num domínio desconhecido onde não têm nenhuma utilidade para nós, e onde até os mais comuns são recalcados por lembranças de ordem diferente e que excluem toda simultaneidade com eles na consciência. Mas, se o quadro de sensações em que estão conservados se recupera, têm por sua vez aquele mesmo poder de expulsar tudo o que lhes é incompatível, de instalar sozinho em nós o eu que lhes deu vida. Ora, como esse que eu acabara subitamente de tornar-me não havia existido desde aquela noite remota em que minha avó me despira quando da minha chegada a Balbec, foi bem naturalmente, não depois do dia atual, que esse eu ignorava, mas como se houvesse no tempo séries diversas e paralelas sem solução de continuidade, logo após a primeira noite de outrora, que aderi ao instante em que minha avó se debruçara sobre mim.

            O eu que eu era então, e que desaparecera durante tanto tempo, estava de novo tão perto de mim que me parecia ouvir ainda as palavras que tinham imediatamente precedido e que no entanto não passavam de um sonho, como um homem mal desperto julga perceber bem pertinho os rumores de seu sonho que se desvanece. Eu já não era senão aquela criatura que buscava refugiar-se nos braços de sua avó, a apagar com beijos os vestígios de suas mágoas, essa criatura que, quando eu era este ou aquele que em mim se haviam sucedido desde algum tempo, eu teria, para imaginar, tanta dificuldade que agora me seria necessário fazer esforços, aliás inúteis, para voltar a sentir os desejos e as alegrias de um daqueles que eu já não era, pelo menos por algum tempo. Lembrava-me como, uma hora antes do momento em que minha avó se inclinara desse modo, em seu chambre, para as minhas botinhas, vagando eu na rua sufocante de calor, diante da confeitaria, achara que jamais poderia, dada a necessidade que sentia de beijá-la, esperar a hora que ainda devia passar sem ela. E agora que essa mesma necessidade renascia, sabia que poderia esperar horas e horas, que ela nunca mais estaria a meu lado; não fazia mais que descobri-lo porque, sentindo-a pela primeira vez, viva, verdadeira, enchendo meu coração a ponto de parti-lo, reencontrando-a enfim, acabava de saber que a perdera para sempre. Perdida para sempre; eu não podia compreender e me exercitava em sofrer a dor dessa contradição: de um lado, uma existência, uma ternura, sobreviventes em mim tais como as havia conhecido, ou seja, feitas para mim, um amor onde tudo achava de tal modo em mim o seu complemento, seu objetivo, sua direção constante, que o gênio de grandes homens, todos os gênios que pudessem ter existido desde o começo do mundo não teriam valido para a minha avó um só de meus defeitos; e de outro lado, logo que eu revivera essa felicidade como atual, senti-la atravessada pela certeza, que se lançava como uma dor física à repetição, de um nada que havia apagado minha imagem dessa ternura, que havia destruído essa existência, abolido retrospectivamente nossa mútua predestinação e feito de minha avó, no momento em que a reencontrava como num espelho, uma simples estranha que um acaso fizera passar alguns anos junto de mim, como poderia ter sido junto de qualquer outro, mas para quem, antes e depois, eu não era nada e não seria nada.

            Em vez dos prazeres que tivera desde algum tempo, o único que seria possível desgrudar nesse momento teria sido, retocando o passado, diminuir as dores que a minha avó sentira antigamente. Ora, eu não lembrava apenas naquele chambre, vestimenta apropriada, a ponto de se ter quase simbólica, às fadigas, sem dúvida malsãs, mas igualmente suave que ela tomava por mim; pouco a pouco, eis que me lembrava de todas as ocasiões em que eu havia aproveitado, mostrando-lhe, exagerando, se necessário, os meus sofrimentos, para lhe causar uma dor que eu logo imaginava desfeita pelos meus beijos, como se a minha ternura fosse tão capaz, a minha felicidade, de fazer a sua. E pior que isto, eu que agora já não percebia felicidade a não ser encontrando-a espalhada em minha lembrança sobre os planos daquele rosto modelados e inclinados pelo carinho, encara outrora uma fúria insensata em tentar extirpar-lhe até os menores prazeres, como naquele dia em que Saint-Loup tirara a fotografia de minha avó; e quando, tendo dificuldade de dissimular a puerilidade quase ridícula e sua coqueteria em posar com seu chapéu de abas largas, numa penúria apropriada, deixara-me levar a proferir uns resmungos impacientes o ferir que, sentira-o por uma contração de sua face, tinham atingido o alvo; era em mim que tais resmungos feriam agora, era impossível para sempre o consolo de mil beijos. Porém nunca mais eu poderia apagar aquela contração de sua face, nem esse sofrimento do seu coração, ou melhor, do meu. Pois, como os mortos não mais existem senão em nós, é em nós mesmos que batem sem cessar quando nos obstinamos a recordar os golpes que lhes assentamos. Por mais cruéis que fossem essas dores, eu me ligava a elas com todas as forças, pois sentia perfeitamente que elas eram o efeito da recordação de minha avó, a prova de que essa lembrança que eu tinha estava bastante presente em mim. Sentia que só a recordava de fato através da dor e desejaria que se encravassem mais solidamente ainda aqueles pregos que cravavam a sua memória. Não buscava tornar mais suave o sofrimento, embelezá-lo, fingir que minha avó estava apenas ausente e momentaneamente invisível, ao dirigir à sua fotografia (a que fora tirada por Saint-Loup e eu trazia comigo) palavras e rogativas como a um ser separado de nós por uma indissolúvel harmonia. Jamais o fiz, pois não só estava empenhado em sofrer, mas também em respeitar a originalidade do meu sofrimento tal como o havia sentido de súbito, sem querer, e que desejava continuar sofrendo; seguindo suas próprias leis, a cada vez que voltasse essa contradição estranha da sobrevivência e do nada entrecruzados em mim. Essa imposição dolorosa e atualmente incompreensível, eu não sabia, é claro, se algum dia poderia arrancar-lhe um pouco de verdade, mas sim que esse pouco de verdade, se alguma vez o pudesse extrair, só poderia ser dela, tão particular, tão espontânea, que não fora traçada pela minha inteligência nem atenuada pela minha pusilanimidade, mas que a própria morte, a brusca revelação da morte, como um raio, abrira em mim um duplo e misterioso sulco, segundo um gráfico sobrenatural, inumano.

(Quanto a olvidar minha avó, em que eu vivera até agora, nem mesmo podia sonhar em ligar-me a ele para lhe extrair a verdade; porquanto em si mesmo não passava de uma negação, do enfraquecimento das idéias, incapazes de recriar um momento real da vida e obrigadas a substituí-lo por imagens convencionais e indiferentes.)

            Talvez, entretanto, o instinto de conservação, a engenhosidade da inteligência que nos preserva da dor, já começasse a reconstruir sobre ruínas ainda fumegantes, a colocar os primeiros alicerces de sua obra útil e nefasta, e eu desfrutasse por demais a doçura de me lembrar tais e tais opiniões da criatura querida, lembrá-las como se ela pudesse tê-las ainda, como se ela existisse, como se eu continuasse a existir para ela. Porém, logo que cheguei a adormecer, nessa hora, mais verídica, em que meus olhos se fechavam às coisas de fora, o mundo do sono (em cujo limiar a inteligência e a vontade, momentaneamente paralisadas, não mais podiam disputar-me à crueldade de minhas impressões verdadeiras) refletiu, refratou a dolorosa síntese da sobrevivência e do nada, na profundeza orgânica, tornada translúcida, das vísceras misteriosamente iluminadas. Mundo do sono, onde o conhecimento interno, posto sob a dependência das perturbações de nossos órgãos, acelera o ritmo do coração ou da respiração, pois que uma mesma dose de terror, de tristeza, de remorso, age com centuplicada força se é desse modo injetada em nossas veias; logo que, para percorrermos as artérias da cidade subterrânea, sulcamos as águas escuras do nosso próprio sangue como por um Letes interior de dobras sêxtuplas, surgem-nos grandes figuras solenes, abordam-nos e nos abandonam, deixando-nos em lágrimas. Em vão procurei minha avó, assim que desembarquei sob os pórticos sombrios; no entanto sabia que ela existia ainda, mas de uma vida diminuída, tão pálida como a da recordação; a escuridão aumentava, assim como o vento; tardava meu pai, que devia conduzir-me à presença dela. De repente, faltou-me a respiração, senti o coração como que endurecido, acabava de me lembrar que desde longas semanas me esquecera de escrever à minha avó. Que deveria ela pensar de mim? "Meu Deus", dizia comigo, "como não deve estar infeliz nesse pequeno quarto que alugaram para ela, tão pequeno como para uma antiga criada, onde ela está sozinha com a guarda que puseram para cuidá-la e onde ela não pode se mexer, pois está sempre um tanto paralisada e não quis se levantar uma só vez! Ela deve acreditar que a esqueço desde que morreu, como deve se sentir sozinha e abandonada! Oh! Preciso correr para vê-la, não posso esperar um segundo, não posso esperar que meu pai chegue, mas onde? Como pude esquecer o endereço? Contanto que ela ainda me reconheça! Como pude esquecê-la durante meses?" Está escuro, não encontrarei, o vento impede de prosseguir; mas eis meu pai que passeia à minha frente; grito-lhe: “Onde está minha avó? Dê-me o endereço. Ela está bem? Tem certeza de que não lhe falta nada? - Claro que não - responde meu pai -, podes ficar tranqüilo. Seu guarda é uma pessoa muito organizada. De vez em quando manda-se uma pequena quantia para que lhe seja possível comprar-lhe o estritamente necessário. Às vezes ela pergunta o que é feito de ti. Disseram-lhe até que ias escrever um livro. Ela pareceu contente. Enxugou uma lágrima. Então julguei lembrar-me que, um pouco antes de sua morte, minha avó me dissera, soluçando, com ar humilde, como uma velha que o criado expulsa, como uma estranha: "Hás de permitir que, mesmo assim, te vejo algumas vezes, não passes muitos anos sem me visitar. Pensa que fostes meu netinho e que as avós não esquecem." Revendo aquele rosto tão submisso, tão suave, tão infeliz, que ela possuía, queria correr logo para ela e dizer-lhe aquilo que deveria ter dito então: "Mas, avó, tu me verás quantas vezes quiseres, só tenho a ti neste mundo, não te deixarei nunca mais.” Como a deve ter feito soluçar o meu silêncio, durante todos esses meses em que não fui até lá onde ela está deitada! O que não terá imaginado? E foi também soluçando que disse a meu pai: - Depressa, depressa, o endereço, leva-me até lá. Mas ele: - É que... não sei se poderás vê-la. Depois, sabes, está muito fraca, muito fraca, já não é mais ela mesma, creio que isto vai ser até penoso para ti. E não me lembro do número exato da avenida. - Mas dize-me, tu que sabes, não é verdade que os mortos não vivem mais. Mesmo assim, não é verdade, apesar do que se diz, visto que a minha avó existe ainda. Meu pai sorriu tristemente: Oh, bem pouco, sabes bem pouco. Creio que farias melhor em não ir até lá. Não lhe falta nada tudo está em ordem. - Mas ela fica muitas vezes sozinha? - Sim, mas é preferível isto para ela. É preferível que não pense, só poderia lhe fazer mal. Freqüentemente faz mal pensar. Aliás, tu sabes, está muito abatida. Deixar-te-ei a indicação precisa para que possas ir até lá; não vejo o que poderias fazer ali e não creio que o guarda permitiria que a visses. - No entanto, sabes bem que viverei sempre junto dela, cervos, cervos, Francis Jammes. Porém já atravessara de volta o rio de tenebrosos meandros, regressara à superfície onde se abre o mundo dos vivos; de forma que, se ainda repetia: "Francis Jammes, cervos, cervos", a seqüência dessas palavras não me oferecia o sentido límpido e a lógica que exprimiam tão naturalmente para mim há um instante apenas, e que não mais podia recordar. Já nem sequer percebia por que a palavra Aias, que meu pai dissera há pouco, significara de imediato: "Cuidado com o frio", sem qualquer dúvida possível. Esquecera-me de fechar os postigos e decerto o dia claro me havia despertado. Mas não pude suportar ter debaixo dos olhos aquelas ondas do mar que minha avó outrora podia contemplar durante horas; a nova imagem de sua beleza indiferente era logo completada pela idéia de que ela não as via mais; desejaria tapar os ouvidos ao seu rumor, pois agora a plenitude luminosa da praia cavava um vazio em meu peito; tudo parecia dizer-me, como aquelas alamedas e gramados de um jardim público onde outrora me perdera dela, quando era bem pequeno: "Não a vimos", e, sob o redondo céu pálido e divino, eu me sentia oprimido, como debaixo de uma imensa cúpula azulada que fechasse um horizonte no qual não estava a minha avó. Para não ver mais coisa alguma, desviei-me para o lado da parede, mas, ai de mim, o que ficava à minha frente era aquele tabique que antigamente servia, entre nós, de mensageiro matinal; aquele tabique tão dócil como um violino para traduzir todos os matizes de um sentimento, que dizia tão exatamente à minha avó o meu temor a um tempo de despertá-la e, se já estivesse acordada, de não ser ouvido por ela e de que ela não se animasse a mover-se, e, logo depois, como a réplica de um segundo instrumento, me anunciava a sua vinda e me convidava ao sossego. Não tinha coragem de me aproximar dessa divisória mais que de um piano em que minha avó teria tocado e que vibraria ainda com seu toque. Sabia que poderia agora bater até com mais força, que nada mais conseguiria despertá-la, que eu não ouviria resposta alguma, que minha avó não mais viria. E eu nada mais pedia a Deus, se existe um paraíso, senão poder bater naquela divisória as três pancadinhas que minha avó reconheceria entre mil, e às quais responderia por essas três outras pancadinhas que queriam dizer: "Não te inquietes, meu ratinho, compreendo que estejas impaciente, mas já estou indo", e que me deixasse ficar com ela por toda a eternidade, que não seria bastante longa para nós dois.

            O gerente veio indagar se eu não queria descer. De qualquer modo, havia cuidado do meu "posto" na sala de jantar. Como não me visse, receara que estivesse com minhas sufocações de antigamente. Esperava que aquilo não passasse de pequena "dor de garganta" e me garantiu ter ouvido dizer que era acalmada com o auxílio do que ele denominava o "calipto". Entregou-me um bilhete de Albertine. Ela não deveria vir a Balbec este ano, mas, tendo mudado de intenção, estava há três dias, não exatamente em Balbec, mas a dez minutos de trem numa estação vizinha. Temendo que eu estivesse cansado da viagem, abstivera-se na primeira noite, mas mandava perguntar quando poderia recebê-la. Informei-me se ela tinha vindo em pessoa, não para vê-la, mas para cuidar de não a ver; respondeu-me o gerente. Mas ela queria que fosse o mais cedo possível; a menos que o senhor não tenha motivos absolutamente "necessito” , senhor vê concluiu que todo mundo aqui o deseja, em definitivo. Mas eu não queria ver ninguém.

            No entanto na véspera, à chegada, sentira-me retomado pelo canto indolente da vida dos banhos de mar. O mesmo ascensorista silencioso, desta vez por respeito, não por desdém, e rubro de prazer, pusera o elevador em andamento. Erguendo-me ao longo da coluna que subia, para atravessar o que outrora fora para mim o mistério de um hotel desconhecido, onde, quando se chega, turista sem proteção e sem prestígio, um hóspede que se recolhe ao quarto, cada moça que desce para jantar, cada um que passa nos corredores estranhamente delineados, e a jovem chega da América com sua dama de companhia e que desce para jantar levantam sobre nós um olhar onde não se lê nada daquilo que nos agradaria. Dessa vez, ao contrário, eu experimentava o prazer bem repousante de subir no hotel conhecido, onde me sentia em casa, onde mais uma vez cumpria aquela operação de começar sempre, mais longa, mais difícil que o revirar das pálpebras, e que consiste em pousar nas coisas a alma que nos é familiar em vez das que nos aterrorizava. Seria necessário agora, disse eu comigo, sem suspeitar da brusca mudança da alma que me esperava; sempre há outros hotéis onde jantaria pela primeira vez, onde o hábito ainda não teria matado em cada andar, diante de cada porta, o terrífico dragão que parecia velar por uma existência encantada, onde teria eu de aproximar-me dessas mulheres desconhecidas que os palácios, os cassinos, as praias à maneira de vastos politiqueiros, não fazem mais que reunir e obrigar a viver em comum?

            Agradara-me até que o aborrecido presidente do conselho tivesse tanta pressa de me ver; observava, no primeiro dia, as vagas, as cadeias das montanhas; do azul do mar, suas geleiras e cascatas; sua elevação e sua majestade negligente apenas ao sentir, pela primeira vez em muitos anos, ao lavar as mãos, esse cheiro especial dos sabonetes, excessivamente perfumados, do Grande Hotel, o qual, parecendo pertencer, a um tempo, elos do momento presente à estada passada, flutuava entre eles como o encanto real de uma vida particular à qual só se volta para mudar a gravata. Quando os cortinados da cama, muito finos, muito leves e muito amplos, impossíveis de bordar, de prender, e que permaneciam estufados em torno das cobertas; em volutas moventes, me entristeceriam outrora. Somente embalaram na redonda incômoda e bojuda de suas velas, o sol glorioso e cheio de esperanças da primeira manhã. Mas este não teve tempo de aparecer. Na primeira noite, a atroz e divina presença havia ressuscitado. Pedi ao gerente que saísse, e que não deixasse entrar ninguém. Disse-lhe que ficaria deitado e recusei sua oferta de mandar buscar na farmácia a excelente droga. Gostou da minha recusa, pois temia que os hóspedes ficassem incomodados pelo cheiro do "calipto". O que me valeu este cumprimento:

            - O senhor está em dia - (queria dizer "certo"), e essa recomendação: - Cuidado para não se sujar à porta, pois mandei "untar" as fechaduras, e, se um empregado se permitisse bater em seu quarto, seria "moído" de pancadas. E que isto fique estabelecido, pois não gosto de "repetições" (evidentemente aquilo significava: "não gosto de dizer duas vezes a mesma coisa"). Apenas uma observação: não quer que lhe mande subir um pouco de vinho velho do qual tenho lá embaixo uma burrica (sem dúvida por barrica)? Não lha trarei sobre uma salva de prata como a cabeça de “lonathan" (João Batista) e previno-lhe que não se trata de um Château-Lafite, mas é mais ou menos equívoco (em vez de "equivalente"). E como é leve, poderiam lhe preparar um pequeno linguado. -           Recusei tudo, mas assombrou-me ouvir o nome do peixe (sole) ser pronunciado como o da árvore (saule, salgueiro), por um homem que deveria ter encomendado tantos em sua vida.

            Apesar das promessas do gerente, pouco depois me trouxeram o cartão de visitas dobrado da marquesa de Cambremer. Tendo vindo visitar-me, a velha senhora mandara perguntar se me achava presente, e, ao saber que minha chegada datava apenas da véspera, e que eu estava adoentado, ela não insistira, e (sem dúvida não sem parar na farmácia ou na mercearia, onde o lacaio, saltando da sege, entrava para pagar alguma conta ou comprar mantimentos) voltara a partir para Féterne, na sua velha caleche de oito molas tirada por dois cavalos. Aliás, bem freqüentemente se ouvia o rodar e se admirava o aparato da sua caleche nas ruas de Balbec e de algumas outras pequenas localidades da costa, situadas entre Balbec e Féterne. Não que essas paradas nas lojas de fornecedores fossem o objetivo desses passeios. Ao contrário, o objetivo era algum chá ou garden-party, na casa de um fidalgo provinciano ou de um burguês bastante indignos da marquesa. Porém esta, embora dominasse de muito alto, pelo nascimento e pela fortuna, a pequena nobreza das vizinhanças, possuía, em sua bondade e simplicidade perfeitas, tanto receio de decepcionar alguém que a convidasse, que comparecia às mais insignificantes reuniões mundanas dos arredores. Decerto, em vez de rodar tanto para vir escutar, no calor do salãozinho sufocante, uma cantora em geral sem talento e que, a qualidade de grande dama da região e musicista famosa, era preciso felicitar com exagero, a Sra. de Cambremer teria preferido ir dar um passeio ou permanecer nos maravilhosos jardins de Féterne, onde a mansa de uma pequena baía vem morrer em meio às flores. Mas ela sabia que sua vinda provável fora anunciada pelo dono da casa, fosse este nobre, ou um burguês de Maineville-la-Teinturiere ou de Chattoncourt-e-gueilleux. Ora, se a Sra. de Cambremer tinha saído nesse dia sem fazer presença na festa, este ou aquele convidado, vindo de alguma praiazinha que se estendem à beira-mar, pudera ouvir e ver a caleche da marquesa, o que anularia a desculpa de não ter podido deixar Féterne. Por outro lado, por mais que esses donos de casa vissem a Sra. de Cambremer comparecer aos concertos dados em casa de pessoas onde eles a consideravam deslocada, a pequena diminuição que, a seus olhos, era por esse efeito infligida à posição da boníssima marquesa, desaparecia logo que eram os que a recebiam, e era febrilmente que se indagavam se a teriam ou não para o seu chá. Que alívio para as inquietações sentidas durante vários dias, se, depois do primeiro trecho cantado pela filha dos donos da casa, ou por algum amador em férias, um convidado anunciava (sinal infalível de que a marquesa compareceria à vesperal) ter visto os cavalos da famosa caleche, parados diante do relojoeiro ou do farmacêutico! Então a Sra. de Cambremer (que de fato não demoraria a entrar junto com sua nora, os convidados naquele momento hospedados em sua casa e que ela pedira permissão, com que alegria concedida para trazer) retomava todo o seu brilho aos olhos dos donos da casa, para quem a recompensa de sua esperada viram talvez fosse a causa determinante e inconfessa da decisão que haviam tomado há um mês: infligirem-se a balbúrdia e a despesa para dar um vesperal. Vendo a marquesa presente a seu chá, recordavam, não mais sua complacência em comparecer ao dos vizinhos pouco qualificados, numa antigüidade de sua família, o luxo de seu castelo, a descortesia de sua nora nascida Legrandin que, por sua arrogância, realçava a bonomia, um tanto antiquada da sogra. Já acreditavam ler, nas notas sociais do Guermantes, o tópico que eles próprios cozinhariam em família, todas as portas fechadas à chave, sobre "o pequeno recanto da Bretanha onde a gente se diverte de fato, a vesperal ultra-secreta que só se dissolveu depois que se ter dos donos da casa a promessa de que em breve dariam outra". Todos os dias esperavam o jornal, ansiosos por não terem visto ainda figurar nele sua vesperal, temendo haver conseguido a Sra. de Cambremer apenas por seus convidados, não para a multidão dos leitores. Por fim chegava o bendito:

            "A temporada está excepcionalmente brilhante este ano em Balbec. A moda são os pequenos concertos das tardes, etc.."

            Graças a Deus, o nome da Sra. de Cambremer fora bem grafado e "citado ao acaso", mas ao alto. Restava apenas parecer aborrecido com essa indiscrição dos jornais, que podia causar rixas com pessoas a quem não fora possível convidar, e perguntar hipocritamente à Sra. de Cambremer quem fora capaz da perfídia de enviar aquele eco, ao que a marquesa, benevolente e grande dama, dizia:

            - Compreendo que isto os aborreça, mas quanto a mim fiquei muito feliz que soubessem que estava em casa dos senhores.

            No cartão que me enviou, a Sra. de Cambremer havia escrito que dava uma vesperal dois dias depois. E certamente há apenas dois dias, por mais cansado que estivesse da vida mundana, teria sido um verdadeiro prazer para mim desfrutá-la transplantada para aqueles jardins onde cresciam em plena terra, graças à exposição de Féterne; as figueiras, as palmeiras, os canteiros de rosas, e até ao mar, muitas vezes de um azul e de um sossego mediterrâneos e no qual o pequeno iate dos proprietários, antes do começo da festa, ia apanhar, nas praias do outro lado da baía, os convidados mais importantes, e que, com seus toldos estendidos contra o sol, servia de refeitório, quando todos já haviam chegado, e voltava à tardinha para reconduzir aqueles que trouxera. Luxo encantador, mas tão dispendioso que, em parte, a fim de cortar as despesas que ele acarretava, é que a Sra. de Cambremer havia procurado aumentar seus rendimentos de diversas maneiras, principalmente alugando pela primeira vez uma de suas propriedades, bem diferente de Féterne: La Raspeliere. Sim, dois dias antes, o quanto uma vesperal dessas, povoada de pequenos nobres desconhecidos, num ambiente novo, não teria me distraído da "alta roda" parisiense! Mas agora os prazeres não tinham mais nenhum sentido para mim. Assim, escrevi à Sra. de Cambremer para desculpar-me, da mesma forma como, uma hora antes, mandara despedir Albertine: o desgosto abolira em mim a possibilidade do desejo, de modo tão completo como uma febre muito alta tira o apetite. Minha mãe devia chegar no dia seguinte. Parecia-me que era menos indigno de viver junto dela, que a compreenderia melhor agora que toda uma vida estranha e degradante dera lugar ao retorno das lancinantes lembranças que cingiam e enobreciam minha alma e a sua de coroas de espinhos. Acreditava-o assim; na realidade, há muita distância entre os desgostos verdadeiros, como era o de mamãe que literalmente nos tiram a vida por muito tempo, às vezes para sempre, quando se perde a criatura amada -, e os demais desgostos, apesar de tudo passageiros, como devia ser o meu, que se vão tão depressa como tarde chegaram, que só são conhecidos muito tempo depois do acontecimento porque, para senti-los, houve necessidade de os "compreender"; desgostos como tantas pessoas os experimenta dos quais o que atualmente me torturava só se diferenciava pela modalidade da lembrança involuntária.

            Quanto a um desgosto tão profundo como o de minha mãe, eu devia conhecê-lo um dia, e o veremos na continuação desta narrativa; mas, era agora e nem assim que eu o imaginava. Não obstante, como recitador que deveria conhecer o seu papel e estar no seu posto há muito; que apareceu apenas no último segundo e, tendo lido somente uma vez o que tem a dizer, sabe dissimular com extrema habilidade ao chegar o momento em que deve dar a réplica; para que ninguém perceba o atraso do meu desgosto, inteiramente novo, permitiu-me, quando minha mãe chegou, que lhe falasse como se tivesse sido sempre o mesmo. Apenas imaginou que a vista daqueles lugares onde eu tinha estado com minha avó (e aliás não era isto) o havia despertado. Então pela primeira vez, e porque eu sentia uma dor que nada era, ao lado da sua, mas que me abria os olhos, dei-me conta, com terror, do que ela podia sofrer. Pela primeira vez compreendi que aquele olhar fixo e sem lágrimas (o que fazia com que Françoise pouco lamentasse), que ela apresentava desde a morte de minha avó, estava preso naquela incompreensível contradição da lembrança e do nada. Além disso, embora sempre com seus véus negros, mais vestidos naquela região nova, mais me impressionava a transformação que se fizera nela. Não é muito dizer que havia perdido toda a alegria; fundida, fixa numa espécie de imagem implorando; ela parecia ter medo de ofender com movimento excessivamente brusco, com um tom de voz alto demais, a dolorosa presença que não a abandonava. Mas principalmente, desde que vi entrar com seu manto de crepe, percebi o que me havia escapado em Paris; que já não era minha mãe quem eu tinha diante dos olhos: mas minha avó. Como nas famílias reais e ducais, à morte do chefe, o filho assume o seu título e, de duque de Orléans, de príncipe de Tarento, ou de príncipe des Laumes, torna-se rei da França, duque de La Trémoille, duque Guermantes, assim muitas vezes, devido a um acontecimento de outra ordem e de mais profunda origem, o morto se apodera do vivo, que se torna seu sucessor análogo, o continuador de sua vida interrompida. Talvez a grande mágoa que se segue, numa filha como era mamãe, à morte da sua não faça mais que romper mais cedo a crisálida, apressar a metamorfose do aparecimento de um ser que trazemos em nós, e que, sem essa crise faz queimar as etapas e saltar de um pulo os períodos, só teria sobrevivido mais lentamente. Talvez, na saudade daquela que já não existe, haja espécie de sugestão que acaba por trazer às nossas feições semelhança que aliás, teríamos em potencial, e sobretudo talvez haja uma parado nossa atividade mais particularmente individual (em minha mãe, o bom senso, a alegria zombeteira que lhe vinha do pai), que não receávamos exercer enquanto vivia o ser amado, mesmo que fosse às suas custas, e que contrabalançava o caráter que havíamos herdado exclusivamente dele. Uma vez que a pessoa amada está morta, sentiríamos escrúpulos em ser outra, não mais admiramos senão o que ela era, o que já éramos, porém misturado à outra coisa, e que vamos unicamente ser de hoje em diante. É neste sentido (e não naquele tão vago, tão falso, em que é geralmente entendido) que se pode dizer que a morte não é inútil, que o morto continua a agir sobre nós. Trata-se até mais que um vivo porque, sendo a verdadeira realidade apreendida apenas pelo espírito, só conhecemos de fato o que somos obrigados a recriar pelo pensamento, aquilo que a vida cotidiana nos oculta... Enfim, neste culto da dor pelos nossos mortos, devotamos uma idolatria pelo que eles amaram. Não só minha mãe não podia separar-se da bolsa de minha avó, que se tornara mais preciosa do que se fosse de safiras e diamantes, de seu regalo, de todos aqueles vestuários que ainda mais acentuavam a semelhança de aspecto entre elas, mas até mesmo dos volumes da Sra. de Sévigné que minha avó trazia sempre consigo, exemplares que minha mãe não trocaria nem mesmo pelo próprio manuscrito das Cartas.      Antigamente, ela gracejava com a mãe, que jamais lhe escrevia sem citar uma frase da Sra. de Sévigné ou da Sra. de Beausergent. Em cada uma das três cartas que recebi de mamãe antes de sua chegada a Balbec, ela citou a Sra. de Sévigné, como se essas três cartas não tivessem sido endereçadas por ela a mim, mas por minha avó a ela. Quis descer e ir até o molhe para ver aquela praia de que minha avó lhe falava todos os dias ao lhe escrever. Segurando a sombrinha da mãe, eu a vi pela janela adiantar-se, toda de preto, com passos tímidos, piedosos, pela areia que os pés queridos haviam pisado antes dela, e dava a impressão de ir em busca de uma morta que as ondas deviam trazer. Para não deixá-la jantar sozinha, tive de descer com ela. O presidente do conselho e a viúva do presidente da Ordem dos Advogados fizeram-se apresentar. E tudo o que se relacionava com minha avó era-lhe tão sensível, que ela se sentiu infinitamente tocada e conservou sempre a recordação e o reconhecimento pelo que lhe disse o presidente do conselho, como ao contrário sofreu com indignação o fato de que a viúva do presidente da Ordem dos Advogados não tivesse tido uma só palavra em lembrança da morta. Na realidade, o presidente do conselho não se preocupava com ela mais do que a viúva. As palavras comovidas de um, recebera como o silêncio da outra, embora minha mãe pusesse entre ambos uma grande distância, não passavam da forma diversa de exprimir aquela indiferença que nos inspiram os mortos. Creio, porém, que minha mãe achou principalmente doçura nas palavras em que, contra a minha vontade deixei passar um pouco do meu sofrimento. Aquilo só conseguia deixar minha mãe feliz (apesar de todo o carinho que sentia por mim), como tudo o que assegurasse à minha avó uma sobrevivência nos corações. Nos dias seguintes, minha mãe descia para sentar-se na praia, para fazer exatamente o que sua mãe fizera, e de quem lia os dois livros preferidos: as Memórias da de Beausergent e as Cartas, da Sra. de Sévigné. Ela, e nenhum de nós teria suportado que chamassem a esta última de "espirituosa marquesa"; nem a La Fontaine de "le Bonhomme". Mas, quando lia nas cartas as palavras "minha filha", julgava ouvir sua mãe lhe falando.

            Teve o azar, numa dessas peregrinações em que não queria ser perturbada, de encontrar na praia uma senhora de Combray, seguida das filhas. Creio que seu nome era Sra. Poussin. Mas entre nós só a chamávamos de "Vais ver o que te acontece", pois era com essa frase perpétua que repetia advertindo as filhas para os males que acarretariam às mesmas; por exemplo, dizia a uma delas que esfregava os olhos: "Quando tiveres uma boa oftalmia, vais ver o que te acontece." De longe, dirigia à mamãe longas saudações lacrimosas, mas não de condolências, e sim gênero de educação. Não tivéssemos perdido a minha avó, e só teríamos motivo de estar felizes, ela teria feito o mesmo. Vivia bastante retirada em Combray, num imenso jardim, nunca achava nada bastante suave e impunha suavizações até às palavras e nomes próprios da língua francesa. Achava muito duro chamar de "colher" à peça de prata em que se servisse do seu xarope e, em conseqüência, só dizia "coler"; teria receio de maltratar o doce cantor de Telêmaco chamando-o rudemente Fénelon como o fazia eu mesmo, com conhecimento de causa, pois tinha por amigo a criatura mais inteligente, mais bondosa e de maior coragem, inesquecível para quantos o conheceram, Bertrand de Fénelon e ela só dizia "Fénélon", achando que o acento agudo lhe acrescentava alguma suavidade. O genro desta Sra. Poussin, menos suave, e cujo nome esqueci de todo, sendo notório em Combray, ocorreu-lhe carregar com a caixa, fazendo principalmente o meu tio perder uma quantia respeitável.

            Mas como a maioria das pessoas de Combray dava-se tão bem com os outros membros da família, disso não resultou qualquer frieza, contentando-se elas em lamentar a Sra. Poussin. Ela não costumava receber, mas, cada vez que alguém passava pelas grades do seu jardim, parava para admirar suas admiráveis sombras, sem poder distinguir mais nada. Ela absolutamente não nos incomodou em Balbec, onde só a vi uma vez, no momento em que estava dizendo à filha, que roía as unhas:

            - Quando tiveres um boi, panarício, vais ver o que te acontece.

            Enquanto mamãe lia na praia, eu ficava sozinho no quarto. Recordava-me dos últimos tempos de vida da minha avó e tudo o que se relacionava com eles, a porta da escadaria, que se mantivera aberta quando tínhamos saído para o nosso último passeio. Em contraste com tudo aquilo, o resto do mundo apenas parecia real, e o meu sofrimento o envenenava todo. Por fim, minha mãe exigiu que eu saísse. Mas a cada passo, algum aspecto esquecido do cassino, da rua em que, esperando-a na primeira noite, eu caminhara até o monumento de Duguay-Trouin, impedia-me de ir adiante, como um vento contra o qual não se pode lutar; baixava os olhos para não ver. E, depois de recobrar um pouco de força, voltava para o hotel, para o hotel onde sabia que, de agora em diante, era impossível, por mais que esperasse, encontrar minha avó, minha avó que eu encontrara outrora, na primeira noite da chegada.

            Como era a primeira vez que saía, muitos criados que ainda não me conheciam me olharam com curiosidade. Na própria entrada do hotel, um jovem groom tirou o boné para me saudar, recolocando-o com presteza. Acreditei que Aimé, segundo sua própria expressão, lhe "passara a senha" para que me cumprimentasse. Mas no mesmo instante percebi que o tirava novamente para outra pessoa que chegava. A verdade era que aquele rapaz não sabia fazer outra coisa na vida senão tirar e pôr o boné, e o fazia extremamente bem. Tendo compreendido que era incapaz de outra coisa e que excedia naquilo, cumpria-o o maior número possível de vezes por dia, o que lhe valia da parte dos hóspedes uma simpatia discreta mas generalizada, uma grande simpatia igualmente da parte do porteiro a quem incumbia o trabalho de contratar os grooms, e que, até achar esse pássaro raro, não pudera encontrar um só que não despedisse em menos de oito dias, para grande espanto de Aimé, que dizia:

            - No entanto, nesse ofício só se exige que sejam corteses, não deveria ser tão difícil. -

            O gerente também fazia questão de que tivesse o que ele chamava uma bela "presença", querendo dizer que ali permanecessem, ou porque se referisse mesmo a uma boa “presença."

            O aspecto do gramado que se estendia por detrás do hotel fora modificado pela criação de algumas platibandas floridas e a retirada não só de um arbusto exótico, mas também do groom que, naquele primeiro ano, decorava exteriormente a entrada com o tronco flexível do seu talhe e o colorido curioso de sua cabeleira. Havia seguido uma condessa polonesa que o tomara como secretário, nisso imitando seus dois irmãos mais velhos e a irmã datilógrafa, arrancados ao hotel por personalidades de regiões e sexos diversos, que haviam se encantado com o charme deles. Permanecia apenas o irmão caçula ninguém queria por ser estrábico. Sentia-se muito feliz quando a polonesa e os protetores dos outros dois vinham passar algum tempo hotel de Balbec. Pois, apesar de invejar os irmãos, amava-os e podia durante algumas semanas, cultivar sentimentos de família.

            A abadessa Fontevrault não tinha por acaso o hábito, deixando as suas monjas compartilhar a hospitalidade que Luís XIV oferecia àquela outra Mortemantf, amante, à Sra. de Montespan? Quanto a ele, era o primeiro ano em Balbec; ainda não me conhecia, mas, tendo ouvido seus companheiros mais antigos, quando me diziam a palavra senhor, acrescentar-lhe ao nome, imitou-os desde a primeira vez com ar de satisfação, fosse para manifestar o seu conhecimento relativamente a uma personalidade, que julguei conhecida; fosse para se conformar a um uso que ignorava cinco minutos antes; mas, ao qual lhe parecia indispensável não faltar. Eu compreendi muito bem o encanto que aquele grande palácio poderia oferecer às pessoas. Estava erguido como um teatro, e um compartimento que animava até a curvatura da abóbada. Ainda que o hóspede não fosse uma espécie de espectador, estava permanentemente mesclado ao espetáculo; não apenas como nesses teatros em que os atores representem uma cena na platéia; mas, como se a vida do espectador se desenrolasse em meio às suntuosidades da cena. O jogador de tênis podia regressar; o casaco de flanela branca, que o porteiro teria vestido; a casaca azul, com gola de prata para lhe dar a correspondência. Se este jogador de tênis não desejava subir a pé, nem por isto estava menos misturado aos atores, tendo ao seu lado, para acionar o elevador, o ascensorista também ricamente uniformizado. Os corredores dos andares entremostravam uma fuga de camareiras e mensageiras, belas de encontro ao mar como o friso das Panatenifdb, e até aos seus quartinhos aonde chegavam por sábios desvios os apresentadores da beleza feminina ancila. Embaixo, dominava o elemento masculino, fazendo desse hotel, devido à extrema e ociosa juventude dos empregados, como que uma espécie de tragédia judeu-cristã que se encorpasse fosse perpetuamente representada. Assim, não podia deixar de dizer aos mesmos, ao vê-los, não certamente os versos de Racine que me vieram ao espírito na casa da princesa de Guermantes, enquanto o Sr. de Vaugoubest contemplava os jovens secretários da embaixada que saudavam o Sr. de Charlus, porém outros versos do mesmo Racine, desta vez não de Esther, mas de Athalie; pois desde o hall, o que no século XVII se chamava Pórticos, mantinha-se "um povo florescente" de jovens grooms, especialmente à hora das refeições, como os jovens israelitas dos coros de Racine. Não creio que um só deles pudesse dar sequer a vaga resposta que Jonas encontra para Atália, quando esta indaga ao príncipe menino:

            "Qual é, pois, o seu emprego?", visto não terem nenhum. Quando muito, se perguntassem a qualquer deles, como a velha rainha:

            “Mas de que se ocupa toda essa gente encerrada neste lugar?" -poderia ter dito:

            "Vejo a ordem pomposa destas cerimônias e para elas contribuo."

            Às vezes, uma das jovens figurantes caminhava na direção de algum personagem mais importante, porém logo essa jovem beldade voltava para o coro e, a menos que não fosse o instante de uma pausa contemplativa, todos entrelaçavam suas evoluções inúteis, respeitosas, decorativas e cotidianas. Pois, a não ser em seus "dias de folga", longe do mundo educado e não franqueando o vestíbulo, levavam a mesma existência eclesiástica dos levitas em Athalie, e diante desse "grupo jovem e fiel"," representando ao pé dos degraus cobertos de magníficos tapetes, eu podia indagar-me se penetrava no Grande Hotel de Balbec ou no templo de Salomão.

            Subia diretamente para o quarto. Meus pensamentos estavam ligados habitualmente aos últimos dias da enfermidade de minha avó, a seus sofrimentos, que eu revivia, acrescentando-lhes esse elemento, ainda mais difícil de suportar que o próprio sofrimento alheio e aos quais é ajuntado por nossa piedade cruel; quando julgamos estar apenas recriando as dores de um ser querido, nossa piedade as exagera; mas talvez seja ela que detenha a verdade, mais do que a consciência que têm dessas dores aqueles que as sofrem, e aos quais é oculta essa tristeza de suas vidas, que a piedade vê e com que se desespera. Todavia, a minha piedade teria, num novo impulso, ultrapassado os sofrimentos de minha avó se eu então tivesse sabido aquilo que ignorei por muito tempo; que, na véspera de sua morte, num instante de consciência e assegurando-se de que eu não me achava ali, ela pegara a mão de mamãe e, depois de lhe ter colado os lábios febris, lhe dissera:

            "Adeus, minha filha, adeus para sempre."

            Talvez também seja essa lembrança que minha mãe nunca mais deixou de encarar tão fixamente. Depois, voltavam-me as doces recordações. Ela era a minha avó e eu o seu neto. As expressões de sua fisionomia pareciam escritas só para mim; ela estava em toda a minha vida, os outros só existiam relativamente a ela, no julgamento que ela me fazia a seu respeito; mas nossas relações foram por demais fugidias para não terem sido acidentes. Ela já não me conhece, eu jamais voltarei a vê-la. Não tínhamos sido quase exclusivamente um para o outro, tratava-se de uma estranha. Essa estranha, eu a contemplava na fotografia tirada por Saint-Loup. Mamãe encontrara Albertine, insistira comigo para que a visse, por causa das amabilidades que dissera a respeito de minha avó e de mim. Marquei-lhe um encontro. Preveni o gerente para que a fizesse esperar no salão. Disse-na que já a conhecia de muito, a ela e a suas amigas, bem antes que houvessem atingido a “Idade da pureza", mas que estava aborrecido, devido às coisas que tinham dito sobre o hotel.

            - Não devem ser muito "ilustradas" para falarem assim. A menos que as tenham caluniado.             Compreendi facilmente que "pureza" fora dito em vez de "puberdade" .

            Esperando a hora de ir ao encontro de Albertine, mantinha os olhos fixos; como sobre um desenho que a gente acaba por não ver mais, de tanto olhar, na fotografia tirada por Saint-Loup, quando subitamente pensei novo:

            "É a avó, sou seu neto", como um amnésico redescobre seu nome, como um doente muda de personalidade.

            Françoise entrou para me dizer que Albertine já chegara e, vendo a fotografia:

            - Pobre Senhora, é realmente ela, até no sinalzinho do rosto; no dia em que o marquês a fotografou, ela tinha estado bem doente, por duas vezes passou mal. "Principalmente Françoise", tinha me dito, "é preciso que meu neto não o saiba" - ela o escondia bem, estava sempre alegre em sociedade. Unicamente, por exemplo, eu achava que às vezes ela parecia ter o espírito um pouco monótono . Mas isso passava depressa. E depois ela me disse assim: "Se um dia me acontecer alguma coisa, é preciso que ele tenha um retrato meu. Nunca mandei tirar nenhum." Então, mandou-me perguntar ao senhor, mas recomendando-lhe que não contasse ao patrão que fora ela que o pediu se ele não poderia lhe tirar a foto. Mas, quando voltei para dizer se ela não queria mais, porque se achava com aparência muito ruim. "É aí pior", disse-me, "do que não ter fotografia nenhuma." Mas, como ela era boba, acabou por se arrumar tão bem, pondo um grande chapéu de abas largas, que já não parecia mais desfigurada do que quando se achava " em pleno dia claro. Estava bem satisfeita com sua fotografia, pois naquele momento não acreditava que fosse voltar de Balbec. Por mais que lhe dissesse: "Patroa, não deve falar desse jeito, não gosto de ouvi-la falar assim", aquilo estava na sua cabeça. E, diabos, fazia vários dias que ela não podia comer. Era por isso que deixava o patrão ir jantar bem longe com o senhor marquês. Então, em vez de ir para a mesa, fingia estar lendo e, logo que o carro do marquês saía, ela subia para se deitar. Havia dias em que desejava prevenir a patroa para que viesse vê-la ainda. E depois tinha medo de assustá-la, já que não lhe dissera nada. "É melhor que ela fique com o marido, não é mesmo, Françoise?" - Olhando-me, Françoise perguntou bruscamente se me "sentia indisposto".             Disse-lhe que não; e ela:

            - E depois me prende aqui para conversar. Talvez sua visita já tenha chegado. Preciso descer. Não é uma pessoa para aqui. E estabanada como é, poderia ter ido embora. Ela não gosta de esperar. Ah, agora a senhorita Albertine é alguém.

            - Está enganada, Françoise, ela está muito bem, está até bem demais para aqui. Mas vá avisá-la de que não poderei vê-la hoje.

            Quantas exclamações apiedadas eu teria despertado em Françoise, caso ela me tivesse visto chorar! Ocultei-me cuidadosamente. Sem isto, eu teria tido a sua simpatia. Mas dei-lhe a minha. Não nos colocamos bastante no coração dessas pobres camareiras que não podem nos ver chorar, como se chorar nos fizesse mal; ou talvez lhes fizesse mal; Françoise me dissera quando eu era pequeno:

            - Não chore assim, não gosto de vê-lo chorar desse jeito. -

            Não apreciamos as grandes frases, as declarações, e erramos; assim, fechamos o coração ao patético rural, à lenda que a pobre criada, despedida talvez injustamente por furto, muito pálida, subitamente mais humilde como se se tratasse de um crime a ser acusada, desenrola, invocando a honestidade do pai, os princípios da mãe, os conselhos da avó. É claro que essas mesmas criadas que não podem suportar nossas lágrimas, sem escrúpulo, nos farão apanhar um resfriado porque a camareira do andar de baixo gosta das correntes de ar e não seria cortês suprimi-las. Pois é necessário que mesmo aqueles que têm razão, como Françoise, também estejam errados, para fazer da justiça uma coisa impossível. Até os humildes prazeres das criadas provocam ou a recusa ou a zombaria dos patrões. Pois é sempre um nada, mas ingenuamente sentimental, anti-higiênico. Assim, elas podem dizer:

            - Como, a mim que só peço isso o ano inteiro, eles me negam! -

            E no entanto os patrões concordariam com muito mais, desde que não seja estúpido e perigoso para elas ou para eles. Certamente, à humildade da pobre camareira trêmula, prestes a confessar o que não praticara, dizendo "partirei esta noite, se preciso for", não é possível resistir. Mas também é preciso saber não permanecer insensível, apesar da banalidade solene e ameaçadora das coisas que ela diz, sua herança materna e a dignidade da "roça", diante de uma velha cozinheira, criada na vida e numa ascendência honrosas, empunhando a vassoura como mastro, levando o seu papel para o trágico, entrecortando-o de choros, instigando-se majestosamente.

            Naquele dia recordei ou imaginei tais coisas e relacionei-as com a nossa velha criada e, desde então, apesar de tudo que pôde fazer a Albertine, amei Françoise com uma afeição, é verdade, intermitente, mas do mais forte gênero, o que tem por base a piedade. Decerto, sofri o dia inteiro ficando diante da fotografia de minha avó. Ela me torturava. Entretanto, menos do que o fez a visita do gerente a noite. Como lhe falasse de minha avó e ele me renovasse suas condolências, ouvi-o dizer-me (pois gostava de empregar os termos que pronunciava mal):

            - É como no dia em que a Senhora sua avó teve aqui simécope; quis avisá-lo porque, devido aos hóspedes, o senhor compreende, podia dar prejuízo à casa. Teria sido preferível que ela partisse naquela mesma noite. Mas suplicou-me que nada dissesse e me prometeu que não teria mais simécope ou que, logo à primeira, iria embora. Entretanto, o chefe do andar me comunicou que ela teve uma outra. Mas, enfim, os senhores eram antigos hóspedes que a gente procurava satisfazer, e já que ninguém se queixou... -

            Portanto, minha avó tivera síncopes e as escondia de mim. Talvez no momento mesmo em que eu fora menos gentil para com ela, quando era obrigada, sempre sofrendo, a prestar atenção para mostrar-se de bom humor para não me irritar e parecer estar de boa saúde, a fim de não ser despejada do hotel. Simécope era uma palavra que, assim pronunciada, eu jamais teria imaginado que, aplicada a outros, talvez tivesse parecido ridícula, mas que, em sua estranha novidade sonora, é semelhante à de uma dissonância original, permaneceu sendo, durante muito tempo, o que era capaz de despertar em mim as mais dolorosas sensações.

            No dia seguinte fui, a pedido de mamãe, estender-me um pouco na areia, ou melhor, nas dunas, ali onde se fica escondido por suas ondulações, e onde sabia que Albertine e suas amigas não poderiam me encontrar. Minhas pálpebras, abaixadas, só deixavam passar uma única luz, inteiramente cor-de-rosa, a das paredes internas dos olhos. Depois se fecharam completamente. Então minha avó me apareceu sentada numa poltrona. Muito fraquinha, parecia viver menos que qualquer outra pessoa. Entretanto ouvia-a respirar; às vezes, um sinal mostrava que ela compreendera o que dizíamos, meu pai e eu. Mas, por mais que a beijasse, não conseguia despertar um olhar de afeição em seus olhos, um pouco de cor em suas faces. Ausente de si mesma, dava a impressão de não me amar, de não me conhecer, talvez mesmo de não me ver. Eu não podia adivinhar o segredo de sua indiferença, do seu abatimento, de seu descontentamento silencioso. Arrastei meu pai à parte.

            - Contudo, estás vendo - disse-lhe -, não há o que dizer, ela percebeu perfeitamente cada coisa. É a ilusão completa da vida. Se se pudesse mandar vir o teu primo que pretende que os mortos não vivem! Faz mais de um ano que ela está morta e afinal vive sempre. Mas por que não deseja me beijar? - Olha, sua pobre cabeça cai de novo. - Achas mesmo que isso poderia lhe fazer mal, que ela poderia morrer ainda mais? Não é possível que já não me ame. Por mais que a beije, será que ela não me sorrirá nunca mais?

            - Que queres, os mortos são os mortos.

            Alguns dias depois, a fotografia tirada por Saint-Loup era doce de olhar; já não despertava a recordação do que me dissera Françoise porque essa recordação não me deixara mais e eu me habituara a ela. Mas, diante da idéia que eu me fazia de seu estado tão grave e doloroso daquele dia, a foto, aproveitando ainda as manhas que tivera a minha avó e que logravam enganar-me até quando me foram reveladas, mostrava-a tão elegante, tão despreocupada, debaixo do chapéu que ocultava um pouco o seu rosto, que eu a via menos infeliz e de melhor saúde do que imaginara. E no entanto suas faces, tendo mantido à sua revelia uma expressão própria, algo de plúmbeo, de esgazeado, como o olhar de um animal que se sentisse já escolhido e designado, minha avó exibia um ar de condenada à morte, um ar involuntariamente sombrio, inconscientemente trágico, que me escapava, mas que impedia mamãe de olhar jamais para aquela fotografia, essa fotografia que lhe parecia menos uma fotografia de sua mãe do que a de sua doença, de um insulto que essa doença fazia ao rosto brutalmente esbofeteado de minha avó.

            Depois, um dia decidi-me mandar dizer a Albertine que a receberia em breve. É que, numa manhã de grande calor prematuro, os milhares de gritos das crianças que brincavam, dos banhistas que se divertiam, dos jornaleiros, tinham-me descrito em traços de fogo, em labaredas entrelaçadas, a praia ardente que as pequenas ondas vinham, uma a uma, banhar de seu frescor; começara então o concerto sinfônico misturado ao barulho das águas, no qual os violinos vibravam como um enxame de abelhas disperso sobre o mar. E logo eu desejara ouvir novamente o riso de Albertine, rever suas amigas, aquelas mocinhas que se destacavam contra as ondas e que tinham ficado em minha lembrança como o encanto inseparável, a flora característica de Balbec; e resolvera mandar por Françoise um recado a Albertine, para a semana próxima, enquanto o mar, subindo suavemente a cada rebentar das ondas, cobria inteiramente de rolamentos de cristal a melodia cujas frases surgiam separadas umas das outras, como aqueles anjos tocadores de alaúde que, no topo da catedral italiana, erguem-se por entre as cristas de pórfiro azul e de jaspe espumante. Mas, no dia em que Albertine veio, o tempo se arruinara de novo, refrescara, e além disso não tinha oportunidade de ouvir sua risada; ela estava de muito mau humor.

            - Basta! Está insuportável este ano - disse ela. - Vou tratar de não mexer muito. Sabe que estou aqui desde a Páscoa, já faz mais de um mês não há ninguém. Se acha que é bem divertido isso...

            Apesar da chuva e do céu que mudava a cada instante, depois de ter acompanhado Albertine até Épreville, pois ela fazia, segundo sua expressão, "o vai-vem'' entre essa pequena praia, onde estava a vivenda da Sra. Bontemps-Incarville, onde fora "tomada em pensão" pelos pais de Rosemonde, saí para passear sozinho por aquela grande estrada pela qual tomava o carro da Sra. de Villeparisis quando íamos passear com minha avó; poças d'água, que o sol que brilhava não havia secado, tornavam o solo um verdadeiro lamaçal, e eu pensava em minha avó, que outrora não podia dar dois passos sem se enlamear. Mas, quando cheguei à estrada, foi um deslumbramento. Ali onde eu não vira com minha avó, no mês de agosto, mais do que folhas  cortadas; que a localização das macieiras, estavam elas agora em plena floração a perder de vista, de um luxo inaudito, os pés na lama e em vestido de baile sem tomar precauções para não estragar o cetim róseo mais maravilhoso que já se viu e que o sol fazia brilhar; o horizonte remoto do mar fornecia às macieiras uma espécie de pano de fundo de estampa japonesa; se eu erguia a cabeça para contemplar o céu por entre as flores, que faziam parecer quase violento o seu azul tranqüilo; elas pareciam afastar-se para mostrar a profundidade daquele paraíso. Sob esse azul, uma brisa leve, porém fria, fazia tremular ligeiramente os ramos avermelhados. Borboletas azuis vinham pousar nos ramos e saltitavam por entre as flores, indulgentes, como se um amador de exotismos e de cores houvesse criado artificialmente aquela beleza viva. Mas emocionava até às lágrimas porque, embora fosse bem longe em seus efeitos de arte refinada, sentia-se que era natural, que aquelas macieiras estavam ali, em pleno campo, como camponeses numa estrada real da França. Depois, aos raios de sol sucederam da chuva; riscaram todo o horizonte e encerraram a fila de macieiras em sua rede cinzenta. Mas estas continuavam a erguer a sua beleza, florida, rósea, ao vento que se tornara glacial sob o aguaceiro que caía: era um dia de primavera.

 

Os mistérios de Albertine. - As moças que ela vê no espelho. - A dama desconhecida. - O ascensorista. - A Senhora de Cambremer. - Os prazeres do Sr. Nissim Bernard. - Primeiro esboço do estranho caráter de Morel. - O Sr. de Charlus janta em casa dos Verdurin.

            No meu receio de que o prazer que tivera naquele passeio solitário enfraquecesse em mim a lembrança de minha avó, procurei reavivá-la pensando num certo sofrimento moral que ela tivesse tido; a meu apelo, tal sofrimento buscava construir-se em meu coração, onde alicerçava seus imensos pilares; mas meu coração, sem dúvida, era muito pequeno para ele, eu não tinha forças para carregar comigo uma dor tão grande, minha atenção se esquivava no momento em que se reformava toda, e seus arcos desabavam antes de se juntarem, como desabam as ondas antes de ter formado a sua abóbada.

            Entretanto, apenas pelos meus sonhos quando estava adormecido, eu poderia compreender que minha mágoa pela morte de minha avó ia diminuindo, pois neles parecia menos oprimida pela idéia que eu me fazia de seu nada. Via-a sempre enferma, mas em vias de se restabelecer; achava-a melhor. E, se ela aludisse ao que havia sofrido, eu lhe fechava os lábios com meus beijos e lhe garantia que agora estava curada para sempre. Teria desejado fazer que os céticos constatassem que a morte é na verdade uma doença da qual nos restabelecemos. Apenas, já não achava em minha avó a rica espontaneidade de antigamente. Suas palavras não passavam de uma resposta dócil, enfraquecida, quase um simples eco das minhas; ela não era mais que o reflexo de meu próprio pensamento.

            Incapaz como ainda me encontrava experimentando de novo um desejo físico, Albertine recomeçava, no entanto, inspirar-me como que um desejo de felicidade. Certos sonhos de ternura compartilhada, sempre flutuantes em nós, aliam-se de bom grado por uma espécie de afinidade à lembrança (desde que esta já se tenha tornado um tanto vaga) de uma mulher com quem tenhamos desfrutado prazeres. Este sentimento me recordava aspectos do rosto de Albertine, mais doces, menos alegres, bem diversos dos que o desejo físico teria evocado; e, como era também menos do que este último, eu teria de boa vontade adiado sua realização para o inverno seguinte, sem procurar rever Albertine em Balbec antes de partida. Porém, mesmo em meio a um desgosto ainda vivo, o desejo renasce. De minha cama, onde me faziam permanecer por muito tempo o repouso, todos os dias, eu desejava que Albertine viesse recomeçar no jogos de outrora. Não se vê, no próprio quarto em que perderam os esposos em breve de novo enlaçados darem um irmão ao pequeno morto? Eu tentava distrair-me desse desejo indo à janela a fim de contemplar o mar desse dia. Como no primeiro ano, os mares, de um dia para o outro, raramente eram os mesmos. Mas, além disso, de modo algum, assemelhavam aos daquele primeiro ano, fosse porque agora era a primavera com seus temporais, fosse porque, mesmo que eu tivesse vindo na mesma data da primeira vez, tempos diversos, mais mutáveis, teriam desaconselhado aquele litoral a certos mares indolentes, vaporosos e ágeis que eu vira dormir na praia durante os dias mais quentes. Ergue imperceptivelmente o seio azulado com suave palpitação, fosse principalmente porque meus olhos, instruídos por Elstir para reter precisamente os elementos que outrora eu voluntariamente eliminava, contemplavam longamente o que no primeiro ano não sabiam ver. Essa oposição, que então impressionava tanto, entre os passeios agrestes que dava com a Sra. Villeparisis e aquela vizinhança fluida, inacessível e mitológica, do oceano, já não existia para mim. E, pelo contrário, em certos dias o próprio mar me parecia agora quase rural.          Nos dias bem raros de verdadeiro bom tempo, o calor traçara na água, como através dos campos, uma estrada poeirenta e branca, por detrás da qual se erguia, como um campanário da aldeia, a fina ponta de um barco de pesca. Um rebocador, de que só a chaminé, fumegava ao longe como uma usina afastada, ao passo que sozinho no horizonte, um quadrado branco e inflado, pintado sem dúvida por uma vela, mas que parecia compacto e um tanto calcário, lembrava um ângulo ensolarado de alguma construção isolada, hospital ou escola. Nuvens e o vento, nos dias em que a eles se juntava o sol, rematavam, não o erro de julgamento, pelo menos a ilusão do primeiro olhar, que ele desperta na imaginação. Pois a alternância de espaços de cores nitidamente recortadas como as que resultam, no campo, da continuidade de culturas diferentes, as desigualdades ásperas, amarelas e mel, lamacentas da superfície marinha, as colheitas, os declives que escondia da vista um barco, onde uma equipagem de hábeis marinheiros parecia ceifar, tudo isso nos dias tempestuosos fazia do oceano algo de tão variado, tão consistente, tão acidentado, tão populoso, tão civilizado como caminho carroçável pelo qual eu passeava outrora, como não tardaria a passear agora. E uma vez, não mais podendo resistir ao meu desejo, em vez de voltar a deitar-me, vesti-me e fui procurar Albertine em Incarville. Pediria que me acompanhasse até Douville, onde iria fazer em Féterne uma visita à Sra. de Cambremer e, na La Raspeliere, uma visita à Sra. Verdurin. Durante esse tempo, Albertine me aguardaria na praia e voltaríamos juntos à noite. Fui tomar o trenzinho local, de que aprendera outrora, com Albertine e suas amigas, todos os apelidos que lhe davam na região, onde era chamado o Tortuoso, por causa de suas voltas inumeráveis; ora o Calhambeque, porque não avançava; Transatlântico, por causa de uma terrível sirena que possuía, para que os passageiros embarcassem; Decauville e Funi, embora não fosse de forma alguma um funicular, mas porque subia a falésia, nem sequer, a rigor, um Decauville, mas por possuir uma bitola de 60; o B.A.G., porque ia de Balbec a Grattevast passando por Angerville, Tram; e o T.S.N., porque fazia parte da linha dos tramways do sul da Normandia. Instalei-me num vagão onde estava sozinho; fazia um sol esplêndido, a gente abafava; baixei o estore azul, que não deixou passar mais que uma réstia de sol. Porém logo vi a minha avó, exatamente como se havia sentado no trem à nossa partida de Paris para Balbec, quando, na mágoa de me ver tomar cerveja, preferira não olhar, fechar os olhos e dar a impressão de estar dormindo. Eu, que antigamente não podia suportar a mágoa que ela sentia quando meu avô tomava conhaque, infligira-lhe esta, não apenas a de me ver tomar, a convite de outro, uma bebida que ela considerava funesta para mim, mas forçara-a a deixar-me livre para beber à vontade; mais ainda, por meus acessos de cólera, minhas crises de sufocação, eu a forçara a ajudar-me, a aconselhar-me que o fizesse, numa resignação suprema da qual guardava na memória a imagem muda, desesperada, de olhos fechados para não ver. Uma tal lembrança, como um toque de varinha mágica, me recuperara a alma que eu estava em vias de perder fazia algum tempo; que poderia eu fazer de Rosemonde (Albertine?), quando meus lábios inteiros eram percorridos unicamente pelo desejo desesperado de beijar uma morta? Que poderia eu dizer aos Cambremer e aos Verdurin, quando meu coração batia com tanta força porque, nele, reformava a cada instante a dor que minha avó sofrera? Não pude permanecer naquele vagão. Logo que o trem parou em Maineville-la-Teinturiere, desci, renunciando aos meus projetos. Maineville adquirira desde algum tempo uma considerável importância e uma reputação especial, porque um gerente de numerosos cassinos, comerciante de bem-estar, mandara construir, não longe dali, com um luxo de mau; capaz de rivalizar com o de um palácio, um estabelecimento ao qual iremos, e que era, para falar francamente, a primeira casa pública para trato elegante que se teve idéia de construir nas costas da França. Na verdade cada porto tem a sua, porém boa apenas para marinheiro e amadores do pitoresco, a quem diverte ver, bem perto da igreja a patroa quase tão velha, venerável e musgosa, postar-se diante de sua mal-afamada à espera do regresso dos barcos de pesca.

            Afastando-me da deslumbrante casa de "prazer", insolente, erguida ali apesar dos protestos das famílias debalde endereçados ao feito, atingi a falésia e por ali segui os tortuosos caminhos em direção à Balbec. Ouvi sem responder os apelos dos espinheiros-alvos. Vizinhos ricos das flores das macieiras, eles as achavam bem pesadas, embora reconhecendo a pele fresca das filhas, de pétalas róseas, desses fabricantes de cidra. Sabiam que, menos ricamente dotadas, eram no tanto, mais procuradas e que lhes bastava, para agradarem, uma branca amarrotada.

            Quando cheguei, o porteiro do hotel entregou-me um convite para um enterro assinado: pelo marquês e a marquesa de Gonneville, o visconde e a viscondessa d'Amfreville, o conde e a condessa de Berneville, o marquês e a marquesa de Graincourt, o conde d'Amenoncourt, a condessa de Mainville, o conde e a condessa de Franquetot, a condessa de Chaverny, nascida d'Aigleville, e que afinal compreendi porque me fora enviado, ao reconhecer os nomes da marquesa de Cambremer, e quando vi que a morta era uma prima dos Cambremers chamada Éléonore-Euphrasie-Humbertine de Cambremer, condessa de Criquetot. Em toda a extensão dessa família provinciana, cuja enumeração enchia linhas finas e cerradas, não havia um só burguês, e aliás nem um título conhecido, mas todo o grupo e subgrupo de nobres da região que faziam ressoar seus nomes em todos os lugares interessantes das redondezas com alegres finais em villie, em court, vezes mais surdos (em tot). Vestidos com a telha de seu castelo; ou com reboco de sua igreja, a cabeça vacilante mal ultrapassando a abóbada da construção central, e unicamente para ornarem-se com a clarabóia; ou as armações do telhado em forma de cone, davam a impressão de terem ressoado o toque de reunião de todas as belas aldeias escalonadas ou dispersas num raio de cinqüenta léguas e de as terem disposto em armação cerrada, sem uma só lacuna, sem um intruso, no tabuleiro retangular e compacto do convite aristocrático bordado de preto.

            Minha mãe tornara a subir para seu quarto, meditando na carta da Sra. de Sévigné:

            "Não visito nenhum dos que desejam me divertir; palavras encobertas, o que eles querem é impedir-me de pensar em você e isso me ofende", porque o presidente do conselho lhe dissera que deveria distrair-se. Ele me sussurrou:

            - É a princesa de Parma. -

            Meu temor dissipou-se ao ver que a mulher que o magistrado me indicava não tinha qualquer relação com Sua Alteza Real. Mas, como esta mandara reservar um quarto para passar a noite ao voltar da casa da princesa de Luxemburgo, a notícia teve, para muitos, o efeito de fazê-los tomar pela princesa de Parma toda nova dama recém-chegada e, para mim, o de fazer-me subir e ficar fechado em meu sótão. Não gostaria de estar ali sozinho. Eram apenas quatro horas. Pedi a Françoise que fosse buscar Albertine, para que viesse passar comigo o final da tarde.

            Creio que mentiria se dissesse que já principiara a dolorosa e perpétua desconfiança que Albertine devia me inspirar, e com maior razão o caráter especial, sobretudo gomorriano, que deveria revestir essa desconfiança. Decerto, desde aquele dia, mas que não era o primeiro minha espera foi um tanto ansiosa. Françoise, logo que partiu, demorou tanto tempo que comecei a desesperar. Não havia acendido a lâmpada. Quase não havia claridade. O vento fazia estalar a bandeira do cassino. E, mais débil ainda que o silêncio da praia, por onde o mar subia, e como uma voz que traduzisse e aumentasse a vagarosa enervante daquela hora inquieta e falsa, um realejo parado diante do hotel tocava valsas vienenses. Por fim Françoise chegou, mas sozinha.

            - Fui o mais rápido que pude, mas ela não queria vir porque não se achava bem penteada. Se não ficou uma hora se empoando, cinco minutos é que não foi. Vai ser uma verdadeira perfumaria aqui. Ela vem, ficou para trás para se arrumar diante do espelho. Pensava já encontrá-la aqui. -

            Ainda se passou longo tempo antes que Albertine chegasse. Porém a alegria e a amabilidade que demonstrou dessa vez dissiparam a minha tristeza. Anunciou-me (ao contrário do que havia dito outro dia) que ficaria por toda a temporada e perguntou se não poderíamos, como no primeiro ano, ver-nos todos os dias. Disse-lhe que naquele momento estava triste demais e que seria melhor mandar buscá-la de vez em quando, no último instante, como em Paris.

            - Se alguma vez sentir-se aflito ou o coração o aconselhar, não hesite -disse ela -, mande me buscar, virei depressa; e, se não recear que isso faça escândalo no hotel, permanecerei o tempo que quiser. -

            Ao trazê-la, Françoise ostentara um ar feliz, como cada vez que se dava a um trabalho por mim e conseguia me agradar. Mas Albertine em si não entrava em nada nessa alegria, e já no dia seguinte Françoise devia me dizer estas palavras profundas:

            - O patrão não deveria ver essa moça; bem sei o tipo de caráter que ela tem, vai lhe dar desgostos.

            Reconduzindo Albertine, vi pela sala de jantar iluminada a princesa de Parma. Limitei-me a olhá-la, cuidando em não ser visto. Mas confesso: achei uma certa grandeza na régia polidez que me fizera sorrir na casa Guermantes. É um princípio que os soberanos estejam em sua casa à parte, e o protocolo o traduz em usos mortos e sem valor, como àquela que o dono da casa fique de chapéu na mão em sua própria realeza, para mostrar que não está mais em sua casa, mas na do príncipe; essa idéia, a princesa de Parma talvez não a formulasse, porém estava tão imbuída que todos os seus atos, espontaneamente inventados circunstâncias a traduziam. Quando se ergueu da mesa, deu uma cativa gorjeta a Aimé como se este estivesse ali apenas para servi-la recompensasse, ao deixar um castelo, um mordomo afeto a seu ser. Aliás, não se contentou com a gorjeta; mas, com um sorriso gracioso dirigiu-lhe algumas palavras amáveis e lisonjeiras de que sua mãe a abastecera. Um pouco mais, e ela lhe teria dito que, quanto mais bem dirigido o hotel, tanto mais florescente a Normandia, e que de todos os países do mundo ela preferia a França. Outra moeda deslizou das mãos da princesa para o copeiro que ela mandara chamar e a quem fez questão de exprimir seu contentamento, como um general que acaba de fazer uma revista. Naquele momento, o ascensorista viera dar uma resposta; ganhou uma frase, um sorriso e uma gorjeta, tudo isso misturado às palavras, estímulo, humildes, destinadas a lhes provar que ela não era mais que um deles. Como Aimé, o copeiro, o ascensorista e os demais julgaram, pouco polido não sorrir de orelha a orelha a uma pessoa que lhes sorria, ela foi em breve cercada por um grupo de criados, com quem conversou demoradamente; como tais maneiras eram desacostumadas nos palácios, pessoas que passavam pela praia, ignorando o seu nome, acreditaram estar vendo uma habituée de Balbec, e que, devido a uma extração medíocre; a um interesse profissional (talvez fosse a esposa de um corretor) era menos diferente da criadagem que seus clientes verdadeiramente elegantes. Quanto a mim, pensei no palácio de Parma, nos conselhos religiosos, meios políticos dados a essa princesa, que lidava com o povo; como se devesse conciliar-lhe as graças para reinar um dia; mais ainda, como se já reinasse.

            Voltei para o meu quarto, mas ali não me achava sozinho. Ouvia alguém tocando com suavidade trechos de Schumann. Com certeza ocorre as pessoas, mesmo aquelas a quem mais amamos, saturam-se com a tristeza ou a irritação que provém de nós. Entretanto, existe algo que tem capacidade de exasperar que pessoa alguma consegue atingir: Albertine me fizera anotar as datas em que deveria ausentar-se à casa de amigas durante alguns dias, e fizera-me também escrever os endereços para o caso que eu tivesse necessidade dela numa dessas noites, pois nenhuma residia muito longe. Isto fez com que, para achá-la, de moça em moça, bem naturalmente se foi formando a meu redor um laço de flores. Ouso confessar que muitas de suas amigas, eu não a amava ainda, me proporcionaram, numa ou noutra praia, alguns instantes de prazer. Essas jovens companheiras benevolentes não me pareciam muito numerosas. Mas ultimamente voltei a pensar nisso, seus nomes me regressaram.

            Contei que, somente naquela temporada, doze me concederam seus frívolos favores. Um nome a mais me acudiu logo, totalizando treze. Tive então uma espécie de medo infantil de permanecer nesse número. Ai de mim, pensava que havia esquecido a primeira, Albertine, que já não estava e foi a décima quarta.

            Para retomar o fio da narrativa, eu anotara os nomes e endereços das moças onde a encontraria nos tais dias em que ela não estivesse em Incarville, mas imaginara que aproveitaria melhor esses dias indo à casa da Sra. Verdurin. Além disso, nossos desejos por mulheres diferentes não têm sempre a mesma intensidade. Em determinada noite não podemos passar sem uma que, depois disso, não nos perturbará durante um ou dois meses. Ademais, além das causas de alternância de que não é aqui o lugar de estudar, depois das grandes fadigas carnais, a mulher cuja imagem freqüenta a nossa momentânea senilidade; é uma mulher a quem quase não faríamos mais que beijar na fronte. Quanto a Albertine, eu a via raramente, e apenas em tardes muito espaçadas, quando não podia passar sem ela. Se um tal desejo me possuísse quando ela estivesse longe demais de Balbec para que Françoise pudesse ir a seu encontro, eu enviava o ascensorista a Épreville, a La Sogne, a Saint-Frichoux, pedindo-lhe que terminasse um pouco mais cedo o seu trabalho. Ele entrava em meu quarto, mas deixando a porta aberta, pois, embora cumprisse conscienciosamente com seu "batente", que era bem pesado, e consistia em numerosas limpezas desde as cinco da manhã, não podia resolver-se ao esforço de fechar uma porta e, se lhe observassem que estava aberta, voltava e, fazendo um esforço máximo, encostava-a de leve. Com o orgulho democrático que o caracterizava e ao qual não atingem em suas carreiras liberais os membros de profissões um tanto numerosas, advogados, médicos, que somente a um outro advogado, homem de letras ou médico chamam:

            - Meu confrade -, ele, usando com razão um termo reservado aos corpos restritos, como as academias por exemplo, me dizia, falando de um groom que era ascensorista uma vez a cada dois dias:

            - Vou tratar de ser substituído por meu colega. -

            Esse orgulho não o impedia, com o objetivo de melhorar o que denominava seus vencimentos, de aceitar remunerações pelos recados, o que fizera Françoise criar-lhe horror:

            - Sim, da primeira vez que a gente o vê é capaz de dar a hóstia sem confissão; mas há dias em que ele é cortês como a de uma prisão. Todos eles são caça-níqueis. -

            Categoria em que ela as vezes havia classificado Eulalie e onde infelizmente, por todas as doenças que aquilo um dia deveria trazer, ela já colocava Albertine, pois muitas vezes vinha pedir a mamãe, para a minha amiga pouco afortunada, miúdos, ninharias, o que Françoise achava indesculpável, porque a Sra. Bontemps só tinha uma criada para fazer tudo. Bem depressa, o ascensorista, tirando o que eu chamaria a sua libré e que ele denominava sua casaca, aparecia de bengala e chapéu de palha, cuidando do seu andar porte erguido, pois a mãe lhe recomendara que nunca assumisse o, -"operário" ou groom. Da mesma forma que, graças aos livros, a ciência„ acessível a um operário que não é mais operário depois que findou seu trabalho, assim, graças ao chapéu de palha e ao par de luvas, a elegância tornou-se acessível ao ascensorista, o qual, deixando à noite de fazer aos hóspedes, julgava-se, como um jovem cirurgião que despiu o jaleco; o sargento Saint-Loup sem o uniforme, um perfeito mundano. Aliás, não destituído de ambição, nem tampouco de talento para manipular a sua gaiola e nos deixar entre dois andares. Mas sua linguagem era defeituosa. Acreditava na sua ambição porque, referindo-se ao porteiro, de quem dependia:

            - Meu porteiro - falava, com o mesmo tom que um homem, que possuindo em Paris o que o groom teria chamado "um hotel particular", falava do seu porteiro. Quanto à linguagem do ascensorista, é curioso que algo que ouvia um hóspede dizer cinqüenta vezes por dia "elevador", nunca pudesse ser ele próprio senão "ascensor". Certas coisas nesse ascensorista eram muito irritantes: qualquer coisa que eu lhe dissesse, ele me interrompia e numa locução, "é claro!", ou "logo vi!", que parecia significar ou que minha observação era de uma tal evidência que todo mundo a teria feito, ou então atribuir a si o mérito, como se ele é que me chamasse a atenção ao fato. "É claro!" ou "logo vi!", proferidos com a maior energia, retornava de dois em dois minutos à sua boca, a propósito de coisas que nunca teriam ocorrido, o que irritava tanto que logo me punha a dizer o contrário para lhe mostrar que não compreendia nada. Mas à minha segunda aflição, embora não fosse conciliável com a primeira, ele também não deixava de retrucar: "É claro!", ou "logo vi!", como se estas palavras fossem inevitáveis. Também dificilmente lhe perdoava que empregasse certos termos seu ofício, e que, por isso mesmo, seriam perfeitamente adequados no sentido próprio, apenas no sentido figurado, o que lhes dava uma intenção espirituosa bem tola; por exemplo, o verbo pedalar. Ele nunca o usava quando fazia uma corrida de bicicleta. Mas se, a pé, correra para chegar na hora para indicar que havia caminhado depressa dizia:

            - Como pedalei! -

            O ascensorista era antes baixinho, malfeito de corpo e muito feio. Isso não impedia que, cada vez que lhe falavam de um rapaz alto, esbelto e fino, ele dissesse:

            - Ah, sim, sei, um que é bem do meu tamanho. -

            E um dia em que esperava uma resposta sua, como alguém subisse a escada, eu, ao ruído dos passos, abrira com impaciência a porta do quarto e vira um groom, belo como Endimião, os traços incrivelmente perfeitos, que vinha a chamado de uma dama que eu não conhecia. Quando o ascensorista regressou, ao lhe dizer com que impaciência eu havia esperado a sua resposta, contei que julgara que era ele quem subia, mas que se tratava de um groom do Hotel da Normandia. E ele disse:

            - Ah, sim, sei quem é, só existe um, um rapaz do meu tamanho. De cara, também se parece muito comigo, de tal modo que poderiam nos tomar um pelo outro, dir-se-ia que é meu irmão. -

            Enfim, queria parecer ter compreendido tudo desde o primeiro instante, o que fazia com que, logo que lhe recomendassem alguma coisa, dissesse:

            - Sim, sim, sim, sim, sim, compreendo muito bem com uma clareza e um tom inteligente que me iludiram por algum tempo; mas as pessoas, à medida que a gente as conhece, são como um metal mergulhado numa mistura alteradora, e aos poucos vemo-las perderem suas qualidades (como às vezes seus defeitos). Antes de lhe fazer minhas recomendações, vi que deixara aberta a porta; chamei-lhe a atenção, receava que nos ouvissem; condescendeu ao meu desejo e voltou, após ter diminuído a abertura.

            - É para agradá-lo. Mas não há ninguém neste andar senão nós dois.

            E logo ouvi passar uma pessoa, depois duas, e depois três. Isso me irritava por causa da possível indiscrição, mas sobretudo porque via que aquilo não o admirava de maneira nenhuma e se tratava de um vai-vém normal.

            - Sim, é a camareira do lado que vai buscar suas coisas. Oh, não tem importância, é o copeiro que traz as suas chaves. Não, não, não é nada, o senhor pode falar, é meu colega que vai pegar no serviço. -

            E, como todos os motivos que as pessoas tinham para passar não diminuíssem o meu aborrecimento pelo fato de que podiam me ouvir, diante de minhas ordens formais ele foi, não fechar a porta, pois isto estava acima das forças daquele ciclista que desejava uma moto, mas empurrá-la um bocadinho mais.

            - Assim ficaremos tranqüilos. -

            Estávamos tranqüilos de tal maneira que uma americana entrou e saiu, desculpando-se por se haver enganado de quarto.

            - Você vai me trazer essa moça - disse eu, depois de ter eu próprio batido a porta com toda a força, o que levou um outro groom a verificar se não havia uma janela aberta.

            - Você se lembra bem: Srta. Albertine Simonet. Aliás, está no envelope. Você só precisa lhe dizer que isto vem de minha parte. Ela virá de muito bom grado - acrescentei para encorajá-lo e não me humilhar demais.

            - É claro! -

            Mas não, ao contrário, não é nada natural que vir de Berneville até aqui.

            - Com grado. É muito incômodo venha de bom grado que venha consigo. - Sim, sim, sim, sim, compreendo! -

            Você lhe dizendo: “muito bem” - respondia ele, com esse tom preciso e fino que há muito "boa impressão", porque eu sabia que era a qual já deixara de me causar a nitidez aparente, muita estupidez e indeterminação. Mecânico recobria-se.       

            - Não ficarei fora por muito tempo – dizia-

            - A que horas terá voltado?

            O ascensorista que, levando ao extremo a regra ditada por Bélise para evitar reincidência do mesmo compasso, contentava-se sempre com uma só negativa.

            - Posso muito bem ir até lá. Justamente as saídas tinham sido suspensas há pouco porque havia um almoço de vinte talheres. E era a minha vez de sair à tardinha. É justo que eu saia um pouco esta noite. Levo a minha bicicleta. Assim irei depressa. -

            E uma hora depois ele chegava sozinho dizendo:

            - O senhor esperou bastante, o porteiro não vai ficar aborrecido comigo? - Ah, obrigado, o senhor Paul? Não sabe onde estive. Nem o chefe da portaria tem nada a dizer. -

            Mas certa vez em que lhe dissera:

            - É absolutamente necessário, que a traga -, ele me falou sorrindo:

            - O senhor sabe que não a encontrei. Ela não está aí. E não pude permanecer por muito tempo; tinha medo, de ser como o meu colega, que foi enviado do hotel - (pois o ascensorista, que dizia reentrar no caso de uma profissão na qual se entra pela primeira vez: "eu gostaria muito de reentrar para os Correios", em compensação, fosse para adoçar a coisa, se se tratasse dele, fosse para insinuá-la mais adocicada e perfidamente, se se tratasse de outrem, suprimia o re inicial. Não era por maldade que ele sorria, e dizia:

            "sei que ele foi enviado sim por timidez.”

            Julgava diminuir a importância de sua falta, levando-a na brincadeira.

            Da mesma forma, se me havia dito:

            - O senhor sabe que não a encontrei não era porque julgasse que eu de fato já o sabia. Pelo contrário, não duvidava que eu o ignorasse e, principalmente, assustava-se como para evitar a si próprio as angústias que, isso causaria. Assim, dizia "o senhor sabe" pretendia ao pronunciar as frases destinadas a revelar-me aquilo. Jamais nos deveríamos encolerizar contra aqueles que, apanhados em falta por nós, põem-se a troçar. Eles procedem assim não porque zombem, mas por tremerem à idéia de que possamos estar descontentes. Testemunhemos uma grande piedade, demonstremos uma grande ternura por aqueles que riem. Semelhante a um verdadeiro acesso, a perturbação do ascensorista lhe trouxera não apenas um rubor apoplético, mas também uma alteração da linguagem, que subitamente se tornara familiar. Acabou por explicar-me que Albertine não estava em Épreville, que deveria regressar somente às nove horas e que se às vezes, o que significava por acaso, voltasse mais cedo, lhe dariam o meu recado e, em todo caso, ela estaria comigo antes de uma da madrugada.

            Aliás, ainda não foi naquela noite que principiou a tomar consistência a minha cruel desconfiança. Não, para dizê-lo de imediato e embora o caso haja ocorrido somente algumas semanas depois, ela nasceu de uma observação de Cottard. Naquele dia, Albertine e suas amigas tinham desejado arrastar-me ao cassino de Incarville, e por sorte minha eu não as teria encontrado (pois queria fazer uma visita à Sra. Verdurin que me convidara várias vezes) se não fosse detido exatamente em Incarville por uma pane no trem que ia demorar algum tempo para ser reparada. Andando de um lado para o outro à espera de que terminassem, encontrei-me de súbito frente a frente com o doutor Cottard, que fora a Incarville para dar uma consulta. Hesitei quase em cumprimentá-lo, visto que não respondera a nenhuma de minhas cartas. Mas a amabilidade não se manifesta em todo mundo da mesma forma. Não tendo sido restringido pela educação às mesmas regras fixas de polidez das pessoas da sociedade, Cottard era cheio de boas intenções que se ignoravam, que se negavam, até o dia em que ele tinha ocasião de manifestá-las. Desculpou-se, havia certamente recebido as minhas cartas, havia assinalado a minha presença aos Verdurin, que tinham muita vontade de me ver e a cuja casa me aconselhou que fosse. Queria mesmo levar-me até lá na mesma noite, pois ia pegar de volta o trenzinho local para jantar com eles. Como eu hesitasse e ele ainda dispunha de algum tempo para tomar o trem, pois a pane ia demorar para ser reparada, fi-lo entrar no pequeno cassino, um daqueles que me haviam parecido tão tristes na noite da minha primeira chegada, e agora estava cheio do tumulto das moças que, por falta de cavalheiro, dançavam juntas. Andrée veio ter comigo, deslizando; eu contava partir em breve com Cottard para a casa dos Verdurin, quando recusei definitivamente o seu oferecimento, possuído pelo desejo muito vivo de ficar com Albertine. É que acabava de ouvi-la rir. E esse riso evocava logo as carnações róseas, as perfumadas paredes, contra as quais parecia que acabara de se esfregar e de que o acre sensual e revelador como um aroma de gerânio, parecia transportar consigo algumas partículas quase imponderáveis, irritantes e secretas.

            Uma das moças que eu não conhecia sentou-se ao piano, e Andrée pediu a Albertine que valsasse com ela. Feliz, nesse pequeno cassino, por pensar que ia permanecer com aquelas moças, observei a Cottard como dançavam bem. Mas ele, do ponto de vista especial do médico, e com a educação de quem não levava em conta o fato de eu conhecer aquelas moças, às quais no entanto me vira cumprimentar, respondeu:

            - Sim, mas são bem imprudentes os pais que deixam as filhas adquirirem semelhante hábitos. Certamente eu não permitiria às minhas que viessem até aqui, ao menos são bonitas? Não distingo suas feições. Olhe - acrescenta mostrando-me Albertine e Andrée que valsavam lentamente, apertadas uma contra a outra -, esqueci o meu pince-nez e não enxergo bem, mas com certeza elas estão no auge do gozo. Não se sabe muito bem que é principalmente pelos seios que elas o experimentam. E repare, os seios delas tocam completamente. -

            De fato, o toque não cessara entre os de Andrée e os de Albertine.

            Não sei se elas ouviram ou adivinharam a reflexão, do Cottard, mas desligaram-se levemente uma da outra, sempre continuando a valsar. Nesse momento, Andrée disse uma palavra a Albertine, e esta riu com o mesmo riso penetrante e profundo que eu escutara há pouco. Mas a perturbação que me causou desta vez foi apenas cruel; Albertine dava impressão de mostrar desse modo, de fazer notar a Andrée, algum frêmito voluptuoso e secreto. Aquele riso soava como os primeiros ou os últimos acordes de uma festa desconhecida.

            Saí com Cottard, conversando com ele, distraído, só por instantes pensando na cena que acabava de presenciar. Não é que a conversa de Cottard fosse interessante. Naquele momento até se tornara azeda, pois acabávamos de ver o doutor Du Boulbon, que não nos percebeu. Ele viera passar algum tempo do outro lado da baía de Balbec, onde era muito consultado. Ora, Cottard, embora habitualmente declarasse que não praticava medicina nas férias, havia esperado formar nessa costa uma clientela de escol, a que Du Boulbon se constituía num obstáculo. Por certo o médico de Balbec não podia incomodar a Cottard. Não passava de um médico bastante consciencioso que sabia tudo e a quem não se podia falar no menor prurido sem que ele indicasse logo, numa fórmula complexa, a pomada, loção ou tingimento adequados. Como dizia Marie Gineste em seu bonito linguajar, ele sabia "encantar" as feridas e as chagas. Mas não tinha qualquer ilustração. E de fato já causara um pequeno aborrecimento a Cottard. Este, desde que desejara trocar sua cátedra pela de terapêutica, se fizera especialista em intoxicações, perigosa inovação da medicina que serve para renovar os rótulos dos farmacêuticos, dos quais todo produto é declarado inteiramente atóxico, ao contrário das drogas similares, e até desintoxicante. É a propaganda da moda; mal sobrevive, por baixo, em outras ilegíveis, como um débil vestígio de uma moda precedente, a afirmativa de que o produto foi cuidadosamente antisseptizado. As intoxicações também servem para que o doente se tranqüilize, ao saber alegremente que sua paralisia é apenas uma enfermidade tóxica.

            Ora, tendo um grão-duque vindo passar alguns dias em Balbec e estando com um olho extremamente inchado, mandara trazer Cottard, o qual, em troca de algumas cédulas de cem francos (o professor não se incomodava por menos), atribuíra a inflamação a um estado tóxico e prescrevera um regime desintoxicante. Visto que o olho não desinchava, o grão-duque recorreu ao médico ordinário de Balbec, o qual em cinco minutos retirou um grão de poeira. No dia seguinte não havia mais nada. Entretanto, um rival mais perigoso era uma celebridade em doenças nervosas.

            Era um homem rubro, jovial, a um tempo porque o convívio com o descontrole nervoso não o impedia de gozar de muito boa saúde, mas também para tranqüilizar seus doentes com o riso grosso de seus bons-dias e de seu até logo, pronto para ajudar com seus braços de atleta a lhes vestir mais tarde a camisa-de-força. Não obstante, quando se conversava com ele em sociedade, fosse de política ou de literatura, ele escutava com uma benevolência atenta, como se indagasse: "De que se trata?", sem se pronunciar de imediato, como se se tratasse de uma consulta. Mas enfim, este, fosse qual fosse o talento que tivesse, era um especialista. Assim, toda a raiva de Cottard recaía sobre Du Boulbon. Aliás, deixei logo o professor amigo dos Verdurin, para recolher-me, prometendo ir vê-los.

            Era profundo o mal que me haviam feito suas palavras no tocante a Albertine e Andrée. Mas os piores sofrimentos não foram sentidos por mim de imediato, como ocorre com esses venenos que só agem depois de um certo tempo.

            Albertine não veio na noite em que o ascensorista fora buscá-la, apesar da segurança deste. Por certo, os encantos de uma pessoa são uma causa menos comum de amor que uma frase do tipo desta:

            "Não, esta noite não estarei livre."

            Não se dá atenção a essa frase se se está em presença de amigos; estamos alegres toda a noite, não nos preocupamos com determinada imagem; durante esse tempo, ela está mergulhada na mistura necessária; ao regressar, encontra-se o clichê pronto e perfeitamente nítido. Percebe-se que a vida já não é aquela que se teria deixado por uma ninharia na véspera, pois, se continuamos a não temer a morte, não mais temos coragem de pensar na separação. Além disso, não a partir de uma da madrugada (hora que o ascensorista havia fixado), mas das três horas, não mais experimentei como outrora o sofrimento de sentir diminuir as minhas chances de que ela aparecesse. A certeza de que não viria trouxe-me um sossego absoluto, alívio; essa noite era simplesmente uma noite como tantas outras em geral eu não a via, e dessa idéia eu começava. E desde então, destacando-se à esse Nada aceito, tornava-se doce o pensamento de que a veria no dia seguinte ou em outros dias. Às vezes, nessas noites de espera, a angústia agia como a um remédio que se tomou. Falsamente interpretada por aquele que sofre, julga ele estar angustiado por causa daquela que não vem. Em tal caso o amor nasce, como certas doenças nervosas, da explicação incorreta de um mal penoso. Explicação que não é útil retificar, pelo menos no que concerne ao amor, sentimento que é sempre errôneo, seja qual for a sua causa.       

            No dia seguinte, quando Albertine me escreveu dizendo que acabava de voltar a Épreville, e portanto não recebera a tempo o meu recado, e viria, se eu o permitisse, visitar-me à noite por detrás das palavras da carta, como por trás das que me dissera uma vez ao telefone; julgamos sentir a presença de prazeres e de criaturas que ela teria preferido a mim. Mais uma vez fui inteiramente abalado pela dolorosa curiosidade de saber o que poderia ela ter feito, devido ao amor latente que sempre trazemos dentro de nós; durante um momento, cheguei a acreditar que esse amor iria ligar-me a Albertine, porém ele se contentou em fremir dentro de mim; e seus últimos ruídos se extinguiram sem que se pusesse em marcha.

            Eu havia compreendido mal, na minha primeira estada em Balbec, o caráter de Albertine e talvez o mesmo tivesse acontecido com Andrée. Achara ser frivolidade ingênua de sua parte, se todas as nossas súplicas não conseguiam retê-la e fazê-la faltar a um garden-party, a um passeio em lombo de burro, a um piquenique.

            Em minha segunda estada em Balbec; suspeitei que essa frivolidade era apenas aparente, o garden-party um biombo, senão uma invenção. Ocorria, sob formas diversas, o seguinte (entendo a coisa vista por mim, do meu lado do vidro que de modo algum era transparente, e sem que pudesse saber o que havia de verdadeiro do outro lado): Albertine me fazia os mais apaixonados protestos de ternura. Vigiava a hora porque precisava fazer uma visita a uma dama que recebia, ao que parece, todos os dias às cinco da tarde em Infreville. Atormentado por uma suspeita e aliás sentindo-me adoentado, pedia a Albertine, suplicava-lhe que permanecesse comigo. Era impossível (e ela até nem tinha mais que cinco minutos para ficar), pois aquilo aborreceria a tal dama, pouco hospitaleira e suscetível, e, ao que dizia à Albertine, enfadonha.

            - Mas pode-se perfeitamente deixar de fazer uma visita.

            - Não, minha tia me ensinou que é necessário ser polido com todos.

            - Mas eu a tenho visto não ser polida muitas vezes.

            - Não é a mesma coisa, essa dama iria me querer mal e haveria de me intrigar com minha tia. E já não estou assim em tão boas relações com ela. E ela faz questão de que eu visite essa dama ao menos uma vez.

            - Mas já que ela recebe todos os dias. -

            Aí Albertine, apanhada em contradição, modificava o motivo:

            - Claro que recebe todos os dias. Mas hoje marquei um encontro com algumas amigas na casa dela. Assim, a gente se aborrece menos.

            - Então, Albertine, você prefere a dama e suas amigas a mim, já que, para não deixar de fazer uma visita aborrecida, prefere largar-me sozinho, doente e desolado?

            - Pouco me importaria que a visita fosse aborrecida, mas é em atenção à elas. Vou trazê-las de volta no meu carro. Sem isso elas não teriam nenhum meio de transporte. -

            Observei à Albertine que havia trens de Infreville até às dez horas da noite.

            - É verdade, mas você sabe que é possível que nos peçam para ficar para a ceia. Ela é muito hospitaleira.

            - Muito bem, você recusará.

            - Vou aborrecer ainda mais a minha tia.

            - De resto, você pode cear e tomar o trem das dez horas.

            - Fica meio apertado.

            - Então nunca posso ir jantar no centro da cidade e voltar de trem. Mas olhe, Albertine, vamos fazer algo bem simples: sinto que o ar livre me fará bem; e, já que você não pode deixar de visitar essa dama, vou acompanhá-la até Infreville. Não tenha medo, não irei até a Tour Élisabeth (a vivenda da tal dama), não verei nem a dama nem suas amigas. -

            Albertine parecia ter recebido um tremendo golpe. Suas palavras saíam entrecortadas. Disse que os banhos de mar não lhe agradavam.

            - Mas aborrece-lhe que eu a acompanhe?

            - Como é que pode dizer uma coisa dessas? Bem sabe que o meu maior prazer é sair com você. -

            Uma brusca reviravolta se operara.

            - Já que vamos passear juntos - disse ela -, por que não irmos para o outro lado de Balbec, poderíamos jantar juntos. Seria tão bom. No fundo, aquela costa é muito mais bonita. Começo

a detestar Infreville e o resto, esses lugarezinhos de cor verde-espinafre.

            - Mas a amiga de sua tia ficará aborrecida se você não for visitá-la.

            - Pois bem, ela se acalmará.

            - Não, não convém aborrecer as pessoas.

            - Mas ela nem sequer perceberá; recebe todos os dias. Tanto faz que eu vá amanhã, depois de amanhã, dentro de oito dias ou em duas semanas.

            - E suas amigas?

            - Oh, elas já me deixaram na mão em várias ocasiões. Agora é a minha vez.

            - Mas para o lado que você propõe, não há trem depois das nove.

            - Muito bem, que belo negócio! Nove horas é perfeito. E depois, a gente nunca precisa se preocupar com o problema de volta. Sempre haveremos de encontrar uma charrete, uma bicicleta, e, faltando tudo isso, temos nossas pernas.

            - Sempre havemos de encontrar? Como você anda depressa, Albertine! Para os lados de Infreville, onde as pequenas estações de madeira são coladas umas às outras, sim. Mas do lado oposto não é a mesma coisa.

            - Mesmo desse lado. Prometo trazê-lo de volta são e salvo. -

            Eu sentia que, por mim, Albertine renunciava a alguma coisa já combinada que ela não queria me revelar, e que haveria alguém que ficaria infeliz como eu estava. Vendo que o que desejara não era possível, pois queria acompanhá-la, renunciava francamente a isso. Sabia que não era irremediável. Pois, como as mulheres que têm várias coisas na vida, possuía esse ponto de apoio que jamais enfraquece: a dúvida e o ciúme. Por certo ela não procurava excitá-los, pelo contrário. Mas os enamorados tão suspicazes que imediatamente farejam a mentira. De modo que Albertine, não sendo melhor que qualquer outra, sabia por experiência (nem desconfiar que o devia ao ciúme) que sempre estava segura de encontrar as pessoas a quem uma noite deixara esperando. A pessoa desconhecida que ela abandonava por mim sofreria, iria amá-la ainda mais (Albertine não sabia que era por isso), e, para não continuar a sofrer, voaria por si mesma para junto dela, como eu o teria feito. Mas eu não quero causar desgostos, nem me cansar, nem entrar no terrível caminho das investigações, da vigilância multiforme, inumerável.

            - Não, Albertine, não quero estragar o seu prazer, vá para a casa de sua dama de Infreville; ou enfim, para a casa da pessoa de quem ela é o pseudônimo, pouco me importa. O verdadeiro motivo pelo qual não saio com você é que você não deseja, que o passeio que você daria comigo não é o que gostaria de dar; a prova é que você se contradisse mais de cinco vezes sem perceber. -

            Pobre Albertine receou que suas contradições, de que não percebera tivessem sido mais graves, não lembrando exatamente as mentiras que havia pregado:

            - É bem possível que eu tenha caído em contradições. O ar marinho me tira todo o raciocínio. Troquei os nomes o tempo inteiro. -

            O que me provou que ela agora não teria necessidade de muitas doces afirmações para que eu acreditasse no que dizia voltei a sentir a dor de um ferimento ao ouvir esta confissão do que eu só vagamente havia suposto:

            - Pois bem, está combinado, vou embora - disse ela num tom trágico, não sem olhar a hora para ver se não estava atrasada para o outro, agora que eu lhe fornecia o pretexto para não passar a noite comigo. - Você é muito mau. Modifico tudo para passar uma noite boa com você e é você não quer e ainda me acusa de mentirosa. Nunca o tinha visto ser tão cruel. O mar será o meu túmulo. Não o verei nunca mais. (Meu coração bateu à estas palavras, apesar de eu estar certo de que ela voltaria no dia seguinte o que aconteceu.) Vou me afogar, vou lançar-me às águas. - Como Safo! - Mais um insulto; você tem dúvidas não só sobre o que digo, mas também sobre o que faço.

            - Mas, minha pequena, juro que não tinha nenhuma intenção, você sabe que Safo se precipitou no mar.

            - Sim, sim, você não tem nenhuma confiança em mim. -

            Albertine viu que faltavam vinte minutos para as oito na pêndula; receou atrasar-se para o que tinha de fazer e, preferindo a despedida mais breve (da qual, de resto, desculpou-se ao vir visitar-me no dia seguinte; provavelmente nesse dia a outra pessoa não estava livre), fugiu em passos rápidos gritando:

            - Adeus para sempre - com ar desolado. E talvez estivesse mesmo desolada. Pois, sabendo melhor do que eu o que fazia naquele instante, ao mesmo tempo mais severa e mais indulgente consigo própria do que eu era com ela, talvez ainda assim duvidasse de que eu não a quisesse receber mais, em vista da maneira como me havia deixado. Ora, creio que ela fazia mesmo questão de mim, a ponto de a outra pessoa estar mais enciumada que eu próprio.

            Dias depois, em Balbec, como estivéssemos na sala de dança do cassino, entraram a irmã e a prima de Bloch, que se haviam tornado ambas muito bonitas, mas a quem não cumprimentei por causa de minhas amigas, pois a mais jovem, a prima, com o conhecimento de todos, vivia com a atriz a quem havia conhecido por ocasião da minha primeira temporada. A uma alusão que fiz à meia-voz, Andrée me disse:

            - Oh, sob esse aspecto eu sou como Albertine: não há nada que me dê tanto horror quanto isso.

            Quanto a Albertine, pondo-se a conversar comigo no canapé em que estávamos sentados, dera as costas às duas moças de maus costumes. E no entanto eu havia reparado que antes desse movimento, na ocasião em que a Srta. Bloch e sua prima tinham aparecido, passara pelos olhos de minha amiga essa atenção brusca e profunda que por vezes conferia ao rosto malicioso de Albertine um ar sério, até mesmo grave, deixando-a triste depois. Porém, logo volvera para mim os seus olhos, que entretanto permaneceram singularmente imóveis e sonhadores. Tendo a Srta. Bloch e sua prima acabado por ir-se embora, depois de rirem muito alto e soltarem gritos inconvenientes, perguntei a Albertine se a lourinha (a que era amiga da atriz) não era a mesma pessoa que na véspera ganhara o prêmio do desfile de carros de flores.

            - Ah, não sei - disse Albertine -, uma delas é loura? Digo-lhe que elas me interessam muito pouco, nunca as observei. Uma delas é loura? - indagou com ar interrogativo e desligado às três amigas. Referindo-se a pessoas que Albertine encontrava todos os dias no molhe, essa ignorância me pareceu muito excessiva para não ser fingida.

            - Elas também não parecem nos olhar muito - disse eu a Albertine, talvez na hipótese, que no entanto não considerava de modo consciente, de que Albertine gostasse de mulheres, e, a fim de lhe tirar toda a pena, mostrando-lhe que não havia atraído a atenção delas e que, de um modo geral, não é costume, mesmo entre as mais viciosas, preocuparem-se com mocinhas que desconhecem.

            - Não nos olharam? - respondeu Albertine irrefletidamente. - Não fizeram outra coisa o tempo todo.

            - Mas você não podia saber - disse eu -, estava de costas para elas.

            - Pois bem, e aquilo ali? - retrucou ela, mostrando-me, encaixado na parede à nossa frente, um grande espelho que eu não havia notado e no qual eu entendia agora que minha amiga, sem parar de falar, não cessara de pregar seus belos olhos cheios, preocupação.

            A partir do dia em que Cottard entrou comigo no pequeno cassino de Incarville, ainda que não partilhasse da opinião que ele emitira, Albertine já não me pareceu a mesma; sua vista causava-me cólera. Eu próprio havia mudado tanto quanto ela me parecia outra. Deixara de lhe querer bem; sua presença, na sua ausência quando isso lhe podia ser repetido, falava dela da maneira mais ferina. Contudo, havia tréguas.

            Um dia, soube que Albertine e Andrée tinham aceitado um convite de Elstir. Não duvidando que haviam feito porque poderiam na volta se divertir, como alunas de internato, imitando as moças de maus costumes, achando nisso um prazer inconfesso de virgens que me apertava o coração, sem avisar, para constrangê-las e privar Albertine do prazer com que contava, cheguei de improviso na casa de Elstir. Mas ali só encontrei Andrée. Albertine escolhera outro dia, quando a tia deveria comparecer. Então pensei comigo que Cottard devia ter se enganado; a impressão favorável que me produzira a presença da Andrée sem sua amiga prolongava-se e alimentava em mim disposições mais amenas acerca de Albertine. Mas estas não duraram mais do que frágil boa saúde dessas pessoas delicadas, sujeitas a melhoras passageiras, a quem basta um nada para fazê-las ter uma recaída. Albertine incitava Andrée a brincadeiras que, sem irem muito longe, não eram talvez inteiramente inocentes; padecendo dessa suspeita, terminava por afastá-la. Sentia-me curado, a suspeita renascia sob outra forma. Acabava de ver Andrée, num daqueles movimentos graciosos que lhe eram particulares, pousar carinhosamente a cabeça no ombro de Albertine, beijar-lhe o pescoço entrecerrando os olhos; ou então, elas haviam trocado uma piscadela; uma palavra escapara a alguém que as vira juntas a caminho do banho; pequenos nadas feito os que flutuam de modo habitual na atmosfera ambiente, onde a maioria das pessoas os absorvem o dia inteiro sem que sua saúde se ressinta disso, ou que o seu humor se altere, mas que são mórbidos e geradores de novos sofrimentos para uma criatura que já está predisposta a tanto. Às vezes até, sem que eu tivesse voltado a ver Albertine, sem que ninguém me falasse dela, eu reencontrava na memória uma pose de Albertine junto de Gisele que então me havia parecido inocente; era o que, bastava agora para destruir a calma que eu pudera achar, não tinha sequer, a necessidade de ir respirar lá fora os germes perigosos, pois, como diria Cottard, intoxicara a mim mesmo. Pensava então em tudo o que soubesse acerca do amor de Swann por Odette, da maneira como Swann fora enganado em toda a sua vida. No fundo, a hipótese que me fez construir aos poucos todo o caráter de Albertine e interpretar dolorosamente cada instante de uma vida que eu não podia controlar por completo foi a Swann, tal como me haviam contado que era. Essas narrativas contribuíram para fazer com que, no futuro, minha imaginação se entregasse ao jogo de supor que Albertine poderia, ao invés de ser uma boa moça, ter a mesma imoralidade, a mesma capacidade de enganar de uma antiga cocote, e pensava em todos os sofrimentos que, nesse caso, teriam me esperado se a devesse amar alguma vez.

            Um dia, estando nós reunidos no molhe diante do Grande Hotel, acabava de dirigir a Albertine as palavras mais duras e mais humilhantes, e Rosemonde dizia:

            - Ah, como você mudou com ela! Antigamente, tudo era para ela, ela é que segurava as rédeas; agora não é boa nem para os cães comerem. -

            Para ressaltar ainda mais a minha atitude quanto a Albertine, eu estava dirigindo todas as amabilidades possíveis a Andrée, que, se era atingida pelo mesmo vício, me parecia mais desculpável por ser doente e neurastênica, quando vimos desembocar, ao trotezinho de seus dois cavalos, na rua perpendicular ao molhe em cuja esquina estávamos, a caleche da Sra. de Cambremer. O presidente do conselho, que naquele momento avançava para nós, afastou-se de um salto, quando reconheceu o carro, para não ser visto em nossa companhia; depois, quando pensou que os olhares da marquesa podiam cruzar com os seus, inclinou-se com um enorme cumprimento de chapéu. Mas o carro, em vez de continuar pela rua de La Mer, como parecia provável, desapareceu por detrás da entrada do hotel. Passaram-se mais ou menos dez minutos, quando o ascensorista, todo esbaforido, veio me avisar:

            - É a marquesa de Cambremer, que veio até aqui visitar o senhor. Subi a seu quarto, procurei no salão de leitura, não podia encontrar o senhor. Felizmente que tive a idéia de olhar a praia. -

            Mal acabara de falar, quando, seguida de sua nora e de um senhor muito cerimonioso, caminhou para mim a marquesa, provavelmente de volta de uma vesperal ou de um chá nas vizinhanças, e toda encurvada sob o peso, menos da velhice que da multidão de objetos de luxo, dos quais ela achava mais amável e mais digno de sua estirpe estar recoberta, a fim de parecer o mais "vestida" possível às pessoas a quem vinha visitar. Em suma, era esse "desembarque" dos Cambremer no hotel que tanto receava a minha avó outrora, quando queria que se deixasse Legrandin na ignorância de que talvez fôssemos a Balbec. Então mamãe ria dos temores inspirados por um acontecimento que ela julgava impossível. Eis que, enfim, ele se produzia, entretanto por outras vias e sem que Legrandin contribuísse em nada para isso.

            - Posso ficar, se não estou incomodando? - perguntou Albertine (em cujos olhos permaneciam, causadas pelas coisas cruéis que eu acabara de dizer-lhe, algumas lágrimas que notei sem parecer vê-las, mas não regozijar-me com elas). - Teria alguma coisa para lhe dizer. -         Um chapéu de plumas, encimado por um alfinete de safira, estava colocado de qualquer jeito sobre a peruca da Sra. de Cambremer, como uma insígnia cuja exibição é necessária, mas suficiente, o local indiferente, a elegância convencional e a imobilidade inútil. Apesar do calor, a boa senhora vestira uma mantilha de azeviche semelhante a uma dalmática, sobre a qual caía uma estola de arminho cujo porte parecia estar em relação, não com a temperatura e a estação, mas com o caráter da cerimônia. E sobre o peito da Sra. de Cambremer, uma coroa de baronesa, ligada a uma correntinha, pendia a maneira de uma cruz peitoral.

            O cavalheiro era um famoso advogado de Paris, de família nobre, que fora passar três dias na casa dos Cambremes. Era um desses homens a quem a consumada experiência profissional faz com que desprezem um pouco sua profissão e que dizem, por exemplo:

            "Sou eu que advogo bem; portanto, já não me diverte advogar", ou: "Não me interessa mais operar; sei que opero bem."

            Inteligentes, artistas, vêem em torno de sua maturidade, fortemente recompensada pelo sucesso; brilhante "inteligência", essa natureza de "artista" que os confrades lhes reconhecem e que lhes confere um certo gosto e discernimento. Apaixonam-se pela partitura, não de um grande artista, mas de um artista contudo bem distinto, para a aquisição de cujas obras empregam os gordos dividendos que lhes traz sua carreira. Le Sidaner era o artista eleito pelo amigo dos Cambremer, o qual aliás era bem agradável. Falava bem dos livros, mas não das obras dos verdadeiros mestres, daqueles que dominaram a si próprios. O único defeito constrangedor desse diletante era o de empregar certas frases feitas com insistência, por exemplo: "na maior parte", o que dava àquilo de que ele queria falar algo de importante e de incompleto.

            A Sra. de Cambremer, segundo ela me disse, aproveitara uma vesperal de amigos seus perto de Balbec para visitar-me, como havia prometido a Robert de Saint-Loup.

            - O senhor sabe que dentro em pouco ele deve vir passar alguns dias aqui na região. Seu tio Charlus está veraneando em casa da cunhada, a duquesa de Luxemburgo, e o Sr. de Saint-Loup aproveitará a ocasião para, ao mesmo tempo, ir cumprimentar a tia e rever seu antigo regimento, onde é muito querido, muito estimado. Muitas vezes recebemos oficiais que nos falam dele sem poupar elogios. Como seria agradável que o senhor e ele nos dessem o prazer de ir a Féterne. -

            Apresentei-lhe Albertine e suas amigas. A Sra. de Cambremer nos apresentou à sua nora. Esta, glacial como era com a pequena nobreza que a vizinhança de Féterne a obrigava a freqüentar; cheia de reserva por medo de comprometer-se, estendeu-me ao contrário a mão com um sorriso radiante, plena de segurança e de alegria diante de um amigo de Robert de Saint-Loup, e que este, com mais finura mundana do que desejaria aparentar, lhe havia dito ser muito ligado aos Guermantes. Assim, ao contrário de sua sogra, a Sra. de Cambremer ostentava dois tipos de polidez completamente diversos. Teria sido quando muito o primeiro, seco, insuportável, que ela teria me concedido se eu a conhecesse através de seu irmão Legrandin. Mas para um amigo dos Guermantes ela não possuía sorrisos que bastassem. A peça mais cômoda do hotel para recepção era o salão de leitura, esse lugar outrora tão terrível onde agora eu entrava dez vezes por dia, saindo livremente, feito dono, como esses loucos mansos, há tanto tempo pensionistas de um asilo que o médico lhes confiou a chave do mesmo. Assim, ofereci-me à Sra. de Cambremer para conduzi-la até lá. E, como aquele salão já não me inspirava timidez e não mais oferecia encantos, porque a face das coisas muda para nós como a das pessoas, foi sem perturbação que lhe fiz aquela proposta. Mas ela a recusou, preferindo ficar fora, e nós nos sentamos ao ar livre, no terraço do hotel. Ali encontrei e recolhi um livro da Sra. de Sévigné que mamãe não tivera tempo de levar em sua fuga precipitada, ao perceber que visitas chegavam para mim. Assim como a minha avó, ela temia essas invasões de estranhos e, de medo de não mais poder escapar, se se deixasse cercar, fugia com uma rapidez que fazia sempre, meu pai e eu, zombarmos dela. A Sra. de Cambremer segurava na mão, junto com o cabo da sombrinha, várias bolsas bordadas, uma cestinha, uma carteira dourada de onde pendiam fios de grenats e um lenço de renda. Creio que lhe seria mais cômodo colocá-los sobre uma cadeira; mas sentia que teria sido inconveniente e inútil pedir-lhe que abandonasse os ornamentos de sua turnê pastoral e de seu sacerdócio mundano. Contemplávamos o mar calmo onde flutuavam gaivotas esparsas como corolas brancas.

            Por causa do nível de simples medium a que nos degrada a conversação mundana, e também o nosso desejo de agradar, não com o auxílio de qualidades ignoradas por nós mesmos, mas daquilo que julgamos ser apreciado pelos que se acham conosco, instintivamente me pus a falar à Sra. de Cambremer, nascida Legrandin, da mesma forma que o teria feito seu irmão.

            - Elas possuem - disse-lhe eu, referindo-me às gaivotas - uma imobilidade e uma brancura de ninféias. -

            E com efeito elas pareciam oferecer um alvo inerte às pequenas ondas que as balançavam a ponto de que estas, por contraste, davam a impressão de ir em sua perseguição, de modo intencional e animadas de vida própria. A velha marquesa não se cansava de elogiar a soberba vista do oceano que tínhamos em Balbec e me invejava, ela que de La Raspeliere (onde aliás não residia naquele ano) só via as ondas de muito longe. Possuía dois hábitos singulares, que resultavam a um tempo de seu exaltado amor às artes (sobretudo pela música e de sua insuficiência dentária. De cada vez que falava de estética, as glândulas salivares, como as de certos animais na época do cio, entram numa fase de hipersecreção tal, que a boca desdentada da velha dama deixava passar, nos cantos dos lábios cobertos de um leve buço, algumas gotas cujo lugar não era ali. Logo em seguida, ela as engolia com um suspiro, como alguém que recobra a respiração. Enfim, se se tratasse de um bem grande beleza musical, ela em seu entusiasmo erguia os braços e proferia alguns juízos sumários, energicamente mastigados e, se necessária, nasais. Ora, eu jamais pensara que a praia vulgar de Balbec pudesse oferecer na verdade uma "vista de mar", e as simples palavras da Sra. de Cambremer mudavam minhas idéias a respeito. Em compensação, e isso eu lhe disse, sempre ouvira celebrar a vista única de La Raspeliere, situada no topo da colina e de onde, num grande salão de duas lareiras, uma fila inteira de janelas olha, do fundo dos jardins entre as folhagens, o mar até além de Balbec, e outra fila, para o vale.

            - Como o senhor é amável e como está bem dito: o mar entre as folhagens. É encantador. Dir-se-ia... um leque...

            Senti, a uma profunda respiração destinada a engolir a saliva e a secura do buço, que o cumprimento era sincero. Mas a marquesa nascida Legrandin permaneceu fria para mostrar seu desdém não pelas minhas palavras, mas pelas da sogra. Além disso, não só desprezava a inteligência desta, como deplorava a sua amabilidade, sempre receando que as pessoas não fizessem uma alta idéia dos Cambremer.

            - E como é bonito o nome - disse eu. - Gostaria de saber a origem de todos esses nomes. - Quanto a esse posso lhe dizer - respondeu com doçura a velha dama. É uma residência de família, da minha avó Arrachepel; não é uma família ilustre, mas boa e antiga família provinciana.

            - Como, não é ilustre? - interrompeu secamente sua nora. - Um vitral inteiro da catedral de Bayeux está cheio de suas armas, e a principal igreja de Avranches contém seus monumentos funerários. Se esses velhos nomes o divertem - acrescentou -, o senhor chega com um ano de atraso. Tínhamos conseguido nomear para, curato de Criquetot, apesar de todas as dificuldades que existem para mudança de diocese, o decano de uma região onde pessoalmente possuo terras, muito longe daqui, em Combray, onde o bom padre sentia que estava ficando neurastênico. Infelizmente o ar marinho não foi bom para sua idade avançada; sua neurastenia aumentou e ele acabou voltando para Combray. Mas, enquanto foi nosso vizinho, divertiu-se em ir consultar todas as velhas cartas e escreveu uma pequena brochura bastante curiosa sobre os nomes da região. Aliás, isso lhe deu no gosto, pois parece que ele ocupa seus últimos anos em escrever uma grande obra sobre Combray e redondezas. Vou enviar-lhe a sua brochura sobre as cercanias de Féterne. É um trabalho de beneditino. Nela o senhor lerá coisas muito interessantes sobre a nossa velha Raspeliere, de que a minha sogra fala tão modestamente.

            - Em todo caso, este ano - respondeu a velha marquesa - La Raspeliere não é mais nossa e não me pertence. Mas sente-se que o senhor possui uma natureza de pintor; deveria desenhar, e eu gostaria muito de lhe mostrar Féterne, que é bem melhor que La Raspeliere. -

            Pois, desde que os Cambremer haviam alugado esta última residência aos Verdurin, sua posição dominante deixara bruscamente de lhes parecer o que havia sido para eles durante tantos anos, isto é, com a vantagem única na região de ter vista a um tempo para o mar e para o vale, em compensação lhes dera de golpe e de contragolpe o inconveniente de que era preciso sempre subir e descer para chegar e sair. Em suma, julgar-se-ia que, se a Sra. de Cambremer a alugara, fora menos para aumentar suas rendas do que para poupar seus cavalos. E ela dizia-se encantada de poder enfim ter o tempo todo o mar tão pertinho, em Féterne, ela que durante tanto tempo, esquecendo os dois meses que ali passava, só o vira do alto e como que num panorama.

            - Descubro-o na minha idade - dizia - e como o aproveito! Isto me faz tão bem! Alugaria La Raspeliere por um nada a fim de ser constrangida a morar em Féterne.

            - Para retornar a assuntos mais interessantes - prosseguiu a irmã de Legrandin, que dizia "Minha mãe" à velha marquesa, mas com o passar dos anos assumira maneiras insolentes com ela -, o senhor falava de ninféias; penso que conhece as que Claude Monet pintou. Que gênio! Isto me interessa tanto mais que, perto de Combray, esse lugar onde lhe disse que possuía terras... -

            Mas ela preferiu não falar muito de Combray.

            - Ah, certamente é a série de que nos falou Elistir, o maior dos pintores contemporâneos! -exclamou Albertine que nada dissera até então.

            - Ah! Vê-se que a senhorita ama as artes - gritou a velha marquesa que, numa respiração profunda, reabsorveu um jato de saliva.

            - Permita-me preferir-lhe Le Sidaner, senhorita - disse sorrindo o advogado, com um ar de conhecedor. E, como antigamente havia apreciado ou vira apreciar certas "audácias" de Elstir, acrescentou: - Elstir era dotado, chegou quase até a fazer parte da vanguarda, mas não sei por que cessou de segui-la, estragou sua vida. -

            A Sra. de Cambremer deu razão ao advogado no que dizia respeito a Elistir, mas, para grande desgosto de seu convidado, igualou Monet a Le Sidaner. Não se pode dizer que ela fosse idiota; transbordava de uma inteligência que eu sentia ser-me completamente inútil. Precisamente o sol, declinando, fazia as gaivotas serem agora amareladas, como as ninféias em outra tela dessa mesma série de Monet. Eu disse que a conhecia e (continuando a imitar a linguagem do irmão, cujo nome ainda não me atrevera a declarar) acrescentei que era uma pena não ter ela tido a idéia de vir na véspera, pois, à mesma hora, era uma luz de Poussin o que ela poderia ter admirado. Diante de um fidalgote normando, desconhecido dos Guermantes, e que lhe dissesse que deveria ter vindo na véspera, a Sra. de Cambremer-Legrandin decerto se empertigaria com ar ofendido. Mas ainda que eu pudesse ter sido bem mais familiar, ela só se derramaria numa doçura mole e sumarenta; no calor daquele belo fim de tarde, eu podia fartar-me à vontade no grande bolo de mel que tão raramente era a Sra. de Cambremer e que substituiu os bolinhos que não tive a lembrança de oferecer. Mas o nome de Poussin, sem alterar a amenidade da mulher mundana, ergueu os protestos da diletante. Ouvindo esse nome, a Sra. de Cambremer, por seis vezes, que quase nenhum intervalo separava, deu esse estalido de língua contra o céu da boca que serve para indicar, a uma criança que fez uma asneira, ao mesmo tempo uma censura por ter começado e a proibição de continuar.

            - Em nome do céu, depois de um pintor como Monet, que é certamente um gênio, não vá nomear um velho rotineiro e sem talento como Poussin. Eu lhe direi sem rodeios que o considero o mais paulificante dos barbeiros. Que é que o senhor quer, não consigo chamar aquilo de pintura. Monet, Degas, Manet, sim, são pintores! É muito curioso - acrescentou ela, fixando um olhar escrutador e deslumbrado num ponto vago do espaço, onde percebia o próprio pensamento -, é muito curioso, antigamente eu preferia Manet. Agora, sempre admiro Manet, está claro, mas creio que lhe prefiro talvez Monet, ainda. Ah, as catedrais! -

            Ela punha tanto escrúpulo quanto complacência em me informar acerca da evolução sofrida pelo seu gosto. E sentia-se que as fases por que havia passado esse gosto não eram, segundo ela, menos importantes que as diversas maneiras do próprio Monet. Aliás, eu não tinha que me sentir lisonjeado que ela me confidenciasse as suas admirações, pois, mesmo diante da mais tacanha provinciana, ela não podia ficar cinco minutos sem experimentar a necessidade de confessá-las. Quando uma senhora nobre de Avranches, que não teria sido capaz de distinguir Mozart de Wagner, dizia diante da Sra. de Cambremer:

            - Não tivemos nenhuma novidade interessante na nossa temporada em Paris, fomos uma vez à ópera-Cômica, onde representavam Pelléas et Mélisande, é horrível!

            A Sra. de Cambremer não só fervia como também sentia necessidade de gritar:

            - Mas pelo contrário, é uma pequena obra-prima! e de discutir.

            Era talvez um hábito de Combray, adquirido junto às irmãs de minha avó, que chamavam àquilo "combater por uma boa causa", e que apreciavam os jantares em que, todas as semanas, sabiam que teriam de defender seus deuses contra os filisteus. Da mesma forma, a Sra. de Cambremer gostava de "ativar o sangue", "engalfinhando-se" sobre arte, como outros sobre política. Ela tomava o partido de Debussy como tomaria o de uma amiga sua a quem houvessem acusado de má conduta. Entretanto, devia compreender muito bem que, ao dizer:

            "Mas não, é uma pequena obra-prima", não podia improvisar, junto à pessoa a quem punha em seu devido lugar, toda a evolução da cultura artística, ao termo da qual ficassem de acordo sem ter necessidade de discutir.

            - Será preciso que eu pergunte a Le Sidaner o que ele pensa de Poussin - disse-me o advogado. - É uma pessoa fechada, silenciosa, mas saberei muito bem fazê-lo falar.

            - Aliás - continuou a Sra. de Cambremer -, tenho horror aos ocasos, é romântico, é pura ópera. É por isso que detesto a casa de minha sogra, com suas plantas do Sul. O senhor verá, aquilo parece um parque de Monte-Carlo. É por isso que prefiro o seu litoral; é mais triste, mais sincero. Há um pequeno caminho de onde não se vê o mar. Nos dias de chuva, só tem lama; é todo um mundo. É como em Veneza, detesto o Grande Canal e não conheço nada mais tocante que as pequenas ruelas. De resto, é uma questão de ambiência.

            - Mas - disse-lhe eu, sentindo que a única maneira de reabilitar Poussin aos olhos da Sra. de Cambremer era informá-la de que ele voltara a estar na moda -, o Sr. Degas assegura que não conhece nada mais belo que os Poussins de Chantilly.

            - Oh, eu não conheço esses de Chantilly - disse a Sra. de Cambremer, que não queria ser de opinião diversa da de Degas -, mas posso falar dos do Louvre que são uns horrores.

            - Ele também os admira imensamente.

            - Será necessário que os veja de novo. Tudo isto é um pouco antigo na minha cabeça -respondeu ela após um instante de silêncio, e, como se o juízo favorável que em breve certamente iria fazer acerca de Poussin devesse depender não da notícia que eu acabara de lhe dar, mas do exame suplementar e desta vez definitivo a que tencionava submeter os Poussins do Louvre para ter a faculdade de reconsiderar seu julgamento. Contentando-me com o que era um começo de retratação, visto que se ela ainda não admirava os Poussins, guardava-se para uma deliberação posterior, eu, para não deixá-la por mais tempo na tortura, disse a sua sogra o quanto me haviam falado das admiráveis flores de Féterne. Modestamente, ela se referiu ao jardinzinho de cultivo que possuía nos fundos e aonde, pela manhã, empurrando uma porta, ela ia de chambre dar de comer a seus pavões, procurar ovos já postos e colher zínias ou rosas que, no centro da mesa, dando aos ovos à Ia crême ou às frituras uma orla de flores, recordavam-lhe as suas alamedas.

            - É verdade que temos muitas rosas - disse ela. - Nosso roseiral está quase um pouco perto demais da casa; há dias em que me dá dor de cabeça. É mais agradável no terraço da Raspeliere, onde o vento traz o aroma das flores porém menos inebriante. -

            Voltei-me para a sua nora:

            -Completamente Péleas. - disse-lhe para conformar sua afeição pelo modernismo.

            - Esse perfume de rosas subindo até o terraço é puro. É tão forte na partitura que eu, como tenho fever e de rose-rever, espirrava cada vez que ouvia a cena. - Que obra de mestre! - exclamou a Sra. de Cambremer. - Sou doida de ciúmes! -, aproximando-se de mim com gestos de uma mulher selvagem. Como se quisesse me fazer agrados, usando os dedos para tocar as notas imaginárias; a cantarolar alguma coisa que supus ser para ela os adeus de Péleas; e continuou com uma insistência veemente, como se fosse importante que a Sra. de Cambremer me recordasse naquele momento a  cena ou antes, talvez, me mostrasse que se lembrava. -Acredito até ser mais belo que Parsifal – acrescentou - porque no Parsifal junta-se às belezas um certo halo de frases melódicas, portanto caducas, já que são melódicas.

            - Sei que é uma grande musicista, senhora - disse-lhe à dama. - Gostaria muito de ouvi-la. - A Sra. de Cambremer-Legrandin contemplou o mar para não tomar parte na conversa. Considerando-se que o que a sogra gostava não era música, julgava o talento dela, um dos mais notáveis na realidade que lhe atribuíam, do mesmo modo sem interesse. É verdade que era aluna ainda viva de Chopin; declarava com razão que a maneira de tocar, o "sentimento" do Mestre não se transmitira através dela à Sra. de Cambremer; mas tocar como Chopin estava longe de ser uma referência para a irmã de Legrandin, que ninguém desprezava tanto como o músico polonês. - Oh! elas estão voando! - exclamou Albertine mostrando as gaivotas que, desembaraçando-se por um momento de seu incógnito de flores, subiam todas juntas para o sol.

            - Suas asas gigantes as impedem de andar - disse a Sra. de Cambremer, confundindo as gaivotas com o albatroz.

            - Gosto muito delas, via-as em Amsterdã - disse Albertine - Elas sentem o mar, vêm aspira-lo até através das pedras da rua.

            - Ah, esteve na Holanda, conhece os Vermeer? Indagou imperiosamente a Sra. de Cambremer, e no mesmo tom com que teria perguntado: "Conhece os Guermantes?", pois o esnobismo, mudando de lado muda de acento.

            Albertine respondeu que não: achava que se tratava de pessoas vivas. Porém isso passou despercebido.

            -Eu ficaria contente de lhe tocar uma música - disse-me a Sra. de Cambremer. - Mas, eu toco apenas algumas coisas que já não interessam à sua geração. Fui educada no culto de Chopin - disse ela em voz baixa para a nora não ouvir; ela sabia que esta achava que Chopin, nada tinha a ver com música; toca-lo bem ou mal eram expressões destituídas de significado. A nora reconhecia que a sogra era dotada de técnica, embelezava as passagens.

            - Jamais me farão afirmar que ela é musicista - concluía a Sra. de Cambremer-Legrandin.             Como se julgava "avançada" e (em arte apenas) "nunca demais à esquerda", dizia, pensava não só que a música progride, mas também que o faz numa única direção, e que Debussy era uma espécie de super-Wagner, ainda um pouco mais avançado que Wagner. Não percebia que, se Debussy não era tão independente de Wagner; como ela própria deveria acreditar dentro de alguns anos, pois enfim a gente se serve das armas conquistadas para terminar de livrar-se daquele a quem momentaneamente venceu, ele no entanto, buscava, após a saciedade que se começava a sentir das obras muito completas, onde tudo está expresso, contentar a necessidade oposta. É claro que teorias sustentavam momentaneamente essa reação, semelhantes àquelas que, em política, correm em apoio às leis contra as congregações, as guerras no Oriente (ensino contra a natureza, perigo amarelo, etc., etc.). Dizia-se que numa época de pressa era conveniente uma arte rápida, exatamente como se teria dito que a guerra futura não podia durar mais que uma quinzena, ou que, com as estradas de ferro, seriam abandonados os pequenos recantos caros às diligências a que o automóvel, entretanto, deveria restituir todas as honras. Recomendava-se que não se cansasse a atenção do auditório, como se não dispuséssemos de atenções diferentes, das quais compete justamente ao artista despertar as mais elevadas. Pois aqueles que bocejam de cansaço depois de dez linhas de um artigo medíocre haviam refeito, todos os anos, a viagem à Bayreuth a fim de ouvir a Tetralogia. Aliás, chegaria o dia em que, durante algum tempo, Debussy seria declarado tão frágil quanto Massenet, e as emoções de Mélisande rebaixadas ao nível das de Manon. Pois as teorias e as escolas, como os micróbios e os glóbulos, entredevoram-se e garantem, com sua luta, a continuidade da vida. Mas esse tempo ainda não havia chegado.

            Como na Bolsa, quando ocorre um movimento de alta, e toda uma categoria de valores se aproveita disso, certo número de autores desdenhados se beneficia com a reação, ou porque não mereciam esse desdém, ou simplesmente o que permitia dizer que uma novidade os realçava: - Porque nele haviam incorrido. E ia-se até buscar, num passado solitário, alguns talentos independentes sobre cuja reputação não parecia dever influir o movimento atual, mas cujo nome dizia-se que um dos mestres novos o citava com benevolência. Muitas vezes era porque um mestre, fosse qual fosse, por mais exclusiva que deva ser sua escola, julga de acordo com seu sentimento original, render justiça ao talento onde quer que se encontre; e até menos ao talento, a alguma inspiração agradável que teve outrora, se liga a um instante amado de sua adolescência. Outras vezes, certos artistas de outra época exibem, num simples trecho realizado, que se assemelha ao que o mestre aos poucos percebeu que ele o desejou fazer. Então, enxerga nesse antigo como que um precursor; a nele, sob outra forma, um esforço parcial e momentaneamente fraternos trechos de Turner na obra de Poussin, uma frase de Flaubert em Montesquieu. E às vezes também, o rumor da predileção do mestre era o resultado de um engano, nascido não se sabe onde e divulgado na escola. Mas ao ser citado, beneficiava-se então da firma sob cuja proteção entrara justamente a tempo, pois, se existe alguma liberdade, um gosto genuíno, na arte é do mestre, as escolas, essas, só se dirigem no sentido da teoria. Fora assim que o espírito, seguindo seu curso habitual que avança por uma direção inclinando-se uma vez num sentido, na vez seguinte em sentido contrário; havia trazido luz do alto sobre um certo número de obras, às quais havia necessidade de justiça, ou de renovação, ou o gosto de Debussy, ou seu capricho, ou algum propósito que ele talvez não tivera, havia acrescentado de Chopin. Enaltecidas pelos juízes nos quais se tinha inteira confiança; beneficiando-se da admiração que Pelléas excitava, encontraram nela brilho novo; e mesmo aqueles que não as tinham ouvido novamente, estavam tão desejosos de as amar que o faziam sem querer; embora com ilusão de liberdade. Mas a Sra. de Cambremer-Legrandin ficava uma parte do ano na província. Mesmo em Paris, doente, ela vivia muito presa no quarto. É verdade que o inconveniente podia sobretudo se fazer sentir à escolha das expressões que a Sra. de Cambremer julgava estarem na moda, e que antes se conformariam melhor à linguagem escrita, nuança que não discernia, pois tirava-as mais da leitura que da conversação. Esta é tão necessária para o conhecimento exato das opiniões como as expressões novas. Entretanto, esse rejuvenescimento dos Noturnos ainda não era anunciado pelos críticos. A novidade só se transmitira pelas conversações "jovens". Permanecia ignorada da Sra. de Cambremer-Legrandin. Dei-me prazer de fazê-la ciente, porém dirigindo-me para tanto à sua sogra, e no bilhar, quando, para atingir uma bola, joga-se pela beirada, de Chopin, bem longe de estar fora de moda, era o compositor preferido Debussy.

            - Vejam só! É divertido. - disse-me sorrindo a nora, como se tudo aquilo não passasse de um paradoxo criado pelo autor de Pelléas.

            Agora era certo que ela só ouviria Chopin com respeito e até com prazer de ouvir minhas palavras, que acabavam de fazer soar a hora da libertação da velha marquesa, puseram-lhe no rosto uma expressão de reconhecimento por mim, e sobretudo de alegria. Seus olhos brilharam como os de Latude na peça denominada “Latude, ou Trinta e cinco anos de cativeiro," e seu peito aspirou o ar marinho com aquela dilatação que Beethoven tão bem assinalou no Fidelio, quando seus prisioneiros por fim respiram "este ar que vivifica". Julguei que ela ia pousar no meu rosto os lábios com seu buço.

            - Como, o senhor gosta de Chopin? Ele gosta de Chopin, ele gosta de Chopin! - exclamou ela num acasalamento apaixonado, como se dissesse: "Como, o senhor conhece também a Sra. de Francquetot?", com a diferença de que minhas relações com a Sra. de Francquetot lhe teriam sido profundamente indiferentes, ao passo que o meu conhecimento de Chopin lançou-a numa espécie de delírio artístico. A hipersecreção salivar não bastou mais. Não tendo nem mesmo procurado compreender o papel de Debussy na reinvenção de Chopin, sentiu apenas que meu juízo era favorável. O entusiasmo musical a arrebatou:

            - Élodie! Élodie! Ele gosta de Chopin. -

            Seus seios se soergueram e os braços agitaram-se no ar.

            - Ah, bem que eu senti que o senhor era músico exclamou. - Hhartista como o senhor é, compreendo que goste. É tão belo! -

            E sua voz era tão pedregosa como se, para exprimir seu ardor por Chopin, ele houvesse, imitando Demóstenes, enchido a boca com os pedregulhos da praia. Por fim veio o refluxo, atingindo até o pequeno véu que ela não teve tempo de pôr a salvo e foi traspassado; e afinal a marquesa enxugou com seu lenço bordado a baba de espuma com que sua lembrança de Chopin

acabava de lhe umedecer o buço.

            - Meu Deus - disse-me a Sra. de Cambremer-Legrandin -, acho que minha sogra está bastante atrasada; esquece que temos de jantar em casa do meu tio de Ch'nouville. E além disso, Cancan não gosta de esperar. -

            "Cancan" ficou incompreensível para mim e pensei que talvez se tratasse de um cachorro. Mas, quanto aos primos de Ch'nouville, eis o que ocorria. Com o passar do tempo, amortecera na jovem marquesa o prazer de pronunciar-lhes o nome dessa maneira. E no entanto fora para desfrutá-lo que ela antigamente decidira casar-se. Em outros grupos mundanos, quando se falava dos Chenouville, o costume era (ao menos de cada vez que a partícula vinha precedida de um nome que terminasse por vogal, pois em caso contrário era-se obrigado a apoiar-se no de, visto recusar-se a língua a pronunciar Madam' d' Ch'nonceaux) que fosse sacrificado o e mudo da partícula. Dizia-se:

            "Senhor d' Chenouville".

            Entre os Cambremer a tradição era inversa, mas igualmente imperiosa. Era o e mudo de Chenouville que se suprimia em todos os casos. Que o nome fosse precedido de "meu primo" ou de "minha prima", era sempre de "Ch'nouville" e nunca de Chenouville. (No caso do pai desses Chenouvilles, dizia-se "notre onc/e" noite; pois não se era bastante refinado em Féterne para pronunciar "noite” como teriam feito os Guermantes, cuja algaravia intencional, suprimiu consoantes e nacionalizando os nomes estrangeiros, era tão difícil de dizer como o francês antigo ou o dialeto moderno.) Toda pessoa que entrasse para a família Cambremer recebia logo, sobre essa questão dos Ch'nouville, uma advertência da qual a Srta. Legrandin não tivera necessidade. Uma vez em visita, ouvindo uma moça dizer:

            "Minha tia d'Uzai", "mon onk de Ray”; ela não reconhecera de imediato esses nomes ilustres que tinha o h -kj - de pronunciar: Uzes e Rohan; sentira o espanto, o embaraço e a vergonha de alguém que tem à sua frente, na mesa, um utensílio recentemente inventado de que não conhece o uso e com o qual não tem coragem de começar a comer. Mas, na noite e no dia seguinte, repetira deliciada: "minha tia d',tJ -y - com aquela supressão do s final, supressão que a deixara estupefata na véspera, mas que agora lhe parecia tão vulgar não conhecer que, tendo suas amigas lhe falado de um busto da duquesa d'Uzes, a Srta. Legradin lhe respondera mal-humorada, e num tom altivo:

            - Você poderia ao responder como é correto: "Mame d'Uzai". -

            Desde então compreendo que, em virtude da transmutação das matérias consistentes em elementos cada vez mais sutis, a fortuna considerável e tão honradamente adquirida que herdara do pai, a educação completa que havia recebido, sua assiduidade à Sorbonne, tanto às aulas de Caro como às de Brunetiere, e aos concertos Lamoureux, tudo isso devia volatilizar-se, encontrar sua sublimação última no prazer de dizer um dia: "minha tia d'Uzai". Isso não exclui de seu espírito a idéia de que continuaria a freqüentar, ao menos nos primeiros tempos após o matrimônio, não certas amigas de quem gostava; e que não estava resignada a sacrificar, porém determinadas outras de quem não gostava e às quais desejava poder dizer (pois se casara para aquilo)-; lhe apresentar minha tia d'Uzai; e, quando viu que essa aliança era, extremamente difícil:      - Vou apresentá-la à minha tia de Ch'nouville. - Vou levá-la para jantar com os Uzai. -

            Seu casamento com o Sr. de Cambremer, dera-lhe a oportunidade de dizer a primeira dessas frases, mas não a segunda, visto que a sociedade que seus sogros freqüentavam não era aquela que ela havia julgado e com a qual continuava a sonhar. E, depois de me ter dito de Saint-Loup (para tal adotando uma expressão do próprio Robert, se, para conversar com ela, eu falava como Legrandin, por uma sugestão inversa ela me respondia no linguajar de Robert, que não sabia ser tom de empréstimo a Rachel), aproximando o polegar do indicador, entrecerrando os olhos como se encarasse algo infinitamente delicado conseguira capturar:

            - Ele tem uma bela qualidade de espírito! Elogiou-o com tanto calor que poderiam achar que estava apaixonada por ele (aliás, tinham cochichado que outrora, quando estava em Doncieres, Robert fora seu amante), mas na verdade simplesmente para que eu o confirmasse e chegar a isto:

            - O senhor é muito ligado à duquesa de Guermantes. Estou doente, quase não saio, e sei que ela permanece confinada num círculo de amigos seletos, o que acho muito bom, e assim conheço-a muito pouco, mas sei que é uma mulher absolutamente superior. -

            Sabendo que a Sra. de Cambremer mal a conhecia, e para me fazer tão pequeno quanto ela, ladeei esse assunto e respondi à marquesa que havia conhecido principalmente o seu irmão, Sr. Legrandin. A este nome, ela assumiu o mesmo ar evasivo que eu tivera para com a Sra. de Guermantes, mas acrescentando-lhe uma expressão de descontentamento, pois pensou que eu dissera aquilo para humilhar, não a mim, mas a ela. Estaria roída pelo desespero de ter nascido Legrandin? Pelo menos, era o que afirmavam as irmãs e cunhadas do marido, nobres damas provincianas que não conheciam ninguém e não sabiam coisa alguma, invejavam a inteligência da Sra. de Cambremer, sua instrução, sua fortuna, os dotes físicos que ostentara antes de cair enferma.

            - Ela não pensa em outra coisa, é isto que a está matando - diziam essas maldosas quando falavam da Sra. de Cambremer a qualquer pessoa, mas de preferência a um plebeu, para que este, se era presumido e estúpido, desse mais valor à gentileza com que o tratavam, com essa afirmativa do que possui a plebe de vergonhoso, ou então, se era tímido e fino, e aplicasse as palavras a si mesmo, para terem o prazer, sempre recebendo-o bem, de lhe fazerem indiretamente uma insolência. Mas, se essas damas julgavam falar a verdade em respeito à cunhada, enganavam-se. Tanto menos sofria esta por ter nascido Legrandin, visto haver perdido a lembrança de o ter sido. Sentiu-se melindrada por eu ter lhe devolvido tal lembrança e calou-se como se não tivesse compreendido nada, não julgando necessária uma precisão, nem mesmo uma confirmação de minha parte.

            - Nossos parentes não são a causa principal do encurtamento da nossa visita - disse-me a velha Sra. de Cambremer, que provavelmente estava mais farta que sua nora quanto ao prazer que há em dizer: "Ch'nouville". - Mas, para não cansá-lo com muita gente, este senhor - disse ela mostrando o advogado não ousou trazer aqui a esposa e o filho. Eles passeiam na praia à nossa espera e já devem começar a se aborrecer. -

            Pedi que os indicassem exatamente e corri para buscá-los. A mulher tinha um rosto redondo como certas flores da família das ranunculáceas e, no canto dos olhos, um signo vegetal bastante considerável. E, já que as gerações humanas conservam seus caracteres como uma família de plantas, da mesma forma que no rosto murcho da mãe, o mesmo sinal, que poderia auxiliar na classificação de uma variedade, inchava-se sob o olho do filho; minha solicitude para com sua mulher e seu filho comoveu o advogado. Manifestou interesse pela minha estada em Balbec.

            - O senhor encontrar-se um tanto deslocado, pois aqui a maioria é de estrangeiros. E, enquanto falava, ia me olhando, pois, não gostando de estrangeiras embora muitos deles fossem seus clientes, queria assegurar-se de que eu não era hostil à sua xenofobia, caso em que teria batido em retirada, dizendo:

            - Naturalmente, a Sra. X pode ser uma mulher encantadora. É uma questão de princípios. -             Como, à época, eu não tinha nenhuma opinião acerca dos estrangeiros, não testemunhei desaprovação, e ele se sentiu em terreno seguro. Chegou a me convidar para que fosse um dia à sua casa, em Paris, a fim de ver sua coleção de Le Sidaner, e arrastar comigo os Cambremer, dos quais evidentemente julgava que eu fosse íntimo.

            - Eu o convidaria junto com Le Sidaner - disse-me ele, convencido de que eu só viveria na expectativa desse dia bendito. - O senhor verá que homem especial. E seus quadros o deixarão encantado. É claro que não posso rivalizar com os grandes colecionadores, mas creio que sou eu quem possui a maior quantidade de suas telas preferidas. Isso lhe interessará tanto mais, ao voltar de Balbec, por serem marinhas, pelo menos na maior parte. -

            A mulher e o filho, constituídos da natureza vegetal, escutavam com recolhimento. Sentia-se que em Paris a sua residência era uma espécie de templo de Le Sidaner. Esses gêneros de templo não são inúteis. Quando o deus tem dúvidas sobre si próprio, tapa com facilidade as fissuras de sua opinião com os testemunhos irrecusáveis de criaturas que devotaram a vida à sua obra.

            A um sinal de sua nora, a Sra. de Cambremer ia se levantando e me dizia:

            - Já que o senhor não quer instalar-se em Féterne, não gostaria pelo menos de vir jantar um dia na semana, amanhã, por exemplo? - E em sua benevolência, para decidir-me, acrescentou: - O senhor reencontrará o conde de Crisenoy - que eu absolutamente não havia perdido, pela simples razão de que não o conhecia. Ela ainda começava a fazer brilhar a meus olhos novas tentações, porém estacou de repente. O presidente do conselho que, ao regressar, soubera que ela estava no hotel, procurara-a sorrateiramente por toda parte, e ficara vigiando; fingindo encontrá-la por acaso, veio apresentar-lhe suas homenagens. Compreendi que a Sra. de Cambremer não desejava estender a ele o convite para o almoço que acabava de me fazer. No entanto, ele a conhecia há bem mais tempo do que eu, sendo há vários anos um dos convivas de costume das vesperais de Féterne que eu tanto invejava durante minha primeira estada em Balbec. Mas a antigüidade não é tudo para as pessoas mundanas. E de muito bom grado reservam os almoços para as relações novas que ainda espicaçam a sua curiosidade, sobretudo quando chegam precedidas de uma recomendação calorosa e de prestígio como a de Saint-Loup. A Sra. de Cambremer calculou que o presidente do conselho não tinha ouvido o que ela dissera, mas, para acalmar os remorsos que sentia, dirigiu-lhe as frases mais amáveis. No ensolaramento que afogava no horizonte a costa dourada de Rivebelle, habitualmente invisível, discernimos, mal destacados do azul luminoso, saindo das águas, róseos, argentinos, imperceptíveis, os pequenos sinos do ângelus que ressoavam nos arredores de Féterne.

            - Isto ainda é bastante Pelléas - observei à Sra. de Cambremer-Legrandin. - Sabe a que cena quero me referir?

            - Creio que sim. -

            Mas "não sei coisa nenhuma" era o que proclamavam a sua voz e seu rosto, que não se ajustavam a qualquer lembrança, e o seu sorriso sem apoio, no ar. A velha marquesa não se recobrava do pasmo de que os sinos chegassem até nós e ergueu-se, pensando na hora:

            - Mas na verdade - disse eu -, em geral, aqui de Balbec não se enxerga essa costa e nada se ouve também. É preciso que o tempo tenha mudado e haja bem alargado o horizonte. A não ser que os sinos venham buscá-la, pois estou vendo que eles a fazem partir; são para a senhora a sineta do jantar. -

            O presidente do conselho, pouco sensível ao toque dos sinos, espiava furtivamente o molhe, entristecendo-se por vê-lo tão deserto aquela tarde.

            - O senhor é um verdadeiro poeta - disse-me a Sra. de Cambremer. - Percebe-se que é tão vibrante, tão artista... Venha que vou lhe tocar Chopin - acrescentou, erguendo os braços com ar extasiado e pronunciando as palavras com uma voz rouca, que parecia deslocar pedregulhos. Depois veio a deglutição da saliva, e a velha dama enxugou instintivamente com o lenço a leve escovinha, dita à americana, do seu buço.

            O presidente do conselho, sem querer, me prestou um grande serviço dando o braço à marquesa para conduzi-la ao carro, pois certa vulgaridade de ousadia e de gosto pela ostentação dita uma conduta que outros hesitariam em assumir, e que está longe de desagradar na vida mundana. Além disso, depois de tantos anos, estava muito mais habituado do que eu. Bendizendo-o, não tive coragem de imitá-lo e caminhei ao lado da Sra. de Cambremer-Legrandin,

que quis ver o livro que eu trazia na mão. O nome da Sra. de Sévigné fê-la fazer uma careta; e, empregando uma palavra que havia lido em certos jornais, mas que, falada e posta no feminino, e aplicada a um escritor do século XVII, dava um efeito esquisito, ela me perguntou:

            - Acha-a verdadeiramente talentosa?

            A velha marquesa deu ao lacaio o endereço de uma pastelaria aonde precisava ir antes de voltar à estrada, rósea da poeira da tarde, em que azulavam em forma de garupa os rochedos escalonados. Perguntou a seu velho cocheiro se um dos cavalos, que era friorento, fora suficientemente agasalhado, se o casco de outro não o incomodava.

            - Vou escrever-lhe para combinarmos - disse-me ela a meia voz. - Vi que o senhor conversava sobre literatura com minha nora, ela é adorável - acrescentou, embora não pensasse desse modo; mas havia adquirido o hábito conservado por bondade de o dizer para que seu filho não desse a impressão de ter feito um casamento por dinheiro.

            - E depois - aduziu num último mastigamento entusiasta - ela é tão harrtthisstta! -

            Em seguida subiu para o carro, balançando a cabeça, erguendo o cabo da sombrinha, e voltou pelas ruas de Balbec, sobrecarregada dos ornamentos de seu sacerdócio, como um velho bispo em viagem de crisma.

            - Ela o convidou para almoçar - disse-me severamente o presidente do conselho quando o carro se afastou e eu voltei com minhas amigas. - Estamos estremecidos. Julga que me descuido dela. Diabos, sou fácil de tratar, sempre estou aí para responder: "Presente." Mas quiseram tomar conta de mim. Ah, então - acrescentou com ar finório e erguendo o dedo como alguém que distingue e argumenta isso eu não permito. É atentar contra a liberdade de minhas férias. Fui obrigado a dizer: "Chega!" O senhor parece estar muito bem com ela. Quando atingir a minha idade, verá que a sociedade é bem pouco e lamentará ter dado tanta importância a essas ninharias. Bem, vou dar uma volta antes do jantar. Adeus, crianças - gritou, como se já estivesse distante cinqüenta passos.

            Quando me despedi de Rosemonde e de Gisele, viram elas com espanto que Albertine, parada, não as seguia.

            - E então, Albertine, que estás fazendo? Não sabes que horas são? - Voltem - respondeu-lhes Albertine com autoridade. - Preciso falar com ele - acrescentou, apontando-me com ar submisso. Rosemonde e Gisele me olharam, penetradas de um novo respeito por mim. Era delicioso sentir que, por um momento ao menos, aos próprios olhos de Rosemonde e de Gisele, eu era para Albertine algo de mais importante que a hora de regressar, que suas amigas, e podia até mesmo ter com ela graves segredos aos quais era impossível misturá-las.

            - Quer dizer que não te veremos esta noite?

            - Não sei, depende dele. Em todo caso, até amanhã.

            - Subamos para o meu quarto - disse-lhe eu depois que as amigas se afastaram. Tomamos o elevador; ela se manteve em silêncio diante do ascensorista. O hábito de ser obrigado a recorrer à observação pessoal e à dedução para conhecer os assuntos particulares dos patrões, essas pessoas estranhas que conversam entre si e não lhes falam, desenvolve entre os "empregados" (como o ascensorista denominava os criados) um grande poder de adivinhação, maior do que entre os "patrões". Os órgãos se atrofiam ou tornam-se mais robustos ou mais sutis, conforme aumenta ou diminui a necessidade de seu uso. Desde que existem estradas de ferro, a necessidade de não perder o trem nos ensinou a prestar atenção nos minutos, enquanto que, entre os antigos romanos, cuja astronomia era não só mais sumária; mas cuja vida era também menos apressada, a noção não dos minutos, mas até das horas fixas, mal existia. Assim, o ascensorista compreendera e esperava contar aos camaradas que Albertine e eu estávamos preocupados. Mas ele nos falava sem parar porque era destituído de tato. Entretanto, eu via desenhar-se em seu rosto, substituindo a impressão habitual de alegria e amizade com que me fazia subir pelo elevador, um raro aspecto de abatimento e inquietação. Como lhe ignorava a causa, para tentar distraí-lo, apesar de mais preocupado com Albertine, disse-lhe que a dama que acabara de partir se chamava marquesa de Cambremer e não de Camembert. No andar pelo qual passávamos então, avistei, carregando um travesseiro, uma camareira horrível que me saudou com respeito, esperando uma gorjeta à saída. Gostaria eu de saber se fora ela que tanto havia desejado na noite da minha primeira chegada a Balbec, mas nunca pude ter certeza. O ascensorista jurou-me, com a sinceridade da maioria dos falsos testemunhos, mas sem abandonar seu ar desesperado, que fora mesmo sob o nome de Camembert que a marquesa lhe pedira que a anunciasse. E, para falar a verdade, era natural que tivesse entendido um nome que já conhecia. Além disso, tendo sobre a nobreza e a natureza dos nomes com que se fazem os títulos noções extremamente vagas, que são as de muita gente que não é ascensorista, o nome de Camembert lhe parecera tanto mais verossímil, porque, sendo aquele queijo universalmente conhecido, não seria de espantar que se houvesse extraído um marquesado de um renome tão glorioso, a menos que não fosse o do marquesado que desse a sua celebridade ao queijo. Todavia, como reparava que eu não queria parecer que me enganava, e sabia que os patrões gostam de ver obedecidos seus caprichos mais fúteis e aceitas suas mentiras mais evidentes, prometeu-me, como bom criado, passar a dizer Cambremer. É verdade que nenhum lojista da cidade ou nenhum camponês das redondezas, onde o nome e a pessoa dos Cambremer eram perfeitamente conhecidos, jamais poderiam cometer o erro do ascensorista. Mas o pessoal do Grande Hotel de Balbec absolutamente não era da região. Provinha diretamente, com todo o material, de Biarritz, Nice e Monte-Carlo, uma parte tendo sido encaminhada para Deauville, outra para Dinard e a terceira reservada para Balbec. Mas a dor angustiosa do ascensorista não fez mais que crescer. Para que ele assim se esquecesse de me testemunhar o seu devotamento com os sorrisos costumeiros, era preciso que lhe tivesse acontecido alguma desgraça. Talvez tivesse sido "enviado". Prometi a mim mesmo, nesse caso, tentar conseguir que ele permanecesse no emprego, pois o gerente me garantira que ratificaria tudo o que eu decidisse em rei, - ao seu pessoal. - O senhor pode fazer sempre o que desejar, eu autorizo previamente. -

            De súbito, como acabasse de sair do elevador, comparara a aflição e o ar desesperado do ascensorista. Por causa da presença de Albertine, eu não lhe dera os cem sous que tinha o hábito de lhe pôr na mão, ao subir. E esse imbecil, em vez de entender que eu não queria fazer alarde de gorjetas diante de terceiros, começara a tremer, supondo que aquilo estava acabado de uma vez por todas, que nunca mais lhe daria  - Pensava que eu caíra no "desvio" (como teria dito o duque de Guermantes tal suposição não lhe inspirava nenhuma piedade por mim, mas uma terrível decepção egoísta. Disse comigo que eu era menos desarrazoado do que achava minha mãe, quando não ousava deixar de dar um dia a soma exagerada, mas febrilmente esperada, que dera na véspera. Mas também sendo dado até ali por mim, e sem qualquer dúvida, ao habitual ar de alegria em que não hesitava em ver um sinal de simpatia pareceu-me desmentir segura significação. Ao ver o ascensorista, no seu desespero, prestes de atirar do quinto andar, perguntei-me se (caso se achassem respectivamente trocadas as nossas condições sociais, por exemplo, devido a uma revogação) em vez de manobrar gentilmente para mim o elevador, o ascensorista se transformasse num burguês, eu não teria me jogado, e se não há certas classes do povo mais duplicidade que entre os mundanos; mas sem dúvida, reserva-se para a nossa ausência as frases desfavoráveis, de onde a atitude a nosso respeito não seria insultuosa se fôssemos inferiores.

            No entanto, não se pode dizer que no hotel de Balbec o ascensorista fosse o mais interesseiro. Sob esse aspecto, o pessoal dividia-se em duas categorias: por um lado, os que faziam diferenças entre os hóspedes mais sensíveis à gorjeta razoável de um velho nobre (aliás, em condição de evitar-lhes os vinte e oito dias de convocação, recomendando-lhes ao general de Beautrillis) do que às larguezas despropositadas de um rasto, que revelava nisso mesmo uma falta de experiência que só diante dele se chamava bondade. Por outro lado, aqueles para quem nobreza, inteligência, celebridade, situação, maneiras era algo inexistente, coberto por uma cifra; para esses, só havia uma hierarquia, o dinheiro que se tem, ou melhor, se é dado. Talvez o próprio Aimé, que, devido ao grande número de hotéis que servira, afirmava possuir uma grande sabedoria mundana, pertencesse à essa categoria. Quando muito, dava um toque social e de conhecimento das famílias a esse gênero de apreciação, dizendo, por exemplo, da princesa de Luxemburgo:

            - Há muito dinheiro ali? (o ponto de interrogação para informar-se ou para controlar definitivamente as informações que tomara antes de conseguir para um freguês um cozinheiro para Paris; ou lhe garantir uma mesa à esquerda, à entrada, com vista para o mar, em Balbec). Apesar disso, embora não desprovido de interesse, não o teria exibido da maneira tolamente desesperada do ascensorista. Aliás, a ingenuidade deste último talvez simplificasse as coisas. A comodidade de um grande hotel, de uma casa como o era antigamente a de Rachel e que, sem intermediários, à face até então glacial de um empregado ou de uma mulher, a vista de uma cédula de cem francos, e com mais forte razão uma de mil, mesmo dada uma vez ou outra, traz um sorriso e oferecimentos. Pelo contrário, na política, nas relações de amante para amante, há muita coisa colocada entre o dinheiro e a docilidade. Tantas coisas que mesmo aqueles em quem o dinheiro afinal desperta o sorriso são amiúde incapazes de acompanhar o processo interno que os liga, e se julgam e são mais delicados. E depois, isso filtra a conversação polida dos "Já sei o que me resta fazer: amanhã vão me encontrar no necrotério." Assim, encontram-se na sociedade polida poucos romancistas, poetas, todas essas criaturas sublimes que falam justamente do que não convém falar.

            Logo que ficamos sozinhos e fomos pelo corredor, Albertine disse:

            - Que é que você tem contra mim? -

            Minha dureza para com ela fora mais penosa para mim mesmo? Não passaria, de minha parte, de uma astúcia inconsciente para levar minha amiga, perante mim, àquela atitude de temor e de súplica que me permitiria interrogá-la, e talvez ficar sabendo qual das duas hipóteses que eu há muito formava a seu respeito era a verdadeira? Sempre é certo que, quando ouvi sua pergunta, senti-me subitamente feliz como alguém que alcança um objetivo há muito desejado. Antes de responder, levei-a até minha porta. Esta, abrindo-se, fez refluir a luz cor-de-rosa que enchia o quarto e mudava a musselina branca das cortinas estendidas sobre a noite num tom de aurora. Cheguei à janela; as gaivotas haviam pousado novamente nas ondas; mas agora eram róseas. Fi-lo reparar a Albertine.

            - Não mude de assunto, seja franco comigo - disse ela.

            Menti. Declarei-lhe que ela devia ouvir primeiro uma confissão, a de uma grande paixão que eu tivera fazia algum tempo por Andrée, e o fiz com uma simplicidade e uma franqueza dignas do teatro, mas que na vida só temos para com os amores que já não sentimos. Retomando a mentira que pregara à Gilberte antes de minha primeira estada em Balbec, porém variando-a, e para melhor me fazer acreditado por ela quando lhe dizia agora que não a amava, fui ao ponto de deixar escapar que outrora estivera prestes a enamorar-me dela, mas que muito tempo se passara, que ela para mim não era mais que uma boa camarada e que, mesmo que o quisesse, já não me teria sido possível experimentar de novo a seu respeito sentimentos mais ardentes. Além disso, apoiando-me assim, diante de Albertine, nesses protestos de frieza para com ela, eu só fazia devido a uma circunstância e de um fim particulares tornar mais sensível, acentuar com mais intensidade esse ritmo binário que o amor adota em todos aqueles que duvidam demais de si mesmos para crer que uma mulher possa amá-los um dia; também que eles a possam amar de verdade. Conhecem-se o bastante para saber que, junto das mais diferentes, experimentavam as mesmas esperanças, as mesmas angústias, inventavam os mesmos romances, pronunciam as mesmas palavras, para igualmente se darem conta de que seus sentimentos e ações não se relacionam estreita e necessariamente com a mulher amada, mas passam a seu lado, salpicam-na, circundam-na com fluxo que se lança ao longo dos rochedos, e o sentimento de sua própria instabilidade ainda faz aumentar neles a desconfiança de que essa mulher, por quem tanto gostariam de ser amados, não os ama em absoluto. Porém, faria o acaso, visto que ela é apenas um simples acidente colocado diante do jorrar dos nossos desejos, que fôssemos nós mesmos o objetivo; dos desejos dela? Assim, mesmo tendo necessidade de expandir para ela esses sentimentos, tão diversos dos sentimentos simplesmente humanos que nosso próximo nos inspira, esses sentimentos tão especiais que são os sentimentos amorosos, depois de ter dado um passo adiante, confessando àquela a quem amamos a nossa ternura por ela, nossas esperanças, e temendo desagradar-lhe, também confusos por sentir que a linguagem que lhe falamos não se formou expressamente para ela, que nos serviu; e servirá para outras, que se ela não nos ama não poderá nos compreender; e que então falamos com falta de gosto, com o impudor do pedante, que dirige às pessoas ignorantes frases sutis que não são para elas, esse terror, essa vergonha, trazem o contra-ritmo, o refluxo, a necessidade ainda que recuando a princípio, retirando vivamente a simpatia primeiro confessada de retomar a ofensiva e de recuperar a estima, a autoridade; o ritmo duplo é perceptível nos diversos períodos de um mesmo amor, em todos os períodos correspondentes de amores similares, em todas as criaturas que melhor se analisam do que se prezam.

            No entanto, se estava um pouco mais vigorosamente acentuado que de hábito naquele discurso que eu fazia à Albertine era apenas para me permitir passar mais rápida e energicamente ao ritmo oposto que minha ternura escondia.

            Como Albertine tivesse dificuldade em acreditar que lhe dizia sobre minha impossibilidade de a amar de novo, por causa do tão longo intervalo, apoiei o que chamava de esquisitice do meu temperamento; dos exemplos tirados de pessoas a quem, por culpa delas ou minha, havia deixado passar a hora de as amar, sem poder, por mais que o desejasse encontrá-la depois. Assim, dava a um tempo a impressão de me desculpar com ela, como de uma indelicadeza, dessa incapacidade de recomeçar a amá-la, e de procurar fazê-la compreender os motivos psicológicos daquilo como se me fossem peculiares. Porém, explicando-me desse modo, e estendendo-me sobre o caso de Gilberte, com quem fora de fato rigorosamente verdadeiro o que o era muito pouco aplicado em relação a Albertine, não fazia mais que tornar minhas asserções tão plausíveis; quanto fingia acreditar que não o fossem. Sentindo que Albertine apreciava o que julgava ser "o meu modo franco de falar" e reconhecendo em minhas deduções a clareza da evidência; desculpei-me do primeiro, dizendo que bem sabia que a gente sempre desagradava ao dizer a verdade; e que esta, aliás, deveria parecer-lhe incompreensível. Ao contrário, ela me agradeceu a sinceridade e acrescentou que, quanto ao resto, compreendia às maravilhas um estado de espírito tão freqüente e tão natural.

            Confessando a Albertine um sentimento imaginário por Andrée e por ela própria uma indiferença que, para parecer totalmente sincera e sem exagero, assegurei-lhe incidentalmente, como por escrúpulo de polidez, não dever ser tomada muito ao pé da letra, pude enfim, sem recear que Albertine lhe suspeitasse amor, falar-lhe com uma doçura que há muito me recusava e que me pareceu deliciosa. Quase acariciei a minha confidente; falando de sua amiga, a quem amava, vinham-me lágrimas aos olhos. Mas, vindo aos fatos, disse-lhe por fim que ela sabia o que era o amor, suas suscetibilidades, seus sofrimentos e que talvez, como já velha amiga minha, se empenhasse em fazer cessar as grandes mágoas que me causava, não diretamente, pois não era ela que eu amava, se ousava repeti-lo sem constrangê-la, mas indiretamente, atingindo-me em meu amor por Andrée. Interrompi-me para olhar e mostrar a Albertine um grande pássaro solitário e apressado que, longe, à nossa frente, fustigando o ar com as batidas regulares de suas asas, passava rapidamente por sobre a praia, aqui e ali manchada de reflexos semelhantes a pedacinhos de papel vermelho rasgados, e atravessava-a em todo o comprimento, sem diminuir o vôo, sem desviar sua atenção, sem mudar de caminho, como um emissário que vai levar bem longe uma mensagem urgente e de importância capital.

            - Ele ao menos vai direto ao fim - comentou Albertine em tom de censura.

            - Você me diz isso porque não sabe o que eu desejaria dizer-lhe. Mas é tão difícil que prefiro desistir; estou certo de que você se aborreceria; e tudo só ficaria nisso: eu não seria mais feliz em nada com aquela a quem amo de fato e teria perdido uma boa camarada.

            - Mas eu lhe juro que não me aborreceria. -

            Tinha ela um ar tão suave, tão tristemente dócil e como que esperasse de mim a sua felicidade, que eu mal me segurava para não beijá-la e beijá-la quase com o mesmo tipo de prazer que sentiria em beijar minha mãe naquele rosto novo que já não oferecia a face alerta e ruborizada de uma gatinha teimosa e perversa, de narizinho róseo e arrebitado, mas parecia, na plenitude de sua tristeza acabrunhada, todo fundido na bondade em amplas vazas escorridas e pendentes. Abstraindo o meu amor como uma loucura crônica sem reação com ela, pondo-me no seu lugar, eu me enternecia diante daquela boa moça habituada a que tivessem consigo atitudes amáveis e leais, e que bom rapaz que julgara que eu podia ser para ela, a perseguia desde algumas semanas; perseguições que haviam atingido por fim o seu ponto culminante. Por colocar-me num ponto de vista puramente humano, exterior à nós dois e de onde o meu amor ciumento se desvanecia, é que sentia por Albertine essa profunda piedade, que seria menor se não a amasse. De resto, na oscilação ritmada que vai da declaração à briga (o meio mais seguro, o mais eficazmente perigoso para formar, por movimentos opostos e sucessivos, um nó que não se desata e nos prende solidamente a uma pessoa), no seio do movimento de retração que constitui um dos dois elementos do ritmo, para que distinguir ainda os refluxos da piedade humana que opostos ao amor, embora tendo talvez inconscientemente a mesma causa em todo caso produzem os mesmos efeitos? Ao nos lembrarmos mais tarde do total de tudo o que fizemos por uma mulher, percebemos muitas vezes que os atos inspirados pelo desejo de mostrar que amamos, de nos fazer amados, de obter favores, não ocupam mais espaço do que os devidos à necessidade humana de reparar os erros relativos à criatura amada, por simples dever moral, como se não mais a amássemos.

            - Mas afinal, que poderei ter feito? - indagou Albertine.

            Bateram; era o ascensorista; a tia de Albertine, que passava de carro pelo hotel, havia parado para ver se por acaso ela não se achava ali e levá-la de volta. Albertine mandou dizer que não podia descer, que fossem jantar sem esperá-la, que não sabia a que horas chegaria à casa.

            - Mas sua tia não vai ficar aborrecida?

            - Imagine! Ela vai compreender muito bem. -

            Assim, portanto, ao menos naquele momento, como talvez jamais houvesse outro, um encontro comigo acontecia ser, aos olhos de Albertine, devido às circunstâncias, algo de uma tão evidente importância que devia superar tudo o mais, e ao qual, reportando-se instintivamente sem dúvida a uma jurisprudência familiar, enumerando certas conjunturas em que, quando estava em jogo a carreira do Sr. Bontemps não haviam desistido diante de uma viagem, minha amiga tinha a certeza de que sua tia acharia muito natural ver sacrificada a hora do jantar. Essa hora remota que ela passava sem mim, com os seus, Albertine dava-me agora, fazendo-a deslizar até mim; eu podia utilizá-la à vontade. Acabei pois, ousar dizer-lhe o que me haviam contado do seu gênero de vida e que apesar da aversão profunda que me inspiravam as mulheres portadoras do mesmo vício, eu não me incomodara até que me haviam dito o nome de sua cúmplice, e que ela facilmente podia compreender, tendo em vista o quanto eu amava Andrée, como deveria ter sofrido. Talvez fora mais hábil dizer que também me haviam nomeado outras mulheres, que me eram indiferentes. Mas a brusca e terrível revelação que me fizera Cottard entrara em mim dilacerando-me, tal e qual, inteira, sem mais nada. E assim como, antes, eu jamais teria por mim mesmo a idéia de que Albertine amava Andrée, ou que pelo menos pudesse ter brincadeiras cariciosas com ela, caso Cottard não me houvesse chamado a atenção para a sua atitude ao valsar, da mesma forma não soubera passar deste pensamento ao outro, para mim totalmente diverso, de que Albertine pudesse ter com outras mulheres, que não Andrée, relações a que nem o afeto serviria de desculpa. Albertine, antes mesmo de me jurar que aquilo não era verdade, manifestou, como toda pessoa a quem acabam de falar dela desse modo, cólera, aborrecimento e, em relação ao caluniador desconhecido, a raivosa curiosidade de saber quem era e o desejo de ser confrontada com ele para poder confundi-lo. Mas garantiu-me que, pelo menos a mim, não me queria mal por isso.

            - Se isso fosse verdade, eu lhe teria confessado. Mas tanto eu como Andrée temos horror dessas coisas. Não chegamos à nossa idade sem ver mulheres de cabelos curtos, que têm maneiras masculinas e são do gênero que você diz. E não há nada que mais nos revolte.

            Albertine só me dava a sua palavra, peremptória e sem provas. Mas era justamente o que melhor podia me acalmar, pois o ciúme pertence a essa família de dúvidas doentias que cedem muito mais à energia de uma afirmativa do que à sua verossimilhança. É aliás próprio do amor tornar-nos a um tempo mais desconfiados e mais crédulos, fazer-nos suspeitar, mais depressa do que o faríamos quanto a uma outra, daquela a quem amamos, e mais facilmente acreditar em suas negações. É preciso amar para preocupar-se com que não existam apenas mulheres honestas, ou melhor, para reparar nisso, e é preciso também amar para desejar que existam, isto é, para ter certeza de que existem. É humano buscar a dor e logo livrar-se dela. As proposições capazes de o conseguir facilmente nos parecem verdadeiras, não se discute muito sobre um calmante que produz efeito. E depois, por múltipla que seja a criatura que amamos, pode em todo caso apresentar-nos duas personalidades essenciais conforme nos surja como nossa, ou com seus desejos voltados para outrem. A primeira dessas personalidades possui a força particular que nos impede de crer na realidade da segunda, o segredo específico para acalmar os sofrimentos que esta última provocou. A criatura amada é sucessivamente o mal e o remédio que suspende e agrava o mal. Sem dúvida, há muito tempo, pela força que exercia em minha imaginação e minha faculdade sensitiva o exemplo de Swann, eu estava preparado para julgar verdadeiro o que receava em vez daquilo que teria desejado. Assiti a doçura trazida pelas afirmações de Albertine esteve a um passo de me comprometer porque me lembrei da história de Odette. Mas disse a mim, mesmo que, se era justo considerar o pior não só quando, para comprometer os sofrimentos de Swann tentara colocar-me em seu lugar, mas também agora que se tratava de mim mesmo, buscando a verdade como se fosse de outro. Todavia não era preciso que, por crueldade para comigo, tratasse do que escolhe o local em que talvez seja mais útil, mas também onde o sol está mais exposto, eu chegasse ao erro de julgar uma suposição; mais ficara verdadeira que as outras, só porque era a mais dolorosa. Não haveria uma boa família burguesa, e Odette, verdadeiramente, entre Albertine, era moça de muito abismos, abandonada pela mãe desde a infância? A palavra de uma não podia ser comparada com a de outra. Além disso, Albertine não tinha em mentir-me com o mesmo interesse que Odette a Swann. E ainda a este, Odette havia contado o que Albertine acabara de negar. Eu teria portanto, cometido uma falha de raciocínio tão grave, embora inversa como a que me inclinasse uma hipótese apenas porque esta me fazia sofrer menos que as outras, separasse sem levar em consideração essas diferenças de fato nas outras situações; e reconstituindo a vida real de minha amiga unicamente segundo o que soubera acerca da de Odette. Tinha diante de mim uma nova Albertine, vislumbrada por mim diversas vezes, em minha primeira estadia em Balbec; em que de fato tinha sido sincera e bondosa; uma Albertine que, por afeição a mim, acabava por perdoar minhas suspeitas tratando de dissipá-las. Fez-me sentar a seu lado na cama. Agradeci-lhe o que havia dito, assegurei-lhe que estávamos reconciliados; que não seria mais duro com ela. Disse-lhe que, de qualquer modo deveria voltar para jantar em casa. Ela me perguntou se não me sentia bem assim. E, puxando a minha cabeça para uma carícia como jamais me fizera, que isso se devia à nossa rusga terminada. Passou ligeiramente a língua sobre meus lábios, o qual tentava entreabrir; mas não os descerrei.

            - Como és mau. - disse ela.

            Devia ter ido embora naquela mesma noite sem jamais tornar a vê-la. Desde então percebi que o amor não era compartilhado; porque existem pessoas para quem não existe amor compartilhado. Um pode gostar da felicidade daquele simulacro que me era dado nesses momentos únicos; nos quais a bondade da mulher, ou o seu capricho ao acaso, dizem sobre nosso desejos, numa perfeita coincidência, as palavras e as mesmas ações como se fôssemos verdadeiramente, amados. Sábio seria considerar com curiosidade uma pequena parcela de ventura, na falta da qual eu morreria sem ter suspeitado o que pode ser essa ventura para os corações menos difíceis ou mais favorecidos; supor que ela fazia parte de uma felicidade vasta e duradoura que só me aparecia naquele ponto; e, para que o dia seguinte não desse um desmentido a esse fingimento, não procurar pedir um favor a mais depois daquele que só fora alcançado devido a um artifício de um minuto de exceção. Deveria ter deixado Balbec, fechar-me na solidão e nela permanecer em harmonia com as últimas vibrações da voz que eu soubera por um instante fazer amorosa, e da qual só exigiria que nunca mais se dirigisse a mim, por medo de que, com uma palavra nova que daí em diante só poderia ser diferente, ela viesse ferir com uma dissonância o silêncio sensitivo onde, como que graças a um pedal, a tonalidade da ventura poderia sobreviver em mim por muito tempo.

            Tranqüilizado pela minha explicação com Albertine, recomecei a viver mais junto de minha mãe. Ela gostava de me falar docemente do tempo em que minha avó era mais jovem. Temendo que eu me censurasse pelas tristezas com que poderia ter ensombrado o fim daquela vida, ela voltava de bom grado aos anos em que meus primeiros estudos haviam causado a minha avó alegrias que até então me foram sempre ocultadas. Falávamos de novo sobre Combray. Minha mãe me disse que lá pelo menos eu lia e que em Balbec deveria fazer o mesmo, caso não escrevesse. Respondi que, justamente para me rodear das lembranças de Combray e dos belos pratos pintados, gostaria de reler As Mil e Uma Noites. Como outrora, em Combray, quando ela me dava livros de aniversário, foi às escondidas, para me fazer uma surpresa, que minha mãe mandou buscar, ao mesmo tempo, As Mil e Uma Noites, de Galland, e As Mil Noites e Uma Noite, de Mardrus. Mas depois de haver lançado um olhar sobre as duas traduções, minha mãe bem gostaria que eu me limitasse à de Galland, conquanto temesse influenciar-me devido ao seu respeito pela liberdade intelectual, ao receio de intervir desastradamente na vida de meu pensamento, e ao sentimento de que, sendo mulher, julgava faltar-lhe, por um lado, a necessária competência literária, e, por outro, achava que não devia julgar as leituras de um rapaz de acordo com aquilo que a chocava. Lendo certos contos, revoltara-se com a imoralidade do assunto e a crueza da expressão. Mas sobretudo, conservando preciosamente como relíquias não apenas o broche, a sombrinha, a capa e o volume da Sra. de Sévigné, mas também os hábitos de pensamento e linguagem de sua mãe, procurando em qualquer ocasião a opinião que esta teria dado, minha mãe não podia duvidar da condenação que minha avó teria pronunciado contra o livro de Mardrus. Lembrava-se que em Combray, enquanto que, antes de partir para os lados de Méséglise, eu lia Augustin Thierry, minha avó, contente pelas minhas leituras e meus passeios, indignava-se entretanto ao ver aquele, cujo nome permanecia ligado a este hemistíquio: "Reina, após, Meroveu" chamado Merowig; recusar-se Carolíngios em vez de Carlovíngios, aos quais permanecia fiel. Enfim eu lhe contara o que minha avó tinha pensado dos nomes gregos que segundo Leconte de Lisle, dava aos deuses de Homero, chegando até a um dever religioso a adoção da ortografia grega para as coisas mais simples, achando que nisso consistia o talento literário. Tendo, por exemplo, que dizer numa carta que o vinho bebido em sua casa era um verdadeiro néctar, ele escrevia "um verdadeiro nektar", com k, o que lhe permitia troça de Lamartine. Ora, se uma Odisséia, de onde estivessem ausentes os nomes de Ulisses e de Minerva, já não era para a minha avó a Odisséia, que diria então se visse já deformado na capa o título de suas Mil e Uma Noites, não mais encontrando, transcritos exatamente como ela o tempo todo se habituara a dizê-los, os nomes imortalmente familiares de Sherazade, de Dinazarda, e onde, eles próprios desbalizados, se é que se pode aplicar o vocábulo à histórias muçulmanas, o encantador Califa e os poderosos Gênios; os mal se reconheciam, sendo denominados, um o "Khalifat", os outros "Gennis"? No entanto, minha mãe entregou-me as duas obras, e eu lhe disse que as leria nos dias em que estivesse cansado demais para passear. Aliás, tais dias não eram muito freqüentes. Como antigamente, íamos merendar "em grupo", Albertine, suas amigas e eu, no rochedo ou na granja Marie-Antoinette. Havia ocasiões, porém, em que Albertine me dava este grande prazer. Dizia-me:

            - Hoje eu quero estar um pouco sozinha com você, será mais agradável que fiquemos os dois juntos. -

            Então dizia que tinha coisas a fazer, de que aliás não precisava prestar contas, e para que as outras, se fossem sem nós passear e merendar, não pudessem nos encontrar, íamos sozinhos, como dois amantes, à Bagatelle ou à Croix d'Heulan, ao passo que o grupo, que jamais teria tido a idéia de nos procurar por lá, aonde nunca ia, permanecia indefinidamente em Marie-Antoinette, na esperança de ver-nos chegar.

            Lembro-me dos dias quentes de então, em que da testa dos empregados da granja, que trabalhavam ao sol, caía uma gota de suor, vertical, regular, intermitente, como a gota d'água de um reservatório, e se alternava com a queda do fruto maduro que se desprendia da árvore nos cercados vizinhos; continuam sendo, ainda hoje, junto com esse mistério de uma mulher oculta, a parte mais consistente de todo amor que se me apresente. Uma mulher de quem me falam e na qual não pensaria um só instante, eis que modifico todos os encontros da semana para conhecê-la, se se trata de uma semana em que faz um tempo daqueles, se devo vê-la nalguma granja isolada. Por mais que saiba que esse tipo de tempo e de encontro não são dela, são todavia a isca bem conhecida a mim, a que me deixo prender e que basta para me agarrar. Sei que essa mulher, num tempo frio, numa cidade, poderia tê-la desejado, mas sem a companhia de um sentimento romanesco, sem me apaixonar; o amor nem por isso é menos forte, uma vez que me encadeou graças às circunstâncias; apenas é mais melancólico, como na vida se tornam os nossos sentimentos pelas pessoas, à medida que mais percebemos a parte cada vez menor que elas representam para os mesmos, e que o amor novo, que desejaríamos fosse tão durável, abreviado como nossa própria vida, será o último.

            Havia ainda poucas pessoas da sociedade em Balbec, poucas moças. Às vezes eu via uma ou outra, parada na praia, sem atrativo, e que no entanto muitas coincidências pareciam atestar ser a mesma de quem eu me desesperava por não poder me aproximar no momento em que ela saía com as amigas do carrossel ou da aula de ginástica. Se era a mesma (e eu evitava falar nisso a Albertine), a moça que eu julgara inebriante não existia. Mas eu não conseguia ter certeza, pois o rosto dessas moças não ocupava na praia uma dimensão, não oferecia uma forma permanente, contraído, dilatado, transformado como era pela minha própria expectativa, pela inquietação do meu desejo, ou por um bem-estar que se basta a si mesmo, pelos vestidos diferentes que trajam, pela rapidez de seu passo ou pela sua imobilidade. Todavia, bem de perto, duas ou três me pareciam adoráveis. Cada vez que via uma destas, tinha vontade de levá-las para a avenida dos Tamaris, ou para as dunas, ou, melhor ainda, para os rochedos. Mas ainda que no desejo, em comparação com a indiferença, já entre aquela audácia que é um verdadeiro começo unilateral de realização, mesmo assim, entre o meu desejo e a ação, que seria o meu pedido para beijá-la, havia todo o "branco" indefinido da hesitação e da timidez. Então eu entrava na confeitaria, bebia, um após outro, sete a oito cálices de vinho do porto. Em seguida, em vez do intervalo impossível de preencher entre o meu desejo e a ação, o efeito do álcool traçava uma linha que os reunia a ambos. Não havia mais lugar para o temor ou a hesitação. Parecia-me que a moça ia voar para mim. Eu ia até ela, e por si sós iam saindo de meus lábios estas palavras:

            - Gostaria de passear com você. Não quer que a leve aos rochedos? Lá ninguém nos incomoda, lá atrás do bosquezinho que abriga do vento a casa desmontável, atualmente desabitada... -

            Todas as dificuldades da vida estavam aplainadas, já não havia obstáculos para o enlaçamento de nossos corpos. Pelo menos, não para mim. Pois para ela, que não havia bebido, eles não tinham sido volatilizados. Se o tivesse feito, o universo perderia alguma realidade a seus olhos, e mesmo assim, o sonho longamente acariciado que então lhe pareceria de súbito realizável talvez absolutamente não fosse o de cair nos meus braços.

            Não só as moças eram pouco numerosas, mas, naquela estação; ainda não era "a estação", ficavam por pouco tempo. Lembro-me de uma tez rubra de olhos verdes, duas faces coradas, e cujo rosado duplo se assemelhava aos grãos alados de certas árvores. Não sei que brisa a trouxera a Balbec e que outra a levara embora. Foi de modo brusco que durante vários dias senti um desgosto que me atrevi a confessar à Albertine, quando compreendi que ela se fora para sempre.        

            É preciso dizer que muitas delas eram moças que eu ou absolutamente não conhecia, ou deixara de ver há muitos anos. Freqüentemente, antes de me encontrar com elas, eu lhes escrevia. Se a sua resposta fazia crer num possível amor, que alegria! No começo de uma amizade, uma mulher, e até mesmo se esta amizade não se deve realizar em seguida, não é possível separar-se dessas primeiras cartas recebidas. Desejaria tê-las o tempo todo conosco, como lindas flores recebidas, ainda bem frescas, e que não cessamos de contemplar senão para respirá-las de mais perto. A frase que sabemos de cor é agradável de reler e, naquelas menos literalmente apreendidas, desejamos verificar o grau de ternura de uma expressão. Escreveu ela: "Votre chere lettre"? Pequena decepção na doçura que respiramos e que deve ser atribuída a uma leitura muito rápida; à escrita ilegível da correspondente; ela não escreveu: "et votre chere leHres, mas: "en voyant cette lettre". Mas o restante é tão carinhoso. Oh! Quanta flores iguais chegam amanhã! Depois, isto apenas não é bastante; é preciso confrontar, às palavras escritas, os olhares, a voz. Marcamos encontro, e sem que ela talvez tenha mudado ali onde julgávamos, pela descrição feita; ou pela recordação pessoal, encontrar a fada Viviane, achamos o Gato de Botas. Mesmo assim, marcamos encontro para o dia seguinte, pois apesar de tudo é ela e o que desejávamos era ela. Ora, esses desejos por uma mulher com quem se sonhou não tornam absolutamente necessária a beleza de um determinado traço. Tais desejos são apenas o desejo de uma criatura; vagos como o perfume, assim como o estoraque era o desejo de Protiera, o açafrão o desejo etéreo, as substâncias aromáticas o desejo de Hera, a mirra o perfume das nuvens, o maná o desejo de Nicéia, o incenso perfume do mar. Mas estes perfumes cantados pelos hinos órficos são bem menos numerosos do que as divindades a quem adoram. A mirra é o perfume das nuvens; mas também de Protógonos, de Netuno, de Nereu, de Leteo; o incenso é o perfume do mar, mas também da bela Dicéia, de Têmis, de Circe, das nove musas, de Éos, de Mnemósina, do Dia, de Dikaiosuné. Quanto ao estoraque, o maná e as substâncias aromáticas, seria um não acabar de dizer as divindades que os inspiram, de tão numerosas que são. Anfíetes possui todos os perfumes, exceto o incenso; e Gaia rejeita apenas as favas e as substâncias aromáticas. Assim, eram desse tipo os desejos que eu tinha dessas moças. Menos numerosos do que elas, mudavam-se em decepções e tristezas bem semelhantes umas às outras. Eu jamais quis a mirra. Reservei-a para Jupien e para a princesa de Guermantes, pois ela é o desejo de Protógonos, "o de dois sexos, tendo o mugido do touro, de inumeráveis orgias, memorável, inenarrável, descendo, cheio de júbilo, para os sacrifícios dos orgiofantas".

            Mas em breve a estação atingiu o auge; todos os dias era uma chegada nova e, para a freqüência de súbito crescente de meus passeios, que substituía a leitura agradável das Mil e Uma Noites, havia uma causa desprovida de prazer e que os envenenava a todos. A praia estava agora povoada de moças; e, como a idéia que me havia sugerido Cottard, embora não me despertasse novas suspeitas, tornara-me frágil e sensível a esse respeito, e cauteloso para não deixá-las formarem-se em mim; quando uma jovem chegava a Balbec eu me sentia pouco à vontade, propunha a Albertine as excursões mais afastadas, para que ela não pudesse travar conhecimento e, até, se fosse possível, nem sequer visse a recém-chegada. Naturalmente, temia ainda mais aquelas cujos maus costumes eram bem conhecidos, ou de quem se sabia a má reputação; tentava persuadir a minha amiga de que essa má reputação não se baseava em nada, era caluniosa, talvez por um medo inconfesso, ainda inconsciente, de que ela procurasse unir-se à

depravada, ou que lamentasse não poder procurá-la por minha causa, ou que julgasse, pelo número de exemplos, que um vício tão disseminado não seria condenável. Negando-o em cada culpada, eu chegava a pretender nada menos que o lesbianismo não existia. Albertine adotava a minha incredulidade quanto ao vício desta ou daquela:

            - Não, creio que é só atitude; ela quer se mostrar. -

            Mas então eu quase lamentava ter repugnado pela inocência, pois desagradava-me que Albertine, tão severa antigamente, pudesse achar que essa "atitude" fosse algo de muito lisonjeiro, vantajoso, para que uma mulher isenta desses gostos procurasse fingi-los. Gostaria que mulher nenhuma chegasse mais a Balbec; tremia ao pensar que, como era reais ou menos a época em que a Sra. Putbus devia chegar à casa dos Verdurin, sua camareira, cujas preferências Saint-Loup não me ocultara, poderia vir excursionar até a praia e, se fosse num dia em que eu não estivesse junto de Albertine, tentar corrompê-la. Chegava a indagar de mim mesmo, já que Cottard não me ocultara que os Verdurin me apreciavam muito, e, embora não querendo parecer que corriam atrás de mim, como ele dizia, fariam tudo para que eu fosse à casa deles, senão poderia, mentir ante a promessa de levar-lhes em Paris todos os Guermantes do mundo, obter da Sra. Verdurin que, sob qualquer pretexto, ela avisasse a Sra. Putbus que lhe seria impossível conservar em sua casa a camareira e a mandasse de volta o mais rápido possível.

            Apesar desses pensamentos e como era sobretudo a presença Andrée que me inquietava, a tranqüilidade que me haviam trazido as palavras de Albertine durava ainda um pouco. Aliás, eu sabia que em breve teria menos necessidade dela, pois Andrée deveria partir com Gisele e Rosemonde, quase no momento em que todo mundo chegava, não tendo que ficar junto de Albertine mais que algumas semanas. Durante estas, aliás, Albertine pareceu combinar tudo o que fazia, tudo o que dizia, com vistas à destruir minhas suspeitas, se ainda me ficava alguma, ou impedi-las de renascerem. Arranjava-se para nunca ficar sozinha com Andrée e insistia quando voltávamos, para que eu a acompanhasse até a sua porta; e que fosse buscá-la quando devíamos sair. Entretanto, de seu lado, Andrée procedia de igual maneira, parecia evitar ver Albertine. E esse aparente conluio entre elas não era o único sinal de que Albertine deveria ter posto sua amiga ao corrente de nossa conversação, pedindo-lhe que tivesse a gentileza de acalmar minhas suspeitas absurdas.

            Por essa época, ocorreu no Grande Hotel de Balbec um escândalo que não foi próprio para mudar a inclinação dos meus tormentos. A relação que Bloch mantinha há algum tempo, com uma antiga atriz, relações secretas que em breve não lhes bastaram mais. O serem vistas parecia-lhes acrescentar alguma perversidade a seu prazer; desejavam que os olhares de todos se banhassem em seus perigosos embates. Isto começou com carícias, que afinal podiam ser atribuídas à intimidade de amigas, no salão de jogo; em torno da mesa de bacará. Depois, atreveram-se a mais. E por fim, uma tarde, num canto nem mesmo escuro do grande salão de dança, sobre um canapé, não se constrangeram mais do que se estivessem em sua casa. Dois oficiais, que estavam não longe dali com suas esposas, foram queixar-se ao gerente. Por um momento, julgou-se que o seu protesto teria alguma eficácia. Mas tinham contra si o fato de que, tendo vindo por uma noite de Netteholme, onde moravam, a Balbec, não podiam ser úteis em nada ao gerente. Ao passo que, mesmo sem que ela soubesse, e ainda que o gerente lhe fizesse alguma observação, pairava sobre a Srta. Bloch a proteção do Sr. Nissim Bernard. Convém dizer por quê. O Sr. Nissim Bernard praticava no mais alto grau as virtudes da família. Todos os anos alugava em Balbec uma vivenda magnífica para o seu sobrinho, e nenhum convite poderia impedi-lo de voltar para jantar em sua casa, que na verdade era a deles. Mas nunca almoçava em casa. Todos os dias estava ao meio-dia no Grande Hotel. É que ele sustentava, como outros, a um figurante de ópera, um "empregado", bem semelhante a esses grooms de que falamos, e que nos fazia pensar nos jovens israelitas de Esther e de Athalie. A falar a verdade, os quarenta anos que separavam o Sr. Nissim Bernard do jovem empregado deveriam preservar este de um contato pouco amável. Porém, como diz Racine com tanta sabedoria nos mesmos coros: Mon Dieu, qu'une vertu naissante Parmi tant de périls marche à pas incertains! Qu'une âme qui te cherche et veut être innocente Trouve d'obstacle à ses desseins! ["Meu Deus, como uma virtude nascente, entre tantos perigos, anda a passo inseguro! Uma alma que te procura e quer ser inocente, quantos obstáculos encontra para os seus desígnios!" (Athalie, ato II, cena IX). (N, do T)]

            O jovem empregado, por mais que fosse "longe do mundo criado", no Templo-Palácio de Balbec, não seguira o conselho de Joad: Sur la richesse et l'or ne mets point ton appui.["Não busques apoio no ouro ou nas riquezas." (Cit. modif. de Athalie, ato IV, cena II) (N. do T) " Athalie, ato II, cena IX. (N. do T)]

            Talvez achasse uma desculpa, dizendo: "Os pecadores cobrem a terra." Fosse como fosse, e embora o Sr. Nissim Bernard não esperasse um prazo tão curto, logo ao primeiro dia:

Et soit frayeur encor ou pour le caresser De ses bras innocents il se sentit presser."

[- "E fosse ainda por terror ou para acariciá-lo, sentiu-se apertado por seus braços inocentes." (Cit. modif. de Athalie, ato I, cena II). (N. do T)]

            E, desde o segundo dia, o Sr. Nissim Bernard, passeando o empregado, "a aproximação contagiosa lhe alterava a inocência". Desde então, a vida do jovem havia mudado.

            Era em vão que ele carregava o pão e o sal, como lhe mandava o seu chefe, todo o seu rosto cantava:

De fleurs en fleurs, de plaisirs en plaisirs Promenons nos désirs. De nos ans passagers le nombre est incertain. Hâtons-nous aujourd'hui de jouir de la viel L'honneur et les emplois Sont le prix d'une aveugle et douce obéissance, Pour la triste innocence Qui viendrait élever la voix.

["De flores em flores, de prazeres em prazeres, passeemos nossos desejos. Incerto é o número de nossos anos passageiros. Apressemo-nos a gozar a vida hoje! A honra e os empregos são o preço de uma e doce obediência. Pela triste inocência quem viria erguer a voz?" (Citações modif. de Athalie, ato li, ce IX e ato III, cena VIII). (N. do T)

 

            Desde esse dia, o Sr. Nissim Bernard jamais deixara de vir ocupar sua mesa no almoço (como o teria feito à orquestra alguém que sustenta uma figurante, figurante essa de um gênero fortemente caracterizado e que ainda espera o seu Degas). O prazer do Sr. Nissim Bernard era seguir na sala de jantar, e até às longínquas perspectivas onde, sob sua palmeira, se assentava o caixa, as evoluções do adolescente atencioso no serviço, no serviço de todos e menos no do Sr. Nissim Bernard; desde que este o sustentava, fosse porque o jovem menino do coro não julgasse necessário manifestar a mesma gentileza a alguém de quem se sabia suficientemente amado, fosse por que tal amor o irritasse ou que temesse que, uma vez descoberto, lhe fizesse perder outras ocasiões. Mas, até mesmo essa frieza agradava ao Sr. Nissim Bernard, por tudo o que ela dissimulava. Seja por atavismo hebraico ou pela profanação do sentimento cristão, singularmente se deleitava com a cerimônia raciniana, fosse judia ou católica. Caso se tratasse de uma verdadeira representação de Esther ou de Athalie, o Sr. Nissim Bernard teria lamentado que a diferença de séculos não lhe tivesse permitido conhecer o autor, Jean Racine, a fim de obter um papel maior para o seu protegido. Mas, como a cerimônia do almoço não provinha de nenhum escritor, ele se contentava em estar em bons termos com o gerente e com Aimé para que o "jovem israelita" fosse promovido às funções desejadas, de subchefe ou até mesmo de chefe; graduado. Tinham-lhe sido oferecidas as de despenseiro. Mas o Sr. Bernard o obrigou a recusá-la, pois assim não poderia mais vir vê-lo, todos os dias, correndo pelo refeitório verde e fazer-se servir por ele como um estranho. Tal prazer era tão forte que todos os anos o Sr. Bernard regressava a Balbec e almoçava fora, hábitos em que o Sr. Bloch via, no primeiro, um gosto poético pela claridade e os ocasos daquela costa preferida a todas as outras; e, no segundo, uma inveterada mania de velho celibatário.

            A falar a verdade, esse engano dos parentes do Sr. Nissim Bernard, os quais não desconfiavam do motivo real de sua volta a Balbec todos os anos, e do que a pedante sra. Bloch denominava as suas infidelidades culinárias, esse engano era uma verdade mais profunda e do segundo grau. Pois o próprio Sr. Nissim Bernard ignorava o que podia entrar de amor à praia de Balbec, da vista marítima que se tem do restaurante, e dos hábitos maníacos, no seu gosto de sustentar, como a uma figurante de ópera de outra espécie, a que ainda faltasse um Degas, um dos empregados da casa que também eram "meninas". Assim, o Sr. Bernard mantinha excelentes relações com o gerente daquele teatro que era o hotel de Balbec, e com o diretor de cena e regente Aimé, cujo papel em todo esse negócio não era dos mais claros. Um dia, dar-se-iam intrigas para conseguir um grande papel, talvez uma posição de mordomo. Enquanto esperava, o prazer do Sr. Nissim Bernard, por mais poético e sossegadamente contemplativo que fosse, tinha um tanto das características desses homens mulherengos que sempre sabem. Swann outrora, por exemplo que, indo a uma festa, encontrarão a sua amante. Mal o Sr. Bernard se assentasse, já veria o objeto de seus anseios avançar em cena, trazendo na mão frutas ou charutos numa bandeja. Assim todas as manhãs, após haver beijado a sobrinha, ter se inquietado com os trabalhos de meu amigo Bloch e dado de comer torrões de açúcar na palma estendida a seus cavalos, febrilmente se apressava a chegar para almoçar no Grande Hotel. A casa poderia estar em chamas, sua sobrinha ter um ataque, que mesmo assim sem dúvida ele sairia.

            Receava, como a uma peste, um resfriado que o pusesse de cama pois era hipocondríaco e que houvesse necessidade de mandar pedir a Aimé que lhe enviasse para sua casa, antes da hora da refeição, o seu jovem amigo.

            Aliás, ele gostava do labirinto de corredores, gabinetes secretos, salões, vestiários, despensas e galerias que era o hotel de Balbec. Por atavismo de oriental amava os serralhos e, quando saía à noite, viam-no explorar-lhe às escondidas os esconderijos. Ao passo que, arriscando-se até o subsolo e apesar de tudo procurando não ser visto e evitar o escândalo, o Sr. Nissim Bernard, em sua busca de jovens levitas, lembrava estes versos de La Juive: Ô Dieu de nos peres/ Parmi nous descends/ Cache nos mysteres A Toei/ des méchantsils

["ó Deus. dos nossos, pais, desce entre. nós; oculta, nossos mistérios aos olhos, dos malvados!"        Juive 1, A Judia, ópera de Halévy. (N. do T)]

            Eu, ao contrário, subia para o quarto de duas irmãs que tinham acompanhado a Balbec, como camareiras, uma velha dama estrangeira. Era o que a linguagem dos hotéis denominava "mensageiras", e a de Françoise, que pensava que um mensageiro [courrier] ou uma mensageira [courriere] e - ali para fazer recados [courses], "recadeiras" [coursieres]. Quanto aos hotéis, conservaram-se com mais nobreza no tempo em que se cantava: "É o mensageiro de gabinete."       

            Apesar da dificuldade que um hóspede encontrava para ir aos quartos das camareiras, e reciprocamente, eu bem depressa liguei-me em amizade muito viva com estas duas pessoas: Srta. Marie Gineste e Sra. Célesté Albaret. Nascidas ao sopé das altas montanhas da região central da França, à beira de regatos e de torrentes (a água passava mesmo sob a casa da família, onde girava um moinho, e que fora devastada diversas vezes pela inundação), elas pareciam ter-lhes conservado a natureza. Marie Gineste a mais regularmente rápida e sacudida; Céleste Albaret, mais vagarosa e perseguida, parada como um lago, porém com terríveis acessos de efervescência em que o seu furor lembrava o perigo das enchentes e dos turbilhões ligados que arrastam tudo, devastam tudo. Vinham ver-me diversas vezes pela manhã, quando eu ainda estava deitado. Jamais conheci pessoas tão voluntariamente ignorantes, que não haviam aprendido absolutamente nada na escola, e cuja linguagem, no entanto, possuía algo de tão literário que, sem o natural quase selvagem de seu tom, a gente poderia julgar afetadas as suas palavras. Com uma familiaridade que não aperfeiçôo, apesar dos elogios (que não estão aqui para me louvar, mas para louvar o gênio estranho de Céleste) e das críticas, igualmente falsas, mas muito sinceras, que estas frases parecem comportar a meu respeito, enquanto eu mergulhava pãezinhos no meu leite, Céleste me dizia:

            - Ó diabinho preto de cabelo de galo, ó que profunda malícia! Não sei em que pensava sua mãe quando o fez, pois o senhor é igual a um pássaro. Olha, Marie, não parece até que ele alisa as penas, e vira o pescoço com facilidade? Tem um ar tão leve que parece estar aprendendo a voar. Ah, o senhor tem sorte de que aqueles que o geraram o tenham feito nascer entre os ricos; que seria do senhor, perdulário como é? Olha como ele joga fora o pãozinho só porque tocou na cama. Bem, agora derramou o leite, espere que vou lhe pôr um guardanapo, pois o senhor não saberia colocá-lo sozinho; nunca vi ninguém tão bobo e desajeitado como o senhor. -

            Ouvia-se então o ruído mais regular de torrente de Marie Gineste que, furiosa, fazia reprimendas à irmã:

            - Ora, Céleste, não vais calar a boca? Estás louca para falares ao senhor desse modo? -             Céleste limitava-se a sorrir; e, como eu detestava que pusessem um guardanapo:

            - Mas não, Marie! Vê só, olha como se ergue feito uma serpente. Uma verdadeira serpente, estou dizendo. -

            Aliás, ela era pródiga em comparações zoológicas, pois, segundo dizia, não se sabia quando eu estava dormindo, eu revoluteava a noite inteira como uma borboleta e de dia era tão rápido como aqueles esquilos, "sabes Marie, como se vêem na nossa casa, tão ágeis que mesmo com os olhos não é possível segui-los." -

            - Mas, Céleste, sabes que ele não gosta de pôr guardanapo quando está comendo.

            - Não é que não goste, é para mostrar que não lhe podem mudar a vontade. É um senhor, e quer que saibam que é um senhor. Trocam-lhe os lençóis dez vezes se for preciso, e ele não se incomoda. Os de ontem, tudo bem, mas os de hoje, mal acabam de ser colocados e já precisam de troca; ah, eu tinha razão em dizer que ele não foi feito para nascer entre os pobres. Olha, seus cabelos se eriçam, incham-se de cólera como as penas dos pássaros. Pobre avezinha! -

            Aqui não era só Marie que protestava, mas também eu, pois de modo algum me sentia um senhor. Mas Céleste jamais acreditava na sinceridade da minha modéstia e, cortando-me a palavra:

            - Ah, novelo! Ah, doçura! Ah, perfídia! Astuto entre os astutos, safado entre os safados! Ah, Moliere! - (Era o único nome de escritor que conhecia, mas aplicava-o a mim, significando com isso alguém que seria ao mesmo tempo capaz de compor e representar peças.)

            - Céleste! - gritava imperiosamente Marie, que, ignorando o nome de Moliere, temia que se tratasse de uma nova injúria. Céleste se limitava a sorrir:

            - Então não viste na sua gaveta a fotografia dele, quando criança? Queria nos fazer acreditar que o vestiam sempre de modo muito simples. E ali, com sua bengalinha, a gente só enxerga peles e rendas, como um príncipe nunca teve. Mas isso não é nada diante de sua imensa majestade e de sua bondade ainda mais profunda.

            - Então - estrugia a torrente Marie - agora deste para mexer em suas gavetas? -

            Para acalmar os temores de Marie, perguntei-lhe o que pensava do que fazia o Sr. Nissim Bernard.

            - Ah, senhor, é dessas coisas que eu não poderia acreditar que existissem: foi preciso vir para cá e, levando vantagem sobre Céleste por uma vez, com uma palavra mais profunda: - Ah, veja, senhor, nunca se sabe o que pode acontecer numa vida. -

            Para mudar de assunto, falava-lhe da vida de meu pai, que trabalhava dia e noite.

            - Ah, senhor, são vidas em que não se reserva nada para si mesmo, nem um minuto, nem um prazer; tudo, inteiramente tudo, é um sacrificar-se para os outros, são vidas doadas... Olha, Céleste, que distinção só para pousar a mão no cobertor e pegar o seu pãozinho! Ele pode fazer as coisas mais insignificantes e é como se toda a nobreza da França se deslocasse em cada um de seus movimentos.

            Aniquilado por esse retrato tão pouco verídico, mantinha-me calado; Céleste via nisso uma nova artimanha:

            - Ah, fronte que tens um ar tão puro e que escondes tantas coisas, faces amigas e frescas como o fino de uma amêndoa, mãozinhas de cetim bem felpudo, unhas como garras; - Olha, Marie, observa-o beber o leite com um recato que me dá vontade de rezar minha oração. Que ar sério! Deveriam tirar o seu retrato neste monento. Ele tem tudo das crianças. Foi de beber leite como elas que conservam a pele clara? Ah, juventude! Ah, linda pele! O senhor jamais há de envelhecer. Tem sorte, nunca terá de erguer a mão contra ninguém, pois tem olhos de quem sabe impor a sua vontade. E agora ficou furioso. Pôs-se de pé direito como uma evidência.       

            Françoise absolutamente não gostava que elas, a quem chamava duas adulonas, viessem conversar desse modo comigo. O gerente, que espreitava tudo através dos empregados, chegou a me observar gravemente que não era digno de um hóspede conversar com mensageiras. Eu, que achava as "adulonas" superiores a todas as hóspedes do hotel, limitei-me a desatar a rir na sua cara, convencido de que ele não compreenderia as minhas explicações. E as duas irmãs voltavam.

            - Observa, Marie, os seus traços finos. O miniatura perfeita, mais linda que a mais preciosa

que se veria numa vitrina, pois possui movimentos, e palavras que é da gente ficar escutando dias e noites.

            Era milagre que uma dama estrangeira tivesse podido trazê-las, pois, sem saber história nem geografia, elas detestavam francamente os ingleses, os alemães, os russos, os italianos, a "escória" dos estrangeiros e, com exceções, só gostavam de franceses. Seu rosto de tal modo havia conservado a umidade do barro maleável de seus rios, que, quando se falava num estrangeiro que estava no hotel, Céleste e Marie, para repetir o que ele havia dito, aplicavam sobre os próprios rostos o rosto dele, seus lábios transformavam-se nos lábios dele, seus olhos eram os olhos dele, e a gente gostaria de guardar essas admiráveis máscaras de teatro. A própria Céleste parecendo repetir apenas o que dissera o gerente ou algum de meus amigos, inseria em seu pequeno relato frases fictícias, onde estavam pintados maliciosamente todos os defeitos de Bloch ou do presidente do conselho etc., sem parecer que o fazia. Sob a forma de relatório de uma simples comissão de que se houvesse atenciosamente encarregado, era um retrato inimitável. Elas nunca liam nada, nem mesmo um jornal. No entanto, um dia acharam na minha cama um volume. Eram os poemas admiráveis, menos obscuros, de Saint-Léger Léger. Céleste leu algumas páginas e me disse:

            - Mas o senhor tem certeza de que são mesmo versos, não seriam antes adivinhações? -

            Evidentemente, para uma pessoa que aprendera na infância uma única poesia: Ici bas tous /es /fias meurent ["Aqui todos os Idas morrem"]," havia falta de transição. Creio que sua obstinação em nada aprender provinha um pouco de sua terra malsã. Eram no entanto tão dotadas como um poeta e com mais modéstia do que eles em geral. Pois, se Céleste havia dito algo de notável que eu, não me lembrando bem, pedia que me repetisse, ela garantia tê-lo esquecido.

            Elas nunca lerão livros, mas também nunca os escreverão.

            Françoise ficou grandemente impressionada ao saber que os dois irmãos dessas mulheres tão simples haviam desposado, um, a sobrinha do arcebispo de Tours, o outro, uma parenta do bispo de Rodez. Para o gerente, nada disso teria qualquer significado. Às vezes, Céleste censurava o marido por não compreendê-la, e eu espantava-me que ele pudesse suportá-la. Pois em certos momentos, fremente, furiosa, destruindo tudo, ela era detestável. Pretende-se que o líqüido salgado que é o nosso sangue não passa da sobrevivência interna do elemento marinho primitivo. Da mesma maneira, julgo que Céleste, não só em seus furores, mas também em suas horas de depressão, conservava o ritmo dos regatos de sua terra. Quando estava esgotada, era ao jeito deles: estava verdadeiramente seca. Então nada poderia revivificá-la. Depois, subitamente, a circulação retornava a seu alto corpo leve e magnífico. A água corria na transparência opalina de sua pele azulada. Ela sorria ao sol e se fazia mais azul ainda. Nesses momentos, era verdadeiramente celeste.

            Conquanto a família Bloch que jamais houvesse desconfiado do motivo pelo qual o tio nunca almoçava em casa, aceitando isso desde o começo como uma mania de velho celibatário, talvez devido às exigências da ligação com alguma atriz, tudo quanto se referisse ao Sr. Nissim Bernard era tabu para o gerente do hotel de Balbec. E eis a razão por que, sem nem mesmo referi-lo ao tio, ele finalmente não se atrevera a censurar a sobrinha, recomendando-lhe contudo uma certa circunspecção. Ora, a moça e sua amiga, que durante alguns dias tinham se julgado excluídas do cassino e do Grande Hotel, vendo que tudo se ajeitava, ficaram felizes por mostrar aos pais de família, que as mantinham à parte, que podiam se permitir tudo impunemente. É claro que não foram ao ponto de renovar a cena pública que revoltara a todos. Mas pouco a pouco os seus modos reapareceram insensivelmente. E, numa noite em que eu saía do cassino já meio apagado, com Albertine e Bloch, a quem havíamos encontrado, elas passaram abraçadas, sem parar de se beijar, e, ao cruzarem por nós, soltaram cacarejos, risos e gritos indecentes. Bloch baixou os olhos para não parecer ter reconhecido a irmã, e eu me sentia torturado ao pensar que aquela linguagem particular e atroz se dirigia talvez a Albertine.

            Outro incidente ainda mais fixou minhas preocupações sobre o lado de Gomorra. Eu havia visto na praia uma bela jovem esguia e pálida, cujos olhos, ao redor do centro, dispunham raios tão geometricamente luminosos que se pensava, diante de seu olhar, em alguma constelação. Pensava eu o quanto essa moça era mais bonita que Albertine e como não seria mais sábio renunciar à outra. Todavia, o rosto dessa mulher passara pela plaina invisível de uma vida de grande baixeza; da constante aceitação de experiências vulgares; tanto que seus olhos, apesar de mais nobres que o restante da fisionomia, não deviam irradiar senão apetites e desejos. Ora, no dia seguinte, estando essa jovem bem longe de nós no cassino, vi que ela não cessava de pousar em Albertine os fogos alternados e giratórios de seus olhares. Dir-se-ia que lhe fazia sinais como com a ajuda de um farol. Torturava-me que minha amiga visse que lhe prestavam tamanha atenção; temia que esses olhares incessantemente iluminados tivessem o sentido convencional de um encontro de amor para o dia seguinte. Quem sabe? Esse encontro talvez não fosse o primeiro. A jovem de olhos radiosos poderia ter vindo num outro ano a Balbec. Talvez porque Albertine já tivesse cedido à seus desejos, ou aos de uma amiga, é que ela se permitia endereçar-lhe aqueles sinais brilhantes. Faziam então mais do que reclamar alguma coisa para o presente; autorizavam-se para isso com os bons momentos do passado. Nesse caso, tal encontro não devia ser o primeiro, mas a conseqüência de passeios dados juntos em outros anos. E de fato, os olhares não diziam: "Queres?"

            Logo que a jovem avistara Albertine, voltara a cabeça inteiramente para ela e fizera luzir em sua direção olhares repletos de memória, como se receasse e sentisse espanto de que minha amiga não lembrasse. Albertine, que a via muito bem, permaneceu imóvel, com fleuma, de modo que a outra, com o mesmo grau de discrição de um homem que, vendo a antiga amante com um amante novo, deixou de olhá-la, não mais se ocupando de sua pessoa como se ela não existisse.       

            Mas, alguns dias depois, tive a prova dos gostos dessa jovem; também, da probabilidade de que ela tivesse conhecido Albertine antigamente. Muitas vezes, quando na sala do cassino duas moças se desejavam produzia-se como que um fenômeno luminoso, uma espécie de corredor fosforescente que ia de uma para outra. Digamos, de passagem, que é com o auxílio de tais materializações, mesmo que imponderáveis, por esses signos astrais que inflamam toda uma parte da atmosfera, que Gomorra, dispersa, tende, em cada cidade, em cada aldeia, a reunir seus membros separados, para reconstituir a cidade bíblica, ao passo que em toda parte prosseguem idênticos esforços, ainda que em vista de uma construção intermitente, por meio dos nostálgicos, hipócritas e, às vezes, corajosos exilados de Sodoma.

            Uma vez vi a desconhecida que Albertine parecia não reconhecer, justo num momento em que passava a prima de Bloch. Os olhos da jovem resplandeceram, mas via-se bem que ela não conhecia a moça israelita. Via-a pela primeira vez, sentia um desejo, e nada de dúvidas, de modo algum a mesma certeza que experimentara quanto a Albertine. Albertine com cuja camaradagem de tal modo deveria ter contado que, diante de sua frieza, sentira a surpresa de um estrangeiro habituado a Paris, mas que nela não mora e que, tendo regressado para ali passar algumas semanas, em vez do teatrinho onde se acostumara a passar boas noitadas, vê que construíram um banco.

            A prima de Bloch foi sentar-se a uma mesa, onde se pôs a folhear uma revista. Em breve a jovem foi sentar-se ao lado dela, com ar distraído. Mas, debaixo da mesa, poderia ver-se, dali a pouco, tocarem-se os seus pés, depois suas pernas e suas mãos, que estavam entrelaçadas. As palavras seguiram-se, travou-se a conversação, e o ingênuo marido da jovem senhora, que a procurava por todo lado, espantou-se de vê-la fazendo projetos para a mesma noite com uma moça que ele não conhecia. Sua mulher lhe apresentou como amiga de infância a prima de Bloch, sob um nome inteligível, pois havia esquecido de lhe perguntar como se chamava. Mas a presença do marido fez avançar um passo mais a intimidade delas, pois passaram a tratar-se por tu, visto que se haviam conhecido no internato de freiras, incidente do qual deram boas risadas mais tarde, bem como do marido enganado, com uma alegria que deu oportunidade a novas carícias.

            Quanto a Albertine, não posso afirmar que em parte alguma, no cassino ou na praia, ela tivesse maneiras tão livres com uma moça. Achava-lhe até um excesso de frieza e de insignificância, que parecia, mais que da boa educação, um ardil destinado a eliminar as suspeitas. A determinada moça, ela possuía um modo rápido, frio e decente de responder em voz bem alta:

            - Sim, eu irei ao tênis mais ou menos às cinco. Vou tomar banho amanhã de manhã cerca das oito horas -, e de deixar imediatamente a pessoa a quem acabara de dizer isto, a qual parecia terrivelmente querer dizer outra coisa, marcar um encontro, ou melhor, depois de o ter combinado em voz baixa, dizer alto aquela frase, na verdade insignificante, para "não se fazer notar". E, quando, em seguida, eu a via pegar a bicicleta e sair na disparada, não podia evitar de pensar que ela ia encontrar-se com aquela a quem mal falara.

            De qualquer modo, quando alguma jovem senhora muito formosa, descia do automóvel na praia, Albertine não podia deixar de virar-se. E explicava logo:

            - Eu estava olhando a bandeira nova que puseram na porta de banho. Poderiam ter gastado mais. A outra já era bem vagabunda.  - de fato esta é ainda pior.

            Uma vez Albertine não se limitou à frieza e só contribuiu para me deixar mais infeliz. Sabia que eu ficava aborrecido com a probabilidade dela encontrar-se às vezes com uma amiga de sua tia, que era "de maus costumes" e, de vez em quando, vinha passar dois ou três dias em casa da Sra. Bontemps. Gentilmente, Albertine me dissera que não mais a cumprimentaria. E, quando essa mulher ia a Incarville, Albertine dizia:

            - A propósito, sabe que ela está aqui? Já não lhe disseram? como para me mostrar que ela não a via às escondidas.

            Num dia em que me dizia isso, acrescentou:

            - Sim, encontrei-a na praia e, de propósito, por grosseria, quem lhe dei um encontrão ao passar por ela. Deixei-a desarrumada.

            Quando Albertine disse isso, voltou-me à memória uma frase da Sra. Bontemps,: - qual jamais pensara de novo, aquela em que havia dito, diante de mim a Sra. Swann, o quanto a sua sobrinha Albertine era atrevida, como se tratasse de uma qualidade, e como Albertine dissera a não sei mais qual mulher de funcionário que o pai desta fora um ajudante de cozinha. Mas uma palavra da mulher a quem amamos não se conserva por muito tempo em sua pureza; ela se corrompe, deteriora-se. Uma ou duas noites depois, voltei a pensar na frase de Albertine e já não foi a má educação de quem se orgulhava e que só podia causar um sorriso o que essa frase me pareceu significar mais outra coisa, e que Albertine, talvez mesmo sem uma finalidade precisa, para irritar os sentidos daquela dama ou lembrar-lhe maldosamente antigas propostas, talvez aceitas outrora, roçara rapidamente por ela e, pensando que eu talvez o tivesse sabido porque fora em público, quisera desse modo evitar previamente uma interpretação desfavorável. Aliás, os ciúmes que me causavam as mulheres que talvez andassem com Albertine iam cessar de repente.

            Estávamos, Albertine e eu, diante da estação do trenzinho locar Balbec. Tínhamos tomado o ônibus do hotel por causa do mau tempo. Longe de nós encontrava-se o Sr. Nissim Bernard, que estava com um machucado. Fazia algum tempo que vinha enganando o menino do Athalie com o rapaz de uma granja muito freqüentada das vizinhanças de Cerejeiras. Esse rapaz rubro, de feições rudes, era exatamente como tivesse um tomate no lugar da cabeça. Um tomate exatamente igual servia de cabeça a seu irmão gêmeo. Para o contemplador desinteressado, há muito de belo nessas semelhanças perfeitas de dois gêmeos, que a natureza, como se se houvesse momentaneamente industrializado, parece produzir em série. Infelizmente, o ponto de vista do Sr. Nissim Bernard era diferente, e essa parecença era exterior apenas. O tomate não se comprazia freneticamente em fazer com exclusividade as delícias das damas, e o tomate não detestava condescender aos gostos de certos senhores. Ora, cada vez que, sacudido, assim como que por um reflexo, pela lembrança das boas horas passadas com o tomate número um, o Sr. Bernard se apresentava em Às Cerejeiras, míope como era (e, aliás, a miopia não era necessária para confundi-los), o velho israelita, representando o Anfitrião sem o saber, dirigia-se ao irmão gêmeo, dizendo:

            - Queres marcar um encontro para esta noite? - recebia logo uma surra vigorosa. Chegou até a renovar-se no decurso de uma mesma refeição, em que ele continuava com o outro as frases começadas com o primeiro. Por fim, aquilo acabou por aborrecê-lo de tal modo que, por associação de idéias, se enjoou dos tomates, mesmo dos comestíveis, e, se ouvia a seu lado, no Grande Hotel, um viajante encomendá-los, sussurrava-lhe:

            - Desculpe-me, senhor, por dirigir-me a sua pessoa sem conhecê-lo. Porém ouvi que encomendou tomates. Eles estão podres hoje. Digo-lhe isto no seu interesse, pois por mim tanto faz, nunca os como.

            O estrangeiro agradecia com efusão àquele vizinho filantropo e desinteressado, chamava o garçom, fingia mudar de idéia:

            - Não, decididamente nada de tomates. -

            Aimé, que conhecia a cena, ria-se por dentro e pensava: "É um velho astuto esse Sr. Bernard; ainda achou um meio de mudar o prato."

            O Sr. Bernard, à espera do trem atrasado, não fazia questão nenhuma de cumprimentar a Albertine e a mim, por causa do olho machucado. E nós muito menos ainda de lhe falar. Todavia isso teria sido quase inevitável se, naquele momento, uma bicicleta não arremetesse contra nós a toda velocidade; dela saltou o ascensorista, sem fôlego. A Sra. Verdurin havia telefonado pouco depois da nossa partida para que eu fosse jantar em sua casa, dali a dois dias; logo veremos o porquê. Depois de me dar os detalhes do telefonema, o ascensorista nos deixou e, como esses "empregados" democratas que afetam ser independentes em relação aos burgueses, e entre eles restabelecem o princípio de autoridade, querendo dizer que o porteiro e o cocheiro poderiam ficar descontentes se ele se atrasasse, acrescentou:

            - Já vou indo por causa dos chefes.

            As amigas de Albertine estavam fora por algum tempo. Eu desejava distraí-la. Supondo que ela ficaria feliz em passar as tardes só comigo em Balbec, sabia eu contudo que a felicidade nunca se deixa possuir inteiramente, e que Albertine, ainda na idade (que certas pessoas jamais ultrapassam) em que não se descobriu que essa imperfeição decorre de quem experimenta a felicidade e não de quem a proporciona, talvez fosse tentada a atribuir a mim a causa da sua decepção. Preferia que ela a imputasse às circunstâncias que, por mim combinadas, não nos dariam a oportunidade de estarmos a sós, impedindo-a de ficar sem mim no cassino e no molhe! Assim, pedira-lhe naquele dia que me acompanhasse à Doncieres, aonde iria visitar Saint-Loup. Com o mesmo objetivo de deixá-la ocupada, aconselhava-lhe a pintura, que ela havia aprendido outrora. Trabalhando, ela não se indagaria se era feliz ou infeliz. De bom grado a levaria igualmente, dê vez em quando, para jantar na casa dos Verdurin e dos Cambremer, os quais certamente receberiam de boa vontade uma amiga apresentada por mim; mas primeiro era necessário que tivesse a certeza de que a Sra. Putbus ainda não chegara a La Raspeliere. Só no próprio local é que poderia certificar-me; e, como sabia por antecipação que dois dias depois Albertine seria obrigada a ir aos arredores com sua tia, aproveitara a ocasião para enviar um despacho à Sra. Verdurin, perguntando se poderia me receber na quarta-feira. Se a Sra. Putbus se achasse presente, eu daria um jeito para ver a sua camareira, assegurar-me se não seria arriscado que ela fosse a Balbec e, nesse caso, saber quando, para levar Albertine bem longe dali nesse dia. O trenzinho local, dando uma volta inexistente quando eu e minha avó o havíamos tomado, passava agora por Doncieres-la-Goupil, grande estação de onde partiam os trens importantes e principalmente o expresso em que eu tinha vindo de Paris para visitar Saint-Loup, e no qual voltara. E, devido ao mau tempo, o ônibus do Grande Hotel nos conduziu, a mim e a Albertine, à estação do bondinho, Balbec-Plage.

            O trenzinho ainda não havia chegado, porém via-se, ocioso e lento, o penacho de fumo que ele deixara no caminho e que agora, reduzido a seus escassos meios de nuvem pouco móvel, subia devagar as verdes vertentes da falésia de Criquetot. Por fim o trenzinho, a que o fumo havia precedido para assumir a direção vertical, chegou por sua vez, lentamente. Os viajantes que iam tomá-lo afastaram-se para lhe dar lugar; mas sem apressar-se, sabendo que lidavam com um andarilho complacente, quase humano, e que, guiado como a bicicleta de um novato pelos sinais condescendentes do chefe da estação, sob a tutela poderosa do mecânico, não se arriscava a atropelar ninguém e pararia onde quisessem.

            Meu despacho explicava o telefonema dos Verdurin e chegava tanto mais a propósito, pois a quarta-feira (dentro de dois dias) era dia de jantar de gala, tanto em La Raspeliere como em Paris, o que eu ignorava. A Sra. Verdurin não dava "jantares", mas tinha "quartas-feiras". As quartas-feiras eram obras de arte. Sabendo que não tinham rival em parte alguma, a Sra. Verdurin introduzia matizes entre elas.

            - Esta última quarta-feira não valia a anterior - dizia. - Mas creio que a próxima será uma das mais bem-sucedidas que já dei. -

            Chegava por vezes a confessar:

            - Esta quarta não estava à altura das outras. Em compensação, reservo-lhes uma grande surpresa para a próxima. -

            Nas últimas semanas da temporada de Paris, antes de partir para o campo, a Patroa anunciava o fim das quartas-feiras. Era uma ocasião para estimular os fiéis:

            - Há somente três quartas, só faltam duas - dizia, com o mesmo tom de que se o mundo estivesse por acabar. - Não vá perder a quarta-feira próxima de encerramento. -

            Mas esse encerramento era fictício, pois ela avisava:

            - Agora, oficialmente não há mais quartas-feiras. Foi a última quarta deste ano. Mas em todo caso estarei aqui na quarta. Daremos uma quarta-feira íntima; quem sabe? Essas pequenas quartas íntimas talvez sejam as mais agradáveis. -

            Na Raspeliere, as quartas eram forçosamente restritas, e como, segundo se houvesse encontrado um amigo de passagem, fora este convidado para tal ou qual dia, quase todos os dias eram quarta-feira.

            - Não me recordo bem do nome dos convidados, mas sei que lá está a Sra. Marquesa de Camembert - dissera-me o ascensorista.

            A lembrança de nossas explicações relativas aos Cambremer não chegara a suplantar definitivamente a da palavra antiga, cujas sílabas familiares e plenas de sentido vinham em socorro do jovem empregado quando ele se mostrava embaraçado com esse nome difícil, e eram imediatamente preferidas e readotadas por ele, não por preguiça e como um velho hábito inextirpável, mas por causa da necessidade de lógica e de clareza que elas satisfaziam.

            Apressamo-nos a procurar um vagão vazio, onde eu pudesse beijar Albertine durante todo o trajeto. Não o tendo encontrado, subimos para um compartimento onde já se achava instalada uma dama de cara imensa, velha e feia, de expressão masculina, muito endomingada, e que lia a Revue des Deux Mondes. Malgrado sua vulgaridade, era pretensiosa em seus gestos, e eu me diverti em indagar a mim mesmo a que categoria social ela podia pertencer; concluí de imediato que devia se tratar de alguma gerente de uma grande casa de tolerância, uma alcoviteira em viagem. Suas maneiras e seu rosto o proclamavam. Apenas, eu ignorava até então que tais senhoras lessem La Revue des Deux Mondes. Albertine mostrou-me, sorrindo, não sem piscar o olho. A dama tinha um aspecto muito digno; e, como de minha parte eu trazia em mim a consciência de que estava convidado para dali a dois dias, no ponto final da linha da pequena estrada de ferro. Para ir à casa da célebre Sra. Verdurin, de que era esperado numa estação intermediária por Robert de Saint-Loup e que, um pouco mais adiante, daria um grande prazer à Sra. de Cambremer, indo parar em Féterne, meus olhos cintilaram de ironia ao considerar essa dama importante que parecia crer que, devido a seu vestido rebuscado, às plumas do seu chapéu e a sua Revue des Deux Mondes, era um personagem mais considerável do que eu. Esperava que essa dama não permanecesse por muito mais tempo que o Sr. Nissim Bernard e que descesse pelo menos em Toutainville; mas não. O trem parou em Épreville, ela ficou sentada. O mesmo ocorreu em Montmartin-sur-Mer, em Parville-la-Bingard, em Incarville, de modo que, por desespero, quando o trem deixou Saint-Frichoux, que era a última estação antes de Doncieres, comecei a abraçar Albertine sem mais me ocupar com essa dama.

            Em Doncieres, Saint-Loup tinha vindo esperar-me na gare, com as maiores dificuldades, disse-me, pois, parando na casa da tia, meu telegrama só lhe chegara às mãos há poucos instantes, e ele só podia dedicar-me uma hora, visto não ter conseguido distribuir seu tempo com antecipação. Ai de mim, essa hora me pareceu bastante longa, pois mal desceu do vagão Albertine só cuidou de Saint-Loup. Não conversava comigo, mal me respondia se lhe dirigia a palavra, repelia-me quando me aproximava dela. Em compensação, com Robert, ria o seu riso feiticeiro, falava-lhe com volubilidade, brincava com o cão que ele trazia e, ao mesmo tempo que acariciava o animal, roçava de propósito em seu dono. Lembrei-me de que, no dia em que Albertine deixara-se beijar por mim pela primeira vez, eu tivera um sorriso de gratidão pelo sedutor desconhecido que operara nela uma tão profunda modificação, simplificando tanto a minha tarefa. Pensava nele agora com horror. Robert devia ter percebido que Albertine não me era indiferente, pois não respondeu às suas provocações, o que a pôs de mau humor contra mim; depois, ele me falou como se eu estivesse sozinho, o que, quando ela o notou, me fez subir na sua estima. Robert me perguntou se eu não queria tentar encontrar, entre os amigos com os quais me fazia jantar todas as noites em Doncieres, quando eu lá estivera, aqueles que ainda se achavam ali. E, como ele próprio incidia no gênero de pretensão irritante que reprovava:

            - De que te serve tê-los encantado com tanta perseverança se não queres revê-los? -, declinei de sua proposta porquanto não desejava correr o risco de me afastar de Albertine, mas também porque agora estava desligado deles. Deles, quer dizer, de mim. Desejamos apaixonadamente que exista uma outra vida na qual seríamos iguais ao que somos nesta. Mas não refletimos que, mesmo sem esperar essa outra vida, somos nesta, ao fim de alguns anos, infiéis ao que havíamos sido; ao que desejaríamos de nós mesmos; como dessas pessoas com quem fomos ligados, mas que há muito já não vemos; por exemplo, os amigos de Saint-Loup, que tanto me agradava encontrar todas as noites no faisan; cuja conversa só seria para mim agora importuna e constrangedora. A tal respeito, e porque preferi não ir e encontrar lá o que me havia agradado, um passeio a Doncieres poderia como que me prefigurar a chegada ao paraíso. Sonha-se muito com o paraíso, ou melhor, com numerosos paraísos sucessivos, mas todos eles são, bem antes da morte, paraísos perdidos e onde a gente se sentiria perdido.

            Saint-Loup nos deixou na gare.

            - Mas vais ter cerca de uma hora de espera - disse. - Se a passares aqui, verás sem dúvida o meu tio Charlus, que em breve há de tomar o trem para Paris, dez minutos antes do teu. Já me despedi dele, pois sou obrigado a regressar antes da hora do seu trem. Não pude lhe falar de ti visto que ainda não lera o teu telegrama. -

            As censuras que fiz a Albertine depois que Saint-Loup nos deixou, ela me respondeu que desejara, com sua frieza para comigo, dissipar a idéia que ele pudesse ter tido se, no momento da parada do trem, me tivesse visto inclinado sobre ela e com o braço a enlaçar o seu talhe. De fato, ele havia reparado nessa posição (coisa que eu não percebera, pois do contrário me colocaria mais corretamente ao lado de Albertine) e tivera tempo de me dizer ao ouvido:

            - É isso... essas meninas tão bestinhas de que me falaste e que não queriam freqüentar a Srta. de Stermaria porque achavam que não se comportava bem? -

            Eu dissera com efeito a Robert, e muito sinceramente, quando fora de Paris para visitá-lo em Doncieres, e como voltássemos a falar de Balbec, que nada havia a fazer com Albertine, que ela era a virtude em pessoa. E agora que, por mim mesmo, há muito tempo, soubera que aquilo era falso, desejava ainda mais que Robert acreditasse que era verdade. Bastaria dizer a Robert que amava Albertine. Robert era dessas criaturas que sabem renunciar a um prazer para poupar ao amigo sofrimentos que continuaria sentindo como se fossem seus.

            - Sim, ela é muito criança. Mas não sabes nada sobre ela? - acrescentei com inquietação.

            - Nada, a não ser que os vi abraçados como dois amantes.

            - Sua atitude não dissipava nada - disse eu a Albertine quando Saint-Loup nos deixou.

            - É verdade concordou ela; fui desajeitada, magoei-o, sinto-me bem mais infeliz que você. Verá que nunca mais será assim; perdoe-me - disse ela, estendendo-me a mão com ar triste.         Nesse momento, do fundo da sala de espera onde estávamos sentados, vi passar lentamente, seguido a certa distância por um empregado que carregava suas malas, o Sr. de Charlus. Em Paris, onde eu só o encontrava em reuniões festivas, imóvel, apertado numa casaca preta, mantido em direção vertical por seu aprumo orgulhoso, seu impulso para agradar, pelo brilho da conversa, eu não me dava conta do quanto ele havia envelhecido. Agora, num terno claro de viagem que o fazia parecer mais gordo, em marcha e bamboleando-se, balançando um ventre barrigudo e um traseiro quase simbólico, a crueldade do dia claro decompunha, em arrebique sobre os lábios, em pó-de-arroz fixado pelo cold-cream na ponta do nariz, em negro nos bigodes tingidos cuja cor de ébano contrastava com os cabelos grisalhos, tudo aquilo que pareceria, sob as luzes, a animação da tez numa pessoa ainda jovem.

            Enquanto conversava com ele, mas brevemente, por causa do seu trem, eu olhava para o vagão de Albertine para lhe fazer sinal de que já iria ao seu encontro. Quando desviei a cabeça para o Sr. de Charlus, ele me pediu que lhe fizesse o favor de chamar um militar, parente seu, que estava do outro lado da via férrea, exatamente como se fosse subir no nosso trem, mas em sentido oposto, na direção que se afastava de Balbec.

            - Ele faz parte da banda do regimento - disse o Sr. de Charlus. - Como o senhor tem a sorte de ser muito jovem e eu o aborrecimento de ser bastante velho, bem pode poupar-me atravessar a linha e ir até lá... -

            Senti-me no dever de ir até o militar apontado e, com efeito, vi, pelas liras bordadas na sua gola, que pertencia à banda. Mas, no momento em que eu ia prestar contas do meu recado, qual não foi minha surpresa e, posso dizer, o meu prazer ao reconhecer Morel, o filho do lacaio de meu tio e que me recordava tantas coisas! Esqueci de dar o recado do Sr. de Charlus.

            - Como! Está em Doncieres?

            - Sim, e incorporaram-me à banda, a serviço das baterias. -

            Mas ele me falou isso num tom seco e altivo. Tornara-se muito posudo e, evidentemente, a minha vista, lembrando-lhe a profissão do pai, não lhe era agradável. De súbito, vi o Sr. de Charlus arremeter contra nós. Meu atraso claramente o impacientara.

            - Eu gostaria de ouvir um pouco de música esta noite - disse ele a Morel sem mais rodeios; -dou quinhentos francos pelo recital, isto poderia talvez interessar um de seus amigos, se é que os tem na banda. -

            Por mais que eu conhecesse a insolência do Sr. de Charlus, fiquei estupefato que ele nem sequer desse bom-dia a seu jovem amigo. Aliás, o barão não me deu tempo para refletir. Estendendo-me a mão, afetuosamente, disse:

            - Até logo, meu caro - para indicar que eu nada mais tinha a fazer ali. De resto, eu já deixara por muito tempo sozinha a minha querida Albertine.

            - Veja - disse-lhe eu, subindo para o vagão -, a vida dos banhos de mar e a vida de viagens fazem-me compreender que o teatro do mundo dispõe de menos cenários que de atores, e de menos atores que de "situações".

            - A propósito de que está dizendo isso?

            - É que o Sr. de Charlus acabou de me pedir que lhe chamasse um de seus amigos, o qual, justo nesse instante, na gare, reconheci como sendo um dos meus. -

            Porém, dizendo isso, perguntava a mim mesmo de que modo o barão podia conhecer Morel. A desproporção social, em que a princípio não havia pensado, era imensa. Primeiro, tive a idéia de que seria por meio de Jupien, cuja filha, estão lembrados, parecera enamorar-se do violinista. Entretanto, o que espantava era que, devendo viajar para Paris dentro de cinco minutos, o barão pedisse para ouvir música em Doncieres. Revendo, porém, na lembrança a filha de Jupien, eu começava a achar que os "reconhecimentos", pobre expediente de obras fictícias, ao contrário, talvez exprimissem uma parte importante da vida, se a gente soubesse chegar ao verdadeiro romanesco, quando tive subitamente uma revelação e compreendi que fora bem ingênuo. O Sr. de Charlus por nada neste mundo conhecia Morel, nem este ao Sr. de Charlus, o qual, deslumbrado mas também tímido, ante um militar que, no entanto, só ostentava liras, requisitara-me, em sua emoção, para lhe trazer aquele a quem não imaginava que eu conhecesse. Em todo caso, a oferta dos quinhentos francos deveria, para Morel, ter substituído a ausência de relações anteriores, pois vi que continuavam a conversar, sem cuidar que se achavam ao lado do nosso trem. E, lembrando-me de como o Sr. de Charlus se dirigira a Morel e a mim, eu percebia a sua semelhança com certos parentes seus, quando apanhavam uma mulher na rua. Unicamente, o objeto visado mudara de sexo. A partir de uma certa idade, e até se se efetuam em nós evoluções diferentes, mais nos tornamos nós mesmos, mais se acentuam os traços de família. Pois a natureza, continuando harmoniosamente a trama de sua tapeçaria, interrompe a monotonia da composição graças à variedade das figuras intercaladas. Aliás, a altivez com que o Sr. de Charlus medira de alto a baixo o violinista é relativa conforme o ponto de vista em que nos coloquemos. Teria sido entendida pela maioria das pessoas da sociedade, que se inclinavam diante dele, mas não pelo chefe de polícia que, alguns anos depois, mandaria vigiá-lo.

            - O trem de Paris já deu sinal, senhor - disse o empregado que carregava as malas.

            - Mas eu não vou tomar o trem, ponha tudo isso no depósito, que diabo! - retrucou o Sr. de Charlus, dando vinte francos ao empregado, que ficou estupefato com a reviravolta e encantado com a gorjeta. Tal generosidade logo atraiu uma vendedora de flores:

            - Fique com estes cravos, olhe esta bela rosa, meu bom senhor, vai lhe trazer felicidade. - O Sr. de Charlus, impaciente, estendeu-lhe quarenta sous, em troca do que a mulher ofereceu suas bênçãos e, de novo, as flores.

            - Meu Deus, se ela nos deixasse em paz - disse o Sr. de Charlus, dirigindo-se num tom irônico e gemendo, como se fosse uma pessoa enervada, a Morel, a quem achava uma certa doçura em solicitar apoio. - O que temos a nos dizer já é bem complicado. -

            Visto que o carregador do trem ainda não estava muito longe, talvez o Sr. de Charlus não quisesse ter uma audiência numerosa, talvez essas frases incidentais permitissem à sua timidez altiva não abordar muito diretamente o pedido de um encontro. O músico, voltando-se para a vendedora de flores com ar franco, imperativo e decidido, ergueu-lhe uma palma que a repelia e dava a entender que não queriam as suas flores e que ela desse o fora o quanto antes. Com deslumbramento, o Sr. de Charlus viu esse gesto autoritário e viril, feito pela mão graciosa para a qual ele ainda pareceria muito pesado, muito maciçamente brutal, com uma firmeza e um desembaraço precoces, que conferiam a esse adolescente ainda imberbe o ar de um jovem Davi, capaz de assumir um combate contra Golias. A admiração do barão era involuntariamente, mesclada desse sorriso que experimentamos ao ver numa criança uma expressão sisuda acima de sua idade.

            - Eis alguém por quem desejaria ser acompanhado em minhas viagens e auxiliado em meus negócios. Como me simplificaria a vida! - disse consigo o Sr. de Charlus.

            Partiu o trem de Paris (que o barão não tomou). Depois, subimos para o nosso, Albertine e eu, sem que eu ficasse sabendo o que fora feito de Morel e do Sr. de Charlus.

            - Nunca mais devemos brigar; novamente lhe peço que me perdoe - voltou a dizer Albertine, aludindo ao incidente Saint-Loup. - Precisamos ser sempre amáveis um com o outro continuou com ternura. - Quanto ao seu amigo Saint-Loup, se acha que ele não interessa no que quer que seja, engana-se redondamente. O que me agrada nele é que parece gostar muito de você.

            - É muito bom rapaz - disse eu, evitando atribuir a Robert qualidades superiores imaginárias, como por amizade não teria deixado de fazer caso se tratasse de outra pessoa que não Albertine. - É uma criatura excelente, franca, devotada, leal, com quem se pode contar para tudo. -

            Dizendo isto, eu me limitava, tolhido pelo ciúmes, a falar a verdade sobre Saint-Loup, mas era a verdade mesmo o que eu exprimia. Pois fora exatamente nos mesmos termos que se expressara a Sra. de Villeparisis para me falar dele, quando eu ainda não o conhecia, e o imaginava tão diferente, tão altaneiro, e dizia comigo:

            "Acham-no bom por que é um grão-senhor."

            Da mesma forma, quando ela me dissera:

            "Ele ficaria tão feliz", eu pensara depois de o ter avistado diante do hotel, pronto para guiar, que as palavras de sua tia eram pura banalidade mundana, destinadas a me lisonjear. E a seguir havia percebido que ela falara sinceramente, pensando no que me interessava, nas minhas leituras, e por saber que era daquilo que Saint-Loup gostava, como me devia suceder dizer sinceramente a alguém que estava escrevendo a história de seu antepassado La Rochefoucauld, autor das Máximas, e que desejaria pedir conselhos à Robert:

            - Ele ficaria muito feliz. É que eu aprendera a conhecê-lo. Mas, ao vê-lo pela primeira vez, não acreditara que uma inteligência aparentemente minha pudesse envolver-se em tanta elegância exterior de indumentária suas atitudes. Devido a sua plumagem, eu o julgara um ser de outra espécie.

            Agora era Albertine quem, um pouco talvez porque Saint-Loup, em consideração para comigo, a tratara de modo tão frio, me disse o que eu havia pensado outrora:

            - Ah, ele é tão devotado assim?! Percebo que acham sempre todas as virtudes nas pessoas quando elas saem do faubourg Saint-Germain. -

            Ora, que Saint-Loup pertencesse ao faubourg Saint-Germain era coisa em que eu não pensara uma só vez sequer em todos esses anos, quando, despojando-se de seu prestígio, ele me manifestara as suas virtudes. Mudança de perspectiva para contemplar os seres, já mais impressionante na amizade que nas simples relações sociais, mas quanto mais ainda no amor, onde o desejo, numa escala tão vasta, aumenta em tamanhas proporções os menores sinais de frieza, que bem menos me seria necessário do que a que possuía de início Saint-Loup, para que eu me acreditasse desde o começo desdenhado por Albertine, para que imaginasse suas amigas como criaturas maravilhosamente inumanas e que só atribuísse à indulgência que se tem para com a beleza e para com uma certa elegância o juízo de Elstir, quando ele me dizia acerca do pequeno grupo, exatamente nos mesmos sentimentos que a Sra. de Villeparisis sobre Saint-Loup:      - São boas moças. -

            Ora, esse julgamento não era o que eu de bom grado faria ao ouvir Albertine dizer:

            - Em todo caso, devotado ou não, espero não mais tornar a vê-lo, já que ele causou desavença entre nós. Não devemos mais brigar. Não é justo. -

            Considerando que Albertine parecera ter desejado Saint-Loup, eu me sentia mais ou menos curado por algum tempo da idéia de que ela amava as mulheres, o que se me afigurava inconciliável. E, diante do impermeável de Albertine, no qual ela parecia tornar-se uma outra pessoa, a infatigável irradiação das tardes chuvosas, e que, colante, maleável e cinzento naquela ocasião, parecia menos proteger seu vestuário contra a água do que ter sido encharcado por ela e ligar-se ao corpo de minha amiga, como que para modelar-lhe as formas para um escultor, arranquei aquela túnica que esposava zelosamente um colo desejado e, puxando Albertine ao meu encontro:

            Mais toi, ne veux-tu pas, voyageuse indolente, Rêver sor mon épaule en y posant ton front?" [Senão queres, viajante indolente, sonhar no meu ombro, nele pousando a tua fronte?" (Poema "La maison du berger" [A casa do pastor] de Alfred de Vigny). (N. do T)]

- Disse-lhe, tomando sua cabeça em minhas mãos e lhe mostrando as grandes campinas inundadas e mudas que se estendiam no entardecer até o horizonte fechado pelas cadeias paralelas de longínquos e azulados vales.

            Dois dias depois, na quarta-feira famosa, nesse mesmo trem que acabava de tomar em Balbec para ir jantar a Raspeliére, tinha especial interesse em não perdê-lo à Cottard no Graincourt-Saint-Vast, onde um novo chamado telefônico da senhora de Verdurin me tinha indicado que encontraria. Devia subir no trem e me indicar onde  achar  os  carros  que  se  mandavam  à  estação,  de Raspeliére. Por isso, como o trem não se detinha mais que um instante em Graincourt, primeira estação depois de Doncières, localizei-me de antemão na portinhola, a tal ponto temia não vê-lo em Cottard ou que não me visse. Vãos temores! Não tinha advertido até onde o pequeno clã moldava seus membros conforme um mesmo tipo; estes  além disso,  esperavam  na  plataforma  em  grande  traje  de  ornamento  e  se reconheciam em seguida por certa expressão de segurança, elegância e familiaridade,  com as  olhadas  que  franqueavam  as  filas  apertadas  do público  vulgar,  como  um  espaço  livre  e  sem  obstáculos  à  vista, espreitavam a chegada de algum confrade que tinha tomado o trem na estação anterior e faiscavam já pela próxima conversação. Esse sinal de seleção que já tinha marcado aos membros do pequeno grupo,  pelo  costume  de  comerem  juntos,  não  só  os  distinguia quando  eram  numerosos  e  constituíam  uma  força,  agrupados  e formando  uma  mancha  mais  brilhante  no meio  do  turbilhão de passageiros; o que Brichot chamava o Pecus; sobre cujos rostos opacos não podia ler-se nenhuma noção relativa aos Verdurin, nenhuma esperança  de  jantar  jamais  na  Raspeliére.  Por outra parte,  esses passageiros vulgares se interessaram menos que eu se diante deles  se  pronunciassem; e  apesar  da  notoriedade  adquirida  por alguns, os nomes desses fiéis que me assombrava ver; continuavam jantando fora de sua casa; sendo deste modo que vários já o faziam desde antes de meu nascimento, segundo os relatos que tinha ouvido, em uma época; uma vez suficientemente vaga e distante para que me tentasse exagerar seu afastamento. O contraste entre a continuação não só de sua existência, mas sim da plenitude de suas forças e o aniquilamento de tantos amigos que já tinha visto desaparecer aqui ou lá, dava-me essa mesma sensação que experimentamos quando na ultima hora dos jornais lêem precisamente a notícia que menos esperávamos; por exemplo a de um falecimento prematuro e que nos parece fortuito, porque os motivos resultantes nos são desconhecidos. Esse sentimento é que a morte não alcança uniformemente a todos os homens, mas que uma onda mais avançada de sua trágica crescente arrasta uma existência  situada  ao  nível  de  outras  que  por  muito  mais  tempo perdoarão as ondas sucessivas. Veremos, por outra parte, mais tarde, a diversidade de quão mortos circulam invisivelmente e são a causa do inesperado especial que apresentam as necrologias dos jornais. Além disso, via que com o tempo não só se revelam e se impõem dons  reais  que  possam  coexistir  com  a  pior  vulgaridade  de conversação, mas sim até indivíduos medíocres chegam à esses lugares. Vinculados na imaginação de nossa infância a alguns anciões célebres sem pensar que o seriam, certo número de anos mais tarde, seus discípulos convertidos em Mestres; e que agora inspiram o respeito e o temor que experimentavam antes. Mas se os nomes dos fiéis não eram conhecidos dos peitilhos, seu aspecto, entretanto, os fazia muito visíveis. Até no trem (quando ao azar uns e outros falavam o que poderiam fazer no dia, os reunia a todos), não tendo que recolher na estação seguinte mais que um solitário, o vagão em que se encontravam juntos, designado pelo cotovelo do escultor Ski, adornado pelo Tempo de Cottard, florescia de longe como um carro de luxo e recolhia na estação requerida ao companheiro atrasado. O único ao qual lhe tivessem escapado esses sinais de promissão, devido a  sua  semi-cegueira,  era  Brichot.  Mas  também  um  dos confrades assegurava voluntariamente a favor do cego, as funções de vigilante, e assim que a gente visse seu chapéu de palha, seu guarda-chuva  verde  e  seus  óculos  verdes,  encaminhava-o  com  pressa  e doçura para o compartimento eleito. De tal sorte que não havia exemplo de que um dos fiéis extraviasse dos outros no percurso do caminho, a menos que provocasse as mais graves suspeita de farra ou até de não ter viajado com o trem.. Às vezes se produzia o inverso: um fiel tinha afastado-se bastante, na tarde e, por conseguinte, fazia sozinho parte do percurso, antes de que o alcançasse o grupo; mas até isolado nessa forma, sendo único em sua espécie, não deixava de produzir, o mais freqüentemente, algum efeito. O futuro fazia o qual se dirigia o designava à pessoa sentada no banco de em frente, a que se dizia:

            - Deve ser alguém. - distinguia uma vaga auréola já em volto ao chapéu flexível de Cottard ou do escultor Ski, e não se assombrava,  a não ser  na metade  quando,  na  estação  seguinte, uma multidão elegante, se era seu ponto terminal, recebia o fiel na portinhola e o acompanhava por volta de um dos carros que esperavam, sendo todos cumprimentados até o chão pelo empregado de Doville; ou invadia o compartimento se era uma estação intermediária. Era o que fazia precipitadamente, porque alguns tinham chegado com atraso justo no momento em que o trem, já na estação, dispunha-se a sair de novo, o turbilhão que Cottard conduziu a passo redobrado até o vagão em cujas janelas tinha visto meus sinais. Brichot, que se encontrava entre esses fiéis, era-o muito mais no curso desses anos, em que outros  tinham  diminuído  sua assiduidade.  Sua  vista  se  debilitava progressivamente, e o tinha obrigado, até em Paris, a diminuir cada vez mais os trabalhos noturnos. Por outra parte, pouca simpatia tinha pela Nova Sorbonne, em que as idéias de exatidão científica à alemã começavam a prevalecer sobre o humanismo. Agora, limitava-se exclusivamente ao seu curso e às bancas de exame; dispunha também de muito mais tempo para se dedicar ao mundanismo, ou seja, às reuniões dos Verdurin, ou àquelas oferecidas às vezes aos Verdurin por um ou outro fiel, trêmulo de emoção. É verdade que em duas ocasiões o amor quase fizera o que os trabalhos já não podiam mais: desligar Brichot do pequeno clã. Contudo, a Sra. Verdurin, que "velava por sua sementeira" e, aliás, tendo se habituado a isso no interesse de seu salão, acabara por encontrar um prazer desinteressado nesse gênero de dramas e de execuções, fizera-o romper irremediavelmente com a pessoa perigosa, pois sabia, como ela mesma o afirmava, "para ordem em tudo" e "aplicar o ferro em brasa na ferida". Isto lhe fora tanto mais fácil no caso de uma das pessoas perigosas, que era simplesmente lavadeira de Brichot, e a Sra. Verdurin, que tinha livre acesso ao quinto andar do professor, rubra de orgulho quando se dignava a subir-lhe as escadas; não fizera mais que pôr no olho da rua aquela mulher de nada.

            Como dissera a Patroa a Brichot:

            - Uma mulher feito eu lhe faz a honra de vir à sua casa e o senhor recebe uma criatura dessas? -

            Brichot jamais esquecera o serviço que a Sra. Verdurin lhe havia prestado, ao impedir que sua velhice soçobrasse no lodo, e se lhe mostrava cada vez mais apegado, ao passo que, em contraste com essa renovada afeição e talvez devido a ele, a Patroa começava a se aborrecer com um fiel excessivamente dócil; com a obediência do qual estava certa por antecipação. Mas Brichot extraía de sua intimidade com os Verdurin um brilho que o distinguia entre todos os colegas da Sorbonne. Estes ficavam deslumbrados com a narrativa que Brichot lhes fazia de jantares aos quais nunca seriam convidados, com a menção nas revistas; ou o retrato exposto no Salão, que dele haviam feito este ou aquele escritor ou pintor famosos; cujo talento os titulares das outras cátedras da Faculdade de Letras prezavam; mas sem terem a menor possibilidade de chamar a atenção, enfim, com a própria elegância indumentária do filósofo mundano; elegância que a princípio haviam tomado por displicência, até que seu colega benevolamente lhes explicasse, que fica bem pousar a cartola no chão, no decorrer de uma visita, e não é adequada para os jantares no campo, por mais elegantes que sejam, onde convém que a substituam pelo chapéu de feltro que cai muito bem com o smoking. Durante os primeiros segundos em que o pequeno grupo se engolfou no vagão, nem sequer pude falar a Cottard, pois ele estava sufocado, menos por haver corrido para apanhar o trem do que pelo encantamento de tê-lo apanhado tão a tempo. Com isso, experimentava mais que a alegria de um êxito quase que a hilaridade de boa farsa.

            - Ah, essa é boa! - disse ele, ao se recobrar. - Um pouco mais... Puxa! Isto é o que se chamaria chegar a propósito! - acrescentou piscando o olho, não para indagar se a expressão era correta, pois agora transbordava de segurança, mas por satisfação. Por fim, conseguiu apresentar-me aos outros membros do pequeno clã. Aborreceu-me verificar que estavam quase todos vestindo o que em Paris se chama smoking. Eu havia esquecido que os Verdurin principiavam uma evolução tímida em direção à sociedade, atenuada pelo Caso Dreyfus, acelerada pela música "nova", evolução, aliás, desmentida por eles, e que continuariam a desmentir até que houvesse chegado a bom termo, como esses objetivos militares que um general só anuncia quando os alcançou, de modo a não parecer derrotado se lhe falharem. De outra parte, a sociedade estava bem preparada para ir a seu encontro. Eram ainda considerados como pessoas que ninguém da sociedade freqüentava, mas que pouco se importavam com isso. O salão Verdurin passava por um templo da música. Fora lá, diziam, que Vinteuil encontrara inspiração e encorajamento. Ora, se a sonata de Vinteuil continuava totalmente incompreendida e mais ou menos desconhecida, o seu nome, pronunciado como o do maior compositor contemporâneo, era dotado de um prestígio extraordinário. Enfim, tendo certos jovens do faubourg achado que deviam ser tão instruídos como os burgueses, havia três dentre eles que tinham aprendido música e junto aos quais a sonata de Vinteuil gozava de imensa reputação. De volta para casa, falavam nisso à mãe inteligente que os impelira a cultivar-se. E, interessando-se pelos estudos dos filhos, as mães, no concerto, olhavam com algum respeito a Sra. Verdurin, que, no camarote de primeira, seguia a partitura. Até aqui, esse mundanismo latente dos Verdurin só se traduzia por dois fatos. Por um lado, a Sra. de Verdurin dizia da princesa de Caprarola:

            - Ah! Essa é inteligente, é uma mulher agradável. O que não posso tolerar são os imbecis, as pessoas que me enfadam, isso me deixa louca. -

            O que faria pensar a alguém um pouco inteligente que a princesa de Caprarola, mulher da mais alta sociedade, fizera uma visita à Sra. Verdurin. Tinha até chegado a pronunciar seu nome por ocasião de uma visita de pêsames à Sra. Swann, após a morte do marido desta, e lhe perguntara se ela os conhecia.

            - Como diz? - retrucara Odette, com ar subitamente triste. - Verdurin. - Ah! Então sei -volvera ela desolada. - Não os conheço, ou melhor, conheço-os sem conhecer, são gente que vi outrora em casa de amigos, há muito tempo; são agradáveis. -

            Logo que a princesa de Caprarola partiu, Odette bem que desejaria ter dito simplesmente a verdade. Mas a mentira imediata era não o produto de seus cálculos, mas a revelação de seus temores, de seus desejos. Ela negava não o que seria hábil negar, mas o que desejaria fosse inexistente, mesmo que o interlocutor viesse a saber uma hora depois que de fato se tratava disso. Pouco depois readquiria a sua segurança e até a ir ao encontro das perguntas, dizendo, para não parecer que alheia chegava:

            - Mas como! A Sra. Verdurin? Conheci-a enormemente. Como receava a reação de humildade, feito uma grande dama que conta que pegam uma afetação.

            - Faz algum tempo, fala-se muito nos Verdurin - dizia a senhora no bonde.

            Odette, com um desdenhoso sorriso de duquesa, respondia:

            - Se ouve sim; parece-me de fato que se fala muito neles de tempos em tempos; claro que -há dessa gente nova chegando à sociedade sem pensar em tempos, e ela era uma das mais novas.

            - A princesa de Caprarola jantou conosco, ela mesmo - replicou a Sra. de Souvré.

            - Ah! - respondeu Odette, acentuando casa de Verdurin com seu sorriso. - Isto não me espanta. É sempre pela princesa que essas coisas principiam; e depois vai uma outra, a condessa Capraroli por exemplo. -

            Dizendo isto, Odette demonstrava um profundo desdém por essas duas grandes damas que tinham o hábito de inaugurar os salões recém abertos. No seu tom, sentia-se que isso queria dizer que tanto ela, Odette, como a Sra. de Souvré não se deixariam levar por uma coisa dessas. Depois da confissão feita pela Sra. Verdurin acerca da inteligência da princesa de Caprarola, o segundo sinal de que os Verdurin tinham consciência de seu futuro destino era que (sem o ter formalmente pedido, é claro) desejavam que viesse jantar em sua casa em traje de gala; o Sr. Verdurin poderia ser saudado sem constrangimento pela recepção; pois aquele que estava "em apuros" seu sobrinho estava agora em alta esfera.

            Entre os que subiram para o meu vagão em Graincourt, estava Saniette, que antigamente fora expulso da casa dos Verdurin por seu primo Forcheville, porém retornara. Seus defeitos, do ponto de vista mundano, eram outrora apesar das qualidades superiores, do mesmo tipo dos de Cottard: timidez, desejo de agradar, e foram poupados para consegui-lo. Mas se a vida, fazendo com que Cottard parecesse frio, de aparências de Trino seu desdém, de gravidade, que se acentuavam enquanto dizia suas proezas, diante dos alunos complacentes; e não em casa dos Verdurin (onde, pela sugestão que exercem revestidos minutos antigos, quando novamente nos achamos num ambiente sobrenatural), permanecera um pouco o mesmo; ao menos em sua clínica, no serviço do hospital, na Academia de Medicina, cavara um verdadeiro abismo entre o Cottard atual e o antigo. Esses mesmos defeitos, ao contrário, eram exagerados em Saniette, à medida que este procurava corrigi-los. Viam que era enfadonho muitas vezes, que não o escutavam, em vez de ir devagar como Cottard o teria feito, e forçar a atenção com sua autoridade; não somente procurava, com ar brincalhão, fazer-se perdoar de autoridade excessivamente sério de sua conversa, mas também apressava ao tom de locução, cortava, empregava abreviações para parecer menos longo, mais familiar com as coisas de que falava, e apenas conseguia, fazendo-as ininteligíveis, parecer interminável. Sua segurança não era como a de Cottard, que gelava seus doentes, os quais respondiam às pessoas que elogiavam a sua amenidade nos salões:

            - Não é mais o mesmo homem quando nos recebe em seu consultório, nós em plena luz, e ele na contraluz, o olhar penetrante. -

            A segurança de Saniette não se impunha, sentia-se que ocultava demasiada timidez, que bastaria um nada para pô-la em fuga. Saniette, a quem os amigos sempre diziam que desconfiava muito de si mesmo, e que de fato via pessoas (a quem julgava, com razão, bastante inferiores) obterem facilmente o sucesso que lhe era recusado, já não começava uma história sem sorrir do engraçado da mesma, com receio de que um ar de seriedade não valorizasse bastante a sua mercadoria. Às vezes, dando crédito à comicidade que ele próprio parecia achar no que ia dizer, faziam-lhe o favor de um silêncio geral. Mas a narrativa fracassava inteiramente. Um conviva dotado de bom coração deslizava por vezes a Saniette o estímulo privado, quase secreto, de um sorriso de aprovação, fazendo-o chegar furtivamente até ele, sem chamar atenção, como se deslizasse um bilhete. Mas ninguém ia ao ponto de assumir a responsabilidade, a arriscar a adesão pública de uma boa risada. Muito tempo depois de finda e liqüidada a história, Saniette, desolado, ficava sorrindo sozinho consigo mesmo, como se ainda desfrutasse nela, e para si próprio, o deleite que fingia achar bastante e que os demais não haviam sentido. Quanto ao escultor Ski, assim chamado por causa da dificuldade que sentiam de pronunciar o seu nome polonês, e porque ele próprio afetava, desde que vivia numa certa sociedade, não querer ser confundido com parentes em muito boa posição social, mas um tanto aborrecidos e muito numerosos, tinha, aos quarenta e cinco anos e bastante feio, uma espécie de criancice, de fantasia sonhadora que conservara por ter sido, até os dez anos, o mais arrebatador menino-prodígio do mundo, coqueluche de todas as damas. A Sra. Verdurin afirmava que ele era mais artista que Elstir. Aliás, Ski não possuía com aquele senão semelhanças meramente externas. Bastaram para que Elstir, que certa vez se encontrara com Ski, sentisse por ele a profunda repulsa que nos inspiram, mais ainda que as criaturas inteiramente opostas a nós, aqueles que se nos assemelham para pior, nos quais se ostenta o que possuímos de menos bom, os defeitos de que nos curamos, lembrando-nos de modo deplorável o que poderíamos ter parecido a certas pessoas antes que nos tornássemos o que somos. Mas a Sra. Verdurin achava que Ski tinha mais temperamento que Elstir porque não havia nenhuma arte para a qual ele não tivesse facilidade, e estava convencida de que ele poderia erguer essa facilidade até o talento, caso fosse menos preguiçoso. E, para a Patroa, essa preguiça parecia um dom a mais, sendo o contrário do trabalho, que ela julgava o quinhão das criaturas sem gênio. Ski pintava tudo o que quisesse sobre botões de punho ou bandeiras de portas. Cantava com voz de compositor, tocava de ouvido, dando no piano a impressão de orquestra, menos por seu virtuosismo do que pelos seus falsos baixos, que significavam a impotência dos dedos, para indicar que ali havia um pistão, que aliás imitava com a boca. Procurando as palavras ao falar, para fazer crer numa impressão curiosa, da mesma forma que retardava um acorde vibrado em seguida, dizendo:

            "Ping", para fazer sentir os cobres, passava por ser maravilhosamente inteligente, mas suas idéias na verdade se resumiam em duas ou três grandemente limitadas. Aborrecido com sua reputação de fantasioso; metera na cabeça mostrar que era uma pessoa prática, positiva, de onde lhe provinha uma afetação triunfante de falsa precisão, de falso bom-senso, agravados por sua falta de memória e pelas informações sempre inexatas. Seus movimentos de cabeça, de pescoço, de pernas teriam sido graciosos se ele ainda tivesse nove anos, cachos louros, uma grande gola de rendas e botinhas de couro vermelho. Tendo os dois chegado à estação de Graincourt antes da hora, como Cottard e Brichot, tinham ido dar uma volta, deixando Brichot na sala de espera. Quando Cottard quisera retornar, Ski respondera:

            - Nada de pressa. Hoje não é o trem local que passa, é o departamental. -

            Encantado por ver o efeito que essa nuança de precisão produzia em Cottard, acrescentou, falando de si mesmo:

            - Sim, porque Ski ama as artes, modela o barro, julgam que ele não é prático. Ninguém conhece a linha melhor que eu. -

            Não obstante, tinham voltado para a gare, quando de repente, percebendo a fumacinha do trenzinho que chegava, Cottard, dando um berro, gritara:

            - Não temos mais que correr desabaladamente. -

            Com efeito, tinham chegado justo a tempo, pois a diferença entre o trem local e o trem departamental só existira na cabeça de Ski.

            - Mas será que a princesa não está no trem? - perguntou Brichot com voz vibrante. Suas enormes lunetas, resplendentes como os refletores que os laringologistas prendem à testa para iluminar a garganta dos pacientes, pareciam ter emprestado sua vida aos olhos do professor e, talvez devido ao esforço que este fazia para acomodar sua visão a elas, pareciam, ainda que nos mais insignificantes momentos, olhar por si mesmas com uma atenção contínua e uma extraordinária fixidez. A doença, aliás, tirando aos poucos a vista a Brichot, revelara-lhe as belezas deste sentido, como tantas vezes é necessário que nos decidamos a separar-nos de um objeto, dá-lo de presente por exemplo, para que o contemplemos, lastimemos, admiremos.

            - Não, não, a princesa foi acompanhar até Maineville alguns convidados que tomavam o trem para Paris. Nem mesmo seria impossível que a Sra. Verdurin, que tinha o que fazer em Saint-Mars, estivesse com ela! Assim, viajaria conosco e trilharíamos juntos o caminho, seria agradável. Trataremos de abrir o olho em Maineville, e bem! Ah! Não tem importância, pode-se dizer que quase perdemos a carruagem.

            Quando vi o trem, fiquei siderado. É o que se chama chegar no momento psicológico. Imaginem se tivéssemos perdido o trem. A Sra. Verdurin, vendo que os carros chegavam sem nós: tableau! - acrescentou o doutor, que ainda não se refizera do susto.

            - Eis uma aventura nada vulgar. Então, Brichot, que diz da nossa escapadela? - indagou o doutor com certo orgulho.

            - Palavra de honra - respondeu Brichot; de fato, se você não tivesse achado o trem, teria sido, como diria o finado Villemain, um profundo golpe para o bando! -

            Mas eu, distraído desde os primeiros instantes por essa gente a quem não conhecia, lembrei-me de súbito do que Cottard me havia dito no salão de dança do pequeno cassino, e, como se um elo invisível pudesse reatar um órgão e as imagens da lembrança, a de Albertine, apoiando seus seios contra os de Andrée, causava-me uma dor terrível ao coração. Esse mal não durou muito; a idéia de eventuais relações entre Albertine e outras mulheres já não me parecia possível desde a antevéspera, quando as provocações que minha amiga fizera a Saint-Loup haviam excitado em mim um novo ciúme que fizera esquecer o primeiro. Eu tinha a ingenuidade das criaturas que julgam que um gosto obrigatoriamente exclui o outro. Em Arembouville, como o trem estivesse superlotado, entrou no nosso compartimento um granjeiro de macacão azul, que só possuía uma passagem de terceira. O doutor, achando que não se poderia deixar viajar a princesa em tal companhia, chamou um empregado, exibiu seu cartão de médico de uma grande companhia de estrada de ferro, e forçou o chefe da estação a mandar descer o granjeiro. Esta cena magoou tanto o bom coração e alarmou de tal modo a timidez de Saniette que, desde que a viu começar, temendo já, devido à quantidade de camponeses que se achavam na plataforma, que assumisse as proporções de uma insurreição popular, fingiu estar com dor de barriga e, para que não pudessem acusá-lo de ter sua parte de responsabilidade no ato de violência do doutor, enfiou pelo corredor pretextando encontrar o que Cottard denominava os waters. Não os achando, pôs-se a olhar a paisagem de outra extremidade do "tortinho".

            - Se são estas as suas estréias na casa da Sra. Verdurin, senhor - disse-me Brichot, que fazia questão de mostrar seus talentos a um "novato" -, verá que não existe ambiente onde melhor se sinta a "doçura de viver", como dizia um dos inventores do diletantismo, do que-me-importismo, de muitas palavras em "ismo" que estão na moda entre nossas snobinettes; quero referir-me ao senhor príncipe de Talleyrand. -

            Pois, quando falava desses grandes senhores do passado, achava espirituoso e "cor da época" fazer preceder seu título de príncipe, e dizia "senhor duque de La Rochefoucauld", "senhor cardeal de Retz", aos quais também chamava, de quando em vez: "Esse strugo for lifer de Gondi", "esse boulangista de Marcillac". E nunca deixava de chamar Montesquieu, com um sorriso, quando falava dele: "O senhor presidente Secondat de Montesquieu." Um mundano de espírito ficaria agastado com esse pedantismo que cheirava a escola. Mas, nas maneiras perfeitas de um mundano ao falar de um príncipe, existe igualmente um pedantismo que trai uma outra casta, aquela em que se faz preceder o nome de Guilherme de "o imperador" e no qual se fala na terceira pessoa a uma Alteza.

            - Ah, esse - prosseguiu Brichot, falando do "senhor príncipe de Talleyrand" -, é preciso saudá-lo de chapéu na mão. É um antepassado.

            - É um meio encantador - disse-me Cottard; - o senhor encontrará um pouco de tudo, pois a Sra. Verdurin não é exclusivista: sábios ilustres como Brichot, gente da alta nobreza, como, por exemplo, a princesa Sherbatoff, uma grande dama russa, amiga da grã-duquesa Eudoxie, e que só a visita mesmo às horas em que ninguém mais é recebido. -

            De fato, a grã-duquesa Eudoxie, embora não se incomodasse que a princesa Sherbatoff, que desde muito tempo não era mais recebida por ninguém, fosse à sua casa quando pudesse haver visitas, deixava-a vir somente bem cedinho, quando não tinha junto dela nenhum dos amigos aos quais teria sido tão desagradável encontrar a princesa, como constrangedor seria para esta. Como fazia três anos que, logo após ter deixado, feito uma manicure, a grã-duquesa, a Sra. Sherbatoff partia para a casa da Sra. Verdurin, que recém acabava de acordar, e não mais a largava, pode-se dizer que a fidelidade da princesa ultrapassava infinitamente até a de Brichot, entretanto tão assíduo a essas quartas-feiras, onde tinha o prazer de julgar-se, em Paris, uma espécie de Chateaubriand na Abbaye-aux-Bois, e onde, no campo, experimentava a ilusão de tornar-se o equivalente do que podia ser, na casa da Sra. du Châtelet, aquele a quem sempre chamava (com malícia e satisfação de letrado): "o Sr. de Voltaire". Sua falta de relações permitira à princesa Sherbatoff mostrar aos Verdurin, desde alguns anos, uma fidelidade que fazia dela mais que uma "fiel" comum, a fiel típica, o ideal que a Sra. Verdurin por muito tempo julgara inacessível e que agora, na idade crítica, achava por fim encarnada nessa nova recruta feminina. Por mais que os ciúmes torturassem a Patroa, não havia exemplo de que os mais assíduos de seus fiéis não a tivessem "largado" alguma vez. Os mais caseiros se deixavam tentar por uma viagem; os mais castos tinham tido uma aventura; os mais robustos podiam apanhar uma gripe; os mais ociosos estar ocupados durante as vinte e quatro horas; os mais indiferentes ir fechar os olhos da mãe agonizante. E era debalde que a Sra. Verdurin lhes dizia então, como a imperatriz romana, que ela era o único general a quem sua legião deveria obedecer, ou, como o Cristo ou o Kaiser, que aquele que amava o pai e a mãe tanto quanto a ela própria, e não estava pronto para deixá-los e segui-la, não era digno dela, que, em vez de se exaurir no leito ou se deixar enganar por uma prostituta, fariam melhor em permanecer junto dela, remédio único e única volúpia. Porém, o destino, que às vezes se compraz em embelezar o fim das existências muito prolongadas, fizera com que a Sra. Verdurin encontrasse a princesa Sherbatoff. Brigada com a família, exilada de seu país, conhecendo apenas a baronesa Putbus e a grã-duquesa Eudoxie, a cujas residências, como não tivesse vontade de encontrar as amigas da primeira, e visto que a segunda não desejava que suas amigas encontrassem a princesa, ela só comparecia às horas matinais, quando a Sra. Verdurin ainda estava dormindo, não se recordando de ter ficado de cama uma única vez desde os doze anos, quando tivera rubéola, tendo respondido no dia 31 de dezembro à Sra. Verdurin, que, inquieta por estar sozinha, lhe perguntara se não podia ficar, para dormir de improviso, apesar da passagem do ano:

            - Mas o que é que poderia me impedir de ficar, seja qual for o dia? Além disso, nesse dia a gente fica em família, e vocês são a minha família -, vivendo numa pensão e mudando de pensão quando os Verdurin se mudavam, seguindo-os em seus veraneios, a princesa realizara tão admiravelmente, para a Sra. Verdurin, o verso de Vigny: Toi seuie me parus ce qu'on cherche toujours.["Só tu me apareceste o que se busca sempre." (N. do T)]; que a presidenta do pequeno círculo, desejosa de assegurar-se uma "fiel" até a morte, pedira-lhe que a que morresse por último se fizesse enterrar ao lado da outra.

            Diante de estranhos entre os quais é preciso incluir sempre aquele a quem mais mentimos, porque é aquele por quem nos seria mais penoso ser desprezado: nós mesmos; a princesa Sherbatoff tinha o cuidado de representar suas três únicas amizades com a grã-duquesa, com os Verdurin e com a baronesa Putbus como as únicas, não devido a cataclismos independentes de sua vontade que as tivessem feito emergir em meio à destruição de tudo o mais, mas que uma livre escolha as fizera eleger de preferência a quaisquer outras, e às quais um certo gosto pela Sra. Verdurin. Eles conhecem todo mundo. E depois, pelo menos, não são grã-finos de meia-tigela. Têm peso. Em geral, avalia-se que a Sra. Verdurin tem uma fortuna de trinta e cinco milhões. Diabo! Trinta e cinco milhões já é alguma coisa! Assim, não é das que lambem a colher.            - O senhor me falava da duquesa de Guermantes. Vou lhe dizer a diferença: a Sra. Verdurin é uma grande dama; a duquesa de Guermantes provavelmente é uma simplória. Percebe bem a nuança, não é? Em todo caso, que os Guermantes compareçam ou não à casa da Sra. Verdurin, ela recebe, o que vale mais, os d'Sherbatoff, os d'Forcheville, e tutti quanti, pessoas da mais alta classe, toda a nobreza da França e de Navarra, a quem o senhor me verá falar de igual para igual. Aliás, esse gênero de pessoas de bom grado procura os príncipes da ciência -acrescentava com um sorriso de amor-próprio beato, levado a seus lábios pela satisfação orgulhosa, não porque a expressão, outrora aplicada aos Potain, aos Charcot, se aplicasse a ele agora, mas porque enfim sabia empregar como convinha todas as que o uso autoriza e que, depois de as ter estudado por muito tempo, ele dominava a fundo. Assim, após me haver citado a princesa Sherbatoff entre as pessoas que a Sra. Verdurin recebia, Cottard acrescentou, piscando o olho:

            - Vê o tipo da casa, compreende o que quero dizer? -

            Com isso, queria significar o que existe de mais grã-fino. Ora, receber uma dama russa que só conhecia a grã-duquesa Eudoxie era pouco. Porém, mesmo que a princesa Sherbatoff não a conhecesse, nem por isso diminuiria a opinião de Cottard quanto à suprema elegância do salão Verdurin e à sua alegria de ser recebido ali. O esplendor de que nos parecem revestidas as pessoas que freqüentamos não é mais intrínseco do que o dessas personagens de teatro, para cujo vestuário é inútil que um diretor gaste centenas de milhares de francos na compra de roupas autênticas e de jóias verdadeiras que não produzirão efeito algum, quando um grande decorador dará uma impressão de luxo mil vezes mais suntuoso, ao dirigir um raio fictício sobre um gibão de pano grosseiro, semeado de tampinhas de vidro e sobre um manto de papel. Certo homem terá passado a sua vida no meio dos graúdos da terra, que para ele não eram mais que fastidiosos parentes, ou relações aborrecidas, porque um hábito, contraído desde o berço, os despojara a seus olhos de todo prestígio. Mas, em compensação, basta que esse prestígio venha, por algum acaso, acrescentar-se às pessoas mais obscuras, para que incontáveis Cottards tenham vivido ofuscados por mulheres tituladas, cujo salão imaginavam ser o centro de elegâncias aristocráticas, e que nem ao menos eram o que representavam a Sra. de Villeparisis e suas amigas (grandes damas decaídas que a aristocracia que fora educada com elas não mais freqüentava); não, essas, cuja amizade foi o orgulho de tantas pessoas, se essa gente publicasse suas Memórias e desse o nome de tais mulheres e das que elas recebiam, ninguém, tanto a Sra. de Cambremer como a Sra. de Guermantes, poderia identificá-las. Mas que importa! Um Cottard, assim, tem sua baronesa ou sua marquesa, que, para ele, é "a baronesa" ou "a marquesa", como, em Marivaux, a baronesa de quem nunca se diz o nome e da qual não se tem a mínima idéia de que alguma vez tivesse tido um. Cottard tanto mais julga encontrar aí resumida a aristocracia a qual ignora essa dama como, quanto mais duvidosos são os títulos, mais as coroas ocupam lugar nas taças, na prataria, no papel de cartas, nas malas. Numerosos Cottards, que acreditaram passar suas vidas no coração do faubourg Saint-Germain, tiveram talvez sua imaginação mais encantada de sonhos feudais do que os que efetivamente viveram entre príncipes, da mesma forma que, para o pequeno comerciante que aos domingos vai por vezes visitar edifícios "dos velhos tempos", é às vezes naqueles em que todas as pedras são da nossa época, e cujas abóbadas foram pintadas de azul e semeadas de estrelas de ouro pelos discípulos de Viollet-le-Duc, que mais tem a sensação de Idade Média.

            - A princesa estará em Maineville. Viajará conosco. Mas não o apresentarei a ela de imediato. Será preferível que a Sra. Verdurin o faça. A menos que eu encontre uma oportunidade. Pode estar certo de que então a agarrarei pelos cabelos.

            - De que estavam falando? - perguntou Saniette, que fingia ter ido tomar um pouco de ar.

            - Eu citava a este cavalheiro - disse Brichot - uma frase que o senhor conhece bem, daquele que, na minha opinião, é o primeiro dos fins de século (do século XVIII, bem entendido), o supracitado Charles-Maurice, abade de Périgord. Começara prometendo tornar-se um bom jornalista. Mas desencaminhou-se, quero dizer, fez-se ministro! A vida tem dessas desgraças. Político aliás pouco escrupuloso, que, com desdéns de grão-senhor de raça, não se constrangia em trabalhar em suas horas pelo rei da Prússia, é o caso de se dizer, e morreu na pele de um centro-esquerda.

            Em Saint-Pierre-des-lfs subiu uma jovem esplêndida que, infelizmente, não fazia parte do pequeno grupo. Eu não podia desviar os olhos de sua carne de magnólia, de seus olhos pretos, da alta e admirável construção de suas formas. Passado um instante, ela quis abrir uma janela, pois fazia calor no compartimento, e, não desejando pedir licença a todos, como só eu não estivesse de capa, disse-me com voz rápida, fresca e risonha:

            - Não lhe incomoda o ar, cavalheiro? -

            Desejaria dizer-lhe:

            - Venha conosco à casa dos Verdurin ou: - Diga-me seu nome e seu endereço. - Respondi: - Não, o ar não me incomoda, senhorita. -

            E em seguida, sem se mover do lugar:

            - O fumo não incomoda seus amigos? e acendeu um cigarro. Na terceira estação, ela desceu de um salto. No dia seguinte, perguntei a Albertine quem poderia ser. Pois, estupidamente, julgando que só se pode amar a uma coisa, enciumado com a atitude de Albertine a respeito de Robert, sentia-me seguro quanto às mulheres. Albertine me disse, creio que sinceramente, que não sabia.

            - Gostaria tanto de tornar a vê-la! - exclamei.

            - Sossegue, a gente se encontra sempre de novo - observou Albertine.

            Nesse caso particular, ela se enganava; jamais voltei a ver nem a identificar a linda jovem do cigarro. De resto, veremos porque, durante muito tempo, tive de deixar de procurá-la. Mas não a esqueci. Muitas vezes me ocorre, ao pensar nela, ser tomado de um desejo louco. Mas esses retornos do desejo obrigam-nos a refletir que, se quiséssemos reencontrar essas moças com o mesmo prazer, seria também necessário regressar ao ano que depois foi seguido por dez outros durante os quais a moça perdeu o frescor. Às vezes, pode-se encontrar uma criatura, mas não abolir o tempo. Tudo isso até o dia, triste e imprevisto como uma noite de inverno, em que já não procuramos aquela moça, nem qualquer outra, e em que encontrá-la chegaria a assustar-nos. Pois já não sentimos atrativos suficientes para agradar, nem forças para amar. Não, é claro, que a gente esteja, no sentido próprio do termo, impotente. E, quanto a amar, amaríamos mais que nunca. Mas sentimos que se trata de uma empreitada demasiado grande para o pouco de forças que nos resta. O repouso eterno já dispôs intervalos em que não se pode sair nem falar. Pôr o pé no degrau devido é uma vitória, como não falhar no salto mortal. Ser visto nesse estado por uma mocinha a quem amamos, mesmo que tenhamos conservado o rosto e os cabelos louros de rapaz! Já não podemos nos arriscar ao cansaço de acompanhar o passo da juventude. Tanto pior se o desejo carnal reduplica ao invés de se amortecer! Trazem-nos então uma mulher a quem não nos preocupamos em agradar, que só por uma noite partilhará o nosso leito e que nunca mais veremos.

            - Devem continuar não tendo notícias do violinista - disse Cottard.

            De fato, o acontecimento do dia no pequeno clã era o "sumiço" do violinista predileto da Sra. Verdurin. Prestando serviço militar perto de Doncieres, ele vinha três vezes por semana jantar em La Raspeliere, pois tinha licença noturna. Ora, na antevéspera, pela primeira vez os fiéis não tinham conseguido descobri-lo no trem. Supusera-se que havia faltado. Mas embora a Sra. Verdurin tivesse mandado esperar o trem seguinte, e por fim o último, o carro voltara vazio.

            - Certamente, ele está preso, não há outra explicação para a sua fuga. Ah, diabos! Vocês sabem, no serviço militar, com esses rapazes, basta um sargento ranzinza.

            - Será tanto mais mortificante para a Sra. Verdurin - disse Brichot se ele "some" ainda esta noite, quando nossa amável anfitriã recebe para jantar, justamente pela primeira vez, os vizinhos que alugaram La Raspeliere, o marquês e a marquesa de Cambremer.

            - Esta noite, o marquês e a marquesa de Cambremer! - gritou Cottard. - Mas eu não sabia absolutamente nada. Naturalmente sabia, como todos vocês, que eles deveriam vir um dia, mas não imaginava que estivesse tão próximo. Diabos! - disse ele, voltando-se para mim: que foi que lhe disse: a princesa Sherbatoff, o marquês e a marquesa de Cambremer. - E depois de ter repetido esses nomes, embalando-se com sua melodia: - Bem vê que atiramos bem. Não importa -disse ele -, para quem está começando, o senhor acerta em cheio. Vai ser um espetáculo brilhante. - E, voltando-se para Brichot, acrescentou: - A Patroa deve estar furiosa. Já é hora de chegarmos para lhe dar auxílio. -

            Desde que a Sra. Verdurin estava na Raspeliere, afetava, diante dos fiéis, estar de fato na obrigação e no desespero de convidar uma vez os seus proprietários. Assim, dizia, teria melhores condições para o ano seguinte, e não o fazia senão por interesse. Mas pretendia ter tamanho horror, achar uma tal monstruosidade um jantar com pessoas que não fossem do pequeno grupo, que o adiava sempre. Aliás, se o jantar a assustava um pouco pelos motivos que ela proclamava, exagerando-os, por outro lado, encantava-a por razões de esnobismo que ela preferia calar. Portanto, era meio sincera, julgava o pequeno clã como algo de tão único no mundo, um desses conjuntos que levam séculos para que se constitua outro idêntico, que tremia à idéia de ver nele introduzidas essas pessoas provincianas, que ignoravam a Tetralogia e os Mestres, que não saberiam sustentar sua parte no concerto da conversação geral e eram capazes, comparecendo à casa da Sra. Verdurin, de destruir uma das famosas quartas-feiras, obras-primas incomparáveis e frágeis, semelhantes aos cristais de Veneza que uma nota desafinada basta para quebrar.

            - Além disso, devem ser o que há de mais anti-militaristas - dissera o Sr. Verdurin.

            - Ah, isso, por exemplo, pouco me importa, já faz muito tempo que falam nessa história -respondera a Sra. Verdurin, que, sinceramente dreyfusista, desejaria no entanto encontrar, na preponderância de seu salão dreyfusista, uma recompensa mundana. Ora, o dreyfusismo triunfava politicamente, mas não entre os mundanos. Labori, Reinach, Picquart e Zola continuavam sendo, para a gente mundana, uns traidores que só podiam afastá-los do pequeno núcleo. Assim, depois dessa incursão na política, a Sra. Verdurin fazia questão de regressar à arte. Aliás, d'Indy e Debussy não estavam "mal" no Caso Dreyfus?

            - No que tange ao Caso, não teríamos mais que colocá-los junto de Brichot - disse ela, pois o universitário era o único dos fiéis que tomara o partido do Estado-Maior, o que o fizera baixar muito na estima da Sra. Verdurin. - Não se é obrigado a falar eternamente do Caso Dreyfus. Não, a verdade é que os Cambremer me aborrecem. -

            Quanto aos fiéis, tão excitados pelo desejo inconfesso que tinham de conhecer os Cambremer como iludidos pelo aborrecimento representado que a Sra. Verdurin dizia sentir em recebê-los, retomavam todos os dois conversando com ela, os frágeis argumentos que ela própria invocava - favor desse convite, buscavam torná-los irresistíveis.

            - Decida-se de uma vez - repetia Cottard -, e terá as concessões quanto ao aluguel, eles que pagarão o jardineiro, e os senhores poderão utilizar-se do prado.

            - Tudo isso bem vale a pena de aborrecer-se por uma noite. Só falo disso no interesse - acrescentava, conquanto o coração lhe palpitasse uma vez, quando, no carro da Sra. Verdurin, havia cruzado com o da velha Sra. de Cambremer na estrada, e sobretudo ao ser humilhado pelos empregados da estrada de ferro, quando se encontrava perto do marquês, na estação. Por seu turno, os Cambremer, vivendo realmente muito longe do movimento mundano para poderem sequer suspeitar que certas mulheres elegantes falavam da Sra. Verdurin com alguma consideração, imaginavam que este era uma pessoa que só podia conhecer boêmios, não era nem mesmo intimamente casada, e que, no tocante a pessoas "bem nascidas", não veria nunca senão a eles, Cambremer. Resignavam-se a jantar na casa dela, ao menos para estarem em bons termos com uma locatária cujo retorno esperavam por numerosas temporadas, sobretudo desde que tinham sabido, no mês anterior, que ela havia acabado de herdar tantos milhões. Era em silêncio e sem gracejos de mau gosto que eles se preparavam para o dia falar. Os fiéis já não esperavam que eles comparecessem algum dia, pois a Sr. Verdurin tantas vezes fixara, diante deles, a data sempre mudada. Essas falsas resoluções objetivavam não só fazer ostentação do tédio que lhe provocava esse jantar, como também manter em suspense os membros do pequeno grupo que residiam nas vizinhanças e eram às vezes tentados a abandoná-la. Não que a Patroa adivinhasse que o "grande dia" lhes era tão agradável quanto a si própria, mas porque, tendo-os persuadido que tal jantar era para ela a mais terrível das maçadas, podia apelar para o seu devotamento.

            - Vocês não vão me deixar sozinha frente a frente com esses chineses! Pelo contrário, é preciso que sejamos em grande número para suportar o tédio. Naturalmente, não poderemos falar coisa alguma sobre o que nos interessa. Que querem, será uma quarta-feira malograda!

            - Com efeito - respondeu Brichot, dirigindo-se a mim-, creio que a Sra. Verdurin, que é muito inteligente e põe muita coqueteria na organização de suas quartas, não fazia questão de receber esses fidalgotes de grande linhagem mas sem espírito. Não pôde resolver-se a convidar a velha marquesa, mas resignou-se ao filho e à nora.

            - Ah, veremos a marquesa de Cambremer? - indagou Cottard com um sorriso em que julgou dever pôr um tanto de lascívia e afetação, embora ignorasse se a Sra. Cambremer era bonita ou não. Mas o título de marquesa lhe despertava imagens prestigiosas e galantes.

            - Ah! Conheço-a - informou Ski, que a encontrara uma vez quando passeava com a Sra. Verdurin.

            - Não a conhece no sentido bíblico? - perguntou o doutor, deslizando um olhar ambíguo por baixo do seu lorgnon, pois esse era um de seus gracejos favoritos.

            - Ela é inteligente - disse-me Ski. - Naturalmente continuou, vendo que eu ficava calado e acentuando, a sorrir, cada palavra -, ela é e não é inteligente; falta-lhe instrução, é frívola, mas tem o instinto das coisas belas. Ficará calada, mas jamais dirá uma asneira. E, além disso, possui uma linda coloração. Seria divertido pintar o seu retrato - acrescentou, entrecerrando os olhos como se a estivesse contemplando a posar diante dele. Como eu pensava exatamente o contrário daquilo que Ski exprimia com tantas nuanças, contentei-me em dizer que ela era a irmã de um engenheiro muito distinto, o Sr. Legrandin.

            - Pois bem, como vê, será apresentado a uma bela mulher - disse-me Brichot e nunca se sabe o que pode resultar daí. Cleópatra não era sequer uma grande dama, era a mulherzinha, a mulherzinha inconsciente e terrível do nosso Meilhac, e veja as conseqüências, não só para aquele palerma do Marco Antônio, mas também para o mundo antigo.

            - Já fui apresentado à Sra. de Cambremer -respondi.

            - Ah! Mas então vai se achar em terreno conhecido.

            - E tanto mais satisfeito ficarei em vê-la, pois ela me prometeu uma obra do antigo cura de Combray sobre todos os lugares desta região - respondi -, e vou poder lembrar-lhe sua promessa. Interesso-me por esse padre e também pelas etimologias.

            - Não confie muito nas que ele indica - observou Brichot; - a obra, de que existe um exemplar em La Raspeliere, e que me diverti em folhear, nada me diz que valha a pena; está repleta de erros. Vou lhe dar um exemplo. A palavra bricq entra na formação de uma grande quantidade de nomes de lugares das nossas redondezas. O bom eclesiástico teve a idéia, mais ou menos extravagante, de que ela provém de briga, altura, lugar fortificado. Ele a vê já nas povoações célticas, Latobriges, Nemetobriges, etc., e a segue até em nomes como Briand, Brion, etc. Para voltar à região que temos o prazer de atravessar neste momento com o senhor, Bricquebosc significaria o bosque da altitude; Bricqueville, a habitação da altura; Bricquebec, onde vamos parar em breve antes de chegar a Maineville, a altura perto do regato. Ora, não se trata absolutamente disso, pela razão de que bricq é a velha palavra norueguesa que significa simplesmente ponte. Assim também como fleur, que o protegido da Sra. de Cambremer se dá um trabalho infinito para ligar ora às palavras escandinavas floi, fio, ora aos termos irlandeses ae e aer, é, pelo contrário, sem dúvida nenhuma, o fjord dos dinamarqueses e significa porto. Da mesma forma, o excelente padre julga que a estação de Saint-Martin-le-Vêtu, vizinha a La Raspeliere, signo da Saint-Martin-le-Vieux (vetos). É certo que o vocábulo vieux desempenhou grande papel na toponímia desta região. Em geral, vieux procede de vadtel* e significa um vau, como no lugar chamado os Vieux. É o que os angloa chamavam ford (Oxford, Hereford). Mas, no caso particular, vieux provém não de vetus, mas de vastatus, lugar devastado e nu. Perto daqui, os senhores têm Sottevast, o vast de Setold, Brillevast, o vast de Berold. Tenho tanto mais certeza do erro do cura, pois antigamente Saint-Martin-le-Vieux se chamava Saint-Martin-du-Gast e até Saint-Martin-de-Terregate. Ora, o v e o g nessas palavras são a mesma letra. Diz-se devastar, mas também desgastar Jacheres e gâtines (do alto alemão wastinna) têm esse mesmo sentido; Terregate, portanto, é terra vasta. Quanto a Saint-Mars, outrora (honni soil qui mal y pense!) Saint-Merd, é Saint-Medardus, que ora é Saint-Médard; Saint-Mard, Saint-Marc, Cinq-Mars e até Dammas. Aliás, não convém esquecer que, bem perto daqui, lugares que trazem este mesmo nome de Mars atestam simplesmente uma origem pagã (o deus Marte) que permanece viva nesta região, mas que o santo homem se recusa a reconhecer. As colinas dedicadas aos deuses são especialmente bem numerosas, como a montanha de Júpiter (Jeumont). O seu cura não quer ver nada disso e, em compensação, por toda parte onde o cristianismo deixou vestígios, estes lhe escapam. Prolongou sua viagem até Loctudy, nome bárbaro, segundo ele, ao passo que se trata de Locus sancti Tudeni, e também não adivinhou, em Sammarcoles, Sanctus Martialis. O seu cura

-continuou Brichot, vendo que eu estava interessado em ouvir as palavras terminadas em hon, honre, holm do termo holl (hollus), colina, ao passo que elas provêm do norueguês holm, ilha, que o senhor bem conhece em Estocolmo, e que se espalhou em toda esta região: Houlme, Engohomme, Tahoume, Robehomme, Néhomme, Quettehou, etc. -

            Esses nomes me fizeram pensar no dia em que Albertine quisera ir a Amfreville-la-Bigot (do nome dos deuses de seus senhores sucessivos, me disse Brichot), e onde ela a seguir me propusera jantarmos juntos em Robehomme. Quanto a Montmartin, íamos passar por ela dentro de alguns instantes.

            - Néhomme não fica perto de Carquethuit e de Clitourps? -perguntei.

            - Perfeitamente. Néhomme é o holm, a ilha ou península do famoso visconde Nigel, cujo nome permaneceu igualmente em Néville. Carquethuit e Clitourps, de que o senhor fala, são, para o protegido da Sra. de Cambremer, ocasião de cometer outros erros. Sem dúvida, ele vê muito bem que carque é uma igreja, a Kirsche dos alemães. O senhor conhece Querqueville, Carquebut, para não falar em Dunquerque. Pois então seria preferível que parássemos nesta famosa palavra dun, que para os celtas significava uma elevação. E isso o senhor há de encontrar em toda a França. Seu abade se hipnotiza diante de Duneville. Mas no Eure-et-Loir teria encontrado Châteaudun; Dun-le-Roi, no Cher; Duneau, no Sarthe; Dun, no Ariege; Dune-les-Places, na Nievre, etc., etc.. Este dun fá-lo cometer um erro curioso no que concerne a Douville, onde desceremos e onde nos esperam os carros confortáveis da Sra. Verdurin. Douville, em latim donvilla, diz ele. De fato, Douville está ao sopé de grandes elevações. O seu cura, que sabe tudo, ainda assim percebe que cometeu um engano. Com efeito, leu, num antigo livro de registros, Domvilla. Então ele se retrata; Douville, segundo ele, é um feudo do abade, domino abbati, do monte Saint-Michel. Com isso, regozija-se, o que é bem estranho quando se pensa na vida escandalosa que, desde o capitulário de Saint-Clair-sur-Epte, levavam no monte Saint-Michel, e que não seria mais extraordinário do que ver o rei da Dinamarca suserano de todo este litoral, onde ele mandava celebrar muito mais o culto de Odin do que o do Cristo. Por outro lado, a suposição de que o n foi mudado para u não me choca e exige menos alteração do que o muito correto Lyon, que também deriva de dun (Lugdunum). Mas enfim, o abade se engana. Douville nunca foi Donville, e sim Doville, Eudonis Villa, a aldeia de Eudes. Douville se chamava antigamente Escalecliff, a escada da vertente. Por volta de 1233, Eudes le Bouteiller, senhor de Escalecliff, partiu para a Terra Santa; no momento da partida, mandou entregar à Igreja a abadia de Blanchelande. Troca de belos gestos: a aldeia tomou o seu nome, de onde atualmente Douville. Mas acrescento que a toponímia, em que aliás sou bastante ignaro, não é uma ciência exata; se não tivéssemos esse testemunho histórico, Douville poderia muito bem provir de Ouville, ou seja, as Águas. As formas em ai (Ai gues-Mortes), de aqua, mudam-se amiúde em eu, em ou. Ora, bem perto de Douville havia águas renomadas. Imagine então como estaria contente o cura por encontrar ali algum traço cristão, ainda que essa região pareça ter sido bastante difícil para evangelizar, visto que foi necessário que insistissem nela, sucessivamente, Santo Ursal, São Gofroi, São Barsanore, São Laurent de Brévedent, o qual por fim passou o encargo para os monges de Beaubec. Porém quanto a tuit, o autor se engana; vê aí uma forma de toft, cabana, como em Criquetot, Ectot, Yvetot, ao passo que se trata de thveit, roçado, arroteamento, como em Braquetuit, Le Thuit, Regnetuit, etc. Da mesma forma, se ele reconhece em Clitourps o thorp normando, que significa aldeia, quer que a primeira parte do nome derive de clivus, vertente, quando na realidade provém de cliff, rochedo. Mas seus erros mais grosseiros decorrem menos de sua ignorância do que de seus preconceitos. Por bom francês que a gente seja, devemos negar a evidência e tomar Saint-Laurent-en-Bray pelo sacerdote romano tão conhecido, quando se trata de São Lourenço O'Toole, arcebispo de Dublin? Porém, mais que o sentimento patriótico, o preconceito religioso do seu amigo fá-lo cometer graves deslizes. Assim, o senhor tem, longe dos nossos anfitriões de La Raspeliere, dois Montmartin, Montma - sur-Mer e Montmartin-en-Graignes. Quanto a Graignes, o bom cura não cometeu erro, viu perfeitamente que Graignes, em latim grania, em grego crer* significa charco, pântano; quantos Cresmays, Croen, Grenneville, Lengrorr não se poderiam citar? Mas, quanto a Montmartin, o seu pretenso lingüista quer absolutamente que se trate de paróquias dedicadas a São Martin. Fundamenta-se em que o santo é o padroeiro da cidade, mas não se dá conta de que só posteriormente foi tomado como tal; ou melhor, está cego por ódio ao paganismo; não quer ver que se teria dito Mont-Saint-Martin como se diz Mont-Saint-Michel, se se tratasse de São Martinho, ao passo que o nome de Montmartin se aplica de modo bem mais pagão a templos consagrados ao deus Marte, templos dos quais, é verdade, não possuímos outros vestígios, mas que a inconteste presença da vizinhança de vastos acampamentos romanos tornaria mais verossímeis, mesmo sem o nome de Montmartin, que elimina qualquer dúvida. O senhor vê que o livrinho que vai encontrar em La Raspeliere não é dos mais bem-feitos.

            - Objetei que em Combray, o cura nos ensinara com freqüência etimologias interessantes. Provavelmente, estava mais seguro em seu terreno, a viagem à Normandia o terá desambientado.

            - E não o terá curado - acrescentei - pois chegara neurastênico e partiu com reumatismo.

            - Ah! É culpa de neurastenia. Ele caiu da neurastenia na filologia, como teria dito meu boop mestre Poquelin. Diga então, Cottard, acha que a neurastenia possa ter uma influência nefasta sobre a filologia, a filologia uma influência calmante sobre a neurastenia, e a cura da neurastenia conduzir ao reumatismo?

[Alusão ao médico de Argan, em O Doente Imaginário, de Moliere. (N. do T)]

            - Perfeitamente, o reumatismo e a neurastenia são duas formas variantes do neurartritismo. Pode-se passar de uma a outra por metástase.

            - O eminente professor - disse Brichot - exprime-se, Deus me perdoe, num francês tão mesclado de latim e de grego como o poderia ter feito o próprio St. Purgon, de molieresca memória! Quanto a mim, meu tio, quero dizer nosso Sarcey nacional... -

            Porém não pôde terminar sua frase. O professor acabava de ter um sobressalto e dar um berro:

            - Caramba! - exclamou passando enfim à linguagem articulada - Já passamos por Maineville (hbl hê!) e até por Renneville. -

            Acabava de verificar que o trem parava em Saint-Mars-le-Vieux, onde quase todos os passageiros desciam.

            - No entanto, eles não devem ter queimado a parada. Não prestamos atenção, falando nos Cambremer.

            - Escute, Ski, olhe, vou lhe dizer "uma boa coisa" - disse Cottard, que se agradara dessa expressão utilizada em certos ambientes médicos. - A princesa deve estar no trem; não nos terá visto e deve ter subido para outro compartimento. Vamos à sua procura.

            - Contanto que tudo isso não vá trazer encrenca!

            E levou todos nós em busca da princesa Sherbatoff. Encontrou-a no canto de um vagão vazio, lendo La Revue des Deux-Mondes. Com receio de respostas grosseiras, adquirira há muitos anos o hábito de manter-se em seu lugar, ficar no seu cantinho, na vida como no trem, e de esperar para estender a mão a quem a cumprimentasse. Continuou a ler quando os fiéis entraram no vagão. Reconheci-a logo; essa mulher, que podia ter perdido sua posição social, mas nem por isso deixava de ser de elevado nascimento, que em todo caso era a pérola de um salão como o dos Verdurin, era a dama que, no mesmo trem, eu julgara na antevéspera poder ser uma dona de bordel. Sua personalidade social tão incerta imediatamente se me tornou clara quando soube o seu nome, como quando, após ter sofrido sobre uma adivinhação, descobre-se enfim a palavra que torna evidente tudo o que permanecia obscuro e que, para as pessoas, é o nome. Saber, dois dias após, que ela era a pessoa a cujo lado viajamos de trem, sem ter conseguido descobrir o seu nível social, é uma surpresa muito mais divertida do que ler na edição seguinte de uma revista a palavra-chave do enigma proposto no número anterior. Os grandes restaurantes, os cassinos, os "tortinhos" são o museu das famílias desses enigmas sociais.

            - Princesa, nós a perdemos em Maineville! Permite que tomemos lugar em seu compartimento?

            - Mas como não? - disse a princesa, que, ouvindo Cottard falar-lhe, só então ergueu da revista os olhos, que, como os do Sr. de Charlus, embora mais suaves, viam muito bem as pessoas de cuja presença ela parecia não tomar conhecimento. Cottard, pensando que o fato de ter sido convidado com os Cambremer, era para mim uma recomendação suficiente, ao fim de um instante tomou a decisão de me apresentar à princesa; esta se inclinou com extrema polidez, mas parecia pela primeira vez ouvir meu nome.

            - Diabo! - exclamou Cottard. - Minha mulher se esqueceu de trocar os botões do meu colete branco. Ah, as mulheres! Nunca pensam em nada. Jamais se case, está vendo? - disse-me ele. E, como este era um dos gracejos que julgava convenientes quando não se tinha o que dizer, olhou a princesa e os demais fiéis com o rabo do olho; estes, porque ele era professor e acadêmico, sorriram, admirando o seu bom humor e sua ausência de pose. A princesa nos informou que o jovem violinista já fora encontrado. Ficara de cama na véspera por causa de uma enxaqueca, mas compareceria à noite e levaria consigo um velho amigo de seu pai, que havia encontrado em Doncieres. A princesa ficara sabendo da nova pela Sra. Verdurin, com quem almoçara de manhã. - Disse-nos com uma voz breve, onde o rolar dos rr do acento russo era suave meio enrolado no fundo da garganta, como se fossem II e não rr.

            - Ah, senhora almoçou com ela esta manhã - disse Cottard à princesa, mas olhando para mim, pois essas palavras tinham por finalidade mostrar o quanto a princesa era íntima da Patroa. - A princesa, sim, é que é uma fiel!

            - Siri, gosto desse pequeno cilculo, inteligente, agladável, nada mau, muito simples, nada esnobe, e onde se tem espilito até a ponta das unhas.

            - Devo ter perdido a minha passagem, não a encontro - exclamou Cottard; aliás sem se inquietar além da medida. Sabia que em Douville, onde os landôs iam esperar-nos, o empregado o deixaria passar e nem por isso, cumprimentaria menos rasgadamente, a fim de dar, com tal saudação, explicação de sua indulgência, a saber, que ele reconhecera perfeitamente em Cottard um habitué dos Verdurin.

            - Não me levarão até a polícia por causa disso - concluiu o doutor.

            - O senhor dizia haver perto daqui umas águas famosas? - perguntei a Brichot. - Como é que se sabe?

            - O nome da próxima estação o atesta, entre muitos outros testemunhos. Ela se chama Fervaches.

            - Não compleendo bem o que ele quel dizel - enrolou a princesa num tom em que me teria dito, por gentileza:

            - Ele nos incomda, não é mesmo?

            - Mas, princesa, Fervaches quer dizer águas ferventes, fervida aquae... Mas, a propósito do jovem violinista - continuou Brichot - eu me esquecia de lhe dizer a grande novidade, Cottard. Sabia que o nosso pobre amigo Dechambre, o antigo pianista favorito da Sra. Verdurin, acaba de morrer? É terrível.

            - Ele ainda era jovem - respondeu Cottard -, mas devia cuidar do fígado, devia estar com alguma porcaria ali, andava com uma cara horrível faz algum tempo.

            - Mas não era assim tão jovem - disse Brichot. - No tempo em que Elstir e Swann iam à casa da Sra. Verdurin, Dechambre já era uma notoriedade parisiense, e, o que é espantoso, sem ter recebido no estrangeiro o batismo do sucesso. Ah! Ele não era um adepto do Evangelho segundo são Barnum [ Alusão a T Barnum, charlatão americano, dono de um circo muito famoso.]

            - Mas o senhor está confundindo, ele não podia ir à casa da Sra. Verdurin naquela ocasião, pois ainda andava de fraldas. - Mas, a menos que minha velha memória seja infiel, parece-me que Dechambre tocava a Sonata de Vinteuil para Swann, quando esse clubman, de relações cortadas com a aristocracia, ainda não imaginava que viria a ser o príncipe consorte aburguesado da nossa Odette nacional. -

            - É impossível, a Sonata de Vinteuil foi tocada na casa da Sra. Verdurin muito tempo depois que Swann deixara de comparecer a ela - disse o doutor, que, como as pessoas que trabalham muito e julgam dever reter várias coisas que imaginam lhes serão úteis, esquecem muitas outras, o que lhes permite se extasiarem diante da memória de pessoas que nada têm para fazer. - O senhor está prejudicando suas relações, mas no entanto não tem o miolo mole -disse o doutor sorrindo.

            Brichot convenceu-se de que estava errado. O trem parou. Estávamos na Sogne. Este nome intrigava-me.

            - Como gostaria de saber o que significavam todos esses nomes - disse eu a Cottard,

            - Ora, pergunte a Brichot, ele talvez saiba.

            - Mas a Sogne é a Cegonha, Siconia - respondeu Brichot, a quem eu ardia por fazer perguntas acerca de muitos outros nomes.

            Esquecendo-se de que fazia questão do seu "canto", a Sra. Sherbatoff ofereceu-me amavelmente trocar de lugar comigo para que eu pudesse conversar melhor com Brichot, a quem desejava indagar sobre outras etimologias que me interessavam, e assegurou ser-lhe indiferente viajar na frente, atrás, de pé, etc. Permanecia na defensiva enquanto ignorava as intenções dos recém-chegados, mas, quando reconheceu que eles eram amáveis, buscou de todas as formas agradar a cada um. Por fim o trem parou na estação de Douville-Féterne, que, estando situada mais ou menos à mesma distância das aldeias de Féterne e de Douville, trazia seus dois nomes devido a essa particularidade.

            - Caramba! - exclamou o doutor Cottard, quando chegamos à barreira onde nos tomavam as passagens e mal fingindo só então perceber a coisa. - Não consigo encontrar o meu tíquete, devo tê-lo perdido. -

            Mas o empregado, tirando o seu casquete, garantiu que aquilo não tinha importância e sorriu respeitosamente.

            A princesa (dando explicações ao cocheiro, como o faria uma espécie de dama de honra da Sra. Verdurin, a qual, por causa dos Cambremer, não pudera comparecer à gare, o que aliás era raro que fizesse) levou-me consigo para um dos carros, assim como a Brichot. Para no outro subiram o doutor, Saniette e Ski.

            O cocheiro, embora muito jovem, era o principal cocheiro dos Verdurin, o único a ter verdadeiramente o título de cocheiro; levava-os a todos os passeios de dia, pois conhecia todos os caminhos, e de noite ia buscar e trazer de volta os fiéis. Era acompanhado por cocheiros extras (que ele próprio escolhia) para caso de necessidade. Era um rapaz excelente, sóbrio e despachado, mas com um desses rostos melancólicos em que o olhar muito fixo mostrava que por uma ninharia punha-se bilioso e até mesmo com idéias negras. Mas, naquele momento, sentia-se muito feliz, pois conseguira colocar o irmão, outro excelente modelo de homem, na casa dos Verdurin. Primeiro atravessamos Douville. Pequenos outeiros relvados desciam até o mar em amplas pastagens, às quais a saturação da umidade e o sal davam uma espessura, uma suavidade, uma viveza de tons extremamente As ilhotas e chanfraduras de Rivebelle, muito mais aproximadas aqui do que em Balbec, davam a essa parte do mar o aspecto, novo para mim, de plano em relevo. Passamos por pequenos chalés, quase todos alugados por pintores; tomamos por uma vereda onde vacas, em liberdade, tão assustadiças como nossos cavalos, nos barraram a passagem por dez minutos; nos metemos pela estrada.

            - Mas em nome dos céus - disse Brichot de repente -, voltemos ao pobre Dechambre; acham que a Sra. Verdurin sabe? Por acaso lhe disseram? -

            A Sra. Verdurin, como quase todas as pessoas da sociedade, justamente porque necessitava da sociedade dos outros, não pensava mais nelas nem um só dia depois de mortas, pois não mais podiam comparecer às quartas, nem aos sábados, nem jantar de chambre. E não se podia dizer do pequeno clã, que nisso era a imagem de todos os salões, que se compunha mais de mortos que de vivos, visto que, desde que alguém morria, era como se nunca houvesse existido. Mas, para evitar aborrecimento de ter de falar dos defuntos, e até de suspender os jantares devido a um luto, coisa impossível para a Patroa, o Sr. Verdurin fingia que a morte dos fiéis afetava de tal modo a esposa que, no interesse de sua saúde, não convinha falar nisso. Além disso, e talvez justamente porque a morte dos outros lhe parecia um acidente tão vulgar e definitivo, a idéia de sua própria morte lhe causava horror e ela evitava toda reflexão que pudesse relacionar-se com isto. Quanto a Brichot, como era um homem excelente, e perfeitamente iludido com o que o Sr. Verdurin dizia da esposa, receava para a amiga as emoções de semelhante desgosto.

            - Sim, ela sabe de tudo desde hoje de manhã - disse a princesa; não foi possível ocultar-lhe.

            - Ah, com mil diabos! - gritou Brichot. - Ah, deve ter sido um choque terrível, um amigo de vinte e cinco anos! Eis um que era dos nossos!

            - É claro, é claro, mas o que quer? - disse Cottard. - São circunstâncias sempre penosas; mas a Sra. Verdurin é uma mulher forte, mais cerebral ainda do que emotiva.

            - Não sou inteiramente da opinião do doutor - disse a princesa, a quem decididamente seu modo rápido de falar, seu acento murmurado, davam um aspecto a um tempo amuado e rebelde. - A Sra. Verdurin, sob uma aparência fria, esconde tesouros de sensibilidade. O Sr. Verdurin me disse que teve muito trabalho para impedir que ela fosse a Paris para a cerimônia fúnebre; foi obrigado a fazê-la acreditar que tudo se realizaria no campo.

            - Ah, diabo! Ela queria ir a Paris. Mas sei muito bem que é uma mulher de coração, talvez até de coração demais. Pobre Dechambre! Como dizia a Sra. Verdurin há menos de dois meses: "Perto dele, Planté, Paderewski, e até Risler, nada fica de pé." Ah! Ele pôde afirmar, mais justamente do que aquele insignificante do Nero, que achou meios de lograr a própria ciência alemã: Quais artifex pereo!'' Mas ele, Dechambre, pelo menos deve ter morrido no cumprimento do sacerdócio, em odor de devoção beethoveniana; e corajosamente, não tenho dúvidas; em boa justiça, esse oficiante da música alemã teria merecido morrer celebrando a Missa em ré. Porém, de outra parte, era homem de acolher a morte com um trinado, pois esse intérprete de gênio encontrava às vezes, em sua ascendência de natural da Champagne aparisianado, audácias e elegâncias de garde-française.[“Meu artista morre comigo!". Segundo Suetónio, em suas Vidas dos Doze Césares, palavras do imperador romano Nero, ao ver que sua morte era inevitável.]

            Das alturas em que já estávamos, o mar não mais aparecia, assim como de Balbec, semelhante a ondulações de montanhas sublevadas, mas, ao contrário, como aparece de um pico, ou de uma estrada que contorna a montanha, uma geleira azulada, ou um planalto ofuscante, situados a uma altitude inferior. O recorte dos redemoinhos parecia imobilizado e ter desenhado para sempre os seus círculos concêntricos; e até o esmalte do mar, que insensivelmente mudava de cor, tomava, para o fundo da baía, onde se cavava um estuário, a brancura azulada de um leite onde pequenos barcos negros, que não andavam, pareciam presos como moscas. Achava eu que seria impossível descobrir em algum lugar um quadro mais amplo. Mas a cada volta uma parte nova se lhe acrescentava e, quando chegamos ao posto alfandegário de Douville, o espigão de rocha, que até então nos ocultara metade da baía, recolheu-se, e de súbito vi à minha esquerda um golfo tão profundo como aquele que tivera até o momento diante dos olhos, mas alterando-lhe as proporções e multiplicando-lhe a beleza. Naquele ponto tão elevado, o ar se tornava de uma vivacidade e de uma pureza que me embriagavam. Eu amava os Verdurin; que eles nos houvessem mandado um carro me parecia de uma bondade enternecedora. Desejaria beijar a princesa. Disse-lhe que jamais vira algo tão belo. Ela declarou amar também aquela região mais que qualquer outra. Mas eu percebia perfeitamente que para ela, como para os Verdurin, o importante era não contemplá-la como turistas, mas ali fazer boas refeições, receber uma sociedade que lhes agradasse, escrever cartas, ler, em suma viver, deixando passivamente a sua beleza banhá-los, em vez de fazerem dela o objeto de suas preocupações.

            Na alfândega, tendo o carro ali parado por um instante àquela tamanha altitude acima do mar, que, como de um pico, a vista do abismo azulado quase dava vertigens, abri a janela; o rumor, distintamente ouvido de cada onda que se quebrava, possuía, em sua doçura e nitidez, algo de sublime. Pois não era como um índice de medida que, invertendo nossas impressões habituais, nos mostra que as distâncias verticais podem, assimiladas às distâncias horizontais, ao contrário da representação que nosso espírito faz habitualmente delas; e que, aproximando assim de nuvens do céu, não são grandes; que são até menores para um rumor que as franquezas como fazia o daquelas pequenas ondas, pois o meio que precisa atravessar é mais puro? E com efeito, se recuamos apenas dois metros para trás da alfândega, não distinguimos mais esse rumor das ondas, a que duzentos metros de rocha não tinham roubado sua delicada, minuciosa e suave precisão. Dizia comigo que minha avó teria por ele aquela admiração que lhe inspiravam todas as manifestações da natureza ou da arte, em cuja simplicidade se lê a grandeza. Sentia-me enternecido pelo fato de que os Verdurin nos tivessem mandado buscar na gare. Disse-o à princesa, que pareceu achar que eu exagerava demais uma simples cortesia. Sei que mais tarde confessou a Cottard que me julgava muito entusiasta; ele lhe respondeu que eu era emotivo em excesso e que precisaria de calmantes e de fazer retiro. Eu mostrava à princesa cada árvore, cada casinha desabando sob suas casas; fazia com que admirasse tudo, gostaria de apertar ela própria contra meu coração. Disse-me ela que via que eu era dotado para a pintura, que deveria desenhar, que estava surpresa de que ainda não me houvessem dito. E confessou que de fato aquela região era pitoresca. Atravessamos a encarapitada no alto, a pequena aldeia de Englesqueville (Engleberti at disse-nos Brichot).

            - Mas tem certeza de que vai haver o jantar desta noite, princesa, apesar da morte de Dechambre? - acrescentou ele, sem pensar que a vinda dos carros em que estávamos já era uma resposta.

            - Sim! - disse a princesa -, o Sr. Veldulin até fez questão de que não fosse adiado, justamente para impedir sua mulher de "pensar". E depois, passados tantos anos em que ela nunca deixou de receber às quartas-feiras, essa mudança nos seus hábitos poderia impressioná-la. Está muito nervosa atualmente. O Sr. Verdurin estava particularmente feliz porque os senhores vinham jantar esta noite, pois sabia que isso seria uma grande distração para a Sra. Verdurin -disse a princesa, esquecendo o seu fingimento de não ter ouvido falar em mim. - Creio que os senhores farão bem em não falar de nada diante da Sra. Verdurin - acrescentou a princesa.

            - Ah! A senhora faz muito bem em avisar-me - respondeu ingenuamente Brichot: Transmitirei a recomendação a Cottard. -

            O carro parou por um instante. Tornou a partir, mas o ruído que as rodas faziam na aldeia havia cessado. Tínhamos entrado na aléia de honra de La Raspeliere, onde o Sr. Verdurin nos esperava no patamar.

            - Fiz bem em pôr o smoking - disse ele, constatando com prazer que os fiéis trajavam o seu - visto que recebo honra tão elegantes. -

            E, como eu me desculpasse pelo meu jaquetão:

            - Ora, é perfeito. Aqui são jantares entre camaradas. Eu poderia oferecer-lhe um de meus smokings, mas não lhe serviria. -

            O shake-hand cheio de emoção que, ao penetrar no vestíbulo da La Raspeliere, e à maneira de condolências pela morte do pianista, Brichot deu ao Patrão não causou nenhum comentário da parte deste. Falei-lhe da minha admiração por aquela terra.

            - Ah! Tanto melhor, e o senhor não viu nada, nós lhe mostraremos. Por que não passa algumas semanas aqui? O ar é excelente. -

            Brichot receava que seu aperto de mão não tivesse sido compreendido.

            - Pois bem! Esse pobre Dechambre! - disse, mas à meia-voz, temendo que a Sra. Verdurin não estivesse longe.

            - É horrível - respondeu alegremente o Sr. Verdurin.

            - Tão jovem - continuou Brichot. Irritado em perder tempo com essas inutilidades, o Sr. Verdurin replicou num tom apressado e com um gemido extremamente agudo, não de desgosto, mas de impaciência irritada:

            - Pois bem, sim, mas o que é que o senhor quer, não podemos fazer nada contra isso, não serão nossas palavras que haverão de ressuscitá-lo, não é mesmo? - E, voltando-lhe a ternura com a jovialidade: - Vamos, meu caro Brichot, largue depressa as suas coisas. Temos uma bouillabaisse que não pode esperar. Principalmente, em nome do céu, não vá falar de Dechambre à Sra. Verdurin! O senhor sabe que ela oculta muito o que sente, mas tem uma verdadeira doença de sensibilidade. Não, mas eu lhe juro que, quando soube que Dechambre estava morto, quase chorou - disse o Sr. Verdurin num tom profundamente irônico. Ouvindo-o, dir-se-ia ser necessária uma espécie de loucura para lamentar a morte de um amigo de trinta anos, e, por outro lado, a união perpétua do Sr. Verdurin com a esposa não ia, da parte dele, sem que ele sempre a julgasse, e que ela freqüentemente o irritava.

            - Se lhe falar nele, ainda vai acabar doente. É deplorável, três semanas depois de sua bronquite. Nesses casos, eu é que sou o enfermeiro. Compreenda que evito tais situações. Aflija-se no íntimo com o destino de Dechambre, o quanto quiser. Pense nisso, mas não fale no assunto. Eu gostava de Dechambre, mas não pode me querer mal por gostar ainda mais da minha mulher. Olhe, aí está Cottard, pode lhe perguntar. -

            E, de fato, ele sabia que um médico da família sabe prestar pequenos serviços, como, por

exemplo, prescrever que não é preciso sentir desgostos. Cottard, dócil, dissera à Patroa:

            - Agite-se desse modo, e amanhã me fará 39 graus de febre como teria dito à cozinheira: "Amanhã, você vai me preparar miúdos de vitela." À falta de curar, a medicina se ocupa em mudar o sentido dos verbos e dos pronomes.

            O Sr. Verdurin ficou feliz em constatar que Saniette, apesar das respostas grosseiras que havia sofrido na antevéspera, não desertara o pequeno núcleo. De fato, a Sra. Verdurin e seu marido tinham adquirido, na ociosidade, instintos cruéis a que não mais bastavam as grandes circunstâncias, muito raras. De fato, haviam conseguido indispor Odette com Swann, Brichot com a amante. Era claro que recomeçariam com outros. Na ocasião não se apresentava todos os dias. Ao passo que, devido à sua sensibilidade fremente e à sua timidez receosa e logo assustada, Saniette lhes oferecia um bode expiatório cotidiano. Assim, de medo que ele abandonasse, tinham o cuidado de convidá-lo com palavras amáveis e persuasivas, como fazem no liceu os veteranos e no regimento os antigos, em relação a um calouro a que desejam aliciar para agarrá-lo, com o fim único de o lisonjear e então pregar-lhe peças, quando ele não mais poderá escapar.

            - Principalmente - lembrou à Brichot Cottard, que não ouvira o Sr. Verdurin motus [mudo] diante da Sra. Verdurin.

            - Não tenha receio, Cottard, está lidando com um sábio, como diz Teócrito. Além disso, o Sr. Verdurin tem razão; para que servem nossos queixumes? - acrescentou; pois, capaz de assimilar as formas verbais e as idéias que elas lhe traziam; não tendo porém finura, admirara nas palavras do Sr. Verdurin o mais corajoso estoicismo. - Não importa, é um grande talento que desaparece.

            - Como, ainda estão falando de Dechambre? - indagou o Sr. Verdurin, que nos havia precedido e que, vendo que não o seguíamos, voltara para trás - Escute - disse ele a Brichot -, não é preciso exagerar em nada. Não é porque está morto que devemos transformá-lo no gênio que ele não era. Está entendido que ele tocava bem, estava principalmente bem adaptado aquele transplantado, não existe mais. Minha mulher entusiasmou-se por ele e foi a sua fama. Sabem como ela é. Direi mais, no interesse mesmo de sua reputação ele morreu no momento adequado, no ponto, como as lagostas de Caen, grelhadas conforme as receitas incomparáveis de Pampille, vão-se, espero (a menos que se eternizem com suas jeremíadas neste casbahaterto a todos os ventos). Não há de querer, no entanto, que todos nós rebentemos porque Dechambre está morto, e ainda por cima quando, há mais de um ano, via-se obrigado a fazer escalas antes de dar um concerto para reencontrar momentaneamente, bem momentaneamente, a sua agilidade. Aliás, irão ouvir esta noite, ou pelo menos encontrar, pois esse velhaco abandona muitas vezes, após o jantar, a arte pelas cartas, alguém que é um artista diferente de Dechambre, um rapazinho que minha mulher descobriu (como tinha descoberto Dechambre, e Paderewski, e o resto): Morel. Ele ainda não chegou, esse bugre. Vou ser obrigado a enviar um carro para esperar o último trem. Vem com um velho amigo de família com quem se encontrou a que o mata de aborrecimento, mas sem o qual, para não ter queixas do pai, seria obrigado a ficar em Doncieres para lhe fazer companhia: o barão de Charlus.

            Os fiéis entraram.

            O Sr. Verdurin, tendo ficado para trás comigo, enquanto eu me desfazia de minhas coisas, tomou-me pelo braço de brincadeira, como faz num jantar o dono da casa que não tem convidada para lhe oferecer o braço:

            - Fez boa viagem?

            - Sim, o Sr. Brichot ensinou-me coisas que me interessaram muito - disse eu, pensando nas etimologias, e porque ouvira dizer que os Verdurin sentiam muita admiração por Brichot.

            - Ficaria espantado se ele não lhe tivesse ensinado coisa alguma - disse o Sr. Verdurin; - é um homem tão apagado, que pouco fala das coisas que sabe. -

            Esse cumprimento não me pareceu muito justo.

            - Ele tem um ar encantador - disse eu.

            - Requintado, delicioso, nada de coisas malfeitas, fantasista, leve, minha mulher o adora, eu também! - respondeu o Sr. Verdurin num tom exagerado e como se recitasse uma lição. Só então compreendi que o que me dissera de Brichot era irônico. E me perguntei se o Sr. Verdurin, desde os tempos antigos de que ouvira falar, já não havia se livrado da tutela da mulher.

            O escultor ficou muito espantado ao saber que os Verdurin consentiam em receber o Sr. de Charlus. Ao passo que no faubourg Saint-Germain, onde o Sr. de Charlus era tão conhecido, jamais se falava dos seus costumes (ignorados da maioria, objeto de dúvida da parte de outros que preferiam acreditar em amizades exaltadas, mas platônicas, em imprudências e, por fim, cuidadosamente dissimulados pelos poucos bem informados, que davam de ombros quando alguma Gallardon malévola arriscava uma insinuação); tais costumes, conhecidos apenas por alguns íntimos, eram, ao contrário, diariamente censurados longe do meio em que ele vivia, como certos tiros de canhão que a gente só escuta após a interferência de uma zona de silêncio. Aliás, nesses meios burgueses e artísticos, onde ele passava por ser a própria encarnação da inversão sexual, sua grande posição mundana e suas altas origens eram totalmente ignoradas, por um fenômeno análogo ao que faz com que, entre o povo romeno, o nome de Ronsard seja conhecido como o de um grão-senhor, ao passo que sua obra poética é desconhecida. Mais ainda: na Romênia, a nobreza de Ronsard repousa num erro. Da mesma forma, se, no mundo dos pintores e dos comediantes, o Sr. de Charlus tinha tão má reputação, isto se dava porque o confundiam com um certo conde Leblois de Charlus, com quem não tinha o menor parentesco, ou era um parente muito distante, e que fora detido, talvez por engano, numa batida de polícia que ficou famosa. Em suma, todas as histórias que contavam acerca do Sr. de Charlus aplicavam-se ao falso. Muitos profissionais juravam ter tido relações com o Sr. de Charlus e o faziam de boa-fé, julgando que o falso Charlus era o verdadeiro, e o falso talvez favorecesse, meio por ostentação de nobreza, meio por dissimulação de vício, uma confusão que, para o verdadeiro (o barão que conhecemos), foi por muito tempo prejudicial e, a seguir, quando ele decaiu, tornou-se cômodo pois também lhe permitiu que dissesse:

            "Não sou eu."

            De fato, atualmente não era dele que falavam. Por fim, o que acrescentava à falsidade dos comentários um fato verdadeiro (os gostos do barão) era que ele fora amigo íntimo e totalmente puro de um autor que, no mundo teatral, tinha, não se sabe por quê, essa reputação e absolutamente não a merecia. Quando os viam juntos numa estréia, diziam:

            - Estamos sabendo - da mesma forma que se julgava que a duquesa de Guermantes tinha relações imorais com a princesa de Parma; lenda indestrutível, pois só se desvaneceria com uma aproximação à essas duas grandes damas, a que nunca verossimilmente haveriam de atingir as pessoas que a repetiam, senão contemplando-as no teatro e caluniando-as para o ocupante da poltrona ao lado. Dos costume do Sr. de Charlus, o escultor concluía, com tanto menos hesitação, que, a situação mundana do barão devia ser bastante ruim, visto que não possuía sobre a família a que pertencia o Sr. de Charlus, sobre seu título e sobre seu nome, nenhum tipo de informação. Da mesma forma que Cottard achava que todo mundo sabe que o título de doutor não significa nada, e o de interno dos hospitais alguma coisa, as pessoas da sociedade se enganam ao pensar que todos possuem, sobre a importância social de seus nomes as mesmas noções que têm eles próprios e as pessoas de seu meio. O príncipe de Agrigento passava por um resto aos olhos de um empregado de clube ao qual devia vinte e cinco luíses, só readquirindo sua importância no faubourg Saint-Germain, onde possuía três irmãs duquesas, pois não é sobre as pessoas modestas, a cujos olhos vale pouco, mas sobre as pessoas brilhantes, que estão a par do que ele é, que produz algum efeito o grão-senhor. Aliás, o Sr. de Charlus ia verificar, naquela mesma noite, que o Patrão possuía noções pouco aprofundadas sobre as mais ilustres famílias ducais. Convencido de que os Verdurin iam dar um passo em falso deixando que se introduzisse num salão tão "seleto" um indivíduo tarado, e escultor julgou dever chamar à parte a Patroa.

            - O senhor está totalmente enganado; aliás, não acredito nunca nessas coisas; e depois, mesmo que fossem verdadeiras, digo-lhe que não seriam comprometedoras para mim, - retrucou a Sra. Verdurin, furiosa, pois, sendo Morel o principal elemento das quartas-feiras, ela fazia acima de tudo questão de não contrariá-lo.

            Quanto a Cottard, não podia dar opinião, pois pedira licença para subir e "dar um recado" no bom retiro e em seguida escrever, no quarto do Sr Verdurin, uma carta urgente para um enfermo.

            Um grande editor de Paris, que viera de visita e pensara que haveriam de retê-lo, foi-se embora brutalmente, às pressas, compreendendo que não era suficientemente elegante para o pequeno clã. Era um homem alto e forte, muito moreno, estudioso, com algo de cortante. Dava a impressão de uma espátula de ébano.

            A Sra. Verdurin, que, para nos receber no seu salão imenso, onde troféus de gramíneas, de papoulas, flores do campo, colhidas no próprio dia, alternavam com o mesmo motivo pintado em camafeu, dois séculos antes, por um artista de gosto refinado, se levantara por um momento de uma partida que jogava com um velho amigo, pediu licença para terminá-la em dois minutos, sempre conversando conosco. Aliás, o que eu lhe disse acerca das minhas impressões só parcialmente lhe agradou. Primeiro, eu estava escandalizado de ver que ela e seu marido se recolhiam, todos os dias, muito tempo antes da hora daqueles ocasos, que passavam por ser tão lindos vistos daquele rochedo, e mais ainda do terraço de La Raspeliere, e pelos quais eu teria viajado léguas.

            - Sim, é incomparável - disse rapidamente a Sra. Verdurin, lançando uma olhada às imensas janelas que faziam de vidraças. - Por mais que olhemos isso o tempo todo, nunca nos cansamos - e voltou a absorver-se nas cartas.

            Ora, o meu próprio entusiasmo me fazia exigente. Lastimava não ver do salão os rochedos de Darnetal, que Elstir me assegurara serem adoráveis naquele momento em que refratavam tantas cores.

            - Ah, o senhor não pode vê-los daqui, seria necessário ir até a extremidade do parque, à "vista da baía". Do banco que ali se encontra, o senhor abrangerá todo o panorama. Mas não pode ir sozinho; acabaria se perdendo. Vou conduzi-lo até lá, se quiser - acrescentou languidamente.

            - Mas não, ora, já não bastam as dores que apanhaste no outro dia, queres ainda mais? Ele vai voltar outro dia e então verá a vista da baía - disse o Sr. Verdurin.

            Não insisti, compreendendo que bastava aos Verdurin saberem que aquele sol poente era, mesmo no seu salão ou na sua sala de jantar, uma pintura magnífica, como um precioso esmalte japonês, justificando o preço elevado que pagavam pelo aluguel de La Raspeliere toda mobiliada, mas para o qual raramente erguiam os olhos; seu grande negócio aqui era viver de maneira agradável, passear, comer bem, conversar, receber amigos agradáveis, aos quais proporcionavam divertidos jogos de bilhar, boas refeições, alegres merendas. Entretanto, mais tarde, vi com que inteligência eles tinham aprendido a conhecer aquela região, fazendo os hóspedes darem passeios tão "inéditos" como a música que faziam com que escutassem. O papel que as flores da Raspeliére, os caminhos à beira-mar, as velhas casas, as igrejas desconhecidas representavam na vida do Sr. Verdurin era tão grande, que aqueles que somente o viam em Paris e que substituíam a vida à beira-mar e no campo pelos luxos citadinos mal podiam compreender a idéia que ele próprio se fazia de sua vida e a importância que suas alegrias lhe davam a seus próprios olhos. Essa importância ainda era acrescida pelo fato de que os Verdurin estavam persuadidos de que La Raspeliere, que pretendiam comprar, era uma propriedade única no mundo. Essa superioridade, que o seu amor-próprio lhes atribuía à Raspeliere, justificou a seus olhos o meu entusiasmo que, sem isso, os teria irritado um pouco, por causa das decepções que ele comportava (como as que a audição da Berma me provocara outrora) e de que eu lhes fazia sincera confissão.

            - Ouço o carro que está voltando. Esperemos que ele os tenha encontrado - murmurou a Patroa de repente.

            Digamos, numa palavra, que a Sra. Verdurin, afora até as mudanças inevitáveis da idade, já não se parecia mais à que era no tempo em que Swann e Odette ouviam em sua casa o pequeno trecho de Vinteuil. Mesmo quando o tocavam, ela já não se obrigava a mostrar o aspecto extenuado de admiração que assumia antigamente, pois este se tornara a sua própria fisionomia. Sob a ação de inumeráveis nevralgias, causadas pela música de Bach, de Wagner, de Vinteuil e de Debussy, a testa da Sra. Verdurin adquirira enormes proporções, como os membros que um reumatismo termina por deformar. Suas têmporas, semelhantes a duas belas esferas ardentes, doloridas e leitosas, onde imortalmente rola a Harmonia, repeliam de cada lado mechas prateadas e proclamavam da parte da Patroa, sem que esta precisasse falar:

            "Sei o que me espera esta noite."

            Suas feições não mais se davam ao trabalho de formular sucessivamente impressões estéticas muito fortes, pois elas próprias eram como que sua expressão permanente em um rosto soberbo e devastado.

            Essa atitude de resignação aos sofrimentos sempre iminentes infligidos pelo Belo, e a coragem que tivera em pôr um vestido quando mal se levantava após a última sonata, faziam com que a Sra. Verdurin, mesmo para escutar a música mais cruel, conservasse uma fisionomia desdenhosamente impassível e até chegasse a se esconder para engolir duas colheradas de aspirina.

            - Ah, sim, ei-los - exclamou o Sr. Verdurin com alívio, vendo a porta se abrir e deixar passar Morel, seguido do Sr. de Charlus. Este, para quem jantar na casa dos Verdurin não era de forma alguma comparecer à sociedade, mas ir a um lugar suspeito, estava intimidado como um colegial que entra pela primeira vez num bordel e com mil respeitos para com a dona. Assim, o desejo habitual do Sr. de Charlus, de parecer frio e viril, foi dominado (quando apareceu na porta aberta) por essas idéias tradicionais de cortesia, que se revelam desde que a timidez arruína uma atitude fictícia e apela para os recursos do inconsciente. Quando é num Charlus, seja ele burguês ou nobre, que age tal sentimento de polidez instintiva e atávica para com desconhecidos, é sempre a alma de um parente do sexo feminino, auxiliadora como uma deusa, ou encarnada como um duplo, que se encarrega de introduzi-lo num novo salão e de modelar sua atitude até que ele tenha chegado diante da dona da casa. Certo pintor jovem, educado por uma santa prima protestante, entrará com a cabeça oblíqua e vacilante, os olhos no teto, as mãos presas a um regalo invisível, cuja forma evocada e cuja presença real e tutelar auxiliarão o artista intimidado a franquear, sem agorafobia, o espaço cavado de abismos que vai do vestíbulo ao salão pequeno. Assim, a piedosa parenta, cuja lembrança o guia hoje, entrava, há muitos anos e com um aspecto tão gemente, que todos se perguntavam qual a desgraça que vinha anunciar, quando às suas primeiras palavras compreenderam, como agora ocorria com o pintor, que ela vinha fazer uma visita de digestão. Em virtude dessa mesma lei que exige que a vida, no interesse do ato ainda não cumprido, mande servir, utilize, desnature, numa perpétua prostituição, os mais respeitáveis legados, por vezes os mais santos, por vezes os mais inocentes, do passado, e, embora ela engendrasse então um aspecto diferente, um dos sobrinhos da Sra. Cottard, que afligia a família por seus modos afeminados e suas relações, fazia sempre uma entrada alegre como se viesse dar uma surpresa ou anunciar uma herança, iluminado por uma felicidade de cuja causa seria baldado perguntar-lhe, que se ligava à sua hereditariedade inconsciente e a seu sexo desviado. Andava na ponta dos pés, estava sem dúvida ele próprio espantado de não ter à mão um carnê de cartões de visita, estendia a mão abrindo a boca em forma de coração, como vira a tia fazer, e seu único olhar inquieto era para o espelho, onde parecia querer verificar, embora estivesse de cabeça descoberta, se o seu chapéu, como um dia indagara a Sra. Cottard a Swann, não estava de través.

            Quanto ao Sr. de Charlus, a quem a sociedade na qual tinha vivido fornecia, nesse momento crítico, exemplos diferentes, outros arabescos de amabilidade e, enfim, a máxima que se deve conhecer em certos casos, para com simples pequeno-burgueses, externar e oferecer as mais raras graças, habitualmente conservadas em reserva, foi bamboleando com afetação e a mesma amplitude como que umas saias houvessem alargado e embaraçado os seus requebros, que ele se dirigiu para a Sra. Verdurin, com um ar tão lisonjeado e honrado que se diria que ser apresentado em sua casa teria sido para ele um favor supremo. Seu rosto, meio inclinado, onde a

satisfação competia com as conveniências, sulcava-se de pequeninas rugas de afabilidade. Julgar-se-ia ver avançar a Sra. de Marsantes, de tanto que, naquele momento, sobressaía a mulher que um erro da natureza colocara no corpo do Sr. de Charlus. Decerto, esse erro o barão duramente havia penado para dissimulá-lo e assumir uma aparência masculina. Porém, mal o conseguira e eis que, tendo conservado ao mesmo tempo os mesmos gostos, o hábito de sentir como mulher lhe dava uma nova aparência feminina, nascida esta não da hereditariedade, mas da vida individual. Como chegava aos poucos a pensar, mesmo os fatos sociais, no feminino; isto sem se dar conta de tal, pois não é somente à força de mentir para os outros, mas também de mentir para si mesmo, que se deixa de perceber que se mente, embora ele tivesse pedido ao corpo que tornasse manifesto (no momento em que entrava na casa dos Verdurin) toda a cortesia de um grão-senhor, esse corpo, que compreendera perfeitamente aquilo que o Sr. de Charlus deixara de ouvir, desenrolou, a ponto de que o barão teria merecido o epíteto de lady-like, todas as seduções de uma grande dama. Afinal, pode-se separar inteiramente o aspecto do Sr. de Charlus do fato de que os filhos, visto nem sempre se parecerem com os pais, mesmo não sendo invertidos e procurarem mulheres, consumam no rosto a profanação de sua mãe? Mas deixemos aqui o que mereceria um capítulo à parte: as mães profanadas.

            Conquanto razões outras presidissem a essa transformação do Sr. de Charlus e fermentos puramente físicos fizessem "trabalhar" nele a matéria e passar seu corpo, aos poucos, para a categoria de corpos de mulher, todavia a mudança que aqui assinalamos era de origem espiritual. À força de se julgarem enfermas, as pessoas o acabam sendo, emagrecem, não têm mais forças para se levantar, sofrem de enterites nervosas. À força de pensar com ternura nos homens, uma pessoa se torna mulher e uma saia postiça entrava seus passos. A idéia fixa nelas pode modificar o sexo (assim como em outros casos a saúde).

            Morel, que o seguia, veio cumprimentar-me.

            Desde aquele momento, devido a uma dupla mudança que nele se efetuava, ele me causou (ai de mim, que não o soube perceber em tempo) uma má impressão. Eis o motivo.

            Disse eu que Morel, tendo escapado à servidão do pai, comprazia-se em geral numa familiaridade extremamente desdenhosa. Falara comigo, no dia em que me levara as fotografias, sem sequer uma vez me dizer "senhor" e tratando-me de alto a baixo. Qual não foi minha surpresa, na casa da Sra. Verdurin, ao vê-lo inclinar-se profundamente diante de mim, e só diante de mim, e ao ouvir, antes mesmo que ele tivesse pronunciado outras frases, as expressões de "respeito" e "muito respeitoso" palavras que eu considerava impossíveis em seus lábios ou em seus escritos a mim dirigidas! Tive logo a impressão de que ele queria me pedir alguma coisa. Tomando-me à parte ao cabo de um minuto:

            - O senhor me prestaria um grande serviço - disse ele, chegando dessa vez a me falar na terceira pessoa ocultando inteiramente à Sra. Verdurin e a seus convidados o tipo de profissão que meu pai exerceu em casa de seu tio. Seria preferível dizer que ele era, em sua família, o intendente de domínios tão vastos que isto o fazia quase da mesma classe que seus pais. - O pedido de Morel me contrariava infinitamente, não por me obrigar a engrandecer a posição de seu pai, o que na verdade pouco me importava, mas a fortuna ao menos aparente do meu, o que achava ridículo. Mas seu aspecto era tão infeliz, tão premente, que não recusei.

            - Não, antes do jantar - pediu-me em tom de súplica; o senhor tem mil pretextos para chamar à parte a Sra. Verdurin.

            Foi o que fiz, com efeito, cuidando de realçar da melhor maneira o brilho do pai de Morel, sem exagerar muito "o modo de vida" e a "abastança" de meus pais. Isso passou como carta no correio, apesar do espanto da Sra. Verdurin, que vagamente conhecera meu avô. E, como fosse desprovida de tato e odiava as famílias (esse dissolvente do pequeno núcleo), depois de haver dito que outrora avistara meu bisavô e de ter se referido a ele como a alguém mais ou menos idiota que nada teria compreendido do pequeno grupo, e que, conforme sua expressão, "não era dos deles", ela me disse:

            - Aliás, isso de famílias é tão enfadonho; a gente só aspira em sair delas; - e em seguida contou-me, do pai de meu avô, essa tirada que eu ignorava, embora em casa tivesse suspeitado (não chegara a conhecê-lo, mas falavam muito nele) de sua avareza (oposta à generosidade um tanto faustosa do meu tio-avô, o amigo da dama cor-de-rosa e patrão do pai de Morel): - Já que seus pais tinham um intendente tão elegante, isto prova que há pessoas de todos os matizes nas famílias. O pai de seu avô era tão avarento que, quase caduco no fim da vida cá entre nós, ele nunca foi muito forte, o senhor os compensa a todos -, não se conformava em gastar três sous com o ônibus. De modo que tinham sido obrigados a mandar alguém segui-lo, pagar em separado ao trocador e fazer acreditar ao velho que seu amigo, Sr. de Persigny, ministro de Estado, conseguira que ele andasse de graça nos ônibus. De resto, estou muito contente que o pai do nosso Morel tenha tido tão boa situação. Eu havia compreendido que ele era professor de liceu, não quer dizer nada, entendi mal. Mas não tem importância, pois aqui só apreciamos o valor próprio, a contribuição pessoal, o que chamo de participação. Contanto que seja da arte, numa palavra, contanto que seja da confraria, o resto pouco importa. -

            A maneira como Morel o era tanto quanto pude sabê-lo que ele amava bastante as mulheres e os homens para agradar a cada sexo com a ajuda do que experimentara no outro - é o que veremos mais tarde. O essencial a dizer aqui é que, desde que lhe dei minha palavra no sentido de intervir junto à Sra. Verdurin, sobretudo desde que o fiz, e sem ser possível voltar atrás, o "respeito" de Morel por mim se desvaneceu como por encanto, desapareceram as fórmulas respeitosas, e ele chegou mesmo, durante algum tempo, a me evitar, cuidando para parecer que me desdenhava, de forma que, se a Sra. Verdurin queria que lhe dissesse alguma coisa lhe pedisse determinado trecho de música, ele continuava a falar como fiel, depois com outro, mudava de lugar se me aproximava dele. Eram forçados a lhe dizer até três ou quatro vezes que eu lhe dirigira a palavra, após o que ele me respondia, constrangido, de modo breve, a menos que estivéssemos a sós. Neste caso, tornava-se expansivo, amistoso, pois apresentava aspectos de caráter muito encantadores. Nem por isso deixei de concluir, por aquela primeira reunião noturna, que sua natureza devia ser vil, que ele não recuava, se necessário, diante de nenhuma baixeza, ignorava a gratidão. Nisso assemelhava-se ao comum dos homens. Mas, como eu tinha dentro de mim um pouco de minha avó e me agradava a diversidade dos homens, sem deles nada esperar ou lhes querer mal, não me importei com sua baixeza, e diverti-me com sua boa disposição quando apareceu, e até no que acho ter sido uma sincera amizade de sua parte quando, tendo dado toda a volta de seus falsos conhecimentos da natureza humana, ele percebeu (por impulsos, pois era dotado de estranhos retrocessos à sua selvageria primitiva e cega) que minha suavidade para com ele era desinteressada, que minha indulgência não provinha de uma falta de perspicácia, mas do que chamou de bondade, e que sobretudo eu me encantava com sua arte, que não passava de admirável virtuosismo, mas que me fazia (sem que ele fosse um verdadeiro músico, no sentido intelectual do termo) ouvir de novo ou conhecer tantas belas músicas. Aliás, um manager, o Sr. de Charlus, em quem eu ignorava esses talentos (embora a Sra. de Guermantes, que o conhecera bem diferente na sua juventude, afirmasse que ele lhe compusera uma sonata, pintara um leque, etc.), modesto no que concernia a suas verdadeiras superioridades, mas de primeira ordem, soube colocar esse virtuosismo a serviço de um senso artístico multiforme, e que o decuplicou.

            Imagine-se algum artista puramente habilidoso dos Ballets russos, estilizado, instruído, desenvolvido em todos os sentidos pelo Sr. Diaghilev.

            Acabava de transmitir à Sra. Verdurin a mensagem de que me havia encarregado Morel, e falava sobre Saint-Loup com o Sr. de Charlus, quando Cottard entrou no salão anunciando, como se se tratasse de um incêndio, que os Cambremer estavam chegando. A Sra. Verdurin, para não parecer, diante de novatos como eu e o Sr. de Charlus (que Cottard não tinha visto), ligar tanta importância à chegada dos Cambremer, não se mexeu, não respondeu nada ao anúncio daquela novidade, contentando-se em dizer ao doutor, abanando-se com graça e com o mesmo tom artificial de uma marquesa do Théâfre-français:

            - O barão nos dizia justamente... -

            Era demais para Cottard! Com menos vivacidade do que faria outrora, pois o estudo e as altas posições tinham tornado mais vagarosa a sua fala, mas ainda assim com aquela emoção que reencontrou:

            - Um barão! Onde isso, um barão?- procurando-o com os olhos, num espanto que ofuscou.    A Sra. Verdurin, com a indiferença afetada de um criado, diante dos convidados, acabada a entonação artificial e aumentada de um desempenho de Dumas Filho, respondeu:

            - Ora, o barão de Charlus. -

            Aliás, não desagradava se fazer de grande dama.

            O Sr. de Charlus apertou com um sorriso benévolo atacou de súbito, vendo entrarem os Cambremers. Ao entrarem o Sr. de Charlus me arrastava para um canto sem apalpar meus músculos, ao que Cambremer de modo algum se assemelhava dizia este com ternura, inteiramente do lado oposto que se ouvira falar nele, ou de cartas dele, do seu físico assombrava. Sem dúvida, a gente via que havia escolhido, para vir colocar de través em linha oblíqua, entre tantas outras, que não se vê no rosto, um nariz; que indicava uma estupidez vulgar, de uma pele normanda de vermelhidão do Sr. de Cambremer; aguardassem nas pálpebras tão suaves pelos belos dias ensolarados e divertidos em ver, paradas à beira da estrada, às sombras dos álamos, mas aquelas pálpebras abaixadas, teriam impedido a própria inteligência postado com a exigüidade daquele olhar de narigão atravessado. Por uma transposição nos olhava com o nariz. Esse nariz do Sr. de Charlus era um pouco bonito demais, por demais forte, com excesso de importância. Convexo, brunido, reluzente, novamente disposto a compensar a insuficiência se os olhos são às vezes o órgão em que seja qual for, aliás a íntima solidariedade dos traços uns sobre os outros, o nariz revela mais facilmente a tolice.       

            Por mais conveniência a Sra. de Cambremer usava sempre, mesmo de manhã, algo que ofuscava e exasperava o brilho das roupas desconheciam, não se podia compreender que a mulher do presidente do conselho declarasse com ar de faro e de autoridade, como pessoa que tem mais experiência do que nós acerca da alta sociedade de Alençon, que diante de Sr. de Cambremer logo nos sentíamos, mesmo antes de saber de quem se tratava, em presença de um homem de alta distinção, de um homem perfeitamente bem-educado, diferente do gênero de Balbec, enfim, um homem junto a quem se podia respirar. Era para ela, asfixiada por tantos turistas de Balbec que não conheciam o seu mundo, como um frasco de sais. Pareceu-me, ao contrário, que ele era dessas pessoas que minha avó teria achado logo "muito mau" e, como não compreendia o esnobismo, sem dúvida ficaria estupefata de que ele tivesse conseguido se casar com a Srta. Legrandin, que devia ser difícil em matéria de distinção, ela, cujo irmão era "tão bom". Quando muito, podia-se dizer da feiúra vulgar do Sr. de Cambremer que ela era um pouco da região e tinha algo de muito antigamente local; diante de seus traços errôneos e que se teria desejado retificar, pensava-se nesses nomes de cidadezinhas normandas sobre cuja etimologia o meu cura se enganava porque os camponeses, articulando mal ou tendo mal compreendido o termo normando ou latim que as designa, acabaram por fixar num barbarismo que já se encontra nas cartulárias, como diria Brechot, um contra-senso e um vício de pronúncia. A vida nessas velhas cidadezinhas pode aliás passar-se agradavelmente, e o Sr. de Cambremer devia ter qualidades, pois, se era próprio de uma mãe que a velha marquesa preferisse seu filho à nora, em compensação, ela, que tinha vários filhos, dos quais dois pelo menos não eram desprovidos de mérito, freqüentemente declarava que o marquês, em sua opinião, era o melhor da família. Durante o pouco tempo que havia passado no exército, seus companheiros, achando muito comprido dizer Cambremer, tinham lhe dado o apelido de Cancan, que ele de resto não merecera em nada. Sabia ornar um jantar ao qual o convidavam, dizendo no momento do peixe (mesmo que o peixe estivesse podre) ou à entrada:

            - Mas sim senhor, parece que está mesmo um belo animal. -

            E sua mulher, tendo adotado ao entrar para a família tudo o que julgava fazer parte do gênero daquela sociedade, punha-se à altura dos amigos do marido, e talvez procurasse agradar-lhe como uma amante, e como se outrora tivesse estado ligada à sua vida de solteiro, dizendo com ar displicente quando falava dele aos oficiais:

            - Vão ver Cancan, Cancan foi a Balbec, mas estará de volta esta noite. -

            Estava furiosa por se comprometer aquela noite com os Verdurin e só comparecia às instâncias da sogra e do marido, no interesse da locação. Porém, menos bem-educada que eles, não ocultava o motivo e fazia quinze dias que troçava com as amigas sobre esse jantar.

            - Sabem que vamos jantar com nossos locatários? Isso bem merece um aumento. No fundo, estou bastante curiosa por saber o que podem ter feito da nossa pobre e velha Raspeliere (como se ali tivesse nascido e encontrasse todas as recordações dos seus). Nosso velho guarda nos disse ainda ontem que não era possível reconhecer mais nada. Nem tenho coragem de pensar em tudo o que deve se passar lá dentro. Acho que faremos bem em mandar desinfetar tudo antes de nos reinstalarmos. -

            Ela chegou altaneira e rabugenta, com o ar de grande dama cujo castelo, por ocasião de uma guerra, tivesse sido ocupado pelos inimigos, mas que ainda assim sente-se em casa e faz questão de mostrar aos vencedores que eles são intrusos.

            A princípio a Sra. de Cambremer não pôde me ver porque eu estava numa sacada lateral com o Sr. de Charlus, que me dizia ter sabido por Morel que seu pai fora "intendente" em minha família, e que ele, Charlus, contava muito com minha inteligência e magnanimidade (termo comum a ele e a Swann) para recusar-me o ignóbil e mesquinho prazer que pequenos imbecis vulgares (eu estava prevenido) não deixariam de gozar em meu lugar, revelando aos nossos anfitriões pormenores que estes poderiam julgar depreciativos.

            - O simples fato de que me interesse por ele e estenda sobre ele a minha proteção tem algo de sobre-eminente e abole o passado - concluiu o barão.

            Escutando-o e prometendo silêncio, que aliás teria guardado mesmo sem a esperança de, em troca, passar por inteligente e magnânimo, eu olhava a Sra. de Cambremer. E custou-me reconhecer a coisa sumarenta e deliciosa que eu tivera no outro dia junto a mim à hora da merenda, no terraço de Balbec, na bolacha que via, dura como uma pedra, e na qual os fiéis em vão tentariam cravar o dente. Antecipadamente irritada com o jeito bonachão que o marido herdara da mãe e que o faria assumir um ar de honrado quando o apresentassem aos fiéis, e no entanto desejosa de preencher suas funções de mulher da alta sociedade, quando lhe nomearam Brichot, quis fazê-lo travar conhecimento com o marido, porque vira suas amigas mais elegantes procederem desse modo; mas ou a raiva ou o orgulho, vencendo a ostentação do savoir-vivre, fê-la dizer, não como deveria:

            - Permita-me apresentar-lhe o meu marido e sim: - Apresento-lhe o meu marido -, mantendo assim altaneiro o estandarte dos Cambremer, a despeito deles mesmos, pois o marquês inclinou-se diante de Brichot tão profundamente como ela havia previsto. Mas todo esse humor da Sra. de Cambremer mudou de súbito quando ela avistou o Sr. de Charlus, a quem conhecia de vista. Jamais conseguira fazer-se apresentada a ele, mesmo à época em que tivera uma ligação com Swann. Pois o Sr. de Charlus, tomando sempre o partido das mulheres, de sua cunhada contra as amantes do Sr. de Guermantes, de Odette, então ainda não casada, porém antiga ligação de Swann, contra as novas, severo defensor da moral e protetor fiel dos cônjuges, fizera a Odette a promessa de não se deixar apresentar à Sra. de Cambremer, promessa que mantivera. Certamente a Sra. de Cambremer não duvidara que era na casa dos Verdurin que haveria por fim de conhecer esse homem inabordável. O Sr. de Cambremer sabia que aquilo seria uma tão grande satisfação para ela que ele próprio se sentia enternecido, e olhou para a mulher com um ar que significava:

            "Está contente por ter se decidido a vir, não é mesmo?"

            Aliás, falava muito pouco sabendo que se casara com uma mulher superior.

            - Eu, indigno - dizia-a todo instante, e de bom grado citava uma fábula de La Fontaine e uma de Florian, que lhe pareciam aplicar-se à sua ignorância e, por outro lado permitir-lhe, sob as formas de uma lisonja desdenhosa, mostrar aos homens da ciência que não eram do Jockey, que se pode muito bem casar e ter lido fábulas. O diabo é que só conhecia duas. Assim, elas retornavam muitas vezes. A Sra. de Cambremer não era idiota, mas possuía diversos hábitos muito irritantes. Nela, a deformação dos nomes não tinha absolutamente nada do desdém aristocrático. Não seria ela que, como a duquesa de Guermantes (que, pelo nascimento, deveria estar, mais que a Sra. de Cambremer, ao abrigo desse ridículo), teria dito, para não parecer saber o nome pouco elegante (quando agora é o de uma das mulheres mais difíceis com quem se possa ter intimidade) de Julien de Monchâteau:

            - Uma senhorazinha... Pico della Mirandola. -

            Não, quando a Sra. de Cambremer citava falsamente um nome, era por benevolência, para não dar a entender que conhecia algo, e quando todavia por sinceridade o confessava, julgando que o ocultava ao desmarcá-lo. Se, por exemplo, defendia uma mulher, procurava dissimulá-lo, sempre querendo não mentir àquela que lhe suplicava que dissesse a verdade, que tal senhora era atualmente amante do Sr. Sylvain Lévy, e dizia:

            - Não... não sei absolutamente nada sobre ela, creio que lhe censuraram o ter inspirado uma paixão a um senhor cujo nome desconheço, algo como Cahn, Kohn ou Kuhn; aliás, creio que este senhor já está morto há muitíssimo tempo e que nunca houve nada entre eles. -

            É o procedimento semelhante ao dos mentirosos e inversamente ao deles os quais julgam que, alterando o que fizeram quando o contam a uma amante ou simplesmente a um amigo, imaginam que uma e outro não verão imediatamente que a frase dita (assim como Cahn, Kohn ou Kuhn) é interpolada, e de espécie diversa das que compõem a conversação e têm fundo falso.

            A Sra. Verdurin perguntou ao ouvido do esposo:

            - Devo dar o braço ao barão de Charlus? Como terás à tua direita a Sra. de Cambremer, poderíamos cruzar as finezas.

            - Não - disse o Sr. Verdurin -, visto que a outra é de grau mais elevado (querendo dizer que o Sr. de Cambremer era marquês), o Sr. de Charlus, em suma, é seu inferior.

            - Pois bem, vou colocá-lo ao lado da princesa. -

            E a Sra. Verdurin apresentou a Sra. Sherbatoff ao Sr. de Charlus; ambos se inclinaram em silêncio, com o ar de que sabiam muito bem um sobre o outro e de se prometerem segredo mútuo. O Sr. Verdurin me apresentou ao Sr. de Cambremer. Antes mesmo que me tivesse falado com sua voz forte e levemente gaguejante, sua elevada estatura e seu rosto colorido manifestaram, em sua oscilação, a hesitação marcial de um chefe que busca nos tranqüilizar e diz:

            "Falaram-me a respeito, vamos dar um jeito nisso; vou mandar cancelar sua punição; não somos vampiros; tudo correrá bem."

            Depois, apertando-me a mão:

            - Creio que conhece minha mãe - disse ele. O verbo "crer" lhe parecia, aliás, convir à discrição de um primeiro encontro, porém de maneira alguma exprimir uma dúvida, pois acrescentou: - De resto, trago uma carta dela para o senhor. -

            O Sr. de Cambremer estava ingenuamente feliz em rever os lugares onde vivera por tanto tempo:

            - Reencontro-me - disse à Sra. Verdurin, enquanto o seu olhar se maravilhava por reconhecer as pinturas de flores em extremos acima das portas, e os bustos em mármore sobre seus altos pedestais. Entretanto, podia achar-se desambientado, pois a Sra. Verdurin havia trazido uma boa quantidade de velhas coisas bonitas que possuía. Desse ponto de vista, a Sra. Verdurin, mesmo passando aos olhos dos Cambremer por devastar tudo, não era revolucionária, mas inteligentemente conservadora, num sentido que eles não compreendiam. Assim, acusavam-na injustamente de detestar a velha mansão e desonrá-la com simples tecidos em vez de sua rica pelúcia, como um cura ignorante que censurasse um arquiteto diocesano por recolocar no seu lugar próprio velhas madeiras esculpidas deixadas num canto e que o eclesiástico achava melhor substituir pelos ornamentos adquiridos na praça de Saint-Sulpice. Enfim, um jardim de pároco principiava a substituir, diante do castelo, as platibandas que faziam o orgulho não só dos Cambremer, mas também de seu jardineiro. Este, que considerava os Cambremer como os seus únicos senhores e gemia sob o jugo dos Verdurin, como se a terra tivesse sido momentaneamente ocupada por um invasor e uma tropa de veteranos, ia em segredo levar suas condolências à proprietária despojada, indignava-se com o desprezo com que eram tratadas as suas araucárias, suas begônias, seus saiões, suas dálias duplas, e de que ousassem, numa tão rica morada, plantar flores tão comuns como a macela e o mimo-de-vênus. A Sra. Verdurin sentia essa oposição surda e havia decidido, caso fizesse um longo contrato de arrendamento ou até mesmo chegasse a comprar La Raspeliere, a impor como condição a demissão do jardineiro, a quem a velha proprietária, ao contrário, prezava muito. Ele a servira por nada em tempos difíceis, adorava-a; mas, por esse estranho desdobramento da opinião das pessoas do povo, em que o desprezo moral mais profundo se entranha na mais apaixonada estirpe que, por sua vez, cavalga velhos rancores não abolidos, ele dizia muitas vezes que a Sra. de Cambremer, em 1870, surpreendida pela invasão do castelo que possuía no Leste, tivera de sofrer durante um mês o contato dos prussianos:

            - O que muito se censurou na senhora marquesa foi o de ter tomado, durante a guerra, o partido dos prussianos e de tê-los inclusive alojado em sua casa. Em uma outra ocasião, eu compreenderia; mas em tempo de guerra, ela não deveria ter feito isso. Não é correto. -

            De motivo que ele lhe era fiel até a morte, venerava-a por sua bondade e acreditava culpada de traição. A Sra. Verdurin sentiu-se melindrada porque o Sr. de Cambremer pretendia reconhecer tão bem La Raspeliere.

            - No entanto, o senhor deve encontrar algumas mudanças - respondeu. - Primeiro, havia uns grandes diabos de bronze de Barbedienne e uns ridículos banquinhos de pelúcia que me apressei a mandar para o sótão, que ainda é bom demais para eles. -

            Depois dessa réplica acerba dirigida ao Sr. de Cambremer ela lhe ofereceu o braço para ir à mesa. Ele hesitou por um momento, dizendo consigo:

            "Ainda assim, não posso passar adiante do Sr. de Charlus''

            Mas, pensando que este era um velho amigo da casa, uma vez que não tinha o lugar de honra, decidiu-se a tomar o braço que lhe era oferecida. E disse à Sra. Verdurin o quanto se sentia orgulhoso por ser admitido cenáculo (era assim que ele chamava o pequeno núcleo, não sem rir um pouco de satisfação por saber esse termo).

            Cottard, que estava sentado ao lado do Sr. de Charlus, observava-o por sob o lorgnon a fim de travar conhecimento e quebrar o gelo, com piscadelas muito mais insistentes do que outrora, e não cortadas pela timidez. E seus olhares insinuantes, acrescidos pelo sorriso, já não eram contidos pelas lentes do lorgnon e transbordavam de todos os lados. O barão, que em toda parte via facilmente semelhantes, não duvidou que Cottard fosse um deles e estivesse a namorá-lo. E logo evidenciou ao professor a dureza dos invertidos sexuais tão desdenhosos com aqueles a quem agradam como ardentemente soltos para com quem lhes agrada. Sem dúvida, embora cada qual fala mentirosamente da ternura de ser amado, sempre recusada pelo destino trata-se de uma lei geral, cujo império está bem longe de estender-se unicamente sobre os Charlus, a que diz que a criatura a quem não amam que nos ama pareça-nos insuportável. A essa criatura, a essa mulher dá quem não diremos que nos ama, mas que nos importuna, preferimos a companhia de qualquer outra, que não terá o seu encanto, nem seus dotes, seu espírito. Ela só os recobrará para nós quando nos deixar de amar. Neste sentido, poderia ver-se apenas a transposição, sob uma forma engraçada, dessa regra universal, na irritação causada num invertido por um homem que lhe desagrada e o procura. Mas nele, ela é bem mais forte. Assim, ao passo que o comum dos homens a procura dissimular quando a experimenta, o invertido, implacavelmente, fá-la sentir ao homem que a provoca, como com certeza a não faria sentir a uma mulher; como, por exemplo, o Sr. de Charlus à princesa de Guermantes, cuja paixão o entediava, embora o lisonjeasse. Mas, quando vêem um outro homem testemunhar-lhes um gosto particular; então, ou por incompreensão de que seja o mesmo gosto do deles; ou por lembrança infeliz de que esse gosto, por eles embelezado enquanto eles mesmos o experimentam, é considerado como vício; seja pelo desejo de se reabilitarem com um rompante, numa circunstância em que isso nada lhes custa; seja pelo temor de serem adivinhados, que experimentam de súbito, quando o desejo não mais os impulsiona, de olhos vendados, de imprudência em imprudência; seja pelo furor de sofrer de fato com a atitude equívoca de outro o dano que, quanto à sua atitude, se esse outro lhes agradasse, não receariam causar-lhe, aqueles a quem não constrange seguirem um rapaz durante léguas, não lhe tirarem os olhos de cima no teatro, mesmo que esteja com amigos, arriscando-se com isso a fazê-lo brigar com eles, a gente pode ouvi-lo dizer, por pouco que os olhe um outro que não lhes agrada:

            - Cavalheiro, por quem o senhor me toma? (simplesmente porque os tomam pelo que eles são.) Não o compreendo, é inútil insistir, o senhor está enganado; ir, se necessário, até as bofetadas e, diante de alguém que conhece o imprudente, indignar-se:

            - Como? O senhor conhece esse salafrário? Ele tem um jeito de olhar para a gente! E que maneiras! -

            O Sr. de Charlus não foi tão longe, mas mostrou o ar ofendido e glacial que assumem, quando parecemos julgá-las levianas, as mulheres que o não são, e ainda mais aquelas que o são. Ademais o invertido, posto em presença de outro invertido, vê não apenas uma imagem desagradável de si mesmo que, puramente inanimada, só poderia ferir seu amor-próprio, mas também um outro eu, vivo, que age no mesmo sentido, portanto capaz de fazê-lo sofrer em seus amores. Assim, é num instinto de conservação que ele falará todo o mal do possível concorrente, ou com as pessoas que podem prejudicar a este (e sem que o invertido não se inquiete de passar por mentiroso, quando desse modo liquida o invertido não aos olhos das pessoas que podem ser informadas a respeito de seu próprio caso), ou com o rapaz que ele "agarrou", que talvez lhe venha a ser arrebatado, e a quem trata de convencer que as mesmas coisas, que este tem todas as vantagens de fazer com ele, causariam a desgraça da sua vida se se deixasse levar a fazê-las com o outro.

            Quanto ao Sr. de Charlus, que talvez pensasse nos perigos (totalmente imaginários) que a presença desse Cottard, cujo sorriso entendia de modo errôneo, faria correr a Morel, um invertido que não agradasse não era apenas uma caricatura de si mesmo, era igualmente a rival escolhido. Um comerciante que explora um ramo raro dos negócios desembarcando numa cidade da província onde acaba de instalar-se para o resto da vida, se vê que, na mesma praça, bem defronte, o mesmo negócio é explorado por um concorrente, não fica menos desnorteado que um Charlus que, indo ocultar seus amores numa região tranqüila, vê no dia de chegada o gentil-homem do lugar, ou o cabeleireiro, cujo ar e maneiras não lhe deixam quaisquer dúvidas. Muitas vezes, o comerciante acaba sentindo um verdadeiro ódio pelo concorrente; por vezes, tal ódio degenera em melancolia, e por pouco que haja hereditariedade bastante carregada, já se vê em cidadezinhas o comerciante mostrar indícios de loucura que só se pode curar convencendo-o a vender seu "fundo" e a expatriar-se. A raiva do invertido é ainda mais lancinante. Compreendeu que, desde o primeiro instante, o gentil-homem e o cabeleireiro desejaram seu jovem camarada. Por mais que repita a este, cem vezes por dia, que o cabeleireiro e o gentil-homem são bandidos cuja aproximação o desonraria, é obrigado, como Harpagão, a velar pelo seu tesouro e levanta-se da cama à noite para ver se não lhe roubam. E sem dúvida é mais ainda que o desejo ou até comodidade de hábitos comuns e quase tanto como essa experiência de si mesmo que é a única verdadeira, faz com que o invertido despiste o invertido com uma rapidez e uma segurança quase infalíveis. Ele pode enganar-se por um momento; mas uma adivinhação rápida o põe de novo no caminho da verdade. Assim, o erro do Sr. de Charlus foi de curta duração. Discernimento divino mostrou-lhe, após um instante, que Cottard não era de sua espécie e que não havia o que temer de seus avanços, nem quanto a si mesmo, o que só faria deixá-lo exasperado, nem quanto a Morel, o que lha pareceria mais grave. Voltou a tranqüilizar-se e, como estivesse ainda sob a, influência da passagem de Vênus Andrógina, sorria às vezes debilmente aos Verdurin sem se incomodar em abrir a boca, apenas franzindo um canto dos lábios e, por um segundo, acendia ternamente os olhos, ele, tão cioso de sua virilidade, exatamente como o teria feito sua cunhada, a duquesa de Guermantes.

            - Caça muito, senhor? - perguntou a Sra. Verdurin com desprezo ao Sr. de Cambremer.

            - Ski já lhe contou que nos aconteceu uma boa? - indagou Cottard à Patroa.

            - Caço principalmente na floresta de Chatepie - respondeu o Sr. de Cambremer.

            - Não, não contei nada - disse Ski.

            - Merece ela o seu nome? - perguntou Brichot ao Sr. de Cambremer, depois de ter-me olhado com o rabo dos olhos, pois me havia prometido falar em etimologias, recomendando que dissimulasse à Cambremer o desprezo que lhe inspiravam as do cura de Combray.

            - Com certeza é porque não sou capaz de compreender, mas não alcancei sua pergunta -disse o Sr. de Cambremer.

            - Quero dizer: será que por lá cantam muitas pegas? - esclareceu Brichot.

            Entretanto, Cottard sofria porque a Sra. Verdurin ignorava que eles quase haviam perdido o trem.

            - Vamos - disse a Sra. Cottard ao marido para animá-lo-, conta a tua odisséia.

            - De fato, ela sai fora do comum - disse o doutor, que recomeçou sua narrativa. - Quando vi que o trem estava na gare, fiquei petrificado. Tudo isso por culpa de Ski.

            - O senhor é meio bizarróide em suas informações, meu caro! E Brichot que nos esperava na gare! - Pensava - disse o universitário, lançando a seu redor o que lhe restava de olhar e sorrindo com seus lábios delgados - que, se o senhor se havia demorado em Graincourt, era porque encontrara alguma peripatética.

            - Cale-se, por favor. Imagine se minha mulher o ouvisse! - disse o doutor. - A patroa é ciumenta.

            - Ah, esse Brichot! - exclamou Ski, em quem o divertido gracejo de Brichot despertara a alegria costumeira. - É sempre o mesmo. - embora na verdade não soubesse dizer se o universitário tivesse sido libertino algum dia. E, para acrescentar a essas palavras consagradas o gesto ritual, fingiu que não podia resistir ao desejo de lhe beliscar a perna. - Ele não muda, esse galhofeiro de Brichot - continuou Ski, e, sem pensar no que a quase cegueira do universitário ajuntava de triste e cômico a essas palavras, acrescentou: - Sempre um olhinho para as mulheres.

            - Vejam - disse o Sr. de Cambremer - o que é encontrarmos um sábio. Faz quinze anos que caço na floresta de Chantepíe e nunca havia pensado no que seu nome significa.

            A Sra. de Cambremer lançou um olhar severo ao marido; não gostaria que ele se humilhasse de tal forma diante de Brichot. Ficou mais contrariada ainda quando, a cada "frase feita" empregada por Cancan, Cottard, que conhecia o forte e o fraco delas, pois tinha-as trabalhosamente aprendido, demonstrava ao marquês, o qual confessava sua tolice, que elas não queriam dizer nada:

            - Por que: burro como uma porta? Acha que as portas são mais burras do que qualquer outra coisa? O senhor diz: repetir cem vezes a mesma coisa. Por que particularmente cem? Por que: dormir como uma pedra? Por que: com todos os diabos? Por que: levar vida desregrada? - Mas então a defesa do Sr. de Cambremer ficava a cargo de Brichot, que explicava a origem de cada locução. Mas a Sra. de Cambremer ocupava-se principalmente em examinar as mudanças que os Verdurin tinham trazido a La Raspeliere, a fim de poder criticar algumas, levar outras para Féterne, ou talvez as mesmas.

            - Pergunto-me o que quer dizer este lustre todo atravessado. Mal reconheço minha velha Raspeliere - acrescentou com um sorriso familiarmente aristocrático, como se falasse de um servidor, não propriamente para designar-lhe a idade, mas para dizer que ele a vira nascer. E, como era um tanto livresca na linguagem:

            - Ainda assim, - acrescentou a meia voz - parece-me que, se eu morasse em casa alheia, teria algum escrúpulo em mudar tudo assim.

            - É uma pena que os senhores não tenham vindo com eles - disse a Sra. Verdurin ao Sr. de Charlus e a Morel, na esperança de que o Sr. de Charlus voltasse com freqüência e se inclinasse à regra de chegarem todos no mesmo trem. - Tem certeza de que Chantepie quer dizer "a pega que cantai!”; Chochotte? - ajuntou ela, para mostrar que, como grande dona-de-casa; tomava parte em todas as conversas ao mesmo tempo.

            - Mas fale-me um pouco desse violinista-disse-me a Sra. de Cambremer- ele me interessa; adoro a música e creio que já ouvi falar nele, por favor queira informar-me, sim? -

            Soubera que Morel tinha vindo com o Sr. de Charlus e desejava, sendo apresentada ao primeiro, travar relações com o segundo. Entretanto, acrescentou, para que eu não pudesse adivinhar esse motivo:

            - O Sr Brichot também me interessa. -

            Pois, se era muito instruída, como ocorre com certas pessoas predispostas à obesidade e que mal comem e caminham o dia inteiro sem cessar de engordar a olhos vistos, assim a Sra. de Cambremer, por mais que se aprofundasse, sobretudo em Féterne, numa filosofia cada vez mais esotérica, numa música cada vez mais transcendente, só saía desses estudos para maquinar intrigas que lhe permitissem "acertar" as amizades burguesas de juventude e travar relações que a princípio julgara fazerem parte da sociedade da família do marido, mas que em seguida percebeu estarem situadas muito mais alto e longe. Um filósofo que não era bastante moderno para ela, Leibnitz, disse que a trajetória da inteligência ao coração é muito longa. Essa trajetória, a Sra. de Cambremer, berre como o seu irmão, não tinha mais forças para percorrê-la. Só abandonando a leitura de Stuart Mill pela de Lachelier, à medida que acreditava menor na realidade do mundo exterior, mais se encarniçava, antes de morrer, em conseguir uma boa posição neste último. Apaixonada pela arte realista nenhum objeto lhe parecia suficientemente humilde para servir de modelo ao pintor ou ao escritor. Um quadro ou um romance mundano lhe provocariam náuseas; um mujique de Tolstoi e um camponês de Millet eram o extremo limite social, que ela não permitia ao artista ultrapassar. Mas franquear o que limitava suas próprias relações, elevar-se até o convívio das duquesas, era a finalidade de todos os seus esforços, de tal modo permanecia ineficaz, contra o esnobismo congênito e mórbido que nela se desenvolvia, o tratamento espiritual a que se submetia através do estudo de obras-primas. Esse esnobismo terminara até curando certas inclinações à avareza e ao adultério, a que era propensa quando jovem, assemelhando-se nisso a esses singulares e contínuos estados patológicos que parecem imunizar os que deles sofrem contra outras doenças. Aliás, eu não podia, ao ouvi-la falar, deixar de fazer justiça ao refinamento de suas expressões, sem todavia sentir nenhum prazer nisso. São as que empregam, numa certa época, todas as pessoas de uma mesma estatura intelectual, de modo que a expressão refinada fornece de imediato, como o arco de um círculo, o meio de descrever e limitar toda a circunferência. Assim, tais expressões fazem com que as pessoas que as empregam me aborreçam logo como já conhecidas, mas também passam por superiores e muitas vezes me foram oferecidas como vizinhas deliciosas e inapreciadas.

            - A senhora bem sabe que muitas regiões florestais tiram o seu nome dos animais que as povoam. Vizinho à floresta de Chantepie, temos o bosque de Chantereine.

            - Não sei de que rainha se trata, mas o senhor não é galante com ela - disse o Sr. de Cambremer.

            - Pegue essa, Chochotte - disse a Sra. Verdurin. - E, fora isso, a viagem correu bem?

            - Só encontramos vagas humanidades que enchiam o trem. Mas respondo à pergunta do Sr. de Cambremer; rainha não é aqui a mulher de um rei, mas a rã. É o nome que ela conservou por muito tempo nesta região, como o testemunha a estação de Renneville, que deveria escrever-se Reinneville.

            - Parece-me que a senhora possui aí um belo animal - disse o Sr. de Cambremer à Sra. Verdurin, mostrando-lhe um peixe. Era um desses cumprimentos com que ele julgava pagar sua cota num jantar e já retribuir à gentileza. (“Inútil convidá-los," dizia com freqüência à mulher, falando de tais ou quais amigos. "Ficaram encantados de nos terem à sua mesa. Eles é que nos agradeciam.") - Aliás, devo dizer-lhe que há muitos anos vou quase diariamente a Renneville e lá não vi mais rãs do que em qualquer outro lugar. A Sra. de Cambremer mandou vir aqui o cura de uma paróquia onde possui fortes propriedades e que tem o mesmo feitio de espírito que o senhor, pelo que parece. Ele escreveu uma obra.

            - Sei disso, eu a li com grande interesse - respondeu hipocritamente Brichot.

            A satisfação que seu orgulho recebia indiretamente dessa resposta fez rir longamente o Sr. de Cambremer.

            - Pois bem, o autor, como direi, dessa geografia, desse glossário, discorre longamente acerca do nome de uma pequena localidade de que nós éramos outrora, se assim posso dizer, os senhores, e que se chama Pont-à-Couleuvre. Ora, é evidente que não passo de um vulgar ignorante ao lado desses poços de ciência, mas já fui mil vezes a Pont-à-Couleuvre, e diabos me levem se vi alguma vez uma única dessas serpentes danadas, digo danadas, apesar do elogio que lhes faz o bom La Fontaine (O Homem e a Cobra era uma das duas fábulas).

            - O senhor não viu, mas foi o senhor quem viu direito - respondeu Brichot.

            - Certames, o escritor de que fala conhece a fundo o seu assunto, escreveu um litro notável.

            - Claro! - exclamou a Sra. de Cambremer. - Este livro, é bolo que se diga, é um verdadeiro trabalho de beneditino.

            - Sem dúvida ele consultado pouillés (entende-se por isso a lista dos benefícios e curatos de cada diocese, o que lhe pôde fornecer o nome dos patronos antigos e dos colatores eclesiásticos). Mas existem outras fontes. Um de meus amigos mais sábios nelas se abeberou. Descobriu que este mesmo lugar era denominado Pont-à-Quileuvre. Esse nome esquisito o incitou a remontar mais longe ainda, a um texto latino em que a ponte que o seu amigo crê infestada de cobras é designada: Pons cus aperit. Ponte fechada, que se abria mediante uma contribuição razoável.

            - O senhor falava de rãs. Eu; achando-me no meio de pessoas tão sábias, tenho a impressão de que via rã diante do areópago - (era a segunda fábula) - disse Cancan, que muitas vezes fazia rindo esse gracejo, graças ao qual acreditava ao mesmo tempo, por humildade e bem a propósito, fazer profissão de ignorância e ostentação de saber. Quanto a Cottard, bloqueado pelo silêncio do Sr. de Charlus e tentando dar-se importância sob outros aspectos, voltou-se para mim e me fez uma dessas perguntas que impressionavam seus doentes se eram acertadas e mostravam que ele estava, por assim dizer, no corpo deles; se pelo contrário, eram erradas, permitiam-lhe retificar certas teorias, ampliar antigos pontos de vista.

            - Quando o senhor chega a locais relativamente elevados como este em que nos encontramos no momento, reparou que isto aumenta sua tendência às sufocações? - indagou, certo ou de se fazer admirar, ou de completar seus conhecimentos. O Sr. de Cambremer ouviu a pergunta, e sorriu.

            - Não posso lhe dizer como me agrada saber que o senhor tem sufocações - lançou-me ele através da mesa. Com isso, ele não queria dizer que a coisa o alegrava, embora isso também fosse verdade. Pois esse homem excelente não podia no entanto ouvir falar de desgraça de outrem sem um sentimento de bem-estar e um espasmo de hilaridade que rapidamente cediam à piedade de um bom coração. Mas sua frase tinha um outro sentido, que esclareceu a seguinte:

            - Isto me agrada - disse - porque precisamente a minha irmã também sofre disso.

            Em suma, aquilo lhe agradava como se me tivesse ouvido citar como sendo um de meus amigos alguém que tivesse freqüentado muito a sua casa.

            - Como é pequeno o mundo - foi a reflexão que ele formulou mentalmente e que vi escrita no seu rosto sorridente quando Cottard me falou de minhas sufocações. E estas se tornaram, a partir desse jantar, uma espécie de relações comuns de que o Sr. de Cambremer jamais deixava de pedir notícias, nem que fosse apenas para transmiti-las à irmã.

            Enquanto respondia às perguntas que sua mulher me fazia sobre Morel, eu pensava numa conversa que tivera com minha mãe à tarde. Como, embora não me desaconselhasse a ir à casa dos Verdurin, se isso podia distrair-me, ela me lembrasse que se tratava de um ambiente que não teria agradado a meu avô e o teria feito exclamar:

            "Em guarda!", minha mãe havia acrescentado: - Escuta, o presidente Toureuil e sua esposa me disseram que haviam jantado com a Sra. Bontemps. Não me perguntaram nada. Mas julguei compreender que o casamento de Albertine contigo seria o sonho da sua tia. Creio que a verdadeira razão é que és muito simpático a todos eles. Ainda assim, o luxo que eles acham que poderias lhes dar, as relações que mais ou menos sabem que nós temos, creio que tudo isso não lhes é estranho, embora secundário. Não te falaria nisso porque não ligo muito para tais coisas, mas, como suponho que vão te falar, preferi tomar a dianteira.

            - Mas tu, que achas de Albertine? perguntara eu a mamãe.

            - Ora, eu, não serei eu quem se casará com ela. Decerto podes arranjar coisa mil vezes melhor em matéria de casamento. Mas creio que tua avó não gostaria que te influenciassem. Atualmente não posso te dizer como acho Albertine, não acho nada. Direi como a Sra. de Sévigné: "Ela tem boas qualidades, pelo menos é o que creio. Mas agora no começo, só sei louvá-la com negativas. Ela não é isto, ela não tem o sotaque de Rennes. Com o tempo, talvez, eu diga: ela é isto." E sempre a acharei bem, se ela te fizer feliz. -

            Mas, com essas mesmas palavras, que colocavam nas minhas mãos a decisão sobre a minha própria felicidade, minha mãe me pusera nesse estado de dúvida em que eu já me vira quando, tendo meu pai permitido que eu fosse à representação da Fedra, e principalmente, que me tornasse escritor, sentira de súbito uma responsabilidade excessivamente grande, o medo de afligi-lo, e aquela melancolia que se sente quando se deixa de obedecer a ordens que, no dia-a-dia, nos ocultam o futuro, de perceber que afinal começamos a viver a vida de verdade, como gente grande, a única vida que está à disposição de todos nós. Talvez fosse melhor esperar um pouco, começar a lidar com Albertine como antigamente, para tentar ver se a amava de verdade. Poderia levá-la à casa dos Verdurin para distraí-la, e isso me lembrou que eu mesmo só estava ali aquela noite para saber se a Sra. Putbus ali estava hospedada ou ainda ia chegar. Em todo caso, não viera para jantar.

            - A propósito de seu amigo Saint-Loup - disse-me a Sra. de Cambremer, empregando assim uma expressão que denotava mais seguimento nas idéias do que suas frases dariam a entender; pois, falando de música, pensava em Guermantes -, o senhor sabe que todo mundo fala de seu casamento com a sobrinha da princesa de Guermantes. Dir-lhe-ei que, de minha parte, não me preocupo a mínima com esses mexericos mundanos. -

            Assaltou-me o temor de haver falado sem simpatia, diante de Robert, dessa jovem falsamente original, cujo espírito era tão medíocre quanto violento o caráter. Há quase uma só notícia que venhamos a saber que nos faça lastimar uma de nossas frases. Respondi à Sra. de Cambremer que não sabia de nada; que aliás era verdade, e que além disso a noiva me parecia ainda muito jovem.

            - Talvez por causa disso é que o noivado ainda não seja oficial; em todo caso, falam muito nisso. -

            Tendo ouvido que a Sra. de Cambremer me falar de Morel e julgando que ainda o fazia quando baixou a voz para me falar do noivado de Saint-Loup, disse-lhe secamente a Sra. Verdurin:

            - Quero preveni-la; não é música sem valor o que aqui se toca. A senhora sabe, em arte os fiéis das minhas quartas, meus filhos, como lhes chamo, é uma coisa espantosa como são avançados - ajuntou ela com ar de orgulhoso terror. - Muitas vezes lhe digo: "Meu pessoalzinho, vocês andam mais depressa do que aqui a sua Patroa, a quem, no entanto, passam as audácias por nunca terem causado medo." Todos os anos isso vai um pouco mais longe; virá em breve o dia em que ultrapassarão Wagner e d'Indy.

            - Mas é muito bom ser avançado, nunca se é o bastante - disse a Sra. de Cambremer, sempre inspecionando cada canto da sala de jantar, procurando reconhecer as coisas que a sogra havia deixado, as que a Sra. Verdurin trouxera, e apanhar esta em flagrante delito de falta de gosto. No entanto, buscava falar-me do assunto que mais a interessava: o Sr. de Charlus. Achava tocante que o barão protegesse um violinista. - Ele parece inteligente. É até de uma verve extrema para quem já é um tanto idoso.

            - Idoso? Mas ele não tem jeito de idoso; olhe, o cabelo ainda é de moço. (Pois fazia uns três ou quatro anos que a palavra "cabelo" fora empregada no singular por um desses desconhecidos que são os lançadores de modas literárias, e todas as pessoas que tinham o comprimento de raio da Sra. de Cambremer diziam "o cabelo", não sem um sorriso afetado. Atualmente, ainda se diz "o cabelo", mas do excesso do singular renascerá o plural.)

            - O que me interessa, acima de tudo, no Sr. de Charlus - acrescentou - é que se sente nele o dom. Digo-lhe que pouco me importa o saber. O que se aprende não me interessa. -

            Tais palavras não estão em contradição com o valor particular da Sra. de Cambremer, que era precisamente imitado e adquirido. Mas justamente uma das coisas que se deviam saber naquele momento é que o saber não é nada e não pesa coisa alguma ao lado da originalidade. A Sra. de Cambremer aprendera, como o resto, que não é preciso aprender nada.

            - É por isso - disse ela - que Brichot, que tem lá o seu lado curioso, pois não desprezo certa erudição saborosa, interessa-me no entanto muito menos. -

            Mas Brichot, naquele instante, só estava ocupado com uma coisa: ouvindo que falavam de música, receava que o assunto recordasse à Sra. Verdurin a morte de Dechambre. Queria dizer alguma coisa para afastar essa lembrança funesta. O Sr. de Cambremer forneceu-lhe a ocasião com esta pergunta:

            - Então, os lugares onde há florestas têm sempre nomes de animais?

            - Como não? - respondeu Brichot, contente por ostentar seu saber diante de tantos novos, entre os quais eu lhe dissera que estava certo de interessar ao menos um. - Basta ver como, nos próprios nomes de pessoas, uma árvore é conservada, como um feto na hulha. Um de nossos padres conscritos se chama Sr. de Saulces de Freycinet, o que significa, salvo engano, lugar plantado de salgueiros e de freixos, salix et fraxinetum; seu sobrinho, Sr. de Selves, reúne mais árvores ainda, visto que se chama de Selves, sylva. -

            Com satisfação, Saniette via a conversa animar-se.

            Podia, já que Brichot falava o tempo todo, conservar um silêncio que lhe evitaria ser o objeto dos motejos do Sr. e da Sra. Verdurin. E, tornando-se ainda mais sensível na alegria da libertação, emocionara-se ao ouvir o Sr. Verdurin, malgrado a solenidade de um tal jantar, dizer ao mordomo que pusesse uma jarra d'água junto do Sr. Saniette, que não bebia outra coisa. (Os generais que mais sacrificam soldados fazem questão de mantê-los bem alimentados.) Enfim, a Sra. Verdurin sorrira uma vez para Saniette. Decididamente eram boas pessoas. Ele não mais seria torturado.

            Nesse momento, a refeição foi interrompida por um convidado que eu me esquecera de citar, um ilustre filósofo norueguês que falava francês muito bem, porém muito lentamente, por dois motivos: primeiro, porque, tendo-o aprendido há pouco e não querendo cometer erros (entretanto cometia alguns), reportava-se para cada palavra a uma espécie de dicionário interior; depois, porque, sendo metafísico, pensava sempre o que desejava dizer enquanto o dizia, o que, mesmo num francês, é causa de lentidão. De resto, era uma criatura deliciosa, embora aparentemente igual a tantas outras, menos sob um aspecto. Esse homem, de falar tão vagaroso (havia um certo silêncio entre duas palavras), tornava-se de uma rapidez vertiginosa para escapar logo que se despedia. Da primeira vez, sua precipitação fazia pensar numa cólica ou até numa necessidade mais imperiosa.

            - Meu caro... colega - disse ele a Brichot, depois de haver deliberado em seu espírito se "colega" era o termo conveniente -, tenho uma espécie de desejo de saber se há outras árvores na nomenclatura de sua bela língua francesa latina normanda. A senhora (ele queria dizer Sra. Verdurin, embora não se atrevesse a encará-la) me disse que o senhor sabia todas as coisas. Não será este precisamente o momento?

            - Não, momento de comer - interrompeu a Sra. Verdurin, que via que o jantar não acabava. - Ah, muito bem - respondeu o escandinavo baixando a cabeça para o prato, com um sorriso triste e resignado. - Porém devo observar, a senhora que se me permite esse questionário, perdão, essa questação - que amanhã devo voltar a Paris para jantar na Tour d'Argent ou no Hotel Meurice. Meu confrade francês -, Sr. Boutroux, deve nos falar de sessões de espiritismo perdão, de evocações espirituosas que ele controlou.

            - Não é tão bom como dizem, o Tour d'Argent - retrucou a Sra. Verdurin, irritada. - Cheguei a ter ali uns jantares detestáveis.

            - Mas estou enganado, o que se come na casa da Senhora não é a mais fina cozinha francesa?

            - Meu Deus, positivamente não é mau - respondeu a Sra. Verdurin suavizada. - E, se o senhor voltar na quarta-feira próxima, será ainda melhor.

            - Mas segunda-feira parto para a Argélia e de lá vou até o Cabo. E, quando estiver no Cabo da Boa Esperança, não poderei mais encontrar o meu ilustre colega perdão, não poderei encontrar mais o meu confrade. -

            E pôs-se, por obediência, após ter fornecido essas desculpas retrospectivas, a comer com rapidez vertiginosa. Mas Brichot estava bem feliz de poder dar outras etimologias vegetais e respondeu, interessando de tal modo o norueguês que este parou novamente de comer, mas fazendo sinal de que podiam lhe tirar o prato cheio e servir o seguinte:

            - Um dos Quarenta - disse Brichot - é chamado Houssaye, ou lugar plantado de azevinhos (houx); no nome de um fino diplomata, o Sr. d'Ormesson, o senhor encontra o olmo (orme), o ulmus caro a Virgílio e que deu seu nome á cidade de Ulm; no de seus colegas, o Sr. de La Boulaye, a bétula (bouleau); no Sr. d'Aunay, o amieiro (aune); no Sr. de Bussiere, o buxo (buís); no Sr. Albaret, o alburno (aubier) (prometi a mim mesmo dizê-lo a Céleste); no Sr. de Cholet, a couve (chou); e a macieira (pommíer) do nome do Sr. de La Pommeraye que nós ouvimos conferenciar (lembra-se, Saniette?), na época em que o bom Porei fora enviado aos confins do mundo como procônsul na Odéonie? -

            Ao nome de Saniette pronunciado por Brichot, o Sr. Verdurin lançou à mulher e a Cottard um olhar irônico que desmontou o tímido.

            - Afirmava o senhor que Cholet provém de chou - disse eu a Brichot. - Será que uma estação pela qual passei antes de chegar a Doncieres, Saint-Frichoux, também provém de chou? - Não, Saint-Frichoux é Sanctus Fructuosus, como Sanctus Ferreolus deu Saint-Fargeau, mas isto não é absolutamente de origem normanda.

            - Ele sabe coisas demais, ele nos aborrece - gargarejou docemente a princesa. -

            Há tantos outros nomes que me interessam, mas não posso perguntar-lhe todos de uma só vez:

            E, virando-me para Cottard:

            - Será que a Sra. Putbus está aqui? - indaguei.

            - Graças a Deus, não - respondeu a Sra. Verdurin, que ouvira a minha pergunta. - Tratei de desviar as suas vilegiaturas para Veneza; estamos livres dela este ano.

            - Eu mesmo vou ter direito a duas árvores - disse o Sr. de Charlus -, pois tenho mais ou menos reservada uma pequena casa entre Saint-Martin-du-Chêne e Saint-Pierre-des-lfs.

            - Mas é muito perto daqui; espero que volte muitas vezes em companhia de Charlie Morel. Não terá mais do que entrar em acordo com o nosso pequeno grupo quanto aos trens, está a dois passos de Doncieres - disse a Sra. Verdurin, que detestava que não viessem pelo mesmo trem e às horas em que enviava os carros para a estação. Ela sabia como era penosa a subida para La Raspeliere, mesmo contornando-a por trás da Féterne, o que dava um atraso de meia hora, e temia que aqueles que formassem um grupo à parte não encontrassem carros para levá-los, ou que, tendo na verdade ficado em casa, pudessem pretextar não terem encontrado carros em Douville-Féterne e não se sentirem com forças para fazer uma tal subida a pé. A esse convite, o Sr. de Charlus se limitou a responder com uma inclinação muda.

            - Ele não deve ser fácil de tratar todos os dias, tem um ar afetado - sussurrou Ski ao doutor que, tendo permanecido uma criatura simples, apesar de uma camada superficial de orgulho, não procurava ocultar que Charlus o esnobava.

            - Sem dúvida, ele ignora que em todas as estações de águas e até em Paris, nas clínicas, os médicos, para quem sou naturalmente o "grande chefe", fazem questão de me apresentar a todos os nobres que aí estejam e que não vão demorar muito. Isso torna até bem agradável para mim a permanência nas estâncias balneárias - acrescentou com ar leviano. - Mesmo em Doncieres, o major do regimento, que é médico assistente do coronel, convidou-me para almoçar com ele dizendo que eu estava em condições de jantar com o general. E esse general era um senhor de alguma coisa. Não sei se esses títulos de nobreza são mais ou menos antigos que o deste barão.

            - Não deixe que isto lhe suba à cabeça, é uma bem pobre coroa - respondeu Ski a meia voz, e acrescentou algo confuso com um verbo, onde apenas distingui as últimas sílabas "ardor", ocupado como estava em ouvir o que Brichot dizia ao Sr. de Charlus.

            - Provavelmente não, lamento dizer-lhe, o senhor só tem uma árvore, pois, se Saint-Martin-du-Chêne é evidentemente Sanctus Martínus juxta quercum, por outro lado a palavra if pode ser simplesmente a raiz, ave, eve, que quer dizer úmido, como em Aveyron, Lodeve, Yvette, e que o senhor vê subsistir em nossas pias (évíers) de cozinha. É a "água", que em bretão se diz Ster: Stermaria, Sterlaer, Sterbouest, Ster-en-Dreuchen. -

            Não escutei o final, pois, por maior que fosse o prazer que sentia em voltar a ouvir o nome de Stermaría, ouvia sem querer, a meu lado, Cottard dizendo baixinho a Ski:

            - Ah, mas eu não; sabia! Então, trata-se de um senhor que sabe se virar por todos os lados na vida! Como! Pertence à confraria! No entanto não tem os olhos pisados. Precisarei de cuidar dos pés embaixo da mesa, era só o que faltava; me deixasse bolinar por ele. Aliás, isto só parcialmente me deixa espantado. Vejo diversos nobres na ducha, em trajes de Adão; são mais ou menos uns degenerados. Nem lhes falo, porque, afinal, sou funcionário e isto poderia me causar transtornos. Mas eles sabem perfeitamente quem sou.

            Saniette, a quem a interpelação de Brichot assustara, começava a respirar como alguém que tem medo da tempestade e que percebe que o raio não foi seguido de nenhum rumor de trovão, quando ouviu o Sr. Verdurin questioná-lo, fixando nele um olhar que não largava o infeliz enquanto estava falando, de modo a perturbá-lo imediatamente e a não lhe permitir recobrar o ânimo:

            - Mas Saniette, como é que sempre nos ocultou que freqüentava as matinês do Odeon? - Trêmulo como um recruta diante de um sargento torturador, Saniette respondeu, dando à sua frase as menores dimensões que pôde, a fim de que tivesse mais chances de escapar aos golpes:

            - Uma vez, em La Chercheuse.

            - Que é que ele está dizendo? - bramiu o Sr. Verdurin, com ar a um tempo desgostoso e furibundo, franzindo as sobrancelhas como se necessitasse de toda a sua atenção para entender algo de ininteligível. - Primeiro, não se compreende o que está dizendo. O que tem você na boca? -perguntou o Sr. Verdurin, cada vez mais violento, e aludindo ao defeito de pronúncia de Saniette. - Pobre Saniette, não quero que o faça infeliz - disse a Sra. Verdurin num tom de falsa piedade e para não deixar dúvida em ninguém quanto às insolentes intenções do marido.

            - Eu estava na Ch...

            - Che, che, che, procure falar claramente -, disse o Sr. Verdurin -, não o ouço de jeito nenhum. -

            Quase nenhum dos fiéis continha o riso e tinham o aspecto de um bando de antropófagos em que a ferida feita num branco desperta o gosto pelo sangue. Pois o instinto de imitação e a ausência de coragem governam tanto as sociedades como as multidões. E todo mundo ri de alguém de quem se vê zombar, arriscando-se a venerá-lo dez anos depois em um círculo onde é admirado. Da mesma forma, o povo aclama e enxota os reis.

            - Ora - disse a Sra. Verdurin -, não é culpa dele.

            - Também não é minha, a gente não janta fora quando não consegue mais articular as palavras.

            - Eu estava assistindo e La Chercheuse d'esprit, de Favart.

            - O quê! É a Chercheuse d'esprit que você chamava de Chercheuse? Ah! É magnífica, eu poderia ficar imaginando cem anos que não descobriria nada - exclamou o Sr. Verdurin, que no entanto logo acharia que alguém não era letrado, artista, "não era dos seus", se ouvisse dizer o título completo de certas obras. Por exemplo, era imperioso dizer Le Malade, Le Bourgeois; e aqueles que acrescentassem lmaginaire ou Gentilhomme teriam revelado não serem "da roda", assim como, em um salão, alguém prova não pertencer à alta sociedade ao dizer: o Sr. de Montesquiou-Fezensac em vez de Sr. de Montesquiou.

[Alusão a duas peças de Moliere: O Doente Imaginário ("Le Malade lmaginaire"), e O Burguês Fidalgo.("Le Bourgeois Gentilhomme"). (N. do L)]

            - Mas não é assim tão extraordinário - observou Saniette, sufocado pela emoção, porém risonho, conquanto não tivesse vontade de rir. -

            A Sra. Verdurin estourou:

            - Ah, é? - exclamou, escarnecendo. - Fique certo de que ninguém no mundo poderia adivinhar que se tratava de La Chercheuse d'esprit. -

            O Sr. Verdurin retornou com voz suave e, dirigindo-se ao mesmo tempo a Saniette e a Brichot:

            - Aliás, é uma bela peça La Chercheuse d'esprit. -

            Pronunciada em tom sério, esta simples frase, onde não se podia achar nenhum sinal de maldade, fez tanto bem a Saniette e excitou nele tanta gratidão como se fosse uma amabilidade. Ele não pôde proferir uma só palavra e manteve um silêncio feliz. Brichot foi mais loquaz:

            - É verdade - respondeu ele ao Sr. Verdurin- e, se a fizessem passar por obra de algum autor sármata ou escandinavo, poderiam apresentar a candidatura de La Chercheuse d'esprit à condição vacante de obra-prima. Mas diga-se, sem faltar com o respeito aos manes do gentil Favart, ele não era de temperamento ibseniano. (E logo enrubesceu até as orelhas, pensando no filósofo norueguês, o qual tinha um ar infeliz porque buscava em vão identificar que tipo de vegetal podia ser o buis de que há pouco falara Brichot a propósito de Bussiere.) Aliás, a satrapia de Porei estava ocupada agora por um funcionário que é um tolstoiniano de rigorosa observância, e poderia ocorrer que víssemos Anna Karenina ou Ressurreição sob a arquitrave odeônica.

            - Sei a qual retrato de Favart o senhor quer se referir - disse o Sr. de Charlus. - Vi uma prova muito linda na casa da condessa Molé. -

            O nome da condessa Molé causou forte impressão na Sra. Verdurin:

            - Ah! O senhor costuma ir à casa da Sra. de Molé! - exclamou ela. Pensava que se dizia "a condessa Molé", "Sra. Molé", simplesmente por abreviação, como ouvia dizer os Rohan, ou, por desdém, como ela própria dizia: senhora La Trémoïlle. Não tinha nenhuma dúvida de que a condessa Molé, conhecendo a rainha da Grécia e a princesa de Caprarola, tivesse mais que ninguém direito à partícula, e estava decidida, de uma vez por todas, a dá-la a uma pessoa tão brilhante e que se mostrava muito amável com ela. Assim, para mostrar que falara desse modo intencionalmente e não regateava esse "de" à condessa, prosseguiu: - Mas eu absolutamente não sabia que o senhor conhecia a senhora de Molé! - como se fosse duplamente extraordinário que o Sr. de Charlus conhecesse aquela dama e que a Sra. Verdurin não soubesse que ele a conhecia. Ora, a alta sociedade, ou pelo menos aquilo que o Sr. de Charlus assim denominava, forma um todo relativamente homogêneo e fechado. Se, por um lado, é compreensível que na disparatada imensidade da burguesia um advogado diga, a alguém que conhece um de seus companheiros de colégio: "Mas como diabos você conhece Fulano?" em compensação, espantar-se de que um francês conheça o sentido das palavras tempo ou floresta não seria mais extraordinário do que se admirar dos acasos que tinham podido reunir o Sr. de Charlus e a condessa Molé. Ademais, mesmo se um tal conhecimento não tivesse decorrido naturalmente das leis mundanas, se tivesse sido fortuito, como seria estranho que a Sra. Verdurin o ignorasse, já que via o Sr. de Charlus pela primeira vez e que as relações deste com a Sra. Molé estavam longe de ser a única coisa que ela não sabia a seu respeito, de que, na verdade, não sabia nada.

            - Quem era que representava essa Chercheuse d'esprit, meu caro Saniette? - perguntou o Sr. Verdurin. Mesmo sentindo que a tempestade passara, o antigo arquivista hesitou em responder.

            - Mas também, tu o intimidas - disse a Sra. Verdurin -, zombas de tudo o que ele diz e depois queres que ele responda. Vamos, diga quem representava aquilo, e lhe daremos galantina para levar para casa - acrescentou ela, fazendo uma alusão malévola à ruína em que caíra Saniette querendo salvar um casal amigo.

            - Lembro-me apenas de que era a Sra. Samary que fazia o papel da Zerbine - disse Saniette.

            - A Zerbine? O que é isso? - gritou o Sr. Verdurin como se houvesse um incêndio.

            - É uma personagem do antigo repertório, como O Capitão Fracasso, como quem diz o Fanfarrão, o Pedante.

            - Ah, o pedante é você! A Zerbine! Não, mas ele está tocado! - exclamou o Sr. Verdurin.

            A Sra. Verdurin olhou para seus convivas rindo, para desculpar Saniette.

            - A Zerbine! Ele pensa que todo mundo sabe logo o que significa isso. Você é como o Sr. de Longepierre, o homem mais idiota que conheço, que outro dia nos falava familiarmente "o Banat". Ninguém ficou sabendo do que ele estava falando. Finalmente fomos informados de que se tratava de uma província da Sérvia. -

            Para terminar com o suplício de Saniette, que me fazia mais mal do que a ele, perguntei a Brichot se sabia o que significava Balbec.

            - Balbec é provavelmente uma corruptela de Dalbec - disse ele. - Seria preciso consultar as cartas dos reis da Inglaterra, suseranos da Normandia, pois Balbec era dependente da baronia de Douvres, devido a que se dizia muitas vezes Balbec d'Outre-Mer, Balbec-en-Terre. Mas a própria baronia de Douvres dependia do bispado de Bayeux e, apesar dos direitos que os templários tiveram momentaneamente sobre a abadia a partir de Louis d'Harcourt, patriarca de Jerusalém e bispo de Bayeux, os bispos dessa diocese é que foram coletores dos bens de Balbec. Foi o que me explicou o deão de Doville, homem calvo, eloqüente, quimérico e gourmet, que vive na obediência a Brillat-Savarin, e me expôs incertas pedagogias com termos um tanto sibilinos, enquanto me fazia comer admiráveis batatas fritas. -

            Ao passo que Brichot sorria, para mostrar o que havia de espirituoso em juntar desse modo coisas tão dispares e empregar para coisas comuns uma linguagem ironicamente elevada, Saniette tentava encaixar algo espirituoso que pudesse reerguê-lo de seu desmoronamento de há pouco. A saída era o que ele chamava de "semelhança", mas que mudara de forma, pois existe uma evolução para os trocadilhos bem como para os gêneros literários e as epidemias, que desaparecem substituídos por outros, etc. Antigamente, a forma dessa "semelhança" era o "cúmulo". Mas estava antiquada, ninguém mais a empregava, e somente Cottard é que dizia ainda às vezes, durante uma partida de piquet:

            - Sabem qual é o cúmulo da distração? É tomar o édito de Nantes por uma inglesa. -

            Os cúmulos tinham sido substituídos pelos apelidos. No fundo, era sempre a mesma velha "semelhança", mas, como o apelido estava na moda, ninguém se dava conta disso. Infelizmente para Saniette, quando esses ditos não eram seus e normalmente desconhecidos do pequeno núcleo, ele os citava tão timidamente que, apesar do riso com que os acompanhava para assinalar o seu caráter humorístico, ninguém os compreendia. E, se, ao contrário, o dito era de sua palavra, como ele o houvesse conhecido através de um dos fiéis, este o repetia, adotando-o, e a frase então se tornava conhecida, mas não como sendo de Saniette. Assim, quando ele introduzia um desses, todos o reconheciam, mas, como ele se dava por autor, acusavam-no de plágio.

            - Pois bem - prosseguiu Brichot -, Bec em normando quer dizer regato; existe a abadia de Bec, Mobec, o regato do pântano (mor ou mer queria dizer pântano, como em Morville, ou em Bricquemar, Alvimare, Cambremer); Bricquebec, o regato da altura, provém de briga, lugar fortificado, como em Bricqueville, Bricquebosc, o Bric, Briand, ou então de brice, ponte, que é o mesmo que bruck em alemão (Innsbruck) e que bridge em inglês, que é a terminação de tantos nomes de localidades (Cambridge, etc.). Temos ainda na Normandia muitos outros bec: Caudebec, Balbec, Robec, o Bec Hellouin, Becquerel. É a forma normanda do germano Bach, Offenbach, Anspach; Varaguebec, da antiga palavra varaigne, equivalente de souto (garenne), bosques, tanques reservados. Quanto a dar - prosseguiu Brichot -, trata-se de uma forma de Thal, vale: Dametal, Rosendal, e até mesmo, perto de Louviers, Beccial. Orio que deu nome a Dalbec aliás é um encanto. Visto de uma penedia (Fels em alemão; o senhor tem mesmo, não longe daqui, "toupeira", o que, na sua opinião, não era próprio para um homem inteligente.

            - Não disse ele com um ar de eqüidade -, creio que sua mulher e ele são feitos um para o outro. Deus sabe que não conheço criatura mais aborrecida sobre a face da Terra e ficaria exasperada se me fosse preciso passar duas horas com ela. Mas dizem que ele a considera muito inteligente. É preciso confessar: o nosso Tiche era sobretudo extremamente imbecil! Já o vi deslumbrado com pessoas que o senhor nem imagina, grandes idiotas que jamais haveríamos de querer em nosso pequeno clã. Pois bem! Ele lhes escrevia, discutia com ela, ele, Elstir! Isto não impede seus lados encantadores, ah! Encantadores, encantadores e deliciosamente absurdos, é claro! - Pois a Sra. Verdurin estava convencida de que os homens verdadeiramente notáveis praticam mil loucuras. Idéia falsa onde, entretanto, existe um pouco de verdade. Claro que as "loucuras" das pessoas são insuportáveis. Mas um desequilíbrio que somente se descobre com o passar do tempo é a conseqüência da entrada, num cérebro humano, de delicadezas para as quais ele habitualmente não é feito. De maneira que irritam as estranhezas de pessoas encantadoras, mas também não há pessoa encantadora que não seja estranha. - Olhe, já vou poder mostrar-lhe as flores -disse ela, vendo que o marido lhe fazia sinal de que podiam erguer-se da mesa. E retomou o braço do Sr. de Cambremer. O Sr. Verdurin quis desculpar-se com o Sr. de Charlus logo que deixou a Sra. de Cambremer, e dar-lhe os seus motivos, sobretudo pelo prazer de conversar sobre esses matizes mundanos com um homem titulado, momentaneamente tido como inferior àqueles que tomavam o lugar a que julgava ter direito. Mas, antes de tudo, fez questão de mostrar ao Sr. de Charlus que intelectualmente o considerava muito, para pensar que ele desse atenção a tais bagatelas:

            - Desculpe-me o estar falando dessas ninharias - começou -, pois suponho perfeitamente o pouco caso que o senhor dá a essas coisas. Os espíritos burgueses fazem questão disso, mas os outros, os artistas, as pessoas que o são de fato, pouco se importam. Ora, desde as primeiras palavras que trocamos, compreendi que o senhor era um desses! -

            O Sr. de Charlus, que dava a essa locução um sentido completamente diverso, teve um estremecimento. Depois das olhadelas do doutor, a franqueza injuriosa do Patrão o sufocava.

            - Não proteste, meu caro senhor, é um deles, está claro como o dia- prosseguiu o Sr. Verdurin. - Repare que não sei se o senhor exerce alguma arte, mas não é necessário e nem sempre é bastante. Dechambre, que acaba de falecer, trabalhava perfeitamente com o mais robusto mecanismo, mas não era desses, sentia-se logo que ele não era Brichot; não é Morel é, minha mulher é, sinto que o senhor é...

            - Que ia me dizer? - interrompeu o Sr. de Charlus, que principiava a tranqüilizar-se com o que o Sr. Verdurin queria significar, mas que preferia que ele gritasse mais baixo essas palavras de duplo sentido.

            - Nós apenas o colocamos à esquerda - respondeu o Sr. Verdurin.

            O Sr. de Charlus, com um sorriso compreensivo, bonachão e insolente, respondeu:

            - Mas ora! Isto não tem nenhuma importância, aqui! - E deu um risinho que lhe era especial, que lhe vinha provavelmente de alguma avó bávara ou lorena, que o herdara ela própria, idêntico, de uma avó, de modo que ele soava assim, sem mudança, desde não poucos séculos, nas velhas cortes da Europa, e cujo precioso timbre era desfrutado com gosto como o de certos instrumentos antigos hoje raríssimos.

            Há momentos em que, para pintar completamente a alguém, é necessário que a imitação fonética se junte à descrição, e a do personagem que o Sr. de Charlus representava, arriscava-se a ser incompleta devido à falta desse risinho tão fino, tão leve, como certas suítes de Bach nunca são exatamente reproduzidas porque faltam às orquestras essas "pequenas trombetas" de som tão particular, para as quais o autor escreveu tal ou qual parte.

            - Mas - explicou o Sr. Verdurin, constrangido foi de propósito. - Não dou a menor importância a títulos de nobreza - acrescentou, com esse sorriso de desdém que já vi em tantas pessoas que conheço, ao contrário de minha avó e de minha mãe, para com tudo aquilo que não possuem, diante daqueles que, segundo pensam, não poderão com isso se sentir superiores a elas. - Mas enfim, já que estava presente justo o Sr. de Cambremer, que é marquês, ao passo que o senhor é somente barão...

            - Permita - respondeu o Sr. de Charlus, com ar altivo, ao Sr. Verdurin espantado - sou igualmente duque de Brabant, donzel de Montargis, príncipe de Oléron, de Carency, de Viareggio e de Dunes. Aliás, isso não tem a menor importância. Não se atormente - acrescentou, retomando o seu risinho fino, que se esvaneceu diante destas últimas palavras: - Logo vi que o senhor não estava habituado.

            A Sra. Verdurin veio ao meu encontro para me mostrar as flores de Elstir. Se este ato, há muito tão indiferente para mim, de ir jantar fora, ao contrário não me houvesse, sob a forma que o renovaria inteiramente de uma viagem ao longo do litoral, seguida de uma subida em carro até duzentos metros acima do mar, causado uma espécie de embriaguez, esta não se dissipara na Raspeliere.

            - Olhe, veja só isto - disse a Patroa, mostrando-me grandes e magníficas rosas de Elstir, mas cujo untuoso escarlate e a brancura agitada se realçavam com um relevo um tanto cremoso demais sobre a jardineira em que estavam. - Acha que ele poderia ainda ter mão bastante para fazer isto? É demais! E depois, é belo como matéria, seria divertido de apalpar. Nem posso lhe dizer como era divertido vê-las sendo pintadas. Sentia-se que ele se empenhava em buscar este efeito. -

            O olhar da Patroa se demorou sonhadoramente naquele presente do ato em que se achavam resumidos não só o seu grande talento, mas a longa amizade que somente sobrevivia nessas lembranças que lhe deixara por trás das flores que ele outrora colhera para ela própria; a Sra. Verdurin julgava rever a bela mão que as havia pintado, certa manhã, com todo seu frescor, de modo que, umas sobre a mesa, o outro encostado numa poltrona da sala de jantar, tinham podido figurar em colóquio, para o almoço da Patroa, as rosas ainda vivas e o seu retrato meio parecido. Meio oferecido, apenas, pois Elstir só podia olhar uma flor transplantando-a primeiro para esse jardim interior onde sempre somos forçados a permanecer. Nesta aquarela, ele havia mostrado a aparição das rosas que contemplara e que, sem ele, nunca teríamos conhecido; de forma que se pode dizer que era uma variedade nova com que esse pintor, como um horticultor engenhoso, havia enriquecido a família das rosas.

            - A partir do dia em que ele abandonou o pequeno núcleo, era um homem acabado. Parece que meus jantares o faziam perder tempo, que eu prejudicava o desenvolvimento do seu gênio - disse ela num tom irônico. - Como se a convivência com uma mulher como eu, pudesse não ser saudável a um artista! - exclamou num assomo de orgulho.

            Bem junto a nós, o Sr. de Cambremer, que já estava sentado, esboçou, ao ver o Sr. de Charlus de pé, um movimento para se levantar e ceder sua cadeira. Tal oferecimento talvez não correspondesse, no pensamento do marquês, senão a um propósito de vaga polidez. O Sr. de Charlus preferiu atribuir-lhe a significação de um dever que o simples gentil homem sabia que precisava prestar a um príncipe, e não achou melhor maneira de estabelecer o seu direito a essa precedência senão declinando-a. Assim, exclamou:

            - Mas como! Peço-lhe! Ora essa! - O tom astuciosamente incisivo desse protesto já continha algo de fortemente "Guermantes", que se acusou sobretudo no gesto imperativo, inútil e familiar com que o Sr. de Charlus pousou ambas as mãos, e como que para forçá-lo a reassentar-se, nos ombros do Sr. de Cambremer, que não se levantara: - Ora veja, meu caro insistiu o barão era só o que faltava! Não há motivo para isso! Em nosso tempo só se reservam estas coisas para os príncipes de sangue real. -

            Não emocionei mais aos Cambremer do que à Sra. Verdurin com meu entusiasmo pela sua casa. Pois eu me mantinha frio diante das belezas que me apontavam e exaltava-me com reminiscências confusas: por vezes chegava até a lhes confessar a minha decepção sem achar algo de acordo com o que seu nome me fizera imaginar. Deixei indignada a Sra. de Cambremer ao lhe dizer que julgara que aquilo tudo fosse mais campesino. Em compensação, parei em êxtase a aspirar o aroma de um vento encanado que passava pela porta.

            - Vejo que o senhor aprecia as correntes de ar disseram-me eles.

            Meu elogio da lustrina verde que tapava um caixilho quebrado não teve melhor êxito:

            - Mas que horror! - gritou a marquesa.

            O cúmulo foi quando eu disse:

            - Minha maior alegria se deu quando cheguei. Ao ouvir meus passos ressoarem na galeria, julguei que entrava em não sei qual escritório da prefeitura da aldeia, onde existe o mapa da região. -

            Desta vez a Sra. de Cambremer me voltou resolutamente as costas.

            - Não achou tudo isto muito mal arranjado? - perguntou-lhe o marido, com a mesma solicitude apiedada com que indagaria de que modo a mulher havia suportado uma triste cerimônia.

            - Há coisas belas. -

            Mas como a malevolência, quando as regras fixas de um gosto seguro não lhe impõem limites inevitáveis, acha tudo que criticar na pessoa ou na casa de quem nos suplantou:

            - Sim, mas não estão em seu lugar. E serão mesmo tão belas assim? - disse a Sra. de Cambremer.

            - O senhor reparou - disse o Sr. de Cambremer, com uma pena em que transparecia alguma firmeza - que há quadros de Jouy em que se vê a tela, coisas já totalmente gastas neste salão?

            - E esta peça de tecido com suas grandes rosas, como uma manta de camponesa - disse a Sra. de Cambremer, cuja cultura, toda postiça, aplicava-se exclusivamente à filosofia idealista, à pintura impressionista e à música de Debussy. E, para não protestar exclusivamente em nome do luxo, mas também do bom gosto:

            - E puseram meia cortina! Que falta de estilo! Que querem dessa gente, não sabem nada, onde teriam aprendido? Devem ser grandes comerciantes aposentados. Já não é muito mau para eles. Os lustres me pareceram bonitos - disse o marquês, sem que soubessem por que ele excetuava os lustres, assim como, a cada vez que se falava de uma igreja, fosse a catedral de Chartres, de Reims, de Amiens, ou a igreja de Balbec, inevitavelmente o que ele sempre se apressava a citar como admirável era: "a caixa do órgão, o púlpito e as obras de misericórdia".

            - Quanto ao jardim, nem falemos - disse a Sra. de Cambremer. - É um massacre. Essas aléias que vão em ziguezague!

            Aproveitei que a Sra. Verdurin estava servindo o café para dar uma espiada na carta que o Sr. de Cambremer me entregara, na qual a sua mãe me convidava para jantar. Com um pingo de tinta, a escrita traduzia uma individualidade, de agora em diante reconhecível entre todas, sem que mais houvesse necessidade de recorrer à hipótese de penas especiais, como tintas raras e misteriosamente fabricadas não se fazem necessárias ao pintor para que este exprima a sua visão original. Mesmo um paralítico afetado de agrafia após um ataque e reduzido a olhar os caracteres como um desenho, sem os saber ler, teria compreendido que a Sra. de Cambremer pertencia a uma velha família em que a cultura entusiasta das letras e das artes havia arejado um pouco as tradições aristocráticas. Ele teria adivinhado igualmente em que época a marquesa aprendera simultaneamente a escrever e a tocar Chopin. Era a época em que as pessoas bem-educadas observavam o preceito de ser amáveis e a regra dita dos três adjetivos. A Sra. de Cambremer combinava regra e preceito. Um adjetivo laudatório não lhe bastava, ela o fazia seguir (após um pequeno travessão) de um segundo, e depois (após novo travessão) de um terceiro. Mas o que lhe era particular é, que, contrariamente à finalidade social e literária que se propunha, a sucessão dos três epítetos nos bilhetes da Sra. de Cambremer assumia o aspecto, não de uma progressão, mas de um diminuendo. Nesta primeira carta, a Sra. de Cambremer disse que havia visto Saint-Loup e, mais do que nunca, apreciara suas qualidades "únicas raras reais" e que ela devia voltar com um de seus amigos (precisamente aquele que amavam nora) e que, se eu quisesse vir com ou sem eles jantar em Féterne, ela ficaria "encantada feliz contente". Talvez porque nela o desejo de amabilidade não se igualasse à fertilidade da imaginação e à riqueza do vocabulário, é que essa dama, levada a empregar três exclamações, não tinha, forças para conferir à segunda e à terceira mais que um eco enfraquecido da primeira. Houvesse apenas mais um quarto adjetivo, e nada restaria da amabilidade inicial. Enfim, por uma certa simplicidade refinada que não devia deixar de produzir uma considerável impressão na família e mesmo no seu círculo de relações, a Sra. de Cambremer tinha se habituado a substituir a palavra "sincera", que podia acabar por assumir um ar mentiroso: pela palavra "verdadeira". E, para deixar claro que se tratava mesmo de algo sincero, rompia a aliança convencional que colocaria "verdadeira" antes da substantivo, e o punha corajosamente depois. Suas cartas terminavam por: "Creia na minha afeição verdadeira", "creia na minha simpatia verdadeira". Infelizmente, aquilo de tal modo se tornara uma fórmula, que essa afetação de franqueza dava mais a impressão de polidez insincera do que as antigas fórmulas de cujo sentido ninguém mais se recorda. Aliás, sentia-me incomodado para ler devido ao rumor confuso das conversações, dominadas pela voz mais alta do Sr. de Charlus, que não largara o seu assunto e dizia ao Sr. de Cambremer:

            - O senhor me fazia pensar, ao querer que eu tomasse o seu posto, num cavalheiro que me enviou esta manhã uma carta, endereçando-a "A Sua Alteza o barão de Charlus", e que começava por. "Monsenhor".

            - De fato, o seu correspondente exagerava um pouco - respondeu o Sr. de Cambremer, entregando-se a uma discreta hilaridade. O Sr. de Charlus a tinha provocado; mas dela não participou.

            - Porém, no fundo, meu caro - disse -, repare que, do ponto de vista da heráldica, ele é que está com a verdade. Não faço disso uma questão pessoal, acredite. Fala como se se tratasse de outro. Mas o que quer, História é História. Nada podemos e não está em nós refazê-la. Não lhe citarei o imperador Guilherme, que em Kiel nunca deixou de me tratar de Monsenhor. Ouvi dizer que chamava assim a todos os duques franceses, o que é abusivo, e que era talvez simplesmente uma delicada atenção que, por sobre a nossa cabeça, visava a França.

            - Delicada e mais ou menos sincera - disse o Sr. de Cambremer.

            - Ah, não sou de sua opinião. Note que, pessoalmente, um senhor da última ordem como esse Hohenzollem, além do mais protestante, e que despojou o meu primo, o rei de Hanôver, não é de molde a me agradar - acrescentou o Sr. de Charlus, a quem o Hanôver parecia falar mais a seu coração do que a Alsácia-Lorena. - Porém acredito profundamente sincera a inclinação do imperador por nós. Os imbecis dirão que se trata de um imperador de teatro. Mas, ao contrário, ele é extraordinariamente inteligente. Porém não entende de pintura e obrigou o Sr. Tschudi a retirar os Elstir dos museus nacionais. Mas Luís XIV não gostava dos mestres holandeses, também tinha o gosto pelo aparato e, em suma, foi um grande soberano. E Guilherme II ainda armou seu país do ponto de vista militar e naval, como Luís XIV deixou de fazer, e espero que seu reinado jamais conheça os reveses que escureceram o final do reinado daquele a quem banalmente se chama o Rei-Sol. Na minha opinião, a República cometeu um grande erro ao repelir as amabilidades do Hohenzollern, ou só as retribuindo a conta-gotas. Ele mesmo percebe muito bem isso, e diz, com aquele dom de expressão que possui: "O que desejo é um aperto de mão, e não um cumprimento de chapéu." Como homem, é vil: abandonou, renegou, entregou seus melhores amigos em circunstâncias em que seu silêncio foi tão miserável como grande foi o silêncio deles - continuou o Sr. de Charlus que, sempre arrastado por sua inclinação, deslizava para o Caso Eulenbourg e se lembrava da frase que lhe dissera um dos acusados da mais alta posição: "E preciso mesmo que o imperador tenha confiança em nossa delicadeza para ter ousado permitir semelhante processo! Mas, aliás, não se enganou ao ter tido fé na nossa discrição. Até no cadafalso teríamos calado a boca." - De resto, aquilo tudo nada tem a ver com o que queria dizer, a saber que, na Alemanha, como príncipes mediatizados, somos Durchlaucht, e que, na França, nossa posição de Alteza era publicamente reconhecida. Saint-Simon pretende que a tomamos por abuso, no que se engana redondamente. O argumento que ele apresenta, a saber, que Luís XIV nos proibiu que o chamássemos de Rei Cristianíssimo, ordenando-nos que o tratássemos simplesmente de Rei, apenas prova que dependíamos dele e de modo algum que não tivéssemos a qualidade de príncipe. Sem o que, seria preciso negá-la ao duque de Lorena e a tantos outros. Além disso, vários de nossos títulos provêm da casa de Lorena através de Thérese d'Espinoy; minha bisavó, que era filha do donzel de Commercy. -

            Tendo percebido que Morel o escutava, o Sr. de Charlus desenvolveu mais amplamente os motivos de sua pretensão.

            - Já fiz observar ao meu irmão que não é na terceira parte do Gotha, mas na segunda, para não dizer na primeira, que devem encontrar-se a notícia sobre a nossa família - disse ele, sem se dar conta de que Morel não sabia o que era o Gotha. - Mas isso é com ele, ele é meu chefe de armas e, desde que ache bom assim e deixe correr a coisa, não tenho senão que fechar os olhos.

            - O Sr. Brichot me interessou muito - disse eu à Sra. Verdurin, que vinha a meu encontro, enquanto metia no bolso a carta da Sra. de Cambremer. - É um espírito culto e um bom homem -respondeu ela friamente. - É claro que não possui nem gosto nem originalidade; tem uma memória tremenda. Diziam dos "avós" das pessoas que recebemos esta noite, dos emigrados, que eles nada haviam esquecido. Mas pelo menos eles tinham a desculpa - disse ela, fazendo sua uma frase de Swann - de que não haviam aprendido coisa alguma. Ao passo que Brichot sabe tudo e nos atira à cabeça, durante o jantar, pilhas de dicionários. Creio que o senhor já não ignora nada sobre o que quer dizer o nome de tal aldeia ou de tal cidade. -

            Enquanto a Sra. Verdurin falava, eu pensava que me prometera perguntar-lhe algo, mas não conseguia me lembrar do que fosse.

            - Estou certo de que falavam de Brichot - disse Ski.

            - Hein? Chantepie e Freycinet, ele não perdoou nada. Eu bem que a estava observando, minha Patroazinha. - Bem que reparei, só me faltou explodir.

            Hoje eu não saberia dizer como a Sra. Verdurin estava vestida aquela noite. Talvez nem naquele momento o soubesse, pois não tenho espírito de observação. Mas, sentindo que sua toalete não era despretensiosa, disse-lhe algumas palavras amáveis e até de admiração. Ela era como quase todas as mulheres, que imaginam que um cumprimento que lhes façam é a estrita expressão da verdade, e que é um juízo que se declara imparcialmente, irresistivelmente, como se se tratasse de um objeto de arte sem relação com uma pessoa. Assim, foi com uma seriedade que me fez enrubescer pela minha hipocrisia, que ela me fez esta orgulhosa e ingênua pergunta, habitual em tais circunstâncias:

            - Agrada-lhe?

            - Certamente estão falando de Chantepie -disse o Sr. Verdurin, aproximando-se.

            Pensando na minha lustrina verde e num cheiro de mato, eu era o único a não perceber que, enumerando essas etimologias, Brichot fizera com que rissem dele. E, como as impressões que davam às coisas o seu valor para mim eram daquelas que as outras pessoas ou não sentem ou recalcam, sem pensar, como sendo insignificantes, e que, por conseguinte, se eu as pudesse comunicar, ficariam incompreendidas ou teriam sido desdenhadas, eram inteiramente inutilizáveis para mim e, além disso, tinham o inconveniente de me fazer passar por estúpido aos olhos da Sra. Verdurin, que via que eu "engolira" Brichot, como já o parecera aos olhos da Sra. de Guermantes porque gostava de comparecer à casa da Sra. d'Arpajon. No caso de Brichot, entretanto, havia uma outra razão. Eu não pertencia ao pequeno clã. E em todo clã, seja mundano, político ou literário, desenvolve-se uma facilidade perversa de descobrir, numa conversação, num discurso oficial, numa novela, num soneto, tudo o que o leitor honesto jamais teria sonhado ver. Quantas vezes me aconteceu, lendo com certa emoção um conto habilmente escrito por um acadêmico um pouco antiquado, estar prestes a dizer a Bloch ou à Sra. de Guermantes:

            - Como é lindo! quando, antes que tivesse aberto a boca, eles exclamavam, cada qual numa linguagem diferente:

            - Se quiser passar um bom momento, leia um conto de Fulano. A estupidez humana jamais foi tão longe. -

            O desprezo de Bloch decorria principalmente de que certos efeitos de estilo, aliás agradáveis, eram um tanto fanados; o da Sra. de Guermantes, de que o conto parecia provar justamente o contrário do que o autor queria dizer, por motivos de fato que ela engenhosamente deduzia, mas nos quais eu nunca teria pensado. Tão surpreso fiquei ao ver a ironia que se ocultava sob a aparente amabilidade dos Verdurin para com Brichot, como ao ouvir, alguns dias mais tarde, em Féterne, os Cambremer dizerem-me, diante do elogio entusiasmado que eu fazia de La Raspeliere:

            - Não é possível que o senhor esteja sendo sincero, depois do que eles fizeram daquilo. -      É verdade que confessaram que a baixela era bonita. Como as chocantes cortininhas, eu também não a tinha visto.

            - Enfim, agora, quando voltar a Balbec, o senhor saberá o que Balbec significa -disse ironicamente o Sr. Verdurin.

            O que me interessava eram justamente as coisas que Brichot me ensinava. Quanto ao que chamavam o seu espírito, era exatamente o mesmo que outrora fora tão apreciado no pequeno clã. Falava com a mesma irritante facilidade, mas suas palavras já não possuíam alcance, precisavam vencer um silêncio hostil ou ecos desagradáveis; o que havia mudado era não o que ele narrava, e sim a acústica do salão e as disposições do público.

            - Cuidado! - disse a Sra. Verdurin a meia voz, mostrando Brichot.

            Este, mantendo o ouvido mais penetrante que a vista, lançou à Patroa um olhar logo desviado de míope e de filósofo. Se esses olhos eram menos agudos, os de seu espírito em compensação lançavam sobre as coisas um olhar mais vasto. Via o pouco que se podia esperar das afeições humanas, e resignava-se. Certamente sofria com isso. Ocorre que, mesmo aquele que numa só noite, num meio onde tem o hábito de agradar, adivinha que o acharam ou muito frívolo, ou por demais pedante, ou demasiado canhestro, ou excessivamente atrevido, etc., volta infeliz para casa. Muitas vezes, foi por causa de uma questão de opiniões, sistema, que ele pareceu absurdo ou antiquado aos outros. Muitas vezes sabe perfeitamente que esses outros não se lhe igualam em valor. Pode facilmente dissecar os sofismas de que os outros se valeram para condená-los tacitamente, quer ir fazer uma visita, escrever uma carta: mais prudente, não faz nada, espera o convite da semana seguinte. Por vezes também essa desgraças, em vez de terminarem numa noite, duram meses. Devidas à instabilidade dos julgamentos humanos, aumentam-nas ainda mais. Pois apenas sabe que a Sra. X... o despreza, sentindo que é estimado na casa da Sra. Y.., declara ser esta bem superior e emigra para o seu salão. Aliás, não é aqui o local de pintar esses homens, superiores à vida mundana, mas que não tendo sabido realizar-se fora dela, felizes por serem acolhidos, amargurados quando os desconhecem, descobrindo todos os anos as taras da dona da casa a quem incentivavam, e o gênio da que não tinham apreciado seu devido valor, arriscando-se a retornar a seus primeiros amores quando tiverem sofrido os inconvenientes que igualmente traziam os segundos, e quando os desses primeiros estiverem um tanto esquecidos. Por essas pequenas desgraças pode-se avaliar o desgosto que causava a Brichot aquela que ele sabia definitiva. Não ignorava que a Sra. Verdurin ria às vezes publicamente dele, e até de suas enfermidades, e, sabendo o pouco que se deve esperar das afeições humanas, submetera-se, e nem por isso deixava de considerar a Patroa como sua melhor amiga. Mas, ao rubor que se espalhou pelo rosto do universitário, a Sra. Verdurin compreendeu que ele, ouvira e prometeu a si mesma ser amável com ele durante a noite. Não puder deixar de lhe dizer que ela era muito pouco para com Saniette.

            - Como não sou amável! Mas ele nos adora, o senhor não sabe o que somos para ele! Meu marido fica às vezes um pouco irritado com sua estupidez, e é preciso convir que tem razão, mas, nesses momentos, por que é que ele não reage um pouco mais em vez de assumir esses ares de cão escorraçado? Não é franco. Não gosto disto. O que não impede que eu tente sempre acalmar o meu marido, porque, se ele vai muito longe, Saniette poderia não voltar; e isso eu não desejaria, pois, aqui para nós, ele não tem um só tostão, precisa desses jantares. E depois, afinal, se ele fica melindrado, se não volta mais, não é da minha conta; quando se tem necessidade dos outros que se procure não ser tão idiota.

            - O ducado de Aumale esteve durante muito tempo na nossa família, antes de passar para a Casa da França - explicava o Sr. de Charlus ao Sr. de Cambremer, diante de Morel embasbacado e para quem, a falar a verdade, toda essa dissertação era, se não endereçada, ao menos destinada. - Tínhamos precedência sobre todos os príncipes estrangeiros; poderia dar-lhe cem exemplos. A princesa de Croyl, tendo desejado, no enterro de Monsieur, pôr-se de joelhos junto da minha trisavó, esta lhe observou abertamente que ela não tinha direito ao lajedo, mandou retirá-la pelo oficial de serviço e levou o caso ao rei, que ordenou à Sra. de Croy que pedisse desculpas à Sra. de Guermantes na casa desta. Tendo o duque de Borgonha vindo à nossa casa com os aguazis, a varinha erguida, obtivemos do rei que a mandasse abaixar. Sei que não fica bem falar das virtudes dos seus. Mas é bem conhecido que os nossos sempre estiveram à frente na hora do perigo. Nosso grito de armas, quando deixamos o dos duques de Brabant, foi "Passavant". De modo que esse direito de ser em toda parte os primeiros, que tínhamos reivindicado durante séculos na guerra, é bem legítimo em suma que o tenhamos depois obtido na Corte. E, que diabo, ali sempre nos foi reconhecido. Dar-lhe-ei ainda como prova a princesa de Baden. Como se esquecera do seu posto, chegando até a disputar o lugar a essa mesma duquesa de Guermantes de que lhe falei há pouco, e quisera entrar primeiro no Paço, aproveitando um movimento de hesitação que talvez tivesse tido minha parenta (embora não houvesse razão para tal), o rei exclamou vivamente: "Entre, entre, minha prima; a senhora de Baden sabe muito bem o que lhe deve." E era como duquesa de Guermantes que possuía esse lugar, embora por si mesma tivesse uma origem bastante elevada, visto que era, pelo lado materno, sobrinha da rainha da Polônia, da rainha da Hungria, do Eleitor Palatino, do príncipe de Savóia-Carignan e do príncipe de Hanôver, depois rei da Inglaterra.

            - Maecenas atavus edite regibus!" - [Citação de Horácio (Odes, livro I, 1, primeiro verso): "Mecenas, descendente de régios ancestrais." Mecenas era o protetor de Virgílio e Horácio, e seu nome se tornou sinônimo de protetor das artes. (N. do T)] - disse o Sr. de Brichot, dirigindo-se ao Sr. de Charlus, que respondeu com uma leve inclinação de cabeça a essa cortesia.

            - Que está dizendo? - perguntou a Sra. Verdurin a Brichot, a quem desejaria reparar as palavras ditas pouco antes.

            - Eu falava, Deus me perdoe, de um dândi que era a flor da sociedade (a Sra. Verdurin franziu as sobrancelhas) lá pelo século de Augusto (a Sra. Verdurin, tranqüilizada pela distância dessa sociedade, assumiu uma expressão mais serena), de um amigo de Virgílio e Horácio, os quais levavam a adulação ao ponto de dizer-lhe na cara as suas ascendências mais que aristocráticas, régias; numa palavra, referia-me a Mecenas, um rato de biblioteca que era amigo de Horácio, de Virgílio e de Augusto. Estou certo de que o Sr. de Charlus sabe muito bem, sob todos os aspectos, quem foi Mecenas. -

            Olhando graciosamente de esguedelha para a Sra. Verdurin, porque a ouvira convidar Morel daí a dois dias, e receando não ser convidado, o Sr. de Charlus disse:

            - Creio que Mecenas era algo como o Verdurin da Antigüidade. -

            A Sra. Verdurin só pôde reprimir a meio um sorriso de satisfação. Dirigiu-se a Morel:

            - É muito agradável o amigo de seus pais - disse. - Vê-se que é um homem instruído, bem-educado. Fará boa figura no nosso pequeno núcleo. Onde mora ele em Paris?

            Morel guardou um silêncio altivo e pediu somente para jogar uma partida de cartas. A Sra. Verdurin exigiu primeiro um pouco de violino. Para espanto geral, o Sr. de Charlus, que jamais falava de seus grandes dons, acompanhou no mais puro estilo o último trecho (inquieto, atormentado, schumanesco, mas enfim anterior à sonata de Franck) da sonata para piano e violino de Fauré. Senti que ele daria a Morel, maravilhosamente dotado para o som e o virtuosismo, precisamente o que lhe faltava, a cultura e o estilo. Mas pensei com curiosidade naquilo que une, num mesmo homem, uma tara física e um dom do espírito. O Sr. de Charlus não era muito diferente do irmão, o duque de Guermantes. Ainda há pouco (e isso era raro), falara num francês tão ruim como o deste. Censurando-me (sem dúvida para que eu falasse em termos elogiosos de Morel à Sra. Verdurin) por jamais ir visitá-lo, e invocando minha discrição, dissera-me:

            - Mas já que sou eu quem lhe pede, só eu é que poderia formalizar-me. -

            Isto poderia ser dito pelo duque de Guermantes. Em resumo, o Sr. de Charlus não passava de um Guermantes. Mas bastara que a natureza desequilibrasse suficientemente nele o sistema nervoso para que, em vez de uma mulher, como o teria feito seu irmão, ele preferisse um pastor de Virgílio ou um aluno de Platão; e logo as qualidades desconhecidas do duque de Guermantes e freqüentemente ligadas a esse desequilíbrio tinham feito do Sr. de Charlus um delicioso pianista, um pintor amador que possuía um certo gosto, um conversador eloqüente. O estilo rápido, ansioso, encantador, com que o Sr. de Charlus executava o trecho schumanesco da sonata de Fauré quem poderia discernir que esse estilo tinha o seu correspondente (não me atrevo a dizer a sua causa) nas características inteiramente físicas, nas imperfeições nervosas do Sr. de Charlus? Mais tarde explicaremos esta expressão - "imperfeição nervosa" e por quais motivos um grego dos tempos de Sócrates e um romano dos tempos de Augusto podiam ser o que se sabe enquanto permaneciam homens absolutamente normais, e não homens-fêmeas como os vemos atualmente. Assim como reais inclinações artísticas, não chegadas a termo, o Sr. de Charlus tinha, bem mais que o duque, amado sua mãe, amado a esposa, e até anos depois, quando lhe falavam nelas, brotavam-lhe lágrimas, porém superficiais, como a transpiração de um homem muito gordo, cuja testa por um nada se umedece de suor. Com a diferença de que a este se diz: "Como o senhor está com calor!" enquanto se finge não ver o choro dos outros. Finge-se, isto é, finge-o a sociedade; pois o povo se inquieta de ver chorar, como se um soluço fosse mais grave que uma hemorragia. A tristeza que se seguiu à morte da esposa, graças ao hábito de mentir, não excluía no Sr. de Charlus uma vida que não lhe era adequada. Ainda mais tarde, ele teve a ignomínia de dar a entender que, durante a cerimônia fúnebre, achara um meio de pedir o nome e o endereço ao menino do coro. E talvez fosse verdade. Findo o trecho musical, permiti-me reclamar Franck, o que pareceu causar tanto sofrimento à Sra. de Cambremer que não insisti.

            - O senhor não pode gostar disso - disse-me ela. Em seu lugar, pediu as festas de Debussy, o que fez gritarem:

            - Ah, é sublime! desde a primeira nota.

            Porém Morel percebeu que só conheciam os primeiros compassos e, por brincadeira, sem qualquer intenção de mistificar, principiou uma marcha de Meyerbeer. Infelizmente, como fez poucas transições e não avisou nada, todo mundo acreditou que ainda se tratava de Debussy, e continuaram a exclamar "Sublime!" Morel, revelando que o autor não era o de Pelléas, mas o de Roberto o Diabo, causou certa frieza. A Sra. de Cambremer não teve tempo de o sentir por si mesma, pois acabava de descobrir um caderno de Scarlatti e se lançara sobre ele num ímpeto de histérica.

            - Oh, toque isto, tome, este aqui, é divino! - gritava.

            No entanto, desse autor por tanto tempo desprezado, e erguido há pouco às mais altas honrarias, o que ela escolhia em sua impaciência febril era um desses trechos malditos que muitas vezes nos impediram de dormir, e que uma aluna desapiedada recomeça indefinidamente no andar vizinho ao nosso. Mas Morel estava farto de música, e, como fazia questão de jogar cartas, o Sr. de Charlus, para participar da partida, desejaria um uíste.

            - Há pouco, ele disse ao Patrão que era príncipe - disse Ski à Sra. Verdurin -, mas isto não é verdade; ele pertence a uma simples família burguesa de pequenos arquitetos.

            - Quero saber o que o senhor dizia de Mecenas. Isto me diverte, e muito! - repetiu a Sra. Verdurin a Brichot, com uma amabilidade que o deixou exaltado. Assim, para brilhar aos olhos da Patroa e talvez aos meus:

            - Mas, para falar a verdade, senhora, Mecenas me interessa principalmente por ter sido o primeiro apóstolo marcante desse Deus chinês que hoje conta na França mais seguidores do que Brama, que o próprio Cristo, o todo-poderoso Deus Que-Mim-Porta. -

            A Sra. Verdurin já não se contentava, nesses casos, em mergulhar a cabeça nas mãos. Abatia-se com o ímpeto dos insetos chamados efêmeros sobre a princesa Sherbatoff; se esta estivesse a pouca distância, a Patroa se agarrava à axila da princesa, fincava-lhe as unhas e, por alguns instantes, ocultava a cabeça como uma criança que brinca de esconde-esconde. Dissimulada por esse anteparo protetor, podia ela pretender que ria até as lágrimas e também podia perfeitamente não pensar, em nada, como as pessoas que, enquanto fazem uma oração um tanto longo, têm a sábia precaução de esconder o rosto nas mãos. A Sra. Verdurin imitava ao ouvir os quartetos de Beethoven, a um tempo para mostrar que os considerava como uma oração, e para que não vissem que dormia.

            - Falo com toda a seriedade, senhora - disse Brichot. - Acho que hoje é demasiado grande o número de pessoas que passam o tempo todo considerando que seu umbigo é o centro do mundo. Em boa doutrina, não tenho coisa alguma a objetar e não sei qual nirvana que tende a nos dissolver no grande Todo (o qual, como Munique e Oxford, está muito mais perto de Paris do que Asnieres ou Bois-Colombes), mas não é nem de um bom francês, nem mesmo de um bom europeu, quando os japoneses estão talvez às portas da nossa Bizâncio, que antimilitaristas socializados discutam gravemente acerca das virtudes cardeais do verso livre. -

            A Sra. Verdurin julgou que podia largar a espádua machucada da princesa e deixou reaparecer seu rosto, não sem fingir que enxugava os olhos e recuperar o fôlego duas ou três vezes. Mas Brichot queria que eu tivesse a minha parte no festim, e, tendo aprendido, nas sustentações de teses a que presidia como ninguém, que nunca se lisonjeia tanto a juventude como repreendendo-a, dando-lhe importância, fazendo-se tratar por ela de reacionário:

            - Eu não gostaria de blasfemar contra os deuses da juventude - disse ele, lançando-me esse olhar furtivo que um orador dirige às escondidas a alguém presente no auditório, e de quem cita o nome. - Não gostaria de ser condenado como herético e relapso na capela mallarmaica, onde o nosso novo amigo, como todos de sua idade, deve ter ajudado a missa esotérica, ao menos como menino de coro, e ter se mostrado deliqüescente ou rosa-cruz. Mas, na verdade, já vimos muitos desses intelectuais adorando a Arte com um A maiúsculo e que, quando já não lhes basta embriagarem-se com Zola, tomam injeções de Verlaine. Tornando-se eterômanos por devoção baudelairiana, não mais seriam capazes do esforço viril que a pátria pode lhes pedir um dia ou outro, anestesiados que estão pela grande nevrose literária na atmosfera quente, enervante, pesada de odores malsãos, de um simbolismo de casa de ópio. -

["Rosa-cruz" aqui, trata-se não do grupo de iluminados alemães do século XVII, mas de um movimento estético e intelectual de escritores e artistas do final do século XIX. (N. do T)]

            Incapaz de fingir a menor sombra de admiração pela tirada inepta e diversificada de Brichot, voltei-me para Ski e lhe garanti que se equivocava inteiramente sobre a família a que pertencia o Sr. de Charlus; respondeu-me que estava seguro do que afirmara e acrescentou que eu até lhe dissera que o verdadeiro nome dele era Gandin, Le Gandin.

            - Eu lhe disse - respondi - que a Sra. de Cambremer era irmã de um engenheiro, Sr. Legrandin. Nunca lhe falei do Sr. de Charlus. Há tanta relação de nascimento entre ele e a Sra. de Cambremer, como entre os Grande Condé e Racine.

            - Ah, eu pensava - disse Ski descuidadamente, sem se desculpar pelo seu erro, como não se desculpara pelo que, algumas horas antes, quase nos fizera perder o trem.

            - Pretende o senhor ficar muito tempo no litoral? - perguntou a Sra. Verdurin ao Sr. de Charlus, em quem pressentia um fiel, tremendo à idéia de que ele voltasse logo para Paris.

            - Meu Deus, a gente nunca sabe - respondeu o Sr. de Charlus num tom arrastado e fanhoso. - Gostaria de ficar até fins de setembro.

            - O senhor tem razão - disse a Sra. Verdurin; - é a ocasião das belas tempestades.

            - Para falar a verdade, não seria isso o que me decidiria a permanecer. Faz algum tempo que tenho negligenciado demais o arcanjo São Miguel, meu padroeiro, e gostaria de compensá-lo ficando até o dia de sua festa, a 29 de setembro, na abadia do Mont.

            - Essas coisas lhe interessam muito? - indagou a Sra. Verdurin, que talvez conseguisse calar o seu anticlericalismo ferido, caso não temesse que uma tão longa excursão fizesse o violinista e o barão "largarem" por 48 horas.

            - Talvez a senhora esteja atacada de surdez intermitente - disse o Sr. de Charlus com insolência. - Eu lhe disse que São Miguel era um de meus gloriosos padroeiros. - Depois, sorrindo num êxtase benévolo, os olhos fixos na distância, a voz erguida numa exaltação que me pareceu mais do que estética, conquanto religiosa: - É tão belo, no ofertório, quando Miguel se mantém de pé junto do altar, de manto branco, balançando um turíbulo de ouro, e com tal quantidade de perfumes que o odor sobe até Deus!

            - A gente poderia ir até lá em bando - sugeriu a Sra. Verdurin, apesar de seu horror ao clero.

            - Nesse momento, desde o ofertório - prosseguiu o Sr. de Charlus, que, por outros motivos, mas da mesma maneira que os bons oradores da Câmara, jamais respondia a uma interrupção e fingia não a ter ouvido-, seria um deslumbramento ver o nosso amigo palestrinizando e executando até uma ária de Bach. Ficaria louco de júbilo, e o bom abade também; e seria a maior homenagem, ao menos a maior homenagem pública, que eu poderia fazer ao meu santo padroeiro. Que exemplo edificante para os fiéis! Logo falaremos sobre isso ao jovem Angélico musical, militar como São Miguel.

            Saniette, chamado para fazer o papel de morto, declarou que não sabia jogar uíste. E Cottard, vendo que não havia mais tempo antes da hora do trem, pôs-se logo a começar uma partida de écarfé com Morel. O Sr. Verdurin, furioso, caminhou com ar terrível para Saniette:

            - Você não sabe jogar nada! - gritou, danado por ter perdido uma oportunidade de jogar uíste e encantado por ter encontrado um modo de injuriar o antigo arrivista. Este, aterrorizado, resolveu ser espirituoso:

            - Sim, sei tocar piadas - disse. Cottard e Morel estavam sentados frente a frente. - Ao senhor que honra - disse Cottard.

            - E se nos aproximássemos um pouco da mesa de jogo? - sugeriu ao Sr. de Cambremer.

            O Sr. de Charlus, inquieto por ver-se violinista na companhia de Cottard.

            - É tão interessante como essas questões de etiqueta, que já não significam grande coisa no nosso tempo, os únicos reis que nos restam, pelo menos na França, são os reis do baralbê, e me parece que eles vêm a rodo às mãos do jovem virtuoso - acrescentou a seguir, com uma admiração por Morel que se estendia até a sua maneira de jogar, igualmente para lisonjeá-lo e, por fim, para explicar o movimento que fazia debruçando-se sobre o ombro do violinista.

            - Eu corto! - disse Cottard, imitando o sotaque rastaqüera; seus filhos riram às gargalhadas, como faziam seus alunos e o chefe da clínica, quando o Mestre, mesmo à cabeceira de um doente em estado grave, lançava, com a máscara impassível do epiléptico, uma de suas facécias de costume.

            - Não sei beth o que devo jogar - disse Morel, consultando o Sr. de Cambremer.

            - Quanto quiser; de qualquer modo será derrotado, desse jeito ou de outro, será igual, - Igual... Galli-Marié? - comentou o doutor, escorregando para o Sr. de Cambremer um olhar insinuante e benévolo.

            - Era o que chamávamos a verdadeira diva, era o sonho, uma Cármen como nunca mais se verá. Era,a mulher para o papel. Gostava também de ouvir Ingalli-Marié.

[trocadilho com o nome de duas cantoras: Marie Célestino Laurence Galli-Marié (1840-1905), famosa criadora da Cármen na ópera de Bizet, e Speranza Engally a partir da palavra égal, igual. (N. do T)]

            O marquês se ergueu com essa vulgaridade desdenhosa das pessoas bem-nascidas que não compreendem que insultam o dono da casa parecendo não estar certo de poder freqüentar os seus convidados e que se desculpam como hábito inglês para empregar uma expressão depreciativa:

            - Quem é este senhor que está jogando cartas? Que faz na vida? O que é que ele vende? Gosto muito de saber com quem me encontro, para não me ligar com qualquer um. Ora, não ouvi o seu nome quando o senhor deu-me a honra de me apresentar a ele. -

            Se o Sr. Verdurin, autorizando-se com estas últimas palavras, tivesse de fato apresentado aos convidados o Sr. de Cambremer, este o levaria a mal. Mas sabendo que o contrário é que ocorrera, achava gracioso parecer bom moço e modesto sem perigo. O orgulho que tinha o Sr. Verdurin de sua intimidade com Cottard só fez aumentar desde que o doutor se tornara um professor ilustre. Porém, já não se exprimia sob a forma ingênua de outrora. Então, quando Cottard mal era conhecido, se falavam ao Sr. Verdurin das nevralgias faciais de sua esposa:

            - Não há nada a fazer - dizia ele, com o ingênuo amor-próprio das pessoas que acham ilustre o que lhes diz respeito, e que todos conhecem o professor de canto da sua filha. - Se ela tivesse um médico de segunda categoria, a gente poderia tentar outro tratamento, mas, quando este médico se chama Cottard (nome que ele pronunciava como se fosse Bouchard ou Charcot), o remédio é agüentar firme. -

            Utilizando um procedimento inverso, sabendo que o Sr. de Cambremer certamente já ouvira falar no famoso professor Cottard, o Sr. Verdurin assumiu um ar simplório.

            - É o nosso médico de família, um grande coração, que nós adoramos e que se faria esquartejar por nós; não é um médico, é um amigo; não creio que o senhor o conheça nem que o seu nome lhe diga alguma coisa; em todo caso, para nós é o nome de um bom homem, de um caríssimo amigo, Cottard. -

            Este nome, murmurado com ar modesto, enganou o Sr. de Cambremer, que julgou tratar-se de outra pessoa.

            - Cottard? O senhor não está falando do professor Cottard? -

            Ouviu-se precisamente a voz do dito professor que, atrapalhado com uma jogada, dizia, segurando as cartas:

            - Foi aqui que os atenienses se aterraram.

            - Ah, sim, justamente, ele é professor - disse o Sr. Verdurin.

            - O quê! O professor Cottard! O senhor não está enganado? Tem certeza de que se trata do mesmo? O que mora na rua de Bac!

            - Sim, ele mora na rua de Bac, 43. O senhor o conhece?

            - Mas todo mundo conhece o professor Cottard. É uma sumidade! É como se o senhor me perguntasse se eu conhecia Bouffe de Saint-Blaise ou Courtois-Suffit. Bem que eu havia reparado, ao ouvi-lo falar, que não era um homem comum e foi por isso que me permiti perguntar-lhe.

            - Vamos, o que é preciso ajuntar? Trunfo? - perguntava Cottard.

            Depois, bruscamente, com uma vulgaridade que teria sido irritante mesmo numa circunstância heróica, em que um soldado quer emprestar uma expressão familiar ao desprezo pela morte, mas que se tornava duplamente estúpido no passatempo sem perigo das cartas, Cottard, decidindo-se a jogar trunfo, tomou um aspecto sombrio, "cabeça tonta", e, por alusão aos que arriscam a pele, jogou sua carta como se fosse a sua vida, gritando:

            - Afinal de contas, dane-se! -

            Não era o que precisava jogar, mas teve um consolo. No meio do salão, numa larga poltrona, a Sra. Cottard, cedendo ao efeito, irresistível nela, da digestão, depois de vãos esforços, havia cedido ao sono vasto e leve que dela se apoderava. Por mais que se endireitasse às vezes para sorrir, seja por zombaria dela própria, seja com receio de deixar sem resposta alguma palavra amável que lhe dirigissem, sem querer recaía no mal delicioso e implacável. Mais que o ruído, o que a despertava assim por um segundo apenas era o olhar (que, por ternura, ela via mesmo de olhos fechados, e previa, pois a mesma cena se verificava todas as noites e obcecava o seu sono, como a hora em que é preciso que nos levantemos), o olhar pelo qual o professor assinalava o sono da esposa às pessoas presentes. Para começar, contentava-se em olhá-la e sorrir, pois, se como médico censurava esse sono após o jantar (pelo menos, dava essa razão científica para se zangar no fim, mas não é certo que ela fosse determinante, tal a variedade de pontos de vista que possuía a respeito), como marido todo-poderoso e zombeteiro ficava encantado em troçar da mulher, de a princípio só a despertar pela metade, a fim de que ela voltasse a adormecer e ele tivesse o prazer de despertá-la novamente. Agora, a Sra. Cottard dormia a sono solto.

            - Ora, ora, Léontine, estás pescando? - gritou-lhe o professor.

            - Estou escutando o que diz a Sra. Swann, meu caro - respondeu debilmente a Sra. Cottard, que recaiu; na sua letargia.

            - É loucura! - exclamou Cottard; - daqui a pouco vai garantir que não dormiu. É como os pacientes que vão a uma consulta e afirmam que nunca dormem.

            - Talvez o imaginem - disse rindo a Sra. de Cambremer.

            Mas o doutor gostava tanto de contradizer como de troçar e, principalmente não admitia que um profano lhe fosse falar de medicina.

            - Ninguém imagina que não dorme - decretou em tom dogmático.

            - Ah, - respondeu o marquês, inclinando-se respeitosamente como o teria feito Cottard outrora.

            - Bem se vê - prosseguiu Cottard que o senhor não administrou, como eu, até dois gramas de trional sem chegar a provocar sonolência.

            - É verdade, é verdade - respondeu o marquês, rindo com ar de presumido - nunca tomei trional, nem nenhuma dessas drogas que logo não fazem mais efeito, mas desarranjam o estômago. Quando se caça a noite inteira, como eu na floresta de Chantepie, asseguro-lhe que não é necessário trional para poder dormir.

            - São os ignorantes que dizem isso - respondeu o professor. - O trional recupera às vezes de modo notável o tônus nervoso. O senhor fala do trional, mas sabe ao menos o que é?

            - Mas...Já ouvi dizer que é um medicamento para dormir.

            - O senhor não respondeu à minha pergunta - replicou doutoralmente o professor, que, três vezes por semana, estava "de exame" na Faculdade. - Não lhe pergunto se faz ou não dormir, mas de que se trata. Pode me dizer o que contém em partes de amila e etila?

            - Não - respondeu o Sr. de Cambremer, embaraçado.

            - Prefiro um bom cálice de aguardente fina ou até vinho do Porto 345.

            - Que são dez vezes mais tóxicos - interrompeu o professor.

            - Quanto ao trional - animou-se o Sr. de Cambremer -, minha mulher usa todas essas coisas; seria melhor que o senhor falasse com ela.

            - Que deve saber mais ou menos tanto quanto o senhor. Em todo caso, se a sua mulher toma trional para dormir, o senhor está vendo que a minha não precisa disso. - Vamos, Léontine, mexe-te, vais ficar anquilosada; por acaso eu durmo depois do jantar? Que vai ser de ti aos sessenta, se hoje dormes como uma velha? Vais engordar, paralisas a circulação... Ela nem sequer me ouve mais. - Fazem mal à saúde esses cochilos após o jantar, não é, doutor? - disse o Sr. de Cambremer para reabilitar-se junto a Cottard. - Depois de comer bastante, seria preciso fazer exercício.

            - Histórias! -respondeu o doutor. - Examinou-se igual quantidade de alimento do estômago de um cão que permanecera em repouso, e no estômago de um cão que havia corrido, e ficou no primeiro que a digestão estava mais adiantada.

            - Então é o sono que interrompe a digestão?

            - Isto depende se se trata de uma digestão esofágica, estomacal ou intestinal; é inútil lhe dar explicações que o senhor não compreenderia, visto que não fez estudos de medicina. Vamos, Léontine, de pé! Está na hora de partir. -

            Não era verdade, pois o doutor apenas ia continuar seu jogo de cartas, mas assim ele esperava contrariar, da maneira mais brusca, o sono da mulher a quem dirigia as mais sábias exortações, sem obter resposta. Ou porque uma vontade de dormir persistia na Sra. Cottard, mesmo em estado de sono, ou porque a poltrona não desse apoio à sua cabeça, esta última foi lançada mecanicamente da esquerda para a direita, e de baixo para cima, no vácuo, como um objeto inerte, e a Sra. Cottard, de cabeça oscilante, ora tinha o ar de quem ouvia música, ora parecia entrar na última fase da agonia. Lá onde fracassavam as admoestações cada vez mais veementes do marido, o sentimento da própria idiotice venceu:

            - O banho está bom de temperatura - murmurou ela -, mas as plumas do dicionário... - -exclamou, endireitando-se. - Oh, meu Deus, como sou tola! Que estou dizendo? Estava pensando no meu chapéu, devo ter dito alguma asneira, um pouco mais e eu ia adormecer; é esse maldito fogo. -

            Todo mundo se pôs a rir, pois não havia nenhum fogo aceso.

            - Estão zombando de mim - disse a Sra. Cottard, rindo ela própria. Mão na testa, ela apagou, com a leveza do magnetizador e uma habilidade de mulher que arruma o penteado, os últimos vestígios do sono; desejo apresentar minhas humildes escusas à querida Sra. Verdurin e dela saber a verdade. -

            Mas seu sorriso tornou-se logo triste, pois o professor, sabendo que a mulher buscava agradá-lo e temia não o conseguir, acabava de gritar-lhe:

            - Olha-te no espelho, estás vermelha como se tivesses uma erupção de acne, pareces uma velha camponesa.

            - Sabem, ele é encantador-disse a Sra. Verdurin; -tem um bonito lado de bonomia, malícia. E depois, trouxe meu marido das portas do túmulo quando toda a Faculdade já o dava por perdido. Passou três noites junto dele, sem ir deitar-se. Assim, Cottard, para mim, já sabem -acrescentou num tom grave e quase ameaçador, erguendo a mão para as duas esferas de mechas brancas suas têmporas musicais, e como se quiséssemos tocar no doutor: - é agrado! Poderia pedir tudo o que quisesse. Aliás, não o chamo de doutor Cottard, chamo-o de doutor Deus! E, mesmo dizendo isto, calunio-o, por este Deus repara, na medida do possível, uma parte das desgraças o outro é responsável.

            - Jogue trunfo - disse a Morel o Sr. de Charlus com ar feliz.

            - Trunfo, para ver - disse o violinista.

            - Seria preciso anunciar primeiro o rei - volveu o Sr. de Charlus -, o senhor está distraído, mas como joga bem!

            - Tenho o rei - disse Morel.

            - É um belo homem - respondeu o professor.

            - Que negócio é este com essas estacas? - indagou a Sra. Verdurin, mostrando ao Sr. de Cambremer um soberbo escudo esculpido acima da lareira.

            - São suas armas? - acrescentou com desdém irônico.

            - Não, não são as nossas - respondeu o Sr. de Cambremer. - Nós usamos escudo de ouro com três faixas ameadas contra-ameadas de goles, com cinco peças, cada uma carregada de um relevo de ouro. Não, essas aí pertencem aos d'Arrachepel, que não eram da nossa linhagem, mas de quem herdamos a casa; e nunca os de nossa linhagem quiseram mudar aqui fosse o que fosse. Os Arrachepel (antigamente Pervilain, dizem) usavam escudo de ouro com cinco estacas pontiagudas de goles. Quando se aliaram aos Féterne, o seu escudo mudou, porém permaneceu, cantonada de vinte cruzetas recruzetadas, a estaca diminuída; fincada, de ouro, acompanhada à destra de um vôo de arminho. - Pegue essa - disse baixinho a Sra. de Cambremer. - Minha bisavó era um d'Arrachepel, ou de Rachepel se preferir, pois os dois nomes são encontrados nas velhas cartas - continuou o Sr. de Cambremer, que enrubescia vivamente, pois só então lhe ocorrera a idéia de que sua mulher lhe tinha horror e receou que a Sra. Verdurin aplicasse a si mesma palavras que de modo algum a visavam. - A História pretende que, no século XI, o primeiro Arrachepel, Macé, dito Pelvilain, tenha demonstrado especial habilidade nos cercos para arrancar estacas. De onde o cognome de Arrachepel, com o qual foi nobilitado, e os bastiões que a gente vê persistir em suas armas através dos séculos. Trata-se dos bastiões que, para tornar mais inabordáveis as fortificações, plantavam, fincavam em terra permita-me a expressão diante delas, e que eram ligados entre si. São os que a senhora muito chamava de estacas e que não tinham nada dos bastões flutuantes do La Fontaine. Pois tinham fama de tornar uma praça inexpugnável. Evidentemente, com a artilharia moderna isto faz sorrir. Mas é preciso lembrar que se trata do século XI.

[Alusão à fábula "Os camelos e os bastões flutuantes”-N.doT.]

            - Falta-lhe atualidade - disse a Sra. Verdurin -,

            - Mas a pequena campânula tem caráter. A senhora tem - disse Cottard uma veia de... turlututu [palavra que seguidamente empregava para evitar o termo de Moliere.]

[A Palavra de Moliére é cocu ("cornudo"). Turtututu, como interjeição, significa "caluda!", indicando suspensão do que se diria. (N. do T)]

            - Sabem por que foi reformado o rei de ouros?- perguntou Cottard.

            - Bem que eu desejaria estar em seu posto - disse Morel, a quem entediava o serviço militar.

            - Ah! O mau patriota - exclamou o Sr. de Charlus, que não pôde conter-se de beliscar a orelha do violinista.

            - Não, não sabem por que o rei de ouros foi reformado? - repetiu Cottard, que insistia em seus gracejos. - É porque só tem um olho.

            - O senhor tem um parceiro forte, doutor - disse o Sr. de Cambremer, para mostrar a Cottard que sabia quem ele era.

            - Este rapaz é espantoso - interrompeu ingenuamente o Sr. de Charlus, assinalando Morel. - Joga como um deus. -

            Esta reflexão não agradou muito ao doutor, que respondeu:

            - Quem viver verá. Para espertalhão, espertalhão e meio.

            - A dama, o ás - anunciou triunfalmente Morel, a quem a sorte favorecia.

            O doutor curvou a cabeça como não pudesse negar essa boa sorte e confessou, fascinado:

            - É belo.

            - Ficamos muito contentes em jantar com o Sr. de Charlus - disse a Sra. de Cambremer à Sra. Verdurin.

            - Não o conheciam? É extremamente agradável, é especial, é de uma época (teria ficado muito embaraçado para dizer qual) - respondeu a Sra. Verdurin com o sorriso satisfeito de uma diletante, de um juiz e de uma dona-de-casa.

            A Sra. de Cambremer perguntou-me se eu iria a Féterne com Saint-Loup. Não pude deixar de soltar um grito de admiração ao ver a lua suspensa, como um lampião alaranjado, à abóbada dos carvalhos que partia do castelo.

            - Isso ainda não é nada; daqui a pouco, quando a lua estiver mais alta e o vale ficar iluminado, será mil vezes mais lindo. Eis o que não têm em Féterne! - disse a Sra. Verdurin em tom desdenhoso à Sra. de Cambremer, a qual não sabia o que responder, não querendo depreciar a sua propriedade, sobretudo diante dos locatários.

            - A senhora ainda fica por algum tempo na região? - Perguntou o Sr. de Cambremer à Sra. Cottard, o que podia passar por uma vaga intenção de convidá-la e que dispensava por ora encontros mais precisos.

            - Oh, certamente, senhor, faço muita questão desse êxodo anual por causa das crianças. Digam o que disserem, elas têm necessidade de ar livre. Talvez eu seja muito primitiva nisso, mas creio que curativo algum vale mais, para as crianças, que o ar livre, ainda que me provem o contrário por A mais B. Seus rostinhos já estão mudados. A Faculdade queria mandar-me para Vichy; mas lá é sufocante demais e eu cuidarei do meu estômago quando os rapazes já estiverem bem grandes. E depois, o professor, com os exames, tem sempre muito trabalho, e os calores o cansam muito. Acho que uma pessoa tem necessidade de repouso total quando esteve o ano inteiro muito atarefada. De qualquer maneira, ficaremos ainda um bom mês.

            -Ah, então nos veremos de novo.

            - Aliás, eu tanto mais sou obrigada a ficar porque meu marido deve ir dar uma volta pela Savóia, e só dentro de uma quinzena é que vai fixar-se aqui. Prefiro o lado do vale ao do mar -prosseguiu a Sra. Verdurin.

            - Vão ter um tempo esplêndido na volta. - Era preciso mesmo ver se os carros estão prontos, para o caso que o senhor faça absolutamente questão de regressar esta noite a Balbec -disse-me o Sr. Verdurin -, pois não vejo necessidade disso. Nós o mandaríamos levar de carro amanhã de manhã. Certamente vai fazer um dia lindo. As estradas estão admiráveis. -

            Eu disse que era impossível.

            - Mas, em todo caso, ainda não é hora - objetou a Patroa. - Deixe-os sossegados, têm tempo de sobra. Nada adiantará chegar uma hora antes na estação. Estão melhor aqui. E você, meu pequeno Mozart - disse ela a Morel, não ousando dirigir-se diretamente a Charlus - não quer ficar? Temos belos quartos que dão para o mar.

            - Mas ele não pode - respondeu o Sr. de Charlus pelo jogador que, absorvido, não ouvira. - Só tem licença até meia-noite. Precisa voltar para dormir, como um menino muito obediente e bem comportado - acrescentou em tom complacente, amaneirado, insistente, feito sentisse uma sádica volúpia em empregar essa casta comparação e igualmente em apoiar de passagem a sua voz sobre o que se referisse a Morel, em tocá-lo, na falta de mão, com palavras que pareciam apalpá-lo.

            Pelo sermão que me dirigira Brichot, o Sr. de Cambremer concluíra que eu era dreyfusista. Como fosse tão antidreyfusista quanto possível, por cortesia para com um inimigo, pôs-se a fazer o elogio de um coronel judeu que sempre fora muito correto com um primo dos Chevreny e lhe conseguira a promoção que ele merecia.

            - E meu primo tinha idéias absolutamente contrárias - disse o Sr. de Cambremer, deixando no vago o que seriam essas idéias, mas que eu senti serem tão antigas e malformadas como o seu rosto, idéias que algumas famílias de certas cidadezinhas deveriam ter há muito tempo. - Pois bem, o senhor sabe, acho isso muito bonito. - concluiu o Sr. de Cambremer.

            É verdade que ele não empregava "bonito" no sentido estético em que designaria para sua mãe ou sua mulher, obras diversas, mas obras de arte. O Sr. de Cambremer servia-se antes desse qualificativo para felicitar, por exemplo, uma pessoa de saúde frágil que houvesse engordado um pouco.

            - Como, recuperou três quilos em dois meses? Fique sabendo que isto é bonito! -

            Estavam servidos refrescos numa mesa. A Sra. Verdurin convidou os senhores para irem escolher pessoalmente a bebida que lhes agradasse. O Sr. de Charlus foi beber o seu copo e voltou rapidamente a sentar-se perto da mesa de jogo e não se moveu mais dali. A Sra. Verdurin lhe perguntou:

            - Não provou da minha laranjada? -

            Então o Sr. de Charlus, com um gracioso sorriso, num tom cristalino que raramente ostentava e com mil trejeitos da boca e requebros do talhe, respondeu:

            - Não, preferi o seu vizinho, o refresco de morango, acho, é delicioso. -

            É singular que uma certa ordem de atos secretos tenha como conseqüência exterior uma forma de falar ou de gesticular que os revela. Se uma pessoa crê ou não na Imaculada Conceição ou na inocência de Dreyfus, ou na pluralidade dos mundos, e deseja calar-se a respeito, não se achará na sua voz, nem no seu modo de andar, coisa alguma que permita entrever seu pensamento. Mas, ao ouvir o Sr. de Charlus dizer com aquela voz aguda e com esse sorriso e esses gestos:

            - Não, preferi o seu vizinho, o refresco de morango -, a gente podia dizer: - Vejam, ele ama o sexo forte com certeza igual à que permite a um juiz condenar um criminoso que não confessou, e um médico a um paralítico geral que talvez não conheça a sua enfermidade, mas que comete tais erros de pronúncia que deles se pode deduzir que morrerá dentro de três anos. Talvez as pessoas que concluam da maneira de dizer: - Não, preferi o seu vizinho, o refresco de morango por um amor chamado antifísico, não precisem de tanta ciência. Mas dá-se que aqui existe uma relação mais direta entre o signo revelador e o segredo. Sem dizê-lo precisamente, sente-se que é uma doce e risonha dama que nos responde e que parece amaneirada porque se faz passar por um homem, e que a gente não está acostumada a ver os homens fazerem tantos trejeitos. E talvez seja mais gracioso pensar que, há muito tempo, um certo número de mulheres angélicas foram arroladas por engano no sexo masculino, onde, exiladas, enquanto batem as asas em vão para os homens, a quem inspiram uma repulsa física, sabem arrumar um salão, compõem "interiores". O Sr. de Charlus não se importava que a Sra. Verdurin ficasse de pé, e permanecia instalado em sua poltrona para estar mais perto de Morel.

            - Não acha um crime - disse a Sra. Verdurin ao barão - que este aí, que poderia encantar-nos com seu violino, esteja numa mesa de écarté? Quando se toca violino como ele!

            - Ele joga cartas muito bem, faz tudo muito bem, é extremamente inteligente - disse o Sr. de Charlus, enquanto olhava o jogo, a fim de dar conselhos a Morel. Esta, aliás, não era a única razão para que ele não se levantasse da poltrona diante da Sra. Verdurin. Com o singular amálgama que fizera de suas concepções sociais, a um tempo de grão-senhor e de apreciador de arte, em vez de ser polido, da mesma forma como o seria um homem do seu meio, fazia para si próprio, segundo Saint-Simon, como que quadros vivos; e, naquele momento divertia-se em figurar o marechal d'Huxelles, o qual o interessava ainda sob outros aspectos e de quem se dizia que era presunçoso a ponto de não se, erguer de sua cadeira, com um ar de preguiça, diante do que havia de mais distinto na Corte.

            - Diga então, - ao Charlus falou a Sra. Verdurin, que principiava a tomar familiaridades -, não teria o senhor em seu bairro algum velho nobre arruinado que pudesse me servir de porteiro?

            - Como não?... Como não?... - respondeu o Sr. de Charlus, sorrindo com ar de bons- cheirice. - Mas não lhe aconselho.

            - Por quê?

            - Recearia pela senhora; que os convidados elegantes não passassem além da portaria. - Foi a primeira escaramuça entre eles. A Sra. Verdurin mal lhe deu atenção. Infelizmente deveria haver outras em Paris. O Sr. de Charlus continuou sem abandonar sua poltrona. Aliás, não podia deixar de sorrir imperceptivelmente ao ver o quanto a submissão, tão facilmente obtida, da Sra. Verdurin confirmava suas máximas favoritas acerca do prestígio da aristocracia e da covardia dos burgueses. A Patroa não parecia de modo algum espantada pela postura do barão e, se o deixou, foi apenas porque se inquietara de me ver importunar do pelo Sr. de Cambremer. Mas antes disso, queria esclarecer as relações do Sr. de Charlus com a condessa Molé.

            - O senhor me disse que conhecia a Sra. Molé. Costuma ir à casa dela? - indagou, conferindo às palavras "ir à casa dela" o sentido de ser recebido em sua casa, de ter recebido autorização de ir visitá-la.

            O Sr. de Charlus respondeu com um acento de desdém, uma afetação de precisão e um tom de salmodia:

            - Ora, às vezes. -

            Este "às vezes" provocou dúvidas na Sra. Verdurin, que perguntou:

            - Não tem encontrado lá o duque de Guermantes?

            - Ah, não me lembro.

            - Ah - disse a Sra. Verdurin -, o senhor não conhece o duque de Guermantes?

            - Mas como não haveria de conhecê-lo? - respondeu o Sr. de Charlus, a quem um sorriso fez ondular a boca. O sorriso era irônico; mas, como o barão temia deixar ver um dente de ouro, quebrou o sorriso com um refluxo dos lábios, de modo que a sinuosidade dali resultante foi a de um sorriso de benevolência:

            - Por que o senhor diz: "Como não haveria de conhecê-lo?"

            - É que ele é meu irmão - disse negligentemente o Sr. de Charlus, deixando a Sra. Verdurin imersa na estupefação e na incerteza de saber se o seu convidado zombava dela, se era um filho natural ou filho de outro leito. A idéia de que o irmão do duque de Guermantes se chamasse barão de Charlus não lhe ocorreu ao espírito. Dirigiu-se a mim:

            - Agora há pouco ouvi que o Sr. de Cambremer o convidava para jantar. O senhor compreende, para mim tanto faz. Porém, no seu interesse, espero que o senhor não vá. Em primeiro lugar, aquilo está infestado de gente aborrecida. Ah! Se o senhor gosta de jantar com condes e marqueses provincianos que ninguém conhece, estará bem servido.

            - Creio que serei obrigado a comparecer uma ou duas vezes. Aliás, não estou muito livre, pois tenho uma jovem prima que não posso deixar sozinha (achava que essa pretensa parenta simplificaria as coisas para que eu saísse com Albertine). Mas, quanto aos Cambremer, como já a apresentei a eles...

            - Faça o que quiser. O que posso lhe dizer é que é excessivamente malsão; quando apanhar um catarro, ou esses reumatismos de família, vai ficar bem arranjado.

            - Mas o local não é bem bonito?

            - Mmm... sim, se quiserem. Quanto a mim, confesso francamente que prefiro cem vezes a vista daqui para este vale. Primeiro, ainda que nos pagassem, eu não teria ficado com outra casa, porque o ar marinho é fatal ao Sr. Verdurin. Por pouco que a sua prima seja nervosa... Mas de resto o senhor é nervoso, creio... tem sufocações. Pois bem! O senhor verá. Vá por uma vez, que não dormirá durante oito dias. Mas isto não é da nossa conta. - E sem pensar no que sua nova frase ia ter de contraditório com as anteriores: - Se lhe diverte ver a casa que não é má, bonita seria demais, mas enfim divertida, com o velho fosso, a velha ponte levadiça, como é preciso que eu dê um jeito e jante lá uma vez, pois bem! Venha nesse dia, tratarei de levar todo o meu pequeno círculo, e então será galante. Depois de amanhã iremos a Arembouville de carro. A estrada é magnífica, há uma cidra deliciosa. Venha então. O senhor, Brichot, virá também. E o senhor também, Ski. Será uma excursão que aliás o meu marido já deve ter arrumado. Não sei exatamente a quem ele convidou. Sr. de Charlus, não é dos tais? -

            O barão, que somente ouvira esta última frase e não sabia que se falava de uma excursão a Arembouville, teve um sobressalto:

            - Estranha pergunta murmurou num tom malicioso, que deixou irritada a Sra. Verdurin.

            - Aliás - disse-me ela -, enquanto espera o jantar dos Cambremer, por que não traz aqui a sua prima? Será que ela gosta de conversação, de pessoas inteligentes? E agradável? Sim? Pois muito bem! Venha com ela. Não existem só os Cambremer no mundo. Compreendo que se sintam felizes em convidá-la, pois não conseguem apanhar ninguém. Aqui ela terá bons ares, e sempre homens inteligentes. Em todo caso, espero que não me largue na próxima quarta. Ouvi dizer que o senhor tinha um chá em Rivebelle com sua prima, o Sr. de Charlus e não sei quem mais. Devia arranjar um modo de trazer tudo isso para cá, seria interessante uma pequena chegada em massa. As comunicações não podem ser mais fáceis, os caminhos são encantadores; em caso de necessidade, mandarei buscá-lo. De resto, não sei o que pode atraí-lo em Rivebelle, está infestada de mosquitos. Decerto acredita na reputação das tortas. Meu cozinheiro as faria bem melhor. Eu mesma lhe darei a torta normanda, a verdadeira, e sablés, só lhe digo isto. Ah, se o senhor faz questão da porcaria que se serve em Rivebelle, que assim seja; eu não assassino os meus convidados, Senhor, e, mesmo que o quisesse, meu cozinheiro recusaria fazer essa coisa inominável e mudaria de casa. As tortas de lá a gente não sabe de que são feitas. Conheço uma pobre menina a quem aquilo causou uma peritonite que a levou em três dias. Tinha só dezessete anos. É triste devido à sua pobre mãe - acrescentou a Sra. Verdurin com ar melancólico, sob as esferas de suas têmporas carregadas de experiência e dor. - Mas enfim, vá merendar em Rivebelle se lhe diverte ser explorado e atirar dinheiro pela janela. Unicamente, peço-lhe, é uma missão de confiança que lhe atribuo: quando for seis horas, traga todo o seu pessoal para cá, não vá deixar as pessoas voltarem cada qual para sua casa, em debandada. Poderá trazer quem quiser. Não diria isso a qualquer um. Mas estou certa de que seus amigos são gentis, vejo logo que havemos de nos compreender. Além do pequeno núcleo, quarta-feira vêm justamente pessoas muito agradáveis. Não conhece a pequena Sra. de Longpont? Ela é deslumbrante e cheia de espirito, nada esnobe, verá que ela lhe agradará muito. E ela também deve trazer todo um bando de amigos - acrescentou a Sra. Verdurin, para me mostrar que isso era distinto e me animar pelo exemplo. - Veremos quem é que terá maior influência e quem trará mais gente, Barbe de Longpont ou o senhor. E depois, creio que também se deve trazer Bergotte - acrescentou com ar vago, já que esse concurso de uma celebridade se tornara muito improvável devido a uma nota aparecida nos jornais pela manhã, anunciando que a saúde do grande escritor inspirava os mais sérios cuidados. - Enfim, o senhor verá que há de ser uma de minhas quartas de maior êxito, não quero ter mulheres aborrecidas. De resto, não avalie por esta noite, que falhou inteiramente. Não proteste, não deve ter-se entediado mais que eu, pois eu mesma a achei cacetíssima. Saiba que não será sempre como hoje. Aliás, não falo dos Cambremer, que são impossíveis, mas conheci gente da alta sociedade que passava por ser agradável. Pois bem! Ao lado de meu pequeno núcleo, não existiam. Ouvi-o dizer que achava Swann inteligente. Primeiro, minha opinião é que era muito exagerado, mas sem mesmo abordar o caráter do homem, que sempre considerei fundamente antipático, sorrateiro, dissimulado, tive-o diversas vezes no jantar das quartas. Pois bem! O senhor pode indagar aos outros, mesmo ao lado de Brichot, que está longe de ser uma águia, que é um bom professor de segunda que fiz entrar para o Instituto, mesmo assim, Swann não valia nada. Era tão apagado! - E como eu externasse uma opinião contrária: - É assim. Não quero lhe dizer nada contra ele, visto que era seu amigo; aliás, gostava muito do senhor falou-me a seu respeito de modo delicioso, mas pergunte a estes se ele jamais disse alguma coisa de interessante em nossos jantares. Isso afinal é a pedra de toque. Pois bem! Não sei por quê, mas Swann, aqui em casa, não dava nada, não rendia coisa alguma. E o pouco que ele ainda valia, adquiriu-o aqui. - Assegurei-lhe que ele era inteligente. - Não, o senhor só acreditava nisso porque o conhecia há menos tempo do que eu. No fundo, bem depressa a gente lhe dava a volta. A mim, ele aborrecia. (Tradução: ele comparecia à casa dos La Trémoïlle e à dos Guermantes, e sabia que eu não ia.) E eu posso tolerar tudo, menos o tédio. Ah, isso não! -

            O horror ao tédio era agora, para a Sra. Verdurin, o motivo encarregado de explicar a composição do pequeno grupo. Ela ainda não recebia duquesas por ser incapaz de entediar-se, como era incapaz de fazer um cruzeiro marítimo por causa dos enjôos. Dizia comigo que o que a Sra. Verdurin proclamava não era absolutamente falso, e, nesse caso, mesmo que os Guermantes tivessem declarado Brichot o homem mais imbecil que já houvessem encontrado, eu ficaria incerto de que, se no fundo ele não era superior ao próprio Swann, era-o pelo menos às pessoas que, dotadas do espírito dos Guermantes e tendo o bom gosto de evitar e o pudor de enrubescer de suas facécias pedantescas, eu o indagava a mim mesmo, como se a natureza da inteligência pudesse esclarecer-se em alguma medida pela resposta que eu me daria com a seriedade de um cristão influenciado por Port-Royal, que se questiona o problema da Graça.

            - O senhor verá - continuou a Sra. Verdurin -, quando se tem gente da alta sociedade com pessoas verdadeiramente inteligentes, pessoas do nosso meio, aí é que é necessário vê-los, o aristocrata mais espirituoso no reino dos cegos não passa de um zarolho aqui. Além disso, acolhe com frieza os outros, que já não se sentem mais à vontade. Aí eu me pergunto se, em vez de tentar fusões que estragam tudo, não seria melhor arranjar umas séries só para os aborrecidos, de modo que pudéssemos gozar plenamente do nosso pequeno grupo. Concluindo, o senhor virá com sua prima. É conveniente. Bem. Pelo menos, aqui, ambos terão o que comer. Em Féterne, é a fome, é a sede. Ah, por exemplo, se gosta de ratos, vá logo para lá, será servido a contento. E lhe guardarão tanto quanto quiser. Aí sim, o senhor morre de fome. De resto, quando eu for lá, jantarei antes de partir. E para que fique mais alegre, o senhor deveria vir buscar-me. Tomaríamos um bom chá e cearíamos na volta. Gosta de tortas de maçã? Sim? Ótimo! Nosso cozinheiro-chefe prepara-as como ninguém. Bem vê que eu tinha razão de dizer que o senhor foi feito para viver aqui. Portanto, venha morar conosco. Sabe muito bem que há muito mais lugar em nossa casa do que parece. Não o digo para não atrair as pessoas aborrecidas. Poderia trazer sua prima para morar aqui. Ela respiraria um ar diferente do de Balbec. Com o ar daqui, tenho a pretensão de curar os incuráveis. Palavra que os curei, e não é de hoje. Pois morei outrora bem perto daqui, alguma coisa que havia desencovado, que obtive por um pedaço de pão e que possuía um caráter diferente do da Raspeliere deles. Vou mostrá-la, se formos passear. Porém reconheço que, mesmo aqui, o ar é realmente vivificante. Não desejo falar muito nisso, pois os parisienses começariam a apreciar o meu cantinho. Essa foi sempre a minha boa sorte. Enfim, fale nisso à sua prima. Vão lhe ser dados dois lindos quartos com vistas para o vale; verá o que é isso pela manhã, o sol na neblina! E quem-é esse Robert de Saint-Loup de que fala? - Acrescentou com ar inquieto, porque ouvira que eu deveria ir vê-lo em Doncieres e temia que ele me fizesse desertar. - Talvez fosse melhor trazê-lo para cá, se não é uma pessoa aborrecida. Ouvi falar dele por Morel; parece que é um de seus grandes amigos - disse a Sra. Verdurin, mentindo completamente, pois Saint-Loup e Morel nem sequer tinham noção da existência um do outro. Mas, tendo ouvido que Saint-Loup conhecia o Sr. de Charlus, pensava que era através do violinista e queria dar a impressão de estar ciente de tudo. - Por acaso ele não pratica a medicina, ou a literatura? O senhor sabe que, se tem necessidade de recomendações para os exames, Cottard pode tudo, e faço dele o que quero. Quanto à Academia, para mais tarde, pois julgo que ainda não tem idade para isso, disponho de vários votos. Seu amigo estaria aqui em terra conhecida e talvez o divertisse ver a casa. Donciers não tem graça nenhuma. Enfim, o senhor proceda como entender, como lhe parecer melhor - concluiu sem insistir, para não dar a impressão de que procurava a nobreza, e porque sua pretensão era de que o regime sob o qual fazia viver os fiéis, a tirania, fosse denominado liberdade.

            - Vamos, o que é que tens? - indagou ela, ao ver o Sr. Verdurin que, fazendo gestos de impaciência, alcançava o terraço de tábuas que se estendia sobre a sala, do lado do vale, como um homem que sufoca de raiva e precisa de ar. Foi ainda Saniette quem te irritou? Mas, visto que sabes que ele é um idiota, toma o teu partido e não fica nesse estado... Não gosto disto disse-me ela porque é mau para ele, deixa-o congestionado. Mas devo confesse! também que às vezes é necessário ter uma paciência de santo para aturar Saniette, e sobretudo lembrar que é uma caridade recolhê-lo. De minha parte, confesso que o esplendor da sua tolice é antes uma alegria. Pena que ouviu a frase dele depois do jantar: "Não sei jogar uíste, mas sei tom piano." Tremenda, não? É grande como o mundo, e aliás uma mentira, ele não sabe um nem outro. Porém meu marido, sob sua aparência rude, é muito sensível, muito bondoso, e essa espécie de egoísmo de Saniette, preocupado sempre com o efeito que vai fazer, deixa-o fora de si... Vamos, meu querido, acalma-te, sabes muito bem que Cottard te disse que faz mal para o teu fígado. E tudo acaba recaindo sobre mim - disse a Sra. Verdurin. - Amanhã Saniette vai ter a sua pequena crise de nervos e lágrimas. Pobre homem, está muito doente. Mas afinal isso não é motivo para que mate os outros. E, além disso, mesmo nos momentos em que mais sofre, quando a gente gostaria de sentir pena dele, sua tolice corta logo qualquer sentimento. Ele é por demais estúpido. Basta que lhe digas, muito gentilmente, que tais cenas fazem vocês dois ficarem doentes, que ele não volte aqui; como é o que ele mais teme, isso terá um efeito calmante sobre seus nervos - soprou a Sra. Verdurin a seu marido.

            Mal se distinguia o mar pelas janelas da direita. Mas as do outro lado mostravam o vale sobre o qual agora caíra a neve do luar. De vez em quando, ouvia-se a voz de Morel e a de Cottard.

            - Tem o trunfo?

            - Yes.

            - Ah, o senhor tem boas - disse a Morel, em resposta à sua pergunta, o Sr. de Cambremer, pois havia visto que o jogo do doutor estava repleto de trunfos.

            - Aqui está a dama de ouros - disse o doutor.

            - Isto é trunfo, sabia? Eu corto, eu faço a vaza...

            - Mas não há mais Sorbonne - disse o doutor ao Sr. de Cambremer; só existe a Universidade de Paris. - O Sr. de Cambremer confessou que ignorava o motivo pelo qual o doutor lhe fazia essa observação. - Eu julgava que o senhor estava falando da Sorbonne - replicou o doutor. - Tinha ouvido o senhor dizer: "tu nous la sors bonne" - acrescentou piscando o olho, para mostrar que se tratava de um trocadilho. - Espere - disse ele mostrando o adversário -, preparo-lhe um golpe de Trafalgar. -

            E o golpe devia ser excelente para o doutor, pois, em sua alegria, ele se pôs a rir, movendo voluptuosamente os ombros, o que, na família, no "gênero" Cottard, era um traço quase zoológico de satisfação. Na geração anterior, o movimento de esfregar as mãos como se se ensaboassem, acompanhava o movimento. O próprio Cottard usara primeiro, simultaneamente, a dupla mímica; porém um dia, sem que se soubesse a que intervenção conjugal, magistral, quem sabe, aquilo era devido, o esfregar das mãos havia desaparecido. O doutor, mesmo no dominó, quando forçava o adversário a "pedir" e a ficar com o carroção, o que para ele era o mais vivo dos prazeres, contentava-se com o movimento dos ombros. E quando o mais raramente possível ia à sua terra natal por alguns dias, encontrando lá o seu primo-irmão, o qual ainda estava na fase da esfregação de mãos, dizia na volta à Sra. Cottard:

            - Achei bastante vulgar o pobre Renê. - Tem aquela coisinha? - disse ele, voltando-se para Morel. - Não? Então eu jogo este velho David.

            - Mas então o senhor tem cinco, e ganhou!

            - Eis uma bela vitória, doutor - disse o marquês.

            - Uma vitória de Pirro - disse Cottard, voltando-se para o marquês e encarando-o por sobre o seu lorgnon, para avaliar o efeito de sua tirada.

            - Se ainda temos tempo - disse ele a Morel -, dou-lhe a sua revanche. É a minha vez... Ah, não, eis os carros; ficará para a sexta, e eu lhe mostrarei um golpe todo especial. -

            Sr. e Sra. Verdurin nos conduziram para fora. A Patroa foi particularmente carinhosa com Saniette, a fim de assegurar-se de que ele voltaria no dia seguinte.

            - Mas não me parece que esteja bem agasalhado, meu filho - disse-me o Sr. Verdurin, cuja idade permitia esse tratamento paternal. - Tenho a impressão de que o tempo mudou. -

            Estas palavras encheram-me de alegria, como se a vida profunda, e o aparecimento de combinações diferentes que elas implicam na natureza, devesse anunciar outras mudanças, estas a cumprirem-se na minha vida e nela criar possibilidades novas. Mal se abria a porta para o parque antes de partir, e já se sentia que um outro "tempo" ocupava a cena desde alguns instantes; sopros frescos, volúpia estival, erguiam-se na mata de abetos (onde outrora a Sra. de Cambremer sonhava com Chopin) e quase imperceptivelmente, em meandros acariciadores, em remoinhos caprichosos, principiavam os seus leves noturnos. Recusei o agasalho que nas noites seguintes deveria aceitar quando Albertine estivesse presente, antes pelo segredo do prazer do que pelo perigo do frio. Procuraram em vão o filósofo norueguês. Sentira uma cólica? Teria medo de perder o trem? Um aeroplano viera buscá-lo? Fora arrebatado numa assunção? O fato é que desaparecera sem que ninguém percebesse, como um deus.

            - O senhor está errado - disse-me o Sr. de Cambremer -, faz um frio de pato.

            - Por que de pato? - indagou o doutor.

            - Cuidado com as sufocações - prosseguiu o marquês.

            - Minha irmã nunca sai à noite. De resto, ela está bem mal hipotecada, neste momento. Em todo caso, não fique de cabeça descoberta, ponha logo o seu boné.

            - Não são sufocações a frigore - disse Cottard sentenciosamente.

            - Ah, então - disse o Sr. de Cambremer, inclinando-se -, visto que é de seu aviso...

            -Aviso ao leitor! - exclamou Cottard, deslizando seus olhares para fora do lorgnon, a fim de sorrir. O Sr. de Cambremer riu, mas, convencido de que estava com a razão, insistiu.

            - No entanto - disse ele -, cada vez que minha irmã sai à noite, tem uma crise.

            - É inútil argumentar - respondeu o doutor, sem se dar conta de sua descortesia. - Aliás, não pratico a medicina à beira-mar, salvo se sou chamado em consulta. Estou aqui de férias. -

            De resto, ele o estava ainda mais talvez do que o desejaria. Tendo-lhe dito o Sr. de Cambremer, ao subir para o carro:

            - Temos a sorte de também ter perto de nós (não do seu lado da baía, mas do outro, mas ela é até apertada nesse local) uma outra celebridade médica, o Dr. Du Boulbon. -

            Cottard, que de hábito, por deontologia, abstinha-se de criticar os confrades, não pôde deixar de gritar, como o fizera diante de mim no dia funesto em que tínhamos ido ao pequeno cassino:

            - Mas isto não é um médico. Ele pratica a medicina literária, é a terapêutica fantasista, é charlatanismo. Aliás, nós estamos em bons termos. Tomaria o barco para ir visitá-lo uma vez se não estivesse obrigado a me ausentar. -

            Mas, pelo ar que assumira Cottard para falar de Du Boulbon ao Sr. de Cambremer, senti que o barco, no qual iria de bom grado visitá-lo, muito se parecia com o navio que, para arruinar as águas descobertas por um outro médico literário, Virgílio (o qual, assim, lhes roubava toda a clientela), os doutores de Salerno haviam fretado, mas que soçobrou com eles durante a travessia.

            - Adeus, meu bom Saniette, não deixe de vir amanhã; bem sabe que meu marido o aprecia muito. Aprecia o seu espírito, sua inteligência; mas, se, como sabe perfeitamente, gosta de atitudes bruscas, o fato é que não pode passar sem vê-lo. É sempre a primeira pergunta que me faz: "Será que Saniette vem? Gosto tanto de vê-lo."

            - Eu nunca falei isto - disse o Sr. Verdurin a Saniette com uma franqueza simulada que parecia conciliar perfeitamente o que dizia a Patroa com a maneira como ele tratava Saniette. Depois, consultando o relógio, sem dúvida para não prolongar as despedidas na umidade da noite, recomendou aos cocheiros que não se atrasassem, que fossem prudentes na descida, e assegurou-nos que chegaríamos antes do trem. Este devia deixar os fiéis, um numa estação, outro em outra, terminando por mim, pois nenhum ia a tão grande distância como Balbec, e principiando pelos Cambremer. Estes, para não fazerem os cavalos subirem de noite até La Raspeliere, tomaram o trem conosco em Douville-Féterne. Com efeito, a estação mais próxima da casa deles não era esta, que, já um pouco distante da aldeia, o é ainda mais do castelo, porém La Sogne.

            Chegando à gare de Douville-Féterne, o Sr. de Cambremer fez questão de dar "a peça", como dizia Françoise, ao cocheiro dos Verdurin (justamente o gentil cocheiro sensível de idéias melancólicas), pois o marquês era generoso e nisso antes "puxava à sua mamãe". Mas fosse porque o seu "lado do papai" interviesse aqui, e enquanto dava a moeda experimentava o escrúpulo de um erro cometido ou por ele, que, enxergando mal, dava por exemplo um sou em vez de um franco, ou pelo destinatário, que não perceberia da importância do que lhe davam. Assim, observou:

            - É mesmo um franco que lhe estou dando, não? - disse ao cocheiro, fazendo rebrilhar a moeda na luz, e para que os fiéis pudessem repeti-lo à Sra. Verdurin. - Não é? É mesmo de vinte sous, já que foi só uma pequena corrida. - Ele e a Sra. de Cambremer nos deixaram em La Sogne. - Eu direi à minha irmã - repetiu-me ele - que o senhor tem sufocações, estou certo de interessá-la. -

            Compreendi o que ele queria dizer: agradar-lhe. Quanto à sua mulher, empregou, ao despedir-se de mim, duas dessas abreviaturas que, mesmo escritas, me chocavam então numa carta, embora nos tenhamos habituado depois a isso, mas que, faladas, me pareciam, e até mesmo hoje, conter, em sua displicência intencional, em sua familiaridade adquirida, algo de insuportavelmente pedante:

            - Encantada por ter passado a noite com o senhor - disse-me ela. - Recomendações a Saint-Loup se o vir. -

            Dizendo-me esta frase, a Sra. de Cambremer pronunciou Saint-Loupe. Jamais pude saber quem o pronunciara assim diante dela, ou quem lhe tivera dado a entender que se devia pronunciar desse modo. Sempre é verdade que, durante algumas semanas, ela pronunciou Saint-Loupe e que um homem que lhe tinha grande admiração, e que com ela fazia uma só pessoa, fez o mesmo. Se outras pessoas diziam Saint-Lou, eles insistiam, diziam com força Saint-Loupe, ou para dar indiretamente uma lição aos demais, ou para se distinguir deles. Mas, sem dúvida, mulheres mais brilhantes que a Sra. de Cambremer lhe disseram, ou lhe fizeram indiretamente compreender que não se devia pronunciar assim, e que o que ela tomava por originalidade era um erro que faria com que a julgassem pouco a par das coisas da sociedade, pois, pouco depois, a Sra. de Cambremer voltava a dizer Saint-Lou, e seu admirador igualmente deixou toda resistência, ou porque ela o tivesse advertido, ou porque tivesse ele percebido que ela já não fazia soar a final, dizendo consigo que, para que uma mulher daquele valor, daquela energia e de tanta ambição houvesse cedido, era preciso que fosse por uma boa razão. O pior de seus admiradores era o marido. A Sra. de Cambremer gostava de fazer aos outros brincadeiras muitas vezes bem impertinentes. Logo que ela investia desse modo contra mim ou contra algum outro, o Sr. de Cambremer punha-se a olhar a vítima, rindo. Como o marquês fosse vesgo o que dá uma intenção de espírito à própria graça dos imbecis -, o efeito daquele riso era o de trazer um pouco de pupila para o branco do olho, que sem isso ficaria completo. Da mesma forma, uma abertura põe um tanto de azul num céu coberto de nuvens. O monóculo protegia do resto essa operação delicada, como um vidro sobre um quadro precioso. Quanto à própria intenção do riso, não se sabe se por acaso seria amável: "Ah, tratante! Poderia considerar-se digno de inveja. Está recebendo os favores de uma mulher de espírito rude"; ou travessa: "Espero que se arranje, senhor, engolindo cobras e lagartos"; ou prestimosa:  "O senhor sabe, aqui estou; levo a coisa a rir, pois é puro gracejo, mas não deixaria que o maltratassem"; ou cruelmente cúmplice: "Não tenho porque atirar o meu grãozinho de sal, mas bem vê que morro de rir com todas essas maldades que ela lhe prodigaliza. Gargalho como um corcunda, portanto aprovo, eu o marido. Agora, se lhe der na telha corcovear, achará quem lhe faça frente, meu senhor. Primeiro, lhe daria um par de bofetadas, com capricho, depois iríamos cruzar os ferros na floresta de Chantepie." Fosse qual fosse o resultado dessas diversas interpretações da alegria do marido, os gracejos da esposa rapidamente acabavam. Então o Sr. de Cambremer cessava de rir, a pupila momentaneamente desaparecia e, como a gente perdera havia alguns minutos o hábito daquele olho inteiramente branco, dava este àquele rubro normando algo a um tempo de exangue e de extático, como se o marquês acabasse de ser operado ou como se implorasse aos céus, sob o monóculo, as palmas do martírio.

 

Tristezas do Sr. de Charlus. - Seu duelo fictício. - As estações do "Transatlântico". - Cansado de Albertine, desejo romper com ela.

            Eu caía de sono. Fui levado de elevador até o meu andar não pelo ascensorista, mas pelo groom vesgo que travou conversa para me contar que sua irmã continuava a viver com o cavalheiro tão rico e que, certa vez, como ela tivesse vontade de voltar para casa em lugar de permanecer séria, o seu cavalheiro fora procurar a mãe do vesgo e dos outros filhos mais afortunados, a qual encaminhara o mais rápido possível a insensata à casa de seu amigo.

            - Saiba o senhor, é uma grande dama a minha irmã. Ela toca piano, fala espanhol. E o senhor não a acreditaria ser irmã do simples empregado que o faz subir no elevador; ela não se nega coisa alguma. Tem a sua camareira pessoal, e não me espantaria que um dia venha a ter o seu carro. É muito bonita, se o senhor a visse, um tanto orgulhosa, mas diabos! isto se compreende. Tem muito espírito. Nunca deixa um hotel sem se aliviar num armário, numa cômoda, para deixar uma lembrancinha à camareira que há de fazer a limpeza. Às vezes, até no carro ela faz isso e, depois de pagar a corrida, oculta-se num canto, coisa de muito rir, para ver reclamar o cocheiro que terá de lavar o carro. Meu pai também deu uma boa, ao encontrar para o meu irmão mais novo aquele príncipe indiano que havia conhecido antigamente. Naturalmente é outro gênero. Mas a posição é soberba. Se não fossem as viagens, seria o ideal. Até agora, só eu é que fiquei no desvio. Mas nunca se sabe. A sorte está na minha família; quero sabe se não serei um dia presidente da República? Mas estou fazendo-o tagarelar (eu não dissera uma só palavra e começava a dormir ao ouvir as suas). Boa-noite, senhor. Oh, obrigado, senhor! Se todo mundo tivesse tão bom coração como o senhor, não haveria mais desgraçados. Mas como diz a minha irmã, sempre é necessário que os haja para que, agora que sou rica, possa cagar neles um pouco. Desculpa a expressão. Boa-noite, senhor.

            Talvez a cada noite aceitemos o risco de viver, dormindo, sofrimentos que consideramos nulos e não acontecidos, pois foram suportados no decorrer de um sono que julgamos sem consciência. Com efeito, nessas noites em que eu regressava tarde da Raspeliere, sentia muito sono. Porém, logo que chegaram os frios intensos eu não podia adormecer imediatamente, pois o fogo da lareira iluminava como se uma lâmpada se acendesse. Apenas, não passava de uma chama e também como uma lâmpada, como o dia quando cai a tarde sua luz muito viva não tardava a diminuir; e eu caía no sono, o qual é como um segundo apartamento que tivéssemos e onde, abandonando o nosso, fôssemos dormir. Tem campainhas próprias, e às vezes somos violentamente despertados por um rumor de timbre, perfeitamente escutado por nossos ouvidos, quando todavia ninguém tocou. Tem seus criados, seus visitantes particulares que vêm buscar-nos para sair, de modo que estamos prontos para levantar-nos quando nos é forçoso constatar, por nossa quase imediata transmigração para o outro apartamento, o da véspera, que o quarto está vazio, que não veio ninguém. A raça que o habita, como a dos primeiros humanos, é andrógina. Ali, um homem, ao cabo de um instante, aparece sob o aspecto de uma mulher. As coisas ali possuem uma inclinação a se tornarem homens, e os homens em amigos e inimigos. O tempo que transcorre para o adormecido, durante esse sono, é absolutamente diverso do tempo em que se cumpre a vida do homem acordado. Ora seu curso é muito mais rápido: um quarto de hora parece um dia inteiro; às vezes, muito mais longo: julgamos ter dado um breve cochilo e dormimos o dia todo. Então, no carro do sono, descemos às profundezas em que a recordação não pode mais alcançá-lo e para aquém das quais o espírito foi obrigado a arrepiar caminho. A parelha de cavalos do sono, semelhante à do sol, caminha num passo tão igual, numa atmosfera onde não pode mais detê-lo nenhuma resistência, que é preciso algum pedregulho aerolítico estranho a nós (por qual Desconhecido dardejado do céu azul?) para atingir o sono regular (que, sem isso, não teria motivo algum para se deter e duraria, com um movimento igual, séculos afora) e fazê-lo, numa curva brusca, retornar ao real, queimar etapas, atravessar regiões próximas à vida ou breve o adormecido ouvirá, desta, os rumores quase vagos ainda, mas já perceptíveis, conquanto deformados e aterrissar de chofre no despertar. Então, desses sonos profundos, a gente acorda numa aurora, sem saber onde está, não sendo ninguém, novo, pronto para tudo, o cérebro vazio desse passado que era a vida até ali. E talvez ainda seja mais belo quando a aterrissagem do despertar se faz de maneira brutal e os nossos pensamentos do sono, ocultos por um manto de esquecimento, não têm tempo de regressar progressivamente antes que o sono acabe. Então, da negra tempestade que nos parece que atravessamos (mas nem sequer dizemos nós), saímos deitados, sem pensamentos: um nós que não tivesse conteúdo.-Que martelada a criatura ou a coisa que ali está recebeu a ponto de ignorar tudo; estupefata até o momento em que a memória, acorrendo, lhe restitua a consciência ou a personalidade? Ainda, para esses dois tipos de despertar, convém não adormecer, mesmo que profundamente, sob a lei do hábito. Pois o hábito vigia tudo o que encerra em suas redes; é preciso escapar a ele, adormecer no momento em que se julgava fazer coisa bem diversa do que dormir, numa palavra, receber um sono que não permanece sob a tutela da previdência, na companhia, mesmo oculta, da reflexão. Ao menos nesses despertares, tais como os que acabo de descrever, e que eram na maior parte do tempo os meus quando eu tinha jantado na véspera na Raspeliere, tudo se passava como se assim fosse, e posso testemunhá-lo, eu, o estranho humano que, esperando que a morte o venha libertar, vê os postigos fechados, não sabe nada do mundo, permanece imóvel feito uma coruja e, como esta, só vê um pouco de claridade nas trevas. Tudo se passa como se assim fosse, mas talvez somente uma camada de estopa impediu o adormecido de perceber o diálogo interior das lembranças e a incessante tagarelice do sono. Pois (o que aliás pode se explicar igualmente no primeiro sistema, mais amplo, mais misterioso, mais astral) no momento em que se produz o despertar, o adormecido ouve uma voz interior que lhe diz: "Não vem jantar esta noite, meu caro amigo? Como seria agradável!" e pensa: "Sim, como seria agradável, irei"; depois, acentuando-se o despertar, ele recorda de súbito: "Minha avó só tem algumas semanas de vida, afirma o doutor." Ele toca a campainha, chora à idéia de que não será, como antigamente, a sua avó, a sua avó agonizante, mas um criado-grave indiferente que virá atendê-lo. Todavia, mesmo que o sono o levasse para bem longe do mundo habitado pela recordação e pelo pensamento, através de um éter onde estivesse sozinho, mais que sozinho, sem nem sequer ter esse companheiro em que a gente se vê a si mesmo, estava ele fora do tempo e de suas medidas. E já entra o camareiro e ele não se anima a perguntar-lhe a hora, pois ignora se dormiu, ou quantas horas dormiu (indaga a si próprio se não foram dias, de tal modo retorna com o corpo exausto e o espírito descansado, o coração nostálgico, como de uma viagem demasiado distante para que não tenha durado muito tempo). Decerto pode-se pretender que só existe um tempo, pelo fútil motivo de que foi olhando para a pêndula que se constatou ser apenas um quarto de hora o que pensáramos fosse um dia inteiro. Mas, no momento em que o verificamos, somos justamente um homem desperto, mergulhado no tempo dos homens despertos; desertamos do outro tempo. Talvez até mais que de um outro tempo: de uma outra vida. Os prazeres que temos no sono, não os fazemos figurar na conta dos prazeres experimentados durante a existência. Para só aludirmos ao mais vulgarmente sensual de todos, qual de nós, ao despertar, não sentiu alguma irritação por ter experimentado, enquanto dormia, um prazer que, se não queremos nos cansar demais, já não podemos, uma vez despertos, renovar indefinidamente nesse dia? É como uma riqueza perdida. Tivemos prazer em uma outra vida que não a nossa. Sofrimentos e prazeres do sonho (que em geral se dissipam rapidamente ao despertar), se os fizéssemos figurar num orçamento, não seria no da vida corrente. Disse eu: dois tempos; talvez exista apenas um, não que o do homem desperto seja válido para o adormecido, mas talvez porque a outra vida, aquela em que se dorme, não esteja em sua parte profunda submetida à categoria do tempo. Assim eu o representava quando, no dia seguinte aos jantares na Raspeliere, adormecia tão completamente. Eis o porquê. Principiava a desesperar-me, ao acordar, vendo que, depois de ter chamado dez vezes, o criado-grave não aparecia. Na undécima vez ele entrava. Era apenas a primeira vez. As dez outras não tinham passado de esboços no meu sono, que durava ainda, do toque de campainha que eu desejava. Minhas mãos entorpecidas nem mesmo se haviam mexido. Ora, nessas manhãs (e é o que me faz dizer que o sono talvez ignore a lei do tempo), o meu esforço para me acordar consistia sobretudo em um esforço para adaptar o bloco obscuro, não definido, do sono que eu acabava de viver, aos quadros do tempo. Não é fácil tarefa; o sono, que não sabe se dormimos duas horas ou dois dias, não pode nos fornecer nenhum ponto de referência. E, se não o encontrarmos no exterior, não conseguindo retornar ao tempo, voltamos a adormecer, por cinco minutos que parecem três horas. Eu sempre disse e experimentei que o mais poderoso dos hipnóticos é o sono. Depois de ter dormido profundamente por duas horas, ter combatido tantos gigantes e de ter travado para sempre tantas amizades, é bem mais difícil despertar do que depois de ter tomado vários gramas de veronal. Pensando assim sobre um e outro, fiquei surpreendido ao saber, pelo filósofo norueguês, que o soubera pelo Sr. Boutroux, "seu eminente colega, perdão, confrade", o que o Sr. Bergson pensava das alterações particulares da memória devidas aos hipnóticos. "Está entendido", teria dito o Sr. Bergson ao Sr. Boutroux, a crer no filósofo norueguês, "que os hipnóticos tomados de vez em quando em doses moderadas não têm influência sobre essa memória sólida da nossa vida cotidiana, tão bem instalada em nós. Mas existem igualmente outras memórias, mais altas e também mais instáveis. Um de meus colegas está dando um curso de História antiga. Disse-me que, se na véspera havia tomado um comprimido para dormir, tinha dificuldade, durante a aula, de encontrar as citações gregas de que necessitava. O médico que lhe recomendara esses comprimidos assegurou-lhe que não tinham influência sobre a memória. É que o senhor talvez não tenha de fazer citações gregas, respondera o historiador, não sem um toque de “orgulho zombeteiro." Não sei se esta conversação entre o Sr. Bergson e o Sr. Boutroux estará correta. O filósofo norueguês, todavia tão profundo e claro, passionalmente atento, pode ter compreendido mal. Pessoalmente, minha experiência me proporcionou resultados opostos. Os momentos de olvidey que, no dia seguinte, se seguem à ingestão de certos narcóticos têm uma semelhança meramente parcial, mas perturbadora, com o esquecimento que reina no decurso de uma noite de sono profundo e natural. Ora, o que eu esqueço, num e noutro caso, não é determinado verso de Baudelaire, qual antes me fatiga, "assim como um tímpano", não é certo conceito de um dos filósofos citados, é a própria realidade das coisas vulgares que me cercam se durmo e cuja não-percepção faz de mim um louco; é se estou acordado e saio, logo após um sono artificial não o sistema de Porfírio ou de Plotino, que posso discutir tão bem como em qualquer outro dia, mas à resposta que prometi dar a um convite, cuja lembrança foi substituída por um branco total. A idéia elevada permaneceu em seu lugar; o que o hipnótico pôs fora de uso é o poder de agir nas pequenas coisas, em tudo o que exige atividade para recuperar bem a tempo, para agarrar determinada lembrança da vida cotidiana. Apesar de tudo o que se possa dizer da sobrevivência após a destruição do cérebro, reparo que a cada alteração do cérebro corresponde um fragmento de morte. Todos nós possuímos as nossas lembranças, se não a faculdade de recordá-las, diz, segundo Bergson, o grande filósofo norueguês, cuja linguagem não procurei imitar, para não demorar ainda mais. Se não a faculdade de recordá-las. Mas o que é uma lembrança da qual não se recorda? Porém vamos mais longe. Não nos recordamos das lembranças dos últimos trinta anos; mas elas nos banham por inteiro; por que então parar a trinta anos, por que não prolongar até além do nascimento essa vida anterior? Desde o momento em que não conheço toda uma parte das lembranças que estão por detrás de mim, desde o momento em que elas me são invisíveis, que não tenho a faculdade de chamá-las a mim, quem me diz que nessa massa desconhecida de mim não há recordações que remontam muito além da minha vida humana? Se posso ter em mim e a meu redor tantas lembranças de que não me recordo, esse olvido (ao menos olvido de fato, visto que não possuo a faculdade de nada ver) pode estender-se sobre uma vida que vivi no corpo de outro homem, até mesmo em outro planeta. Um mesmo esquecimento apaga tudo. Mas então, que significa essa imortalidade da alma, de que o filósofo norueguês afirmava a realidade? A criatura que serei após a morte não tem mais motivos de se lembrar do homem que sou desde o nascimento, assim como este último não se recorda do que eu fui antes de nascer.

            O criado-grave entrava. Eu não lhe dizia que havia tocado a campainha diversas vezes, pois já percebia que o fizera até então enquanto sonhava. No entanto, assustava-me pensar que semelhante sonho tivera a nitidez do conhecimento. Teria o conhecimento, reciprocamente, a irrealidade do sonho? Em compensação, perguntava-lhe quem havia tocado tanto aquela noite. Ele dizia "ninguém", e podia afirmá-lo, pois o "quadro" das chamadas o teria registrado. Entretanto, escutava os toques repetidos, quase furiosos, que ainda vibravam em meu ouvido e me deviam permanecer perceptíveis durante vários dias. No entanto, é raro que o sono lance desse modo, na vida desperta, lembranças que não morrem com ele. Podem-se contar esses aerólitos. Se se trata de uma idéia que o sono forjou, ela depressa se dissocia em fragmentos tênues, não encontrados. Porém aí o sono fabricara sons. Mais materiais e mais simples, duravam por mais tempo. Espantava-me a hora relativamente matinal que o camareiro me dizia. Nem por isso me sentia menos repousado. São os sonos leves que têm longa duração, porque, intermediários entre a vigília e o sono, mantendo da primeira uma noção um tanto apagada mas permanente, é-lhes necessário infinitamente mais tempo para repousar-nos do que um sono profundo, o qual pode ser de curta duração. Sentia-me bem disposto por outra razão. Se é bastante lembrarmo-nos de que estamos cansados para sentirmos penosamente o nosso cansaço, dizer para nós mesmos: "Estou descansado", basta para criar o repouso.

            Ora, havia sonhado que o Sr. de Charlus estava com cento e dez anos e acabara de dar um par de tapas na própria mãe, Sra. Verdurin, porque ela comprara um buquê de violetas por cinco bilhões; portanto, estava certo de ter dormido profundamente e sonhado às avessas todas as minhas noções da véspera e todas as possibilidades da vida corrente; bastava isso para que me sentisse inteiramente repousado. Teria deixado bem surpreendida a minha mãe, que não podia compreender a assiduidade do Sr. de Charlus na casa dos Verdurin, se lhe tivesse contado (precisamente no dia em que fora encomendada a touca de Albertine, sem nada lhe dizer e para lhe fazer uma surpresa) com quem o Sr. de Charlus fora jantar num salão do Grande Hotel de Balbec. O convidado não era outro senão o lacaio de uma prima dos Cambremer. Este lacaio vestia-se com grande elegância e, quando atravessou o hall com o barão, "fez-se de homem do mundo" aos olhos dos turistas, como teria dito Saint-Loup. Mesmo os jovens grooms, os "levitas" que desciam em bando os degraus do templo nesse instante, porque era o momento da rendição, não prestaram atenção nos dois recém-chegados, dos quais um o Sr. de Charlus, timbrava em mostrar, baixando os olhos, que eles pouco lhe importavam. Dava a impressão de abrir passagem no meio deles. "Prosperai, cara esperança de uma santa nação", citou ele, lembrando-se dos versos de Racine, ditos num sentido bem diverso. - O que diz, senhor? perguntou o lacaio, pouco a par dos clássicos. O Sr. de Charlus não lhe respondeu, pois punha um certo orgulho em não fazer caso das perguntas e em caminhar direito para a frente como se não houvesse outros fregueses no hotel e no mundo só existisse ele, barão de Charlus. Mas, tendo continuado os versos de Josabeth: “Vinde, vinde, minhas filhas", sentiu-se desgostoso e não acrescentou, como ela: "é preciso chamá-las", pois esses jovens ainda não tinham alcançado a idade em que o sexo está inteiramente formado e que agradava ao Sr. de Charlus. Aliás, se escrevera ao lacaio da Sra. de Chevregny, por não duvidar de sua docilidade, havia esperado que fosse mais viril. Ao vê-lo, achara-o mais efeminado do que o desejaria. Disse-lhe que pensara tratar com alguém diferente, pois conhecia de vista outro lacaio da Sra. de Chevregny, em quem de fato havia reparado no carro. Era um tipo de camponês bem rústico, completamente o oposto deste, que, julgando, pelo contrário, suas afetações como superioridades, e estando certo de que fossem essas qualidades de mundano que seduziriam o Sr. de Charlus, não compreendeu sequer de que é que o barão queria falar.

            - Mas não tenho nenhum companheiro, a não ser um, a quem o senhor não pode ter deitado o olho; é horroroso, parece um camponês brutamontes. -

            E, à idéia de que talvez semelhante rústico fosse o que o barão vira, sentiu uma pontada no seu amor-próprio. O barão o adivinhou e, ampliando o inquérito:

            - Mas eu não fiz um voto especial de só conhecer gente da Sra. de Chevregny -disse. - Será que aqui, ou em Paris, já que vai partir em breve, não poderia você apresentar-me muitos de seus companheiros, de uma casa ou de outra?

            - Oh, não respondeu o lacaio -, não freqüento ninguém da minha classe. Só lhes falo sobre o serviço, mas há alguém muito distinto que poderei fazer com que conheça.

            - Quem? - indagou o barão.

            - O príncipe de Guermantes. -

            O Sr. de Charlus ficou despeitado de que só lhe oferecessem um homem daquela idade, e para o qual, aliás, não necessitava da recomendação de um lacaio. Assim, declinou a oferta em tom seco e, não se deixando desanimar pelas pretensões mundanas do criado, recomeçou a explicar-lhe o que desejava, o gênero, o tipo, mesmo que fosse um jóquei, etc. Receando que o tabelião que passava nesse momento o tivesse escutado, julgou prudente mostrar que falava de coisa bem diversa daquela que poderiam supor, e disse com insistência e como que para o público, mas feito não fizesse mais que continuar a conversação:

            - Sim, apesar da minha idade, mantive o gosto de comprar quinquilharias, o gosto pelos lindos bibelôs, faço loucuras por um velho bronze, por um lustre antigo. Adoro o Belo. -

            Mas, para fazer o lacaio entender a mudança de assunto que tão rapidamente consumara, o Sr. de Charlus acentuava de tal modo cada palavra e, mais ainda, para ser ouvido pelo tabelião, gritava-as todas com tanta força, que todo esse jogo de cena teria bastado para denunciar o que ele ocultava a ouvidos mais avisados que os do oficial do ministério. Este não desconfiou de coisa alguma, bem como nenhum outro hóspede do hotel, pois todos viram um elegante estrangeiro no lacaio tão bem vestido. Em compensação, se os homens da sociedade se equivocavam, tomando-o por um americano muito elegante, mal apareceu diante dos criados foi logo adivinhado por eles, assim como um forçado reconhece outro, e até mesmo mais depressa, farejado a distância como um animal por certos animais. Os chefes da categoria ergueram os olhos. Aimé lançou um olhar suspeitoso. O copeiro, dando de ombros, disse por trás da mão, porque julgava isso cortês, uma frase injuriosa que todos ouviram. E até a nossa velha Françoise, cuja vista diminuía e que passava naquele momento ao pé da escada para ir jantar nos "mensageiros", ergueu a cabeça, reconheceu um criado onde os convivas do hotel não o suspeitavam como a velha ama Euricléia reconhece Ulisses bem antes dos pretendentes assentados no festim e, vendo o Sr. de Charlus andar familiarmente com ele, demonstrou uma expressão acabrunhada, como se de repente as maldades de que ouvira falar e em que não tinha acreditado houvessem adquirido a seus olhos uma pungente verossimilhança. Ela nunca me falou, nem a ninguém, deste incidente, o qual, todavia, deve ter dado trabalho considerável a seu cérebro, pois mais tarde, cada vez que, em Paris, teve ocasião de ver "Julien", que até então apreciara tanto, sempre se mostrou cortês com ele, mas de uma cortesia que se resfriara e estava sempre acrescida de forte dose de reserva. Esse mesmo incidente, ao contrário, levou alguém bem diverso a me fazer uma confidência; foi Aimé. Quando eu cruzara pelo Sr. de Charlus, este, que não esperava encontrar-me, gritou-me, erguendo a mão: "Boa-noite", com a indiferença, ao menos aparente, de um grão-senhor que julga que tudo lhe é permitido e que acha mais hábil dar a entender que não se esconde. Ora, Aimé, que nesse momento o observava com olhar desconfiado e viu que eu cumprimentava o companheiro daquele em que estava certo de ver um criado, perguntou-me nessa mesma noite de quem se tratava. Pois, desde algum tempo, Aimé gostava de conversar, ou melhor, como dizia, sem dúvida para marcar o caráter, segundo ele filosófico, dessas conversas, de "discutir" comigo. E, como várias vezes lhe dissesse que me sentia constrangido que ele ficasse de pé junto a mim enquanto eu jantava, em vez de sentar-se e compartilhar da minha refeição, declarava que jamais vira um freguês com "raciocínio tão justo". Naquele momento, conversava com dois garçons. Tinham me saudado; não sabia por quê; seus rostos eram-me desconhecidos, embora ressoasse, na sua conversa, um rumor que não me parecia novo. Aimé censurava-os por causa do noivado de ambos, que desaprovava. Tomou-me como testemunha; eu disse que não podia ter uma opinião, visto que não os conhecia. Eles recordaram-me os seus nomes e também que muitas vezes me haviam servido em Rivebelle. Mas um deixara crescer o bigode, o outro o raspara e havia cortado o cabelo à escovinha; e devido a isso, e apesar de ser a mesma cabeça de outrora que estava sobre seus ombros (e não uma outra, como nas restaurações errôneas da Notre-Dame), ela me havia permanecido tão invisível como esses objetos que escapam às mais minuciosas perquirições, e que estão simplesmente aos olhos de todos, que não os percebem, acima de uma lareira. Logo que lhes soube os nomes, reconheci com exatidão a melodia incerta de suas vozes porque revi os rostos antigos que a determinavam.

            - Eles querem se casar e nem mesmo sabem o inglês! - disse Aimé, que não imaginava que eu estivesse pouco a par da profissão de hoteleiro e não conseguia compreender que, se não se conhecem as línguas estrangeiras, não se pode contar com uma boa situação. Eu, que pensava que ele facilmente saberia que o novo freguês era o Sr. de Charlus, e imaginava até que devia lembrar-se dele, por tê-lo servido, quando o barão viera visitar a Sra. de Villeparisis por ocasião da minha primeira temporada em Balbec, disse-lhe o seu nome. Ora, não só Aimé não se lembrava do barão de Charlus, mas também esse nome lhe pareceu causar uma profunda impressão. Disse-me que iria procurar, no dia seguinte, em seus guardados, uma carta que eu talvez pudesse explicar-lhe. Tanto mais espantado fiquei, pois que o Sr. de Charlus, quando quisera dar-me um livro de Bergotte, em Balbec, naquela temporada, tinha mandado chamar especialmente Aimé, a quem deve ter encontrado em seguida nesse restaurante de Paris onde eu jantara com Saint-Loup e a amante deste, e onde o Sr. de Charlus tinha ido nos espionar. É verdade que não pudera cumprir pessoalmente essas missões, estando deitado da primeira vez e, da segunda, ocupado em serviço. No entanto, eu sentia muitas dúvidas quanto à sua sinceridade, quando afirmava não conhecer o Sr. de Charlus. Por um lado, devia ser conveniente ao barão. Como todos os chefes de andar do hotel de Balbec, como vários camareiros do príncipe de Guermantes, Aimé pertencia a uma raça mais antiga que a do príncipe, e portanto mais nobre. Quando alguém pedia um salão, a princípio acreditava-se a sós. Mas em breve avistava na copa um escultural mordomo, desse gênero etrusco ruivo de que Aimé era o tipo, um tanto envelhecido pelos excessos de champanha e vendo aproximar-se a hora necessária da água de Contrexéville.

[Contrexéville é uma estância hidromineral francesa, indicada para o tratamento de doenças urinárias e biliares, gota e obesidade. (N. do T)]

            Todos os fregueses só lhes pediam que os servissem. Os grooms, que eram jovens, escrupulosos, apressados, a quem uma amante esperava na cidade, tratavam de escapulir. Assim, Aimé lhes censurava o não serem sérios. Estava no seu direito. Sério, ele o era. Tinha mulher e filhos, e ambições para a família. Portanto, não repelia as tentativas que uma estrangeira ou um estrangeiro lhe faziam, mesmo que tivesse de ficar toda a noite. Pois o trabalho deve estar acima de tudo. De tal modo ele era do gênero que podia agradar ao Sr. de Charlus, que suspeitei que mentia quando me disse não conhecê-lo. Enganava-me. Era com toda a sinceridade que o groom havia dito ao barão que Aimé (que lhe passara uma reprimenda no dia seguinte) estava deitado (ou tinha saído) e, da outra vez, que estava de serviço. Mas a imaginação supõe além da realidade. E o embaraço do groom provavelmente causara, no Sr. de Charlus, quanto à sinceridade de suas desculpas, dúvidas que nele haviam ferido sentimentos dos quais Aimé não suspeitava. Viu-se também que Saint-Loup impedira que Aimé fosse ao carro onde o Sr. de Charlus que, não sei como, obtivera o novo endereço do mordomo, passara por uma nova decepção. Aimé, que não o percebera, experimentou o espanto que se pode imaginar quando, na mesma noite do dia em que eu almoçara com Saint-Loup e sua amante, recebeu uma carta lacrada com as armas de Guermantes e da qual citarei aqui algumas passagens, como exemplo de loucura unilateral de um homem inteligente que se dirigisse a um imbecil sensato. "Senhor, não pude conseguir, apesar dos esforços que assombrariam muitas pessoas que buscam inutilmente ser recebidas e saudadas por mim, que escutasse as poucas explicações que não me pedia, mas que eu julgava apresentar-lhe, devido à minha e à sua dignidade. Portanto, vou escrever aqui o que seria mais fácil dizer-lhe de viva voz. Não lhe ocultarei que da primeira vez que o vi, em Balbec, sua figura me pareceu francamente antipática. Seguiam-se então reflexões sobre a semelhança notada apenas no segundo dia com um amigo defunto, pelo qual o Sr. de Charlus sentira grande afeição.

            "Então, tive por um momento a idéia de que o senhor poderia, sem prejudicar em nada a sua profissão, vir jogar comigo partidas de cartas, com as quais a alegria desse amigo sabia dissipar a minha tristeza, para dar-me a ilusão de que ele não estava morto. Seja qual for a natureza das suposições mais ou menos tolas que o senhor provavelmente fez, e mais ao alcance de um serviçal (que nem merece tal nome, já que não quis servir) do que a compreensão de um sentimento tão elevado, julgou o senhor provavelmente dar-se importância, ignorando quem eu era e o que era, mandando responder, quando lhe mandava pedir um livro, que estava deitado; ora, é um erro supor que um mau procedimento acrescenta o que quer que seja à graça, de que aliás o senhor é inteiramente destituído. Teria eu ficado nisso, se por acaso, na manhã seguinte, não lhe pudesse falar. Sua semelhança com meu pobre amigo acentuou-se de tal maneira, fazendo até desaparecer a forma insuportável de seu queixo proeminente, que compreendi que era o defunto que, nesse momento, emprestava-lhe um pouco de sua expressão tão bondosa a fim de lhe permitir que voltasse a me impressionar e impedi-lo de perder a oportunidade única que se lhe oferecia. Com efeito, embora eu não deseje, visto que nada disso tem mais razão de ser e que não terei mais ocasião de encontrá-lo nesta vida, misturar a isso tudo brutais questões de interesse, ficaria muito feliz em obedecer às súplicas do morto (pois creio na comunhão dos santos e em sua veleidade de intervenção no destino dos vivos), de agir consigo como com ele, que tinha seu carro, seus criados, e a quem era muito natural que eu consagrasse a maior parte de minhas rendas, pois amava-o como a um filho. O senhor decidiu de outra forma. A meu pedido de que me trouxesse um livro, mandou responder que precisava sair. E esta manhã, quando mandei lhe pedir que viesse ao meu carro, o senhor, se posso lhe falar assim sem sacrilégio, renegou-me pela terceira vez. O senhor me desculpará por não colocar neste envelope as gorjetas elevadas que contava dar-lhe em Balbec, e nas quais muito penoso me seria insistir em relação a uma pessoa com que, por um instante, julguei que iria dividir tudo. Quando muito, poderia poupar-me fazer, junto ao senhor, em seu restaurante, uma quarta tentativa inútil e até à qual não iria a minha paciência. (E aqui o Sr. de Charlus dava o seu endereço, a indicação das horas em que seria encontrado, etc.) Adeus, senhor. Como creio que, sendo de tal modo parecido com o amigo que perdi, não deve ser inteiramente estúpido, a menos que a fisionomia se revele como uma ciência falsa, estou convencido de que um dia, se pensar de novo neste incidente, não o será sem experimentar uma certa pena e algum remorso. De minha parte, creia que bem sinceramente não lhe guardo amargura nenhuma. Teria preferido que nos separássemos com uma lembrança menos ruim do que a desta terceira tentativa inútil. Será logo esquecida. Somos como esses navios que o senhor deve ter avistado às vezes de Balbec, que se cruzam por um momento; poderia haver, para cada um deles, vantagens em parar; porém um julgou de modo diverso; em breve não se avistarão sequer no horizonte, e o encontro está apagado; mas, antes dessa separação definitiva, cada qual saúda o outro, e é o que faz aqui, senhor, desejando-lhe boa sorte, o barão de Charlus."

            Aimé nem sequer havia lido essa carta até o fim, pois não entendera nada e desconfiava de uma mistificação. Quando lhe expliquei quem era o barão, ele pareceu um tanto sonhador e sentiu aquela pena que o Sr. de Charlus lhe predissera. Nem mesmo juraria que ele então não tivesse escrito para se desculpar perante um homem que dava carros a seus amigos. Mas, nesse intervalo, o Sr. de Charlus travara relações com Morel. Quando muito, sendo essas relações talvez platônicas, o Sr. de Charlus buscava às vezes, por uma noite, uma companhia como aquela em que eu acabava de encontrá-lo no hall. Mas ele não podia mais desviar de Morel o sentimento violento que, livre alguns anos antes, desejara fixar-se em Aimé e que havia ditado a carta que me mostrara o mordomo e me fazia sentir constrangido pelo Sr. de Charlus. Por causa do amor anti-social que era o do Sr. de Charlus, constituía essa carta um exemplo mais impressionante da força poderosa e insensível dessas correntes da paixão e dentro das quais o enamorado, como um nadador que é arrastado sem o perceber, rapidamente perde a terra de vista. É claro que o amor de um homem normal também pode, quando o amoroso, pela invenção sucessiva de seus desejos, de suas penas, de suas decepções e de seus projetos, constrói todo um romance inteiro sobre uma mulher que ele não conhece, permitir que se meça um bem considerável afastamento das duas pontas de compasso. Todavia, um tal afastamento era singularmente ampliado pela natureza de uma paixão que em geral não é partilhada e pela diferença das condições de Aimé e do Sr. de Charlus.

            Todos os dias eu saía com Albertine. Ela resolvera dedicar-se a pintura e havia escolhido primeiramente, para trabalhar, a igreja de Saint-Jean-de-la-Haise, que não é mais freqüentada por ninguém, sendo muito mal conhecida, difícil de fazer-se indicar, impossível de descobrir sem guia e demorada de se atingir em seu isolamento, a mais de meia hora da estação de Épreville, depois de passadas há muito as últimas casas da aldeia de Quetteholme. Quanto ao nome de Épreville, não encontrei concordância entre o livro do cura e as informações de Brichot. Para um, Épreville era a antiga Sprevílla; o outro indicava como etimologia Aprívilla.

            Da primeira vez, tomamos a pequena estrada de ferro em sentido oposto ao de Féterne, ou seja, na direção de Grattevast. Mas era um dia de canícula e já fora terrível partir logo em seguida do almoço. Eu teria preferido não sair tão cedo; o ar luminoso e ardente despertava idéias de indolência e refrescamento. Sujeitava nossos quartos, o meu e o de minha mãe, conforme sua exposição, a temperaturas desiguais, como quartos de estâncias balneárias. O gabinete de toalete de mamãe, festoado pelo sol, de uma brancura fulgurante e mourisca, parecia estar mergulhado no fundo de um poço, devido aos quatro muros de estuque para os quais dava, ao passo que lá em cima, no quadrado vazio, o céu, cujas ondas macias e superpostas se viam deslizar umas sobre as outras, parecia (por causa do desejo que tínhamos) estar situado num terraço ou (visto às avessas em algum espelho pendurado à parede) ser uma piscina cheia de uma água azul, reservada às abluções. Apesar dessa temperatura abrasadora, tínhamos tomado o trem de uma da tarde. Porém Albertine sentira muito calor no vagão, e mais ainda durante o longo trajeto a pé, e eu temia que ela se resfriasse ao ficar, em seguida, imóvel naquela concavidade úmida que o sol não atingia. Por outro lado, e desde nossas primeiras visitas a Elstir, tendo-me apercebido de que ela apreciava não apenas o luxo mas até um certo conforto, do qual a privava sua falta de dinheiro, entendera-me com um locador de Balbec para que todos os dias um carro viesse buscar-nos. Para sentir menos calor, tomávamos pela floresta de Chantepie. A invisibilidade dos inúmeros pássaros, alguns meio marinhos, que se respondiam uns aos outros ao nosso lado nas árvores, dava a mesma impressão de repouso de quando estamos de olhos fechados. Ao lado de Albertine, preso em seus braços no fundo do carro, escutava essas oceânides. E, quando por acaso via um desses músicos que passava de um ramo a outro, havia tão pouca relação aparente entre ele e seus trinados, que não julgava enxergar a causa destes no pequeno corpo saltitante, humilde, assustado e sem olhos. O carro não podia nos levar até a igreja. Eu o mandava parar à saída de Quetteholme e me despedia de Albertine. Pois ela me impressionara ao dizer dessa igreja, como de outros monumentos, ou de certos quadros:

            - Que prazer seria ver tudo isto na sua companhia! -

            E eu não me sentia capaz de dar-lhe esse prazer. Só o sentia diante das belas coisas se estivesse sozinho, ou quando fingia estar e ficava calado. Mas já que ela pensara poder experimentar, graças a mim, as sensações de arte que não se comunicam desse modo, achava eu mais prudente dizer-lhe que a deixava e voltaria para buscá-la no fim do dia, mas que, até lá, era preciso que regressasse com o carro para fazer uma visita à Sra. Verdurin ou aos Cambremer, ou até passar uma hora com mamãe em Balbec, mas nunca mais distante que isso. Pelo menos nos primeiros tempos. Pois, tendo-me dito Albertine uma vez por capricho:

            "É aborrecido que a natureza tenha feito tão mal as coisas e que tenha posto Saint-Jean-dela-Haise de um lado, La Raspeliere de outro, e que a gente fique o dia inteiro aprisionado no local que escolheu".

            Logo que recebi a touca e o véu, encomendei para minha desgraça um automóvel em Saint-Fargeau (Sanctus Ferreolus, segundo o livro do cura). Albertine, deixada por mim na ignorância, e que viera me buscar, ficou surpresa ao ouvir diante do hotel o ronco do motor, e encantada quando soube que esse automóvel era para nós dois. Fi-la subir por um instante para o meu quarto. Ela pulava de alegria.

            - Vamos visitar os Verdurin?

            - Sim, mas é preferível que não vá desse jeito, pois vai ter o seu auto. Veja, ficará melhor assim. -

            E apresentei-lhe a touca e o véu que havia escondido.

            - É para mim? Oh, como você é gentil! - exclamou ela, saltando-me ao pescoço, Aimé nos encontrou na escada, orgulhoso da elegância de Albertine e do nosso meio de transporte, pois esses autos eram bastante raros em Balbec, e deu-se o prazer de descer atrás de nós. Albertine, desejando ser vista um pouco em sua nova toalete, pediu-me para suspender a capota, que se baixaria depois para que ficássemos livremente juntos.

            - Vamos - disse Aimé ao motorista, a que, aliás, não conhecia e que não se havia mexido -, não ouves que te dizem para suspender a capota? -

            Pois Aimé, curtido pela vida de hotel, onde de resto havia conquistado um cargo eminente, não era tão tímido como o cocheiro do fiacre, para quem Françoise era uma "dama": apesar da falta de apresentação prévia, tratava por tu os plebeus a quem nunca vira, sem que se soubesse com certeza se era, de sua parte, desdém aristocrático ou fraternidade popular.

            - Eu não sou livre - respondeu o motorista, que não me conhecia. - Fui chamado a serviço da Srta. Simonet. Não posso levar o cavalheiro. -

            Aimé desatou a rir:

            - Mas ora, seu grande imbecil - respondeu ele ao motorista, a quem logo convenceu -, é justamente a Srta. Simonet, e o cavalheiro que te manda erguer a capota é justamente o teu patrão. -

            E, como Aimé, embora não tivesse pessoalmente simpatia por Albertine, estava, por minha causa, orgulhoso da toalete que ela vestia, segredou ao chofer:

            - Se pudesses, hem! Bem que gostarias de conduzir todos os dias princesas como esta! - Nesta primeira vez, não fui só eu quem pôde ir a La Raspeliere, como fiz outros dias enquanto Albertine pintava; ela quis ir comigo até lá. Achava que poderíamos perfeitamente parar aqui e ali na estrada, mas julgava impossível começar indo a Saint-Jean-dela-Haise, isto é, numa outra direção, e fazer um passeio que parecia votado a um dia diferente. Ao contrário, soube pelo motorista que nada era mais fácil do que ir a Saint-Jean, onde chegaríamos em vinte minutos, e que poderíamos ali ficar, se quiséssemos, várias horas, ou então ir bem mais longe, pois de Quetteholme a La Raspeliere ele não levaria mais que trinta e cinco minutos. Compreendemo-lo assim que o automóvel, avançando, transpôs de um só ímpeto vinte passos de um excelente cavalo. As distâncias são unicamente a relação entre o espaço e o tempo e variam com este. Exprimimos a dificuldade que temos em nos dirigir a um local num sistema de léguas e quilômetros que se torna falso desde que essa dificuldade diminui. Com isso, a arte também é modificada, pois uma aldeia que parecia localizar-se num mundo bem diverso de outra, torna-se vizinha sua numa paisagem cujas dimensões estão mudadas. Em todo caso, saber que talvez exista um universo em que 2 mais 2 fazem 5 e onde a linha reta não seja o caminho mais curto entre dois pontos, teria assombrado menos a Albertine do que ouvir o motorista dizer que era fácil ir, numa mesma tarde, a Saint-Jean e à Raspeliere. Douville e Quetteholme, Saint-Mars-le-Vieux e Saint-Marsle-Vêtu, Gourville e Balbec-le-Vieux, Tourville e Féterne, prisioneiros tão hermeticamente fechados até ali na célula de dias distintos como outrora Méséglise e Guermantes, e sobre as quais os mesmos olhos não podiam pousar numa única tarde, libertos agora pelo gigante de botas de sete léguas, vieram reunir por volta da hora do nosso chá suas torres e campanários, seus velhos jardins que o bosque, ao aproximar-se, se apressava a descobrir. Chegando à estrada do precipício, o auto subiu de um só impulso, com um ruído contínuo de motor, como uma faca que se afia, ao passo que o mar, rebaixado, se alargava aos nossos pés. As casas antigas e rústicas de Montsurvent acorreram, mantendo presos contra si o seu vinhedo ou o seu roseiral; os abetos de La Raspeliere, mais agitados que quando se erguia o vento da tardinha, correram em todos os sentidos para nos evitar, e um criado novo, que eu ainda não tinha visto, veio receber-nos na escadaria, enquanto o filho do jardineiro, revelando disposições precoces, devorava com os olhos o local do motor. Como não era segunda-feira, não sabíamos se haveríamos de encontrar a Sra. Verdurin, pois, a não ser naquele dia em que ela recebia, era imprudente ir visitá-la de improviso. Sem dúvida, "em princípio" ela ficava em casa, mas essa expressão, que a Sra. Swann empregava no tempo em que também procurava formar o seu pequeno clã e atrair os convivas sem se mexer, conquanto muitas vezes não tirasse nem para os gastos, e que ela, num contra-senso, traduzia "por princípio", significava apenas "em regra geral", isto é, com numerosas exceções. Pois não só a Sra. Verdurin gostava de sair como também levava muito longe os deveres da hospitalidade, e, quando tinha convidados para o almoço, logo após o café, os licores e os cigarros (apesar do primeiro entorpecimento do calor e da digestão quando se teria preferido contemplar, através das folhagens do terraço, a passagem do paquete de Jersey pelo mar de esmalte), o programa compreendia uma série de passeios no decurso dos quais os convivas, instalados à força num carro, eram conduzidos a contragosto para um ou outro dos panoramas que se multiplicam em torno de Douville. Aliás, esta segunda parte da festa não era (depois de cumprido o esforço de se levantar e subir para o carro) a que menos agradava aos convivas, já preparados pelos pratos suculentos, os vinhos finos ou a cidra espumante, a se deixar embriagar facilmente pela pureza da brisa e a magnificência dos sítios. A Sra. Verdurin fazia com que estes lugares fossem visitados pelos estrangeiros um pouco feito os anexos (mais ou menos distantes) de sua propriedade, e que não se podia deixar de ir ver, uma vez que se vinha almoçar em casa dela e que, reciprocamente, não seria possível conhecer se não se fosse recebido em casa da Patroa. Essa pretensão de arrogar-se um direito único sobre os passeios, como sobre o recital de Morel e antigamente o de Dechambre, e de constranger as paisagens a fazerem parte do pequeno clã, não era aliás tão absurda quanto parece à primeira vista. A Sra. Verdurin troçava da falta de gosto que, segundo ela, os Cambremer demonstravam não só no mobiliário de La Raspeliere e no arranjo do jardim, mas também nos passeios que davam ou mandavam dar pelos arredores. Do mesmo modo que, a seu ver, La Raspeliere só principiara a tornar-se o que deveria ter sido depois de se constituir no asilo do pequeno clã, afirmava ela que os Cambremer, refazendo perpetuamente em sua caleche, ao longo da estrada de ferro, à beira-mar, a única estrada ordinária que existe nas cercanias, moravam desde sempre na região, mas não a conheciam. Havia um pouco de verdade nesta asserção. Fosse rotina, falta de imaginação, curiosidade por uma região que parece batida de tão próxima, os Cambremer só saíam de casa para ir sempre aos mesmos locais e pelos mesmos caminhos. Decerto, riam muito da pretensão dos Verdurin em fazê-los conhecer sua própria terra. Mas, colocados entre a espada e a parede, eles e até o seu cocheiro teriam sido incapazes de nos levar aos lugares esplêndidos, e um tanto secretos, aonde nos conduzia o Sr. Verdurin, erguendo aqui a barreira de uma propriedade particular, mas abandonada, onde outros não acreditariam ser possível aventurar-se; ali, descendo de carro para seguir um caminho que não era carroçável, mas tudo isso com a segura recompensa de uma paisagem maravilhosa. Digamos, além disso, que o jardim da Raspeliere era de certa forma um resumo de todos os passeios que se podia fazer a muitos quilômetros em derredor. Primeiro, por causa de sua posição dominante, olhando de um lado para o vale, do outro para o mar, e depois porque, mesmo de um só lado, o do mar, por exemplo, tinham sido abertas clareiras no meio das árvores, de tal maneira que daqui se avistava um horizonte, dali um outro. Em cada uma dessas perspectivas existia um banco; a gente vinha assentar-se alternativamente naquele de onde se avistava Balbec, ou Parville, ou Douville. Mesmo numa só direção, fora colocado um banco mais ou menos a pique sobre a falésia, em local relativamente retirado. Destes últimos, tinha-se um primeiro plano de verdura e um horizonte que já parecia o mais vasto possível, mas que ia se ampliando indefinidamente se, continuando por um estreito caminho, a gente andava até um banco seguinte, de onde se abrangia todo o círculo do mar. Ali se percebia nitidamente o rumor das vagas, que, pelo contrário não chegava às partes mais recônditas do jardim, lá onde as vagas ainda se deixavam avistar, porém não ouvir. Esses locais de repouso tinham na Raspeliere, para os donos da casa, o nome de "vistas". E de fato, reuniam em torno do castelo as mais belas "vistas" das regiões vizinhas, das praias, ou das florestas, muito diminuídas pelo afastamento, como o imperador Adriano reunira em sua vida reduções dos monumentos mais célebres de diversos países. O nome que se seguia à palavra "vista" não era forçosamente o de um ponto do litoral, porém, muitas vezes da margem oposta da baía e que se descortinava com certo relevo, apesar da extensão do panorama. Da mesma forma que se pegava um livro na biblioteca do Sr. Verdurin: para ir ler durante uma hora na "vista de Balbec", assim também, se o tempo estava bom, ia-se tomar licor na "vista de Rivebelle", desde que não ventasse muito, pois, apesar das árvores plantadas de cada lado, o ar era bastante vivo ali.

            Voltando aos passeios de carro que a Sra. Verdurin organizava para a tarde, se a Patroa encontrava na volta os cartões de algum mundano "de passagem pelo litoral", fingia estar encantada, mas desolava-se por haver perdido essa visita e (embora ainda não viessem senão para ver "a casa" ou conhecer por um dia uma mulher cujo salão artístico era célebre, porém não freqüentado em Paris) mandava convidá-lo sem demora pelo Sr. Verdurin, para que viesse jantar na quarta-feira seguinte. Como muitas vezes o turista era obrigado a viajar antes, ou temia os regressos tardios, a Sra. Verdurin havia convencionado que aos sábados encontrá-la-iam sempre à hora da merenda. Essas merendas não eram extremamente numerosas, e eu já conhecera em Paris outras mais brilhantes na casa da princesa de Guermantes, da Sra. de Galliffet ou da Sra. d'Arpajon. Mas aqui justamente não era mais Paris, e o encanto do quadro não reagia para mim sobre o aspecto aprazível da reunião, e sim sobre a qualidade dos visitantes. O encontro de determinado mundano, que em Paris não me proporcionaria prazer nenhum, mas que na Raspeliere, aonde viera de longe pela floresta de Chantepie ou por Féterne, mudava de caráter, de importância, tornava-se um incidente agradável. Às vezes era alguém que eu conhecia perfeitamente e a quem não teria dado um passo para encontrar na casa dos Swann. Mas seu nome soava de outra forma naqueles alcantis, como o de um ator que se ouve muitas vezes num teatro, impresso em cor diferente no cartaz; de um espetáculo extraordinário e de gala, onde sua notoriedade se multiplica de repente, no imprevisto do contexto. Como no campo a gente não tem cerimônia, freqüentemente o mundano trazia por conta própria os amigos em cuja casa se hospedava, alegando baixinho, como desculpa, à Sra. Verdurin, que não poderia deixá-los, porque estava na casa deles; em compensação, a esses anfitriões, fingia ele oferecer, como uma espécie de atenção, o divertimento de ir a um centro espiritual nessa vida monótona de praia, de visitar uma residência magnífica e de saborear um chá excelente. Isto, em seguida, compunha uma reunião de valor mediano; e, se um pequeno recanto de jardim com algumas árvores, que pareceria mesquinho no campo, adquire um encanto extraordinário na avenida Gabriel ou então na rua de Monceau, onde somente multimilionários podem permitir-se coisa semelhante, inversamente, senhores que estão em segundo plano num sarau parisiense assumiam todo o seu valor segunda-feira à tarde, em La Raspeliere. Mal sentavam-se em torno à mesa coberta de uma toalha bordada de vermelho, e onde sob os tremós de camafeu serviam-lhes bolos folhados, pastéis normandos, tortas em forma de barco, repletas de cerejas como pérolas de coral, "diplomatas", e logo aqueles convidados sofriam, com a proximidade da profunda concha de azul para a qual abriam as janelas e que não podia se deixar de ver, ao mesmo tempo que eles, uma alteração, uma transmutação profunda que os mudava em algo mais precioso. Mais ainda, mesmo antes de os ter visto, quando vinham na segunda-feira à casa da Sra. Verdurin, as pessoas que em Paris apenas tinham olhares cansados pelo hábito para as atrelagens elegantes que estacionavam diante de um palacete suntuoso, sentiam o coração bater à vista de duas ou três feias carruagens paradas diante da Raspeliere, sob os grandes pinheiros. Sem dúvida, por ser diferente o quadro agreste e porque as impressões mundanas, graças a essa transposição, retomavam o seu frescor. Era também porque a má carruagem que se tornava para ir visitar a Sra. Verdurin evocava um belo passeio e um custoso "trato" concluído com um cocheiro que havia pedido "tanto" pela jornada. Mas a curiosidade levemente excitada, em relação aos que chegavam, ainda impossíveis de distinguir, também provinha de que cada um indagava a si próprio: "Quem poderá ser?", pergunta a que era difícil responder, por não se saber quem poderia vir passar oito dias na casa dos Cambremer ou alhures, e que sempre se gosta de fazer nas vidas agrestes e solitárias, onde o encontro de um ser humano que se deixou de ver havia muito tempo, ou a apresentação a alguém que não se conhece, já não é mais essa coisa fastidiosa que é na vida de Paris, e interrompe deliciosamente o espaço vazio das vidas demasiado isoladas, em que até a hora do correio se torna agradável. E, no dia em que fomos de automóvel a Raspeliere, como não se tratava de uma segunda-feira, o Sr. e a Sra. Verdurin deviam estar atormentados pela necessidade de ver gente, necessidade que perturba os homens e as mulheres e dá ao doente, que encerraram longe dos seus, para uma cura de isolamento, vontade de se atirar pela janela. Pois, tendo-nos respondido o novo criado de pés mais rápidos, e já familiarizado com essas expressões, que "se madame não tinha saído, devia estar na 'vista de Douville', e que ele ia ver", voltou logo para dizer-nos que seríamos recebidos por ela. Encontramo-la um tanto despenteada, pois estava chegando do jardim, do galinheiro e do pomar, aonde fora dar de comer a seus pavões e galinhas, procurar ovos, colher frutas e flores para "fazer seu trilho de mesa", trilho que lembrava em miniatura o do parque; mas, sobre a mesa, apresentava a diferença de só fazê-lo suportar coisas úteis e boas para comer; pois, ao redor desses outros presentes do jardim que eram as peras, os ovos batidos em ponto de neve, erguiam-se hastes elevadas de viperinas, de cravos, de rosas e de coreópsis, entre as quais se viam, como entre estacas indicadoras e floridas, deslocando-se pelos vidros da janela, os barcos ao largo. Pelo espanto que o Sr. e a Sra. Verdurin, interrompendo o arranjo de flores para receber os visitantes anunciados, mostraram ao ver que esses visitantes eram apenas Albertine e eu, percebi que o novo criado, cheio de zelo, mas a quem seu nome ainda não era familiar, repetira-o mal e que a Sra. Verdurin, ouvindo o nome de visitantes desconhecidos, mesmo assim dissera que os mandasse entrar, tanta a sua necessidade de ver qualquer pessoa. E o novo criado contemplava da porta este espetáculo, a fim de compreender o papel que desempenhávamos na casa. A seguir, afastou-se correndo, a grandes pernadas, pois só estava contratado desde a véspera. Depois de ter mostrado bastante sua touca e seu véu aos Verdurin, Albertine lançou-me um olhar para me lembrar de que não tínhamos muito tempo à nossa frente para o que desejávamos fazer. A Sra. Verdurin queria que esperássemos a hora do chá, porém recusamos, quando, de súbito, se apresentou um projeto que liquidaria todos os prazeres que eu me prometia lucrar desse passeio com Albertine: a Patroa, não podendo decidir-se a nos deixar, ou talvez a deixar escapar uma nova distração, queria voltar conosco. Habituada desde muito a que oferecimentos desse gênero não causassem prazer, e provavelmente não tendo certeza de que este nos causasse algum, dissimulou sob um excesso de confiança a timidez que sentia ao nos fazê-lo, e nem sequer dando a impressão de supor que pudesse haver dúvidas quanto à nossa resposta, não nos fez nenhuma pergunta, porém disse ao marido, falando de Albertine e de mim como se nos fizesse um favor:

            - Eu os levarei de volta. -

            Ao mesmo tempo, um sorriso se lhe aplicou à boca, sorriso que não lhe pertencia propriamente, sorriso que eu já vira em certas pessoas, quando diziam a Bergotte com ar finório:

            - Comprei o seu livro, é assim-assim -, um desses sorrisos coletivos, universais, que, quando as pessoas dele necessitam como a gente se utiliza da estrada de ferro ou dos carros de mudança -, tomam emprestado, menos alguns muito refinados como Swann ou o Sr. de Charlus, em cujos lábios nunca vi pousar tal sorriso. Desde aquele momento a minha visita estava envenenada. Fiz cara de não haver compreendido. Após um instante, tornou-se evidente que o Sr. Verdurin participaria da festa.

            - Mas será um passeio muito longo para o Sr. Verdurin - objetei.

            - Que nada! - replicou a Sra. Verdurin com ar condescendente e divertido - ele diz que muito lhe agradará refazer com essa mocidade o caminho que tantas vezes percorreu outrora; se necessário, ficará ao lado do wattman; isto não o assusta e nós dois voltaremos bem direitinho pelo trem como bons esposos. Olhem, ele parece encantado. -

            Ela dava a impressão de falar de um grande pintor velho cheio de bonomia que, mais moço que os jovens, alegra-se em garatujar figuras para fazer rir seus netinhos. O que aumentava a minha tristeza era que Albertine parecia não compartilhá-la e achar divertido circular desse modo por toda a região com os Verdurin. Quanto a mim, o prazer que me havia prometido desfrutar com ela era tão imperioso que não quis deixar que a Patroa o estragasse; inventei mentiras que as irritantes ameaças da Sra. Verdurin tornavam desculpáveis, mas que Albertine, ai de mim, contradizia.

            - Mas temos uma visita a fazer - disse eu.

            - Que visita? - perguntou Albertine.

            - Eu lhe explicarei, é indispensável.

            - Pois bem, nós os esperaremos - disse a Sra. Verdurin, resignada a tudo.

            No último minuto, a angústia de sentir que me arrebatavam um prazer tão desejado deu-me coragem para ser descortês. Recusei redondamente, dizendo ao ouvido da Sra. Verdurin que, por causa de um desgosto que Albertine havia tido e sobre o qual queria me consultar, era absolutamente necessário que estivesse a sós com ela. A Patroa assumiu um aspecto irritado:

            - Está bem, não iremos - disse-me, a voz trêmula de cólera.

            Senti que estava tão zangada que, para parecer que cedia um pouco, disse:

            - Mas a gente talvez pudesse...

            - Não - retrucou ela, mais furiosa ainda; quando digo não, é não. -

            Julguei que estávamos rompidos; mas ela nos chamou à porta para nos recomendar que não "largássemos" a quarta-feira seguinte e que não viéssemos naquela máquina, que era perigosa à noite, mas pelo trem com todo o pequeno grupo, e mandou parar o auto, já em marcha, na descida do parque, pois o novo criado se esquecera de pôr na capota o pedaço de torta e os sablés que ela mandara embrulhar para nós. Tornamos a partir, escoltados um momento pelas casinhas, que acorriam com suas flores.

            A fisionomia da região nos parecia toda mudada, de tanto que a noção do espaço está longe de ser a que desempenha o maior papel na imagem topográfica que formamos de cada uma delas. Dissemos que a do tempo as afasta ainda mais. E ela também não será a única. Certos lugares que vemos sempre isolados nos parecem não ter medida comum com o resto, quase fora do mundo, como essas pessoas a quem conhecemos em períodos à parte da nossa vida, no regimento, na nossa infância, e que não relacionamos com coisa alguma. No primeiro ano da minha temporada em Balbec, existia uma elevação a que a Sra. de Villeparisis gostava de nos levar, porque dali só se via a água e os bosques, e que se chamava Beaumont. Como o caminho pelo qual ela mandava seguir para lá chegar, e que achava ser o mais bonito devido às velhas árvores, era o tempo todo em aclive, os cavalos do seu carro iam a passo e levavam muito tempo. Uma vez chegados ao alto, descíamos, passeávamos um pouco, voltávamos a subir para o carro, e regressávamos pelo mesmo caminho sem ter encontrado nenhuma aldeia, nenhum castelo. Eu sabia que Beaumont era algo de muito curioso, muito longínquo, muito altaneiro, e não tinha a mínima idéia da direção em que se encontrava, pois jamais tomara o caminho de Beaumont para ir a outro lugar; aliás, levava-se muito tempo de carro para chegar até lá. Evidentemente fazia parte do mesmo departamento (ou da mesma província) de Balbec, mas, para mim, estava situado num plano diverso, gozava de um privilégio especial de extraterritorialidade. Mas o automóvel, que não respeita nenhum mistério, depois de ter passado por Incarville, cujas casas eu ainda levava nos olhos, como descêssemos a costa pelo atalho que vai dar em Parville (Paterni villa), avistando o mar de um terrapleno onde estávamos, perguntei como se chamava aquele lugar e, antes mesmo que o chofer me respondesse, reconheci Beaumont, a cujo lado assim passava sem o saber de cada vez que tomava o trenzinho, pois ficava a dois minutos de Parville. Como um oficial de meu regimento, que teria me parecido uma criatura especial, por demais bonachão e simples para pertencer a uma grande família, já muito distante e misterioso para ser simplesmente de uma grande família, e do qual viesse a saber que era cunhado e primo de tais ou quais pessoas com quem eu jantava fora, assim Beaumont, de súbito ligado a locais de que o supunha tão diferente, perdeu seu mistério e assumiu seu posto na região, fazendo-me pensar com terror que Madame Bovary e a Sanseverina talvez me tivessem parecido criaturas semelhantes às outras se eu as tivesse encontrado em outra parte que não a atmosfera fechada de um romance. Pode parecer que meu amor pelas feéricas viagens de trem deveria impedir-me de compartilhar do encantamento de Albertine diante do automóvel que leva, mesmo um doente, aonde ele quer, e impede como eu o fizera até aqui que consideremos a localização como marca individual, a essência sem sucedâneo das belezas inamovíveis. E sem dúvida, o automóvel não fazia dessa localização, como outrora o trem de ferro, quando eu viera de Paris a Balbec, um objetivo subtraído às contingências da vida comum, quase ideais à partida, e que, continuando a sê-lo à chegada - à chegada nessa grande residência onde não mora ninguém e que leva apenas o nome da cidade: a estação -, tem o ar de prometer-lhe enfim o acesso como se fosse a sua materialização. Não, o automóvel não nos conduzia assim feericamente a uma cidade que víamos primeiro no conjunto que resume o seu nome, e com as ilusões do espectador na platéia. Ele nos fazia entrar nos bastidores da rua, parava para pedir uma informação a um habitante. Mas, como para compensar uma progressão tão familiar, temos os próprios titubeios do chofer, incerto quanto ao caminho, e que retrocede, e os ziguezagues da perspectiva, que fazem um castelo jogar os quatro-cantos com uma colina, uma igreja e o mar enquanto nos aproximamos dele, embora debalde se encolha sob sua folhagem secular; e esses círculos, cada vez mais próximos, que o automóvel descrevia em torno de uma cidade fascinada, que fugia em todos os sentidos para lhe escapar e sobre a qual, finalmente, avança direto, a pique, no fundo do vale, onde ela jaz por terra; de modo que essa localização, único ponto que o automóvel parece ter destituído do mistério dos trens expressos, dá pelo contrário a impressão de que o descobrimos, de que o determinamos nós mesmos como que a compasso, de nos ajudar a sentir, com mão mais amorosamente exploradora, com mais fina precisão, a verdadeira geometria, a bela "medida da terra". O que infelizmente eu ignorava naquela ocasião, e só vim a saber dois anos mais tarde, é que um dos fregueses do chofer era o Sr. de Charlus, e que Morel, encarregado de pagá-lo e guardando para si uma parte do dinheiro (fazendo o chofer triplicar e quintuplicar o número dos quilômetros), estava muito ligado a este (enquanto fingia não conhecê-lo diante dos outros) e utilizava o seu carro para corridas distantes. Se então eu soubesse disso, e que provinha daí a confiança que os Verdurin, sem o saberem, logo tiveram nesse chofer, tivessem sido evitados muitos dos aborrecimentos de minha vida em Paris, no ano seguinte, bem como diversas infelicidades relativas a Albertine; mas eu não o suspeitava em absoluto. Em si mesmos, os passeios do Sr. de Charlus de auto com Morel não me interessavam diretamente. Aliás, o mais das vezes limitavam-se a um almoço ou a um jantar num restaurante da costa, onde o Sr. de Charlus passava por um velho criado arruinado, e Morel, que tinha a missão de pagar as contas, por um bondoso fidalgo. Conto aqui uma dessas refeições, que pode dar uma idéia das outras. Era num restaurante de forma oblonga, em Saint-Mars-le-Vêtu.

            - Será que não poderiam levar isto daqui? - perguntou o Sr. de Charlus a Morel, como a um intermediário, e para não se dirigir diretamente aos garçons. Por "isto", ele designava três rosas murchas, com que um maitre d'hôtel bem-intencionado julgara dever decorar a mesa.

            - Sim. - disse Morel embaraçado. Não gosta de rosas?

            - Provaria, ao contrário, pelo pedido em questão, que as amo, já que não há rosas aqui (Morel pareceu surpreso), mas na verdade não gosto muito de rosas. Sou bastante sensível aos nomes; e, quando uma rosa é um pouco bonita, ficamos sabendo que ela se chama Baronesa de Rothschild ou Marechala Niel, o que nos deixa frios, Gosta dos nomes? Já encontrou belos títulos para seus pequenos trechos de concerto?

            - Há um deles que se chama Poema Triste.

            - É horrível - respondeu o Sr. de Charlus com voz aguda e estridente como uma bofetada.

            - Mas eu não tinha pedido champanha? - disse ele ao maitre d'hôtel, que julgara trazê-lo, colocando diante dos dois fregueses duas taças cheias de vinho espumante.

            - Mas, senhor...

            - Leve daqui este horror, que não tem nenhuma relação com o pior dos champanhas. É o vomitivo chamado cup, onde em geral se põem três morangos podres numa mistura de vinagre e água de Seltz... Sim continuou ele, virando-se para Morel o senhor parece ignorar o que seja um título. E até na interpretação daquilo que executa melhor, parece não perceber do lado mediúnico da coisa.

            - O senhor diz? - indagou Morel que, não tendo compreendido absolutamente nada do que o barão dissera, temia ficar privado de uma informação útil, como, por exemplo, um convite para almoçar.

            Tendo o Sr. de Charlus desdenhado considerar "O senhor diz?" como uma pergunta, Morel, conseqüentemente, sem obter resposta, achou melhor mudar de conversa e dar-lhe um torneio sensual:

            - Olhe, é a lourinha que vende estas flores de que o senhor não gosta; mais uma que tem seguramente uma amiguinha. E a velha que janta na mesa do fundo, também.

            - Mas como sabes de tudo isso? - perguntou o Sr. de Charlus, maravilhado com a presciência de Morel.

            - Oh, em um segundo eu as adivinho. Se nós dois passeássemos no meio de uma multidão, o senhor veria que não me engano duas vezes. -

            E quem naquele momento houvesse olhado Morel, com seu ar de menina em meio à sua máscula beleza, teria compreendido a obscura adivinhação que não o apontava menos a certas mulheres do que elas a ele. Tinha vontade de suplantar Jupien, vagamente desejoso de acrescentar ao seu "fixo" os rendimentos que, segundo julgava, o coleteiro extraía do barão.

            - E, quanto aos gigolôs, ainda sou mais entendido, posso poupar-lhe todos os erros. Em breve, chegará à feira de Balbec, onde encontraremos muitas coisas. E em Paris, então! Aí é que o senhor haverá de se divertir. -

            Mas uma prudência hereditária de criado fê-lo dar um outro sentido à frase que já estava começando. De modo que o Sr. de Charlus julgou que se tratava sempre de moças.

            - Veja o senhor - disse Morel, desejoso de excitar, de um modo que achava menos comprometedor para si mesmo (embora na realidade fosse mais imoral), os sentidos do barão -, meu sonho seria encontrar uma moça bem pura, de me fazer amado por ela, e tirar-lhe a virgindade. -

            O Sr. de Charlus não pôde impedir-se de beliscar suavemente a orelha de Morel, mas acrescentou com ingenuidade:

            - Para que te serviria isto? Se lhe acabasses com a donzelice, serias obrigado a casar com ela.

            - Casar com ela? - exclamou Morel, que sentia que o barão estava "alto", ou então que não pensava no homem, afinal mais escrupuloso do que imaginava, com quem estava falando. - Casar? Uma ova! Prometeria, sim, mas logo que pequena operação fosse levada a cabo de modo satisfatório, abandonava-a na mesma noite. -

            O Sr. de Charlus tinha o hábito, quando uma ficção podia causar-lhe um momentâneo prazer sensual, de dar-lhe sua adesão, pronto para retirá-la inteiramente, instantes depois, quando o prazer se esgotasse.

            - Verdadeiramente farias isto? - indagou a Morel, rindo e apertando-o com mais força.

            - E como! - disse Morel, vendo que não desagradava ao barão se continuasse a lhe explicar sinceramente o que era de fato um de seus desejos.

            - É perigoso - disse o Sr. de Charlus.

            - Eu faria antecipadamente as minhas malas e sumiria sem deixar endereço.

            - E eu? - disse o barão.

            - Eu o levaria comigo, é claro - apressou-se a dizer Morel, que não pensara no que seria do Sr. de Charlus, o qual era o menor de seus cuidados. - Olhe, existe uma garota que agradaria muito para o caso, é uma costureirinha que possui sua loja no palacete do Senhor duque.

            - A filha de Jupien! - exclamou o barão, enquanto entrava o copeiro. - Oh, jamais! - acrescentou, ou porque a presença de um estranho o tivesse esfriado, ou porque, mesmo nessas espécies de missas negras, em que as pessoas se comprazem em achincalhar as coisas mais santas, ele não pudesse resolver-se a fazer entrar pessoas por quem nutria amizade. - Jupien é um bom homem, a mocinha é encantadora, seria horrível causar-lhes esse desgosto. -

            Morel sentiu que tinha ido longe demais e se calou. Mas seu olhar continuava, no vago, a fixar-se na moça, diante da qual quisera certa vez que eu o chamasse de "meu caro artista" e a quem encomendara um colete. Muito trabalhadora, a garota não tirava férias, mas depois eu soube que, enquanto o violinista estava nos arredores de Balbec, ela não cessava de pensar no seu belo rosto, enobrecido pelo fato de que, tendo visto Morel em minha companhia, ela o tomara por um "senhor".

            - Nunca ouvi Chopin tocar piano - disse o barão; - e no entanto poderia, pois tomava lições com Stamati, mas ele me proibiu de ir ouvir, na casa da minha tia Chimay, o mestre dos Noturnos. - Que asneira que ele fez! - exclamou Morel.

            - Pelo contrário - replicou vivamente o Sr. de Charlus com voz aguda. - Ele provava ser inteligente. Compreendera que eu era um "temperamento" e que sofreria a influência de Chopin. Isso não importa, porquanto abandonei a música bem jovem, como aliás tudo. E depois, a gente imagina um pouco - acrescentou com uma voz anasalada, vagarosa e lânguida; - sempre existe gente que ouviu, que nos dá uma idéia. Mas afinal Chopin era só um pretexto para voltar ao lado mediúnico que você negligencia.

            Observar-se-á que, após uma interpolação da linguagem vulgar, a do Sr. de Charlus se tornara bruscamente tão preciosa e altaneira como o era de hábito. É que a idéia de que Morel "largaria" sem remorsos uma moça violada fizera-o de súbito experimentar um prazer completo. Desde aí os seus sentidos se apaziguaram por algum tempo, e o sádico (este sim, verdadeiramente mediúnico), que durante alguns instantes substituíra o Sr. de Charlus, havia fugido e devolvera a palavra ao legítimo Sr. de Charlus, cheio de refinamento artístico, de sensibilidade e bondade.

            - Outro dia, você tocou a transcrição para piano do quarteto XV, o que já é absurdo, pois nada é menos pianístico. Ela é destinada para pessoas a quem as cordas por demais tensas do Surdo glorioso fazem mal aos ouvidos. Ora, justamente esse misticismo quase acre é que é divino. Em todo caso, o senhor o tocou muito mal, modificando todos os movimentos. É preciso tocar aquilo como se o senhor o estivesse compondo: o jovem Morel, acometido de uma surdez momentânea e de um gênio inexistente, permanece imóvel por um momento; depois, tomado do delírio sagrado, ele toca, ele compõe os primeiros compassos; então, esgotado por semelhante esforço de transe, ele se abate, deixando cair a bela mecha para agradar à Sra. Verdurin, e, mais ainda, assim dispõe de tempo para reconstituir a prodigiosa quantidade de massa cinzenta que gastou para a objetivação pítica; então, tendo recobrado as forças, tomado de nova e condoreira inspiração, lança-se para a sublime frase inesgotável que o virtuoso berlinense (cremos que o Sr. de Charlus designava desse modo a Mendelssohn) devia infatigavelmente imitar. É dessa maneira, a única e verdadeiramente transcendente e animadora, que o farei tocar em Paris. - Quando o Sr. de Charlus lhe dava conselhos desse gênero, Morel ficava muito mais assustado que ao ver o maitre d'hôtel levar suas rosas e seu cup desdenhados, pois se perguntava ansiosamente qual o efeito que aquilo produziria sobre a "classe". Mas não para demorar-se nessas reflexões, pois o Sr. de Charlus lhe dizia imperiosamente:

            - Pergunte ao maitre d'hôtel se ele não tem um bom cristão.

            - Boro cristão? Não compreendo.

            - Bem vê que tratamos de frutas, é uma pêra. Esteja certo de que a Sra. de Cambremer a tem em sua casa, pois a comi dessa d'Escarbagnas, que ela é, também a tinha. O Sr. Thibaudier a envia e ela diz: "Eis um bom cristão que está lindo."

            - Não, eu não sabia.

            - Ali, vejo que o senhor não sabe nada. Se nem sequer leu Moliere... Pois bem, visto que não deve saber encomendar, mais que o resto, peça muito simplesmente uma pêra que se colhe justo perto daqui, a Louise-Bonned'Avranches.

[A sra. de Escarbagnas é personagem da comédia de Moliere, A Condessa de Escarbagnas. "Bom cristão" é nome dado a uma pêra flamenga. (N. do T)]

            - A...?

            - Espere, já que é tão canhestro, vou eu mesmo pedir outras, que prefiro: Maitre d'hôtel, tem o senhor a Doyenné des Comices?

            Charlie, deveria ler a página sensacional que sobre essa pêra escreveu a duquesa Émilie de Clermont-Tonnerre.

            - Não, senhor; não tenho.

            - Tem o Triunfo de Jodoigne?

            - Não, senhor.

            - A Virginie-Dallet? A Passe-Colmar? Não? Pois bem, já que não tem nada, vamos embora. A duquesa d'Angoulême ainda não está madura; vamos, Charlie, partamos. - Infelizmente para o Sr. de Charlus, a sua falta de bom-senso, talvez a castidade das relações que provavelmente mantinha com Morel fizeram com que, desde essa época, se empenhasse em cumular o violinista de estranhas gentilezas que este não podia compreender, e às quais sua natureza, doida à sua moda, porém ingrata e mesquinha, só podia corresponder com uma secura ou uma violência sempre maiores, e que mergulhavam o Sr. de Charlus antes tão altivo, agora todo tímido em acessos de legítimo desespero. Veremos como nas menores coisas, Morel, que acreditava ter se transformado num Charlus mil vezes mais importante, compreendera de esguedelha, tomando-as ao pé da letra, as orgulhosas informações do barão quanto à aristocracia.

            Por ora, digamos simplesmente, enquanto Albertine me espera em Saint-Jean-de-la-Haise, que se havia uma coisa que Morel punha acima da nobreza (e isso, em princípio, era bastante nobre, sobretudo vindo de alguém cujo prazer era ir procurar menininhas despercebidamente com o chofer) era a sua reputação artística e o que poderiam pensar na classe de violino. Sem dúvida era feio, pois sentia o Sr. de Charlus todo dedicado à sua pessoa, que desse a impressão de renegá-lo, de zombar dele, da mesma maneira como, logo que lhe prometi guardar segredo sobre as funções de seu pai na casa de meu tio-avô, ele passara a tratar-me com altivez. Mas, por outro lado, seu nome de artista diplomado, Morel, parecia-lhe superior a um "nome". E quando o Sr. de Charlus, em seus devaneios de ternura platônica, queria fazer com que ele tomasse um título de sua família, Morel recusava energicamente. Quando Albertine achava mais prudente ficar em Saint-Jean-dela-Haise para pintar, eu tomava o auto e não era só a Gourville e a Féterne que podia ir, mas também a Saint-Mars-le-Vieux e até a Criquetot, antes de voltar para pegá-la. Fingindo estar ocupado com outra coisa que não ela, e ser obrigado a deixá-la por outros prazeres, só nela pensava. Muitas vezes não ia além da grande planície que domina Gourville, e, como esta se assemelha um pouco à que principia acima de Combray, na direção de Méséglise, eu, ainda que a uma enorme distância de Albertine, sentia-me alegre ao pensar que, se meus olhares não podiam chegar até ela, aquela poderosa e suave brisa marinha que passava a meu lado, alcançando muito mais do que eles, deveria baixar, sem ser detida por nada, até Quetteholme, para agitar os ramos das árvores que ocultavam Saint-Jean-dela-Haise sob sua folhagem, acariciando o rosto da minha amiga, e, assim, lançando um duplo elo entre nós dois. Naquele retiro indefinidamente aumentado, mas sem riscos, como nesses jogos em que duas crianças se encontram por instantes fora do alcance da voz e da vista uma da outra, e onde, mesmo estando afastadas, permanecem juntas. Eu regressava por esses caminhos de onde se avista o mar e onde, outrora, antes que ele aparecesse por entre os ramos, eu fechava os olhos para bem pensar que o que ia ver era mesmo o queixoso ancestral da terra, prosseguindo, como no tempo em que ainda não existiam seres vivos, em sua demente e imemorial agitação. Agora, essas estradas não eram para mim senão o meio de ir ao encontro de Albertine; quando as reconhecia tão iguais, sabendo até onde iriam em linha reta, onde fariam uma curva, eu me lembrava de que as seguira pensando na Srta. de Stermaria, e também que a mesma pressa de encontrar-me com Albertine, eu a tivera em Paris ao descer as ruas por onde passava a Sra. de Guermantes; assumiam, para mim, a profunda monotonia, a significação moral de uma espécie de linha que seguia o meu caráter. Era natural e, contudo, não era indiferente; lembravam-me que minha sorte consistia apenas em perseguir fantasmas, criaturas cuja realidade em boa parte estavam na minha imaginação; de fato, existem seres e fora o meu caso desde a juventude - para quem nada do que possui um valor fixo, verificável por outros, a fortuna, o sucesso, as altas posições, é levado em conta; o que lhes é necessário, são os fantasmas. Sacrificam tudo o mais, põem tudo em ação, fazem tudo servir para achar determinado fantasma. Mas este não tarda em se desvanecer; então correm atrás de outro, prontos para voltarem logo ao primeiro. Não era a primeira vez que eu procurava Albertine, a moça vista no primeiro ano diante do mar. É verdade que outras mulheres haviam sido intercaladas entre a Albertine amada da primeira vez e esta a quem quase não deixava no momento; outras mulheres, notadamente a duquesa de Guermantes. Mas, dirão, por que tantos cuidados a respeito de Gilberte, ter tanto trabalho por causa da Sra. de Guermantes, se, tornando-se amigo desta, fizera-o com o único fim de não mais pensar nela, mas somente em Albertine? Antes de morrer, Swann teria podido responder, ele que fora amador de fantasmas. De fantasmas perseguidos, esquecidos, de novo procurados, às vezes para uma só entrevista, e a fim de tocar numa vida irreal que logo se evolava, estavam cheias as estradas de Balbec. Pensando que suas árvores, pereiras, macieiras, tamargas, me sobreviveriam, parecia-me receber delas o conselho de me pôr enfim a trabalhar enquanto não soasse a hora do repouso eterno. Eu saltava do carro em Quetteholme, corria pela íngreme descida, cruzava o regato por uma tábua e encontrava Albertine que pintava diante da igreja toda em torreões, espinhosa e rubra, florescente como um roseiral. Só o tímpano era liso; e, à superfície ridente da pedra, afloravam anjos que continuavam, diante do casal do século XX, a celebrar, círios na mão, as cerimônias do século XIII. Era deles que Albertine procurava fazer o retrato em sua tela preparada e, imitando Elstir, dava grandes pinceladas, buscando obedecer ao nobre ritmo que tornava esses anjos, dissera-lhe o grande mestre, tão diferentes de todos os que conhecia. Depois ajuntava as suas coisas. Apoiados um no outro, subíamos a encosta, deixando a igrejinha, tão tranqüila como se não nos tivesse visto, a escutar o perpétuo rumor do regato. Em breve o auto partia, fazia-nos tomar de regresso um caminho diverso do que seguíramos na ida. Passávamos por Marcouville-l'OrgueiIleuse. Sobre sua igreja, metade nova, metade restaurada, o sol poente estendia sua pátina, tão linda como a dos séculos. Através dela, os grandes baixos-relevos pareciam ser vistos apenas sob uma camada fluida, meio líqüida, meio luminosa; a Santa Virgem, Santa Isabel e São Joaquim nadavam ainda no impalpável remoinho quase em seco, à flor d'água ou à tona do sol. Numa cálida poeira surgiam as numerosas estátuas modernas, erguendo-se sobre colunas até meia altura dos véus dourados do poente. Defronte à igreja, um grande cipreste parecia estar dentro de uma espécie de recinto consagrado. Descíamos um instante para o contemplar e dávamos alguns passos. Tanto quanto de seus membros, tinha Albertine consciência de sua touca de palha da Itália e da écharpe de seda (que, para ela, não eram a sede das menores sensações de bem-estar), e delas recebia, enquanto ia ao redor da igreja, uma outra espécie de impulsão, traduzida por um contentamento inerte mas no qual eu encontrava graça; touca e écharpe que eram apenas uma parte recente, adventícia, de minha amiga, mas que já me era bastante cara e cujo rastro eu seguia com os olhos, ao longo do cipreste, no ar da tardinha. Ela própria não podia vê-lo, mas desconfiava que tais elegâncias faziam bem, pois me sorria harmonizando o porte da cabeça com o chapéu que a completava:

            - Não gosto, é restaurada - disse-me ela, mostrando a igreja e lembrando-se do que Elstir havia dito acerca da preciosa, da inimitável beleza das velhas pedras. Albertine sabia reconhecer de pronto uma restauração. A gente só podia assombrar-se com a segurança de gosto que ela já possuía em matéria de arquitetura, a par do gosto deplorável que conservava em música. Tanto quanto Elstir, eu não gostava dessa igreja, e foi sem me dar prazer que sua fachada veio postar-se, ensolarada, aos meus olhos, e só desci a contemplá-la para ser agradável a Albertine. E achava, no entanto, que o grande impressionista estava em contradição consigo mesmo; por que esse fetichismo ligado ao valor arquitetônico objetivo, sem levar em conta a transfiguração da igreja no poente?

            - Não - disse Albertine -, decididamente não me agrada; gosto do seu nome de Orgueilleuse (orgulhosa). Mas o que será preciso indagar a Brichot é por que Saint-Mars se chama "le Vêtu". Iremos lá na próxima vez, não? - perguntava-me olhando-me com seus olhos negros, sobre os quais a touca estava abaixada como outrora a sua pequena boina. Seu véu flutuava.

            Eu voltava ao auto com ela, feliz por irmos juntos, no dia seguinte, a Saint-Mars, de que, naqueles dias ardentes em que só se pensava em banhos de mar, os dois antigos campanários de um rosa-salmão, com telhas em losango, ligeiramente inclinadas e como que palpitantes, pareciam velhos peixes agudos, imbricados de escamas, musgosos e arruivados, que, sem dar a impressão de se moverem, erguiam-se numa água transparente e azul. Para resumir, deixando Marcouville, bifurcávamos numa encruzilhada de caminhos, onde havia uma granja. Às vezes Albertine mandava parar e me pedia que fosse buscar sozinho, a fim de poder beber no carro, vinho Calvados ou cidra, que asseguravam não ser espumante e que nos borrifava por completo. Estávamos apertados um contra o outro. As pessoas da granja mal avistavam Albertine no auto fechado, e eu lhes devolvia as garrafas; partíamos novamente, como para continuar naquela nossa vida, essa vida de amantes que elas podiam achar que levávamos, e da qual essa parada para beber não passasse de um momento insignificante; suposição que teria parecido tanto menos inverossímil se nos vissem depois que Albertine houvesse bebido a sua garrafa de cidra; de fato, ela parecia então não mais poder suportar, entre nós dois, um intervalo que de hábito não a incomodava; sob sua saia de algodão, suas pernas apertavam-se contra as minhas, ela aproximava do meu rosto as suas faces que se tornavam pálidas, quentes e rubras nos pômulos, com algo de ardente e descorado como o têm as mulheres dos arrabaldes. Nesses momentos, quase tão depressa como de personalidade, ela mudava de voz, perdia a sua e assumia uma outra, enrouquecida, ousada, quase crapulosa. A tarde caía. Que prazer senti-la juntinho a mim, com sua écharpe e sua touca, lembrando-me que é sempre assim, lado a lado, que se encontram os que se amam! Talvez eu sentisse amor por Albertine, mas não tinha coragem de dá-lo a perceber, se bem que, se existisse em mim, não podia ser senão como uma verdade sem valor até que fosse possível verificá-la pela experiência; ora, isto me parecia irrealizável e fora dos planos da minha vida.

            Quanto ao meu ciúme, forçava-me a deixar Albertine o menos possível, embora soubesse que ela não o haveria de curar totalmente senão separando-me dela para sempre. Podia até senti-lo junto dela, mas então cuidava para que não se renovassem as circunstâncias que o tivessem despertado em mim. Foi assim que, num dia de bom tempo, saímos para almoçar em Rivebelle. As grandes portas envidraçadas do refeitório, daquele hall em forma de corredor que servia para os chás, estavam abertas de par em par para a relva dourada pelo sol e das quais o vasto restaurante luminoso parecia fazer parte. O garçom de rosto róseo, de cabelos negros revoltos como chamas, movia-se por toda aquela vasta extensão menos depressa que antigamente, pois não era mais simples garçom, mas um chefe de mesa; não obstante, devido a sua atividade natural, às vezes de longe, no refeitório, às vezes mais perto, porém do lado de fora, servindo à fregueses que tinham preferido almoçar no jardim, a gente o avistava ora aqui, ora ali, como estátuas sucessivas de um jovem deus corredor, umas no interior, aliás bem iluminado, de uma sala que se prolongava em grama verde, outras sob as folhagens, na claridade da vida ao ar livre. Por um instante, esteve ao nosso lado. Albertine respondeu distraidamente ao que eu lhe dizia. Ela o mirava com os olhos crescidos. Durante alguns minutos, senti que é possível estar junto da pessoa amada e todavia não tê-la consigo. Pareciam estar num tête-à-tête misterioso, tornado mudo pela minha presença, e talvez continuação de encontros antigos que eu não conhecia, ou apenas de um olhar que ele lhe lançara e do qual eu era o terceiro importuno e de quem se escondem. Mesmo quando, chamado com violência por seu patrão, ele se afastou, Albertine, embora continuasse a almoçar, já não parecia considerar o restaurante e os jardins senão como pista iluminada, onde aparecia aqui e ali, em cenários variados, o deus corredor de cabelos negros. Num momento, cheguei a perguntar-me se, para segui-lo, ela não iria me deixar sozinho na mesa. Porém nos dias seguintes comecei a esquecer para sempre essa impressão penosa, pois havia decidido jamais voltar a Rivebelle e fizera com que Albertine, que me assegurou ter ido ali pela primeira vez, me prometesse que não voltaria nunca mais. E neguei que o garçom de pés ágeis só tivesse olhos para ela, para que Albertine não julgasse que minha companhia a houvesse privado de um prazer. Aconteceu-me voltar por vezes a Rivebelle, porém só, e beber demais, como já o fizera. Esvaziando um último copo, eu contemplava uma rosácea pintada na parede branca e reportava a ela o prazer que experimentava. Somente ela, no mundo, existia para mim; eu a perseguia, a tocava e a perdia sucessivamente com meu olhar fugidio e era indiferente ao futuro, contentando-me com a rosácea como uma borboleta que gira ao redor de uma borboleta pousada, com a qual vai acabar a vida num ato de suprema volúpia. Ora, eu achava perigoso deixar que se instalasse em mim, mesmo sob uma forma leve, um mal que se assemelha a esses estados patológicos habituais a que não se costumam dar atenção, mas a que, se sobrevém o menor acidente, imprevisível e inevitável, bastam para lhe conferir logo uma extrema gravidade. O momento talvez fosse particularmente bem escolhido para renunciar a uma mulher, a quem nenhum sofrimento muito recente e muito vivo me obrigava a pedir esse bálsamo contra um mal que possuem aquelas que o provocaram. Eu me sentia tranqüilizado por esses mesmos passeios que, embora no momento só os considerasse como uma espera de um amanhã que, apesar do desejo que me inspirava, não deveria ser diferente da véspera, tinham o encanto de serem arrancados aos lugares onde até então se encontrava Albertine, e onde eu não estava com ela, na casa de sua tia, na casa das amigas. Encanto não de uma alegria positiva, mas apenas do apaziguamento de uma inquietação, e contudo bem intenso. Pois a alguns dias de distância, quando voltava a pensar na granja diante da qual tínhamos bebido cidra, ou simplesmente nos poucos passos que déramos defronte de Saint-Mars-le-Vêtu. Lembrando-me que Albertine caminhava a meu lado com sua touca, o sentimento de sua presença acrescentava de súbito uma certa virtude à imagem indiferente da igreja nova, que, no momento em que a fachada ensolarada vinha desse modo pousar por si mesma em minha lembrança, era como uma grande compressa calmante que houvesse aplicado ao meu coração. Eu deixava Albertine em Parville, mas para ir encontrá-la de tarde e estender-me a seu lado na praia e no escuro. Claro que não a via diariamente, e no entanto podia dizer comigo: "Se ela contasse o emprego de seu tempo, de sua vida, era ainda eu quem ocuparia o maior lugar"; e passávamos juntos longas horas seguidas que davam aos meus dias uma tão doca embriaguez que até quando, em Parville, ela saltava do auto que eu ia lhe enviar de novo uma hora depois, já não me sentia sozinho no carro, como se, antes de desembarcar, ela tivesse deixado flores ali. Poderia ter deixado de vê-la todos os dias; e seria feliz, pois sentia que o efeito calmante dessa felicidade podia prolongar-se por vários dias. Mas então ouvia Albertine, ao deixar-me, dizer à sua tia ou a uma amiga:

            - Então, amanhã às oito e meia. Não podemos chegar tarde, eles estarão prontos às oito e quinze. -

            A conversação de uma mulher amada se parece a um solo que recobre uma água subterrânea e perigosa; a todo momento, sente-se por detrás das palavras a presença e o frio penetrante de um lençol invisível; percebe-se aqui e ao seu pérfido transudar, mas ele próprio permanece oculto. Tão logo ouvia a frase de Albertine, a minha calma ficava destruída. Desejava pedir para ir vê-la na manhã seguinte, a fim de impedi-la de comparecer a esse misterioso encontro das oito e meia de que se falara na minha frente em meias palavras. Sem dúvida, me obedeceria das primeiras vezes, lastimando, no entanto, ter de renunciar a seus projetos; depois teria descoberto minha necessidade permanente de estragá-los; e eu me transformaria naquele para quem se esconde tudo. E, além disso, é provável que essas festas das quais me via excluído consistissem em muito pouca coisa, e que era talvez por receio de que eu me encontrasse com uma certa convidada vulgar ou maçante que não me convidavam. Infelizmente, essa vida tão mesclada à de Albertine não exercia efeitos apenas sobre mim; ela me tranqüilizava; porém causava à minha mãe inquietações cuja confissão a destruía. Como eu voltasse contente para casa, decidido a terminar de um dia para o outro uma existência cujo fim eu julgava depender exclusivamente da minha vontade, minha mãe me disse, ao ouvir-me dizer ao chofer que fosse buscar Albertine após o jantar:

            - Como gastas dinheiro! (Françoise, em seu linguajar simples e expressivo, dizia com mais força: "O dinheiro voa.") - Procura - continuou mamãe - não ficar como Charles de Sévigné, cuja mãe dizia: "Sua mão é um crisol onde o dinheiro se derrete." E depois, creio que de fato saíste bastante com Albertine. Asseguro-te que é exagerado, que até mesmo para ela pode parecer ridículo. Fico encantada que isso te distraia, não te peço que não a vejas mais, mas enfim que não seja impossível um ficar sem o outro. -

            Minha vida com Albertine, vida carente de grandes prazeres pelo menos de grandes prazeres percebidos; essa vida que eu tencionava mudar de um dia para o outro, escolhendo uma hora de calma, tornou-se-me de repente necessária por algum tempo, quando se achou ameaçada pelas palavras de mamãe. Disse à minha mãe que suas palavras acabavam de atrasar talvez de dois meses a decisão que pediam e que, sem elas, seria tomada antes do fim da semana. Mamãe pôs-se a rir (para não me deixar triste) do efeito instantâneo de seus conselhos, e prometeu-me não voltar a falar no assunto, para não impedir que renascesse a minha boa intenção. Mas, desde a morte de minha avó, cada vez que mamãe se deixava rir, o riso principiado estacava de súbito e terminava com uma expressão quase soluçante de sofrimento, ou devido ao remorso de, por um instante, ter podido esquecer, ou pela recrudescência com que esse esquecimento tão breve reavivara ainda mais a sua cruel preocupação. Mas, à que lhe causava a lembrança da minha avó, instalada em minha mãe como uma idéia fixa, senti que desta vez se acrescentava uma outra, relativa a mim, por causa de seus temores pelas conseqüências de minha intimidade com Albertine; intimidade que ela, no entanto, não se animava a estorvar devido ao que lhe acabara de dizer. Mas não pareceu persuadida de que eu não estava enganado. Lembrava-se durante quantos anos minha avó e ela não me haviam mais falado de meu trabalho e de uma norma de vida mais higiênica e que, dizia eu, só a agitação em que me punham as suas exortações bastava para me impedir de começá-la, e que, apesar de seu silêncio obediente, eu não havia seguido.

            Depois do jantar, o auto trazia de volta Albertine; ainda havia um pouco de claridade. O ar estava menos quente, mas, após um dia abrasador, nós dois sonhávamos com frescores ignorados. Então, a nossos olhos empobrecidos, a lua muito estreita apareceu, a princípio (como na noite em que eu fora à casa da princesa de Guermantes e Albertine me telefonara) como a leve e delgada casca, depois como o quarto fresco de uma fruta que uma faca invisível começasse a descascar no céu. Também às vezes, era eu quem ia buscar a minha amiga, então um pouco mais tarde; ela devia esperar-me diante das arcadas do mercado, em Maineville. Nos primeiros instantes, eu não a distinguia; já me inquietava que não devesse aparecer, que tivesse compreendido mal. Então, via-a, com sua blusa branca de pintas azuis, saltar para o meu lado, no carro, num leve pulo que mais parecia o de um animalzinho que de uma moça. E era ainda como uma cadelinha que ela principiava logo a me acariciar sem fim. Quando a noite descia completamente e, como dizia o gerente do hotel, o céu ficava todo semeado de estrelas, se não íamos passear na floresta com uma garrafa de champanha, sem nos preocuparmos com os passeantes que deambulavam ainda sobre o molhe fracamente iluminado, mas que nada poderiam vislumbrar a dois passos sobre a areia escura, ficávamos estendidos ao pé das dunas; aquele mesmo corpo, em cuja flexibilidade vivia toda a graça feminina, marinha e esportiva das moças que eu vira passar pela primeira vez diante do horizonte das ondas, mantinha-o apertado contra o meu, sob a mesma coberta, exatamente à beira do mar imóvel, visível por um trêmulo reflexo; e o escutávamos sem cansar e com o mesmo prazer, seja quando retinha sua respiração, suspensa por tempo bastante para que se julgasse estancado o refluxo, seja quando enfim exalava a nossos pés o murmúrio esperado e atrasado. Eu acabava por levar Albertine à Parville. Chegado diante de sua casa, era necessário interromper nossos beijos de medo que nos vissem; não tendo vontade de ir deitar-se, ela voltava comigo até Balbec, de onde a levava uma última vez até Parville; os motoristas desses primeiros tempos do automóvel eram pessoas que iam deitar-se a qualquer hora. E, de fato, eu só voltava para Balbec com a primeira umidade da manhã, dessa vez sozinho, mas envolto ainda pela presença de minha amiga, repleto de uma quantidade de beijos longa para se esgotar. Na minha mesa encontrava um telegrama ou um cartão-postal. Era de Albertine ainda! Ela os escrevera em Quetteholme, enquanto eu saíra sozinho de auto e para me dizer o que pensava de mim. Eu me deitava na cama relendo-os. Então percebia, acima das cortinas, o primeiro clarão do dia e dizia comigo que devíamos nos amar, apesar de tudo, pois tínhamos passado a noite aos beijos. Quando via Albertine no molhe, na manhã seguinte, sentia tanto medo de que ela me dissesse que não estava livre aquele dia, não podendo aquiescer aos meus pedidos para passearmos juntos, que atrasava esse pedido o mais que podia. Sentia-me tanto mais inquieto porque ela estava com um aspecto frio e preocupado; passavam pessoas que a conheciam; sem dúvida, havia ela formado, para a tarde, projetos dos quais eu estava excluído. Eu a olhava, olhava aquele corpo encantador, aquele rosto rosado de Albertine, erguendo à minha face o enigma de suas intenções, a decisão desconhecida que deveria fazer a felicidade ou a desgraça da minha tarde. Era todo um estado de espírito, todo um futuro de existência que assumira diante de mim a forma alegórica e fatal de uma moça. E, quando por fim me decidia, quando com o ar mais indiferente possível perguntava:

            - Vamos passear juntos daqui a pouco e de noite? e ela me respondia:

            - Com muito gosto -, então toda a brusca reviravolta, na figura rósea, da minha longa inquietude por uma quietude deliciosa, tornava-me ainda mais preciosas essas formas a que eu devia perpetuamente o bem-estar, o sossego que se experimenta depois que desaba um temporal. Eu repetia comigo mesmo: "Como ela é gentil, como é adorável!" numa exaltação menos fecunda do que a devida à embriaguez, apenas mais profunda que a da amizade, mas muito superior à da vida mundana. Só não contratávamos o automóvel quando havia jantar na casa dos Verdurin e nos dias em que, não estando Albertine livre para sair comigo, eu aproveitava para avisar as pessoas que queriam me ver de que permaneceria em Balbec. Nesses dias eu dava licença a Saint-Loup para que fosse me visitar; mas somente nesses dias. Pois, numa vez em que ele chegara de surpresa, eu teria preferido privar-me de ver Albertine do que arriscar-me a que ele a encontrasse e que ficasse comprometido o estado de calma feliz em que me achava desde algum tempo e que se renovasse o meu ciúme. E só havia sossegado depois que Saint-Loup se fora. Assim, ele se limitava, com pesar mas escrupulosamente, a nunca vir a Balbec sem que o chamasse. Outrora, pensando com inveja nas horas que a Sra. de Guermantes passava com ele, quanto valor dava eu à sua presença! As criaturas não cessam de mudar de lugar em relação a nós. Na marcha insensível porém eterna do mundo, consideramo-las como imóveis num instante de visão, curto demais para que seja percebido o momento que as carrega. Porém, basta escolher na nossa memória duas imagens suas tomadas em instantes diversos, todavia bastante próximos, para que não tenham mudado, ao menos sensivelmente, e a diferença das duas imagens mede o deslocamento que operaram em relação a nós. Ele me inquietou horrivelmente ao falar dos Verdurin; receei que me pedisse para ser recebido em casa deles, o que seria suficiente, por causa do ciúme que eu não deixava de sentir, para estragar todo o prazer que ali encontrava com Albertine. Felizmente, porém, Robert me confessou, pelo contrário, que desejava acima de tudo não conhecê-los.

            - Não - disse ele -, acho exasperantes esses meios clericais. -

            A princípio não compreendi esse adjetivo "clerical" aplicado aos Verdurin, mas a continuação da frase de Saint-Loup esclareceu-me o seu pensamento, suas concessões às modas da linguagem, que a gente muita vez se espanta de ver empregadas pelos homens inteligentes.

            - São meios - disse ele onde se forma uma tribo, onde se fazem congregações e capelinhas. Não me dirás que não é uma pequena seita; tudo mel para quem pertence ao grupo, e nenhum desprezo bastante para as pessoas de fora. A questão não é, como para Hamlet, ser ou não ser, mas ser deles ou não ser deles. Tu és deles, o meu tio Charlus é deles. Que queres? Jamais gostei disso, a culpa não é minha. Fica entendido que a regra que eu impusera a Saint-Loup, de só vir me visitar a meu chamado, eu a estabeleci estritamente para qualquer pessoa com quem aos poucos me relacionava na Raspeliere, em Féterne, em Montsurvent e arredores; e, quando avistava do hotel a fumaça do trem das três horas que, na anfractuosidade das falésias de Parville, deixava seu penacho estável que permanecia por muito tempo enganchado no flanco das verdes vertentes, não tinha nenhuma hesitação quanto ao visitante que vinha tomar chá comigo e que, à maneira de um deus, ainda estava oculto sob aquela nuvenzinha. Sou obrigado a confessar que esse visitante, previamente autorizado a vir por mim, não foi quase nunca Saniette, e muitas vezes censurei-me por isto. Mas a consciência que tinha Saniette de aborrecer (naturalmente ainda mais vindo fazer uma visita do que contando uma história) fazia com que, embora fosse mais instruído, mais inteligente e melhor pessoa que os outros, parecia impossível experimentar junto dele não só algum prazer como outra coisa que não um spleen quase intolerável e que estragava toda a nossa tarde. Provavelmente, se Saniette confessasse francamente esse tédio que receava causar, a gente não temeria tanto as suas visitas. O tédio é um dos males menos graves que temos de suportar; o seu talvez só existisse na imaginação dos outros, ou lhe fora inoculado por eles graças a uma espécie de sugestão, que encontrava pasto em sua agradável modéstia. Mas ele tanto se empenhava em não dar a perceber que não era procurado, que não tinha coragem de oferecer-se. Certamente estava correto em não proceder como as pessoas que ficam tão contentes em desfazer-se em cumprimentos nos lugares públicos que, não nos tendo visto desde muito e lobrigando-nos em um camarote com pessoas brilhantes a quem desconhecem, lançam-nos uma saudação furtiva e ruidosa, desculpando-se com a emoção e o prazer que sentiram ao ver-nos, ao constar que reatamos os prazeres sociais, que temos bom aspecto, etc. Mas Saniette, ao contrário, carecia muito de audácia. Poderia, na casa da Sra. Verdurin ou no trenzinho, dizer-me que sentiria muito prazer em ir visitar-me em Balbec, caso não me fosse incômodo. Tal proposta não teria me assustado. Pelo contrário, ela nada oferecia, mas com uma fisionomia torturada e um olhar tão indestrutível como um esmalte cozido, em cuja composição, porém, entrava, com um desejo palpitante de nos ver a menos que não achasse alguém mais divertido; a vontade de não deixar perceber esse desejo, dizia-me com ar desligado:

            - O senhor não sabe o que vai fazer nestes dias? Porque sem dúvida irei para perto de Balbec. Mas não tem importância, eu só estava perguntando por acaso. -

            Aquele ar não me enganava, e os signos inversos com ajuda dos quais exprimimos nossos sentimentos pelo seu oposto são de uma leitura tão clara, que é de perguntar-se como ainda existem pessoas que dizem, por exemplo: "Tenho tantos convites que não sei o que fazer", para dissimular que não são convidados. Porém, mais ainda, aquele ar desligado, possivelmente devido ao que entrava em sua turva composição, nos causava o que jamais teria podido fazer o temor ao tédio ou a confissão franca do desejo de nos ver, isto é, essa espécie de mal-estar, de repulsa, que, na ordem das relações de simples polidez social, é o equivalente ao que, no amor, é o oferecimento disfarçado, que faz a uma dama o amoroso a quem ela não ama, de vê-la no dia seguinte, enquanto, ao mesmo tempo, protesta que não faz questão disso, ou nem sequer esse oferecimento, mas uma atitude de falsa frieza. E logo emanava da pessoa de Saniette um não sei quê, fazendo com que a gente lhe respondesse com o ar mais afetuoso do mundo:

            - Não, infelizmente, esta semana, vou explicar-lhe... -

            E eu deixava que viessem, em vez de Saniette, pessoas que estavam longe de ter o seu valor, mas que não possuíam o seu olhar carregado de melancolia e sua boca encrespada da amargura inteira de todas as visitas que ele tinha vontade, calando-a, de fazer a uns e outros. Infelizmente, era bem raro que Saniette não encontrasse no "tortinho" o convidado que vinha me visitar, se é que este já não me dissera na casa dos Verdurin:

            - Não se esqueça de que vou visitá-lo na quinta-feira -, dia em que eu precisamente havia dito a Saniette que não estava livre. De modo que ele acabava por imaginar a vida como cheia de divertimentos organizados à sua revelia, se não mesmo contra ele. Por outro lado, como a gente nunca é completamente uno, aquele discreto exagerado era doentiamente indiscreto. A única vez em que por acaso veio visitar-me, contra a minha vontade, uma carta, não sei de quem, estava atirada sobre a mesa. Ao cabo de um momento, percebi que ele só distraidamente escutava o que lhe dizia. A carta, cuja procedência ele ignorava por completo, o fascinava, e eu julgava que a qualquer instante as suas pupilas esmaltadas iam saltar das órbitas para se unirem à carta sem importância, mas que sua curiosidade imantava. Dir-se-ia um pássaro que vai se lançar fatalmente ao encontro de uma serpente. Por fim, não pôde mais conter-se e primeiro mudou-a de lugar, como para pôr ordem no meu quarto. Não lhe bastando isso, pegou-a, virou-a, revirou-a, como se o fizesse maquinalmente. Uma outra forma de sua indiscrição era que, uma vez grudado na gente, não conseguia ir embora. Como me achasse adoentado naquele dia, pedi-lhe que tomasse o trem seguinte, que partia dentro de meia hora. Ela não duvidou de que eu estivesse mal, porém respondeu:

            - Ficarei uma hora e um quarto, depois partirei. -

            Depois, sofri de não lhe haver dito, de cada vez que o podia fazer, que viesse. Quem sabe? Talvez eu tivesse conjurado sua má sorte, e o houvessem convidado outros por quem imediatamente me largaria, de forma que meus convites teriam tido a dupla vantagem de lhe proporcionar alegria e de me desembaraçar dele. Nos dias seguintes aos quais eu havia recebido, naturalmente não esperava visitas, e o automóvel vinha nos buscar a mim e a Albertine. E, quando regressávamos, Aimé, no primeiro degrau da escada, não podia deixar de espiar, com olhos apaixonados, curiosos e glutões, que tipo de gorjeta eu dava ao chofer. Por mais que eu encerrasse a moeda ou a nota na mão fechada, os olhares de Aimé afastavam meus dedos. Desviava a cabeça após um segundo, pois era discreto, bem-educado, e até mesmo se contentava com benefícios relativamente pequenos. Mas o dinheiro recebido por outrem excitava nele uma curiosidade irreprimível, dando-lhe água na boca. Nesses curtos instantes, tinha o ar atento e febril de uma criança que lê um romance de Júlio Verne, ou de uma pessoa que janta tão longe de nós, num restaurante, e que, vendo que nos trincham um faisão, que ele próprio não quer ou não pode saborear, abandona por um instante seus pensamentos sérios para pregar na ave um olhar que o amor e a inveja tornam risonho. Assim ocorriam diariamente aqueles passeios de automóvel. Mas uma vez, quando eu subia pelo elevador, o ascensorista me disse:

            - Aquele cavalheiro esteve aqui, e deixou um recado para o senhor. -

            O ascensorista me disse tais palavras com voz absolutamente mudada, tossindo cuspindo-me na cara.

            - Que resfriado que peguei! - acrescentou, como se eu não fosse capaz de percebê-lo por mim mesmo. -

            O doutor disse que é coqueluche e recomeçou a tossir e a cuspir em mim.

            - Não se canse falando - disse-lhe eu com ar de bondade fingida.

            Temia pegar a coqueluche, a que, com minha tendência às sufocações, me seria bastante penosa. Mas ele empenhou todo o seu orgulho, como um virtuoso que não quer se confessar doente, em falar e cuspir o tempo todo.

            - Não, isso não quer dizer nada - disse ele (para você, talvez, pensei, mas não para mim). - Aliás, vou em breve de volta a Paris (tanto melhor, desde que não me passe a coqueluche antes). - Parece - continuou - que Paris é bem magnífica. Deve ser mais magnífica ainda do que aqui e em Monte-Carlo, embora alguns companheiros e mesmo fregueses, e até mordomos que iam a Monte-Carlo devido à estação, tenham me dito muitas vezes que Paris era menos magnífica que Monte-Carlo. Talvez estivessem enganados e, no entanto, para ser mordomia não se pode ser imbecil; para guardar todos os pedidos, reservar todas as mesas, é preciso ter uma cabeça! Disseram-me que era ainda mais terrível do que escrever peças e livros. -

            Tínhamos quase chegado ao meu andar, quando o ascensorista me fez descer até embaixo, porque achou que o botão funcionava mal, e consertou-o num piscar de olhos. Disse-lhe que preferia subir a pé, o que queria dizer, e ocultar, que preferia não pegar coqueluche. Mas, com um acesso de tosse cordial e contagioso, ele me impeliu para o elevador.

            - Agora, não há mais perigo, consertei o botão. -

            Vendo que ele não parava de falar, preferindo conhecer o nome do visitante e o recado que deixara, em vez do paralelo entre as belezas de Balbec, Paris e Monte-Carlo, disse-lhe (como a um tenor que nos importuna com Benjamin Godard: cante de preferência Debussy):

            - Mas quem foi que veio me visitar?

            - É o cavalheiro com quem o senhor saiu ontem. Vou buscar o seu cartão, que está com o porteiro. -

            Como na véspera eu dei de cara Saint-Loup na estação de Doncieres, antes de ir buscar Albertine, julguei que o ascensorista falava de Saint-Loup, mas tratava-se do chofer. E, designando-o com estas palavras: "O cavalheiro com quem o senhor saiu ontem", ele ao mesmo tempo ensinava-me que um operário é tão exatamente um cavalheiro como um homem da alta sociedade. Lição de palavras, simplesmente. Pois, quanto à coisa, eu nunca fizera distinção entre as classes. E, se tivera, ao ouvir chamar um chofer de cavalheiro, o mesmo espanto do conde X... (que não o era senão há oito dias e a quem, tendo dito: "a condessa parece cansada", fiz virar a cabeça para trás para ver de quem eu falava), era apenas por falta de hábito do vocabulário; jamais fizera diferença entre os operários, os burgueses e os fidalgos, e teria tomado indiferentemente uns e outros por amigos, com uma certa preferência pelos operários, e depois pelos fidalgos, não por gosto, mas sabendo que se pode exigir deles mais polidez para com os operários do que da parte dos burgueses, seja porque os fidalgos não desdenham os operários como o fazem os burgueses, ou então porque são de boa vontade atenciosos para com qualquer pessoa, como as mulheres bonitas se sentem felizes em dar um sorriso que sabem ser acolhido com tanta alegria. Aliás, não posso dizer que esse modo que eu tinha de colocar a gente do povo em pé de igualdade com as pessoas da sociedade, se foi muito bem admitida por esta, sempre satisfizesse plenamente a minha mãe. Não que, humanamente, ela fizesse qualquer diferença entre as criaturas e, sempre que Françoise tinha algum desgosto ou se achava enferma, era consolada e cuidada por mamãe com a mesma amizade, o mesmo devotamento que sua melhor amiga. Mas minha mãe era muito filha de meu avô para que socialmente não levasse em conta as castas. Por mais que as pessoas de Combray tivessem coração, sensibilidade e assimilassem as mais belas teorias sobre a igualdade humana, quando um lacaio se emancipava, dizia uma vez "você" e insensivelmente passava a não me tratar mais na terceira pessoa, minha mãe mostrava, diante dessas usurpações, o mesmo descontentamento que explode, nas Memórias de Saint-Simon, cada vez que um senhor que não tem direito utiliza um pretexto para assumir a qualidade de "Alteza", numa ata autêntica, ou para não render aos duques o que lhes devia e de que pouco a pouco se dispensa. Existia um "espírito de Combray" tão refratário que serão necessários séculos de bondade (a de minha mãe era infinita), de teorias igualitárias, para chegar a dissolvê-lo. Não posso dizer que em minha mãe não tivessem permanecido indissolúveis certas parcelas desse espírito. Tão dificilmente daria ela a mão a um lacaio como facilmente lhe entregava dez francos (o que a este, aliás, causava muito mais prazer). Para ela, quer o confessasse ou não, os patrões eram os patrões, e os criados eram aqueles que comiam na cozinha. Quando ela via um chofer de automóvel jantar comigo no refeitório, não ficava nada contente e me dizia:

            - Acho que poderias ter coisa melhor que um motorista para amigo - como teria dito, se se tratasse de um casamento: poderias encontrar melhor partido. -

            O chofer (felizmente nunca pensei em convidá-lo) viera me dizer que a Companhia de autos, que o enviara a Balbec para a estação, dera-lhe ordem para voltar a Paris no dia seguinte. Esse motivo, tanto mais que o chofer era encantador e se exprimia de maneira tão simples que a gente pensava sempre estar ouvindo palavras do Evangelho, pareceu-nos de acordo com a verdade. Era só meia verdade, no entanto. De fato, ele nada mais tinha a fazer em Balbec. E, em todo caso, não tendo a Companhia senão meia confiança na veracidade do jovem evangelista, apoiado em sua roda consagradora, queria que ele voltasse o mais depressa possível a Paris. E, com efeito, se o jovem apóstolo realizava miraculosamente a multiplicação dos quilômetros quando os computava para o Sr. de Charlus, em compensação, desde que se tratava de prestar contas à Companhia, ele dividia por seis o que havia ganho. O resultado é que a Companhia, pensando ou que ninguém mais dava passeios em Balbec, o que a estação tornava inverossímil, ou que era lesada, achava, num ou noutro caso, que o melhor era chamá-lo de volta a Paris, onde aliás não se fazia grande coisa. O desejo do chofer era evitar a estação morta. Já disse o que ignorava então e cujo conhecimento teria me poupado muitos desgostos que ele era muito ligado a Morel (sem que jamais parecessem conhecer-se diante dos outros). A partir do dia em que ele foi chamado, sem saber ainda que dispunha de um meio para ficar em Balbec, fomos obrigados a nos contentar com o aluguel de um carro para nossos passeios, ou às vezes, para distrair Albertine, e como ela gostasse de equitação, de cavalos de sela. Os carros eram ruins.

            - Que calhambeque! - dizia Albertine.

            Aliás, muitas vezes eu bem gostaria de ficar a sós. Sem querer fixar uma data, aspirava a que tivesse fim aquela vida, pela qual me censurava de renunciar, não tanto ao trabalho, mas aos prazeres. No entanto, ocorria também que os hábitos que me retinham fossem de súbito abolidos, principalmente quando algum antigo eu, cheio do desejo de viver alegremente, substituía por um instante o eu atual. Experimentei especialmente esse desejo de evasão num dia em que, tendo deixado Albertine na casa da tia, fui a cavalo visitar os Verdurin e tomara pelos bosques um atalho agreste de que eles me haviam elogiado a beleza. Esposando as formas da falésia, ora o caminho subia, ora, estreitado entre espessas moitas de árvores, aprofundava-se em gargantas selvagens. Por um momento, os rochedos despidos que me cercavam e o mar que se avistava entre as suas chanfraduras flutuaram diante de meus olhos como fragmentos de outro universo: eu havia reconhecido a paisagem montanhosa e marinha que Elstir atribuíra por moldura a essas duas admiráveis aquarelas: "Poeta encontrando uma Musa" e "Rapaz encontrando um Centauro", que eu tinha visto na casa da duquesa de Guermantes. De tal maneira a sua lembrança recolocava fora do mundo atual os lugares em que me encontrava, que não me espantaria se, como o jovem de idade pré-histórica que Elstir havia pintado, tivesse cruzado no meu passeio com um personagem mitológico.

            De repente, meu cavalo se cabritou; tinha ouvido um barulho singular, e eu senti dificuldades para dominá-lo e não ser jogado ao chão; depois ergui os olhos cheios de lágrimas para o ponto de onde parecia vir esse barulho, e vi, a uns cinqüenta metros acima da cabeça, ao sol, entre duas grandes asas de aço fulgurante que o carregavam, uma criatura cujo rosto indistinto me pareceu assemelhar-se ao de um homem. Fiquei tão emocionado como o poderia ter ficado um grego que visse pela primeira vez um semideus. E também chorava, pois estava prestes a chorar no momento em que reconhecera que o barulho se fazia acima da minha cabeça os aeroplanos ainda eram escassos naquele tempo, à idéia de que aquilo que ia ver pela primeira vez era um aeroplano. Então, como quando se sente que vem no jornal uma frase emocionante, só esperava avistar o aeroplano para me debulhar em lágrimas. Entretanto, o aviador pareceu hesitar quanto à direção a tomar; eu sentia abertas à sua frente diante de mim, se o hábito não me aprisionasse todas as rotas do espaço, da vida; ele avançou, pairou por um instante sobre o mar e, depois, tomando bruscamente uma decisão, parecendo ceder a alguma atração contrária à da gravidade, como que regressando à sua terra, ele se afastou direto para o céu com um leve movimento de suas asas douradas. Para voltar agora ao mecânico, ele não só pediu a Morel que os Verdurin substituíssem o seu break por um auto (o que, dada a generosidade dos Verdurin quanto aos fiéis, era relativamente fácil), porém, o que era mais complicado, que o seu principal cocheiro, aquele rapaz sensível e de pensamentos melancólicos, fosse trocado por ele, motorista. Isto foi realizado em poucos dias pela seguinte forma. Morel começara por mandar roubar tudo o que era necessário para que o cocheiro atrelasse. Um dia, este não achava o freio, noutro dia a barbela. De outras vezes, era a almofada da sela que desaparecia, e até o seu chicote, sua manta, o martinete, a ponta da ferradura, a pele de camurça. Mas ele sempre se arrumava com os vizinhos; contudo, chegava atrasado, o que excitava contra ele a irritação do Sr. Verdurin, mergulhando-o num estado de tristeza e idéias negras. O chofer, intimado a regressar, declarou a Morel que ia voltar a Paris. Era preciso dar um grande golpe. Morel convenceu os criados do Sr. Verdurin de que o jovem cocheiro havia afirmado que os faria cair a todos numa cilada e se gabava de poder enfrentar todos os seis, e lhes disse que eles não poderiam deixar passar aquilo. De sua parte, não podia meter-se no negócio, mas prevenia-os a fim de que tomassem a dianteira. Combinou-se que, enquanto o Sr. e a Sra. Verdurin e seus amigos estivessem dando um passeio, cairiam todos sobre o rapaz na cavalariça. Direi, conquanto não passasse de uma ocasião para o que haveria de acontecer, mas porque as personagens me interessaram depois, que naquele dia um amigo dos Verdurin estava de férias na casa destes, e insistiram para que desse um passeio antes de sua partida, fixada para aquela mesma noite. O que muito me surpreendeu, quando todos saíram a passeio, foi que, nesse dia, Morel, que vinha conosco a pé, pois deveria tocar violino sob as árvores, me disse:

            - Escute, estou com o braço machucado; não quero dizê-lo à Sra. Verdurin, mas peça-lhe que traga um de seus criados, Howsler, por exemplo, para carregar meus instrumentos.

            - Creio que outro seria mais bem escolhido - respondi -, pois precisam dele para o jantar. -     Uma expressão de cólera passou pelo rosto de Morel.

            - De modo nenhum; não desejo confiar meu violino a qualquer pessoa. -

            Compreendi tarde demais a razão daquela preferência. Howsler era o irmão bem-amado do jovem cocheiro e, se ficasse em casa, poderia ir em seu socorro. Durante o passeio, bem baixinho para que o Howsler mais velho não nos ouvisse:

            - Eis um bom rapaz - disse Morel. - De resto, seu irmão o é igualmente. Se não tivesse o funesto hábito de beber...

            - Como? Beber? - perguntou a Sra. Verdurin, empalidecendo à idéia de ter um cocheiro que bebesse.

            - A senhora não percebe nada. Sempre digo para mim mesmo que é um milagre que não lhe aconteça um acidente enquanto a está conduzindo.

            - Mas então ele leva outras pessoas?

            - Basta ver quantas vezes já caiu, tem o rosto sempre cheio de equimoses. Não sei como já não se matou; até quebrou os varais.

            - Eu não o vi hoje - disse a Sra. Verdurin, trêmula ante a idéia do que poderia ter ocorrido com ela própria. - O senhor me deixa consternada. -

            Quis abreviar o passeio a fim de voltar para casa, e Morel escolheu uma ária de Bach com variações infinitas para fazê-la durar. Logo ao chegar, ela dirigiu-se à cocheira, viu os varais novos e Howsler ensangüentado. Ia dizer-lhe, sem fazer qualquer observação, que já não precisava de cocheiro e entregar-lhe o salário, mas ele próprio, não querendo acusar os camaradas, a cuja animosidade atribuía retrospectivamente o roubo diário de todas as selas, etc., e vendo que sua paciência só o levava a deixar-se cair como morto no chão, pediu para ir embora, o que simplificou tudo. O chofer entrou no dia seguinte e, mais tarde, a Sra. Verdurin (que fora obrigada a contratar outro) ficou tão satisfeita com ele que o recomendou calorosamente a mim como pessoa de absoluta confiança. Eu, que ignorava tudo, contratei-o por dia em Paris; mas isso já é antecipar demais, pois tudo será relatado na história de Albertine.

            Neste momento, estamos na Raspeliere, onde acabo de jantar pela primeira vez com minha amiga, e o Sr. de Charlus com Morel, filho suposto de um "intendente" que ganhava trinta mil francos fixos por ano, possuía um carro e numerosos mordomos subalternos, jardineiros, administradores e granjeiros sob suas ordens. Porém, visto que me antecipei desse modo, não quero todavia deixar o leitor sob a impressão de que Morel tivesse cometido uma perversidade absoluta. Ele era principalmente cheio de contradições, capaz em certos dias de uma verdadeira gentileza. Naturalmente, fiquei muito espantado ao saber que o cocheiro fora despedido, e bem mais ao reconhecer em seu substituto o chofer que nos levava a passeio, a mim e a Albertine. Mas ele me contou uma história complicada, segundo a qual regressara a Paris, de onde fora chamado pelos Verdurin, e não duvidei sequer por um segundo. A despedida do cocheiro deu motivo a que Morel conversasse um tanto comigo, a fim de manifestar-me sua tristeza pela partida daquele excelente rapaz. De resto, mesmo afora os momentos em que eu estava sozinho e em que ele saltava literalmente sobre mim com uma expansão de alegria, Morel, vendo que todos me festejavam na Raspeliere e sentindo que ele se excluía voluntariamente da familiaridade de alguém que não lhe oferecia perigo, pois me fizera destruir as pontes e me tirara qualquer possibilidade de assumir ares protetores para consigo (ares que eu absolutamente não pensara em assumir), deixou de se manter afastado de mim. Atribuí sua mudança de atitude à influência do Sr. de Charlus, a qual, de fato, o tornava em certos casos menos limitado, mais artista; mas em outros, em que aplicava ao pé da letra as fórmulas eloqüentes, mentirosas e aliás momentâneas do mestre, o fazia ainda mais bobo. O que o Sr. de Charlus poderia lhe ter dito, foi com efeito a única coisa que supus. Como poderia então adivinhar o que depois me disseram (e de que nunca tive certeza, pois as afirmações de Andrée sobretudo que dissesse respeito a Albertine, especialmente mais tarde, sempre me pareceram sujeitas a aval, porquanto, como já vimos anteriormente, ela não gostava com sinceridade da minha amiga, e tinha-lhe inveja), o que, em todo caso, se era verdade, foi-me notavelmente oculto por ambos: que Albertine conhecia muito a Morel? A nova atitude que este adotou para comigo por ocasião da despedida do cocheiro permitiu-me mudar de opinião a seu respeito. Conservei de seu caráter a triste idéia que formara devido ao servilismo que ele havia mostrado quando precisara de mim, seguido, tão logo fora prestado o serviço, de um desdém que chegara ao ponto de fingir que não me via. Era necessário acrescentar, a isso, a evidência de suas relações de venalidade com o Sr. de Charlus, e também seus instintos de bestialidade inconseqüente, cuja não-satisfação (quando isso ocorria), ou as complicações que acarretavam, era a causa de suas tristezas; mas esse caráter não era tão uniformemente mau e cheio de contradições. Parecia-se a um velho livro da Idade Média, cheio de erros, de tradição absurda, de obscenidades; era extraordinariamente composto. A princípio, eu julgara que sua arte, em que de fato era verdadeiramente um mestre, lhe proporcionara superioridades que ultrapassassem o virtuosismo do executante. Certa vez em que manifestara meu desejo de me pôr a trabalhar, ele me disse:

            - Trabalhe, torne-se ilustre.

            - De quem é isso? - perguntei-lhe.

            - De Fontanes, para Chateaubriand. -

            Conhecia também uma correspondência amorosa de Napoleão. Bem, pensei, ele é letrado. Mas essa frase, que ele havia lido não sei onde, era sem dúvida a única que conhecia de toda a literatura antiga e moderna, pois repetia-a para mim todas as noites. Uma outra, que repetia mais vezes para impedir-me que dissesse alguma coisa a seu respeito para quem quer que fosse, era esta, que ela igualmente acreditava ser literária, mas é apenas francesa ou pelo menos não oferece nenhum tipo de sentido, salvo talvez para um criado que faz mistério de tudo: "Desconfiemos dos desconfiados." No fundo, indo dessa máxima estúpida até a frase de Fontanes para Chateaubrind, ter-se-ia percorrido toda uma parte, variada mas menos contraditória do que parece, do caráter de Morel. Esse rapaz que, por qualquer dinheiro, teria feito fosse o que fosse, e sem remorsos talvez não sem uma estranha contrariedade, que chegasse à sobreexcitação nervosa, mas à qual não ficaria nada bem o nome de remorso; que teria, se fosse de seu interesse, mergulhado na dor e até mesmo no luto famílias inteiras, esse rapaz que colocava o dinheiro acima de tudo, e, para não falar em bondade, acima dos mais naturais sentimentos de pura humanidade, esse mesmo rapaz, no entanto, punha acima do dinheiro o seu diploma de primeiro prêmio do Conservatório e a preocupação de que não pudessem falar nada de desabonador a seu respeito na classe de flauta ou de contraponto. Assim, suas maiores cóleras, seus mais sombrios e injustificados acessos de mau humor provinham do que ele denominava (sem dúvida generalizando alguns casos particulares em que encontrara pessoas malévolas) a patifaria universal. Gabava-se de escapar-lhe, não falando jamais de ninguém escondendo o seu jogo e desconfiando de todo mundo. (Para minha desgraça, pelo que devia resultar disso após o meu regresso a Paris, sua desconfiança não "funcionara" em relação ao chofer de Balbec, no qual é certo que reconhecera um semelhante, ou seja, contrariamente à sua máxima, um desconfiado na boa acepção do termo, um desconfiado que se cala obstinadamente diante das pessoas honestas e logo depois se associa a um crápula.) Parecia-lhe e isso não era absolutamente falso que semelhante desconfiança lhe permitiria sempre livrar-se de qualquer situação, de escapulir, imperceptível, através das mais perigosas aventuras, e sem que nada pudessem contra ele, não só provar mas nem sequer dizer nada a seu respeito no estabelecimento da rua Bergere. Estudaria, tornar-se-ia ilustre, talvez fosse um dia, com respeitabilidade intacta, presidente do júri de violino em concurso daquele prestigioso Conservatório. Mas seria talvez inserir lógica demais no cérebro de Morel fazer saírem suas contradições umas das outras. Na realidade, sua natureza era de fato como um papel no qual se fizeram tantas dobras, em todos os sentidos, que é impossível desemaranhar qualquer coisa. Ele parecia ter princípios bastante elevados e, numa escrita magnífica, enfeiada pelos mais grosseiros erros de ortografia, passava horas escrevendo ao irmão, que este havia agido mal com as irmãs, que ele era o seu irmão mais velho, o seu arrimo; às irmãs, que estas haviam cometido uma inconveniência a seu respeito.

            Dentro em pouco, no fim do verão, quando se descia do trem em Douville, o sol, amortecido pela bruma, já não era, no céu uniformemente cor-de-malva, senão um bloco vermelho. À grande paz que desce à noite sobre aqueles prados densos e salinos e que estimulara muitos parisienses, na maioria pintores, a fazerem uma temporada em Douville, acrescentava-se uma umidade que os fazia voltar cedo para seus pequenos chalés. Em muitos destes, a lâmpada já se achava acesa. Apenas algumas vacas ficavam de fora contemplando o mar, a mugir, ao passo que outras, interessando-se mais pela humanidade, voltavam sua atenção para os nossos carros. Somente um pintor, que havia armado o cavalete numa delgada eminência, cuidava de tentar reproduzir aquela grande calma, aquela luz tranqüila. Talvez as vacas fossem lhe servir, inconsciente e benevolamente, de modelos, pois seu ar contemplativo e sua presença solitária, quando os humanos já tinham se recolhido, contribuíam a seu modo para a poderosa impressão de repouso que se desprende da noite. E, algumas semanas depois, a transposição não foi menos agradável, quando, com o avanço do outono, os dias tornaram-se bem curtos e foi necessário fazer essa viagem com a noite fechada. Se eu fosse dar uma volta de tarde, precisaria regressar para vestir-me às cinco horas o mais tardar, quando o sol redondo e rubro já descera para o meio do espelho oblíquo, outrora detestado, e, como um fogo grego, incendiava o mar em todos os vidros da minha biblioteca. Tendo algum gesto encantador suscitado, enquanto eu passava o meu smoking, o eu alerta e frívolo que era o meu quando ia jantar em Rivebelle com Saint-Loup, e a noite em que eu pensara levar a Srta. de Stermaria para jantar na ilha do Bois, pus-me a cantarolar inconscientemente a mesma canção daquele tempo; e foi somente ao percebê-lo que reconheci pela canção o cantor intermitente, o qual, de fato, só sabia aquela. Da primeira vez que a cantara, começava a amar Albertine, mas achava que jamais a conheceria. Mais tarde, em Paris, fora quando a deixara de amar e poucos dias depois de a ter possuído pela primeira vez. Agora, era amando-a de novo e no momento de ir jantar com ela, para grande mágoa do gerente, que julgava que eu acabaria por ir morar na Raspeliere e deixaria seu hotel, e que afirmava ter ouvido dizer que ali grassavam febres devidas aos pântanos do Bec, bem como a suas águas "acocoradas". Eu me sentia feliz com essa multiplicidade que via assim na minha vida que se desenrolava em três planos; e depois, quando nos tornamos por um momento um homem antigo, isto é, diferente do que somos desde muito, a sensibilidade, não estando mais amortecida pelo hábito, recebe, dos menores choques, impressões tão vivas que fazem empalidecer tudo o que as precedeu e às quais, devido à sua intensidade, nos prendemos com a exaltação de um bêbado.

            Já era noite fechada quando subíamos para o ônibus ou o carro que nos levaria à gare a fim de tomarmos o trenzinho. No hall, o presidente do Conselho nos dizia:

            - Ah, vão à Raspeliere! Com os diabos, essa Sra. Verdurin tem topete para obrigá-los a fazer uma hora de trem à noite, só para jantar. E depois, refazer o trajeto às dez horas, com um vento danado! Bem se vê que os senhores não têm nada para fazer - acrescentava, esfregando as mãos.

            Sem dúvida, falava desse jeito pela contrariedade de não ser convidado, e também pela satisfação que ostentam os homens "ocupados" mesmo que pelo trabalho mais idiota de "não terem tempo" de fazer o que fazemos. Decerto é legítimo que o homem que redige relatórios, enumera cifras, responde a cartas de negócios, segue o movimento da Bolsa experimente, quando nos diz com uma risadinha:

            - É bom para os senhores, que não têm o que fazer -, um agradável sentimento de superioridade. Porém esta se afirmaria igualmente desdenhosa, e mais ainda (pois o homem ocupado também janta fora), se a nossa distração consistisse em escrever o Hamlet ou apenas em lê-lo. Nisso os homens ocupados são faltosos de reflexão, pois a cultura desinteressada, que lhes parece cômico passatempo de gente ociosa quando a surpreendem no momento em que é praticada, deveriam eles pensar que é a mesma que, no seu próprio ofício, coloca acima do nível geral homens que talvez não sejam melhores magistrados ou administradores que eles, mas diante de cujo rápido progresso inclinam-se, dizendo:

            - Parece que é um grande letrado, um indivíduo muito distinto. -

            Mas, sobretudo, o presidente do Conselho não se dava conta de que o que me agradava naqueles jantares na Raspeliere era que, como dizia ele com razão, embora em tom de crítica, eles "representavam uma verdadeira viagem", uma viagem cujo encanto me parecia tanto mais vivo por não ser ela o seu próprio fim, e nem procurávamos nela nenhum prazer, estando este adstrito à reunião para a qual nos dirigíamos e que não deixava de ser muito modificada por toda a atmosfera que a cercava.

            Já era noite agora, quando trocava o calor do hotel que se tornara o meu lar pelo vagão onde embarcava com Albertine e onde o reflexo da lanterna na vidraça indicava, em certas paradas do trenzinho impulsivo, que tínhamos chegado a uma estação. Para não corrermos o risco de que Cottard não nos avistasse, e não tendo ouvido anunciar a estação, eu abria a portinhola, mas o que se precipitava no vagão não eram os fiéis, e sim o vento, a chuva, o frio. Na obscuridade, eu distinguia os campos, ouvia o mar, estávamos em plena campina. Albertine, antes que nos reuníssemos ao pequeno núcleo, olhava-se num espelhinho tirado de um nécessaire de ouro que trazia consigo. De fato, nas primeiras vezes, tendo a Sra. Verdurin feito com que ela subisse para o seu gabinete de toalete a fim de que se arrumasse para jantar, eu experimentara, no seio da profunda tranqüilidade em que vivia desde algum tempo, um pequeno movimento de inquietação e ciúme ao ser obrigado a deixar Albertine ao pé da escada, e me sentira tão ansioso enquanto estava sozinho no salão em meio ao pequeno clã e perguntava a mim mesmo o que faria a minha amiga lá em cima, que, no dia seguinte, por telegrama, depois de pedir algumas indicações ao Sr. de Charlus sobre o que havia de mais elegante no gênero, encomendei à casa Cartier um nécessaire que era a alegria de Albertine e também a minha. Era para mim um penhor de calma e também da solicitude da minha amiga. Pois ela certamente adivinhara que eu não gostava que ficasse sem minha companhia na casa da Sra. Verdurin, e se arranjava para fazer no vagão toda a sua toalete anterior ao jantar. No número dos habitués da Sra. Verdurin, e o mais fiel de todos, contava-se agora e desde vários meses o Sr. de Charlus. Regularmente, três vezes por semana, os viajantes que estacionavam nas salas de espera ou na plataforma de Doncieres-Oeste viam passar aquele homem corpulento, de cabelos grisalhos e bigode preto, os lábios rubros de uma pintura que se notava menos no fim da estação que no verão, quando a luz intensa a fazia mais crua, e o calor, meio líqüida. Enquanto se dirigia para o trenzinho, não podia deixar (só por hábito de conhecedor, visto que agora possuía um sentimento que o tornava casto ou, pelo menos, durante a maior parte do tempo, fiel) de lançar sobre os carregadores, os militares, os rapazes de uniforme de tênis um olhar furtivo, a um tempo inquisitorial e timorato, após o qual baixava logo as pálpebras sobre os olhos quase fechados, com a unção de um eclesiástico a desfiar o seu rosário, com a reserva de uma esposa votada ao seu único amor, ou de uma jovem bem-educada. Os fiéis tanto mais estavam convencidos de que ele não os vira, porque subia para um compartimento diverso do deles (como igualmente o fazia a princesa Sherbatoff), como homem que não sabe se ficariam satisfeitos ou não de serem vistos na sua companhia e que deixa a todos o direito de ir procurá-lo caso tenham vontade. Tal vontade não foi sentida nas primeiras vezes pelo doutor, que desejava deixássemos o barão a sós em seu compartimento. Dissimulando sua natureza vacilante desde que alcançara uma grande posição como médico, foi sorrindo, virando-se e olhando Ski por cima do pince-nez, que ele disse por malícia ou para surpreender de esguedelha a opinião dos companheiros:

            - Vocês compreendem, se eu estivesse sozinho, solteiro... mas, por causa de minha mulher, pergunto-me se posso deixá-lo viajar conosco depois do que o senhor me disse - sussurrou o doutor.

            - Que é que estás dizendo? - indagou a Sra. Cottard.

            - Nada, isto não é contigo, não é assunto para as mulheres - respondeu o doutor, piscando o olho, com uma majestosa satisfação de si mesmo, que ficava entre o ar sonso que mantinha ante os alunos e os enfermos, e a inquietação que outrora acompanhava suas tiradas na casa dos Verdurin, e continuou a falar em voz baixa.

            A Sra. Cottard só percebeu as palavras "da confraria" e "lingüinha", e, como na linguagem do doutor a primeira designava a raça judaica e a segunda as pessoas que falam pelos cotovelos, a Sra. Cottard concluiu que o Sr. de Charlus devia ser um judeu tagarela. Não entendeu que mantivessem o barão à parte por causa disso, e julgou de seu dever de decana do clã exigir que não o deixassem a sós, e nos encaminhamos todos para o compartimento do Sr. de Charlus, guiados por Cottard, sempre perplexo. Do seu canto, onde lia um volume de Balzac, o Sr. de Charlus percebeu aquela hesitação; entretanto, não erguera os olhos. Mas, como os surdos-mudos reconhecem, devido a uma corrente de ar insensível aos demais, que alguém está chegando por trás deles, o barão possuía, para ser advertido da frieza que sentiam a seu respeito, uma verdadeira hiperacuidade sensorial. Esta, como tem o hábito de fazer em todos os domínios, engendrara sofrimentos imaginários no espírito do Sr. de Charlus. Como esses nevropatas que, sentindo um leve frescor, induzem que deve haver uma janela aberta no andar de cima, enfurecem-se e entram a espirrar, o Sr. de Charlus, se uma pessoa mostrasse diante dele um ar preocupado, concluía que tinham repetido a essa pessoa uma frase que ele pronunciara a seu respeito. Mas nem sequer havia necessidade de que tivesse um ar distraído, ou sombrio, ou risonho: ele os inventava. Em compensação, a cordialidade mascarava-lhe facilmente as maledicências que ele desconhecia. Tendo adivinhado da primeira vez a hesitação de Cottard, se, para grande espanto dos fiéis, que não se julgavam percebidos ainda pelo leitor de olhos baixos, ele lhes estendeu a mão quando chegaram a distância conveniente, limitou-se, quanto a Cottard, a uma inclinação de todo o corpo, logo vivamente endireitado, sem apertar com a mão enluvada de couro da Suécia a mão que o doutor lhe estendera.

            - Fizemos questão absoluta de viajar em sua companhia, senhor, e não deixá-lo sozinho desse jeito no seu canto. É um grande prazer para nós - disse a Sra. Cottard bondosamente ao barão.

            - Fico muito honrado - enunciou o barão, inclinando-se com ar frio.

            - Fiquei muito contente ao saber que o senhor tinha escolhido definitivamente esta região para fixar aqui os seus tabern... - Ela ia dizer tabernáculos, mas essa palavra lhe pareceu hebraica e pouco delicada para um judeu que poderia ver nela uma alusão. Assim, conteve-se para escolher uma outra expressão que lhe fosse familiar, ou seja, uma expressão solene: para fixar aqui, eu queria dizer, os seus penares - (é verdade que essas divindades tampouco pertenciam à religião cristã, mas a uma que está extinta há tanto tempo que já não tem seguidores a quem receemos melindrar). - Infelizmente, nós, com a volta às aulas e o serviço hospitalar do doutor, nunca podemos fixar domicílio por muito tempo em um mesmo local. - E exibindo-lhe uma caixa: - Aliás, veja como nós, mulheres, somos menos felizes que o sexo forte; para ir tão pertinho como a casa dos nossos amigos Verdurin, somos obrigadas a levar conosco toda uma série de bagagens. -

            Durante todo esse tempo, eu olhava o volume de Balzac do barão. Não era uma brochura, comprada ao acaso como o volume de Bergotte que ele me emprestara no primeiro ano. Era um livro de sua biblioteca e, como tal, trazia a divisa:

            "Pertenço ao barão de Charlus", a qual por vezes era substituída, para mostrar o gosto dos Guermantes pelo estudo: In proeliis non semper e, ainda outra: Non sine labore.

[Expressões latinas, respectivamente: "Nem sempre nos combates" e "Não foi adquirido sem trabalho (N. do T)]

            Porém, nós as veremos em breve substituídas por outras, para tentar agradar a Morel. A Sra. Cottard, ao cabo de um instante, adotou um assunto que achava tocar mais pessoalmente ao barão:

            - Não sei se o senhor é da minha opinião -disse ela -, mas tenho idéias muito liberais e, a meu ver, desde que sejam praticadas com sinceridade, todas as religiões são boas. Não sou como as pessoas a quem à vista de um... protestante deixa hidrófobas.

            - Ensinaram-me que a minha era a verdadeira - respondeu o Sr. de Charlus. -

            "É um fanático", pensou a Sra. Cottard; "Swann, a não ser no fim, era mais tolerante; é verdade que se tratava de um convertido." Ora, pelo contrário, o Sr. de Charlus era não só cristão, como todos sabiam, mas também piedoso à maneira da Idade Média. Para ele, como para os escultores do século XIII, a Igreja cristã era, no sentido vivo do termo, povoada por uma multidão de seres tidos como perfeitamente reais: profetas, apóstolos, anjos, santas personagens de toda espécie, que cercavam o Verbo encarnado, sua mãe e, seu esposo, o Padre eterno, todos os mártires e doutores, tais como seu povo, em alto-relevo se apressa no pórtico ou enche a nave das catedrais. Entre todos eles, o Sr. de Charlus escolhera como patronos intercessores os arcanjos Miguel, Rafael e Gabriel, com os quais tinha freqüentes conversações, a fim de que eles comunicassem suas preces ao Padre eterno, diante de cujo trono estão postados. Assim, o engano da Sra. Cottard muito me divertia.

            Para abandonarmos o terreno religioso, digamos que o doutor, que chegara a Paris com a magra bagagem de conselhos de uma mãe camponesa, e depois, absorvido pelos estudos quase puramente materiais, aos quais aqueles que desejam subir bastante na carreira médica são obrigados a se consagrar durante muitos anos, nunca se cultivara; adquirira mais autoridade, mas não experiência. Tomou ao pé da letra a palavra "honrado" e com isso ficou a um tempo satisfeito, pois era vaidoso, e aflito, pois era uma boa pessoa.

            - Esse pobre Charlus - disse ele de noite à mulher - deu-me pena quando disse que se sentia honrado em viajar conosco. Sente-se, pobre diabo, que ele não tem relações, que se humilha.

            Mas dali a pouco, sem necessidade de serem guiados pela caridosa Sra. Cottard, os fiéis conseguiram dominar o constrangimento que todos haviam mais ou menos sentido a princípio por se acharem junto do Sr. de Charlus. Sem dúvida, na sua presença, conservavam sem cessar no espírito a lembrança das revelações de Ski e a idéia da estranheza sexual que estava inclusa em seu companheiro de viagem. Mas essa própria estranheza exercia sobre eles uma espécie de atração. Conferia, para eles, à conversa do barão, aliás notável mas em pontos que não podiam apreciar, um sabor que transformava a conversa mais interessante, até mesmo a de Brichot, em algo insosso. Por outro lado, desde o princípio, todos se mostraram satisfeitos ao reconhecer que ele era inteligente.

            - O gênio pode ser vizinho da loucura - enunciou o doutor e, se a princesa, ávida por instruir-se, insistia, ele nada mais dizia, já que esse axioma era tudo o que sabia sobre o gênio e, além disso, não lhe parecia tão demonstrado como tudo o que se referisse à febre tifóide e ao artritismo. E como se tornara orgulhoso e permanecera mal-educado:

            - Nada de perguntas, princesa, não me interrogue, estou à beira-mar para um descanso. Aliás, a senhora não me compreenderia, pois não sabe medicina. -

            E a princesa se calava, desculpando-se, achando Cottard um homem encantador e compreendendo que as celebridades nem sempre são abordáveis.

            Nesse primeiro período, tinham portanto achado o Sr. de Charlus inteligente, apesar de seu vício (ou aquilo que geralmente se chama desse modo). Agora, sem perceberem, era devido a esse vício que o achavam mais inteligente que os outros. As máximas mais simples que, habilmente provocado pelo universitário ou o escultor, o Sr. de Charlus enunciava acerca do amor, do ciúme, da beleza, por causa da experiência singular, secreta, refinada e monstruosa em que as havia haurido, assumiram para os fiéis aquele encanto do exotismo que uma psicologia, análoga à que nos tem oferecido o tempo todo a nossa literatura dramática, adquire numa peça da Rússia ou do Japão representada por artistas desses países. Arriscavam ainda, quando ele não estava ouvindo, um gracejo de mau gosto:

            - Oh! - cochichava o escultor, ao ver um jovem empregado de longos cílios de bailarina indiana e que o Sr. de Charlus não pudera evitar de encarar. - Se o barão se põe a namorar o fiscal, não estaremos perto de chegar, pois o trem irá de marcha a ré. Olhem só a forma como ele o encara; já não é num trenzinho de ferro que estamos, é num funicular. -

            Mas, no fundo, se o Sr. de Charlus não comparecia, ficavam quase decepcionados de viajar apenas entre pessoas comuns, e de não terem junto deles aquele personagem pintalgado, pançudo, semelhante a alguma caixa de proveniência exótica e suspeita, que deixa escapar o curioso odor de frutas, às quais o simples pensamento de provar nos causaria náuseas. Desse ponto de vista, os fiéis do sexo masculino tinham satisfações mais vivas, no curto pedaço do trajeto que se fazia entre Saint-Martin-du-Chêne, onde embarcava o Sr. de Charlus, e Doncieres, estação em que Morel se juntava a nós. Pois, enquanto o violinista não se achava presente (e se as senhoras e Albertine, formando grupo à parte para não incomodar a conversa, mantinham-se afastadas), o Sr. de Charlus, para não parecer que evitava certos assuntos, não se constrangia de falar daquilo "que se convencionou chamar os maus costumes". Albertine não podia constrangê-lo, pois estava sempre com as senhoras, por deferência de moça que não quer que sua presença restrinja a liberdade da conversa. Ora, eu suportava com facilidade o não tê-la a meu lado, com a condição, porém, de que permanecesse no mesmo vagão. Pois eu, que não mais sentia ciúme nem quase amor por ela, não pensava no que fazia Albertine nos dias em que não a via; em compensação, quando estava ali, um simples tabique que, a rigor, pudesse dissimular uma traição, era-me insuportável e, se ela ia com as senhoras para o compartimento vizinho, ao fim de um momento, sem poder ficar no mesmo lugar, arriscando-me a constranger o interlocutor, fosse Brichot, Cottard ou Charlus, e a quem não podia explicar o motivo de minha saída, eu me levantava, deixava-os ali e, para ver se não havia nada de anormal, passava para o outro lado.

            Até Doncieres, o Sr. de Charlus, sem medo de escandalizar, falava às vezes muito cruamente dos costumes que ele declarava, por sua conta, não achar nem bons nem maus. Fazia-o por habilidade, para mostrar sua largueza de espírito, persuadido como estava de que os seus não despertavam nenhuma suspeita entre os fiéis. Acreditava que havia no universo algumas pessoas que, conforme uma expressão que mais tarde se lhe tornou familiar, "tinham opinião assente a seu respeito". Mas ele imaginava que essas pessoas não passavam de três ou quatro e que não havia nenhuma delas no litoral da Normandia. Essa ilusão pode espantar, provindo de alguém tão fino, tão inquieto. Mesmo quanto aos que supunha mais ou menos informados, gabava-se de que o fossem apenas de modo vago, e tinha a pretensão, segundo alguém lhe dissesse tal ou qual coisa, de pôr essa pessoa fora das suposições de um interlocutor que, por polidez, fingia aceitar suas palavras. Mesmo desconfiando do que eu podia saber ou supor a seu respeito, pensava que essa opinião, que julgava ser muito mais antiga de minha parte do que o era na realidade, fosse geral, e que lhe bastava negar este ou aquele detalhe para ser acreditado, quando pelo contrário, se o conhecimento do conjunto precede sempre o dos detalhes, facilita infinitamente a investigação destes e, tendo destruído o poder de invisibilidade, já não permite ao dissimulador ocultar o que lhe agrada. Na verdade, quando o Sr. de Charlus, convidado para jantar por um certo fiel ou um certo amigo dos fiéis, fazia os mais complicados rodeios para incluir o nome de Morel em meio aos nomes de dez pessoas que citava, não suspeitava que aos motivos sempre diversos que dava do prazer ou da comodidade que sentiria aquela noite em ser convidado juntamente com ele, seus anfitriões, aparentando acreditá-lo piamente, substituíam todos os motivos por um só, sempre o mesmo, e que o barão julgava ignorado por eles, ou seja, que ele o amava. Da mesma forma, a Sra. Verdurin, parecendo sempre admitir totalmente os motivos meio artísticos, meio humanitários, que o Sr. de Charlus lhe dava acerca do interesse que tinha por Morel, não cessava de agradecer ao barão, emocionada, a tocante generosidade, dizia, que ele mostrava pelo violinista. Ora, qual seria o espanto do Sr. de Charlus se, num dia em que ele e Morel estavam atrasados e não haviam chegado pelo trem, ouvisse a Patroa dizer:

            - Só estamos esperando essas senhoritas. -

            Tanto mais estupefato ficaria o barão, pois que, não saindo de La Raspeliere, fazia ali o papel de capelão, de abade do repertório, e às vezes (quando Morel tinha quarenta e oito horas de licença), dormia lá dois dias seguidos. A Sra. Verdurin lhes dava então dois quartos com comunicação interna e, para deixá-los à vontade, dizia:

            - Se desejarem tocar música, não se acanhem; as paredes são como as de uma fortaleza, não há ninguém no andar dos senhores, e meu marido tem sono de pedra. -

            Nesses dias, o Sr. de Charlus substituía a princesa, indo pegar os novatos na estação; desculpava a Sra. Verdurin de não ter vindo por causa de um estado de saúde, que ele descrevia tão bem que os convidados entravam com uma cara de circunstância e soltavam uma exclamação de espanto ao encontrar a Patroa de pé e bem disposta, num vestido semidecotado. Pois o Sr. de Charlus, para a Sra. Verdurin, tornara-se momentaneamente o fiel dos fiéis, uma segunda princesa Sherbatoff. De sua posição mundana ela estava bem menos segura do que da posição da princesa, imaginando que, se esta só desejava freqüentar o pequeno núcleo, era por desprezo aos outros, e predileção por ele. Como semelhante ficção era própria dos Verdurin, que consideravam aborrecidos aqueles a quem não podiam freqüentar, era incrível que a Patroa pudesse julgar a princesa uma alma de aço que detestava a vida chique. Mas não desistia e estava certa de que era com sinceridade e pelo gosto das coisas intelectuais que a grande dama também não freqüentava os aborrecidos. Aliás, para os Verdurin, o número destes diminuía. A vida dos banhos de mar tirava a uma apresentação as conseqüências para o futuro que se poderia recear em Paris. Homens brilhantes que tinham ido sem a mulher a Balbec, o que facilitava tudo, davam os primeiros passos na Raspeliere e, de aborrecidos, tornavam-se requintados. Foi o caso do príncipe de Guermantes, a que todavia a ausência da princesa não teria decidido a ir "como solteiro" à casa dos Verdurin, se o ímã do dreyfusismo não fosse tão poderoso que o fizesse galgar de um só impulso as encostas que levam a Raspeliere, infelizmente num dia em que a Patroa havia saído. A Sra. Verdurin não estava bem certa de que ele e o Sr. de Charlus pertencessem à mesma sociedade. O barão afirmara que o duque de Guermantes era seu irmão, mas aquilo talvez fosse mentira de um aventureiro. Por mais elegante que ele se mostrasse, por mais amável, por mais "fiel" quanto aos Verdurin, a Patroa hesitava quase em convidá-lo com o príncipe de Guermantes. Consultou Ski e Brichot:

            - O barão e o príncipe de Guermantes; será que funciona?

            - Meu Deus, senhora, quanto a um dos dois creio que posso dizer...

            - Mas, um dos dois, de que pode me adiantar? - replicara a Sra. Verdurin, irritada. - Eu lhes pergunto se dará certo os dois juntos?

            - Ah, senhora, eis uma coisa que é bem difícil de saber. -

            A Sra. Verdurin não punha qualquer malícia naquilo. Estava certa dos costumes do barão, mas, quando se expressava desse modo, não pensava neles, mas simplesmente em saber se poderiam convidar juntos o príncipe e o Sr. de Charlus, se aquilo combinava. Não punha nenhuma intenção malévola no emprego dessas frases feitas e que os "pequenos clãs" artísticos favorecem. Para pavonear-se com o Sr. de Guermantes, desejava levá-lo, na tarde que se seguiria ao almoço, a uma festa de caridade na qual marinheiros da costa representariam uma aparelhagem. Mas, não tendo tempo de se ocupar de tudo, delegou suas funções ao fiel dos fiéis, ao barão.

            - O senhor compreende, não é necessário que eles fiquem imóveis feito mexilhões, é preciso que não deixem de ir e vir, para que se veja a confusão, não sei o nome disso tudo. Mas o senhor, que vai muitas vezes ao porto de Balbec-Plage, poderia muito bem mandar fazer um ensaio sem se cansar. O senhor deve ser muito mais entendido do que eu, Sr. de Charlus, em fazer funcionar os marujinhos. Mas, afinal, estamos tendo muito trabalho com o Sr. de Guermantes. Talvez seja um imbecil do Jockey. Oh, meu Deus, falei mal do Jockey e parece-me que me lembro que o senhor é sócio. Ei, barão, não me responde, será que é mesmo sócio? Não quer sair conosco? Veja, aqui está um livro que recebi, acho que pode lhe interessar. É de Roujon. O título é bonito: Entre os homens.

            De minha parte, estava muito satisfeito de que o Sr. de Charlus substituísse tantas vezes a princesa Sherbatoff, pois não me achava de bem com esta, por um motivo a um tempo insignificante e profundo. Um dia em que estava no trenzinho, como de costume cumulando de amabilidades a princesa Sherbatoff, vi embarcar a Sra. de Villeparisis. Com efeito, esta viera passar algumas semanas na casa da princesa de Luxemburgo, mas, preso à necessidade cotidiana de ver Albertine, eu jamais respondera aos múltiplos convites da marquesa e de sua régia anfitriã. Senti remorsos ao ver a amiga de minha avó e, por puro dever (sem deixar a princesa Sherbatoff), conversei com ela durante muito tempo. De resto, ignorava absolutamente que a Sra. de Villeparisis sabia perfeitamente quem era a minha vizinha, mas que não desejava conhecê-la. Na estação seguinte, a Sra. de Villeparisis deixou o vagão, e eu até me censurei por tê-la ajudado a descer; fui sentar-me ao lado da princesa. Porém dir-se-ia cataclismo freqüente nas pessoas cuja posição é pouco sólida e que temem que a gente haja ouvido falar mal delas e as despreze que ocorrera uma mudança. Mergulhada na sua Revue des Deux Mondes, a Sra. Sherbatoff mal respondeu com o canto da boca às minhas perguntas e acabou por me dizer que eu lhe causava uma enxaqueca. Eu nada entendia do meu crime. Quando disse adeus à princesa, o sorriso habitual não iluminou o seu rosto, uma seca saudação abaixou o seu queixo, ela nem sequer me estendeu a mão e desde aí nunca mais voltou a falar-me. Mas deve ter falado aos Verdurin e não sei para dizer o quê, pois sempre que eu perguntava a eles se não deveria fazer uma gentileza à princesa Sherbatoff, eles em coro se precipitavam:

            - Não! Não! Não! Sobretudo isso! Ela não gosta de amabilidades! -

            Não o faziam para me ver rompido com ela, mas a princesa conseguira que acreditassem ser insensível às amabilidades, uma alma inacessível às vaidades deste mundo. É preciso ter visto o político que passa por ser o mais íntegro, o mais intransigente, o mais inabordável desde que está no poder; é preciso tê-lo visto no tempo de sua desgraça, mendigar timidamente, com um sorriso radiante de apaixonado, o cumprimento altivo de um jornalista qualquer; é preciso ter visto o aprumo de Cottard (que seus novos clientes tomavam por uma barra de ferro), e saber de que despeitos amorosos, de que fracassos de esnobismo eram feitos a aparente altivez, o anti-esnobismo universalmente admitido da princesa Sherbatoff, para compreender que na humanidade a regra que comporta exceções, e claro que os duros são frágeis repelidos, e que os fortes, sem se preocuparem se são queridos ou não, são os únicos que possuem essa doçura que o vulgo toma por fraqueza. Ademais, não devo julgar severamente a princesa Sherbatoff. Seu caso é tão freqüente!

            Um dia, no enterro de um Guermantes, um homem notável a meu lado me mostrou um senhor esbelto e dotado de um rosto bonito.

            - De todos os Guermantes - disse o meu vizinho -, este é o mais extraordinário, o mais singular. É o irmão do duque. -

            Respondi-lhe imprudentemente que se equivocava, que aquele senhor, sem qualquer parentesco com os Guermantes, se chamava Fournier-Sarloveze. O homem notável voltou-me as costas e daí em diante nunca mais me cumprimentou.

            Um grande músico, membro do Instituto, alto dignitário oficial e que conhecia Ski, passou por Arembouville, onde tinha uma sobrinha, e compareceu a uma quarta-feira na casa dos Verdurin. O Sr. de Charlus mostrou-se particularmente amável com ele (a pedido de Morel) e sobretudo para que, quando de regresso a Paris, o acadêmico lhe permitisse assistir a diversas sessões privadas, ensaios, etc., em que tocava o violinista. O acadêmico, lisonjeado e aliás pessoa encantadora, prometeu e cumpriu a promessa. O barão ficou muito comovido com todas as gentilezas que esse personagem (que aliás, de sua parte, amava profunda e exclusivamente as mulheres) teve para com ele, com todas as facilidades que lhe proporcionou para ver Morel em lugares oficiais, onde os profanos não entram, com todas as oportunidades oferecidas pelo célebre artista ao jovem virtuoso para se apresentar; fazer-se conhecido, designando-o, de preferência a outros de igual talento, para audições que deviam ter uma repercussão especial. Mas o Sr. de Charlus não desconfiava que devia tanto maior reconhecimento ao mestre, visto que este, duplamente merecedor, ou, se preferem, duas vezes culpado, não ignorava coisa alguma acerca das relações entre o violinista e seu nobre protetor. Ele as favoreceu, certamente sem simpatia por elas, não podendo compreender outro amor que não o da mulher, que havia inspirado toda a sua música, mas por indiferença moral, complacência e servilismo profissionais, amabilidade mundana, esnobismo. Quanto às dúvidas sobre o caráter dessas relações, tinha-as tão poucas que, desde o primeiro jantar em La Raspeliere, perguntara a Ski, falando do Sr. de Charlus e de Morel como se falasse de um homem e sua amante:

            - Faz muito tempo que estão juntos? -

            Porém, mundano demais para deixar transparecer fosse o que fosse aos interessados, pronto, se aparecessem falatórios entre os colegas de Morel, a reprimi-los e a tranqüilizar Morel, dizendo-lhe paternalmente:

            - Dizem isso de todo mundo, hoje em dia -, não deixou de cumular o barão de gentilezas que este achava encantadoras, embora naturais, incapaz de supor no ilustre mestre tanto vício ou tanta virtude. Pois as palavras que se diziam na ausência do Sr. de Charlus, as insinuações sobre Morel, ninguém era de alma tão baixa que fosse repeti-las. E no entanto, esta simples situação basta para mostrar que mesmo esta coisa universalmente desacreditada, que em parte alguma encontraria um defensor o mexerico; também ele, ou que tenha por objeto a nós mesmos e se nos torne desse modo particularmente desagradável, ou que nos informe sobre um terceiro algo que ignorávamos, tem seu valor psicológico. Ele impede o espírito de adormecer sobre a visão artificial do que julga serem as coisas e que não passa da aparência destas. Revira esta última com a destreza mágica de um filósofo idealista e rapidamente nos apresenta uma ponta insuspeitada do avesso do tecido. Poderia o Sr. de Charlus imaginar estas palavras ditas por certa amável parenta:

            - Como queres que Mémé esteja apaixonado por mim? Então esqueces que sou uma mulher?! -

            E, no entanto, ela nutria uma amizade verdadeira e profunda pelo barão. Como então espantar-se, no caso dos Verdurin, com cuja bondade e afeto ele não tinha direito nenhum de contar, de que as palavras que diziam longe dele (e não foram só palavras, conforme se verá) fossem tão diversas do que ele imaginava, ou seja, simples reflexo das que ouvia quando se achava presente? Somente estas ornavam de inscrições afetuosas o pequeno pavilhão ideal onde por vezes o Sr. de Charlus vinha sonhar sozinho, quando por um instante introduzia a sua imaginação na idéia que os Verdurin faziam dele. Ali a atmosfera é tão simpática, tão cordial, o repouso tão reconfortante, que, quando o Sr. de Charlus, antes de adormecer, vinha ali descansar um momento de suas preocupações, nunca saía sem um sorriso. Mas, para cada um de nós, esse gênero de pavilhão é dúplice: diante daquele que julgamos ser o único existe outro, normalmente invisível para nós, o verdadeiro, simétrico em relação ao que conhecemos, porém muito diferente e cuja ornamentação, em que não achamos nada do que esperávamos ver, nos assombraria como se fosse feita com os símbolos odiosos de uma hostilidade insuspeitada. Que pasmo para o Sr. de Charlus, se ele penetrasse num desses pavilhões adversos graças a um mexerico, como por uma dessas escadas de serviço onde, à porta dos apartamentos, são rabiscados a carvão grafitos obscenos por fornecedores descontentes ou criados despedidos! Mas, da mesma forma como somos privados desse senso de orientação de que são dotados certos pássaros, falta-nos o sentido da visibilidade, como o das distâncias, e julgamos estar próxima a atenção interessada de pessoas que, pelo contrário, jamais pensam em nós, e não suspeitamos que, durante esse tempo, somos para os outros a sua única preocupação. Assim, o Sr. de Charlus vivia iludido como o peixe que julga que a água em que nada se estende para além do vidro de seu aquário, que lhe apresenta o reflexo dessa água, ao passo que não vê a seu lado, na sombra, o passeante divertido que segue suas evoluções ou o piscicultor todo-poderoso que, no momento imprevisto e fatal, diverso desse momento em relação ao barão (para quem o piscicultor, em Paris, será a Sra. Verdurin), irá tirá-lo sem piedade do ambiente em que gostava de viver para arremessá-lo a outro. De resto, os povos, na qualidade de coleções de indivíduos, podem oferecer exemplos mais ampliados, porém idênticos em cada uma de suas partes, desta cegueira profunda, obstinada e desconcertante. Até aqui, se ela fora causa de que o Sr. de Charlus mantivesse, no pequeno clã, conversas de uma habilidade inútil ou de uma audácia que fazia sorrir às escondidas, ainda não tivera para ele, nem deveria tê-lo em Balbec, conseqüências graves. Um pouco de albumina, de açúcar, de arritmia cardíaca não impede que a vida continue de modo normal para aquele que nem sequer percebe isso, enquanto que só o médico vê no caso um presságio de catástrofes. No momento presente, o gosto platônico ou não do Sr. de Charlus por Morel somente impelia o barão a dizer de bom grado, na ausência de Morel, que o achava muito bonito, pensando que isso será ouvido com toda a inocência, e nisso agia como um homem fino que, chamado a depor diante do tribunal, não se acanhará de entrar em detalhes que aparentemente lhe são desvantajosos, mas que, por isso mesmo, têm maior naturalidade e menos vulgaridade do que os protestos convencionais de um réu de teatro. Com a mesma liberdade, sempre entre Doncieres-Oeste e Saint-Martin-du-Chêne ou vice-versa; o Sr. de Charlus falava de bom grado acerca das pessoas que, segundo parece, têm costumes bem estranhos, e até mesmo acrescentava:

            - Afinal de contas, digo "estranhos" não sei por quê, pois isso nada possui de tão estranho -para mostrar a si próprio como se sentia à vontade com seu público. E ele o era de fato, com a condição de que fosse ele a tomar a iniciativa das operações e soubesse que a galeria estava muda e risonha, desarmada pela credulidade ou pela boa educação. Quando o Sr. de Charlus não falava de sua admiração pela beleza de Morel, como se não tivesse nenhuma relação com um gosto chamado vício, tratava desse vício, mas como se de modo algum fosse o seu. Por vezes até não hesitava em chamá-lo pelo seu nome. Como, depois de haver observado a bela encadernação de seu Balzac, eu lhe perguntasse o que preferia na Comédia Humana, respondeu-me, dirigindo seu pensamento para uma idéia fixa:

            - Tanto faz, as pequenas miniaturas, como O Cura de Tours e A Mulher Abandonada, ou os grandes afrescos, como a série das Ilusões Perdidas. Como! Não conhece as Ilusões Perdidas? É tão belo! O momento em que Carlos Herrera indaga o nome do castelo pelo qual está passando a sua caleche: é Rastignac, a moradia do rapaz a quem ele amou outrora. E o abade nesse momento cai num devaneio que Swann denominava, o que era bem espirituoso, a "Tristeza de Olímpio" da pederastia. E a morte de Lucien! Já não me lembro qual foi o homem de gosto que teve esta resposta, a quem lhe perguntava que acontecimento mais o afligira em toda a sua vida: "A morte de Lucien de Rubempré em Esplendores e Misérias".

["Tristeza de Olímpio" é um célebre poema de Victor Hugo, em que o poeta revê com melancolia os locais onde principiou seu amor por Juliette Drouet. (N. do T)]

            - Sei que Balzac vai passando muito bem este ano, como no ano passado o pessimismo - interrompeu Brichot. - Mas com o risco de entristecer as almas atacadas de deferência balzaquiana, sem pretender, Deus me livre!, o papel de guarda das letras e abrir processo contra erros de gramática, confesso que o copioso improvisador de quem o senhor parece sobrestimar singularmente as espantosas elucubrações, pareceu-me sempre um escriba insuficientemente meticuloso. Eu li estas Ilusões Perdidas de que nos fala, barão, torturando-me para atingir um fervor de iniciado, e confesso com toda a simplicidade de alma que esses romances-folhetins redigidos em pathos, em algaravia dupla ou tripla ("Esther feliz", "Aonde levam os maus caminhos", "Por quanto o amor fica aos velhos"), sempre me deram o efeito dos mistérios de Rocambole, promovido por inexplicável favor à condição precária de obra-prima.

            - O senhor diz isso porque não conhece a vida - retrucou o barão, duplamente irritado, pois sentia que Brichot não haveria de compreender suas razões de artista nem quaisquer outras.           

            - Entendo perfeitamente - respondeu Brichot- que, para falar como mestre Rabelais, o senhor quer dizer que sou muito sorbonagra, sorbonícola e sorboniforme.19 Entretanto, assim como os camaradas, gosto que um livro dê impressão de sinceridade e de vida, não sou desses clérigos...

[Brichot sem ligar para adjetivos usados por Rabelais para debicar dos universitários da Sorbonne. (N. do T)]

            - O quarto de hora de Rabelais - interrompeu Cottard, com um ar não mais de dúvida, mas de espirituosa segurança - ... que fazem voto de literatura seguindo a regra da Abbaye-aux-Bois, na obediência do Sr. visconde de Chateaubriand, grande mestre do chique, segundo a regra estrita dos humanistas. O Sr. visconde de Chateaubriand

            - Chateaubriand com batatas? - interrompeu o doutor Cottard. - É ele o patrono da confraria - continuou o gracejo do doutor, o qual em compensação, alarmado pela frase do universitário, olhou inquieto para o Sr. de Charlus. Era uma falta de tato de Brichot, segundo Cottard, cujo trocadilho fizera aflorar um fino sorriso aos lábios da princesa Sherbatoff.

            - Com o professor, a ironia mordaz do perfeito cético jamais perde os seus direitos - disse ela por amabilidade e para mostrar que a "palavra" do médico não lhe passara despercebida.

            - O sábio é forçosamente cético - respondeu o doutor.

            - Que sei eu? "Conhece-te a ti mesmo." dizia Sócrates. É muito justo, o excesso é um defeito em tudo. Mas fico embasbacado quando penso que bastou isso para fazer durar o nome de Sócrates até nossos dias. O que existe nessa filosofia? Pouca coisa, em suma. Quando se pensa que Charcot e outros realizaram trabalhos mil vezes mais notáveis, e que pelo menos se apóiam em alguma coisa, a respeito da supressão do reflexo pupilar como síndrome da paralisia geral, e que estão quase esquecidos! Em suma, Sócrates não é extraordinário. Trata-se de pessoas que não tinham nada para fazer, que passavam o dia inteiro a passear, a discutir. É como Jesus Cristo: Amai-vos uns aos outros... Muito bonito!

            - Meu amigo... - implorou a Sra. Cottard.

            - Naturalmente a minha mulher protesta, todas elas são umas neuróticas.

            - Mas, meu doutorzinho, eu não sou neurótica - murmurou a Sra. Cottard.

            - Como? Ela não é neurótica? Quando seu filho está doente, ela apresenta fenômenos de insônia. Mas, afinal, reconheço que Sócrates e o resto são necessários para uma cultura superior, para se obter talentos de exposição. Costumo citar sempre a meus alunos no primeiro ano. O padre Bouchard, que soube disso, felicitou-me.

            - Não sou dos cultores da forma pela forma e também não entesouraria como poesia a rima milionária - retorquiu Brichot. - Mas ainda assim A Comédia Humana (bem pouco humana) é por demais o oposto dessas obras em que a arte excede o fundo, como diz a besta do Ovídio. E é permitido preferir uma trilha a meia encosta, que leve ao curato de Meudon ou à ermida de Ferney, a igual distância da Vallée-aux-Loups, onde Renê cumpria magnificamente os deveres de um pontificado sem mansuetude, e Jardies, onde Honoré de Balzac, atormentado pelos esbirros, não parava de cacografar para uma polonesa, como apóstolo zeloso da algaraviada.

            - Chateaubriand está muito mais vivo do que o senhor diz, e Balzac mesmo assim é um grande escritor - respondeu o Sr. de Charlus, ainda por demais impregnado do gosto de Swann para não se sentir irritado com Brichot - e Balzac conheceu até mesmo essas paixões que todo mundo ignora ou só estuda para as difamar. Sem voltar a falar das imortais Ilusões Perdidas, Sarrazine, A Menina dos Olhos de Ouro, Uma Paixão no Deserto, até a bastante enigmática A Falsa Amante salta em meu apoio. Quando eu falava a Swann sobre esse aspecto "fora da natureza" de Balzac, ele me dizia: - O senhor é da mesma opinião de Taine. Eu não tive a honra de conhecer o Sr. Taine - acrescentou o Sr. de Charlus (com esse hábito irritante do "senhor" inútil que têm as pessoas da sociedade, como se julgassem que, tachando de senhor a um grande escritor, lhe conferiam uma honra, talvez guardassem as distâncias e davam a entender que o não conheciam) eu não conhecia o Sr. Taine, mas me sentia muito honrado de ser da mesma opinião que ele. -

            Aliás, malgrado esses ridículos hábitos mundanos, o Sr. de Charlus era muito inteligente, e é provável que, se algum casamento antigo tivesse estabelecido laços entre a sua família e a de Balzac, ele teria sentido (de resto, não menos que Balzac) uma satisfação de que, no entanto, não poderia deixar de vangloriar-se como de um sinal de admirável condescendência.

            Às vezes, na estação seguinte a Saint-Martin-du-Chêne, rapazes embarcavam no trem. O Sr. de Charlus não podia deixar de olhá-los, mas como abreviava e disfarçava a atenção que lhes prestava, esta parecia ocultar um segredo, mais especial até que o verdadeiro; dir-se-ia que o barão os conhecia; deixava-o transparecer contra a sua vontade, depois de ter aceito o seu sacrifício, antes de virar-se para nós, como esses meninos que, devido a uma briga dos pais, foram proibidos de cumprimentar seus camaradas, mas que, ao se encontrarem, não podem deixar de erguer a cabeça antes de recair sob a férula do preceptor. À expressão grega de que o Sr. de Charlus, falando de Balzac, fizera seguir a alusão à "Tristeza de Olímpio" em Esplendores e Misérias, Ski, Brichot e Cottard se entreolharam com um sorriso, talvez menos irônico de que impregnado da satisfação que sentiriam os convivas que tivessem conseguido que Dreyfus falasse sobre o seu próprio caso, ou a imperatriz do seu reinado. Contavam levá-lo um pouco mais adiante no assunto, mas já estávamos em Doncieres, onde Morel se reuniria a nós. Diante dele, o Sr. de Charlus vigiava cuidadosamente a sua conversa, e, quando Ski desejou fazê-lo voltar ao amor de Carlos Herrera por Lucien de Rubempré, o barão mostrou-se contrariado, misterioso, e por fim (vendo que não o escutavam), assumiu o ar severo e justiceiro de um pai que ouvisse dizer indecências diante da filha. Tendo Ski teimado um pouco para que ele continuasse, o Sr. de Charlus, de olhos fora das órbitas, erguendo a voz, disse em tom significativo e apontando para Albertine, que todavia não podia escutar-nos, ocupada em conversar com a Sra. Cottard e a princesa Sherbatoff, e no tom ambíguo de alguém que pretende dar uma lição a pessoas mal-educadas:

            - Creio que não faltará ocasião de falar dessas coisas que podem interessar a essa moça. 

            Mas eu compreendi perfeitamente que, para ele, a "moça" não era Albertine e sim Morel; mais tarde, aliás, comprovou ele a justeza da minha interpretação, com as frases de que se serviu ao pedir que não mais se conversasse sobre tais assuntos na presença de Morel.

            - O senhor sabe - disse-me ele, falando do violinista - que ele absolutamente não é o que poderiam acreditar; é um menino muito honrado, que sempre teve muito juízo, um menino muito sério. -

            Sentia-se por essas palavras que o Sr. de Charlus considerava a inversão sexual como um perigo tão ameaçador para os jovens como a prostituição para as mulheres, e que se ele se servia do epíteto de "sério" para Morel, era no mesmo sentido que tem quando aplicado a uma operariazinha. Então Brichot, para mudar de conversa, perguntou se eu pretendia ficar ainda muito tempo em Incarville. Por mais que eu lhe tivesse observado várias vezes que não morava em Incarville, mas em Balbec, ele recaía sempre no mesmo erro, pois era sob o nome de Incarville, ou Balbec-lncarville, que designava aquela parte do litoral. Assim, há pessoas que falam da mesma coisa que nós, chamando-as por nomes um pouco diferentes. Certa dama do faubourg Saint-Germain me perguntava sempre, quando queria falar da duquesa de Guermantes, se fazia muito tempo que eu não via Zénaïde, ou Oriane-Zénaïde, e o resultado é que eu não compreendia no primeiro instante. Provavelmente, houvera um tempo em que, chamando-se Oriane uma parenta da Sra. de Guermantes, chamavam a esta de Oriane-Zénaïde para evitar confusões. Talvez também houvesse no começo apenas uma estação em Incarville, e de onde se ia de carro até Balbec.

            - De que estavam falando, então? - indagou Albertine, espantada com o tom solene de pai de família que o Sr. de Charlus acabara de assumir.

            - De Balzac - apressou-se a responder o barão - e você hoje está precisamente com a toalete da princesa de Cadignan, não a primeira, a do jantar, mas a segunda. -

            Esta circunstância decorria de que, para escolher as toaletes de Albertine, eu me inspirava no gosto que ela havia formado graças a Elstir, o qual muito apreciava uma sobriedade que poderia chamar-se britânica, não fosse temperada de uma certa doçura, certa languidez francesa. Na maioria das vezes, seus vestidos prediletos ofereciam aos olhos uma harmoniosa combinação de tons cinzentos, como a de Diane de Cadignan. Não havia ninguém como o Sr. de Charlus para saber apreciar em seu justo valor as toaletes de Albertine; logo em seguida, seus olhos descobriam o que lhes formava a raridade, o valor; jamais teria dito o nome de um tecido em vez de outro, e reconhecia os costureiros. Só que apreciava para as mulheres um pouco mais de brilho e de cor do que o tolerado por Elstir. Assim, naquela noite, lançou-me ela um olhar meio risonho, meio inquieto, franzindo seu narizinho róseo de gata. Com efeito, cruzada sobre sua saia de crepe da China cinzenta, sua jaqueta de cheviote cor-de-cinza fazia crer que Albertine estivesse toda de gris. Mas, fazendo-me sinal para que a ajudasse, pois suas mangas bufantes precisavam ser abaixadas ou erguidas para tirar ou botar sua jaqueta, Albertine despiu esta e, como essas mangas eram escocesas de um tom muito suave, róseo, azul pálido, esverdeado, furta-cor, foi como se num céu cinzento se formasse um arco-íris. E ela se perguntava se aquilo iria agradar ao Sr. de Charlus.

            - Ah! - exclamou este encantado - eis um raio de luz, um prisma de cores. Apresento-lhe os meus cumprimentos.

            - Mas este Senhor aqui é que possui todos os méritos - respondeu gentilmente Albertine, designando-me, pois gostava de mostrar o que lhe provinha de minha parte.

            - Só as mulheres que não sabem se vestir é que receiam a cor - continuou o Sr. de Charlus. - Pode-se ser deslumbrante sem vulgaridade, e suave sem ser insosso. Além disso, você não tem os mesmos motivos que a Sra. de Cadignan para querer parecer desligada da vida, pois era a idéia que ela desejava incutir em d'Arthez com essa toalete gris. -

            Albertine, a quem interessava essa muda linguagem dos vestidos, fez perguntas ao Sr. de Charlus acerca da Princesa de Cadignan.

            - Oh, é uma novela refinada - disse o barão num tom sonhador.

            - Conheço o jardinzinho em que Diane de Cadignan passeava com a Sra. d'Espard. É o jardim de uma de minhas primas.

            - Todas essas questões do jardim de sua prima – murmurou Brichot a Cottard - podem, assim como a sua genealogia, ter importância para este excelente barão. Mas que interesse tem isso para nós, que não temos o privilégio de passear nele, nem conhecemos essa dama e não possuímos títulos de nobreza? -

            Pois Brichot não imaginava que fosse possível alguém interessar-se por um vestido ou um jardim como por uma obra de arte, e que era como em Balzac que o Sr. de Charlus revia as pequenas alamedas da Sra. de Cadignan. O barão continuou:

            - Mas o senhor a conhece - disse-me ele, falando daquela prima e para me lisonjear, dirigindo-se a mim como a alguém que, exilado no pequeno clã, se não era propriamente de seu mundo para o Sr. de Charlus, ao menos o freqüentava. - Em todo caso, deve tê-la visto na casa da Sra. de Villeparisis.

            - A marquesa de Villeparisis, a quem pertence o castelo de Baucreux? - perguntou Brichot com ar submisso.

            - Sim, conhece-a? - indagou secamente o barão.

            - De forma alguma - respondeu Brichot -, mas nosso colega Norpois passa, todos os anos, uma parte de suas férias em Baucreux. Já tive ocasião de lhe escrever para lá. -

            Disse eu a Morel, pensando interessar-lhe, que o Sr. de Norpois era amigo de meu pai. Mas nenhum movimento de seu rosto mostrou que ele tivesse ouvido, de tal modo considerava meus pais como gente sem importância, e que não estavam muito longe do que havia sido o meu tio-avô, em cuja casa o pai dele fora criado de quarto e que; aliás, contrariamente ao restante da família, como gostava de "fazer encrencas", deixara em seus criados uma recordação fascinante. - Parece que a Sra. de Villeparisis é uma mulher superior; porém, nunca me foi dado julgá-lo por mim mesmo, assim como o resto dos meus colegas. Pois Norpois, que aliás é cheio de cortesia e afabilidade no Instituto, não apresentou nenhum de nós à marquesa. Não sei de ninguém recebido por ela, a não ser o nosso amigo Thureau-Dangin, que tinha com ela antigas relações de família, e também Gaston Boissier, a quem ela desejou conhecer devido a um estudo que a interessava muito especialmente. Jantou lá uma vez e voltou fascinado. E o fato é que a Sra. Boissier não foi convidada. 

            A esses nomes, Morel sorriu enternecido:

            - Ah, Thureau-Dangin - disse-me ele, tão interessado agora como fora indiferente ao ouvir falar do marquês de Norpois e de meu pai. - Thureau-Dangin e seu tio formavam um bom par de amigos. Quando uma dama queria um bom lugar para uma recepção da Academia, o seu tio dizia: "Escreverei a Thureau-Dangin." E naturalmente o lugar era logo enviado, pois bem compreende que ele não negaria coisa alguma a seu tio, que se desforraria de volta. Diverte-me igualmente ouvir o nome de Boissier, pois era lá que seu tio-avô mandava comprar todos os presentes para as senhoras no Ano-Novo. Sei disso, pois conheço a pessoa encarregada de fazê-lo. -

            Fazia mais que conhecê-la, era o pai dele. Algumas das lembranças afetuosas de Morel à memória de meu tio ligavam-se ao fato de que não tencionávamos permanecer sempre no palacete de Guermantes, aonde só fôramos morar por causa da minha avó! Às vezes, falava-se de uma possível mudança. Ora, para compreender os conselhos que a tal respeito me dava Charles Morel, é preciso saber que, antigamente meu tio-avô morava no bulevar Malesherbes 40-bis. Como nós íamos muito à casa de meu tio Adolphe, até o dia fatal em que fiz meus pais brigarem com ele ao contar a história da dama cor-de-rosa, resultou daí que, na família, em vez de se dizer "casa do seu tio", dizia-se "no 40-bis": Primas de minha mãe diziam com o ar mais natural do mundo:

            - Ah! Domingo não podemos visitar vocês, pois vão jantar no 40-bis. -

            Se eu ia visitar uma parenta, recomendavam-me que passasse primeiro no 40-bis, para que meu tio não se melindrasse por não ter começado por ele. Ele era proprietário da casa e, para falar a verdade, mostrava-se muito difícil na escolha dos locatários, que eram todos seus amigos, ou ficariam sendo. O coronel barão de Vatry vinha todos os dias fumar um charuto com ele a fim de mais facilmente obter os consertos. A porta da rua estava sempre fechada. Se, numa janela, meu tio avistava uma roupa, um tapete, enfurecia-se e mandava retirá-los mais rapidamente do que hoje o faz a polícia. Mas afinal, nem por isso deixava de alugar uma parte da casa, reservando para seu uso apenas dois andares e as cavalariças. Apesar disso, sabendo que lhe agradava elogiassem a boa manutenção da casa, louvavam o conforto do "palacete" como se meu tio fosse o seu único ocupante, e ele deixava que o dissessem, sem opor o desmentido formal que seria de esperar. Seguramente o "palacete" era confortável (pois meu tio introduzia nele todas as invenções da época). Porém nada possuía de extraordinário. Só meu tio, embora dizendo com falsa modéstia "meu casebre", estava persuadido, ou pelo menos inculcara a seu criado de quarto, à mulher deste, ao cocheiro, à cozinheira a idéia de que não existia nada em Paris que se comparasse ao pequeno palacete em conforto, luxo e satisfação. Charles Morel crescera dentro dessa fé. E nela permanecera. Assim, mesmo nos dias em que não conversava comigo, se, no trem, eu falasse a alguma pessoa sobre a possibilidade de uma mudança, logo ele me sorria e, piscando o olho com ar de entendido, dizia:

            - Ah, o que o senhor precisaria era de alguma coisa do tipo do 40-bis! Aí é que haveria de sentir-se a gosto! Pode-se dizer que seu tio entendia dessas coisas. Estou certo de que em Paris inteira não existe nada que valha o 40-bis.

            Ao ar melancólico que o Sr. de Charlus assumira ao falar da princesa de Cadignan, bem senti que essa novela não o fazia pensar apenas no jardinzinho de uma prima muito indiferente. Caiu num profundo devaneio e, como que falando para si mesmo, exclamou:

            - Os Segredos da Princesa de Cadignan! Que obra-prima! Como é profunda, como é dolorosa essa má reputação de Diane, que tanto receia que o homem a quem ama o venha a saber! Que verdade eterna, e mais geral do que aparenta! Como vai longe isso! -

            O Sr. de Charlus pronunciou essas palavras com uma tristeza que, no entanto, a gente sentia que ele não achava sem atrativos. Provavelmente o Sr. de Charlus, não sabendo ao certo em que medida os seus costumes eram ou não conhecidos, estremecia desde algum tempo à idéia de que voltaria a Paris e que o encontrariam com Morel, a família deste acabasse por intervir e que, assim, a sua felicidade ficasse comprometida. Tal eventualidade provavelmente só lhe aparecera até então como algo de profundamente penoso e desagradável. Mas o barão era muito artista. E agora que, desde um momento, confundia sua situação com a descrita por Balzac, refugiava-se de algum modo na novela, e, ao infortúnio que talvez o ameaçasse e, de qualquer forma, não deixava de assustá-lo, ele tinha esse consolo de encontrar na própria ansiedade aquilo que Swann e o próprio Saint-Loup teriam denominado algo de "muito balzaquiano". Essa identificação com a princesa de Cadignan tornara-se fácil ao Sr. de Charlus graças à transposição mental que se lhe tornara um hábito e da qual já dera vários exemplos. Aliás, era o bastante para que a simples substituição da mulher, como objeto amado, por um rapaz desencadeasse imediatamente, em torno deste, todo o processo de complicações sociais que se desenvolvem ao redor de uma ligação comum. Quando, por um motivo qualquer, introduz-se de uma vez por todas uma mudança no calendário ou nos horários, se se faz principiar o ano algumas semanas mais tarde ou soar a meia-noite quinze minutos mais cedo, como os dias, mesmo assim, terão vinte e quatro horas e os meses trinta dias, tudo o que decorre da medida do tempo permanecerá idêntico. Tudo pode ter sido alterado sem causar nenhum transtorno, pois as relações entre os números são sempre as mesmas. Assim ocorre com os que seguem "a hora da Europa central" ou os calendários orientais. Parece até que o amor-próprio que se tem em sustentar uma atriz desempenhava um papel nesta ligação. Quando, desde o primeiro dia, o Sr. de Charlus tomara informações sobre Morel, certamente ficara sabendo que era de origem humilde; mas uma demi-mondaine a quem amamos, nada perde de seu prestígio para nós por ser filha de gente pobre. Em compensação, os músicos conhecidos a quem ele mandara escrever nem mesmo por interesse, como os amigos que, apresentando Swann a Odette, haviam-na descrito como mais difícil e mais requisitada do que o era por simples banalidade de homens em evidência que exaltam um estreante, haviam respondido ao barão:

            - Ah, grande talento, boa situação, naturalmente considerando que é um jovem, muito apreciado pelos conhecedores, irá longe. -

            E, com a mania dos que ignoram a inversão, falando da beleza masculina:

            - E depois, dá gosto vê-lo tocar; faz melhor figura que ninguém num concerto; tem lindos cabelos, uma postura distinta; a cabeça é atraente e ele parece um violinista de retrato. -

            Assim o Sr. de Charlus, aliás sobreexcitado por Morel, que não o deixava ignorar de quantas propostas era objeto, sentia-se lisonjeado em trazê-lo consigo, de construir-lhe um pombal a que ele voltasse várias vezes. Pois desejava estar livre o restante do tempo, o que se fazia necessário para a sua carreira, que o Sr. de Charlus queria que Morel continuasse, por mais dinheiro que tivesse de lhe dar, fosse por causa daquela idéia muito Guermantes de que é necessário que um homem faça alguma coisa, de que as pessoas só valem pelo seu talento, e que a nobreza ou o dinheiro são somente o zero que multiplica um valor, fosse por ter medo de que, ocioso e sempre a seu lado, o violinista acabasse se aborrecendo. Enfim, não queria privar-se do prazer que sentia consigo próprio, de dizer por ocasião de certos concertos de gala: "Este a quem aclamam no momento estará comigo esta noite." As pessoas elegantes, quando estão enamoradas, e de qualquer maneira que o estejam, põem sua vaidade naquilo que pode destruir as vantagens anteriores em que sua vaidade encontrou satisfação. Morel, sentindo que eu não tinha maldade com ele, sinceramente ligado ao Sr. de Charlus e, por outro lado, de uma indiferença física absoluta em relação a ambos, acabou por manifestar a meu respeito os mesmos

sentimentos de calorosa simpatia de uma cocote que sabe que não a desejamos e que seu amante tem em nós um amigo sincero que não tentará fazê-lo romper com ela. Não só me falava exatamente como outrora Rachel, a amante de Saint-Loup, mas também, conforme o que me repetia o Sr. de Charlus, dizia de mim, na minha ausência, as mesmas coisas que Rachel falava sobre mim a Robert. Por fim, o Sr. de Charlus me dizia:

            - Ele gosta muito do senhor.

            Como Robert: - Ela gosta muito de ti. -

            E, como o sobrinho em nome da amante, era em nome de Morel que o tio me pedia muitas vezes que fosse jantar com eles. Além disso, não havia menos tempestades entre eles do que entre Robert e Rachel. Certo, quando Charlie (Morel) ia embora, o Sr. de Charlus não lhe poupava elogios, repetindo desvanecido que o violinista era muito bom para ele. Mas era visível, no entanto, que freqüentemente Charlie, mesmo diante de todos os fiéis, tinha um ar irritado em vez de parecer sempre feliz e submisso como o teria desejado o barão. Essa irritação chegou até, mais tarde, devido à fraqueza que fazia o Sr. de Charlus perdoar as atitudes inconvenientes de Morel, ao ponto de o violinista não mais ocultá-la, ou ainda a afetava. Vi o Sr. de Charlus entrando num vagão onde se achava Morel com alguns de seus amigos militares e ser recebido com um dar de ombros do músico, acompanhado com um piscar de olhos a seus amigos. Ou então fingia estar dormindo, como alguém a quem semelhante chegada é o cúmulo do aborrecimento. Ou punha-se a tossir; os outros riam, simulando, para divertir-se, o falar amaneirado de homens como o Sr. de Charlus; atraíam Charlie para um canto e este acabava por voltar, como que forçado, para junto do Sr. de Charlus, cujo coração era transpassado por todos esses maus-tratos. É inconcebível que os tenha suportado; e essas formas cada vez diferentes de sofrimento colocavam de novo para o Sr. de Charlus o problema da felicidade, forçavam-no não apenas a pedir mais, como também a desejar outra coisa, já que a combinação precedente se achava viciada por uma lembrança horrível. E no entanto, por mais penosas que fossem logo tais cenas, convém reconhecer que, nos primeiros tempos, se manifestava em Morel o gênio do homem do povo da França, emprestando-lhe formas encantadoras de simplicidade, de aparente franqueza, e até de uma altivez independente que parecia inspirada pelo desinteresse. Isso era falso, mas a vantagem da atitude estava bem mais a favor de Morel, considerando-se que, enquanto aquele que ama está sempre forçado a voltar à carga, a insistir, pelo contrário, é fácil ao que não ama seguir uma linha reta, inflexível e graciosa. Ela existia, por privilégio da raça, no rosto tão aberto desse Morel de coração tão fechado, nesse rosto adornado com a graça neo-helênica que floresce nas basílicas da Champagne. Apesar de sua altivez artificial, seguidamente, avistando o Sr. de Charlus no momento em que não o esperava, ficava constrangido diante do pequeno clã, enrubescia, baixava os olhos, para deslumbramento do barão que via naquilo todo um romance. Era simplesmente um sinal de irritação e de vergonha. A primeira por vezes se expressava; pois, por mais calma e energicamente decente que fosse a atitude de Morel, ele não passava sem desmentir-se com freqüência. Às vezes até, a alguma palavra que o barão lhe dissesse, estourava da parte de Morel uma réplica insolente, em tom duro, e com o qual todos ficavam chocados. O Sr. de Charlus baixava a cabeça com ar triste, nada respondia e, com a faculdade que têm os pais idólatras de achar que ninguém repara na frieza e dureza dos filhos, nem por isso deixava de entoar louvores ao violinista. Aliás, o Sr. de Charlus não era sempre tão submisso, mas suas rebeliões em geral não alcançavam seu objetivo, principalmente porque, tendo convivido com pessoas da alta sociedade, levava em conta, no cálculo das reações que podia despertar, a baixeza, se não original pelo menos adquirida pela educação. Ora, em vez disso, encontrava em Morel alguma veleidade plebéia de indiferença momentânea. Infelizmente para o Sr. de Charlus, ele não compreendia que, para Morel, tudo cedia diante das questões em que o Conservatório e a boa reputação no Conservatório (porém isto, que devia ser mais grave, não se colocava de momento) entravam em jogo. Assim, por exemplo, os burgueses mudam facilmente de nome por vaidade, os grão-senhores por vantagem. Para o jovem violinista, ao contrário, o nome de Morel estava indissoluvelmente ligado a seu prêmio de violino; logo, era impossível modificá-lo. O Sr. de Charlus gostaria que Morel tivesse tudo dele, mesmo o seu nome. Considerando que o prenome de Morel era Charles, que se assemelhava a Charlus, e que a propriedade em que eles se encontravam tinha o nome de Charmes, quis convencer Morel de que um belo nome, agradável de dizer, era a metade de uma reputação artística, e que o virtuoso devia sem hesitar tomar o nome de “Charmel", discreta alusão ao local de seus encontros. Deu de ombros Morel e, como último argumento, o Sr. de Charlus teve a infeliz idéia de acrescentar que tinha um criado de quarto que se chamava desse modo. Não fez mais que excitar a furiosa indignação do rapaz.

            - Houve um tempo em que meus antepassados sentiam-se orgulhosos do título de criado de quarto, de mordomo do rei. - Houve um outro - respondeu altivamente Morel - em que meus antepassados mandaram cortar o pescoço dos seus. -

            O Sr. de Charlus ficaria muito espantado se pudesse supor que, na falta de "Charmel", resignado a adotar Morel e a lhe dar um dos títulos da família de Guermantes de que dispunha, mas que as circunstâncias, conforme se verá, não lhe permitiram oferecer ao violinista, este o houvesse recusado, pensando na reputação artística ligada a seu nome de Morel e nos comentários que fariam na "classe". De tal modo colocava ele a rua Bergere acima do faubourg Saint-Germain! Ao Sr. de Charlus forçoso lhe foi contentar-se, no momento, em mandar fazer, para Morel, anéis simbólicos com a antiga inscrição: PLVS VLTRA CAROLVS. Por certo, diante de um adversário de uma espécie a que não conhecia, o Sr. de Charlus deveria mudar de tática. Mas quem é capaz de tal? Além disso, se o Sr. de Charlus tinha dessas inabilidades, tampouco Morel as deixava de ter. Bem mais do que a simples circunstância que provocou o rompimento, o que devia, ao menos provisoriamente (mas esse provisório veio a ser definitivo), perdê-lo ante o Sr. de Charlus é que nele não havia apenas a baixeza, que o fazia ser vulgar diante da severidade e responder com insolência à doçura. Paralelamente à natural baixeza, havia nele uma neurastenia complicada com a má educação, que, despertando em toda circunstância em que estivesse em falta ou dependesse de alguém, fazia com que, no próprio momento em que necessitaria de toda a sua gentileza, de toda a sua doçura, de toda a sua alegria para desarmar o barão, ele se tornasse sombrio, intratável; procurasse travar discussões em que sabia que divergiam dele, sustentava seu ponto de vista hostil com uma fraqueza de razões e uma violência cortante que só fazia aumentar essa mesma fraqueza. Pois bem depressa, à falta de argumentos, ainda assim os inventava, revelando destarte toda a extensão de sua tolice e ignorância. Estas mal se mostravam quando ele era amável e só procurava agradar. Pelo contrário, só elas é que apareciam em seus acessos de mau humor sombrio, nos quais, de inofensivas tornavam-se odiosas. Então o Sr. de Charlus sentia-se farto pondo toda a sua esperança num dia seguinte melhor, ao passo que Morel, esquecendo que o barão o fazia viver faustosamente, ostentava um sorriso irônico de piedade superior e dizia:

            - Nunca aceitei nada de ninguém. Desse modo, não há ninguém a quem eu deva um só muito obrigado.

            Nesse meio tempo, e como se tivesse de lidar com um homem da alta sociedade, o Sr. de Charlus continuava a exercer as suas cóleras, verdadeiras ou fingidas, porém agora inúteis. Entretanto, nem sempre o eram. Assim, um dia (que se coloca aliás após aquele primeiro período) em que o barão voltava comigo e Charlie de um almoço em casa dos Verdurin, julgando passar o fim da tarde e a noite com o violinista em Doncieres, a despedida deste, logo que o trem partiu, respondendo:

            - Não, tenho o que fazer -, causou ao Sr. de Charlus uma tão forte decepção que, embora tentasse mostrar boa cara diante do azar, vi que lágrimas dissolviam o cosmético de suas pestanas, enquanto que ele permanecia estupidificado diante do trem. Essa dor foi tamanha que, como Albertine e eu pretendêssemos acabar o dia em Doncieres, disse ao ouvido dela que não gostaria de deixar sozinho o Sr. de Charlus, que me parecia, não saber por quê, muito desgostoso. A querida pequena aceitou de bom grado. Então, perguntei ao Sr. de Charlus se não desejava que o acompanhasse um pouco. Ele também aceitou, mas recusou incomodar por isso a minha prima. Achei uma certa doçura (e sem dúvida pela última vez, pois estava decidido a romper com ela) em lhe ordenar suavemente, como se ela fosse minha mulher:

            - Volta sozinha, vou me encontrar contigo esta noite -, e em ouvi-la, como o faria uma esposa, dar-me licença de proceder como quisesse e aprovar que me pusesse à disposição do Sr. de Charlus, caso este, de quem muito gostava, precisasse de mim.

            Fomos, o barão e eu, ele bamboleando a sua corpulência, com seus olhos de jesuíta baixos, eu seguindo-o até um café onde nos serviram cerveja. Senti os olhos do Sr. de Charlus presos pela inquietação a algum projeto. De súbito, pediu papel e tinta e pôs-se a escrever com rapidez singular. Enquanto enchia folha após folha, seus olhos brilhavam num devaneio raivoso. Depois de escrever oito páginas:

            - Posso pedir-lhe um grande obséquio? - indagou. - Desculpe-me fechar esta carta. Mas é necessário. O senhor vai tomar um carro, um auto se puder, para ir mais depressa. Certamente ainda encontrará Morel no seu quarto, aonde foi se trocar. Pobre menino, quis bancar o fanfarrão no momento de nos deixar, mas fique certo de que ele está com o coração mais pesado que eu. O senhor vai entregar-lhe esta carta e, se ele perguntar onde é que me viu, dirá que desembarcou em Doncieres (o que aliás era verdade) para ver Robert (o que talvez não seja verdade), mas que me encontrou com alguém a quem não conhecia, que eu parecia bastante encolerizado, que o senhor julgou surpreender palavras de envio de testemunhas (na verdade, bato-me amanhã). Principalmente, não lhe diga que peço para chamá-lo, nem procure trazê-lo, mas, se ele quiser voltar com o senhor, não o impeça. Vá, meu menino, é para o bem dele, o senhor pode evitar um grande drama. Enquanto estiver fora, vou escrever às minhas testemunhas. Impedi o senhor de ir passear com sua prima. Espero que ela não me queira mal por isso, e até o creio. Pois trata-se de uma alma nobre e sei que é daquelas que sabem não se furtar à grandeza das circunstâncias. Terá de agradecei-lhe em meu nome. Sou-lhe pessoalmente devedor e agrada-me que assim seja. -

            Sentia grande piedade pelo Sr. de Charlus; parecia-me que Charlie poderia impedir esse duelo, do qual talvez fosse a causa; e, se assim era, sentia-me revoltado que ele tivesse ido embora com aquela indiferença em vez de dar assistência a seu protetor. Minha indignação cresceu quando, ao chegar à casa em que residia Morel, reconheci a voz do violinista que, pela necessidade de expandir sua alegria, cantava a plenos pulmões: "Na noite de sábado, depois do batente!" Se o pobre Sr. de Charlus o ouvisse, justo ele que desejava que acreditassem, e sem dúvida acreditava, que Morel tinha o coração pesado naquele momento! Charlie pôs-se a dançar de prazer quando me viu.

            - Oh, meu velho (perdoe-me chamá-lo desse modo, mas com essa maldita vida de militar a gente adquire maus hábitos), que sorte que o vejo! Não tenho nada a fazer de noite. Vamos passá-la juntos, que tal? Ficaremos aqui, se isto lhe agrada; se achar melhor, vamos passear de bote, tocaremos música, não tenho qualquer preferência.

            Disse-lhe que era obrigado a jantar em Balbec, ele tinha muita vontade de que o convidasse, mas eu não queria.

            - Mas, se está tão apressado, por que veio até aqui?

            - Trago-lhe uma carta do Sr. de Charlus. -

            A esse nome, toda a sua alegria desapareceu; seu rosto contraiu-se.

            - Como! Até aqui ele vem me importunar? Então eu sou um escravo! Meu velho, seja amável. Não vou abrir a carta. Você lhe dirá que não me encontrou.

            - Não seria melhor abri-la? Acho que contém algo de grave.

            - Cem vezes não, você não conhece as mentiras, as manhas infernais desse velho pirata. É um truque para que vá vê-lo. Pois bem! Não irei, quero ter paz esta noite.

            - Mas não haverá um duelo amanhã? - perguntei a Morel, que eu julgava a par de tudo.

            - Um duelo? -indagou com ar estupefato. - Não sei uma só palavra a respeito. Afinal, pouco me importa. Esse velho repulsivo bem pode se deixar esfaquear se lhe agrada. Mas olhe, você me deixou intrigado; em todo caso, vou ler a carta dele. Diga-lhe que a deixou aqui, para o caso de eu voltar para casa. -

            Enquanto Morel me falava, eu olhava com espanto os admiráveis livros que o Sr. de Charlus lhe dera e que atulhavam o quarto. Tendo o violinista recusado aqueles que traziam a divisa: "Pertenço ao barão, etc.", divisa que lhe parecia insultante para si próprio, como um sinal de posse, o barão, com o engenho sentimental em que se compraz o amor infeliz, tinha variado com outras, provenientes de ancestrais, porém encomendadas ao encadernador conforme as circunstâncias de uma amizade melancólica. Às vezes eram breves e confiantes, como Spes mea, ou como Exspectata non eludet; às vezes, apenas resignadas, como "Esperarei"; algumas galantes: Mesmes, prazer do Mestre, ou recomendando a castidade, como aquela tomada de empréstimo aos Simiane, semeada de torres de blau (azul) e de flores-de-lis, e desviada de seu sentido: Sustentant lilia turres; outras, enfim, desesperadas e marcando encontro no céu para quem não quisera saber dele na terra: Manet ultima coelo; e achando muito verdes as uvas que não podia alcançar, fingindo não ter procurado aquilo que não obtivera, o Sr. de Charlus dizia em uma: Non mortale quod opto. Mas não tive tempo de ver todas. Se o Sr. de Charlus, lançando no papel essa carta, parecera possuído do demônio da inspiração que fazia correr a sua pena, assim que Morel rompeu o selo: Atavis et armis.

[Tradução respectiva das expressões em latim: Spes mea, "minha esperança"; Exspectata non eludet, "Não decepcionará minhas expectativas"; Sustentant filia turres, "As torres sustentam os lírios"; Manet ultima coelo, "O fim pertence ao céu"; Non mortale quod opto, "Tenho a ambição de um imortal". Atavis et armis: "Pelos ancestrais e pelas armas." (N. do T)]

            Acometido por um leopardo acompanhado de duas rosas de goelas, pôs-se a ler com tão grande febre como a que tivera o Sr. de Charlus ao escrever, e sobre essas páginas preenchidas ao acaso, o seu olhar não corria menos depressa que a pena do barão.

            - Ah, meu Deus! - gritou - só faltava mais essa! Mas onde encontrá-lo? Deus sabe onde estará agora. -

            Insinuei que, se a gente se apressasse, iria encontrá-lo ainda no mesmo café onde ele pedira cerveja para se refazer.

            - Não sei se voltarei - disse ele à governanta da casa, e acrescentou in petto: - Isso dependerá do aspecto que as coisas assumirem. -

            Minutos depois chegávamos ao café. Notei o aspecto do Sr. de Charlus ao me avistar. Vendo que eu não voltava sozinho, senti que a respiração e a vida lhe eram devolvidas. Estando naquela noite num estado de espírito em que não podia dispensar Morel, inventara que lhe tinham dito que dois oficiais do regimento haviam falado mal dele a propósito do violinista e que ele ia enviar-lhes suas testemunhas. Morel adivinhara o escândalo, sua vida ficaria impossível no regimento, e havia acorrido. No que absolutamente não procedera mal. Pois, para tornar mais verossímil a sua mentira, o Sr. de Charlus já escrevera a dois amigos (um deles era Cottard) para pedir que fossem suas testemunhas. E, se o violinista não tivesse vindo, é certo que, doido como era o Sr. de Charlus (e para mudar sua tristeza em furor), ele os teria enviado a um oficial qualquer, ao acaso, oficial com quem lhe seria um alívio bater-se. Durante esse tempo, o Sr. de Charlus, lembrando-se que era de mais pura estirpe que a Casa de França, dizia consigo que ele era muito bom por inquietar-se tanto por causa do filho de um mordomo, cujo patrão ele não se dignaria a freqüentar. Por outro lado, se apenas lhe agradava agora a companhia dos crápulas, o hábito arraigado que têm estes de não responder a uma carta, de faltar a um encontro sem prevenir, sem se desculparem depois, dava-lhe, como se tratava muitas vezes de amores, tantas emoções, e, no resto de tempo, lhe causava tanta irritação, constrangimento e raiva, que às vezes chegava a lamentar a multiplicidade de caretas por um nada, a exatidão escrupulosa dos príncipes e embaixadores, os quais, se desgraçadamente lhe eram indiferentes, apesar de tudo davam-lhe uma espécie de repouso. Habituado aos modos de Morel e sabendo da pouca influência que tinha sobre ele e de como era incapaz de insinuar-se numa vida em que as camaradagens vulgares mais consagradas pelo hábito ocupavam excessivo lugar e tempo para que se reservasse uma hora ao grão-senhor repelido, orgulhoso e que implorava em vão, o Sr. de

Charlus estava de tal modo persuadido de que o músico não viria, de tal maneira receava estar brigado para sempre com ele, por ter ido longe demais, que mal pôde reter um grito ao vê-lo. Porém, sentindo-se vencedor, fez questão de ditar as condições de paz e delas tirar as vantagens que pudesse.

            - Que vem fazer aqui? - disse-lhe. - E o senhor? - acrescentou, olhando-me - eu lhe havia recomendado, acima de tudo, que não o trouxesse.

            - Ele não queria me trazer - disse Morel, virando para o Sr. de Charlus, na ingenuidade de sua coqueteria, olhares convencionalmente tristes e langorosamente desusados, com um ar, que sem dúvida julgava irresistível, de querer beijar o barão e de ter vontade de chorar. - Fui eu que vim contra a vontade dele. Venho, em nome da nossa amizade, para suplicar de joelhos que não cometa essa loucura. -

            O Sr. de Charlus delirava de alegria. A reação era muito forte para os seus nervos; apesar disso, manteve-se senhor da situação.

            - A amizade, que o senhor invoca de modo bastante inoportuno - respondeu ele em tom seco - devia pelo contrário conseguir a aprovação de sua parte, quando acho que não devo deixar passar em branco as impertinências de um tolo. Além disso, se eu quisesse obedecer aos rogos de uma afeição que já conheci mais bem inspirada, não poderia mais fazê-lo, visto que as cartas já foram expedidas às minhas testemunhas e não duvido que sejam aceitas. O senhor sempre agiu comigo como um perfeito imbecil e, em vez de se orgulhar, como seria de seu direito, da predileção com que eu o assinalava, em vez de fazer compreender, à chusma de ajudantes ou de criados em meio aos quais a lei militar o força a viver, que motivo de incomparável orgulho era para o senhor uma amizade como a minha, procurou desculpar-se, quase transformando num mérito estúpido o fato de não ser devidamente reconhecido. Sei que nisso acrescentou, para não deixar perceber o quanto certas cenas o haviam humilhado o senhor só é culpado de ter-se deixado levar pelo ciúme dos outros. Mas como é que, na sua idade, pode ser tão criança (e criança mal-educada) para não ter adivinhado imediatamente que minha preferência pelo senhor e todas as vantagens que daí deviam resultar iriam provocar ciúmes? Que todos os seus camaradas, enquanto o incitavam a brigar comigo, iriam trabalhar para tornar o seu posto? Achei que não devia mostrar-lhe as cartas que recebi, sobre o assunto, de todos aqueles em quem mais confia. Desdenho tanto as investidas desses lacaios como suas vãs zombarias. A única pessoa que me preocupa é o senhor, porque muito o estimo, mas a afeição tem limites, e o senhor bem o deveria saber. -

            Por mais dura que fosse a palavra "lacaio" aos ouvidos de Morel, cujo pai fora lacaio, mas justamente porque o fora, a explicação de todas as desventuras sociais pelo "ciúme", explicação simplista e absurda, mas que não se desgasta, e que, em determinada classe, "pega" sempre de modo tão infalível como os velhos truques junto ao público dos teatros, ou a ameaça do perigo clerical nas assembléias, encontrava nele um crédito quase tão forte como em Françoise ou nos criados da duquesa de Guermantes, para quem era a causa única dos males da humanidade. Não duvidou que seus camaradas tivessem tentado arrebatar-lhe o lugar e mais infeliz se sentia com aquele duelo calamitoso e, aliás, imaginário.

            - Oh, que desespero! - gritou Charlie. - Não sobreviverei a isto. Mas eles não devem vir vê-lo antes de se encontrar com esse oficial?

            - Não sei, acho que sim. Mandei dizer a um deles que ficarei aqui esta noite e lhe darei as minhas instruções.

            - Espero que, até ele chegar, eu já possa ter feito o senhor recobrar a razão; permita-me apenas que permaneça a seu lado - pediu-lhe Morel com ternura. Era tudo o que o Sr. de Charlus desejava. Não cedeu logo.

            - O senhor faria mal em aplicar aqui o "quem muito ama, muito castiga" do provérbio, pois era ao senhor que eu amava muito, e pretendo castigar, mesmo após a nossa briga, aqueles que covardemente tentaram lhe fazer mal. Até agora, as suas insinuações indagativas, que ousavam me perguntar como é que um homem como eu podia ombrear-me com um gigolô de sua espécie, saído do nada, só respondi com a divisa de meus primos La Rochefoucauld: "É meu prazer." Eu mesmo lhe observei várias vezes que esse prazer era suscetível de tornar-se o meu maior prazer, sem que de sua arbitrária elevação resultasse um abaixamento para mim. -

            E, num movimento de orgulho quase louco, exclamou erguendo os braços:

            - Tantus ab uno splendor!

[Do latim: "Tamanho esplendor [vindo] de um só." (N. do T)]

            - Condescender não é descer - acrescentou mais calmo, depois desse delírio de orgulho e alegria. - Espero ao menos que meus dois adversários, apesar de sua estirpe inegável, sejam de um sangue que eu possa fazer correr sem desonra. Sobre tal assunto, andei tomando algumas informações discretas que me deixaram tranqüilo. Se tem alguma gratidão por mim, deveria ao contrário sentir-se orgulhoso por ver que, por sua causa, retomo o temperamento belicoso de meus antepassados, dizendo como eles, no caso de um desfecho fatal: "A morte é vida para mim." -

            E o Sr. de Charlus dizia-o com sinceridade, não só por amor a Morel, mas também porque uma inclinação pelos combates, que ele ingenuamente acreditava herdar dos ancestrais, lhe dava tanta alegria à idéia de se bater que esse duelo, maquinado a princípio apenas para fazer com que Morel voltasse, fazia com que experimentasse agora uma certa mágoa em desistir dele. Jamais tivera uma questão qualquer sem se julgar logo valoroso e identificado ao ilustre conde de Guermantes, ainda que, em se tratando de outro, esse mesmo ato de marchar para o campo de honra lhe parecesse da última insignificância.

            - Creio que será muito bonito - disse-nos com sinceridade, salmodiando cada palavra. - Ver Sarah Bernhardt no L'Aiglon, que é isso? Cocô. Mounet-Sully, no Édipo? Cocô. No máximo ela alcança uma certa lividez de transfiguração, quando aquilo se passa nas Arenas de Nimes. Mas o que é isso ao lado dessa coisa inaudita, ver combater o próprio descendente do Condestável? -

            E a esta simples idéia, o Sr. de Charlus, não se contendo de alegria, pôs-se a dar golpes e contragolpes que lembravam Moliere, fazendo-nos aproximar prudentemente de nós os nossos copos e recear que os primeiros entrechoques de lâmina fossem ferir os adversários, o médico e as testemunhas.

            - Que espetáculo sugestivo não seria para um pintor! Você, que conhece o Sr. Elstir-disse-me ele -, deveria trazê-lo. -

            Respondi que ele não se encontrava no litoral. O Sr. de Charlus insinuou que poderiam passar um telegrama.

            - Oh, digo isto por causa dele - acrescentou, diante do meu silêncio. - É sempre interessante para um mestre (e na minha opinião ele é um mestre) fixar um exemplo de semelhante revivescência étnica. E talvez não exista um por século.

            Mas, se o Sr. de Charlus se encantava à idéia de um combate que a princípio julgara totalmente fictício; Morel pensava com terror nos mexericos que, da banda do regimento, poderiam estender-se, graças ao rumor que o duelo provocaria, até o templo da rua Bergere. Vendo já a sua "classe" informada de tudo, fazia-se cada vez mais insistente junto ao Sr. de Charlus, o qual continuava a gesticular ante a embriagadora idéia de se bater. Suplicou ao barão que lhe permitisse não abandoná-lo até dois dias mais tarde, data suposta do duelo, para vigiá-lo e tentar fazê-lo escutar a voz da razão. Uma tão terna proposta triunfou das últimas hesitações do Sr. de Charlus, que disse que ia buscar encontrar uma saída, que dali a dois dias enviaria uma resolução definitiva. Desse modo, não resolvendo a questão de vez, o Sr. de Charlus sabia conservar Charlie durante pelo menos dois dias e aproveitaria a ocasião para dele obter compromissos para o futuro em troca de sua renúncia ao duelo, exercício, dizia, que o encantava por si mesmo e do qual não se privava sem pena. E nisto, aliás, era sincero, pois sempre tivera prazer em ir ao campo de honra quando se tratava de cruzar bordos ou de trocar balas com um adversário. Por fim Cottard chegou, muito atrasado, pois, encantado por servir de testemunha, porém mais emocionado ainda, fora obrigado a parar em todos os cafés ou granjas da estrada pedindo que lhe indicassem o "n° 100" ou o "local exato".

            Logo que chegou, o barão o conduziu a um aposento isolado, pois achava mais regulamentar que eu e Charlie não assistíssemos à entrevista e era mestre em definir um aposento qualquer a afetação provisória de sala do trono ou de deliberações.

            Uma vez a sós com Cottard, agradeceu-lhe calorosamente, mas demonstrou que parecia provável que as frases repetidas na realidade não tivessem sido ditas, e que, em tais condições, o doutor houvesse por bem avisar à segunda testemunha de que, salvo possíveis complicações, o incidente dava-se por encerrado. Afastando-se o perigo, Cottard mostrou-se desapontado. Por um momento, pensou mesmo em manifestar cólera, mas lembrou-se de que um de seus mestres, que fizera a mais bela carreira de seu tempo, tendo deixado de entrar para a Academia por apenas alguns votos, havia mostrado boa cara à má sorte e fora apertar a mão doutor concorrente eleito. Desse modo, o doutor evitou uma expressão de desafio, que não teria mudado coisa alguma, e depois de ter murmurado, ele, o mais medroso dos homens, que há certas coisas que não se pode deixar confessar, acrescentou que era melhor assim, que com esta solução ele ficava contente. O Sr. de Charlus, desejoso de provar sua gratidão ao doutor, da mesma forma que o senhor duque, seu irmão, ajeitaria a gola do paletó de meu pai, principalmente como uma duquesa teria abraçado uma plebéia,  aproximou sua cadeira bem perto da do doutor, apesar do desagrado que este lhe inspirava. E não apenas sem prazer físico, mas vencendo uma repulsão física, como Guermantes e não como invertido, para dizer adeus ele ao doutor, pegou-lhe a mão e acariciou-a por um instante com uma bondade de dono que afaga o focinho de seu cavalo e lhe dá açúcar. Mas Cottard, que nunca deixara ver ao barão que nem mesmo tivesse ouvido os mais vagos rumores maliciosos acerca dos costumes deste, e nem por isso o deixava de considerar, em seu foro íntimo, como fazendo parte da classe dos "anormais" (a tal ponto que, com sua habitual impropriedade de termos e no tom mais sério, dizia de um criado de quarto do Sr. Verdurin: "Não é a amante do barão?"), personagens de que tinha pouca experiência, imaginou que essa carícia da mão era o imediato prelúdio de uma violação, para cuja realização visto que o duelo não passara de um pretexto ele fora atraído a uma cilada e levado pelo Sr. de Charlus àquele gabinete solitário onde ia ser agarrado à força. Não se atrevendo a deixar a cadeira, revirava os olhos de pavor, como se houvesse caído nas mãos de um selvagem do qual não tivesse certeza de que não se alimentava de carne humana. Por fim o Sr. de Charlus, largando-lhe a mão e querendo ser amável até o fim:

            - Vai tomar alguma coisa conosco, como se diz, o que antigamente se chamava um mazagrã ou um gloria, bebidas que agora só se encontram, como curiosidades arqueológicas, nas peças de Labiche e nos cafés de Doncieres. Um gloria seria bem adequado ao local, não? E às circunstâncias, que diz?

            - Sou presidente da liga antialcoólica - respondeu Cottard. - Bastaria que um medicastro provinciano passasse para que começassem a dizer que eu não dou o exemplo. Os homini sublime dedit coelumque tueri -acrescentou. [De Ovídio: "Ele deu ao homem um rosto voltado para o céu." (N. do T)]

            Embora isso nada tivesse a ver com o assunto, pois era bem pobre o seu estoque de citações latinas, bastando aliás para maravilhar os alunos. O Sr. de Charlus deu de ombros e reconduziu Cottard para junto de nós, depois de lhe haver pedido segredo sobre o que se passara, segredo que tanto mais lhe importava, pois que o motivo do duelo abortado era puramente imaginário, sendo preciso evitar que chegasse aos ouvidos do oficial arbitrariamente posto em questão. Enquanto nós quatro bebíamos, a Sra. Cottard, que esperava pelo marido do lado de fora, diante da porta, e que o Sr. de Charlus vira muito bem, sem se preocupar em mandar chamá-la, entrou e cumprimentou o barão, que lhe estendeu a mão como a uma camareira, sem se mexer do assento, em parte como um rei que recebe homenagens, em parte como um esnobe que não deseja que uma mulher pouco elegante se assente à sua mesa, em parte como egoísta que tem prazer em estar sozinho com os amigos e não quer ser importunado. Assim, a Sra. Cottard ficou de pé, falando ao Sr. de Charlus e a seu marido. Mas talvez porque a cortesia, o que "se tem a fazer", não seja privilégio exclusivo dos Guermantes, e pode subitamente iluminar e guiar os cérebros mais indecisos, ou porque, enganando muito a mulher, Cottard por momentos, numa espécie de compensação, sentisse necessidade de protegê-la contra quem lhe faltasse com o devido respeito, o doutor bruscamente franziu as sobrancelhas, o que eu jamais o vira fazer, e, sem consultar o Sr. de Charlus, como dono:

            - Vamos, Léontine, não fiques assim de pé; senta-te.

            - Mas não o incomodo? - indagou timidamente a Sra. Cottard ao barão, o qual, surpreendido com o tom do doutor, nada respondera. E, sem lhe dar tempo dessa vez, Cottard repetiu com autoridade:

            - Já te disse para sentares.

            Após um momento, a gente se dispersou, e então o Sr. de Charlus disse a Morel:

            - De toda esta história, que terminou melhor do que você merecia, concluo que não sabe se comportar e que, ao final de seu serviço militar, eu mesmo o levarei de volta a seu pai, como fez o arcanjo Rafael, enviado por Deus ao jovem Tobias. -

            E o barão se pôs a sorrir com ar de grandeza e uma alegria de que Morel, a quem a perspectiva de ser desse modo mandado de volta não agradava nada, parecia não compartir. Na embriaguez de se comparar ao arcanjo e Morel ao filho de Tobias, o Sr. de Charlus não pensava mais na finalidade de sua frase, que era tatear o terreno para saber se, como o desejava, Morel consentiria em voltar com ele a Paris. Embriagado pelo seu amor ou pelo amor-próprio, o barão não viu, ou fingiu não ver, a careta do violinista, pois, tendo deixado este sozinho no café, disse-me com um sorriso orgulhoso:

            - Reparou, quando o comparei ao filho de Tobias, como ele delirava de alegria? É porque, como é muito inteligente, compreendeu logo que o Pai, junto ao qual ia viver de agora em diante, não era o seu pai carnal, que deve ser um horrendo criado de quarto com bigodes, mas seu pai espiritual, isto é, Eu. Que orgulho para ele! Com que altivez erguia a cabeça! Como se sentia alegre por ter compreendido! Estou certo de que vai repetir todos os dias: "ó, Deus, que destes o bem-aventurado arcanjo Rafael por guia a vosso servo Tobias em uma longa viagem, concedei a nós, vossos servidores, que sejamos sempre por ele protegidos e dotados de seu socorro." Não tenho nem mesmo necessidade - acrescentou o barão, muito convencido de que se assentaria um dia diante do trono de Deus - de lhe dizer que eu era o enviado celeste, ele o compreendeu por si mesmo e está mudo de felicidade! -

            E o Sr. de Charlus (a quem, pelo contrário, a felicidade não tirava a palavra), pouco se importando com alguns passeantes que viravam a cabeça para ele, julgando ter dado com um louco, gritou com todas as suas forças, erguendo os braços:

            - Aleluia!!!

            Esta reconciliação só pôs fim durante algum tempo aos tormentos do Sr. de Charlus; muitas vezes Morel, tendo partido em manobras longe demais para que o Sr. de Charlus pudesse ir vê-lo e enviar-me para lhe falar, escrevia ao barão cartas desesperadas e ternas, em que lhe assegurava que teria de matar-se, devido a uma coisa horrível que o punha na necessidade de ter vinte e cinco mil francos. Não dizia que coisa horrível era essa e, mesmo que o dissesse, sem dúvida era invenção. Quanto ao dinheiro, o Sr. de Charlus o teria enviado de boa vontade, se não sentisse que aquilo dava a Charlie condições de não precisar dele e também de ter os favores de outra pessoa. Assim, recusava, e seus telegramas tinham o tom seco e cortante de sua voz. Quando estava certo de seu efeito, desejava que Morel rompesse com ele para sempre, pois, persuadido de que o contrário é que haveria de ocorrer, dava-se conta de todos os inconvenientes que renasceriam dessa ligação inevitável. Mas, se não chegasse resposta alguma de Morel, ele deixava de dormir, não tinha mais nenhum momento de sossego, tão grande é de fato o número de coisas que vivemos sem as conhecer, e das realidades interiores e profundas que nos permanecem ocultas. Então, ele formulava todas as hipóteses acerca dessa enormidade que fazia com que Morel tivesse necessidade de vinte e cinco mil francos, dava-lhes todas as formas, ligava-lhes sucessivamente diversos nomes próprios. Creio que naqueles momentos o Sr. de Charlus (embora por essa época o seu esnobismo, diminuindo, já tivesse sido alcançado, senão ultrapassado, pela crescente curiosidade que o barão mostrava pelo povo) devia se lembrar com certa nostalgia dos graciosos turbilhões multicores das reuniões mundanas, em que as mulheres e os homens mais encantadores só o procuravam pelo prazer desinteressado que ele lhes dava, onde ninguém teria sonhado em "armar-lhe um golpe", inventar uma "coisa horrível", pela qual estariam prontos a matar-se caso não recebessem imediatamente vinte e cinco mil francos. Creio que então, e talvez porque, ainda assim, permanecera mais aferrado a Combray do que eu e houvesse enxertado a altivez feudal no orgulho alemão, devia julgar que não se é impunemente o amante sincero de um criado, que o povo não é exatamente a sociedade, que ele não inspirava confiança ao povo, como sempre ocorrera comigo.

            A estação seguinte do trenzinho, Maineville, lembra-me justamente um incidente relativo a Morel e ao Sr. de Charlus. Antes de falar nele, devo dizer que a chegada a Maineville (quando se levava até Balbec um recém-chegado elegante que, para não perturbar, preferia não se hospedar na Raspeliere) era ocasião de cenas menos penosas do que a que vou contar dentro de um instante. O recém-chegado, tendo suas bagagens miúdas no trem, em geral achava o Grande Hotel um tanto afastado, mas, como não havia antes de Balbec senão praiazinhas com vivendas desconfortáveis, resignava-se, de gosto pelo luxo e pelo bem-estar, ao longo trajeto, quando, no momento em que o trem estacionava em Maineville, via bruscamente erguer-se o Palace, que ele não podia suspeitar fosse uma casa de prostituição.

            - Mas não precisamos ir mais longe - dizia infalivelmente à Sra. Cottard, mulher conhecida como de espírito prático e boa conselheira. - Eis exatamente o que me serve. Para que continuar até Balbec, onde certamente não será melhor? Só pelo aspecto, acho que tem todo o conforto; Poderia perfeitamente mandar buscar a Sra. Verdurin, pois pretendo, em troca de suas gentilezas, dar algumas reuniões em sua homenagem. Ela não terá de andar tanto como se eu morasse em Balbec. Isto me parece perfeitamente adequado para ela, e para sua esposa, meu caro professor. Deve ter salões; convidaremos as senhoras. Cá entre nós, não compreendo por que, em vez de alugar La Raspeliere, a Sra. Verdurin não veio morar aqui. É muito mais sadio que nas velhas casas como La Raspeliere, que é forçosamente úmida, e aliás sem ser limpa; eles não têm água quente, a gente não pode lavar-se como queira. Maineville me parece bem mais agradável. A Sra. Verdurin, aqui, teria desempenhado perfeitamente o seu papel de dona-de-casa. Em todo caso, cada um com seu gosto; quanto a mim, vou fixar-me aqui. Senhora Cottard, não quer descer comigo? Despachemo-nos, o trem não vai demorar a partir. A senhora me guiaria até essa casa que será a sua e que já deve ter freqüentado várias vezes. É um quadro que parece feito para a senhora. - Custava-nos muito fazê-lo calar-se e, sobretudo, impedi-lo de descer, pois o infeliz convidado, com a obstinação que muitas vezes provém das gafes, insistia, pegava as suas malas e não queria dar ouvidos a coisa alguma, até que lhe asseguravam que nem a Sra. Verdurin nem a Sra. Cottard jamais iriam vê-lo naquela casa. - Em todo caso, vou fixar domicílio ali. A Sra. Verdurin não terá mais do que me escrever.

            A lembrança relativa a Morel se refere a um incidente de caráter mais particular. Houve outros, porém contento-me aqui, à medida que o "tortinho" pára e o empregado grita Doncieres, Grattevast, Maineville, etc., em assinalar o que a praiazinha e a guarnição evocam. Já falei de Maineville (media villa) e da importância que ela adquiria devido àquela suntuosa casa de mulheres recentemente construída, não sem despertar os protestos inúteis das mães de família. Mas, antes de dizer em que Maineville tem alguma relação, na minha memória, com Morel e o Sr. de Charlus, tenho de apontar a desproporção (que mais tarde terei de esmiuçar) entre a importância que Morel atribuía a conservar livres determinadas horas e a insignificância das ocupações em que pretendia empregá-las, sendo que essa mesma desproporção ocorria em meio às explicações de outra natureza que dava ao Sr. de Charlus. Ele, que se fingia de desinteressado com o barão (e podia fazê-lo sem riscos, tendo em vista a generosidade de seu protetor), quando desejava ter a noite livre para dar uma aula, etc., não deixava de acrescentar a seu pretexto estas palavras ditas com um sorriso de cupidez:

            - E depois, isto pode me fazer ganhar quarenta francos. Não é nada. Permita-me ir, pois, como vê, é do meu interesse. Diabos, não tenho rendas como o senhor, preciso ir fazendo a minha situação, é o momento de ganhar uns trocados. -

            Ao desejar dar a sua aula, Morel não estava sendo de todo insincero. Por um lado, é falso que o dinheiro não tenha cor. Uma nova maneira de ganhá-lo devolve o brilho às moedas que o uso gastou. Se de fato ele havia saído para dar uma aula, é possível que dois luíses entregues na despedida por uma aluna tenham produzido sobre ele um efeito diverso de dois luíses caídos das mãos do Sr. de Charlus. Depois, o homem mais rico caminharia, por dois luíses, quilômetros que se transformam em léguas quando se é filho de um criado de quarto. Mas várias vezes, acerca da realidade da aula de violino, o Sr. de Charlus tinha dúvidas, tanto maiores, visto que o músico freqüentemente invocava pretextos de outro gênero, de natureza inteiramente desinteressada do ponto de vista material, e além disso absurdos. Assim, Morel não podia deixar de apresentar uma imagem de sua vida, mas voluntariamente, e também involuntariamente, de tal modo ensombrecida que somente certas partes se deixavam distinguir. Durante um mês ele se pôs à disposição do Sr. de Charlus, com a condição de ter as noites livres, pois desejava freqüentar assiduamente o curso de álgebra. Ir depois visitar o Sr. de Charlus? Ah, impossível, as aulas iam às vezes até muito tarde.

            - Mesmo até depois das duas da manhã? - perguntava o barão.

            - Às vezes.

            - Mas a álgebra se aprende tão facilmente num livro.

            - Até mais facilmente, pois não entendo grande coisa nas aulas.

            - Então? Aliás, a álgebra não vai te servir para nada.

            - Gosto disso. Dissipa a minha neurastenia. -

            "Não, não pode ser a álgebra que lhe faz pedir licenças noturnas", dizia consigo o Sr. de Charlus. "Estará ligado à polícia?"

            Em todo caso Morel, fossem quais fossem as objeções que lhe fizessem, reservava certas horas tardias, seja para a álgebra, seja para o violino. Uma vez não foi uma nem outra coisa, mas o príncipe de Guermantes, que, tendo vindo passar alguns dias na praia para visitar a duquesa de Luxemburgo, encontrou o músico, sem saber de quem se tratava e sem que Morel tampouco o conhecesse, e lhe ofereceu cinqüenta francos para passarem a noite juntos na casa de mulheres em Maineville; prazer duplo para Morel, pelo dinheiro recebido do Sr. de Guermantes e pela volúpia de achar-se rodeado de mulheres cujos seios morenos se exibiam desnudos. Não sei como o Sr. de Charlus soube do local e do que se passava, mas não do nome do sedutor. Louco de ciúme, e a fim de conhecer este último, telegrafou a Jupien, que chegou dois dias depois, e, quando, no começo da semana seguinte, Morel anunciou que de novo estaria ausente, o barão perguntou a Jupien se ele se encarregaria de comprar a patroa do estabelecimento e conseguir que os escondessem, a ele e Jupien, para assistirem à cena.

            - Está entendido. Vou cuidar disso, seu tratante - respondeu Jupien ao barão.

            Não se pode compreender a que ponto essa inquietação agitava e, por isso mesmo, havia enriquecido momentaneamente o espírito do Sr. de Charlus. Assim, o amor provoca verdadeiras convulsões geológicas do pensamento. No do Sr. de Charlus, que ainda poucos dias antes se assemelhava a uma planície tão uniforme que, na maior distância, não se poderia perceber uma única idéia ao nível do solo, tinham-se bruscamente erguido, duras como pedras, um maciço de montanhas, mas de montanhas que fossem igualmente esculpidas, como se algum estatuário, em vez de transportar o mármore, o tivesse cinzelado no local e onde se retorciam, em grupos gigantes e titânicos, a Fúria, o Ciúme, a Curiosidade, a Inveja, o ódio; o Sofrimento, o Orgulho, o Receio e o Amor.

            Nesse meio tempo, chegara o dia em que Morel devia estar ausente. A missão de Jupien obtivera êxito. Ele e o barão deveriam chegar por volta das onze da noite e ficariam escondidos. Três ruas antes de chegar a essa esplêndida casa de prostituição (aonde vinha gente de todos os arredores elegantes), o Sr. de Charlus andava na ponta dos pés, dissimulava a voz, suplicava a Jupien que falasse mais baixo, de medo que Morel os ouvisse lá de dentro. Ora, logo que entrou a passo de gato no vestíbulo, o Sr. de Charlus, pouco habituado a esse tipo de lugares, encontrou-se, para seu terror e estupefação, num local mais barulhento que a Bolsa de Valores ou a Sala dos Leilões. Era em vão que recomendava, às soubrettes que se apressavam a seu redor, que falassem mais baixo; e aliás a sua própria voz era abafada pelo barulho dos gritos e imprecações de uma velha "subpatroa" de peruca muito escura, com um rosto em que se estampava a gravidade de um notário ou de um padre espanhol, e que, a todo instante, soltava, com voz de trovão, fazendo alternativamente abrir e fechar as portas, como se regula a circulação dos carros: "Ponha o cavalheiro no 28, no quarto espanhol." "Já não se pode passar." "Abram a porta, estes cavalheiros perguntam pela Srta. Noémie. Ela os espera no salão persa."

            O Sr. de Charlus estava assustado como um provinciano que tem de atravessar os bulevares; e, para empregar uma comparação infinitamente menos sacrílega que o assunto representado nos capitéis do pórtico da velha igreja de Couliville, as vozes das jovens criadas repetiam mais baixo, sem se cansar, a ordem da subpatroa, como esses catecismos que ouvimos os alunos salmodiarem na sonoridade de uma igreja rural. Por mais medo que tivesse, o Sr. de Charlus, que na rua tremia à idéia de ser ouvido, convencendo-se de que Morel estava à janela, talvez não se assustasse tanto em meio ao ranger daquelas escadarias enormes, onde se compreendia que não era possível ouvir coisa alguma dos quartos. Afinal, no termo de seu calvário, encontrou a Srta. Noémie, que devia escondê-lo com Jupien, mas principiou por fechá-lo num salão persa extremamente suntuoso, de onde ele não via nada. Ela disse-lhe que Morel pedira uma laranjada e que, logo que a tivessem servido, introduziriam os dois viajantes num salão transparente. Enquanto isso, como a reclamassem, ela lhes prometeu, como num conto, que, para passarem o tempo, iria mandar-lhes "uma mulherzinha inteligente". Pois ela estava sendo chamada. A mulherzinha inteligente vestia um peígnoír persa, que desejava tirar. O Sr. de Charlus pediu-lhe que não fizesse nada, e ela mandou subir champanha, que custava quarenta francos a garrafa. Durante todo esse tempo, Morel na verdade estava com o príncipe de Guermantes; para salvar as aparências, fingira enganar-se de quarto, entrara num em que havia duas mulheres, as quais se apressaram a deixar os dois cavalheiros a sós. O Sr. de Charlus ignorava tudo isso, mas praguejava e queria abrir as portas; mandou chamar de novo a Srta. Noémie, a qual, tendo ouvido a mulherzinha inteligente dar ao Sr. de Charlus detalhes sobre Morel que não concordavam com os que ela mesma dera a Jupien, fê-la retirar-se e em breve enviou, para substituí-la, "uma mulherzinha gentil", que não lhes mostrou nada de mais, mas falou o quanto a casa era séria e também pediu champanha. O barão, espumando de ódio, mandou que a Srta. Noémie voltasse; esta lhes disse:

            - Sim, demora um pouco, essas damas tomam atitudes, não parece que ele tenha vontade de fazer alguma coisa. -

            Por fim, diante das promessas e ameaças do barão, a Srta. Noémie saiu com ar contrariado, assegurando-lhes que não esperariam mais de cinco minutos. Tais cinco minutos duraram uma hora, após o que Noémie conduziu, na ponta dos pés, o Sr. de Charlus, ébrio de furor, e Jupien, desolado, para uma porta entreaberta, dizendo:

            - Os cavalheiros vão ver muito bem. Aliás, neste momento não é interessante, ele está com três damas e conta-lhes a sua vida no regimento. -

            Enfim o barão pôde ver pela abertura da porta e também nos espelhos. Mas um terror mortal o obrigou a apoiar-se à parede. Era Morel mesmo que ele tinha diante de si, mas, como se ainda existissem os mistérios pagãos e os enfeitiçamentos, era antes a sombra de Morel. Morel embalsamado, nem sequer Morel ressuscitado como Lázaro, uma aparição de Morel, um fantasma de Morel. Morel retornando ou evocado naquele quarto (onde por todo lado as paredes e os divãs repetiam emblemas de feitiçaria), que estava a poucos metros dele, de perfil, Morel tinha, como depois da morte, perdido todas as cores; entre aquelas mulheres, com as quais era de esperar que se entregasse a alegres folguedos, permanecia lívido, preso a uma imobilidade artificial; para beber a taça de champanha à sua frente, seu braço sem forças tentava estender-se devagar e tombava. Tinha-se a impressão desse equívoco que faz que uma religião fale de imortalidade, mas por isso entende alguma coisa que não exclui o Nada. As mulheres o atormentavam com perguntas. As perguntas das mulheres se faziam mais inquisitivas, mas Morel, inanimado não tinha força para lhes responder. Nem sequer se produzia o milagre de uma palavra murmurada. O senhor de Charlus teve um só instante de vacilação e compreendeu a verdade e que já por estupidez de Jupien quando fora acertar tudo, já fora por poder de expansão dos segredos confiados que nunca os conservara seja pelo caráter indiscreto dessas mulheres, seja por temor da polícia, tinham avisado Morel que dois senhores haviam pago muito  caro  para  vê-lo,  tinham-no  feito  sair  o  príncipe  de Guermantes, permutado em três mulheres e colocado o pobre Morel, tremente e paralisado de tal modo pelo estupor que se o senhor de Charlus o via mal, era porque ele estava apavorado e sem palavras, não se atrevia a tomar seu copo por temor a deixá-lo cair, vendo totalmente o barão.

            A história por outra parte não termina melhor para o príncipe de Guermantes. Quando o tinham feito sair para que não visse o senhor de Charlus, furioso por sua desilusão sem suspeitar quem era o autor, tinha suplicado ao Morel, sempre sem lhe deixar saber sua identidade, que se vissem na noite seguinte na pequena casa que havia alugado e que apesar do escasso tempo que devia ocupar, fora adornado, de acordo com o mesmo costume maníaco que já observamos em casa da senhora de Villeparisis, com grande quantidade de lembranças de família, para sentir-se mais aclimado.

            Por isso no dia seguinte, Morel, que voltava com freqüência a cabeça, tremendo que o seguisse e o espiasse a mando do senhor de Charlus, tinha terminado por entrar na casa. Um serviçal o fez entrar em salão, dizendo que ia avisar ao senhor (seu amo lhe tinha recomendado que não pronunciasse seu título de príncipe temendo despertar suspeitas). Mas quando Morel estava sozinho e quis olhar no espelho para ver se sua mecha estava  despenteada,  foi  como  uma  alucinação.  Sobre  a  estufa,  as fotografias identificáveis para o violinista, por ter visto em casa do senhor de Charlus, da princesa de Guermantes, da duquesa de Luxemburgo  e  da  senhora  de Villeparisis,  petrificaram-no primeiro de assombro. No mesmo momento advertiu a do

senhor  de Charlus,  que  estava  um pouco  apartada.  O  barão  parecia imobilizado à Morel com seu olhar estranho e fixo. Louco de medo, Morel, que voltava de seu primitivo estupor e não duvidava que essa não fosse uma cilada em que o tinha feito cair o senhor de Charlus, para comprovar se era fiel, desceu de quatro os poucos degraus da casa e saiu correndo pela estrada. Quando o príncipe de Guermantes (depois de ter feito esperar o  que  acreditou  necessário  a  uma  relação  de passagem,  não  sem  haver perguntado se era muito prudente e se o indivíduo não seria perigoso), entrou no salão, não encontrou ninguém. Por mais que explorasse toda a casa, com  seu  serviçal  e  com  o  revólver em punho a casa inteira, que não era grande, e os recantos do jardinzinho e o porão, desaparecera o companheiro cuja presença julgara certa.         Encontrou-o várias vezes durante a semana seguinte. Mas de cada vez, era Morel, o sujeito perigoso, quem fugia, como se o príncipe fosse mais perigoso ainda. Renitente em suas suspeitas, Morel nunca as dissipou, e mesmo em Paris, a simples vista do príncipe de Guermantes bastava para pô-lo em fuga. Por onde se vê que o Sr. de Charlus foi protegido de uma infidelidade que o desesperava, e vingado sem jamais tê-lo imaginado, e nem principalmente de que modo.

            Mas as lembranças do que me contaram a respeito já não substituídas por outras, pois o B.C.N., retomando a sua marcha de "calhambeque", continua a largar ou apanhar os viajantes nas estações seguintes.

            Em Grattevast, onde morava sua irmã com quem fora passar a tarde, subia às vezes o Sr. Pierre de Verjus, conde de Crécy (a quem chamavam apenas conde de Crécy), fidalgo pobre mas de extrema distinção, que eu conhecera através dos Cambremer, a quem aliás era pouco ligado. Reduzido a uma vida extremamente modesta, quase miserável, sentia eu que um charuto, uma "consumação" eram coisas tão agradáveis para ele que tomei o hábito, quando não podia ver Albertine, de convidá-lo para vir a Balbec. Muito fino e expressando-se às mil maravilhas cabeça toda branca e encantadores olhos azuis, falava principalmente com o canto dos lábios, e muita delicadeza, dos confortos da vida senhorial, que evidentemente conhecera, e também de genealogias. Como lhe perguntasse o que estava gravado em seu anel, disse com um sorriso modesto:

            - É um ramo de verjus (agraço).

[Agraço: estado das uvas antes de amadurecerem. (N. do T)]

            E acrescentou com prazer de degustador:

            - Nossas armas são um ramo de agraço simbólico, pois me chamo Verjus com caule e folhas de sinople. -

            Creio, porém, que ficaria decepcionado se em Balbec eu só lhe oferecesse verjus para beber. Ele apreciava os vinhos mais caros, decerto por privação, pelo conhecimento profundo daquilo de que se achava privado, por gosto, talvez também por inclinação exagerada. Assim, quando o convidava para jantar em Balbec, ele encomendava a refeição com uma ciência requintada, mas comia um pouco demais, e sobretudo bebia, mandando guardar os vinhos que deviam ser bebidos logo, e gelar aqueles que deviam ficar no gelo. Antes e depois do jantar, indicava a data ou o número que desejava de um vinho do porto ou de um conhaque, como o teria feito para a ereção geralmente ignorada de um marquesado, mas que ele conhecia igualmente bem.

            Como eu era para Aimé um freguês predileto, ficava ele encantado que eu desse esses jantares extras e gritava para os garçons:

            - Depressa, preparem a mesa 25; - ele nem mesmo dizia "preparem", mas "preparem-me", como se fosse para ele próprio. E, como a linguagem dos mordomos de hotel não é exatamente a mesma da dos chefes de mesa, subchefes, copeiros, etc., no momento em que eu pedia a nota, ele dizia ao garçom que nos servira, com um gesto repetido e apaziguador da palma da mão, como se quisesse acalmar um cavalo prestes a tomar o freio nos dentes:

            - Não avance muito (para a nota); vá devagarinho, bem devagarinho. -

            Depois, como o garçom partisse com esse aviso, Aimé, receando que suas recomendações não fossem observadas com exatidão, tornava a chamá-lo:

            - Espere, eu mesmo vou pôr os preços. -

            E, como eu lhe dissesse que aquilo não fazia diferença:

            - Tenho por princípio que, como se diz vulgarmente, não se deve burlar o freguês. -

            Quanto ao gerente, observando as roupas simples, sempre as mesmas e bastante gastas do meu convidado (e contudo ninguém poria tão bem em prática a arte de se vestir com opulência, como um elegante de Balzac, se possuísse meios), limitava-se, por minha causa, a inspecionar de longe para ver se tudo corria bem e a exigir, com um olhar, que pusessem um calço no pé da mesa que não estava a prumo. Não que não soubesse meter a mão na massa como qualquer outro, embora ocultasse os seus começos como lava-pratos.

            Foi preciso, todavia, uma circunstância excepcional para que um dia ele próprio destrinchasse os perus. Eu havia saído, mas soube que ele o fizera com uma majestade sacerdotal, cercado, a respeitosa distância do trinchante, de um círculo de garçons que assim procuravam menos aprender do que se exibir, e tinham um ar beatífico de admiração. Aliás, não foram vistos de modo algum pelo gerente (que mergulhava num gesto lento no flanco das vítimas e sem despregar os olhos, compenetrados de sua alta função e como se devesse ler algum augúrio). O sacrificador nem sequer percebeu minha ausência. Quando o soube, ficou desolado.

            - Como, o senhor não me viu decepar eu mesmo os perus? -

            Respondi que, não tendo podido ver até então Roma, Veneza, Siena, o museu do Prado, o museu de Dresde, as Índias, nem Sarah na Fedra, já conhecia a resignação e acrescentaria à lista o seu trinchamento dos perus. A comparação com a arte dramática (Sarah na Fedra) foi a única que ele pareceu compreender, pois sabia por mim que, nos dias de representações de gala, Coquelin sênior aceitara papéis de estreante, ou até o de personagens que só dizem uma frase ou nem dizem nada.

            - Tanto faz, estou desolado pelo senhor. Quando é que vou trinchar de novo? Seria preciso um acontecimento, seria preciso uma guerra. -

            (Com efeito, foi necessário o armistício.) Desde esse dia, o calendário foi mudado, contava-se assim: "Foi no dia seguinte àquele em que trinchei pessoalmente os perus." - "Foi exatamente oito dias depois que o gerente trinchou ele próprio os perus." - Assim, aquela prossectomia serviu, como o nascimento de Cristo ou a Hégira, de ponto de partida para um calendário diverso dos demais, mas que não logrou sua extensão nem igualou sua duração.

            A tristeza da vida do Sr. de Crécy tanto provinha de não mais possuir cavalos e uma mesa suculenta, como de conviver com pessoas que imaginavam que Cambremer e Guermantes fossem uma só família. Quando viu que eu sabia que Legrandin, que agora se fazia chamar Legrand de Méséglise, a que não tinha o menor direito, aliás animado pelo vinho que bebia, teve uma espécie de acesso de alegria. Sua irmã me dizia com ar de compreensão:

            - Meu irmão jamais se sente tão feliz como quando pode conversar com o senhor. -

            De fato, ele sentia-se existir desde que descobrira alguém que conhecia a mediocridade dos Cambremer e a grandeza dos Guermantes, alguém para quem o universo social existia. Como se, após o incêndio de todas as bibliotecas do globo e a ascensão de uma raça totalmente ignorante, um velho latinista retomasse pé e confiança na vida ao ouvir alguém citar-lhe um verso de Horácio. Assim, se ele jamais saía do vagão sem me dizer:

            - Para quando, a nossa pequena reunião? - tanto era por avidez de parasita, como por gula de erudito, e porque considerava os ágapes de Balbec como uma ocasião para conversar, ao mesmo tempo, sobre assuntos que lhe eram caros e de que não podia falar com ninguém, e análogos nisso a esses jantares em que se reúnem em datas fixas, diante da mesa particularmente suculenta do Círculo da União, a Sociedade dos Bibliófilos. Muito modesto no que se referia à sua própria família, não foi pelo Sr. de Crécy que fiquei sabendo que ela era bem grande e um autêntico ramo, enraizado na França, da família inglesa que leva o título de Crécy. Quando soube que ele era um verdadeiro Crécy, contei-lhe que uma sobrinha da Sra. de Guermantes havia desposado um americano de nome Charles Crécy e lhe disse que pensava que o mesmo não tinha qualquer relação com ele.

            - Nenhum - disse-me. - Como também (apesar de que minha família não possui tanta ilustração) muitos americanos que se chamam Montgommery Berry, Chandos ou Capei não têm qualquer relação com as famílias de Pembroke, de Buckingham, d'Essex, ou com o duque de Berry. -

            Pensei várias vezes em lhe dizer, para diverti-lo, que conhecia a Sra. Swann, a qual, como cocote, era conhecida antigamente sob o nome de Odette de Crécy; mas, embora o duque d'Alençon não pudesse ficar constrangido que lhe falassem de Émilienne d'Alençon, não me julguei bastante íntimo do Sr. de Crécy para levar o gracejo a esse ponto.

            - Ele pertence a uma grande família - disse-me um dia o Sr. de Montsurvent. - Seu patronímico é Saylor. - E acrescentou que, no seu velho castelo acima de Incarville, aliás quase inabitável, e que, embora o Sr. de Crécy tivesse nascido muito rico, estava atualmente arruinado demais para poder reformá-lo, lia-se ainda a antiga divisa da família. Achei essa divisa muito bonita, aplicada aplicada à impaciência de uma raça de presa aninhada naquele ambiente de onde outrora devia alçar vôo, seja, hoje, atribuída à contemplação do declínio, à espera da morte próxima naquele retiro selvagem e dominador. Com efeito, é nesse duplo sentido que essa divisa joga com o nome de Saylor: Ne sçais I'heure.

[Ne sçais l'heure, "não sei a hora" em francês arcaico. Notar a semelhança fônica com o nome de Saylor. (N. do T)]

            Em Hermonville, embarcava às vezes o Sr. de Chevregny, cujo nome, disse-me Brichot, significava (como o de Monsenhor de Cabrieres) "lugar onde se reúnem as cabras". Era parente dos Cambremer e, por causa disso, e devido a uma falsa apreciação da elegância, estes o convidavam freqüentemente a Féterne, mas apenas quando não tinham convidados para exibir. Vivendo o ano inteiro em Beausoleil, o Sr. de Chevregny permanecera mais provinciano do que eles. Assim, quando ia passar algumas semanas em Paris, não tinha um só dia a perder para tudo o que "haveria de ver"; a tal ponto que às vezes, um pouco aturdido pelo número de espetáculos digeridos depressa demais, quando lhe perguntavam se tinha visto uma determinada peça, chegava a não ter certeza. O que era raro, pois ele conhecia as coisas de Paris com esse pormenor particular às pessoas que raramente a visitam. Aconselhava-me as "novidades" que convinha ir ver ("Isto vale a pena"), aliás considerando-as apenas do ponto de vista da noite agradável que fazem passar, e ignorando o ponto de vista estético até não desconfiar sequer que pudessem, de fato, constituir às vezes uma "novidade" na história da arte. Assim é que, falando de tudo sob um mesmo plano, ele nos dizia:

            - Uma vez fomos à ópera-Cômica, mas o espetáculo não era famoso. Chamava-se Pélleas et Mélisande. É insignificante. Périer representa sempre bem, mas é preferível vê-lo em outra coisa. Em compensação, no Gymnase, representava-se A Castelã. Voltamos duas vezes lá; não deixem de ir, merece ser vista. E depois, é representada às maravilhas. Verão Frévalles, Marie Magnier, Baronfils. -

            Citava-me até nomes de atores de que eu jamais ouvira falar, e sem fazê-los preceder de "senhor", "senhora" ou "senhorita", como o teria feito o duque de Guermantes, o qual falava no mesmo tom cerimoniosamente desdenhoso das "canções da Srta. Yvette Guilbert" e das "experiências do Sr. Charcot". O Sr. de Chevregny não procedia dessa forma; dizia Cornaglia e Dehelly, como teria dito Voltaire e Montesquieu. Nele, relativamente aos atores e a tudo quanto fosse parisiense, o desejo de se mostrar desdenhoso, que tinha o aristocrata, era vencido pelo de parecer familiar, próprio do provinciano.

            Logo depois do meu primeiro jantar na Raspeliere com o que ainda se chamava em Féterne "o jovem casal", embora o Sr. e a Sra. de Cambremer já não fossem jovens, a velha marquesa me escrevera uma dessas cartas cuja caligrafia se reconhece entre milhares. Dizia-me: "Traga sua prima deliciosa encantadora -, agradável. Será um encanto, um prazer" falhando sempre com tal infalibilidade a progressão esperada por aquele que recebia a carta, que acabei por mudar de opinião acerca da natureza daqueles diminuendo, por julgá-los intencionais e por encontrar neles a mesma deterioração do gosto transposta para a ordem mundana que levava Sainte-Beuve a quebrar todas as alianças de palavras, a alterar toda expressão um tanto habitual. Dois métodos, sem dúvida ensinados por mestres diferentes, contrariavam-se nesse estilo epistolar, o segundo fazendo a Sra. de Cambremer compensar a banalidade dos adjetivos múltiplos ao empregá-los em escala descendente, e evitando acabar no acorde perfeito. Em troca, eu me inclinava a ver, nessas gradações inversas, não mais o requinte, como quando elas eram obra da velha marquesa, mas sim falta de jeito, todas as vezes em que eram empregadas pelo marquês, seu filho, ou por suas primas. Pois em toda a família, até um grau bastante afastado e por uma imitação admirável da tia Zélia, a regra dos três adjetivos era muito estimada, bem como uma certa maneira entusiasta de retomar a respiração ao falar. Imitação que aliás passara ao sangue; e, quando na família uma meninazinha, desde a infância, parava ao falar para engolir saliva, diziam: - Ela puxou à tia Zélia e sentiam que mais tarde o seu lábio teria uma rápida inclinação a sombrear-se de um leve buço, e prometiam cultivar nela as disposições que mostrasse para a música. As relações dos Cambremer não tardaram a ser menos perfeitas com a Sra. Verdurin do que comigo, e por motivos diversos. Desejavam convidar esta última. A "jovem" marquesa dizia-me com desdém:

            - Não vejo por que não havemos de convidar essa mulher; no campo, a gente visita qualquer um; isso não traz conseqüências. -

            Mas no fundo, muito impressionados, não cessavam de me consultar sobre a maneira como deveriam realizar o seu desejo de polidez. Como nos haviam convidado para jantar, a mim e a Albertine, na companhia de amigos de Saint-Loup, pessoas elegantes da região, proprietários do castelo de Gourville, e que mais ou menos representavam a elite normanda, que a Sra. Verdurin apreciava, embora não quisesse aparentá-lo, aconselhei aos Cambremer que convidassem a Patroa também. Mas os castelães de Féterne, por medo (de tanto que eram tímidos) de descontentar seus nobres amigos, ou (de tanto que eram ingênuos) que o Sr. e a Sra. Verdurin se entediassem com pessoas que não eram intelectuais, ou ainda (como estavam impregnados de um espírito rotineiro que a experiência não fecundara), receando misturar os gêneros e cometer uma tolice, declararam que aquilo não "daria certo" em conjunto, que "estragaria", e que era melhor reservar a Sra. Verdurin (que haveriam de convidar com todo o seu pequeno grupo) para um outro jantar. Para o próximo o elegante, com os amigos de Saint-Loup do pequeno grupo só convidaram Morel, a fim de que o Sr. de Charlus fosse indiretamente informado sobre as pessoas brilhantes que eles recebiam, e também para que o músico fosse um elemento de distração para os convidados, pois pediram-lhe que levasse o seu violino. Acrescentaram-lhe Cottard, porque o Sr. de Cambremer declarou que ele era um sujeito animado e fazia boa figura num jantar; além do mais, seria conveniente estar em bons termos com um médico, para o caso de alguém ficar doente. Mas convidaram-no sozinho, para "não começar nada com a mulher". A Sra. Verdurin ficou indignada quando soube que dois membros do pequeno grupo tinham sido convidados sem ela para um jantar íntimo em Féterne. Ditou ao doutor, cujo primeiro movimento fora de aceitar o convite, uma altiva resposta em que dizia: "Nós jantamos esta noite na casa da Sra. Verdurin", plural que deveria ser uma lição para os Cambremer, e mostrar-lhes que ele era inseparável da Sra. Cottard. Quanto a Morel, a Sra. Verdurin não teve necessidade de lhe traçar uma conduta impolida, que ele próprio adotou espontaneamente. Eis por quê. Se, no que se refere aos seus prazeres, tinha ele, em relação ao Sr. de Charlus, uma independência que a este muito afligia, já vimos que a influência deste último se fazia sentir mais em outros domínios e que, por exemplo, ele havia ampliado seus conhecimentos musicais e apurado o estilo do virtuose. Porém, ao menos do ponto de vista da nossa narrativa, não passava de uma influência. Em compensação, havia um terreno sobre o qual aquilo que o barão dizia era cegamente acreditado e feito por Morel. Cega e loucamente, pois não só os ensinamentos do Sr. de Charlus eram falsos como também, ainda que válidos para um grão-senhor, tornavam-se grotescos aplicados ao pé da letra por Morel. O terreno em que Morel se tornava tão crédulo e era tão dócil ao mestre era o terreno mundano. O violinista que, antes de conhecer a Sr. de Charlus, não tinha noção alguma da sociedade, tomara ao pé da letra o esboço altivo e sumário que lhe traçara o barão:

            - Há um certo número de famílias preponderantes - dissera-lhe o Sr. de Charlus. - Antes de tudo os Guermantes, que contam quatorze alianças com a Casa de França, o que aliás é principalmente lisonjeiro à Casa de França, pois era a Aldonca de Guermantes e não a Luís o Gordo, seu irmão consangüíneo, porém segundo-gênito, que deveria ter voltado ao trono da França. Sob Luís XIV, pusemos luto pela morte de Monsenhor, pois tínhamos a mesma avó que o rei. Muito abaixo dos Guermantes, pode-se todavia citar os La Trémoïlle, descendentes dos reis de Nápoles e dos condes de Poitiers; os d'Uzes, pouco antigos como família mas que são os mais antigos pares; os Luynes, bem recentes, mas com o brilho das grandes alianças; os Choiseul, os Harcourt, os La Rochefoucauld. Acrescente ainda os Noailles, apesar do conde de Toulouse, os Montesquiou, os Castellane e, salvo esquecimento, isso é tudo. Quanto a todos esses fidalgotes que se chamam marquês de Cambremerda ou de Vaitefumar, não há nenhuma diferença entre eles e o último soldado do seu regimento. Que você vá fazer xixi na casa da condessa Cocô e cocô na da baronesa Xixi, é a mesma coisa, terá comprometido a sua reputação e tomado um trapo sujo por papel higiênico. É uma porcaria. -

            Morel recolhera piedosamente essa lição de história, talvez um tanto sumária; julgava as coisas como se ele próprio fosse um Guermantes e sonhava com uma ocasião de se encontrar com os falsos La Tour d'Auvergne para fazê-los sentir, com um soco desdenhoso, que ele não os levava a sério. Quanto aos Cambremer, eis que justamente podia mostrar-lhes que não valiam mais que "o último soldado de seu regimento". Não respondeu ao convite deles e na noite do jantar desculpou-se à última hora com um telegrama, deslumbrado como se acabasse de agir feito um príncipe de raça. Além disso, resta acrescentar que não se pode imaginar o quanto, de um modo geral, o Sr. de Charlus podia ser insuportável, minucioso, e até, ele tão fino, também imbecil, em todas as ocasiões em que entravam em jogo os defeitos do seu caráter. De fato, pode-se dizer que estes são como que uma enfermidade intermitente do espírito. Quem já não reparou no fato entre as mulheres, e até nos homens, dotados de inteligência notável porém afligidos de nervosismo? Quando estão felizes, sossegados, satisfeitos com o ambiente, fazem com que admiremos seus preciosos dotes; é literalmente a verdade que fala por sua boca. Uma enxaqueca, uma pequena picada de amor-próprio, basta para mudar tudo. A luminosa inteligência, convulsiva, brusca e acanhada, só reflete um ego irritado, perspicaz, caprichoso, fazendo todo o possível para desagradar.

            Foi intensa a cólera dos Cambremer; e, no intervalo, outros incidentes levaram a uma certa tensão em suas relações com o pequeno clã. Quando voltávamos, os Cottard, Charlus, Brichot, Morel e eu, de um jantar na Raspeliere e como os Cambremer, que tinham almoçado com amigos em Arembouville, tivessem feito na ida uma parte do trajeto conosco:

            - O senhor, que tanto aprecia Balzac e sabe reconhecê-lo na sociedade contemporânea -dissera eu ao Sr. de Charlus -, deve achar que esses Cambremer saíram das Cenas da Vida Provinciana. -

            Mas o Sr. de Charlus, exatamente como se fosse amigo deles e eu o tivesse melindrado com minha observação, cortou-me bruscamente a palavra:

            - O senhor diz isto porque a mulher é superior ao marido - replicou ele em tom seco.

            - Oh, eu não queria dizer que ela era a Musa do Departamento, nem a Sra. de Bargeton, muito embora... -

            O Sr. de Charlus interrompeu de novo:

            - Diga antes a Sra. de Mortsauf. -

            O trem parou, e Brichot desceu.

            - Por mais que lhe fizéssemos sinais, o senhor é terrível.

            - Como?

            - Ora, não percebeu que Brichot está loucamente apaixonado pela Sra. de Cambremer? -      Pela atitude dos Cottard e de Charlie, vi que aquilo era aceito sem sombra de dúvida no pequeno núcleo. Creio que havia maldade da parte deles.

            - Pois não notou como ele ficou perturbado quando você falava dela? - continuou o Sr. de Charlus, que gostava de mostrar que tinha experiência com as mulheres e falava do sentimento que elas inspiram com um ar natural, e como se este sentimento fosse o que ele próprio sentisse habitualmente. Porém um certo ar de paternidade equívoca em relação a todos os jovens apesar de seu amor exclusivo por Morel acabou desmentindo, pelo tom, as opiniões de mulherengo que ele emitia:

            - Oh, esses meninos! - disse com voz aguda, piegas e cadenciada. - É preciso ensinar-lhes tudo, são inocentes como criança recém-nascida, não sabem reconhecer quando um homem está enamorado de uma mulher. Na sua idade eu era mais esperto - acrescentou, pois gostava de empregar as expressões do mundo apache, talvez por gosto, talvez para não parecer, evitando-as, que freqüentava aqueles para quem tais expressões faziam parte do vocabulário corrente. Alguns dias mais tarde, fui obrigado a render-me à evidência e reconhecer que Brichot estava apaixonado pela marquesa. Desgraçadamente, aceitou vários almoços na casa dela. A Sra. Verdurin achou que era tempo de dar um basta naquilo. Fora a utilidade que ela via numa intervenção, para a política do pequeno núcleo, sentia por esses tipos de explicações e pelos dramas daí decorrentes um prazer cada vez mais vivo e que a ociosidade faz nascer tanto no mundo aristocrático como na burguesia. Foi um dia de grande emoção na Raspeliere quando se viu a Sra. Verdurin desaparecer durante uma hora com Brichot, a quem soube-se que ela dissera que a Sra. de Cambremer zombava dele, que ele era motivo de troça em seu salão, que ele ia desonrar a sua velhice, comprometer a sua posição no ensino. Chegou ao ponto de falar em termos tocantes da lavadeira com quem ele vivia em Paris, e de sua filhinha. Ela venceu, e Brichot deixou de ir a Féterne, mas seu desgosto foi tal que, durante dois dias, julgamos que perderia completamente a visão, e, em todo caso, sua enfermidade se agravou a um estágio que se tornou definitivo. Entretanto, os Cambremer, cuja raiva contra Morel era grande, convidaram uma vez, e de propósito, o Sr. de Charlus, mas sem o violinista. Não recebendo resposta do barão, recearam ter cometido uma gafe, e, achando que o rancor era mau conselheiro, escreveram um pouco tardiamente a Morel, servilismo que fez sorrir o Sr. de Charlus, mostrando-lhe o seu poder.

            - Responda por nós dois que aceito - disse o barão a Morel.

            Chegado o dia do jantar, esperavam no grande salão de Féterne. Na realidade, os Cambremer davam o jantar para a fina flor da elegância que eram o Sr. e a Sra. Féré. Mas de tal modo temiam desagradar o Sr. de Charlus que, embora tivessem conhecido os Féré através do Sr. de Chevregny, a Sra. de Cambremer sentiu-se febril ao ver, no dia do jantar, que este os vinha visitar em Féterne. Inventaram todos os pretextos para mandá-lo para Beausoleil o mais rápido possível, mas não tão depressa que ele não cruzasse no pátio com o casal Féré, os quais ficaram tão chocados por vê-lo assim mandado embora, como ele envergonhado. Mas, custasse o que custasse, os Cambremer queriam poupar ao Sr. de Charlus a vista do Sr. de Chevregny, achando que este era provinciano, devido a matizes que se deixam passar em família e só se levam em conta diante de estranhos, que são precisamente os únicos a não perceberem tal. Mas ninguém gosta de exibir os parentes que permanecem aquilo que tanto nos esforçamos por deixar de ser. Quanto ao Sr. e à Sra. Féré, eram no mais alto grau aquilo que se chama pessoas de muita distinção. Aos olhos dos que assim os qualificavam, sem dúvida os Guermantes, os Rohan e vários outros também eram pessoas muito distintas, mas o seu nome dispensava de dizê-lo. Como nem todos sabiam do elevado nascimento da mãe do Sr. Féré nem da mãe da Sra. Féré, e do círculo extraordinariamente fechado que ela e o marido freqüentavam, quando diziam os seus nomes, sempre acrescentavam, para explicar, que se tratava "do que há de melhor". O seu nome obscuro acaso lhes ditava uma espécie de sobranceira reserva? Sempre é fato que os Féré não tinham relações com pessoas que os La Trémoille teriam freqüentado. Fora necessário a posição de rainha do litoral, que a velha marquesa de Cambremer possuía na Mancha, para que os Féré viessem a uma de suas vesperais todos os anos. Tinham-nos convidado para jantar, e muito contavam com o efeito que o Sr. de Charlus ia produzir neles. Anunciaram discretamente que ele estava no número dos convivas. Por acaso, a Sra. Féré não o conhecia. A Sra. de Cambremer teve com isso uma grande satisfação, e pelo seu rosto perpassou o sorriso do químico que vai pôr em contato, pela primeira vez, dois corpos especialmente importantes. A porta se abriu, e a Sra. de Cambremer esteve a ponto de desmaiar ao ver Morel entrar sozinho. Como um secretário encarregado de desculpar o seu ministro, como uma esposa morganática a exprimir o pesar que tem o príncipe de estar doente (assim fazia a Sra. de Clinchamp em relação ao duque d'Aumale), Morel disse, no tom mais leviano:

            - O barão não poderá vir. Está um pouco indisposto; pelo menos, acho que é por causa disso; não estive com ele esta semana - acrescentou, desesperando até com essas últimas palavras a Sra. de Cambremer, que dissera ao casal Féré que Morel estava com o Sr. de Charlus em todas as horas do dia. Os Cambremer fingiram que a ausência do barão era um atrativo a mais para a recepção, e, sem que Morel ouvisse, diziam aos convidados:

            - Passaremos bem sem ele, não é mesmo? Até será mais agradável. -

            Mas estavam furiosos, suspeitaram de uma intriga urdida pela Sra. Verdurin, e, em represália, quando esta voltou a convidá-los para La Raspeliere, o Sr, de Cambremer, não podendo resistir ao prazer de rever sua casa e de se reencontrar com o pequeno grupo, compareceu, mas só, dizendo que a marquesa estava desolada, pois seu médico lhe ordenara que não deixasse o quarto. Com essa meia presença, os Cambremer julgaram, a um tempo, dar uma lição ao Sr. de Charlus e mostrar aos Verdurin que não lhes deviam senão uma polidez restrita, como as princesas de sangue outrora acompanhavam as duquesas, mas unicamente até o meio do segundo quarto. Ao fim de algumas semanas, estavam quase brigados. O Sr. de Cambremer me dava explicações:

            - Direi que com o Sr. de Charlus era mesmo difícil. Ele é extremamente dreyfusista...

            - Mas não!

            - Sim... em todo caso seu primo, o príncipe de Guermantes, o é; falam muito mal dele por isso. Tenho parentes que notam muito essas coisas. Não posso freqüentar essas pessoas; acabaria brigando com minha família.

            - Visto que o príncipe de Guermantes é dreyfusista, tanto melhor - disse a Sra. de Cambremer; pois Saint-Loup, que dizem que vai casar com a sobrinha deles, também é. Talvez até seja este o motivo do casamento.

            - Ora, minha cara, não diga que Saint-Loup, de quem tanto gostamos, é dreyfusista. Não convém espalhar levianamente essas alegações - disse o Sr. de Cambremer- - Você o deixaria malvisto no exército!

            - Ele foi, mas não o é mais - disse eu ao Sr. de Cambremer.

            - Quanto ao seu casamento com a Srta. de Guermantes-Brassac, é certo mesmo?

            - Só se fala nisso, mas o senhor está em condições de sabê-lo.

            - Mas eu repito que ele disse a mim mesma que era dreyfusista - insistiu a Sra. de Cambremer.

            - De resto, é muito desculpável; os Guermantes são meio alemães.

            - Quanto aos Guermantes da rua de Varenne, pode dizer que o são inteiramente - observou Cancan. - Mas Saint-Loup é vinho de outra pipa; ainda que tenha toda uma parentela alemã, seu pai reivindicava, acima de tudo, o seu título de grão-senhor francês; voltou à ativa em 1871 e foi morto durante a guerra da maneira reais bela. Por muito que eu seja intransigente sobre a matéria, não é preciso exagerar num sentido ou noutro. In medio... virtus, ah! não consigo me lembrar. É algo que diz o doutor Cottard. Eis aí um que tem sempre a palavra pronta. Deveriam ter aqui um Petit Larousse. -

            Para evitar pronunciar-se sobre a citação latina e abandonar o assunto Saint-Loup em que seu marido parecia achar que ela carecia de tato, a Sra. de Cambremer tocou no caso da Patroa, cujo estremecimento com eles ainda era necessário explicar.

            - Alugamos La Raspeliere à Sra. Verdurin com toda a boa vontade - disse a marquesa. Apenas, ela parece ter acreditado que, com a casa e tudo o que achou meios de se atribuir, a utilização do prado, as velhas tapeçarias, todas as coisas que absolutamente não estavam no contrato, teria ainda mais direito a ligar-se a nós. São coisas inteiramente distintas. Nosso erro foi o de não ter mandado fazer as coisas por um procurador ou uma agência. Em Féterne isso não tem importância, mas creio que daqui estou vendo a cara que faria a tia de Ch'nouville se visse aparecer, no meu dia de recepção, a velha Verdurin toda descabelada. Quanto ao Sr. de Charlus, naturalmente ele conhece pessoas muito distintas, mas também gente de muito má posição. -

            Perguntei quem. Pressionada, a Sra. de Cambremer acabou por dizer:

            - Afirma-se que é ele quem sustenta um senhor Moreau, Morille, Morue, já nem sei mais. Nenhuma relação, é claro, com Morel, o violinista - acrescentou enrubescendo. - Quando senti que a Sra. Verdurin imaginava que, por ser nossa locatária na Mancha, teria o direito de me fazer visitas em Paris, compreendi ser necessário cortar as amarras.

            Apesar dessa desavença com a Patroa, os Cambremer não estavam de mal com os fiéis, subindo de bom grado ao nosso vagão quando se achavam na linha. Quando estávamos prestes a chegar a Douville, Albertine, pegando uma última vez o seu espelho, julgava conveniente às vezes mudar as luvas ou tirar por um momento o chapéu e, com o pente de tartaruga que eu lhe dera e que ela trazia nos cabelos, alisava os coques, ajeitava os fofos e, caso necessário, erguia o rolo de cabelos acima das ondulações que caíam em vales regulares até a nuca. Uma vez dentro dos carros que nos esperavam, a gente absolutamente não sabia mais onde estava; as estradas não tinham iluminação; pelo ruído mais forte das rodas, reconhecíamos estar atravessando uma aldeia, julgávamos ter chegado, e nos achávamos em pleno campo, ouvíamos sinos ao longe, esquecíamos estar de smoking, e tínhamos quase adormecido quando, no fim dessa longa margem de escuridão que, devido à distância percorrida e aos incidentes característicos de todo trajeto em estrada de ferro, parecia ter nos levado até uma hora avançada da noite e quase à metade do caminho de volta a Paris de repente, depois que o rodar do carro sobre uma areia mais fina revelara que acabávamos de entrar no parque, explodiam, reintegrando-nos na vida mundana, as ofuscantes luzes do salão e, depois, da sala de jantar, onde sentíamos um vivo movimento de recuo ao ouvir soar aquelas oito horas que acreditávamos passadas há muito, enquanto que os numerosos serviços e os vinhos finos iam suceder-se ao redor dos homens de fraque e das mulheres meio decotadas, num jantar de claridade rutilante como um verdadeiro jantar na cidade e a que apenas cercava, desse modo mudando o seu caráter, a dupla écharpe sombria e singular que haviam tecido, desviadas por essa utilização mundana de sua primitiva solenidade, as horas noturnas, campestres e marinhas da ida e da volta. Esta, com efeito, nos forçava a deixar o esplendor radiante e logo esquecido do salão luminoso, pelos carros onde eu me acomodava com Albertine para que minha amiga não pudesse estar com os outros sem mim, e muitas vezes por uma outra causa ainda, que era nós dois podermos fazer muita coisa num carro escuro, onde, no caso de se filtrar um súbito raio de luz, os solavancos da descida aliás nos desculpariam de estarmos agarrados um ao outro. Quando o Sr. de Cambremer ainda não havia brigado com os Verdurin, ele me perguntava:

            - Não acha que vai ter sufocações, com esse nevoeiro? Minha irmã teve sufocações terríveis esta manhã. Ah, o senhor também teve - dizia com satisfação. - Vou contar a ela esta noite. Sei que, logo que eu chegar, ela imediatamente vai se informar se o senhor não as tem há muito tempo. -

            Aliás, ele só me falava das minhas sufocações para chegar às da irmã, e me fazia descrever as particularidades das primeiras apenas para assinalar melhor as diferenças existentes entre as duas. Mas apesar destas, como as sufocações da irmã lhe parecessem dever constituir autoridade, não podia crer que o que "aprovava" nas suas não fosse indicado para as minhas, e irritava-se por ver que eu não o experimentava, pois há uma coisa ainda mais difícil do que seguir um regime: é não impô-lo aos outros.

            - Aliás, que digo eu, um profano, quando o senhor está aqui diante do areópago, na fonte. Que pensa disso o professor Cottard? Além disso, voltei a ver sua mulher uma outra vez porque ela dissera que rainha "prima" era um tipo esquisito e eu quis saber o que ela entendia por isso. Ela negou que o havia dito, mas terminou por confessar que falara de uma pessoa que julgara encontrar com minha prima. Não lhe sabia o nome e disse afinal que, se não se enganava, era a mulher de um banqueiro, a qual se chamava Lina, Linétte, Lisette, Lia, enfim, alguma coisa desse gênero.

            Eu pensava que "mulher de um banqueiro" fora posto ali apenas para maior delimitação. Quis indagar a Albertine se aquilo era verdade. Mas preferia aparentar ser aquele que sabe a ser o que faz perguntas. Além disso, Albertine não teria respondido nada, ou um "não", cujo "n" seria hesitante demais e o "ão" acentuado em excesso. Albertine jamais contava fatos que pudessem prejudicá-la, e sim outros que só podiam explicar-se pelos primeiros, pois a verdade é antes uma corrente que parte do que nos dizem, e que captamos, por invisível que seja, do que a própria coisa que nos disseram. Assim, quando lhe afirmei que uma mulher que ela havia conhecido em Vichy era de mau gênero, jurou-me que essa mulher não era de modo algum aquilo que eu imaginava e jamais tentara induzi-la a nada. Mas, noutro dia, como lhe falasse de minha curiosidade por esse tipo de gente, acrescentou que a dama de Vichy também tinha uma amiga que ela, Albertine, não conhecia, mas que a dama lhe havia "prometido apresentar". Para que o tivesse prometido, era portanto necessário que Albertine o desejasse, ou que a dama soubesse, ao oferecê-lo, que lhe causava prazer. Mas, se eu o objetasse a Albertine, daria a impressão de que só dispunha de revelações por meio dela, e logo as teria interrompido. Não saberia de mais nada e teria deixado de me fazer temido. Aliás, estávamos em Balbec, a dama de Vichy e sua amiga moravam em Menton; o afastamento e a impossibilidade do perigo destruiriam logo as minhas suspeitas. Muitas vezes, quando o Sr. de Cambremer me interpelava da plataforma da estação, eu acabava de aproveitar-me das trevas com Albertine, e com tanto mais dificuldade porque ela se debatera um pouco, receando que as trevas não fossem bem completas.

            - Sabe que tenho certeza de que Cottard nos viu; de resto, mesmo sem ver, ele bem que ouviu a sua voz sufocada, justo no momento em que se falava das suas sufocações de outro gênero - dizia-me Albertine ao chegar à gare de Douville, onde retomávamos o trenzinho para o regresso. Mas esse regresso, bem como a ida, ao dar-se certa impressão de poesia, revelava em mim o desejo de fazer viagens, de levar uma vida nova, e, desse modo, fazia-me desejar abandonar qualquer projeto de casamento com Albertine, e até acabar definitivamente com as nossas relações, e assim me tornava, devido mesmo à sua natureza contraditória, mais fácil esse rompimento. Pois na volta, como na ida, em cada estação havia conhecidos que embarcavam conosco ou nos cumprimentavam da plataforma; acima dos prazeres furtivos da imaginação, dominavam estes, contínuos, da sociabilidade, que são tão apaziguadores, tão calmantes. Antes das próprias estações, já seus nomes (que tanto me haviam feito sonhar, desde o dia em que os ouvira, na primeira tarde em que viajara com minha avó) tinham se humanizado, tinham perdido sua singularidade desde a noite em que Brichot, a pedido de Albertine, nos explicara mais completamente suas etimologias. Eu achara um encanto essa "flor" (fleur) com que terminavam certos nomes, como Figuefleur, Honfleur, Flers, Barfleur, Harfleur, etc., e divertido o "boi" (boeut) que existe no fim de Bricqueboeuf. Mas a flor e o boi desapareceram quando Brichot (e isto ele me dissera no primeiro dia no trem) nos informara que fleur quer dizer "porto" (como fiord) e que boeuf, em normando budh, quer dizer cabana. Como citava diversos exemplos, o que me parecera particular se generalizava: Bricqueboeuf juntava-se a Elbeuf, e, mesmo num nome à primeira vista tão individual como o local, feito o nome de Pennedepie, onde as estranhezas mais impossíveis de elucidar pela razão me pareciam amalgamadas desde um tempo imemorial em um vocábulo vilão, saboroso e endurecido como determinado queijo normando, fiquei desolado ao encontrar o pen gaulês que significa "montanha" e se encontra tanto em Penmarch como nos Apeninos. Como a cada parada do trem eu sentisse que teríamos mãos amigas para apertar, dizia à Albertine:

            - Trate logo de perguntar a Brichot os nomes que quer saber. Você me falou de Marcouville-l'Orgueilleuse.

            - Sim, gosto muito desse orgulho, é uma aldeia altiva - disse Albertine.

            - Achá-la-ia mais altiva ainda - respondeu Brichot - se em vez de sua forma francesa, ou até de baixa latinidade, tal como a encontramos no cartulário do bispo de Bayeux, Marcovilla superba, tomasse a forma mais antiga, mais vizinha do normando, Marculphivífia superba, a aldeia, o domínio de Marculph. Em quase todos estes nomes que terminam em ville, vocês ainda poderiam ver, erguido sobre esta costa, o fantasma dos rudes invasores normandos. Em Hermonville, você não teve, de pé à pontinhola do vagão, mais que o nosso excelente doutor que, evidentemente, não tem nada de chefe normando. Porém, fechando os olhos, poderia ver o ilustre Herimund (Herimundivifa). Conquanto eu não saiba por que se vai por estas estradas, compreendidas entre Loigny e Balbec-Plage, em vez das outras, bem mais pitorescas, que levam de Loigny ao velho Balbec, a Sra. Verdurin talvez já o tenha levado de carro para aquelas bandas. Então deve ter visto Incarvillle, ou aldeia de Wiscar, e Tourville, antes de chegar à casa da Sra. Verdurin, é a aldeia de Turold. Além disso, não houve só normandos. Parece que os alemães chegaram até aqui (Aumenancourt, Alemanicurtis); não o digamos àquele jovem oficial que vejo daqui; seria capaz de não mais querer ir visitar seus primos. Houve também saxões, como o testemunha a fonte de Sissone (um dos passeios prediletos da Sra. Verdurin, e com toda a razão), tanto como na Inglaterra o Middlesex, o Wessex. Coisa inexplicável, parece que os godos, gueux como diziam, vieram até cá, e mesmo os mouros, pois Mortagne provém de Mauretania. Ficou o vestígio deles em Gourville (Gothorumvifia). Aliás, também subiste algum vestígio dos latinos: Lagny (Latiniacum).

            - Quanto a mim, peço a explicação de Thorpehomme - disse o Sr. de Charlus. - Compreendo "homme" - acrescentou, enquanto Cottard e o escultor trocavam um olhar de inteligência. - Mas Thorp?

            - "Homme" não significa de modo algum aquilo que o senhor é naturalmente levado a crer, barão - respondeu Brichot, olhando maliciosamente para o escultor e Cottard. - "Homme" nada tem a ver aqui com o sexo a que não devo minha mãe. "Homme" é Holm, que significa "ilhota", etc. Quanto a Thorp, ou "aldeia", encontramo-lo em cem palavras com que já aborreci o nosso jovem amigo. Assim, em Thorpehomme não existe nome de chefe normando, mas palavras do idioma normando. Veja como toda esta região foi germanizada.

            - Creio que ele exagera - disse o Sr. de Charlus.

            - Estive ontem em Orgeville... - Desta vez devolvo-lhe o homem que havia tirado em Thorpehomme, barão. Seja dito sem pedantismo; uma carta de Roberto I nos dá para Orgeville, Otgerivifia, o domínio de Otger. Todos estes nomes são os de antigos senhores. Orgeville-la-Venelle corresponde a I'Avenel. Os Avenel eram uma família conhecida na Idade Média. Bourguenolles, aonde a Sra. Verdurin nos levou outro dia, escrevia-se "Bourg de Môles", pois essa aldeia pertenceu no século XI a Baudouin de Môles, bem como La Chaise-Baudouin; mas eis-nos em Doncieres.

            - Meu Deus, quantos tenentes vão tentar embarcar! - disse o Sr. de Charlus com simulado pavor. - Digo-o pelos senhores; quanto a mim, não me incomoda, pois vou descer aqui.

            - Está ouvindo, doutor? - disse Brichot. - O barão tem medo de que os oficiais lhe passem por cima do corpo. E contudo estão no seu papel, encontrando-se agrupados aqui, pois Doncieres é exatamente Saint-Cyr, dominus Cyriacus. Há muitos nomes de cidades onde sanctus e sancta são substituídos por dominus e domina. Ademais, esta cidade tranqüila e militar apresenta às vezes falsos ares de Saint-Cyr, de Versalhes e até de Fontainebleau.

            Durante esses regressos (como nas idas), eu dizia a Albertine que se arrumasse, pois sabia muito bem que em Amancourt, em Doncieres, em Épreville e em Saint-Vast, nós teríamos de receber visitas breves. Aliás, tais visitas não eram desagradáveis, fosse, em Hermonville (o domínio de Herimund), a do Sr. de Chevregny, aproveitando a oportunidade de que tinha vindo receber convidados para me convidar a ir almoçar no dia seguinte em Montsurvent, ou, em Doncieres, a brusca invasão de um dos encantadores amigos de Saint-Loup, enviado por este (se não estivesse livre) para me transmitir um convite do capitão de Borodino, do grupo de oficiais no Coq Hardi, ou dos suboficiais no Faisan Doré. Saint-Loup vinha muitas vezes pessoalmente, e, durante todo o tempo em que ele ali se encontrava, eu, sem que ninguém percebesse, mantinha Albertine prisioneira sob meu olhar, aliás inutilmente vigilante. Entretanto, por uma vez interrompi a guarda. Como houvesse uma longa parada, Bloch, tendo-nos cumprimentado, retirou-se quase imediatamente para se juntar ao pai, o qual acabava de herdar do tio, e, tendo alugado um castelo que se chamava La Commanderie, achava bem próprio de um grão-senhor só circular em sege de posta, com postilhões de libré. Bloch pediu-me que o acompanhasse até a carruagem.

            - Mas apressa-te, pois esses quadrúpedes são impacientes; vêm, homem caro aos deuses, que darás alegria a meu pai. -

            Mas eu sofria muito em deixar Albertine no trem com Saint-Loup; eles poderiam falar-se enquanto eu estivesse de costas, ir para outro vagão, sorrir-se, tocar-se; meu olhar aderente a Albertine não podia destacar-se dela enquanto Saint-Loup ali estivesse. Ora, vi muito bem que Bloch, que me havia pedido como um serviço que fosse cumprimentar seu pai, primeiro achou pouco gentil que eu recusasse, visto que nada me impedia, já que os empregados tinham avisado que o trem ainda ficaria pelo menos um quarto de hora na estação, e que quase todos os passageiros, sem os quais o trem não partiria, haviam descido; e a seguir não duvidou de que fosse porque, decididamente minha conduta nessa ocasião lhe servia de prova decisiva -, eu era um esnobe. Pois não ignorava o nome das pessoas com quem eu me achava. De fato, o Sr. de Charlus me dissera, algum tempo antes e sem se lembrar ou importar-se que isso já fora feito outrora para se aproximar dele:

            - Mas apresente-me o seu companheiro. O que você faz é uma falta de respeito para comigo - e havia conversado com Bloch, que parecera agradar-lhe imensamente, tanto que o havia gratificado com um "espero tornar a vê-lo".

            - Então é irrevogável, não queres andar estes cem metros para cumprimentar meu pai, a quem isso daria tanta satisfação? - indagou Bloch.

            Sentia-me desgraçado por dar a impressão de que faltava com a boa camaradagem, ainda mais pelo motivo suposto por Bloch, e por ver que ele imaginava que eu já não era o mesmo para com meus amigos burgueses na presença de pessoas "bem-nascidas". Desde esse dia, deixou de me testemunhar a mesma amizade e, o que me era mais penoso, não teve mais a mesma estima pelo meu caráter. Mas, para desenganá-lo quanto ao motivo que me fizera permanecer no vagão, teria de lhe dizer alguma coisa a saber, que eu tinha ciúmes de Albertine -, o que me seria ainda mais doloroso do que deixá-lo crer que eu era estupidamente mundano. É assim que, teoricamente, achamos que deveríamos sempre nos explicar com toda a franqueza, evitar mal-entendidos. Mas com muita freqüência a vida os combina de tal maneira que, para dissipá-los, nas raras circunstâncias em que isso seria possível, teríamos de revelar o que não é o caso presente - algo que deixaria o nosso amigo ainda mais ofendido do que a culpa imaginária de que nos acusa, ou um segredo cuja divulgação e era o que me acabava de ocorrer nos parece ainda pior que o mal-entendido. E além disso, mesmo sem explicar a Bloch, visto que não podia fazê-lo, a razão pela qual eu não o acompanhara, se eu lhe tivesse pedido que não ficasse magoado, não teria feito mais que aumentar essa mágoa, mostrando que dela me apercebera. Não havia o que fazer senão inclinar-se diante desse fato que havia desejado que a presença de Albertine me impedisse de acompanhá-lo e que acreditasse pelo contrário que era dessa gente brilhante a que, embora o tivesse sido cem vezes mais, só teria por efeito que me ocuparia então exclusivamente de Bloch e o reservasse  toda  minha  cortesia.  Bastou  assim  acidentalmente, absurdamente um incidente (neste caso a presença de Albertina e de Saint-Loup)  interpor-se  entre  dois  destinos  cujas  linhas convergiam uma para outra, para que se desviassem, apartassem-se mais e mais e já não pudessem aproximar-se. E há amizades mais formosas que as de Bloch e a minha, que se viram destruídas sem que o involuntário autor do desgosto tenha podido lhe explicar nunca ao aborrecido o que sem dúvida curasse seu amor próprio e devolvesse sua simpatia decrescente. Amizades mais formosas que a de Bloch não seria por outra parte dizer muito. Tinha todos os defeitos que mais me desgostavam. Minha ternura pela Albertina era acidentalmente o que me permitia suportá-los. Assim nesse singelo momento em que eu conversei com ele enquanto vigiada com um olho ao Roberto, Bloch me disse que havia almoçado em casa da senhora de Bontemps e que todos haviam falado com os maiores elogios de mim até o declinar de Hélios. Bom, pensei, como a senhora de Bontemps acredita que Bloch é um gênio, o sufrágio entusiasta que me terá concedido produzirá mais pelo que todos outros pudessem haver dito, e isso chegará de volta até Albertina. De um dia ao outro, não pode deixar de inteirar-se, e me assombra que sua tia não lhe haja dito ainda que sou um homem superior.

            - Sim, - adicionou Bloch, - todos fizeram seu elogio. Eu só guardei um silêncio tão profundo como se em lugar do almoço, por outra parte medíocre que nos serviam, tivesse absorvido papoula, de cara ao bem-aventurado irmão de Tanathos e da Letea, o divino Hypnos que envolve com doces ligaduras o corpo e a língua; e não é que o admire menos que essa banda de cães ávidos com os quais haviam-me convidado. Mas eu o admiro porque o compreendo e eles admiram-lhe sem o compreender. Para dizê-lo melhor, admiro-o muito para falar assim de você, em público; tivesse-me parecido uma profanação elogiar em voz alta o que levo no mais fundo de meu coração. Por mais que perguntassem a seu respeito, um pudor sagrado, filho de Kronion,  fez-me  emudecer. 

            Não  tive  o  mau  gosto  de  parecer descontente, mas esse pudor me pareceu parente muito mais que de Kronion; desse pudor que impede a um crítico que nos admira, falar de nós para que o templo secreto no qual reinamos não seja invadido pela turfa dos leitores ignorantes e os jornalistas; com o pudor do homem de estado que não nos condecora para que não confundam-nos em meio da gente que não vale o mesmo que nós; com o pudor do acadêmico que não vota por nós para nos economizar a vergonha de ser colega de X ..., que não tem talento; com o pudor enfim mais respeitável e mais criminoso; entretanto dos filhos que rogam-nos não escrevamos de seus pais defuntos, que teve muitos méritos  para  lhes assegurar  o  silêncio  e  o descanso, impedir que se mantenha a vida e se crie glória ao redor do pobre morto, que preferiria seu nome pronunciado pelas bocas dos homens às coroas  conduzidas, muito piedosamente por outra parte, até sua tumba. Se enquanto Bloch me desesperava por não compreender os motivos que me impediam de saudar seu pai, fala-me irritado ao me confessar que me descuidasse em casa da senhora de Bontemps (agora compreendia por que Albertina não tinha aludido nunca a esse almoço e ficava em silêncio quando lhe falava do afeto de Bloch por mim) o jovem israelita produziu no senhor de Charlus uma impressão muito distinta a chateação. Na verdade Bloch acreditava agora que não só não podia eu estar nem um segundo longe da gente elegante, mas sim ciumento das iniciativas que puderam ter com ele (como o senhor de Charlus) tratava de lhe pôr travas e lhe impedia de vincular-se, com eles; mas por sua parte o barão lamentava não ter  visto mais a meu companheiro. Segundo seu costume, cuidou-se de demonstrá-lo. Começou por  me fazer, sem aparentá-lo, algumas pergunta a respeito de Bloch, mas com um tom tão negligente, com um interesse que parecia de tal modo simulado que ninguém podia acreditar que ouvisse as respostas. Com um ar desprendido, com uma melancolia que mais que indiferença indicava distração e como uma simples cortesia por mim.

            - Parece inteligente, disse que escrevia tem talento?

            Disse-lhe ao senhor de Charlus que tinha sido muito  amável  ao  lhe dizer  que  esperava  voltar  a  vê-lo.  Nem  por  um momento revelou o barão que tinha ouvido minha frase e como a repeti quatro vezes sem ter resposta, acabei por duvidar se não teria sido vítima de uma miragem acústica quando acreditei ouvir o que havia dito o senhor de Charlus.

            - Vive em Balbec? - cantarolou o barão, com um aspecto tão pouco inquisitivo que é irritante que o idioma francês não possua outro sinal além disso do de interrogação para terminar essas frases aparentemente tão pouco interrogativas. É verdade que esse sinal não serviria ao senhor de Charlus. Não, alugara perto daqui, a Encomenda.

            Uma vez que soube o que desejava o senhor de Charlus fingiu desprezar Bloch.

            - Que horror!, - exclamou devolvendo à voz  todo  seu  vigor  de  clarim.  Todas  as  localidades  ou  propriedades chamadas A Encomenda. foram construídas ou possuídas pelos Cavaleiros da Ordem de Malta (a qual pertenço) como os lugares chamados o Templo ou a Cavalaria dos Templários. Se eu habitasse a Encomenda seria muito natural. Mas um judeu...

            Por outra parte não me assombra; isso depende de um curioso afã pelo sacrilégio próprio dessa raça. Assim que um judeu tem bastante dinheiro para comprar um castelo, escolhe sempre um que se chama o Priorado, a Abadia, o Monastério, a Casa de Deus. Tive que ver isso com um funcionário judeu, adivinhem onde vivia? Em Pont-l.Evêque. Cansado da desgraça  deu um jeito de o mandarem à Bretanha, no Pont-l.Abbè.Quando na Semana Santa dão esses espetáculos indecentes que se chamam A Paixão, a metade da sala está cheia de judeus, encantados de pensar que vão crucificar pela segunda vez à Jesus, pelo menos em efígie. No concerto do Lamoureux, tinha uma vez por vizinho um rico banqueiro judeu. Tocaram  a  Infância  do  Cristo,de Berlioz, e causava pena. Mas logo recuperou a beatitude que lhe é habitual para ouvir o encantamento da Sexta-Feira Santa.

            - Seu amigo vive na Encomenda, desgraçado! que sadismo! Você  me  indicará  o caminho -adicionou voltando para seu ar indiferente; para que um dia possa ir ver como suportam nossos antigos domínios semelhante profanação. É uma desgraça, porque é educado e parece fino. Só faltaria viver na rua do Templo, em Paris.

            O senhor de Charlus parecia  com  essas  palavras  querer  encontrar  unicamente  um  novo exemplo de sua teoria; mas em realidade me expor uma pergunta com dois objetos cujo principal era saber a direção de Bloch. Com efeito, fez notar Brichot, a rua do Templo se chamava rua da Cavalaria  do  Templo.

            - E  a  esse  respeito  permite  uma observação, barão? - disse o universitário.

            - O que? O que é? - disse secamente  o  senhor  de Charlus,  ao  que  essa  observação  impedia conseguir seu relatório.

            - Não, nada, - respondeu Brichot, embaralhado. - Era a propósito da etimologia de Balbec que me pediram. A rua do Templo se chamava antes Varre du Bac, porque a Abadia do Bac, na Normandia,  tinha  aí,  em  Paris,  sua  vara  da  justiça. 

            O senhor de Charlus nada respondeu e aparentou não ter ouvido, o que nele constituía uma das formas de insolência.

            - Onde vive seu amigo em Paris? Como as três quartas partes das ruas tiram seu nome de uma igreja ou uma abadia, há probabilidade de que continue o sacrilégio. Não  se  pode  impedir  que  os  judeus  vivam  no  bulevar  de Madalena, no bairro de São Honorato ou na praça de São Agustin. Enquanto não chegam ao pérfido refinamento de escolher domicílio na praça do átrio de Nossa Senhora, na rua do Arcebispado, na rua Canonesa ou na de Ave-Maria, terá que lhes ter em conta as dificuldades.

            Não pudemos informar ao senhor de Charlus qual era a atual direção de Bloch, nos era desconhecida. Mas eu sabia que os escritórios do pai estavam na rua dos Mantos Brancos.

            - Oh! é o cúmulo da perversidade! - exclamou o senhor de Charlus, que pareceu achar uma profunda satisfação em seu próprio grito de irônica  indignação. Rua dos Mantos Brancos!  -repetiu, espremendo cada sílaba com uma risada. -Que sacrilégio! Pensem que esses Mantos Brancos profanados pelo senhor Bloch eram os dos frades mendicantes, ditos servos da Santa Virgem, que São Luís assentou ali. E a rua sempre pertenceu à ordens religiosas. A profanação é tanto mais diabólica porque, a dois passos da rua dos Blancs-Manteaux, existe uma rua cujo nome não me lembro e que é inteira concedida aos judeus; há caracteres hebraicos nas lojas, fábricas de pães ázimos, açougues judeus, é a perfeita Judengasse de Paris. O Sr. de Rochegude a denomina gueto parisiense. Era aí que o Sr. Bloch deveria morar. Naturalmente - prosseguiu num tom bastante enfático e altaneiro, e dando, para sustentar conceitos estéticos com uma resposta que lhe dirigia,- malgrado seu, a sua hereditariedade, um ar de velho mosqueteiro de Luís XIII à sua cabeça atirada para trás só me ocupo de tudo isso do ponto de vista da arte. A política não é da minha competência, e eu não posso condenar em bloco, visto tratar-se de Bloch, uma nação que conta Spinoza entre seus membros ilustres. E admiro bastante Rembrandt para não reconhecer a beleza que se pode extrair da freqüência à sinagoga. Mas enfim, um gueto é tanto mais belo quanto mais homogêneo e mais completo. Aliás, fique certo, de tal modo o instinto prático e a cupidez se misturam nesse povo ao sadismo, que a proximidade da rua hebraica de que lhe falo, a comodidade de ter à mão os açougues de Israel, fez com que o seu amigo escolhesse a rua dos Blancs-Manteaux. Como é curioso! Aliás, é por ali que residia um estranho judeu que mandara ferver hóstias, após o que imagino que o fizeram ferver a ele próprio, o que é mais estranho ainda, já que isso parece significar que o corpo de um judeu pode valer tanto quanto o corpo do bom Deus. Talvez fosse possível combinar com seu amigo para que ele nos leve a visitar a igreja dos Blancs-Manteaux. Considere que foi lá que deixaram exposto o corpo de Luís de Orléans depois de seu assassinato por João sem Medo, o qual, infelizmente, não nos livrou dos Orléans. De resto, dou-me pessoalmente muito bem com meu primo, o duque de Chartres, mas, enfim, trata-se de uma raça de usurpadores, que mandaram assassinar Luís XVI e despojar Carlos X e Henrique V. Além disso, têm a quem sair, pois contam entre seus antepassados a Monsenhor, a quem assim chamavam sem dúvida por ser a mais espantosa das velhas damas, o Regente e o resto. Que família! -

            Esse discurso anti-semita ou pró-semita conforme se leve em conta o exterior das frases ou as intenções que elas revelam me fora comicamente interrompido por uma frase que Morel me sussurrou e que teria desesperado o Sr. de Charlus. Morel, que havia reparado na impressão que Bloch produzira, agradecia-me ao ouvido o tê-lo "despachado", acrescentando cinicamente:

            - Ele bem que desejaria ficar, isso tudo é ciúmes; gostaria de tomar o meu posto. É bem típico de um judeu!

            - Poderíamos aproveitar essa parada que se prolonga para pedir algumas explicações rituais ao seu amigo. Será que não podia trazê-lo de volta? - perguntou-me o Sr. de Charlus com a ansiedade da dúvida.

            - Não, é impossível; ele já se foi de carro e, além disso, aborrecido comigo.

            - Obrigado, obrigado - me sussurrou Morel.

            - A desculpa é absurda, sempre se pode alcançar um carro, nada o impediria de tomar um auto - respondeu o Sr. de Charlus, como homem acostumado a que todos se inclinassem diante dele. Mas, reparando no meu silêncio: - Qual é esse carro mais ou menos imaginário? perguntou-me com insolência e numa última esperança. - É uma sege de porta aberta e que já deve ter chegado à Commanderie. - Diante do impossível, o Sr. de Charlus se resignou e pareceu gracejar. - Compreendo que tenham recuado diante do cupê redundante. Pois, seria um recupê -

[Trocadilho intraduzível, em português, pois faz alusão à circuncisão dos judeus. (em francês coupé, ou sela, "cortado"), (N. do T)]

            Finalmente fomos avisados de que o trem ia partir, e Saint-Loup nos deixou. Mas esse dia foi o único em que ele, subindo para o nosso vagão, me fez involuntariamente sofrer com a idéia de ter de deixá-lo por um instante com Albertine para acompanhar Bloch. Das outras vezes a sua presença não me torturou. Pois, por si mesma, Albertine, para me evitar qualquer inquietação, colocava-se, sob um pretexto qualquer, de tal forma que nem mesmo sem querer poderia roçar em Robert, que ficava quase longe demais até para lhe estender a mão; desviando dele os olhos, logo que ele se achava presente, ela punha-se a conversar ostensivamente, e quase com afetação, com qualquer outro dos passageiros, continuando nesse jogo até que Saint-Loup descesse. De modo que, assim, as visitas que ele nos fazia em Doncieres não me causavam nenhum sofrimento, nem sequer nenhum incômodo, não constituíam qualquer exceção entre as outras, pois todas eram agradáveis, trazendo-me de certa maneira a homenagem e o convite daquela terra. Já desde o fim do verão, no nosso trajeto de Balbec a Douville, quando eu avistava de longe aquela estação de Saint-Pierre-des-lfs, onde à tardinha cintilava por um instante a crista das falésias, toda rosada como ao sol poente a neve de uma montanha, ela já não me fazia pensar (não falo nem mesmo na tristeza que a vista de seu estranho relevo subitamente me causara na primeira noite, ao me dar tão grande vontade de tomar o trem de volta para Paris em vez de continuar até Balbec) no espetáculo que de manhã se podia ter dali, segundo me dissera Elstir, na hora que precede o nascer do sol em que todas as cores do arco-íris se refratam sobre os rochedos, e onde tantas vezes ele havia despertado o menino que, durante um ano, lhe servira de modelo, a fim de pintá-lo inteiramente nu na areia da praia. O nome de Saint-Pierre-des-lfs anunciava-me apenas que ia aparecer um qüinquagenário estranho, espirituoso e maquilado, com quem eu poderia falar sobre Chateaubriand e Balzac. E agora, nas névoas da tarde, detrás daquela falésia de Incarville que tanto me fizera sonhar outrora, o que eu via, como se a sua greda antiga se tornasse transparente, era a bela casa de um tio do Sr. de Cambremer e na qual eu sabia que ficariam sempre contentes em me acolher caso não quisesse jantar na Raspeliere ou voltar a Balbec. Assim, não eram somente os nomes de lugares dessa região que haviam perdido o seu mistério inicial, mas os próprios lugares. Os nomes, já meio vazios de um mistério que a etimologia substituíra pelo raciocínio, tinham baixado ainda mais um grau. Em nossos regressos a Hermonville, a Saint-Vast, a Arembouville, no momento em que o trem parava, avistávamos sombras que a princípio não reconhecíamos e que Brichot, que não via coisa alguma, poderia talvez ter tomado, de noite, por fantasmas de Herimund, de Wíscar e de Herimbald. Era simplesmente o Sr. de Cambremer, completamente rompido com os Verdurin, que reconduzia convidados e que, da parte de sua mãe e da esposa, vinha me perguntar se eu não queria que ele me "raptasse" para hospedar-se alguns dias em Féterne, onde iam apresentar-se uma excelente musicista que me cantaria todo o Glück e um renomado jogador de xadrez com quem eu disputaria excelentes partidas que não prejudicariam a pesca e o iatismo na baía, nem mesmo os jantares dos Verdurin, para os quais o marquês se comprometia, sob palavra de honra, a "emprestar-me", mandando que me levassem e trouxessem para maior facilidade, e também para maior segurança.

            - Mas não posso crer que seja bom para o senhor ir até tão alto. Sei que minha irmã não o poderia suportar. Voltaria num tal estado! Aliás, no momento ela não anda muito bem... Na verdade, o senhor teve uma crise tão forte! Amanhã não poderá ficar de pé! - E se torcia de riso, não por maldade, mas pelo mesmo motivo por que não podia, sem rir, ver um coxo estatelar-se na rua ou conversar com um surdo. - E então? O quê, o senhor não tem um acesso há quinze dias? Pois saiba que isso é ótimo! Verdadeiramente, deveria vir instalar-se em Féterne, conversaria com minha irmã sobre suas sufocações. -

            Em Incarville, era o marquês de Montpeyroux que, não tendo podido ir a Féterne, pois ausentara-se para caçar, tinha vindo "ao trem" de botas e com o chapéu ornado com uma pluma de faisão, a fim de apertar a mão de parentes e anunciar-me, na mesma ocasião, para o dia que eu quisesse, a visita de seu filho, que ele me agradecia que eu recebesse e gostaria muito que o fizesse ler um pouco; ou então o Sr. de Crécy, que vinha fazer a sua digestão, dizia ele, fumando seu cachimbo, aceitando um ou até vários charutos, e que me dizia:

            - Pois bem, o senhor não marca um dia para a nossa próxima reunião à Lúculo? Não temos nada a nos dizer? Permita-me que lhe lembre que deixamos em aberto no trem a questão das duas famílias Montgommery. É preciso que encerremos o assunto. Conto com o senhor. -       Outros vinham apenas comprar jornais. E também muitos conversavam conosco, tanto que eu sempre desconfiei acharem-se ali na plataforma, na estação mais próxima de seu pequeno castelo, somente por não terem o que fazer senão encontrar num momento pessoas conhecidas. Em suma, um quadro da vida mundana como qualquer outro, eram essas paradas do trenzinho. Este parecia ter consciência do papel que lhe cabia, adquirira uma certa amabilidade humana: paciente, de temperamento dócil, esperava pelos retardatários o tempo que eles quisessem, e até mesmo, depois de ter partido, parava para recolher os que lhe faziam sinal; estes então corriam atrás dele, resfolegando, no que se pareciam a ele, mas com a diferença de que o alcançavam a toda velocidade, ao passo que ele só se utilizava de uma sábia lentidão. Assim Hermonville, Arembouville, Incarville já nem sequer me evocavam as rudes grandezas da conquista normanda, não satisfeitas de se haverem totalmente despojado da inexplicável tristeza em que as banhara outrora na umidade da noite. Doncieres! Para mim, mesmo depois de a ter conhecido e de haver despertado do meu sonho, o quanto não restava nesse nome, por muito tempo, das ruas agradavelmente gélidas, das vitrinas iluminadas, das aves suculentas! Doncieres! Agora, nada mais era que a estação onde embarcava Morel; Égleville (Aquilaevilla), aquela em que geralmente nos esperava a princesa Sherbatoff; Maineville, a estação em que descia Albertine nas noites de bom tempo, quando, não estando muito cansada, tinha vontade de se demorar ainda um momento comigo, visto que, por um atalho, não precisava caminhar muito mais do que se tivesse descido em Parville (Paterni villa). Não só eu já não sentia o temor ansioso do isolamento que me oprimira na primeira noite, como também não mais tinha que recear a sua renovação, nem de sentir-me desenraizado ou de me achar sozinho nessa terra que produzia não apenas castanheiros e tamargueiras, mas também amizades que, ao longo do percurso, formavam uma longa cadeia, interrompida como a das colinas azuladas, por vezes ocultas na anfratuosidade do rochedo ou por detrás das tílias da avenida, mas delegando a cada estação um amável gentil-homem que vinha, com um cordial aperto de mão, interromper o meu caminho, impedir-me de sentir sua extensão e, se preciso, oferecer-se para continuá-la comigo. Um outro estaria na estação seguinte, de forma que o apito do trenzinho não nos fazia deixar um amigo senão para permitir que encontrássemos outros. Entre os castelos mais afastados e o trem de ferro que os costeava quase ao passo de uma pessoa que caminha depressa, tão curta era a distância que no momento em que, na plataforma, diante da sala de espera, os seus proprietários nos interpelavam, quase poderíamos acreditar que o faziam da soleira de sua porta, da janela do seu quarto, como se a pequena via férrea departamental não passasse de uma rua de província e o solar isolado de um hotel citadino; e até nas raras estações em que eu não ouvia o "boanoite" de ninguém, o silêncio possuía uma plenitude nutritiva e calmante, pois eu o sabia formado pelo sono de amigos que se deitavam cedo na mansão próxima, onde a minha vinda seria saudada com alegria se eu precisasse despertá-los para lhes pedir um serviço de hospitalidade. Além do que, o hábito preenche de tal modo o nosso tempo que, no fim de alguns meses, não nos resta um só instante livre numa cidade em que, ao chegarmos, o dia nos dava a disponibilidade de suas doze horas; se por acaso uma hora ficasse vaga, não mais teria a idéia de empregá-la em visitar uma igreja pela qual outrora eu tinha vindo a Balbec, nem mesmo confrontar um local pintado por Elstir com o esboço que eu vira em casa dele, mas ir jogar mais uma partida de xadrez em casa do Sr. Féré. Com efeito, era a influência degradante, como também o encanto, que tivera essa região de Balbec de se converter para mim numa verdadeira terra de conhecidos; se sua repartição territorial, sua semeadura extensiva ao longo do litoral em culturas diversas conferiam obrigatoriamente às visitas que eu fazia a esses diferentes amigos a forma de viagem, também restringiam essa viagem a não ter mais que o agrado social de uma série de visitas. Os próprios nomes de lugares, tão perturbadores para mim outrora, que o simples annuaire des châteaux, folheado no capítulo do departamento da Mancha, me causava tanta emoção como o Indicador das estradas de ferro, tinham-se tornado tão familiares que eu podia até consultar esse mesmo Indicador, na página Balbec-Douville por Doncieres, com a mesma tranqüilidade de um catálogo de endereços. Nesse vale por demais social, a cujos flancos eu sentia grudada, visível ou não, uma comparsaria de amigos numerosos, o grito poético da noite já não era o da coruja ou da rã, e sim o "Como vai?'' do Sr. de Criquetot ou o "Kairé!" de Brichot. A atmosfera já não despertava angústias e, carregada de eflúvios puramente humanos, era facilmente respirável, até mesmo excessivamente calmante. O benefício que eu dela tirava era, pelo menos, o de só ver as coisas do ponto de vista prático. O casamento com Albertine me parecia uma loucura.

 

Brusca reviravolta para Albertine. - Desolação pela madrugada. - Vou imediatamente para Paris com Albertine.

            Só esperava uma oportunidade para a ruptura definitiva. E, uma noite, como mamãe partisse no dia seguinte para Combray, onde ia assistir uma irmã de sua mãe em sua última enfermidade, deixando-me para que aproveitasse os ares marinhos, como o teria desejado a minha avó, eu lhe anunciara que irrevogavelmente estava decidido a não casar com Albertine e em breve ia deixar de vê-la. Estava contente de ter podido, com estas palavras, dar uma satisfação à minha mãe na véspera de sua partida. Ela não me ocultara que isto havia sido de fato uma satisfação bem grande. Precisava também explicar-me com Albertine. Como voltasse com ela da Raspeliere, tendo os fiéis descido, uns em Saint-Mars-le-Vêtu, outros em Saint-Pierre-des-lfs, outros ainda em Doncieres, sentindo-me especialmente feliz e desligado dela, decidira-me, agora que só havia nós dois no vagão, a abordar finalmente o assunto. Aliás, a verdade é que aquela dentre as moças de Balbec que eu amava, embora ausente naquela ocasião como suas amigas, mas que ia voltar (agradava-me estar com todas, pois cada uma delas tinha, para mim, como no primeiro dia, algo da essência das outras, como se pertencesse a uma raça à parte), era Andrée. Visto que ela ia chegar de novo a Balbec dentro de alguns dias, certamente viria logo me visitar, e então, para estar livre, não casar com ela se não quisesse, para poder ir a Veneza e, no entanto, daqui até lá, tê-la todinha para mim, o meio que adotaria seria não dar a entender que me aproximava demais dela e, desde a sua chegada, quando estivéssemos conversando, lhe diria: - Que pena que eu não a tenha visto algumas semanas antes! Eu a teria amado; agora, meu coração já está preso. Mas isto não quer dizer nada, nós nos veremos amiúde, pois estou entristecido com meu outro amor, e você me ajudará a consolar-me. - Sorria interiormente ao pensar nessa conversação, pois, assim, daria a Andrée a ilusão de que não a amava de verdade; desse modo, ela não ficaria cansada de mim e eu aproveitaria alegre e suavemente a sua ternura. Mas tudo isso só tornava mais necessário falar afinal seriamente com Albertine, para não agir de forma indelicada, e, visto estar resolvido a me dedicar à sua amiga, era preciso que ela, Albertine, soubesse perfeitamente que eu não a amava. Era preciso dizer-lhe imediatamente, pois Andrée podia chegar a qualquer momento. Porém, como nos aproximássemos de Parville, senti que não teríamos tempo nessa noite e que era preferível deixar para o dia seguinte o que agora estava irrevogavelmente decidido. Portanto, contentei-me em lhe falar do jantar que tivéramos na casa dos Verdurin. No momento em que repunha a sua capa, tendo o trem acabado de deixar Incarville, última estação antes de Parville, ela me disse:

            - Então amanhã, de novo Verdurin, não se esqueça que é você quem vai me buscar. -

            Não pude evitar dizer com bastante secura:

            - Sim, a menos que eu "largue", pois começo a achar esta vida verdadeiramente idiota. Em todo caso, se formos, para que o meu tempo na Raspeliere não seja inteiramente perdido, será necessário que pense em pedir à Sra. Verdurin algo que muito possa interessar-me, ser um objeto de estudo e me dar prazer, pois de fato tive pouco prazer este ano em Balbec.

            - Isto não é gentil para comigo, mas não lhe quero mal porque sinto que você está nervoso. Qual seria esse prazer?

            - Que a Sra. Verdurin faça tocar para mim peças de um compositor cuja obra conhece muito bem. Eu também conheço uma, porém creio que há outras e eu teria necessidade de saber se foram editadas, se são diversas das primeiras.

            - Que compositor?

            - Minha queridinha, quando eu te disser que se chama Vinteuil, ficarás mais adiantada? - Podemos ter desenvolvido todas as idéias possíveis, que a verdade nunca penetra nelas, e é de fora, quando menos se espera, que ela nos dá sua tremenda picada e nos fere para sempre.

            - Você não sabe como me diverte - respondeu Albertine erguendo-se, pois o trem ia parar. - Não só isto me diz muito mais do que você poderia pensar, mas mesmo sem a Sra. Verdurin poderei lhe dar todas as informações que quiser. Lembra-se que falei de uma amiga mais velha, que me serviu de mãe e de irmã, e com quem passei em Trieste os meus melhores anos e que, aliás, devo reencontrar dentro de algumas semanas em Cherburgo, de onde viajaremos juntas (é meio barroco, mas você sabe como amo o mar); pois bem, essa amiga (oh, não é absolutamente o tipo de mulher que você poderia imaginar!), veja que coisa extraordinária, é justamente a melhor amiga da filha desse Vinteuil, e eu conheço quase tanto a filha de Vinteuil. Nunca as chamo senão de minhas duas irmãs mais velhas. Não me sinto constrangida em mostrar que sua pequena Albertine poderá lhe ser útil nesses assuntos de música, de que você diz, aliás com razão, que não entendo nada. -

            A essas palavras, pronunciadas quando chegávamos à estação de Parville, tão longe de Combray e de Montjouvain, tanto tempo depois da morte de Vinteuil, uma imagem se agitava em meu coração, uma imagem mantida em reserva durante tantos anos que, mesmo se tivesse podido adivinhar o seu poder nocivo ao armazená-la outrora, acharia que, com o passar do tempo, ela o tivesse perdido inteiramente; conservada viva no fundo de mim como Orestes, cuja morte os deuses haviam impedido, a fim de que, no dia marcado, regressasse à sua terra para punir o assassinato de Agamenon - para meu suplício, talvez para meu castigo, quem sabe, de ter deixado morrer a minha avó; surgindo de súbito do fundo da noite onde parecia sepultada para sempre e ferindo, como um Vingador, a fim de inaugurar-me uma vida terrível, nova e merecida, talvez também para expor a meus olhos as funestas conseqüências que as más ações engendram indefinidamente, não apenas para aqueles que as cometeram, mas para aqueles que não acreditaram, que só fizeram contemplar um espetáculo curioso e divertido, como eu, ai de mim, naquele distante entardecer em Montjouvain, escondido atrás de um arbusto, onde (como quando escutara complacentemente a narrativa dos amores de Swann) havia deixado que se abrisse perigosamente em mim a via funesta do Saber, destinada a ser dolorosa. E nesse mesmo tempo da minha maior dor, tive uma sensação quase orgulhosa, quase alegre, como a de um homem a quem o choque recebido faria dar tamanho salto que ele alcançasse um ponto a que nenhum esforço o poderia ter levantado. Albertine, amiga da Srta. Vinteuil e da amiga desta, praticante profissional do safismo, era, junto do que eu imaginara nas maiores dúvidas, o que é, para o pequeno acústico da Exposição de 1889, de que mal se esperava pudesse ir de uma casa a outra, o telefone que voa sobre as ruas, as cidades, os campos, os mares, ligando países. Era uma terra incógnita terrível aonde eu fora aterrissar, uma nova fase de sofrimentos insuspeitados que se abria. E, entretanto, esse dilúvio da realidade que nos submerge, se é enorme em face de nossas tímidas e ínfimas suposições, era pressentido por elas. Era sem dúvida algo como o que eu acabava de saber, era algo como a amizade de Albertine e da Srta. Vinteuil, algo que meu espírito não teria sabido inventar, mas que eu obscuramente apreendia quando me inquietava tanto ao ver Albertine junto de Andrée. Muitas vezes, é unicamente por falta de espírito criador que não se vai muito longe no sofrimento. E a mais terrível realidade nos concede, ao mesmo tempo que o sofrimento, a alegria de uma bela descoberta, porque só faz doar uma forma clara e nova ao que ruminávamos há muito sem desconfiar.

            O trem havia parado em Parville, e como éramos os seus únicos passageiros, foi com uma voz amolentada pela sensação de inutilidade da tarefa, pelo mesmo hábito que no entanto o fazia cumpri-la, inspirando-lhe a um tempo a exatidão e a indolência, e mais ainda, o desejo de dormir, que o empregado gritou:

            - Parville! -

            Albertine, sentada à minha frente e vendo que chegara a seu destino, deu alguns passos do fundo do vagão onde estávamos e abriu a portinhola. Mas este movimento, que ela assim fazia para descer, me dilacerava intoleravelmente o coração, como se, ao contrário da posição independente do meu corpo, que a dois passos dele parecia ocupar o de Albertine, tal separação espacial, que um desenhista verídico seria forçado a figurar entre nós, não passasse de uma aparência, e como se, para quem quisesse redesenhar as coisas conforme a realidade verdadeira, fosse preciso agora colocar Albertine, não a certa distância de mim, mas dentro de mim. Ela me fazia tanto mal ao se afastar que, agarrando-a, puxei-a desesperadamente pelo braço.

            - Seria materialmente impossível - perguntei - que você fosse dormir esta noite em Balbec?   - Materialmente, não. Mas estou caindo de sono.

            - Você me faria um imenso favor...

            - Pois seja, embora eu não compreenda; por que não me falou mais cedo? De qualquer modo, fico. -

            Minha mãe dormia quando, depois de ter mandado que dessem a Albertine um quarto situado em outro andar, voltei para o meu. Sentei-me junto à janela, reprimindo os soluços para que não me ouvisse minha mãe, que só estava separada de mim por um delgado tabique. Nem sequer pensara em fechar os postigos, pois, num dado instante, erguendo os olhos, vi à minha frente, no céu, aquele mesmo clarão de um vermelho tinto que se via no restaurante de Rivebelle, num estudo que Elstir fizera de um sol poente. Lembrei-me da exaltação que me provocara, quando a vira do trem no dia da minha primeira chegada a Balbec, essa mesma imagem de uma tarde que não precedia a noite, mas um novo dia. Porém, agora, nenhum dia mais seria novo para mim, nem mais me despertaria o desejo de uma felicidade desconhecida, e somente prolongaria meus sofrimentos até que eu não tivesse mais forças para suportá-los. A verdade daquilo que Cottard me havia dito no cassino de Parvillefi [ou Incarville] já não me apresentava dúvidas. O que eu temera, e vagamente suspeitara havia muito tempo em Albertine, o que meu instinto deduzia de todo o seu ser, e aquilo que meus raciocínios, dirigidos pelo meu desejo, tinham me feito pouco a pouco negar, era verdade! Por trás de Albertine, eu já não via as montanhas azuladas do mar, mas o quarto de Montjouvain em que ela caía nos braços da Srta. Vinteuil com aquele riso que ela fazia ouvir como o som ignorado do seu prazer. Pois, linda como era Albertine, como podia ser que a Srta. Vinteuil, com os gostos que tinha, não lhe pedisse para satisfazê-los? E a prova de que Albertine não ficara chocada com isso e havia consentido é que não tinham brigado e a sua intimidade não cessara de aumentar. E aquele gracioso movimento de Albertine, ao pousar o queixo no ombro de Rosemonde, olhando-a a sorrir e depondo-lhe um beijo no pescoço, esse movimento que me lembrara a Srta. Vinteuil e para cuja interpretação eu todavia hesitara em admitir que uma mesma linha traçada por um gesto resultasse obrigatoriamente de uma mesma tendência, quem sabe se Albertine simplesmente não o aprendera com a Srta. Vinteuil? Pouco a pouco o céu apagado se iluminava. Eu que até então nunca havia despertado sem sorrir para as coisas mais humildes, para a taça de café com leite, o ruído da chuva, o estrondo do vento, senti que o dia que estava para nascer em alguns instantes, e todos os dias que se seguiriam, nunca mais me haveriam de trazer a esperança de uma felicidade desconhecida, e sim o prolongamento de meu martírio. Aferrava-me à vida ainda; sabia que nada mais tinha a esperar dela que não fosse cruel. Corri para o elevador, apesar da hora indevida, para chamar o ascensorista, que preenchia as funções de vigia noturno, e lhe pedi que fosse ao quarto de Albertine dizer-lhe que eu tinha algo de importante para lhe comunicar, caso ela pudesse receber-me.

            - A senhorita prefere vir ela própria - veio ele me responder. - Estará aqui num instante. - De fato, em breve Albertine entrou de robe de chambre.

            - Albertine - disse-lhe bem baixinho, recomendando que não elevasse a voz para não acordar minha mãe, de quem estávamos separados por esse tabique cuja delgadez, hoje importuna e que obrigava a sussurrar, parecia outrora, quando ali tão bem se pintaram as intenções de minha avó, uma espécie de diafaneidade musical -, estou envergonhado por incomodá-la. Eis do que se trata. Para que você compreenda, é preciso que lhe diga uma coisa que você não sabe. Quando vim para cá, deixei uma mulher com quem deveria me casar, que estava prestes a abandonar tudo por mim. Devia seguir de viagem esta manhã e, desde uma semana, todos os dias eu me perguntava se teria coragem de não lhe telegrafar dizendo que voltava. Tive essa coragem, mas sentia-me tão infeliz que achei que me mataria. Por isso é que perguntei ontem à noite se não poderia vir dormir em Balbec. Se eu tivesse que morrer, gostaria de lhe dizer adeus. - E dei livre curso às lágrimas, que minha ficção tornava naturais.

            - Meu pobrezinho, se eu tivesse sabido, teria passado a noite a seu lado -exclamou Albertine, a cujo espírito nem mesmo ocorreu a idéia de que eu talvez desposasse a tal mulher, desvanecendo-se desse modo a oportunidade de que ela própria fizesse um "bom casamento", de tanto que ela se sentia sinceramente comovida com um pesar cuja causa eu não podia ocultar-lhe, mas não a realidade e a força - Além disso - continuou ela -, ontem, durante todo o trajeto desde a Raspeliere, bem que havia sentido que você estava triste e nervoso, receava alguma coisa. - Na verdade, o meu desgosto só começara em Parville, e o nervosismo bem diferente, mas que por felicidade Albertine confundia com ele, provinha do tédio de viver ainda alguns dias com ela. Albertine acrescentou: - Não o deixo mais, vou ficar aqui o tempo todo. - Oferecia-me justamente - e só ela podia oferecê-lo o único remédio contra o veneno que me queimava, aliás homogêneo a ele; um suave, o outro cruel, ambos igualmente derivavam de Albertine. Nesse momento Albertine meu mal livrava-me de sofrimentos, me deixava ela, a Albertine remédio enternecido como um convalescente. Mas eu pensava que ela em breve ia partir de Balbec para Cherburgo e de lá para Trieste. Seus hábitos de outrora iriam renascer. Antes de tudo o que eu desejava era impedir Albertine de tomar o barco, tratar de conduzi-la à Paris. Decerto, de Paris, mais facilmente ainda que de Balbec, ela poderia, se o quisesse, ir para Trieste, mas em Paris nós veríamos; talvez eu pudesse pedir à Sra. de Guermantes para indiretamente agir sobre a amiga da Srta. Vinteuil, no sentido de que esta não ficasse em Trieste, para fazê-la aceitar um emprego alhures, talvez na casa do príncipe de ***, que eu havia encontrado na casa da Sra. de Villeparisis e na da própria Sra. de Guermantes. E este, mesmo que Albertine quisesse ir à sua casa para visitar a amiga, poderia, avisado pela Sra. de Guermantes, impedir que se encontrassem. Com certeza, poderia eu refletir que em Paris, se Albertine possuía esses gostos, acharia muitas outras pessoas com quem satisfazê-los. Porém cada movimento de ciúme é particular e traz a marca da criatura desta vez a amiga da Srta. Vinteuil que o suscitou. Era a amiga da Srta. Vinteuil que continuava sendo a minha grande preocupação. A paixão misteriosa com que antigamente havia pensado na Áustria, porque era o país de origem de Albertine (seu tio ali fora conselheiro da embaixada), de modo que sua singularidade geográfica, a raça que o habitava, seus monumentos suas paisagens, podia eu considerá-los, tais como num atlas ou numa coleção de quadros, no sorriso e nas maneiras de Albertine -, essa paixão misteriosa eu a sentia ainda, mas, por uma troca de sinais, no domínio do horror. Sim, era dali que Albertine provinha. Era ali que, em cada residência, ela estava segura de encontrar, fosse a amiga da Srta. Vinteuil, fossem outras. Iriam renascer os hábitos da infância, iriam reunir-se dentro de três meses para o Natal, depois para o Ano-Novo, datas que já me eram tristes por si mesmas, pela recordação inconsciente da mágoa que nelas sentira, quando outrora me separavam de Gilberte durante todo o tempo das férias de Natal. Após longos jantares, depois dos réveíllons, quando todos estariam alegres, animados, Albertine ia tomar, com suas amigas de lá, as mesmas atitudes que eu vira assumir com Andrée, quando a amizade de Albertine por ela era inocente, quem sabe? talvez as atitudes que tinham aproximado, diante de mim, a Srta. Vinteuil perseguida por sua amiga, em Montjouvain. Á Srta. Vinteuil, agora, enquanto sua amiga a acariciava antes de cair sobre ela, eu emprestava o rosto afogueado de Albertine, da Albertine que eu ouvi lançar, fugindo, e depois se abandonando, o seu riso estranho e profundo. Que era, diante do sofrimento que sentia, o ciúme que um dia havia sentido, quando Saint-Loup encontrara a mim e Albertine em Doncieres e onde ela lhe fizera provocações? E também aquele que experimentara ao pensar no iniciador desconhecido a quem eu devera os primeiros beijos que ela me dera em Paris, no dia em que eu esperava a carta da Srta. de Stermaria? Aquele outro ciúme, provocado por Saint-Loup ou por um jovem qualquer, nada valia. Em tal caso, poderia no máximo temer um rival contra quem eu tivesse de arrebatá-la. Mas aqui o rival não era meu semelhante, suas armas eram diferentes, eu não podia lutar no mesmo terreno, dar a Albertine os mesmos gozos, nem sequer concebê-los com exatidão. Em muitos momentos da nossa vida trocaríamos todo o futuro por um poder em si mesmo insignificante. Outrora, eu teria renunciado a todas as vantagens da vida para conhecer a Sra. Blatin, porque ela era uma amiga da Sra. Swann. Hoje, para que Albertine não fosse a Trieste, eu teria suportado todos os sofrimentos e, se isso não fosse bastante, lhes teria infligido, tê-la-ia isolado, seqüestrado, tomado o pouco dinheiro que ela possuía para que a penúria a impedisse materialmente de fazer a viagem. Como outrora, quando queria ir a Balbec, o que me impelia a partir era o desejo de uma igreja persa, de um temporal pela madrugada, o que agora me dilacerava o coração, ao pensar que Albertine talvez fosse a Trieste, era que ela passaria ali a noite de Natal com a amiga da Srta. Vinteuil; pois a imaginação, quando muda de natureza e se transforma em sensibilidade, não dispõe para tanto de maior número de imagens simultâneas. Se me dissessem que ela não se encontrava naquele momento em Cherburgo ou em Trieste, que não poderia ver Albertine, como teria eu chorado de alegria e de doçura! Como teria mudado minha vida e seu futuro! E, no entanto, eu bem sabia que era arbitrária essa localização do meu ciúme, que, se Albertine possuía esses gostos, poderia satisfazê-los com outras. Aliás, quem sabe se até essas mesmas jovens, podendo encontrá-la em outro local, não torturariam elas tanto o meu coração? Era de Trieste, daquele mundo ignorado onde eu sentia que Albertine passava bem, onde estavam suas lembranças, suas amizades, seus amores de infância, que se exalava aquela atmosfera hostil, inexplicável, como a que se evolava outrora até o meu quarto de Combray, da sala de jantar em que eu ouvia conversar e rir com estranhos, dentre o ruído dos talheres, mamãe, que não viria dar-me boa-noite; como a que enchera para Swann, as casas em que Odette ia procurar, em festas, prazeres inconcebíveis. Não era mais como uma terra deliciosa, onde a raça é pensativa, os ocasos dourados, os carrilhões tristes, que agora eu imaginava Trieste, mas como uma cidade maldita que eu desejaria mandar queimar de imediato e suprimir do mundo real. Aquela cidade estava afundada no meu coração como aguilhão permanente. Deixar Albertine partir em breve para Cherburgo e Trieste causava-me horror. E até mesmo ficar em Balbec. Pois agora que a revelação da intimidade de minha amiga com a Srta. Vinteuil se fazia uma quase certeza, parecia-me que, em todos os momentos em que Albertine não estivesse comigo (e havia dias inteiros em que, por causa de sua tia, não podia vê-la), ela se entregaria às primas de Bloch, talvez a outras. A idéia de que naquela mesma noite ele poderia ver as primas de Bloch me deixava louco. Assim, depois que me disse que não me largaria durante uns dias, respondi:

            - Mas é que eu desejaria voltar a Paris. Não viria comigo? E não gostaria de vir morar um pouquinho conosco em Paris? -

            Era necessário impedi-la, a todo custo, de estar sozinha, pelo menos durante alguns dias, conservá-la junto a mim para assegurar-me de que ela não pudesse ver a amiga da Srta. Vinteuil. Isto, na verdade, equivaleria a morar sozinha comigo, pois minha mãe, aproveitando-se de uma viagem de inspeção que meu pai ia fazer, impusera-se como um dever obedecer a uma vontade de minha avó, que desejaria que ela fosse passar alguns dias em Combray junto de uma de suas irmãs. Mamãe não gostava da tia porque esta não fora para a minha avó, tão carinhosa com ela, a irmã que deveria ter sido. Assim, depois de crescidas, as crianças lembram-se, rancorosas, dos que foram maus com elas. Porém mamãe, transformada em minha avó, era incapaz de rancor; a vida de sua mãe era para ela como uma pura e inocente infância onde ia aspirar aquelas lembranças cuja doçura ou amargor regulavam suas ações com uns e outros. Minha tia teria podido fornecer a mamãe certos detalhes inestimáveis, porém agora dificilmente o faria, pois achava-se muito enferma (dizia-se que era um câncer), e minha mãe censurava-se por não ter ido mais cedo, para acompanhar meu pai, e nisso não via senão mais um motivo para fazer o que sua mãe teria feito; e, assim como ela, ia, no aniversário do pai de minha avó, o qual fora tão ruim pai, depositar sobre seu túmulo as flores que minha avó costumava levar. Assim, junto ao túmulo que ia se entreabrir, desejava minha mãe levar as suaves conversas que minha tia não viera oferecer à minha avó. Enquanto estivesse em Combray, minha mãe se ocuparia de certos trabalhos que minha avó sempre desejara, mas somente se fossem executados sob a supervisão de sua filha. Assim, eles ainda não tinham sido principiados, pois não queria mamãe, deixando Paris antes de meu pai, fazer-lhe sentir demasiado o peso de um luto ao qual ele se associava, mas que não podia afligi-lo tanto quanto a ela.

            - Ah, isto não será possível por agora - respondeu Albertine. - Além disso, que necessidade tem você de voltar tão depressa a Paris, visto que essa dama já partiu?

            - Porque estarei mais tranqüilo num lugar onde a conheci, em vez de Balbec, que ela nunca viu e a que tomei horror. -

            Terá Albertine compreendido mais tarde que essa outra mulher não existia, e que se naquela noite eu quisera morrer de verdade fora porque ela me revelara, estouvadamente, que tinha ligações com a amiga da Srta. Vinteuil? É possível. Há momentos em que isso me parece provável. Em todo caso, naquela manhã, acreditou na existência dessa mulher.

            - Mas você deveria casar com essa senhora, meu pequeno - disse ela. - Seria feliz e ela certamente o seria também. -

            Respondi que a idéia de que poderia fazer feliz aquela mulher, de fato, quase estivera a ponto de me decidir; ultimamente, depois de receber uma grande herança que me permitiria dar muito luxo e distrações à minha mulher, estivera a ponto de aceitar o sacrifício daquela a quem amava. Inebriado pela gratidão que me inspirava a gentileza de Albertine, tão próxima do atroz sofrimento que ela me causara, assim como prometeríamos de bom grado uma fortuna ao garçom do café que nos serve um sexto cálice de aguardente, disse-lhe que minha mulher teria um auto e um iate; que, sob esse aspecto, já que Albertine gostava tanto de passear de auto e de iate, era uma pena que não fosse ela a quem eu amava; que eu teria sido o marido perfeito para ela, mas que se haveria de dar um jeito, que talvez a gente pudesse encontrar-se de forma agradável. Apesar de tudo, como na própria embriaguez a gente evita interpelar os passantes, com receio dos golpes, abstive-me de cometer a imprudência que teria cometido no tempo de Gilberte, dizendo que era a ela, Albertine, que eu amava.

            - Você vê, estive prestes a casar com ela. Mas não ousei fazê-lo, todavia, e não desejaria obrigar uma jovem a viver junto de alguém tão doente e aborrecido.

            - Mas você está louco, todos desejariam viver com você, olhe como todo mundo o procura. Só se fala de você na casa da Sra. Verdurin, e me disseram que se dá o mesmo na mais alta sociedade. Portanto, essa senhora não foi justa com você, para lhe dar essa impressão de dúvida a seu próprio respeito. Vejo que se trata de uma malvada, detesto-a; ah! se eu estivesse em seu lugar...

            - Nada disso, ela é muito gentil, gentil demais. Quanto aos Verdurin e aos outros, rio-me deles. Fora aquela a quem amo e à qual, de resto, renunciei, só ligo para a minha pequena Albertine; somente ela, ficando muito tempo comigo, pelo menos nos primeiros dias -acrescentei, para não assustá-la e poder pedir-lhe muito nesses dias -, é que poderá consolar-me um pouco. - Só vagamente aludi a uma possibilidade de casamento, dizendo que era irrealizável porque nossos temperamentos não combinavam. Contra minha própria vontade, sempre perseguido em meu ciúme pelas lembranças das relações de Saint-Loup com "Rachel-quando-do-Senhor" e de Swann com Odette, estava muito inclinado a crer que, no momento em que amava, não podia ser amado, e que só o interesse podia unir a mim uma mulher. Certamente era uma loucura julgar Albertine por Odette e Rachel. Porém não se tratava dela, mas de mim; eram os sentimentos que eu pudesse inspirar que o meu ciúme me fazia subestimar em excesso. E desse julgamento, talvez errôneo, nasceram sem dúvida muitas desgraças que iriam se abater sobre nós.

            - Então recusa o meu convite para Paris?

            - Minha tia não há de querer que eu parta neste momento. Além disso, mesmo que eu possa mais tarde, não será esquisito que eu entre assim em sua casa? Em Paris, vão logo descobrir que não sou sua prima.

            - Pois bem, diremos que somos meio noivos. Que diferença faz, já que você sabe que não é verdade? -

            O pescoço de Albertine, que lhe saía inteiro da camisa, era forte, dourado, de intensa granulação. Beijei-a tão puramente como se tivesse beijado minha mãe para acalmar um desgosto de criança que julgasse então jamais poder arrancar do peito. Albertine deixou-me para ir vestir-se. Aliás, o seu devotamento já principiava a diminuir; agora há pouco me dissera que não me deixaria um segundo sequer. (E eu bem sentia que sua resolução não duraria, visto que eu receava, caso permanecêssemos em Balbec, que ela fosse ter naquela mesma noite, sem mim, com as primas de Bloch.) Ora, ela vinha agora me dizer que desejava passar em Maineville e que voltaria para me ver à tarde. Não se recolhera na véspera à noite, poderia haver correspondência para ela, além do que a sua tia podia estar inquieta. Eu havia respondido:

            - Se é só por isso, a gente podia mandar o ascensorista dizer à sua tia que você está aqui e pegar suas cartas. -

            E, desejosa de se mostrar gentil, porém contrariada por estar sendo reprimida, franzira a testa e depois, de súbito, disse amavelmente:

            - É isto mesmo e mandara o ascensorista.

            Não fazia um momento que Albertine me deixara, quando o ascensorista veio bater de leve. Eu não esperava que, enquanto conversava com Albertine, tivesse ele tido tempo de ir a Maineville e voltar. Vinha me dizer que Albertine escrevera um bilhete à sua tia e que podia, se eu o quisesse, ir a Paris no mesmo dia. Aliás, fizera mal em dar o recado oralmente, pois, apesar da hora matinal, o gerente já estava a par de tudo e, transtornado, vinha perguntar-me se eu estava descontente com alguma coisa, se de fato ia partir, se não poderia esperar ao menos alguns dias, já que o vento hoje estava muito receoso (de recear). Eu não queria lhe explicar que desejava a todo custo que Albertine já não estivesse em Balbec quando as primas de Bloch fossem dar o seu passeio, principalmente na ausência de Andrée, a única que poderia protegê-la, e que Balbec era como um desses lugares em que um doente, que ali não mais respira, decido mesmo que deva morrer no caminho, não passar a noite seguinte. Além do mais, eu ia ter de lutar contra rogos do mesmo gênero, primeiro no hotel, onde Marie Gineste e Céleste Albaret tinham os olhos vermelhos. (Aliás, Marie fazia ouvir o soluço apressado de uma torrente; Céleste, mais frágil, recomendava-lhe calma; porém, tendo Marie murmurado os únicos versos que conhecia: Ici-bas tous les filas meurent. Céleste não pôde se conter, e um lençol de lágrimas se espalhou pelo seu rosto cor de lilás; penso, aliás, que me esqueceram na mesma noite.)

            A seguir, no trenzinho local, apesar de todas as minhas precauções para não ser visto, encontrei o Sr. de Cambremer que, à vista de minhas malas, empalideceu, pois contava comigo para dali a dois dias; exasperou-me querendo me convencer de que minhas sufocações deviam-se à mudança de tempo e que outubro seria um mês excelente para elas, e me perguntou se, de qualquer modo, não poderia "adiar a minha partida por oito dias", expressão cuja estupidez só não me deixou enfurecido talvez porque me fazia mal a sua proposta. E, enquanto ele me falava no vagão, a cada parada eu temia ver aparecer, mais terrível que Herimbald ou Guiscard, o Sr. de Crécy, implorando para ser convidado, ou, mais temível ainda, a Sra. Verdurin, fazendo questão de me convidar. Mas isto só devia acontecer dentro de algumas horas. Eu ainda não chegara a tanto. Só precisava fazer face às queixas desesperadas do gerente. Mandei-o embora, pois receava que, mesmo sussurrando, acabasse ele por acordar mamãe. Fiquei sozinho no quarto, aquele mesmo quarto de teto por demais alto, onde me sentira tão infeliz na minha primeira chegada, onde pensara com tanta ternura na Srta. de Stermaria e havia espiado a passagem de Albertine e suas amigas como aves de arribação paradas na praia, onde a possuíra com tanta indiferença quando a mandara buscar pelo ascensorista, onde conhecera a bondade de minha avó e depois soubera que ela estava morta; aqueles postigos ao pé dos quais caía a luz da manhã, eu os abrira a primeira vez para avistar os primeiros contrafortes do mar (esses postigos que Albertine me fazia fechar para que não nos vissem aos beijos). Eu tomava melhor consciência de minhas próprias transformações confrontando-as com a identidade das coisas. Entretanto, habituamo-nos a elas como às pessoas, e, quando subitamente nos lembramos do significado diverso que elas comportam e, depois que tiverem perdido todo significado, dos acontecimentos bem diferentes dos de hoje que enquadraram, a diversidade dos atos realizados sob o mesmo teto, entre as mesmas bibliotecas envidraçadas, e a mudança no coração e na vida que semelhante diversidade implica, parecem ainda acrescidas pela permanência imutável do cenário, reforçado pela unidade do lugar. Duas ou três vezes, durante um momento, tive a idéia de que o mundo onde estavam esse quarto e essas bibliotecas, e no qual Albertine era coisa tão pouca, consistisse talvez num mundo intelectual, que era a única realidade, e meu desgosto, algo como aquilo que é causado pela leitura de um romance e de que somente um louco poderia fazer um sofrimento durável e permanente que se prolongasse por toda a sua vida; que talvez bastasse um pequeno movimento de minha vontade para alcançar esse mundo real e nele penetrar, ultrapassando a minha dor como um círculo de papel que se fura, e não mais me preocupar com o que fizera Albertine, assim como não nos preocupamos com os atos da heroína imaginária de um romance depois que terminamos a leitura. Além disso, as amantes a quem mais amei jamais coincidiram com o meu amor por elas. Esse amor era verdadeiro, visto que eu subordinava todas as coisas à função de vê-las, de guardá-las só para mim, já que soluçava se as tinha esperado uma noite. Mas elas mais possuíam a propriedade de despertar esse amor, de levá-lo ao paroxismo, do que serem a sua imagem. Quando as via, quando as ouvia, nada encontrava nelas que se parecesse ao meu amor e pudesse explicá-lo. No entanto, minha única alegria era vê-las, minha única ansiedade, esperá-las. Dir-se-ia que uma virtude, sem qualquer relação com elas, lhes fora acessoriamente acrescentada pela natureza, e que essa virtude, essa força similielétrica, tinha por efeito excitar em mim o meu amor, isto é, dirigir todas as minhas ações e provocar todos os meus sofrimentos. Porém a beleza, a inteligência ou a bondade dessas mulheres eram inteiramente distintas de tudo isso. Como por uma corrente elétrica que nos move, fui sacudido pelos meus amores, vivi-os e senti-os; nunca pude chegar a vê-los ou a pensá-los. Inclino-me até a crer que nesses amores (ponho de lado aliás o prazer físico que os acompanha em geral, mas que não basta para constituí-los), sob a aparência da mulher, é a essas forças invisíveis, de que ela está acessoriamente acompanhada, que nós nos dirigimos como à obscuras divindades. É delas, cuja benevolência nos é necessária, que buscamos o contato, sem nele encontrar um prazer positivo. Com essas deusas, a mulher põe-nos em relação, sem fazer mais que isso. Como oferendas, prometemos jóias, viagens, pronunciamos fórmulas que significam que adoramos, e fórmulas opostas que significam sermos indiferentes. Dispusemos de todo o nosso poder para alcançar um novo encontro, mas que seja concedido sem tédio. Ora, seria pela própria mulher, se ela não estivesse complementada com essas forças ocultas, que faríamos tanto esforço que, quando ela partisse, não saberíamos dizer como estava vestida e nos aperceberíamos de que nem sequer a tínhamos olhado? Como é enganador o sentido da vista! Um corpo humano, até mesmo amado como o de Albertine, nos parece a alguns metros, a poucos centímetros, bem distante de nós. Da mesma forma a alma que nele está. Unicamente, se alguma coisa muda violentamente o lugar dessa alma em relação a nós, mostrando-nos que ela ama a outros seres e não a nós, então, pelas batidas do nosso coração deslocado, sentimos que, não a alguns passos de nós, mas dentro de nós, é que estava a criatura amada. Em nós, nas regiões mais ou menos superficiais. Mas as palavras: "Esta amiga é a Srta. Vinteuil" tinham sido o Sésamo, que eu seria incapaz de achar por mim mesmo, que fizeram entrar Albertine nas profundezas do meu coração dilacerado. E a porta que se fechara sobre ela, poderia eu procurá-la durante cem anos sem saber como reabri-la. Essas palavras, deixara de ouvi-las por um momento, enquanto Albertine estava junto a mim, ainda há pouco. E, beijando-a como beijava minha mãe em Combray para acalmar a minha angústia, quase acreditava na inocência de Albertine ou, pelo menos, não pensava continuamente na descoberta que fizera acerca de seu vício. Mas agora que estava sozinho, as palavras ressoavam de novo como esses ruídos internos do ouvido que ouvimos logo que alguém deixa de nos falar. Agora, seu vício não apresentava dúvidas para mim. A luz do sol que ia se erguer, modificando as coisas a meu redor, me fez de novo tomar, como que me deslocando um momento em relação a ela, consciência mais cruel ainda do meu sofrimento. Eu jamais vira principiar uma manhã tão linda nem tão dolorosa. Pensando em todas as paisagens indiferentes que iam iluminar-se e que ainda na véspera só teriam me dado o desejo de as visitar, não pude conter um soluço quando, num gesto de ofertório, mecanicamente concluído, e que me pareceu simbolizar o sacrifício sangrento que ia ter de fazer de toda alegria, a cada manhã, até o fim da minha vida, renovação solenemente celebrada em cada aurora de minha mágoa cotidiana e do sangue de minha chaga, o ovo de ouro do sol, como que propulsado pela ruptura de equilíbrio que, no momento da coagulação, traria uma mudança de densidade, farpado de chamas como nos quadros, rompeu de um salto a cortina atrás da qual o sentíamos desde um instante, fremente e prestes a entrar em cena, e da qual apagou, sob ondas de luz, a púrpura misteriosa e condensada. Ouvi-me a chorar a mim mesmo. Mas nesse momento, contra toda expectativa, a porta se abriu e, o coração batendo, pareceu-me ver a minha avó diante de mim, como numa dessas aparições que eu já tivera, mas só dormindo. Então tudo aquilo não passava de um sonho? Ai de mim! Estava bem desperto.

            - Achas que me pareço com tua pobre avó - me disse mamãe (pois era ela) com doçura, como para acalmar o meu assombro, confessando de resto aquela semelhança, com um belo sorriso de orgulho modesto que jamais conhecera a coqueteria. Seus cabelos em desordem, onde as mechas grisalhas não estavam escondidas e serpenteavam em torno de seus olhos inquietos, de suas faces envelhecidas, o próprio chambre de minha avó que ela usava, tudo isso me impedira, por um instante, de reconhecê-la, fazendo-me duvidar se dormia ou se minha avó havia ressuscitado. Fazia já muito tempo que minha mãe se assemelhava bem mais à minha avó do que à jovem e risonha mamãe que minha infância conhecera. Mas eu não pensara mais nisso. Assim, quando ficamos lendo por muito tempo, distraídos, não percebemos o passar das horas e, de repente, vemos a nosso redor o sol, inevitavelmente levado a passar pelas mesmas fases, lembrar, a ponto de equivocar-nos, o sol que ali existia na véspera à mesma hora, e despertar a seu redor as mesmas harmonias, as mesmas correspondências que preparam o ocaso. Foi sorrindo que minha mãe me fez ver o meu erro, pois era-lhe doce ter tal semelhança com a mãe.

            - Eu vim - disse ela porque, ao dormir, me parecia ouvir alguém que chorava. Isso me acordou. Mas o que houve que não está deitado? E tens os olhos cheios de lágrimas. Que está acontecendo? -

            Segurei-lhe a cabeça entre os braços:

            - Mamãe, ouve, receio não ter te falado amavelmente de Albertine; o que te disse era injusto.

            - E o que tem isso? - disse mamãe; e, percebendo o sol nascente, sorriu com tristeza pensando na mãe; e para que eu não perdesse o fruto de um espetáculo que minha avó lastimava que eu não contemplasse nunca, apontou-me a janela. Mas, por detrás da praia de Balbec, do mar, do nascer do sol que mamãe me mostrava, eu via, com os movimentos de desespero que não lhe escapavam, o quarto de Montjouvain, onde Albertine, rósea, enroscada como uma grande gata, o nariz rebelde, tomara o lugar da amiga da Srta. Vinteuil e dizia, nos assomos de seu riso voluptuoso:

            - Pois bem! Se nos virem, será melhor. Então eu não ousaria escarrar nesse macaco velho? -

            Era esta a cena que eu via por detrás da que se estendia pela janela e que não era, sobre a outra, mais que um véu sombrio, superposto como um reflexo. Ela própria parecia um efeito quase irreal, como uma vista pintada. À nossa frente, na saliência dos rochedos de Parville, o bosquezinho onde havíamos feito o "jogo do anel" fazia cair em declive até o mar, sob o verniz da água, todo dourado ainda, o tabuleiro de suas folhagens, como na hora em que muitas vezes, no fim do dia, quando ali eu tinha ido dormir uma sesta com Albertine, nos levantáramos ao ver o sol descambando. Na desordem das névoas da noite, que ainda arrastavam os farrapos róseos e azuis sobre as águas atulhadas dos destroços nacarados da aurora, passavam barcos sorrindo à luz oblíqua que amarelava suas velas e a ponta dos gurupés como quando regressavam à tardinha: cena imaginária, tiritante e deserta, pura evocação do poente que não repousava, como a noite, na seqüência das horas do dia que eu tinha o hábito de ver preceder-lhe, desligada, interpolada, mais inconsistente ainda que a imagem horrível de Montjouvain que ela não lograva anular, encobrir, esconder poética e baldada imagem da lembrança e do sonho.

            - Mas vejamos - disse minha mãe -, não me disseste nenhum mal dela, falaste até que ela te aborrecia um pouco, que estavas contente por teres desistido da idéia de te casares com ela. Não é motivo para chorar desse jeito. Pensa que tua mamãe vai partir hoje e ficará desolada por deixar o seu lobinho nesse estado. Tanto mais, meu pobrezinho, que não tenho tempo para te consolar. Pois, por mais que minhas coisas já estejam prontas, a gente nunca dispõe de tempo num dia de partida.

            - Não é isso.

            E então, calculando o futuro, pesando bem a minha vontade, compreendendo que aquela ternura de Albertine pela amiga da Srta. Vinteuil, e durante tanto tempo, não podia ter sido inocente, que Albertine já fora iniciada e, tanto quanto o indicavam os seus gestos, nascera aliás com a predisposição ao vício que minhas inquietações tantas vezes tinham pressentido, ao qual jamais deveria ter deixado de se entregar (ao qual se entregava talvez naquele instante, aproveitando um momento em que eu não estava presente), disse à minha mãe, sabendo a mágoa que lhe causava, que ela não demonstrou e que só se traiu por aquele ar de séria preocupação que tinha quando comparava a gravidade de me causar desgosto ou de me fazer mal. Aquele ar que tivera em Combray pela primeira vez, quando se resignara a passar a noite junto a mim, aquele ar que nesse momento se parecia extraordinariamente ao de minha avó quando me permitia beber conhaque, disse à minha mãe:

            - Sei do desgosto que vou te causar. Primeiro, em vez de ficar aqui como querias, vou partir ao mesmo tempo que tu. Mas isto ainda não é nada. Não me sinto bem aqui, prefiro voltar. Mas escuta, não te aborreça demais. Eis o que ocorre: enganei-me, enganei-te de boa-fé ontem, refleti a noite inteira. É necessário absolutamente, e decidamo-lo de imediato, porque eu bem o reconheço agora, porque não mudarei mais e porque não poderia viver sem isso, é absolutamente necessário que eu me case com Albertine.

 

                                                                                            Marcel Proust

 

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades