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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SOLO DE CLARINETA / Erico Veríssimo
SOLO DE CLARINETA / Erico Veríssimo

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

SOLO DE CLARINETA

 

O MEU AMIGO mais íntimo é o sujeito que vejo todas as manhãs no espelho do quarto de banho, à hora onírica em que passo pelo rosto o aparelho de barbear. Estabelecemos diálogos mudos, numa linguagem misteriosa feita de imagens, ecos de vozes, alheias ou nossas, antigas ou recentes, relâmpagos súbitos que iluminam faces e fatos remotos ou próximos, nos corredores do passado — e às vezes, inexplicavelmente, do futuro — enfim, uma conversa que, quando analisamos os sonhos da noite, parece processar-se fora do tempo e do espaço. Surpreendo-me quase sempre em perfeito acordo com o que o Outro diz e pensa. Sinto, no entanto, um pálido e acanhado desconforto por saber que existe no mundo alguém que conhece tão bem os meus segredos e fraquezas, uns olhos assim tão familiarizados com a minha nudez de corpo e espírito. Talvez seja por isso que com certa freqüência entramos em conflito. Mas a ridícula e bela verdade é que no fundo, bem feitas as contas, nós nos queremos um grande bem. Estamos habituados um ao outro. Envelhecemos juntos. A face do Outro é o meu calendário implacável. "Os cabelos te fogem, homem" — murmuro-lhe às vezes — "Tuas carnes se tornam flácidas. Vejo a escrita do tempo no pergaminho do teu rosto". — "E como imaginas que estás?" — replica o meu reflexo. Acabamos consolando-nos mutuamente com a idéia de que conservamos a mocidade de espírito. Mas até onde isso será verdade? Encolhemos os ombros e passamos a outras considerações e devaneios, enquanto o barbeador elétrico zumbe, e o incansável calígrafo invisível continua no seu sutil trabalho de amanuense da Morte.

No Homem do Espelho reconheço os olhos escuros e melancólicos de minha mãe. Essa cabeçorra, quase desproporcional ao resto do corpo, herdei-a de meu pai. Quanto à pele morena, talvez me tenha vindo de algum remoto antepassado índio ou mouro. As sobrancelhas negras e espessas — que passaram a vida no vão esforço de dar a essa cara um ar façanhudo, decerto com o propósito de atenuar a mansuetude quase humilde dos olhos — foram suavizadas pela prata com que o tempo as retocou. (Prata ou cinza?)

Eu gostaria de simplificar o problema de meu "temperamento", apresentando-me como a manifestação duma dicotomia, segundo a qual tendências que herdei de minha mãe — sobriedade, senso de responsabilidade, devoção ao trabalho, à ordem e à normalidade — podem ser comparadas com os muros duma cidadela sitiada e repetidamente atacada por insidiosos e alegres bandos de guerrilheiros constituídos por certos componentes do caráter de meu pai: sensualidade, auto-indulgência, inclinação para o ócio e para uma espécie de hedonismo irresponsável.

"Mas a coisa não é assim tão simples e nítida" — observa o Outro. — "Eu sei, eu sei" — respondo em pensamentos — "mas vamos adiante, companheiro. É pelos sendeiros do erro e da dúvida que havemos de chegar um dia ao reino da verdade."

O Fantasma foca em mim os seus olhos secretamente cé-t/cos e murmura: "Será que esse reino existe mesmo fora da mitologia?". Ambos encolhemos os ombros.

 

 

                   ÁLBUM DE FAMÍLIA

Senti um dia a curiosidade de descobrir a origem dos Veríssimo. Graças a um amigo dado a pesquisas genealógicas, fiquei sabendo que o ramo brasileiro dessa família de nome superlativo começou no Brasil com o português Manoel Veríssimo da Fonseca, natural da freguesia do Ervedal, na Beira Alta. Tendo emigrado de Portugal em 1810, casou-se aqui com a moça Quitéria da Conceição, natural de Ouro Preto. O casal mudou-se para o extremo sul do país, atraído não sei por quem nem por que, e com ele começa o tronco paterno do meu clã. O materno — também de origem portuguesa — veio possivelmente do Planalto de Curitiba e de São Paulo. Desconfio que de seus ramos brotaram alguns desses tenazes tropeiros de Sorocaba, que desciam a cavalo ao Rio Grande do Sul para comprar mulas, a fim de revendê-las na feira de sua vila natal. Cruz A^ta foi o ponto de encontro dos dois troncos cujos ramos se uniram e, numa sucessão de enxertos e cruzas, tornaram possível o desabrochar desse espécime humano que agora me contempla, irreverente, do fundo do espelho. O miserável não está levando a sério estas memórias. Descobri na idade adulta que vivem dentro de mim, como irmãos xifópagos, dois sujeitos: um deles sisudo, responsável e até moralista; o outro um pícaro que não leva nada a sério.

Analisando a vida e as proezas de meu pai, sinto que em suas veias predominou — vá lá mais esta simplificação! — o quente e turbulento sangue dos Mello e Albuquerque. Um de meus bisavós, um gaúcho que, apesar de sua bravura e de seu gosto pela ação militar, carregou vida em fora a alcunha de Mello Manso, era coronel do exército imperial, lutou contra os Farrapos e — segundo ouvi de murchos mas orgulhosos lábios avunculares — foi ele quem prendeu Anita Garibaldi no combate de Curitibanos. Quando menino escutei; num misto de fascinação e divertido espanto, as proezas dum certo tio-bisavô que detestava o trabalho com a mesma intensidade com que gostava de mulheres. Contava-se que esse faunesco Mello e Albuquerque, quando não era visto estendido numa rede a pitar e a improvisar versos pornográficos, era porque andava por vilas, cidades e estâncias, empenhado em promíscuas aventuras eróticas. Apesar de nunca haver-se casado, produziu quarenta filhos.

A jovem que se uniu em matrimônio ao homem que viria a ser meu avô paterno era uma bela criatura, alta e esguia, de face longa, boca rasgada, de belo desenho, olhos salientes e graúdos, e pele trigueira. D. Adriana, senhora do Sobrado — nome que na minha cidade natal se dava à mansão desses avós — era uma dama de moral impecável mas, para a época em que viveu, de hábitos um tanto ousados e "modernos", pois costumava fumar cigarrilhas e escrever sonetos. As lembranças que tenho dessa avó me vêm dum velho retrato, em que ela se parece um pouco com Virgínia Woolf, e das muitas estórias que entreouvi na infância, em serões familiares.

 

Quando a morte a levou — tinha eu pouco mais de dois anos — um vácuo se abriu no Sobrado e na vida de seu marido, o Dr. Franklin Veríssimo da Fonseca, cidadão conhecido pela sua generosidade, sua habilidade como médico e pela sua atitude paternal para com os pobres. Permaneceu viúvo o resto de sua vida, que não foi muito longa, pois não chegou a entrar na casa dos sessenta. Era baixo, de pernas um pouco arqueadas, testa arredondada e alta. Uma expressão de bondade e bonomia animava-lhe o rosto cor de marfim antigo. Tinha o hábito de olhar as pessoas e as coisas com o rabo dos olhos, como se desconfiasse de tudo e de todos. Mas não desconfiava. Era um homem de boa-fé, dotado duma inesgotável capacidade de tolerância. Foi estancieiro, dentista e finalmente médico homeopata, apesar de não ter sequer terminado o curso ginasial. Como naqueles tempos vigorasse no Rio Grande a liberdade profissional, o "doutor" Franklin, com suas agüinhas, suas pomadas e ervas, e principalmente com sua presença sedativa, ia aliviando as dores e curando as doenças de sua numerosa clientela.

Guardo desse avô paterno a mais terna das recordações. Quando minha mãe me metia na cama, suspeitando que eu estivesse febril, quantas vezes me animou a certeza de que um simples toque da mão do velho Franklin na minha testa seria o bastante para afugentar a febre! Eu gostava do cheiro de desinfetante daqueles dedos de pontas com manchas de nicotina, e que eu imaginava de iodo. Lembro-me do ruído regular de seus punhos engomados quando ele sacudia o termômetro para fazer a coluna de mercúrio baixar, antes de colocá-lo na minha axila. Sentava-se na cama, olhava-me com seus olhos mansos e, passando a mão pelos meus duros cabelos de bugre, dizia: "Seu peidorreiro, vamos ver se isso é febre mesmo ou preguiça de ir à escola". Apanhava o termômetro, erguia-o contra a luz e murmurava: "Não é nada. Quando casar sara". Fazia recomendações a minha mãe, a quem chamava "sia Bega", receitava papéis de calomelano e umas águas homeopáticas, que para mim já tinham "o gosto do vovô Fiquila" — e depois se ia.

O velho Franklin costumava passar todas as noites à mesma hora pela frente de nossa casa, a caminho de seu sobrado. No inverno agasalhava-se numa capa preta com uma sobrecapa curta, espécie de pelerine, conhecida entre nós por cavour — um tipo de abrigo que, uns vinte e tantos anos mais tarde, eu veria em gravuras de revistas, cobrindo as adiposidades do escritor inglês G. K. Chesterton. Habituado àquela rotina noturna, eu ficava na cama, de ouvido atento. As passadas de meu avô eram para mim inconfundíveis. O menino sabia que, ao dobrar a esquina, o velho em geral soltava a sua tosse breve e seca, espécie de cacoete muito seu. E só depois que cessava o rumor daqueles passos é que eu sentia que tudo no Universo estava bem e no seu devido lugar: Deus no Céu e o Dr. Franklin no Sobrado. Então eu podia fechar os olhos em paz e deixar que o sono me levasse para o reino dos sonhos.

O Dr. Franklin Veríssimo perdeu uma fortuna ajudando financeiramente parentes, amigos e até desconhecidos. Muito contribuíram para esse empobrecimento as extravagâncias de seu filho predileto, o meu pai.

 

  1. Adriana e o Dr. Franklin tiveram oito filhos: três mulheres e cinco homens. A paixão era a nota tônica dessa prole que, a meu ver, se dividia em dois grupos: os magros-esbeltos e os baixos-gordos. O temperamento dos membros do primeiro grupo podia comparar-se com uma brasa que, coberta de cinzas, dá a impressão de estar apagada, mas ao menor sopro de desafio solta uma súbita labareda. Os membros do segundo grupo, esses viviam em permanente incêndio.

Eram os filhos dos senhores do Sobrado personalidades dotadas de considerável riqueza psicológica, e seus defeitos chegavam a ser quase tão grandes quanto suas virtudes. Podia-se esperar sempre dum Veríssimo um belo gesto, e eles próprios, imagino, tratavam conscientemente de manter a dourada legenda. Extremados em tudo — principalmente os gordos-baixos — nas amizades e nas inimizades, nos gostos e nas aversões, tinham, tanto os homens como as mulheres, uma comprovada coragem física e um amor-próprio nunca desmentido. Em matéria de política, nada para eles era mais vergonhoso e desprezível do que votar a favor do governo por medo de represálias ou por interesses pessoais. Tinham a volúpia da oposição, isso num município dominado por um chefão político autoritário e cruel, que não hesitava em mandar espancar e, se necessário, matar seus adversários.

Conservo uma apagada mas afetuosa lembrança de tia Regina, a mais jovem das irmãs Veríssimo. Ela me aparece na memória baixinha e fornida, com um jeito macio e emplumado de pomba-rola, a mover-se silenciosa pelas salas do Sobrado, os pés gordos e diminutos metidos em chinelas negras bordadas a fio dourado. Em voz alta e com modulações teatrais, costumava ler estórias românticas para Dedé, sua tia solteira, criatura frágil e seca de carnes — venerada por toda a família — e que nos dias de inverno encolhia-se sob o seu xale xadrez, mascando fumo furtivamente. Durante as passagens mais tristes dos romances, nos olhos de ambas cintilavam lágrimas.

Nunca pude compreender por que tia Regina aceitou sem amor a corte que lhe fazia um caixeiro-viajante de origem alemã, homem de bem mas — se não me trai a memória — destituído de atrativos físicos e intelectuais. Mais de uma vez eu os vi ou entrevi noivando na sala de visitas do Sobrado, sentados num sofá, ele tentando agradar a sua bem-amada com palavras, gestos e presentes: ela sentada e silenciosa, a cara fechada, não perdendo oportunidades para manifestar o desagrado que lhe causava a presença do pretendente. Mas casaram-se. A noiva não sorriu no dia da boda. Um ano e pouco mais tarde, morreu de parto.

Quando alguém murmurava, suspirando, "Deus é grande!" — o menino que eu era perguntava a si mesmo se Deus seria maior que um tal Mr. Ernest Hammersmith, jovem magro e espigado, que a mim parecia o homem mais alto do Universo. Os ventos do destino haviam soprado para as bandas de Cruz Alta aquele insinuante súdito britânico de vinte e pouquíssimos anos, nascido na Nova Zelândia. Minha tia Adélia era então a única das meninas do Dr. Franklin que estava ainda solteira. Era uma mulher corajosa, dotada duma fibra de pioneira. Na primeira década deste século, e num burgo conservador e preconceituoso como Cruz Alta, teve um dia a coragem de sair à rua fumando um charuto. Pois essa tia "de faca na bota" foi apresentada a Mr. Hammersmith numa quadra de tênis. Uma amiga lhe soprou ao ouvido: "Agarra esse inglês pra ti". Uma semana depois estavam noivos. Duas semanas mais tarde, casados. ("Extravagância de Veríssimo" — diriam as comadres — "pois onde se viu casar com um estrangeiro que a gente nem conhece a família?") Adélia Veríssimo Hammersmith sabia dedilhar na citara suaves melodias, mas quando necessário era igualmente destra no uso dum revólver ou duma espingarda. Viveu mais de cinqüenta anos com o seu inglês, numa permanente lua-de-mel. Não tiveram filhos. Depois que ele morreu, não suportando a saudade e a solidão, ela se deixou morrer também.

 

Tia Maria Augusta casara-se com um médico natural do Taquari, um certo Dr. Catarino Azambuja. Fraco do peito, como se dizia então, havia-se ele estabelecido em Cruz Alta, lugar famoso pelos seus bons ares e águas. Depois que meu avô morreu (não esquecerei jamais o rápido, trêmulo beijo com que, à instância de meu pai, toquei de leve a testa ainda morna do morto), tia Maria Augusta ficou sendo a senhora do Sobrado. Era fisicamente muito parecida com o meu pai. Tinha como ele uma risada franca e um gênio afável. Ledora voraz de romances, essa tia, a quem sempre votei uma afeição especial, era das poucas mulheres — talvez a única — que naquela pequena cidade serrana sabia ler e falar francês.

Pouco antes da Primeira Guerra Mundial, os Azambuja passaram uma temporada em Paris e levaram consigo tia Adélia, então ainda solteira. Conta-se que um dia as duas irmãs desciam lado a lado os Champs-Élysées quando um francês se aproximou delas e, o chapéu na mão, um sorriso malicioso nos lábios, fez-lhes uma proposta indecorosa. As meninas Veríssimo sem a menor hesitação puseram-se a esbordoar com suas sombrinhas fechadas a cabeça do galanteador, que bateu em retirada, avenida em fora.

 

Recordemos os machos da família. Tenho uma vaga lembrança de tio Columbano, dono dum nome que provocava em mim misteriosas ressonâncias. Alto, de olhos expressivos, tinha bigodes castanhos com reflexos de cobre, grossos e longos como os dos oficiais ingleses que mais tarde eu viria a conhecer nas páginas de Rudyard Kipling. Homem de poucas palavras, escolhera uma profissão que sempre me pareceu estranha para o filho dum estancieiro. Era ourives. Eventualmente complicou sua vida. (Mulheres? Jogo? Não sei ao certo.) Um dia tentou o suicídio. Socorrido a tempo, sobreviveu, porém jamais tornou a levantar-se da cama, onde morreu antes dos quarenta anos.

Meus tios Antônio e Fabrício formaram-se em Odontologia. De todos os filhos do velho Franklin, Antônio era o que mais se parecia fisicamente com o pai: quase a mesma estatura, uma testa alta e arredondada, coroando um rosto fino e tostado, cujas feições, recordadas deste meu ângulo no tempo, me fazem pensar nas de Jawaharlal Nehru. Parecia de ordinário calmo, era parco de gestos e palavras, mas, como todos os irmãos Veríssimo, quando provocado "virava bicho". Tomou parte na Revolução de 1923 — do lado dos revolucionários, é claro — e sua fé de ofício foi das mais brilhantes. Fez algumas incursões ocasionais pela literatura: lembro-me de ter lido um soneto de sua autoria intitulado Lenço Encarnado, no qual ele exaltava o símbolo de seu partido.

De todos os meus tios paternos, Fabrício foi aquele com quem tive maior convívio e intimidade. Era, quando moço, uma figura romântica, esbelta e elegante, uma mecha de cabelo a cair-lhe repetidamente sobre os olhos — e o ar nonchalant com que ele a espaços erguia a mão para repô-la no lugar, como que se tornou uma espécie de "gesto registrado" de sua personalidade. Falava macio, com ares paternais. Sentia-se que tinha um interesse afetuoso pelas pessoas. Seu rosto era uma réplica masculina das feições maternas. Depois duma série de aventuras amorosas muito próprias dos vinte anos — e que punham tias e irmãs em permanente inquietação — casou-se. Teve apenas um, filho, a quem deu o nome do avô. O rapaz formou-se em Medicina e se tornou um grande médico.

 

Creio, no entanto, que o mais fabuloso de todos os Veríssimo era tio Nestor. Retaco, vigoroso como um touro, tinha uma natureza falstaffiana, um tremendo apetite pela vida, uma coragem cega e um tropismo insopitável para as revoluções. Devoto ledor de novelas de capa-e-espada, comprazia-se nas ficções de Alexandre Dumas, Xavier de Montepin, Michel Zevaco, Ponson du Terrail e outros "grandes" do folhetim romanesco do fim do século passado. Detestava o trabalho regular e a submissão ao relógio. Era, sob muitos aspectos, um homem in-temporal. Não quis seguir nenhuma profissão liberal, e estou quase certo de que nem chegou a terminar o curso ginasial.

Como o pai insistisse para que ao menos escolhesse um ofício, Nestor decidiu empregar-se como aprendiz de pedreiro. Mais tarde casou-se com uma moça de Tupanciretã, cometendo assim bigamia, pois já estava casado com a Aventura, dama absorvente, imprevisível e perigosa, da qual jamais se separou pelo resto de sua não mui longa vida.

Dedicou-se também com certo interesse às lides campeiras, que lhe proporcionavam em tempo de paz a atividade que mais se parecia com a ação bélica. O perigo era uma ambrosia para o paladar do guerrilheiro. Nestor, porém, nunca foi um parlapatão. O que sei de seus atos de audácia e coragem, ouvi da boca de seus companheiros de campanha, jamais da sua.

Em tempos de paz era um sujeito de ar pacato, pesadão e de pouca conversa. Caminhava gingando, como se tivesse uma perna mais curta que a outra. ("Que foi isso, Nestor?" — "Lembrança da cornada dum boi filho da puta.") Enxergava mal com um dos olhos, era até possível que fosse cego dele — nunca averigüei bem isso. Duma feita, numa de suas muitas revoluções, comandou o ataque dos rebeldes ao edifício duma intendência municipal. Meteu o ombro na porta, arrombou-a e entrou. Dentro do casarão um soldado legalista esperava, de carabina erguida, pronto para matar o primeiro assaltante que lhe surgisse pela frente. Nestor, porém, foi mais rápido no gatilho, alvejou o inimigo e derrubou-o com um balaço de revólver. Quando, terminado o assalto com a tomada do reduto governista, perguntaram a Nestor como explicava a proeza, respondeu com seu jeitão pachorrento: "Ora, o outro antes de atirar teve que primeiro fechar um olho pra fazer pontaria. Eu que, como Camões, já tenho um olho torto por natureza, nem precisei fechar o cujo pra mirar...".

Em 1923, como capitão das forças maragatas de Estácio Azambuja, Nestor quase perdeu a vida no combate do Santa Maria Chico, em que os assisistas estavam em minoria numérica e muito menos armados que seus inimigos, os quais contavam com soldados da Brigada Militar do Estado, munidos de metralhadoras. O cavalo de Nestor, atingido por um balaço, tombou morto. A retirada dos revolucionários então começou, desordenada. O Veríssimo guerrilheiro pôs-se a desencilhar o animal morto, enquanto as balas passavam sibilando sobre sua cabeça. "Vamos embora, capitão!" — gritou-lhe um companheiro. — "A coisa está preta!" Nestor respondeu: "Os chimangos podem ficar com a carcaça do meu cavalo, mas com meus arreios... essa é que não!". Terminada a perigosa operação, saltou com os arreios às costas para o lombo dum ginete que passava a trote, sem seu cavaleiro.

Em outubro de 1930, à frente de cento e poucos homens, Nestor Veríssimo cercou Cruz Alta, enquanto sargentos do exército sublevavam os dois regimentos da guarnição federal da cidade. Encontrei meu tio na rua, horas depois da tomada da praça, e perguntei-lhe: "Quantos homens o senhor tem?". Bombachas, botas de fole, pala de seda, lenço vermelho amarrado ao redor do pescoço, chapéu de abas largas — Nestor me lançou um olhar enviesado e, com um sorriso pícaro, respondeu: "Um". Entendi que se referia a si próprio, isto é, ao homem em quem tinha confiança absoluta.

 

A mais fabulosa das aventuras desse inveterado leitor de romances de capa-e-espada foi a que viveu como comandante da vanguarda da Coluna Prestes, à qual se juntou quando esta ainda se encontrava no Rio Grande do Sul, no princípio da Grande Marcha. Durante o verão Nestor cavalgava nu da cintura para cima. Fez todo o percurso da Coluna até o interior do Estado da Bahia, onde caiu numa emboscada e foi aprisionado por soldados do 1.° Batalhão da Polícia Militar baiana. Amarrado a uma árvore para ser passado pelas armas, aguardou a morte não sei se com resignação fatalista ou com a vaga esperança de que sua hora ainda não havia chegado. Um jovem tenente da força baiana veio interrogá-lo, possivelmente para colher elementos para a ficha do futuro defunto.

— Nome?

— Nestor de Mello e Albuquerque Veríssimo da Fonseca.

— Onde nasceu?

— No lugar onde minha mãe me pariu.

— Nada de gracinhas! Diga onde nasceu.

— Em Cruz Alta, Rio Grande do Sul.

— Cruz Alta? — repetiu o oficial, o rosto subitamente iluminado. — Mundo pequeno! Imagine que há quase um ano nosso batalhão andou por lá à caça da Coluna Prestes. Que cidade simpática!

— Existem piores...

— Qual nada! É gente mutcho boa. Fomos tratados a vela de libra. Nossa banda de música fez um sucesso danado tocando na praça aos domingos.

— Pois estimo, tenente.

— Muitos de nossos oficiais ficaram noivos de moças da cidade. Eu fui um deles. Conhece a Araci Silveira?

Nestor nunca tinha ouvido esse nome, mas sorriu e disse:

— Se não hei de conhecer! É minha prima.

O tenente voltou-se para dois de seus soldados e ordenou:

— Desamarrem este homem e levem ele para a minha barraca.

A ordem foi cumprida e alguns minutos mais tarde Nestor Veríssimo jantava na companhia do oficial, que lhe mostrava retratos e cartas da noiva. Nestor conservava-se calado para evitar que o outro descobrisse a impostura. Terminado o re-pasto, o tenente bateu-lhe cordialmente no ombro.

— Vou poupar-lhe a vida. O senhor vai ser mandado preso para o Rio de Janeiro.

Cumpriu a promessa. Nestor Veríssimo foi metido num presídio, onde passou dois anos. Aproveitou o tempo para ler novelas e para aprender inglês com o seu companheiro de cela, um homem de boas letras.

O que ele só muito mais tarde ficou sabendo é que, poucos dias depois de seu jantar com o tenente baiano, este recebeu uma carta da noiva cruzaltense em que esta desmanchava irrevogavelmente o noivado.

Quando finalmente o puseram em liberdade, Nestor visitou sua terra natal e uma das primeiras coisas que perguntou aos irmãos foi:

— Quem é essa tal de Araci Silveira? — Informado de que se tratava duma moça, agora casada, disse: — Preciso pedir-lhe a bênção, porque ela é minha madrinha.

E contou a sua estória.

 

Durante o Estado Novo a coragem e as qualidades humanas de Nestor Veríssimo chegaram aos ouvidos do Presidente Vargas, que mandou chamá-lo para uma audiência particular. Nestor vestiu a sua melhor roupa, fez o supremo sacrifício do colarinho e da gravata, e lá se foi, rumo do Catete.

— Sente-se, coronel — disse o ditador, depois de apertar-lhe a mão.

Nestor obedeceu, e Vargas foi direito ao assunto:

— Preciso de seus serviços.

— Pois disponha...

— Estou informado de que o presídio de Fernando de Noronha anda numa verdadeira anarquia. O senhor é o homem indicado para endireitar, moralizar aquela ilha. Aceita o convite?

— Se o senhor permitir que eu leve comigo alguns homens de minha inteira confiança, aceito.

— Quantos?

— Vinte.

— Impossível. Vinte é demais. Dou-lhe dez.

— Presidente, preciso de vinte.

— Sinto muito, coronel, só lhe posso dar dez.

Sem alterar a voz, Nestor replicou:

— Pois então não vou pr'aquela bosta.

Mal pronunciou esta última palavra, caiu em si: estava diante do Presidente cia República. Ficou vermelho, remexeu-se, embaraçado, na cadeira. Getúlio Vargas, porém, atirou a cabeça para trás e rompeu numa franca risada, que lhe saiu da boca com a fumaça do charuto.

— Está bem, coronel. O senhor tem os seus vinte homens. Nestor levou vinte companheiros escolhidos a dedo. Ao chegar à ilha ficou sabendo, entre outras coisas igualmente sórdidas, que um sujeito de maus bofes, um pardavasco truculento e de físico atlético, costumava espancar os prisioneiros, sendo temido tanto pelos guardas como pelos funcionários civis do presídio. Nestor achou que aquele era o primeiro problema a resolver. Um dia mandou formar a guarnição e reunir os prisioneiros e os funcionários numa esplanada. Chamou o temido carcereiro e, na frente de quase todos os habitantes da ilha, deu-lhe de punhos nus uma sova exemplar. Depois, suado, o rosto afogueado, bradou:

— Somos homens e não bichos. De hoje em diante ninguém mais maltrata ninguém nesta ilha. Pretendo melhorar as condições de vida de todo o mundo nesta merda de presídio. Quem tiver alguma reclamação a fazer, que venha ao meu escritório e faça. Minha porta vai ficar sempre aberta para todos!

Anos mais tarde, chamado a dirigir o presídio da Ilha Grande, recebeu a notícia de que o Gen. José Antônio Flores da Cunha, seu adversário na revolução de 1923, ia ser mandado para lá, na condição de preso político. No dia da chegada do ex-interventor do Rio Grande do Sul, Nestor mandou hastear o pavilhão nacional, formou a guarnição, e quando Flores da Cunha pôs os pés no chão da ilha, Veríssimo foi a seu encontro, apertou-lhe a mão e disse: "General, quero lhe comunicar que o senhor não é meu prisioneiro, mas meu hóspede de honra".

Deu-lhe alojamentos confortáveis, tomava com ele prolongados chimarrões em que ambos recordavam guerras e guerrilheiros do passado — enfim, tornaram-se verdadeiros amigos. Tão amigos que, anos mais tarde, depois que Nestor morreu — na cama, como um pacifista, e de morte chamada natural — Flores da Cunha me disse um dia, à porta da Livraria do Globo, em Porto Alegre: "Seu tio Nestor era um homem de verdade. Eu lhe queria um grande bem. Quando tive notícia de sua morte, não a senti menos do que quando perdi um filho num desastre de automóvel".

 

A esta altura, os leitores familiarizados com a minha obra devem já ter descoberto que Nestor Veríssimo me serviu de modelo para a figura de Toríbio Cambará, personagem de O Tempo e o Vento. As coisas do mundo da ficção, entretanto, são muito mais complexas do que parecem. Infelizmente tive pouquíssimo — quase nenhum! — convívio com esse prodigioso tio, que sempre andava longe de nós em suas intermináveis andanças de guerra ou paz. O que fiz no caso da personagem foi combinar minhas vagas recordações dessa invulgar figura humana com estórias que me contavam dela. Desse amálgama resultou "uma outra pessoa", que acabou ganhando vida própria.

Creio necessário esclarecer que a família Cambará não é positivamente uma projeção dos Veríssimo no domínio da ficção, assim como Santa Fé não é uma cópia de papel carbono de Cruz Alta. O próprio sobrado de meu avô Franklin não tem quase nada a ver com o sobrado dos Terra-Cambará. O casarão da "realidade" só tinha de colonial um portão com belos azulejos de Alcobaça — brancos e azuis, com um lírio amarelo em relevo — mas o prédio propriamente dito era de estilo incaracterístico. Entre Licurgo Cambará, dono do sobrado fictício, e o meu avô paterno havia léguas e léguas de diferenças em matéria de temperamento e biografia. Encontro aqui uma boa oportunidade para uma confidencia de romancista. Não tenho a menor simpatia pessoal pela figura humana do filho de D. Bibiana, embora reconheça que ele representa um tipo de gaúcho muito encontradiço na vida real, principalmente na região serrana do Rio Grande do Sul.

 

Chego agora ao Veríssimo que me toca mais fundo. Chamava-se Sebastião e era meu pai. Intelectualmente a mais brilhante figura da família, de certo modo foi aquela em quem as qualidades e os defeitos dos Mello e Albuquerque se manifestavam com mais apaixonada intensidade. No físico, era uma versão urbana e polida de tio Nestor, de cujos pantagruélicos apetites partilhava, apenas de maneira menos rústica. Era, como o irmão aventureiro, um homem de grande bravura. Desconfio, porém, que entre ambos havia uma diferença significativa. Nestor não conhecia o medo. Não creio que essa trêmula flor que não ousa dizer seu nome, jamais tenha vicejado em seu peito marcado de cicatrizes de balaços e talhos. Quanto a meu pai, sua coragem lhe vinha, suponho, dum feroz orgulho de macho, era o produto da vitória da vontade sobre as fraquezas da carne. E essa era talvez a única instância em que ele dizia não ao corpo. Outra coisa: sendo um epicurista, Sebastião Veríssimo amava de tal modo o conforto, as mulheres, a boa mesa, os bons vinhos, as belas roupas, as camas macias — que jamais se sentiu inclinado a meter-se numa revolução e enfrentar os azares e durezas duma campanha. Ficava na cidade, fiel a suas idéias políticas, e era na cidade que travava seus combates particulares contra os adversários, desafiando-os e enfrentando-os. (Às vezes chegava a provocar grupos inteiros.) Se sobreviveu sem jamais ser fisicamente molestado — concluo agora — foi porque os outros não só o temiam e respeitavam, como também sentiam por ele uma afeição irresistível. Sebastião Veríssimo era um sedutor, um feiticeiro. Tinha a palavra fácil e uma extraordinária capacidade de improvisação, o que o tornava um orador muito aplaudido, apesar da voz fraca, sem metal, e levemente efeminada. Sua vaidade era visível a olho nu. Tinha muitas roupas e sapatos, um smoking, uma casaca, um chapéu alto e uma riquíssima coleção de gravatas. Gostava de ser admirado e querido, e sentia um genuíno prazer em agradar e servir os outros. Foi o mais extravagante presenteador, o mais generoso anfitrião que conheci em toda a minha vida. Raro era o dia em que não tivesse pelo menos um convidado à sua mesa. Aos domingos quase sempre tinha três ou quatro. Lembro-me dum famoso almoço dominical para o qual nossa cozinheira preparara um gostoso vatapá — com sotaque gaúcho, naturalmente. Os convivas elogiavam a iguaria que meu pai, à cabeceira da mesa, o rosto afogueado, saboreava, bebendo, a curtos espaços e estalando a língua, goles de vinho francês. Havia em seus olhos um brilho que não lhe vinha apenas — suponho — do prazer de bem comer e bem beber, mas também do fato de estar proporcionando esses mesmos prazeres a seus convidados. De repente lhe veio uma idéia: "Ó Abegahy!" — disse o anfitrião à sua mulher. — "Põe num prato um pouco desse vatapá e manda um dos meninos levá-lo à casa do Martins". Meu irmão e eu nos entreolhamos, sabendo muito bem que um de nós ia ser imolado à generosidade paterna. Coube a mim levar o prato. Saí com uma pequena terrina nas mãos, coberta por um guardanapo. Estava descalço, era um quente meio-dia de verão e as pedras das calçadas quase me queimavam as solas dos pés. Lá me fui, furioso, o estômago roncando de fome, pois eu mal havia começado a almoçar. Quando a esposa do amigo Martins me abriu a porta, soturno, como quem ia dar uma notícia de morte, eu disse: "Tá aqui que o papai mandou". Na volta, para aplacar a minha fúria, rompi a assobiar, caminhando aos pulos, na ponta dos pés, tratando de não assentar as solas por muito tempo nas pedras escaldantes.

Lá por 1916 meu pai pediu a seu pai dinheiro para comprar um automóvel Ford, modelo-T, que custava pouco mais de quatro contos de réis. Conseguiu. E mal aprendeu — e como aprendeu mal! — a dirigir o carro, decidiu levar-nos todos num passeio pela cidade. Minha mãe recusou o convite, porque não confiava no chauffeur (palavra recém-entrada para o nosso vocabulário) e também não permitiu que seus filhos corressem o risco. Dom Sebastião jurou, por todos os santos, que nada de mal nos aconteceria. Nós, que estávamos doidos por andar naquela engenhoca, demos um crédito de confiança ao nosso pai, que pôs o carro em movimento, isso depois de fazer sua primeira "barbeiragem", pois apertou no acelerador sem soltar a trava, de sorte que o veículo entrou numa espécie de tremelique sem sair do lugar onde estava. Por fim o Ford-de-bigode arrancou e se foi, pondo em perigo a vida de transeuntes e assustando os cavalos dos carros de aluguel, ainda pouco afeitos àquela estranha carruagem que roncava, fazia fon-fon e soltava fumaça pelo rabo. O velho Sebastião (Velho? Tinha naquele tempo apenas trinta e cinco anos!) levou-nos Rua do Comércio em fora, e depois enveredou para um dos arrabaldes mais pobres da cidade, a Capoeira, cujas ruas ondulavam em buracos e barrancos. O Ford balançava-se como um navio em alto mar. Quando conseguimos nos safar daquele arraial e voltar para o centro da cidade, meu pai avistou quatro amigos seus, que conversavam à frente da Matriz. Parou o carro e gritou: "Querem dar um bordo?". Os amigos aceitaram o convite e, como não houvesse lugar para todos no veículo, o velho nos ordenou que descêssemos e voltássemos a pé para casa. Obedecemos, revoltados mas mudos, engolindo todos os palavrões de nosso então ainda pobre vocabulário escatológico.

A mania que Sebastião Veríssimo tinha de ser agradável aos outros ia a extremos curiosos. Meu irmão durante anos organizara com muita paciência e trabalho uma razoável coleção de selos. Um dia nosso pai, pelo simples gosto desinteressado de agradar um médico recém-chegado a Cruz Alta, pediu ao menino o seu "tesouro" filatélico e deu-o de presente ao forasteiro, que era também colecionador.

Adquiriu um gramofone, de cuja campânula saíam as mais belas melodias que então existiam no Brasil gravadas em discos. Era um apaixonado da ópera e da opereta. De vez em quando mandava vir a Cruz Alta, sob sua responsabilidade, companhias de operetas italianas. Passava entre amigos assinaturas para um certo número de espetáculos, e cobria o resto das despesas com dinheiro de seu próprio bolso.

Todas as noites, rodeado de amigos à mesa dum café ou no restaurante do Clube Comercial, ali ficava a conversar, a rir e contar e ouvir "causos". Quando chegava a hora de pagar a despesa, ficava indignado, como ante um insulto, quando um dos convivas botava a mão no bolso. Não senhor! Quem pagava era ele! Se o outro insistisse, brigava.

Era um grande causeur, fluente, espirituoso, irreverente. Segundo os boêmios da terra, não havia melhor companheiro que ele para uma farra.

Homem de leituras variadas, embora não profundas, Sebastião Veríssimo, à boa maneira brasileira, era capaz de discutir com brilho assuntos que não conhecia, e livros de que apenas ouvira falar. Sabia de cor versos de poetas brasileiros, portugueses- e franceses. Lia com delícia Guerra Junqueiro. (Quantas vezes eu o ouvi recitar O Melro!) Devorava as Farpas, de Ramalho Ortigão e Eça de Queirós. Conhecia toda a obra do autor de Os Maias. Gostava das crônicas mordazes de Fialho de Almeida. Era íntimo de Herculano, Camilo, Garrett, Antônio Nobre e Antero de Quental.

Conhecia muito bem a História de Portugal. Admirava a Inglaterra, mas seu amor, esse ele o reservava para a França. Tomara uma assinatura da revista parisiense L’lllustration. Sua biblioteca crescia aos poucos. Creio que chegou a ter mais de dois mil livros — isso em Cruz Alta, na primeira década deste século. Lembro-me de nomes que eu via em letras douradas na lombada de volumes ricamente encadernados em couro: Chateaubriand, Lamartine, Taine, Renan, Victor Hugo, Nietzsche, Goethe, Tolstoi, Zola, Stendhal, Flaubert, Balzac... Numa outra estante menos pesada alinhavam-se brochuras, impressas em papel gessado — novelas galantes de boulevard — com ilustrações em que se notavam ainda influências de Toulouse-Lautrec.

Nas reuniões de nossa casa servia-se sempre champanha Veuve Clicquot, caviar russo, atum italiano, sardinhas portuguesas, salsichas de Viena e pâté de foie gras do Périgord. Sob qualquer pretexto ou por motivo nenhum trocavam-se brindes, batiam-se taças, enquanto Caruso fazia vibrar os cristais sustentando as notas agudas de suas árias operáticas.

 

De parceria com seu cunhado e íntimo amigo, o Dr. Catarino Azambuja, Sebastião Veríssimo fundou em Cruz Alta um jornal humorístico, O Calhorda, com o espírito do ridendo castigat mores. Nossa cidade era então um forte reduto republicano, onde mandava e desmandava um dos mais poderosos "príncipes eleitores" do então presidente do Estado, o Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros. O Calhorda não respeitou em suas críticas e sátiras nem o façanhudo general da Guarda Nacional que nos governava com tão tirânica energia. O soba ameaçava mandar prender os diretores do pasquim e fazê-los engolir na sua frente um número inteiro do jornaleco.

Conta-se — e isto tanto pode ser uma ficção como uma realidade enfeitada pela afetuosa fantasia de parentes e amigos — conta-se que o citado chefe político ou algum de seus apaniguados contratou um preto bandido para assassinar meu pai, mediante o pagamento de cinqüenta mil-réis. O facínora aceitou a empreitada, recebeu o dinheiro adiantado e, sabendo que todas as noites o jovem farmacêutico, ao voltar do clube para sua casa, fazia sempre o mesmo trajeto, esperou-o numa emboscada. Quando Sebastião Veríssimo atravessava a praça — mal iluminada por lampiões de querosene, muito distantes um do outro — possivelmente assobiando a Serenata de Arlequim (e este pormenor vai por conta do ficcionista), o sicário sai detrás duma árvore, aproxima-se do moço e diz-lhe brusco: "Me dê o fogo!". Sebastião tirou calmamente do bolso a caixa de fósforos, riscou um deles e, à sua escassa luz, viu uma cara patibular. O criminoso por sua vez fitou a face de sua futura vítima, enquanto durou a minúscula chama do fósforo. Por fim gaguejou: "Seu Sebastião, alguém me pagou cinqüenta pilas pra matar o senhor". Meu pai riscou outro fósforo, sorriu e perguntou: "E você não vai me fazer o serviço?". O bandido soltou um suspiro: "Não posso. O senhor é tão moço, tem uma cara tão simpática, eu lhe pedi fogo e o senhor prontamente me deu... Só acontece que agora tenho de fugir da cidade o quanto antes, senão eles me degolam por eu não ter cumprido minha palavra". Meu pai meteu a mão no bolso, tirou dele uma maçaroca de cédulas e, sem contá-las, deu-as todas ao assassino profissional, dizendo: "Fuja o quanto antes pra bem longe". E se separaram. Quando o outro desapareceu, Sebastião Veríssimo respirou, aliviado. Naquela noite havia esquecido de trazer, como de costume, o seu revólver com cabo de madrepérola.

 

Houve um tempo em que, nos domingos à tarde, no verão, a banda de música do 8.° Regimento de Infantaria costumava dar retretas na praça principal da cidade, na qual, cercado de árvores e de canteiros de relva, erguia-se um quiosque (cruza de pagode chinês com chalé suíço) onde se vendiam bebidas. Não existia em Cruz Alta nenhuma fábrica de gelo. Este costumava vir, não com muita regularidade, de Santa Maria, em caixotes atulhados de serragem. Quando a preciosa carga chegava no trem do meio-dia, a notícia corria pela cidade. "Hoje tem gelo." E o quiosque logo se enchia de fregueses sedentos.

Lembro-me especialmente dum domingo em que meu pai se meteu na sua fatiota de tussor de seda, enfiou na cabeça a sua "picareta" (palheta) e nos pés seus sapatos de tênis,

Solo de Clarineta 21

de acordo com a moda do tempo. Recendendo a perfumes de Guerlain lá se foi ocupar seu lugar a uma mesinha de ferro, ao ar livre, perto do quiosque. Em breve estava cercado de amigos. Pediu uma rodada de cerveja — "Bem geladinha, ó Júlio!" Dava preferência, mesmo nos meses de verão, à cerveja preta, Hércules ou Negrita, bebia-a com deleite e depois de cada longo sorvo lambia a espuma parda que lhe ficava nos lábios. Como fazia calor, mesmo à sombra dos plátanos, Sebastião abanava-se com sua palheta. A banda de música militar chegou ao som dum dobrado cívico. Acomodou-se no lugar de costume e começou o concerto. Tocou primeiro músicas leves: valsas, mazurcas, tangos, havaneiras, galopes, e depois fez um intervalo para entrar na segunda parte, em que interpretaria "música séria". Eu bebia com gosto uma gasosa gelada, quando meu pai me chamou para perto de si, segurou-me do pulso e, com a sua habitual veemência, disse: "Vá lá dizer pro maestro que toque agora A Força do Destino". O regente da banda, o primeiro-sargento Aparício Quadros, era amigo e admirador de meu pai. Tocava tanto clarineta como saxofone. Era um homem alto, robusto e de face rubicunda. Aproximei-me dele: "O papai mandou pedir pro senhor tocar agora A Força do intestino". O maestro sorriu: "Diga pro Dr. Sebastião que vai ser a próxima".

Pouco depois um pot-pourri da ópera de Verdi temperava com suas melodias os ares da praça, em cujas calçadas moços e moças endomingados passeavam e namoravam-se. Em certo trecho da peça musical o Sarg. Aparício, à frente da banda, tocou um solo de saxofone. Essa era a parte predileta de meu pai, que exigiu silêncio dos amigos. "Escutem só essa maravilha!" E tentou trautear a melodia, o que não conseguiu, pois era um desafinado irremediável.

 

Quando hoje procuro analisar o comportamento de Sebastião Veríssimo, comparando o menino com o adolescente e o homem maduro, tropeço em mistérios, não consigo explicar a mim mesmo as suas contradições, entender as suas "transformações".

Ao tempo em que fazia os estudos preparatórios em Porto Alegre, no internato de um conhecido professor inglês, Fredric Fitzgerald, autor de uma gramática da língua inglesa e de um livro de leitura que ficou conhecido como "o frederiquinho", meu pai teria uns dezesseis ou dezessete anos, quando muito. Por sua bondade, pelo seu jeito sisudo — e quem me deu testemunho disso foi um contemporâneo seu, o médico e homem de letras, Dr. Fábio de Barros — era conhecido entre seus colegas de internato como "o vovô".

Corre na família uma estória que vou reproduzir tal como a ouvi da boca de uma velha tia. Aos quinze anos Sebastião Veríssimo apaixonou-se por uma conterrânea de sua idade e um dia, esporeado pela saudade da namorada, escreveu ao pai uma carta em que lhe comunicava sua decisão de abandonar definitivamente os estudos, voltar para sua terra natal... e casar-se. O velho Franklin respondeu-lhe que voltasse, se essa era a sua vontade. Radiante de alegria, Sebastião meteu-se num trem com o seu baú e os seus sonhos de amor. Quando o comboio parou em Espinilho, a última estação antes de Cruz Alta, para quem vem do sul, o menino Sebastião encontrou na plataforma o seu próprio pai, que lhe estendeu a mão para ser beijada, e depois disse, sereno: "Desça. E com a mala". O filho obedeceu, apreensivo, murmurando: "Mas eu não compreendo, papai...". O velho continuou calado. Subiram para o banco duma aranha que os esperava ao lado da pequena estação. O velho estralou no ar o chicote e o cavalo pôs-se em movimento. No caminho (para onde, meu Deus, para onde?) o Dr. Franklin tornou a falar: "Você me escreveu que quer deixar os estudos pra se casar, não? Pois quem casa, primeiro tem que ter dinheiro pra sustentar uma família. Você vai ficar trabalhando num sítio que eu tenho aqui perto".

Um par de léguas mais tarde, pararam diante duma serraria, apearam da aranha, o velho chamou o capataz e disse: "Está aqui o moço que abandonou os estudos e quer se casar. Vai trabalhar na serraria. Trate ele como trata o resto do pessoal. Nada de regalias. Mande ele carregar aqueles troncos... É um bom exercício para um rapaz robusto". — Voltou-se para o filho: — "Até qualquer dia. Deus lhe dê juízo". Voltou-lhe as costas, tornou a embarcar na aranha e tocou para Cruz Alta. Uma semana mais tarde recebia do filho uma carta muito carinhosa em que este lhe manifestava sua disposição de retomar os estudos. O velho mandou-o de volta para Porto Alegre.

Sebastião Veríssimo formou-se em Farmácia, não por vocação e sim — imagina o romancista — porque se tratava do mais curto dos cursos acadêmicos da época. Estava ansioso por Jivrar-se das aulas, da disciplina, da obrigação de estudar, levantar-se a horas certas e ser aprovado nos exames com as melhores notas, como seu amor-próprio exigia. Queria, em suma, retornar o quanto antes à sua terra natal para viver, viver, viver!

Logo que chegou a Cruz Alta, começou a namorar a menina Abegahy, filha dum rico estancieiro, o Cel. da Guarda Nacional, Aníbal Lopes da Silva. Durante os anos de namoro e noivado, o velho Aníbal, que havia algum tempo ia mal de negócios, perdeu tudo quanto possuía. O Dr. Franklin chamou então o filho e lhe disse: "Não sei se você gosta mesmo da Abegahy. Só sei que agora tem de casar com ela, haja o que houver, senão podem dizer por aí que você queria era o dote da moça. O Aníbal é um homem de bem, e meu amigo".

Foi assim que Sebastião Veríssimo, esse polígamo por natureza, esse insaciável femeeiro, casou-se aos vinte e quatro anos com Abegahy Lopes, motivado talvez não só pela advertência do pai, mas também pela mais lírica das intenções, pelo lado romântico de seu caráter, sim, e pelo seu simpático mas irresponsável otimismo. E, afinal de contas — deve ter ele refletido —, quando um homem se casa ele necessariamente não morre para as outras mulheres do mundo...

Ganhou do pai uma farmácia bem sortida e uma residência ao lado dessa farmácia, tudo na mesma quadra em que ficava o Sobrado, que era uma espécie de nau capitania do clã dos Veríssimo. Transformou essa residência, de rústico estilo colonial, numa espécie de castelo da imaginação em que passou a viver como um príncipe.

Por causa de uma vida de intemperança, cedo perdeu a esbelteza que ostentara durante a casa dos vinte anos. Antes dos quarenta era já, irremediavelmente, um homem gordo, a papada a derramar-se sobre o colarinho, um ventre saliente — tudo isso em contraste com os ombros estreitos, as pernas e os braços um tanto curtos e finos. A despeito de seu físico, fazia um sucesso tremendo entre as mulheres, graças à sua lábia, à sua personalidade magnética e — é bom não esquecer — à sua incrível audácia na estratégia e na tática da conquista amorosa.

Relendo às vezes as poucas cartas que possuo de meu pai, pergunto a mim mesmo se pelo exame de sua letra poderia um grafólogo traçar-lhe o retrato psicológico. Sua caligrafia era nítida, graúda, bonita, mas sem enfeites, e não parece denunciar o homem vaidoso que escolhia com um cuidado requintado suas gravatas, fatiotas e perfumes. O tamanho da letra talvez possa denotar generosidade. O que, porém, me impressiona nela é a sua regularidade, coisa inesperada numa pessoa que foi sempre a negação da ordem e do equilíbrio. Ao assinar seu nome, meu pai costumava, por assim dizer, pôr um "rabo" na última letra do nome Veríssimo, transformando-a quase num q. Dizem os peritos em grafologia que esse traço puxado para baixo revela uma tendência para a autodestruição.

 

Meu avô materno, Aníbal Lopes da Silva, — um gaúcho que amava a vida campeira, a seu modo discreto mas obstinada

— era de estatura mediana, forte mas enxuto de carnes. Tinha o rosto e as mãos queimados pelo sol de muitos estios, bigodes longos e uma barbicha meio pontuda a alongar-lhe a face an-gulosa, de traços bem definidos. Vivia a sua vida e jamais se metia na dos outros.

Seus antepassados mais próximos eram naturais de São Borja. Foi carreteiro e depois tropeiro. Muitas vezes levou tropas para Castro, no Estado do Paraná — que ele pronunciava, não sei por que, Paranã, prolongando muito o último ã —, e para cidades da Argentina e do Paraguai, próximas da fronteira com o Brasil. Nada lhe alegrava mais o coração do que contem-piar a amplidão dos campos, respirar o seu ar fino e limpo, dormir ao relento, em cima dos arreios, e preparar ele próprio numa panela de ferro, negra de fuligem, o seu arroz com picadinho de charque, sobre um fogo de gravetos aceso ao lado da carreta, enquanto os bois dormiam à luz das estrelas. Tinha o velho Aníbal um desprezo tocado de ironia por todos os hábitos e símbolos da vida citadina. Achava o conforto excessivo e o uso de máquinas coisas indignas dum homem que se preza. Representava muito bem o gaúcho do Planalto Médio do Rio Grande do Sul, inimigo de arroubos teatrais e outros exageros, nada inclinado a "gauchadas", isto é, exibições públicas de bravura e machismo.

Em matéria de bebidas alcoólicas, era quase um abstêmio. Satisfazia-se com as coisas e os prazeres simples da vida. Entusiasta leitor de jornais, não era, entretanto, amigo de livros. Sua "biblioteca" constava de três volumes: Os Sertões, de Euclídes da Cunha, Martin Fierro, de José Hernandez e Antônio Chimango, de Amaro Juvenal. Dessas três obras só lera a última, mas tantas vezes que lhe sabia os versos de memória.

Não compreendo como foi que Aníbal Lopes da Silva chegou a ser um dia um dos estancieiros mais ricos da região serrana. O que entendo muito bem é a razão por que acabou perdendo tudo quanto possuía. Generoso, sofria duma incurável boa-fé, tinha uma confiança quase cega nos homens, a par de uma absoluta falta de habilidade no trato dos negócios. Homem que sempre mantivera hábitos austeros, mesmo nos tempos das vacas gordas, não deve ter sentido muito a mudança de padrão de vida quando teve de trocar a casa da estância por um rancho e o "palacete" da cidade por uma meia-água alugada.

Uma frase que ouvi muitas vezes de sua boca, de vez em quando me volta à mente com todo o seu pitoresco: "Uns comem para viver, outros vivem para comer, mas eu como porque gosto". Tinha o velho Aníbal uma curiosa ética alimentar. Com a sua voz quadrada e seca, com seu jeito pachorrento de falar, escandindo bem as sílabas, costumava dizer, sempre que se discutiam comidas: "Tendo carne e leite, o más pra mim é droga". Sua sobremesa era quase sempre um prato fundo cheio de leite misturado com pedaços de marmelo cozido, farinha de mandioca, beiju ou grãos de milho. E pontificava: "Misturar doce com leite é coisa pra bundinha". ("Almofadinha", mocinho delicado de cidade.) Um prato que ele considerava indigno dum bom gaúcho era arroz de grãos soltos. O certo mesmo era o pastoso, reluzente de banha de porco.

Maria, a cozinheira de meus avós maternos — isso já no tempo das vacas magras — era uma cabocla oligofrênica, tatibitate, mãe dum filho mongólico e de pai ignorado — o Juvenal — que ela chamava de Dubená, e meu avô de Chimanguinho, com intenções satírico-políticas. Nesse tempo nossa cidade não possuía água corrente nem esgotos, e a água que bebíamos era tirada de poços. Um dia um ratão caiu no poço do quintal do velho Aníbal, e Maria teve ordem expressa da patroa de não usar mais dessa água para cozinhar ou para encher os copos à hora das refeições. Ora, nesse dia assinalado eu almoçava com meus avós. De meu lugar à mesa, observava com interesse cordial o velho Aníbal que, a uma das cabeceiras, comia com seu entusiasmo habitual uma costela coberta de farinha de mandioca, segurando-a com ambas as mãos e metendo-lhe os dentes fortes de bom carnívoro. (Em toda a sua vida jamais se sentara numa cadeira de dentista.) Chegou então o momento orgástico do comedor de costela: quando ele arranca com os dentes a pelanca que cobre o osso e começa a saboreá-la. Os bigodes, as barbas e até o nariz do velho estavam polvilhados de farinha. Nesse momento ele agarrou o copo que tinha diante de si e fez menção de levá-lo à boca. Detive-o com um gesto. Ele ficou com o copo no ar, olhando-me sem saber o que eu queria. Perguntei: "Maria, de onde veio esta água que está nos copos?". A cozinheira respondeu: "Do poço". Voltei-me para meu avô: "Não beba". — "Mas por quê?" — quis ele saber. Expliquei: "Hoje caiu um ratão no poço". — "Então caiu um ratão no poço?" — repetiu ele. Sacudi a cabeça numa afirmativa enfática. O velho olhou em torno, para todas as pessoas que se achavam à mesa, e apertando os olhos numa expressão em que havia ao mesmo tempo desprezo, ironia e uma espécie de desafio, exclamou: "É... mas eu não sou egoísta!". E bebeu toda a água de seu copo, com gosto, em largos sorvos sonoros. E até hoje, passados mais de quarenta anos, não pude ainda atinar com o sentido que o velho deu à palavra egoísta. Quereria ele dizer que não era "homem de luxos" ou que "só os bundinhas se preocupavam com aquelas bobagens"? Mistério.

A todas essas o Chimanguinho, como uma espécie de bobo do rei, dançava, encurvado, ao redor da mesa, cantando uma cantiga sem melodia, na sua língua particular: "Cum-daracum-daracum-cum-cum". O anfitrião apanhou outra costela e liquidou-a. Depois atacou um pratarraço de leite, com dois marmelos cozidos. Maria, à porta da cozinha, ria o seu riso idiota e desdentado. E o Dubená, que era meu amigo, fez alto a meu lado, tomou-me a mão, encostou nela longamente o seu áspero rosto acobreado, e murmurou: "Cum-cum", com uma ternura que me comoveu.

 

Aníbal Lopes da Silva era um contador de estórias nato. Fluente, pitoresco, jamais se perdia em pormenores inúteis. Era direto e tinha um humor seco temperado duma ironia que nunca se tornava sarcasmo. Lembro-me duma ocasião em que me contou que havia narrado a seu amigo Maneco Vieira um episódio picaresco da revolução de 1893. Segurou-me o braço, entrecerrou os olhos e disse: "Riu-se o Maneco. Riram-se outros que estavam por ali".

Nunca como em nossos dias a linguagem e o estilo foram objeto de estudos tão minuciosos e transcendentes. Quando releio Le Degré Zero de l'Écriture, de Roland Barthes, com freqüência me vem à mente um bilhete que o velho Aníbal, de seu sítio num lugar chamado Valos, mandou à sua mulher, que ficara em Cruz Alta. É um modelo de neutralidade estilística e, digamos assim, de substantividade:

 

                   Maurícia:

           Mando-te charque milho e ovos.

           Manda-me meias camisas e ceroulas.

                             Aníbal

 

Quando o casal comemorou suas bodas de ouro, parentes sugeriram que o fizessem repetindo festivamente na igreja a cerimônia religiosa. O Cel. Aníbal aceitou a idéia, mas com certa relutância. E na hora em que — o templo cheio de amigos antigos e novos — estavam os "noivos" no altar, e o padre pediu ao velho tropeiro que se ajoelhasse, este negou-se, explicando que estava "com as juntas enferrujadas". Mais tarde, em casa, desabafou: "Essa é boa! Eu nunca me ajoelhei nem diante da Maurícia, como é que ia me ajoelhar diante daquele padreco?".

Duma feita, ao voltar duma viagem de negócios em que pernoitara em Carazinho, alguém lhe perguntou: "Que tal o hotel?". E meu avô, para minha surpresa, respondeu: "Ora, comme les autres...".

Assinante dum jornal maragato de Bagé, era admirador fervoroso de seu diretor, cujos editoriais políticos costumava ler em voz alta e bem modulada. Um dia cheguei à casa do velho no' momento em que ele vibrava de emoção, lendo um artigo que o citado jornalista escrevera sobre Assis Brasil, às vésperas da revolução de 1923. "Que cosa extraordinária!" — exclamou. E, entregando-me o diário, pediu: — "Leia alto esse editorial". Obedeci. Não tenho o talento da oralidade. Comecei a ler com voz neutra e sem a menor entonação dramática. O velho protestou imediatamente, exclamando: "Mas leia com cadência, menino!". Fiz o que pude, o que não foi muito.

Sempre que sinto o cheiro da fumaça dum cigarro de palhaça primeira imagem que me vem ao pensamento é a de meu avô. Como eram grossos os palheiros que ele fumava, depois de seguir todo um ritual: alisar a palha com a faca, picar o fumo em rama, amaciar suas esquírolas no côncavo da mão esquerda com a parte mais carnuda da mão direita, depois enrolar o cigarro e finalmente acendê-lo na chama do isqueiro de pederneira. Era um ritual fascinante.

 

Tentemos agora traçar um retratinho de minha avó materna que, por parte dos Leite de Morais, tinha entre seus antepassados remotos um famoso bandeirante paulista, coisa que ela sempre ignorou e que se eu sei agora é graças à informação de um amigo historiador.

  1. Maurícia era uma serrana trigueira, com feições que lembravam as de uma índia, não tupi-guarani, mas pele-ver-melha. Era econômica ao extremo, não só no que dizia respeito a dinheiro e outros bens materiais, como também a gestos e palavras. Não creio que fosse destituída de afeto, mas era certo que tinha pudor de demonstrar seus sentimentos. Nada amiga de abraços e beijos, seu interesse pelos netos manifestava-se na insistência com que nos seus almoços ou jantares exigia que "os marotos" comessem tudo que a vovó lhes punha nos pratos. Para ela gordura era sinônimo de saúde e beleza física. "D. Maurícia, que é que a senhora acha da Amelinha?" Resposta: "Uma moça linda, viçosa, corada e de pernas grossas". (Lembro-me de como os homens da minha infância gostavam de mulheres de gâmbias grossas.)

Sempre associei o nome e a figura dessa avó materna a certos odores, coisas de comer e condimentos: noz-moscada, arroz-de-leite polvilhado de canela, doce de figo em calda com cravo, broas de milho e pessegada com queijo de estância. E — coisa curiosa — até hoje, sempre que vejo moscas, penso nessa avó, com a qual tive longo convívio mas pouca intimidade. Em sua casa havia, em cima de mesas e aparadores, pratos fundos cheios de água com vinagre para atrair e matar moscas. Vi muitas vezes D. Maurícia andando de peça em peça na caça dos importunos insetos, procurando apanhá-los com as mãos, em pleno vôo. Chegou a tornar-se uma caçadora exímia.

Essa avó, de quem acabo de dar um instantâneo em sépia, tinha um vocabulário um tanto arcaico mas limpo. Só uma vez a surpreendi fazendo um comentário malicioso. Estava debruçada à sua janela quando viu passar pela calçada uma jovem senhora que, segundo a voz do povo, costumava enganar o marido com outros homens. D. Maurícia fez um sinal na direção da moça e me disse: "Parece que essa também dá comida pra fora...".

 

Dos dois filhos machos do casal, um deles, Americano — de nome, não de nacionalidade — permaneceu na cidade e tornou-se comerciante. O outro, Tancredo, preferiu o campo, seguindo os passos do pai. Eram ambos homens de bem mas, como o velho Aníbal, pouco afortunados em matéria de negócios. Americano, segundo o dizer de sua própria mãe, vivia sob a influência do "bicho-carpinteiro". Não esquentava lugar nas visitas quase diárias que fazia aos pais. Ficava sentado na ponta da cadeira, quase sempre com o chapéu na cabeça. Incansável trabalhador, ganhou fortunas, que perdeu no jogo de cartas — sua grande paixão — ou em negócios feitos com pessoas que traíram sua confiança e sua boa-fé.

Tancredo era um homem alto, indiático, robusto, mas sem excessos de carnes, a pele dum moreno que o sol da campanha tostava cada vez mais. Tinha uns olhos miúdos e mui vivos. Lembro-me mais de suas ausências que de suas presenças, pois esse tio quase sempre andava conduzindo tropas ou cuidando de suas fazendolas (arrendadas) em lugares distantes de Cruz Alta. Como o pai, esse tio campeiro costumava fazer observações irônicas sobre pessoas, animais e coisas — tiradas que nada tinham a ver com uma expressão de acanhamento que de ordinário lhe dava ao rosto um ar de mandim. Quando contava suas estórias humorísticas, eu notava que ele ria mais com os olhos do que com a boca.

Eram esses avós e tios — observo agora, nesta distância no tempo — gente quase absolutamente amelódica. Não me recordo de tê-los ouvido assobiar ou cantarolar o que quer que fosse. Mas não! Agora me ocorre que numa tarde de inverno, na década dos 20, meu avô — quase sempre de chapéu de abas largas na cabeça, mesmo quando dentro de casa — estava sentado junto da janela, olhando a chuva cair, quando de repente rompeu a assobiar uma espécie de melopéia que, muito surdo, ele próprio talvez não estivesse escutando com clareza. Era pura música atonal, na certa de sua própria invenção e na qual julguei perceber aqui e ali mal contidas saudades das campinas, tropeadas e rodeios d'antanho.

 

Mas falemos um pouco das meninas do Cel. Aníbal Lopes da Silva. A mais velha de todas era a minha mãe. Chamava-se Abegahy, e até hoje não consegui descobrir de onde meu avô desencavou esse nome. (Corria em uma de suas perdidas estâncias um rio chamado Gahy.) Seria a sua maneira pessoalíssima de pronunciar Abigail? Nasceu ela em Cruz Alta, nos tempos em que seu pai ainda era um abastado fazendeiro, o que não impedia que a espartana D. Maurícia a obrigasse a aprender e fazer trabalhos de agulha, chegando a amarrá-la pelo tornozelo ao pé duma pesada mesa, para evitar que a menina fugisse. Aracy, a segunda das filhas, tinha olhos vagamente oblíquos, era estudiosa e apreciava a leitura de livros. Casou-se com um caixeiro-viajante alagoano, que se estabeleceu em Cruz Alta com uma casa de comércio. Álvaro Araújo (como me lembro de sua voz nordestina e de seus bigodes de pontas retorcidas para cima!) foi infeliz nos negócios, mas, homem de coragem, refez sua vida em Corumbá, no Mato Grosso, onde se tornou um membro respeitado e querido de sua nova comunidade. A mulher seguiu-o e partilhou com ele as dificuldades dos primeiros tempos. Tiveram cinco filhos.

A mais nova das três moças, Iracema, sempre me pareceu a favorita de D. Maurícia. Casou-se com um advogado de São Gabriel, o Dr. João Raymundo da Silva Neto, um homem de inteligência invulgar.

Creio que nesse lado da minha família as mulheres eram mais enérgicas e moralmente corajosas que os homens. Isso talvez explique a presença em meus romances de personagens femininas de caráter forte como Olívia, Fernanda, Bibiana, Maria Valéria e principalmente Ana Terra.

 

Não quero relembrar minha mãe contra um fundo musical de violinos plangentes. Por ora direi que D. Bega era tão diferente de meu pai quanto a água do vinho. (Uso aqui propositalmente este lugar-comum comparativo.) Ele era um gastador imoderado, ao passo que ela era econômica. Gregário, tinha ele uma capacidade inata para estabelecer relações humanas, ao passo que ela era uma pessoa de poucos amigos, embora incomparavelmente mais constante nas suas afeições, as quais, como no caso de sua mãe, não sabia externar.

Meu pai era um sonhador, minha mãe uma realista. Enquanto ela mantinha os pés firmemente plantados na terra, ele se deixava erguer no balão iridescente de sua fantasia, recusando ver a realidade, oferecendo a Lua a si mesmo e aos outros, desejando sempre o impossível. A sobriedade seca de D. Bega era uma rústica moldura que dava um esquisito relevo aos exageros e extravagâncias do marido. Sebastião Veríssimo deixava que seu otimismo lhe dirigisse o raciocínio, ao passo que sua companheira conservou durante toda a vida uma inesgotável reserva de pessimismo. Como sempre esperava o pior, jamais o Destino apanhou-a desprevenida.

Tinha uns olhos negros e lustrosos, duma mocidade que durou até o dia de sua morte, aos setenta e oito anos. Ao menino e ao adolescente que fui, sempre impressionou a expressão de tristeza desses olhos. O velho que hoje sou ainda não exorcizou de todo esse par de ternos fantasmas.

 

Nasci a 17 de dezembro de 1905, sob o signo de Sagitário. Andavam no ar ecos da guerra russo-japonesa, e os jornais comentavam ainda os horrores do massacre de São Petersburgo. Relutei em deixar a paz do ventre materno para entrar neste mundo, como numa presciência de seus horrores e absurdos. Fui arrancado a ferros e, resultado dessa violência, tenho uma pequena cicatriz ao lado de um dos olhos. Essa difícil "passagem de túnel" talvez explique a minha claustrofobia, a minha aversão aos ambientes confinados, às cavernas, às cabinas de trem ou vapor, em suma, a todos os lugares que me ameacem com a possibilidade de sufocação, estrangulamento...

Num de meus retratos mais antigos apareço como um bebê de seis meses, de cara lunar e morena, olhos escuros e graúdos, franja castanha sobre a testa arredondada, sorriso aberto e uma certa expressão que hoje, com uma alegria narcisista, tenho visto vagamente reproduzida nas faces de muitos de meus netos.

Dois anos depois que posei para esse retrato, nasceu o meu único irmão, Ênio. Não creio que tenha tido para com ele o ressentimento e a hostilidade que em geral o primeiro filho manifesta quando o "intruso" aparece. Crescemos juntos na mesma casa, sem conflitos realmente sérios que tivessem merecido registro especial na crônica da família. Ênio, porém, era o que se costumava chamar "um guri brabo". Muitas vezes, quando eu tinha sete anos e meio e ele cinco, envolvíamo-nos em rápidos e cômicos pugilatos. Sempre que meu irmão me atacava corporalmente, meu ímpeto natural era o de responder tapa com tapa, beliscão com beliscão. (Se conto estas coisas aparentemente sem importância é porque me parece que elas podem ajudar o leitor a compreender, através do menino que fui, o homem que hoje sou.) Eu investia contra o agressor de punhos cerrados, mas era contido a meio caminho pela consciência de minha superioridade física sobre ele e da minha responsabilidade de irmão mais velho. Achava que era uma covardia bater num menino fisicamente menor e mais fraco que eu. Nesse momento, então, procurava transformar o impulso agressivo em ternura — o que não era fácil — e punha-me a abraçá-lo e beijá-lo, os dentes ainda cerrados de raiva, e assim ia deixando que a fúria se acalmasse e que minha atitude acabasse contagiando o "adversário". Passou o tempo e um dia, já com doze anos, esqueci esse espírito cristão e, provocado pelo meu irmão, reagi atracando-me com ele. (Creio que disputávamos a posse duma gaiola vazia.) Não contava, porém, com um fator importante. Aos nove anos, Ênio começara a crescer como um jerivá e estava um "homenzarrão" mais alto e forte que eu. Resultado: fui derrubado ao chão e mordi o pó da derrota. "Conheceu, papudo?" — gritou, afogueado e ofegante, o vencedor, prendendo com ambas as mãos minhas espáduas contra o solo. Tive então uma reação que dali por diante devia repetir-se muitas vezes em circunstâncias idênticas ou semelhantes. Desatei a rir. E meu riso desarmou o contendor. Entreguei-lhe o troféu, isto é, a gaiola, e firmamos um tácito tratado de paz que até hoje, passados mais de cinqüenta anos, continua ainda em vigor. Embora muitas vezes separados pela geografia, durante largos períodos de tempo, Ênio e eu nunca perdemos o sentimento de família, jamais ficamos estranhos um ao outro. E hoje, sempre que nos encontramos, voltamos à infância num faz-de-conta e, sob o olhar entre perplexo e crítico de nossos filhos e netos, representamos cenas inteiras do passado —- jogamos pulso, simulamos lutas corporais (nossa avó Maurícia dizia "alôites") e não raro rolamos pelo tapete. Continuo a ser vencido.

 

Aos quatro anos de idade caí gravemente doente e fui desenganado por vários doutores locais convocados para uma conferência. Meu tio, o Dr. Catarino Azambuja, então recém-formado em Medicina, conseguiu com meu avô Franklin o dinheiro necessário para mandar vir de Porto Alegre o mais famoso médico pediatra do Estado. O Dr. Olinto de Oliveira fez tudo quanto estava a seu alcance para me salvar a vida. O diagnóstico — e espero que os doutores se tenham enganado — era meningite complicada com broncopneumonia. Creio desnecessário esclarecer que sobrevivi.

Numa das lembranças mais remotas que guardo da minha infância, estou de pé em cima duma mesa, convalescendo da quase fatal enfermidade, magro e fraco, cercado de tias, e avisto o Dr. Catarino que se aproxima de mim em mangas de camisa, o casaco dobrado sobre um dos braços, um sorriso mal escondido sob os bigodões, um brilho de malícia nos olhos claros. "Gafanhoto!" — grita ele, rindo. Sim, minhas pernas e braços deviam estar tão finos que na certa eu parecia mesmo um inseto. Curioso: recordo também o sentimento de indignação que essa palavra me provocou.

Outra lembrança longínqua que tenho é a do menino de cinco anos que da janela de sua casa, certa noite, ficou a espiar, intrigado, o cometa que luzia no céu por cima da Fábrica de Massas Alimentícias, de Rafaele Dell’Aglio, anunciando o fim do mundo. Puro boato.

 

Menino um tanto apático, cara e olhos duma melancolia de bugre, eu vivia mais no mundo da imaginação que no da realidade. Minha mãe às vezes me surpreendia nesses momentos de tristeza e, entre penalizada e terna, exclamava: "Tibicuera!". Aprendi a soletrar muito cedo, em casa. Mais tarde, na escola primária, fui um tanto mimado pelas professoras, por causa do prestígio social de meu pai. Lia correntemente, sabia o meu pouco de História do Brasil, tirava boas notas em Lições de Coisas, mas tinha as piores relações imagináveis com os números, que me causavam vertigens. Aprendi a duras penas três das quatro operações, mas empaquei na conta de dividir. Como se aproximassem os exames de fim de ano, e eu estivesse correndo o risco de ser reprovado por causa da Aritmética, D. Margarida Pardelhas, diretora da escola, me levou a meu pai e lhe disse: "Fizemos tudo que estava ao nosso alcance, mas não conseguimos meter na cabeça deste menino a conta de dividir". Pronunciou estas palavras apocalípticas e se foi no seu passo duro e marcial de coronel prussiano. Fiquei envergonhado, com um calorão nas orelhas. Meu pai me olhou e disse: "Acabas de receber o diploma de burro". Depois dessa cena confiou-me aos cuidados magisteriais dum senhor que naquela época estava hospedado no Sobrado. Chamava-se Miguel Maia, era franzino, tinha no rosto chupado, de um amarelo citrino, uma permanente expressão de azedume. Homem inteligente e culto, lia Nietzsche e Schopenhauer. Era pessimista, achava a vida um fardo absurdo. Sofria do que naquele tempo se chamava de "neurastenia aguda", e chegara a tentar o suicídio, cortando as veias do pulso com uma navalha. Socorrido a tempo, convalescia agora na mansão dos Veríssimo, fechado num quarto de onde haviam sido removidos todos os instrumentos cortantes. Aprendi com ele em duas horas a fazer conta de dividir. Recebi então de Miguel Maia o maior dos elogios —• pois as frases têm duplo ou triplo sentido, dependendo da entonação que se lhes dá. Ao perceber que eu compreendia suas explicações com facilidade, o ex-suicida olhou-me fixamente e exclamou: "Este filho da puta!".

 

                   A PRIMEIRA FARMÁCIA

Se eu contasse num romance o que era nossa casa — principalmente a Farmácia Brasileira, de Sebastião Veríssimo, nas primeiras duas décadas deste século, creio que não faltaria quem me acusasse de exagerado ou mitômano. Vou dar aqui apenas uma desmaiada e tímida idéia desse estabelecimento e de sua gente, tal qual eu os via.

A farmácia propriamente dita ficava separada da casa residencial por um corredor pavimentado de mosaicos, e no qual se viam mesas e cadeiras de madeira e metal igual às que havia ao redor do quiosque da praça principal da cidade. Amigos de meu pai costumavam aparecer às horas mais improváveis do dia, sentavam-se a essas mesas e, como se estivessem num bar, batiam palmas e pediam à primeira criada que aparecesse uma cerveja bem fresquinha, um cálice de Parati ou uma gasosa. Os mais "civilizados" bebiam champanha francesa e comiam pedacinhos de pão barrados de caviar russo. Meu pai costumava contemplar essas cenas com um radiante sorriso de bom anfitrião.

Como tivesse tido o cuidado de preparar ele próprio um prático para tomar conta do laboratório da farmácia, estava livre da aborrecida tarefa de aviar receitas. Miguel Paoli, filho de imigrantes italianos, uma jóia de rapaz, fora escolhido para o posto. Além dele havia mais dois ou três adolescentes que o ajudavam no laboratório, lavando vidros ou atendendo os fregueses ao balcão. Nas horas vagas corriam atrás das empregadinhas da casa e metiam-se com elas pelos cantos, em infindáveis agarramentos.

 

A farmácia era o mais importante ponto de reunião dos vadios e dos aposentados da cidade. Havia as horas do chimarrão — dez da manhã e cinco da tarde — em que a cuia andava de mão em mão e a mesma bomba de prata de boca em boca. Nas casas de negócio em geral não se permitia que pessoas estranhas ao serviço transpusessem a muralha simbólica do balcão. Mas era justamente nas farmácias — onde o laboratório devia ser uma espécie de santuário — que essa regra não era seguida a rigor. Assim o plácido Miguel tinha de aviar as receitas médicas cercado de intrusos, curiosos, e às vezes estabanados e perguntadores. Era em meio duma algazarra e dum vaivém de feira que ele lidava com drogas que podiam ser mortíferas quando não pesadas com uma precisão de miligrama. Essas figuras humanas estavam como que a oferecer ao futuro romancista elementos para uma variada e colorida galeria de personagens. O misterioso computador de meu inconsciente ia sendo assim programado sem que eu soubesse. Havia entre os freqüentadores habituais da farmácia "gaúchos buenachos", admiráveis contadores de "causos", mentirosos patológicos, pelo menos um cretino clinicamente reconhecido, um pederasta, um tuberculoso, um sujeito que sofria de furunculose, vários portadores de bronquites crônicas, políticos da oposição, oficiais do Exército — homens que em geral vinham do Rio ou do Norte do país e que eram tratados por uns com circunspecta desconfiança e por outros com uma atenção bajuladora. E, claro, nunca faltava um caixeiro-viajante com suas anedotas e trocadilhos. Sobre que conversava essa gente? Ora, contavam mexÉricos locais, discutiam política, sim, e mulheres, principalmente chinas, "raparigas", pois estes eram nomes que então se davam às prostitutas. Recordavam proezas heróicas ou eróticas, episódios de passadas revoluções. Exagerava-se muito. Discutiam também futebol com uma fúria e uma paixão que às vezes levava os contendores ao que, em linguagem jornalística, era designado como "vias de fato". É natural que entre 1914 e 1918 os membros da "roda de chimarrão" comentassem com explicável interesse a Guerra Européia. Eram todos aliadófilos, mas como nunca falta um boi-corneta numa tropilha, havia entre eles um germanófilo, que meu pai de ordinário fulminava com suas ironias, quando, perdida a paciência, não ameaçava quebrar-lhe a cara. Sebastião Veríssimo costumava comemorar as vitórias dos aliados sobre os boches com champanhadas e fazendo tocar no seu gramofone a Marselhesa, que eu conhecia como o alosanfã. A vibrante canção marcial me produzia calafrios e trazia lágrimas aos olhos de meu pai.

E a cuia prosseguia na sua ronda, de mucosa em mucosa, enquanto a chaleira chiava em cima do fogareiro de pressão, marca Primus. Existem objetos importantes na infância de todos nós. Na minha, além desse tipo de fogareiro e do gramofone de campânula, marca Victor, havia um ferro de passar roupa, com seu quente cheiro de brasa, umas lâmpadas de acetileno que entravam em atividade sempre que a luz elétrica falhava, a máquina Singer em que D. Bega cosia, e sua grande tesoura de ferro, que apareceria trinta anos mais tarde em O Tempo e o Vento, nas mãos de Ana Terra, que com ela cortava o cordão umbilical dos recém-nascidos que partejava.

Enquanto os membros da fraternidade do chimarrão prosseguiam no seu intercâmbio de micróbios, Miguel Paoli assobiava de mansinho, numa distraída obsessão, algumas notas do Carnaval de Veneza, e preparava, sereno, papéis de calomelano ou supositórios de glicerina, diáfanos cones que quase sempre provocavam entre os presentes piadas pornográficas saudadas com gargalhadas estentóreas.

 

Na sala de operações da farmácia, o Dr. Cesare Merlo, cirurgião italiano, novo na cidade, trabalhava sem cessar. Era alto e elegante, tinha uma bela voz de barítono, e a barba castanha lhe dava um ar de conde de opereta. Murmurava-se que havia roubado a um amigo, na Itália, a mulher com quem vivia agora, D. Marianna, simpática ragazza de olhos vivos e voz meio rouca, que eu achava muito parecida com a Gigetta, personagem duma série de filmes cômicos do cinema italiano.

Garantia-se na roda da farmácia que o marido legítimo de D. Marianna jurara assassinar o Dr. Merlo, e isso explicava o fato de um cirurgião de tal calibre ter vindo bater com os costados naqueles cafundós, onde pela graça de Deus vivíamos.

A reputação do médico de "mãos mágicas" aumentava dia a dia, de sorte que não só da nossa cidade como também das colônias italianas do interior do município pacientes chegavam-lhe às dezenas. E o cirurgião operava hérnias, extraía tumores, fazia ablações, laparatomias... e o olor das gostosas comidas da mulata Paula, nossa emérita cozinheira, evolando-se da cozinha — que ficava a uns vinte passos da sala de operações — muitas vezes misturava-se no ar com as emanações de éter, clorofórmio, formol e com o doce-enjoativo-pegajoso cheiro do pus que manchava dum amarelo de mostarda os algodões e as gases ensangüentadas do lixo operatório, que era atirado na funda fossa da latrina, numa das extremidades do pátio pavimentado de tijolos, comum à farmácia e à residência.

Um dia, um gaiato com um mórbido conceito de humor colocou na soleira da porta de nossa cozinha um rim humano, deformado por um tumor, que o Dr. Merlo acabara de extirpar do corpo dum paciente. "Sia" Paula botou a boca no mundo e, pelas dúvidas, insultou as mães de todos os suspeitos.

 

Meu pai mandara construir nos fundos da farmácia dois pavilhões de madeira para abrigar os doentes recém-operados, que lá ficavam até o dia em que o cirurgião os declarava em estado de voltarem para suas casas ou serem removidos para o cemitério.

Recordando deste ângulo do tempo e do espaço as cenas a que assisti naquele pátio, não posso deixar de concluir que elas tinham muito dos quadros de Bosch, Bruegel e do Goya dos Caprichos e das pinturas da Quinta del Sordo. Lá estavam vários dos elementos com que jogaram esses três grandes pintores. O cômico alternava-se com o trágico, o pitoresco com o grotesco, o sonho com o pesadelo. Era aquele pátio um palco em que se representavam, às vezes simultaneamente, trechos de ópera bufa, dramas do tipo da Cavalleria Rusticana e cenas de Guignol.

Enquanto um dos colonos estava estendido na mesa de operações e o Dr. Merlo, possivelmente cantarolando o Torna a Sorrento, remexia-lhe as tripas, os membros da família do paciente ficavam no pátio a rezar e soltar suspiros e exclamações. Quando o operado morria — o que era raro, pois o barbudo tinha boa mão — seus familiares rompiam a chorar e a blasfemar. Mamma mia! Figlio mio! Sporca Madonna!

Lembro-me dum colono que chegou à farmácia trazido por familiares seus. Contaram-me que o pobre homem estava abrindo uma picada no mato de seu sítio, quando sobre ele tombou enorme pinheiro, um de cujos galhos pontudos lhe perfurou os intestinos. Vi-o no momento em que, estendido numa padiola, ele entrava gemendo na sala de operações. Pelo buraco do abdômen escorriam-lhe fezes.

Convalescentes desfigurados e lívidos, trêmulos de voz e gestos, ensaiavam à frente dos pavilhões seus primeiros passos.

Havia também bichos no pátio e naquelas casas: cachorros, gatos e, clandestinamente, ratos. Os gatos corriam atrás dos ratos para comê-los, ao mesmo tempo em que estes tratavam de esquivar-se das patas e dentes dos cachorros, os quais perseguiam as cadelas, bem como os empregados da farmácia caçavam as criadinhas da casa. Os animais faziam o amor ao ar livre, à vista de todos, ao passo que os rapazes e as raparigas escondiam-se atrás das portas ou no fundo de porões. E eu, que ainda era virgem, vivia em permanente excitação ante aqueles espetáculos eróticos.

Essas atividades sexuais por algum tempo estiveram associadas na minha memória ao bodum dos quartos dos doentes, ao cheiro de sangue, pus e desinfetantes, bem como às imagens do lixo operatório: segmentos de músculos, aponeuroses, pedaços de estômagos e intestinos... Isso talvez explique a preocupação deste escritor, revelada em vários romances, de limpar, arejar o ato sexual, dando-lhe um caráter esportivo. Exemplo: Vasco Bruno e uma hígida Fráulein amando-se ao sol no fundo dum barco, no meio do rio Guaíba varrido de vento, sob um céu lavado e azul (Um lugar ao Sol).

Através das portas entreabertas daqueles quartos sórdidos, vislumbravam-se nudezes pálidas e esqueléticas (El Greco) ou fornidas e róseas (Rubens). Enfermeiros em mangas de camisa faziam lavagens intestinais em doentes deitados em decúbito dorsal, com os joelhos erguidos, ao mesmo tempo em que, a um canto do mesmo compartimento, membros da família do paciente comiam pão com queijo e alho, e bebiam vinho (Bruegel). E não faltavam nunca as bruxas de Goya.

 

Duma feita, no silêncio gélido duma noite de agosto, um grito partiu de um dos pavilhões. Um dos convalescentes metera-se furtivo na cama duma jovem colona corada, carnuda e calipígia, a qual, acordada pela presença resfolgante do estranho, que lhe procurava, afobado, a boca e o sexo, rompeu a gritar em pânico, acordando o pai que, operado na véspera, dormia no mesmo quarto. Orientado pelos gritos da filha, o siciliano compreendeu o que se estava passando, ergueu-se da cama, apanhou a faca que guardava debaixo do travesseiro, e investiu contra o Casanova, o qual, descalço e de camisolão branco, rompeu a correr, ganhou a rua e desapareceu, como que engolido pela boca glacial da noite. Em breve o pátio estava fervilhante de gente em grande algazarra. O velho italiano achava-se caído de borco sobre o pavimento, numa poça de sangue, pois os pontos do talho da operação se haviam rompido. Chamado às pressas, o Dr. Merlo recoseu o homem a frio e meteu-o de novo na cama. O pai ultrajado sobreviveu, mas o conquistador foi encontrado morto numa sarjeta, no dia seguinte. Estava rígido, com o corpo coberto de geada. "Colapso cardíaco" — rezava o atestado de óbito. Na roda do chimarrão da farmácia, porém, murmurou-se que o gringo tinha morrido de frio.

A todas essas o bom Miguel assobiava macio e desafinado as quatorze notas do Carnaval de Veneza. Minha mãe, em casa, pedalava incansável a sua Singer. Quanto a meu pai, esse continuava a representar com a mais sincera naturalidade seus múltiplos papéis naquela comédia provinciana, em que era, alternadamente, Don Juan, Falstaff, Don Quixote, D'Artagnan, Tar-tarin de Tarascon e Pedro Malasarte.

 

Às vezes, tarde da noite, homens batiam à porta da farmácia ou da nossa residência, trazendo nos braços, ferido e sangrando, alguma vítima das brutalidades dos capangas do chefe político local ou alguém que fora "lastimado" numa briga na Capoeira ou no Barro Preto. Lembro-me de que certa noite — eu teria uns quatorze anos, quando muito — encarregaram-me de segurar uma lâmpada elétrica à cabeceira da mesa de operações, enquanto um médico fazia os primeiros curativos num pobre-diabo que soldados da Polícia Municipal haviam "carneado". Eu terminara de jantar e o que vi no relance inicial me deixou de estômago embrulhado. A primeira coisa que me chamou a atenção foi um polegar decepado, que se mantinha pendurado à mão esquerda da vítima apenas por um tendão. O ferimento mais horrível de todos era o talho, provavelmente de navalha, que rasgara uma das faces do caboclo duma comissura dos lábios até à orelha. Tinha-se a impressão de que o homem estava sorrindo de tudo aquilo. Seus olhos conservavam-se abertos e de sua boca não saía o menor gemido. Um golpe, provavelmente de adaga, lhe havia descolado parte do couro cabeludo. Pelo talho do ventre escapava-se a madrepérola viscosa dos intestinos. Foi essa a primeira vez na vida que senti de perto o cheiro de sangue e de carne humana dilacerada. Apesar do horror e da náusea, continuei firme onde estava, talvez pensando assim: se esse caboclo pode agüentar tudo isso sem gemer, por que não hei de poder ficar segurando esta lâmpada para ajudar o doutor a costurar esses talhos e salvar essa vida? Por incrível que pareça, o homem sobreviveu.

Desde que, adulto, comecei a escrever romances, tem-me animado até hoje a idéia de que o menos que um escritor pode fazer, numa época de atrocidades e injustiças como a nossa, é acender a sua lâmpada, fazer luz sobre a realidade de seu mundo, evitando que sobre ele caia a escuridão, propícia aos ladrões, aos assassinos e aos tiranos. Sim, segurar a lâmpada, a despeito da náusea e do horror. Se não tivermos uma lâmpada elétrica, acendamos o nosso toco de vela ou, em último caso, risquemos fósforos repetidamente, como um sinal de que não desertamos nosso posto.

Meu pai, indignado, protestava contra essas brutalidades, atacando os donos do poder oralmente, onde quer que estivesse, ou pela imprensa, quando encontrava algum jornal suficientemente corajoso para publicar artigos seus contra as arbitrariedades do governo municipal e estadual. Estava sempre pronto a asilar em sua casa os perseguidos, sem jamais esperar desses gestos qualquer resultado material. Eles gratificavam, isso sim, o seu ego, faziam ondular o seu penacho, reforçavam sua reputação de paladino, a sua luminosa imagem pública de chévalier sans peur et sans reproche.

 

Ah! Mas eu lia reproches a meu pai nos olhos, na face e principalmente nos fundos suspiros de minha mãe, que não lhe ignorava as infidelidades. Reprovava ela também os excessos de gastos do "Sastião". Não desgostava de todo das festas que davam em casa, mas sabia que o marido se excedia em prodigalidades, extravagâncias e caprichos de homem rico, e isso sem nenhuma base econômica sólida. A farmácia ia mal, entregue ao Miguel Paoli — competente como laboratorista, honrado como homem — mas uma dessas criaturas cuja fraqueza e bondade o impediam de dizer não, de sorte que não existia na cidade quem não tivesse crédito ilimitado na Farmácia Brasileira. As vendas a dinheiro diminuíam dia a dia, e raramente ou nunca os devedores pagavam suas contas.

Sebastião Veríssimo, feliz e despreocupado, pelo menos aparentemente, continuava na sua boa vida. À noite recolhia-se tarde, às vezes à hora em que os galos cantavam, anunciando a aurora. Acordava ao meio-dia, já interessado e curioso quanto ao que ia comer ao almoço. Farejava a cozinha, provava das panelas, confabulava com a cozinheira, escolhia os seus vinhos, (o Médoc era um de seus preferidos), e depois saía à procura de algum amigo para sentá-lo como convidado à sua mesa. Servido o almoço, comia com o alegre apetite de sempre. Findo o repasto, ia dormir a sesta, que se prolongava até cerca das quatro da tarde, hora em que o anfitrião se levantava, fazia uma excursão meramente social pela farmácia, conversava com um que outro dos freqüentadores da roda vespertina de chimarrão, e deixava-se ficar por ali, planejando as farras da noite.

Era um guloso do sexo. Desconfio que nessa matéria começara sendo um gourmet exigente, mas acabara transformando-se num gourmand... Considerava válido tudo quanto lhe pudesse proporcionar gozo carnal. Nesse terreno não reconhecia nenhum obstáculo de ordem moral ou ética. O desejo lhe dirigia os pensamentos, as palavras e as ações. Em fornicações improvisadas, levava criadinhas para o fundo do quintal ou puxava-as para trás de folhas de porta. E tudo era feito de pé e às pressas. Não the bastava uma mulher por dia ou por noite. Precisava de duas ou três. Não seria exagero dizer que sofria duma espécie de priapismo mental.

Encurvada sobre sua Singer, minha mãe agora costurava para fora. Eu sentia uma certa vergonha por saber que D. Bega, esposa de Sebastião Veríssimo, membros ambos de tão tradicionais famílias serranas, era uma modista. Cedo, porém, observei que era ela quem, com o produto de seu trabalho, pagava as despesas da casa. O ruído dessa máquina de costura, o cheiro de fazenda e principalmente a figura de minha mãe com uma tesoura na mão, cortando moldes, são imagens, impressões que se me gravaram para sempre na memória, contra um confuso fundo de remorso e culpa.

Umas quatro ou cinco moças ajudavam D. Bega como costureiras. Mais de uma vez vi meu pai segurar a mão de uma delas, na frente da própria esposa, e murmurar: "A minha simpática!", procurando dar à sua face e às suas palavras um ar assexuado de pai ou tio. Mas não conseguia me enganar. Estou certo também de que não enganava minha mãe, que nessas ocasiões assumia geralmente uma atitude condescendente, temperada dessa ironia sem rancor dum adulto de boa vontade, ante as travessuras dum adolescente incorrigível.

Estou certo de que nos primeiros anos de casamento D. Bega sofreu tristezas e decepções ao descobrir as atividades extramaritais do seu "Sastião". Mais de uma vez, insone na minha cama, entreouvi, madrugada alta, diálogos que me feriam. Minha mãe exprobrava o marido pela vida que ele levava. Meu pai, macio, insinuante, quase convincente, prometia emendar-se. Portava-se sempre com extrema delicadeza para com a esposa. Jamais ouvi dele uma palavra áspera ou um insulto. D. Bega parecia não acreditar naquelas promessas de "regeneração''. Era realista, franca e objetiva. Suas acusações vinham sempre acompanhadas de provas concretas. Assim, quando se sentia apertado contra a parede, Sebastião Veríssimo freqüentemente recorria ao humor, usando duma expressão em voga na época: "Está bem, mas não precisa me chamar de doce-de-coco...". Fazia-se então um silêncio, e em breve eu ouvia o ressonar tranqüilo do Velho. Quem não conseguia dormir com essa facilidade era eu. E foi no decurso de um desses constrangedores diálogos da madrugada que fiquei sabendo que meu pai tinha uma amante "com casa montada". Velha tradição gaúcha... ou brasileira... ou latina — essa de ter duas casas e duas mulheres, a legítima e a "outra". A princípio ele negou o fato com veemência. Por fim admitiu-o e prometeu que acabaria tudo. Mas não acabou. E foi nessa época que se operou uma importante mudança em nossa casa. Meus pais separaram-se corporalmente. Meu irmão passou a dormir no quarto do casal, com minha mãe. O Velho instalou-se no meu quarto. Com sua intuição feminina, D. Bega sabia que, apesar de tudo, eu tinha pelo meu pai uma grande fascinação, ao passo que Ênio era mais apegado a ela. Feito esse arranjo, a vida continuou naquela casa, sem escândalos nem dramas.

 

No momento exato em que escrevo estas linhas, uma figura se traça nítida na minha memória. Cordélia. Era uma das costureiras de minha mãe. Eu ainda não conhecia mulher. Teria quando muito quatorze anos e sofria todas as frustrações dessa idade: voz epicena, postura desajeitada, timidez desconfiada, ignorância supersticiosa, principalmente em matéria de sexo... Nos seus dezessete ou dezoito anos Cordélia era já uma mulher feita, e muito bem feita! Eu sentia por ela uma poderosa atração física. A pele da cabocla era desse moreno enxuto e parelho das chinesas. Tinha uns olhos graúdos, lustrosos e negros como os cabelos lisos, e um sorriso suave e limpo a animar-lhe o rosto oval, de feições delicadas. Costumava brincar comigo, mas sem coquetismo nem provocação. Eu sentia que para ela eu era apenas um "guri". Percebi um dia que meu pai começava a assediá-la. Aconteceu que, duma feita, por alguma razão, a morena teve de passar a noite em nossa casa, deitada num colchão estendido no soalho, na sala de costura, por onde o Velho costumava entrar, de volta de suas andanças noturnas. O simples fato de saber que Cordélia se encontrava a poucos passos de meu quarto, de minha cama, punha-me o sangue a ferver, excitava-me e ao mesmo tempo me deixava antecipadamente frustrado, pois eu sabia que minha timidez não me permitiria ir até onde a rapariga dormia. Armei todas as arapucas imagináveis para prender o sono. Inútil. O sangue pulsava-me nas têmporas e em outros lugares menos nobres de minha anatomia. De súbito ouvi um ruído na porta da entrada. Devia ser meu pai que punha a chave na fechadura... Meu pulso rompeu a correr como um potro assustado. O Velho ia passar perto do colchão em que Cordélia dormia. Ouvi a porta abrir-se e fechar-se. Meu coração, cronômetro desregulado, determinou o tempo que o Velho devia levar para chegar à sua própria cama. Bastava-lhe dar uns quinze passos... Passavam-se os segundos. Meu companheiro de quarto não aparecia. Compreendi tudo. Tinha visto Cordélia a seus pés, ao alcance de suas mãos. Comecei a ouvir vozes cochichadas. Senti que a cabocla despertava sobressaltada. Daí por diante só me chegavam aos ouvidos os sussurros dele. Imaginei-o ajoelhado ao pé do colchão, já a apalpar o corpo da rapariga. Era a "cantata" que começava. Ela dizia não. Ele insistia. Ela tornava a negar-se. Eu estava sentado na cama e já não sabia mais se queria que a mulher que eu tanto cobiçava, continuasse resistindo ao ataque sebastianesco ou se preferia que meu pai a possuísse para que eu pudesse gozar o corpo de Cordélia por procuração. O tempo passava. Cordélia defendia-se. Cheguei a ouvir meu Velho dizer, distintamente: "Por quê? Não faz mal nenhum. É só um pouquinho...". Eu agora estava deitado de bruços, apertando o sexo túrgido contra o colchão e respirando irregularmente. Houve um momento em que o não da cabocla foi quase um grito. Fez-se em seguida um silêncio. Ouvi passadas leves de ladrão na peça contígua. Em menos de meio minuto meu pai entrou no nosso quarto, acendeu a luz e começou a despir-se. Fingi que dormia. Doía-me a cabeça, o corpo inteiro. O Velho deitou-se. Em breve o veterano de tantas guerras e escaramuças eróticas ressonava tranqüilo. Só consegui dormir ao raiar do dia.

Nenhum de nós dois conquistou Cordélia. Ela continuou a trabalhar serenamente em nossa casa. Um ano mais tarde casou-se com um craque de futebol local. Levou-lhe intacta a sua virgindade, pois do contrário ele a teria devolvido aos pais. (Estávamos em 1920.) Brava Cordélia!

 

É sabido que o relógio psicológico da infância anda muito mais devagar que o dos adultos. O calendário das crianças parece feito mais para a eternidade do que para o tempo humano. As horas de aula arrastam-se como tartarugas monótonas. Como custa a chegar, todos os anos, o período de férias de verão! E que vontade de ficarem homens depressa têm os meninos!

Quando hoje tento lembrar-me de certos episódios e pessoas de meu mundo de criança, não me é nada fácil situá-los no território do passado. Tenho a impressão de que minha vida entre os cinco e os dezoito anos ocupou um espaço de tempo muito mais longo que dos vinte aos sessenta. Afinal de contas, a memória de um velho está cheia de labirintos, de falsos sinais de trânsito, de vácuos e, por assim dizer, de silêncios temporais e espaciais, isso para não falar em miragens...

Escrever memórias numa ordem rigorosamente cronológica seria uma tarefa difícil, perigosa e possivelmente monótona. De resto, o tempo do calendário e o do relógio pouco e às vezes nada têm a ver com o tempo de nosso espírito.

Até hoje um problema da minha infância e adolescência me visita e intriga, embora sem caráter obsessivo. Como, quando e por que meu pai mudou de vida, de comportamento, de gostos, de objetivos? Sei que chegou a Cruz Alta com um diploma de farmacêutico, um moço cheio de esperanças e nobres projetos. Em suma, o compassivo estudante do ginásio de Fitzgerald fizera-se homem. Levando-se em conta a época e a cidade em que vivia, pode-se dizer que era um intelectual. Recebia regularmente e lia L’lllustration e outras revistas francesas. Nenhum dos maiores autores literários do século XIX lhe era de todo desconhecido. Gostava de música, principalmente da lírica. Costumava ler poemas alheios em voz alta para familiares ou amigos. Sabia escrever com clareza, correção e graça. Era um orador espontâneo. Trouxe, por assim dizer, um sopro de espiritualidade para o seu burgo guasca, onde imperava um chefe político atrabiliário, que ele teve a coragem de enfrentar, em nome da liberdade e da dignidade humana. Tudo indicava nele o idealista, o pensador, o homem de sensibilidade apurada. Como se processou "a mudança"? Não me consta que houvesse sofrido qualquer desgosto ou desilusão capaz de traumatizá-lo a ponto de fazê-lo concluir que nada na vida "valia a pena". Não acredito que essa transformação se tenha operado da noite para o dia. Deve ter havido um processo lento de desintegração. A primeira coisa que Sebastião Veríssimo perdeu foi o hábito da leitura. Na sua volúpia da generosidade, no desejo, que nunca morreu nele, de ser querido e admirado, pôs-se a dar de presente os livros de sua rica biblioteca a amigos, conhecidos e até desconhecidos. Deixou-se também espoliar por esses eternos abutres de bibliotecas alheias. Os discos se foram pelo mesmo caminho. E Sebastião Veríssimo passou a entregar-se por completo à vida dos sentidos, dos prazeres, principalmente os da mesa e os da cama. Continuou, entretanto, a ser um conviva brilhante e agradável, e a gostar de boas roupas e perfumes. Não tenho elementos para aferir a duração e o ritmo desse processo, pois o adulto não entende — repito — o tempo do menino e vice-versa. Torno a perguntar: qual teria sido a causa da grande mudança? Uma exacerbação insopitável de seu temperamento sensual? A idéia de que devia provar de todos os frutos da carne, num açodamento de quem teme morrer cedo demais? (Seu pai não atingira sequer os sessenta anos.) Teria Sebastião Veríssimo sido derrotado pela mediocridade de sua pequena cidade provinciana? Não creio, pois parece que ele se sentia feliz em Cruz Alta, onde gastou fortunas. Só viajou ao estrangeiro uma única vez. Na companhia de um amigo íntimo, visitou Buenos Aires, onde se demorou uma ou duas semanas, se tanto. E que poderiam ter feito na capital da Argentina a não ser caçar belas mulheres e visitar os melhores cabarés e restaurantes?

Creio que é importante observar que, mesmo nos piores momentos de sua vida, Sebastião Veríssimo nunca perdeu o seu penacho e — para usar duma palavra muito de seu gosto e uso — a sua "hombridade". Nos tempos da decadência, quando já começara a beber imoderadamente, estava, uma noite, sentado a uma mesa no Café Schlapp, rodeado dumas dez meias garrafas de cerveja preta, que enxugara sozinho, quando passou pela calçada um conhecido seu que, através duma janela, olhou para ele com uma expressão de repugnância (essa, pelo menos, foi a interpretação de meu pai) e virou-lhe a cara. O Velho ergueu-se, saiu do café em passo acelerado, agarrou o homem pelas costas, obrigou-o a fazer meia volta e aplicou-lhe uma sonora bofetada.

A todas essas, minha mãe continuava a pedalar a sua Sin-ger, fazendo face, absolutamente sozinha, às despesas da casa. Seus olhos continuavam tristes, seus suspiros contavam todas as mágoas que ela recusava transformar em palavras. Não se imagine, porém, que ela tivesse passado a vida numa permanente atitude de tristeza e infelicidade. De vez em quando essa fechada ostra, de concha tão rudemente batida pelas ondas daqueles mares, abria-se numa bela, rara pérola de humor. D. Bega cultivava uma ironia mansa e seca de serrana, e sabia como poucos apanhar os traços caricaturais duma pessoa, reduzindo-os a três ou quatro palavras.

Graças ao dinheiro que ela ganhou com seu trabalho de modista, foi-me possível passar três anos como interno num colégio em Porto Alegre.

Sempre me doeu vê-la trabalhar tanto. Com a cabeça eu compreendia que, em toda aquela situação familiar, eu devia estar incondicionalmente ao lado dela. Nem por isso, porém, minha atração e afeição pelo meu pai diminuíam. Eu sentia por ele algo que a palavra inglesa awe quase exprime bem. (Espero não estar sendo pedante.) Awe é um medo reverente. Mas no meu caso, além de temor e reverência, havia ainda amor. E por sentir tudo isso com relação a meu pai, eu me julgava culpado duma inominável injustiça para com minha mãe.

 

Acredito que Sebastião Veríssimo tivesse seus momentos de remorso e dúvida. Mas não duravam. Ele se contentava com a simples verbalização de seus propósitos de "regeneração". Com relação à farmácia, portava-se como se ela fosse a galinha-dos-ovos-de-ouro. Parecia que jamais lhe passava pela cabeça a idéia de que, ao cabo de certo prazo, tinha de pagar nos bancos as duplicatas emitidas pelas drogarias de Porto Alegre que lhe forneciam os medicamentos que se alinhavam, cada vez mais escassos, nas prateleiras da botica, e que ele,

Sebastião, com a colaboração do bom Miguel, distribuía gratuitamente entre os pobres ou vendia a crédito a parentes e amigos que, em sua maioria, nunca pagavam suas contas.

Todos os dias, após o jantar, Sebastião Veríssimo vestia uma de suas melhores roupas, perfumava-se, punha na cintura seu revólver nacarado, acionava a manivela da caixa registradora, arrebanhava todas as cédulas que suas gavetas continham, atufava-as nos bolsos, sem contá-las, e !á se ia, faceiro, para viver e gozar mais uma noite de sua vida.

Quando alguma agência bancária local lhe comunicava que uma das duplicatas aceitas por ele estava vencida, entrava em cena o Dr. Franklin para socorrer financeiramente o seu filho mimado e evitar o protesto do título. Foi depois da morte de meu avô paterno que se acelerou a derrocada da Farmácia Brasileira.

 

                   A AMEIXEIRA-DO-JAPÃO

Tive no começo da vida uma árvore que até hoje continua dentro de mim como um marco do tempo da infância e uma entidade importante de minha mitologia particular. Era a única existente no nosso pátio interno. Estava plantada num alto canteiro, num dos ângulos dessa área comum à nossa residência e à farmácia, numa zona pobre de sol, entre a "cloaca máxima" e um dos pavilhões hospitalares.

Graças à magia da memória afetiva, esse "fóssil" dum minuto para outro pode voltar à vida, com raízes, seiva circulante, tronco, galhos, folhas, flores, frutos e até com os insetos e passarinhos que costumavam freqüentá-lo. Com tudo isso reviverá também o menino que amava a árvore e procurava sua companhia nos momentos em que necessitava de solidão para arquitetar suas ficções, viver seu mundo do "faz de conta".

Conhecida entre nós pelo nome de ameixeira-do-japão, essa árvore de porte médio não era das mais bonitas nem no desenho nem na cor. Produzia frutos amarelados, de forma oval, com caroços graúdos e polpa parecida com a do pêssego. Eram comestíveis, mas tinham um sabor um tanto ácido, mesmo quando maduros, e só ficavam doces — duma doçura lânguida de convalescente — quando emurcheciam.

O nome Japão tinha para o menino conotações românticas: o Império do Sol Nascente, país exótico e longínquo, com seus samurais, mandarins, pagodes, gueixas de olhos amendoados e jardins de delicada beleza.

Só depois de adulto é que descobri que a eriobotrya japonica é mais sofisticadamente conhecida por nespereira. Nêspera, que belo nome para uma fruta! (Tenho um fraco pelas palavras proparoxítonas — pérola, lívido, álamo, álgido, límpido, lúcido...) Estive a pique de dar a este capítulo o nome de A Nespereira, e se não o fiz foi porque me pareceu que isso seria uma traição ao menino. Afinal de contas esta parte de minhas memórias — ou todo o livro, em última análise — pertence mais a ele do que ao homem que hoje sou. Ocorre-me agora a idéia de que esse guri não deixa de ser também um "fóssil sentimental" que se encontra, sob os mais variados aspectos, em todas as camadas geológicas de meu ser, e que, devidamente escavado e estudado, poderá contar-me estórias de minhas passadas "civilizações", em suma, a História mesma da minha humanidade.

Foi sentado ao pé dessa árvore — as costas apoiadas em seu tronco — que aos sete anos folheei fascinado um livro da biblioteca de meu pai, La Guerre en Extrême-Orient, por H. Calli — volume pesado, dumas mil páginas, com texto em francês, enriquecido por numerosas ilustrações coloridas e em preto e branco. No conflito eu tomava o partido do Japão. Influência da árvore que também parecia olhar comigo as figuras do volume? Ou o fato de serem os japoneses de pequena estatura, comparados com os russos? Não sei.

Alegrava-me a idéia de que os nipões tivessem saído vencedores daquela guerra que se travara antes de eu ter vindo ao mundo. Como tornei a manusear esse livrão muitas vezes, fiquei com várias legendas de suas ilustrações gravadas na memória. Soldat russe mutile, après le combat: um homem caído de costas, com ambas as mãos e ambos os pés decepados, o seu sangue manchando a neve. L’Amiral Togo, commandant en chef de l'escadre japonaise devant Port-Arthur. O chefe da armada japonesa lá estava no seu uniforme de gala azul-marinho, dragonas douradas, o peito recamado de medalhas, uma faixa vermelha e branca a tiracolo, o chapéu de dois bicos numa das mãos. (Só então compreendi por que havia em Cruz Alta e arredores tantos cachorros chamados Togo.) Promenade nocturne des Coréens era a legenda de uma ilustração em que se via um coreano com sua longa toga, uma cartolinha caricata na cabeça, tendo acesa numa das mãos uma lanterna esférica de papel cor de laranja; diante dele uma coreana de bata branca carregava outra lanterna do mesmo tipo, mas de cor amarelada. Havia nesse quadro uma secreta beleza que me comovia, dando-me vagos desejos de visitar a Coréia, a Manchúria, em suma, todos os países do extremo oriente como a China, cujos habitantes — contava-se — comiam brotos de bambu e sopa de ninhos de andorinha.

Quanto aos russos, a figura que mais me impressionava era a do Gen. Kuropatkin, alto, teso, espadaúdo, as barbas bifurcadas, o olhar altivo. Era o comandante da armada russa.

 

Naquele tempo as guerras para mim não passavam duma aventura de caráter novelesco. Como a maioria dos meninos — e dos adultos também — eu lhe via apenas os aspectos épicos: cargas de cavalaria, atos de bravura, bandeiras drapejando ao vento, hinos, marchas, clarinadas... Aquelas figuras de feridos, mutilados e mortos pouco me impressionavam. O sangue que lhes escorria das feridas era apenas uma cor.

Naquele tempo, como hoje, eu era um sujeito pouco ou nada belicoso. Isso, entretanto, não impediu que aos dez anos, motivado por novelas e fitas de cinema, eu organizasse um exército, que entrou logo em conflito com as "forças armadas" cio Milton Machado, filho dum açougueiro das vizinhanças.

Uma tarde vimos um oficial inimigo, montado num fogoso cabo de vassoura, aproximar-se de nosso forte a todo o galope. Foi em breve trazido à minha presença. Tratava-se dum emissário das tropas de Milton e nos trazia um ultimato lacônico: "Declaramos guerra a vocês. Aceitam?". Respondi: "Aceitamos. Para quando?". — "Para hoje, às seis em ponto." — "Está bem. Diga ao seu comandante que estamos prontos."

Com freqüência essas declarações de guerra vinham escritas em pedaços de papel pardo de embrulho, em garranchos quase ilegíveis. Tratava-se de guerras por amor à guerra, sem motivos geopolíticos ou econômicos. Começavam com uma espécie de combate de trincheiras em que os projéteis eram pedras, pedaços de madeira, garrafas... Vinha depois o entrevero, o corpo a corpo final. Lembro-me duma "carga de baionetas" que, meio a contragosto, tive de comandar, de espada de pau em punho, um vago frio na boca do estômago. O primeiro inimigo que vi pela frente, no meio da rua, foi o Bartolo Véscia, filho dum ferreiro italiano também nosso vizinho — rapaz muito mais alto e forte que eu, o rosto redondo e vermelho como um tomate, os cabelos dum singular louro esverdeado. Nossas espadas chocaram-se no ar. A minha me escapou da mão. Bartolo então me subjugou facilmente: com um abraço de urso ergueu-me do solo e levou-me prisioneiro para o quintal da ferraria paterna. Meus soldados retiraram-se em desordem.

Fui amarrado com barbantes a uma árvore raquítica e ali conservado, possivelmente para "ser fuzilado ao amanhecer". Salvou-me a vida o meu irmão Ênio, que à noitinha veio até onde eu estava e, com voz lamurienta, disse: "A mamãe está te chamando. Está na hora da janta". Ora, como nossos inimigos também tinham mães e costumavam também jantar, não encontraram outra solução para o problema senão a de me libertarem incondicionalmente. E lá me fui, rumo dos saborosos bifes encebolados e das batatas fritas da "sia" Paula, e um tanto desmoralizado por ter perdido a batalha, a espada e a honra militar.

As minhas melhores guerras eram as da imaginação, em que sempre eu era o impávido capitão que não conhecia o medo. Quantas vezes enfrentei pelotões de fuzilamento! Quando seu oficial comandante queria vendar-me os olhos, eu sacudia a cabeça com sublime desprezo e dizia: "Não. Não temo a morte. Morro pela Pátria!". Assim, morri várias mortes, e meu nome — contadas também minhas muitas vitórias — ficou gravado em letras de ouro numa História que jamais foi nem será escrita.

 

Quais são as figuras humanas, os objetos, as sensações e o; acontecimentos mais remotos de minha vida de que me posso lembrar hoje? Sei, por ouvir dizer, que até à idade de dois anos usei e abusei de minha condição de mamífero, sugando o seio materno e outros seios emprestados ou alugados.

Uma vez que outra, imagens e sensações de meus tempos de criança de colo sobem do fundo do oceano em que jazem, aparecem por um átimo à superfície, mas envoltas em tanta névoa, que mal lhes consigo distinguir os contornos. Lanço rápido a minha rede nessas águas turvas, com o propósito de apanhar alguns dos ariscos espécimes de minha flora e fauna submarinas. Inútil! Eles me escapam... Então me pergunto se a memória não estará tentando enganar-me, bem como agora talvez eu esteja procurando ludibriar quem me lê. Seja como for, vou tentar descrever alguns desses habitantes das profundezas, tais como às vezes os vislumbro.

Vejo-me ou, melhor, sinto-me deitado num berço, num quarto em penumbra. Sentada numa cadeira a meu lado, minha mãe me aplica uma cataplasma de linhaça que me queima o peito, ao mesmo tempo que um odor acre me entra pelas narinas. Noutra ocasião as mãos maternas me esfregam as costas com um linimento de cheiro penetrante. Mas há outro momento ainda mais nítido na minha memória. É noite, D. Bega me canta uma canção de ninar, e eu com o indicador e o polegar da mão direita seguro sua aliança, fazendo-a rolar dum lado para outro no dedo dela, como quem dá corda a um relógio. Fazia isso todas as noites para conseguir encontrar a porta do sono. Imagino que nesse tempo eu não teria mais de dois anos de idade.

Estou convencido de que meu primeiro contato com a música, o canto, o conto e a mitologia se processou através da primeira cantiga de acalanto que me entrou pelos ouvidos, sem fazer sentido em meu cérebro, é óbvio, pois a princípio aquele conjunto ritmado de sons não passava dum narcótico para me induzir ao sono. Essa canção de ninar falava no Bicho Tutu, que estava no telhado e que desceria para pegar o menino se este ainda não estivesse dormindo. Mas se ele já estivesse piscando, com a areia do sono nos olhos, a letra da cantilena era diferente: uma advertência ao Bicho Tutu para que não ousasse descer do telhado, pois nesse caso o pai do menino mandaria matá-lo. E aí temos sem dúvida uma enfabulação ou estória, uma melodia e um elemento mitológico. Amas e criadas encarregaram-se de enriquecer a galeria mitológica da criança, contando-lhe estórias fantásticas, de caráter francamente sado-masoquista como aquela da madrasta que mandou enterrar vivas as três enteadas. (Ouço uma voz remota exclamar: "Xô, xô, passarinho!...".) Dessa estória das meninas enterradas — Capineiro de meu pai/não me cortes os cabelos/minha mãe me penteou/minha madrasta me enterrou... — guardo mais o terror que ela me inspirou do que o seu enredo. Por essa época a criança já caminhava, e a fita magnética de sua memória estava ainda praticamente virgem, pronta para registrar as impressões do mundo com suas pessoas, animais, coisas e mistérios. Através de estórias de cemitérios à meia-noite, meteram-me na cabeça e no corpo o medo da "alma de gato", um duende cuja forma e cor nunca me foram claramente revelados. Havia ainda o lobisomem, que costumava sair à rua nas noites de sexta-feira. Quanto aos contos de assombrações, o meu favorito era o do bravo homem que apostou com um amigo que passaria uma noite sozinho numa casa mal-assombrada. Ao anoitecer tocou-se para lá e sentou-se numa velha cadeira, na peça onde o fantasma costumava aparecer. Ao soar da meia-noite ouviu uma voz soturna que gemia: "Eu caio... Eu caio... Eu caio...". O valentão gritou: "Pois caia!". E do teto escuro tombou uma perna humana, com um baque surdo. (E a contadora da estória fazia "Buum!", sem imaginar, é claro, que talvez estivesse alimentando com seu relato de horror um mal emplumado masoquista.) Passaram-se segundos e de novo se ouviu a mesma voz: "Eu caio...". O homem tornou a responder: "Pois caia!". E caiu então a segunda perna. O horripilante diálogo continuou e foram caindo, um a um, o tronco, os braços e finalmente a cabeça de um ser humano, que assim ficou completo. É uma pena que eu não me lembre agora do resto da estória. Sinto muito!

Outra recordação de minha mais distante infância nada tem a ver com estórias de assombração. Posso calcular a minha idade nesse tempo: três ou quatro anos, quando muito, pois quando a cena se passou eu estava recostado num dos degraus da porta da frente da Farmácia Brasileira, e esse degrau teria a altura de meu umbigo. Antes, porém, de continuar o caso, preciso apresentar ao leitor a Laurinda. Cozinheira do sobrado de meu avô paterno, era uma mulata clara, quarentona, baixa e gorda, de bochechas reluzentes e fartos peitos. Desbocada ao extremo, um de seus divertimentos era ensinar-me palavrões. O inocente discípulo empregava esses nomes feios ao sabor do acaso ou de suas ondas de entusiasmo. Um dia olhei para meu pai, que conversava com um amigo junto do balcão de sua botica, e gritei-lhe: "Corno!". Ele me olhou surpreso e carrancudo, dizendo: "Que é?". Não tive dúvida: enchi as bochechas de ar e repeti: "Corno!". O primeiro ímpeto de Sebastião Veríssimo deve ter sido o de me bater, mas estou certo de que conteve a mão a tempo, compreendendo que eu repetia como um papagaio uma palavra cujo sentido não podia conhecer. (Peço aos analistas que me lêem o favor de não concluírem que se tratava dum edipinho que agredia o homem que dormia com sua mãe.) Tenho agora uma explicação para o fato. Naquele tempo, bem como ainda hoje, eu achava corno uma palavra gorda. E quem melhor para recebê-la do que o homem gordo que era o meu pai?

Foi Laurinda quem me ensinou a dizer caralho, palavra que o dicionário do menino definia como sendo uma pessoa de cara feia. Cedo, porém, aprendi que ela designava, em linguagem popular, uma parte importante da anatomia masculina. Tive com o passar do tempo a oportunidade de aprender muitos de seus outros pseudônimos.

 

Já que falei em Laurinda, acho que posso gastar algumas linhas para descrever rapidamente três dos muitos tipos humanos que circulavam na órbita do Sobrado. Havia o "tio" Rodolfo, preto de cabelo e pêra pixaim, arcada dentária saliente, riso que lhe punha à mostra as gengivas cor de coral. Tinha canela fina e era gago, mas duma gagueira especial, pois em vez de ficar repetindo uma sílaba ou uma vogai, ela fazia psk! psk! psk!, até poder continuar o discurso. Vivia num desvão de escada na mansão avoenga. Lá tinha o seu catre e seus badulaques. À hora do almoço ou do jantar, sentava-se num mocho, colocando sobre os joelhos a panela preta de fuligem que Laurinda havia enchido de arroz, feijão, batatas e carne, tudo isso coberto com flocos de beiju. Durante anos recalquei o desejo de comer da panela desse fiel servidor do Dr. Franklin Veríssimo. (Quando perguntavam a meu irmão Ênio quem havia descoberto o Brasil, sem hesitar ele respondia: "O tio Rodolfo!".) O preto, fogueteiro de profissão, era periodicamente contratado para soltar rojões à frente das procissões e também das "manifestações de apreço" de caráter político — grupos de homens que saíam pelo meio da rua, puxados por uma banda de música, rumo da casa da personalidade que queriam prestigiar eleitoralmente ou desagravar; quando lá chegavam, os oradores soltavam o verbo e por fim o homenageado agradecia. Ao fim de cada discurso, a banda rompia a tocar uma espécie de hino curto, mas vibrante, composto para essas ocasiões, e tio Rodolfo soprava no seu tição, prendia fogo no foguete que lá se ia, rumo das estrelas, e estourava pouco acima dos telhados. Se alguém um dia pudesse atingir a Lua — refletia eu — esse alguém seria tio Rodolfo com seus rojões. Enganei-me.

 

Outra figura que aparecia com freqüência no Sobrado era a Arcanja, preta gorda e papuda, que vinha com uma trouxa de roupa sobre a cabeça e pendente do braço um cesto cheio de bergamotas e laranjas, se era inverno, e de pêssegos e uvas, se era verão. Andava sempre com um pequeno galho de arruda especado entre a orelha e a carapinha. Um pano colorido lhe cobria o crânio. Macumbeira, conhecia simpatias, bem como as propriedades curativas de certas ervas e raízes. Tinha uma voz que semelhava ora um coaxar de sapo ora um arrulhar de pomba.

Visitei um dia seu rancho nos arredores da cidade e fiquei enfeitiçado pelo seu mistério. Tinha uma única peça, de chão de terra batida, no centro da qual se via uma panela tisnada suspensa dum tripé, acima das cinzas dum fogo morto. A um canto, o catre coberto por uma colcha de retalhos. E, por todos os lados, imagens de santos católicos ou de deidades africanas, todos esculpidos toscamente em madeira ou barro. Misturando-se com o cheiro de cinza fria e picumã, pervagava o ar uma fragrância de manjericões e madressilvas. Eu desconfiava que Arcanja sabia a língua dos passarinhos, conversava com os tico-ticos, os vira-bostas e os bem-te-vis que vinham bicar as frutas de seu pomar, onde além das laranjeiras, das bergamoteiras, das pequenas parreiras, dos pessegueiros e das goiabeiras, havia algumas romãzeiras, cujos frutos me agradavam mais aos olhos e à fantasia do que ao paladar, pois pareciam escrínios cheios de pequenos rubis.

 

Passou pelo Sobrado, como um escuro meteoro, um negro que conhecíamos pela alcunha de Baiano. Cachaceiro contumaz, indolente, mentiroso, era entretanto simpático, apesar da cara de feições intumescidas, dos olhos sempre injetados, das ventas largas e dos dentes amarelados e pontiagudos de lobisomem. Tive pouco convívio com ele, mas a razão por que não o esqueço é que uma noite, estando eu em casa com minha mãe e meu irmão, de súbito olhei para a vidraça de uma das janelas e vi, amoldurado pela escuridão da noite, o que me pareceu uma aparição sobrenatural: uma cara parda, de olhos avermelhados e exorbitados, nariz achatado contra o vidro, os dentes descobertos... Meu coração disparou. Dona Bega seguiu a direção de meu olhar e de meu terror e explicou, serena: "É o Baiano. Decerto veio pedir um dinheirinho pra tomar cachaça".

Por mais incrível que pareça, até hoje, passados sessenta anos, sempre que vejo uma vidraça contra a noite, me vem à mente a carantonha do Baiano.

 

Foi por esse tempo que um dia descobri a ameixeira-do-japão no seu canto umbroso e apossei-me dela, não manu militari, rijas com amorosa persuasão. E ela se rendeu sem resistência, decerto feliz por ver que alguém dava atenção a uma obscura árvore apertada entre as malcheirosas misérias da latrina e dos pavilhões dos doentes. Minha imaginação encarregou-se de purificar o ar daquele ângulo de pátio, transferindo a nespereira ora para as campinas do Far-west americano ora para os fiordes escandinavos ou para um parque parisiense. Não raro eu a borrifava de esquisitos perfumes da Arábia ou da Pérsia. E trepado como um arborícola nos galhos dessa ameixeira eu observava as atividades da farmácia. Via às vezes um enfermeiro sair da sala de operações carregando uma perna ou um pé ou um braço humano recém-amputado. Não sei se os enterravam em algum lugar distante dali ou se simplesmente os jogavam dentro do buraco da latrina. De longe em longe, contra todas as recomendações ameaçadoras do pessoal da farmácia, eu ousava penetrar às escondidas na sala de operações, antes ou depois de um ato cirúrgico, e de lá saía quase sufocado pelas emanações de formol com que a fumigavam para desinfetá-la. Era também meu costume andar pelos compartimentos da botica paterna, atento à chegada de almanaques novos. (Meus favoritos eram o de Ayer e o de Bristol, por causa de suas caricaturas, charadas, enigmas pitorescos e informações astrológicas.)

A marca registrada da Emulsão de Scott — o homem com o bacalhau às costas — sempre me esporeou a fantasia, com sua sugestão de sensacionais pescarias nos mares nórdicos. Inventei em torno dessa figura as mais variadas ficções, e quase vinte anos mais tarde, quando comecei a ler os dramas de Hendrik Ibsen, lá de vez em quando o Homem com o Bacalhau às Costas se intrometia como um espectro na estória de Hedda Cabler, na d'A Dama do Mar ou na d'O Pato Selvagem.

Havia entre os muitos cartazes que a farmácia recebia para distribuir entre seus fregueses uma tricromia em que um mapa-múndi aparecia dentro dum círculo formado por imagens de crianças de vários países, cada qual no seu trajo nacional. Havia representantes da Inglaterra, da Alemanha, da França, da Espanha, da Noruega, do Japão, da índia, da Hungria... Via-se nessa colorida ciranda até um pequeno esquimó. Todos eles — assegurava o anúncio — eram corados, belos e fortes porque tomavam Emulsão de Scott.

Foi por essa época que ganhei no dia de meu aniversário um presente que me fascinou mais que as bolas, bonecos, ursos, espingardas, espadas, e outros brinquedos que se amontoavam em cima de minha cama. Era um navio de lata, de cor alaranjada, feito para andar na terra e não na água: tinha duas rodas na popa e uma na proa. Quando eu lhe dava corda, o barco saía a vogar pelas tábuas do soalho e a balançar-se como se navegasse sobre as ondas dum mar encapelado. Nos costados de sua proa lia-se uma palavra: Nimrod. Que significava? Seria o nome dum bravo capitão de todos os mares ou o de um país distante e encantado? (Só quarenta anos mais tarde é que uma enciclopédia me informou que Nimrod era o nome da antiga capital da Assíria.) Pois nesse barco visitei todos os países do globo de cuja existência minha confusa Geografia tinha notícia. O Nimrod foi atacado vezes muitas por piratas, perseguido pela gigantesca serpente marinha; enfrentou as mais medonhas borrascas — até que um dia o pé real dum homem real da vida real por distração pisou com todo o seu peso na minha embarcação, amassando-a irremediavelmente. O Nimrod foi atirado para um canto e mais tarde posto na lata do lixo (ou jogado na cloaca) e finalmente esquecido pelo seu capitão e por toda a tripulação. Ficou sendo apenas uma imagem e um nome na memória do menino. Mas com que força!

Creio que também foi no tempo desse impávido navio que eu andava lendo com enorme interesse — mais certo seria dizer "vendo as figuras" — os livros do caricaturista francês Benjamin Rabier, um de cujos heróis era um caçador de lebres e mais seu cachorro. Desse período são também As Aventuras do Dr. jacarandá, figura que eu achava detestável por seu aspecto diabólico e pelo caráter nada romântico de suas proezas.

Meu pai tomara para mim uma assinatura da revista carioca O Tico-Tico. Estou certo de que suas estórias muito contribuíram para a germinação da semente do ficcionista que dormia nas terras interiores do menino. Através delas fiz amizade íntima com Chiquinho e seu cachorro Jagunço. (Muito mais tarde, desapontado, vim a descobrir serem ambos uma adaptação brasileira de personagens dum magazine norte-americano para crianças — o que me pareceu uma espécie de traição a todos nós, leitores de O Tico-Tico.) Conheci também o azarento Zé Galinha, o casal Faustina e Zé Macaco. Segui as Aventuras de Kaximbown na Pandegolândia. Foi O Tico-Tico que, através duma série de estórias ilustradas, um de cujos heróis era o conde de Cavaignac, me preparou o espírito para a leitura de Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas, que eu viria a iniciar uns quatro ou cinco anos mais tarde, espécie de pórtico monumental para o fabuloso mundo dos romances de capa-e-espada. Quarta-feira era o meu dia mais esperado e feliz da semana, pois era às quartas que geralmente chegava a Cruz Alta o último número de O Tico-Tico. Eu costumava ir buscá-lo à livraria do Doca Brinkmann, um homem de barbicha alourada, olhos claros atrás dum pince-nez erudito. Eu entrava na livraria com um certo temor no coração e perguntava com voz mal audível: "Chegou O Tico-Tico?". E ficava com os olhos, o coração, todo o meu ser, em suma, preso aos lábios do seu Doca. Com sua calma imperturbável, ele olhava em torno, lento, e depois, arrastando os pés, aproximava-se dos pacotes recém-chegados da agência do Correio e apanhava o novo número da revista, entregando-o ao alvoroçado assinante. Não infreqüentemente o livreiro informava: "O Tico-Tico não chegou. Esta semana está atrasado". Minha decepção ante a terrível notícia tinha um caráter quase catastrófico. Como se teria livrado o bravo conde de Cavaignac da cilada que os inimigos lhe haviam armado? Três contra um, na calada da noite, numa ruela deserta de Paris! Quanto tempo mais teria eu de esperar para ver a continuação do drama?

Fazia meia volta e tornava à casa de cabeça baixa, um vácuo na cabeça, um aperto no peito. A livraria de Doca Brinkmann recendia a papel de jornal, tinta de impressão e madeira de lápis. (Esses mesmos cheiros Floriano Cambará, personagem de O Arquipélago, romance que eu viria a escrever uns quarenta anos mais tarde, aspira, nostálgico, ao entrar numa das livrarias de sua infância, em Santa Fé, sua cidade natal.)

Nas "quartas-feiras felizes" eu agarrava o número de O Tico-Tico recém-chegado e folheava-o aflito, no caminho para casa, sem saber que estória devia ler primeiro. O conde de Cavaignac estava salvo — isso eu verificara logo. Amigos seus tinham vindo em seu socorro, quando ele começava a desmaiar devido à perda de sangue dum ferimento no braço, o que não o impedia de continuar a bater-se bravamente.

Eu aproximava a revista do nariz para sentir aquele cheiro mágico de tinta e de papel de jornal. No pátio a ameixeira-do-japão parecia esperar-me, interessada também nas estórias de O Tico-Tico.

Creio ter sido também esse semanário para crianças o maior fator na minha decisão de ser, quando ficasse grande, um desenhista profissional.

Eu sentia uma grande atração por todos os tipos de lápis de cor, caixas com pincéis e pastilhas de aquarela, e o curioso é que até hoje, já na reta final para os setenta anos, conservo essa afeição infantil e o hábito de rabiscar caricaturas onde quer que me caia na mão uma caneta ou um lápis e eu veja um pedaço de papel em branco.

 

Na minha casa a peça que mais me atraía e divertia era o escritório de meu pai — que ele pouco usava. Lá estavam os seus armários cheios de livros, uma escrivaninha — conhecida solenemente como o bureau — com o tampo coberto com um pano verde como os das mesas de bilhar. Em cima dela, em excitante desordem, viam-se vidros de tinta Sardinha, canetas e um lápis bicolor, azul e vermelho, objeto de minha especial predileção. Eu tirava um papel em branco de uma das gavetas — não sem primeiro ouvir de minha mãe que "papel, meu filho, custa dinheiro" — e ficava a desenhar figuras humanas, casas, vacas, o Demoiselle de Santos Dumont, transatlânticos, balões, as pirâmides do Egito, paisagens nativas com coxilhas, capões, cavalos... Muito croque na cabeça levei de minha mãe por ter manchado de tinta o pano verde da mesa ou por ter entornado no soalho um vidro de goma-arábica. ("Esse menino tem muito jeito pro desenho." Ouço com a memória esta frase, mas não consigo identificar a voz.)

 

O outro passatempo que o escritório paterno me proporcionava era o de folhear a sua coleção de números atrasados de L’lllustration. No reverso da capa dessa revista eu via as caricaturas de Henriot, com legendas em francês. Depois vinham os anúncios de automóveis, o gordo e roliço Homem da Michelin, todo feito de pneumáticos dessa marca, de tamanhos variados. Não faltava nunca um anúncio do Cinzano ou de Fernet Branca, bem como os de chocolate Meunier, que me faziam água na boca.

O que mais me interessava, porém, eram as reportagens sobre a Indochina. (Cochinchina pertencia à minha coleção de palavras mágicas.) Lá estavam naqueles clichês os nativos, magros, descalços, com suas calças a meia canela, seus chapéus cênicos — figuras que sugeriam estórias de crimes, emboscadas, punhais e venenos sutis. Os colons franceses, vestidos de branco, com chapéus de cortiça na cabeça, passeavam à sombra dos pagodes ou navegavam em sampanas. (Creio que essas impressões da Indochina me prepararam o espírito para ler com especial apetite e deleite, dezessete anos mais tarde, o romance Les Civilisés, de Claude Farrère.) Saigon exercia sobre o espírito do menino uma poderosa fascinação. Por suas ruas rodavam aquelas curiosas carruagens puxadas por um nativo, os rickshaws. ("Mamãe, como se pronuncia esta palavra?" Resposta: "Sabei-me lá! Pergunta ao teu pai".)

L’Illustration trazia também para aquele escritório as ruas e os monumentos de Paris. M. Raymond Poincaré era meu íntimo amigo. Permitia-me puxar-lhe a barbicha. Fiz dele várias caricaturas a bico de pena.

Lembro-me especialmente dum número de L'lllustration com vistas de Hué, a antiga capital anamita, a cidade sagrada, com seus jardins, seu rio, seus templos e o palácio imperial. (Quase sessenta anos mais tarde, ao escrever o livro intitulado O Prisioneiro, romance que se passa num país asiático cujo nome não menciono, eu haveria de localizar-lhe a ação numa cidade com todos os característicos de Hué.) L’lllustration publicou em 1910 um suplemento literário especial que trazia na capa a imagem dum enorme galo com uma face humana. Mais tarde, já na adolescência, vim a saber que se tratava dum caderno que reproduzia na íntegra a peça Chantecler, de Edmond Rostand, que causara um grande sucesso polêmico em Paris. O Dr. Rodrigo Cambará, personagem central do romance O Retrato, que eu viria a escrever em 1950, haveria de ler com vibrante entusiasmo narcisista essa obra de Rostand.

E é por causa de fatos como esse que não canso de repetir que nenhum adulto, por mais que se esforce, jamais conseguirá livrar-se completamente do menino que um dia foi.

 

Um dia escandalizei minha mãe, quando ela descobriu entre meus papéis o desenho que eu havia feito a tinta — naturalmente à maneira sintética e primitiva das crianças — de um homem com um membro viril de tamanho fantástico e em plena ereção. "Minha Nossa Senhora!" — exclamou D. Bega. — "Onde é que o meu filho aprende estas bandalheiras?" Quando meu pai viu a minha paródia de Priapo, sorriu e decerto pensou: "Filho de tigre sai pintado". Possivelmente refletiu também: "Agora ele precisa aprender a desenhar mulheres nuas para eu ficar tranqüilo quanto ao seu futuro de macho".

Mas... como se processava a minha educação sexual? Ora, nisso eu não era diferente dos outros meninos da minha idade.

Nossos companheiros viviam a contar uns aos outros "estórias de safadezas". Por outro lado, entreouvíamos as conversas obscenas dos mais velhos. Nossas próprias criadas adultas encarregavam-se de fazer diante de nós referências veladas ou claras, e quase sempre de natureza jocosa, ao sexo e ao ato sexual. Mais de uma vez os componentes de nosso grupinho empenhavam-se em torneios fálicos, para verificar qual de nós era o mais "bem armado". Essas liças processavam-se em nossos esconderijos, sob risadinhas mal abafadas. (Eu tomava parte nesses "campeonatos" com um pronunciado sentimento de culpa, pois agradava-me a idéia de ser o bom filho, o menino comportado e limpo, exemplo de que sua mãe pudesse orgulhar-se.)

Conservava muito viva na memória uma cena que se passara havia uns dois anos, sob os andaimes de uma construção que se fazia nas vizinhanças da nossa casa. Trabalhava nela como pedreiro um mulato de seus dezoito anos, alto e magro, com olhos de tuberculoso. Chamava-se Perez, e um de seus depravados prazeres era o de, na hora de folga entre o almoço e o turno da tarde, proporcionar aos meninos das redondezas uma exibição grátis de seu falo. Éramos todos rapazotes de cinco a oito anos, quando muito. Ficávamos olhando numa seriedade silenciosa, entre assustados e curiosos, para o pênis do Perez, aquela coisa que ele tinha entre as pernas, aquele bicho latejante, aquela lingüiça viva que ele nos mostrava sorrindo, e que nenhum de nós ousava sequer tocar com as pontas dos dedos. Saíamos daquela exibição um tanto humilhados, pensando nos nossos membrinhos diminutos e comparando-os com o minhocão do pedreiro.

"Agora precisamos ver a coisa das mulheres" — sugeriu um dos companheiros. A proposta foi aprovada por unanimidade. E daquele momento em diante nos transformamos em espiadores de vulvas. Havia no nosso quarteirão uma linda menina morena e roliça, de belo rosto e apetecíveis pernas e coxas. O nosso ideal supremo era vê-la nua no banho, através de alguma fresta de porta ou pelo buraco da fechadura. Como isso não era viável, contentávamo-nos com esperar o momento que o acaso nos proporcionasse para ter um vislumbre do tesouro que ela escondia entre as carnudas coxas. Ficávamos de olho vivo, quando ela voava dum lado para outro no balanço do quintal de sua casa. Nunca, porém, conseguimos satisfazer nossa ávida curiosidade. Contentávamo-nos com conjeturas. "É só uma racha... com cabelos em roda, quando a mulher é grande" — dizia um. Outro adiantava: "Ouvi dizer que parece um figo aberto". Um terceiro informava: "Dizem que as chinesas e as japonesas têm a coisa enviesada, como os olhos". — "Ah! É mesmo? Bá!"

 

Aos poucos, mas entranhadamente, eu me afeiçoava à minha casa — pessoas, móveis, quadros, salas, objetos — sentindo que ela era o meu porto seguro, o meu refúgio, o meu recreio, um mundo muito meu, dentro do grande mundo dos outros. Conhecia-a nos seus pormenores mais insignificantes: os odores de cada compartimento, a forma de cada coisa, as minúcias — cor e forma — de cada quadro, e até as figuras que a umidade ou fissuras desenhavam nas paredes ou nas tábuas do teto: o dragão, o mapa da Itália, a silhueta do califa de Bagdá, o velho barbudo da Parábola das Varas (Seleta em Prosa e Verso, de A. Clemente Pinto), a águia de asas abertas...

Na sala de refeições, que fio Rio Grande do Sul é geralmente chamada varanda, havia dois dunquerques cujas gavetas, sempre atulhadas dos objetos mais díspares e imprevistos, freqüentemente me reservavam surpresas agradáveis, pois vasculhando-as eu descobria nelas brinquedos, livros ou revistas que julgava para sempre perdidos ou — mais sensacional ainda — coisas que eu esquecera por completo.

Nas noites em que meu pai dava as suas "festinhas", muita vez eu saltava da cama e, nas pontas dos pés, caminhava até um lugar secreto de onde podia espiar a "varanda" sem ser visto. Lá estava Sebastião Veríssimo, lábios úmidos, olhos brilhantes, face corada, andando dum lado para outro, de amigo para amigo: "Ó Martins, prova este caviar", ou então, segurando com força quase agressiva o braço do promotor público: "Olha, essa salada tem atum e maquereau. Come um pouco mais!".

Com um entusiasmo menor, minha mãe cumpria seus de-veres de anfitriã. Chegava finalmente a hora das sobremesas. Os quindins eram o doce da preferência de meu pai: gordos hemisférios amarelos, lustrosos de manteiga. Sebastião Veríssimo comia-os com gosto e era capaz de brigar com quem lhe dissesse que não apreciava quindins. Em cima da mesa enfileiravam-se garrafas de vinhos franceses, italianos, portugueses e alemães. (Como me parecia estranho o nome de um deles: Leite da Mulher Amada!) Os brindes faziam-se com champanha. Eu me divertia ao ver a rolha saltar com um poc!, bater no teto e cair em cima da mesa ou na cabeça de algum dos convivas, enquanto do gargalo da gorda garrafa jorrava abundantemente a espuma. Havia então um momento de pânico, fingido ou legítimo: homens e mulheres recuavam, rindo e gritando, para não serem atingidos pelo esguicho da Veuve Clicquot. Vinham infalivelmente os discursos, quase sempre de natureza humorística, a não ser quando proferidos por um cavalheiro solene e gago, que usava sempre colarinho duro e gostava de citar Augusto Comte.

De quando era vez meu pai aproximava-se do gramofone, dava-!he corda, punha-lhe no prato um disco, cuja melodia, fanhosa e metálica, pouco depois enchia o ambiente. O famoso flautista brasileiro Patápio Silva interpretava, numa chapa da Casa Edison, Rio de Janeiro, a Serenata de Schubert, música que provocava em mim uma dessas inexplicáveis tristezas de apertar o peito. Tocavam-se também árias de ópera: O sexteto da Lúcia, o Vissi d'arte, de La Traviata, a Siciliana, da Cavalleria Rusticana. As conversas continuavam animadas, enquanto sopranos, contraltos, tenores, baixos e barítonos se esbofavam com bravura. Mas quando um certo tenor cantava, fazia-se uma pausa naqueles diálogos entrecruzados, pois o anfitrião impunha silêncio com um cht! autoritário. Era o grande Caruso cantando uma ária da Tosca. Quando ele soltava um de seus agudos, meu pai vibrava mais que todos os cristais e metais daquela sala. E sempre que o programa musical descia de suas culminâncias operáticas para um nível popular, lá vinham os discos do apreciado Mário, cantor de voz grave, que interpretava como ninguém a conhecida canção intitulada O Talento e a Formosura, que um ou outro conviva não resistia à tentação de acompanhar, assobiando ou cantarolando baixinho. Outra música que me provocava uma esquisita melancolia era a Berceuse de Brahms. Muita vez adormeci no meu esconderijo, embalado por essa melodia de ninar.

Entre os amigos de meu pai naquele tempo havia um jovem tenente do Exército, recém-chegado à cidade. Todos pareciam gostar muito dele por causa de sua afabilidade, inteligência e também de seu sotaque nordestino. Uma noite, num espetáculo cívico no Teatro Carlos Comes, o jovem militar foi convidado ao nosso camarote. Fez-me sentar nos seus joelhos. E todo o tempo em que fiquei cavalgando a perna do moço alagoano, duas coisas me preocuparam, acima de tudo, até do espetáculo, dos hinos e apoteoses. Uma foi a de não sujar com meus sapatos a imaculada brancura^do uniforme de gala do tenente. A outra, a sua cara, que me parecia uma estranha máscara de borracha, para a qual de quando em quando eu voltava um olhar intrigado. Jamais lhe esqueci o nome: Pedro Aurélio de Góis Monteiro.

 

Pois nessa casa vivia eu, com a agulha de minha bússola sentimental a oscilar entre dois pólos: minha mãe e meu pai. Observando a vida, o comportamento, os hábitos e até a linguagem de cada um deles, às vezes eu me sentia meio perdido numa encruzilhada de sentimentos confusos.

Sebastião Veríssimo metia-se em lutas políticas nas quais arriscava a pele, satisfazendo assim uma parte importante de seu "machismo", pois quanto à outra, a que dizia respeito ao sexo, ninguém tinha a menor dúvida. Repito que uma de suas palavras prediletas era "hombridade". A expressão "solidariedade humana" era também muito de seu uso e gosto. Para ele não havia vergonha maior para um homem que a de virar a casaca em questões políticas, principalmente quando o trânsfuga passava da oposição ou da neutralidade para os arraiais do partido que estava no poder. Vivia repetindo que um homem de verdade nunca leva desaforo para casa. Votava enorme desprezo às pessoas que não tinham o senso da responsabilidade. Prezava apaixonadamente todas as formas de independência: a política, a econômica e a intelectual.

As lições que minha mãe me dava, não necessariamente expressas sempre em palavras, apresentavam o trabalho quase como uma religião. Ela própria era um belo exemplo de incansável e digna mulher trabalhadeira. Achava que ninguém devia gastar mais do que ganhava, nem mesmo tudo quanto ganhava, pois é necessário a gente economizar para o futuro. Tinha um desprezo irritadiço pelos vadios, os parasitas, os imprevidentes. Apesar de ser uma pessoa que fizera apenas o curso primário, compreendia a importância do saber e queria que os filhos se instruíssem "para serem alguém na vida" e jamais dependerem dos outros, estranhos ou mesmo parentes chegados. Seu moralismo, entretanto, estava longe de ser carrancista ou intolerante: era antes tingido dum certo bom-humor, e não impedia que de vez em quando ela contasse uma estória "picante" ou dissesse um que outro "nome feio" — tudo isso, porém, de maneira moderada, como era de seu feitio.

 

Li um dia num soneto, não me lembro de que poeta brasileiro, uma palavra que achei bonita, mas cujo sentido me era desconhecido.

— Mãe — perguntei a D. Bega, que pespontava uma saia, — que é que quer dizer penumbra?

— Sabei-me lá, meu filho! Acho que estás precisando dum "amansa-burro".

No dia seguinte foi à livraria do Doca Brinkmann e comprou um exemplar encadernado em couro (nove mil-réis) do Dicionário Prosódico de Portugal e Brazil, de João de Deus, e entregou-me o gordo volume:

— Agora podes saber o significado de todas as palavras.

Naquele dia passei bom tempo folheando o dicionário. Fiquei sabendo que penumbra é — "a luz frouxa que rodeia a sombra, meia luz; sombra; esquecimento". A letra M ofereceu-me outra jóia sonora: meteoro — "phenomeno que se realiza na atmosphera; brilho momentâneo. Meteoro... que beleza! Eu precisava descobrir um modo de usar esse vocábulo recém-aprendido. Decidi então escrever versos. Saíram-me umas quadras em que eu contava a fábula duma princesa, que rimava com beleza, e que, numa linda e fresca noite de luar, vê no seu jardim um pirilampo — nome erudito do vaga-lume — e fica encantada com seu brilho meteórico (pronto!), apaixona-se pelo inseto e manda seus guardas apanhá-lo com todo o cuidado e prendê-lo numa caixa de ouro, o que foi feito com a rapidez que uma quadrinha pode permitir. Vendo-se assim encarcerado, o pobre pirilampo morreu de tristeza.

Mostrei as quadras à minha mãe, que as achou muito bonitas e me estimulou a continuar escrevendo versos. Meu pai exclamou: "Temos poeta na família!". E saiu a mostrar os versinhos a seus amigos.

Por mais estranho que pareça, esses foram os únicos versos que escrevi em toda a minha vida. E, passados uns quarenta anos da morte do desafortunado vaga-lume, estava eu em San Juan de Puerto Rico, tomando parte num simpósio sobre as relações entre os Estados Unidos e a América Latina, e em certa noite, enquanto caminhávamos platicando pela beira da praia, o delegado de Cuba me perguntou, gentil: "E usted, Dr. Veríssimo, porquê no escribe poesia?". Olhei longamente paia o mar das Caraíbas, sob as estrelas, e respondi: "No escribo poesia, amigo, porque tengo Ia pata demasiado dura". E essa é a pura verdade.

 

O menino de vez em quando sofria de ataques de tédio-. Ocorriam em geral nos dias nublados, chuvosos ou apenas úmidos. Sempre que chovia à tarde, vinha-nos a todos naquela casa uma vontade irresistível de tomar café com sonhos fritos. Era uma espécie de antídoto para o veneno cinzento do dia.

Vejo-me, vezes sem conta, com a testa encostada no vidro duma vidraça que meu bafo embaciava, olhando a chuva cair sobre a rua e os telhados. Sentia algo que hoje posso descrever com uma frase de Eça de Queirós, autor que eu então ainda não conhecia: "uma apagada e vil tristeza". Não encontrava brinquedo ou jogo que me satisfizesse. Quando a chuva diminuía de intensidade, eu fazia barcos de papel, saía para a calçada e lançava-os na água do rio encachoeirado que corria na sarjeta. Os barcos se iam para os meus países imaginários, onde sempre havia sol e céu azul, ou então naufragavam em poucos segundos, não podendo resistir à força da correnteza. Eu tornava à casa, que uma luz fria e opaca alumiava tristemente. Uma espécie de mini-Angst se apoderava de mim. Quando a chuva parava por completo, o firmamento clareava e nessa hora não existia no mundo nada mais belo que os poentes de Cruz Alta, ricos de cores matizadas. O mundo renascia. (Se aparecesse o arco-da-velha, tanto melhor!) Deus lavara a sua grande mansão, como para dar à humanidade uma festa.

E sempre sobrava no prato um sonho polvilhado de açúcar. Era de quem o visse primeiro. Caim ou Abel? Qual era o irmão probo? Qual o fratricida? Ênio e eu nos alternávamos nesses dois papéis. O equilíbrio era quase perfeito. Eva pedalava a sua máquina de costura. E ninguém sabia por onde Adão andava...

 

Eu não saberia dizer com que idade me alistei como soldado na legião de Onan. Mas me lembro — isso sim — de meu harém imaginário, composto de retratos de artistas de teatro e de cinema, que as revistas do Rio de Janeiro — principalmente o Eu Sei Tudo me forneciam. Figuras importantes desse serralho eram as banhistas das comédias cinematográficas de Mack Sennett. Por muito tempo, porém, a minha favorita foi a brava Pearl White, heroína de filmes seriados americanos. Depois passou a ser uma certa Marie Prévost, não só porque era atraente como também porque usava ousados maiôs de banho que lhe deixavam um bom palmo de cada coxa à mostra. Quantas vezes, os olhos cerrados, a respiração ofegante, a imaginação incendiada, possuí não só essas girls estrangeiras como também as mais belas meninas da minha cidade! Eram "cópulas" trêmulas, secas e rápidas que, uma vez terminadas, me deixavam com um incomensurável sentimento de culpa. Eu prometia então a mim mesmo não cometer mais o pecado solitário, regenerar-me e esperar a chamada "idade viril". Lembrava-me de que, mais de uma vez, na frente de amigos, meu pai pusera a mão na minha cabeça, dizendo com certa vaidade: "Quando este sujeito ficar homem, eu mesmo vou levá-lo a uma mulher da vida, para a sua iniciação sexual". Eu baixava os olhos, as orelhas a revelarem, na sua súbita vermelhidão, todo o meu constrangimento.

Estava eu um dia escondido num canto, empenhado num ato desse amor proibido, quando notei que de meu sexo esguichava um líquido de aspecto leitoso, cujo nome eu conhecia, pois era muito usado interjectivamente pelos membros de nosso grupo. Foi o mais espasmódico de todos os meus orgasmos até aquela data, um gozo que chegou a doer — surpresa, alarma, orgulho... Imaginei que aquela perda seminal me ia deixar terrivelmente debilitado. Lera, em publicações protestantes contra a masturbação, que uma gota de esperma valia por uma gota de sangue. Acreditei piamente nessa ficção fisiológica. Era voz corrente que aqueles jogos manuais acabavam deixando o jogador reincidente sem memória, fraco da cabeça e até meio idiota. Na primeira oportunidade examinei meu próprio rosto diante de um espelho, procurando nele os primeiros sinais de minha decadência física e moral. Encontrava-os nas olheiras acentuadas, e mesmo no jeito canhestro com que eu encarava a minha própria imagem e as faces dos outros.

Acusava a figura do espelho de me ter induzido ao feio ato. Meu reflexo repelia a acusação, lançando sobre mim a culpa de todos aqueles pecados. Por fim concluíamos que éramos ambos habitantes de Gomorra (leituras do próprio Eu Sei Tudo). O fogo do inferno nos esperava. No dia seguinte, porém, era o fogo de nossas entranhas que nos levava de volta ao serralho da imaginação. E a tragicomédia continuava...

 

Sim, apesar de meu retraimento eu tinha amigos. A maioria dos rapazes da vizinhança não ousava aproximar-se muito de mim, creio, por causa da minha casmurrice — pura timidez —, de meus silêncios e da minha relutância em acompanhá-los em aventuras proibidas: gazear a aula, atirar pedras em vidraças alheias, roubar frutas nos pomares do próximo, fumar às escondidas e, acima de tudo, "conversar safadezas". O masturbador tinha uma forte inclinação puritana.

Os nossos vizinhos mais próximos eram um casal de porto-alegrenses, o advogado Dr. Henrique Alves de Araújo e sua senhora, D. Zaíra — duas figuras das quais guardo até hoje, principalmente dela, a mais terna das impressões. O Dr. Araújo, corpulento, cabelo e bigodes alourados, tinha uma voz de trovão. Às vezes costumava fazer mágicas para meu irmão, para mim e para o seu filho Celso, muito mais moço que nós. Seu número mais sensacional consistia em engolir um chapéu e um copo de vidro. A condição era que em dado momento fechássemos bem os olhos por alguns segundos. Quando os abríamos, os dois objetos "engolidos" haviam desaparecido, e o Dr. Araújo estava com os olhos exorbitados e a face afogueada do esforço de deglutição do copo e do chapéu. Aplaudíamos, mas meio desconfiados de que estávamos sendo empulhados.

  1. Zaíra era uma doçura de pessoa. Se não fosse um certo pudor literário, eu diria que ela era fisicamente uma "figura de camafeu". Amiga íntima de minha mãe, que tinha por ela também grande afeição, a esposa do Dr. Araújo era a melhor das vizinhas.

Um de meus mais estimados companheiros de infância era o mulato Estêvão, filho da cozinheira dos Araújo. Teria mais ou menos a mesma idade que eu. Era um guri dotado duma rica imaginação, um mestre da ficção oral. Além de inventar estórias, tinha um curioso talento verbal e costumava dar às pessoas do mundo real nomes engendrados por ele e que na sua mente de algum modo se pareciam com as pessoas que designavam. Sua mãe Julieta era a Tiatiaca. O Celso Araújo era conhecido entre nós como o Tiétia La Tiaiga. Meu irmão era o Eniquinquias e eu, o Eriquinquias. Para si mesmo Estêvão inventara o nome Nepruda, que nos soava vagamente indiano.

Sentávamo-nos ao pé da ameixeira-do-japão e ouvíamos quase diariamente o folhetim de aventuras que o Estêvão nos narrava, episódio por episódio, descobrindo sempre um jeito de nos deixar em suspenso. "Passaria o trem por cima do corpo da linda moça que os bandidos haviam amarrado aos trilhos? É o que veremos no próximo capítulo." Celso interrompia-o às vezes com sua voz grave de filhote de bombardão paia pedir algum esclarecimento, pois freqüentemente o nosso rapsodo cor de chocolate usava palavras ou frases "de livro", que estavam muito além de seu entendimento. (Tínhamos pelo mais novo de nossos companheiros uma ternura protetora de irmãos mais velhos.)

— Onde ficamos ontem? — perguntou um dia Estêvão, antes de continuar o seu folhetim oral.

—Naquela parte que o marajá mandou atirar o mocinho

na masmorra cheia de cobras.

—Que é que é masmorra? — indagou o Celso. E ouviu a explicação com o seu ar grave.

— Eram cobras venenosas, Estêvão?

— Eram. Jararacas, cruzeiras...

— Mas tem jararaca e cruzeira na índia? — perguntei.

— Não — respondeu o narrador — mas o marajá mandou comprar muitas no Butantã. A mais venenosa de todas as cobras era uma naja indiana. O mocinho estava num canto da masmorra, completamente desarmado. Olhava hipnotizado para a naja, que estava meio de pé, pronta para dar o bote, com aquela cabeça engraçada que nem parece de cobra...

— E o mocinho não tinha nenhuma pistola, nenhum punha!?

— Não, mas eis senão quando uma porta geme nos gonzos.

— Que é gonzo? — quis saber o Celso.

Antes que tivéssemos tempo de explicar o sentido da palavra, ouvimos uma voz do mundo real: "Estevo! Estevo! Vem pra casa! Tu tem que ir comprar leite no armazém!".

Reconhecendo a voz da mãe, Estêvão levou o indicador aos lábios, pedindo-nos silêncio. Contivemos até a respiração por alguns segundos. Mas foi inútil, porque a gorda Julieta já nos havia visto por uma das frestas da cerca que separava nosso pátio do quintal dos Araújo.

— Está bom — disse o nosso rapsodo. — Conto o resto c!a aventura amanhã à mesma hora.

Lançamos o nosso protesto. Não era justo deixar-nos naquela expectativa angustiante. Como era que o mocinho ia livrar-se da masmorra e das serpentes? Como poderia depois ir salvar a mocinha que estava nas garras do marajá?

— É o que veremos no próximo episódio — respondeu Estêvão. E se foi, montado num cavalo imaginário.

Um dia encontramos estendido na rua um cachorro vira-lata, Verificamos que tinha uma das pernas quebradas, pois fora atropelado por uma carroça vinda de uma das colônias italianas do interior do município.

— Que é que vamos fazer, doutor? — perguntou Estêvão,, olhando para mim.

— Encanar a perna do paciente — respondi.

O pobre animal, talvez filho dum fox terrier com uma cadela sem pedigree (ou vice-versa), gania baixinho. Levamo-lo com todo cuidado para o pátio de nossa casa, arranjamos duas talas de madeira e com elas encanamos a perna de nosso acidentado, amarrando-as com tiras de pano e barbantes.

— Temos de arranjar um nome pra ele — sugeriu Celso.

— Pitoco — sugeriu meu irmão. — Olhem só o rabinho dele...

— Pois eu te batizo, Pitoco, em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo — disse Estêvão, com voz eclesiástica. E todos (menos Celso) dissemos juntos: "Amém".

O caçula do quarteto quis saber o que significava "amém". Ninguém soube explicar-lhe.

Colocamos o vira-lata dentro duma caixa de madeira forrada de palha e dali por diante todos os dias levávamos-lhe comida e água. Semanas depois tiramos as talas, e Pitoco começou a caminhar sem manquejar. Ficamos orgulhosos de nossa proeza ortopédica. Pitoco nos olhava com seus olhos lustrosos de uma simpatia que poucos membros da raça humana nos pareciam capazes. Daí por diante passou a ser um membro do bando. Instalou-se na casa dos Veríssimo, dormia uma noite na minha cama, na seguinte na do meu irmão. Mas se acontecia minha mãe acender a luz do quarto, no meio da noite, Pitoco imediatamente saltava para o soalho, antes que D. Bega o repreendesse. Todas as manhãs acompanhava-me até a porta da escola, no seu trote macio e faceiro, e quando eu entrava no edifício ele fazia meia volta e tornava à casa. Quando, terminadas as aulas, eu saía da escola para a calçada, lá estava o Pitoco à minha espera, como um fiel capanga. Uma ternura agradecida lambuzava-lhe os olhos. Parecia feliz por ter encontrado um lar, comida farta a horas certas e amigos, principalmente amigos.

Agora só lhe faltava uma coisa que achávamos indispensável: um passado, uma história. Quem seria aquele misterioso cão que encontráramos caído na rua? De onde tinha vindo? De que remoto país? De que nobre ou sinistra estirpe? Quem sabe — alvitrou Ênio — se ele é um espião que cumpre uma missão ultra-secreta? Arrisquei: "Pode ser filho daquele cachorro que está na frente do gramofone, na marca da fábrica dos discos Victor".

Estêvão repeliu a idéia. Pitoco era um nobre que andava disfarçado de plebeu, de vagabundo, pois na verdade ele era o senhor conde Pitoco das Pitocaidas, dono de castelos na Espanha, palácios em Roma, templos na China e no Nepal...

Um dia Estêvão surpreendeu-nos com uma novidade perturbadora. Dom Pitoco tinha dupla personalidade. Em certas horas da noite assumia a sua segunda identidade, a de um burguês barrigudo, que usava cartola alta, fraque, calças listadas, relógio de ouro, anel, com brilhantes nos dedos. Vivia de explorar os incautos. Era receptador de roubos, chefe duma quadrilha de moedeiros falsos, agiota, sedutor de menores (repetíamos frases ouvidas da boca dos grandes ou lidas em jornais). Em suma, nessa sua segunda personalidade, Pitoco era um sujeito abominável. O Pitoco original, o legítimo — esse era um paladino, um galante cavaleiro e cavalheiro, defensor dos pobres e dos oprimidos.

Era esse Pitoco bom e leal que nos acompanhava em nossas andanças, participava de nossos sustos ou alegrias. De vez em quando eu o surpreendia a me fitar com seus olhos doces que pareciam querer dizer-me ou pedir-me alguma coisa. A boa vida fizera dele um cachorro gordo, roliço, o corpo meio porcino contrastando com a cabeça pequena.

Quando, anos mais tarde, fui mandado por meus pais para um internato em Porto Alegre, recebi um dia a notícia de que Pitoco tinha morrido "dum mal ignorado", segundo informava Estêvão, o signatário da carta. Tombara longe de casa, mas mesmo na agonia final conseguira arrastar-se até a nossa porta para ali, sem forças, "entregar a alma ao Criador".

Li a carta que anunciava a morte de meu amigo num dia de inverno, quando os morros de Teresópolis estavam empenachados de névoa. Tudo muito triste e sem café com sonhos. Consolou-me a idéia de que meus companheiros haviam dado ao fiel Pitoco uma sepultura cristã. Contou-me Estêvão que a bandeira de nosso grupo fora hasteada a meio pau. E quando jogavam terra sobre o cadáver de nosso amigo, o Tiétia, o Eniquinquias e o Nepruda levaram a mão fechada à boca, à guisa de instrumentos musicais e tocaram um hino improvisado ao herói. Celso, com lágrimas nos olhos, acompanhou-os como pôde com sua voz de baixo miniatural.

Pitoco foi o único bicho de estimação que tive em toda a minha vida.

 

Outro amigo íntimo com que contei nesse tempo foi o Mário, filho dum compadre de meu pai, Ernesto Lacombe, homem dotado de extrema simpatia e inteligência, proprietário — e esse era para nós o seu título mais importante — do único cinema da cidade, o Biógrafo Ideal. Como o Philip Carey do romance Servidão Humana, de W. Somerset Maugham, Mário tinha um pé torto, defeito físico que, a meu ver — agora desta longa distância no tempo — era largamente compensado por sua inteligência viva, pelo seu desembaraço no trato com as pessoas, e pela sua surpreendente facilidade de expressão verbal. Graças a seus dotes de orador, Mário era famoso no colégio que ambos freqüentávamos. Pronunciava seus discursos, decorados ou improvisados, com voz adequadamente impostada de entonação quase musical, arrancando aplausos de quantos o escutavam. ("Um futuro Rui Barbosa!" — dizia-se.)

Eu visitava com certa freqüência a sua casa, situada a pequena distância da nossa. Agradavam-me ao olfato os odores que lá me envolviam: temperos de comida em que predominava o louro, doçuras de açúcar queimado, e algo de indefinível que denunciava uma família estrangeira. Porque D. Elvira, mãe de Mário, uma dama corpulenta, com forte buço e olhos bons, era uruguaia de nascimento. O próprio Ernesto Lacombe falava o seu fluente e pitoresco português com um certo sotaque castelhano. Tinha o casal Lacombe muitos filhos. Ernestito era forte e tinha um queixo enérgico e um nariz de pugilista. A única menina da família, miúda, graciosa e viva, era conhecida como Ratita. Depois do Mário, a figura desse clã que me ficou mais nítida na memória foi a do Carlos, o Bochita, guri de dois ou três anos, que costumava no verão andar nu pela casa, sacudindo as vergonhas, a cara em geral enegrecida de carvão ou de caldo de feijão. Quando se enfurecia, batia pé e gritava: "Mierda! Mierda! Mierda!". Em casa os Lacombe falavam espanhol.

Devo confessar que eu implicava (tendência herdada de minha mãe) com uma" das "roupas de domingo" de Mário Lacombe, um conjunto de veludo marrom, com as calças afuniladas que lhe iam até meia canela, e uma jaqueta com um enorme cabeção à marinheira. Agora eu me pergunto se essa "implicância" não seria a forma que assumia a secreta inveja que o menino tímido e de pouca conversa tinha do orador, do colega desinibido e rapaz de subir para qualquer estrado ou palco e ali, diante dum grande público, pronunciar um discurso...

 

Aos sete anos eu havia sido matriculado no Colégio Elementar Venâncio Aires. Como já sabia ler passavelmente bem, pude saltar por cima da cartilha primária do uva, ovo, avô e cair num livro que começava com a estória de duas irmãs, Guiomar e Júlia. Para o menino acostumado aos pitorescos contos de Estêvão — com seus punhais malaios, seus suplícios chineses, duelos e guerras —, aquelas inocentes fábulas das duas irmãs eram-me insuportavelmente aborrecidas, a ponto de me provocarem bocejos.

Até hoje me assombra periodicamente a memória uma frase dum livro de texto escolar: "Ó Pedro, que é do livro de capa verde que te deu o avô?". Só agora na velhice é que começo a compreender o sentido transcendental dessa pergunta. "Ó Érico, onde está o livro de capa verde?" Fico pensando: Que fiz desse volume que não li? Rasguei-o? Queimei-o? Dei-o de presente a alguém? Talvez esse misterioso livro contasse os segredos da vida e da morte, contivesse a solução para os angustiosos problemas dos homens.

No colégio elementar eu era um aluno bem comportado, sempre fechado no meu silêncio, retraído nas horas de recreio. Por isso não era lá muito bem querido pelos alunos rebeldes, que me chamavam de "chaleirista", de adulador das professoras. Estas, sim, eram minhas amigas, citavam-me como exemplo de bom comportamento e até de decência, mal sabendo por onde andavam meus pensamentos e sentimentos.

Alguns de meus colegas traziam escondidas nos bolsos ba-ganas apanhadas na rua, roubadas a seus pais ou ganhas de amigos. Quando esses tocos de cigarro se umedeciam, o cheiro de sarro que despediam me causava enguihos. Isso talvez explique a razão por que nunca em toda a minha vida tive sequer a curiosidade de provar um cigarro. E até que ponto o significado malicioso que se dá popularmente à palavra tabaca terá influído na minha rejeição ao tabaco? A propósito: Na Seleta em Prosa e Verso havia um trecho literário em que se descreviam as funções do carteiro, que andava de casa em casa com a sua boceta cheia de cartas que tanto podiam ser portadoras de alegrias como de tristezas. De todos os muitos alunos de minha classe eu era o único que conseguia ler a palavra boceta sem sequer sorrir ou mudar o tom da voz. Mantinha uma cara de pau, enquanto os outros riam, tossiam ou assobiavam baixinho. É que eu queria a todo custo ser um rapaz e sério e não "Tertuliano, o frívolo peralta" de que falavam uns versinhos humorísticos dessa mesma antologia.

Meus pais me faziam também freqüentar a Aula Mista Particular da famosa professora D. Margarida Pardelhas — inesquecível figura de educadora que fez história na nossa cidade e fora dela. Foi nesse colégio que encontrei Luiza Russowsky, alguns anos mais moça que eu, e que, dali a vários anos, haveria de casar-se com Maurício Rosenblatt, de quem então eu nem sequer tinha notícia, mas que viria a ser um de meus melhores amigos. Havia na aula de D. Margarida muitas meninas e meninos judeus que se tornaram meus camaradas. Isso explica em parte o meu envolvimento sentimental com o Povo Escolhido. Naquele tempo eu não tinha a menor idéia da existência dessa raça, religião ou conjunto de tribos. Aqueles Russowskys, Filchtiners, Milititskis, Nisensons para mim eram todos russos.

  1. Margarida Pardelhas era uma espécie de Nemesis, temida pelos alunos insubordinados ou vadios e respeitada e mesmo venerada pelos outros. Solteirona de estatura meã, robusta mas não gorda, usava pince-nez, tinha um par de olhos claros e penetrantes, que pareciam ler nossos pensamentos mais recônditos, o lábio superior sombreado por um buço que, quando seu rosto estava sério ou irado, lhe acentuava a expressão de terribilidade. Sua voz era metálica e autoritária. Tinha, porém, um belo sorriso, que parecia reservar para os seus eleitos, isto é, os alunos que se portavam bem em aula e interessavam-se por aprender. D. Margarida educou várias gerações de cruzaltenses. Pisava duro com seus sapatos de salto militar, e o ruído ritmado de seus passos era conhecido de todos, inocentes e culpados. Quando ela entrava na aula em que a desordem e a balbúrdia se haviam instalado, todos se aquietavam de súbito, ao impacto de sua poderosa presença, e dali por diante reinava o silêncio.

Sempre tive por essa grande educadora uma certa afeição tingida de temeroso respeito. D. Margarida era solteirona e vivia numa pequena casa de sua propriedade, em companhia de seus velhos pais, na Rua do Comércio. Não acreditava na existência de Deus, mas nunca tentou, direta ou indiretamente, transmitir aos alunos o seu ateísmo. Lembro-me vagamente de que uni dia um pai irado publicou num jornaleco local um "a pedido" em que a chamava de "leitora de Voltaire e Diderot".

Recordo-me freqüentemente dessa minha professora sentada atrás de sua mesa, em cima do estrado, tomando notas num caderno. Quando se ouviam murmúrios na aula, erguia a cabeça, seus óculos relampejavam, e ela exclamava: "Ai! Ai! Ai!". E os ruídos morriam instantaneamente.

Ao aproximar-se da velhice, D. Margarida Pardelhas converteu-se ao catolicismo. Morreu há já muitos anos. Deve estar no Céu, educando anjos.

 

Tive nesse tempo de escola um pequeno romance com uma colega. Chamava-se Emília, sentava-se numa carteira ao lado da minha e devia ser um ano apenas mais moça que eu. Estabelecemos um namorico que minha fantasia bordou com os mais belos e coloridos desenhos. Sempre que recordo Emília ela mo aparece dentro duma paisagem de inverno cruzaltense, os lábios e as pernas roxas de frio, os livros debaixo do braço, o nariz lustroso e avermelhado, as mãos recendendo a casca de bei-gamota. Tinha uma cabeleira negra que lhe caía sobre os ombros, uma franja que quase lhe escondia por completo a testa arredondada. Trocávamos olhares furtivos, mas quando nos encontrávamos nas horas de recreio, pouco ou nada dizíamos um ao outro. Esse meu namoro com Emília me ajudou a agüentar por algum tempo a monotonia das classes. (Eu não estava mais na aula de D. Margarida.)

Certo dia um de meus colegas, sujeito mais velho e vivido que eu, me chamou para um canto e disse: "Sabes que a mãe da Emília é puta?". Tive gana de esborrachar o nariz do intrigante com um soco. Contive-me, fiquei olhando para o chão de terra do pátio da escola. Cedo, porém, descobri que o meu companheiro falava a verdade. A mãe de Emília era uma das mais famosas prostitutas locais, a Palméria, de porte imponente, rico e branco colo, muito procurada pelos homens casados da cidade.

Entreguei-me então a um nobre projeto: salvar Emília da mãe, da prostituição, da desgraça. Entretanto essa resolução durou menos que aquele duro inverno em que a pequena lagoa vizinha ao cemitério municipal ficou completamente congelada.

Não sei por que saí daquela escola, mas o fato é que perdi de vista a namorada. Tornei a encontrá-la quinze anos mais tarde. Reconhecemo-nos imediatamente e mantivemos um diálogo rápido. Emília me contou que se havia casado e fora infeliz com o marido, do qual estava separada. Confessou-me logo: "Caí na vida, sabes? Mas só recebo senhores de meia-idade. Tu compreendes, sou meio reservada". Sorriu. — "Hoje de noite não vai ninguém lá em casa. Por que não me fazes uma visita?" Deu-me seu endereço.

Naquele anoitecer debati-me numa dúvida. Dentro de mim minha,mãe me dizia: "Não vás". Mas meu pai cochichava: "Aproveita, bobo. A vida é curta. Se a Emília puxou pela Palméria, deve ser uma boa fêmea". Fui. E em vez da menininha recendente a casca de bergamota, encontrei na cama uma cópia da Palméria. Saí da casa de Emília compreendendo com a carne e o espírito, pela primeira vez, o sentido mais profundo da expressão post coitum triste.

 

Acabo de ser apanhado por uma das muitas armadilhas da memória. Esta me fez saltar quinze anos, passando por cima da adolescência, para cair na primeira mocidade e na perfumada cama de Emília. Voltemos à infância.

Além do grupinho íntimo a que já me referi, eu contava naquele vizindário com outros companheiros. A "fábrica" do Rafaele Dell'Aglio ficava na frente de nossa residência. Esses Dell’Aglio — o marido e a mulher — eram imigrantes naturais do sul da Itália e haviam-se estabelecido em Cruz Alta, fazia já anos, como fabricantes de massas alimentícias. Nesse estabelecimento industrial, uma das "máquinas" principais era movida a burro, como os moinhos bíblicos. Creio que meu avô Franklin ajudara os italianos no financiamento da compra do burro ou lhes dera de presente — o que acho mais provável — um dos burros de sua estância. Lembro-me de ter ouvido contar que, quando o animal morreu, os Dell’Aglio todos, pais e filhos, sentaram-se ao redor de seu cadáver e choraram copiosamente, como se tivessem perdido um membro da família. Outro burro foi comprado, e a vida do "masseiro" — pois a cidade o conhecia por este nome — continuou na dura rotina de trabalho, que começava às cinco da manhã e se prolongava até ao cair da próxima noite.

A família Dell'Aglio era numerosa: cinco filhos e cinco filhas. O mais velho dos machos era o Sabato, homem feito, longe de nossa faixa etária e portanto de nosso convívio. Vinha em seguida o Antoninho, com sua voz grave e roufenha, pouco mais velho que eu. (Mas que diferença fazem dois ou três anos quando somos ainda meninos!) Os outros três rapazes eram, e;n escala descendente, o José, que tinha um certo ar de sacristão — e que ao atingir a idade adulta se fez um líder católico —, o Rafael Júnior, conhecido como Faiulo, e finalmente Luiz, o caçula, guri de cara redonda e corada, que sabia dizer belos nomes feios. Quanto às mulheres, lembro-me de Tereza, que se casou com Lourenço Marchionatti, filho dum imigrante napolitano, de quem herdara uma pequena padaria, a qual, com seu tino comercial e sua fenomenal capacidade de trabalho, ele conseguira transformar numa grande empresa. (Lourenço parecia-se fisicamente com o papa João XXIII, comparação que só posso fazer valendo-me desta minha posição privilegiada no tempo.) Rosália, outra das moças, casou-se com um patrício de seu pai, importado da Itália.

Chamava-nos particularmente a gulosa atenção a Anita, adolescente de pele rosada e formas venustas, parecida com uma das madonas de Rafael (Sanzio, o pintor e não Dell’Aglio, o masseiro) que eu só viria a conhecer num quadro, no museu do Louvre, uns cinqüenta anos mais tarde. Anita aprendia a costurar com a minha mãe. Depois dela vinha a Carmelita, ainda impúbere e finalmente a Angelina, a mais nova de todas, ambas com seus rostos de anjos e querubins, desses que aparecem aos pés da Virgem Maria em certas pinturas clássicas.

Com o passar dos anos e de incansáveis labutas, os Dell' Aglio progrediram economicamente, ao passo que, depois da morte de seu chefe, o Dr. Franklin, o clã dos Veríssimo degringolou (sem trocadilho, pelo amor de Deus!) e foi aos poucos perdendo para os vizinhos italianos as suas casas hipotecadas. Música ao Longe, romance que escrevi em 1934, reflete de certo modo esse fenômeno sócio-econômico. O tema era e é excelente, mas merecia um tratamento menos apressado, superficial e tímido do que o que lhe dei. Não se trata exatamente da história da ascensão dos Dell’Aglio e da queda dos Veríssimo. Dei aos imigrantes italianos de meu romance o nome de Gambá e à família brasileira, o de Albuquerque. Curioso: o pé torto de Mário Lacombe — que nada tinha a ver com a estória — foi parar no corpo do menino Gustavo Gambá, conhecido como "Pé de Cachimbo". Embora narrados na terceira pessoa, os acontecimentos do romance são praticamente vistos do ângulo de Clarissa, a jovem professora, filha do chefe da família Albuquerque. Vários trechos do diário íntimo da moça aparecem transcritos no texto de Música ao Longe. Outro esclarecimento importante: os Veríssimo eram homens de melhor cultura e mais interessantes do ponto de vista humano que os Albuquerque. Vasco, primo de Clarissa, não é, como suspeitaram muitos leitores e críticos, um retrato do romancista quando jovem. Há entre nós diferenças muito nítidas de temperamento e caráter. Tenho uma inclinação para o quietismo e a contemplação. Vasco era impulsivo, inquieto, animado pelo espírito de aventura. Em Saga (1940), romance narrado na primeira pessoa, ele conta suas andanças como soldado da Brigada Internacional, na guerra civil espanhola. O que temos em comum é uma visão plástica da vida e uma grande simpatia — de que os Albuquerque positivamente não participavam — pelos italianos e pelos membros de outras correntes imigratórias do Rio Grande do Sul, em suma, éramos ambos favoráveis à miscigenação. Os Albuquerque repeliam a idéia, queriam manter "a tradição gaúcha" e uma pureza racial absurda, além de impossível.

Mas o que importa contar agora é que os meninos Deii' Aglio de nossa idade participavam de nossos brinquedos, tomavam parte em nossas guerras, nas quais faziam o papel de mercenários sem soldo, pois lutavam ora do nosso lado, ora do lado do Gen. Milton Machado, o filho do açougueiro.

Sempre votei uma especial afeição por esses vizinhos italianos. Tenho agora na mente a figura do velho Rafaele, de calças frouxas, presas precariamente por um cinto afivelado abaixo do ventre saliente e meio caído, a cabeça às vezes polvilhada de farinha de trigo, o torso apertado numa camiseta de algodão, a cara vermelha, a voz fanhosa e arrastada, com um terrível sotaque napolitano. Era um homem bom e costumava chamar a mim e ao meu irmão de gapataz. Sua mulher, D. Carmela, parecia uma personagem dum filme de Fellini. (Se o tempo me prega peças, eu me vingo, fazendo acrobacias dentro dele, pulando para a frente e para trás ao sabor de minhas conveniências.) Gorda, baixa, cabelos escuros arrepanhados num coque, nariz fino e longo, tinha a língua solta, era ativa, corajosa, trabalhadeira, falava alto, com a boca, as mãos, o corpo inteiro. Era dessas mulheres que ficam bem tanto embalando um berço onde uma criança dorme como carregando um saco de farinha às costas ou empunhando um fuzil numa barricada.

Em suma, o "masseiro", sua companheira e a vasta prole do casal constituíram um grato momento da minha infância.

 

Os próprios oficiais e soldados dos "exércitos inimigos" de nosso quarteirão eram também nossos companheiros de jogos. As guerras eram periódicas e muito espaçadas umas das outras, e delas em geral não ficavam ressentimentos. Quase todos freqüentávamos a mesma escola. Jogávamos todos futebol na rua com bolas feitas dum pé de meia cheio de trapos. Era uma alegria se algum de nós aparecia com uma bola de borracha. Uma festa de gala quando surgia alguém — geralmente algum menino rico — com uma bola de couro. Às vezes o dono da bola era um chato que tínhamos de suportar e adular com a maior paciência, a fim de que ele nos permitisse usar o precioso balão.

Muitas vezes preferíamos jogar bandeira na intersecção de duas ruas, a uma de cujas esquinas ficava a nossa residência. No centro dessa espécie de largo erguia-se um alto poste com uma lâmpada de luz forte na extremidade superior. Mariposas esvoaçavam ao redor dela. Besouros estúpidos chocavam-se com o luminoso vidro esférico e tombavam -no chão. Brincávamos também de diabo-rengo e de chicote-queimado. Sempre fui um péssimo esportista. No mais forte das pelejas eu perdia jogadas fáceis porque estava distraído a pensar noutras coisas ou a sentir a noite com todos os seus perfumes e sugestões.

Por que será que os verões da infância eram — ou nos parecem — tão mais suaves que os da idade adulta? Recordo as noites de antigamente, um vento morno trazendo-nos às narinas um cheiro acre de macegas queimadas nos campos dos arredores da cidade. Outras vezes vinha na brisa a doce fragrância da flor conhecida como "rainha-da-noite", ou a de jasmins e madressilvas. Outro olor que me comovia era o de pão quente, vindo da padaria do Marchionatti, onde tantas vezes meu irmão e eu, às dez da noite, íamos comprar pão recém-saído do forno. Essas excursões à padaria, em cujo pátio chapinhávamos quase sempre numa lama que recendia a acetileno, em minha memória são inseparáveis da figura do Cario Carlini, um italiano que fumava cachimbo — o primeiro homem que vi comer um tomate maduro, trincando-o como quem come uma pêra ou uma maçã. (Éramos mais carnívoros que herbívoros ou frutívoros.) Lembro-me de sua cara rude, os dentes escuros e miúdos apertando a haste do cachimbo. Não sei por que, sempre que o via, vinha-me à mente uma palavra cujo sentido eu mal conhecia: carbonário. Dizia-se que Carlini era anarquista, além de pessimista. Sua frase registrada era "No tê jêto". Nada no mundo "tinha jeito" para ele. Sabia o seu pouco de História Universal. Era ele quem nos entregava os pães quentes que comíamos a caminho de casa.

Naqueles tempos éramos todos mais íntimos das estrelas e da lua. Nosso céu era maior e estava mais perto de nossas cabeças. O cheiro de pão quente e flores dava ao mundo um sr confortável e plácido duma grande casa de família com jardim — uma mansão onde reinava a paz. Tudo simples, cordial, certo. A pobreza? Para nós meninos tratava-se de um ato divino e portanto irrevogável.

 

Deve ter sido por essa época dos jogos noturnos de bandeira que todas as tardinhas eu lavava a cara, penteava o cabelo — um de meus mais graves problemas até os quatorze anos, pois cobria-me a cabeça um pêlo abundante, preto, hirsuto e rebelde — olhava-me no espelho, enfiava na cabeça um chapéu de couro, concluía que estava sedutor, e vinha para a porta da casa ou da farmácia e ali ficava à espera de duas entidades que então me eram caras: uma vaca que passava sempre ' àquela hora vespertina, puxada pelo seu dono, que vendia leite a domicílio, e uma namorada chamada Matilde. A vaca era hosca, de olhos lustrosos e ternos. A namorada, morena, levemente dentuça, de cabelos escuros e olhar travesso. Por alguma razão misteriosa, ambas passavam pela nossa casa mais ou menos à mesma hora. "Quer leite hoje?" — perguntava o dono da vaca. Eu sempre queria. O homem pegava a caneca que eu lhe dava, ordenhava a vaca, depois me devolvia o vaso cheio dum leite gordo e espumoso. Eu metia a mão no bolso e pagava-o. Depois bebia o leite com gosto, ficando com um bigode de espuma. Fazia tudo isso sem desviar a atenção dos que passavam pela nossa calçada. Quando avistava Matilde e sua irmã, escondia a caneca, passava a manga do casaco pelos beiços e preparava-me para o grande momento. Matilde cruzava por mim e lançava-me um longo olhar que me parecia apaixonado. Eu a contemplava, fazendo boquinhas. Nem sequer nos cumprimentávamos. E lá se iam, a menina e a vaca. Eu ficava no meu posto, ruminando o leite morno e o olhar quente. Passei a chamar aquele momento crepuscular de "A hora da vaca". (Perdão, Matilde, onde quer que estejas!)

O poente começava a avermelhar-se para o lado do Cadeado, conhecido também como "o lado dos Veríssimo", pois era para aquelas bandas que meu avô paterno tivera um dia campos e estâncias. A estrela vespertina cintilava no firmamento. Eu estava em paz com o mundo e comigo mesmo. À noite, na frente da casa — planejava — íamos brincar de índios peles-vermelhas e cow-boys. Eu seria o bravo Buffalo Bill. "Mãos ao alto!" A vida era boa. O mundo estava certo. Deus tinha sempre razão. E Deus era bom.

 

Em 1912 chegou-me, primeiro através dos comentários dos mais velhos e depois nas páginas das revistas do Rio de Janeiro, a notícia do naufrágio do Titanic. Profundamente comovido, sentei-me na borda do canteiro onde estava plantada a ameixeira-do-japão e ali fiquei, calado e imóvel, tentando recriar no espírito a horrível tragédia que havia devorado mais de mil vidas humanas. Eu "via" o transatlântico afundando no negror gelado da noite e do mar: o pequeno grupo de passageiros na proa (ou na popa?) cantando um hino religioso — "Mais perto quero estar, oh meu Deus, de ti!". E me fazia perguntas para as quais não encontrava resposta. Se estava no poder de Deus ter evitado a catástrofe, por que Ele não o fizera? Afinal de contas, que queria de nós o Supremo Arquiteto do Universo que, segundo um símbolo maçônico, tinha o olho triangular? Eu me imaginava a bordo do transatlântico na noite fatal. Via o enorme iceberg no meio do oceano e o paquete aproximar-se dele, inescapavelmente. Creio que naquela noite tive um pesadelo em que uma montanha de gelo crescia diante de meu pavor.

Um par de anos mais tarde um amigo metodista me deu um livro publicado pela sua Igreja, e que reconstituía, com ilustrações impressionantes a bico de pena, toda a estória do naufrágio do Titanic, exaltando o fervor religioso dos que aguardaram a morte cantando um hino religioso de esperança em Deus e na vida eterna. Por muito tempo o afundamento do grande transatlântico foi o assunto principal de meus próprios desenhos.

 

Pouco mais de um ano após essa tragédia marítima, eu seria testemunha dum dramático incidente ocorrido ali mesmo na nossa cidade.

Em fins de 1913 um tenente do Exército nacional recém-chegado a Cruz Alta foi proposto por um colega de armas para sócio do Clube Comercial, baluarte da burguesia local. Não sei por que motivo não foi aceito. O fato causou sensação na cidade. Falou-se em represálias da parte da guarnição federal contra a sociedade. Nada, porém, aconteceu. Chegou dezembro, os jasmineiros-do-cabo floresceram no nosso pequeno jardim. Seu perfume era para mim o prenuncio de acontecimentos agradáveis: o meu aniversário (muitos presentes), o Natal (idem) e finalmente as férias de verão.

Os membros de nossa "melhor sociedade" esperavam com alvoroço o reveillon do Comercial. As mulheres mandavam fazer vestidos, compravam sapatos, preparavam as suas jóias, discutiam penteados. Os homens tiravam dos guarda-roupas seus smokings recendentes a naftalina e mandavam limpá-los e passá-los a ferro. Havia no ar, em estado quase palpável, uma expectativa alegre. Chegou finalmente a noite de 31 de dezembro. Uma banda de música, como de costume, foi contratada para tocar no baile. Começaria inteira, na hora da polonaise inicial, e depois seria reduzida ao que era conhecido como "um terno", que ficaria marcando o compasso das danças até o final da festa. O grande momento seria à meia-noite, hora em que o ano de 1914 entraria festivamente ao som de canções, gritos, vivas, abraços, beijos, votos, esperanças, frenéticos atropelos...

Meu irmão e eu obtivemos permissão de nossos pais para ir "espiar" o baile, confiados à guarda de D. Afonsina Masson, mãe de nossa vizinha D. Zaíra. Tínhamos uma grande afeição por essa senhora de cabelos grisalhos, católica fervorosa, suave de voz e gestos. De nosso canto, no vestíbulo do clube, junto da porta do salão de festas, vimos nosso pai marcar a polonaise — bem como faria o Dr. Rodrigo Cambará no Clube Comercial de Santa Fé, numa cena do romance que eu iria escrever quase quarenta anos mais tarde. Sebastião Veríssimo, que ostentava um cravo branco na botoeira de seu smoking, pareceu-me o "dono da festa".

Depois da polonaise começaram as danças. Meus olhos percorriam o salão, viam as mães de família sentadas nas cadeiras, ao longo das quatro paredes, dizendo-se segredinhos por trás dos leques, olhando com orgulho, apreensão ou esperança para as filhas casadouras que valsavam com alguns dos "bons partidos" da cidade. Uma atmosfera perfumada enchia o recinto iluminado.

Muitos olhavam repetidamente para seus relógios, esperando impacientes o fim do ano. Longe, nos bairros pobres, estrondavam foguetes prematuros. E eis que quando os músicos fizeram uma pausa, ouviu-se um tiroteio cerrado e próximo, identificado pelos entendidos como produzido por armas de guerra. Balas começaram a zunir por cima das cabeças das pessoas que se encontravam na área descoberta do clube. Os que olharam para os fundos do terreno da sociedade, que davam para outra rua, viram o clarão das detonações. Os projéteis cravavam-se nas paredes posteriores do edifício, estilhaçavam vidraças. Gerou-se então o pânico. Os homens e as mulheres que estavam na área compreenderam que o Comercial estava sendo alvo de um ataque a mão armada. A confusão se generalizou, começaram os atropelamentos, mulheres gritavam, algumas desmaiavam, as pessoas que caíam ao chão eram pisoteadas pelas que fugiam às cegas. A gritaria era assustadora. Vi um homem atirar-se duma das sacadas fronteiras do edifício, caindo sentado na calçada. Outros o imitaram. Meu coração começou a bater mais forte, ao ritmo do medo. D. Afonsina, segurando nossas mãos, rompeu a correr escadas abaixo, enquanto murmurava uma prece, e fomos buscar refúgio numa casa das vizinhanças. Pernas frouxas, o coração na garganta, mas nem por isso menos curioso, aproximei-me duma janela e por uma fresta em suas cortinas fiquei olhando a fachada do Comercial. Vi um homem com a mão ensangüentada, uma dama gordíssima, muito conhecida na nossa comunidade, caminhando descabelada e manca, pois tinha perdido no entrevero um de seus sa-, patos. Pessoas continuavam a saltar das sacadas.

O tiroteio durou mais alguns minutos. Em breve já se sabia que os assaltantes eram soldados do regimento de infantaria local, comandados por um tenente que os embriagara antes de levá-los ao criminoso ataque. Horas mais tarde chegou-nos a notícia de que o delegado de polícia, Antoninho Pereira, descera até o fundo do clube para averiguar do que se tratava e fora assassinado com um balaço de Mauser. Ouvi uma voz dizer na penumbra daquela sala onde estávamos refugiados: "É o fim do mundo!". Pensei então nos meus pais. Que lhes teria acontecido?

Terminado o tiroteio, o tenente marchou com seus comandados até à frente do edifício do clube, como se quisesse invadir-lhe o recinto. Sebastião Veríssimo postou-se no alto da escada que levava ao vestíbulo e, engasgado de indignação, dirigindo-se ao oficial e seus comandados, bradou: "Corja de covardes e canalhas! Vocês só têm coragem para espingardear mulheres, velhos e homens desarmados!". Os poucos varões que haviam permanecido dentro do clube arrastaram meu pai para dentro do prédio. O tenente, depois de gritar bravatas, levou seus soldados, rua do Comércio acima, numa formatura que pouco ou nada tinha de militar.

Nenhuma das pessoas presentes ao baile foi atingida pelas balas, mas muita gente se feriu no atropelo. Várias mulheres tiveram ataques de nervos.

Era já madrugada quando meu irmão e eu chegávamos à nossa casa. D. Bega, que arrumava as camas, murmurava: "É melhor a gente ir viver na campanha, onde essas barbaridades não acontecem". O que nenhum de nós sabia era que ela viveria o tempo suficiente para ter notícia de duas guerras mundiais, sendo que a segunda custaria a vida de trinta milhões de seres humanos, dos campos de concentração e extermínio nazistas, do massacre dos judeus e dos bombardeios de Dresden, Hiroxima e Nagasaque.

No dia seguinte correu pela cidade de ruas quase desertas o boato de que todo o regimento de infantaria preparava-se para atacar o Clube e apossar-se dele pela força. Meu pai reuniu os amigos machos com que podia contar para "um pega pra capar" e foi com eles montar guarda ao edifício do Comercial, disposto a resistir até ao último cartucho. Pôs no bolso o revólver e — pormenor que recordo com muita nitidez — amarrou num lenço todas as balas que tinha em casa. Enquanto ele se preparava, os olhos de minha mãe o miravam com a sua habitual expressão de resignada melancolia. Os soldados, porém, não voltaram ao ataque. Não sei se o tenente culpado daquele ato de banditismo foi punido segundo as leis militares. Só sei que foi imediatamente transferido da guarnição de Cruz Alta para outra. E o incidente ficou conhecido na história da cidade como "O Assalto ao Clube Comercial".

Meu pai, que era antimilitarista desde os tempos da campanha civilista de Rui Barbosa, encontrou nesse assalto mais um motivo para detestar quem quer que usasse o uniforme caqui. Minha mãe observava, com seu habitual bom-senso: "Não podes culpar todo o Exército brasileiro pelo que fez um tenente maluco e um grupo de soldados bêbados". Meu pai sacudia a cabeça numa negativa apaixonada. "Todos são iguais" — disse — "botam a farda e consideram-se uma casta à parte, o sal da terra". Cortou suas relações pessoais com todos os amigos militares que, após o acontecimento, não tomaram uma posição definida no caso, condenando publicamente o criminoso assalto.

 

Veio depois o agosto de 1914 e a Primeira Guerra Mundial. Todos nós em casa tomamos imediatamente o partido dos aliados. A França era a segunda pátria de Sebastião Veríssimo, dos intelectuais de sua geração e de outras anteriores e posteriores. Indignou-nos a brutal invasão da Bélgica pelos alemães. Num comício pró-Aliados, realizado na Praça Gen. Firmino de Paula, meu pai subiu para um banco e fez de improviso um discurso, com a palheta na mão, os olhos úmidos de emoção, a voz vibrante. Lembro-me duma referência que fez à Bélgica, "esse país de heróis, que perdeu tudo, tudo, menos a honra!". Estrugiram aplausos, vieram-me lágrimas aos olhos, e um calafrio me percorreu o corpo inteiro, do couro cabeludo à planta dos pés.

Por esse tempo fundei uma revista — A Caricatura — que constava de um único exemplar em duas folhas de papel almaço, e na qual eu fazia desenhos e escrevia pequenas notas.

Em suas páginas apareciam sempre caricaturas do odiado Kaiser, com seus insolentes bigodes retorcidos para cima, o seu capacete agressivo. Mas havia também retratos feitos a bico de pena e simpatia de generais franceses como Joffre, Pétain, Weigand, Foch.

Tratávamos o conflito com espírito maniqueísta. Era o Bem contra o Mal. O Direito contra a Tirania. Bandidos contra Mocinhos, como nas fitas de cinema. Até Castro Alves colaborou no meu periódico:

 

             Marchar!... Mas como a Alemanha

             Na tirania feudal,

             Levantando uma montanha

             Em cada uma catedral?...

 

A reação dos franceses no Marne fez-nos vibrar. Eu celebrava em A Caricatura as proezas dos poilus e dos Tommies, que cantavam o lt's a long way to Typperary. Achávamos que Deus não podia deixar de ser aliadófilo, pois aquela era a guerra da Civilização contra a Barbárie. Nunca pude entender um socialista italiano que um dia me disse, cripticamente, apontando para os remédios que se enfileiravam nas prateleiras da farmácia do meu pai. "É uma guerra comercial, menino, não se iluda. Veja todos esses produtos da Bayer e da Merck que tanto se vendem. (E eu olhava obtuso para os vidros de aspirina e água oxigenada.) A França e principalmente a Inglaterra não podem agüentar a concorrência comercial alemã no mundo. E não se trata só de produtos químicos, mas de automóveis, de locomotivas, de indústria pesada. Vocês odeiam o Kaiser, não é vero? Pois o chefe da Krupp manda quase tanto quanto ele na Alemanha. Não se iludam. Esta é uma guerra comercial." Não compreendi. Achei que o gringo estava bêbado. Como é que se podia explicar a causa duma guerra mostrando caixas de bicarbonato Poulenc Frères e de Eurythmine Détan?

Fosse como fosse, fizemos toda a Grande Guerra através das notícias de jornal e das muito bem impressas e ilustradas publicações de propaganda que o governo inglês distribuía na América do Sul, em versões castelhanas. Lembro-me até do cheiro da tinta de impressão desses panfletos. E jamais esqueci um poema contra o Kaiser Guilherme II em que, entre outros insultos, se dizia que ele era "sanguinário cual elefante". Hoje imagino que essa comparação tenha sido feita pelo apressado tradutor, premido pela necessidade de encontrar rima para um vocábulo terminado em ante.

A Caricatura morreu antes do fim da Primeira Grande Guerra, não por falta de recursos financeiros, mas por pura preguiça de seu único redator. A própria Guerra passou a tornar-se para nós uma espécie de rotina, já que ela nos chegava transformada em escrita, através da imprensa. Nós lhe víamos apenas a parte heróica, esquecidos ou ignorantes dos sofrimentos e da destruição de vidas humanas e de cidades inteiras, sob os bombardeios. A guerra no papel era excitante e bela, principalmente a aérea. Admirávamos o aviador francês Guynemer, membro da famosa esquadrilha das Cegonhas. Só ele tinha já derrubado mais de cinqüenta aviões dos boches.

Uns meninos nossos vizinhos, descendentes de alemães — segunda ou terceira geração —, gabavam-se das proezas do aviador "lambote" von Richtofen, conhecido como o Barão Vermelho, por causa da cor de seu avião de caça. Diziam que o diabo do homem tinha abatido quase oitenta aviões aliados. "Mentira, alemão batata!" — "Alemão batata é a avó torta!'' Foi assim que começou a Guerra Mundial em Cruz Alta. Unimos nossas forças com as do filho do açougueiro e atacamos o "exército alemão" local. Vencemos todas as batalhas, pois os nossos louros inimigos estavam em minoria. A paz de Cruz Alta foi assinada primeiro que a de Versailles.

No dia em que os jornais noticiaram a morte de Guynemer — um sujeito pequeno, como veríamos numa fotografia que nos desiludiu um pouco — passei o dia abichornado, como se tivesse perdido um tio querido. O maldito Barão Vermelho só veio a morrer um ano mais tarde.

Quando os submarinos alemães torpedearam navios mercantes brasileiros, pedimos no pátio, na rua, nas páginas dum "número póstumo" de A Caricatura que o Brasil declarasse guerra à Alemanha. Fomos milagrosamente ouvidos. Nosso Presidente, Wenceslau Braz, pediu à nação "parcimônia nos gastos". O Brasil mandou para Dakar um contingente de médicos para trabalhar na Cruz Vermelha dos aliados.

Festejamos com júbilo a entrada dos Estados Unidos no conflito. "É a gota que falta para fazer o cálice da vitória transbordar" — disse meu pai. Fundei nova revista, /ns. Desenhei para a sua capa um retrato colorido do presidente Woodrow Wilson, cujo queixo ocupava quase toda a página.

Veio finalmente o Armistício. A Alemanha estava kaputt! Comemoramos o acontecimento nos nossos arraiais. Tio Rodolfo — psk!psk!psk! — encarregou-se dos foguetes. Acendemos fogueiras. Comemos milho verde assado em suas chamas. Queimamos um arremedo de bandeira alemã, que desenhei em papel de embrulho. Mário Lacombe, nosso orador oficial, fez um discurso, exaltando os aliados. Tudo terminava bem, como nos filmes americanos. Pitoco tomou parte nos festejos, parecia até saber do que se tratava. Reunidos ao redor das brasas da fogueira, no fim da festa, discutimos o que se devia fazer com o Kaiser. "Fuzilar o bandido!" — disse alguém. "Meter o homem numa jaula e levar ele num circo por todo o mundo..." — sugeriu outro. Estêvão pensou, pensou e depois disse: "Vamos obrigar o bandido a trabalhar como cubeiro em todas as latrinas de Cruz Alta. Ah! E fardado, com medalhas e tudo!". Desatamos a rir. Pitoco nos contemplava com seus ternos olhos remelentos. E as estrelas brilhavam no imenso céu de nossa cidade e da nossa infância.

 

Meu interesse por cinema começou muito cedo com a lanterna mágica, aparelho primitivo de projeção, dotado duma lente de aumento através da qual passava a luz duma lâmpada de querosene, projetando, numa parede branca ou em telas improvisadas com toalhas ou lençóis, estórias de quadrinhos. Na idade adulta — e o mesmo me acontece agora na velhice — sempre que sinto cheiro de querosene queimado, minha mente, casa assombrada por fantasmas, gratos uns, perturbadores outros, imediatamente se povoa palidamente das alegrias e deslumbramentos do menino de cinco anos que via o feixe luminoso sair da lanterna e transformar-se no quadro branco em imagens coloridas. Só consigo lembrar-me de uma das muitas lâminas de vidro que eu tinha com desenhos "desanimados". Era uma estória em quatro quadros na qual aparecia, no primeiro, um verde sapo caricatural em cima dum trapiche, no segundo o batráquio saltando para dentro dágua, no terceiro apenas a água da lagoa com círculos concêntricos na superfície, e no último o sapo emergindo à tona por entre juncos, com seus olhos exorbitados e um grande sorriso na boca rasgada.

Por volta dos oito anos ganhei um projetor que passava filmes de celulóide em que as figuras se moviam como as do "cinema de verdade", num ritmo que dependia do movimento de quem manejava a manivela que regulava a velocidade do carretel do filme. A fita mais popular entre todos meus amigos intitulava-se "Dança das Serpentinas".

Aos sete anos eu já era um freqüentador assíduo do Biógrafo Ideal, o cinema do seu Lacombe. (Está claro que, como amigo da família, eu jamais pagava entrada.)

Entre o princípio deste século e os primeiros anos da Primeira Grande Guerra, o cinema italiano e o francês ocupavam na América Latina — e também no resto do mundo — um lugar que lhes haveria de ser um dia arrebatado pelas companhias americanas. Aos doze anos eu já podia admirar a plástica de atrizes italianas como Leda Gys, Pina Menichelli, Lyda Borelli, Lydia Quaranta e da grande Francesca Bertini. (A Bela Hespéria era um pouco gordota e já meio velhusca para meu gosto.)

Quanto aos atores, eu admirava Emílio Ghione e Alberto Capozzi, espécie de Humphrey Bogart daqueles tempos. Gostava também de Gustavo Serena, Alberto Collo e Amleto Novelli. Nunca tive muita simpatia por Tullio Carminatti, o galã de basta cabeleira que fazia poses pomposas e tinha uns requebros um tanto suspeitos.

Era muito comum ouvirem-se entre meus amigos diálogos assim: "Que tal é a fita de hoje no Biógrafo?". — Resposta pronta: "Não presta. É de amor".

Claro, preferíamos as películas de guerra e aventuras. As companhias francesas como a Pathé Frères, a Éclair e a Gaumont nos haviam dado seriados estupendos como Zigomar, Judex (o vingador), Rocambole, Protea. (Oh as belas coxas da protagonista, que sempre aparecia com uma malha negra que lhe modelava as formas!) E Fantomas, que sucesso! Eu me identificava com uma de suas personagens, Fandor, bravo e arguto repórter. Na luta contra Fantomas, eu torcia pelo jornalista, sentado nas duras cadeiras do Biógrafo, mastigando, aflito, amendoins torrados ou chupando balas de coco. Outro seriado que me apaixonou foi Vampiros, da Gaumont. Amei a "mocinha" Irmã Vep — anagrama de vampire — e levei-a para o meu serralho secreto.

Detestávamos os filmes de amor da Cines, da Ambrosio e da Pasquali por causa da lentidão de suas cenas, em que, por exemplo, Alberto Collo, galã de pequena estatura, cuja cabeça mal chegava à altura do ombro da bela Francesca Bertini, ficava sentado com ela num sofá em diálogos intermináveis. (Eu recusava ler os letreiros.) O que nós queríamos era ação, socos, assaltos, duelos, aventuras. E que beijos intermináveis trocavam os amantes nesses filmes italianos! E como levavam tempo para morrer aqueles mulherões decerto alimentados a maccherone! La Bertini — essa era esbelta — prolongou ad nauseam a sua agonia em A Dama das Camélias. Mas não sejamos injustos para com a Cines, a Ambrosio e a Pasquali, pois elas produziam também grandes filmes históricos com todos os ingredientes que nos sabiam muito bem ao paladar. Vibramos com Quo Vadis?, em que Gustavo Serena fez o papel de Petrônio, o escritor a quem Nero ordenou que se suicidasse, cortando os próprios pulsos. E na hora em que os cristãos, homens, mulheres, crianças eram lançados aos leões famintos na arena do Coliseu, fechávamos os olhos, para abri-los em seguida, entre sadicamente fascinados e cristãmente horrorizados. Empolgavam-nos os filmes sobre a Roma antiga, em que em pleno Coliseu os gladiadores se defrontavam com os retiários. Eu torcia sempre pelos gladiadores. Spartacus foi um filme que nos encheu plenamente as medidas da fantasia. Haveria no mundo coisa melhor do que assistir a um filme de aventuras ou de guerra, sentado na platéia do Ideal, chupando caramelos ou mastigando rapadurinhas de coco? Nossas línguas, nossos dentes, nossos maxilares moviam-se ao ritmo daqueles duelos, batalhas e correrias.

Os Últimos Dias de Pompéia, que vimos com considerável atraso em Cruz Alta, causou-me profunda impressão. (Cenas do filme me voltariam à memória com seus cenários de papelão quando, cinqüenta anos mais tarde, já avô, visitei as ruínas da verdadeira Pompéia.)

Mas de todos os filmes históricos produzidos "na Itália nenhum nos entusiasmou mais do que Cabíria que (sei hoje) foi escrita diretamente para o cinema por Gabriel Dannunzio. Concluíamos que não podia existir no mundo fita melhor. Vimos as legiões cartaginesas atravessando os Alpes, os navios incendiados por meio de espelhos, o luxo do palácio de ouro de Asdrúbal com seus elefantes de ouro e — acima de tudo — as proezas de Maciste, o bom gigante, um homem de quase dois metros de altura, escravo e protetor de Cabíria, e que podia enfrentar sozinho cinco, dez, doze inimigos, vencendo-os todos! Levei muitos anos para compreender por que os italianos chamavam esses filmes grandiosos de capolavoro.

E havia também as fitas cômicas. O meu ator preferido nesse gênero era o Dide (André Deed), mas gostava também do Bigodinho e do Robinet, todos franceses. Colocava numa categoria especial o Max Linder, o preferido dos mais velhos por ser, como diziam meus pais, "um cômico fino" e que freqüentemente aparecia em seus filmes envergando uma bem cortada casaca e tendo na cabeça um chapéu alto. (Nesse tempo nenhum de nós conhecia ainda Charlie Chaplin ou, melhor, o Carlitos.)

A França nos mandava filmes de aventuras que nada ficavam a dever aos italianos, como por exemplo Os Três Mosqueteiros. D'Artagnan passou a ser um menino que vivia à sombra duma nespereira, com uma espada de pau à cinta, na cabeça um chapéu de palha ornamentado com penas arrancadas a um velho espanador. Meu irmão, o mais alto do grupo, passou a ser Porthos. Estêvão, o sábio, era Athos. Faute de mieux, Pitoco encarnou Aramis. Todos havíamos jurado defender a Rainha contra as trampas do cardeal e seus cumpinchas.

Os Miseráveis, filme feito na França, baseado no romance de Victor Hugo, não só me comoveu como despertou também minha indignação. Ao sair do cinema, depois de ver a odisséia do pobre Jean Valjean, fiz este comentário: "Quem rouba um pão pra matar a fome vai pra cadeia como ladrão. Isso não está direito!". Odiei Javert, o cruel policial. Creio que essa foi a primeira manifestação de minha futura atitude com relação a problemas de justiça social.

Ouvíamos os comentários de nossos pais sobre todos esses filmes, e raramente ou nunca estávamos de acordo com eles. Naqueles tempos o lugar hoje ocupado por Ingmar Bergmann e seus filmes cerebrais era, grosso modo, preenchido pelos produtos duma companhia cinematográfica dinamarquesa — espécie de raro caviar nórdico que, com discreta freqüência, o Biógrafo servia na mesa onde seus fregueses comiam habitualmente as suculentas, operáticas macarronadas italianas. Tratava-se da Nordisk, cuja marca era um urso branco em cima do globo terrestre. Foi essa empresa que lançou às platéias do mundo a atriz Asta Nielsen, espécie de precursora — eu ia escrever pré-avó — de Creta Garbo. Para a Nordisk trabalhava o galã Waldemar Psilander, que minha mãe e suas amigas achavam um tipão e que, segundo o semi-apagado testemunho da minha memória, era uma espécie de Curd Jürgens mais moço, mais elegante e mais simpático.

Depois que se deflagrou a Primeira Guerra Mundial, os filmes italianos e franceses começaram a escassear e a ser substituídos por películas feitas nos Estados Unidos.

Os filmes americanos nos conquistaram com facilidade pela rapidez de suas cenas, pelas suas novidades em matéria de mobilidade da câmara cinematográfica (não se tratava mais de teatro filmado) e pela preferência pelos enredos novelescos. A mais remota película made in USA de que tenho lembrança foi produzida pela Triangle Films e chamava-se no Brasil O Clarim da Glória. Numa superprodução americana que vi lá pelos idos e vividos de 1916, intrigou-me uma guerra em que se batiam dois exércitos, um com uniforme escuro e o outro com fardamento claro. Tudo indicava que pertenciam ambos ao mesmo país, o que me deixava confuso. Chamava-se cretinamente Guerra de Covardia e Heroísmo. Só muitos anos mais tarde é que, adulto, vim a saber que se tratava nada mais, nada menos que do famoso "clássico" do cinema americano, The Birth of a Nation, de David W. Griffith. Havia outras fábricas de filmes nos Estados Unidos que forneciam alimento para o nosso insaciável apetite cinematográfico: a Biograph, a Vitagraph, a Realart, a Keystone...

As divas italianas como Francesca Bertini, a Almirande-Manzini, a Quaranta, a Borelli e tantas outras opulentas fêmeas peninsulares haviam sido substituídas por um novo tipo de heroína — a mulher esportiva, por assim dizer, portátil, como Mabel Normand, Ruth Roland, Mary Pickford e tantas outras.

Tínhamos também agora outro tipo de herói, o cow-boy do Far-west, Tom Mix, Harry Carey e aquele vaqueiro com cara de cavalo, que nunca sorria mas em compensação nunca errava tiro: William S. Hart. O pátio da Farmácia Brasileira povoou- se de repente de bravos covebóis — como dizíamos. Nos nossos brinquedos ninguém queria ser índio pele-vermelha, porque estes, além de serem perversos e traiçoeiros, eram sempre vencidos no fim da estória.

O herói atleta, o jovial acrobata tinha como representantes mais notáveis para nós figuras como Douglas Fairbanks e Ceorge Walsh. Lembro-me de que admirei com grande fervor Eddie Polo, o homem forte, que andava sempre de torso nu e montava cavalos em pêlo. Passava a vida defendendo a mocinha dos ataques de bandidos mexicanos. Completamente desarmado, derrubava a socos os adversários. Esse sublime paladino dos fracos apareceu num seriado que no Brasil se intitulava idioticamente Liberdade Americana. Parece-me, não juro, que a heroína se chamava Liberty.

A minha artista de cinema predileta entre todas as que apareciam nos seriados americanos era Pearl White. Sabíamos que a melhor película dessa brava moça loira, capaz de lutar a socos com homens fortes, era a que se exibia em várias capitais do Brasil e aparecia em folhetins na imprensa, sob o título de Os Mistérios de Nova Iorque. Estávamos indignados com seu Lacombe por ele não ter ainda mandado buscar essa grande superprodução para passá-la no seu cinema.

Ora, por esse tempo um sobrinho de nossa vizinha D. Zaíra veio com sua mãe, D. Judith e seu irmão mais moço-, Heitor, passar as férias de verão em Cruz Alta. Era ele mais alto que eu, apesar de mais moço. Em matéria de estudos, estava léguas e léguas na minha frente. Chamava-se Ruy, tinha um rosto longo, um queixo voluntarioso. Além de inteligente, possuía uma memória quase fotográfica. Estudava nove meses por ano com uma aplicação exemplar, estimulado por sua mãe, outra criatura admirável por sua comunicabilidade, finura de trato e pela energia e dedicação com que ajudava o filho mais velho em seus temas escolares. Ficamos sabendo mais tarde que aos quinze anos estava Ruy com todos os seus estudos preparatórios feitos, pronto para se matricular na Faculdade de Direito. Era um menino de excelente moral, boca limpa e bom companheiro.

Devíamos admirá-lo por todas essas qualidades de caráter e intelecto, mas a verdade era que a reputação que Ruy gozava entre nós estava baseada unicamente no fato de que esse privilegiado forasteiro já tinha visto todos os episódios de Os Mistérios de Nova Iorque no cinema Apoio, em Porto Alegre. Cravas às suas informações aprendemos, entre outros pormenores, que o detetive do seriado chamava-se Justino Clarel, e que Pearl White tinha nessa estória o nome de Elaine, e que o bandido chinês era conhecido como Wug-Wang. Daí por diante, até ao fim das férias, dependemos de Ruy Cirne Lima — hoje um dos mais ilustres professores de Direito e humanistas deste país — para "brincar" de Os Mistérios de Nova Iorque. E quando o menino Ruy retornou à sua cidade, voltamos à rotina municipal. Nossa lista de heróis cinematográficos crescia. Amamos, cada qual à sua maneira, Dorothy Dalton, Bessie Love, Billie Burke, Mary Pickford, Priscilla Dean, Lillian Cish... quantas mais! E havia ainda as doidas comédias de Mack Sennett com seus polícias grotescos e principalmente suas sedutoras banhistas. E também Harold Lloyd, com seus óculos de aros de tartaruga, subindo como uma mosca pelas fachadas dos arranha-céus. Na alta comédia e no drama, tínhamos Thomas Meigham, Wallace Reid, William Farnum, Richard Barthelmess... Nos filmes cômicos, Buster Keaton, Harry Langdon, Chico Bóia... E um dia conhecemos Carlitos!

 

Olhando para trás, desta distância no tempo, e examinando a minha "educação cinematográfica", concluo que foi lá por 1915 que começou o nosso — pelo menos o meu — processo de americanização naquela escola que era o Biógrafo Ideal.

É claro que as fábricas de filmes dos Estados Unidos e seus produtores — neologismo que, com superprodução, o cinema anglo-saxão impôs à nossa língua, sem o menor respeito pela nossa dignidade semântica — tinham como finalidade principal e óbvia obter lucros materiais. Acontece, porém, que os roteiristas da época e também os seguintes, foram aos poucos, com suas fábulas e personagens, desenhando, pintando, esculpindo no espírito de milhões de espectadores através do mundo o arquétipo do "homem americano" — o cidadão exemplar, limpo de corpo e espírito, bravo, forte, justo, generoso, ledor da Bíblia, temente a Deus, em suma, um repositório dos ideais supremos do WASP, isto é, o americano Branco, Anglo-Saxão e Protestante.

Tenho a impressão de que os seriados — com seus crimes, seus suplícios requintados, em geral chineses, e sua violência — não eram levados em conta pelos propagandistas do American Dream. Seja como for, não tinham, que eu me lembre, o menor conteúdo sexual, pelo menos manifesto: no final feliz o mocinho beijava castamente a donzela com a qual ia casar legalmente perante a lei dos homens e a de Deus. Uma regra, talvez não escrita, proibia o cow-boy de beijar a girl que ele salvara das garras dos malfeitores, e que naturalmente se apaixonara por ele. O bravo paladino precisava ficar livre e só, para novas aventuras. Seu destino era o do cavaleiro andante. No final de contas, seu amor verdadeiro era o cavalo.

As comédias — realmente engraçadas, pois não conheço humor melhor que o que se produz até hoje nos Estados Unidos, no teatro, no cinema, na televisão, nas revistas — eram de caráter por assim dizer surrealista nas suas correrias insensatas, na sua ausência de qualquer espírito lógico, na sua institucionalização do nonsense, do absurdo. Carlitos saía fora de todos 05 esquemas: era o anti-herói, hoje tão encontradiço no romance moderno, perdia todas as partidas do amor, nunca ficava com a moça, era um vira-lata humano de bom coração mas de má sorte.

Os dramas do cinema dos Estados Unidos,, porém, tendiam a mostrar a vida americana, por assim dizer, pasteurizada — um país ideal, paradigma de justiça, pureza, progresso material e moral e espírito cristão. Lá estavam, entre outras associações, principalmente femininas, as D.A.R. (Filhas da Revolução Americana) para garantir a manutenção dessa edificante e bela imagem. Os filmes que saíam fora desse paradigma moral eram boicotados por boa parte do público, sob a influência dessas puritanas e seus submissos maridos. A situação se tornou de ta! maneira delicada, que mais tarde os estúdios de Hollywood — que desde 1918 se transformara na Meca do cinema mundial — tiveram de criar uma organização, mantida pelas próprias companhias cinematográficas, para exercer uma espécie de autocensura em seus produtos. Nasceu assim o Hays Office, que tinha uma lista de assuntos, palavras e gestos que não deviam aparecer nos filmes. Esse código era de tal maneira completo, que até a posição em que o galã e a heroína deviam estar, no momento em que se beijavam, era determinada com rigidez. A duração desses beijos era devidamente cronometrada. Ora, é natural que para provar que uma raça, um grupo social, urna nação são justos e nobres, faz-se necessário pô-los em confronto e fatalmente em luta com outros grupos raciais e sociais para que se possa estabelecer o desejado contraste. No caso das películas americanas, os bodes-expiatórios foram principalmente os mexicanos, que eram apresentados como bandidos e os índios peles-vermelhas, mostrados como seres traiçoeiros, capazes de todas as atrocidades. Havia ainda os negros, que se dividiam em dois grupos: os revoltados e portanto malfeitores, e os do tipo do Pai Tomás, do romance de H. Beecher Stowe, isto é, os que com humildade, fidelidade e ternura caninas servem os seus masters brancos. Um dos mais sérios tabus desse código de moral cinematográfica dizia respeito à miscigenação. Vários parágrafos estabeleciam clara e implacavelmente que um moço ou moça americana jamais poderia casar com pessoa do sexo oposto (ou do mesmo, imagino) que pertencesse a alguma raça inferior, como por exemplo negros, chineses, japoneses, latino-americanos, índios, em suma, gente que tivesse a pele mais escura que a dos hígidos descendentes de anglo-saxões, germânicos ou escandinavos. O mais que se podia tolerar era um vago caso de amor que não devia jamais terminar em casamento, pois a mulher ou o homem de sangue impuro devia morrer antes de terminar o drama.

O ator japonês Sessue Hayakawa, com sua máscara misteriosa e impassível, nunca conseguiu a mocinha, pela qual geralmente perdia a vida antes do The End.

Entrei nesta digressão um tanto longa sobre os filmes de cinema americanos porque eles foram em grande parte responsáveis pelos meus amores de menino, adolescente e homem feito pelos Estados Unidos, bem como por minhas desilusões com relação a esse país, as quais se foram acentuando principalmente depois da Segunda Grande Guerra, quando comecei a conhecê-lo mais de perto. Muitos dos problemas que hoje afligem essa grande nação — onde há ainda muita coisa a admirar e imitar, como seu respeito às liberdades civis e a boa qualidade de tantas de suas universidades — tiveram sua raiz nos problemas raciais que os filmes apresentavam à sua maneira preconceituosa, na idéia errada que eles davam da vida nos Estados Unidos, mostrando-o como uma espécie de novo Paraíso Terrestre. As Filhas da Revolução Americana não queriam que os produtos de Hollywood mostrassem seu país como uma "casa desarrumada", de sorte que nunca permitiam que se erguessem seus coloridos tapetes do chão bem lustrado. A História encarregou-se dessa demitificação e desmistificação, levantando as alfombras, abrindo secretos armários ancestrais e mostrando em suma toda a sujeira que jazia debaixo ou dentro deles. E aí estão hoje, como resultado dessa discriminação, os movimentos do Poder Negro, dos Chicanos e o dos índios.

Esse desmascaramento na minha opinião vai ser, no final de contas, muito saudável para os Estados Unidos. Nenhum médico pode curar um paciente sem primeiro saber do que ele realmente sofre.

Seria uma injustiça se eu me esquecesse de falar nos prestidigitadores da minha infância. Sempre tive pelos "mágicos" uma admiração particular. Tempo houve em que, menino, desejei ser ilusionista. Muitos anos mais tarde, como pai e como avô, eu tentaria divertir e deslumbrar filhos e netos com minhas mágicas elementares, que a princípio fizeram grande sucesso e me deram considerável prestígio junto deles, até o dia em que meus pobres truques foram descobertos.

Quando rapazote, sempre que me sentava na platéia dum teatro para assistir a um espetáculo de magia, nunca me sentia tranqüilo, pois temia ser dum momento para outro chamado ao palco para sujeitar-me ao ridículo de botar ovos pelo nariz ou para, hipnotizado, fazer bobagens ou contar os meus mais bem guardados segredos. Assim, à delícia que esses espetáculos me proporcionavam, misturava-se uma certa dose de temor. Nunca fui chamado. O medo, porém, ficou escondido em algum refolho de meu ser, e reapareceu mais forte que nunca na noite em que, já adulto, tive de enfrentar uma platéia na minha primeira conferência pública. Não me abandonou até hoje, apesar de eu já ter feito em diversos países, assassinando graciosamente umas três ou quatro línguas alheias, mais de mil conferências em universidades, teatros, salões e congressos. O máximo que consegui nessas ocasiões, depois de pronunciar as primeiras frases da palestra com uma voz que a emoção tornava opaca, foi fingir que estava muito à vontade, a ponto de várias pessoas imaginarem que eu me deliciava nessas exibições em público.

É que a timidez do menino continuou — atenuada, é claro — no homem. A única diferença é que o adulto tem mais defesas, mais recursos que lhe permitem fingir que está sentindo uma coisa, quando na realidade está sentindo outra completamente diferente.

Havia também os circos de cavalinhos, que apareciam periodicamente na nossa cidade. Via de regra, eram companhias mambembes, sem feras, o picadeiro pequeno, palhaços sem graça, acrobatas medíocres. De quando em quando surgia-nos um grande circo. Lembro-me especialmente de um que, se a memória não mente, se chamava Foureaux-Manetti. Ah! Esse era rico, tinha elefantes, tigres, hienas. Quanto aos leões, achava-se entre eles o famigerado Menelique, que já havia matado mais de um domador. Os palhaços? De primeira qualidade. (O Tony Periquito era o meu predileto.) A banda de música era própria e muito boa: até hoje me lembro com clareza da melodia da marcha com que ela abria triunfalmente a função.

Em dia de circo, eu já pela manhã começava a examinar o céu, apreensivo ante cada nuvem que surgisse no horizonte. Se chovesse não haveria espetáculo. Monteiro Lobato (foi em Mundo da Lua ou em Cidades Mortas?) põe na boca dum menino esta frase profunda: "Por que será que sempre que tem circo, chove?". Que desoladora verdade!

Entre os palhaços da minha infância, guardo grata lembrança de um que era a alma de seu pequeno circo: o Braga, negrão alto e corpulento, natural da Bahia, e que tinha o aspecto dum chefe de tribo africano. Muito espirituoso, sabia cantar cançonetas, emboladas e lundus. Havia uma canção — creio que a respeito do bombardeio da Bahia — cujo estribilho era mais ou menos assim:

 

               Tcbim-bum! Não é nada,

               É o eco da granada!

 

Admirávamos, especialmente nos grandes circos, os acrobatas do trapézio volante e os domadores de feras. Os contorcionistas nos causavam mal-estar e sempre gritávamos com o resto do público, caridosamente: "Basta! Basta! Basta!".

Lembro-me duma família japonesa de malabaristas a cujas incríveis proezas eu assistia de boca aberta. Havia ainda as pantomimas. No circo do Braga representava-se uma intitulada A Campanha de Canudos. A expedição Moreira César era composta de oito soldados recrutados entre os vagabundos da cidade. O palhaço Braga, agora compenetrado de seu papel dramático, era o próprio Cel. Moreira César. Comandava a "expedição" com um fuzil ao ombro, parecendo mais um cabo-de-esquadra.

De todas as pantomimas de circo que vi quando menino, nenhuma me impressionou tanto como Os Bandidos da Serra Morena, em que a mocinha, roubada por malfeitores, é salva graças ao bravo Cap. Severo. (Semente do Cap. Rodrigo de O Tempo e o Vento? Olhem, quem sabe!) Numa das cenas mais dramáticas da pantomima, quando Don Paço Leandro, el hombre malo de Sevilha, quer tomar a donzela nos braços, o Cap. Severo interpõe-se entre ambos, bate com a palma da mão no peito, e exclama: "Para tocares nessa moça, Don Paço, terá? que primeiro passar por cima de meu cadáver!". Nesse momento meu tio-avô Mingote Lopes, que estava uma noite num camarote com sua esposa e seus numerosos filhos, rompeu num aplauso frenético, no que foi seguido por todo o público que enchia o circo. Está claro que no fim da pantomima Don Paço perdia a partida e o Cap. Severo casava-se com a donzela. E a minha convicção de que o Bem sempre acaba triunfando sobre o Mal saiu daquele espetáculo consideravelmente robustecida.

Com freqüência eu me apaixonava — amores efêmeros e impossíveis! — pela moça que caminhava sobre um fio de arame estendido a uns dois metros do chão do picadeiro, equilibrando-se graciosamente com o auxílio duma sombrinha. Quando os saltimbancos iam embora, imitando antecipadamente o Charlie Chaplin do filme O Circo, eu visitava o terreno baldio onde o barracão estivera armado e quedava-me a contemplar, melancólico e suspiroso, o círculo onde ficara a marca do picadeiro. Voltava depois para a casa com "uma coisa" no peito.

Em geral os palhaços de circo desse tempo falavam ou uma mistura de português com espanhol ou então espanhol mesmo.

Por muito tempo considerei a língua de Santa Tereza d’Avila uma língua de palhaços. Mais tarde, língua de zarzuela e de cançonetistas. (Onde estais ó Carmencita, ó Amparo, ó Lolita?) O espanhol também me parecia o melhor idioma do mundo para a gente contar mentiras sobre caçadas, pescarias ou atos de bravura pessoal. Só muito mais tarde — Obrigado, Cervantes! Obrigado, Azorin! Obrigado, Garcia Lorca! — é que pude apreciar a beleza e a nobre graça do castelhano.

 

Tenho a impressão de que o primeiro livro que li, quando meu entusiasmo pelo Tico-Tico começou a arrefecer, continha uma interessante narrativa sobre caçadas. Não me lembro do título do romance nem do nome do autor. Era muito bom ler livros — concluí — mesmo que o volume tivesse muitas páginas e nenhuma ilustração.

Uma das maiores descobertas literárias de meus dez ou onze anos foi a dum livro encadernado que encontrei um dia no fundo duma gaveta. Sua capa, com desenhos em negro sobre um fundo vermelho, mostrava à esquerda uma jibóia enroscada numa bananeira, ao^pé da qual estava sentado um leão que parecia olhar para um veleiro desarvorado e encalhado numa praia. Num céu escuro subia um balão. No alto da capa li um nome: Júlio Verne. Pouco abaixo, estas palavras: Viagens Maravilhosas. Contra a encosta dum rochedo, o título do romance: A Casa a Vapor. Vendo-me interessado no volume, meu pai me informou: "Esse livro pertencia à tua avó Adriana. É um romance em dois tomos. Não sei por onde andará o segundo".

Fui sentar-me ao pé da ameixeira-do-japão e comecei a leitura. Recordo as primeiras linhas do Capítulo I, intitulado Uma Cabeça Posta a Prêmio: Concede-se um prêmio de mil libras a quem entregar, vivo ou morto, um dos antigos chefes da revolta dos cipaios, que consta ter aparecido na presidência de Bombaim, o nababo Dandu Pant, mais conhecido pelo nome de...

As palavras cipaio, Bombaim e nababo exerceram logo sobre o meu espírito um poderoso sortilégio. Continuei a ler o capítulo com voracidade. O tronco, os galhos, as folhas e as frutas da nespereira pareciam também interessadas no romance e liam por cima de meu ombro. Que me importavam as emanações fétidas da sentina? Ou as moscas que zumbiam ao redor de minha cabeça? Eu estava na índia das vacas sagradas, dos faquires, do Ganges. O major inglês Munro procurava sua mulher que se extraviara durante a sangrenta revolta dos cipaios. Recusava aceitar a idéia de que ela estivesse morta Queria encontrar Lady Munro nem que para isso tivesse de sacrificar a própria vida. (Um passarinho cantou, empoleirado num dos galhos da ameixeira, mas para mim não se tratava duma corriqueira corruíra e sim dum exótico e multicolorido pássaro da misteriosa índia.)

O Eng. Banks, amigo do Maj. Munro, inventara o mais estranho dos meios de transporte: uma casa sobre rodas puxada por um elefante de aço movido a vapor, como uma locomotiva, mas que em vez de rolar sobre trilhos, caminhava com suas pernas mecânicas pelas estradas. E era nessa casa a vapor que o Maj. Munro ia sair pela índia em busca da esposa perdida!

A nespereira dali por diante passou a ser a minha casa a vapor. Eu me identificava ora com Banks, ora com Munro ou Maucler, o narrador da aventura. Li furiosamente durante cerca de duas horas. Quando já entardecia deixei o pátio, mas permaneci na índia: e então a "casa a vapor" passou a ser o sofá com pequenas rodas nos pés, num canto da "varanda".

À noite, na cama, terminei a leitura daquele primeiro tomo do romance, sem dar atenção às muitas intervenções de D. Bega, que a intervalos me gritava de seu quarto: "Apaga essa luz e dorme, menino!". No dia seguinte saí em busca do segundo volume de A Casa a Vapor que encontrei providencialmente no fundo da gaveta de um dos dunquerques.

No fim do segundo volume o Maj. Munro encontra finalmente a esposa extraviada, que havia perdido a razão, mas que a recupera ao reconhecer o esposo! Passei a ser um admirador fidelíssimo de Júlio Verne. "Mãe, me dá dois mil-réis." D. Bega queria saber para que eu queria tanto dinheiro. Eu explicava: "Pra comprar mais um livro de Júlio Verne".

Assim, durante todo aquele ano e no seguinte, fui O Herói de Quinze Anos, passei Cinco Semanas em Balão — e a ameixeira resignava-se a fazer ora o papel de aerostato, ora o do submarino do Cap. Nemo para percorrer Vinte Mil Léguas Submarinas. Foi também uma grande jangada que desceu o rio Amazonas. E enquanto eu me identificava com Phileas Fogg a árvore foi sucessivamente trem, balão, trenó, vapor... Com o Prof. Lidenbrok empreendi uma viagem ao centro da Terra, onde a minha claustrofobia me angustiou um pouco. Fui também — e com que devoção! — um dos filhos do Cap. Grant. Achei-me admirável de coragem e audácia no papel de Miguel Strogoff, o correio do Czar. Metendo-me na pele do bravo Ayrton, em A Ilha Misteriosa, encontrei o Cap. Nemo já nos seus últimos dias de vida, sozinho, dentro de seu prodigioso Nautilus. Depois de várias esperanças frustradas, consegui ver por uma fração de segundo o esquivo raio verde. Um dia fiz a ameixeira transformar-se no projétil que me levou com outras personagens numa volta ao redor da Lua.

Confesso que saltei por cima das muitas dissertações puramente geográficas ou históricas de Júlio Verne, e que não consegui (fiz várias tentativas) ler a série que tinha como título geral As Grandes Viagens e os Grandes Viajantes. O que me interessava em seus romances não era a cultura, mas a aventura.

De Júlio Verne dei um salto literário que até hoje não consigo explicar. Aos treze anos li A Esfinge de Afrânio Peixoto. "É um realista" — informou-me meu pai. Achei curioso esse tipo de romance com pouca ação e quase nenhum enredo. O herói da estória era escultor, e a prova de que me identifiquei com ele é que um dia, quando a Prof.a Margarida Pardelhas perguntava em aula a seus estudantes que profissão cada qual pretendia seguir, quando adulto, ao chegar a minha vez respondi com a maior das certezas: "Escultor!". De Afrânio Peixoto li também Fruta do Mato e Bugrinha. Continuei, porém, alternando essas leituras realistas com novelas de aventuras folhetinescas, cujos heróis eram larápios simpáticos como Raffles, Rocambole e principalmente Arséne Lupin. Ah! Que sensacional o roubo da Gioconda, do Louvre! Gostava de ler também proezas de detetives como Sherlock Holmes e Nick Carter.

Travei conhecimento com Aluízio de Azevedo através de O Cortiço e Casa de Pensão. Meti-me empaticamente no corpo do pobre Coruja.

Coelho Neto me conquistou — que linguagem rica, quanta palavra de dicionário! — com o seu Sertão, mas de todos os seus romances o que mais me impressionou foi Inverno em Flor. Por mais estranho que pareça, a minha primeira tentativa para ler Machado de Assis não foi lá muito bem sucedida.

Fiz passeios deliciosos pelos romances de Joaquim Manoel de Macedo, cuja Moreninha beijei castamente. Fui o Moço Louro — apesar de minha pele morena e do meu pêlo negro. Tive uma paixão literária por Afonso Arinos por causa de seu Pelo Sertão, e decidi dar seu nome à minha incipiente biblioteca.

Em 1918 a influenza espanhola atirou na cama mais da metade da população de Cruz Alta, matando algumas dezenas de pessoas. Não se dignou, porém, contaminar-me. Lembro-me da tristeza de nossas ruas quase desertas durante o tempo que durou a epidemia, e dos dias de calor daquele dramático novembro bochornoso. Era como se os próprios dias, as pedras,, a cidade inteira estivessem amolentados pela febre. A escola achava-se em recesso e eu podia passar dias inteiros a ler romances. Foi nessa época que descobri com encanto -As Minas de Prata, de José de Alencar. Li também um livro sobre Portugal, impresso em papel esponjoso e grosso, com muitas ilustrações em cor, uma das quais mostrava uma árvore com flores vermelhas, tendo por baixo a legenda: Olaias em flor. A palavra olaia me agradou tanto aos olhos como ao ouvido. Quarenta anos mais tarde, visitando Portugal pela primeira vez numa fria mas luminosa primavera, procurei as olaias como quem procura amigos de infância há muito perdidos.

Foi durante a influenza em 1918 que li pela primeira vez Eça de Queirós (Os Maias), Dostoiévski (Recordação da Casa dos Mortos e Crime e Castigo), Tolstói (Ana Karênina) e o Ivanhoé, de Walter Scott. E a minha salada literária foi um dia apimentada fortemente por livros de Émile Zola como L'Assomoir, Naná, Germinal, Tereza Raquin e A Besta Humana.

 

Passada a epidemia a cidade entrou em lânguida e trêmula convalescença. Em 1919 minha mãe fez uma viagem de recreio ao Rio de Janeiro, usando para isso o dinheiro economizado em muitos anos de trabalho. Levou consigo meu irmão Ênio. Explicou que eu devia ficar para não perder o ano escolar. Mas perdi-o assim mesmo, pe!a simples razão de que mais uma vez os números me confundiam. A Aritmética continuava a ser a minha bete noire. Sem o acicate materno, o adolescente, cuja voz engrossava e cujo buço parecia sombreado a grafita, dividia seu tempo entre a leitura, os namoricos e os jogos de rua.

Meu pai continuava em suas aventuras eróticas. Um dia em que voltei para casa mais cedo que de costume, surpreendi-o a sair de seu quarto de dormir em companhia duma menina, para mim desconhecida, pouco mais velha que eu, e cujos seios ele acariciava, enquanto lhe beijava as orelhas e as faces.

Escondi-me e fiquei esperando a despedida, excitado, o sangue em fúria e já com um sentimento de que estava sendo vítima duma injustiça, pois uma rapariga daquela idade, tão apetitosa e provocante, pertencia por direito natural a mim e não a meu Velho.

  1. Bega voltou da sua excursão. Naturalmente não lhe disse palavra sobre a aventura paterna. Tive, isso sim, de tentar justificar a razão pela qual havia sido reprovado nos exames escolares. Não encontrei nenhuma válida. Minha mãe me chamou de vadio. A palavra me doeu fundo, pois eu queria manter imaculada a minha imagem de bom menino, bom filho e bom estudante.

Naqueles últimos meses de 1919 meu pai decidiu que eu iria fazer o curso ginasial em Porto Alegre, como interno num colégio fundado por missionários americanos da Igreja Episcopal Brasileira, imaginava que os ianques poderiam com banhos frios e ginástica transformar seu primogênito num atleta como Douglas Fairbanks. Minha mãe, católica sui generis, pois pouco rezava e raramente ia à missa, não fez nenhuma objeção quanto à escolha do colégio. Sebastião Veríssimo era o que se poderia chamar de "católico de estatística". Tinha uma imagem de São Sebastião, seu xará (no Rio Grande do Sul dizemos tocaio), todo crivado de flechas, à cabeceira de sua cama, mas nunca ia à igreja e não morria de amores pelo clero.

  1. Bega começou a preparar o enxoval para o meu noivado com o internato. Fui devidamente matriculado no ginásio episcopal por minha mãe, que pagou a matrícula com o seu dinheiro.

Andei macambúzio naqueles meses de princípios de 1920. Doía-me a idéia de ter de passar nove meses inteiros longe de minha gente e de minha casa. Um novo capítulo na minha vida estava por começar.

Nunca minha terra natal me pareceu mais suave e bela que naquele verão do primeiro ano da década dos 20. Eu saía em passeios de despedida pelas ruas da cidade, em casa olhava com uma ternura particular para a ameixeira-do-japão, que tanta coisa parecia dizer-me em seu silêncio.

O meu "drama" era consideravelmente agravado por um fato sentimental da maior relevância. Eu estava então seriamente enamorado duma menina pouco mais moça que eu e que correspondia ao meu afeto. Chamava-se Vânia, tinha nas veias sangue italiano, um rosto redondo e corado e uma vivacidade que freqüentemente embaraçava o Tibicuera de D. Bega.

Chegou o dia da partida. Despedi-me de Vânia na véspera, com um simples aperto de mão. Combinamos a melhor maneira de manter uma correspondência secreta durante minha ausência. Juramo-nos amor eterno.

Minha mãe me levou em pessoa a Porto Alegre. Estava tão nervosa, imagino, quanto eu. Na plataforma da estação de Cruz Alta beijei desajeitadamente a mão de meu pai, abracei meu irmão, que chorava, e ouvi de Sebastião Veríssimo estas palavras: "Quero que sejas sempre o primeiro aluno da tua classe, meu filho". Sacudi a cabeça numa chocha afirmativa. Abracei Estêvão, acariciei o lombo de Pitoco, que parecia saber o que se estava passando, pois julguei perceber uma certa emoção nos olhos dele.

Entramos no vagão poeirento e recendente a carvão de pedra queimado. Sentamo-nos. Levávamos num cesto uma galinha assada com farofa. Minha mãe tirou de sua bolsa um vidro de remédio contra enjôo, e que cheirava a éter e canela. Tomou um gole. Havia em seus olhos um ar apreensivo. Naqueles tempos viajar de trem ,era uma verdadeira odisséia sem nenhum prazer, beleza ou glória. O agente da estação, com seu boné dum vermelho vivíssimo, puxou duas vezes na corda do sino, depois de alguns instantes soprou o seu apito. O comboio se pôs em movimento. Acenei para os amigos que estavam na plataforma. Era como se eu estivesse partindo para o exílio. Pensei em Vânia, dedos invisíveis me apertaram a garganta. Eu a amava e ela me amava... mas podia eu confiar na sua fidelidade durante minha ausência? Meus olhos se umedeciam. "Homem-macho não chora" — pensei, repetindo mentalmente uma frase paterna. Contive o pranto, o peito dilacerado. A estação de Cruz Alta desapareceu do campo da minha visão. O trem soltou um apito desgarrado e triste. "Queres uma maçã?" — perguntou D. Bega. Respondi que não com um sinal de cabeça. Olhei para fora através da janela. Quero-queros voavam guinchando sobre as coxilhas. Perto de aramados, plácidos bois e vacas olhavam o trem passar. Soltei um suspiro que me veio do fundo do peito dolorido.

 

O Colégio Cruzeiro do Sul está situado num verde vale, no arrabalde de Teresópolis, em Porto Alegre. Quando cheguei ao internato, preocupava-me a idéia de ser submetido aos trotes que os estudantes veteranos infligem tradicionalmente aos calouros, aos "bichos". Eu possuía um singular senso de dignidade pessoal. Aos quatorze anos portava-me como um respeitável senhor quarentão que recusa submeter-se a situações ridículas. Inexplicavelmente fui poupado. Que teriam meus colegas visto na minha cara que me deixaram em paz? Não me deram sequer uma alcunha. Entre os internos havia "apelidos" que pegavam logo e aos quais a vítima se resignava: o Negrão, o Só-de-carne, o Lobisomem, o Catarro, o Batista-com-bicho, o Cavalo...

Naquele tempo considerei o meu privilégio uma vitória, mas hoje desconfio de que me cercava uma certa aura quase polar, uma espécie de inverno serrano que repelia o verão dos outros. (No fundo sempre a timidez.) Nunca fui verdadeiramente popular entre meus condiscípulos. Minha seriedade e senso de disciplina irritava os insubordinados, que no internato constituíam uma minoria, mas ativa e dominadora, e que usava duma técnica parecida com a dos terroristas políticos.

Se por um lado eu sentia desejos "sebastianescos" de confraternizar com os colegas, rir com eles, fazer-me querido,, por outro o meu pudor de revelar emoções ou recorrer a estratagemas verbais para agradar aos companheiros relegou-me — principalmente naquele primeiro ano de internato — a uma espécie de zona de sombra e silêncio. Apesar de tudo, fiz nos três anos que passei no Cruzeiro do Sul, vários bons amigos, que não vou mencionar nesta memória, para não alongá-la demasiadamente. Deixei no ginásio uma reputação, creio que imerecida, de bom estudante. Numa de suas primeiras cartas meu pai me lembrava de minha obrigação de conquistar todos os meses o primeiro lugar na classe, para honrar o nome da família. Satisfiz-lhe o desejo, apesar de minha alergia à Matemática. A verdade, porém, é que eu estudava apenas nos últimos minutos antes de ir para as aulas, e no fim de cada mês, na véspera das sabatinas. Passava a maior parte das horas voando no tapete mágico das minhas fantasias, lendo ou imaginando romances, rabiscando caricaturas ou então curtindo a saudade de minha gente, de minha casa, de minha namorada e de meus amigos.

O meu competidor na obtenção do primeiro lugar na nossa classe era Aldo Magalhães, um externo de família modesta, rapaz um pouco mais velho que eu, mais alto e mais magro, com uma cabeça que lembrava a do poeta Castro Alves. Era um sujeito quieto, introvertido e de boa índole, e nossas relações humanas eram boas, se levarmos em conta que se tratava de dois caramujos. Eu vencia o Magalhães todos os meses por uma pequeníssima diferença na média geral. Aldo tirava boas notas em Matemática, ao passo que eu ainda me arrastava claudicante e catacego nessa matéria, em que minhas notas nunca iam acima de 5 ou 6. Não sei por onde andará hoje o Aldo Magalhães, se está vivo ou morto, casado ou solteiro, se prosperou na vida como comerciante, se optou pelo funcionalismo público ou seguiu uma profissão liberal. Perdi-o de vista por completo depois de 1922. Seja como for, gostaria de encontrá-lo agora para lhe dizer que ele merecia tirar os primeiros lugares que me couberam durante os anos que passamos juntos naquele colégio. É que muito tarde vim a descobrir que o nosso professor de Matemática me protegia, dando-me notas que me permitiam conseguir uma média geral alta, pois achava uma pena que um aluno como eu, que ia tão bem em História Universal, Geografia, Francês, Inglês, Português, História Natural, etc, fosse ficar para trás só por causa de sua alergia aos números. Assim, dava-me notas como 5, 6 e não raro 8, quando eu "desconfiava" que merecia zero ou quando muito 2.

Meu caro Aldo Magalhães, silencioso e retraído colega, tão desajeitado no teu uniforme caqui do Cruzeiro do Sul, devolvo-te depois de meio século os meus troféus. E peço-te perdão por um "crime" que não devo ter cometido deliberadamente mas do qual eu talvez tenha sido cúmplice subliminarmente. Teu pai, Aldo, talvez se contentasse com o simples fato de seres aprovado nos exames finais, passando para a classe imediatamente superior. O meu exigia, em nome duma discutível tradição de família que seu filho, portador de seu nome, fosse sempre o primeiro de sua classe. Em meu favor, Aldo, tenho uma só coisa a dizer-te. Depois que me tornei adulto, passei a não dar um níquel por honrarias, títulos e condecorações de qualquer natureza.

 

Nos meus tempos do Cruzeiro do Sul, uma das fontes do complexo de inferioridade que me perturbava, eram as minhas roupas. A fatiota cinzenta domingueira era obra do pior alfaiate de Cruz Alta, que devia ser um dos piores do mundo. Num tempo em que estavam na moda casacos muito compridos e cintados, e calças tão estreitas que nas partes inferiores mais pareciam perneiras, eu saía aos domingos com o meu "casaquinho de pular cerca", as calças com boca de sino, os pés metidos nuns sapatos de bico rombudo, quando o último grito eram os calçados com solas de borracha (ah, a novidade, o prestígio da sola Neolin!) pontiagudos como torpedos.

O curioso é como isso tudo produzia em mim um sentimento de frustração que acentuava minha timidez e a idéia de que eu não passava dum mambira serrano, cujo aspecto e companhia não podiam ser agradáveis a ninguém.

Logo que cheguei ao ginásio, com o atraso de quase uma semana, o aluno Victor Graeff — que viria a ser no futuro deputado pela União Democrática Nacional — convocou-me para uma reunião secreta na ponte de pedra que marcava um dos limites do território do internato. Éramos uns quinze ou vinte colegas. Victor arengou-nos, tratando de convencer-nos de que devíamos fazer uma greve de protesto contra a má qualidade da comida que o Cruzeiro do Sul servia aos seus alunos. A maioria dos presentes àquela pequena assembléia aprovou a idéia. Graeff voltou-se para mim (era um rapaz alto, forte e insinuante, com qualidades de líder) e perguntou: "E tu, cruzaltense, estás conosco?". Respondi que não estava. Victor exclamou com desprezo: "Frouxo!". Repliquei: "Mas eu cheguei hoje de manhã e nem provei ainda a comida...". Graeff voltou-me as costas e se foi. Não sei por que razão a greve gorou. Devo dizer francamente que não sei como, talvez por falta de elemento melhor, fui classificado no primeiro time de futebol do ginásio, na posição de extrema-direita. Diga-se a bem da verdade que eu era um jogador entre medíocre e mau. Tinha pouca mobilidade, não sabia driblar e principalmente faltava-me agressividade. Naqueles tempos as regras de futebol eram mais "liberais" que as de hoje. Se, por exemplo, o goleiro agarrava a bola, os atacantes contrários podiam empurrá-lo legalmente para dentro do gol a "pechadas", empurrões e pontapés.

Creio que nosso capitão se havia deixado iludir pela minha habilidade em centrar — coisa que eu fazia com certa precisão e numa coreografia absolutamente desnecessária, mas de grande efeito de arquibancada: ajoelhava-me no momento exato em que, com o peito do pé chutava a bola de modo a que ela fosse cair na frente da pequena área dos adversários... E os meus companheiros que se arranjassem como pudessem.

Lembro-me duma partida em que a equipe do colégio enfrentou a do S. C. Universal, do vizinho arrabalde da Glória. Éramos rapazes entre 15 e 17 anos, ao passo que nossos competidores já estavam avançados na casa dos vinte, sujeitos parrudos, de pernas e peitos cobertos de pêlos. Quando olhei para a estatura dos componentes do onze do Universal — camisetas listradas de verde contra fundo branco — pensei: "Estamos fritos". Coube-nos dar a saída. O juiz apitou, nossa linha avançou, recebi a bola em condições favoráveis, fiz uma centrada com tanta força e tão fechada, que o balão bateu na trava superior do gol do Universal, ricochetou e o Humberto Kruel, um de nossos melhores atacantes, deu-lhe uma rija cabeçada, marcando assim nosso primeiro ponto, em menos de meio minuto de jogo. Daí por diante começou o massacre dos inocentes. Os jogadores do Universal resolveram atemorizar-nos com seu (amanho físico e começaram a empregar a violência — e dê-lhe caneladas, dê-lhe empurrões, dê-lhe rasteiras. O sujeito de barba cerrada que havia sido designado para me marcar não me abandonou mais. Viramos irmãos siameses. Vendo-me assim amarrado, meus companheiros não me passaram mais a bola durante o resto da partida. Meu marcador e eu ficamos praticamente fora de jogo. Quando o Universal fazia suas cargas assassinas contra a nossa cidadela, o meu irmão siamês e eu nos sentávamos na grama e nos púnhamos a conversar. Trocamos cartões de visita verbais e ali ficamos em cordial palestra. A partida terminou num duro empate. Depois que me despedi de meu marcador com um aperto de mão, o capitão de nossa esquadra aproximou-se de mim e me perguntou, sarcástico: "Pra quando é o noivado?".

 

Quando o inverno chegou, tive de enfrentar e sofrer uma dura realidade. O internato não dispunha dum serviço de água quente: tínhamos de tomar banho com água gelada às seis e meia da manhã. Despíamo-nos no banheiro geral, pavimentado de cimento. O primeiro contato de meu corpo com a água me foi quase insuportável. Soltei um longo gemido sincopado, entrei a bater dentes e pés. Só a vergonha de fazer papel de maricas me deu força para me manter debaixo do gélido jorro dágua. Ensaboei-me estabanadamente. Nossos corpos despediam fumaça. Ouviam-se gritos: "A Ia fresca!" — "Macho é macho!'' — "Barbaridade, seu!". Veteranos aplicavam pontapés nos traseiros dos calouros. Um rapazote magro e ruivo, tremendo como um maleitoso, chorava a um canto, sem coragem para tomar o seu banho. "Agüenta, Mariazinha!" As risadas e os gritos eram amplificados pela boa acústica do banheiro. "Me passa a toalha ligeiro, que me entrou sabão no olho." Alguém perguntou: "Que olho?". Resposta pronta: "O da mãe". Ouviu-se a seguir o estalo duma bofetada e dois dos rapazes se atracaram num corpo a corpo e rolaram pelo pavimento. No seu canto o menininho ruivo tremia ainda, arroxeado de frio.

Saíamos dali para o estudo da manhã, na aula gerai, e ainda em jejum. Só às oito é que descíamos para o refeitório. Antes de nos sentarmos à mesa, tínhamos de esperar que um dos professores ou dos alunos-mestres, a cabeça baixa e os olhos cerrados, pedisse a bênção de Deus para os alimentos que íamos ingerir. E ele não havia terminado ainda de pronunciar o seu Amém, e já se ouvia o áspero ruído do arrastar de cadeiras nas lajes do chão, e nós nos atirávamos com um apetite de piranhas aos pães barrados de manteiga e sorvíamos, às vezes queimando a boca, o quentíssimo. café com leite, íamos depois para as aulas. Eu sentia então os efeitos do banho frio: no corpo, a circulação do sangue estimulada, e no espírito um certo orgulho de ginasta espartano.

 

Jamais esqueci a melancolia daqueles invernos do Cruzeiro do Sul, o céu cinzento, o vento soprando no vale, os cerros de Teresópolis às vezes quase invisíveis na bruma.

Logo ao chegar eu recebera, numa lânguida e dourada tarde de outono, uma carta de Vânia em que ela jurava que ainda me amava com toda a força de seu coração. Li e reli aquelas palavras escritas numa letrinha redonda e nítida de colegial. Respondi imediatamente que eu também a amava perdidamente. (Mesmo aos quatorze anos não me era fácil usar expressões dramáticas como amar perdidamente.) O outono envelheceu, caíram as folhas amareladas dos plátanos e árvores que eu ainda não conhecia — os caquizeiros — eram pinceladas dum vermelho manchado de amarelo em meio do pomar do inter-nato. Foram-se o sol e o ouro dos dias, chegaram as chuvas, o Morro da Polícia parecia encolhido de frio, os dias se arrastavam e Vânia não me escrevia... Um dia recebi uma carta de meu irmão em que ele me contava que Vânia andava de "namoro sério" com um conterrâneo nosso, e que tudo indicava que " a coisa ia dar em casamento". Curti em silêncio a minha dor, a minha decepção, o meu despeito. Por esse tempo líamos e analisávamos em classe Eurico, o Presbítero, de Alexandre Herculano. Hermengarda! Hermengarda! Vânia! Vânia! Agora naquele internato eu me sentia como Eurico enclausurado no seu mosteiro.

Quando, porém, a primavera chegou, eu já havia esquecido a ingrata e fazia mentalmente uma lista das meninas cruzaltenses que eu poderia namorar durante as próximas férias de verão.

 

Humberto Kruel que, com Eduardo Coelho — este um aluno-mestre, excelente sujeito, caladão mas leal — eram, longe, os melhores jogadores de nossa esquadra de futebol. Kruel em um rapaz baixo mas forte, de pele rosada e sardenta. (Hoje em dia, sempre que vejo no cinema a cara do ator Richard Baseheart, lembro-me da do "alemão" Kruel.) Humberto procurou, desde o primeiro dia em que me viu, ser meu camarada mas para mim não era muito fácil corresponder a essa camaradagem de maneira natural, pois sentia que em temperamento, comportamento e interesses éramos o oposto um do outro. Kruel gostava de me desafiar para lutas corporais. Eu me esquivava. Ele insistia, provocando-me de tal maneira que finalmente eu tinha de aceitar o desafio, atracava-me com ele, mas era sempre dominado por aquele sujeitinho menor que eu, o que não deixava de me humilhar. É que Kruel era um atleta, tinha músculos rijos e flexíveis. Impetuoso e valente, aquele rapaz de Santo Ângelo (ou era de Santa Rosa?) nas partidas de futebol não temia jamais os fisicamente maiores que ele. Driblava-os sempre com um risinho "debochado", e lá se ia, avançando, teso e veloz com a bola nos pés. Essas suas proezas logo chamaram a atenção do treinador do S. C. Internacional, que conseguiu levar Humberto para a Chácara dos Eucaliptos, colocando-o no seu segundo time, pois o rapaz não completara ainda dezessete anos. Cedo, porém, promoveu-o ao primeiro. Um dia, na véspera duma partida de campeonato, importante para o Internacional, Kruel me declarou que seu comportamento no colégio, durante a semana, tinha sido tão mau, que ele estava proibido de sair no sábado e no domingo. Pediu-me que apanhasse a sua maleta que continha as chuteiras, as meias, os calções e a levasse até à esquina da Av. Teresópolis. Ele daria um jeito de chegar até lá sem ser visto pelo professor que estava de plantão. Neguei-me a fazer o que me pedia. Insistiu. Tentei provar-lhe que, se fizesse isso, eu me estaria acumpliciando numa fuga. E o '"alemão" com o seu sorriso demoníaco pronunciou a frase mágica: "Estás com medo, hem?". Acertou no alvo. Sempre tive o tolo medo de que os outros pensem que estou com medo. Ajudei Humberto Kruel a fugir naquele sábado. Esperei-o no lugar combinado. Ele surgiu, pimpão, recebeu a maleta de minhas mãos e tomou o primeiro bonde que passou. Pois foi no jogo do dia seguinte que Kruel sofreu uma lesão séria: o pontapé dum adversário deslocou-lhe o joelho. O jovem meia-esquerda colorado foi conduzido imediatamente para a Assistência Pública. A notícia não tardou a explodir como uma bomba no ginásio. Uma semana depois, devidamente julgado, Humberto Kruel foi expulso do Cruzeiro do Sul. Meu nome não foi mencionado no processo. Permaneci de bico calado. Fiz bem? Fiz mal? Seja como for, espero que, passados cinqüenta anos, meu "crime" já esteja prescrito.

 

Dirigia o colégio o Rev. William M. M. Thomas, natural do Estado de Virgínia, um homem de estatura meã, a bondade estampada na face, a fala mansa, o ar sereno. A roupa escura, o colarinho de clérigo abotoado atrás, e o peitilho de fazenda negra dava àqueles ministros episcopais um aspecto de grande dignidade. A senhora do Rev. Thomas, de rosto redondo de boneca, desses que eu costumava ver no Ladies' Home Journal c nos filmes americanos, era uma dama que a gente podia facilmente visualizar, com a imaginação, sentada numa cadeira de balanço, no alpendre daquelas mansões sulinas dos Estados Unidos, com frontões gregos e colunas dóricas. Era frágil e tinha um certo ar menineiro. Mantínhamos, porém, pouco convívio com os Thomas.

Mais perto de nós, porém, estava o Rev. Arnaldo Bohrer, diretor do internato, um homem alto e corpulento, de cabelos louros e olhos claros, que nos serviços religiosos da igreja do colégio cantava hinos com sua forte e afinada voz de barítono. Conhecido entre os internos como "o Borão", era um homem enérgico mas ao mesmo tempo compreensivo e compassivo.

Havia no fundo do pavilhão central do ginásio um vasto pomar, que ocupava quase uma quadra quadrada, e onde vicejavam laranjeiras, bergamoteiras, caquizeiros, pessegueiros e umas árvores que produziam uma estranha fruta para nós desconhecida, espécie de lima gigante e achatada, cujo nome em inglês é grapefruit. Proibia-se aos alunos, tanto aos internos como aos externos, entrar nesse pomar. No entanto muitos eram os que transgrediam a lei e se esgueiravam por entre as árvores e lá ficavam saboreando os seus frutos. O cheiro de casca de laranja e principalmente de bergamota muitas vezes os denunciava. Os transgressores então levavam pontos, cujo número era dado de acordo com a gravidade do delito. No fim da semana o aluno interno que tivesse mais de cinco pontos perdia o direito à saída habitual. Assim os internos em sua maioria viviam como anjos caídos, expulsos do Jardim das Delícias, olhando de longe com gula e frustração os vermelhos caquis, as laranjas e as bergamotas cor de sol.

Ao lado da Igreja da Ascensão, na rua paralela à do pavilhão do ginásio, ficava o Seminário Episcopal, cujo reitor era outro missionário americano, o Dr. William Morris, um senhor de meia-idade e de estatura bem menor que a dos heróis de cinema com que Hollywood nos habituara. Sua tez trigueira, contrastava com os sedosos cabelos e bigodes prateados. Quando ele passava por nós, com sua bengala, bem poderia ser um esquire inglês, não fosse o colarinho clerical. Mesmo quando pregava no púlpito, sua voz não passava dum sussurro que de certo modo lembrava o ruído de bambuais batidos pelo vento.

Creio que, em sua maioria, os internos no Cruzeiro do Sul vinham de famílias católicas. Nunca, porém, que eu soubesse, eram forçados a seguir a fé episcopal. Ouvi um dia o Rev. Thomas dizer que achava preferível um homem ser católico a não ter nenhuma religião. Éramos, porém, de certo modo levados a assistir aos serviços divinos na Igreja da Ascensão. Confesso que no meu segundo ano — em que na classe de História Universal fizemos uma pausa para estudar num livro especial a Reforma, vista do ângulo dum autor protestante — comecei a comparar o que via do protestantismo com o que sabia do catolicismo e achei um saldo favorável aos seguidores de Lutero. O protestantismo me parecia mais próximo da simplicidade cristã: mais claro, mais singelo, menos mórbido por um lado e menos pomposo por outro. (Estou dando minhas impressões dos dezesseis anos.) No entanto, de todos os ramos do Protestantismo, o episcopal é o que mais se aproxima da Igreja Católica não só nas vestes dos sacerdotes como também no ritual. Uma das diferenças é que na Comunhão episcopal o comungante não só participa da hóstia como também do cálice.

Cheguei a aprender de cor alguns hinos protestantes. Ouvi muito sermão pronunciado com forte sotaque americano, embora de quando em quando a Igreja da Ascensão fosse visitada per pregadores brasileiros eloqüentes como o Rev. Américo Vespúcio Cabral. Não raro nos aparecia o bispo Kinsolving, alto, corpulento, com sua cara cor de tijolo, o nariz lustroso e vermelho de bebedor de uísque. (Podia ser abstêmio, mas a sua cara justificava esta suspeita.) Tinha nas feições algo que me lembrava estranhamente o masseiro Rafaele Dell’Aglio em ponto grande e em versão refinada. Um sermão desse bispo era algo que nos divertia, pois o homem tinha um delicioso senso de humor. (Muitas décadas mais tarde eu viria a descobrir que um neto do velho bispo Kinsolving era um dos campeões da reforma da sua Igreja nos Estados Unidos, um ministro tão liberal que parecia às vezes chegar a duvidar da Santíssima Trindade e mesmo da natureza de Deus segundo a Teologia que havia aprendido no seu seminário.)

A Bíblia era ensinada em classe no Cruzeiro do Sul e a nota que tirávamos nessa matéria era computada como parcela para calcular-se a média geral. Num exame final das Sagradas Escrituras ganhei a nota máxima, porque transformei a conversão de Saulo num conto literário em que reproduzi as paisagens da Ásia Menor e da Grécia, atribuindo pensamentos e sentimentos ao apóstolo — tudo isso arbitrariamente.

Era natural que eu pensasse muitas (bom, sejamos sinceros, algumas) vezes em Deus, depois daqueles sermões pregados com tão fervorosa sinceridade na Igreja da Ascensão. À noite no meu quarto, sob as cobertas, fazia exames de consciência. Eu era sem a menor dúvida um pecador. Mas à luz de que doutrina, aos olhos de que Ser Supremo eu me sentia de alma tão maculada? Por mais que me esforçasse, não podia aceitar sinceramente a existência do Deus que católicos e protestantes me ofereciam. Os ministros episcopais exaltavam o valor da oração. Eu tentava orar. Vinham-me à mente os Padre-Nossos e as Ave-Marias da infância cruzaltense, com algumas palavras e frases já meio roídas ou apagadas pelo tempo. Eu pronunciava essas orações sem a menor convicção. Que se passava comigo? Não era um lógico, um fanático das certezas matemáticas. Ao contrário, era um imaginativo, um intuitivo e até um contemplativo. Sentia possuir alguns dos "instrumentos" necessários ao exercício da fé religiosa. Portava-me na vida diária como um cristão, imperfeito, eu sabia, mas cristão. Não conseguia, entretanto, engolir os milagres operados, segundo a Bíblia, por Jesus Cristo, figura humana de minha maior simpatia. Achava a vida um impenetrável mistério, o sistema solar um tremendo enigma, e a explicação que as religiões davam para esses fenômenos formidáveis eram tão simples, tão vagas ou pueris, que eu não conseguia aceitá-las, por mais que tentasse, e, para ser sincero, não tentava com fervor.

 

Quanto à morte, eu não pensava muito nela. Um dia, porém, julguei ver a Bruxa de perto. Era um anoitecer de domingo, e eu chegara tarde ao internato, após uma visita à cidade, onde fizera tudo quanto meu magro orçamento semanal de dois mi! e quinhentos réis permitia. Assistira a uma partida de futebol, tomara um copo de leite com sonho (ó tardes de chuva da infância!) e pagara a passagem de ida e volta no bonde. Os internos estavam já todos na igreja, para onde me dirigi. Passara o dia com uma tosse fortíssima e convulsiva. (Tosse? Bromil — aconselhava um anúncio na farmácia de meu pai.) Parei na frente do templo num súbito acesso de tosse. Ouvia vozes entoando algo em que reconheci o hino cantado pelos passageiros do Titanic na hora da morte. De súbito senti que se me fechava a traquéia e eu perdia a capacidade de respirar. Tive uma vertigem, agarrei-me nas grades do portão para não cair, abri a boca na busca ansiada dum ar que não me chegava aos pulmões. Pensei então que ia morrer. Entrei em pânico. Rodopiei sobre mim mesmo, caí no chão e fiquei olhando para o céu. As vozes chegavam até meus ouvidos, quase ininteligíveis — "...ais ...erto ...ero estar... eus... e ti..." — Via confusamente as estrelas contra o negror do céu. Um iceberg me pesava sobre o peito. Fiz um esforço, consegui levantar-me, levei as mãos à garganta, tentei pedir socorro mas nenhum som

me saiu da boca. De repente minha traquéia se abriu, o ar quase frio da noite me encheu a boca, os pulmões, e eu respirei, a garganta ardida, o peito ofegante. Sentei-me num degrau da igreja, respirando em largos sorvos. Um suor gelado me escorria pela testa, descia pelo rosto. O coração assustado me batia ainda em disparada. Minutos depois levantei-me, entrei no templo, sentei-me num dos últimos bancos. A congregação, de pé, lia uma oração em uníssono. Procurei agradecer a Deus por não me ter deixado morrer. As palavras que balbuciei me soavam na cabeça artificiais, convencionais, sem fé verdadeira. Disse ao Criador um "muito obrigado" frouxo e meio encabulado.

 

Os nossos professores? Havia muitos, mas nem todos me deixaram uma impressão viva do ponto de vista humano. Alberto de Brito e Cunha (Matemática, Desenho, Química, Física) era português de nascimento, um homem socado de carnes, baixo de estatura, cabelos crespos, míope, bigode retorcido como o de certas figuras dos cartões-postais antigos. No entanto de antigo o A.B.C. nada tinha: era um homem moderno, de espírito aberto e arguto, atento a tudo quanto se inventava ou descobria no mundo em todos os setores, mesmo dos que não eram de sua especialidade. Nosso primeiro contato foi para mim desagradável. Lembro-me dum trecho de carta que escrevi por aquela época a meus pais. "O meu professor de Matemática é um português muito antipático. Acho que não vou me entender bem com ele." A.B.C. era irônico e não tinha tempo a perder com a toleima de certos alunos. Como um dia um dos rapazes lhe dissesse que tinha medo de fazer qualquer coisa, Brito e Cunha replicou-lhe rápido: "Quem tem medo que compre um cachorro". E continuou a escrever no quadro-negro. Era dos homens mais ativos e trabalhadores que conheci na vicia. Possuía esse dom raro de saber aproveitar retalhos de tempo. No bonde que o levava da cidade ao ginásio em mais ou menos meia hora de viagem, aproveitava para corrigir provas ou ler seus romances policiais. Nunca o vi inativo ou em estado de contemplação.

Cedo tive de mudar minha opinião a respeito de A.B.C. Ficamos amigos. Muitos anos mais tarde, estando eu já casado e residindo em Porto Alegre, encontrei-o na rua, no mesmo passo miúdo e rápido, com jornais e livros debaixo dos braços, fazendo o percurso duma aula para a próxima. Trabalhou nesse trancão até ao dia de sua morte.

 

Quem era aquele homem de cabelos negros, quase quarentão, a saliência da arcada dentária superior aumentada pelo grosso bigode negro? Chamava-se Lindau Ferreira. À primeira vista ou trato não impressionava o observador por qualquer de suas qualidades pessoais. Bastava, porém, um certo convívio com ele para a gente ver sua bondade e firmeza de caráter. Seu ar vagamente triste devia-se principalmente a delicados problemas domésticos causados por um casamento infeliz — pura questão de incompatibilidade de gênios. Tinha ele feito um curso numa universidade dos Estados Unidos e seu hobby era a carpintaria. Vivia no internato e era ele quem, metido num roupão de banho, as pernas finas e cabeludas à mostra, os pés enfiados em chinelos, saía às seis da manhã pelo dormitório a acordar os estudantes que, apesar do sonido estridente da campainha geral, continuavam ainda na cama. O Prof. Lindau batia à porta de cada quarto: "Vamos, rapazes, está na hora!". Certos dias caminhava cantando uma velha canção americana. Neste exato momento ouço-lhe claramente a voz de taquara rachada:

 

             Johnny, get your gun!

             Get your gun!

             Get your gun!

 

Nos seus dias bons chegava a fazer uns passinhos de dança. Excelente Lindau! Devo-lhe em boa parte a minha aplicação ao estudo da língua inglesa, da qual ele foi o meu primeiro mestre. Na aula inicial — e eu havia perdido as duas anteriores — ele me mandara ler na gramática de FredÉrico Fitzgerald o presente do indicativo do verbo to have. Obedeci, dando a cada letra o som que ela tem na nossa língua. Os outros alunos romperam numa gargalhada. Fiquei encalistrado. Batendo com uma régua na mesa, Lindau Ferreira exigiu silêncio, aproximou-se de mim e me fez escrever em cima de cada palavra do verbo inglês a sua pronúncia figurada em português. Depois da aula chamou-me à parte e disse: "É importante não só saber pronunciar as palavras do inglês, mas também saber escrevê-las corretamente. Quando tiver alguma dificuldade, venha falar comigo, sem constrangimento".

Quanto mais velho fico, mais pessoas de meu passado tenho desejo de encontrar para abraçá-las e dizer-lhes sem mais explicações: "Obrigado! Obrigado! Obrigado!".

 

Outro de meus tipos inesquecíveis entre os professores do meu tempo no Cruzeiro do Sul era Américo da Gama. (Imaginemos que este fosse mesmo o seu nome.) Jovem ainda, talvez na segunda metade dos twenties, tinha sido mandado pelo pai estudar nos Estados Unidos, onde ainda se encontrava quando aquele país entrou na Primeira Guerra Mundial. Américo alistou-se no exército americano, foi devidamente treinado e por fim mandado para a frente de batalha na Europa. Ferido em combate por um estilhaço de granada, que quase lhe decepou o braço, ficou atirado na lama entre os mortos, ele próprio considerado sem vida. Por puro acaso um soldado da Cruz Vermelha que examinava os cadáveres, viu que Américo da Gama ainda respirava, chamou um colega e ambos levaram o jovem brasileiro numa padiola para o hospital mais próximo, onde um cirurgião fez o que pôde para não ter de amputar o braço quase gangrenado de seu paciente — o que conseguiu. Terminada a guerra, voltou Américo da Gama para o Brasil e, depois de itinerários que ignoro, foi trazido para o Colégio Cruzeiro do Sul como professor de Inglês. Era um homem franzino, de porte elegante e — coisa curiosa — um brasileiro de cabelos negros que dava a impressão de ser americano. Era qualquer coisa externa — o corte do cabelo, as roupas de tweed, os hábitos e um boné de pano de aba longa que tantas vezes eu vira na cabeça dos heróis dos seriados de Pearl White. Em breve sua fama de "brabo" espalhou-se pelo internato. Américo era irritadiço, esquentado, pugnaz. Compreendi imediatamente que um homem não podia voltar daquele inferno que fora a Grande Guerra com os nervos em bom estado. Mais que isso: senti uma simpatia instintiva pelo jovem professor, o que me tornou ainda mais tolerante e compreensivo para com ele. Eu lia nos jornais a expressão "neurose de guerra". Concluí que Américo da Gama sofria disso. Com o tempo voltaria a ser um cidadão norma). (E, afinal de contas, me pergunto até hoje, que é mesmo ser normal?)

Certa manhã, como ele estivesse tomando conta do estudo gera!, sentado à mesa, em cima dum estrado, lendo um volumoso livro encadernado e de vez em quando levantando os olhos para verificar se os rapazes estavam mesmo absortos no estudo, aconteceu que um de meus colegas, que ocupava a carteira junto da minha, inclinou-se para o companheiro que tinha à sua direita e sussurrou-lhe algumas palavras. Américo da Gama pôs-se de pé, rápido, e arremessou com força o livrão contra a cabeça do transgressor mas errou a pontaria e quem recebeu o projétil na testa fui eu. Ouviram-se risadas. Fiquei firme. (A paciência sempre foi uma de minhas raras virtudes.) Gama desceu do estrado, aproximou-se de mim, não me pediu desculpas, nem sequer me olhou, apanhou o livro, voltou para o seu lugar e retomou a leitura. Minutos depois, como ouvisse o rumor de vozes naquela sala de estudos, o furibundo veterano da Guerra Mundial tirou do bolso um revólver, colocou-o em cima da mesa e disse, de cientes cerrados: "O primeiro sujeito que falar, leva chumbo na cabeça". Fez-se na sala um silêncio de morte.

Américo da Gama podia ser também excelente companheiro, fora das horas de aula ou estudo, contanto que ninguém o provocasse com alusões irônicas ou dissesse algo que lhe desagradasse. Acabamos bons amigos. Creio mesmo que em todo o internato eu fui dos poucos estudantes com quem ele nunca brigou.

Nele só uma coisa me assustava. Era quando resolvia vir bater bola conosco. Não conhecia patavina do nosso futebol, que nos Estados Unidos é conhecido por soccer e muito pouco praticado. Lá vinha o Américo com o seu boné e sua roupa de tweed, calças compridas arregaçadas. Em vez de chuteiras calçava os seus sapatos com bico de torpedo. Nós nos entreolhávamos, apreensivos... mas que se ia fazer? Incluíamos o Gama num dos quadros. O jogo começava. Nossa preocupação máxima era a de nos afastarmos o mais possível daqueles sapatos bicudos. Américo da Gama atirava-se em cima do pobre adversário, com a impetuosidade dum tanque de guerra e, sem obedecer a regras, empurrava-o, puxava-o pela camiseta, cometia todas as faltas possíveis — e o juiz não tinha coragem de marcar-lhe os fouls. Se minhas canelas falassem, muito teriam de contar das pontas dos sapatos de Américo da Gama, mestre em "bicancas", sem o menor senso de direção.

Guardo, entretanto, a melhor das lembranças desse professor de Inglês, que tornei a encontrar mais tarde casado, trabalhando como alto funcionário na sucursal duma grande firma americana, em Porto Alegre.

 

O que passo a narrar aconteceu no fim de meu segundo ano como interno do Cruzeiro do Sul. O Prof. M. Carré, um ex-marista belga que ensinava Francês, residia na cidade e vinha três vezes por semana ao Cruzeiro do Sul para dar as suas aulas.

Tinha um rosto redondo, cheio e corado, uma boquinha miúda que parecia um botão de rosa, um caminhar ligeirinho e leve. Um dia me fez sentar no banco duma carteira numa sala em que só nós dois nos encontrávamos. Pretextando uma courant d'air, fechou a única porta do compartimento, veio sentar-se numa cadeira, muito perto de mim e começou a me dizer que na sua opinião eu devia fazer preparatórios de Francês aquele ano, prestando exames perante a banca oficial do Colégio Estadual Júlio de Castilhos. Enquanto falava, sua mão pousou no meu joelho. Fiquei tenso, desconfiando da súbita intimidade. E quando aqueles dedos rosados começaram a escalada da minha coxa, compreendi tudo. Levantei-me: "Com licença, professor". E saí da sala. Quando mais tarde narrei o fato a alguns colegas, eles desataram o riso: "Mas então tu não sabias que o Prof. Carré é um famoso fresco?". Durante dias, semanas, agüentei os trotes que esses amigos me davam. Sempre que me viam, diziam, imitando o sotaque do professor efeminado: "Tirra preparratórrios, Errico, tirra".

A verdade é que não tirei esses preparatórios nem os outros. Os exames do Cruzeiro do Sul não eram válidos nas faculdades de Porto Alegre. Omiti essa informação a meus pais. Dum lado eu temia enfrentar a famosa banca do Júlio de Castilhos, por timidez e ao mesmo tempo por comodismo. Por outro, eu já como que adivinhava o meu futuro. Nossa situação financeira dificilmente me permitiria seguir um curso superior. Até certo ponto eu repetia o que acontecera com meu pai. Estava ansioso por voltar para a minha terra, procurar um emprego, trabalhar, viver! Poderia talvez dedicar-me à pintura ou à literatura ou a ambas. Fosse como fosse, o sujeito quietista que eu era, achava mais fácil deixar o barco deslizar na correnteza do rio, sem pensar num destino certo. Refiro-me ao destino acadêmico. Porque quanto ao humano eu tinha os meus planos secretos: casar-me com uma das cruzaltenses da minha lista de "prioridades", ter com ela filhos e uma casa onde reinasse uma harmonia que na minha então não existia.

Tenho uma ternura muito profunda pelas crianças, principalmente as da faixa etária que vai dos três meses aos cinco anos. Lembro-me com precisão do dia em que fiz essa descoberta sentimental. Foi num dia de primavera, no último ano que passei naquele internato, e no jardim do bangalô de um de seus professores americanos, o Rev. Franklin Osborn.

Saía eu numa tarde de sábado da casa do Rev. Thomas. Fora pedir-lhe uma permissão escrita para ir ao centro da cidade. (O diálogo que então tivemos foi curioso. — "Que é que vai fazer?" — perguntou o diretor do colégio. "Vou à Livraria do Globo comprar um livro" — respondi. O bom homem, que vestia um avental de cozinheiro e dava manivela a uma máquina de moer carne, ergueu a cabeça: "Que livro? De que autor?". Esclareci: "Um romance de Júlio Verne". O reverendo me olhou com ar desconfiado: "Não se trata de nenhuma dessas novelas imorais, impróprias para rapazes?".) Conseguida a licença, atravessei de novo o jardim, passando pela frente da residência dos Osborn. À sombra de acácias-mimosas, plátanos e ciprestes vi uma caixa cheia de areia, no centro da qual estava sentada uma figurinha humana que parecia ter saído, recém-impressa, a tinta ainda fresca, das páginas do Saturday Evening Post ou do Pictorial Review. Era um menino de pouco mais de um ano de idade, a cara carnuda e lunar, bochechas coradas, cabelos cor de ruibarbo, olhos verdes. (Ou seriam azuis, ó incerta memória?) Chamava-se, eu sabia, Wallace — (Wally para os íntimos) — e era o único filho do casal Osborn. Esqueci Júlio Verne e a ida ao centro da cidade. Acocorei-me junto de Wally e comecei a brincar com ele. O menino sorriu e em cada uma de suas faces abriu-se uma pequena cratera rosada. O bebê franziu a testa, tentando decerto identificar-me. Depois rompeu a falar na difícil língua do agu. Fiz um dos bonecos de celulóide que estavam a seu lado dançar, ao som do samba que eu assobiava. Wally rompeu numa risada, atirando a cabeça para trás. O ar estava embalsamado pelo perfume das flores das acácias. Eu tinha descoberto um mundo novo fora e dentro de mim mesmo. Veio-me um desejo de escrever um poema para Wally, mas senti ao mesmo tempo que jamais conseguiria exprimir em prosa ou verso o que sentia.

De onde me encontrava, ao pé da criança, eu podia ver a sala de estar da casa dos Osborn. Divisei a mãe de Wally — uma virginiana de cabelos castanhos, com algo de salgueiro no corpo frágil. Sentou-se ela ao piano e cantou, acompanhando-se, com uma voz pequena mas suave e afinada, uma velha canção do Sul dos Estados Unidos. (Hoje eu a identifico com o Old Folks at Home, de Stephen Foster.) A tarde, o céu, as fragrâncias do jardim, a canção, a jovem americana, aquela criança no seu sand box eram parte dum quadro que dificilmente eu poderia esquecer. Olhando furtivamente para a sala dos Osborn fiquei escutando Mrs. Osborn. Ao cabo de alguns minutos levantei-me, pareceu-me ver um protesto no agu que Wally pronunciou, e me dirigi para o pavilhão do ginásio com uma curiosa sensação no peito, espécie de saudade do meu mundo e saudade dum mundo que eu ainda não conhecia, terras estranhas com gente estranha, os vapores do Mississipi, a Califórnia, os arranha-céus de Nova Iorque, a catarata do Niágara, a pátria de Pearl White...

Se eu estivesse escrevendo ficção jamais cometeria o erro técnico de contar que Wally morreu dois anos depois de nosso encontro, e eu li a notícia, ilustrada com seu retrato, — em Cruz Alta, já desligado do ginásio — no periódico do Cruzeiro do Sul, O Pindorama, de cuja redação eu fizera parte. Não contaria também que, em 1968, estando com minha mulher em Washington, tive a oportunidade de falar por telefone com a Sra. Franklin Osborn, que estava em Roanoke e me convidava para lá fazer no seu clube feminino uma palestra sobre o Brasil.

Contei-lhe então de meu longínquo encontro com Wally. E como ela agora fosse uma dama de mais de setenta anos, achei que podia acrescentar: "Lembro-me da canção que a senhora cantou na tarde em que conheci o seu baby. E lhe digo mais, naquele dia de certo modo / think lhat l became in love with you". Houve uma pausa e depois tornei a ouvir a voz da Sra. Osborn: "Oh! How nice of you to say that!".

 

No inverno do meu último ano como interno no Colégio Cruzeiro do Sul ocupava sozinho o quarto número 50, um cubículo estreito onde mal cabiam uma cama, um lavatório de ferro com jarro e bacia, e o baú onde eu guardava as minhas roupas. Nessa época comecei a sofrer de insônias. Talvez insônia não seja a palavra exata para definir o que eu sentia, pois na realidade sono mesmo não me faltava. O que acontecia era que eu acordava sobressaltado cerca das dez horas da noite e começava a sentir aos poucos no quarto escuro e fechado uma angústia de emparedado. Precisava desesperadamente de acender uma luz — o que não era possível, pois o dormitório era iluminado por lâmpadas alinhadas no centro do teto e que se apagavam irremediavelmente a uma hora certa. Minhas pálpebras em geral pesavam de sono, mas aquela opressão no peito, aquela ansiedade me mantinham acordado. Era uma espécie de falta de ar, de necessidade de companhia humana ou pelo menos de uma janela aberta para a noite, para o mundo, para a vida. E o pior era que essa angústia podia transformar-se em pânico dum momento para outro. Eu tinha a impressão de estar num túnel sem ar, ou sepultado numa carneira, fechado num fé retro...

Consultei um médico de ar bondoso e bovino que costumava tratar dos internos do Cruzeiro do Sul. Fez-me perguntas. Sofria eu de falta de memória? Era distraído? Algum problema me preocupava? Eu respondia numa atitude meio defensiva de quem tem segredos a guardar. Por fim o bom homem me receitou Fosfato Ácido de Oxford. Tomei um vidro sem nenhum resultado positivo.

Observava que minha ansiedade aumentava ou então era desencadeada nas noites em que eu ouvia o vento uivar lá foria. Sim, a voz do vento era um fator de ansiedade. Eu tratava de chamar-me à razão. Tudo estava bem. Em breve apareceria o sol e a vida normal recomeçaria. Inútil. Aquela coisa que me comprimia o peito e me dava gana de sair correndo a abrir janelas e portas, a acender luzes e a procurar a companhia dos colegas, continuava. Só madrugada alta — e eu não sabia como — é que conseguia dormir algumas horas. (Num romance que eu haveria de escrever dali a quase 30 anos, uma personagem diria: "Noite de vento, noite dos mortos".)

 

Encontro aqui a oportunidade para mencionar uma das figuras mais simpáticas e humanas daquele ginásio. Chamava-se Orlando Batista, teria uns quando muito vinte ou vinte e um anos, era aluno-mestre. Lecionava no ginásio e estudava no seminário, e em breve seria ordenado ministro. Achávamos Orlando uma figura romântica, especialmente quando o víamos sentado ao órgão, tocando e cantando hinos religiosos ou composições de sua própria autoria com sua voz de tenor — não desse tipo de voz metálico, metódico e frio com que em geral ouvíamos cantar, principalmente nos coros de cidades de origem alemã, hinos religiosos. Havia na voz de Orlando Batista algo de místico e ao mesmo tempo de pagão, eu diria até de mundano. Outro elemento que lhe acentuava a aura romanesca eram os seus cabelos ondulados, os olhos sonhadores, o rosto expressivo, capaz de paixão — achávamos. Em suma, Orlando era um homem como nós, do mesmo barro, da mesma "raça", capaz de compreender nossos problemas e nossas fraquezas.

Pois o futuro pastor episcopal compadeceu-se deste neurótico e fez tudo quanto estava a seu alcance para curá-lo das insônias ou, melhor, dos terrores noturnos. Ia para meu quarto à noite, contava-me anedotas, estórias e quando se ia me deixava um castiça! com uma vela e fósforos para ajudar-me a enfrentar a escuridão. Uma noite apareceu-me com um enorme volume de capa dura. Sentou-se e disse: "Hoje você dorme, porque eu vou ler em voz alta algumas páginas deste calhamaço". Vi o título do livro. Tratava-se duma coletânea de sonetos brasileiros parnasianos em que havia, misturados com poetas da valia dum Olavo Bilac, dum Raimundo Correia e dum Vicente de Carvalho, sonetos enfadonhos de poetas menores. Orlando começou a leitura, com voz fingidamente solene. Escolheu para começar os piores versos. Eu escutava de olhos cerrados. Ríamo-nos das famosas "chaves de ouro", todas falsas, previstas, convencionais. O sono não vinha, mas a companhia do amigo me ajudava a espantar o medo da noite.

Não foi essa a única atenção que fiquei a dever a Orlando Batista, que finalmente terminou seu curso no seminário e acabou diretor do Colégio Cruzeiro do Sul. Uma tarde caminhávamos ambos pela frente do pavilhão principal, conversando sobre livros, quando vimos um externo de seus dez anos, magro, alourado, metido no seu uniforme caqui e acocorado a jogar bola de gude com dois companheiros. Apontei para ele c perguntei ao Batista: "Quem é aquele guri?". Orlando olhou para ele e informou-me: "Chama-se Egmont. É filho do Rev. George Upton Krischke, excelente pessoa". Continuamos o nosso passeio. Só tornei a ver o menino franzino da bolita de gude muitos anos depois, quando ele já era Dom Egmont, Bispo da Igreja Episcopal Brasileira.

 

Permaneci no internato do Cruzeiro do Sul durante três anos inteiros. Passava as férias de verão em Cruz Alta. Na primeira delas encontrei muitas mudanças na minha casa e na minha cidade. Achei as pessoas, os lugares e os prédios fisicamente menores do que eu os via de longe com a lente de aumento da saudade. Meu reencontro com a ameixeira-do-japão foi embaraçoso. Ficamos por um instante como dois estranhos, frente a frente, como se esperássemos que uma terceira "pessoa" nos apresentasse um ao outro. A árvore me pareceu menor, mais feia: era como se tivesse emurchecido de velhice. Não suportei o cheiro que se emanava da sentina próxima, nem as moscas e mosquitos que voejavam ao redor da velha companheira vegetal. Era lamentável... Mas era, que podia eu fazer?

A cidade me pareceu encardida pela sua terra vermelha. Quando soprava naquele verão o vento norte, a poeira que se erguia do chão em nuvens rosadas entrava pelas janelas, portas e frinchas de nossa casa, e eu a sentia nos dedos, na face, nas folhas dos livros que manuseava, em cima das mesas, no chão sob as solas dos sapatos e às vezes até dentro de mim mesmo, como uma lixa a raspar-me os nervos. Mas lá estavam também os dias bonitos com céu alto e azul com brancas nuvens gordas. E os poentes incomparáveis. Um dia, passeando pela Rua do Comércio, avistei Vânia de braço dado com o noivo. Cumprimentei-os de longe, sério, com um aceno de cabeça e em seguida rompi a assobiar uma melodia qualquer, para disfarçar meu embaraço.

Os bons vizinhos Alves de Araújo tinham deixado a cidade, roubando-nos da companhia de Celso e Estêvão. Pitoco já não era mais deste mundo.

Meu irmão, que naqueles três anos havia crescido assustadoramente, estava muito mais alto que eu. Tinha inventado um jogo de futebol em que os jogadores eram pequenos vidros de medicamentos vazios. O "estádio" era a mesa da sala de jantar. A bola, uma pequena esfera de madeira. Ênio desafiou-me para uma partida. Aceitei. Meu irmão jogava com um entusiasmo feroz. Levava seus ataques ao meu gol com um ímpeto que talvez nem o Gen. Bento Gonçalves e seus Farrapos jamais tivessem empregado nas suas famosas cargas de cavalaria na Revolução de 35. Perdi a partida pelo escore de 30x0. O meu jogador favorito, a quem eu dera o nome de Peixe Morto, era um frágil vidro de homeopatia e foi reduzido a cacos pelo zagueiro principal do time contrário, um robusto frasco de elixir paregórico. Minha esquadra e eu fomos massacrados — e não há nenhuma impropriedade no emprego desta palavra — pois no final do jogo tanto eu como Ênio tínhamos cacos de vidro cravados nos dedos e no dorso de nossas mãos, que sangravam. O "gramado" estava manchado de sangue. Noutro dia renovei o meu quadro e pedi revanche a meu irmão. Tornei a perder, mas por uma diferença menos vergonhosa. Passei a interessar-me por aquele jogo, mas era um interesse relutante, encabulado, pois no fim de contas eu era um "homem" que já fazia a barba, lia Zola e Eça de Queirós, e aquele futebol de mesa — embora sangrento como uma corrida de touros — me parecia um "brinquedo de crianças".

 

Não tardei muito a verificar que a situação doméstica estava num processo agora acelerado de deterioração. Eu desejava apaixonadamente que meus pais se reconciliassem e continuassem juntos. Chegava até a esperar, dum modo nebuloso e ao mesmo tempo ingênuo, que Sebastião Veríssimo tivesse como Saulo a sua visão na estrada de Damasco e se regenerasse, tornando-se um marido exemplar. Como se vê, eu já estava sob a influência dos sermões dos pastores episcopais e das leituras da Bíblia.

Durante esses meses de verão vinham-me com freqüência cada vez mais urgente desejos de amor físico, mas eu não ousava bater à porta das "chinas reservadas" as quais, além de caras, tinham lá os seus "coronéis". Apesar de minhas leituras realistas, eu temia cometer no ato sexual algum erro técnico que me causasse embaraço ou mesmo lesão física. Tinha a impressão de que ao penetrar a mulher eu seria fatalmente submetido a um doloroso dilaceramento, como o da circuncisão. Havia ainda o temor das doenças venéreas. Eu esperava ainda o cumprimento da promessa que meu pai fizera de me levar oportunamente à casa duma "mulher da vida" para a minha iniciação no ato do amor carnal. O Velho, porém, estava tão ocupado com a sua própria vida sexual, que não tinha tempo para pensar na minha.

Não só por observação direta e pessoal, como por entreouvir comentários de parentes e amigos, fiquei sabendo que a Farmácia Brasileira ia de mal a pior, econômica e financeiramente. Miguel continuava a assobiar o seu trecho predileto de O Carnaval de Veneza. Os pavilhões do pátio já não tinham mais funções hospitalares. A sala de operações estava fechada. Havia naquela farmácia uma atmosfera cansada e triste de fim de festa. Nas férias de 1920-1921 descobri que nossa residência estava hipotecada. Tive a dolorosa sensação de que a mulher amada me traíra, vendendo-se a outro homem.

Minha mãe continuava a trabalhar como modista. Lembro-me de suas expressivas mãos magras segurando a grande tesoura e cortando com ela moldes de papel. E vejo agora também outra "pessoa" daquela casa: o manequim, um busto sem cabeça, sem braços nem pernas, que sempre me sugeria uma mulher mutilada. Até hoje, a despeito do anestésico do tempo, todas as imagens daquela sala de costura ainda me doem um pouco quando as relembro. Repito que era minha mãe quem com seu trabalho não só me pagava a matrícula, a pensão e o ensino no Cruzeiro do Sul, como também me mandava regularmente os dois mil e quinhentos réis semanais que me permitiam sair aos domingos. O manequim parecia dizer-me: "Vês, eu também estou ajudando tua mãe a custear os teus estudos". O mesmo parecia alegar a máquina de coser. E a tesoura. E a fita métrica. Só quem nada dizia, nada reivindicava para si — apenas me mirava com seus olhos ternos — era D. Bega. Tive uma noite, naquelas férias, um sonho aflitivo em que minha mãe e o manequim confundiram-se numa única mulher mutilada. Despertei com um pesado sentimento de culpa.

 

Em princípios de março de 1922 retornei ao internato, que agora o veterano sazonado que eu era podia ver pela primeira vez de maneira mais compreensiva e até afetuosa, apreciando a verde beleza daquele vale cercado de morros e colinas.

Quanto aos companheiros, uns voltaram naquele ano, outros não. Vários deles haviam completado o curso ginasial. Caras novas apareciam: novos estudantes, novos professores. Meu respeito e admiração por aqueles ministros episcopais, tanto os brasileiros como os americanos, pela sua decência, pela sua discreta cordialidade, havia aumentado com o passar do tempo e dos acontecimentos. Não vou citar nomes. A memória — repito — é um labirinto desconcertante capaz de nos fazer perder completamente de vista criaturas humanas de nosso passado que nos foram muito caras. (Tenho boa memória para fisionomias, mas péssima para nomes.)

Mil novecentos e vinte e dois foi o ano do primeiro centenário da Independência do Brasil. Organizamos no internato festas comemorativas. O Pindorama, o mensário a cuja redação eu ainda pertencia, dedicou à expressiva data um número especial.

Naquele outono "descobri" as paineiras floridas de Teresópolis. E foi no inverno que se seguiu que comecei a ler às escondidas, num dia úmido e gris, um livro pelo qual todos nós tínhamos grande curiosidade maliciosa: A Carne, de Júlio Ribeiro, considerado o romance mais "livre" da literatura brasileira. Sofri uma grande decepção. O estilo do autor e mais a sua preocupação de fazer "naturalismo fisiológico" tiveram um efeito de cânfora sobre a minha sexualidade. Suas personagens estavam como que esmagadas sob uma montanha de retórica. O autor nos oferecia uma mulher bela e nua, mas morta, numa mesa de necrotério. É curioso refletir agora que só 46 anos após o aparecimento de A Carne é que Henry Miller publicaria em Paris o seu discutido Trópico de Câncer.

A primavera anunciou-se nos pessegueiros floridos, na fragrância adocicada das flores de laranjeira do nosso Jardim das Delicias e, com mais força ainda, nos nossos corpos.

Durante aquele ano marquei vários encontros com Deus. No meu quarto, em noites de vento e angústia. Na Igreja da Ascensão, ao som de hinos religiosos, durante o culto matutino ou vespertino. À tardinha sob as árvores do jardim dos Osborn, junto da caixa de areia onde Wally, o anjo com cabelos de ruibarbo, me dizia coisas em sua língua indecifrável. E nos dias de temporal, em que estrondavam trovões e os raios pareciam partir ao meio o Morro da Polícia. Deus não me apareceu em nenhum desses lugares e horas. Ou apareceu e minha cegueira não permitiu que eu O visse, a minha surdez me impediu de ouvir-Lhe a voz. A verdade é que saí daquele colégio tão herege como quando lá entrara pela primeira vez, havia três anos.

Finalmente chegaram, com os primeiros calores de novembro, os exames finais. Fui aprovado em todas as matérias com boas notas. Na noite da festa de despedida, em que se entregaram os diplomas, por haver obtido o primeiro lugar na classe, ganhei como prêmio uma bela lente de aumento. E em breve disse adeus aos amigos, aos professores, aos empregados do internato e à paisagem de Teresópolis. E lá me fui com o meu baú e uma maleta de mão, rumo do trem que me levaria de volta à terra natal e aos fantasmas da infância.

 

Uma das mais terríveis noites de minha vida foi a de 2 de dezembro daquele ano de 1922. Eu chegara de Porto Alegre no trem do meio-dia, feliz e ao mesmo tempo apreensivo à idéia de rever minha gente, minha casa (minha?) e minha cidade. Tinha ainda suficientes reservas de otimismo para esperar que de uma hora para outra os problemas domésticos se resolvessem satisfatoriamente. Mas não levei muito tempo para perceber que a situação tinha piorado muito, além das expectativas mais pessimistas. Meu pai continuava na sua vida de sempre e agora bebia em excesso. Minha mãe parecia ter chegado ao limite de sua capacidade de paciência e tolerância. A farmácia estava falida. Antônio, irmão de meu pai, e o Dr. Catarino Azambuja, no intuito de salvar Sebastião Veríssimo duma situação constrangedora, haviam requerido e obtido uma concordata e iam ambos tomar conta do negócio. Para isso, porém, precisavam que meu pai assinasse um compromisso, segundo as leis que regiam as concordatas. Meu Velho negava-se a isso, indignado. "Como vou firmar um documento prometendo algo que não sei se poderei cumprir?" — perguntava. O pior era que sua natureza apaixonada não lhe permitia discutir esses problemas com calma, pois esquentava-se, reagia com violência e obstinação.

As prateleiras da farmácia estavam quase vazias. Dois empregados haviam sido demitidos como medida de economia. Miguel não tinha perdido o seu cacoete musical e lá continuava a assobiar o seu trecho de O Carnaval de Veneza.

Ao entardecer do dia da minha chegada, não tive coragem de sentar-me à mesa do jantar. Saí a andar pela cidade, em busca nem eu mesmo sabia de quê.

Voltei para casa cerca das onze da noite. Fazia parte da família, havia alguns anos, uma menina qre meu pai encontrara por puro acaso numa estação termal, conhecida então como "Águas do Mel" (hoje Irai) e situada no nosso Estado, perto das barrancas do rio Uruguai. Filha de pais extremamente pobres, a criaturinha, viva e inteligente, costumava cantar e dançar para os hóspedes do hotel em que meu pai e eu estávamos hospedados. Sebastião Veríssimo, que sempre desejara uma filha, decidiu adotar a menina. Trouxe-a para Cruz Alta — fez o belo gesto, e sempre que a oportunidade se apresentava, ele a exibia para os amigos: "Canta a Rolinha do Sertão" — "Dança um sambinha!" — mas entregou toda a tarefa de criar a menina a D. Bega, que se afeiçoou à Maria do Sertão como a uma filha legítima. Lá estava ela agora a um canto, e seus olhos, móveis e atentos, pareciam compreender toda aquela embaraçosa situação familiar. Ênio, que era e é ainda hoje um homem discreto, de pouco falar, olhava-me como quem pede um conselho ou espera uma opinião. Minha mãe não conseguia esconder sua preocupação. Seus olhos continuavam límpidos e secos (os Lopes são duros para chorar) e de vez em quando nos encarava como se quisesse confiar-nos algum segredo. Eu esperava sua palavra, mas seus lábios continuavam selados. Havia no ar uma expectativa dramática. Estávamos todos tensos.

Meu pai chegou à casa mais cedo que de costume e já bastante alcoolizado. Seus olhos injetados brilhavam, seu rosto apresentava manchas purpúreas. Sentia-se — imagino — acuado de todos os lados, censurado pelos membros da família. Essa situação, para um homem habituado a ser sempre aceito, querido, admirado, obedecido devia ser insuportável. Por outra, o fato de andar sem dinheiro, pois agora não podia mais fazer retiradas da farmácia, agravava-lhe a irritação e a sensação de derrota. Assim, logo ao chegar a casa, aproveitou um tolo pretexto — tão tolo que seria uma tolice ainda maior descrevê-lo aqui — e fez uma acusação ridícula à sua mulher. Cansado da posição de réu, buscava uma válvula de escape para sua indignação acusando alguém. Afinal de contas ele não podia ser o único culpado de tudo quanto estava acontecendo! A cena que se seguiu, presenciada por todos os filhos, foi tão dolorosa e inesperada, que prefiro não relembrá-la agora em seus pormenores. Houve um momento de tamanha violência mal contida que — fazendo um enorme esforço — tive de interferir a favor de minha mãe. Esperei de meu pai uma reação física, que felizmente não veio. Ele pareceu cair em si, conteve-se, e em seguida encaminhou-se para seu quarto e deitou-se na cama, vestido como estava.

Que vai acontecer agora? — perguntei a mim mesmo. As quatro pessoas que tinham ficado na sala continuaram caladas, sem coragem sequer de se entreolharem. Decidi que aquela noite eu dormiria na própria sala de costura, num colchão estendido no soalho. A cabeça me doía duma dor rombuda, opaca, e eu estava trêmulo, a camisa empapada de suor. Minha mãe me olhou e murmurou: "Logo hoje, no dia da tua chegada...". Limitei-me a encolher os ombros. D. Bega retirou-se para seu quarto de dormir. Maria e Ênio a seguiram. Deitei-me sem ao menos tirar os sapatos e fiquei olhando para o teto. A um canto da sala o manequim parecia observar-me com seus olhos inexistentes. "Não é possível" — pensava eu. "O que vi e ouvi não aconteceu. Não podia ter acontecido. Recuso acreditar..." Passaram-se os minutos. Eu fechava os olhos e, contra o fundo de minhas pálpebras, eu via a cena reproduzir-se. Ouvi passos leves. Era Maria que entrava na sala. Aproximou-se de minha cama e me entregou um pedaço de papel, retirando-se em seguida na ponta dos pés, como se houvesse um doente grave na casa. Aproximei-me do bico de luz. Desdobrei o papel: era um bilhete de minha própria mãe, curto, direto, seco, sem a menor nota piegas. Dizia que não podia mais suportar aquela vida e que estava resolvida a separar-se imediatamente de meu pai, mas que só faria isso se eu quisesse ir também com ela. Pedia que eu lhe desse minha resposta na manhã seguinte. Tornei a estender-me no colchão, e o bilhete que eu pusera em cima do peito, pesava-me como um bloco de chumbo. Eu não queria que o casal se separasse, mas compreendia que minha mãe tinha razão, pois sua intenção era salvar a família de desastres maiores. Levantei-me ou, melhor, o meu corpo ergueu-se, enquanto curiosamente outra parte de meu ser continuava deitada no colchão, ainda indecisa ou talvez esperando um milagre salvador. Caminhei como um sonâmbulo na direção do quarto de D. Bega, aproximei-me dela e murmurei: "Pode contar comigo. Eu vou também". Ela sacudiu a cabeça lentamente, depois disse baixinho: "Sempre achei que gostavas mais de teu pai que de mim".

Voltei para a minha cama improvisada, estendi nela o corpo surrado e dolorido. Teria o Velho conseguido dormir? Como seria o nosso amanhã? E o dele? E o futuro de todos nós? Revolvi-me sobre o lençol morno, atufei a cara no travesseiro, apertei o peito contra o colchão de palha, procurei represar as emoções que pareciam querer partir-me as costelas. "Macho não chora" — dizia uma voz grave na minha mente. Eu respirava arquejante. Senti um espasmo na garganta. E houve um momento em que, não podendo mais conter o pranto, abri todas as comportas que minha vontade lhe anteparava e deixei que minhas lágrimas rebentassem num grande soluço. E depois, procurando não fazer nenhum ruído que pudesse ser ouvido pelas outras pessoas daquela casa, chorei convulsivamente por vários minutos, as lágrimas umedecendo a fronha do travesseiro — chorei de pena de minha mãe, de meu pai, do meu irmão e — por que não confessar? — chorei de pena de mim mesmo.

 

Mo dia seguinte fizemos nossas malas e trouxas e nos mudamos para a casa de nossos avós maternos. Ao receber-nos e ao saber da resolução da filha, a velha permaneceu calada, a fisionomia impassível. Limitou-se a determinar onde e como nos devíamos instalar na sua pequena residência. Eu compreendia que D. Maurícia devia estar abalada. Se levarmos em conta — reflito agora — a época, o tamanho e os preconceitos da cidade em que vivíamos, a resolução tomada por D. Bega de abandonar o marido foi um ato de admirável coragem moral. Quando meu avô chegou da rua e ficou sabendo da separação, seu rosto ensombreceu. Sacudia a cabeça dum lado para outro, murmurando: "Que cosa bárbara... Que cosa bárbara...". Tinha pelo genro não só uma grande afeição como também uma admiração ilimitada.

Desde o primeiro momento minha mãe deixou claro a seus pais que dali por diante ela arcaria com toda a despesa da casa em matéria de alimentação, e que pagaria também o salário da cozinheira. Naquele mesmo dia mandou buscar os móveis da casa que abandonara, e que lhe pertenciam.

Onde e como estaria meu pai? — pensava eu. Não resisti ao desejo de vê-lo. Entrei na casa onde vivera desde o dia de meu nascimento, encontrei a porta aberta, entrei e encontrei meu Velho deitado na sua cama, no quarto sombrio. "Meu filho" — murmurou ele docemente, ao reconhecer o meu vulto.

— "Senta-te aí". Obedeci. Uma barba de dois dias azulava as faces de meu pai, que fumava sem cessar. Sobre a mesinha-de-cabeceira, o cinzeiro estava cheio de baganas. Divisei debaixo da cama uma garrafa de bebida. "Como vai tua mãe? E o Ênio? E a Maria?" Respondi que estavam todos bem, pedi-lhe que não se preocupasse, mas que cuidasse de si mesmo. Por que não abria as janelas, não tomava um pouco de sol, não respirava ar puro? Aos poucos meus olhos habituaram-se à penumbra do quarto, e então pude enxergar melhor as feições paternas. "Por que me fizeram isso? Tu sabes que não sou um homem mau. Quero bem a vocês todos, Deus é testemunha disso." Baixei os olhos, sem encontrar resposta. O cheiro de sarro de cigarro que impregnava o ar viciado daquele ambiente me fazia mal. "Sou um homem cheio de defeitos, eu sei" — continuou ele, baixinho — "mas..." Calou-se de repente. Fez-se um silêncio para mim constrangedor. Eu olhava em torno daquele quarto de dormir que durante anos eu partilhara com meu pai. Os carregadores já tinham levado os guarda-roupas, a mesa e as cadeiras da sala de jantar, mas não tinham penetrado ainda naquele quarto. Lá estava o lavatório com o espelho trincado, o jarro e a bacia de louça com a pintura daquelas mulheres seminuas de cabelos longos, grinaldas de flores nas mãos. Meu pai tornou a falar. "Me diga, meu filho, com que cara agora eu vou sair pra rua? Como é que vou explicar a meus irmãos, aos meus amigos o que aconteceu? Me diga!"

Analisando hoje essas palavras julgo compreender os pensamentos e sentimentos de Sebastião Veríssimo, príncipe da vida, talvez um dos homens mais estimados e admirados de sua terra. Queria aproveitar o melhor de dois mundos: manter a jovem amante, de quem gostava, e ao mesmo tempo conservar a esposa legítima. Agradava-lhe a idéia de ser considerado um chefe de família exemplar, como fora o seu próprio pai, e no fim de contas — devia ele raciocinar — quantas centenas de homens como ele sempre tiveram duas casas e duas mulheres, a esposa e a "outra"? Por outro lado, seu orgulho de macho estava ferido, pois naquela estória toda o abandonado fora ele. Talvez imaginasse que poderiam dizer dele na rua: "Lá vai o pobre do Sebastião. A mulher não agüentou mais ele e saiu de casa...".

Naquela visita o que mais me preocupou foi o temor de que meu pai, num momento de solidão e desespero, se suicidasse. Hoje sei que homens de seu temperamento sensual e epicurista amam a vida tão arraigadamente que jamais se matam. Em todo o caso o adolescente que eu era olhava soturno e apreensivo para o revólver que estava em cima da mesinha-de-cabeceira. Ouvi-me mentalmente pedir: "Deixe eu levar comigo esse revólver, por favor". Pensei num plano para roubar-lhe a arma. E ali ficamos um diante do outro, calados, enquanto meu pai fumava cigarro sobre cigarro. Levantei-me, inclinei-me sobre o Velho e beijei-lhe a mão. Saí daquele quarto e daquela casa numa confusão de sentimentos e pensamentos.

Tornei a voltar lá dois dias depois. O Velho continuava deitado, a barba mais crescida, os olhos mais vermelhos. Eu sentia ímpetos de abrir a janela do quarto, ajudar meu pai a barbear-se, levantar-se daquela cama. Ele me disse: "Não imaginas como me doeu quando ouvi os carregadores que vieram buscar os móveis. A casa agora está vazia. E depois... sem vocês, é horrível". Enquanto ele falava eu olhava fixamente para o revólver. "Quando eles levaram a tua cama, compreendi que o irremediável tinha acontecido." E ao dizer isto, lágrimas brotavam-lhe nos olhos injetados e escorriam-lhe pelas faces. Homem não chora? — pensei. E concluí que só quem é bem homem é que tem a coragem de chorar. Os outros representam na vida um papel: o estóico, o viril, o duro. (Num estado tão cioso de seu machismo -— concluo no momento de escrever estas linhas — a suprema coragem é a de correr o risco de parecer fraco por exprimir livremente seus sentimentos.)

Quanto tempo meu Velho permaneceu deitado naquela cama sem "cara" para enfrentar os amigos, os conhecidos, a sua cidade? Sei hoje que um dia alguém bateu à porta daquela casa. Era uma menina de nove anos e olhos azuis, cabelos dum castanho alourado, filha duma chapeleira das vizinhanças que por ela mandava à minha mãe um figurino. Ouvindo as batidas, meu pai gritou: "Vá embora! Não tem ninguém em casa!". Assustada por aquela voz rouca e irada, a menininha se foi quase a correr. Chamava-se Mafalda, e graças aos enredos e à imaginação do Autor deste novelão que é a vida, nove anos mais tarde nós nos casaríamos e ela viria a tornar-se minha companheira pelo resto da vida.

 

Sebastião Veríssimo um dia emergiu de seu sombrio esconderijo, barbeou-se, banhou-se, trocou de roupa, perfumou-se e saiu de casa. A farmácia já não lhe pertencia mais e, imagino, isso não lhe importava um pito. Um amigo íntimo convidou-c para trabalhar como guarda-livros de sua casa de comércio. Meu pai aceitou o convite.

O manequim, a tesoura e a Singer de minha mãe agora estavam com ela na casinhola do velho Aníbal Lopes. Decidi que não voltaria no ano seguinte ao Colégio Cruzeiro do Sul. Queria conseguir um emprego o quanto antes. Meu tio Americano Lopes, que era o sócio principal duma firma que fornecia gêneros alimentícios aos dois regimentos da guarnição federal da cidade, levou-me para trabalhar no seu armazém. Meu estado de espírito nesse tempo era o pior possível. Andava retraído, não procurava os velhos amigos, vivia metido em casa, com livros, recordações e fantasias que procuravam negar a realidade. Descuidava-me das roupas, coisa em geral tão importante para um rapaz da minha idade. Sentia-me derrotado pela vida. Todos os meus planos haviam ruído, esboroando-se em poeira — aquela poeira que eu varria todas as manhãs do chão do armazém, depois de respingá-lo com água misturada com creolina. Eu, que sabia razoavelmente o meu inglês e o meu francês; eu, leitor de Zola e Machado de Assis; eu, que sonhava com uma carreira artística ou literária — movia-me por en-

tre sacos de farinha, arroz, feijão e açúcar, contava os tijolinhos de goiabada que a firma mandava todas as semanas para os regimentos locais, pesava batatas... Minhas mãos recendiam a cebola e alho. E em certos momentos eu me entregava a grandes orgias de autocomiseração. Lembrava-me de que meu pai costumava dizer aos amigos, em minha presença, que quando eu completasse dezoito anos ele ia me mandar fazer um curso na Universidade de Edimburgo, na Escócia. Minha mãe sorria, incrédula ante mais essa fantasia do Sastião. Mas eu me inquietava um pouco quando me imaginava em tão remota terra, no meio de gente que falava uma língua tão difícil. Consolava-me a idéia de que, segundo lera em livros, os verdes das colinas da Escócia eram dos mais belos do mundo e então, para me consolar e para exorcizar a preocupação, eu me imaginava a pintar numa tela as paisagens escocesas. No entanto esse moço sonhador se fanava naquele barracão malcheiroso, a pintar letreiros prosaicos em sacos de aniagem.

Foi nesse armazém que, à sombra dum guarda-livros pálido e taciturno, que fumava palheiro e recendia a alho, fiz clandestinamente a minha primeira literatura em pedaços de papel de embrulho, com a cumplicidade de uma velha máquina de escrever Underwood... Naquele tempo eu havia "descoberto" Euclides da Cunha, cujo estilo admirava. Minhas relações com Machado de Assis haviam melhorado consideravelmente. Também comprazia-me em traduzir para o português trechos curtos de escritores franceses e principalmente ingleses. Mas quando o gerente se aproximava, eu tinha de tirar às pressas o papel da máquina, metê-lo disfarçadamente no bolso e assobiar uma melodia qualquer, dessas inventadas pelo meu próprio encabulamento. "Copie estas cartas!" — ordenava o chefe do escritório. Parecia uma personagem de Dickens em trajos de 1922. Quando me via a ler "Os Sertões" a um canto, repreendia-me. "Isto não é salão de leitura e sim uma casa de comércio. Leve estas cartas ao correio." E lá me ia eu, humilhado, pelas ruas, evitando olhar para os lados, temendo encontrar um

conhecido. Não queria que me vissem — suprema vergonha! — carregado de pacotes e envelopes. Eu, um Veríssimo!

Veio a noite de Natal. Triste. A de 31 de dezembro. Tristíssima. A Singer de minha mãe rodava, produzindo aquele ruído tão conhecido nosso.

Mantive diálogos muitos, e inaudíveis, com o manequim, cuja presença até hoje não descobri se me era hostil, amiga ou indiferente. "Não é nada, menino" — ele parecia dizer. — "Tens muita vida pela frente. Ou pensas que és o único sofredor e injustiçado no mundo?" Sim, vida pela frente eu tinha. Paciência também, mas em todo caso esperar era duro e doía.

Minha mãe me incentivava: "Se não te agrada trabalhar no armazém, vamos procurar outro emprego. Num banco, quem sabe...". E dias depois desta frase eu me despedia — com que alegria! — do armazém recendente a alho, cebola e rapadura, e do seu gerente de bigodes caídos e pele lívida. Minha mãe me conseguira um emprego numa casa bancária, onde, mediante um salário mensal de oitenta mil-réis, me encarregaram de escriturar o chiffrier, livro de importância menor, no qual cometi consideráveis erros e deixei inapagáveis borrões, jamais conseguindo acertar um balancete na primeira tentativa — coisa que deixava o nosso contador irritado. Sempre os números! Muita da literatura que produzi naquele tempo (mas afinal de contas era eu um desenhista ou um escritor?) me saiu em papéis com o timbre do Banco Nacional do Comércio.

Oitenta mil-réis mensais... Eu tinha vergonha de dizer aos amigos quanto ganhava. Não me era nada agradável a idéia de saber que minha mãe continuava a trabalhar dia e noite, encurvada sobre a sua máquina de costura, para conseguir o dinheiro com que não só me alimentava como também me comprava roupas, gravatas, sapatos, chapéus... É que eu já tinha deixado para trás a fase de negativismo e desalento; agora me vestia de acordo com a moda, que exigia vistosas camisas de tricolina do tipo "bataclan", com riscas de muitas cores sobre fundo claro — ah!, e com um colarinho altíssimo para o qual a natureza não me dotara dum pescoço adequado. (Esperava-se dos funcionários de banco que andassem sempre bem vestidos.)

Quem muito me ajudou, sem o saber, naqueles tempos psicologicamente difíceis para mim, foi Monteiro Lobato. Li com deleite o seu Urupês, em que o autor paulista, a despeito de suas inegáveis influências camilianas, me pareceu uma saborosa cruza de Maupassant com Mark Twain. (Tenho observado que existem no mundo autores fecundantes — não necessariamente os maiores —- que estimulam no escritor principiante a vontade de criar, reforçando-lhe a fé na arte da ficção.) Poderia eu um dia seguir o caminho de Lobato, contando estórias como as que formavam o seu Cidades Mortas?

Eu lia regularmente a Revista do Brasil dirigida por esse escritor paulista, cujas sobrancelhas espessas e negras me davam a bem-vinda impressão de que ele era parente meu, espécie de tio mais velho e geograficamente distante. Muitos anos mais tarde vim a conhecer Monteiro Lobato pessoalmente, fazendo com ele excelente camaradagem. Neste exato momento estou ouvindo a sua voz cheia duma energia meio cansada e desiludida dos homens: "Seu Érico, o escritor de verdade escreve naturalmente como quem mija. Não vá muito atrás dessas novidades que andam por aí e que na maioria dos casos não passam de truques inventados por quem não sabe contar estórias".

Eu acompanhara de modo um tanto precário o desenvolvimento da Semana de Arte Moderna — revolução literária e artística diante da qual me sentia ambivalente. O próprio Lobato, em cujo juízo crítico eu tanto confiava, manifestara-se contra o movimento. Eu lera na Revista do Brasil a reprodução dum famoso artigo seu contra a arte da pintora Anita Malfatti. (Paranóia ou Mistificação?) Duma coisa, porém, eu estava certo. Os jovens escritores e artistas que haviam organizado e animado a Semana de Arte Moderna tinham razão quando protestavam contra a nossa excessiva dependência da França e de Portugal.

Eu estava convencido de que a literatura e as artes plásticas acadêmicas no Brasil haviam sido feridas se não de morte, pelo menos gravemente. Havia até então um excesso de imagens e metáforas mitológicas greco-romanas na literatura brasileira. Tínhamos os olhos permanentemente voltados para o estrangeiro. Éramos europeus. Paris era a nossa capital do espírito. Ninguém olhava para o Brasil, ninguém (ou pouquíssimos) tentava escrever sobre este "gigante pela própria natureza", "deitado eternamente em berço esplêndido". Eu lia com uma certa dose de perplexidade os versos dos dois Andrades, Mário e Oswald. O pintor que hibernava dentro de mim comprazia-se no esbanjamento de tintas vivas a que Cassiano Ricardo se entregara em Borrões de Verde e Amarelo e Vamos Caçar Papagaios. Lá estavam, solidários com os modernistas, poetas do calibre de Manuel Bandeira, Guilherme de Almeida e Menotti dei Picchia, ensaístas da força de Sérgio Buarque de Holanda e Cândido Mota Filho, prosadores como Ronald de Carvalho e — adesão inesperada e sensacional — romancistas e estetas como um Graça Aranha, membro da Academia Brasileira de Letras, tão atacada e ridicularizada pelos "novos". Eu lera com agrado O Estrangeiro de Plínio Salgado. Concordava com os Modernistas em que era preciso "dinamizar" a literatura — e como se usou e abusou da palavra "dinamismo" e "dinâmico" naquela década dos 20! — torná-la trepidante, rápida, ágil e irreverente como a idade do rádio, do avião que estávamos já vivendo naquele pós-guerra que produzira a "geração perdida". Se o Brasil era um país jovem, a troco de que santo deviam seus escritores e artistas plásticos imitar uma Europa decadente e cansada? Acompanhei então nos anos que se seguiram o movimento Pau Brasil, li o Manifesto Antropofágico que me pareceu doido mas que, como todos os doidos, tinha a cega coragem de dizer verdades que parecem absurdas aos homens chamados normais.

Entretanto, naquele exato ano de 1923 minha atitude era ainda de expectativa. Continuava a ler meus "passadistas", esperando que as águas agitadas pelo Movimento Modernista se aquietassem para a gente poder ver o que no fundo sobrava de sólido e permanente.

Nesse tempo eu lia e traduzia Rabindranath Tagore. Vejo agora aqui a meu lado, tirada do fundo duma gaveta quase esquecida, uma tradução que fiz de passagens do livro Pássaros Extraviados:

 

Toma meu vinho na minha própria taça, amigo. Ele perde sua coroa de espuma quando despejado na de outro * /Agradece à lâmpada pela luz que te dá. Mas não te esqueças do porta-lâmpada, que fica na sombra com a constância da paciência. * Na minha solitude de coração sinto a queixa desta tarde viúva, velada de bruma e chuva. * "Quão longe estás de mim, o' Fruto" — "Estou escondido no teu coração, ó Flor" O silêncio carregará tua voz como um ninho que abriga pássaros adormecidos.

 

Passei boa parte daquele verão de 1923 numa busca esfaimada de mulher. Aos amigos eu mentia ou dava a entender que já havia conhecido fêmea no sentido bíblico durante meus anos de ginásio, em Porto Alegre. No entanto até agora minha timidez me tolhia toda vez que eu pensava em entrar numa "pensão de mulheres da vida", dessas a que os romances e as notícias de jornal dão nomes horrendos como bordéis, prostíbulos, lupanares e onde, eu sabia, eram freqüentes as brigas a faca e mesmo a tiros, e nas quais eu poderia ser envolvido — como vítima, naturalmente.

Numa noite de fevereiro em que o desejo se manifestou em meu corpo mais quente que o bafo trazido pelo vento vindo dos campos em que se queimavam macegas, nos arredores da cidade, saí numa busca de sexo pelas ruas chamadas "de trás", onde a escassa iluminação pública era propícia aos caçadores tímidos. Eu esperava pelo menos encontrar alguma chinoca e levá-la para qualquer terreno baldio, deitá-la no chão e... pronto! Lá estaria eu devidamente deflorado, ainda que tarde paia um adolescente brasileiro. Comecei a caçada na Rua Mauriti, já quase completamente deserta àquela hora, e fui andando, andando, atento a todos os vultos que se me deparavam. Eis senão quando — como se escrevia nos livros de aventuras da minha infância — avistei uma rapariga a uma esquina, encostada num poste telefônico. Era morena, não me pareceu feia de feições nem malfeita de corpo. Estava vestida modestamente, como uma criadinha, e calçava chinelas. Aproximei-me dela, cauteloso, parei a curta distância e, fingindo que olhava para o outro lado da rua, transformei meu embaraço num assobio desses "de chamar cobra", como costumava dizer o falecido tio Rodolfo. Aos poucos fui voltando a cabeça na direção da desconhecida. Finalmente encarei-a.

— Oh! — fez ela, amistosamente.

— Oh! — respondi. —- Não quer entrar?

Fiz com a cabeça um sinal afirmativo e segui-a. Entramos numa casinhola de madeira, em meio de pequeno pomar. O quarto da rapariga não podia ser mais singelo: uma cama e um lavatório de ferro, um baú a um canto, um espelho barato e pequeno pendurado na parede. Uma caixa de pau fazia o papel de mesinha-de-cabeceira. E sobre ela repousava um patético lampiãozinho a querosene, cuja chama alumiava fracamente a pequena alcova. Tirei o chapéu e o casaco e coloquei-os em cima duma cadeira rústica cuja presença me havia escapado ao primeiro inventário feito num relance.

— Como é o teu nome? — perguntei.

— Déa.

— De onde és?

— De Bagé.

— Ah!

Antes de deitar-se Déa diminuiu a intensidade da luz do lampião. Deduzi que não queria despir-se com o quarto iluminado. Mas não se despiu. Estendida na cama, ergueu a saia e disse: "Vem!". Fui. Procurei portar-me como um veterano experimentado e não como um neófito. Tudo aconteceu muito depressa: o sonhado orgasmo veio, pálido, rápido, sem espasmos e quase sem gozo. Déa teve a honestidade de não fingir que sentia prazer comigo. Terminado o ato, levantei-me, coloquei discretamente duas cédulas de cinco mil-réis em cima do caixão, ao pé do lampião, pensando vagamente numa tradução que eu fizera aquele dia dum poema de Omar Khayyam. (Lâmpadas que se apagam, esperanças que se acendem: Aurora. Lâmpadas que se acendem, esperanças que se apagam: Noite.) Disse: "Muito obrigado!", e no entanto Déa apenas me dera numa caneca de lata um pouco de água morna para saciar a sede de quem passara muitos anos num deserto ardente. Enfiei o casaco, peguei o chapéu e saí para a noite. Encaminhei-me para casa dominado por dois sentimentos. Um de alívio e satisfação: agora eu era um homem completo, e não havia nenhum mistério no ato sexual. O outro era de frustração. Afinal de contas, desde os doze anos eu tivera em meu serralho particular mulherinhas de papel que me haviam proporcionado muito, mas muito mais prazer do que a moça de Bagé. E naquela noite ainda traduzi outra quadra do poeta persa. O vasto mundo: um grão de areia no espaço. Toda a ciência dos homens: palavras. Os povos, as feras, as flores dos sete climas: sombras. O resultado de tua meditação perpétua: nada. Tomei um banho prolongado de chuveiro, não por causa de Omar Khayyam, mas sim de Déa. Vesti o meu pijama zebrado de presidiário, deitei-me e, antes de apagar a luz de cabeceira, apanhei o volume de Pássaros Extraviados de Tagore, que procurou dar-me um banho espiritual antiomaresco. "O grande poder de Deus está na brisa e não na tempestade. Os sábios afirmam que a vossa luz um dia morrerá" — disse o vaga-lume às estrelas. E as estrelas não responderam. As gotas de chuva beijaram a terra e ciciaram; "Somos os teus filhos saudosos, mãe, voltamos para ti". "É criando que Deus se acha a si mesmo."

Apaguei a luz e fechei os olhos pensando neste último poeminha. Sim, criar era importante. Talvez no ato da criação eu pudesse encontrar salvação... E, se minha memória não está tentando fazer literatura, aquela noite tive um sonho em que o manequim mutilado apareceu à beira da minha cama e me censurou por eu ter tido relações sexuais com a rapariga de Bagé. Encolhido de puro remorso, respondi que havia tomado um banho antes de dormir. O manequim manteve-se irredutível Havia certas máculas que a água da chuva ou do chuveiro não conseguiam lavar. E eu não sabia que os dez mil-réis que eu dera à prostitutinha representavam horas de trabalho dele, manequim, da tesoura, da Singer e principalmente de minha mãe?

 

Eu ainda lia Tagore e Khayyam quando os federalistas (maragatos) aliados a republicanos dissidentes deflagraram uma revolução de protesto contra o resultado para eles — e para mim — fraudulento das eleições que, em fins do ano anterior, haviam dado vitória ao Dr. Antônio Augusto Borges de Medeiros, que assim entrava no seu quinto período como governador de nosso Estado, após vinte anos de "ditadura científica", sob a égide de Augusto Comte. O candidato da oposição nessas recentes eleições, o Dr. Joaquim Francisco de Assis Brasil, era agora o chefe espiritual da revolução que rebentara em vários pontos do Rio Grande do Sul.

Ora, como Cruz Alta era um feudo republicano, os oposicionistas foram aos poucos desaparecendo da cidade, com as armas e as munições que conseguiam obter, para juntar-se às forças sediciosas mais próximas. Meu tio Nestor, que havia muito farejara guerra no vento, encontrava-se já com as tropas do Gen. Estácio Azambuja, no município de Bagé. Meus tios Antônio e Fabrício e meu primo Luderites Ramos juntaram-se às forças do Gen. Felipe Portinho, que tinham estabelecido seu quartel-general em Boa Vista do Erexim. Não tardou muito, o Dr. Catarino Azambuja, acompanhado de sua fiel e brava companheira, minha tia Maria Augusta, seguiram para aquela cidade a fim de organizar e dirigir o hospital da Cruz Vermelha revolucionária naquela região.

Em Cruz Alta os republicanos contavam com um contingente considerável de homens bem armados. Procediam a um curioso tipo de recrutamento. Aceitavam todos os voluntários que aparecessem. Não faziam perguntas sobre os antecedentes de cada um, à maneira da lendária Legião Estrangeira. Depois metiam-nos num uniforme de zuarte, davam-lhes botinas reiúnas e às vezes até perneiras de couro, um chapéu de feltro de abas largas, e uma Comblain ou uma Mauser. Agarravam também a força homens entre dezoito e cinqüenta anos, que passaram a ser então conhecidos como "voluntários a maneador". Como era natural, os borgistas sinceros, os homens de opinião política definida também pegaram em armas para defender o chefe supremo de seu partido ou, para usar da terminologia republicana, "combater os mazorqueiros".

Meu pai, que vivia agora num pequeno hotel nas cercanias da estação da estrada de ferro, continuou na cidade. Apesar de ter votado em Assis Brasil e de ser antiborgista, nunca foi molestado. O mesmo aconteceu com meu avô Aníbal Lopes, que não alterou seus hábitos de vida nem controlou a língua. Continuou chamando o presidente do Estado de "Borjoca" e "Chimango". E sempre que lia nos jornais a notícia duma vitória dos revolucionários num combate, costumava soltar a sua sonora risada e dizer, em qualquer roda em que se encontrasse: "Borrou-se a chimangada!".

Tagore escrevia: Na Lua tu me mandas tuas cartas de amor — disse a Noite ao Sol, que respondeu: "Deixo minha resposta em lágrimas sobre a relva". E eu procurava escutar a voz do poeta apesar do barulho que produziam os caminhões que passavam na rua cheios de soldados que gritavam vivas ao Dr. Borges de Medeiros e ao Partido Republicano. Eu também era assisista e, na minha ignorância pueril, via apenas a superfície daquele fato sociológico representado pela Revolução de 1923 e que um dia viria a ser História. Para mim aquela era a revolta do povo oprimido contra a tirania, uma espécie de Revolução Francesa miniatural e rústica. Os assisistas iam destruir a Bastilha do borgismo. Sabíamos todos que o Dr. Medeiros era pessoalmente um homem honrado. Acontecia, porém, — e esta conclusão é do adulto e não do rapaz — que esse político seco de carnes, gestos e palavras bem podia ser o proprietário do Castelo do romance de Franz Kafka, isto é, o poder invisível e arbitrário. Vivia metido no palácio do governo e em si mesmo. Não viajava. Entregava cada município a um chefe político, do qual esperava mantivesse a ordem e, na ocasião oportuna, tudo fizesse para que ele, Borges de Medeiros, fosse reeleito. E como ali em Cruz Alta tivéssemos vivido mais de vinte anos sob o jugo de um chefe político atrabiliário, com fama de degolador desde a revolução federalista de 1893, homem sem o menor respeito pelas liberdades civis — eu chegava a pensar que a revolução de 1923 tinha algo que lembrava a rebelião do povo russo contra o czarismo. Era um raciocínio romântico: de novo a luta do Bem contra o Mal, da Liberdade contra a Opressão, do Pobre contra o Rico. Mais tarde chamou-me a atenção um fato que me permitiu fazer um juízo diferente sobre aquela sublevação. Se se tratava mesmo duma revolta do povo, do chamado "homem comum" contra os donos do poder e os donos da terra, como se explicava então que os mais ricos estancieiros do Rio Grande do Sul, a flor de nosso patriciado rural, estivessem do lado dos assisistas? E não era o próprio Assis Brasil um aristocrata? E não fora Júlio de Castilhos, pai político e espiritual de Borges de Medeiros quem tentara, embora em vão, incluir na constituição de 1894, um parágrafo que, inspirado no pensamento de Augusto Comte, preconizava "a incorporação do proletariado à civilização ocidental"?

Fosse como fosse, muitas das reivindicações dos revolucionários de 23 me parecem excelentes até hoje. No fim daquele ano o governo federal (Artur Bernardes não perdoava a Borges de Medeiros por ter apoiado seu adversário Nilo Peçanha nas eleições federais para Presidente da República) interveio no Rio Grande do Sul na pessoa do Gen. Setembrino de Carvalho, que conseguiu levar maragatos e republicanos a sentarem-se a uma mesa para discutir a paz, que se consubstanciou no Tratado de Pedras Altas, o qual representou até certo ponto uma vitória para os revolucionários, pois graças a ele foi instituído o voto secreto — o que significava que o governo não podia mais amedrontar os funcionários públicos com sanções, caso eles não votassem sempre nos candidatos oficiais. Além disso, o tratado tocava na Constituição de 1894, espécie de "vaca sagrada", incluindo nela um artigo que proibia ao presidente do Estado suceder-se a si mesmo.

Apesar de minhas simpatias pelo assisismo, nunca me passou a sério pela cabeça a idéia de alistar-me nas forças revolucionárias. Eu não sentia a menor inclinação bélica. (Se eu não fosse meu amigo, talvez escrevesse que me faltava coragem.) Como acontecia com meu pai, eu não sabia andar a cavalo e detestava o desconforto. Minha mãe, no entanto, vivia em constante alarma, queria que eu me refugiasse na estância de meu tio João Raymundo para não ser agarrado a maneador pelas forças legalistas. Neguei-me a isso. Outra coisa que preocupava D. Bega era que meu irmão e eu saíssemos à noite naqueles tempos de revolução, em que as horas eram pontilhadas de tiroteios e outros ruídos de guerra. Mas saíamos. E certa vez, cerca das onze e meia da noite, voltávamos para a casa Ênio e eu em animada conversação, contando-nos estórias que nos faziam rir, quando ouvimos de súbito um brado: "Alto lá!". Estacamos. Diante de nós, a uns cinco passos, dois soldados do corpo provisório local estavam de carabinas apontadas para nossos peitos, como se nos fossem fuzilar. Um sargento, metido numa sinistra capa negra, aproximou-se de nós e gritou: "Não sabem que é proribido passar por esta calçada de noite?". Só então percebemos que estávamos a pequena distância do edifício da Intendência Municipal. O sargento berrava na nossa cara, e de sua boca saía um bafio de cachaça. "Da próchima vez eu mando atirar sem aviso." Respondemos que não tínhamos notícia da proibição, desculpamo-nos e atravessamos a rua, sentindo-nos um pouco "fuzilados". (Curioso, 46 anos mais tarde, vendo em Madrid o famoso quadro de Cova, O 3 de Maio de 1808, cujo tema é o fuzilamento de rebeldes espanhóis por soldados de Napoleão, pensei naquela noite do inverno de 1923, em Cruz Alta, vi a cara do sargento, senti o seu bafo alcoolizado e achei estranhos os confrontos: Cruz Alta-Madrid; Intendência Municipal-Museu do Prado; o sargento de capa negra e Don Francisco José de Coya y Lucientes...)

 

Foi um inverno duro, aquele de 1923. O minuano soprou mais de uma vez. Nossas casas eram geladas. Pensávamos nos nossos amigos e parentes que estavam talvez dormindo ao relento, encolhidos debaixo de seus ponchos, as caras cobertas de geada.

Foi ainda naquele conturbado 1923 que amei uma menina de treze anos, de olhos verdes e trancas douradas, como as guardadoras de gansos dos contos de Andersen. A ingrata me traiu, namorando certa noite no cinema um forasteiro de Tupanciretã, garboso no seu trajo sugestivo dum centauro: na parte superior do corpo, colarinho duro e gravata-borboleta, colete e casaco de casimira; na inferior, culotes militares de brim caqui, com perneiras de couro. Lembro-me de que era setembro, os pessegueiros do quintal do velho Aníbal estavam floridos e o Chimanguinho dançava e cantava o seu cum-daracum-cum-cum na horta, por entre pés de repolho. Sofri a humilhação em silêncio. O forasteiro retornou à sua terra. A infiel, contrita, mandou-me um recado em que jurava que o namorico tinha sido apenas uma brincadeira, e que ela ainda me amava. Não aceitei a explicação. E esqueci a menina antes de florirem os jasmineiros de dezembro.

Quanto ao mais, vivia eu entre a monotonia numérica do gordo chiffrier do Banco Nacional do Comércio e a delícia dos romances de Machado de Assis e Eça de Queirós. Lia também alguns livros em francês, sobreviventes do naufrágio da biblioteca de meu pai.

 

Passei a infância, a adolescência e boa parte de minha primeira mocidade em contraditórias viagens de vaivém entre dois tios afins, ambos barbudos — um romântico e o outro clássico — dois homens excepcionais que tiveram poderosa influência na minha vida. Com o devido respeito a Mareei Proust direi que houve um período da minha existência em que eu estava ora du côté de chez Catarino, ora du côté de chez João Raymundo.

Em cinzentas e frias tardes de muito inverno João Raymundo e eu líamos juntos os dramas de Ibsen, O Sistema de Lógica, de Stuart Mill e as divulgações que Charles Nordman fazia ds teoria da Relatividade de Albert Einstein. Mas para que não se pense que não havia também sol no côté desse "tio clássico", direi que com freqüência varríamos do espírito as névoas ibsenianas, fazendo longos e ociosos passeios por Le jardin d'Epicure, de Anatole France. Foi João Raymundo quem primeiro me chamou a atenção para a beleza do poema La Lune, de Émile Verhaeren, o poeta belga que cantara também as "cidades tentaculares", o princípio da era da máquina e que acabara, ele próprio, morrendo esmagado por uma locomotiva em Ruão. "Acho que ninguém ainda escreveu sobre a lua melhor que Verhaeren" — disse-me um dia meu tio. — "Escuta com atenção." E leu alguns versos:

 

             Sous Ia voûte que sur Ia terre

             minuit construit avec de lor,

             tu voyages, par Ie soir mort,

             ceil morne et dur et sans paupières

 

             Oeil pour le pôle et le désert

             où Ia chaleur ressemble au gel,

             où le silence, comme un scel,

           ferme / es lèvres de Ia mer.

 

             Oeil d'immemorial ennui,

             mobile, cclatant et livide,

             que Ic iemps esculpte au front du vide

             dans le visage de Ia nuit.

 

Descendente duma família ilustre de São Gabriel, João Raymundo da Silva, neto por linha materna do Gen. João de Deus Mena Barreto, formou-se em Direito para cedo descobrir que havia escolhido a profissão menos condizente com o seu temperamento. Não tinha nenhuma paciência com aquilo a que Machado de Assis chamava "a inopinável toleima humana". Irritadiço, neurastênico, revelava uma tendência indisfarçável para a solidão. Achava que a vida era mesmo, como dizia a personagem de Shakespeare, uma estória sem sentido contada por um idiota. Leitor de Antero de Quental, ele próprio escrevera um dia um soneto em que falava no "meu pobre coração cansado".

Seu padrinho e homônimo, porém, legou-lhe uma estância de vastos e belos campos no município de Cruz Alta. Para lá se mudou João Raymundo — lobo solitário em busca duma estepe — e foi na sede desse município que conheceu e mais tarde veio a desposar Iracema, a filha mais moça de meu avô Aníbal Lopes da Silva. Esse casamento foi um fator decisivo em sua vida, pois salvou-o do suicídio, que ele havia tentado aos vinte e poucos anos, da maneira que um dia viria a fazê-lo o escritor Ernest Hemingway. A esposa, moça de fibra, educada à rija maneira antiga e dotada duma sólida dose de senso comum, passou a fazer junto do homem que amava e admirava não só as vezes de companheira como também de enfermeira, chegando a ser, de certo modo, uma espécie de intérprete entre o marido e o mundo.

João Raymundo era uma figura impressionante. De estatura meã, torso desempenado e musculoso, tinha a testa ampla, a cabeleira abundante, o nariz levemente adunco, o queixo voluntarioso coberto por uma barba negra. Seus olhos, dum castanho-claro, tinham de ordinário uma penetração fria de metal, mas não raro eram tocados duma placidez e duma amplidão que lembravam as distâncias dos campos de sua estância, a que dera o nome de Retiro.

A aparente (ou verdadeira?) misantropia que o levava para a solidão nada mais era que um resultado de sua incapacidade de viver num mundo cuja nota tônica era o absurdo. Seu universo interior tinha característicos cartesianos, e ele não saberia viver sem sua ração diária de ordem, coerência e harmonia. Era mais um lógico que um mágico; mais um profeta do que um poeta. Com o passar dos anos aprendeu finalmente a rir ante a "inopinável toleima". E se por um lado continuava a ter pouca fé na perfectibilidade do homem, por outro votava grande apreço aos cientistas, e acreditava mesmo em que um dia eles viriam a descobrir uma droga capaz de combater a senilidade e prolongar a vida. Essa esperança não me parecia desinteressada, porque o homem que na mocidade tivera tão sérios namoros com a morte, agora se apegava com amor à vida. Suas preferências literárias, no entanto, continuavam a apontai na direção do homem solitário. Uma de suas figuras de ficção prediletas era o Dr. Stockmann, a personagem ibseniana de Um Inimigo do Povo, que acabou convencido de que o homem mais forte é o que está mais só. João Raymundo um dia me deu de presente o Drames Philosophiques, de Renan. Admirava Próspero, o sábio e justo Duque de Milão, o qual, vendo-se destronado por uma conspiração estúpida que levara ao trono Calibã, a encarnação do mal e da brutalidade, pediu que lhe tirassem tudo, tudo, menos o direito de rir-se daquela farsa.

Achava João Raymundo que o sistema político ideal é o governo dos mais capazes, das elites intelectuais, científicas e técnicas. Quanto à Democracia, recusava aceitar como satisfatório um sistema político em que a verdade está sempre com a metade do eleitorado mais um voto. "Numa democracia" — ilustrava ele o seu pensamento — "a opinião de dois semi-analfabetos que mal sabem assinar o nome, vale mais que a dum Bertrand Russell".

"Amigo velho" — costumava ele me dizer — "só há uma espécie de intolerância que me parece justa: é a intolerância contra a intolerância".

Nos primeiros anos de novecentos e trinta ele veria com impaciência a Alemanha de Hitler rearmar-se, e ficaria perplexo ante a inércia e a indiferença das "democracias ocidentais". Não tinha nenhuma simpatia pelo pacifismo de Ghandi e achava que contra a violência só existe uma arma eficaz, que é a própria violência. Deflagrada a Segunda Grande Guerra, depois da resistência da Inglaterra, passou a considerar Winston Churchill um dos maiores homens do século e não tinha dúvidas em afirmar que a façanha dos ingleses quando decidiram enfrentar os bombardeios e a ameaça de invasão nazistas constituía uma das páginas mais gloriosas cia História. "Não se iluda" — disse-me num dia em que discutíamos princípios — "tudo é uma questão de homens".

No outono de 1925 João Raymundo e eu lemos juntos La Mort, de Maurice Maeterlinck. Tenho a impressão de ouvir-lhe ainda a voz pausada e clara: "// n'y a pour nous, dans notre v/e ei dans notre univers qu'un événement qui compte, c'esí notre mort. Elle est le point ou se réunit et conspire contre notre bonheur, tout ce qui échappe à notre vigilance. Plus nos pensées s'évertuent à s'en écarter, plus elles se resserrent autour o"e//e. Plus nous Ia redoutons, plus elle est redoutable, car elle ne se nourrit que de nos craintes.

Foram exatamente estas palavras que, numa síntese, me vieram à mente quando, muitos anos mais tarde, sendo João Raymundo um homem de quase setenta anos, ajudei a levar dum quarto de hospital para a câmara-ardente o corpo sem vida de meu velho amigo. O dia raiava, o céu estava coberto de nuvens escuras, mas havia um verde duma beleza indescritível na barra do nascente. João Raymundo não acreditava em Deus. Contaram-me que, pouco antes de ele morrer, alguém lhe pôs diante dos olhos um crucifixo. O meu companheiro de leituras de Nietzsche olhou longamente para o Crucificado e depois disse: "Preciso ter a paciência e a dignidade desse senhor". E agora ali eu via o senhor do Retiro dentro dum esquife, entre quatro círios acesos. Sua fisionomia estava serena. Não era a face dum morto, mas a dum homem adormecido. Na sala muitos soluçavam ou rezavam em surdina. Lembrei-me de que os homens diante dele ficavam sempre numa atitude de respeito. Mas pensei também nas crianças que, por nada saberem, tudo descobrem. Essas o adoravam, agarravam-se-lhe às barbas, entregavam-se completamente a ele. Talvez só as crianças tivessem sabido a verdade sobre João Raymundo da Silva Neto.

 

O "tio romântico", Dr. Catarino Azambuja, habitava o sobrado dos Veríssimo, onde os nevoeiros tinham curta duração, dissipados que eram pelo sol dessa região semitropical em que reinava uma simpática falta de ordem e um certo indiferentismo para com o calendário e o relógio. A dona do casarão parecia-se fisicamente com seu irmão mais velho, meu pai, e era como ele uma criatura de paixões, só que em seu caso incomensuravelmente mais constante, pois, como certas heroínas de O Tempo e o Vento, era mulher de um homem só para toda a vida. Pessoa de convívio muito agradável, graças à sua boa disposição de espírito, sua veia humorística e sua capacidade — não calculista — de fascinar quem quer que viesse a conhecê-la de perto, era, apesar de todas essas qualidades, uma pessoa desligada do mundo externo. Raramente, quase nunca, saía de casa. Pela manhã passava longas horas no quarto de vestir, diante do espelho, maquilando-se e usando para isso dum verdadeiro regimento de cosméticos, penteando-se, colocando sobre os cabelos a redinha, metendo-se nos mais finos e bonitos vestidos, enfiando meias de seda e calçando seus melhores sapatos — dando, em suma, a impressão de que se preparava para uma festa. No entanto fazia tudo isso apenas para o marido. Quando o Dr. Catarino não estava em casa, ela enchia suas horas dando — sem muita vocação para assuntos domésticos — ordens às criadas, mas principalmente lendo romances. Tenho a impressão de que devorava um livro cada dois dias.

O casal tinha dois filhos, Adriana e Rafael, que eu considerava corno irmãos. Foram esses primos queridos as primeiras pessoas a quem tive coragem de mostrar e discutir os meus escritos ainda inéditos.

Faz cerca de trinta anos que o Dr. Catarino Azambuja morreu, mas no exato momento em que escrevo estas unhas sinto sua presença aqui a meu lado, lendo o que escrevo por cima de meu ombro e rindo o seu riso manso e nasalado. Ouço seu pigarro e sua respiração cansada, de um homem que só pode contar com um pulmão, sinto um cheiro ativo de sarro de cigarro, pois neste momento ele limpa sua piteira e mancha de nicotina as páginas destes originais. Volto-me para ele e me enterneço, pois seus claros olhos estão fitos em mim com a expressão de amizade dos velhos tempos.

Como dar uma idéia de como era esse homem, fisicamente? Bem, lembro-me de que no princípio deste século uma grande fábrica de produtos químicos e farmacêuticos da França costumava distribuir como brinde, entre os médicos do mundo inteiro, uns quadros feitos por um caricaturista famoso e no qual se viam, traçados a tinta nanquim e coloridos a aquarela, figuras de notáveis clínicos e cirurgiões da França, em sua maioria homens barbudos, metidos uns nas suas brancas batas cirúrgicas e outros vestindo seus solenes fraques, com camisas de colarinho e punhos engomados. Para o menino que eu era, meu tio Catarino devia estar de direito entre essas celebridades internacionais, pois não era ele barbudo e médico e não costumava fumar com o cigarro metido numa piteira como tantos dos doutores do quadro? No entanto — achava eu — meu tio diferia daquelas sumidades da medicina, principalmente na indumentária. Era a negação do homem formal. Vestia duma maneira discreta, simples, por assim dizer, neutra. Era baixo e frágil. Cobria-lhe a palidez angulosa do rosto uma abundante barba curta e arredondada. Bigodões espessos escondiam-lhe a boca e portanto abafavam-lhe o riso, que os olhos se encarregavam de exprimir. Seus cabelos eram bastos, ondulados e dum castanho quase negro. Quem olhava para aquela face peluda e via nela um par de olhos dum cinzento-azulado — ou, se preferirem, dum azul-acinzentado, pois dá no mesmo — tinha a impressão de divisar, em meio de escuro matagal amazônico, dois inesperados lagos duma limpidez alpina.

Sempre tive mais intimidade com o "tio romântico" do que com "o tio clássico". Tratava-se de dois homens que pareciam ter apenas uma coisa em comum: o fato de usarem barba. No mais — gostos, idéias, conceitos e filosofia de vida — pareciam um a antítese do outro. (Seria a minha afeição por ambos uma espécie de síntese, a única possível?)

Depois de ler com João Raymundo trechos dum livro, famoso na época, Le Conflit, de Le Dantec, eu visitava o sobrado à noite e lá ficávamos por largas horas a ouvir música lírica — pois de 1926 a 1930 passei por uma fase de grande entusiasmo pe!a ópera — e a recitar versos parnasianos e simbolistas, ou então a comentar e mesmo a imitar teatralmente — voz, gestos, cacoetes — certos figurões ou mesmo figurinhas de nossa comunidade. Nos para mim inesquecíveis serões daquele casarão avoengo às vezes nos metíamos na pele de personagens de Eça de Queirós e representávamos cenas inteiras de Os Maias ou de O Crime do Padre Amaro. Catarino chamava a mulher de Sanjoaneira e desatava a rir. Minha tia entrava de bom grado no brinquedo. (Uns vinte anos mais tarde mandei a esses tios um exemplar de meu romance Olhai os Lírios do Campo e recebi de Catarino uma carta em que me dizia: "Bom, gostei do teu livro... mas que o Eça de Queirós me perdoe!".)

Apesar de seus momentos de bom-humor, o Dr. Catarino tinha lá os seus "burros", como dizia D. Maria Augusta, e essas irritações se denunciavam ou anunciavam por silêncios prolongados e pigarros repetidos. Como um bom "catarinologista" — modéstia à parte — eu podia descobrir pelo tom e pela duração de cada pigarro que tipo de problema preocupava no momento o meu amigo. Tanto podia ser um paciente que passava mal ou estava desenganado, como uma letra vencida no banco que ele não tinha dinheiro para resgatar. (Trabalhava muito, embora sem método, cobrava pouco de seus clientes, quando chegava a cobrar...) Podia ser também algum problema pessoal de saúde ou então... o simples hábito de pigarrear, Era um homem imprevisível nos seus humores, mas imagino eus seus bons momentos eram mais numerosos do que suas irritações. Às vezes ficava durante muito tempo de cabeça baixa, mudo, pigarreando e torcendo os bigodes. Mas, quando menos se esperava, lá estava ele a sorrir com o olhar ou a dizer alguma "barbaridade" para escandalizar alguma pessoa preconceituosa e formal que estivesse presente. Lembro-me de certo anoitecer em que cheguei à sua casa num momento em que ele estava "com o Bento Manoel atravessado". Ao ouvir minhas passadas, murmurou: "Maria Augusta, aí vem a besta do teu sobrinho...". Entrei na sala, beijei minha tia, que fez um movimento de cabeça na direção do marido, piscando-me o olho e sorrindo. Entendi a mensagem. Tinham ambos terminado de jantar. Sentei-me à mesa para tomar o cafezinho ritual. Eu analisava o pigarro do meu tio... Fosse qual fosse a sua significação, eu me sentiria derrotado se tivesse de deixar aquela casa sem fazer aquele homem olhar-me de frente e sorrir. Comecei a ofensiva, cauteloso. Contei estórias de gente de nossa comunidade,, passei depois para os boatos políticos e acabei imitando certos figurões locais. Em poucos minutos tio Catarino cessou de riscar a toalha da mesa com a unha, como estava fazendo obsessivamente desde que eu chegara. Quando por fim lhe contei a última anedota que ouvira aquele dia, ele rompeu a rir um riso que se percebia pelo sacudir dos ombros e que por fim se exprimiu vocalmente. E os "burros" do Dr. Catarino se foram...

A partir de maio — depois de 1925 — eu costumava ir à noite ao sobrado para de lá ouvir pelo rádio a transmissão que a Broadcasting Municipal de Buenos Aires fazia de óperas inteiras durante a temporada lírica do teatro Colón.

"Qual é a ópera hoje?" — "La Bohème." — "Ótimo. Quem faz a Mimi?" — "A Claudia Muzzio." — "E o Rodolfo?" — "O Gigli." — "Opa, que elenco!" E lá ficava eu no Sobrado até depois da uma da madrugada. E amaldiçoávamos o mau tempo quando descargas elétricas apagavam as vozes dos cantores ou os acordes da esplêndida orquestra do Colón, em muitas temporadas dirigida por Tullio Serafini.

Era o Dr. Catarino um poeta lírico espontâneo. Fazia versos para uso pessoal e familiar. Nunca os publicava. Tempo houve em que se entregou a escrever paródias de sonetos famosos, atribuindo-lhes a autoria aos membros mais improváveis da nossa comunidade. Certos versos em linguagem gauchesca, comentando as lides ou os pratos campeiros, ele os creditava ao velho Aníbal Lopes (um dos meus fortes era a imitação da voz pachorrenta, seca e quadrada de meu avô) tendo inventado para ele um pseudônimo: Vicente Celestino Lopes da Silva. Essas horas de brincadeiras inconseqüentes — pueris, se quiserem — eram para mim um descanso, depois de minhas lutas com os silogismos de J. Stuart Mil!.

Maragato, o Dr. Catarino fora durante certo período deputado estadual pelo Partido Federalista. Na época do ano em que a Assembléia Estadual era convocada para "aprovar" o orçamento oficial do Estado (a oposição nada podia contra a maioria republicana) o nosso Catarino arranjava sempre um modo de proferir uma catilinária contra o presidente do Estado. Terminadas as sessões, recebia os seus subsídios e imediatamente doava-os a uma instituição de caridade e voltava para casa, para a família, para a clínica.

Seu humor era às vezes sarcástico e não raro até negro. Certa vez, como eu tivesse caído de cama com febre, minha mãe chamou-o. Quando ele entrou no quarto o homem feito que eu era, sentiu o que costumava sentir o menino quando seu avô Franklin lhe aparecia. Catarino me tomou a temperatura, me auscultou, me fez perguntas — dói aqui? tem falta de apetite?, etc.... — e por fim me deu uma receita, levantou-se e se foi. Minha avó Maurícia seguiu-o até à porta, perguntando: "Que é que o rapaz tem?". E Catarino, numa voz cavernosa exclamou teatralmente: "Câncer!". D. Maurícia encolheu-se toda: "Credo, minha Nossa Senhora!". À porta, chapéu na cabeça, o médico voltou-se para a velha e esclareceu, sério: "Câncer da alma!". E se foi. Voltou, porém, dentro de poucos minutos, pois tinha esquecido a sua piteira em cima da minha mesinha-de-cabeceira. Isso acontecia com freqüência. Quando não deixava a piteira por distração na casa de clientes, esquecia-a nas farmácias onde ia formular receitas. Era um fumante inveterado num tempo em que ainda não se proclamava com tanta veemência científica que fumar produz câncer do pulmão.

Voltando ao seu tipo de humor, noutra ocasião, encontrando na estação ferroviária local uma amiga com uma valise na mão, perguntou: "Para onde te atiras, mulher?". E ela, sorridente: "Pra Porto Alegre". E em voz alta, em meio da multidão que pululava na plataforma, o Dr. Catarino bradou: "Então vais a Porto Alegre para cornear o teu marido, não?". A mulher, que era uma dama de virtude inatacável, desatou a rir: "Esse Dr. Catarino tem cada uma!".

Homem sem vaidades, generoso, dotado duma coragem extraordinária, tanto física como moral, enfrentava também o governo local. Mais de uma vez eu o vi e ouvi discursar em comícios políticos de rua, atacando os donos arbitrários do poder, indiferente aos capangas façanhudos a serviço da situação e que, de revólver e facão na cintura, rondavam, rosnando ameaças, o pequeno grupo de manifestantes oposicionistas.

Como médico tinha o Dr. Catarino um olho clínico privilegiado. Um dia ele me confiou uma de suas preocupações: o excesso de trabalho impedia-o de estudar, de ler revistas e livros médicos, para ficar ao corrente dos progressos da medicina na França, nos Estados Unidos, na Inglaterra, na Alemanha.

Passou a vida a pagar dívidas, as suas e as alheias, pois sua magnanimidade levava-o a assumir muitas vezes a responsabilidade dos débitos de parentes e amigos. É desnecessário dizer que morreu pobre.

Até hoje sua figura me aparece em sonhos, de longe em longe, e para mim é sempre uma alegria reencontrá-lo nesse país misterioso e intemporal cuja entrada a gente só pode encontrar de olhos fechados pelos sendeiros sem mapa dos sonhos.

Depois da morte do marido, D. Maria Augusta veio a Porto Alegre com sua filha Adriana, que herdara do pai os belos olhos e muitas de suas idiossincrasias. Estiveram ambas em nossa casa. Minha tia mostrava para o mundo uma fisionomia serena. Não fazia drama. Estávamos em fins de outubro e ela preparava-se para voltar à sua cidade. Insisti para que ficassem mais uns dias. "Não posso, meu negro. No Dia de Finados tenho que levar umas flores para o Catarino." Pronunciou estas palavras com uma certa alegria, como uma noiva que se refere a um encontro marcado com o noivo. Embarcou de volta para sua terra e no dia dos mortos pôs flores junto do retrato do marido, no jazigo dos Veríssimo, logo à entrada do cemitério da cidade. Poucos dias depois morreu dum edema agudo de pulmão.

Alegra-me a idéia de que hoje ambos possam estar juntos, seja onde for. Para mim eles se encontram num sobrado fora do espaço e do tempo, um ao lado do outro, e ela ainda se enfeita para ele, e ele ainda pigarreia, e perde a piteira, e atende aos seus doentes, e ambos se querem à sua maneira pouco demonstrativa, e contra eles não há nada que a morte possa fazer.

 

Em 1924, como Ênio precisasse fazer seu curso ginasial, ficou decidido que iríamos todos para Porto Alegre e que meu irmão se matricularia no Colégio Cruzeiro do Sul. Consegui minha transferência da agência do Banco do Comércio em Cruz Alta para a matriz na capital do Estado.

Ora, essa tentativa de mudança foi desastrosa. Meu ordenado agora era de cento e vinte mil-réis mensais. Minha mãe encontrava pouco trabalho. Ênio custeou seus próprios estudos trabalhando na contabilidade do colégio. Alugamos um pequeno quarto numa casa de cômodos, e tínhamos uma sacada comum com os ocupantes do quarto contíguo, um casal ainda jovem, ambos pedicuros, ele com tipo de galã de subúrbio, de costeletas e dente de ouro, ela pintadíssima, de cabelos oxigenados. Viviam muito mal um com o outro, em freqüentes discussões em voz alta, das quais tínhamos de participar como ouvintes, quiséssemos ou não. Ao meio-dia a casa cheirava a repolho cozido. Sua proprietária era uma mulherona peituda, morena e espalhafatosa, dessas cujos maridos andam sempre ausentes de casa, se é que existem na realidade. Um dia fez um aborto e proclamou-o em voz alta aos quatro ventos, com certo orgulho. (Olfativamente sensível, até hoje, sempre que ouço ou leio as palavras aborto e abortar, sinto com a memória cheiro de repolho cozido.) Nossa comida vinha duma pensão, em marmita — que no Rio Grande do Sul chamamos vianda. Era péssima, mas D. Bega temperava-a e requentava-a, tornando-a suportável. Um dia caí doente, com febre alta, e como não tivéssemos dinheiro suficiente para pagar os serviços de um médico, recorríamos a uma farmácia vizinha, cujo prático escutava a descrição que D. Bega lhe fazia de meus sintomas, de sorte que o homem pôde medicar-me a longa distância com suas poções. Restabelecido, procurei e encontrei um emprego na agência duma grande companhia nacional de seguros, onde fiz dois bons amigos, mas fui malquerido e maltratado pelo caixa, um tipo dispéptico, surdo e mesquinho, com cara de chefe tártaro. E lá estava de novo o leitor de Anatole France e J. Stuart Mill copiando cartas e levando-as ao correio, ao mesmo tempo que agüentava as impertinências do caixa, que às vezes o fazia varrer o soalho do escritório.

Enio continuava o seu curso, sem problemas. Agora tudo nele indicava o homem que um dia viria a ser: decente, bondoso, duma discrição a toda a prova, um tanto introvertido, mas por outro lado senhor duma capacidade invulgar de fazer amigos.

Em 1925 voltamos para Cruz Alta, minha mãe, Maria e eu, todos de crista meio caída. Vínhamos duma derrota. Era o ano em que Prestes e seus revolucionários andavam pregando sustos em várias localidades vizinhas. Encontrei soldados legalistas fazendo trincheiras nos cruzamentos das ruas próximas à In-tendência Municipal. Fui readmitido no Banco Nacional do Comércio, dessa vez como chefe da Carteira de Descontos. (Os mesmos cento e vinte mil-réis por mês). O manequim, que nos tinha acompanhado na malograda aventura porto-alegrense, retomava seu lugar com a fita métrica, a tesoura e a Singer na casa do velho Aníbal.

Na agência bancária meus devaneios artístico-literários eram constantemente interrompidos por alguns dos comerciantes que traziam dez, quinze, vinte duplicatas para descontar. Creio que ainda hoje me "lembro" do cheiro de suor de cada cliente importante, do perfume que usava ou do tom da voz de cada um. O gerente da filial, um homem de aparência serena e meio vaga, fumava palheiro e falava em surdina. O contador à noite tocava piano no cinema local. Tive com ambos boas relações, o que não me impedia de tirar às pressas o papel que tinha no cilindro da Underwood quando algum deles se aproximava inesperadamente da minha carteira. É que eu não trabalhava para o banco, mas fazia literatura "de minha lavra".

Esperamos em Cruz Alta um ataque das forças de Luiz Carlos Prestes. Em vão! Elas passaram de largo.

Lembro-me de que por aquela época acordei para uma realidade que me deslumbrou, fazendo-me esquecer os fracassos financeiros. Eu ia completar vinte anos!

 

O ano de 1926 representou na minha vida de moço uma espécie de interlúdio faunesco ou, melhor, sebastianesco. ("Quem herda não furta" — murmuravam as comadres.) Naquele tempo éramos todos Rodolfos Valentinos, com olhares lânguidos e cabeleiras besuntadas de brilhantina. Tive um caso de amor tempestuoso com uma forasteira morena, professora, uns quatro ou cinco anos mais velha que eu, fisicamente atraente, muito erudita e inteligente. Por uma dessas doidas voltas da vida, costumávamos encontrar-nos na casa mesma em que o velho chefe político republicano de Cruz Alta, agora sem prestígio e já senil, vivia os últimos dias de sua existência. A fera tinha perdido os dentes e as unhas, passava os dias em seu quarto, soltando de quando em quando agudos pigarros que mais pareciam brados de comando — Fogo! Inimigo não se poupa! Degolem todos! — Nos seus delírios voltava freqüentemente às guerras e revoluções do passado. À noite, às vezes, jogava pôquer com velhos correligionários e com um ou outro de seus filhos, e nessas ocasiões costumava esbravejar a intervalos, queixando-se de que estava sendo roubado. O famigerado caudilho finava-se aos poucos, leão decrépito dentro duma jaula aberta — e jaula é olfativamente a palavra adequada para descrever sua alcova. Numa outra dependência da casa, a bela moça e eu vivíamos o nosso romance. Minha mãe andava apreensiva com o caso, por dois motivos que não escondia: primeiro, porque eu era jovem demais para o compromisso do matrimônio; segundo, porque financeiramente, segundo sua expressão, eu "não tinha um vintém pra fazer cantar um cego".

A atraente forasteira era especialista em Filologia. Diante dela eu me sentia um pobre analfabeto e procurava compensar as minhas deficiências culturais com o corpo de vinte anos, que não devia ser nada extraordinário mas — que diabo! — não era também de jogar-se fora. Tinha a bem-amada uma pele morena de cigana, não "oblíqua e dissimulada" como a Capitu do mestre Machado, mas seus olhos escuros e dramáticos, esses sim, eram sem a menor dúvida "olhos de ressaca", capazes de envolver o incauto que os mirasse, e arrastá-lo para as profundezas do mar...

Finalmente nosso caso terminou. A professora foi transferida para outro colégio, em outra cidade. (Onde quer que estejas, B., obrigado pelas lições de Gramática Histórica e pelo resto.)

O jovem fauno-literato naquele ano de 1926 estava ainda sob a influência de Khayyam, que filosofava assim: Os retóricos e os sábios morreram silenciosos sem poderem entender-se sobre o ser e o não ser. Ignorantes, meus amigos, continuemos a saborear o sumo da uva e deixemos que esses grandes homens se regalem com as raízes secas. E eu bebia ávido o vinho da vida. O poeta afirmava que, rápidos como a água do rio ou o vento, os nossos dias fogem, mas que dois deles, entretanto, o deixavam indiferente: o que se foi ontem e o que virá amanhã. (Era o homem do aqui e do agora, como seria séculos mais tarde Jean-Paul Sartre e outros filósofos existencialistas.) Um pormenor curioso: a minha taça simbólica jamais estava cheia de vinho e muito menos de cerveja, pois se esse fosse o caso como poderia eu continuar censurando, embora com menos veemência, as libações exageradas de meu pai, que às vezes eu entrevia pelas janelas dos cafés, sentado a uma mesa, diante das várias garrafas que esvaziara?

Às vezes aquela vida fútil, puramente dos sentidos, me causava remorsos. Onde estavam os meus propósitos de liquidar o manequim e libertar da obrigação do trabalho a minha mãe, que pagava aquelas minhas elegantes (pelo menos assim me pareciam) roupas, gravatas, sapatos e polainas que eu usava ou, antes, exibia nas ruas e salões de Cruz Alta? Seria eu um pulha, como tantos que eu conhecia e censurava na cidade? Invocar a influência hedonista e imediatista de Ornar Khayyam seria puro artifício literário, pois estou certo de que com o poeta persa ou sem ele eu teria feito tudo quanto fiz, porque quem mandava na minha vontade era o corpo, que não fazia poesia escrita nem racionalizava seus apetites.

Por aqueles tempos tive dois companheiros inseparáveis, José Rostro de Castilhos e Pedro Véscia. Que trinca! Éramos os três empregados de casas bancárias. Véscia tinha os cabelos dum louro-esverdeado como os de seu irmão Bartolo, que me derrotara numa batalha campal da infância. Homem de poucas palavras, quando falava era de lábios apertados, de maneira quase inaudível. Castilhos, prezado e admirado amigo dos tempos do colégio de D. Margarida Pardelhas, era um sujeito de inteligência aguda e boas leituras, dotado dum senso de humor e duma mordacidade muito temida na cidade. ("O Castilhos é muito crítico" — costumava-se dizer.) Tinha bom olho para apanhar e descrever em poucas palavras o lado caricatural das pessoas e dos fatos. O satirista que me habitava, entendia-se muito bem com esse lado da personalidade de Castilhos. O que nos faltava — diga-se com justiça — era um bom espelho para que nele víssemos também as nossas próprias ridicularias. Vejo-nos claramente a caminhar ao longo da Rua do Comércio, de praça a praça, seguindo bandos de meninas — de família, fique bem claro — e dizendo em voz alta coisas irônicas ou irreverentes para que fôssemos entreouvidos por elas. A maneira como nos trajávamos então me faz rir agora: chapéus pretos e peludos metidos nas cabeças e quase tocando as sobrancelhas; camisas de tricoline nas cores mais espalhafatosas, com gravatas de tope, estreitas como cordões de sapato; casacos cintados, de um botão só; calças afuniladas, que nos davam um trabalho danado para vestir; sapatos de bico pontiagudo... E lá nos íamos, rua em fora, dando volta às praças, três "belos Brummels" municipais. Costumávamos dar alcunhas nem sempre lisonjeiras às moças da cidade, "Viste a Gazela Desengonçada?" — "Lá vem vindo o Presunto da Colônia." — "Faz tempo que não vejo a Baixinha do Olho de Peixe." Como uma das beldades locais tivesse cortado o cabelo à Ia garçonne e andasse com o pescoço raspado a navalha, passamos a chamá-la de Mlle Cou Rase. E havia ainda os bailarecos no Comercial e na sede social do S. C. Guarani, aos quais comparecíamos com nossas melhores fatiotas, nossas mais resplendentes gravatas, cabelos lambidos, fazendo boquinhas, tratando de dançar com uma riqueza de passos e uma precisão de ritmo os foxtrotes e o "passo de camelo", sempre atentos à última moda americana em matéria de danças. Que trio de felizes cretinos! (Mas triste de quem na idade madura ou na velhice não tem desses pecadilhos a contar aos filhos e aos netos!)

Quando uma forasteira interessante chegava à cidade, ficávamos alvorotados, pelo menos Castilhos e eu, porque Pedro Véscia, esse foi sempre fiel à esbelta e loura namorada com a qual viria a casar-se anos mais tarde. Mas o primeiro a dançar com a forasteira era sempre o Nico Brenner que, além do prestígio de sua presença e dum respeitável nome de família, era aluno do Colégio Militar de Porto Alegre.

 

Cabe aqui uma pergunta. Como era Cruz Alta em 1926? Ora, era uma cidade sem rios nem lagoas, plantada em cima dum coxilhão, a quase quinhentos metros acima do nível do mar e dotada de bons ares. Podia-se dizer que seu eixo era a Rua do Comércio, que começava na frente da estação ferroviária e, indo de praça a praça, chegava até umas ruelas baixas e esbarrondadas, onde terminava. De lá avistavam-se as suaves coxilhas em derredor, com seus capões azulados e suas estradas e barrancos, que mais pareciam talhos — ora dum vermelho de sangue de boi, ora dum amarelo-alaranjado — abertos naquelas terras vestidas dum verde vivo e lírico. Umas três ou quatro ruas paralelas ou transversais à do Comércio tinham certa importância. Na sua maioria não estavam pavimentadas de paralelepípedos, de sorte que quando sopravam ventos erguia-se do solo (creio que já contei isto, não?) uma poeira avermelhada que deixava, muros, casas e caras um tanto encardidos.

Nunca acreditei muito na precisão das estatísticas, de sorte que me sinto mais ou menos à vontade para, a olho nu e desta distância no tempo, dizer que em 1926 a sede do município teria de dez a doze mil habitantes, quando muito. A gente? Afável, acolhedora, isso sem prejuízo de seu comovente bairrismo. A água que bebíamos em geral nos era trazida às residências em pipas numa carroça puxada por matungos ou petiços. Brotava ela duma fonte límpida chamada Panelinha. Havia até um ditado segundo o qual o forasteiro que bebesse dessa água ficava preso ao sortilégio da cidade, voltando muitas vezes a visitá-la ou, mais provavelmente, fixando residência nela.

Cruz Alta era uma comunidade típica do Planalto Médio do Rio Grande do Sul, em que predominava uma população de remota origem portuguesa e mais os caboclos de "pêlo duro", sim, e ainda descendentes dos tropeiros paulistas que no século passado vinham a cavalo de Sorocaba comprar mulas para depois revendê-las na feira de sua cidade natal. Às vezes deixavam em Cruz Alta filhos espúrios mas, na maioria dos casos, provada a água da Panelinha, encantavam-se com o lugar e lá fixavam residência e constituíam família. Quanto a elementos de origem estrangeira, creio que havia um número igual de italianos, alemães e seus descendentes. O comércio local? Medíocre. Cruz Alta era um município agropastoril relativamente pobre, sem grandes estâncias dignas de nota. Psicologicamente o homem dessa região do Rio Grande do Sul se parece um pouco com o mineiro na sua ausência de fanfarronice e teatralidade. Mas, diferente do mineiro, é expansivo, sem desconfianças, embora de menor densidade psicológica. (É bom ser ficcionista, pois se eu fosse sociólogo, etnólogo ou qualquer outra coisa terminada em ólogo, não estaria fazendo tantas afirmações levianas.) Mas voltemos a Cruz Alta. Indústria? Pequena e sem importância, talvez com exceção da chamada "colônia alemã" de Neu Würtemberg, que com o tempo acabaria desmembrando-se de Cruz Alta para constituir um município autônomo, sob o nome de Panambi.

O clima? Frio e seco no inverno, muitos ventos, algumas visitas do minuano, hóspede nada agradável, mas excelente assunto para conversação. Verões amenos, com noites perfumadas e tépidas, exceção feita aos dias bochornosos em que sopra o irritante vento norte. Primavera escabelada, flores de pessegueiros e de laranjeiras nos pomares, doces perfumes no ar, céus incertos, aguaceiros que não anunciam com antecedência a hora em que vão irrigar a cidade. O outono, cuja beleza só vim a descobrir por acaso num dia de maio e névoa dourada, nos campos do Retiro, cheirava a mel, e a mim me deixava amolentado e meio tristonho, tendo por outro lado uma utilidade prática pelo menos: a de induzir-me ao sonho e à fantasia, ajudando-me a conceber contos e novelas que em geral eu escrevi;» no inverno, com dedos duros de frio.

Vida social? Como já disse em passadas páginas, o Clube Comercial era o reduto da burguesia local. No plano político, a rivalidade entre pica-paus (republicanos) e maragatos (federa-listas). Esse antagonismo começava já a declinar em 1926, tornando possível a Frente Única três anos mais tarde. Mas o grande antagonismo em Cruz Alta era o que existia entre os dois clubes de futebol locais: o S. C. Arranca e o S. C. Guarani. Partidas violentas, freqüentemente interrompidas por brigas entre os torcedores, que chegavam a "vias de fato" (como dizia o jornal da terra), revólveres arrancados, facas tiradas das bainhas. E sempre infindáveis bate-bocas em que se punha em dúvida a fidelidade conjugai de dezenas, talvez de centenas de honradas mães de família.

Um hábito da cidade — não só de Cruz Alta, é verdade, mas de quase todos os outros burgos do Rio Grande — era o de ficarem senhoras e senhoritas das mais variadas idades longo tempo debruçadas em suas janelas, "olhando o movimento da rua". Minha tia Rosita, esposa de Americano Lopes, era uma dessas janeleiras. Eis uma personalidade que merecia um romance. Extremamente simpática, era duma malícia e duma viva-cidade pitorescas. Seus olhos pareciam dotados dum aparelho de raio-X capaz de ler o pensamento e os sentimentos alheios. Não lhe escapava nada. Conhecia como ninguém a vida pública e a secreta da sua cidade. Devo-lhe muitos momentos divertidos, muitas estórias dignas do Decameron. Eu costumava freqüentar a sua casa, onde era tratado como um filho, e lembro-me com saudade dos meus almoços e jantares na residência dessa tia afim, à qual nunca consegui esconder nenhum segredo, pois para ela eu era um livro aberto e — naquele ano de 1926 — um romance "impróprio para menores", como muitos dos que eu viria a escrever anos mais tarde.

Mas voltemos à cidade. A arquitetura? Incaracterística. Sejamos francos: feia. Não podia haver relíquias dos tempos coloniais simplesmente porque Cruz Alta fora fundada em 1834. Creio que o único monumento tombado pelo Serviço do Patrimônio Histórico Nacional é um portão de azulejos, em estilo colonial português, situado em certo trecho da rua principal, dando para a escada dum jardim em ruínas, ladeada de estátuas — algumas mutiladas, outras desaparecidas.

Cruz Alta sempre se distinguiu por suas excelentes bandas de música militares. E o fato de contar com um regimento de infantaria e outro de artilharia montada era de grande importância para sua economia. De vez em quando chegavam à cidade jovens oficiais do exército para servir na guarnição federal. (Despeitados, nós lhes chamávamos "Fordinhos".) As moças cruzaltenses ficavam alvorotadas, pois em sua maioria tinham a fascinação da farda. E nós, os galãs locais, éramos então postos de lado; para usar uma expressão futebolística de nossos dias: íamos para o "banco dos reservas". Muitos dos novos oficiais acabavam casando-se com moças da terra, embora alguns deles tivessem deixado noivas com aliança no dedo em outras cidades.

Em 1926 começava para nós a Era do Rádio. Esse foi também o ano da morte de Rodolfo Valentino, que deixou entre a população feminina incontáveis viúvas espirituais, ridicularizadas por alguns rapazes irreverentes. Nós, os da trinca, recebemos com certa tristeza e reverência a notícia do passamento de nosso patrono.

 

Meu primo-irmão Rafael Azambuja por aquela época fazia o seu curso ginasial no Mackenzie College, em São Paulo, e costumava passar no Sobrado as férias de verão. Nossas relações a princípio haviam sido mornas, quase frias. Separava-nos um muro de gelo que da minha parte tudo fiz para derreter, mas sem resultado positivo. Teria ele ciúme — pergunto-me agora — do homem que sua mãe tratava como a um filho e que portanto era seu rival? (Entre 1905 e 1907, quando os Azambuja, recém-casados, não tinham ainda filhos, minha tia Maria Augusta costumava pedir-me emprestado a minha mãe, assim como uma menina pede o boneco da amiga para com ele brincar.)

Cinco anos mais moço que eu, Rafael era um rapaz empertigado, caminhava pisando duro com os saltos dos sapatos, não escondia o seu desprezo para com a gente da terra, que procurava por todos os meios escandalizar. Foi o primeiro sujeito em Cruz Alta que saiu à rua sem chapéu, chocando os nativos. "Que desaforo!" — exclamavam as comadres. — "Que desrespeito para com as famílias!"

Ávido leitor (já sabia bem o seu Francês), Rafael gostava de discutir graves problemas do espírito. Era um pouco rígido e assertivo na maneira de opinar e dialogar.

Quando nossas relações humanas melhoraram a ponto de nos tornarmos amigos fraternais, costumávamos andar em polêmicas peripatéticas pelas ruas da nossa cidade, discutindo a imortalidade da alma — na qual eu não acreditava mas que Rafael aceitava, sob a influência de recentes leituras sobre o assunto. Do pai herdara a inteligência e umas poucas das "peculiaridades" que o tornavam naquela comunidade serrana um tipo "original". Da mãe lhe viera também a vivacidade mental e mais a capacidade de fazer amigos, que no rapaz foi aumentando com o passar do tempo e de suas viagens e convívios em cidades como o Rio e São Paulo. Tanto do pai como da mãe, Rafael herdara a coragem nas opiniões, as quais nunca deixou de manifestar livremente.

Quando se tornou homem maduro, passou a acreditar na vida e na capacidade do ser humano de traçar seu próprio destino.

 

Mas voltemos à adolescência desse primo que recordo com ternura e que viria a ser um dia o padrinho de minha primeira filha. Sempre que visitava Cruz Alta nas férias de verão, trazia-me de presente livros em Francês e Inglês. Era um entusiasta de Rudyard Kipling — o que é um indício de muitas coisas como o apreço à bravura, à audácia, à capacidade do homem de construir e manter impérios. Pude acompanhar de perto todas as transformações na maneira de pensar e agir do meu primo e companheiro. Era o que se poderia chamar de um homem moderno: já não pisava duro, de nariz no ar, para escandalizar seus conterrâneos nem procurava chamar a atenção pública por meio de extravagâncias. O que ele procurava, isso sim, era dar passadas largas a fim de acompanhar o progresso em todos os setores da vida. Sabia escrever e raciocinar muito bem, mas nunca pensou em dedicar-se à literatura. Era, antes de mais nada, um homem de ação, um magnífico "relações-públicas", num tempo em que este termo ainda não era usado entre nós. Acreditou sempre no futuro do Brasil e ele próprio costumava lançar longe o dardo de seus bem arquitetados sonhos. Desde mocinho revelara uma grande generosidade, dessas que se manifestam nas menores coisas. O exemplo que vou dar parece fútil mas tem no fundo uma grande significação. Nos bailes era seu costume dançar com as moças mais feias ou impopulares, dessas que em geral passam a noite a "fazer crochê". Rafael enlaçava a jovem, saía a rodopiar pelo salão, a dizer-lhe coisas agradáveis, fazer-lhe elogios à beleza ou à elegância — em suma, tornava-a feliz.

Quando, muito moços, saíamos juntos em nossas caçadas noturnas e avistávamos duas mulheres, pouco importava a Rafael ficar com a menos bonita, contanto que me tocasse a que mais me agradava. Cabia-me sempre o direito de escolher. Lembro-me da época em que o Dr. Catarino comprou o primeiro automóvel Chrysler que apareceu em Cruz Alta, um carro "de cidade grande" que chamava a atenção popular. Os caçadores noturnos tinham agora um belo veículo para suas aventuras eróticas. Como ainda nos recusássemos a entrar nos bordéis, sempre que sabíamos que novas gazelas ou corças haviam enriquecido a ménagerie das madamas dessas casas, fazíamos todas as combinações secretas necessárias e a certa hora da noite roubávamos as meninas pelas janelas, à maneira mais romântica, e as levávamos no Chrysler para os arredores da cidade, onde fazíamos o amor ao ar livre, sob a lua de Émile Verhaeren, que era exatamente a mesma de Catulo da Paixão Cearense.

Rafael Azambuja sempre se trajou com um bom-gosto impecável. Nos últimos anos de sua vida, resolveu voltar a atenção e a energia para o norte do Estado do Paraná e lá fundar uma cidade — o que fez — comprando terras a um sujeito de maus bofes que ele, Rafael, na sua boa-fé, julgava seu amigo leal. Organizou o loteamento da terra e arruou a cidade com o maior entusiasmo e esperança... Quando nos encontrávamos, ele me expunha seus planos para o futuro: novas cidades, a fundação dum banco, a construção dum grande edifício...

Um dia o "amigo" que lhe vendera as terras apareceu para exigir-lhe um reajustamento de preços. Rafael negou-se a concedê-lo. O negócio estava feito... e pronto! O outro então preparou a sua desforra e certa tarde esperou Rafael no saguão de um banco e meteu-lhe vários balaços de revólver no corpo, matando-o quase instantaneamente.

De uma das janelas de minha casa posso avistar agora o cemitério onde seu corpo foi sepultado. Não sou, nunca fui um visitador de sepulturas. Rafael Azambuja, como tantos outros amigos, como a minha própria mãe, na realidade não se encontram em seus túmulos. De certo modo, com maior ou menor intensidade, continuam ainda vivos dentro de mim. São figuras queridas de meu passado. Por um desses milagres da memória, eu os tenho sempre a meu lado. Na minha opinião o que importa mesmo não é homenagear os mortos, levando-lhes regularmente flores às sepulturas, pois isso é formal e fácil. O que me parece da maior importância é tratá-los bem, com amor se possível, enquanto estão vivos.

 

                   A Segunda Farmácia

O ano de 1926 trouxe uma grande mudança para a minha vida. Antes, porém, preciso escrever algumas palavras sobre uma pessoa que na verdade merecia uma biografia ou um lugar de destaque como personagem dum romance. Chamava-se Lotário Müller, era um homem pouco mais moço que meu pai, de quem fora companheiro de infância, adolescência e maturidade. Descendia de imigrantes alemães, era um hábil marceneiro, mas abandonara por completo a profissão que herdara do pai. Espécie de "agregado sentimental" da família Veríssimo, Lotário não tinha profissão certa. Dava a impressão de não fazer nada, mas a verdade é que fazia muitas coisas avulsas que não davam na vista, pois era um homem destituído de ambições materiais e sem nenhum apreço pelo dinheiro. Metodista, solteirão inveterado, dono de pequena casa própria, fortalhão, cara larga, cabelos ralos e louros, pele alva, boca de lábios finos, o nosso "alemão" era homem de leituras ecléticas, mas em geral bem informado. Sempre o achei um companheiro muito agradável e um de seus prazeres era contar estórias anedóticas de missionários metodistas, em geral americanos, o que fazia com as mãos trançadas às costas e balançando o corpo para cima e para baixo, apoiado ora na sola dos pés, ora nos calcanhares. Muito tarde — mas não tarde demais — descobriu sua verdadeira vocação, que era a Medicina. Como vivesse na farmácia de meu pai, observando o trabalho dos médicos, e como ele próprio os ajudasse nos curativos, acabou transformando-se numa espécie de curandeiro, exercendo essa atividade entre os pobres, dos quais nada cobrava, aplicando injeções e tratando de casos sem maior gravidade. Tinha por todos nós iniludível afeto, o que não o impedia de ser um crítico mordaz de nossos erros e fraquezas. (Isso lhe valeu, em certos círculos, mas injustamente, a reputação de "maldizente".) Incontáveis vezes foi convidado à nossa mesa. Era uma dessas pessoas tão comuns em certas famílias, e uma de cujas funções é, em determinadas ocasiões, a de fazer as vezes de padre confessor e em outras a de servir de caixa de pancadaria aos amigos que descarregavam nele seu mau humor ocasional. Lotário em geral reagia quando o atacavam ou procuravam ridicularizá-lo. (Durante a Primeira Guerra Mundial ganhou a alcunha de lambote, expressão que correspondia, grosso modo, ao boche dos franceses.) Com freqüência limitava-se a rir de tudo isso. Era um bom psicólogo, mas desses que jamais abriram um tratado de psicologia. Sua aparência de mansuetude apostólica, entretanto, era ilusória, pois não raro Lotário Müller enfurecia-se e partia para o desforço físico.

Pois foi esse velho amigo que um dia me chamou para uma "conversa particular", cuja finalidade era discutir minha situação econômica e financeira. "Não tens nenhum futuro no banco" — disse-me. Concordei com um sinal de cabeça. O amigo prosseguiu: "O melhor negócio hoje em dia é ter uma farmácia. Dá dinheiro, principalmente o laboratório. A farmácia do Pinto está à venda. Ele pede um tanto de entrada, à vista, e o resto o comprador pode pagar em prestações mensais suaves. Podemos pedir um empréstimo a um banco. Por que tu e eu não fazemos esse negócio?". — "Mas com que dinheiro?" — perguntei. Lotário respondeu: "Tenho uns cobres economizados. Tua mãe também tem. Juntamos esse dinheiro e fazemos o pagamento inicial". Eu pensava, pensava, indeciso. O manequim um dia poderia ser destruído, dissolvido na nova farmácia num banho de ácido sulfúrico... Quem sabe?!

Lotário Müller me olhava. "Que achas?" Encolhi os ombros e respondi, vago: "A idéia me parece boa. Vou falar com D. Bega". Ele sorriu: "Já falei hoje. Ela está de acordo. Por ti ela faz tudo". Objetei: "Não entendo patavina de farmácia". Lotário tinha a resposta engatilhada: "Tomas conta da escrita, atendes ao balcão. Eu me encarrego da sala de curativos. Podemos convencer o Miguel Paoli a deixar o emprego que tem agora e vir trabalhar conosco. Não te esqueças de que ele é cria do teu pai". Fiquei calado por alguns instantes. Talvez Lotário me estivesse apresentando a oportunidade de libertar minha mãe da sua sina de trabalhar dia e noite. "Pois topo a tua idéia" — disse eu por fim. — "Quando começamos?" — O amigo sorriu: "Tem de ser imediatamente, porque há outros candidatos à compra da botica, e um deles até quer pagar tudo à vista. O Pinto está marombando porque prefere fazer o negócio conosco".

Antes de nos separarmos, Lotário disse: "Temos de assumir um com o outro o compromisso de não retirar um tostão da farmácia enquanto não pagarmos as dívidas da compra. Eu viverei de minhas injeções e curativos". Uma idéia me veio: "E eu poderei dar lições de Inglês e Literatura".

 

Um dia no princípio da casa dos vinte, encontrei-me atrás do balcão duma farmácia, na qualidade de sócio principal da firma proprietária. Era natural que estivesse um tanto perplexo ante aquela reviravolta da vida que me projetara duma hora para outra no mundo dos xaropes, emplastros, pílulas e pomadas... Não entendia patavina de remédios nem de negócios. Meu coração recusava permanecer na botica. Sempre que me vinham venetas de me livrar daquele ambiente, eu fugia para o café mais próximo para conversar com amigos: livros, discos, futebol — o assunto dependia do interlocutor. Durante o dia, de quando em quando eu consultava o relógio, esperando a hora de ir para casa, tomar o tradicional banho vespertino e enfarpelar-me para as andanças da noite. L’après midi d'un faune, porém, tinha sido curto. Eu voltara ao convívio dos livros, reduzira ao que me parecia normal as atividades eróticas e remergulhara na velha preocupação de assassinar o manequim, libertar minha mãe, "sossegar o pito", como diria D. Maurícia, e começar a escrever a sério e a publicar os meus contos. Como? Não sabia ainda. E entre um e outro freguês eu lia livros em Francês, Inglês, Espanhol, Italiano — usando do velho método de aprender errando.

Eu considerava o comércio uma atividade prosaica e vagamente imoral. Por outro lado, naquela cidade quem não era amigo íntimo, parente chegado ou remoto, me tinha conhecido "de pequeno". Todos pareciam empenhados em se fazerem fregueses da Farmácia Central. Como resultado disso, as vendas aumentavam dia a dia, os remédios voavam das prateleiras. Isso me dava a falsa idéia de que estávamos fazendo bons negócios. Era-nos possível, no princípio, pagar na data do vencimento as duplicatas emitidas contra nós pelas drogarias.

Cedo, porém, passado mais ou menos um ano, percebemos que a caixa registradora, que devia produzir um tilintar festivo de campainha, sempre que se fazia alguma venda a dinheiro, mantinha-se o dia inteiro num laconismo ou mesmo em silêncios desanimadores. O borrador, ao contrário, estava sempre aberto e se ia enchendo de lançamentos. Parecia que a população inteira da cidade tinha crédito ilimitado na casa.

Miguel Paoli — o moço que meu pai preparara e que ainda assobiava o Carnaval de Veneza — havia sido convocado para tomar conta de nosso laboratório. Do ponto de vista técnico, pois, estava tudo bem: tínhamos conosco o melhor prático de farmácia da cidade. Miguel, entretanto, homem de coração de açúcar, não sabia dizer não a ninguém. E como a certa altura de nossas dificuldades financeiras houvesse recebido ordem de cessar as vendas a crédito — a não ser aos raríssimos fregueses que costumavam pagar suas contas pontualmente — o prático anotava num caderno secreto de sua invenção o nome das pessoas a quem vendia drogas fiado. De tempos em tempos reuníamo-nos, Lotário e eu, em conselho e, vendo o cofre vazio, lendo os avisos de bancos e lembrando-nos da data de vencimento de duplicatas, tomávamos decisões drásticas... verbalmente. (Todos tínhamos os nossos pecados escondidos.) Decidíamos: "De hoje em diante não se vende nem mais um tostão a crédito. Combinado? Combinado!". Ordens eram expedidas aos empregados. Pintávamos letreiros em um quadro de cartolina branca: Fiado? Só amanhã. Mas o diabo era que todos os dias passaram a ser amanhã, e o delírio creditício continuou...

 

Durante 1927 apareceram-me vários alunos de Inglês e Literatura. Ao saber disso, uma contraparente minha murmurou sorrindo, na minha cara: "Em terra de cego quem tem um olho é rei...". Sorri amarelo. Mais tarde cheguei à conclusão de que havia uma dura verdade no que ela dissera.

Um homem que hoje é um advogado muito conhecido na cidade onde exerce sua profissão, me disse que precisava aprender Inglês em dois meses para fazer exames oficiais dessa matéria em Santa Maria, perante não me lembro que banca. Fui-lhe franco: "Não aprenderás Inglês nem em dois anos, mas não é impossível que eu te possa preparar para esse exame". Começamos a trabalhar. Fiz meu aluno decorar um vocabulário básico e depois escrevi a máquina, em duas folhas de papel almaço, as regras mais importantes da gramática inglesa e entreguei-as ao aluno, recomendando: "Aprende tudo isto de memória. Não creio que o God inglês te proteja no exame, mas estou certo de que nosso Deus poderá dar-te uma boa ajuda... tu sabes, brasileiro é brasileiro". O rapaz partiu para Santa Maria, enfrentou a banca e conseguiu ser aprovado em Inglês com nota alta. Na volta contou-me: "Caiu-me no exame quase 95% do que escreveste naquelas folhas de papel!". (Que William Shakespeare nos perdoe e que o velho Prof. Lindau Ferreira não me queira mal por tudo isso!)

 

Se a Farmácia Brasileira de meu pai fora das mais estranhas de que tenho notícia, a nossa não lhe ficava muito atrás. Não me seria possível registrar com minúcias os dramas, comédias e farsas de que nossa botica foi teatro — e teatro é a palavra exata.

E ainda hoje, recordando aqueles dias, nossos erros, leviandades e falsas esperanças, não posso explicar como uma casa de comércio tão mal administrada como aquela pôde durar quase quatro anos!

Tempo houve em que não eram apenas os fregueses da botica que recusavam pagar suas contas. Os meus próprios alunos começaram a achar que um proprietário de farmácia bem podia conceder-se o luxo de dar-lhes lições gratuitas — e também não me pagavam.

Quanto a mim, preferia ler ou fazer literatura atrás do balcão a vender remédios ou discutir com os fregueses suas dores, disenterias, tosses ou blenorragias. Continuava a ler obras — principalmente romances — em Inglês, nas edições Tauchnitz, publicadas em Leipzig, Alemanha, avós talvez do livro de bolso de nossos dias. Ler um texto em Inglês para o "professor" dessa matéria na cidade dos cegos era como atravessar um rio pisando em alpondras, isto é, passando por cima de palavras e frases para ele desconhecidas e cujo sentido ele tinha preguiça de ir procurar nos dicionários.

Alguém me presenteou com um volume da Salomé, de Oscar Wilde, na sua versão inglesa, e eu não só li essa peça com relativa facilidade (o original, como se sabe, foi escrito diretamente em francês) como cheguei a traduzir por escrito o livro inteiro para a nossa língua. Ah! Como me entusiasmaram suas requintadas ilustrações a bico de pena e nanquim de Aubrey Beardsley! Outra descoberta que me excitou foi a de Bernard Shaw. Com Tagore e Shaw eu alimentava por um lado o poeta e por outro o satirista, dois velhos inquilinos de meu ser, num convívio aparentemente impossível. Creio que foi por essa época que resolvi a minha dicotomia, graças a Aubrey Beardsley. Concluí que jamais viria a ser um bom desenhista, isto é, um criador. Se havia para mim alguma esperança, essa estava no quadrante das letras e particularmente no da ficção. No entanto eu insistia em apenas traduzir. Era ainda uma atitude de caramujo. Recusando produzir literatura própria, eu nada .mais fazia que buscar proteção à sombra de nomes literários consagrados. De resto, refletia eu, quem no mundo poderia interessar-se pelo que eu viesse a criar, pois já chegara à firme conclusão de que me faltava talento para a poesia e carecia de cultura para o ensaio. Restava-me tentar a ficção. Escrevia, lá mesmo na farmácia — mas nunca publicava — contos e novelas, nos quais sentia sempre a presença espectral, ora de Machado de Assis ora de Eça de Queirós — dois poderosos pólos entre os quais hesitava a minha ambivalência literária.

Quando minha mãe me insinuava que eu devia publicar meus escritos secretos no jornal local, eu repelia a idéia, quase indignado. O "literato" nas cidades pequenas sempre foi uma espécie de "idiota da aldeia", sujeito olhado com certa ironia e piedade pelos homens "normais", espécie de bicho ridículo e inútil. Eu refletia assim: "Se algum dia alguém apontar para mim na rua e disser: — Aquele cara que lá vai é metido a literato — eu morro de vergonha". Era por causa de idéias dessa natureza que eu me entrincheirava atrás dos volumes de meus autores preferidos na época. E entre eles estavam, além dos já mencionados, Anatole France, Francis Jammes — o suave poeta e prosador que dizia a Deus que, quando morresse, queria ser levado para o Céu na companhia de seus amados burricos dos Altos Pireneus — Norman Douglas, o romancista satírico, que me chegou num volume da Modem Library, de Nova Iorque, com o seu South Wind, e mais umas "namoradas" inglesas que tive, graças à Tauchnitz, e cujos romances ou contos mais tarde seriam traduzidos para o Português pela Livraria do Globo, por minha sugestão: Katherine Mansfield, Clemence Dane, Margaret Kennedy... Sim, andei às voltas também com um excelente ficcionista, hoje injustamente esquecido, Maurice Baring, autor, entre outros romances, de Daphne Adeane. G. K. Chesterton entrou também um dia na farmácia com o corpanzil coberto por um cavour como o de meu avô Franklin Veríssimo. Não comprou nada mas me "vendeu" o seu The Man Who Was Thursday, que li com extrema dificuldade.

Da grande biblioteca francesa de meu pai pouco ou nada restava. E por falar em Sebastião Veríssimo, eu passava dias, semanas sem vê-lo. Mas acho que vale a pena contar uma estória em que ele foi a figura central e que se desenrolou naquele tempo...

 

Princípios ou meados de 1928? Não me lembro, e o calendário aqui não importa. Ao se aproximarem as eleições municipais de Cruz Alta, Getúlio Vargas exercia as funções de presidente do Estado, mas Borges de Medeiros continuava a ser o chefe do Partido Republicano Rio-Grandense. Para evitar uma cisão na família republicana cruzaltense, pois havia dois candidatos a intendente, ambos do partido situacionista, o Dr. Medeiros resolveu o impasse escolhendo o seu candidato, um tertius, que no caso foi o Eng. Pedro Paulo Scheunemann, alto funcionário da Secretaria de Obras Públicas. As duas facções republicanas acataram a decisão de seu cacique, e o Dr. Scheunemann foi eleito. Chegou a Cruz Alta com todo um séquito em que havia professores, advogados, médicos, engenheiros, secretários, enfim, homens de sua confiança. Tomou posse do cargo e começou a trabalhar sem tratar muito de política (ou será que a memória me falha?), cuidando mais da administração do município. Cedo percebeu que a oposição era composta dos melhores elementos da comunidade (ou me engano de novo?) e entrou então numa espécie de idílio com aqueles que haviam votado contra ele. Passado algum tempo, a câmara municipal, em sua grande maioria composta de republicanos, começou a criar dificuldades para o intendente, e fazia isso com um encarniçamento que aumentava na razão direta do aumento da simpatia da oposição pelo governo do Eng. Scheunemann, e' vice-versa. Chegou porém um momento em que, sentindo que os conselheiros criavam insuperáveis embaraços à sua administração, o novo intendente decidiu ir a Porto Alegre entender-se pessoalmente com o Dr. Borges de Medeiros. Ora, para abandonar por alguns dias o cargo, precisava, segundo dizia a amigos, deixar em seu lugar um homem capaz de "agüentar a mão" até que ele retornasse.

Enumerava as qualidades que seu substituto devia possuir: "Tem de ser cruzaltense e de preferência duma família tradicional da terra. E precisa ter coragem física e senso de autoridade". Alguém lhe soprou ao ouvido: "Achei o homem. É o Sebastião Veríssimo". Ora, naquele tempo meu pai vivia retraído, hospedado num pequeno hotel nos arredores da estação ferroviária, pois trabalhava então como funcionário da Cooperativa dos Funcionários da Viação Férrea do Rio Grande do Sul.

Um dia recebi na farmácia um estranho telefonema: 'Seu pai pede para o senhor vir falar com ele no gabinete do intendente". Fui. Encontrei Sebastião Veríssimo sentado atrás duma vasta mesa cheia de papéis. Quando me viu entrar fez uma careta cômica e disse: "Pois aqui estou eu feito intendente de Cruz Alta!". Apertei-lhe a mão, sentei-me e ele me contou toda a intriga. Sua função principal era proteger a retaguarda do Eng. Scheunemann, pois os membros da câmara municipal queriam fazer uma sessão para declarar que o intendente eleito abandonara o cargo, e requerer por isso o seu impedimento... "E agora?" — perguntei. "Bom" — respondeu meu pai — "nenhum desses filhos da puta do Conselho me bota o pé aqui dentro da intendência. Vou manter guardas na porta, nos corredores, nas escadas, dia e noite, até que o Eng. Scheunemann volte •e traga a solução do chefe do seu partido. Mas eu te chamei, meu filho, porque preciso comprar uma roupa decente e quero que me sirvas de fiador. Já escolhi fatiota, chapéu e um par de sapatos na loja do Carlan".

 

Naquela noite Sebastião Veríssimo, envergando o trajo novo, bengala pendurada na dobra do cotovelo do braço esquerdo, desceu a Rua do Comércio para ir ao seu café favorito tomar as suas habituais cervejas pretas. Atrás dele, a uma distância respeitosa, caminhava a sua ordenança, um soldado da polícia municipal.

Estava ele, horas mais tarde, ainda a saborear as suas "negritas" a uma das mesas do café, quando algo lhe fez "bater a passarinha". Ergueu-se rápido, tomou um carro e tocou para o edifício da intendência. Entrou de surpresa e encontrou todos •os guardas adormecidos. Furioso, acordou-os a bengaladas, declarou-os presos, telefonou para o quartel da polícia, pediu reforços, meteu os soldados dorminhocos num automóvel e trancafiou-os na cadeia. Aos que ficaram, ordenou: "Não deixem ninguém entrar neste edifício. Ninguém! Se insistirem, ameacem essa canalha com os fuzis. E que nenhum de vocês me durma esta noite, senão vai pro xadrez!".

De Porto Alegre o Eng. Scheunemann mandava-lhe telegramas comunicando que suas conversações com o Chefe se procediam satisfatoriamente, e que breve ele voltaria para Cruz Alta prestigiado pelo chefão.

Sebastião Veríssimo mandava pregar os telegramas num quadro-negro, à porta do edifício da intendência, e os anunciava fazendo estrondar foguetes. Em breve, grupos de curiosos juntavam-se para ler o despacho. Um dia um sujeito que desejava a desgraça do intendente eleito, leu um desses telegramas e, não percebendo que o intendente interino estava junto da porta, disse em voz alta: "A intendência agora está entregue às putas". Sebastião Veríssimo, vermelho de cólera, abriu caminhe a cotovelaços por entre a pequena multidão e lavou a bofetadas a cara do homem que acabara de insultá-lo.

Dois dias depois chegava de Porto Alegre um longo telegrama em que o Eng. Scheunemann explicava ao seu substituto que o Dr. Borges de Medeiros, para evitar dissidências no partido, aconselhara-o a renunciar, o que ele, Scheunemann, ia fazer imediatamente. Agradecia a Sebastião Veríssimo pelo que fizera por ele, etc.... etc.... Meu pai rasgou o despacho e redigiu uma resposta lacônica ao Eng. Scheunemann. Continha apenas uma palavra: "Porco!". A agência telegráfica não aceitou o termo ofensivo. Mas meu Velho teve o seu desabafo. Não esperou a volta do intendente. Recolheu-se ao seu hotel. Passados os seus Cem Dias, Napoleão voltava à obscuridade. Mas não se tratava ainda do exílio final na ilha de Santa Helena...

 

Apareceu um dia em Cruz Alta um parente remoto do Dr. João Raymundo. (Imaginemos que suas iniciais fossem J.C.F.) Estava gravemente enfermo, creio até que desenganado por médicos de Porto Alegre. O Dr. Gabriel Miranda, competente cirurgião de nossa cidade, tentou ainda operá-lo. Mal, porém, fez a incisão, concluiu que o paciente não resistiria ao choque operatório: mais ainda, verificou que se tratava dum câncer de fígado, inoperável. O doente foi então levado da mesa de operações para a residência que o Dr. João Raymundo acabara de construir na cidade, e em cuja parte térrea naquele tempo — não me lembro exatamente por que — eu costumava passar as noites. Como os donos da casa estivessem ausentes, coube-me receber aquela pobre criatura em artigo de morte, que foi posta numa das duas camas existentes no quarto que eu ocupava, J.C.F. estava ainda sob o efeito da anestesia. Era um homem franzino, extremamente emagrecido pela doença, o pergaminho da pele amarelada como que esticado sobre os ossos. O Dr. Miranda me disse em voz baixa: "É melhor que ele morra aqui, na casa dum parente, do que sozinho num quarto de hospital". Sacudi a cabeça, numa aquiescência muda. "Meus tios estão no Retiro" — expliquei. — "Que é que eu posso fazer?" O cirurgião sorriu: "O paciente agora não é mais meu. É seu. A morte dele é uma questão de horas... Você dorme neste quarto, não é? Pois faça um ato de caridade cristã. Ninguém mais indicado para isso do que um herege... Fique fazendo companhia ao homem para que ele não morra em solidão. Até logo!". Disse estas palavras e se foi. Segui-o através do jardim, até ao portão. "Mas quando ele acordar... e as dores?" — "Não se preocupe. O clínico vem daqui a pouco aplicar-lhe uma injeção sedativa!" Ao anoitecer o paciente estava desperto e me olhava com seus olhos dum azul desbotado. Imaginei as idéias que lhe passavam pela cabeça, naquele instante. Onde estava ele? Quem era o estranho, ao pé de seu leito? Procurei tranqüilizá-lo: "O senhor está na casa do Dr. João Raymundo, que volta amanhã da estância". O doente continuava a me olhar, a boca entreaberta, a respiração dispnéica. "Sua operação foi bem sucedida" — menti. "Fique quieto. Trate de dormir e descansar. Está sentindo alguma dor?" J.C.F. continuava em silêncio, e seu olhar me perturbava.

Minutos depois o clínico apareceu, aplicou no paciente uma injeção sedativa. "Nenhuma esperança?" — perguntei-lhe, quando ambos estávamos no jardim. O médico sacudiu negativamente a cabeça. "Nenhuma. Acho que não passa desta noite." E foi-se.

Caiu a noite. Uma lua cheia cor de melão surgiu no horizonte. Era verão e soprava uma brisa tépida. Sentei-me junto da cama do agonizante. Agora podia observá-lo melhor. Parecia uma múmia, ali debaixo do lençol. Sua camisa estava aberta ao peito e eu podia ver-lhe claramente o relevo das costelas.

Sua respiração parecia piorar de minuto para minuto. Apanhei um livro, abri-o, tentei ler mas não consegui, pois os olhos do doente me perseguiam obsessivamente. Ergui-me e comecei a andar dum lado para outro. Como iria ser a minha noite? — perguntei-me egoisticamente. E como teria sido a vida daquele homem, para mim até então desconhecido, que ali estava à espera da visitante que não falta nunca, embora não costume dizer-nos o dia e a hora exata em que virá bater à nossa porta? A fragrância das flores do jardim entrava no quarto. A grande lua subia no céu. Nunca a vida me pareceu mais bela, nunca tive tanta vontade de continuar vivo como naquelas horas que passei ao pé do leito do condenado. Era como se a minha felicidade no futuro dependesse apenas da morte daquele homem.

Minha mãe me mandou um prato de comida. Mal toquei nos alimentos, pois sempre achei indecente e até repugnante misturar morte com coisas de comer. O bife vinha de um animal morto. Era carne de cadáver.

O clínico tornou a aparecer cerca da meia-noite, auscultou o doente, tomou-lhe o pulso, deu-lhe nova injeção sedativa e me disse: "É questão de horas". Quando ele ia saindo do quarto, agarrei-o pela manga do casaco e perguntei: "E quando ele morrer... que é que faço?". O médico encolheu os ombros. "Espere que clareie o dia. Já telegrafamos para os dois irmãos dele, que estarão aqui amanhã, no trem do meio-dia." Bateu-me de leve no ombro e disse: "Tenha paciência. O mais que se pode fazer por ele agora é rezar. Ah! Mas você, como o dono desta casa, é ateu". Tentei sorrir: "Não é bem assim. Sou um agnóstico". Já à porta o clínico voltou a cabeça e encarando-me, acrescentou: "Pois faça o que quer que os agnósticos costumam fazer quando dão de cara com a morte. Receba-a à porta. Mande-a entrar. E entregue-lhe o corpo do Dr. J.C.F., já que você não acredita na alma".

O quarto em que estávamos era de forma oblonga. Na parede da frente, a única janela tinha a forma dum olho de boi. No fundo havia um guarda-roupa com um espelho numa das portas. Minha cama ficava a menos de dois metros da do enfermo. Cerca da meia-noite deitei-me, vestido como estava. De repente a memória me mandou uma mensagem. J.C.F. era médico, autor da receita dum fortificante chamado Neovita. Agora eu me lembrava do rótulo do medicamento onde seu nome aparecia em letras vermelhas... Tínhamos uns três ou quatro frascos dele na farmácia.

Pouco depois das duas da manhã, estando eu com os olhos enevoados de sono, percebi que o doente entrava na agonia final. Seus dedos agarraram o lençol, seus olhos muito abertos estavam fitos no teto — não! não! seus olhos deviam estar vendo talvez faces de pessoas amadas, cenas de sua vida... De sua boca escapava-se um ronco horrível. Não sabendo que fazer de prático para ajudá-lo, sentei-me na beira de sua cama, tomei-lhe da mão e então o homem me olhou com uma expressão que eu jamais esqueci. Seus lábios se moveram como se ele me quisesse confessar alguma coisa. (A voz de minha avó me falou na memória: "Ponha uma vela acesa nas mãos dele".) Aproximei o ouvido da boca entreaberta do Dr. J.C.F., mas só ouvi um ronco estertoroso, nada mais. Ele me olhava ainda fixamente. Havia em seus olhos uma pureza, uma inocência indescritíveis. "Eu te absolvo em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo" — tive vontade de murmurar. E de repente me senti absurdamente responsável pelo sofrimento daquele desconhecido. E ficamos de mãos dadas até que ele teve uma espécie de estremecimento e de súbito ficou imóvel, a cabeça caída para um lado. A pressão de sua mão na minha afrouxou. Levantei-me, arrepiado. Chegara o fim: um alívio para ele e para mim. E nesse instante, por pensar em mim senti remorsos. Tomei-lhe o pulso: não batia. Pus a mão espalmada naquele peito emagrecido: o coração não pulsava mais. Apanhei o meu espelho de barba e aproximei-o de sua boca: o vidro continuou límpido. J.C.F. estava morto. Fechei-lhe os olhos. Era o primeiro homem que eu via morrer. Senti então que uma mudança se operava naquele quarto e em mim mesmo. Agora sim eu estava na presença dum estranho. A morte lhe dava como que uma sinistra cidadania: J.C.F era súdito dum reino diferente e certamente inimigo do meu. Olhei para o guarda-roupa e vislumbrei no espelho o reflexo do defunto. Saí para o jardim. A noite continuava morna. A lua, mais alto, no céu, parecia agora dessangrada, de tão lívida. A brisa recendia a flores de magnólia. E, caminhando dum lado para outro, fazendo-me perguntas sobre os mistérios e absurdos da vida e da morte, ouvi os galos cantarem nos terreiros e quintais, as barras do nascente clarearem e por fim o sol apareceu. E eu agradecia por estar vivo. Mas agradecia a quem? (Na minha mente apareceu a imagem do Prof. Alberto de Brito e Cunha, diante do quadro-negro onde escrevera uma letra: "O X" — dizia — "é o símbolo com que se designa a incógnita duma equação... ó Veríssimo, preste atenção!".) Mas eu não podia agradecer a X por estar vivo e ter apenas vinte anos.

 

Os dois irmãos do Dr. J.C.F. chegaram no dia seguinte, ambos "esquisitos", como os classificaria mais tarde D. Bega. O mais moço, ao ver o cadáver do irmão, pôs-se a sacudir a cabeça dum lado para outro, produzindo com a língua no paladar o ruído com que em geral exprimimos contrariedade, pena ou desgosto. Obriguei-o a deitar-se e, seguindo o conselho de D. Maurícia, fui levar-lhe um chá de folhas de laranjeira, "para os nervos". Como ele se recusasse a tomá-lo, eu mesmo lhe fui dando a infusão caseira em pequenas colheradas, como se faz com os bebês. Depois que ele descansou da viagem, ajudei-o a vestir-se, calcei-lhe os sapatos e levei-o para a câmara-ardente, armada no quarto que eu ocupava. O outro irmão do morto era grande e forte como um urso: cara larga, bigodes grisalhos e espessos, calças frouxas. Estava no pátio da casa, olhando para o céu, de dedo em riste, passando uma descompostura em Deus. "Não tenho medo de ti! Pensas que podes fazer tudo que queres? Pois vai-te à..." E soltou um palavrão. Quando me viu, sua exaltação pareceu crescer e ele jogou na face divina os piores insultos. Ali estava um caso singular. O irmão mais velho do Dr. J.C.F. não era agnóstico nem ateu. Acreditava na existência de Deus, apenas tinha com o Criador a pior das relações imagináveis.

O enterro se fez naquele mesmo dia, à tardinha. Os dois irmãos embarcaram no dia seguinte para Porto Alegre, no trem do meio-dia. O que xingava Deus nem sequer me apertou a mão. O outro, ao me abraçar, disse as seguintes palavras altamente edificantes: "Sei que você tem uma farmácia. Prometa então que daqui por diante vai vender bastante Neovita, em homenagem à memória do meu querido irmão". Constrangido, sacudi lentamente a cabeça, prometendo.

 

Na noite daquele dia estava eu deitado, lendo, na quietude da noite, quando comecei a pensar no defunto que durante o dia fora velado ali a pequena distância da minha cama. Lembrava-me do pano preto na parede, do crucifixo, dos castiçais dourados, dos círios acesos. Apaguei a luz e procurei o sono, mas em vão. De repente vi um espectro, espécie de esqueleto luminoso, passar rápido ao longo da parede, à minha frente. Estremeci. Sentei-me na cama e pensei: "Preciso esclarecer o que aconteceu, pois do contrário vou passar a acreditar em almas do outro mundo". Levantei-me. Notei que a brisa da noite havia aberto a janela oval. Olhei para o fundo do quarto, vi o guarda-roupa e então compreendi o que ocorrera. O vento, abrindo a janela, entrara no recinto, movera a porta entreaberta do guarda-roupa que refletia a luz do lampião do jardim e, no seu movimento, o espelho produzira um reflexo que passara como um espectro pela parede. Movi de novo a porta do guarda-roupa e tornei a ver o "espectro" na sua rápida trajetória. Estava tudo explicado. Voltei para a cama aliviado, mas também um pouco decepcionado. Não seria nada desinteressante ter uma estória de assombração para contar aos amigos. Não há praticamente ninguém no mundo que não tenha alguma, verdadeira ou inventada...

 

Um anoitecer, de banho tomado, barba feita, brilhantina nas melenas, vesti minha roupa azul-marinho de jaquetão, dei um nó caprichado na gravata, perfumei o lenço com loção Maderas del Oriente, de Myrurgia, apanhei a bengala de junco e me declarei pronto para descer a Rua do Comércio, rumo da casa duma nova namorada, com quem ficaria conversando por algum tempo — ela debruçada na sua janela, a uns dois metros do nível da calçada, e eu parado em cima desta, olhando para cima: o famoso "namoro de gargarejo". Meu avô Aníbal, nas suas bombachas de riscado, chinelos nos pés, chapelão na cabeça, aproximou-se de mim, mediu-me com o olhar, de alto a baixo, sorriu irônico da minha indumentária "de bundinha", e me fez algumas perguntas sobre política, creio. Fumava o velho o seu cigarrão de palha, de cheiro acre, num áspero contraste com os exóticos perfumes orientais que eu exalava. Depois de atirar-me na cara uma baforada, continuou a falar e a fumigar-me com as emanações de seu mata-rato. Franzi a testa, contrariado. O velho sorriu e, quando me aproximei apressado da porta, como quem foge, exclamou: "Bom proveito!". Lá me fui, à luz dum esplêndido crepúsculo de tons roxos, vermelhos e dourados, feliz à expectativa de rever a namorada. Já na Rua do Comércio, cujas luzes se acendiam ao longo das calçadas, ao cruzar uma transversal, muito mais pobremente iluminada que a via principal, percebi que um homem ainda jovem encaminhava-se para mim, cambaleante. "Bêbado a esta hora!" — estranhei, imaginando que o desconhecido vinha pedir-me dinheiro. Para abreviar a cena, ia já tirar a carteira do bolso, quando percebi que o rapaz tinha as mãos em concha junto do baixo ventre, e vi no côncavo delas, escapando-se dum largo talho, os intestinos da pobre criatura, tripas nacaradas e gosmentas, tingidas dum sangue que lhe escorria por entre os dedos, manchando-lhe as calças de brim. O homem caiu praticamente nos meus braços. Foi com dificuldade que consegui manter o equilíbrio e não tombar com ele nas pedras do calçamento. Pessoas que passavam vieram ajudar-me. "Levem este homem para a Farmácia Central!" — pedi, e saí em busca de um médico. Sentia o sangue tépido do desconhecido nas mãos, nas coxas, nas pernas... Olhando para a direita vislumbrei na rua transversal o vulto dum negro com uma peixeira numa das mãos. Pareceu-me cambaleante também.

Em breve formava-se pequena multidão na frente da nossa farmácia. O médico chegou para fazer os primeiros curativos e repor os intestinos da vítima no lugar que a natureza lhes destinara. Perguntei-lhe: "Será que se salva?". Ele fez uma careta pessimista e respondeu: "Duvido. Mas de qualquer modo ele tem de passar esta noite aqui. Não está em condições de ser removido para o hospital". Já a essa hora lá estavam chorosos e aflitos a mãe, o pai e as irmãs do ferido, o qual se achava estendido num colchão, numa das salas dos fundos da farmácia, atrás do laboratório. "Pegaram o bandido?" — perguntei ao delegado de polícia encarregado do caso. O homem me olhou com seus olhos mortiços e depois» murmurou: "Já sabemos de toda a estória. Não se trata de nenhum bandido, mas dum preto decente, um ferroviário, bom chefe de família. Esse rapaz fez mal à filha dele e depois negou-se a casar com ela".

O rapaz não durou mais de dois dias. Morreu numa madrugada antes do sol nascer, e seu corpo saiu da farmácia dentro dum esquife barato de pinho sem lustro.

 

E a Farmácia Central, de Érico Veríssimo & Cia., continuou na sua rotina. Mas que rotina! Coisas aconteciam sempre. Por lá passavam alguns dos tipos mais interessantes da cidade, desde os mais simpáticos aos mais sórdidos, dos mais tranqüilos aos mais badernistas, dos mais respeitáveis aos maiores crápulas. O futuro ficcionista aprendia que raramente os homens decentes, pacatos e cumpridores de seus deveres dão um bom conto ou um bom romance. O cafajeste, o "tampinha", esses são, via de regra, sujeitos pitorescos e de convívio social muito divertido, contanto que não seja permanente nem íntimo. (Devo concluir hoje que a virtude é mau assunto para a ficção?)

As mais famosas e distintas prostitutas da cidade eram nossas freguesas. Meu sócio cuidava delas, exercendo a sua medicina de charlatão com grande eficiência, sem preocupar-se muito com o pagamento dos curativos e das consultas. Essas meretrizes (oh! as palavras que a literatura tem atirado em cima dessas criaturas que exercem a mais antiga das profissões!), essas prostitutas de alto bordo andavam sempre muito bem vestidas, rosto pintado com certo exagero para a época.

Entravam no recinto da farmácia como grandes damas, eram olhadas pelos homens presentes, às vezes trocavam à socapa palavras com eles — tudo feito dentro do maior decoro. Havia também as meretrizes mais novas, algumas recém-caídas "na vida" — em suma: as "putículas" — e essas em geral usavam cabelo à Ia garçonne e vinham, refesteladinhas, comprar pó de arroz Lady ou — dependendo da categoria econômica de cada uma — Coty. Muitas delas gostavam de extratos de perfume ativo, que usavam em profusão. Pintavam o rosto tão mal que até dava pena. Às vezes, apareciam para tratar de doenças venéreas, entravam rebolando as nádegas para o consultório, no fundo da casa, e entregavam seus instrumentos de trabalho ao meu amigo e sócio Lotário, para que ele os consertasse.

Um dia, deixando a companhia de Francis Jammes e seus burricos líricos — não! o que eu lia na ocasião era a novelinha Clara d'Ellebeuse, símbolo de pureza e inocência — aconteceu-me passar pela porta aberta do consultório e o que vi lá dentro me deixou horrorizado. Em cima da mesa de operações uma menina de cor parda, que não teria mais de quinze anos, estava deitada de costas, na posição ginecológica, esperando que meu sócio começasse a fazer-lhe curativos. Sua vagina pareceu-me uma escura caverna toda cheia de estalactites e estalagmites purulentas.

Senhores casados também tratavam no maior segredo em nossa farmácia suas blenorragias e seus cancros, confiantes na discrição do Lotário. Estávamos na Era A.P., isto é, Antes da Penicilina, de sorte que se usava ainda a solução de permanganato, o mercúrio-cromo e, não raro, a tortura do nitrato de prata.

E às cinco da tarde reunia-se a roda do chimarrão, bem como na falecida farmácia paterna, e lá estava a variada freguesia. Discutia-se futebol (os dois clubes rivais da cidade eram o S.C. Guarani, de cuja diretoria cheguei a fazer parte, e o S.C. Arranca), e em época de campeonato as discussões chegavam ao ponto de se transformarem quase em desforços físicos. Falava-se muito em política municipal, estadual e federal. Contavam-se intrigas amorosas: a mulher de Cicrano andava dormindo com o Fulano, — não sabiam? — e a filha do J. tinha fugido de casa com um homem casado. Apareciam periodicamente caixeiros-viajantes de drogarias de Porto Alegre. Lembro-me dum deles, excelente sujeito, marxista convicto. E dum outro, um mulato de ar caprino, que nos assegurava que o perfume Chipre tinha propriedades afrodisíacas. Não faltavam os contadores de anedotas. Nem os maldizentes. Nem os trocadilhistas. E a cuia do chimarrão passava de mão em mão, enquanto a chaleira permanecia em cima da chama dum fogareiro Primus. E a todas essas o Miguel, com seus ares de monge franciscano, continuava a assobiar o seu trechinho de O Carnaval de Veneza.

às vezes a bela Marieta aparecia com seus chapéus de garden-party, olhos bistrados, boca e faces pintadas, digna como uma dama, comprava cosméticos e me lançava olhares convidativos, enquanto meu sócio metodista tratava de me defender daquela tentação, talvez na tresloucada esperança de que eu conservasse a virgindade até o dia do meu casamento.

 

Fregueses entravam e saíam da farmácia. Poucos compravam a dinheiro. Os estancieiros costumavam pagar suas contas só depois da safra anual e sempre que seu débito ia além de duzentos mil-réis, exigiam que lhes déssemos de presente um vidro de perfume francês.

De raro em raro visitava a farmácia um médico local, quarentão, corpo e cara que lembravam um gordo tapir — mas um tapir de pince-nez. Proprietário de campos que lhe davam uma boa renda, havia deixado de clinicar e, portanto, cessara de pagar o imposto profissional. Duma feita, por descuido, deu a um amigo, em papel timbrado, com sua assinatura, uma receita que foi aviada no nosso laboratório e devidamente copiada no livro de receituário, espécie de monstro sagrado que, segundo a lei, não deve jamais apresentar qualquer rasura sob pena de multa altíssima. Um fiscal estadual, desconfiando de que o referido médico exercia a medicina clandestinamente, estava ansioso por conseguir uma prova disso, para multá-lo. Pediu-nos para examinar o receituário. Não sei como o doutor ficou sabendo das intenções do fiscal, mas a verdade é que um dia se insinuou na farmácia e disfarçadamente apanhou o receituário, procurou e achou a página em que sua receita fora registrada e, sub-repticiamente, começou a raspar seu nome com um canivete. Apanhado em flagrante delito pelo Lotário, ficou de repente rígido, a face vermelha. Fechou o livro e fingiu que estava procurando sobre a mesa um papel... "Fora daqui, seu corno!" — gritou o meu sócio. "Mas que é isso?" — perguntou o outro. Sem responder-lhe, Lotário segurou o próprio livro do receituário e deu com ele uma valente pancada na cabeça do doutor, que bateu em retirada imediata. Eu, que assistira à última parte da cena, perguntei: "Por que chamaste o pobre homem de corno?". E meu companheiro, o rosto vermelho de indignação, respondeu: "Ora, porque ele é. Como todo o mundo, sabe que a mulher dele anda dormindo com o W.". E disse o nome dum cidadão muito conhecido na nossa comunidade.

 

Em certas noites eu trazia a minha portátil Victor para a farmácia, colocava-a em cima do balcão, dava-lhe manivela e segundos mais tarde de dentro daquela caixa saía a voz dulçorosa de Tito Schippa cantando Estrellita ou Valencia, ou então a de Miguel Fleta interpretando o Ay' Ay' Ay'. Pessoas paravam às nossas portas para escutar. Algumas entravam para comprar alguma coisa: "Moço, me dê uma limonada purgativa". "Asómate a Ia ventana, ay, ay, ay! / Paloma del alma mia..." cantava Fleta. — "Um envelope de aspirina..." — pedia outro freguês. Dentro da minha cabeça, um Ornar Khayyam de iluminura ciciava: A vida passa, rápida caravana. Detém a tua montaria e procura ser feliz. Menina, por que entristeces? Dá-me vinho! A noite em breve chega. Calava-se Fleta. "Um vidro de salsaparrilha" — pedia outro freguês. Então a Orquestra Sinfônica de St. Louis tocava a minha melodia predileta naqueles tempos, A Canção da índia, da ópera Sadko, de Rimsky-Korsakov. Rabindranath Tagore também entrava na farmácia como um velho amigo. Deixava-me sempre nobres conselhos: A poeira das palavras mortas adere a, ti. Lava tua alma com o silêncio. Schippa cantava o Sonho, da ópera Manon, de Massenet. Entrava um campeiro e perturbava o cantor com o ruído metálico de suas esporas. Eu tinha gana de gritar-lhe: "Vá embora! Neste momento não estou interessado em vender nada". Mas o homem pedia: "Um pacote de malva. Estou com um dente encrencado e a cara inchada". Khayyam respondia por mim: Sono sobre a terra. Sono debaixo da terra. Sobre a terra e debaixo da terra, corpos estendidos. Nada por toda a parte. Homens que chegam. Homens que se vão. Eu tornava a dar manivela na vitrolinha e lá vinha a suíte de O Calo de Ouro. Fiquei sabendo que um amigo franco e sábio comentou um dia: "Deste jeito a Farmácia Central vai à gaita". Proféticas palavras!

 

Um dia, estando eu no escritório a traduzir um poema de Ornar Khayyam — (Além da Terra, além do Infinito eu procurava ver o Céu e o Inferno. Uma voz me disse: "O Céu e o Inferno estão em ti"), um de nossos empregados, um menino vivíssimo de onze anos, a quem chamávamos Ratão do Banhado (era adventista do sétimo dia, citava versículos da Bíblia, o que não o impedia de meter indebitamente a mão na caixa registradora, como viríamos a descobrir mais tarde), veio me dizer: "Olhe, patrão, está lá na frente um homem que quer levar um vidro de xarope. Eu disse que só a dinheiro. Ele ficou br?bo e quer falar com o senhor". Tratava-se do boleeiro de um dos últimos quatro ou cinco carros de aluguel puxados a cavalo que ainda existiam na cidade, apesar de estarmos já em plena era do automóvel. Metido na indumentária gauchesca — chapéu de abas largas, colete sem casaco, lenço no pescoço, bombachas e botas de fole — tinha o homem uma cara desagradável, de mandíbulas quadradas. Disse-me de maneira um tanto agressiva que ia levar o xarope e que pagaria mais tarde. Segurei o vidro de Angico Pelotense que estava em cima do balcão e sacudi negativamente a cabeça. Não leva! O homem enfureceu-se. Deu um passo à retaguarda, tirou do coldre um revólver e apontou-o para o meu peito. Engoli em seco. O vidro de xarope custava dois mil-réis... Era óbvio que minha vida valia muito mais. Acontecia, porém, que numa cidade gaúcha como Cruz Alta vigorava um código não escrito mas implacável como o da Máfia, e segundo o qual um homem de verdade não deve jamais "pagar vale", isto é, recusar briga, "afrouxar o garrão", " cantar de galinha". Nessa hora, de nada me valeram as lições irônicas e céticas do velho Anatole. Nem a filosofia epicurista de Khayyam. Nem a candura de Tagore. Percebi que algumas pessoas que passavam pela frente da casa naquele momento, paravam para "apreciar" a cena. Eu não podia fazer papel feio. Que diabo!

Não era filho de Sebastião Veríssimo, homem de tão bela tradição viril? Apertei o vidro de xarope, cerrei os dentes e repeti: "Não leva!". Sentia a boca seca, a goela ardida, mas minha mão estava firme. O homem deu outro passo para trás. "É agora que ele vai puxar o gatilho" — pensei, aterrado. (Jamais esquecerei a cara do boleeiro, os olhos miúdos e maus, os malares asiáticos, a pele esburacada por marcas de bexigas.) O que se passou depois eu não entendi naquele momento nem entendo agora. Quando dei acordo de mim, estava do outro lado do balcão e o boleeiro continuava a recuar, de costas para a porta, como se ele e não eu estivesse sendo ameaçado por um revólver. Ninguém ousava intervir. E eu avançava, devagarinho e incerto, de Angico Pelotense em punho, como se o inocente vidro contivesse um ácido corrosivo... Não afastava, porém, o olhar do cano daquele sinistro revólver meio enferrujado. Só então comecei a sentir o bafo de cachaça que vinha da boca entreaberta do boleeiro, o qual já se encontrava a apenas um passo de uma das portas. Pensei: "O bandido agora me alveja e sai correndo rua em fora...". Tudo por causa dum vidro de xarope que custava dois mil-réis... Eu tinha vinte e pouquíssimos anos e amava a vida! A vida! Tudo aquilo era estúpido... O suor que me escorria da testa entrava-me nos olhos, turvando-me a visão. Ouvi um rumor de vozes atrás de mim. Com o rabo dum olho percebi que o meu sócio surgia do fundo da casa, armado duma tranca de ferro. O bale expressionista ganhou então mais uma figura. O boleeiro tinha descido para a calçada e eu estava na soleira da porta. Lotário Müller, esquecido de que era professor da Escola Dominical metodista, despejava em cima do belicoso freguês todo o seu repertório de nomes feios. De súbito, o boleeiro repôs o revólver no coldre e subiu para a boléia de seu carro. Dei mais dois passos à frente e ganhei a calçada. (Por quê? Por quê?) O bombachudo pegou o chicote e eu pensei: "Vai me fustigar a cara". O homem, porém, chicoteou os cavalos, que arrancaram rua acima. Por entre a pequena multidão que se formara à frente da farmácia, caminhei de volta para o meu posto, satisfeito comigo mesmo, mas já um tanto encabulado por ter tomado parte naquela farsa. Alguém me bateu inadvertidamente no cotovelo e eu deixei cair o vidro de xarope, que se partiu na calçada. A firma perdera dois mil-réis, mas mantivera-se um princípio. Ufa!

A verdade, porém, era que nem todos os nossos fregueses pediam fiado de revólver em punho. Usavam as persuasivas armas do abraço e do sorriso, e assim continuavam a ter crédito ilimitado na farmácia. Pouquíssimos liquidavam suas contas pontualmente; alguns levavam às vezes um ano para pagar sem juros medicamentos que havíamos comprado ao prazo de sessenta ou noventa dias. A maioria, porém, não pagava nunca. Fregueses havia que se sentiam insultados quando visitados pelo nosso cobrador.

 

A primeira vez em que vi Manoelito de Ornellas foi numa tarde do inverno de 1928. Atravessava ele a praça principal de Cruz Alta, envergando um sobretudo preto trespassado, de corte elegante, com gola de veludo, a bela cabeça coberta por um chapéu gelo claro. Caminhava teso, com passadas firmes e cadenciadas, o queixo erguido. Via-se logo que não era uma pessoa qualquer, mas uma personalidade. Parecia um diplomata, um ministro plenipotenciário que por engano tivesse desembarcado naquela cidade serrana onde o inverno ventoso e frio trouxera para as ruas velhos ponchos, palas e casacões veteranos, bem como gente encarangada e pitadores de palheiros com barbas de dois dias. Olhos especuladores espiavam o desconhecido por trás de vidraças descidas... Creio que naquele mesmo dia fui apresentado ao forasteiro. Residia ele em Tupanciretã, escrevia prosa e verso, amava os livros e, como eu, tinha uma farmácia. Esse foi o princípio duma amizade que seria duradoura, embora às vezes um pouco desencontrada, por causa de nossa diferença de temperamentos.

Manoelito tinha uma voz bem impostada, de timbre agradável, que ele sabia modular com uma habilidade de ator consumado. Era fluente como orador e escritor. Naquele remoto 1928 seu estilo me parecia demasiadamente florido. A maturidade corrigiu-lhe os excessos.

Sua estada em Cruz Alta foi curta, mas ele voltou outras vezes. E quanto mais eu o conhecia tanto mais me convencia — considerando suas tendências e gostos — de que ele devia ter nascido numa família nobre da Espanha que ele tanto amava: talvez um dia um soberano o fizesse vice-rei de alguma de suas colônias na América do Sul, onde Manoelito poderia exercer a seu bel-prazer um generoso mecenato. Amava o conforto, os cristais, a pintura e os livros bem encadernados. Era um verdadeiro fidalgo. Tinha um grande senso de honra e lealdade. No entanto um homem como esse estava preso a uma pequena farmácia em Tupanciretã — uma botica em condições econômicas tão precárias como as da minha.

Anos mais tarde, liberto dessa farmácia, Manoelito de Ornellas estaria em Porto Alegre, exercendo o cargo de diretor da Biblioteca Pública, e o poeta Athos Damasceno viria a defini-lo à maravilha num de seus poeminhas epigramáticos:

 

             Da Gasconha não é. Porém levada

             em conta a Flor de Lis da estirpe castelã,

             e lhe derem a pluma, a capa e a espada:

                         D'Artagnan!

 

Quando Manoelito visitava Cruz Alta costumávamos fazer longas caminhadas pelas ruas e praças, acompanhados de Rafael Azambuja. Discutíamos livros e autores. Nosso novo amigo era um partidário incondicional da Semana de Arte Moderna. Cada um de nós expunha seus planos para o futuro e de nós três o mais impaciente era o visitante. Rafael cursava ainda o Mackenzie, mas tinha já decidido deixá-lo, com a intenção de mudar-se para o Rio. Quanto a Manoelito e eu, estávamos ambos ansiosos por nos livrar da tirania dos emplastros, ungüentos e poções. Mas que diabo! — concluíamos às vezes, rindo e voltando contra nós mesmos a nossa ironia — Ibsen e Keats não tinham sido também farmacêuticos?

O jornalista Prado Júnior por aquela época havia conseguido convencer-me a deixá-lo publicar num periódico que dirigia em Cruz Alta uma estória de Natal de minha autoria, intitulada Chico. Manoelito de Ornellas um dia me arrancou do fundo duma gaveta o conto Ladrão de Gado, que lá dormia semi-esquecido, e mandou-o com uma carta de recomendação a Mansueto Bernardi, que o acolheu com simpatia, publicando-o na sua recém-fundada Revista do Globo. A narrativa era medíocre e tinha um desfecho à Maupassant. (Naquele tempo, entretanto, eu não pensava assim...) Pela porta que Manoelito me abrira, tornei a entrar num outro número do quinzenário da Livraria do Globo com A Tragédia dum Homem Gordo.

Um dia ousei remeter diretamente ao Correio do Povo (1929) um novo conto meu, A Lâmpada Mágica, que foi aceito por De Souza Júnior — mais um barbudo no meu destino! — então diretor do suplemento literário daquele jornal. (Tratava-se duma estória que recendia a mau Anatole France.) Anos mais tarde, sendo eu já amigo pessoal do escritor brasileiro, ouvi dele a seguinte confidencia: "Sabes? Quando teu conto me chegou, li o nome do autor, achei que era sugestivo e merecia ser conhecido. Mandei os originais imediatamente para a oficina, sem os ler...".

 

Cabe aqui um flashback muito importante para mim. Lá por fins do ano de 1927 eu começara a dividir a minha atenção e a minha afeição entre a literatura — a minha e a alheia — e uma menina de olhos azuis que morava na casa fronteira à da farmácia. Seu pai, Vicente Volpe, viajante comercial, era natural do sul da Itália, dum paese — dizia ele — vicino a Salerno, mas que sempre desconfiei ficava já na Calábria. A mãe da menina descendia de imigrantes alemães. Prússia e Calábria — pensei — que combinação explosiva! Mas a rapariga em flor tinha um ar tranqüilo, era um tipo hígido, suas feições me eram agradáveis e por alguma razão o Destino ou alguém por ele a colocara ali naquela casa, ao alcance pelo menos de meus olhos. (Lembro-me da minha encabulada surpresa quando vim a saber que ela mal havia completado quinze anos, uma criança portanto, ao passo que eu era já um homem feito de quase vinte e três.) Ora, o namoro começou e continuou, com altos e baixos, ela à janela de sua casa, eu atrás do balcão da botica, com um volume de Ibsen ou Shaw na mão, ou sentado à mesa — tabernáculo do sagrado livro do receituário. Em vez de registrar as receitas aviadas em nosso laboratório, eu escrevia contos em papéis de embrulho róseo ou então lançava repetidos olhares na direção da janela da casa da moça, na esperança de que ela aparecesse... Quando aparecia, primeiro fingia que não me enxergava mas por fim olhava na minha direção e lá ficávamos a nos mirar — a cobra tentando hipnotizar o passarinho. Sim, cobra, porque minhas andanças no ano anterior me haviam deixado com uma péssima reputação entre as filhas e mães de família da cidade. É que não sabiam que agora eu estava "regenerado", pensava em casamento, queria ter a minha casa, os meus filhos e — quem sabe? — talvez um pátio com uma ameixeira-do-japão...

Finalmente aproximei-me de Mafalda Halfen Volpe. Além dos encontros de janela, grotescas paródias de Romeu e Julieta, havia os de bailes e os de cinema (mudo) com seus iluminados intervalos entre as partes do filme, muito convenientes aos namorados. Mais tarde começamos a sair juntos em curtos passeios pela rua central. O pai exigia que os lugares por onde andássemos fossem sempre bem iluminados e nunca desertos. Acompanhava-nos sempre Lucinda. a irmã mais moça de Mafalda.

Quando o velho Volpe voltava de suas longas viagens pelo interior do Estado, ele me lançava olhares oblíquos em que eu lia centenas de perguntas calabresas. Um dia foi direito ao assunto: "Será que isso vai dar certo, seu Érico?". Respondi rápido: "Vai, seu Volpe, não se preocupe".

Em 1929, no dia do aniversário da bambina, Vicente Volpe chegou inesperadamente a Cruz Alta. À noite fui levar flores e um presente à namorada. Era junho e fazia frio. Encontrei na sala de visitas dos Volpe, além dos membros da família, algumas vizinhas nas quais notei um vago ar bisbilhoteiro. O velho Volpe apresentava uma catadura de mafioso. Uma estufa cilíndrica a querosene aquecia o compartimento, tendo sobre o tampo uma chaleira com água em processo de ebulição. O dono da casa tomava o seu chimarrão num silêncio agourento. Serviram-nos empadas, pastéis, croquetes... Puxei todos os assuntos que me ocorriam, mas minhas palavras como que se desfaziam em geada no ar. Os ponteiros do relógio de parede pareciam-me andar mais devagar que de costume. Lá por volta das dez horas, notei que de quando em quando abriam-se buracos abis-mais de silêncio na conversação. Todos me olhavam dum modo estranho, como se esperassem de mim um discurso. À medida que o tempo passava, a cara do dono da casa ia ficando cada vez mais sombria. Mafalda apenas sorria. Eu olhava dum lado para outro, sem saber que fazer ou dizer. Alguém me perguntou como ia a farmácia. Fui franco: "Mal. Muito mal". E a conversa congelou-se por completo. O dono da casa teve um acesso de tosse bronquítica. As vizinhas trocaram segredinhos em surdina.

Cerca das onze horas levantei-me, no meio dum silêncio de fim de mundo. Os olhos das vizinhas, que o sono começava a embaciar, de repente pareceram acender-se. "Bom" — disse eu — "se me dão licença, vou me retirar". Nesse momento percebi com o rabo dos olhos uma garrafa de champanha em cima da mesa dz sala de jantar, onde havia taças, pratos de doces e um bolo de aspecto suspeito. Compreendi então num relâmpago — o estúpido! — o que se passava. A chegada súbita do velho, a presença das vizinhas, os silêncios de expectativa, os olhares que me dirigiam — os doces, a champanha, o bolo... tudo... Claro! Que melhor ocasião para "pedir a mão" duma moça que o dia de seu aniversário?

Apertei a mão dos presentes. A chaleira em cima da estufa começou a chiar, a bufar, o vapor da água fazia tremer-lhe a tampa, como se ela também estivesse indignada comigo. Vicente Volpe ergueu-se como se me fosse fuzilar. D. Ema, sua mulher, que não me pareceu estar contando muito com o pedido de casamento, tratou-me como sempre. Despedi-me de Mafalda com um simples aperto de mão, interroguei-a com o olhar. À porta ela me disse: "A culpa não é minha. O velho é que imaginou coisas por conta dele".

Fui para casa, rua em fora, encolhido sob o sobretudo, com a sensação de ter acabado de tomar parte numa comédia de Tchekhov. As estrelas no céu violeta pareciam cristais de gelo. A lua de Tagore parecia olhar-me e compreender minha situação. Como podia eu noivar n% condição financeira e econômica em que me encontrava? A farmácia estava perdida. Havia no ar boatos de revolução. Meu futuro era incerto.

Mas fosse como fosse, pedi a moça em casamento quatro meses mais tarde. Minha mãe não pôde esconder a sua tristeza ante o acontecimento. O manequim, esse me disse coisas irônicas no seu silêncio, pois agora eu compreendia que ele era o meu boneco e eu seu ventríloquo.

E a Farmácia Central faliu. Que desastre! Mas que alívio! (Lotário, a meu pedido, me tinha vendido a sua parte no negócio, havia mais de um ano, mas mesmo depois disso continuara a me ajudar.) Não darei aqui os pormenores dessa falência. Bastará que assegure ao leitor que foi honrosa ou que nem chegou a ser tecnicamente uma falência. Nenhum dos credores da firma foi lesado. Os devedores, esses em sua maioria tiveram seus débitos esquecidos pelos séculos dos séculos. Assumi a responsabilidade de todas as dívidas, que só consegui liquidar por completo dezessete anos mais tarde, ao tempo em que — já conhecido como escritor — eu dava um curso de Literatura Brasileira na Universidade da Califórnia, em Berkeley. Vendi a um produtor argentino, a preço de banana, os direitos cinematográficos de meu romance Olhai os Lírios do Campo e, com o produto dessa transação, liquidei a derradeira promissória. Mas isto já é outra estória, a qual não pretendo contar.

 

Ao amanhecer do dia 4 de outubro de 1930, espalhou-se pela cidade a sensacional notícia. Fora deflagrada em todo o país a muito anunciada e protelada revolução contra o Presidente Washington Luiz, e quase todo o Estado do Rio Grande do Sul estava já nas mãos dos rebeldes. Durante a noite, as duas unidades que compunham a guarnição militar de Cruz Alta haviam aderido ao movimento. O 8.° Regimento de Infantaria não oferecera problemas maiores, mas no 6.° de Artilharia houvera derramamento de sangue. Pela madrugada, seus sargentos, auxiliados pelas tropas civis que cercavam a cidade, tinham prendido e desarmado toda a oficialidade. Contava-se que "um tal de Mello", tenente comissionado, resistira à prisão, matara um dos sargentos e fora imediatamente liquidado a balaços e facadas pelos insurretos. Meu primo Rafael e eu, que conhecíamos pessoalmente esse oficial, e que o julgávamos um parlapatão, um "garganta", sempre que ele declarava abertamente que, em caso de revolta em seu regimento, resistiria a bala — ficamos atentos para ver o que os sargentos vitoriosos iam fazer com o cadáver. Postados ambos numa das sacadas do Sobrado, ficamos ambos a observar com um binóculo a fachada do quartel, longe no alto dum coxilhão, e depois de longa espera vimos quando um volume foi atirado para dentro de um caminhão. Compreendemos imediatamente o que se passava: o Ten. Mello ia ser sepultado como um cachorro pesteado e sem dono. Decidimos ir ao seu enterro, num gesto de solidariedade humana que não tinha nenhuma coloração política. Simpatizávamos com o movimento revolucionário, lamentávamos a morte do sargento - excelente rapaz —, mas achávamos que o corpo de um homem que se portara com tanta bravura e dignidade não merecia aquele funeral infamante. Metemo-nos num automóvel e tocamos para a Matriz, na ilusão de que o corpo do tenente ia ser conduzido para lá, a fim de ser encomendado. Como víssemos a igreja fechada, aproximamo-nos dum grupo de pessoas que se encontrava a uma esquina próxima, ao redor dum sargento, um mulato alio e corpulento, que, a aba do quepe puxada sobre os olhos, falava animadamente, contando provavelmente as proezas da noite. (Mais tarde vim a saber que naquele momento o homem se gabava de ter sido ele quem rasgara com seu facão "o bucho do pernambucano".)

Rafael, em voz alta e com a maior candura, perguntou a um dos circunstantes: "já passou por aqui o enterro do Mello?". O sargentão voltou-se para nós e gritou: "Quem tem vergonha na cara não vai ao enterro desse cachorro!".

Senti o sangue subir-me à cabeça, encarei o sargento e, imprudente, repliquei: "Pois fique sabendo que tenho vergonha e é por isso mesmo que vou!". O homenzarrão não disse mais palavra. Puxou dum revólver e precipitou-se sobre mim, com a arma apontada na minha direção. Não arredei pé de onde estava. Meu corpo bradava: "Foge!". Minha vontade contrariava-o: "Fica!". Fiquei. Dois amigos que estavam por ali — Manoel Mostardeiro e Amo Lemos Pereira — penduraram-se praticamente nos braços do sargento, fazendo com que o cano da arma se voltasse para as pedras do calçamento da rua. Mas o diabo do sujeito era musculoso, e com uma expressão de fúria na cara parda, arrastava consigo os apaziguadores, que gritavam para mim: "Vai embora! Este homem está louco!". Houve um princípio de pânico. O grupo compacto dispersou-se, irradiando-se em várias direções. Continuei onde estava, gelado de medo, a gabardina cuidadosamente dobrada sobre um dos braços, empertigado, e fazendo o possível para conservar uma postura digna, apesar do bater descompassado do coração, do tremor das pernas, do espasmo de garganta. Não queria nem devia dar uma demonstração de covardia. Outras pessoas decidiram intervir, conseguindo arrastar para um banco da praça o sargento, seu revólver e sua fúria. Permaneci onde estava, pigarreando repetidamente, e deixei passar um intervalo decente, para salvar as aparências — talvez os dois minutos mais longos da minha vida — e depois, voltando-me para o meu primo, que também se quedara mudo e imóvel, a meu lado, murmurei: "Agora podemos ir embora, não achas?". Ele sacudiu afirmativamente a cabeça e lá nos fomos, Rua do Comércio abaixo, em passo nem lento nem acelerado. (Contava-se que Pinheiro Machado, a eminência parda da República, respondendo certa vez ao chofer que lhe perguntara se devia tocar o automóvel devagar ou depressa por entre a multidão que, segundo se murmurava, esperava sua passagem para vaiá-lo, dissera: "Nem tão depressa que possam pensar que estou com medo nem tão devagar que possa parecer provocação".) Arrisquei um olhar para trás e fiquei aliviado ao verificar que ninguém nos seguia. Meu coração acalmava-se, a respiração voltava ao normal. Andamos por alguns instantes em silêncio. Depois comecei a comentar o incidente, procurando falar com naturalidade, como se o que acabara de acontecer não tivesse nenhuma importância. E — mais de quinze anos antes de ter sequer idéia da existência dum senhor chamado Jean-Paul Sartre — teci algumas considerações pseudofilosóficas sobre a influência da presença dos outros no nosso comportamento individual.

Nos dias que se seguiram (dizia-se que o sargento me havia "marcado") amigos me convenceram de que eu devia andar armado, e um deles me emprestou uma pistolinha de salão, que meti num dos bolsos da gabardina, numa vaga sensação de ridículo. Andei assim armado pelas ruas da cidade durante varies dias e noites. Cada vez que via surgir à minha frente algum sujeito grande metido num uniforme caqui, tinha um sobressalto e, para dar uma satisfação mais aos outros do que a mim mesmo, metia a mão no bolso e acariciava aquela arma efeminada que eu nem sequer sabia manejar. O que sabia era que não teria coragem de atirar contra quem quer que fosse. A idéia de ferir ou matar alguém me era então, como agora, repulsiva. Exatamente naquele ano eu havia começado a ler estudos e reportagens sobre Mahatma Gandhi e seu movimento de resistência passiva. Cheguei a escrever e publicar um artigo a favor da independência da índia.

Quanto ao façanhudo sargento, jamais tornei a encontrá-lo.

 

Naquelas semanas assisti ao desfile dos soldados e voluntários civis que iam derrubar o Governo Federal para instaurar no país — conforme diziam os jornais e os oradores revolucionários — uma nova era de verdadeira moralidade, em que se pudesse promover o progresso do Brasil e a felicidade de seu povo.

Eu olhava para tudo aquilo com um olho morno e cético. O Dr. João Raymundo me disse um dia: "Como endireitar este pobre país se os homens que vão tomar o poder são os mesmos de sempre? Não há programas nem idéias, apenas ambições pessoais".

Talvez o "meu" ceticismo fosse apenas a máscara com que eu procurava disfarçar minha preguiça de tomar uma posição concreta perante a revolução. Talvez fosse genuíno. Não sei, e não me parece que isso tenha agora a menor importância.

Havia, porém, momentos em que eu me deixava contagiar pelo entusiasmo dos revolucionários, pelos dobrados que tocavam as bandas de música militares, e pelo espetáculo dos lenhos vermelhos.

Desempregado, sem dinheiro, sem profissão certa... e noivo, eu fugia à realidade buscando refúgio nos livros e nas minhas ficções.

Foi um outubro frio e chuvoso, aquele. Eu continuava a freqüentar a casa da noiva. Os futuros sogros me lançavam olhares em que eu julgava ler perguntas embaraçosas. "E então? Quando é que vai arranjar um emprego e casar-se?"

O pior era que às vezes — como isso me alarmava! — eu gostava, remorsos à parte, daquela vagabundagem irresponsável em que as horas de convívio com Mafalda alternavam-se com as de leitura e as de criação literária. Entretanto, a presença do manequim de minha mãe em casa agravava o meu sentimento de culpa.

Por aquele tempo eu havia descoberto — não me recordo em que velha gaveta, baú ou porão — um disco fonográfico quebrado, do qual restava apenas uma pequena superfície intacta, perto do rótulo azul, cujos dizeres estavam completamente ilegíveis, como se alguém os tivesse obliterado com a ponta dum prego. Por curiosidade coloquei o disco mutilado na minha vitrola, e pouco depois o que saiu de seu alto-falante, em meio de estalidos e crepitações, foi uma frase musical duma esquisita e inesperada beleza, que me enfeitiçou: a viola desenhava a linha melódica dum andante, cuja melodia me ficou gravada na memória. Que era tocada por um quarteto de cordas, não havia a menor dúvida. Também eu estava certo de que não ouvia a voz de Mozart nem a de Beethoven. Brahms, quem sabe? Não. A música me falava francês e não alemão, italiano ou qualquer outra língua. A frase do quarteto me perseguiu obsessivamente durante todo aquele fim de 1930. Parecia descrever musicalmente o meu estado de espírito naquela época de minha vida: doce e preguiçosa melancolia e ao mesmo tempo um hesitante desejo de fuga ou, melhor, de ascensão...

Só quatorze anos mais tarde, quando já liberto da ópera — para ser preciso em 1944, em San Francisco da Califórnia — é que vim a saber que a frase mágica era o andantino doucement expressif do Quarteto de cordas em sol menor, de Claude Debussy.

 

Em fins de outubro, pouco antes da vitória final da revolução, fui procurado por meu pai que, depois duma ausência de alguns anos — passados em Santa Maria — voltara a Cruz Alta e, como eu, encontrava-se desempregado e sem recursos financeiros de espécie alguma.

"Meu compadre Ernesto Lacombe" — contou-me ele — "é um dos chefes da revolução em Santa Catarina. Mandou-me um telegrama dizendo que está precisando de mim. Resolvi embarcar para lá por estes dias. Que te parece?"

Na verdade eu não tinha opinião definida sobre o assunto, mas achei melhor responder que considerava a idéia excelente. Dias depois, numa úmida manhã cor de ardósia, vimo-nos um diante do outro na estação ferroviária de Cruz Alta. Meu pai tinha na cabeça um chapéu de abas largas, de qualidade ordinária, que lhe ficava muito mal. Cobria-lhe o corpo um grosseiro poncho de campanha, cor de chumbo, tão comprido que sua fímbria tocava o pavimento encarvoado da plataforma. A seus pés jazia uma mala barata com um pedaço de barbante amarrado a seu redor. Comparei o homem que tinha então na minha frente com o Sebastião Veríssimo dos tempos de caviar e champanha. Recordei as suas finas camisas de seda, os seus vinte e tantos pares de sapatos, as suas incontáveis gravatas, os seus perfumes, as roupas de boa casimira inglesa ou de tussor de seda feitas sob medida no melhor alfaiate de Porto Alegre... A comparação me doía. E agora, no momento em que descrevo essa cena, pergunto a mim mesmo se naquela remota manhã de outubro de 1930 eu sentia algum ressentimento para com aquele homem, por ele não se ter portado de acordo com a imagem ideal que eu tinha dele na mente, nas minhas mais belas fantasias filiais. Se tinha — concluo —, esse sentimento se diluía num vasto, profundo lago de compaixão, em que eu quase me afogava. Lembro-me de que naquela hora de despedida procurei não julgar meu pai, mas simplesmente amá-lo, tentar compreendê-lo, aceitá-lo como ele era, com todas as suas qualidades e defeitos.

Veio-me à mente uma carta dura que eu lhe escrevera havia alguns anos, ao cabo duma luta interior em que razão e sentimento entraram em conflito. Nessa carta "lógica" eu o censurava pelo seu comportamento, pedia-lhe mesmo que se afastasse da cidade, pois não queríamos que sua presença e seu comportamento pusessem em perigo os esforços que fazíamos em prol duma vida nova. Ele lera essas palavras, que deviam tê-lo ferido fundo, marcara encontro comigo num café, tirara a carta do bolso e me dissera, simplesmente, num tom de voz sentido que jamais poderei esquecer: "Por favor, rasga esta carta". Eu obedeci, sem coragem de fitá-lo nos olhos. E ele acrescentou, terno: "Faz de conta que nunca a escreveste". E não tocamos mais no assunto.

Agora ali estávamos calados, um diante do outro, a olhar furtivamente, de quando em quando, para o relógio grande da estação.

— Ah! — exclamou meu pai de repente. — Vou te pedir um favor. Paga ao meu leiteiro os quarenta mil-réis que lhe fiquei devendo, sim?

— Não se impressione, pago amanhã — respondi, mesmo sabendo que todo o dinheiro de que dispunha no momento eram uns magros trinta mil-réis.

Poucos minutos depois o Velho deu uma palmada na própria testa.

— Que pena! Esqueci em casa a lingüiça frita que mandei preparar especialmente para a viagem...

A jornada era longa e eu estava certo de que meu pai não tinha dinheiro suficiente para fazer as refeições no carro-restaurante. Ofereci-me então para ir buscar o precioso pacote. Mas... haveria ainda tempo para isso? O trem, prestes a chegar de Santa Maria, devia partir dentro de menos de quinze minutos para o norte. Saí apressado para a rua, entrei no primeiro carro de aluguel que encontrei, dei um endereço ao chofer e pedi-lhe que tocasse o calhambeque a toda a velocidade. Entrei afobado na casinhola de tábua onde meu pai vivera durante aqueles últimos meses, e tive a surpresa de encontrar lá dentro alguns fantasmas familiares. Contrastando com a pobreza do ambiente, lá estavam nas paredes — relíquias do Sobrado — alguns quadros com fotografias de antepassados nossos. Tive de súbito a impressão de que eles me olhavam com essa intensidade implacável dos retratos. Ergui a cabeça e vi as imagens de meus dois avós paternos — dois pares de olhos expressivos que pareciam falar, perguntar-me coisas... Veio-me então — como aconteceria em tantos outros momentos da minha vida — uma incômoda sensação de culpa. O Dr. Franklin e D. Adriana pareciam responsabilizar-me por tudo quanto havia acontecido a seu filho mais velho. Parodiando Caim (ou será que estou inventando isto agora?), perguntei-lhes mentalmente: "Serei acaso guardião de meu pai?". Não tive resposta. Olhei em torno e vi uma série de utensílios e móveis que me deram uma idéia da pobreza em que vivia o velho Sebastião: uma mesa de pinho sem lustro, duas cadeiras guenzas, uma panela e uma chaleira de alumínio, ambas amassadas, um toco de vela metido no gargalo duma garrafa, revistas e jornais velhos espalhados no chão de mistura com baganas, paus de fósforos e trapos. A cama era um catre coberto por um lençol grosseiro e encardido. De novo olhei para o retrato dos meus avós. Mas que podia eu fazer pelo meu pai se nem sequer sabia que fazer com minha própria vida?

Ah! A lingüiça... Não havia tempo a perder. Estava em cima da mesa, envolta numa folha de jornal enodoada. Apanhei o pacote, lancei em torno um olhar semimasoquista, saí para a rua, entrei no automóvel e gritei para o chofer: "Toque depressa para a estação! Preciso chegar lá antes da partida do trem que vai pra São Paulo". O velho Ford-de-bigode foi-se aos solavancos pela rua de terra batida, cheia de regos, buracos e pedras. Quando cheguei à estação verifiquei que o trem do norte já se pusera em movimento. Olhei para as janelas dos carros, procurando meu pai. Por fim avistei-o. Estava de pé na plataforma do último vagão e me fazia sinais. Corri para ele, entreguei-lhe a lingüiça, apertei-lhe rapidamente a mão... "Adeus, meu filho!" Mal pude responder. A canseira da corrida e a emoção da despedida me trancavam a voz. Fiquei parado, vendo a figura paterna ir aos poucos diminuindo, à medida que o trem se afastava. Com uma das mãos o velho Sebastião me acenava, e com a outra apertava contra o peito a lingüiça frita. Por fim o comboio desapareceu numa curva. Nunca mais tornei a ver meu pai.

 

Dezembro chegou. Floresceram de novo os jasmins-do-cabo, e um dia resolvi mudar de vida. Tomei a decisão certa manhã, à hora em que me barbeava diante dum pequeno espelho partido.

— Resolvi ir para Porto Alegre — disse eu à minha mãe.

— Fazer o quê? — perguntou-me ela, cessando de pedalar por um momento a máquina de costura sobre a qual estava encurvada.

— Vou tentar ganhar a vida como escritor — murmurei, apenas semiconvencido de que isso fosse mesmo possível.

  1. Bega lançou-me um olhar de alarmada surpresa.

— Escritor? — repetiu.

— Bom... sei que essa profissão ainda não existe no Brasil. Mas, que diabo! Não custa tentar. Não tenho a menor vocação para o comércio. Posso arranjar emprego num jornal, traduzir livros, colaborar em revistas... Um dia, quem sabe...

— Bom, se tu achas... — começou ela. Mas calou-se. A expressão triste de seus olhos disse o resto.

Eu pensava no dinheiro que ela me emprestara e que tinha ido todo águas abaixo, com a falência da farmácia.

— Quando eu já estiver ganhando um ordenado decente — balbuciei — volto, me caso e depois vamos todos morar juntos em Porto Alegre.

Para disfarçar meu embaraço, rompi a assobiar o trecho do misterioso andantino do disco mutilado.

A decisão de deixar Cruz Alta era de natureza intelectual. Emocionalmente eu queria ficar. Fosse como fosse, embarquei dois dias depois. Meu tio Americano emprestou-me quinhentos mil-réis — o que me habilitaria a pagar a passagem de trem e o primeiro mês de hotel. Meu futuro sogro teve suficiente confiança em mim para me emprestar sua máquina de escrever portátil. E assim, num certo dia luminoso e quente de dezembro de 1930, lá me fui, de braço dado com o meu irmão, para a estação ferroviária, a pé, sentindo na planta dos pés o calor das pedras, através dos buracos das solas dos sapatos. Levava uma roupa no corpo e outra na mala.

 

                   EM BUSCA DA CASA E DO PAI PERDIDOS

Em Porto Alegre poderia ter procurado quarto numa pensão barata, mas, como prevalecessem em mim as inclinações paternas, concluí que, se me hospedasse no Hotel Majestic, naquela época um dos melhores da cidade, isso me ajudaria a levantar o moral. Foi o que fiz. Durante semanas procurei, mas em vão, encontrar trabalho. A idéia de tomar-me empregado público era-me desagradável, pois eu associava essa condição à necessidade de votar sempre, submissamente, com o Governo. Mesmo assim, em desespero de causa, andei por mais de uma secretaria de Estado em busca de emprego. Na do Interior tive a oportunidade de conhecer pessoalmente Moysés Vellinho, então chefe do gabinete de Oswaldo Aranha. Era crítico literário e escrevia sob o pseudônimo de Paulo Arinos. Recebeu-me com grande cordialidade e me disse que havia lido com agrado vários contos meus, o que me surpreendeu, lisonjeou e estimulou.

Diante daquele homem insinuante, de maneiras tão finas e impecavelmente vestido, experimentei um sentimento de inferioridade parecido com o que me assaltara tantas vezes no internato nos fins-de-semana, quando eu olhava para as roupas de meus colegas trajados no rigor da moda e comparava-as com o meu "fardamento" de mandim serrano.

Vellinho declarou-me que infelizmente no momento não havia vagas naquela secretaria.

Aproximava-se o fim de dezembro, o dinheiro que trouxera minguava, e eu continuava desempregado. Ganhei duzentos mil-réis numa só noite, pintando até alta madrugada alguns bonecos em cores para ornamentar as vitrinas de Natal da Casa Rheingantz, cujo gerente era meu conhecido. Alguém lhe tinha dito que eu "sabia pintar". Saíram-me umas atrozes figuras de Papai Noel, uns anjos bochechudos, uns gnomos de jardim e meia dúzia de tristes palhaços. Mas a verdade é que o dinheiro me deu não só alento financeiro como também moral.

Dias depois mantive com o escritor Mansueto Bernardi, então diretor da Revista do Globo, um diálogo que considero um dos pontos decisivos da minha carreira.

— Vamos publicar no próximo número o seu conto "Chico", com a sua ilustração — anunciou-me o autor de Terra Convalescente. Olhou-me por um instante e depois murmurou: — Você escreve, traduz, desenha... Seria portanto o homem ideal para trabalhar em nosso quinzenário, no futuro.

— Por que "no futuro" — perguntei — se estou precisando do emprego agora?

Mansueto permaneceu pensativo por um instante.

— Quanto espera ganhar?

Arrisquei:

— Um conto de réis.

Era um salário apreciável para a época. O poeta cocou o queixo, indeciso.

— É uma pena. Não temos verba para tanto. Mas qual seria o ordenado mínimo que você aceitaria para começar?

— Seiscentos — respondi sem pestanejar.

— Pois está contratado. Pode começar no dia primeiro de janeiro. Ah! Você entende de "cozinha" de revista?

— Claro! — menti. Nunca havia entrado numa tipografia de verdade. Jamais vira uma linotipo. Não tinha idéia de como se armava uma página ou como se fazia um clichê. O importante, porém, era que tinha conseguido emprego. Saí do escritório de Bernardi, fui direito ao telégrafo e mandei uma mensagem a D. Bega e Mafalda, dando-lhes a grande notícia.

 

Começou assim um novo capítulo na minha vida. Durante o dia eu trabalhava intensamente na redação da Revista do Globo. O processo era mais ou menos o mesmo de outras revistas brasileiras da época. Nossos "colaboradores" eram a tesoura e o pote de cola. Como nunca havia verba para comprar matéria inédita, o remédio era recorrer à pirataria. Eu traduzia contos e artigos de revistas americanas, francesas, inglesas, italianas e argentinas, mandando também reproduzir em preto e branco suas ilustrações.

À noite freqüentava — e contribuía para ela com meus silêncios — a "rodinha de chope" do Bar Antonello. A figura central do grupo era Augusto Meyer, cujas crônicas diárias no Correio do Povo eu lia desde os tempos de Cruz Alta. O "velho" Aug — pois assim era ele chamado pelos companheiros, apesar de não ter completado ainda trinta anos — era um homem magro, levemente encurvado, com cabelos cor de cenoura, tez dum branco-rosado, pintalgada de sardas, e duma curiosa transparência de porcelana. Tinha já a seu crédito excelentes livros de poesia, como Coração Verde (1926), Giraluz (1928) e os Poemas de Bilu (1929). Estava o nosso Meyer destinado a ser um dia uma das maiores figuras literárias da língua portuguesa. Achavam-se ainda no ventre do futuro (estou pensando na frase de Leibniz) obras em prosa como Literatura e Poesia, Machado de Assis, Prosa dos Pagos, À Sombra da Estante e dois extraordinários pequenos volumes de recordações da meninice e da adolescência, Segredos da Infância e No Tempo da Flor, que são talvez os melhores livros no gênero escritos no Brasil.

Meyer era — coisa rara! — um intelectual com cara de intelectual. Athos Damasceno descreveu-o assim:

 

           Alto, comprido, retilíneo, fino

           é um estilete, uma lâmina, um punhal.

           Reparai que parece um verso alexandrino,

           Só que no sentido vertical.

 

Aug não era bem deste mundo. Dava-me a impressão de ter caído na Terra, vindo dum misterioso planeta sem nome. Não parecia ter noção de tempo nem de espaço. Mas como se movia bem no universo das idéias, com que clara beleza raciocinava e escrevia! Não era fácil manter com ele relações regulares no plano humano, de sorte que aprendi a querer bem ao homem através da admiração que tinha pelo escritor.

Quando, bisonho e oblíquo, insinuei-me na roda, com ares de aluno ouvinte que não tem dinheiro para pagar a matrícula e seguir o curso normalmente, com direito a diploma, Augusto Meyer recebeu-me com afabilidade. Às vezes, lá pelo terceiro chope, impacientava-se comigo porque eu não bebia. Eu lhe explicava que era abstêmio não por motivos morais, mas hepáticos — o que não era bem verdade. Creio que o cheiro e o gosto da cerveja evocavam-me a imagem de meu pai nos seus piores momentos. O álcool era assim uma espécie de símbolo de suas excessivas auto-indulgências, e portanto o ato de beber cerveja equivalia — na minha maneira de sentir — a uma espécie de ato de agressão à minha mãe.

Augusto Meyer, que havia lido alguns de meus contos, me estimulou discretamente a continuar escrevendo. Certas vezes, em momentos de irritação, fitava em mim os olhos azuis e murmurava: "Devias ter ficado na tua botica em Cruz Alta, vendendo sinapismos!". Numa outra noite me disse: "Se tivesses os braços um pouco mais compridos, eu acreditaria em ti...".

Outra figura interessante da "roda" era Theodemiro Tostes, por quem tive sempre uma cordial admiração. Alto, moreno, rosto redondo e carnudo de feições simpáticas, era homem que procurava esconder sua humanidade por trás dum biombo transparente de ironia. Além de poeta, era cronista e mantinha no Diário de Notícias uma coluna diária, que firmava com as iniciais T. T., e à qual parecia não dar a menor importância. O curioso era que Tostes, como Meyer, tinha um certo pudor de "fazer literatura". O burguês pançudo e escravo do dinheiro e das convenções sociais era o alvo predileto das ironias de ambos esses admiráveis escritores que tinham surgido à frente do movimento modernista que, em meados da década dos vinte, se fizera, em Porto Alegre, eco da Semana de Arte Moderna de São Paulo. É também de Athos Damasceno esta caricatura de Theodemiro Tostes:

 

           O espelho dele disse que SIM

           Mas, como era de vidro, se quebrou...

           Hoje apenas há cacos de Arlequim,

           Inteiro, inteiro mesmo, só... Pierrot.

 

De vez em quando materializava-se no bar com ares de fantasma extraviado, o João Santana, personalidade das mais ricas intelectual e humanamente — baixo e franzino de estatura, ar distraído de professor, olhos claros duma pureza quase infantil, senhor de grande erudição, poliglota e íntimo de filósofos gregos e romanos. Dizia-se que havia anos estava escrevendo um ensaio sobre Aristóteles.

Paulo Correia Lopes, excelente poeta e pessoa, aparecia no Bar Antonello de quando em quando. Um dia puxou uma cadeira da mesa vizinha e sentou-se em cima dum chapéu preto que se achava sobre ela. Levantou-se em seguida, olhou para o dono da "coisa" que ele amassara e disse, muito sério: "Desculpe... Pensei que era um gato". Sua poesia tinha algo de místico. Athos Damasceno escreveu sobre esse poeta, irmão espiritual de Alphonsus de Guimaraens, as seguintes palavras:

 

           Para mostrá-lo inteiro, a minha mão arranca

           o véu.

           É o único de nós que tem entrada franca

           no Céu.

 

E quem era o tipo — bissexto na roda — de cabeleira romântica e bigode cuidadosamente aparado que se vestia com uma elegância européia, tinha uma bela voz de tenor lírico e parecia um galã de teatro italiano? Era Ernani Fomari, poeta e ficcionista, que mais tarde obteria grande popularidade em todo o país como autor de peças teatrais. Fiz com ele uma camaradagem que o tempo se encarregaria de transformar numa amizade duradoura e fraternal.

Outro membro irregular do grupo era Reynaldo Moura. Discreto, calmo, o sorriso timidamente malicioso, raramente fazia-nos ouvir a fosca surdina de sua voz. Homem de rica imaginação, com um agudo senso de ridículo, tinha horror a fazer-se demasiadamente notado. A caricatura verbal que Athos Damasceno fez do poeta Reynaldo vale apenas para o período anterior à Semana de Arte Moderna:

 

           Este, cujo retrato aqui dispensa o anúncio,

           já me deu a receita de seu truque:

           — a musiquinha de Gabriel d'Annunzio

           e as tintas roxas do Gonzaga Duque.

 

Reynaldo haveria de no futuro tornar-se um homem moderno, um romancista de boa qualidade (Um Rosto Noturno, O Romance do Rio Grande, Noite de Chuva em Setembro) e um estudioso da Parapsicologia. Confessava que, para seu gosto, só existia no mundo uma língua adequada à literatura: a francesa.

Quem talvez podia aspirar ao prêmio de freqüência ao Bar Antonello, às sessões da "roda", era Paulo de Gouvêa, bom poeta, pitoresco conversador, irrequieto, irreverente, histriônico.

De vez em quando surgia-nos o Guerreiro Chaves, sentava-se, bebericava o seu chope e falava pouco ou nada. Era homem de boas leituras e dum senso de humor manso e meio escondido. Dele disse Damasceno:

 

           Reside, entre paredes, toda gente,

           em casa ilustre ou cochicholo sujo

           mas este vive inteligentemente

           dentro de um caramujo.

 

Sotero Cosme, um dos mais antigos membros da confraria do chope, tinha ido estudar em Paris para aperfeiçoar-se como violinista e de lá voltara feito desenhista, dono dum traço que a princípio se parecia um pouco com o de Aubrey Beardsley, mas que depois se tornou seu, inconfundivelmente seu. Era uma personalidade rica de substância humana e poética. Meyer e Tostes tinham por ele uma admiração temperada de fraternal ternura.

Não me lembro de ter jamais visto sentado àquela mesa de bar um sujeitinho de Alegrete e que é hoje, sem favor, um dos maiores poetas do Brasil. Refiro-me a Mario Quintana, "o anjo Malaquias" — homem arredio, solitário, inimigo de convenções, um pouco parecido com João Santana em matéria de temperamento.

Sobre José Rasgado F.°, conviva raro à mesa literária do Antonello, Athos Damasceno escreveu:

 

           Foi ao Rio de Janeiro poucas vezes

           e foi, em geografia, o que viu de melhor...

           Mas tendo lido todos os franceses,

           sabe Paris de cor.

 

Rasgado teria sido, se quisesse, um dos mais famosos desenhistas deste país. Até hoje não compreendi por que sua dedicação à carreira bancária teve de necessariamente implicar no seu abandono completo da arte para a qual revelava tamanho talento. Homem fino, de inteligência iridescente, conversador brilhante e versátil, tem ele uma tal fluência, que as palavras e as frases às vezes se atropelam e lutam por sair-lhe da boca, na ânsia de acompanhar o ritmo acelerado de suas idéias. Quando lhe fui apresentado, jamais me passou pela cabeça que, vinte e cinco anos mais tarde, ao chegar a Paris pela primeira vez, foi a sua imagem a primeira que me veio à mente, quando entrei no Museu do Louvre. Mais tarde, nas minhas visitas subseqüentes à Europa e ao Oriente Médio, tornou-se para mim urna espécie de ritual, ao visitar um museu, comprar um cartão-postal com a reprodução em cores duma pintura famosa e escrever-lhe no reverso um recado ao Jucá Rasgado.

No Bar Antonello reencontrei Fernando Corona — conhecera-o rapidamente em Cruz Alta, havia um par de anos — escultor, professor da Escola de Belas Artes, espanhol em cada centímetro quadrado de seu corpo — e quem diz espanhol diz toureiro, Quixote, espadachim, místico mesmo sem a crença ortodoxa em Deus. Baixo de estatura, como Pablo Picasso, tinha como o grande pintor uma jovem vivacidade nos olhos. Como arquiteto e escultor, Corona começava a imprimir sua marca em vários pontos de Porto Alegre, que hoje está cheia de edifícios e monumentos, obras suas ou de discípulos seus. Mestre dos mais exigentes e dos mais apaixonadamente dedicados, era ao mesmo tempo temido e amado pelos discípulos, que o sabiam rigoroso não só por amor próprio como também por amor à Arte, e por uma espécie de respeito quase religioso à Beleza que para ele é platonicamente sinônimo de Verdade.

Foi também naquele ano de 1931 que conheci Teimo Vergara, contista da família de Tchekhov e Mansfield. Dali a alguns anos conquistaria renome nacional com seu livro Cadeiras na Calçada, premiado em primeiro lugar num concurso de contos patrocinado pela prestigiosa livraria editora de José Olympio.

Como Moysés Vellinho, Darcy Azambuja não fazia vida noturna boêmia. Era, talvez, o melhor contador de estórias do Rio Grande do Sul. Tinha um estilo seco e conciso, raramente metafórico, e era já autor dum livro laureado e popular, No Galpão. Homem discreto, caseiro, de poucas palavras, tinha se não paixão pelo menos amor à vida política. Foi o mais jovem' dos secretários de Estado do Rio Grande do Sul, cujo governo chegou a ocupar por alguns meses, interinamente. Conheci-o na Livraria do Globo, e desde o primeiro encontro estabelecemos relações cordiais, embora distantes.

Homem retraído a ponto de parecer invisível, Carlos Dante de Moraes pertencia também à comunidade dos caramujos. (Nem sempre é o caramujo um misantropo ou um cético; na maioria dos casos é apenas um tímido.) Suas ausências físicas de qualquer grupo, suas freqüentemente exageradas autocríticas e mais a maneira quase secreta com que seus livros eram lançados — tudo isso se combinava para impedir que o bom público ledor do Brasil e de Portugal tomasse conhecimento da existência de um dos mais notáveis ensaístas deste país.

Mas quem era, quem é, esse Athos Damasceno Ferreira cujos epigramas venho usando tão abundantemente neste capítulo? É antes de tudo um gaúcho que jamais fez demagogia com a bombacha, a bravata e as cargas de cavalaria dos Farrapos. Homem de cidade — e como ele ama este burgo açoriano onde nasceu e até hoje vive, há já mais de setenta anos! — é Athos Damasceno, um homem cuja esbelteza o faz parecer mais alto do que é. Tem uma cara fina e longa na qual, no dia em que o conheci, julguei ver uma expressão amavelmente satânica. Humorista da melhor raça, dum humor freqüentemente tocado de sarcasmo — escreve uma prosa nítida, destra, sabe contar uma estória e fazer um poema. Hábil malabarista verbal, é capaz de dar interesse novelesco aos assuntos mais insípidos e pesados. É lamentável que até hoje não se tenha publicado uma boa antologia de sua obra poética, que é Importante, mas praticamente desconhecida. Mas para que hei de eu estar tentando descrever este escritor, se ele próprio se retratou em Burlantim?

 

         Uma vez que me inventam, desse invento

         faço meu fogo e faço meu destino,

         engendrando carãntulas, ao vento,

         e na flauta de Pan soprando um hino

 

         Ao embalo da música e no intento

         de passar por um trêfego menino,

         brinco de equilibrar o pensamento

         num fio de arame extremamente fino.

 

         Sou capaz de engolir tensas espadas

         e, num salto mortal de grande efeito,

         gozar o susto das arquibancadas.

 

         E, após, no picadeiro, ileso e vário

         surgir, como se nada houvesse feito,

         da insondável cartola do empresário.

 

Foram esses os primeiros amigos que fiz, entre escritores e artistas, logo depois que cheguei a Porto Alegre. A cada um deles devo — por motivos que talvez nem eles imaginem — um pouco do entusiasmo com que continuei a escrever. No entanto, o grau de amizade que mantive com cada um deles não foi o mesmo. Uns se me tornaram mais chegados que outros.

Verifico hoje que o tempo, a geografia e a morte (e a morte é também tempo, geografia e História) me separaram de al- desses bons camaradas. Meyer foi para o Rio de Janeiro, ep de 1935, nomeado diretor do Instituto do Livro. Theo ~fostes e Sotero Cosme nos foram roubados — com consentimento próprio, é claro — pelo serviço diplomático. A Moura Torta nos arrebatou no seu cavalo pálido João Santana, Teimo Vergara, Reynaldo Moura, Darcy Azambuja e Ernani Fornari.

Aposentado como embaixador, Theo, homem de coração fiel, voltou a residir em Porto Alegre, e da janela de seu apartamento uma vez que outra, ao anoitecer, deve ficar contemplando o poente sobre o Guaíba e recordando suas andanças noturnas na companhia do velho Aug.

Mas este capítulo não ficaria completo se eu não mencionasse o nome do Prof. Ruy Cirne Lima, que também fez parte do movimento poético modernista na década de 20, mas que parece ter deliberadamente passado uma esponja nessa época de sua vida. É hoje um respeitável professor de Direito e um humanista. Eu o admiro e respeito por estes títulos, mas para mim de é ainda também o menino que viu no Cine Apoio o seriado completo de Os Mistérios de Nova Iorque...

 

Naqueles primeiros meses de 1931 minha saúde não andava nada boa. Procurei um médico que, ao cabo de vários exames, me anunciou que uma colônia de amebas se estabelecera e prosperava nas minhas entranhas. Eram esses protozoários os responsáveis pela minha cor de opilado, o emagrecimento progressivo, a inapetência crônica, as agudas dores abdominais e o permanente mal-estar que me abatia: sensação de febre combinada com sonolência. Os remédios, que um médico me receitava e eu tomava com regularidade, não produziam o menor, resultado.

Apesar de tudo eu continuava a trabalhar na revista e a colaborar na página literária dominical do Diário de Notícias e na do Correio do Povo. Como medida de economia, mudei-me para uma pensão, onde um dia caí de cama, com tremedeiras e calafrios. A filha da dona da casa, uma moça miúda, morena e simpática, noiva dum barbeiro da Cidade Baixa e dona dum periquito verde que a acompanhava por toda a parte, empoleirado nos seus frágeis ombros, ia a meu quarto levar-me caldinhos. de galinha e conselhos.

Uma tarde em que eu ardia em febre, recebi a visita de dois amigos. O primeiro empapou seu lenço na minha loção de heliotrópio, penteou-se com cuidado diante do espelho da pia,, contou-me vaidoso que tinha dali a poucos minutos um encontro marcado com uma "zinha", numa casa de chá, atirou-me um ciao! jovial e se foi. O segundo entrou meia hora mais tarde, sentou-se junto da minha cama, recitou-me os seus últimos poemas, ficou por alguns minutos a falar com grande admiração em sua própria obra e por fim esgueirou-se para fora do quarto. Nenhum dos dois perguntou por que estava eu deitado a bater queixo sob as cobertas, naquele quente dia de março.

Marcos lolovitch, então um rapaz que eu conhecera havia pouco e que, de raro em raro, mandava seus poemas para a Revista do Globo, veio visitar-me também e, percebendo o meu estado de saúde, voltou para a sua pensão e tornou a aparecer-me mais tarde com seu pijama embrulhado numa folha de jornal, declarando que ia passar a noite à minha cabeceira para cuidar de mim. Jamais esqueci esse gesto, feito sem alarde, e que revelou a qualidade desse homem que tem sido "igual" durante os quarenta anos em que temos sido amigos, embora sem mantermos propriamente um convívio assíduo.

 

Voltei a Cruz Alta para casar-me, apesar dos protestos dos amigos ("Casar, poeta? Que idéia!") e das amebas. Compareci à cerimônia trajando calças à fantasia, jaquetão de mescla cor de grafita e sapatos de verniz. A noiva estava radiosa nos seus dezoito anos saudáveis, corada como um pêssego maduro, os olhos dum azul parecido com o do céu daquele fim de outono serrano. Eu perdera quinze quilos, tinha o ar dum maleitoso — o que não impediu que D. Maria da Glória, minha tia-avó e admiradora, achasse que o noivo estava "uma verdadeira beleza". (Benza-a Deus!)

À hora da cerimônia civil, no momento exato em que eu assinava meu nome no registro de casamentos e se fizera em torno de nós um desses súbitos silêncios, ouvi a voz pachorrenta de meu avô materno que, surdo, não percebendo o hiato na conversação, não se dera o trabalho de controlar o volume da própria voz: "No fim de contas" — riu-se o velho — "o casamento é uma espécie de putaria social...". Romperam risinhos a nosso redor. Alguém fez cht! Minha mãe puxou o Cel. Aníbal Lopes da Silva pela manga do casaco e levou-o para fora da sala, pois o velho continuava a falar em voz alta, desenvolvendo a sua irreverente tese sobre o matrimônio.

No dia seguinte Mafalda e eu seguimos de trem para Porto Alegre. Eu tinha exatamente trezentos mil-réis no bolso, mas muita esperança no coração — ou onde quer que se localize esse sentimento tão necessário à vida.

Hospedamo-nos no Hotel Majestic. A jovem esposa regalava-se, à hora das refeições, provando com uma gula esporeada pela curiosidade quase todos os pratos que constavam do cardápio do restaurante do hotel. O marido, sem apetite, tomava o seu pálido chá com torradas secas.

Uma noite levei Mafalda a um cinema, para que ela visse pela primeira vez um filme sonoro. Era O Grande Cabo, com Erich von Stroheim.

 

Para complementar o ordenado insuficiente que me pagava a Revista do Globo, decidi traduzir livros do inglês para o português. O primeiro que me caiu nas mãos foi desgraçadamente uma novela policial de Edgar Wallace, The Ringer. Eu passava o dia na redação da revista, e à noite, no nosso quarto de hotel, trabalhava nessa tradução até às primeiras horas da madrugada. Era uma tarefa que não me dava prazer. O autor e a estória não me interessavam, o esforço físico exigido pelo simples ato de datilografar o texto me produzia dores no corpo inteiro.

Passaram-se os meses, o fim do ano aproximava-se, e minha saúde não melhorava. Cadavérico, exausto, desconfiei de que meu fim se aproximava. Decidi que o melhor seria ir morrer em Cruz Alta. Pedi licença de um mês à editora da revista — prova de que tinha a esperança de recuperar-me, pois ninguém pede licença de um mês para morrer — e em princípios de dezembro minha mulher e eu embarcamos para a nossa pequena cidade, e mais uma vez o meu fiel amigo, o Dr. Catarino, veio em meu socorro. Aplicou-me um tratamento drástico, desagradável mas eficaz, e em janeiro do ano seguinte me devolveu à Revista do Globo, com mais carnes e melhores cores.

Foi com um otimismo trêmulo e molengo de convalescente que vi entrar o ano de 1932.

 

Quando volto o olhar para o passado, à cata de momentos importantes da minha vida, de vez em quando me detenho a examinar o que meu encontro com certas pessoas veio a significar para minha economia sentimental.

Em 1923 — ou terá sido em 1924? — quando ainda em Cruz Alta, travei conhecimento num campo de futebol (éramos espectadores, não jogadores) com um rapaz chamado Maurício Rosenblatt. Tinha ele mais ou menos a minha idade, era um grande devorador de livros e revelava pendores filosóficos. Como sabia que eu era na cidade "o moço que lia" — perguntou-me que obras considerava eu indispensáveis à formação duma boa cultura. Respondi como pude, isto é, de maneira hesitante e vaga. Mal sabia Maurício que seu juízo crítico, bem como seu convívio com a literatura, era muito mais rico e profundo que o meu. Esse encontro casual foi o começo duma amizade que até hoje tem resistido à prova do tempo e do espaço.

É possível que hoje as pessoas que conhecem de perto Maurício Rosenblatt sejam unânimes em descrevê-lo como um homem baixo, bem educado, agudamente lúcido e freqüentemente brilhante, mau grado seu, pois, mercê de exagerados pudores, evita todo gesto ou frase que mesmo de longe possa parecer aos outros desejo de exibir cultura ou inteligência. Subscrevo a descrição apenas com uma reserva. Nunca vi nem senti Rosenblatt como "um homem baixo", pois sua personalidade e sua presença têm tamanha força, que chegam a aumentar-lhe até a estatura física.

 

Em princípios de 1931 conheci Henrique Bertaso, homem também da minha geração. Como era "filho do chefe" eu não quis aproximar-me muito dele. Como, porém, trabalhássemos na mesma casa, nossas relações aos poucos e naturalmente se foram fazendo mais estreitas e acabaram por transformar-se em amizade.

José Bertaso, seu pai, italiano natural de Verona, viera para o Brasil quando ainda menino, empregando-se como servente da então pequena livraria de Laudelino Barcellos. Inteligente, trabalhador, dotado dum olho vivo para os negócios, fez uma carreira espetacular: passou de servente a caixeiro, de caixeiro a gerente e de gerente a sócio da firma. Era sem dúvida alguma a alma da casa. Espírito aberto a inovações, capaz de correr riscos calculados, foi ele quem, numa sucessão de empreendimentos audaciosos, transformou a pequena livraria provinciana num grande estabelecimento que acabou sendo conhecido e respeitado não só no Brasil como também no estrangeiro.

Eu tinha freqüentes rixas com o velho Bertaso, geralmente por causa das despesas com clichês para a revista, que o chefão sempre achava excessivas. Ele era explosivo e eu, xucro. Detestava e ainda detesto ser repreendido, seja como e por quem for. Por mais de uma vez, ao cabo dessas discussões, pensei em abandonar a Revista do Globo e sair à procura de outro emprego. Levei algum tempo para compreender que aquele homem decente e decidido jamais queria atingir com suas explosões verbais as pessoas, mas sim os erros que, a seu ver, elas cometiam. Muito mais tarde, quando já nos entendíamos melhor, conversávamos na maior camaradagem sobre revistas, livros e autores. Um dia, entre trocista e sério, ele me disse: "Veja bem o absurdo. Vocês escritores ganham dez por cento sobre o preço de venda de seus livros. Não arriscam um vintém no negócio.

Nós os editores arriscamos tudo e dificilmente ou nunca obtemos um lucro limpo que iguale essa percentagem...". Olhei, com fingida gravidade, para meu interlocutor e repliquei: "Amigo Bertaso, o seu ideal de editor é irrealizável". Ele franziu o cenho. "Meu ideal? Que ideal?" Esclareci: "O livro sem autor". O velho rompeu a rir.

 

Em princípios de 1932 minhas relações com Henrique Bertaso eram ainda distantes. Eu andava pensando em publicar em forma de livro os meus melhores contos, mas sabia que uma obra dessa natureza seria fatalmente um mau negócio para qualquer editora, por duas razões poderosas: eu era um autor praticamente desconhecido, e os livros de contos tinham pouca aceitação no mercado.

Pensei então em fazer a publicação por minha própria conta, e um dia perguntei ao jovem Bertaso quanto me poderia custar a produção da obra. Ele ficou pensativo por um instante e depois, sem muito entusiasmo, murmurou: "Podemos editar seu livro por conta da casa. Onde estão os originais?". Esse diálogo lacônico, travado entre dois homens ainda na casa dos vinte, ambos de pé e meio desajeitados, em plena seção de varejo da Livraria do Globo, teve uma grande significação na minha carreira e quero crer que de certo modo também na de Henrique Bertaso e na de sua incipiente editora.

 

Fantoches apareceu assim em 1932 — uma coleção de contos em sua maioria na forma de pequenas peças de teatro, com influências de Ibsen, Shaw, Anatole France e Pirandello, sendo que a deste último era uma "influência de oitiva", pois eu ainda não havia lido nenhuma peça do autor do Cosi è se vi pare. Agripino Grieco, crítico iconoclasta, implacável demolidor de figurões literários, mas juiz indulgente dos principiantes, tratou meu primogênito com grande simpatia, o que muito me incentivou. Amigos escreveram notas favoráveis sobre os meus bonecos. É natural que houvesse também críticas desfavoráveis ou apenas neutras. Dos 1500 exemplares impressos, venderam-se no primeiro ano apenas uns 400 ou 500. Um incêndio providencial destruiu o armazém onde estavam sepultados os volumes não vendidos de Fantoches e, como toda a mercadoria estivesse segurada, a editora não teve prejuízo com a edição, e eu recebi minha percentagem sobre o total de exemplares queimados. Ora, isso não é o que se possa chamar de sucesso literário, mas de certo modo o incêndio me proporcionou a oportunidade de oferecer à Globo um novo livro.

 

Foi mais ou menos por essa época que conheci Vianna Moog, jovem advogado e fiscal do imposto de consumo, nascido e criado às margens do Rio dos Sinos. Alto, espadaúdo, tinha uma bela cara de príncipe holandês que à primeira vista não me pareceu muito inteligente. Fui obrigado a mudar de opinião depois que li seu Heróis da Decadência e os outros admiráveis livros que ele veio a escrever mais tarde.

Nestes últimos quarenta anos, Vianna Moog e eu temos passado largos períodos longe um do outro, mas sempre que nos encontramos — e isso tem acontecido em Porto Alegre, no Rio, em Nova Iorque, Washington, Paris, Lima, Cidade do México — retomamos nossa velha, descansada e boa prosa, como se nos tivéssemos visto na véspera.

 

Naquele ano de 1932 fiz um esforço especial para dar à Revista do Globo um aspecto menos provinciano. Mansueto Bernardi deixara a direção do quinzenário, mudando-se para o

Rio de Janeiro, convidado por Getúlio Vargas para o cargo de diretor da Casa da Moeda.

Tudo na redação tinha de ser feito às pressas. Às vezes,; folheando revistas americanas, eu descobria nelas ilustrações que me agradavam. Mandava então transformá-las em clichês. Prontos estes, invertendo o processo habitual, eu improvisava um conto que se adaptasse às estampas e firmava-o com um nome suposto.

Uma dessas estórias, Lama das Trincheiras, supostos trechos do diário dum soldado inglês da Primeira Grande Guerra, pasticho visível de Remarque, foi publicada numa revista argentina, pirata como a nossa, e cujo redator "fabricou" uma biografia para o autor do conto, Gilbert Sorrow, criatura que existia apenas na minha imaginação ou, melhor: era apenas um nome sem corpo, sem alma, sem passado e sem futuro, pois, que eu saiba, o escritor-fantasma não escreveu mais nada.

Com freqüência os nossos paginadores me telefonavam da oficina, comunicando-me que necessitavam de matéria para encher um espaço vazio de alguns centímetros, no fim duma página. "Espere um minuto!" — dizia eu. Punha papel na máquina de escrever e improvisava um poema à maneira oriental, atribuindo-o a um poeta árabe, chinês, japonês ou persa, todos imaginários, e mandava-o para o linotipista. Não raro vinha lá de baixo um chamado aflito: "Faltam ainda cinco linhas!". Eu então ditava pelo telefone os versos suplementares em que apareciam amendoeiras floridas, cálidas areias do deserto, rosas dos jardins do Alhambra, luares sobre o Ganges... "Chega?" Havia uma pausa. "Agora tem uma linha sobrando..." — dizia o paginador. "Bom, tire fora essa flor de lótus. Faça ponto onde se lê desceu ao jardim."

Se um dia eu publicasse em livro esses poemetos e haicais, poderia dar-lhes o título prosaico mas sincero de Poemas para Tapar Buracos.

Apesar de todos os meus esforços, o quinzenário da Livraria do Globo continuava a ser uma das piores revistas do universo. Quem mais tarde o salvou dessa condição, chegando a dar-lhe projeção nacional, foi Justino Martins, homem de talento e espírito objetivo, habilíssimo repórter e "revisteiro", que nesse ano de 1932 ainda fazia seu curso ginasial em Cruz Alta. (Justino Martins viria a casar-se um dia com a irmã mais moça de Mafalda, Lucinda, mulher inteligente de grande integridade de caráter.)

 

No ano anterior eu tivera a surpresa de receber uma carta de meu pai — a primeira depois de nossa despedida em Cruz Alta — acompanhada duma fotografia. Comunicava-me ele que, havia um ano, era chefe duma seção do Departamento do Trabalho, na cidade de São Paulo. O retrato, em que o Velho aparecia cercado de algumas dezenas de homens e de mulheres, trazia esta legenda: O Cel. Sebastião Veríssimo, no dia de seu 50.° aniversário, cercado de colegas, amigos e admiradores, que lhe deram de presente um relógio de ouro.

Lá estava meu pai, sorridente, bem trajado, gordo e simpático como um Buda. Tudo indicava que continuava ainda em plena posse de seu magnetismo pessoal.

Quando recebi a notícia do movimento revolucionário constitucionalista deflagrado em São Paulo, pensei logo em Sebastião Veríssimo e fiquei preocupado com sua sorte. Durante os meses que se seguiram não tive mais nenhuma notícia dele. Vim a saber mais tarde que, por se haver mantido fiel ao Governo central durante a revolução, fora destituído de seu cargo. Daí por diante perdi contato com ele.

 

Em 1933 publiquei Clarissa, a estória duma menina de treze anos que amanhece para a vida. É uma novela praticamente sem intriga, do tipo "fatia de vida". (Eu aprendera boas lições com Katherine Mansfield, cujo Bliss viria a traduzir mais tarde.) Creio, porém, que nesse segundo livro meu — coleção de cenas em aquarela em torno da vida cotidiana — havia algumas ressonâncias da Clara d'Ellebeuse, de Francis Jammes, leitura ainda dos tempos da farmácia.

Quando hoje penso nos meus primeiros romances, custa-me crer que eu os tenha escrito dentro das "aparas" de tempo que me sobravam das outras funções: a tradução de livros, que me ocupava as noites e parte das madrugadas, a minha atividade de polvo — física e intelectualmente falando — na redação da revista, onde tinha de fazer as vezes de diretor, redator, ilustrador, paginador e ocasionalmente escritor americano ou inglês, quando por injunções tipográficas não era compelido a ser também poeta oriental. Por mais empolgado que estivesse pelas personagens de minhas próprias ficções, era obrigado a fechá-las a sete chaves num quarto escuro no fundo do cérebro, e dedicar minha atenção a um tipo de trabalho fútil e não raro idiota, como o de ler e publicar sonetos miseráveis — porque o "poeta", segundo o gerente da Livraria do Globo, era um bom freguês da Casa e não podia ser "desconsiderado" — ou então reproduzir fotografias de "galantes e inteligentes meninos", filhos de assinantes da revista ou ainda instantâneos sob títulos como "Aspectos do Último Veraneio na Praia da Cidreira" ou "Ecos do Carnaval em Vacaria".

Dedicava pequena parte de meu tempo a uma página, A Mulher e o Lar, que eu organizava semanalmente para o Correio do Povo — crônicas e versos mundanos, receitas culinárias, modas, tudo sempre com a prestimosa colaboração da tesoura e do pote de grude.

A verdade é que Clarissa e os quatro romances que se seguiram foram escritos apenas em tardes de sábado. Henrique Bertaso publicou a novelinha numa coleção de bolso — volumes cartonados com sobrecapa em tricromia — e na qual apareciam em cômico ecletismo autores da importância dum Puchkin e dum Gogol ao lado dum Edgar Wallace e dum Érico Veríssimo. Para conseguir-se um custo mais baixo por unidade, imprimiram-se de Clarissa sete mil exemplares, tiragem enorme para aquele tempo. Foram necessários cinco anos e várias liquidações para que a edição se esgotasse.

Por mais ternura que me inspirasse a figura da menina Clarissa, relendo a sua estória eu não a achava satisfatória como literatura. A vida não era apenas uma sucessão de cromos, de momentos de serena poesia doméstica. Tinha também o seu lado sombrio e sórdido ao qual o romancista não devia fechar os olhos ou virar as costas. Decidi usar nos futuros romances outros desenhos e outras tintas.

 

Foi Augusto Meyer quem me deu a conhecer o Point Counterpoint, de Aldous Huxley, livro cuja leitura me empolgou de tal maneira, que sugeri a Henrique Bertaso que o fizesse publicar em português. "Vai ser um mau negócio do ponto de vista financeiro" — adverti-o — "mas dará grande prestígio à editora". Bertaso aceitou a sugestão e eu me encarreguei da tradução. O trabalho me ocupou oito meses inteiros, pois eu só me podia entregar a ele à noite e durante os domingos e feriados.

Contraponto, em sua versão brasileira, apareceu em 1933, e creio que constituiu um marco na estória editorial do Brasil. E — estranho! — esse romance de idéias, destinado à elite duma elite, teve apreciável sucesso no nosso país, e até hoje, passados quarenta anos, ainda é reeditado periodicamente.

Nunca escondi ou neguei o fato de ter sido esse livro de Huxley o responsável pela técnica que usei num romance que escrevi em 1934, em algumas dezenas de tardes de sábado: Caminhos Cruzados. Creio que Aldous Huxley também nunca negou que seu Point Counterpoint tivesse sofrido uma certa influência de Les Faux Monnayeurs, de André Gide. E essa técnica do romance simultaneista já havia sido tentada em 1910 por W. S. Maugham no seu Merry-go-round (Carrossel).

Se o pintor e o poeta frustrados que coexistem em mim com o romancista se haviam comprazido na feitura de Clarissa, o caricaturista e o satirista tiveram seu dia de festa em Caminhos Cruzados. Escrito num estilo nervoso, um tanto em veia de reportagem — "estilo elétrico" como o classificou William Dubois, criticando a versão americana desse livro, no suplemento literário do New York Times — essa obra pode ser considerada um documento de protesto social. Creio que o projétil atingiu o alvo em cheio. Publicado em 1935 — ano muito importante na minha vida, pelas muitas coisas positivas que durante seu decurso me aconteceram — esse "romance coletivo" chocou não só os conservadores da literatura como os da política. Foi considerado imoral, subversivo, dissolvente, tudo isso, imagino, porque não só ousava mostrar o medonho contraste entre os muito ricos e os muito pobres, como também porque expunha as mazelas morais de certas camadas de nossa burguesia, naquele tempo — diga-se de passagem — muito menos acentuadas que as de hoje.

O romance contou desde logo com a má vontade do clero católico, e foi tão violentamente denunciado por certos críticos do centro e da direita, que a celeuma acabou chamando sobre a minha pessoa a atenção do Departamento da Ordem Política e Social do meu Estado, onde fui fichado como comunista. Para essa classificação muito contribuiu o fato de ter eu, naquele ano de 1935, encabeçado as assinaturas dum manifesto antifascista em que visávamos não só o fascismo nacional, como também o alemão e o italiano. O documento continha um protesto direto e veemente contra a invasão da Abissínia pelas tropas de Mussolini.

Fui um dia chamado ao gabinete do chefe de Polícia, que me recebeu com uma afabilidade constrangida, fez-me sentar ao seu lado num sofá e, depois de alguns rodeios, me disse: ""Asseguraram-me que o senhor é comunista". Repliquei: "Curioso, a mim me garantiram que o senhor é integralista". O homem sorriu amarelo (ou verde) e explicou: "Bom... teoricamente sou, não nego". Interrompi-o: "Pois eu não sou comunista nem teoricamente". A conversa depois disso tomou outros rumos. Houve silêncios embaraçosos. Por fim fui mandado em paz, de volta à minha rotina. A campanha contra o livro, porém, continuou, e mais de um sacerdote o anatemizou do púlpito, em sermões dominicais. Minha mulher, boa católica, sentia um certo mal-estar quando, na missa, ouvia esses ataques.

Caminhos Cruzados obteve em 1935 o prêmio anual de romance conferido pela Fundação Graça Aranha, do Rio de Janeiro.

 

No setor familiar continuavam as dificuldades financeiras. Em fins de 1931 havíamos abandonado o Majestic para nos instalarmos numa casa de cômodos no Alto da Bronze. Compramos a prestações uma mobília de quarto ordinaríssima. Na guarda da cama a marca de minha cabeça — que nela eu costumava encostar quando lia antes de dormir — ficou numa rosada mancha sobre o verniz barato. Minha mulher improvisou mesas e bancos com caixões de querosene cobertos de chitão estampado. Um ano depois alugávamos uma casa na Rua Riachuelo, e eu mandava buscar minha mãe e Maria para morarem conosco. D. Bega trouxe consigo o manequim, a máquina de costura e a tesoura. Na sua opinião o que eu ganhava por mês não era o suficiente para sustentar uma família. Pretendia continuar a profissão de modista para não me "ser pesada".

 

Para nós o maior acontecimento de 1935 foi o nascimento de nosso primeiro filho, uma menina. Nos primeiros três anos de nossa vida de casados, minha mulher e eu, que mal podíamos esconder nossa tristeza e nossa decepção por não termos filhos, entretínhamo-nos com os filhos alheios, que pedíamos "emprestados" a vizinhos e amigos.

Ernani Fornari observou um dia com muito acerto que o nascimento de Clarissa — pois obviamente a criança recebeu em batismo o nome da personagem da novela — provocara em mim uma grande transformação. Meus silêncios taciturnos se fizeram mais raros: o caramujo aventurava-se para fora de sua carapaça. "Estás até aprendendo a rir, homem!" — disse-me o querido amigo.

Na mesma semana em que nasceu Clarissa — estando minha mulher ainda no hospital — recebi por intermédio do Grêmio Gaúcho de São Paulo a notícia de que meu pai sofrerá um derrame cerebral e encontrava-se em estado grave e absolutamente sem recursos. Minha situação financeira no momento era péssima. Gastara minhas economias com o enxoval do bebê, e o que me restava mal dava para pagar o médico e as diárias da Maternidade.

Mas eu precisava socorrer o Velho com a maior urgência. Além dos motivos de ordem sentimental, eu levava em consideração a idéia de que qualquer hesitação da minha parte poderia mais tarde parecer a mim mesmo um ato inconsciente de punição ao meu pai. Consegui na Editora Globo o adiantamento duma importância sobre futuros direitos autorais, o suficiente para custear as primeiras despesas com médicos e hospital, e remeti-a para São Paulo. No dia seguinte, porém, chegou-me a notícia do falecimento do velho Sebastião. Morrera sem saber que tinha uma neta. Morrera sozinho e na miséria. Isso me doeu, dando-me um sentimento de culpa que eu repelia com o intelecto, mas sentia intensamente com o corpo inteiro.

Na noite daquele dia Maurício Rosenblatt passou várias horas fazendo-me companhia. Caminhamos sem destino certo pelas ruas mais quietas da cidade. Meus problemas íntimos me davam uma loquacidade nervosa. Falei todo o tempo em meu pai, recordei os seus mais belos momentos, as nossas relações, o papel decisivo que eu representara na separação do casal. Agora — concluí — não havia mais nada que eu pudesse fazer pelo meu amigo. Imaginei os seus últimos anos em São Paulo, em empregos precários ou desempregado, sem família, sem dinheiro... Poderia eu ter feito em favor dele algo que não fiz? Teria sido um mau filho, um egoísta, um moralista hipócrita?

Rosenblatt e eu nos separamos depois das duas da madrugada. Fui para casa, deitei-me, vi passar várias imagens de meu pai contra o pano de fundo de minhas pálpebras. Lá ia ele vestido de tussor de seda, perfumado, cabeça erguida, um príncipe da vida. Era essa a imagem que eu queria guardar dele... Por fim adormeci. Não me lembro dos sonhos que tive nessa noite. Na manhã seguinte fui visitar Mafalda no seu quarto da Maternidade e encontrei um pouco de Sebastião Veríssimo na face de sua neta. Isso me comoveu e de certo modo consolou...

 

Foi ainda em 1935 que escrevi A Vida de Joana d'Arc. A figura da Donzela me fascinava desde os tempos de menino. Nesse mesmo ano publicou-se Música ao Longe, novela em que torna a aparecer Clarissa, dessa vez de volta à sua Jacarecanga que, de certo modo, é uma estilização caricatural de Cruz Alta. Creio que a estória de como e por que escrevi esse livro merece ser contada.

Em 1934, Dyonélio Machado, com quem eu mantinha então relações muito cordiais, contou-me de seus planos para um livro. Achei o assunto excelente. Dyonélio escreveu assim Os Ratos, admirável estudo psicológico que é ao mesmo tempo um documento social. Como a Companhia Editora Nacional de São Paulo tivesse instituído o Prêmio de Romance Machado de Assis, Dyonélio Machado decidiu inscrever-se no concurso com a novela recém-escrita. Perguntou-me: "Por que não concorres também com os originais de Caminhos Cruzados?". Respondi que já os havia entregue à Globo e que, de resto, temia que o livro nem sequer fosse classificado como finalista no concurso, caso em que eu passaria a desconfiar de sua qualidade. Foi então que, persuasivo, o autor de Um Pobre Homem — talvez a primeira tentativa de ficção urbana feita no Rio Grande do Sul — sugeriu: "Por que não fazes um romance especialmente para esse concurso?". Repliquei que era impossível, uma vez que o prazo para a entrega de originais se venceria dali a pouco mais de um mês. Dyonélio sorriu. (É uma figura estranha, espécie de lobo solitário da nossa literatura. Inteligente, combativo, erudito, autoritário, áspero, imprevisível — estes são os primeiros adjetivos que me ocorrem para qualificar esse homem que pode ser alternadamente anjo e ogro, os olhos dum azul de cobalto, límpidos e serenos, num contraste com a agressividade da boca.) Aceitei sua sugestão e escrevi Música ao Longe em poucas semanas. No fim daquele ano tivemos a notícia de que a comissão julgadora encontrava-se num impasse diante dos finalistas, que eram Marques Rebello, João Alphonsus, Dyonélio Machado e eu. Ficamos sabendo mais tarde que cada juiz tinha o seu predileto. Gilberto Amado insistia para que se desse o prêmio a Os Ratos. Monteiro Lobato dava seu voto final a Música ao Longe. Dos três juizes restantes, Gastão Cruls favorecia Marafa, de Marques Rebello e o outro, o Totônio Pacheco, de João Alphonsus. O júri resolveu o problema dividindo a importância do prêmio entre os quatro finalistas, o que foi feito. A notícia me chegou por intermédio dum telegrama de Jorge Amado, com quem eu então mantinha relações apenas de correspondência. A esse escritor e a Dyonélio Machado dediquei o meu livro premiado.

 

Eu tinha quase trinta anos e jamais vira o mar. Passara os primeiros vinte e cinco da minha vida numa cidade do interior. Talvez me tivesse deixado contagiar por essa indiferença, esse quase desprezo que o homem do interior tem pelo mar — isso sem prejuízo da fascinação artística e literária que a palavra e a idéia "oceano" exerciam sobre o meu espírito. Mafalda e eu estávamos agora, havia quase cinco anos, em Porto Alegre e ainda não tivéramos economias suficientes para nos locomover até às praias cio Atlântico, que ficavam a pouco mais de cem quilômetros da porta de nossa casa. Suportávamos os longos e duros verões na cidade sobre e sob suas pedras escaldantes.

Em outubro de 1935, pela primeira vez na vida, deixei as terras do meu Estado natal para uma curta visita ao Rio. Comprei uma passagem de terceira classe no navio italiano Oceania, no qual embarquei no porto da cidade de Rio Grande. Foi através de uma de suas vigias que, num dia cinzento de céu nublado, tive a minha primeira visão do mar. Sua cor me decepcionou: não era o luminoso verde nem o azul profundo que eu esperava, porém um violeta desmaiado e opaco. Mas afinal de contas era o mar...

Hospedei-me no Rio, primeiro com Ernani Fornari, que para lá se havia mudado havia pouco, fascinado pelas belezas naturais da cidade, e mais tarde com Jorge Amado. Foi nessa época que conheci pessoalmente, além do autor de jubiabá, José Lins do Rego, Carlos Drummond de Andrade, Jorge de Lima, Álvaro Moreyra, Murillo Mendes, Angyone e Dante Costa, Peregrino Júnior, Graciliano Ramos, José Olympio, Marques Rebello, Amando Fontes... Fui apresentado a Augusto Frederico Schmidt na Rua do Ouvidor. Jorge Amado segurou-me o braço e dirigiu-se ao poeta: "Schmidt, este é o Érico Veríssimo". O outro mal me olhou, soltou um ronco, estendeu-me a mão mole, que apertei rápido, voltou-me as costas e continuou o seu caminho. Não acompanhei seu séquito nem tornei a procurar o bardo. Quase vinte anos mais tarde, jantando com ele num restaurante em Washington, D.C. relembrei esse encontro. "Você não me deu a menor confiança!" — queixou-se Schmidt. Ora, ele era um adulado "poeta federal" — que, segundo o poema de Drummond, tira ouro do nariz — dono duma editora que lançara escritores da importância de Graciliano Ramos e Gilberto Freyre. E quem era eu? Um acanhado, obscuro provinciano, que escrevia romances que pouca gente havia lido. Minha obrigação era prestar homenagem ao grande homem. Respondi: "Se você esperava que eu me juntasse à sua caravana e seguisse seus passos, Schmidt, é porque não conhece os serranos do Rio Grande. Mas uma coisa eu lhe garanto. Apesar de meu ressentimento pela indiferença com que você me recebeu, nunca deixei de gostar de sua poesia e nunca falei mal de você". Estas palavras pareceram alegrar o poeta, que no fundo era um homem que tinha a necessidade de ser admirado e principalmente amado.

 

Nosso 1936 foi assinalado principalmente por dois acontecimentos: o nascimento dum filho, Luís Fernando, e a publicação de mais um romance, Um Lugar ao Sol, cujo tema — gente moça que luta pela sobrevivência — refletia as apreensões e dificuldades de nossa própria vida, embora o elemento autobiográfico nesse livro seja muito tênue, transfigurado a ponto de se tornar irreconhecível ou — quem sabe? — ausente.

Foi também nesse ano que, ainda para fazer face às despesas crescentes da família, aceitei o convite que me fez Arnaldo Balvé para que eu criasse e mantivesse na sua Rádio Farroupilha um programa dedicado às crianças. Foi assim que nasceu o Amigo Velho, o contador de estórias, e o Clube dos 3 Porquinhos. Cerca das seis da tarde, duas vezes por semana, eu saía apressado da redação da revista, subia às carreiras as escadarias do viaduto, entrava nos estúdios da PRH-2 e, ainda ofegante, improvisava diante do microfone um conto, pois não tinha tempo para escrevê-lo e nem mesmo para prepará-lo mentalmente com antecedência.

Quando em 1937 Getúlio Vargas instituiu o Estado Novo e o famigerado DIP começou a exercer rigorosa censura sobre a imprensa e as estações de rádio, fui notificado de que dali por diante o Amigo Velho teria de submeter previamente suas estórias ao Departamento de Censura, antes de contá-las aos seus pequenos ouvintes. (Como as ditaduras temem as palavras!)

Decidi terminar a hora infantil, o que fiz com um discurso de despedida e ao mesmo tempo de protesto contra a situação. Isso me valeu uma nova interpelação da parte da Polícia. "Quero que me fales com toda a franqueza" — disse-me naquele dia um funcionário do DOPS com quem eu tinha relações pessoais. — "És ou não comunista?" Nem sequer me dei o trabalho de lhe responder. Voltei-lhe as costas, ganhei a rua e desci a escadaria do viaduto, assobiando o andantino do misterioso quarteto do disco mutilado.

Na Livraria do Globo minha situação havia mudado. Henrique Bertaso convidara-me para assumir as funções de conselheiro literário da sua editora, à qual desejava dar novo impulso. Aceitei o cargo e comecei a trabalhar, ajudando Henrique a organizar programas editoriais, selecionar obras estrangeiras para traduzir, descobrir os tradutores adequados, fiscalizar a tradução, estudar o formato do volume, escolher o desenho da capa, o tipo da composição do texto, o título definitivo em português e finalmente planejar o lançamento do livro. Criamos uma coleção — a Nobel — que haveria de exercer grande influência em várias gerações de leitores brasileiros. (Tenho disso inúmeros testemunhos pessoais.)

Em 1937 a editora exigiu a maior e melhor parte de meu tempo. Nesse ano publiquei um pequeno livro para crianças, As Aventuras de Tibicuera. Meu objetivo fora contar, paralelamente com as proezas dum índio imortal, as aventuras do Brasil. A coisa acabou sendo uma ficção duma ficção, uma vez que tomei como base a versão oficial escolar da História do nosso país. A História verdadeira de qualquer nação do mundo jamais poderá ser contada.

 

Mafalda amadurecia, transformando-se aos poucos numa companheira compreensiva que me dava todo o apoio moral e o estímulo de que eu necessitava. Sem sua paciência, sua tolerância, seu bom-senso e seu bom-humor, minha carreira de escritor teria sido muito mais difícil do que foi ou talvez mesmo impossível. Se, cansada das dificuldades financeiras em que vivíamos, tivesse ela exigido imediatamente uma vida material melhor, era possível — embora não absolutamente certo — que eu saísse à procura de meios mais rápidos e eficazes de ganhar dinheiro, abandonando a literatura.

Apesar de tudo, naquele ano de 1937 eu ainda não me tinha detido a examinar o amadurecimento de minha mulher com o merecido cuidado, pois é sabido que às vezes enxergamos as pessoas e as coisas que estão longe de nós melhor do que as que estão perto. No meu caso nenhum mal me teria feito uma certa miopia que me permitisse ver com mais nitidez não só as qualidades de caráter e coração da criatura que vivia a meu lado, suportando com sábia paciência meus silêncios, depressões e distrações — como também a sua inteligência instintiva e seu senso comum. Só muitos anos mais tarde é que, compreendendo tudo isso, passei a pedir-lhe conselhos, e a segui-los, vencendo uma teimosia que, nem por ser mansa como a do velho Aníbal Lopes da Silva, deixava de ter também algo de muar. Seja como for, hoje sei que Mafalda é a melhor, a mais lúcida cabeça desta família. Sua capacidade de rir nas situações mais difíceis me tem ajudado muito a enfrentar sem drama os mais difíceis problemas.

Os filhos cresciam: Clarissa, gorda, roliça, viva, comunicativa, teatral; Luís Fernando, magro, pálido, tímido, caseiro, introvertido.

E por falar em filhos, ocorre-me que em 1936 escrevi seis estórias destinadas às crianças. Apareceram em espécies de cadernos de capa cartonada, com ilustrações a cores de três excelentes desenhistas — João Fahrion, Nelson Boeira Fäedrich e Edgar Koetz, e foram, anos mais tarde, reunidas num único volume sob o título de Gente e Bichos e mais recentemente reeditadas da maneira original, separadamente, e com ilustrações em cores da autoria de Vera Muccilo Santos.

 

Desde que nos casáramos, Mafalda e eu já tínhamos mudado de casa cinco vezes. Era uma espécie de mania, até certo ponto um modo de viajar, variar de paisagem e de vizinhança. Era bom também ver nossos pobres e parcos móveis dispostos de outras maneiras em outras salas. Fosse como fosse, gostávamos dessas mudanças. Em setembro de 1937, instalamo-nos numa vivenda da Rua Quintino Bocaiúva, nos Moinhos de Vento. Foi lá que comecei a escrever o livro que viria a chamar-se Olhai os Lírios do Campo. Aproximava-se o fim do ano e eu me sentia cansado e insatisfeito com tudo quanto havia escrito até então. Havia momentos em que tinha a impressão de que minha fonte criativa estava seca. Buscava, em vão, assunto para mais um romance, e sentia dentro de mim um vácuo...

Por ocasião da visita que fiz um dia a um hospital onde um amigo se havia internado, vi um homem muito jovem sair dum quarto com um bebê recém-nascido nos braços. Contaram-me que a mãe havia morrido ao dar à luz a criança.

A estória ficou-me na cabeça, revoluteando, provocando idéias e imagens como — hospital... médicos... mulher que morre... homem que fica, e que provavelmente a amava ... Essa nebulosa foi o núcleo do mundinho de Olhai os Lírios do Campo. Tive a intuição de que estava na pista dum romance. E como sempre acontece quando sinto aproximar-se a idéia para um livro, fiquei numa espécie de exaltação interior (o exterior como de costume era de apatia crepuscular), passei a dormir menos, despertava antes do raiar do sol e então a cabeça começava a trabalhar, e eu via as personagens tomarem corpo, ganharem feições e começava a observá-las no ato de viver, tendo vislumbres do passado de cada uma... Semanas depois, conversei longamente com João Santana à mesa dum café, no centro da cidade, comentando a fúria aquisitiva do homem de nossa época, sua sede de sucesso, numa civilização de coisas em que os valores éticos eram cada vez menos levados em conta. Enquanto palestrávamos, eu desenhava a lápis no mármore da mesa faces humanas, como é meu hábito. Quando dei acordo de mim — travessuras do inconsciente! — havia já escrito sobre a pedra estas palavras bíblicas: Considerai os lírios do campo. "Bom título para um romance" — murmurei. Santana continuou silencioso, estava ausente, os olhos iluminados talvez pela luz da Grécia: com toda a certeza dialogava com Platão e Sócrates. "Só não gosto da palavra considerai" — pensei. Podia trocá-la por olhai. Ali estava o título do livro! Estória de médicos. Um rapaz pobre que quer conseguir sucesso na vida e segue o atalho dum casamento rico. Será, vejo logo, uma união infeliz. Eugênio deixou para trás a única mulher que o amava de verdade. Olívia. Sim, esse era o nome dela, não sei por que, mas era. Uma enfermeira? Não. Uma médica. Tinham estudado juntos. Imaginei a solenidade da formatura no Teatro São Pedro. Uma noite quente de dezembro. (O perfume dos jasmins da minha infância foi convocado para embalsamar essa noite assinalada na vida de Olívia e Eugênio.) Vi os dois amigos, depois da cerimônia, sentados nos degraus do monumento da praça, à frente do teatro, sem saberem o que fazer com aqueles canudos que lhes davam o direito de exercer a profissão médica. Comecei a procurar uma fisionomia para Olívia, e meu lápis riscava o mármore, tentativamente... Santana sorvia o seu cafezinho, navegando decerto os mares de Homero, rumo de Delos ou de Míconos.

Na tarde do dia seguinte — que era providencialmente um sábado — coloquei papel em branco na portátil Royal e procurei escrever a primeira linha do primeiro capítulo de Olhai os Lírios do Campo. Como principiar? As primeiras páginas são sempre para mim as mais difíceis de redigir. A noite da formatura? Não. Devia começar num hospital onde Olívia se encontra gravemente enferma. Eugênio está já casado com a outra, a rica. A estória deve ser contada em flashbacks, pulos ao passado. Escrevi a primeira linha. O médico sai do quarto n.° 122. A enfermeira vem ao seu encontro. Nesse momento Luís Fernando aproxima-se de mim, atraído pelas batidas da máquina. Vou continuar a escrever mas meu filho agarra a extremidade do cilindro e puxa-o bruscamente para provocar aquele retintim de campainha que tanto o diverte. Clarissa também se acerca e pendura-se no meu pescoço. Tento, em vão, desembaraçar-me dos dois sabotadores. Impaciente, escrevo: Como é possível trabalhar se estas crianças não me deixam em paz?

Naquele tempo a Editora Globo ainda não tinha escritórios próprios. Para poder trabalhar em calma — pois seu gabinete vivia sempre cheio de gente, como uma sala de visitas — Henrique Bertaso havia-se mudado para o lugar mais improvável de todo o grande edifício da Livraria do Globo: uma espécie de passarela que atravessava de lado a lado o vasto salão da tipografia, onde estavam instaladas também as linotipos. Para lá me mudei também com o meu papelório e instalei-me junto duma pequena mesa de pinho sem verniz, com uma única gaveta. O lugar era quente e abafado, principalmente no verão. No meio do farfalhar contínuo das linotipos, subia lá de baixo o bafio cálido do chumbo derretido, de mistura com emanações de antimônio e com a poeira negra da tinta tipográfica ressequida. Foi nessa pequena sucursal do inferno que escrevi boa parte de Olhai os Lírios do Campo, livro que, do ponto de vista de vendas, foi decisivo na minha carreira de escritor.

Publicado em 1938, teve logo uma grande, surpreendente aceitação popular. O velho José Bertaso, que nunca morrera de amores pelo seu departamento editorial, não acreditava que um escritor gaúcho fosse capaz de produzir um livro vendável, recusava dar crédito aos pedidos que chegavam de centenas de livrarias de todo o Brasil. E quando Henrique lhe comunicou que estava por esgotar-se a primeira edição do meu novo romance e que ia providenciar imediatamente uma nova impressão, o velho levou as mãos à cabeça e exclamou: "Vocês estão malucos! Não se iludam. Qualquer dia os livreiros começam a devolver os exemplares que lhes mandamos em consignação". Felizmente o chefão se enganava, como ele próprio, satisfeito, reconheceu mais tarde.

Certa vez um jornalista me perguntou no Rio, durante uma entrevista coletiva, se eu não teria sido influenciado por A Cidadela, de Cronin, quando escrevi Olhai os Lírios do Campo. Respondi que não havia lido esse livro, mas que estava disposto a admitir a possibilidade de ter sido de certo modo induzido a escrever uma estória de médicos por estarem em voga naquela época os livros desse gênero. Hoje, pensando melhor, verifico que na verdade a semente desse meu romance jazia adormecida dentro de mim desde os tempos de ginásio, quando muitas vezes pensei em fazer um dia meu avô Franklin Veríssimo personagem centra! dum romance que deveria chamar-se O Médico.

 

O ano de 1939 encontrou-nos noutra casa, essa na Rua Pelotas. A publicação da estória de Olívia e Eugênio trouxera grandes mudanças para a nossa vida. Eu não só começava a ganhar direitos autorais mais altos, como também a receber grande quantidade de cartas de leitores que haviam lido o romance e encontrado nele inspiração, consolo ou estímulo. Muitos desses correspondentes pediam-me conselhos. Outros vinham pessoalmente até o meu escritório (agora eu ocupava uma sala mais decente) para me exporem verbalmente seus problemas e queixas, na esperança de que eu pudesse resolver suas dificuldades, em geral de ordem sentimental, moral ou financeira. Descobri então que em sua maioria esses "sofredores" necessitam antes de mais nada de um ouvido amigo. Pelo menos esse ouvido eu lhes emprestava, mesmo quando não podia ajudá-los de maneira mais positiva. Neuróticos e até psicóticos passaram pelo meu gabinete de trabalho e me confiaram seus problemas, fantasias, sonhos e tragédias. Alguns lá entravam — poucos, é verdade — apenas para me agredirem. Um dia tive de internar um poeta meu amigo num sanatório para doentes mentais, cujos psiquiatras me asseguraram que aquele tipo de loucura era incurável. Cerca de sete anos mais tarde, encontrei o meu "paciente" na Rua dos Andradas, abraçamo-nos, e eu manifestei minha alegria por vê-lo curado, pois o homem conversava de maneira natural e coerente. Tirou da pasta que tinha debaixo do braço um volume de poemas de sua autoria, recém-aparecido, e escreveu nele uma carinhosa dedicatória para mim. Depois apertou-me o braço com força e ciciou-me ao ouvido: "Vou te contar um segredo. Este ano o Prêmio Nobel de literatura vai ser meu". E se foi. (Morreu meses depois, de pneumonia dupla, numa localidade do interior do Estado.)

Por essa época eu havia abandonado por completo a Revista do Globo, dedicando todo o meu tempo ao departamento editorial. Henrique Bertaso e eu nos entendíamos muito bem. Tínhamos escritórios contíguos e estávamos ambos tão entusiasmados ce)m a editora, que não havia dia em que não tivéssemos uma idéia nova. Por que não lançamos a Servidão Humana de W. Somerset Maugham? E os livros de divulgação de Hendrik Van Loon? Henrique sonhava com dicionários e enciclopédias. Tivemos mais tarde a colaboração de Hamilcar de Garcia, homem agudamente inteligente, e de Maurício Rosenblatt (que eu conseguira roubar à Casa Victor, onde ele trabalhava havia algum tempo). A editora veio a publicar A Montanha Mágica, de Thomas Mann, Vento Sul, de Norman Douglas, Orlando e Mrs. Dalloway, de Virgínia Woolf, Guerra e Paz, de Tolstói, A Comédia Humana, de Balzac, completa, numa edição crítica organizada e comentada pelo Prof. Paulo Rónai, À Ia Recherche du Temps Perdu, de Proust, e já estávamos com o olho em Joyce e Kafka.

A romaria ao meu gabinete continuava. Aparecia gente de todos os caminhos da vida, de todas as profissões, idades e de todos os sexos. Se eu houvesse guardado um registro fonográfico ou mesmo se tivesse anotado os diálogos que mantive com meus "consulentes" — em sua maioria do sexo feminino — teria hoje uma rica coleção de documentos humanos. (O curioso é que não me lembro de ter jamais usado conscientemente, como personagem de meus romances, qualquer das pessoas que naquele tempo me confiaram os seus problemas íntimos.)

No verão de 1939-1940 nossa situação financeira nos permitiu passar duas semanas na verde e fresca paz de Gramado, na chamada zona colonial. Um dos saldos positivos desse veraneio foi a oportunidade que tive de conhecer mais de perto Moysés Vellinho, que lá se encontrava com a família. Apesar de minha admiração e respeito intelectual pelo escritor, eu tinha a impressão de que como pessoa ele era um esnobe, pobre de vibração humana. O convívio de alguns dias me convenceu exatamente do contrário. Fiz mentalmente uma errata: onde se lê esnobe, leia-se discreto. Creio que o horror ao ridículo, ao piegas, ao teatral, tornava Vellinho cauteloso e retraído a ponto de parecer frio e olímpico.

Em 1939, satisfazendo também uma fantasia da infância, escrevi um livro sobre os monstros antediluvianos, Viagem à Aurora do Mundo.

Na volta do veraneio serrano, em princípios de 1940, instalamo-nos num apartamento do edifício do Clube do Comércio, em pleno centro de Porto Alegre. Em matéria de condição social, isso significava que tínhamos subido vários degraus, pois, ao tempo, aqueles apartamentos, nada baratos, classificavam-se entre os melhores da cidade. Não estávamos, porém, interessados em aparências. O que queríamos, isso sim, era alojamentos mais amplos e confortáveis do que as casas que até então havíamos ocupado. E eu, cansado já de andar de bonde entre minha residência e o escritório, quatro vezes por dia, podia agora ir a pé do "edifício" para a editora e vice-versa. Desfizemo-nos das últimas caixas de querosene cobertas de chitão e compramos um sofá, poltronas, um armário para livros e uma eletrola Victor. Eu deixara para trás, em Cruz Alta, a minha era operática. Estava agora de grandes amores com Beethoven, especialmente com as sinfonias e concertos para piano e orquestra. Tinha relações cerimoniosas com Debussy, em cujas águas me veio mais tarde Ravel. Chegou o meu dia de entusiasmo pela Sinfonia N.° 2 de Gustav Mahler. E finalmente — via literatura inglesa — tive meu encontro definitivo com Wolfgang Amadeus Mozart. Nessa época J. S. Bach era para mim um senhor corpulento, operoso, que eu cumprimentava de longe com respeito, mas sem coragem de me aproximar dele.

As edições de Olhai os Lírios do Campo continuavam a suceder-se e esgotar-se. Eu experimentava as primeiras sensações da notoriedade. Recebia cartas praticamente de todas as regiões do Brasil, e a todas respondia pessoalmente. A crítica menos sofisticada fora, dum modo geral, simpática ao livro, de sorte que eu tinha todas as razões para me sentir feliz. Mas não! Havia muitas coisas que nos impediam de olhar o mundo com alegria naquele ano de 1940. Uma delas era a Guerra. A situação dos aliados ia de ma! a pior. A Linha Maginot fora contornada, a França invadida, e um dia amanhecemos para a desoladora notícia de que Paris caíra em poder das tropas nazistas. Era o fim do mundo!

Guardo como recordação desse dia negro um instantâneo tirado por um desses fotógrafos ambulantes, e no qual Henrique Bertaso e eu aparecemos a caminhar lado a lado, numa das calçadas da Rua dos Andradas, ambos com caras de condenados à morte, a caminho do patíbulo.

 

No dia anterior firmara-se em cima do cadáver da Polônia o pacto de não-agressão entre a Alemanha nazista e a Rússia soviética. Através do mundo, muitos intelectuais comunistas abandonaram, desiludidos, o Partido, e tanto eles como centenas de escritores e artistas de tendências esquerdistas afastaram-se da URSS, permanecendo como almas penadas, numa espécie de limbo político. Alguns deles me davam uma impressão de orfandade: papá Stalin morrera moralmente. Outros portavam-se exatamente como sacerdotes defroqués. E eram todos mal vistos pelos comunistas ortodoxos — que justificavam Stalin e seu "realismo político" — e olhados com desconfiança tanto pelo Centro como pela Direita. Nunca fui partidário nem simpatizante do ditador russo, mas achava então, e ainda acho hoje, que a presença no mundo dum país socialista militar e industrialmente forte como a Rússia soviética podia servir como elemento catalisador, obrigando as nações capitalistas a corrigir seus excessos expansionistas, monopolistas e colonialistas.

Mas, fosse como fosse, naquele ano de 1940 as perspectivas para os escritores não-totalitários no mundo inteiro eram negras.

 

Em 1940 publiquei Saga, que considero o meu pior livro. Esse romance, que revela o estado de espírito do autor naqueles dias sombrios, é um monstro epiceno, símbolo duma absurda ambivalência política. A estória é narrada na primeira pessoa por sua personagem principal, Vasco Bruno, o qual, depois de ter combatido na Guerra Civil espanhola, como soldado da Brigada Internacional, volta para Porto Alegre e, ao cabo de dura luta para sobreviver dentro duma sociedade burguesa e rotineira, preconceituosa e hipócrita — enojado, desiludido e cansado — capitula e, após seu casamento com sua prima Clarissa, exila-se numa quinta, convencido de que só um contato mais íntimo com a terra lhe poderá devolver a paz de espírito e o sentimento de dignidade e respeito próprio sem os quais não podia viver.

Ora, esse final é falso como o resto do livro. Um homem do temperamento de Vasco Bruno, tão vivamente consciente de sua responsabilidade social, que se julgou no dever de atravessar o oceano para ir ajudar e defender a República espanhola agredida pelo fascismo, jamais poderia resignar-se àquele tipo de vida pastoral, apesar das oportunidades que ela lhe dava para pintar, ler e comungar com a Natureza. Isso quanto ao aspecto psicológico do problema. No que diz respeito ao sentido político e social do gesto, a aposentadoria, a renúncia, a "demissão" do herói ou, melhor, do anti-herói, é uma solução perigosa, além de ilusória. Se os homens decentes e de boa vontade se acovardam e ausentam da arena, os patifes, os gananciosos, os exploradores do povo se apoderam do Governo e mantêm o status quo político e econômico que o infelicita.. Estou, porém, certo de que Vasco Bruno abandonou a vida do campo e voltou à luta, na cidade, em prol de um mundo melhor e mais justo.

Enquanto Clarissa e o marido olhavam para os verdes de seu vale e cuidavam de suas galinhas e vacas, continuei a viver a minha vida, sob o olhar vigilante dos rapazes do Departamento de Ordem Política e Social.

Uma vez saí a fazer conferências pelo interior do Estado e fui seguido por um investigador do DOPS. Ele próprio me contou isso mais tarde, quando já aposentado.

O Estado Novo estava cada vez mais forte. A imprensa, amordaçada. Um ou dois generais de nosso Exército — contava-se — bebiam champanha na embaixada alemã, no Rio, festejando as vitórias da Wehrmacht, deslumbrados pela estupenda eficiência de suas Panzerdivisionen.

A Argentina inclinava-se também para o lado do Eixo. Quando a gente pensava em emigrar, verificava que o número de países não infectados pelo vírus do totalitarismo ia ficando cada vez mais reduzido. Naquele tempo Franklin Delano Roosevelt era na América a nossa grande e única esperança.

 

Foi ainda em 1940 que, tendo ido a São Paulo para fazer uma conferência na Sociedade Sul-Rio-Grandense, fui convidado pelos irmãos Saraiva, livreiros e editores, a comparecer uma tarde à sua livraria para dar autógrafos. (A quem? — perguntei a mim mesmo, cético.) Assegurou-me um amigo que eu seria o primeiro escritor brasileiro a fazer isso. Confesso que meus sentimentos quanto a essa sessão de autógrafos eram ambivalentes. Se por um lado me seduzia a idéia de ver de perto meus leitores, apertar-lhes as mãos, conversar com eles, por outro, a suspeita de que ninguém estava interessado na minha assinatura me causava um certo temor e um antecipado desapontamento. Eu já me imaginava sentado a uma mesa, a "olhar durante horas e horas para uma sala vazia e — para usar duma expressão muito do gosto de D. Bega — sentindo-me como "galinha comprada posta em galinheiro". Aceitei, entretanto, o convite e tive uma das grandes surpresas de minha vida. Muito antes da hora marcada para o princípio da sessão, formou-se uma longa fila que começava na metade da quadra e estendia-se até a mesa junto da qual eu me encontrava. Não sei por que ao assinar meu nome nos livros que me apresentavam, eu me sentia como um vendedor ambulante a impingir a incautos um artigo ordinário. Em suma, tinha a impressão de que estava enganando aquela boa gente, passando-lhes moeda falsa. Os leitores em geral apareciam com exemplares de Olhai os Lírios do Campo. O que mais me comoveu foram as perguntas que se faziam sobre as personagens de meus romances, como se se tratasse de pessoas da vida real.

"Como vai a Clarissa? Já teve o bebê?" — "Quantos anos tem agora a filha de Olívia?" — "O coitado do João Benévolo finalmente encontrou um emprego?" E assim por diante... O desfile durou quase duas horas.

Surpresa maior ainda tive na noite da conferência. O salão da sociedade gaúcha se encontrava completamente lotado, com pessoas de pé pelos corredores ou encostadas às paredes.

Verifiquei então que São Paulo era o Estado em que eu contava com o maior número de leitores. Muito do entusiasmo com que continuei a escrever me veio dessa calorosa acolhida dos paulistas, inclusive a de seus estudantes. (Antes de uma de minhas conferências na Faculdade de Direito, fui uma noite saudado por um acadêmico que viria a ser um dia um dos maiores e mais respeitados críticos literários e sociólogos do Brasil: Antônio Cândido.)

Nos treze anos que se seguiram, voltei muitas vezes à capital paulista. Entre os muitos amigos que lá fiz (seria impossível citar todos) lembro-me especialmente de Edgard Cavalheiro, A. Rolmes Barbosa, José Geraldo Vieira, Diaulas Riedel, José de Barros Martins, Miroel Silveira, Sérgio Milliet, Paulo Mendes de Almeida e Helena Silveira. Mais tarde viria a conhecer o bravo Paulo Duarte, então exilado no estrangeiro, inimigo que era do Estado Novo. Em 1943 travei conhecimento com uma jovem estudante de Direito, Lígia Fagundes,, uma rapariga em flor, tão bonita que tinha todo o direito de não ter o talento que tem; escrevia contos em que já se pressentia a admirável ficcionista que viria a ser, colocando-se na primeira linha dos escritores brasileiros.

 

Durante a primeira das visitas que fiz a São Paulo um médico gaúcho lá residente me disse um dia: "Olha, Veríssimo, no sanatório para tuberculosos onde trabalho tenho uma paciente que adora seus livros. Ela sabe que você está na cidade e ontem me disse que o maior desejo de sua vida é conhecer você pessoalmente". Sacudi a cabeça, tomado dum curioso tipo de satisfação mesclado de constrangimento e culpa — sim, culpa! — e que sempre me assalta quando ouço declarações desse gênero. O médico prosseguiu: "Você não quer praticar um ato de caridade cristã fazendo uma visitinha a essa pobre moça?". Respondi sem hesitar: "Mas claro!". Fiz duas ou três chamadas telefônicas para cancelar os compromissos que assumira para aquele dia, e acompanhei o médico ao sanatório.

Quando entramos no quarto da doente, vi-a de pé, junto do leito, toda vestida de branco, morena, olhos brilhantes e fundos, as mãos entrelaçadas, os seios arfantes. "Ricardina" — disse o tisiologista — "trago-lhe aqui um presente...". Comecei a sentir um aperto na garganta. O doutor pousou a mão em meu ombro e, dirigindo-se à paciente, disse radiante: "Pois este é o Érico Veríssimo!". A moça continuou a me olhar fixamente, muda. O médico insistiu: "É aquele que você me disse que era o seu autor favorito... Então, não está feliz?". A pálida criatura começou: "Mas doutor...". Este, porém, interrompeu-a: "O autor de Olhai os Lírios do Campo! Você me tem dito que o dia mais feliz de sua vida seria aquele em que pudesse ver este escritor de perto em carne e osso. Pois ei-lo aqui!". A moça continuava a me mirar e por fim balbuciou: "Doutor, me desculpe, o senhor está enganado. O escritor de que eu lhe falei é o Humberto de Campos".

 

Pelo Natal de 1940 Papai Noel apareceu-me na figura dum sujeito baixo, louro e de óculos, com aspecto de professor alemão ou, melhor, de pastor luterano. Identificou-se como sendo o cônsul dos Estados Unidos em Porto Alegre, e depois de sentar-se, a um convite meu, me perguntou, com sua voz pobre de inflexões e meio hesitante, se eu estaria disposto a aceitar um convite oficial do Departamento de Estado americano para uma visita de três meses aos Estados Unidos, com um itinerário que ficaria à minha discrição. Dentro de mim o velho Sebastião teve ímpetos de gritar: "Mas claro, mister! Que pergunta!". Mas D. Bega, desconfiada, me fez responder num tom menor: "Pois... prometo examinar com o maior interesse e simpatia o convite, se ele me for formulado". Fez-se um silêncio. O cônsul limpou os óculos com o lenço. Explicou depois que esses convites a escritores e artistas da América Latina faziam parte do programa de Boa Vizinhança instituído pelo Presidente Roosevelt. O Governo americano me pagaria as passagens de ida e volta, todas as minhas despesas com transporte dentro dos Estados Unidos e, ademais, me daria uma diária de cinco dólares.

Quando o cônsul se retirou, fiquei a fazer reflexões sobre a inesperada visita. Minha mãe me aconselhava a não chamar ainda o tio Rodolfo para soltar os foguetes, pois a coisa toda podia ser mera "sondagem".

Nada disso. No dia seguinte eu tinha sobre a mesa um ofício assinado por Mr. CordelI Hull, formalizando o convite.

Em janeiro de 1941 embarquei num navio da Moore Mc Cormack, sozinho, pois o convite era individual, e a situação do tesouro familiar não permitia que eu levasse comigo, como desejava, a minha companheira. Mafalda resignou-se a ficar, compreendendo a importância que aquela viagem ia ter na minha carreira de escritor.

Essa primeira excursão através dos Estados Unidos está minuciosamente narrada em Gato Preto em Campo de Neve (1941), livro animado por uma alegria descompromissada e ligeira de turista, coisa que o torna anedótico, informativo, fácil de ler mas superficial e, em alguns trechos, até um tanto ingênuo.

O leitor deve estranhar a franqueza com que às vezes critico desfavoravelmente os meus próprios livros. Terá o direito de perguntar: "Se via defeitos neles, por que os publicou?". Explicarei que na época em que os escrevia estava tomado dum estado de espírito comparável ao do homem apaixonado quando contempla o objeto de seu amor. Quantas namoradas tive na adolescência que me pareciam as criaturas mais belas e adoráveis do mundo? No entanto, passado o tempo e o amor, com olho neutro pude ver nelas defeitos que não percebia antes, o que não impediu que elas continuassem a viver suas vidas individuais, com todo o direito de serem admiradas e até amadas por outros homens. O mesmo é válido no que diz respeito aos livros que escrevi com cálido entusiasmo e que hoje critico com a cabeça fria. Não posso, não devo negar-lhes o direito de continuarem a circular, pois no fim de contas terão pelo menos um valor histórico, documentos significativos para quem quiser um dia (há gente para tudo) estudar a vida e a obra deste contador de estórias.

Foi em 1941 que a Dra. Stella Budiansky, nossa querida e dedicada amiga, e médica de nossos filhos (mais tarde uma intervenção oportuna sua salvaria a vida de Clarissa), anunciou-nos que tinha visto no alto duma das colinas de Petrópolis, o mais novo bairro residencial da cidade, uma casa recém-construída que estava à venda. Mafalda e eu, que andávamos, então, numa espécie de "sionismo de goyim", em busca do lar definitivo, fornos vê-la e... foi amor à primeira vista. Era uma combinação de falso colonial espanhol com falso colonial português, mas tinha uma fisionomia simpática e serena. Chegamos a descobrir nela um ar de casa já habitada por nós. Mas quando?

Com o auxílio dum empréstimo da Caixa Econômica Federal, compramos a vivenda e nos mudamos para lá. Essa mudança marcou o princípio duma nova etapa em nossas vidas. Era um prazer ir levando aos poucos para a nova residência, móveis, Vasos, candelabros, reproduções de quadros (Van Gogh e Gauguin eram os nossos preferidos), tapetes, estatuetas, bugigangas, mas tudo puxando para o rústico — ferro batido, cobre, cerâmica... Repelíamos a seda, o veludo, o bibelô rococó ou barroco, o metal cromado e tudo quanto fosse ou parecesse ouro.

Nos primeiros anos, era-nos até possível determinar a fonte do dinheiro com que comprávamos essas coisas. A estante de livros? Caminhos Cruzados. A mobília do quarto de dormir? Olhai os Lírios do Campo. O tapete da sala de jantar? Gato Preto em Campo de Neve. E assim por diante.

Nos meses de inverno acendíamos a nossa lareira e recebíamos ao pé dela os nossos amigos.

 

Em maio de 1941, num anoitecer de céu límpido com tons de verde cristalino no horizonte, conversava eu com meu irmão numa das calçadas da Praça da Alfândega, tratando de convencê-lo a mudar-se para Porto Alegre, pois Ênio continuava apegado à sua Cruz Alta, quando vi precipitar-se do alto de um dos edifícios vizinhos um vulto humano, um corpo de mulher, que, ao bater nas pedras do calçamento da rua, produziu um som horrendo que jamais pude esquecer. Crime? Suicídio? Nunca fiquei sabendo ao certo. Mas esse fato, que me impressionou fundamente, um ano mais tarde serviu-me como ponto de partida para o romance O Resto é Silêncio (1943).

Algum tempo depois, a revista fico, do Colégio Anchieta, de Porto Alegre, publicou um artigo crítico sobre esse livro, assinado por um dos padres que ensinavam naquele estabelecimento, e contendo um ataque virulento não só ao livro como também pessoalmente ao autor. Ora, àquela altura de minha carreira de escritor, eu já estava 'com o couro suficientemente duro para não sentir muito o aguilhão da crítica adversa, mas no caso do artigo do jesuíta o grave não era tanto o seu conteúdo manifesto como o seu sentido oculto. Pouco me importava que o articulista denunciasse O Resto é Silêncio como sendo um veneno para a juventude e o seu autor como um corruptor amora! e imoral. De resto percebia-se claramente que o pobre homem, isto é, o articulista, nem sequer havia lido o livro. Alguém lhe soprara ao ouvido informações maliciosas em que se exageravam os aspectos eróticos da estória. O Padre Fritzen — se bem me lembro, assim se chamava o cristão que me queria atirar aos leões — aproveitando a circunstância de ter morrido havia pouco Getúlio Vargas Filho, fazia no seu ensaio, aliás de maneira primária, um apelo à alma do "Getulinho" para que do Céu, onde se encontrava, inspirasse seu pai a mandar fazer uma fogueira com os exemplares de O Resto é Silêncio e expulsar do país seu autor. (Curiosa, essa sobrevivência das fogueiras inquisitoriais no inconsciente de certos sacerdotes!) Ora, era sabido que a Igreja, como o Exército, apoiava o Ditador. Eu andava irritado com a situação política e social do Brasil. A apatia e a conformidade eram quase gerais. Os poucos que se opunham ativamente ao Estado Novo estavam exilados, presos ou reduzidos ao silêncio e à imobilidade por uma Polícia ativa e, em muitos casos, brutal. Era preciso reagir, mesmo que fosse de maneira puramente simbólica. Foi o que fiz quando contratei um advogado para processar o padre, que nunca cheguei a ver*pessoalmente, e cuja punição jamais desejei nem esperei. Eu queria que meu gesto fosse interpretado como um protesto contra a situação política vigente no país.

O caso teve uma grande repercussão, pois centenas de pessoas das mais diversas camadas sociais e profissões, e que professavam as mais variadas ideologias, tomaram posição, independentemente dos méritos ou deméritos do livro, do seu autor ou do artigo que havia provocado o incidente. É óbvio que os oposicionistas ficaram do meu lado. Confesso que aqueles meses de notoriedade provocada pelo processo me foram profundamente desagradáveis.

Naquele mesmo ano me chegou um novo convite do Departamento de Estado, dessa vez para dar um curso de literatura brasileira numa universidade dos Estados Unidos, à minha escolha. (Correu então o tolo rumor de que o clero havia conseguido por esse meio mandar-me para o exílio.) Exasperado, decepcionado e triste ante a situação brasileira, decidi aproveitar a oportunidade para me afastar de meu país por algum tempo, respirar ares mais livres e descansar de toda aquela choldra estado-novista. Escolhi a Universidade da Califórnia que, consultada, me aceitou. Mudei-me para Berkeley com toda a família, em setembro de 1943. O que foram os dois anos que passamos entre San Francisco e Los Angeles está narrado no livro A Volta do Gato Preto (1946).

Em 1942 eu tivera a satisfação de ver Caminhos Cruzados publicado em inglês pela Macmillan Co., de Nova Iorque, na tradução dum obscuro funcionário do Correio de Chicago, Louis C. Kaplan, que havia aprendido português sozinho, lendo alguns livros meus com o auxílio dum dicionário.

Quando ainda em Berkeley, ampliei umas conferências públicas que lá fizera sobre nossa literatura e publiquei-as num pequeno volume. Foi esse o único livro que escrevi diretamente numa língua estrangeira.

 

Encontrávamo-nos ainda nos Estados Unidos quando terminou a Guerra na Europa. A notícia da rendição dos japoneses chegou-nos quando estávamos num trem, a caminho de Nova Iorque.

Com pouquíssimo dinheiro, ficamos a esperar num hotel da quinta categoria, em Manhattan, a data do embarque para o Brasil. Os navios da Moore Mc Cormack, que tinham sido transformados em transportadores de tropas durante a guerra, não haviam retornado ainda ao serviço comercial. A duras penas conseguimos lugar num vapor misto argentino, o José Menendez. Quando o vimos atracado no cais, no dia da partida, ficamos alarmados. Era pouco maior que um iate de recreio e a travessia — informaram-nos — levaria no mínimo vinte e três dias, durante os quais não pisaríamos terra firme. Foi a viagem mais doida de que tenho lembrança. Nosso camarote, pequeníssimo, era quente como um forno, pois ficava nas entranhas do barco, junto das máquinas. O José Menendez estava superlotado e seus passageiros ofereciam a galeria humana mais sortida que um romancista pode desejar.

Nosso capitão, natural da Itália, era um sujeito retaco e bovino, parecia estar sempre num estado de semi-embriaguez, o que lhe dava um ar cômico de sonolência ao rosto rubicundo. A comida de bordo era abundante e de qualidade bastante aceitável. Passei a viagem inteira a subir e descer escadas quase a pique, várias vezes por dia, equilibrando na mão uma bandeja com pratos de comida, servindo os membros da minha família que, mareados, lívidos e desalentados, passavam a maior parte do tempo estendidos em cadeiras preguiçosas no convés, sem a coragem dum movimento. Pouquíssimas pessoas ousavam descer ao refeitório, cujas vigias ficavam apenas a dois metros da linha dágua, e que nos dias de mar grosso era invadido pelas ondas. Entre os passageiros aos quais prestei meus serviços de camareiro encontravam-se, além dos membros da minha tribo, um diplomata brasileiro e dois sacerdotes católicos canadenses. À noite eu andava pelo convés, tonto de sono, arrastando o travesseiro e procurando um lugar fresco e arejado para dormir, pois este claustrófobo não suportava a atmosfera abafada de seu camarote. Costumava dormir na proa, e muitas vezes fui despertado pela chuva, alta madrugada.

Arrastavam-se os dias e o José Menendez. Fazíamos relações. Havia passageiros simpáticos, antipáticos, incolores, silenciosos, comunicativos, excêntricos, pândegos, taciturnos... Ã noite dançava-se num compartimento chamado eufemisticamente de "salão de festas". Duas muchachas argentinas, que haviam perdido o pai em Nova Iorque (o cadáver viajava conosco no porão) nos primeiros dias, num vago luto, portaram-se com certo recolhimento, fiscalizadas por sua madrecita, chorosa e toda coberta de negro. Como, porém, a pobre senhora, mareadíssima, depois de algum tempo não tivesse mais ânimo para sair do camarote, as meninas aproveitaram a oportunidade para tomar parte nos bailarecos, e passaram a dançar tangos, boleros, rumbas e congas, por assim dizer em cima da tampa do esquife do pai.

Nas minhas andanças noturnas surpreendi alguns dos romances clandestinos de bordo. Uma noite vi uma jornalista platina de porte amazônico atracada com um dos passageiros. Como o galã fosse baixo e franzino, quem se inclinava para o beijo era ela, de maneira que se tinha a impressão de que os papéis estavam invertidos.

Como era de se esperar num barco argentino, servia-se carne em abundância, diariamente, nas duas refeições principais. Lá pelo fim da segunda semana de viagem comecei a olhar com certa desconfiança para os baby bifes que me punham no prato. Um dia, voltando-me para um companheiro de viagem que estava a meu lado, um brasileiro famoso a bordo peio seu humor negro, observei: "Não compreendo como um vapor pequeno como este possa ter uma câmara frigorífica capaz de conservar tanta carne...". E ele, sem interromper a mastigação, murmurou: "O senhor sabe? Acho que a esta hora já estamos começando a comer o defunto".

 

Navegamos durante vinte e três dias e só avistamos terra uma vez, a ilha de Trinidad, quando o intrépido José Menendez ficou ancorado ao largo de Port of Spain, onde um petroleiro veio abastecê-lo.

Certa manhã, em alto mar, debruçado na amurada, olhando — apenas com um terço da minha atenção — os peixes-voadores, pequenos torpedos de prata a saltarem acima das ondas, dei um balanço naqueles dois anos que passáramos na Califórnia. Concluí que para mim tinham sido pobres de experiência tanto humana como literária. Repito aqui o que tenho dito e escrito muitas vezes. Quando nos Estados Unidos, sinto-me como uma figura num cartão-postal. A gravura é bonita, não nego, colorida, sem a menor dúvida, agradável aos olhos — como não! — mas rasa, bidimensional. Estava claro que eu não podia culpar disso o país que tão generosamente me hospedara pela segunda vez, pois a metáfora do "cartão-postal" é um produto da minha imaginação. Devo confessar também que não me sentia infeliz como elemento do cromo: tirava até dessa condição um sutil, esquisito prazer, misturado com um vago remorso (D. Bega, a Singer, a tesoura, o manequim). Muitas vezes, durante aqueles dois anos californianos, tive a impressão de ser uma personagem que havia entrado por engano num romance alheio, à revelia de seu autor, o qual nada esperava nem desejava de mim, de modo que eu me sentia livre para fazer ou não fazer nada. Não aproveitei, entretanto, essa liberdade como devia. Dei os meus cursos de literatura da melhor maneira, dentro dos limites de minhas possibilidades, fiz dezenas de conferências, cultivei uma dúzia de bons amigos e no mais, musa, no mais permaneci na minha casa, com minha gente, e na minha concha comigo mesmo. Por outro lado, a Califórnia do sul é o lugar menos propício do mundo à criação literária. O sol lá aparece peio menos durante trezentos dias por ano: anda na atmosfera, de ordinário cálida, uma bruma dourada e preguiçosa que nos convida à vagabundagem. (Refiro-me aos tempos em que ainda não começara a poluição do ar.) Nosso espírito como que veste um casaco e uma camisa de esporte e se deixa entorpecer por aquela molenga, volúvel ambiência de feriado.

Durante dois anos eu não escrevera uma linha sequer em português. E o que produzira em inglês não tinha maior importância.

Bom, fosse como fosse, tivera tempo para descansar do Estado Novo e afastar-me um pouco do romancista. Aceitara o conselho antigo de Tagore: tomava um banho de silêncio para limpar o espírito da poeira das palavras. Estou certo de que o escritor que produz um livro por ano acaba sofrendo duma espécie de auto-intoxicação: repete fórmulas, "cacoetes" de estilo e até de técnica. Para curar-se desse "envenenamento", o melhor que tem a fazer é deixar de escrever por uma larga temporada, durante a qual deverá ler obras de outros autores, viajar, conhecer gente nova e viver, com a maior intensidade possível, outro tipo de vida. O sucesso é também um perigo. Eu compreendera isso logo após a publicação de Olhai os Lírios do Campo. O autor dum best seller pode, inconscientemente, acabar dando sempre ao público o que este espera dele, isto é, a repetição da receita anterior, o adocicado xarope de tão bom sabor e tão grande aceitação popular.

Olhando para aqueles horizontes do mar das Antilhas, pensei também na situação política do Brasil, e perguntei a mim mesmo se o deslocamento de ar produzido pela formidável explosão da bomba atômica sobre Hiroxima e Nagasaque teria a força suficiente para derrubar a ditadura brasileira...

Minhas divagações foram interrompidas pelos sons da sineta que anunciava a hora do almoço. Eu tinha de levar comida aos meus fregueses, escada-acima-escada-abaixo. Lancei mais um olhar para o oceano, vesti psicologicamente o uniforme de taifeiro e fui cumprir as minhas obrigações.

 

Chegamos finalmente ao Rio numa ardente manhã de princípios de outubro. Maurício Rosenblatt, Ernani Fornari e Vianna Moog esperavam-nos no cais. Como me fez bem rever aquelas caras amigas, depois de dois anos de ausência!

E ali no cais, sob um sol tórrido, enquanto esperávamos que nossa bagagem fosse descida para a terra, Maurício Rosenblatt — que então vivia no Rio, onde desempenhava com a maior eficiência as funções de representante da Editora Globo — me descreveu, na sua maneira minuciosa, aguda e lúcida, a situação política e social do Brasil. Luiz Carlos Prestes havia sido posto em liberdade. O Partido Comunista, em plena legalidade, recebia a adesão de alguns dos intelectuais mais representativos do país. A burguesia organizara-se em dois partidos, o Social Democrático e a União Democrática Nacional. Getúlio Vargas e Prestes tinham sido vistos lado a lado no mesmo palanque, por ocasião dum comício político. As forças do centro queriam eleições para breve e tinham já os seus candidatos. O lema dos comunistas era "Constituinte com Getúlio". Estonteado ainda do mar, a cabeça escaldante do sol, eu não compreendia direito a situação. Grandes figuras das letras brasileiras se haviam inscrito no Partido Comunista? Prestes junto com o homem cuja Polícia Política entregara sua mulher aos carrascos nazistas? Inacreditável! "O Brasil está praticamente sem governo" — concluiu Maurício, homem que sempre tive na conta de pessimista mas que hoje, no momento em que escrevo estas recordações, me sinto inclinado a chamar de realista.

Escutei meu amigo em silêncio. Tinha a impressão de que meus miolos se derretiam. O sangue me soqueava as têmporas. Senti uma súbita saudade dos ventos e horizontes do mar alto. Fornari participava, mas apenas até certo ponto, do "pessimismo" de Rosenblatt. Quanto a Vianna Moog, via a situação menos escura. Estava eufórico. Havia sido eleito recentemente membro da Academia Brasileira de Letras e tinha terminado de escrever com grande entusiasmo seu discurso de posse, Nós os Publicanos, que considerava de certo modo um depoimento de sua geração.

 

Em Porto Alegre voltamos para a casa da Rua Felipe de Oliveira. Cedo comecei a sentir os efeitos da situação política, pressões de todos os lados, principalmente do setor da extrema esquerda, que pedia, exigia minha colaboração. A idéia de que um homem do calibre moral e intelectual de certo grande poeta brasileiro se tivesse filiado ao Partido Comunista e já estava produzindo "poesia popular" deixava-me desconcertado. Por mais simpatia que eu tivesse pela causa do socialismo, continuava a repelir qualquer tipo de totalitarismo, e não sentia a menor atração pelo stalinismo e suas funestas implicações: a rígida, fanática disciplina partidária, a idéia de que — matar, mentir, torturar, instituir colônias de trabalhos forçados para punir desvios políticos, abolir os direitos civis — tudo vale quando ss trata de promover a socialização do mundo. Tudo isso me parecia uma contradição em fatos, atos e idéias. Era um espírito que me lembrava o da Inquisição.

Nos anos que se seguiram à terminação da Segunda Guerra Mundial, realizaram-se no mundo inteiro os famosos Congressos de intelectuais em prol da Paz, e que na maioria dos casos nada mais eram do que movimentos comunizantes, pois nos manifestos que deles resultavam os Estados Unidos eram sempre os únicos acusados de estar procurando deflagrar a Terceira Guerra Mundial. Por menos simpatia que eu tivesse pelo presidente Truman, responsável oficial pelo massacre de Hiroxima e Nagasaque, por mais claro que estivesse o fato de que sua política externa podia mesmo precipitar o mundo num novo conflito, eu não ignorava que Stalin também fazia suas manobras guerreiras, como ficou provado anos mais tarde no famoso discurso que Nikita Kruschev pronunciou no 20.° Congresso do Partido Comunista, expurgando post mortem seu antigo chefe e ídolo. Não me parecia, pois, lícito denunciar Truman e silenciar sobre Stalin. Recusei comparecer ao Congresso de escritores que ia realizar-se no Chile naqueles dias.

Duma feita cheguei a forçar minha natureza e pela primeira vez na vida fiz um discurso político em praça pública, da escadaria da Prefeitura Municipal de Porto Alegre, ao lado de deputados comunistas. Combatíamos juntos a odiosa Lei da Segurança Nacional, que se me afigurava de coloração fascista. Isso, entretanto, não impediu que os jornais do PC brasileiro me atacassem repetidamente, insinuando que eu estava a soldo da Wall Street ou/e do Departamento de Estado americano.

É que a Esquerda, bem como a Direita e o Centro, tem também sua mitologia.

 

Estou hoje convencido de que foi uma pena eu não ter mantido um diário durante os muitos anos em que estive ocupado e preocupado com escrever os romances que iriam formar a trilogia que leva o título geral de O Tempo e o Vento. Esse jornal não só teria registrado os pensamentos, sentimentos, dificuldades, dúvidas, ânimos e desânimos do escritor empenhado em fazer o que ele esperava viesse a ser sua obra máxima, como poderia também ter mostrado como os acontecimentos políticos e sociais desses agitados quinze anos da vida nacional e internacional se refletiram na mente, na vida e na obra do romancista.

Quando me teria ocorrido pela primeira vez a idéia de escrever uma saga do Rio Grande do Sul? Em 1935, quando meu Estado comemorou o primeiro centenário da Guerra dos Farrapos? Não sei ao certo. Não creio que idéias como essa nos caiam na cabeça com a força súbita de um raio. É mais provável que comecem de ordinário com uma nebulosa de origem ignorada, que se mistura com as outras que povoam nossos misteriosos espaço e tempo interiores e aos poucos vão tomando a forma dum mundo.

Procurando analisar com imparcialidade os meus romances anteriores, eu percebia o quão pouco, na sua essência e na sua existência, eles tinham a ver com o Rio Grande do Sul. Tendiam para um cosmopolitismo sofisticado, que me levava a descrever a provincianíssima Porto Alegre de 1934 como uma metrópole tentacular e turbulenta que recendia a gasolina queimada e asfalto. Em Olhai os Lírios do Campo fiz uma das personagens, um arquiteto, construir um arranha-céu de trinta andares — coisa que na realidade a capital do Rio Grande do Sul só veio a ter vinte e cinco anos mais tarde.

Apesar de ser descendente de campeiros, sempre detestei a vida rural, nunca passei mais de cinco dias numa estância, não sabia e não sei ainda andar a cavalo — para escândalo e vergonha de meu avô Aníbal — desconhecia e ainda desconheço o jargão gauchesco. Embora admire os trabalhos isolados de escritores como Simões Lopes Neto, Darcy Azambuja, Ciro Martins e Vargas Neto, nunca morri de amores pelo regionalismo e, para ser sincero, tinha e ainda tenho para com esse gênero literário as minhas reservas, pois acho-o limitado e, em certos casos, com um certo odor e um imobilismo anacrônico de museu.

Antes de começar o "ambicioso" projeto, eu precisava vencer muitas resistências interiores, a maioria delas originadas nos meus tempos de escola primária e ginásio. Para o menino e para o adolescente — ambos de certo modo sempre presentes no inconsciente do adulto —, o poético, o pitoresco e o novelesco eram atributos que raramente ou nunca se encontravam em pessoas, paisagens e coisas do âmbito nacional e muito menos do regional e ainda menos do municipal. Nossos livros escolares — feios, mal impressos em papel amarelado e áspero — nunca nos fizeram amar ou admirar o Rio Grande e sua gente. Redigidos em estilo pobre e incolor de relatório municipal, eles nos apresentavam a História do nosso Estado como uma sucessão aborrecível de nomes de heróis e batalhas entre tropas brasileiras e castelhanas. (Ganhávamos todas). Nossos pró-homens pouco mais eram que nomes inexpressivos, debaixo de clichês apagados, em geral de retícula grossa: sisudos generais, quase sempre de longas costeletas, metidos em uniformes cheios de alamares e condecorações; estadistas de cara severa especados em colarinhos altos e engomados. Parece incrível, mas só depois de adulto é que vim a descobrir que Rafael Pinto Bandeira — que em nossos livros escolares aparecia, num retrato linear a bico-de-pena, como um sujeito gordo, de ar suíno, bigodes de mandarim, tendo na cabeça um ridículo chapéu bicorne com um penacho — era na realidade um mirífico aventureiro, cujas façanhas guerreiras e amorosas nada ficavam a dever em brilho, audácia e colorido às dos mais famosos espadachins da ficção universal. Concluí então que a verdade sobre o passado do Rio Grande devia ser mais viva e bela que a sua mitologia. E quanto mais examinava a nossa História, mais convencido ficava da necessidade de desmitificá-la.

 

Certo dia me veio à mente um episódio familiar ocorrido em fins de 1930, logo após a bancarrota da minha farmácia. Estava eu, numa brumosa tarde de chuva, na casa de meu avô Aníbal, ouvindo numa vitrola as Noites nos Jardins de Espanha, de Manuel de Falia, e lendo, com a atenção dividida entre a música e a poesia, Les Fleurs du Mal, de Baudelaire, quando meu tio Tancredo entrou, trazendo consigo a umidade de fora. Acabava de chegar a cavalo de seu sítio. Estava vestido à gaúcha, e o poncho, que a chuva ensopara, despedia um cheiro azedo de cachorro molhado. Suas botas estavam sujas dum barro vermelho e gordo. O odor acre do cigarro de palha, que ele acendeu logo ao entrar, invadiu os jardins de Granada, assassinando o perfume das rosas e das flores de naranjo que o poema sinfônico de Falia esparzia no ar. Contrariado, fiz a vitrola parar. Meu tio perguntou se havia alguém em casa. Respondi que não. Ele tirou o chapéu e o poncho e largou o peso do corpo no sofá, sentando-se em cima dum disco que eu ali deixara. Craque! Senti que meu coração se partia com o disco. Lá se fora o meu Für Elise, de Beethoven! Tio Tancredo ergueu-se, brusco, pegou os cacos negros com suas mãos tostadas e, encalistrado, murmurou: "Me desculpe. Eu não tinha visto este troço...". Forcei um sorriso e tratei de convencê-lo de que a coisa não tinha a menor importância. E quando o irmão de minha mãe se retirou, minutos depois, fiquei a fazer considerações sobre o "sentido simbólico" daquele incidente. Na sua rudeza, no seu prosaísmo, na sua simplicidade elementar, Tancredo Lopes representava a vida rural. Vivia num universo sem arte. No que dizia respeito à música, mal sabia assobiar o monótono Boi Barroso. Sabia de memória talvez uma que outra quadra do Martin Fierro e passagens do Antônio Chimango. A antítese Ariel-Calibã me passou rápida pela mente, malgrado meu. E naquele momento senti, mais que nunca, que jamais poderia escrever o que quer que fosse sobre a gente da campanha. Faltava aos nossos "guascas" densidade psicológica, esse tipo de conflito capaz de produzir drama. Sobre homens assim vazios — concluí então, levianamente — era impossível escrever um romance que tivesse caráter e nervo.

Agora, porém, passados quase quinze anos, eu reexaminava a uma nova luz aquele episódio quase esquecido, cujo sentido mais profundo comecei a perceber.

Quem era eu em 1930? Um moço que vivia no mundo do faz-de-conta, alimentado por livros, discos, revistas, pinturas e fantasias. Quem era Tancredo Lopes? Um gaúcho de pés plantados na terra — com defeitos, com fraquezas, é natural, pois era de carne e estava vivo —, um ser humano que tinha a sua integridade, o seu código de honra, que convivia não só com os seus semelhantes mas também com os bichos, as plantas, a terra... Sabia fazer coisas com as mãos rudes, afeitas a geadas e soalheiras. O menos que se poderia dizer dele é que tinha muito mais utilidade social que eu. Criava gado, fazia tropas, plantava, colhia — tudo em pequena escala, pois era pobre —-, em suma, produzia coisas concretas muito mais necessárias à vida comunal do que as minhas ficções. E quem me autorizava a afirmar que ele não tinha vida interior? Não alimentaria — é evidente — a dúvida de Hamlet, pois os gaúchos de sua tempera haviam já decidido sem metafísica que ser é preferível a não ser. Cabia, pois, ao romancista descobrir como eram "por dentro" os homens da campanha do Rio Grande. Era com aquela humanidade batida pela intempérie, suada, sofrida, embarrada, terra-a-terra, que eu tinha de lidar quando escrevesse o romance do antigo Continente. Talvez o drama de nosso povo estivesse exatamente nessa ilusória aparência de falta de drama.

Em matéria de temperamento, Tancredo Lopes estava longe de ser um paradigma nacional ou regional. Retraído, calmo, acanhado — um mandim, como lhe chamava minha mãe —, ele representava apenas um dos incontáveis exemplares de campeiros da região serrana. Como o pai, não era homem de guerras nem de bravatas e, ainda como o velho Aníbal, era tenaz e opiniático. O Rio Grande estava cheio dos mais variados tipos humanos. Havia o valentão, o coronel, o peão, o gaudério, o bandido, o poltrão, o paladino, o gaiato, o parlapatão, o capanga, o sisudo, o potoqueiro, o gaúcho de cidade com flor no peito... tantos!

E assim, depois que compreendi tudo isso, as personagens para o projetado e sonhado romance me foram saindo da memória, como coelhos duma cartola de mágico.

Agora como que tinha diante de mim D. Adriana Veríssimo, D. Maurícia Lopes, D. Maria da Glória Ramos, D. Amélia Neves, D. Bibiana Fagundes — mulheres que eu conhecera, admirava e estimava. Elas me apareciam na mente ora envoltas em seus xales, enquanto o minuano soprava lá fora, ora fazendo pão ou queijo na cozinha, ou, ainda, balançando-se nas suas cadeiras, esperando seus homens que estavam nas lidas do campo ou da guerra...

Idiota! Como era que eu não tinha visto antes toda essa riqueza? E que dizer de Nico Velho, Aníbal Lopes, Nestor Veríssimo e cem outros varões? Era o meu povo. Era o meu sangue. Eram as minhas vivências, diretas ou indiretas, que por tanto tempo eu renegara.

 

Foi assim que, sem saber nem querer, meu tio Tancredo me deu a chave com que abri a porta do Sobrado dos Terra-Cambará. E então, como acontece sempre que o trabalho num romance me empolga, comecei a arder numa espécie de febre que me tornava alternadamente exaltado e deprimido. Passei a viver em dois mundos, o real e o imaginário. Minha mulher, que por essa época aprendera já a ler meus pensamentos e sentimentos como num livro aberto de tipo graúdo, compreendeu tudo e resignou-se a agüentar uma larga temporada em que teria de viver com os meus silêncios melancólicos de bugre, as minhas distrações e "ausências" e, mais ainda, todos os meus males psicossomáticos, em gera! de natureza epigástrica. Mafalda era já uma especialista nessa doença que bem se poderia chamar de "síndrome do romancista grávido".

Estou convencido de que o inconsciente representa um pa-p£I muito importante — mais do que o escritor geralmente quer admitir — no ato da criação literária. Costumo comparar nosso inconsciente com um prodigioso computador cuja 'memória" durante os anos de nossa vida (e desconfio que os primeiros dezoito são os mais importantes) vai sendo alimentada, programada com imagens, conhecimentos, vozes, idéias, melodias, impressões de leitura, etc... O "computador" — à revelia de nossa consciência — começa a "sortir" todos esses dados, escondendo tão bem alguns deles, que passamos anos e anos sem que tenhamos sequer conhecimento de sua existência. Quando, por exemplo, nos preparamos para escrever um romance e começamos a pensar nas personagens, o "computador", sensível sempre às nossas necessidades, rompe a mandar-nos "mensagens", algumas boas — "pedaços" físicos ou psicológicos de pessoas que conhecemos — outras traiçoeiras —Recordações de livros lidos e "esquecidos" que nos podem levar ao plágio. Cabe ao consciente fazer a seleção, repelir ou aceitar as mensagens do "computador". Nada do que nos vem à mente é gratuito. Não é possível nem creio que seja aconselhável tentar criar do nada, esquecer as nossas vivências, obliterar a memória.

Muitas vezes leitores me perguntam verbalmente ou por carta se costumo tirar minhas personagens da vida real, isto é, se trabalho d'après nature, fotografando a vida. Minha resposta é negativa. Acho o processo de copiar a vida barato e de certo modo indigno. Lembro-me sempre do conselho sobre a arte de representar que, num romance de Somerset Maugham, um homem do mundo dá a uma atriz: "Não seja natural: pareça".

Acredito que qualquer homem inteligente pode escrever um romance, que será necessariamente a história de sua própria vida ou da de alguém que ele conhece de maneira íntima. Mas de romancistas sei que não se podem livrar da própria memória. Na minha opinião o ficcionista legítimo é um tipo de peixe capaz de sobreviver quando fora das águas da autobiografia. Esta idéia não entra absolutamente em conflito com o que escrevi há pouco a respeito das figuras humanas da vida real que me inspiraram certas personagens de O Tempo e o Vento. O ficcionista pode usar uma pessoa que conheceu, mas tendo o cuidado de evitar a fotografia servil. É justamente durante esse processo de "despistamento", ou então no minuto em que o autor resolve criar uma personagem sua, sua mesmo, que o "computador" insidiosamente começa a mandar-lhe mensagens, e o autor corre o risco de usar esses elementos com orgulho demiúrgico, convencido de que está mesmo criando do nada.

Outra coisa: uma vez que o novelista põe de pé uma personagem, esta começa a distanciar-se cada vez mais da criatura da vida real que a sugeriu. Os escritores puramente memorialistas devem achar difícil afastar-se do plano inicial do livro. Traçam para suas figuras um destino irrevogável, ao passo que o romancista verdadeiro — bom ou mau, grande ou pequeno, não importa — esse pode dar-se o luxo de conceder liberdade às suas criaturas. Não se surpreende nem se irrita quando elas recusam dizer as palavras que ele lhes sopra, ou fazer os gestos que ele lhes determina. Muito cedo compreendi que quando uma personagem, por assim dizer, toma o freio nos dentes e dispara, deixando-me para trás, é porque está mesmo viva. Dou-lhe carta de alforria e começo a divertir-me com as surpresas que seu comportamento me proporciona.

Sinceramente, não me lembro de quantos roteiros fiz para O Tempo e o Vento. Só sei que foram muitos e que até o fim da obra eu os alterei, acrescentando ou subtraindo personagens e episódios.

 

Poucas coisas me divertem e agradam mais que discutir com um colega ou com um leitor, enfim, com quem esteja interessado no assunto, os aspectos técnicos do romance. Como, de que ângulo contar a estória? Como tratar o tempo cronológico? E o psicológico?

Minha saga do Rio Grande devia abranger duzentos anos, de 1745 a 1945. A princípio imaginei que poderia comprimir toda a história duma cidade e duma família num único volume de cerca de 800 páginas, que me ocuparia uns três anos de trabalho. Mal sabia eu que a obra acabaria por transformar-se numa trilogia num total de mais de 2 200 páginas e que eu levaria mais de quinze anos para terminá-la — mas quinze anos em que haveria longuíssimos períodos de completa esterilidade, dúvida, descoroçoamento, fuga inconsciente da obrigação de escrever, tergiversações disfarçadas por motivos aparentemente legítimos. Creio que só o meu "computador" é que não cessou de trabalhar durante todo esse tempo.

Comecei a escrever o primeiro volume de O Tempo e o Vento em 1947, com enorme impulso. Durante os três anos em que vivi na casa de meu avô materno, observando-o — às vezes consciente, outras inconscientemente — no ato de viver, de ser, mal sabia eu que estava fazendo com ele o meu "aprendizado gaúcho", e que sua prosódia, a cadência de sua voz, sua sabedoria da vida, seus ditos, seu gosto em matéria de comida, os "causos" que ele contava, a maneira como se vestia, a opinião que manifestava sobre política, instituições, pessoas, bichos, coisas... — haviam de no futuro ajudar-me a escrever a obra talvez mais importante de minha carreira. Assim, o velho Aníbal foi, sem querer nem saber, uma espécie de intérprete, de ponte entre este seu neto citadino e a terra e a gente do Rio Grande.

A parte de O Continente (o primeiro volume) intitulada Ana Terra constituiu uma dura prova para o romancista, pois nela joguei com um mínimo de elementos tanto materiais como psicológicos para criar uma atmosfera, um drama, e pôr de pé personagens como Ana Terra, seu pai Maneco, sua mãe Henriqueta e seus irmãos Antônio e Horácio. O rancho que habitavam não podia ser mais primitivo. O velho Terra, como os filhos, era analfabeto, homem taciturno e de poucas palavras. O mobiliário do rancho, escasso e rústico. Naquele ermo aquela gente nada mais fazia que trabalhar de sol a sol, comer, dormir, esperar... Um dia era quase sempre a repetição do anterior. A família estava ilhada naquele mar verde de horizontes sem fim. Não tinham calendário, nem relógio, nem vizinhos próximos. Não tardei, porém, a descobrir que era exatamente dessa pobreza, dessa quase indigência que eu devia tirar efeitos novelescos e dramáticos. Sim, e havia ainda o corpo moço de Ana Terra e seus desejos reprimidos. E o código de honra do velho Terra. E a resignação dolorida de D. Henriqueta. Estava claro que o "computador" já determinara o aparecimento na sesmaria dos Terra do índio Pedro Missioneiro, personagem cuja origem profunda eu não saberia explicar.

Quando e como nasceu o Capitão Rodrigo Cambará? Eu mentiria se respondesse com certeza a essa pergunta. Há tipos óbvios e inevitáveis. O problema é como aceitar a inevitabilidade do óbvio sem cair no estereótipo. A palavra gaúcho está associada em nosso espírito a termos como macho, bravo, violento, mulherengo, aventureiro, nobre, generoso... Talvez eu não esteja muito longe da verdade se disser que, antes de ter corpo e nome, o Capitão Rodrigo era uma idéia no meu cérebro — de certo modo o símbolo duma rude estirpe e duma era áspera. Às vezes, leitores me perguntam que pessoa da vida real me serviu de modelo para essa personagem, e eu respondo com a maior sinceridade que o marido de Bibiana deve ser um tipo compósito, produto de maquinações do inconsciente.

O primeiro nome que me ocorreu para o homem foi o de Severo. (Lembram-se da pantomima de circo Os Bandidos da Serra Morena?) Repeli-o, optando pelo de Rodrigo. (Pergunto agora a mim mesmo se o "computador" não me teria imposto esse nome por causa de El Cid Campeador.)

O sobrenome Cambará foi escolhido conscientemente: além de ser sonoro, designa uma árvore de duro lenho. Se bem me lembro, uma das estâncias perdidas de meu avô paterno chamava-se Cambará.

Como era o meu herói fisicamente? Ora, tenho observado que em geral os homens do temperamento de Rodrigo não são altos. Assim, descrevi-o como um tipo de estatura mediana, e me pareceu natural que ele usasse barba, e que tivesse olhos claros. Não havia porventura sangue flamengo nas veias de muitos dos açorianos que no século XVIII se estabeleceram no litoral do Rio Grande? Mais tarde eu haveria de coonestar a cor desses olhos, descrevendo a cena em que o pai de Rodrigo rouba de casa a filha dum colono açoriano de Viamão, uma "ruiva de olhos garços". Desde o momento em que vi o capitão em meus pensamentos, com um corpo, um nome e já com certas tendências ou ímpetos, esse homem passou a existir. E como estava vivo e tinha um temperamento fogoso, a primeira coisa que fez foi livrar-se de seu criador. Quem sou eu para sujeitar um potro como o Capitão Cambará?

 

Uma das muitas provas por que tem de passar o romancista para convencer-se a si mesmo e aos leitores de que não é apenas um memorialista nem um fotógrafo ambulante, é a de criar com verossimilhança uma personagem que seja diferente dele em matéria de gosto, temperamento, caráter. Dizer — como sugeriu um amigo — que deleguei a Rodrigo procuração para fazer por mim tudo quanto desejei ter feito na vida, mas não fiz por timidez ou falta de coragem moral ou física, é uma explicação não apenas simplista mas simplória.

Para dar verossimilhança a uma personagem não autobiográfica, o novelista tem de usar toda a sua capacidade de empatia, isto é, a faculdade de meter-se no corpo de outras pessoas, e que lhe permite sentir-se, ser alternadamente um herói ou um covarde, um bandido ou um santo, uma dama virtuosa ou uma prostituta.

Sempre procurei tratar minhas criaturas com certa imparcialidade sentimental, como um pai — digamos assim — que divide sua afeição igualmente entre os inúmeros filhos. Devo confessar, no entanto, que há personagens minhas pelas quais tenho pouca admiração ou nenhuma estima. Por exemplo, não simpatizo nada com Licurgo Cambará, embora reconheça que o homem possui suas virtudes. E já que estamos no capítulo das simpatias, declaro em voz alta que tenho um fraco pelas mulheres de O Tempo e o Vento, como Ana Terra, Bibiana e Maria Valéria. Quando esta última era ainda moça, tive lá as minhas implicâncias com ela, mas depois que a filha do velho Florêncio envelheceu e ficou parecida com as outras matronas da família, passei a votar-lhe uma admiração temperada de ternura.

Lembro-me do gosto e da fluência com que narrei a estória dum certo Capitão Rodrigo. Muitos anos depois que publiquei O Continente encontrei um gauchão simpático de Uruguaiana que me confessou que, ao terminar o capítulo em que descrevo a morte do herói, não pôde conter o pranto, e naquele dia ficou em casa, de luto, como se tivesse perdido um membro da própria família. Não tenho memória de nenhum elogio de crítico que me haja tocado tanto como as palavras desse leitor.

Por outro lado recebi várias cartas em que os signatários protestavam contra a morte do capitão. Mais de um chegou a insinuar que eu o havia assassinado por pura inveja.

 

Como pode um romancista do sexo masculino — perguntou-me alguém um dia — descrever com verdade e autenticidade os sentimentos duma mulher? Expliquei-lhe que, no meu caso, sempre que tinha de fazer isso eu procurava ser essa mulher. Meu interlocutor me olhou meio espantado e calou-se, aparentemente insatisfeito, e talvez até meio desconfiado de minha masculinidade.

Ninguém negará grandeza e importância literária à obra de Ernest Hemingway. Mais de um crítico, porém, tem mencionado o fato de não se encontrar nos contos, novelas e romances desse escritor uma única personagem feminina verossímil, viva, plenamente realizada em sua condição de fêmea. Creio que isso se deve à obsessão que o grande escritor americano tinha de provar que era macho — o caçador de leões, o explorador, o aficionado das corridas de touros. No momento de descrever suas personagens do sexo oposto ele recusava, imagino, liberar seu componente feminino e meter-se no corpo delas, sentir como elas, amar como elas...

No fundo talvez isso fosse um sinal de insegurança quanto à sua própria condição de macho, o temor de que alguém pudesse pôr em dúvida sua virilidade.

 

A certa altura de O Continente comecei a sentir necessidade de criar uma personagem que pudesse fazer o papel de "coro" daquela comédia provinciana. Devia ser uma pessoa não só alfabetizada, mas também lida e com pontos de referência geográficos e culturais que a tornassem capaz de comparar aquela agreste e incipiente civilização sul-americana com a européia, comentar consigo mesma ou com outras aquela gente, a vida de Santa Fé, em particular, e a da Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, em geral. Dessa necessidade nasceu o Dr. Carl Winter. Li numa monografia sobre a cidade e o município de Cruz Alta que, no ano de 1852, um médico natural da Alemanha apresentou suas credenciais à Câmara Municipal. Essas simples palavras tiveram o poder mágico de conjurar a figura do meu doutor. Onde nasceu ele? Pedi a um amigo, o Dr. Herbert Caro, uma lista de nomes de pequenas cidades alemãs, de preferência de origem medieval, e que tivessem um certo pitoresco. Dos quatro ou cinco que ele sugeriu, escolhi o de Eberbach. Decidi que essa seria a terra natal do Dr. Winter. (Anos mais tarde, quando O Continente circulava, em tradução, na Alemanha, recebi uma carta do prefeito de Eberbach, manifestando seu contentamento por ver sua cidade aparecer num ""romance internacional". Perguntava-me o homem se eu já havia estado em sua comuna. Queria também saber por que razão eu a escolhera para ser o berço da minha personagem, e convidava-me para um dia visitá-la como hóspede oficial.)

O Dr. Winter, que eu saiba, não se parece psicologicamente com ninguém que eu haja conhecido. A imagem que eu tinha na mente quando pensava no médico alemão era a de um homem descarnado e alto, de pele muito branca pintalgada de sardas. (Augusto Meyer? Impossível!) Quanto às suas idéias e reações ao ambiente, não seria ele o porta-voz de minha antiga relutância em aceitar o Rio Grande e o seu povo? Não representaria o estrangeiro, o exótico, o civilizado, o erudito?

Outra personagem importante de O Tempo e o Vento é o Sobrado, que sinto como um ser vivo e quase pensante. É, evidentemente, um símbolo uterino, materno e — abrigo, fortaleza, aconchego, tradição — pode também ser uma recriação idealizada do lar que eu perdera e ainda buscava. Não tem, entretanto, como era de esperar-se, semelhanças com o casarão do velho Franklin Veríssimo.

Outra "presença" que sempre me proporcionava grande prazer era a do Fandango, o velho capataz do Angico. Um jovem ensaísta gaúcho acusou-me de, ao traçar essa personagem telúrica, ter feito um pasticho do Dom Segundo Sombra, de Ricardo Guiraldes. Ora, meu pouco entusiasmo pelo regionalismo me havia impedido de ler esse clássico da literatura gauchesca argentina, o que só fiz depois da observação do referido crítico. Seria recomendável que os escritores que se dedicam à crítica não esquecessem nunca que um romancista, por menor que seja, tem uma experiência pessoal e que, ao produzir suas ficções, é natural que se ampare mais nessas vivências do que em suas leituras. Gilberto Freyre, que escreveu um artigo simpático mas um tanto ambivalente sobre O Continente, insinuou que o fato de eu ter escolhido um sobrado como centro do romance era um sinal de que a influência da ficção nordestina já se fazia sentida no sul do país. O ilustre sociólogo não levou em conta a possibilidade de que o autor tivesse tido em sua vida de menino um sobrado, como foi exatamente o meu caso.

Fandango me foi inspirado por um tipo que conheci na minha infância. Chamava-se Nico Velho. Homem de estatura meã, já de meia-idade quando comecei a prestar atenção nele, rosto carnudo, barbicha pontuda, olhos maliciosos, era um humorista e um contador de "causos" nato. Suas estórias tinham um sabor picaresco. Morava no Cadeado, distrito rural de Cruz Alta, e era uma festa quando ele aparecia em nossa casa. O resto do tipo me foi fornecido, por manhas do "computador" em cumplicidade com o meu consciente, por Aníbal Lopes e por uma série de tropeiros, peões, posteiros que, como Fandango, tão bem conheciam a campanha do Rio Grande, suas estâncias, estradas, ventos, aguadas, capões, árvores e, acima de tudo, os seus "viventes".

Trabalhei em O Continente durante boa parte de 1947 e 1948, e um dia me surpreendi diante duma pilha assustadora de papéis datilografados, e compreendi, vagamente apreensivo, que me seria impossível meter toda a história dos Terra-Cambará e de Santa Fé dentro dum único volume. Seria necessário um segundo tomo. Quando mais tarde me atirei ao trabalho dessa seqüência foi para verificar que, se quisesse chegar até 1945, precisaria ainda de um terceiro volume. Uma trilogia então? Que fosse!

Reputo a publicação da primeira parte de O Tempo e o Vento, em 1949, o acontecimento mais importante de minha carreira de escritor. Se o sucesso popular de Olhai os Lírios do Campo me havia tornado possível viver exclusivamente do produto de meus livros, agora O Continente, além do êxito de suas vendas, alcançava também um succès d'estime. Teve excelente crítica.

 

Levei dois anos para escrever esse primeiro volume, usando ou repelindo notas que se me haviam acumulado nas gavetas desde 1939. Ao começar o último terço do tomo tive uma "pane no motor" e passei quase seis meses sem poder escrever uma linha sequer, o que me deixou agoniado. Até então eu procurava convencer os outros e a mim mesmo que escrevia como um oleiro faz um vaso, era uma espécie de artesão que não se deixava envolver sentimentalmente pelos produtos de sua "habilidade técnica". Minha mulher e alguns amigos mais chegados, como Maurício Rosenblatt, sorriam a essa idéia, que sabiam falsa. Agora eu tinha de me render à evidência. Durante a feitura de O Continente tive vários distúrbios gástricos, angústias, momentos de depressão alternados com acessos de euforia.

Eu escrevera a maior parte das suas 639 páginas no meu escritório da Editora Globo, em circunstâncias pouquíssimo favoráveis. Era constantemente interrompido por visitantes — gente que vinha "fazer hora" ou trazer-me problemas pessoais, na esperança de que eu pudesse resolvê-los — e o telefone tilintava dezenas de vezes por dia. A janela basculante do gabinete dava para os fundos dum restaurante, de sorte que em matéria olfativa eu praticamente vivia dentro de uma cozinha. Os piores dias eram as sextas-feiras. Pela manhã eu sentia cheiro c!e peixe cru, por volta do meio-dia chegavam-me às narinas olores de peixe frito (Oh tempos de cebola, alho e manjerona!) e finalmente ao entardecer o que restava eram as enjoativas emanações da banha em que os peixes haviam sido fritos. Não raro andava no ar gorduroso e enfumaçado uma vaga podridão ictiológica.

 

Comecei a escrever O Retrato em janeiro de 1950, na Praia de Torres, num apartamento com vista para o mar. Em março voltei para Porto Alegre com algumas centenas de páginas já prontas e continuei o trabalho, não mais no meu gabinete culinário da Editora Globo, mas na minha própria casa. Como não possuísse um escritório propriamente dito, usei a sala de jantar, colocando a máquina de escrever em cima da mesa, ladeada por pilhas de volumes contendo números do Correio do Povo correspondentes aos anos de 1910 a 1915. Entrei nesse segundo tomo da trilogia cônscio das armadilhas que suas aparentes facilidades me preparavam — o que entretanto não me impediu de cair em algumas delas. Tinha decidido dedicar todo o livro a um "retrato de corpo inteiro" do Dr. Rodrigo Terra Cambará, bisneto e homônimo do bravo capitão. O novo Rodrigo, que dali por diante seria a personagem central da estória e, por assim dizer, o porta-estandarte de seu clã, devia representar um largo passo dos Cambarás rumo de sua urbanização e também o princípio da intelectualização dessa família, que, tendo por um de seus lados começado em 1745 com uma índia que trazia no ventre um filho de pai desconhecido, haveria de produzir um dia o escritor Floriano Cambará.

Não esconderei que me sentia perfeitamente à vontade na companhia do Dr. Rodrigo, porque, como ele participasse um pouco de minha aversão à vida campestre, fazendo-o figura central do romance, eu me livraria da obrigação de estar constantemente no Angico, a estância da família. Quem lá passava a maior parte de seu tempo era Toríbio, seu irmão, personagem que, como já esclareci, me foi inspirada por Nestor Veríssimo.

Tomei desse meu prodigioso tio o físico, a coragem cega, o gosto pela ação guerreira, um que outro episódio de sua aventurosa vida, e o seu insaciável apetite sexual. Direi que Toríbio e Rodrigo são dois tons da mesma cor. No primeiro temos o vermelho em estado quase puro; no segundo essa cor aparece misturada com a amarela e principalmente polida por uma camada de verniz. Embora seja uma figura quase de segundo plano, pelo menos com relação a seu irmão, Toríbio Cambará às vezes me parece a "pessoa" mais viva, mais intensa de todo o livro. Esse é em muitos casos o destino das personagens de ficção sobre as quais o autor não lança com demasiada freqüência e intensidade a luz de seus holofotes. Deixadas em relativa paz, elas começam a viver por conta própria, ganhando assim uma palpitante humanidade. Os filhos não mimados são os que nos saem melhores...

 

Para escrever essa seqüência de O Continente eu contava naturalmente com documentos abundantes e fáceis de obter. Nascido na primeira década do século, eu já me encontrava no mundo havia quatro anos quando a ação de O Retrato começa. E como, havia muito, tivesse decidido que Rodrigo Cambará ia ser uma espécie de sósia psicológico de Sebastião Veríssimo, era natural que eu pensasse também na possibilidade de entrar no livro como personagem, caso em que teria de meter-me na pele de Floriano, o filho mais velho do futuro senhor do Sobrado.

Queria, porém, que Rodrigo Cambará fosse parecido mas não idêntico a Sebastião Veríssimo. Teriam ambos em comum a sensualidade, o amor à vida, a bravura, a generosidade, a vaidade à flor da pele, a auto-indulgência e a mágica capacidade de fazer dos homens amigos fiéis até o sacrifício e das mulheres amantes apaixonadas.

Diferente de meu pai, a personagem central de O Retrato seria fisicamente um belo espécime masculino e teria o que o velho Sebastião nunca me pareceu ter tido: ambição política — e seria o que meu pai nunca foi: amigo íntimo e comensal de Getúlio Vargas. Quanto ao resto, não dependeria de mim, mas dessa fatalidade que, tanto na vida como nos romances, parece arrastar os homens. (Não foi Heráclito quem escreveu que caráter é destino?)

Assim, ajudado por velhos jornais e pelas minhas às vezes nebulosas e outras vezes luminosas lembranças de menino, comecei a trabalhar no romance, a princípio com a cautela de quem caminha num campo minado pelo inimigo. Em breve, esquecido dos perigos, entrei de corpo e alma no Sobrado, como membro da família, tornando-me assim, sob muitos aspectos^ um cronista suspeito.

Que a vida de Rodrigo Cambará não é uma biografia de meu pai é coisa que fica clara a quem quer que se dê o trabalho de confrontar O Retrato com a parte destas memórias em que discorro sobre a vida e a personalidade de Sebastião Veríssimo. Comparada com a farmácia de meu pai, a do Dr. Rodrigo chega a ter uma austeridade monástica. Por que repeli as minhas vivíssimas e turbulentas lembranças daquele pátio digno de Bruegel, Bosch e Goya? Talvez porque tenha chegado à conclusão de que nem tudo que acontece na vida real torna-se necessariamente verossímil quando transposto para o plano da ficção.

Quando Rodrigo se apaixonou por Flora, a filha de Aderbal Quadros, já este velho campeiro havia aparecido em cena com muitos traços físicos e psicológicos de meu avô materno. Era, pois, natural que Flora, futura esposa de Rodrigo, por artimanhas do "computador" estivesse correndo o risco de transformar-se num retrato de minha própria mãe. Reagi quase em pânico contra essa tendência, pois tive a intuição de que, se a seguisse, Flora estaria irremediavelmente condenada, por motivos óbvios, a aparecer no livro como uma criatura assexuada e sem falhas de caráter. Seja como for, sempre que lidava com essa personagem era perturbado pelo temor de fazê-la parecida com D. Bega, de maneira que tive de tratá-la sem verdadeira intimidade, e isso talvez explique a razão por que Flora é das figuras mais apagadas tanto de O Retrato como de O Arquipélago.

As outras personagens desse segundo volume de O Tempo e o Vento, Neco Rosa, o capadócio, Chiru Mena, o mitômano, Cuca Lopes, o mexeriqueiro municipal, são todas figuras compósitas, cuja origem nunca me dei o trabalho de investigar. Quanto a Pepe Garcia, chega a ser quase um arquétipo. Que me lembre, nunca existiu um tipo assim na vida de meu pai nem na minha. Conheci de longe muitos espanhóis dessa "família" em diversas épocas e lugares. Uruguaiana talvez seja a cidade do Rio Grande mais rica em "castelhanos excêntricos". Esses espécimes humanos possuem tantos característicos em comum, que quando transpostos para a literatura de ficção correm o risco de parecerem estereótipos. São em geral baixinhos, franzinos, ossudos, ágeis, têm barba cerrada, usam boina, são ou foram anarquistas, estão sempre contra o governo constituído, amam as discussões, odeiam o Papa e o clero, têm um caminhar miúdo de toureiro, desprezam o "vil metal" e cultivam a mentira ou o exagero dramático como obra de arte.

O Retrato foi publicado em 1951. A despeito do prazer com que o escrevi, achei-o literariamente inferior a O Continente. Para principiar, falta-lhe o elemento épico. Nas críticas que se fizeram a esse segundo volume da trilogia notei um tom quase generalizado de desapontamento. Sérgio Buarque de Holanda escreveu um ensaio crítico muito simpático sobre O Retrato, no qual no entanto não escondeu sua decepção ao comparar esse livro com O Continente, sobre o qual manifestara publicamente seu entusiasmo. Conclui o artigo com a reflexão de que meu erro talvez tenha sido o de querer construir outra cidade ubi Tróia fuit. Diante disso restou-me o consolo ou, melhor, a ilusão de ter construído Tróia.

 

Em fins de 1952 aceitei o convite que me fez João Neves da Fontoura, então Ministro das Relações Exteriores, para substituir Alceu Amoroso Lima no cargo de diretor do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana, em Washington. Mandava-me o Ministro insistentes recados: "Você não pode deixar de nos ajudar. Quero que o Brasil tenha nos Estados Unidos alguém que possa dar em suas universidades cursos sobre nossa literatura. Conto com a sua colaboração".

Nada estava mais longe de minhas cogitações do que voltar aos Estados Unidos. Eu queria, isso sim, visitar a Europa, velho projeto muitas vezes postergado. Minhas curiosidades com relação ao poderoso vizinho do norte estavam praticamente satisfeitas. Como, porém, João Neves insistisse no convite, fiz um plebiscito familiar. Devíamos ou não ir para Washington? Minha mulher e meu filho votaram pela afirmativa. Clarissa respondeu com um apaixonado não: repudiava a idéia de deixar o convívio de seus amigos para passar dois anos — que eternidade! — numa terra estrangeira. Depois de alguma relutância, eu me pronunciei a favor da aceitação do convite, mas com pouquíssimo entusiasmo. Ficou combinado que embarcaríamos em março do ano próximo, época em que Amoroso Lima já estaria de volta ao Brasil.

Passamos aquele verão em Torres, onde fiz vãs tentativas para começar a escrever o último volume da trilogia, O Arquipélago.

Foi durante esse veraneio que produzi o livro mais controvertido de minha carreira de contador de estórias.

Quando afirmo que Noite não passou dum exercício literário, sem raízes profundas em problemas pessoais — espécie de divertimento, de morceau de bravoure —, alguns de meus amigos sacodem a cabeça, negando-se a aceitar a idéia. Insisto em que não escrevi essa novela para exorcizar nem mesmo cutucar fantasmas que porventura assombrassem a casa de meu ser. (Num agudíssimo ensaio sobre minha obra, o crítico Moysés Vellinho por assim dizer me "desmascara", afirmando, principalmente a propósito de Noite, que nesse livro se pode surpreender o outro lado, o lado clandestino de minha alma...)

A verdade é que alguns leitores ficaram chocados e até indignados quando leram essa estória sombria, que passou a ser uma espécie de ovelha negra no meu rebanho literário. Escrevi-a em menos de dois meses, à beira-mar, em dias geralmente luminosos que eram a negação.mesma do espírito da novela.

A ação de Noite se passa numa única noite, e sua personagem central é um homem que o autor apanha no momento exato em que ele perde a memória e se sente um estranho numa cidade para ele — e também para o leitor (e o novelista) — completamente desconhecida. No decorrer dessa noite o desmemoriado encontra duas estranhas figuras que se apoderam dele e o carregam para os lugares mais sórdidos da cidade e da madrugada. Como os vespertinos noticiaram que uma mulher fora assassinada a facadas ao anoitecer daquele dia, e que seu marido, sobre o qual recaem as suspeitas, se encontra desaparecido, os dois demônios (eu escrevi demônios?) convencem o Desconhecido de que ele é o assassino. O pobre homem, confuso, aceita prontamente a culpa e daí por diante fica completamente à mercê das duas sinistras aves noturnas. E o trio continua sua caminhada rumo dos confins da noite. O desmemoriado percebe que está sendo seguido por um homem vestido de branco, um vagabundo que toca uma gaitinha de boca, e no qual adivinha um amigo, espécie de anjo da guarda. Pensa em aproximar-se dele e pedir-lhe proteção, mas um estranho sortilégio o prende às duas figuras diabólicas. Continua a segui-las. Termina a noite no quarto duma prostituta que ele mata simbolicamente no ato do amor. Cai depois no sono e ao despertar recupera a memória e a identidade, surpreendendo-se por achar-se naquele quarto com aquela desconhecida. Um novo dia está raiando. O homem volta para casa, senhor agora dum nome e dum passado. E é nessa volta que, através de suas lembranças fragmentadas, o leitor, e de certo modo o próprio autor do livro, ficam sabendo do que aconteceu antes do anti-herói da novela ter perdido a memória.

Tenho a impressão de que a figura do homem de branco deve ter nascido no momento mesmo em que surgiram os dois donos da noite, pois o preto não sugere por contraste o branco? E o fato de o Desconhecido seguir esses representantes da Tre-va, apesar do horror e do temor que eles lhe provocam, não significará que nossas relações com o Mal são mais constantes, poderosas e íntimas do que com o Bem?

Lembro-me de que, na primeira versão da novela, ao nascer do dia os demônios estavam ainda visíveis, à espera de sua vítima. Achei que se os fizesse desaparecer por completo, o leitor ficaria com elementos para concluir que todos os acontecimentos da noite não tinham passado de um pesadelo.

Ao entrar em sua casa, com o sol já alto, o "herói" encontra o homem de branco sentado no meio-fio da calçada, e lança-lhe um olhar neutro, como se nunca o tivesse visto em toda a sua vida. Que teria querido o autor insinuar com isso? Que o Bem, no fim de contas, sobrevive ao Mal, embora os homens não compreendam isso?

O leitor poderá interpretar a novela da seguinte maneira. A noite do desmemoriado é a noite em que todos nós, mais tarde ou mais cedo, caímos em nossa existência, e em que tudo quanto temos de mais sórdido, a besta agachada em nossas profundezas, vem à tona, fazendo que toda a nossa capacidade para o mal se revele. No entanto, a conclusão final pode ser a de que por mais escura que seja a noite, sempre haverá uma aurora. Um pessimista, porém, poderá interpretar a estória de outro ângulo, escolhendo como seu "texto áureo" as palavras que um dos demônios pronuncia quando seu companheiro lhe pergunta se ele vai deixar o Desconhecido ir-se em liberdade: "Que importa? Ele há de voltar, pois esta não será a sua última noite".

Noite foi publicada — e pouco lida — no Brasil em 1954. A "ovelha negra" de meu rebanho fez no entanto uma carreira internacional que eu não esperava. Noite foi traduzida nos Estados Unidos, na Inglaterra, na França, na Noruega, na Alemanha e na Argentina. A National Broadcasting Co. de Nova Iorque reduziu a novela a um teleplay que, a despeito do excelente elenco — Jason Robards Jr., E. G. Marshall e Franchot Tone — foi um desastre. A estória, transformada num mau conto policial, perdeu o sentido simbólico sem ganhar nada em interesse novelesco.

 

                   O MAUSOLÉU DE MÁRMORE

Em Washington D. C, lá por maio de 1953, alugamos uma confortável casa mobiliada, na Upshur Street, pertencente a um velho adido de imprensa do Departamento de Estado, que havia sido então nomeado embaixador de seu país em El Salvador. Antes de partir, avisou-nos: "Não se surpreendam se um dia souberem que vendi esta casa. A zona está ficando inabitável depois que algumas famílias negras começaram a mudar-se para cá". Esta observação nos deixou chocados. Nosso senhorio, um velho de fisionomia e maneiras extremamente simpáticas, não só era católico praticante como tinha um filho em vésperas de ordenar-se padre.

A primeira coisa que fizemos, depois de instalados, foi travar relações de amizade com um médico mulato que morava nas vizinhanças. Uma semana mais tarde recebíamos na nossa casa a visita desse cavalheiro, de sua senhora e de mais uma dúzia de pessoas colored de suas relações.

 

Alberto Lleras Camargo, então Secretário-Geral da União Pan-Americana, deu-me posse do cargo num ato simplíssimo, sem discursos e durante o qual fui apresentado aos meus companheiros de trabalho.

Se aos vinte e um anos eu me sentira um tanto canhestro atrás dum balcão de farmácia, agora aos quarenta e sete não estava mais à vontade sentado àquela mesa de trabalho, num vasto escritório de paredes pintadas de bege, pesadas portas de aço cor de oliva, soalho todo atapetado — dentro dum edifício de mármore branco, com ares de mausoléu, plantado ali na Constitution Avenue, a três ou quatro quadras da Casa Branca, tendo à frente, do outro lado da rua, o Departamento da Marinha, à retaguarda o Departamento do Interior e à direita o prédio da Comissão de Energia Atômica. Era tudo muito "oficialmente" estranho.

Comecei a andar dum lado para outro, as mãos nos bolsos, assobiando baixinho uma melodia que ninguém jamais havia -composto, nem eu mesmo. Se apertasse num daqueles botões do telefone que negrejava sobre minha mesa, eu me comunicaria com o jovem Ralph E. Dimmick, meu assistente — doutor em Filosofia, poliglota, o mais eficiente e competente colaborador que eu poderia desejar. Se premesse outro botão, ouviria a voz de Mary, a secretária, cujo nome de família (holandês) eu ainda não conseguira decorar.

Bom — concluí — eu tinha de fazer alguma coisa. Por onde começar? Uma palavra muito usada pelo meu avô tropeiro me veio à mente: xucro. Boi xucro, cavalo xucro. Eu era um diretor de departamento xucro...

Não me seria fácil, talvez até nem possível, substituir realmente um homem da estatura intelectual de Alceu Amoroso Lima. No Rio, antes de eu embarcar para os Estados Unidos, tínhamos almoçado juntos no Jockey Club. Era a primeira vez que eu encontrava pessoalmente o admirável ensaísta e professor. Não sei bem por que, imaginava-o um aristocrata, pobre de humanidade, intolerante em matéria de idéias religiosas, reacionário em política. Tive a grata surpresa de me fazer amigo dum homem cordial, vibrátil, corajoso, dotado dum espírito arejado e liberal, animado por um entusiasmo enternecido pela vida e pela espécie humana, e completamente dedicado a um apostolado cristão que não tinha o mais leve ranço de sacristia.

Durante esse encontro Amoroso Lima me dera uma lista com os nomes dos funcionários do Departamento de Assuntos Culturais, com preciosas anotações sobre o caráter e a competência de cada um deles. Tornei a examinar essa lista naquele meu primeiro dia no novo posto. Era preciso decorar os nomes, ligá-los às fisionomias de seus donos e às suas nacionalidades — o que não seria muito difícil para um romancista.

Li depois pela quinta vez a monografia na qual se explica o que é a Organização dos Estados Americanos e como funciona a União Pan-Americana, que faz as vezes de sua Secretaria permanente. Como tenho a atenção volúvel, não me foi fácil concentrá-la naquela série de artigos da Carta de Bogotá nem do Regimento Interno. Como um Teseu antiépico, acabei perdido nos labirintos daqueles gráficos. Meu título, minhas atribuições assumiram no meu espírito a forma dum Minotauro que nem por ser de papel era menos assustador. Não tinha idéia de que minhas funções administrativas fossem tão amplas e complexas. Cabia-me supervisar muito de perto as diversas divisões e seções do Departamento: Educação, Filosofia e Letras, Música e Artes Visuais, Ciências Sociais, a Biblioteca de Colombo — para que todas cumprissem o programa que o Conselho Cultural Interamericano lhes havia traçado. Li esse programa e toda a papelama correspondente, e senti vertigens. Havia nele, é certo, projetos úteis e plausíveis, mas de um modo geral a coisa toda era tão grandiosa, tão verbalmente pomposa, que quase chegava às fronteiras da paranóia. Bom, fosse como fosse, o que se esperava de mim não era uma crítica do programa do Departamento, mas seu cumprimento.

 

Uns dois ou três dias depois que tomei posse do cargo, Mr. Lowell Curtis, chefe do Departamento Administrativo, veio visitar-me, sentou-se junto de minha mesa, mirou-me com ar avaliador e, soltando baforadas de seu avantajado charuto, me perguntou se eu realized a importância do posto que ocupava. Respondi que sim. "Mil dólares por mês, livre de imposto de renda, é um ordenado que pouca gente ganha neste país..." — disse ele, continuando a examinar-me como se eu fosse um bicho raro. Paguei-lhe na mesma moeda: foquei no meu visitante o olhar com que D. Bega costumava cozinhar em água fria as pessoas que achava "esquisitas". Mr. Curtis, um cinqüentão rosado, retaco, muito bem forrado de carnes, de queixo forte e olhos cor de cinza, tinha o ar dum comerciante atacadista próspero. Não tardei a descobrir o verdadeiro objetivo da visita. Depois de alguns rodeios, meu colega me advertiu de que meu departamento, como os restantes, tinha um orçamento rigidamente estabelecido, uma verba para cada atividade específica do programa, e que eu não deveria autorizar nenhuma despesa que não estivesse prevista no budget. (A essa hora eu já tinha esboçado furtivamente a caricatura de Mr. Curtis num bloco de papel.) "Obrigado pela visita" — disse-lhe, quando nos despedimos. O homem me lançou um novo olhar avaliador e se foi.

 

Pelo menos uma vez por semana eu saía trotando ao longo da galeria subterrânea que liga o edifício principal da UPA ao seu anexo — isto é, ao mausoléu — e subia ao gabinete do Secretário-Geral para tomar parte nas reuniões da Comissão Administrativa. Lá estavam os diretores dos outros departamentos. O Dr. Amos Taylor (Assuntos Econômicos e Sociais), um sessentão que falava em tom monocórdio, sem tirar o cachimbo da boca. O Dr. Charles Fenwick (Departamento Legal), avançado na casa dos setenta, com sua bela cabeça branca, bondade e dignidade estampadas no rosto, famoso mestre de Direito Internacional. O Dr. William Manger, Secretário-Geral Adjunto, homem ainda na casa dos cinqüenta, magro e sangüíneo, também fumador de cachimbo, o mais antigo funcionário daquela casa, para onde viera ainda menino, no tempo em que a OEA não existia ainda, e a União Pan-Americana era dirigida em regime patriarcal pelo dedicado Dr. Leo S. Rowe. Mr. Lowell Curtis lá estava também com seu ar pugnaz de buldogue, vigilante à porta do Tesouro.

Ao meu lado, durante as sessões, eu tinha quase sempre Francisco Abrisqueta, talvez o mais jovem do grupo, natural da Espanha, sempre impecavelmente trajado, especialista em estatística. (Mais tarde, quando ele se demitiu, tive a surpresa e o prazer de vê-lo substituído por um brasileiro, Tullo H. Montenegro, que eu conhecia como crítico literário sério e erudito, mas que agora sentava-se à nossa mesa na qualidade de diretor da Divisão de Estatística.)

Presidia essas reuniões o Dr. Alberto Lleras Camargo, antigo jornalista e político colombiano, que, durante algum tempo, exercera interinamente as funções de Presidente de seu país. Foi ele, sem a menor dúvida, a figura mais impressionante de quantas encontrei naquela casa. Fisicamente pequeno, descarnado, aspecto doentio (sofria duma úlcera gástrica), tinha no rosto anguloso uma expressão que me parecia um misto de ceticismo, amargura e desencantado conhecimento dos homens. Tratava-nos com uma fria polidez que nos mantinha sempre a uma certa distância. Quando um de nós estava com a palavra, expondo algum problema ou projeto, ele baixava a cabeça e punha-se a rabiscar caricaturas num bloco de papel, com o ar mais distraído e indiferente que se possa imaginar. Quando, porém, terminávamos a exposição, erguia os olhos e, com sua voz de pau, de maneira exata e sensata, apresentava a solução para o problema ou a sua opinião sobre o projeto. Falava com grande economia e precisão verbais, e uma vez que outra deixava escapar uma observação que revelava sua descrença quanto às organizações internacionais em geral, ("apátridas" como ele dizia) e a OEA em particular.

Tive na minha primeira semana de trabalho uma rápida rusga com o Secretário-Geral. Havia na UPA o hábito dos memorandos internos. Como tivesse recebido de LIeras Camargo um bilhete lacônico e ríspido, que não me agradou, respondi d» maneira também breve e áspera, que desejei não fosse também do agrado do chefe. Quando tornamos a nos encontrar, depois dessa troca de "tiros", ele me recebeu da mesma maneira de sempre: polido mas ausente. Dali por diante nos entendemos maravilhosamente bem em termos burocráticos. No setor humano, porém, não houve nenhuma aproximação, embora eu tivesse curiosidade de conhecer mais de perto aquele homem lúcido, inteligente e bravo (o seu comportamento ulterior revelou sua fibra física e moral), o único político latino-americano, entre todos os que encontrei, que possuía realmente qualidades de estadista.

Às vezes eu me perguntava se a úlcera gástrica de LIeras Camargo não teria sido causada, entre outras coisas, pelo seu sentimento de culpa por estar ali na paz burocrática de Washington D. C, exercendo um cargo tão cobiçado por outros — casa para morar, carro com chofer, além dum ordenado de quase dois mi! dólares mensais, livre de imposto de renda —, enquanto na sua terra natal um ditador militar cruel e corrupto mantinha o povo num regime permanente de terror e escravidão. (A verdade é que em 1954 Alberto LIeras Camargo se demitiria voluntariamente de seu cargo e voltaria para Bogotá, onde se uniria aos que combatiam a ditadura de Rojas Pinilla, conseguindo eventualmente expulsá-lo do Poder.)

 

Os dias passavam. Aprendi a manejar o telefone. As deformações que a minha atividade na Revista do Globo me havia produzido no espírito, às vezes me faziam pensar absurdamente que eu tinha de levar a cabo, sozinho, todo o complexo programa do Departamento. Necessitei de algum tempo para me habituar à idéia de que aquelas salas estavam povoadas de competentes especialistas em Educação, Literatura, Filosofia, Ciências Sociais, Biblioteconomia, Bibliografia, Música e Artes Visuais. Entre os oitenta e poucos funcionários daquele departamento, havia um ex-ministro da Educação (Colômbia),, um professor de Filosofia e um físico de renome, ambos argentinos, um antropólogo espanhol, um romancista mexicano, um crítico de arte cubano e um musicólogo e condutor de orquestra colombiano, além de vários americanos — inclusive um Harvard man —, detentores alguns de títulos de Doutor em Filosofia. E toda essa gente estava sob as ordens dum sujeito que nem sequer havia terminado o curso ginasial do Colégio Cruzeiro do Sul.

(Minha professora do curso primário entrou algumas vezes naquele escritório, trazendo pela mão o menino Érico, que não conseguia aprender a fazer conta de dividir. O velho Sebastião olhava para o filho e dizia: "Acabas de receber diploma de burro".)

No entanto, desde que eu chegara, meus companheiros de trabalho começaram a me chamar de Dr. Veríssimo. Expliquei-lhes com insistência que eu não tinha nenhum título. Inútil, não me deram crédito. Os cheques quinzenais correspondentes ao meu ordenado vinham com um DR antes de meu nome. Pode alguém em sã razão contradizer um cheque que foi expedido por uma máquina eletrônica? Resignei-me ao título. Words, words, words!

 

Li, não me lembro onde nem quando, que os rios subterrâneos em geral são mais encontradiços sob os terrenos calcários. Debaixo da superfície branca, asséptica e bem educada daquela organização internacional, corria um rio de rivalidades, antipatias, birras, invejinhas, vaidades feridas, diferenças de opinião, choques de personalidades... Esse rio, porém, seguia seu curso de maneira tão discretamente escondida, que era preciso um aparelho auditivo especial para ouvir o rumor de suas águas. Uma vez que outra, voluntária ou involuntariamente, eu metia uma sonda na "terra" e, a poucos metros abaixo da superfície, encontrava a corrente, cuja intensidade variava de acordo com a região, isto é, o Departamento, a divisão ou a pessoa sob a qual passava.

Aos poucos, ajudado por um certo "comadrismo" que existia no Departamento, fiquei sabendo quem não gostava de quem e por quê. Preparei-me então para, além das atribuições administrativas, exercer também as funções de juiz de paz. Creio que um dos aspectos mais positivos da minha ação na UPA foi o de ter conseguido que toda a minha gente trabalhasse em harmonia, com espírito de equipe. Reduzi a um mínimo, tão perto do zero quanto possível, as formalidades hierárquicas, continuando assim a tradição de Amoroso Lima. Raramente almoçava na sala reservada para os diretores de departamento: fazia minhas refeições do meio-dia na cafeteria, com meus companheiros de trabalho, procurando conhecê-los melhor fora do contexto burocrático. Um dia alguém me disse, dum jeito que era metade estranheza, metade censura, que eu era o único diretor de departamento que costumava trabalhar sem casaco.

 

Formou-se aos poucos naquele departamento o hábito de atirar todas as "batatas quentes" para as mãos del doctor Beríssimo, que desgraçadamente não podia passá-las adiante. Um dia o diretor da Seção de Música me trouxe um caso. "jefe" — exclamou ao entrar — "Tengo un problemita". Sentou-se e expôs-me a sua dificuldade. Admitira como assistente em sua seção, em caráter experimental, um jovem americano e agora, passado o período de probation, verificava que o homem não correspondera à sua expectativa. "É simples" — respondi. — "Diga-lhe que sente muito mas que não pode recomendar sua efetivação." O maestro me olhou, grave, e murmurou: "A mim não me fica bem dizer-lhe isso. É um musicólogo, um colega, un buen muchacho, um compositor de futuro...". Compreendi o que o maestro queria. "Pois diga-lhe que venha falar comigo." Mais tarde o homem apareceu. Ficamos a sós no gabinete. Primeiro puxei uma longa conversa sobre música. Falei-lhe em Villa Lobos. Depois perguntei-lhe se estava no momento compondo alguma coisa. Mr. P. respondeu que não, pois lhe faltava tempo. Houve uma pausa entre o andantino de nossa conversa-sonata e o agitato que se seguiu. O artista me mirava com olho desconfiado. Assumi um ar paternal: "Quer um conselho, Mr. P.? Vá embora o quanto antes desta casa!". — "Mas por quê?" — quis ele saber. Repliquei: "Onde se viu um compositor, um criador, passar o dia sentado a uma mesa, datilografando cartas e relatórios ou catalogando composições alheias?". Ele me olhava ainda sem compreender. Por fim, com um sorriso canhestro, perguntou: "Devo entender que o chefe da Seção de Música não está satisfeito com o meu trabalho?". Sacudi negativamente a cabeça. "Não, Mr. Espinoza nada tem a ver com o assunto. Quem achou seu trabalho insatisfatório fui eu. E por isso lhe dou os meus sinceros parabéns." Pus-me de pé, apertei-lhe calorosamente a mão, e expliquei: "Porque se você fosse um bom datilografo, estenógrafo ou arquivista, seria um péssimo compositor. Não hesite um minuto. Fuja daqui. Passe fome. Venda a alma ao diabo. Mas componha! Componha! Componha!". Atarantado, o homem fez meia volta e se foi. E demitiu-se.

Poucos anos mais tarde li na seção de música do magazine Time que a orquestra sinfônica de Washington havia interpretado com grande sucesso um concerto para tímbales e orquestra da autoria do nosso Mr. P.

 

Certa manhã recebi a visita dum artista norte-americano que me expôs um projeto grandioso: pintar retratos a óleo, de corpo inteiro, de todos os chefes de Governo das três Américas. (Picaretagem — pensei, brasileiramente.) "Desejo para isso o patrocínio do Departamento Cultural" — concluiu. Sacudi negativamente a cabeça, com o meu melhor sorriso de Gioconda, e declarei-lhe que não tínhamos no nosso orçamento, aliás magérrimo, nenhuma provisão para um empreendimento daquele gênero. "Mas eu não quero subvenção, meu caro senhor" — explicou o pintor — "e sim o apoio moral da União Pan-Ame-ricana". Repliquei que sentia muito, mas não podia dá-lo. E depois que o homem se retirou fiquei a pensar na inutilidade ridícula daquele projeto: imaginei uma galeria de presidentes e ditadores, maiores ou menores, com suas faixas presidenciais, casacas, uniformes e condecorações — Martís e Bolívares de drugstore.

Narrei esta cena porque é ela típica de centenas de outras que haveriam de representar-se naquele gabinete nos próximos três anos, em que pessoas das mais variadas nacionalidades e profissões me apresentariam as mais estranhas propostas e projetos. Aqui vai mais uma.

 

De outra feita me surgiu uma cantora aposentada (contralto), que se disse autora dum Hino das Américas. Pedia meus bons ofícios para que a peça fosse adotada como o hino oficial da OEA. Mostrou-me a música, cantarolou-a para mim numa impostada mas trêmula surdina. Eu movia a cabeça, acompanhando o ritmo do hino. Lembro-me de que uma frase da letra era dum grotesco irresistível: solution by arbitration (solução por arbitração). Quando a dama soltou o agudo final, declarei que o hino era uma verdadeira beleza, mas a senhora compreende, para que ele seja adotado precisamos convocar uma reunião do Conselho, a aprovação unânime dos representantes de vinte e um países da Organização... Inviável. Sorry, very sorry.

A dama se foi, aparentemente resignada, e eu fiquei com os meus problemas.

 

Costumavam reunir-se periodicamente no edifício principal da UPA, sob a direção de Mrs. C, as damas que faziam parte do Clube de Espanhol da Casa Branca. Eram em geral esposas de congressistas e altos funcionários do Governo dos Estados Unidos. Faziam pouquíssimo progresso no estudo da língua de Cervantes e Cantinflas, mas tomavam muito chá e belas resoluções, conversando às vezes em voz tão alta e animada, que as coloridas araras latino-americanas, que enfeitam o Pátio Tropical do edifício, rompiam a guinchar, excitadas.

Convidado um dia a fazer uma palestra para esse irisado grupo, compareci ao lugar e à hora marcados, e fui apresentado às girls por Mrs. G. — setentona, alta, metida num vestido de cores vistosas. Terminada a apresentação, voltou-se para mim e, erguendo as mãos entrelaçadas, suplicou: Give us culture, Mr. Veríssimo! (Dê-nos cultura, Mr. Veríssimo.) Fiz o que pude.

 

Como o ano fiscal da UPA termina no dia 30 de junho, cada diretor de departamento, um par de meses antes dessa data, tem de comparecer perante a Comissão de Finanças da OEA para "defender" item por item o seu projeto de orçamento para o ano seguinte, antes que ele seja definitivamente encaminhado pelo Secretário-Geral ao Conselho da Organização.

Lembro-me de que uma vez, suando e lutando, tonto de cifras, diante de oito delegados cujo ânimo castrador me parecia demasiadamente exacerbado, pois estavam "aparando" nosso programa ou, melhor, reduzindo e mesmo eliminando as verbas que eu solicitava para certas atividades que me pareciam importantes — não resisti à tentação de interpelar o embaixador que presidia a reunião, sentado à cabeceira da mesa: "Dr. Delgado" — perguntei — "o senhor viu o filme Uma Noite na Ópera, com os irmãos Marx?". O diplomata franziu a testa. "Não. Por quê?" Expliquei. "Há nessa fita uma cena de grande importância simbólica. Groucho, Harpo e Chico vão viajar, mas estão de tal modo apressados que metem atabalhoadamente suas roupas numa valise. Quando conseguem fechá-la e verificam que pedaços de casacos, calças e camisas ficaram para fora, não hesitam: cortam-nos com uma tesoura, convencidos de que assim resolvem o problema." Oito pares de olhos focaram-se em mim. Terminei: "Com o devido respeito, direi que esta comissão está cortando o nosso orçamento de acordo com essa técnica... marxista, com o perdão da má palavra". Os delegados sorriram. Mas eu voltei para o escritório com o orçamento mutilado.

 

Dentro de algum tempo o meu gabinete na UPA já se parecia muito com o da Editora Globo, em Porto Alegre, pois não só os funcionários do meu departamento como também de outros e até pessoas completamente estranhas à Organização me vinham trazer problemas pessoais, desabafar mágoas ou ressentimentos ou pedir socorro das mais variadas espécies. (Será que tenho uma cara psicologicamente catalisadora?) Eu escutava todos com paciência, não raro rabiscando caricaturas num bloco de papel amarelo, principalmente na hora em que as confidencias enveredavam para assuntos íntimos.

Lembro-me dum dourado dia de outubro — pleno outono americano — em que o desfile de "suplicantes" foi tão particularmente numeroso que sempre havia uma pessoa na sala de espera, aguardando a sua vez. Eu tinha na cabeça, como uma idéia fixa, frases do quinteto para clarineta e cordas de Brahms, que para mim sugere a cor, o som, a fragrância, o espírito, enfim, do outono.

Depois de despedir docemente uma rapariga americana que chorou no meu ombro as dores dum amor mal correspondido (o noivo tinha fugido para a índia), liguei o telefone para a minha secretária e disse: "Mary, faça passar o próximo paciente".

 

Quem agora me lê talvez estranhe que, passados tantos anos, ao recordar minhas aventuras, venturas e desventuras como diretor do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana eu me tenha lembrado desses pequenos incidentes pessoais e anedóticos. Explico: é porque na minha opinião esses "retalhos", exatamente por serem pessoais e anedóticos, não ficam mal, costurados a esta colcha feita de lembranças. E, indo mais fundo, é também porque receio que o leitor possa pensar que, no exercício daquele cargo, eu alguma vez tivesse alimentado a tola e vaidosa idéia de que estava defendendo ou mejorando Ia cultura de nuestra madre America. Carrego sempre comigo uma boa provisão do sal da malícia e da dúvida para temperar muitas das coisas que digo, escrevo, penso ou faço. É possível que muitas vezes a mão se me escape e eu carregue no sal, causando uma impressão de falsa modéstia ou masoquismo. (Não sei o que será pior.) Seja como for, acho muito perigoso um homem levar-se demasiadamente a sério. Tenho plena consciência de que quase sempre tento escapar de situações desagradáveis e dramáticas pela porta do humor — como deve ter ficado bastante claro nas páginas deste livro de memórias. Seja como for, acho isso mil vezes preferível a assumir ares de herói ou mártir.

 

Desconfio de que até agora devo ter dado ao leitor a impressão de que o tempo que passei à frente do Departamento de Assuntos Culturais foi para mim uma espécie de piquenique ou alegre e pitoresca feira interamericana à beira do Potomac. Puro engano. Porque a verdade é que trabalhei duramente e a sério, compenetrando-me de minhas obrigações de tal modo, que lhes dedicava não apenas as sete ou oito longas horas que passava diariamente no escritório — quando não andava viajando pelos Estados Unidos e por outros países das Américas, fazendo conferências, tomando parte em congressos, mesas-redondas ou seminários — como também às vezes levava para casa, nas horas em que devia descansar e cuidar da minha vida particular, os problemas e preocupações do Departamento. Procurei fazer bem até as tarefas nas quais não acreditava ou que não me despertavam entusiasmo ou produziam prazer. Como administrador tive sucessos e fracassos e, como era de esperar, esqueci mais depressa os sucessos do que os malogros. Estes últimos até hoje me aparecem esporadicamente em sonhos, sob os mais variados disfarces.

 

Para que o leitor tenha uma idéia da diversidade das minhas muitas funções, direi que num dia eu podia estar sentado à minha mesa, na UPA, assinando um papelório interminável ou ouvindo uma funcionária grávida que solicitava licença para ir esperar em casa a hora do nascimento do bebê — e dois dias depois ser encontrado numa das salas do Palácio do Governo de San Juan de Puerto Rico, na frente do Sr. Presidente da República, lendo um discurso... Ou em Caracas, discutindo com um representante da UNESCO um projeto em que essa entidade e a OEA colaboravam... Ou ainda na Universidade de Harvard, fazendo para um pequeno público uma palestra sobre Machado de Assis...

Lembro-me do dia em que, regressando duma visita a vários colleges do sul dos Estados Unidos, fui chamado ao gabinete do Secretário-Geral, que me disse: "Temos novo barulho com o Comitê de Ação Cultural do México. O senhor precisa seguir imediatamente para lá e tratar de acalmar o Embaixador M., que está furioso com o seu Departamento". Assim, à meia-noite daquele mesmo dia embarquei para a cidade do México, onde cheguei na manhã do dia seguinte. À noite já estava jantando com onze outros convivas na residência do embaixador do Uruguai, sentado a uma resplandecente mesa, entre a senhora embaixatriz do Haiti e a esposa do anfitrião, e sentindo-me pouco à vontade dentro do smoking que um diplomata brasileiro providencialmente me emprestara para a ocasião. No dia seguinte enfrentei o Comitê de Ação Cultural e a paz foi assinada. Voltei para Washington triunfante... mas meses depois nossas relações estavam de novo estremecidas, a caminho duma nova deterioração. E outra vez voei para a cidade do México. Dessa feita não houve nenhum banquete, mas recriminações amargas, queixas, acusações e, por fim, um novo tratado de paz, tão precário como o anterior.

 

No escritório continuavam os problemitas. "Esses velhotes reacionários da Comissão Administrativa" — alegava, indignado, o meu diretor de Artes Visuais — "andam criticando e sabotando minhas exposições de pintura abstrata, porque esses fósseis só apreciam a arte acadêmica!" Acalmei-o: "Deixe que falem. Faça as suas exposições como entender. Você é o especialista. Dou-lhe todo o meu apoio".

Havia também os concertos, em que a Seção de Música apresentava no salão de festas da UPA jovens artistas latino-americanos. Vinha às vezes o maestro Espinoza e me dizia coisas assim: "O Embaixador C. anda insistindo para que patrocinemos um recital de sua compatriota, a Srta. X. Ela se diz soprano, mas canta como uma vaca. Que é que se vai fazer?". O Salomão cruzaltense respondia: "Pois, amigo, se ela canta como uma vaca, no hay caso. Diga não a Sua Excelência". — "Pero, si ei embajador se enoja?" — "Pues que se enoje!" Eu me ouvia dizer essas palavras e não acreditava que era eu mesmo quem falava. O fato de estar no estrangeiro, exercendo uma função para que não fora talhado, dava-me a impressão de que, de certo modo, eu era personagem dum outro romance e não daquele...

Agora, no exato momento em que escrevo estas palavras, do fundo de minha memória emergem faces, vozes, cenas, trechos de diálogos, e eu me vejo a mim mesmo, objetivamente, nas circunstâncias mais diversas. (Quero registrar aqui o nome dos amigos que fiz na UPA e que conservo até hoje: Cortês Piá, físico argentino, David Heft, judeu americano, Armando Corrêa Pacheco, brasileiro, Javier Barceló Malagón, espanhol, Ralph Dimmick, norte-americano. Foram-me colaboradores da maior valia. Eu sentia — e não me enganei — que eles não eram amigos do diretor do Departamento, mas do homem que ocupava acidentalmente essa posição.)

 

Estou no gabinete do Ministro das Relações Exteriores do México, sentado na frente do Chanceler, um homem moreno, baixo, taciturno, que me lembra — não pela estatura nem pelas feições, mas pela severa impassibilidade do rosto — Benito Juarez. Já dei o meu recado, que era um pedido relacionado com o Comitê de Ação Cultural. Já tenho a resposta do Ministro, que é um enigma. Tento entabular uma boa, cordial conversa brasileira, mas sinto que minhas próprias palavras me voltam transformadas em cinza fria e me batem na cara. Porque o Chanceler continua no seu silêncio de pedra asteca. Levanto-me, despeço-me e me vou.

 

  1. Conferência Interamericana de Ministros do Exterior, em Caracas. Estamos numa sessão plenária, no vasto e moderno auditório da Cidade Universitária. Guillermo Toriello, chanceler da Guatemala, lê um discurso vibrante em que acusa os Estados Unidos de estarem conspirando para derrubar o Governo do Cel. Jacobo Arbenz. Do lugar onde me encontro posso ver claramente Foster Dulles, que, sentado na décima fila de cadeiras, ao lado de seus assessores, escuta por um fone de cabeça a tradução simultânea para o inglês da catilinária guatemalteca. Sua face conserva o ar azedo habitual, um dos cantos da boca caído numa expressão de hemiplégico desdém.

Quando Toriello termina sua oração, o estrépito de aplausos frenéticos enche o recinto. Aplaudo também com entusiasmo. A delegação americana permanece impassível. (Meses depois, através da CIA os Estados Unidos ajudariam Castillo Armas e suas forças mercenárias a invadir a Guatemala e derrubar seu Presidente legalmente eleito.)

 

Ainda em Caracas. O Governo venezuelano oferece aos congressistas uma festa no Círculo Militar, nos arredores da capital. O clube é dum "luxo asiático", para usar duma expressão da minha tia-avó Dedé. Parece um cenário de Hollywood para um filme espetacular em cores, dirigido por Cecil B. De Mille. A decoração é extravagante. O mobiliário, de primeira qualidade. Vejo em cada sala um televisor. Alguém me mostra um depósito onde se empilham sessenta caixas de uísque escocês legítimo. As mesas estão postas no jardim, ao redor da vasta piscina que holofotes iluminam. Garçons servem prodigamente champanha e scotch. Olho para as paredes do Círculo Militar e procuro nelas a inscrição fatal...

Quando dou acordo de mim, encontro-me numa fila... para quê? Ao descobrir que é para apertar a mão do ditador da Venezuela, o Cel. Perez Jimenez, que lá está repimpado no seu uniforme de gala, reluzente de unto e condecorações, salto fora da linha e vou conversar com o meu velho amigo, o Major Heitor Herrera, que faz parte da delegação brasileira à Conferência, na qualidade de assessor do Marechal Mascarenhas de Moraes. E ficamos ambos a um canto (Herrera tem um agudo senso de humor) a conversar sobre o Brasil e a rir da "pompa e circunstância" do gordito Jimenez.

Ainda durante a Conferência. Uma tarde quente, numa sala de aulas da Cidade Universitária. O meu diretor da Divisão de Educação, seu assessor, o romancista mexicano, e eu estamos preparando a redação dum documento, Campanha Contra o Analfabetismo, que desejamos seja aprovado em plenário. Tiramos os casacos, arregaçamos as mangas das camisas e, bebendo alternadamente cafezinhos e refrescos, discutimos a redação do documento. Decidimos que deve ser direto, seco, sem adjetivos: uma série de considerandos com uma conclusão. Proponho o primeiro: CONSIDERANDO que existem nas Américas milhões de pessoas que não sabem ler nem escrever... O diretor de Educação oferece o segundo: Que o analfabetismo é um dos maiores obstáculos ao exercício da democracia... O mexicano colabora: Que, enquanto esta situação subsistir, será difícil melhorar as condições de vida dos povos americanos...

Dentro de menos duma hora temos pronto o documento, que é aprovado dias depois pela Conferência, sem a menor modificação.

 

Uma noite, em 1955, no grande salão da União Pan-Americana. Os grandes lustres de cristal refulgem. Estou na plataforma, metido num smoking (desta vez de minha propriedade) e tenho de apresentar ao numeroso público ali reunido o romancista americano Louis Bromfield, que vai fazer uma conferência sob o patrocínio do meu Departamento, e que está a meu lado, envergando também um tuxedo e — curioso! — com botas de cow-boy, de salto alto. Começo: "Senhoras e senhores, encontro-me numa situação muito delicada. Tenho de apresentar o conferencista... mas a mim, quem é que apresenta?".

 

Cerca das onze horas da noite. Estou deitado no leito da minha cabina, no trem noturno que me leva de Washington a Chicago, onde vou fazer amanhã uma conferência na Northwestern University. Claustrófobo histórico, deixei a porta entreaberta. Ouço o ruído ritmado das rodas do vagão sobre os trilhos. Não consigo dormir. De súbito vejo um homem alto e corpulento entrar... "Que é que há?" pergunto. Ouço uma voz: "Desculpe... errei de porta. Minha cabina fica aqui ao lado. Good night". O vulto desaparece. Fica só o seu espírito, quero dizer, o seu bafio de álcool. Resvalo em doces solavancos para um sono muito tênue e de repente desperto, sentindo uma presença humana junto de meu leito. É o vizinho outra vez. Deve ter quase dois metros de altura e uma corpulência de atleta. Está em mangas de camisa, com um cigarro aceso entre os dedos de uma das mãos. Não consigo ver-lhe claramente os traços fisionômicos.

"Sou eu de novo" — diz ele. "Não consigo dormir. Posso sentar-me?" Respondo que sim e ele se senta na beira de meu leito, dizendo com voz arrastada: "Estou num pileque medonho. Preciso conversar com alguém. Você se importa?". Respondo que não. O desconhecido acende a lâmpada de cabeceira, examina-me a cara por alguns instantes, a seguir apaga a luz e, sem nenhuma explicação, estende-se na cama a meu lado. "Vou ter um problemita..." — penso. O homenzarrão estende o braço direito por cima da minha cabeça e segura o lóbulo de minha orelha entre o polegar e o indicador, ao mesmo tempo que tenta meter-me entre os lábios o cigarro que está fumando. Sento-me na cama e digo sem alterar a voz: "Mister, faça o favor de voltar para a sua cabina. E imediatamente, sim?". Submisso, o homem levanta-se. "I know what you mean... Compreendo o que você quer dizer. Sorry." E sai da cabina com passos incertos.

Tenho então o cuidado de fechar a porta com o trinco. Fico refletindo sobre aquele incidente constrangedor. Ou grotesco? Ou, pensando melhor, triste? "Acontece-me cada uma!" digo para mim mesmo. Não sinto o menor rancor pelo desconhecido, mas sim uma certa piedade.

Finalmente adormeço. No dia seguinte, muito cedo, entramos em Chicago. Estou sentado junto da janela do vagão, olhando os subúrbios da grande metrópole, quando o visitante da noite torna a aparecer, senta-se a meu lado e diz: "Venho pedir-lhe desculpas pelo que aconteceu à noite passada. E também agradecer-lhe pela maneira compreensiva com que você me tratou. Sou um homem casado, tenho um filho de doze anos... Uma única vez por ano consigo viajar sozinho... Quando isso acontece bebo demais e faço bobagens. / am very sorry". Aperta-me a mão e se vai. Um homossexual? Esta explicação é simples demais. Claro, havia naquele quarentão um componente homossexual que vinha à tona sempre que a embriaguez lhe afrouxava os controles. Mas creio que ele não sabia claramente o que queria quando entrou na minha cabina. Talvez desejasse celebrar de algum modo a sua última noite de liberdade, antes de voltar para a rotina doméstica, para uma esposa possivelmente dominadora, para o horário rígido de trabalho, para a tarefa de cortar a relva de seu jardim nas tardes de sábado, para as convenções e preconceitos do Estabelecimento, para a mesmice, para o tédio, em suma, para sua insondável solidão...

Desembarco na plataforma da estação de Chicago e avisto o meu "caso". A mulher veio esperá-lo. Abraçam-se sem entusiasmo, trocam um beijo murcho. Consigo ver o rosto dela e verifico que tem feições masculinas...

 

Fui um dia chamado ao escritório de Carlos Dávila, ex-Presidente do Chile, e que substituíra Lleras Camargo no cargo de Secretário-Geral. Era um homem retaco, presumivelmente na casa dos sessenta. Jornalista; seus artigos eram publicados em cadeia em muitos jornais através da América Latina. Extremamente cordial e bem-educado, não tinha entretanto a estatura intelectual de Alberto Lleras. Era mundano e ocupava-se de preferência com os aspectos festivos de seu cargo. Entendíamo-nos muito bem no plano humano. Quanto às questões ' administrativas, elas tinham ficado quase por completo a cargo do Dr. William Manger, com o qual minhas relações eram as melhores possíveis em todos os terrenos.

"Dr. Veríssimo" — disse-me Dávila — "quero que vá me representar na Conferência Interamericana da Criança, na cidade do Panamá. Não posso ir pessoalmente porque não estou me sentindo bem. O Panamá atravessa uma situação difícil. Como o senhor sabe, seu presidente foi assassinado, e o ambiente político panamenho está ainda confuso. Precisamos prestigiar o novo Governo. Escreva um discurso para a sessão inaugural da Conferência". — "Quando devo embarcar?" — perguntei. O secretário sorriu: "Depois de amanhã. Sinto muito ter-lhe dado o aviso com tão pouca antecedência". (Dávila morreria de câncer dali a poucos meses.)

Voltei ao meu gabinete e escrevi um discurso em espanhol, tendo o cuidado de pedir a um dos funcionários argentinos de meu departamento que lhe fizesse as correções gramaticais e estilísticas necessárias.

Minha mulher, que tem horror às viagens aéreas, fica automaticamente viúva no momento em que entro num avião. A temperatura em Washington estava alguns centígrados abaixo de zero no dia em que embarquei. Durante a viagem fiz a bordo do avião o meu strip-tease, pois sabia que ia reencontrar o verão no Panamá. Quando desembarquei tive a impressão de que entrava na primeira fase dum banho turco. A temperatura estava acima de 36° e a umidade relativa do ar perto dos 90.

Na sessão inaugural do Congresso, no momento exato em que subi para a plataforma e coloquei as páginas de meu discurso sobre a estante, não pude deixar de pensar em Cruz Alta. Vi vários espectros entre o público que enchia a sala do auditório da Universidade. O velho Aníbal, de bombachas e chapéu de aba larga, amaciava com a faca uma palha para o seu cigarro. O velho Franklin me olhava com o rabo dos olhos. Meu pai, radiante, me piscou um olho. D. Bega era um espelho em que minha própria face se refletia. Lá estava o meu irmão a me fazer sinais cabalísticos. Vislumbrei as faces de muitos amigos... E todos esses fantasmas me pareciam ter mais realidade do que as pessoas de carne e osso que eu via sentadas no auditório: membros do Governo panamenho, representantes do corpo diplomático, o Núncio Apostólico, delegados ao congresso...

Li um discurso muito franco. Ataquei os ditadores em geral. Falei na miséria crônica em que vivem os povos da América Latina, na cruel desumanidade do homem para com o homem, e na necessidade de promover a justiça social e eliminar a indigência, o analfabetismo e as ditaduras. Fiz considerações sobre a bomba atômica e os perigos duma terceira Guerra Mundial, e encareci a necessidade de manter a paz mundial. (Lugares-comuns? Talvez, mas trágicos, tão trágicos que não devemos cessar de repeti-los.) Exaltei o espírito daquele congresso, que se reunia para estudar os problemas da criança e acrescentei: "Na minha opinião não basta salvar hoje essas crianças da doença, da miséria e da morte. É preciso também fazer tudo que esteja ao nosso alcance para que amanhã, homens feitos, elas não sejam mandadas estupidamente para o matadouro dessas nossas guerras brutais e insensatas".

Curiosamente o delegado do Brasil a essa reunião era o pediatra Dr. Mário Olinto, filho do Dr. Olinto de Oliveira que em 1909 me salvara a vida.

Dois dias depois da inauguração do Congresso, voltei para Washington, que me esperou com uma tempestade de neve.

 

Dentre as muitas reuniões organizadas pelo nosso Departamento, a mais interessante foi sem dúvida a que se realizou em março de 1956 na capital de Puerto Rico, com a colaboração do Governo deste país, representado pelo seu jovem Secretário de Estado, o Dr. Morales Carrión, que eu conhecera em 1941 na International House, quando ele ainda cursava a Columbia University.

Convidamos para essa conferência quarenta figuras importantes — escritores, professores, cientistas — de quase todos os países das três Américas. (O Brasil foi muito bem representado pelo historiador José Honório Rodrigues.)

O que caracterizou esse simpósio foi a sua cordial informalidade e a absoluta franqueza com que se discutiram os problemas do temário: as causas dos desentendimentos das repúblicas latino-americanas entre si e de cada uma delas com os Estados Unidos.

Desde o primeiro dia, já que me coube dar início aos trabalhos, procurei estabelecer a tônica dos debates. "Não vou fazer nenhum discurso. Esta reunião será absolutamente informal. Todos nós nos conhecemos uns aos outros e sabemos por que e para que estamos reunidos aqui. Vamos, pois, começar a trabalhar. Dou a palavra ao professor Fernando Ortiz, de Cuba."

Não me lembro de ter tomado parte em reunião mais agradável e de maior calor humano. Momentos houve de tão contundente franqueza (pois não éramos hermanos?) que se um estranho entrasse desavisado na sala teria a impressão de que estávamos prestes a nos atracar em lutas corporais. Isso acontecia quase sempre que se tratava do problema racial. Um dia, inadvertidamente, incendiei os ânimos hispano-americanos com uma pergunta inocente: "Afinal de contas, como se deve dizer: língua espanhola ou língua castelhana?". Fiquei de fora assistindo com delícia aos apaixonados e eruditos debates. É desnecessário dizer que não se chegou a nenhuma conclusão.

 

No aeroporto de San Juan embarquei num avião duma companhia costarriquense — um Junker de dois motores, de aspecto ameaçadoramente antiquado — que me levou num vôo de quatro horas à cidade do Panamá, em cujo aeroporto apanhei um Constellation da Pan American Airways com destino à capital do Peru, onde ia realizar-se a esperada e por muitos motivos temida reunião do Conselho Cultural Interamericano, em que os Ministros da Educação dos vinte e um países que formavam a OEA iam não só apreciar os trabalhos que nosso Departamento havia realizado até então, como também traçar-lhe um programa de atividades para os próximos dois anos.

Presidiu a reunião o Ministro da Educação do Peru, um general cujo nome por alguma razão recôndita minha memória recusou guardar.

Lima é uma bela e plácida cidade que fica entre o paredão dos Andes e o mar. Tive a alegria de lá encontrar Vianna Moog, que agora representava o Brasil no Comitê de Ação Cultural, sediado na cidade do México, e que tantas dores de cabeça me dera e ainda dava. Por uma coincidência que não deixava de ter seu lado cômico, coube a ele e a mim fazer os discursos de encerramento da Conferência. Terminada a sessão, saímos ambos a andar pelas ruas de Lima, recordando nosso primeiro encontro na Rua da Praia, em Porto Alegre, e todas as voltas que nossas vidas haviam dado desde aquele longínquo 1932 até o momento em que, lado a lado, atravessávamos a passo lento a Plaza de Armas, naquela capital andina. De repente Moog estacou, olhou para mim e, parodiando a voz impostada de orador de praça pública, exclamou solene: "A América Latina hoje curvou-se diante de Cruz Alta e São Leopoldo! Foi ou não foi?". Rompemos a rir e depois fomos direito a um restaurante, onde provamos alguns pratos típicos peruanos como anticucho, pedaços de coração de boi assados em pequenos espetos de bambu, e zeviche, peixe cru marinado em suco de limão e ricamente temperado.

Antes de voltar a Washington, decidi visitar rapidamente Cuzco e Machu Picchu, a cidade perdida dos Incas. O quadrimotor com hélices da Fawcett saía de Lima às cinco da madrugada. No aeroporto, todo de mármore claro e de aspecto gelidamente monumental, ainda estremunhado de sono vi surgir uma figura que eu conhecia esfumadamente... de onde? Dum romance? Dum sonho? Dum filme? Era um homem magro e baixo, de agudo perfil aquilino e cabelos encaracolados. Estava sem chapéu, vestia uma gabardina cor de café-com-leite e tinha nas costas uma mochila. Por fim identifiquei a visão: Jean Louis Barrault! Lembrei-me de ter lido nos jornais locais que o grande ator e sua companhia davam espetáculos em Lima. Quando entrei no avião verifiquei que muitos de seus atores estavam aboletados lá dentro. Os únicos passageiros que não pertenciam ao grupo de Barrault eram dois sujeitos morenos, corpulentos e bigodudos, que estavam sentados juntos nas duas primeiras poltronas, e eu. Dentro de poucos minutos o quadrimotor voava sobre os Andes. Olhei para baixo e senti a paisagem como um soco pardo de pedra em pleno plexo solar. Era duma beleza terrificante. Assim como o desenho dum eletrocardiograma revela numa fita o traçado do ritmo do coração, aquela sucessão de montanhas de formas contorcidas era uma espécie de gráfico multimilenar das agonias por que passara a Terra no seu período de esfriamento. O avião subia cada vez mais. A aeromoça cobriu a cabeça com uma dessas trombudas máscaras parecidas com as que se usam contra gases asfixiantes, e começou a andar pelo corredor do avião: o elefante mais bem feito de corpo que tenho visto em toda a minha vida. O monstro perturbador explicava aos passageiros que, como a cabina não estava pressurizada, tínhamos que usar os aparatitos individuais de oxigênio. Dentro de alguns segundos eu tinha junto duma das narinas um bocal de plástico, na ponta dum canudo flexível, espécie de narguilê andino. O avião continuava a ganhar altura. Descrever aquele trecho da Cordilheira dos Andes é tarefa que, por difícil, não me tenta, principalmente quando tenho de cuidar de meu suprimento de oxigênio. De vez em quando olho para baixo, para os cumes coroados de neve, para os vales que verdejam a espaços, no fundo de medonhos canhadões, e penso: "Deus tem cada uma!".

 

O avião aterra serenamente no aeroporto de Cuzco. Sou o primeiro a descer. Sinto o ar tão rarefeito, que tenho a impressão de que acabo de desembarcar na Lua.

A antiga capital do Império Incaico está situada num vale, a pouco mais de 3 700 metros acima do nível do mar. Um funcionário do Hotel Turista vem ao meu encontro e me dá uma ficha de registro para preencher e assinar. Vejo pequena multidão aglomerada no aeroporto: dezenas de pares de olhos ansiosos focados na porta do quadrimotor. Quando Jean Louis Barrault começa a descer a escada de alumínio, a multidão prorrompe em aplausos e vivas. "Pelo que vejo" — digo ao moço do hotel — "os cuzquenhos admiram Jean Louis Barrault". O funcionário sorri: "Qual, senhor! Os aplausos são para os cavalheiros que descem a escada atrás do gringo". Reconheço neles os dois bigodudos. "Quem são?" — indago. A resposta me vem num tom respeitoso: "Políticos desta província: um é senador e o outro, deputado".

 

Sou ainda aluno de curso primário no que diz respeito à arte de viajar, mas tenho aprendido bem minhas primeiras lições. Sei que para melhor gozar uma viagem a gente precisa de pontos de referência no tempo e no espaço. Terá mais prazer e proveito quem viajar leve de valises materiais, mas pesado de bagagem psicológica: seu passado, suas fantasias, seus amigos (que se transformam em espectros quando longe de seus olhos), lugares já vistos, em suma, elementos com os quais o viajante possa comparar o que vê, ouve e sente em terras estrangeiras.

De câmara fotográfica a tiracolo, caminho por estas ruas da Cuzco imperial, que em 1534 Francisco Pizarro conquistou para Carlos V da Espanha.

Em 1650 grande parte desta cidade, então quase toda traduzida arquitetonicamente para o colonial espanhol, foi destruída por um terremoto. A terra tornou a tremer de novo em 1950, com tanta violência que derrubou ou rachou paredes e muros, abrindo fendas no solo. A mortandade teria sido pavorosa não fosse a circunstância atenuante de o terremoto haver ocorrido numa tarde de domingo, à hora em que a maior parte da população se achava fora de suas casas, num campo de futebol, assistindo a uma importante partida de campeonato.

Vejo muros e paredes fora de prumo ou trincados de alto a baixo. Algumas fachadas estão ainda escoradas por barrotes de madeira. A cidade é dum pardo patinado e opaco. Fotografo estas ruas estreitas, com suas arcadas, rejas, balcões, lampiões. Sinto uma atmosfera de tragédia, como se aqui cada minuto fosse sempre, necessariamente, o último minuto antes dum desastre cósmico. Tudo isso dá a Cuzco uma beleza trágica e fascinante. Esqueço que devo evitar excessos físicos, por causa da altitude, e caminho durante mais de duas horas, subindo ladeiras e escadas, possuído duma espécie de fúria fotográfica.

À tarde encontro numa praça quase deserta um homem que me parece visitante como eu, pela maneira como está vestido e também porque tem uma câmara fotográfica a tiracolo. Sebastião Veríssimo me empurra na direção do desconhecido e me obriga a puxar conversa com ele. Apontando para sua câmara, digo: "Estamos sem sorte hoje com a luz, hem?". Ele sorri, cortês, olha para o céu nublado, sacode afirmativamente a cabeça e me pergunta que tipo de câmara é a minha. Ficamos a conversar por alguns instantes sobre a beleza antiga e dramática das pedras que nos cercam. Por fim meu interlocutor se identifica. É argentino, arquiteto, e veio a Cuzco para fazer uma conferência na velha Universidade local. Quando lhe digo minha nacionalidade e meu nome, vejo em seu rosto uma expressão de surpresa. "É incrível!" — exclama. — "Fui eu quem traduziu para o espanhol o seu romance Olhai os Lírios do Campo!"

Mundo pequeno! Manifesto-lhe também a minha surpresa ante a coincidência, mas tenho o cuidado de não lhe perguntar nada sobre os editores que lhe encomendaram a tradução, pois sei que esse meu romance teve várias edições clandestinas na Argentina.

 

À noite vou a um cinema, que se parece muito com o Biógrafo Ideal da minha infância cruzaltense. Tenho a surpresa de verificar que Cuzco já possui seu cinemascope. Vejo um excelente filme francês baseado no romance O Processo Mauritzius, de Jakob Wassermann.

Volto para o hotel com uma sensação de desconforto, deito-me imediatamente e passo uma das noites mais aflitivas de minha vida. À tardinha tomara um táxi para ir visitar, nos arredores da cidade, as ruínas da fortaleza de Sacsahuamán, e cometera o erro de ir sem chapéu e sem casaco, o torso protegido apenas por uma suéter fina. Devo ter apanhado um resinado e estou febril... Ou será apenas o mal das alturas? Sinto a angústia da dispnéia, dores no corpo... Um torpor lúcido (ou desvairado) apodera-se de mim. Não sei quantas horas permaneço num estado crepuscular — nem sono nem vigília. Relampejam-me na mente as imagens mais estranhas, pairo sobre a Cordilheira dos Andes, converso com o general peruano que presidiu a Conferência, caminhamos ao longo dum corredor interminável e eu lhe provo que tudo está errado, que Odria é um ditador, e o homem replica que devo estar delirando, e eu lhe explico que é só a falta de ar: e em seguida vejo a cabeça de boi decepada que encontrara aquela tarde em cima duma mesa, no mercado municipal, e surpreendo minha imagem refletida no olho gelatinoso do animal e então me sinto prisioneiro dum quadro de Chagall onde sufoco... sufoco... sufoco... Revolvo-me na cama, em estertores, ainda sem saber ao certo se estou acordado ou dormindo, e Continuo a viajar numa espécie de quarta dimensão, rica de visões coloridas, como um vitral em movimento, mas pobre de ar como as profundezas duma mina...

Desperto com a cabeça dolorida e como que oca, e levo alguns segundos para saber quem sou e onde estou.

Depois do café vou à agência da companhia de aviação. Desisti da idéia de ir a Machu Picchu. Quero voltar o quanto antes para o nível do mar. Sou, porém, informado de que não há mais lugar no avião de hoje. Só existem vagas para amanhã. Paciência. O remédio é ir mesmo a Machu Picchu. Embarco na litorina que faz o trajeto entre Cuzco e a lendária cidade, e lá nos vamos em curiosos ziguezagues, a subir e descer montanhas, até chegarmos a um vale duma serena beleza, por onde corre um rio de nome sonoro e vagamente sinistro, o Urumbamba.

Antigamente, do nível desse rio até o alto da montanha, onde se encontra a Cidade Perdida, subia-se lentamente no lombo dum burro. Hoje um ônibus faz esse trajeto em cinco minutos.

Aprendemos desde a escola primária que no mundo inteiro não há, oh gente, oh não, país mais rico que o Brasil em belezas naturais. Uma pitadinha de inveja e despeito tempera meu espanto e encanto ante a visão de Machu Picchu. Tenho diante dos olhos as ruínas da cidade-fortaleza em que os Incas se refugiaram depois da chegada dos conquistadores espanhóis. Calcula-se que a fabulosa cidadela foi abandonada no século XVI, depois do assassínio de seu último soberano, e ali ficou, morta e perdida, até 1911, quando um arqueólogo da Universidade de Yale, Hiram Bingham, a redescobriu para o mundo. E desde então a paz cia impressionante cidade-templo-fortaleza tem sido quebrada pelas vozes fúteis de milhares de turistas que, nas mais variadas línguas, soltam exclamações de entusiasmo e vãos adjetivos que se esvaem no escasso ar destas alturas, ante a impassibilidade olímpica destes verdes paramos.

Machu Picchu está situada em plataformas, no alto duma montanha, e cercada de abismos por todos os lados. Parece um anfiteatro, com um cenário digno do último ato da tragédia duma raça.

Caminho por entre as ruínas de palácios, residências e templos, entro em câmaras que me lembram as dos túmulos egípcios que vi no Metropolitan Museum, de Nova Iorque. A beleza destas pedras! O tempo atmosférico com a colaboração do cronológico pintou nelas verdadeiros quadros abstratos, nos mais extravagantes e delicados desenhos e cores. O outrora claro granito destas estruturas adquiriu através dos séculos uma coloração levemente esverdeada, a que certas espécies de líquen. emprestam tons de ouro e prata.

Sento-me numa pedra e olho em torno. Solto um trêmulo suspiro, metade dispnéia, metade emoção, nascida desta thing of beauty que há de ser para mim um joy for ever. Penso no velho Liroca, personagem de O Tempo e o Vento, e murmuro para mim mesmo: "Mundo velho sem porteira!".

 

De Lima vôo para Quito, onde devo fazer uma conferência na Casa de Ia Cultura. Quando o avião se aproxima do aeroporto da capital do Equador, e eu diviso os telhados dum pardo-avermelhado da velha cidade, as torres de suas igrejas e a mancha verde-escura do arvoredo de suas praças, parques e quintais, vem à mente uma estória que meu admirável amigo Henrique Rodrigues Fabregat me contou um dia no campus do Mills College, na Califórnia.

— Chê, Érico, te voy a contar una cosa fantástica. Una noche estaba yo en mi cuarto, en un hotel de Quito, cuando de repente Ia tierra empezó a tremblar. Imaginate, hombre, los perros en toda Ia ciudad aullaban como locos, y los campanários de Ias iglesias tremblavam tanto que todas Ias campanas se pusieran a tocar...

O escritor Benjamin Carrión, meu anfitrião, hospeda-me na Pensión Lutecia, onde reencontro a companhia teatral francesa que eu perdera de vista em Cuzco. À tardinha, numa recepção que o Ministro da Educação oferece aos atores, sou apresentado a Barrault, com quem troco algumas palavras — conversa inconseqüente de coquetel.

À noite, no Teatro Sucre, que tem um esquisito sabor de princípios do século XIX, assisto à representação de La Répetition, de Anouilh.

Passo todo o dia seguinte a caminhar pelas ruas, encantado pela cidade e seus aspectos coloniais. Apesar de estar situada a poucos quilômetros da linha do equador, Quito, graças à sua altitude, goza duma quase permanente temperatura de primavera.

A praça principal é um capítulo de História, um símbolo sociológico reduzido a uma expressão arquitetônica e urbanística: dum lado se ergue o Palácio do Governo, do outro, o do Arcebispado. Procuro, para completar o tradicional tripé, o Ministério da Guerra.

Visito velhos templos, claustros e mosteiros. A igreja de La Compania é um esplêndido espécime da arte barroca colonial, com um imponente altar coberto de ouro laminado.

À noite faço a prometida palestra. Pedem-me que fale de minha obra. Não é fácil a gente fazer autocrítica em espanhol a quase 3 000 metros acima do nível do mar.

No dia seguinte à tarde dirijo-me ao aeroporto para tomar o avião que me deve levar a Guayaquil na costa ocidental. Verifico desapontado que, como não confirmei a minha reserva de lugar para este vôo, não posso embarcar, pois o aparelho está completamente lotado.

Que fazer? Carrión me anima: "Vamos ao futebol, homem! O Bonsucesso do Rio de Janeiro neste momento está jogando com o campeão de Quito".

Aceito a sugestão. Tocamos para o estádio e nos aboletamos nas arquibancadas. Não compreendo como esses rapazes brasileiros têm resistência suficiente para correr durante noventa minutos nesta altitude. Apesar da desvantagem, ganham a partida. Vou cumprimentar os jogadores. Descubro que o chefe da missão do Bonsucesso é meu leitor. Quando Carrión lhe conta que preciso estar impreterivelmente em Guayaquil no dia seguinte, para poder apanhar o avião da Pan American que por lá passará, rumo dos Estados Unidos, o simpático rapaz me diz: "Não se preocupe. O avião especial que nos leva amanhã para a costa está completamente cheio, mas eu posso deixar para trás um reserva da equipe e o senhor vai no lugar dele". Aceito o oferecimento, agradecido.

A viagem, na manhã do dia seguinte, dura menos de uma hora de sereno vôo. No avião os jogadores do Bonsucesso cantam sambas, contam anedotas picarescas, provocando em mim uma saudade do Brasil. Sento-me ao lado do técnico da equipe. Puxo com ele uma conversa sobre futebol, mas o homem insiste em falar sobre literatura. Rendo-me.

No aeroporto de Guayaquil, onde nos espera (esse sim!) um calor equatorial, sou fotografado junto com os atletas. Reserva do Bonsucesso! Este é um dos meus títulos de glória.

 

Voltei finalmente a Washington, à rotina burocrática e ao convívio da família. Preguei uma inocente mentira a Mafalda: contei-lhe que tinha ido a Cuzco de ônibus. Ela fingiu que acreditava.

Perdi a conta das vezes em que, durante aqueles três anos passados em Washington, pensei em pedir demissão de meu cargo e voltar para o Brasil. Havia chegado à conclusão de que o exercício duma função administrativa, mesmo quando se trata de "assuntos culturais", é uma séria pedra de tropeço no caminho da criatividade literária. Sempre, porém, que eu falava em ir embora, meus companheiros protestavam contra a idéia com uma veemência que me comovia. Muitos deles usavam a frase — "Não nos abandone". É possível que vissem em mim uma espécie de imagem paterna. Não era eu o seu muro das lamentações? Não estava a minha porta sempre aberta a todos? Sabiam também o quanto me preocupavam os aspectos humanos da vida do Departamento. Não ignoravam que, na medida do possível e do justo, eu tratava de conseguir-lhes periodicamente uma classificação melhor, dentro do quadro departamental, com o conseqüente aumento de ordenado — o que quase sempre me atirava em verdadeiras lutas com a Divisão de Pessoa! e suas rígidas tecnicalidades.

E assim fui ficando em Washington e na UPA. Havia sempre um compromisso a cumprir na hora, no dia seguinte ou então na próxima semana... E projetos a levar a cabo a longo prazo. E problemas pequenos e grandes a resolver. Devo confessar que também contribuía para a minha permanência naquele posto uma certa inércia que eu não queria analisar, temeroso das coisas que pudesse encontrar em seu bojo.

A vida familiar, essa deslizava normal e amena. Deixáramos, ao cabo do primeiro ano, a casa da Upshur Street para ocupar na Porter uma vivenda mobiliada à antiga. No quarto de dormir principal havia até uma cama de jacarandá com dossel sustentado por quatro colunas lavradas. Viam-se daguerreótipos autênticos sobre consolos e aparadores. Na parede do living room, acima da lareira, estava entronizado o retrato a óleo duma dama vestida à maneira de princípios do século passado — talvez a bisavó ou trisavô da viúva que nos alugara a casa. O duro olhar dessa figura ancestral parecia estar sempre focado em nós, hostil e interpelador. "Que estarão fazendo em minha mansão esses alienígenas de tão estranhos hábitos e bárbara língua?"

Nossos filhos entregavam-se cada qual à sua paixão. Clarissa fazia um curso de arte dramática na Catholic University já representara o principal papel feminino em The Deep Blue Sea, de Terence Rattigan, encenada pelos Unitarian Players, e agora havia recebido um convite para trabalhar com o Arena Stage, grupo teatral de caráter profissional, radicado em Washington.

Luís Fernando, que terminara o seu curso numa high school, aprendia a tocar saxofone com um professor de Georgetown, figura que parecia ter saltado das páginas de Dickens. O rapaz vivia às voltas com revistas especializadas em jazz e, interessado também em romances e ensaios de bons autores, lia às vezes até alta madrugada. (Curioso: a capacidade de desligar-se do tempo, que era uma das marcas do caráter do velho Sebastião Veríssimo, saltara por cima de mim para cair no meu filho.)

Tínhamos comprado um aparelho fonográfico de alta fidelidade de primeira ordem e dezenas (ou centenas?) de discos LP. Estava eu agora em plena fase bachiana e vivaldiana, sem prejuízo de minha afeição e admiração por Mozart. Deliciavam-me também as composições de certos músicos do seicento e do settecento não só italiano como também alemão e francês. Quem andava desconfiado comigo era Beethoven, que de certo modo eu havia abandonado. Eu tentava explicar ao Velho que algumas de suas composições, principalmente os últimos quartetos de cordas, agitavam demais minhas águas interiores, e que era só por isso que eu fugia de ouvir sua voz. Brahms que havia anos rondava a minha casa, acabou por entrar nela e lá ficou como um amigo íntimo, principalmente por causa de sua música de câmara.

Duma feita, num clube feminino que nos recebia em sessão especial, a senhora encarregada de nos apresentar às companheiras veio até o canto da sala onde nos encontrávamos, para colher informações a nosso respeito. Impressionada com as inclinações artísticas da família, para guardar na memória as nossas atividades, murmurou: "Vamos ver... Mr. Veríssimo é escritor. A menina é atriz. O rapaz, músico...". Olhou para a minha mulher e perguntou: "E a senhora?". Mafalda sorriu: "Eu cuido dos três gênios".

 

Desde que chegara a Washington eu fazia tentativas periódicas para começar a escrever O Arquipélago. Relia notas e roteiros, desenhava faces, colocava no cilindro da portátil Royal uma folha de papel e quedava-me a olhar para a sua desolada brancura de estepe siberiana no inverno, os dedos imobilizados sobre o teclado... E não conseguia sequer escrever uma palavra. Era como se as personagens do terceiro volume da trilogia, não só os Terra-Cambará, como também o resto da vasta comparsaria, estivessem fechados e congelados dentro duma câmara frigorífica em algum lugar de meu ser.

Freqüentemente, por não estar escrevendo nada, eu era tomado por uma sensação de vácuo interior e ao mesmo tempo de culpa. O que acentuava o sentimento culposo era o fato, de ter deixado no Brasil minha mãe, que tanto dependia de mim sentimentalmente. Essa má consciência era a matriz de sonhos em que a impressão de ter sido cúmplice no assassínio duma mulher idosa, de longe em longe assombrava meu sono. Num desses sonhos a Velha era dona duma pensão onde eu vivera durante longos anos, e ela me apresentava uma conta, ainda não paga, cujo total correspondia exatamente ao que eu pedira a minha mãe para empregar na compra da farmácia...

Comuniquei um dia ao novo Secretário-Geral, o Dr. José Mora, a minha decisão de deixar a UPA impreterivelmente em setembro daquele ano de 1956. Estávamos em maio. O Dr. Mora, com quem eu me entendia perfeitamente bem, tentou dissuadir-me da idéia. O Dr. William Manger, a quem notifiquei também da minha resolução, olhou-me com ar perplexo quando lhe expliquei que, entre os muitos outros motivos que eu tinha para voltar ao Brasil, estava a necessidade de terminar minha trilogia. O Secretário-Geral-Adjunto tirou da boca o cachimbo, franziu a testa e perguntou: "Mas é tão importante assim escrever mais um romance?". Até hoje não sei se ele disse isso por brincadeira ou a sério.

 

No nosso último ano em Washington, Clarissa, que até então não tivera amigos americanos do sexo masculino, começou a ter dates com um rapaz que havia conhecido no grupo teatral de amadores da Igreja Unitária. Chamava-se David Jaffe, era físico e trabalhava no Bureau of Standards. Eu os via e ouvia empenhados em animadas discussões sobre livros, fumes, pessoas, idéias e principalmente religião. Dave' era agnóstico: Clarissa, católica praticante.

Comecei a pressentir o perigo... "Vais acabar apaixonada por esse americano" — disse eu um dia à minha filha, procurando falar com ar casual de quem assobia uma musiquinha improvisada no momento. Ela reagiu: "Tens mentalidade de brasileiro. Não podes ver uma moça e um rapaz juntos que não penses logo que há namoro. Dave e eu somos apenas bons amigos". Pensei: "É assim que a estória começa...". Mas não disse mais nada.

 

Faltavam três meses para o lia de nosso embarque de volta ao Brasil, quando, num anoitecer, depois de vários rodeios,

Clarissa confessou-nos à hora do jantar que ela e Dave se amavam. Fez-se na família esse súbito e agourento silêncio que — dizem — precede as convulsões sísmicas. Minha mulher e eu nos entreolhamos, trocando mudas interrogações. Meu vago-simpático deu imediatamente a sua "opinião" sobre o assunto. As palavras de Clarissa apertavam-me o peito. Minha boca ficou logo ressequida. Por algum tempo ninguém teve coragem de dizer o que quer que fosse.

Ergui-me da mesa e comecei a andar dum lado para outro. O soalho parecia fugir-me aos pés. "Pensa, homem" — dizia eu mentalmente para mim mesmo — "usa a cabeça". Convoquei Mafalda para uma conferência particular. Quando nos vimos a sós, perguntei: "E então?". Ela encolheu os ombros. — "É a vida..." — disse. "Eu fiz isso. Tu também fizeste..." Protestei: "Eu? Nunca me casei com nenhum físico norte-americano!". Minha mulher soltou um suspiro resignado. "Não, mas sempre defendeste tua liberdade sentimental de indivíduo. Chegou agora a vez da Clarissa. Não esqueças que ela já tem vinte e um anos. Um filho não é um brinquedo que a gente compra para se divertir com ele como e quando entende..."

Notei que, apesar de sua aparente aceitação do fato como coisa natural, Mafalda estava também perturbada. Mais tarde eu verificaria que, graças a essa sabedoria da vida que as mulheres possuem em tão alto grau, foi ela quem de nós três primeiro se refez do choque e começou a pensar e agir com espírito realista, ao passo que Luís Fernando e eu levamos algum tempo para superar nossas reações neuróticas.

Voltamos para a mesma mesa e sentamo-nos sem dizer palavra. Houve uma longa pausa na conversação habitual. E Clarissa, interpretando nosso silêncio como uma negativa, murmurou: "Bom, eu sabia que vocês não iam aprovar... Foi por isso que aceitei o convite que meus amigos do grupo teatral da Universidade me fizeram para passar o verão com eles numa cidade de Vermont, onde vão dar espetáculos. Assim posso começar a esquecer o Dave...".

"Esquecer?" — perguntei. — "Mas então isso não é amor de verdade? Vocês não querem mesmo casar-se?"

Clarissa sacudiu a cabeça numa apaixonada afirmativa. "Pois então, casem-se!" — exclamei. O rosto da menina iluminou-se. "Mas que é que faz esse gringo? Onde nasceu? Afinal de contas, quem é ele?"

Clarissa, alvoroçada, recitou-nos o curriculum vitae do namorado, enquanto eu mastigava melancolicamente um pedaço de galinha, que me sabia a papelão. "Pois diga então ao rapaz que venha falar comigo" — disse eu por fim.

Naquela noite os Veríssimo da Rua 34 tiveram de tomar tranqüilizantes para poderem dormir. Antes de ir para a cama, à hora de escovar os dentes junto da pia, encontrei o Outro no fundo do espelho e interroguei-o com o olhar. "Puxa pela memória, homem" — respondeu-me ele — "nos teus vinte anos achavas que psicologicamente D. Bega não havia ainda cortado o cordão umbilical que te prendia a ela. Desconfiavas que tua mãe tinha ciúme de tuas namoradas. Chegou agora a tua oportunidade de pôr em prática tuas idéias sobre a liberdade e os direitos da pessoa humana. Agarra a tesoura de Ana Terra e corta sem piedade por ti mesmo o cordão umbílico-sentimental que te prende à tua filha".

Deitei-me e fiquei — quanto tempo? — a ouvir, insone, o rolar dos ônibus que passavam na rua, pela frente da casa.

 

Passaram-se três dias e o jovem Jaffe não me procurava para a "grande conversa". Uma noite estávamos ainda à mesa do jantar quando ele chegou. Vinha buscar Clarissa para levá-la a um cinema. Aproximou-se da mesa, meio acanhado, e ficou de pé a meu lado, em silêncio. Como, passados uns cinco minutos, o físico não tivesse ainda entrado no "assunto", recorri a um expediente. Voltei-me para um convidado que tínhamos à mesa e disse-lhe em voz alta e em inglês: "Acho que este camarada quer casar com a minha filha". Encarei o rapaz. "É verdade, Dave?" — "Yes, sir, yes.!" — respondeu ele. "Pois então sente-se, homem, e vamos discutir o problema." Tínhamos uma única condição a impor: o casamento devia realizar-se no Brasil. Queríamos que a mãe de Mafalda e a minha assistissem à cerimônia. Quanto aos meus avós maternos, D. Maurícia fazia croché e bolinhos de milho em algum rancho no misterioso país da morte, enquanto o Cel. Aníbal, montado no seu alazão, percorria as campinas da Eternidade...

 

Eu permanecera no cargo de diretor do Departamento de Assuntos Culturais da União Pan-Americana durante três anos e cinco meses.

Fui um mau administrador, reconheço, mas um bom catalisador, no que dizia respeito às relações humanas entre meus colaboradores. No tocante às conferências públicas e ao contato com professores e alunos de cursos superiores, estou certo de que fiz um trabalho razoável. Cobri quase todo o território acadêmico dos Estados Unidos — em longas ausências que me permitiam descansar um pouco da monotonia do escritório no "mausoléu" — tentando "vender" nas universidades americanas a idéia da importância da Organização dos Estados Americanos, como a melhor solução para resolver em torno duma mesa-redonda problemas entre as nações do hemisfério ocidental, que de outro modo poderiam degenerar em guerras.

Até que ponto acreditava eu na "mercadoria" que mascateava através de colégios, universidades, clubes masculinos, femininos ou mistos? Bom, honestamente eu achava a Organização muito boa em princípio, mas cheia ainda de defeitos funcionais e programáticos. Seus projetos eram demasiadamente pomposos e na maioria dos casos inócuos. Emperrava-a também um excesso de burocracia. Por outro lado, os embaixadores que representavam seus países junto à OEA não tinham autoridade suficiente para agir antes de fazer consultas repetidas e demoradas a seus governos. E, dum modo geral, a Organização nunca encarava de frente e resolutamente os problemas realmente sérios das Américas. Precisava duma reforma de base. Ora, isso não era trabalho para um homem só, e, se fosse, eu seria o último dos mortais indicado para a tarefa. O que eu era então e continuo sendo agora é um contador de estórias.

Ao deixar o "mausoléu de mármore" em que estive sepultado durante tanto tempo, tive a impressão de que era uma espécie de novo Lázaro que ressuscitava dentre os mortos. Mas com uma diferença: Lázaro, que eu saiba, não contou o que tinha visto "do outro lado"...

 

                                                                                Erico Veríssimo  

 

                      

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