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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SUAVE BRISA DOS MARES / Catherine Healy
SUAVE BRISA DOS MARES / Catherine Healy

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

SUAVE BRISA DOS MARES

 

Um plano arriscado levou Tatiana às ilhas vulcânicas de Galápagos

Gestos e olhares insinuantes acabaram surtindo o efeito desejado: o cientista Anthony Hamilton cedia às tentativas de sedução de Tatiana, convidando-a a dividir a mesma cama no acampamento.

Corroído pelo ciúme, Christian foi incapaz de registrar em sua câmera o sorriso provocante que Tatiana lançava a Anthony. Não queria mais captar as reações daquela mulher para seu livro; nem descobrir por que ela se aventurava naquela pesquisa nas ilhas vulcânicas de Galápagos.

“Eles vão fazer amor”, pensou Christian com raiva, porque era ele quem queria possuí-la!

 

Para Tatiana Katanich, o ano que se iniciara prometia trazer novidades. Afinal, depois de refletir durante uns bons dias, resolvera que teria um filho. Não que estivesse perdidamente apaixonada por alguém, ou planejasse se casar... Pelo contrário, queria ter um filho só seu.

No início, a ideia lhe parecera meio absurda, e Taty a atribuíra ao estado de ânimo depressivo que as chuvas intensas que se abateram sobre Monterey lhe provocavam. Aliás, nunca em sua vida vira um clima tão ruim como naquele ano. Durante o mês de janeiro inteiro não houvera um único dia de sol, e o torneio Bing Crosby de golfe estava ameaçado de cancelamento, pois nenhum dos competidores se havia disposto a viajar até ali, com o risco de acabar encerrados no clube, sem poder pôr o nariz para fora.

Por tudo isso, Taty não era a única pessoa da região a estar angustiada. Todos os proprietários de lojas, clubes e casas noturnas também se encontravam à beira do desespero, prevendo que seus estoques de souvenirs, bebidas e outros artigos destinados aos turistas ficariam encalhados, o que lhes daria um prejuízo considerável.

Como funcionária de um dos principais clubes locais, The Carmel, ela também se deixara afetar por aquela situação. E, como se não bastasse, sua irmã caçula, Mônica, lhe escrevera contando que iniciara o processo de divórcio, já que o marido resolvera mudar-se de vez para a casa da amante.

Quando acabara de ler a carta, Taty sentira uma pontada de raiva. Sem dúvida, os homens não passavam de uns hipócritas!

Exigiam fidelidade, faziam belos discursos moralistas e, no final...

No entanto, o que mais influenciara sua decisão de ter um filho sozinha fora a carta que Irene, uma das suas irmãs, lhe enviara de Wyoming. Num estilo elegante e cheio de subterfúgios, ela avisava que não mandaria a filha passar o verão em Monterey, como fazia todos os anos.

Embora não houvesse em todo o texto um único termo que pudesse ser considerado grosseiro, Taty entendera que, nas entrelinhas, Irene lhe pedia discretamente que não se envolvesse tanto com as crianças.

Magoada, Taty se convencera de que não valera a pena ter investido tantos esforços para manter um bom relacionamento com os seis sobrinhos e sobrinhas, filhos de Irene e Sissy, suas irmãs mais velhas, nem com os dois filhos de Mônica. Era engraçado, mas as irmãs demonstravam temer a hipótese de que os filhos pudessem se afeiçoar mais à jovem tia do que a elas próprias. Por isso, viviam inventando mil empecilhos para as visitas dela e olhavam com olhos tortos as pilhas de presentes com que Taty costumava brindar os pequenos.

No começo, ela fingia não perceber as atitudes hostis e fazia ouvidos surdos às indiretas. Mas, depois da iniciativa de Irene, ela não poderia continuar a agir assim.

Bem... paciência! Dali para frente, caso quisesse desfrutar de uma convivência familiar regular, ela que tratasse de ter seu próprio filho, sobretudo porque já ia completar trinta e três anos e estava na hora de mudar o ritmo de vida sedentário que levava.

A cada minuto, essa ideia a conquistava mais. Poderia contratar uma senhora de meia-idade carinhosa e cheia de histórias divertidas para contar, que cuidasse do bebê durante seu horário de trabalho... Quando a criança ficasse maior, Taty a levaria para esquiar e lhe ensinaria equitação, além de auxiliá-la nos estudos.

Sorrindo diante da perspectiva de futuro que se abria à sua frente, ela quase caíra das pernas ao lembrar-se de um pequeno problema que, se não fosse resolvido logo, jogaria seus planos por água abaixo: faltava um pai para o bebê!

O que fazer? A ideia de envolver-se com um homem, alimentar sonhos e fantasias em relação a uma vida a dois e depois acabar como Mônica não a seduzia nem um pouco.

Sempre fora cética com os homens, o que, inclusive, lhe valera muitas críticas por parte das irmãs, que a achavam diferente das outras jovens de sua geração.

Dando de ombros, Taty sorrira com uma expressão de superioridade no olhar. Se alguém quisesse se iludir com a lealdade masculina, que o fizesse. Ela é que não bancaria a tola!

Após pesar os prós e contras da situação, Tatiana levantara-se e anotara em sua agenda que, no dia seguinte, precisaria procurar uma clínica especializada em genética e tomar informações acerca dos processos de fecundação in vitro...

Sim! Estava aí a solução para todos os seus problemas, pensara, entusiasmada, antes de ir deitar-se.

A chuva continuava a cair em abundância, e o ruído dos pingos contra o telhado embalou o sono de Taty, que dormiu como nunca, com os sonhos povoados pela imagem de uma criança de pele alva, rosto rosado e cabelos negros como os seus.

Lawrence Anderson, o presidente do clube The Carmel, espiou pela ampla janela de seu escritório, praguejando ao notar que a chuva continuava a cair em bicas. Desanimado, cerrou as cortinas e procurou ignorar o mau tempo, desviando a atenção para a pequena saleta anexa, onde Taty, sua assistente, ocupava-se em arrumar os troféus e brindes que seriam distribuídos aos participantes do campeonato de golfe.

Contando cerca de sessenta anos, alto, elegante e cheio de manias, o Sr. Anderson afeiçoara-se a Taty e a tratava como a uma filha, no que era imitado pela esposa, uma senhora alegre e observadora.

Ambos haviam-se deixado cativar pela eficiência e criatividade daquela jovem, que à custa de muito esforço conquistara a promoção do posto de secretária para o de assistente geral, um cargo de bastante responsabilidade.

Além disso, dificilmente alguma pessoa deixava de impressionar-se com as maneiras gentis e ao mesmo tempo misteriosas daquela jovem de cabelos negros, corpo esguio e rosto delicado. Sempre elegante e bem vestida, Taty nunca se descuidava de nenhum detalhe de sua aparência, revelando a meticulosidade e eficiência que lhe eram características e se encontravam presentes em todos os trabalhos por ela realizados.

Naquela manhã, porém, o Sr. Anderson notou que havia algo de diferente em sua jovem assistente. Após observá-la durante algum, tempo, concluiu que a impressão talvez fosse causada pelo insinuante vestido vermelho que Taty estava usando.

Entretanto, essa explicação não o satisfez e quando a esposa lhe telefonou, meia hora mais tarde, ele não resistiu à tentação e comentou o fato:

— Querida, não sei o que houve com Taty hoje...

— Por que, Lawrence? Ela está doente? — preocupou-se a mulher.

— Não, pelo contrário... Nunca a vi tão radiante. E para completar ela caprichou um bocado na aparência... Estou curioso para descobrir o motivo.

— Lawrence, não vá bancar o bisbilhoteiro, hein? Você sabe muito bem que ela é uma moça discreta e detesta comentar a própria vida. Talvez esteja apaixonada...

— Puxa, eu não havia pensado nisso! Tem razão, querida. Você é um gênio!

À tarde, quando o relógio bateu às quatro horas, o Sr. Anderson esfregou as mãos de contentamento. Sabia que dali a alguns minutos a assistente entraria para lhe servir o chá. Apesar das recomendações da esposa para que fosse discreto, ele planejava descobrir o que havia acontecido a Taty, deixando-a tão... diferente.

Nesse instante, duas leves batidas à porta anunciaram a chegada dela.

— Boa tarde... Vim trazer-lhe o chá, Sr. Anderson — declarou ela entrando no amplo escritório.

— Obrigado, querida! Você está muito bonita hoje...

— Eu?! Não, é impressão sua.

— Hum... será? Vivi o suficiente para perceber quando uma mulher está apaixonada — garantiu o velho, com fingido desinteresse.

Pelo que já conhecia do patrão, Taty logo se deu conta de que o Sr. Anderson percebera que algo nela havia mudado, e, incapaz de adivinhar o que era, tentava jogar verde para colher maduro.

Contendo uma gargalhada ao imaginar a cara de espanto que faria caso descobrisse sua resolução de ter um filho sozinha, Taty limitou-se a sorrir e a negar com um gesto de cabeça.

Nada convencido com essa negativa, Lawrence Anderson entendeu que as maneiras evasivas da assistente apenas confirmavam as suas suspeitas e no íntimo cumprimentou-se pela própria perspicácia.

Esperou que a jovem saísse e ligou para a esposa, a fim de contar-lhe a descoberta.

— Querida, ela está apaixonada —- afirmou, assim que escutou a voz de Helen Anderson do outro lado da linha.

— Ah, é? E como o Sr. Lawrence “Sherlock Holmes” Anderson fez essa brilhante descoberta? Olhou numa bola de cristal?

— Helen! É sério...

— Ouça, querido, Taty é uma moça diferente das outras. Portanto, não tire conclusões precipitadas.

Com a sensação de que acabara de tomar um banho de água fria, ele se despediu, desligando a seguir. Sem dúvida, Helen estava com a razão, mas o que então ocasionara a mudança de Taty?

Após um mês de exaustivas pesquisas nos diversos bancos de sêmen espalhados pelo Estado, Taty não se sentia nada animada com a ideia de fertilização in vitro.

Para começar, embora desejasse engravidar de modo impessoal, a quantidade de termos científicos e a maneira pouco simpática como fora recebida pelos médicos deixaram-na desanimada.

Em segundo lugar, os dados que as clínicas forneciam a respeito dos doadores haviam-se revelado bastante escassos. E o risco de o bebê portar alguma deficiência genética era bastante grande.

Por último, sempre existia o perigo de os repórteres descobrirem e criarem alguma publicidade em torno do caso. Afinal, embora o método de fecundação in vitro já estivesse bastante difundido pelo país, o caso dela seria considerado uma novidade, pois não havia uma única razão para que Taty não engravidasse de forma natural.

Assim, a única solução seria encontrar um pai para o seu bebê. Mas como fazê-lo sem envolver-se emocionalmente com um homem?

Pensando bem, até que isso não seria difícil, pois os homens em geral eram campeões em relacionamentos fúteis, cuja razão resumia-se em obter alguns momentos de prazer na cama.

Apesar de esse tipo de procedimento contrariar todos os seus princípios, Taty concluiu que não havia motivo para não adotá-lo uma vez na vida... E por que não se valer das características do campo inimigo?

Com um sorrisinho malicioso nos lábios, ela garantiu a si mesma que apenas uma tola se iludiria com a ideia de manter um caso de amor sério com um homem. Ela agiria de modo diferente, invertendo os papéis.

Bem, a partir de agora precisava prestar maior atenção aos rapazes que a cercavam...

Naquela mesma noite, mal prestando atenção às aulas de navegação que vinha frequentando, Taty procurava observar os colegas de classe e anotar as características que gostaria de ver reunidas no homem que seria o futuro pai de seu filho.

Começou por Bob Erikson, um rapaz simpático e sincero que gostava de praticar esportes, porém era muito baixo e bebia em excesso.

Ronald, seu vizinho de carteira, apesar de atraente, não ligava a mínima para a própria formação cultural, dando a impressão de que nunca lera sequer um jornal na vida... Não, ele não servia! Além do mais, era loiro, e Taty achava preferível que seu parceiro tivesse os cabelos negros como os seus, a fim de evitar que seu futuro filho encontrasse problemas em se auto-identificar.

Sentindo-se examinada, Taty procurou disfarçar a própria distração, pois não queria que Bill Roberts, um dos alunos, encontrasse motivos para reforçar suas posições machistas.

Inteligente, alto, de pele bronzeada e cabelos negros, Bill seria o parceiro ideal para Taty, se não fosse tão arrogante e presunçoso.

Fora o único que torcera o nariz ao saber que havia uma mulher matriculada no curso e desde então fazia o impossível para tirar notas mais altas que as dela, nem sempre o conseguindo, já que Taty era muito aplicada e estudiosa.

“Sem dúvida, fazer amor com ele deve ser uma experiência desgastante”, ponderou Taty, deduzindo que seria mais seguro procurar um parceiro fora daquela região, onde todos a conheciam. Mas onde encontrar um estranho que preenchesse todos aqueles requisitos?

— Você vai ao bar conosco, Taty? — perguntou Bob, de repente.

Assustada, ela percebeu que a aula já chegara ao fim e estava na hora de todos se reunirem para tomar alguns drinques e conversar um pouco.

— Claro! Estarei pronta num minuto — garantiu, esforçando-se para afastar-se daquelas preocupações.

Pouco depois, acomodada ao lado de Bob numa das mesas do simpático bar vizinho à escola de navegação, ela se ocupava em observar os folhetos de propaganda turística que Leslie espalhara sobre a mesa.

Tempo de férias, pessoal! Alguma sugestão? — disse o rapaz, após bebericar um pouco de uísque.

— Que tal uma viagem de circunavegação pela Antártida comigo, Taty? Nós veríamos milhares de pinguins — sugeriu Bill Roberts, enlaçando-a pelos ombros, enquanto lhe mostrava um dos folhetos. — Olhe só que fotos maravilhosas!

Disfarçando um sorriso malicioso, Taty deu-se conta de que só precisaria de um pouco de perseverança para encontrar o companheiro adequado, pois, ao que tudo indicava, os homens a julgavam bastante atraente.

Nesse instante, Leslie aproximou-se dela, tirando-a das suas abstrações.

— Qual dessas duas possibilidades lhe parece melhor, Taty? Um safári no Quênia, na África, ou um passeio de caiaque pelo Alasca? Veja a foto desses icebergs. Não são lindos?

Depois de observar os folhetos coloridos que o colega lhe estendia, ela sorriu, divertida.

— Sim, são muito bonitos mesmo.

— Também acho! Esse passeio pelo Alasca inclui pesca de salmão e estada numa cabana isolada... Em compensação, a chefe do safári é essa loira sensacional...

Fixando o olhar no retrato que Leslie lhe apontava, Taty viu uma mulher atraente, de cabelos longos e olhos azuis.

— Pena que os dados pessoais nada mencionem sobre o estado civil dela — lamentou-se o moço, indicando a ficha biográfica que acompanhava cada um dos folhetos.

Interessada, Taty leu que a tal jovem chamava-se Sharon Rathmueller e era autora de dois livros, além de possuir doutorado em zoologia e estar desenvolvendo pesquisas na cidade de Nairóbi, na África.

Com a curiosidade aguçada, Taty pôs-se a estudar os folhetos, observando que os líderes de grupo daquela companhia de turismo eram, sem exceção, instruídos, atraentes e moravam longe...

De repente, uma ideia atravessou-lhe a mente: por que não usar o dinheiro que teria sido gasto com as férias de sua sobrinha em outra finalidade?

Cada vez mais intrigado com as mudanças de sua assistente, Lawrence Anderson aproveitou uma tarde em que a esposa fora visitá-lo no escritório para comentar:

— Taty deve estar inventando alguma novidade, Helen. Nunca a vi tão concentrada...

— Impressão sua, querido! Na certa, ela está preocupada com a quantidade de serviço que precisa realizar antes de entrar em férias.

— Não, dessa vez é diferente. Converse um pouco com ela antes de ir embora e você vai entender o que estou tentando dizer.

Meia hora mais tarde, seguindo a sugestão do marido, Helen Lawrence parou na sala de Taty, puxando conversa, num tom descontraído.

— E então, querida? Alguma novidade? — perguntou, sorridente.

— Além de um bocado de trabalho, nada! E a senhora?

— Oh, eu estou ótima! Saí para fazer compras e aproveitei para dar uma passadinha por aqui, a fim de verificar se Lawrence anda me traindo com alguma loira...

— Hum, não precisa se preocupar! Garanto que não existe marido mais fiel em toda a face da Terra!

— É... eu sei. Nós sempre nos demos muito bem. E pensar que eu jurava que nunca me casaria... Não adianta! Quando a gente encontra a pessoa certa, todas as promessas de ficar sozinha vão por água abaixo! A propósito, querida, você está com uma aparência ótima. Por acaso alguém conseguiu conquistar seu coração?

Ao contrário do que Helen esperava, Taty limitou-se a sorrir de maneira enigmática, fazendo um gesto amplo com as mãos.

— Vai para a casa das suas irmãs, em Wyoming, nas férias de agosto? — insistiu ela, convencida de que o marido acertara ao afirmar que algo de diferente acontecera com Taty.

— Talvez... Ainda não me decidi.

O tom evasivo com que ela respondeu deu à Sra. Anderson a certeza de que Taty tinha outros planos e que se apaixonara.

Satisfeita com as próprias conclusões, Helen Anderson despediu-se com um aceno de mão e se retirou, deixando Taty concentrada no trabalho.

Assim que se viu sozinha, ela recostou-se ao espaldar alto da cadeira, rememorando a noite da véspera, quando, após ler todos os folhetos, selecionara o passeio que faria.

Quatro dos comandantes de grupo haviam atraído sua atenção, devido à altura e ao grau de formação cultural. Entretanto, Anthony George Perkins Hamilton, um biólogo da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, ganhara dos demais pela simpatia que irradiava.

Enquanto escolhia, Taty eliminara o capitão de uma escuna que viajava pelas ilhas gregas, pois o sorriso exuberante que lhe chamara a atenção não lhe infundira nem um pouco de confiança, revelando que seu dono era do tipo presunçoso e conquistador, o que não lhe agradava.

Depois, colocara de lado um escocês especialista em pássaros, porque, ao calcular seu período fértil, vira que dispunha de apenas setenta e duas horas para engravidar a partir de 16 de agosto, e a excursão para o estudo dos pássaros terminava justo no dia 14.

Abrindo a gaveta de sua escrivaninha, Taty examinou a ficha do vencedor mais uma vez.

Havia uma foto em branco e preto do Dr. Anthony Hamilton, além de algumas informações acerca das suas atividades em universidades e institutos de estudos científicos, com especial ênfase em suas pesquisas de campo.

Na página 13 havia uma descrição do projeto de estudo das tartarugas gigantes, que Hamilton iria realizar nas ilhas Galápagos, um arquipélago de vulcões ativos, localizado a novecentos quilômetros da costa do Equador. Em Galápagos, algumas espécies da era dos dinossauros tinham permanecido intactas até que os conquistadores espanhóis e os piratas ingleses descobrissem aquele mundo perdido em meados do século XVII.

Divididas pela linha do equador e cercadas pelas correntes frias do polo sul, as ilhas eram o lar tanto dos pinguins antárticos como dos pássaros tropicais, que conviviam com répteis gigantes e tartarugas que chegavam a pesar quase trezentos quilos e talvez já existissem na época em que Charles Darwin visitara as ilhas, em 1835.

Darwin observara que os formatos dos cascos das tartarugas diferiam de ilha para ilha, o que reforçava sua teoria de que o meio ambiente selecionava os indivíduos mais adaptados, garantindo a continuação da espécie.

Agora, utilizando os mais recentes recursos tecnológicos, os grupos de estudo de Hamilton iriam pesquisar a razão de as tartarugas com casco arredondado terem predominado no mundo inteiro durante cinquenta milhões de anos, enquanto em apenas algumas ilhas, há uns três ou quatro milhões de anos, outras espécies haviam desenvolvido formatos totalmente diferentes, com cascos em forma de sela.

Impaciente, Taty pulou alguns trechos, procurando os detalhes de que precisava. No final do folheto, leu que os voluntários poderiam escolher entre uma série de expedições de duas semanas, a começar no dia primeiro de junho e a terminar em setembro.

As primeiras investigações seriam feitas na reserva de tartarugas do Parque Nacional Equatoriano, na ilha de Santa Cruz. Esses grupos ficariam a três horas de distância de Puerto Ayora, a aldeia onde se localizavam as instalações do parque e a Estação de Pesquisa Charles Darwin.

Os últimos grupos ficariam acampados na borda do Alcedo, um dos seis vulcões da ilha de Isabela. De acordo com o catálogo, as viagens a Alcedo seriam extenuantes, mas Taty duvidou da informação e decidiu reservar um lugar na primeira expedição de Alcedo, que ia de 13 a 27 de agosto.

No entanto, um problema continuava a perturbá-la: o que diria ao bebê, quando este crescesse e quisesse saber quem era seu pai?

Após refletir muito sobre o assunto, acabou decidindo que, quando a criança fosse suficientemente grande para entender as coisas, lhe contaria que tinha ido a um banco de sêmen, mantendo o Dr. Anthony G. P. Hamilton completamente fora de sua vida.

No início de agosto, ao retornar das férias, Lawrence Anderson notou que sua jovem assistente andara praticando esportes ultimamente.

A aparência de Taty estava bem mais saudável, e o training que ela vestia realçava-lhe as curvas perfeitas do corpo.

Além disso, encontrara por acaso sobre a mesa dela um recibo de uma loja especializada em artigos esportivos, onde estavam discriminados os mais modernos equipamentos para acompanhamento em regiões tropicais. Será que Taty se apaixonara por um aventureiro, aficionado por expedições?

Dando de ombros, esperou por uma oportunidade adequada e, com forçada descontração, disse:

— Alguma coisa a deixou muito feliz, Taty... Está apaixonada?

“Sim, por um plano audacioso!”, pensou ela, limitando-se a sorrir e a negacear com um gesto de cabeça.

Quando desembarcou no Aeroporto Internacional de Quito, no Equador, a quase três mil metros de altitude, Taty alegrou-se com o clima ensolarado e quente que fazia.

Durante a troca de aviões, em Guayaquil, na costa do Equador, aproveitara para se recompor do cansaço da viagem, colocando roupas leves, próprias para a temperatura que iria enfrentar.

Uma hora e meia mais tarde, quando entrara no terminal aeroviário da ilha de Baltra, atraíra bastante a atenção dos presentes, que se viravam para admirar aquela jovem de cabelos presos, calças de linho bege e blusa cor de âmbar.

Apesar disso, Taty não se sentia tão tranquila quanto procurava aparentar e estava com os nervos à flor da pele.

Agora, parada em meio aos passageiros de um navio que chegava, ela tentava identificar o Dr. Anthony Hamilton por entre a multidão de guias que gritavam os nomes das duas embarcações.

Sem se mover, esperava que Hamilton fosse procurá-la, pois a Agência Globeprobe colocara adesivos com os nomes dos voluntários em suas bagagens, o que possibilitava aos guias localizá-los com facilidade.

Dito e feito! Assim que a viu, o biólogo caminhou em sua direção, com um sorriso largo estampado no rosto. Os cabelos dele eram mais escuros do que pareciam no retrato, e os olhos castanhos tinham um brilho de simpatia.

— Olá! Pode me chamar de Tony — disse ele, enquanto a guiava pelo braço através do terminal.

— Muito prazer! Eu sou Tatiana Katanich...

Antes que ela pudesse acrescentar mais alguma coisa, o jovem cientista interrompeu-a, preocupado.

— Com licença, por favor. Preciso pegar os outros, antes que eles se afoguem na cerveja. Nós nos encontraremos naquela saída à direita, dentro de alguns minutos... Tente desembarcar sua bagagem logo, para que possamos alcançar o próximo ônibus, está bem?

Como Taty previa, Tony não a deixou sozinha por muito tempo e, cheio de cavalheirismo, ofereceu-se para lhe carregar a maleta, que continha alguns objetos de uso pessoal.

— Pode deixar que eu levo, Tatiana! Onde está o ticket para retirar sua bagagem?

No momento em que ela procurava o bilhete dentro da bolsa, uma voz forte e profunda, com um forte sotaque europeu, fez-se ouvir atrás deles.

— Vocês se incomodariam de afastar essas caixas para que eu possa me aproximar?

Curiosa, Taty voltou-se e encarou o homem mais fascinante que vira em toda a sua vida...

 

No instante seguinte, o homem aproximou-se do balcão de bagagens, pulando por cima das malas e dos sacos de alimentos que impediam a passagem.

Decidido a ser atendido sem demora, dirigiu-se a um dos guardas, dizendo, em castelhano:

— Esta senhora aqui tem seu ticket de bagagens, e aqui está o meu... Poderia providenciar para que elas sejam entregues logo, por favor?

Pouco depois, Taty recebia sua bagagem, e ele um caixote de papelão.

Ansioso, o desconhecido puxou um canivete, que trazia preso à cinta, e abriu a caixa, revelando um minirrefrigerador, operado através de células solares, o mais recente engenho para conservar filmes nos trópicos.

— Está tudo aí, Christian? — perguntou Tony, aproximando-se do loiro.

— Logo saberei...

Com rapidez e eficiência, Christian continuou a examinar o conteúdo do caixote, retirando filmes envoltos em protetores de chumbo, lentes para serem usadas debaixo d’água, blocos de anotações, canetas especiais e jornais belgas.

Tudo nele era esguio, forte e bronzeado. Um medidor de luz alemão pendia de seu pescoço numa tira de couro, e havia vários filmes alojados em sua jaqueta de fotógrafo.

Quando ele se levantou, Taty notou uma cicatriz em sua coxa esquerda e percebeu também que ele não era tão alto como parecera a princípio, medindo cerca de um metro e oitenta.

Todos os seus pupilos já chegaram, Hamilton? — perguntou ele, sem desviar a atenção do rosto de Taty.

Lançando um olhar ao redor, Tony apontou na direção de um pequeno grupo que retirava as bagagens. Em seguida, virou-se para os dois, fazendo as apresentações:

— Tatiana, este é Christian de Vos... Christian, quero que conheça Tatiana.

— Prazer! — exclamou ele, apertando-lhe a mão, num cumprimento firme, um sorrisinho enigmático nos lábios sensuais.

Intrigada, ela soltou a mão dele de maneira brusca. Só o que desejava era um encontro anônimo com o cientista. Por isso, sorriu para Tony, fazendo de conta que o fotógrafo não existia. Nesse instante, porém, dois voluntários se aproximaram, monopolizando a atenção do líder do grupo.

Sem se dar por vencido com a indiferença dela, Christian pegou um bloco de anotações, abriu-o na primeira página e perguntou a Taty.

— Como se soletra seu sobrenome, Tatiana?

— Não creio que isso seja do seu interesse.

Dito isso, deu-lhe as costas e afastou-se, impedindo-o de ler seu nome na etiqueta da bagagem. Parada a um canto, reparou em duas jovens que se haviam postado ao lado de Tony e riam espalhafatosamente de algo que ele dizia.

Mais uma vez, Christian tornou a chamar sua atenção, postando-se ao seu lado.

— Katanich, não é mesmo? Sua expedição faz parte do livro que estou escrevendo sobre a ilha de Galápagos...

— Que livro?

Trata-se de uma coletânea, que fala a respeito da luta dos funcionários do Parque Nacional pela preservação das ilhas, sobre os mergulhadores que buscam lagostas, arriscando as vidas nisso, e sobre o impacto do turismo e da presença dos cientistas, que trabalham junto à Estação Darwin...

Convencida de que ele apenas pretendia impressioná-la, Taty forçou um sorriso de desinteresse.

— Muito bem, já entendi que o senhor tem um trabalho importante a ser executado, mas creio que não poderei ajudá-lo em nada. Sou uma simples turista, que veio a Galápagos numa excursão paga, e não quero... — Aumentando o tom de voz, acrescentou: — Recuso-me a me expor à curiosidade pública, através dos seus escritos e das suas fotos, certo?

Frustrando suas expectativas, o loiro não desistiu e continuou a fazer anotações em seu bloco.

— Quer dizer que você está aqui de férias?

— Por quê?

— Ora... e por que não?

Satisfeito com a própria resposta, Christian disse a si mesmo que as mulheres eram curiosas e sempre queriam mais informações. Portanto, se ele se esquivasse, Taty iria fazer-lhe mais perguntas, ou então, numa atitude adolescente, fugiria esperando que ele a procurasse.

Para seu espanto, porém, a mulher calma à sua frente não fez nada disso, limitando-se a repetir suas palavras.

— Sim... e por que não?

Com um sorriso enigmático, ela observou-lhe a expressão perplexa, antes de caminhar ao encontro de Tony.

— Você está pronto, Ken? — perguntou o cientista, virando-se para um jovem ruivo, vestido numa camiseta da Universidade do Arizona,

— Claro! Podemos ir — garantiu o rapaz, caminhando até o ônibus.

Pouco depois, acomodada sozinha num dos bancos do ônibus, Taty observava, através das janelas entreabertas, as extensas planícies de terra que ladeavam o caminho. De vez em quando, um cacto quebrava a monotonia do lugar, e as estradas de concreto formavam um zigue-zague em direção ao horizonte. Aquelas vias eram remanescentes dos trabalhos de engenharia de um campo de aviação americano e datavam do início da Segunda Guerra Mundial.

De repente, um discreto ruído chamou a atenção de Taty para o interior do ônibus.

Pouco adiante Christian estava ajoelhado, focalizando seu rosto com uma câmara importada e batendo inúmeras fotografias.

Preocupada, Taty umedeceu os, lábios com a ponta da língua, consciente de que não podia correr o risco de aparecer no livro dele sob hipótese alguma. Depois de uma ligeira reflexão, ela se voltou para o fotógrafo, controlando ao máximo o tom de voz.

— Que tipo de fotos você está procurando, afinal?

Insinuante, ele se acomodou ao seu lado no banco, roçando o braço forte no dela e fazendo-a arrepiar-se da cabeça aos pés.

Esforçando-se por ignorar o efeito perturbador que a proximidade de Christian lhe provocava, ela insistiu:

— Em vez de me perseguir, por que você não concentra sua atenção naquelas duas moças que estão sentadas atrás de Tony?

— Não! Com a luminosidade de agora, seus cabelos negros e sua blusa vermelha contrastavam com a lava lá de fora, criando um belo efeito colorido.

— Pena que as tartarugas daqui não sejam pintadas como as das lojas de animais, não? Você estaria feito! Mesmo em Carm... mesmo com a neblina de São Francisco, você poderia fotografar tartarugas roxas e alaranjadas — ironizou ela, felicitando-se por ter-se corrigido a tempo de não mencionar seu lugar de origem. — Além disso, se você precisa de um modelo colorido, a moça ali na frente está usando roupas bastante vistosas...

Desviando o olhar para a jovem morena que ela lhe apontava, Christian sacudiu a cabeça, numa negativa.

— Os cabelos dela são muito curtos.

Com um suspiro de alívio, Taty viu que o motorista estacionava e Christian descia, correndo, a fim de fotografar os voluntários, que desembarcavam.

Depois de alguns minutos de hesitação, ela também se levantou e, postando-se atrás de dois equatorianos, começou a sair do ônibus.

— Droga! — exclamou, ao notar que Christian continuava a fotografar. Fingindo procurar algo dentro da bolsa, baixou a cabeça e voltou, rápido, para o interior do veículo.

— Onde será que os coloquei? — disse em voz alta, aproximando-se de Tony, que descarregava alguns pacotes.

Pouco depois, aproveitando-se para se esconder entre as duas jovens que acompanhavam o cientista, Taty tentou escapar da insistente câmara de Christian.

Entretanto, seus esforços resultaram em vão, e ele não deixou de registrar, com sua potente máquina, a expressão de fascínio que havia nos lindos olhos azuis ao depararem com a selvagem paisagem de Galápagos.

De repente, a fisionomia calma de Taty foi dominada por uma irritação crescente. Ela acabava de descobrir que era alvo de Christian mais uma vez e, baixando a cabeça, caminhou até as docas, a passos rápidos.

Incapaz de se conter, o fotógrafo correu em seu encalço, gritando:

— Eu trabalho com aparências!

Como ela não desse mostras de tê-lo escutado, aumentou o tom de voz, acrescentando:

— Você possui a elegância discreta que pretendo usar para contrastar com os répteis gigantes que vamos observar.

Alcançando-a, Christian interceptou-lhe a passagem e passou à sua frente, fitando-a nos olhos.

— Por que veio para cá, Tatiana?

A nota de ansiedade que havia em sua voz revelava que aquilo era tudo o que ele queria descobrir. Afinal, ela não combinava com o lugar e, ao contrário dos outros voluntários, não parecia ser uma figura previsível, o que ficou bastante evidente na pergunta que Taty lhe fez a seguir.

— Escreve suas observações em inglês? Sua língua materna é...

— Minha língua é o flamengo — declarou ele em tom seco.

Com uma pequena ironia, Christian lembrou-se de que seu pai não lhe permitira estudar francês até sua entrada na mais cara e exigente escola secundária da cidade de Antuérpia, o que constituía uma esquisitice num país oficialmente bilíngue, onde era exigido o conhecimento dos dois idiomas. Será que aquela mulher altiva à sua frente se interessaria em saber que, no canto direito do jornal De Standaard, havia uma legenda diária que dizia: “Somos por Cristo, e Cristo é pelos flamengos”?

Não! Talvez ela não se interessasse por história, nem gostasse de descobrir que aquela inscrição era uma herança da Primeira Guerra Mundial, quando os oficiais belgas que conheciam o francês fuzilavam suas tropas que falavam apenas o flamengo...

“No meu caso, não há uma resposta simples”, ponderou Christian, afastando as lembranças amargas e repetindo em voz alta:

— Eu falo flamengo, que é uma língua parecida com o holandês. Escute, você se importaria de carregar minhas câmaras enquanto pego o resto do meu equipamento?

Feliz por ver-se livre do perigo de ser fotografada, Taty estendeu uma das mãos, pegando o sofisticado equipamento dele.

— E qual é sua língua materna, Tatiana?

— O inglês.

— Inglês americano e...

— E nada mais, ora essa!

— Você não sabe um pouco de polonês?

— Polonês?!

Com um sorriso, Taty imaginou que ele ignorasse que os poloneses não haviam emigrado para a cidade de Rock Springs, no Estado do Wyoming, para trabalhar nas minas de carvão, a exemplo dos croatas, como o pai dela, e dos italianos.

— E que seu sobrenome tem um ich no fim — explicou ele.

Nesse instante, os olhos azuis de Taty viram que, pouco adiante, as duas professoras tentavam impressionar Tony. A loira, um pouco nervosa, pousara uma das mãos sobre o braço dele de modo possessivo, e a outra ria sem parar, gesticulando muito.

Christian, deixo suas máquinas no barco, ou você as apanha no cais?

Sem esperar resposta, Taty deu meia volta e andou apressada na direção do jovem cientista.

No Pinguim, o velho barco de pesca que fora transformado em meio de transporte para turistas, tudo parecia velho e decadente. O salão, se é que podia se chamar assim o pequeno compartimento, cujo chão já se encontrava encardido pelo uso, servia apenas para local das refeições, uma vez que a grande mesa de madeira ocupava quase todo o espaço disponível.

Após guardar a bagagem na cabina, Taty observou com alegria que os únicos oito beliches existentes haviam sido ocupados, o que lhe permitiria dormir na parte superior do barco, longe do nauseante cheiro de diesel que se desprendia do motor.

Assim que o Pinguim ganhou velocidade, os ventos gelados que vinham do norte, junto com a corrente fria da Antártida, refrescaram o ar equatorial.

Vestindo um elegante cardigan preto, Taty sentou-se na parte mais distante da proa, sem se incomodar com a água que espirrava, molhando seu agasalho.

Voltando os olhos para o sul, ela deparou com o perfil da ilha de Baltra, que tomava forma à distância. Tratava-se de uma ilha satélite, que, no canal estreito, fazia as vezes de uma plataforma natural perfeita para a aterrissagem de jatos.

— Todos conseguem me ouvir? — gritou Tony, da proa, tirando-a das suas abstrações.

Em resposta, alguns voluntários acenaram positivamente, e ele continuou:

— Muito bem, então... Esse será o nosso esquema: primeiro, faremos as apresentações; depois, explicaremos algo sobre o lugar do mundo em que nos encontramos. Sou Anthony G. P. Hamilton; é um nome pretensioso, eu sei, mas deve lhes dar uma ideia sobre minha mãe e seu sonho de que o filho se tornasse professor universitário... Por aí, vocês podem imaginar como ela se sentiu quando o pequeno Tony começou a interessar-se por répteis...

Fazendo uma pequena pausa, ele relanceou um olhar ao redor, antes de prosseguir:

— Vocês podem ler meu currículo no livro da Globeprobe, e verão graduações, teses, cursos de especialização e coisas do gênero, certo? Bem, continuando: meu colega, o Dr. Luiz Alberto Pérez, da universidade Católica de Quito, está sentado lá, na ponte.

Reforçando essas palavras, um homem alto, de cabelos negros e óculos escuros, acenou com a mão.

— O Dr. Lucho, como ele é chamado, é um dos mais renomados zoólogos do Equador, juntos, estamos trabalhando num projeto duplo de reunir informações e dados importantes, além de treinar nossos alunos para executar pesquisas de campo que venham ao encontro dos padrões exigidos internacionalmente... À minha esquerda está Pepe Maldonado, o assistente de Lucho.

Um jovem moreno, de aparência tímida, sorriu à apresentação, e Tony continuou:

— Perto de Lucho, no convés superior, está meu assistente, Michael Kelley, de Portola Valley, Universidade de Stanford. Agora, ele pertence ao paraíso do deserto de Tucson, e permite que o chamemos de Mick.

— Às vezes! — gritou um jovem de cabelos avermelhados.

Abrindo a agenda, na qual anotara o nome e o endereço dos integrantes da expedição, Taty deduziu que seria mais fácil memorizar os nomes e os rostos dos presentes acompanhando as apresentações através das suas observações.

A moça morena chamava-se Donna Evans e lecionava numa escola secundária, em Tacoma. Sua amiga loira era Stacy Bancroft, professora numa cidade vizinha.

De acordo com a lista, havia quatro mulheres solteiras. E a terceira era Gwen Armstrong, de Minneapolis, uma mulher vigorosa, vestida de branco, que se acomodara no convés ao lado de Tony.

— Podem me chamar de Army! — gritou ela.

De acordo com Tony, Army trabalhava como enfermeira numa clínica especializada no tratamento do câncer ginecológico. Como ninguém tivesse qualquer comentário, ele continuou:

— Tatiana Katanich, de São Francisco, é empresária. Qual é o seu ramo de negócios, Tatiana? A propósito, você tem apelido?

— Sim, é Taty. Estou no ramo do turismo.

— Ah, sei, turismo... o mal necessário! Abordaremos esse assunto mais tarde, quando eu falar sobre a “visão Hamilton” do universo, certo?

O homem que se achava ao lado de Taty era o Dr. Earl R. Elmore Jr., um engenheiro da cidade de Cambridge, no Estado de Massachusetts. Muito discreto, ele tinha cabelos castanhos, era magro e usava camisa de flanela.

Ken Dockery, o mais jovem do grupo, não parava de passar a língua nos lábios para umedecê-los, numa espécie de cacoete nervoso, e devia contar cerca de vinte e três anos.

O grupo de quinze voluntários incluía dois casais: os Karpen e Hubert e Elizabeth Harris, da cidade de Burlington, no Estado de Vermont, que deviam ter uns quarenta e poucos anos.

Adiantando-se às apresentações de Tony, um homem de meia idade e aspecto robusto acenou com a mão. Seus bigodes grisalhos emolduravam um sorriso simpático.

— Sou George Karpen, de Kansas City, no Estado de Kansas. E esta é minha mulher, Margaret — declarou, apontando uma mulher clara, que sorria de maneira tímida.

— Finalmente, o rapaz de máquina fotográfica chama-se Christian de Vos. E seus editores alemães pagaram uma pequena fortuna à Globeprobe para que ele fizesse parte da expedição e pudesse ver como cientistas e voluntários se integram.

No tom agressivo da voz de Tony estava implícito seu desagrado pela vinda do belga, o que animou Taty, que também se sentia importunada com a presença do fotógrafo.

— Christian, além de fotógrafo, é autor de seis livros sobre diferentes áreas críticas da Terra. São livros populares, que interessam sobretudo aos turistas ricos que podem arcar com as despesas de uma viagem às áreas mais remotas do planeta, mas querem hospedar-se nos melhores hotéis, exigindo o máximo de conforto. Sem dúvida, isso faz com que a preservação dessas regiões corra um grande risco.

Afastando as pernas para equilibrar-se melhor. Tony explicou, em tom provocador:

— Christian está em Galápagos há oito meses, e nós faremos parte de um dos seus últimos capítulos. Resumindo: enquanto observamos as tartarugas, ele nos estuda, certo?

Impassível diante dos comentários sarcásticos do cientista, Christian limitou-se a inclinar a cabeça num leve cumprimento, despertando a admiração de Taty com seu autocontrole.

— Por outro lado, se não fossem os turistas que trazem dinheiro para Galápagos, outro tipo mais perigoso de explorador iria aparecer — acrescentou Tony, dando sequência à palestra de introdução. — Fico com a cabeça quente quando entro nesse assunto, principalmente agora que estamos falando sobre um laboratório natural da Terra, já bastante depredado pelo ser humano. Galápagos é um dos poucos recantos naturais que ainda existem em nosso planeta, mas as pessoas continuam vindo até aqui em busca de alguma coisa para levar de lembrança, desde fotografias a pedaços da natureza... Outros querem apenas viver uma aventura, e apenas uns poucos se preocupam em preservar o que existe aqui.

— Mas é próprio da natureza humana procurar aventuras! — interrompeu Army, indignada. — Isso não significa que sejamos exploradores vis. Afinal, se não quiséssemos estudar Galápagos, não teríamos gastado as nossas férias, nem o nosso dinheiro. Da maneira como fala, tenho a impressão de que você está sugerindo que voltemos para as nossas casas...

Com um sorriso fascinante, o cientista virou-se para a enfermeira, desculpando-se.

Desconfio que lancei um “bombardeio Hamilton” maior do que pretendia, pelo menos para recém-chegados... Bem, mas vamos voltar ao nosso roteiro original. Todo mundo já acertou os relógios de acordo com nosso fuso horário? Galápagos localiza-se diretamente a sul de Saint Louis e New Orleans. Minneapolis fica a oeste de onde estamos, e a grande ilha atrás de nós chama-se Santa Cruz.

Ao vê-lo tentar abrir um grande mapa topográfico contra o vento, Stacy, a loira, correu para ajudá-lo.

— Santa Cruz está aqui, no meio das catorze principais ilhas de Galápagos, e é, ao mesmo tempo, o centro geográfico e o coração do arquipélago. Lá estão localizadas as instalações da Estação de Pesquisa Charles Darwin e o centro da indústria de turismo e de pesca. Trata-se de uma área em desenvolvimento, que dobrou de população nos últimos anos. Os equatorianos possuem uma legislação rígida para controlar o movimento de turistas, mas não podem evitar a migração dos seus próprios habitantes, o que ocasiona problemas, uma vez que todos querem radicar-se em Santa Cruz, devido às oportunidades de emprego.

Interessada no curso que a abordagem seguia, Taty inclinou-se para frente, a fim de examinar melhor o mapa. Não havia lagos, rios ou nascentes nas ilhas, mas todos estavam marcados por uma série de círculos elevados, indicando os picos dos vulcões. As únicas referências humanas visíveis eram as quatro baías com vilas de pescadores e três aglomerados de casas nas terras altas, onde viviam os fazendeiros. Os limites entre as pastagens para o gado e o Parque Nacional Equatoriano não se encontravam demarcados no mapa.

— Aproximadamente oitenta e sete por cento do território pertence ao parque.

— Hum, isso é admirável para um país pequeno como o Equador — comentou George Karpen, assobiando.

— De fato! Inclusive acredito que esse é um motivo de orgulho para todos nós — observou o Dr. Lucho, com evidente satisfação.

Concordando com um gesto de cabeça, Tony retomou a palestra, em tom calmo.

— No princípio, quase todos os lugares da Terra já existiam, com exceção de Galápagos, que é a região mais jovem de nosso planeta. O vulcão Alcedo, onde vamos nos instalar, tem mais ou menos quatrocentos mil anos de idade, conta com aproximadamente três mil tartarugas gigantes, com casco de forma arredondada, e localiza-se na ilha Isabela, que é a maior do arquipélago. Até os humanos descobrirem as ilhas, seus habitantes tinham-se afogado ou sido arrastados dali, junto com pedaços de terra e árvores arrancadas dos Andes, devido às tempestades violentas. E, durante alguns milhões de anos, Galápagos foi uma terra dominada por répteis e pássaros. Não havia predadores naturais, nem mamíferos, os quais só apareceram em 1535, com a chegada dos humanos.

Fazendo uma pequena pausa para verificar o efeito das suas palavras, Tony relanceou um olhar pelos ouvintes e acrescentou, indignado:

— Junto com os humanos, veio a destruição. Os ratos escapavam dos navios e sobreviviam às custas dos ovos dos répteis. Os navios descarregavam cabras e gado, a fim de garantirem carne para a volta, o que acabou com a vegetação nativa. Para completar, os marinheiros espanhóis, os piratas ingleses e os caçadores de baleias da Nova Inglaterra descobriram que as tartarugas viviam até um ano e meio sem alimento e possuíam uma carne semelhante à das aves, além de um óleo mais rico do que a manteiga. Em função disso, as populações de tartarugas foram dizimadas e estocadas em navios, sobretudo as fêmeas, mais fáceis de se capturar.

Mais uma vez, Tony se interrompeu e passou a ponta da língua pelos lábios ressequidos, continuando a seguir:

— Os humanos estabeleceram-se em Galápagos junto com cães, gatos e porcos, que caçavam os pássaros e os répteis, ameaçando a sobrevivência de espécies inteiras... O resultado final é o seguinte: dos catorze tipos de tartarugas gigantes, duas estão definitivamente extintas; uma nunca mais foi encontrada desde 1906, e provavelmente também esteja extinta, e outra conta com apenas um sobrevivente, o Solitário George, de Pinta, que vive num curral de lava e pedras na Estação Darwin, atrás da casa do diretor.

Captando a expressão de sincera revolta que havia no rosto do biólogo, Christian afastou-se um pouco dos demais, buscando um bom ângulo para fotografá-lo.

— Há menos de vinte e cinco anos, algumas pessoas dedicadas começaram a salvar Galápagos. Os equatorianos decretaram que todo pedaço de terra que não estivesse ocupado fizesse parte do Parque Nacional e, ao lado da comunidade científica internacional, começaram a estudar as ilhas e a incentivar as atividades da Estação de Pesquisa Charles Darwin. As principais companhias de turismo conseguiram transformar em lei a exigência de que todos os visitantes que quisessem conhecer o parque só pudessem fazê-lo na companhia de um guia naturalista licenciado, usando os barcos como hotel. As exceções são muito raras e ocasionais...

Dobrando o mapa, Tony concluiu:

— Vocês são a exceção!

— E qual foi a razão disso? — indagou Taty, intrigada.

— O parque e a estação vêm trabalhando num projeto duplo, que tenta salvar tanto as tartarugas quanto os iguanas. Muito prestativos, os guardas do parque têm erradicado os mamíferos selvagens, colhendo ovos para colocar em incubadoras e ajudando a criar os filhotes, que, quando estiverem aptos a sobreviver sozinhos, serão mandados de volta aos seus locais de origem. Pois bem, os dados que vocês irão reunir nos ajudarão a elaborar esses programas de preservação. Entretanto, nossos objetivos extrapolam isso, ligando-se ao intuito de descobrir o que, no meio ambiente, provoca mudanças nos organismos...

— Sem dúvida, essa proposta é bastante empolgante perto da perspectiva de se ficar preso num laboratório, pesquisando a evolução das moscas das frutas — gritou Mick, parando no convés superior.

Assim que o barco contornou uma pequena ilha e dois equatorianos lançaram a âncora, Anthony Hamilton sorriu, com uma expressão feliz e relaxada no olhar.

— É verdade que não somos um grupo de turistas que viaja de uma ilha para outra todas as noites e visita o Parque Nacional durante o dia. Mas, com exceção do Dr. Lucho e dos nossos dois assistentes, os demais estão aqui de férias. E, embora sejam especiais, por terem uma proposta científica de trabalho a ser cumprida, merecem desfrutar todo o encantamento e magia que somente Galápagos possui. Aproveitem!

Minutos mais tarde, deslumbrados, os ocupantes do barco desceram à terra e puseram-se a admirar os pássaros da pequena ilha de North Seymour.

Taty, que caminhava sozinha, aproximou-se de um bando de pássaros gigantes devagar, para não assustá-los. Parou diante de um deles e suas feições tranquilas revelavam a calma que a invadia.

Alguns passos às suas costas, Christian de Vos também parou, torcendo para que ela continuasse estática, sem alterar a expressão do rosto.

Convencido de que aquela imagem tinha tudo para ser uma fotografia de capa, instalou o tripé e, através da objetiva, ajustou o foco, buscando tirar o máximo efeito visual das cores.

Alheia a tudo e a todos, mergulhada apenas numa sensação de bem estar que não experimentava há anos, Taty deixou-se ficar alguns longos minutos naquela posição, sem sequer escutar o ruído da câmara de Christian.

Satisfeito com as fotos que acabara de bater, Christian observou Taty levantar-se e voltar-se, rindo, para o restante do grupo. De repente ela parecia completamente diferente da mulher reservada do aeroporto, o que o motivou a aproveitar a chance e tirar alguns outros retratos.

Por azar, ela o surpreendeu em flagrante e cerrou os dentes, irritada.

Surpreso, Christian ponderou que nunca antes uma mulher reagira daquele modo às suas atenções. Por que Taty se esquivava, recusando-se a ser fotografada? Do que estaria fugindo?

Com a curiosidade aguçada, enfiou as mãos nos bolsos das calças e pôs-se a procurá-la com o olhar.

Quando a localizou, arregalou os olhos, perplexo. Recusava-se a acreditar que ela estivesse tentando conquistar as atenções de Tony daquela forma tão... aberta!

Contendo a própria raiva, esforçou-se para analisar a causa de sua reação intensa. Afinal, mal conhecia aquela mulher, e não tinha o menor sentido ficar enciumado somente porque ela demonstrava interesse por outro homem... Ou tinha?

 

De volta ao barco, o grupo não tinha nada para fazer pelo resto do dia, o que motivou Tony a continuar a palestra.

Na manhã seguinte, logo cedo, aportariam em Alcedo, onde o Garua, um vento forte que soprava na direção sudoeste, se intensificaria, espalhando o cheiro gostoso da maresia.

Ajudado por seu colega equatoriano, Tony tornou a abrir o mapa, a fim de ilustrar suas informações acerca dos hábitos das tartarugas, desdobrando-se para prender o interesse dos voluntários. De forma resumida, descreveu as antigas investigações, contando desde as experiências de Darwin até as primeiras expedições do século XX, que sacrificavam os espécimes para levá-los aos museus.

Incapaz de concentrar-se na explanação histórica, Christian observava o perfil de Taty, que, recostada à murada, tinha uma expressão preocupada no rosto. O barco cortava o mar em grande velocidade, respingando água em suas roupas, mas ela parecia alheia a isso.

No entanto, ao contrário do que ele imaginava, Taty estava bastante atenta ao que se passava e, com o rabo do olho, observava-o, procurando fugir da mira de sua câmara.

Por azar, porém, isso era quase impossível, pois o fotógrafo parecia obcecado por sua imagem, o que a levou a decidir que, ainda naquela noite, cortaria os cabelos bem curtos. Ficaria mais fácil cuidar deles durante a expedição, e nove meses depois, quando o bebê nascesse, eles já estariam compridos outra vez.

Mas quem os cortaria? Relanceando um olhar ao redor, Taty imaginou que a mulher de branco, aquela que se dizia enfermeira, devia saber como fazê-lo, e decidiu procurá-la após o jantar.

Satisfeita com essa decisão e convencida de que o belga não se interessaria por uma modelo de cabelos curtos, Taty sorriu e tentou concentrar a atenção em Tony, que continuava a falar.

De acordo com o biólogo, as tartarugas de casco arredondado viviam nas terras altas das ilhas maiores, enquanto as de casco em forma de sela tinham o pescoço mais comprido e costumavam estabelecer-se nas ilhas desertas e planas, alimentando-se de cactos.

Quanto tempo iria durar aquela conferência?, perguntou-se Taty, ansiosa por ficar um pouco sozinha. Afinal, tudo o que Tony falava já fora dito no folheto da Globeprobe.

— Estamos estudando as tartarugas em quatro ilhas diferentes — explicava ele, apontando para o mapa. — Os voluntários nos auxiliarão em duas delas, pesquisando a vida das tartarugas de casco arredondado, e nove alunos da Universidade do Arizona e da Universidade Católica de Quito se ocuparão das espécies com casco em forma de sela, em Pinzón. Alguém tem alguma dúvida?

Como ninguém se manifestasse, o jovem cientista prosseguiu:

— Até o final das férias de verão, esperamos ter um quadro sobre o comportamento das tartarugas durante a estação das secas. Por fim, Mick, o Dr. Lucho e eu passaremos o inverno aqui, recolhendo dados a respeito da estação das chuvas, ao lado de um grupo de estudantes... Bem, está ficando tarde, e vocês devem se sentir ansiosos por experimentar um prato de arroz com peixe...

— Pode me dar um minuto de atenção, Tony — interrompeu Christian, tirando um bloco de anotações do bolso. — Por que você e o Dr. Lucho estão liderando um verdadeiro exército de assistentes, uma vez que o Parque Nacional não permite mais do que três cientistas de cada vez nas ilhas pequenas? Além disso, a maioria das observações que você incorporou ao seu estudo foram obtidas por uma jovem que morou em Alcedo durante quinze meses... Sendo assim, qual a necessidade de se manter treze voluntários nesse grupo, além de dois assistentes?

Precisarei de um número razoável de colaboradores, pois pretendo levantar uma ampla amostragem de tartarugas.

— Infelizmente, continuo achando exagero a presença de tanta gente.

— Como eu havia dito, existe também nosso objetivo de treinar o maior número possível de equatorianos e estudantes estrangeiros para desenvolverem trabalhos de campo.

— E qual foi o interesse da Globeprobe em tudo isso?

— Para ser franco, procurei-os, pois precisava do dinheiro de vocês, a fim de comprar o equipamento de alta tecnologia que vamos utilizar. Na realidade, sinto-me meio mercenário por trazer mais exploradores para esse paraíso, entretanto, não encontrei outro modo de custear minhas pesquisas. Satisfeito, de Vos?

— Sim, obrigado!

Virando-se para os demais, Tony aumentou o tom de voz e disse:

— Todos aqui vieram a Galápagos para viver uma aventura ... Vou lhes oferecer essa aventura e usarei o dinheiro de vocês em benefício das ilhas...

— Garanto que nos sentimos lisonjeados pela chance de contribuir com essa importante investigação científica — interveio George Karpen, amenizando a situação com sua voz treinada de gerente de vendas.

Pouco à vontade, Taty considerou que todas as suas expectativas e medos em relação àquela viagem não incluíam o encontro com um cientista tão cheio de ética e altos ideais. Será que isso representaria um entrave aos seus planos?

— Christian, você gostaria de dizer alguma coisa ao grupo, antes do jantar? — perguntou Tony com evidente irritação.

Após uma breve hesitação, o fotógrafo levantou-se e encarou os voluntários.

— O trabalho de vocês, durante as próximas semanas, será muito importante para o entendimento teórico de uma pequena parte do nosso planeta, e também para o meu livro. Cada um veio de um tipo diferente de vida e pagou para passar as férias sem privacidade, sobrevivendo às custas da água que puderem carregar, às costas... Pois bem, eu gostaria de conhecer os seus objetivos, as suas reações com relação a cabelos sujos, noites passadas em grupo ao ar livre, e as suas expectativas quanto a esta viagem. Por exemplo, por que o senhor veio para cá, Dr. Elmore?

Depois de uma ligeira hesitação, o engenheiro ergueu-se de seu lugar e pigarreou, respondendo:

— Eu queria explorar com liberdade um dos poucos lugares selvagens que ainda restam na Terra. Esta foi a única maneira que encontrei de escapar da vigilância constante de um guia.

O interrogatório continuou por mais alguns minutos, mas logo a falta de iluminação os impediu de continuar.

— Creio que será melhor continuarmos amanhã durante o dia. — Com um sorriso sedutor, Christian acrescentou: — A propósito, se algum de vocês pratica esqui, estarei em casa, na cidade de Jackson Hole, no Estado de Wyoming, durante o Natal. Telefonem-me e eu lhes pagarei um drinque no bar Silver Dollar.

Arregalando os olhos, Taty se convenceu de que era muito azar o fato de Christian morar justo em sua terra natal.

Perturbada, não o escutou explicar que fora a Jackson a fim de escrever um livro sobre cowboys e acabara ficando, pois se apaixonara pela terra inóspita e pela sensação de liberdade que apenas as planícies proporcionavam.

Depois do jantar, Taty foi atrás de Army e pediu à enfermeira que lhe cortasse os cabelos.

— Mas por que vai cortá-los? Não acredito que curtos lhe darão menos trabalho — opusera-se a loira, surpresa.

— Ouça, Army, creio que me sentiria melhor cortando-os...

— Tudo bem, então. Vamos até aquele cubículo que eles chamam de banheiro. A luz não é muito boa, mas dá-se um jeito...

Meia hora mais tarde, a enfermeira dava os últimos retoques, utilizando uma faca afiada, pois todas as tesouras de que dispunham eram muito pequenas.

— É... acho que ficou bom — comentou, examinando o resultado de seu trabalho. — Suavizou as linhas de seu rosto.

— Ficou ótimo Tenho certeza de que será mais fácil lidar com eles neste clima... Obrigada, Army.

— Disponha, querida.

Após reunirem os seus pertences, as duas subiram para o convés, onde Tony já se instalara.

Ao vê-las, o cientista ergueu-se em seu saco de dormir e gritou:

— Já entramos no esquema “oito às cinco”. Ou seja: na cama às oito; de pé, às cinco... Tem lugar para você aqui, Taty. Onde está seu saco de dormir?

Engolindo em seco, Taty relutou em atender ao convite. Sentia-se cansada e só queria dormir. Além do mais, ainda era sábado, e seu período fértil só começaria na terça-feira. No entanto, não podia desperdiçar nenhuma oportunidade de chamar a atenção de Tony, e respondeu:

— Guarde um lugar para mim que vou buscá-lo.

Dali a pouco, vestindo uma camiseta e um short para dormir, ela voltou depressa ao convés. Notando que Earl e Army já se haviam instalado do outro lado de Tony, apressou-se e acabou esbarrando em Christian, que saía da cabina do piloto.

Estremecendo ao contato daquele peito forte, ela levantou o olhar e surpreendeu-se ao ver a expressão de satisfação que havia no rosto dele.

Enquanto cortava os cabelos, Taty se divertira imaginando o desapontamento dele ao vê-la, mas agora os olhos do fotógrafo brilhavam, como se ele tivesse ganhado um presente dos céus. Que coisa estranha!

Intrigada, apressou-se em se afastar.

— Com licença...

— Claro! — exclamou ele, entregando-lhe um saco de dormir e uma almofada. — Você se incomodaria de encontrar um lugar para mim? Preciso verificar umas coisas na cabina central...

Sem esperar resposta, Christian deu meia-volta, deixando-a parada, com uma expressão atônita diante de tanta petulância.

Mal resistindo à tentação de atirar os pertences dele ao mar, Taty tratou de se recompor e rumou para a vaga que havia ao lado de Tony. Como não houvesse nenhum outro lugar disponível, ajeitou a cama de Christian ao lado da sua e deitou-se.

— É bom tê-la conosco, Taty — declarou Tony, pouco antes de conciliar o sono.

Duas horas mais tarde, porém, Taty continuava acordada, o olhar fixo no céu pontilhado de estrelas.

De repente, Tony aproximou seu corpo do dela, o que a fez escorregar para o lado de Christian, incomodada pela proximidade do cientista. Para piorar, alguém roncava ali perto e a noite parecia interminável. As ondas batiam agitadas no casco da velha embarcação.

Quando Christian acordou, às quatro e meia da madrugada, as ondas tinham molhado seu saco de dormir, e, ao que tudo indicava, o Pinguim ficara preso em alguma corrente.

Levantando-se, o fotógrafo estranhou que estivessem tão próximos de terra. Será que havia algum problema?

— Hamilton! — chamou, preocupado. — Acho melhor irmos para as cabinas antes que nos ensopemos.

Acordando, assustado, Tony coçou a cabeça e tentou acostumar a vista à cerração.

— Mas como está úmido por aqui...

Alertados pelo barulho, Army e o Dr. Elmore também se levantaram, com os sacos de dormir e as almofadas nas mãos. Estavam indo para a cabina, quando Taty acordou e sentou-se, com uma expressão petrificada no rosto.

— Venha, querida! Vamos para a cabina — convidou Army, ajudando-a a recuperar o autocontrole.

— O... o que houve?

Antes que alguém pudesse responder, o velho barco chocou-se contra uma rocha de lava, produzindo um grande estrondo.

— Mas que diabos... — começou Tony, acendendo uma lanterna e dirigindo-se à casa das máquinas.

Pouco depois, a voz grave de Christian cortava os ares, pondo todos em polvorosa.

Vistam seus coletes salva-vidas! Estamos afundando!

Como que para confirmar essas palavras, ele começou a colocar seus filmes e máquinas numa sacola à prova d’água, pendurando uma câmara submarina ao pescoço.

Percebendo a gravidade da situação, Earl adiantou-se, distribuindo as jaquetas alaranjadas aos voluntários, que não se moviam, paralisados pelo medo.

Como se estivesse hipnotizada pelo barulho da madeira batendo nas pedras, Taty prendeu o colete ao corpo e, pegando um farolete, iluminou o recinto.

— Todos estão prontos? — gritou, fingindo calma.

Nesse instante, Tony apareceu, anunciando:

— Os engradados com garrafas caíram sobre o compartimento de combustível! Peguem alguns cantis de água e ajudem-me a colocar os sacos de suprimentos naquele barquinho, o Panda.

Enquanto Taty iluminava o caminho, George Karpen, Earl e Mick transportavam os galões de água para o local indicado.

Assumindo o controle da situação, Tony e Christian gritavam instruções e orientavam a saída das pessoas e o carregamento do Panda.

— Peguem as bagagens! Rápido!

Afobada, Army aproximou-se de Taty e pediu:

— Hamilton trouxe um estojo de primeiros socorros, que talvez se torne necessário. Ilumine nessa direção para que eu possa encontrá-lo!

— Está bem!

Ao fundo, o barulho das ondas quebrando ficava cada vez mais forte. No entanto, não se podia enxergar um palmo adiante do nariz, por causa da cerração.

— Os melhores nadadores aqui! — gritou Christian, apontando para um canto. — Não queremos heróis! O Panda aguenta carregar sete pessoas, por isso, aqueles que não nadarem bem fiquem de lado.

Insegura, Taty manteve-se imóvel. Não sabia dizer se era boa nadadora, embora costumasse treinar todos os dias na piscina do clube. Após uma ligeira reflexão, porém, resolveu arriscar a sorte, uma vez que vários dos passageiros sequer sabiam nadar.

Solícito, George Karpen ajudou essas pessoas a descerem a escadinha que levava ao Panda, enquanto Margaret iluminava o espaço para os nadadores mergulharem na água fria.

Mais tarde, Taty se lembraria de que ficara estupefata diante da presença de espírito da pequena Margaret Karpen. Mas, naquele momento, só tinha consciência de que o perigo aumentava a cada segundo.

Como uma autômata, ordenou que Margaret também entrasse na água e assumiu a tarefa dela, sem notar que todos já haviam abandonado a embarcação.

Paralisada pelo medo, só reagiu quando ouviu alguém gritar seu nome pela terceira vez.

— Pule, Tatiana! — ordenou uma voz grave, ao mesmo tempo em que um flash explodia na escuridão, arrancando-a de seu torpor.

 

Com o terror estampado no rosto, Taty arqueou as costas e, dando impulso com as pernas, saltou para fora do barco que afundava.

Se Christian de Vos não tivesse se lembrado de que a luminosidade do flash possuía o poder de produzir um choque em quem não o estivesse esperando, àquela hora talvez Taty já não existisse.

Ansioso, ele não se afastara do barco, observando-a guiar as pessoas com seu farolete. Corajosa, ela ajudara inclusive ao capitão, que após uma breve discussão em castelhano, dera de ombros e também mergulhara.

— Pule, Tatiana! — gritara Christian, percebendo que o terror a paralisara e amaldiçoando-se por não ter ficado ao lado dela dentro do barco. — Pule, vamos! — insistira, um pouco antes de repetir o chamado e acionar o flash da câmara.

Feliz por ter registrado aquele pequeno momento em sua máquina, Christian pensava que aquela foto falaria da bravura, que fora motivada pelo medo e pelo instinto de sobrevivência.

Custando a se recuperar do choque, Taty não calculara bem os movimentos e saltara de mau jeito, engolindo uma grande quantidade de água salgada. Depois, quando tentava compassar a respiração, uma grande onda a pegou de surpresa, fazendo-a vacilar.

Às cegas, ela se debatia sem parar, temendo cortar-se nas pontas de alguma formação de lava submersa.

Nesse momento, toda a sua vida desfilou diante dos seus olhos como num filme que durasse apenas um lapso de segundo. Experimentando uma terrível sensação de vertigem, teve a certeza de que morreria ali, sozinha, sem sequer haver tentado amar outra vez.

Num esforço sobre-humano para escapar desse destino, Taty elevou o farolete acima da superfície da água e começou a nadar em círculos, procurando pelos outros.

— Até que enfim! — disse uma voz aliviada à sua esquerda.

— Olhe um pouco para a sua direita — pediu Christian, indicando-lhe uma fileira de luzes intermitentes.

Apurando a vista, Taty reconheceu os contornos do Panda, que se levantava e se abaixava com o movimento das ondas, e se perguntou se a terra ainda estaria muito longe.

— Estou seguindo você, Taty. Vá em frente...

Animada pela voz firme de Christian, ela se voltou em sua direção, mas foi obrigada a desistir do intuito de vê-lo, pois uma forte onda a cobriu.

— Mantenha a luz alta e continue nadando. Hamilton está à nossa espera — animou-a, tranquilizador. — Ele pediu que eu lhe avisasse que vai recebê-la na praia com um abraço forte e bem quente.

Nem bem pronunciou essas palavras, Christian arrependeu-se por ter transmitido aquele recado.

Taty, porém, mal havia prestado atenção. Sentia todo seu corpo arrepiado de frio. Mesmo assim, esforçou-se para dizer alguma coisa, apenas para quebrar o silêncio.

— Ah... que ótimo! — exclamou.

Irritado pela resposta dela, Christian sentiu que sua raiva pela negligência de Tony aumentava. Afinal, o biólogo trabalhava há anos para a Estação Darwin e devia conhecer muito bem as condições daquele barco. Portanto, aquele naufrágio era ridículo e jamais poderia ter acontecido.

Para piorar, havia o risco de o seu equipamento haver-se estragado, o que o impediria de concluir o livro dentro do prazo determinado pelos editores.

Bem, de qualquer modo, não adiantava nada lamentar-se àquela altura do campeonato, e o melhor a fazer seria poupar as energias e incentivar Taty a prosseguir.

— A primeira luz da manhã aparece lá pelas cinco e meia... Logo sairemos do escuro — declarou, ansioso por animá-la.

Percebendo-lhe a intenção, ela sorriu, divertida, e virou-se ligeiramente, encarando-o.

— Aposto como você diz isso a todas as mulheres que conhece — brincou, alegrando-se ao ouvi-lo gargalhar.

Minutos mais tarde, quando a estrela da manhã brilhou no céu, os dois pararam um pouco, fixando o olhar na ilha, que se desenhava logo adiante.

Nesse instante, uma onda mais forte jogou Taty de encontro à praia coberta de rochas de lava, o que provocou vários cortes em sua perna direita.

Com um brilho de preocupação no olhar, Tony logo apareceu e, caminhando sobre as pedras, esticou uma das mãos para ajudá-la a se levantar.

— Obrigado, De Vos — disse ele a Christian, enquanto esfregava os braços de Taty com vigor.

— O barco explodiu? — perguntou ela, ao sentir-se aninhada contra o peito atlético do cientista.

— Não, não houve nenhuma explosão. Dentro de algumas horas, saberemos se ele se espatifou ou não.

Apesar de desanimado, quando o grupo se reuniu à sua volta, Tony repetiu a informação, imprimindo um tom otimista à voz.

— Mas onde estamos agora? — perguntou Army, sem disfarçar a apreensão.

— Em Rábida. Uma das pequenas ilhas — esclareceu Tony, assumindo a liderança.

— Conseguiram enviar um SOS. pelo rádio, antes de irmos à deriva? — questionou Earl.

— Nem por sonho!

— E agora?

— Iremos para o lado norte de Rábida, onde com certeza conseguiremos uma carona num dos barcos dos turistas.

— Mas vamos para Alcedo, não? — indagou Army, tirando os sapatos e torcendo as meias.

— Mas é claro que sim! — interveio George Karpen. — Vamos nos movimentar e tirar as coisas do barco, pessoal!

Dito isso, o gerente de vendas rumou em direção ao Panda, seguido por Margaret e pelo restante do grupo.

Observando que todos apresentavam arranhões nos braços e nas pernas, Army gritou:

— Peguem as coisas de Tony em primeiro lugar. Estão por cima de tudo! Lá tem um estojo de primeiros socorros...

Meia hora mais tarde, depois que a enfermeira limpou os cortes e enfaixou as contusões, Tony aproximou-se, anunciando:

— Assim que o sol sair, colocaremos os nossos sacos de dormir para secar, certo? — Virando-se para o fotógrafo, forçou um sorriso gentil. — Como ficou seu equipamento, Christian?

Com evidente ironia, Christian fitou-o durante alguns segundos, antes de responder:

— Tivemos muita sorte, Tony. Ficou tudo seco! Bem, agora vou voltar com o capitão para inspecionar o barco. Você pretende nos acompanhar ou ficará com o grupo?

— Creio que será melhor se eu ficar.

— Também acho!

Quando a pequena comitiva, formada por Christian, Mick, o Dr. Lucho e o capitão, retornou, todos adivinharam por suas expressões desanimadas que o Pinguim já não existia.

— Agora, aconselho que todos coloquem suas coisas para secar e aproveitem para descansar um pouco — sugeriu Tony, pouco antes de retornar ao local dos destroços com o capitão, a fim de verificar se ainda se podia salvar alguma coisa.

— Quer me ajudar? — perguntou Christian, aproximando-se de Taty. — Quero tirar algumas fotos líricas de Rábida e pretendo ir até o lado norte da ilha, onde ficam os leões-marinhos e os flamingos.

— Oh, desculpe-me, mas...

— Não se preocupe, não vou fotografá-la. Só preciso de uma forma humana ao fundo. Prometo não focalizar seu rosto.

— Então, está bem.

Após deixar avisado que os encontraria na praia dos turistas, ele a ajudou a prender a bagagem às costas, e os dois puseram-se a caminho.

Caminhando lado a lado, conversavam sobre os mais variados assuntos.

Bem humorada, Taty divertia-se em confundi-lo, dando opiniões contraditórias sobre os mesmos assuntos. No início, Christian não percebera a brincadeira e ficara intrigado, mas logo pusera-se a rir e entrara no jogo, repetindo o mesmo expediente que ela.

— O que você faz além de trabalhar, Taty?

— Estudo.

— O quê?

— Frequento aulas de navegação.

—- Ah, é? Que interessante! Eu gosto de andar de bicicleta, e às vezes corro quilômetros... Adoro praticar exercícios físicos. Uma vez, fiz uma viagem numa embarcação oceanográfica que durou um ano. Durante esse tempo todo, fiquei praticamente sem conversar.

Animado pelo interesse com que Taty o escutava, Christian acabou falando mais do que pretendia e, entre outras coisas, contou-lhe seu desapontamento ao se ver obrigado a desistir do trabalho de pós-graduação em biologia, na Universidade de Louvain, na Bélgica. Na época, seu pai sofrera um ataque cardíaco, que, apesar da pouca gravidade, fizera-o implorar a Christian que, como filho mais velho, voltasse para casa, a fim de administrar a fábrica da família, uma companhia de manufatura de máquinas.

Quando o velho enfim se recuperara, dois anos haviam-se passado, e Christian já não se sentia animado a retomar o curso.

Comovida pela história de seu acompanhante, Taty começou a pensar na própria existência, concluindo, em voz alta:

— Os caminhos que a gente toma na vida às vezes são tão diferentes dos que planejamos... Que força estranha dirige nossa trajetória? Nunca encontrei resposta para essa pergunta, e não gosto de deixar tudo por conta do destino. A bem da verdade, sempre que minha vida me parece comum demais, tento mudá-la em algo...

— Hum, uma mulher que gosta de aventuras...

Divertida com a definição, Taty negaceou com um gesto de cabeça e sorriu:

— Não, nada disso. Para ser franca, preparar biscoitos caseiros faz mais meu gênero.

Se aquela atmosfera intimista tivesse durado mais meia hora, Taty lhe contaria sobre como se sacrificara para comprar sua aconchegante casa de campo e sobre sua relação com as irmãs.

Christian, por sua vez, chegou perto de revelar a existência de um irmão mais novo, o bom filho, estável e enfadonho, que obedecia às ordens obsoletas do pai de como gerenciar a fábrica. Ou então falaria sobre Nicole, sua falecida esposa, além de outras calamidades e triunfos que o haviam transformado no homem que era.

No entanto, todas essas coisas ficaram por dizer, pois a praia de areia avermelhada fez-se ver, revelando uma grande quantidade de leões-marinhos cuidando dos filhotes.

Diante desse espetáculo, os dois emudeceram, convencidos de que dispunham de todo o tempo do mundo para conversar.

Depois que Christian bateu algumas fotos, eles se entreolharam e, dando-se as mãos, num acordo mudo, correram para a água, como duas crianças felizes.

Após mergulharem, nadaram um pouco e voltaram à praia, detendo-se para brincar com os leões-marinhos, que os olhavam com curiosidade.

— Vamos nos secar um pouco — sugeriu ele, puxando-a pela mão.

Despreocupados, estiraram-se na areia, com o sol batendo em seus corpos semi vestidos.

De repente, seguindo um impulso irresistível, Christian ergueu meio corpo e virou-se, apoiando-se sobre um dos cotovelos, enquanto os seus lábios se uniam aos dela num beijo terno, que pareceu durar uma eternidade...

O beijo suave e calmo foi interrompido pelo som de vozes. Era Army que se aproximava, liderando o grupo.

— Vamos ver o que eles procuram — murmurou Christian, ajudando-a a se levantar.

De mãos dadas, caminharam de volta à beira-mar, onde se detiveram para admirar um filhote de leão-marinho recém nascido, que chorava, buscando pela mãe.

— Esse deve ser seu ano de sorte, Taty! Nunca se vê um filhote recém nascido durante o mês de agosto. Veja só o começo da vida e a luta pela sobrevivência...

Com uma expressão indefinível no olhar, Taty observou o quadro que ele lhe indicara e depois voltou-se, fixando o olhar em Christian, que se abaixara para recolher o equipamento.

Nesse instante, uma ideia atravessou-lhe a mente: e se pudesse ter os dois? Um homem, um bebê, uma família... Claro! Por que não? Afinal, devia haver homens que não abandonassem as famílias e fossem capazes de ser leais para com suas esposas.

Alheia ao grupo que já se instalara na praia, à espera de salvamento, Taty tentava se convencer de que aquela ideia não passava de bobagem, motivada pela tensão das últimas horas.

Entretanto, uma vozinha em seu íntimo a avisava de que talvez tivesse chegado um daqueles momentos na vida em que as coisas tomam um rumo novo, completamente diferente do planejado... Mas valeria a pena alterar todos os seus planos por um homem que mal conhecia?

Voltando a atenção para o grupo, viu que Christian trabalhava, fotografando e entrevistando as pessoas, ao mesmo tempo em que Tony distribuía bolachas e fatias de salame a todos.

— É melhor você se proteger na sombra, Taty. Senão, pode apanhar uma insolação — advertiu-a o cientista, preocupado.

Seguindo a sugestão, Taty juntou-se a Army, que lhe estendeu um cantil, cuja água já estava meio amornada.

— O que você disse a Christian, no momento que pensou que iria morrer? — indagou a enfermeira, curiosa.

Embora estranhasse a pergunta, Taty compreendeu que, para Army, a morte era uma presença constante, contra a qual ela lutava, tentando salvar seus pacientes. Depois de uma ligeira hesitação, respondeu:

— Ele não me perguntou nada, Army. Mas e você? Pensou alguma vez que iria morrer?

— Antes de começar a trabalhar na clínica de doentes de câncer, nunca havia refletido sobre minha morte. Depois disso, porém, eu só conseguia dormir após examinar minuciosamente meu corpo. Durante os três meses iniciais que passei na clínica, vivia observando minhas verrugas, por menores que fossem, convencida de que elas estavam crescendo, ficando escuras, e que eu só perceberia quando fosse tarde demais. Achava que tinha um monte de caroços espalhados pelos seios, e tudo me parecia fatal. Enfim, o medo da morte me levou a um total estado de desespero que quase adoeci de fato.

Com a ponta de um graveto, ela desenhava um sol na areia da praia. Seu grande chapéu de palha lhe encobria parte do rosto, mas deixava à mostra as pequenas rugas que havia em torno dos seus lábios.

— Quando estávamos no convés, esperando que os mais fracos embarcassem no bote, fiquei imaginando quem entraria na categoria dos mais fracos e me questionei se deveria ir com eles ou não. Foi então que me recordei daquele filme que falava sobre o naufrágio do Titanic, lembra-se? Pois bem, acredita que me senti tentada a cantar alguma canção nacionalista e edificante, que levantasse os ânimos e acalmasse os descontrolados?

— Não assisti a esse filme, mas imagino o que seja e compreendo sua ideia.

— Christian o viu, embora também não seja da época dele. Aliás, acho-o ótimo ouvinte. Tem um jeito todo especial de conseguir informações das pessoas, pois infunde confiança... Mas nem por isso lhe contei que naquele momento, quando pensei que fosse morrer, cheguei a invejar a tola da Margaret Karpen.

— Ora essa, por quê?

— Senti inveja das duas filhas e do filho que ela tem. Dizem que os filhos puxam aos pais... Imagine só como os deles devem ser tolos!

Intrigada com essa confidência, Taty a encarou, perguntando:

— Army, por que você nunca teve filhos?

— Sou estéril. Fui uma das vítimas do dispositivo intrauterino, o famoso DIU, que esteriliza uma entre quatro das mulheres que o utilizam.

— Oh, sinto muito...

— Esqueça... Você sabia que é muito fácil adotar crianças abandonadas em Quito? Leva apenas algumas semanas para se conseguir os papéis...

“Que loucura!”, pensou Taty. “Ou isso é uma estranha coincidência, ou então somos todos muito solitários...”

— Não, eu não sabia — murmurou, ao notar que Army esperava que ela dissesse alguma coisa.

— Os orfanatos aqui estão em estado desesperador. E a adoção pode significar a sobrevivência ou a morte de várias crianças. Fico arrepiada só de imaginar os danos mentais dessas crianças por causa da má nutrição.

— Tem razão... É um quadro bastante triste...

O pesado silêncio que se seguiu foi quebrado por um longo suspiro de Army, que se levantava.

— Que tal nadarmos um pouco? Ficar sentada esperando o tempo passar é muito aborrecido...

— Ótimo! A água está uma delícia.

Conversando sobre amenidades, as duas caminharam em direção ao mar, mas detiveram-se quando a voz de Tony chegou até elas.

— Ei, Taty, venha com Army para cá! A água não podia estar melhor...

Logo Taty se arrependeu por haver aceitado o convite. Eufórico com o fato de no final tudo ter-se resolvido, Tony se comportava como uma criança desajeitada, jogando água em cima delas e puxando sua perna, numa brincadeira de mau gosto.

Embora aquilo a aborrecesse, ela preferiu manter-se em silêncio, compreendendo que o jovem cientista arriscara-se a responder a processos e a perder seu bom nome profissional caso algum acidente atingisse a um dos voluntários. Assim, Tony tinha motivos mais do que suficientes para estar alegre e querer comemorar.

À tarde, porém, as longas horas de espera e o calor causticante foram suficientes para acabar com o bom humor da maioria dos membros da excursão, que olhavam, ansiosos, em direção ao mar, rezando para que logo aparecesse socorro.

Esforçando-se ao máximo para conservar a calma, Tony andava pela praia, tentando animar seus liderados, enquanto Christian continuava as entrevistas, o que ajudava a amenizar o clima de tensão.

De vez em quando, Army levantava os olhos do livro que lia, O Verão Antes da Queda, de Doris Lessing, e observava a maneira como Taty fitava os dois homens. Embora procurasse não dar mostras de indiscrição, era evidente que a enfermeira estava curiosa para descobrir o que se passava pela cabeça dela.

Passava um pouco das quatro horas da tarde, quando um navio branco apareceu no horizonte. Mesmo da praia era possível perceber que seu convés, largo e espaçoso, encontrava-se repleto de passageiros.

— Estamos com sorte! — exclamou Tony, animado. — Trata-se de um navio grande, e, mesmo que esteja lotado, deve dispor de lugar para nós e para o nosso equipamento.

Depois que o navio atracou e seus passageiros foram transportados à praia em pequenos botes, Tony pediu a um dos condutores dos botes que o levasse até o capitão, explicando-lhe antes a difícil situação em que se achavam.

Solícito, o rapaz apressou-se em atendê-lo. E, após alguns minutos, o jovem cientista retornava na companhia de um elegante equatoriano, de porte esbelto, roupas brancas e expressão séria no olhar... Era Gabriel, o capitão do Andorinha.

Muito amável, ele cumprimentou a todos, informando que se sentiria satisfeito em auxiliá-los, desviando-se de sua rota original para conduzi-los até o local onde seriam resgatados.

Aplausos entusiasmados acolheram essa notícia, e, com um sorriso, Gabriel acrescentou:

— Temos duas cabinas desocupadas, onde vocês poderão tomar banho e trocar de roupa. Infelizmente, não dispomos de acomodações suficientes para todos, mas o Dr. Hamilton me assegurou que vocês não se incomodarão de dormir no convés, caso seja necessário. No momento, nosso operador de rádio está informando à Marinha sobre o naufrágio do Pinguim, e, com um pouco de sorte, outro barco virá resgatá-los ainda hoje... Bem, enquanto minha tripulação explora a lagoa de flamingos, sugiro que vocês se acomodem no navio, a fim de descansar um pouco e fazer uma boa refeição.

Assim que as coisas que haviam sobrevivido ao naufrágio do Pinguim foram transportadas para a lancha que levaria os voluntários até o Andorinha, Taty também se acomodou na embarcação, fixando o olhar no rastro de espuma branca que o veículo deixava atrás de si, enquanto cortava as águas com rapidez.

Sentindo o vento despentear seus brilhantes cabelos negros, Taty ponderava que nunca antes um homem a perturbara tanto quanto Christian.

Bastava olhá-lo para que todos os seus nervos ficassem à flor da pele, e o simples toque daquele corpo atlético a deixava sem respiração.

Fitando-o de modo disfarçado, perguntou-se se o fotógrafo também se sentia assim em relação a ela... Afinal, via de regra, esse tipo de atração arrebatadora nunca era unilateral, atingindo os dois com a mesma intensidade! Mas será que agora isso também estaria acontecendo?

Depois de um banho demorado, Taty secou os cabelos e vestiu um insinuante short de pernas cavadas, que lhe revelava as curvas perfeitas do corpo. Em seguida, dirigiu-se ao grande salão com ar condicionado, onde o cozinheiro lhe serviu um apetitoso prato à base de camarões frescos e palmitos refogados.

Findo o almoço, escovou os dentes e acomodou-se a uma espreguiçadeira, situada num dos extremos do convés, fechando os olhos.

De repente, a voz grave de Christian soou ao seu lado:

— Imaginei que você gostaria de um suco de laranja bem gelado, Taty. — Sentando-se na cadeira vizinha, estendeu-lhe o copo com a bebida e acrescentou: — Descobri que o grupo de Canela já está chegando.

— Canela?

— Sim, é uma das guias do Andorinha. Todos a chamam assim por causa da cor dos seus olhos, no entanto, seu nome verdadeiro deve ser Mary ou Rose, não me lembro direito.

Nesse instante, uma mulher pequena, de longos cabelos avermelhados, subiu a bordo, cumprimentando-os com um aceno de mão.

Dirigiu-se a seguir para o andar inferior, retornando com duas latinhas de cerveja gelada em cada mão.

— Olá, De Vos! — Entregou-lhe uma das latas e beijou-o nas duas faces, sorrindo. — Mal acreditei quando me contaram que você também estava aqui. Há quanto tempo integrou-se a esse grupo de pesquisas?

— Na verdade, desde ontem.

Como o esporte favorito dos guias das ilhas era comentar a vida dos outros, Canela não fugiu à regra e logo mudou o rumo da conversa:

— Christian... Você deve se lembrar da Sandra, uma morena que defendeu tese de doutorado pela Universidade do Colorado... Pois bem, sabia que ela se mudou para a casa de José, aquele cozinheiro dos barcos pequenos?

— Creio que não me lembro dele... Mas, Canela, conte-me como você...

— Ora, Christian, é um que tem todos os dentes de ouro. Acho impossível que você tenha se esquecido dele!

— Hum, desconfio que esse dado não me ajude em nada... A maior parte dos habitantes de Galápagos tem dentes de ouro.

— Nisso você tem razão! O homem com o qual vivi há dois anos também tinha.

— Vivi, por quê? Está de amores novos?

— Claro! Afinal, sou uma romântica incurável, e você sabe muito bem disso. Aliás, todos na ilha comentam meus casos... Voltando ao assunto, ouvi dizer que eles vão se casar...

— Quem?

— Ora, Sandra e José!

— Ah, é!

— Ahan!... A propósito, por que nunca se casou, Christian?

Até então a conversa não lhe interessara, mas nesse momento

Taty sentiu o coração acelerar-se. Também estava curiosa para descobrir o motivo da solidão de Christian e agradecia aos céus que Canela tivesse feito a pergunta, livrando-a de parecer indiscreta.

— Não me casei porque não pretendo abrir mão de minha liberdade.

— Mas... E o amor, Christian? Ninguém consegue evitar uma paixão!

Ao ouvir essa palavra, Taty estremeceu, lembrando-se de seu envolvimento com o mais brilhante jovem advogado de Denver... Meu Deus! Quantas noites passara aflita, naqueles primeiros meses de solidão em Carmel, esperando que o telefone tocasse?

— Nossas vidas são muito semelhantes, Canela... Sempre encontramos pessoas novas, atraentes e interessantes, que passam por nós sem deixar qualquer rastro. A diferença é que não paro em lugar algum, enquanto você vive aqui nas ilhas. Por isso, prefiro os momentos intensos e as lembranças marcantes, mas que não impliquem compromissos. Quero dar e receber sem que isso envolva sentimento de posse, compreende?

— Creio que sim... Na sua opinião, as relações devem ser vividas com intensidade, mas sem dependência, não é?

— É exatamente isso!

Engolindo em seco, Taty analisou que, em outras palavras, o que Christian queria dizer era que, mais cedo ou mais tarde, todo relacionamento chegava ao fim. Portanto, não valia a pena entregar-se inteiramente a ninguém... Para ele, o amor não existia, e a vida não passava de uma sucessão de paixões intensas e fugazes...

A chegada de Tony tirou-a de suas reflexões, fazendo-a voltar-se para o jovem cientista, que se acomodara um pouco adiante, com um brilho desafiador no olhar que dirigia ao belga.

— Um simples momento mágico, hein, De Vos? Para você, tanto nos negócios como na vida pessoal, basta agarrar o instante, vivê-lo por inteiro e depois desaparecer... Parece uma teoria interessante, sobretudo com a correria da vida moderna, que nos obriga a dar cada vez menos atenção ao ser humano... De qualquer modo, desconfio que meu temperamento não se adapte a esse tipo de coisa...

Aborrecida com a nota de arrogância que transparecia na voz do cientista, Taty levantou-se e, procurando passar despercebida, retirou-se para o salão, ansiosa por ficar um pouco sozinha.

Se, por um lado, as maneiras pretensiosas de Tony a irritavam profundamente, por outro, ela tinha certeza de que seria incapaz de manter uma relação inconsequente com Christian, pensando apenas em engravidar e não vê-lo nunca mais. Para piorar, a opinião do belga acerca do amor deixara bem claro sua posição cética em relação a envolvimentos emocionais. E ela? O que iria fazer?

Dando de ombros, decidiu que ainda dispunha de dois dias para pensar a respeito. E só o que importava era não perder de vista que o pai de seu filho logo seria coisa do passado.

 

Agradecendo a gentileza do capitão do Andorinha, o grupo da Globeprobe desembarcou na praia negra que dava acesso à estreita trilha que cortava os rochedos em direção ao vulcão Alcedo.

Assim que o navio se afastou, retomando sua rota original, Tony apontou para os sacos de suprimentos e os galões de água que haviam sido descarregados, declarando:

— Vamos armazenar esses cantis na ravina, além de alguns galões de água. Levaremos o resto para o acampamento.

Rapidamente, todos se puseram a ajudar na distribuição dos suprimentos. Ágil, Christian desfazia os fardos, anotando o conteúdo, no que era auxiliado por Army.

— Droga! — resmungou Tony, enxugando o suor do rosto.

— Onde está o Garua? O sol vai nos matar desse jeito... Sente-se bem, Taty?

Sem esperar resposta, continuou a ajudar Mick, que descarregava latas de atum e de sardinhas com molho de tomate, pacotes de macarrão, queijo e batatas chips. As coisas mais leves, como leite e sopa em pó, iam para Stacy Bancroft, que fora julgada a mais frágil do grupo. Feijão desidratado ficava por conta da outra professora, Donna Evans. E flocos de milho, aveia, ervilhas e vagens secas seriam transportados por Taty.

Na quinta-feira seguinte, Mick Kelley e o Dr. Lucho Pérez escalariam o vulcão, para levar ao acampamento o restante dos alimentos, que ficaria escondido sob a vegetação.

Visto da praia, ao lado de dois outros vulcões menores, o Alcedo erguia-se como uma parede perpendicular de isolamento, que os impediria de sair rapidamente dali, mesmo que houvesse alguma emergência.

Com um arrepio de medo, Taty forçou-se a prestar atenção nas instruções de Tony, que dizia que os mais fracos deveriam carregar, além de sua bagagem individual, dois galões de água, e os outros, três.

Taty percebeu que Donna Evans fazia gênero de charmosa para o Dr. Lucho e teve vontade de lhe recomendar que não se mostrasse tão dependente em relação aos homens.

No entanto, limitou-se a sorrir de modo disfarçado, mantendo-se impassível até mesmo quando Christian a surpreendeu, fotografando-a.

Cada vez mais intrigado com o comportamento de Taty, Christian tentava compreender por que a moça se afastara dele. Será que procurava fugir da poderosa atração que os impelia um para o outro?

Sim! Só podia ser isso, uma vez que estava convencido de que seu interesse por Taty era correspondido. Além do mais, o modo como ela se entregara ao seu beijo na praia afastava por completo a hipótese de que a atração fosse unilateral.

Alheia ao olhar fixo de Christian sobre si, Taty prendia a bagagem às costas, com a ajuda de George. Apesar de saber que os dois galões de água dariam para três dias, desde que ela não tomasse banho nem lavasse louça, não se sentia desanimada. Uma nova energia parecia ter surgido em seu íntimo.

Relanceando um olhar ao redor, Tony certificou-se de que toda a equipe se encontrava preparada e ordenou a retirada, pois o sol já ia alto no céu.

Depois de meia hora de caminhada, Taty sentia pontadas na cabeça e enjoos, devido ao peso, que lhe dificultava a respiração.

Observando o esforço que ela fazia, Margaret comentou:

— Você não está acostumada a acampar, não é, meu bem?

— Não... Para ser franca, esta é a primeira vez que acampo — declarou Taty, ofegante.

— Mas então, por que se inscreveu justo nesta jornada, que prometia ser bastante extenuante?

— Achei que vir a Galápagos seria uma boa mudança dos ares da Califórnia.

— De fato, este lugar é maravilhoso! Estou encantada com a paisagem.

Atrás de Taty e Margaret vinham Mick, o Dr. Lucho e Earl, todos sobrecarregados. Um pouco adiante, seguiam Stacy e Donna, com apenas um galão de água cada. Em compensação, Army e George Karpen levavam três, a mesma quantidade que Ken Dockery, o qual, com a boca coberta de óxido de zinco para proteger-se do sol, não se cansava de lamentar a carga pesada.

À frente de todos ia Tony, com uma carga de cinco galões, um peso que nem mesmo Mick, apesar de competitivo, atrevera-se a carregar.

Nos primeiros minutos de caminhada, a fila distribuíra-se regularmente, com Tony e George liderando a marcha, através da trilha estreita, ao longo da ravina. Logo atrás, vinham Christian e Pepe, seguidos por Earl e Army, que às vezes parava, esperando pelos Harris. Mick e Donna andavam despreocupados, conversando sobre o casamento dele, planejado para dezembro. Depois deles iam Margaret Karpen e Taty. Ken, com a boca coberta de creme, estava bem atrás, enquanto Stacy e o Dr. Lucho, lado a lado, fechavam a fila.

Embora a trilha utilizada pelos turistas parecesse plana a distância, a escalada gradual fez com que Taty sentisse um começo de câimbras nas pernas. Para piorar, a vegetação, ressequida pelo sol forte, lhe arranhava as pernas e os braços, e sua boca estava seca, provocando-lhe um terrível ardor na garganta.

— Tome este pedaço de maçã seca, Taty. É revigorante! Eu mesma as desidrato em casa — sugeriu Margaret, em tom maternal.

— Obrigada.

Após mastigar uma fatia da fruta, Taty sentiu que, como por milagre, sua saliva voltava, aumentando-lhe o ânimo para prosseguir.

No final da primeira hora de trajeto, Tony fez sinal de alto, ordenando que todos descansassem durante dez minutos, ao final dos quais disse:

— Precisamos manter o ritmo, pessoal! Por isso, vamos andando, antes que nossos músculos esfriem.

— Os homens são uns tolos! Não lhes dê atenção, meu bem — recomendou Margaret, virando-se a seguir para Stacy. — Como está se sentindo? Dr. Pérez, depois que o senhor tirar a bagagem de Stacy, poderia me ajudar com Taty?

Percebendo o estado deplorável em que a moça se encontrava, Christian parou de bater fotos e dirigiu-se a Margaret:

— Tenho envelopes de limonada em pó. Você se incomodaria de preparar um suco para Taty, Margaret?

— Não, em absoluto!

Assim que o Dr. Lucho tirou a carga dos seus ombros, Taty escorregou para o chão, de olhos fechados e pernas esticadas.

— Tome esta limonada, Taty — murmurou Christian, ajoelhando-se ao seu lado e estendendo-lhe o cantil.

— Obrigada, Christian — disse ela, depois de ingerir o líquido, devagar.

— Por que resolveu fazer esta viagem, Taty?

— Você está me entrevistando ou é uma pergunta pessoal?

— Faz alguma diferença?

— Sim, para mim faz.

Sem compreender a resposta, ele deu de ombros e ajudou-a a levantar-se e a se recompor para seguir viagem.

Depois de algum tempo de caminhada, a vegetação tornou-se mais densa, e Taty resolveu parar debaixo de uma árvore, para descansar um pouco. À distância, ouvia algumas conversas e risadas, mas não se sentia disposta a participar de nada.

— Como as tartarugas de Alcedo conseguiram sobreviver, Tony? — indagou Earl, um pouco adiante.

— As fêmeas costumam pôr os ovos na cratera do vulcão, o que as salvou, pois os caçadores nunca se interessaram em escalar o Alcedo atrás delas... Bem, não podemos perder mais tempo aqui. Dentro de duas horas, atingiremos o topo, e então pararemos para almoçar, certo?

— Nosso nível de açúcar está muito baixo — interveio Army, com voz cansada. — Precisamos de algumas proteínas! Trago um pouco de queijo comigo... alguém tem bolachas?

Impaciente, Tony pôs-se a andar, insistindo:

— Precisamos apertar o passo se quisermos chegar ao acampamento antes que escureça, pessoal.

Fraca demais para continuar sem se alimentar, Taty ignorou as ordens de Tony, decidindo que mais tarde se reconciliaria com ele, e começou a cortar fatias de queijo para todos.

As duas horas que se seguiram foram de extremo desconforto e esforço físico para Taty, que, após avançar alguns metros, via-se obrigada a parar para recuperar o fôlego.

Quando chegou ao topo da montanha, estava ensopada de suor, e a cabeça lhe doía. Ajudando-a a colocar a bagagem no cochão, Christian entregou-lhe um fumegante prato com creme de galinha.

— Garanto que você vai se sentir melhor, depois de comer algum alimento quente. Tome isso, Taty.

Aos poucos, ela percebeu que, embora o sol estivesse forte, batia um ventinho refrescante. Animada, tirou o boné e pôs-se a admirar a paisagem.

Como em outros vulcões, o topo do Alcedo havia afundado durante uma explosão, formando uma imensa cratera onde a vegetação misturava-se à lava.

Nesse instante, a voz de Tony tirou-a de sua contemplação.

— Tudo bem com você, Taty?

Sentado à borda da cratera, ele preparava sanduíches de bolachas com manteiga de amendoim e geleia. De repente, porém, levantou-se e enlaçou-a pela cintura e, abrindo um largo sorriso, dirigiu-se a Christian.

— Aqui está uma bela foto para você tirar, De Vos.

— Mais tarde, Hamilton — retrucou o fotógrafo, com visível mau humor.

Ao perceber que Margaret, Army e Donna observavam a cena. Taty lamentou a falta de privacidade, imaginando se aquilo não dificultaria a execução dos seus planos.

Com um suspiro, resolveu deixar essas preocupações de lado e começou a falar de amenidades com Tony.

— Só mais algumas horas e chegaremos lá — disse ele, animando-a, quando terminaram de comer as bolachas.

Levaram quatro horas para chegar à úmida borda do sudoeste, e depararam com várias tartarugas pelo caminho. Apesar de o Garua tê-los surpreendido durante a caminhada, ninguém quis parar para vestir agasalhos, ansiosos por se desvencilharem logo da pesada carga.

Passava um pouco das cinco e meia quando os homens começaram a armar as tendas, e Tony adiantou-se para ajudar Taty a tirar a carga dos ombros.

— Como está se sentindo? — perguntou, enquanto lhe massageava os ombros e o pescoço. — Vamos erguer nossa tenda? Escolhi um bom lugar...

“Nossa tenda?!” Surpresa, Taty perguntou-se se o cientista não podia ser um pouco mais sutil. Afinal, embora ela o tivesse provocado, Tony devia pelo menos consultá-la.

Como não obtivesse resposta, ele afagou seus cabelos macios, acrescentando:

— Coloquei você no plantão noturno dos três primeiros dias. Assim, poderemos tirar umas boas sonecas juntos...

Sem lhe dar chance de retrucar, ele a enlaçou pelos ombros, conduzindo-a para o interior da barraca.

No outro extremo do camping, Army, que observava a cena a distância, soltou um pequeno assobio e cutucou Christian, que estava ao seu lado.

— Ora, ora... Acho que seremos companheiros de tenda, Christian, a não ser que prefira acordar com óxido de zinco no rosto. Você não devia ter perdido tanto tempo, escondendo seu equipamento nas árvores e batendo fotografias... Como foi deixar que isso acontecesse?

— Pode deixar que daremos um jeito nisso — garantiu ele, com um sorriso enigmático.

Depois de um jantar composto de espaguete com atum, Christian entregou um comprimido à enfermeira, dizendo:

— Taty vai sentir dores nas pernas e nas costas essa noite. As escoriações provocadas pelo naufrágio estão começando a aparecer, e na noite passada ela quase não dormiu...

Intrigada com o tom misterioso da observação, a loira apanhou o frasco e leu no rótulo o nome de um poderoso sonífero.

— Uau! Não imaginei que fosse tão competitivo, Christian. Ou será que resolveu bancar o protetor? Você não me parece ser do tipo paternal...

— Resolvi iniciar minha carreira de cavaleiro andante, Army... Pode levar meu cantil térmico, pois a água está bem fresca!

Sentindo o corpo inteiro dolorido, Taty nem pensou duas vezes, antes de aceitar a pílula.

Em seguida, entrou na tenda e, vestindo uma camiseta longa, preparou-se para dormir.

Acomodado no saco de dormir ao lado do seu, Tony tinha as pernas dobradas e aproveitava para colocar em dia suas anotações.

Bocejando, ela se deitou e virou-se para o lado da parede, dizendo:

— Puxa... estou morta de cansaço!

— É tão bom saber que você está aqui, doçura — murmurou ele, puxando-a para perto de si.

Taty, que detestava esse tipo de tratamento, recusou-se a voltar o rosto para beijá-lo e esforçou-se para aparentar um cansaço maior do que de fato sentia.

— Não acha ótimo sabermos que vamos dispor de vários dias para ficarmos juntos? Sinto muito por esse mau começo, mas estou realmente exausta. Boa noite, Tony.

Ele pareceu convencer-se de seu cansaço e também se deitou. Minutos depois, percebeu que Taty ressonava tranquilamente e sorriu, acariciando-lhe os cabelos.

 

Dormindo profundamente, Taty não acordou nem mesmo quando Tony saiu da tenda a fim de colocar água no fogo para preparar o café.da manhã.

Uma cerração espessa envolvia o acampamento quando ele bateu numa panela vazia, gritando:

Levantem-se e venham ver o sol! Já são cinco e meia da manhã, seus dorminhocos!

— Sol?! — resmungou Margaret, saindo da tenda e esfregando as mãos de frio. — Onde está o sol?

— Em algum lugar lá em cima — comentou Earl, esquentando as mãos na xícara de café. — Dormiu bem, Taty?

— Muito bem, Earl. Mas não converse comigo agora, pois ainda não acordei por completo.

Trêmula de frio, ela se serviu de uma boa porção de mingau de aveia quente e de três xícaras de café, movimentando-se de um lado para outro, na tentativa de se aquecer.

De acordo com a programação, eles disporiam de uma hora para fazer o desjejum e se trocar, antes de saírem a campo para dar início aos trabalhos de pesquisa, que, devido ao naufrágio, já estavam com um dia de atraso.

Reunindo todos em volta de si, Tony serviu outra rodada de café e perguntou:

— Estão com os seus blocos de notas nas mãos?

Assentindo com um gesto de cabeça, Taty reparou que, apesar das olheiras, Tony parecia muito bem disposto e movimentava-se com bastante desembaraço, indiferente ao frio.

Com voz pausada, ele anunciou que naquela primeira semana, usando equipamentos de alta tecnologia, eles iriam fazer cercas de arame para cinco categorias de tartarugas: machos idosos, machos mais jovens, púberes de ambos os sexos e fêmeas grávidas. Para esse estudo seriam necessários cinco exemplares de cada tipo, cujo comportamento seria monitorado pelos voluntários durante a segunda semana do projeto.

— Ainda esta manhã, precisamos encontrar cinco fêmeas grávidas, prontas para pôr ovos. Elas começam a cavar os buracos para os ninhos por volta das três horas, concluindo o trabalho treze horas depois. Como farejam o local, antes de começarem a cavar, devemos localizar cinco farejadoras imediatamente, nas quais colocaremos os observadores até às quatro e meia da tarde, compreendido?

Como todos acenassem positivamente, ele correu o olhar pela lista de nomes, anunciando:

— Os localizadores serão: Margaret e George, Army, Earl, Donna e Hubert Harris. Os observadores dos ninhos serão: Pepe, Stacy, Ken, Elizabeth e você, Taty — concluiu, dirigindo-lhe um sorriso.

Consciente de que o grupo reparara naquele tratamento especial, Taty retribuiu o sorriso de modo tímido e baixou o olhar.

— Observar as fêmeas porem os ovos é uma das coisas mais apaixonantes que vocês podem imaginar. Por isso, na semana que vem inverteremos os papéis, dando a todos a chance de aproveitar o espetáculo... Taty, fica a seu cargo preparar o relatório das tarefas de campo de seu grupo esta semana, enquanto Margaret se ocupa do outro, certo? Espero que cada um programe sua vida aqui da maneira que achar melhor... Os observadores provavelmente irão querer a refeição principal na hora do almoço. Mick, o Dr. Lucho e eu jantaremos com os rastreadores e cuidaremos das observações de campo. Para completar, ficarei no acampamento para receber os relatórios dos observadores depois do desjejum... E, se vocês me tratarem bem, prometo deixar o café pronto para esperá-los todas as manhãs.

Percebendo que o recado era dirigido apenas a ela, Taty enrubesceu. No entanto, a lembrança de que aquele era seu primeiro dia fértil e de que não havia tempo a perder a fez erguer a cabeça, lançando um sorriso insinuante para ele.

No mesmo instante, lágrimas de remorso lhe subiram aos olhos. Até que ponto ela tinha o direito de usá-lo daquele modo?

— Hoje o dia vai ser duro — continuava Tony. — Precisamos instalar três antenas de rádio para localizar as tartarugas que estarão marcadas com os transmissores. Assim, Mick e Earl irão para a direita, depois do gêiser e da floresta; Hubert e o Dr. Lucho voltarão pelo caminho que usamos na vinda, um pouco mais à esquerda, enquanto George e eu ergueremos a última antena aqui. Esse trabalho não levará mais do que uma hora, e vocês poderiam aproveitar o tempo, recolhendo galhos para construirmos o nosso curral, pois as tartarugas comem botas, tendas, livros... Enfim, o que encontrarem pela frente. Quando eu voltar, pegaremos nossos equipamentos e iremos em direção da cratera para encontrar algumas das tartarugas grávidas. Alguma pergunta?

Como ninguém se manifestasse, os homens encarregados de instalar as antenas se retiraram, ao mesmo tempo em que Pepe e Army chefiavam a equipe que providenciaria os galhos.

Com a ajuda de Margaret, Taty pôs-se a organizar a despensa, estocando as latas segundo o conteúdo. Quando chegou a vez das bebidas, Margaret pegou uma garrafa de rum, comentando:

— Você vai ver, Taty. Um pouco de rum alivia a exaustão de qualquer um depois de um dia cansativo. Não sei como Tony não nos deu um pouco na noite passada. George sempre...

Nos instantes que se seguiram, Margaret disparou a falar sobre o marido, tecendo mil elogios acerca das qualidades dele.

Limitando-se a assentir com um gesto de cabeça, Taty entregou-se às suas próprias reflexões, lembrando-se de Jeffrey, o filho caçula de sua irmã Mônica. De todos os sobrinhos, o garoto era o que mais se parecia com ela, e talvez fosse o seu favorito...

— Você não acha, Taty? — insistiu Margaret, trazendo-a de volta à realidade.

— Claro que sim, Margaret — concordou, sem sequer imaginar sobre o que a companheira falava.

Uma hora mais tarde, quando Tony e George voltaram, o acampamento se esvaziou, pois até os observadores fizeram questão de descer a cratera para procurar as fêmeas.

— Você também vem, Taty? — indagou ele, acariciando-lhe o pescoço.

Disfarçando o embaraço, ela procurou se afastar daquelas carícias e forçou um sorriso amarelo.

— Eu me escalei para fazer o almoço esta manhã.

Porém, quando uma vozinha interior lhe ordenou que se concentrasse em seu objetivo, ela encostou a cabeça na mão máscula, perguntando:

— Você vai demorar?

— Infelizmente, estarei muito ocupado hoje, Taty. O primeiro dia é sempre difícil, pois ninguém sabe ainda como se virar. A partir de amanhã, no entanto, Mick ou o Dr. Lucho poderão supervisionar as tarefas, e então conseguirei roubar uma ou duas horas para nós.

Espiando por cima dos ombros dele, Taty observou que todo o grupo esperava passivamente, com exceção de Christian, que ajustava o tripé em sua bagagem e consultava o fotômetro, que trazia pendurado ao pescoço.

Surpreendendo-lhe o olhar, ele endureceu as feições, assumindo um ar de visível desagrado.

Constrangida, Taty desviou os olhos da figura alta de roupa cáqui, perguntando-se como ele conseguia ficar tão impecável num acampamento. De repente, percebeu que Tony esperava uma resposta sua e balançou a cabeça, tentando ignorar a figura perturbadora de Christian.

— Desculpe-me, Tony, o que você disse?

— Disse que vou encontrar uma fêmea cooperativa antes de qualquer pessoa. Bem, tchau, doçura.

Animada pela perspectiva de desfrutar alguns momentos de absoluta solidão, Taty acompanhou com o olhar o grupo que se afastava e acendeu o fogareiro, planejando fazer mais uma xícara de café.

Em seguida, reorganizou sua bagagem e sentou-se à sombra de uma árvore, bebericando o café e organizando num caderno as tarefas do acampamento.

Os demais só iriam retornar para o almoço à uma hora da tarde, o que lhe dava tempo para descansar um pouco e planejar o que prepararia para o almoço.

Depois de pensar um pouco, decidiu usar o macarrão e o queijo, antes que ele azedasse, além das salsichas em lata.

Satisfeita com esse menu, levantou-se, espreguiçando-se. O sol já brilhava no céu, espalhando-lhe um calor gostoso pelos membros, e ela achou que seria agradável aproveitar o tempo disponível para dar uma volta pelas imediações.

Mal havia avançado alguns passos fora do acampamento, quando sua atenção foi despertada por uma tartaruga gigante que dormia debaixo da copa de uma árvore, com a cabeça e as pernas esticadas para fora da carapaça.

Pressentindo sua aproximação, o animal abriu os olhos e, soltando um silvo, encolheu-se para dentro do casco.

Imóvel, ela esperou que o bicho voltasse a sair e fitou-o durante vários minutos, dando-lhe tempo para se acostumar com sua presença. Depois, com gestos lentos, acariciou-o no pescoço, sorrindo ao vê-lo esticar a cabeça.

Os efeitos do calor logo se fizeram sentir, e Taty, sonolenta, recostou-se ao tronco da árvore, cerrando as pálpebras.

Estranhando que ainda estivesse sonolenta, depois de haver dormido tanto, Taty bocejou, imaginando que já chegara a hora de preparar o almoço.

Esticando os braços num gesto lânguido, abriu os olhos lentamente, surpreendendo-se com o que viu.

De pé entre ela e o acampamento, com a câmara sobre um tripé, Christian a fotografava sem parar.

Irritada ao notar que sua pulsação se acelerava ao vê-lo, ela resolveu que sua situação com Tony estaria resolvida, no máximo, até aquela sexta-feira pela manhã.

Disfarçando a raiva, acenou para o belga, dizendo em tom impessoal:

— Sua lente consegue me alcançar aqui, junto desta tartaruga? — Quando ele acenou de modo afirmativo, perguntou:

— Será que você me venderia uma cópia? Eu adoraria guardar uma foto dessas como lembrança.

— Mas é claro que sim.

Forçando um sorriso amigável, ela continuou:

— Imagino que você saiba que não pode publicar nenhuma foto minha sem autorização, senão o processarei, não é, Christian? Afinal, sou uma cidadã comum, e não uma personalidade pública. Tenho o direito de preservar minha privacidade, e desde o começo fiz questão de deixar claro que não me agradava ser incluída em seu livro... Não esqueça que tenho direitos garantidos por lei para conseguir isso, Christian.

Boquiaberto diante dessas palavras, ele permaneceu em silêncio, limitando-se a fitá-la nos olhos.

— Bem, preciso começar o almoço. Você vai comer conosco, Christian?

— Não, obrigado... Ainda tenho um pouco de bolachas e queijo.

— Como vão as coisas lá embaixo? Tony teve sorte em encontrar as fêmeas?

Diante da resposta lacônica, Taty teve a ideia de oferecer-se para ajudá-lo a tomar notas, dizendo-se acostumada a executar essa tarefa.

— Que experiência você tem de tomar notas?

— Ora, eu sei taquigrafia.

— Quanto tempo você trabalhou como secretária?

— Tempo suficiente para estar afiada nessa tarefa.

Dando de ombros, Taty achou melhor não insistir. Afinal, não seria bom que Christian desconfiasse de que seu verdadeiro objetivo era estar sempre ao lado dele, para livrar-se das fotos.

— O problema é que não sei ler taquigrafia... Portanto, não conseguiria traduzir as suas anotações depois.

— Hum, se quiser, poderei datilografá-las para você...

— Onde? Em Puerto Ayora? Depois que as suas férias terminarem?

— Ora, nada me impede de despachá-las de São Francisco para a caixa postal da Estação Darwin, em Guayaquil.

Após uma ligeira hesitação, ele bateu com as mãos nas próprias pernas, num gesto resignado.

— Então começaremos amanhã, depois que você se levantar.

Com esforço, Taty tentou disfarçar a alegria, rezando para que aquela proximidade forçada com Christian não acabasse se tornando ainda mais ameaçadora do que seu aparecimento no livro dele.

— Não precisa de ajuda agora? — perguntou, com fingida indiferença.

— Descanse um pouco hoje, Tatiana, e procure tirar uma boa soneca depois do almoço.

— Obrigada! Não consigo entender por que preciso de mais sono, depois da noite passada...

Em resposta, Christian riu alto, descontraindo o ambiente. Desde o beijo que haviam trocado em Rábida, aquele era o primeiro momento em que os dois ficavam assim tão próximos, e apenas a volta dos observadores, liderados por Pepe, conseguiu quebrar aquele instante de magia.

Ajudada por Christian, Taty despejou o macarrão num escorredor e adicionou as salsichas, comentando:

— Fiz comida suficiente para um batalhão, Christian. Tem certeza de que não quer?

— Não, obrigado.

A nota de agressividade que havia na voz dele fez com que Taty baixasse a cabeça, experimentando um profundo sentimento de culpa. Logo, porém, tornou a se aprumar, censurando-se por aquela atitude infantil.

“O que há com você, Tatiana Katanich? A única diferença entre Christian e os outros homens que abandonam as mulheres é que esse teve a decência de deixar isso avisado”, analisou, sem no entanto conseguir afastar o desejo que sentia por aquele homem sedutor.

Acabado o almoço, alguém avisou que haveria duas horas de descanso, antes do início do turno da tarde.

Feliz com a notícia, Taty lavou a colher e o prato plástico e deitou-se, adormecendo no ato.

Caminhando pela trilha das tartarugas, os voluntários percorreram túneis largos entre arbustos e samambaias, só percebendo que se aproximavam das paredes da cratera, devido ao cheiro nauseante do gêiser sulfúrico.

— Estão vendo aqueles seixos ali? — perguntou Pepe, de repente. — Teremos de contorná-los agora...

Com a visão dificultada pela neblina, o grupo galgou as paredes íngremes da encosta da cratera, cujas pedras às vezes serviam como degraus para auxiliar na escalada.

— Estou aqui! À esquerda! — gritou Tony, de algum lugar de uma clareira onde havia várias árvores, mas nenhum gramado.

Àquela hora, os rastreadores estavam terminando o trabalho com a quinta fêmea, e Christian acompanhava a atividade, fotografando uma sequência em que Margaret introduzia um pequeno eletrodo entre o pescoço e a carapaça do animal.

Parada um pouco à frente, com uma expressão impassível no olhar, Army observava os movimentos de Margaret.

“Que dupla estranha!”, pensou Taty, curiosa por descobrir se aquele tipo de observação constaria do livro de Christian.

Margaret e Army estavam tão distantes uma da outra, que acabavam tendo muitos pontos em comum. A primeira pavoneava-se do marido que tinha, embora se retraísse em sua presença. Sentiria medo de perdê-lo ou pensava que sua timidez o atraía?

A enfermeira, em compensação, alardeava sua independência e emancipação, escondendo sua vulnerabilidade de modo tão rigoroso quanto Margaret ocultava sua autossuficiência. Agora, lá estavam as duas, dois opostos lado a lado...

E Taty? Onde se encaixava naquilo tudo? Não era tímida nem alardeava independência...

Nesse instante, a voz grave de Tony trouxe-a de volta à realidade.

— Esta tartaruga não vai pôr ovos esta noite — disse ele inserindo um pequeno transmissor de rádio por debaixo da carapaça do animal e levantando-se.

— Como pode ter certeza? — indagou Taty.

— Ela tem farejado o chão, procurando um lugar para cavar, mas já passou das três horas e nada. Vamos torcer para que ela se decida antes que vocês voltem para casa... Muito bem, observadores, todos conseguem me ouvir?

Diante da afirmativa, ele pegou cinco metros de plástico com arames curtos, entregando-os a Elizabeth, Ken, Stacy, Pepe e, finalmente, Taty.

— Venham até aqui — pediu, ajoelhando-se ao lado da tartaruga. — Pretendemos verificar as temperaturas e os batimentos cardíacos de cada um dos animais pesquisados sob as mais diversas condições, entenderam?

Ao notar que Christian escrevia, Taty aproximou-se dele.

— Deixe que eu faço isso.

Entregando-lhe o bloco, Christian ajustou a câmara, focalizando Tony, que tirava a temperatura da tartaruga.

— Trinta e dois graus centígrados — anunciou ele, após explicar que se devia colocar o medidor um pouco acima da unha do animal, para se obter um resultado exato.

— E depois? O que precisaremos fazer? — interessou-se Stacy, concentrada na explicação.

— Escrevam a data na primeira coluna das suas folhas de dados. Hoje é 16 de agosto. Depois, ponham a hora... Já são quatro e trinta e dois. Precisamos nos apressar, pessoal. Agora anotem que o tempo está ensolarado. Por fim, termômetro número 1, na perna, marcando 32°C. Verificação número 2, no pescoço: 32,1°C.

Quando acabou de descrever e demonstrar em detalhes cada passo que deveria ser seguido, Tony concluiu:

— Precisamos das verificações das monitorias todas as tardes, quando vocês começarem suas observações, depois às nove horas da noite, à meia-noite e às seis da manhã. Se a tartaruga não estiver em movimento, deve-se esperar até que ela o faça, para só então proceder à leitura. Mantenham-se sempre a uns dois metros de distância do seu objeto de estudo. Em menos de três dias, elas se acostumarão com sua presença.

— Qual é o objetivo desse controle de temperatura? — perguntou Taty, intrigada com a minúcia do processo.

— Uma das hipóteses que estamos testando é de que as tartarugas de casco arredondado absorvem muita energia do sol e têm problemas com o excesso de calor. As de casco em forma de sela, que vivem em ilhas áridas, onde quase não existe proteção contra o sol, possuem uma abertura larga na ponta dianteira da carapaça que lhes permitiria descarregar o calor no meio ambiente. Queremos verificar se essa afirmação é válida ou não.

— Obrigada...

— Imagine! Bem, agora precisamos ir andando, antes que o sol se ponha.

Usando o receptor de rádio, levaram menos de meia hora para encontrar cada uma das tartarugas grávidas marcadas, e Taty ficou encarregada de observar o último animal.

— Oba! A tartaruga parou quase no mesmo lugar, onde previ... Ótima localização para nós, Taty! Com uma bela árvore a nos proteger.

Constrangida pela indiscrição de Tony diante da presença de Christian, ela desviou o olhar, sem responder.

— Voltarei assim que puder — garantiu ele, inclinando-se e beijando-a com avidez.

Odiando aquela situação, Taty soltou um pequeno suspiro de alívio, quando se libertou dos braços dele.

— Se eu pudesse ficar aqui agora, eu ficaria... — murmurou o cientista, acariciando-lhe os cabelos.

Sim, Tony, eu sei... — respondeu, esforçando-se ao máximo para parecer simpática e conivente.

Assim que se viu sozinha, Taty abriu o saco de dormir sob a copa da árvore e sentou-se em frente à sua tartaruga.

— Você tem sorte, mocinha... Pode ter seus filhos quase que sem a interferência de ninguém — murmurou, enquanto verificava a temperatura do animal.

De acordo com Tony, ninguém era capaz de determinar com precisão por quanto tempo as fêmeas carregavam o esperma, antes que ele fertilizasse os ovos, mas supunha-se que esse processo pudesse demorar até três anos, ou mais.

Feliz por estar sozinha, Taty ajustou o alarme do seu relógio de pulso para soar às nove horas e sentou-se no saco de dormir, admirando a noite que caía com rapidez.

Ao redor, os grilos cantavam, fazendo um grande estardalhaço, enquanto no céu, repleto de estrelas, a lua lançava seus raios prateados para a Terra. Ali, no Equador, as constelações eram bem visíveis, e Taty se divertia, tentando identificá-las.

Pouco antes do alarme tocar, Tony reapareceu, seguido por Christian, cujos cabelos loiros brilhavam com os reflexos da lua.

— Taty, onde está você? — perguntou o cientista, com evidente mau humor.

— Aqui... — declarou ela, levantando-se.

Enlaçando-a peja cintura, Tony apertou-a contra si, explicando:

— Christian quer bater algumas fotos enquanto o céu continua claro. Por isso, veio junto...

— Preciso de fotografias noturnas de Tony verificando o equipamento telemétrico junto com o grupo — interveio o belga, num tom casual. — Não se preocupe, Tatiana. Garanto que vou focalizar você de maneira que só se perceba a presença de uma mulher morena. Ninguém poderá reconhecê-la...

Impaciente com a lentidão com que Christian preparava o equipamento, Tony resolveu apressá-lo.

— Quanto tempo pretende demorar, De Vos?

Aborrecida com a atitude de Tony, ela se condenou por estar manipulando-o. Apesar disso, continuava determinada a alcançar seus objetivos e maldizia Christian por não deixá-los a sós, dificultando tudo.

— Chega por hoje, De Vos — disse Tony, meia hora mais tarde. — Vamos ver o que você conseguiu, Taty. Humm, a tartaruga está agitada, pois a temperatura dela já deveria ter abaixado.

Como Christian não interrompesse as fotos, Tony fez um gesto de impaciência.

Espero que você tenha conseguido o que precisava. De Vos. Agora, chega! Preciso procurar Pepe... Existe algum jeito de você tirar fotos de mim e de Pepe sem usar flashes?

Com um sorriso cínico, Christian começou a recolher o material.

— Acho que já tenho o que preciso.

— Mas... Com certeza, você precisa tirar fotos dos experimentos especiais... — ponderou Taty, temendo a possibilidade de que Christian ficasse ali sozinho com ela.

— Você disse que queria tirar fotos à luz da lua, De Vos. Agora, trate de apanhar seu material e vamos andando em busca de Pepe, certo?

Fazendo um gesto amplo com as mãos, ele ocultou um sorriso divertido e seguiu o cientista mato adentro.

Assim que os dois homens se retiraram, Taty envolveu-se no saco de dormir e pegou uma lanterna para ler um clássico sobre aviação.

Entretanto, o livro não conseguiu prender-lhe a atenção, e ela aguardava a volta de Tony com ansiedade... Engraçado! Tudo parecera tão simples naquela noite chuvosa, em Carmel, quando decidira ter um filho...

Animada pela lembrança dos seus planos, resolveu que não desistiria e, no Natal do ano seguinte, estaria armando sua árvore ao lado de um bebê de sete meses... o seu bebê.

Às onze e meia, porém, Mick tirou-a dos seus devaneios, avisando que Ken não se lembrava dos números das provas, o que obrigara Tony a ficar com ele, explicando-lhe tudo outra vez.

Vendo que seus planos corriam o sério risco de irem por água abaixo, Taty perguntou, preocupada:

— Será que Tony estará disponível amanhã, durante as horas de observação dos ninhos?

— Duvido... Lucho e eu trabalharemos com os machos adultos, enquanto Tony vai começar a trabalhar com os púberes, pois é muito difícil separá-los pelo sexo. Por quê? Precisa de alguma ajuda?

— Oh, não! Foi pura curiosidade... Obrigada!

 

Na manhã seguinte, durante o trajeto de volta ao acampamento, Taty tentava se animar com a ideia de que seus planos prometiam concretizar-se. Ao que tudo indicava, Christian desistira de fotografá-la, e Tony com certeza iria encontrá-la ainda naquela noite.

De repente, surpreendeu-se pensando em Steven Holmes, seu antigo namorado, o homem que a pusera de lado para casar-se com a filha do sócio majoritário da conceituada firma de advocacia na qual ele trabalhava.

Anos depois, ouvira dizer que o elegante Steven Holmes fora infeliz no casamento, e deduzira que, sem dúvida, ele não hesitara em abandonar a esposa e os filhos, para casar-se com uma mulher mais jovem, mais bonita e... mais rica.

Repetindo-se que os homens não possuíam o menor senso de lealdade, Taty chegou ao acampamento, onde foi recebida por George, que lhe entregou um prato cheio de mingau de aveia, ao mesmo tempo em que informava o paradeiro dos demais.

— Christian continua dormindo. O menino de Quito, como é mesmo o nome dele?

— Pepe.

— Isso! Ele, Elizabeth e a professora loira estão cochilando. A outra professora, Donna, e o marido de Elizabeth foram com o Dr. Lucho fazer cercas de arames para os machos gigantes. E Mick levou Army e Earl para fazerem a mesma coisa.

Servindo-se de uma xícara de café, George acomodou-se ao seu lado na grama.

— Você sabia que três tartarugas comem tanto quanto uma vaca?

— Não... nunca imaginei — disse ela, contendo um sorriso e servindo-se de uma segunda porção de mingau.

— Puxa! Como você consegue manter a linha comendo desse jeito?

— Normalmente não como tanto...

— Deve ser por causa do exercício físico. Hoje, Margaret e eu iremos com Tony para rastrear as tartarugas púberes.

— Ah, ouvi dizer que é uma tarefa difícil!

— De fato! Mas Margaret possui um jeitinho todo especial para lidar com animais. Às vezes, tenho a impressão de que lidar com fraldas prepara você para qualquer coisa nesta vida.

— Você nunca trocou as fraldas das crianças, George?

— Quem, eu? Só tentei uma vez, mas atrapalhei-me todo...

— Bem, George, se você me der licença agora, vou me deitar um pouco. Passei a noite em claro e estou caindo de sono.

— Fique à vontade... Boa noite!

Às oito e quarenta da manhã, quando Tony voltou, Taty já dormia profundamente. Depois de se servir de um bom prato de mingau de aveia, ele abriu a tenda e, deixando as botas enlameadas do lado de fora, entrou.

Mentalmente, tornou a amaldiçoar a estupidez de Ken, imaginando como seria bom aninhar-se contra a maciez dos seios de Taty e dormir.

Cansado de tomar conta daquele bando de turistas que gostavam de brincar de cientistas, Tony avaliou que já não lhe agradava a solidão do trabalho de campo e que chegara a hora de estabelecer-se.

Nesse instante, viu que Taty abria os olhos com uma expressão sonolenta e perguntou-se se ela também passara a noite inquieta, ansiosa pelo momento em que tornariam a encontrar-se...

— Tiraremos uma soneca juntos depois do almoço, prometo — murmurou em tom carinhoso, antes de ir embora. — Antes, preciso marcar aqueles dez púberes. Vai ser um trabalho duro, e estamos atrasados...

Alarmada, Taty notou que algo mudara na forma como ele a tratava e sentiu a consciência pesada.

“Sou apenas um momento, Tony. Estou apenas de passagem”, disse a si mesma, desejando que ele voltasse a agir da maneira pouco gentil que o caracterizara até a noite anterior.

Preocupada com esses pensamentos, teve um sono agitado, repleto de pesadelos e sobressaltos. Quando tornou a acordar, fazia um calor intenso, e Christian, parado à entrada, a observava.

— Não tive intenção de acordá-la. Ouvi você se mexendo e pensei que...

— Que horas são?

— Onze! Você já descansou o suficiente para poder me ajudar?

Animada pelo fato de o fotógrafo haver tomado a iniciativa de pedir-lhe auxílio, Taty sentou-se, demonstrando interesse.

— Vamos fotografar as gigantes ou os púberes que Tony começou a selecionar?

— Estive com Tony nestas últimas duas horas, e ele não me pareceu de bom humor. Desconfio que seja melhor eu me manter afastado dele hoje de manhã, para não atrapalhá-lo. Por isso, planejei trabalhar com as gigantes...

— Ah, sei! Vou me trocar e fico pronta num instante...

Entendendo a indireta, Christian saiu da tenda, abaixou o zíper e continuou a falar do lado de fora da barraca:

— Preciso descobrir o que se pretende com esses dados extraídos através do uso de alta tecnologia... Talvez seja melhor perguntarmos a Mick, que parece mais acessível... Eu não saberia o que fazer com a maioria das citações científicas que viriam de Hamilton.

— Tudo bem! Vamos levar algo para o almoço?

— Não, voltaremos logo.

Pouco depois, enquanto atravessavam a trilha tortuosa rumo à cratera, Christian ofereceu-lhe um pedaço de chocolate e começou a falar sobre o tipo de informações que pretendia reunir em seu livro.

— Eu gostaria de relatar a reação das pessoas em relação às tartarugas! — explicou, empolgado.

— Por que não inclui também as mudanças nas relações entre as pessoas do   grupo? Os laços mais fortes que vão se formando à medida que as amizades se desenvolvem.

— Claro! Podemos até estudar as atitudes de todos com relação a Hamilton,      que, de certa forma, é a estrela do grupo. Que acha de traçarmos um      perfil completo dele?

— Ótima ideia!

Satisfeita, Taty analisou que seu trabalho com Christian lhe possibilitaria fazer perguntas acerca de Tony sem despertar suspeitas, o que lhe permitiria conhecer melhor o futuro pai de seu filho.

Imersa nessas divagações, só quebrou o silêncio quando o ruído de vozes abafadas chegou até eles.

— Você vai tirar alguma foto de surpresa, ou anunciaremos nossa chegada?

— Primeiro quero observar um pouco — disse ele, ajoelhando-se na grama, por detrás dos arbustos, e preparando a câmara.

No centro da clareira, Earl, Army e Mick haviam encurralado um enorme macho, que foi pesado numa balança de alta precisão.

— Tudo certo com a balança, Mick? Pronta, Army? — indagou Earl, dando uma ligeira batidinha na carapaça da tartaruga.

Curioso para saber o que se pretendia com aquele ritual, Christian sugeriu, baixinho:

— Essa parece uma ótima cena para ser descrita. Por que não se aproxima e assiste de perto?

— Onde devo ficar para não interferir no trabalho deles?

— Fique pelo menos a uns dois metros de distância da cabeça da tartaruga, mas pode deixar que Mick e os demais a vejam.

— Está bem — concordou ela, levantando-se e caminhando para o centro da pequena clareira.

Com um sorriso, Christian fotografou vários closes de sua caminhada, tomando cuidado para não perder a reação dos outros pesquisadores diante da inesperada visitante.

Estava convencido de que a insistência dela em não se deixar fotografar não passava de um simples capricho passageiro, e como dispunha de tempo de sobra para convencê-la do contrário, só precisava garantir que Taty não o surpreendesse com a mão na massa.

— Olá! Estou ajudando Christian com as anotações — explicou ela, aproximando-se do grupo.

— Sério?! — surpreendeu-se Army, de olhos arregalados.

— Sim... por quê?

— Oh, por nada — garantiu a enfermeira, num tom pouco convincente.

Correndo o olhar ao redor, Taty notou que o único que não se mostrara espantado com a notícia fora Earl, que, impassível, prosseguia em sua tarefa. Mick, em compensação, tinha um brilho de curiosidade no olhar e virara o rosto a todo instante para ocultar o sorrisinho divertido que insistia em aparecer em seus lábios.

Dando de ombros com indiferença, Taty pôs-se a observar os esforços do engenheiro em obrigar a tartaruga a mudar a direção de sua lenta caminhada.

— É mentirosa a afirmação de que as tartarugas não sabem virar em sentido contrário — explicou Mick, notando-lhe o interesse. — Embora Melville as tenha usado para simbolizar a imutabilidade, isso nem sempre acontece.

— Bem teimosa esta aqui — interveio Earl, cansado. — Army, acho que precisarei de sua ajuda.

Prestativa, a enfermeira postou-se em frente ao animal, enquanto Earl continuava a cutucá-lo, incentivando-o a andar.

Obtido o resultado esperado, Earl mudou rapidamente de tática, executando a segunda parte da pesquisa, que consistia em obrigá-la a refugiar-se no casco.

Quando enfim esse objetivo foi alcançado, Mick ajoelhou-se e tornou a fazer a leitura da balança.

— Duzentos e oitenta e oito quilos, seiscentos e trinta e seis gramas.

— Nossa! Ganhou por trinta quilos da maior que encontramos até agora — informou Army, preparando uma seringa e acenando para Christian, que agora se deixava ver. — Bom, para completar, vou recolher uma amostra do sangue dele, Taty.

— Que interessante...

— Interessante?! Que trabalhoso, você quer dizer, não é, Taty? — interrompeu Mick, levando uma das mãos à cabeça.

— Por quê?

— Porque precisaremos virá-lo de pernas para o ar para conseguir extrair o sangue, o que significa um esforço físico razoável, já que nosso amigo aqui pesa quase trezentos quilos.

— É mesmo! Eu não havia pensado nisso... Querem ajuda?

— Lógico — responderam os outros três, em coro.

Depois de algumas tentativas frustradas, os quatro conseguiram colocar a tartaruga na posição certa, e Army retirou o sangue necessário para as pesquisas.

Encarapitado sobre um dos galhos de uma árvore próxima, Christian fotografou toda a operação sem perder nenhum passo.

— Vou buscar o Heparin — anunciou Mick, afastando-se alguns passos e voltando logo a seguir com um frasco que continha um líquido claro no fundo.

— Para que serve isso, Army? — interrogou Taty, curiosa.

— É um preparado químico que evita que o sangue se coagule, sem alterar-lhe a composição original — explicou a enfermeira, esvaziando a seringa no interior do frasco e agitando-o, antes de entregá-lo a Mick, que o etiquetou, guardando-o num recipiente portátil cheio de nitrogênio líquido.

— Qual é o objetivo de colher essas amostras de sangue, Mick?

— Ao que se sabe, Taty, vários aspectos do comportamento das tartarugas é influenciado pelos hormônios. Queremos       testar em que medida os níveis de hormônios se relacionam com as atitudes delas durante a procriação e a época de postura dos ovos.

— Quando as tartarugas procriam?

— Durante o que seria a nossa primavera.

— Acho que não entendi direito      o negócio do sangue... Você não gostaria de   ilustrar melhor sua explicação?

— Tudo bem... Os pesquisadores já provaram que existe uma relação entre as alterações diárias da temperatura do corpo e o nível de certos endócrinos no sangue. Estamos comparando esses fatores entre as espécies. Por isso, monitoramos as temperaturas do corpo com transmissores...

— E o que Tony espera provar com a flutuação de calor no corpo das tartarugas?

— Ele acredita que as tartarugas menores se aquecem mais depressa e mantêm a temperatura do corpo elevada, o que as tornaria ativas durante um tempo maior do que as espécies maiores.

Tony é o consultor da sua tese, certo?

— Correto...

— Por que você o escolheu?

— Oh, essa é uma longa história!

— Conte-a para mim, então.

— Bom, saí de Stanford e fui para a Universidade do Arizona, especialmente para estudar com Hamilton. Na época, minha opção representava um risco, pois ele ainda não tinha a fama de que goza hoje. Apesar disso, senti-me animado a arriscar a sorte ao lado daquele professor jovem e ambicioso...

— Por que você decidiu estudar as tartarugas?

— Oh, nem eu nem ele somos especialistas nessa área. Hamilton é um biólogo darwiniano, ou evolucionista, como se costuma chamar. Eu pretendo estudar os mecanismos de adaptação. A maior parte dos evolucionistas trabalha com criaturas de reprodução rápida... Eu, porém, não aguentava mais passar os melhores anos da minha vida pesquisando as moscas das frutas... Sinto-me desafiado ao estudar essas tartarugas, sobretudo pela certeza de que grande parte delas vai sobreviver a nós e aos nossos filhos.

Tony sente a mesma coisa que você?

— Embora ele não admita, desconfio que sim.

Nesse instante, a entrevista foi interrompida pela chegada de Christian, e o grupo sentou-se sob a copa de uma árvore, conversando sobre amenidades.

Como ainda faltasse mais de uma hora para que se realizasse a segunda leitura das condições da tartaruga, discutiu-se a respeito de tudo, desde filmes, livros e peças teatrais até equipamentos para camping e culinária.

— Hum, meu estômago está roncando de fome — declarou Army, com um sorriso maroto. — Não vejo a hora de voltar à civilização para comer um bom peixe grelhado.

— Ora, não seja por isso! Quando chegarmos a Puerto Ayora faremos uma festa com bacalhau e vinho. Ou vocês pretendem ir embora logo depois desta excursão? — indagou Christian, olhando disfarçadamente para Taty.

Como todos respondessem que pretendiam voltar aos seus destinos, ele se escandalizou:

— Mas como? Sem férias? Não pretendem nem fazer um cruzeiro pelas ilhas?

— Eu não vou ter escolha... Permanecerei na ilha para prosseguir minhas pesquisas — disse Mick, resignado.

— Cruzes! Deve ser terrível ficar quase isolado numa dessas ilhas, a um dia de distância de qualquer contato com a humanidade — comentou Taty, quando o estudante contou que, no inverno, ele e Tony permaneceriam sozinhos em Alcedo.

— E é, mas não tanto quanto o medo de não conseguirmos concluir a pesquisa.

— Imagino que não existe nada tão frustrante como vermos um projeto nosso condenado a ficar inacabado! — exclamou Army, interessada no rumo que a conversa tomava.

— Eu que o diga... — declarou Earl em tom amargo.

— Assim que me formei, comecei a trabalhar com pesquisa solar, mas agora não há mais dinheiro para isso. A única pesquisa que continua recebendo subvenção governamental é a de armamentos... E garanto que não fico nada empolgado por passar os dias desenhando bombas eficientes...

— Não é para menos... Acho que apenas alguém muito mórbido se interessaria pelo assunto — considerou Christian, pensativo.

— E o pior é que existe esse tipo de gente! Tem uns fulanos no laboratório que se vangloriam de haverem projetado armas capazes de destruir cidades inteiras.

— Que mau gosto! Às vezes, considero a atmosfera do hospital irrespirável pelo simples fato de saber que muitas daquelas pessoas estão condenadas... Alguém planejar a morte dos outros, então, é algo grotesco — escandalizou-se Army, com o olhar perdido num ponto distante.

— Vocês não acham curioso estarmos discutindo a morte aqui, ao lado de uma tartaruga que provavelmente já era nascida muito antes dos nossos avós? — indagou Taty, dando-se conta da ironia do fato.

Minutos mais tarde, quando retornava com Christian ao acampamento, ela se perguntava se o fotógrafo não iria achar suas anotações muito pessoais, guiadas mais pelo instinto e sensibilidade do que por algum critério jornalístico. Curiosa em relação a isso, resolveu informar-se a respeito das pretensões dele.

— Christian, como você quer que eu redija essas anotações? Quero dizer, devo incluir nelas minhas impressões ou me limitar a descrever as coisas que são feitas e ditas?

— Ora, faça da maneira que achar melhor, Taty. Ninguém cria sob pressão, e tampouco se estiver preocupado em agradar alguém.

Satisfeita com a resposta, afastou de si essa preocupação e concentrou-se no que iria fazer quando chegasse ao acampamento: almoçar e tirar uma longa soneca, com Tony... Só que eles não iriam dormir...

De repente Christian parou e fez menção de pegar a trilha da esquerda, despedindo-se dela.

— Obrigado pela ajuda, Taty. Se você não estiver muito cansada amanhã, gostaria que reservasse um pouco do seu tempo para me ajudar novamente.

Sem esperar resposta, ele se afastou com uma expressão divertida, que a deixou intrigada durante o resto do trajeto de volta ao acampamento.

Lá chegando, ela encontrou Tony, que repetia uma segunda porção de espaguete com atum.

— Não pretendia ser mal-educado e comer antes de você, mas cheguei faminto — desculpou-se o cientista, quando Taty acomodou-se ao seu lado. — Teve uma boa manhã?

— Ahan... ontem eu havia prometido a Christian que o ajudaria com as anotações.

— Entendo...

Percebendo a nota de tensão que surgira na voz dele, Taty esforçou-se para amenizar a situação.

— E sua manhã, como foi? De acordo com Mick, identificar o sexo dos púberes é a tarefa mais difícil de todas.

— E é verdade. Para você ter uma ideia, levamos a manhã inteira para decidir que duas tartarugas eram machos. — Com um sorriso maroto, mudou de assunto: — Deixei George e Margaret lá, com o Dr. Lucho... Creio que poderei tirar uma soneca de duas horas.

Forçando um sorriso, Taty fitou-o de modo provocante, deixando evidente que aceitava o convite que Tony deixara insinuado nas entrelinhas.

Quando terminaram de almoçar, deram-se as mãos em silêncio e caminharam em direção à barraca.

Nesse instante, o ruído seco de dois corpos se chocando obrigou-os a parar. Apurando os ouvidos, Taty percebeu que o som vinha de trás dos arbustos e sentiu-se dividida... Não sabia se desejava ou não que algo viesse atrapalhá-los. Não queria recuar, mas sentia-se confusa, com os nervos à flor da pele.

— Mas isto é muita sorte! — exclamou Tony, beijando-a de maneira apaixonada.

 

— Depressa! — exclamou Tony, dependurando a mochila com os equipamentos num dos ombros.

Boquiaberta diante da euforia dele, Taty não se movia do lugar, experimentando um misto de alívio e decepção por ver seus projetos frustrados mais uma vez.

Alheio à sua surpresa, o jovem cientista apanhou o resto dos instrumentos de pesquisa, dizendo:

— Nunca imaginei que conseguiria coletar informação sobre acasalamento antes da primavera! Vamos, Taty, ande logo!

Ela circundou o topo gramado com passos ligeiros, parando de vez em quando para apurar a audição. Ao mesmo tempo em que tentava descobrir de onde viera o som, cuidava para manter uma distância razoável, que não interrompesse o acasalamento.

Quase que por instinto, Taty seguiu-o encosta acima, correndo para conseguir alcançá-lo.

De repente, os ruídos cessaram, e Tony fez-lhe um sinal com a mão.

Espere um pouco e não faça nenhum barulho — sussurrou ele.

Pouco depois, ouvia-se o som de um corpo pesado caindo.

— O que foi isso?

— A fêmea está fugindo, e o macho deve ter caído de cima dela. Vamos nos esconder até descobrirmos a direção que eles tomaram...

Por sorte, não precisaram esperar muito, pois as tartarugas logo apareceram no campo de visão deles.

— Suspeitamos que a tartaruga fêmea foge para testar a força e a persistência do macho — explicou Tony em voz baixa. — É um típico caso de escolha de fêmea, onde somente os genes mais fortes serão transmitidos.

A perseguição continuou por mais uma hora, e, segundo Taty, aquilo não era um namoro, mas um estupro.

— Não, Taty! Esse é o modo de a fêmea decidir se ele é suficientemente forte e agressivo. Os dois não poderão acasalar-se antes que ela resolva cooperar.

Quando a fêmea tornou a esconder-se dentro da carapaça, Taty soltou um suspiro desanimado.

— Não se tem a impressão de que ela esteja fazendo uma escolha... A propósito, o que significa escolha de fêmea?

Com um brilho divertido no olhar, Tony afagou-lhe os cabelos, numa carícia terna, explicando a seguir:

— A escolha da fêmea acontece da seguinte maneira: quando a fêmea faz um grande investimento na continuação da espécie, o sistema de reprodução no qual ela exercita a escolha será favorecido. Por outro lado, se é o macho quem investe na reprodução, como acontece com a espécie humana, a escolha será mútua.

— Ah, sei... — gaguejou Taty, fazendo uma estranha analogia com seu plano de engravidar.

Vendo-a pegar seu bloco de notas, Tony continuou a discorrer sobre o assunto.

— Às vezes, a escolha da fêmea só se concretiza após uma trajetória de obstáculos polígamos, como é o caso das tartarugas ...

Estremecendo, Taty avistou Christian observando as tartarugas, a poucos metros dali. Com o olhar fixo na direção dos animais, o fotógrafo preparava a câmara sobre o tripé, dando mostras de que ainda não a vira ao lado de Tony, que prosseguia em sua explanação.

— Dessa forma, o que se vê são machos competindo para copular com a fêmea. Ela escolhe aqueles que deseja, e os espermatozoides deles competem dentro de seu corpo.

Sacudindo a cabeça para afastar a perturbação causada pela proximidade de Christian, Taty notou que o macho tornava a prender a tartaruga sob o corpo.

Enquanto isso, Mick, Army e Earl haviam chegado e também observavam a cena com interesse.

Ao que tudo indicava, aquela perseguição iria chegar ao fim. No entanto, logo a fêmea tornou a fugir, iniciando a caçada.

— Puxa! Essa danadinha não facilitou nada! O coitado do macho está passando por um teste para valer! — comentou Tony, com um sorriso.

Finalmente, o macho conseguiu fazer com que a fêmea parasse, e eles copularam. Depois de alguns minutos, os dois animais se separaram, e cada um tomou um rumo diferente.

“Escolha de fêmea? Parece a mesma velha história de sempre, na qual os homens vão embora...”, pensou Taty, com um sorriso irônico.

Sem que ela percebesse, Christian batera algumas fotos de seu rosto. Porém, quando fixou o foco da objetiva em seus olhos, não entendeu a tristeza refletida neles e desviou a câmara para Tony, que saltava alguns arbustos, gritando:

— Segurem essas tartarugas. Vamos medir tirar os hormônios delas!

Dito isso, postou-se diante do macho, enquanto Mick parava a fêmea.

— Ajude-me aqui, Earl — pediu, sem notar que o engenheiro ajudava Mick a recolher as amostras de sangue do outro animal.

— Espere um pouco, Tony.

— Não posso... Taty, você tem força suficiente para me ajudar?

Sem hesitar, ela correu ao encontro do jovem cientista e auxiliou-o em toda a operação, que durou cerca de duas horas.

Quando terminaram, Mick sorriu, satisfeito.

— Bem, acabou a novidade! Agora, vamos voltar ao trabalho. Mais dois espécimes e teremos nossos cinco machos idosos... Como você está indo com os púberes, Tony?

— Como sempre... Identificar o sexo é um processo muito lento e atrasa todo o nosso esquema. Paciência!

— Vejo você à noite... — cochichou Taty para Tony, antes de afastar-se com passos ligeiros.

Ansiosa por ficar um pouco sozinha para refletir, ela caminhava rápido em direção ao acampamento, sem sequer olhar para os lados.

Logo, porém, foi obrigada a desistir dos seus planos, pois Christian interceptou-lhe a passagem e pôs-se a andar ao seu lado.

— O que você achou do acasalamento?

— Dramático! E você?

— Confesso que admirei o modo como o macho lutou para conseguir o que queria.

Sentindo o sangue ferver de raiva, Taty encarou-o, agressiva.

— E depois de conseguir o que queria, desapareceu.

— Por que você interpretou dessa maneira, Taty?

Como ela não respondesse, Christian resolveu insistir:

— Você já foi abandonada por alguém?

Espantada diante da objetividade com que ele fizera a pergunta, Taty permaneceu em silêncio, lembrando-se de seu fracassado romance com Steve Holmes. A bem da verdade, fora ela quem abandonara o advogado, mas só tomara essa atitude depois de muito pensar no assunto e concluir que, para subir na vida, o antigo namorado faria qualquer coisa, inclusive abandoná-la pela filha do influente patrão.

No entanto, não se sentia disposta a discutir o assunto e disfarçou, consultando o relógio.

Percebendo-lhe a manobra, Christian sorriu, malicioso.

— Eu disponho de bastante tempo ainda... E você, Taty?

— Por que quer saber?

— Porque precisamos conversar, Tatiana Katanich. Não consigo entender o significado das suas reações, mas quero entendê-las... E isso não é para o meu livro, se lhe interessa saber. Eu gostaria de descobrir a razão de você ter ficado tão deprimida por ver uma tartaruga macho ir embora depois do acasalamento.

— Talvez eu tenha achado essa atitude muito... grosseira.

— Típica grosseria masculina?

— Eu não disse isso.

— E o que quis dizer, então? Que os machos usam as fêmeas, do mesmo modo que alguém assua o nariz num lenço de papel e depois o joga fora?

— Você deveria saber melhor do que...

— Por quê?

— Por quê?! Olha, para ser franca, essa conversa toda está me parecendo ridícula.

— Ouça, Taty, eu não estou me intrometendo...

— Você está, sim!

— E daí? Você não é obrigada a me contar a tragédia do seu passado e...

— Não houve nenhuma tragédia!

— Então, o que a preocupa?

— Nada, ora essa!

— Pois eu tenho certeza de que você não consegue lidar bem com o tema “abandono” em sua vida... Estou errado?

— Já que você faz tanta questão de saber, digamos que nunca me recuperei da morte do meu pai... Era isso que você queria ouvir?

— Como começo, não está nada mal...

— Ele morreu num acidente de mina logo depois que completei quatro anos. Se tivéssemos mais tempo, Christian, eu lhe contaria algumas das coisas que ouvi sobre ele e...

— Sou todo ouvidos!

Mordiscando o lábio inferior, Taty hesitou alguns segundos, antes de prosseguir:

— Tudo que sei sobre ele resume-se às coisas contadas por minha mãe.

— Ela criou uma lenda?

— Era inevitável que o fizesse, considerando-se que meu pai não passava de um simples minerador de carvão, uma ocupação nada heroica...

— E, de acordo com sua mãe, qual era a filosofia de vida dele?

— Algo parecido com: cumpra sempre sua palavra, nunca volte atrás, nem mude de ideia, depois que tomar uma decisão.

— Uau! Uma carga bastante pesada para uma menininha de quatro anos carregar.

Emocionada por essas recordações, Taty limitou-se a assentir com um gesto de cabeça.

— Alguma vez você contestou essa lenda?

— Não. Mas às vezes me pergunto... se ele era mesmo tão rígido assim. De qualquer forma, sinto-me desapontada, porque nunca vou poder descobrir a verdadeira resposta para isso... E você? Qual era a filosofia de vida de seu pai?

— Não se deve esquecer nunca!

— Minha mãe costumava dizer que as moças puxam aos pais, e os moços, às mães...

— Talvez ela tivesse alguma razão! Eu e minha mãe, por exemplo, compartilhávamos a mesma paixão pelas cores e pelas formas. Quanto ao resto, porém, nunca fomos semelhantes... Minha mãe era alcoólatra, e desconfio que sofresse muito.

— E quanto ao seu pai?

— Nunca tivemos nada em comum, embora a filosofia dele me persiga até hoje. Você nem imagina como eu desejaria ter a capacidade de esquecer as coisas ruins, deixá-las enterradas em algum lugar do meu subconsciente...

“Ignore a ternura que vê nos olhos de Christian, Tatiana. Esqueça sua bondade, seu instinto de proteção, sua força...”, dizia-se ela, tentando se convencer de que sua decisão já fora tomada e não tinha sentido voltar atrás. Afinal, uma Katanich que se preze nunca recua de sua palavra! Mas será que isso ainda valia para ela?

Vendo-a caminhar para a entrada do camping, Christian tentou detê-la e pousou uma das mãos em seu braço, ansioso para saber se Taty já escolhera entre ele e Tony.

— Foi um dia muito agradável, Christian. Obrigada — murmurou ela, libertando-se do contato e seguindo seu caminho.

Embora ainda quisesse argumentar, tentando derrubar sua filosofia de rigidez, Christian se perguntava como reagiria caso ela se voltasse e confessasse que o amava... Como poderia esquecer o passado e começar de novo, sem os fantasmas que o afligiam há tanto tempo?

Parado a distância, experimentando uma terrível sensação de impotência, observava a maneira elegante e decidida como Taty se movimentava por entre as tendas. Que pensamentos misteriosos se escondiam por trás da expressão altiva daquele rosto ao mesmo tempo delicado e firme? O que a levava a envolver-se com Tony, se era evidente que o cientista não lhe interessava como homem?

Sem dúvida, a vida tinha lá suas ironias, e para Christian, a maior de todas era que a única mulher, depois de sua falecida esposa, que lhe tocara o coração parecia guardar um destino ainda mais pesado que o seu...

Todas as outras com as quais mantivera algum tipo de relacionamento após a morte lenta de Nicole jamais lhe haviam despertado um interesse real.

Sempre tivera o cuidado de agir com honestidade, não as enganando; no, entanto, nenhuma conseguira fazê-lo entregar-se por inteiro, nenhuma fora capaz sequer de arranhar a barreira de autodefesas que ele erguera para se proteger da própria necessidade de sentir-se amado e amar.

Desde que vira Taty pela primeira vez, porém, essa situação havia mudado. Se antes Christian mal recordava o nome das mulheres com as quais saía, agora a imagem daquela misteriosa jovem de cabelos negros lhe povoava os sonhos e o atormentava durante o dia, fazendo-o ansiar por repetir o maravilhoso beijo que haviam trocado no dia seguinte ao naufrágio.

Sentindo que o sangue lhe corria mais rápido nas veias, tornou a admirar a silhueta esguia de Taty, que se preparava para retomar seu posto junto à tartaruga grávida que ficara sob sua responsabilidade.

Notou que a cada dia ela parecia mais adaptada à vida ao ar livre, e, num impulso poderoso, começou a seguir o grupo de observadores, tomando sempre o cuidado de manter-se escondido.

Jamais saberia por que agia dessa maneira, tampouco lhe agradava aquela situação de mover-se furtivamente, como se estivesse fazendo algo condenável. No entanto, uma força desconhecida o atraía para aquela mulher, e embora não pretendesse abordá-la, o simples fato de estar próximo dela já o satisfazia.

Com uma ponta de ternura no olhar, Taty aproximou-se da imensa tartaruga, que descansava sob a copa de uma árvore. Era engraçado que um animal tão grande, de aparência tão resistente, fosse na verdade um ser frágil, ameaçado de extinção por causa da ganância de uns poucos...

— Então, aqui estamos, minha senhora! Nós duas esperando para realizar alguma coisa com a nossa fertilidade — brincou ela, enquanto verificava a temperatura da tartaruga.

Em seguida, registrou os batimentos cardíacos e checou os números no microprocessador, que marcava oitocentos metros.

— Puxa, andou bastante hoje, não? — murmurou, transcrevendo os números para o relatório.

Ao observar os pés da tartaruga, notou que eles estavam cheios de terra e perguntou-se se, por acaso, ela andara cavando um ninho.

Excitada com a possibilidade de ver o animal pôr os ovos, Taty mal conseguiu cochilar, atenta a qualquer ruído estranho.

Duas horas mais tarde, o barulho de passos que se aproximavam deixou-a tensa. Esquecera-se do convite que fizera a Tony, e agora era tarde demais para voltar atrás... Ali, com toda a certeza, não haveria nada nem ninguém que pudesse interrompê-los. Enfim, seu objetivo iria concretizar-se!

Com a respiração acelerada, Taty virou-se e examinou o vulto atlético que se aproximava. Sem dúvida, ele se empenhara em impressioná-la, escolhendo uma roupa que o deixava atraente e trazendo uma garrafa de rum nas mãos trêmulas.

Após um sono profundo, Taty despertou às três horas da manhã, com o alarme insistente de seu relógio de pulso.

Levantando-se, serviu-se de uma dose de café frio e, recostando-se a uma árvore, pôs-se a observar o corpo inerte e desprotegido do Dr. Anthony G. P. Hamilton, que dormia próximo a uma árvore.

A lua cheia iluminava-lhe as formas vigorosas, realçando-lhe as feições aristocráticas, enquanto seus cabelos escuros caíam livres sobre a testa.

No momento em que tomara consciência de que seu plano finalmente iria dar certo, Taty quase entrara em pânico e tentara conversar com ele sobre os mais variados assuntos.

Se Tony a tivesse tratado de uma maneira grosseira ou vulgar, sem dúvida ela continuaria a usá-lo como objeto sexual. Entretanto, ele percebera seu embaraço e fizera o impossível para deixá-la à vontade, dando mostras de grande sensibilidade.

Fitando-a com ternura, o jovem cientista lhe ofereceu um pouco de rum e lhe acariciou os cabelos, ao mesmo tempo em que dizia:

— Nós nos veremos outra vez, querida. Estarei de volta à minha casa em meados de setembro e...

Sentindo um aperto no coração ao entender que ele fazia planos, Taty o interrompeu com um gesto. Apesar disso, Tony continuou, em tom sonhador:

— Gosta da vida do campo, Taty? A maioria das mulheres sente asco pelo meu trabalho com as tartarugas, mas você é diferente... Acho-a adorável, e nunca uma mulher me fez tão feliz.

Dando-se conta de que logo ele começaria a falar sobre a possibilidade de um futuro em comum, Taty percebeu que a situação lhe escapava ao controle, e, por um lapso de segundo, chegou a acalentar a hipótese de formar uma família ao lado dele.

De repente, esse pensamento a despertou para a realidade: não amava Tony e jamais poderia usar uma pessoa que lhe abria o coração daquele modo. Caso o fizesse, cometeria uma injustiça, além de estar agindo da mesma forma leviana e irresponsável que condenava na maioria dos homens.

Perturbada, Taty abaixou a cabeça, incapaz de encará-lo. E, quando Tony a pressionou, abraçando-a de maneira sugestiva, ela recuou.

Em seguida, soltou um suspiro profundo e, resolvida a colocar um ponto final naquela situação, murmurou:

— Sinto muito, mas não posso me envolver com você, Tony.

— Compreendo...

Com uma expressão magoada no olhar, Tony permaneceu alguns minutos em silêncio, antes de recomeçar a falar, agora com uma nota de agressividade na voz, acusando-a de tê-lo provocado, apenas para humilhá-lo depois.

Desviando o olhar para ocultar as lágrimas, ela sequer fez menção de se defender, consciente de que, de fato, agira com deslealdade ao acenar-lhe com tantas promessas vãs.

— Preciso dormir um pouco, e não me sinto disposto a caminhar uma hora de volta ao acampamento. Estou exausto por tentar cumprir o programa de excursão e aceitar suas brincadeiras... — finalizou ele, deixando clara a intenção de pernoitar ali mesmo.

Ferida, Taty tornou a fitar o vulto adormecido do biólogo e, lembrando-se de que jamais teria seu bebê, sussurrou:

— O que o fez pensar que foi o único a desistir de alguma coisa?

Às quatro e meia da madrugada, Tony acordou e, em silêncio, calçou as botas, enrolou o saco de dormir e afastou-se, rumo ao acampamento.

Imóvel em sua cama improvisada, Taty pensou que seu segundo dia fértil chegara ao fim e um inútil terceiro dia se iniciara.

Jamais teria coragem de repetir aquele plano maluco de “seduzir” um homem, o que significava o fim de seu sonho de tornar-se mãe. No futuro, quando olhasse para trás, saberia exatamente em que noite decidira dar um rumo diferente à sua vida.

Desanimada, recolheu seus objetos e, em passos lentos, seguiu para o acampamento. Por sorte, todos haviam saído, com exceção de Pepe, o estudante equatoriano, que preparara uma sopa para o desjejum e a recebeu, sorridente.

— Precisamos de minha mãe aqui — brincou ele, descontraído. — Ela é capaz de preparar uma sopa diferente para cada dia do ano e ainda arranjar um nome para elas.

Reanimada pelo sabor agradável do creme de ervilhas, Taty relaxou, deixando-se contagiar pela alegria do equatoriano.

Ao terminar sua segunda porção de comida, Taty espreguiçou-se, bocejando.

— Hoje não é minha vez de preparar o almoço, é? Não consigo me lembrar do programa...

— Não, Taty, pode ir dormir tranquila.

— Ainda bem! Tchau...

— Bons sonhos!

Com um sorriso triste, Taty pensou que a última coisa que teria naquele dia seriam sonhos agradáveis...

 

Enquanto atravessava a floresta pelo lado sudoeste de Alcedo, Christian analisava que deveria acordar Taty e pedir-lhe a prometida ajuda nas anotações.

“Não me importo com o fato de ela ter passado a noite com outro”, repetia-se sem convicção, pois a simples lembrança da cena que presenciara o enlouquecia, fazendo-o perguntar onde haviam ido parar seus princípios não possessivos.

Apressando o passo, queria chegar logo ao acampamento, a fim de escapar do sufocante calor equatorial.

“Sem dúvida, ela está sonhando com tudo o que aconteceu entre eles”, pensou, parando para tomar um gole d’água do cantil.

Atormentado por essa ideia, entrou no acampamento, onde a equipe de observadores acabava de almoçar, e correu os olhos ao redor.

Preocupado, observou que Taty tinha uma expressão cansada no rosto pálido, e seus olhos, circundados por olheiras profundas, refletiam uma grande tristeza interior., Será que Tony a magoara de alguma maneira? Ou ela se arrependera da noite da véspera?

“Não mude de ideia depois de ter tomado uma decisão”, disse a si mesmo, recordando-se das palavras dela, com raiva. “Você fez a escolha, Tatiana... Não me esquecerei disso!”

Recusando-se a fitá-la outra vez, convenceu-se de que a tristeza de Taty não passava de pura chantagem emocional e lembrou os terríveis momentos que enfrentara ao lado de Nicole, que jamais aceitara um “não” como resposta, escudando-se atrás dos seus ataques periódicos para fazer valer a própria vontade.

Aos poucos, Christian aprendera a resistir a esses apelos e, embora nunca a tivesse deixado desamparada, não cedera às pressões no sentido de reconsiderar o divórcio.

Agora, nas raras ocasiões em que a solidão o assaltava, chegava a considerar a possibilidade de tornar a casar-se e ter mulher e filhos ao seu lado. No entanto, logo afastava essa hipótese, achando a dependência insuportável.

Servindo-se de espaguete, ele se acomodou perto de Stacy, que, cheia de entusiasmo, repetia um comentário inteligente feito pelo Dr. Lucho.

Notando a empolgação da jovem professora, Christian sorriu, o que a encorajou a recomeçar o relato.

No outro extremo do camping, Taty remexia o garfo no prato, sem apetite. Minutos depois, sabendo que Tony não voltara para o almoço, decidiu tirar uma soneca e levantou-se.

Vendo-a dirigir-se à barraca do cientista, Christian gritou, num impulso:

— Pegou seu bloco de notas, Taty? Você dormiu bastante hoje, e temos muito trabalho à nossa espera... Pepe, que tal nos acompanhar? Pretendo fotografar a fauna e a flora da floresta e desconfio que seus conhecimentos nos ajudariam.

Sorrindo, o estudante prontificou-se a colaborar e ergueu-se para preparar a bagagem.

— Estou pronta — anunciou Taty pouco depois, com uma nota de tristeza na voz.

Lado a lado, os três se puseram a caminho, enquanto Taty anotava tudo o que Christian e Pepe falavam.

Enquanto andava, os pesadelos que a haviam atormentado durante a madrugada lhe voltavam à memória, aumentando sua angústia. Era engraçado que qualquer situação que fugisse do controle das pessoas tivesse o poder de despertar no subconsciente os medos e as dúvidas que sempre as perseguiam. E o medo da solidão, sem dúvida alguma, era o pior de todos...

Distraída com essas divagações, sobressaltou-se ao escutar a voz grave de Christian, que dizia a Pepe:

— Nós precisamos trabalhar as fotos desse ângulo ...

“Nós precisamos”, repetiu Taty para si mesma, anotando a frase, que refletia uma mudança evolutiva no relacionamento entre dois membros do grupo. Será que o fotógrafo se espantaria ao deparar com aquilo na leitura da transcrição?

Empolgada com a própria percepção, Taty voltou a concentrar-se no trabalho, afastando para longe as preocupações.

“No final, com certeza, minhas férias estão bem melhores do que as dos rapazes do curso de navegação: África, Grand Canyon...”, refletiu, sorrindo.

De volta ao acampamento, Taty preparou sua bagagem do dia, planejando mudar-se da barraca do cientista para a de Army logo na manhã seguinte.

Temia que Christian não concordasse em ficar com Tony, entretanto, a certeza de que Army apoiaria sua decisão a reconfortava.

Juntando-se aos outros observadores, pôs-se a caminho da cratera, acionando o rádio para localizar sua tartaruga.

De repente, Christian levantou uma das mãos, pedindo que o grupo fizesse silêncio, e murmurou:

— Estão ouvindo esses ruídos? Vamos procurar a origem deles...

Avançando devagar mato adentro, logo localizaram a tartaruga de Elizabeth, que cavava seu ninho com as patas traseiras, enquanto apoiava nas dianteiras o restante do corpo.

Tomando cuidado para se manterem afastados, agacharam-se para admirar a cena durante alguns instantes, e Christian tirou algumas fotos do animal.

Em seguida, Pepe chamou Taty e Elizabeth para um lado, explicando:

— Tenho o equipamento de sangue comigo. Depois que eu checar minha tartaruga e ajudar Taty, voltarei para cá, Elizabeth. Ainda dispomos de bastante tempo, pois ela não terminará de cavar antes das três ou quatro da madrugada, certo?

Apesar de aborrecida por não poder ficar mais um pouco ali, Taty acabou indo embora com Pepe.

Utilizando o rádio, localizaram primeiro a tartaruga dele, que dormia junto às raízes de uma árvore e mal levantou a cabeça à chegada deles.

— Tudo certo comigo, Taty — disse Pepe, em voz baixa.

— Agora vamos procurar a sua, antes de eu voltar para junto de Elizabeth.

— Está bem, Pepe.

— Espere! — exclamou ele, de repente. — Talvez seja por causa da lua cheia...

Sem compreender, Taty apurou os ouvidos, identificando o ruído de fortes arranhões. Verificando que o rádio assinalava a proximidade de sua tartaruga, adiantou-se um pouco e espiou com cuidado por entre alguns arbustos. Lá estava sua fêmea cavucando o chão...

Agachado às suas costas, Pepe tinha uma expressão de ansiedade no olhar e consultava o relógio repetidas vezes.

— São quatro e meia... Não sei se conseguirei contatar Tony através do rádio, e sem dúvida você irá necessitar de ajuda para realizar o trabalho do sangue.

Com o coração apertado, Taty soltou um suspiro de alívio quando, após várias tentativas de localizar Tony pelo rádio, o estudante anunciou:

— Estamos fora de frequência! Você ficaria por aqui, enquanto tento encontrá-lo e trazê-lo para cá?

— Claro! Mas talvez seja desnecessário... — retrucou, ponderando que seria muita ironia do destino passar suas últimas horas férteis ao lado de Tony.

— Garanto que não — insistiu o rapaz, afastando-se.

Recostada ao tronco de uma árvore, Taty contemplava o trabalho do animal, refletindo.

Sabia que, após preparar o ninho, a tartaruga se afastaria, deixando a prole entregue à própria sorte, e apenas os filhos mais fortes sobreviveriam.

Com um sorriso, ponderou que a tartaruga jamais precisaria se preocupar com babás e cuidados diários, nem com febres altas, e muito menos com as perguntas embaraçosas de algum adolescente, curioso acerca das origens de seu nascimento...

Sorrindo diante dessa ideia, ponderou que acabara tomando a decisão acertada ao abrir mão de seu plano, que, a bem da verdade, agora lhe parecia meio ridículo.

Por isso, recebeu Army, que se aproximava, com um largo sorriso.

— Pepe me encontrou pelo caminho e pediu que eu viesse ajudá-la, Taty — explicou a enfermeira, acomodando-se ao seu lado. — Que horas são? Oito? Então ainda dispomos de muito tempo pela frente.

Durante o tempo que se seguiu, Army pôs-se a tagarelar acerca da possibilidade de os flashes da câmara de Christian estarem perturbando a tartaruga de Elizabeth, e comentou a crescente intimidade entre Lucho e Stacy.

— Por que nunca o chama de doutor, Army?

— Porque estou de férias e não preciso reverenciar ninguém, fora de meu horário profissional.

Dando de ombros, Taty perguntou se poderia mudar-se para a tenda dela na manhã seguinte, com o que a enfermeira concordou de imediato, sem fazer qualquer alusão ao seu caso com Tony.

Após três horas de exaustiva espera, Army serviu duas doses de café e acendeu um cigarro.

— Uma enfermeira que lida com câncer fumando? — provocou-a Taty, com um sorriso.

— Às vezes é necessário desafiar as regras, Taty. Além do mais, o câncer ataca sobretudo os que se sentem desesperançados...

Nesse instante, o silêncio que se formou lhes chamou a atenção, anunciando que a tartaruga já acabara de cavar seu ninho e iria começar a botar os ovos.

Pé ante pé, as duas ocultaram-se atrás de uns arbustos e puseram-se a contemplar o espetáculo.

Com um cuidado e uma delicadeza que pareciam impossíveis a um animal daquele tamanho, a tartaruga ajeitou os sete ovos que terminara de botar, cobrindo-os a seguir com uma camada de lama.

Comovida pelo maravilhoso espetáculo da reprodução da vida,

Taty demorou alguns segundos para afastar o torpor que lhe imobilizava os membros, impedindo-a de deter o animal, que se afastava.

— Depressa, Army — gritou por fim, recuperando o autocontrole. — Preciso registrar a temperatura e os batimentos cardíacos dela. Depois ajudarei você a extrair a amostra de sangue...

Encerrada a tarefa, Taty, seguida pela enfermeira, tornou a instalar-se em seu posto, sob a árvore.

Estranhamente, Army mantinha-se em silêncio e demorou um bom tempo a quebrar o silêncio que se formara entre elas.

— Vou adotar um daqueles bebês abandonados de Quito no caminho de volta para casa — declarou a enfermeira, de repente.

— Não acha muito difícil ser mãe solteira?

— Não tanto quanto assistir impassível à morte desses bebês. Com certeza morrerão, caso não sejam adotados.

— Talvez eu também devesse adotar um... — murmurou Taty, pegando a garrafa térmica com café.

Percebendo que a garrafa lhe tremia nas mãos, Army fitou-a de modo reprovador e encarregou-se de servir o café.

— Não faça isso ainda, Taty. Você        é muito  moça...

— Muito moça para ser mãe?

— Para desistir de ter um marido que seja   o pai de seu bebê. É... é... Bem, é mais natural!

— Por que você desistiu, então?

Houve uma longa pausa, antes que a enfermeira, desviando o olhar, dissesse:

— A gente nunca pára de querer ser amada. Ninguém gosta, de entrar num apartamento escuro e vazio, mesmo que se more num condomínio de luxo... No entanto, depois de algum tempo, a gente deixa de desejar o casamento.

— Não acredito nisso! — exclamou Taty, surpreendendo-se com a própria veemência, uma vez que Army acabara de afirmar algo que ela já se repetira dezenas de vezes.

— Você verá por si mesma, a não ser que se case. — Resolvendo acabar com a discussão, olhou para o céu. — Cruzes! O dia está amanhecendo.

De fato, a leste, traços alaranjados e vermelhos riscavam o céu, que se coloria de rosa, enquanto o sol aparecia, espalhando os seus raios dourados pelo exuberante verde da floresta, numa festa de cores e beleza indescritíveis.

Notando que Christian ainda dormia profundamente, Taty recuou para fora da tenda e virou-se para Army, que preparava um prato de mingau de aveia.

— Não tem importância! Mudarei de barraca outra hora...

—- Se quiser, pode pegar meu lugar ao lado dele — sugeriu a enfermeira, dissolvendo o leite em pó numa caneca cheia d’água.

Compreendendo o tom malicioso que havia na voz da outra, Taty sorriu.

— Não, Army. Obrigada!

No fundo, sabia que ainda não era hora, pois Christian continuava zangado, acreditando que ela passara a noite com Tony. Assim, só lhe restava dar tempo ao tempo, evitando tomar qualquer atitude da qual pudesse se arrepender.

— Posso dormir em qualquer lugar esta manhã — continuou, servindo-se de torradas com geleia de amoras. — Mesmo porque Tony se encontra longe daqui, trabalhando com os púberes...

— Independente disso, os símbolos são importantes...

— Por falar em símbolos, por que você sempre usa esse chapéu?

— Oh, não há nenhuma simbologia atrás disso, Taty. É só para disfarçar os meus cabelos brancos.

Embora desconfiasse que aquela fosse a menos importante das razões, Taty resolveu não insistir, respeitando a privacidade de Army, da mesma maneira que a enfermeira respeitara a sua.

— Bem, vou esticar meu saco de dormir debaixo daquela árvore, Army. Lá o ar é frio, e gosto de sentir o Garua soprando no meu rosto.

— Então, bons sonhos!

Pouco depois, as duas mergulhavam num sono profundo e não ouviram a tumultuosa chegada de Mick e do Dr. Lucho.

Era sexta-feira, o último dia antes de eles voltarem ao trabalho que desenvolviam junto aos alunos da graduação, que pesquisavam as tartarugas com casco em forma de sela, em Pinzón, a pequena ilha deserta localizada entre Isabela e Santa Cruz.

No entanto, a notícia que eles traziam da praia era inesperada e poderia alterar todos os planos: a Estação de Pesquisa Charles Darwin mandara uma mensagem pelo capitão do barco, dizendo que pescadores de atum haviam localizado uma tartaruga na ilha Pinta, terra natal do Solitário George, o único sobrevivente das espécies de Pinta.

Depois de avisarem pelo rádio e o ouvirem garantir que chegaria ao acampamento da borda do vulcão a qualquer momento, os dois correram a acordar Pepe, para colocá-lo a par das novidades.

Nesse instante, o volume das vozes cheias de entusiasmo despertou Taty, que no entanto preferiu continuar deitada, alheia à história que Mick contava.

— Que coisa fantástica! Iremos imediatamente para lá — garantiu Tony, quando chegou. — Esta é nossa grande chance, Lucho. Talvez seja uma fêmea. Será que teremos tanta sorte assim? Talvez... Bem, seja lá o que for, trata-se de uma outra tartaruga de Pinta... Um prêmio extra para nós, Lucho. Liberdade de parte dessa luta por dinheiro. Lembra-se da recompensa de dez mil dólares que a estação prometeu a quem encontrasse outra tartaruga de Pinta? Talvez tenhamos de dividi-lo com os pescadores, mas, ainda assim, cinco mil dólares representam muito dinheiro por aqui.

— É impossível que isso seja verdadeiro, Tony. Em meados do século XIX, os piratas ingleses e os caçadores de baleias da Nova Inglaterra eliminaram a maioria das tartarugas da ilha de Pinta. Para completar, a Academia de Ciências da Califórnia encontrou apenas três em 1906, as quais, aliás, foram mortas para se transformarem em espécimes de museu. Sou capaz de apostar que os pescadores encontraram apenas uma tartaruga marítima.

— Mas a estação e o serviço do parque acreditam que exista uma possibilidade. Caso contrário, não teriam dito que permitiriam que levássemos um pequeno grupo e fôssemos procurá-la.

— Não esqueça que muitas vezes eles vasculharam aquela área e não encontraram nada. Até mesmo a UNESCO e a revista Life patrocinaram uma grande caçada, que resultou inútil...

— Ora, isso ocorreu em 1957 e o Solitário George foi encontrado em 1972.

Com um ligeiro encolher de ombros, Lucho deu a entender que não se sentia nada tentado a perder tempo em Pinta, quando tinham tanto para resolver ali mesmo.

Dividido, Christian ponderou que, ainda que Lucho estivesse com a razão, a possível existência de um segundo sobrevivente de Pinta seria da maior importância para a manutenção da espécie.

No entanto, aquela caçada seria como procurar agulha em palheiro, deduziu, lembrando-se do tempo que passara em Pinta com os guardas do Serviço do Parque Nacional, verificando os resultados do programa de erradicação das cabras selvagens.

Em 1975, cerca de cinquenta mil cabras haviam sido exterminadas, e agora, depois da recente temporada de chuvas, a ilha devia ter-se transformado numa verdadeira selva, o que dificultaria bastante as buscas.

Notando a expressão tensa do rosto de Tony, Christian relanceou um olhar ao redor, estranhando que Taty não se encontrasse presente.

— Esta é sua grande oportunidade de alcançar a fama e a fortuna, meu rapaz! — exclamou George, incentivando o cientista. — Já pensou? Uma capa da revista Time! Sem querer ofender sua organização, Christian... Mas já parou para pensar? Uma companheira para o Solitário George! Manchetes nos principais jornais do mundo...

— Sem dúvida, isso daria uma boa história, George — ironizou o belga, caçoando das maneiras formais e treinadas demais do gerente de vendas.

— Lucho, você se encarregaria de orientar o grupo durante minha ausência? — Diante do gesto afirmativo do professor, Tony decidiu-se, acrescentando: — Mick, o barco poderá deixá-lo em Pinzón, depois de nos levar até Pinta. Agora só falta resolver quem irá. Vejamos... George...

Com certeza a admiração irrestrita que o homem lhe dedicava seria da maior importância para que sua tarefa fosse levada a cabo.

— Earl... — disse a seguir, pensando que o engenheiro era esperto e suficientemente forte para manejar um facão de mato, o que seria da maior valia naquela região.

Bem, quem mais? Talvez fosse melhor incluir também duas mulheres, a fim de evitar as críticas da imprensa tachando-o de machista...

— Army e Margaret...

— E Taty — interveio Army, com firmeza na voz.

— Taty, não — declararam Tony e Christian ao mesmo tempo.

Acordada pelas vozes, Taty levantou-se e vestiu short e uma camisa, curiosa para descobrir sobre o que estavam falando.

— Taty não vai — ouviu Christian repetir.

— Taty é uma observadora atenta — argumentou Army.

— Está bem mais forte agora do que no início, e sabe cozinhar.

— Ser cozinheira é irrelevante — afirmou Christian. — A caminhada vai ser extenuante e sequer levaremos fogareiros, não é, Hamilton?

— Não, em absoluto! Muito bem, esses serão os componentes da nossa expedição: George e Margaret, Army e Earl, eu e Christian. Nós nos encontraremos com o restante dos voluntários na praia de chegada, na próxima sexta-feira, daqui a uma semana.

— Eu também vou — anunciou Taty, aproximando-se em passos firmes.

“Típica teimosia feminina”, pensou Christian. Ela sabia que a jornada estava acima de suas possibilidades. Então por que queria ir junto?

Os dois se encararam, e quando ela baixou o olhar, Christian viu seu saco de dormir e deduziu que Taty viera do bosque e não da tenda de Hamilton...

— Sinto, mas o máximo é de seis pessoas — disse Tony.

Ajoelhando-se, Taty enrolou o saco de dormir.

— Existe espaço para mais um. Devo levar meu colchão de ar também?

— Estou levando o meu — interveio Army, satisfeita. — Você vai levar seu travesseiro de espuma, Margaret? Calça comprida ou short, Tony?

Com impaciência, Christian aguardou que Tony lhes dissesse para irem de calça comprida e que levassem unguentos antissépticos para tratar dos arranhões que com certeza sofreriam.

— Qualquer coisa — respondeu o cientista, ocupado com sua própria bagagem.

Irritado, o belga precisou conter-se para não contradizê-lo. Sempre lutara para não assumir a posição de líder, forçando-se a se manter como mero observador. No entanto, todos os seus instintos lhe diziam que a expedição de Hamilton não passava de uma grande e inútil extravagância. De qualquer forma, daria uma boa história e lhe permitiria ter Taty ao seu lado...

— Use calça comprida e avise aos outros — recomendou Christian à enfermeira, baixinho.

Alheio a tudo, o cientista arrumava sua tenda e conversava com Lucho.

— Ei, o que está acontecendo? — perguntou Ken, saindo da tenda.

— Estamos de partida para encontrar uma mulher para o Solitário George! — gritou George Karpen, entusiasmado. — O pobre coitado tem estado sozinho há tanto tempo na Estação Darwin, que já deve ter esquecido como se faz...

— Vamos salvá-lo de outros cem anos de abstinência — completou Earl.

— Escoteiros em desfile! — exclamou Margaret, arrancando um sorriso divertido de Army.

— Também me sinto como uma escoteira, Margaret. Você não está contente de ir junto, Taty? Por que só os homens podem se divertir?

Taty limitou-se a assentir com um gesto de cabeça. Sem os garrafões de água, sua bagagem estava muito mais leve, apesar do suprimento de comida enlatada que Tony tinha insistido em levar.

Durante as primeiras duas horas de caminhada, a cerração os acompanhou.

Quando finalmente saíram ao sol, Taty ouviu o barulho da máquina fotográfica de Christian, mas fez que o ignorava. Que diferença faria se ela, Tatiana Katanich, natural de Rock Springs, no Estado de Wyoming, nos Estados Unidos, aparecesse como uma corajosa aventureira na ilha de Galápagos, num jornal ou revista da Alemanha?

Ele, porém, sentia-se radiante, convencido de que testemunhava uma profunda mudança em Tatiana.

Após a íngreme descida do vulcão, chegaram à trilha plana ao lado da ravina, sob um sol forte que castigava a todos.

— O calor está mais implacável do que em Saint Louis durante o mês de agosto — reclamou Margaret, abanando-se.

— Mal posso esperar para cair na água — disse Taty a Christian, apontando o oceano que se recortava ao longe.

Depois de uma hora de extenuante caminhada, chegaram à praia de pedras negras.

Feliz como uma criança, Taty tirou os tênis, as meias e o restante da roupa, ficando apenas de biquíni. Em seguida correu para o mar.

— Que frio! — exclamou, rindo, pouco antes de mergulhar.

A um sinal de Mick, um marinheiro do barco ancorado entrou no Panda e dirigiu-se à praia.

No entanto, ninguém parecia interessado em partir, e até mesmo George, depois de hesitar um pouco, acabou entrando no mar com roupa e tudo.

Acabando de registrar as cenas com sua máquina, Christian aproximou-se da ravina onde Tony contava os recipientes de água.

Por fim, o belga também entrou na água, com um vidro de xampu que entregou a Taty, depois de ensaboar a própria cabeça.

Observando-o esfregar os cabelos com vigor e inclinar-se para trás a fim de enxaguá-los, Taty disse alguma coisa, mas ele não pôde ouvi-la, pois tinha os ouvidos cheios de água.

— O que você falou?

— Perguntei por que você não queria que eu viesse junto.

— Essa expedição vai ser muito perigosa.

Inclinando-se, Taty enxaguou os cabelos, ponderando que o tom de voz de Christian não fora alarmante.

— Então... por que você veio?

— Creio que George Karpen tem razão... É uma grande história. Feita sob medida para o Das Uberleben...

— Das o quê?

— Uberleben... Significa “sobrevivência”! É o nome da série para a qual escrevo.

— Todos os seus livros tratam do perigo?

— Não necessariamente. Neste caso, porém...

— Se a busca de uma companheira para o Solitário George vai ser tão perigosa assim, por que você não tentou me convencer a não vir?

Surpreso com essa pergunta direta, Christian ponderou que não devia revelar ainda seu desejo de tê-la ao seu lado e resolveu esquivar-se.

— Tem um pouco de espuma aqui — disse, deslizando um dedo de leve sobre a testa dela. Será que Taty conseguia ler em seus olhos o mesmo desejo que via nos dela? Finalmente confessou: — Eu queria passar esta semana ao seu lado.

Sem dizerem mais nada, os dois saíram juntos da água, lado a lado, mas sem se tocarem. Caminharam para a pequena praia negra e enxugaram-se com rapidez, a fim de evitar que a água do mar se evaporasse, deixando sal nas peles.

Não se tocaram uma única vez sequer, entretanto, o magnetismo que os atraía era tão forte que ambos sabiam que algo de muito importante começara a nascer entre eles: uma emoção nova, que precisaria de tempo para florescer...

 

As pessoas selecionadas, após deixarem a praia e percorrerem parte do trajeto no Panda, fizeram a baldeação para o barco pesqueiro, que os levaria até Pinta.

Como a plataforma estava lisa e escorregaria, George ajudou Taty a subir.

— Considere-me um substituto de Tony! — exclamou, com ar cúmplice. — Ele está na cabina do piloto copiando mapas topográficos da ilha.

Percebendo que George desconhecia sua mudança de planos, Taty desviou o olhar, confusa, ignorando o comentário. Imaginava que ele pertencesse àquela geração que se orgulhava de ter aprendido a ser liberal, mas sabia que havia uma ponta de censura implícita na maneira como o gerente a fitara.

Apesar disso, não sentia o menor remorso pelo que fizera. Afinal, quando se dera conta de que seu plano seria injusto para com Tony, não hesitara em recuar, abrindo mão de um sonho que lhe era muito importante.

— Onde vamos colocar nosso equipamento? — perguntou, mudando de assunto.

— Siga-me! Estamos todos instalados lá embaixo — informou George, começando a andar.

Ao chegar à cabina recém pintada, Taty sentiu um nó na garganta, provocado pelo forte cheiro de tinta que impregnava o ambiente. A lembrança do naufrágio permanecia viva em sua memória, aguçando-lhe o medo de ficar nos compartimentos inferiores do barco. No entanto, o convés encontrava-se lotado, o que não lhe deixava opção.

Entrando num camarote espaçoso, dividido por cortinas de algodão, em duas cabinas com quatro beliches cada, deparou com Earl, que espalhava seus pertences sobre uma das camas de baixo.

— Você não planeja pegar o melhor lugar para você, não é, Earl? — perguntou George, indignado.

— E por que não? — retrucou o engenheiro.

— Nunca lhe ensinaram boas maneiras?

— Maneiras?! — Coçando a barba, Earl lançou-lhe um olhar provocador, antes de voltar-se para os seus afazeres, acrescentando: — Para seu governo, George, tenho educação suficiente para não me meter na vida particular dos outros, ao contrário de muita gente que conheço.

Como era de prever, George Karpen enrubesceu diante da indireta. Entretanto, não se deu por vencido e resolveu contra-atacar.

— Estou me referindo a bons modos, e não a outra coisa, Earl! Por isso, acho justo que as mulheres escolham os beliches antes dos homens!

— Por quê? Na minha opinião, esse tipo de atitude paternalista já está ultrapassado.

— Independente de época, é assim que se age quando se tem um mínimo de cavalheirismo.

Os dois homens fitaram-se por um longo minuto, desafiantes, até que George quebrou o silêncio, gritando para a esposa:

— Margaret! Sua cama está pronta, meu bem. É um dos melhores lugares do barco. Taty, quer colocar sua bagagem aqui em cima?

— Não, obrigada. Já me acomodei, George.

Dando de ombros, Earl sorriu para Army e Christian, que entravam:

— Army, tem um beliche ótimo aqui em cima — anunciou, parecendo arrependido de sua briga com o gerente de vendas.

A enfermeira, que perdera a discussão, perguntou:

— Qual é o meu beliche?

— O seu é este aqui — decidiu Christian, apontando para o lugar que Earl escolhera para si. Em seguida, voltou-se para Taty, ajudando-a a colocar a bagagem no beliche mais próximo da porta.

— As mulheres vão trocar de roupa primeiro? — indagou o engenheiro, com exagerada polidez.

— É claro que sim! Mas não lhes dê muita abertura, senão levarão horas para decidirem o que vestir — interveio George com um sorriso provocador.

— Ora, George... — protestou Margaret, sendo imitada por Army.

— Bem, agora vocês tratem de sair daqui para nós podermos nos vestir — pediu a enfermeira, empurrando os homens para fora.

— Xi!, tem certeza? — brincou o fotógrafo, dando uma piscadela maliciosa.

— Christian, comporte-se!

Pensativa, Taty trocou de roupas, enquanto refletia sobre o momento em que a tensão entre o grupo começara a crescer daquela maneira... Será que ela não percebera isso antes por estar muito envolvida com suas tarefas noturnas e suas próprias preocupações?

Minutos mais tarde, vestindo jeans e camiseta de mangas cavadas, escovou vigorosamente os cabelos sedosos e dirigiu-se ao convés.

Estava faminta e não queria perder um minuto antes de juntar-se aos outros no amplo refeitório.

Satisfeito, o cozinheiro do barco não parava de sorrir diante dos elogios do grupo à sua comida, e serviu-a de maneira gentil.

— Fique à vontade, senhorita — disse, indicando-lhe uma das cadeiras.

Acomodando-se, ela se concentrou no enorme prato de salada, peixe e arroz que havia à sua frente. Em seguida, comeu duas grandes fatias de abacaxi gelado.

Depois do jantar, todos se sentaram em volta de uma mesa recoberta por um linóleo azul desbotado, para tomar café.

Ao ver Tony abrir quatro mapas de Pinta sobre a mesa, Taty pegou o bloco de notas.

Nesse instante, a âncora foi levantada e os motores começaram a funcionar.

Dando sequência às anotações, Taty recapitulou suas observações acerca dos ânimos do grupo e escreveu:

“Na escola, em noções de primeiros socorros, aprendemos que algumas pessoas sobrevivem à crise e, quando o perigo desaparece, morrem. Numa analogia precária, a perspectiva de um banho refrescante e de uma cama confortável com colchões e lençóis, talvez tenha sido demais para todos. Qualquer que seja a causa, porém, é óbvio que...”

De repente, a voz de Tony quebrou o silêncio, trazendo-a de volta à realidade.

— Vou expor agora minha estratégia... Dividi Pinta em quatro retângulos, estão vendo? Pretendo subdividir nosso grupo em quatro times de dois cada. Pegou isso para as anotações de Christian, Taty?

— Sim, Tony.

Graças à sua longa prática como secretária, ela anotava as palavras do cientista com rapidez, sem deixar transparecer o que pensava daquilo tudo.

— Formarei um grupo sozinho — anunciou Tony, nada preocupado em parecer modesto. — Sou mais experiente e, portanto, capaz de cobrir o dobro de território sem ajuda.

Como ninguém retrucasse, pôs-se a dividir as duplas:

Margaret e George, Earl e Army... Katanich e De Vos.

Com sua habitual perspicácia, Taty compreendeu que Tony ia isolar os dois observadores mais críticos, a fim de poder controlar melhor o restante da equipe.

Fitando Christian com o rabo do olho, notou que o fotógrafo também percebera a manobra do outro, e sorriu.

Sob os olhares atentos de George e Margaret, o cientista prosseguiu em sua explanação:

— Vou me encarregar da seção número 1, a oeste. George e Margaret investigarão a seção 2, que fica ao lado da minha. De Vos e Taty, a seção 3, Earl e Army cuidarão da seção 4, à direita, do lado leste... Nossa primeira providência pela manhã será deixar água armazenada no ponto de chegada, a nordeste da ilha, onde o barco vai nos deixar.

— De acordo com as informações que temos, em que lugar a tartaruga foi vista pela última vez? — indagou Earl, com visível interesse.

— Aproximadamente aqui — respondeu Tony, apontando para o primeiro retângulo, aquele que designara para si mesmo.

Embora considerasse essa medida meio infantil, Taty compreendeu a razão. Afinal, Tony era o líder do grupo, e aquela descoberta aumentaria sua reputação.

— Não sabemos quanto a tartaruga se locomoveu, mas alguns observadores registraram que elas conseguem caminhar de trinta a oitocentos e poucos metros por dia.

Após uma ligeira pausa, continuou:

— Basicamente, formaremos dois grupos. George, Margaret e eu seremos os habitantes dos penhascos. — Apontando para as linhas pretas do mapa, que indicavam elevações agudas, prosseguiu: — Veem como os penhascos cobrem quase toda a extensão de Pinta? Pois bem, os demais lidarão com o topo. Meu plano implica em que cada equipe cruze seu retângulo em diagonal, tornando a fazê-lo depois. As tartarugas não são vistas com facilidade. Elas se confundem com o chão, tentando se esconder, por isso será difícil localizá-las.

— Quanto mais difícil, melhor — comentou George, animado.

— Amanhã à noite, nosso time dos penhascos deverá se encontrar mais ou menos aqui, George — avisou o cientista, indicando três retângulos ao norte do local de desembarque.

Taty sentiu que a tensão diminuiu quando Tony apontou uma locação similar para os dois grupos do lado leste, e atribuiu isso à iminente separação.

— Na segunda noite, no domingo, o time do topo deverá alcançar a cratera. Nós lhe daremos tempo para explorá-la na segunda-feira, enquanto abrimos caminho ao longo dos penhascos. Devido às ravinas, nosso progresso será lento. Mas, como vinte e sete esqueletos de tartarugas foram encontrados lá em 1964, por um dos guardas do parque, é importante que se pesquise esse lugar. Planejamos nos encontrar na segunda à noite, perto desse cone no lado norte da cratera. Dali para a frente, juntaremos nossas forças. A maior parte do lado leste é de lava. Provavelmente, atingiremos o ponto de chegada ao pôr do sol de terça-feira. Não há como um barco nos resgatar no escuro. Por isso, pedirei aos rapazes que voltem na quarta, o que nos dará tempo de voltar a Isabela na quarta à noite e retornar ao acampamento da borda do Alcedo lá pela quinta de manhã, quando precisarei checar os relatórios finais. Alguma pergunta?

— E se encontrarmos nossa tartaruga amanhã? — interveio George.

— Creio que isso seria sorte demais, porém, duvido que aconteça. Em todo caso, poderíamos passar o restante do tempo comemorando...

Horas mais tarde, deitada em seu beliche, Taty admirava as estrelas, através da escotilha. Abaixo dela, a respiração pausada de Christian indicava que ele dormia tranquilamente.

Armazenar três dos cantis de cinco galões na praia rochosa, às cinco e meia da manhã, foi uma tarefa árdua.

— Está se divertindo, De Vos? — perguntou George, disfarçando o cansaço.

Preocupada com os ânimos, Margaret dirigiu-se a Taty.

— Você dormiu bem, minha filha?

— Muito bem, Margaret, obrigada.

Prática, Taty vestia calças jeans e blusa de mangas compridas. Na bagagem, colocara apenas uma muda de roupa íntima, a jaqueta e uma camiseta para dormir.

Mais tarde, sentada na proa do barco que se dirigia ao local de desembarque, a sudoeste, perguntou a Mick se o rapaz não estava magoado por não acompanhá-los.

— Em parte sim... Eu gostaria de encontrar outra tartaruga de Pinta. E, se encontrar a fêmea mítica, Tony vai conseguir reputação internacional, o que também me ajudaria em minha carreira universitária. Entretanto, você deve imaginar, como qualquer um de nós, que os pescadores podem ter-se enganado. E, para piorar, é inviável que os voluntários que permaneceram em Alcedo terminem o trabalho no tempo que lhes sobra. Além do mais, nosso grupo em Pinzón fica prejudicado com a estada de Lucho em Alcedo... Percebe o drama?

— Sim.

Ótimo! E se você a encontrasse, Taty?

— Hum, não sei! Talvez exista alguma chance... Tony não é nenhum tolo!

Quase duas horas mais tarde, ancoraram numa pequena enseada rochosa. Colocar a carga no Panda foi uma tarefa difícil.

Ao tentar levantar a bagagem, Taty não       conseguiu, e pela primeira vez sentiu medo. Talvez não devesse mesmo ter ido...

Na praia, depois que Christian a ajudou a colocar a carga nas costas, sentiu uma dor forte e não conteve um gemido de protesto.

— Vou tirar parte da sua carga, Taty —- anunciou o fotógrafo, percebendo a situação. —- Você não precisa carregar tudo isso.

— Tem certeza de que aguenta essa carga toda, Army? — indagou Tony, voltando-se para a enfermeira.

Aguento, sim, mas não a carregarei, é ridículo levar esse mundo de coisas!

— Bem, não vamos passar o dia discutindo. Quem quiser pode diminuir a carga de água para três galões. Mas não se esqueçam do homem que se perdeu há alguns anos na ilha de Isabela e morreu de sede.

Ato contínuo, Tony distribuiu facões e rádios para os homens. Ao vê-lo fazer o mesmo com as bússolas, Taty pegou uma antes que ele pudesse entregá-la a Christian.

— Tive notas excelentes nas minhas aulas de navegação e sei lidar com uma bússola. Fica a cargo de Christian se ele ou eu usamos o rádio...

Inclinando-se, Christian experimentou o corte do facão, a fim de disfarçar um sorriso de satisfação. Finalmente, a passividade de Taty começava a desaparecer...

Da pequena enseada, Taty e Christian olharam para um dos picos, notando que Pinta não era formada por apenas um cone. Erupções tardias haviam depositado uma pequena elevação no lado oeste e outra mais larga à direita.

Ervas daninhas, secas desde que haviam caído as últimas chuvas, quebravam-se sob os pés dos aventureiros, e Taty sentia a boca seca, exausta pelo peso excessivo da bagagem.

Caminhando para o norte, os dois chegaram à borda do retângulo, voltando a seguir, sempre em diagonal.

Depois de haver observado as tartarugas na floresta chuvosa de Alcedo, Taty achava difícil acreditar que uma delas pudesse sobreviver numa região tão árida.

— Tome a dianteira — pediu Christian, quando entraram no segundo retângulo.

Queria observá-lo andar. Havia confiança no modo como ele se locomovia e um enorme sentido de liberdade, o que a ajudava a relaxar e lhe renovava a força de vontade.

Mais tarde, quando voltaram a subir, Taty desanimou-se, pensando no pico de oitocentos metros que os esperava no dia seguinte... Aquela, sim, seria uma caminhada estafante!

Devagar e parando de vez em quando, os dois avançavam num ritmo contínuo, que lhes permitiria cumprir o que fora planejado.

Na hora do almoço, Taty esperou que ele lhe retirasse a carga dos ombros.

Feito isso, ambos sentaram-se à sombra de uma árvore, suspirando de alívio.

— Temos tempo suficiente para descansar. Estamos indo muito bem, Taty... Venha, encoste-se em mim.

Sem se fazer de rogada, ela se acomodou ao seu lado no chão duro, sem forças para comer.

— Não sinto o menor apetite — afirmou, fechando os olhos.

— Apesar disso, precisa ingerir algumas calorias.

— Sinto-me uma ruína.

— Amanhã você estará bem. Continue tomando bastante água... Dois cantis nas suas costas em vez desses três farão um bocado de diferença... Bem, acho que vou abrir uma lata de salada de frutas, quer?

— Oh, seria ótimo!

Ao acabar de ingerir o doce, Taty sentiu as forças se renovarem e suspirou de pura satisfação.

— Que tal algumas sardinhas norueguesas para completar? É sempre bom um pouco de proteína para contrabalançar o açúcar — disse Christian, entregando-lhe uma lata com a tampa enrolada para trás.

Ao vê-lo abrir uma terceira lata, Taty levou uma das mãos à boca, num gesto de arrependimento.

—- Ai, Christian... Comi toda a salada de frutas sozinha! Que horror! Desculpe...

— Ora, não tem importância! Vou comer uma lata de abacaxi em calda como sobremesa. — Dito isso, acariciou-lhe o rosto com delicadeza, completando: — Depois, tiraremos uma soneca rápida.

Passados alguns minutos, Christian abriu uma pequena clareira com o facão e jogou uma lona por cima dos arbustos.

Fitando-o nos olhos, Taty aceitou os lenços de papel umedecido que ele lhe entregava para refrescar o rosto e comoveu-se com a preocupação que se refletia em sua feição.

— Puxa, estou me sentindo nova!

Deitado à sombra, apoiado num dos cotovelos, ele a observava em silêncio.

— Ainda não me acostumei aos meus cabelos curtos — comentou Taty, ajeitando os fios espessos para trás com as pontas dos dedos.

— Por que você os cortou?

— É mais fácil cuidar deles assim — explicou, pensando que, àquela altura, contar-lhe a verdade não faria a menor diferença.

Numa atitude espontânea, acomodou-se sobre, a lona, ao lado de Christian, sem se importar, naquele momento, com o fato de a vida dele ser pautada por ligações temporárias. Afinal, cada um tinha o direito de escolher a vida que bem entendesse.

Fechando os olhos, deixou a imaginação voar e desejou sentir os lábios dele sobre os seus, as mãos fortes a lhe percorrerem o corpo... Por que Christian não a beijava?

— Só dispomos de mais dez minutos de descanso, Taty. Sinto não podermos demorar.

— Que ironia... Estamos num local deserto e com um horário apertado!

Perturbado, Christian perguntava-se por que não abrira uma clareira maior. Desejava aquela mulher como nunca desejara ninguém em sua vida. Queria beijá-la, tocar seu corpo macio, possuí-la...

No entanto, precisava agir com cuidado, para que Taty não o confundisse com um Dom Juan barato.

— Está na hora de partirmos — informou, num esforço sobre-humano para controlar-se.

Trêmula, Taty levantou-se de um salto, pegando a bagagem enquanto a frustração lhe invadia o peito. Que diferença fazia se tinha ou não dormido com Tony? Como um homem que só mantinha ligações temporárias podia condená-la?

— Vocês, da Califórnia, são rápidos demais — murmurou ele, acariciando-lhe os lábios com um dedo. — Nós, os cowboys, nunca temos pressa...

E foi assim que seus lábios se encontraram num beijo longo e profundo, cheio de ternura.

Como nos romances de cavaleiros e damas da Idade Média, ela se entregou por completo à suavidade daquele momento mágico, que tanto poderia ter durado uma eternidade como apenas um segundo.

Quando seus lábios se separaram, Taty, num sussurro distraído, disse:

— Nunca me senti assim... Já faz tanto tempo...

“Tanto tempo?! Há apenas dois dias ela passou a noite com Tony”, pensou Christian, recusando-se a aceitar seu próprio ciúme. Acreditava que Taty tinha todo o direito de escolher o homem que mais lhe agradasse, no entanto...

Percebendo a expressão de desconfiança que havia no rosto de Christian, ela se afastou bruscamente, dando-lhe as costas.

— Esqueça isso!

Embora quisesse dizer alguma coisa, ele não conseguiu elaborar nenhuma resposta coerente e manteve-se em silêncio. O que teria de fato acontecido entre Taty e Hamilton?

— Faz muito tempo para mim também, Taty — murmurou, por fim, ajudando-a com a bagagem. — Você faz com que eu me sinta como se tudo acontecesse pela primeira vez. Por isso, precisamos de tempo. Os principiantes têm muito a aprender.

Taty olhou-o de lado, mal acreditando no que ele acabava de lhe insinuar. Depois, com uma sensualidade que até então desconhecia, encarou-o de modo insinuante.

Christian abriu com o facão uma trilha no mato selvagem, avançando através do terceiro retângulo, em direção ao norte. Seguindo-o, Taty se encarregava de verificar as saliências escuras do terreno, a fim de se certificar de que não eram tartarugas.

Sonhando com refrigerantes, milk-shakes e outras bebidas geladas, Taty já não saberia dizer que parte do corpo lhe doía mais, se o pescoço, a cabeça, os ombros ou as costas...

Lá pelas duas horas, seu rosto pálido alarmou Christian, que lhe preparou uma laranjada.

— Tome isto, Taty. O açúcar vai reanimá-la...

De fato, sua energia voltou aos poucos. Uma energia nada saudável, movida a açúcar, mas não adiantava se preocupar com aquilo agora.

Quando chegaram à seção 4, Christian contatou Army e Earl pelo rádio.

— Equipe do topo 3 para penhasco 4 — chamou ele. — Como vão indo?

— Cansados — informou Earl. — Army disse que está acabada e que isso é mais exaustivo do que trabalhar numa sala de emergência.

Após alguns instantes, ouviu-se a voz do engenheiro tentando conectar o rádio com o de Tony.

— Equipe do topo 4 chamando penhasco 1.

— Diga, Earl — respondeu o cientista dali a pouco.

— Encontrou o Santo Graal, Tony?

— Não, mas estou percorrendo o retângulo 3 novamente, apenas para me certificar. Calculo que essa é uma das áreas mais prováveis... Atenção, equipe do penhasco 2, vamos acampar separadamente esta noite, câmbio.

— Entendido! — exclamou George, com evidente cansaço na voz. — Vamos parar por alguns minutos no final do retângulo 3, Tony. Margaret está muito abatida, e temos sido obrigados a usar o facão desde o segundo retângulo.

Assim que desligaram o rádio, Christian pediu a Taty informações sobre a leitura da bússola e decidiu que deviam apressar o passo, pois ainda precisavam encontrar-se com o grupo 4.

— Se sofrermos muito no meio do mato esta noite, poderemos acampar aqui, numa linda praia, amanhã.

 

O lugar onde foi feito o acampamento no sábado à noite não possuía nenhum atrativo. Pelo contrário, era cercado por uma vegetação selvagem, cujas folhas pontiagudas pareciam perigosas.

O desconfortável local, escolhido apenas por sua proximidade com o topo que seria explorado no dia seguinte, acabou agradando a Taty apenas por uma razão: representava a oportunidade de ela descansar um pouco, livrando-se da pesada bagagem.

Descansados e brincalhões, Army e Earl os esperavam. O dia deles fora menos cansativo no final da tarde, quando haviam entrado numa espaçosa área de lava, sem nenhuma vegetação, o que os fizera concluir que nenhuma tartaruga poderia viver ou caminhar por ali.

Christian e Taty, em compensação, estavam suados, exaustos e com os braços arranhados devido aos arbustos.

Ao vê-los, Army adiantou-se para ajudá-los.

— Earl, você podia auxiliar Taty a descarregar a bagagem? Se dispuséssemos de um fogão, eu teria preparado um caldo quente para esperá-los. Mesmo assim, vocês estão com sorte, meninos. Earl tem um acendedor Zippo, cuja chama é capaz de esquentar água dentro de uma caneca. Graças a isso, teremos achocolatado quente para todos — declarou a enfermeira, com um largo sorriso no rosto.

Animado, Earl sentou-se em sua almofada para preparar as bebidas. Só então Taty percebeu que as almofadas tinham sido dispostas de maneira sintomática, deixando a ela e a Christian juntos, no meio. Será que Army pretendia bancar o cupido ou evitava maiores aproximações com o engenheiro?

Cansada até a alma, Taty acomodou-se ao lado de Earl e de frente para Christian e fechou os olhos, deliciando-se com o vento que lhe soprava no rosto.

A conversa do grupo parecia flutuar à sua volta: energia alternativa e golfo Pérsico, o calor da Austrália comparado ao Parque Nacional Zion em agosto, que era o local favorito de Earl para acampar, e outros assuntos.

— Aqui está, Taty. Isto vai renovar um pouco suas energias — disse o engenheiro, entregando-lhe uma caneca de chocolate quente e doce.

Após tomar o primeiro gole, ela sorriu e estendeu a caneca para Christian.

— Tome quanto quiser, Taty... Depois eu bebo.

Deslizando a ponta dos dedos ao longo de seu pescoço esguio, ele se levantou, anunciando que iria buscar os sacos de dormir.

— Não demore muito ou acabarei bebendo tudo — brincou ela, disfarçando a perturbação que a suave carícia lhe provocara.

Minutos mais tarde, Christian voltou e acomodou-se a seu lado, tomando o que restara da bebida.

Em seguida, serviram-se de atum enlatado, deliciosamente preparado por Earl, que o temperara com suco de limão e salsa seca.

— Hum... Essas iguarias pedem o acompanhamento de uma cerveja gelada — lamentou-se o engenheiro, servindo-se de atum com bolachas.

Apoio sua opinião — afirmou Army, antes de voltar-se para o fotógrafo. — Pode nos dar uma previsão do que será feito amanhã, Christian? Houve momentos, hoje pela manhã, nos quais achei que não iria aguentar a parada.

— A subida, amanhã, será mais fácil. Afinal, estaremos carregando um galão de água a menos.

— Christian daria um ótimo psicólogo se nós acreditássemos nele, concorda, Earl?

Rindo das maneiras descontraídas da enfermeira, o belga disse que a recompensa deles seria o acampamento que fariam na noite seguinte, numa praia maravilhosa.

— Bom, assim as coisas melhoram de figura. Você ainda tem alguma daquelas       pílulas para dormir, Christian?

— Claro, Army! Earl e Taty, vocês também querem?

— Outra daquelas       pílulas que derrubam a gente? — perguntou Taty, pensando, divertida, que aquela seria sua primeira noite ao lado dele.

— Oba! Eu aceito uma. Minha insônia não tem me deixado em paz nesta viagem — interveio Earl, estendendo uma das mãos para pegar o comprimido.

— Não estou preocupada em dormir — declarou Taty.

Altas horas da noite, Christian acordou com Taty mexendo-se no saco de dormir ao seu lado. Tocou-lhe as pálpebras de leve, e logo em seguida procurou-lhe os lábios com avidez.

Aproximando-se dele, Taty correspondeu ao beijo com idêntica paixão.

Depois de alguns instantes, porém, Army murmurou alguma coisa, e os dois quase pararam de respirar. Passado o susto, ele sussurrou:

— Amanhã.

A promessa a fez arrepiar-se da cabeça aos pés.

Ainda era madrugada quando Taty acordou com o ruído de vozes. Abrindo os olhos com relutância, viu que seus três companheiros de camping já se haviam levantado e conversavam quase que aos cochichos para não despertá-la.

Na hora da saída para o início da nova jornada, devido ao cansaço acumulado, ela não achou que a bagagem estivesse mais leve, só conseguindo criar energias para continuar por causa da perspectiva da noite que desfrutaria ao lado de Christian.

Por sorte, a manhã passou depressa, e eles conseguiram manter o ritmo desejado.

Christian abria caminho em meio ao mato seco, quando de repente ela comentou:

Tenho certeza de que essa tartaruga não existe, mas não consigo deixar de alimentar esperanças.

— Eu também, Taty. Apesar da agressividade de Hamilton, gostaria de vê-lo ganhar essa recompensa. Pelo Solitário George, pela ciência, pelo mundo e até por mim mesmo...

Prosseguiram em silêncio até a uns trinta metros do topo, quando depararam com uma acentuada inclinação, recoberta por espessas samambaias, que lhes dificultavam o caminho.

— Onde estão as cabras para comer esse mato? — comentou Christian, revoltado. — O parque errou ao erradicá-las.

Finalmente, depois de muita luta, conseguiram chegar a uma área de grama baixa, onde Taty depositou a bagagem e sentou-se, saboreando a brisa que vinha do mar.

— Olhe! Que vista maravilhosa, Christian...

À distância se avistavam os platôs de Wolf e os vulcões de Darwin, em Isabela. Alcedo, o próximo vulcão abaixo da ilha em forma de jota, encontrava-se encoberto pelas nuvens.

— Os topos das montanhas transformaram minha vida — comentou Taty, enquanto Christian registrava toda aquela beleza com sua câmara. — Atingir o cume traz uma sensação incrível! Um objetivo real, não apenas uma meta etérea, cujo sucesso está sujeito a interpretações pessoais. Me sinto como se estivesse no cume do mundo.

— Com a sua altura?! — brincou ele, estendendo uma das mãos na altura de sua cabeça.

— Muito mais alto! — retrucou, rindo e saltando.

— Você deve estar se sentindo tão alta, que provavelmente acredita que conseguirá ver a Estrela do Norte esta noite.

— Esta noite...

Repetiu essas duas palavras com uma entonação quase mística, lembrando-se da promessa da véspera. Desejava aquele homem e sabia que era correspondida...

Como que impulsionados por uma força mágica, seus lábios uniram-se num beijo apaixonado, que tornou inútil qualquer explicação. Agora, nada nem ninguém poderia impedi-los de dar vazão ao imenso desejo que os consumia.

Impacientes, suas mãos se movimentavam, abrindo botões e zíperes, enquanto seus olhos refletiam toda a ternura e sensualidade que aquele momento de intimidade lhes despertava. Será que havia amor também?

Afastando de si essa preocupação, Taty recordou-se de que Christian vivia intensamente os momentos, um de cada vez... Aceitava essa postura dele e tinha consciência de que nada no mundo podia ser mais importante do que o que acontecia entre os dois naquele momento de entrega total.

Quando ele a tocou intimamente, soluçou palavras de estímulo, que morreram num gemido, abafado pela pressão dos lábios másculos sobre os seus.

Paciente, Christian procurava despertar-lhe sensações adormecidas, levando-a a tal estado de excitação que Taty se movia de modo desordenado, estremecendo a cada carícia dos dedos fortes, que lhe exploravam cada segredo das curvas bem feitas.

Quando enfim ele a possuiu, Taty deixou escapar um pequeno grito, misto de excitação e prazer.

Com as pernas entrelaçadas, os corpos nus se moviam de maneira erótica, iniciando um balé que logo os conduziria ao clímax.

Christian, porém, retardava o momento do êxtase, alternando a intensidade do ritmo com a suavidade dos beijos que depositava em seu pescoço, colo e seios.

Ao senti-lo mordiscar-lhe os mamilos enrijecidos, Taty teve a impressão de que iria enlouquecer e abraçou-o com força, sussurrando, com a voz rouca de desejo:

— Preciso de você... Christian, eu te desejo muito...

Fitando-a nos olhos, com as feições transtornadas pela excitação crescente, Christian segurou-lhe os quadris com delicadeza, guiando-os de encontro a si, em busca do momento final que os faria experimentar o ápice...

Duas horas mais tarde, Taty despertou com um ventinho frio anunciando a proximidade da noite. Seus corpos nus repousavam sobre os sacos de dormir, um ao lado do outro, saciados. Os dedos da mão direita de Christian estavam entrelaçados aos da mão esquerda de Taty, e seus corpos se ajustavam como se tivessem sido feitos sob medida um para o outro.

Mergulhados num indescritível langor, conversaram baixinho, de um jeito que apenas os amantes são capazes de fazer, através de meias palavras e olhares apaixonados, onde tudo ficava implícito, numa deliciosa cumplicidade. Os pensamentos e as palavras eram superados pelas sensações e pelos ruídos dos corpos rolando sobre a grama...

Felizes, dividiram a refeição, sem se importarem com a ausência de roupas, adiando ao máximo o momento em que precisariam voltar à normalidade do cotidiano.

Foi fácil caminhar em volta da cratera, em direção à borda leste, pois a grama rasteira lhes facilitava os movimentos.

Quando houve necessidade de que Christian abrisse uma trilha através do sexto retângulo, pouco acima da praia de desembarque, Taty insistiu para que ele posasse para uma foto.

— Mais uma — pediu ela, depois de bater o primeiro retrato.

— Para ficarmos empatados?

— Não, para eu guardar de lembrança.

— Mas não tenho seu endereço para lhe mandar as cópias reveladas.

— Escreverei meu endereço depois.

Dito isso, resolveu que lhe daria apenas o endereço do escritório do The Carmel, em São Francisco. De volta para casa, na península de Monterey, pediria à secretária do clube que lhe enviasse a correspondência.

Feliz com essa decisão, acercou-se dele, acariciando-lhe o rosto bronzeado. Só esperava agir com a mesma naturalidade quando chegasse a hora de dizer adeus, no sábado.

Estavam na diagonal do quinto retângulo quando Christian fez uma parada.

— Hora do chá, Taty. Mas sugiro que procuremos um cenário perfeito... Que tal subir naquele cone e observar a paisagem?

Ao chegarem ao lugar indicado, experimentaram a sensação de terem voltado no tempo, até os primórdios da civilização.

Um rio de lava negra ia se transformando em marrom durante o caminho para a praia.

De acordo com o rádio, Army e Earl haviam rodeado os campos de lava do lado sudoeste da ilha e exploravam o sétimo retângulo. Por isso, não estavam à vista.

Abrindo um tablete de chocolate derretido, Taty sorriu de maneira graciosa e lambuzou os dedos com o doce, lambendo-os a seguir, como uma garota travessa. A cena não passou despercebida a Christian, que bateu várias fotos.

— Venha, seu xereta! Experimente o chocolate — convidou ela, num tom insinuante.

Sem se fazer de rogado, Christian aproximou-se e lambeu-lhe o chocolate dos dedos, enquanto seus olhos irradiavam sensualidade.

Acabada a meta do dia, os dois retornaram à pequena praia de conchas brancas, onde iriam acampar.

Ficaram sozinhos na última hora e meia antes do pôr do sol. E quando Army e Earl irradiaram sua localização, Taty ocupava-se em esticar os dois sacos de dormir lado a lado.

— Onde está Christian? — perguntou Earl, estranhando que não tivesse sido o fotógrafo a atender.

Olhando para o lado oposto da praia, ela viu que o rapaz prendia um toldo nos galhos de uma árvore.

— Está construindo um abrigo para vocês.

Não pôde ouvir a resposta, pois a maré estava subindo. Por sorte, o baralho provocado pelas ondas deveria durar a noite inteira, oferecendo a privacidade que ela e Christian tanto desejavam.

— Estaremos aí dentro de uns quarenta e cinco minutos — repetiu o engenheiro, desligando em seguida.

Quando Army e Earl chegaram, os dois casais compartilharam um jantar amigável e alegre, observando a maré que lhes molhava os pés.

No dia seguinte, a beleza do nascer do sol deslumbrou Taty. Traços cor de laranja coloriam o céu e um manto de prata e azul cobria o mar.

Quando acordou, Christian espreguiçou-se ao seu lado e, admirando o espetáculo da natureza, murmurou:

— É uma das auroras mais lindas que já vi...

Em seguida, beijou-a, levantou-se e se afastou com seu equipamento fotográfico.

Os outros tomavam o café da manhã quando ele voltou.

Enquanto comia seu mingau de aveia misturado com o leite em pó, água e açúcar, Taty observava Army e Earl, curiosa em descobrir se existia algum interesse mútuo entre eles.

Anotara as primeiras palavras de Christian naquela manhã, acrescentando também os comentários que esquecera de incluir? na noite passada, quando Earl tecera um comentário sobre si mesmo.

— Somente as mulheres mais velhas parecem se interessar por mim — lamentara-se o engenheiro em voz amargurada.

Apesar do escuro, ela anotara que os homens pareciam desconhecer a sutileza, a perspicácia e a sensibilidade, agindo às vezes como uns verdadeiros grosseirões...

Infelizmente, não lhe fora possível perceber a expressão de Army.

No entanto, agora já não adiantava retomar aquele assunto, pois estava na hora da partida, e Christian a apressava.

— Teremos um dia duro hoje — afirmou ele.

— Acho que vou aguentar a carga... Quantos cantis cheios ainda me restam, Christian? Você poderia verificar, por favor?

— Tanto você como eu temos um e meio cada.

— Eu também — declarou Army.

Por sorte, essa quantidade, somada aos dois galões de Earl, seria mais do que suficiente para suprir suas necessidades durante o tempo que levariam para chegar ao final da rota.

Caminhando sobre a lava e remexendo nos arbustos à procura de tartarugas, o grupo seguiu em direção ao norte, atrás do topo de Pinta.

A certa altura, pararam para discutir se subiriam ou não ao topo novamente. Afinal, o penhasco era muito íngreme, e o sol das dez horas estava abrasador.

Christian absteve-se de opinar, dizendo-se um observador como os outros. Army, por sua vez, não queria refazer a escalada. Earl era o único que insistia, parecendo ainda acreditar na existência da tartaruga mítica.

— Por que você considera tão importante encontrar uma companheira para o Solitário George?! — indagou Taty, desconcertando o engenheiro.

Depois de uma ligeira hesitação, Earl acabou confessando que sentia pena do Solitário George, pois também vivia sozinho e sabia como era difícil.

— Ora, todos nós somos sozinhos — disse Army, disfarçando a própria emoção. — Bem, chega de conversa! Vamos embora! Agora é minha vez de usar o facão, Christian.

Diante disso, Taty não teve alternativa a não ser pegar o facão de Earl.

Em poucos minutos estava ensopada de suor. As mãos lhe queimavam e tinha os braços doloridos. Entretanto, era orgulhosa demais para entregar os pontos e seguiu em frente com sua tarefa.

Às onze horas, quando finalmente atingiram o topo, Christian propôs uma parada de dez minutos.

Em seguida, colocou a bagagem no chão e sentou-se, apoiando nela as costas. Fazendo o mesmo com a sua, Taty acomodou-se ao seu lado e recostou-se nele, fechando os olhos.

Ao reparar nas bolhas que haviam surgido nas palmas das mãos de Taty, ele as medicou, antes de virar-se para Army.

— Como estão suas mãos, Army? — perguntou, gentil.

— Já pensou em ser médico, Christian? — provocou-o a enfermeira, aproximando-se para também ser medicada.

Alguns minutos depois, quando se preparavam para partir novamente, Taty gritou:

— Esperem! Tem uma coisa escura lá embaixo... Vejam... É uma casca de tartaruga!

— Eu sabia que, se alguma coisa fosse encontrada, você seria a primeira a vê-la! — murmurou Christian, ajustando a câmara. — Deixe que Taty a pegue primeiro, Earl. Depois, você e Army virão correndo.

Animado, Christian bateu várias chapas de Taty correndo em direção à tartaruga. Depois, deitou-se no chão, em cima dos arbustos cortantes, buscando um ângulo melhor.

— Você seria capaz de fazer isso para sua coleção de slides, Earl? — perguntou a enfermeira, voltando-se para o engenheiro, que também preparava sua máquina fotográfica.

— Esse talvez seja o meu slide de abertura — comentou ele, focalizando a imagem de Christian, antes de correr colina abaixo ao encontro de Taty.

Lá embaixo, todos verificaram que se tratava apenas do esqueleto de uma tartaruga com casco em forma de sela, o qual começava a escamar.

Competente, Christian tirou inúmeras fotos para os registros de Hamilton, procurando captar todos os ângulos possíveis.

Feito isso, ajudou Earl a virar o casco de ponta-cabeça.

— Ou é um macho púbere ou uma fêmea adulta — opinou Army.

— Aposto que é uma fêmea! — exclamou Earl, entusiasmado.

— Espere obter todas as informações antes de tirar conclusões, Earl — censurou-o a enfermeira. — Que negócio é esse de fazer adivinhação? Que tipo de cientista é você, afinal?

— Certo, certo... Então, espero que não seja ele — retratou-se o engenheiro, cruzando os dedos de maneira supersticiosa.

Num tom de voz conciliador, Christian informou que as tartarugas com casco em forma de sela eram bem menores que as de casco arredondado. Portanto, se aquela carapaça pertencesse a um macho, as mudanças sexuais para permitir a procriação estariam formadas, o que não ocorrera.

— Como você sabe? — indagou Earl, curioso.

— Escrevi um capítulo sobre o programa de procriação e sobrevivência das tartarugas da Estação Darwin e do Serviço do Parque. Lá, eles mantêm um pequeno rebanho de tartarugas com casco em forma de sela num curral de lava e pedras.

— Ah... Viu, Army? Você estava me chamando de burro teimoso à toa!

Quando foi informado pelo rádio, Tony confirmou a conclusão de Christian, depois de ouvir as medidas do réptil.

— Uma fêmea! E as escamas estão em ordem?

— Algumas começaram a descascar...

— O que significa isso, Tony? — perguntou George, integrando-se à conversa.

— Não mais do que um ano de idade, dois no máximo...

— Quer que a coloquemos de volta no lugar até sua chegada, Tony? — perguntou Earl, após ditar a localização exata de onde se encontravam.

— Estamos logo atrás de vocês, no meio do caminho através do sexto retângulo. Aguardem-nos!

Dito isso, Tony desligou, deixando a todos apreensivos quanto ao real significado daquela descoberta.

 

George abria caminho por entre os arbustos, brandindo o facão com força, apesar do cansaço. Sua camiseta estava grudada no peito cabeludo, seus braços brilhavam e gotas de suor lhe escorriam pela testa.

— Olá, pessoal! — gritou, aproximando-se do grupo com a esposa. — Onde está nossa carapaça? Eu e Margaret estamos ansiosos para ver o achado de Taty. Essa mocinha vai nos tornar famosos com sua descoberta. Traga minha câmara, querida.

Relanceando um olhar em volta, o gerente de vendas bateu algumas chapas e continuou:

— Veja, Margaret. Taty fez uma descoberta científica da maior importância. Aposto até o seu último tostão como essa tartaruga caiu do penhasco e morreu depois de um ano ou dois. Lembra-se do que Tony nos contou sobre o tempo que elas conseguem sobreviver sem água e sem comida? São criaturas extraordinárias!

Pouco depois, sentada ao lado de Taty, Margaret admitiu que a rota dos penhascos significara um esforço hercúleo para eles.;

— Discordo, querida. Na verdade, foi um desafio maravilhoso para nós — corrigiu-a George.

— Sim, tem razão! Foi um desafio — retificou a mulher, piscando.

“Por que ela parece tão nervosa?”, perguntou-se Taty, conjeturando se Margaret alguma vez o tinha contradito em público.

— Os penhascos valeram a pena — continuou George. — Ei, Christian, você nos faria um favor? Poderia tirar umas fotos de mim e de Margaret ao lado da carapaça, para nosso cartão de Natal? Apenas no caso de não encontrarmos viva a irmã dessa aí.

— Você ainda acredita que a acharemos? — indagou Christian, abismado.

— Você deve estar brincando! Isso só prova que estamos no caminho certo. Se pelo menos tivéssemos vindo há dois anos, poderíamos tê-la levado para fazer companhia ao meu pobre e velho xará.

— Só mesmo Margaret para aguentar um chato desses — cochichou a enfermeira nos ouvidos de Taty.

Nesse instante, Earl aproximou-se da tartaruga e tocou-a, para examiná-la melhor.

— Cuidado! — gritou George.

Ignorando o alerta, o engenheiro limitou-se a fitá-lo com descaso. Percebendo que a tensão voltava a crescer no grupo, Christian interveio, conciliador.

— Com certeza, Tony vai querer acelerar a busca. Portanto, se almoçarmos agora, estaremos prontos quando ele chegar. Tenho bolachas, atum e sardinhas com molho de tomate. Earl dispõe de salsa seca, para temperar as sardinhas.

— Margaret trouxe maçãs secas preparadas em casa — anunciou George, provocando um olhar reprovador, por parte da esposa.

— Oh, querido, mas elas dão sede!

— Imagine, Margaret! — interrompeu Taty. — Elas são deliciosas e me reanimaram quando as experimentei em Alcedo.

Dito isso, ela foi até sua bagagem e conferiu o conteúdo: uma lata de sardinhas, duas de atum e duas de ervilhas. Não estava com fome e talvez à noite comesse sua última lata de salada de frutas.

Agora, porém, para a sobremesa, limitou-se a distribuir pedaços de chocolate junto com as maçãs. Após tomar seu terceiro copo de água do dia, mediu o quanto lhe restava no fundo do cantil e resolveu diminuir a extravagância.

Nesse momento, Tony chegou correndo e foi direto ver os restos da tartaruga. Estava revoltado:

Ninguém vê uma fêmea viva em Pinta desde 1875. Isso faz mais de um século... Droga! Se eu tivesse vindo aqui no ano passado... Sinto-me tão inútil quanto os guardas do parque em 1972.

Fitando alternadamente cada um dos voluntários, prosseguiu:

— Querem ouvir uma história revoltante? Logo depois que o Solitário George foi encontrado, os guardas do parque continuaram a busca e realmente acharam mais coisas: uma carapaça de fêmea com marcas de facão, onde a barriga fora removida. Bem, pelo menos esta não foi mutilada por nenhum açougueiro. Você tirou várias closes, Christian? Marcaram a área?

Depois de obter respostas afirmativas às suas perguntas, o cientista pegou a carcaça do animal, estudando-a com entusiasmo crescente. Contagiados, os outros logo o rodearam.

— Estas escamas são a evidência de que ela não morreu há mais de dez anos. Olhem... Vou examinar a área em torno daqui. Talvez... Droga! Com certeza, ela estava sozinha, mas não custa pesquisar.

Depositando a carapaça no chão com cuidado, concluiu:

— Deem-me dez minutos para procurar.

— Quer ajuda? — ofereceram Earl e George, em uníssono.

— Não, obrigado. Preciso ficar um pouco sozinho. Avisarei pelo rádio se encontrar alguma coisa. Nesse caso, venha correndo, De Vos,

— Bem, e o que faremos agora? — perguntou Margaret, assim que Tony saiu.

— Vamos nos organizar — disse Christian. — Tony está enfrentando uma decisão difícil: ou voltaremos todos para o lado do penhasco, onde os pescadores viram a suposta tartaruga, e concentramos a busca no segundo e terceiro retângulos novamente, ou duas equipes seguirão para o norte da ilha, cumprindo a estratégia original, enquanto ele e mais duas outras pessoas, provavelmente eu com minha câmara e outro voluntário resistente, iniciarão um novo esquema... Dessa forma, ninguém poderá acusá-lo de não ter sido obstinado na busca. De um jeito ou de outro, ele vai precisar de ajuda rápida quando voltar, bem, para começar, vamos verificar nossos suprimentos?

— Você acredita que Tony pretende continuar a busca? — indagou George.

— Sem dúvida — afirmou o fotógrafo, enquanto pegava quatro cantis e os enfileirava sobre uma rocha de lava.

— Ganho minha vida estudando as pessoas e procurando estabelecer comportamentos previsíveis... Você se dedica a calcular as coisas, George, correto? Então, o que pensa que Tony vai fazer?

— Tony é um lutador! Por isso gosto dele... Bem, o que você está fazendo?

— Tentando me organizar. De quanta água dispomos ainda? Poderemos distribuir nossa bagagem de maneira mais equilibrada, se dividirmos os cantis. Trouxe seu funil, Earl?

Assentindo com um gesto de cabeça, Earl abriu as bocas dos garrafões, verificando-lhes o conteúdo.

— Sobrou mais ou menos um galão por pessoa.

Consultando o relógio de pulso, Christian anunciou:

— Bem, os dez minutos já se passaram. Vou me posicionar para a volta de Tony.

Assim que ele se afastou, os outros cinco ficaram agitados. Apenas o ruído do vento cortava o silêncio, e Taty sentou-se sobre um bloco de lava.

De repente, a calma foi quebrada pelo barulho de algo sendo esmagado. O estrondo continuou num ritmo assustador, por sua constância mecânica, e todos correram quando Margaret gritou:

Pouco adiante, George Karpen batia a casca da tartaruga contra o chão, sem expressão alguma no rosto suado. As escamas voavam, e ele, como um autômato, parecia não perceber o que fazia.

— George, pare!

Correndo em sua direção, Margaret tentou detê-lo. Entretanto, empurrando-a com força, ele continuou a destruir a relíquia.

Devido ao impacto, Margaret caiu no chão, cortando o braço na lava pontiaguda.

Com o rosto contrafeito pela raiva, Earl abaixou-se e investiu com os ombros contra a barriga de George, que se desequilibrou, sem soltar a carapaça.

— Largue a casca, Karpen! Pare! — gritou o engenheiro, esmurrando-o às cegas.

Desequilibrando-se, George deixou a carapaça cair ao chão.

Para piorar, tropeçou sobre os cantis, que continuavam destampados, derrubando-os.

A água caiu sobre as lavas rochosas, sendo absorvida pelo solo, sem que ninguém notasse.

Atraído pelo barulho, Christian chegou correndo e, num movimento rápido, levantou Margaret do chão.

Descontrolado, Earl descera das costas de George e o esmurrava no estômago.

— Segurem-no! Ele vai matar George! Pare com isso, seu monstro! — gritou Margaret, correndo em direção ao engenheiro e ao marido.

Intervindo, Christian afastou Earl com seu pulso de ferro, mas o engenheiro continuava furioso.

— Maldito fanático! Seu sabotador!

Sacudindo-o pelos ombros, Christian empurrou-o para o lado, antes de pousar uma das mãos sobre o ombro de George, à espera de que ele parasse de golpear o ar.

Aflita, Margaret passara os braços em volta do corpo do marido, soluçando.

Alheio a tudo, George tinha os olhos arregalados, fixos num ponto qualquer do infinito, e continuava a repetir metodicamente os mesmos movimentos a intervalos regulares.

— Quanto tempo duram esses ataques? — perguntou Christian, em tom gentil, virando-se para Margaret.

Enxugando as lágrimas do rosto, ela se pôs a relatar as diversas ocasiões em que os vira acontecer... Tratava-se de acessos psicomotores, como os neurologistas chamavam.

— De acordo com os médicos, eles se originam de uma descarga elétrica, onde há uma cicatriz no cérebro... Não é uma coisa tão incomum assim! Nem há motivos para medo... Às vezes, cicatrizes como a de George surgem por causa de um tumor ou de um derrame cerebral. Qualquer pessoa está sujeita a isso!

Com o rosto pálido e a voz trêmula, fez uma pequena pausa, antes de prosseguir:

— Ele nem sempre agride as coisas, cometendo apenas outro tipo de ação repetitiva. Os especialistas dizem que os alcoólatras que caem no chão e batem a cabeça também podem ter desses ataques. Em alguns casos, como o de George, acessos psicomotores acontecem sem nenhuma razão especial.

Parecendo furiosa, Margaret respirou fundo, tomando a defesa do marido:

— George sofre esses ataques desde quando era criança. Vivia numa pequena cidade do Estado de Missouri. Alguns dos meninos da cidade o atormentavam por causa disso, dizendo que eram manifestações do demônio, o que o traumatizou. Você devia saber dessas coisas, Army...

— Eu sei, mas...

— Isso acontece com frequência? — interrompeu Taty, evitando que Army se pronunciasse e criasse uma tensão ainda maior.

— Quando George era criança, antes de existir medicação adequada, eles eram muito frequentes. Durante o tempo em que namoramos, porém, isso aconteceu apenas uma vez... O engraçado é que esses acessos salvaram a vida dele uma ocasião...

Incapaz de controlar-se por mais tempo, Margaret caiu em prantos.

Engolindo em seco, Taty foi até sua bagagem, a fim de pegar lenços de papel. Foi então que viu os três cantis derrubados. Sem fazer barulho, tornou a colocá-los de pé e os fechou, rezando para que ainda houvesse um pouco de água no fundo deles.

Por sorte, ninguém notou o que ela fizera, pois todos estavam cabisbaixos, embaraçados, esperando que Margaret controlasse os soluços.

De repente, para espanto geral, George bocejou e espreguiçou-se.

— Já estamos prontos? — perguntou, animado.

Ao notar que todos o encaravam com desconfiança, empalideceu.

— O que aconteceu? Oh, não... Querida, o que esmaguei dessa vez? Não foi o seu equipamento, Christian, ou...

O silêncio que se seguiu lhe confirmou as suspeitas.

— Estraguei a nossa carapaça? Meu Deus, aquele maldito neurologista! Margaret... Ai, por que aceitei suspender os remédios?

— Você não precisou de nenhuma medicação durante dois anos, George. — Lançando um olhar desafiador para o restante do grupo, declarou: — Foi o primeiro ataque de George em dois anos.

— Muito bem! George, olhe só para isso — disse Earl, indicando o casco da tartaruga. — Veja, você arrancou metade das escamas! Não tinha direito de se voluntariar para uma expedição dessas, sabendo que não conseguiria enfrentar a viagem e...

— Cale a boca, Earl! — gritou Margaret, vermelha de raiva.

— Seu precioso casco não foi destruído! Além disso, o fato de você usar a cabeça para criar armas a fim de destruir o mundo não lhe dá o direito de decidir que todas as pessoas são más. George é um homem bom, que já fez muito pelos outros.

— Ah, sim! Esmagou a carapaça, o que não é tão terrível assim, considerando que tiramos fotos de sua condição original. Assim, acho que podemos ser humanistas e dizer de maneira caridosa: ora, tudo bem. George tem uma cicatriz cerebral que às vezes aborrece as pessoas... Mas acontece uma coisa, Margaret, a cicatrizinha dele colocou a todos em perigo. Você notou que, por causa do ataque, George derramou água dos garrafões? E cá estamos nós, talvez a dois ou três quilômetros de uma das grandes descobertas a serem feitas no mundo, e seu marido arruinou tudo.

— Foi você quem deixou os garrafões destampados — retrucou Margaret, de modo acusador.

— Não,  querida. Earl está...

— Fique quieto,   George. Ele está errado! Earl não passa de um inseto. Um pequeno inseto sobre a face da Terra, que, graças a Deus, não reproduzirá outros insetos, pois nenhuma mulher jamais o aceitaria...

O desabafo de Margaret fez com que Army reagisse.

— Earl   estava transferindo a água para que você pudesse aguentar o resto da     viagem, Margaret.      Ele deixou os garrafões destampados na hora em que seu marido teve o ataque.

— Mas que tipo de enfermeira é você, afinal?

— Do tipo que não se casa com os seus pacientes.

Com os olhos rasos de lágrimas, Margaret voltou-se para o marido, acariciando-lhe o rosto.

— Isso não é verdade, George. Eu disse que te amava naquela noite, e foi por isso que quis me casar com você. Falei a verdade e nunca me arrependi. Ainda te amo.

Constrangida de presenciar uma cena tão íntima, Taty desviou o olhar, imaginando quantos segredos se escondiam por trás das fisionomias pacatas de cada um dos membros da equipe.

Nesse momento, notou a expressão estranha com que Christian embrulhava a carapaça numa camiseta, dirigindo-se a Earl.

— Dá para você calcular quanto sobrou de água?

Taty aproximou-se, com a intenção de oferecer sua camiseta de dormir para embrulhar o casco. Quando lhe tocou os ombros, porém, sentiu que os músculos dele estavam tensos e quase recuou.

— Como você sabia que George estava tendo um acesso, Christian?

— Conheço esses ataques. Minha mulher também os tinha.

— Ela nasceu com eles, como George?

— Não... Ela se encaixava na categoria dos alcoólatras que caem e batem com a cabeça... Essa é a resposta para sua pergunta, não, Taty? Na verdade, não me pareço com minha mãe. Apenas casei-me com uma mulher igual a ela.

— Entendo...

— Qualquer psicanalista, ou pseudo-analista, logo deduziria a verdade... Eu amava minha mãe, mas também a odiava. Não pude ajudá-la, por isso, sempre me aproximo de vítimas. Meu subconsciente quer que eu me pendure numa cruz, seja nobre e carregue minhas vítimas comigo.

Depois de uma pequena pausa, ele prosseguiu, calmo:

— Quando me casei com Nicole, ela parecia uma princesa de contos de fadas, o que contrastava com a frieza da casa dos meus pais. No entanto, a princesa se recusou a crescer, e quando a felicidade começou a fugir das suas mãos, pôs-se a beber de modo frenético, entrando em crises de alcoolismo que a levavam da euforia à depressão profunda durante semanas...

— E por que você deixou de amá-la?

Levantando os olhos, Christian viu diante de si uma mulher segura, cujo semblante denunciava confiança nele. Havia nela uma força interior que lhe transmitia calma, e ele continuou:

— Há cerca de catorze anos, quando Nicole saiu da clínica. A primeira delas, na Suíça.

— Você foi embora, então... Por quê?

— O amante das vítimas? O herdeiro ingrato? Aquele que abandonou mulher, pai, o lar e a famosa fábrica De Vos?

— Estou do seu lado, Christian. Lembre-se disso, por favor.

Arrependido da maneira amarga como estava se expressando, ele prosseguiu, em tom mais ameno:

— O psicólogo da clínica de Antuérpia, onde Nicole viveu seus últimos meses, chegou a levantar a hipótese, de que as vítimas sentiam-se atraídas por mim, devido à minha personalidade forte...

— E você, o que acha?

— Não sei! Mas agora procuro concentrar meus interesses em heróis... e animais.

— Consequência das suas antigas experiências?

— Pode ser. Hoje prefiro tentar entender as pessoas de caráter firme, você não?

— E as vítimas?

— Quando começamos esta excursão, qualquer estranho diria que éramos todos fortes e bem-sucedidos. E agora? — Dando de ombros, acrescentou: — Eis a minha curiosidade! Para ser franco, estou ansioso para ler suas anotações, depois que todos voltarem a suas respectivas casas, Taty...

— Por quê? Para se lembrar das nossas férias?

— Não! Quero entender você. Considero-a um enigma, Taty!

— Simples curiosidade?

— Com sinceridade, ainda não sei...

— Nada! Não encontrei nada! — exclamou Tony, ao chegar, desapontado. — Todo mundo está pronto? Decidi que vamos começar a procurar...

Por acordo tácito, George fora escolhido para falar da água que se perdera. Interrompendo-o, disse: — Escute, Tony...

—- Espere um pouco, George. Sei que todos estão com calor e cansados, mas escutem, a carapaça que encontramos prova que existem tartarugas fêmeas vivas em Pinta. Precisamos de apenas uma, e estamos perto dela. Este casco é um sinal disso... Talvez seja a grande chance de regenerarmos toda uma espécie semi-extinta!

Embora George tentasse falar, Tony prosseguia, cada vez mais animado:

— Iremos em direção ao sul, para a área apontada pelos pescadores. Amanhã, iremos para o norte.

— Acho melhor contar a Hamilton quanta água temos — interrompeu Christian, erguendo a voz.

— Só sobraram quatro galões? — perguntou Tony, depois de informado do incidente. — E seus cantis? Vocês têm o bastante para o resto do dia, não têm? Deixe-me ver quanto me sobrou. Ah, um pouco mais de meio galão. O suficiente para emergências.

— E você acha que isso dá para sete pessoas? — retorquiu Christian, mal disfarçando a reprovação. — Com este sol e a subida do penhasco?

— É a estação do Garua, De Vos!

— Por isso estamos tão dispostos, não é mesmo, Hamilton?

— Olhem, acho que a decisão deve ser democrática, através do voto de todos. Margaret e eu voltaremos para o sul.

— Não! Iremos diretamente para o norte, a fim de esperar o barco — cortou-o Margaret, decidida. — Aquele médico disse que a estafa dispara... afeta sua saúde.

— Mas, querida...

— Não teime comigo, George Karpen. Já decidi.

— Bem, Earl, George e eu contra Margaret e Christian — falou Tony. Três a dois... E você, Taty?

Christian achava que eles deviam se dirigir para o norte, em direção ao barco. Embora confiasse nele, ela lhe perguntou:

— Você está tentando bancar o protetor?

— Não.

— Quanto tempo vamos levar para chegar à área marcada?

— Acho que chegaremos lá hoje à noite, se caminharmos em ritmo apressado. No entanto, se continuarmos procurando como até agora, apenas amanhã ao meio dia, concorda, Hamilton?

— Sim. E temos água suficiente para um dia inteiro de caminhada. Por que perder essa oportunidade quando estamos tão perto do sucesso?

— Você está nos pedindo que façamos uma caminhada de dois dias em um, Tony? — indagou ela, confusa.

— Um dia e meio, apenas.

— As equipes do penhasco levaram dois dias e meio para alcançar esse ponto — informou Christian.

— Em compensação, nossa bagagem agora já não está tão pesada. Tudo dará certo, a não ser que passemos o dia discutindo.

Sem saber ao certo por quê, Taty acabou votando do lado de Tony, o que tornou o voto de Army irrelevante.

Acatando o resultado, Christian pediu a palavra.

— Existe uma coisa na qual insisto: as mulheres ficarão juntas, com uma parte maior de água e um rádio. Não quero que fiquem sozinhas. É muito perigoso. Eu acompanharei Hamilton, e Earl ficará com George.

— Por mim, tudo bem — concordou Tony, deixando-os todos surpresos.

As mulheres caminhavam entre os arbustos, abrindo caminho com o facão de George e trocando de posição. Andavam em silêncio, atentas na busca.

Trocavam o facão a cada dez minutos, mas ainda assim seus rostos e mãos estavam arranhados pelos galhos secos.

Taty irradiava sua posição de hora em hora.

— Vocês estão nos atrasando — reclamou Tony, quando ela o chamou às três horas.

Estavam para entrar no quinto retângulo, e Army observou, revoltada:

— Lembre-se de quem achou a carapaça, Taty.

Sem dúvida, manter o ritmo da caminhada era uma tarefa árdua, e elas suspiraram de puro alívio ao entrarem na área úmida da ilha. No entanto, levantar as pernas para passar por cima das trepadeiras requeria grande esforço, e Taty, que liderava o grupo, começou a sentir câimbras.

— Esperem um pouco — gemeu, agachando-se para massagear as pernas.

As lágrimas lhe brotaram dos olhos e ela mordeu os lábios de dor. Solidárias, Margaret e Army correram para seu lado, ajudando-a.

— Tudo bem. Estou melhor agora — garantiu Taty, levantando-se.

— Tenho linimentos e pomadas em minha bagagem, além de gaze para as suas bolhas, Taty — anunciou Margaret. — Foi uma idiotice a nossa não ter trazido luvas...

— Teríamos lindas luvas brancas se fôssemos oficiais franceses durante a Primeira Guerra Mundial — brincou Army.

— Eles achavam chique morrer de luvas brancas.

— Como sabe disso, Army? — perguntou Taty.

— Uma maneira de parar de pensar sobre morte lenta é concentrar a atenção em leituras sobre as estratégias de guerra dos generais. A Primeira Guerra Mundial foi a melhor, de tão estúpida.

— E isso ajuda? — interessou-se Margaret.

Flexionando os músculos do corpo, a enfermeira sorriu.

— Acho que sim.

— No geral, esses livros me deixam revoltada. Esses homens cretinos e arrogantes chacinando as crianças do próprio país...

— De fato, são estúpidos, Margaret... Tão estúpidos quanto o câncer...

Às quatro horas, quando atingiram o quinto retângulo, elas ouviram George perguntar a Tony, pelo rádio, se o grupo todo iria acampar no penhasco, para aproveitar a brisa.

— Vocês ainda estão no quinto retângulo? — gritou Tony, quando Taty relatou sua posição.

— E o que vocês estão fazendo? Correndo sem olhar em volta?

— Já são quatro horas... Talvez devamos voltar — observou George, preocupado.

— George parece preocupado com você, Margaret — comentou Taty, maliciosa.

— Parece mesmo, não é?

Antes que ela pudesse responder, a voz de Tony se fez ouvir de novo.

— Até onde vocês acham que conseguem chegar? Qual é sua provisão, Margaret?

— Vamos alcançar o quarto retângulo dentro de uma hora, Tony. A temperatura logo estará mais amena, o que aumentará nossa velocidade. Conte conosco na metade do quarto retângulo, em torno das cinco e meia.

— Muito bem. Vejamos, então... Isso significa que caminharemos até o segundo quadro, onde montaremos acampamento. Até mais tarde.

Taty olhou o cantil pela terceira vez em uma hora, esperando estar enganada quanto ao nível da água e pudesse contar com, pelo menos, um gole a mais.

No entanto, a quantidade continuava a mesma, e ela tomou um gole pequeno, segurando a água na boca o máximo que pôde antes de engolir. Cinco centímetros era tudo o que lhe restava no fundo do cantil...

 

Apesar das dificuldades causadas pela cerração espessa, o grupo das mulheres conseguiu localizar o acampamento por volta das seis horas.

Quando chegaram, os homens já as aguardavam. Haviam aberto uma clareira no meio dos arbustos, onde as camas estavam dispostas de modo a se garantir um mínimo de privacidade a cada uma das duplas, uma vez que apenas Tony dormiria sozinho naquela noite.

Engenhoso, Christian construíra com a vegetação local três aparadores afunilados, a fim de, coletar orvalho dentro de garrafões vazios, o que significava uma cota extra de água para a manhã seguinte.

Exaustos, todos jantaram em silêncio, indo deitar em seguida.

Lamentando ter cedido sua camiseta, Taty despediu-se e se acomodou no saco de dormir, tremendo de frio.

Minutos mais tarde, Christian juntou-se a ela e abraçou-a, aninhando-lhe a cabeça contra o peito.

Com toques gentis, pôs-se a acariciar-lhe o corpo jovem, deslizando os dedos ao longo das coxas bem torneadas, dos quadris arredondados e dos seios que aos poucos enrijeciam, excitados.

Aos poucos, o toque terno de seus lábios tornou-se ávido, exigindo de Taty uma resposta sensual...

Esquecidos dos problemas e tensões do dia, os dois amaram-se sob a luz das estrelas, procurando substituir com carícias apaixonadas todas as palavras que jamais teriam chance de se dizer, devido à iminente separação.

Por volta das cinco horas, Taty acordou e aconchegou-se mais nos braços de Christian, numa tentativa de prolongar por alguns momentos aquela doce intimidade.

No entanto, o sinal para o desjejum logo foi dado, obrigando-os a se levantarem e juntarem-se ao restante do grupo.

Ao provar a mistura de aveia seca com leite em pó e água, Taty não conseguiu reprimir uma careta de desagrado, ansiosa por uma boa xícara de café quente. Entretanto, não havia a menor possibilidade de seu desejo se concretizar, o que a fez soltar um suspiro resignado.

Acabada a ligeira refeição, Earl protestou contra a divisão de grupos por sexo, mas a discussão não demorou mais do que dois minutos, permanecendo tudo como estava.

Tony, por sua vez, parecia ter recuperado o ânimo antigo e desdobrava-se em transmitir aos demais seu entusiasmo.

— As instruções para hoje resumem-se a: caminhar. Olhem, procurem, mas mantenham-se sempre em marcha — disse ele, pouco antes de dar ordem para a partida.

Em pouco tempo, seu otimismo contagiou os voluntários, e as equipes recomeçaram a marcha.

Durante a primeira hora de caminhada, as mulheres só quebraram o silêncio duas vezes. A primeira foi quando Margaret disse que aquele prometia ser um dia de sorte, pois o sol não estava forte.

A segunda interrupção aconteceu durante o contato de rádio das seis e meia. Tony aproveitou para dirigir algumas palavras de incentivo ao grupo, renovando-lhes o entusiasmo.

Dando o máximo de si, as três avançavam em marcha regular, esforçando-se para não diminuir o ritmo.

Margaret, que seguia à frente do grupo, tentava calcular a que distância se encontravam do oceano. No entanto, essa tarefa era dificultada pelas trepadeiras espessas, que lhe atravessavam a visão do solo. Ademais, um passo em falso naquela região poderia significar a morte no fundo de uma das numerosas fendas que sulcavam a terra.

— Por acaso, foi em 1964 que morreram todas aquelas tartarugas aqui? — indagou Taty de repente, lembrando-se da história que Tony contara.

— Exato, querida... Gravei bem a data, porque tive um aborrecimento nesse ano — afirmou Margaret, com uma ponta de tristeza na voz. — Meu filho caçula acabara de entrar na escola, e eu queria... Nós queríamos um bebê... — Enxugando uma lágrima furtiva, forçou um sorriso, censurando-se em voz alta. — Ora, sou mesmo uma tola! Afinal, não tenho nenhum direito de reclamar da sorte... Fui abençoada com as minhas outras crianças, e...

Margaret não conseguiu concluir a frase, e as outras duas baixaram a cabeça, constrangidas, sem saber o que dizer.

Para alívio geral, porém, Tony contatou-as pelo rádio, avisando-lhes que chegara a hora do almoço.

A notícia foi acolhida com animação, e elas se acomodaram à sombra, conversando sobre amenidades, enquanto comiam a última lata de atum de Taty.

— Puxa, eu devia ter trazido um colírio... Meus olhos estão ardendo tanto! — lamentou-se Army, assim que reiniciaram a marcha.

Preocupada, Margaret obrigou-a a parar e verificar se não lhe entrara nenhum cisco nos olhos. Em seguida, sorriu, tecendo um comentário lisonjeiro.

— Ficou lindo o tom que o sol deu às suas sobrancelhas, Army.

Feliz com a constatação de que já não existia qualquer resquício de hostilidade entre as duas, Taty apressou-se em consolidar a paz.

— Deixe-me ver, Army. Vamos, não seja modesta! Tire os óculos escuros.

De fato, a parte superior das suas sobrancelhas tinha adquirido um tom incomum, que lhe realçava o azul dos olhos, criando um efeito original.

— Margaret tem razão, Army! Você está muito bonita.

Enrubescendo, a enfermeira apressou-se em recolocar os

óculos, o que provocou o riso das amigas.

— É melhor irmos andando — sugeriu ela, desviando o assunto.

À tarde, depois de cruzarem o ponto onde o casco da tartaruga fora encontrado por Taty, Army deixou escapar um profundo suspiro.

— Bem, desconfio que chegamos ao fim da caçada! Sinto muito, garotas, mas preciso tomar um gole de água, antes de continuar. O sol está me matando!

— Por que será que o termo “garotas” não soa mal quando você o usa?

— Eu o usei, é? Tenho tentado evitá-lo, mas sempre me esqueço...

— Evitá-lo por quê? — estranhou Margaret, franzindo o cenho. — Nunca entendi para que tanta discussão em torno de uma palavra.

— Por causa dos homens! É uma questão de postura, e eu, pelo menos, já me cansei do teor machista e possessivo que transparece no termo “garotas”... Você, que já trabalhou com médicos, Margaret, deve ter notado o chauvinismo odioso e o excesso de paternalismo com que eles nos tratam...

— Tem razão, Army! Aliás, foi por isso que mudei o médico de minha mãe, há alguns anos. Ele conversava comigo como se eu fosse uma retardada e se recusava a me dizer os efeitos colaterais dos remédios que receitava para ela. Uma vez, vejam que absurdo, ele chegou ao cúmulo de me bater na cabeça como se eu fosse um cachorrinho, enquanto afirmava que aquele era o remédio mais indicado e que eu devia ir para casa sem me preocupar.

— E o que você fez, Margaret? Pediu a George para interferir? — indagou Taty, curiosa.

— Oh, não! Ele jamais entenderia minhas razões e tem verdadeiro pavor de escândalos... Assim, esperei que a enfermeira ligasse para confirmar uma consulta e dispensei-o, alegando que minha mãe estava melhor.

— E como você se sente quando seu marido nos chama de “garotas”?

— Esse é o menor dos defeitos dele, Army. E George não faz isso por mal... Se fosse questionado a esse respeito, inclusive, provavelmente diria que tentava nos agradar, fazendo com que nos sentíssemos jovens e bonitas. Para ser sincera, também uso esse termo quando me refiro às minhas amigas ou às minhas filhas.

Caminharam pensativas durante alguns minutos, até que Margaret quebrou o silêncio.

— Você alguma vez desejou voltar a ser jovem, Army?

— Francamente, já...

— Por quê? Caso houvesse chance, você escolheria uma vida diferente da que leva?

— Não sei, Margaret. Realmente, não sei...

Após uma ligeira hesitação, a enfermeira abaixou os olhos, acrescentando com voz trêmula:

— Também tive um aborto, uma vez.

— Quando, Army?

— Num 31 de outubro... Era uma manhã fria e chuvosa. Mas a dor havia começado dois dias antes...

— Já sentiu dor pior na vida?

— Nunca, embora eu tenha ouvido dizer que a dor de parir uma criança é muito maior.

— É verdade. Mas o aborto foi...

— ...horrível!

— Exato... Nunca vi George tão apavorado.

Fazendo uma pausa para umedecer os lábios, Margaret continuou:

— Quando abortei, precisaram me fazer várias transfusões de sangue, e ele só saía da minha cabeceira para doar seu próprio sangue. Fazia de conta que se sentia bem, mas quando melhorei não resistiu à fraqueza e adoeceu... Até essa época, eu nunca havia acreditado que ele se importasse muito comigo... Seu marido também deve ter ficado bastante perturbado, Army.

— Eu não era casada.

— Ora, isso é o de menos! O pai da...

— Ele sabia sobre o bebê — interrompeu-a Army. — Mas não conseguia se decidir sobre o que fazer. E eu também não tinha muita certeza de que ele fosse o homem certo...

— Homem certo?! — ironizou Taty, rindo. — Que tipo de homem é esse?

— Ah, você sabe, Taty. É aquele tipo que as mães em geral querem como genro — declarou Margaret, piscando para Army.

— Um homem estável...

— Responsável... — completou a enfermeira.

— Bem-sucedido.

— Em resumo, um homem interessante? — perguntou Taty.

— Para ser franca, querida, os homens interessantes não servem para maridos, concorda, Army?

— Por completo! Eu devia ter sabido disso naquela época. Sorte que, depois do aborto, nós nos separamos.

— E você nunca se casou, Army?

O tom de pena que havia na voz de Margaret deixou Taty com medo de que a enfermeira resolvesse responder enumerando os desprazeres de um casamento com uma pessoa do tipo de George Karpen.

— Não! Desconfio que não nasci para a vida caseira. E você, Margaret? Nunca teve vontade de recuar no tempo e abrir mão de seu casamento com George?

— Em absoluto! Claro que tivemos as nossas dificuldades. Mesmo assim, eu agradeço todos os dias por tê-lo ao meu lado.

Emocionada, deixou escapar algumas lágrimas, enquanto prosseguia:

— Às vezes, não posso evitar o medo de que ele sofra um derrame durante um acesso. Eu jamais suportaria ver George sofrendo como minha mãe... Por isso fiquei tão nervosa quando Christian nos separou ontem. Ah, sinto muito, Army, esqueci-me de que você não é casada.

— Garanto que não há razão para ter pena de mim, Margaret.

— Oh, Army, eu não queria...

— Sabe, às vezes é melhor ficar solteira... Quando completei vinte anos, tinha certeza de que iria me casar... Aliás, acho que isso acontece com todas nós, não é mesmo? Mesmo aos vinte e sete, na época em que abortei, eu ainda esperava encontrar o homem certo em alguma esquina, de repente. Ao entrar nos trinta, continuei sonhando, ansiosa por ter um filho. Aos trinta e quatro, tomei consciência de que meu príncipe encantado não existia.

Depois de um longo suspiro, Army prosseguiu:

— Nessa época, comecei a me sentir recompensada no meu trabalho; a resposta por um aprendizado duro, que eu nunca teria tido condições de fazer se fosse mãe...

Cabisbaixa, Taty analisou que em seu caso, no entanto, não havia a menor possibilidade de ocorrer uma mudança do gênero em sua carreira. Mais uns dez anos e Lawrence Anderson se aposentaria, o que a obrigaria a procurar um novo emprego, onde começaria do zero.

— Você deve estar próxima de uma fase do gênero, Taty... — ponderou Army, interrompendo-lhe as divagações. — Quantos anos você tem? Trinta e três?

— Boa memória!

— Você não deve querer muito um bebê. Então, no máximo daqui a dois ou três anos, sua carreira vai deslanchar.

— Trinta e seis anos... — murmurou Margaret, pensativa.

— Para as mulheres que se casaram logo após o colégio, essa é a idade em que os filhos caçulas entram na escola.

— Ai, minhas bolhas estão doendo! — reclamou Taty, estacando. — Alguém pode me substituir com o facão?

— Oh, claro! Deixe comigo, querida.

— Obrigada, Margaret! Army, por favor, você poderia me fazer um curativo?

— Talvez seja melhor passarmos apenas um pouco de pomada.

— Tudo bem! E aos quarenta anos, Army? Como foi completar essa idade?

— Hum, a essa altura já não alimentamos nenhuma esperança de amor. Bem, aos quarenta e dois anos, fui para a Itália, a fim de fazer um treinamento adiantado em quimioterapia de câncer da mama. Aos quarenta e quatro, subi o monte Kilimanjaro, na África, durante as minhas férias, e...

— Mas e o amor, Army? — interveio Margaret. — Você não sente falta de uma companhia? Não se considera muito solitária?

— O amor romântico não vale a pena! Sabe, nunca pude me considerar bonita. E, depois que a celulite apareceu no meu corpo e meu amante casado e ocasional sofreu um ataque cardíaco...

— E quanto a Earl, Army? — perguntou Taty, arrependendo-se no mesmo instante por ser tão indiscreta.

— Earl aparenta ser mais velho do que de fato é — comentou Margaret, como se quisesse empurrá-la a um romance.

— Earl é uma boa pessoa, mas às vezes tenho a impressão de que não passa de uma daquelas velhinhas solitárias e neuróticas.

— Pensei que... até disse a George que...

— Então, enganou-se, Margaret. Nem todos os animais estão marchando de dois a dois em direção à arca de Noé...

— E você e Christian, Taty? — lembrou Margaret, maliciosa.

— É mesmo! Como vão vocês dois? — interessou-se Army.

— Como tem coragem de me fazer uma pergunta dessas depois da sua defesa eloquente do celibato?

— Não espere demais, minha filha.

— Ora, Margaret, Christian é um homem que adora aventuras e quer viver sem compromissos. E eu sou uma mulher caseira, com minha vida estabilizada. O destino fez com que nos conhecêssemos em Galápagos, nada mais...

— Ele é um bom homem, Taty. Generoso, forte, responsável ...

— Army tem razão, querida. Acho que Christian é um dos raros homens que conseguem ser interessantes e responsáveis ao mesmo tempo.

“Uma exceção?”, perguntou-se Taty, reconhecendo que, de fato, Christian era interessante, atraente, afetuoso e também o amante mais excitante que uma mulher pudesse desejar... Mas, e daí? Ele não queria saber de qualquer tipo de compromisso, e fizera questão de deixar isso bem claro.

— Além do mais, Christian é solteiro... — continuava a enfermeira, alheia aos pensamentos conflitantes da amiga.

— Foi uma experiência importante ter conhecido Christian nesta viagem — declarou Taty em tom firme, colocando ponto final no assunto.

Às cinco horas, depois de transmitirem sua posição pelo rádio, resolveram descansar durante cinco minutos, a fim de beber um pouco de água. Tinham acabado de entrar no quinto retângulo e encontravam-se a menos da metade do caminho para o local de desembarque, ao norte.

— Vamos nos esforçar para continuar até as seis, aproveitando que o dia está fresco — incentivou Tony, pelo rádio.

— Daqui a uma hora, mais ou menos, poderemos nos encontrar e montar o acampamento, certo? Não se esqueçam de continuar procurando a companheira do Solitário George.

— Certo, Tony — murmurou Army, balançando a cabeça num gesto de desaprovação. — Você deve continuar a procurá-la sempre... Nunca desista das suas fantasias!

Uma hora mais tarde, quando as equipes se reuniram, o sol já se punha no horizonte, espalhando reflexos arroxeados pelo céu. A comida racionada foi logo consumida, e o restante, guardado para o desjejum da manhã seguinte.

Em seguida, foram todos para a cama, cansados demais para conversar.

— Boa noite a todos — despediu-se George, com um sorriso apagado. — Estaremos no barco ao meio-dia, e até lá vou sonhar com fatias de abacaxi gelado... Earl garante que vai comer um prato cheio de arroz com manteiga. Aliás, só falamos sobre comida durante toda a caminhada de hoje.

— Hum, que delícia! — exclamou Margaret. — E você, Army, com o que está sonhando?

— Com uma xícara de café bem quente.

— Infelizmente, só chegaremos depois do almoço, o que nos obrigará a ir com calma em nosso desjejum de amanhã — informou Tony, jogando um balde de água fria sobre os planos dos voluntários.

— Quanto tempo depois, Tony? — quis saber George, visivelmente desanimado.

— No passo em que estamos indo, creio que lá pelas três. Apesar de já não termos o peso da bagagem, faço questão de que terminemos nossa jornada do mesmo modo sólido e sistemático com que nos conduzimos até agora.

Embora fosse evidente que todos esperavam outra coisa, o tom do discurso do cientista fora tão firme que ninguém se atreveu a contestá-lo, e o assunto foi dado por encerrado.

No meio da noite, Taty foi acordada pelos movimentos de Christian, que se remexia, inquieto, no saco de dormir, com o olhar fixo no céu pontilhado de estrelas.

— Algum problema? — indagou ela, preocupada.

— Não, Taty. Está tudo bem... Volte a dormir — sussurrou ele, acariciando-lhe os cabelos.

Tranquilizada por seu tom calmo, Taty não custou a voltar a dormir. Entretanto, nem uma hora se havia passado quando os movimentos dele voltaram a despertá-la.

— O que foi, Christian? — insistiu, depois de alguns instantes.

— Vou interferir... Se fôssemos apenas Tony e eu, poderíamos continuar com o plano dele de procurar pelos penhascos, mas nem todos no grupo possuem a resistência necessária para isso. Portanto, devemos seguir em direção aos campos de lava a leste, onde caminharemos com maior rapidez. A partir dali, leva-se menos de quatro horas para se chegar ao ponto de embarque.

— Por que então Tony está se portando com tanta teimosia?

— Não sei! De qualquer modo, ainda dispomos de algum tempo para reverter isso. Ficarei sozinho com ele pela manhã e tocarei no assunto.

Compreendendo o quanto lhe custara aquela decisão de desafiar a liderança do cientista, quando o tempo inteiro empenhara-se em não fazê-lo, integrando-se à expedição como um membro qualquer, Taty beijou-o nos lábios com ternura e aconchegou-o contra os seios, esforçando-se por acalmá-lo.

Na manhã seguinte a fadiga estava estampada no rosto de todos.

— Café quente, pessoal! — gritou Army, esforçando-se por se mostrar animada. — Juro que beberei um bule de café, assim que puser os pés no convés daquele barco!

Alguns poucos sorrisos seguiram o comentário, enquanto George distribuía pedaços de chocolate para todos.

Feito isso, o gerente de vendas e Earl levaram Christian para um canto distante de Tony, que se ocupava em estudar um mapa. Os três conversaram apressados, e à medida que falavam pareciam mais seguros de si.

Mais tarde, quando as equipes se dividiram, Taty descobriu, através de um comentário de Margaret, que Christian garantira aos dois homens que eles iriam para o leste, em direção aos campos de lava, custasse o que custasse.

— Christian quer que Tony reconheça por si mesmo o que precisa ser feito — acrescentou Margaret, explicando-se. — Como descobriu a fraqueza de Tony tão depressa, Taty?

Surpresa, Taty enrubesceu e desviou o olhar, sem saber o que responder.

— Tony fez suposições... — começou, como se quisesse se desculpar. — Não, na verdade, eu o encorajei a fazer suposições, mas...

— Sou um pouco fora de moda, querida, mas entendo. Afinal, está de férias, e Tony realmente tem uma aparência esplêndida... E como você descobriu que amava Christian?

— Olhe, ela ficou vermelha, Margaret! — exclamou Army, provocando-a.

— Acho melhor ficarmos quietas se quisermos ouvir nossa tartaruga mítica — interrompeu Taty, embaraçada.

Uma hora depois sua cabeça doía por causa da falta de comida, e uma forte sensação de vertigem a fez cambalear. Como todas se sentiam assim, elas resolveram parar e tomar um gole de água cada uma.

Ainda bem que este é nosso último dia — desabafou Margaret, sentando-se no chão. — Sinto-me liquidada! Além do mais, as avós não deveriam estar aqui, fazendo tanto esforço.

— E as mães? — perguntou Army.

— Ah, sim, as mães! Estas dão conta de qualquer coisa.

— Tem certeza, Margaret? Acha que aguento ser mãe? Não pensa que seria idiota de minha parte adotar uma criança?

— Ora, qualquer criança seria afortunada em ter você como mãe. Você é uma mulher generosa, e seria idiotice sua gastar o amor que tem dentro de si com crianças crescidas como Earl, ou com homens casados.

— Esta caminhada idiota está me transformando numa boba — soluçou Army, comovida, enxugando furtivamente uma lágrima, antes de dar um abraço em Margaret. — Obrigada.

— Se precisar de ajuda, sou ótima para trocar fraldas. Adoro recém-nascidos!

Precisa-se de muito jeito para lidar com recém-nascidos. Mas George...

— Meu marido não serve para trocar fraldas, embora seja ótimo para muitas outras tarefas... Quando você pretende pegar o bebê?

— Que dia é hoje?

— Quarta, 24 de agosto.

— Bem, tenho um encontro na segunda-feira, 29, com o diretor do orfanato, em Quito.

— Que ótimo! Quer que eu fique? Se for precisar de recomendação americana, pedirei a George que transfira nossas passagens e...

— Você não acha mesmo bobagem, Margaret? Terei cinquenta e cinco anos quando a criança entrar na escola.

— Bem, não será fácil enfrentar todas aquelas mães jovens. No entanto, você já deve ter refletido sobre o assunto... A propósito, de onde conseguiu reunir tanta confiança para dar um passo importante como esse?

— No fundo, estou sendo profundamente egoísta. Não é uma coisa horrível? Acontece que no último inverno, me senti solitária demais... Tento justificar essa decisão, dizendo a mim mesma que é melhor para uma criança abandonada e faminta ter uma velha senhora como mãe do que não ter mãe nenhuma. Mas a verdade é que faço isso por mim mesma.

Lembrando-se de seu último inverno, chuvoso, cinzento e solitário, Taty não se conteve.

— Também vou adotar uma daquelas crianças abandonadas. Tenho um quarto extra em minha...

— Não diga bobagens, Taty.

— Por quê, Army? Sou tão solteira quanto você.

— Sua situação é diferente.

— Diferente por quê? Não tenho a menor intenção de me casar, e se posso salvar uma criança da fome e do abandono...

Tirando os óculos, Army fitou-a nos olhos, censurando-a com suavidade.

— Não desista ainda...

— Tomei essa decisão há muito tempo.

— Espere, Taty. Dê tempo ao tempo.

— Tempo para quem? Christian?

— Não, para você! Você mudou durante esta viagem, Taty. Enfrentou a morte, viveu em comunhão com a simplicidade da natureza e resistiu a esforços físicos enormes...

— Army está certa, querida — interveio Margaret. — Você está mudando por dentro, e vai voltar dessa viagem uma pessoa diferente. Dê tempo ao tempo e verá como suas emoções também serão outras. Que tal ser a tia do bebê de Army?

— Não quero continuar sendo a tia do bebê dos outros!

Sem se conter, Taty deixou que toda tensão acumulada se extravasasse num choro convulsivo, que a fazia soluçar.

— Tenho um pacote de maçãs secas, meu bem — falou Margaret, carinhosa, tentando acalmá-la.

— E eu, uma caixa de dropes de hortelã — acrescentou Army.

— Guarde os dropes, Army. Eles serão ótimos para quando tivermos de atravessar a lava quente esta tarde — sugeriu Margaret, pegando um pequeno pacote da mochila. — Sirvam-se das maçãs, agora. Nós todas precisamos renovar as energias.

— Obrigada, Margaret. Desculpem meu descontrole, mas...

— Taty, faça-nos um favor, sim? — interrompeu-a a enfermeira, decidida. — Mastigue estas maçãs como uma boa menina e continue com suas anotações.

— Depois de derramar todas essas lágrimas, aconselho-a a tomar um pouco de água também — brincou Margaret, com uma piscadinha.

— Bando de mães! Não sei o que me aconteceu... Sinto-me tão embaraçada! Em geral, tenho muito controle sobre meus nervos...

— Ora, hoje você é um monte de coisas diferentes das que era, Taty. Por isso, faça como eu e Margaret sugerimos: dê tempo ao tempo.

 

Na hora do almoço, quando as equipes se reuniram no limite do sopé da montanha, Christian já convencera Tony da necessidade de mudarem a rota original.

Passava um pouco das dez horas, e ele fotografava os voluntários, agachando-se sob um toldo improvisado. Usando lentes especiais, registrava os rostos cansados e abatidos.

Através delas, notou que a barba de Earl adquiria um tom acinzentado em que os fios brancos se misturavam aos castanhos, dando-lhe uma aparência abatida. George, Army e Margaret tinham uma expressão de desânimo. E Taty emagrecera bastante, com profundas olheiras arroxeando-lhe a região em volta dos olhos.

— Sobrou alguma coisa de seu estoque, Christian? Ainda tenho uma lata de ervilhas que podemos dividir — disse Taty.

Sossegado diante da firmeza que continuava transparecendo em sua voz, ele se aproximou, acomodando-se ao seu lado para dividirem a refeição.

— Sobremesa! — gritou George, distribuindo o resto de seu chocolate. — Qual é a exigência mínima de água para a sobrevivência de um organismo, Tony?

— O quê?

Observando-lhe a expressão deprimida, Taty sentiu um aperto no peito. Pela primeira vez, deu-se conta de que o cientista caminhara com mais empenho do que qualquer outro, apostando muito no sonho de encontrar outra tartaruga de Pinta.

Apesar das suas precárias condições físicas, Tony passou o cantil para o restante do grupo.

— Não se preocupem! De acordo com os livros, duas xícaras por dia é o mínimo indispensável. Mas nós chegaremos aos cantis que armazenamos dentro de umas quatro horas. Ah, sim! É melhor que todos abotoem o casaco, para evitar o risco de uma desidratação. Alguém quer a camiseta de volta para usar por baixo da roupa? Mais alguns arranhões não vão fazer muita diferença à carapaça. E... Bem, pessoal, obrigado por terem procurado a tartaruga com tanto empenho.

Emocionados, todos permaneceram em silêncio, secretamente felizes diante da proximidade do fim daquela jornada.

Mais tarde, durante a caminhada, Christian batia fotos, retratando a maneira desajeitada como todos tentavam equilibrar-se sobre montes de lava escorregadia.

Onde está o Garua? — reclamavam com o fotógrafo. — Que aconteceu com o vento?

Com o espírito alegre, todos provocavam o fotógrafo, que, sem deixar de bater suas fotos, dava o máximo de atenção a Hamilton.

Certo instante, porém, ele viu Taty enxugar o suor da testa e aproximou-se dela.

— Você é uma pessoa extraordinária, Tatiana Katanich! Está se dando o merecido destaque nas anotações? Não seja modesta, pois posso não me lembrar de todos os seus atributos! Preciso de ajuda para não esquecer.

Encarando-o, Taty lamentou que Earl o chamasse, impedindo-a de demonstrar o que pensava daquela declaração: “Preciso de ajuda para não, esquecer...” Tinha cabimento ele lhe dizer uma coisa dessas?

— Sugiro que adiemos nosso intervalo por trinta minutos, Christian — dizia Earl, excitado. — Vou preparar uma caneca de chocolate quente para todos mais tarde. Isso nos dará alguma coisa em que pensar durante a volta pela estrada.

— Estrada? — questionou Margaret.

Rindo, o engenheiro amarrou a camiseta em volta da cabeça, como se fosse um turbante, e gritou:

— Vamos, legionários! Sigam-me!

Dito isso, ergueu o facão como se fosse um sabre e pôs-se a correr pelos campos de lava.

— Não atire, senhor. Eu vou segui-lo — secundou Army, entrando na brincadeira e correndo atrás dele.

Pondo as mãos em concha em volta da boca, Taty provocou-os.

— Segunda infância, é? Vocês estão em pior forma do que eu pensava. Esperem até eu pegar meu bloco de anotações... Ah, que droga! Como é difícil andar em cima dessa lava!

— Só se você for uma adulta! — exclamou Margaret, também correndo ao encontro de Army e de Earl.

— Querida, vamos com calma! — protestou George, seguindo-a, desajeitado.

Sorrindo, Taty manteve o ritmo, na esperança de que Christian viesse caminhar ao seu lado. Não haviam estado juntos desde o começo da manhã, e ela sentia falta de sua companhia.

No entanto, ele parecia empenhado em manter-se sempre ao lado de Tony, o que a fez ficar enciumada. Afinal, os dois disporiam de tempo de sobra para conversar em Puerto Ayora, uma vez que Hamilton não voltaria para a Universidade do Arizona até meados de setembro. Em compensação, ela seria obrigada a partir de qualquer maneira dali a dois dias...

Espantada com sua própria reação possessiva, Taty resolveu apressar o passo e, ignorando o solo perigoso debaixo dos seus pés, logo alcançou os outros.

— Chegou a tempo de ganhar dropes de menta — anunciou Army, recebendo-a com um sorriso.

Durante as horas que se seguiram, o humor de Taty, assim como o do resto do grupo, variou muito, indo desde a euforia até a angústia.

Christian conversava com todos, fazendo perguntas sobre suas casas, seus trabalhos, seus livros favoritos ou os lugares que haviam visitado, transmitindo assim um pouco de sua energia para cada um deles.

— Inferno! Meu tornozelo... — gritou Tony, de repente.

Droga! Quase conseguimos — praguejou Christian, fazendo com que todos corressem em direção aos dois.

Enquanto Christian o libertava da bagagem, que tinha a carapaça da tartaruga no topo, o líder da expedição, com o rosto pálido, apoiava-se em Earl.

Pegando o estojo de primeiros socorros, Christian entregou-o a George, que ajudara Tony a sentar-se sobre uma pedra e desatava o laço de sua bota de cano alto. Ignorando as lavas pontiagudas, Army ajoelhou-se, examinando com cuidado o tornozelo do cientista, que cerrava os dentes para suportar a dor.

— Se precisarmos fazer uma tala, poderemos usar os suportes de alumínio da minha bagagem — disse George sem a habitual afobação.

— É estranho! Não sinto nenhuma fratura — respondeu a enfermeira, concentrando-se no exame.

— Ainda tem chocolate, George? — indagou Earl, que despejara um pouco da água do seu cantil numa caneca e acendera o isqueiro.

Nesse momento, Margaret abriu a bagagem do marido, espantando-se.

— Ora, George, seu endiabrado! Olhe só esse monte de chocolate aqui!

— Temos de extrair energia de algum lugar para nadar em direção ao Panda, meu bem — explicou ele, com um sorriso maroto.

— Vamos usar uma bandagem de borracha — declarou Army, levantando-se. — O que você acha, Tony? Esse tornozelo costuma lhe dar problemas?

— Não! Deve ter sido apenas uma luxação estúpida...

— Sim, é verdade — concordou ela, enfaixando-lhe a perna.

— O chocolate já está pronto, Earl?

— Quase, George! Será que dentro de uns trinta ou quarenta minutos estaremos na enseada, Christian?

— Você é que conhece estas ilhas, Hamilton... Qual é sua estimativa?

Emocionada, Taty compreendeu que ele se esforçava para não usurpar a posição do líder e admirou-o por esse gesto.

— Antes que isto acontecesse, seriam uns trinta ou quarenta minutos.

— E agora? Quanto tempo acredita que levaremos, Hamilton?

— Gostaria de lhes prometer uns cinquenta minutos, mas não sei. Sinto muito...

— Levante-se, Tony. Vamos. Vamos ver o que se pode fazer com você apoiando-se em mim — sugeriu Army, ajudando-o.

Obedecendo, o cientista ficou pálido de dor ao apoiar-se sobre a perna machucada, mas não soltou um único gemido.

— Desconfio que levaremos uma hora e meia ou mais... — declarou, abatido.

— Ora, tudo bem — incentivou-o George, pegando a bagagem e entregando a carapaça a Earl. — Creio que é melhor você carregá-la. Não confio em mim até voltar àquele curandeiro e reiniciar a medicação contra os acessos.

— E os direitos iguais? Também posso ajudar.

— Não se preocupe, Army. Infelizmente, nossa bagagem está bastante leve.

Depois de uns dez minutos de caminhada, Tony iniciou um passo determinado, apesar da dor.

Curiosamente, foi aí que Taty resolveu parar e tirar algumas pedrinhas dos seus tênis. Logo depois, foi Earl quem parou a fim de amarrar o laço dos sapatos. Algum tempo depois, foi a vez de Army interromper a caminhada, pois se lembrara de que ainda tinha dropes na bagagem.

Depois da sexta interrupção, Christian sorriu diante do estratagema do grupo, dizendo:

— Vocês foram uma grande equipe, juro que eu não me incomodaria de ficar preso numa ilha deserta tendo vocês por perto.

Diante do comentário, todos começaram a rir, o que ajudou a diminuir a tensão que se formara.

Quando, finalmente, chegaram à enseada onde haviam armazenado os recipientes com água, as ondas deixavam um rastro de espuma branca na praia e a linha do mar se perdia no horizonte. Só que não havia nenhum barco à vista...

— Mas como posso saber onde esse maldito barco se meteu?

— Calma! Não seja tão defensivo, Hamilton! Ninguém o acusou de nada! — retrucou Army. — Tem certeza de que esta é a localização, Christian?

Compreendendo que o cientista estava transtornado devido à dor e ao cansaço, o fotógrafo assentiu com um gesto de cabeça.

— É aqui sim, Army. Lá estão os nossos cantis.

Todos olharam para os dois recipientes escondidos numa fenda, depois voltaram a concentrar a atenção no oceano.

— O que acha, Christian? — perguntou George. — Podemos beber água, fazer nossas barbas e esperar que o barco chegue nos próximos quarenta minutos antes de o sol se pôr, ou não?

— Gostaria de lhe dizer para ir em frente, George, mas creio que não devemos nos arriscar. O que você acha, Tony? Ouviu as mesmas histórias que eu sobre pesquisadores que chegaram a esperar até por uma semana que o barco viesse buscá-los?

— Uma semana?! — assustou-se Margaret. — Mas hoje é quarta-feira, e nosso avião parte no sábado! As crianças nos esperam de volta para casa na...

— Ora, querida... Podemos telefonar para eles de Quito.

— Dois ou três dias é a pior das hipóteses — previu Christian, depois de esperar durante algum tempo que Tony se pronunciasse. — Mesmo porque fomos nós que nos atrasamos. Deveríamos ter chegado aqui ontem à noite. Talvez eles tenham nos esperado o dia todo, resolvendo depois ir pescar. Mas se não voltarem na próxima meia hora, a maré vai estar baixa demais para que arrisquem o Panda. Por isso, sugiro que enchamos nossos cantis agora. Assim, teremos ideia de quanta água poderemos consumir.

Após a distribuição de água, Christian sugeriu:

— Por que não dão a Taty um resumo dos seus... dos nossos sentimentos em relação à busca? Agora, essas anotações têm o cunho de Taty, o que me inclui na situação de observado. Para ser franco, preciso admitir que me causa uma sensação estranha pensar que também estou do outro lado da caneta.

Em resposta, George e Margaret deram uma risadinha.

Tony, porém, franziu o cenho, aborrecido.

— Tenho pensado em conversar sobre esse capítulo com você, De Vos — anunciou, num misto de agressão e medo.

Adivinhando o que ele iria dizer, Army adiantou-se.

— Toda aventura tem seu preço, Hamilton. Você estava impaciente para que Christian registrasse sua glória aqui em Pinta. Em compensação, tinha consciência de que corria o risco de um fracasso...

Com raiva, Tony voltou-se para a enfermeira, fuzilando-a com o olhar.

— Eu sabia o risco de ter um jornalista nesta excursão. Sempre no meio do caminho, atrasando a pesquisa, para alimentar as horas de lazer do resto do mundo com notícias imprecisas e tendenciosas. De Vos jamais teria vindo se coubesse a mim a última palavra. E agora tenho vocês dois aqui, um experiente redator de informações distorcidas e uma secretária. Registrou essa acusação de incompetência, Taty? Lembro-me de ter pedido voluntários... Está anotando isso, ou escreve apenas aquilo que interessa à imagem de seu atual amante?

Atônita, ela o fitou paralisada, sem saber como reagir.

Relanceando um olhar pelo grupo, notou que Margaret e George disfarçavam, embaraçados... Por mais que gostassem dela, dois amantes em quinze dias era demais para eles...

Apesar de seu temperamento explosivo, Earl também parecia atônito, enquanto Army cerrava os punhos com força.

De repente, Christian começou a rir, chocando a todos com sua reação. Para completar, ele a enlaçou pelos ombros, enfatizando que estavam juntos. Diante disso, Tony reagiu como um animal ferido.

— Suas habilidades, ou ausência delas, não me dizem respeito, a não ser quando ela as usa para me ridicularizar diante do mundo.

— Este é o meu livro, Tony. Do que tem medo? Você quer começar o trecho sobre Pinta, ou talvez alguém mais se ofereça como voluntário para a tarefa?

Calmamente, Christian olhou para o grupo, mas ninguém reagiu.

— A coisa que temo são as suas mentiras — gritou Tony, fora de si.

— Por que Taty iria mentir nas anotações, Tony? Por que eu iria mentir no meu livro? Alguma vez fiz referências desagradáveis sobre sua capacidade profissional? Por que acha que o faria agora? Talvez você queira começar de novo e contar a todos sobre os amantes de Taty...

— Você quer saber por que Taty mentiria? Porque ela é uma manipuladora! Fui um tolo, e espero que você não seja outro, De Vos, embora os dois se mereçam. Ambos adoram usar as pessoas.

Suspirando fundo para recuperar a calma, Taty resolveu intervir e tentar acalmar aquela discussão.

— Ouça, Tony, reconheço que errei ao incentivá-lo. Sinto muito, e já lhe disse isso antes. Mas não posso fazer nada se me apaixonei por Christian. Não deve ter sido fácil para você...

“Nem será fácil para mim quando terminar”, pensou, calando-se.

— E quem disse que me importo com o número de homens que você tenha?

A voz agressiva de Christian cortou o ar.

— Hamilton... você trouxe esse assunto à tona duas vezes, perante uma audiência. Agora, quero que o termine, contando a todos a verdade de seu caso com Tatiana!

— Sobre as provocações dela?

— Sobre a sua perseguição e presunção — retificou Christian, aproximando-se com os punhos fechados. — Você não é capaz de enfrentar uma recusa?

— Parem com isso! — gritou Taty, à beira de uma crise nervosa. — Nunca houve caso nenhum! Ninguém está em seu juízo normal. Todos estão cansados, com fome, e falar disto agora não tem o menor cabimento!

— Pois sugiro que devoremos um jantar de chocolate! — interrompeu George, servindo um pedaço de chocolate para cada um.

No entanto, o retorno ao equilíbrio foi lento, e Taty sentia um misto de pena e raiva de Tony. Compreendia a razão de ele ter agido daquela maneira, porém jamais o perdoaria por haver criado uma situação de tensão tão grande que a levara a confessar em público seu amor por Christian.

Christian, por sua vez, não ficara surpreso com o desabafo de Taty. Em compensação, ainda não compreendera sua própria reação. Sabia que não existira nenhum relacionamento entre eles, mas reconhecia que, se George não tivesse interferido, acabaria agredindo o cientista.

Preocupado com Taty, queria abraçá-la e reconfortá-la. Ao mesmo tempo, temia desistir de sua liberdade, prometendo que a amaria...

No fundo, sabia que só precisava de tempo para se acostumar com a ideia. E talvez isso pudesse ser resolvido com a permanência de Taty em Puerto Ayora. Havia lugar no hotel em que estava hospedado, e ela ainda dispunha de outra semana de férias. Por que não tentar?

Esforçando-se para afastar essas ideias confusas, Christian disse a si mesmo que a prioridade naquele momento era impedir que as relações entre os membros do grupo chegassem a um nível de tensão insuportável.

Assim, forçou um tom de voz impessoal, que não traísse sua raiva, e dirigiu-se ao líder do grupo.

— Gostaria de saber suas impressões sobre os resultados gerais da pesquisa. Talvez, enquanto você come seu chocolate, Taty possa fazer as anotações... Temos conversado sobre vários aspectos de sua pesquisa, mas eu gostaria de ver todos os dados reunidos.

Vendo que Taty abria o bloco de anotações, Tony começou a fazer uma breve retrospectiva de sua formação acadêmica, enfatizando os prêmios que ganhara na área.

— O que o envolveu na organização desse estudo?

Aos poucos, a personalidade e a autoestima de Tony foram voltando, e ele descreveu o modo como desenhara o equipamento técnico e reunira os grupos mistos de americanos e alunos graduados equatorianos. Explicou também a jogada política que enfrentara para convencer a Globeprobe a aceitar seu projeto, além da grande habilidade diplomática que tivera para obter permissão do Parque Nacional Equatoriano, uma vez que os grandes grupos de pesquisa em geral não eram aceitos naquele território.

Quando ficou tarde demais para continuar escrevendo, Taty levantou-se, começando a afastar-se. Entretanto, foi impedida por um gesto de Tony, que fez questão de desculpar-se.

Após ouvi-lo, ela o encarou, desafiante.

— Eu me havia desculpado por ter prometido mais do que poderia dar, e voltei a me desculpar em outro momento... Tony, nunca vou perdoá-lo por aquilo que disse hoje.

— Ouça, Taty, sinto muito. Eu estava cansado, sentindo dor e...

Pelo rabo dos olhos, Taty viu Margaret limpando o chão, onde seriam esticados os sacos de dormir.

Margaret, agora, era uma mulher firme e decidida, que já não escondia suas decisões e ideias atrás de frases titubeantes.

Incentivada pelo progresso da amiga, Taty encarou-o de frente.

— Entendo que você me fez parecer uma mulher vulgar e barata para salvar sua própria estima. Porém, não perdoo essa fraqueza em seu caráter. E antes que você torne a questionar minhas anotações, quero que saiba que registrei a força de sua ética e vi seus sonhos e quanto você trabalhou para que eles se realizassem. Boa sorte.

Mudo, Tony continuou sentado, vendo-a afastar-se.

— Você ainda tem analgésico, Army? — perguntou Taty, apertando as têmporas e encerrando o assunto.

Sinto, Taty, mas acabou.

— Ainda tenho alguns no meu estojo de primeiros socorros — ofereceu Tony, arrependido. — Alguém mais quer?

— Obrigada, Tony — respondeu ela, estendendo a mão para apanhar um dos comprimidos.

Deitada, Taty aconchegou-se nos braços de Christian, que a acariciava de leve, passando os dedos pelos seus cabelos.

Ambos sabiam que havia muita coisa para dizer... Mas o momento era prematuro, e o assunto, íntimo demais para ser resolvido diante de estranhos. Principalmente agora, que o medo e a expectativa pelo que iria acontecer nos dias seguintes poderiam distorcer qualquer perspectiva.

 

— Taty... Acorde... — sussurrou Christian, sacudindo-a de leve.

— Que foi?

— Olhe lá! — pediu, apontando em direção ao sul.

— Já está amanhecendo?

No horizonte havia um tom rosado, perto do Cruzeiro do Sul. No entanto, a lua continuava cheia.

— Acho que é uma erupção, em Isabela ou em Fernandina. Tony! — chamou erguendo a voz. — Ei, Tony! Acho que aquilo lá é uma erupção, certo?

— Não sei... Já ouvi dizer que as fontes de lava costumam iluminar o céu, mas geologia nunca foi o meu forte.

— Que sorte! — exclamou Christian, de súbito, levantando-se. — Sempre quis ver uma erupção. Existe uma média de uma a cada dois anos por estes lados, mas nunca se sabe quando pode acontecer. Espero que esse maldito barco esteja perto. Os vulcanologistas do Instituto Smithsonian, de Washington, provavelmente convencerão a Força Aérea Americana a voar com eles até lá para um reconhecimento. Eu poderia juntar-me a essa comitiva para tirar algumas fotos aéreas.

— Estamos em perigo? — indagou George, acordando, assustado. — Você está dormindo, Margaret?

— Não corremos nenhum perigo! Só espero que não seja em Alcedo — murmurou Tony, aproximando-se de Christian.

— Esta viagem foi um desastre total. Pode imaginar a avaliação da Globeprobe? Naufrágio, fracasso da caça à tartaruga, acampamento coberto de lava...

Numa admirável demonstração de autocontrole, Christian convenceu todos a voltarem a dormir. E, quando acordaram, às seis e meia, ele os entreteve contando estórias engraçadas sobre suas aventuras.

Pretendia com isso amenizar a tensão do grupo pela espera do barco e chegou até a tirar fotos de todos nas poses mais informais, prometendo que aquelas seriam apenas para sua coleção particular e que lhes mandaria cópias pelo correio.

Horas mais tarde, quando o sol já ia alto no céu, Tony apontou para o mar, entusiasmado.

— Olhem, até que enfim! É o barco dos pescadores... Vamos sair daqui! Ei, Christian, acredita mesmo que teremos uma erupção? Puxa, eu adoraria colher algumas informações sobre os efeitos dela sobre as tartarugas. Se o calor aumentar demais, como será que elas esfriam o corpo para não morrer?

— Bem, tudo o que quero é um belo café da manhã — desabafou George. — Panquecas com manteiga, ovos estrelados, bacon frito e suco de laranja fresco...

— Suco de laranja concentrado e congelado, você quer dizer, não é, meu bem? — provocou-o Margaret.

— E café fresco e moído na hora...

Quando subiu a bordo, porém, George aceitou com alegria uma xícara de café solúvel mesmo.

— Ora, ora... — suspirou Army. — Eu deveria trocar estas roupas imundas — Eu deveria trocar estas roupas imundas antes de qualquer coisa, mas não posso resistir a esse abacaxi... Que delícia! — exclamou, comendo uma imensa fatia da fruta.

Faminta, Taty comia um pedaço de queijo, quando Christian e Tony voltaram da casa das máquinas, e o cientista anunciou:

— O capitão também não sabe nada sobre o vulcão, mas viu a luminosidade.

— Os rádios não estão funcionando, Tony?

— Nesses barcos pequenos o alcance da frequência é de uns sete ou oito quilômetros, George. No fim da tarde, quando chegarmos mais perto da área dos turistas, teremos mais informações, pois encontraremos outros barcos.

Enquanto Christian fotografava o grupo, Taty foi até a cabina e pegou sua garrafa de rum, voltando a seguir.

— Conseguimos! — exclamou, bebendo um gole de bebida e passando a garrafa adiante.

— Aos nossos corpos aquecidos! — brindou o engenheiro, devolvendo a garrafa a Taty, que ingeriu outro trago.

— Ao sono! — brindou.

— A nós! — disse Army, ao receber a bebida.

— Às anotações de Taty e às malditas verdades que elas contêm — disse Margaret quando chegou sua vez.

— Hum, vou beber um gole por causa desse brinde. — Levantando a garrafa em direção a Christian, Taty acrescentou: — E vou beber novamente em homenagem a Christian, que me deixou ajudá-lo.

Com a expressão grave, ele não participava da confraternização, ocupado em arrumar seu equipamento fotográfico.

No sexto brinde, Taty reparou que ele olhava para o relógio e parecia pensar em sua próxima aventura.

— Às lembranças... — provocou-o, fitando-o nos olhos.

— Chega de anotações, chega de fotos... Este é um brinde duplo para que nós nunca nos esqueçamos...

Após ingerir mais um pouco de bebida, passou a garrafa de rum para Christian, que se limitou a segurá-la sem beber.

— Ora, vamos lá! É um cachimbo da paz — incentivou-o Tony.

Recolhido em si mesmo, Christian tentou sorrir, mas não conseguiu.

— A todos vocês, os melhores companheiros que um homem pode ter... numa ilha deserta — disse, devolvendo a aguardente a Tony.

Depois, com a paciência e o cavalheirismo que faziam parte de seu caráter, aguentou mais duas rodadas de brindes, antes de despedir-se, polidamente.

Na cabina, deitou-se num beliche de baixo, deixando o de cima, que dispunha de uma portinhola e de ar fresco, para Taty.

Minutos mais tarde, ao entrar, ela se despiu, ficando só de roupas íntimas, e subiu para o beliche de cima, cujos lençóis limpos eram um convite ao sono.

Há somente duas semanas, Taty jamais cogitaria a ideia de ficar embriagada num barco de pesca logo pela manhã, ou mesmo de sentir-se tão próxima de pessoas como George e Margaret, Army e Earl, ou até mesmo Tony.

E agora, esses eram os seus melhores amigos, aqueles a quem confiaria sua própria vida.

Com lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto, ela lamentou que Christian não fizesse parte dessa lista. Logo ele seria apenas uma lembrança. Jamais se tornaria um amigo para sempre...

No meio da tarde, quando acordou, Taty sentia muita tontura e náuseas por causa da bebida e do cheiro de combustível.

Christian, que se levantara uma hora antes, já tinha a informação de que a erupção ocorria no vulcão Darwin, uma cratera diretamente ao norte de Alcedo, conforme havia explicado o capitão de um dos barcos turísticos que os contatara.

Agora, o barco deles iria pegar os outros voluntários da Globeprobe, em Alcedo, onde Tony ficaria, a fim de aplicar alguns testes nas tartarugas estudadas. O Dr. Lucho, em compensação, partiria para Puerto Ayora com o grupo, que se instalaria nos dormitórios da Estação Darwin até o sábado seguinte.

Assim, a tarefa de recepcionar os novos voluntários e garantir que os antigos chegassem ao aeroporto na ilha de Baltra ficaria a cargo do professor equatoriano.

— Hamilton ainda não sabe onde acomodar os novos voluntários — comentou Christian, depois de informar Taty das últimas novidades. — Ninguém sabe dizer se essa é uma erupção de pequeno ou de grande porte, e talvez seja arriscado permanecer em Alcedo.

“Com certeza você está rezando para que seja uma grande erupção”, pensou Taty, entre irônica e enciumada.

No entanto, permaneceu em silêncio, e após um suspiro profundo, o belga completou:

— Devemos ancorar em Puerto Ayora amanhã, às sete horas.

Isso me dará tempo de providenciar alguns filmes e alcançar o ônibus para Baltra, às oito...

Mal prestando atenção às palavras dele, Taty tentava arranjar um jeito de se desculpar pelos excessos que cometera devido à bebida, além de estar curiosa para descobrir como Christian se sentia diante da separação próxima. Mas, sem coragem de abordar o assunto, acabou perguntando, em tom distraído:

— Você já viu uma erupção antes?

— Infelizmente, nunca... Aposto como os editores da revista vão pular de alegria quando souberem das novidades. Meu editor-chefe é tão teimoso como você, Taty — completou, tomando-lhe a mão e levando-a aos lábios.

Nos minutos que se seguiram, os dois conversaram sobre as erupções de Galápagos e suas semelhanças com as de outros pontos vulcânicos da Terra.

— Devo tomar notas dessas coisas? — indagou ela, de súbito.

— Não, obrigado. Os vulcanologistas me darão as informações de que preciso.

“Em outras palavras, você já não precisa das minhas anotações... Entendi o recado, Christian”, disse a si mesma, limitando-se a assentir com um gesto de cabeça, enquanto ele prosseguia:

— Talvez eu siga viagem com o pessoal da Universidade do Oregon. O grupo do Smithsonian já deve estar a caminho... Com um pouco de sorte, talvez eu ainda possa alcançá-los...

— Levantando-se de um salto, afastou-se: — Com licença, Taty. Preciso usar o rádio.

— Boa sorte.

— Cruze os dedos por mim. Até agora tivemos muita sorte.

— Sorte?! Quase morremos!

— Ora, Taty... Quando você se divertiu tanto em sua vida? Essa vai ser a melhor história que já escrevi! Pense nas coisas que vivemos... Além disso, nós nos conhecemos...

Dito isso, foi ver o capitão, deixando-a intrigada com aquele comentário.

A bem da verdade, sentia inveja da nova aventura que Christian iria enfrentar.

Logo depois, Christian a avisou que localizara um grupo de cientistas da Estação Darwin pelo rádio. Estavam a caminho da erupção, mas haviam concordado em esperar por ele.

Sem perder tempo, o fotógrafo afastou-se dela e pôs mãos à obra, enchendo seus cantis de água e empacotando latas de alimentos.

No final da tarde, quando aportaram numa pequena enseada no vulcão Darwin, todos correram para assistir à erupção.

— Taty! Taty, onde está?

Saindo de perto do grupo, ela o acompanhou até a cabina traseira, consciente de que chegara a hora do adeus.

Assim que se viu a sós com ela, Christian deu-lhe um sorriso carinhoso, comentando:

— Os dormitórios da estação são quentes demais e ficam longe da cidade. Por que você não usa meu bangalô no hotel? Tem bastante espaço no armário, e meu quarto se localiza no alto da colina, o que o torna bastante arejado.

Em seguida, acariciou-lhe o rosto, num gesto cheio de ternura que a fez estremecer.

Engolindo em seco, Taty esforçou-se ao máximo para disfarçar a perturbação. Sentia-se angustiada, e por mais que evitasse, as lágrimas insistiam em subir-lhe aos olhos, obrigando-a a desviá-los para ocultá-las.

— Durma bastante e descanse na praia... Vou encontrá-la lá na semana que vem, Taty?

Surpresa, ela levantou a cabeça, fitando-o nos olhos. Então, Christian também desejava prolongar o relacionamento dos dois e, disfarçadamente, lhe pedia que o aguardasse!

Com um sorriso emocionado, ela o abraçou, beijando-o de leve.

Nesse instante, o capitão aproximou-se, chamando por Christian, que o seguiu.

Dominada por uma repentina euforia, Taty pôs-se a planejar o que faria durante a semana seguinte. Bem, sem dúvida, teria um bocado de trabalho para organizar as anotações sobre os integrantes do grupo e ordená-las de maneira coerente, em capítulos.

Pensava nisso quando ouviu passos descendo para a cabina. Era Tony, à procura de seu equipamento. Afinal, logo chegariam a Alcedo, onde ele se separaria para sempre do grupo.

Num impulso, Taty acercou-se do jovem cientista.

— Tony, você fez muitos sacrifícios em virtude de seu trabalho ... A biologia de campo deve ser uma das profissões mais absorventes e solitárias que uma pessoa pode escolher.

— Desconfio que fui escolhido por ela, Taty.

Aproximavam-se da enseada de Alcedo, e já se podiam ouvir os gritos dos outros voluntários. Foi então que Taty resolveu fazer a pergunta que estava em sua garganta há algum tempo:

— Você acha que seu trabalho durante essas duas semanas valeu a pena?

— E você? O que pensa disso?

— Ora... por que eu? Não sou cientista!

— Sabe, Taty, percebi que nenhum dos voluntários da Globeprobe veio a Galápagos apenas para tirar férias. Todos usaram o lugar como catalisador de alguma mudança a nível pessoal. Esta viagem valeu a pena para você?

— Sim... embora tenha sido muito diferente do que imaginei. Não sei ainda me explicar melhor do que isso. Preciso de tempo para refletir sobre o assunto. Para ser franca, não entendo direito tudo o que aconteceu comigo. Talvez eu tenha aprendido a me conhecer melhor, enxergando além de mim mesma e de minha própria vida.

— Venga, venga, Dr. Hamilton! — chamou-o o capitão, depois que os voluntários de Alcedo embarcaram.

Ao vê-lo apanhar a bagagem e despedir-se com um aceno tímido, ela correu até o jovem cientista, beijando-o no rosto com infinita ternura.

— Obrigada por tudo, Tony.

— Boa sorte, Taty. Mande notícias quando chegar em casa. Pode escrever um cartão-postal aos cuidados do Departamento de Biologia da Universidade do Arizona, em Tucson, que ele chegará às minhas mãos.

— Boa sorte para você também, Tony. Encontre a resposta para a evolução, sim? Como as criaturas mudam...

Ele sorriu, com uma expressão marota que não usava há dias e, mancando, entrou no Panda.

— Como evoluímos, Taty? É simples: dolorosamente! — gritou, acenando enquanto a pequena embarcação se afastava.

 

Em Puerto Ayora, o grupo se empanturrou de lagosta fresca, peixes e pratos típicos da região. Taty, Army, Earl, Margaret e George passaram horas sentados debaixo dos guarda-sóis das lanchonetes, bebendo cerveja gelada e observando os pelicanos, que mergulhavam à procura de comida.

— Eu devia começar a datilografar as minhas anotações — argumentara Taty quando os quatro tinham ido buscá-la no bangalô de Christian, naquela manhã.

— Ora, Taty! — protestara Earl, animado. — Você está de férias, Katanich. Coloque a roupa de banho e vamos embora.

Em seguida, os cinco haviam alugado um barco a motor, dirigindo-se para a deserta praia de Tortuga, onde nadaram e viram tartarugas-marinhas.

De volta a Puerto Ayora, tinham comido pão de banana quente e comprado cartões-postais. À noite, dançaram numa discoteca improvisada, e no sábado pela manhã, quando fora despedir-se deles no ônibus das oito, Taty derramara algumas lágrimas lamentando o fim da aventura.

— Nós escreveremos — gritara Army, da janela. — Adeus, tia Taty...

— Telefone para nós assim que chegar — pedira Margaret, acenando.

— Para mim também! — falara Earl. — Não esqueça...

Minutos mais tarde, de volta ao bangalô, Taty foi procurada por um capitão que lhe trazia notícias de Christian.

Com voz pausada, o oficial lhe informou que Christian mandara uma mensagem pelo rádio, pedindo alguns rolos extras de filme. Depois de providenciá-los, então, Taty deveria levá-los ao aeroporto, no domingo, quando um grupo de cientistas alemães chegaria de Frankfurt rumo a Darwin.

Após providenciar tudo o que ele lhe pedira, Taty decidiu passar o resto do dia no bangalô.

O quarto era claro e fresco, e havia vários livros na estante, além de diversas edições do jornal De Standaard.

Sentando-se à escrivaninha, Taty deparou com alguns papéis de carta timbrados, e leu: “Christian de Vos,. P.O. Box 1265, Teton Village, Wyoming 82301, USA”.

Com cuidado, dobrou uma das folhas e colocou-a junto de seu passaporte, guardando-os na bolsa.

No domingo de manhã, acordou cedo e dirigiu-se ao aeroporto. Após uma espera de três horas, encontrou os cientistas e entregou-lhes a encomenda.

Muito gentis, os alemães a convidaram para acompanhá-los, o que fez os olhos de Taty brilharem de entusiasmo. No entanto, recusou a oferta.

Os alemães garantiram que voltariam dentro de uma semana... E, dentro de uma semana e um dia, ela precisaria retomar seu trabalho... E Christian? Quando chegaria?

A princípio, ela o esperava na segunda ou terça-feira, mas ele pedira mais filmes, o que podia indicar uma mudança de planos...

Na segunda de manhã, Taty pegou a bicicleta de Christian e decidiu conhecer o escritório dele na Estação Darwin. Foi muito bem recebida pelo assistente do diretor, que lhe trouxe o microcomputador portátil de Christian, onde Taty pôs-se a trabalhar.

Fascinada pelas anotações, mergulhou no trabalho, até que lhe avisaram que chegara a hora de fechar. Como fora ingênua no começo da viagem, quando atribuíra significados e interpretações completamente superficiais e estereotipadas aos demais membros do grupo!

Na quarta-feira, durante a hora do almoço, um funcionário da estação aconselhou-a a apressar-se para reservar lugar no voo para o continente, pois os aviões sempre partiam lotados.

Solícito, o rapaz arranjou-lhe inclusive uma carona para que fosse até a cidade, junto com alguns trabalhadores.

Para tristeza de Taty, o avião de sábado já se encontrava lotado, e não havia voos na sexta.

Com o coração acelerado, ela ponderou que já era quarta-feira, e ainda não se preparara para ir embora.

E... e domingo? — perguntou, pensando em passar um telegrama para Lawrence Anderson, avisando-o de que chegaria com um dia de atraso.

Entretanto, também não havia voos no domingo, o que a fez gelar. Não podia sequer pensar no risco de prolongar suas férias por dois dias além do prazo...

— E para amanhã? — indagou, o coração apertado.

— Podemos incluí-la na lista de espera, senhorita. É comum haver desistências durante a semana.

— Está bem, obrigada — concordou, consciente de que não podia arriscar-se a perder o emprego, onde recebia um dos mais altos salários de secretária da península de Monterey.

De volta à estação, Taty rezava para que houvesse um milagre que lhe permitisse arranjar um lugar no voo de sábado e, assim, poder esperar por Christian.

Naquela noite, trabalhou até tarde, terminando suas anotações com a despedida de Tony:

“Como evoluímos? É simples: dolorosamente!”

Dando o trabalho por encerrado, deixou a cópia que fizera para Christian em cima da escrivaninha dele, com um dicionário espanhol-alemão por cima.

Em seguida, guardou os originais na bolsa e saiu, trancando a porta do escritório atrás de si.

Após um sono agitado, acordou ansiosa, esperando que Christian chegasse de uma hora para outra, abraçando-a e pedindo-lhe que ficasse ao seu lado para sempre.

Sacudindo a cabeça para afastar esses devaneios, refletiu que nada nas suas anotações indicava que Christian houvesse mudado.

Ele assumira a responsabilidade do grupo em Pinta, e sem dúvida apaixonara-se por ela. Mas bastara que uma nova aventura surgisse para que se esquecesse de tudo, envolvendo-se nela por inteiro.

Depois de lutar consigo mesma durante longo tempo, Taty arrumou as malas, tomou uma ducha e vestiu um traje apropriado para a longa viagem que teria pela frente.

“Está na hora de voltar para casa”, escreveu num pequeno bloco de notas e, deixando-o sobre a escrivaninha, saiu.

Um dos barcos fretados por um grupo de vulcanologistas deixou o vulcão Darwin na quarta-feira à noite. Christian viajava dentro dele, satisfeito com as fotografias que tirara e com as anotações que fizera.

Embora tivesse desejado caminhar até um ponto mais distante, acompanhando o grupo de Frankfurt, resolvera abrir mão daquele desafio. Estava cansado de aventuras, e tudo o que queria resumia-se em sentar-se numa cadeira de balanço e observar a paisagem com Taty ao lado.

Não conseguira dormir bem desde que a deixara, e mal continha a ansiedade de revê-la.

Mas o que iria dizer a ela quando chegasse? “Olá, senti saudades suas?” Ou: “Você pode ficar mais alguns dias? Se quiser voltar para cá, pago a passagem?”

Impaciente, passou os dedos pelos cabelos espessos, certo de que aquele tipo de arranjo nunca daria certo, pois estaria exigindo que Taty pusesse em jogo seu emprego.

Então, por que não a convidava para ser sua secretária? Será que uma mulher de São Francisco abandonaria a cidade permanentemente? Afinal, os habitantes daquela cidade sempre se mostravam relutantes em abandonar o Nirvana.

Por outro lado, seu editor do Das Uberleben estava interessado em que ele fizesse um trabalho sobre o Parque Yellowstone, o que lhe permitiria estabelecer-se em sua própria casa, muito próximo de Taty.

Sem dúvida, ela gostaria de viver em Jackson, num lugar próximo à sua casa em Teton Village...

Ansioso, Christian desembarcou na manhã seguinte e correu para o hotel, batendo na porta e chamando por Taty.

Como ninguém respondesse, entrou e aspirou o perfume dela, que ainda se espalhava no ar. Ao dar alguns passos, porém, encontrou o bilhete sobre a escrivaninha e parou.

“Está na hora de ir para casa”, repetiu-se, intrigado. O que ela queria dizer com isso, se prometera esperá-lo?

Com uma frustração que lhe apertava o peito, Christian tomou um banho, fez a barba e deitou-se, abraçando-se ao travesseiro que ainda guardava o perfume de Taty na fronha macia.

Horas mais tarde, quando acordou, passou horas com o olhar perdido no vazio, relembrando os momentos que vivera com ela e tentando se convencer de que logo aquela sensação de vazio passaria. Taty seria apenas uma lembrança...

Na manhã seguinte, Christian foi de bicicleta ao escritório e viu a pilha de anotações sobre a mesa. “A Evolução” fora o título que Taty escolhera.

Durante a leitura, Christian foi tendo uma visão reveladora das duas últimas semanas. Deixou-se absorver tanto pelo texto que parou apenas duas vezes para tomar café e nem sequer almoçou.

Horas mais tarde, quando terminou, empilhou tudo e foi para as docas da estação, atônito.

Se alguém lhe perguntasse, com certeza ele jamais saberia dizer quanto tempo permanecera parado, pensando sobre o que acabara de ler. Taty possuía um talento especial para a observação. E, embora não fosse uma escritora brilhante, suas emoções explodiam com força em suas observações, o que dava às personagens contornos reais, envolvendo o leitor.

Quando escrevera sobre o alívio de Christian ao partir para uma nova aventura, Taty revelara uma astúcia incomum, captando o conflito que, de fato, ele enfrentara. Para onde será que Taty havia ido? Não sabia nada sobre ela ...

Caminhando de volta à cidade, Christian decidiu enviar-lhe um telegrama, revelando como precisava dela. No entanto, viu-se obrigado a desistir da ideia, pois o correio estava fechado.

No dia seguinte, logo cedo, rabiscou o texto do telegrama:

“Obrigado pelas anotações, Puerto Ayora parece um lugar vazio sem você. Sinto sua falta. Escreva, por favor”.

Por um desses acasos da sorte, porém, o telegrama nunca chegou ao escritório do clube The Carmel, em São Francisco, de onde seria enviado para a península de Monterey.

Taty tampouco ficou sabendo da carta que Christian lhe escrevera duas semanas mais tarde, quando não recebera notícias suas. Ele mandara a carta através de um turista americano que a esquecera no meio de outros papéis...

Também não leu a carta longa, na qual Christian lhe revelava tudo o que sentia a seu respeito, mas que acabara rasgando em mil pedaços, magoado pelo silêncio que acolhera a correspondência anterior.

O retorno à civilização foi um choque para Taty, que se sentiu agredida pela poluição e pelo barulho do aeroporto internacional de Los Angeles.

Tremendo de frio, saiu para a neblina que envolvia a cidade de Monterey, sentindo saudades do calor dos trópicos.

No sábado, ocupou-se arrumando a casa e cuidando das plantas. Não leu a correspondência nem ligou para Rock Springs, desejando concentrar-se um pouco em si mesma.

No domingo, foi até a cidade. Passeou e leu o jornal Sunday São Francisco, onde uma matéria sobre pesquisas de macacos em Serra Leoa lhe despertou a atenção.

Recortou a matéria para mandar a Christian, mas acabou mudando de ideia.

Mais tarde, naquela noite, Mônica, sua irmã caçula, telefonou:

— Por onde andou, Taty? Fiquei preocupada quando você não voltou na data prevista.

— Irene não lhe avisou que eu ia ficar mais? Mandei-lhe um telegrama.

— Então ela não o recebeu. Ficamos muito preocupadas, pensando que tivesse havido algum acidente.

— Mas houve mesmo.

— O quê?!

Rindo do susto da irmã, Taty explicou tudo o que havia acontecido, de modo bastante sintético.

— Taty... Eu queria sua opinião sobre se devo ou não comprar uma casa em Teton Village...

— Acho que é uma péssima ideia, Mônica.

— Por quê? Você nem sabe os detalhes. Aliás, para dizer a verdade, já comprei. Estou ligando dela.

— Mônica... Você não tem condições de comprar nada na área de Jackson, quanto mais na base da montanha de esqui!

— Ora, Joe pode pagar! Os pais dele lhe darão o dinheiro. E meu advogado garantiu que posso pedir uma bela pensão, pois trabalhei enquanto Joe cursava a Faculdade de Direito...

— Só até quando o bebê nasceu, seis meses depois. Seja objetiva e justa, Mônica! Depois disso, os pais dele pagaram todas as contas!

— Ora, você é sensata demais, Taty. Eu não me importo. Estou aqui, as crianças adoram o lugar e eu idem. Nunca pretendi passar toda a vida enterrada em Rock Springs...

— Mas você não conhece ninguém aí!

— Boa chance de fazer novos amigos! Por que você não vem para cá no dia de Ação de Graças?

Taty inventou uma desculpa profissional. Mas, na realidade, esperava que Christian aparecesse.

No dia seguinte, seu patrão e o trabalho acumulado exigiram lhe toda a atenção.

No início da tarde, percebendo que ela estava abatida, Lawrence Anderson resolveu almoçar com ela num restaurante de luxo.

— Como foram suas férias, Taty? Onde conseguiu esse bronzeado? Nunca a vi tão morena!

— Tive umas férias extraordinárias, Sr. Lawrence.

Aos poucos, Taty lhe contou a história, omitindo os detalhes amorosos.

Curioso, ele quis saber sobre o paradeiro do restante do grupo, desconfiado de que o sorriso especial que surgira no rosto de Taty tinha algo a ver com o tal fotógrafo belga...

Nas primeiras duas semanas depois da volta, Taty colocou sua vida profissional e sua casa em ordem. Pensava muito em Army, Earl, Margaret e George, planejando ligar para eles a todo momento.

Às vezes, ia ao cinema com Leslie e Bob, seus colegas do curso de navegação, ou telefonava a Wyoming, para saber notícias dos sobrinhos.

Sentia-se cansada no trabalho, e Lawrence lhe sugeriu procurar um médico, pois talvez ela tivesse contraído algum vírus nos trópicos.

Taty, porém, limitou-se a sorrir, ciente de que seu problema se chamava Christian.

Embora tentasse se enganar, sentia muita falta dele, e não se conformava com o fato de ele não lhe ter escrito uma única linha, nem haver telefonado, sequer para agradecer-lhe pelas anotações.

Sonhava com ele todas as noites, desejando compartilhar suas ideias, ouvi-lo rir, acariciá-lo. Escreveu sobre tudo isso para ele mas acabou jogando a carta na lareira, sem coragem de enviá-la.

Na última semana de setembro, sua menstruação atrasou-se, mas ela só telefonou para o ginecologista dez dias depois.

— Será que você está grávida, Taty? No mês passado sua menstruação foi normal?

— Eu estava em Puerto Ayora, e tenho a impressão de que já foi irregular.

— Sabe, Taty, às vezes as mulheres menstruam no primeiro mês de gravidez.

Atônita, Taty mal conseguiu responder.

— Como está sua vida, Taty? Às vezes, a estafa pode afetar seu ciclo.

Após ser informado sobre as peripécias das suas férias, o médico comentou:

— Bem, tanto esforço físico e alterações emocionais podem ter perturbado seu ciclo menstrual. Por que você não dá um pulo aqui esta semana?

 

Enquanto conversava com Taty, o tom de voz da Sra. Lawrence no telefone era firme e irredutível.

— Tenho certeza de que você dará uma palestra maravilhosa sobre sua viagem a Galápagos, querida. O clube vai adorar!

Nada tentada com a ideia, Taty usou vários argumentos para não assumir a tarefa, inclusive dizendo que não dispunha de fotos para ilustrar a palestra.

— Ora, Taty, e o tal do fotógrafo belga que Anderson mencionou?

— Ele só voltará a Jackson no fim de novembro. Além do mais, nunca fiz um discurso antes.

— Você também nunca tinha vivido um naufrágio antes, nem as outras coisas que experimentou! Oh, Taty, por favor... É uma história maravilhosa, as garotas vão adorar!

— Obrigada, Sra. Anderson, mas estou com muito trabalho, e...

— Anderson lhe dará algumas horas de folga. Está resolvido!

Após desligar com um suspiro desanimado, Taty telefonou a Army, em Minneapolis, a fim de pedir o número de Earl, na esperança de que talvez ele lhe cedesse seus slides...

— Taty, que bom ouvi-la! Pretendia lhe telefonar antes, mas andei muito cansada e deprimida.

— Por quê? Como vai seu bebê?

— Não consegui um. Você nem imagina a máquina burocrática que encontrei pela frente.

Depois de relatar a infinidade de departamentos que precisara visitar, a enfermeira concluiu:

— Pois é... Isso acontece com as pessoas que estão agindo honestamente, através das vias legais. Não é uma piada grotesca? Aquelas pobres crianças abandonadas nos orfanatos, e todo esse mundo de exigências para adotá-las... Bem, tirei uma licença no trabalho e ainda não desisti... E você e Christian?

— Não tive nenhuma notícia dele.

— Ora, bom... E você? Está contente por voltar para casa?

Sinto-me muito inquieta e agitada, Army.

— É mesmo? Então, que tal escalar o Himalaia comigo em janeiro?

— O Himalaia? Não sei... pode ser.

— Pense nisso. Vou para lá, a menos que volte ao Equador para pegar aquele bebê.

Mais tarde, quando ligou a Earl, o engenheiro convidou-a a acompanhá-lo num cruzeiro pelas ilhas Hébridas, na Escócia, em junho.

— Talvez Army vá também, Taty. Margaret e George já confirmaram. O médico receitou-lhe um novo remédio e garantiu que ele pode viajar sem susto.

No final da conversa, Earl prometeu enviar-lhe os slides, juntamente com mapas que marcavam os locais onde haviam estado.

Quando os slides chegaram, Taty projetou-os várias vezes em sua casa, até parar de chorar ao ver suas fotos ao lado de Christian. Como Earl conseguira tantas fotografias dos dois?

Alguns dias mais tarde, a Sra. Anderson apresentou Taty como uma procedente do Wyoming, um Estado de mulheres elegantes e corajosas, como ficava demonstrado pelas experiências dela no Equador.

Copiando a técnica de Tony com o grupo da Globeprobe, Taty fez um sumário da história de Galápagos e delineou o objetivo da pesquisa. No começo, falava muito depressa, nervosa com a audiência. Logo, porém, a história cativou o público, ajudando-a a relaxar.

— Foi maravilhoso, Taty! — exclamou a Sra. Anderson, entusiasmada, ao final. — Vocês não estão com ciúmes de Tatiana, meninas?

A bem da verdade, a Sra. Anderson e suas amigas falavam entusiasticamente sobre a palestra de Taty, e quatro outros grupos, inclusive uma organização de homens de negócios, pediram a ela que se apresentasse para eles. Um dos ouvintes, editor do jornal Monterey Península Herald, pediu:

— Escreva sua história para nós, Srta. Katanich. Suspeito que a senhorita deva escrever tão bem quanto fala.

Quando leu sua matéria no jornal de domingo, Taty concluiu que o editor se enganara em sua avaliação. Definitivamente, ela não tinha estilo!

Apesar disso, guardou o artigo com carinho, resolvendo que o próximo sairia melhor. Em seguida, decidiu deitar-se, pois estava morta de cansaço.

Aliás, andava sempre cansada desde que voltara da viagem. A princípio, atribuíra o cansaço à depressão, amaldiçoando-a. Por quantos meses ainda continuaria deitando-se cedo e levantando-se cansada?

O telefone tocou antes de o dia raiar. Era Mônica, ligando de um hospital, em Jackson. Seu filho, de um ano e dez meses, estava com dificuldades respiratórias, e o pediatra não sabia ainda sé era asma ou pneumonia.

— Ele está tratando as duas coisas, Taty. Não sei o que fazer. Estou sem babá para ficar em casa com Joey, e alguém precisa cuidar de Jeffrey. O coitadinho está apavorado com tantos estranhos em volta dele, Taty.

— Você chamou seu marido, Mônica?

— Ora, Taty! Você sabe muito bem que Joe vai caçar nesta época do ano. Ele e a namorada devem estar em algum lugar das montanhas. Por favor, venha me ajudar, Taty. Estou completamente perdida.

— Mas a Sissy e a Irene moram muito mais perto do que eu! Precisarei pegar um voo daqui até São Francisco, esperar pelo avião para Salt Lake e depois pegar outro voo para Jackson...

— Você sabe que elas não podem sair. Têm empregos e crianças para tomar conta.

“Sim, claro, é sempre a irmã solteira que precisa largar tudo e ir correndo...” pensou Taty, irritada.

O médico disse quanto tempo Jeffrey vai ficar aí? Os novos remédios não têm ação rápida?

— Talvez dois dias, Taty. Estou apavorada, Jeffrey também, e deixamos Joey gritando quando saímos de casa. Por favor...

Houve uma pausa na conversa, e Taty foi se conscientizando de que, no fundo, era isso o que ela queria das suas irmãs: que a incluíssem na criação das crianças. Então, por que reclamar?

Guardando as malas no carro, passou pelo escritório e deixou um bilhete para o Sr. Anderson, avisando-o de que só estaria de volta no domingo à noite. Em seguida, escreveu os telefones do hospital de Jackson e da casa da irmã, para o caso de alguém querer entrar em contato com ela.

Mas ninguém o fez, e a nova secretária, treinada por Taty, atendeu o telefone da linha direta do escritório de São Francisco, logo pela manhã.

— Você aceita uma ligação a cobrar para Tatiana Katanich, de Roswell, Novo México? — perguntou a telefonista internacional. — Esta é uma conexão com uma chamada em ondas curtas de radioamador, das ilhas Galápagos.

Sentado na sala de rádio do hotel, Christian esperava que a voz de Taty soasse na linha. Há mais de uma semana aquele rádio estivera quebrado, e ele aguardara com impaciência que fosse consertado.

Agora, tinha a impressão de que esperara durante séculos, e nem o trabalho extenuante em que se envolvera havia bastado para lhe diminuir a solidão.

Há tempos não conseguia concentrar-se para escrever, e em cada canto encontrava algo que lhe reavivava a imagem de Taty na memória.

Não conseguia esquecê-la, e a frustração de não saber se ela se recusara a responder a seu telegrama ou se não o recebera o torturava, impedindo-o até mesmo de dormir.

Por isso, resolvera voltar para casa, onde terminaria o trabalho... Será que Taty largaria o emprego para viver com ele?

“Vá com calma, De Vos”, dizia-lhe a consciência. “Vamos ver se ela irá encontrá-lo no aeroporto de São Francisco na sexta-feira...”

— De Vos! — O dono do hotel interrompeu-lhe os pensamentos. — A pessoa que atendeu nesse número informou que Tatiana Katanich estará em Jackson, Wyoming, até domingo. Deram-me dois números de telefone lá. Quer que tente ligar para lá?

Christian concordou e ficou esperando. O que ela estaria fazendo em Jackson?

— De Vos... O primeiro número era do Hospital Saint John. Mas eles não têm ninguém com o sobrenome Katanich registrado lá.

Dito isso, o dono do hotel voltou a lidar com o aparelho, e Christian tentou se acalmar. Por que Taty estava num hospital de Jackson?

— Droga! Esta bomba aqui encrencou de novo! Sinto muito, De Vos!

— Bem, acho que vou voar direto para casa — anunciou Christian, decidido. — Quando tiver uma folga você pode fechar minha conta? Estou de partida.

Na noite seguinte, instalado num hotel de Quito, tornou a ligar para São Francisco, mas ninguém atendeu, o que o deixou intrigado.

Preocupado, tomou um desjejum rápido pela manhã e tentou chamar São Francisco novamente, porém, mais uma vez, ninguém respondeu.

Sem conter a ansiedade, pegou um táxi para o aeroporto, a fim de esperar o voo que o levaria a Miami.

No terminal aeroviário, ficou andando de um lado para outro, pensando que talvez o número de São Francisco fosse o do escritório dela.

No fim da tarde de quarta-feira, quando o avião chegou a Jackson, Taty tomou um táxi direto para o hospital. Mônica estava lendo para Jeffrey, tentando mantê-lo calmo.

Entretanto, o garoto respirava com dificuldade e seu rosto queimava de febre. Aborrecia-se com os brinquedos e com o livro.

Correndo ao encontro da irmã caçula, Taty abraçou-a.

— Não se preocupe, meu bem, Jeffrey vai ficar bom.

O menino esquecera-se da tia Taty durante os poucos meses que ficara sem vê-la. Assim, viu-a apenas como mais uma estranha que tentava fazê-lo tomar remédios e ficar deitado.

— Corra para casa, Monnie, e tome conta de Joey. Eu ficarei com Jeffrey, pois você precisa dormir. Amanhã cuidarei de Joey.

Nos momentos que se seguiram, Taty contou várias histórias ao sobrinho e o embalou até que ele adormecesse. Às onze horas da noite, porém, Jeffrey acordou chorando, assustado.

Paciente, Taty pegou-o no colo e o embalou até que, à meia-noite, ele conseguiu dormir novamente. Às cinco horas tornou a acordar, e Taty ficou com ele no colo até às sete e meia, quando Mônica voltou, avisando que deixara Joey com a enfermeira, na recepção.

— Certo! Então voltarei à tarde para substituí-la. Agora, farei o almoço para Joey, e deixarei o jantar pronto para vocês dois no fogão.

Junto com o sobrinho de cinco anos, voltou para o apartamento de Teton Village. Depois de brincarem um pouco, Taty não pôde mais conter a curiosidade e telefonou para a administração do condomínio, convencendo a recepcionista a lhe dar o endereço da casa de Christian.

Feito isso, pegou o sobrinho pelas mãos e saiu à procura da casa.

No meio das inúmeras construções modernas, o chalé de madeira de Christian era aconchegante e agradável, rodeado de pinheiros.

— Estou cansado, tia Taty — reclamou Joey, choramingando. — Vamos voltar para casa...

— Já, já, meu bem — tranquilizou-o ela, pegando-o no colo e aproximando-se do chalé.

Graciosa, a casa tinha um portão de madeira branco e cortinas coloridas nas janelas. Para Taty, só faltariam algumas jardineiras com gerânios vermelhos... Mas talvez Christian não passasse os verões ali.

— Quero descer, tia Taty — reclamou o menino, tirando-a das suas divagações.

— Vamos andar só mais um pouco, depois voltaremos, meu bem — disse ela, depositando-o no chão.

De repente um sinal de vida no interior do chalé a surpreendeu. Esperava que a casa estivesse vazia, mas deduziu que alguém devia passar por lá de vez em quando, a fim de verificar se estava tudo em ordem. Quem seria?

Ao meio-dia, Mônica avisou-a que o pediatra não estava satisfeito com a resposta de Jeffrey aos medicamentos.

— Quantos dias mais ele vai ficar?

— De acordo com o médico, talvez mais uns dois dias.

Antes de voltar ao hospital no fim daquela tarde, Taty parou com Joey numa drugstore e disse:

— Escolha um brinquedo para você, enquanto escolho um para o seu irmão.

Minutos depois, segurando uma enorme tartaruga de pano verde, com um sorriso feliz, Taty entrou na fila do caixa.

As duas mulheres à sua frente haviam feito muitas compras, e Taty pôs-se a ler os rótulos dos produtos das prateleiras, para se ocupar enquanto esperava: cápsulas de vitaminas, cremes hidratantes, testes de gravidez...

Pegando uma caixa, leu as instruções do teste, lembrando-se de que não precisava ir ao médico para saber se estava grávida ou não.

Seus seios tinham inchado, e a menstruação continuava atrasada. Embora estivesse convencida de que fora a estafa que lhe perturbara os hormônios, não perderia nada em se certificar disso.

Na manhã seguinte, voltou logo cedo ao apartamento da irmã, ansiosa por fazer o teste.

Duas horas mais tarde suas suspeitas eram confirmadas: estava grávida!

Que ironia... Como pudera um dia acreditar que seria capaz de criar um bebê sozinha?

Experimentando uma angústia terrível, em que se misturavam solidão e insegurança, Taty ficou imaginando o que aconteceria caso ligasse para Christian e o informasse de que seria pai.

Não! Não podia fazer isso e jamais aceitaria que o homem que amava ficasse ao seu lado por simples obrigação.

— Por que está chorando, tia Taty? — indagou o sobrinho, preocupado.

— Porque estou feliz de ficar com você, Joey.

— Mas a gente só chora quando está triste!

— Às vezes não, meu bem.

Mais tarde, quando ela chegou ao hospital, Jeffrey a recebeu com os bracinhos esticados.

Depois que o garoto dormiu, Taty sentou-se numa cadeira ao lado da cama e, com a mão sobre o peito do menino, adormeceu.

De repente sentiu que uma mão forte a sacudia pelos ombros, despertando-a.

— Por que diabos você não me telegrafou?

Não era assim que Christian esperava abordá-la. Tinha pensado em dizer algo convencional, mas quando a vira naquela cadeira, próxima à cama do menininho que dormia, suas intenções foram por água abaixo.

Sem saber que aquele era o sobrinho mais parecido com Taty, examinou-lhe a pele clara e os cabelos negros e brilhantes, iguais aos dela.

— Taty, por que você não me contou? Acorde, Taty! O que está acontecendo?

— O que foi? O que há com Jeffrey, doutor? — Sacudindo a cabeça, num gesto de espanto, ela o encarou, perplexa. — Christian... Quando... Mas o que...

— O que está fazendo aqui, Taty? Que tipo de mãe é você, afinal? Nunca devia ter feito aquela viagem a Galápagos! Era muito perigoso. E se você tivesse morrido em Pinta? O que teria acontecido a seu filho?

— Veja só quem vem falar em responsabilidade! — desabafou Taty, irritada com o modo como ele ousava censurá-la. — Você, com sua filosofia de viver intensamente o momento e de não perder nenhuma aventura! As mães ficam em casa, e os homens saem pelo mundo para divertir-se e...

— De onde você tirou essa ideia? — Pegando-a pela mão, puxou-a rumo à porta. Vamos lá fora comigo...

— Todo mundo vai nos ouvir lá no corredor!

— Então venha aqui... — sugeriu, conduzindo-a até o banheiro e fechando a porta. — Senão, vamos acordar seu filho.

— Ei, Jeffrey não é meu filho! — Libertando a mão da dele, acariciou o próprio ventre. — Meu bebê ainda não nasceu.

Diante da declaração, Christian arregalou os olhos, incapaz de articular uma única palavra.

Arrependida, Taty mordeu a língua e se recriminou pela própria indiscrição. Agora, porém, era tarde para negar o que dissera.

— Você falava a sério quando disse aquilo a Hamilton? — indagou Christian, por fim, depois de um longo silêncio.

— Quando disse o quê? Eu não sei a que você está se referindo...

— É claro que a nada que você tenha incluído nas suas anotações. Aliás, observei que você evitou qualquer referência à sua pessoa de propósito. Terei de usar minha memória para isso.

Hum, você percebeu, é?

Examinando-o naquele elegante terno marrom, Taty ponderou que, apesar da pele bronzeada, Christian poderia passar por um membro do clube The Carmel, ou por um advogado bem sucedido de Denver. No entanto, sabia quem ele era, e não devia iludir-se.

— Você não se lembra mesmo, Taty? Quando você disse que me amava?

— Sim, eu falava a sério. Naquela época...

— Então... Este é o nosso bebê, não é?

— Ouça, não precisa se preocupar. Não somos responsabilidade sua.

— Por que você está falando desse jeito? Ora, é claro que vocês são responsabilidade minha!

— Duas novas vítimas para carregar nas costas? Não está conseguindo nos repelir? Não! Obrigada por sua caridade.

— Taty... Por que estamos brigando? Olhe, quero que você preste atenção: amor, voltei para dizer que... amo você.

— Você me ama hoje...

— Hoje e ontem e anteontem e o mês passado. Não chore, Taty. Minha vida tem sido um inferno sem você. Está vazia. Em tudo o que eu fazia, pensava ou sentia você estava presente.

— Você é o tipo de homem que hoje está aqui e amanhã já foi embora...

— Estarei aqui pelos próximos dois anos, trabalhando num livro, ao seu lado e ao lado do bebê. Comece a escolher os nomes. — Abraçando-a, pousou a mão de leve em seu ventre.

— Christiana, se for menina, mas se você tiver uma ideia melhor, vou ouvi-la primeiro...

Incapaz de se controlar, Taty deu-lhe as costas e escondeu o rosto num canto da parede, murmurando:

— Você só está dizendo essas coisas porque estou grávida. Você não quer ficar preso a nada, e eu não quero ser um peso na sua vida.

— E desde quando o casamento tem de ser uma armadilha, Taty? Por que vocês ficariam dependentes de mim? Não precisamos ficar dependentes um do outro. Podemos compartilhar...

— Ah, sim, claro! Eu fico em casa, que é um lugar seguro para o bebê, e você vai para Galápagos, ou para Serra Leoa, ou para Katmandu. Também quero viver a aventura! Quero ir de aeroplano para a Austrália, quero...

— Então iremos os três. Estou achando ótimo! Promete ser muito divertido...

— Mas assim nunca teremos um lar...

— Nós temos um aqui...

Tocando-a no ombro, ele a fez voltar-se.

— Você está sempre fora.

— Pois agora ficaremos fora juntos, Taty.

— E as crianças?

Acariciando-a com delicadeza, Christian jurou que amaria os bebês e que uma família lhe traria prazer e orgulho. Além disso, prometia tornar-se um pai exemplar, compreendendo que as crianças não eram criadas à imagem e semelhança dos pais e permitindo-lhes serem independentes para resolverem sobre si mesmas.

— Uma coisa posso lhe garantir, Tatiana Katanich. Com relação a isso, sou bom filho do meu pai: nunca abandonei, nem nunca abandonarei minha família.

— Mas você pode morrer de uma hora para outra, Christian! Você leva uma vida muito perigosa!

— Você prefere viver atrás das cercas, em um curral, Taty? Quer ficar presa dentro de uma gaiola? Acho que não! Pelo menos não a vejo assim. E, depois, morrer é uma questão de estar vivo. Aqui ou ali, há sempre o mesmo risco. Sabe, na minha opinião, as pessoas são divididas em dois tipos: os animais domesticados e os selvagens. Você também faz parte do grupo dos selvagens, meu amor.

Sorrindo de felicidade, Taty compreendeu que “para sempre” durava pelo tempo que fosse possível. E, dentro daquilo que lhe fosse permitido, ela queria aquele homem para sempre...

— Eu fiz a proposta, agora você marca a data — disse Christian, depois de beijá-la nos lábios, apaixonado.

— Será que uma simples data é capaz de determinar que dali para a frente seremos felizes? Será que vai nos tornar mais próximos do que agora?

— Não, meu bem. Não será isso que nos tornará mais próximos, nem que garantirá nossa felicidade. Nosso casamento simplesmente vai comunicar ao mundo que é amor que sentimos um pelo outro. E será esse amor que nos unirá e garantirá nossa felicidade para sempre...

— Para sempre... — sussurrou Taty, inclinando a cabeça e oferecendo-lhe os lábios entreabertos para um beijo cheio de ternura.

 

                                                                                Catherine Healy  

 

                      

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