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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


SUSHI / Marian Keyes
SUSHI / Marian Keyes

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

Três mulheres, cujas vidas estão interligadas, vivendo numa mesma cidade... LISA EDWARDS está "atolada" em Dublin, lançando a revista Garota, quando deveria estar vestindo Prada da cabeça aos pés e agitando em Londres. Mas será que ela está infeliz? Bom, isso ela não diria por nada neste mundo. ASHLING KENNEDY é a Rainha dos Problemas: bolsas aos montões, mas cintura e namorado, que é bom, neca! E, lá no fundo, a sensação de que tem alguma coisa faltando na sua vida. CLODAGH KELLY deveria ser um modelo de felicidade: casada com o seu príncipe encantado, tem dois filhos adoráveis e uma casa maravilhosa. Mas, então, por que nos últimos tempos anda sentindo uma vontade incontrolável de beijar um sapo? (Trocando em miúdos: de dormir com um sapo.) Sushi é um livro sobre a busca da felicidade. E ensina que, quando você deixa as coisas ferverem sob a superfície por tempo demais, mais cedo ou mais tarde elas acabam transbordando...

 

 

 

 

VOCÊ CONHECE ESSAS TRÊS MULHERES?

                       LISA Esqueça o sol, este ilustre desconhecido - eu é que nasci para brilhar! Superpoderosa, avanço pela corda bamba do sucesso usando salto dez, sem jamais perder o equilíbrio. (Bem, às vezes dou uma balançadinha, mas ninguém percebe, porque as pernas são mais rápidas do que os olhos.) Mas cuidado, garoto, eu sou perigosa! Afinal, o lema de uma Guerreira do Glamour é: os fins justificam as meias (de seda.) E rufem os tambores! Estou prestes a encarar o maior desafio da minha carreira jornalística - criar uma revista feminina trans-lum-bran-te... ah, não! Com meia dúzia de caipiras como assessores e uma verba em que faltam vários zeros, numa aldeola onde Judas perdeu as botas. Bom, pelo menos isso, porque as botas não eram de Manolo Blahnik! Será que, pela primeira vez, deixarei a minha peteca de plumas de pavão cair? Façam suas apostas!

                         ASHLING Ah, meu Deus, estou uma pilha! (Até aí, nada de novo sob o sol - afinal, quando é que não estou uma pilha?) Hoje tenho uma entrevista de emprego numa revista e já pedi ao tarô um trailer dos próximos capítulos. Mas, também, a vida é tão difícil - ainda mais para nós, piscianas hipersensíveis -, que só mesmo apelando para astros, anjos & cia. Só não sei se as estrelas são páreo para a minha falta de experiência... e de cintura! (E de auto-estima. Já deu pra notar, né?) Ah, quem me dera ser como a minha amiga Clodagh - esta, sim, é uma deusa para mortal nenhum botar defeito. E casada com um cara que, só de olhar, a gente se abana com o leque e pede os sais! E pensar que, onze anos atrás, Dylan foi meu... Faz uma mentalização positiva pra mim, amiga - hoje é o meu grande dia!

 

                           CLODAGH Ultimamente ando numa dúvida hamletiana: sou ou não sou feliz? Ashling vive dizendo que a minha vida é a oitava maravilha do mundo, só porque o meu currículo inclui um maridão apaixonado, dois filhotes foférrimos e uma mansão cinematográfica. A questão é que, depois de onze anos afogada neste mar de rosas, tudo que vejo é um chato que só pensa naquilo, dois demônios que invadem a cozinha às seis da manhã e não deixam panela sobre panela, e um monte de papéis de parede que todo dia continuam da mesma cor! Alguma coisa tem que mudar. E logo! Afinal, é o que sempre acontece com as heroínas dos romances que leio - quando estão à beira de um ataque de nervos, o happy end bate à sua porta. Ora, por que com esta filha de Deus haveria de ser diferente? ― Droga ― pensou ela, ao se dar conta. ― Acho que estou tendo um colapso nervoso. Correu o olhar pela cama onde estava jogada. Seu corpo há muito necessitado de um banho espalhava-se letargicamente sobre o lençol há muito necessitado de uma troca. Lenços-de-papel encharcados e amassados atulhavam o edredom. A poeira se acumulava sobre um arsenal intacto de chocolates em cima da cômoda. A televisão no canto bombardeava sua cama sem trégua com a programação da manhã. Opa, colapso nervoso, não tinha nem talvez. Mas algo estava errado. O que seria? ― Sempre achei... ― ela arriscou. ― A verdade é que sempre esperei... Do nada, ela soube. ― Sempre achei que seria melhor do que isso...

 

Algo estava no ar havia semanas na redação da revista Femme, uma sensação de que um terremoto estava prestes a acontecer. As especulações chegaram ao auge quando se confirmou que Calvin Carter, o diretor superintendente da Randolph Media nos Estados Unidos, fora visto perambulando pelo último andar, à procura do banheiro dos homens. Pelo visto, acabara de chegar a Londres, do escritório central em Nova York. Está acontecendo. Lisa fechou os punhos de empolgação. Está finalmente acontecendo, acontecendo de verdade! Mais tarde, naquele mesmo dia, veio o telefonema. Será que Lisa não daria um pulo lá em cima para conhecer Calvin Carter e Barry Hollingsworth, o diretor superintendente da Randolph Media na Inglaterra? ― É pra já! ― berrou ela, batendo com o telefone. Seus colegas não se deram sequer ao trabalho de levantar os olhos. Pessoas batendo com o telefone e berrando em seguida eram figurinhas fáceis no jogo da revista. De mais a mais, estavam presos no Inferno da Data do Fechamento da Edição ― se não conseguissem fechar a edição daquele mês até o fim da tarde, perderiam o espaço na gráfica e seriam desbancados novamente por sua arquirival Marie Claire. Mas Lisa estava pouco se importando, pensou, mancando em direção ao elevador, pois não teria mais um emprego ali depois daquele dia. Teria um muito melhor, em outro lugar. Fizeram Lisa esperar vinte e cinco minutos do lado de fora da sala da diretoria. Afinal, Barry e Calvin eram homens muito importantes. ― Será que já não podemos deixá-la entrar? ― perguntou Barry a Calvin, quando achou que já tinham feito hora o bastante. ― Só se passaram vinte e cinco minutos desde que a chamamos ― observou Calvin, mal-humorado. Era óbvio que Barry Hollingsworth não se dava conta de o quanto ele, Calvin, era importante. ― Desculpe, achei que já tinha se passado mais tempo. Não gostaria de me mostrar outra vez como melhorar minha tacada?

Quando Barry e Calvin finalmente deram permissão a Lisa para entrar, estavam sentados por trás de uma mesa de nogueira medindo aproximadamente um quilômetro de comprimento. Sua figura era de uma imponência assustadora. ― Sente-se, Lisa. ― Calvin Carter meneou gentilmente a cabeça, que parecia uma bala de prata. Lisa sentou-se. Alisou para trás os cabelos cor de caramelo, com isso realçando seus reflexos cor de mel gratuitos. Gratuitos porque ela vivia incluindo o nome do salão na seção "Fique de Olho" da revista. Acomodando-se na poltrona, trançou graciosamente os pés calçados com sapatos Patrick Cox. Os sapatos eram de um número pequeno demais para ela ― não importava quantas vezes pedisse à assessoria de imprensa da Patrick Cox para mandar um par trinta e nove, eles sempre mandavam um trinta e oito. Mas sapatos Patrick Cox de salto agulha grátis são sapatos Patrick Cox de salto agulha grátis. Que importância tinha um detalhe ridículo como a dor excruciante? ― Obrigado por subir até aqui. ― Calvin sorriu. Lisa achou melhor retribuir o sorriso. Os sorrisos eram uma mercadoria, como tudo o mais, uma coisa que só se dá em troca de algo útil, mas ela ponderou que nesse caso valeria a pena. Afinal, não era todo dia que uma mulher era nomeada redatora-chefe da revista Manhattan e transferida para Nova York. Por esse motivo, curvou os lábios e mostrou os dentes brancos como pérolas. (Assim mantidos graças ao estoque de um ano da pasta Rembrandt que fora doado para um concurso a ser promovido entre as leitoras, mas que Lisa achou que seria mais útil no seu banheiro.) ― Você já está na Femme há... ― Calvin olhou para as folhas grampeadas à sua frente. ― ...quatro anos? ― Vai fazer quatro anos mês que vem ― murmurou Lisa, com um misto de deferência e autoconfiança estrategicamente dosadas. ― E é editora há quase dois anos? ― Dois anos maravilhosos ― confirmou Lisa, resistindo ao impulso de enfiar os dedos na garganta e vomitar.

― E você só tem vinte e nove anos ― admirou-se Calvin. ― Bem, como você sabe, aqui na Randolph Media nós recompensamos os esforços de nossos funcionários. Lisa recebeu essa mentira deslavada com um piscar de olhos simpático. Como muitas empresas do mundo ocidental, a Randolph Media recompensava os esforços de seus funcionários com salários baixos, cargas de trabalho cada vez maiores, rebaixamentos e demissões sumárias. Mas Lisa era diferente. Estava em quite com a Femme, tendo feito sacrifícios que nem ela mesma pretendera fazer: pegar no batente às sete da manhã quase todos os dias, fazer jornadas de trabalho de doze, treze, quatorze horas seguidas, e ainda comparecer a reuniões de imprensa à noite, quando finalmente desligava seu computador. Muitas vezes ia trabalhar aos sábados e domingos, e até mesmo em feriados que caíam na segunda. Os porteiros tinham ódio dela, pois sempre que queria vir ao escritório, um deles era obrigado a ir trabalhar para abrir a porta e, portanto, perder sua pelada de sábado à tarde ou sua excursão familiar a Brent Cross no feriado. ― Temos uma vaga na Randolph Media ― disse Calvin, com ar importante. ― Seria um desafio maravilhoso, Lisa. Já sei, pensou ela, irritada. Vai direto ao ponto. ― Obrigaria o funcionário a se mudar para outro país, o que poderia ser um problema para o cônjuge. ― Sou solteira. ― Lisa foi brusca. Barry franziu a testa, surpreso, e pensou nos dez paus em que fora obrigado a morrer alguns anos atrás para a vaquinha de presente de casamento de alguém. Podia jurar que fora para Lisa, mas talvez não, talvez sua memória já não fosse mais o que era antigamente... ― Estamos procurando uma diretora para uma nova revista ― prosseguiu Calvin. Uma nova revista? Lisa perdeu completamente o rebolado. Mas a Manhattan é editada há setenta anos! Enquanto quebrava a cabeça tentando decifrar as implicações da notícia, Calvin desfechou o golpe final: ― Você seria obrigada a se mudar para Dublin.

O choque produziu um zumbido abafado em sua cabeça, como se seus ouvidos estivessem tapados. Uma sensação de alienação, mescla de dormência e confusão mental. A única realidade era a súbita dor em seus dedos do pé massacrados. ― Dublin? ― Ela ouviu sua própria voz abafada perguntar. Talvez... talvez... talvez se referissem a Dublin, em Nova York. ― Dublin, na Irlanda ― disse Calvin Carter, como se sua voz saísse de um túnel longo e ecoante, enterrando de uma vez por todas a última esperança de Lisa. Não acredito que isso esteja acontecendo comigo. ― Irlanda? ― Um lugarzinho chuvoso do outro lado do mar da Irlanda ― informou Barry, solícito. ― Onde bebem à beça ― disse Lisa, num fio de voz. ― E falam pelos cotovelos. É esse o lugar. Uma economia em pleno crescimento e uma grande população de jovens. A pesquisa de mercado indica que o lugar está em ponto de bala para uma nova revista voltada para a mulher independente. E queremos que você crie essa revista para nós, Lisa. Olhavam para ela, cheios de expectativa. Ela sabia que a praxe seria gaguejar murmúrios chorosos e surpresos sobre a gratidão que sentia pela imensa confiança que depositavam nela e a grande esperança que nutria de justificar a fé que tinham em sua pessoa. ― Hum, que bom... Obrigada. ― Nosso portfólio irlandês é impressionante ― gabou-se Calvin. ― Editamos a Noiva Hibérnica, a Saúde Celta, a Interiores Gaélicos, a Jardinagem Irlandesa, a Juízo Católico... ― Não, a Juízo Católico está para fechar ― interrompeu-o Barry. ― As vendas estão despencando. ― a Tricô Gaélico ― prosseguiu Calvin, que não se interessava por más notícias ―, a Carro Celta, a Batata, que é a nossa revista irlandesa de culinária, a Bricolagem à Moda da Casa e a Super Hiber. ― Super Hiper? ― Lisa se forçou a perguntar. Era recomendável não parar de falar.

― Super Hiber ― corrigiu-a Barry. ― Abreviatura de Super Hibérnico. Uma revista para o homem jovem. Uma mescla da Loaded com a Arena. ― Qual vai ser o nome? ― Pensamos em Garota. Jovem, batalhadora, descolada, sexy, é assim que a imaginamos. Principalmente sexy, Lisa. Mas não intelectual demais. Pode ir tratando de esquecer as matérias deprimentes do tipo circuncisão feminina ou a falta de liberdade das mulheres no Afeganistão. Essa não é a nossa leitora-alvo. ― Você quer uma revista burra? ― Agora você disse tudo! ― Calvin ficou radiante. ― Mas eu nunca estive na Irlanda, não sei nada sobre o lugar... ― Exatamente! ― concordou Calvin. ― É justamente o que queremos: nenhum preconceito, só uma abordagem original e honesta. O mesmo salário, um pacote de remanejamento generoso, você começa daqui a duas semanas, na segunda. ― Duas semanas? Mas isso quase não me deixa tempo... ― Ouvi dizer que você tem uma capacidade de organização fantástica. ― Os olhos de Calvin brilharam, cruéis. ― Me impressione. Alguma pergunta? Ela não conseguiu se conter. Normalmente sorriria enquanto a faca era revirada, porque a dor era um preço pequeno a ser pago, comparada com o que estava em jogo. Mas agora estava em estado de choque. ― E o cargo de redatora-chefe na Manhattan? Barry e Calvin se entreolharam. ― Tia Silvano, da New Yorker, foi a candidata escolhida ― admitiu Calvin, mal-humorado. Lisa assentiu. Sentia-se como se seu mundo tivesse acabado. Como uma autômata, levantou-se para sair. ― Quando tenho que dar uma resposta? ― perguntou. Barry e Calvin tornaram a se entreolhar. Por fim, Calvin se incumbiu de responder: ― Já contratamos alguém para seu cargo atual.

O mundo entrou em câmera lenta quando Lisa compreendeu que se tratava de um fato consumado. Não tinha absolutamente nenhum poder de decisão sobre o assunto. Presa no grito que não conseguia soltar, demorou vários segundos para compreender que não lhe restava mais nada a fazer, a não ser sair mancando do aposento. ― Está a fim de uma partida de golfe? ― perguntou Barry a Calvin, quando ela saiu. ― Adoraria, mas não posso. Tenho que ir a Dublin entrevistar os candidatos para os outros cargos. ― Quem é o diretor superintendente irlandês atual? ― perguntou Barry. Calvin franziu o cenho. Barry deveria saber. ― Um cara chamado Jack Devine. ― Ah, aquele. Meio rebelde. ― Não acho. ― Calvin era inimigo ferrenho dos rebeldes. ― Pelo menos, acho bom não ser.

Lisa tentou dourar a pílula. Jamais admitiria que estava decepcionada. Ainda mais depois de todos os sacrifícios que fizera. Mas não se pode tapar o sol com a peneira. Dublin não era Nova York, não importa de que ângulo se olhasse para a questão. E o "generoso" pacote de remanejamento justificaria um processo por propaganda enganosa. Pior ainda, ela teria que renunciar ao seu celular. Seu celular! Era como se um membro de seu corpo fosse ser amputado. Nenhuma das colegas de Lisa ficou exatamente inconsolável com sua partida. Ela jamais deixara nenhuma delas usar seus sapatos Patrick Cox uma vezinha sequer, nem mesmo as que calçavam trinta e oito. E a prodigalidade de seus comentários venenosos e maledicentes havia lhe granjeado o apelido de Boa Peçonha. Não obstante, no último dia de Lisa, a equipe foi obrigada a se reunir na sala de reuniões para o bota-fora de praxe ― copos descartáveis, um vinho branco morno que poderia ser usado como removedor de tinta, uma bandeja com um leque medíocre de biscoitos salgados e o boato ― jamais concretizado ― de que os aperitivos de salsicha já estavam a caminho. Quando todos já estavam no terceiro copo de vinho e, por esse motivo, podia-se confiar que demonstrariam um pouco de entusiasmo, alguém pediu silêncio e Barry Hollingsworth fez seu clássico discurso, agradecendo a Lisa por tudo e desejando-lhe muitas felicidades. Todos concordaram que ele se saiu maravilhosamente bem. Principalmente porque conseguiu acertar o nome dela. Da última vez que alguém fora embora, ele fizera um discurso lacrimogêneo de vinte minutos louvando os talentos sem igual e a contribuição dada por uma certa Heather, enquanto Fiona, a homenageada, assistia, morta de vergonha.

Então chegou a hora de dar a Lisa o vale de vinte libras em compras na Marks & Spencer e um grande cartão com o desenho de um hipopótamo e as palavras "Que pena que você vai embora!". Ally Benn, a redatora-chefe da Femme, escolhera o presente de despedida com todo o cuidado. Quebrara a cabeça imaginando o que Lisa mais odiaria e, por fim, concluíra que nada lhe daria maior desgosto do que o vale da Marks & Spencer. (Ally Benn calçava trinta e oito certinho.) ― Um brinde a Lisa! ― concluiu Barry. A essa altura todo mundo já estava bêbado e agitado, de modo que ergueram seus copos de plástico, entornando vinho e lascas de cortiça nas roupas e, às risadinhas e cotoveladas, berraram: "A Lisa!" Lisa só se demorou estritamente o necessário. Há muito andava ansiosa por esse bota-fora, mas sempre pensara que sairia por cima, já com o pé em Nova York. E não escorraçada para uma revista que era a versão jornalística da Sibéria. Era um pesadelo completo. ― Preciso ir ― disse ela às aproximadamente doze mulheres com quem trabalhara durante os últimos dois anos. ― Tenho que terminar de fazer as malas. ― Claro, claro ― concordaram, numa algaravia bêbada de votos de felicidades: ― Bom, boa sorte, divirta-se, aproveite a Irlanda, se cuide, não vá trabalhar demais... Assim que Lisa chegou à porta, Ally gritou: ― Vamos sentir sua falta... Lisa assentiu, séria, e fechou a porta. ― ...no dia de São Nunca! ― Ally não perdia uma. ― Sobrou vinho? Ficaram até a última gota de vinho ser bebida e a última migalha de biscoito limpa da bandeja com um dedo lambido, e então voltaram-se umas para as outras e perguntaram, num tom perigosamente animado: "E agora?" Despencaram-se em peso para o Soho, invadindo os bares e bebendo tequila, a típica farra das executivas nas noites de sexta. A pequena Sharif Muntaz (editora assistente de variedades) perdeu-se do grupo e voltou para casa graças à ajuda de um bom homem, com quem se casou nove meses depois.

Jeanie Geoffrey (editora assistente de moda) ganhou uma garrafa de champanhe de um homem que declarou que ela era "uma deusa". A bolsa de Gabbi Henderson (saúde e beleza) foi roubada. E Ally Benn (recém-nomeada diretora) subiu numa mesa num dos bares mais animados de Wardour Street e dançou feito uma louca até despencar e sofrer fraturas múltiplas no pé direito. Em suma, uma grande noite.

― Ted, você não podia ter chegado em melhor hora! ― Ashling escancarou a porta e, pela primeira vez, não pronunciou a frase mais abusada de seu repertório, que, por acaso, vinha a ser: "Ah, que merda, é Ted." ― É mesmo? ― Ted entrou no apartamento, ressabiado. Não estava habituado a ser recebido de maneira tão efusiva. ― Preciso que você me diga qual blazer cai melhor em mim. ― Vou me esforçar ao máximo. ― O rosto magro e sombrio de Ted adquiriu uma expressão ainda mais intensa. ― Mas eu sou homem. Não totalmente, lamentou Ashling com seus botões. Era uma grande pena que a pessoa que se mudara para o apartamento de cima seis meses atrás e houvesse decidido na hora que Ashling era sua melhor amiga, não fosse um cara simpático, alto, desses de acelerar o pulso, e sim Ted Mullins, funcionário público, com uma mão na frente e outra atrás, aspirante a humorista e proprietário baixinho e magrela de uma bicicleta. ― Primeiro, este preto. ― Ashling ajeitou com os ombros o blazer por cima da blusa "de entrevista", de seda branca, e das calças mágicas Perca-três-quilos-num-instante. ― Qual é o grande acontecimento? ― Ted sentou-se numa cadeira e se enroscou. Era todo ângulos e cotovelos, ombros pontudos e joelhos ossudos, como se fosse um esboço de si mesmo. ― Entrevista de emprego. Agora de manhã, às nove e meia. ― Outra! Para quê, dessa vez? Ashling andara se candidatando a todo tipo de cargos nas últimas duas semanas, desde trabalhar num rancho de faroeste em Mullingar até atender o telefone numa firma de relações públicas. ― Redatora-chefe de uma nova revista chamada Garota. ― Quê? Um emprego no duro? ― O rosto taciturno de Ted se iluminou. ― Não entendo por que você se candidatou a todos aqueles outros, estavam muito aquém das suas qualificações. ― Tenho baixa auto-estima ― Ashling relembrou a ele, com um largo sorriso.

― A minha é ainda mais baixa ― devolveu Ted, decidido a não ficar atrás. ― Mas uma revista feminina... ― refletiu. ― Se você conseguir, pode mandar aquele pessoal da Cantinho da Mulher tomar no rabo. A vingança é um prato que se serve frio! ― Atirou a cabeça para trás e soltou uma seqüência de falsas gargalhadas sardônicas do tipo Vincent Price: ― Iuarrarrarrarrarrarrarrarrarrarrá! ― Na verdade, a vingança não é nenhum prato ― interrompeu-o Ashling. ― É uma emoção. Ou qualquer outra coisa. Com a qual não vale a pena perder tempo. ― Mas depois da maneira como te trataram ― disse Ted, admirado. ― Você não teve culpa pelo fato de o sofá da mulher ter ficado estragado. Durante mais anos do que gostava de se lembrar, Ashling trabalhara na Cantinho da Mulher, uma revista semanal chinfrim. Ashling fora editora de ficção, editora de moda, editora de saúde e beleza, editora de trabalhos manuais, editora de culinária, psicóloga, copidesque e orientadora espiritual, os oito em um. O que não era tão trabalhoso quanto possa parecer, na realidade, porque a Cantinho da Mulher era produzida segundo uma fórmula muito rigorosa, de eficácia comprovada. Toda edição tinha um molde de crochê ― quase sempre uma capa para o rolo de papel higiênico em feitio de dama antiga do Sul dos Estados Unidos. Em seguida vinha uma seção de culinária ensinando a comprar cortes de carne baratos e disfarçá-los de alguma outra coisa. Toda edição tinha um conto cujos protagonistas eram um jovem e sua avó, inimigos jurados no começo e grandes amigos no fim. Havia a Seção Problema, é claro ― invariavelmente com uma carta se queixando de uma nora atrevida. As páginas dois e três exibiam um sortimento de casos "engraçados" estrelados pelos netos das leitoras, e as gracinhas que haviam dito ou feito. A terceira capa trazia uma carta cheia de lugares-comum, supostamente escrita por um padre, mas sempre rabiscada por Ashling quinze minutos antes do fechamento da edição. Por fim, havia as dicas das leitoras.

E uma dessas calhou de ser o insólito instrumento da ruína de Ashling. As dicas das leitoras eram conselhos enviados pelas marias-ninguém em benefício das outras marias-ninguém. Eram sempre sobre como fazer o dinheiro render mais e conseguir alguma coisa sem gastar nenhum centavo. A premissa geral era a de que você não precisa comprar nada, porque pode fazê-lo você mesma com ingredientes básicos que já tem em casa. O suco de limão era o arroz-de-festa da seção. Por exemplo: para que comprar um xampu caro, quando você pode fabricar o seu com um pouco de suco de limão e detergente? Gostaria de fazer reflexos nos cabelos? É só espremer dois limões na cabeça e sentar ao sol. Durante um ano, mais ou menos. E para tirar aquela mancha de suco de mirtilo do sofá bege? Uma mistura de suco de limão com vinagre dá conta do recado. Só que não dava. Pelo menos, não no sofá da Sra. Anna O'Sullivan, do condado de Waterford. Saiu tudo errado, mais errado impossível ― a mancha de suco de mirtilo tornou-se mais tinhosa do que nunca, e nem o Diabo das Manchas conseguiu expulsá-la dali. E, apesar do emprego magnânimo de Glade, todo o aposento fedia a vinagre. Como era uma boa católica, a Sra. O'Sullivan acreditava em castigos violentos. E ameaçou entrar na justiça. Quando Sally Healy, editora da Cantinho da Mulher, abriu uma sindicância, Ashling admitiu que inventara ela mesma a tal dica. Tinham recebido muito poucas contribuições das leitoras naquela semana em particular. ― Eu não achava mesmo que alguém acreditasse nelas ― sussurrou Ashling em sua defesa. ― Estou surpresa com você, Ashling ― disse Sally. ― Você sempre me disse que não tinha imaginação. E a carta do padre Bennett não conta, sei que você a copia da Juízo Católico, que, por sinal ― guarde isso para si, por enquanto ―, está indo para o brejo. ― Me desculpe, Sally, isso nunca mais vai se repetir. ― Sou eu que peço desculpas, Ashling. Vou ter que despedir você. ― Por causa de um simples erro? Não acredito!

Tinha razão em não acreditar. O verdadeiro motivo era que a diretoria da Cantinho da Mulher estava preocupada com a queda vertiginosa das vendas da revista, e andava à cata de um bode expiatório. O bafafá de Ashling não poderia ter vindo em melhor hora. Agora poderiam simplesmente despedi-la, sem ter que desembolsar uma indenização. Sally Healy ficou desolada. Ashling era a funcionária mais confiável e esforçada que alguém poderia ter. Mantinha o lugar inteiro funcionando, enquanto Sally chegava tarde, saía cedo e desaparecia nas tardes de terça e quinta para apanhar a filha na aula de balé e o filho no treino de futebol. Mas a diretoria tinha deixado claro que era Ashling ou ela. Em consideração a seus longos anos de dedicação, permitiram que Ashling se mantivesse no emprego até arranjar outro. Coisa que, se Deus quisesse, aconteceria logo. ― E aí? ― Ashling alisou a frente do blazer e se voltou para Ted. ― Ótimo. ― Os ossos dos ombros de Ted se ergueram e descaíram. ― Ou este aqui é melhor? ― Ashling vestiu um blazer que, aos olhos de Ted, pareceu idêntico ao primeiro. ― Ótimo ― ele repetiu. ― Qual dos dois? ― Os dois. ― Qual dos dois dá mais impressão de que tenho cintura? Ted se contorceu. ― De novo, não. Você é obcecada pela sua cintura. ― Não tenho cintura para me obcecar. ― Por que você não implica com o tamanho da sua bunda, como todas as mulheres normais? Ashling tinha muito pouca cintura, mas, como sempre acontece com as más notícias que nos dizem respeito, fora a última a saber. Foi só aos quinze anos, quando sua amiga Clodagh soltou um suspiro e disse: "Que sorte a sua, não ter cintura. A minha é minúscula e isso só serve para fazer minha bunda parecer maior", que ela fez a chocante descoberta. Enquanto todas as outras garotas da rua passaram a adolescência diante do espelho, numa dúvida mortal se um dos peitos era maior que o outro, a atenção de Ashling se concentrava mais embaixo.

Até que finalmente comprou um bambolê e começou a praticar com raça no jardim dos fundos. Durante dois meses ralou e rebolou, dia e noite, a língua sinceramente pendurada para fora da boca. Todas as mães de família da vizinhança espiavam por cima dos muros de seus jardins, os braços cruzados, trocando meneios de cabeça coniventes: "O bambolê ainda vai acabar levando aquela ali para o túmulo antes da hora." Não que o obsessivo e ininterrupto bamboleio tivesse surtido o menor efeito. Ainda hoje, dezesseis anos depois, havia uma inegável retidão longitudinal na silhueta de Ashling. ― Não ter cintura não é a pior coisa que pode acontecer com alguém ― animou-a Ted, porque não era nos seus olhos que a pimenta ardia. ― Não é mesmo ― concordou Ashling, com uma jovialidade desconcertante. ― A pessoa também pode ter pernas horríveis... E quis a sorte que eu tivesse. ― Não tem, não. ― Tenho, sim. Herdei da minha mãe... Mas, como é a única coisa que herdei dela ― acrescentou, bem-humorada ―, acho que não estou tão mal assim. ― Na cama, sou do tipo de homem que apronta todas ― começou Ted, que estava ansioso para mudar de assunto. ― Ontem, por exemplo, disse para minha namorada que foi meu sobrinho quem colou os adesivos do Ursinho Puff na cabeceira. ― Que namorada? E que história é essa de Ursinho Puff? ― Não, tá tudo errado ― resmungou Ted para si mesmo. ― Na cama, sou do tipo de homem que inventa todas. Ontem, por exemplo, inventei para minha namorada que foi meu sobrinho quem colou os adesivos do Ursinho Puff na cabeceira... Tchan-tchan! ― Ha, ha, muito boa ― disse Ashling, sem entusiasmo. O pior de ser a pessoa favorita de Ted era ser obrigada a servir de cobaia para suas novas piadas. ― Mas posso fazer uma sugestão? "Na cama, sou do tipo de homem que inventa todas. Ontem, por exemplo, inventei para minha namorada que sempre vou amá-la e jamais vou deixá-la..." Tchan-tchan! ― acrescentou, irônica.

― Estou atrasado ― disse Ted. ― Quer uma carona? Muitas vezes ele lhe dava uma carona para o trabalho na garupa da bicicleta, a caminho de seu emprego no Ministério da Agricultura. ― Não, obrigada, vou para outras bandas. ― Boa sorte com a entrevista. Dou uma passada aqui hoje à noite para te ver. ― Não duvido nada ― concordou Ashling, entre os dentes. ― Ah, sim! Como é que está a sua otite? ― Quase curada. Já estou conseguindo até lavar a cabeça sozinha.

Ashling acabou se decidindo pelo blazer número um. Podia jurar que detectara uma ligeira reentrância no meio do percurso entre os peitos e os quadris, e isso já era o bastante para ela. Depois de ficar em dúvida quanto à maquiagem, optou pela discrição, para não dar a impressão de ser frívola. Mas, para não ficar insípida demais, resolveu usar sua amada bolsa preta-e-branca em pele de pônei. Em seguida, esfregou o Buda da sorte, enfiou o seixo da sorte no bolso e lançou um olhar cheio de tristeza para o chapéu vermelho da sorte. Mas, enfim, que sorte pode dar um chapéu com um pompom vermelho numa entrevista de emprego? E, de mais a mais, não precisava dele ― seu horóscopo dissera que aquele seria um bom dia. E o oráculo dos anjos também. Ao sair do prédio, teve que contornar pé ante pé um homem que dormia a sono solto diante da portaria. Em seguida, voltou-se na direção do escritório da Randolph Media em Dublin e, enquanto passava apressada pelo engarrafamento no centro da cidade, repetia mentalmente, uma vez atrás da outra, como aconselhaa Louise L. Hay: Vou conseguir esse emprego, vou conseguir esse emprego, vou conseguir esse emprego... Mas e se não conseguir?, Ashling não pôde deixar de se perguntar. Bom, nesse caso, não vou me importar, bom, nesse caso, não vou me importar, bom, nesse caso, não vou me importar... Embora tivesse bancado a durona na ocasião, Ashling ficara arrasada com a reviravolta causada pelo sofá da Sra. O'Sullivan. Tão arrasada que o fato provocara uma das otites que sempre davam as caras quando ela ficava estressada. Perder o emprego era de uma infantilidade constrangedora, o tipo de coisa que não acontece com uma mulher de trinta e um anos de idade, que já fez até uma hipoteca. Sem dúvida, ela já devia ter superado isso tudo, não é mesmo?

Para impedir que sua vida desmoronasse, lançara-se desesperadamente à procura de um emprego, candidatando-se a qualquer função que tivesse uma remota hipótese de desempenhar. Não, não sabia laçar um garanhão fujão, admitira durante a entrevista no rancho de faroeste em Mullingar ― para ser franca, pensara que o cargo para o qual estavam entrevistando os candidatos fosse administrativo ―, mas estava disposta a aprender. Em cada entrevista a que comparecia, repetia sem cessar que estava disposta a aprender. Mas, de todos os empregos a que se candidatara, o da Garota era o único que realmente queria, que desesperadamente queria. Adorava trabalhar numa revista, e os empregos em revistas eram raros na Irlanda. Além disso, Ashling não era propriamente uma jornalista, apenas alguém com boa capacidade de organização e olho para detalhes. As revistas da Randolph Media ocupavam o terceiro andar de um prédio de escritórios no cais do porto. Ashling ficara sabendo que a Randolph Media também era dona de uma emissora de televisão, pequena mas próspera, o Canal 9, e uma estação de rádio altamente comercial, mas, pelo visto, ambas funcionavam em algum outro local. Ashling saiu do elevador e disparou pelo corredor em direção à recepção. O lugar parecia fervilhar de atividade, com gente correndo de um lado para o outro, carregando papeletas. Ashling vibrou com um entusiasmo que raiava a náusea. Bem em frente à mesa de recepção, havia um homem alto e desgrenhado, absorto numa conversa com uma garota asiática minúscula. Falavam um com o outro em voz baixa, e algo na natureza do diálogo fez com que Ashling compreendesse que gostariam de estar gritando. Seguiu em frente, apressada; não gostava de brigas. Nem mesmo das alheias. Deu-se conta do quão profundamente se equivocara em relação ao quesito maquiagem no momento em que pôs os olhos na recepcionista. Trix ― era assim que seu distintivo dizia que se chamava ― tinha a aparência cintilante e untuosa das adeptas da escola de maquiagem Mais-é-Mais.

Suas sobrancelhas tinham sido tão afinadas que se encontravam à beira da extinção, seu delineador labial era tão grosso e escuro que ela parecia ter um bigode, e toda a sua cabeça loura estava emaranhada entre dúzias de prendedorezinhos cintilantes em feitio de borboleta, simetricamente distribuídos. Devia ter sido obrigada a acordar três horas mais cedo para fazer aquilo, pensou Ashling, extremamente impressionada. ― Oi ― grunhiu ela, com uma voz de quem fuma quarenta cigarros por dia ― o que, por coincidência, vinha a ser o caso. ― Tenho uma entrevista às nove e me... ― Ashling se interrompeu ao ouvir o ganido alto atrás de si. Olhou por sobre o ombro e viu o homem desgrenhado cuidando do dedo indicador. ― Você me mordeu! ― exclamou ele. ― Mai, tirou sangue! ― Espero que sua antitetânica esteja na validade ― a garota asiática riu, cheia de desprezo. Trix soltou um muxoxo, lançando os olhos para o alto, e resmungou: ― Aqueles dois babacas nunca se cansam. Senta aí ― disse a Ashling. ― Vou dizer para o Calvin que você chegou. Desapareceu por entre as portas duplas e Ashling saiu mancando até um sofá, ao lado de uma mesinha onde se espalhavam todos os títulos da atualidade. A vista deles fez com que seu nervosismo atingisse um súbito paroxismo ― queria esse emprego tão desesperadamente! Seu coração palpitava, seu estômago soltava descargas de bílis. Distraída, rolou o seixo da sorte entre o polegar e o indicador. Por trás do véu de ansiedade que a fazia tremer, teve uma vaga consciência do homem mordido batendo a porta do banheiro masculino e da garota asiática pisando duro em direção ao elevador, sua longa cortina de cabelos negros balançando sedosa de um lado para o outro. ― O Sr. Carter mandou você entrar. ― Era Trix que estava de volta, tentando, em vão disfarçar sua surpresa. Durante os dois últimos dias fora infernizada por candidatas nervosas que Calvin Carter deixara mofando ao lado de sua mesa por até meia hora.

Durante essa espera, Trix fora obrigada a adiar seus telefonemas para as amigas e namorados e enfrentar as perguntas suplicantes das candidatas sobre suas chances de conseguir o emprego. E, como se já não fosse dose para leão, sabia muitíssimo bem que Calvin Carter e Jack Devine não estavam fazendo outra coisa na sala de entrevistas senão jogar buraco. Mas hoje Calvin Carter fora abandonado por Jack Devine, e estava se sentindo sozinho e entediado. Tanto podia estar entrevistando alguém quanto coçando o saco. ― Entre! ― ordenou, quando Ashling bateu timidamente à porta. Bastou-lhe uma única olhada na mulher de cabelos escuros vestindo um terninho preto para decidir não contratá-la. Pelo simples fato de que não era glamourosa o bastante para a Garota. Ele não entendia muito de cabelo de mulher, mas algo lhe dizia que em geral era mais complicado do que o daquela. O normal não era ter um certo jeitão de coisa mexida? Certamente não era para ficar lá, castanho e pendurado até os ombros, não é mesmo? E uma cara lavada vai muito bem numa empregadinha de fazenda encarregada de ordenhar as vacas, mas não numa aspirante ao cargo de redatora-chefe de uma revista feminina sexy... ― Sente-se. ― Ele achou melhor cumprir com as formalidades durante cinco minutos. Sem fôlego devido ao afã de se sair bem, Ashling sentou-se na única poltrona disponível, no meio do aposento, e encarou o homem sentado por trás da mesa comprida. ― Jack Devine, o diretor superintendente Irlandês, vai estar aqui dentro de alguns minutos ― explicou Calvin. ― Não sei o que o está prendendo. Mas, antes de mais nada ― voltou sua atenção para o currículo dela ―, é melhor me dizer como se pronuncia esse seu nome. ― Ash-ling. Ash rimando com cash, ling rimando com king. ― Ash-ling. Ashling. Certo, posso pronunciar isso. Muito bem, Ashling, durante os últimos oito anos você trabalhou em revistas...

― Revista, para ser franca. ― Ashling ouviu alguém soltar uma risadinha nervosa e se deu conta, tarde demais, de que fora ela mesma. ― Só essa que está no currículo. ― E por que você está saindo da Cantinho da Mulher? ― Estou à procura de um novo desafio ― arriscou, nervosa. Fora Sally Healy quem lhe dissera para falar aquilo. Nesse momento, a porta se abriu e o homem mordido entrou. ― Ah, Jack. ― Calvin Carter franziu o cenho. ― Essa é Ashling Kennedy. Ash rimando com cash, ling rimando com king. ― Como vai? ― Jack estava com outras coisas na cabeça. Estava de péssimo humor. Passara metade da noite acordado negociando com os técnicos da emissora de tevê, enquanto negociava quase simultaneamente com uma rede de tevê norte-americana, para convencê-la a não vender sua série premiada para a RTE, e sim para o Canal 9. E, como se sua carga de trabalho já não tivesse atingido um volume crítico, fora encarregado de criar essa nova revista burra. A última coisa de que o mundo precisava era de mais uma revista feminina! Se bem que, para ser honesto, a verdadeira razão de suas mágoas fosse Mai. Ela o deixava louco. Ele tinha ódio dela. Muito ódio dela. Como chegara a pensar que era louco por ela...! Pois não havia força no universo que o fizesse atender seus telefonemas de novo. Nunca mais, aquela fora a última vez, a última mesmo, a última das últimas! Girou o corpo por trás da mesa, esforçando-se por se concentrar na entrevista ― o velho Calvin sempre ficava uma pilha de nervos quando entrevistava alguém. Sabia que era sua obrigação fazer alguma pergunta relevante em um ou dois segundos, mas a única coisa que conseguia pensar era que talvez sangrasse até a morte. Ou morresse de hidrofobia. Em quanto tempo sua boca começaria a espumar?, perguntava-se.

Inclinou-se com a poltrona para trás, apoiando-a sobre as duas pernas traseiras, e manteve o dedo ferido à sua frente, a encará-lo. Não podia acreditar que ela o tivesse mordido. Da última vez, prometera que... Apertou com mais força o rolinho de papel higiênico em volta do dedo e o sangue aflorou, vermelho vivo. ― Me fale sobre seus pontos fracos e pontos fortes ― pediu Calvin a Ashling. ― Tenho que ser honesta e confessar que a área em que sou mais fraca é a redatorial. Sei fazer legendas, títulos e matérias curtas, mas não tenho muita experiência em escrever artigos longos. Nenhuma, na verdade, se fosse ser absolutamente franca. ― Meus pontos fortes: sou meticulosa, organizada e trabalhadora. Sou boa como braço direito de alguém ― disse, com toda a honestidade, repetindo textualmente as palavras de Sally Healy. Então interrompeu-se e perguntou: ― Perdão, o senhor aceita Band-Aid para o dedo? Jack Devine levantou o rosto, sobressaltado. ― Quem, eu? ― Não vejo mais ninguém sangrando nesta sala. ― Ashling arriscou um sorriso. Jack Devine sacudiu violentamente a cabeça. ― Não, não... obrigado ― acrescentou, mal-humorado. ― Por que não? ― interveio Calvin Carter. ― Estou bem. ― Jack gesticulou com a mão sadia. ― Aceite o Band-Aid ― disse Calvin. ― Parece uma boa idéia. Ashling levantou a bolsa do chão, pousou-a no colo e, vasculhando seu interior o mínimo necessário, retirou uma caixa de Band-Aids. Levantando a tampa, remexeu rapidamente a fieira de adesivos, puxou um e entregou-o a Jack. ― Vê se desse tamanho está bom. A expressão de Jack era a de quem não tem a menor idéia do que fazer. Calvin Carter não lhe ficava muito atrás. Ashling conteve um suspiro, levantou-se da poltrona, tomou o Band-Aid da mão de Jack e descolou a tirinha de papel encerado. ― Estende o dedo. ― Sim, senhora ― disse ele, sarcástico.

Com rapidez e eficiência, ela envolveu o dígito ensangüentado no adesivo. Para sua surpresa, a pretexto de se certificar de que o Band-Aid estava bem seguro, deu um apertãozinho no dedo dele e sentiu uma vergonhosa satisfação ao ver um estremecimento de dor percorrer seu rosto. ― O que mais você carrega aí? ― perguntou Calvin Carter, curioso. ― Aspirinas? Ashling assentiu, desconfiada. ― O senhor quer uma? ― Não, obrigado. Uma caneta e um bloquinho? Ela tornou a assentir. ― E o que me diz ― é uma chance em mil, reconheço ― de um estojo de costura portátil? Ashling hesitou, constrangida. Por fim, toda a sua figura se desanuviou, e ela deixou escapar um risinho de assentimento. ― Para ser franca, tenho, sim. ― Seu sorriso era largo. ― Você é muito organizada ― interrompeu-a Jack Devine, dando um tom ofensivo à constatação. ― Alguém tem que ser. ― Calvin Carter havia reformulado sua opinião sobre ela. Era encantadora e, embora estivesse com batom nos dentes, pelo menos ela estava usando batom. ― Obrigado, Ashling, ficaremos em contato. Ashling apertou a mão dos dois homens, mais uma vez aproveitando a oportunidade para dar um bom apertão na mão de Jack Devine. ― Taí, gostei dela. ― Calvin Carter riu. ― Eu não ― disse Jack Devine, emburrado. ― Já disse que gostei dela ― repetiu Calvin Carter. Não estava habituado que discordassem dele. ― Ela é confiável e tem expediente. Dê o emprego para ela.

 

Clodagh acordou cedo. Até aí, nada de novo. Clodagh sempre acordava cedo. Era nisso que dava ter filhos. Quando não estavam urrando de fome, estavam se espremendo na cama entre você e seu marido e, quando não, estavam na cozinha às seis e meia de uma manhã de sábado, fazendo um alarmante baticum de panelas. Naquela manhã estavam de serviço, fazendo o alarmante baticum de panelas. Mais tarde ela iria descobrir que Craig, de cinco anos de idade, estava mostrando a Molly, de dois anos e meio, como fazer ovos mexidos. Com farinha de trigo, azeite, ketchup, caldo de carne, vinagre, chocolate em pó, velinhas de aniversário e, é claro, ovos. Nove, incluindo as cascas. Clodagh sabia, pelo tom da algazarra, que coisas terríveis estavam acontecendo no aposento embaixo de seu quarto, mas sentia-se cansada demais, ou alguma outra coisa demais, para se levantar e intervir. Com os olhos fixos no nada, ficou lá, deitada, escutando as cadeiras sendo arrastadas pelo chão recém-coberto de pedra calcária, as portas dos armários comprados há poucos meses sendo abertas e batidas e as panelas esmaltadas caríssimas sendo surradas até ficarem entre a vida e a morte. A seu lado, ainda no oitavo sono, Dylan se remexeu e jogou o braço por cima de seu corpo. Ela se aconchegou a ele por um momento, em busca de alívio. Então se deteve, tomada pela relutância de sempre, e tornou a se afastar cansadamente ao sentir o desejo dele se expandir na vertical, comprimindo-se pelo seu estômago. Sexo, não. Ela não suportava isso - toda vez que encostava o corpo nele, em busca de conforto e carinho, ele ficava excitado. Principalmente de manhã. Ela sempre se sentia culpada quando se afastava dele. Mas não culpada o bastante para ceder. As chances de Dylan eram maiores à noite, principalmente depois que ela já tinha tomado umas e outras. Nunca o privava por mais de um mês, pois morria de medo das consequências.

Assim, quando a data de entregas se aproximava, sempre arranjava um pretexto para se embebedar e entregava a mercadoria, seu entusiasmo e criatividade diretamente proporcionais à quantidade de gim consumida. Quando Dylan tornou a estender a mão para Clodagh, ela deslizou pelos lençóis até ficar fora de alcance, com a agilidade adquirida em muitos meses de prática. Um novo capítulo na novela baticum, particulamente histérico, foi ao ar mo aposento abaixo. - Aqueles pentelhinhos - resmingou Dylan, sonolento. - Vão derrubar a casa em cima da gente. - Vou lá dar uns berros com eles. - Era mais seguro se levantar. Quando Ashling chegou, horas mais tarde, o descalabro dos ovos mexidos já era uma saudosa lembrança, tendo sido desbancado pelas atrocidades do café da manhã. Clodagh atendeu a campanhia enfrontada em algum tipo de negociação complexa com a louríssima Molly, de carinha de anjo, no que dizia respeito ao uso de um casaco. Molly teimando em vestir um cor de laranja. - Oi Ashling - soltou Clodagh, distraída para logo em seguida chegar a cara a um centímetro da de Molly e insistir, exasperada: - Mas você já está grande demais para ele, Molly. Já não usa esse casaco desde bebê. Por que não veste esse rosinha aqui, que é lindo? - Nãããããããão! - Molly se contorceu toda, tentando se desvincilhar. - Mas você vai sentir frio. - Clodagh segurava-a com força pelo braço. - Nãããaãããaõ! - Vem para a cozinha, Ashling. - Clodagh arrastou Molly pelo vestíbulo. - CRAIG! DESCE DO CARROSSEL! Craig, com os mesmos cabelos louríssimos e a mesma carinha de anjo, se encarapitara na cantoneira da cozinha e se balançava para a frente e para trás na prateleira de aramado , confortavelmente aboletado sobre os pacotes de arroz e macarrão.

Ashling dirigiu-se até a chaleira e a ligou. Tinha crescido a duas portas de Clodagh, e era a sua melhor amiga desde o tempo que era mais seguro ficar na casa de Clodagh do que na sua. Fora Clodagh quem dera a Ashling a notícia sobre sua descinturada cilhueta. Também fora Clodagh quem esclarecera Ashling sobre outros aspectos de sua pessoa, ao dizer "Você tem tanta sorte por ter personalidade! Eu só tenho beleza." Não que Ashling tivesse ficado ofendida. Clodagh não era maldosa, apenas franca, e teria sido total perda de tempo negar a excepcionalidade de sua beleza. Mignon e bem-feita de corpo, com olhos claros como uma escandinava e grossas melanas compridas e brilhantes de cabelos louros, ela era de parar o trânsito. Embora isso não quisesse dizer grande coisa em Dublin, onde o trânsito raramente andava. Ashling tinha uma notícia da mas suma importância: - Arranjei um emprego! - Quando? - Me avisaram há mais de uma semana - confessou Ashling. - Mas tenho trabalhado todo dia até a meia-noite, dando um jeitinho nas coisas para a nova funcionária da "Cantinho da Mulher". - Bem que estranhei você não ter me ligado. Mas e aí, me conta tudo sobre o emprego! Porém, toda vez que Ashling tentava, Craig insistia em ler para ela um livro de cabeça para baixo. Quando as atenções se desviavam dele por um segundo que fosse, tratava de atraí-las outra vez. - Vai brincar no balanço, vai - bajulou-o Clodagh. - Mas tá chovendo. - Você é irlandês, vai se habituando. Fora! Mal Craig saiu, Molly passou a ser o centro das atenções. - Quero! - declarou, apontando para a xícara de Ashling. - Não, é da Ashling - disse Clodagh - Não pode mexer. - Se ela quiser, pode, sim... - Ashling achou melhor dizer. - QUERO! - insistiu Molly. - Você se importa? - perguntou Clodagh. - Eu pego outra para você. Ashling deslizou a caneca pela mesa, mas Clodagh a interceptou antes que chegasse a Molly, que abriu um grande berreiro. - Só estou soprando o café - explicou Clodagh. - Assim você não queima a boca. - QUERO! QUERO! QUERO!

- Mas está quente demais! Você vai se queimar! - QUERO! QUERO AGORA!!! - Ah, tá bom, desisto. Mas devagar, não vai entornar o café. Molly encostou a boca na borda da caneca, recuou e se pôs a gritar: - Quente! Doeu! UAAAAAAAH! - Puta que pariu - murmurou Clodagh. - ...que pariu - pronunciou Molly com a maior clareza. - É isso aí - disse Clodagh, com uma agressividade que chocou Ashling. - Puta que pariu. Dylan entrou correndo na cozinha, em resposta aos urros de Molly. - Ashling! - Sorriu, afastando os cabelos cor de milho do rosto com as mãos. - Você está com uma cara ótima. Alguma notícia no plano profissional? - Arranjei um emprego! - Como laçadora de garanhões fujões em Mullingar? - Numa revista. Para mulheres jovens. - Que legal! Mais dinheiro? Ashling assentiu, orgulhosa. Nenhum aumento enorme, mas melhor do que a porca miséria indexada que ganhara durante os últimos oito anos na Cantinho de Mulher. - E acabaram-se as cartas do padre Bennett. Antes assim, porque viu que o Juízo Católico fechou? Saiu uma notícia no jornal. - Então, no final das contas, foi mesmo melhor assim - disse Ashling, radiante. - Provavelmente, a Sra. O'Sullivan de Waterford foi a melhor coisa que já aconteceu na minha vida! A expressão de Dylan passou de divertida para a alarmada, quando um grande tumulto irrompeu no jardim. Craig tinha caído do balanço e, a julgar pela gritaria, seu sofrimento físico era considerável. A essa altura, Ashling remexia a bolsa atrás daquele que chamava de seu "elixir de emergêcia".

Para si mesma. ― Se importa de ir você? ― Clodagh voltou o olhar cansado para Dylan. ― Eu agüento os dois a semana inteira. E só me conta dos machucados dele o que for imprescindível que eu saiba. Dylan se retirou. ― Quer que eu vá dar uma olhada no Craig? ― Ofereceu-se Ashling, ansiosa. ― Tenho Band-Aids. ― Eu também. ― Clodagh lançou-lhe um olhar de exaspero. ― Me conta do seu emprego. Por favor. Quando Ashling chegou à parte de Jack Devine discutindo furiosamente com a garota asiática, para logo em seguida levar uma mordida, Clodagh finalmente se animou. ― Continua! ― pediu, ansiosa, os olhos brilhando. ― Me conta! Nada, mas nada mesmo me faz ficar de melhor humor do que ouvir um quebra-pau dos bons. Um dia, semana passada, eu estava saindo da academia e tinha um homem e uma mulher urrando um com o outro num carro estacionado. É isso aí, urrando! Até com as janelas fechadas dava pra ouvir os dois. Isso me fez sentir ótima durante o resto do dia. ― Já eu, detesto ― admitiu Ashling. ― É tão deprimente. ― Mas por quê? Ah, acho que com o seu, hum, histórico... Mas para a maioria das pessoas é bom. Sentem que não são as únicas que estão atravessando uma fase difícil. ― Quem é que está atravessando uma fase difícil? ― A ansiedade marcou o rosto de Ashling. Clodagh pareceu constrangida. ― Ninguém. Mas que eu te invejo, invejo! ― subitamente explodiu. ― Solteira, começando num novo emprego, toda essa empolgação. Ashling não soube o que dizer. Para ela, a vida de Clodagh era o Santo Graal. O marido bonito e dedicado, dono de uma próspera empresa; a elegante casa eduardiana de tijolos vermelhos, no bairro chique de Donnybrook; e nada para fazer o dia inteiro, a não ser colocar o macarrão no microondas, planejar a reforma de aposentos já perfeitos e ficar esperando Dylan voltar para casa. ― E aposto que você andou agitando em um monte de clubes ontem à noite ― disse Clodagh, quase em tom de acusação.

― Sim, mas... Foi só o Sugarclub, e eu já estava em casa por volta das duas. Sozinha ― frisou, com a máxima ênfase. ― Clodagh, você tem tudo. Dois filhos lindos, um marido lindo... Ele é lindo? Surpresa, Clodagh se deu conta de que era algo que não lhe ocorria há muito tempo. Com certa reserva, admitiu que, para um homem de mais de trinta, o corpo de Dylan era razoável ― sua barriga não se derretera naquela dobra cônica de banha que tantos de seus contemporâneos cervejeiros ostentavam. Ele ainda se interessava por roupas ― hoje em dia, até mais do que ela, se fosse ser honesta. E freqüentava um bom cabeleireiro, não o velho barbeiro da região, que mandava todo mundo para casa parecendo o próprio pai. Ashling continuou a protestar: ― ...e você está numa forma física fantástica! Tem dois filhos e uma silhueta melhor do que a minha... e olha que eu não tive filhos, e nem é provável que venha a ter, se a minha sorte com os homens não mudar logo, ha, ha, ha. Ashling estava ansiosa para que Clodagh risse, mas ela se limitou a dizer: ― Tudo parece desgastado. Principalmente com Dylan. Em desespero de causa, Ashling tratou de providenciar um conselho: ― Você só precisa reacender a velha chama. Tenta se lembrar de como era quando vocês se conheceram. De onde será que ela tinha tirado aquela baboseira? Ah, sim, fora ela mesma quem a escrevera na Cantinho da Mulher, para uma leitora que estava ficando maluca com o marido que se aposentara e não largava do seu pé. ― Não me lembro nem de onde conheci Dylan ― confessou Clodagh. Ah, não, claro que me lembro! Você veio com ele à festa de vinte e um anos de Lochlan Hegarty, lembra? Meu Deus, parece que foi há um século. ― Você tem que se esforçar para manter a chama acesa ― citou Ashling. ― Sair para jantares românticos, talvez até viajar um fim de semana desses. Eu fico com as crianças a hora que você quiser. ― Mas sentiu uma súbita inquietação ao fazer a impulsiva promessa.

― Eu queria me casar. ― Clodagh parecia falar sozinha. ― Dylan e eu parecíamos feitos um para o outro. ― "Feitos"? A palavra certa é perfeitos! ― Ashling relembrou o frisson que percorrera os convidados da festa quando Clodagh e Dylan puseram os olhos um no outro pela primeira vez. Dylan era o rapaz mais bonito da sua turma, Clodagh era inegavelmente a moça mais bonita do seu grupo, e as pessoas sempre gravitam em direção aos seus afins. Quando Dylan e Clodagh trocaram aquele olhar fatal, Ashling estava acompanhando Dylan ― naquele que seria seu primeiro e, como pôde constatar depois, último encontro. Bastou aquele único olhar para torná-la carta fora do baralho. Não que guardasse rancor contra qualquer um dos dois. Estavam predestinados, só lhe restava levar a derrota na esportiva. Clodagh soltou um riso cansado. ― Está tudo ótimo, falando sério. Ou, pelo menos, vai ficar, quando eu trocar o papel de parede da sala. ― Outra reforma! ― Parecia que fora ontem que Clodagh instalara a nova cozinha. Na verdade, a sala também não parecia ter sido reformada há muito mais tempo do que isso. À tarde, voltando da casa de Clodagh, Ashling deu um pulo no supermercado. Atirou vários pacotes de pipoca de microondas na cesta e foi para o caixa. A mulher à sua frente na fila tinha uma figura tão sofisticada e estilosa que, quando Ashling se deu conta, já estava se inclinando para trás, a fim de admirá-la melhor. Como Ashling, usava calças de ginástica, tênis e um casaco curto, mas, ao contrário de Ashling, tudo nela parecia reluzente e novo ― do jeito que as roupas são antes de serem lavadas e perderem aquele brilho perfeito de coisa nova. Seus tênis eram um par de Nikes cor-de-rosa que Ashling já vira numa revista, mas que ainda não estavam à venda na Irlanda. Sua mochila em seda de pára-quedas cor-de-rosa combinava com a borracha cor-de-rosa dos calcanhares do tênis. E seu cabelo era maravilhoso ― cheio de balanço e brilho, volume e vida ―, de um jeito que a comum das mortais jamais conseguiria ter.

Fascinada, Ashling deu uma conferida nos itens da cesta da mulher: sete latas de Slimfast de morango, sete batatas, sete maçãs e quatro... cinco... seis... sete quadradinhos de chocolate em embalagens individuais, pegos no estande de doces. Ela nem os pusera dentro de um saquinho, parecendo encará-los como se fossem sete mercadorias isoladas. Algum instinto imperioso disse a Ashling que essa mísera cesta constituía a compra semanal da mulher. Ou isso, ou ela estava abastecendo a despensa para hospedar Zangado, Atchim, Soneca, Feliz e que nomes tivessem os outros três.

 

Chovia torrencialmente quando o avião de Lisa aterrissou no aeroporto de Dublin, no começo da tarde de sábado. Partira de Londres na suposição idiota de que era humanamente impossível se sentir pior do que se sentia, mas bastou uma olhada na vista encharcada de chuva de Dublin para perceber que se enganara redondamente. Dermot, o chofer de táxi que a levou até o hotel no centro da cidade, só fez aumentar a sua angústia. Era falante e simpático, e Lisa não queria saber de gente falante e simpática. Cheia de melancolia, pensou nos psicóticos com metralhadores que poderiam estar dirigindo aquele táxi, se ela tivesse a sorte de se encontrar em Nova York. - Tem família aqui? – perguntou Dermot. - Não. - Namorado, então? -Não. Quando ela se recusava a falar de si mesma, falava ele. - Adoro dirigir – confidenciou. -U-la-lá - disse Lisa simpática. - Sabe o que eu faço no meu dia de folga? Lisa o ignorou. - Saio para dar um passeio de carro! É isso que eu faço. E também não vou só até Wicklow, não, dou um passeio comprido. Até Belfast, até Galway, até Limerick... Um dia cheguei até Letterkenny, que fica em Donegal, sabe? Adoro o meu trabalho. E por aí ele foi, enquanto avançavam centímetro por centímetro pelas ruas molhadas e sujas de graxa. Quando chegaram ao hotel em Harcourt Street, ele a ajudou a carregar suas várias malas e lhe desejou uma feliz estada na Irlanda. O Apart-Hotel Malone representava uma nova e estranha modalidade de hotelaria: não tinha bar, restaurante, serviço de quart o ou qualquer outra coisa, a não ser trinta quartos, cada um com uma pequena cozinha anexa. Lisa havia feito reserva para quinze dias, mas tinha a esperança de antes disso já ter encontrado algum lugar para morar. Embotada, pendurou uma roupa ou outra, olhou pela janela cinzenta do trânsito congestionado e então se lançou nas ruas úmidas, para inspecionar a cidade que agora constituía seu lar.

Agora que estava de fato ali, o choque a atingiu com força inédita. Como sua vida fora dar tão errado? Deveria estar passeando pela Quinta Avenida nesse exato momento, e não por essa aldeola ensopada. O guia afirmava que só se levava metade de um dia para dar a volta a Dublin e ver todos os pontos turísticps importantes - como se isso fosse bom! Dito e feito: duas horas e meia bastaram para Lisa conferir todos os points da cidade - leia-se moda -, tnato ao norte quanto ao sul do rio Liffey. Era pior do que ela esperara: nenhuma loja dispunha em seu estoque de produtos da La Prairie, sapatos de Stephane Kelian, uma peça sequer de Vivienne Westwood ou Ozwald Boeteng. - É uó! - pensou, ligeiramente histérica. - Um cafundó-do-judas, e o pior é que Judas está usando o Hilfiger da estação passada! Queria ir para casa. Ansiava desesperadamente por Londres. De repente, em meio à névoa, viu algo que lhe deu uma injeção de ânimo - uma Marks & Spencer! Em geral, nunca se dignava sequer chegar perto de suas filiais: as roupas eram caídas demais, a comida tentadora demais, mas hoje ela se lançou pela porta adentro como um dissidente perseguido buscando abrigo numa embaixada estrangeira. Resistiu ao impulso de se encostar na porta, ofegante, mas só porque a porta era automática. Em seguida embarafustou-se pelo setor de alimentação, porque não tinha janelas e, portanto, não interferia em suas fantasias. Estou na filial da High Street Kensington, fingiu. Daqui a um segundo vou sair e dar de cara com a Urban Outfitters. Ficou flanando diante das frutas frescas. Não, mudei de idéia, decidiu. Estou na filial de Marble Arch. Assum que acabar aqui, vou para South Molton Street.

Saber que as saladas de mala à sua frente faziam parte da diáspora de saladas de melão de todas as filiais de Londres proporcionou-lhe um estranho conforto. Apertou de leve o celofane esticado de uma embalagem e experimentou a sensação de estar em casa – tênue, mas real. Quando recobrou a calma, foi a um supermercado comum e fez as compras da semana. Uma rotina se encarregaria de manter sua sanidade – bem, certamente já ajudara, no passado. Despencou-se de volta para o hotel, o capuz do casaco levantado para proteger os cabelos da chuva que voltara a cair. As sete latas de Slimfast foram tiradas da sacola e dispostas ordenadamente sobre o guarda-louça, as batatas e maçãs foram para a geladeira e os sete pedaços de chocolate para uma gaveta. E agora? Noite de sábado. Totalmente sozinha numa cidade desconhecida. Nada para fazer, a não ser ficar no hotel e assistir... Foi então que notou que não havia televisão no quarto. O golpe foi tamanho que ela chorou uma súbita torrente te lágrimas quentes e grossas. O que faria agora? Já lera todas as revistas daquele mês, Elle, Red, New Woman, Company, Cosmo, Marie Claire, Vogue e Tatler, além das revistas irlandesas com as quais iria competir. Poderia ler um livro, pensou. Se tivesse um. Ou um jornal – só que os jornais eram tão tediosos e deprimentes... Pelo menos tinha roupas para pendurar. Assim, enquanto as ruas lá embaixo se enchiam de gente jovem a caminho de uma noite etílica, Lisa fumou, desamarrotou vestidos, saias e blazers e os pendurou um cabides, alisou casacos e suéteres e os guardou um gavetas, ordenou botas e sapoatos em perfeitas fileiras de parada militar, pendurou bolsas... O telefone tocou, e o sobressalto quebrou o ritmo que estava conseguindo acalma-la. - Alô? – Lisa se arrependeu de ter atendido. – Oliver! – Ah, que merda. – Onde você... Como você conseguiu meu número? - Com a sua mãe. Bruxa velha intrometida. - Quando você ia me contar, Lisa? Para ser franca, nunca. - Assim que arranjasse um lugar para morar.

- O que você fez do nosso apartamento? - Aluguei. Não se preocupe, você vai receber sua parte do aluguel. - E pó que Dublin? Pensei que você quisesse ir para Nova York. - Me pareceu uma decisão mais inteligente do ponto de vista profissional. - Meu Deus, você é dura na queda. Bom, espero que esteja feliz – disse ele, com um tom de voz que sugeria exatamente o contrário. – Espero que tenha valido a pena. E desligou. Ela olhou para a rua de Dublin e começou a tremer. Teria valido a pena? Bem, era melhor dar o couro para fazer com que tivesse valido. Para dia Garota o maior sucesso do mundo das revistas. Tirou um tragada funda do cigarro, logo tratando de acende-lo de novo, pois achou que tinha apagado. Não tinha, mas não estava atenuando sua angústia. Precisava de alguma coisa. O chocolate chamava seu nome de dentro da gaveta, mas ela resistiu. Só porque se sentia no inferno, isso não servia de desculpa para traçar mil e quinhentas calorias num só dia. Por fim, terminou cedendo. Enroscou-se numa poltrona, retirou lentamente o papel e passou os dentes pela borda do chocolate, desbastando-o em finas raspas encaracoladas, uma após a outra, até acabar. Levou uma hora. O barulho de garrafas se entrechocando na porta de Ashling anunciou a chegada de Joy. - Ted já está descendo, deixa a porta no trinco. – Joy pousou com estrépido uma garrafa de vinho branco na minpuscula bancada da cozinha de Ashling. Ashling se preparou. Não deu outra. - Phil Collins – começou Joy, com um brilho cruel nos olhos -, Michael Bolton e Michael Jackson, e você tem que dormir com um deles. Ashling estremeceu. - Bom, Phil Collins, nem morta, Michael Jackson, nem morta e Michael Bolton, nem morta. - Tem que escolher um. – Joy se ocupava com o saca-rolhas. - Meu Deus. – O rosto de Ashling estava contraído de nojo. - Acho que Phil Collins, já faz algum tempo que não escolho ele. Certo, sua vez. Benny Hill, Tom Jones ou... deixa eu ver, quem é um asqueroso para ninguém botar defeito? Paul Daniels?

- Sexo, no duro, ou só... - Sexo no duro – disse Ashling, categórica. - Tom Jones, então. – Joy suspirou, entregando a Ashling um copo de vinho. – Agora me mostra o que vai usar. Era sábado à noite, e Ted ia fazer uma aparição “experimental” num show humorístico. Era a primeira vez que apresentava esse numero para alguém além de amigos e parentes, e Ashling e Joy iam acompanha-lo para lhe dar apoio moral e entrar de penetras na festa que haveria depois. Joy – cujo inesquecível sobrenome era Ryder* - morava no apartamento embaixo do de Ashling. Era baixinha, gorducha, tinha cabelos cacheados e era perigosa – devido a seu prodigioso apetite por bebidas, drogas e homens, aliado à missão de fazer de Ashling sua parceira no crime. - Vem para o meu quarto – convidou-a Ashling, e ambas se espremeram pela porta adentro. – Vou usar essa calça cargo creme e esse top. – Ashling deu as costas para o armário depressa demais e pisou no pé de Joy, que deu um pulo e acertou uma cotovelada na tevê portátil. - Você não fica doida com a falta de espaço dessas latas de sardinha? – Joy suspirou, esfregando o cotovelo. Ashling fez que não com a cabeça: - Adoro viver na cidade. E não se pode ter tudo. Ashling vestiu rapidamente as roupas com que iria sair. - Eu ficaria parecendo um boneco inflável nessas roupas. – Joy a admirou, melancólica. – É horrível ter corpo pêra! - Mas pelo menos você tem cintura. Olha só, andei pensando em fazer alguma coisa com o cabelo... Ashling comprara vários prendedorezinhos de borboleta coloridos, depois que vira o grande efeito que Trix tirara dos seus. Mas, queando os colocou na frente do cabelo, prendendo duas mechas, uma para cada lado, o efeito não foi exatamente o mesmo. - Fiquei ridícula! - Ficou mesmo – concordou Joy, amável. – E aí, você acha que Metade-homem-metade-texugo vai estar na festa depois do show? - Pode ser. For numa festa com Ted que vocês se conheceram, não foi? E ele é amigo de alguns dos humoristas, não?

 

* Joyrider: Gíria empregada em relação a jovens que roubam um carro apenas para dar uma volta e depois o abandonam. (Todas as notas são da tradutora.)

 

― Hummmm - assentiu Joy, com ar sonhador. ― Mas isso já tem semanas, e não vejo ele desde então. Onde será que ele se enfiou, aquele metade-homem-metade-texugo misterioso e internacional? Pega o tarô, vamos dar uma olhadinha no que vai acontecer. Rumaram resolutas para a sala de estar pequena e aconchegante. Joy puxou uma carta do baralho e a virou para Ashling.

― Dez gládios. Essa é foda, né? ― É foda ― concordou Ashling. Joy apanhou o baralho e foi passando as cartas em alta velocidade, até encontrar sua favorita: ― A Senhora de Bastões, essa sim! Agora escolhe uma você. ― Três taças. ― Ashling a levantou. ― Começos. ― Isso quer dizer que você também vai conhecer um cara. Ashling riu. ― Faz séculos que Phelim foi para a Austrália, né? ― interrogou-a Joy. ― Já está na hora de você tirar ele da cabeça. ― Já tirei ele da cabeça. Fui eu quem terminou tudo, lembra? ― Mas só porque ele não queria fazer o que era certo. Embora seja a melhor coisa para a mulher, mesmo quando eles não querem fazer o que é certo em relação a mim, não tenho coragem de dar cartão vermelho para eles. Você é muito forte. ― Não se trata de força. Foi porque não consegui agüentar a tensão de ficar esperando uma decisão dele. Achei que ia ter um troço. Phelim fora namorado-sim-namorado-não de Ashling durante cinco anos. Haviam tido bons momentos e momentos não tão bons assim, porque Phelim sempre amarelava na última hora, quando chegava o momento de assumir um compromisso verdadeiro e maduro.

Para fazer com que o namoro desse certo, Ashling vivia evitando pisar em rachaduras nas calçadas, cumprimentando pegas sozinhas, apanhando pence caídos na rua* e lendo tanto seu horóscopo quanto o de Phelim. Seus bolsos sempre exibiam um bojo pesado de seixos da sorte, quartzos cor-de-rosa e medalhas milagrosas, e ela já desbotara quase toda a tinta dourada do Buda da sorte, de tanto esfregá-lo. Cada vez que os dois reatavam, o poço da esperança secava mais um pouco e, por fim, a indecisão de Phelim terminou por esgotar todo o amor de Ashling. Como todos os outros rompimentos, o último fora pacífico. Ashling dissera, com toda a calma: ― Você vive falando da raiva que sente por estar preso em Dublin e da vontade que tem de viajar pelo mundo. Pois então? Vai em frente. Viaja. Mas ainda hoje vibrava um tênue vínculo entre os dois, mesmo estando separados por quase vinte mil quilômetros. Ele voltara à Irlanda em fevereiro para o casamento do irmão, e a primeira pessoa que visitara fora Ashling. Caminharam para os braços um do outro e lá ficaram durante intermináveis minutos, com lágrimas nos olhos, experimentando aquela sensação de quem perdeu na loteria por um ponto. ― Canalha ― disse Joy, veemente.

* Segundo uma superstição irlandesa, avistar uma única pega é sinal de tristeza, e cumprimentar o pássaro, uma tentativa de esconjuro. Também se acredita que desprezar uma moeda encontrada na rua é mau para as finanças.

 

― Não era, não ― teimou Ashling. ― Não podia me dar o que eu queria, mas isso não é motivo para eu ter ódio dele. ― Pois eu tenho ódio de todos os meus ex-namorados ― gabou-se Joy. ― Mal posso esperar para Metade-homem-metade-texugo se tornar um deles, para perder esse poder hipnótico que tem sobre mim. Ih! E se ele estiver lá hoje à noite? Preciso passar para ele que não estou disponível. Se pelo menos... não, um anel de noivado seria ir longe demais. Talvez uma marca de chupão resolvesse o problema. ― E onde é que você vai arranjar uma? ― Com você! Vem cá. ― Joy afastou uma massa de cachos do pescoço. ― Você se importaria? ― Muito. ― Por favor! Como era do tipo que não sabe dizer não, Ashling deixou a relutância de lado, cravou os dentes sem muita vontade no pescoço de Joy e lhe deu um chupão.

No meio do dito-cujo, alguém disse "Ih!". As duas levantaram o rosto, petrificadas numa pose inexplicavelmente carregada de culpa. Ted postava-se diante delas, a encará-las. Parecia transtornado. ― A porta estava aberta... Não me dei conta... ― Tratou de se recompor. ― Espero que vocês sejam muito felizes. Ashling e Joy se entreolharam e caíram na gargalhada, até Ashling ficar com pena dele e lhe explicar tudo. Ted viu o tarô em cima da mesa e avançou para ele. ― Oito bastões, Ashling, o que quer dizer? ― Sucesso nos negócios. Seu número vai bombar hoje à noite. ― Sim, mas será que vou fazer sucesso com as garotas? Ted se tornara humorista por um único motivo: arranjar uma namorada. Tinha visto a maneira como as mulheres se atiravam em cima dos humoristas que faziam o circuito de Dublin, e achara que suas chances de se dar bem seriam maiores do que numa agência de encontros. Não que tivesse chegado a procurar uma agência de encontros. A única a que recorrera era a Agência de Encontros Ashling Kennedy ― Ashling estava sempre tentando casar seus amigos solteiros entre si. Mas a única amiga de Ashling de quem Ted gostara era Clodagh e, infelizmente, essa era comprometida. E muito. ― Tira outra carta ― propôs Ashling. Ele tirou o Enforcado. ― Não dá outra, você vai se dar bem hoje à noite. ― Mas é o Enforcado! ― Não importa. Ashling sabia que quando se coloca um homem num palco, não importa o bagulho que a mãe dele pôs no mundo: seja arranhando um violão, borboleteando para lá e para cá com um bolerinho e um leotard roxo ou comentando que às vezes os ônibus demoram séculos para passar e de repente passam três de uma vez, você pode pôr a mão no fogo como as mulheres vão achá-lo atraente. Ainda que se encontre num tabladinho empoeirado de dois palmos de altura, numa sala de setenta metros quadrados, ele se revestirá de um glamour estranho, sedutor. ― Resolvi mudar meu número, fazer uma coisa meio surrealista. Falar de corujas. ― Corujas?

― As corujas já deram certo com um monte de gente ― defendeu-se ele. ― Olha só o caso de Harry Hill e Kevin McAleer. Ah, meu Deus . Ashling sentiu um desânimo mortal. ― Anda, gente, vamos indo. Formou-se um pequeno engarrafamento no vestíbulo à saída dos três, pois todos queriam esfregar o Buda da sorte. O show humorístico iria acontecer num clube lotado e barulhento. Ted não subiria ao palco antes da metade do show e, embora os humoristas profissionais fossem talentosos e competentes, Ashling não conseguiu deslanchar e se divertir. Estava preocupada demais em saber como o público receberia as corujas de Ted. A tiros de escopeta, a julgar pelo desempenho do outro calouro. Era um rapazinho esquesito e cabeludo, cujo número consistiu quase que exclusivamente numa imitação de Beavis e Butthead. A platéia foi inclemente. Enquanto vaiavam e gritavam "Cai fora, você é uma merda", Ashling sentiu um aperto no coração por Ted. Em seguida, foi a vez de Ted. Ashling e Joy bateram palmas como pais orgulhosos, embora compreensivelmente ansiosos. Em questão de segundos, suas mãos já estavam tão escorregadias de suor, que tiveram de parar. Sob a luz do único refletor, Ted parecia frágil e vulnerável. Coçou o estômago, distraído, levantando a camiseta e dando uma breve panorâmica do cós da cueca e da barriga estreita, coberta de pêlos negros. Ashling aprovou. Isso talvez atraísse o interesse das mulheres. ― A coruja entra num bar ― começou. Os rostos levantados na platéia estavam acesos de expectativa. ― Pede uma garrafa de leite, um saco de batatas fritas e dez cigarros. Aí o empregado do bar se vira para o amigo e diz: "Olha só, uma coruja que fala!" Houve um ou dois risos abafados de perplexidade, mas afora isso, reinava um silêncio de expectativa. Ainda estavam esperando o desfecho. Ansioso, Ted tratou de contar outra piada. ― Minha coruja vai trabalhar todo dia, mas nunca encontra condução. Mais silêncio. Ashling estava quase recebendo estigmas nas mãos, tamanha era sua ansiedade.

― Minha coruja vai trabalhar todo dia, mas nunca encontra condução ― repetiu Ted, já começando a se desesperar. Finalmente, Ashling compreendeu. ― Como é que ela vai? ― gritou, com a voz trêmula. ― Bem, obrigado! ― desfechou ele. A atmosfera estava pesada de perplexidade. As pessoas se viravam para seus vizinhos, os rostos contraídos numa expressão de "Mas que diabo...?!". Ted seguiu em frente. ― Encontrei um amigo que me perguntou: "Quem era aquela senhora que estava caminhando ao seu lado em Grafton Street?" E eu: "Não era uma senhora, era a minha coruja!" De repente, eles pareceram compreender. As risadas começaram a espoucar, tímidas, para logo em seguida se avolumarem num crescendo, até que, por fim, a platéia inteira se esgoelava de rir. Bem, verdade seja dita, era noite de sábado e estavam mamados. Ashling ouviu alguém cochichando às suas costas: "Esse cara é hilário. Completamente doido." ― O que é amarelo e tem olhos grandes? A platéia estava na palma de sua mão, o fôlego preso, esperando o desfecho. Ted correu um sorriso pelo auditório: ― Doce de coco infestado de corujas! A platéia veio abaixo. ― O que é cinzento e tem uma tromba? Uma pausa aturdida. ― Uma coruja de cara amarrada. Uma coruja cinzenta, obviamente. A platéia veio abaixo outra vez. ― Você está entrevistando candidatas para um emprego. ― Ted estava numa maré de sorte, e a platéia se esbaldando ao máximo. ― Você entrevista três corujas e pergunta a cada uma delas qual é a capital de Roma. A primeira diz que não sabe, a segunda diz que é a Itália e a terceira diz que Roma é uma capital. Para qual das corujas você dá o emprego? ― Para a coruja que tiver peitos maiores! ― berrou alguém no fundo do auditório, e novamente as gargalhadas e os aplausos se elevaram com o fragor de uma revoada de pássaros. Os humoristas de maior prestígio, que haviam deixado Ted participar como um favor, para que ele parasse de infernizá-los, entreolharam-se, ansiosos. ― Tira esse merdinha daí ― sussurrou Billy Bicicleta.

― Tenho que ir embora ― Ted participou à platéia, triste, quando Mark Dignam fez um gesto urgente de quem corta a garganta. ― AAAAAAAHHHH...! ― lamentaram-se todos, profundamente decepcionados. ― A gente criou um monstro, porra! cochichou Billy Bicicleta para Archie Archer (nome verdadeiro, Brian O'Toole). ― Sou Ted Mullins, o humorista que vivia encorujado porque nunca era encorajado. Mas vocês me saíram uns espectadores mais corujas do que a minha própria mãe! Entre vivas histéricos, assobios, sapatadas e aplausos estrondosos, ele se retirou. Mais tarde, quando todos saíam do clube aos trancos e empurrões, Ashling ouviu uma após outra as pessoas falando de Ted. ― "O que é amarelo e tem olhos grandes?" Cheguei a achar que ia passar mal de tanto rir. ― Aquele Ted é fantástico. E sexy, também. ― Gostei do jeito como ele levantou... ― ... a camiseta. É, eu também. ― Será que ele tem namorada? ― Se não tem, vai arranjar. A festa era num quarteirão moderno do cais do porto. Como o apartamento era de Mark Dignam e vários dos convidados também eram humoristas, Ashling esperara se esbaldar a noite inteira. Mas, embora a sala estivesse lotada e barulhenta, reinava uma estranha atmosfera de melancolia. ― Eles ficam de boca fechada porque alguém pode roubar suas piadas ou idéias ― explicou Joy, veterana desses arrasta-pés. ― Sem um público pagante, esses caras não fariam graça nem que fosse para salvar a própria vida. Mas, e aí, onde será que ele está? Joy encetou um safári à caça do Metade-homem-metade-texugo, e Ashling se serviu de um copo de vinho na cozinha comprida e estreita, onde Billy Bicicleta enrolava um baseado. Como era baixo e parecia um gnomo, ela conseguiu sorrir para ele e dizer: ― Você estava muito engraçado hoje à noite. Deve gostar muito do que faz. ― Ah, não mesmo ― disse ele, irritado. ― Estou escrevendo um romance, sabe? É isso que realmente quero fazer na vida. ― Que maravilha ― encorajou-o Ashling.

― Ah, não é, não ― Billy fez questão de frisar. ― É muito realista, muito deprimente. Muito sombrio. Ué, cadê meu isqueiro? ― Posso? ― Ashling riscou um fósforo e acendeu o baseado para ele. Tinha a impressão de que estava mesmo precisado. Em meio a multidão na sala de estar, viu Ted entronizado numa poltrona, com uma fila indiana de interessadas arrastando-se até ele para vender seu peixe. Olhando pela janela para as águas negras como petróleo do rio Liffey, postava-se uma figura taciturna, uma grossa listra soturna por trás dos cabelos compridos e negros. Ah-ha!, pensou Ashling. O misterioso metade-homem-metade-texugo internacional. Joy estava por perto, ignorando-o com todas as suas forças. Sob circunstâncias metade-humano-metade-texuguescas, Ashling preferiu deixá-la na dela. Flanando pela sala, entre um gole e outro de vinho, localizou Mark Dignam. Como tinha quase dois metros e quinze de altura e os olhos mais saltados que ela já vira em alguém que não tivesse sido estrangulado recentemente, também conseguiu bater um papo com ele. Mas ele desprezou os elogios que Ashling fez ao número com um gesto mal-humorado: ― É só até meu romance ser publicado. ― Ah, você também está escrevendo um romance. E aí, hum... é sobre o quê? ― É sobre um homem que enxerga o mundo em toda a sua podridão. ― Os olhos de Mark saltaram ainda mais das órbitas. Iriam cair no carpete se ele não se cuidasse, pensou Ashling, nervosa. ― É muito deprimente ― vangloriou-se ele. ― Quer dizer, incrivelmente deprimente. Ele odeia a vida mais do que a própria vida. Mark se deu conta de que dissera algo vagamente espirituoso, e lançou um olhar ansioso ao seu redor, para se certificar de que ninguém o ouvira. ― Hum, bom, boa sorte. ― Cachorro miserável. Foi Ashling dar as costas e se ver encurralada por um sujeito entusiasmado, com os olhos brilhantes, que insistia que Ted era um anarquista humorístico, um desconstrucionista pós-moderno e irônico do gênero.

― Ele subverteu completamente a piada básica, desafiando nossa expectativa do que é engraçado. E aí, quer dançar? ― Quê? Aqui? ― Ashling ficou totalmente desconcertada. Fazia muito tempo que um estranho não a tirava para dançar. Ainda mais na sala de outra pessoa. Se bem que, agora que dava uma olhada, as pessoas ― todas do sexo feminino, é claro ― começavam a arriscar alguns passos pela sala afora ao som de Fat Boy Slim. ― Ah, não, obrigada ― escusou-se. ― É cedo demais, ainda estou muito inibida. ― Tudo bem, daqui a uma hora eu te tiro de novo. ― Ótimo! ― exclamou ela, irônica, observando com atenção seu rosto ansioso. Nem em uma hora estaria bêbada o suficiente. Nem em uma vida inteira. Passado algum tempo, para seu encanto, viu Joy dando um beijo pornocinematográfico em Metade-homem-metade-texugo. Resolveu ficar por ali mais algum tempo. Embora a festa estivesse para lá de caída, ficou surpresa ao constatar que sentia prazer em se encontrar no meio de uma multidão e gravitar na sua periferia. Tal contentamento era raro: tudo que Ashling sabia era que quase nunca se sentia completa. Mesmo nos seus momentos de maior realização, algo permanecia eternamente ausente, lá no mais íntimo de seu ser. Como aquele pontinho semelhante a um orifício que fica no negro da tela quando a televisão é desligada à noite. Mas, essa noite, sentia-se calma e em paz, sozinha mas não solitária. Embora os únicos homens que tivessem dado em cima dela não fizessem seu tipo, não se sentiu um fracasso quando decidiu ir para casa. Já na porta, tornou a encontrar o Entusiasmado. ― Já vai? Espera um minuto. ― Ele rabiscou alguma coisa num pedaço de papel e o entregou a ela. Ela esperou até já estar do lado de fora para abrir o papel. Que continha um nome ― Marcus Valentine ―, um número de telefone e uma instrução: "Bellez-moi!" Foi a melhor gargalhada que ela soltou a noite inteira.

A caminhada de volta para casa levou dez minutos ― pelo menos, tinha parado de chover. Quando chegou ao seu edifício, viu um homem dormindo diante da portaria. O mesmo homem que estava lá no outro dia. Só que parecia ser mais jovem do que ela se dera conta. Pálido e franzino, agarrando com força seu grosso cobertor laranja de tão encardido, parecia pouco mais do que uma criança. Vasculhando a mochila, ela encontrou uma libra e a colocou ao lado de sua cabeça. Mas talvez alguém a roubasse, pensou, preocupada, tratando de empurrá-la para baixo do cobertor. Em seguida, contornando-o pé ante pé, entrou no edifício. Assim que a porta se fechou com um clique às suas costas, ouviu um "obrigado" tão débil e sussurrado que ficou em dúvida se não teria sido sua imaginação. Enquanto Ted fazia mais uma platéia vir abaixo no Funny Farm, Jack Devine abria a porta de sua casa situada numa zona deserta de Ringsend, de frente para o mar. ― Por que não me ligou? ― perguntou Mai. ― Você nunca tem tempo para mim. ― Passou por ele dando-lhe um tranco e seguiu direto pela escada acima, já desabotoando as calças jeans. Jack contemplava o mar por trás da vidraça, o quase negror da água noturna tão impenetrável quanto seus próprios olhos. Em seguida, fechou a porta e lentamente se pôs a segui-la pela escada. Ao mesmo tempo, numa elegante casa eduardiana de tijolos vermelhos em Donnybrook, Clodagh virava a quarta dose de gim. Fazia vinte e nove dias. Ashling acordou ao meio-dia de domingo sentindo-se descansada. Estava de ressaca, mas uma ressaca bem leve. Ficou deitada no sofá, fumando até o seriado The Dukes of Hazzard acabar. Em seguida foi à rua e comprou pão, suco de laranja, cigarros e jornais ― um tablóide da imprensa marrom e um jornal respeitável, para compensar o tablóide.

Depois de se empanturrar com casos bombásticos de infidelidade até se sentir um pouco enojada, resolveu arrumar o apartamento. Essa atividade consistia principalmente no transporte, do quarto para a pia da cozinha, de cerca de vinte pratos cheios de migalhas e copos d´água pela metade, do resgate de uma caixa vazia de Haägen-Dasz do canto onde tinha ido parar debaixo do sofá e da abertura das janelas. Polir os móveis já seria um pouco de exagero, mas ela vaporizou a sala com Mr. Sheen e no ato o cheiro fez com que se sentisse virtuosa. Cautelosa, cheirou a roupa de cama. Maravilha, daria para mais uma semana. Então, mesmo sabendo que ele não poderia ter ido a parte alguma, foi verificar se o terninho que mandara lavar a seco na tinturaria não fora roubado. Ainda estava pendurado no guarda-roupa, ao lado de uma camisa limpa. Amanhã seria o grande dia. O enorme dia. Não era toda segunda-feira que começava num novo emprego. Na verdade, fazia mais de oito anos, e estava com os nervos à flor da pele. Mas entusiasmada, também, insistiu, tentando não dar atenção ao sobe-e-desce no estômago. E agora? Passar o aspirador de pó, decidiu, porque um aspirador de pó passado como manda o figurino é um ótimo exercício para a cintura. E o Dyson magenta e verde-limão saiu do armário. Ainda não conseguia acreditar que gastara tanto dinheiro num eletrodoméstico. Um dinheiro que, com a mesma facilidade, poderia ter gasto em bolsas ou garrafas de vinho. A única conclusão que podia tirar daí era que finalmente se tornara uma mulher adulta. O que era estranho, porque, na sua cabeça, ainda tinha dezesseis anos e estava tentando decidir o que fazer quando saísse da escola.

Empurrou a chavinha do interruptor e foi avançando pelo chão do vestíbulo, curvada, requebrando vigorosamente. Para grande alívio da vizinha do andar de baixo (Joy), que amargava uma ressaca de lascar, não demorou muito ― seu apartamento era ridiculamente pequeno. Mas como o adorava! Se a apavorava tanto a idéia de perder o emprego, era por medo de não conseguir fazer frente às prestações da hipoteca. Comprara o apartamento três anos atrás, quando finalmente compreendera que Phelim e ela não iriam se candidatar juntos à compra de um chalé com rosas emoldurando a porta. Seu gesto tivera um certo caráter suicida ― naturalmente, ela esperara que Phelim entrasse ventando pela porta aos quarenta e três minutos do segundo tempo e, ainda sem fôlego, concordasse em assinar a escritura da tradicional casinha geminada de três quartos em algum bairro burguês afastado. Na época, a compra parecera uma admissão de seu fracasso. Mas agora não. Aquele apartamento era seu refúgio, seu ninho e seu primeiro lar de verdade. Vivera em tugúrios alugados desde os dezessete anos, dormindo em camas alheias e sentando em sofás encaroçados que os senhorios haviam comprado pelo preço baixo, não pelo conforto. Não tinha um só móvel quando se mudara para lá. Com exceção do indispensável, como um ferro de passar e uma pilha de toalhas velhas, lençóis e fronhas descombinados, tudo tivera de ser comprado. O que levou Ashling a dar um faniquito inédito. Fumegava com o mais sentido rancor à idéia de desviar o equivalente a meses e meses de roupas para comprar todo tipo de coisas idiotas. Como cadeiras, por exemplo. ― Mas a gente não pode sentar no chão! ― gritou Phelim. ― Eu sei ― admitiu Ashling. ― É que eu não tinha me dado conta de que ia ser assim. ― Mas você é organizada até dizer chega! ― Ele estava perplexo. ― Pensei que se sairia maravilhosamente bem nesse tipo de coisa, como é mesmo que chamam...? Prendas domésticas. Ashling tinha um ar tão perdido e infeliz que Phelim disse, com doçura:

― Ah, neném, me deixa ajudar. Eu compro uns móveis para você. ― Uma cama, aposto ― disse ela, em tom de desprezo. ― Bom, já que você tocou no assunto... ― Phelim gostava de transar com Ashling. Comprar uma cama para ela não seria nenhum sacrifício. ― Posso comprar...? Ashling refletiu. Agora que reorganizara as finanças de Phelim, ele estava numa situação muito melhor. ― Acho que sim ― disse, emburrada. ― Mas só se pagar no cartão. Cheia de amargura e irritação, fez um empréstimo no banco e comprou um sofá, uma mesa, um guarda-roupa e duas cadeiras. E isso, decidiu, era o ponto final. Durante mais de um ano recusou-se a comprar persianas. "Basta eu não lavar as vidraças", dizia. "Desse jeito, ninguém pode ver do lado de dentro." E só comprou uma cortina para o boxe quando as poças diárias em seu banheiro começaram a pingar no banheiro de Joy. Mas, em algum ponto do processo, suas prioridades haviam começado a mudar. Embora não tivesse nada da decoradora ninja que Clodagh era, certamente se importava com a casa. A ponto de ter não apenas um, mas o total de dois jogos de cama (um bastante original, imitando jeans, e um conjunto da Zen, branco, nunca usado, com uma colcha xadrez). E, não fazia muito tempo, desembolsara quarenta libras por um espelho de que nem mesmo precisava, só porque o achara bonito. Verdade seja dita, ela estava com TPM e os parafusos um pouco frouxos, mas e daí? E a mudança radical ficou completa no dia em que gastou mais de duzentas libras num aspirador de pó. Alguém bateu à porta. Joy entrou, insegura, branca como um fantasma. ― Desculpe, eu me deixei empolgar com a arrumação ― disse Ashling, caindo em si. ― Te acordei? ― Não tem problema. Tenho que ir a Houth visitar minha mãe. ― Joy fez uma expressão angustiada. ― Não posso cancelar de novo, há quatro domingos que faço isso. A essa altura ela já preparou algum assado para o almoço que vai me enfiar goela abaixo e passar a tarde inteira me interrogando, para descobrir se estou feliz. Você sabe como são as mães.

Bem, sim e não, pensou Ashling. Estava familiarizada com a pergunta "Você está feliz?". Só que era Ashling quem costumava monitorar a felicidade da mãe, não o contrário. ― Se pelo menos ela servisse o almoço de domingo num dia mais civilizado ― reclamou Joy. ― Terça à noite, por exemplo. ― Ashling sorriu. ― Mas e aí? Você ainda não viu Ted hoje, viu? ― Ainda não. Acho que ele se deu bem ontem à noite e agora está se recusando a sair do quarto da coitada da garota. ― Ele arrasou mesmo ontem à noite. E aí, vai me contar o que aconteceu com Metade-homen-metade-texugo ou vou ter que te arrancar uma confissão à força? Joy imediatamente se iluminou: ― Ele passou a noite comigo. A gente não chegou propriamente às vias de fato, mas dei uma chupada nele e ele disse que vai me ligar. Será...? ― Uma chupada não faz verão ― advertiu Ashling, com conhecimento de causa. ― E é a mim que você vem dizer? Me dá elas aqui... ― Joy se inclinou em direção às cartas do tarô. ― ...para eu ver o que dizem. A Imperatriz? O que quer dizer? ― Fertilidade. Acho bom continuar tomando pílula. ― Putz. E você como foi ontem à noite? Conheceu alguém legal? ― Não.

― Vai ter que batalhar mais. Você já está com trinta e um anos, daqui a pouco todos os caras bons vão ter acabado. Não preciso de mãe, compreendeu Ashling. Não com Joy por perto. ― E você tem vinte e oito ― rebateu Ashling. ― É, mas durmo com uma porrada de caras. ― Mais branda, Joy indagou: ― Você não se sente sozinha? ― Acabei de sair de um namoro de cinco anos. Demora um tempo para a gente superar uma coisa dessas. Phelim não era um homem cruel, mas sua incapacidade de se comprometer surtira um efeito devastador sobre a atitude de Ashling em relação ao amor. Desde que ele fora embora, a solidão soprava por dentro dela como um vento frio e triste, mas ela não estava nem um pouco preparada para se envolver com outro homem. Não que tivesse propriamente recebido uma chuva de propostas.

― Já faz quase um ano, a essa altura você já tirou Phelim completamente da cabeça. Li em algum lugar que cento e cinqüenta por cento das pessoas conhecem os parceiros no trabalho. Viu algum cara atraente quando foi fazer a entrevista? Ashling imediatamente pensou em Jack Devine. Um osso duro de roer. Um exímio ralador de nervos. ― Não. ― Tira outra carta ― sugeriu Joy. Ashling cortou o baralho e ergueu uma carta. ― Oito gládios, o que quer dizer? ― perguntou Joy. ― Mudança ― admitiu Ashling, a contragosto. ― Desordem. ― Que bom, já não era sem tempo! Bom, é melhor eu ir andando. Vou só dar uma esfregadinha no Buda da sorte para ter certeza de que não vou vomitar no ônibus... Aliás, foda-se o Buda. Me empresta um dinheiro para o táxi? Ashling deu a Joy uma nota de dez libras e dois enormes sacos plásticos de lixo, que faziam uma barulheira de garrafas constrangedora. ― Bota na lixeira para mim? Obrigada! A menos de meio quilômetro dali, no Apart-Hotel Malone, o domingo custava a passar para Lisa. Já havia lido os jornais irlandeses ― bem, as colunas sociais, pelo menos. E eram uó! Pareciam não consistir em nada além de retratos de políticos gordos e cheios de microvarizes, irradiando uma aura de cordialidade e corrupção. Bem, na revista dela é que não haveriam de entrar. Acendeu outro cigarro e, irritada, pôs-se a andar pelo quarto, raspando os sapatos no chão. O que as pessoas faziam quando não estavam trabalhando? Se encontravam com os namorados, iam ao bar, à academia, às compras, decoravam a casa, saíam com os amigos. Disso ela ainda se lembrava.

Ansiava por um ombro amigo e pensou em telefonar para Fifi ― de todas as suas conhecidas, a que mais se aproximava de uma amiga. Haviam estagiado juntas na Brotinho muitos anos atrás. Assim que Lisa passou a ocupar o cargo de editora de variedades na Menina, mexeu os pauzinhos para conseguir o cargo de editora assistente de beleza para Fifi. Quando Fifi conseguiu o cargo de editora sênior de variedades na Chic, contou para Lisa que estavam à procura de uma redatora-chefe. Quando Lisa saiu para se tornar redatora-chefe da Femme, Fifi assumiu o cargo de redatora-chefe da Chic. Dez meses depois de Lisa se tornar diretora da Femme, Fifi se tornou diretora da Chic. Com Fifi, Lisa sempre conseguira desabafar suas mágoas e queixas ― ela compreendia os riscos e ossos daquele ofício tido na conta de glamouroso, quando todas as outras pessoas se ralavam de inveja. Mas algo estava impedindo Lisa de tirar o fone do gancho. Deu-se conta de que se sentia constrangida. E um tanto ressentida. Embora suas carreiras houvessem se desenrolado quase paralelamente, Lisa sempre estivera um passo à frente de Fifi. Mas, enquanto a carreira de Fifi fora batalhada passo a passo, a ascensão de Lisa não deixara pegadas. Fora nomeada diretora quase um ano antes de Fifi e, embora a Chic competisse quase diretamente com a Femme, a circulação da Femme superava a da Chic em bem mais de cem mil exemplares. Lisa dera por certo que a promoção para a Manhattan a impulsionaria tão longe que se tornaria impossível alcançá-la. Mas, em vez disso, fora relegada a Dublin e, de repente, por falta de competidores à sua altura, Fifi tomara a dianteira.

Oliver, Lisa abafou uma exclamação, a alegria subitamente dando um estalo como duas peças que se encaixam. Vou ligar para ele. Mas a doce agradável sensação de bem-estar imediatamente se azedou. Ela chegara a se esquecer por um momento. Não sinto saudades dele, disse a si mesma, em tom professoral. Só estou entediada e de saco cheio. Por fim, telefonou para sua mãe ― provavelmente porque era domingo e, portanto, uma tradição ―, mas sentiu-se uma merda depois. Principalmente porque Pauline Edwards estava louca para saber por que Oliver lhe telefonara querendo saber o telefone de Lisa em Dublin. ― Nós acabamos. ― A emoção fez com que Lisa sentisse o estômago se contrair até ficar do tamanho de uma noz. Não queria falar sobre o assunto. De mais a mais, por que sua mãe não lhe telefonara, se estava tão preocupada assim? Por que era Lisa quem sempre tinha que telefonar para ela? ― Mas acabaram por quê, querida? Lisa ainda não estava bem certa. ― Coisas da vida ― tornou, petulante, desesperada para pôr um ponto final no assunto. ― Vocês experimentaram ir àquelas sessões, como é mesmo que se chamam, de aconselhamento? ― perguntou Pauline, sondando o terreno, morta de medo de que a ira de Lisa se abatesse sobre sua cabeça. ― Claro que sim ― disse Lisa, a impaciência tornando-a lacônica. Bem, haviam ido a uma sessão, mas Lisa estava ocupada demais para ir a outras. ― Vocês vão se divorciar? ― Acho que sim. ― Na verdade, Lisa não sabia. Além dos gritos trocados no calor da raiva ― "Vou me divorciar de você!", "Não, não pode, porque eu é que vou me divorciar de você!" ―, nada de específico fora discutido. Na verdade, ela e Oliver mal se haviam falado desde a separação, mas, inexplicavelmente, queria magoar a mãe dizendo que sim. Pauline suspirou, infeliz. O irmão mais velho de Lisa, Nigel, divorciara-se cinco anos antes. Ela própria tivera seus filhos tarde, e não compreendia o mundo deles.

― Dizem que dois em três casamentos acabam em divórcio ― disse Pauline, e, de repente, Lisa teve vontade de gritar que não iria se divorciar, que sua mãe era uma bruxa cruel só de chegar a insinuar tal coisa. A preocupação de Pauline lutava com o medo que a filha lhe inspirava. ― Foi porque vocês formavam um casal... diferente? ― Diferente, mãe? ― cobrou Lisa, ríspida. ― Bem, por ele ser... de cor? ― De cor?! ― Não é esse o termo certo. ― Pauline se corrigiu às pressas: ― Preto? Lisa fez "tsc", soltando um suspiro profundo. ― Afro-americano? ― Pelo amor de Deus, mãe, ele é inglês! ― Lisa sabia que estava sendo cruel, mas era difícil mudar um hábito de uma vida inteira. ― Inglês afro-americano, então? ― tentou Pauline, em desespero de causa. ― Bom, seja lá o que for, ele é um rapaz muito bonito. Pauline sempre dizia isso para provar que não era preconceituosa. Embora seu coração quase tivesse parado de bater da primeira vez que vira Oliver. Se pelo menos tivesse sido avisada de que o namorado da filha era um negro forte e retinto de um metro e oitenta e dois de altura...! Um homem de cor, um afro-americano, qualquer que fosse o termo correto. Não tinha nada contra os negros, fora apenas o inesperado da coisa. E, depois que se habituou a ele, conseguiu esquecer sua cor e ver que realmente era um rapaz bonito. Aliás, bonito era apelido. Um gigantesco príncipe de ébano, com a pele lisa e lustrosa esticada sobre os malares diagonais, olhos amendoados e trancinhas finas que balançavam ao redor do queixo. Caminhava como quem dança e cheirava a sol. Pauline também desconfiava ― embora jamais tivesse sido capaz de formular a desconfiança conscientemente ― que ele era bem-dotado como um jumento. ― Ele conheceu outra pessoa? ― Não. ― Mas poderia ter conhecido. Lisa, querida. Um rapaz bonito como ele. ― Por mim, tudo bem. ― Se ficasse repetindo isso, terminaria por acreditar. ― Você não vai se sentir sozinha, querida?

― Não vou ter tempo para me sentir sozinha ― tornou ela, brusca. ― Tenho uma carreira para pensar. ― Não sei para que você precisa de uma carreira. Eu não tive carreira e isso não me fez mal algum. ― Ah, é mesmo? ― disse Lisa, feroz. ― Pois uma carreira teria lhe caído muito bem, depois que papai lesou a coluna e nós tivemos que ficar vivendo da aposentadoria por invalidez dele. ― Mas dinheiro não é tudo. Sempre fomos tão felizes. ― Eu, não. Pauline ficou em silêncio. Lisa podia ouvi-la respirando no telefone. ― É melhor eu desligar ― disse Pauline, por fim. ― Essa conversa deve estar sendo difícil para você. ― Desculpe, mãe. ― Lisa suspirou. ― Não quis dizer o que disse. Você recebeu a encomenda que te mandei? ― Ah, recebi ― assentiu Pauline, nervosa. ― Os cremes faciais e os batons. Muito bons, obrigada. ― Você usou? ― Éééééé... ― Não usou ― acusou-a Lisa. Lisa enchia Pauline de perfumes e cosméticos caros que conseguia no emprego, louca para que a vida da mãe tivesse um pouco de luxo. Mas Pauline se recusava a abrir mão de seus produtos da Pond´s e da Rimmel. Uma vez chegara mesmo a dizer: "Ah, suas coisas são boas demais para mim, querida." ― Não são boas demais para você, não senhora ― explodira Lisa. Pauline não conseguia entender a fúria de Lisa. A única coisa que sabia era que tinha pavor dos dias em que o carteiro batia à sua porta e dizia, alegre: "Outra encomenda da sua menina em Londres." Porque, mais cedo ou mais tarde, chegava o dia da prestação de contas.

A menos que a encomenda consistisse em livros. Lisa sempre mandava para a mãe os exemplares de Catherine Cookson e Josephine Cox que as editoras enviavam para a redação da revista, na equivocada crença de que ela adoraria aquelas baboseiras cinderelescas e românticas. Até o dia em que Pauline disse: "Sabe, querida, achei maravilhoso aquele livro que você me mandou sobre o vilão do East End que pregava as vítimas numa mesa de bilhar." Lisa descobriu que sua assistente embalara o livro errado por engano, e isso assinalou uma revolução nos hábitos de leitura de Pauline Edwards. Agora, ela bebia biografias de gângsteres e thrillers americanos brutais, quanto mais cenas de tortura, melhor, e a mãe de alguma outra pessoa passou a receber os livros de Catherine Cookson. ― Gostaria tanto que você viesse nos ver, querida. Faz tanto tempo. ― Hum, tá ― disse Lisa, distraída. ― Qualquer hora dessas apareço por aí. Pode esperar sentada! A cada visita, a casa em que crescera parecia menor, e sua sordidez mais chocante. Nos cubículos atulhados de mobília ordinária e barata, ela se sentia uma reluzente estrangeira, com as unhas postiças e sapatos de couro lustrosos, com a incômoda consciência de que sua bolsa provavelmente custara mais do que o sofá em que estava sentada. Mas, embora seus pais cobrissem de exclamações reverentes sua aparência impecável, ficavam nervosíssimos em sua presença. Ela devia se vestir com mais modéstia para seus anfitriões, tentando diminuir a distância entre eles. Mas precisava do maior número de adereços possível, à guisa de armadura, para não ser tragada de volta pelas águas do passado. Sentiu ódio de tudo isso, e em seguida de si mesma. ― Por que vocês não vêm me ver? ― perguntou Lisa. Mas, se não faziam nem a viagem de meia hora de trem de Hemel Hempsteat a Londres, era extremamente improvável que tomassem um avião para Dublin.

― Mas com seu pai doente e... Clodagh acordou na manhã de domingo com uma leve ressaca, mas sentindo-se ótima. Livre por algum tempo para se aconchegar a Dylan e ignorar sua ereção com a consciência tranqüila. Quando Molly e Craig apareceram, Dylan os exortou, sonolento: ― Vão lá para baixo quebrar umas coisas e deixem a mamãe e eu tirarmos uma sonequinha. Por incrível que pareça, eles foram. Clodagh e Dylan alternavam períodos de sono e de vigília. ― Você tem um cheiro delicioso ― murmurou Dylan, a boca nos cabelos de Clodagh. ― Cheirinho de biscoito. Doce e... doce... Passado algum tempo, ela sussurrou para ele: ― Te dou mil libras se você me trouxer o café da manhã. ― O que você quer? ― Um café e uma fruta. Dylan saiu do quarto e Clodagh se espalhou pela cama como uma estrela-do-mar satisfeita, até ele reaparecer com uma caneca na não e uma banana na outra. Colocou a banana deitada entre as pernas e, quando Clodagh olhou, fingiu abafar um grito e meneou a banana para cima, simulando uma ereção. ― Ora, Sra. Kelly ― exclamou ―, a senhora é linda! Clodagh riu, mas logo sentiu a velha culpa iniciar sua escalada inexorável. Mais tarde foram almoçar fora, num daqueles restaurantes que não fazem o cliente se sentir um proscrito por levar duas crianças. Dylan foi providenciar uma almofada para Molly e, enquanto Clodagh arrancava à força uma faca da mão de Molly, vislumbrou Dylan conversando em tom persuasivo com uma garçonete, uma adolescente com umas perninhas finas de Bambi, nervosíssima com a proximidade física daquele homem tão bonito.

Aquele homem era seu marido, Clodagh se deu conta e, súbita e inexplicavelmente, não o reconheceu. Assaltada por aquele estranho paradoxo emocional de se conhecer uma pessoa tão bem que, de repente, não se a conhece em absoluto. Em geral o hábito amortecia o impacto do louro encaracolado de seus cabelos, do sorriso que franzia sua pele em camadas de parênteses ao redor da boca, dos olhos cor de avelã, quase sempre tão cheios de alegria. Ficou surpresa e agitada com a beleza de Dylan. O que fora mesmo que Ashling dissera na véspera? Reacenda a velha chama. Uma imagem aflorou em sua mente: ela ofegava, as entranhas inchadas de desejo, sendo amada na areia... Areia? Não, espera aí, esse não era Dylan, era Jean-Pierre, o sedutor francês de deixar os joelhos bambos com quem perdera a virgindade. Meu Deus, suspirou, aquilo fora genial. Dezoito anos, hospedada num albergue da juventude na Riviera Francesa, ele era o homem mais atraente em quem ela já pusera os olhos na vida. E olha que seu nível de exigência era altíssimo, ela nunca sequer beijara nenhum dos garotos de sua turma na Irlanda. Mas, no momento em que vira o olhar intenso e sério de Jean-Pierre, sua linda boca de poucos amigos e sua relaxada linguagem corporal gaulesa, decidira que seria ele o feliz ganhador do valiosíssimo prêmio de sua virgindade. De volta a Dylan, à velha chama. Ah, sim. Ela se lembrava de estar quase às lágrimas quando lhe implorou que fizesse amor com ela. "Não dá mais para segurar, ah, por favor, vem logo!" Deslizando até deitar-se no assento traseiro de seu automóvel, deixando os joelhos caírem... Não, espera aí, esse também não fora Dylan. Fora Greg, o jogador de futebol americano que ganhara uma bolsa de estudos de um ano para a Universidade de Trinity. Que pena que o conhecera apenas três meses antes de ele voltar. Era um cara bonito, musculoso, seguro de si e, por algum motivo ela o achara totalmente irresistível.

É claro que também se sentira assim em relação a Dylan. Vasculhou o passado em busca de lembranças específicas e soprou a poeira de sua favorita: a primeira vez que o vira. Seus olhos haviam literalmente se encontrado através de uma sala apinhada de gente e, antes mesmo de saber qualquer coisa a seu respeito, já sabia tudo de que precisava saber. Cinco anos mais velho do que Clodagh, ele fazia todos os outros rapazes parecerem garotos inexperientes e cheios de espinhas. Havia uma desenvoltura e uma autoconfiança urbana em sua postura que o tornavam extremamante carismático. Ele sorria, ele encantava, sua simples presença era alentadora ― e tranqüilizante: embora sua empresa estivesse apenas começando, ela tinha a inabalável convicção de que Dylan sempre resolveria todos os problemas. E era tão gostoso! Ela tinha vinte anos de idade, estava deslumbrada com a beleza loura de Dylan e zonza com sua boa sorte. Ele era tão perfeito para ela, que não restava dúvida de que era com ele que iria se casar. Mesmo quando seus pais insistiram que ela era jovem demais para saber o que queria, ela desprezou seus conselhos. Dylan era o homem da sua vida, ela era a mulher da vida de Dylan. ― Aqui está Molly! ― Era ele de volta com a almofada, depois de as adolescentes disputarem entre si o privilégio de entregá-la. Foi só então que Clodagh percebeu que Molly havia despejado metade do saleiro no açucareiro. Depois do almoço, deram uma volta de carro até a praia. Era um dia luminoso, com o tempo fechado e a temperatura na justa conta para tirarem os sapatos e chapinharem entre as ondas. Dylan pediu a um homem que passeava com o cachorro para tirar um retrato dos quatro agrupados contra a areia limpa e deserta, sorrindo ao que o vento fazia seus cabelos louros fustigarem-lhes os rostos, Clodagh puxando a saia para o lado, tentando impedir que se colasse às pernas molhadas.

 

Lisa apareceu no trabalho às oito da manhã de segunda-feira. Comece como pretende continuar. Mas, para sua indignação, o edifício estava fechado. Ficou por ali mesmo, no ar úmido, durante algum tempo e, por fim, resolveu ir comprar uma xícara de café. Até isso lhe deu um certo trabalho. Não era como em Londres, onde as cafeterias abrem suas portas ao raiar do dia. Às nove da manhã, quando saiu da cafeteria, havia começado a chover. Com o braço cobrindo os cabelos, tratou de correr, seus saltos dez escorregando na calçada resvaladiça. Deteve-se subitamente e, quando viu, estava gritando para um jovem transeunte de anoraque: ― Será que sempre chove neste paisinho chinfrim? ― Não sei ― respondeu ele, nervoso. ― Só tenho vinte e seis anos. Na portaria, Lisa foi recebida por uma garota chamada Trix. Era um festival de espinhas num vestidinho transparente de alcinhas, e pulava de um pé para o outro, tentando se aquecer, seus saltos altos batendo no chão. Quando viu Lisa, seu rosto se iluminou de admiração e ela se apressou em apagar o cigarro. ― Como vai? ― grunhiu, soltando a última baforada de fumaça. ― Sapatos maneiros! Sou Trix, sua assistente pessoal. Antes que me pergunte, meu nome é Patricia, mas não adianta me chamar assim porque não vou responder. Eu era Trixie até o pessoal duas casas depois da minha comprar uma poodle com esse nome, de modo que agora sou Trix. Eu era recepcionista e burra de carga do pedaço, mas aí fui promovida, graças a você. Atenção: eles não me substituíram... Por aqui, o elevador é desse lado. "Sou a primeira a admitir que digitar não é meu forte ― confidenciou Trix. ― Mas sei mentir que é uma maravilha, sessenta palavras por minuto, tranqüilo. Posso dizer que você está em reunião para qualquer pessoa com quem você não queira falar, que a pessoa nunca vai desconfiar. A menos que você queira que desconfie. Também sou boa em intimidação, sabe? Lisa acreditou nela.

Embora tivesse vinte e um anos e fizesse o gênero bonita e gostosa, havia uma dureza nela que Lisa reconheceu. De sua própria juventude. O primeiro choque do dia foi a descoberta de que a Randolph Media da Irlanda ocupava um único andar ― enquanto os escritórios de Londres ocupavam um edifício de doze andares inteiro. ― Tenho que levar você para conhecer Jack Devine ― disse Trix. ― Ele é o diretor superintendente da Irlanda, não é? ― perguntou Lisa. ― É, é? ― Trix pareceu surpresa. ― Acho que sim. Enfim, ele é o patrão, ou pensa que é. Não agüento os chiliques dele. Precisava ter visto o cara semana passada. ― Abaixou a voz bruscamente: ― Parecia um urso com hemorróidas. Mas hoje está de bom humor, o que significa que reatou com a namorada. O caso daqueles dois...! Fazem Pamela e Tommy Lee Jones parecerem os Waltons. Havia outros choques à espera de Lisa. Trix a levou até um escritório sem paredes ou divisórias, com aproximadamente quinze mesas. Quinze! Como um império jornalístico podia ser comandado de quinze mesas, um quadro de avisos e uma cozinha minúscula? Uma idéia horrível lhe ocorreu. ― Mas... onde fica o departamento de moda? ― Ali. ― Trix meneou a cabeça em direção a uma arara enfiada num canto, da qual pendiam um medonho suéter pêssego, que obviamente tinha algo a ver com a Tricô Gaélico, um vestido de dama de honra, um vestido de noiva com um bilhão de babados e algumas roupas de homem. Meu Deus do Céu! O departamento de moda da Femme ocupava uma sala inteira. Atulhada de peças de todas as grandes grifes, o que permitira a Lisa ficar anos a fio sem precisar comprar roupas novas. Alguma providência tinha que ser tomada! Sua cabeça já fervilhava de planos para contactar seus conhecidos no mundo da moda, quando Trix a apresentou a dois membros da equipe que já haviam chegado:

― Esses são Dervla e Kelvin, que trabalham nas outras revistas, e por isso não fazem parte da sua equipe, como eu ― frisou, orgulhosa. ― Muito prazer, sou Dervla O'Donnell. ― Uma mulher gorda de seus quarenta e tantos anos usando uma túnica elegante apertou a mão de Lisa, sorrindo. ― Sou da Noiva Hibérnica, da Saúde Celta e da Interiores Gaélicos. ― Bastou um olhar para Lisa perceber que se tratava de uma ex-hippie. ― E eu sou Kelvin Creedon. ― Um sujeito louro oxigenado com um ar pateticamente modernoso e óculos enormes de armação preta apertou a mão de Lisa. Na hora ela soube que os óculos não tinham grau, eram só uma fachada. Vinte e poucos anos, calculou. Ele irradiava uma aura descolada e jovem. ― Sou da Hiper Hiber, da Carro Celta da Bricolagem à Moda da Casa e da Som, nossa revista de música. ― Seus vários anéis de prata machucaram a mão de Lisa. ― Como assim? ― perguntou ela, confusa. ― Vocês dirigem todas essas revistas? ― E também fazemos a pesquisa e a redação. ― Tudo isso sozinhos? ― Lisa não pôde se conter, seus olhos pulando de Kelvin para Dervla. ― Com a ajuda de um ou outro frila ― disse Dervla. ― A única coisa que temos que fazer é ficar mandando os mesmos releases uma vez atrás da outra. Não tem sido tão difícil assim, desde que a Juízo Católico fechou. ― Dervla interpretou a expressão chocada de Lisa como sendo de comiseração. ― Com isso, tenho as tardes de quinta para trabalhar em outras coisas. ― São publicações semanais ou mensais? Dervla e Kelvin se entreolharam, boquiabertos, como se sincronizassem um frouxo de riso. Nunca tinham ouvido nada tão engraçado na vida. ― Mensais! ― Dervla se sacudia, incrédula. ― Semanais! ― Kelvin se sacudia ainda mais do que ela. Por fim, Dervla percebeu o cenho franzido de Lisa e apressou-se em se recompor.

― Não. Semestrais, a maioria. A Juízo Católico era semanal, mas todas as outras saem na primavera e no outono. A menos que haja algum tipo de acidente. Lembra do outono de 99? ― Voltou-se para Kelvin. Obviamente ele se lembrava, pois o quiriquiqui recomeçou. ― Vírus de computador ― explicou Kelvin. ― Apagou tudo. ― Não teve a menor graça na época... Mas agora, pelo visto, tinha. ― Olha só. ― Dervla conduziu Lisa até um estande onde havia várias revistas expostas, e entregou-lhe um volume fino que se auto-proclamava Noiva Hibérnica, Primavera 2000. Isso não é uma revista, pensou Lisa. Isso é um panfleto. Ou melhor, um folheto. Um memorando e olhe lá. Que diabo, não chega nem aos pés de um bilhete! ― E essa é a Batata, nossa revista de culinária ― informou Dervla, entregando outro panfleto a Lisa. ― A diretora é Shauna Griffin, que também dirige a Tricô Gaélico e a Jardinagem à Irlandesa Outro membro da equipe havia acabado de chegar. Tedioso demais para ser classificado até mesmo como cobertor molhado, pensou Lisa, enojada ― estatura mediana, uma careca em andamento e uma aliança no dedo. Papel de parede humano. A mera hipótese de cumprimentá-lo encheu-a de preguiça. ― Esse é Gerry Godson, nosso diretor de arte. Ele não é de falar muito ― disse Trix. E, erguendo a voz: ― Não é mesmo, Gerry? Pisca o olho uma vez se a resposta for sim, duas se for vai à merda e me deixa em paz. Gerry piscou duas vezes, o rosto impassível como se fosse de pedra. Em seguida abriu um largo sorriso e apertou a mão de Lisa. ― Bem-vinda à Garota. Eu trabalhava nas outras revistas daqui, mas agora vou trabalhar exclusivamente para você. ― E para mim ― relembrou Trix. ― Sou assistente pessoal dela, esqueceu? Sou eu que vou dar as ordens. ― Valha-me Deus ― disse Gerry, bem-humorado. Lisa fez um grande esforço para sorrir.

Trix bateu de leve à porta de Jack e a abriu. Jack levantou o rosto. Em repouso, sua expressão parecia um tanto tristonha e abatida, e seus olhos negros como o azeviche ocultavam segredos. Nesse momento, ele viu Lisa e sorriu em reconhecimento, embora nunca houvessem se visto. O astral levantou na mesma hora. ― Lisa? ― O som de seu nome pronunciado por ele fez com que algo vibrasse prazerosamente dentro dela. ― Entra, senta aí. ― Ele deu a volta à mesa para apertar sua mão. O sinistro pressentimento de Lisa lhe deu uma trégua. Gostara da aparência daquele tal de Jack. Alto? Sim! Moreno? Sim! Bem pago? Sim! E era diretor superintendente, ainda que fosse apenas de uma companhia irlandesa. E havia um quê de heterodoxo nele que a excitou. Embora estivesse de terno, algo lhe dizia que era sob coação, e seus cabelos eram mais compridos do que consideraria aceitável em Londres. E daí que tinha uma namorada? Desde quando isso era um empecilho? ― Estamos todos muito entusiasmados com a Garota ― afirmou Jack. Mas Lisa pressentiu uma ponta de cansaço na afirmação. Seu sorriso desaparecera e ele voltara a exibir uma expressão séria e taciturna. Em seguida, pôs-se a discorrer sobre a "equipe" paea Lisa. ― É composta por sua AP, Trix, e sua redatora-chefe, uma moça chamada Ashling. Parece ser muito competente. ― Foi o que ouvi dizer ― comentou ela, irônica. As palavras de Calvin Carter tinham sido: "Você entra com a visão, ela puxa a carroça." ― E tem também Mercedes, que, basicamente, vai ser a editora de moda e beleza, mas também vai colaborar nas outras matérias. Ela veio do Ireland on Sunday... ― O que é isso? ― Um jornal dominical. E também tem Gerry, seu diretor de arte, que trabalhava nas outras publicações. Como Bernard que vai cuidar da parte administrativa, contábil etc. da Garota. Jack se calou. Lisa esperou que ele discorresse sobre mais uns oito funcionários da equipe. Mas isso não aconteceu.

― É só? Uma equipe de cinco membros? Cinco? ― Estava zonza de incredulidade. Pois se na Femme até sua secretária tinha uma secretária! ― Você também vai dispor de um orçamento generoso para contratar colaboradores ― prometeu Jack. ― Vai poder encomendar matérias e recorrer a consultores, tanto regulares como esporádicos. A histeria assaltou Lisa. Como viera acabar aqui, nessa situação horrível? Como? Tinha um plano para a sua vida. Sempre soubera para onde ia e sempre chegara lá. Até agora, quando sofrera aquele inesperado desvio que a fizera vir parar nesse fim de mundo. ― De quem... de quem são as outras mesas, então? ― De Dervla, Kelvin e Shauna, que dirigem todas as nossas outras revistas. E de minha AP, a Sra. Morley, de Margie, da publicidade ― ela é ótima, um verdadeiro Rottweiler! ―, de Lorna e Emily, das vendas, e dos dois Eugenes da contabilidade. Lisa estava tendo grande dificuldade para recobrar o fôlego, mas teve que resistir ao impulso de correr para o banheiro e soltar um grito mas mãos, porque alguém já abria a porta para Ashling, a redatora-chefe. ― Oi de novo. ― Ashling sorriu para Jack Devine, ressabiada. ― Oi. ― Ele a cumprimentou com um aceno de cabeça, sem uma gota da efusão com que cumprimentara Lisa. ― Acho que vocês ainda não se conhecem. Lisa Edwards, Ashling Kennedy. Ashling pareceu sobressaltada por um momento, mas logo abriu um largo sorriso para Lisa, admirando ostensivamente sua pele perfeita, seu tailleur acinturado, suas pernas cobertas por finíssimas meias de seda cintilantes. ― É um prazer enorme conhecê-la ― declarou com animação nervosa. ― Estou muito entusiasmada com a revista.

Lisa, ao contrário, não ficou nem um pouco impressionada com Ashling. Sua banalidade era exponencial. Qualquer mulher pode deixar o cabelo lá, pendurado, nem encaracolado nem liso, se quiser, pensou Lisa, com desprezo. Nenhuma de nós nasceu com um cabelo espetacular, é algo que exige empenho. Trix, por exemplo, embora sua maquiagem deixasse um pouco a desejar em termos de sutileza, pelo menos demonstrava boa vontade. Nesse momento Mercedes chegou, e Lisa também não conseguiu formar uma opinião a seu respeito. Era silenciosa e sofisticada, sombria e sinuosa como alcaçuz. O único que Lisa ainda não conhecia era Bernard, que se revelou o pior do grupo: era óbvio que a camiseta sem mangas vermelha que usava por cima da camisa e da gravata eram do tempo em que essa combinação estava na crista da onda e, francamente, isso era tudo que Lisa precisava saber dele. Às dez da manhã, a equipe da Garota, Jack e sua AP, a Sra. Morley, se reuniram na sala da diretoria para se conhecerem melhor. Lisa ficou surpresa com o fato de a Sra. Morley não ser um tipo perfumado e eficiente como a Srta. Moneypenny,* e sim um dragão com cara de pug na casa dos sessenta anos. Tempos depois, Lisa ficaria sabendo que Jack a herdara ao substituir o antigo diretor superintendente. Podia ter contratado uma nova assistente, mas, por algum motivo, resolvera não fazê-lo e, em conseqüência, a Sra. Morley lhe era extremamente devotada. Devotada demais, segundo a opinião popular. Enquanto a Sra. Morley fazia a ata da reunião, Jack reiterava a pauta: a Garota devia ser uma revista sexy e ousada para irlandesas dos dezoito aos trinta anos. Devia ser uma revista sem preconceitos, sexualmente aberta e divertida. Todos deviam dar uma boa pensada nas matérias. ― Que tal uma seção fixa sobre como conhecer homens na Irlanda? ― soltou Ashling, nervosa. ― Quem sabe um mês mostrar uma garota indo a uma agência de encontros, no mês seguinte, navegando na internet, no outro, praticando equitação...

― Não é má idéia ― admitiu Jack, a contragosto. Ashling deu um sorriso trêmulo. Não sabia quanto tempo conseguiria manter o pique de sua imaginação ― as idéias estavam longe de ser seu forte. A seção fora uma sugestão de Joy, e só porque Joy tinha a esperança de vir a ser a cobaia. "Estou sempre tentando conhecer homens, mesmo", dissera. "Bem que podia aranjar um patrocinador para essa atividade."

 

* Das histórias de 007.

 

― Mais alguma idéia? ― cobrou Jack. ― Que tal um depoimento de uma celebridade? ― propôs Lisa. ― Arranjar alguma celebridade irlandesa, tipo... ― Logo se embatucou, pois não conhecia nenhuma celebridade irlandesa. ― Tipo... tipo... ― Bono ― sugeriu Ashling, amável. ― Ou uma das Corrs. ― Exatamente. Umas mil palavras sobre vôos de primeira classe e festas em companhia de Kate Moss e Anna Friel. Uma coisa picante e glamourosa. ― Muito bom. ― Jack ficou satisfeito. Mas Lisa estava novamente horrorizada. A consciência das dimensões do empreendimento que tinha à sua frente voltava a atingi-la. Criar uma revista da estaca zero, num país estranho! ― E que tal o depoimento de uma não-celebridade? ― sugeriu Trix, com sua voz rouca. ― Sabem como: sou uma garota comum, tomei um porre federal ontem à noite, estou chifrando meu namorado, detesto meu emprego, queria ter mais dinheiro, afanei um vidrinho de esmalte de unha na Boot's... Todos apoiaram sua sugestão, balançando as cabeças com entusiasmo, até ela chegar à parte do vidrinho de esmalte, quando então as cabeças foram uma a uma parando de balançar. Todo mundo já fizera isso, mas ninguém iria admitir. Trix imediatamente caiu em si e se recompôs: ― ...minha mãe odeia meu namorado ― os dois ―, fui descolorir o cabelo e queimei o couro cabeludo, esse tipo de coisa. ― Boa idéia ― aprovou Jack. ― Alguma idéia, Mercedes? Mercedes rabiscava num papel, seus olhos escuros distantes e baços. ― Vou exibir o maior número possível de estilistas irlandeses. Comparecer aos shows de formatura das faculdades de moda...

― Pode ser mais provinciano do que isso? ― interrompeu-a Lisa, cáustica. ― Temos que mostrar os estilistas internacionais, se quisermos ser levados a sério. Nem morta ela iria usar as criaçõezinhas caseiras e amadorísticas que as amigas de Mercedes alinhavavam em cima da perna, na privacidade de seus quartos. Uma revista que se prezasse, como a Femme, fotografava roupas impecáveis, enviadas pela assessoria de imprensa das grifes internacionais. As roupas eram cedidas por empréstimo e, mais de uma vez, "desapareciam" depois de uma sessão. Naturalmente, as modelos levavam a culpa ― sejamos realistas: elas não são viciadas em heroína, o que está longe de sair barato? E se os modelitos desaparecidos iam se materializar no guarda-roupa de Lisa, ninguém tinha visto nada. Bem, para dizer a verdade, tinham visto tudo, mas não havia nada que pudessem fazer. E essa era uma vantagem da qual Lisa não estava disposta a abrir mão. Mercedes lançou-lhe um olhar cheio de clarividência e desprezo, e Lisa ficou surpresa ao constatar que isso a deixara nervosa. ― Só isso? ― perguntou Jack. ― E que tal... ― começou Ashling, falando devagar, sem saber se conseguiria chegar ao fim da frase. Desconfiada que estivesse tendo uma idéia original, mas não podia ter certeza. ― ...que tal uma seção fixa escrita por um homem? Sei que é uma revista feminina, mas será que não poderíamos ter uma espécie de "De A a Z" sobre como funciona a cabeça de um homem? O que ele realmente quer dizer quando diz "Eu te ligo". Aliás ― ergueu a voz, entusiasmada ― que tal mostrar o lado da mulher também? Uma coluna do tipo "Ele & Ela"? Jack levantou uma sobrancelha para Lisa, com ar de interrogação. ― Pão dormido ― desfechou Lisa, curta e rasteira. ― É? ― tornou Ashling, humilde. ― Está certo.

― Hoje são doze de maio ― disse Jack, concluindo a reunião. ― A diretoria quer a primeira edição nas bancas no fim de agosto. Pode parecer muito tempo para aqueles de vocês que acabam de sair de publicações semanais, mas não é. Vai ser um trabalho de louco. Mas divertido, também ― acrescentou, por mero senso de dever. Quem quer que tivesse a esperança de convencer com essa lorota, certamente não era a si mesmo. ― Qualquer problema, minhas portas estão sempre abertas. ― O que não vai adiantar grande coisa, se o senhor não estiver na redação ― disse Trix, com a maior cara-de-pau. ― Quer dizer ― apressou-se em acrescentar, ao ver a seriedade da expressão de Jack ―, o senhor está sempre no estúdio de tevê, encarregado de manter a paz. ― Infelizmente ― disse Jack, dirigindo-se a Lisa ―, nossa emissora de tevê e nossa estação de rádio funcionam em estúdios diferentes, a quase um quilômetro um do outro. Por uma questão de espaço, meu escritório fica aqui, mas, mesmo assim, tenho que passar um bom tempo lá. Mas, na pior das hipóteses, se você precisar de mim e eu não estiver, pode me telefonar. ― Tudo bem ― assentiu Lisa. ― E qual é a vendagem que pretendemos para a Garota? ― Trinta mil exemplares. Talvez não a atinjamos inicialmente, mas depois de seis meses, é o que pretendemos atingir. Trinta mil. Lisa ficou horrorizada. Quando as vendas da Femme ficavam abaixo dos trezentos e cinqüenta mil exemplares, cabeças rolavam. Em seguida Jack mostrou a Lisa seu orçamento para colaboradores, mas havia algo de errado com a cifra ― parecia estar faltando um zero. No mínimo um.

Foi a gota d'água. Sem pensar, escusou-se educadamente e, como num sonho, dirigiu-se para o banheiro, onde se trancou num dos reservados. Para sua surpresa, estava soluçando convulsivamente. Chorando pela decepção, pela humilhação, pela solidão, por tudo que perdera. Não durou muito, pois não era dada a chorar, mas, quando finalmente saiu do reservado, sentiu um tranco no coração ao ver uma pessoa parada diante da pia. Era a banal e simplória Ashling, com as mãos nas costas. Filha-da-puta enxerida! ― Que mão você quer? ― perguntou ela. Lisa não compreendeu. ― Escolhe uma mão ― disse Ashling. Lisa teve vontade de lhe dar uma bolacha. Todo mundo era louco naquele lugar. ― Direita ou esquerda? ― insistiu Ashling. ― Esquerda. Ashling revelou a Lisa o conteúdo da mão esquerda: um pacote de lenços-de-papel. Ato contínuo, mostrou a mão direita ― o vidro de seu elixir de emergência. ― Estende a língua. ― Ashling pingou duas gotas na língua perplexa de Lisa. ― É para choques e traumas. Quer um cigarro? Lisa fez que não com a cabeça, furiosa. Por fim, cedeu, permitindo passivamente que Ashling enfiasse um cigarro em sua boca e o acendesse para ela. ― Se quiser retocar a maquiagem, tenho hidratante e rímel ― ofereceu Ashling. ― Provavelmente não são tão bons quanto os que você usa, mas dão para o gasto. ― No momento seguinte, já estava revirando a bolsa. ― Alguém mandou você aqui? ― Lisa estava pensando em Jack Devine. Ashling sacudiu a cabeça: ― Ninguém percebeu, só eu. Lisa não sabia se devia ou não ficar decepcionada. Não queria que Jack pensasse que ela era uma idiota, mas, por outro lado, seria bom saber que ele se preocupava com ela... ― Em geral, não sou assim. ― A expressão de Lisa era dura. ― Não quero ouvir mais uma palavra sobre isso. ―Já está esquecido.

No fim do primeiro dia, Ashling estava à beira de uma estafa. Zonza de alívio por não ter que fazer esforço de subir num ônibus, cambaleou direto para casa. Era uma mulher de sorte. Pelo menos, tinha uma casa para onde voltar, compenetrou-se; Lisa ainda teria que sair e procurar uma. Cheia de gratidão, varou a porta de seu apartamento, jogou os sapatos longe e foi colher os recados na secretária-eletrônica. A luz vermelha piscava lascivamente, e Ashling apertou a tecla "play", animada. Estava desesperada por companhia e diálogo, para ajudá-la a assimilar aquele dia estranho, cheio de desafios. Mas, para sua decepção, só havia um recado esquisito de um sujeito chamado Cormac, que entregaria uma tonelada de adubo orgânico na sexta-feira. Droga de engano. Jogando-se de bruços no sofá, tirou o fone do gancho e ligou para Clodagh. Mas, assim que disse "alô", Clodagh despejou: ― Estou tendo um dia dos diabos! Com uma cacofonia de gritos ao fundo, levantou a voz e se queixou: ― Craig está com dor de estômago, e só comeu meia torrada com manteiga de amendoim no café da manhã. No almoço não quis comer nada, e eu fiquei em dúvida se devia tentar ele com um biscoito de chocolate, embora ele fique subindo pelas paredes quando come açúcar, então terminei dando um biscoito de nata, porque achei que seria um pouco melhor que o de chocolate... ― Hum-hum ― assentiu Ashling, compreensiva, enquanto os uivos por pouco não abafavam totalmente a voz de Clodagh. ― ...e ele comeu, então experimentei dar outro para ele, mas ele só lambeu o glacê e, embora não esteja com febre, está pálido e CALA A BOCA! ME DEIXA FALAR CINCO SEGUNDOS NO TELEFONE, POR FAVOR. Ah, que inferno, não agüento mais isso! A súplica de Clodagh foi interrompida e os gritos simplesmente se intensificaram. ― Esse é Craig? ― perguntou Ashling. Devia ser uma dor de estômago e tanto. Quem ouvisse seus gritos, pensaria que estava sendo estripado. ― Não, é a Molly. ― Que é que há com ela?

Ashling conseguiu decifrar algumas palavras em meio ao berreiro de Molly. Pelo que pôde depreender, mamãe era má. Na verdade, parecia que mamãe era horrível. E Molly não gostava de mamãe. Um grito particularmente histérico informou a Ashling que Molly ODIAVA mamãe. ― Pus o trapinho de estimação dela para lavar ― disse Clodagh, defensiva. ― Está na máquina. ― Ah, meu bom Deus. Molly entrava em parafuso toda vez que tinha de se separar do seu trapinho de estimação. No passado fora um pano de copa, mas o vício de roê-lo sem parar reduzira-o a um frangalho marrom nas beiradas, fedorento e disforme. ― Estava imundo ― disse Clodagh, desesperada. E, afastando o fone do rosto, em tom suplicante: ― Molly, estava sujo. Ugh, feio, eca! ― Ashling escutou pacientemente Clodagh fazer sons enojados de quem cospe. ― Era uma ameaça para a sua saúde, teria feito você ficar doente. O berreiro subiu dois tons e Clodagh voltou ao telefone. ― Aquela velha filha-da-puta do grupo de atividades disse que Molly não poderia mais levar o trapinho, se não fosse lavado regularmente. O que eu podia fazer? Mas, enfim, não acho que seja apendicite... Ashling demorou um segundo para compreender que o assunto voltara a ser Craig. ― ...porque ele não vomitou, e a enciclopédia médica da família diz que é um sintoma infalível. Mas a gente pensa em tudo, não é mesmo? ― Acho que sim ― concordou Ashling, inconvicta. ― Sarampo, catapora, meningite, pólio, scherichia coli... ― Clodagh enumerou de um só fôlego, infeliz. ― Espera um minuto, Molly quer sentar no meu joelho. Você pode sentar no joelho da mamãe se prometer ficar quietinha. Vai ficar quietinha? Vai? Mas Molly não queria saber de fazer promessas, e uma série de pancadas e movimentos bruscos indicou que recebera permissão para sentar no joelho de Clodagh mesmo assim. Felizmente, sua gritaria havia amainado às proporções de soluços e fungos ostensivos.

― E, como se eu já não estivesse até aqui de problemas, o puto do Dylan me liga para dizer que não só vai chegar em casa tarde de novo, como vai ter que passar uma noite fora semana que vem em mais uma conferência. ― ...o puto do Dylan ― Ashling ouviu Molly cantarolar, com perfeita dicção. ― O puto do Dylan, o puto do Dylan. ― ...e, ainda por cima, vai viajar essa sexta agora para ir a um jantar em Belfast! Ao fundo, o chororô recomeçara. O timbre era masculino. Seria o puto do Dylan que chegara em casa mais cedo e ficara desgostoso por se ver xingado pela mulher e a filha?, perguntou-se Ashling, irônica. Não, pelas queixas chorosas e lamurientas sobre dor de estômago, só podia ser Craig. ― Dou um pulo aí sexta à noite ― ofereceu-se Ashling. ― Ótimo, é... LARGA! QUER LARGAR, PORRA? Ashling, tenho que desligar ― disse Clodagh, e a ligação caiu. Em geral era assim que terminavam suas conversas telefônicas com Clodagh. Deprimida, Ashling continuou sentada, olhando para o telefone. Precisava conversar com alguém. Felizmente, Ted devia estar estourando por ali a qualquer minuto ― em geral ela podia acertar o relógio pela sua chegada: sete para as sete. Mas, às dez para as sete, como já estivesse no meio de um saco de batatinhas dietéticas e Ted não aparecesse, Ashling começou a se preocupar. Esperava que ele não tivesse sofrido algum acidente. Era um demônio na bicicleta e se recusava a usar capacete. Às sete e meia, ela telefonou para ele. E, para sua surpresa, ele estava em casa! ― Por que você não desceu? ― Você quer que eu desça? ― Ora... quero, por que não? Hoje foi meu primeiro dia no novo emprego. ― Ah, merda, tinha me esquecido. Já estou indo.

Segundos depois, Ted apareceu ― e parecia diferente. O quanto, era impossível dizer, mas era inegável. Ashling não o via desde sábado à noite ― o que era por si só notável, mas andara nervosa demais com o novo emprego para se dar conta até agora. De alguma maneira ele parecia menos frágil, mais robusto, mais cheio de energia. Em geral invadia o espaço dos outros como uma força da natureza, mas agora havia em sua postura uma desenvoltura e um aprumo totalmente novos. ― Parabéns por sábado à noite ― disse Ashling. ― Acho que arranjei uma namorada ― confessou ele encabulado, com um sorriso de orelha a orelha. ― Quer dizer, pelo menos uma. ― Diante do rosto morto de curiosidade de Ashling, prosseguiu: ― Ontem passei o dia com Emma, mas vou me encontrar com Kelly amanhã à noite. Joy chegou nesse exato momento. ― Quem espera, desespera. Metade-homem-metade-texugo nunca vai ligar se eu ficar esperando ao lado do telefone. Muito bem! Bill Gates, Rupert Murdoch ou Donald Trump? Pensei em escolher capitães de indústria em homenagem ao seu novo emprego. ― Mas essa é fácil. ― Ashling não podia acreditar que se safaria com uma pena tão leve. ― Donald Trump, é claro. ― É mesmo? ― Joy emburrou. ― Achei que ele tinha um jeitão meio laquê-e-secador de cabelo. Acho difícil respeitar um homem que passa mais tempo cuidando do cabelo do que eu. Bom, gosto não se discute. Enfiou a mão na bolsa e balançou diante de todos uma garrafa de Asti Spumante. ― Para você. Parabéns pelo novo emprego. ― Vomitasti Spumante ― exclamou Ashling. ― Vomitasti? ― Ted adorou. ― Vomitasti ― confirmou Ashling. ― Disparado o melhor. Quando já haviam gasto todas as milhas do quiriquiqui provocado pelo "Vomitasti", Joy soltou uma exclamação, arregalando os olhos e antegozando as boas notícias: ― E aí? Que tal seu primeiro dia como redatora-chefe de uma revista glamourosa? ― Tenho uma boa mesa, um bom Apple Mac... ― Um bom chefe? ― perguntou Joy, em tom significativo.

Ashling tentou formular seus pensamentos. Ficara fascinada com o poder de atração de Lisa, irradiando uma aura de carisma e sucesso, e curiosa com o ar de infelicidade que transmitia. Reconhecera-a como sendo a mulher do supermercado, e isso também chamara sua atenção. Mas fora um erro segui-la até o banheiro. Sua intenção fora ajudar, mas acabara sendo apenas prepotente e insensível. ― Minha chefe é linda. ― Ashling não queria se estender sobre seu arrependimento. ― Esguia, inteligente e podre de chique. Ted, o recém-formado mulherengo, se animou, mas Joy disse, em tom desdenhoso: ― Essa chefe, não. O cara bonito que levou uma mordida da namorada. Ashling não se sentiu melhor pensando em Jack Devine. Mal começara no novo emprego, e nenhum de seus superiores parecia ter gostado muito dela. ― Como é que você sabe que ele é bonito? ― Por dedução. Ninguém morde o dedo de um bagulho. ― É verdade ― intrometeu-se Ted. ― Comigo, pelo menos, nunca aconteceu. Mas isso podia estar prestes a mudar, suspeitava Ashling. Joy a cutucou: ― Seu chefe? ― Ele é... hum... muito sério ― Ashling optou por dizer, para logo em seguida confessar, num rompante: ― Pelo jeito, ele não gosta de mim. ― Sentiu-se a um tempo melhor e pior por dizer isso. ― Por que não? ― indagou Joy. ― É, por que não? ― quis saber Ted. Como alguém podia não gostar de Ashling? ― Acho que é porque dei aquele Band-Aid para ele outro dia. ― E que mal há nisso? Você só estava tentando ajudar. ― Antes não tivesse tentado ― compreendeu Ashling. ― Vamos pedir o jantar. Ligaram para o restaurante tairlandês do bairro e, como de costume, encomendaram comida demais. Mesmo depois de comerem a ponto de ficarem com os estômagos doloridos de tão estufados, ainda sobraram montões de comida. ― Por que a gente tem sempre que pedir essa quantidade estúpida de comida tairlandesa? ― lamentou-se Ashling. ― Tá, em que geladeira essas sobras vão ficar durante dois dias antes de serem jogadas fora?

Joy e Ted se entreolharam, dando de ombros, e tornaram a olhar para Ashling: ― Por que não na sua? ― Estou preocupada ― anunciou Joy. ― Meu biscoito da fortuna disse que vou sofrer uma decepção. Vamos ler nossos horóscopos. Em seguida consultaram o I Ching durante algum tempo, jogando as moedas várias vezes até encontrarem a solução que buscavam. Depois de procurarem inutilmente algo a que todos quisessem assistir na tevê, Joy olhou pela janela em direção ao Snow, o clube do outro lado da rua. Os leões-de-chácara deixavam-nos entrar de graça, por se tratar de vizinhos. ― Alguém está a fim de atravessar a rua para dançar um pouquinho? ― sugeriu ela, em tom casual. Casual demais. ― NÃO! disse Ashling, o medo tornando-a enfática. ― Tenho que estar cem por cento amanhã de manhã para ir trabalhar. ― Eu também tenho um emprego ― disse Joy. ― A processadora de solicitações de reembolso de seguros mais rápida do oeste. Vamos lá, só um drinquezinho! ― Você não tem a menor compreensão desse conceito. Muito me espanta que consiga enunciá-lo. Se eu sair com você para tomar "só um drinquezinho", vou acabar ficando até as cinco da manhã, completamente fora do meu juízo normal, dançando ao som de Abba, vendo o sol nascer num apartamento estranho com um grupo de homens ainda mais estranhos que nunca vi na vida e nunca mais quero ver de novo. ― Você nunca tinha se queixado antes. ― Desculpe, Joy. Só estou um pouco nervosa por causa do emprego. ― Vou com você, Joy ― ofereceu-se Ted. ― Se você não tiver medo de que eu afugente os rapazes. ― Você? ― riu Joy, desdenhosa: ― Duvido. Já passava das nove quando Dylan chegou em casa. Clodagh conseguira pôr tanto Molly quanto Craig para dormir, o que não era menos do que milagroso.

― Oi ― disse Dylan, cansado, afrouxando a gravata e atirando a pasta na parede do vestíbulo. Clodagh engoliu a raiva ao ver as fivelas de metal arranhando a pintura nova e se preparou para o beijo. Teria preferido que ele não se desse ao trabalho. Aquele beijo parecia totalmente desprovido de sentimento, era apenas um hábito irritante. Ela abriu a boca para discorrer sobre seu dia horrível, mas ele foi mais rápido: ― Meu Deus, que dia! Onde é que eles estão? ― Dormindo. ― Os dois? ― Os dois. ― Será que devemos ligar para o Vaticano para informar sobre um milagre? Vou lá dar uma olhada neles, desço em seguida. Quando voltou, já tinha trocado o terno por uma camiseta e um par de calças de corrida. ― Alguma notícia? ― perguntou ela, ansiosa pelas novidades e excitação do mundo exterior. ― Não. Algum jantar? Ah, jantar. ― Com a dor de estômago do Craig e os pitis da Molly... ― Abriu a geladeira em busca de inspiração. Nada feito. O freezer também não a ajudou. ― Sopa de letrinhas com torradas está bem para você? ― Sopa de letrinhas com torradas. Ainda bem que não me casei com você por seus dotes culinários. ― Deu um breve sorriso para ela. Seria imaginação de Clodagh ou havia nele uma ponta de azedume? ― Ainda bem mesmo ― concordou, indo buscar uma lata no armário. Não podia ter certeza se ele estava ou não zangado. Sempre agia como se estivesse de bom humor, mesmo quando estava furioso. Mas ela não se importava, pelo contrário: tornava a vida mais fácil. ― E então, como foi no trabalho? ― Voltou à carga. ― Por que se atrasou tanto? Ele soltou um suspiro cansado. ― Sabe aquela grande venda para os Estados Unidos? A que vinha se arrastando há séculos? ― Sei ― mentiu ela, enfiando as fatias de pão na torradeira. ― Não me lembro em que ponto as coisas estavam da última vez que falei sobre isso com você. Eles já tinham chegado a tomar alguma decisão? ― Acho que estavam prestes a tomar ― arriscou Clodagh.

― Tá. Enfim, depois de pensarem e repensarem durante séculos, finalmente resolveram ficar só com três pacotes. Aí disseram que queriam testá-los. Coisa que, como você sabe, é uma puta perda de tempo, de modo que ofereci a eles os resultados dos testes realizados nos nossos próprios computadores. Primeiro disseram que sim, que aceitavam. De repente, mudaram de idéia e mandaram técnicos do escritório de Ohio para fazer os testes... Clodagh saiu do ar enquanto remexia a panela. Estava decepcionada. Tudo isso era simplesmente um porre. Com o tronco descaído sobre a mesa, Dylan soltava o verbo: ― ...e aí hoje à tarde recebo um telefonema. Pois bem, eles simplesmente compraram um pacote da Digiware e nem vão testar o nosso! Nesse momento, Clodagh voltou a si. ― Mas isso é genial! Se nem vão testar o de vocês! Em sua cama fria e solitária no quarto deprimente de Harcourt Street, Lisa tentava dormir, mas se sentia como se já estivesse dormindo. E bem no meio de um pesadelo terrível. Depois de um dia inteiro de choques sofridos naquela redação de amadores, alimentara a secreta convicção de que as coisas não poderiam ficar piores do que já estavam. Até tentar encontrar uma casa para alugar. Achara que poderia recorrer a uma administradora de imóveis, mas a taxa cobrada era exorbitante. E sua diplomática oferta de fazer uma menção elogiosa à firma na sua revista se reduzissem o valor da taxa foi recebida com uma tangente. ― Não precisamos de publicidade ― disse o jovem a ela, por telefone. ― Não temos mãos a medir com os negócios, devido ao Tigre Celta. ― Devido ao quê? ― Ao Tigre Celta. ― Percebendo que o sotaque de Lisa não era irlandês, o jovem tratou de esclarecer: ― Lembra que quando a economia de países como o Japão e a Coréia passou por um período excepcional de crescimento, o fenômeno foi chamado de Tigre Asiático? É claro que Lisa não lembrava. Palavras como "economia" batiam e escorriam nela.

― E agora que está acontecendo o mesmo com a economia irlandesa, nós chamamos de Tigre Celta. O que significa ― acrescentou o jovem, com o máximo de tato que pôde, ou seja, quase nenhum ― que não precisamos de publicidade gratuita. ― Está certo ― disse Lisa, desanimada, desligando o telefone. ― Obrigada pela palestra sobre economia. A conselho de Ashling, comprou o jornal noturno, esquadrinhou a coluna de aluguéis à procura de apartamentos e casas na moderna Dublin 4 e marcou hora para ver alguns depois do expediente. Em seguida chamou um radiotáxi para levá-la, às expensas da Randolph Media. ― Desculpe, moça ― disse o chofer. ― Não sei seu nome. ― Não se preocupe ― disse Lisa, melíflua. ― Saberá. Fazia anos que não usava um transporte público ou mesmo pagava uma corrida de táxi do seu próprio bolso. E nem pretendia começar agora. O primeiro imóvel era uma pequena casa em Ballsbridge. Parecia maravilhosa no jornal ― o preço certo, a zona certa, o tamanho certo. Com efeito, a região era agradável com seus inúmeros restaurantes e cafés, a rua tranqüila, simpática e ladeada de árvores, todas as casinhas bem-tratadas e bonitinhas. Enquanto o táxi avançava lentamente à procura do número quarenta e oito, Lisa se animou pela primeira vez desde que pusera os olhos em Jack Devine. Já podia se imaginar morando ali. Até ver a casa. A única na rua que parecia ter sido invadida por mendigos, com cortinas rasgadas na janela, a grama com vários centímetros de altura e um carro carcomido de ferrugem sobre blocos de concreto na entrada para automóveis. Ela foi contando os números das casas a partir daquela diante da qual se encontrava, perguntando-se qual seria a quarenta e oito. Quarenta e dois, quarenta e quatro, quarenta e seis, quarenta e oi... to. Não deu outra: a quarenta e oito era a que parecia ter uma ordem de demolição colada na porta. ― Ah, que merda ― suspirou.

Já tinha se esquecido. Fazia tanto tempo que não procurava uma casa para alugar, que saíra completamente de sua cabeça o verdadeiro inferno que era ― uma série de decepções, cada qual mais brutal do que a anterior. ― Vamos em frente ― ordenou. ― Você é quem manda ― disse o chofer. ― Para onde, agora? A segunda casa era um pouco melhor. Até um camundongo marrom passar correndo pelo chão da cozinha e desaparecer debaixo da geladeira, ondulando o rabinho gorduroso. Os cabelos de Lisa ficaram em pé de nojo. E o terceiro imóvel se descrevia como "aconchegante", quando a expressão correta teria sido "microscópico". Era uma quitinete, sem cozinha e com um banheiro escondido dentro de um armário. ― Me diz só para que você haveria de querer uma cozinha. Vocês, mulheres de negócios, não têm tempo para cozinhar ― bajulou-a o senhorio, gordo como uma foca. ― Vivem ocupadas demais dirigindo o mundo. Valeu a tentativa, bolão, resmungou Lisa. Desalentada, arrastou-se de volta para o táxi e, durante o trajeto de volta para o apart-hotel em Harcourt Street, foi obrigada a conversar com o chofer, que, a essa altura, já tinha decidido que os dois eram grandes amigos. ― ...e meu irmão mais velho leva um jeito danado com as mãos. O melhor sujeito do mundo, coitado, faz tudo por todo mundo: troca lâmpadas, monta mesas, corta grama, tudo que é velha na nossa rua adora ele... Aquele chofer a estava irritando até dizer chega, mas, quando ela saiu do carro, deu-se conta de que sentia sua falta. E agora jamais descobriria o que acontecera quando ele desafiara a gangue de garotas que andava intimidando sua filha de quatorze anos.

Quando se viu de volta ao quarto deprimente, sua alma soltou um vasto uivo de infelicidade. O cansaço e a fome tornavam tudo ainda mais infernal. Sentia-se massacrada pela sensação de déjà vu, da época em que tinha dezessete anos, trabalhava numa revista vagabunda e não tinha sorte tentando alugar uma casa decente. Sem compreender como, retrocedera várias casas no tabuleiro do jogo da vida e fora atirada novamente ao ponto de partida. Embora, na ocasião, tudo tivesse parecido muito mais divertido. Estava desesperada para escapar dos confins mesquinhos e estreitos de sua casa. Desde os treze anos matava aula e se despencava para Londres, a fim de praticar furtos em lojas. E voltava para casa carregada de delineadores, brincos, echarpes e bolsas, sob o olhar tenso e desconfiado da mãe, que não se atrevia a desafiá-la. Aos dezesseis, tão logo levou pau no O-Level* para se livrar dele de uma vez por todas, saiu de casa e mudou-se de mala e cuia para Londres. Ela e sua amiga Sandra ― que ganhou fama de descolada ao mudar o nome para Zandra ― conheceram três rapazes gays, Charlie, Geraint e Kevin, e foram morar no apartamento abandonado em que eles viviam, num espigão em Hackney. A vida era cheirar speed, ir ao Astoria na noite de segunda, à Heaven nas de quarta, à The Clink nas de quinta. Adulterar os passes de ônibus vencidos, tomar ônibus noturno para casa, ouvir os Cocteau Twins e o Art of Noise e conhecer gente do mundo inteiro.

 

* Provas de conclusão do Ensino Médio.

As roupas desempenhavam um papel fundamental na vida dos cinco. Antes de mais nada, o que importava era andar bem-vestido. Assessorada pelos rapazes, que possuíam um conhecimento enciclopédico do que era fashion na ponta da língua, Lisa aprendeu depressa a matar a pau.

No mercado de Camden, Geraint a fez comprar um vestido em elastano, vermelho e colante, com um buraco na coxa, que ela usava com uma meia-calça listrada de vermelho e branco. Sua bolsa era um estojinho duro e branco com uma cruz vermelha em cima. Para completar a produção, Kevin fez questão de roubar para ela um par de Palladiums de Joseph ― tênis de lona com solado de borracha de pneu de caminhão. Que tratou de passar para ela bem em tempo, já que seria despedido no dia seguinte. Na cabeça Lisa usava um chapéu de tricô ao estilo corsário, coberto de alfinetes de pressão ― um pastiche caseiro de Galliano improvisado por Kevin, que queria ser estilista. E Charlie se encarregou do cabelo. O megahair fora lançado há mais ou menos dez segundos, de modo que ele descoloriu o cabelo de Lisa, deixando-o louro-branco, e aplicou-lhe no alto do cocuruto uma trança loura que chegava até sua cintura. Uma noite, na Taboo, a revista I-D fotografou Lisa. (A foto jamais chegou a ser publicada, mas isso é o de menos.) Como o apartamento quase não tinha mobília, fizeram a festa no dia em que encontraram uma cadeira abandonada no lixo. Todos os cinco a carregaram alegremente para casa e, a partir daí, passaram a revezar-se para sentar nela. Da mesma maneira, as canecas de chá tinham que ser usadas num sistema de rodízio, porque eram só duas para servir aos cinco. Mas nunca ocorreu a nenhum deles a comprar outras ― um terrível desperdício de dinheiro. O pouco que tinham era destinado às roupas, ingressos em boates (quando era inevitável) e drinques.

Por fim, todos arranjaram empregos ― Charlie como cebeleireiro, Zandra num restaurante, Geraint como porteiro de uma boate de vanguarda e Lisa numa butique de grife, onde roubava mais peças do estoque do que chegava a vender. Instituiu-se um maravilhoso sistema de trocas: Charlie fazia o cabelo de Lisa, ela roubava uma camisa para Geraint, Geraint a deixava entrar na Taboo de graça, Zandra não lhes cobrava os Sunrises de tequila no restaurante em que trabalhava. (Também vigorava um minissistema de trocas no caso de Zandra: o barman fazia vista grossa para os recibos inexistentes, em troca de favores sexuais para lá de mal prestados.) O único que não fazia parte do esquema era Kevin, porque a loja em que trabalhava era tão cara e, ao mesmo tempo, tão ínfima, que se roubasse um único item do estoque inteiro diminuiria em vinte e cinco por cento. Mas ele conferia prestígio ao grupo, naqueles dias de idolatria fanática da etiqueta que marcaram a segunda metade da década de oitenta. Nenhum deles gastava dinheiro com comida ― como as xícaras e os móveis, isso também era um desperdício. Quando sentiam fome, baixavam no restaurante onde Zandra trabalhava, exigindo uma refeição. Ou então saíam desembestados pelo supermercado do bairro, passando a mão em tudo que viam pela frente. O jogo era passear pelos corredores, comendo durante o percurso, e depois enfiar o celofane ou a casca de banana no fundo das prateleiras. Às vezes Lisa fazia questão de levar as mercadorias para casa ― gostava da emoção que isso lhe dava.

A vida prosseguiu assim durante um ano e meio, até que a deliciosa intimidade dos cinco começou a se desfazer, dando lugar às brigas e aos desentendimentos. A novidade do rodízio das canecas começava a perder seu encanto. Pouco depois, o namorado de Lisa, um executivo que trabalhava numa revista, decidiu arriscar e lhe arranjou um emprego na Brotinho. Embora ela não tivesse qualificações e seu grau de escolaridade fosse pífio, era assustadoramente antenada. Sabia o que era in, o que estava prestes a se tornar out e quem valia a pena conhecer, além de sempre se produzir de maneira espetacular, assombrosa, de uma modernidade inultrapassável. Segundos depois de alguma roupa aparecer na Vogue, Lisa já estava envergando uma versão econômica da própria e, o mais importante, envergando-a com convicção. Muita gente usou saias-balão porque sabia que devia, mas a maioria jamais conseguiu se livrar do ar de confusão e vergonha que fazia par com a saia. Pois Lisa ostentava a sua cabeça erguida. Na época, como agora, a revista em que trabalhava era uma merreca de baixo orçamento, e foi-lhe difícil arranjar um apartamento cujo aluguel pudesse pagar. Mas a diferença era que na época ter um emprego de merda numa revista era considerado fantástico ― o simples fato de ter um emprego numa revista era o que contava. E tentar encontrar um apartamento habitável para morar representava um progresso gigantesco, para alguém que tinha vivido num imóvel abandonado. Eram circunstâncias a serem degustadas. Um motivo de orgulho, não de constrangimento. Embora ela estivesse no fim da fila em termos sociais, ainda assim fazia parte da história bem-sucedida dos Cinco que Viveram num Apartamento Abandonado em Hackney.

E agora, olha só para eles. Charlie trabalhava num salão em Bond Street e tinha um monte de clientes particulares, todas podres de ricas. Zandra voltara a se chamar Sandra e a morar em Hemel Hampstead, casara-se e tivera três filhos em rápida sucessão. Kevin também estava casado ― com Sandra. Na época só dissera ser gay porque achava que era fashion. Geraint estava morto ― descobrira que era soropositivo em 1992 e morrera três anos depois. E Lisa, olha só para Lisa agora. Todos esses anos de trabalho duro, apenas para acabar assim, de volta à estaca zero. Como isso fora acontecer?

De volta ao presente, com seu clima de pesadelo, Lisa subiu em sua cama de hotel e fumou um cigarro atrás do outro, à espera de que o comprimido de Rohypnol lhe proporcionasse quatro horas de feliz esquecimento. Mas os mesmos pensamentos horríveis não paravam de lhe voltar à cabeça. Estava apavorada com a tarefa mastodôntica que tinha à sua frente na Garota, e com ódio de estar ali. Mas não havia saída. Não podia voltar para Londres. Ainda que houvesse algum cargo de diretora dando sopa ― o que não era o caso, no momento ―, não o conseguiria, depois do pontapé que levara. Teria que fazer da Garota um tremendo sucesso antes de qualquer um empregá-la. Estava encurralada. Apanhou a cartela de Rohypnol e, de repente, o suicídio lhe pareceu uma hipótese extremamente tentadora. Será que dezesseis comprimidos bastariam para se matar? Provavelmente sim, decidiu. Poderia apenas fechar os olhos e torvelinhar para longe de tudo. Sair enquanto estava por cima, enquanto seu nome era sinônimo de revistas bem-sucedidas, de grande circulação. Preservar sua reputação por toda a eternidade.

Sempre fora uma sobrevivente, e até hoje jamais cogitara da hipótese de se suicidar ― o que só estava fazendo porque, nesse momento, morrer parecia a melhor maneira de sobreviver. Porém, quanto mais pensava no assunto, mais compreendia que o suicídio não era uma opção: todos simplesmente pensariam que a pressão fora excessiva para ela, e se regozijariam feito loucos. Estremeceu ao pensar em cada diretora de revista da Inglaterra aparecendo no seu enterro, levando sua trilha sonora de murmúrios: Pois é, ela não agüentou. Coitada, não agüentou o rojão. Voltando-se umas para as outras em seus tailleurs pretos chiquérrimos ― nem precisariam trocar suas roupas de trabalho para irem ao enterro ― e se felicitando por ainda estarem no jogo, pelo simples fato de estarem vivas. Esgotamento? Nem morta, queridinha! Não conseguir agüentar o ritmo era o pior crime que se podia cometer no mundo das revistas. Pior do que dar um basta nos hambúrgueres, passar fome até caber num manequim quarenta ou anunciar a humanidade que o cabelo curto estava na moda, quando todo mundo estava empatando seu dinheiro em apliques até os ombros. Trabalhando sob a premissa de que ninguém é de ferro, o pessoal das revistas acolhia alegremente a notícia de que uma colega estava "curtindo um longo e merecido descanso" ou "passando mais tempo com a família". Um acidente fatal era a única saída, concluiu Lisa. Um acidente fatal glamouroso, salientou. Nada de ser atropelada por algum ônibus irlandês caindo aos pedaços, isso seria ainda mais constrangedor do que se matar. Teria que cair de uma lancha, no mínimo. Ou explodir numa bola de fogo laranja, quando seu helicóptero se chocasse contra uma montanha a caminho de alguma locação nos confins do mundo. ...Ela estava indo para Manoir aux Quatre Saisons, creio eu. ...Não, acho que era para o Castelo de Balmoral. Atendendo a um pedido pessoal de você-sabe-quem. ...Mas que maneira mais conveniente de partir. Fabulosa tanto na morte quanto na vida.

...Reduzida a um toco de cervão, foi o que me disseram, como um bife estorricado. O tom arquivenenoso de Lily Headly-Smythe, diretora da Garbo, interrompeu o sonolento devaneio de Lisa. ...Corre o boato de que Vivienne Westwood vai inspirar sua próxima coleção no acidente, com todas as modelos desfilando caracterizadas como cadáveres carbonizados. Com a fantasia de volta ao bom caminho, Lisa terminou por adormecer, reconfortada pela notícia de sua morte nas colunas sociais. A semana passou. Lisa percorria o caminho sombrio de sua vida como uma sonâmbula. Embora uma sonâmbula bem-vestida e prepotente. Na sexta, parou de chover e o sol saiu, o que deixou a equipe em polvorosa ― pareciam crianças numa manhã de Natal. Quando chegaram para trabalhar, choveram comentários: ― Dia lindo. ― Não está fazendo um tempo maravilhoso? ― Que manhã espetacular! Só porque a porcaria da chuva parou de cair, pensou Lisa, com desprezo. ― Lembra do último verão? ― gritou Kelvin do outro lado da redação para Ashling, os olhos brilhando de alegria por trás dos óculos de armação preta. ― Lembro ― respondeu ela. ― Caiu numa quarta-feira, não foi? Todos riram às gargalhadas. Todos, menos Lisa. No meio da manhã, Mai entrou na redação com seus passinhos leves e graciosos, deu um sorriso entre meigo e irônico e perguntou: ― Jack está? Lisa sentiu um breve frêmito de excitação. Obviamente, aquela era a namorada de Jack ― e que surpresa! Esperara uma irlandesinha pálida e sardenta, não aquele exótico espécime cor de café. Ashling, ao lado da copiadora, tirando vários milhões de releases para serem enviados a cada estilista e empresa de cosméticos do universo, também prestou atenção. Era a mordedora de dedos, vocação inadivinhável naquela boquinha inocente, rechonchuda como uma cereja. ― Marcou hora? ― A Sra. Morley desdobrou seu metro e quarenta e oito atrás da mesa, projetando a vasta peitaria para intimidá-la. ― Diz a ele que é a Mai.

Depois de um olhar longo e feroz, a Sra. Morley afastou-se, caminhando pesadamente. Enquanto esperava, Mai enrolava distraída uma mecha do grosso cabelo em torno do dedo fino, a perfeita protagonista de um sonho erótico. A Sra. Morley voltou. ― Pode entrar ― disse, sem conseguir esconder sua decepção. Mai atravessou a redação, envolta numa aura de silêncio e perfume cítrico e, no momento em que a porta de Jack se fechou atrás dela, houve um suspiro coletivo de alívio, seguido por um clamor de vozes. ― Aquela é a namorada do Jack ― informou Kelvin a Ashling, Lisa e Mercedes. ― Não vale o trabalho que dá, se querem saber minha opinião ― disse a Sra. Morley, severa. ― Não tenho tanta certeza assim, Sra. Morley ― disse Kelvin, em tom malicioso. A Sra. Morley deu as costas, soltando um "Humpf!" de indignação. ― Ela é meio irlandesa, meio vietnamita ― intrometeu-se Gerry. ― Os dois brigam feito cão e gato ― disse Trix, empolgada. ― Ela é muito agressiva. ― Bom, isso não vem do lado vietnamita dela ― afirmou Dervla O'Donnell, categórica, feliz por poder dar um tempo na Noiva Hibérnica. ― O povo vietnamita é muito gentil e hospitaleiro. Quando viajei para lá... ― Ih, começou ― gemeu Trix. ― A ex-hippie tendo outro flashback do Vietnã. Ninguém merece! Ashling ainda imprimia seus releases, quando a copiadora soltou um longo gemido, deu alguns estalos que não estavam no programa e, após um rangido, caiu num indesejado silêncio. O display piscava uma mensagem amarela. ― PQ03? ― indagou Ashling. ― O que isso quer dizer? Os funcionários mais antigos se entreolharam. ― PQ03? Não faço a menor idéia! ― Essa é nova. ― Podia ter sido pior. Em geral ela pifa depois de duas cópias. ― O que vou fazer? ― perguntou Ashling. ― Esses releases têm que ser postados hoje à noite.

Olhou para Lisa, na esperança de que a dispensasse do encargo. Mas a expressão de Lisa continuou tranqüila e impenetrável. Ao fim da primeira semana, já tinha ficado claro para Ashling que Lisa era uma escravocrata com grande talento para dirigir uma revista. Ótima sob vários aspectos, mas não para alguém sobre quem recaíra a responsabilidade de executar cada uma de suas idéias. ― Não adianta pedir a esses idiotas para consertar. ― Trix meneou a cabeça com desprezo em direção a Gerry, Bernard e Kelvin. ― Eles só piorariam as coisas. Jack até que é bem jeitoso com máquinas... Mas eu não incomodaria ele nesse exato momento ― acrescentou, em tom significativo. ― Vou fazer outra coisa. ― Ashling voltou para sua mesa e ficou paralisada por um momento ao ver o volume de trabalho acumulado em cima dela. Decidiu continuar a elaborar a lista dos cem irlandeses mais sexy, interessantes e talentosos. Todo mundo, de DJs a cabeleireiros, passando por atores e jornalistas. Assim que os nomes ocorriam a Ashling, Trix marcava com eles um café da manhã, almoço, chá ou jantar em companhia de Lisa, que estava fazendo um verdadeiro curso intensivo para se infiltrar entre os poderosos da sociedade irlandesa. ― Depois de toda essa comilança, você vai ficar uma baleia ― comentou Trix, rindo. Lisa lhe deu um sorriso de desdém. Só porque a pessoa pede a comida, isso não quer dizer que seja obrigada a comê-la. Durante algum tempo a equipe continuou trabalhando, até que a porta do escritório de Jack se abriu e Mai saiu em alta velocidade. Na mesma hora todos levantaram a cabeça, e não se decepcionaram: Mai fez uma violenta tentativa de bater a porta da redação atrás de si, mas, como ficava permanentemente presa no trinco, teve que se contentar em lhe desferir um furioso pontapé.

Segundos depois foi a vez de Jack sair, também em alta velocidade. Seus olhos estavam turvos, sua expressão era de besta-fera e suas pernas compridas já quase alcançavam Mai. Porém, já no meio da redação, pareceu cair em si e afrouxou o passo. "Que merda", resmungou, dando um soco na copiadora. Ouviu-se um zumbido, seguido por um clique e, em seguida, as folhas começaram a cair da máquina uma após a outra. A copiadora tinha voltado a funcionar! ― Temos a tecnologia! Jack Devine salva a pátria! ― declarou Ashling, começando a bater palmas, no que foi logo imitada por todos. Jack correu um olhar furibundo ao seu redor, enquanto a redação inteira aplaudia, e então, para surpresa geral, começou a rir. No ato pareceu outro homem ― mais simpático, mais jovem. ― Que loucura! ― murmurou. Ashling concordava em gênero, número e grau. Jack ainda se demorou por um momento, hesitante. Devia seguir Mai ou... Foi quando viu o maço de Malboro na mesa de Ashling, um cigarro projetando-se para fora. Em teoria era proibido fumar na redação, mas, por consenso geral, todos fumavam. Menos Bernard, o Xarope, que se cercava de plaquinhas com os dizeres "Obrigado por não fumar". Chegara mesmo a comprar um ventilador portátil. Levantando as sobrancelhas, Jack sinalizou um "Posso?" silencioso e retirou o cigarro com os lábios. Riscando um fósforo, acendeu-o, apagou o fósforo com um gesto firme e tirou uma tragada funda. Ashling acompanhou todos os seus gestos, indignada, mas sem conseguir desviar os olhos. ― Pelo visto, escolhi a namorada errada para parar de fumar ― comentou Jack, arrastando-se desanimado para seu escritório.

― Preciso da ajuda de vocês, meninas ― anunciou Drevla O'Donnell com seu vozeirão, distraindo todo mundo. Levantou-se da cadeira, abandonando a matéria de moda da edição de outono da Noiva Hibérnica. Seu terno em tricô de seda no gênero Sou-Gorda-Mas-Sou-Feliz frufrulhava a cada passo seu. ― O que a convidada bem-vinda de um casamento vai usar no outono 2000? O que anda nas bocas, o que está acontecendo, o que é de ponta? ― Bom, pelo que posso ver, as papadas estão no auge, querida ― disse Lisa, indicando com um meneio de cabeça a exuberante papada de Dervla. Uma exclamação chocada na redação emendou imediatamente em risadaria, para exaltação de Lisa. Tinha muito orgulho de sua língua rápida e ferina, e do poder que lhe conferia. Dervla ficou petrificada de espanto ao ver todos os colegas rindo ao seu redor, mas em seguida também arriscou um sorriso para indicar que levara a piada na esportiva.

― É tudo de bom, não é? ― Com falso entusiasmo, Jack levantou sua cerveja para Kelvin e Gerry. ― Não ter nenhuma mulher aqui para chatear a gente. Kelvin deu uma olhada no bar. A clientela de sexta-feira à noite incluía pouquíssimas mulheres. ― Mas nenhuma delas está aqui sentada com a gente, enchendo a nossa cabeça ― prosseguiu Jack. ― Pois eu não me importaria se a Lisa estivesse aqui ― disse Kelvin. ― Putz, ela é linda. ― Maravilhosa ― concordou Gerry, sentindo-se na obrigação de dizer alguma coisa. ― E já notaram que, embora os olhos dela fiquem parados, os mamilos seguem você por toda a redação? ― comentou Kelvin. Tanto Gerry quanto Jack pareceram um pouco desconcertados com esse comentário. ― A Mercedes também é supergostosa ― disse Kelvin, entusiasmado. ― Mas não é de muitas palavras ― observou Gerry, num caso inequívoco de roto rindo de esfarrapado. Kelvin sorriu para Gerry: ― Não é a comunicatividade dela que me interessa. Trocaram risadinhas e cotoveladas, numa conivência maliciosa.

― Passa o cinzeiro para a gente, Kelvin ― interrompeu Jack. Quando Kelvin fez o que lhe era pedido, Jack soltou um riso amargurado. ― Da última vez que eu disse isso para alguém, a pessoa se virou para mim e disse: "Você desgraçou minha vida, seu cachorro." Gerry e Kelvin se remexeram, constrangidos. Jack estava estragando o alto-astral da noite de sexta. ― Esquece isso ― aconselhou Kelvin, logo fazendo uma galharda tentativa de pôr a conversa nos eixos outra vez: ― A Ashling não é um amor? ― Uma graça. Como uma boa irmãzinha caçula ― concordou Gerry. ― E uma irmãzinha caçula bonita, também ― acrescentou Kelvin, por generosidade. ― Só não é um avião, como a Lisa e a Mercedes. Jack sentiu uma ponta de desconforto, um não-sei-quê enroscando-se incomodamente dentro de si. Ashling o fazia se sentir estranho. Algo semelhante a vergonha, ou talvez irritação. ― Mas, como eu ia dizendo ― Jack voltou a falar de coisas mais agradáveis ―, não é legal não ter nenhuma mulher aqui? Assim, se eu comentar que está fazendo uma linda tarde de sol, ninguém vai se virar e dizer: "Sai pra lá, seu perdedor, maldita a hora em que te conheci." Com um suspiro exagerado, Kelvin entregou os pontos: ― Quer dizer que está tudo acabado com a Mai outra vez? Jack assentiu. ― Por que você não desiste dela de uma vez por todas? ― Vocês vivem brigando ― Gerry meteu sua colher torta. ― Ela me deixa louco ― exclamou Jack, frustrado. ― Você não sabe como é! ― Claro que sei, sou um homem casado ― disse Gerry. ― Não! Não foi isso que eu quis dizer... ― Ame-as e deixe-as ― interrompeu Kelvin, com uma risadinha safada tipicamente masculina. ― Esse é o meu lema. Ou melhor, não as ame e deixe-as. E já chegava de emoções por hoje, decidiu.

E pensar no quanto ficaram felizes quando Jack começara a sair com Mai! Já fazia um ano que Dee, a namorada de longa data de Jack, abandonara-o sem mais nem menos, e era bom vê-lo de volta à ativa. Pelo menos, foi o que pensaram. Mas, depois de passada a lua-de-mel ― que durou mais ou menos quatro dias ―, Jack pareceu quase tão infeliz com Mai quanto ficara com a partida de Dee. Para manter Jack longe do assunto mulheres, Kelvin perguntou: ― Em que pé ficou aquele último rolo com os sindicatos na emissora de televisão? ― Já foi resolvido ― resmungou Jack. ― Isto é, até o próximo. ― Caramba, antes você do que eu. ― Kelvin sabia que Jack vivia na corda bamba entre as exigências administrativas, as exigências dos sindicatos e as exigências dos patrocinadores. Não admirava que vivesse estressado. ― E o índice de audiência está subindo ― disse Gerry. ― Está? ― Kelvin exclamou, sem grande interesse. ― Meus parabéns, Jack. ― E, voltando-se para Gerry: ― Esta rodada é sua. Paga um drinque para o nosso glorioso líder. Carros, decidiu Kelvin. Seria sobre isso que conversariam em seguida. Lisa foi a última a sair da redação no fim da tarde de sexta. As ruas estavam cheias de gente, e o pôr-do-sol era deslumbrante. Caminhando com cuidado por entre os pândegos bem-humorados que saíam dos bares nas ruas de Temple Bar, ela se dirigia decidida para Christchurch. Mas as lembranças provocavam nela uma vaga sensação de nostalgia. De outros fins de tarde de sexta ensolarados. Sentada com Oliver à margem do rio em Hammersmith, bebericando cidra, sentindo-se livre e tranqüila depois de uma semana exaustiva. Será que aquela fora mesmo ela? Deixou de lado as lembranças de Oliver e tentou pensar em outra coisa, quando, de repente, projetando-se por sob uma mesa de bar, viu um par de canelas brancas, rajadas de linhas vermelhas. Trix!

Na hora do almoço, em homenagem ao céu azul e ao fato de estar fazendo um grau acima de zero, Trix depilara as pernas no banheiro, e agora as exibia para o mundo, cruentas mas impávidas. Quase acabara com o estoque de Band-Aids de Ashling. Lisa seguiu em frente, apressada, fingindo não ver os acenos de Ashling, que a chamava para se juntar a elas. Obviamente, o bom tempo também entusiasmara Ashling a depilar as pernas, pois Lisa a ouvira marcando uma sessão por telefone. O curioso é que nem tentara descolar a sessão de graça. Pelo visto pretendia ir como civil, mesmo, e pagar o preço do mercado. Mas se Ashling não tinha o tino necessário para usar ― o.k., abusar ― de sua posição como redatora-chefe de uma revista feminina, não seria Lisa a abrir seus olhos. Nunca chegara a haver grandes chances de Lisa tratar bem uma pessoa tão comum como Ashling. Mas, depois que Ashling a apanhara chorando e a tratara como se ela precisasse de carinho, Lisa passara a nutrir a mais profunda antipatia por ela. Também antipatizava com Mercedes, mas por motivos totalmente diversos. Mercedes, silenciosa e segura de si, deixava-a nervosa. Quando Ashling desligou o telefone, depois de marcar a sessão de depilação, Lisa levou a redação inteira a rir, ao comentar: ― Agora é sua vez, Mercedes. A menos, é claro, que estejam se usando pernas de gorila neste verão. Mercedes lançou-lhe um olhar tão sinistro que Lisa resolveu suspender o próximo comentário, a saber, que com aqueles olhos e cabelos escuros, Mercedes era a candidata ideal para usar um par de costeletas e um bigode. ― Pelo amor de Deus, é uma piada! ― Lisa sorriu para Mercedes, venenosa, completando o estrago ao fazê-la parecer má perdedora, além de peluda.

Para enfurecer Ashling e Mercedes de uma só cajadada, Lisa era excessivamente carinhosa com Trix. Era uma técnica que gerava poder e à qual ela já recorrera no passado ― dividir para conquistar. Escolha um favorito, trate-o com a máxima intimidade e então o abandone sem mais nem menos em favor de outro. O rodízio da posição engendrava amor e medo. Excetuando-se Jack: com ele, seria simpática o tempo todo. Era a única coisa em sua vida que estava lhe dando esperanças. Andara estudando discretamente o modo como ele a tratava, e era diferente como tratava as outras mulheres da equipe. Ele achava graça de Trix, era educado com Mercedes e parecia não gostar nada de Ashling. Com Lisa, no entanto, demonstrava um respeito e uma solicitude que beiravam a admiração. E não era para menos: ela acordara ainda mais cedo do que o habitual essa semana, dispensando cuidados extras à aparência já tão bem-tratada, aplicando habilmente à pele várias camadas de bronzeador artificial com uma textura finíssima, para lhe dar uma luminosidade dourada. Lisa tinha uma grande autocrítica em relação à sua aparência. No seu estado natural ― em que há muito não se encontrava ―, era uma mulher bastante bonita. Mas, à custa de grandes esforços, sabia que se elevara da categoria de bonita para a de deslumbrante. Além da costumeira atenção dispensada aos cabelos, unhas, pele, maquiagem e roupas, tomava grandes quantidades de vitaminas, bebia dezesseis copos d'água por dia, só cheirava cocaína em ocasiões especiais e a cada seis meses aplicava uma injeção de Botox na testa ― paralisava os músculos e lhe dava uma aparência maravilhosa, sem rugas. Durante os últimos dez anos, passara fome o tempo todo. Tanta fome, que quase já nem a sentia mais. Às vezes sonhava que fazia uma refeição de três pratos, mas as pessoas fazem as coisas mais estranhas nos sonhos!

Apesar da confiança que tinha em sua aparência, Lisa era obrigada a admitir que a namorada de Jack a surpreendera um pouco. Até então presumira, despreocupada, que sua rival seria uma irlandesa, e a vitória, favas contadas. Mas não ficou desencorajada demais. No momento, roubar Jack de sua namorada passional e exótica constituía um dos aspectos menos desafiadores de sua vida. Encontrar um lugar para morar, sim, era um desafio muito maior. Todas as semanas, depois do expediente, saíra em campo para ver imóveis, e ainda não topara com nenhum que fosse remotamente adequado. Essa noite veria um apartamento em Christchurch, que não parecia ser tão mau assim. Embora o aluguel fosse alto, ficava num condomínio moderno a pouca distância da redação, o que lhe permitiria ir a pé para o trabalho. A desvantagem era que teria de dividi-lo com outra pessoa, e já fazia um bom tempo que Lisa dividira alguma coisa com alguém, ainda mais sendo esse alguém uma mulher. A dona da casa se chamava Joanne. ― É ótimo viver aqui, porque você pode ir a pé para o trabalho ― disse ela, entusiasmada. ― O que significa uma economia de uma libra e dez da passagem do ônibus. Lisa assentiu. ― O que dá duas libras e vinte pence por dia. Lisa tornou a assentir. ― O que dá onze libras por semana. Lisa assentiu, dessa vez com certa relutância. ― O que dá um total de quarenta e quatro libras por mês. Mais de quinhentas libras por ano. Agora, o aluguel. Preciso de um depósito de um mês, dois meses adiantados e um depósito de duzentas libras para o caso de você desaparecer de uma hora para outra deixando uma conta de telefone astronômica. ― Mas... ― E a praxe é você me dar trinta libras por semana para a comida. Leite, pão, manteiga, essas coisas. ― Não tomo leite... ― Mas para o seu chá!

― Nem tomo chá. Ou como pão. Manteiga, então, nem pensar. ― Pôs a mão no quadril esguio e olhou para o de Joanne, muito mais largo. ― De mais a mais, quantos litros de leite dá para comprar com trinta libras? Você deve achar que sou alguma idiota. De volta à rua, Lisa se sentiu arrasada. E morta de saudades de Londres. Odiava estar em Dublin, tendo que passar por tudo isso. Tinha seu próprio apartamento, perfeito, em Ladbroke Grove. Daria tudo para estar lá. Novamente foi assaltada pela exaustão e a sensação de deslocamento. Em Londres sua existência estava inextricavelmente entrelaçada à trama da vida fashion, mas aqui não conhecia ninguém. E nem queria. Achava todo mundo extremamente irritante, Ninguém aparecia na hora marcada para nada nesse paisinho chinfrim, e uma pessoa teve mesmo o desplante de lhe dizer: "Quando Deus fez o tempo, fez em boa quantidade." Na qualidade de diretora de uma revista, a prerrogativa de se atrasar era dela. Desolada, arrastou-se de volta para seu hotelzinho horroroso, torcendo para que Trix houvesse conseguido marcar um jantar com alguém minimamente famoso aquela noite. Odiava ter tempo livre, pois sua capacidade de aproveitá-lo se atrofiara. Embora nem sempre houvesse sido assim ― sempre se matara de trabalhar e fora ambiciosa, mas, em algum lugar do passado, houvera algomais. Antes que o vício de olhar por cima do ombro para as hordas de mulheres mais jovens, mais inteligentes, mais duras, mais ambiciosas que se aglomeravam atrás dela reduzisse sua vida a uma rotina bitolada e massacrante. Tinha mais alguns apartamentos e casas para ver no fim de semana ― o tempo passaria bem depressa. E no dia seguinte faria uma matéria com dois cabeleireiros, tingindo o cabelo com um e cortando-o com o outro. O truque era ter sempre alguns acorrentados a ela por uma acovardada dívida de gratidão, para que, no dia em que um não pudesse lhe fazer uma escova de emergência, o outro estivesse disponível.

Fizera um trato consigo mesma: tinha um ano para fazer dessa revista um sucesso estrondoso, e então as cabeças coroadas da Randolph Media reconheceriam sua contribuição e a recompensaria. Talvez... Depois de quatro drinques apressados após o expediente, Ashling se levantou para ir embora, mas Trix lhe implorou para que se demorasse mais um pouco. ― Anda, vamos encher a cara e fortalecer nossos vínculos de amizade baixando o pau em todo mundo que trabalha com a gente! ― Não posso. ― Pode, sim ― insistiu Trix, séria. ― Basta tentar. ― Não foi isso que eu quis dizer. ― Mas Trix não deixava de ter razão. Se por um lado Ashling de fato pensava coisas virulentas, por outro raramente se permitia dar razão a elas, devido à nervosa suspeita de que tudo que vai, volta. Mas seria inútil explicar isso para Trix, ela morreria de rir. ― É porque vou visitar minha amiga Clodagh. ― Diz a ela para vir até aqui, então. ― Ela não pode. Tem dois filhos pequenos e o marido está em Belfast. Foi só então que conseguiu se desvencilhar de Trix. Ashling abriu caminho às cotoveladas pela multidão de sexta-feira à noite e chamou um táxi. Quinze minutos depois, chegou à casa de Clodagh. O menu era composto de pizza, vinho e picadinho de Dylan. ― Odeio quando ele viaja para essas merdas de jantares e conferências! ― exclamou Clodagh. ― E ele viaja um pouco demais para o meu gosto. A frase ficou no ar, até que Ashling perguntou ansiosa: ― Você não acha que ele está... aprontando, acha?

― Não! ― Clodagh soltou uma gargalhada. ― Não foi isso que eu quis dizer. É só que invejo a... a... liberdade dele. Fico presa aqui com os dois enquanto ele se hospeda em algum hotel bacana, onde pode ter uma noite de sono inteirinha e um pouco de privacidade. O que eu não daria... ― Calou-se, melancólica. Mais tarde, na cama, depois de trancar nervosamente as portas e janelas, Clodagh se pegou pensando no que Ashling dissera sobre Dylan estar aprontando. Ele não faria isso, faria? Ter um caso? Ou a típica transa dos homens quando viajam ― apressada, alucinante e anônima? Não, sabia que não. Quanto mais não fosse, porque ela o mataria. No entanto, a idéia de Dylan fazendo sexo com outra mulher estranhamente a excitava. Refletiu sobre a idéia mais um pouco, percorrendo algumas fantasias familiares. Será que transariam como ela e Dylan? Ou seria uma coisa mais criativa? Mais tórrida? Mais rápida? Mais apaixonada? Enquanto visualizava os roteiros de filmes pornográficos, sua respiração se acelerou e, quando estava no ponto, masturbou-se até ter dois orgasmos rápidos e intensos. Em seguida, caiu num sono profundamente satisfeito, até ser acordada por Molly, que precisava fazer pipi. Ashling passou a tarde de sábado inteira batendo pernas por lojas, procurando um tailleur elegante e sexy para trabalhar. O que realmente queria, embora tivesse apenas uma vaga consciência disso, era ficar parecida com Lisa. Talvez assim se sentisse digna do novo emprego, e a ansiedade que a perseguia lhe desse uma trégua. Mas não importava o que experimentasse, o visual superpoderoso de Lisa sempre lhe escapava. Quando já estava quase na hora de as lojas fecharem, fez duas compras em desespero de causa e cambaleou de volta para casa, exausta e insatisfeita.

O rapaz não estava exatamente em frente à portaria, mas ao lado, de cócoras sobre o cobertor laranja. Era a primeira vez que Ashling o via acordado. Alguns transeuntes lançavam-lhe uma moeda, outros lançavam-lhe um olhar que mesclava nojo e medo, mas a maioria não se dava conta de sua existência. Haviam-na apagado da realidade a jato de tinta. Sendo forçada a passar a centímetors dele para chegar à portaria, sentiu-se entre constrangida e insegura quanto à etiqueta correta a se adotar num caso desses, mas achou que devia dizer alguma coisa. Afinal, eram vizinhos. ― Hum, oi ― resmungou, seus olhos cruzando apressados com os dele. ― Oi. ― Ele levantou o rosto para ela e abriu um sorriso. Não tinha um dos dentes da frente. Quando ela já se afastava dele como um bólido, ele meneou a cabeça em direção à lustrosa sacola de compras: ― Comprou alguma coisa legal? Ela ficou petrificada, entre ele e a porta, desesperada para fugir. ― Ah, que nada. Só duas coisinhas para o trabalho, sabe como é... Teve vontade de cortar a língua pra fora ― como ele sabia? ― Como é mesmo que dizem por aí? ― Ele franziu os olhos, pensativo. ― Não se vista para o emprego que tem, e sim para o emprego que quer ter, não é isso mesmo? Ashling estava constragida demais para prestar atenção ao que ele dizia. ― Será que você...? ― Fez deslizar pelo ombro a alça da mochila, a enorme e lustrosa sacola de compras a tiracolo atrapalhando seu acesso ao porta-níqueis. ― Será que você gostaria...?

Deu-lhe uma libra, que ele aceitou com um meneio de cabeça gentil. Vermelha de vergonha pela disparidade entre o que lhe dera e o que acabara de gastar com uma camisa e uma bolsa de que nem mesmo precisava, subiu a escada pisando duro, furiosa. Dou muito duro para ganhar o meu dinheiro, fumegava. Um duro louco, frisou, pensando na semana que tivera. E não compro nada há séculos. E foi tudo no cartão. E não tenho culpa por ele ser alcoólatra ou viciado em heroína. Embora, verdade fosse dita, não tivesse sentido cheiro de bebida nele, e tampouco parecesse estar sob o efeito de drogas. Na segurança de seu apartamento, após bater a porta protetoramente atrás de si, soltou um suspiro. Podia ser eu, pensou. Eu podia ter acabado na rua. Em seguida censurou-se por aquele melodrama. As coisas nunca haviam chegado a esse ponto. Atirou as sacolas na mesa e os sapatos no chão, caindo pelas tabelas após o dia exaustivo. E ainda teria que vestir suas roupas de festa e sair com Joy. Adoraria não ir. A vida aos trinta e poucos anos era como uma adolescência às avessas. Seu corpo estava modificando, e muitas vezes ela se via assaltada por desejos estranhos, até mesmo vergonhosos. Como o de ficar em casa numa noite de sábado, tendo por companhia apenas uma fita de vídeo e uma caixa de sorvete Ben and Jerry. ― Você nunca vai conhecer um homem se não sair ― Joy sempre reclamava. ― Mas eu saio, sim. De mais a mais, tenho Ben e Jerry. São os únicos homens de que preciso.

Mas, aquela noite, tinha que sair. Para a primeira edição da Garota, ela e Joy iriam a um clube de salsa pesquisar as chances de se conhecer homens. Nunca fizera nada desse gênero para a Cantinho da Mulher, e havia ocasiões, como agora, em que morria de saudades do antigo emprego. Mas só porque na Cantinho da Mulher podia desempenhar suas tarefas até dormindo, enquanto que suas atribuições na Garota ainda não estavam bem definidas. Temia que pudessem mandá-la fazer qualquer coisa, e vivia com o estômago aos saltos, na expectativa de que a mandassem fazer algo que não soubesse. Ashling gostava de certezas, e a única coisa certa em seu trabalho na Garota era que não fazia a menor idéia do que viria a seguir. Era de esfrangalhar os nervos! Empolgante, corrigiu-se. E glamouroso. E extremamente divertido trabalhar com tanta gente nova ― no antigo emprego, a equipe fixa era composta por apenas mais três pessoas. Se bem que, por outro lado, fossem todos uns amores. Nenhuma figurinha difícil como Lisa Ou Jack Devine. Mas também ninguém tão engraçado quanto Trix ou Kelvin, relembrou-se, categórica. Não era hora para ficar nostálgica e patética. Enfiou um saco de pipocas no microondas e se atirou no sofá, assistiu a Blind Date e rezou para que Joy não desse as caras. Tinha ficado acordada até as seis da manhã brincando com Metade-homem-metade-texugo, e talvez estivesse se sentindo indisposta demais para pôr o pé na rua. Uma ova. Embora estivesse mais frágil do que de costume. ― Queria tomar uma xícara de chá ― disse, quando chegou. ― Com muito açúcar. ― Está tão mal assim? ― Estou tremendo. Mas valeu a pena. Estou louca por Metade-homem-metade-texugo, Ashling. Mas ele ficou de me ligar hoje e... ah, não, o leite está azedo. Merda! Aposto que estou grávida. Daqui a nove meses vou dar à luz um metade-bebê-metade-texugo.

― Não ― disse Ashling, dando uma olhada dentro da xícara em cuja superfície boiavam pontinhos brancos. ― Acho que é só o leite que azedou. Joy abriu a geladeira e examinou as quatro caixas de leite em seu interior, todas com o prazo de validade vencido. ― Que é que você está fazendo? ― indagou. ― Brincando de roleta-russa com o leite? Dirigindo uma fábrica de iogurte? E você comeu? Ashling apontou para a tigela de pipocas quase vazia. ― Você é engraçada ― disse Joy. ― Sob alguns aspectos é altamente organizada, sob outros... ― Ninguém pode ser bom em tudo. Sou equilibrada. ― Você devia se cuidar mais. ― Olha o roto rindo do esfarrapado! ― Mas você vai ter escorbuto! ― Eu tomo vitaminas. Estou ótima. Cadê Ted? Ashling não vira Ted a semana inteira. Não só ele não lhe dava mais carona, pois estavam trabalhando em lados opostos da cidade, como desde a noite da consagração das corujas sua vida consistia em abrir alas pela multidão de mulheres que se mostravam interessadas por ele e, durante o percurso, ir dando uma bicadinha aqui, outra acolá. Embora torrasse a paciência de Ashling quando praticamente acampava em seu apartamento, queixando-se sobre o fato de não ter namorada, Ashling sentia sua falta e ressentia-se de sua recém-conquistada independência. ― Você vai ver Ted mais tarde. A gente foi convidada para uma festa. Estudantes de arquitetura. Um deles se apresenta como humorista às vezes, de modo que alguns dos humoristas devem estar lá. E, onde há humoristas, em geral Metade-homem-metade-texugo se encontra presente! ― Não sei se vou a essa festa, não ― disse Ashling, de pé atrás. ― Ainda mais sendo uma coisa de estudantes.

― Vamos ver ― disse Joy, tranqüila. Tranqüila demais. Ashling olhou para ela, nervosa. ― Não consigo acreditar que estou me maquiando de novo. Parece que tirei a maquiagem há minutos ― queixou-se Joy, contornando os lábios com o batom sem ajuda de um espelho, para logo em seguida comprimi-los e esfregá-los um no outro com uma classe que Ashling achava invejável. ― Não esquece a câmera. Quando puseram o pé na rua, Ashling procurou o rapaz sem-teto, mas ele e seu cobertor laranja não estavam à vista. ― Mulheres solteiras e homossexuais ― Joy resumiu a multidão de cinqüenta pessoas com um único olhar de lince. ― Uma droga, mas, já que a gente está aqui, por que não enche a cara? Qual é o nosso orçamento? ― Orçamento? Joy suspirou, sacudindo a cabeça. Havia uma hora de aula antes de o clube começar a funcionar. O instrutor, que se apresentou como sendo "Alberto, de Cuba", era um homem um tanto banal. Até começar a dançar. Sinuoso e ágil, gracioso e seguro de si, subitamente se tornou lindo. Pavoneava-se de um lado para o outro, ilustrava as instruções com gestos, girava nos calcanhares, demonstrava os passos que os alunos deveriam tentar executar. ― Que cara mais seboso ― queixou-se Joy, azeda. ― Ssshhh! Ashling adorava dançar. Apesar de sua falta de cintura, tinha grande senso de ritmo, de modo que, quando os trompetes da música alegre e animada recomeçaram e Alberto ordenou "Comigo, todo mundo", ela não se fez de rogada. Os passos eram bastante básicos. Era a elegância com que a pessoa os executava que fazia a diferença, compreendeu Ashling, hipnotizada com os quadris lubrificados de Alberto. A maioria dos alunos era canhestra e desajeitada ― com destaque especial para Joy, que estava tresnoitada e de ressaca ―, e Alberto pareceu francamente aborrecido com aquele sem-jeito-mandou-lembranças generalizado. Ashling, no entanto, pegou os passos sem a menor dificuldade.

― Não foi uma idéia fantástica? ― declarou para Joy, os olhos brilhando. ― Vai à merda. ― Dá um sorriso para a câmera! E finge que está dançando. Joy fez dois passos entornando os joelhos para dentro, enquanto Ashling tirava as fotos, e logo em seguida tomou-lhe a câmera. ― Tenta fotografar alguns caras para o artigo ― rosnou Ashling para ela. Depois da aula, o clube começou de fato a funcionar. Dezenas de dançarinos experientes de salsa e merengue começavam a chegar, as mulheres de minissaia rodada e saltos plataforma, os rostos dos homens impassíveis enquanto rodopiavam e conduziam suas parceiras com desenvoltura e destreza, ao som da música alta e animada. ― Não acredito que estou na Irlanda ― disse Ashling para Joy. ― Homens irlandeses! Dançando! E não é o Devagar-quase-parando-das-doze-cervejas-na-pança! ― Homem que é homem não dança ― disse Joy, louca para ir embora. ― Eles dançam. A salsa é como um desses esportes que envolvem contato físico. Ashling prestou atenção num dos casais. Dançavam numa proximidade física absoluta, como se seus corpos tivessem sido colados a velcro. Da cintura para baixo o que se via era um caos de pernas, mas da cintura para cima mal se moviam. Barriga com barriga, peito com peito, a mão esquerda do homem mantendo a mão direita da parceira acima de suas cabeças, a pele macia dos antebraços colada de ponta a ponta. Os olhos do homem não se desviavam um segundo dos da mulher, enquanto os pés executavam à perfeição os passos complicados. E as cabeças permaneciam imóveis. Ashling nunca tinha visto nada tão erótico na vida. Sentiu um doloroso botão de desejo abrir-se em seu íntimo. Movida por alguma carência indefinida, observava os dançarinos, sentindo na boca o gosto agridoce daquele anseio. Mas pelo que ansiaria? O calor agradável do corpo musculoso de um homem? Talvez... Um homem tirou Ashling para dançar, arrancando-a de seu momento de introspecção. Era baixinho e começava a ficar careca. ― Mas eu só tive uma aula ― tentou ela, na esperança de se safar.

Mas ele garantiu que não tentaria nada de muito complicado ― e lá foram os dois! Era como dirigir um automóvel, concluiu Ashling. Num momento você está parado, no momento seguinte está avançando com facilidade, em função exclusivamente do que os pés fazem. Para a frente e para trás, davam passos e bamboleavam, ele a afastava de si com um rodopio, ela voltava com fluidez e sem perder um compasso recomeçavam a dança, para a frente e para trás, curvando-se e deslizando. Isso lhe proporcionou um breve vislumbre do que era sexo bem-feito. ― Foi muito bom ― disse ele a Ashling, ao fim. ― Podemos ir? ― perguntou Joy, curta e rasteira, quando Ashling voltou para sua cadeira. ― Que perda de tempo. Nem um homem à vista! Todo esse trabalho para só descolar uma dança com um tampinha careca. ― Ah, vamos lá, por favor, só cinco minutos ― implorou Joy. ― Não sei em que pé estão as coisas entre mim e Metade-homem-metade-texugo, e ele na certa vai estar lá. Por favor. ― Tá, cinco minutos, falando sério, Joy, não vou ficar mais do que isso. A festa ― como a maioria das festas de estudantes em Dublin ― aconteceria em Rathmines, numa casa georgiana de tijolos vermelhos, cujos quatro andares haviam sido transformados em treze apartamentinhos de formato esdrúxulo. Tinha o indefectível pé-direito alto, detalhes arquitetônicos originais, pintura descascando e um cheiro imperioso de mofo. A primeira pessoa que Ashling viu quando entrou foi o sujeito entusiasmado que lhe dera o bilhete dizendo "Bellez-moi". ― Merda ― disse, com um suspiro. ― Que foi? ― sussurrou Joy, morta de medo de que Ashling tivesse visto Metade-homem-metade-texugo atracado com outra mulher. ― Nada. ― Olha ele ali! ― viu Joy. Lá estava sua presa encostada numa parede ― o que era um tanto temerário num cafofo daqueles. No ato Joy saiu em seu encalço. Subitamente, sozinha, Ashling abriu um largo sorriso amarelo de desculpas para o Bellez-moi. Para sua grande inquietação, isso fez com que ele disparasse como uma flecha em sua direção.

― Você não me ligou ― queixou-se ele. ― Hummm. ― Ela tentou dar outro sorriso, enquanto se afastava lentamente. ― Por que não? Ela abriu a boca para soltar uma longa lista de mentiras: perdi o papelzinho, sou surda-muda, passou um tufão por Stephen's Street e as linhas telefônicas caíram... De súbito, teve uma inspiração: ― Não sei falar francês! ― soltou, triunfante. Podia haver desculpa mais impecável do que essa? Ele deu o sorriso triste de alguém que sabe que não está agradando. ― Tenho certeza de que você é uma pessoa muito legal ― ela se apressou em dizer, para não magoá-lo. ― Mas eu não te conhecia e... ― Nem vai conhecer, se não me ligar ― argumentou ele, simpático. ― Sim, mas... ― De repente, lhe ocorreu uma coisa. ― Não é mais tradicional o homem pedir o telefone à mulher, e ele ligar para ela? ― Eu estava tentando ser liberado, mas você não deixa de ter razão. Quer me dar seu telefone? Ele tem sardas, pensou ela, perguntando-se o que poderia fazer para se livrar dele. Não queria dar seu número de telefone para um sujeito cheio de entusiasmo e de sardas. Mas ele já tirara a caneta do bolso, com um olhar interessado e carinhoso. Ela engoliu a raiva por ser posta naquela saia justa. Engoliu bem engolida, como quem bebe um copo d'água e solta um belo arroto. ― Meia, sete, sete, quatro, três, dois... ― Hesitou em relação ao último dígito. Deveria dizer "dois", quando na verdade era três? O momento durou uma eternidade. ― Três ― desfechou, por fim, com um suspiro. ― E o seu nome? ― O sorriso dele brilhava na penumbra da sala. ― Ashling. Como era mesmo o nome dele? Um nome idiota. Cupido, ou coisa que o valha.*

 

* Valentine´s Day: O Dia dos Namorados.

― ...Valentine ― disse ele. ― Marcus Valentine. Eu te ligo. Esse seria um daqueles casos, pensou Ashling, irritada, em que "Eu te ligo" quer dizer exatamente o que diz. Por que os horrorosos sempre ligavam, e os bonitos nunca? Em meio aos grupos de gente, avistou Joy conversando animadamente com Metade-homem-metade-texugo. Ótimo, agora poderia ir para casa.

― Tchau ― despediu-se de Marcus. Já estava muito velha para esse tipo de xaropada estudantil. Na saída, esbarrou com Ted conversando com uma ruiva que parecia um menininho. Ashling não reconheceu o sorriso em seus lábios ― não mais um ricto babão, do tipo por-favor-me-ame, e sim algo muito mais contido. Até sua linguagem corporal se modificara. Em vez de se inclinar para a frente, jogava o corpo um pouco para trás, obrigando a garota a se inclinar em sua direção. ― Oi. ― Ashling o cumprimentou com um soco no braço. ― Ashling! ― Eufórico, ele tentou derrubá-la com uma rasteira. Saudações trocadas, ele se voltou para a ruivinha: ― Suzie, essa é minha amiga Ashling. Suzie assentiu, desconfiada. ― Quer beber alguma coisa? ― perguntou Ted a Ashling. ― Não, não vou ficar. Estou pregada. Um lampejo de indecisão percorreu o rosto magro de Ted, antes de ele surpreender a todos dizendo: ― Espera aí, vou com você. Já na rua, no ar fresco da noite, Ashling reclamou: ― Que foi que te deu? Ela estava a fim de você. ― Não se deve ir com muita sede ao pote. Ashling sentiu uma pontada de tristeza. Ela e Ted costumavam se revezar no papel de vítima de guerra. Sua recém-conquistada autoconfiança mudara as coisas entre eles. ― De mais a mais, ela dorme com todos os humoristas ― argumentou ele. ― Vou esbarrar com ela de novo. Era impossível conseguir um táxi num sábado à noite em Dublin. As pessoas que viviam nos bairros mais afastados tentavam driblar as filas de quatro horas saindo do centro, na esperança de fisgar um táxi que estivesse voltando para lá. Resultado: Ted e Ashling voltaram para sua rua no centro em meio a um fluxo ininterrupto de zumbis bêbados cambaleando às dúzias em sua direção, no estilo de A Noite dos Morto-Vivos. ― E aí, como vai indo no trabalho? ― perguntou Ted, desviando-se de outro pândego que costurava seu caminho em ziguezague. Ashling hesitou.

― Ótimo, sob vários aspectos. É glamouroso. às vezes, pelo menos. Ou, por outra, quando não estou vesga de tanto tirar cópias de releases. ― Já descobriu por que a tal Mercedes tem nome de carro? ― A mãe dela é espanhola. Na verdade, ela até que é legal, depois que a gente conhece ela melhor. É só muito introvertida e grã-fina até dizer chega. Casada com um cara rico, se dá com um monte de gente que adora corridas de cavalos. Tenho a impressão de que aquele emprego é só um hobby. Mas ela é legal. ― E como vão indo as coisas com o chefe que não gosta de você? ― Ele continua não gostando de mim. Ontem me chamou de Senhorita Quebra-Galho só porque ofereci dois Anadin para a dor de cabeça dele. ― Que babaca. Vai ver que vocês foram inimigos em outra encarnação e é por isso que não se dão bem nesta. ― Você acha mesmo? ― exclamou Ashling. Então deu uma olhada no rosto sorridente de Ted. ― Ah, não, já vi tudo. Ó homem de pouca fé! Da próxima vez que quiser prever o futuro, não me procure. ― Desculpe, Ashling. ― Ele passou o braço pelo pescoço dela, confiante. ― Bom, isso vai te animar: vou fazer um show no River Club no próximo sábado à noite. Você vai? ― Não acabei de dizer que não prevejo mais o seu futuro? Você vai ter que esperar para ver. Era segunda-feira de manhã e Craig seguia a mãe pelo quarto afora, perguntando em tom choroso: "Por que você tá arrumando a casa?" Clodagh levantou do chão um bolo de meias-calças e o atirou no cesto de roupa suja, lançando-se em seguida sobre a montanha de roupas na poltrona do quarto, um caos de braços a atirar suéteres em gavetas, vestidos em pinos de cabide e ― após um breve momento de hesitação, quando achou que já bastava ― o resto embaixo da cama. ― Vovó Kelly vem aí? ― infernizava-a Craig. Tinha a mais absoluta certeza de que a resposta seria afirmativa ― a esse tipo de frenesi sempre se seguia, pouco tempo depois, uma visita da mãe de Dylan. ― Não.

Craig correu atrás de Clodagh, ao que ela se precipitava no banheiro da suíte e pousava com estrépito uma escova ao lado do vaso. ― Então por quê? ― perguntou ele. ― Porque ― disse ela entre os dentes, irritada com a burrice da pergunta ― a arrumadeira vem aí. Molly, anda logo! ― berrou na direção do quarto de paredes decoradas com friso de elefantinhos. ― Flor deve estar estourando por aí! A simples idéia de ficar em casa enquanto Flor trabalhava era impensável. Não apenas porque o único assunto de Flor era o próprio útero, como porque sua presença fazia com que Clodagh se sentisse burguesa e exploradora em último grau. Afinal, era jovem e saudável, e permitir que uma mulher de cinqüenta e oito anos arrumasse sua casa era simplesmente indefensável. Experimentara ficar em casa durante algumas visitas de Flor, mas acabada se sentindo uma verdadeira intrusa dentro de sua própria casa. A impressão que tinha era a de que, em qualquer aposento para onde fosse, Flor dava as caras cinco minutos depois, carregada de aspiradores de pó e varizes. E Clodagh nunca sabia muito bem o que dizer. ― Ah... ― Seguia-se um sorriso constrangido. ― Vou, bem, sair, hum, do seu caminho. ― Não precisa ― insistia Flor. ― Pode ficar onde está. Só uma única vez Clodagh acreditou nas palavras de Flor e ficou onde estava, folheando revistas de decoração, enquanto Flor bufava e resfolegava com o aspirador aos seus pés. Flor cobrava cinco libras por hora. O sentimento de culpa compelia Clodagh a lhe pagar seis. Seu constrangimento era de tal ordem que não suportava sequer pôr os olhos em Flor, sempre se encarregando de sair muito antes de ela chegar. ― Molly! ― urrou, desabalando pela escada abaixo. ― Anda!

Na cozinha, sempre com um olho no relógio, pegou a pilha de amostras de papel de parede e rabiscou um bilhete no verso de um deles. Com poucos traços, desenhou um aspirador de pó — um retângulo de pé com um fio enrolado como uma cobrinha saindo da lateral. Em seguida desenhou alguns quadrados com chuva caindo em cima. Por fim, desenhou duas setas — uma apontando para a pilha de camisas sobre a mesa, outra para o espanador de pó e o lustra-móveis ao lado. Agora Flor entenderia que Clodagh queria que ela passasse o aspirador na casa, lavasse o chão da cozinha, passasse as roupas, espanasse e polisse os móveis. Será que faltava alguma coisa? Clodagh repassou rapidamente os itens na memória. Ah, sim, o gato do vizinho. Clodagh não queria que Flor o deixasse entrar, como fizera na semana anterior. Brady Pequetito ficara tão à vontade que, quando ela chegou em casa, só faltou encontrá-lo assistindo à tevê com o controle remoto na pata. E, no momento em que Molly e Craig o viram, tomaram-se de amores por ele e abriram um berreiro quando logo em seguida o gato foi acompanhado até a porta por sua anfitriã. Assim, desenhou às pressas um círculo representando a cabeça de Pequetito em cima de outro maior representando o corpo, e terminou o retrato fazendo suas orelhas e bigodes. — Pega um lápis de cor vermelho para mim — ordenou a Molly. Molly voltou, obediente, trazendo um lápis amarelo sem ponta e uma Banana-de-pijama. — Ah, deixa que eu pego. Quando a gente quer que alguma coisa saia direito, tem que fazer a gente mesma. Falando sozinha, irritada, vasculhou furiosamente o estojo de lápis de cor até encontrar o que buscava. Em seguida — não sem enorme satisfação —, riscou o gato com um grande X vermelho, vincando o papel com força. Flor haveria de entender, não é mesmo?

Tendo feito o último desenho, Clodagh soltou um profundo suspiro. Adoraria ter uma arrumadeira que soubesse ler. Demorara semanas para descobrir que Flor era analfabeta. No começo, deixava todo tipo de bilhetes complicados para ela, pedindo-lhe para fazer coisas como tirar as roupas da máquina de lavar quando terminasse o programa ou degelar o freezer. Flor nunca fazia o que lhe era pedido e, embora Clodagh passasse a noite em claro fumegando de raiva, morria de vergonha de chamar sua atenção. Apesar dos pesares, não queria perdê-la. Era um osso arranjar uma arrumadeira. Até mesmo uma péssima arrumadeira. Fora o fato de que Clodagh não levava muita fé na sua capacidade de impor respeito numa situação dessas. Tinha fantasias em que tentava passar um sabão em Flor — “Olha aqui, minha amiga, assim não dá!” —, mas, em todas elas, sua voz falhava por falta de convicção. Por fim, obrigou Dylan a se atrasar para o trabalho uma manhã, para que ele pudesse espinafrar Flor. E, é claro, ela abriu o jogo com ele, que foi a compreensão em pessoa. Dylan tinha aquilo que chamam de Facilidade de Trato. Fora por sua própria sugestão que haviam chegado ao acordo vigente, que estipulava que Clodagh desenharia as instruções para Flor.

Entre a culpa e os desenhos, quase parecia mais fácil desempenhar ela mesma os afazeres domésticos. Quase, mas não completamente. Apesar de tudo, Clodagh curtia o único dia da semana em que a pressão saia de suas costas. Tomar conta de uma casa era como pintar uma ponte, só que pior. Nunca conseguia pôr as coisas em dia e, no instante em que terminava de fazer uma, eis que já precisava ser feita de novo. Mal acabava de lavar o chão da cozinha, por exemplo — não, não! — até enquanto lavava o chão da cozinha, lá estavam eles a patinar de um lado para o outro com seus sapatos, deixando rastros de lama no chão recém-limpo. E sua cesta de roupa suja era como o vaso sem fundo da mitologia: mesmo depois de lavar três levas de roupas e pôr na máquina cada peça existente na casa (que fosse do seu conhecimento), seu exultante senso de dever cumprido desaparecia no instante em que entrava no quarto — porque a cesta de roupa suja, vazia até poucos minutos atrás, estaria, mais uma vez, misteriosamente cheia até a borda. Pelo menos, não precisava se preocupar com o jardim. Mas não porque fosse bem-tratado. Pelo contrário, era a figura da injúria, lamacento, a grama batida e rala devido ao constante pisoteio das crianças, exibindo uma grande falha sob o balanço. Mas ela estava desobrigada de tomar qualquer providência até que Molly e Craig fossem adultos. Antes assim. Andara ouvindo histórias de terror apavorantes sobre jardineiros infernais. Depois de várias falsas largadas — Molly resolveu pôr seu gorro, Craig teve que voltar para buscar o boneco Buzz Lightyear —, Clodagh enfiou os dois às pressas no Nissan Micra. Assim que pôs a chave na ignição, Molly gritou: — Tô com vontade de fazer pipi! — Mas você acabou de fazer! — A irritação de Clodagh foi ainda maior pelo medo de acabar dando de cara com Flor. — Mas tenho que fazer de novo! Molly aprendera a usar o vaso há pouco tempo, e a novidade de seu recém-descoberto talento ainda não perdera o encanto.

— Vamos lá, então. — Clodagh tirou Molly bruscamente da cadeirinha e a tocou apressada para casa, desligando o alarme que acabara de programar. Conforme o previsto, apesar das muitas contorções faciais e promessas de “Tá saindo”, Molly não conseguiu fazer uma gota de pipi. Voltaram para o carro e finalmente partiram. Depois de deixar Craig na escola, Clodagh não soube para onde ir. Em geral, nas segundas-feiras deixava Molly no grupo de atividades e ia para a academia, onde malhava durante duas horas... Mas não hoje. Molly fora suspensa durante uma semana por morder outra criança, e a academia não tinha creche. Clodagh resolveu ir até a cidade para dar uma olhada nas lojas, até que fosse seguro voltar para casa. O dia estava ensolarado, e mãe e filha caminhavam lentamente por Grafton Street, parando, por exigência de Molly, para fazer festinhas no cachorro de um menino de rua, admirar um quiosque de flores e dançar ao som dos acordes de um violinista. Os transeuntes sorriam com indulgência para a linda Molly, a um tempo graciosa e absurda com seu gorro de caçador peludo e cor-de-rosa, tentando imitar os dançarinos do show Riverdance. Enquanto avançavam pela rua, Clodagh viveu um momento do mais extremo arrebatamento, seu coração transbordando de amor. Molly era tão engraçada com aquele passo arrogante de primeiro-sargento, marchando de peito estufado, querendo fazer amizade com cada criança que encontrava. Nem sempre era fácil ser mãe, pensou Clodagh, enternecida. Mas, em momentos como esse, não trocaria sua vida por nada no mundo. O jornaleiro admirou sem o menor pudor a mulher mignon e bem-feita de corpo arrastando a menina pequena atrás de si. — Herald? — ofereceu, esperançoso. Clodagh olhou para o jornal, desanimada: — De que adiantaria? Não tenho tempo de ler um jornal desde 1996. — Então não vale mesmo a pena comprar — concordou o jornaleiro, apreciando a vista traseira de Clodagh, ao que ela se afastava.

Ela sabia que ele a estava observando, e ficou surpresa ao constatar que isso lhe dava grande prazer. O olhar atrevido e lascivo do jornaleiro trouxe à tona lembranças da época em que os homens a olhavam assim o tempo todo. Parecia ter sido há muito tempo — quase como se tivesse acontecido com outra pessoa. Mas o que estava fazendo?! Ficando excitada porque um jornaleiro a despira com os olhos? Você é uma mulher casada, censurou-se. Casada não, corrigiu-se, irônica: Enterrada viva. Demoraram uma agradável hora e meia para chegar ao centro de Stephen’s Green. Pelas estatísticas, já estava na hora de Molly e Clodagh terem um arranca-rabo. Dito e feito: quando Clodagh se recusou a comprar para Molly um segundo sorvete, Molly deu o piti do século. Comportava-se como se estivesse tendo um ataque epiléptico, debatendo-se no chão, batendo com a cabeça nas lajes, enchendo Clodagh de gritos e más-criações. Clodagh tentou forçá-la a se levantar, mas ela se enroscou toda, como um polvo. “Eu te odeio!”, gritou, e, embora Clodagh estivesse morta de vergonha, forçou-se a falar com Molly num tom de voz firme, garantindo que um segundo sorvete lhe daria dor de estômago e ameaçando mandá-la para a cama mais cedo todos os dias da semana seguinte, se não se levantasse e se comportasse imediatamente. Dezenas de mães com a cara fechada passavam com a filharada a reboque, distribuindo cascudos e taponas num rodízio automático. “Jason”, Cachação!, “deixa a Tamara em paz!” Tabefe! “Zoe”, Chega-pra-lá!, “se eu te pegar perturbando Brooklyn de novo, te mato!” Cocorote! Com olhares de desprezo, debochavam dos princípios liberais de Clodagh. Dá uma boa coça nessa pirralha, sorriam, desdenhosas, com sua expressão de catedráticas da Escola da Vida. Ir para a cama mais cedo, uma ova! Ensina a ela o que é juízo na base do catiripapo, é a única língua que eles entendem.

Clodagh e Dylan haviam decidido jamais bater nos filhos. Mas, quando Molly começou a enchê-la de pontapés, gritando ao mesmo tempo, Clodagh se viu levantando-a de um tranco do chão e desferindo um forte tapa na sua perna. Foi como se a cidade de Dublin inteira abafasse um grito. De repente, todas as espancadoras de crianças, com seus rostos de pedra, haviam desaparecido, e Clodagh se viu bombardeada por dezenas de olhares de acusação. Era como se todas trabalhassem no Disque-Criança. Uma onda de vergonha tingiu suas faces de escarlate. O que estava fazendo, agredindo uma menininha indefesa? O que estava havendo com ela? — Vem. — Apressou-se a rebocar dali a uivante Molly, horrorizada com a marca que sua mão deixara na pele fina da perna da filha. Para minimizar o sentimento de culpa, comprou imediatamente o sorvete da discórdia, e esperou que a paz durasse o exato espaço de tempo que Molly levasse para tomá-lo. Só que o sorvete começou a derreter, e Clodagh foi convidada a se retirar de uma loja de tecidos após Molly passar a casquinha com todo o capricho ao longo de uma peça de musseline para cortinas, estampando-a com uma grossa listra branca. A manhã havia azedado. Enquanto limpava o queixo de Molly, onde o sorvete se espalhara numa barba de Papai Noel, Clodagh não pôde evitar a sensação de que a vida parecia ter tido mais graça no passado, uma espécie de brilho dourado. Sempre avançara com otimismo em direção ao futuro, despreocupada e confiante de que lhe traria boas coisas. E nunca se decepcionara.

Jamais alimentara ambições desmedidas na vida, e sempre conseguira o que quisera. Em teoria, tudo era perfeito — tinha dois filhos saudáveis, um bom marido e nenhum problema financeiro. Ultimamente, porém, tudo parecia ter se revestido de um tédio implacável. Para dizer a verdade, isso já vinha acontecendo há algum tempo. Tentou se lembrar de quando começara, mas, como não conseguisse, começou a suar frio. A idéia de que esse estado de espírito pudesse se cristalizar, tornando-se permanente, era aterradora. Por natureza, era uma pessoa alegre e descomplicada — bastava se comparar com a coitada da Ashling, que dava um nó no joelho por qualquer motivo. Mas algo mudara. Não fazia muito tempo, era uma mulher movida pela expectativa e o otimismo, O que mudara? O que dera errado? — Um refrigerante diet ou uma bebida energética? — ruminava Ashling. — Não sei... — Bom, é melhor decidir logo — insistiu Trix, a caneta pairando sobre o bloquinho de espiral. — Daqui a pouco a loja fecha, se você não andar logo. Embora a equipe da Garota houvesse se reunido há menos de duas semanas, já tinha uma rotina. Duas vezes por dia Trix buscava encomendas da rua, uma de manhã e outra à tarde. As encomendas que anotava agora, porém, não eram nem as do almoço nem as pós-ressaca. — Opa — disse Trix. — Chegou Heathcliff.* Jack Devine entrou na redação a passos largos, os cabelos desgrenhados, a expressão perturbada. — Não consigo me decidir — lamentava-se Ashling, numa dúvida mortal entre as duas bebidas. — Claro que não consegue — disse Jack, antipático, sem se deter. — Afinal, você é uma mulher! Assim que bateu a porta do escritório atrás de si, todos sacudiram suas cabeças em sinal de solidariedade. — Pelo visto, o almoço de reconciliação com Mai não deu certo — observou Kelvin, balançando negativamente o dedo adornado por um anel.

— Que homem mais atormentado — disse Shauna Griffin, com a voz embargada, levantando os olhos das provas da edição de verão da Tricô Gaélico. — Tão bonito e tão inacessível, tão infeliz. Shauna Griffin era uma mulher gorda e clara que apresentava uma extraordinária semelhança física com o Honey Monster.** E vivia excedendo a dosagem recomendável de romances água-com-açúcar.

 

* Protagonista do romance O Morro dos Ventos Uivantes, da romancista inglesa Emily Brontë (1818-1848), modelo de homem amargurado e feroz.

** Boneco peludo com cabeça em formato de abóbora, enormes olhos claros e boca larga, mascote do cereal Sugar Puffs, da Kellogg´s.

 

— Infeliz? — tornou Ashling, com desprezo. — JD? Mal-humorado, isso sim. — É a primeira coisa maldosa que escuto você dizer sobre alguém! — exclamou Trix com sua voz rouca. — Parabéns. Sabia que você era capaz! Está vendo o que a pessoa consegue quando tem força de vontade? — Um refrigerante diet — Ashling finalmente respondeu, em tom de riso. — E um saquinho de pastilhas de chocolate. — Chocolate branco ou escuro? — Branco. — Dinheiro. Ashling lhe entregou uma moeda de uma libra, Trix anotou as encomendas na lista e passou para a próxima pessoa. — Lisa? — perguntou, em tom de adoração. — Alguma coisa? — Hummm? — Lisa se sobressaltou. Estava muito longe. Jack ficara sabendo que ela ainda não encontrara um lugar para morar e iria levá-la depois do expediente para ver uma casa que um amigo seu estava querendo alugar. Ela ficara preocupada que ele pudesse reatar com Mai durante o almoço, mas, pelo visto, o caminho estava livre... — Cigarros? — perguntou Trix. — Chiclete sem açúcar? — É. Cigarros.

A porta tornou a se abrir e Jack saiu, parecendo um pouco angustiado. Trix saltitou agilmente de volta para sua mesa e, com um gesto experiente, abriu a gaveta, atirou seu maço de cigarros dentro dela e a bateu. Jack vagou por entre as mesas, e todos evitaram seus olhos. Os que podiam, afastavam-se despistadamente e escondiam os cigarros atrás de alguma coisa. Lisa tinha uma carteira de Silk Cut aberta ao lado do mouse-pad, mas, embora Jack hesitasse, chegando a fazer menção de parar, tornou a apertar o passo e passou direto. Todos estremeceram. Então chegou à mesa de Ashling e se deteve. A redação em peso soltou um suspiro de alívio. Estavam seguros. Por algum tempo. A contragosto, o rosto de Ashling foi atraído para Jack. Em silêncio, ele inclinou a cabeça em direção ao maço de Marlboro. Ela assentiu, ressabiada, com ódio de si mesma por ceder. Ele era tão antipático com ela, mas ela parecia ser a única pessoa de quem ele filava cigarros. Era óbvio que tinha a palavra “Trouxa” carimbada na testa. Com os olhos a observá-la tranqüilamente, ele prendeu o cigarro entre os lábios e, como sempre, puxou-o lentamente do maço. Apressada, ela passou para ele a caixa de fósforos, tendo o cuidado de evitar que suas mãos se roçassem. Sem tirar os olhos dela, ele riscou um fósforo, aproximou a chama da ponta do cigarro e o apagou. Inclinando o cigarro para cima, tirou uma tragada funda. — Obrigado — murmurou. — Quando é que o senhor vai voltar a comprar cigarros? — perguntou Trix, agora que os seus estavam temporariamente seguros. — Está na cara que não consegue parar de fumar. E não é justo, o senhor deve ganhar mil vezes mais do que a Ashting, mas fila um monte de cigarros dela. — Filo? — Ele pareceu sobressaltado. — Filo? — Voltou o olhar para Ashling, e ela pareceu estremecer em seu assento. — Desculpe, não tinha me dado conta. — Tudo bem — murmurou ela. Jack voltou a se enfurnar em seu escritório e Kelvin observou, irônico:

— Aposto que de está lá dentro batendo com a cabeça na parede por explorar os trabalhadores, filando os cigarros deles. Jack Devine, o Herói da Classe Trabalhadora. — Ele está mais para Candidato a Herói da Classe Trabalhadora — debochou Trix. — Como assim? — Ashling não conseguiu esconder sua curiosidade. — Ele adoraria ser um humilde artesão e ganhar o pão de cada dia com o suor do seu rosto. — O desprezo de Trix pela modéstia dessa aspiração não podia ser maior. — O problema — explicou Kelvin — é que nasceu na classe média, afligido por todos os tipos de vantagens. Como um alto nível de escolaridade, por exemplo. Depois, fez um mestrado em Comunicação. Em seguida — abaixou a voz, em tom sinistro —, começou a demonstrar excelente capacidade administrativa. — Isso quase acabou com ele — Trix suspirou. — Aposto que é atormentado pelo típico sentimento de culpa da classe média. É por isso que vive se oferecendo para consertar as coisas. E tem todos aqueles hobbies de machão. — Que hobbies de machão? — Ora, ele anda de barco, isso é coisa de machão — disse Trix. — Mas não é lá muito classe média, concorda? — rebateu Kelvin. — Tomar cerveja, isso sim é coisa de machão. E transar com mulheres meio vietnamitas — acrescentou. — Isso também é coisa de machão.

Ashling foi se chegando até Lisa como quem não quer nada. — Posso te perguntar uma coisa? — Não, obrigada — entoou Lisa, sem se dignar erguer os olhos de sua mesa. — Não quero sair para tomar um drinque com você e Trix ou sua amiga Joy ou seja lá quem for hoje à noite. E nem em nenhuma outra noite. Todos riram, para gratificação de Lisa. — Não era isso que eu ia perguntar. — O constrangimento fez com que uma mancha escura se alastrasse pelo pescoço de Ashling. Só estava tentando ser simpática com uma estrangeira em Dublin, mas Lisa fizera parecer que Ashling estava a fim dela. — É uma pergunta de trabalho. Por que não fazemos uma seção do tipo “Fale com a Gente”, mas com um diferencial? — E qual é o diferencial, Einstein?

— Contratamos um parapsicólogo para dar as respostas, em vez de um psicólogo. Lisa refletiu. Não era má idéia. Muito atual, ainda mais considerando-se que todos andavam em busca de uma solução espiritual para suas vidas. Embora pessoalmente não acreditasse em nada disso — achava que sua felicidade estava nas suas mãos —, não havia nenhum motivo para não negociar com as massas. — Pode ser. O alívio atenuou o veneno da insinuação de Lisa. Durante o curto espaço de tempo em que Ashling trabalhava na Garota, vivia angustiada com sua falta de idéias. Até que Ted lhe sugerira que pensasse no que ela própria gostaria de uma revista, e, de repente, todos os caminhos se abriram. Tudo que tivesse a ver com tarô, reiki, feng shui, auto-sugestão, anjos, magia branca e feitiços despertava seu interesse. A porta de Jack tornou a se abrir, e todos se atiraram em cima de seus maços de cigarro, protetores. — Lisa? — chamou ele. — Posso dar uma palavra com você? — Claro. — Ela se levantou com elegância, tentando imaginar o que ele quereria falar com ela. Será que iria convidá-la para sair? Quando ele lhe ordenou que fechasse a porta, sua excitação foi às nuvens. Para despencar um segundo depois, quando ele disse, em tom de desculpas: — Não tenho como dizer isso de uma maneira agradável. — Pode falar — disse Lisa, imperturbável. — Não estamos conseguindo arranjar anunciantes — desfechou ele, sem rodeios. — Ninguém está comprando os espaços. Só temos... — Deu uma olhada no memorando em sua mesa. — ...doze por cento do previsto.

Lisa se remexeu de medo. Isso nunca havia acontecido. Embora sempre houvessem negociado pelos valores da tabela, as grifes e empresas de cosméticos sempre avançavam em cima dos anúncios de página inteira, quando ela era editora da Femme. E, como todo mundo que trabalha em revistas sabe, a renda gerada com a venda de anúncios é infinitamente superior àquela gerada com a venda da revista. Ou, pelo menos, deve ser. Se as empresas não puderem ser convencidas de que uma determinada publicação é o veículo certo para seus produtos, adeus! O pânico desabou sobre Lisa como uma chuva de espinhos. Como iria sobreviver ao fracasso de uma revista natimorta? — Ainda é cedo — arriscou. A contragosto, ele sacudiu a cabeça. Não era cedo, e ambos sabiam disso. Antes mesmo de a equipe da Garota chegar, Margie fizera um trabalho de pré-produção durante um mês — ou seja, os anunciantes interessados tinham tido tempo de sobra para comprar os espaços. Lisa ardia de humilhação. Queria que aquele homem a respeitasse e desejasse e, em vez disso, ele iria considerá-la um fracasso. — Mas eles não sabem...? — soltou, sem conseguir se conter. — Sabem o quê? Ela tentou reformular a frase, mas não conseguiu. — Que eu sou a diretora? — Seu nome tem muito peso — disse Jack, diplomático, fazendo com que ela percebesse o quanto ele também estava achando tudo isso desagradável, o que amenizou o golpe. — Mas é um novo mercado, um novo público, ainda não fizemos um nome... — Mas você não disse que Margie é um verdadeiro Rottweiler? Que poderia convencer até Deus a pôr um anúncio? — Na dúvida, jogue a culpa nos outros. Era um lema que até hoje dera certo em sua carreira.

— Margie é ótima quando se trata de conseguir anúncios de companhias irlandesas — explicou Jack. — Mas é o escritório de Londres que se encarrega das grifes e empresas de cosméticos internacionais. Em que pé estamos? Que tipo de seção fixa temos? Precisamos atirar uma ou duas iscas para o escritório de Londres, para eles mostrarem aos anunciantes em potencial. Lisa dava tratos à bola, seu rosto uma máscara branca. Seções fixas! Estava naquela merda de emprego há duas semanas, no inferno astral de uma editora, para o qual fora pega totalmente desprevenida, e num país estranho, ainda por cima! Estava dando o couro para tentar tomar pé na situação, e eles já queriam saber de seções fixas! — Só uma idéia por alto — disse Jack, com uma delicadeza dilacerante. — Me perdoe por fazer você passar por isso. — Por que não vamos todos para a sala da diretoria e fazemos uma reunião para ter uma idéia do andamento das coisas? — sugeriu ela, com um tremor insensível em seus joelhos. E pensar que todo mundo achava que editar uma revista fosse puro glamour. Era o trabalho mais aterrorizante, o maior responsável por noites e noites de insônia que se pudesse imaginar, um mundo sem certezas nem tréguas: só tentar atingir uma determinada vendagem todo mês. E, assim que você se estressava e suava até o limite das suas forças, tinha que dar meia-volta e começar tudo do zero outra vez. Você não passava de uma vendedora metida a besta. Num rompante de dinamismo, saiu ventando do escritório de Jack, mas os músculos de suas pernas estavam frouxos e o suor já brilhava sobre seu lábio superior. — Para a sala da diretoria, pessoal, agora! Todos os que não trabalhavam na Garota soltaram risadinhas, encantados por não ser o deles que estava na reta. — Muito bem. — Lisa tentou ganhar tempo correndo um sorriso apavorante pela sala da diretoria. — Gostaria que contassem para mim e Jack o que andaram fazendo nas duas últimas semanas. Ashling? — Enviei releases para todas as grifes e...

— Releases? — repetiu Lisa, sarcástica. — Será que os seus talentos nunca vão ver a luz do dia? Risadinhas comme il faut de Trix, Gerry e Bernard. — Você acha que as leitoras vão pagar duas libras e cinqüenta para ler releases? Seções fixas, Ashling, estou falando de seções fixas! O que você tem de concreto? Desconcertada com a agressão de Lisa, Ashling fez um relato sobre o clube de salsa. Enquanto descrevia a aula, o professor e os outros alunos, Lisa relaxou um pouco. Era um bom começo. Encorajada pelos meneios afirmativos de Lisa, Ashling se entusiasmou e pôs-se a discorrer sobre o baile que acontecia no clube depois da aula. — Foi ótimo. Dança no duro, à moda antiga, com o máximo de contato físico. Na verdade, foi uma coisa... — Por algum motivo hesitou em usar a palavra na presença de Jack Devine. Ele a fazia sentir-se extremamente encabulada. — ...muito sexy. — E o fator romance? — perguntou Lisa, indo direto ao ponto. — Conheceu algum cara? Ashling se contorceu. — Eu, hum, dancei com um cara, sim — admitiu. Enquanto todo mundo soltava gritinhos e caía em cima de Ashling para saber os detalhes, Jack Devine a observava com os olhos semicerrados. — Só dancei com ele — protestou Ashling. — E ele nem perguntou meu nome. — Você fez fotos do clube — disse Lisa. Não era uma pergunta. Como Ashling assentisse, ela prosseguiu: — Vamos fazer uma matéria de quatro páginas com esse material. Duas mil palavras, o mais rápido possível. Faz uma coisa divertida. O pavor se abateu sobre Ashling. Teria dado qualquer coisa para ainda estar na Cantinho da Mulher. Não sabia redigir. Meter a cara nas tarefas tediosas, esse, sim, era seu forte, era imbatível nisso, e esse fora o motivo pelo qual a Garota a contratara. Será que Mercedes ou algum dos colaboradores não poderia escrever a matéria? — Algum problema? — Lisa repuxou o canto da boca, sarcástica.

— Não — sussurrou Ashling. Mas sentiu as entranhas se encolherem de medo ao se dar conta do quanto estava aquém da tarefa. Joy teria que ajudá-la. Ou talvez Ted — ele era obrigado a fazer um monte de relatórios em seu emprego no Ministério da Agricultura. O próximo item na pauta era a coluna de Trix sobre uma garota comum. A primeira seria sobre os perigos da traição. A chatice que era estar na cama com um namorado, o outro aparecer na sua casa e sua mãe deixá-lo entrar. Um relato divertido, ousado e totalmente verdadeiro. — Santo Deus, Patricia Quinn — Jack sacudiu a cabeça, divertido. — Eu sou ingênuo e não sabia! — Ninguém merece! — exclamou ela. — Ele e minha mãe na sala vendo a novela, e eu presa no quarto com o outro, inventando mil desculpas para não sair. Envelheci dez anos! — E aí ficou com quantos? Vinte e cinco? — Jack ria tanto que a pele em volta de seus olhos estava toda enrugada. Ashling olhou para ele com uma espécie de perplexidade azeda. Por que ele é sempre tão antipático comigo? Por que nunca acha graça do que digo? No momento em que já chegava à conclusão de que talvez simplesmente fosse uma pessoa sem graça, viu o rosto de Lisa. Um brilho tênue de determinação, uma profunda admiração. Ela se sente atraída por ele, compreendeu Ashling, e foi como se levasse um soco no estômago. Se havia alguém que pudesse roubá-lo da exótica Mai, esse alguém era Lisa. Como seria ter esse tipo de poder? Em seguida Lisa esboçou urna seção “divertida” que acabara de bolar naquele exato instante: uma resenha sobre as camas de hotel mais sexy da Irlanda, classificadas de acordo com a limpeza da roupa de cama, a firmeza do colchão, o espaço para o rala-e-rola e o “fator algemas” — espaldares em ferro trabalhado e colunas de dosséis eram ideais. — Caramba, não sei quanto estão te pagando, mas você vale! — Trix transbordava de admiração. — Mercedes? — desafiou-a Lisa.

— Vamos para Donegal na sexta fazer fotos exclusivas da coleção de inverno de Frieda Kiely — informou, vaidosa. — Vai dar uma matéria de doze páginas. Frieda Kiely era uma estilista irlandesa que vendia muito bem no exterior. Suas criações eram extravagantes e suntuosas: tweed irlandês bruto combinado com chiffon vaporoso; linho lustroso do Ulster fazendo par com xales de crochê de seda; mangas de tricô que vinham até o chão. O efeito era romântico e rústico. Um pouco rústico demais para o gosto de Lisa, para dizer a verdade. Se fosse para pagar um preço daqueles — não que pretendesse fazê-lo, é claro —, teria preferido a modelagem elegante do Sr. Gucci. — E que tal uma entrevista com ela? — sugeriu Lisa. Mercedes riu: — Ah, não, ela é doida. Não se arranca uma palavra coerente dela. — Exatamente — tornou Lisa, brusca. — Tornaria o texto mais interessante. — Você não sabe como ela é... — Vamos mostrar a coleção de inverno dela, o mínimo que ela pode fazer é nos dizer o que come no café da manhã. — Mas... — Me impressione — disse Lisa, com um brilho cruel nos olhos, parodiando Calvin Carter. Coisa que teria divertido Mercedes, se soubesse o que Lisa estava fazendo. Mas não sabia, de modo que sua única opção foi lançar um olhar de ódio para Lisa. Jack voltou sua atenção para Gerry: — Como é que estamos indo com a capa? Lisa o observou, ansiosa. Gerry era tão calado que da não lhe prestava a menor atenção e, em conseqüência, não tinha a mais pálida idéia se era bom no que fazia. Mas na hora Gerry tirou da cartola vários protótipos de capas — três garotas diferentes, com uma seleção de textos e tipos superpostos. O clima que conseguira criar era incrivelmente sexy e divertido. — Excelente — elogiou-o Jack. Em seguida, voltou-se para Lisa: — E como vamos indo com a coluna das celebridades?

— Estou trabalhando nela — Lisa sorriu, tranqüila. Bono e as Corrs estavam se recusando a retornar suas ligações. — Mas, e isso é mais interessante, embora nossa revista seja feminina e noventa e cinco por cento do nosso público vá ser de mulheres, acho que é realmente o caso de termos uma coluna escrita por um homem na Garota. Espera aí, pensou Ashling, a cabeça doendo da bordoada, essa idéia foi minha. Sua boca se mexia, fazendo “ohs” e “ahs” silenciosos, enquanto Lisa prosseguia, despreocupada: — Há um humorista que, segundo minhas fontes, está prestes a se tornar uma estrela. O problema é que não quer nada com revistas femininas, mas vou convencê-lo do contrário. Sua filha-da-puta, pensou Ashling. Sua grandessíssima filha-da-puta. Será que ninguém mais se lembrava? Será que ninguém tinha notado? — Eu... — Ashling conseguiu dizer. — O quê? — desafiou-a Lisa, seu rosto dourado aterrorizante, seus olhos cinza duros e frios como bolas de gude. Incapaz de se defender, como sempre, Ashling apenas murmurou: — Nada. — Quem é ele? — Marcus Valentine. — Não brinca! — Jack ficou extremamente animado. — Q-quem? — perguntou Ashling. Era um choque em cima do outro. — Marcus Valentine — repetiu Lisa, impaciente. — Já ouviu falar nele? Ashling assentiu, calada. Aquele sujeito sardento não tinha o menor jeito de alguém “prestes a se tornar uma estrela”. Lisa devia estar enganada. Mas parecia tão segura do que dizia... — Ele vai se apresentar sábado à noite num lugar chamado River Club — disse Lisa. — Você e eu vamos, Ashling. — No River Club? — Ashling ficara quase tão rouca quanto Trix. — Sábado à noite? — Ééééé! — Lisa tiniu de impaciência. — Meu amigo Ted vai se apresentar também — disse Ashling, sem sentir. Lisa estreitou os olhos, avaliando a informação. — Ah, é? Que bom. Ele pode nos apresentar a Valentine nos bastidores.

— Ainda bem que não tenho nenhum compromisso para sábado à noite — disse Ashling, as palavras saindo de um jorro de sua boca normalmente tão mansa. — É isso aí — concordou Lisa, fria. — Ainda bem. Enquanto todos saíam da sala em fila indiana, Lisa voltou-se para Jack. — Satisfeito? — cobrou. — Você é incrível — disse ele, com sinceridade. — Verdadeiramente incrível. Obrigado. Vou falar como pessoal em Londres. — Quando vamos ter uma resposta? — Provavelmente não antes de semana que vem. Não se preocupe, você teve idéias fantásticas, desconfio que vai dar tudo certo. Às seis está bom para ir ver a casa? Ferida e furiosa com a injustiça, Ashling voltou para sua mesa. Nunca mais seria boa com aquela filha-da-puta. E pensar que sentira pena dela, sem amigos, num país estranho. Tentara perdoar as constantes e cruéis cortadas de Lisa sob a premissa de que devia estar se sentindo infeliz e assustada. Ashling relembrou, envergonhada, que chegara a esboçar uma risada quando Lisa insinuara que Dervla era gorda, Mercedes peluda, Shauna Griffin uma aberração teratológica e ela, Ashling, pateticamente grudenta. Mas agora, Lisa Edwards podia morrer de solidão, que ela, Ashling Kennedy, estava pouco se importando. Havia um Post-it amarelo colado sobre o rosto de George Clooney que decorava o display de seu computador, dizendo que “Dillon” havia ligado. Ela descolou o bilhete, fazendo a tela estalar de estática. Ainda não estavam em outubro, estavam? Dylan ligava para Ashling duas vezes por ano. Em outubro e dezembro. Para lhe perguntar o que devia comprar para Clodagh no aniversário e no Natal. Ela ligou de volta para ele. — Oi, Ashling. Tem tempo para um drinque rápido amanhã, depois do expediente? — Não. Tenho um artigo horrível para escrever... Talvez mais para a frente na semana, pode ser? Mas por quê, o que foi que houve? — Nada. Acho eu. Vou viajar para uma conferência. Te ligo na volta.

— Está pronta, Lisa? — perguntou Jack, aparecendo diante de sua mesa às seis e dez. Observados em silêncio pelos fofoqueiros de plantão, saíram da redação e tomaram o elevador para o estacionamento. No instante em que entraram no carro, Jack arrancou a gravata do pescoço e a atirou no assento traseiro, para logo em seguida abrir os dois primeiros botões da camisa. — Que alívio — suspirou. — Fica à vontade — disse a Lisa. — Pode tirar o que quiser... — Interrompeu-se bruscamente ao fim da frase. Seguiu-se um hiato de constrangimento. A intensidade de seu desconforto não passou despercebida para Lisa. — Desculpe — murmurou, sério. — Falei bobagem. — Agitado, passou as mãos pelos cabelos desgrenhados, os fios da frente eriçando-se em pequenos picos sedosos antes de voltarem a cair sobre o rosto. — Não tem problema. — Lisa sorriu, educada, mas a penugem em sua nuca se arrepiara toda, entre o susto e a excitação, ao que ela se visualizava tirando as roupas para Jack no carro dele, sentindo aqueles olhos escuros sobre seu corpo, o frio dos assentos de couro contra o calor de sua pele. Mordeu o lábio, determinada, jurando a si mesma que isso ainda haveria de acontecer. Depois do devido período de “convalescença”, Jack tornou a falar. — Deixa eu te falar sobre a casa. — Manobrou o carro, desembocando no trânsito de Dublin — O negócio é o seguinte. Brendan vai trabalhar nos Estados Unidos. Assinou um contrato de um ano e meio, que pode ser prorrogado, mas, de um jeito ou de outro, você ficaria com a casa no mínimo por um ano e meio. Depois disso, nós teríamos que ver em que pé ficariam as coisas. Lisa se remexeu, evasiva. Não estava se importando, porque não pretendia estar ali dentro de um ano e meio. — É perto da South Circular Road, que fica bem no centro — afirmou Jack. — É uma zona de Dublin que ainda não foi dominada pelos yuppies. A animação de Lisa começou a diminuir. Estava louca para viver numa zona que tivesse sido dominada pelos yuppies.

— As pessoas têm um forte senso de comunidade. Muitas famílias vivem aqui. Lisa não queria saber de famílias. Queria se cercar de outros solteiros e esbarrar em homens atraentes no supermercado da região, comprando batatinhas dietéticas e vinho branco. Apática, observou as mãos de Jack no volante do carro, e sua infelicidade se atenuou à visão da confiança com que elas resvalavam pelo couro durante as manobras. Ele saiu da rua principal, enveredando por uma rua menor, e depois por outra menor ainda. — É aqui. — Apontou pelo pára-brisa. Na calçada, erguia-se um pequeno chalé de tijolos vermelhos, antigo e pitoresco. Lisa o odiou à primeira vista. Gostava de casas modernas, de design arrojado, com ambientes bem arejados e espaçosos. Aquela casa prometia cômodos escuros e minúsculos, encanamento decrépito e uma cozinha anti-higiênica, com os móveis e eletrodomésticos avulsos, espalhados sem sombra de planejamento ou integração, e, de quebra, uma hedionda pia da marca Belfast. A contragosto, saiu do carro. Jack se aproximou da casa, pôs a chave na fechadura, empurrou a porta e afastou-se para Lisa passar. Teve que abaixar a cabeça ao transpor o umbral. — Tábuas corridas — observou ela, olhando ao redor. — Brendan mandou instalar dois meses atrás — disse Jack, orgulhoso. Ela se absteve de lhe explicar que os entendidos haviam decretado a morte das tábuas corridas, e que os carpetes, sim, estavam acontecendo. — A sala. — Jack a conduziu em direção a um aposento pequeno, com tábuas corridas em freixo, um sofá vermelho, uma televisão e uma lareira de ferro batido. — A lareira é original — disse ele, indicando-a com a cabeça. — Hummmm. — Lisa abominava lareiras de ferro batido — eram tão rebuscadas. — A cozinha. — Jack a rebocou para o próximo aposento. — Geladeira, microondas, máquina de lavar louça.

Lisa olhou à sua volta. Pelo menos os armários eram planejados, e a pia tinha uma cuba comum, de alumínio — ela preferia correr o risco de ter Alzheimer a viver com uma pia da marca Belfast. Mas seu contentamento começou a se esvair quando ela viu uma mesa de cozinha em pinho, com quatro cadeiras rústicas e pesadas! Com o coração apertado, relembrou a mesa de fórmica metálica azul e as quatro cadeiras de arame trançado de sua cozinha em Ladbroke Grove. — Ele disse alguma coisa sobre o aquecedor estar com defeito. Vou dar uma olhada rápida. — Ocultando parcialmente o tronco num armário, enrolou as mangas, deixando à mostra os antebraços morenos, seus feixes de músculos movendo-se enquanto as mãos trabalhavam. — Quer pegar para mim a chave inglesa que está naquela gaveta? — Indicou-a com a cabeça. Lisa se perguntou se ele estaria dando uma de machão em sua homenagem, mas então lembrou-se de Trix dizendo que ele era jeitoso com máquinas, e ficou excitada. Sempre tivera um fraco por homens que eram bons com as mãos e voltavam para casa sujos de graxa ao fim de um dia duro na oficina, puxavam lentamente o zíper do macacão e diziam, em tom insinuante: “Andei pensando em você o dia todo, garota.” Também tinha um fraco por homens com salários de seis dígitos e poder para promovê-la, apesar de ela não merecer a promoção. Como seria bom unir o útil ao agradável! Jack remexeu as coisas estrepitosamente por mais algum tempo, antes de dizer: — Acho que o timer pifou. Você pode ter água quente, mas não pré-programar o banho. Vou consertar ele para você. Vamos ver o banheiro. Para surpresa de Lisa, o banheiro passou no teste. Seus banhos não precisariam fazer o gênero ataque relâmpago, com uma esponja na mão e um cronômetro na outra. — A banheira é boa — admitiu ela. — Aquela prateleirazinha ali ao lado é bem prática — concordou Jack.

— Do tamanho certo para dois copos de vinho e uma vela aromática. — Lançou-lhe um olhar carregado de segundas intenções. E perdeu seu tempo. Para sua frustração, Jack já seguira em frente, em seu passo decidido, rumo ao próximo aposento. — O quarto — anunciou. Era mais espaçoso e bem iluminado do que os outros aposentos, apesar de ainda afligido por um certo ar de casa de campo. Estampa de raminhos nas cortinas brancas, mais estampa de raminhos na colcha e pinho demais. A cabeceira era de pinho, o vasto guarda-roupa era de pinho, a cômoda era de pinho. Provavelmente até o colchão é de pinho, pensou Lisa, cheia de desprezo. — Dá para o jardim. — Jack apontou pela janela um quadrado de grama um tanto acanhado, margeado por arbustos e flores em botão. Lisa quase morreu de desânimo. Nunca tivera um jardim na vida, e não queria ter um agora. Gostava de flores tanto quanto qualquer mulher, mas só quando vinham num grande buquê envolto em papel celofane, com um enorme laço de cetim e um cartão de parabéns. Preferia morrer a adotar a jardinagem como hobby, porque os acessórios eram sinistros — calças com elástico na cintura, chapelões ridículos, cestinhas idiotas e luvas absurdas de Michael Jackson. Não era um Visual Legal. E, embora tivesse dito às leitoras da Femme na edição de julho passado que a jardinagem era o novo sexo, não acreditava numa palavra do que dissera. Sexo era sexo. Eternamente. E ela sentia falta. — Ele disse alguma coisa sobre um canteiro de ervas — disse Jack. — Vamos dar uma conferida? Desaferrolhou a porta dos fundos e novamente teve que abaixar a cabeça para sair. Ela seguiu seu andar empertigado, enquanto ele atravessava o jardinzinho, ironicamente divertida com sua própria admiração. Os passarinhos chilreavam na luminosidade suave do poente, o ar tinha um cheiro penetrante de grama e terra e, por um momento, ela não sentiu ódio de tudo.

— Aqui. — Ele acenou em direção a um canteiro e dobrou as pernas compridas, agachando-se. Para mostrar boa vontade, Lisa agachou-se ao seu lado, sem muito entusiasmo. — Cuidado com o seu terno. — Ele estendeu o braço num gesto protetor. — Não vai sujar ele de adubo. — E o seu? — Estou me lixando para o meu. — Voltou-se e lhe deu um inesperado sorriso maroto. De perto, ela percebeu que um de seus dentes da frente tinha uma ponta quebrada. O que só servia para aumentar seu ar rebelde. — Se ficar todo manchado de terra, vai ter que ir para a tinturaria e não vou poder usar ele amanhã... Não seria horrível? — acrescentou, irônico. Lisa riu e, de pura curtição, aproximou a cabeça da dele. Observou suas pupilas se estreitarem e alargarem durante uma série de expressões — confusão, seguida por interesse, depois extremo interesse, de volta para confusão e, por fim, indiferença — tudo isso num átimo de segundo. Em seguida, ele se voltou para ela e perguntou: — Isso é coentro ou salsa? Uma mecha do cabelo dele se encaracolara, formando um cachinho. Lisa sentiu vontade de enfiar seu dedo nela e enrolá-la. — O que você acha? — ele tornou a lhe perguntar. Sentindo-se como se estivessem conversando por um código, ela olhou para a folha na mão dele. — Não sei. Ele esfarelou a folha entre o polegar e o indicador, levando-a até seu rosto. Uma proximidade de pessoas íntimas. — Cheira — ordenou. Com os olhos fechados, ela aspirou, tentando sentir o cheiro de sua pele. — Coentro — disse, triunfante. Foi recompensada com outro sorriso dele. Os cantos de sua boca se curvaram ligeiramente. — E aqui tem manjericão, cebolinha e tomilho — ele apontou. — Você pode usar todos eles, quando for cozinhar. — É... — ela sorriu. — Posso salpicar nos pratos que mandar buscar nos restaurantes. Não fazia sentido representar para ele. Já ia longe o tempo em que caía de quatro quando se apaixonava, e tinha vontade de cozinhar para o homem amado. — Você não cozinha? Ela sacudiu a cabeça: — Não tenho tempo.

— É o que eu vivo ouvindo — disse ele. — Mai, hum, não cozinha? Grande erro. A expressão de Jack tornou a se fechar — Não — limitou-se a dizer — Pelo menos, não para mim — acrescentou. — Vem, vamos entrar. — E aí, o que achou da casa? — perguntou, quando já estavam novamente em seu interior. — Gostei — mentiu Lisa. Era o melhor lugar dentre todos os que vira, mas isso não queria dizer grande coisa. — Tem várias vantagens — concordou Jack. — O aluguel é razoável, a zona é boa e você pode ir a pé para o trabalho. — É verdade — disse Lisa, com uma sombriedade que o desconcertou. — E economizar uma libra e dez pence de cada passagem. — É esse o preço? Não tenho como saber, porque em geral ando de carro... — O que dá duas libras e vinte pence por dia. — Acho que deve ser isso mesmo... — E onze libras por semana. Se a gente pensar em termos de uma vida inteira, dá um dinheirão. — Ao ver Jack se esforçando por manter uma expressão cortês e interessada, Lisa deixou a encenação de lado. Rindo, contou-lhe de sua experiência com a pão-dura Joanne. Em seguida discorreu sobre os outros lugares horríveis que havia visto — o homem em Lansdown Park que deixava sua cobra de estimação passear à vontade pela sala, a casa em Ballsbridge tão desarrumada que parecia ter acabado de ser revirada por assaltantes. Ele se levantou e deu início ao canhestro tilintar de moedas nos bolsos, que Lisa já conhecia de longa data. Era o que os homens sempre faziam quando tentavam criar coragem para convidá-la para tomar um drinque Ela podia ver a hesitação em seus olhos, e seu corpo estava enrodilhado como que prestes a saltar em cima de alguma coisa. Anda logo com isso, ordenou-lhe em silêncio. Então os olhos dele clarearam e toda a tensão se dissipou. — Vou te levar de volta para o hotel — disse.

Lisa compreendeu. Intuía que ele se sentia atraído por ela, e também suas reservas. Não apenas trabalhavam juntos, como ele estava envolvido com outra pessoa. Mas não importava. Ela teceria sua teia lentamente ao redor dele e superaria suas objeções. Eis aí algo que lhe daria muito prazer — fazer com que Jack se apaixonasse por ela seria uma forma de esquecer todo o seu sofrimento. — Obrigada por me arranjar uma casa para morar. — Sorriu meigamente para Jack. — Foi um prazer — replicou ele. — E não faça cerimônia em me pedir qualquer coisa de que precise. Vou fazer tudo que puder para tornar sua mudança para a Irlanda mais fácil. — Obrigada. — Ela lhe deu outro sorrisinho coquete. — Você é uma pessoa ocupada e importante demais para a Garota para perder tempo vendo apartamentos. Ah. Enroscada numa poltrona, Lisa acendeu um cigarro e olhou pela janela para Harcourt Street. Um sutil sentimento de culpa a incomodava. Tão sutil que mal chegava a existir, mas sua simples existência já era digna de registro. Era aquela chata da Ashling. Ficara pateticamente surpresa quando Lisa roubara sua idéia. Ora, dane-se, a vida é assim mesmo. Era por essa razão que Lisa era a diretora da revista, e Ashling uma burra de carga. E Lisa tinha ficado horrorizada, totalmente acovardada quando Jack a inteirara sobre a situação da publicidade. O medo sempre a deixava traiçoeira e impiedosa. No momento, o terror inicial havia amainado um pouco. Graças ao estilo prepotente de seu otimismo, encapsulara-se numa bolha de esperança onde a hipótese de conseguir a publicidade desejada parecia bastante razoável. No entanto, era o de Lisa que estava na reta. Se a revista afundasse, a vida de Ashling não estaria acabada como a dela — era simples assim. Verdade que todos a achavam uma filha-da-puta, mas não tinham idéia da pressão sob a qual ela vivia. Com um longo suspiro, exalou uma baforada de fumaça. A lembrança da expressão chocada de Ashling a alfinetava, fazendo com que sentisse um vago mal-estar.

Sempre fora capaz de controlar suas emoções até então. Era fácil subjugá-las em favor de um bem maior, o de sua carreira. Era melhor retomar as rédeas da situação. Os convites para coquetéis de lançamentos chegavam diariamente na correspondência. Havia de tudo, desde o lançamento de uma nova linha de sombras até a inauguração de uma loja. Lisa e Mercedes repartiam pau a pau os convites entre si. Lisa, na qualidade de diretora, era sempre a primeira opção. Mas tinha que permitir que Mercedes, como editora de moda e beleza, fosse a alguns também. Ashling, à moda de Cinderela, ficava tomando conta da casa, e Trix ocupava uma posição muito baixa na cadeia alimentar para ter qualquer chance de ir. — O que acontece num coquetel de lançamento? — perguntou Trix a Lisa. — Você fica lá, com um monte de outros jornalistas e algumas celebridades — disse Lisa. — Conversa com todo mundo que seja importante, ouve a apresentação... — Me fala sobre essa a que você vai hoje. Uma loja chamada Morocco iria abrir sua primeira filial na Irlanda. Lisa não estava dando a mínima, já estava aberta em Londres há anos, mas o dono da franquia estava tratando o fato como se fosse um grande acontecimento. Tara Palmer Tompkinson viria de Londres para a inauguração, que aconteceria no Hotel Fitzwilliam, com seu esplendor inspirado no do Royalton. — Vai ter comida? — perguntou Trix. — Em geral servem alguma coisa. Canapês, champanhe... Na verdade, Lisa esperava ardentemente que servissem mesmo alguma coisa, porque acabara de adotar um novo plano alimentar, trocando a Dieta dos Sete Anões pela Dieta Promocional. Podia comer e beber à vontade, mas apenas em eventos promocionais. Sabia o quanto era importante manter-se magra, mas se recusava a ser uma escrava tradicional das dietas. Em vez disso, incorporara limitações insólitas e prêmios à sua alimentação, para manter o desafio sempre vivo e interessante.

— Champanhe! — A excitação fez com que Trix ficasse rouca como Don Corleone. — Isso se não for uma empresa vagabunda, porque, se for, não consegue propaganda na revista. E depois você recebe sua sacolinha com um jabá* e vai embora. — Uma sacolinha com um jabá! — Trix ficava acesa à menção de qualquer coisa gratuita. Qualquer coisa que não precisasse se dar ao trabalho de roubar. — Que tipo de jabá? — Depende. — Lisa fez um beicinho de tédio. — No caso de uma empresa de cosméticos, por exemplo, você geralmente recebe um apanhado dos produtos da nova estação. Trix deu um gritinho eufórico. — No caso de uma loja como essa, talvez uma bolsa... — Uma bolsa! — Ela não sabia o que era uma bolsa grátis há anos, desde que haviam começado a prender dispositivos antifurto nelas. — ...ou uma camisa. — Ah, meu Deus! — Trix vibrava de excitação. — Você tem tanta sorte!

 

* Gíria jornalística para brinde ganho em evento.

 

Depois de refletir longamente, sugeriu, com excessiva inocência: — Sabe, você devia levar a Ashling com você. — Pela hierarquia, não havia a menor chance de Trix ter permissão para ir até que Ashling fosse. — Ela é a redatora-chefe. Seria bom que soubesse como se comportar, para o caso de algum dia você ficar doente. — Mas... — O rosto liso e azeitonado de Mercedes encheu-se de ansiedade à sugestão de mais alguém invadindo aquele solo sagrado. Afinal, não havia batom de graça para todo mundo. A óbvia inquietação de Mercedes, aliada a um residual sentimento de culpa em relação a Ashling, fez com que a decisão se tornasse fácil para Lisa. — Boa idéia, Trix. Tudo bem, Ashling, pode ir comigo hoje à tarde. Isso é — acrescentou, sem a menor sinceridade —, se você quiser ir. Ashling nunca tivera talento para guardar rancor. Principalmente quando havia alguma coisa de graça em jogo.

— Se eu gostaria de ir...? — Decepcionou-se ao dizer: — Eu adoraria ir. Lisa almoçou no Clarence com uma autora de best-sellers que estava tentando convencer a escrever uma coluna. Foi um sucesso: não apenas a mulher concordou em fazer a coluna por um valor reduzido em troca de publicidade regular para seus livros, como Lisa escapou quase ilesa da refeição. Apesar de remexer a comida vigorosamente no prato, só comeu meio tomate-cereja e uma garfada de frango cai pira. Voltou para o trabalho sentindo-se vitoriosa, e estava vasculhando a correspondência quando Ashling apareceu ao lado de sua mesa, de bolsa e blazer. — Lisa — começou, ansiosa —, são duas e meia, e o convite é para as três. Vamos? Lisa riu, entre surpresa e sardônica: — Regra número um: nunca chegue na hora. Todo mundo sabe disso! Você é muito importante. —Sou? — Finge que é. — E voltou à sua pilha de releases. Mas, depois de algum tempo, levantou o rosto e viu o olhar ávido de Ashling colado nela. — Pelo amor de Deus! — exclamou, já se arrependendo amargamente de ter convidado Ashling. — Desculpe. Só estou com medo de que tudo acabe. — Tudo o quê? — Os canapês, os jabás... — Não vou sair antes das três, e não me pede de novo. Às três e quinze, Lisa tirou sua sacola Miu Miu de baixo da mesa e disse para a trêmula Ashling: — Vamos lá! O trajeto de táxi pelas ruas congestionadas demorou tanto, que até Lisa começou a ter medo de que os canapês e jabás acabassem. — Que foi, agora? — indagou, irritada, ao ver um guarda chapar a manzorra gorda na frente deles, fazendo um sinal para que parassem. — Patos — disse o chofer, curto e rasteiro. Lisa já se perguntava se “patos” era algum palavrão dublinense da mesma família do “joça”, quando Ashling exclamou: — Ah, olha lá, patos!

Como é que é?!, perguntou-se Lisa, quando, diante de seu olhar sobressaltado, uma mamãe pata pôs-se a atravessar a rua, toda serelepe, liderando seus patinhos em fila indiana atrás de si. Dois guardas interditavam o trânsito nas duas direções, para garantir uma travessia segura à família de patos. Ela mal podia acreditar! — Acontece todo ano. — Os olhos de Ashling brilhavam. — Os patos nascem no canal e, quando já estão crescidinhos, vêm para o lago de Stephen’s Green. — Centenas deles. Fodem o trânsito que é uma beleza. Aporrinham a gente até dizer chega — disse o chofer, em tom carinhoso. Porra de cidade..., Lisa suspirou. Quando Lisa e Ashling desceram diante do Hotel Fitzwilliam, o tempo estava fechado e frio, e a minionda de calor da semana passada já se tornara uma saudosa lembrança. Uma sessão de depilação não faz verão, pensou Ashling, triste, voltando a usar calças depois que sua saia comprida de verão desfrutara uma brevíssima arejada no dia anterior Então esqueceu-se do tempo e, extasiada, deu uma cotovelada em Lisa: — Olha! A mulher de que você falou, como é mesmo o nome dela? Tara Palmer de Perequeté. E era realmente Tara Palmer de Perequeté, exibindo-se de um lado para o outro diante do hotel, cercada por uma multidão de fotógrafos e seus disparos frenéticos. — Mostra as pernocas um pouquinho, boa menina, Tara — pediam. Ashling se encaminhou para a rua, a fim de contornar o anel de fotógrafos, mas Lisa avançou diretamente para o meio deles, resoluta. — Epa, quem é essa? — Ashling ouviu dizerem. Nesse momento, Lisa soltou um “Taaaaraaaaa, querida, há quanto tempo!”, gadunhou-a para uma relutante troca de dois beijinhos e girou com ela para as câmeras. Os fotógrafos interromperam os disparos frenéticos, logo em seguida enquadraram a mulher dourada de cabelos cor de caramelo, cheek-to-cheek com Tara, e recomeçaram as fotos com fervor redobrado.

— Lisa Edwards, diretora da revista Garota — informou Lisa, avançando por entre os fotógrafos. — Lisa Edwards. Lisa Edwards. Sou uma velha amiga de Tara. — De onde você conhece Tara Palmolive? — perguntou Ashling, assombrada, quando Lisa voltou para ela, que ficara à margem, completamente ignorada pelos fotógrafos. — Não conheço. — Lisa a surpreendeu com um sorriso. — Mas... regra número dois... nunca deixe a verdade empatar uma boa história. Lisa entrou no hotel, altiva, com Ashling atrás dela. Dois jovens bonitos se adiantaram, cumprimentando-as, e retiraram o blazer de Ashling. Lisa, porém, recusou-se a entregar o seu, com ar displicente. — Permita-me relembrá-la da regra número três — murmurou, irritada, a caminho da recepção. — Nunca deixe o blazer. Você quer dar a impressão de que é muito ocupada, de que só deu uma passadinha de alguns minutos, e que tem uma vida muito mais interessante lá fora. — Desculpe — pediu Ashling, humilde. — Não sabia. Entraram no salão de festas, onde uma mulher transparente de tão esquálida vestindo Morocco da cabeça aos pés apurou quem eram e fez com que assinassem um livro de visitas. Lisa rabiscou algumas palavras superficiais e passou a caneta para Ashling, que vibrava de prazer. — Eu também? — de um gritinho. Lisa apertou os lábios e sacudiu a cabeça em advertência. Vai com calma! — Desculpe — sussurrou Ashling, mas não conseguiu se conter e escreveu com grande cuidado e capricho: Ashling Kennedy, Redatora-Chefe, Revista Garota. Lisa correu uma unha bem-feita pela lista de nomes. — A regra número quatro, como você sabe, é olhar o livro — instruiu-a. —Ver quem está aqui. — Assim a gente sabe quem deve conhecer — compreendeu Ashling. Lisa olhou para ela como se fosse louca. — Não! Assim a gente sabe quem deve evitar! — E quem a gente deve evitar? Cheia de desprezo, Lisa esquadrinhou o salão apinhado de liggers* de revistas rivais: — Quase todo mundo.

Mas Ashling já devia saber de tudo isso. Acabara de ficar claro para Lisa que ela não tinha a mais pálida noção do básico. Agitadíssima, cochichou: — Não vai me dizer que nunca esteve num coquetel de lançamento antes! E quando trabalhava na Cantinho da Mulher? — A gente não recebia muitos convites — escusou-se Ashling. — Muito menos para lançamentos tão glamourosos quanto este. Acho que nossas leitoras eram muito idosas. E, mesmo quando a gente recebia algum convite para o lançamento de uma nova bolsa de colostomia, a inauguração de um asilo subvencionado ou qualquer coisa assim, quase sempre era Sally Healy quem ia. O que Ashling não disse foi que Sally Healy era um tipo rotundo e maternal, que tratava todo mundo com simpatia. Não tinha nada da competitividade e sofisticação de Lisa ou suas regras estranhas e agressivas. — Está vendo aquele ali? — Maravilhada, Ashling apontou um sujeito alto, parecendo o boneco Ken. — É Marty Hunter, o apresentador de tevê. — Déjà vu — bufou Lisa. — Estava ontem no coquetel da Bailey’s e segunda-feira no da MaxMara. Diante dessa resposta, Ashling se calou, angustiada. Seu plano era instruir e orientar Lisa, com isso provando-lhe que era necessária. Já se via ganhando o tão cobiçado respeito de Lisa, graças ao seu indispensável conhecimento dos irlandeses famosos — um conhecimento que Lisa, como inglesa, não poderia esperar ter. Mas Lisa estava quilômetros à sua frente, já tomara pé no cenário vigente das celebridades e parecia irritada com suas amadorísticas tentativas de ajudar.

Uma garçonete que transitava pelo salão se deteve e empurrou uma bandeja na direção delas. A comida era inspirada nos pratos da culinária marroquina: cuscuz, salsichas Morguez ,canapês de carne de cordeiro. A bebida, surpreendentemente, era vodca. O que não era lá muito marroquino, mas Lisa não se importou. Comeu o quanto pôde, mas sem se exceder porque estava sempre conversando com alguém, com Ashling a reboque. Esbanjando energia e charme, Lisa explorava o salão como uma profissional, embora não oferecesse grandes surpresas.

 

* Indivíduo que freqüenta todo e qualquer evento promocional para fazer contatos e se promover (ou à empresa que representa).

— O mesmo de sempre, o mesmo de sempre — suspirou para Ashlinlg. — Os liggerati irlandeses — a maioria desses tristes perdedores compareceria até à abertura de uma lata de feijão. O que, muito a propósito, me leva à regra número cinco: use o fato de ainda estar de blazer como desculpa para dar o fora. Mas, já que tirou, se alguém se tornar isso assim chato demais, você pode dizer que tem que ir ao vestiário Algumas modelos com olhos de corça vagavam pelo salão, seus corpos idênticos e subnutridos vestindo Morocco. Volta e meia uma relações-públicas empurrava alguma delas para cima de Ashling e Lisa, cujo papel era soltar “ahs” e “ohs” de admiração. Vermelha de vergonha, Ashling se esforçava ao máximo, mas Lisa mal olhava. — Podia ser pior — confidenciou, depois que outra adolescente se sacudiu e contorceu diante delas, indo embora em seguida. — Pelo menos não é moda praia. Aconteceu durante um jantar sentado em Londres: eu lá, tentando jantar, enquanto seis garotas metiam as bundas e peitos no meu prato. Ugh! Em seguida disse a Ashling algo que esta já começava a concluir por conta própria: — Regra número... em qual estamos, mesmo? Seis? Nada é de graça. Quando você vem a um coquetel desses, tem que agüentar o massacre promocional. Ah, não, olha lá aquele nojento do Sunday Times. Vem para cá.

Ashling sentia-se cada vez mais humilhada com o conhecimento enciclopédico que Lisa exibia de quase cada pessoa presente no salão. Estava na Irlanda há menos de duas semanas, e já parecia ter ficado amiga — e se descartado — da maior parte do Quem é Quem. Com um sorriso firmemente grampeado no rosto, Lisa girou discretamente sobre os saltos de seus sapatos Jimmy Choo. Será que tinha deixado passar alguém? Nesse momento localizou um jovem bonito, remexendo-se desconfortavelmente num terno que, pela pinta, acabara de sair da loja. — Quem é ele? — perguntou, mas Ashling não fazia a menor idéia. — Vamos descobrir, certo? — Como? — Perguntando a ele. — Lisa pareceu achar graça da expressão chocada de Ashling. Com um largo sorriso e olhos brilhantes, lançou-se sobre o rapaz, seguida por Ashling. De perto, viam-se as espinhas no seu queixo jovem. — Lisa Edwards, da revista Garota. — Estendeu-lhe a mão lisa e bronzeada. — Shane Dockery. — Ele passou um dedo infeliz por dentro do colarinho apertado. — Do Laddz — completou Lisa para ele. — Você já ouviu falar de nós? — exclamou ele. Ninguém mais naquele coquetel tinha a menor noção de quem ele era. — É claro. — Lisa lera uma notinha minúscula sobre eles em um dos jornais dominicais e anotara seus nomes, junto com os de outras pessoas que achara bom ficar sabendo. — Vocês são a nova banda de garotos. Vão ser maiores do que o Take That jamais foi. — Obrigado. — Ele engoliu em seco, com entusiasmo dos não-estabelecidos. Talvez tivesse valido a pena se enfatiotar todo com aquelas roupas terríveis, afinal das contas. Quando se afastaram, Lisa murmurou: — Viu só? Não se esqueça, eles têm mais medo de você do que você deles. Ashling assentiu, pensativa, enquanto Lisa se felicitava por seu bondoso auspício. Auxiliada, muito provavelmente, pela copiosa quantidade de vodca que bebericava. E foi só pensar no diabo para a garçonete imediatamente aparecer ao seu lado. — Vodca é a nova água. — Lisa levantou seu copo para Ashling.

Quando Lisa já havia comido e bebido até se fartar, foi hora de ir embora. — Tchau. — Lisa passou como um zéfiro pelo bicho-pau na porta. — Obrigada — Ashling sorriu. — As roupas são lindas e tenho certeza de que as leitoras da Garota vão adorar...! — A frase de Ashling terminou com um grito abafado, quando alguém beliscou seu braço com muita, muita força. Lisa. — Obrigada por virem. — O bicho-pau enfiou um pacote embalado em plástico nas mãos de Lisa. — Por favor, aceite esta pequena lembrança como símbolo de cordialidade. — Ah, obrigada — disse Lisa, saindo, distraída. Em seguida um pacote idêntico foi enfiado nas mãos ávidas de Ashling. Com o rosto iluminado, meteu a unha no plástico para rasgá-lo, mas logo abafou outro grito, quando alguém tornou a beliscar seu braço. — Ah, hum, sim, quer dizer, obrigada. — Tentou, sem sucesso, dar à sua voz um tom casual. — Não encosta nele — murmurou Lisa, quando atravessavam o saguão para pegar o blazer de Ashling. — Nem mesmo olha para ele. E nunca, nunca diga a uma relações-públicas que vai dar cobertura para ela. Banca a difícil! — Suponho que essa seja a regra número sete — disse Ashling, mal-humorada. — Isso mesmo. Depois que saíram do hotel, Ashling lançou um olhar de interrogação para Lisa, e em seguida relanceou seu presente. —Ainda não! — Então quando? — Quando a gente dobrar a esquina. Mas sem pressa! — repreendeu-a Lisa, quando Ashling já quase começava a correr. No instante em que dobraram a esquina, Lisa disse “Agora!”, e ambas rasgaram o plástico de seus pacotes. Era uma camiseta com o nome Morocco estampado na frente. — Uma camiseta! — soltou Lisa, enojada. — Achei linda — disse Ashling. — O que você vai fazer com a sua? — Levar de volta para a loja e trocar por alguma coisa que preste. No dia seguinte, tanto o Irish Times quanto o Evening Herald publicaram na primeira página um retrato do abraço de Tara e Lisa.

Às quinze para as sete de sábado, Clodagh foi acordada por Molly. Enchendo-a de cabeçadas. — Acorda, acorda, acorda! — insistia, irritada. — Craig tá fazendo bolo. A maternidade tinha lá suas vantagens, pensou Clodagh, cansada, arrastando-se da cama. Por exemplo, há cinco anos que não era obrigada a acertar o despertador. Tinha um encontro marcado com Ashling na cidade. Iam fazer compras. — Acho melhor a gente ir cedo — dissera Ashling. — Para pegar as lojas vazias. — Cedo que horas? — Lá para as dez. — Dez?! — Ou onze, se você achar cedo demais. — Cedo demais? Às dez já vou estar acordada há horas! Depois de limpar a lambança do bolo, Clodagh serviu uma tigela de Rice Krispies para Craig, mas ele se recusou a comê-los sob a alegação de que ela despejara leite demais na tigela. Então ela preparou outra, dessa vez com o leite e os cereais em proporções idênticas. Em seguida serviu uma tigela de Sugar Puffs para Molly. Assim que Craig pôs os olhos no café da manhã de Molly, tomou ódio mortal dos Rice Krispies, declarando que eram venenosos. E exigiu Sugar Puffs, batendo com a colher na mesa e espirrando o leite da tigela. Clodagh limpou o leite que respingara em seu rosto, abriu a boca para começar um discurso sobre o fato de ele ter feito sua escolha e agora ter que arcar com as conseqüências, mas terminou desistindo, cansada. Apanhou a tigela de Craig, despejou os restos na lata de lixo e chapou a caixa de Sugar Puffs diante dele, mal-humorada. O prazer de Craig diminuiu. Agora já não queria mais os Sugar Puffs. A vitória tinha sido fácil demais. Clodagh foi se aprontar para seu passeio à cidade. As crianças obviamente pressentiram que estava tentando fugir, pois tornaram-se ainda mais grudentas e exigentes do que o habitual, chegando mesmo a insistir em acompanhá-la quando ela entrou no chuveiro.

— Lembra do tempo em que era eu quem entrava no chuveiro com você? — perguntou Dylan, malicioso, quando ela saiu, tentando se enxugar, com as crianças na sua cola. — Leeembro — respondeu ela, nervosa. Não queria que ele ficasse lhe lembrando o quanto a vida sexual dos dois era apimentada. Para o caso de ele pedir seu dinheiro de volta. Ou, pior ainda, tentar reativar as coisas. — Aqui, enxuga ela. — Empurrou Molly em sua direção. — Estou apressada. Quando tirava o carro da entrada, Molly postou-se na porta da frente e esgoelou um “Quero ir!” tão pungente, que vários vizinhos correram às janelas para ver quem estava sendo assassinado. — Eu também! — Craig fez coro à irmã. — Volta, ah, mamãe, volta! Espíritos de porco, pensou Clodagh, cruzando a rua a toda a velocidade. Passavam a maior parte da semana dizendo a ela que a odiavam e que queriam o papai e, no momento em que ela tirava duas horinhas para si mesma, no ato virava o doce-de-coco da casa e ficava até aqui de sentimento de culpa. Às dez e quinze, Ashling e Clodagh despontaram no centro de Stephen’s Green. Nenhuma das duas se desculpou por estar atrasada. Porque nenhuma das duas estava atrasada. Não para os parâmetros irlandeses. — Que é que há com seu olho? — perguntou Ashling. — Você está parecendo aquele cara de Laranja Mecânica. Alarmada, Clodagh pôs-se a vasculhar a bolsa às tontas, deixando cair uma batata frita de Molly. — Toma aqui. — Ashling foi mais rápida com o espelho do que ela. — É minha maquiagem — compreendeu Clodagh, vistoriando-se. — Só pintei um olho. Quando Craig viu que eu estava me maquiando, quis que eu pintasse os olhos dele, e eu devo ter me esquecido de acabar de pintar os meus... Dylan podia ter me avisado! Mas quando é que ele olha para mim hoje em dia?!

À menção de Dylan, Ashling sentiu-se constrangida. Tinha um encontro marcado com ele segunda à noite para um drinque rápido, conforme ele lhe pedira, e, por algum motivo, sentia-se desconfortável à idéia de contar isso para Clodagh. E igualmente desconfortável à idéia de não lhe contar. Mas algo lhe dizia que seria melhor ficar quieta até saber do que se tratava. Talvez Dylan estivesse planejando férias-surpresa para Clodagh — não seria a primeira vez. — Eu tenho umas coisinhas. — Ashling tirou um rímel e um delineador da bolsa. — Sua Tardis — Clodagh riu. — Opa! Rímel Chanel? Fala sério, Chanel? Ashling exultou, entre orgulhosa e encabulada: — Coisas do meu novo emprego. Foi um jabá. Por um breve momento, Clodagh não conseguiu se mexer. Engoliu em seco e teve a impressão de que o som emitido por sua garganta fora muito alto. — Um jabá? Como assim? Ashling contou-lhe uma história enrolada sobre como uma mulher chamada Mercedes viajara para Donegal e outra chamada Lisa fora a um almoço de caridade para se entrosar com a alta sociedade de Dublin e uma terceira chamada Trix se parecia demais com uma Spice Girl para que a deixassem ir, e então ela, Ashling, tivera que representar a Garota no lançamento da coleção de outono da Chanel. — E me deram uma bolsa com produtos na saída — arrematou. — Genial — disse Clodagh, irônica. Quanto mais olhava para o sorriso eufórico de Ashling, mais ficava claro que era mesmo genial. Mas para onde fora a promessa de felicidade de sua própria vida? —Anda, vamos torrar grana — incitou-a Ashling. — Por onde vamos começar? — Pela Jigsaw. Minha calça mágica Perca-três-quilos-num- instante ficou um pouco larga em mim e estou torcendo para encontrar outra... embora não leve muita fé nas minhas chances — confessou, sombria. — Por quê? O horóscopo não estava bom hoje? — provocou-a Clodagh.

— Pelo contrário, espertinha, não estava nada mau, mas isso não faz diferença. No instante em que encontro alguma coisa de que gosto, a mulherada avança em cima e limpa os cabides e, no momento seguinte, a roupa sai de linha! Loja após loja, enquanto Ashling experimentava um par de calças atrás do outro e sofria uma decepção atrás da outra, Clodagh passeava por um universo paralelo de roupas. Mas não conseguia se imaginar usando nenhuma delas. — Olha só como esses vestidos são curtos! — exclamou, a certa altura, para logo em seguida cair em si: Eu disse isso? — Essa é boa, vinda de uma mulher que no passado usava uma fronha como saia. — Eu? — Ah, não são vestidos, não. — Ashling acabara de perceber o que Clodagh estava olhando. — São túnicas. Para se usar com calças. — Estou completamente por fora — disse Clodagh, deprimida. — É uma coisa que acontece sem você notar. De repente, o que você espera de uma roupa é que esconda bem as manchas de vômito... Olha só para mim — suspirou, indicando suas calças boca-de-sino e jaqueta jeans. Ashling torceu a boca, irônica. Clodagh podia não ser podre de chique, mas, ainda assim, daria tudo para ser como ela, com suas pernas curtas e bem torneadas, sua cintura fina realçada pela jaqueta justa, seus cabelos compridos e cheios presos de qualquer jeito no alto da cabeça. — Está vendo aquele tom de verde? — Clodagh avançou para um top verde-água. — Consegue imaginar ele em azul? — Hum, consigo — mentiu Ashling, desconfiada de que a pergunta tivesse um cunho decorativo. — Pois é exatamente dessa cor que vamos empapelar a sala — disse Clodagh, radiante. — Eles vêm na segunda. Mal posso esperar. — Já? Foi rápido. Só faz duas semanas que você começou a falar nisso. — É que decidi meter a cara, aquele terracota horroroso estava me dando nos nervos, aí disse aos decoradores que era uma emergência. — Eu achava o terracota lindo — opinou Ashling. E Clodagh também, até pouco tempo atrás.

— Mas não é, não — disse Clodagh, categórica, logo voltando sua atenção outra vez para as roupas, decidida a tomar pé na moda atual. Por fim, comprou um vestido minúsculo de alcinhas, da Oasis, tão curto e transparente que Ashling achou que até Trix o rejeitaria — e olha que a chance de Trix rejeitar um vestido curto e transparente era de uma em um milhão! — Quando você vai usar ele? — indagou Ashling, curiosa. — Sei lá. Quando for levar Molly para o grupo de atividades, quando for buscar Craig na aula de pintura... Olha aqui, eu quero o vestido e acabou-se, tá? Com ar desafiador, pagou por ele com um cartão de crédito onde constava como Sra. Clodagh Kelly. Ashling sentiu uma pontada, e presumiu que só poderia ser de inveja. Clodagh não trabalhava para se sustentar e, ainda assim, sempre tinha dinheiro de sobra. Não seria maravilhoso levar a sua vida? E lá se foram as duas outra vez. — Ah, olha só aquela jardineirazinha! — Clodagh se afastou da calçada em direção a uma butique cara de roupas infantis. — Ficaria uma graça na Molly. E esse boné de beisebol não ficaria lindo no Craig? Só quando já tinha gasto mais com os filhos do que consigo mesma, conseguiu se livrar do sentimento de culpa. — Vamos tomar um café? — sugeriu Ashling, ao fim do frenesi consumista. Clodagh hesitou. — Prefiro tomar um drinque. — Mas ainda é meio-dia e meia. — Tenho certeza de que alguns bares abrem às dez. Na verdade, não fora isso que Ashling quisera dizer, mas enfim... Assim, enquanto os dublinenses desfrutavam o inesperado sol de fim de semana, tomando cappuccinos duplos de leite desnatado e fingindo estar em Los Angeles, Ashling e Clodagh sentaram-se num bar sombrio, freqüentado por homens idosos, onde todo o resto da clientela parecia saída de um anúncio do Ministério da Saúde contra os perigos da bebida. Não havia uma única veia intacta naquelas caras.

Enquanto Ashling tagarelava animadamente sobre o novo emprego, as pessoas famosas que quase conhecera e a camiseta da Morocco que ganhara, o moral de Clodagh despencava no fundo de seu copo de gim-tônica. — Talvez eu devesse arranjar um emprego — interrompeu-a de repente. — Sempre quis voltar a trabalhar depois que Craig nasceu. — É verdade. — Ashling sabia que Clodagh sempre ficava meio na defensiva por não ser uma dessas supermulheres que conciliam um emprego em tempo integral com a criação de seus filhos. — Mas a exaustão era inacreditável — disse Clodagh, veemente. — Por mais que encham seus ouvidos sobre as dores do parto, nada te prepara para o inferno das noites sem sono. Eu vivia arrebentada, acordava me sentindo como se saísse de uma anestesia geral. Não conseguiria agüentar a barra de um emprego. Felizmente, a firma de informática de Dylan ia bem o bastante para que ela fosse obrigada a isso. — E agora você tem tempo para um emprego? — perguntou Ashling. — Eu sou muito ocupada — disse Clodagh. — Tirando umas horinhas que reservo para ir à academia, nunca tenho um minuto para mim mesma. Agora, detalhe: só faço coisas insignificantes — tipo trocar de roupa porque vomitaram em cima de mim ou assistir a um vídeo do Barney atrás do outro... Se bem que — disse, com um brilho maligno nos olhos — eu tenha dado um fim no Barney. — Como? — Disse a Molly que ele morreu. Ashling soltou uma gargalhada homérica. — Atropelado por um caminhão — prosseguiu Clodagh, séria. O sorriso de Ashling se desfez. — Você não fez isso... fez? — Fiz, sim — disse Clodagh, com ar de esperteza. — Já estava cheia daquele filho-da-puta roxo e todos aqueles fedelhos irritantes dando lições de moral e me dizendo como viver a minha vida. — Molly não ficou mal? — Ela vai superar. A vida é assim. Estou certa? — Mas... mas... ela tem dois anos e meio.

— Eu também sou gente — defendeu-se Clodagh. — Também tenho direitos. E estava ficando louca com aquele dinossauro, juro que estava. Ashling refletiu, confusa. Talvez Clodagh tivesse razão. Todo mundo espera que as mães sublimem seus próprios desejos e necessidades em favor dos filhos. E talvez isso não seja lá muito justo. — Às vezes — Clodagh soltou um suspiro profundo — eu me pergunto: de que adianta? Meu dia consiste exclusivamente em levar Craig para a escola, Molly para o grupo de atividades, Molly para casa, Craig para as aulas de origami... Sou uma escrava. — Mas criar filhos é a ocupação mais importante que alguém pode desempenhar — protestou Ashling. — Mas nunca converso com outros adultos. Só com outras mães, e a competição é braba. Sabe como é: “Meu Andrew é muito mais agressivo do que o seu Craig.” Craig nunca bate em ninguém, enquanto Andrew Porra de Higgins é um Rambo mirim. É tão humilhante! — Fitou Ashling com um olhar infeliz. — Vejo os artigos nas revistas sobre a competitividade no mercado de trabalho, mas não é nada em comparação com o que acontece no grupo das mães com filhos pequenos. — Se isso te serve de consolo, passei a semana inteira morta de preocupação com um artigo que tenho que escrever sobre uma aula de salsa — Ashling tratou logo de dizer. — Tirou meu sono, literalmente. Você não tem que enfrentar esse tipo de preocupação. — Para convencê-la de uma vez por todas, concluiu, em voz baixa: — E, acima de tudo, você tem Dylan. — Ah,o casamento não é tudo isso que as pessoas dizem, não. Ashling não ficou convencida.

— Eu sei que você tem que dizer isso. É a regra, já vi esse filme. As mulheres casadas simplesmente não podem dizer que são loucas pelos maridos, a menos que sejam recém-casadas. É só juntar um grupo de mulheres casadas, que elas começam a competir para ver quem esculhamba mais o marido: “O meu deixa as meias sujas no chão”, “E o meu, que nunca nota quando corto o cabelo?” Pois acho que o que vocês têm é vergonha da sua boa sorte! De volta à rua ensolarada, Ashling ouviu uma voz conhecida gritar: — Salman Rushdie, Jeffrey Archer ou James Joyce? Era Joy. — O que você está fazendo acordada tão cedo? — Ainda não fui dormir. Oi. — Joy cumprimentou Clodagh com um aceno de cabeça ressabiado. Clodagh e Joy não gostavam nada uma da outra. Joy achava Clodagh mimada demais, e Clodagh invejava Joy por sua intimidade com Ashling. — Anda, decide — insistiu Joy. — Salman Rushdie, Jeffrey Archer ou James Joyce? — James Joyce vivo ou em estado de decomposição? — Em estado de decomposição. Ashling refletiu sobre a medonha escolha. Podia-se ver pelo rosto de Clodagh o quanto se sentia excluída. — James Joyce — Ashling finalmente decidiu. — Muito bem, sua cretina. Gerry Adams, Tony Blair ou o príncipe Charles? Joy estremeceu. — Uuuui! Bom, Tony Blair, obviamente não. E nem o príncipe Charles. Vai ter que ser o número um. Ashling voltou-se para Clodagh: — Sua vez. — O que eu faço?

— Escolhe três homens horríveis e nós escolhemos com qual deles dormir. Clodagh hesitou. — Porquê? Ashling e Joy se entreolharam. Boa pergunta. Por quê? — Porque... hum... é divertido. — Tenho que ir. — Joy salvou a pátria. — Acho que vou morrer. Te vejo mais tarde. A que horas a gente vai ao River Club? — Marquei com Lisa lá às nove. — Você tem todos esses amigos que não conheço. — Clodagh olhava ressentida para Joy, que se afastava. — Essa aí, e aquele tal de Ted. Estou enterrada viva. — Ora, por que não sai com a gente? Eu vivo te convidando. — Taí, eu bem que podia ir, não é mesmo? Dylan pode muito bem tomar conta dos dois, para variar. — Ou ele pode vir com a gente também.

Ashling se enganara. Marcus Valentine não ligou. Ela mal conseguia acreditar na sua sorte. A secretária-eletrônica passara a semana inteira em seu canto no apartamento ameaçando explodir como uma bomba. Sempre que Ashling chegava em casa do trabalho e encontrava a luz vermelha piscando, quase botava o coração pela boca. Mas, embora houvesse duas mensagens de Cormac, uma informando que a caçamba para os galhos mortos seria entregue na terça e outra informando que a caçamba seria recolhida na sexta, não havia uma palavra de Marcus Valentine. E ela soube que não haveria, quando voltou das compras com Clodagh na noite de sábado. Mas, enquanto pintava as unhas de azul-claro (e boa parte dos dedos a que pertenciam) em homenagem ao show no River Club, deu-se conta de que havia uma pequena chance de Marcus notá-la na platéia. Esperava que isso não acontecesse — esperava sinceramente que não acontecesse. O saldo de seu dia de compras estava espalhado em cima da cama: uma calça capri azul-clara, um par de sapatos chiquérrimos e uma camisa branca amarrada na cintura. Talvez não devesse usá-los hoje à noite — depois da sorte que tivera, não seria uma temeridade ficar tão bonita? Mas seria ela própria quem sairia perdendo se não ficasse. Outras pessoas estariam lá — e era nessas que tinha de pensar. Por volta das nove, Ted e Joy apareceram. Joy elogiou a sofisticação e a modernidade de seus tons pastéis, mas Ted não parava de sussurrar agitado: — Minha coruja não tem mulher. Merda, tá errado! Minha mulher não tem nariz. Não! Merda, merda, merda!... A gente bem que podia ficar em casa — disse, em tom choroso. — Vou fazer um papelão. As pessoas agora têm expectativas em relação a mim. Era diferente quando eu não tinha fãs. Minha coruja não tem nariz... No momento seguinte Ashling já estava pingando uma gota de seu elixir de emergência na língua de Ted, esfregando óleo de lavanda nas suas têmporas e enfiando a Oração da Serenidade debaixo de seu nariz.

— Lê essa, e se não funcionar, vamos passar para a dos Desideratos. — Traz o Buda da sorte para mim — pediu ele, quase entrando em órbita no sofá. — Como vai Metade-homem-metade-texugo? — perguntou Ashling a Joy, enquanto as duas carregavam com esforço a estátua até Ted. — Mick está ótimo. As coisas deviam estar sérias para Joy agora chamar o Metade-homem-metade-texugo pelo nome, pensou Ashling. Dali a pouco estariam visitando lojas de plantas juntos. Ted se animou depois de esfregar o Buda da sorte, tirar uma carta de tarô favorável e ouvir seu horóscopo. (Embora Ted fosse de Escorpião, Ashling leu a previsão para Áries, porque Escorpião não estava lá essas coisas.) — Atenção: quero os dois se comportando o fino hoje à noite — advertiu Ashling. — E tratando a Lisa muito bem. — Ela que não pense que vai ser tratada a pão-de-ló por mim — disse Joy, defensiva. — Ela é uma filha-da-puta completa? — perguntou Ted. — Não chega a tanto. — Pelo menos, nem sempre. — Mas é ardilosa. Com mestrado pela Universidade das Raposas Velhas. Vamos indo. E lá foram os três, nos trinques, seus passos e vozes ressoando nas escadas. Animados pela promissora sensação de estarem no limiar do futuro, típica da noite de sábado. Uma espécie de antegozo eufórico, Como se o resto de suas vidas estivesse pronto para se desenrolar. O rapaz sem-teto estava sentado na calçada, com seu onipresente cobertor laranja, já não tão mais laranja assim. Ashling abaixou a cabeça. Toda vez que o via sentia-se na obrigação de lhe dar uma libra, e isso já estava começando a irritá-la. Deu uma espiada furtiva nele, que não estava nem olhando na sua direção, ocupado em ler um livro. — Espera só um minuto, gente, eu quero...— Deu meia-volta e dirigiu-se até ele. — Oi! — Ele levantou o rosto, agradavelmente surpreso, como se fossem velhos amigos que não se viam há séculos. — Está bonita. Vai sair? — Hum, vou. — Estendeu-lhe uma libra, que ele não pegou. — Vai aonde? — A um show humorístico.

— Legal — ele assentiu, como se vivesse indo a shows humorísticos. — Quem é o humorista? — Um cara chamado Marcus Valentine. — Ouvi dizer que ele é muito engraçado. — Finalmente pôs os olhos na moeda em sua mão. — Quer fazer o favor de guardar isso, Ashling? Não quero que você me dê dinheiro toda vez que me vir. Desse jeito, vai acabar com medo de sair de casa. Ashling soltou uma risada nervosa, estridente. Nos últimos tempos, quase sempre descia a escada rezando fervorosamente para que ele não estivesse lá. — Como você sabe meu nome? — perguntou, quase lisonjeada. — Sei lá. Devo ter ouvido seus amigos dizerem. Ashling se calou. Uma coisa estranha lhe ocorrera. Finalmente terminou por expressá-la: — Como é o seu nome? — Meus amigos me chamam de Boo. — Ele sorriu para ela. — Muito prazer, Boo — disse ela como uma autômata e, antes que se desse conta do que acontecia, ele já estendera sua mão imunda e ela a apertava. O livro deitado em seu colo era A Enciclopédia dos Cogumelos. — Por que você está lendo isso? — perguntou Ashling, atônita. — Não tenho outra coisa para ler. Ela teve que correr para alcançar Joy e Ted. — Mais um dos desamparados da Ashling — observou Ted, com ar superior, esquecendo completamente a carência em que se encontrava dez minutos antes. — Ah, cala a boca! Imagina só ter que passar a noite de sábado mendigando numa rua gelada, lendo um livro sobre cogumelos.

Lisa esperava fazer algum progresso com Jack Devine conseguindo que ele fosse ao show humorístico. Teria sido uma ótima chance de se entrosar com ele, a pretexto de trabalharem. Mas não chegara a ter nenhuma oportunidade de sugerir a idéia casualmente, porque estourara uma crise na emissora de tevê — uma ocorrência rotineira, pelo visto —, e ele passara a quinta e a sexta inteiras fora do escritório, resolvendo o problema. Por esse motivo, ela também não ganhou nenhum elogio de Jack por conseguir que publicassem sua foto no jornal, com isso atraindo um pouco de publicidade antecipada para a Garota. Coisa que a deixou putésima. No sábado, conseguiu encher seu dia fazendo compras para a “nova” casa. Mudara-se para lá na noite anterior e estava louca para atenuar o efeito pinheiral. Além disso, nada como uma ocupação para mantê-la nos eixos. Muito embora as lojas de decoração fossem de uma mediocridade lamentável — como, aliás, tudo o mais naquele país horrível. Ninguém jamais ouvira falar de persianas japonesas em papel-de-arroz, cortinas de boxe com bolsos ou puxadores de vidro em feitio de flor para armários. Até conseguira encontrar uma loja que vendia jogos de cama decentes, em tons pastéis, mas não no tamanho desejado, e uma encomenda demoraria séculos para chegar, pois teriam que importar os jogos da Inglaterra. Por fim, chegou em “casa” e teve que esperar por meia hora a água do chuveiro esquentar. E Jack com aquela conversa fiada de que consertaria o timer para ela! Os homens eram todos iguais, só bocas e calças. E, às vezes, nem calças. Mesmo azeda e ressentida depois daquele dia mais-que-imperfeito, ainda assim lhe agradava a perspectiva de sair à caça de Marcus Valentine. Pelo menos estaria fazendo alguma coisa construtiva. Desde que fora posta a par da situação da publicidade, sua necessidade de conseguir colunas maravilhosas para a Garota tornara-se ainda mais premente.

Pouco depois das nove, chegou ao River Club. Como tudo na Irlanda, foi uma decepção — menor e mais chubrega do que ela esperava. Parecido com o K-Bar, de Londres, é que certamente não era.

Não sabia se teria uma chance de escorar Marcus Valentine, mas, por via das dúvidas, recorrera à produção Sou-uma-garota-comum-e-não-uma-manda-chuva-filha-da-puta-de- revista-feminina. Calças jeans bordadas e surradas, um par de sapatênis e uma camiseta com o decote esfarrapado. Embora estivesse usando maquiagem pesada, a sutileza do efeito raiava a invisibilidade. Sua figura era jovem, bonita e acessível, como se tivesse vestido as primeiras roupas em que pusera a mão, e não passado uma hora inteira se olhando no espelho (de pinho), calculando cuidadosamente o efeito que surtiria.

Esquadrinhou o salão apinhado de gente à procura de Ashling e seus amigos, mas nem sinal dela. Resolveu ir até o bar e pediu um Cosmopolitan — o nome do martíni ultrafashion que a turma virava no K-Bar, no Chinawhite e demais bares descolados que ela freqüentava em Londres.

— Um o quê? — perguntou o barman gordo, de cara vermelha, quase rebentando dentro de sua camisa de náilon.

— Um Cosmopolitan.

— Se é revista que você quer, tem uma loja que vende, duas portas adiante — escusou-se. — Aqui a gente só vende bebida.

Lisa chegou a cogitar da hipótese de lhe ensinar a fazer o drinque, mas então se deu conta de que não sabia.

— Um copo de vinho branco — soltou, brusca, cheia de irritação. Talvez nem isso tivessem. Teria que beber aquela cerveja nojenta, a tal de Guinness.

— Chablis ou Chardonnay?

— Ah — hum, Chardonnay.

Acendeu um cigarro e deu uma geral na multidão. Terminou o cigarro e o copo de vinho, mas Ashling ainda não havia chegado.

Talvez seu relógio estivesse adiantado. Lisa avistou um grupo de rapazes a poucos metros dali, escolheu o mais bem-apessoado e perguntou:

— Que horas são?

— Nove e vinte.

— ...e vinte? — Era pior do que ela pensara.

— Levou um bolo?

— Não! Mas o encontro estava marcado para as nove.

O rapaz percebeu seu sotaque. — Você é inglesa? Ela assentiu. — Daqui a pouco eles chegam. Antes das dez, com certeza. É que por aqui “nove horas” é só uma figura de sintaxe, entende? Lisa sentiu o sangue lhe subir à cabeça. Aquela porra de país. Tinha ódio mortal dele. — Mas vamos ficar conversando com você até eles chegarem — ofereceu-se o rapaz, com um sorriso galante. Enfiou os indicadores na boca, soltou um assobio estridente e acenou para os amigos que haviam se afastado, chamando-os de volta. — Não precisa... — tentou Lisa. — Não esquenta, não — ele a tranqüilizou. — Rapazes — disse aos cinco amigos —, essa aqui é... — Indicou Lisa com um salamaleque, à espera de que ela declinasse seu nome. — Lisa — informou ela, emburrada. — Ela é inglesa. Seus amigos se atrasaram e ela está se sentindo uma babaca, tendo que esperar sozinha. — Hospitalidade irlandesa — resmungou Lisa, com desprezo. Os seis rapazes assentiram, entusiasmados. Embora, se fossem ser honestos, suas atenções nada tivessem a ver com a legendária hospitalidade irlandesa, e sim com os cabelos cor de caramelo de Lisa, seus quadris esbeltos e as compridas canelas lisas e bronzeadas que emergiam das bainhas engenhosamente esfiapadas da calça jeans. Se Lisa fosse um homem, a essa altura estaria com a cara enfiada num copo de cerveja, jogada às traças. — Acordo cancelado, olha ela aí. — Aliviada, Lisa viu Ashling passando pela porta. Assim que Ashling viu Lisa, o esplendor de suas roupas novas se evaporou, e ela se sentiu idiota e inferiorizada. Nervosa, apresentou Joy e Ted, quando então, para seu horror, Joy se virou para Lisa, com o queixo empinado em desafio, e soltou: — Jim Davidson, Bernard Manning ou Jimmy Tarbuck — e você tem que dormir com um deles! — Jo-oy! — Ashling lhe deu um tranco. — Lisa é minha chefe! Mas Lisa entrou no jogo imediatamente. Ficou pensativa durante algum tempo e, após refletir longamente, respondeu: — Jim Davidson. Agora, vamos ver. Des O’Connor...

Isso espantou Joy a mais não poder. — ...Frank Carson ou... ou... Chubby Brown. — Os olhos de Lisa se estreitaram, divertidos e cruéis, quando Joy estremeceu. Depois de refletir um pouco, Joy soltou um profundo suspiro: — Vá lá, Des O’Connor. — Ela não é tão má assim — cochichou Joy com Ashling, enquanto procuravam assentos. Ted foi o primeiro a se apresentar e, embora fosse apenas sua terceira aparição em público, já tinha conquistado um fã-clube numeroso e fiel. Sua crise de nervos horas antes no apartamento de Ashling fora totalmente desnecessária. Quando abriu o número gritando para a platéia: “Minha coruja sabe fazer uma sobremesa de chocolate deliciosa!”, um grupo de seis rapazes com jeito de estudantes rebateu: — Pavê? — Não — respondeu Ted, e várias pessoas desfecharam a piada junto com ele: — Pa cumê! Ted acrescentara dezenas de novas piadas de coruja ao seu repertório, e todas bombaram. — O que se diz a uma coruja que anda falando demais? Nem mais um pio!... Que nome se dá à inveja de uma coruja? Olho grande!... Qual é a cantada que a coruja mais gosta de passar? Você me vira a cabeça!... E agora, momento político. Esse Charles Haughey, hein? Fala sério, onde foi que ele arranjou todas aquelas corujas?* Embora a maior parte da platéia estivesse às gargalhadas, Lisa não se deixou enganar. — Sei que é seu amigo, Ashling, mas é um caso inequívoco de O Novo Terno Hugo Boss do Imperador — disse Lisa, ferina. — Ele só está fazendo isso para arranjar uma namorada — explicou Ashling, humilde. — Bom, nesse caso, acho que não tem problema. — Lisa sabia que os fins justificam os meios. Dois outros humoristas se apresentaram depois de Ted, e por fim chegou a vez de Marcus Valentine. A composição química do ar pareceu sofrer uma transformação, carregando-se de intensa expectativa. Quando ele finalmente apareceu no palco, a platéia ficou histérica. Tanto Ashling quanto Lisa se endireitaram e prestaram atenção, embora por motivos muito diferentes.

Marcus Valentine era um espécime estranho de humorista. Seu número não continha nenhuma piada sobre masturbação, ressacas ou Ulrike Johnson, o que era bastante atípico. Sua especialidade era fazer o Homem Perplexo com a Vida Moderna. O tipo de sujeito que dá um pulo no supermercado porque a manteiga acabou e entra em parafuso porque não consegue se decidir entre manteiga cremosa, manteiga não-saturada, manteiga poliinsaturada, manteiga com sal, manteiga sem sal, manteiga light, manteiga diet e outras manteigas que nem manteigas são, apenas fingem ser. Um homem envolvente e simpático — de uma maneira sardenta, por assim dizer. Desorientado e vulnerável. E com um corpo muito bem-feito. Ashling ia catalogando todos esses dados, alarmada. Então se apressou em enumerar as razões pelas quais rejeitara Marcus Valentine. Um: seu entusiasmo. Um par de olhos brilhantes num rosto desprovido do menor vestígio de cinismo não tem nada de sexy. É triste, mas é verdade. Dois: suas sardas. Três: o fato de estar a fim dela. Quatro: seu sobrenome idiota.

 

* Referência ao enriquecimento ilícito do ex-presidente da Irlanda. Durante seu mandato, era corriqueira a pergunta "Onde foi que ele arranjou todo aquele dinheiro?"

 

Mas, enquanto olhava para ele, com suas pernas compridas e peito largo, deu-se conta de que estava correndo o risco mortal de sucumbir à Lei do Homem no Palco. Junte-se a isso o fato de que ele dissera que lhe ligaria, mas não ligara — uma combinação fatal. Não vou fazer isso, dizia a si mesma. Não vou em hipótese alguma fazer isso... Era o equivalente mental de enfiar os dedos nos ouvidos e gritar: “LÁ-LÁ-LÁ, não estou te ouvindo, não estou te ouvindo...” — Flocos de neve! — declarou Marcus, os olhos arregalados de inocência percorrendo a platéia. — Dizem que não existem dois iguais. Fez uma pausa de suspense, e então gritou: — Mas como é que eles sabem? Enquanto as pessoas se acabavam de rir, ele perguntou, perplexo: — Por acaso compararam cada um deles? Por acaso verificaram? E passou para a piada seguinte.

— Tinha uma moça que eu queria convidar para sair — disse à sua apaixonada platéia. Será que sou eu?, Ashling se pegou pensando. Ele atravessou o palco, como se refletisse profundamente. As luzes de cima incidiam sobre os feixes de músculos de suas coxas. — Mas, da última vez que pedi a uma moça o número do seu telefone, ela disse: “Está no catálogo.” O problema é que eu não sabia o nome dela e, quando perguntei, ela disse... — Interrompeu- se por um momento e, com um timing impecável, desfechou: — “Também está no catálogo.” O clube rompeu em gargalhadas. Mas eram gargalhadas de solidariedade, do tipo Pelo-menos-não-é-só-comigo-que-isso-acontece. — Aí resolvi segurar um pouco a onda. — Deu um sorriso bobinho e todo mundo se derreteu. — Então pensei em me inspirar em Austin Powers e pedir à moça que ligasse para mim. Escrevi meu nome e meu número num pedaço de papel e me perguntei o que Austin Powers diria. — Fechou os olhos e encostou os indicadores nas têmporas, dando a entender que estava em íntima comunhão espiritual com Austin Powers. — E, de repente, eu soube. Bellez-moi! — declarou Marcus. — Sutil, inteligente, sofisticado. Que mulher poderia resistir? Bellez-moi! Fiquei famosa, Ashling teve o ímpeto histérico de se levantar e contar para todo mundo. — Um doce para quem me disser o que aconteceu! — Marcus percorreu os rostos na platéia com uma carinha apalermada de fofo. Era como se um laço apertado o unisse a cada um dos espectadores. Correspondiam intensamente ao seu comando, cheios de amor, enquanto ele prolongava o suspense ao máximo, prendendo-os na palma de sua mão sardenta. — Pois bem, ela não ligou! Não restava dúvida, Marcus era um desses fracassados que nasceram para o sucesso.

Lisa se levantou no minuto em que ele saiu do palco. Ele já se recusara a almoçar com ela quando Trix ligara para seu agente, mas ela tinha a esperança de que o binômio Bajulação Extrema mais Lisa Edwards em Pessoa fosse capaz de fazê-lo mudar de idéia. Ashling observou-a escorando Marcus no canto do palco, e ficou em dúvida se deveria acompanhá-la. Não queria se aproximar demais dele, para não correr o risco de ele a ver — o risco de pensar que... Mas Ted fora cercado por fãs e Joy acabara de ver Metade-homem-me... — Mick conversando com outra mulher, e saíra atrás dele para investigar. Ashling ainda continuou sentada por mais algum tempo e, por fim, se levantou. Curiosa, observou Marcus olhando para Lisa, enquanto ela jogava sua lábia em cima dele: sua cabeça estava inclinada para o lado, e a maneira esdrúxula como curvava os cantos da boca para baixo numa careta perplexa era uma graça. Nesse momento, Lisa parou de falar, e ele tomou a palavra. Estava no meio de um discurso que tinha toda a pinta de uma recusa, quando vislumbrou Ashling e se interrompeu bruscamente. — Oi — disse por mímica labial, abrindo um vasto sorriso para ela, os olhos fixos nos seus, cheios de carinho. Como se a gente tivesse algum tipo de combinação, pensou Ashling, constrangida. Ele acha que vim aqui especialmente para vê-lo. Ele continuou a falar por mais alguns segundos, mas sempre lhe dando olhadelas furtivas. Por fim, tocou o braço de Lisa em sinal de despedida e se aproximou. — Oi de novo. — Oi. — O que você está fazendo aqui? Ela demorou um segundo para responder, os olhos baixos, à sombra das pestanas. Então os ergueu lentamente, e sorriu. — Pensei que Macy Gray fosse se apresentar. — Merda! Estou flertando com ele. Ele riu, apreciando a piada. — Gostou do show? — Hum-hum. — Ela assentiu, repetindo o golpe das pestanas. — Posso te levar para tomar um drinque qualquer hora dessas?

Que isso lhe servisse de lição. Estava hipnotizada como um coelho pego de surpresa pelos faróis de um carro. Um coelho que dera um passo maior do que as patas, por assim dizer. Não posso me sentir atraída por ele só por ser um cara famoso e admirado. Isso faria de mim uma pessoa muito frívola. — Claro. — Sua voz resolvera ir em frente mesmo sem seu consentimento. — Me liga. — Seu número...? — Você tem. — Me dá de novo, por via das dúvidas. Marcus encetou uma pantomima elaborada, apalpando o corpo, como quem procura distraidamente uma caneta e um papel. Felizmente, Ashling carregava em sua bolsa uma quantidade de artigos de escritório equivalente ao suprimento de uma escrivaninha. Anotou às pressas seu nome e o número de seu telefone numa página arrancada a um caderno. — Vou guardar isso como um tesouro — disse ele, dobrando-o num quadradinho e enfiando-o no bolso da frente da calça jeans. — Perto do meu coração — prometeu, com um tom carregado de segundas intenções. — Já vou indo, mas ligo em breve. Confusa com seus próprios sentimentos, Ashling o observou enquanto se afastava. Por fim, ciente de que Lisa olhava para ela com ar de riso, fugiu para o banheiro. Onde encontrou a pia bloqueada por uma garota miúda com olhos trágicos diante do espelho, retocando o delineador e ficando ainda mais trágica. Quando Ashling abriu a torneira, a trágica se virou para a amiga — uma garota mais alta do que ela, que, sem a menor pressa, contornava uma vez atrás da outra a boca com um untuoso gloss rosa-choque — e soltou: — Frances, você não vai acreditar, mas aquela era eu, sabia? — Aquela quem? — A garota para quem Marcus Valentine deu o bilhete do Bellez-moi. Ashling teve um sobressalto violento, entornando a água toda nas roupas. Ninguém notou. Frances fez uma pirueta lenta e incrédula, a ponta do aplicador de gloss petrificada na boca, enquanto sua trágica amiga prosseguia:

— Foi no Natal passado. A gente passou duas horas na fila do táxi, pertinho um do outro. — Mas por que você não bellou para ele? — Frances afastou o bastão de gloss da boca e sacudiu a amiga com força pelos ombros. — Ele é gostoso. Gostoso! — Sei lá, achei que era só um idiota sardento. Frances mediu com o olhar a garota mais baixa durante um bom tempo, pensativa, antes de dar seu veredicto. — Sabe de uma coisa, Linda O’Neill? Você merece sua infelicidade, merece mesmo. Nunca mais vou sentir pena de você. Ashling, ainda lavando as mãos como alguém no último estágio do transtorno obsessivo-compulsivo, estava em êxtase. Passara a vida inteira à procura de sinais e, se aquilo não era um sinal, então não sabia o que era. Dai uma chance a Marcus Valentine, era o que o oráculo celestial a exortava a fazer. Mesmo que ele andasse distribuindo bilhetes Bellez-moi por aí como se fossem folhetos publicitários, ela estava com um bom pressentimento em relação a ele. Um ótimo pressentimento. Quando saiu do banheiro, Lisa já estava de saída. Agora que conseguira o que queria, não via mais nenhuma razão para permanecer naquele clubeco rastaqüera. — Tchau, até segunda, na redação — despediu-se Ashling, encabulada, sem saber até que ponto deveria demonstrar camaradagem. Lisa abriu caminho pela multidão, contorcendo-se toda, com uma expressão satisfeita. Até que tivera uma boa noite de trabalho. Seu encontro com Marcus Valentine convencera-a de que ele sem dúvida era digno de ser perseguido. Mas não seria nada fácil. Ele não tinha metade da inocência de seu personagem, na vida real. Na verdade, era muito esperto — e escorregadio. Lisa desconfiava que ele não fazia nenhuma objeção concreta a escrever uma coluna, apenas estava esperando uma oferta de algum bom jornal. Para combater essa hipótese, ela o engruparia com a falsa possibilidade de publicar sua coluna também nas revistas internacionais da Randolph Media.

E também tinha havido aquela reviravolta-surpresa — ele parecia estar interessado em Ashling. Imprensado entre as duas, poderiam apelar para um ataque-sanduíche. A coluna já estava praticamente no papo. Mas era melhor agir depressa e alinhavar tudo antes que ele desse um fora em Ashling. Porque ele daria um fora em Ashling. Lisa conhecia esse tipo de homem de longa data. Basta catapultar um sujeito banal para o estrelato, que ele não perde mais uma oportunidade de se aproveitar das garotas extracurriculares. A coisa podia acabar se complicando — Ashling parecia ser dessas mulheres patéticas que reagem muito mal quando são chutadas para escanteio, e a última coisa de que Lisa precisava numa época agitada dessas era uma redatora-chefe em plena barafunda de suas faculdades mentais. Não conseguia entender as pessoas fracas, que entregavam os pontos. Era o tipo de coisa que ela jamais faria. Claro, tudo isso era baseado na suposição de que Ashling sairia com Marcus. Talvez não saísse, e quem poderia culpá-la? Na opinião de Lisa, ele era um espanto. Aquelas sardas! E o fato de fazer uma platéia mamada vir abaixo não servia de atenuante para elas. — Lisaaa, até mais! Tchau, Lisaaa! — Os rapazes que tinham “tomado conta” de Lisa no início da noite acenaram para ela. — Tchau. — Para sua surpresa, ela riu. Já na porta, passou por Joy, que conversava animadamente com um homem cujo rosto consistia numa faixa soturna por trás da cortina de cabelos compridos e negros. Num rompante, Lisa sussurrou ao passar: — Russ Abbott, Hale ou Pace, e você tem que dormir com um deles. Joy se virou, mas Lisa já rumava para casa. Ao avançar a passos largos pelas ruas, deu-se conta de que aquela noite tivera qualquer coisa de diferente. Ela tinha se sentido... Tinha sido uma noite... De repente, a ficha caiu: divertida! É isso, tinha sido uma noite divertida.

Lisa acordou na manhã seguinte sentindo que não agüentava mais. E ponto final. Nunca se sentira tão desesperançada. Nem durante a terrível fase terminal de seu casamento com Oliver — porque, na época, metera a cara no trabalho, extraindo um conforto amargo do fato de pelo menos uma parte de sua vida ainda estar de pé. A questão é que Lisa não aceitava de modo algum a idéia da depressão. A depressão era um sentimento que acometia os outros quando suas vidas deixavam a desejar em termos de brilho. O mesmo que solidão. Ou tristeza. No entanto, se a pessoa tivesse uma boa coleção de sapatos, comesse com freqüência em ótimos restaurantes e fosse promovida em detrimento de alguém que merecesse a promoção mais do que ela, não havia necessidade de se sentir tão mal assim. Em teoria, pelo menos. Deitada em sua cama, chocou-se ao perceber o quanto estava deprimida. Culpou as cortinas e a pletora de pinho — só essa combinação já bastava para acabar com os nervos de qualquer pessoa com consciência de estilo. Odiava a quietude para além da luminosidade baça do quarto. Porra de jardim, pensou, feroz. O que queria era o ronrom do motor dos táxis, o som das portas dos carros sendo batidas, os passos e as vozes de gente bem-vestida em seu vaivém. Queria vida do outro lado de sua janela. Estava de ressaca da noite anterior — perdera a conta dos copos de vinho branco que tomara e, de mais a mais, de pouco adianta alternar um copo de vinho com outro de água mineral quando já se está na vigésima rodada. A culpa fora daquela tal de Joy.

Mas sua verdadeira ressaca era emocional. Havia se divertido, aproveitado bastante, mas o alto-astral da noite passada deflagrara alguma coisa, porque simplesmente não conseguia parar de pensar em Oliver. E estava indo tão bem até agora! Sempre conseguindo bloquear suas lembranças durante os últimos... permitiu-se fazer as contas... quase cinco meses. Na verdade, agora que não estava resistindo a pensar no assunto, sabia quantos dias fazia. Cento e quarenta e cinco. É fácil não perder a conta quando o cara escolhe o reveillon para te dar o fora. Não que ela tivesse se esforçado muito para convencê-lo a ficar. Era orgulhosa demais. E teimosa demais — pusera na cabeça que as diferenças entre os dois eram irreconciliáveis Havia algumas coisas em relação às quais não cederia — não poderia ceder. Mas, nessa manhã terrível, só conseguia se lembrar dos bons momentos, dos primeiros tempos, cheios de esperança e promessa de amor. Trabalhava na Chic, e Oliver era fotógrafo de moda. Com uma Carreira em Ascensão. Entrava dando pulinhos graciosos na redação, quase sempre carregando uma enorme sacola com seu equipamento, que parecia pequena a tiracolo de seu ombro musculoso. Mesmo quando se atrasava para algum compromisso com a diretora — para dizer a verdade, principalmente nessas ocasiões —, sempre parava para bater um papo com Lisa. — Como está Nova York? — perguntou Lisa, durante uma dessas conversas. — Um lixo. Detesto aquele lugar. — É mesmo? — Todo mundo parecia adorar Nova York, mas Oliver nunca se deixava influenciar pela opinião da maioria. — E fotografou alguma top durante sua estada? — Ah, sim. Um monte. — É? Aí, vamos malhar, como é a Naomi? — Tem um senso de humor fantástico. — E a Kate? — Ah, Kate é uma pessoa muito especial. Embora Lisa tivesse ficado decepcionada por ele não lhe escancarar os bastidores das modelos, contando-lhe casos sobre seus pitis e picos de heroína, ficou muito impressionada com o fato de ninguém impressioná-lo.

Era infalível: mesmo antes de vê-lo, todo mundo já sabia que ele estava na redação. Porque sempre havia um clima de alvoroço ao seu redor — ora reclamava que haviam ferrado com seu orçamento, ora protestava que haviam impresso suas queridas fotos em papel ordinário, ora discutia ou ria vigorosamente. Sua voz grossa seria sedutora como chocolate, se ele não tivesse uma figura tão vibrante. Quando ria em público, as pessoas sempre se viravam para olhar. Isto é, se já não estivessem olhando antes. A beleza de seu corpo grande e rijo, aliada de maneira contrastante à sua graça sinuosa, era enfeitiçadora. Quando ele entrava na redação, Lisa aproveitava para analisá-lo discretamente. “Negro” seria a palavra errada, pensava. O fenômeno era infinitamente mais complexo e sutil. Tudo reluzia — sua pele, seus dentes, seus cabelos. Para não falar nas gotas de suor na testa da diretora. Que tipo de rolo ele iria armar dessa vez? Embora ainda estivesse fazendo seu nome, era honesto, teimoso e difícil. Nunca se rebaixava diante de ninguém e, quando alguém o irritava, dizia isso na cara da pessoa. E foi essa autoconfiança, conjugada com sua beleza, que levou Lisa a decidir que o queria. É claro que nada tinha contra o fato de sua carreira estar em ascensão.

Desde que começara a sair com rapazes, os encontros de Lisa sempre haviam sido estratégicos. Não era do tipo de garota que sai com um empregadinho de companhia de seguros. Não que chegasse a agir com tanto sangue-frio assim. Nunca se obrigou a sair com nenhum homem bem relacionado de quem não gostasse. Quer dizer, quase nunca. No entanto, tinha de reconhecer que havia homens por quem se sentia atraída, mas que jamais levaria a sério — como um rapaz encantadoramente circunspecto que trabalhava na seção de arquivos do tribunal e atendia pelo nome de Frederick; Dave, o mais meigo dos bombeiros hidráulicos; e — o mais inadequado de todos — um bandidinho cheio de chinfra chamado Baz. (Pelo menos, esse foi o nome que deu a Lisa, mas não havia nenhuma garantia de que fosse o verdadeiro.) Vez por outra ela se permitia um agradinho, e embarcava numa rápida aventura com algum desses lindos casos perdidos, mas nunca cometera o erro de achar que algum deles tivesse futuro. Eram a versão humana do chocolate Milky Way: o tipo de homem que você pode beliscar entre as refeições sem perder o apetite. Seus verdadeiros relacionamentos eram com homens de outro calibre. Como o dinâmico executivo com quem tivera o romance que a levara a conseguir seu primeiro emprego, na Brotinho. Ou um romancista do gênero Angry Young Man,* que lhe deu um fora um tanto cruel, e cujos romances ela posteriormente cuidou para que recebessem resenhas virulentas (o que o deixou mais angry ainda). Ou um controvertido jornalista especializado em crítica musical, por quem ela foi louca até ele descobrir o acid jazz e deixar crescer um cavanhaque. Oliver abarcava as duas categorias de homens: era bonito o bastante para pertencer à primeira, mas talentoso e descolado o bastante para se defender na segunda.

A cada visita que Oliver fazia à redação da Chic, sua ligação com Lisa tornava-se mais intensa. Ela sabia que ele gostava dela e a respeitava, que a atração que sentiam um pelo outro era forte e muito mais do que física. Naquele remoto passado, nem todo mundo que trabalhava com Lisa a odiava, mas, à medida que se tornava a favorita de Oliver, tornava-se também a Colega Mais Execrada. Principalmente depois que começou a lhe prestar favores especiais. Quando encontrou quatro negativos que tinham desaparecido, por exemplo, Oliver deu um esporro bem-humorado no pessoal da redação: — Escuta aqui, sua cambada de babacas inúteis, essa moça é um gênio. Por que vocês não podem ser como ela? Com essa, um olhar indignado percorreu a redação como uma corrente elétrica. Lisa podia até ter encontrado os negativos desaparecidos, mas, em compensação, há dois dias que fazia uma besteira em cima da outra. Lisa sabia por alto que Oliver tinha uma namorada, mas não ficou nem um pouco surpresa quando chegou aos seus ouvidos que ele estava novamente solteiro. Sabia que era a próxima da fila. Embora flertassem feito loucos, era sem o menor acanhamento. Seu envolvimento era tão óbvio, que teria sido hipócrita negá-lo. Tão óbvio que Flicka Dupont (editora assistente de variedades), Edwina Harris (editora sênior de moda) e Marina Booth (editora de saúde e beleza) se mancomunaram para impedir que ela recebesse a parte que lhe cabia de uma cesta gratuita de xampus John Frieda, sob a alegação de que ela já gozava de vantagens demais. Finalmente, chegou o dia em que Oliver apareceu na Chic, se encaminhou direto para Lisa e disse: — Posso te levar para tomar um drinque sexta à noite, paixão? Ela hesitou, já a pique de fazer jogo duro, mas pensou duas vezes e, com uma risada trêmula, disse: — Pode. — Você ia me fazer sofrer não ia? — perguntou ele. — Hum-hum — assentiu ela, com ar solene.

Em seguida soltaram gargalhadas tão escandalosas que, três mesas adiante, Flicka Dupont murmurou “Por favor!”, e foi obrigada a girar o dedo dentro do ouvido para que parasse de zumbir.

 

* Angry Young Men [Jovens Ferozes]: Grupo de escritores na Grã-Bretanha do pós-guerra, célebres por sua crítica mordaz aos valores e ao estilo de vida das classes média e alta.

 

Horas depois, Flicka disse para Edwina, cheia de desdém: — Não tenho a menor inveja dela. — Deus do Céu, nem eu! — Ele é um temperamental. — Intragável — concordou Edwina. Ficaram em silêncio. — Até que eu gostaria de fazer sexo com ele — admitiu Flicka, por fim. — Jura? — A perspicácia nunca estivera entre os pontos fortes de Edwina. Na sexta à noite, Oliver e Lisa foram tomar um drinque. Em seguida ele a levou para jantar, e se divertiram tanto que resolveram emendar numa boate e dançar durante horas. Às três da madrugada foram para o apartamento dele e se entregaram ao sexo sôfrego por que tanto ansiavam, antes de dormir algumas horas. Na manhã seguinte, acordaram nos braços um do outro. Passaram o resto do dia na cama, conversando, cochilando e se amando apaixonadamente. À noite, saciados, levantaram-se voluptuosamente do seu ninho e amor, e Oliver levou Lisa a um restaurante francês fajuto, cuja única virtude era o fato de ficar a pouca distância de seu apartamento. Com os rostos iluminados por velas vermelhas presas em garrafas de vinho, deram na boca um do outro ostras insossas e pedaços de coq au vin duro. — É a comida mais deliciosa que já provei na vida. — Lisa lambeu os dedos, fitando-o do outro lado da mesa. Na volta para casa, viram-se engolfados por um casamento armênio que estava sendo celebrado no salão paroquial da igreja do bairro. — Venham, venham — um homem expansivo os convidou, quando passaram por ali. — Comemorem a felicidade do meu filho. — Mas... — protestou Lisa. Isso não era jeito de uma guerreira do estilo passar a noite de sábado! E se algum conhecido seu a visse? Mas Oliver disse, descontraído: — Por que não? Vamos lá, Lees, pode ser divertido.

Alguém empurrou dois drinques nas suas mãos, e eles se sentaram no interior de uma bolha onírica de descontração, ao que todos à sua volta, jovens e velhos, vestindo trajes típicos bordados e bufantes, dançavam estranhas gigas semelhantes à polca, ao som de uma música rápida e estridente como o bazouki grego. Uma velha com um pano amarrado na cabeça beliscou a bochecha de Lisa, carinhosa e sorridente, seu olhar pulando dela para Oliver e de volta, ao dizer: — Amando. Amando muito. — Ela está se referindo a mim ou a você? — perguntou Lisa, ansiosa, compreendendo, um pouco tarde, que podia andar dando na pinta um pouco demais ultimamente. — A você, moça. — A velha abriu um sorriso desdentado. — Vai tomar banho — murmurou Lisa. Oliver explodiu numa gargalhada, seus belos lábios esticados ao redor das fieiras de dentes fortes e brancos. — Que sensibilidade! — provocou-a. — Deve ser porque você realmente me ama. — Ou talvez seja você que me ame — rebateu ela, rabugenta. — Eu nunca disse que não amava — tornou ele. E, embora não fosse o tipo de coisa que acontecesse com ela a toda hora, ali, em meio à inesperada beleza surrealista daquela festa de casamento, teve a sensação de que haviam sido tocados pela mão de Deus. Na manhã de domingo, acordaram aninhados nos braços um do outro. Oliver a enfiou aos empurrões no carro e voou pela auto-estada em direção ao parque Alton Towers, onde passaram o dia se desafiando a dar voltas em montanhas-russas cada vez mais perigosas. Embora ela estivesse apavorada, deu uma volta na Nemesis para não demonstrar medo diante dele. Quando saiu, esverdeada e cambaleante, ele riu: “Foi demais para você, paixão?” Ao que ela respondeu que sofria de labirintite crônica. Oliver a desafiava e atraía mais do que qualquer outro homem jamais fizera. Ele era como ela — só que mais ainda. Em seguida, foram para casa comer pizza e fazer amor. Seu primeiro encontro durou sessenta horas e só terminou no momento em que ele a deixou no trabalho, na manhã de segunda-feira.

Por volta do terceiro encontro, estavam oficialmente apaixonados. No quarto, Oliver decidiu levá-la a Purley para conhecer seus pais. Lisa achou que era um ótimo sinal, mas, por acaso, quase foi a desgraça dos dois. O mistério começou a se desvendar quando já estavam no carro havia mais ou menos uma hora e meia, e Oliver comentou: — Não sei se papai já vai ter chegado em casa. — O que ele faz? — Lisa nunca pensara em perguntar antes, pois não parecia importante. — Ele é médico. Médico? — Que tipo de médico? Um sanitarista das ruas — ou, por outra, um gari? — Clínico geral. O choque a deixou muda. Vinha acalentando a idéia de que Oliver fosse uma pessoa humilde, e eis que sempre fora classe média, e ela, sim, a metade “humilde” do casal. Agora, não o levaria para conhecer seus pais nem a bala. Durante o resto do percurso, torceu para que, apesar de seu pai ser médico, a família fosse pobre. Mas, quando o carro de Oliver entrou no terreno do casarão quadrado, com suas janelas adornadas por treliças de ferro em falso estilo Tudor, as persianas austríacas Laura Ashley e a pletora de enfeites à vista nos peitoris, ela compreendeu que eles não estavam exatamente de pires na mão. Antes de saírem, ela esperara que a mãe de Oliver fosse uma mulher de coxas grossas, bem-humorada, calçando sapatos da Minnie, que tomava Red Stripe no café da manhã e soltava uma gargalhada estridente, do tipo “Ri! Ri! Ri!”. Em vez disso, quando abriu a porta, parecia a rainha Elizabeth. Alguns tons mais escura, mas com o mesmo capacete cacheado e roupas afetadas da Marks & Spencer, como mandava o figurino. — Muito prazer, querida. — O sotaque era puro Sul da Inglaterra, e Lisa sentiu sua auto-estima despencar mais ainda. — Oi, Sra. Livingstone. — Pode me chamar de Rita. Entre, por favor. Meu marido se atrasou no consultório, mas já deve estar chegando.

Conduziu-os a uma sala bem mobiliada e, quando Lisa viu que as capas protetoras dos tapetes e cortinas haviam sido removidas, foi o golpe final. — Aceita um chá? — ofereceu Rita, jovial, afagando o Labrador dourado que deitara a cabeça em seu colo. — Lapsang Suchong ou Earl Grey? — Indiferente — murmurou Lisa. Qual era o problema com PG Tips? — Não era isso que eu esperava! — Lisa não se conteve e cochichou para Oliver, quando ficaram a sós. — E o que é que você esperava? Que nóis cumesse arroz com ervilha — passou a fazer um sotaque perfeito do Caribe —, bebesse rum e dançasse na varanda tocando bongô? Exatamente! Não vim por outra razão. — Não havia a menor possibilidade, minha querida. — Mudou rapidamente para a dicção dramática dos locutores de noticiários da BBC durante a Segunda Guerra Mundial: — Porque somos brrrrritânicos! — O nome certo para nós, pelo que me disseram — Rita voltara com uma bandeja de biscoitos caseiros, sem doce e sem graça —, é “Bounties”. Ou “Choc-ices”. — P-por quê? — Lisa ficou confusa. — Marrons por fora, brancos por dentro. — Abriu um súbito e largo sorriso, parecendo um melão quando se tira um naco do meio — É assim que nossos parentes nos chamam. E é preso por ter cão e preso por não ter, porque os vizinhos também nos detestam! O daqui do lado disse que sua casa se desvalorizou em dez mil libras quando nos mudamos para cá. Inesperadamente, num constraste brutal com a sua estampa M & S, soltou uma gargalhada estridente: “Ri! Ri! Ri!” E Lisa sentiu toda a sua reserva se dissolver. Bom, se os vizinhos os detestavam, então estava tudo certo, não é mesmo? Agora não eram mais tão assustadores. No quinto encontro, Oliver e Lisa começaram a falar em morar juntos.

E exploraram a possibilidade no sexto. Seu sétimo encontro consistiu numa viagem de ida e volta de Battersea a West Hampstead, a fim de transportar numa van o considerável guarda-roupa de Lisa para o apartamento dele. — Você vai ter que se desfazer de algumas coisas, paixão — disse ele, alarmado. — Ou a gente vai ter que comprar um apartamento maior. Talvez, como Lisa só foi compreender tempos depois, já houvesse nessa época sinais de que as coisas não iam tão bem quanto deveriam. Por outro lado, estava cega para eles. Nunca experimentara sensação igual de que estava tudo certo. Sentia que ele verdadeiramente a compreendia e aceitava, com toda a sua força, ambição, talento e medo. Acreditava que haviam sido feitos um para o outro. Jovens, entusiasmados, ambiciosos, progredindo apesar de todos os obstáculos. No seu meio, o conceito de alma gêmea andava no auge da moda, recém-importado de Los Angeles. E agora Lisa era a feliz proprietária de uma. Pouco depois de se juntarem, Lisa foi trabalhar na Femme como redatora-chefe. Na mesma época, Oliver se tornou a mais nova aquisição da revista. Embora não fosse popular como pessoa — havia quem o achasse um pouquinho difícil demais —, de uma hora para a outra todas as boas revistas estavam disputando a tapas seu trabalho. Oliver o dividiu fraternalmente entre todas, até Lily Headly-Smythe prometer que usaria uma de suas fotos na capa da edição de Natal da Garbo e depois mudar de idéia. — Ela não cumpriu sua palavra. Nunca mais vou trabalhar de novo para a Garbo ou Lily Headly-Smythe — declarou Oliver. — Até a próxima vez — Lisa riu. — Não. — Seu rosto estava sério. — Nunca mais. E não trabalhou, mesmo, nem quando Lily lhe mandou um filhote de Wolfhound irlandês como pedido de desculpas. Lisa encheu-se de admiração. Ele era tão determinado, tão idealista. Mas isso foi antes de sua irascibilidade se voltar contra ela. Porque, quando isso aconteceu, Lisa já não gostou tanto dela assim.

O domingo de Ashling também não estava sendo nenhuma maravilha. Acordara transbordando de ansiedade em relação a Marcus Valentine. Cheia de curiosidade e expectativa, sentindo-se pronta, prontinha! — para um encontro, um flerte, uma massagenzinha no ego... Alguma coisa, com certeza. Passou a manhã inteira sonhando acordada, encapsulada naquela sensação de bem-estar, suas faculdades positivas em estado de alerta máximo. Mas, à medida que o dia foi morrendo, sem que nenhum telefonema viesse, aquele sorriso interior se azedou e transformou em irritação. Para passar o tempo e despender a energia represada, resolveu fazer uma limpezinha na casa. Não que Marcus tivesse dito quando ligaria. O desencanto de Ashling não era tão motivado pelo senso de rejeição quanto pela sensação de ter perdido uma boa oportunidade. Porque, embora não estivesse cem por cento certa de sua atração por ele, suspeitava que existisse. Certamente estava disposta a dar tudo de si. Do ponto de vista emocional, estava toda produzida e sem nenhum lugar aonde ir, o que não era nada agradável. Olha só para mim, pensou, esfregando a banheira com força para descarregar sua frustração. Já vi esse filme. Tarde demais, compreendeu o quanto adorara aquele breve interregno em que já não estava mais no inferno por causa de um homem nem no paraíso por causa do homem seguinte. Como se arrependia de não ter bellado para Marcus quando tivera a oportunidade! E agora era tarde demais, pois não conseguia encontrar o bilhete. Não tinha nenhuma lembrança de si mesma jogando-o fora — o que seria inevitável se o houvesse feito, pois teria se achado cruel. Mas foi em vão que revirou bolsos e gavetas da mesa-de-cabeceira: não encontrou nada além de notas fiscais, que a encheram de sentimento de culpa, e o anúncio de uma liquidação de computadores.

De volta à limpezinha. Mas, depois de esfregar o interior do microondas, sentiu necessidade de uma pequena compensação, e resolveu ter uma palinha do seu futuro. O tarô dos anjos não prometeu nada, de modo que, para apressar o telefonema de Marcus, Ashling — um pouco sem graça — desencavou o Kit dos Desejos. Que não via a luz do dia desde os últimos tempos de seu namoro com Phelim. Ela sabia que não era um bom presságio. O kit consistia em seis velas, cada uma com uma palavra gravada — Amor, Amizade, Sorte, Dinheiro, Paz e Sucesso —, e as seis caixas de fósforos correspondentes. As velas da Amizade, do Dinheiro e do Sucesso nem haviam chegado a ser acesas, a da Paz e a da Sorte estavam um pouquinho mais baixas, mas era a do Amor que realmente fora posta para jambrar. Era a pastilha de frutas preta do pacote. Reverente, Ashling acendeu a vela, que queimou muito lampeira durante uns dez minutos, até que a cera chegou ao fim, a chama bruxuleou e morreu. Ah, que merda, pensou Ashling. Tomara que não seja um sinal. À noitinha Ted apareceu, sofrendo da depressão que se segue a uma grande euforia. Apesar de ter conhecido um monte de garotas, não engrenara com nenhuma delas. — E aquela, fantástica, com quem você estava conversando quando saí? Dormiu com ela? — Não. — Ted! Você não pode dizer isso. Mesmo que não tenha comido a garota, tem que dizer que sim, para proteger sua honra. Mas Ted não achou graça: — Ela disse que eu tinha um cheiro esquisito. Igual ao da avó dela. — As pessoas às vezes dizem as coisas mais loucas, não é mesmo? — Não, não. — Ted estava aborrecido. — Ela tinha razão. Eu estava mesmo cheirando igual à avó dela. Ashling já se perguntava em voz alta como Ted podia saber qual era o cheiro da avó da garota, quando ele a atropelou, em tom de acusação: — Sabe o que eu acho que era? — O quê? — Aquela porcaria que você esfregou nas minhas têmporas antes de a gente sair.

— Ah, o óleo de lavanda. — Ashling às vezes achava que as pessoas eram muito ingratas com ela. — Aquilo tem cheiro de avó, não tem? — Ted não largava o osso. — Eu achava que em geral elas tinham cheiro de urina choca. — Bastava Ashling se sentir injustiçada para sua língua se afiar. — Ah, ela não servia mesmo para mim — concedeu Ted, rabugento. — São todas jovens e bobas, e gostam de mim pelos motivos errados... Sua amiga Clodagh — perguntou, de repente. — Continua casada, né? — Claro que sim. — Está tudo bem com você, Ashling? — Ted finalmente compreendeu que não era o único com o moral lá embaixo. Ashling refletiu, e resolveu não se lamuriar sobre o fato de Marcus não ter ligado. Ele não faltara com a sua palavra, ainda podia ligar a qualquer momento. Assim sendo, ela preferiu dizer, com ar displicente: “É a fossa de domingo à tarde.” Muitas vezes discutira com Ted, Joy, Dylan — qualquer um que tivesse um emprego, na verdade — sobre a trovoada de horror que ribomba por volta das cinco da tarde de domingo. Quando a consciência de que você tem que ir trabalhar na segunda de manhã desaba sobre sua cabeça como uma tonelada de tijolos. Embora ainda tenha algumas horinhas de fim de semana pela frente, para todos os efeitos ele já acabou, no momento em que o desespero de saber que é o fim da linha toma conta de você. Ted pareceu se dar por satisfeito com a explicação, e olhou para o relógio de pulso. — Cinco e dez. Cravados. — Não agüento mais ficar presa aqui dentro. Vamos sair. — Ashling acabara de se lembrar de uma das regras básicas da relação homem/mulher. É claro que Marcus não ligara — ela ficara esperando ao lado do telefone! Bastaria sair do apartamento para ele provocar um congestionamento nas linhas telefônicas.

Antes de sair, apanhou alguns livros para Boo. Fora pega desprevenida na noite anterior, sem nenhum romance na bolsa para substituir a Enciclopédia dos Cogumelos, e se sentira muito humilhada. Mas, ao enfiar um exemplar de Trainspotting na bolsa, bateu a dúvida: será que ele ficaria ofendido se ela lhe desse um livro sobre viciados em heroína? Será que acharia que ela estava insinuando alguma coisa? Por via das dúvidas, o livro tornou a sair da bolsa. Em seu lugar entrou Febre de Bola e um outro de ficção científica, vagabundo, que devia ter ganho de Phelim no aniversário dois anos atrás e nunca lera. Um livro para homens. Mas, na rua, não viu nem sinal de Boo. Ted e Ashling foram para o Long Hall, onde tomaram dois drinques bastante comedidos, seguidos por uma pizza recatada no Milano’s, e em seguida voltaram para casa. No momento em que Ashling passou pela porta, a primeira coisa que fez foi procurar a luz vermelha piscando na secretária-eletrônica. E lá estava ela! Preparara-se tanto para ter uma decepção, que achou que estava alucinando. Ficou lá, parada, olhando a luz se acender e apagar — bolinha vermelha sim, bolinha vermelha não, bolinha vermelha sim, bolinha vermelha não... Era um recado, não restava dúvida. Ao apertar a tecla “play”, porém, uma idéia horrível a afligiu. Se for Cormac dizendo que vai passar por aqui com um caminhão cheio de arbustos na quarta-feira, eu grito. Mas o recado não era nem do misterioso fornecedor de plantas nem de Marcus Valentine. Era do pai de Ashling. Ah, meu Deus, que será que aconteceu? A voz de Mike Kennedy foi precedida por um silêncio cheio de estalos, chiados de estática e uma respiração ofegante. Em seguida perguntou a alguém que estava a seu lado: “Já posso falar?”

A outra pessoa — a mãe de Ashling, provavelmente — disse algo que Ashling não ouviu. Ato contínuo, Mike prosseguiu: “Deu uns curtinhos e agora um mais comprido. Meu Deus, detesto esses troços... Ashling, aqui é o papai. Estou me sentindo um perfeito idiota por falar com uma máquina. Não temos notícias suas há algum tempo. Você está bem? Aqui estamos todos ótimos. Janet ligou semana passada, teve que mandar o gato embora, ele não parava de dar cabeçadas nela quando ela dormia. E recebemos uma carta de Owen, ele acha que descobriu uma nova tribo. Não uma tribo inédita, é claro. Nova para ele. Imagino que você esteja ocupada com seu novo emprego, mas não vai se esquecer de nós, hein? Ha, ha, ha. Tchau.” Mais estalos e sons de respiração. Seguidos por: “Que é que eu faço agora? Basta desligar? Não tenho que apertar nenhum botão ou qualquer coisa assim?” A ligação foi cortada bruscamente. Ashling foi esmagada pelo sentimento de culpa e o ressentimento. Marcus Valentine estava totalmente esquecido. A pressão para uma visita a Cork já começava a se fazer sentir. No mínimo teria que ligar para eles. Ainda mais quando sua irmã Janet conseguia burlar as oito horas de diferença de fuso horário ligando da Califórnia, e seu irmão Owen fazer com que uma carta enviada da bacia Amazônica chegasse até eles. Deu uma olhada na foto que ficava em cima da tevê. Já estava lá havia tanto tempo, que raramente se dava conta de sua existência. Porém, as emoções provocadas pelo telefonema levaram-na a tomá-la entre as mãos, encarando-a, como que à procura de pistas. E lhe ocorreu, como das outras vezes, que Mike Kennedy fora um homem bonito. Forte e alto, rindo para a máquina fotográfica, com suas costeletas e cabelos encaracolando o colarinho da camisa estampada — o típico visual da década de setenta. O engraçado é que, por um lado, aquele era seu pai. Mas, por outro, parecia o tipo de cafajeste que a mulher vê numa festa e se sente atraída na hora, embora seu instinto de sobrevivência a aconselhe a ficar bem longe dele.

Mike enlaçava Janet, então com quatro anos, seu corpo dobrado para a frente até a cintura, o punho enfiado entre as pernas — ficara apertada antes de tirar a foto, as máquinas fotográficas sempre surtiam esse efeito sobre ela. Encostada em Mike, segurando Owen, de três anos, nos braços cobertos por mangas de poliéster estampadas com grafismos psicodélicos, estava Monica. Sorria, feliz, com sua inverossímil juventude, seus cabelos lisos e bem penteados, seus sofisticados cílios curvos de rímel, ao estilo de Priscilla Presley. E, bem no centro da foto, imprensada entre os dois adultos, com os olhos comicamente vesgos, Ashling. Lúcifer antes da queda — era o que ela sempre pensava ao analisar o retrato. Pareciam uma família perfeita. Mas ela sempre se perguntava se naquela época as coisas já haviam começado a se deteriorar. Recolocando a foto no lugar, voltou ao presente. Já fazia umas três semanas desde que ligara pela última vez para os pais. Não que depois disso tivesse se esquecido de ligar — pensava em fazê-lo várias vezes, mas quase sempre conseguia bolar alguma desculpa para evitar o telefonema. No entanto, essa falta de comunicação nunca a deixava sentir-se realmente em paz. Sabia que Clodagh ligava todos os dias para a mãe. Se bem que Brian e Maureen Nugent fossem muito diferentes de Mike e Monica Kennedy. Se Brian e Maureen fossem seus pais, talvez ela não achasse tão difícil assim manter-se em contato com eles.

Manhã de segunda-feira. Tradicionalmente, a mais deprimente de todas as manhãs. (Com exceção da manhã de uma segunda-feira feriado, quando então a de terça tem seu dia de mingau.) Mesmo assim, Lisa estava animadíssima. A idéia de ir para a redação fazia com que se sentisse no controle da situação — pelo menos, estaria fazendo alguma coisa por si mesma. Então tentou tomar um banho de chuveiro, e a água saiu gelada.

Mas resolveu arquivar por algum tempo o projeto de chamar Jack às falas pelo timer do aquecedor, quando a Sra. Morley deixou escapar que ele passara o fim de semana inteiro conciliando eletricistas furiosos e câmeras ressentidos. Parecia exausto e com um humor cão. Ashling, abatida e atrasada, também estava achando o dia difícil. E o achou ainda mais difícil quando Jack Devine pôs a cabeça de fora do escritório e disse, curto e rasteiro: — Senhorita Quebra-Galho? — Sr. Devine? — Posso dar uma palavra com você? Alarmada, levantou-se depressa demais e teve de esperar que a circulação se refizesse até voltar a enxergar. — Ou você está numa baita encrenca, ou tendo um caso com ele — cochichou Trix, divertida. — Que é que está havendo? Mas Ashling não estava com paciência para as palhaçadas de Trix. Não tinha a menor idéia da razão pela qual Jack Devine queria falar com ela em particular. Já pressentindo uma desgraça iminente, atravessou a redação em direção ao seu escritório. — Fecha a porta — ordenou ele. Vou ser despedida. Estava horrorizada. A porta se fechou às suas costas e, no ato, a sala encolheu — e escureceu. Jack, com seus cabelos escuros, seus olhos escuros, seu terno azul-escuro e seu humor tenebroso, tendia a surtir esse efeito. Para piorar as coisas, não estava sentado atrás da mesa, e sim encostado à sua frente, deixando muito pouco espaço entre os dois. Ele a fazia se sentir tão encabulada. — Eu queria te dar isso sem que o resto do pessoal visse. Ela inclinou o corpo para trás, num gesto instintivo, embora não tivesse para onde ir. Ele lhe estendeu uma sacola de plástico, que ela aceitou, embotada. Percebeu vagamente que era um pouco grande demais para conter um aviso de demissão. Ficou parada, segurando-a entre as mãos, até Jack dizer, com uma risada impaciente: — Olha o que tem dentro.

Amarfanhando o plástico, Ashling espiou dentro da luminosidade perolada da sacola. Para sua surpresa, continha um pacote de dez maços de Marlboro, com uma roseta vermelha torta espetada no celofane. — Porque eu vivo filando seus cigarros.— Jack a encarou, impassível. — Eu, hum, lamento muito — acrescentou, com uma expressão de quem não lamenta nada. — É lindo — ela murmurou, atônita com a revogação de sua sentença — e com a roseta. Pela primeira vez desde que da o conhecera, Jack Devine realmente riu. Uma gargalhada gostosa, autêntica, com a cabeça jogada para trás. — Lindo? — exclamou, deliciado. — Barcos a vela são lindos, ondas de três metros são lindas. Mas um pacote de cigarros, lindo?... Bom, talvez você tenha razão. — Pensei que o senhor fosse me despedir — soltou ela. O rosto dele se contraiu de surpresa. — Despedir você...? Mas, Senhorita Quebra-Galho — disse, a voz subitamente suave, o olhar brincalhão —, quem mais iria nos abastecer de Band-Aids, Anadin, guarda-chuvas, alfinetes de pressão e... como é mesmo o nome daquele negócio para traumas... não-sei-quê de emergência...? — Elixir de emergência. — Bem que ela estava precisada de umas gotinhas. E de dar o fora dali. Para conseguir respirar de novo. — Do que é que você tem tanto medo? — perguntou ele, com a voz ainda mais suave. Ela teve a impressão de que sua alta figura se aproximou. — De nada! — Sua voz saiu como um guincho de freada de ônibus. Ele a estudava, com os braços cruzados. Algo na maneira como os cantos de sua boca se curvavam para cima fazia com que ela se sentisse uma menina boba, como se ele estivesse zombando dela. De repente, sem mais nem menos, ele pareceu se desinteressar. — Vai lá — disparou, voltando para trás da mesa. — Volta para o seu trabalho... Mas não vai contar para os outros — indicou a sacola com a cabeça —, senão vão todos querer um também.

Ashling voltou para sua mesa sentindo-se como se suas pernas pertencessem a outra pessoa. Segurem a primeira página — um furo de reportagem! Jack Devine Não É o Filho-da-Mãe Miserável Que Parecia Ser! Mas o mais estranho de tudo é que ela parecia preferir o antigo Jack Devine. Não fosse por isso: em questão de minutos, as coisas haveriam de voltar ao normal. Mercedes cambaleou pela redação adentro, e todos só faltaram cair de suas cadeiras quando viram que, ao contrário de sempre, estava extravasando sua emoção. Sua forte emoção. Por ordem de Lisa, fora tentar entrevistar a desmiolada Frieda Kiely. E, embora tivesse passado o fim de semana em Donegal fotografando as roupas dela para uma matéria de doze páginas, Frieda a deixara esperando durante uma hora e meia e, por fim, alegara nunca ter ouvido falar na Garota. — Quem é você? — indagou. — Garota? Que diabo é isso? O que é isso? — É uma insana. Uma filha-da-puta louca — rosnou Mercedes, para logo tornar a romper em lágrimas de humilhação. — Uma escrota duma filha-da-puta louca! — Uma psicoputa diabólica sofrendo de TPM. — Kelvin estava louco para cair nas boas graças de Mercedes. — Uma vaca esquizóide — intrometeu-se Trix. — E seca feito um bacalhau — disse Bernard, o Xarope, só para não ficar de fora. Na verdade, não fazia a menor idéia de como ela fosse, e apreciava uma boa filha-da-puta, como todo filhinho de mamãe. — Até o punho de um cigano teria mais carne depois de uma boa briga. Trix olhou para ele com desprezo: — Isso é um elogio, seu babaca. Você não tem noção! Insulto em cima de insulto foi atirado em Frieda Kiely, menos por parte de Ashling, que ouvira dizer que ela era realmente louca. Pelo que constava, era esquizofrênica e não se inclinava muito a seguir sua medicação. — Mas — interrompeu, achando que alguém devia defender Frieda — vocês não acham que deviam tentar se pôr no lugar dela?

— Eu adoraria me pôr no lugar dela — disse Jack Devine, que saíra do escritório para saber que bochicho era aquele. — Mas sem avisar a ela para se levantar primeiro: já ia me jogando em cima antes que ela tivesse tempo de pedir socorro, e só sairia quando os cacos mortais começassem a espetar minha bunda. — Deu um sorriso debochado para Ashling e em seguida soltou, ríspido: — Pelo amor de Deus, Ashling! Você às vezes parece que confunde sua idade com o limite de velocidade! Lisa achou graça. — E qual é o limite de velocidade neste país? — Cento e dez — disse Jack, batendo a porta do escritório. Ashling novamente odiava Jack. As coisas tinham voltado ao normal. Embora Marcus Valentine não tivesse o número de telefone de seu trabalho, Ashling engoliu em seco — e sua alma também, suas entranhas, até seus joelhos engoliram em seco — quando, às dez para as quatro, Trix lhe entregou o telefone, dizendo: “Um homem para você.” Ashling pegou o fone, esperou um momento até se recompor e fez uma vozinha melosa: — Ooooi... — Ashling? — Era Dylan, e pareceu confuso. — Você está resfriada? — Não. — Decepcionada, voltou ao seu tom de voz normal. — Pensei que fosse outra pessoa. — Que tal a gente tomar aquele drinque hoje à tarde? Posso ir à cidade à hora que for mais conveniente para você. — Claro. — Isso a obrigaria a dar um tempo na vigília telefônica em casa. — Passa aqui na redação lá pelas seis. Em seguida, ligou correndo para casa, para ver se havia algum recado. Só fazia quinze minutos que checara pela última vez, mas a gente nunca sabe! Até ficar sabendo. Ninguém tinha ligado. Às seis e quinze, Dylan lhe deu um pequeno susto quando, com os cabelos louros caindo nos olhos, apareceu com um terno de linho bem cortado e uma camisa imaculadamente branca. Ao postar-se diante da mesa de Ashling, parecia haver algo de errado com sua figura — uma espécie de desnível entre os ombros, como se um deles estivesse deslocado.

— Você está bem? — Ashling se levantou, contornou-o e descobriu que a razão pela qual estava torto era o fato de tentar esconder uma sacola da HMV nas costas. — Dylan, eu não vou contar para Clodagh que você andou comprando CDs. — Desculpe. — Ele deu de ombros, sem graça. — É nisso que dá trabalhar em Sandyford, aquele fim de mundo. Sempre que venho à cidade, perco a cabeça nas lojas de CDs. E aí fico me sentindo meio culpado. — Minha boca é um túmulo. — Blazer novo? — perguntou ele, enquanto ela desligava o computador. — É, sim. — Deixa eu ver. Insistindo para que ela ficasse parada, percorreu com o olhar seus ombros e assentiu: “Hum-hum”. Ashling tentou, em vão, encolher a barriga quando seus olhos desceram pelas costuras laterais. Ele assentiu e tornou a dizer “Hum-hum”, num tom de aprovação ainda mais enfático, e então ergueu os olhos. — Cai bem em você — arrematou, com um sorriso. — Cai muito bem em você. — Você não passa de um patife. — O prazer de Ashling crescia à medida que o exame prosseguia. Dylan era incrivelmente pródigo com seus elogios. Mas, mesmo sabendo que ele os distribuía a torto e a direito, era difícil não acreditar neles, e menos ainda não ficar encantada.

— Você é perigoso — disse ela, envaidecida. — Vamos lá. — Virou-se para sair e viu que Jack Devine estava por perto, vasculhando com a cara fechada um fichário na mesa de Bernard. Ela se despediu, sorrindo, nervosa e, durante um segundo de inquietação, achou que ele iria ignorá-la. Soltou um profundo suspiro quando ele disse: “Boa-noite, Ashling.” Lisa acabava de sair do banheiro, onde retocara a maquiagem em homenagem ao seu jantar aquela noite com um célebre chef irlandês que esperava convencer a assinar uma seção de culinária. Voltando apressada à redação para buscar seu blazer, contornou a porta depressa demais e deu um encontrão num homem que nunca tinha visto. Seu ombro bateu no peito dele, e ela sentiu, por um momento, o calor do corpo do estranho, que lhe atravessava a camisa fina. — Desculpe. — Ele pôs as mãos grandes nos seus ombros. — Você está bem? — Acho que sim. — Enquanto ela se endireitava, os dois trocaram um olhar longo e interessado. Foi quando ela viu Ashling ao lado dele. Seria seu namorado? Não, claro que não. — Quem era essa? — perguntou Dylan, quando as portas do elevador se fecharam atrás deles. — Você é um homem bem casado — relembrou Ashling. — Só perguntei, ué. — O nome dela é Lisa Edwards e ela é minha chefe. — Ashling se lembrou da conversa que tivera com Clodagh sobre as conferências a que Dylan ia. Será que ele é fiel a ela? — Onde vamos tomar esse drinque? — apressou-se em perguntar. Ele a levou ao Shelbourne, que estava lotado de pândegos pós-expediente. — Vamos ter que ficar em pé — disse Ashling. — Nunca vamos conseguir uma mesa. — A esperança é a última que morre — disse ele, com os olhos brilhantes. — Espera aí. Em questão de segundos abordou um grupo sentado a uma mesa, bateu um papo rápido e sorridente com eles e voltou para junto de Ashling. — Vamos lá, eles já estão de saída. — Desde quando? Que foi que você disse a eles? — Nada! Só notei que já estavam acabando.

— Hummm. — Dylan tinha uma lábia tão irresistível, que seria capaz de vender sal para a Sibéria. — Senta aí, Ashling — tchau, muito obrigado! — Todo sorrisos, acenou para os doadores da mesa. Em seguida, com uma rapidez um tanto suspeita, abriu caminho pela multidão no bar e voltou com os drinques. As boas coisas tinham o hábito de acontecer com Dylan. Quando ele pousou o copo de gim-tônica diante de Ashling, ela se perguntou, e não pela primeira vez, como seria ser casada com ele. Uma felicidade completa, suspeitava. — Me conta tudo, tudo, sobre esse novo emprego maravilhoso — ordenou Dylan, veemente. — Quero saber tudo sobre ele. Ashling se deixou levar pelo entusiasmo contagiante de Dylan. Esbaldando-se, esboçou todas as diferentes personalidades que trabalhavam na Garota e a maneira como interagiam — ou deixavam de interagir, dependendo do caso. Dylan ria muito, parecendo sinceramente divertido, e Ashling caiu, até certo ponto, na armadilha de achar que era uma grande contadora de casos. Tudo isso fazia parte do mesmo mecanismo que vira em ação quando ele admirara seu blazer novo — seu grande dom de aumentar a auto-estima das pessoas. Era uma coisa compulsiva. Não que fosse insincera, e Ashling sabia disso. Apenas um pouco excessiva. Ela não devia cometer o erro de contar as mesmas histórias idiotas para outras pessoas e esperar gargalhadas semelhantes. — Meu Deus, como você é engraçada. — Ele tocou o copo dela com seu, num brinde elogioso. Seu tom de flerte sempre prometia mais do que ele estava preparado para dar. Não que Ashling o levasse a sério. Não mais, pelo menos. — E aí, como vai a firma de informática? — perguntou ela, por fim. — Meu Deus! Um movimento louco! A gente quase não está dando conta das encomendas. — Uau! —Ashling sacudiu a cabeça, maravilhada.— Quando te conheci, você nem sabia se a empresa chegaria ao segundo ano. Olha só para você agora!

Houve um breve hiato na conversa, quase imperceptível, provocado pela menção à época em que haviam se conhecido. Mas, por sorte, seus drinques já estavam quase no fim, e Ashling se pôs de pé: — O mesmo de novo? — Senta aí, eu pego. — De jeito nenhum, eu vou... — Senta aí, Ashling, faço questão. Era outra característica de Dylan: a generosidade espontânea e elegante. Quando voltou com os drinques, Ashling perguntou, ansiosa: — Mas e aí, havia alguma razão em especial para você querer se encontrar comigo? — Pois éééé... — disse ele, com voz arrastada, brincando com um porta-copos de papel. — É, havia. — De repente não estava nada à vontade, e só isso já era motivo de preocupação. — Você não notou... nada...? Ashling esperou que Dylan prosseguisse, mas ele continuou calado. — Nada como? — Em Clodagh. — Como assim? — Eu estou... — Uma longa pausa. — ...um pouco preocupado com ela. Nunca parece estar feliz, vive irritada com as crianças e às vezes até... se comporta de maneira meio irracional. Molly a acusou de bater nela, e nós nunca batemos nas crianças. Outra pausa pouco à vontade, antes de Dylan prosseguir: — Provavelmente você vai achar isso uma idiotice, mas ela vive reformando a casa. Mal a gente acaba um cômodo, ela já está falando em reformar outro. Eu tento conversar com ela sobre isso, mas não adianta nada. Andei imaginando... pensei que ela talvez estivesse deprimida. Ashling refletiu. Agora que pensava no assunto, Clodagh parecia insatisfeita e um tanto irascível nos últimos tempos. E realmente parecia andar exagerando com as reformas. Ashling também achara estranho ela dizer a Molly que Barney morrera. Chocante, mesmo. Embora o argumento de Clodagh de que também tinha sentimentos tivesse parecido razoável. Mas agora, à luz da preocupação de Dylan, no ato tudo isso voltou a se revestir de uma aparência sinistra. — Não sei. Talvez — disse Ashling, profundamente pensativa. — Mas é difícil criar filhos. Uma coisa muito estressante. E quando a pessoa tem que trabalhar horas a fio...

Dylan se inclinou para a frente, escutando atentamente o que Ashling dizia, como se suas palavras pudessem ser colhidas ou retidas. Mas, quando ela se calou, num silêncio deprimido, ele disse: — Espero que não se importe por eu dizer isso, mas achei que você talvez conhecesse alguns dos sintomas. Por causa da sua mãe... Como Ashling permanecesse calada, ele a instigou: — Sua mãe sofreu de depressão, não sofreu? A delicadeza de Dylan por si só não foi suficiente para convencer Ashling a falar. — E por isso pensei que Clodagh pudesse estar passando pela mesma coisa... De súbito, Ashling se viu novamente em meio à roda-viva da loucura, da perplexidade, do terror de todas as horas. Os gritos do passado ecoavam em seus ouvidos, mas os músculos de sua boca permaneceram imóveis, travados pela falta de vontade de tocar no assunto. — O comportamento de Clodagh não se parece em nada com o da minha mãe — afirmou, categórica, quase agressiva. — Não? —À esperança de Dylan aliava-se uma enorme curiosidade. — Reformar a sala não é sintoma de depressão. Bom, pelo menos não da depressão como eu a conheço. Ela não se recusa a sair da cama, se recusa? Ou tem vontade de morrer, tem? — Não. — Ele sacudiu a cabeça. — De jeito nenhum. Nada desse gênero. Se bem que a mãe de Ashling não tivesse começado assim. Fora uma coisa gradual, não fora? A contragosto, Ashling se viu de volta aos seus nove anos, a idade que tinha quando se deu conta de que havia alguma coisa errada. Estavam passando as férias em Kerry, e seu pai fez um comentário sobre o belo pôr-do-sol. — Um lindo fecho para um lindo dia. Não é, Monica? Olhando em frente, Monica disse, amarga: — Graças a Deus o sol já está se pondo. Quero mais que o dia de hoje acabe logo. — Mas o dia de hoje foi maravilhoso — argumentou ele. — Fez sol, nós brincamos na praia... Monica se limitou a dizer: — Estou louca para que o dia de hoje acabe logo.

Ashling interrompeu sua briga com Janet e Owen, sentindo-se excluída e insegura. Não era para os pais terem sentimentos — não daquele tipo, pelo menos. Podiam até reclamar quando o filho não fazia o dever de casa ou se recusava a jantar, mas não tinham o direito de ter sua infelicidade particular. Ao fim da viagem de duas semanas, voltaram para casa. Ashling teve a impressão de que num minuto sua mãe era jovem, bonita e feliz, no outro uma mulher calada, no fundo do poço, que não queria mais pintar os cabelos. E chorava. O tempo todo, em silêncio, apenas deixando as lágrimas escorrerem pelo rosto. — Que foi? — Mike perguntava, uma vez atrás da outra. — Que foi? — Que foi, mamãe? — perguntava Ashling. — Tá com dor de estômago? — Estou com dor de alma — sussurrava ela. — Toma dois Disprins infantis! — Ashling repetia como um papagaio o que sua mãe lhe dizia quando ela sentia alguma dor. As desgraças alheias deflagravam suas crises. Passou três dias inteiros chorando por causa da fome num país africano. Mas, quando Ashling chegou em casa com a boa notícia, recebida da mãe de Clodagh, de que “vão mandar comida pra eles”, Monica já mudara de tema, e agora chorava por um bebê que fora encontrado numa caixa de papelão. — Coitadinha daquela criança — chorava convulsivamente. — Coitadinha daquela criança indefesa. Enquanto sua mãe chorava, seu pai sorria pelos dois. Sorria sempre. Matava-se de tanto sorrir. Tinha um emprego importante e dinâmico. Era o que todos diziam a Ashling: “Seu pai tem um emprego muito importante e dinâmico.” Era vendedor, e descrevia suas viagens de Limerick a Cork e de Cavan a Donegal como se fossem as aventuras do Fianna.* Era um homem tão importante e dinâmico, que estava sempre viajando, de segunda a sexta. Ashling se orgulhava disso. Os pais dos outros voltavam para casa toda tarde às cinco e meia, e ela não conseguia deixar de pensar, com desprezo, que seus empregos não deviam ser lá grande coisa.

 

* Panteão dos heróis da mitologia irlandesa.

 

Seu pai vinha para casa nos fins de semana e sorria, sorria, sorria. — O que vamos fazer hoje? — Batia as mãos uma na outra, correndo um sorriso radiante pela família. — Que me importa? — murmurava Monica. — Estou morrendo por dentro. — Ora, por que você haveria de querer fazer uma besteira dessas? — ele brincava. E, sorrindo para Ashling, em tom de segredo: — Sua mãe é uma artista. Sua mãe sempre escrevera poesia. Chegara mesmo a publicar um poema numa antologia quando Ashling ainda era bebê e, desde o início das crises de choro e da estranheza, escrevera muitos outros. Ashling sabia o que era um poema. Eram palavras bonitas e rimadas sobre poentes e flores, geralmente narcisos. Mas, quando Clodagh a instigou, aos risinhos, a dar uma espiada com ela em alguns poemas de Monica, Ashling teve um choque violento. Em meio ao embotamento provocado pelo desgosto, ficou profundamente grata por uma única coisa — o fato de Clodagh não saber ler direito. Os versos não rimavam, a métrica era toda quebrada, mas eram as palavras isoladas que constituíam o maior motivo de preocupação. Não havia flores nos poemas de Monica Kennedy, mas termos estranhos e brutais, que Ashling passou muito tempo decifrando.              Pregado no interior do silêncio,              Meu sangue é negro.              Sou vidro quebrado,              Sou lâminas enferrujadas,              Sou o castigo e o crime. De volta ao presente, Ashling encontrou Dylan a observá-la, com interesse e ansiedade. — Você está bem? Ela assentiu. — Por um momento, você pareceu completamente fora do ar. — Estou ótima — insistiu ela. — Clodagh não começou a escrever poesia, começou? —Forçou-se a sorrir ao fazer a pergunta. — Clodagh? Imagina! — Dylan riu em silêncio, satisfeito, dando-se conta de como fora bobo. — Quer dizer então que se ela começar a escrever poesia, aí, sim, devo me preocupar?

— É, mas até lá, não se preocupe. O mais provável é que ela esteja só cansada e precisando de um tempo. Será que não dá para fazer alguma coisa legal? Tirar umas férias ou qualquer coisa assim, para levantar o astral dela? — Férias de novo, pensou, maldosa. Sentia-se vagamente ressentida por Dylan estar pedindo conselhos a ela sobre como tornar a vida de Clodagh ainda melhor. — Não posso me ausentar no momento — disse Dylan. — Bom, então leva ela a algum restaurante super-hiper-ultra-chique. — Clodagh se preocupa com as babás. — Por quê? Qual é o problema com elas? Dylan riu, um pouco constrangido. — Clodagh tem medo de que abusem das crianças. Ou de que batam nelas. Para ser franco, às vezes até eu me preocupo. — Santo Deus, vivem inventando coisas para a gente se preocupar. Então chama alguém em quem você confie. Que tal sua mãe? — Ah, não! — Dylan fez uma careta contrariada, repuxando os cantos da boca para baixo. — Não seria uma boa idéia mesmo. Ashling balançou a cabeça. Era a pura verdade. A única hora em que a jovem Sra. Kelly e a já não tão jovem assim Sra. Kelly se olhavam olhos nos olhos era quando ficavam nariz a nariz em algum bate-boca — geralmente sobre a melhor maneira de cuidar de Dylan e seus filhos. — E a artrite deixou a mãe de Clodagh praticamente entrevada — disse Dylan. — Ela não conseguiria dar conta das crianças. — Posso ficar com elas, se você quiser — ofereceu-se Ashling. — Numa noite de sábado? Uma criaturinha jovem e agitada como você? Após um momento de hesitação, ela disse: — É... é — repetiu, com mais firmeza, num leve tom de desafio: — Por que não? Se realmente não estivesse em casa para atender o telefone, as chances de Marcus Valentine ligar aumentariam. — Mas isso é espetacular! — Dylan se animou. — Obrigado, Ashling, você é um amor. Vou reservar uma mesa para sábado à noite. Vamos ver se consigo uma no L’Oeuf.

Mas é claro, pensou Ashling, achando graça mesmo contra sua vontade. Onde mais haveria de ser? O L’Oeuf era o veterano mais respeitado dos restaurantes de Dublin. Sua peculiaridade era o fato de estar sempre na moda — apesar de não servir pratos das escolas fusão asiática ou irlandesa moderna. Eternamente sofisticado, a comida deixava o cliente com lágrimas nos olhos. E os preços também. — Sua mãe está melhor agora, não está? — Dylan tentou se desculpar com ela por ter forçado o assunto. “Melhor” era um conceito relativo e, de mais a mais, o problema nem sempre era esse, mas, para agradar a ele, Ashling balançou a cabeça: — Está, sim, está melhor agora. — Você é uma garota maravilhosa, Ashling. — Dylan se despediu dela. Sou, não sou?, pensou Ashling, irônica.

A dez minutos de Dylan e Ashling, Lisa e Jasper Ffrench, o célebre chef, jantavam no Clarence. Jasper especificara o restaurante onde desejava jantar, para que pudesse baixar o pau na comida por não ter um décimo da qualidade da que ele servia no seu restaurante epônimo. Era bem-apessoado, antipático, não tinha o menor pudor de alardear que se considerava um gênio e não sentia nada além de inveja por todos os outros profissionais do ramo. — Amadores — declarou, gesticulando com seu sexto copo de vinho branco —, não passam de amadores e diletantes. Marco Pierre White — amador! Alasdair Little — amador! Meu Deus do Céu, você é um saco. Lisa assentiu e sorriu. Ainda bem que os homens difíceis eram sua especialidade. — Foi por isso mesmo que escolhemos você para partilhar do sucesso da Garota, Jasper. Isso não era bem verdade. Jasper fora o escolhido porque Conrad Gallagher já recusara seu convite, alegando compromissos profissionais. Enquanto Jasper fazia grandes avanços numa segunda garrafa de vinho, Lisa o deslumbrou falando sobre sinergia. Sem chegar a lhe prometer nada, insinuou que uma coluna na Garota poderia facilmente levá-lo a ter seu próprio programa no Canal 9, a emissora de tevê da Randolph Media. — Vou fazer! — decidiu-se Jasper. — Me manda um contrato amanhã de manhã. — Por acaso, já tenho um aqui comigo — disse Lisa, tranqüila, malhando o ferro enquanto ainda estava quente. Jasper rabiscou sua assinatura, e foi bem na hora, porque houve um momento perigoso, quando o garçom veio levar o prato de Lisa. Como sempre, ela empurrara a comida de um lado para o outro, mas não comera quase nada. — Havia algo de errado com seu jantar? — perguntou o garçom. — Não. Estava uma delícia, mas... — Lisa viu Jasper fuzilando-a do outro lado da mesa e trocou seu veredicto por outro mais neutro: — Estava boa.

— Se estava como a porcaria insultuosa que me serviram, não me espanta que ela não tenha conseguido engolir nem um pedaço — desafiou-o. — Blinis de morcela? Isso é mais do que um clichê. Isso é uma piada! — Lamento ouvir isso, senhor. — O garçom olhou com uma expressão impassível para Jasper e seu prato vazio. Já trabalhara para aquele filho-da-mãe maluco. — Gostariam de pedir a sobremesa? — Não, não gostaríamos! — disse Jasper, exaltado, para desgosto de Lisa, que essa semana estava fazendo uma dieta de sobremesas. O prato mais leve da balança, é claro: frutas frescas, sorbets, musses de frutas. Lá se iam mais de dez anos desde que sua boca experimentara pela última vez o soco entontecedor das sobremesas da Death by Chocolate. Ah, não tinha importância. Pagou a conta, e os dois se levantaram para sair, um com as pernas menos firmes do que o outro. Na porta, trocaram um aperto de mão e Jasper resolveu dar uma prensa bêbada em Lisa, da qual ela se esquivou com toda a diplomacia. Graças a Deus já estava com o contrato assinado! Jasper saiu pela rua afora, cambaleando num ziguezague sinistro. No momento em que Lisa se viu sozinha, a depressão a assaltou de novo. Por quê? Por que as coisas eram tão mais difíceis ali? Estava indo razoavelmente bem em Londres. Mesmo depois de Oliver ter dado o fora, tocara a bola para a frente, realizando seus projetos, tirando planos do papel, sempre convicta de que haveria um prêmio para ela, por menor que fosse. Mas o prêmio fora parar nas mãos de outra pessoa, e ela estava na Irlanda, onde seus mecanismos de defesa pareciam não funcionar muito bem.

Não telefonara para sua mãe na véspera, embora fosse domingo. Estava deprimida demais. Só se vestira para ir comprar uma caixa de sorvete e cinco jornais na horrorosa loja da esquina e, assim que chegou em casa, voltou a se enrolar no edredom e passou a manhã inteira no fundo do poço, no ar viciado de fumaça de cigarro. Seu único contato com a humanidade eram as boladas que a garotada de oito anos da vizinhança mandava na sua porta da frente, uma atrás da outra. Antes de fazer sinal para um táxi, dera um pulo numa loja para comprar cigarros, e tomou uma injeção de ânimo quando viu que a nova edição da Irish Tatler já saíra. A Irish Tatler era uma das rivais da Garota, e achincalhar com ela lhe daria algo com que se ocupar pelo resto da noite. De repente, sua nova casa não lhe pareceu mais tão repulsiva. — Oi, Liiisa! — Um bando de garotas pequenas brincando no meio da rua berrou para ela quando desceu do táxi. — Seu vestido é sexy! — Obrigada. — Que número você calça? — Trinta e nove. Seguiu-se um círculo de confabulações. De que tamanho era um sapato trinta e nove? De um tamanho grande demais para elas, concluíram, a contragosto. Entrando em casa, jogou a bolsa no chão, ligou a chaleira e foi checar a secretária-eletrônica. Não havia nenhum recado, o que não chegava a ser surpreendente, pois quase ninguém sabia seu número. Mas isso não a impediu de se sentir um fracasso. Descalçou os lindos sapatos, atirou o vestido numa poltrona e já estava vestindo um par de calças de cordão na cintura e uma camiseta curta quando a campainha tocou. Provavelmente uma das meninas, querendo saber se poderia ficar com sua bolsa quando ela não a quisesse mais. Suspirou, escancarando a porta. Diante de sua soleira, inclinando o corpo alto para caber no umbral, estava Jack. — Ah — fez ela, embotada com a surpresa.

Era a primeira vez que o via sem terno. Sua camisa comprida com gola de padre estava aberta até o meio do peito. Não porque fosse esse o modelo, mas porque estavam faltando os botões. Suas calças cáqui pareciam ter servido em duas guerras mundiais, e tinham um rasgão horizontal na altura do joelho direito, deixando à mostra uma rótula lisa e um quadrado de dez centímetros de canela peluda. Seu cabelo parecia ainda mais desgrenhado do que de costume, e seu rosto também — Jack era desse tipo de homem que precisa se barbear duas vezes por dia. Encostado à soleira, exibiu um dispositivo na palma da mão, como um guarda mostrando o reluzente distintivo: — Tenho um timer para o seu aquecedor. A frase soou vagamente sugestiva. — Desculpe por não ter arranjado antes. — Hesitou. — Cheguei numa boa hora? — Entra — convidou-o Lisa. — Entra aí. Estava totalmente desconcertada, porque em Londres ninguém ia bater no seu apartamento assim, sem mais nem menos. Nunca marcara um compromisso com alguém sem antes abrir sua agenda, para jogar uma partida de Sou-mais-ocupada-e-importante-do-que-você. Era um ritual complexo, regido por leis rigorosíssimas. No mínimo cinco datas deveriam ser oferecidas e rejeitadas antes que ambas as partes concordassem com uma sexta. — Terça que vem? Não dá, vou estar em Milão. Que é a deixa para o adversário responder: — E quarta quem não pode sou eu, porque é a noite em que faço reiki. Uma resposta aceitável para isso é: — E quinta não tem a menor possibilidade, porque é o dia das minhas aulas de Alexander Technique. O cacife é aumentado pelo adversário, que se sai com essa: — O fim de semana está fora de cogitação. Vou para o chalé de uns amigos no Lake District. Diante disso, o jogador inteligente responde: — Minha semana que vem está toda tomada. Los Angeles, a trabalho.

Depois que uma data é finalmente combinada, ainda é aceitável — desejável, na realidade — que você a cancele no dia, alegando a diferença de fuso horário, um jantar com um cliente ou uma viagem a Genebra para demitir setenta pessoas. Como os óculos Gucci e as bolsas Prada, a Escassez de Tempo é um símbolo de status. Quanto menos tempo você tem, mais importante você é. Era óbvio que Jack não sabia disso. Ele olhou ao seu redor, com ar de admiração. — Você está aqui há... quantos dias faz? ...três, quatro dias, e o lugar já está com outra cara. Olha só... — Apontou um jarro de vidro sobrecarregado de tulipas brancas. — E ali... — Um vaso com flores desidratadas chamara sua atenção. Ainda bem que ele não vira as xícaras embaixo da cama, onde o mofo já começava a grassar, pensou Lisa. Suas casas sempre haviam sido um triunfo do estilo sobre a higiene. Precisava tentar arranjar uma arrumadeira... — Quer beber alguma coisa? — ofereceu. — Tem cerveja? — Hum, não, mas tenho vinho branco. Experimentou um prazer ridículo quando ele aceitou um copo. — Vou lá pegar minhas coisas no carro — disse ele, abaixando-se e voltando pouco depois com uma maleta azul de metal. Ah, meu Deus, ele tinha uma caixa de ferramentas! Lisa teve que se sentar em cima das mãos para não pô-las nele, arrancar os últimos e poucos botões de sua camisa, expondo seu peito largo, coberto pela quantidade exata de pêlos, e passar as mãos pela pele lisa de suas costas. — Você se importa se eu abrir a porta dos fundos? — perguntou ele, interrompendo o amasso na cabeça de Lisa.

— Hum, não, fica à vontade. — Observou-o atravessar a sala e puxar o ferrolho que não fora tocado desde a última vez que ele estivera lá. Uma brisa perfumada foi pouco a pouco tomando conta da cozinha, trazendo o forte aroma noturno da folhagem e os pios e chilreios dos passarinhos que descansavam no fim do dia. Legal. Para quem gostava desse tipo de coisa. — Você já sentou no jardim para tomar um pouco de ar fresco? — perguntou Jack. Não. — Já. — É tão tranqüilo lá fora que nem parece que a gente está na cidade — disse ele, meneando a cabeça em direção à porta. — Eu sei. A quem você vem dizer? — Lá vou eu. — Olhou para o aquecedor. — Parece um trabalhinho bem simples, mas nunca se sabe. Ato contínuo, arregaçou as mangas, deixando à mostra os belos tendões dos pulsos, e pôs mãos à obra. Lisa ficou sentada na cozinha, abraçando um joelho, apreciando, e muito, a presença de um homem bonito na sua casa. E decidiu que, acontecesse o que acontecesse, não iriam falar sobre a situação da publicidade. Nada que pudesse comprometer o astral — essa era uma oportunidade feita sob medida para flertarem. — Me fala tudo sobre você — ordenou ela, com ar confiante e coquete, a ele, que estava de costas. — O que você quer saber? — perguntou ele, num tom não muito gentil, enquanto remexia barulhentamente suas ferramentas de metal. — Por favor, Lisa! Esse é o tipo de pergunta que deixa a cabeça de qualquer um completamente em branco. — Bom, me conta como você foi acabar como diretor superintendente de uma emissora de tevê, uma estação de rádio e várias revistas de sucesso aos trinta e dois anos de idade. — Tudo bem, ela estava rasgando um pouco de seda demais, mas, afinal, estava no ramo da adulação. — É um emprego — disse ele, curto e rasteiro, como se desconfiasse que ela estava zombando dele. — Fui despedido do meu emprego anterior, e tinha que ganhar a vida. Despedido? Isso não agradou nada a ela. — Por que você foi despedido?

— Porque apresentei uma proposta radical, que implicava pagar aos funcionários o que valiam e dar a eles direito de participação nas decisões da diretoria. Em troca, eles fariam concessões quanto à delimitação das atribuições e às horas extras, mas a diretoria decretou que eu era um esquerdista e fui posto para fora. — Um esquerdista? — Os esquerdistas não eram muito divertidos, eram? Convenciam as pessoas a participar de passeatas e tinham carros horríveis. Trabants. Ladas. Isso quando tinham um carro. Mas Jack era dono de um BMW. — Quando eu era mais jovem e mais idealista — ele desferiu uma pancada violenta na chaminé de metal —, até poderia ser considerado um socialista. — Mas agora não é mais, é? — perguntou Lisa, alarmada. — Não. — Ele deu um riso forçado. — Não precisa ficar tão preocupada. Pendurei as chuteiras quando percebi que a maioria dos trabalhadores está muito satisfeita jogando bingo ou comprando ações de estatais privatizadas, e que o seu bem-estar econômico é uma coisa de que eles preferem cuidar sozinhos. — Tem toda razão. Você não tem que fazer mais nada além de dar duro — apaziguou Lisa. Afinal, fora o que ela fizera. Era uma mulher da classe trabalhadora — bem, teria sido, se seu pai realmente trabalhasse —, e isso não a prejudicara em nada. Jack se virou e lhe deu um sorriso complexo, que mesclava ironia e tristeza. — Me dá um breve histórico da sua vida profissional — pediu Lisa. Jack voltou ao aquecedor e disparou de um jato, sem entusiasmo aparente: — Terminei a faculdade com um mestrado em comunicação, passei a temporada obrigatória para todo irlandês no exterior — dois anos numa empresa de comunicação, quatro em São Francisco numa emissora de tevê a cabo —, voltei para a Irlanda em tempo de presenciar o milagre econômico, trabalhei num jornal e fui para o olho da rua, como já disse... Aí, dois anos atrás, o velho Calvin Carter me arranjou a parada aqui.

— E o que você faz para relaxar? — Lisa apreciava a vista da camisa de Jack esticada sobre os músculos de suas costas enquanto ele trabalhava. — Por exemplo — deu um sorriso malicioso, que ele, infelizmente, perdeu —, você joga golfe? — É a última vez que venho consertar seu aquecedor — resmungou ele. — Não sei por quê, mas não achei mesmo que você fosse do tipo de homem que joga golfe — disse ela, às risadinhas. — Mas, e aí, o que você faz? — Lisa, não fica me perguntando essas coisas. O que eu sei... — Deu um meio sorriso fugaz por sobre o ombro. — ...é que conserto aquecedores. Saio por aí entrando em casas aleatórias, sem avisar, e insisto em consertar os aquecedores das pessoas. Às vezes, até mesmo quando não estão quebrados. — Calou-se para se concentrar na torcedura metódica de um parafuso e, em seguida, disse: — Que mais? Saio com minha namorada. Vou velejar. — Num iate? — perguntou Lisa, ávida, ignorando a menção a Mai. — Não, imagina. Não, longe disso. É um barquinho para uma pessoa só, não muito maior que uma prancha de surfe. Ah, vamos ver... Passo metade da noite jogando Sim City, isso conta? — O que é isso? Um game de computador? É claro que conta. Mais alguma coisa? — Sei lá. A gente vai a um bar, ou come fora, e fala à beça em ir ao cinema, mas... taí uma coisa que eu não entendo mesmo: a gente acaba nunca indo. Lisa não gostou do “a gente” na frase. Presumiu que se referisse a Jack e Mai, e não sabia o que faziam em vez de ir ao cinema, mas podia adivinhar. — Me encontro com alguns colegas dos tempos de faculdade, vejo um pouquinho de tevê... mas, atenção: a trabalho! — Claro, claro — debochou Lisa, brincalhona. Então se deu conta de uma coisa. — É disso que você gosta mais, não é? Trabalhar na emissora de tevê? — Pode cr... — Ela viu as costas de Jack se retesarem, quando ele lembrou com quem estava falando. — Hum, eu gosto das revistas, também. Você não acreditaria no volume de trabalho que o Canal 9 gera para mim...

— Quer dizer então que você não precisava da Garota e de todo esse trabalho extra? — provocou-o Lisa. Jack se esquivou da pergunta, diplomático: — A questão é que, no momento, trabalhar no Canal 9 está sendo muito gratificante para mim. Depois de dois anos de lutas, finalmente a equipe está sendo bem paga, os patrocinadores estão satisfeitos e o público recebe uma programação inteligente. E estamos começando a atrair novos investidores, graças ao que vamos poder produzir uma programação de melhor nível ainda. — Que máximo — disse Lisa, distraída. Já ouvira o bastante sobre o Canal 9 por ora. — Que mais você faz? — Aahhhhh — Jack pensou em voz alta. — Visito meus pais quase todos os fins de semana. Dou um pulinho lá e passo uma hora. Eles já não são mais tão jovens assim, de modo que o tempo que passo com eles parece ser muito mais precioso, entende? Lisa tratou correndo de mudar de assunto: — Você nunca vai a inaugurações de restaurantes, estréias, esse tipo de coisa? — Não — disse ele, bruscamente. — Detesto tudo isso. Não nasci com o gene da extroversão, mas tenho certeza de que você não precisa que eu te diga isso. — Como assim? — Lisa se fez de ingênua. — Ah, pelo amor de Deus, eu sou o cara mais neurastênico do mundo. — Comigo nunca foi — disse Lisa, sem que com isso quisesse dizer que nunca testemunhara suas cenas. — Mas eu não queria ser assim — disse ele, com uma ponta de melancolia. — É só porque... É... uma coisa que acontece, e eu sempre me arrependo depois. — Quer dizer que você ladra mais do que morde? Ele se virou para ela. — Está pronto — disse, abaixando a chave inglesa, para logo em seguida acrescentar, manso: — Nem sempre. Às vezes eu mordo, e mordo feio. Antes que ela pudesse aceitar essa provocante afirmação, ele já enfiava com estrépito a chave inglesa e a chave de fenda de volta na caixa de ferramentas.

— Está num relógio de vinte e quatro horas, não deve dar trabalho de acertar, agora você tem água quente a hora que quiser. Até amanhã e desculpe por aparecer assim, sem avisar. E, de repente, tinha ido embora. A casa pareceu vazia demais e Lisa se viu sozinha — muito sozinha — com seus pensamentos. Oliver gostava de roupas, festas, artes plásticas, música, clubes e conhecer as pessoas certas. Jack era um membro mal-ajambrado da esquerda festiva que velejava numa prancha de surfe e praticamente não tinha vida social. Mas também era alto, sensual, perigoso, cheirava bem e, ora bolas, não se pode ter tudo! Você é uma mulher maravilhosa, Ashling, você é uma mulher maravilhosa, Ashling. As palavras de Dylan davam voltas na cabeça de Ashling como um carrossel, enquanto ela caminhava de volta do Shelbourne para casa. E só parou para dar um pulo no Café Moka, a fim de comer alguma coisa. Quando finalmente chegou em casa, encontrou Boo diante da portaria. — Por onde você andou? — perguntou Ashling. — Já faz dias que não te vejo. Ele lançou um olhar para os Céus. — Mulheres! — exclamou, bem-humorado. — Sempre tentando vigiar a gente. — Seus olhos brilhavam no rosto hirsuto. — Eu estava a fim de uma mudança de cenário. — Brincalhão, fez um gesto malicioso com a mão imunda. — A linda porta de uma loja em Henry Street acenou para mim, aí resolvi colocar meu chapéu lá por umas noites. — Quer dizer então que você dorme cada hora num canto — disse Ashling. — Típico homem. — Não significou nada — disse Boo, com honestidade. — Foi uma coisa puramente física. — Ontem à noite eu tinha uns livros para você. — Ashling estava aborrecida por ser pega desprevenida outra vez. Até lembrar que tinha um exemplar de Patricia Cornwell na bolsa, que a editora mandara para a redação. Como ninguém da equipe o quisera, Ashling o pegara para Joy.

— Será que isso te interessaria? — Tirou-o da bolsa com um puxão desajeitado. Os olhos de Boo brilharam com tamanho interesse, que Ashling chegou a sentir uma certa raiva. Ela tinha tanto, e ele nada, só um cobertor laranja. — Animal! — arquejou. — Vou tomar conta dele, cuidar para que nada aconteça com ele. — Pode ficar para você. — Por quê? — Eu consegui, hum, de graça. No trabalho. — Mão boba, gostei de ver, maneiro — felicitou-a. — Valeu, Ashling. Obrigado mesmo. — Não foi nada — disse ela, cerimoniosa. Ferida com a injustiça do mundo, cheia de raiva de si mesma por ter tanto poder, e sentimento de culpa por fazer tão pouco. Ao enfiar a chave na porta, ele lhe perguntou: — O que você achou de Marcus Valentine? — Não sei. — Por um momento ela esteve prestes a soltar uma longa explicação sobre como não se sentia atraída por ele, mas depois o vira no palco e, mesmo contra a sua vontade, mudara de idéia, como estava louca para que ele lhe ligasse e torcia para que houvesse um recado à sua espera e... devagar com o andor. — Engraçado. — Deu um sorriso débil para Boo. — Ele é muito engraçado. Bota engraçado nisso. Dizendo que ia ligar e agora fazendo corpo mole. Subiu as escadas correndo, apressada para ver se havia algum recado. Ao ver a luz vermelha piscando, sua cabeça ficou zonza. Apertou a tecla “play” e, enquanto a fita rebobinava até o início, deu uma pirueta rápida e esfregou o Buda da sorte, tocou no seixo da sorte, passou os dedos no cristal da sorte e pôs na cabeça o chapéu com o pompom vermelho da sorte. — Por favor, Força Benigna do Universo que prefiro chamar de Deus — rezou —, façai com que ele tenha ligado.

Obviamente houve alguma confusão no contínuo do tempo-espaço, porque sua oração foi atendida. Mas a oração errada. Uma oração com o prazo de validade vencido — o recado era de Phelim. Quantas vezes no passado Ashling rezara para que ele lhe ligasse, e agora que ligava, era tarde demais...! — Bom-dia, Ashling — veio sua voz de Sydney, a ligação cheia de chiados. — Como é que vai? — Sua entonação era extrovertida e australiana, mas ele logo tratou de retomar o sotaque de Dublin. — Escuta só, esqueci de comprar um presente de aniversário para minha mãe, e estou correndo risco de vida por isso. Você compraria um enfeite ou alguma coisa assim para ela? Você conhece o gosto dela melhor do que eu... Pode deixar que eu te reembolso depois. Valeu, você é um anjo. — Filho-da-puta cretino — resmungou ela, arrancando o chapéu com o pompom vermelho da sorte. Se não tivesse destrinchado todos os aspectos práticos da viagem para ele, as passagens, os vistos, os passaportes e os dólares australianos, ele ainda estaria tentando descobrir como sair do país. Quase fora obrigada a enfiá-lo dentro do avião, literalmente, com um bilhete amarrado no pescoço. Em seguida, observou suas próprias reações — uma completa ausência de náusea, nostalgia ou saudade. Em geral qualquer contato com Phelim a deixava alterada, mas, pelo visto, começara a acreditar nas próprias mentiras e realmente o esquecera. Tirou o fone do gancho e ligou para Ted. — Se pelo menos o Funcionário Público estivesse aqui... — disse, à guisa de saudação. — Já estou indo. — Chama a Joy também. Momentos depois, Ashling recebeu Ted e Joy dizendo: — Estou tendo problemas com um homem. — Eu também — vangloriou-se Joy. — Metade-homem-metade-texugo? — Metade-babaca-metade-texugo — corrigiu-a Joy. — Fazendo cu-doce comigo... Mas quem é o homem, Ashling, que está te dando trabalho? O Bonito & Gostoso da revista? Eu cantei a pedra, não cantei?

— Quem? Ah, Jack Devine? — A lembrança dos dez maços de cigarros deixou-a extremamente encabulada, de modo que tratou rapidinho de se lembrar da acusação “Às vezes você parece que confunde sua idade com o limite de velocidade”, e conseguiu se situar outra vez. — Aquele filho-da-mãe? Joy olhou para Ted com um sorriso presunçoso, do tipo “Eu não disse?”. — Os ânimos andam mesmo exaltados — comentou, com ar benevolente. — Não é Jack Devine — insistiu Ashling. — É aquele humorista, Marcus Valentine. — Do que é que você está falando? — perguntou Joy, irritada. Ashling contou-lhe a história toda: como conhecera Marcus na festa no cais do porto, como ele lhe dera o bilhete do Bellez-moi... — Mas ele falou disso no show! — disse Ted, entusiasmado. — A garota de quem ele estava falando era você. É fantástico! Ashling levantou a mão em sinal de silêncio: — Aí esbarrei com ele de novo no fim de semana retrasado naquela festa em Rathmines, mas nem então me senti atraída. Mas depois nos vimos sábado à noite, e acho que comecei a gostar dele. E ele disse que ligaria para mim, mas não ligou. — Claro que não ligou! — exclamou Joy. — Ainda é segunda- feira! Ao ouvir essas palavras, Ashling recobrou a sanidade. — Tem toda a razão! Estou dando um nó no joelho, como sempre, quando nem mesmo tenho certeza se me sinto atraída por ele. E pensar que passei o dia de ontem inteiro me sentindo uma pilha de nervos. Quando é que vou aprender...? — Se ele te ligar, vai ser na terça ou na quarta — disse Joy, segura — Como é que você sabe? — Está no Estatuto dos Homens. Ted, anota aí: você conhece uma mulher no sábado à noite e em hipótese alguma liga para ela antes de terça, porque corre o risco de parecer interessado demais. Se o telefonema não sair na terça ou na quarta, não sai mais. — E quinta-feira? — perguntou Ashling, alarmada.

— Perto demais do fim de semana. — Joy sacudiu a cabeça, com ar de quem sabe das coisas. — Eles acham que a gente já tem compromissos e não querem se arriscar a levar um fora. — Por acaso, já tenho mesmo um compromisso para sábado à noite. — Ashling se distraiu por um momento. — Disse que tomaria conta das crianças para Dylan e Clodagh poderem sair. Ted abafou um grito. — Posso ir? — Não me diga que ele é fã da princesa — disse Joy, em tom de desprezo. — Ela é linda — disse Ted. — É mimada em último grau e... — Posso ir? — Ted tornou a implorar a Ashling, ignorando Joy. — Ted, se alguém vai tomar conta dos filhos de Clodagh, isso significa que ela não vai estar lá. — Ashling ficou irritada por Ted praticamente lhe pedir que servisse de intermediária entre ele e uma amiga sua casadíssima. — Ainda assim... Ouve só, por que não pergunta a ela se eu posso ir? Você nunca vai conseguir dar conta de duas crianças sozinha. Ashling se viu presa entre a irritação e a consciência de que Ted estava certo. Sozinha, não era páreo para o poder combinado de Molly e Craig. — Tudo bem, vou perguntar. — Mas, se Clodagh fosse mesmo tão neurótica com a guarda de seus filhos quanto Dylan dissera, não deixaria Ted entrar na sua casa nem por decreto. — Eu diria que Marcus Valentine vai ligar amanhã à noite ou quarta. — Joy já estava cansada de falar de Clodagh. — Não vou estar aqui amanhã à noite. — Aonde você vai? — À minha aula de salsa. — Como é que é?! — Eu gostei — defendeu-se Ashling. — É só por dois meses e meio. E estou totalmente fora de forma. — Vai ficar magrinha, magrinha — disse Joy, em tom de choro. — Não vou, não — disse Ashling, veemente, mas sem a menor convicção. — Sou sócia da academia há anos, e não fiquei um centímetro mais magra. — Talvez ficasse, se fosse de vez em quando — comentou Joy, irônica. — Pagar a mensalidade não basta.

— Mas eu ia, sim — defendeu-se Ashling, mal-humorada. E ia mesmo, e fazia centenas de variações de abdominais e exercícios para a cintura. Encostava o cotovelo no joelho oposto uma vez atrás da outra, até o sangue ir todo para a cabeça e mil veiazinhas vermelhas romperem em seus olhos. Mas, quando ficou claro que mesmo que contorcesse até entrar em coma sua cintura teimosamente se recusaria a afinar, desistiu. O resto de seu corpo não era tão mau assim, decidiu, de modo que em nada lucraria com os exercícios. Com a salsa era diferente. Não ia pela cintura, mas porque queria se divertir. — Você arranjou um hobby — acusou-a Joy, novamente preocupada. — Vai virar uma daquelas pessoas esquisitas que têm hobbies. — Não é um hobby — disse Ashling, alarmada. — É só uma coisa que eu tenho vontade de fazer. — E você acha que um hobby é o quê? — Por falar em salsa — disse Ted —, dei uma olhada no seu artigo e está fantástico. Fiz uma ou outra sugestão, mas está ótimo do jeito que está. — É mesmo? — disse Ashling, mal se atrevendo a acreditar. Tinha dado o couro durante três noites inteiras na semana anterior e acreditava ter conseguido fazer com que ficasse até mesmo um tanto engraçado, mas não sabia se era sua imaginação. — Eu gostei. Foi bom trabalhar numa coisa assim, para variar, em vez de fazer um relatório sobre a erradicação da brucelose do gado leiteiro. Sexy, não? — disse Ted, com uma ponta de amargura. — Não admira que Clodagh não se interesse por mim. Quanto antes eu conseguir minha transferência para o Ministério da Defesa, melhor. E se perdeu num devaneio sobre metralhadoras, carros blindados, caras pintadas, canivetes complicados e toda essa parafernália de machão.

— E olha só o que eu fiz para você. — Joy sacou de uma folha de papel com vários desenhos de solas de sapatos, ilustrando a seqüência de passos de uma salsa. Desenhara-os com um traço cômico, no estilo das histórias em quadrinhos, com setas e linhas pontilhadas indicando a movimentação. — Que idéia inteligente! — exclamou Ashling. — Vocês dois são fantásticos! O tão temido artigo começava a se transformar em algo razoável. Além das fotos dela e de Joy, pedira a Gerry, o diretor de arte, para fazer uma busca de uma foto de dois dançarinos, e ele encontrara uma ótima, a mulher curvada para trás até a cintura, os cabelos negros varrendo o chão, o homem inclinado sensualmente sobre ela. Muito sexy. E Ashling teve uma curta trégua da incessante suspeita de que não estava à altura de seu emprego. O telefone tocou e, como a secretária-eletrônica ainda estava ligada, os três prestaram a máxima atenção para ver quem era. Seria Marcus Valentine? — Não vai ser. Já te disse — suspirou Joy, entediada — ainda é segunda-feira. Era Clodagh. — Sossega, coração — disse Joy a Ted, sarcástica. Embora o recado fosse curto, à luz da preocupação de Dylan, deixou Ashling nervosa. — Ashling — disse a voz de Clodagh para a sala —, será que dava para me ligar? Quero falar com você sobre... uma coisa.

Na terça de manhã, quando Trix entrou na redação como rosto cintilante e um par de saltos plataforma de plástico, acompanhava-a um tênue porém inconfundível cheiro de peixe. Ashling o notou no momento em que chegou e, em seguida, mal passavam pela porta, os recém-chegados, um a um, punham-se a farejar, alarmados. Falar com Trix, no entanto, seria um pouco constrangedor, e ninguém tocou no assunto até Kelvin chegar. Afinal, era um rapaz de vinte e poucos anos, e estava no auge da vulgaridade. — Trix, você está com um cheiro que só posso esperar seja de peixe. — E é de peixe. — Podemos perguntar por quê? — Eu queria um homem motorizado — explicou ela, de mau humor. Kelvin esbofeteou o rosto várias vezes. — Não! — disse, brincalhão. — Agora eu estou acordado, e ainda não faz sentido. — Eu queria um homem motorizado — repetiu ela, irritada. — Aí conheci Paul, que é entregador de uma peixaria, e o dono deixa ele usar a van depois do expediente. A idéia de Trix sentada ao lado de um montão de peixes, com seus modelitos tchan, fez com que a redação explodisse em gargalhadas, o que não era de surpreender. — Eu sento na frente, com o motorista — protestou ela, inutilmente —, não atrás, com os peixes. — E seus outros namorados? — perguntou Kelvin. — Dei um pé na bunda de cada um. Ah, quem me dera ser durona como ela, pensou Ashling, digitando furiosamente. Estava passando seu artigo sobre o clube de salsa para o computador. Assim que acabou, entregou-o a Gerry, que escaneou os desenhos e fotos de Joy. — Vou jogar com tipos e cores diferentes — disse ele. — Me dá um tempinho, depois a gente mostra para a Lisa. Pode confiar, vou fazer uma coisa bem bonitinha. — Eu confio em você—garantiu Ashling. Gerry era um oásis de calma e mansidão, parecendo nunca entrar em pânico, não importava o quanto o pedido parecesse obscuro e difícil, coisa que tinha o dom de tranqüilizá-la. Enquanto Ashling esperava, ligou para Clodagh.

— Você disse que queria falar uma coisa comigo — disse, ansiosa. — E quero — confirmou Clodagh, com a cacofonia de praxe ao fundo. — Craig está indisposto, e Molly foi suspensa do grupo de atividades de novo. — Que foi que ela fez agora? — Pelo que consta, tentou tocar fogo nas instalações. Mas ela é só uma menina pequena explorando o mundo, descobrindo o que os fósforos podem fazer. Que é que eles queriam? — Outro berreiro irrompeu. — Pelo menos, ela tem um mínimo de curiosidade. Porra, estou perdendo a razão aqui, Ashling. É disso que e tenho medo. — E é sobre isso que quero falar com você... MOLLY, LARGA ESSA FACA!!! AGORA!!! Craig, quando a Molly bater em você, pelo amor de Deus, BATE NELA TAMBEM!!! Seu mariquinhas — soltou Clodagh, com desprezo. — Tenho que desligar, Ashling, te ligo depois. E desligou. Com que então, Dylan estava certo, alguma coisa estava mesmo acontecendo. Ashling engoliu em seco. Ora, foda-se. Tentando se distrair, apertou algumas teclas do computador, os dedos ávidos ao ver que recebera um e-mail. Era uma piada enviada por Joy. Qual era a diferença entre um ouriço e um BMW? — Tenho uma piada para vocês — gritou para a redação. Na hora todos largaram o trabalho. Não precisavam de muito incentivo. — Qual é a diferença entre... — Já conheço — disparou Jack Devine, dirigindo-se a passos largos para o seu escritório. — O senhor nem sabe o que eu ia dizer — protestou Ashling. — No ouriço, os espinhos ficam do lado de fora. —Jack bateu a porta. — Como é que ele sabe? — espantou-se Ashling. — É a piada do BMW e do ouriço? — indagou Kelvin. Como Ashling assentisse, Kelvin explicou, com delicadeza: — Está circulando há dois dias. E, como Jack tem um BMW, já contaram a ele um monte de vezes. — Aahhh. Pensei que ele tivesse tido outro pega com a namorada.

— Vocês têm idéia do quanto o pobre Sr. Devine está assoberbado? — Por trás de sua mesa, a Sra. Morley se pusera de pé (e nem assim pareceu mais alta). Sua voz se elevara, num acesso de superproteção. — Ele ficou negociando como sindicato dos técnicos até as dez da noite de sábado. E hoje de manhã vai receber três executivos do grupo para discutir assuntos muito sérios, e nenhum de vocês se importa. Embora devessem — arrematou, com um tom de voz sinistro. Embora geralmente fosse tida na conta de velha megera e profetisa de desgraças, suas palavras surtiram um efeito moralizante sobre todos. Principalmente sobre Lisa. Ainda não tinham recebido uma palavra sobre a situação da publicidade. Seus nervos eram de ferro, mas até ela estava achando isso desgastante. Jack saiu do escritório. — Acabaram de ligar — informou a Sra. Morley. — Vão estar aqui dentro de dez minutos. — Obrigado — suspirou Jack, passando as mãos distraidamente pelos cabelos desgrenhados. Parecia cansado e preocupado e, de repente, Ashling sentiu pena dele. — Gostaria de tomar uma xícara de café antes da reunião? — ofereceu, simpática. Ele voltou os olhos escuros para ela. — Não — disse, azedo. — Isso poderia me manter acordado. Bom, nesse caso, vai catar coquinhos, pensou Ashling, toda a simpatia se evaporando no ato. — Ashling dá só uma olhada — disse Gerry. Ashling foi correndo olhar a tela do computador e se encheu de admiração pela maneira como ele diagramara sua matéria. Quatro páginas com um visual colorido, engraçado, chamativo e interessante. O texto estava dividido em colunas, toda a matéria dominada pela foto erótica do casal de dançarinos, os cabelos compridos da mulher chegando até o chão.

Ele imprimiu o material e Ashling o levou para Lisa como se fosse uma oferenda sagrada. Sem dar uma palavra, Lisa esquadrinhou as páginas. Nem a expressão de seu rosto traía nada. O silêncio durou tanto, que o entusiasmo de Ashling começou a se transformar em preocupação. Será que entendera tudo errado? Talvez não fosse nada daquilo que Lisa quisesse. — Um erro de ortografia aqui. — A voz de Lisa não tinha nenhuma entonação. — Um erro de digitação aqui. E outro. E mais outro. — Quando chegou ao fim, empurrou os papéis de sua frente e disse: — Está bom. — Bom? — repetiu Ashling, ainda à espera de reconhecimento por todo o trabalho e preocupação que a matéria lhe dera. — É, bom — disse Lisa, impaciente. — Passa a limpo e imprime. Ashling a encarou, com ódio, sem conseguir conter sua decepção. Não podia saber que tal reação, no vocabulário de Lisa, constituía um alto elogio. Quando os funcionários da Femme eram submetidos a seus gritos de “Tira essa merda da minha mesa e reescreve do começo ao fim”, recebiam essas palavras como um tributo. Lisa mudou totalmente de assunto ao se lembrar de uma coisa. Num tom excessivamente casual, perguntou: — Escuta, quem era aquele cara com quem você estava ontem à noite? — Que cara? — Ashling sabia muito bem de quem ela estava falando, mas resolvera tirar sua vingancinha. — O cara louro com quem você saiu. — Ah, Dylan. — E mais não disse. Estava curtindo adoidado o interrogatório. — E quem é ele? — Lisa acabou se vendo obrigada a perguntar. — Um velho amigo. — Solteiro? — Casado com a minha melhor amiga. E aí, gostou do meu artigo? — insistiu. — Já disse que está bom. — Lisa ficou irritada. E as palavras que pronunciou em seguida puseram o dedo fundo na ferida: — Acho que vamos transformá-lo numa seção fixa. Faz outro sobre lugares onde se podem conhecer homens, para a edição de outubro. Que foi mesmo que você sugeriu na primeira reunião? Uma agência de encontros? Aulas de equitação? Navegar na Internet?

Ela se lembrava de tudo, pensou Ashling, esmagada pela perspectiva de ter de fazer o mesmo esforço monumental não só no mês seguinte, como em todos os outros. E nunca receber uma joça de elogio por isso! — Ou você podia escrever uma matéria sobre as chances de se conhecer homens em shows humorísticos — disse Lisa, com um sorriso astuto. Ashling deu de ombros, encabulada. — Ele já ligou para você? — perguntou Lisa, de repente. Ashling sacudiu a cabeça, constrangida, sentindo-se uma derrotada. Será que ele tinha ligado para Lisa? Provavelmente, e a cretina devia estar estourando de vaidade. Após alguns segundos de silêncio, não se agüentou mais de curiosidade: — Ele ligou para você? Para sua surpresa, Lisa também sacudiu a cabeça. — Palhaço! — disse Ashling, veemente, morta de alívio. — Palhaço! — concordou Lisa, com um riso inesperado. De repente, o fato de ele não ter ligado para nenhuma das duas pareceu muito engraçado. — Homens! — A pesada expectativa que Ashling vinha carregando desde quarta-feira se dissolveu em hilaridade. — Homens! — tornou a concordar Lisa, transbordando de divertimento. Nesse momento, Kelvin atraiu o olhar das duas. Estava plantado no meio da redação, coçando o saco preguiçosamente, com o olhar perdido no espaço. Parecia tanto um homem que, quando os olhos das duas voltaram a se encontrar, chegaram a se dobrar de tanto rir. Os espasmos de humor saíam do íntimo de Lisa. O que a exaltava e liberava tanto era a consciência de que há muito não ria para valer. Uma gargalhada visceral, sem se importar com mais nada. — Que foi? — perguntou Kelvin, irritado. — Qual é a graça? Foi o bastante para elas caírem no riso outra vez. A desconfiança mútua que alimentavam fora levada pela maré de hilaridade, e ambas experimentaram um momento de união e amizade.

Com a boca ainda escancarada como a de um golfinho pelos restos de hilaridade, Lisa perguntou a Ashling, num impulso: — Tenho um convite para a apresentação de uma linha de maquiagem hoje à tarde. Quer vir? — Por que não? — disse Ashling, bem-humorada. Agradecida, mas não mais de uma maneira servil. A apresentação da linha de maquiagem era da Source, a atual queridinha das tops e modetes. Seus preços exorbitantes inspiravam confiança nas consumidoras, todos os seus produtos eram orgânicos, com embalagens biodegradáveis, recicláveis ou reutilizáveis, e faziam a maior onda em cima do fato de investirem uma parte de seus lucros em projetos de replantio de árvores, reparação dos buracos na camada de ozônio etc. (A quantia propriamente dita representava 0,003% dos lucros apurados depois de deduzidos o imposto de renda e os dividendos dos sócios. Na prática, o total não ultrapassava a casa das centenas de libras, mas, mesmo que soubessem disso, as pessoas não se importariam. O que compravam era a idéia: “Source — Beleza responsável.”) O Hotel Morrison, onde aconteceria a demonstração, ficava longe o bastante da redação para Lisa insistir em tomar um táxi. Teriam chegado mais rápido se tivessem ido a pé, porque o trânsito estava engarrafado, mas Lisa não se importou. Em Londres jamais ia a pé a parte alguma, e consideraria uma afronta ao seu status se esperassem isso dela em Dublin. Um dos salões de festas do hotel fora transformado numa farmácia antiga para a apresentação. As garotas da Source usavam jalecos de médico e ficavam atrás de mesas de boticário (feitas de MDF, mas tratadas para adquirir a aparência de teca envelhecida). Por toda parte havia frascos com tampas de vidro, contagotas medicinais e vidrinhos de medicamentos de manipulação.

— Baboseira pretensiosa — Lisa sussurrou no ouvido de Ashling, rindo de desprezo. — E, quando falam nos produtos da nova estação, é como se tivessem acabado de descobrir a cura do câncer. Mas, antes demais nada, uma bebida!... Suco de capim?! — exclamou, quando o garçom lhe exibiu os copos de sua bandeja. — Uó! O que mais vocês têm? Acenou para outro garçom, cuja bandeja estava repleta de latinhas de prata, cada qual com um tubo opaco, parecendo um canudinho dobrado. — Oxigênio? — disse Lisa, indignada. — Não seja idiota. Me traga uma flûte de champanhe. — Duas — disse Ashling, nervosa. A simples visão do suco de capim verde e encaroçado já começava a embrulhar seu estômago e, até onde sabia, podia conseguir oxigênio a hora que quisesse. Beberam três flûtes de champanhe cada uma, para grande inveja dos outros liggers, que bebericavam timidamente os sucos de capim da boca-livre, tentando não vomitar. Só Dan “Novidade é Comigo Mesmo” Heigel, do Sunday Independent, experimentara o oxigênio, e ficara com a cabeça tão leve que fora obrigado a se estirar no saguão, onde os turistas passavam por cima dele, com sorrisos benevolentes, crendo tratar-se do exemplo clássico do irlandês bêbado decadente. — Vamos lá — disse Lisa a Ashling, por fim. — Temos que assistir à palestra, para podermos reivindicar nossos jabás. Ashling constatou que Lisa tinha toda a razão: Caro, a garota que demonstrou os cosméticos para elas, comportou-se com uma incrível sinceridade e falta de ironia em relação aos produtos. — O look desta estação é brilhoso — disse ela, espalhando um pouco de sombra nas costas da mão com ar apaixonado. — Mas esse também foi o look da estação passada — desafiou-a Lisa. — Ah, não. O da estação passada foi brilhante. — Disse isso sem o menor vestígio de ironia. Lisa deu uma cotovelada em Ashling, e as duas compartilharam um frêmito de hilaridade. Lisa se deu conta de que era bom ter alguém com quem rir dessas coisas.

— Nós inovamos esta estação produzindo uma sombra em forma de gloss, estamos muito entusiasmados com ela... Se a textura parece um pouco leve, é porque, ao contrário de outras empresas de cosméticos, nós nos recusamos a corromper nossos produtos com gorduras animais. Um preço pequeno a ser pago... Por fim, a meritória demonstração chegou ao fim, e Caro arrepanhou uma seleção dos cosméticos da nova estação. Todos os produtos vinham em frascos de vidro grosso marrom, como os dos medicamentos de antigamente, e embalados numa réplica de maleta de médico. Ela entregou uma maleta a Lisa, que era obviamente a encarregada. Mas, como Ashling e Lisa não arredassem pé dali, Caro disse, ansiosa: — Só um brinde por publicação. Nossa filosofia na Source é desencorajar os excessos. Horrorizadas, Lisa e Ashling experimentaram um momento de rivalidade. — Eu sabia — disse Lisa, displicente, saindo do salão em passos altivos e despreocupados, a mão fechada como uma garra em torno da alça. Ashling até podia ter o direito, mas Lisa tinha o poder, e quem pode, pode, quem não pode, se sacode: essa era a lei e, até onde Lisa sabia, ainda estava em vigor. Saiu no vestíbulo e atravessou o saguão, sem se deter um segundo ao transpor o ainda emborcado Dan Heigel. — Bela calcinha — murmurou ele. — Por que você tem que usar calça comprida? — perguntou a Ashling, quando, um segundo depois, ela pulou por cima dele. Quando Lisa julgou que já estavam longe o bastante do hotel, afrouxou o passo. Ashling a alcançou, lançando um olhar ansioso para a maleta. — Depende do que tiver dentro — disse Lisa, irritada. Acabara de lembrar por que gostava de trabalhar sozinha. Quando você trabalha com outras pessoas, às vezes é obrigada a dividir — a maquiagem, os elogios, tudo. Abrindo a maleta de médico, disse: — Pode ficar com a sombra. Olha, é brilhosal Mas era também de um tom de lama esquisito que nenhuma das duas usaria. — E pode ficar com a sombra em gloss também. Eu fico com o creme para o pescoço e o delineador.

— E o batom? — perguntou Ashling, com um nó de ansiedade no estômago. O batom era o verdadeiro prêmio, de um castanho desmaiado maravilhoso, com um perfeito acabamento mate. — Eu fico com o batom — disse Lisa. — Afinal, sou a chefe. E quem não sabe?, pensou Ashling, ressentida.

Na noite de terça, Ashling foi à aula de salsa. Como da outra vez, havia uma média de dez mulheres para cada homem. Ashling teve que dançar com outra mulher, que lhe perguntou se ela ia sempre ali. — É a primeira aula — observou Ashling. — Ah, sim, tinha me esquecido. Mas, enfim, não é legal ter um hobby? Depois da aula, com o rosto rosado e um ar radiante, voou para casa a fim de checar a secretária, mas, no momento em que abriu a porta, viu o olhar sinistro e fixo da luz vermelha. Ah, tudo bem, ainda era noite de terça. Nem tudo estava perdido. Enquanto vasculhava os armários da cozinha, procurando alguma coisa para comer, preocupou-se com a hipótese de Marcus ter perdido o número de seu telefone. Mas não: ele o enfiara no fundo do bolso e dissera que o guardaria perto do coração. Além disso, era a segunda vez que ela lhe dava seu número, o que diminuía as chances de ele vir a perdê-lo. Deu uma olhada no seu butim: meio saco de salgadinhos de milho, já meio moles; uma caixa de azeitonas pretas; quatro biscoitos de chocolate, também já meio moles; uma lata amassada de abacaxi em calda; oito fatias de pão dormido. Um resultado bem pouco expressivo — teria que ir ao supermercado no dia seguinte. Como estava louca para comer alguma coisa quente, enfiou duas fatias de pão dormido na torradeira. Enquanto esperava, sentiu um ímpeto de frustração impotente em relação a Marcus. Por fazer um buraco na sua vida, abrindo caminho para a expectativa entrar, sorrateira. Ela estava muito bem até ele começar a infernizá-la. E, afinal, por que a estava infernizando? Agora que ela o vira no palco, sua opinião mudara totalmente. Em vez de um homem de quem jamais se aproximaria, Marcus Valentine se tornara uma mercadoria desejável, e ela já não sabia se era digna dele. Bem no meio de uma torrada, o telefone tocou, fazendo disparar sua taxa de adrenalina. Espanejando do rosto farelos sujos de manteiga, atravessou a sala e agarrou o fone.

— Alô? — disse, sem fôlego da expectativa. Que murchou rapidamente. — Ah, oi, Clodagh. — Você está em casa? — perguntou Clodagh. — Hum, que é que você acha? — Desculpe. O que eu quis dizer é se posso dar um pulo aí. Essa, não. O moral de Ashling despencou. Má notícia à vista. Cancelou imediatamente o plano de telefonar para os pais — sua carga já estava bastante pesada. — Pode — disse a Clodagh. — Vou passar a noite em casa. — Vou dar um pulo na casa da Ashling, devo demorar uma hora — disse Clodagh de longe para Dylan, que assistia à tevê na sala de estar semi-empapelada. — Vai? — perguntou ele, surpreso. Era um tanto atípico, pois Clodagh raramente saía à noite. E nunca sem ele. Mas, antes que pudesse lhe fazer mais perguntas, ela já batia a porta da frente e dava marcha à ré no Nissan Micra em direção à rua. — Preciso falar com você — anunciou, quando Ashling abriu a porta do apartamento para ela. — Imagino que sim — disse Ashling, desanimada. — E preciso que você me faça um favor. — Vou tentar. — Aliás, sabe que tem um cara sem-teto sentado na frente da sua portaria? — Clodagh mudou bruscamente de assunto. — E ele me cumprimentou! — Deve ser Boo — disse Ashling, distraída. — Jovem, com cabelos castanhos, todo sorridente? — É, mas... — Clodagh hesitou. — Você conhece ele? — Não tenho nenhuma intimidade com ele, mas... bom, a gente às vezes troca umas palavrinhas, quando estou saindo ou chegando. — Mas provavelmente ele é um toxicômano! Pode te atacar com uma seringa — é isso que eles fazem, sabia? Ou arrombar seu apartamento. — Ele não é um toxicômano. — Como é que você sabe? — Ele me disse. — E você acreditou nele? — A gente sabe essas coisas. — De repente, Ashling ficou irritada. — Quando alguém está bêbado ou ligado, a gente sabe só de olhar para a pessoa. — Então por que e é um sem-teto?

— Isso eu não sei — admitiu Ashling. Achara que seria grosseiro perguntar. — Mas ele é muito legal. Normal, mesmo. E eu não culparia ele se bebesse ou usasse drogas... deve ser uma coisa horrível, ser um sem-teto. Clodagh esticou o lábio inferior, com ar rebelde: — Não sei onde é que você arranja essas pessoas. Mas vê se toma cuidado, hein? Enfim, preciso conversar com você. Tomei uma decisão. — Qual? — Começar a tomar antidepressivos? Deixar Dylan? — Chegou a hora... — Clodagh se arriou no sofá e, depois de se acomodar, recomeçou: — Chegou a hora... — De quê? — O nervosismo deixava Ashling ríspida. — ...de eu voltar a trabalhar — concluiu Clodagh. Não era o que Ashling estava esperando. Preparara-se para algo muito pior. — O quê...? Voltar a trabalhar? — Por que não? — Clodagh se pôs na defensiva. — Hum, exatamente. Por que não? Mas o que foi que te levou a tomar essa decisão? — Ah, eu já vinha pensando nisso há algum tempo. Provavelmente não é saudável investir toda a minha energia nas crianças. — Secretamente, Clodagh supunha ser essa a origem daquela terrível e desconfortável sensação de insatisfação. — Preciso sair mais de casa. Conversar com outros adultos. — E era só isso que você queria conversar comigo? — Ashling precisava ter certeza. — E o que mais haveria de ser? — Clodagh pareceu surpresa. — Nada. — Ashling teve vontade de dar uma bolacha em Dylan, por deixá-la naquele estado de extrema ansiedade, quando era óbvio que o único problema de Clodagh era tédio. — E aí, em que tipo de emprego você pensou? — Ainda não sei — admitiu Clodagh. — Mas não faz diferença. Qualquer um... Embora, seja lá qual for, vá ser difícil voltar a receber ordens de terceiros — lamentou-se. — Isso é, terceiros que não sejam meus filhos.

Enquanto Ashling reorganizava suas idéias para assimilar essa reviravolta inesperada, Clodagh se perdeu num devaneio. Vivia lendo livros sobre donas-de-casa que iniciavam seus próprios negócios. E que transformavam sua habilidade para fazer doces numa fábrica. Ou montavam um spa para mulheres. Ou transformavam o hobby da cerâmica numa próspera empresa, empregando, ah, no mínimo sete ou oito pessoas. As autoras desses livros faziam tudo parecer tão fácil. Os bancos lhes emprestavam dinheiro, as cunhadas tomavam conta de seus filhos, os vizinhos transformavam a garagem na sede da empresa, enfim, todos se juntavam num grande mutirão de boa vontade. Quando uma enchente inundava a cafeteria, Deus e todo mundo aparecia para ajudar na limpeza: fregueses, carteiros, transeuntes inocentes e alguém com quem a heroína tivera uma briga. (O que em geral assinalava o final da desavença.) E, de quebra, essas empreendedoras ficcionais invariavelmente abiscoitavam um homem. Mas você já tem um homem, Clodagh relembrou a si mesma. Sim, mas... Será que conseguiria montar seu próprio negócio? Mas o que poderia fazer? Nada, se fosse ser honesta. Duvidava sinceramente que alguém pagasse para comer o que cozinhava. Na realidade, quase tinha que pagar a Craig e a Molly para que comessem suas refeições. Não conseguia imaginar ninguém desembolsando uma nota preta para ir a seu restaurante comer batatas fritas de saquinho e macarrão instantâneo — mesmo que oferecesse um serviço gratuito de resfriamento soprando em todos os pratos dos clientes antes de servi-los. E ainda permitisse que esfregassem os restos de comida no seu cabelo. Quanto a habilidades manuais... preferia dar à luz a fazer cerâmica. E também não tinha a menor idéia de como montar um spa. Não, pelo visto teria que encarar alguma maneira mais convencional de ganhar a vida. E era aí que Ashling entrava.

— Então pensei se você não poderia digitar meu currículo para mim — pediu Clodagh. — E, ouve só, não quero que Dylan saiba disso. Ainda não, pelo menos; ele poderia ficar com o orgulho ferido. Por não ser o único a pagar as contas, entende? Ashling não ficou totalmente convencida, mas decidiu deixar passar. — Tudo bem, que hobbies eu ponho? Asa-delta? Sadomasoquismo? — Canoagem em águas rápidas — Clodagh riu. — E sacrifícios humanos. — Tem certeza de que é isso mesmo que você quer? — Ashling ainda sentia a necessidade de que Clodagh enfatizasse isso para ela. — Sei lá. Mas, para ser franca, tenho andado muito deprimida já há algum tempo, e era uma coisa que estava começando realmente a me fazer mal. Talvez Dylan não tivesse exagerado tanto assim, concluiu Ashling. Talvez tivesse algum motivo para se preocupar. — Mas agora que sei o que fazer — disse Clodagh, animada —, tudo vai ficar bem... Ah! — lembrou-se de repente. — Dylan me disse que você vai ficar com as crianças para nós sábado à noite. Com que então, a Operação Levanta-Astral-de-Clodagh ainda estava em andamento. — Vamos ao L’Oeuf — disse Clodagh, com um frêmito deliciado. — Faz séculos que não saio. — Escuta... e se o Ted fosse comigo? — Se Deus quisesse, Clodagh daria bola preta para a idéia. —Ted? O moreno baixinho? — Clodagh refletiu. — Tá, por que não? Ele parece inofensivo.

Ashling chegou cedo à redação para digitar o currículo de Clodagh. Em seguida, pediu a Gerry para dar uma caprichada no visual, deixá-lo bem bonitinho. Enquanto esperava que ele o imprimisse, levou um susto ao se flagrar rabiscando “Ashling Valentine” num papel. Cresce! Era melhor trabalhar um pouco. Mas, em vez disso, tratou de fazer uma coisa ainda mais desagradável: telefonar para os pais. Foi seu pai quem atendeu o telefone. — Pai, é Ashling. — Ah, oi! — Ele pareceu eufórico ao ouvir sua voz. — Como vão as coisas? — Ah, bem, bem. E vocês, estão todos bem? — Melhor, impossível. E então, quando é que vamos ver você? Alguma chance de vir passar um fim de semana aqui? — Ainda não. — Sentiu-se culpada. — Sabe, ultimamente trabalho uma vez ou outra no fim de semana. — Que pena. Não vai exagerar, hein? Mas o emprego está indo bem, não está? — Muito bem. — Espera aí, sua mãe quer dar uma palavrinha rápida com você. — Pai, ouve só, não posso mesmo falar. Estou no trabalho. Ligo para vocês uma noite dessas. Fico feliz por estarem todos bem. E desligou, sentindo-se um pouquinho melhor, um pouquinho pior. Aliviada por ter ligado e se livrado da obrigação durante duas semanas, e culpada por não poder dar a eles o que queriam. Acendeu um cigarro e tirou uma tragada funda. Lisa chegou atrasada. — Por onde você andou? — perguntou Trix. — Todo mundo está atrás de você. — Você é minha AP — disse Lisa, impaciente. — Tem a obrigação de saber. Olha na minha agenda. — Ah, sua agenda — disse Trix. — É claro! — Folheou-a até a página do dia e leu em voz alta: — “Entrevista com a maluca da Frieda Kiely.” Era lá que ela estava, rapaziada. — É isso mesmo — anunciou Lisa, num tom de voz alto o bastante para que todos ouvissem, principalmente Mercedes. — Visitei Frieda Kiely no seu ateliê hoje de manhã. Ela é uma gracinha. Uma verdadeira gracinha.

Na verdade, ela fora um pesadelo. Um pesadelo grotesco. Antipática, porra-louca em último grau e tão cheia de si, que no dia em que furasse o dedo voariam pedaços seus por todo o céu do condado. O que não seria mau, pensou Lisa. Quando Lisa chegou, Frieda estava estirada numa chaise longue, usando um de seus vestidos estrambóticos, com os longos cabelos brancos caindo-lhe até a cintura. Recostava-se sobre peças de tecidos, atacando um café da manhã do McDonald’s. Embora Lisa tivesse confirmado a entrevista com a assistente de Frieda naquela mesma manhã, Frieda teimava que o compromisso não existia. — Mas sua assistente... — Minha assistente — Frieda a ignorou, aos berros — é uma debilóide imprestável. Vou despedi-la. Julie, Elaine, seja lá qual for o seu nome, ESTÁ DESPEDIDA!... Mas, já que você está aqui... — concedeu. Estava a fim de se divertir um pouquinho. — Pode me falar um pouco sobre você? — Lisa tentou tomar as rédeas da entrevista. — Onde você nasceu? — No planeta Zog, meu bem — respondeu Frieda, com voz arrastada. Lisa a encarou. Sentia-se inclinada a acreditar nela. — Se prefere falar sobre suas roupas... — Roupas! — Frieda cuspiu a palavra. — Não são roupas! Não eram? Mas, se não eram roupas, então o que eram?, perguntou-se Lisa. — Obras de arte, sua debilóide! Lisa não reagia bem quando era chamada de debilóide. Estava achando tudo isso muito, muito difícil. Mas tinha que pensar no bem da Garota. — Talvez... — Engoliu a raiva. — ...talvez você possa me dizer por que faz tanto sucesso. — Por quê? Por quê? — Frieda arregalou os olhos, chocada. — Porque sou um gênio, eis por quê. Escuto vozes na minha cabeça. — Talvez você devesse ir ao médico. — Lisa não conseguiu se conter. — Estou falando dos meus guias, sua idiota! São eles que me dizem o que criar. Um Yorkshire terrier parecendo um rato com uma cartola em miniatura entrou correndo no aposento, soltando latidos horrívelmente estridentes.

— Ooooh, vem com a mamãe! — Frieda o arrastou por cima de metros e metros de tweed e um McMuffin de ovo, estreitando-o contra a peitaria. — Este é Schiaparelli. Meu muso. Sem ele, minha genialidade simplesmente se evaporaria. Lisa começou a desejar que o cachorro sofresse algum acidente horrível. E esse sentimento se intensificou ainda mais quando Schiaparelli se apresentou cravando os dentes afiados na sua mão. Frieda ficou horrorizada. — Ooooh, a jornalista má pôs a mão suja na sua boca? — Olhou para Lisa com ódio. — Se Schiaparelli ficar doente, vou processar você. Você e o jornal de quinta categoria que você representa. — Não é um jornal. É a revista Garota. Fomos a Donegal fotografar suas... Mas Frieda não estava escutando. Recostou-se sobre o cotovelo e berrou pela porta para a assistente: — Garota! Alguém neste prédio está cheirando a nabo! Descubra quem é e mande embora! Já disse a você que não vou tolerar isso. A assistente apareceu, vinda do escritório ao lado, e disse, com toda a calma: — Você está imaginando coisas, não tem ninguém cheirando a nabo. — Estou sentindo o cheiro. Está despedida! — gritou Frieda. Lisa olhou para a mão, onde o calhordinha deixara a marca de seus dentes. Para ela, já bastava. Não havia a mais remota possibilidade de fazerem uma matéria com essa louca. No escritório ao lado, a assistente — cujo nome era Flora — passou no ferimento de Lisa um pouco de ungüento de arnica, que obviamente estava lá com essa finalidade. — Quantas vezes por dia ela despede você? — perguntou Lisa. — Inúmeras. Ela pode ser bem difícil — disse Flora, apaziguadora —, mas é só porque é um gênio. — Ela é uma filha-da-puta louca, isso sim. Flora inclinou a cabeça para o lado, refletindo. — É — concordou, pensativa — Também. Lisa tomou um táxi para a redação. Sob nenhuma circunstância daria a Mercedes o gostinho de saber que estava certa, que Frieda Kiely era mesmo uma louca. — Frieda é uma mulher encantadora — contou à equipe da Garota. — Ficamos muito amigas.

Observou a reação de Mercedes, mas seus olhos escuros não traíram nada. Meia hora depois, Jack saiu do escritório, dirigiu-se resolutamente para Lisa e disse: — Londres ligou. Ela voltou para ele seus olhos cinza habilmente pintados, com um nó de ansiedade na garganta apertado demais para conseguir falar. Santo Deus, que manhã! Jack se calou para causar impacto, antes de dizer, lentamente, com empostação teatral: — A L’Oréal... pôs... um anúncio de quatro páginas... em todas as edições... durante os primeiros... seis... meses! Esperou um momento para que Lisa assimilasse a novidade. Então sorriu, a alegria estampada em seu rosto sempre tenso. Seus lábios se curvaram para cima, deixando à mostra o dente quebrado, e seus olhos brilharam, encantados. — Que tipo de desconto? — murmurou Lisa, por entre os lábios dormentes. — Nenhum. Vão pagar a tabela cheia. Porque nós valemos, ha, ha. Lisa permaneceu imóvel, observando seu rosto com uma espécie de assombro. Só agora que as coisas entravam nos eixos permitia-se avaliar as dimensões do terror com que convivera durante a semana anterior. Jack não precisava lhe dizer que o voto de confiança da L’Oréal provavelmente seria o bastante para convencer outras empresas de cosméticos a comprar espaço. — Que bom — ela conseguiu dizer. Por que tivera que contar a ela na frente de todo mundo? Se estivessem trancados no seu escritório, ela poderia ter se atirado nos seus braços e lhe dado um abraço. — Bom...? — ele arregalou os olhos, brincalhão. — Devíamos comemorar. — Lisa começou a se recompor, permitindo-se experimentar uma sensação de alívio. — Almoçar. E sua felicidade aumentou ainda mais quando Jack concordou: — Devíamos mesmo. Encararam-se, vivendo um momento de zonza euforia. — Vou reservar uma mesa. Trix — chamou Lisa —, cancela minha hora no cabeleireiro durante o almoço! Era quase como nos velhos tempos. — Já que você está aqui, Jack, dá uma olhada nisso. — Lisa acenou com alguma coisa para ele.

Três mesas adiante, Ashling — que acompanhara toda a cena só por acompanhar — viu que Lisa mostrava a Jack seu artigo sobre o clube de salsa. — Eu disse a você que ia fazer dessa revista uma coisa fabulosa. — Lisa sorriu para ele. — E fez, mesmo — ele concordou, passando os olhos pelo artigo e balançando a cabeça em sinal de aprovação. — Excelente material. Ashling a tudo assistia, impotente. De algum modo Lisa se apropriara de todo o crédito por seu trabalho. Não era justo. Mas o que podia fazer? Nada. Morria de medo de um confronto. De repente, ouviu sua própria voz se elevando: — Fico feliz que o senhor tenha gostado! Surpreso, Jack voltou de um golpe a cabeça para Ashling. — Fui eu que escrevi a matéria — disse ela, como que se desculpando. — Fico feliz que o senhor tenha gostado dela — acrescentou, inconvicta. — E foi Gerry que diagramou — Lisa chamou sua atenção. — E eu que tive a idéia. Você vai ter que aprender o que é trabalho em equipe, Ashling. — Lisa dirigiu a repreensão a Ashling sem tirar os olhos de Jack. Mas Jack estava estudando a foto sexy. Ato contínuo, seu olhar pulou várias vezes da mulher da foto para Ashling — um olhar atrevido e sugestivo. Ashling ficou toda encalorada e sem graça com esse escrutínio. — Bem, bem. — Ele curvou os cantos dos lábios, como se estivesse contendo um largo sorriso. — E aí, Ashling, é isso que você faz nas horas vagas? Pratica dirty dancing]? — Não é... — Teve vontade de dar um bofete nele. — Falando sério, é uma matéria notável. Você trabalhou muito bem — disse ele, deixando a malícia de lado. — Não é mesmo, Lisa? A boca de Lisa experimentou vários formatos, mas não teve escapatória. — É — foi obrigada a dizer. — É, sim. Lisa reservou uma mesa no Halo para si mesma e Jack. Achou melhor assumir o controle da situação, pois algo lhe dizia que, se a deixasse a cargo de Jack, acabariam no Pizza Hut.

Meia hora antes de saírem, retirou-se para o banheiro, a fim de se certificar de que sua aparência estava nota mil. Que sorte a sua, estar usando justamente hoje o tailleur lilás Press and Bastyan. Se bem que, mesmo que não fosse o tailleur, seria alguma outra coisa igualmente glamourosa. A diretora de uma revista nunca sabe quando será preciso estar podre de chique. Sempre Pronta, esse era o lema de Lisa. Não havia a mais remota possibilidade de suas frágeis sandálias de tiras de gorgorão sobreviverem à curta caminhada pelo cais do porto — pois se mal agüentavam sua movimentação pela redação da revista! Mas Lisa não se aborreceu com sua falta de praticidade — alguns sapatos existem apenas para viver um esplendoroso e efêmero apogeu de beleza. Para que mais Deus inventou os táxis? Avaliando-se ao espelho, ficou muito satisfeita com o que viu. Seus olhos estavam brilhantes e largos (graças ao delineador branco na borda interior das pálpebras), sua pele acetinada (por cortesia da Máscara da Aveda) e sua testa lisa e sem rugas (efeito da injeção de Botox que aplicara pouco antes de ir embora de Londres). Escovou os cabelos até brilharem — o que não demorou nada, pois seus cabelos sempre brilhavam, graças a um condicionador leave-in, um spray antifrizz e uma escova feita por um profissional. Às dez para a uma o táxi chegou e ela e Jack saíram juntos, sob os olhares ávidos da redação inteira. Lisa estava excitadíssima por ter Jack só para si, naquela proximidade toda, e planejava se valer do exíguo espaço do carro para esbarrar “sem querer” suas pernas esguias e nuas nas dele. No entanto, assim que entraram, o celular de Jack tocou e ele passou todo o trajeto discutindo com o advogado da estação de rádio sobre um mandado que estavam impetrando contra eles, a propósito de uma entrevista controvertida com um bispo que tivera um caso. E a oportunidade de esbarrar nele não se apresentou.

— Não entendo qual é o problema — reclamava Jack no bocal do aparelho. — Novidade, hoje em dia, é encontrar um bispo que não tenha tido um caso. Aliás, para que a gente vai perder tempo entrevistando esse cara? — Como vai, Lisa? — perguntou o chofer do táxi. — Já encontrou um apartamento? Lisa se inclinou para a frente. Quem era esse estranho que tinha um conhecimento tão profundo de sua vida? Então viu que era o mesmo chofer que a levara para ver os apartamentos durante sua primeira semana em Dublin. — Ah, sim. Arranjei uma casinha perto da South Circular — disse, educada. — A South Circular? — O chofer balançou a cabeça, em sinal de aprovação. — Uma das poucas partes de Dublin que ainda não foram dominadas pelos yuppies. — Ah, mas mesmo assim é muito boa — defendeu-a Lisa. Nesse momento, lembrou-se de uma coisa que ficara curiosa para saber. — E aí, o que aconteceu depois que você enfrentou a gangue de garotas que estava intimidando sua filha de quatorze anos? Não deu tempo de você terminar de me contar, da última vez. — Elas nunca mais encostaram um dedo nela — respondeu ele, com um sorriso. — Ela agora é uma outra garota. Quando Lisa desceu do carro, ele disse: — Meu nome é Liam. No futuro, se quiser, pode me chamar. Jack ainda estava ao telefone quando foram conduzidos até a mesa no centro do salão lotado do belo restaurante. Lisa gostou disso. Jack podia estar usando um temo que parecia ter sido encontrado numa lata de lixo, mas estava falando ao celular, em tom autoritário. Não demorou muito para uma coisa compensar a outra: assim que viram Jack com o celular, alguns clientes mais próximos logo trataram de pegar os seus, nervosos, e fazer algumas ligações totalmente desnecessárias. Depois de prometer que encontraria uma solução até as cinco da tarde, Jack fechou o celular. — Desculpe, Lisa. — Não tem problema. — Ela sorriu, simpática, exibindo seu novo batom da Source.

Mas o telefonema pusera por terra o alto-astral de Jack de horas atrás. Estava novamente agitado e sério, e nada o convenceria a flertar. Embora não houvesse nada que ela não pudesse dizer. — A nós. — Com um sorriso sugestivo, encostou seu copo de vinho no de Jack. Em seguida acrescentou, apenas para confundi-lo e deixá-lo de sobreaviso: — Vida longa e próspera para a Garota. — Tintim. — Ele ergueu o copo e esboçou um sorriso, mas sem conseguir esconder sua preocupação. Só queria falar de trabalho — o perfil do público leitor, os custos da gráfica, o quanto valia ter uma seção literária. Nem parecia estar muito à vontade no ambiente ultramoderno e chique do Halo. Lutava trabalhosamente com sua entrada, uma recalcitrante alface crespa cujos cachinhos ele tentava convencer a se aquietarem no seu garfo e ficarem na sua boca. — Meu Deus — exclamou, de repente, quando outra porção saltou do cativeiro como uma mola. — Estou me sentindo uma girafa! Lisa resolveu dançar conforme a música. Não via nenhum sentido em tentar recriar o clima do diálogo descontraído que haviam tido aquela noite em sua cozinha, porque ele não estava interessado e ponto final. Estava estressado e ocupado demais, e ela lisonjeada por ele ter aceito seu convite para almoçar. Com sua admirável capacidade de fazer com que quase tudo virasse a seu favor, concluiu que não havia nenhum inconveniente em lhe perguntar sobre a possibilidade de publicarem uma eventual coluna de Marcus Valentine em algumas das outras revistas do grupo. — Ele chegou a dizer que faria uma coluna para nós? — perguntou Jack, quase entusiasmado. — Não exatamente... ainda não. — Ela sorriu para ele, segura de si. — Mas vai. — Vou apurar se a possibilidade existe. Você tem umas idéias geniais — reconheceu ele. Foi só na hora de saírem do restaurante que Jack voltou a pertencer à raça humana. — E aí, o timer do aquecedor está funcionando bem? — perguntou, os olhos brilhando.

— Show de bola — disse Lisa, radiante. — Posso tomar chuveiradas longas e quentes à hora que quiser. — Pronunciou as palavras “longas e quentes” de uma maneira longa e quente. Com a máxima lentidão, languidez e sensualidade. — Que bom — disse ele, as pupilas se dilatando numa gratificante centelha de interesse. — Que bom. Lisa já estava quase chegando em casa quando esbarrou numa mulher medonha, com os cabelos de um louro cor de mostarda, usando um training adornado por pompons e — num brutal contraste com sua figura — uma sacola da DKNY. A sacola da DKNY de Lisa. Pelo menos fora de Lisa, até ela passá-la para Francine, uma das meninas da rua. Algo lhe dizia que a dona daqueles cabelos que pareciam fritos — qual era mesmo o nome dela, Kathy? — era a mãe de Francine. — Oi, Lisa — disse, com um sorriso de orelha a orelha. — Tudo bem? — Tudo, obrigada — disse Lisa, fria. Como é que todo mundo por ali sabia seu nome? — Estou de saída para o trabalho. Vaivém de bandeja no Harbison. Trinta paus na mão, mais o dinheiro do táxi. — Pelo que Lisa depreendeu, Kathy estava se referindo a um biscate como garçonete. Acenou para Lisa com a bolsa de duzentos dólares. — Não posso me atrasar. Até mais. Subitamente, Lisa teve uma inspiração. — Hum, Kathy — seu nome é Kathy, não é? —,você estaria interessada num emprego de arrumadeira? — Pensei que você nunca fosse perguntar! —Ah,é? Por quê? — Ora, você é uma mulher ocupada, quando é que vai ter tempo de arrumar a casa? — O que Kathy realmente queria dizer era que Francine entrara na casa de Lisa sem ser convidada e contara para a mãe que era um autêntico chiqueiro: “Mil vezes pior que a nossa.” Ashling, por sua vez, passara a tarde de quarta com a mãe de Phelim, para quem levara uma sopeira da Portmeirion embrulhada para presente, a fim de completar seu jogo. — Meu trabalho aqui acabou — disse, em tom de brincadeira. Em seguida teve que se sentar por horas a fio na cozinha da Sra. Egan e escutar a ladainha de sempre.

— Phelim não sabia o que era bom para ele. Devia ter se casado com você, Ashling. E esperou que Ashling concordasse, mas, pela primeira vez, isso não aconteceu. Quando Ashling chegou em casa, não havia nenhum recado na secretária-eletrônica. Joy e seu Estatuto dos Homens que fossem para o inferno! — Ainda são nove horas, sua pessimista — censurou-a Joy, quando chegou para lhe fazer companhia durante sua vigília. — Ainda tem muito tempo pela frente. Abre uma garrafa de vinho que eu te conto todas as coisas legais que Mick me disse ontem à noite. Ashling mal conseguia acompanhar os altos e baixos de montanha-russa do namoro de Joy e Mick. Os dois eram quase como Jack Devine e sua amiguinha mordedora de dedos. Apanhou o saca-rolhas, serviu dois copos de vinho e se acomodou no sofá para analisar, sílaba por sílaba, tudo que Mick dissera a Joy. — ...aí ele me disse que eu sou do tipo de mulher que gosta da madrugada. O que você acha que ele quis dizer com isso? Que eu sou do tipo de mulher com quem o cara se diverte mas não se casa, né? — De repente, ele só quis dizer que você gosta da madrugada. Joy sacudiu a cabeça, categórica: — Não, sempre tem uma entrelinha... — Ted diz que não. Que quando um homem diz uma coisa, ele quer dizer exatamente aquilo. — E como é que ele pode saber? Encontrar um sentido oculto em tudo era uma atividade tão envolvente que, quando o telefonema veio, às dez e sete, Ashling já quase se esquecera de que estava esperando por ele. — Atende — ordenou Joy, meneando a cabeça em direção ao aparelho, que tocava. Mas Ashhing estava quase com medo, pois havia o risco de não ser ele. — Alô — disse, ressabiada. — Alô, é Ashling, a santa padroeira dos humoristas? Aqui é Marcus. Marcus Valentine. — Oi! É ele — disse a Joy por mímica labial, pontilhando o rosto com o dedo para indicar as sardas. — Do que foi mesmo que você me chamou? Deu uma risadinha.

— De santa padroeira dos humoristas. No primeiro show do Ted Mullins, você deu uma mão para ele, lembra? E eu pensei comigo: essa garota é amiga de humoristas. Ela refletiu. Gostava da idéia de ser a santa padroeira dos humoristas. — E aí, como vai? — perguntou ele. Ashling decidiu que gostava da sua voz. Ninguém diria que pertencia a um homem sardento. — Tem ido a muitos shows humorísticos ultimamente? Ela deu outra risadinha — Fui a um, sim, sábado à noite. — Você precisa me contar tudo sobre esse show — disse Marcus, rindo, com sua voz destituída de sardas. — Pode deixar. — Ela soltou mais uma risadinha em resposta. Em algum canto da consciência, perguntou-se que diabo de quiriquiqui era aquele. Estava parecendo uma débil mental. — Que tal se a gente saísse sábado à noite? — convidou ele. — Ah, não posso. — O tom de pesar em sua voz foi sincero. Cogitou de explicar que teria de tomar conta dos filhos de Clodagh, mas, sabe-se lá como, conseguiu se segurar. Não faria mal nenhum se ele pensasse que ela tinha uma vida. — Vai viajar no feriadão? — Ele pareceu desapontado. — Não, só tenho um compromisso na noite de sábado. — E eu tenho um no domingo. A conversa empacou, para logo em seguida irromper simultaneamente das duas partes: — Vai fazer alguma coisa na segunda? — perguntou ele, ao mesmo tempo que ela sugeria: “Que tal segunda?” Ela deu uma risadinha. De novo. — Acho que a gente tem um compromisso — disse ele. — Que tal se eu te ligar segunda de manhã, não muito cedo, e aí a gente combina o resto? — Te vejo na segunda, então! — Vê mesmo — disse ele, com um tom romântico e promissor. Ashling desligou o telefone. — Ai, meu Deus, vou sair segunda-feira com Marcus Valentine e suas sardas. — Mal se agüentava de excitação e susto. — Há anos que eu não saio com um cara. Desde Phelim. — Está satisfeita agora? — perguntou Joy. Ashling assentiu, ressabiada. Agora que ele telefonara, sempre havia o medo de tornar a perder o interesse por ele.

— Muito bem — ordenou Joy. — Deixa eu treinar você. Repete comigo: “Ai, Marcus! Marcus!” Na manhã seguinte, quando Ashling chegou à redação, Lisa a chamou. — Adivinha quem me ligou ontem à noite? Ashling olhou para sua expressão competitiva e guerreira, para o triunfo que acendia seus olhos cinzentos. — Marcus Valentine? — Quem mais poderia ser? — Acertou. Marcus Valentine. — Ah, é? — Ashling pôs a mão no quadril, num gesto atrevido. — Porque ele me ligou também. A boca de Lisa se entreabriu diante da inesperada notícia. Pensara que fosse a vencedora. — Quando você vai se encontrar com ele? — perguntou Ashling. — Lá para o meio da semana que vem. — É mesmo? Bom, eu vou sair com ele na noite de segunda... Ou seja, antes de você — acrescentou, para o caso de Lisa não ter notado. Ela e Lisa sustentaram um olhar tenso e feroz. — Ou seja, ganhei! — Ashling não sabia que bicho a mordera. Sobressaltada, Lisa fuzilou Ashling, cujo rosto meigo fazia o possível para adotar uma expressão desafiadora. Lisa fora posta à prova. E, para sua surpresa, achara a experiência divertida. Desatou a rir. — Que bom para você — disse, às gargalhadas. Ashling demorou um momento para se adaptar à mudança de clima e, por fim, também começou a rir. As duas estavam sendo ridículas! — Caramba, Lisa, a gente nem quer a mesma coisa dele. — A coragem de Ashling ainda durou o bastante para lhe permitir dizer: — Por que você ficou chateada? — Sei lá. — Lisa indicou sua ignorância fazendo uma careta de sapo, repuxando os cantos da boca para baixo. — Toda mulher precisa de um hobby.

Reinava um clima de formatura nos escritórios da Randolph Media. Estavam na sexta-feira do feriadão de junho (coisa que desnorteara Lisa completamente, porque na Inglaterra o feriadão fora no mês nterior), tinham recebido aquela notícia sobre os anúncios da L’Oréal, Jack Devine havia saído e acabara de chegar um engradado de garrafas de champanhe destinadas a servir de prêmio para um concurso a ser promovido entre as leitoras. (“De que região da França vem o champanhe? Respostas no cupom para... A primeira a responder ganha uma dúzia de garrafas do melhor...”) Lisa olhou para o champanhe, olhou para o relógio — quinze para as quatro — e olhou para a equipe. Haviam se matado de trabalhar durante as últimas três semanas e, pelo jeito, a Garota não seria um completo desastre. Acabara de lembrar o quanto era importante manter o moral dos funcionários. Bem, se fosse ser honesta, teria de admitir que estava a fim de uma bebida, e desconfiava que teria um motim pela frente se servisse apenas uma dose para si mesma. Soltou um pigarro teatral e disse, simpática: — Alguém gostaria de tomar uma taça de champanhe? Inclinou sugestivamente os cabelos brilhantes em direção ao engradado, e o pessoal não demorou mais que um segundo para compreender aonde ela estava querendo chegar. — Mas e o concurso das leitoras? — perguntou Ashling, ansiosa. — Cala essa porra de boca — ordenou Trix entre os dentes, para logo em seguida se voltar para Lisa: — Seria o máximo, Lisa — bajulou-a, em voz alta. — A gente pode comemorar o anúncio milionário da L’Oréal que você conseguiu. Depois disso, ninguém se fez de rogado. As palavras “Lisa disse que a gente pode tomar o champanhe do concurso das leitoras” percorreram a redação como o sussurro de uma brisa. Canetas e mouses foram abandonados, e todos relaxaram. Até Mercedes parecia alegre. — Mas a gente não tem taças — Lisa lembrou, nervosa.

— Não tem problema. — Antes que Lisa mudasse de idéia, Trix já levava para o banheiro uma bandeja cheia de canecas de café sujas. Era a primeira vez em seis meses que lavava as canecas. Voltou na metade do tempo e ninguém se importou a mínima que não tivesse enxaguado as canecas direito, porque qualquer excesso de espuma poderia ser atribuído ao champanhe. — Desculpe, mas acho que não está muito gelada — disse Lisa, gentil, pondo entre as mãos cheias de anéis de Kelvin uma caneca lascada com o slogan “Os windsurfistas fazem aquilo de pé.” — E quem se importa! — disse Kelvin, eufórico, encantado por ser incluído, apesar de não trabalhar na Garota. O pequeno grupo de escriturários esperava ansiosamente no seu canto, para ver se também iria ganhar. Um coro homérico de suspiros de alívio se elevou quando Lisa estourou a rolha de uma segunda garrafa e chegou-se até eles carregando canecas que tinham gravados os dizeres “Não dá para acreditar que não seja manteiga”, “Kia-Ora, vou ser seu cachorro”* e duas com “Faz exatamente o que diz na lata”. — À sua saúde, Sra. Morley. — Lisa entregou a caneca do “Não dá para acreditar que não seja manteiga” para a superprotetora AP de Jack. — Tintim — resmungou a Sra. Morley, desconfiada. Quando todos já tinham ganho uma caneca, Lisa ergueu a sua e disse: — A todos vocês. Parabéns pelo trabalho duro nessas últimas três semanas.

* Trecho mais popular do jingle do comercial de Kia-Ora, uma marca de suco de laranja exibido no Reino Unido na década de 1980.

 

Ashling e Mercedes compartilharam um momento de incredulidade. Qualquer um juraria que Lisa já estava bêbada. Em seguida todos meteram a cara na bebida, menos Trix. Mas só porque a sua já tinha acabado. E não demorou muito para que o mesmo acontecesse com as dos outros. O silêncio se prolongou, enquanto os olhares pulavam da espuma no fundo das canecas vazias (que continuavam a fazer um barulhinho borbulhante de gás, de uma maneira estranhamente radioativa) para as dez garrafas que haviam restado. Lisa rompeu o silêncio: — E aí, abrimos outra? — perguntou, com ar inocente, como se a idéia tivesse acabado de lhe ocorrer. — Acho que a gente pode, sim. — Trix fez uma boa imitação de uma pessoa indiferente. — Claro, por que não? — Uma caneca bastara para abrandar consideravelmente a Sra. Morley. Porém, enquanto Lisa destorcia o casco de arame da segunda garrafa, a porta da redação se abriu e todos se retesaram. Merda! Havia uma grande possibilidade de que Jack subisse nas tamancas se os apanhasse filando o champanhe do concurso das leitoras durante o expediente. Mas não era Jack, era Mai, com seus saltos enormes e quadris minúsculos. Mas não tão pequenos quanto sua cintura. Ashling sentiu uma inveja e uma admiração mortais. Mai pareceu um tanto desconcertada pelo completo silêncio que se fez na redação e pela maneira como todos olharam para ela com ar culpado. — Jack está? O silêncio se prolongou. — Não — murmurou a Sra. Morley, limpando a boca para o caso de estar com um bigode de champanhe. — Foi ensinar boas maneiras ao pessoal do estúdio de tevê. — E cruzou os braços, vitoriosa, com isso indicando que, na verdade, era a Mai que Jack devia estar ensinando boas maneiras. — Ah. — O rechonchudo lábio inferior de Mai se projetou num beicinho decepcionado. Deu as costas para ir embora, sua grossa cortina de cabelos sedosos balançando num ruge-ruge voluptuoso.

— Você pode esperar, se quiser — disse Ashling, sem pensar. Mai se voltou. — Isso seria permitido? — Claro! Aliás, por que não toma um champanhe? — Mal concluiu a frase, preparou-se para enfrentar a ira de Lisa. A iniciativa de convidar a namorada do chefe para participar da festa não poderia ter sido mais infeliz. Ashling desconfiava que já estava meio alta. Mas, em vez de ficar furiosa, Lisa concordou: — É, toma um champanhe. O fato era que Lisa tinha tanta curiosidade sobre Mai quanto os outros. Provavelmente mais, considerando seu interesse por Jack. — Tintim! — Assim que Mai aceitou uma caneca de Lisa, Ashling disse, gentil: — Vem até minha mesa e puxa uma cadeira. Trix e Lisa também gravitaram imediatamente para a mesa de Ashling, ávidas de curiosidade pela exótica Mai. — Gostei da sua bolsa — disse Lisa a Mai. — É Lulu Guinness? Mai soltou uma gargalhada surpreendentemente escandalosa: — É da Dunnes. — Dunnes? — Uma loja de departamentos — explicou Ashling, corando com a própria franqueza. — Como a Marks & Spencer. — Só que mais barata — acrescentou Mai, com outra risada. Apesar de seu rosto de botão de lótus, de repente pareceu uma mulher bastante comum. Enquanto Lisa circulava, enchendo canecas, Mai comentou, irônica: — Este lugar é ótimo para se trabalhar. Vocês fazem isso todo dia? Seguiu-se um coro de gargalhadas ligeiramente histéricas. — Todo dia? Imagina! Imagina! Em ocasiões especiais, feriados, datas desse tipo. — Você não vai dedurar a gente para o Jack, vai? — perguntou Trix. Mai piscou os olhos em sinal de desprezo cáustico: — Só faltava essa! — Onde você trabalha? O que você, hum, faz? — Trix se atreveu a perguntar. Mai jogou para trás os cabelos grossos, com um olhar de soslaio altamente perspicaz e, no ato, voltou a ser a garota misteriosa e inescrutável de sempre. — Sou uma dançarina exótica.

Sua resposta levou todos na redação a fazerem um curto silêncio desconcertado, para logo em seguida adotarem uma atitude excessivamente blasé: — Não é o máximo? — perguntavam-se uns aos outros, enfáticos. — Que legal! — Não está fazendo um dia lindo? — perguntou Bernard, o Xarope, que, para variar, ouvira o galo cantar e não sabia onde. — Que bom para você — Lisa conseguiu dizer. Era capaz de apostar que a vida sexual de Jack e Mai era maravilhosa, e lançou-lhe um olhar venenoso de ódio. — O que é uma dançarina exótica? — murmurou a Sra. Morley para Kelvin. — Acho que implica certo grau de, hum, nudez — cochichou ele, diplomático, para não ferir sua sensibilidade de mulher mais velha. — Ah, quer dizer então que ela é uma stripper. Deve ganhar uma nota preta. — A Sra. Morley estudou Mai com um súbito interesse que beirava o respeito. — Não, que joça, não sou uma dançarina exótica — disse Mai, cheia de desdém, voltando de estalo a ser uma mulher comum. — Estou brincando. Trabalho vendendo celulares, mas, por causa da minha aparência, as pessoas esperam que eu seja alguma espécie de vamp. — Mas isso não é um horror? — Outro coro indignado irrompeu. — Terrível! As pessoas são umas idiotas, não é mesmo? — Eu entendi direito? Ela não é uma stripper? — perguntou a Sra. Morley discretamente a Kelvin, que sacudiu a cabeça oxigenada. Era difícil dizer qual dos dois ficara mais decepcionado. — É um tereóstipo horrível — condenou Ashling. Me embananei toda, deu-se conta. — É, sim — queixou-se Mai, animada pela segunda caneca de detergente e champanhe. — Eu nasci e me criei em Dublin, meu pai é irlandês, mas, como minha mãe é asiática, os homens me tratam como se eu conhecesse todas aquelas técnicas sexuais especiais do Oriente — bolas de pingue-pongue, esse tipo de coisa. Ou então gritam quando passo na rua: “Qué um platinho de aloz flito?” — Soltou um suspiro profundo. — E as duas coisas me deprimem.

Deu uma olhada na direção de Kelvin e Gerry, que a encaravam com um olhar lascivo, e tratou de se chegar para o lado de Ashling, Lisa e Trix. — Não que eu queira dizer com isso que nunca experimentaria bolas de pingue-pongue — disse, com sinceridade. — É claro que eu faria alguma coisa especial se realmente me sentisse atraída pelo cara. Você se refere a Jack?, todas tiveram vontade de perguntar. Mas nenhuma teve a coragem. Nem mesmo Trix. No entanto, à medida que o número de garrafas cheias continuou a diminuir e o de vazias a crescer, foram perdendo as papas na língua. — Que idade você tem? — perguntou Trix. — Vinte e nove. — E há quanto tempo namora Jack? — Quase seis meses. — Às vezes ele é um mala-sem-alça — confessou Trix. — E é a mim que você vem dizer? Desde que a Garota começou, ele está com a cachorra. Trabalha demais, se preocupa demais, e aí vai andar de barco para relaxar e não tem tempo para mim. Culpo todos vocês pelo mau humor dele! — Que engraçado! — exclamou Trix. — Porque nós culpamos você. Ao ouvir isso, Mai começou a se remexer e contorcer na cadeira. — Desculpe, estamos te deixando sem graça? Vamos calar a boca — interveio Ashling. Mas em tom de decepção. Estava achando aquele diálogo fascinante. — Não, tudo bem. — Mai sorriu, ainda se contorcendo. — A calcinha entrou na minha bunda, fico doida quando isso acontece. Era tão bonita, desassombrada e insolente que Lisa engoliu em seco. Tinha certeza de que não imaginara o interesse de Jack por ela, mas agora podia ver o quanto ele achava Mai atraente. Quando Jack voltou, todos já haviam relaxado a tal ponto, que nem se deram ao trabalho de dissimular. — Estão se divertindo? — Ele esboçou um sorriso. — É feriado — fuzilou-o a Sra. Morley, que raramente bebia e na última hora e meia já passara pelas fases da desconfiança, da descontração e do arrependimento sentimental, tendo chegado agora, como era de esperar, à da agressividade. — Sem dúvida — concordou Jack.

— Oi, Jack. — Mai deu um sorriso de tubarão. — Eu estava passando e resolvi dar um pulo aqui para dizer oi. Jack pareceu constrangido. Mai o seguiu até seu escritório e fechou a porta com toda a firmeza. Quando Trix encostou a caneca na porta e o ouvido na caneca, todos riram. Mas a caneca era desnecessária. A voz de Mai, alta e acusadora, chegava até as mesas mais afastadas. — Como você se atreve a me ignorar quando te visito... Se pensa que vou tolerar... Não se ouvia uma única palavra de Jack, mas ele devia estar dizendo alguma coisa, pois havia pausas entre as explosões acusatórias de Mai. — Mantenham todas as saídas desobstruídas — disse Kelvin, como uma aeromoça. Não demorou muito e a porta de Jack se abriu, Mai chispou furiosa para a porta e saiu, deixando um zunzum de vozes atrás de si. Não se despedira de ninguém. — Agora que o espetáculo acabou, vou andando — anunciou Kelvin, jogando a mochila inflável laranja nas costas. — Ainda tenho setenta e duas horas de levantamento de copo pela frente. — Vai ficar com um bíceps de Popeye — disse Trix. — Por quê? Ele come muito espinafre? — perguntou Bernard, o Xarope, que novamente pegara o bonde andando. Todos arrumaram suas coisas e trataram de sair de fininho, até que as únicas duas pessoas que restaram foram Jack e Ashling — ele porque estava esperando um telefonema de Nova York, ela porque ia se encontrar com Joy às seis e meia e achava que seria perda de tempo ir para casa. Enquanto esperava, continuava trabalhando, pois estava fazendo um banco de dados para Lisa e se atrasara muito, devido ao improviso etílico daquela tarde. — Deixa isso aí, Senhorita Quebra-Galho — reclamou Jack. — É feriado. De mais a mais você está de porre, vai ter que fazer tudo de novo na terça-feira. — Tem razão. — Ashling ainda estava sóbria o bastante para saber que estava bêbada. — Estou metendo os pés pelas mãos. — Vai para casa — ordenou ele.

Já eram quase seis e meia, mesmo. Confusa, ela apanhou sua bolsa e arriscou: — Vai fazer alguma coisa de bom no fim de semana, JD? — Só porque tomara um traguinho. — JD? — indagou Jack, curioso. — Quer dizer, Jack, Sr. Devine, o que for. — Ashling ficou constrangida por deixar escapar seu apelido pessoal para Jack. — Vai fazer alguma coisa de bom? — Sei lá — disse ele, carrancudo. — Vou visitar meus pais no domingo. No mais, estou dependendo do tempo. Se não der para sair de barco, vou ficar em casa e assistir a uns vídeos de Jornada nas Estrelas. — Jornada nas Estrelas? Bom, hum, nesse caso, “Vida longa e prosperidade” — incentivou-o Ashling, tentando fazer com os dedos abertos a saudação de Vulcano. Jack a encarou, irritado: — Ilógico, Capitão Quebra-Galho. Não vou prosperar nada esse fim de semana. — Por que não? Subitamente encabulado, ele confessou: — Você não pode ter deixado de perceber que minha namorada está uma fera. Ashling não pôde se conter. As palavras saíram antes que se desse conta. Era a bebida falando mais alto. — Por que você sempre discute com ela? Mai é um amor de pessoa. Será que não dá para se esforçar um pouquinho mais? Ela diz que você nunca tem tempo para ela porque vive andando de barco. Quem sabe se saindo menos vezes...? Compreendeu que passara dos limites, e o quanto, e esperou pela ira de Jack, mas, em seu lugar, recebeu uma risada, embora antipática. Tarde demais, lembrou-se de que toda história sempre tem duas versões. — Não é verdade? Jack demorou a responder. — Longe de mim falar mal de alguém que não está presente para se defender. — Quer dizer que você sai para passear de barco? — Saio.

— Mas... — Nesse momento, Ashling teve a impressão de que compreendera tudo. — Por acaso ela diz que não se importa se você for e depois se zanga? Depois de uma pausa, Jack admitiu, a contragosto: — É, é por aí. — Mas — explicou Ashling —, mesmo quando ela diz que não se importa que você vá, é da boca para fora, entende? Vai lá, conversa com ela, trata ela com carinho. — Seus olhos se iluminaram. Problema resolvido. — Senhorita Quebra-Galho — Jack sacudiu a cabeça, benevolente —, por que você tem sempre que resolver tudo para todo mundo? — Mas eu só estou... — Senhorita Quebra-Galho — repetiu ele, divertido. — Vou pensar no assunto. E você? Vai viajar no fim de semana? — Não. — Ashling ficou envergonhada assim que se viu na berlinda. — Vou só me encontrar com uns amigos, fazer umas coisas... — Sair com Marcus Valentine, se Deus quisesse, mas isso ela não iria dizer a Jack. — Bom feriado — disse ele. Quando ela já se dirigia para a porta, Jack a chamou, subitamente curioso: — Ei! Senhorita Quebra-Galho! Você assiste aos vídeos de Jornada nas Estrelas? Ashling o olhou por cima do ombro e sacudiu a cabeça: — Não. — Foi o que eu imaginei — disse ele. — Não tenho nada contra eles. — É o que todas dizem — resmungou Jack. — Mas, pessoalmente, prefiro os de Doctor Who.

No sábado à noite, às quinze para as sete, Ashling e Ted chegaram na bicicleta de Ted para desempenhar suas funções de babás, chez Dylan e Clodagh. — Essa casa é deles? — Ted analisou a casa de tijolos vermelhos, com seu frontão bipartido. — Fantástica, não é? — Ashling se postou na soleira e tocou a campainha. — A gente não vai ter que trocar fraldas, vai? — perguntou ele, subitamente apavorado. — Não, eles já estão muito grandes para isso. A gente só tem que divertir os dois, brincar com eles. — Bom, isso deve ser fácil. — Ted soltou um pigarro e alisou para trás uma mecha de cabelo, nervoso. — Ted Mullins, o homem mais engraçado de Dublin, se apresentando, sargento! — Acho que talvez eles sejam um pouco pequenos demais para um tipo de humor pós-moderno e irônico — disse Ashling, desanimada. — Eu diria que Os Três Porquinhos é mais a praia deles. — Veremos — disse Ted. — As pessoas subestimam a inteligência das crianças. Toco a campainha de novo? Demoraram um pouco a atender. Dylan chegou, os braços cheios de sabão, a camiseta molhada e colada no peito. — Como vão? — Parecia aéreo. Logo Ashling e Ted ouviram os uivos e gritos ecoando do andar de cima da casa. — Estou dando banho no Craig — explicou Dylan. — Ele não parece nada satisfeito. — E o pior ainda está por vir. Ainda tenho que enxaguar o cabelo dele. — Dylan estremeceu. — Pelos gritos, vocês vão ter a impressão de que ele está sendo queimado vivo, mas não se assustem... Acho bom eu voltar. — Já estava no meio das escadas. — Clodagh está na cozinha. Clodagh estava sentada à mesa, tentando desesperadamente convencer Molly a comer alguma coisa. Alguma coisa que não fosse um biscoito, uma batata frita ou um bombom. Nas últimas duas semanas, Molly resolvera fazer greve de fome, só de curtição. Ashling passou para Clodagh uma pasta com dez cópias de seu currículo.

— O que é is...? Ah, tá, obrigada. — Com um só gesto, Clodagh enfiou a pasta debaixo de uma pilha de livros infantis na mesa da cozinha. — Você não vai se vestir? — Ashling observou os jeans e a camiseta de Clodagh. — Seu táxi já deve estar chegando. — Só quero que ela coma alguma coisa antes. — Quer que eu tente? — ofereceu-se Ted, galante, mas Molly esticou o lábio inferior e tremelicou-o teatralmente à sugestão. — Obrigada, mas... — Exausta, Clodagh continuou a investir com a colher contra os poucos porém trincados dentes de Molly. Nada feito. Agora que tinha uma platéia, não havia a mais remota possibilidade de Molly comer nada. — Come um pouquinho de ovo mexido, meu amor — Clodagh voltou à carga. — Porquê? — Porque é bom para você. — Porquê? — Porque tem proteína. — Porquê? Além de recusar-se a se alimentar direito, Molly começara o jogo do “Por quê?” recentemente. Horas antes, naquele mesmo dia, perguntara “Por quê?” vinte e nove vezes seguidas. Clodagh lhe dera corda, movida pela curiosidade fatalista de ver até onde aquilo iria, mas fraquejara antes de Molly. — Seu cabelo está lindo — admirou Ashling, alisando as grossas madeixas de um louro cor de mel. — Obrigada. Fiz uma escova para sair hoje à noite. Então Ashling se lembrou da sala recém-empapelada e correu para dar uma olhada. — Ficou fantástica! — elogiou, ao voltar — Mudou totalmente o clima da sala. Você tem um olho clínico para cores. — Acho que sim. — Clodagh já não estava mais tão interessada assim. Realmente andara muito empolgada com o papel de parede, mas, agora que fora instalado, sentira toda a satisfação e senso de realização lhe fugirem. De súbito, todos levantaram os olhos para o teto, ao que irrompeu uma gritaria apavorante no cômodo acima. O cabelo de Craig sendo enxaguado. — Pelos gritos, qualquer um pensa mesmo que ele está sendo queimado vivo. — Ashling riu. — Coitadinho. Depois de algum tempo, os gritos estridentes se transformaram em soluços histéricos. De volta à alimentação na marra.

— Quem quer crescer e ficar uma moça forte tem que jantar. — Clodagh tornou a aproximar a colher de ovos mexidos. — Por quê? — Porque sim. — Porquê? — Porque sim. — Porquê? — Porque sim. — Por quê? — Porque sim, PORRA. — Clodagh bateu com a colher na mesa, espalhando pedacinhos amarelos de ovo mexido. — Isso é pura perda de tempo. Vou me vestir. Assim que Clodagh saiu da sala, Ted arregalou os olhos numa expressão chocada para Ashling, como quem diz “Caramba!”. — Não é uma boa coisa deixar que os filhos vejam as nossas fraquezas — observou, do alto de sua sabedoria. Clodagh enfiou a cabeça pela porta: — Eu também pensava assim. Espera só até ter seus próprios filhos — disse, em tom de acusação. — Vai ter mil e uma regras, e nenhuma vai funcionar. Ted não tivera a intenção de criticar Clodagh — apenas achara que suas idéias espartanas sobre educação infantil poderiam ajudá-la. Sentiu-se injustiçado e profundamente constrangido. Ainda mais quando Molly apontou a colher em sua direção e tripudiou dele, maldosa: “Mamãe te odeia.” Clodagh subiu as escadas correndo. Não havia a menor hipótese de tomar o longo e relaxante banho aromaterápico que planejara. Mal teve tempo para tomar uma chuveirada rápida antes de passar um pouco de maquiagem no rosto. Em seguida, cheia de reverência, vestiu o vestido de alcinhas rosa e branco que adquirira no dia em que fora fazer compras com Ashling. Ficara pendurado no guarda-roupa desde então, seu estado de novo em folha um lembrete de que Clodagh não tinha vida social.

Observou-se ansiosamente ao espelho. Que merda, era curto. Mais curto do que ela se lembrava. E transparente. Mas, quando vestiu uma anágua preta para cobrir a razão de ser de sua vergonha, não conseguiu nada além de ficar ridícula, de modo que tornou a despi-la. Lingerie à mostra ficava muito bem, disse a si mesma. Mais do que bem. Era obrigatória, na verdade, se a mulher quisesse se considerar bem-vestida. Seu problema é que vivia à base de jeans e camiseta há muito tempo. Por fim, enfiou os pés nas sandálias de saltos altos, disse a si mesma que estava genial e apareceu no alto das escadas como uma estrela de cinema entrando em cena. — Que tal estou? Todos se reuniram no andar de baixo, a encará-la. Houve uma espécie de pausa de perplexidade. — Fabulosa — elogiou Ashling, um átimo de segundo tarde demais. Ted estava boquiaberto de admiração ao observar as pernas bem torneadas de Clodagh descendo as escadas. — Dylan? — indagou Clodagh. — Fabulosa — ele fez coro a Ashling. Ela não ficou convencida. Estava convicta de ter visto um tom de advertência nos seus olhos, mas ele teve a inteligência de não expressá-lo. Craig, no entanto, não teve a mesma reticência: — Mamãe, seu vestido é curto demais e dá pra ver sua cueca. — Não dá, não. — Dá, sim! — insistiu ele. — Não dá, não. Dá para ver minhas calcinhas — corrigiu-o Clodagh. — Os homens é que usam cuecas; as mulheres usam calcinhas... A menos que a mulher seja a amiga de Ashling, Joy — murmurou de si para si, a mordacidade brotando do nada. Molly, ocupada em lavar as mãos com geléia de amora, era a única que parecia não se importar com o que Clodagh usasse ou deixasse de usar.

— Você também está muito bem — disse Ashling a Dylan. E estava, realmente, com seu terno desestruturado azul-marinho e sua camisa bege-escura. — Você é uma gracinha. — Ele sorriu. — Boiola — o sussurro chegou aos ouvidos de Ashling, num tom de desprezo tão baixo que ela quase achou que fosse sua imaginação. Parecera vir da direção de Ted. — Não está na nossa hora? — Dylan olhou para o relógio de pulso. — Só um minuto. — Clodagh anotava números de telefone, frenética. — Esse é o do celular de Dylan. E aqui está o do restaurante, para o caso de o celular estar fora de área... — O que é bastante improvável no centro de Dublin — interveio Dylan. — ...e esse é o endereço do restaurante, para o caso de vocês não conseguirem falar com a gente por telefone. Não vamos chegar tarde. — Cheguem tarde — incentivou Ashling. Clodagh puxou Molly e Craig, abraçando-os com força, e disse, embora sem muita convicção: — Sejam bonzinhos com a Ashling. — E com o Ted — acrescentou Ted, tentando fazer uma boquinha melíflua para Clodagh. — E com o Ted — murmurou Clodagh. Pouco antes de as crianças saírem da casa para se despedir dos pais, Molly chapou uma manetada firme de geléia de amora na bunda de Clodagh. Infelizmente — ou seria felizmente? —, ela não notou.

Assim que Clodagh fechou a porta da sala, começaram os uivos patéticos de Molly e Craig do lado de dentro. Com um olhar de impotência para Dylan, Clodagh se virou para tornar a entrar. — Não! — proibiu ele. — Mas... — Daqui a pouco eles param. Sentindo-se como se estivesse sendo estraçalhada em duas, ela entrou no táxi e se deixou conduzir para a cidade. Porra de amor incondicional, pensou, amarga. Que peso terrível que era. A mesa no L’Oeuf estava reservada para as sete e meia — eles haviam tido dois horários à sua escolha, o das sete e meia e o das nove, mas Clodagh achara que nove seria tarde demais. Em geral, a essa hora já estava na cama. Gostava de dormir algumas horinhas antes de ser obrigada a levantar às quatro da manhã para ficar cantando no escuro durante uma hora. Dylan e Clodagh foram os primeiros clientes a chegar. Avançaram em meio a um silêncio reverente pelo salão vazio, branco, com colunas gregas, e Clodagh se sentiu mais ansiosa ainda em relação ao vestido. Parecia arrancar olhares atônitos dos garçons sisudos. Tentando puxá-lo para baixo, no afã de deixá-lo mais comprido, apressou-se em direção à segurança da mesa. Passara muito tempo fora de circulação e não sabia mais qual era a roupa certa a se usar. Arriando-se na cadeira e enfiando as coxas sob o tampo amigo da mesa, onde o erro de suas calcinhas à mostra ficaria escondido, pediu um gim-tônica, aliviada. Enquanto estudava o menu do tamanho de um jornal, doze ou treze garçons trajando preto-e-branco ficaram de prontidão em várias partes do salão silencioso. Assim que ela levantou os olhos do menu, todos trocaram de lugar, mas nem ela nem Dylan viram qualquer um deles se mexer. — Parece coisa de filme de ficção científica — cochichou ela.

Dylan riu, o som de sua risada alto demais no salão vazio, e bruscamente Clodagh se sentiu tensa ao experimentar mais uma vez aquela curiosa sensação de não conhecê-lo. Mas esse era o homem que ela um dia achara que morreria se não fosse seu. Estimulada pelo eco desse amor intenso, subitamente emudeceu. Estava perplexa por não conseguir pensar em absolutamente nada para lhe dizer. Mas apenas por um segundo. No momento seguinte, é claro, tinha coisas e mais coisas para lhe dizer. Ora, pensou, frouxa de alívio, esse é Dylan. — Você acha que eu devia levar Molly ao médico? Dylan não respondeu. — Se ela não acabar logo com essa greve de fome — tagarelou Clodagh —, é o que vou ter que fazer. Aquele chocolate todo que ela come não alimenta nada e... — O que você vai pedir de entrada? — Dylan a interrompeu bruscamente. — Ah! Ah, não sei. — O menu é espetacular — disse ele, numa indireta um pouco direta demais. — Ah, tá. — Não dá para esquecer as crianças só por umas horinhas? — Desculpe. Estou chateando você? — Até dizer chega — concordou ele, exasperado. Ela começou a se acalmar. Afinal, estava num restaurante maravilhoso, em companhia de um marido maravilhoso. Estavam tomando gim-tônicas e comendo canapés de tomate. Logo, logo uma comida deliciosa e várias garrafas de vinho estariam a caminho, e seus filhos estavam seguros em casa, com duas pessoas que não eram nem pedófilos nem espancadores de crianças. O que poderia ser melhor? — Desculpe — repetiu, e dessa vez realmente estudou o menu. — Dá para entender o que você quer dizer — concordou. — Ih, eles servem ostras. E suflê de queijo de cabra. Que merda! Que é que eu vou comer? — Entrada ou sopa — disse Dylan, pensativo—, eis a questão. — Ou? — desafiou-o Clodagh. — Que negócio é esse de “ou”? Acho que o que você quer dizer é “e”.

Com o desespero dos que raramente saem de casa, Clodagh pediu de tudo e muito, louca para extrair o máximo de prazer possível daquele luxo raro. Entradas, sorbets, sopas e acompanhamentos. Pratos principais, vinho tinto, vinho branco e água mineral. — Com gás ou sem gás? — perguntou o garçom, com a mão doendo. Agora sabia como Tolstói se sentira ao escrever Guerra e Paz. Perplexa, Clodagh olhou para ele. Então não estava na cara? — As duas! — Muito bem. — Tem mais alguma coisa que a gente possa pedir? — Clodagh estremeceu num frêmito deliciado, assim que o garçom se afastou. — Por enquanto, não — riu Dylan, contagiado por seu entusiasmo. — Espera só a gente dar cabo dessa remessa. — Vamos pedir sobremesa e queijo? — É claro. Irish coffees? — E vinho de sobremesa. E petit fours. — Cafés à francesa? — Mais oui! Sou capaz até de fumar um charuto. — Essa é a minha garota. Quando já haviam chegado quase ao meio da refeição, Clodagh estava num estado de espírito sonhador, inspirado pela comida e a bebida, mas ainda irritada com sua incapacidade de relaxar. De repente, deu-se conta de qual era o problema. — Há tanto tempo que não faço uma refeição sem ser interrompida, que estou sentindo falta — disse. — Toda hora tenho ímpetos de saltar da cadeira e cortar em pedacinhos o jantar dos outros... Está vendo aquele cara ali? — indicou um rapaz que fazia o gênero garotão-de-loft-nova-iorquino, e que remexia a comida no prato. — Tenho vontade de espetar no garfo um pedaço do filé mignon que ele está comendo e dizer: “Olha o aviãozinho!” Aliás, acho que é isso mesmo que vou fazer. Dylan ficou entre horrorizado e divertido quando Clodagh fingiu se levantar. De repente, ela parou e começou a se remexer, nervosa.

— Por quê...? Por que estou grudada na cadeira? — Abaixou a mão para investigar. — Estou com uma mancha de alguma coisa preta e viscosa na bunda. De alcatrão, talvez. Droga, logo no meu vestido novo, maravilhoso. Como é que eu fui arranjar essa mancha? — Um pouco hesitante, levou os dedos até o nariz, cheirou-os e começou a rir. — É geléia de amora. Aposto que foi a Molly, aquela pestinha. Ela é o máximo, não é? — Genial — disse Dylan, também um tanto enternecido. — Você acha que eles estão bem? — perguntou Clodagh, subitamente ansiosa. — É claro! E Ashling e Ted estão com o número do celular. Se acontecer alguma coisa, eles ligam. — Que tipo de coisa? O que poderia acontecer? — Nada. — Me dá o celular para eu dar uma ligadinha rápida. Dylan lhe lançou um olhar suplicante. — Não dá para tirar os dois da cabeça por uma noite? A gente não saiu de casa há mais de uma hora. — Tem razão — concordou Clodagh. — Estou sendo ridícula. Voltou sua atenção para a sopa de peixe. — Não, não agüento — explodiu. — Me dá o celular. Com um suspiro, Dylan entregou-o a ela. — Oi, Ted, é Clodagh, só estou ligando para saber se está tudo bem. — Estamos nos esbaldando — mentiu Ted, enquanto as mãos de Ashling tapavam as bocas escancaradas de Molly e Craig. — E aí, posso dar uma palavra com eles? — Eles estão, hum, ocupados. Brincando. É, é isso, brincando com a Ashling. — Ah. Bom, então até mais tarde. — É tão irritante — lamentou-se Clodagh, fechando o celular. — Eles me deixam doida a semana inteira, mal posso esperar para ter cinco minutos que seja longe dos dois, aí saio para passar uma noite fora e fico preocupada com eles!

— A gente pode ir para casa, se você quiser — disse Dylan, irritado. —E encarar biscoitos de microondas e uma fieira de exigências que não tem mais fim. — Quando você coloca a coisa desse jeito... Desculpe, Dylan. Eu estou mesmo me divertindo. Me divertindo muito. Não se podia dizer exatamente o mesmo de Ashling e Ted. Molly e Craig levaram séculos para parar de chorar depois que os pais saíram. Finalmente terminaram por se aquietar, mas só depois de se apropriarem da televisão para assistir a A Pequena Sereia, levando Ted a perder Stars in Their Eyes. — E hoje é a noite das celebridades — queixou-se ele, amargo. Para passar o tempo, pôs-se a vasculhar a enorme coleção de discos e CDs de Dylan, cheio de inveja e admiração, soltando exclamações toda vez que encontrava alguma raridade impressionante. — Olha só para isso. O Catch a Fire de Bob Marley — na capa original. Como é que aquele sacana de sorte arranjou esse disco? Ashling não conseguia se impressionar. Homens e suas coleções de discos! Com Phelim era exatamente a mesma coisa. — Puta que pariu! — soltou Ted. — Os dois primeiros discos do Burning Spear no Studio One! Eu achava que era o tipo de coisa que a gente só encontrava na Jamaica. — Dylan e Clodagh passaram a lua-de-mel na Jamaica — soltou Ashling, de propósito, com a cara mais impassível do mundo. — Que sorte certas pessoas têm. — Ted conseguiu injetar nessas cinco palavras um mundo de tristeza. — A coleção completa de Billie Holiday no Verve! — Fez um tom de voz de quem está com vontade de vomitar. — Onde foi que ele arranjou? Estou há anos atrás deste disco!... — Ah-ha! — fez ele, eufórico, dando um bote num disco. — Eis que os podres finalmente vêm à tona! O que faz um disco do Simply Red na coleção do bacana? Lá se vai sua fama de descolado por água abaixo. — Me desculpe por decepcionar você, mas esse é da Clodagh.

— Clodagh gosta do Simply Red? — Ted fez uma expressão indescritível. — Bom, pelo menos gostava. — Gostei do “gostava”. — Ted ficou fraco de alívio. Tinha Clodagh na conta de uma deusa, mas, se ela era fã de Mick Hucknall, ele teria que reconsiderar. Não podia haver um lapso tão imperdoável no gosto de uma deusa, não é mesmo? Assim que A Pequena Sereia acabou, Craig e Molly exigiram aos gritos que as babás fizessem algo para diverti-los. Porém, quando Ted experimentou contar para eles suas piadas de coruja, Molly lhe ordenou que fosse para casa agora e Craig começou a chorar. Ted ficou seriamente ofendido, ainda mais quando Ashling quase os matou de rir, escondendo o rosto atrás de um saco de papel e mostrando-o e seguida. — Calhordinhas — resmungou ele. — Muita gente daria o braço direito por essa oportunidade. — Mas são só crianças. Craig começou a puxar as roupas de Ashling, querendo 7-Up. Como não aparecesse na mesma hora, as lágrimas recomeçaram. — Fedelho mimado — disse Ted, venenoso. — Não é, não. — É, sim. Se vivesse em Bangladesh, trabalharia dezoito horas por dia numa daquelas fábricas que tiram o couro dos trabalhadores em troca de um salário de fome... Aí, sim, ele teria um motivo para chorar — acrescentou, sombrio. Foi uma noite muito longa. Ashling e Ted tiveram que providenciar um suprimento ininterrupto de risadas, histórias, guloseimas, cócegas, refrigerantes, partidas de arremesso de caminhãozinho a distância, futebol com Barbie à guisa de bola e o tradicional favorito das crianças, Esconde-a-Mão-na-Manga. — Para onde foi a mão da Molly? — perguntou Ted, cansado, enquanto Molly, eufórica, escondia a mão na manga pela milionésima vez. — Ah, meu Deus — disse ele, entediado. — Molly perdeu a mão. Alguém roubou a mão dela. — Por fim, quando Molly voltou a mostrar a mão, triunfante, Ted desfechou, azedo: — Ah, que surpresa! Olha ela aí de novo. Para onde foi a mão da Molly...?

Quando chegou a hora de dormir, fazer com que os dois fossem para a cama e ficassem lá foi como tentar pregar gelatina na parede. — Se você não for dormir, o bicho-papão vai te pegar — ameaçou Ted. — O bicho-papão não existe — tornou Craig, seguro de si. — Foi mamãe que disse. Ted refletiu. Alguma coisa tinha que meter medo nele. — Tudo bem, se você não for dormir, Mick Hucknall vai te pegar. — O que é isso? — Já te mostro. — Ted ventou pelas escadas abaixo, pegou o CD do Simply Red e voltou correndo. — Isso é Mick Hucknall. No andar de baixo, Ashling, que curtia um momento de paz, ergueu os olhos, assustada, ao que uma terrível gritaria irrompeu no aposento acima. Segundos depois Ted reapareceu, com cara de cachorro que quebrou panela. — Que é que está havendo? — perguntou ela. — Nada. — É melhor eu subir. Ashling passou vários minutos tentando acalmar Craig, inutilmente. — Que foi que você disse a ele? — perguntou a Ted, em tom de acusação, quando tornou a descer. — Ele está simplesmente inconsolável. Dylan e Clodagh chegaram em casa envoltos naquela aura amorosa que faz com que todo mundo se sinta excluído e inferior. Cambalearam pela porta adentro, o braço de Clodagh a enlaçar a cintura de Dylan, a mão dele firme na sua bunda (do lado que não estava coberto de geléia de amora). Assim que despacharam Ashling e Ted, Clodagh piscou o olho para Dylan e meneou a cabeça em direção à escada, dizendo “Vem”. Fazia exatamente quatro semanas que haviam transado, mas sentia-se tão cheia de magnanimidade etílica que teria incluído no pacote uma transa extra de brinde, mesmo que ele não fizesse jus a ela. — Vou só apagar as luzes e trancar as portas — disse ele. — Não demora — disse ela, em tom coquete, sentindo-se segura por saber que ele demoraria.

Já haviam passado da fase de despir um ao outro demoradamente há muito tempo. Clodagh já estava nua sob o edredom quando Dylan veio para a cama. Com um ágil ruge-ruge de láicra e algodão, livrou-se de suas roupas em meio minuto. Clodagh deitou-se de costas, fechou os olhos e permitiu que ele a beijasse por alguns minutos, para, em seguida, como sempre, passar para seus mamilos. Quando se deu por satisfeito, houve uma luta muda e tácita. Porque esse era o ponto em que Dylan geralmente deslizava pelo corpo de Clodagh para uma sessão de sexo oral, o que ela não suportava. Era o tipo da coisa chata, que só fazia acrescentar vários minutos inúteis ao procedimento. Mas essa noite ela venceu, atalhando-o em cima do lance, e passou diretamente a brindá-lo com quatro ou cinco minutos de sexo oral, sendo sua interrupção a deixa para que ele embarcasse. Como mimo especial — nos aniversários, tanto os deles quanto os de casamento —, Clodagh ficava por cima. Mas essa noite não seria a versão de luxo, apenas o papai-mamãe regulamentar. Puxou Dylan contra si, envolvendo-o num balé fácil de confortável familiaridade. Depois que começava, até que não era tão mau assim, concluiu. Era a expectativa que a fazia sentir-se tão angustiada. Como sempre, Dylan esperou que ela fingisse um orgasmo antes de ganhar velocidade, batendo estaca como se alguém segurasse um cronômetro acima de sua cabeça. Já está na hora de reformar este quarto, pensou Clodagh, enquanto ele ia e vinha como uma máquina, num frenesi resfolegante e gemebundo. O carpete até pode ficar, o que eu gostaria mesmo é de pintar as paredes. — Meu Deus — implorava Dylan, enfiando as mãos sob suas nádegas e investindo contra ela com velocidade crescente. — Meu Deus. Meu Deus.

Como uma autômata, Clodagh soltou um gemido, distraída, para agradar a ele. Isso apressaria as coisas. Paredes roxas e creme, de repente. No momento seguinte Dylan estava gozando, em êxtase, e logo arriando o corpo com um gemido. A única variação na rotina ficou por conta do fato de não serem interrompidos por nenhuma das crianças gritando para participar. Quinze minutos do começo ao fim, e estava tudo terminado por mais um mês. Clodagh suspirou, contente. Ainda bem que ele não era um desses homens que fazem questão de satisfazer a mulher a noite inteira. Ela já teria tido que se suicidar há muito tempo, se fosse o caso. Ted e Ashling passavam zunindo pelas ruas ensombreadas, a caminho do Cigar Room, para “tomar um golinho”. Quando desmontaram da bicicleta, Ted deu um tapa na testa — um gesto que dava a vaga impressão de ter sido ensaiado. — Que joça — exclamou, com uma irritação estranhamente desprovida de convicção. — Esqueci meu paletó na casa de Clodagh. Vou ter que dar um pulo lá durante a semana, para apanhar de volta. Em uma casa situada numa zona deserta de Ringsend, de frente para o mar, Jack e Mai estavam prestes a concluir sua transa de reconciliação. Pouco antes, Mai ficara atônita quando Jack chegara ao seu apartamento, desculpando-se por não a ter cumprimentado no dia anterior, na redação, de maneira efusiva bastante para o seu gosto. Em seguida levou-a para sua casa, onde lhe serviu um jantar e generosas doses de vinho caro, para depois levá-la para a cama. Comportou-se com uma doçura tão inesperada durante o amor que ela não fingiu olhar para o relógio de pulso, como tantas vezes fazia. Algumas vezes, nos últimos tempos, chegara mesmo a usar o controle remoto para ligar a tevê durante as manobras de Jack, coisa que o deixava fora de si. “É mais interessante do que o que você está fazendo comigo”, era a explicação dela, embora insincera. Mas fazia com que ele se sentisse inseguro, e a mantinha no controle da situação.

Embora fosse muito difícil para ela, é preciso que se diga. Ficaram deitados, no êxtase que se segue ao sexo. — Você é maravilhosa — disse ele, de chofre. — Sou? — Ela se recostou sobre um cotovelo e lhe deu um sorriso provocante, maldoso. — Só que tenho um gosto horrível em matéria de homens, não é mesmo? — E se preparou para receber uma resposta mordaz de Jack, mas ele apenas se ocupou em enrolar os dedos nos longos cabelos dela. — Você está bem? — perguntou, surpresa. — Melhor, impossível. Por quê? — Por nada. Mai estava extremamente confusa. Por que Jack não estava lhe pagando na mesma moeda? Em geral, pagava numa moeda ainda mais alta do que a que recebia. — Amanhã à tarde vou visitar meus pais — disse ele. Mai revirou os olhos. — Que ótimo! E eu? Danço? Essa era uma das brigas favoritas dos dois — a falta de tempo de Jack para Mai. Mas Jack atalhou o incipiente destampatório de Mai ao perguntar: — Gostaria de vir? — Aonde? — Ela ficou atônita. — Conhecer seus pais? Quando Jack assentiu, ela se lamuriou: — Mas o que vou vestir? Vou ter que passar em casa e trocar de roupa primeiro, — Não tem problema. Mai lhe lançou outro olhar confuso. Era tudo muito estranho. Talvez... quem sabe... será que todas aquelas encenações manipuladoras tinham de fato dado certo? Será que ela finalmente pusera Jack no seu devido lugar?

Lisa acordou na manhã de domingo e se arrependeu na mesma hora. Alguma coisa na natureza da calmaria para além da janela de seu quarto lhe dizia que ainda era muito, muito cedo. E ela não queria que fosse muito, muito cedo. Gostaria que fosse muito tarde. De preferência, por volta das três. O ideal, na verdade, seria que já fosse a manhã do dia seguinte. Permaneceu imóvel, os ouvidos se esforçando por captar gritos maternos, brigas infantis, cabeças de Barbies sendo arrancadas, qualquer coisa que pudesse indicar que o mundo lá fora estava em movimento. Mas, com exceção de um bando de passarinhos acampados em seu jardim, chilreando e cantando como se tivessem ganho na loteria, não ouviu nada. Quando não agüentou mais ficar sem saber, virou-se na cama desarrumada e, receosa, enfrentou o despertador. Sete-que-saco-e- meia. Da manhã. O feriadão estava demorando toda a vida para passar. Uma sensação exacerbada, sem dúvida, pelo fato de ela estar inteiramente sozinha. Por algum motivo, não esperara ter que suportar isso sozinha. Durante a semana, em algum canto de sua mente, ficara a idéia de que Ashling a convidaria para tomar um drinque, ir a uma festa, encontrar-se com aquela maluca da Joy, conhecer Ted, enfim, alguma coisa. A verdade pura e simples era que Ashling parecia estar eternamente convidando Lisa para ir a algum lugar. Mas, na noite de sexta, zonza e risonha depois da orgia de champanhe, foi só quando chegou em casa e ficou sóbria o bastante que se deu conta de que Ashling não lhe fizera nenhum convite. O topete daquela vaca. Bombardeá-la com convites quando ela não os queria, e depois se recusar a fazê-los quando ela bem que estava precisada de um! Acendeu um cigarro, mal-humorada, transgredindo a própria determinação de não fumar na cama.

Como era viver em Dublin? Em Londres nunca tinha tempo livre. Havia uma interminável pilha de compromissos à espera de sua recusa. E, mesmo nas raras ocasiões em que, sem aviso, surgiam algumas horas vagas, sempre conseguia preenchê-las trabalhando. Mas não ali. Fora impossível marcar qualquer compromisso para o fim de semana. Todos aqueles filhos-da-mãe preguiçosos, jornalistas, cabeleireiros e estilistas, estavam de viagem marcada e, mesmo que não estivessem, já haviam entrado no clima relax do feriadão e estavam pouco inclinados a recebê-la. O pior era que não poderia ir trabalhar na segunda, pois o prédio não estaria aberto. Assim que tomara conhecimento disso na sexta de manhã, fora reta para o escritório de Jack e chutara o pau da barraca. — Será que o porteiro, como é o nome dele... Bill?, não pode dar um pulo aqui para abrir a porta para mim e depois voltar para casa? — Num feriado? —Jack pareceu sinceramente divertido. — Bill? Nem em sonho. Imbecil preguiçoso e vagabundo, pensou Lisa, cheia de ódio impotente. Em Londres, os porteiros sempre iam abrir a porta para ela. — Por que não dá um tempo? — aconselhou Jack. — Você realizou tanto em tão pouco tempo, merece um descanso. Mas ela não queria saber de descansar, estava a mil por hora. Três dias inteiros! Como iria preenchê-los? E por que ele não sugerira que fizessem alguma coisa juntos?, perguntou-se ela, frustrada. Sabia que ele estava interessado nela, já vira isso em sua expressão mais de uma vez. — Sai da cidade. Toma uns drinques — incentivou ele. Com quem?

Cogitara da hipótese de ir passar o fim de semana em Londres, mas tinha muita vergonha. Onde se hospedaria? Seu apartamento estava alugado, e ela deixara todas as suas amizades morrerem — a maioria soltara seus estertores durante os últimos dois anos, durante os quais ela se dedicara à construção frenética de um império, e a única pessoa a quem concedera um pouco de seu precioso tempo fora Fifi. Mas sentia vergonha demais para entrar em contato com Fifi desde que fora banida para a Irlanda. Se fosse para Londres, seria obrigada a se hospedar num hotel, como — estremeceu — uma turista. Porém, na noite de sexta, quando compreendeu que teria tanto tempo para matar no fim de semana que seria um verdadeiro banho de sangue, decidiu que até poderia suportar ser uma turista em Londres. E foi então que descobriu que todos os vôos para fora de Dublin estavam lotados. Todo mundo estava louco para fugir desse paisinho chinfrim. Quem poderia tirar sua razão? Por acaso, o sábado não foi tão mau assim. Ela cortou o cabelo, tingiu os cílios, fez uma sauna facial e também as unhas — todas as vinte. Tudo de graça. Em seguida, foi fazer as compras da semana. Durante os próximos sete dias só comeria alimentos que começassem com a letra A — abacates, alcachofras, anchovas e absinto. Como estava se sentindo muito frágil, interpretou a lei com certa liberalidade para que um bolinho de abricó pudesse entrar na cesta. Bolinho este que seria extremamente bem-vindo, porque a desagradável consciência de que teria de passar a noite de sábado em casa, sozinha, era muito, muito chocante. E ei-la na manhã de domingo, ainda tendo dois dias inteiros pela frente. Volta a dormir, implorou a si mesma. Volta a dormir, para massacrar mais umas horas. Mas não conseguiu. Embora isso não fosse de surpreender, pensou, cheia de amargura, levando-se em conta que às dez da noite anterior já estava fazendo sua naninha.

Levantou-se da cama, tomou um banho de chuveiro e, embora tivesse se demorado muito mais do que de costume, esfregando-se até quase ficar em carne viva, deu-se conta de que já estava vestida e pronta às quinze para as nove. Mas pronta para o quê? Cheia de energia e sem ter para onde canalizá-la, perguntou-se o que as pessoas faziam. Iam à academia, supôs, lançando um olhar para os Céus (e desejando que houvesse alguém lá para ver seu olhar). Lisa se orgulhava de nunca ir à academia, principalmente em Dublin. Coisa mais cafona impossível, todos aqueles aparelhos, step, cross-country. A indústria da forma física na Irlanda estava tão atrasada que sua idéia de hidroginástica devia ser uma sessão de abdominais debaixo de chuva! Não, Lisa estava mais interessada nos métodos menos violentos e mais fashion de se esculpir o corpo — pilates, power-ioga, ginástica isométrica. De preferência na cama, com um personal trainer cuja clientela incluísse Elizabeth Hurley e Jemina Khan. O único problema com o pilates era que, como não acelerava o metabolismo, precisava ser combinado com uma dieta de fome para produzir bons resultados. E era aí que entravam recursos como a Dieta da letra A. Se fosse a da letra B, as coisas teriam sido muito diferentes: bacon, bombons, Bacardi, brie, batatinhas, biscoitos... E, se por acaso algum dia precisasse apertar o cinto, passaria uma semana fazendo a da letra H. Hadoque, e olhe lá. Temperado com hortelã, no máximo. Ah, e hambúrgueres, já ia quase se esquecendo deles. Talvez a do X fosse mais segura.

Depois de um café da manhã composto por uma avelã, um abricó e um copo de Aqua Libra, conseguiu chegar às dez da manhã. Mas, quando sentiu que corria o risco de acabar puxando conversa com as paredes, tomou uma decisão. Iria fazer compras. E também não se tratava de algum tipo de terapia de consumo aleatório — ela tinha um objetivo. Bem, mais ou menos... Planejava mandar fazer persianas de madeira para seu quarto, compridas até o chão, de parede a parede, para contrabalançar aquele clima de chalé no campo e dar um ar mais clean, mais urbano ao cômodo. Então publicaria uma matéria sobre elas na revista e a loja seria obrigada a rachar a conta com ela. Mas, quando chegou a Grafton Street, ficou chocada ao descobrir que nenhuma das lojas estava aberta, e que as únicas pessoas por ali eram turistas com ar atordoado. Porra de país, pensou, pela centésima vez. Onde é que estava todo mundo? Provavelmente na igreja, concluiu, com desprezo. Uma da tarde, disse-lhe o homem na loja de revistas. As lojas abriam à uma da tarde. Então ela se sentou num café, de pernas cruzadas, tomando cálices de Amarula e lendo um jornal. Só a maneira frenética como batia com o pé no chão, apressada para que o tempo passasse logo, denunciava sua histeria interior E que condições climáticas esdrúxulas eram aquelas?, perguntou-se. Havia uma total ausência de chuva torrencial ou ventania — o que era inédito para um feriadão! Em seu lugar, saíra o sol, brilhando com coragem e galhardia no esperançoso azul do céu, o que, por algum motivo, fez Lisa se lembrar de outros tempos, e isso, por sua vez, a entristeceu, coisa que ela não iria suportar. Ah, não!

Rapidamente se relembrou de sua teoria: não estava triste, era apenas sua vida que caíra abaixo do nível mínimo de Glamour. Não havia nenhuma emoção negativa que não pudesse ser curada com a aplicação de um pouco de glamour, e era muito importante que ela se lembrasse disso durante essa época turbulenta. Tinha de admitir que andara se esquecendo dela nos últimos tempos — no domingo anterior, por exemplo, quando passara o dia isolada e desesperada. Quando as lojas de persianas finalmente escancararam suas portas, Lisa pensou que não precisavam ter se dado a esse trabalho. Nenhuma das patéticas lojas de decoração daria conta de uma encomenda de persianas tão grandes. Recomendaram que ela tentasse uma loja de departamentos. E, muito embora não fosse do tipo de mulher que freqüenta lojas de departamentos, compreendeu que não estava em condições de escolher. No quarto andar da loja, no departamento de cortinas, pescou um homenzinho que passava, afobado, com uma fita métrica em volta do pescoço. — Preciso de persianas sob medida. — É comigo mesmo — garantiu-lhe ele, seguro de si. Mas, quando ela lhe deu as dimensões e especificou as lâminas de madeira que queria, ele mudou de cor. Passando para uma muita mais pálida. — Dois metros e oitenta de altura? — exclamou. — Por seis de largura? — Isso mesmo — concordou Lisa. — Mas vai custar uma fortuna, freguesa! — protestou. — Tudo bem — disse Lisa. — Mas a freguesa tem idéia do quanto vai custar? — Me diz. Ele fez uma série de cálculos rápidos num pedaço de papel pardo, para logo em seguida sacudir a cabeça, nervoso. — Quanto? Mas ele se recusou a lhe dizer. Fosse quanto fosse, decidira que era muito. — Espera aí, espera aí, estou pensando. Que tal mandar fazer num material mais barato? — sugeriu, correndo as prateleiras com seu olho experiente. — Esquece a madeira. A gente podia fazer elas em plástico, que tal? Ou lona?

— Não, obrigada. Faço questão absoluta de que sejam de madeira. — Ou pode também comprar persianas prontas. — Ele mudou de tática. — Sei que não seriam exatamente do tamanho certo e o material não seria tão bom, mas sairiam muito mais em conta. Vem cá dar uma olhada. — E, segurando-a pela mão, arrastou-a para inspecionar uma hedionda persiana vertical, dessas de janelas de escritório. Ela soltou bruscamente sua mão. — Mas eu não quero essa! Quero a de madeira e juro por Deus que posso pagar por ela! — Desculpe — pediu o homem, humilde. — Eu só não queria que a freguesa tivesse que gastar essa dinheirama toda, mas, se está tão certa assim... Lisa soltou um suspiro entrecortado. Porra de país. — Eu economizei para comprar essa persiana — decidiu tranqüilizá-lo. — Está tudo bem. — Economizou? — No ato ele recobrou seu ânimo. — Bom, nesse caso, são outros quinhentos. Enquanto lhe dava os detalhes, sua irritação cedeu. Quando ele se inclinou para a frente e lhe confidenciou que achava os preços da loja exorbitantes, e que ele e a mulher esperavam até entrar em liquidação, ela quase se comoveu com seu interesse. Estou perdendo a razão, pensou, de repente. Agora é oficial: estou ficando louquinha de pedra. Comovida por causa de um vendedor de cortinas que não quer me vender o que eu quero comprar. Passava um pouco das seis quando chegou em casa. Raspando o fundo do tacho em busca do que fazer, telefonou para a mãe e lhe deu seu novo número de telefone. Mas não sem se perguntar a razão de fazê-lo, já que sua mãe nunca lhe telefonava. Vivia preocupada demais com a conta telefônica. Mesmo que acontecesse alguma desgraça, pensou Lisa, azeda, como, por exemplo, seu pai morrer, provavelmente sua mãe esperaria que ela lhe telefonasse. Depois das perguntas de rotina sobre a saúde uma da outra, Pauline deu uma boa notícia para a filha:

— Seu pai disse que aquele seu casamento esquisito não é válido aqui, e que provavelmente você não vai precisar se divorciar. A palavra “divorciar” apunhalou Lisa com força abrupta. Era uma palavra tão pesada, tão definitiva. Recompôs-se rapidamente e disse à mãe, ríspida: — Bom, é aí que você se engana. Pauline engoliu em seco ao ouvir a já esperada censura. É claro que estava enganada. Sempre estava enganada em relação a Lisa. — Oliver fez o registro quando nós voltamos. — Bom, então é o fim da linha. — É, é o fim da linha, sim. Durante o silêncio que se seguiu, Lisa se pegou recordando a manhã de sexta-feira em que ela e Oliver, ainda na cama, haviam decidido, num capricho do tipo Somos-londrinos-jovens-e-maravilhosos, passar o fim de semana em Las Vegas e se casar. — A gente nunca vai conseguir um vôo — disse Oliver, rindo, extremamente entusiasmado com a idéia. — É claro que vai. — Lisa tinha a autoconfiança dos que sempre conseguem o que querem. E é claro que conseguiram — ainda era o tempo em que as coisas davam certo para ela. Naquela mesma tarde, zonza de excitação e medo do que estavam fazendo, tomaram um avião para Las Vegas. Onde, desnorteados com a diferença de fuso horário e o azul apavorante do céu do deserto, descobriram que se casar era uma coisa assustadoramente fácil. — Vamos? — Lisa deu uma risadinha, já quase perdendo a coragem. — É para isso que a gente está aqui. — Eu sei, mas... É uma coisa meio extrema, não é? Os olhos exasperados de Oliver se chocaram com os dela. Lisa conhecia aquele olhar. Com Oliver não se começava nada que não se pretendesse terminar. — Vamos nessa, então! — A euforia e o terror deram um toque estridente à sua gargalhada. Trocaram votos no templo vinte e quatro horas Capela do Amor, tendo por testemunhas um sósia de Elvis Presley e um atendente da Starbucks. A noiva estava de preto. — Pode beijar a noooooiva.

— Estamos casados. — Lisa estava histérica, quando foram postos para fora, a fim de dar lugar ao próximo casal. — Isso é irreal. — Eu te amo, paixão — disse Oliver. — Eu também te amo. E amava, realmente. Mas, principalmente, estava louca para voltar e deixar todo mundo roxo de inveja com o glamour kitsch de seu casamento. As cerimônias na praia de Santa Lucia não chegavam aos pés dele — era um verdadeiro furo de reportagem! Mal podia esperar para voltar ao trabalho na segunda, para que alguém perguntasse: “Fez alguma coisa de bom no fim de semana?”, e ela pudesse responder, em tom casual: “Tomei um avião para Las Vegas e me casei.” — Nesse caso, você precisa de um bom advogado. — A voz de Pauline a trouxe de volta ao presente. — Para garantir que você receba tudo a que tem direito. — É claro — disse Lisa, irritada. Na realidade, não fazia a menor idéia das implicações de um divórcio. Para uma mulher tão pragmática e dinâmica, foi bastante atípico que remanchasse tanto nos últimos tempos de seu casamento. Talvez sua mãe tivesse razão, e ela realmente devesse arranjar um advogado. Mas, depois de desligar o telefone, Lisa não conseguiu parar de pensar em Oliver. Sentimentos incômodos estouravam na superfície como bolhas e, do nada, numa espécie de impulso louco, viu-se prestes a levantar o fone do gancho. A idéia de ouvir sua voz e fazer as pazes com ele encheu-a de esperança. Já tivera ímpetos de lhe ligar antes, mas, até agora, o desse momento era o pior de todos, e ela só conseguiu se demover da idéia ao relembrar que fora ele quem a deixara. Mesmo ele tendo dito que ela não lhe deixara opção.

Afastou-se do telefone, sofrendo sintomas físicos concretos do esforço. As chances frustradas faziam seu coração palpitar. Apenas alguns momentos antes a reconciliação parecera possível, e a depressão que se seguiu à euforia deixou-a zonza. Acendendo um cigarro com as mãos trêmulas, exortou-se a esquecer Oliver. Abaixo o velho, viva o novo. Pense em Jack. Mas Jack provavelmente estava transando uma vez atrás da outra com a desabusada Mai. Meu Deus, pensou ela, sentindo o anseio bater forte, como gostaria de fazer sexo... Com Jack. Ou com Oliver. Com qualquer um dos dois. Com os dois... Sua mente foi ocupada por uma imagem do corpo musculoso de Oliver, parecendo ter sido entalhado em ébano, e a lembrança fez com que ela literalmente gemesse em voz alta. Olhou para o relógio de pulso. De novo. Sete e meia. Por que o dia não se apressava e acabava de uma vez por todas? Nesse momento a campainha tocou, e ela ficou com o coração na boca. Talvez fosse Jack fazendo uma de suas visitas inesperadas! Enfiando a cara no espelho para ver se estava apresentável, tratou de remover rapidamente as manchas de rímel debaixo dos olhos. Alisando os cabelos, correu para a porta. Em sua soleira, com a cara virada para ela, estava um garoto pequeno com uma camiseta do Manchester United e um corte de cabelo complicado, composto por uma parte da cabeça raspada e uma franja comprida. Todos os garotos pequenos da rua usavam cortes de cabelo do gênero. — Como é que VAI, Lisa? — perguntou ele, num tom de voz incrivelmente alto. Encostou-se no batente da porta sem a menor cerimônia. — Que é que você tá FAZENDO? Quer BRINCAR? — Brincar? — A gente tá precisando de um JUIZ. Outras crianças apareceram às suas costas. — É, Lisa — secundaram-no. — Vem!

Ela sabia que era absurdo, mas não pôde deixar de se sentir envaidecida. Era bom se sentir necessária. Bloqueando as lembranças de outros feriadões em que viajara de helicóptero para Champneys, ou de primeira classe para Nice, ou se enfurnara num hotel cinco estrelas na Cornualha, foi buscar um blazer e passou o resto do domingo sentada no degrau da porta, mantendo o placar, enquanto as crianças de sua rua jogavam uma variedade bastante agressiva de tênis. Jack Devine telefonara para a mãe na manhã de sábado. — Vou dar um pulo aí mais tarde — disse. — Posso levar uma pessoa? Sua mãe perguntou, com a voz entrecortada de excitação: — Uma amiga? — Uma amiga. Lulu Devine tentou com todas as suas forças ficar de boca fechada, mas fracassou. — É Dee? — Não, mãe — Jack suspirou. — Não é Dee. — Ah, sei. Você a tem visto ultimamente? — Lulu sentia-se dividida entre as saudades da mulher que dera um fora no seu amado filho e um ódio feroz dela. — Para ser franco, sim — admitiu Jack. — Esbarrei com ela no estacionamento de Drury Street. Ela mandou lembranças. — Como vai ela? — Está de casamento marcado. A eterna esperança deu um salto: — Com você? — Não. — Cachorra! — Ah, não — disse Jack, conciliador. Na ocasião não fora a melhor notícia que ele poderia ter recebido, mas também não fora a pior. — Ela estava certa em não se casar comigo. Nossa relação já estava desgastada. Ela apenas percebeu isso antes de mim. — E essa moça que você vai trazer aqui hoje? — O nome dela é Mai. É uma ótima pessoa, mas está um pouco nervosa. — Vamos tratá-la bem. Usando um recatado chemisier no estilo da década de cinqüenta que comprara numa loja em Oxfam quase por brincadeira e sandálias cujos saltos tinham a ínfima altura de dez centímetros, Mai sentou-se ao lado de Jack para o trajeto de carro até Raheny. — Será que eles vão se importar com o fato de eu ser descendente de vietnamitas? São racistas? Jack sacudiu a cabeça, alarmado.

— De jeito nenhum. — Apertou sua mão em sinal de apoio. — Não se preocupe, Mai, eles são boas pessoas. — Você disse que os dois são professores? — Agora já estão aposentados, mas eram. Lulu e Geoffrey se desdobraram em amabilidades — receberam Mai apertando suas duas mãos, empurraram todos os jornais do sofá para que ela pudesse sentar, mostraram-lhe fotos de quando Jack era pequeno. — Ele era lindo. — Lulu suspirou, derretida, mostrando a Mai um retrato de Jack aos quatro anos, um bonito menino em seu primeiro dia na escola. — E olha só esta aqui. — Era uma foto colorida de um adolescente desengonçado ao lado de uma mesinha. — Fui eu que fiz essa mesa — disse Jack, orgulhoso. — Ele tem uma habilidade manual fora de série — confidenciou Lulu. Eu sei, concordou Mai e, por um segundo de horror, ficou em dúvida se pensara em voz alta. Os dois continuaram a minar o nervosismo de Mai com gentilezas a tarde inteira, e as coisas iam muito bem até ela notar uma foto sobre a cornija da lareira. Jack, mais jovem, mais magro e menos preocupado, passava o braço ao redor de uma garota alta, de cabelos castanhos, que sorria, empertigada e segura de si. Lulu percebeu no exato momento, e os olhos das duas se esbarraram, horrorizados. Por que não escondera aquela foto? — Quem é a sua amiga? — perguntou Mai a Jack, quase sentindo prazer em se atormentar. Sabia tudo sobre Dee, que ela e Jack haviam vivido juntos desde os tempos de faculdade, até que, depois de nove anos juntos, quando decidiram se casar, Dee dera no pé. E sempre morrera de vontade de dar uma olhada nela.

O clima de constrangimento iminente foi abortado pela chegada de Karen, a irmã mais velha de Jack, acompanhada por seu marido e três filhos. E, mal sua efusiva recepção chegou ao fim, Jenny, a irmã mais nova de Jack, deu as caras, também com o marido e os filhos a reboque. — Vem, vamos embora — disse Jack, assim que Mai começou a dar mostras de estar se sentindo sufocada. Lulu e Geoffrey ficaram olhando o carro se afastar. — Um encanto de moça — disse Lulu. — Com um emprego bastante incomum — comentou Geoffrey. — Vendedora de celulares? Geoffrey se virou e a encarou, surpreso: — Vendedora de celulares? Não foi isso que ela me disse!

Pêlos. Nas pernas. Muitos. Ashling estava num dilema depilatório. Depilara as pernas a cera duas semanas atrás, durante o Verão-Fantasma, de modo que os pêlos estavam curtos demais para serem arrancados de novo, mas compridos demais, ah, sim, demais, para que ela pudesse ir para a cama com alguém. Ah-ha! Quer dizer então que ela estava planejando dormir com Marcus Valentine? Bom, quem sabe?, pensou. E não queria que suas pernas peludas fossem um empecilho. Poderia raspá-las, pensou. Mas não: depois que se começa a depilar as pernas a cera, é expressamente proibido raspá-las, deixando-as ásperas e espetadiças e pondo a perder todo o trabalho que se teve. Julie, a moça que depilava suas pernas, iria matá-la. Teria que ser na base do creme depilatório, mesmo, mas, por algum lapso terrível, Ashling se esquecera de comprá-lo. E Ted foi despachado para a drogaria mais próxima, carregando um papelzinho com o nome do produto. — Por que você não pode ir? — resmungou, constrangido. Ashling apontou o papel laminado que envolvia sua cabeça: — Estou fazendo touca. Se sair assim na rua, todo mundo vai pensar que os alienígenas aterrissaram. — Tás brincando? Todo mundo sabe que os alienígenas não conseguiriam encontrar uma vaga nessa cidade. Ah, Ashling — queixou-se—, tenho mesmo que dar esse papelzinho para a vendedora? Não posso só pegar na prateleira? — Não. O lmmac tem muitas variações e você é homem. Eu quero o creme sem perfume e você acabaria trazendo o gel com perfume de limão. Ou pior, poderia até trazer o que vem com uma espátula. Agora, vai logo, por favor! Por incrível que pareça, a missão teve sucesso e Ashling se retirou para o banheiro, onde ficou de pé dentro da banheira, as pernas pinicando sob o efeito daquela nojenta melequeira branca enquanto esperava os pêlos se derreterem. Suspirou. Às vezes é duro ser mulher. Acabara de dar o pontapé inicial no frenesi embelezador quando Marcus telefonara, na tarde de segunda.

— Que tal? — sugeriu ele. — Que tal o quê? — Qualquer coisa. Um drinque. Um saco de batatas fritas. Sexo tórrido. — Um drinque parece ótima idéia. Um saco de batatas fritas também. Ele fez uma pausa e perguntou, com voz de menininho fofo: — E o sexo tórrido? Ashling engoliu em seco e tentou dar à voz um tom brincalhão: — Quanto a esse, a gente vai ter que ver. — Se eu me comportar bem? — Se você se comportar bem. Em seguida, Ashling partiu para a ação a mil por hora, um caos de braços passando ou removendo produtos da pele. Ao longo da tarde lavou o cabelo e deu-lhe um banho de condicionador, exfoliou o corpo inteiro, removeu o esmalte descascado das unhas dos pés e tornou a pintá-las, lambrecou-se toda com o hidratante Gucci Envy, que só saía do armário em ocasiões especiais, espremeu um quarto de tubo de creme alisador nos cabelos e o espalhou com um pente, tacou ficha na maquiagem — não era hora para sutilezas — e tomou um banho de Envy eau de parfum. Ted voltara para supervisionar os preparativos finais. Estava louco para que Marcus e Ashling engrenassem, pois assim sua carreira de humorista deslancharia, graças à sua intimidade com Marcus. — Fica bem sexy — incentivou-a, refestelado na sua cama, observando-a aplicar a terceira e última camada de rímel. — TÔ TENTANDO! — gritou ela, sem sentir. Era óbvio que estava mais nervosa do que se dera conta. Olha só o que a esperança fazia com essa mulher! Levava sua necessidade de amor e segurança a vandalizar seu sistema nervoso, deixando-a uma pilha! Às vezes, como agora, ela achava que talvez sentisse demais. Será que isso era normal?, perguntava-se. E se não fosse? Bom, ela passara uma infância de privações, pensou, irônica. Tá bem, tá bem, talvez não de privações, no duro. Mas de privação de uma rotina, privação de normalidade. Depois do primeiro surto depressivo de sua mãe, jamais retomaram de fato sua vida normal. A vida, como fora até então, estava acabada. Para sempre — embora, na ocasião, ainda não soubessem disso.

A ironia disso foi que, no começo, Ashling chegou a ficar entusiasmada quando o horário das refeições deixou de ser observado. Quando sujava o casaco de terra, ficava feliz por não levar uma bronca. Mas, à medida que os dias passavam, até ela mesma começou a perceber que as roupas que vestia estavam imundas. O alívio deu lugar à ansiedade. Isso não está certo. — Uso esse, hoje? — Apareceu diante da mãe com um vestidinho de verão imundo. Me nota, me nota! O olhar mortiço de sua mãe voltou-se para ela, perdido no rosto flácido de dor. — Se quiser. Janet e Owen não se vestiam melhor. E nem sua mãe — sempre fora tão bonita e bem-vestida, e agora nem notava quando aparecia em público usando uma blusa suja de ovo. Naquele verão, foram muitas vezes ao parque da região. Monica costumava exclamar: “Não agüento mais ficar nessa casa!”, e os tocava para fora, apressada. Mas, mesmo no parque, raramente parava de chorar, e nunca tinha um lenço. Como não achava certo que sua mãe secasse as lágrimas na manga, Ashling passou a sair de casa com um lenço-de-papel dobrado no bolso do casaco. Quando chegavam ao parque, Ashling tentava tomar as rédeas da situação, para que pelo menos Janet e Owen se divertissem. Quando queriam sorvete, Ashling ficava muito ansiosa para que ganhassem, por temer que, se ficassem aborrecidos, o castelo de cartas ruísse. Mas, como sua mãe nunca se lembrava de trazer dinheiro, Ashling passou a trazer sua bolsinha de plástico rosa e marrom, em feitio de carinha de cachorro. O verão foi passando, e Monica criando mais um hábito preocupante: sentada num banco, apática, ficava descascando um corte no braço, só se dando por satisfeita quando começava a sangrar. Foi por volta dessa época que Ashling passou a carregar consigo um punhado de Band-Aids. Alguma coisa tinha que acontecer. Alguém tinha que notar!

Começou a rezar para que sua mãe ficasse boa e seu pai não viajasse toda segunda-feira de manhã para só voltar na sexta. Mas, como as orações não surtiram o efeito desejado, passou a alimentar a bizarra convicção de que se desse descarga na privada três vezes sempre que a usava, tudo ficaria bem. Em seguida encasquetou que quando descia a escada tinha que fazer uma pirueta ao chegar ao último degrau. Simplesmente tinha que fazer a pirueta e, se por acaso se esquecesse de fazê-la, era obrigada a voltar para o alto da escada e realizar todo o ritual outra vez. As superstições passaram a ter grande importância para ela. Quando via uma única pega — sinal de tristeza —, esquadrinhava o céu, nervosa, à procura de outra — sinal de alegria. Um dia entornou sal sem querer e, para evitar outro derramamento de lágrimas, entornou mais um pouco por cima do ombro esquerdo. O sal caiu sobre a torta de gelatina. Sua mãe contemplou com ar aparvalhado os grãos de sal se dissolvendo na cobertura de chantilly, pousou a cabeça na mesa da cozinha e chorou. Nada mudara. Os berros de Ted a fizeram sintonizar o presente de novo. — Ashling, fala comigo! O que as cartas do tarô disseram sobre hoje à noite? Ela se recompôs rapidamente, muito, muito feliz por estar no presente, não no passado. — Até que não foi mau. Tirei as quatro taças. — Escusado dizer que primeiro tirara, e desprezara, os aziagos dez gládios. — E meu horóscopo em dois jornais dominicais estava bom. — E não tão bom assim em outros dois, mas e daí? — E a carta do oráculo dos anjos que tirei foi o Milagre do Amor. — Por último, depois da Maturidade, da Saúde, da Criatividade e da Sabedoria. — É isso que você vai usar? — Ele indicou com a cabeça a calça capri preta e a camisa amarrada na cintura. — Por quê? — perguntou Ashling, defensiva. Vestira-se com todo o esmero, e estava muito satisfeita com a camisa, porque, devido a algum efeito da luz, dava a ilusão de que ela tinha uma cintura. — Você não tem nenhuma saia curta?

— Nunca uso saias curtas — ela resmungou, perguntando-se, ansiosa, se não teria carregado demais no blush. — Odeio minhas pernas. Você acha que passei blush demais? — Qual deles é o blush? O negócio vermelho nas suas bochechas? Não, passa mais um pouco. Imediatamente Ashling esfregou o excesso. Os motivos de Ted eram suspeitos. — Onde você vai se encontrar com ele? No Kehoe’s? Eu te acompanho até lá. — Aqui que acompanha! — disse Ashling, categórica. — Mas eu só... — Não! A última coisa que Ashling queria era Ted segurando vela para os dois, infernizando Marcus com sua tietagem explícita, pedindo para ser seu novo melhor amigo. — Bom, então boa sorte — disse ele, em tom lamurioso, ao que Ashling jogava o seixo da sorte na bolsa bordada nova, enfiava os pés nos sapatos com saltos Luís XV e se preparava para sair. — Estou torcendo para que seja um romance abençoado pelo Céu. — Eu também — confessou Ashling. Em seguida, dirigindo-se a Deus, ou quem quer que fosse o Ministro Celeste dos Romances, acrescentou, da boca para fora: — Se estiver escrito. — Que babaquice — debochou Ted. Depois de uma rápida mas frenética esfregada no Buda da sorte, Ashling saiu. Vou gostar de Marcus Valentine e ele vai gostar de mim, vou gostar de Marcus Valentine e ele vai gostar de mim... Enquanto repetia o mantra pela calçada de Grafton Street afora, no alto das sandálias que a faziam requebrar, seu cantochão no estilo de Louise L. Hay foi interrompido por um assobio. Marcus Valentine, já? Caramba, aquela Louise L. Hay era mesmo fogo! Mas não era Marcus Valentine. Do outro lado da rua, sem o cobertor laranja, estava Boo, acompanhado por dois outros rapazes cujos rostos barbudos e roupas estranhas — do tipo que ninguém compra nem a muque — identificavam-nos como sendo sem-teto também. Estavam comendo sanduíches. Algum impulso de boa educação obrigou-a a atravessar a rua em direção a eles. — E aí, Ashling — Boo abriu seu sorriso feliz —, não viajou durante o feriadão? Ashling sacudiu a cabeça.

— Nem eu — tornou ele, com ar digno. Em seguida bateu na testa, repreendendo-se por sua grosseria, e girou o braço para indicar os dois rapazes que estavam em sua companhia. Um era jovem, desgrenhado e esquelético, o elástico de suas calças de ginástica mal se segurando na cintura desnutrida. O outro era mais velho, com o rosto enterrado numa vasta barba e uma cabeleira insana, como se tivessem colado gatos selvagens com durex no contorno de seu rosto. Usava um par de tênis que um dia haviam sido brancos e um terno indubitavelmente feito para um homem muito mais baixo. Em comparação com os dois, Boo parecia quase normal. — Desculpe! Ashling, esse é JohnJohn — disse, indicando o rapaz mais jovem. — E esse é Dave Cabelão. Rapazes, essa é Ashling, minha vizinha bissexta e um ser humano da melhor qualidade. Sentindo-se um pouco constrangida, Ashling trocou um aperto de mão com ambos os rapazes. Imagine se Clodagh a visse agora — teria um ataque! Chewbacca,* em particular, tinha uma aparência imunda e, quando sua mão coberta por uma crosta de sujeira segurou a de Ashling, ela resistiu ao instinto de estremecer. Um transeunte quase desatarraxou a cabeça, de tal modo a torceu para dar uma olhada no heterogêneo quarteto — Ashling tão limpa e perfumada, os outros três tudo, menos isso. — Você está um arraso — comentou Boo, sem esconder sua admiração. — Deve estar indo se encontrar com algum cara. — E estou, mesmo — disse ela. Então, atiçada por seu súbito carinho por Boo, confessou: — Você nunca adivinharia quem é. — Quem? — Os três soltaram uma exclamação e se inclinaram para mais perto. Ashling teve que prender o fôlego. — Marcus Valentine — disse, arrematando a confissão com um suspiro.

*O co-piloto simiesco de Han Solo, na trilogia Guerra nas Estrelas.

 

Boo caiu na gargalhada, com um olhar divertido. — É o humorista? — perguntou Dave Cabelão, num grunhido grosso e arrastado. Ashling fez que sim. — O que conta as piadas de coruja? — JohnJohn ficou entusiasmadíssimo. Santo Deus! Será que a fama de Ted chegara tão longe que até cidadãos marginalizados o conheciam? Espera só até eu contar isso a ele! — Esse em que você está pensando é Ted Mullins — explicou Boo a JohnJohn. — Marcus Valentine é o que conta a piada da manteiga e a dos flocos de neve. — Não conheço. — JohnJohn ficou decepcionado. — Ele é animal. Que notícia sinistra, Ashling! Bom, espero que você se divirta. — Obrigada. Vou deixar vocês jantarem em paz. — Ashling indicou os sanduíches que eles tinham parado de comer quando ela aparecera. — Marks & Spencer — disse Boo. — Eles dão para a gente tudo que não vendem. Sei que as roupas deles andam meio caídas de uns tempos para cá, mas os sandubas são deliciosos! Subitamente, os três homens se retesaram, como se pressentissem algum perigo. Ashling olhou. Pelo visto, o problema eram os dois policiais no começo da rua. — Estão com cara de tédio. — A voz de JohnJohn parecia preocupada. — Vam’bora! — convocou-os Boo, e logo trataram de sair dali de fininho. — Tchau, Ashling.

Quando ela chegou ao bar, Marcus já estava lá, sentado, usando um par de calças militares e uma camiseta, com uma garrafa de Guinness à sua frente. Ashling sentiu um frêmito ao vê-lo. Ele fora. Isso estava mesmo acontecendo. A ambigüidade lutava dentro dela — como se sentia em relação a ele? Era o idiota sardento e entusiasmado para quem ela se recusa ra a bellar? Ou o profissional seguro de si, por cujo telefonema tanto ansiara? A figura dele não contribuiu em nada para esclarecer sua confusão: não era nem extremamente bonito nem ridiculamente feio. Não havia como tapar o sol com a peneira — ele tinha um rosto comum. Seu cabelo era bem curto, de um tom castanho-avermelhado, seus olhos não eram de nenhuma cor óbvia e, é claro, havia a pequena questão das sardas. Mas ela gostava de homens comuns. Merecia homens comuns. Não fazia sentido voar perto demais do sol. E, embora ele fosse comum, pelo menos sua altura o incluía na categoria dos comuns de luxo. E tinha um corpo bem-feito. Quando ela o viu, ele se levantou e lhe fez um sinal para que se aproximasse. Havia um espaço vago ao lado dele no banco, e ela se espremeu para sentar ali. — Oi — disse ele, com ar solene, quando ela já tinha se acomodado. — Oi — respondeu ela, com o mesmo ar solene. Em seguida, os dois começaram a rir. Agora era ele quem estava fazendo isso. — Posso buscar uma bebida para você? — perguntou ele. — Pode, obrigada. Uma vodca-tônica.

Quando ele voltou com a bebida, ela abriu um sorriso relaxado para ele. Ele tinha uma cara tão simpática que era difícil levar esse encontro a sério. O que fez com que uma onda de abatimento e decepção quebrasse sobre ela. Aquela ansiedade toda à espera do telefonema dele, para nada. Resolveu analisar um pouco mais a fundo seus sentimentos, pulando deles para as sardas de Marcus e de volta. Não, sem a menor sombra de dúvida, não se sentia atraída por ele. Os pêlos de suas pernas podiam ter ficado onde estavam. Ted podia ter sido poupado daquela humilhante ida à drogaria. Mas, enfim, talvez ficassem amigos. Na verdade, ele provavelmente poderia ajudar Ted em sua carreira de humorista. Ela sorriu para ele, sem um pingo de acanhamento, e indagou: — E aí, o que tem feito ultimamente? De repente, lembrou-se de que esse era o homem que estava prestes, segundo as palavras de Lisa, “a se tornar uma estrela” e, no ato, seu divertido desprezo se evaporou. Apenas alguns segundos antes ela teria lhe contado jovialmente até sobre seus momentos mais constrangedores, mas agora, para sua perplexidade, seu cérebro deletara todos os assuntos sobre os quais poderiam conversar. — Um pouco disso, um pouco daquilo — retrucou ele. Era a vez dela. O que devia dizer? A última coisa, a última, que deveria mencionar era sua carreira de humorista. Seria ingênuo e, como ele era extremamente bem-sucedido, já devia estar cheio de receber elogios. Por esse motivo, foi uma verdadeira surpresa quando, rompendo o silêncio amarrado, ele perguntou: — Quer dizer então que você gostou do show no sábado? — Gostei — disse ela. — Todo mundo estava muito engraçado. Sentindo a expectativa dele, ela prosseguiu, cautelosa: — Achei você fantástico. — Ah, não foi dos meus melhores shows. — Ele piscou os olhos, dando ao gesto um toque da vulnerabilidade do pateta que encarnava no palco. Seu ar de alívio era inegável. Era a vez de Ashling novamente.

— Você tem algum emprego... sabe como, além de, hum, ser engraçado? — Eu desenvolvo softwares para a Cablelink, para passar o sistema para fibra óptica. — Hum, é mesmo? — É fascinante — tornou ele, com um sorriso triste. — Não admira que eu tenha que fazer shows humorísticos. E você, o que faz? Opa. — Trabalho numa revista feminina. — Qual é o nome? — Hum, bem, Garota. — Garota? — A expressão dele mudou. — Estão atrás de mim para escrever uma coluna. Uma tal de Lisa não sei de quê. — Edwards. Lisa Edwards. É minha chefe — admitiu Ashling. sentindo-se culpada, mesmo sem razão. A suspeita alterou o rosto dele, fazendo com que adquirisse uma expressão dura e fria. — Foi por isso que você saiu comigo? Para me convencer a escrever uma coluna? — Não! De jeito nenhum. — Ashling tinha horror a que a considerassem prepotente. — Não tenho nada a ver com isso e não me importo se você não escrever a coluna. Não era exatamente verdade. Se ele concordasse em escrever a coluna, seria um ponto a favor de Ashling, mas não iria pressioná-lo. Ainda assim, ficou comovida com sua insegurança e, do nada, sentiu brotar em si um laivo de instinto protetor. — Sinceramente — acrescentou, com brandura. — Só estou aqui com você porque quero. Não tem nada a ver com o que quer que seja. — Tá — ele assentiu, pensativo e, logo em seguida, começou a rir. — Acredito em você, você tem uma cara honesta. — Meu Deus, que coisa horrível para se ter — rebateu Ashling, franzindo o nariz. Indicou o copo de cerveja vazio. — Mais chá, vigário? — Hã? Não. Ashling, posso te fazer uma pergunta? — Seu tom era de desculpas. —Você se importaria se a gente desse um pulo num show humorístico? Só por meia horinha? Tem um cara lá em quem eu gostaria muito de dar uma olhada.

O show era num outro bar que ficava a apenas algumas ruas dali. Marcus foi saudado na porta como se fosse um membro da realeza e, para divertimento de Ashling, fizeram sinais para que os dois entrassem sem pagar. No aposento apinhado de gente, as pessoas — na sua maioria, humoristas — não paravam de abordá-lo, e Marcus apresentou Ashling a todas elas. Eu bem que me habituaria a isso, pensou ela. O show era parecido com outros a que ela já assistira. Uma multidão de gente espremida numa sala pequena e escura, com um palco minúsculo num canto. O humorista em que Marcus estava interessado se inspirava nos maníacos-depressivos e se intitulava Homem Lítio. Quando ele terminou seu show de dez minutos, Marcus tocou Ashling de leve. — A gente já pode ir. — Mas não me importo de ficar... — Não — disse ele, sacudindo a cabeça. — Não. Quero conversar com você. Sorriu na penumbra e, de súbito, Ashling notou que, embora ele fosse banal, sua banalidade pecava por estar longe de ser feia. Quando já estavam instalados em outro bar, Marcus perguntou: — E aí, o que achou do Homem Lítio? Ashling fez uma pausa. — Para ser franca, não gostei muito dele. — É? Por quê? — Marcus parecia muito interessado na sua opinião, o que a envaideceu. — Não acho inteligente fazer graça de doenças mentais — confessou ela. — A menos que o humorista seja muito engraçado, o que não é o caso. — E quem você acha engraçado? — perguntou ele, atento. — Bom, você, obviamente. — Ela deu uma risada um pouco estridente ao dizer isso, mas, pelo visto, ele não se importou. — E você, de quem gosta? — Bom, de mim mesmo, obviamente. — Os dois trocaram uma risadinha conivente. — E de Samuel Beckett. Ashling riu às gargalhadas, até compreender que ele falara sério. Merda. — Acho que ele é o maior autor cômico do século — elogiou Marcus.

— Uma vez assisti a Esperando Godot — arriscou Ashling. Não precisava mencionar que fora numa excursão escolar e que não entendera patavina da peça. Mas, excetuando-se a gafe em relação a Beckett, a noite transcorreu sem acidentes. Os drinques se sucederam, e Marcus se mostrou encantador e interessado por ela. Por causa de suas sardas, ela se sentia relaxada diante dele e lhe fez inúmeras confidências. Sobre suas aulas de salsa — era obrigada a admitir que estava encantada por ter começado a freqüentá-las, pois isso devia fazer com que ela parecesse uma pessoa com “interesses” —, sua paixão por bolsas e como, a maior parte do tempo, gostava de seu emprego na Garota. — Mas isso não é uma indireta — disse, subitamente ansiosa. — Eu sei. Mas pode ser franca, estão pressionando você para levar para eles a cabeça de Marcus Valentine? — N-não — gaguejou ela. — Não estão pressionando você no trabalho por causa disso? — ele tornou a perguntar. — De jeito nenhum. — Ashling foi categórica. — Nem tocaram no assunto, para ser franca. — Ah. — Depois de algum tempo, ele acrescentou: — Sei... sei. Lançando-lhe um olhar por sob as pestanas, esboçou um sorriso para ela e, sentindo vibrar um calor no plexo solar, Ashling se deu conta de que o achava atraente. Ele devia ser desse tipo de pessoa cujo poder de atração cresce com o convívio. E não tinha o menor vestígio de sua persona humorística. Antes assim — patetas não costumam render muito na horizontal. Ele se virou, encostou a cabeça na de Ashling e perguntou, em voz baixa e insinuante: — Quer um saco de batatas fritas?

— Não, obrigada. — Bom, a gente já tomou uns drinques, você não quer batatas fritas, o único item que sobrou na agenda é... — O sexo tórrido! Embora ela já tivesse perdido a conta de quantos drinques tomara, a idéia a deixou súbita e inexplicavelmente paralisada. Não era exatamente medo, mas também não deixava de ser. Ela simpatizava muito com ele e o achava atraente, mas... — Hum, será que você se importaria...? Eu hoje não tinha planejado voltar tarde para casa, entende? Tenho que trabalhar amanhã, e coisa e tal. — Ah, tá. Claro — disse ele, em tom neutro, mas evitando olhá-la nos olhos. — Nesse caso, é melhor a gente ir embora. Ao deixá-la em casa, ele a beijou, mas, por algum motivo, o beijo não a convenceu.

 

 

                                                                     CONTINUA

 

 

Mãos fofinhas e rechonchudas alisando seu rosto... Entre o sono e a vigília, Clodagh fruía, sonhadora, do calor das mãos de Molly tocando a pele sensível e molinha de seu rosto. Deitada sem cerimônia sobre o peito de Clodagh, Molly respirava com força, enquanto seus dedos tenros e pegajosos avançavam pelo queixo de Clodagh, suas faces, contornavam o nariz, a testa e... AI! Aiii!!! Clodagh viu estrelas.

 

 

 

 

— Você me deu um soco no olho, Molly! — gritou, chocada com o violento despertar. — Mamãe acordou — disse Molly, fingindo-se surpresa. — É claro que mamãe acordou. — Clodagh levou a mão em concha ao olho cego, de onde jorrava água como de uma represa cujas comportas tivessem rebentado. — Geralmente é o que acontece quando a pessoa leva uma porrada no olho. Desvencilhando-se de Molly, cambaleou até o espelho para avaliar a extensão do dano. Precisava estar nos trinques aquele dia, porque tinha uma entrevista numa agência de empregos. Um olho estava normal, o outro lacrimejante e injetado. Droga. De repente, ela percebeu a pilha de roupas na poltrona e entrou no frenesi pré-Flor habitual, arrumando o quarto e pendurando as roupas. — Se veste, Craig — ordenou-lhe a distância. — Molly, anda, veste suas roupas, Flor vem aí. Desembestando pelas escadas abaixo, o café da manhã foi a guerra de sempre. — Não quero o All-Bran — Craig gritava e chorava. — Quero os Coco Pops. — Você não pode comer os Coco Pops até comer todo o All-Bran — disse Clodagh, fingindo por um momento que havia a possibilidade de ser obedecida.

Sua compra semanal incluía um kit de seis caixas sortidas de cereais, das quais os Sugar Puffs e os Coco Pops não esquentavam na prateleira, enquanto as marcas tediosas, como o All-Bran, iam se amontoando numa pilha abandonada. Até serem consumidos, ela procurava resistir às tentativas das crianças de forçá-la a abrir uma caixa de outra marca. E sempre fracassava. Ainda mais hoje, em que o tempo era precioso. Rasgando o celofane de um novo kit, chapou os Coco Pops diante de Craig. Em seguida, ainda de camisola, correu para o carro, resgatando várias sacolas de compras de seu esconderijo no porta-malas. Sempre fazia isso quando comprava alguma roupa nova. Embora Dylan nunca se queixasse por ela gastar dinheiro com roupas, isso não a impedia de se sentir culpada...

 

 

                      

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