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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TAMAN / Mikhail Lermontov
TAMAN / Mikhail Lermontov

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

T  A  M  A  N

 

Taman é a pior cidadezinha que se pode encontrar em toda a costa da Rússia; estive por lá quase a morrer de fome e por lá tentaram afogar-me. Cheguei lá noite avançada, num carro de posta; o postilhão levou a fatigada troika à primeira casa de tijolo da cidade, junto das portas. O guarda, cossaco do mar Negro, ouviu o tilintar das campainhas e berrou com uma voz áspera e ensonada: «Quem está aí?» Depois saíram um sargento e um fiscal, a quem expliquei que era oficial, que ia para a frente em serviço e que desejava aboletar-me. O fiscal levou-nos pela cidade, mas todas as cabanas a que batemos estavam já cheias. A noite estava fria; eu já não dormia há três noites e sentia-me imensamente fatigado. Por fim, perdi a serenidade e gritei:

- Malandro, leva-me para onde quiseres, para o Diabo, se te apetecer, mas arranja-me cama!

- Ainda há por aí outro lugar - disse o fiscal coçando a nuca - mas naturalmente V. Ex.ª não quer... É pouco limpo...

Não compreendi logo o sentido exacto destas últimas palavras e disse-lhe que fôssemos imediatamente; depois de andarmos que tempos por vielas imundas, ladeadas só por casebres em ruínas, chegámos a uma cabana pequena e edificada mesmo junto do mar.

A lua cheia brilhava sobre a cobertura de canas e de colmo e sobre as paredes brancas da minha nova residência; no pátio, que era rodeado de um muro feito de pedras redondas, mal talhadas, estava outro casinhoto, inclinado para uma banda e mais velho e mais pequeno do que o primeiro. Os rochedos desciam quase no prolongamento das paredes e lá em baixo as vagas azul-escuras rebentavam com incessante murmúrio. A Lua parecia contemplar o inquieto elemento que lhe obedecia e à luz que dela vinha podia eu distinguir ao longe dois navios cujos perfis negros se esboçavam, como imóvel teia de aranha, sobre o fundo pálido do horizonte. «Há navios no porto - pensei eu; - já posso embarcar amanhã para Gelenzhik». A minha ordenança era um cossaco de linha; dei-lhe ordem para que tirasse do carro a maleta e pagasse ao cocheiro e ao mesmo tempo pus-me a chamar pelo dono da casa. Nem resposta. Bati - de novo o silêncio. «Que diabo quererá dizer isto?...» Por fim, um rapaz de uns catorze anos surgiu à entrada.

- O patrão?

- Não há patrão.

- Quê, patrão nenhum?

- Nenhum.

- E a patroa?

- A patroa foi à aldeia.

- Então quem abre a porta? - disse eu, atirando um pontapé. A porta abriu-se por si própria e da cabana veio um cheiro a bafio. Acendi um fósforo e cheguei-o à cara do rapaz; o fósforo iluminou dois olhos brancos. Era cego, completamente cego desde nascença. Estava de pé, diante de mim, sem se mover, e comecei a examinar-lhe as feições.

Devo confessar que tenho grande preconceito contra todos os cegos, os tolhidos, os surdos, os mudos, contra todos os que não têm pernas ou braços ou são corcundas ou têm qualquer outra deformação. Tenho notado sempre uma estranha ligação entre o exterior de um homem e o seu espírito; parece que com a perda de um membro ou de uma possibilidade também a alma perde uma parte da sua sensibilidade.

Principiei, portanto, a examinar a cara do moço; mas que se pode ver numa face sem olhos? Por muito tempo o contemplei com um involuntário sentimento de piedade; depois, subitamente, um sorriso quase imperceptível lhe passou nos lábios finos e, não sei porquê, provocou uma impressão muito desagradável. Entrou-me no espírito a suspeita de que o rapaz não era tão cego como parecia; e era inútil repetir-me a mim próprio que era impossível imitar uma catarata; de resto, que razões haveria para tal? Mas não podia deixar de haver a suspeita; como disse, tenho também os meus preconceitos.

- Tu é que és o filho da patroa? - perguntei por fim.

- Não, não sou.

- Então quem és?

- Um pobre órfão.

- A patroa tem filhos?

- Teve uma filha; mas embarcou com um tártaro.

- Que espécie de tártaro?

- Só o Diabo o sabe. Um tártaro da Crimeia, um marinheiro de Kertch.

Entrei na cabana; dois bancos, uma mesa, uma arca enorme perto do fogão constituíam a única mobília. Não havia nas paredes uma só imagem - mau sinal. Pelos vidros quebrados soprava o vento do mar. Tirei o resto duma vela de cera da maleta, acendi-a e comecei a arranjar as minhas coisas. Pus o sabre e a espingarda ao canto do quarto, as pistolas sobre a mesa e desdobrei a capa sobre um dos bancos; o cossaco pôs a dele em cima doutro. Ainda não tinham passado dez minutos, já ele ressonava; mas eu não podia dormir; via sempre o rapaz com os seus olhos brancos na escuridão.

Passou-se mais ou menos uma hora. A luz brilhava através da janela e os seus raios iluminavam o chão de terra da cabana. De repente, uma sombra cruzou a linha brilhante do chão. Sentei-me e olhei pela janela. Alguma coisa correu segunda vez e desapareceu, Deus sabe onde. Nem podia supor que esta criatura tinha corrido pelas rochas a pique, mas de facto não havia outro caminho. Levantei-me, vesti o dólman, prendi o punhal à cintura e deixei a cabana sem fazer barulho. O rapaz cego veio na minha direcção, com um grande volume debaixo do braço. Escondi-me junto da parede e ele passou, com um passo cuidadoso mas firme; voltando-se para o lado do porto, começou a descer uma vereda estreita e Íngreme. «Então se abrirão os olhos dos cegos e cantarão as línguas dos mudos» - pensei eu, seguindo-o a distância, embora não o perdendo de vista.

A Lua escondeu-se nas nuvens, o mar cobriu-se de nevoeiro; o farol de popa do barco mais próximo mal se via da costa e a cada momento parecia que a espuma das vagas ameaçava apagá-lo. Com dificuldade desci a vereda íngreme e eis o que vi quando cheguei abaixo: o rapaz parou à borda de água, depois voltou à direita e seguia tão perto do mar que se tinha a impressão de que uma vaga o arrebataria. Era evidente que não fazia o caminho pela primeira vez, porque dava passadas audaciosas de pedra a pedra e evitava as poças de água. Por fim, parou; durante uns momentos esteve na atitude de quem escuta; em seguida, sentou-se no chão, com o fardo ao lado. Eu estava oculto atrás duma rocha que fazia saliência e espiava-lhe os movimentos. Poucos minutos depois, uma figura branca aproximou-se dele e sentou-se ao lado. De tempos a tempos, o vento trazia-me trechos da conversa:

- O tempo está muito mau. Janko já não vem - dizia uma voz de mulher.

- Janko não tem medo do mau tempo - respondia o rapaz.

- O nevoeiro cerrou mais - tornou a mulher num tom de pena.

- É mais fácil passar os guardas com nevoeiro - foi a resposta.

- E se se afoga?

- Bem, e se se afoga? Tens que ir domingo à igreja sem fita nova.

Depois, houve silêncio. Uma coisa me surpreendeu: o cego, quando me tinha falado, empregara dialecto, agora falava russo.

- Olha, quem tinha razão era eu - disse o cego batendo palmas. - Janko não tem medo do mar, nem do vento, nem do nevoeiro, nem dos guarda-costas. Ora ouve: não é o barulho das ondas... Não me engano: são os remos.

A mulher, que evidentemente estava muito ansiosa, pôs-se de pé e olhou para o largo.

- Estás doido, rapaz; não vejo nada.

Devo dizer que também eu me esforçava por divisar ao longe qualquer objecto parecido com um barco, mas sem resultado. Passaram cerca de dez minutos e viu-se então uma pequena mancha entre vagas como montanhas; ora parecia aumentar, ora parecia diminuir. Subindo vagarosamente ao cimo das ondas, depois descendo rapidamente, o barco a pouco e pouco se aproximava da costa. «Deve ser ousado marinheiro quem se aventura a atravessar numa noite destas uma baía de trinta «verstas» e deve ser importante o negócio que o traz por cá» - pensava eu, com o coração palpitante ao contemplar o barco que lutava sempre. Mergulhava como um pato, depois, com uma rápida pancada dos remos que pareciam asas de uma ave, saltava das profundidades numa nuvem de espuma; julguei que bateria nas rochas da costa e se faria em bocados; mas não: virou de bordo com destreza e entrou sem avarias numa pequena abriga. Um homem de estatura média, com um barrete tártaro de pele de ovelha, saltou do barco e fez sinal aos outros; os três começaram a tirar não sei quê do barco e a carga era tão grande que ainda hoje não posso perceber como não afundou a embarcação. Cada um tomou o seu fardo, meteram à praia e cedo os perdi de vista. Tive de voltar à cabana, mas confesso que todas estas estranhas ocorrências me tinham indisposto de tal modo que não pude esperar pela manhã.

O meu cossaco ficou muito surpreendido quando, ao acordar, me viu já pronto; no entanto, nada lhe expliquei. Fiquei algum tempo à janela, a admirar o céu azul, como que semeado de fragmentos de nuvens. A costa distante da Crimeia alongava-se como uma linha de púrpura até acabar num promontório em cujo cimo se podia ver a torre branca de um farol. Depois fui à fortaleza de Fanagoria saber do comandante a hora da partida para Gelenzhik.

Infelizmente, o comandante nada me podia dizer de seguro; os navios que estavam no porto eram ou guarda-costas ou barcos mercantes que nem sequer tinham ainda principiado a meter carga.

- Talvez o barco do correio chegue daqui a três ou quatro dias; nessa altura, vê-se o que se pode fazer.

Voltei para a cabana aborrecido e maldisposto; à porta estava o cossaco, com uma expressão de temor.

- Isto não tem bom aspecto, Excelência! - disse ele.

- Pois não, amigo; e sabe Deus quando sairemos daqui.

Pareceu ficar ainda mais alarmado; inclinou-se e disse num murmúrio:

- Não estamos bem aqui. Esta manhã encontrei um sargento do mar Negro que eu conheço, estive no destacamento dele o ano passado. Disse-lhe onde estávamos e disse-me ele: «Aí não estão bem; isso não é boa gente...» Parece que há qualquer coisa. Que espécie de cego é este? Anda por aí sozinho, vai ao pão ao mercado, vai buscar água. Acho que por aqui todos estão habituados.

- Bem, e depois? E a patroa, ao menos, apareceu?

- Pois; quando o senhor saiu, entrou a velha, com a filha.

- Que filha? Ela não tem filha nenhuma.

- Então se não é filha, Deus saberá quem ela é. Mas, olhe: a velha está lá dentro.

Entrei na cabana; o fogão estava aceso e cozinhava-se um almoço bastante abundante, para o costume entre pobres. A todas as minhas perguntas, a velha respondia apenas que era surda e que não podia ouvir. Que havia eu de fazer? Voltei-me para o cego que estava junto do fogão a atirar lenha para o lume.

- Anda cá, diabo cego - disse-lhe eu, puxando-lhe a orelha -, conta-me só onde foste levar aqueles fardos a noite passada.

De repente o rapaz começou a chorar e a gritar:

- Onde é que eu fui? Não fui a parte nenhuma! Que fardos? Sei lá nada de fardos...

Desta vez a velha ouviu e murmurou:

-      Bonitas invenções. E dum aleijado. Largue-o lá, faz favor. Que lhe fez o rapaz?

Fiquei irritado com tudo isto e saí decidido a aprofundar aquele mistério.

Embrulhei-me na capa, sentei-me numa pedra junto da parede e olhei para o largo. Diante de mim estendia-se o mar, ainda bravo da tempestade da noite anterior, e o monótono ruído das vagas, como o som de uma grande cidade quando vai a adormecer, fez-me lembrar dias passados e levou meus pensamentos para o Norte, para a nossa fria capital. Perturbado pelas recordações, perdi-me em sonhos...

Assim passou uma hora, talvez mesmo mais. Subitamente, pareceu-me que uma canção me chegava aos ouvidos... E era realmente uma canção, entoada por uma voz fresca de mulher; mas donde vinha? Pus-me à escuta. A melodia era umas vezes arrastada e triste, outras ligeira e alegre, sempre harmoniosa. Olhei em volta, mas não vi ninguém. Escutei; pareceu-me que os sons vinham do Céu. Levantei os olhos: sobre o tecto da cabana estava uma rapariga com um vestido às riscas e o cabelo solto ao vento - como uma ninfa das águas. Com a mão fazia sombra aos olhos e fitava atentamente o largo; umas vezes, ria-se e falava consigo mesmo, depois voltava a cantar.

Lembro-me de todas as palavras da canção:

 

           Pelas ondas inquietas

           Do mar verde de cetim

            Barquinhos de velas brancas

           Velejam longe de mim.

           Entre eles navega o barco

           Que me vem a procurar,

           Dois remos o vão guiando

           Por sobre as águas do mar.

           Abre a asa o navio grande

           Mesmo no forte do vento

           E segue a sua carreira

           No balanço largo e lento.

           Mas eu ajoelho e peço

           Que a vaga se torne calma

           E que eu veja são e salvo

           O barquinho da minha alma.

           Tesouros que ele me traz

           Nem eu os posso contar!

           Bendita a fronte e a mão

           Que por vento e cerração

           O trazem a navegar!

 

Involuntariamente me passou pela cabeça a ideia de que já tinha ouvido aquela voz na noite anterior. Durante um momento estive como em sonho e, quando olhei outra vez, já a rapariga lá não estava. De súbito, passou diante de mim a cantar em surdina outra melodia e, batendo os dedos, foi ter com a velha e principiou a discutir com ela. A velha estava zangada, a rapariga ria às gargalhadas. Depois vi a minha ninfa das águas vir a correr e a saltar na minha direcção; quando chegou aonde eu estava sentado, parou, olhou-me fito nos olhos, como se estivesse muito surpreendida de me ver ali; por fim, voltou-se com indiferença e foi para o desembarcadouro. As coisas não ficaram por aqui; todo o dia andou à volta da cabana e nem um momento deixou de cantar e de dançar. Estranha criatura! Não tinha no rosto sinais de doença; pelo contrário, os olhos, que punha em mim com audaciosa penetração, pareciam dotados de poder magnético. De cada vez que a surpreendia a fitar-me parecia que estava à espera de que lhe fizesse qualquer pergunta, mas, sempre que eu abria os lábios para falar, ela fugia, com um sorriso arteiro.

Realmente, nunca tinha visto uma mulher como aquela. Estava longe de ser bonita, mas eu também tenho os meus preconceitos quanto a beleza. Tinha raça: e raça, nas mulheres como nos cavalos, é uma grande coisa. Esta descoberta devemo-la nós à França nova. Manifesta-se - a raça, claro, não a França -, a maior parte das vezes, na cinta, nas mãos e nos pés; em especial, o nariz é de grande importância. Na Rússia, um nariz correcto é mais raro do que um pé bem feito. Parecia que a minha cantora não teria mais de dezoito anos. A invulgar elegância do seu corpo, o jeito gracioso de inclinar a cabeça, o cabelo louro e longo, o tom dourado que levemente cobria o pescoço e os ombros queimados pelo sol, a correcção do nariz, especialmente, - tudo era encantador para mim. Apesar de perceber um certo ar selvagem e suspeitoso nos olhares que lançava de lado, apesar de haver alguma coisa de indefinido no seu sorriso, tal é a força do preconceito que a correcção do nariz me pôs doido. Imaginei que tinha descoberto a Mignon de Goethe, essa caprichosa criação da sua fantasia germânica. Havia, de facto, muita semelhança entre elas, as mesmas rápidas mudanças do mais bravio desassossego para a mais completa imobilidade, as mesmas falas enigmáticas, os mesmos pequenos movimentos e estranhas canções.

À tardinha, encontrei-a à porta e travei com ela a seguinte conversa:

- Ora diga-me, minha linda, que estava a fazer hoje no telhado?

- Estava a ver de que lado soprava o vento.

- E em que a interessava saber isso?

- É que do lado de que vem o vento vem a sorte.

- Então estava a atrair a felicidade com as suas canções?

- Onde se canta há felicidade.

- E se as canções lhe trouxerem desgraça?

- Ora, que se há-de fazer? Quando não pode ser melhor é pior. Do bem ao mal pouco vai.

- Quem lhe ensinou aquela?

- Ninguém ma ensinou. Quando penso numa canção, canto-a. Quem tem de ouvi-la há-de ouvi-la e quem não tem de ouvi-la não a percebe.

- E como se chama a cantora?

- Isso lá sabe quem a baptizou.

- E quem é que a baptizou?

- Ah! isso não sei!

- Pois bem, sua misteriosa, vou eu contar-lhe o que sei a seu respeito.

A expressão do rosto não mudou; nem moveu os lábios: ficou como se tudo lhe fosse indiferente.

- Descobri que foi à praia a noite passada.

Depois, solenemente, disse-lhe tudo o que tinha visto, julgando que a embaraçava muito. Pôs-se a rir com todo o gosto.

- Viu muito, mas sabe pouco; e o que sabe é melhor guardá-lo a sete chaves.

- E se eu resolvesse informar o comandante? - disse eu muito sério, quase feroz.

Ela deu um salto e desapareceu a cantar como a ave que foge assustada duma moita. As minhas últimas palavras tinham sido descabidas de todo; nessa altura, nem suspeitei da sua importância, mas tive depois ocasião de me arrepender.

Estava já a escurecer. Ordenei ao meu cossaco que preparasse a chaleira, como na frente, acendi uma vela e sentei-me para uma boa cachimbada. la a acabar o segundo copo de chá quando a porta estalou e ouvi atrás de mim um brando som de passadas e o ligeiro roçagar de um vestido. Tive um sobressalto e olhei em volta - era a minha ninfa das águas. Sentou-se em silêncio em frente de mim e em silêncio me fixou. Não sei porquê, o seu olhar pareceu-me extremamente terno; lembrou-me outro olhar que anos antes me subjugara como um tirano e me brincara com a vida. Parecia ela que estava à espera duma pergunta, mas eu permaneci calado; sentia uma perturbação indescritível. O rosto da rapariga estava muito pálido e traía a agitação que lhe ia na alma, a mão vagueava-lhe pela mesa e notei que tremia levemente; por vezes o peito arfava, outras parecia conter a respiração. Esta comédia principiava a impacientar-me e estava a ponto de quebrar o silêncio da maneira mais prosaica oferecendo-lhe um copo de chá, quando subitamente deu um salto, me lançou os braços à volta do pescoço e me deu nos lábios o mais ardente dos beijos. Faltou-me a luz, senti-me tonto e abracei-a com todo o vigor da paixão juvenil; mas, como uma cobra, deslizou dos meus braços e murmurou-me ao ouvido:

- Esta noite, quando todos estiverem a dormir, venha à praia - e saiu da casa como uma seta.

Ao passar, virou a chaleira e a vela que estavam pousadas no chão.

- Diabo de rapariga! - exclamou o cossaco que se tinha acomodado na palha e estava a acabar os restos do chá. Só nesse instante voltei a mim.

Duas horas depois, logo que tudo sossegou no porto, acordei o meu cossaco:

- Se eu disparar a pistola, corre para a praia.

Olhou-me com espanto, depois disse, mecanicamente:

- As ordens, Excelência.

Meti a pistola ao cinto e saí. Ela estava à minha espera no cimo da descida; as roupas eram poucas e tinha sobre o ágil corpo um pequeno xale.

- Venha comigo - disse-me, pegando-me na mão.

Começámos a descer e não sei como não parti a cabeça; quando chegámos abaixo, voltámos à direita e seguimos pela vereda por onde, na noite anterior, tinha ido atrás do cego. A Lua ainda não tinha nascido e só duas estrelas, como dois faróis, brilhavam na abóbada azul-escura. As vagas largas vinham morrer regularmente uma após outra e mal moviam o bote solitário que estava preso ao paredão.

- Vamos embarcar - disse a minha companheira.

Hesitei, porque não gosto de excursões sentimentais pelo mar, mas era tarde para recuar. Ela saltou para o barco, eu segui-a e, antes de eu saber onde estávamos, já tínhamos largado.

- Que quer dizer isto? - perguntei zangado.

- Quer dizer - e, fazendo-me sentar junto dela, enlaçou-me com os braços - quer dizer que te amo. Apertou a face contra a minha e senti-lhe o hálito ardente. De repente ouvi cair qualquer coisa na água; apalpei o cinto - tinha-se ido a pistola. Então penetrou-me no espírito uma horrível suspeita e o sangue subiu-me à cabeça. Olhei para trás: já estávamos a umas cinquenta braças da costa e não sei nadar. O barco principiou a balançar, mas dominei-me e uma luta desesperada começou entre nós. A raiva dava-me forças, mas cedo notei que era inferior em agilidade ao meu adversário.

- Que é que tu queres? - gritei eu apertando-lhe as mãos com violência; os dedos estalaram-lhe mas a sua natureza de serpente podia suportar a dor.

- Tu viste tudo - respondeu ela. - Querias denunciar-nos! - e com esforço sobre-humano conseguiu derrubar-me. Estávamos os dois debruçados da borda e o cabelo dela tocava na água. O momento era decisivo; firmei o joelho no fundo do barco, segurei-lhe o cabelo com uma das mãos e com a outra apertei-lhe a garganta; largou-me logo as roupas: aproveitei a ocasião e atirei-a para a água.

Já estava bastante escuro; vi a cabeça aparecer-lhe umas duas vezes no meio da espuma do mar e depois não enxerguei mais nada.

No fundo do barco encontrei metade de um remo e após longos esforços consegui chegar ao desembarcadouro. Quando ia, ao longo da praia, para a cabana, olhei involuntariamente para o lugar em que, na noite anterior, tinha visto o cego esperar o remador nocturno. A Lua já despontara no céu e pareceu-me que alguma coisa branca estava sentada na praia; espicaçado pela curiosidade, arrastei-me para a frente e deitei-me na erva, na sombra que faziam os rochedos. Levantando a cabeça acima das pedras, podia ver nitidamente do meu esconderijo o que se passava em baixo e não fiquei muito surpreendido, fiquei mesmo contente, ao reconhecer a minha ninfa das águas; estava tirando do cabelo a espuma do mar; o vestido molhado modelava-lhe o corpo elegante e o peito redondo. Depressa um barco apareceu ao longe e veio na sua direcção. Como na noite anterior, desembarcou um homem de boné tártaro, mas agora tinha o cabelo cortado à moda dos cossacos e trazia um grande punhal no cinto de couro.

- Janko! - disse ela - está tudo perdido! Depois continuaram a conversação em voz tão baixa que não pude ouvir nada.

- Onde está o moço? - perguntou Janko, por fim, em voz mais alta.

- Já o mandei... - respondeu ela e poucos minutos depois chegava o cego; trazia às costas um saco que puseram no barco.

- Escuta! - disse Janko. - Ficas de guarda, percebes? Há por lá coisa rica. E dizes ao (não consegui perceber o nome) que não fico ao seu serviço; isto vai mal; não me torna a ver; as coisas vão-se tornando perigosas. Vou ver se encontro trabalho noutro sítio; e nunca mais encontra aventureiro como eu... E dizes-lhe que se me tivesse pago melhor nunca Janko o teria deixado. Todos os caminhos me estão abertos, todos os caminhos por onde o vento soprar e o mar rugir. - Depois de um pequeno silêncio, continuou: - Ela vai comigo; não pode ficar aqui; e diz à velha que já é tempo de morrer; já viveu bastante - devia ser mais razoável. Não tornará a ver-nos.

- E eu? - disse o cego com voz triste.

- Que préstimo tens tu para mim? - foi a resposta.

Entretanto, a ninfa das águas tinha saltado para o barco e feito um sinal ao companheiro. Ele pôs qualquer coisa na mão do cego e disse:

- Aqui tens para broas.

- Só isto? - perguntou o cego.

- Que esperavas tu mais? - e ouviu-se o tinir da moeda nas pedras.

O rapaz não a apanhou. Janko entrou no barco. O vento soprava da costa; içaram uma pequena vela e depressa se fizeram ao largo. Durante muito tempo, viu-se a vela branca passar iluminada pelo luar sobre as ondas escuras. O cego ficara sentado na praia e ouvi uma espécie de soluços; parecia que o rapaz chorava e que chorava longamente. Fiquei triste. Porque me tinha o destino atirado para este grupo de honestos contrabandistas? Como a pedra lançada ao poço tranquilo, tinha-lhes eu perturbado a calma; e como a pedra também, tinha estado quase a ir ao fundo.

Voltei ao meu alojamento. No corredor a vela pingava sobre um bocado de madeira e o meu cossaco, contrariamente às ordens que lhe tinha dado, estava em sono profundo, segurando com força a espingarda que tinha na mão. Deixei-o em paz, peguei na vela e fui para a cabana. Ai! a caixa do dinheiro, a espada com guarnições de prata, a adaga de Reggistan, presente de um amigo, tudo tinha desaparecido. Só então caí na conta de que coisas levava o maldito cego no seu saco. Acordei o cossaco com uma pancada não muito branda e berrei com ele, furioso; mas nada havia a fazer. Teria sido ridículo queixar-me às autoridades de ter sido roubado por um cego e quase afogado por uma rapariga de dezoito anos. Graças a Deus, apareceu na manhã seguinte oportunidade de me ir embora e saí de Taman. Não sei que sucedeu à velha e ao rapaz. E, na realidade, que tenho que ver eu, oficial em viagem de serviço, com as alegrias e as tristezas da humanidade?

 

                                                                                Mikhail Lermontov  

 

                      

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