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TARZAN O INDOMAVEL / Edgar Rice Burroughs
TARZAN O INDOMAVEL / Edgar Rice Burroughs

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

TARZAN O INDOMAVEL

 

Assassínio e pilhagem

O capitão Fritz Schneider avançava penosamente através da sombria vereda da floresta escura. O suor escorria-lhe da cabeça redonda para os maxilares pesados e para o pescoço forte. O tenente marchava ao lado dele, enquanto o alferes Von Goss vinha à retaguarda, com um punhado de «askaris» e os exaustos carregadores, a quem os soldados negros, seguindo o exemplo do oficial branco, acicatavam com as pontas das baionetas e as coronhas dos rifles, revestidas de metal.

Não havia carregadores ao alcance do capitão Schneider, e assim ele desabafava o seu mau humor prussiano sobre os «askaris» mais próximos, com certa moderação pois os homens estavam armados com rifles — e os três brancos estavam sozinhos, com eles, no coração da África selvagem.

Adiante do capitão marchava metade da sua companhia, atrás a outra metade, e assim os perigos eram reduzidos, para o oficial alemão. À cabeça da coluna seguiam dois negros quase nus, presos um ao outro por correntes. Eram os guias indígenas ao serviço da «Kultur» germânica, e as marcas dessa «Kultur» estavam visíveis sobre os seus corpos curvados, sob a forma de feridas e equimoses.

Assim, mesmo no coração da África negra, a luz da civilização germânica começava a brilhar para os nativos, justamente na mesma altura, o Outono de 1914, em que incidia gloriosamente sobre a Bélgica devastada.

Sem dúvida que os guias haviam conduzido mal o grupo; mas era sempre assim com a maioria dos guias africanos. Não importava que a ignorância, mais do que a má intenção, tivesse sido a causa do erro. Para o capitão Fritz Schneider bastava-lhe o facto de saber que estava perdido na selva africana, e de ter à mão criaturas humanas, mais fracas do que ele, a quem pudesse torturar e fazer sofrer. Se não os matava de uma vez era apenas porque tinha uma leve esperança de que pudessem eventualmente encontrar maneira de o tirar das suas dificuldades — e também, em parte, porque estando vivos sempre podia continuar a torturá-los.

As pobres criaturas, esperando que o acaso as fizesse encontrar o bom caminho, insistiam em dizer que sabiam por onde iam, e assim avançavam ao longo de uma pista de caça, sinuosa e pisada pelas patas de incontáveis gerações dos habitantes da floresta.

Aqui Tantor, o elefante, passara a caminho da água; aqui Buto, o rinoceronte, seguira quase às cegas, na sua majestosa solidão, e de noite os grandes felinos haviam avançado sobre as suas patas almofadadas, sob o espesso dossel de verdura, em direcção à planície imensa onde encontravam as suas melhores presas.

Foi essa planície que surgiu, inesperada e subitamente, ante os olhos dos guias... em cujos corações entrou uma renovada esperança. O capitão soltou um fundo suspiro de alívio, pois após dias de errante caminhar por entre a selva, a paisagem da planície ondulante, com os seus pequenos bosques e a linha de salgueiros, que indicava a proximidade de um rio, parecia um verdadeiro paraíso.

O alemão sorriu, trocou algumas palavras com o tenente e observou a planície, com o binóculo. Percorreu toda a extensão visível do capim alto, até que fixou a sua atenção num ponto quase ao centro, perto do rio.

— Temos sorte... — disse Schneider aos companheiros. — Estão a ver?

O tenente, que olhava também através do seu binóculo, encontrou finalmente o ponto que atraíra a atenção do seu superior.

— Sim... — disse ele. — Uma propriedade inglesa. Deve ser a de Greystoke, não há outra nesta região da África Oriental Inglesa. Deus acompanhou-nos, capitão!

— Chegamos muito antes que esse porco inglês possa ter sabido que há guerra entre o seu país e o nosso... — disse Schneider. — Que seja ele o primeiro a sentir as garras da águia germânica.

— Esperemos que esteja em casa... — volveu o tenente — ... para podermos levá-lo como prisioneiro a Kraut, em Nairobi. Seria uma boa proeza para o capitão Schneider, se pudesse prisioneiro de guerra.

— Tem razão, meu amigo... — disse Schneider, enchendo o peito de ar. — Seria uma boa proeza para nós ambos. Mas tenho de ir longe para apanhar o general Kraut antes que ele chegue a Mombassa. O desprezível exército inglês deve fugir a toda a pressa para o Índico.

Foi com melhor estado de espírito que a pequena força se encaminhou, através da planície, para a bem cuidada propriedade de John Clayton, «Lord» Greystoke; mas ficariam desapontados, pois nem Tarzan nem o seu filho estavam em casa.

«Lady» Jane, ignorando que havia guerra entre a Inglaterra e a Alemanha, recebeu hospitaleiramente os oficiais alemães, e deu ordens aos seus fiéis Waziris para prepararem uma boa refeição para os soldados negros do inimigo.

Muito para Leste, Tarzan dos Macacos viajava muito rapidamente desde Nairobi até à propriedade. Em Nairobi, recebera a notícia da eclosão da Grande Guerra, e prevendo uma imediata invasão da África Oriental Inglesa, pelos hunos, apressava-se a caminho de casa para levar Jane para lugar mais seguro. Com ele seguia uma vintena dos seus guerreiros, mas o avanço deles era demasiado lento para Tarzan.

Quando a necessidade o exigia, Tarzan dos Macacos abandonava por completo a leve camada de verniz da civilização, com todas as suas complicações. Num instante, o «gentleman» inglês transformava-se no homem da selva. A sua companheira estava em perigo. De momento, esse era o seu pensamento único, dominante. Na verdade não pensava nela como «Lady» Greystoke, mas como a fêmea que ele conquistara pelo poder dos seus músculos, e a quem devia defender com as mesmas armas.

Já não era o membro da Câmara dos Lordes que saltava entre as árvores da floresta ou corria através da planície — era um animal primitivo, com uma única finalidade em mente, ignorando a fadiga e o perigo. O pequeno Manu, guinchando nas altas ramadas, vira-o passar. Havia muito tempo que não avistava o grande Tarmangani, sozinho e nu, avançando velozmente pela selva. Com a sua barba cinzenta, Manu, o macaco, recordava os antigos dias em que Tarzan havia sido o dominador, o Senhor da Selva, reinando sobre os milhões de pequenas vidas e de grandes vidas, passando como um raio entre as árvores.

E Numa, o leão, estendido para o descanso do dia, junto da presa apanhada na escuridão da noite, pestanejava e agitava a cauda ao sentir o cheiro do seu antigo inimigo. Por seu lado, Tarzan não ignorava a presença de Manu, nem a de Numa. A sua vida civilizada não diminuíra a acuidade dos seus sentidos — e o olfato revelou-lhe a proximidade de Numa antes mesmo de o leão ter sentido a aproximação dele. Ouvira o agitar dos ramos à passagem de Manu, e pressentira a passagem silenciosa de Sheeta antes que os outros animais ficassem alerta.

Mas, embora fossem subtis os sentidos de Tarzan, embora fosse veloz o seu avanço através da selva que o adoptara, embora fossem poderosos os seus músculos, continuava a ser um mortal. O tempo e o espaço impunham-lhe os seus inexoráveis limites. Tarzan sabia isso melhor do que ninguém. Irritava-o não poder alcançar a velocidade do pensamento, irritava-o que a enorme distância tornasse necessárias longas horas de esforços incansáveis antes de poder chegar ao seu destino.

Levou dias, embora apenas repousasse algumas breves horas em cada noite, e se contentasse com devorar as presas que encontrava no caminho. Wapi, o antílope, ou Horta, o javali, eram abatidos na passagem, e Tarzan cortava apenas um pedaço de carne para ir comendo, sem se deter.

Por fim a longa viagem aproximou-se do seu termo. Tarzan seguia através da floresta mais densa... e quase sem transição encontrou-se em frente da planície, ao fundo da qual se erguia a sua casa. Ao primeiro relance, os músculos de Tarzan ficaram tensos, os seus olhos semicerraram-se. Mesmo a distância podia ver que alguma coisa estava errada. Uma coluna de fumo subia do ponto onde tinham estado os celeiros, à direita do «bungalow». Mas os celeiros tinham desaparecido... e da chaminé do «bungalow» não saía fumo.

Tarzan lançou-se para a frente, mais veloz do que viera até ali... pois agora o invadia um terror sem nome, mais causado pela intuição do que pela razão. Tal como as feras, Tarzan parecia possuir um sexto sentido. Muito antes de alcançar o «bungalow», previra a cena que ia encontrar.

A casa, coberta de trepadeiras, estava silenciosa e deserta. Ruínas ainda fumegantes indicavam o lugar onde haviam estado os celeiros. Destruídas as cabanas dos seus fiéis negros, desertos os campos, as pastagens e os currais. No céu, os abutres voavam em círculos... sobre corpos mortos.

Foi com uma impressão mais próxima do terror do que alguma vez sentira, que o homem da selva se forçou a entrar na sua casa. A primeira visão que se lhe deparou, toldou-lhe os olhos de uma nuvem vermelha. Ali, crucificado na parede da sala de estar, encontrava-se Wasimbu, o gigantesco filho do fiel Muviro, que durante mais de um ano fora o guarda pessoal de «Lady» Jane.

As mobílias estavam voltadas e partidas, no chão havia poças de sangue, dedadas vermelhas nas paredes testemunhavam a fúria da luta que se travara ali. Sobre o piano estava caído o corpo de outro guerreiro negro... e diante da porta do quarto de Jane viam-se, prostrados, os corpos de mais três dos fiéis servidores dos Greystoke. A porta do quarto estava fechada. Sombriamente, Tarzan olhava para o batente impassível que escondia o horrível segredo... o segredo que ele não se atrevia a imaginar.

Lentamente, como se os pés lhe pesassem, Tarzan aproximou-se e ficou novamente imóvel, agarrado ao puxador da porta. Depois, erguendo a cabeça, couraçando-se sob a força do ódio e do desejo de vingança, entrou... Aquele quarto era como o escrínio das mais doces recordações da sua vida... Tarzan olhou para o corpo estendido de bruços sobre a cama... o corpo que dias antes tinha sido estuante de vida, de beleza e de amor...

Sem uma lágrima, o homem da selva olhava... O corpo estava completamente negro, queimado para além de qualquer possibilidade de identificação. Ergueu-o nos braços... e nesse momento atingiu as mais recônditas profundidades do desespero. Não precisou de olhar para a espingarda alemã, quebrada, que estava caída no chão, nem para o boné militar, manchado de sangue... para compreender quem haviam sido os autores do pavoroso crime, do inútil crime. Por um instante tentou pensar, desesperadamente, que aquele corpo não era o de Jane... mas logo reconheceu, na mão queimada, os anéis dela.

Apaixonadamente, em silêncio, enterrou junto do roseiral destruído o corpo do seu amor aniquilado. Perto dali, noutra cova que abriu, comprida e funda, deixou os corpos dos fiéis servidores que haviam morrido a lutar.

Havia outras sepulturas, apressadamente feitas, a curta distância, no jardim. Estavam mal cobertas de terra e Tarzan não teve dificuldade em ver que eram a última morada de uma dúzia de «askaris»... cujos fardamentos indicavam a que regimento haviam pertencido. Agora não seria difícil descobrir quais os oficiais brancos que tinham comandado o bando de assassinos. Tarzan ficou a olhar, parado, soberba estátua de músculos e de nervos, soberba personificação do ódio e da vingança. E então pôs-se a caminhar, seguindo a pista da companhia de «askaris» que o capitão Fritz Schneider comandava. O sofrimento de Tarzan, embora horrível, era mudo, como o sofrimento das feras. Nos primeiros instantes, a dor embotou as suas faculdades... o seu cérebro continha apenas uma ideia... «Ela» estava morta... «Ela» estava morta... «Ela» estava morta... A frase latejava-lhe na mente, latejava no palpitar de cada veia... Só o seu instinto, que não o raciocínio, o fazia caminhar e estar alerta... E então, da sua infinita dor, da sua espantosa angústia, emergiu, claro e nítido, outro sentimento até aí latente... O ódio! Esse outro sentimento quase lhe foi um bálsamo... O seu ódio concentrava-se decerto naqueles que haviam assassinado Jane... mas incluía todos os hunos, todos os bárbaros representantes de uma Alemanha feroz... agressiva... Era essa Alemanha que Tarzan envolvia no seu grande ódio... no seu juramento de luta e de vingança... E esse sentimento era quase repousan-te... porque passaria a constituir uma presença inalienável no seu espírito... e pouco a pouco se substituía à recordação da sua felicidade perdida.

Tendo abandonado o aspecto exterior da civilização, Tarzan regressara também ao estado de espírito, mental e moral, das feras junto das quais tinha vivido. A civilização nunca fora para ele mais do que um verniz superficial, que adoptara por pensar que isso contribuía para a felicidade daquela a quem amava. Na realidade sempre desprezara as formas exteriores da chamada civilização. A própria palavra civilização representava, aos seus olhos, uma limitação de todas as liberdades... liberdade de pensamento, de acção, de amor e de ódio. Detestava as roupas, coisas desconfortáveis e feias que lhe pareciam correntes a prendê-lo ao género de vida das criaturas que vira em Londres e em Paris. As roupas eram, para ele, o emblema da hipocrisia da civilização — uma falsa demonstração de que as criaturas tinham vergonha daquilo que as roupas escondiam, da forma humana criada à semelhança de Deus. Tarzan sabia como pareciam absurdos e patéticos os animais inferiores, aos quais vestiam os trajos civilizados... porque os vira em espectáculos, nas grandes cidades. Tarzan tinha uma admiração instintiva pela nudez harmoniosa dos corpos... quer fossem corpos de leões, de antílope, ou de criaturas humanas — e não conseguia compreender que qualquer roupa fosse mais bela do que uma pele saudável, que qualquer tecido tivesse mais beleza do que o livre jogo dos músculos sob uma epiderme unida.

Na civilização, Tarzan encontrara egoísmo e cobiça muito para além da que conhecera na sua selva familiar — e embora essa civilização lhe tivesse dado a sua companheira e alguns amigos a quem estimava e admirava, nunca a aceitara como é aceite por qualquer de nós. Foi com uma sensação de alívio que abandonou todos esses aspectos exteriores de sua vida de homem civilizado, e regressou à sua antiga tanga e às suas antigas armas.

A faca de caça, que pertencera a seu pai, pendia-lhe do cinto, o arco e as flechas estavam passados sobre um ombro, e trazia a tiracolo a longa corda entrançada por ele, sem a qual se sentia tão nu como qualquer de nós se poderia sentir, numa rua, envergando apenas a roupa interior. Uma pesada lança, que transportava na mão ou suspendia do pescoço, por uma tira de couro, completava o seu trajo e o seu armamento. O medalhão de oiro, cravejado de pedras preciosas e contendo os retratos em miniatura de seu pai e de sua mãe, faltava-lhe porque o oferecera a Jane como prova da sua devoção. Ela sempre o usara, mas Tarzan não o havia encontrado sobre o pobre corpo carbonizado, nem no toucador. Assim, agora, a sua sede de vingança incluía também o desejo de recuperar o medalhão desaparecido.

Cerca da meia-noite, Tarzan começou a sentir o esgotamento físico consequente da longa jornada, e compreendeu que mesmo os seus poderosos músculos tinham limitações. A perseguição aos soldados não havia sido caracterizada por excessiva rapidez; mais de acordo com a sua atitude mental, fora conduzida com uma perseverança firme, uma determinação feroz de fazer com que os alemães pagassem olho por olho e dente por dente. O tempo não influía.

Por dentro, como por fora, Tarzan regressara ao nível das feras — para as feras o tempo não é medido, nem conta. A fera pensa sempre em termos do momento em que vive, e considera sempre que há uma eternidade sem medida para conseguir os seus propósitos... Tal como as feras, Tarzan movia-se com uma quase majestosa decisão, a não ser quando uma súbita emergência o levava a agir com a rapidez do raio.

Tendo dedicado a sua vida à vingança, a vingança tornou-se o seu único propósito. Nenhuma pressa, apenas uma determinação inabalável. O facto de não ter parado antes, significava apenas que não se sentira cansado, de tal modo o seu espírito, ocupado com a ideia obcessiva, dominava o seu corpo. Mas agora a fadiga impunha-se, e Tarzan procurou uma árvore onde pudesse descansar.

Nuvens escuras deslizavam velozmente pelo céu, encobrindo por vezes a face de Goro, a lua, e avisando da aproximação de uma tempestade. Na espessura da selva, as nuvens escuras traduziam-se numa treva densa, quase palpável... uma treva cheia de pequenos ruídos que teriam apavorado um homem nascido na civilização. Mas Tarzan, a quem o seu instinto mantinha sempre alerta, não se preocupava. Apenas, movido por esse instinto, saltava para as ramadas baixas quando pressentia a proximidade de Numa em busca de caça, ou quando Buto, o rinoceronte, avançava ao encontro dele, pela trilha.

Tarzan, pronto para lutar quando era necessário, evitava as lutas desnecessárias, sempre que podia.

Quando saltou para os ramos da árvore que procurava, a lua estava escondida pelas nuvens e as altas ramadas eram violentamente sacudidas pelo vento. Tarzan içou-se na direcção de uma sólida forquilha onde, muito tempo antes, construíra uma pequena plataforma de ramos ligados. Agora a escuridão era mais densa ainda. O homem da selva imobilizou-se, farejando... e logo, rápido como um relâmpago, saltou para um ramo baloiçante, daí para outro mais alto, e ainda para outro mais acima. O que causara tão brusca mudança de intenções? Qualquer de nós nada teria notado, mas Tarzan cheirara e vira o vulto da pantera que se havia estendido sobre a plataforma.

Em resposta ao rosnar do felino, um rosnar igualmente feroz saíra da garganta do homem da selva... como um aviso. Mas Sheeta não estava disposta a abandonar o poiso de que se apossara. Levantando a cabeça, fungava e mostrava os dentes ao Tarman-gani que alcançara um ramo mais alto, acima dela. Lentamente, o homem da selva avançou até ficar exactamente por cima da pantera. Na sua mão estava firme a comprida faca de caça que pertencera a seu pai... a arma que lhe dera, pela primeira vez, um domínio quase absoluto sobre as outras feras. Mas Tarzan esperava não ter de usar a faca; sabia que muitas das lutas na selva são ganhas ou perdidas por grunhidos ameaçadores — a lei do «bluff» é quase tão eficiente na selva como entre os civilizados.

Só quando se trata de amor ou de comida, as feras se servem imediatamente das presas e das

garras.

Tarzan firmou a sua posição contra o tronco da

árvore e debruçou-se sobre Sheeta.

— Roubadora de balus!... — exclamou. A pantera sentou-se sobre a plataforma e novamente mostrou os dentes, a curta distância da cara do homem. Tarzan grunhiu e, estendendo o braço, desferiu um golpe com a faca, no focinho de Sheeta. — Eu sou Tarzan dos Macacos... e esse lugar pertence-me... — disse ele. — Vai-te embora, ou Tarzan mata-te...

Embora falasse na linguagem dos gorilas, é duvidoso que se tenha feito entender pela pantera; Sheeta, no entanto, percebia que o Tarmangani queria afugentá-la daquele lugar, sob o qual as presas naturalmente passariam durante a noite. Rápida, a pantera estendeu as garras e vibrou um golpe... que não acertou apenas porque o movimento de Tarzan foi ainda mais rápido. Quando a fera poisou as quatro patas sobre a plataforma, Tarzan empunhou a lança e picou-a. Depois, o duelo de grunhidos continuou.

Enraivecida, a pantera decidiu de repente atacar o inimigo que viera pertubar a sua paz... mas, quando tentou saltar para o ramo onde estava Tarzan, a ponta da lança feriu-a no focinho. A fúria da pantera dominou-a por completo à terceira ou quarta tentativa gorada... e num impulso saltou, ignorando a lança. Por momentos, homem e pantera, igualmente ferozes, ficaram ao mesmo nível, ambos sobre o mesmo ramo forte que no entanto oscilava sob o peso. Agora Sheeta via ao mesmo tempo, ao seu alcance, a vingança e a ceia. Aquele Tarmangani, de pequenas presas e garras insignificantes, não poderia resistir-lhe. O vento soprava cada vez com mais força, e toda a árvore baloiçava. Tarzan recuava, grunhindo. Goro estava oculta pelas nuvens... e os relâmpagos sulcavam o céu, com intervados breves. O homem da selva, recuando, atraía Sheeta para a parte mais delgada do tronco, onde a pantera se sentia menos segura. A lança continuava a ferir... Sheeta, doida de raiva, atacou... mas Tarzan atacou também quando ela mal podia lutar sem correr o risco de cair. Com um rugido que se confundiu com o sol rolante dos trovões, o homem da selva pulou, caiu sobre o dorso de Sheeta e vibrou um grande golpe com a faca. Sheeta tentou torcer-se, voltar-se... e caiu sem que Tarzan a largasse. Tombaram juntamente, quebrando ramos. Nem por um instante o homem da selva pensou em largar a fera. Tinha começado a combater... e agora obedecia à lei não escrita, segundo a qual um dos dois, ou ambos, sucumbiria.

Sheeta caiu sobre as quatro patas, como um gato, mas o peso de Tarzan colou-a ao terreno, e a faca voltou a cravar-se no grande corpo malhado. Um instante depois a fera estava morta. Então, erguendo-se, Tarzan soltou para o céu de tempestade o seu grande brado de vitória... enquanto a chuva torrencial começava a cair.

Tendo vencido o inimigo que disputava o seu abrigo, Tarzan apanhou uma porção de ramos quebrados e subiu para a plataforma. Cobrindo-se com os ramos, estendido ao comprido, apesar da chuva e do vento, adormeceu.

 

O covil do leão

A chuva caiu torrencialmente durante vinte e quatro horas, e quando cessou havia feito desaparecer completamente a pista que Tarzan viera a seguir. Frio e molhado, foi um enraivecido Tarzan que continuou a avançar por entre a espessura da selva. Manu pressentiu a cólera do homem e fugiu para os ramos mais altos das árvores. Mesmo os leões e as panteras deixaram passar o Tarmangani

enfurecido.

Quando, no segundo dia, o sol voltou a brilhar, e uma vasta planície aberta deixou que os raios ardentes de Kudu envolvessem o seu grande corpo moreno, Tarzan sentiu-se reanimado. Era ainda uma fera que seguia, teimosamente na direcção do sul, onde esperava reencontrar a pista dos alemães. Estava agora na África Oriental Alemã, e a sua intenção era dar a volta às montanhas, a oeste de Kilimanjaro, e então continuar para leste ao longo do lado sul da cordilheira, na direcção do caminho de ferro que seguia para Tanga. A sua experiência entre os homens ditos civilizados, dizia-lhe que os alemães deviam convergir para a via férrea.

Dois dias depois, da encosta sul do Kilimanjaro, Tarzan ouviu o troar de canhões, a distância, para leste. A tarde tinha-se mantido baça e enevoada, e agora, quando Tarzan seguia ao longo de uma estreita garganta, grandes pingos de chuva começaram a cair sobre os seus ombros nus. Tarzan abanou a cabeça, grunhindo, e olhou em volta, procurando abrigo porque estava farto de frio e de chuva. Queria apressar-se na direcção do ponto onde troava o canhão, pois sabia que deviam ser alemães em luta contra ingleses. Por instantes pensou, com um vago orgulho, na sua condição de inglês... mas logo sacudiu a cabeça, com raiva.

— Não... — murmurou. — Tarzan dos Macacos não é inglês, porque os ingleses são homens e Tarzan é um Tarmangani...

Mas não podia esconder, apesar do seu ódio pela humanidade em geral, que sentia uma espécie de alegria ao pensar que eram ingleses os que combatiam os alemães. A sua pena era que os ingleses fossem homens e não grandes macacos brancos, como de novo a si mesmo se considerava.

« — Amanhã... — pensou — ...seguirei esse caminho e encontrarei os alemães».

Entregou-se então à tarefa de descobrir um abrigo contra a tempestade. A certa altura viu a estreita entrada do que parecia ser uma caverna, na base das penedias que constituíam o lado norte da garganta. Empunhando a faca, aproximou-se cautelosamente, porque sabia que, se fosse realmente uma caverna, devia ser o covil de alguma fera. Diante da entrada havia uma porção de fragmentos de rocha de vários tamanhos, semelhantes a outros que estavam espalhados ao longo de toda a base da penedia. Pensou que, se a caverna estivesse desocupada, taparia a entrada com aquelas pedras de maneira a poder descansar uma noite ali dentro, deixando ulular a tempestade. Um fio de água corria de dentro da caverna.

Antes de entrar, Tarzan ajoelhou e farejou o chão. Uma espécie de grunhido se escapou da sua garganta. « — Numa», murmurou. Mas não se deteve. Talvez Numa não estivesse no covil. Investigaria. A entrada era tão baixa que Tarzan teve de avançar com as mãos no chão, para poder espreitar. Adiantou-se com cautela, pensando no que poderia acontecer se Numa surgisse inesperadamente na sua frente. Mas Numa não apareceu, e Tarzan pôde finalmente erguer-se. Viu que a passagem por onde entrara atravessava a penedia e alcançava uma cavidade aberta em cima, no alto de grandes muralhas a pique que a rodeavam. A não ser o caminho por onde ele viera, não havia outra comunicação com aquela cavidade que tinha uns trinta metros de comprimento por cerca de quinze de largura, e que parecia ter sido aberta pela força da água, ao longo dos séculos. Um fio de água, que vinha dos píncaros eternamente nevados do Kilimanjaro, caía do alto, na extremidade do largo e fundo buraco, formando um pequeno lago de onde uma parte escorria para o exterior, através da passagem. Uma única árvore crescia a meio do espaço cavado, e aqui e além, por entre as rochas, brotavam ervas. No chão havia ossos de animais de grande porte... e alguns crânios humanos.

« — Um devorador de homens... — pensou Tarzan — ...e segundo parece usa este covil há muito tempo. Esta noite ficarei aqui e Numa terá de ficar lá fora».

O homem da selva tinha-se adiantado ao longo da cavidade, e agora estava junto da árvore, seguro de que o túnel seria um bom abrigo para a noite; quando ia meter-se outra vez pela passagem, cuja entrada pretendia bloquear antes do regresso de Numa, imobilizou-se bruscamente, todos os sentidos alerta, os olhos fitos em frente. Um instante depois a poderosa cabeça de um leão apareceu à entrada do túnel; os olhos amarelados, fixos, cravaram-se no Tarmangani. As grandes presas mostraram-se, numa ameaça acompanhada de um grunhido.

— Irmão de Dango!... — bradou Tarzan, irritado por Numa ter aparecido a tempo de transtornar os seus planos de uma noite de repouso. — Eu sou Tarzan dos Macacos, Senhor da Selva. Esta noite fico aqui. Vai-te!

Mas Numa não obedeceu, pelo contrário... rugiu e deu alguns passos na direcção de Tarzan. O homem da selva apanhou uma pedra e atirou-a à cabeça do leão. Nunca se pode estar seguro a respeito de leões. Aquele podia voltar-se e fugir ao primeiro sinal de ataque — muitos tinham feito isso, antes.

Mas não aquele. A pedra acertou-lhe no focinho, um dos pontos mais sensíveis da anatomia de um leão... e transformou-o num vendaval de fúria e destruição.

Endireitando a cauda, rugindo, a fera lançou-se à carga. Tarzan saltou para a árvore, içou-se prontamente para fora do alcance das garras, e começou a insultar o leão que andava agora em redor da árvore, rosnando e rugindo a sua fúria impotente. Agora também a chuva caía torrencialmente, o que aumentava o desconforto e a irritação de Tarzan. Estava furioso... mas apenas uma necessidade absoluta o levaria a lutar com um leão. Sabia que podia apenas contar com a agilidade e a sorte, para opor aos formidáveis músculos e aos terríveis meios de combate de Numa. Um pouco de conforto não valia o risco de uma luta assim. Deixou-se portanto ficar na árvore, enquanto a chuva caía e o leão esperava em baixo. Todavia observava as muralhas, procurando um possível caminho de fuga. Viu vários pontos onde as asperezas das rochas poderiam talvez permitir uma escalada, difícil embora. Mas Numa não abandonava a vigilância, e Tarzan começou a considerar o combate como única possibilidade.

Foi no instante em que ia tomar a sua decisão, que Numa se encaminhou bruscamente para o túnel, no seu andar majestoso, sem sequer olhar para Tarzan. No mesmo momento em que o leão desapareceu, o homem da selva saltou para o chão, do lado oposto do tronco... Porém, mal havia entrado

no túnel e já o leão reaparecia, rápido, à carga, correndo sobre Tarzan. Este, no entanto, tinha o avanço suficiente para iniciar a escalada. Se pudesse firmar-se na rocha molhada e escorregadia, estaria salvo... Caso contrário, se escorregasse e caísse seria o fim...

Com a agilidade de um gato, Tarzan içou-se rapidamente a uma altura de nove ou dez metros, antes de parar; aí, encontrando um apoio sólido, olhou para baixo. Numa saltava, doido de raiva, tentando apanhar a presa que estava fora do seu alcance. Então, com cautela, lentamente, Tarzan continuou a escalar a muralha. Por várias vezes julgou não poder chegar acima... mas persistiu e, por fim, alcançou o alto da penedia. Aí, apanhando uma pedra solta, atirou-a sobre o leão e afastou-se.

A descida era fácil, até à garganta, e Tarzan preparava-se para continuar o seu caminho, na direcção da área onde continuava a ouvir-se o canhoneio, quando uma ideia súbita o deteve. Voltando atrás, correu para a saída exterior do túnel. Escutou por momentos, e depois, apanhando grandes pedaços de rocha começou rapidamente a empilhá-los diante da abertura. Tinha quase tapado a passagem quando o leão apareceu, do outro lado... um leão furioso que debalde tentava desmanchar o obstáculo erguido por Tarzan. Numa rugia... mas os rugidos não assustavam o homem da selva. Muito pequeno ainda, adormecera nos braços de Kala escutando aqueles rugidos, ou outros... e o som apavorante não o impressionava mais do que a qualquer de nós, pode impressionar o «claxon» de um automóvel. Quando muito desviamo-nos, se o carro vem sobre nós... Mas, naquele caso, o leão nem sequer vinha sobre Tarzan... porque a barreira de rochas o impedia. Assim, o homem da selva acabou tranquilamente o seu trabalho e só então se afastou, murmurando:

— Um devorador de homens que não voltará a devorar...

Tarzan passou essa noite ao abrigo de uma saliência de rocha que o protegeu da chuva. Na manhã seguinte continuou o seu caminho, parando apenas o tempo necessário para caçar e comer. Os outros animais da selva comem e descansam, mas Tarzan nunca deixava que o seu estômago interferisse nos seus planos. Essa era uma das grandes diferenças entre o homem da selva e as outras feras.

Adiante, o canhoneio e a fuzilaria esmoreciam ou intensificavam-se, a intervalos. Tarzan notou que a luta se encarniçava de madrugada e logo após o anoitecer, mas durante a noite quase cessava. A meio da tarde do segundo dia, o homem da selva encontrou tropas que se encaminhavam para a linha de fogo. Deviam ser colunas de abastecimentos — decerto abastecimentos tomados à força na região — pois levavam cabras e vacas, e com o gado iam carregadores indígenas que transportavam sacos com cereais. Tarzan viu que os indígenas iam amarrados com correntes, dois a dois, e também que as tropas eram compostas por negros com uniformes alemães.

Os oficiais eram brancos. Ninguém avistou Tarzan, embora o homem da selva os acompanhasse durante horas. Observou as insígnias dos uniformes, e não eram iguais às que ele vira nos «askaris» mortos. Passou adiante, sem matar alemães, porque esse não era o principal motivo da sua tarefa. Primeiro queria descobrir o homem que assassinara Jane. Depois de ter cumprido a sua vingança, dedicar-se-ia então a matar todos os alemães que encontrasse. E esperava encontrar muitos, porque os caçaria da mesma maneira como os caçadores profissionais caçam os devoradores de homens.

Ao aproximar-se das linhas de combate, as tropas tornaram-se mais numerosas. Encontrou camiões e carros puxados a bois, todo o equipamento de um pequeno exército, e viu com frequência feridos que caminhavam ou eram transportados para a retaguarda. Tarzan atravessara a via férrea, a alguma distância dali, e pensou que os feridos deviam ser levados para lá a fim de seguirem para um hospital que talvez estivesse instalado longe.

Anoitecia quando Tarzan chegou a um acampamento escondido no sopé dos montes Pare. Ao aproximar-se, pela retaguarda, viu que as sentinelas eram poucas e não estavam atentas. Foi-lhe fácil, na escuridão, aproximar-se das tendas e escutar. Procurava algum indício que lhe indicasse o assassino de Jane.

Quando parou, junto de uma tenda em frente da qual estavam sentados alguns soldados indígenas, ouviu algumas palavras, em dialecto local, que logo fixaram a sua atenção:

— ...os Waziris lutaram como diabos, mas nós somos melhores combatentes e matámo-los todos. Quando acabámos, o capitão entrou e matou a mulher. Ele ficou cá fora, bradando ordens até que todos os guerreiros morreram. O alferes Goss é ainda mais valente... Entrou e ficou atrás da porta, a gritar, dizendo-nos para pregarmos na parede o Waziri ferido... Então pôs-se a rir porque o homem sofria. Todos nós rimos. Foi muito engraçado...

Como um animal de presa, sombrio e terrível, Tarzan estava agachado nas sombras, ao lado da tenda. Que pensamentos teriam cruzado a sua mente selvagem? Ninguém pode dizê-lo. Na face harmoniosa não havia qualquer expressão visível; os frios olhos cinzentos estavam atentos, mais nada. Por fim, o soldado que tinha estado a falar levantou-se e, com uma saudação para os outros, afastou-se do grupo. Passou a curta distância do homem da selva e encaminhou-se para a retaguarda do acampamento. Tarzan seguiu-o, e na sombra mais densa de um grupo de arbustos, atacou. Não houve qualquer ruído quando Tarzan caiu sobre os ombros do soldado e o derrubou, os dedos de aço a apertarem-lhe a garganta. Arrastando a sua vítima pelo pescoço, levou-a para o abrigo das moitas.

— Nenhum rumor..-. — avisou ele, falando no dialecto do homem, quando afrouxou um pouco a pressão dos seus dedos.

O soldado revolvia os olhos assustados, tentando respirar e, ao mesmo tempo, descobriu em que mãos se encontrava. Na escuridão, viu apenas um corpo nu e moreno que se debruçava sobre ele. Não se atreveu a fazer qualquer tentativa de fuga.

— Como se chama o oficial que matou a mulher, no «bungalow» onde lutaste com os Waziris?... — perguntou Tarzan.

— É... o capitão Schneider... — disse o negro, quando pôde falar.

— Onde está ele?... — perguntou o homem da selva.

— Está aqui... No comando, talvez... Muitos dos oficiais vão lá à noite, para receber ordens.

— Leva-me lá... — ordenou Tarzan — ...e se alguém me vir, mato-te! De pé!

O negro levantou-se e guiou-o através de um caminho que dava a volta ao acampamento. Por várias vezes foram obrigados a esconder-se de soldados que passavam. Por fim, chegaram a um amontoado de fardos de feno, e o negro apontou uma casa de dois andares, a distância.

— O comando... — disse ele. — Não podemos adiantar-nos sem nos verem. Há muitos soldados por aqui.

Tarzan compreendeu que não podia avançar mais em companhia do negro. Voltou-se e encarou-o, como a pensar o que faria dele.

— Tu ajudaste a crucificar Wasimbu, o Waziri... — disse, em voz baixa mas terrível de ameaça.

— Ele... ele mandou-nos... — balbuciou o homem, sentindo vergarem-se-lhe os joelhos.

— Quem mandou?... — perguntou Tarzan.

— O alferes von Goss... — disse o soldado. — Também está ali...

— Encontrá-lo-ei... — volveu Tarzan. — Tu ajudaste a crucificar Wasimbu, o Waziri, e rias-te enquanto ele sofria.

O homem cambaleou... compreendendo que a acusação envolvia uma sentença de morte. Sem mais palavras, Tarzan agarrou-o pelo pescoço. Não se ouviu um só grito. Os poderosos braços do homem da selva ergueram o soldado e fizeram-no girar duas vezes. Quando deixou cair o corpo morto do homem que ajudara a crucificar Wasimbu, o Waziri, Tarzan voltou-se na direcção do edifício do comando.

Havia uma única sentinela na retaguarda da casa. Tarzan adiantou-se, rastejando, aproveitando todos os acidentes do terreno para esconder o seu avanço, como um animal da selva. Quando a sentinela lhe voltou as costas, Tarzan ergueu-se de um salto e, no mesmo movimento, atacou. O cadáver foi arrastado para junto da parede, sem rumor.

O andar inferior estava iluminado, o outro não. Pela janela, Tarzan viu uma sala ampla e, ao fundo, outra, menor. Na primeira encontravam-se vários oficiais, alguns dos quais conversavam enquanto outros escreviam. As janelas estavam abertas, e Tarzan podia ouvir o que eles diziam; mas nada que o interessasse. Falavam sobretudo dos êxitos dos exércitos alemães, em África, e faziam conjecturas sobre a data em que Paris seria conquistada.

Alguns pensavam que o «kaiser» já devia estar na cidade. Outros praguejavam contra os Belgas.

Na sala pequena encontrava-se um homem de face corada, sentado atrás de uma secretária. Outros oficiais estavam sentados ao fundo, enquanto dois se perfilavam diante do general que os interrogava. Enquanto falava, o general mexia maquinalmente num candeeiro de petróleo que estava sobre a secretária. Alguém bateu à porta da frente, e um ajudante de campo entrou. Fez a continência e disse:

— «Fraulein» Kircher chegou, «Herr» general.

— Diga-lhe que entre... — ordenou o general, despedindo com um gesto os dois oficiais.

A mulher entrou, cruzando-se com os que saíam. Os oficiais que estavam na sala menor levantaram-se e fizeram a continência. Ela sorriu e respondeu com uma breve inclinação de cabeça. Era uma jovem bonita. Mesmo o trajo de montar amachucado, e a poeira que lhe sujava a cara, não podiam esconder isso. Era bonita e muito nova. Não devia ter mais de dezanove anos. Aproximou-se da secretária e entregou, ao general, um papel que tirou do bolso interior do casaco.

— Sente-se «Fraulein»... — disse o general. Um oficial trouxe uma cadeira, e ninguém falou enquanto o general lia o papel que recebera. Tarzan observou as várias pessoas que se encontravam na sala. Havia dois capitães, e o homem da selva pensou se algum deles seria Schneider. A rapariga devia pertencer ao serviço de informações — uma espia. A beleza dela não impressionou Tarzan.

Não hesitaria em lhe torcer o pescoço branco e jovem. Era alemã, e isso bastava. Mas a sua tarefa mais importante era encontrar o capitão Schneider.

Por fim, o general levantou os olhos, terminada a leitura.

— Muito bem... — disse, fitando a rapariga. Depois voltou-se para um dos ajudantes de campo e acrescentou: — Mande chamar o major Schneider.

«Major» Schneider! Tarzan sentiu que os cabelos se lhe eriçavam, na nuca. O assassino de Jane tinha já sido promovido... sem dúvida o fora em consequência do seu crime.

O ajudante de campo saiu, e os outros começaram a falar. Tarzan compreendeu que as forças alemãs na África Oriental excediam em número as inglesas, e que estas haviam sofrido pesadas baixas. O homem da selva estava escondido por um grupo de arbustos, que lhe permitiam ver sem ser visto, e ao mesmo tempo o ocultavam aos olhos de quem passasse do lado de fora. Esperava, a qualquer momento, que a desaparição da sentinela fosse notada, e iniciassem buscas.

Olhava, impaciente por ver chegar o homem a quem procurava. Não tardou que o ajudante de campo voltasse, acompanhado por um oficial de bigodes retorcidos. O recém-chegado aproximou-se da secretária e perfilou-se, fazendo continência. O general correspondeu ao cumprimento e voltou-se para a rapariga.

— «Fraulein» Kircher... — disse ele — ...permita-me que lhe apresente o major Schneider...

Tarzan não esperou mais. Firmando uma das mãos no parapeito da janela, saltou para o interior da casa, entre os oficiais do «kaiser». Em dois saltos aproximou-se da mesa e, num gesto, atirou o candeeiro para cima do ventre do general. Este, para fugir ao petróleo que se espalhava, a arder, recuou e caiu juntamente com a cadeira. Dois dos ajudantes de campo precipitaram-se sobre o homem da selva, que agarrou um deles e o projectou sobre o outro. A rapariga correra para a parede e olhava, espantada. Outros oficiais chamavam as sentinelas. Mas Tarzan tinha apenas um alvo a atingir, no momento, e esse alvo era Schneider. Agarrou o major, ergueu-o sobre um dos poderosos ombros e saiu pela janela, tão rapidamente que ninguém pôde esboçar sequer um movimento para tentar detê-lo.

Um relance mostrou a Tarzan que o lugar da sentinela estava ainda desocupado, e um momento depois desaparecera com a sua presa na sombra do monte de feno. Schneider não soltara um só grito, pela excelente razão de que Tarzan lhe apertava a garganta. O homem da selva afrouxou a pressão, para que o miserável pudesse respirar.

— Se dás um só grito, quebro-te o pescoço...

Cautelosamente, com infinita paciência, parando muitas vezes, Tarzan passou, com o prisioneiro, para além dos últimos postos de guarda. Forçando o alemão a caminhar na sua frente, caminhou para oeste até que, mais tarde na noite, voltou a atravessar a via férrea. Aí estava razoavelmente a salvo de ser descoberto. O alemão praguejava, ameaçava, rosnava e fazia perguntas... mas a única resposta que recebia era-lhe dada pela ponta da lança de Tarzan. O homem da selva conduzia-o como poderia conduzir um porco, com a única diferença de que teria muito maior consideração pelo porco.

Até então, Tarzan pouco se ocupara com os pormenores da vingança... mas agora pensava no castigo que ia aplicar. Apenas tinha a certeza de uma coisa, e era de que o castigo seria a morte. Como todos os homens corajosos, e os corajosos animais da selva, Tarzan não tinha qualquer inclinação para a tortura; mas aquele caso era único em toda a sua experiência. Um sentido nato de justiça exigia olho por olho, e o seu juramento exigia também isso. Sim, aquele homem devia sofrer tal como fizera sofrer Jane. Tarzan não podia esperar que o sofrimento dele igualasse o seu próprio, porque a dor física não pode comparar-se ao requinte feroz da tortura mental.

Durante toda a noite, o homem da selva impeliu o exausto e apavorado alemão. O silêncio do seu captor aterrorizava o huno. Se, ao menos, ele falasse... Mas todas as tentativas nesse sentido traziam apenas uma picada com a lança. Schneider sangrava e gemia. Estava tão esgotado que caía a cada instante, mas a lança inexorável obrigava-o a levantar-se.

Foi só pela manhã que Tarzan tomou uma decisão... numa inspiração súbita. Procurou sem demora um lugar onde pudesse descansar... queria que o prisioneiro estivesse apto para o que ele lhe reservava. Atravessou um ribeiro que havia encontrado no dia anterior. Sabia que o vau era um lugar onde as feras iam beber... um bom lugar para caçar. Com um gesto, impôs silêncio ao alemão e aproximou-se da água. Não tardou a avistar alguns veados. Empurrou Schneider para o mato e agachou-se, perto dele. O alemão olhava-o agora em silêncio. A meia luz da madrugada permitia-lhe ver, pela primeira vez, o homem em cujas mãos caíra. E apavorou-se mais.

Quem poderia ser aquele selvagem branco, quase nu? Falara apenas uma vez... e dessa vez usara a língua alemã, no tom e com a facilidade de uma criatura culta. Schneider olhava-o, agora, como o pássaro fascinado olha a serpente que vai devorá-lo. Via o corpo esplêndido, harmonioso, grande e forte como os corpos das antigas estátuas gregas. Imóvel, com uma imobilidade também de estátua. Desviando os olhos para a direcção que o seu captor fitava, viu um gamo novo que ia a passar. Abafou um brado de aterrorizado espanto, ao ver que o homem se lançava sobre o gamo, rosnando como uma fera, e lhe cravava os dentes no pescoço. Momentos depois, Tarzan comia a carne crua — mas deixou que o alemão acendesse uma pequena fogueira para assar a sua parte.

Ficaram ali até quase ao fim da tarde, e então retomaram a jornada... que para Schneider era tanto mais terrível quanto ignorava tudo sobre a sua sorte. Mais uma vez tentou falar, suplicar, mas a lança voltou a picá-lo, sem piedade. Foi ao meio-dia, do terceiro dia de marcha, que alcançaram o seu destino. Depois de uma íngreme subida, e de avançarem uns metros sobre terreno plano, chegaram à beira de uma funda abertura, onde, em baixo, se erguia uma árvore solitária. Tarzan fez um gesto, ordenando ao alemão que descesse. Schnei-der recuou, apavorado... mas o homem da selva agarrou-o e forçou-o a aproximar-se novamente da beira da penedia.

— Desce!

O alemão olhou para baixo, horrorizado. Ia tentar descer, quando finalmente Tarzan lhe disse:

— Eu sou «Lord» Greystoke. Foi a minha mulher que tu assassinaste, na região dos Waziris. Agora deves compreender. Desce!

O alemão caiu de joelhos.

— Eu não matei a sua mulher!... — exclamou. — Tenha piedade! Não matei a sua mulher, não sei de nada...

— Desce!

A ponta da lança feriu novamente o alemão. Tarzan sabia que ele estava a mentir, e isso não o surpreendia. Um assassino é sempre um mentiroso. Schneider estendeu um pé, hesitante, buscando um ponto de apoio, e começou a perigosa descida. Tarzan acompanhou-o, ajudando-o nos pontos mais difíceis, até que chegaram a curta distância do fundo.

— Silêncio agora... — disse o homem da selva, apontando para o que parecia ser a entrada de um túnel, na outra extremidade da funda cova. — Ali há um leão esfomeado. Se puderes chegar à árvore antes que ele te descubra... poderás ficar vivo durante alguns dias... até que estejas fraco de mais para te agarrar aos troncos. Então o leão comerá pela última vez... Vai!

Empurrou Schneider para baixo, e no mesmo instante um rugido se fez ouvir no interior do túnel. O alemão correu para a árvore, gritando de medo... e alcançou-a um instante antes de o leão poder apanhá-lo.

Então Tarzan voltou a subir a penedia. No alto, olhou para a funda cavidade. Schneider gritava, empoleirado na árvore. Numa esperava.

O homem da selva ergueu a face para o sol e soltou o seu apavorante brado.

 

Nas linhas alemãs

Tarzan não estava ainda vingado. Havia muitos milhões de alemães vivos — bastantes para ocuparem o homem da selva até ao fim dos seus dias... — e todavia não em número suficiente para apagar a perda que Tarzan sofrera, e menos ainda para restituirem a vida àquela a quem ele amara.

Enquanto tinha estado no acampamento dos montes Pare, que ficava um pouco a leste da fronteira entre a Ãfrica Oriental Alemã e a colónia inglesa, Tarzan ouvira o bastante para compreender que os ingleses estavam a ser batidos na sua luta. A princípio não se preocupara com isso, porque, desde a morte de Jane que era o único laço a prendê-lo à civilização, renunciara por completo à humanidade e voltara a considerar-se um macaco, não um homem.

Depois de ter castigado Schneider como podia, Tarzan deu a volta ao Kilimanjaro e demorou-se a caçar nas enconstas do norte da grande montanha — pois não tardara a verificar que, nas proximidades dos exércitos, a caça desaparecera. Pensava por vezes na agonia do alemão que deixara entre os ramos da árvore isolada, enquanto o leão esperava, em baixo. Imaginava a tortura mental do assassino, ao sentir-se enfraquecido pela fome e pela sede, sabendo que mais cedo ou mais tarde cairia. Conjecturava sobre se Schneider teria a coragem de descer para beber água, se alguma vez Numa se afastasse para o interior do túnel.

Mas essa ideia foi-se esbatendo pouco a pouco, substituída por outra ideia... a de que os ingleses lutavam contra inimigos muito superiores em número... e esses inimigos eram justamente os alemães de quem ele jurara vingar-se.

Essa ideia fazia-o rosnar, colérico, e preocupava-o cada vez mais... um tanto porque não conseguia esquecer-se de que era inglês, embora quisesse ser apenas um macaco. Por fim, não conseguiu suportar por mais tempo a sua situação... Ele caçava em segurança, a um dia de marcha do ponto onde os alemães matavam os ingleses...

Quando, tomada a sua decisão, partiu na direcção do acampamento dos alemães, não tinha um plano estabelecido, mas apenas o pensamento de que, uma vez perto do campo de batalha, arranjaria maneira de atacar os hunos do comando. Isso ser-lhe-ia fácil. O caminho levou-o a passar perto da garganta onde deixara Schneider entregue ao leão. Subiu a encosta e foi espreitar para a funda cavidade. Ninguém estava na árvore, nem havia sinais de Numa. Atirou uma pedra para baixo, e quase no mesmo instante o leão apareceu. Mas era uma fera bem diferente da que ele encurralara duas semanas antes. Com os flancos colados aos ossos, o leão cambaleava, meio morto de fome.

— Onde está o alemão?... — bradou Tarzan. — Tinha ainda carne ou era só um saco de ossos, quando o apanhaste? Pareces esfomeado, Numa! Vejo que roeste a erva e a casca da árvore. Talvez queiras outro alemão...

Afastou-se, e minutos depois avistou Bara, o gamo, adormecido junto de um tronco. Tarzan tinha fome e não deixou escapar a presa fácil. Quando comia, agachado junto do gamo que abatera, ouviu o leve ruído de patas almofadadas, atrás dele. Voltou-se e viu Dango, a hiena, que se aproximava. Com um rosnido, o homem da selva apanhou um ramo quebrado e atirou-o.

— Vai-te daqui!... — bradou.

Mas a hiena tinha fome, era grande e forte.

Deu uma volta cautelosa, esperando a oportunidade de atacar. Tarzan conhecia Dango, melhor do que Dango se conhecia a si mesma. Sabia que a fera, tornada perigosa pela fome, estava de algum modo habituada à presença humana e tinha perdido o medo, quando menos em parte. Poisou a lança a seu lado, pronta para servir, e continuou a comer sem deixar de vigiar a hiena.

Não sentia qualquer espécie de receio, porque estava de há muito familiarizado com os perigos da selva onde vivera durante longos anos, e aceitava-os como acontecimentos normais do dia a dia. Criado como as feras, estava pronto a defender a sua presa. Em condições favoráveis enfrentaria o próprio Numa, e se fosse forçado a fugir... fugiria sem o menor sentimento de vergonha. Não havia criatura mais corajosa do que Tarzan, em toda a selva, mas ao mesmo tempo não havia criatura mais sensata — essas eram as condições essenciais da sua sobrevivência.

Dango já teria atacado se não ouvisse o rosnar selvagem do homem da selva — um som que, vindo de uma criatura humana, despertava medo no coração da hiena. Dango havia atacado mulheres e crianças nas aldeias indígenas, e assustara mesmo os guerreiros que se reuniam, à noite, em volta das fogueiras. Mas nunca encontrara um homem que pudesse rosnar de maneira semelhante à de Numa, o leão. Quando acabou de comer, Tarzan levantou-se e parecia disposto a atirar um osso a Dango, deixando-lhe os restos da carcaça... quando uma ideia súbita o deteve. Acabou por pôr ao ombro o que restava do gamo, e seguir na direcção da grande cova onde fechara o leão. Dango seguiu-o, durante alguns metros, até que, convencida de que ia perder definitivamente a refeição, abandonou todas as cautelas e atacou. Tarzan pressentiu o perigo e, no mesmo instante, deixou cair a carcaça de Bara e empunhou a lança. O seu braço poderoso recuou e no instante seguinte projectou-se para a frente, sob o impulso dos grandes músculos. A lança, atirada no momento exacto, atravessou o corpo da hiena, entrando junto do pescoço e saindo pelo ventre.

Então, com a mesma tranquila segurança, Tarzan libertou a lança ainda cravada e pôs aos ombros as duas carcaças, retomando o seu caminho. Aproximou-se novamente do grande e profundo buraco na rocha. Numa, estendido em baixo, junto da árvore, levantou-se e rugiu, mau grado a sua fraqueza. Tarzan deixou cair os dois animais mortos, bradando:

— Come, Numa! Talvez eu volte a precisar de ti... Afastou-se, enquanto o leão esfomeado devorava os restos do gamo e a carcaça da hiena...

No dia seguinte, Tarzan avistou as linhas alemãs. Do alto de uma colina arborizada, observou o flanco esquerdo do inimigo e viu, mais além, as linhas inglesas. A sua posição dava-lhe uma visão quase aérea da linha de batalha... e os seus olhos penetrantes captavam muitos pormenores que teriam passado despercebidos a outros observadores. Viu ninhos de metralhadoras, cuidadosamente ocultos aos olhos dos ingleses, e notou postos de escuta colocados a meio da terra-de-ninguém.

Enquanto observava, interessado, este ponto e aquele, ouviu o detonar de um rifle, isolado, um pouco abaixo do lugar onde ele próprio se encontrava. No mesmo instante a sua atenção se concentrou no atirador escondido. Paciente, esperou que o homem voltasse a disparar, para saber com exactidão onde ele estava. Então começou a descer a encosta, silencioso e furtivo como uma pantera. Parecia não ver onde pisava, e todavia não fazia qualquer rumor. Era como se os seus pés tivessem olhos.

Passou através de uma moita de arbustos e chegou à beira de uma penedia baixa. Daí avistou, uns cinco metros abaixo dele, uma plataforma onde estava o atirador, escondido por detrás de umas ramadas e abrigado por penedos que o tornavam invisível do lado dos ingleses. O homem devia ser um excelente atirador, pois estava bastante atrás das linhas alemãs e disparava por cima das cabeças dos seus camaradas. O seu rifle de grande calibre tinha uma mira telescópica, e o homem dispunha também de um binóculo, do qual estava exactamente a servir-se quando Tarzan o avistou; talvez estivesse a verificar os efeitos do seu último tiro, ou a escolher um alvo para o tiro seguinte. Tarzan observou as linhas inglesas, e os seus olhos descortinaram sem custo vários alvos fáceis para um atirador colocado àquela altura.

O alemão, evidentemente satisfeito com o que observara, poisou o binóculo e voltou a empunhar o rifle. Levou o arma à cara, apontou cuidadosamente... e no mesmo instante um corpo moreno caiu sobre ele. O alemão nunca chegou a saber quem o atacara, nem de que maneira morria... Num momento ficou imóvel, morto, o pescoço quebrado.

Estendido por detrás do parapeito de pedras e ramos, Tarzan olhou a cena, em baixo. Perto dele estavam as trincheiras dos alemães. Podia ver oficiais e soldados a moverem-se de um lado para o outro, e quase em frente dele uma metralhadora disparava obliquamente sobre a terra-de-ninguém, atingindo os ingleses num tal ângulo que lhes seria muito difícil localizá-la.

Tarzan olhou, mexendo distraidamente no rifle do alemão. A certa altura pôs-se a examinar o mecanismo da arma. Olhou de novo para as trincheiras alemãs, ajustou a mira, levou o rifle ao ombro e apontou. Tarzan era um magnífico atirador. Com os seus amigos civilizados, caçara caça grossa com armas civilizadas, e embora nunca matasse senão para comer ou em defesa própria, divertira-se com frequência a disparar sobre alvos sem vida, atirados ao ar. Assim, e sem dar por tal, aperfeiçoara-se extraordinariamente no manejo das armas de fogo. Apontou, premiu lentamente o gatilho... e um metralhador alemão abateu-se junto da sua arma. Em três minutos, Tarzan abateu os três homens que guarneciam a metralhadora. Então viu um oficial alemão que saía de um abrigo, e os três homens que o seguiam. Era preciso não deixar ninguém nas imediações, que pudesse ficar intrigado ao ver que os homens eram abatidos num ponto onde não podiam ser vistos pelo inimigo. Disparou quatro vezes, em sucessão rápida.

Voltou a ajustar a mira, para uma distância maior, e alvejou outro ninho de metralhadoras, ao longe, à sua direita. Com fria deliberação, varreu os três soldados que manobravam a arma. Duas metralhadoras, estrategicamente colocadas, ficaram assim reduzidas ao silêncio. Tarzan avistou homens que corriam ao longo das trincheiras, e derrubou vários deles. Nesta altura já os alemães tinham compreendido que qualquer coisa estava a falhar... que um atirador inglês decerto descobrira um ponto de onde podia alvejar aquele sector. Ao princípio procuraram o inimigo na terra-de-ninguém. Mas um oficial, que observava o terreno através de um periscópio, foi atingido na nuca por uma bala que lhe atravessou a cabeça e se cravou no parapeito da trincheira. Então compreenderam que era de trás e não da frente, que vinha a ameaça.

Um dos soldados apanhou a bala que matara o oficial, e a excitação subiu de ponto, naquele recanto das trincheiras... pois não havia dúvidas de que se tratava de uma bala de fabrico germânico. Abrigando-se com a parte de trás da trincheira, mensageiros levaram a alarmante notícia em todas as direcções, e não tardou que vários periscópios surgissem, observando o terreno à retaguarda. Não tardou também que as atenções se fixassem no sítio onde estivera o atirador alemão, e então Tarzan viu que uma metralhadora era colocada em posição, dirigida para o seu lado. Abateu os primeiros soldados que se aprontavam para a utilizar, mas outros — talvez relutantes, mas forçados pelos oficiais — tomaram o lugar desses, ao mesmo tempo que outras duas metralhadoras giravam e se preparavam para entrar em acção.

Compreendendo que o jogo acabara, Tarzan disparou um último tiro, abatendo mais um alemão, e desapareceu na colina. Durante muito tempo, ouviu o fogo intenso das metralhadoras que varriam o lugar onde ele estivera, e encolheu os ombros ao pensar no desperdício de munições.

— Pagaram caro a morte de Wasimbu e a dos outros... — murmurou Tarzan. — Mas a morte de Jane nunca a poderão pagar... ainda que morressem todos...

Nessa noite, deu a volta aos flancos dos dois exércitos, transpôs os postos avançados ingleses e entrou nas linhas inglesas. Ninguém o viu passar... ninguém soube que ele estava ali. O comando do Segundo Regimento da Rodésia ocupava uma posição abrigada, bastante à retaguarda das linhas para estar relativamente livre de ser localizado pelos observadores inimigos. As luzes estavam acesas, e o coronel Capell, sentado diante de uma mesa de campanha sobre a qual estava estendido um mapa, falava com os seus oficiais. Uma árvore enorme estendia os seus ramos sobre a tenda, a mesa estava iluminada por uma lanterna, e no chão, perto, ardia uma fogueira. O inimigo não dispunha de aviões e nenhum outro meio de observação poderia avistar as luzes, desde as linhas alemãs.

Os oficiais discutiam a superioridade numérica do inimigo, e a incapacidade dos ingleses para fazerem outra coisa além de se manterem nas posições que ocupavam. Não podiam avançar. Alguns ataques tinham apenas tido como consequências pesadas baixas, e sempre haviam sido repelidos por um adversário muito superior em número. Havia também os ninhos de metralhadoras, que preocupavam consideràvelmente o coronel. Essa preocupação era evidente nas referências repetidas que ele lhes fazia. — Alguma coisa os fez calar por algum tempo, esta tarde... — disse um dos jovens oficiais. — Eu estava em observação, nessa altura, mas não consegui compreender o que acontecia. Vi apenas que uma secção das trincheiras, à esquerda, estava metida em dificuldades... e cheguei a ter a impressão de que os alemães tinham sido atacados pela retaguarda... como disse no meu relatório. Vi-os abrir fogo sobre o flanco da colina, atrás deles... mas não sei o que possa ter acontecido.

Ouviram um ligeiro rumor entre as ramadas da árvore, junto deles, e no mesmo instante um corpo moreno e musculoso saltou para o meio dos oficiais. Várias mãos se moveram na direcção das coronhas das pistolas, mas não houve qualquer agitação. Primeiro olharam, com surpresa, para o homem branco, quase nu, que tão inesperadamente surgira... e que a luz da fogueira iluminava pondo em relevo os poderosos músculos e o aspecto primitivo do trajo e das armas.

— Quem diabo é você?... — exclamou o coronel.

— Tarzan dos Macacos.

— Oh! Greystoke!... — disse um major, avançando de mão estendida.

— Preswick... — volveu Tarzan, apertando a mão

do major.

— Não o reconheci, no primeiro instante... — desculpou-se o oficial. — Na última vez que o vi foi em Londres e você vestia uma casaca. Faz a sua diferença, tem de concordar.

Tarzan esboçou um sorriso e voltou-se para o coronel, dizendo:

— Ouvi a vossa conversa. Venho exactamente de trás das linhas alemãs, e penso que posso ajudá-los.

O coronel olhou interrogativamente para o major Preswick, que aproveitou a ocasião para apresentar Tarzan ao seu superior e aos outros oficiais. Resumidamente, Tarzan contou dos motivos que o haviam conduzido, sozinho, a atacar os alemães.

— E agora vem juntar-se a nós?... — perguntou o coronel.

— Não regularmente... — volveu Tarzan, abanando a cabeça. — Quero lutar à minha maneira, mas posso ajudá-los. Sempre que quiser, poderei entrar nas linhas alemãs.

Capell sorriu, meneando também a cabeça.

— Não é tão fácil quanto pensa... — disse ele. — Perdi dois oficiais, há uma semana, a tentar isso...

E eram homens experientes, como não há melhores no Serviço de Informações.

— É mais difícil do que entrar nas linhas inglesas?. .. — perguntou Tarzan.

O coronel ia responder quando uma ideia súbita surgiu na sua mente. Olhou, com surpresa, para o homem da selva.

— Quem o trouxe aqui? Quem o fez passar os postos avançados?

— Atravessei simplesmente as linhas alemãs, e as vossas, e atravessei também o vosso acampamento. .. — respondeu Tarzan. — Mande perguntar se alguém me viu.

— Mas quem o acompanhou?... — insistiu Capell

— Vim sozinho... — retorquiu Tarzan, erguendo a sua alta estatura. — Vocês, homens civilizados, quando entram na selva são como mortos entre vivos. Manu, o macaco, é um sábio, em comparação. Surpreende-me que sobrevivam — e só o conseguem pela força do número, das armas e do raciocínio. Se eu dispusesse de umas centenas de grandes macacos com a capacidade de raciocinar, expulsaria os alemães para o mar, tão depressa quanto eles pudessem alcançar a costa. Por sorte para vocês, os animais não podem aliar-se. Se pudessem, não ficaria um homem em África. Mas deixemos isso. Posso ajudá-los? Interessa-lhes saber onde estão alguns ninhos de metralhadoras?

O coronel respondeu avidamente que sim... e um instante depois Tarzan indicava, no mapa, três desses ninhos de metralhadoras que até então mais duramente haviam fustigado os ingleses.

— Há aqui um ponto fraco... — disse o homem da selva, poisando um dedo sobre o mapa. — Ê defendido por negros. Mas as metralhadoras, em frente, são manejadas por brancos. Se... Esperem, tenho um plano. Podem ocupar esta trincheira com os vossos homens, e então varrer as trincheiras da direita, com as armas dos alemães.

— Assim parece fácil... — disse o coronel, sorrindo e abanando a cabeça.

— É fácil... para mim... — retorquiu Tarzan. — Posso despejar esta secção das trincheiras sem disparar um tiro. Eu fui criado na selva e conheço o povo da selva, os Gomangani e os outros. Ver-nos-emos de novo na segunda noite... — acrescentou, voltando-se para partir.

— Espere... — exclamou o coronel. — Mandarei um oficial para o acompanhar através das linhas!

Tarzan encolheu os ombros e afastou-se. Ao deixar o pequeno grupo reunido no comando, cruzou-se com um vulto baixo, embrulhado num pesado capote de oficial. A gola do capote estava levantada, e a pala do boné puxada para os olhos, mas a luz da fogueira iluminou por um instante as feições do recém-ehegado... e Tarzan viu uma cara vagamente conhecida. Pensou que devia tratar-se de algum oficial que conhecera em Londres... e seguiu o seu caminho sem ser visto por qualquer das sentinelas do acampamento ou dos postos avançados.

Durante quase toda a noite caminhou pelo sopé do Kilimanjaro, seguindo por instinto um caminho desconhecido. Calculava que o que procurava só podia ser encontrado nas encostas arborizadas, num ponto mais alto do que aqueles por onde havia passado anteriormente naquela região que não conhecia bem. Três horas antes da madrugada, as suas narinas sensíveis indicaram-lhe que acharia nas vizinhanças o que queria achar. Então trepou para uma árvore alta e preparou-se para umas horas de sono.

 

Quando o leão dorme

Kudu, o sol, ia bastante alto no céu quando Tar-zan acordou. O homem da selva estendeu os gigantescos membros, passou os dedos pela cabeleira espessa e saltou para o chão. No instante seguinte captou a pista que viera a seguir pelo faro e que o conduziu para um fundo barranco. Avançava cautelosamente, agora, porque o olfacto lhe dizia que a presa estava perto. Não tardou a avistar, em baixo, Horta, o javali, entre muitos dos seus iguais. Empunhando o arco e escolhendo uma flecha, Tarzan apontou para o maior dos javalis e disparou. Tinha entre os dentes outras flechas, e mal a primeira partira já atirava a segunda. No mesmo instante os javalis agitaram-se em turbilhão, sem saber de

50

TARZAN O INDOMÁVEL

que lado vinha o ataque. Ao princípio haviam estacado, estupidamente, e quando começaram a correr em volta já uns seis de entre eles estavam mortos ou mortalmente feridos. Só então, grunhindo, todo o bando se precipitou em fuga, procurando o abrigo do mato.

Tarzan desceu da árvore, acabou os javalis que estavam ainda vivos e dedicou-se à tarefa de esfolar as carcaças. Enquanto trabalhava, rapidamente e com grande destreza, não assobiava nem fazia qualquer outro ruído, como fazem, na maioria, os homens ditos civilizados. Era assim, de mil pequenas maneiras, que se marcava a diferença entre Tarzan e os outros homens, diferença provavelmente consequente de ter sido criado na selva. Os animais da selva brincam até atingirem a maturidade, mas nunca depois. Os grandes macacos, especialmente os machos, tornam-se ferozes e azedos quando adultos. A vida é um assunto sério, durante as estações más — é preciso combater para assegurar o seu quinhão de comida, e o hábito que se forma assim não se perde mais. A caça, para comer, é a tarefa vital dos animais da selva, e uma tarefa vital não pode ser encarada levianamente, nem executada sem cuidado. Todo o trabalho era sério, para Tarzan, embora ele conservasse o que as outras feras perdem com a idade... um sentido de humor, por vezes sombrio. Por outro lado, qualquer distracção impede a concentração. Tarzan possuía a capacidade de concentrar cada um dos seus cinco sentidos na sua tarefa especial. Enquanto esfolava os seis javalis, os seus olhos e os seus dedos pareciam ignorar qualquer outra solicitação... mas os ouvidos e o nariz ocupavam-se de outra maneira. Foi o nariz que primeiro denunciou a aproximação de Sabor, a leoa, quando o vento mudou por instantes de direcção. Tão claramente como se a visse com os seus próprios olhos, Tarzan compreendeu que a leoa havia captado o cheiro dos javalis esfolados, e imediatamente se dirigira, contra o vento, na direcção deles. O homem da selva sabia, pela intensidade do cheiro e a velocidade do vento, a que distância se encontrava Sabor, aproximadamente... e que a leoa avançava pelo lado de trás dele. Estava a acabar de esfolar o último javali, e não se apressou. As outras cinco peles estavam perto... e uma árvore estendia, quase sobre ele, as suas ramadas mais baixas.

Nem sequer voltou a cabeça, porque sabia que a leoa não estava ainda à vista, mas ficou com os ouvidos mais atentos ao primeiro sinal da sua próxima aparição. Quando acabou de esfolar o último javali, levantou-se. Agora Sabor estava no mato, atrás dele, mas ainda não demasiado próxima. Sem pressas, reuniu as seis peles, apanhou uma das carcaças, e quando a leoa surgiu entre dois troncos saltou para as ramadas da árvore, acima dele. Aí, estendeu as peles sobre um ramo, sentou-se confortàvelmente noutro, as costas apoiadas ao tronco da árvore, cortou um pedaço da carcaça e começou a comer. Sabor aproximou-se mais, rosnando, olhou desconfiada para o homem da selva e começou também a devorar um dos javalis esfolados.

Tarzan olhou-a, recordando a discussão que tivera, anos antes, com um caçador famoso, que lhe declarara que o rei dos animais só devorava as presas que ele próprio abatia. Tarzan sabia mais do que ele, pois muitas vezes vira Numa e Sabor a banquetearem-se com carne que já cheirava mal. Tendo comido, o homem da selva pôs-se a trabalhar nas peles, todas elas grandes e rijas. Primeiro cortou tiras de cerca de meia polegada de largura. Quando teve um número suficiente dessas tiras, coseu duas das peles, uma à outra, depois de ter feito orifícios nas bordas, de três em três polegadas. Passando uma das tiras por esses orifícios, obteve um amplo saco que podia fechar com o simples gesto de puxar as extremidades dessa tira. Da mesma forma, fez outros sacos semelhantes, mais pequenos, cada qual com uma pele, e ficou ainda com várias tiras disponíveis.

Feito isto, atirou um fruto pesado e maduro à cabeça de Sabor, escondeu na árvore o resto da carcaça do javali e partiu, saltando de ramo em ramo, na direcção de sudoeste, a meia altura das árvores, levando consigo os cinco sacos. Seguiu a direito, para a funda cavidade onde aprisionara Numa, o leão. Furtivo e cauteloso, aproximou-se da beira e olhou para baixo. Numa não estava à vista. Tarzan farejou e escutou. Nada conseguiu ouvir, mas tinha a certeza de que o leão devia estar no túnel. Esperava que estivesse a dormir — pois muito dependia do facto de Numa não dar pela sua presença.

Com a mesma cautela, transpôs a beira da penedia e começou a descer sem ruído. Parava muitas vezes, os olhos e os ouvidos atentos a qualquer rumor que pudesse vir da passagem que se abria na extremidade oposta da cavidade, a uns trinta metros. Ao aproximar-se do fundo, o perigo crescia grandemente. Se pudesse alcançar um ponto a meia distância entre a escarpa e a árvore, estaria relativamente seguro ainda que Numa surgisse, poderia batê-lo em velocidade até à árvore ou até à penedia. Mas escalar os primeiros nove ou dez metros da penedia antes que o leão saltasse, exigiria um avanço de uns seis ou sete metros, pois não havia muito onde se agarrar na parte da muralha mais próxima do fundo — da outra vez tinha sido forçado a correr e trepar como um esquilo, para escapar às garras do leão.

Por fim, alcançou o fundo da cavidade. Silencioso como uma sombra ou um fantasma, encaminhou-se para a árvore. Chegou a meio caminho sem que Numa desse sinais de vida. Alcançou o tronco cuja casca o esfomeado leão havia devorado em parte, e içou-se para os ramos pensando que, afinal, talvez Numa já não se encontrasse ali. Seria possível que o leão tivesse derrubado a barreira de pedras com que lhe cortara a fuga? Ou teria morrido? O homem da selva punha em dúvida a segunda hipótese, pois dera a comer, ao leão, apenas alguns dias antes, parte da carcaça de Bara e toda a de Dango. Numa não podia ter morrido de fome em tão breve espaço de tempo, tanto menos quanto não lhe faltara água.

Tarzan começou a descer da árvore, para investigar o túnel, mas pensou de repente que era melhor fazer sair o leão, se ele lá estivesse. Soltou uma espécie de grunhido rouco... e quase no mesmo instante ouviu movimento na escura passagem. Um segundo depois Numa surgiu, de olhos furiosos e espantados, pronto a enfrentar o próprio diabo se fosse possível comê-lo. Quando viu Tarzan, forte e direito, o leão tornou-se a incarnação da própria raiva. Os olhos e o olfacto diziam-lhe que tinha sido aquela criatura que o fechara ali... e que a carne dessa criatura era boa para comer. Furiosamente, tentou trepar para a árvore. Por duas vezes saltou o bastante para agarrar os ramos mais baixos, mas de ambas as vezes voltou a cair. Enfurecia-se mais. Os seus rugidos eram incessantes e horríveis, e Tarzan não parava de o insultar — satisfeito por ver que a fera esgotava as forças que ainda lhe restavam.

Por fim, o homem da selva ergueu-se e desenrolou o seu laço. Arranjou cuidadosamente as voltas da corda, na mão esquerda, e segurou o nó corredio na mão direita. Então poisou um pé em cada uma de duas ramadas horizontais, quase à mesma altura, firmou-se contra o tronco da árvore e continuou a insultar e a incitar Numa até que o leão saltou mais uma vez. Quando Numa levantou a cabeça, esticando-a quanto podia, a corda envolveu-lhe o pescoço. No mesmo instante Tarzan esticou o laço... e quando o leão caiu apenas as suas patas traseiras tocaram no terreno, porque o homem da selva passara a corda em volta de um ramo sólido e mantinha a fera suspensa. Movendo-se cautelosamente sobre as ramadas, Tarzan empurrou a corda de maneira que Numa não pudesse tocar com as garras no tronco da árvore. Então voltou a puxar, para que o leão ficasse totalmente suspenso, e atirando os cinco sacos para o chão, desceu do seu poleiro. A fera tentava rasgar a corda, com as garras. De um momento para o outro podia cortá-las e portanto Tarzan tinha de trabalhar rapidamente. Começou por enfiar o saco maior na cabeça de Numa, amarrando-lho em volta do pescoço com as tiras que cortara. A seguir, correndo mil vezes o risco de ser atingido pelos movimentos desordenados das garras, conseguiu amarrar as patas do leão, com as restantes tiras arrancadas às peles dos javalis.

Nesta altura a resistência de Numa quase havia cessado — era evidente que estava a ser estrangulado pela corda. Isso não convinha a Tarzan, que saltou para a árvore, desprendeu a corda e baixou o leão para o terreno, descendo logo depois e afrouxando a pressão do nó corredio. Então, com a faca, o homem da selva cortou dois buracos redondos no grande saco que cobria a cabeça de Numa, para lhe permitir ver e respirar.

Feito isto, Tarzan trabalhou rapidamente com os restantes quatro sacos menores, tapando, com cada um deles, uma das patas de Numa e as respectivas garras.

Os sacos das patas traseiras ficaram seguros pelas tiras que se cruzavam acima da articulação das pernas, e o mesmo aconteceu com os da frente. Agora Numa, o leão, estava quase reduzido à inofensividade de Bara, o gamo.

No entanto, a fera dava sinais de voltar à vida. Respirava ruidosamente e debatia-se... mas as tiras de pele de javali, que lhe mantinham juntas as quatro patas, eram numerosas e resistentes. Tarzan ficou por momentos a observar, até se convencer de que aguentariam os esforços do leão; no entanto, o poder muscular de Numa é espantoso... e a possibilidade existia de que ele pudesse libertar as patas. A partir de então, Tarzan teria de confiar nos sacos que prendera solidamente.

Depois de voltar a respirar normalmente, Numa pôde mostrar a sua fúria e os seus protestos, rugindo; os esforços da fera, para se libertar, atingiram proporções formidáveis, durante algum tempo. Mas a resistência do leão nem de longe é proporcionada ao seu tamanho e à sua força, de maneira que Numa acabou por cansar-se e ficar quieto, estendido. De vez em quando voltava a rugir e a debater-se, mas acabou por se submeter à humilhação de ter uma corda amarrada ao pescoço; desta vez, porém, não se tratava de um nó corredio, que pudesse ser puxado para o estrangular.

Tarzan prendeu a outra extremidade da corda ao tronco da árvore, e então cortou as tiras de pele que mantinham juntas as quatro patas da fera... saltando prontamente de lado quando o leão se levantou.

Por momentos, Numa ficou imóvel, as patas abertas. Depois levantou-as uma após outra, tentando sacudir as «luvas» de pele de javali. Por fim tentou libertar-se do saco que lhe tapava o focinho. Tarzan, de lança em punho, observava atentamente os esforços da fera. Os sacos aguentariam? Esperava que sim... ou todo o seu trabalho teria sido inútil.

Quando as estranhas coisas que lhe cobriam a cabeça e as patas demonstraram resistir aos seus esforços, Numa entrou em pânico. Rolou-se pelo chão, querendo morder e rasgar, rugindo; levantou-se e pulou no ar; pretendeu lançar-se sobre Tarzan — mas foi retido pela corda que o prendia ao tronco da árvore. Então Tarzan aproximou-se e coçou a cabeça do leão, com a ponta da lança. Numa ergueu-se sobre as patas traseiras e tentou atingir o homem da selva, recebendo em troca uma pancada com a lança. À quarta tentativa, o leão começou a compreender que havia encontrado o seu amo. Baixava agora a cabeça e a cauda, quando Tarzan se aproximava, e recuava, ainda grunhindo.

Deixando Numa amarrado à árvore, Tarzan entrou no túnel e removeu as pedras com que tapara a entrada. Depois voltou para a cavidade e caminhou a direito para a árvore. Numa estava estendido na sua frente, e quando Tarzan se aproximou voltou a rosnar, ameaçador. O homem da selva bateu-lhe com a lança, afastou-o e foi desprender a corda amarrada à árvore. Então seguiu-se meia hora de teimosa luta, enquanto Tarzan queria conduzir o leão na sua frente, para o túnel, e Numa se recusava a ser conduzido. Por fim, e à custa de repetidos golpes com a ponta da lança, o homem da selva forçou o leão a caminhar na sua frente, e acabou por fazê-lo entrar no túnel. Aí o problema simplificou-se, porque Tarzan seguia de perto a fera e qualquer tentativa de rebelião era castigada com a ponta da lança. Se Numa hesitava, era picado. Se recuava, o resultado era consideràvelmente mais doloroso, porque a lança cravava-se. O leão compreendeu rapidamente que tinha de obedecer, e assim foi avançando até emergir do túnel. Mas aí, sentindo a liberdade... correu.

Tarzan, que avançava ainda sobre as mãos e os joelhos, foi apanhado de surpresa e arrastado durante alguns metros, sobre as rochas. Arranhado e furioso, o seu primeiro ímpeto foi para castigar Numa... mas raras vezes deixava que os seus impulsos dominassem a razão, e abandonou a ideia.

Tendo ensinado a Numa os rudimentos da arte de ser conduzido, levou-o para diante... e começou então a mais estranha jornada que alguma vez se verificou na história não escrita da selva primitiva. O resto desse dia foi cheio de acontecimentos, para Tarzan e para o leão. Desde a revolta aberta, ao princípio, o leão passou por várias fases de teimosa resistência, de obediência hostil, até chegar à rendição. Quando a noite os envolveu, Numa estava cansado, esfomeado e sequioso... mas não haveria comida para ele, nesse dia nem no dia seguinte. Tarzan não se atrevia a tirar o saco que cobria a cabeça do leão, embora o tivesse cortado de maneira a permitir-lhe beber. Nessa noite amarrou Numa a um tronco, caçou para comer, e estendeu-se nas ramadas de uma árvore, acima do seu prisioneiro, para dormir durante algumas horas.

Cedo, na manhã seguinte, recomeçaram a caminhar ao longo das colinas, para sul do Kilimanjaro. Os animais da selva fugiam à sua aproximação. O cheiro de Numa bastaria para pôr em fuga muitos dos mais pequenos animais, mas quando viam a estranha aparição... que tinha o cheiro do leão mas em nada se parecia com qualquer criatura que tivessem visto antes, e que era conduzido através da selva por um gigantesco Tarmangani, os mais temíveis habitantes da floresta se sentiam tomados pelo pavor.

Sabor, a leoa, reconhecendo à distância o cheiro do poderoso macho, misturado com o de um Tarmangani e com o cheiro da pele de Horta, o javali, trotava através da espessura, para ver. Tarzan e Numa ouviram-na aproximar-se, porque a leoa soltou uma espécie de gemido interrogativo. Por terríveis que pareçam, e muitas vezes sejam, os leões também são frequentemente tímidos. Sabor era, além do mais, curiosa como todas as fêmeas.

Tarzan empunhou a lança, pois sabia que talvez tivesse de lutar para reter a sua presa. Numa parou e voltou a cabeça humilhada para a fêmea. Soltou um rosnido que era quase um ronronar. Tarzan ia picar Numa com a ponta da lança... quando Sabor surgiu e, atrás dela, o homem da selva viu alguma coisa que o fez estacar - quatro grandes leões seguiam a leoa.

Provocar a resistência activa de Numa poderia ter como resultado desafiar um ataque imediato das cinco feras, e assim Tarzan resolveu esperar para ver qual seria a atitude deles. Não pensava sequer em largar Numa sem combater... mas, conhecendo os leões, não tinha qualquer certeza sobre o que aqueles fariam. A leoa era jovem e esbelta, e os quatro machos estavam no apogeu da sua força — eram os mais belos animais que Tarzan vira alguma vez. Três deles tinham jubas ainda pequenas, mas o da frente possuía uma explêndida juba negra que o vento agitava enquanto ele ia avançando, majestoso. A leoa parou a uns trinta metros de Tarzan, enquanto os leões se adiantavam um pouco mais. Tinham as orelhas espetadas, e nos olhos amarelos havia o que talvez fosse uma expressão de curiosidade. Tarzan ainda não podia calcular o que eles fariam. O leão preso olhava os outros, silencioso e atento.

De súbito, a leoa soltou outro breve gemido... e no mesmo instante o leão de Tarzan rugiu terrivelmente e saltou na direcção do outro, o da juba negra. A aproximação daquela estranha criatura, com a estranha cabeça, foi demasiadamente impressionante para o leão sobre o qual ele saltava arrastando Tarzan. Com um rosnido rouco, o animal da juba negra voltou-se e fugiu, seguido pelos outros três e pela fêmea.

Numa tentou segui-dos; Tarzan conteve-o, e quando a fera se voltou, enraivecida, bateu-lhe na cabeça, com a lança. Numa abanou a cabeça, grunhiu e retomou o seu caminho na direcção que haviam seguido antes; mas decorreu uma hora antes de deixar de rosnar. Estava esfomeado, portanto enfurecido, mas de tal modo dominado pelos violentos processos de domesticação usados por Tarzan, que caminhava ao lado do homem como se fosse um gigantesco São Bernardo.

Era escuro quando se aproximaram do flanco direito do exército ing lês, depois de uma breve demora causada por uma patrulha alemã que tinham sido forçados a evitar. A curta distância dos postos avançados dos ingleses, Tarzan amarrou o leão a uma árvore e continuou, sozinho. Evitou uma sentinela, passou além dos postos, e por caminhos desviados alcançou o comando do coronel Capell... aparecendo diante dos oficiais como se tivesse surgido do ar.

Os oficiais sorriram ao ver quem chegava assim sem ser anunciado, enquanto o coronel coçava a cabeça, perplexo.

— Alguém devia ser fuzilado por isto... —declarou o coronel.—É inútil colocar postos avançados, quando um homem pode passar por entre eles sempre que lhe apraz.

— Não censure os soldados... — disse gravemente Tarzan— ...porque eu não sou um homem. Sou um Tarmangani. Qualquer Mangani que tivesse essa fantasia poderia entrar aqui quase à vontade. Mas se tivesse um deles por sentinela, ninguém passaria.

— Quem são os Mangani?... — perguntou o coronel.— Talvez pudéssemos alistar alguns...

— São os grandes macacos...—volveu Tarzan, abanando a cabeça. — São o meu povo. Mas não poderia usá-los, porque são incapazes de se concentrar numa ideia. Se eu falasse com um deles a esse respeito, ficaria interessado durante algum tempo, talvez tempo bastante para que eu o trouxesse aqui e lhe explicasse os seus deveres. Mas esse interesse duraria pouco, e a sentinela esqueceria as suas obrigações para ir em busca de escaravelhos. Têm cérebros de crianças, por isso continuam a ser o que são.

— Chama-lhes Mangani e chama a si mesmo Tarmangani... Qual é a diferença? — perguntou o major Preswick.

— Tar significa branco... — explicou Tarzan. — ...e Mangani quer dizer macaco grande. O meu nome, o que me deram na tribo de Kerchak, quer dizer Pele-Branca. Quando eu era um pequeno balu, a minha pele, creio, devia parecer muito branca sobre a bela pelagem negra de Kala, minha mãe adoptiva, e por isso eles me chamaram Tarzan, o Tarmangani. Chamar-lhe-iam Tarmangani, a si também.

— Isto não é uma censura, Greystoke... —disse o coronel, sorrindo — ... e seria uma nota de distinção se alguém pudesse representar o papel. E a respeito do seu plano? Continua a pensar que pode esvaziar a trincheira em frente do nosso sector?

— Está ainda guarnecida por Gomangani?...— perguntou Tarzan.

— Que significa Gomangani? Continua guarnecida por tropas indígenas, se é isso o que quer dizer.

— Sim... —volveu o homem da selva. — Os Go-mangani são os negros.

— Que tenciona fazer, e que quer que façamos?...

— perguntou Capell.

Tarzan aproximou-se da mesa e poisou um dedo sobre o mapa.

— Aqui há um posto de escuta... — disse — ...guarnecido com uma metralhadora. Um túnel liga o posto com a trincheira, neste ponto...—ia indicando com o dedo, no mapa. — Dê-me uma granada, e quando a ouvir explodir no posto de escuta, mande avançar os seus homens, devagar, pela terra-de-ninguém. Hão-de ouvir agitação na trincheira inimiga, mas é preciso que não se apressem e não façam barulho. Avise-os de que eu devo estar na trincheira e não quero ser atacado a tiro ou à baioneta.

— E é tudo?...—perguntou Capell, depois de ter dito a um oficial que entregasse a granada a Tarzan. — Esvaziará a trincheira... sozinho?

— Não exactamente sozinho... — volveu Tarzan, com uma expressão sombria. — Mas farei isso. E, a propósito, os seus homens poderão, se o preferirem, passar pelo túnel que liga o posto de escuta com a trincheira. Dentro de meia hora, coronel...

— acrescentou, voltando-se e partindo.

Quando atravessou o acampamento, assaltou-o uma súbita recordação da visita anterior... a imagem do oficial que se cruzara com ele nessa noite, e cuja face fora fugitivamente iluminada pelo clarão de uma fogueira...

Abanou a cabeça... Não, não podia ser... Mas no entanto as feições do jovem oficial eram idênticas às de «Fraulein» Kircher, a espia alemã que ele vira no comando inimigo, naquela noite em que se apoderara do major Schindler...

Para além da última linha de sentinelas, Tarzan encaminhou-se rapidamente para o ponto onde deixara Numa. A fera estava estendida, mas levantou-se quando Tarzan se aproximou, soltando uma espécie de latido de cão esfomeado.

— Em breve matarás... e comerás...—murmurou Tarzan.

Desprendeu a corda amarrada à árvore, e levando Numa a seu lado adiantou-se através da terra-de-ninguém... Havia pouco tiroteio, e só de longe em longe uma granada que explodia revelava a presença da artilharia por detrás das linhas. Porque as granadas explodiam bastante para além das trincheiras, não constituiam ameaça para Tarzan. Mas o estrondo assustava Numa, que se agachava e se aproximava mais do homem da selva, como em busca de protecção.

Cautelosamente, as duas feras avançavam para o posto de escuta instalado pelos alemães. Numa das mãos Tarzan segurava a granada, na outra agarrava a corda que prendia Numa. Por fim pôde distinguir o posto, a alguns metros de distância. Os seus olhos penetrantes viram a cabeça e os ombros do soldado que vigiava. O homem da selva mediu a distância, lançou a granada e atirou-se para o chão, no mesmo movimento.

Segundos depois, uma terrível explosão ressoou no posto de escuta. Numa sobressaltou-se e tentou fugir, mas Tarzan prendeu-o e, levantando-se, correu para a frente e fez correr o leão. No posto nada havia que indicasse ter sido ocupado antes... além de sangue e pedaços de carne esfarrapada. A única coisa que não fora destruída era uma metralhadora que estava protegida por sacos de areia. Não havia um instante a perder. Já outros soldados deviam vir pelo túnel, pois era impossível que os alemães não tivessem compreendido que o posto fora atacado. Numa hesitou, mas Tarzan puxou-o rudemente para o fundo da escavação. Diante deles estava a entrada do túnel. Tarzan empurrou o leão até que lhe meteu a cabeça na passagem estreita. Depois, num gesto rápido, agarrou a metralhadora e poisou-a no chão, a seu lado. Com a mesma rapidez, empunhou a faca e cortou os sacos que tapavam as patas da frente de Numa. Antes que o leão compreendesse que podia dispor de uma parte do seu formidável armamento, Tarzan libertou-o do «açaimo», continuando a empurrá-lo para dentro do túnel. Numa quis recuar... mas sentiu nos quartos traseiros o gume da faca de Tarzan. Empurrando mais, de maneira a não permitir que a fera se movesse noutra direcção que não fosse em frente, Tarzan cortou as tiras que prendiam os sacos amarrados nas patas traseiras. Logo, fincando os pés na terra que a explosão soltara, o homem da selva empurrou violentamente a fera, picando-a com a faca. Numa avançava polegada a polegada, rosnando. A certa altura começou a rugir... e de repente saltou para diante. Tarzan compreendeu que ele tinha apanhado o cheiro da carne, na sua frente. Levando a metralhadora, seguiu o leão cujos rugidos ouvia de mistura com os brados de terror dos homens. Havia uma expressão ferozmente sombria na face de Tarzan.

— Assassinaram os meus Waziri... —murmurou. — Crucificaram Wasimbu, filho de Muviro.

Quando Tarzan saiu do túnel e emergiu na trincheira, não havia ninguém à vista; nem no sector seguinte, nem no outro... Correu para o centro da linha de trincheiras... e então viu uma dúzia de homens encurralados num ângulo, enquanto Numa atacava com presas e garras, terrível incarnação da ferocidade e da fome.

O quer que era que retinha os homens, cedeu sob a pressão desesperada dos esforços que eles faziam para escapar à terrível criatura que desde a infância enchera de terror as suas vidas. Fugiam às cegas, alguns saltavam para fora das trincheiras, preferindo os perigos da terra-de-ninguém àquela ameaça espantosa.

Enquanto os ingleses avançavam lentamente para as trincheiras alemãs, viram correr ao encontro deles aqueles homens espavoridos que não desejavam outra coisa senão render-se. Os rodesianos podiam ver que havia o diabo à solta no sector dos hunos, não só pela aparência daqueles que fugiam, mas também pelos gritos que chegavam aos seus ouvidos. Mas havia um som que não entendiam, e que lembrava o rosnar furioso de um leão...

Quando, finalmente, alcançaram a trincheira, os primeiros soldados ingleses ouviram o matraquear de uma metralhadora... e viram um grande leão que galgava a parte de trás da escavação e desaparecia na noite, levando entre os dentes um alemão que gritava de pavor... Sentado sobre uma trave, à esquerda dos soldados, estava Tarzan dos Macacos... a varrer com rajadas de balas o enfiamento da trincheira.

Os rodesianos mais avançados viram também outra coisa — viram um corpulento oficial alemão que saía de um abrigo exactamente atrás de Tarzan. Viram-no apanhar uma espingarda caída, com a baioneta fixada, e aproximar-se do aparentemente desatento homem da selva. Quiseram gritar, mas era impossível fazer-se ouvir no clamor geral. O alemão ia vibrar o golpe nas costas de Tarzan... quando Tarzan se moveu com a velocidade do raio.

Não foi um homem que saltou sobre o alemão, desviando a baioneta com a mesma facilidade com que alguém afastaria um pau empunhado por uma criança — foi uma fera. Tarzan, avisado por esse sexto sentido que parece ser compartilhado por todos os animais da selva, voltara-se a tempo e vira, num relance, o uniforme e o distintivo... o mesmo distintivo usado pelos que haviam assassinado Jane e os Waziri... pelos que haviam destruído a sua casa e a sua felicidade.

Foi uma fera que cravou os dentes num ombro do alemão... foi uma fera que lhe rodeou o pescoço com as garras. E então os rapazes do Segundo Regimento Rodesiano viram o que, para sempre, ficaria na sua memória. Viram o gigantesco homem da selva levantar o corpulento alemão e sacudi-lo como um «terrier» pode sacudir um rato..-, como Sabor, por vezes, sacode as suas presas. Viram os olhos do alemão quase saltar das órbitas, enquanto ele se debatia em vão. Viram Tarzan apoiar um joelho nas costas do huno e dobrá-lo irresistivelmente... até que alguma coisa se partiu e o homem da selva atirou para o chão o corpo sem vida.

Os rodesianos correram para a frente... mas de súbito estacaram. Tarzan, poisando um pé sobre o cadáver do alemão, lançou para o ar o tremendo brado de vitória dos grandes gorilas.

O alferes von Goss estava morto.

Sem um olhar para trás, Tarzan saltou para fora da trincheira e desapareceu na noite.

 

O medalhão de oiro

O pequeno exército inglês na África Oriental, depois de sofrer severas derrotas ante um inimigo muito superior em número, estava a dominar, finalmente, a situação. A ofensiva alemã havia sido detida, e os soldados do «kaiser» estavam agora a retirar lentamente, resistindo, ao longo do caminho de ferro para Tanga.

O rompimento das linhas alemãs tinha-se seguido à tomada do flanco esquerdo da sua linha de trincheiras guarnecida por soldados nativos, levado a cabo por Tarzan e Numa, o leão, na memorável noite em que o homem da selva soltara a fera entre os apavorados negros. O Segundo Regimento Rodesiano ocupara imediatamente a trincheira abandonada, e dessa posição havia flagelado as linhas germânicas, tornando possível um ataque nocturno, em força, pelas restantes unidades inglesas. Tinham decorrido semanas. Os alemães disputavam teimosamente cada milha de terra árida, coberta de moitas espinhosas, e agarravam-se com desespero às suas posições junto do caminho de ferro. Os oficiais do Segundo Regimento Rodesiano não tinham recebido mais notícias de Tarzan, desde que ele matara o alferes von Goss e desaparecera nas linhas inimigas. Havia quem pensasse que Tarzan morrera.

— Talvez o matassem...—comentou o coronel Capell — ...mas tenho a certeza de que não o apanharam vivo.

E de facto não o tinham apanhado vivo, mas Tarzan não morrera. Tinha ocupado essas semanas de maneira agradável e proveitosa. Havia reunido informações completas quanto à disposição e aos efectivos das tropas alemãs, os seus processos de guerra — e as várias maneiras como um solitário Tarman-gani podia incomodar todo um exército, e desmoralizá-lo.

Tarzan tinha agora um desejo especial.

Havia uma certa espia alemã que ele queria capturar viva e entregar aos ingleses. Quando fizera a sua primeira visita ao comando alemão, vira a jovem entregar um documento ao general... e mais tarde vira a mesma jovem no interior das linhas inglesas, e com um uniforme de oficial inglês. A conclusão era óbvia — tratava-se de uma espia.

E assim Tarzan vigiava o comando alemão, desde havia muitas noites, na esperança de voltar a ver a espia ou de apanhar qualquer informação sobre o seu paradeiro... e ao mesmo tempo utilizava todos os ardis para aterrorizar os soldados alemães. Que o conseguia, verificava-o ele pelas conversas que ouvia nas noites em que rondava o acampamento germânico. Uma noite, quando estava escondido entre as moitas perto do comando de um regimento, escutou o que diziam alguns oficiais alemães. Um deles repetia histórias ouvidas junto dos soldados indígenas, relativamente ao ataque feito por um leão, semanas antes, e à aparição simultânea, nas trincheiras, de um gigante branco, quase nu, que os negros afirmavam ser um demónio da selva.

— O tipo deve ser o mesmo que assaltou o comando do general Schneider... — dizia um dos oficiais. — Não entendo por que razão ele escolheu o pobre major. Dizem que parecia interessado apenas nele. Teve von Kelter ao seu alcance, e poderia facilmente ter levado o próprio general... mas ignorou-os, a todos, com a excepção do Schneider. Saltou sobre ele e levou-o, desaparecendo na noite. Deus sabe o que aconteceu ao major.

— O capitão Schneider tem uma espécie de teoria a esse respeito... — disse outro. — Contou-me, há uma semana ou duas, que supõe saber a razão por que o irmão foi levado... um caso de confusão de identidade. Não teve a certeza disso senão quando von Goss foi morto, aparentemente pela mesma criatura, na noite em que o leão atacou as trincheiras. Von Goss pertencia à companhia de Schneider. Outro dos homens de Schneider foi encontrado, com o pescoço partido, na mesma noite em que o major desapareceu... e o capitão Schneider afirma que o tal gigante anda atrás dele e dos seus soldados, que era a ele que procurava e só por engano levou o irmão. Parece que Kraut, ao apresentar o major a «Frau-lein» Kircher, desencadeou o ataque quando pronunciou o nome de Sehneider...

De súbito, o pequeno grupo ficou em silêncio, rígido e tenso, à escuta.

— Que foi isto?... — disse por fim um dos oficiais, olhando para as moitas.

Tarzan deixara escapar um grunhido de fúria ao compreender que o assassino de Jane estava ainda vivo. Durante alguns momentos os oficiais mantiveram-se imóveis, alarmados. Cada qual recordava as misteriosas desaparições verificadas antes, tanto nos próprios acampamentos como nos postos avançados. Cada qual se lembrava dos mortos que haviam encontrado... soldados estrangulados quase à vista dos seus companheiros e sem que ninguém desse por nada... Esperavam, tensos, de pistolas em punho. Houve um movimento nas moitas, quase imperceptível... mas bastou para que um dos alemães abrisse fogo. Tarzan, porém, já não estava ali. No curto instante entre o movimento das moitas e o tiro, desaparecera na escuridão. Dez minutos mais tarde rondava as imediações do sector onde estavam acampados os soldados da companhia indígena comandada pelo capitão Fritz Schneider. Os homens dormiam estendidos no chão, sem tendas, mas havia tendas armadas para os oficiais. Tarzan encaminhou-se nessa direcção. Era uma aventura lenta e perigosa, pois agora os alemães estavam alerta quanto ao misterioso inimigo que surgia entre eles durante a noite. No entanto o homem da selva passou pelas sentinelas, iludiu a vigilância das rondas e aproximou-se da retaguarda das tendas dos oficiais. Aí, colou-se ao terreno e ficou à escuta. De uma das tendas vinha o som calmo e regular da respiração de um homem adormecido, apenas um. Com a sua faca, Tarzan cortou as cordas que fechavam a aba da tenda, e entrou sem ruído, como uma sombra entre somaras. Aproximou-se do homem que dormia e curvou-se sobre ele. Não podia saber se era Schneider ou outro qualquer, porque nunca vira Schneider. Mas queria saber isso, e outras coisas. O homem voltou-se pesadamente, resmungando.

— Silêncio.., — disse Tarzan, em voz baixa. — Silêncio ou morres.

O alemão abriu os olhos. Na obscuridade, distinguiu vagamente um vulto gigantesco debruçado sobre ele. Uma forte mão agarrou-o por um ombro, enquanto outra lhe rodeava a garganta, sem apertar.

— Não grite... — disse o homem da selva. — Responda em voz baixa... Como se chama?

— Luberg... — sussurrou o oficial. — Que quer... ? Tremia. A fantasmagórica presença do gigante

nu apavorava-o. Também ele recordava nesse momento os homens misteriosamente mortos nos acampamentos.

— Onde está o capitão Fritz Schneider ? Qual é a sua tenda?

— Não está aqui... Foi enviado para Wilhelmstal, ontem.

— Não o matarei... agora... — disse Tarzan. — Vou verificar se me mentiu, e se assim for a sua morte será mais dolorosa. Sabe como morreu o major Schneider?

Luber abanou a cabeça, negativamente.

— Eu sei... — continuou Tarzan — ...e não foi uma boa maneira de morrer, mesmo para um maldito alemão. Volte-se de bruços e tape os olhos. Não se mova e não faça ruído.

O oficial obedeceu, e no instante em que ele tapou os olhos, Tarzan esgueirou-se para fora da tenda. Uma hora depois estava longe do acampamento e dirigia-se para Wilhelmstal, uma povoação nas colinas, sede de Verão do governo da África Oriental Alemã.

 

«Fraulein» Bertha Kircher tinha-se perdido.

Sentia-se humilhada e irritada. Levou tempo a confessar isso a si mesma, pois se orgulhava da sua capacidade de orientação na floresta. Fosse como fosse, perdera-se na região entre Pangani e o caminho de ferro de Tanga. Sabia que Wilhelmstal ficava a sudoeste, a cerca de cinquenta milhas... mas em consequência de um conjunto de circunstâncias fortuitas, sentia-se incapaz de saber para que lado ficava o sudoeste.

Havia partido do comando alemão seguindo uma estrada bem traçada, percorrida por tropas, e tinha todas as razões para acreditar que poderia, pela mesma estrada, alcançar Wilhelmstal. Mais tarde, havia abandonado a estrada ao ser avisada de que uma numerosa patrulha inglesa, vinda do lado oeste do Pangani, atravessara o rio, ao sul e marchava para Tonda. Saindo da estrada, Bertha Kircher encontrara-se no mato denso. Porque o céu estava completamente enevoado, tinha querido recorrer à sua bússola... e verificara, com espanto, que não a tinha consigo. No entanto, estava tão segura da sua capacidade de orientação que continuou na direcção que julgava exacta... até percorrer uma distância suficiente para poder passar atrás da patrulha inglesa.

Só começou a sentir dúvidas bastante tempo depois, quase ao fim da tarde. Devia já ter alcançado a estrada ao sul de Tonda... mas continuava em pleno mato e a ansiedade apoderou-se dela. O seu cavalo caminhara durante todo o dia sem água nem comida, a noite aproximava-se.

E, com a compreensão de que estava perdida em plena selva, veio o receio das feras e, não menor, dos incontáveis e perigosos insectos. Era de endoidecer, a sensação de não saber onde se encontrava... de pensar que, em vez de se dirigir para o seu destino, estaria a afastar-se cada vez mais e, cada vez mais, também, a internar-se pelo mato, na região perigosa em redor do Pangani. No entanto não podia parar, tinha de seguir sempre.

Bertha Kircher podia ser várias coisas, mas não era cobarde. Todavia a aproximação da noite, das longas horas de treva total — a horrível noite da selva — apavorava-a com toda a sua potencialidade de destruição e de morte. Exactamente antes de anoitecer, descobriu uma clareira na quase interminável extensão do mato espesso. A meio da clareira erguia-se um pequeno bosquete de árvores. Decidiu acampar aí. O capim era alto e denso, garantindo comida para o cavalo e cama para ela; havia bastantes ramos secos para acender uma fogueira. Tirando os arreios ao cavalo, colocou-os junto de uma das árvores e prendeu o animal a curta distância. Então ocupou-se em reunir ramos secos e, quando a noite a envolveu, já tinha uma boa fogueira acesa, e lenha bastante para durar até pela manhã.

Bebeu um gole de água do cantil e tirou algumas provisões do alforje da sela. Não podia beber muita água porque não sabia quando poderia encontrar outra. Teve pena do cavalo, por não poder dar-lhe de beber — porque mesmo uma espia alemã pode ter coração, e Bertha era muito nova e muito feminina.

A escuridão da noite era total, não havia lua nem estrelas, e a luz da fogueira parecia tornar mais negras as trevas em redor. Podia apenas ver o capim alto e os troncos das árvores, junto dela. Para além, era a escuridão. A selva parecia ameaçadoramente silenciosa. A grande distância ouvia-se o troar do canhão, como um rumor surdo e longínquo. Mas a jovem não poderia dizer exactamente de que direcção vinha o som. Escutou, tensa e atenta, até sentir que os seus nervos não aguentariam muito mais. E todavia, se pudesse determinar a direcção, ficaria a saber para onde ir assim que amanhecesse.

Chegaria ela a ver romper outra manhã? Sacudiu-se, tentando recuperar o domínio dos nervos. Tinha de banir qualquer pensamento de derrota. Corajosamente, ocupou-se em estender sobre o capim a manta da sela. Então cobriu-se com um pesado capote militar, porque o frio já aper tava. Sentou-se, apoiada à sela que encostara a um tronco, e dispôs-se a passar uma noite insone, vigilante. Continuava a ouvir vagamente o troar do canhão; de quando em quando o cavalo agitava-se... E então, talvez a uma escassa milha de distância, o poderoso rugido de um leão rasgou o silêncio. A jovem teve um sobressalto e estendeu a mão para o rifle a seu lado. Sentiu que um arrepio a percorria.

O rugido repetiu-se, uma vez e outra, e Bertha tinha a certeza de que o leão se aproximava. A jovem podia localizar os rugidos, incomparavelmente mais próximos do que o troar dos canhões. O leão vinha do lado do vento e portanto não podia ter farejado a sua presença, mas talvez fosse atraído pela luz da fogueira que decerto teria visto a distância. Durante mais uma hora, Bertha Kircher esteve imóvel, sondando a treva que rodeava o pequeno círculo luminoso das chamas. O leão não voltou a rugir... mas a jovem tinha a sensação permanente de que a fera se aproximava cada vez mais. De momento a momento sobressaltava-se e olhava para trás. Tinha o rifle sobre os joelhos, mas tremia dos pés à cabeça.

De súbito, o cavalo estendeu o pescoço e relinchou. Com um pequeno brado de pavor, «Fraulein» Kircher ergueu-se de um salto. O cavalo moveu-se, aproximando-se dela tanto quanto lho permitia o comprimento da corda que o prendia. Então, forçado a deter-se, voltou-se e ficou a olhar a treva, com as orelhas enristadas. Decorreu mais uma hora de terror, durante a qual o cavalo voltou a sondar a treva. A jovem alimentava o lume da fogueira, de tempos a tempos... debatendo-se para afugentar o sono que, apesar de tudo, se apoderava dela. Receando adormecer, levantou-se e pôs-se a caminhar de um lado para o outro. Depois foi afagar o cavalo, deitou mais lenha no lume e sentou-se novamente, tentando ocupar o espírito com planos para o dia seguinte...

Mas adormeceu... porque quando voltou a abrir os olhos era dia claro. Ergueu-se, num sobressalto. A noite e o seu pavor tinham acabado.

Bertha mal podia acreditar no que via. Decerto dormira durante horas, porque a fogueira estava apagada. No entanto, o cavalo estava vivo e em segurança... Mais ainda, o sol brilhava e indicava claramente a direcção a seguir. Comeu rapidamente e pouco, bebeu um gole de água, colocou os arreios no cavalo e montou. Sentia-se agora tão segura de si como se já tivesse chegado a Wilhelmstal... No entanto, talvez tivesse pensado diferentemente... se tivesse visto dois pares de olhos que espreitavam cada um dos seus movimentos, de diferentes pontos do mato.

Alegre e descuidada, a jovem cavalgou através da clareira na direcção do ponto onde, exactamente diante dela, dois olhos redondos, de um amarelo-esverdeado, a fitavam terrivelmente. Um grande corpo fulvo agachou-se, preparando-se para saltar... O cavalo estava junto das moitas quando Numa, o leão, atacou, num pulo espantoso. A fera caiu sobre a espádua direita do cavalo que se empinara, apavorado, pronto para fugir. A força do choque derrubou o cavalo, tão fulminantemente que a jovem não teve tempo de se libertar e ficou também no terreno, a perna esquerda sob o corpo da montada.

Apavorada, Bertha viu os poderosos dentes do leão cravarem-se no pescoço do cavalo e sacudirem-no. Ouviu o estalar das vértebras, e sentiu que o seu fiel companheiro ficava inerte.

Numa agachou-se novamente, agora sobre a presa. Os seus terríveis olhos fitavam a jovem, e ela podia sentir o hálito fétido da fera. Por longos instantes, ambos ficaram imóveis... O leão rosnava...

Nunca, antes, Bertha se sentira tão apavorada... Do seu cinto pendia uma pistola, arma decerto poderosa para enfrentar um homem, mas pouco mais do que um brinquedo para ameaçar o leão. Bertha sabia que uma bala de revólver apenas serviria para enraivecer a fera, mas estava decidida a vender cara a vida... e sentia que tinha de morrer ali. Nenhum socorro humano poderia valer-lhe, mesmo que estivesse próximo. Desviou a cara, escapando à horrível fascinação do olhar da fera, e dirigiu uma última oração a Deus. Não pediu ajuda porque não a tinha por possível — pediu apenas que o seu fim fosse rápido e o menos doloroso que pudesse ser.

Ninguém pode prever as reacções de um leão, em qualquer emergência. Aquele rosnava e fitava a jovem... Depois, começou a devorar o cavalo morto. «Fraulein» Kircher pensou vagamente que talvez lhe fosse possível retirar a perna de sob o corpo do pobre animal, mas não o conseguiu. Quando fez um esforço maior, Numa parou de comer e fitou-a novamente, rosnando. A jovem desistiu. Esperava, sem ousar confiar, que o leão satisfizesse a sua fome e se afastasse... mas custava-lhe admitir a hipótese de que ele a deixasse viva. Sem dúvida arrastaria os despojos da sua presa para o mato, onde os esconderia... mas ela fazia parte da presa...

Numa recomeçou a devorar o cavalo. Os nervos da jovem aproximavam-se do ponto de rotura. Ela admirava-se de não ter ainda desmaiado. Muitas vezes desejara ver de perto um leão... mas o seu desejo realizara-se com excessiva verdade...

Pensou novamente na pistola. Na queda, o coldre tinha deslizado e estava agora sob o seu corpo. Lentamente, tentou alcançá-lo... mas para isso teve de se soerguer..-, e no mesmo instante o leão a fitou, atento e alerta. Com a rapidez de um raio, estendeu uma das enormes patas e poisou-a sobre o peito da jovem, colando-a ao terreno. Rosnou com mais força, enfurecido... Foi nesse momento que Bertha Kircher ouviu uma voz humana que emitia sons ferozes... O leão ergueu a cabeça e olhou para o que estava atrás da jovem. Levantou-se, rugindo, e as garras abertas rasgaram as roupas de «Fraulein» Kircher... só por uma espécie de milagre não lhe rasgando a pele...

Tarzan tinha assistido a toda a cena, a partir do momento em que Numa saltara sobre a presa. Desde havia algum tempo antes tinha estado a observar a. jovem, e depois de o leão atacar sentira o impulso de a deixar entregue ao seu destino... Era uma alemã, e para mais era uma espia. Vira-a no comando alemão e depois no acampamento inglês. Foi esta última ideia que levou Tarzan a interferir. Sem dúvida que o general Jan Smuts gostaria de poder interrogar a rapariga. Poderia forçá-la a divulgar informações úteis, antes de mandar que a fuzilassem.

Tarzan reconhecera a jovem... e também reconhecera o leão. Todos os leões podem parecer iguais, para o leitor e para mim... mas não para um habitante da selva. Cada um tem o seu cheiro especial, e é sobretudo por isso que as criaturas da selva se reconhecem individualmente. Todos os animais, a bem dizer... Um cão pode ver e reconhecer o dono, mas é pelo faro que ele adquire a certeza de que se trata realmente do dono.

O homem da selva reconheceu o leão a que ele açaimara com as peles de Horta, o javali... e que conduzira durante dois dias até o soltar na trincheira dos alemães. Sabia que Numa o reconheceria também e se lembraria da aguda ponta da lança e do cortante gume da faca que o haviam dominado... E esperava que isso permanecesse vivo e presente na memória da fera.

Aproximou-se de Numa, falando-lhe na linguagem dos grandes macacos — ordenando-lhe que se afastasse da rapariga. É duvidoso que Numa o entendesse, mas decerto entendeu a ameaça da lança que o Tarmangani empunhava... E recuou, rosnando, tentando resolver-se a atacar ou a fugir. O homem da selva continuava a aproximar-se, sem se deter, dizendo em sons guturais e roucos:

— Vai-te embora, Numa... ou Tarzan amarra-te e conduz-te outra vez pela selva, sem te dar de comer. Olha bem para Arad, a minha lança! Lembra-te de como te espicacei com ela, de como te bati na cabeça! Vai, Numa! Eu sou Tarzan!

Numa engelhou o focinho, até que os seus olhos quase desapareceram, e quando a lança se aproximou deu-lhe um grande golpe com as garras abertas.

Mas recuou. Tarzan passou por cima do cavalo e da rapariga... enquanto ela olhava, espantada, a magnífica figura do homem que fazia recuar um leão. Quando Numa recuou alguns passos, o homem da selva falou em alemão, dirigindo-se a «Fraulein» Kircher mas sem desviar os olhos que fitavam a fera:

— Está ferida?

— Creio que não... — disse Bertha Kircher — ...mas não posso tirar a minha perna de sob o corpo do cavalo.

— Tente outra vez... — volveu Tarzan. — Não sei por quanto tempo poderei manter Numa em respeito.

A rapariga tentou, desesperadamente, mas acabou por se imobilizar, apoiada num cotovelo...

— Não posso... — disse.

Tarzan recuou devagar até ficar junto do cavalo. Então curvou-se ligeiramente, até segurar a cilha ainda intacta. Só com uma das mãos, ergueu do chão o corpo do animal morto. A rapariga libertou-se e pôs-se de pé.

— Pode caminhar?... — perguntou Tarzan.

— Sim... Tenho a perna dormente, mas não está ferida...

— Está bem... Recue lentamente, atrás de mim... Não faça qualquer movimento brusco... Creio que o leão não atacará...

Deliberadamente, pouco a pouco, ambos recuaram para o mato. Numa ficou imóvel por instantes, mas depois começou a segui-los, devagar. Tarzan conjecturava sobre se o leão se afastaria da sua presa. Se assim fosse, era indubitável que acabaria por atacar... e se atacasse mataria um dos dois. Quando o leão chegou novamente junto do cavalo morto, Tarzan parou e Numa parou também. O homem da selva esperava isso e manteve-se imóvel. Numa acabou por se agachar junto do cavalo, e recomeçou a devorar. A rapariga deixou escapar um fundo suspiro de alívio, quando Tarzan recomeçou por sua vez a afastar-se, quase sem olhar para a fera. Quando alcançaram o mato sem que o leão os perseguisse, Bertha Kircher teve uma tontura, cambaleou e teria caído se Tarzan não a amparasse. Um momento depois, porém, a jovem estava senhora de si.

— Não pude evitar... — disse ela, como a desculpar-se.— Vi de tão perto a morte... uma horrível morte, que os meus nervos cederam. Mas agora estou bem. Como poderei agradecer-lhe? Foi... maravilhoso... Compreendi que você não tinha receio do leão, mas que ele o receava. Quem é você?

— O leão conhece-me... — volveu Tarzan, sombriamente — ...e por isso me teme.

Estava de pé em frente da rapariga, e pela primeira vez tinha a oportunidade de a ver bem e de perto. Era inegavelmente bonita, mas Tarzan compreendia isso apenas subconscientemente... A beleza não lhe iluminava a alma... decerto... Era uma espia... uma espia alemã. Tarzan odiava-a e só pensava em fazer com que ela morresse. Apenas queria escolher a maneira, de modo a poder causar todo o dano possível ao inimigo.

Viu os seios dela, que as garras de Numa haviam deixado a descoberto... e viu alguma coisa que lhe causou uma expressão de cólera e de surpresa... Era sobre a pele branca e macia, o medalhão de oiro, cravejado de pedrarias, que ele usara sempre até que o dera a Jane... o medalhão que devia ter sido roubado por Schneider, o huno. A rapariga viu a expressão de Tarzan, mas não a interpretou correctamente. Ele agarrou-a por um braço.

— Onde foi buscar isto?... —perguntou Tarzan, arrancando-lhe o medalhão.

— Largue-me!... — ordenou a jovem, furiosa. Mas Tarzan nem a ouviu, e apertou-lhe o braço

com mais força.

— Responda! Onde foi buscar isto?

— Não é da sua conta!

— Pertence-me! Responda, ou entrego-a ao leão!

— Seria capaz disso?

— Por que não? Você é uma espia, e as espias morrem quando são apanhadas!

— Vai matar-me, então?

— Ia levá-la ao comando inglês. Eles disporiam de você. Mas Numa pode matá-la já. O que prefere?

— Foi o capitão Fritz Schneider quem me deu isso... — disse ela.

— Está bem, vou entregá-la ao comando... — volveu Tarzan. — Venha!

A rapariga caminhou ao lado dele através do mato, mas o seu cérebro trabalhava activamente. Seguiam para leste e isso convinha-lhe. Enquanto ele mantivesse esse rumo, sentir-se-ia contente por ter a protecção daquele gigantesco selvagem branco.

Estranhava o facto de ter ainda a pistola. Que ele não lha tivesse tirado, indicava que devia ser doido.

— Por que pensa que eu seja uma espia?... — perguntou ela, ao cabo de um longo silêncio.

— Vi-a no comando alemão... e vi-a depois nas linhas inglesas.

Ela não podia deixar que o gigante a levasse para as linhas inglesas. Tinha de alcançar Wilhelms-tal sem demora, e estava decidida a isso, ainda que tivesse de servir-se da pistola. Olhou de soslaio para Tarzan. Que figura magnífica! Que esplêndida criatura! Todavia era um selvagem que a mataria, ou faria com que a matassem se ela não se lhe antecipasse. E o medalhão! Precisava do medalhão, tinha de o levar a Wilhelmstal. A vereda era estreita e Tarzan caminhava agora adiante dela. Cautelosa, a rapariga empunhou a pistola. Uma única bala bastaria, estava tão perto que não podia falhar. Os olhos dela percorreram mais uma vez o corpo moreno, onde os músculos se adivinhavam, alongados, nos membros esbeltos e perfeitos. Havia, naquele gigante de belas feições, uma altivez de porte que muitos reis de outros tempos teriam invejado. Bertha Kircher sentiu repugnância pelo seu próprio pensamento. Não... não podia matá-lo..; mas era preciso libertar-se e reapossar-se do medalhão. Então, quase sem ver, bateu violentamente com a coronha da pistola na cabeça de Tarzan. Ele tombou, como fulminado.

 

Vingança e piedade

Cerca de uma hora depois, Sheeta, que caçava, olhou por acaso para o céu e a sua atenção foi atraída por Ska, o abutre, que voava em círculos sobre o mato, a baixa altura, contra o vento. Durante cerca de um minuto, os olhos amarelos da fera seguiram a ave de rapina. Viu Ska subir e descer, para subir de novo. E o seu instinto compreendeu.

No chão, abaixo de Ska, estava alguma criatura viva... ou uma fera a devorar a presa, ou algum animal moribundo que o abutre não ousava ainda atacar. De qualquer maneira poderia representar carne para Sheeta, e assim o felino avançou, dando uma larga e cautelosa volta até que o abutre e a sua eventual vítima ficassem do lado do vento. Farejando, Sheeta não tardou a captar o cheiro de um homem... um Tarmangani...

Parou. A pantera não caçava homens. Era um animal novo e forte, mas sempre evitara a odiada presença das criaturas humanas. Ultimamente, porém, habituara-se mais a elas, à força de ver passar soldados através dos seus terrenos de caça, e porque os soldados afastavam, assustando-as, suas presas de sempre, Sheeta havia passado dias de fome.

O voo de Ska indicava que o Tarmangani devia estar indefeso e prestes a morrer. Seria uma presa fácil para Sheeta, portanto. A pantera abriu caminho por entre o mato e apressou-se... até que viu o corpo quase nu de um Tarmangani, imóvel e tombado de bruços no chão, numa estreita vereda...

Saciado, Numa ergueu-se de sobre a carcaça do cavalo e, agarrando entre os dentes o animal meio devorado, arrastou-o para o mato; depois partiu para leste, na direcção do covil onde deixara a sua companheira. Sentia-se demasiadamente cheio e pesado, sonolento, pouco disposto a lutar. Movia-se devagar, majestosamente, sem qualquer esforço para não fazer ruído. O rei saía, sem medo. Olhando ocasionalmente para a direita e para a esquerda, seguiu ao longo de uma estreita pista de caça... até que parou de súbito, olhando. Sheeta, a pantera, aproximava-se furtivamente do corpo de um Tarmangani quase nu, estendido de bruços no chão... Numa olhou atentamente para o corpo e reconheceu «o seu» Tarmangani. Um rosnido rouco, de aviso, saiu das profundidades da sua garganta... e Sheeta parou já com a pata erguida sobre as costas de Tarzan, voltando-se bruscamente para o intruso.

Ninguém poderá saber o que se passou nos cérebros das feras... mas a pantera rosnou também, embora hesitante sobre se seria sensato defender a sua descoberta... E Numa? Haveria alguma ideia de propriedade, na mente do leão? O Tarmangani pertencia-lhe... ou ele pertencia ao Tarmangani que o dominara e lhe dera de comer... Numa recordava o medo que tivera daquela lança cruel... mas no seu cérebro primitivo o medo era mais claramente causa de respeito que de ódio. Via Sheeta, a que desprezava, atrever-se a querer atacar o homem que o dominara, a ele. A cobiça e a inveja bastariam para que Numa expulsasse a pantera, embora estivesse cheio de comida e não pudesse devorar outra presa. Mas talvez houvesse, na mente do leão, um vago sentido de dedicação e lealdade... e talvez fosse esse o motivo que o impeliu a avançar contra Sheeta.

Por momentos, a pantera fez-lhe frente, bufando e arqueando o dorso. Numa não tivera até então a intenção de lutar... mas que Sheeta ousasse discutir os seus direitos, enfureceu-o bruscamente. Erguendo a cauda, o leão rugiu e atacou.

O ataque foi tão súbito, de tão perto, que a pantera não teve qualquer possibilidade de fugir... e foi obrigada a lutar. Mas tudo estava contra ela. O leão era incomparavelmente mais poderoso, mais bem armado, mais pesado. O primeiro choque derrubou a pantera..-. que debalde tentou servir-se das garras. As grandes presas de Numa cravaram-se-lhe no pescoço e sacudiram com fúria o ágil corpo mosqueado.

Foi tudo o que bastou. Um instante depois o leão largava o corpo mutilado de Sheeta. Ele próprio tinha ficado ferido, e um fio de sangue escorria de um dos flancos; embora fosse uma ferida ligeira, irritou-o. Olhando para a pantera, saltou sobre ela, com espantosa fúria, e fê-la em postas. Depois, voltando a rugir, aproximou-se do homem da selva, farejando-o da cabeça aos pés. Em seguida voltou o corpo, com uma das grandes patas. Cheirou-o novamente... e lambeu, com a língua vermelha de sangue, a cara de Tarzan. Foi nesse momento que Tarzan abriu os olhos.

Acima dele, fitando-o com os olhos amarelados e redondos, lambendo-lhe a cara, estava um grande leão. O homem da selva tinha, muitas vezes, visto a morte de perto... mas nunca tão de perto como naquele instante, pois pensava agora que não teria mais do que alguns segundos para viver... Estava ainda aturdido pela pancada, e por isso não reconheceu o leão.

Pouco depois, porém, viu melhor e reconheceu a fera... e ao mesmo tempo surgiu na sua mente a ideia de que Numa não parecia disposto a devorá-lo, pelo menos imediatamente. A situação, no entanto, era difícil quanto podia ser. O leão tinha uma das patas sobre o seu peito, e se Tarzan fizesse qualquer movimento para se levantar... podia enfurecer-se e atacar. Tarzan, todavia, não estava disposto a ficar ali, imóvel... Surgira na sua mente outra ideia, a de que a rapariga que o atacara pelas costas devia ir nessa altura a fugir tão apressadamente quanto pudesse.

Numa fitava-o nos olhos, e era evidente que sabia que ele estava vivo. A certa altura, o leão inclinou a cabeça e deixou escapar uma espécie de latido que Tarzan reconheceu... um som onde não havia raiva nem expressão de fome. Decidiu arriscar tudo.

— Afasta-te, Numa!... —ordenou.

Apoiou a palma da mão no peito da fera e empurrou. No instante seguinte estava de pé e, com os dedos crispados no cabo da faca, esperava o que iria acontecer. Foi então que viu, pela primeira vez, o corpo despedaçado de Sheeta. Olhou o felino morto e o felino vivo, e viu as marcas da luta no flanco do leão. Então compreendeu que Numa o salvara das garras da pantera.

Parecia inacreditável, e no entanto não podia haver qualquer dúvida. Aproximou-se do leão e, sem qualquer espécie de receio, examinou-lhe as feridas, que viu serem superficiais. Numa roçou a grande cabeça pelo ombro de Tarzan, e o homem da selva, afagou-o lentamente.

Então Tarzan pegou na sua lança e pôs-se em busca do rasto da rapariga. Viu que se dirigia para leste. Uma ideia súbita fez com que procurasse o medalhão... e constatasse que desaparecera novamente...

Não havia qualquer expressão de cólera na face do homem da selva, a não ser uma leve contracção dos maxilares; levou a mão à cabeça, atrás, e sentiu o ligeiro inchaço provocado pela pancada. A sombra de um sorriso encurvou-lhe os lábios. Não podia deixar de reconhecer que ela o surpreendera limpamente, e que dispunha sem dúvida de grande coragem para se meter sozinha, armada apenas com uma pistola, pela selva que teria de atravessar a fim de chegar a Wilhelmstal. Tarzan admirava a coragem, tinha suficiente grandeza para a reconhecer — mesmo numa espia alemã. Mas essa mesma coragem a tornava mais perigosa... e simultaneamente tornava mais necessário impedi-la de agir. Era preciso alcançá-la quanto antes, e Tarzan partiu, num passo de corrida que poderia manter durante horas sem se cansar.

Era improvável que a jovem espia pensasse em percorrer, a pé, as trinta milhas que a separavam de Wilhelmstal, em menos de dois dias. Quando pensava nisso, Tarzan ouviu o silvo de uma locomotiva, para leste. Compreendeu que a via férrea funcionava novamente, após uma paragem de vários dias. Se o comboio ia para o sul, a jovem espia far-lhe-ia sinal para parar... E tudo parecia indicar que as coisas aconteciam como Tarzan as imaginava, pois ouviu quase ao mesmo tempo, a distância, o ruído dos freios apertados e o ranger das rodas sobre a via... e um instante depois distinguiu de novo o arfar da locomotiva.

O homem da selva seguiu a pista até alcançar a via férrea, onde as marcas terminavam. Pelo som, podia entender que o comboio seguia realmente para o sul. Tudo acontecera como ele supusera. Agora só lhe restava seguir para a povoação de Wilhelmstal, onde esperava encontrar Fritz Schneider, a rapariga e o seu medalhão de oiro.

Era noite quando Tarzan chegou à povoação. Rondou pelos arredores, tentando reconhecer o terreno e verificar se era possível, a um homem branco quase nu, entrar em Wilhelmstal sem despertar suspeitas. Havia muitos soldados e a povoação estava fortemente patrulhada. Tarzan podia avistar uma sentinela a uns cem metros de distância, caminhando de um lado para o outro. Não seria difícil passar sem ser visto, mas entrar na povoação e fazer buscas era praticamente impossível para um homem sem roupas, como ele.

Avançou, aproveitando todas as possibilidades de se ocultar, e passou para além da sentinela até alcançar as sombras de uma casa, já na retaguarda das linhas de vigilância. Daí, deslizou entre um edifício e outro... mas de súbito a sua presença foi descoberta por um cão, nas traseiras de um «bungalow». O animal aproximou-se de Tarzan, rosnando. O homem da selva ficou imóvel, junto de uma árvore. Podia ver luz dentro do «bungalow», e vultos uniformizados. Esperava que o cão não ladrasse...

O cão não ladrou, mas continuou a aproximar-se e a rosnar. Atacou no momento exacto em que se abria uma das portas do «bungalow» e um homem aparecia no limiar. Era um cão grande, tão corpulento como Dango, a hiena, e atacava com o ímpeto de Numa. Tarzan ajoelhou e o animal saltou sobre ele, para o morder na garganta... Apenas... o cão não sabia que enfrentava um homem diferente dos outros... Os seus dentes não chegaram a cravar-se, porque dedos de aço lhe rodearam o pescoço, apertaram, sacudiram... e atiraram para um lado o corpo morto. Da porta do «bungalow», o homem chamava:

— «Simba»!

Não houve resposta, e o homem desceu os degraus e encaminhou-se para a árvore. À luz que vinha pela porta aberta, Tarzan pôde distinguir um oficial alemão, alto e de ombros largos. O homem da selva recuou para a sombra do tronco, e o alemão aproximou-se... Estava a uns três metros de distância quando Tarzan saltou. O choque derrubou o oficial, dedos fortes apertaram e torceram ...e um momento depois o corpo do alemão estava imóvel, junto do corpo do cão.

Tarzan olhou para o alemão... e o uniforme que ele envergava deu-lhe a solução para o seu problema. Dez minutos depois, um oficial alto e de poderosos ombros atravessava o terreno e afastava-se... deixando para trás um cão e um homem quase despido... ambos mortos.

Encaminhou-se ousadamente ao longo da pequena rua, e os que passavam não podiam saber que sob aquele uniforme de oficial do «kaiser» batia um coração selvagem e sequioso de vingança, um coração cheio de ódio por todos os alemães. A primeira preocupação de Tarzan era descobrir o hotel, pois aí encontraria seguramente a rapariga, e onde ela estivesse devia estar o capitão Schindler... que era seu aliado, seu amante, ou ambas as coisas... Ali estaria também, sem dúvida, o medalhão...

Descobriu finalmente o hotel, um edifício baixo, de dois andares, com uma varanda a todo o comprimento das fachadas. Havia luzes acesas nos dois andares, e no interior podia ver oficiais alemães.

Tarzan esteve tentado a entrar e perguntar por aqueles a quem buscava, mas pensou melhor e decidiu reconhecer o terreno. Sem ruído, depois de ter espreitado para todas as janelas do andar térreo, içou-se para a cobertura da varanda e continuou as suas investigações no andar superior. Numa esquina das traseiras do hotel, viu uma janela cujas persianas estavam corridas. No entanto ouvia lá dentro um rumor de vozes, e a certa altura um vulto recortou-se em sombra na persiana. Parecia o vulto de uma mulher, mas a aparição foi demasiadamente breve para que Tarzan pudesse ter a certeza. Aproximou-se da janela e escutou... Sim, eram um homem e uma mulher que se encontravam ali. Distinguia as vozes, embora não as palavras porque falavam em tom muito baixo.

O quarto ao lado daquele estava às escuras. Tarzan aproximou-se da janela e escutou... Nenhum ruído. Empurrou os batentes e entrou. O quarto estava vazio. Tarzan atravessou-o, abriu a porta e olhou para o corredor deserto. Então dirigiu-se para a porta do quarto onde estavam o homem e a mulher. Agora podia ouvir o que diziam, porque falavam mais alto, como a discutir. A mulher estava a falar:

— Trouxe o medalhão, como ficou combinado entre você e o general Kraut, para me identificar. Não trago outras credenciais, isto basta. Falta apenas que me entregue os papéis, para eu partir...

O homem disse qualquer coisa em voz baixa... e então a mulher voltou a falar, num tom onde havia desprezo e talvez medo:

— Não se atreva, capitão Schneider! Não se atreva a tocar-me!

Foi nesse momento que Tarzan abriu a porta do quarto e entrou. Viu um oficial alemão de grande corpulência, pescoço de touro, que passava um braço em volta da cintura de «Fraulein» Kircher e, com a outra mão, lhe curvava a cabeça para trás, tentando beijá-la na boca. A jovem debatia-se com raiva, mas os seus esforços pareciam vãos...

Schneider ouviu o ruído da porta a abrir-se e a fechar-se, e voltou-se violentamente, largando a rapariga.

— Que significa esta intrusão, tenente?... — bradou, notando os galões do uniforme. — Saia imediatamente !

Tarzan não respondeu com palavras, mas o homem e a rapariga ouviram-no soltar um rosnido rouco e feroz — que fez estremecer «Fraulein» Kircher e levou uma palidez lívida à face do alemão, que agarrou a coronha da sua pistola; mas, antes que Schneider pudesse empunhar a arma, Tarzan arrancou-lha e atirou-a para o pátio. Então o homem da selva recuou para a porta e, lentamente, despiu a túnica do uniforme.

— Você é o capitão Schneider?... — perguntou ele.

— Sim, e depois?... — volveu o alemão.

— Eu sou Tarzan dos Macacos... — disse o homem da selva, em voz calma. — Isto explica-lhe a intrusão.

Espantados, o oficial e a rapariga viram-no despir rapidamente as calças e aparecer diante deles só com a tanga que usava, nu e poderoso. A jovem reconheceu-o.

— Não toque na sua arma... — avisou Tarzan.

— Aproxime-se!

Ela deixou pender a mão e obedeceu. Tarzan tirou-lhe a pistola e lançou-a também para fora. Tinha visto o alemão ficar lívido ao ouvir o seu nome, e compreendeu que por fim havia encontrado o assassino. Finalmente... Jane ia ser parcialmente vingada... apenas parcialmente, porque havia demasiados alemães e a vida era curta...

— Que quer de mim?... — balbuciou Schneider.

— Vai pagar o preço do que fez no pequeno «bungalow» da região dos Waziri... — replicou o homem da selva.

Schneider estremeceu, grunhiu ameaças... Tarzan fechou a porta à chave e atirou a chave para onde atirara as armas. Depois disse, olhando para a rapariga:

— Afaste-se. Tarzan vai matar!

O alemão cessou de ameaçar e tornou-se suplicante.

— Eu... eu tenho mulher e filhos... em casa...

— implorou. — Não fiz nada..-. Eu...

— Vai morrer como convém aos da sua raça...

— disse Tarzan — ... com sangue nas mãos e uma mentira na boca...

Adiantou-se para Schneider. O alemão compreendeu que não podia fugir. Era um homem forte, quase tão alto como Tarzan e mais pesado.

Baixou a cabeça e carregou, atacando como um touro, impelido pela raiva da fera encurralada.

Tarzan deteve-o a meio do impulso e vergou-o, dobrando-o sobre uma mesa que se quebrou. A jovem olhava, espantada, a luta feroz. Viu que Schneider tentava agarrar o pescoço do homem da selva... e que este se dispunha a morder o alemão, rosnando como uma pantera enfurecida. Schneider viu o mesmo e, doido de pavor, conseguiu libertar-se e correr para a janela... mas o homem da selva era demasiadamente rápido para ele. Mãos poderosas o agarraram e o atiraram violentamente contra a parede oposta. Tarzan saltou de novo e dominou o alemão, que começara a gritar agudamente, possuído por um terror inexprimível...

Tarzan segurou-o pela garganta e empunhou a sua faca, Schneider estava esmagado contra a parede, de maneira que, embora os seus joelhos se dobrassem, a mão do homem da selva o impedia de cair. Tarzan apoiou a ponta da faca ao baixo ventre do alemão.

— Vais morrer como mataste... — disse, numa voz terrível.

— Oh, Deus! Não... — exclamou a rapariga, cambaleando. — É demasiadamente nobre para fazer isso...

Tarzan olhou-a por um instante.

— Sim... não posso... Não sou alemão... Schneider gemia, suplicante.

— Eu não fiz... Ela está...

A faca de Tarzan cravou-se-lhe no coração, de um só golpe, e assim morreu o «Hauptmann» Fritz Schneider, um homem repugnante e miserável. Então Tarzan olhou a rapariga.

— O medalhão!

— Tem-no ele... no bolso... — balbuciou Bertha Kircher.

Tarzan revistou os bolsos do alemão, achou a jóia e guardou-a. Voltou a falar.

— Os papéis... — disse, estendendo a mão.

Sem uma palavra, ela entregou-lhe um documento dobrado. Tarzan fitou-a longamente antes de falar de novo.

— Vim também para a levar... mas seria difícil fazê-la sair daqui. Pensei em matá-la... como jurei matar todos os da sua raça... Não sou alemão... e não posso fazer isso... Não posso matar uma mulher, como esse homem matou a minha.

Aproximou-se da janela, acabou de levantar as persianas... e um instante depois desaparecia na noite. Então Bertha Kircher aproximou-se do cadáver de Schneider, meteu a mão num bolso interior da túnica e tirou um pequeno rolo de papéis que guardou, antes de se dirigir à janela e gritar por socorro...

 

Quando o sangue fala

Tarzan estava irritado consigo mesmo. Tinha tido em seu poder a espia alemã, e deixara-a escapar-se. Sem dúvida matara Schneider e von Goss, sem dúvida que se vingara largamente dos homens da companhia germânica que haviam assassinado, saqueado e incendiado em sua casa, no pequeno «bungalow» da região dos Waziri. Havia ainda um outro oficial... mas não pudera encontrá-lo. Procurava-o ainda. Sabia que era o tenente Obergatz, mas o seu informador dissera-lhe que o tenente havia sido enviado em missão especial... e ignorava para onde.

Mas o facto de ter permitido que considerações de ordem sentimental retivessem a sua mão, quando lhe teria sido fácil acabar com Bertha Kircher, constituía um espinho para ele. Envergonhava-se da sua fraqueza, e embora o papel de que se apoderara tivesse permitido aos ingleses esmagar um ataque de flanco que deveria ter sido inesperado, sentia-se descontente consigo mesmo. Talvez que as raízes do seu descontentamento se firmassem, sobretudo, na certeza de que, se lhe surgisse outra oportunidade, voltaria a não ser capaz de matar a mulher... qualquer mulher.

Considerava essa fraqueza como um resultado da acção corruptora da civilização... essa civilização que, agora mais do que nunca, desprezava.

Considerava as criaturas civilizadas como produtos adulterados de uma vida falsa, viciosa e hipócrita. Mas no seu coração debatia-se esse desprezo contra uma força oposta e igualmente poderosa — a sua estima e a sua dedicação pelos amigos que tinha nesse mundo civilizado.

Criado entre feras, como fora, não contraía facilmente amizades. Tinha apenas gente conhecida, em grande número, mas amigos tinha poucos. Por qualquer desses poucos amigos daria a sua vida, no entanto, como sabia que fariam por ele. Mas nenhum desses se encontrava ali, na África, a lutar ao lado das tropas inglesas. Assim, cansado de assistir à ferocidade da luta estúpida e cruel, entre criaturas humanas, e sabendo que os alemães estavam agora em plena retirada, Tarzan decidiu ceder ao insistente apelo da selva da sua juventude.

Porque nunca contraíra obrigações militares, e a obrigação moral que se impusera estava cumprida, desapareceu do acampamento inglês, tão misteriosamente quanto misteriosa fora a sua aparição, meses antes.

Por mais de uma vez Tarzan regressara à sua vida de primitivo, e só o amor pela sua companheira o fizera voltar à civilização; mas agora Jane estava morta e Tarzan sentia que ia partir, para sempre, afastar-se dos lugares habitados pelo homem... e viver e morrer entre as feras, como vivera desde a infância até à idade adulta.

Entre ele e o seu destino estendia-se a selva imensa, a imensa floresta primitiva onde, em muitos pontos, ele seria o primeiro homem a passar. Mas essa perspectiva não desanimava o Tarmangani

— antes o excitava e impelia, porque nas suas veias corria o sangue desses homens sem fronteiras, que tinham tornado grande parte do mundo habitável para a raça humana. Os problemas de comida e água, que teriam sido os mais importantes para uma criatura vulgar, não preocupavam Tarzan. A selva era o seu ambiente natural, e o sentido da vida nas florestas era, para ele, tão instintivo como para as feras. Tal como os outros animais da selva, podia farejar a água a grandes distâncias, ou descobri-la onde ela existia sob o terreno.

Durante vários dias, Tarzan percorreu uma região rica em rios e em caça. Avançava devagar, caçando e pescando, confraternizando ou lutando com os outros animais de presa. Voltou a encontrar Manu, o pequeno macaco que guinchava nas altas ramadas e parecia troçar do grande Tarmangani, e voltou a ter o pressentimento instintivo da aproximação de Histah, a serpente. Por Manu, soubera notícias dos grandes macacos, os Mangani, e tivera a informação de que alguns deles habitavam aquela região da selva, embora se encontrassem então mais para o norte, em busca de comida.

— Mas há Bolgani, o chimpazé... — disse Manu.

— Queres encontrar Bolgani?

Manu fazia a pergunta num ar de troça, e Tarzan compreendeu que o pequeno macaco supunha que todos os animais receavam Bolgani.

Então o homem da selva bateu com os punhos no poderoso peito, bradando:

— Eu sou Tarzan! Quando Tarzan era ainda um balu, matou Bolgani. Tarzan procura os Mangani que são seus irmãos, mas não procura Bolgani. Que Bolgani não atravesse o caminho de Tarzan.

Manu, o pequeno macaco, ficou muito impressionado, porque o povo da selva tem a tendência de se vangloriar e acredita sem custo. Foi então que condescendeu em dar a Tarzan mais informações sobre os Mangani.

— Eles foram por ali, por ali e por ali... —disse ele, estendendo o braço escuro e comprido na direcção do norte, do oeste e do sul. — Porque ali... — e apontava para oeste — ...há muita caça... Mas no meio há uma grande região onde não se encontra água nem comida, e assim eles têm de ir para além... — outra vez o braço comprido e esguio descreveu um largo círculo, que explicou a Tarzan a grande volta que os macacos deviam dar para voltarem aos seus terrenos do oeste.

Isso estava bem para os Mangani, preguiçosos e nunca interessados em viajar rapidamente, mas para Tarzan o caminho direito era o melhor. Atravessaria a região seca, numa terça parte do tempo de que precisaria para ir dar uma longa volta pelo norte. Assim, continuou a avançar para oeste, e atravessando uma cordilheira de baixas montanhas avistou um enorme planalto, rochoso e desolado. Muito ao longe distinguiu outra cordilheira, para além da qual deviam ficar os terrenos de caça dos Mangani.

Então, aí, reunir-se-ia a eles, por algum tempo, antes de prosseguir na direcção da costa e da barraca que seu pai construíra à beira da selva, na angra do grande mar.

Tarzan estava cheio de planos. Reconstruiria e alargaria a barraca onde nascera, acrescentaria armazéns onde os gorilas pudessem guardar comida, no tempo da abundância, para servir nas épocas de penúria... uma coisa que nenhum macaco, nunca, teria pensado em fazer. A tribo instalar-se-ia permanentemente ali, e ele seria o rei, como já havia sido. Tentaria ensinar aos Mangani alguma coisa do melhor que aprendera com os homens, embora, conhecendo bem os cérebros dos grandes macacos, receasse que todo o seu trabalho viesse a ser inútil.

Tarzan não tardou a verificar que o terreno por onde seguia era áspero e difícil, talvez o mais áspero que encontrara até então. O planalto era cortado por frequentes desfiladeiros e gargantas, cuja travessia exigia, por vezes, horas e horas de esforços. A vegetação era esparsa e de um tom acastanhado, o que dava à paisagem um aspecto depressivo. Havia grandes rochedos espalhados em todas as direcções, até onde a vista alcançava, parcialmente enterrados na fina poeira que se levantava a cada passo. O sol brilhava, inexorável, num céu completamente limpo de nuvens.

Durante todo um dia Tarzan avançou por aquele terreno rebarbativo e árido ...e quando o sol desceu na linha do horizonte, a impressão que sentiu foi a de não ter chegado a avançar fosse o que fosse.

Não avistara uma única criatura viva além de Ska, o abutre, que nas alturas o seguia teimosamente desde que ele entrara na ressequida solidão. Nem o mais pequeno escaravelho, que indicasse haver ali qualquer espécie de vida. Tarzan tinha fome e sede quando se estendeu para descansar, nessa noite, durante algumas horas. Decidiu prosseguir antes do nascer do sol, ainda de noite e enquanto o calor não começava a apertar. Mesmo o poderoso Tarzan conhecia as suas limitações, e sabia que não poderia descobrir comida ou água onde tais coisas simplesmente não existiam. Era uma experiência nova, para ele, encontrar uma região de tal maneira árida e terrível no coração da sua amada África. O próprio Sara tinha os seus oásis... mas ali não havia um metro de terreno hospitaleiro.

Todavia, Tarzan não duvidava de que alcançaria a região fértil e de abundante caça, de que Manu lhe falara, embora tivesse a certeza de que a alcançaria com a pele seca e o estômago vazio. Assim, depois de um breve descanso, recomeçou a caminhar até romper o dia, quando sentiu de novo a necessidade de parar. Estava novamente à beira de uma das fundas gargantas, a oitava que lhe surgia, cujas escarpas teriam posto à prova a força de um homem que não estivesse cansado e tivesse podido comer e beber. Pela primeira vez, ao olhar a descida e ao encarar a escalada da outra muralha, sentiu que a dúvida o assaltava. Não temia a morte — com a memória da perda de Jane, quase a desejaria — mas o instinto da sobrevivência era ainda forte dentro dele.

Lutaria com a Grande Parca, até ao fim, até ser inexoravelmente dominado e vencido.

Uma sombra projectou-se no chão, vinda de cima, e olhando para o céu Tarzan avistou Ska, o abutre, que voava em círculos sobre ele. A sombria persistência da ave sinistra teve o efeito de o firmar na sua determinação. De pé, soltou o grande brado de desafio da sua tribo.

— Eu sou Tarzan... — gritou — ...sou o Senhor da Selva. Tarzan dos Macacos não será para Ska, comedor de podridão! Vai para o covil de Dango e come os sobejos das hienas, porque Tarzan não deixará aqui o seu corpo!

Mas, antes de chegar ao fundo do desfiladeiro, foi forçado a reconhecer que a sua poderosa força diminuía. E, quando se deixou cair, exausto, em baixo, e viu na sua frente a alta escarpa que teria de escalar, mostrou os dentes e rosnou. Durante uma hora ficou a descansar na fresca sombra do fundo do abismo. À sua volta o silêncio era total. Nem pássaros, nem zumbir de insectos, nem mesmo o deslizar sussurrante dos répteis. Aquele era em verdade o vale da morte. Sentiu que a influência depressiva do horrível lugar o envolvia... mas ergueu-se, embora cambaleando... Era Tarzan... o poderoso Tarzan... e continuaria a sê-lo enquanto o seu coração continuasse a bater.

Ao atravessar o fundo do desfiladeiro, viu qualquer coisa caída junto da muralha para a qual se dirigia... qualquer coisa diferente de tudo o mais, mas que entretanto parecia fazer parte daquilo — como um actor faz parte do cenário. Como para dar mais relevo ao achado, o sol, Kudu, surgiu acima da muralha a leste, iluminando a cena como se fosse um gigantesco projector. Aproximando-se, Tarzan viu o crânio e os ossos de um esqueleto humano, entre o que parecia restos de roupas e equipamento. O que viu, quase fez com que o homem da selva esquecesse a sua própria situação, na contemplação da história sugerida por aqueles destroços de uma tragédia ocorrida muitos anos antes.

Os ossos estavam bem conservados, o que indicava que a carne devia ter sido devorada pelos abutres. Nenhum se encontrava partido. Mas o equipamento revelava a longa passagem do tempo. Perto do esqueleto estavam um elmo de cobre martelado e uma couraça de aço, além de uma comprida espada direita e de um antigo arcabuz. Os ossos eram os de um homem de grande estatura, certamente de enorme força e vitalidade — como devia ter sido para se internar tão profundamente pelo coração da África selvagem, com um tão considerável e, ao mesmo tempo, tão fútil armamento.

Tarzan sentiu uma profunda admiração por aquele anónimo aventureiro de tempos idos. Que ideias de batalhas e de glória teriam palpitado dentro daquele crânio, agora vazio e perdido no fundo de um desfiladeiro? Tarzan curvou-se, para olhar melhor. Tudo o que tinha sido couro havia desaparecido, sem dúvida devorado por Ska. Não havia botas, mas algumas fivelas de metal estavam caídas sobre as pedras. Sob os ossos de umas das mãos, o homem da selva encontrou um cilindro, de metal também, com cerca de vinte centímetros de comprimento e cinco de diâmetro. Apanhando-o, Tarzan viu que estava ainda selado e em tão perfeito estado de conservação como quando aquele homem morrera, vários séculos antes.

Um pequeno esforço, contudo, bastou para que Tarzan abrisse o cilindro, e descobrisse umas quantas folhas de papel amarelado, cobertas por uma escrita cerrada e fina. As palavras eram espanholas — assim pensou Tarzan — e ele não podia decifrá-las. Na última folha havia um mapa grosseiramente traçado, com numerosos pontos de referência. Não sendo capaz de compreender, Tarzan meteu tudo dentro do cilindro, e por um instante esteve tentado a deixar o cilindro onde o encontrara. Mas uma curiosidade insatisfeita levou-o a guardar o seu achado na aljava, juntamente com as flechas... embora pensando sombriamente que decorreriam outros tantos séculos antes que aquele cilindro voltasse a ser encontrado por alguém, junto dos seus próprios ossos.

Então, com um olhar de despedida para o velho esqueleto, Tarzan ocupou-se da árdua tarefa de escalar a penedia. Subiu lentamente, com imenso esforço, escorregando e salvando-se por sorte, parando frequentemente. Nunca faria ideia de quanto tempo demorou a tremenda escalada. Quando, finalmente, conseguiu chegar acima, deixou-se cair no chão, sem forças para se mover. Decorreram longos minutos antes que conseguisse soerguer-se, firmar os joelhos no chão... levantar-se sobre os pés. Mas a sua determinação era evidente no endireitar dos ombros, no erguer da cabeça. Olhou em frente. As montanhas, a oeste, pareciam agora mais próximas... Tarzan sabia que para além delas estaria o terreno fértil de que Manu falara... Mas tudo estava ainda longe, muito longe... Mesmo que o caminho não fosse cortado por outro desfiladeiro, as possibilidades de subir as montanhas pareciam muito poucas, ainda que lá chegasse. No céu, Ska continuava a voar, lento e agoirento, mais baixo.

Milha após milha, Tarzan avançou, como um pesadelo. Outro homem, qualquer outro, ter-se-ia deixado cair no chão, à espera da morte. Tarzan avançava, cambaleando mas de dentes cerrados, impelido por uma vontade que não cedia. A certa altura, porém, a sua marcha tornou-se quase exclusivamente maquinal... para a frente... para a frente... para a frente...! As montanhas tinham tons azulados na distância e pareciam recuar diante dele... Odiou-as, numa espécie de delírio pensou que as montanhas eram também alemãs... como aqueles homens que haviam devastado o seu lar...

Essa ideia subconsciente criou raízes, parecendo comunicar-lhe novas forças... Durante algum tempo caminhou sem cambalear, em passos quase firmes mas quando caiu verificou que não era capaz de se levantar do chão... Estava tão exausto que não conseguia erguer-se... Rastejou... para cair de novo... Foi num desses períodos de esgotamento total que ouviu sobre ele um pesado bater de asas...

Com um esforço desesperado voltou-se de costas... e viu Ska retomar altura, bruscamente. Isso fez com que a mente de Tarzan ficasse mais clara.

— Estará o fim tão próximo?... — pensou. — Ska sabe que estou tão perto da morte que se atreve a poisar sobre o meu corpo?

Nesse momento, uma ideia atravessou o cérebro de Tarzan... e a sua expressão foi a de uma fera acossada e astuta. Fechando os olhos, estendeu um braço de maneira a tapá-los, para os proteger do bico de Ska... e ficou imóvel, à espera. Sabia-lhe bem descansar, porque o sol estava agora encoberto por nuvens escuras e Tarzan estava na verdade exausto. Receava adormecer... porque sentia que se assim fosse não acordaria mais. Concentrou toda a sua vontade em continuar desperto. Nem um músculo se movia... e para Ska, que continuava a voar em círculo, tornou-se evidente que o fim chegara e que a sua persistência ia ser finalmente recompensada.

O abutre foi descendo, em círculos cada vez menores. O homem caído continuava imóvel... Ska era desconfiado, porém, e não se arriscava... Por duas vezes poisou de leve sobre o grande peito nu, para logo levantar voo novamente. À terceira vez, as suas garras firmaram-se na pele morena... e no mesmo instante o corpo aparentemente morto voltou à vida... Uma grande mão se estendeu como um raio... e antes de poder fugir... Ska estava agarrado pelo homem a quem queria devorar.

Ska lutou, mas não era adversário bastante para um Tarzan, mesmo moribundo... O comprido pescoço sem penas foi torcido e quebrado... e momentos depois Tarzan cravava os dentes no corpo do abutre morto. A carne era dura, seca, tinha mau sabor e mau cheiro... mas era comida... e o sangue era bebida. No fundo de si mesmo, Tarzan era um gorila...-, e um gorila quase morto de fome e de sede.

No entanto, embora enfraquecido, o homem da selva continuava a ser capaz de se dominar. Comeu pouco, poupou o resto... e então, sabendo que podia agora dormir sem receio, estendeu-se e adormeceu. Foi acordado pela chuva que caía violentamente sobre o seu corpo. Sentou-se, e com as mãos em concha recolheu as preciosas gotas de água. Pouco podia beber, de cada vez... mas sentia a garganta menos seca, sentia que as forças lhe voltavam. A pouca carne que comera, o sangue e a chuva, tinham-no revigorado de algum modo.

Agora podia ver que as montanhas estavam perto, e embora não houvesse sol, a paisagem pareceu-lhe quase alegre. Tarzan compreendeu que estava salvo. O abutre que o queria devorar, e a chuva providencial, tinham afastado a morte que pouco antes surgira quase como inevitável.

Voltou a comer uns pedaços da desagradável carne de Ska, e levantou-se... Uma parte da sua poderosa força voltara aos músculos cansados; foi com passo firme que se encaminhou novamente para as montanhas... A noite envolveu-o antes de lá chegar, mas continuou a caminhar até sentir sob os pés um declive íngreme, que lhe indicava ter alcançado o sopé dos montes. Então estendeu-se no chão, para voltar a dormir e esperar pela manhã... até poder ver qual a passagem mais fácil para as terras que ficavam para além. A chuva cessara, mas o céu continuava escuro.

Foi assim que, na manhã seguinte, Tarzan atravessou os caminhos entre o vale da morte e uma região bela como um parque, abundante em caça. Em baixo estendia-se um fundo vale arborizado, ao longo de cujo centro a vegetação mais densa indicava um rio para além do qual a selva se alongava por muitas milhas, até junto de altas montanhas de píncaros nevados. Era uma região que Tarzan nunca vira antes, e era pouco provável que algum homem branco a tivesse visto alguma vez... a não ser, talvez, o aventureiro cujo esqueleto repousava no fundo do desfiladeiro sinistro.

 

Tarzan e os grandes macacos

Durante três dias o homem da selva descansou, recuperando forças, comendo frutos e nozes, ou apanhando pequenos animais fáceis de caçar. Ao quarto dia partiu para explorar o vale e procurar os grandes macacos. O tempo era um factor sem importância — para Tarzan não interessava alcançar a costa dentro de um mês ou de um ano. Todo o tempo era seu, em toda a África. A sua liberdade era total, havia sido cortado o último laço que o prendia à civilização. Estava só, mas não se sentia isolado. A maior parte da sua vida fora passada assim, e embora não houvesse alguém da sua espécie, sentia-se rodeado pelo povo da selva, cuja familiaridade nunca lhe repugnava. Interessava-se por todos, havia aqueles de quem se tornava facilmente amigo, e havia igualmente os seus inimigos de sempre, cuja presença animava uma existência que, sem eles, acabaria por ser monótona.

Tarzan caminhara uma curta distância na direcção do sul, quando o seu olfacto captou o cheiro de Gomanganis, os negros. Eram muitos, e juntamente com o cheiro deles havia o de uma Tarman-gani, uma mulher branca. Saltando por entre as ramadas das árvores, Tarzan aproximou-se do ponto de onde vinha o cheiro. Aproximou-se cautelosamente, por um dos lados mas sem se preocupar com o vento, pois sabia que os homens, com os seus sentidos embotados, só poderiam descobrir a sua presença se o vissem ou ouvissem, e mesmo assim de muito perto. Qualquer animal da selva teria sentido, pelo faro, a presença de Tarzan — mas os homens, mesmo selvagens, não faziam parte da selva.

Através da folhagem densa de uma grande árvore, Tarzan viu passar o grupo — um bando de negros em chusma, alguns envergando o uniforme das tropas indígenas alemãs, outros vestindo apenas uma peça desse uniforme, e outros ainda com os trajos mais simples dos seus maiores — isto é, quase nus. Vinham com eles muitas mulheres negras, rindo e falando em voz alta. Os homens estavam armados com rifles germânicos, da mesma origem dos cintos e munições.

Nenhum oficial branco os acompanhava, mas Tarzan tinha a certeza de que os negros tinham pertencido a qualquer companhia de soldados indígenas. Possivelmente haviam assassinado os oficiais e desaparecido na selva, com as suas mulheres, ou com as mulheres que talvez tivessem raptado das aldeias por onde haviam passado. Era evidente que tinham pressa de pôr a maior distância possível entre eles e a costa, procurando refúgio nas florestas do interior. Aí, ser-lhes-ia fácil inaugurar um reino de terror entre os nativos mal armados, e por assaltos e roubos enriquecerem em mercadorias e mulheres à custa da região onde se instalassem.

Entre duas das mulheres negras marchava uma rapariga branca, esbelta. Ia sem chapéu e tinha a roupa desalinhada e rasgada. De vez em quando, e sem provocação aparente, uma ou outra das negras batia-lhe ou empurrava-a rudemente. Tarzan observava, com os olhos semicerrados. O seu primeiro impulso tinha sido o de saltar para a frente e libertar a rapariga. Mas reconhecera-a no primeiro instante, e por isso hesitava.

Que podia importar-lhe o que viesse a acontecer a uma espia alemã? Não se sentira capaz de a matar, ele próprio, em consequência de uma inibição instintiva que não lhe permitia maltratar uma mulher... mas nada tinha a ver com o mal que outros lhe fizessem. A sorte de Bertha Kircher seria agora infinitamente pior do que a morte rápida que ele lhe teria dado, mas era uma alemã e merecia isso. Assim, Tarzan deixou passar os negros que levavam Bertha... pelo menos até à altura em que um retardatário lhe sugeriu uma ideia vinda do passado, vinda dos tempos em que Kulonga, filho de Mbonga, o chefe, matara Kala.

O guerreiro atrasado, que decerto parara por qualquer motivo, ia a um quarto de milha de distância do bando. Apressava-se para ir juntar-se aos outros, quando Tarzan o viu. O negro ia a passar sob a árvore, quando um nó corredio lhe caiu sobre os ombros, apertando-lhe o pescoço. O resto do bando estava ainda à vista, e um dos negros olhou para trás, por acaso... a tempo de ver o seu companheiro subir verticalmente no espaço e desaparecer entre as ramadas de uma árvore alta.

O negro soltou um grito, e todos olharam... e ficaram paralisados pelo espanto e pelo medo; mas Usanga, um negro corpulento que usava divisas de sargento no seu uniforme, precipitou-se em corrida, gritando aos outros para que o seguissem. Carregando as armas, os negros correram e, a uma ordem de Usanga, cercaram completamente a árvore onde o outro desaparecera. Usanga chamou, mas não obteve resposta; então avançou lentamente, com o rifle pronto para disparar, e espreitou para cima. Não avistou ninguém, fosse quem fosse. O cerco apertou-se mais, e cinquenta negros espreitavam através da folhagem da árvore. Para onde teria ido o companheiro? Tinham-no visto subir..-. e embora, desde esse momento, tivessem sempre olhado para a árvore, agora não o viam... Um deles, mais afoito do que os outros, trepou pelo tronco... para descer momentos depois e afirmar que não havia vivalma na folhagem.

Perplexos, e começando já a ter medo, os negros afastaram-se e, agora calados, olhando repetidas vezes para trás, seguiram o seu caminho... até que, cerca de uma milha para além do ponto onde o companheiro desaparecera, o viram a espreitá-los por detrás de um tronco, adiante deles. Gritando, correram para o tronco... mas o primeiro a chegar recuou bruscamente, de olhos esbugalhados, encolhendo-se como se receasse qualquer perigo espantoso.

E o terror do homem justificava-se. Fixada na ponta de um ramo cortado ...a cabeça degolada do desaparecido parecia olhá-lo sinistramente. Foi então que muitos quiseram voltar para trás, dizendo que haviam ofendido algum demónio da selva. Mas Usanga recusou-se a dar-lhes ouvidos, e disse-lhes que a tortura e a morte esperavam aqueles que voltassem para junto dos alemães. Por fim, os argumentos de Usanga prevaleceram, mas foi um bando sombrio, compacto, apavorado, que continuou a caminhar pelo vale.

É uma característica dos negros primitivos, a de esquecer — um pouco como as crianças — as causas de uma depressão, quando os efeitos dessa depressão desaparecem.

Assim, meia hora depois, o bando de Usanga retomara a atitude descuidada... e as sombras do medo haviam-se quase dissipado quando, numa volta da trilha, se lhes deparou o corpo sem cabeça estendido no chão, diante deles.

O pavor envolveu-os novamente. O que acontecera ao companheiro podia acontecer a qualquer deles — era uma hipótese provável. E se tais coisas aconteciam à luz do dia, o que viria a passar-se quando as trevas caíssem sobre eles? Tremiam, ao pensar nisso. A jovem branca não estava menos intrigada do que os seus captores, embora estivesse muito menos receosa; na verdade, qualquer morte rápida seria preferível ao que a esperava. Até então tivera apenas de suportar as pequenas crueldades das mulheres — embora devesse à presença delas o ter sido poupada a brutalidades incomparavelmente maiores, em especial da parte de Usanga. A mulher de Usanga fazia parte do grupo — e era uma negra quase gigantesca, talvez a única criatura viva que assustava o sargento negro...

Ao fim da tarde, o bando chegou a uma aldeia indígena, numa clareira, perto de um rio. Quando se aproximaram, os nativos saíram pela porta da paliçada que cercava a aldeia, e Usanga adiantou-se, com dois dos seus guerreiros, para parlamentar com o chefe da povoação. As experiências daquele dia tinham abalado os nervos do sargento, de maneira que estava pronto a parlamentar em vez de se apoderar da aldeia pela força das armas, como fizera de outras vezes. Agora, Usanga tinha a vaga convicção de que estava a ser espreitado por um demónio da selva, um poderoso demónio que dispunha de espantosas forças para castigar aqueles que o ofendiam. O sargento queria saber em que termos estavam as relações daquela gente com o seu demónio local, e se essas relações fossem boas tratá-los-ia com respeito.

Pela conversa, verificou-se que o chefe da aldeia dispunha de comida, cabras e criação, que poderia fornecer mediante certas condições... mas essas condições significavam a entrega de preciosas armas e munições, ou dos uniformes. Usanga compreendeu que teria de usar os rifles para obter comida. Uma solução aceitável foi encontrada por um dos homens de Usanga... a sugestão de que os soldados iriam caçar, no dia seguinte, trazendo para a aldeia carne fresca em troca da hospitalidade. O chefe concordou, estipulando a quantidade de carne que seria entregue em troca de farinha e outras mercadorias, além do abrigo de umas quantas cubatas que seriam postas à disposição dos visitantes. Assentes os pormenores, ao cabo de uma hora de discussão, os recém-chegados entraram na aldeia e instalaram-se nas cubatas.

Bertha Kircher ficou sozinha numa pequena cubata perto da paliçada, na extremidade da aldeia, e embora não ficasse amarrada nem guardada, foi avisada por Usanga de que não poderia fugir da aldeia sem correr um risco de morte certa, na selva em redor — onde, segundo diziam os nativos, abundavam os leões de grande tamanho e ferocidade.

- Virei ter contigo quando os outros estiverem a dormir...

Quando o negro se afastou, Bertha Kircher deixou-se cair no chão, tremendo convulsivamente e escondendo a cara entre as mãos. Compreendia agora por que razão as mulheres não tinham recebido ordem de a vigiar. Mas a mulher de Usanga não teria suspeitas? Não era estúpida, e sofrendo de ciúmes furiosos estava sempre alerta quanto às possíveis fantasias do marido. Bertha Kircher pensou em que só ela poderia salvá-la, se fosse avisada. Mas como?

Ao ficar só, livre da presença dos seus captores pela primeira vez desde a noite anterior, a jovem apressou-se a verificar se os documentos que tirara ao capitão Fritz Schneider estavam ainda cosidos no interior da sua roupa... No entanto... que valor tinham agora esses documentos, para o seu país?

Os nativos pareciam ter esquecido a sua existência; ninguém se aproximou da cubata, nem mesmo para lhe levar comida. Podia ouvi-los na outra extremidade da aldeia, rindo e gritando, e compreendeu que deviam estar a comer e a beber cerveja indígena — uma compreensão que aumentou ainda os seus receios. Terrível situação a sua, ser a única mulher branca no meio de um bando de negros embriagados, numa aldeia perdida no coração da selva africana! A única esperança residia na possibilidade de os negros se embriagarem ao ponto de ficarem inofensivos.

Caíra a noite, e ninguém tinha aparecido ainda. Bertha pensou que talvez pudesse sair em busca de Naratu, a mulher de Usanga — pois Usanga podia não esquecer a sua promessa de voltar. Saiu da cubata e, vendo que não havia ninguém perto, dirigiu-se para o outro lado da aldeia, onde os negros se banqueteavam em redor de uma fogueira. Aproximando-se, viu os soldados e os homens da aldeia sentados num vasto círculo em volta do lume, enquanto meia dúzia de guerreiros nus e bêbedos se entregavam a uma espécie de dança grotesca. A comida e a bebida circulavam, panelas e jarros passavam de mão em mão. A cerveja nativa começara já a fazer os seus efeitos, e alguns entregavam-se a actos licenciosos, com absoluto descaro.

Quando Bertha se aproximava, deslizando por entre a sombra das cubatas, foi avistada por uma mulher alta e enorme, que soltou um brado agudo e correu para ela. O ataque foi de tal maneira rápido e inesperado que as suas consequências seriam imprevisíveis se um dos homens não tivesse interferido. E então Usanga, notando a agitação, aproximou-se.

— Que queres?... — perguntou ele. — Comer e beber? Vem comigo!... — e o negro, passando-lhe um braço pelos ombros, arrastou-a na direcção do círculo.

— Não!... — gritou Bertha. — Quero Naratu! Onde está Naratu?

O grito pareceu acalmar bruscamente o negro, que por momentos se esquecera da sua cara metade.

Usanga olhou em volta, assustado, mas vendo que Naratu de nada se apercebera, ordenou ao guerreiro, que ainda segurava a negra enfurecida, para levar a rapariga de volta à sua cubata e ficar de guarda.

Apoderando-se de um jarro de cerveja, o negro fez sinal a Bertha para que o seguisse. Levou-a até à cubata e sentou-se à entrada, concentrando a sua atenção, por algum tempo, na bebida. A jovem sentou-se ao fundo da cubata, esperando não sabia que destino. Não podia dormir, e revolvia na mente desvairados planos de fuga que logo abandonava por serem impraticáveis. Meia hora depois, o negro que estava de guarda levantou-se, cambaleante, encostou a lança à parede e entrou na cubata. Sentou-se perto da rapariga, começou a conversar e foi-se chegando para ela, até que, estendendo o braço, podia tocar-lhe. A sua intenção era essa, e pô-la em prática. Bertha recuou.

— Não me toque!... — gritou. — Direi a Usanga, se não me deixar em paz!

O negro teve um riso de bêbedo e quis agarrá-la, mas nesse momento um vulto surgiu à entrada da cubata.

— O que há aqui?... — perguntou a voz de Usanga.

Quando o sargento negro percebeu o que se passava, correu com o guarda que entrara na cubata... mas não saiu atrás dele. Estava ainda mais embriagado do que o outro, e tentou, por sua vez, agarrar Bertha. A jovem bateu-lhe, empurrou-o...

e por fim ameaçou-o com a cólera de Naratu. A ameaça teve maior efeito do que as pancadas. Mudando de táctica, Usanga tornou-se suplicante, prometendo libertá-la. Entretanto, o negro que o sargento expulsara dirigia-se para a cubata de Naratu, resmungando.

Momentos depois, quando Usanga, irritado ao ver que promessas e súplicas de nada valiam, perdeu a cabeça e quis fazer prevalecer a força... uma fúria gigantesca entrou na cubata e lançou-se sobre ele, mordendo, arranhando e batendo. Usanga foi miseravelmente corrido, e tal era a raiva de Naratu que nem pensou na rapariga e perseguiu o marido.

Bertha ouviu-a gritar atrás de Usanga, pela rua da aldeia, e tremeu ao pensar no que a esperava... pois sabia que, o mais tardar, no dia seguinte, Naratu faria recair sobre ela a sua raiva ciumenta, que naquele momento tinha como alvo o marido.

Bertha estava só, havia alguns minutos, quando o guarda voltou. O homem parou à porta da cubata e entrou, dizendo:

— Agora ninguém virá interromper-me, mulher branca...

 

Tarzan, enquanto devorava a plenos dentes uma fatia cortada do corpo de Bara a que havia abatido com uma flecha certeira, tinha a vaga sensação de não estar em paz com a sua consciência. Na sua mente insinuava-se a recordação do vulto de uma rapariga branca, rodeada por um bando de negros, maltratada pelas mulheres negras e levada para um destino que seria seguramente horroroso. Debalde tentava apagar essa recordação, pensando que a rapariga era alemã e espia. Mas a ideia dominante, mau grado seu, era de que se tratava de uma mulher branca... Começou a pensar no que os negros lhe fariam... e para onde a teriam levado... No entanto reagia, dizendo a si mesmo que não devia voltar a ceder à mesma fraqueza que, em Wilhelms-tal, o impedira de matar a criatura...

A noite desceu e Tarzan instalou-se entre as ramadas de uma grande árvore, para dormir. Mas o sono não vinha... Os seus olhos teimavam em ficar abertos... e diante deles surgia sempre a figura de uma rapariga branca a quem as negras maltratavam e empurravam... e depois a mesma rapariga deixada à mercê dos homens na escuridão da noite. Com um rosnido de irritação, Tarzan levantou-se, sacudiu-se... saltou daquela árvore para a próxima, dessa para outra, e foi seguindo, por entre os ramos baixos, a pista do bando que vira passar horas antes. Não era difícil, pois os negros haviam caminhado por uma trilha aberta e o cheiro persistia, intenso, o que significava que não podiam estar muito longe. E não tardou a avistar a aldeia.

Furtivamente, silencioso como Numa, o leão, quando se aproxima da presa, Tarzan moveu-se em redor da paliçada. Na retaguarda da aldeia encontrou uma árvore cujos ramos se debruçavam sobre as estacas, e um momento depois estava dentro da aldeia.

Acabou por encontrar o cheiro que distinguira entre o dos Gomanganis, logo numa das primeiras cubatas por onde passou. A aldeia estava em silêncio, agora, pois a cerveja nativa tinha causado os seus efeitos... e naquela cubata havia também silêncio. Ao cheiro da rapariga juntava-se o de um Gomangani... mas no interior não havia qualquer espécie de ruído. Tarzan entrou, deslizando na sombra. Não ouvia sequer o som de qualquer respiração, mas tinha a certeza de que a rapariga branca estava, ou tinha estado, ali.

Tarzan imobilizou-se, deixando que os seus olhos se adaptassem à escuridão mais densa do interior da cubata. Foi então que distinguiu os contornos de um vulto estendido no chão. Aproximou-se e examinou-o... Era o corpo morto de um guerreiro nu, em cujo peito estava cravada uma curta lança. Tarzan cheirou a haste da lança — e a sombra de um sorriso passou-lhe pelos lábios.

Tinha agora a certeza de que a rapariga conseguira fugir. O facto de que a vida dela estava igualmente em perigo na selva, não o impressionou excessivamente, porque para Tarzan a selva era menos perigosa do que Londres ou Paris, durante a noite.

Transpôs novamente a paliçada e mais uma vez seguia o seu caminho habitual, saltando de ramo em ramo... quando os seus ouvidos notaram, à distância, um som familiar. Parou, equilibrado sobre um tronco, à escuta, numa atitude que seria digna de um deus da floresta.

Depois soltou o estranho grito de apelo dos grandes macacos, e partiu mais velozmente, guiado pelo barulho dos tambores.

O grito foi ouvido na aldeia... e ficou para sempre, na memória dos negros, ligado ao desaparecimento da rapariga branca e à morte de um deles...

 

Bertha Kircher corria através da selva, ao longo de uma pista de caça, pensando apenas em pôr uma distância tão grande quanto possível entre ela e a aldeia, antes que a luz do dia trouxesse os negros em sua perseguição. Não sabia em que direcção ia, nem isso tinha grande importância visto que a morte a esperava seguramente, mais cedo ou mais tarde.

A sorte favoreceu-a, nessa noite, porque conseguiu passar a salvo numa região especialmente selvagem e infestada de leões, como talvez não haja outra em toda a África. Era um parque natural de caça, onde as zebras, os antílopes, os búfalos, os rinocerontes e todas as espécies de herbívoros, incluindo os elefantes, abundavam extraordinariamente, embora perseguidos pelos seus naturais inimigos, os felinos carnívoros, que também abundavam por estarem a salvo das armas dos caçadores brancos, que não conheciam a região.

Bertha correra durante mais de uma hora, quando a sua atenção foi despertada pelo ruído de animais que se moviam em volta, rosnando e grunhindo, a curta distância. Considerando que estava já suficientemente longe da aldeia para poder dispor de um bom avanço se fosse perseguida ao amanhecer, e receosa do ataque de alguma fera, subiu para uma grande árvore, resolvida a passar ali o resto da noite.

Mal havia alcançado a segurança de uma sólida ramada, quando notou que a árvore estava colocada junto de uma pequena clareira que o mato denso, em baixo, não a deixara ver antes. No mesmo instante reconheceu quais eram os animais que ouvira havia poucos instantes. No centro da clareira, nitidamente visível à luz clara do luar, viu uma vintena de grandes gorilas, enormes animais de aparência quase humana que se deslocavam sobre os pés, com a ocasional ajuda dos enormes braços cujas mãos chegavam ao chão. Eram gigantescos, cobertos de uma espessa pelagem negra que se tornava cinzenta nas extremidades, dando-lhes uma aparência quase bela.

A jovem tinha estado a observar durante um minuto ou dois, quando o pequeno bando de antro-póides foi aumentado pela chegada de outros. Em breve estavam reunidos cerca de cinquenta, incluindo fêmeas com as suas crias e alguns animais decerto muito novos ainda. A certa altura começaram a formar um círculo, em redor de um pequeno monte de terra, achatado na parte superior, que se erguia a meio da clareira. Sentadas junto desse monte de terra estavam três fêmeas idosas, munidas de paus curtos e pesados com que começaram a bater sobre a parte lisa daquela espécie de tambor. O som era abafado.

Quase imediatamente, os grandes machos começaram a agitar-se.

Ao princípio, as pancadas no tambor de terra eram lentas, numa cadência pesada, mas não tardou que tomassem um ritmo que pouco a pouco se tornava mais rápido e que os gorilas acompanhavam com os seus movimentos. O bando formou então dois círculos, sendo o interior constituído pelos machos e o exterior pelas fêmeas e pelos animais muito novos. Este último círculo imobilizou-se, enquanto os machos continuavam a girar, agora todos na mesma direcção.

Foi nesse momento que, aos ouvidos de Bertha Kircher, chegou um grito distante e estranho, que parecia vir dos lados da aldeia de onde ela fugira. O efeito desse brado, sobre os machos, foi imediato, como um choque. Pararam, numa atitude de escuta, tensos. Logo depois, o maior dos antropóides levantou a cabeça e respondeu ao grito, com um brado agudo que fez tremer a rapariga branca.

Novamente o tambor voltou a soar, e a lenta dança continuou. Havia uma espécie de fascinação naquela cerimónia selvagem. A jovem sentia-se como que enfeitiçada, e porque pensava que se encontrava segura entre as ramadas da árvore, decidiu ficar ali o resto da noite e recomeçar a fuga ao amanhecer.

Verificando mais uma vez que os seus papéis estavam com ela, procurou uma posição relativamente confortável, entre os ramos, e dispôs-se a observar a espantosa cerimónia que se desenrolava na clareira, em baixo. Decorreu meia hora, durante a qual a cadência do tambor se tornou progressivamente mais rápida. O macho maior, que respondera ao grito distante, afastou-se do círculo interior e começou a dançar, sozinho, entre os outros e o tambor. Saltava, agachava-se e tornava a saltar, rosnando e ladrando. De quando em quando erguia a cabeça para Goro, a lua, e batendo com os grandes punhos no poderoso peito, soltava um grande brado agudo, que era o grito de desafio dos gorilas.

Depois de cada grito mantinha-se imóvel, sob a luz do luar — um espantoso animal vindo da origem dos tempos. E a certa altura, atrás dela, a rapariga branca ouviu um brado igual... Quase ao mesmo tempo, um homem gigantesco e quase nu saltou de uma árvore próxima, para a clareira. Instantaneamente, os gorilas transformaram-se num bando furioso. Bertha Kircher suspendeu a respiração. Que doido era aquele, que ousava aproximar-se de tão terríveis criaturas, no coração da selva, sozinho contra cinquenta? Viu o vulto alto e moreno, envolvido pela claridade da lua, caminhar a direito para a matilha enfurecida. Notou o equilíbrio e a beleza daquele corpo perfeito — a graça, a força, as proporções harmoniosas — e então reconheceu-o. Era o mesmo homem que ela vira apoderar-se do major Schneider, no quartel-general de Kraut, o mesmo que a salvara das garras de Numa, o leão... o mesmo que ela derrubara com um golpe traiçoeiro da coronha da sua arma... e viera depois para matar Fritz Schneider, e lhe poupara a vida, em Wilhelmstal.

Apavorada e fascinada, viu-o aproximar-se dos grandes macacos.

Ouviu sons que saíam da garganta dele — sons idênticos aos que emitiam os gorilas — e embora mal pudesse acreditar nos seus próprios sentidos, sabia que aquele magnífico deus da selva falava com as feras, na sua própria língua.

Tarzan parou junto do círculo exterior e bradou:

— Eu sou Tarzan dos Macacos! Não me conhecem porque pertenço a outra tribo... mas Tarzan vem em paz ou vem para lutar. Que vai ser? Tarzan quer falar com o vosso rei!

E abriu caminho entre as fêmeas e os balus, que se afastaram para lhe dar passagem, aproximando-se do círculo interior, formado pelos machos. Aí, grandes dentes surgiram, ameaçadores, nos focinhos crispados pela raiva. O homem da selva repetiu:

— Sou Tarzan! Tarzan veio para dançar o Dum-Dum com os seus irmãos. Onde está o vosso rei?

Adiantou-se mais. Na árvore, Bertha Kircher apertava a cabeça entre as mãos e olhava, espantada, para aquele homem que enfrentava uma morte certa. No entanto os gorilas, embora continuassem a grunhir, ameaçadores, não atacavam. O homem voltou ainda a falar:

— Sou Tarzan dos Macacos e venho para viver com os meus irmãos. Tarzan vem em paz, para viver em paz... ou terá de matar! Veio e fica... Que vai ser? Tarzan dançará em paz o Dum-Dum... ou terá, primeiro, de matar?

— Eu sou Go-lat, rei dos macacos!... — gritou o macho maior. — Mato! Mato! Mato!

Com um brado terrível, Go-lat atacou. O homem da selva parecia totalmente desprecavido, e Bertha, lívida, pensou que ele ia cair ao primeiro choque. O gorila estava quase sobre ele, com as grandes mãos estendidas, quando Tarzan se moveu. Mas o seu movimento faria parecer lento o próprio Ara, o raio. A mão esquerda do homem da selva agarrou o pulso esquerdo do antropóide. Uma brusca volta, um golpe de jiú-jitsu que Tarzan aprendera entre as criaturas civilizadas — e o gorila ficou imobilizado, sentindo o braço prestes a partir-se se ele o movesse.

— Eu sou Tarzan dos Macacos!. — bradou o homem da selva. — Tarzan dança em paz, ou tem de matar?

— Mata! Mata!... — ganiu Go-lat.

Rápido, Tarzan torceu o corpo, dobrou-se para a frente e atirou o gorila por cima de um ombro, derrubando-o.

Go-lat levantou-se quase imediatamente e, agora "doido de raiva, atacou outra vez. De novo Tarzan o imobilizou com o mesmo golpe, que o gorila era demasiadamente estúpido para prever e evitar, e mais uma vez derrubou pesadamente o seu adversário. Desta vez Go-lat caiu de cabeça para baixo e ficou imóvel. Os outros machos guinchavam, contentes com a luta, e Bertha começou a pensar que o homem da selva não era o doido que ela supusera. Mas o espanto da jovem cresceu ainda...

— Eu sou Tarzan dos Macacos!.., — bradou Tarzan. Fez um gesto na direcção das três velhas fêmeas, e o tambor voltou a soar.

Foi então que Go-lat levantou a cabeça e, lentamente, rastejou até conseguir pôr-se de pé. Os seus olhos raiados de sangue fitaram Tarzan, mas agora sem raiva.

— «Kagoda!»... — disse ele. — Tarzan dançará o Dum-Dum em paz, e Golat dançará com ele...

A rapariga viu, a partir desse momento, um espectáculo espantoso... enquanto o homem da selva começava a acompanhar a cadência dos tambores, agachando-se e saltando como os gorilas, gritando de maneira ainda mais selvagem do que eles. Era uma cena fantástica, que provavelmente nenhuma outra criatura humana havia contemplado antes dela.

Enquanto Bertha olhava, fascinada, um ligeiro movimento na árvore, atrás dela, fê-la voltar-se... E viu, a curta distância, salpicado de luar, o corpo mosqueado de Sheeta, a pantera. A fera estava tão perto que lhe bastaria estender as garras para apanhar a jovem. Não havia tempo para pensar... Com um grito de pavor, Bertha Kircher saltou da árvore para a clareira.

No mesmo instante os gorilas, endoidecidos pela dança ao luar, olharam para o vulto que surgira. Viram a Tarmangani, sozinha e indefesa, e saltaram para ela. Por seu lado, Sheeta, a pantera, sabendo que nem mesmo Numa, a não ser acossado pela fome, se atreveria a enfrentar os gorilas durante o Dum-Dum, desapareceu na noite...

Tarzan voltara-se e reconhecera a rapariga, vendo o perigo. Mais uma vez tinha a possibilidade de a deixar morrer sem intervir directamente...

Mas, uma vez mais, compreendeu que não podia fazer isso... Os antropóides estavam quase sobre a jovem quando Tarzan saltou para o meio deles, batendo ferozmente para a direita e para a esquerda. Um instante depois, com um braço sobre os ombros de Bertha Kircher, bradava:

— Não lhe façam mal! É a fêmea de Tarzan!

Não tinha outra maneira de os fazer compreender que não deviam matar a rapariga branca... mas sentiu-se satisfeito por ela não poder entender o que ele dizia. Já era bastante humilhante dizer tal coisa, referindo-se a uma espia alemã, diante dos grandes macacos.

Mais uma vez Tarzan era forçado a proteger a criatura. Murmurou consigo mesmo, enraivecido:

— «Não podia fazer outra coisa... Ela é uma mulher... e eu não sou alemão...»

 

Caído do céu

O tenente Harold Percy Smith-Oldwick, dos «Royal Air Services», efectuava um voo de reconhecimento. Uma informação, inconsistente como um boato, chegara ao quartel-general das forças inglesas na África Oriental Alemã, dizendo que o inimigo desembarcara em força na costa ocidental e àtravessava o interior da África, para reforçar o exército colonial. Era uma ideia aparentemente ridícula... mas as coisas que parecem ridículas acontecem por vezes, sobretudo na guerra. A informação dizia que as tropas estavam a uns dez ou doze dias de jornada.

Assim, o tenente Smith-Oldwick voava a baixa altura, para oeste, procurando atentamente algum sinal do exército alemão. Imensas florestas se alongavam em baixo, nas quais todo um regimento poderia facilmente esconder-se, tão denso era o dossel de folhagem das grandes árvores. Montanhas, planícies e desertos iam passando, numa paisagem de maravilha... Mas o jovem tenente não conseguia avistar o menor sinal da presença de homens.

Esperando sempre que acabaria por descobrir alguma coisa — vestígios de acampamento, algum camião avariado e abandonado — o tenente continuava a fazer rumo para oeste, e assim se manteve até ao entardecer. Quando sobrevoava uma planície onde cresciam pequenos bosquetes, resolveu voltar à base. Teria de voar depressa e em linha recta, para poder chegar antes da noite; mas tinha gasolina suficiente, o motor funcionava bem... e o tenente não tinha qualquer dúvida de que poderia chegar ao seu destino. Foi nesse momento que o motor começou a falhar.

Estava demasiado baixo para que pudesse fazer qualquer coisa que não fosse poisar no terreno, enquanto havia onde poisar, pois directamente a leste se alongava uma enorme floresta onde essa possibilidade cessava.

Assim, desceu na planície, perto do rio e de um dos bosques, e uns minutos depois estava às voltas com o motor.

Enquanto trabalhava, ia cantarolando uma toada que fora popular em Londres, um ano antes. Dir-se-ia que se encontrava na segurança de um campo de aviação, na distante Inglaterra, e não no coração da África então ainda inexplorada. O tenente Harold Percy Smith-Oldwick tinha cabelos loiros, olhos azuis e calmos, uma figura esbelta e uma face rosada, juvenil — dava a ideia de ter sido criado num ambiente de luxo e indolência. O seu aspecto era de perfeita tranquilidade, e na verdade sentia-se tranquilo. Que aquela região pudesse estar infestada de incontáveis inimigos, era uma ideia que nem sequer lhe ocorria. Estava absorvido pelo trabalho de corrigir a ligeira avaria, e nem se lembrava de levantar a cabeça para ver o que acontecia em redor. O bosque próximo, ou a selva mais distante, para leste, podiam esconder um exército de selvagens... mas essa ideia não parecia preocupar Smith-Oldwick.

No entanto, ainda mesmo que tivesse olhado, era pouco provável que distinguisse uma vintena de vultos que o espreitavam por entre o mato. Há pessoas que parecem dotadas de um sexto sentido, de uma intuição que as avisa do perigo. Um olhar atento, mesmo pela retaguarda, pode despertar a atenção dessas pessoas... mas vinte pares de olhos fitos nele não transmitiam qualquer sensação de alarme ao jovem inglês tranquilo. Acabou a sua tarefa e, continuando a cantarolar entre dentes, afastou-se alguns passos, para desentorpecer as pernas. Ia fumar tranquilamente um cigarro, antes de levantar voo de novo. Foi então que, pela primeira vez, notou a beleza selvagem do cenário em volta. Sob certos aspectos, a paisagem recordava-lhe um calmo parque inglês, com as bonitas árvores espalhadas pela planície. A ideia de que ali pudessem existir feras ou homens selvagens, parecia a mais remota das possibilidades. Flores magníficas, de tons ricos e quentes, adornavam umas moitas, um pouco mais longe. Smíth-Oldwick encaminhou-se nessa direcção, fumando o seu cigarro, para as ver mais de perto. Estava a uma centena de metros do ponto onde deixara o avião, e curvava-se para observar as flores — quando Numabo, chefe dos Wamabos, decidiu ordenar aos seus guerreiros emboscados que se lançassem ao ataque.

A primeira noção do perigo, para o inglês, foi-lhe dada por um coro de gritos selvagens. Voltando-se, viu uma vintena de guerreiros negros, nus, que avançavam rapidamente para ele, em grupo. O avanço, todavia, tornava-se progressivamente menos rápido à medida em que os negros se aproximavam. O tenente verificou que a atitude dos negros era francamente agressiva, e viu num relance que eles lhe cortavam a retirada para o avião. Notou que os selvagens estavam apenas armados de lanças e flechas, mas percebeu que, embora ele dispusesse de uma pistola, seria muito provavelmente dominado ao primeiro choque. Ignorava, porém, que qualquer gesto de resistência, da sua parte, faria recuar os negros... e os faria recuar várias vezes até que, excitados pelos seus próprios gritos, se enfurecessem ao ponto de perder o medo.

Numabo vinha à frente, e esse facto, ligado a uma estatura mais alta que a dos outros, e a uma exibição de ferocidade maior, fez de Numabo um alvo natural. Foi para ele que o tenente apontou a primeira bala, mas, por pouca sorte, falhou. A morte do chefe poria em fuga os restantes. A bala, errando o alvo, foi acertar noutro dos negros que avançavam atrás, em massa compacta. Quando o guerreiro soltou um grito e tombou, todo o resto do bando recuou em tumulto... mas na direcção do aparelho e não na do bosque.

Não tardou que os negros parassem e se voltassem novamente para atacar. Gritavam, brandiam as lanças e corriam, embora menos velozmente que da primeira vez. Todavia, o segundo assalto levou-os a menor distância do aviador, e duas ou três lanças voaram na direcção dele... embora outro guerreiro caísse, vítima da segunda bala da pistola. Agora, Smith-Oldwick dispunha apenas de cinco balas para enfrentar dezoito homens, de maneira que, a não ser que conseguisse assustá-los, a sua sorte era inevitável.

Os negros haviam compreendido que cada assalto custava a vida a um deles, e desta vez levaram mais tempo a decidir-se. Quando atacaram de novo, fizeram-no ainda mais devagar mas em melhor ordem, dispersando-se em três grupos que avançariam de

três direcções diferentes. E, embora as cinco balas do inglês fossem disparadas de modo a não falhar os alvos, os negros acabaram por aproximar-se. Pareciam saber que o aviador não dispunha de mais balas, e cercavam-no na aparente intenção de o apanharem vivo. A um grito de Numabo, caíram sobre ele e, embora Smith-Oldwick batesse com os punhos, rijamente, para a esquerda e para a direita, não tardou a ser derrubado pela força do número.

O inglês, atingido por furiosas pancadas, dadas com as hastes das lanças, estava quase inconsciente quando os negros o obrigaram a levantar-se e lhe amarraram solidamente as mãos, empurrando-o na direcção da selva. Enquanto seguia, ainda aturdido, ao longo de uma estreita vereda, Smith-Oldwick entregava-se a conjecturas. Para que quereriam os selvagens apanhá-lo vivo? Sabia que se encontrava demasiadamente para o interior, para que o seu uniforme pudesse ter qualquer significação aos olhos dos nativos que, seguramente, nem sequer sabiam que estava em curso uma guerra mundial. Pensava que teria talvez caído nas mãos dos guerreiros de algum potentado negro, a cuja presença ia ser levado... e de cujo capricho dependeria o seu destino.

Caminhava pela selva, havia mais de meia hora, quando o inglês avistou, numa clareira situada na margem de um rio, as coberturas de palha de uma série de cubatas que apareciam acima de uma paliçada grosseira mas sólida. Foi empurrado para a rua principal da aldeia, e imediatamente rodeado por uma pequena multidão de guerreiros, mulheres e crianças. Essa multidão, visivelmente excitada, parecia disposta a dar cabo dele sem mais demoras; sobretudo as mulheres, assim que podiam aproximar-se, batiam e arranhavam, ferozes. Mas Numabo, o chefe, interveio para salvar o prisioneiro... e guardá-lo para qualquer destino ainda desconhecido do inglês.

Quando os guerreiros fizeram recuar a multidão uivante, o prisioneiro foi conduzido para uma cubata. Então, da outra extremidade da aldeia, o tenente viu aproximar-se um segundo grupo de negros, envergando restos de uniformes alemães. Smith-Oldwick ficou grandemente surpreendido, e a sua primeira ideia foi de que, por acaso, entrara em contacto com alguns elementos do exército alemão que, segundo a informação recebida, atravessava a África de costa a costa. Um sorriso encurvou-lhe os lábios, ao pensar na circunstância em que, finalmente, encontrava aquilo que viera procurar. Não sentia ainda que toda a esperança estivesse perdida, e logo na sua mente começaram a esboçar-se planos para fugir e recuperar o seu avião. As probabilidades eram poucas, no entanto, e ele não ignorava isso.

Entre os negros parcialmente uniformizados figurava um, de alta estatura, que envergava uma túnica de sargento. Quando o negro viu o uniforme do inglês, soltou uma exclamação de surpresa e aproximou-se.

— Onde apanharam o inglês?... — perguntou Usanga ao chefe da aldeia. — Havia outros com ele?

— Este caiu do céu... — respondeu Numabo.

- Vinha numa estranha coisa que voava como um pássaro e que, ao princípio, nos assustou. Escon-demo-nos quando essa coisa poisou... e não tardou que o branco saísse lá de dentro. Então atacámos, e embora ele matasse alguns dos nossos, agarrámo-lo, porque os Wamabos são homens corajosos e grandes guerreiros.

— Ele veio a voar?... — perguntou Usanga, de olhos espantados.

— Sim, vinha dentro de uma coisa grande que voava como um pássaro. Essa coisa ainda lá está, perto das árvores, na segunda curva do rio. Se não fugiu a voar...

— Não pode voar sem este homem estar lá dentro. .. — disse Usanga. — É uma coisa terrível, que durante a noite passava sobre as nossas linhas e deixava cair bombas. Fizeste bem em prender o homem, Numabo, porque ele podia destruir a tua aldeia. Os ingleses são brancos cheios de maldade.

— Ele não voltará a voar... — volveu Numabo. — Não está bem que um homem voe pelos ares, e Numabo fará com que este não voe mais...

Com estas palavras, o chefe da aldeia empurrou o tenente para dentro da cubata, e mandou-o vigiar por dois guerreiros. Durante quase duas horas o prisioneiro ficou entregue aos seus pensamentos... que de momento consistiam sobretudo em se libertar das cordas que lhe prendiam as mãos. Estava a esforçar-se por isso, em vão, quando Usanga entrou na cubata e se dirigiu a ele.

— Que vão fazer comigo?... — perguntou o inglês.

— O meu país não está em guerra com esta gente. Você fala a linguagem deles, diga-lhes que não sou um inimigo e que devem deixar-me ir em paz.

— Eles não distinguem um inglês de um alemão... — respondeu Usanga, rindo. — Para eles tanto faz, todos os homens brancos são inimigos.

— Então para que me apanharam vivo?

— Venha... — disse Usanga, conduzindo o inglês à entrada da cubata. — Olhe... — acrescentou, apontando um largo espaço entre as cubatas, no centro da aldeia.

O tenente Harold Percy Smith-Oldwick viu umas quantas mulheres negras que acumulavam lenha em volta de um poste, e preparavam fogueiras sob um certo número de caldeirões. A sinistra sugestão era demasiadamente óbvia.

— Realmente, vocês preparam-se para me comer?... — perguntou o tenente, com um encolher de ombros.

Usanga observava-o atentamente, mas ficou desapontado não vendo qualquer sinal de medo. Respondeu:

— Não a minha gente, porque não comemos carne humana... Mas os Wamabos são canibais. São eles que o vão comer, inglês... mas nós vamos matá-lo para o banquete...

O inglês ficou parado no limiar da cubata, espectador interessado dos preparativos da horrível orgia que ia pôr termo à sua existência terrestre. É dificilmente crível que não sentisse medo... mas se o sentia, escondia-o com uma expressão de perfeita frieza. Mesmo o brutal Usanga ficou certamente impressionado, pois tinha vindo para insultar e torturar o prisioneiro, e não fez uma coisa nem outra — limitando-se a amaldiçoar os brancos em geral e os ingleses em particular, por causa do terror que a aviação inglesa espalhara entre as tropas indígenas alemãs.

— Nunca mais o seu grande pássaro voará sobre as pessoas, atirando a morte... Usanga cuidará disso. .. — e Usanga afastou-se bruscamente, dirigindo-se para onde estavam os seus homens.

Minutos depois o inglês viu-os passar para além da paliçada... e novamente se concentrou nas suas vãs tentativas de se libertar das cordas..-.

Várias milhas ao norte da aldeia, numa pequena elevação perto do rio, onde a selva, na base de um morro, se interrompia para dar lugar a uma extensão de terreno coberto de ervas e esparsamente arborizado, um homem e uma mulher estavam ocupados a erguer uma pequena boma, ao centro da qual estava já construída uma palhota. Trabalhavam quase em silêncio, trocando apenas raras perguntas e indicações.

Exceptuando uma tanga de pele, o homem estava nu, e a sua pele lisa mostrava-se bronzeada pela acção do sol e do vento. Movia-se com a graça felina de um animal da selva, e levantava pesos consideráveis com tanta facilidade como se fossem pequenas coisas leves. Quando ele não olhava para a rapariga — e muito raramente olhava — ela fitava-o e, na sua face, havia sempre uma expressão intrigada, como se estivesse a olhar um enigma que não conseguia resolver. Na verdade, na sua opinião a respeito dele havia espanto; durante o breve espaço de tempo em que tinham convivido, a jovem descobrira, naquele belo deus da selva, as qualidades de um super-homem, estranhamente misturadas com as capacidades de uma fera. Ao princípio, sentira-se apavorada — o que era natural na situação em que ela própria se encontrava.

Estar sozinha, no coração da África selvagem, com um homem que parecia tão selvagem como o ambiente, era, por si mesmo, espantoso. Mas sentir que esse homem era um inimigo de raça, que a odiava e odiava tudo o que lhe dizia respeito, e para mais tinha contra ela razões pessoais de queixa e de ódio — não deixava a menor abertura por onde pudesse passar a esperança de que ele demonstrasse a menor sombra de consideração.

Vira-o meses antes, quando ele entrara no alto comando alemão para se apoderar do desgraçado major Schneider — de cuja sorte não havia a mais ligeira notícia; vira-o de novo quando ele a salvara das garras de um leão e, depois de lhe dizer por que razão a supunha uma espia, a havia aprisionado. Fora então que a jovem, depois de o ter derrubado pelas costas, com uma coronhada, lhe havia escapado.

Mas que o homem da selva não se interessava por vingar-se pessoalmente dele, verificara-o quando ele a deixara com vida, depois de matar o capitão Fritz Schneider.

Não conseguia compreendê-lo. O estranho deus selvagem odiava-a, e no entanto protegia-a, como o provara uma vez mais ao livrá-la dos gorilas que a queriam destroçar... Para que fim sinistro ele lhe poupava a vida? Por mais que se esforçasse, Bertha Kircher não podia afastar do pensamento essa ideia. E, no entanto, aquele homem não agia como qualquer outro.

Bertha Kircher era, por natureza, comunicativa e alegre. Não se entregava habitualmente a pressentimentos mórbidos, e gostava de trocar ideias e de conversar. Tarzan, pelo seu lado, era concentrado e silencioso. Anos de vida entre criaturas cuja capacidade de expressão oral era mínima, haviam-no habituado a não comunicar.

A sua mente nunca estava ociosa, no entanto, mas porque os seus companheiros da selva não podiam entender o que ele pensava, acostumara-se a guardar os pensamentos consigo mesmo, e não via a necessidade de proceder, agora, de maneira diferente. Isto, ligado com a sua antipatia pela rapariga, bastava para que não falasse. Trabalhavam em silêncio, portanto. Bertha, porém, era extremamente feminina, e tendo alguém com quem seria possível falar, achava o silêncio aborrecido. O seu receio de Tarzan tinha progressivamente diminuído, e sentia-se cheia de mil curiosidades insatisfeitas quanto aos planos que ele tinha para o futuro, quando menos na parte que lhe dizia respeito. Mas desejava também saber a respeito dele, visto que não podia compreender os antecedentes daquela vida solitária na selva, nem as suas relações com os grandes macacos.

Assim, acabou por perguntar a Tarzan o que faria quando a palhota e a boma estivessem concluídas.

— Irei para a costa ocidental, onde nasci... — volveu Tarzan. — Não sei quando. Tenho toda a vida adiante, e na selva não há razão para ter pressa. Nós não corremos de um lado para o outro, como os civilizados. Quando tiver estado aqui durante algum tempo, partirei para o Oeste... mas quero deixar-lhe um lugar seguro, onde possa dormir, e ensiná-la a cuidar da sua própria subsistência. Isso levará tempo.

— E depois deixa-me aqui, sozinha?... — exclamou a jovem, apavorada. — Vai deixar-me na selva, à mercê das feras e dos selvagens, a centenas de milhas da civilização, num lugar onde, seguramente, nunca passou uma criatura civilizada?

— Por que não?... — perguntou Tarzan. — Não a trouxe para aqui. Algum homem da sua raça trataria melhor uma mulher inimiga?

— Com certeza que sim!... — exclamou ela. — Nenhum homem da minha raça deixaria uma mulher branca, indefesa, neste terrível lugar!

Tarzan encolheu os largos ombros. A conversa pareciajlhe inútil e era .-lhe desagradável porque falava em alemão, uma língua que ele detestava tanto quanto detestava o povo a que pertencia. Seria mais simples se a rapariga falasse inglês — e nesse momento Tarzan lembrou-se de que a vira disfarçada num acampamento britânico, a desempenhar o infame papel de espia, e que portanto devia conhecer a língua inglesa. Perguntou-lho.

— Claro que falo inglês... — respondeu ela. — Mas não sabia que também falasse...

Tarzan não ocultou o seu pasmo, mas não fez comentários. Apenas se admirou de que a rapariga tivesse dúvidas sobre a capacidade de um inglês falar a sua língua — mas ao mesmo tempo pensou que ela o considerava como um selvagem, que acidentalmente aprendera a falar alemão por frequentar uma região que os alemães ocupavam. Bertha Kircher só o vira ali, e portanto não podia saber que ele era inglês de nascimento e tinha uma casa na África Ocidental Inglesa. Era conveniente que ela soubesse pouco a seu respeito, pois quanto menos soubesse mais poderia revelar-lhe sobre as suas actividades de espia e sobre o sistema de espionagem que ela representava. Assim, Tarzan nada fez para a impedir de pensar que ele fosse diferente do que parecia — um selvagem habitante das florestas selvagens, um homem sem pátria e sem raça, odiando imparcialmente todas as criaturas civilizadas. E, na verdade, era isso o que Bertha Kircher pensava dele, pois assim se explicavam os seus ataques contra o major Schneider e contra Fritz Schneider, capitão e irmão do major.

Continuaram a trabalhar em silêncio, na boma, que estava agora quase concluída, e a jovem ajudava Tarzan o melhor que podia. O homem da selva, embora mau grado seu, tinha de reconhecer a boa vontade que ela punha na tarefa, por vezes difícil, de erguer a sebe de espinhos que seria uma protecção temporária contra os carnívoros vagabundos... As mãos e os braços dela sangravam em vários pontos, pela acção dos agudos espinhos. Um tanto envergonhado por ter consentido que a jovem ajudasse, Tarzan disse-lhe para ficar quieta.

— Porquê?... — perguntou ela. — Não é mais doloroso para mim do que para você, e se isto está a ser feito para me proteger, não há razão para que eu não ajude.

— Você é uma mulher e isto não é trabalho de mulher... — volveu Tarzan. — Se quer fazer alguma coisa, pegue nesses jarros que eu trouxe esta manhã e vá enchê-los com água do rio. Pode precisar da água enquanto eu estiver longe.

— Enquanto estiver longe?... — exclamou ela. — Vai afastar-se?

— Quando a boma estiver concluída, irei caçar... — volveu Tarzan. — Amanhã irei outra vez e mostrar-lhe-ei como deve apanhar a caça quando eu já aqui não estiver.

Sem uma palavra, ela pegou nos dois vasos e dirigiu-se para o rio. Enquanto enchia os vasos, a sua mente ocupava-se de sombrias ideias relativamente ao futuro. Sabia que Tarzan a condenara à morte... e que no momento em que ele partisse a sua sorte estaria decidida. Com efeito, seria apenas uma questão de tempo — de muito pouco tempo — antes que a selva a destruísse... Nunca poderia ter qualquer esperança de enfrentar os perigos constantes e terríveis da floresta.

Bertha estava tão ocupada com os seus pensamentos que não via nem ouvia o que se passava em volta dela. Maquinalmente, encheu os jarros e encaminhou-se para a boma... mas de repente deixou escapar um grito abafado e recuou, ao ver o enorme vulto que surgira entre ela e a cubata. Go-lat, o rei dos grandes macacos, tinha-a visto dirigir-se ao rio — e era ele que surgia diante da rapariga. Go-lat não era o que pudesse chamar-se uma criatura bonita, embora as fêmeas da tribo, e ele próprio, tivessem em alta conta a sua pelagem negra, de pontas prateadas, e o seu vulto poderoso. Sem dúvida que, no pequeno cérebro do gorila, existia a ideia de que aquela fêmea do Tarmangani devia sentir admiração por ele — mas Bertha via apenas uma fera horrível, uma espantosa caricatura de humanidade.

Tarzan ouviu o grito da jovem e, saltando ligeiramente sobre a boma, correu para onde ela estava. Na realidade Go-lat, com os seus grunhidos, estava apenas a tentar mostrar-se amistoso... e Bertha pasmou ao ouvir, dos lábios do gigante branco, sons semelhantes aos que o gorila emitira antes.

— Eu não faria mal à tua fêmea... — disse Go-lat, olhando para Tarzan.

— Sei isso... — respondeu o homem da selva. — Mas ela não sabe. É como Numa e Sheeta, não compreende o que dizemos. Assustou-se.

E, agora ao lado da jovem, Tarzan continuou, dirigindo-se a ela:

— Não tem de que ter medo, ele não lhe fará mal. Este gorila aprendeu a sua lição, ficou a saber que Tarzan é o senhor da selva. Não fará mal a nada que pertença a Tarzan.

A jovem olhou de relance para a face do homem. Pareceu-lhe evidente que as palavras que ele pronunciara nada significavam para o seu entendimento, e que a propriedade, que ele invocava, se destinava, tal como a boma, apenas a protegê-la. — Mas eu tenho medo dele.., — disse. — É preciso não mostrar esse medo. Muitas vezes se verá rodeada por estes macacos, e nessas ocasiões poderá sentir-se segura. Antes de partir, dar-lhe-ei os meios de se defender, se um deles, por acaso, se voltar contra você. No seu lugar, eu procuraria a companhia deles. Poucos são os animais da selva que se atrevem a atacar os gorilas quando eles estão em bando. Se você lhes der a entender que os teme, acabarão por tirar partido disso, e a sua vida estará constantemente ameaçada. As fêmeas, especialmente, atacá-la-ão. Eu lhes mostrarei que você sabe defender-se e matá-los. Se for necessário, indicar-lhe-ei como, e então eles respeitá-la-ão e até terão receio de você.

— Tentarei... — volveu a rapariga — ...mas receio que seja difícil. São as mais terríveis criaturas que vi até hoje.

Tarzan sorriu, dizendo:

- Pode ter a certeza de que eles pensam o mesmo de você.

Por esta altura, outros gorilas haviam entrado na clareira e, agora, Bertha e Tarzan eram o centro de um numeroso grupo onde, entre os machos, se encontravam algumas fêmeas jovens, e outras menos jovens que carregavam às costas os seus balus. Embora tivessem visto a rapariga na noite em que ela, para fugir a Sheeta, saltara para a arena onde os grandes macacos dançavam o Dum-Dum, as fêmeas mostravam ainda uma grande curiosidade. Algumas aproximaram-se para tocar nos andrajos do trajo de montar da rapariga branca, fazendo comentários na sua estranha linguagem. Bertha Kircher, recorrendo a toda a sua força de vontade, conseguiu suportar a provação sem manifestar qualquer sinal de medo. Tarzan observava-a, com um meio sorriso. Não estava tão afastado da civilização que não pudesse compreender a tortura da jovem. Mas não sentia qualquer espécie de compaixão por uma espia, e para mais uma espia pertencente a uma raça odiada. No entanto, não podia deixar de admirar a coragem de que ela dava provas. De repente, voltou-se para os grandes macacos.

— Tarzan vai caçar para si e para a sua fêmea... — disse ele. — Ela vai ficar aqui. Tratem de que ninguém lhe faça mal. Compreendem?

Os gorilas responderam com acenos afirmativos, e Go-lat disse:

— Não lhe faremos mal.

— Não... — volveu Tarzan — ...porque Tarzan mataria quem o fizesse... — voltou-se novamente para a rapariga e acrescentou, em inglês: — Vamos. Eu vou agora caçar. É melhor ficar dentro da palhota. Eles prometeram não a incomodar... mas vou deixar-lhe a minha lança. Será a melhor arma para se defender em caso de perigo, mas não correrá perigo no curto espaço de tempo da minha ausência.

Encaminhou-se, ao lado dela, para o interior da boma, fechando a entrada. Então afastou-se na direcção da floresta. Bertha ficou a vê-lo caminhar através da clareira, notando o passo fácil, a graça felina tão em harmonia com o perfeito equilíbrio do corpo bronzeado. Viu-o alcançar a orla da floresta, saltar para a primeira árvore e desaparecer. Então, porque era uma mulher, entrou na palhota e deixou-se cair no chão, a soluçar...

 

Nas mãos dos selvagens

Tarzan procurou Bara, o gama, ou Horta, o javali porque eram, de todos os animais da selva aqueles cuja carne seria mais agradável ao paladar da mulher branca. Mas, embora os seus sentidos se mantivessem alerta, avançou durante muito tempo sem que pudesse farejar caça. Seguindo ao longo do rio, onde esperava encontrar Bara, ou Horta, quando fossem beber, captou o cheiro intenso dos Gomangani, na aldeia dos Wamabos... Sempre pronto a fazer uma inesperada visita aos seus velhos inimigos, fez um rodeio para alcançar a retaguarda da aldeia. Do alto de uma árvore que dominava a paliçada, viu os preparativos que significavam uma orgia... cujo prato principal seria carne humana.

Um dos preferidos passatempos de Tarzan era assustar os negros. Tirava maior prazer da tarefa de os irritar e apavorar, do que de qualquer outra. Privá-los da sua orgia, dar-lhe-ia a maior satisfação a que podia aspirar no seu actual estado de espírito, e assim começou a observar a aldeia, procurando o lugar onde os negros haviam deixado a sua vítima. A visão era limitada por causa da espessa folhagem da árvore, e o homem da selva resolveu avançar ao longo de uma ramada pouco segura.

Tarzan tinha o instinto da selva, em proporções maravilhosas, mas os seus sentidos não eram infalíveis. A ramada, sobre a qual se adiantou, não era mais delgada do que outras que, noutras ocasiões, haviam suportado o seu peso. Exteriormente, parecia forte, coberta de folhas verdes... mas Tarzan não podia adivinhar que um insecto a havia roído por dentro... e assim, quando se adiantou, a ramada partiu-se na base, junto do tronco. Sob ele não havia ramos mais sólidos aos quais se agarrasse, e para cúmulo da pouca sorte prendeu um pé e desequilibrou-se, caindo de cabeça no interior da aldeia.

O barulho do ramo que se quebrava e do corpo que caía, fez com que os negros corressem a armar-se... e, quando os mais resolutos se aproximaram, viram o corpo gigantesco do branco estendido no chão, imóvel. Encorajados pela imobilidade do corpo, aproximaram-se mais, de lanças erguidas. Ao princípio pensaram que a queda matara o gigante branco, mas não tardaram a verificar que estava apenas aturdido. Um dos negros dispunha-se a vará-lo com a sua lança, mas Numabo, o chefe, não o permitiu, ordenando:

— Amarrem-no! Teremos um grande festim, esta noite.

Amarraram-lhe os pés e as mãos, com tiras de couro, e levaram-no para a cubata onde o tenente Harold Percy Smith-Oldwick esperava o seu fim. O inglês havia também sido amarrado de pés e mãos, porque os indígenas tinham receado que ele conseguisse fugir no último instante. A multidão de negros voltara a juntar-se diante da cubata, para ver o segundo prisioneiro, mas Numabo duplicou o número de guardas para impedir que a sua gente, na exuberância da nova presa, se excedesse e prejudicasse a cerimónia das danças que precederiam a morte das vítimas.

O jovem inglês ouvira o ruído da queda de Tarzan, e o tumulto que se lhe seguira, e agora, encostado à parede da cubata, olhava com surpresa e compaixão para o seu companheiro de infortúnio, que os negros tinham deixado no chão. Pensou, de si para consigo, que nunca vira um exemplar da raça humana tão perfeito como aquele que jazia, imóvel, a curta distância - e fazia conjecturas sobre as desafortunadas circunstâncias que haviam originado a sua captura. Parecia-lhe evidente que o seu companheiro era tão selvagem como os negros, a julgar pelo trajo e pelas armas primitivas; era, também evidentemente, um branco, e a cabeça bem modelada, como as feições correctas, indicavam não se tratar de um desses doidos que, frequentemente, optam pela vida selvagem, fugindo às comunidades civilizadas. Enquanto olhava, Smith-Oldwick notou que as pálpebras do estranho indivíduo se moviam, mostrando um par de olhos cinzentos que tinham uma expressão de vaga surpresa. Com o regresso à consciência das coisas, porém, os olhos cinzentos adquiriam outra expressão, a de uma inteligência clara e calma. Um momento depois, o homem fez um esforço, rolou sobre si mesmo e sentou-se. Olhou para o inglês e, ao vê-lo igualmente amarrado, teve um sorriso.

— Vão encher a barriga, esta noite... —comentou.

O tenente sorriu também.

— Pelo barulho que fazem...—disse—...esses tipos devem ter fome a valer. Como foi que o apanharam?

— Por minha culpa... —volveu Tarzan, com um encolher de ombros. — Mereço ser comido. Poisei um pé sobre um ramo que não podia com o meu peso... e quando ele se partiu, caí de cabeça no chão. De outra maneira não me teriam apanhado... vivo.

— Não há maneira de escapar?... — perguntou o tenente.

Já lhes escapei de outras vezes... e já vi outros irem...—respondeu Tarzan. — Vi um homem arrancado do poste quando já tinha sido ferido uma dúzia de vezes pelas lanças... e quando já haviam metido o fogo debaixo dele.

O tenente Smith-Oldwick estremeceu.

- Deus!... — exclamou. — Espero não ter de sufrer isso. Acredito que sou capaz de aguentar seja o que for, mas o fogo apavora-me. Arrepia-me pensar que me farei em fumo diante dessa gente.

— Não se preocupe... — declarou Tarzan. — Não se tornará em fumo, e a coisa dura pouco. É menos terrível do que parece... há apenas um breve período doloroso antes de se perder os sentidos. Já assisti, várias vezes... e trata-se de uma maneira de morrer, como qualquer outra. Todos temos de morrer, e ser esta noite ou daqui a um ano, tanto faz. O que é preciso é ter vivido... e eu vivi.

— Talvez a sua filosofia seja catita, meu velho... — respondeu o jovem tenente— ...mas não a considero altamente satisfatória.

Tarzan riu-se e acrescentou:

— Role sobre si mesmo, para este lado, e verei se posso cortar-lhe as cordas, com os dentes...

O tenente fez o que ele dizia, e Tarzan começou a morder os laços que lhe prendiam as mãos. Sentia-os ceder. Dentro de momentos estariam quebrados, e então o inglês poderia libertar os pés e desamarrar as tiras de couro que imobilizavam Tarzan. Foi então que um dos guardas entrou na cubata e, vendo o que o segundo prisioneiro estava a fazer, bateu violentamente na cabeça do homem da selva, com a haste da lança. Logo depois chamou os outros guardas, e caíram sobre os cativos indefesos, sem piedade. A seguir reforçaram as cordas que prendiam o tenente, e prenderam os dois homens, um de cada lado, às paredes da palhota. Quando partiram, Tarzan olhou para o seu companheiro de miséria.

— Enquanto há vida... há esperança...—disse ele, sorrindo a sublinhar o velho aforismo.

O tenente Harold Percy Smith-Oldwick sorriu também, retorquindo:

— Acho que estamos mal abastecidos de ambas as coisas. Aproxima-se a hora da ceia...

Zu-tag caçava sozinho, a distância dos outros membros da tribo de Go-lat. Zu-tag (Grande-Pescoço), era um jovem macho que muito recentemente alcançara a maturidade. Era grande, poderoso e feroz, e ao mesmo tempo dotado de uma inteligência superior à média da sua raça, o que se revelava numa testa mais cheia e menos recuada. Go-lat já o considerava como um possível rival para a chefia da tribo, e em consequência olhava-o com inveja e desfavor. Talvez por esta razão, Zu-tag caçava frequentemente sozinho, mas não apenas por ela; Zu-tag era completamente desprovido de medo, e este facto permitia-lhe afastar-se do bando e da protecção que os gorilas dão uns aos outros, pelo número resultado, Zu-tag, contando apenas consigo, adquiria mais recursos e desenvolvia, com a inteligência, o poder de observação.

Naquele dia, o jovem gorila fora bastante para o sul e voltava ao longo do rio, seguindo uma trilha habitual para ele, pois conduzia à aldeia dos Goman-gani, cujos costumes tinham semelhança com os dos macacos e despertavam a curiosidade de Zu-tag. Tal como fizera de outras vezes, Zu-tag trepou a uma árvore e pôs-se a observar a aldeia, cujo interior avistava.

O gorila mal se havia instalado, quando foi surpreendido pelo ruído da queda de Tarzan, de uma árvore próxima. Viu os negros aproximarem-se do vulto imóvel e transportarem-no para uma das cubatas. Instintivamente, o gorila ergueu-se para soltar o brado de apelo da sua raça, pois tinha reconhecido Tarzan, que dias antes tão prontamente vencera Go-lat e conquistara assim o selvagem e admirativo respeito da tribo — e em especial dele, Zu-tag.

Mas a ferocidade de Zu-tag era temperada pela astúcia. Não soltou o brado, porque na sua mente se formou, no mesmo instante, a ideia de ajudar Tarzan contra os Gomangani, seus inimigos comuns — e o silêncio era uma arma. Não podendo entrar sozinho na aldeia, porque os negros eram numerosos, pensou em reunir alguns dos outros jovens machos da tribo... e, saltando da árvore, seguiu apressadamente para o norte.

A tribo mantinha-se ainda perto da clareira onde se erguia a palhota que Tarzan e Bertha Kircher haviam construído. Alguns dos grandes macacos procuravam comida na orla da floresta, enquanto outros se abrigavam na sombra das árvores. A jovem saíra da cubata, enxutas as lágrimas, e olhava ansiosamente para o sul, da direcção do ponto onde Tarzan desaparecera. Por vezes fitava de relance os antropóides... e pensava na inutilidade da lança com que ficara, se algum deles se lembrasse de a atacar. A lança seria quebrada tão facilmente como ela poderia quebrar um fósforo, e a mais leve pancada daqueles braços enormes matá-la-ia.

Estava entregue a estes pensamentos depressivos, quando um grande gorila saltou para a clareira, de uma das árvores próximas. Era um macho poderoso e decerto jovem — embora, para Bertha Kircher, todos os gorilas parecessem iguais... O pêlo negro, orlado de fios prateados, tinha indiscutível beleza.

Era evidente que o recém-chegado parecia tomado de grande excitação, e não foi só a jovem branca a notar isso, porque logo os outros correram para ele grunhindo e rosnando. Go-lat estava entre o grupo e mostrava os dentes, desconfiado... porque nunca podia saber em que momento algum dos companheiros vinha disposto a disputar-lhe a chefia da tribo. Se Zu-tag tivesse aparecido como habitualmente, sem pressas e avançando no passo indolente do costume, não teria atraído qualquer interesse.

Mas estava flagrantemente excitado... e não tardou que dissesse a Go-lat o que tinha visto na aldeia dos Gomangani. Go-lat grunhiu e afastou-se, desinteressado, respondendo :

— Que o macaco branco tome conta de si mesmo...

— É um grande combatente... — retorquiu Zu-tag. — Veio para viver em paz com a tribo de Go-lat. Temos de o ajudar!

Go-lat voltou a rosnar e continuou a afastar-se.

— Zu-tag irá sozinho...—grunhiu o jovem gorila — ...se Go-lat tem medo dos Gomangani!

O chefe da tribo voltou-se, irritado, batendo no peito com os grandes punhos.

— Go-lat não tem medo... — bradou — .. .mas não irá porque o macaco branco não pertence à nossa tribo. Vai e leva a fêmea do Tarmangani, se queres salvar o macaco branco!

— Zu-tag irá, e levará a fêmea do Tarmangani... e todos os machos da tribo que não forem cobardes!... — olhou em volta e acrescentou: — Quem quer acompanhar Zu-tag para lutar contra os Gomangani e salvar o nosso irmão?

Oito jovens gorilas, no apogeu do seu vigor, puseram-se ao lado de Zu-tag, mas os machos mais velhos, cautelosos, afastaram-se atrás de Go-lat.

— Está bem... — gritou Zu-tag. — Não queremos velhas fêmeas para combater os Gomangani. É trabalho para os machos corajosos!

Os mais velhos não lhe deram atenção, mas os oito jovens gorilas sentiram-se orgulhosos e bateram nos peitos, mostrando os grandes dentes e gritando o desafio dos grandes macacos. Bertha Kir-cher olhava-os, tomada de espanto, sem compreender. Os brados de desafio enchiam-na de terror... e não tardou que ficasse paralisada pelo medo, quando Zu-tag e os seus oito companheiros saltaram sobre a boma e a rodearam. Bertha agarrou a lança e apontou-a para a frente, mas Zu-tag não parecia disposto a atacar. Emitia sons rápidos e estranhos, que a jovem não entendia, e parecia empenhado em explicar qualquer coisa. Por fim, impaciente, estendeu um grande braço, arrancou a lança das mãos da jovem e agarrou uma das mãos dela, sem rudeza. Bertha percebeu que ele não queria fazer-lhe mal,, mas não conseguia entendê-lo. Com muitos gestos e grunhidos, Zu-tag apontava para a floresta, depois para a lança, e entretanto ia arrastando a jovem para a boma. Bertha adivinhou então que ele queria dizer-lhe qualquer coisa relacionada com o homem da selva, e decidiu-se a acompanhar o gorila. Este ajudou-a a abrir passagem, afastando a parte móvel da boma.

Imediatamente, Zu-tag e os seus oito companheiros se dirigiram para a floresta, tão depressa que Bertha teve de correr para os acompanhar... Mas não tardou a verificar que não podia manter-se em corrida durante muito tempo. Ofegante, foi ficando para trás... até que Zu-tag, que constantemente grunhia como para a incitar, a agarrou por um braço. Bertha não protestou, mas pouco adiante tropeçou e caiu. Então Zu-tag enfureceu-se e rosnou, ameaçador. Os outros esperavam, na orla da floresta...

Compreendendo que aquela criatura era demasiado fraca para os acompanhar, o antropóide agarrou Bertha e pô-la às costas. Por instinto, a jovem agarrou-se ao pescoço dele, e Zu-tag, segurando-lhe ambos os pulsos com uma das grandes mãos, correu para diante.

Bertha, que vestia calções de montar, agarrava-se ao dorso do gorila, com as pernas e os braços... e fechou os olhos quando sentiu que a sua estranha montada saltava para as ramadas mais baixas de uma árvore. Aquela jornada através da floresta, voando de ramo em ramo, permaneceria na memória de Bertha Kircher até ao fim da sua vida... mas a primeira sensação de terror esbateu-se e transformou-se numa outra, de quase segurança e maravilhado pasmo. Mau grado o peso adicional, Zu-tag saltava com a mesma facilidade e igual rapidez que os outros, e não parou até alcançar uma árvore a curta distância da aldeia dos negros. Daí podiam ouvir os gritos e os risos dos Gomangani, o ladrar dos cães... e, por entre a folhagem, Bertha avistou a povoação de onde conseguira fugir dias antes. Estremeceu... conjecturando sobre os motivos por que Zu-tag a levara ali.

Mas agora os gorilas avançavam de novo, lenta e cautelosamente, deslocando-se entre as árvores sem fazerem o menor ruído, ágeis como esquilos apesar da sua enorme corpulência. Assim, chegaram a uma árvore de onde podiam ver toda a aldeia, por cima da paliçada. Zu-tag soltou os pulsos da jovem, como a indicar-lhe que procurasse firmar os pés no tronco. Ele próprio se sentou num ramo sólido, apontando, repetidas vezes, para a entrada de uma cubata. Parecia querer explicar que o gigante branco estava ali, prisioneiro, e os seus gestos eram realmente expressivos. Bertha viu sob ela o tecto de palha de uma cubata, para onde poderia saltar... mas o que faria depois de estar dentro da aldeia... era coisa que excedia o seu entendimento.

A escuridão começava a envolver tudo, e as fogueiras, sob os caldeirões com água, estavam acesas. Bertha viu o poste no centro da aldeia, rodeado por montes de lenha, e a significação sinistra do que viu tornou-se evidente para ela. Se ao menos tivesse uma arma com a qual pudesse enfrentar os negros, não hesitaria em saltar para salvar o homem que por três vezes lhe salvara a vida. Sabia que ele a odiava, mas isso não a impedia de se sentir no dever de o socorrer. Estranho homem, na verdade, que umas vezes parecia tão feroz como as feras, e noutros momentos mostrava sentimentos dignos de um cavaleiro de outras idades. Durante dias estivera à sua mercê, na selva, e no entanto sempre sentira que podia confiar nele...

Zu-tag estava, evidentemente, à espera de que a noite escurecesse por completo, Bertha não sabia quais os planos que se haviam esboçado nos pequenos cérebros dos gorilas. Durante uma hora, os nove antropóides ficaram imóveis, sobre a árvore, observando os preparativos dos negros. A certa altura pareceu surgir qualquer discussão entre eles, porque cerca de uns vinte se reuniram em volta do que parecia ser o chefe, gritando e gesticulando.

A discussão durou uns vinte minutos, ou mais, até que dois guerreiros se afastaram para voltarem pouco depois trazendo um segundo poste, que colocaram ao lado do que já estava cravado no chão, no centro da aldeia. Bertha não teve de esperar muito para compreender a utilidade do segundo poste.

Agora a noite descera completamente, e só as fogueiras iluminavam a aldeia dos Gomangani. Alguns guerreiros entraram na palhota que Zu-tag apontara pouco antes... e saíram quase em seguida, trazendo dois prisioneiros... um dos quais era o gigante branco, e o outro um oficial inglês com o uniforme de aviador. Então, num impulso, Bertha levantou-se e, tocando num ombro de Zu-tag, disse em voz baixa: — Vamos!

Falava como se se dirigisse a uma criatura humana, mas não pensou sequer nisso. No instante seguinte saltou sobre a cobertura de palha da cubata que estava imediatamente sob ela, e daí para o chão. A sombra era densa, fora do círculo de luz das fogueiras, mas Bertha viu que Zu-tag vinha logo atrás dela, seguido pelos outros oito. Sem saber porquê, a jovem sentiu uma impressão de segurança, como nunca sentira antes junto dos grandes macacos. Parando ao lado de uma palhota das que se alinhavam ao longo da rua principal, espreitou cautelosamente. A curtas polegadas dela estava a entrada da palhota, e mais adiante os negros rodeavam os dois prisioneiros que já estavam amarrados aos postes. Todas as atenções se concentravam nas vítimas que iam ser imoladas, e por isso as possibilidades de Bertha e os gorilas serem avistados, eram poucas. No entanto, Bertha gostaria de ter uma arma, pois não sabia se os seus companheiros a seguiriam no momento decisivo. Entrou na cubata e, tendo encontrado uma lança, apanhou-a e voltou para a entrada. Tarzan e o tenente SmithOldwick estavam solidamente amarrados aos postes. Nenhum deles falara, durante algum tempo. Tarzan mantinha-se direito contra o poste. O tenente olhou para o seu companheiro de desgraça e viu-o impassível, sem qualquer expressão de medo ou mesmo de cólera.

— Adeus, velho amigo... — sussurrou o tenente. Tarzan olhou para ele e sorriu, dizendo:

— Adeus... Se quiser apressar o fim, respire o fumo e as chamas tão depressa quanto puder.

— Obrigado... — volveu o aviador, endireitando os ombros e levantando a cabeça.

As mulheres e as crianças tinham-se sentado num largo círculo, no interior do qual os guerreiros, pavorosamente pintados, começavam a esboçar os primeiros passos da dança da morte. Tarzan olhou de novo para o companheiro.

— Se quiser estragar-lhes a festa, mantenha uma expressão indiferente e não grite, por muito que sofra. Privá-los-á de um dos maiores prazeres. Adeus uma vez mais, e boa sorte.

O jovem inglês não respondeu, mas pela sua expressão era possível adivinhar que os canibais não se divertiriam a vê-lo morrer. Agora os guerreiros dançavam em volta, apertando cada vez mais o círculo.

Não tardaria que a lança de Numabo fizesse correr o primeiro sangue, e depois de algum tempo de tortura, a lenha começaria a arder.

Por fim, uma lança picou o peito do homem da selva, fazendo correr um leve fio de sangue... e quase no mesmo instante, das sombras em redor, elevou-se um grito agudo, de mulher, logo seguido por um coro de terríveis brados e por uma grande confusão entre os espectadores, de um dos lados. Os dois presos não podiam ver o que era... mas Tarzan reconheceu no mesmo momento as vozes dos gorilas... embora não pudesse acreditar que eles tivessem vindo para os salvar.

Numabo e os seus guerreiros pararam bruscamente de dançar... e com olhos espantados viram, abrindo caminho na direcção dos postes, a mesma rapariga branca que algum tempo antes se escapara da aldeia... seguida por um bando de terríveis gorilas. Batendo para a direita e para a esquerda, com os seus formidáveis braços, rasgando a carne dos que não fugiam suficientemente depressa, vinha Zu-tag. Rapidamente, derrubando os espectadores ou destroçando-os com os poderosos dentes, os gorilas atacavam, chefiados pela rapariga branca. Tarzan, pasmado por vê-la ali, bradou, dirigindo-se a Zu-tag:

— Vai lutar ao lado dos outros, enquanto a rapariga corta as cordas!... — e continuou, falando em inglês para Bertha Kircher: — Depressa, corta as cordas, os gorilas lutarão com os negros...

Bertha Kircher correu para ele. Não tinha faca, mas os seus gestos eram calmos e precisos.

Em segundos conseguiu desfazer alguns nós, afrouxar as cordas, e permitir a Tarzan que se libertasse.

— Agora liberte o inglês... —disse Tarzan, correndo para se juntar a Zu-tag e aos outros gorilas que lutavam contra os negros.

Numabo e os seus guerreiros, tendo verificado o número relativamente diminuto dos atacantes, tinham organizado uma defesa de lanças e de outras armas, para os deter e dominar. Três gorilas haviam caído já, mortos ou mortalmente feridos, quando Tarzan, vendo que a luta podia tomar mau aspecto para os antropóides, olhou em volta, em busca de algum meio de desbaratar os Gomangani. E de repente os seus olhos encontraram o que queria. Com um sombrio sorriso, agarrou um dos caldeirões onde fervia água e despejou-o sobre os guerreiros negros... que recuaram com uivos de dor, apesar dos incitamentos de Numabo. O conteúdo de um segundo caldeirão de água fervente seguiu imediatamente o do primeiro. .. e não foi preciso terceiro para que os canibais fugissem desesperadamente, buscando abrigo nas cubatas.

Quando Tarzan recuperou as suas armas, e Bertha libertou o tenente inglês, os dois homens, a rapariga e os seis gorilas recuaram para o portão da paliçada. Smith-Oldwick armara-se com uma lança abandonada pelo dono... e não tardou que o pequeno grupo desaparecesse na selva, sem nova interferência dos negros.

Tarzan caminhava em silêncio. Ao lado dele ia Zu-tag, o jovem gorila, e atrás vinham os outros antropóides, seguidos por Bertha Kircher e pelo tenente aviador — este último flagrantemente pasmado e intrigado.

Em toda a sua vida, Tarzan poucas vezes contraíra obrigações para com terceiras pessoas, tendo-se sempre bastado a si mesmo na sua luta pela sobrevivência. Mas, naquela noite, a maior das obrigações caíra sobre ele — pois a sua vida fora salva por outra criatura... e o homem da selva rosnava, irritado, pois que odiava a criatura que o salvara...

 

A descoberta do avião

Tarzan, voltando da caça e trazendo ao ombro a carcaça de Bara, o gamo, parou sobre os ramos de uma grande árvore, na orla da clareira, e olhou para os dois vultos que vinham do rio e se encaminhavam para a cubata rodeada pela boma, a curta distância.

O homem da selva abanou a cabeça e suspirou. Os seus olhos dirigiram-se para os lados do Oeste, e os seus pensamentos voaram para a distante barraca, na angra da costa, em frente do grande mar... a barraca construída por seu pai... Desde a morte de Jane, Tarzan havia intensamente desejado voltar para lá, para a selva onde nascera e onde vivera uma grande parte da sua vida. Esperava, desse regresso ao passado, um relativo esquecimento da sua mágoa constante.

Mas a pequena barraca estava muito longe, a muitos dias de marcha, e agora ele sentia-se preso pelos deveres que contraíra... e se relacionavam com os dois vultos que atravessavam agora a clareira, em baixo e em frente. Um desses vultos era o de um jovem tenente aviador, inglês, de uniforme rasgado e quase em farrapos, e o outro o de uma rapariga cujo trajo de montar se encontrava em condições ainda piores que o uniforme do seu companheiro.

Um capricho do destino reunira aquelas três criaturas radicalmente diferentes. Uma era um homem-fera, um selvagem; outra, um oficial inglês... e a terceira, uma mulher que o homem da selva odiava por ser espia dos alemães.

Tarzan não fazia ideia de como poderia libertar-se daqueles dois, a não ser que os acompanhasse na longa marcha até à costa leste, desfazendo todo o caminho dolorosamente feito. Mas que outra solução poderia haver? Aqueles dois nunca teriam a força e a resistência, nem a capacidade de orientação, que lhes permitisse seguirem para oeste — e Tarzan não desejava a companhia deles. Poderia talvez tolerar a presença do homem, mas não podia sequer pensar em que aquela mulher entrasse na barraca que, de algum modo, se tornara sagrada para ele... Assim, visto que não podia abandoná-los a si próprios, só lhe restava a solução de voltar para trás, pelo menos até que encontrassem alguma instalação de brancos.

Decerto havia encarado a ideia de abandonar a rapariga à sua sorte... mas isso fora antes de ela o salvar de morrer na tortura, às mãos dos Wama-bos... Agora sentia o peso da obrigação contraída, mas não podia furtar-se a ela. Era nisto que pensava, ao observar os dois vultos. Teve um sorriso sombrio, ao considerar até que ponto aquelas duas criaturas eram indefesas... eram inaptas para enfrentar a grande selva. Mesmo o pequeno balu, filho de Go-lat, estava mais preparado para sobreviver. Com a possível excepção de Kota, a tartaruga, o homem — e mais ainda a mulher — era a mais lenta das criaturas da floresta, e também a menos capaz de se defender.

Sem a sua ajuda, sem dúvida que aqueles dois morreriam de fome, ainda que, por milagre, pudessem escapar às outras forças de destruição que a cada instante os ameaçavam. Nessa manhã, Tarzan levara-lhes frutos selvagens, e agora trazia-lhes carne... enquanto eles, quando muito, eram capazes de transportar água do rio. Mesmo naquele instante, enquanto caminhavam através da clareira, eram incapazes de pressentir a presença de Tarzan que os observava. Não sabiam que os olhos cinzentos e penetrantes seguiam os seus movimentos... e da mesma forma ignoravam outros olhos, incomparavelmente mais ferozes, que os espreitavam de entre o mato, perto da boma. Tarzan, porém, via esses outros olhos, e adivinhava a atitude do corpo a que pertenciam.

Um leve movimento das folhas, no alto de uma haste, revelara a Tarzan a presença da fera... pois o movimento não podia ser causado pelo vento.

E o homem da selva pressentia a presença de Sheeta, a pantera, que se preparava para atacar os dois vultos que vinham do rio.

Bertha Kircher e o aviador iam a meio caminho entre o rio e a boma, quando Tarzan lhes disse que parassem. Ambos olharam, surpreendidos, para o ponto de onde viera a voz, e viram-no saltar ligeiramente para o chão e dirigir-se a eles.

— Venham, devagar, para onde eu estou...— ordenou Tarzan. — Não corram, ou Sheeta os atacará...

Obedeceram sem compreender, olhando-o interrogativamente.

— Que quer dizer? Quem é Sheeta?... —perguntou o jovem aviador.

Em resposta, Tarzan atirou para o chão a carcaça de Bara e saltou para junto deles, os olhos fitos em qualquer coisa que estava atrás. Foi então que os dois se voltaram e ficaram a saber quem era Sheeta, porque a pantera atacava.

Com crescente fúria e suspeita, Sheeta vira o homem da selva saltar da árvore e aproximar-se da sua presa. O instinto dizia-lhe que o Tarmangani ia privá-la de comer... e Sheeta tinha fome, não estava disposta a perder o que já considerava seu. Bertha Kircher abafou um grito involuntário, ao ver a proximidade da fera, enquanto o inglês, embora desarmado, a cobria com o seu corpo e enfrentava o ataque. Tarzan notou o gesto, e embora habituado a actos de coragem, apreciou aquele, tanto mais notável por ser fútil.

A pantera saltava, e a distância não era grande. No tempo necessário para ler uma dúzia de palavras, o felino podia percorrer essa distância... mas, se Sheeta era veloz, Tarzan ainda o era mais. O tenente viu-o passar junto dele, como um raio. Viu a pantera tentar esquivar-se, talvez decidida a abater as suas presas antes de as defender contra Tarzan. Viu tudo isto... e viu também Tarzan torcer-se em pleno salto e agarrar a fera.

Viu os poderosos braços morenos rodearem o corpo mosqueado, o braço esquerdo sobre a espádua esquerda da fera, o braço direito por detrás da pata direita. Com o choque, o homem e a pantera rolaram no chão. O tenente ouvia os dois adversários rosnar e grunhir, e pensou, com horror, que os sons que saíam da garganta do homem não eram menos selvagens do que aqueles que a pantera soltava. Lívida, Bertha agarrou um braço do tenente, murmurando:

— Não podemos fazer nada, antes que a pantera o mate?... —e acrescentou, enquanto o jovem aviador procurava em volta alguma arma: — Espere, vou buscar a lança que ele me deixou...

Smith-Oldwick viu as garras da pantera procurarem, para a rasgar, a pele morena do homem. Este esquivava o corpo, e os seus músculos tensos exerciam uma pressão enorme. Tinha conseguido montar o dorso mosqueado, e as suas pernas apertavam os flancos de Sheeta. A pantera rolava-se no terreno e deixava-se cair de costas, para se libertar... mas não o conseguia.

Os dentes de Tarzan estavam cravados no pescoço do felino, enquanto os braços lhe apertavam cada vez mais o tronco.

Então a rapariga voltou, com a curta lança, ofegante da rápida corrida, e sem perder tempo a entregar a arma ao inglês, adiantou-se, aproximando-se dos dois contendores. Por duas vezes tentou cravar a lança no corpo da fera, mas de ambas as vezes a deteve o receio de ferir o homem. Até que os dois ficaram imóveis por um instante, e Bertha Kir-cher pôde atravessar com a lança o coração do felino.

Tarzan levantou-se e sacudiu-se, como fazem os animais inteiramente cobertos de pêlo. Tal como muitos outros gestos que lhe eram peculiares, aquele era o resultado de um hábito adquirido. Como se Numa, terminada uma luta, se sacudisse para pôr em ordem a pelagem fulva e a majestosa juba.

O homem da selva olhou para a rapariga, com uma expressão intrigada. Mais uma vez ela interviera para o salvar... e ele não queria dever obrigações a uma espia alemã. Por outro lado, não podia deixar de sentir admiração pela coragem da rapariga... um aspecto que sempre o atraía por ser ele próprio, como era, a personificação da coragem.

— Aqui está carne... — disse ele, apanhando do chão a carcaça de Bara. — Suponho que quererão cozinhar a vossa parte... mas eu prefiro a carne crua.

Seguiram-no para o interior da boma, onde ele cortou várias fatias da carne, guardando uma parte para ele. O jovem tenente acendeu uma fogueira, e a rapariga ocupou-se dos cuidados primitivos da refeição.

Enquanto ela trabalhava, um pouco afastada, os dois homens observavam-na.

— É maravilhosa, não acha? ...—perguntou o tenente.

— É alemã e é uma espia... — volveu Tarzan.

— Como? Que diz?... — o tenente voltou-se para ele, espantado.

— Disse que é alemã e espia... —repetiu Tarzan.

— Não posso acreditar...

— Não precisa acreditar... —disse o homem da selva. — É-me indiferente que acredite ou não. Vi-a em conferência com o general «boche» e com o seu estado-maior, no acampamento perto de Taveta. Todos a conheciam, e a tratavam pelo seu nome. Entregaram-lhe um papel. Quando voltei a vê-la foi num acampamento inglês, disfarçada, e mais tarde encontrei-a em companhia de um oficial alemão, em Wilhel-mstal. É uma alemã e uma espia, mas é uma mulher, e por essa razão não posso matá-la.

— Acredita realmente nisso que diz?... — perguntou o tenente.—Deus! Eu não posso acreditar... É tão gentil, e boa, e corajosa...

— É corajosa... — volveu o homem da selva, encolhendo os ombros. — Mas também Pamba, o rato, deve ter alguma qualidade boa. No entanto é o que eu lhe digo. Odeio-a, e você deveria também odiá-la.

— Deus me perdoe... mas não posso odiá-la... — murmurou o tenente Smith-Oldwick.

O homem da selv a olhou-o com desprezo e levantou-se, dizendo:

— Têm comida que chegue para dois dias. Tarzan vai caçar outra vez.

O tenente e a jovem ficaram a olhar o grande corpo moreno até que ele desapareceu entre as árvores, no outro lado da clareira. Quando deixaram de o ver, Bertha Kircher sentiu-se mais uma vez invadida pelo medo, o que nunca lhe acontecia quando Tarzan estava presente. As ameaças da selva pareciam-lhe outra vez mais sinistras... E agora ele partira e, ao que dissera, demorar-se-ia dois dias... dois longos dias de perigos e de sustos.

— Gostaria que ele tivesse ficado... — murmurou ela. — Sinto-me mais segura quando está perto. É sombrio e terrível, mas no entanto sinto-me bem, com ele, como nunca me senti na companhia de qualquer outra pessoa. Parece odiar-me... mas sei que não deixaria que me acontecesse qualquer mal. Não o compreendo.

—Nem eu...—respondeu o inglês — ...mas sei que a nossa presença aqui interfere com os planos dele. Gostaria de se ver livre de nós, e creio mesmo... que tem a esperança de não nos encontrar quando regressar... que algum dos riscos da selva tenha sido fatal para nós... Penso que devíamos tentar regressar a algum ponto civilizado... Esse homem não nos deseja, e não poderíamos viver aqui... Já percorri a África, em vários sítios, e nunca encontrei nenhum como este, com tal abundância de feras e de nativos perigosos. Se partirmos sem demora para a costa leste, pouco mais perigo correremos do que ficando... e se pudermos sobreviver a um dia de marcha, alcançaremos a costa em poucas horas... porque suponho que o meu avião esteja ainda onde o deixei antes de os negros me apanharem...

— Mas não podemos partir antes de ele voltar... — disse a jovem. — Temos de lhe agradecer e de nos despedir... Devemos-lhe muito...

O tenente olhou-a em silêncio, durante algum tempo. Não fazia ideia se ela sabia o que Tarzan pensava a seu respeito... e começou a conjecturar sobre as acusações do homem da selva... Quanto mais olhava para a rapariga, tanto mais lhe custava a acreditar que fosse uma espia alemã. Desejava fazer-lhe a pergunta abertamente, mas não ousava. Resolveu, finalmente, esperar que um conhecimento mais prolongado lhe revelasse a verdade.

— Acredito...—disse ele, como se não tivesse havido qualquer pausa... — esse homem ficaria contente se não nos encontrasse, ao voltar. Não vejo a necessidade de mal-gastar dois dias de vida para lhe agradecer, por muito que apreciemos o que ele fez. Você já lhe pagou a sua dívida... e pelo que ele me disse, creio que não deve querer ficar.

— Que quer dizer?... — perguntou Bertha, olhando-o com surpresa.

— Não me agrada dizer-lho... — volveu o tenente, riscando nervosamente o chão, com um ramo seco

— ...mas dou-lhe a minha palavra de que ele prefere não a ver mais.

— Conte-me o que ele disse... — insistiu a jovem. — Tenho o direito de saber.

O tenente Smith-Oldwick ficou tenso, mas levantou a cabeça e falou:

— Disse-me que a odiava... e que só a ajudou por se tratar de uma mulher.

Bertha Kircher empalideceu primeiro, depois corou. Disse, em voz baixa:

— Dentro de um instante estarei pronta para partir. Temos de levar alguma dessa carne, não sabemos quando poderemos ter mais...

E assim partiram ambos ao longo do rio, para o sul. O inglês empunhava a pequena lança que Tarzan deixara à jovem, enquanto ela tinha como única arma um pau que sobrara da construção da cubata. Antes de partirem, Bertha insistira em que o inglês deixasse uma nota para Tarzan, agradecendo e apresentando despedidas. Deixaram a nota presa na parede interior da cubata, com uma lasca de madeira.

Tinham de estar constantemente alerta, pois nunca sabiam o que os esperava em cada volta da trilha... ou que perigos podiam ameaçá-los entre o mato. Existia também o risco de encontrarem algum guerreiro de Numabo, e visto que a aldeia ficava directamente no seu caminho, tiveram de fazer um largo rodeio para passarem sem que os negros os descobrissem.

— Tenho menos medo dos indígenas locais do que de Usanga e do seu bando... — disse a rapariga. — Ele e os que o seguem fizeram parte das tropas alemãs, indígenas. Trouxeram-me com eles, quando

. desertaram, para obterem resgate, ou para me venderem como escrava. Usanga é pior do que Numabo, pois recebeu treino militar e dispõe de armas mais ou menos modernas, com munições.

— Tive sorte... —comentou o inglês... —em ser descoberto pelo ignorante Numabo... Usanga teria menos medo do avião, e provavelmente tê-lo-ia desmantelado...

— Esperemos que ele não o encontrasse... — murmurou Bertha.

Continuaram a caminhar... mas tão densa era a vegetação que por vezes tinham de avançar quase de rastos. As lianas pareciam formar uma rede...

 

Ao sul, num terreno esparsamente arborizado e quase plano, um certo número de negros estavam reunidos em volta de um objecto que lhes provocava abundantes comentários e vasto pasmo. Os negros envergavam restos de uniformes alemães... e eram comandados pelo sargento Usanga. O alvo do interesse deles era um avião inglês.

Imediatamente depois de o tenente ter sido levado para a aldeia de Numabo, Usanga e o seu bando haviam partido em busca do avião, movidos em parte pela curiosidade, e noutra parte pelo desejo de o destruir. Ao encontrá-lo, porém, uma nova ideia surgira. O aparelho representava um valor considerável, e Usanga concebera a ideia de tirar partido disso. Observara-o atentamente, em dias seguidos, e conquanto ao princípio tivesse sentido apenas pasmo, acabara por se habituar e vê-lo com olhos de proprietário.

Subia frequentemente para a carlinga, e na sua mente nasceu o desejo de aprender a manobrar o avião.

Seria uma considerável proeza, se pudesse voar lá muito no alto, acima das grandes árvores. O seu prestígio aumentaria muito, aos olhos dos companheiros... que acabariam por supô-lo uma espécie de divindade... Usanga esfregava as mãos... Viria a ser muito rico, sem dificuldade, pois todas as tribos lhe pagariam tributo... e poderia ter pelo menos uma dúzia de mulheres... Mas de repente lembrou-se de Naratu... e o seu entusiasmo arrefeceu um tanto.. Todavia a ideia agradava-lhe, de modo que voltou a imaginar-se senhor de um harém de doze... não... de vinte e quatro mulheres.

Por vezes mexia nos comandos do avião... esperando e temendo, ao mesmo tempo, descobrir a combinação de gestos que fariam o aparelho levantar voo. Não abandonava, por outro lado, a esperança de que o aviador... tendo escapado da aldeia de Numabo, viesse em busca do aparelho e lhe caísse nas mãos. Era mesmo essa a esperança principal, que o fazia demorar-se ali.

E por fim... foi recompensado. Num dia em que se afastara do avião e se internara na selva, com o seu bando... ouviu vozes que vinham do lado norte... Escondido entre o mato, com os outros... viu com alegria aparecer o aviador inglês... e a rapariga que ele cobiçara e se lhe tinha escapado...

Usanga mal pôde conter um brado de satisfação... Nunca ousara esperar que a sorte pusesse ao seu alcance, ao mesmo tempo, as duas pessoas a quem mais desejava encontrar.

Enquanto caminhavam pela selva, ignorantes do perigo que os espreitava, o tenente Smith-Oldwick explicava a Bertha Kircher que deviam estar muito perto do ponto onde deixara o aparelho. Toda a atenção de ambos se concentrava na trilha em sua frente, já que a todo o momento esperavam alcançar a planície e o avião que significaria vida e liberdade para eles.

A trilha era larga, e caminhavam lado a lado... Foi assim que, transposta uma curva, avistaram simultaneamente a planície e o aparelho.

Soltaram exclamações de alegria... e no mesmo instante viram surgir do mato, em volta deles, Usanga e o seu bando...

 

O negro voador

A jovem sentiu-se quase esmagada pelo horror e pelo desapontamento. Ter estado assim tão perto da salvação... e ver tudo perdido em consequência de um golpe cruel da sorte, parecia-lhe insuportável. O tenente ficou também desapontado, mas sobretudo furioso. Notou os restos de uniformes que os negros vestiam, e imediatamente quis saber onde estavam os oficiais.

— Eles não o entendem...—disse Bertha Kircher.

E, na linguagem abastardada que serve de meio de comunicação entre os alemães e os negros da sua colónia, repetiu a pergunta do aviador. Usanga riu-se.

— Sabes onde eles estão, mulher branca... —respondeu. — Estão mortos, e se esse homem não fizer o que eu quero, morrerá também.

— Que quer?... — perguntou ela.

— Quero que ele me ensine a voar como os pássaros... — retorquiu Usanga.

Bertha não escondeu o seu espanto, mas repetiu a frase, em inglês. O aviador pensou durante alguns momentos.

— Quer aprender a voar, hem? Pergunte-lhe se nos dará a liberdade, depois de eu o ensinar.

A jovem fez a pergunta a Usanga. Este, astuto e sem escrúpulos de qualquer espécie, estava perfeitamente disposto a prometer fosse o que fosse, embora sem intenções de cumprir o que prometia. Acedeu imediatamente.

— Que o homem branco me ensine a voar... disse ele — .. ,e eu levarei ambos até onde estiver

a vossa gente... mas em troca ficarei com o grande pássaro...

Quando Bertha Kircher repetiu as palavras do negro, o aviador encolheu os ombros e disse, com uma expressão resignada:

Creio que não há outra forma de sair disto.

De qualquer modo o avião está perdido para o governo britânico. Se eu recusasse a exigência desse patife negro, ele matar-me-ia e o avião ficaria aí a apodrecer. Aceitando a proposta, teremos uma possibilidade de assegurar o seu regresso à civilização... e isso, para mim, vale mais do que todos os aviões do «British Air Service».

A jovem olhou-o, de relance. Era a primeira vez que, nas palavras dele, aparecia uma sugestão de que os seus sentimentos iam mais longe do que os de um simples companheiro de desfortuna. Lamentou que ele tivesse dito essas palavras... e ele lamentou-o também ao ver a sombra que envolvera os olhos da jovem. Compreendeu que tinha acrescentado uma dificuldade mais, a uma situação quase insustentável.

— Perdoe-me... —disse, apressadamente. — Esqueça o que as minhas palavras possam ter sugerido. Se a ofenderam, prometo não voltar a ofendê-la... quando menos até estarmos livres de tudo isto.

Ela sorriu e agradeceu-lhe, mas as palavras haviam sido ditas e nada poderia agora evitar isso.

Usanga insistiu em começar imediatamente as lições. O inglês tentou dissuadi-lo, mas no mesmo instante o negro recomeçou a mostrar-se insolente e ameaçador. Como todos os ignorantes, suspeitava sempre das intenções dos outros, desde que não coincidissem com os seus próprios desejos.

— Está bem...—murmurou o inglês — ...vais ter a grande lição da tua vida...—e acrescentou, voltando-se para a jovem. — Tente convencê-lo a deixá-la acompanhar-nos.

Não me agrada que fique sozinha com os outros patifes.

Mas, quando Bertha apresentou a sugestão a Usanga, o negro pensou imediatamente que devia tratar-se de um plano para o levar de volta às linhas alemãs de onde havia desertado, e recusou, aos berros.

— A mulher branca ficará aqui, com o meu povo! Ninguém lhe fará mal, a não ser que eu não volte são e salvo!

— Diga-lhe... —pediu o inglês, quando a jovem traduziu a resposta — ...que se eu não a vir em segurança, quando voltar, não descerei e levá-lo-ei para o entregar aos ingleses, que o enforcarão.

Usanga prometeu que a jovem estaria em segurança e bem à vista, quando voltassem, e ameaçou os seus homens de que os mataria se fizessem algum mal a Bertha Kircher. Então, seguido por todo o bando, dirigiu-se para o avião, com o inglês. Quando se sentou no aparelho que já considerava propriedade sua, o negro começou rapidamente a perder coragem... e quando a hélice se pôs a girar, gritou desesperadamente para o aviador... que parasse e o deixasse sair. Mas o tenente não podia entendê-lo, e o ruído do motor nem o deixava ouvir. O avião rodou no terreno... e nesse momento Usanga teria saltado para o chão se conseguisse desafivelar a correia que o prendia ao banco. Um instante depois o aparelho descolou... Usanga estava meio inconsciente, de terror. Via a terra afastar-se, ficar lá para baixo, e o horizonte alargar-se cada vez mais, ao ponto de poder avistar, minúscula na distância, a aldeia de Numabo. Tentou furiosamente não pensar na queda possível... concentrar-se na ideia do seu futuro poderio... das futuras vinte e quatro mulheres... E então, pouco a pouco, o medo começou a desaparecer, substituído por uma sensação de segurança, e o negro pôs-se a observar a maneira como o inglês manobrava.

Ao cabo de meia hora, o tenente Smith-Oldwick resolveu tomar maior altura e, sem aviso, lançou o avião num «looping», voando durante alguns momentos de cabeça para baixo. Usanga gritava como um desesperado, no auge do pavor... e continuou a gritar até que o tenente endireitou o aparelho e começou a descer sobre o terreno. Descreveu vários círculos, até se assegurar de que Bertha estava bem à vista e aparentemente ilesa... e só então poisou suavemente o avião, a curta distância do ponto de onde tinha levantado voo.

Foi um negro trémulo e de face cinzenta, o que saiu da carlinga do aparelho. Usanga não estava ainda refeito do seu pavor... mas ao sentir o chão firme debaixo dos pés começou a recuperar a sua atitude habitual. Com largos gestos e grandes demonstrações de basófia, fez o possível para convencer a sua gente de que, para ele, não tinha havido qualquer complicação em voar a grande altura sobre a selva, como os pássaros... e não tardou a convencer-se a si mesmo, pela força da auto-sugestão, de que assim tinha realmente sido.

Tão cioso estava Usanga da sua nova propriedade, que não quis sequer voltar à aldeia de Numabo. Ordenou à sua gente que acampasse ali mesmo, não fosse alguém roubar-lhe o avião. Durante dois dias ficaram ali, e as lições repetiam-se com frequência, por exigência de Usanga. O tenente, recordando os longos meses de árduo treino a que se submetera, antes de ter sido considerado apto para voar, sorria ante a vaidade do negro ignorante, que já tinha a pretensão de voar sozinho.

— Se não fosse por perder o avião... — explicou o tenente a Bertha—...deixá-lo-ia ir... e estaria morto em dois minutos...

Conseguiu convencer Usanga a tomar mais umas quantas lições... mas na mente do negro logo nasceu a suspeita de que havia ali um ardil qualquer. Talvez o homem branco estivesse a preparar-se para fugir, de noite... O ex-sargento sentia-se perfeitamente capaz de manobrar o aparelho... e via-se já no caminho de um poderio absoluto sobre todas as tribos. À ideia aliciante das suas futuras vinte e quatro mulheres, juntava-se agora, de novo, o desejo de ter para si a rapariga branca. Foi com estas ideias que Usanga adormeceu, na segunda noite... Com estas ideias e com outra, não menos tentadora, que era a de se ver livre de Naratu, a quem temia mais do que ao diabo... E, assim, um plano nasceu e tomou forma na sua mente.

Quando rompeu a manhã, Usanga mal pôde esperar pela oportunidade de pôr em prática o seu plano. Depois de comer, chamou de parte alguns dos seus homens e falou com eles, longamente.

O inglês, que habitualmente não perdia de vista o seu captor, viu que Usanga explicava qualquer coisa aos seus homens, em pormenor. Não entendia as palavras, que mal conseguia ouvir, mas os gestos eram expressivos. A certa altura os negros fitaram-no ...e pouco depois todos os olhos se voltaram para a rapariga branca... Havia alguma coisa no ar, e Smith-Oldwick estava inquieto. Não tinha qualquer arma, nem mesmo a lança que trouxera, e nada poderia fazer se o plano de Usanga, como lhe parecia quase certo, comportasse uma ameaça para ele ou para Bertha Kircher...

Não teve muito que esperar... porque quase imediatamente depois de o ex-sargento ter dado as suas instruções, uma dezena de negros se aproximou dele, enquanto três outros se acercavam da jovem. Sem uma palavra, os guerreiros agarraram o inglês e derrubaram-no. Por instantes, o aviador ofereceu uma resistência furiosa, mas não demorou muito a ser dominado pelo número... e a ser amarrado de pés e mãos. Quando o largaram, pôde ver que Bertha estava igualmente amarrada.

Smith-Oldwick tinha ficado numa posição que lhe permitia ver grande extensão da planície, e o avião, a curta distância de um dos bosques. Viu também Usanga, que falava com Bertha Kircher... a qual lhe respondia com veementes negativas.

— Que está ele a dizer?... — perguntou o tenente, gritando.

— Diz que vai levar-me no avião... para outra região mais para o interior, onde afirma ser rei... e que eu serei uma das suas mulheres... — e então, com surpresa para o inglês, Bertha sorriu ao acrescentar: — Não há perigo... porque ambos estaremos mortos dentro de minutos. Basta que ele faça descolar o avião... e deixarei de ter motivos para recear seja o que for.

— Deus!... — exclamou o tenente. — Não há maneira de o dissuadir? Prometa-lhe seja o que for... Eu tenho dinheiro, muito mais dinheiro do que esse idiota pode supor que exista... e com isso ele poderá comprar o que quiser, incluindo as mulheres que desejar. Diga-lhe que, se ele a deixar livre, eu lhe dou a minha palavra de que irei buscar o dinheiro para lho entregar...

— É inútil... —volveu a jovem. — Ele não compreenderia, e ainda que compreendesse não teria confiança. Os negros não acreditam nos brancos... e nos ingleses ainda menos... Os «boches» convenceram-nos de que os ingleses são criaturas traiçoeiras e sem vergonha. Não... É melhor assim... Tenho pena de que você não vá... porque a minha morte vai ser incomparavelmente mais rápida do que a sua...

Usanga tinha interrompido várias vezes a breve conversa, exigindo que Bertha lhe traduzisse o que o inglês dizia... A jovem tentou ainda convencê-lo a prometer-lhe que daria a liberdade ao inglês se ela o seguisse de boa vontade, mas o negro riu-se.

— Irás comigo de qualquer maneira... —disse ele. — Vou ser um grande rei e terás de me obedecer!

Tinha em mente que, vendo-se livre de Naratu, não recomeçaria a experiência anterior. Escolheria com cuidado as suas vinte e quatro mulheres... e aquela seria a primeira. Seria o amo e senhor...

Bertha Kircher compreendeu a inutilidade da sua tentativa... e sentiu pena daquele jovem inglês que lhe confessara o seu amor... A uma ordem de Usanga, dois negros içaram a jovem para o lugar atrás do piloto. Aí, cortaram-lhe as cordas que lhe prendiam os pulsos e amarraram-na ao banco. Usanga subiu para o lugar da frente.

A jovem olhou ainda uma vez para o tenente, e teve a coragem de lhe sorrir e dizer:

— Adeus!

— Adeus... e que Deus a abençoe— ...respondeu Smith-Oldwick, em voz rouca. — O que eu quis dizer-lhe...

Mas o ruído do motor do avião abafou o resto da frase. Usanga aprendera suficientemente bem as lições, de maneira a saber ligar o motor e fazer rodar o avião... Smith-Oldwick viu o aparelho descolar, mas compreendeu que só por sorte Usanga conseguira a proeza... Não havia uma possibilidade num milhão, de que pudesse manter-se por muito tempo...

Mas, nesse instante... os olhos do tenente abriram-se muito, num enorme espanto...

 

A recompensa de Usanga

Durante dois dias, Tarzan tinha caçado, sem pressas, para o lado norte do acampamento... e descrevendo uma larga volta, regressava agora à clareira onde deixara Bertha e o jovem aviador. Tinha passado a noite sobre uma enorme árvore, e às primeiras horas da manhã debruçou-se sobre o rio, na ideia de apanhar Pisah, o peixe. Sabia que o mais leve movimento assustaria Pisah, e que só com infinita paciência poderia capturá-lo. Mas Tarzan tinha a inesgotável e calma paciência dos animais da selva. A sua ideia era levar o peixe para que Bertha pudesse cozinhá-lo, para si e para o seu companheiro.

Por fim, viu o reflexo das escamas brilhantes, sob a água clara. Teria de se manter imóvel até que, com a velocidade do raio, as suas mãos pudessem mergulhar e apanhar Pisah. O peixe aproximava-se... mas nesse momento houve um estalar de ramos, perto. Na mesma fracção de segundo o peixe desapareceu, e Tarzan voltou-se para enfrentar o possível inimigo. Mas viu que se tratava de Zu-tag.

— Que quer Zu-tag?... —perguntou o homem da selva.

— Zu-tag vem beber.

— Onde está a tribo?

— Em busca de comida, na floresta...

— E os Tarmangani?

— Foram-se embora... —respondeu Zu-tag. — Kudu já saiu duas vezes do seu covil, desde que eles partiram.

— A tribo expulsou-os?

— Não... Não os vimos partir... e não sabemos por que partiram.

Tarzan saltou para as árvores e dirigiu-se a toda a pressa para a clareira. A cubata e a borrm estavam tal como ele as havia deixado, mas a rapariga e o homem tinham desaparecido. Dentro da cubata, Tarzan verificou, pelo faro, que haviam partido pelo menos dois dias antes. Então viu a nota presa na parede interior. Desprendeu-a e leu:

«Depois do que me disse de «miss» Kircher, e sabendo que não gosta dela, sinto que não é justo impôr-lhe a nossa presença. Sei que estamos a impedi-lo de seguir o seu caminho para o Oeste, e portanto decidi que era melhor partir em busca de algum ponto civilizado. Ambos lhe agradecemos a sua bondade e a sua protecção. Se de alguma forma puder pagar-lhe as obrigações que lhe devo, terei grande prazer nisso.» A assinatura era a do tenente Harold Perey Smith-Oldwick.

Tarzan encolheu os ombros, amachucou o papel e atirou-o para o chão. Experimentava uma certa sensação de alívio, e alegrava-o a ideia de que a responsabilidade já não fosse sua. Tinham partido e esquecê-los-ia... Mas não, não podia esquecer.. Atravessou a boma e afastou-se através da clareira.

Sentia-se inquieto ...Depois de caminhar durante algum tempo para o Norte, na ideia de seguir o curso do rio até ao planalto de onde vinha... parou bruscamente, murmurando:

— Ele é um inglês... e ela é mulher... Nunca poderão alcançar qualquer ponto civilizado, sem a minha ajuda... Não pude matá-la com as minhas mãos... mas se os deixasse ir assim, seria o mesmo... Não... Tarzan é tolo e fraco... — concluiu, voltando para o sul.

Manu, o pequeno macaco, tinha visto os Tarmangani passar, dois dias antes, e contou o que sabia. Vira-os seguir na direcção da aldeia dos Gomangani. O homem da selva continuou a sua jornada, e mesmo sem fazer qualquer esforço para isso foi notando numerosos sinais da passagem do homem e da mulher, na folhagem densa onde persistia um leve rasto de cheiro, e no chão onde as marcas dos pés calçados se distinguiam bem.

Uma sensação inexplicável impelia-o a avançar mais depressa. Alguma coisa lhe dizia que precisavam dele, que fizera mal em os deixar entregues a si mesmos. A sua consciência atormentava-o, e embora se considerasse idiota e fraco, por não obedecer simplesmente à sua vontade — como qualquer animal da selva — não conseguia dominar outros sentimentos que na verdade lhe eram próprios como pessoa humana.

A pista desviava-se para leste, dando um rodeio na altura da aldeia de Numabo, e depois seguia ao longo de uma larga trilha de elefantes, na direcção sul. Em dado momento, o homem da selva ouviu um som peculiar, estranho... Parou, escutando... reconheceu o ruído do motor de um avião... e correu mais depressa ainda.

Quando, finalmente, Tarzan chegou à orla da planície onde o tenente inglês deixara o seu avião, abarcou toda a cena num rápido relance e compreendeu a situação, embora lhe custasse a acreditar no que via. Impotente, amarrado de pés e mãos, o oficial inglês estava caído no chão, enquanto à sua volta se aglomerava um bando de desertores negros do exército alemão. Tarzan já tinha visto aqueles homens, e sabia quem eram. O avião vinha na direcção dele, pilotado por Usanga, e no lugar atrás do piloto vinha Bertha Kircher. Tarzan não fazia ideia de como o negro aprendera a manobrar o avião, mas não tinha tempo para fazer conjecturas a esse respeito. O que sabia de Usanga, e a situação do tenente, indicavam-lhe de maneira clara que o negro estava a tentar levar a rapariga. Para que queria fazer isso, tendo-a já em seu poder e tendo dominado a única criatura que podia tentar defendê-la — tanto quanto Usanga sabia — era coisa que Tarzan não podia adivinhar, pois ignorava o sonho do negro e o seu pavor de Naratu...

Tudo o que Tarzan sabia era o que via... um negro que tentava raptar uma mulher branca... O avião começava a descolar, e dentro de instantes estaria fora do seu alcance. Tarzan tinha apenas uma possibilidade num milhão... e se essa possibilidade falhasse, seria a morte. Mas não hesitou.

Usanga, concentrado na manobra do avião, não viu Tarzan, mas os outros negros viram-no e correram, gritando e brandindo as armas. Viram o gigante branco saltar de uma árvore, aproximar-se do aparelho que descolava e atirar uma corda com um nó corredio. Viram a rapariga branca olhar para baixo... e estender um braço, apanhando a corda. No mesmo instante o avião tomou altura, inclinando-se ligeiramente sob o peso de Tarzan que subia também, suspenso da corda. Usanga puxou uma alavanca e o aparelho subiu quase verticalmente...

O inglês, amarrado e estendido no chão, tinha visto toda a cena... e o seu coração teve um sobressalto ao ver que o corpo de Tarzan baloiçava no ar e parecia ir, inevitavelmente, chocar contra as árvores... Mas o avião subia depressa e Tarzan passou por cima das ramadas mais altas, sem lhes tocar. Então, devagar, à força de pulsos, o homem da selva começou a içar-se. A rapariga, presa ao seu banco, agarrava agora a corda com ambas as mãos, num esforço desesperado.

Usanga, inconsciente do que acontecia atrás dele, continuava a fazer subir o aparelho.

Tarzan olhou para baixo. As copas das árvores e a fita prateada do rio iam ficando para trás. Entre ele e o terreno, milhares de pés de uma queda fatal que só era detida por uma corda entrançada, de ervas... e pelos músculos frágeis de uma mulher. Bertha sentia os dedos dormentes... e logo os braços começaram a perder a sensibilidade.

Não sabia quanto tempo mais poderia aguentar-se... quando viu uma grande mão forte e morena agarrar o rebordo da carlinga. No mesmo instante deixou de sentir o peso na corda, e logo depois Tarzan estava ao lado dela. Olhou para Usanga e falou, com a boca junto do ouvido de Bertha:

— Já conduziu um avião?

A jovem acenou afirmativamente.

— Tem coragem para passar para o lugar da frente, enquanto eu me ocupo desse negro?

Ela estremeceu, respondendo:

— Sim... mas tenho os pés amarrados...

Tarzan curvou-se e, com a faca, cortou as cordas que lhe prendiam os tornozelos, enquanto a rapariga desafivelava a correia que a segurava pela cintura. A distância entre os dois lugares era de apenas alguns pés... mas bastava uma ligeira inclinação do aparelho para que Tarzan e a jovem, que transpunham rastejando essa distância, fossem precipitados para a morte. O homem da selva compreendeu que só um milagre lhes permitiu alcançar o lugar do piloto...

A primeira sensação que Usanga teve de que as coisas não corriam bem... foi quando a jovem branca apareceu sentada ao lado dele, agarrando os comandos, enquanto dedos de aço lhe apertavam o pescoço. Uma grande mão, que empunhava uma faca, estendeu-se e cortou o cinto que mantinha o negro... e ao mesmo tempo músculos poderosos ergueram-no, arrancando-o do seu lugar. Usanga debateu-se... mas tão debilmente como uma criança...

Os que estavam em baixo viram o avião perder altura e logo depois endireitar-se... Não podiam distinguir o que acontecia... Mas o tenente Smith -Oldwick não conteve um brado de espanto ao ver um vulto que saltava do aparelho e mergulhava no espaço, rodopiando, com velocidade crescente... O corpo caiu no meio da planície, com um baque surdo, sinistro... e quando o inglês ganhou coragem para abrir os olhos, deixou escapar um suspiro de alívio ao ver que a massa informe, que jazia no terreno, tinha a pele negra... Usanga recebera finalmente a sua recompensa.

Uma vez, e outra, o avião voou em círculo sobre a planície. Os negros, ao princípio desmoralizados pela morte do seu chefe, estavam agora possuídos por uma raiva frenética, e bradavam por vingança. Tarzan e a jovem viram-nos juntar-se em grupo, junto do corpo do chefe. O homem da selva estava ainda agarrado à carlinga, entre os dois lugares. Aproximou-se um pouco mais de Bertha Kircher e gritou-lhe uma indicação breve.

Quando compreendeu a significação das palavras dele, a jovem empalideceu... mas nos seus olhos brilhou uma luz de dura resolução. Manobrou o aparelho, descendo a uma altura de poucos pés acima do terreno, na extremidade da planície, e lançou-o em voo rasante, a toda a velocidade, sobre os negros. A velocidade era tanta que os guerreiros de Usanga não tiveram tempo para fugir ao compreenderem o perigo... e o avião tocou no terreno e ceifou-os com a hélice. Quando, por fim, o aparelho se imobilizou quase na orla da floresta, Tar-zan saltou para o chão e correu na direcção do jovem inglês, olhando de relance para o ponto onde haviam estado os negros, pronto a lutar se fosse necessário. Mas não era necessário. Os destroços do bando de Usanga estavam espalhados por uma vintena de metros... e nem um só dos negros sobrevivera.

Na altura em que Tarzan acabava de libertar o tenente, Bertha juntou-se a ambos. Tentou dizer a sua gratidão, mas Tarzan calou-o com um gesto.

— Você salvou-se a si mesma... porque, se não soubesse pilotar o avião, eu nada podia ter feito... Agora... —acrescentou — ...creio que dispõem realmente de um meio para alcançarem algum posto avançado da civilização. Ainda é cedo, e poderão chegar ao vosso destino em poucas horas, desde que tenham gasolina suficiente...

— Tenho bastante... — declarou o aviador.

— Então partam...—disse o homem da selva, com um sorriso. — Nenhum dos dois pertence a este mundo selvagem.

A rapariga e Smith-Oldwick sorriram também. O inglês respondeu:

— Esta selva não é lugar para nós, pelo menos... e não é lugar para nenhum homem branco. Por que não vem connosco?

— Prefiro a selva...—disse Tarzan, abanando a cabeça.

— Se se trata de... enfim, de meios de subsistência... - disse o tenente, com acanhamento — enfim... de uma questão de dinheiro... eu...

- Não...—cortou Tarzan. — Sei o que quer dizer, mas não é isso. Nasci na selva, tenho vivido aqui quase toda a minha vida... e morrerei na selva. Não desejo outro género de vida... nem outra morte.

Calou-se e olhou para os outros, que o fitavam sem compreender. Então acrescentou:

— Vão... Quanto mais depressa partirem, mais depressa estarão em segurança...

Encaminharam-se para o avião, lado a lado. Smith-Oldwick apertou a mão a Tarzan e içou-se para o lugar do piloto. A rapariga também estendeu a mão ao homem da selva.

— Adeus... — disse ela. — Antes de eu partir... não quer dizer-me que já não me odeia?

A face de Tarzan tornou-se sombria. Sem uma palavra, ergueu a jovem nos braços e colocou-a no lugar atrás do tenente. Bertha teve uma crispação de tristeza. O motor começou a trabalhar, e segundos depois o aparelho rodou na planície e descolou.

Em baixo, Tarzan ficou imóvel durante algum tempo. Depois murmurou, encolhendo os ombros:

— É pena que seja alemã e espia... porque é difícil odiá-la...

 

O leão negro

Numa, o leão, tinha fome. Viera da região desértica do leste, e havia encontrado uma terra de abundância, mas embora fosse jovem e forte as presas tinham, até então, conseguido escapar às suas garras.

Numa estava esfomeado e feroz. Haviam decorrido dois dias desde a última vez que comera, e agora andava à caça... possuído por uma raiva incontível. Não rugia, antes se movia silenciosamente, sombriamente, cauteloso para não afugentar a presa que procurava.

Sentia no ar o cheiro da passagem recente de Bara, o gamo. Um vento leve agitava as ramadas baixas, nas veredas, e trazia-lhe o cheiro do gamo, excitando-lhe o ávido apetite. Todavia, Numa não se precipitava... apressava apenas o passo silencioso. Pouco antes, uma precipitação inútil fizera com que Pacco, a zebra, lhe escapasse. Agora, avançando com cautela, Numa podia ver o gamo que caminhava adiante, devagar, porque o vento não o deixava captar o cheiro do leão.

Numa avaliou a distância, com os olhos brilhantes... Não falharia desta vez, tinha a certeza disso. Um rugido paralisaria a criatura na sua frente... e um salto bastaria para que Numa pudesse, finalmente, comer. A cauda sinuosa ergueu-se de repente.

O rugido ia seguir-se... mas nesse instante Sheeta, a pantera, saltou para a trilha, entre Numa e o gamo.

Um ataque estúpido, feito às cegas, porque ao primeiro rumor do salto do corpo sinuoso e mosqueado, o gamo arrancou como uma flecha e desapareceu.

O rugido que devia paralisar Bara... saiu, cavernoso, da garganta do leão — um rugido de raiva contra Sheeta, que lhe assustara a presa. Numa lançou-se contra a pantera... mas Sheeta considerava decerto a prudência como a melhor parte da coragem, e desapareceu numa árvore.

Meia hora depois, um leão completamente enraivecido descobriu d e repente o cheiro de um homem. Até então Numa desprezara a carne desagradável do bicho humano... uma presa que só os leões velhos procuravam, por ser fácil... Mas Numa nunca sentira tanta fome, nos curtos cinco anos da sua existência.

Não importava que fosse novo, poderoso, astuto e feroz... Perante a fome todos são iguais... E Numa tinha uma fome desesperada... Agora, para ele, era indiferente caçar Pacco, ou Bara, ou um homem... Queria apenas comer, e naquele momento não teria hesitado em devorar Dango, a hiena, cuja carne tem um sabor detestável pois só se alimenta de podridão.

O grande leão conhecia os hábitos e as fragilidades dos homens, embora nunca os tivesse caçado Para comer.

Sabia que o desprezível Gomangani era a mais lenta, a mais estúpida e a mais indefesa das criaturas. Nenhuma astúcia era precisa para caçar um homem, e Numa estava demasiadamente irritado para tomar precauções.

A sua raiva crescera ao ponto de se tornar tão dominadora quanto a fome. Baixou a cabeça, verificando o rastro, e lançou um poderoso rugido, correndo para diante sem se importar com o ruído que fazia. Majestoso e terrível, o rei dos animais adiantou-se pela trilha batida. Tinha posto de parte toda a natural cautela inerente a cada uma das criaturas da selva. Não temia ninguém... e tendo apenas um homem para caçar, para que precisava de se acautelar? E foi assim que não viu, nem farejou, o que um mais atento e cauteloso Numa teria imediatamente notado... e foi cair, através de uma rede de ramos frágeis cobertos com terra solta, no fundo buraco que os Wamabos tinham cavado na pista, exactamente para esse fim.

 

Tarzan dos Macacos ficou no centro da clareira, olhando o avião que era agora apenas um ponto no espaço, para leste. Deixara escapar um fundo suspiro de alívio, ao ver o aparelho deslocar em segurança levando o aviador inglês e «Fraulein» Bertha Kircher. Durante semanas havia sentido a pesada responsabilidade da segurança deles, na selva onde a sua inexperiência os tornaria presa fácil para os ferozes carnívoros ou para os cruéis Wamabos.

Tarzan amava uma liberdade total, e agora que aqueles dois estavam fora da sua vida, podia finalmente seguir o seu caminho para oeste, para a barraca, durante tanto tempo abandonada, que seu pai construíra muitos anos antes, à beira do grande mar. E todavia, enquanto ali estava a olhar o pequeno ponto escuro no espaço e na distância, outro suspiro alteou o seu largo peito; não de alívio, agora, mas de uma sensação que ele não esperava voltar a sentir e que detestava reconhecer, mesmo de si para consigo. Não lhe agradava reconhecer que, criado na selva e tendo renunciado de uma vez para sempre à sociedade dos humanos, pudesse sentir alguma coisa semelhante a saudade pela partida daqueles dois, ou que o seu isolamento lhe pesasse mais. Tinha simpatizado com o tenente inglês... mas odiara a mulher que conhecera como espia alemã... embora nunca tivesse tido a coragem de a matar como jurara matar todos os hunos. Atribuíra essa fraqueza ao facto de se tratar de uma mulher, mas na verdade tivera sempre a impressão de que o seu ódio era inconsistente...

Sacudiu a cabeça, irritado consigo mesmo, e tomou o caminho do oeste, voltando as costas ao aparelho que desaparecia na distância. Mas, na extremidade da clareira, parou. Uma árvore enorme estava na sua frente... e obedecendo a um impulso irresistível, Tarzan saltou para os ramos e subiu rapidamente até onde os troncos mais delgados Podiam ainda aguentar o seu peso. Aí, em equilíbrio sobre uma ramada, sondou o horizonte, para leste... em busca do avião que levava as duas últimas criaturas da sua raça que esperava ver.

Por fim, os seus olhos penetrantes distinguiram o pequeno ponto escuro, que voava a considerável altura. Mas então, com horror, viu esse diminuto ponto mergulhar bruscamente. A queda pareceu-lhe interminável, e Tarzan compreendeu que o avião devia ir a grande altura quando começara a descer. Pouco antes de desaparecer atrás das montanhas, a velocidade da queda diminuiu...

Durante meio minuto, o homem da selva ficou a fixar as referências do terreno, que calculava estarem próximas do ponto onde o avião descera — porque, assim que vira que o aviador e Bertha estavam novamente em dificuldades, o seu sentido do dever fizera-o abandonar todos os planos para ir socorrê-los.

Tarzan receava que, pelo que julgara quanto à localização do ponto de queda, o avião tivesse descido na região árida e deserta que ele atravessara semanas antes. Sabia, pela sua própria experiência, que nenhum homem normal poderia escapar encontrando-se a grande distância para o interior dessa região. Recordava o esqueleto do antigo guerreiro... via, com os olhos da imaginação, o elmo e a couraça, e a longa espada, que se encontravam junto das ossadas — testemunhas mudas, com o velho arcabuz, da grande estatura e do espírito de luta de quem os havia usado... E via, ao mesmo tempo o jovem inglês e a rapariga, apanhados nas mesmas garras mortais a que o gigante de outras eras não conseguira escapar...

O raciocínio dizia-lhe que provavelmente ambos deviam ter morrido na queda do avião... mas tinha de admitir a hipótese de ficarem apenas feridos, ou mesmo ilesos... para enfrentarem uma outra morte, indizivelmente mais cruel. E, assim, tinha de tentar salvá-los, se tal fosse possível.

Tinha percorrido uma escassa milha, talvez, quando os seus ouvidos captaram o rumor de uma corrida ao longo da trilha, na sua frente. Não tardou que os seus sentidos apurados lhe indicassem tratar-se de Bara, o gamo, que fugia a toda a velocidade. Na mente de Tarzan, os impulsos do homem e os da fera confundiam-se estreitamente. A longa experiência dizia-lhe que o animal mais bem alimentado é o que corre mais e aguenta mais, e assim, com raras excepções, Tarzan adiava sempre as tarefas mais urgentes para se aproveitar da oportunidade de apanhar uma presa, e comer. Talvez esta fosse a característica predominante do que nele havia de animal da selva. A transformação do «gentleman» inglês, movido por princípios humanitários, numa fera espreitando a presa entre as moitas espessas, foi instantânea.

E desta maneira, quando Bara corria para escapar às garras de Numa e também de Sheeta, o seu terror e a sua pressa impediram-no de pressentir outro inimigo igualmente formidável. Tarzan saltou para o chão quase no mesmo instante em que Bara se aproximava... e o seu salto derrubou o animal.

Um momento depois o homem da selva soltava o seu brado de vitória. Quase na mesma fracção de segundo, como resposta, Tarzan ouviu o rugido formidável de um leão, um rugido onde ele pôde distinguir uma nota de surpresa e de terror. Nas criaturas da selva — tal como em todas as criaturas civilizadas — existe, nitidamente desenvolvido, o sentimento da curiosidade. E Tarzan não fugia a essa regra, talvez pelo contrário. A nota peculiar, no rugido que ouvira, despertou nele o imediato desejo de investigar. Assim, lançando sobre um dos largos ombros a carcaça de Bara, o homem da selva saltou de árvore em árvore, através das ramadas mais baixas, e avançou na direcção do ponto de onde viera o rugido, e que ficava exactamente no caminho que ele se propusera seguir.

À medida em que a distância diminuía, os rugidos do leão cresciam em volume. Tarzan tinha agora a certeza de que estava a aproximar-se de um Numa enfurecido... e a certa altura, quando tinha alcançado as ramadas de uma grande árvore sobre a trilha, descobriu o fosso aberto pelos Wamabos, e dentro dele, tentando inutilmente saltar para fora, o mais belo leão que alguma vez havia encontrado. Era um poderoso animal que fixava agora o homem da selva — grande, jovem e formidável, com uma densa juba negra e uma pelagem incomparavelmente mais escura do que é habitual — um leão negro!

Tarzan, que se aprestava para insultar o seu inimigo preso, sentiu-se no mesmo instante dominado por uma profunda admiração pela invulgar beleza do felino. Em comparação, os leões vulgares, da floresta e da planície, pareciam insignificantes. Aquele podia, na verdade, ser chamado rei dos animais! E agora Tarzan compreendia que os rugidos da esplêndida fera podiam de facto significar surpresa e raiva, mas não medo.

Com a admiração, Tarzan sentiu uma impressão de pena pelo soberbo Numa apanhado na ratoeira preparada pelos Gomangani. Inimigo dos leões, decerto, Tarzan odiava ainda mais os negros que o haviam apanhado assim... tanto mais que sabia pertencerem à tribo de Numabo, o canibal. Agora, Numa farejara o sangue da carcaça de Bara... e do fundo da sua garganta saía uma espécie de rouco gemido. Tão claramente como se falasse, aquele gemido queria dizer da sua grande fome... O homem da selva sorriu, olhando a fera. Depois, empunhando a faca de caça que pertencera a seu pai, cortou uma fatia de carne, limpou a lâmina à pelagem de Bara e começou a comer. De novo o leão gemeu... Então, num gesto impulsivo, Tarzan atirou para o fosso o resto da carcaça.

— Mulher velha... — murmurou o homem da selva, falando consigo mesmo. — Tarzan tornou-se brando como uma velha fêmea, em contacto com a civilização... — dizia isto e continuava a sorrir, nada arrependido de ter cedido ao impulso.

Enquanto comia, Tarzan observava atentamente a cena, em baixo. Via a avidez com que Numa devorava os restos do gamo, e ao mesmo tempo notava a poderosa graciosidade da fera. Examinou também o fosso, e constatou que havia sido habilmente preparado, de forma diferente de outros que vira antes. As armadilhas comuns tinham o fundo guarnecido de estacas aguçadas, solidamente cravadas, onde os animais se espetavam ao cair. Naquela, as estacas estavam dispostas a curta distância umas das outras, mas nas paredes do fosso, com as pontas agudas voltadas para baixo. Assim, o leão caíra sem se ferir... mas não podia saltar para fora, embora o fosso não tivesse demasiada profundidade, porque então ele próprio se espetaria contra as estacas.

Tornava-se evidente, assim, que a ideia dos Wamabos era apanhar vivo o leão. Visto que a tribo não tinha qualquer espécie de contacto com brancos — tanto quanto Tarzan podia saber — a intenção dos negroâ, ao quererem o leão vivo, era a de o torturarem e de se divertirem com a lenta e atroz agonia do animal. Tendo dado de comer ao leão, Tarzan considerava agora que o seu gesto seria fútil se deixasse o animal à mercê dos negros. De qualquer modo, gozaria mais, à sua maneira, desapontando os negros do que deixando morrer o leão. Mas como libertar a fera? Removendo duas das estacas, deixaria espaço bastante para o leão saltar, pois o fosso era realmente pouco fundo. Todavia, se assim o fizesse, Numa podia saltar sem lhe dar tempo, a ele, de alcançar o refúgio da árvore. Tarzan não receava Numa — pelo menos como qualquer outra criatura humana o recearia — mas a cautela é um instinto, na selva. A morte inútil repugnava-lhe. No entanto, tinha tomado a decisão de salvar a fera, e salvá-la-ia ainda que com isso corresse riscos.

Tarzan sabia que o leão, esfomeado como estava, ficaria durante algum tempo ainda exclusivamente absorvido pela necessidade de comer — mas sabia igualmente que a fera reagiria contra qualquer interferência. Tinha de agir com cuidado.

Saltando para o chão, ao lado da armadilha, examinou as estacas... e ficou surpreendido ao notar que Numa não dava mostras de se enfurecer com a sua aproximação. Apenas olhou de relance para ele, e voltou a devorar a carcaça. Então Tarzan experimentou a solidez das estacas, e verificou que podia soltá-las com relativa facilidade, puxando-as e empurrando-as alternadamente. Mas uma nova ideia lhe ocorreu: com a lâmina da faca, começou a escavar a terra em volta de uma estaca, de maneira a pôr a descoberto a parte enterrada, sem todavia soltar o tronco aguçado, ao ponto de o fazer cair. Procedeu da mesma forma em relação à estaca seguinte, e logo enrolou o nó corredio do seu laço, em volta das duas puas, e saltou para a árvore mais próxima. Aí, bastou-lhe puxar a corda para que as estacas se soltassem... e nesse momento Numa ergueu-se, rosnando, desconfiado.

O leão parecia intrigado e irritado com aquilo. Não se encolerizara ao ver Tarzan junto do fosso, porque o Tarmangani lhe dera de comer. Mas agora era diferente. Enquanto fitava as estacas, Numa viu-as desprenderem-se e desaparecerem em cima. No mesmo instante compreendeu que tinha na sua frente uma possibilidade de saltar para fora da armadilha... e até talvez compreendesse que o Tarmangani lhe oferecia um meio de escapar. Agarrando os restos de Bara, com as fortes presas, Numa saltou para fora da armadilha dos Wamabos... ao mesmo tempo que Tarzan desaparecia nas profundidades da floresta.

À superfície do chão, ou entre as ramadas das árvores, o rasto do cheiro de homens ou animais era como um livro aberto para Tarzan... mas um avião não deixava rastos... Nenhum dos cinco sentidos podia servir para seguir a pista de um aparelho que voava a muitas centenas de metros acima das altas ramadas. Apenas o instinto de direcção poderia guiar Tarzan na sua busca pelo aparelho que se despenhara. Nem sequer lhe tinha sido possível avaliar com justeza a distância a que se dera a queda, e após ter desaparecido por detrás das montanhas, o aparelho podia ainda ter percorrido quilómetros antes de descer para o terreno. Se os dois passageiros estivessem mortos, ou gravemente feridos, a busca seria quase desesperada. Havia apenas uma coisa a fazer, que era seguir a direito para o ponto possível da queda e depois procurar em círculos progressivamente mais largos.

Antes de abandonar aquela região de abundância, Tarzan caçou vários animais, levando consigo a carne das presas e deixando o peso inútil dos ossos. A densa vegetação da selva terminava no sopé da encosta oeste das montanhas, tornando-se mais esparsa à medida em que subia. No alto, e na outra encosta, crescia apenas relva escassa, esbranquiçada, algumas moitas espinhosas e uma ou outra árvore que resistia à dureza de uma existência quase sem água.

Do alto da montanha, os olhos penetrantes de Tarzan percorreram a paisagem árida do planalto que se alongava na sua frente. Avistava, a distância, as tortuosas e escuras fendas das gargantas que atravessara... as gargantas que quase tinham posto fim à sua vida, como castigo pela ousadia de haver importunado e perturbado a sua secular solidão. Durante dois dias, o homem da selva procurou em vão algum indício do aparelho ou dos seus ocupantes. Escondeu porções da carne que levava, em diversos pontos, empilhando rochas para marcar os sítios. Atravessou o primeiro desfiladeiro e avançou para além. Por vezes gritava, chamando... mas apenas o silêncio lhe respondia, sinistro.

Ao fim da tarde do segundo dia chegou à garganta rochosa — a última que atravessara no caminho para o vale — onde encontrara as ossadas do antigo aventureiro. E foi aí que, pela primeira vez nesta segunda jornada, Ska, o abutre, apareceu no espaço, acima dele.

Tarzan bradou:

— Não desta vez, Ska! Agora Tarzan é Tarzan. Outro Ska tentou atacar um Tarmangani moribundo, mas perdeu a partida. Não percas o teu tempo...

Mas Ska continuou, impassível, a voar em círculos, na altura, e mau grado seu, Tarzan sentiu um estremecimento. Irritado, agarrou uma pedra e lançou-a para cima, contra a ave agoirenta.

Tarzan desceu sem custo para o fundo do desfiladeiro. Tinha-o alcançado quase no mesmo lugar onde o escalara semanas antes, embora tivesse vindo de uma direcção diferente. Viu no chão a armadura, a espada, o arcabuz e os ossos, tal como os vira... tal como estavam ali havia séculos. Parou, a olhar aqueles restos sombrios de um sonho de aventura que o deserto esmagara... e foi então que, de mais longe, de um ponto distante da profunda garganta, chegou aos seus ouvidos o eco de uma detonação... Vinha do sul, e o som repercutia-se de muralha a muralha...

 

Pegadas misteriosas

O avião pilotado pelo tenente SmithOldwick voava muito acima da selva onde Bertha Kircher estivera tantas vezes em risco de perecer, e seguia com rumo a leste — quando a jovem começou a sentir uma estranha contracção dos músculos da garganta... e tentou com esforço engolir qualquer coisa que não estava ali. Na verdade parecia-lhe espantoso que tivesse saudades de deixar para trás tão grandes perigos... e no entanto, claramente, era isso o que acontecia, porque além dos perigos deixara também alguma coisa mais — uma criatura única que entrara na sua vida e pela qual ela sentia uma inexplicável atracção.

Na frente dela, no lugar do piloto, estava um «gentleman» inglês, um oficial que a amava... e no entanto Bertha tinha saudades de abandonar os lugares onde conhecera um homem no qual havia muito de fera.

Por seu lado, o tenente Smith-Oldwick sentia-se no sétimo céu do contentamento. Recuperara o seu avião, voava rapidamente para leste, onde estavam os seus camaradas e o seu dever, e levava consigo a mulher a quem amava. A única nuvem no seu firmamento era a acusação que Tarzan tinha feito contra Bertha Kircher. Tarzan dissera que ela era alemã e espia — e, das alturas do seu paraíso o tenente mergulhava no desespero, ao antever o inevitável, se a acusação do homem da selva correspondesse de facto à verdade. O tenente sentia-se dilacerado entre dois sentimentos igualmente fortes... o amor e o dever. Por um lado não podia entregar a mulher a quem amava... ao destino que seria o seu se fosse realmente uma espia alemã... mas por outro lado, como oficial inglês, era-lhe impossível dar-lhe ajuda e protecção.

O jovem piloto contentava-se com repetidas negativas mentais à aceitação da culpa de Bertha Kircher. Tentava convencer-se de que Tarzan estava enganado, e quando evocava a recordação da face da rapariga que ia atrás dele, ficava duplamente tranquilizado pelos olhos claros e honestos, a feminilidade e a doçura das feições. Não, Bertha não podia pertencer a uma raça inimiga.

Assim voavam para leste, cada qual entregue aos seus pensamentos. Em baixo estendia-se o imenso tapete verde da selva, que depois dava lugar às montanhas... para então surgir a paisagem árida e sinistra do grande deserto sulcado de fundos desfiladeiros...

Depois de terem ultrapassado a crista montanhosa que formava a fronteira entre o deserto e as terras férteis — Ska, o abutre, voando alto, avistara a distância aquele pássaro de enormes proporções, que devassava os seus domínios aéreos. Ou na intenção de dar combate ao intruso, ou movido apenas pela curiosidade, Ska tomou altura para ir ao encontro do avião. Decerto avaliara mal a velocidade do grande pássaro, porque inesperadamente foi tocado pela ponta da hélice... e então várias coisas aconteceram simultaneamente. O corpo morto de Ska, rasgado e sangrento, tombou como uma pedra para o terreno; uma lasca de madeira partida saltou e foi bater violentamente na testa do piloto; o avião estremeceu... e, quando o tenente Smith-Oldwick caiu para a frente, aturdido, afocinhou e iniciou uma queda quase vertical.

A inconsciência do piloto durou apenas um instante, mas esse instante foi fatal. Quando retomou o conhecimento das coisas e compreendeu o perigo... compreendeu também que o motor tinha parado. A velocidade do mergulho era assustadora, e o terreno parecia demasiado próximo para que o piloto pudesse ter tempo para endireitar o avião e escolher o ponto onde poisar com segurança. Logo abaixo abria-se uma profunda fenda no planalto, uma estreita garganta cujo fundo parecia relativamente plano e arenoso.

No breve instante em que teve de tomar uma decisão, a ideia mais segura pareceu-lhe tentar uma descida na garganta, e foi isso o que fez, não sem consideráveis estragos no avião e violentos abalos para ele e para a sua passageira. Por sorte, nenhum dos dois ficou ferido, mas a situação parecia totalmente desesperada. Era muito improvável que o aviador conseguisse reparar o aparelho e continuar a jornada... e não era menos improvável que conseguissem seguir a pé até à costa, ou voltar para trás. O tenente tinha a certeza que não era praticável a ideia de atravessar o deserto para leste, em consequência da sede e da fome... e regressar seria enfrentar novamente as feras e os negros selvagens.

Quando o avião se imobilizou, depois da súbita e desastrosa descida, Smith-Oldwick voltou-se rapidamente para ver o que acontecera à jovem. Viu-a pálida mas sorridente, e durante alguns segundos ficaram a olhar um para o outro, em silêncio.

— É o fim?... — perguntou ela.

— O fim da primeira jornada, pelo menos... — respondeu o tenente, abanando a cabeça.

— Mas não pode pensar em fazer reparações, aqui...

— Não, desde que sejam complicadas, mas talvez possa dar um jeito. Terei de começar por rever o motor... e talvez não seja muito grave. Estamos muito longe do caminho de ferro de Tanga...

— Não iríamos longe... — volveu a jovem, com uma nota de desespero na voz. — Sem armas, só por milagre poderíamos percorrer uma parte da distância.

— Mas não estamos desarmados... — disse Smith-Oldwick. — Tenho uma pistola de reserva, no avião, que por sorte os negros não descobriram...

O tenente abriu um pequeno compartimento e tirou de lá uma pistola automática. Bertha Kircher teve um ataque de riso... onde havia uma sombra de histerismo.

— Essa pistolinha!... — exclamou ela. — Para que serve, a não ser para irritar alguma fera a quem consiga ferir com isso?

Smith-Oldwick pareceu um tanto desapontado.

— É uma arma... — murmurou. — Uma coisa destas pode matar um homem...

— Sim, se lhe acertar e se isso não se encravar... — volveu ela. — Não acredito muito nas automáticas. Já as usei.

— Oh, claro... — disse o tenente, com leve ironia. — Um rifle «Express» seria mais conveniente... porque talvez encontremos algum elefante no deserto.

Bertha viu que ele estava magoado e teve pena, pois sabia que nada havia que o tenente não fizesse para a servir ou proteger, e que não era por sua culpa que estava tão mal armado. Sem dúvida que ele também compreendia a quase inutilidade da pistola, e que só chamara a atenção para a arma a fim de a tranquilizar e diminuir a sua ansiedade.

— Perdoe-me... — disse. — Não queria ser irritante... mas este acidente é, de algum modo, a proverbial última gota. Tenho a impressão de que já suportei tudo o que posso suportar. Embora estivesse disposta a dar a vida pelo serviço do meu país, nunca imaginei que a agonia da morte fosse tão longa... Compreendo agora que estou a morrer há várias semanas.

— Não pense isso!... — exclamou o tenente. — Que quer dizer com essas palavras? Não está a morrer! Não tem nada...

— Oh, não é isso... — interrompeu ela. — Não queria dizer tal coisa. Digo apenas que... desde o momento em que esse sargento negro, Usanga, e os seus indígenas renegados, me apanharam e me levaram para o interior, a minha sentença de morte foi lavrada. Por vezes pensei que havia um adiamento... por outras vezes cheguei a imaginar que fora indultada... mas no fundo de mim mesma soube sempre que não voltaria à civilização. Fiz o que pude pelo meu país, e embora não fosse muito... posso morrer com a certeza de que foi tudo o que podia. Agora só posso esperar, e só peço, uma rápida execução da sentença. Não posso suportar por mais tempo o horror e a angústia.

Mesmo a tortura física seria preferível ao que eu tenho sofrido. Sei que me considera uma mulher corajosa, mas na verdade o meu pavor não tem tido limites. Os rugidos das feras, de noite, enchem-me de um medo tão tangível que é como uma dor física. Sinto as garras a rasgarem-me a carne... as presas a triturarem-me os ossos... e a impressão é tão real como se sofresse os horrores dessa morte. Duvido de que possa entender-me... os homens são muito diferentes...

— Sim... — redarguiu ele — ... creio que posso entender, e por isso mesmo posso apreciar, mais do que supõe, o heroísmo de que deu provas em tudo o que sofreu. Não há coragem quando não há medo. Uma criança pode entrar no covil de um leão... mas é preciso um homem corajoso para ir salvá-la.

— Obrigada... mas não sou corajosa e agora estou muito envergonhada por não ter pensado sequer no que você possa sentir. Tentarei dominar-me e esperaremos, ambos, que tudo corra pelo melhor. Ajudá-lo-ei em tudo o que puder, se me indicar o que devo fazer.

— A primeira tarefa vai ser averiguar as avarias, e ver o que é possível conseguir como reparações...

Durante dois dias, Smith-Oldwick trabalhou no avião — com a certeza antecipada, desde o primeiro momento, de que não havia esperança. E, por fim, disse-o a Bertha.

— Eu sabia... — volveu ela — ... mas creio que senti o mesmo que você sentiu, isto é, que embora os nossos esforços fossem inúteis, o resultado não seria pior do que se tentássemos seguir para a costa, ou regressar à selva. Ambos sabemos que, a pé, não conseguiremos chegar ao caminho de ferro de Tanga. Morreríamos de sede e de fome antes de termos percorrido metade da distância... e ainda que pudéssemos voltar à selva, o resultado seria o mesmo, embora de maneira diferente.

— Pensa então que é o mesmo sentarmo-nos aqui e esperar a morte... ou gastar inutilmente energias numa tentativa de cuja inutilidade temos a certeza prévia?

— Não... — respondeu ela — ...não desistirei assim. O que quis dizer foi que é inútil tentar alcançar os lugares onde sabemos que há comida e água. Portanto vamos caminhar noutra direcção. Talvez haja água nalgum ponto desta desolação, e se a houver, o melhor será seguir ao longo desta garganta. Tendo cuidado, dispomos de comida e água que poderá chegar para dois dias, e entretanto talvez consigamos descobrir alguma nascente ou alguma região fértil, que eu sei existir para o lado sul. Quando Usanga me levou para a região dos Wamabos, desde a costa, ele e o bando caminharam por uma pista ao sul, onde havia água e caça em abundância. Foi só perto do nosso destino que começámos a encontrar feras. Assim, talvez possamos chegar a essa região fértil, ao sul, e depois alcançar a costa.

Smith-Oldwick abanou a cabeça, em ar de dúvida, mas disse:

— Podemos tentar. Por mim, não me seduz a ideia de ficar parado à espera da morte.

O tenente estava encostado ao avião, olhando para o terreno, com uma expressão preocupada. Bertha olhava para a curva da garganta rochosa, na direcção sul. De súbito tocou no braço dele.

— Olhe... — sussurrou.

O homem olhou prontamente e viu a grande cabeça de um leão que os espreitava, acima de uns penedos.

— Oh!... — exclamou. — Esses tipos estão por toda a parte.

— Nunca andam longe da água, não é verdade?

— Suponho que não... — concordou o tenente. — Os leões não são especialmente resistentes à sede.

— Então é um portador de esperança...

— Um lindo portador... — respondeu o tenente, rindo. — Faz-me lembrar a história de Cock Robin, a anunciar a Primavera.

— Não seja pateta, mas pode rir à vontade. Estou cheia de esperança.

— Deve ser recíproco... — replicou Smith-Oldwick. Nós também o enchemos de esperança, a ele.

O leão, aparentemente tranquilizado quanto à natureza das criaturas que vira, avançava devagar na direcção do aparelho.

— Venha, é melhor subir para o avião... — disse o inglês, ajudando Bertha a içar-se.

— Ele não chegará até aqui?... — perguntou ela.

- Creio que poderá chegar...

- Você é tranquilizador...

- Na verdade não me sinto tranquilo... — disse

o tenente, empunhando a pistola.

- Pelo amor de Deus!... — exclamou Bertha. —

Não dispare isso! Pode feri-lo!

- Não penso em disparar contra ele, mas em

assustá-lo se ele quiser trepar para aqui. Nunca viu um domador de leões? Usa uma pistolazita como esta, sem balas. Com isso e com um banco de cozinha, faz o que quer dos animais.

— Sim, mas você não tem o banco de cozinha. .

— Não, isso é verdade. O governo não distribui o equipamento conveniente. Por mim, sempre disse que os aviões deviam dispor de bancos de cozinha.

Bertha riu-se, com tanta calma e sem mais susto do que o faria se estivesse a conversar com amigas, à hora do chá. Numa avançava para eles, e na sua atitude parecia haver mais curiosidade do que ameaça. Perto do avião, parou e olhou para cima.

— Magnífico, não é?... — comentou o tenente.

— Nunca vi uma criatura de tal beleza... — respondeu Bertha. — Tem a pelagem quase negra!

O som das vozes deles pareceu desagradar ao rei dos animais, porque subitamente enrugou o focinho, mostrando os dentes e rosnando. Curvou-se para saltar, e quase no mesmo instante o inglês disparou a arma para o chão. A detonação irritou ainda mais a fera; com um rugido, saltou para a carlinga do avião. O tenente saltou para o chão, do outro lado do aparelho, gritando a Bertha para fazer o mesmo.

Mas a jovem, compreendendo a futilidade do gesto, preferiu a outra alternativa e içou-se para a asa superior.

Numa, desconhecedor das peculiaridades da construção de aviões, e tendo alcançado o lugar do piloto, ficou a ver a jovem afastar-se para fora do seu alcance, sem fazer qualquer tentativa para a agarrar. Tendo tomado posse do estranho aparelho, parecia ter-se acalmado. Nem sequer esboçou um movimento para saltar sobre o inglês...

Foi esta a cena que se deparou aos olhos de Tarzan, quando dobrou a curva da garganta depois de ter ouvido a detonação. Bertha Kircher estava tão absorvida pelos esforços do tenente para alcançar também um lugar sobre a outra extremidade da asa do aparelho — e o inglês estava tão ocupado na tentativa, que nenhum deles notou a silenciosa aproximação do homem da selva.

Numa foi o primeiro a avistar o intruso... e reagiu voltando-se na direcção dele com uma série de rosnidos. A atitude do leão chamou a atenção do tenente e da jovem. Bertha murmurou:

— Graças a Deus...

Mal podia acreditar no que via, e parecia-lhe impossível que Tarzan pudesse ter surgido no momento exacto. Quase imediatamente, ambos ficaram horrorizados ao ver que o leão saltava para o terreno e se aproximava de Tarzan. Este, empunhando a sua lança, não parou e continuou a caminhar para o felino — no qual reconhecera o leão encontrado dias antes na armadilha dos Wamabos. Sabia, pela atitude de Numa, uma coisa que a jovem e o inglês não podiam saber — que a fera era movida mais pela curiosidade do que pela ferocidade... e conjecturava sobre se, naquela grande cabeça, poderia haver alguma ideia de gratidão pelo que ele tinha feito.

Tarzan não tinha qualquer dúvida de que o leão o reconhecia. O seu próprio e profundo conhecimento dos animais selvagens, dizia-lhe que, embora certas circunstâncias desapareçam da memória deles, em curto espaço de tempo, outras perduram durante anos... Um cheiro nítido pode nunca mais ser esquecido, e Tarzan sabia que o faro de Numa lhe recordara os acontecimentos anteriores.

O amor pelo risco do desporto faz parte inerente da raça anglo-saxónica, e naquele instante era «Lord» Greystoke, John Clayton, mais do que Tarzan, quem estava a apreciar a possibilidade de descobrir até onde chegaria a gratidão de Numa. Havia nisso uma espécie de jogo, portanto de desporto. Smith-Oldwick e a rapariga viam-nos caminhar um para o outro. O tenente praguejava, mentalmente, crispando os dedos sobre a sua arma inútil. Bertha apertava as palmas das mãos contra as faces, enquanto olhava, num espanto paralisante e num silêncio angustioso. Embora tivesse inteira confiança na capacidade do deus da selva que assim enfrentava o leão, não podia iludir-se quanto ao desfecho da luta, assim que se desse o choque. Vira Tarzan enfrentar a pantera, mas sabia que, além da agilidade, da astúcia e da poderosa força do homem, fora sobretudo a sorte que o salvara.

Viu o homem e o leão pararem ao mesmo tempo, a menos de um metro um do outro. Viu o leão fustigar os flancos, com a cauda, e rosnar surdamente — mas não sabia interpretar com verdade o movimento, nem o som. Para ela, ambas as coisas significavam ferocidade, ao passo que, para Tar-zan, os rosnidos e o agitar da cauda queriam dizer amizade e reconhecimento. Quando Bertha viu que o focinho do leão tocava numa das pernas morenas e fortes de Tarzan, tapou os olhos com as mãos. Durante o que lhe pareceu uma eternidade, ficou à espera do rumor da luta... mas em vez disso ouviu uma exclamação de pasmo, de Smith-Oldwick: — Por Júpiter! Espantoso! Bertha destapou os olhos e viu que o leão roçava a grande juba negra pelas pernas de Tarzan, enquanto o homem da selva lhe coçava lentamente a cabeça, junto de uma orelha.

Por vezes formam-se estranhas amizades entre os animais de ordem inferior e de espécies diferentes, mas é muito menos frequente existirem relações amistosas entre o homem e os grandes felinos, pois o primeiro teme instintivamente os segundos. No fim de contas, a amizade entre o homem selvagem e a fera não era inexplicável.

Quando Tarzan se aproximou do avião, Numa caminhou a seu lado, e quando Tarzan parou para fitar a jovem, o leão fez o mesmo.

— Quase tinha perdido a esperança de os encontrar... — disse o homem da selva — ...mas parece-me que os encontrei no momento exacto.

— Como soube que estávamos em dificuldades? - perguntou Smith-Oldwick.

— Vi o avião mergulhar... — respondeu Tarzan.

— Estava a observá-los do alto de uma árvore, mas na verdade percorreram uma grande distância, em voo planado, na direcção do sul, desde que começaram a perder altura por detrás das montanhas. Procurei-os muito mais para o norte, e estava a pensar em regressar quando ouvi a detonação da sua pistola. O avião não tem reparação possível?

— Não... — volveu o inglês — ...não há nada a fazer.

— Quais são os vossos planos, então? Que querem fazer?... — perguntou Tarzan, dirigindo-se à rapariga.

— Queríamos alcançar a costa... — disse ela.

— ...mas agora não parece possível.

— Eu teria pensado o mesmo há momentos... — disse Tarzan — ...mas se Numa está aqui, deve haver água a distância razoável. Encontrei este leão há dois dias, na região dos Wamabos, e libertei-o de uma das armadilhas dos negros. Para chegar aqui, ele deve ter vindo por um caminho que eu desconheço — pelo menos não encontrei pista de caça ou qualquer rasto de cheiro, de qualquer animal, depois de sair da região fértil. De onde surgiu ele?

— Veio do sul... — explicou a jovem. — Pensámos também que devia haver água nessa direcção.

— Vamos procurá-la... — disse Tarzan.

— E a respeito do leão?... — perguntou Smith-Oldwick.

— Teremos que saber como ele reage, e só o saberemos quando vocês descerem daí.

A rapariga olhou para o inglês, a fim de ver os efeitos da proposta de Tarzan. O tenente empalideceu, mas logo depois encolheu os ombros, sorriu, e sem uma palavra saltou para o chão, ao lado do homem da selva, Bertha compreendeu que ele tinha medo, mas nem remotamente pensou em censurá-lo por isso... e ao mesmo tempo compreendeu a dose de coragem com que o tenente enfrentava um perigo perfeitamente real para ele.

Numa olhou para o aviador, rosnou e fitou Tarzan. O homem da selva agarrou a espessa juba da fera e falou na linguagem dos grandes macacos. Para a jovem e para Smith-Oldwick, os sons guturais emitidos por Tarzan pareciam espantosamente estranhos, mas Numa, quer os entendesse quer não, deixou de rosnar e não incomodou o jovem oficial.

— Que lhe disse você?... — perguntou Bertha Kircher.

Tarzan esboçou um sorriso, respondendo:

— Disse-lhe que sou Tarzan dos Macacos, grande caçador, matador de feras, senhor da selva... e que vocês ambos são meus amigos. Nunca tive a certeza de que os outros animais entendessem a linguagem dos Mangani. Sei apenas que Manu, o pequeno macaco, fala uma linguagem semelhante, e que Tantor, o elefante, entende o que eu digo. Nós, as criaturas da selva, somos grandes gabarolas. Nas nossas palavras e atitudes, em cada pormenor do nosso procedimento, tentamos impressionar os outros com a nossa força física e a nossa ferocidade. Por isso rosnamos diante dos inimigos... para os avisar de que devem ter cautela ou cairemos sobre eles. Suponho que as minhas palavras devem ter traduzido esta impressão geral. Desça, para que eu a apresente a Numa.

Foi necessária toda a coragem da jovem para descer do seu poiso e ficar ao alcance das garras e dos dentes de Numa, mas conseguiu-o. O leão limitou-se a mostrar os dentes e a rosnar em tom baixo.

— Creio que não corre perigo com ele, pelo menos na minha presença... — disse Tarzan. — O melhor que tem a fazer é ignorá-lo. Não tente qualquer aproximação, mas não mostre medo, e se possível fique sempre do outro lado. Ele ir-se-á embora, e tudo parece indicar que não voltaremos a encontrá-lo.

Por sugestão de Tarzan, Smith-Oldwick foi buscar o resto da água e das provisões que tinham no aparelho. Dividiram os fardos, entre todos, e partiram para o sul. Numa não os seguiu, deixou-se ficar junto do avião, a olhá-los até que eles desapareceram.

Tarzan seguia a pista deixada por Numa, com a intenção de encontrar água. No chão arenoso, do fundo da garganta, as marcas eram fáceis de acompanhar. Ao princípio apenas os sinais de Numa eram visíveis, mas para o fim da tarde o homem da selva viu sinais mais antigos, de outros leões... e pouco antes de anoitecer parou subitamente, com uma expressão de evidente surpresa. Bertha e o inglês olharam-no, interrogativamente, e ele apontou o terreno.

— Vejam isto... — disse.

Ao princípio, o tenente e a jovem nada distinguiram além de uma confusão de marcas na areia, mas Bertha acabou por compreender e exclamou, surpreendida por sua vez:

— Marcas de um pé humano!

— Sim...

— Mas não tem sinais de dedos... — notou ela.

— Pés calçados com sandálias macias... — explicou Tarzan.

— Então deve haver uma aldeia nativa, nas vizinhanças... — disse o aviador.

— Sim... — volveu o homem da selva — ...mas não de nativos como poderíamos esperar encontrar nesta região... Aqui todos andam descalços... Não sei se são capazes de notar isso, mas para mim é evidente que os pés calçados com estas sandálias não são pés de um negro. Se virem com atenção, notarão que a pressão do calcanhar e da ponta do pé é visível mesmo através da sandália. Nas pegadas dos negros, a pressão é ao meio.

— Pensa que sejam marcas dos pés de um branco?

— Assim parece... — disse Tarzan.

E bruscamente, ante o espanto do inglês e da rapariga, ajoelhou e cheirou o chão... Era novamente um animal selvagem, farejando, utilizando os cinco sentidos e a astúcia das feras. Farejou longamente, em vários pontos, até que se ergueu.

— Não é o cheiro de um Gomangani... — disse — ...mas também não é exactamente o cheiro de um branco. Passaram duas ou três criaturas por aqui... Homens, mas não sei de que raça.

Não havia diferença aparente no aspecto da garganta, a não ser no facto de ser mais funda. O terreno descia, e as muralhas pareciam cada vez mais altas. Aqui e além surgiam cavernas que se diria terem sido abertas pela acção das águas, talvez milénios antes, a várias alturas. Diante de uma delas, aberta ao nível do chão, cujo piso era de areia macia, Tarzan parou.

— Este será o nosso covil esta noite... — disse; depois, com um dos seus raros e lentos sorrisos, rectificou: — Vamos «acampar» aqui, esta noite.

Comeram frugalmente, beberam um gole de água, e Tarzan indicou à rapariga, com um gesto, que entrasse na caverna.

— Dormirá aí dentro... — disse. — O tenente e eu dormiremos à entrada.

 

Ataque nocturno

Quando a jovem se voltou para lhes desejar boas-noites, viu uma sombra que se movia na escuridão, para além deles, e quase ao mesmo tempo distinguiu um ruído furtivo, na mesma direcção.

— Que é aquilo?... — sussurrou. — Há ali qualquer coisa, na escuridão.

— Sim... — volveu Tarzan. — É um leão. Não o tinha visto antes?

— Oh!... — exclamou ela, com um suspiro de alívio. — É o nosso leão?

— Não. É outro, e anda à caça.

— Persegue-nos?

— Sem dúvida... — volveu o homem da selva, enquanto Smith-Oldwick levava a mão à pistola.

Tarzan viu o involuntário movimento e abanou a cabeça.

— Deixe isso onde está, tenente.

— Foi involuntário, meu velho... — volveu o inglês, com um riso nervoso. — O instinto de conservação, e tudo o mais...

— Seria um instinto de autodestruição... — disse Tarzan. — Há pelo menos três leões que andam à caça e nos espreitam. Se tivéssemos uma fogueira ou houvesse luar, ver-lhes-íamos os olhos. Pode ser que ataquem, mas não me parece. Se disparasse sobre ele, atacariam com certeza.

— E se atacarem?... — perguntou a jovem. — Não temos maneira de fugir.

— Teremos de lutar... — respondeu Tarzan.

— E que possibilidades teríamos contra eles?

— Todos temos de morrer alguma vez... — retorquiu o homem da selva, encolhendo os poderosos ombros. — Para vocês pode parecer terrível... mas eu sempre esperei morrer assim. Na selva poucos morrem de velhos, e essa morte não me agradaria. Alguma vez Numa há-de apanhar-me, ou Sheeta, ou algum guerreiro negro... Ou outros quaisquer. Que diferença faz ser hoje, amanhã ou daqui a dez anos? Quando o fim vier, tudo será igual.

— Sim... — murmurou a jovem, com um estremecimento. — Quando o fim vier tudo será igual.

Entrou na caverna e estendeu-se sobre a areia. Smith-Oldwick sentou-se à entrada, com as costas apoiadas à rocha. Tarzan sentou-se do outro lado.

— Posso fumar?... — perguntou o inglês. — Guardei uns quantos cigarros, e se isso não irritar esses bichos gostarei de fumar um, antes de acabar. Quer?... — acrescentou, estendendo um cigarro ao homem da selva.

— Não, obrigado... Mas não faz mal que fume. Nenhum animal selvagem gosta especialmente do fumo do tabaco, e portanto não os atrairá.

Smith-Oldwick ofereceu também um cigarro a Bertha, que recusou. Então acendeu o seu e sentou-se de novo, fumando lentamente. Ficaram em silêncio. Na escuridão, apenas se ouvia o pisar furtivo das patas das feras, adiante deles. Foi o inglês quem voltou a falar.

— Não os acha invulgarmente calmos?... — perguntou.

— Não... — volveu Tarzan. — O leão que anda a rugir pela selva não o faz para atrair a caça. Quando caçam, não fazem barulho.

— Preferia que rugissem... — disse o tenente.      — Na verdade preferia que fizessem qualquer coisa, mesmo que fosse atacar-nos. O silêncio e a vizinhança desses animais complicam-me com os nervos. Mas não tardará que ataquem todos os três ao mesmo tempo, suponho...

— Três?... — disse Tarzan, calmo. — São pelo menos sete, agora.

— Santo Deus!... — exclamou Smith-Oldwick.

— Não é possível fazer uma fogueira para os afugentar?... — perguntou a rapariga.

— Creio que não ajudaria nada... — redarguiu Tarzan — ...porque tenho uma ideia de que esses leões são diferentes daqueles que estamos habituados a encontrar. Por isso fiquei intrigado com eles, ao princípio... refiro-me à aparente docilidade na presença do homem, como aconteceu com o leão negro que vimos hoje. Está aí adiante um homem, com os leões.

— É impossível!... — exclamou Smith-Oldwick. — Devorá-lo-iam!

— Por que razão pensa que está um homem com eles?... — perguntou Bertha.

— Receio que não possa compreender... — disse Tarzan, abanando a cabeça. — É difícil compreender alguma coisa que excede as nossas possibilidades.

— Que quer dizer com isso?... — perguntou o inglês.

— Que vocês não têm sentido do olfacto, simplesmente.

- Quer dizer que sente o cheiro da presença

de um homem?

— Exacto...

— E é também pelo cheiro que conhece o número dos leões?

— Sim... Não há dois leões com o mesmo aspecto ou com o mesmo cheiro.

— Não há dúvida de que não posso compreender... — murmurou o tenente.

— Duvido que os leões ou o homem estejam ali para nos fazer mal... — explicou Tarzan. — Já o teriam feito, se quisessem. Tenho uma teoria, mas parece-me absurda.

— E qual é?... — perguntou a jovem.

— Creio que eles estão aí para nos impedir de chegarmos a algum sítio aonde não querem que vamos... Por outras palavras, estamos a ser vigiados. Possivelmente não seremos importunados, se não formos aonde não somos desejados.

— Mas como podemos saber aonde não devemos ir?... — disse o tenente.

— Não posso saber..-. — volveu Tarzan — ...mas talvez não queiram que vamos ao lugar que realmente procuramos alcançar.

— A água?

— Sim.

Ficaram novamente em silêncio. Tinha decorrido talvez uma hora quando Tarzan se levantou, sem ruído, empunhando a comprida faca. Smith-Oldwick dormitava, sentado, e a jovem, exausta, dormia profundamente. Um instante depois de Tarzan se ter levantado, o inglês e Bertha Kircher foram acordados por um coro de rugidos e pelo rumor das patas das feras que atacavam.

Tarzan estava de pé à entrada da caverna, de faca em punho, esperando o assalto. O homem da selva não havia contado com um ataque simultâneo. Sentira, desde havia algum tempo, que outros homens se haviam reunido ao que estava com os leões, e levantara-se ao ouvir que homens e feras avançavam cautelosamente. Poderia ter escapado sem custo, pois vira que a escarpa, diante da caverna, era fácil de escalar para um bom trepador como ele. Talvez tivesse sido sensato fazer isso, porque sabia que, em face de tantos inimigos, nada mais podia fazer — mas ficou onde estava, embora talvez nem pudesse dizer porquê.

Não tinha qualquer obrigação relativamente à rapariga ou ao inglês. E, todavia, ia sacrificar-se inutilmente por eles.

O poderoso Tarmangani não teve sequer a satisfação de desferir um só golpe em defesa própria. Uma verdadeira avalancha de feras caiu sobre ele e derrubou-o. Ao cair, bateu pesadamente com a cabeça numa pedra, e ficou inconsciente.

Era dia, quando recuperou os sentidos. A primeira impressão, no confuso despertar da sua mente, foi a de uma mistura de sons selvagens, da qual emergiram os rosnidos dos leões. Depois, pouco a pouco, lembrou-se do que acontecera antes.

Sentia, intenso, o cheiro de Numa, o leão, e encostada a uma das pernas podia sentir a pelagem de um animal.

Abriu os olhos. Estava estendido de lado, e de pé, por cima dele, um grande leão rosnava ameaçadoramente para alguma coisa que ele não podia ver. Com o despertar dos sentidos, Tarzan compreendeu que o animal acima dele era o leão do fosso dos Wamabos.

Tranquilizado, o homem da selva falou ao leão e esboçou um movimento para se levantar. Imediatamente Numa se afastou, para o deixar erguer-se. Apoiado num cotovelo, Tarzan viu que estava ainda onde caíra, à entrada da caverna onde Bertha Kircher adormecera, e que Numa aparentemente o defendia contra dois outros leões que andavam de um lado para o outro, em frente dele.

Então Tarzan olhou para o interior da caverna, e viu que a jovem e o inglês tinham desaparecido. Todos os seus esforços haviam sido vãos. Sacudindo irritadamente a cabeça, o homem da selva voltou-se para os dois leões que continuavam na sua frente. Numa, o do fosso dos Wamabos, olhou para Tarzan e roçou a cabeça pelas pernas dele. Depois enfrentou de novo os outros dois.

— Penso... — disse Tarzan — ...que tu e eu podemos fazer passar um mau bocado a esses...

Falou em inglês, língua que Numa decerto não entendia, mas o som das palavras devia conter qualquer mensagem porque Numa soltou uma espécie de gemido impaciente, agitando-se.

— Vamos..-. — continuou Tarzan.

Segurando com a mão esquerda a juba de Numa, encaminhou-se para os outros. Os dois leões recuaram e acabaram por se afastar... mas bruscamente, como obedecendo a um sinal, atacaram ambos, um de cada lado. O homem da selva aceitou a luta à sua maneira habitual, usando a sua agilidade e a sua astúcia contra a força e as garras da fera. O leão saltou, de garras abertas, mas Tarzan esquivou o choque, bateu com o punho de baixo para cima, sob a pata esquerda do felino, meteu um ombro sob o grande corpo e vibrou um golpe com a faca. Com um rugido, a fera voltou-se... mas Tarzan girou também, agarrou-a pela juba e feriu novamente.

Foi então que o leão endoideceu de raiva. Tarzan saltou sobre o dorso dele, tentando envolver -lhe o corpo com as pernas, como tantas vezes fizera... mas não o conseguiu, tão rápidos e violentos eram os movimentos do animal enfurecido. Um momento mais e as garras cravar-se-iam no homem da selva... Este teve ainda tempo para se soltar e pular de lado, para tentar outra vez cavalgar a fera... mas o leão foi demasiado rápido e um golpe da pata derrubou Tarzan...

Ao cair, Tarzan viu um vulto negro que saltava por cima dele, como um raio, e caía sobre o seu antagonista. Rolando sobre si mesmo, aturdido, levantou-se, cambaleando ainda pelos efeitos da formidável pancada que recebera. Viu, atrás, o corpo destroçado de um dos leões, e diante dele Numa estava a despedaçar a outra fera.

Numa, o da pelagem negra, era superior ao adversário em tudo, em tamanho, força e ferocidade... e não tardou que os seus dentes se cravassem no pescoço do outro, enquanto as garras das patas traseiras lhe rasgavam o corpo de alto a baixo, pondo fim à luta. Quando Numa largou a sua segunda vítima, e sacudiu a juba negra, Tarzan notou mais uma vez as maravilhosas proporções e a esplêndida harmonia do grande corpo do felino. Os dois animais que ele vencera eram também grandes, mas menores e com a juba apenas de um tom ligeiramente mais escuro do que o habitual, embora o fulvo predominasse. No entanto, Tarzan viu que eram animais de espécie diferente dos que ele vira antes, talvez produto de um cruzamento entre a raça dos leões da floresta e da planície, e essa outra raça, incomparavelmente mais poderosa, da qual o leão negro devia ser o tipo genuíno.

Tendo sido afastado o obstáculo imediato, Tarzan pensou em seguir imediatamente a pista da rapariga e do inglês, para investigar o que lhes havia acontecido. Mas sentiu bruscamente que tinha uma fome intensa, e mau grado seu, enquanto se curvava para o chão a fim de descobrir o rasto dos desaparecidos, deixou escapar a espécie de gemido peculiar às feras esfomeadas. No mesmo instante Numa enristou as orelhas, olhou para ele, soltou um som igual e encaminhou-se a passo rápido para o sul, parando de quando em quando para ver se Tarzan o seguia.

O homem da selva compreendeu que o leão o conduzia para algum lugar onde havia comida, e seguiu-o sem deixar de examinar o terreno em busca da pista que procurava. Não tardou a farejar, entre o cheiro dos homens que calçavam sandálias e o dos leões que os acompanhavam, o cheiro da rapariga e, um pouco adiante, o do inglês. Mais longe, as pegadas no chão tornaram-se mais ligeiras, mas as do tenente e da jovem distinguiam-se melhor.

Tarzan podia ver que tinham caminhado lado a lado, rodeados por leões e pelos homens das sandálias. Poucas diferenças havia na formação da garganta por onde avançava; o traçado era tortuoso, entre as altas escarpas, alargando em certos pontos, estreitando noutros. Aqui e além havia sinais de água, antigos, como se tivessem existido ali rápidos e cachoeiras. Mas em dado momento o declive do terreno começou a acentuar-se. As muralhas mostravam restos de intervenção humana, decerto muito antiga também. E de repente, ao cabo de talvez uma milha, numa curva da garganta, Tarzan viu na sua frente um estreito e fundo vale, ao sul do qual se erguiam altas montanhas. Não podia ver até onde o vale se alongava, para leste, mas não parecia que tivesse mais de três ou quatro milhas de largura, de norte para sul.

Que havia ali água em abundância, podia ver-se pela vegetação densa que cobria o terreno, desde as rochas, ao norte, até às montanhas. Do ponto onde Tarzan se encontrava, uma trilha tinha sido aberta, descendo. Precedido por Numa, Tarzan avançou. Naquele sítio cresciam altas árvores, pássaros de penas brilhantes gritavam entre as ramadas, e por toda a parte se ouvia o guinchar de macacos.

A floresta parecia palpitar de vida, e no entanto Tarzan sentia pairar sobre tudo aquilo uma indizível solidão. Era uma sensação que nunca havia experimentado na selva onde nascera, ou nas que percorrera mais tarde. Havia como que uma impressão de irrealidade... naquele vale esquecido e escondido em meio de uma região deserta e sinistra. Os pássaros e os macacos, embora semelhantes aos que o homem da selva conhecia, eram diferentes, e a própria vegetação tinha características estranhas. Tarzan sentia-se transportado a um mundo estranho, e sentia igualmente uma estranha inquietação que bem podia ser o pressentimento de um perigo.

As árvores estavam carregadas de frutos, e entre as ramadas Manu guinchava e pulava. Esfomeado, Tarzan saltou para uma árvore enorme, começando a devorar os frutos que via os macacos comer, à sua volta. Quando tinha parcialmente satisfeito a sua fome, saltou para o chão... e verificou que Numa havia desaparecido.

 

A cidade murada

Tarzan voltou a seguir a pista dos seus companheiros desaparecidos, e dos que os haviam capturado, o que era fácil porque se prolongava por uma trilha batida.

Não teve de caminhar muito para alcançar uma pequena corrente de água, que vinha do norte para o sul. Aqui e além havia caminhos cruzados e outros que se ligavam à trilha principal... e por toda a parte Tarzan sentia o cheiro dos grandes felinos, de Numa, o leão, e de Sheeta, a pantera.

Com excepção de pequenos roedores, não parecia haver outra vida selvagem no vale. Não havia sinais de Bara, o gamo, ou de Horta, o javali, de Gorgo, de Buto, de Duro ou de Tantor. Histah encontrava-se ali... Tarzan podia vê-la nas árvores, em maior número do que a encontrara em qualquer outra região; e junto de um remanso onde cresciam juncos, notou o cheiro de Gimla, o crocodilo. Mas nenhum desses servia para satisfazer o apetite de carne, de Tarzan.

Assim, voltou a sua atenção para os pássaros. Os seus atacantes da noite anterior não o haviam desarmado. Em consequência da escuridão, ou da pressa e do ímpeto da carga dos leões, os atacantes humanos não lhe haviam dado atenção, ou talvez o tivessem considerado morto. Fosse como fosse, tinha ainda as suas armas — a lança e a faca, o arco, as flechas e a corda.

Tarzan colocou uma flecha no arco, apontou para uma das aves maiores e disparou. Quando a ave, de bela plumagem, caiu... todas as outras e todos os pequenos macacos começaram a fazer barulho ao mesmo tempo, como num tremendo coro de protesto. O homem da selva não teria ficado surpreendido se uma ou duas das aves, na vizinhança imediata da que caíra, tivesse fugido, dando voz ao seu terror — mas que todos os animais da floresta erguessem um tal coro de protestos, parecia-lhe estranho. Irritado, ergueu a cabeça e soltou também o seu grito, o grande brado de desafio dos gorilas.

O efeito foi instantâneo. O imenso clamor cessou bruscamente, e um momento depois Tarzan ficou sozinho com a sua pequena presa. O silêncio súbito tinha qualquer coisa de sinistro. Ainda irritado e intrigado, o homem da selva recuperou a flecha e, com a sua faca, removeu a pele e as penas da ave. Começou a comer, rosnando como se estivesse a ser ameaçado... e também porque nunca apreciara muito a carne das aves. No entanto, aquilo era melhor do que nada...

Tinha devorado parcialmente a ave que abatera, quando notou movimento entre as árvores, a curta distância e contra o vento. No instante seguinte, vindo da direcção oposta, o cheiro de Numa chegou às suas narinas. Agora era por toda a parte, em redor dele, que os sonos se aproximavam. Tarzan teve um sorriso sombrio. Supô-lo-iam estúpido, para não detectar a aproximação? Ou talvez estivessem tão seguros de o apanhar que não se dessem ao trabalho de ter cautela... Tarzan percebeu que estava no centro de um cerco de feras, que se ia fechando pouco a pouco.

Não compreendia o que atraíra os leões, porque julgava inadmissível que tivessem sido chamados Pelo clamor das aves e dos macacos, embora a coincidência fosse notável. Mas custava-lhe a acreditar que a morte de um pássaro, numa floresta onde deviam encontrar-se milhares deles, pudesse ter tal efeito. Era estranho, mesmo considerando as suas experiências anteriores.

Ergueu-se, a meio da trilha, esperando a aproximação dos leões. Não tardou a avistar um deles, de juba escura — semelhante aos que o haviam atacado na garganta. Era um animal maior e mais escuro do que aqueles que ele vira durante anos, embora não tão grande nem tão negro como Numa, o do fosso. Um momento depois outros leões surgiram, em volta do homem da selva. Nenhum deles atacou e, como o primeiro, pararam todos a alguma distância, fitando-o. Não rosnavam, nem rugiam. Olhavam apenas, rodeando-o, parados. Mais irritado do que antes, e mais surpreendido do que nunca, Tarzan acabou de comer e começou a insultar as feras — provocando-as, como nos dias da sua adolescência. Comparou os leões a Dango, a hiena, e bradou-lhes que Histah, a serpente, era menos repugnante do que eles. Por fim, atirou-lhes punhados de terra e de ramos quebrados. As feras rosnaram e mostraram os dentes, mas nenhuma avançou.

Tinha decorrido cerca de meia hora, depois do aparecimento dos leões, quando Tarzan ouviu de novo som de passos... mas agora eram causados por uma criatura que caminhava sobre duas pernas, e o cheiro denunciava a aproximação de um homem. Instantes depois um homem apareceu... e parou atrás do primeiro leão que Tarzan avistara.

O cheiro dele era igual ao que Tarzan farejara durante a tarde anterior... mas essa não era a única diferença que Tarzan notava entre a criatura e as outras criaturas humanas, de várias raças, que conhecera. Era de aparência robusta, com uma pele que parecia ter a consistência do cabedal, ou de pergaminho amarelecido pelos anos. O cabelo era negro e curto, crescendo em madeixas rígidas, como que eriçadas. Tinha a face lisa, excepto no queixo e no lábio superior onde se viam alguns pêlos espessos. O nariz era direito, o lábio superior delgado enquanto o inferior pendia, carnudo e fraco. O queixo também indicava fraqueza, e os olhos eram muito pequenos e juntos, sob uma testa curta. Dava a ideia de pertencer a uma raça que tivera certa beleza, mas que havia degenerado. Os braços eram compridos, ainda que sem exagero, e as pernas curtas, embora direitas.

Usava uma espécie de túnica sem mangas, que chegava até às ancas, sandálias de sola macia, presas com tiras de cabedal, e calças. A túnica parecia feita de um tecido qualquer, grosseiro, mas as calças eram formadas com peles de pequenos roedores, cosidas umas às outras. Trazia uma lança pesada e curta, e do cinto pendia-lhe uma espécie de pesado sabre, numa bainha de cabedal.

Tarzan notou a total despreocupação com que o homem se aproximou dos leões, e a completa indiferença das feras em relação a ele. O desconhecido, que parara por momentos a examinar o homem da selva, aproximou-se mais. Voltou a parar a uns cinco metros de Tarzan e falou numa estranha linguagem, da qual Tarzan não entendeu sequer uma palavra. Os seus gestos indicavam repetidas vezes os leões à sua volta, e de uma vez tocou com um dedo na ponta da sua lança, e logo bateu na bainha do sabre.

Enquanto ele falava, Tarzan examinava-o atentamente... e no seu cérebro formava-se uma convicção aparentemente absurda — a convicção de que o homem era... um doido com a capacidade de raciocinar. Parecia paradoxal, mas, quanto mais o olhava, mais Tarzan se convencia da justeza da ideia. Todo o aspecto do homem indicava nitidamente tratar-se de um doido, ao passo que a voz e os gestos sugeriam uma pessoa lúcida.

Por fim o desconhecido pareceu concluir o seu discurso e esperar a resposta de Tarzan. O homem da selva começou por falar na linguagem dos gorilas, mas não tardou a compreender que o outro não entendia. Tentou, igualmente debalde, usar vários dialectos indígenas. Começou a perder a paciência. Já havia malbaratado tempo suficiente, no caminho, e porque nunca dependera de palavras para conseguir o que queria, ergueu a lança e avançou para o outro. Esta era, evidentemente, uma linguagem clara para ambos, porque no mesmo instante o homem brandiu a sua lança e soltou um som gutural e baixo... que movimentou imediatamente os leões. Um coro de rugidos vibrou no ar, e as feras saltaram rapidamente para diante. O homem que as chamara recuou uns passos, com um riso sinistro.

Foi então que Tarzan notou os dentes do homem, por um instante, porque Tarzan saltou agilmente e, com grande desapontamento para o homem e para as feras, desapareceu entre as ramadas baixas da árvore mais próxima, bradando:

— Eu sou Tarzan dos Macacos, grande caçador e grande lutador! Na selva ninguém é mais astuto, nem mais poderoso!

A curta distância, para além do ponto onde havia sido cercado, Tarzan alcançou novamente a trilha e recomeçou a procurar a pista de Bertha Kircher e do tenente Smith-Oldwick. Encontrou-a sem dificuldade, e prosseguiu. A pista prolongava-se por mais meia milha, ao longo da vereda que, subitamente, emergia da floresta e continuava em terreno descoberto. E, ante os olhos pasmados do homem da selva, surgiram as cúpulas e minaretes de uma cidade murada.

Exactamente na sua frente, na muralha mais próxima, Tarzan viu uma grande porta em arco, para a qual se dirigia uma trilha batida, em continuação daquela por onde ele tinha vindo. No espaço aberto, entre a floresta e a muralha, cresciam plantas de jardim, em quantidade, e por uma vala artificial corria água. As plantas estavam dispostas em filas bem cuidadas, alinhadas simetricamente. Pequenos regatos de água corriam entre as filas, e a alguma distância Tarzan podia ver várias criaturas que trabalhavam a terra.

A muralha devia ter cerca de nove metros de altura, e não havia qualquer brecha, a não ser uma ou outra reentrância.

Para além da muralha erguiam-se as cúpulas e minaretes; a cúpula central parecia doirada, enquanto as outras eram pintadas de vermelho, ou azul, ou amarelo. A arquitectura da muralha era simples. Parecia rebocada, e pintada num tom creme. Na sua base alongava-se uma fila de arbustos bem tratados, e a alguma distância, na extremidade leste, uma trepadeira cobria a muralha, de baixo a cima.

Enquanto estava na sombra da trilha, os olhos penetrantes observando todos os pormenores, Tar-zan notou a aproximação de um grupo, pela retaguarda, e não tardou a sentir o cheiro do homem e dos leões aos quais escapara pouco antes. Saltando para as árvores, o Tarmangani distanciou-se um pouco, para oeste, e encontrando uma forquilha confortável, na orla da floresta, de onde podia observar a trilha que, através dos jardins, conduzia desde a floresta até à porta na muralha, esperou o regresso dos seus desapontados captores. Não tardaram a aparecer, o estranho homem seguido pelos leões como se fossem uma matilha de cães. O grupo aproximou-se da porta.

Aí, o homem bateu com o conto da sua lança, e quando a porta se abriu, passou, com as feras. Para além da porta aberta, Tarzan entreviu mais criaturas, no interior da cidade. Mas a porta fechou-se de novo, prontamente.

Tarzan pensou que a rapariga e o homem, aos quais queria socorrer, haviam passado por aquela porta. Que sorte os esperaria, ou talvez já tivessem encontrado, era coisa que ele não podia saber. Mas de uma coisa tinha a certeza, e era de que, se queria socorrê-los, não o conseguiria ficando do lado de fora da muralha...

O sol, que descia no horizonte, projectava sombras alongadas sobre o jardim, quando Tarzan viu os trabalhadores que voltavam dos campos, a leste. Eram precedidos por um homem que fazia baixar pequenas comportas ao longo da vala por onde corria a água, detendo a corrente que até então passara por entre as filas de plantas; atrás desse homem vinham outros que carregavam aos ombros, em amplos cabazes, grandes quantidades de vegetais frescos. Tarzan não supusera que houvesse ali tantos homens a trabalhar nos campos... mas pouco depois viu outro longo cortejo de trabalhadores que traziam aos ombros as ferramentas e os produtos, para a cidade.

A fim de ver melhor, o homem da selva subiu para as ramadas mais altas de uma grande árvore, de onde poderia olhar por cima da muralha. Daí, notou que a cidade era comprida e estreita, e que, embora as muralhas exteriores formassem um rectângulo, as ruas eram sinuosas. Cerca do centro da cidade parecia haver um edifício baixo, branco, em volta do qual tinham sido construídos os outros, mais altos, e aí, na luz que esmorecia, Tarzan julgou ver, embora não tivesse a certeza, um reflexo de água. A sua experiência de centros civilizados levava-o a supor que aquela área central seria uma espécie de praça, ou largo — e sendo assim, seria o lugar mais indicado para procurar Bertha Kircher e o tenente.

Então o sol desapareceu e a escuridão não tardou a envolver a cidade, uma escuridão que, para o homem da selva, era ainda mais acentuada pelas luzes artificiais que iluminavam algumas das janelas que ele avistava. Tarzan notara que a maioria dos telhados eram em terraço, com excepção daqueles das construções mais altas. Não conseguia compreender como pudera surgir aquela cidade numa região esquecida da África desconhecida. Mais do que qualquer outro, Tarzan sabia da existência de grandes regiões ainda ignoradas pelos brancos, na vastidão do continente africano. No entanto, aquela cidade parecia-lhe muito antiga, parecia-lhe dever existir ali havia muitas gerações, sem qualquer contacto com o mundo exterior. E era espantoso que, apesar do deserto em volta, muitos homens, ao longo de muitos anos, tivessem nascido, vivido e morrido, sem sair dali...

Com a chegada da noite, ouviam-se na floresta as vozes dos grandes felinos, a voz de Numa e a de Sheeta — e de dentro da cidade outros leões respondiam. No cérebro de Tarzan formara-se um plano simples para entrar na cidade, e agora era o momento de pôr em prática esse plano. O êxito dependia inteiramente da resistência das trepadeiras que ele vira numa parte da muralha, cobrindo-a de baixo a cima. Encaminhou-se para esse ponto, embora os rugidos das feras, na floresta, aumentassem em ferocidade e em volume. Entre a orla da floresta e a muralha havia cerca de meia milha de terreno descoberto e ajardinado, sem uma única árvore. Tarzan sabia que não poderia escapar se um dos grandes leões o atacasse nesse espaço aberto. Teria de contar apenas consigo, com a sua astúcia e a sua velocidade — e com a hipótese de a trepadeira suportar o seu peso.

Avançou, a meia altura das árvores, até um ponto directamente em frente daquele onde a trepadeira cobria a muralha. Aí esperou, escutando e farejando o ar, até se convencer de que não havia leões demasiadamente perto, ou, quando menos, nenhum que o procurasse. Então saltou para o chão e avançou cautelosamente através do terreno descoberto.

A lua, alcançando o alto das montanhas, a leste, iluminava o vale... E, de repente, um rugido ameaçador veio da orla da floresta e chegou aos ouvidos de Tarzan, que cobrira cerca de metade da distância entre as árvores e a cidade. Não era o rugido de um leão esfomeado, mas sim um rugido de cólera... e ao olhar para trás... Tarzan viu o vulto de um grande felino que emergia de entre os troncos. Mesmo a distância, podia compreender que se tratava de um animal de grande corpulência, semelhante ao que ele salvara do fosso dos Wamabos. Por um instante, o homem da selva pensou em voltar-se e fugir... Mas, ao mesmo tempo, lembrou-se da rapariga indefesa, presa na cidade estranha... e sem hesitar correu para a muralha. Foi então que o leão se lançou ao ataque.

Numa pode correr muito depressa numa distância curta, mas falta-lhe resistência. Durante um ataque, é talvez a mais rápida das criaturas vivas. Tarzan, pelo seu lado, embora menos veloz do que Numa, podia correr durante muito tempo com grande rapidez. Tudo dependia, portanto, de ser bastante o avanço que tinha em relação à fera... e de o leão ter bastante ímpeto para manter a perseguição até à muralha.

Talvez nunca tivesse havido outra corrida como aquela, que no entanto só tinha por espectadores a lua e as estrelas. Durante curtos segundos o leão ganhou terreno, aproximando-se tanto que Tarzan empunhou a sua faca, embora sem deixar de correr, disposto a morrer lutando... mas bruscamente a fera perdeu impulso e foi ficando para trás, embora sem abandonar a perseguição. Era a altura de a resistência da trepadeira decidir em última instância.

Se, no começo da corrida, apenas Goro e as estrelas tinham assistido, na sua parte final as coisas modificaram-se, porque de uma abertura, perto do alto da muralha, dois olhos muito juntos espreitavam. Tarzan tinha um avanço de uma dezena de metros, sobre o leão, quando alcançou a muralha. Não havia tempo para escolher os ramos mais fortes... A sua vida dependia apenas da sorte. Correu ainda mais, tomando impulso, e trepou como um gato. Quase a seguir, em baixo, o leão pulou também...

 

Entre os doidos

Quando os leões saltaram sobre os seus protectores, Bertha Kircher encolheu-se instintivamente num recanto da caverna, paralisada pelo terror. Ouvira vozes humanas, de mistura com o rosnar das feras, e de repente um vulto estendeu as mãos e agarrou-a. A escuridão era demasiada para que a jovem pudesse ver o homem da selva ou o tenente. O homem que a agarrara afastava agora os leões, batendo-lhes com a haste da lança. Bertha sentiu-se arrastada para a saída da caverna, enquanto o desconhecido que a puxava ia bradando ordens ou avisos que pareciam dirigidos aos leões.

Cá fora, havia um pouco menos de escuridão. Bertha pôde ver que havia outros homens ali, e que dois deles transportavam quase de rastos o vulto de um terceiro... que lhe pareceu ser o aviador inglês.

Durante algum tempo os leões fizeram ferozes tentativas para alcançar os dois cativos, mas os homens conseguiam sempre afastá-los. Nenhum deles mostrava o menor receio das feras, às quais tratavam como se fossem apenas cães excitados. O grupo seguiu ao longo do que parecia ter sido, muitos anos antes, o leito de um rio, e quando o horizonte, a leste, principiou a colorir-se com as primeiras luzes da manhã, pararam por momentos à beira de um declive que, na vaga claridade, deu a Bertha a ideia de ser um fundo precipício. Não tardou, porém, a compreender que se dirigiam para uma densa floresta, em baixo.

Sob o espesso dossel das ramadas, voltaram a mergulhar na escuridão, e só quando o sol subiu para além da crista das montanhas, Bertha pôde ver que avançavam ao longo de uma trilha de caça, no meio de uma floresta de grandes árvores. O chão era invulgarmente seco para uma floresta africana, e o mato, embora denso, estava longe de ser praticamente impenetrável, como o que os dois cativos haviam encontrado noutros pontos. Dava a impressão de que árvores e mato cresciam numa região sem água, pois não havia o cheiro das folhas húmidas e mortas, nem o zumbir de insectos.

Enquanto avançavam, ouviam as vozes dos macacos e das aves que povoavam aquela estranha selva, vozes que, progressivamente, se tornavam mais ruidosas à medida em que o sol subia no céu. Bertha notou que os seus captores olhavam com receio para as aves de penas brilhantes, e que por vezes pareciam falar-lhes. Um incidente, sobretudo, impressionou a jovem. O homem que caminhava adiante dela era de grande corpulência e parecia dispor de grande força. No entanto, quando um papagaio de cores vistosas voou na direcção dele, o homem caiu de joelhos, escondeu a cara entre as mãos e curvou a cabeça até tocar no terreno. Alguns dos outros olharam-no e riram nervosamente. Por fim, o homem verificou que o papagaio se afastara e, levantando-se, continuou a caminhar.

Foi nesse momento que Smith-Oldwick foi trazido para junto da jovem, por aqueles que o amparavam. O tenente fora ferido por um dos leões, mas estava agora capaz de caminhar, embora muito enfraquecido pelo choque e pela perda de sangue.

— Um bonito estrago... — comentou ele, com uma careta que queria ser sorriso, indicando o sangue e os destroços na sua roupa.

— É terrível... — disse Bertha. — Espero que não esteja a sofrer...

— Não tanto como teria esperado... — respondeu o inglês — ...mas estou fraco como um idiota. Quem são estes tipos... sabe?

— Não sei... mas há qualquer coisa de estranho na aparência deles.

Smith-Oldwick olhou para o homem que ia a seu lado, atentamente, durante alguns momentos. Depois, voltando-se para a jovem, perguntou:

— Já visitou algum hospital de doidos?

— Oh! É isso... — exclamou ela, horrorizada.

— Têm todas as indicações... — continuou o tenente. — O branco dos olhos a aparecer a toda a volta da íris, o cabelo hirsuto que cresce até meio da testa. Mesmo a atitude deles sugere que são doidos. Para mais... — continuou o aviador, enquanto Bertha estremecia — ...não me parece normal que tenham receio dos papagaios e não dos leões.

— Sim... — volveu Bertha. — E notou que as aves parecem desdenhá-los e não mostram medo deles? Tem alguma ideia da língua que esta gente fala?

— Não... Tenho tentado compreendê-los, mas não falam qualquer dos dialectos indígenas que eu conheço pela rama...

— Não me parece dialecto indígena... — disse a jovem — ...mas há qualquer coisa de familiar nas palavras. Por vezes parece-me que estou quase a entender o que dizem, mas não consigo.

— Duvido que tenha alguma vez ouvido a língua deles... — respondeu Smith-Oldwick. — Esta gente deve viver há séculos neste vale perdido, e mesmo que mantenham sem alterações a linguagem dos seus antepassados, é duvidoso que essa linguagem seja ainda falada fora daqui.

Num ponto onde uma corrente de água atravessava a trilha, o grupo parou para que os leões e os homens bebessem. Indicaram aos presos que podiam beber também, e enquanto Bertha e o tenente, estendidos no chão, bebiam a água clara e fresca do ribeiro, foram bruscamente sobressaltados pelo rugido trovejante de um leão, a curta distância em frente deles. No mesmo instante, os felinos que iam com o grupo rugiram também, movendo-se agitadamente, olhando para diante e para os homens de quem se aproximaram, assustados. Os homens levaram as mãos aos punhos dos sabres — as armas que haviam despertado a atenção de Tarzan como agora atraíam a do tenente — e empunharam com maior firmeza as lanças.

Parecia evidente que, para eles, havia leões e leões, pois ao passo que não mostravam qualquer receio daqueles que os acompanhavam, era flagrante que aquele rugido os impressionava de modo diferente.

No entanto, os homens pareciam menos assustados do que as feras. Nem uns, nem outras, porém, esboçaram qualquer gesto de fuga. Pelo contrário, todo o grupo avançou na direcção dos rugidos... até que em frente deles surgiu, no meio da trilha, um leão negro, de magníficas e gigantescas proporções. O tenente e a jovem pensaram que era o mesmo leão que se aproximara do avião e do qual os salvara a intervenção de Tarzan. Mas não era Numa, o do fosso, embora se lhe assemelhasse muito.

O grande felino negro estava parado no meio da trilha, fustigando os flancos com a cauda e rosnando ameaçadoramente. Os homens incitavam os seus felinos, que rosnavam e pareciam ganir, hesitando em atacar. Flagrantemente impaciente, e cônscio da sua força, o solitário Numa ergueu a cauda e lançou-se para a frente. Vários dos outros esboçaram tímidas tentativas para se lhe oporem... mas seria o mesmo se tentassem deter um comboio lançado a toda a velocidade. A grande fera afastou-os com tremendos golpes das garras, e precipitou-se sobre um dos homens. Uma dúzia de lanças foram atiradas, e uma dúzia de sabres saltaram das bainhas, armas terrivelmente afiadas mas inúteis ante a portentosa carga da fera.

Duas lanças que lhe acertaram, só serviram para o enfurecer ainda mais. Com rugidos diabólicos, o leão saltou sobre o homem a quem escolhera como alvo. Quase sem afrouxar o ímpeto do ataque, agarrou-o por um ombro, saltou, levando-o, para a densa folhagem que ladeava a trilha, e desapareceu.

Tão depressa tinha acontecido tudo, que a formação do pequeno grupo mal foi alterada. Não tinha havido tempo para fugir, mesmo que tal houvesse sido a intenção... e agora os homens não faziam qualquer tentativa para perseguirem a fera. Pararam apenas o tempo bastante para chamar dois ou três dos seus leões, que se tinham dispersado, e continuaram o caminho.

— Parece, pelo efeito que teve sobre eles, que se trata de um acontecimento correntio... — comentou o tenente.

— Sim... — volveu Bertha. — Não pareceram surpreendidos nem desconcertados, e naturalmente sabiam que o leão, tendo conseguido o que queria, não os incomodaria mais.

— Eu pensava... — disse Smith-Oldwick — ...que os leões da região dos Wamabos eram os mais ferozes que existiam, mas são uma espécie de gatos em comparação com estas feras negras. Já viu alguma coisa mais terrível e mais irresistível do que essa carga?

Durante alguns momentos, enquanto caminhavam lado a lado, pensaram no estranho acontecimento

— até que a trilha emergiu da floresta e viram na frente a cidade murada e as terras cultivadas. Nenhum deles conteve uma exclamação de surpresa.

— Esta muralha é um trabalho de engenharia! — exclamou o tenente.

— E veja as cúpulas e minaretes da cidade, para além da muralha... — disse a jovem. — Deve haver ali gente civilizada... talvez tivéssemos sorte em cair em poder deles...

— Talvez... — murmurou Smith-Oldwick, encolhendo os ombros — .. .mas não acredito muito em gente que passeia com leões e tem medo de papagaios. Tem de haver qualquer coisa de errado com eles.

O grupo seguiu a trilha através do campo e até uma porta em arco, que se abriu quando um dos homens bateu com o conto da lança na madeira espessa e pesada. A porta dava acesso a uma rua estreita que parecia ser apenas a continuação da trilha que vinha da floresta. De ambos os lados, os edifícios tocavam na muralha. O centro da rua não estava pavimentado. As construções, praticamente todas , tinham um andar térreo e outro por cima desse, que fazia saliência e era apoiado em colunas e arcos, formando assim uma passagem coberta de cada lado e ao longo de toda a rua. Essas passagens estavam pavimentadas com pedras de vários tamanhos, cuidadosamente adaptadas umas às outras mas sem cimento ou argamassa que as ligasse. O chão parecia muito antigo, muito gasto pelo uso durante incontáveis anos.

Havia pouca gente nas ruas, àquela hora, mas os que se viam eram semelhantes aos que tinham aPrisionado a jovem e o inglês. Ao princípio só viram homens, mas mais para o centro da cidade encontraram crianças a brincar. Algumas destas mostravam grande curiosidade em relação aos prisioneiros, outras mal os olhavam.

Gostaria de perceber a linguagem desta gente... — disse o aviador.

— Sim... — volveu a jovem. — Perguntar-lhes-ia o que tencionam fazer de nós.

— Seria interessante saber. Tenho-me perdido em conjecturas...

— Não gosto de ver os dentes aguçados... Sugere a lembrança de como os canibais os afiam...

— Não pensa que haja canibais brancos, suponho... — exclamou o tenente.

— E esta gente é branca?

— Não são negros, isso é seguro... — afirmou o inglês. — Têm um tom amarelado, mas também não são orientais.

Só então viram, pela primeira vez, uma mulher. Sob muitos aspectos parecia-se com os homens, mas era de menor estatura e corpo mais equilibrado. A face, todavia, era mais repulsiva do que as dos homens, possivelmente pelo facto de ser mulher — o que acentuava a estranheza dos olhos juntos e de íris deminutas, dos dentes, do lábio inferior pendente e dos cabelos hirsutos. No entanto os cabelos eram mais compridos e mais espessos do que os dos homens. Envergava o que parecia ser apenas uma faixa quase transparente, cingida desde sob os seios nus até às ancas, e daí pendente a roçar os tornozelos. A faixa, como o cabelo, tinha ornamentos de metal que parecia oiro. Não tinha outros adornos. Os braços e as mãos eram bem modelados e proporcionados.

A mulher aproximou-se do grupo e falou com os guardas que não lhe prestaram atenção... mas o tenente e Bertha puderam observá-la atentamente porque ela os seguiu durante algum tempo.

— O vulto de uma huri com a cara de ama demente... — comentou Smith-Oldwick.

A rua por onde seguiam tinha vários cruzamentos, a intervalos irregulares, e tanto quanto podiam ver, essas outras ruas eram também estreitas e tortuosas. As casas variavam pouco de aspecto, embora aqui e além surgissem manchas de cor ou pequenas fantasias ornamentais. Através das janelas abertas, podiam observar os interiores de algumas casas. As paredes eram espessas e as aberturas estreitas, como se as casas tivessem sido construídas contra um calor intenso — que na verdade devia existir naquele vale fundo em pleno deserto africano.

Por vezes entreviam, em frente, edifícios maiores, e quando se aproximaram puderam compreender que se tratava de uma zona comercial da cidade. Havia ali numerosas pequenas lojas e bazares, entre as residências, e sobre as portas viam-se tabuletas com estranhas letras que sugeriam uma origem grega, embora não fossem gregas de facto — como a jovem e o tenente podiam entender. Smith-Oldwick começava agora a sentir dores mais agudas, e a consequente fraqueza era agravada pela perda de sangue. Cambaleava. Bertha quis ampará-lo.

— Não... — disse ele. — Você passou por muitas Provações, demasiadas para que tenha ainda de carregar comigo...

Mas, embora ele se esforçasse corajosamente por caminhar, por vezes ficava para trás — e foi então que, pela primeira vez, os estranhos homens mostraram indícios de brutalidade.

Um dos captores, alto e forte, caminhava à esquerda de Smith-Oldwick. Em várias ocasiões segurou o braço do inglês e impeliu-o para diante, sem rudeza excessiva. Mas, quando o preso se deixou atrasar com mais frequência, o homem, de repente e sem a menor sombra de provocação, entregou-se a um acesso de raiva. Saltou sobre o ferido, bateu-lhe violentamente com os punhos, derrubou-o e, agarrando-o pelo pescoço, com a mão esquerda, empunhou na direita o pesado sabre, gritando horrivelmente.

Os outros pararam e olharam, sem qualquer espécie de particular interesse. Era como se o companheiro tivesse parado um momento para prender uma sandália, e eles esperassem. Mas Bertha reagiu. A expressão do homem enfurecido, os seus gritos e a face crispada onde sobressaíam os caninos, horrorizaram-na, ao mesmo tempo que o violento ataque sobre o ferido despertava nela o instinto de protecção maternal que existe em todas as mulheres. Esquecendo tudo, precipitou-se e agarrou o braço do homem. Desesperada, empurrou-o para trás, com toda a sua força e todo o peso do corpo, e o resultado foi que o homem se desequilibrou e caiu, largando o sabre. Bertha apanhou a arma, no mesmo instante, e de pé junto do inglês enfrentou os seus captores.

Era um vulto impressionante de coragem, e nem os cabelos desgrenhados e a roupa em farrapos lhe tiravam majestade. O homem a quem Bertha derrubara levantou-se rapidamente... e no mesmo instante a sua atitude modificou-se por completo. A raiva demoníaca cedeu lugar a um riso histérico, gritado, que o sacudia. A jovem olhava-o, em pasmo, sem saber qual das atitudes lhe parecia mais terrível. Os outros continuavam desinteressados, com sorrisos vazios de expressão.

Se Bertha Kircher tivesse ainda necessidade de provas para compreender que haviam caído em poder de gente mentalmente perturbada, o acontecimento destruia todas as possíveis dúvidas. Apavorada, sentindo a inutilidade de qualquer tentativa de defesa, deixou cair o sabre e ajoelhou-se junto de Smith-Oldwick.

— Foi... maravilhosa... — murmurou ele. — Mas não o devia ter feito... São completamente doidos... e não é possível contrariar os doidos... sem perigo...

— Não podia deixar que o matassem...

Uma luz súbita brilhou nos olhos do inglês. Pegou na mão dela e disse, em voz baixa:

— Então... interessa-se um bocadinho por mim? Pode dizer-me que... se interessa um bocadinho?

Bertha não afastou a mão, mas abanou a cabeça, tristemente.

Por favor... — pediu. — Eu... eu tenho pena de ser apenas muito sua amiga.

— -Peço-lhe perdão... — volveu o inglês, soltando

a mão da jovem. — Queria esperar até que estivéssemos em segurança... mas foi a surpresa de a ver

defender-me... Não pude calar-me... mas na verdade não tem grande importância o que eu possa dizer...

— Porquê?

— Nunca sairei daqui com vida...— murmurou o tenente, com um encolher de ombros e um sorriso forçado. — Não falaria nisso... se não soubesse que o compreende tão bem como eu... O leão deixou-me muito ferido... e esse homem acabou comigo... Talvez pudesse escapar... se estivesse entre gente civilizada... Mas aqui... e com esta gente que nos rodeia... Bertha Kircher sabia que aquilo era verdade, mas não podia sequer admitir a ideia de que o tenente morresse. Apreciava-o muito, e na verdade lamentava não poder amá-lo... mas realmente não podia. Parecia-lhe que seria fácil, para qualquer rapariga, amar o tenente Harold Percy Smith-Oldwick — um oficial inglês e um «gentleman», pertencente a uma nobre família, jovem e bem parecido, corajoso e educado, homem de fortuna e de nobres sentimentos... Num movimento impulsivo, Bertha poisou a mão na testa dele, murmurando:

— Não perca a esperança... Tente resistir e viver... por nós ambos... e eu tentarei amá-lo...

Foi como se uma nova vida tivesse sido injectada nas veias do jovem inglês. Com uma força de que ele próprio não se julgaria capaz, levantou-se, embora devagar e cambaleando. A jovem amparou-o. Por momentos, ambos haviam esquecido o que os rodeava. Viam agora que os estranhos homens tinham retomado o ar de completa indiferença. Pouco depois recomeçaram a caminhar como se nada tivesse acontecido.

Bertha Kircher sentiu uma brusca reacção do impulso momentâneo que a levara a fazer a recente promessa a Smith-Oldwick.

Sabia que tinha falado mais por ele do que por ela própria, e compreendia agora, como havia compreendido antes, que era improvável vir a gostar do tenente como ele desejava. Mas apenas prometera que tentaria amá-lo, mais

nada...

Pensava que era quase impossível regressarem à civilização. Mesmo se aquela gente os deixasse com vida, e até mesmo se consentissem em deixá-los partir, como poderiam alcançar a costa? Tarzan estava morto.. . vira-o caído à entrada da caverna...

Tanto Bertha como o tenente mal haviam mencionado o homem da selva, porque ambos sabiam bem o que a sua perda significava para eles. Tinham-no visto ser derrubado por um dos leões... e não voltar a mover-se depois disso. Assim, se de outras vezes Bertha sentira que a situação era desesperada, agora considerava que toda a esperança estava definitivamente perdida.

As ruas começavam a encher-se de homens e

mulheres. Alguns pareciam interessar-se vivamente

Pelos prisioneiros, enquanto outros os fitavam com

total indiferença. A certa altura ouviram gritos horríveis, adiante, e viram um homem possuído por um ataque de fúria semelhante ao que lançara um dos captores, minutos antes, contra o inglês ferido.

Aquele homem fizera cair a sua raiva sobre uma criança, a quem batia e mordia ferozmente. Por fim, o doido agarrou a criança inerte, levantou-a no ar e atirou-a sobre as lajes, partindo em corrida ao longo da rua estreita e várias mulheres tinham visto o brutal ataque, mas ninguém interveio. Pouco mais adiante, uma mulher horrível debruçava-se da janela de um dos andares superiores, rindo, fazendo caretas e soltando gritos. Em baixo, indiferentes, outras criaturas passavam, calmas, sem um olhar.

— Deus!... — murmurou Smith-Oldwick. — Que lugar medonho!

— Tem ainda a sua pistola?... — perguntou Bertha, voltando-se para ele.

— Sim... Escondi-a sob a camisa e eles não me revistaram...

— Guarde uma bala para mim... — pediu a jovem, em voz baixa.

Smith-Oldwick fitou-a, pestanejando, com os olhos subitamente húmidos. Sem dúvida sabia em que situação desesperada se encontravam... mas aquela ideia...

— Não creio que pudesse fazer isso... — disse, em voz rouca.

— Nem mesmo para me poupar a sofrimentos piores?

— Não... não poderia... — volveu ele, abanando a cabeça.

A rua por onde tinham caminhado desembocava finalmente numa larga avenida, e diante deles estendia-se uma vasta e magnífica lagoa cuja superfície calma reflectia o azul do céu. Ali, o ambiente mudava. Os edifícios eram mais altos e mais ornamentados, numa arquitectura diferente. As lajes do chão tinham desenhos bárbaros mas de grande beleza. A cor abundava, e em muitos sítios via-se o que parecia ser folheado a oiro.

Em todas as decorações aparecia a figura convencional de um papagaio, e em menor quantidade desenhos que representavam leões e macacos.

Seguiram pelo pavimento que ladeava a lagoa, e pouco adiante entraram pela porta, em arco, de um dos edifícios da avenida. Logo passada a porta viram-se num amplo compartimento mobilado com bancos e mesas maciças, de madeira, muitas das quais trabalhadas complicadamente, com obras de talha manual representando novamente papagaios e, em menor quantidade, macacos e leões.

Atrás de uma das mesas estava sentado um homem, que não diferia daqueles que haviam capturado a jovem e o tenente. O grupo parou diante dele, e um dos captores fez o que parecia ser um relatório oral. O homem sentado atrás da mesa devia ser uma autoridade militar ou civil, talvez um juiz. Ouviu o que o outro lhe dizia e observou atentamente os prisioneiros. Depois de uma breve e vã tentativa para falar com eles, deu ordens rápidas e secas.

Quase no mesmo instante dois homens aproximaram-se de Bertha e fizeram-lhe sinal para que os seguisse. Smith-Oldwick esboçou um movimento para a acompanhar, mas foi detido por um dos guardas. Bertha parou e, olhando para o homem sentado, tentou explicar por sinais que não queria separar-se do seu companheiro, mas o homem abanou a cabeça e fez um gesto para os guardas que ladeavam a jovem. O inglês tentou ainda segui-la, mas estava demasiadamente fraco e foi agarrado. Por um instante pensou em empunhar a pistola... mas para quê? Não podia, com as poucas balas de que dispunha, fazer frente a uma cidade.

Até então, e exceptuando o ataque de um dos guardas, num acesso de fúria, não haviam sido maltratados. O inglês considerou que mais valia não os hostilizar. Erguendo uma das mãos, disse para Bertha, que os guardas levavam: — Boa sorte...

Os leões, que tinham entrado no compartimento onde estava o homem sentado, foram conduzidos para fora, por uma porta que havia atrás dele. Dois guardas levaram Smith-Oldwick para essa mesma porta. O inglês viu-se num longo corredor para o qual se abriam outras portas, agora fechadas e comunicando decerto com outros compartimentos. Ao fim do corredor havia um largo pátio, para além de uma pesada grade. A grade foi aberta e o tenente encontrou-se no pátio, cercado pelas paredes interiores do edifício. Havia ali algumas árvores e canteiros de flores. Ao longo do muro, do lado sul, havia um comprido banco, e outros bancos entre as árvores e os canteiros. Era ali que estavam os leões, deitados ou caminhando de um lado para o outro.

Os guardas deixaram-no só, com os leões, e regressaram pelo corredor. Smith-Oldwick, apavorado, tentou abalar a grade, chamar os guardas. Inútil.

Entretanto, Bertha Kircher era conduzida através da praça principal, na direcção do edifício mais alto e mais ornamentado, que ocupava um dos lados da praça, de um extremo ao outro. O edifício tinha vários andares, e diante da entrada havia uma larga escadaria de pedra. De ambos os lados, em baixo, dois grandes leões também de pedra pareciam guardar a entrada, enquanto em cima, sobre dois pedestais da mesma altura, se viam papagaios também esculpidos, poisados sobre crânios ainda de pedra. Havia esculturas por toda a parte, em baixo-relevo, e nalguns pontos viam-se mosaicos representando sempre papagaios, leões e macacos, enquanto noutros pontos as figuras eram pintadas na parede.

As cores estavam esbatidas pelo tempo, com o resultado de que o aspecto geral era de uma beleza repousante. As esculturas e mosaicos eram de um trabalho delicado, indicando um alto grau de desenvolvimento artístico. Ao contrário do primeiro edifício onde Bertha entrara, e que não tinha porta, naquele havia grandes portas maciças. Nos nichos formados pelas colunas que suportavam a arcada, e ainda noutros pontos, viam-se homens armados, cerca de uns vinte. Usavam túnicas de um amarelo-vivo, e no peito, como nas costas, exibiam papagaios bordados no tecido.

Quando Bertha e os dois guardas subiram a escada exterior, um dos homens das túnicas amarelas deteve-os. Houve uma troca de palavras, e enquanto eles falavam a jovem notou que os homens das túnicas pareciam de uma mentalidade ainda inferior, se possível, à dos seus captores. As íris eram ainda menores, a testa quase inexistente.

Ao cabo de uma breve conversa, o que parecia encarregado da porta voltou-se e bateu na madeira, com a haste da lança, chamando ao mesmo tempo os seus companheiros. Não tardou que as portas começassem a girar, lentamente, abrindo-se pouco a pouco... sob os esforços conjugados de uma dúzia de negros inteiramente nus.

No limiar, os dois guardas foram mandados embora — tanto quanto Bertha pôde entender — e o seu lugar foi ocupado por quatro homens de túnicas amarelas. A jovem e a sua nova escolta entraram, enquanto os negros fechavam de novo as grandes portas. Ao olhá-los, Bertha estremeceu... Os desgraçados estavam acorrentados, pelo pescoço, aos grandes batentes, seis de cada lado.

Na sua frente havia agora um amplo vestíbulo, ao centro do qual estava um pequeno tanque de água clara. Também aí o chão e as paredes se viam cobertos de pinturas e desenhos representando papagaios, leões e macacos, mas os tons de oiro eram frequentes. As paredes do corredor eram compostas por arcadas abertas, através das quais se viam outros compartimentos. Havia reposteiros de tecidos vários, e no chão espessos tapetes de desenhos bárbaros, e peles de leões negros e de leopardos.

O compartimento à direita da entrada estava cheio de homens de túnicas amarelas, e nas paredes viam-se muitas lanças e sabres. Ao fim do corredor estava outra porta, onde outros guardas substituíram os que acompanhavam Bertha Kircher. Encontraram mais três portas, por mais três vezes a escolta foi mudada... até que, por fim, a jovem entrou num compartimento menor do que os outros, onde um homem de túnica vermelha caminhava de um lado para o outro. Na frente e nas costas da túnica estavam bordados enormes papagaios... e sobre a cabeça o homem usava, como toucado ou chapéu, um estranho ornamento encimado por um papagaio empalhado.

Nesse compartimento, os altos reposteiros eram bordados de ponta a ponta... e os bordados representavam centenas de papagaios coloridos. No chão havia ainda papagaios de oiro, e nas paredes, como no tecto, as pinturas representando papagaios pareciam ser milhares. O homem da túnica vermelha era mais alto e mais gordo do que qualquer outro que a jovem tivesse visto na cidade perdida. Mas tinha a mesma pele apergaminhada, e a sua expressão era de uma imbecilidade repulsiva. Durante alguns minutos, o homem continuou a caminhar como se não tivesse visto a prisioneira nem os guardas... mas de súbito, sem aviso, correu para Bertha. Ela encolheu-se, esboçou um movimento instintivo de fuga que os guardas detiveram... mas o homem da túnica vermelha parou a dois passos de distância, sem lhe tocar. Observou-a por momentos, com um sorriso silencioso e parado, até que começou a rir, violentamente. Calou-se de repente, aproximou-se mais, olhou atentamente a prisioneira, tocou-lhe na pele e nos cabelos, observou os dentes dela e mostrou os seus próprios para que ela visse.

Logo depois, sem transição, bradou uma ordem e recomeçou a caminhar de um lado para o outro, enquanto os guardas levavam a jovem.

Bertha atravessou de novo vários compartimentos, subiu uma escada estreita que levava ao andar superior, e parou outra vez, diante de uma porta guardada por um negro armado com uma lança. A uma ordem de um guarda, o negro abriu a porta deixando-os entrar numa sala de tecto baixo, cujas janelas tinham grossas grades. A sala estava mobilada como quase todas as outras que Bertha vira, com bancos e mesas de madeira entalhada, os tapetes no chão, a decoração nas paredes e no tecto. No entanto, tudo era mais simples do que nos outros compartimentos. A um canto havia um divã baixo, coberto com um tapete mais leve, e mais claro... e sobre o divã estava sentada uma mulher.

Quando a jovem viu a mulher não conteve uma pequena exclamação de pasmo... pois reconheceu imediatamente que se tratava de uma criatura da sua raça, diferente de todas as que até então encontrara. Era uma mulher muito velha, que fitava nela uns olhos azuis quase sem brilho, encovados na face enrugada e sem dentes. Mas os olhos eram os de uma pessoa inteligente e sã de espírito, e a face era branca.

Ao ver Bertha, a criatura levantou-se e veio ao encontro dela, caminhando curvada, com dificuldade, as duas mãos apoiadas a um bastão. Um dos guardas trocou algumas palavras com ela, e então os homens saíram.

A velha mulher parou em frente de Bertha, fitando-a, observando-a com atenção. Depois disse, numa voz fraca e hesitante, como se procurasse as palavras numa língua pouco familiar.

— Vem... do mundo exterior?... — perguntou ela, em inglês. — Deus permita que possa compreender e falar esta língua...

— Inglês! Sim... falo inglês!... — exclamou Bertha.

— Deus louvado! Eu não sei se posso ainda falar de maneira a fazer-me entender... Há sessenta anos que falo apenas a língua horrível desta gente..-. Há sessenta anos que não ouço uma palavra na minha língua! Pobre... pobre menina! Que má fortuna a fez cair em poder deles?

— É inglesa?... — perguntou Bertha. — Devo entender que é inglesa e está aqui há sessenta anos?

— Sim... há sessenta anos que não saio deste palácio... Venha... Sou muito velha e não posso estar muito tempo de pé... Venha sentar-se ao meu lado.

Bertha pegou na mão que ela lhe estendia e ajudou-a a regressar ao divã, sentando-se a seu lado.

— Pobre... pobre menina... — repetiu a velha mulher. — Mais lhe valia ter morrido do que ser trazida Para aqui... Ao princípio pensei em matar-me... mas tinha sempre a esperança de que alguém viesse e me salvasse... Ninguém veio... Conte-me agora como a apanharam...

Muito resumidamente, a jovem contou os principais acontecimentos que haviam precedido a sua captura.

— Então está um homem na cidade, também?... — perguntou a mulher.

— Sim... — volveu Bertha — ...mas não sei onde ele está nem quais as intenções desta gente em relação a ele..-, ou a mim própria.

— Ninguém pode saber... eles mesmos não sabem o que querem, de um instante para o outro... Mas penso, pobre criança, que não voltará a ver o seu amigo...

— Eles não a mataram, a si... — objectou Bertha — ...e no entanto está aqui há sessenta anos, segundo diz...

— Não me mataram... e também não a matarão... embora não tarde muito a desejar ter morrido...

— Quem são eles?... — perguntou Bertha. — Que espécie de gente? São diferentes de tudo... E conte-me também como veio aqui ter...

— Foi há muitos... muitos anos... — começou a velha mulher, baloiçando lentamente. — Há tantos... Eu tinha então vinte anos... Olhe para mim, e veja... Não tenho espelhos... mas os meus dedos sentem as rugas, os olhos encovados, a boca sem dentes... Sou velha, e curvada, e horrível... mas era bela, quando tinha vinte anos...

« — Meu pai era missionário, no interior... e um dia surgiu um bando de esclavagistas árabes...

Levaram os homens e as mulheres da pequena aldeia indígena onde meu pai trabalhava... e levaram-me também. Conheciam mal a região onde estavam, e tiveram de confiar nos homens da aldeia, para os guiar. Disseram-me que nunca tinham ido tão longe para o sul, e que sabiam da existência de uma outra região, a oeste, rica em escravos e em marfim. Queriam ir lá, e daí levar-nos-iam para o norte, onde eu seria vendida a algum sultão negro.

« — Falavam frequentemente sobre o preço que obteriam por mim, e para que esse preço não fosse diminuído vigiavam-me constantemente, protegendo-me uns dos outros, de maneira que eu me cansava pouco nas jornadas. Davam-me a melhor comida de que dispunham. Mas algum tempo depois, quando chegámos aos confins da região que os homens da nossa aldeia conheciam, e entrámos na árida vastidão de um grande deserto, os árabes compreenderam que se haviam perdido. No entanto continuaram a avançar para oeste, atravessando terríveis desfiladeiros, sob um sol implacável. Os escravos eram obrigados a carregar com todo o equipamento, e sem água começaram a morrer uns após outros...

« — Não tínhamos avançado muito, pelo deserto, quando os árabes foram forçados a matar os cavalos, para comerem a carne, e quando chegámos a uma garganta que era impossível transpor com os animais, os que restavam foram abatidos, e a carne foi carregada aos ombros dos escravos sobreviventes. Prosseguimos assim durante mais dois dias, até que os escravos eram apenas uns quantos, muito poucos, e os próprios árabes começaram também a sucumbir à sede, à fome e ao calor terrível... O marfim foi abandonado... e deixávamos no caminho um rastro de mortos... Os abutres seguiam-nos...

« — Por qualquer razão, o chefe árabe protegeu-me até ao fim, talvez por eu ser, dos seus tesouros, o mais facilmente transportável... Era jovem e forte, e podia caminhar... Não sei dizer-lhe quanto tempo aguentámos mais, mas éramos muito poucos quando chegámos ao fundo de um grande desfiladeiro. .. Ninguém tinha forças para escalar a muralha..-, de maneira que seguimos pelo que parecia ter sido o leito de um antigo rio... até um ponto de onde avistámos um vale profundo e arborizado.

« — Por então éramos apenas dois sobreviventes... o chefe e eu. Não preciso descrever-lhe o vale... porque o descobriu da mesma maneira que eu o descobri. Fomos tão rapidamente atacados que dir-se-ia estarem à nossa espera... como de facto tinha sido... como aconteceu também consigo... Ao atravessar a floresta, viu decerto os macacos e os papagaios... e visto que entrou no palácio deve ter notado como esses animais, e os leões, são representados nas decorações de todas as paredes e tectos... Dizem que os papagaios falam a mesma língua desta gente... e que os macacos falam com os papagaios e estes voam até à cidade, e repetem o que os macacos disseram... Embora custe a acreditar, sei que é assim... porque vivo aqui há sessenta anos, no palácio do rei...

« — Trouxeram-me, como a si, directamente para

este palácio... O chefe árabe foi levado para outro lado... e nunca soube o que lhe aconteceu. Ago XXV era então o rei... Já vi muitos reis, desde então... Era um homem terrível, mas na verdade todos são terríveis...

— O que têm eles?... — perguntou Bertha.

— São uma raça de doidos... — respondeu a velha. — Não tinha compreendido isso? Entre eles há excelentes artistas, bons lavradores e uma certa dose de lei e ordem... ou o que é... Veneram todas as aves, mas o papagaio é a divindade principal. Aqui, no palácio, há um papagaio que é mantido numa sala magnífica. É o deus dos deuses, uma ave muito velha... Se o que Ago me disse era verdade, essa ave deve ter agora perto de trezentos anos. Os rituais da religião desta gente são extremamente revoltantes... e eu penso que tem sido a prática desses rituais, durante séculos, o que conduziu a raça ao actual estado de imbecilidade.

« — No entanto, como lhe disse, não são totalmente desprovidos de qualidades. A acreditar na lenda, os antepassados deles... um punhado de homens e mulheres vindos do norte e perdidos na imensidão selvagem da África central... encontraram aqui um vale árido e deserto. Que eu saiba, a chuva é raríssima... e no entanto viu uma grande floresta e vegetação luxuriante, em redor e até dentro da cidade. Esse milagre é conseguido pela utilização de fontes naturais que esses antepassados desenvolveram, e que distribuíram de maneira a que todo o vale receba uma adequada quantidade de agua, ou humidade, em todas as épocas do ano. E — Ago contou-me que, muitas gerações antes da sua, a floresta foi irrigada mudando o curso das correntes de água que vinham para a cidade mas que, quando as árvores estenderam as suas raízes em busca dessa humidade natural, de novo as correntes de água foram desviadas, e plantadas outras árvores. Assim a floresta cresceu até cobrir todo o vale, com excepção da cidade. Não sei se isto é verdade. Pode ser que a floresta tenh a sempre existido, e a lenda nascesse do facto de só muito raramente cair chuva...

— É uma gente peculiar sob muitos aspectos e não apenas na sua estranha religião. Criam leões, como outros criam gado. Já viu como eles utilizam alguns deles, mas na maioria engordam-nos para os comer. É possível que, ao princípio, comessem carne de leão durante as cerimónias religiosas, mas com a passagem dos anos habituaram-se a éla e praticamente não comem outra. Prefeririam morrer a comer carne de aves, ou de macacos. Os herbívoros que criam servem apenas para dar leite para aproveitar as peles e para a alimentação dos leões. Ao sul da cidade estão os currais e as pastagens onde criam os herbívoros. Javalis, gamos e antílopes são destinados aos leões, e as cabras fornecem o leite para a cidade.

— Vive aqui há sessenta anos... sem ter voltado a ver alguém da sua própria espécie?... — disse Bertha, pasmada.

A velha mulher acenou afirmativamente.

- Vive aqui há sessenta anos... e não lhe fizeram mal...

- Eu não disse que não me fizeram mal... Apenas não me mataram ...

— Mas... mas qual era a sua posição entre eles? Perdoe-me... Julgo saber, mas queria ouvi-lo da sua boca... porque receio que o meu destino seja igual...

— Sim... será igual... Se conseguirem mantê-la afastada das mulheres...

— Que quer dizer com isso?

— Durante sessenta anos nunca me deixaram aproximar das mulheres. Mesmo agora... elas matar-me-iam se pudessem alcançar-me... Os homens são terríveis, Deus sabe que são... Mas que Deus a livre das mulheres!

— Quer dizer... que os homens não me farão mal?

— Ago XXV fez de mim a sua rainha... — disse a velha senhora, devagar. — Mas tinha outras rainhas, e nem todas eram humanas. Assassinaram-no dez anos depois de eu ter vindo... O rei seguinte ficou comigo... e tem sido sempre assim... Agora sou a mais velha das rainhas. As mulheres daqui raras vezes chegam a uma idade avançada... Não só estão sempre em risco de serem assassinadas, como, em consequência da sua anormalidade mental, atravessam crises de depressão durante as quais se destróem a si mesmas... — interrompeu-se, apontou para a janela e concluiu: — Onde vir uma sala Como esta, com um eunuco negro à porta, é porque está aí uma mulher. Com poucas excepções, nunca as deixam livres. São consideradas mais violentas do que os homens, e na realidade assim é.

Durante alguns minutos ficaram caladas. Depois, Bertha perguntou:

— Não há maneira de escapar daqui?

A velha senhora apontou novamente para as grades, e depois para a porta, dizendo:

— Mesmo que conseguisse passar além do eunuco, como chegaria à rua? E, chegando à rua, como alcançaria a muralha exterior? E se, por milagre, a alcançasse, e por outro milagre conseguisse transpor a porta, que esperança haveria de atravessar a floresta onde vivem os leões negros, devoradores de homens? Não... não há qualquer possibilidade de fuga... Se conseguisse ainda atravessar a floresta, teria na sua frente o grande deserto...

« — Em sessenta anos, é a primeira pessoa que encontra a cidade perdida... Num milhar de anos, nenhum habitante da cidade saiu do vale... e tão longe quanto alcança a própria lenda, ninguém aqui chegou antes de mim... a não ser um guerreiro gigante cuja história tem sido transmitida através das gerações... Pelas descrições que ouvi, deve ter sido um espanhol, um homem gigantesco, couraçado de ferro, que abriu caminho através da floresta e chegou ao portão da cidade, e que matou, com a sua grande espada, todos os que foram enviados para o prender. Depois de comer os vegetais dos jardins, e os frutos da floresta, bebeu água e partiu, lutando para abrir novamente o seu caminho.

Escapou da cidade e da floresta, mas não escapou ao deserto. A lenda diz que o rei de então, receoso de que ele trouxesse outros para atacar a cidade, enviou um bando numeroso para o matar...

« — Durante três semanas não o encontraram, porque caminharam na direcção errada... e por fim descobriram os seus ossos, descarnados pelos abutres, a um dia de marcha do desfiladeiro por onde você veio e eu vim também. Não sei se isto é verdade ou é apenas uma lenda mais...

— É verdade... — disse Bertha — ... porque encontrámos o esqueleto e a couraça, e a comprida espada.

Nesse momento, a porta foi aberta sem cerimónia, e um negro entrou trazendo duas bandejas onde se viam vários pratos. Colocou as bandejas sobre uma das mesas, perto das mulheres, e saiu sem dizer uma só palavra. As bandejas grandes eram de faiança, mas os pratos eram de oiro, sem dúvida. Com grande surpresa, Bertha viu, entre os pratos, um garfo e uma colher que, embora de estranho feitio, eram tão úteis como quaisquer outros que vira em uso durante toda a sua vida. Os dentes do garfo eram de ferro ou aço, mas o cabo e a colher eram também de oiro martelado, como os pratos.

Os pratos continham carne bem temperada, com vegetais, e outros continham frutos; havia ainda um jarro com leite e uma tigela que parecia conter marmelada. Bertha estava tão esfomeada que não esperou sequer que a velha senhora se aproximasse da mesa — e enquanto comia ia pensando que raras vezes provara alimentos tão saborosos. A velha senhora aproximou-se por fim, e sentou-se num banco diante da jovem. Sorria, enquanto dispunha os pratos sobre a mesa. Murmurou, com um meio riso:

— A fome é o melhor tempero...

— Que quer dizer?

— Quero dizer que, há algum tempo atrás, teria repugnância ante a ideia de comer carne de gato.

— De gato?... — exclamou Bertha.

— Sim... Um leão é também um felino, não é verdade?

— Quer dizer... que isto é carne de leão?

— Sim, é carne de leão... Preparam-na de uma forma agradável. Vai habituar-se sem custo.

— Não a diferençaria de carne de vitela... ou de carneiro...

— O sabor é semelhante... — disse a velha senhora. — Mas estes leões são cuidadosamente tratados e alimentados, e a carne é muito bem preparada.

Foi assim que Bertha Kircher quebrou um longo jejum, com carne de leão e leite de cabra... Mal tinham acabado de comer quando entrou um dos guardas de túnica amarela. Falou, dirigindo-se à velha senhora. Esta traduziu:

— O rei deu ordem para a prepararem e a levarem à presença dele. Ficará a compartilhar estes aposentos, comigo. O rei sabe que eu não sou como as outras mulheres, pois nunca a deixaria com qualquer delas. Herog XVI tem momentos lúcidos, de quando em quando. Julga-se o único homem são de espírito, como os outros... e considera-me menos doida do que às outras. Na verdade não sei como não endoideci... durante todos estes anos.

— Disse que o rei mandou que me preparasse... — murmurou Bertha. — Que significa isso?

— Que será banhada e vestirá uma faixa semelhante à que eu uso...

— E não há maneira de fugir... ou de acabar comigo?

— A única possibilidade de morrer... seria este garfo... Mas veja como os dentes são curtos e rombos...

A jovem estremeceu, e a velha senhora poisou-lhe uma das mãos num ombro, suavemente.

— Talvez ele olhe apenas para si, e a mande embora... — disse ela. — Ago XXV mandou-me chamar, da primeira vez, tentou falar comigo, viu que eu não podia entendê-lo e ordenou que me ensinassem a linguagem deles. Depois esqueceu-se de mim, durante um ano... Houve um rei que eu nunca vi, e reinou cinco anos... Há sempre esperança...

A velha senhora conduziu Bertha a uma sala contígua, em cujo chão havia como que uma grande banheira... ou uma pequena piscina. A jovem banhou-se, e então a sua companheira trouxe-lhe uma das faixas usadas pelas mulheres nativas, ajustando-lha ao corpo. O tecido era extremamente leve e acentuava a beleza esbelta do corpo da rapariga.

- Pronto... — disse a velha senhora, ajeitando uma última prega — ...é na verdade uma rainha...

Bertha olhou, apavorada, para os seios descobertos e as pernas mal tapadas. Exclamou:

— Vão levar-me diante de homens, assim?

— Habituar-se-á, como eu... — disse a velha — ...e todavia fui criada no lar de um pastor da religião... onde era considerado quase um crime a ousadia de mostrar um tornozelo... Isso será um pormenor, comparado com as coisas que vai ter de suportar..-.

Tinha escurecido, e haviam acendido as lâmpadas de azeite... quando apareceram dois homens dizendo que Bertha teria de ir imediatamente à presença de Herog, o rei, e que Xanila — assim chamavam à velha senhora — devia acompanhá-la...

Os dois homens conduziram-nas a uma pequena sala, no andar inferior. Xanila explicou que aquela era uma das muitas antecâmaras da sala do trono. Um certo número de guardas, de túnicas amarelas, estavam sentados em bancos. Não mostraram qualquer curiosidade ao verem aparecer as duas mulheres.

Enquanto esperavam, de outra porta surgiu um homem muito novo, que envergava também uma túnica amarela e se distinguia apenas por um fio de oiro que lhe rodeava a cabeça, segurando uma pena de papagaio sobre a testa. Quando ele entrou, os outros levantaram-se.

— É Metak, um dos filhos do rei... — murmurou Xanila.

O jovem atravessou a sala, em direcção a outra porta, mas ao passar viu Bertha Kircher. Parou de repente e ficou a olhar para ela durante cerca de um minuto, sem falar. A rapariga desviou a cara, encolhendo-se. Então, bruscamente, Metak começou a tremer, de cabeça aos pés, e com um brado rouco lançou-se sobre ela e tomou-a nos braços.

No mesmo instante estabeleceu-se uma confusão tremenda. Os dois guardas que haviam sido encarregados de levar Bertha à presença do rei, saltaram e gritaram em volta de Metak, gesticulando mas sem se atreverem a tocar no filho de Herog. Os outros, como contagiados pela fúria do príncipe, correram, gritando também e brandindo os sabres.

A jovem lutava para se libertar dos braços de Metak, mas este, segurando-a apenas com uma das mãos, empunhou o sabre e desferiu um golpe sobre o guarda mais próximo. O homem foi atingido num ombro... que a aguda e pesada lâmina rasgou até ao meio do peito. Com um brado horrível, torceu-se e caiu, num lago de sangue.

Entretanto, Metak, sem largar Bertha, recuava Para a porta. Dois outros guardas, num acesso de fúria demente, largaram os sabres e atacaram-se um ao outro, com unhas e dentes, soltando brados espantosos. Alguns tentavam alcançar o príncipe, enquanto vários o defendiam. A um canto, um homem ria, num riso pavoroso. Xanila quis seguir Bertha, mas Metak viu-a e tentou feri-la com o sabre. A velha senhora teve apenas tempo de fugir para o corredor, tão depressa quanto as suas pernas trôpegas lho permitiam.

Fora da sala, Metak guardou o sabre na bainha e, erguendo a jovem acima da cabeça, correu na direcção oposta àquela que Xanila seguira...

 

Tarzan chega

Nesse dia, pouco antes de escurecer, um aviador quase exausto entrou no comando, procurou o coronel Capell, do Segundo Regimento da Rodésia, e fez a continência.

— Então, Thompson?... — perguntou o comandante. — Que sorte teve? Os outros já regressaram sem terem avistado rastros de Oldwick. Terei de desistir... a não ser que você tivesse melhor sorte.

— Tive... — volveu Thompson. — Encontrei o avião.

— Onde?... — exclamou o coronel — , Viu Oldwick?

— Vi o avião... no mais infame buraco que encontrei alguma vez, para o interior. No fundo de uma estreita garganta. Não consegui aproximar-me. Andava um leão perto. Poisei no alto da penedia e tentei descer para ir observar o aparelho, mas o leão não saía dali e tive de desistir.

— Pensa que os leões apanharam Oldwick?

- Duvido... — volveu Thompson — ... porque não

havia sinais de o leão ter devorado alguém junto do avião. Descolei depois e sobrevoei a garganta. Várias milhas para o sul avistei um estreito vale arborizado e, no meio dele... não pense que endoideci, «sir»... havia uma cidade... com ruas, um largo central onde havia uma lagoa, prédios altos com cúpulas e minaretes, e coisas assim...

O coronel olhou compassivamente para o aviador. Depois disse:

— Você está esgotado, Thompson... Precisa de dormir um bom sono. Deve ter os nervos em mau estado, suponho...

— Perdão, «sir»... — volveu o piloto, sacudindo a cabeça com certa irritação. — Estou a dizer-lhe a verdade e não há engano possível. Talvez Oldwick tenha chegado ao vale... ou fosse aprisionado...

— Havia gente, na cidade?

— Sim, distingui vultos nas ruas.

— Parece-lhe que a cavalaria poderá lá chegar?

— Não... — volveu Thompson. — A região é desértica e está sulcada por fundos desfiladeiros. Mesmo a infantaria teria grandes dificuldades, porque são, pelo menos, dois dias de marcha... e não existe água.

Foi nesse momento que um grande automóvel Parou diante do comando do Segundo Regimento da Rodésia, e um momento depois o general Smuts entrava no gabinete do coronel.

— De passagem... — exclamou o general, correspondendo às continências do coronel e do tenente... lembrei-me de parar para conversarmos. A propósito, como vão as buscas para encontrar Smith-Oldwick? Suponho que o tenente Thompson tomou parte nisso, não?

— Sim... e foi o último a chegar..-. Encontrou o avião... — e o coronel Capell repetiu a informação que ouvira do tenente.

Pouco depois o general e o coronel, com a ajuda de Thompson, debruçavam-se sobre um mapa, onde o tenente indicou o ponto onde encontrara o avião.

— É uma zona muito difícil... — comentou Smuts — ...mas temos de fazer tudo para encontrar Oldwick. Enviaremos um pelotão, que terá maiores possibilidades de êxito do que uma coluna maior. Ou antes, mandaremos uma companhia, ou duas, com bastantes camiões para transportar rações e água. Sim, duas companhias... Ponha alguém competente no

. comando, coronel, e uma companhia instalará uma base no ponto aonde possam chegar os camiões. A outra seguirá. Suponho que a base poderá ser instalada a um dia de marcha, da cidade, e em tal caso a companhia que continuar para diante não terá dificuldades com água, visto que deve existir água na tal cidade, ou no vale. Mande dois aviões para reconhecimento e informação, de maneira a conseguir que as duas companhias se mantenham em contacto. Quando poderão partir?

— Podemos carregar os camiões esta noite e partir à uma hora da madrugada.

— Excelente. Não deixe de me informar, Capell...

Com estas palavras, o general cumprimentou e saiu...

 

Quando Tarzan saltou para as trepadeiras, viu que o leão o seguia muito de perto e que a sua vida dependia da resistência das plantas a que se agarrara. Foi com alívio que constatou serem as hastes da trepadeira quase tão grossas como o braço de um homem, e estarem bem agarradas à muralha. Ouviu o rugido de Numa, em baixo, e sem esforço, com uma agilidade igual à dos macacos, içou-se até cima.

Imediatamente sob ele estava o terraço de uma casa. Tarzan dispôs-se a saltar, voltando as costas para a abertura no alto do muro, de onde era possível avistar a cidade, de um lado, e do outro lado a floresta. Isso impediu-o de ver o vulto escuro agachado na sombra... o vulto que caiu pesadamente sobre ele assim que os seus pés pisaram o terraço. A surpresa do ataque, e a posição do atacante, que o agarrava pelas costas, colocaram Tarzan em momentânea desvantagem. Agora o desconhecido empurrava-o para a beira do terraço, na intenção evidente de o fazer cair na rua. Mas o homem da selva não estava de acordo com a ideia... e fez a única coisa que podia fazer. Num impulso, curvou o corpo para trás... e noutro impulso dobrou-se para a frente. O atacante passou por cima da cabeça dele e caiu pesadamente no terraço, largando-o.

Levantou-se no mesmo instante, porém, empunhando o sabre. Era quase da estatura de Tarzan.., e dispunha de uma arma terrível. Tarzan esquivou o golpe da lâmina, curvando* e saltando para os joelhos do outro.

Mais uma vez o homem caiu de costas, mas agora não teve tempo para se levantar porque Tarzan caiu sobre ele. Uma forte mão morena agarrou o braço armado, enquanto outra mão, cujos dedos pareciam de aço, apertava o pescoço do homem. Este soltou um grito fundo, que os dedos de Tarzan abafaram, e tentou sacudir o gigante da selva. Mas do mesmo modo poderia ter tentado sacudir Numa. Um estalido acomfanhou a fractura das vértebras do pescoço...

Tarzan ergueu-se... e por um instante pareceu ir soltar o seu grande brado de vitória... mas nenhum som saiu da sua garganta. O silêncio era, de momento, o seu melhor aliado.

O homem da selva aproximou-se então da beira do terraço. Aqui e além, em quase todos os cruzamentos de ruas, ardia uma luz de azeite, sobre uma armação de metal fixada na parede... Mas as ruelas tortuosas eram compridas e estavam, em quase toda a sua extensão, mergulhadas na treva. Tarzan avistou alguns vultos que ainda circulavam, nas estreitas passagens.

Para procurar o tenente e a rapariga, Tarzan precisava de poder mover-se na cidade tão livremente quanto possível... mas passar junto de uma das luzes, embora fracas, nu como estava, apenas com a sua curta tanga em volta dos rins, e sob todos os aspectos nitidamente diferente dos habitantes da cidade, seria fazer com que o descobrissem imediatamente. Foi nesse momento que Tarzan reparou no cadáver caído sobre o terraço... e lhe acorreu a ideia de se disfarçar utilizando as roupas do seu assaltante.

Poucos momentos bastaram para que Tarzan vestisse a túnica e calçasse as sandálias. Prendeu em volta da cintura o cinturão do sabre, escondendo sob a túnica a sua faca de caça. Não queria perder as suas outras armas, e assim deixou-as cair no exterior da muralha, entre os arbustos, esperando poder recuperá-las mais tarde. No entanto, não largou a corda, que enrolou em volta do tronco, sob a túnica.

Por fim, satisfatoriamente disfarçado — o seu cabelo negro ajudava o seu propósito — procurou a maneira de alcançar a rua, em baixo. Podia saltar sem grande risco, mesmo sobre as lajes, mas não queria fazer qualquer ruído que atraísse atenções. Decidiu caminhar sobre os terraços, saltando de um para outro, e assim percorreu alguma distância... até que chegou a um terraço onde estavam vários vultos estendidos.

Havia notado que, nos terraços por onde passara, existiam aberturas que deviam comunicar com o interior das casas. Aproximou-se de uma dessas aberturas, sondando, com o olfacto e a vista, a escuridão em baixo. A casa pareceu-lhe vazia. Introduziu o corpo pela abertura, e ia deixar-se cair quando um dos seus pés tocou no degrau de uma escada de mão. Desceu, sem rumor. A treva, à sua volta, era apenas atenuada pelo reflexo débil de uma luz na esquina próxima. Tarzan verificou que a casa estava desocupada, e procurou o caminho para o andar térreo. A sorte ajudou-o e pôde alcançar a rua, sob as arcadas que suportavam o peso do andar superior, sem que a sua presença fosse pressentida.

Na rua, não teve qualquer dificuldade em se orientar. Tinha farejado a pista dos dois europeus, a partir do portão, e o seu sentido de direcção bastou-lhe para encontrar de novo essa pista, mais adiante.

No entanto, a sua primeira necessidade era encontrar uma ruela que seguisse paralelamente à muralha do lado norte, pois a pista indicava esse caminho. Compreendendo que a sua melhor esperança de êxito era a ousadia, pôs-se a caminhar abertamente pelas ruelas, sem tentar esconder-se, mantendo-se apenas ao abrigo das arcadas. Outras criaturas que encontrou, durante o seu avanço, nem o olharam. Estava perto de uma ruela transversal, porém, quando viu um grupo de homens, de túnicas iguais à sua, que vinham em direcção contrária. Se continuasse a avançar, encontrar-se-ia com eles exactamente junto da luz que iluminava a esquina. Tinha de evitar que o vissem de maneira a poderem reconhecer que não se tratava de um deles. Num gesto rápido, curvou-se como se quisesse prender melhor as tiras das sandálias. Os homens passaram sem o olhar.

Tarzan prosseguiu, assim que eles desapareceram. A rua por onde caminhava agora era tão tortuosa que as débeis luzes das esquinas não chegavam a iluminá-la. Tarzan teve de avançar de mãos estendidas para a frente, na escuridão total. Adiante, no entanto, a ruela seguia quase a direito... e à luz de uma das lâmpadas fixadas nas casas... Tarzan avistou um leão que vinha na direcção dele, devagar.

Uma mulher atravessou a rua, sem que a fera a fitasse sequer. Um instante depois uma criança passou, correndo atrás da mulher... e o leão parou por um instante para não chocar contra ela. Tarzan teve um meio sorriso e passou para o outro lado da ruela, na direcção do qual soprava o vento... Assim, o felino não o distinguiria pelo faro. O ardil teve êxito, e a fera passou sem o olhar.

Tarzan continuou o seu caminho... até que, pouco adiante, o seu espantoso sentido de olfacto captou o cheiro da jovem, e logo depois o do inglês. Tinha avançado curvado, farejando o chão...

Enquanto seguia ao longo da rua pela qual os dois prisioneiros haviam sido conduzidos, notou, como eles haviam notado, a diferença nos tipos das casas. Agora eram frequentes as lojas e os bazares, e o número das luzes, nas ruas, era maior. As lâmpadas estavam colocadas a meio das ruas, e não apenas nos cruzamentos. E havia mais gente ali do que nas zonas exclusivamente residenciais. As janelas estavam abertas e iluminadas, porque com o Pôr-do-sol o intenso calor do dia dera lugar a uma frescura agradável. Era também maior o número dos leões que circulavam pelas ruelas. Pela primeira vez, Tarzan notou as estranhas características daquela gente.

A certa altura quase se sobressaltou quando viu um homem completamente nu que corria, gritando agudamente. Pouco depois viu uma mulher que caminhava na sombra das arcadas, com as mãos no chão. O Tarmangani pensou que a mulher estivesse a procurar alguma coisa, mas logo verificou que não; tinha simplesmente resolvido caminhar assim. Mais adiante, viu duas criaturas que lutavam sobre o terraço de uma casa... até que uma delas empurrou violentamente a outra, que ficou imóvel sobre as lajes do pavimento. Por instantes, o vencedor ficou a gritar, em cima, à beira do terraço... para logo se atirar de cabeça para baixo e cair, inerte, ao lado da sua vítima. Um leão surgiu da sombra de uma porta e foi farejar os dois corpos ensanguentados e sem vida. Tarzan parou, a observar o efeito que o cheiro do sangue teria sobre o felino... mas este deitou-se tranquilamente junto dos cadáveres.

Tarzan seguiu, passando a curta distância do leão... e então a sua atenção foi atraída por um vulto que descia laboriosamente de um terraço, no lado leste da rua. A sua curiosidade despertou.

 

Na alcova

Quando Smith-Oldwick compreendeu que estava só e sem defesa num recinto fechado onde se encontravam vários leões, a noção da sua fraqueza encheu-o de terror. Agarrado à grade, não ousava voltar a cabeça para olhar as feras. Sentia que os seus joelhos vergavam, e a cabeça andava à roda. Um momento depois mergulhava na escuridão da inconsciência, junto da grade.

Nunca saberia quanto tempo ficou sem sentidos... mas ao voltar a si, num estado de semi-inconsciência, sentiu que estava deitado numa cama com lençóis muito brancos, num quarto iluminado... ouvindo o rumorejar da brisa sobre as árvores, além da janela...

— Deus... — murmurou. — Foi tudo um horrível pesadelo...

Durante um longo minuto, o tenente inglês permaneceu de olhos fechados. Alguém lhe acariciava a face, suavemente... mas a mão parecia húmida e quente... Smith-Oldwick abriu os olhos... e viu junto da sua cara a enorme cabeça de um leão.

O tenente não era apenas um «gentleman» e um oficial do exército... era na verdade um homem corajoso. Mas quando compreendeu que o que imaginara havia sido apenas o resto de um sonho... q na realidade estava ainda junto da grade, onde caíra, e um leão se debruçava sobre ele e lhe lambia a cara... teve a noção nítida de que chegara ao fim da sua capacidade de resistir.

O leão farejava-o, agora... enquanto o tenente mantinha uma imobilidade apavorada... Mas há situações que não podem prolongar-se, situações em que a morte parece desejável por ser a única maneira de lhes pôr termo. Foi esta ideia que levou Smith-Oldwick a mover-se, deliberadamente embora sem pressa, agarrando-se à grade para se apoiar. Ao primeiro movimento, o leão rosnou... mas logo depois pareceu desinteressar-se, e quando o tenente conseguiu finalmente pôr-se de pé, o felino afastou-se.

Smith-Oldwick olhou então. A maior parte das feras tinham-se estendido na sombra das árvores; apenas duas ou três caminhavam de um lado para o outro, inquietas. Eram essas que o inglês receava, mas quando por duas vezes passaram a roçar por ele, sem o olhar, tornou-se confiante, recordando-se de que aqueles leões estavam habituados à presença de homens. Não ousava ainda afastar-se da grade, no entanto. Olhando, viu que as ramadas de uma das árvores perto da parede, ao fundo, quase tocavam numa janela aberta. Se pudesse... se tivesse forças bastantes para trepar à árvore, poderia com relativa facilidade alcançar a janela e fugir... pelo menos da proximidade dos leões. Mas para alcançar a árvore teria de atravessar o pátio... e junto do tronco dormitavam duas das feras.

Por fim, ao cabo de alguns minutos de indecisão, Smith-Oldwick endireitou os ombros e caminhou, lenta e deliberadamente, para o centro do pátio... Um dos leões que andavam de um lado para o outro... aproximou-se dele e farejou-o, rosnando e mostrando as presas. Smith-Oldwick continuou a avançar, mas meteu a mão sob a camisa e empunhou a pistola, pensando:

« — Se ele decidiu atacar-me... tanto faz que se enfureça ou não... Não pode matar-me senão uma vez...»

Mas o seu gesto, ao empunhar a arma, fez com que o leão se afastasse de um salto, embora sem deixar de rosnar... e instantes depois o inglês estava junto do tronco. Acima dele alongava-se uma ramada que, em circunstâncias normais, poderia alcançar sem custo, de um salto. Mas, ferido e enfraquecido pela perda de sangue, a situação era diferente. . Tinha de se aproximar mais do tronco, o que não era simples porque ia ter de passar sobre o corpo de um leão... Não podia fazer outra coisa... Levantou um pé, poisou-o do outro lado do grande corpo fulvo, inclinou-se para a frente... e passou, sentindo-se estremecer ante a ideia de que o leão acordasse nesse momento.

Então Smith-Oldwick, ferido e fraco como estava, fez o que em plena força talvez não tivesse conseguido... Agarrou a parte mais grossa da ramada, Junto ao tronco, e içou-se...

Um momento depois estava em frente da janela

aberta que tinha visto. Não era difícil alcançá-la.

O inglês, pelo menos temporariamente livre dos leões, não hesitou. Um instante mais tarde galgava o peitoril e saltava para dentro de um compartimento vazio.

Era um compartimento espaçoso, com o chão coberto de tapetes bárbaros, e mobilado como os outros que ele vira antes, com bancos e mesas. Ao fundo, um pesado reposteiro escondia o que devia ser uma espécie de alcova. Ao lado do reposteiro havia uma porta, a única que podia ver. Na luz do dia que chegava ao fim, o tenente hesitava em seguir adiante. Talvez lhe valesse mais esperar a noite... Mas por outro lado era talvez perigoso perder tempo... Resolveu ver o que havia para além da porta... e ia nessa direcção quando o reposteiro da alcova foi afastado e a figura de uma mulher surgiu na sua frente.

Era uma mulher jovem e de belas formas; a faixa que a envolvia desde logo abaixo dos seios, moldava um corpo perfeito... mas a face era a de uma demente. Ao vê-la, Smith-Oldwick parou, pensando que a mulher ia bradar por socorro. Nada disso aconteceu, no entanto, e pelo contrário a criatura aproximou-se, de mãos estendidas, com um sorriso vago..-, e começou a tactear os farrapos do uniforme do tenente, examinando-o dos pés à cabeça e observando cada pormenor, como uma criança com um brinquedo novo. Depois falou-lhe, numa voz doce e melodiosa que contrastava estranhamente com a expressão de imbecilidade da face. Smith-Oldwick não compreendia uma só palavra, mas falou por sua vez... e o efeito do tom da sua voz foi surpreendente...

Antes que pudesse adivinhar as intenções da mulher, ela rodeou-lhe o pescoço, com os braços, e pôs-se a beijá-lo numa atitude de completo abandono.

Smith-Oldwick tentou libertar-se daquelas inesperadas demonstrações de ternura, mas ela abraçou-o mais estreitamente ainda... De repente, o inglês pensou que não se deve nunca contrariar os doentes mentais... e que a surpreendente «conquista» talvez lhe pudesse proporcionar um meio de fuga. Fechando os olhos, retribuiu os beijos.

Foi nesse momento que a porta se abriu e um homem entrou. O tenente, ao ouvir o movimento da porta, abriu os olhos e tentou libertar-se novamente... mas tarde de mais para que o recém-chegado não visse a sua posição comprometedora. A mulher voltou-se... e fitou o homem que entrava e em cuja face se reflectia uma raiva espantosa . Com um grito, fugiu para a alcova... enquanto o inglês, corado e embaraçado, ficava imóvel. Com a compreensão da inutilidade de se explicar, veio a compreensão da fúria do homem... que era o mesmo a quem os seus captores o haviam conduzido, com Bertha, à chegada. Fosse quem fosse, a raiva contorcia as feições do indivíduo, acentuando mais ainda a expressão de loucura que lhe era habitual.

Com um grito agudo, o homem empunhou o seu sabre e saltou sobre o tenente. Para Smith-Oldwick não podia haver qualquer esperança de escapar... e Por isso fez a única coisa que podia fazer... Empunhando a pistola, apontou e disparou.

Sem um grito, o enfurecido atacante caiu, com o coração atravessado pela bala.

Por momentos, o tenente ficou novamente imóvel, de arma em punho, esperando ver surgir alguém atraído pela detonação. Mas nenhum ruído denunciava a aproximação de gente... e a atenção de Smith-Oldwick foi desviada por um movimento do reposteiro. A rapariga espreitava, de olhos muito abertos...

O inglês viu-a aproximar-se do corpo caído, parar a curta distância, como pronta a fugir, e depois olhar para ele e perguntar-lhe qualquer coisa que ele não entendeu. A rapariga, então, ajoelhou-se junto do corpo, voltou-o... e parecendo finalmente convencida de que o homem morrera... começou a rir histèricamente, batendo com os punhos na face morta... Era um espectáculo repugnante, que nunca poderia ser visto fora de um asilo de doidos... ou fora daquela extraordinária cidade.

De repente, cessando de bater no corpo insensível, a mulher levantou-se de um salto e correu para a porta, fechando-a com uma pesada tranca de madeira. Depois voltou para junto do inglês e falou muito depressa, apontando por vezes para o homem morto. Vendo que Smith-Oldwick não a entendia, teve um acesso de raiva e avançou para ele, como a querer bater-lhe. O inglês recuou dois passos e apontou-lhe a arma. Doida como era, a mulher não devia ser tão doida que não ligasse a detonação da pequena arma com a morte do homem, porque a fúria passou-lhe e a sua atitude mudou.

Novamente o sorriso imbecil lhe apareceu na face, e a sua voz retomou o tom suave. Tentava agora dizer o que queria, por sinais, abrindo o reposteiro e mostrando a alcova, que era na realidade um quarto quase grande, com reposteiros e um divã, e tapetes no chão. Apontou outra vez para o corpo e levantou a cobertura do divã, indicando a parte aberta do móvel, em baixo. Parecia querer que o corpo fosse escondido ali. O tenente compreendeu a vantagem de tirar o cadáver do meio da casa, e obedeceu. Esconderam o corpo. A mulher mudou de posição um tapete manchado de sangue, de maneira a ocultar a mancha... e então, abraçando-se novamente ao inglês, começou a puxá-lo para o divã. Embora sentindo todo o horror da situação, porque a criatura o puxava para onde estava escondido o cadáver, o tenente deixava-se arrastar, pensando que tinha de não perder a possível maneira de escapar dali. No entanto hesitava, tomado de uma quase irresistível repugnância... e foi nesse momento que alguém bateu à porta, com força.

A atitude da mulher mudou novamente. Rápida, empurrou Smith-Oldwick para a parede, junto da cabeceira do divã. Aí, afastou os reposteiros, descobrindo um nicho, atrás. Empurrou o inglês para o nicho, escondeu-o com os reposteiros e correu para a porta.

O tenente ouviu-a abrir a porta, tirando a tranca, e logo a seguir distinguiu a voz de um homem. A rapariga falava com o recém-chegado... e a conversa parecia perfeitamente calma e normal...

O inglês esperava, no entanto, alguma súbita explosão de demência.

Ouviu que o homem e a mulher entravam na alcova, e afastando ligeiramente o reposteiro que o escondia, viu-os sentados no divã, abraçados. Ela beijava o seu novo companheiro, um homem muito mais novo do que aquele que Smith-Oldwick tivera de matar. De repente, como a recordar-se de qualquer coisa, a rapariga franziu o sobrolho, olhou para o reposteiro que escondia o inglês e falou rapidamente e em voz baixa. Fez repetidos sinais com a cabeça... na direcção do nicho... enquanto explicava qualquer coisa, mostrando a mão direita com o indicador dobrado. Smith-Oldwick não teve qualquer dúvida de que ela estava a descrever a pistola... e a denunciar a presença dele. No mesmo instante começou a examinar o nicho onde se encontrava...

Na alcova, o homem e a rapariga falavam agora em voz muito baixa. A certa altura ele levantou-se sem ruído, empunhou o sabre e aproximou-se do reposteiro. A mulher acompanhou-o, indicando com o braço estendido a direcção exacta, à altura do peito de alguém que ali estivesse. Então afastou-se um pouco, enquanto o seu companheiro, erguendo a arma, se lançava bruscamente com todo o seu peso e o sabre apontado para diante, atravessando o reposteiro com a lâmina e fazendo-o atravessar também toda a profundidade do nicho.

Bertha Kircher, vendo a inutilidade de se debater e pensando em reservar forças para uma oportunidade de fugir, desistiu de tentar libertar-se de Metak enquanto este, levando-a nos braços, corria pelas sombrias passagens do palácio. Metak atravessou vários compartimentos e corredores, sem largar a sua presa. Parecia evidente que, embora filho do rei, não estava a salvo de ser castigado pelo que fizera, pois se mostrava ansioso por escapar e olhava frequentemente para trás, com uma expressão de susto. Bertha tinha a impressão de que Metak passara várias vezes pelos mesmos corredores, mas a partir de certa altura perdeu o sentido da direcção. O que não sabia era que o filho do rei estava tão desorientado como ela própria, e procurava ao acaso um lugar onde se esconder.

Não era de admirar que um demente se perdesse ali, naquele palácio construído por doidos para um rei doido. Os corredores desviavam-se, bifurcavam-se, subiam ou desciam, numa espécie de labirinto. De repente, empurrando uma porta, Metak e a sua vítima entraram de roldão numa sala vasta, iluminada e cheia de gente armada. De relance, Bertha viu o rei sentado ao fundo, no seu trono... e no trono ao lado, igual ao seu, uma leoa. Lembrou-se bruscamente das palavras de Xanila: «—Mas ele tinha outras rainhas... e nem todas eram humanas...» Ao ver Metak, o rei ergueu-se repentinamente do seu trono, toda a sua vaga aparência de majestade desaparecia num acesso de raiva.

Avançou, berrando ordens...

Metak, um momento imobilizado pelo espanto, deu meia volta e fugiu... mas agora uma centena de homens iam no seu encalço, rindo, gritando, talvez praguejando. Metak corria desesperadamente, apesar do peso que transportava, e chegou ao fim de um longo corredor que descia para um subterrâneo iluminado por archotes... Ao centro do subterrâneo havia um vasto lago, cuja superfície ficava apenas a alguns centímetros abaixo do nível do chão. Os que perseguiam o príncipe viram-no mergulhar, arrastando consigo a jovem cativa... e embora ficassem à espera, em cima, nenhum dos dois reapareceu...

Quando Smith-Oldwick se voltou para observar o fundo do nicho, notou imediatamente uma porta fechada com uma tranca semelhante à da porta exterior. Sem ruído, removeu a tranca, abriu a porta e avançou na mais completa escuridão, depois de ter fechado de novo o batente. Pelo tacto, verificou que se encontrava num estreito corredor. Seguiu em frente, até ser detido por uma parede... apoiada à qual havia uma escada de mão. Não podendo continuar a avançar, não ousando voltar atrás, a única alternativa era subir a escada, o que fez mantendo a pistola ao alcance da mão, no bolso exterior da túnica em farrapos.

Subira apenas dois ou três degraus quando a sua cabeça bateu numa superfície dura, em cima. Erguendo um braço, empurrou e sentiu que se tratava de um alçapão facilmente removível. Levantou o alçapão, olhou... e viu acima da sua cabeça a escuridão aveludada de uma noite de África, recamada

de estrelas.

Com um fundo suspiro de alívio, mas sem abandonar as cautelas, afastou completamente o alçapão e olhou. Estava no que lhe pareceu um terraço... e não havia vivalma perto dele. Então içou-se, repôs o alçapão no seu lugar e tentou orientar-se... Do lado sul, o terraço baixo, ond e ele se encontrava, apoiava-se numa parte mais alta do edifício. Para oeste podia ver as luzes fracas das lâmpadas, nas ruelas. Foi para aí que se encaminhou.

Da beira do terraço, olhou a vida nocturna da cidade dos doidos. Observou homens, mulheres e leões... e pareceu-lhe flagrante que só os leões não eram doidos. Com o auxílio das estrelas, orientou-se, seguindo pela memória os passos que dera através da cidade, e tentando localizar o terraço onde estava. Compreendeu que a rua, em baixo, era a mesma por onde Bertha e ele haviam sido conduzidos.

Se pudesse alcançar a rua sem ser visto, talvez lhe restasse alguma possibilidade de alcançar o portão da muralha, caminhando na sombra das arcadas. Já havia perdido a esperança de encontrar Bertha e poder socorrê-la, pois sabia que, sozinho e com poucas balas que lhe sobravam, nada poderia fazer contra uma cidade cheia de homens armados. Sabia que não chegaria a atravessar a floresta . e se o conseguisse seria apenas para ir morrer no deserto. Apesar de tudo, queria a todo o custo afastar-se o mais possível da cidade dos dementes.

Viu que as casas eram ligadas e todas da mesma altura, até ao próximo cruzamento de ruas. Directamente sob ele havia uma das lâmpadas de azeite... e para alcançar a rua tinha de ser numa zona mais escura. Seguiu ao longo dos terraços, até encontrar um ponto que correspondesse ao que buscava... e encontrou-o pouco adiante, onde a ruela se desviava para leste. Mas, tendo decidido descer por uma das colunas das arcadas, foi obrigado a esperar, pois por várias vezes avistou gente que se aproximava.

Quando, por fim, a ocasião lhe pareceu propícia, iniciou a descida para a rua. Mal acabara de pisar o chão... quando ouviu ruído e, voltando-se, deparou com o vulto alto de um homem de túnica amarela, junto dele...

 

Fora do nicho

Numa, o leão, rosnou, furioso por ver escapar-se-lhe a presa. Ia tentar um novo esforço para saltar... quando farejou qualquer coisa. Baixando a bela cabeça, aproximou o focinho do ponto onde Tarzan poisara os pés durante uma fracção de segundo, e então o rosnido transformou-se num ganir abafado, porque reconhecera o cheiro do homem que o salvara do fosso dos Wamabos.

Ninguém saberia dizer o que se passou no pequeno cérebro da fera... mas toda a fúria havia desaparecido quando o leão se voltou e caminhou majestosamente ao longo da muralha. Na extremidade sul da cidade estavam os currais, onde os herbívoros eram engordados para alimento dos leões domesticados pelos dementes. Os grandes felinos da floresta devoravam igualmente os herbívoros e os homens, e tal como Numa faziam frequentes excursões através do deserto, até ao fértil vale dos Wamabos. Mas sobretudo iam buscar as suas presas aos currais da cidade de Herog, ou devoravam os súbditos do rei doido.

Numa, o do fosso, era de algum modo uma excepção à regra, porque em muito pequeno tinha sido levado para a cidade, na intenção de vir a ser um reprodutor — embora tivesse escapado ao cabo de dois anos. Na cidade dos doidos haviam tentado ensinar-lhe a não devorar carne humana, e como consequência dessa aprendizagem só atacava os homens quando estava esfomeado ou enraivecido.

Os currais eram protegidos por uma forte paliçada de troncos, ao longo da qual existiam várias portas por onde os herbívoros saíam para pastar. Era nessas alturas que os leões da floresta atacavam, quase sempre. Mas Numa, tendo captado a pista do homem que o salvara, queria agora entrar na cidade.

Reconhecia as portas, distinguindo-as do resto da paliçada, e foi-as experimentando até encontrar uma que lhe pareceu menos segura. Um momento depois derrubava a porta e entrava num curral de cabras, provocando o pavor entre os animais. Quase a seguir, em consequência do rumor que subia do curral, abriu-se uma porta na muralha e um dos guardas espreitou para fora. Não é de crer que tivesse chegado a compreender a causa da súbita agitação... pois Numa saltou sobre ele e, com um formidável golpe das garras, decepou-lhe a cabeça, entrando pela porta e alcançando as ruas dèbilmente iluminadas...

 

O primeiro impulso de Smith-Oldwick, ao ver a seu lado o homem da túnica amarela, cujas feições a escuridão não lhe permitia distinguir, foi levar a mão à pistola, disposto a disparar através do bolso..-, mas o seu pulso foi agarrado com tremenda força, ao mesmo tempo que uma voz murmurava:

— Tenente... Sou eu, Tarzan!

A sensação de alívio foi tal que o inglês teve de se agarrar ao homem da selva, para não cair. Só ao cabo de uns segundos pôde murmurar:

— Você... Eu... julgava-o morto...

— Estou vivo, e você também... — volveu Tarzan. — A rapariga?

— Não a vi mais... desde que nos trouxeram para aqui. Foi levada pelos guardas, e eu fui deixado num covil de leões...

— Como conseguiu fugir?

— Os leões não me atacaram, pareceram não se interessar... Trepei a uma árvore e entrei por uma janela... Tive uma pequena luta com um homem... e fui escondido, num nicho, por uma mulher... A criatura denunciou-me depois, mas descobri uma passagem que conduzia a um terraço e desci para a rua, sem ser visto... É tudo... e não faço ideia de onde está «miss» Kircher.

— Aonde ia agora? Smith-Oldwick hesitou, mas disse:

— Eu... bem... eu não podia fazer nada, sozinho... Ia tentar alcançar as tropas inglesas, a leste, e pedir socorro...

— Não o conseguiria... — atalhou Tarzan. — Mesmo que pudesse atravessar a floresta, não atravessaria o deserto, sem água e sem comida.

— Que podemos fazer, então?

— Vamos tentar encontrar a rapariga... — calou-se e acrescentou como se, esquecido da presença do inglês, falasse consigo mesmo: — Embora seja uma espia alemã... é uma mulher branca... e não posso deixá-la aqui...

— Mas como havemos de encontrá-la?... — perguntou o inglês.

— Segui-a até aqui... e creio que poderei continuar a segui-la... — volveu Tarzan.

— Mas eu não posso acompanhá-lo, vestido com esta roupa... Seríamos ambos apanhados... — objectou o inglês.

— Arranjaremos outras roupas...

- Como?

— Vá ao terraço junto da muralha por onde eu entrei... e pergunte ao homem morto e nu, que lá está, como foi que eu arranjei este disfarce...

— disse Tarzan, com um sorriso sombrio.

— Compreendo... — exclamou Smith-Oldwick. — Sei onde está um tipo que já não precisa de roupas, e se pudermos subir a este terraço de onde eu vim, poderei arranjar um disfarce sem encontrar grande resistência. Só lá estão uma rapariga e um rapazola, que não será difícil dominar.

— Como sabe que esse homem não precisa de roupas?... — perguntou Tarzan, surpreendido.

— Sei... porque o matei eu mesmo..-. — volveu o inglês.

— Está bem... — disse Tarzan. — Será mais fácil do que atacar um homem na rua e despi-lo. Vamos.

— Sim... mas como subir?

— Como você desceu... — respondeu Tarzan. — O terraço é baixo e há uma estreita saliência nos capitéis das colunas...

Smith-Oldwick olhou e disse:

— Não é muito alto... mas receio não poder lá chegar... Tentarei... Fui ferido por um leão, perdi muito sangue e não como desde ontem...

— Não posso deixá-lo aqui... — atalhou Tarzan.

— Só poderá escapar indo comigo, e eu não irei sem encontrar a rapariga. Bom, vamos... Agarre-se a mim!

Antes que o inglês pudesse compreender qual era a sua intenção, o homem da selva agarrou-o, içou-o para um ombro, correu e trepou para o terraço, por uma das colunas, com uma agilidade de macaco.

- Pronto... — disse Tarzan. — Agora conduza-me ao lugar de que falou.

Smith-Oldwick não teve dificuldade em localizar o alçapão. Removendo-o, Tarzan espreitou e farejou. Um instante depois estavam no estreito corredor e aproximavam-se da porta aberta no fundo do nicho. A porta estava aberta, e através dos reposteiros puderam ver que havia luz na alcova.

Afastando o reposteiro, ligeiramente, Tarzan espreitou. Viu a rapariga e o rapaz, de quem Smith-Oldwick falara. Estavam sentados de ambos os lados de uma mesa onde havia comida, e eram servidos por um negro gigantesco, que o homem da selva observou atentamente. Conhecendo a maioria das tribos da África central, o Tarmangani não teve dificuldade em verificar a origem do escravo... e em recordar o dialecto da sua tribo. Havia, no entanto, a possibilidade de o negro ter sido capturado muito novo, e ter esquecido a sua língua nativa. Tarzan resolveu tentar a sorte, e esperar que o escravo, no seu serviço, se aproximasse de uma pequena mesa perto do reposteiro. Quando isso aconteceu, sussurrou:

— Se queres voltar à terra dos Wamabos, não fales e obedece ao que eu te disser...

O negro teve um irreprimível sobressalto e olhou, espantado, para o reposteiro. Não sabia da existência do nicho e decerto supunha que o tecido cobria a parede espessa.

 

Tarzan viu-o estremecer e acrescentou:

— Não tenhas medo, somos teus amigos...

Por fim o escravo murmurou, num sopro quase inaudível mesmo para Tarzan:

— Que pode o pobre Otobu fazer pelo deus que fala de dentro da parede?

— Escuta... Somos dois e vamos entrar nesse compartimento. Evita que o homem e a mulher fujam, ou gritem de maneira a atrair outros..-.

— Obedecerei... e não os deixarei sair... — sussurrou o negro. — Os gritos não podem ser ouvidos... e mesmo que fossem não chamariam ninguém... Todos os doidos gritam, a toda a hora...

Tarzan viu o negro afastar-se e ir colocar outro prato de comida sobre a mesa diante da qual estavam sentados o rapaz e a rapariga. Depois, o escravo postou-se atrás do rapaz... e olhou para o reposteiro como para dizer que estava pronto.

Sem perder tempo, Tarzan afastou o reposteiro e saltou para a alcova. Ao vê-lo, o rapaz quis levantar-se, mas foi imediatamente agarrado pelas costas, pelo escravo. A rapariga, de costas para Tarzan, viu apenas o ataque do negro e saltou sobre ele, gritando, mas Tarzan agarrou-a por um braço. Ela voltou-se, com uma expressão de raiva demente... mas no mesmo instante surgiu na sua cara o sorriso que Smith-Oldwick conhecia... e os seus dedos começaram a acariciar o homem da selva. Quase no mesmo instante a rapariga viu o inglês, mas a sua atitude não mudou. Parecia ter apenas dois estados de espírito, a fúria e a sensualidade... e mudava de um para o outro com espantosa rapidez.

— Vigie-a por momentos... — disse Tarzan ao inglês — ...enquanto eu desarmo o rapaz... — aproximou-se e tirou o sabre ao homem que se debatia ferozmente entre os braços do negro. Depois voltou-se para este: — Se falas a língua deles, diz-lhes que não lhes faremos mal se nos deixarem partir em paz.

O escravo estava a olhar, espantado, para aquele deus que surgira da parede, se materializara diante dele e lhe falava no tom de voz de um «bwana» ...embora usasse o uniforme dos guardas da cidade, aos quais, evidentemente, não pertencia. Mas a sua fé na promessa de liberdade não tinha diminuído.

— Perguntam o que quer deles?... — traduziu Otobu, depois de ter falado.

— Queremos comer, e queremos outra coisa que está aqui... Agarra a lança desse homem, Otobu. Está encostada à parede. Pegue neste sabre, tenente. Otobu vigiará o rapaz enquanto eu vou buscar o que está debaixo do divã.

Os olhos do rapaz e da rapariga seguiram Tarzan, enquanto este afastava a cobertura do divã e puxava para fora o corpo do homem que Smith-Oldwick matara. Ao ver o cadáver, o rapaz levantou-se de um salto e correu, mas Tarzan agarrou-o e dominou-o, não sem dificuldade. Então, enquanto Otobu despia a roupa do homem morto, Tarzan disse-lhe para perguntar ao rapaz qual era a causa da sua excitação.

— Eu posso dizer, «Bwana»... — respondeu Otobu.

— O morto era pai dele.

— Que está ele a dizer à rapariga?

— Está a perguntar-lhe se ela sabia que o corpo do pai estava ali. E ela responde-lhe que não.

Tarzan repetiu a conversa a SmithOldwick, que * não entendia bem o dialecto de Otobu. O inglês sorriu:

— O tipo devia tê-la visto a esconder o tapete manchado de sangue, depois de me ter ajudado a meter o corpo debaixo do divã... uma ideia dela. A rapariga é menos doida do que parece...

Otobu acabou de remover as roupas do morto, e Smith-Oldwick envergou-as sobre os farrapos do seu uniforme.

— Agora vamos sentar-nos e comer... — disse Tarzan. — A fome não ajuda.

Enquanto comiam, Tarzan tentou fazer falar o rapaz e a rapariga, por intermédio de Otobu. Soube que ambos pertenciam à casa do homem que morrera

— o rapaz era filho dele — e faziam parte da classe que governava a cidade, embora não fossem membros da corte. Quando o homem da selva perguntou por Bertha Kircher, o rapaz disse que ela tinha sido levada para o palácio... para ser entregue ao rei. Durante a conversa, tanto o rapaz como a rapariga pareceram perfeitamente normais, fazendo mesmo algumas perguntas inteligentes, e mostraram grande surpresa ao saber que, em redor do vale, se estendia um imenso deserto sem água.

Quando, por indicação de Tarzan, Otobu perguntou ao rapaz se conhecia bem o palácio real, ele respondeu que sim, e que era amigo do príncipe Metak, um dos filhos do rei, que o visitava e a quem ele visitava. De repente, ouviram-se fortes pancadas na porta do compartimento exterior.

Por momentos ninguém falou... mas bruscamente o rapaz elevou a voz e gritou qualquer coisa para os que estavam fora. Otobu saltou sobre ele e tentou tapar-lhe a boca, com a palma de uma das mãos.

— Que disse ele?... — perguntou Tarzan.

— Gritou aos outros para arrombarem a porta e o salvarem de dois desconhecidos que entraram aqui... Se os outros entrarem... matam-nos!

— Diz-lhe que se cale ou eu o mato imediatamente... — ordenou Tarzan.

Otobu obedeceu, e o rapaz calou-se, sombrio. Tarzan atravessou a alcova e foi verificar os efeitos das pancadas que continuavam a ouvir-se, na porta. Smith-Oldwick seguiu-o, deixando o rapaz e a rapariga sob a vigilância de Otobu. Tarzan compreendeu que a porta não resistiria muito tempo, e disse ao inglês:

— Pensei em utilizar esse rapaz para entrarmos no palácio... mas creio que teremos de sair por onde entrámos. Há uma dúzia de homens aí fora, e não podemos esperar que entrem. Vamos!

Quando voltaram à alcova... viram o negro estendido no chão, aparentemente morto... Os dois prisioneiros tinham desaparecido...

 

A fuga de Xuja

Quando Metak saltou para a água do grande lago subterrâneo, arrastando consigo Bertha Kircher, a jovem fechou os olhos e murmurou uma oração... convencida de que o doido tinha resolvido afogar-se e afogá-la também. No entanto, tão forte é o instinto da conservação, Bertha tentou ainda libertar-se, retendo a respiração para não deixar que os seus pulmões se enchessem de água. Mantinha, apesar do seu pavor, um total domínio dos sentidos... e assim, depois do mergulho, não tardou a compreender que o doido nadava debaixo da superfície, sem a largar. Metak ia na direcção da parede, ao fundo... e a certa altura emergiu; a jovem sentiu que emergia também, e abriu os olhos, respirando sofregamente. Viu então que estava num corredor escassamente iluminado através de grades colocadas ao alto — um corredor coberto de água de uma parede à outra.

O homem nadava agora, em poderosas braçadas, mantendo o queixo de Bertha acima da superfície. Nadou assim, sem parar, durante uns dez minutos, e a certa altura disse qualquer coisa que ela não entendeu. Então Metak parou e, flutuando, largou-a para poder tocar com os dedos no nariz e na boca de Bertha. A jovem compreendeu, respirou fundo, e voltaram a nadar completamente submersos durante alguns momentos.

Quando, uma vez mais, emergiram, a jovem viu que se encontravam numa extensa lagoa e que as estrelas brilhavam na altura, no céu nocturno. Em volta desenhavam-se os contornos escuros das cúpulas e minaretes. Metak nadou rapidamente para o lado norte da lagoa. Uma escada permitiu-lhes sair da água. Havia gente no largo, mas ninguém prestou grande atenção aos dois vultos encharcados. Quando Metak atravessou a praça, caminhando depressa, com a jovem a seu lado... Bertha não via maneira de poder escapar ali, e seguia-o docilmente, esperando, contra toda a esperança, que alguma coisa acontecesse...

Metak conduziu-a para um edifício que Bertha reconheceu ser o mesmo onde entrara com Smith-Oldwick, ao chegar à cidade. Agora não havia ninguém atrás da grande mesa entalhada, mas em volta viam-se vários guardas com o uniforme da casa a que pertenciam — uniforme que consistia numa túnica branca com um pequeno leão bordado, no peito e nas costas. Quando Metak entrou, os guardas reconheceram-no e levantaram-se. A uma pergunta dele, apontaram para uma abertura em arco, ao fundo da sala. Metak encaminhou-se para lá, levando a jovem, mas parecia desconfiado e vigiava os guardas. A certa altura empurrou Bertha para diante dele e começaram a subir uma escada que ia ter a um corredor. Os guardas precediam-nos.

Escada e corredor eram iluminados por pequenos archotes que revelavam várias portas. Foi para uma dessas portas que os soldados guiaram o príncipe.

Bertha ouviu-os bater e escutou uma voz que respondia através da espessura da madeira. O efeito da resposta, sobre os que estavam junto dele, foi fulminante. Os guardas agitaram-se, e o filho do rei gritou ordens. Então os homens começaram a atacar a porta com os sabres, a tentar derrubá-la com os ombros. Bertha pasmava da súbita exaltação dos dementes.

Viu a porta ceder finalmente... mas já não pôde ver os vultos que, no interior, tinham desaparecido atrás de um pesado reposteiro, na alcova ao fundo — os vultos dos dois únicos homens que poderiam salvá-la. Quando a porta caiu e os guardas saltaram para dentro do compartimento, seguidos pelo príncipe, este entregou-se a um paroxismo de raiva... porque a sala e a alcova estavam desertas... com excepção do cadáver do dono do palácio, e do corpo, também caído, do escravo negro, Obotu.

O príncipe correu para a janela e olhou para fora, mas ao ver que em baixo era o pátio dos leões, sem saída, ficou visivelmente intrigado. Ele e os guardas revistaram tudo, em busca dos que deviam ter estado ali, mas não descobriram o nicho atrás dos espessos reposteiros da alcova. Com a instabilidade da demência, Metak não tardou a desinteressar-se da busca e, voltando-se para os guardas, mandou-os embora. Os homens repararam como puderam a porta arrombada, e saíram.

Quando ficou só com a jovem, Metak voltou-se para ela. As feições dele começaram a crispar-si, em espasmos, enquanto se aproximava. Bertha, que estava à entrada da alcova, recuou, apavorada, passo

a passo. No seu recuo, um dos pés encontrou um obstáculo, junto do corpo do negro caído, e olhando viu a lança que devia ter servido ao negro para impedir a fuga dos prisioneiros. Rápida, curvou-se e apanhou-a, apontando-a para o peito do demente que avançava sobre ela de mãos estendidas, os dedos como garras... O efeito da ameaça foi súbito. Metak teve um riso de doido, que o sacudia de alto a baixo. Depois, empunhando o sabre, pôs-se aos sai-tos diante da jovem... mas a ponta da lança seguia-o sempre.

Gradualmente, a jovem notou a modificação que se operava na expressão de Metak. O riso histérico era substituído por brados de fúria, e a cara contorcia-se num esgar que mostrava os caninos aguçados. Correu rapidamente para a lança, saltou de lado, atacou de novo, forçando Bertha a recuar sempre. Agora a jovem estava ao lado do divã. De súbito, Metak apanhou um dos bancos e atirou-o sobre ela. A jovem desviou a lança para deter o golpe, mas o banco acertou-lhe num braço e derrubou-a sobre o divã. No mesmo instante, Metak saltou sobre ela...

Tarzan e Smith-Oldwick não tinham tempo para pensar no que acontecera ao rapaz e à rapariga. Era preciso alcançar a rua, depressa. Disfarçados como estavam, talvez pudessem entrar no palácio real sem despertar suspeitas. O inglês, que precedia Tarzan ao longo do estreito corredor atrás do nicho, alcançou a escada, subiu dois degraus e tentou afastar o alçapão, como fizera antes... mas um instante depois voltou-se para o homem da selva:

— Nós tapámos isto, quando entrámos? Não me recordo...

— Não... Ficou aberto...

— Parecia-me isso... mas agora está fechado e preso. Não consigo movê-lo... talvez você consiga...

Mas Tarzan, mau grado a sua tremenda força, também não conseguiu levantar o alçapão... embora quebrasse o degrau da escada em que firmava os pés. Fez novas tentativas, também sem êxito, e voltou-se por sua vez para Smith-Oldwick:

— Temos de encontrar outra saída!

Só podiam voltar para trás, e foi o que fizeram. Agora Tarzan vinha à frente... e ao abrir a porta do nicho ouviu uma voz de mulher, que gritava «em inglês»:

— Deus! Salvai-me...

No mesmo instante, sem uma hesitação, Tarzan arrancou o reposteiro que cobria o nicho, e saltou para a alcova.

Metak, que tentava dominar Bertha, olhou e berrou uma ordem, ao ver um homem com a túnica dos guardas do palácio real... mas quase no mesmo instante compreendeu que o intruso não pertencia à cidade. Com um urro, sem pensar sequer no sabre

que largara, saltou sobre Tarzan, tentando mordê-lo na garganta.

O filho de Herog era forte, e a sua força era multiplicada pela demência — o que fazia dele um adversário terrível, mesmo para Tarzan. Para complicar as coisas, o homem da selva, recuando um passo sob o ímpeto do assalto, tropeçou no corpo do dono da casa, a quem Smith-Oldwick matara, e caiu de costas. O doido ficou sobre ele, tentando mordê-lo. Foi nesse momento que, admitindo a possibilidade da derrota, Tarzan gritou ao inglês para fugir com a rapariga.

Smith-Oldwick olhou interrogativamente para Bertha, que se levantara, trémula. A jovem viu a pergunta nos olhos do tenente e, por um enorme esforço de vontade, acalmou-se, dizendo:

— Não! Se ele morrer... morrerei também... Vá, se quiser... Não posso fazer nada... mas fico...

Tarzan levantara-se, mas o doido não o largava. Bertha exclamou, dirigindo-se ao tenente:

— A sua pistola! Por que não dispara? Smith-Oldwick empunhou a arma, mas agora os

dois contendores moviam-se tão rapidamente que não era possível fazer fogo sobre um deles sem que a vida do outro corresse perigo. Bertha tinha agarrado o sabre de Metak e procurava o momento de ferir... Os dois homens caíram e levantaram-se várias vezes... mas agora os dedos de Tarzan envolviam a garganta do doido. Este abriu muito a boca, num esgar horrível... E Tarzan, num impulso de repugnância e de raiva, ergueu-o bruscamente nos dois braços e projectou-o através da sala, na direcção da janela... Metak caiu, com um baque surdo, nas lajes do pátio dos leões, em baixo.

Quando Tarzan se voltou para os seus dois companheiros, viu nos olhos de Bertha, que ainda empunhava o sabre, uma expressão como nunca vira antes. Estavam húmidos de lágrimas contidas... e os lábios dela tremiam, como se estivesse prestes a ceder ao turbilhão de emoções que tentava reprimir.

— Para sair daqui não podemos perder tempo...

— disse Tarzan. — Estamos novamente reunidos e qualquer demora pode ser fatal. Os que fugiram daqui devem ter passado para o terraço e cortaram a passagem, de modo que esse caminho é impraticável. Que há em baixo?

— Uma sala cheia de homens armados... — respondeu a jovem. — Não poderemos passar...

Foi nesse momento que Obotu se moveu, sentando-se no chão. Tarzan exclamou:

— Não morreste, afinal. Estás ferido?

O negro pôs-se de pé, sacudindo-se e movendo os braços e as pernas.

— Obotu não está ferido, Bwana... — disse ele.

— Só tem uma dor na cabeça... onde o doido bateu...

— Excelente. Queres voltar à terra dos Wama-bos?

— Sim, Bwana...

— Então indica-nos o caminho mais seguro para sair da cidade.

— Não há caminho seguro... — volveu Obotu. — Mesmo se conseguirmos chegar à porta da cidade, teremos de lutar. Posso levá-los até lá, por caminhos desviados e onde não há grande risco de encontrar gente. Estão vestidos como os homens desta cidade maldita e poderemos passar... mas no portão é diferente porque ninguém pode sair da cidade, de noite...

— Vamos sem demora... — cortou Tarzan. Obotu levou-os através da porta arrombada, e

seguiram pelo corredor até certa altura, em que o negro entrou num compartimento à direita. Atravessaram esse compartimento, chegaram a outro corredor, e finalmente, por outras salas e corredores, alcançaram uma porta que abria directamente para a rua, nas traseiras do palácio. Dois homens, uma mulher e um escravo negro não constituíam espectáculos que atraíssem atenções. Tinham apenas de evitar as luzes nas esquinas, para que não lhes vissem as feições. Haviam percorrido grande parte da distância, quando ouviram brados e um vasto rumor de excitação, que vinham da zona central da cidade.

— Que significa isto?... — perguntou Tarzan a Obotu que tremia de medo.

— Bwana, eles descobriram o que aconteceu no palácio de Veza, que era o alcaide da cidade... O filho e a rapariga fugiram e chamaram os guardas. Decerto encontraram o corpo de Yeza.

— Talvez tivessem também encontrado o que eu atirei pela janela... — disse Tarzan.

Bertha, que entendia suficientemente o dialecto para compreender a conversa, perguntou a Tarzan se ele sabia que o homem a quem atirara pela janela era filho do rei...

— Não... — volveu Tarzan, com um encolher de ombros. — Mas isso complicará as coisas, se o encontraram...

Repentinamente, o som de um clarim dominou todos os rumores. Obotu apressou o passo.

— Depressa, Bwana... É pior do que eu julgava.

— Que queres dizer?... — perguntou Tarzan.

— Estão a chamar os guardas e os leões do rei... Receio que não seja possível escapar, Bwana. . Não entendo por que os chamam...

Obotu não entendia, porque não sabia da morte do filho do rei. Outra vez se ouviu o som do clarim.

— Estão a chamar mais leões?...

— Não, Bwana. Agora chamam os papagaios... Avançaram rapidamente e em silêncio, até que ouviram um bater de asas por cima deles. Olhando, viram um papagaio que voava em círculos sobre as suas cabeças.

— Eis os papagaios... — disse Tarzan, com um meio sorriso. — Pensas que vão atacar-nos com os papagaios?

O negro gemeu, quando a ave voou directamente para a muralha da cidade.

— Agora estamos perdidos, Bwana... O papagaio viu-nos e foi avisar os guardas.

— Que tolice é essa agora, Obotu? De viveres aqui ficaste também doido?

— Não estou doido, Bwana... Tu não os conheces... Os terríveis papagaios são como pessoas... Falam a língua do povo de Xuja... São demónios! Podem até juntar-se e atacar-nos...

— Estamos ainda longe da porta?

— Não, Bwana. Ao fim desta rua vê-la-emos, adiante... Mas a ave já lá chegou e chamou os guardas...

Quase imediatamente tiveram a confirmação do que dizia Obotu, ao ouvirem vozes de comando na sua frente... ao mesmo tempo que, pela retaguarda, se aproximavam os brados dos homens e os rugidos dos leões. Pouco adiante, de uma estreita passagem que comunicava com a rua por onde seguiam, surgiu o poderoso vulto de um leão negro.

— Bwana! Um leão da floresta... — gemeu Oto-bu, escondendo-se com o homem da selva.

Tarzan empunhou o sabre que ainda lhe pendia do cinturão.

— Não podemos recuar... — disse ele. — Leões, homens ou papagaios, é tudo o mesmo...

Avançou com firmeza na direcção da porta. O pouco vento que soprava ia de Tarzan para o leão... e, em vez de rugir, o grande felino soltou uma espécie de latido. Tarzan reconheceu-o, com um nítido sentimento de alívio.

— É Numa, o do fosso... — murmurou. — Não tenhas medo, Obotu. O leão não nos fará mal!

Numa aproximou-se do homem da selva e caminhou ao lado dele, na direcção da porta. Diante dela estavam uns vinte guerreiros armados, e vários archotes acesos iluminavam a cena. Atrás ouviam-se, mais próximos, os gritos dos que vinham da parte central da cidade. Por cima esvoaçavam os grandes papagaios. Tarzan olhou para o aviador.

— De quantas balas dispõe?

— Sete na pistola, e talvez uma dúzia mais, no bolso.

— Eu vou atacar... — disse Tarzan. — Otobu, fica ao lado da mulher branca. Oldwick, avance atrás de mim, do lado esquerdo. Creio que não é preciso explicar nada a Numa...

O grande leão negro mostrava os dentes, e os guardas pareciam encolher-se diante dele.

— Quando avançarmos, Oldwick... — disse o homem da selva — ...dispare um tiro. Talvez os assuste. Depois não volte a disparar senão para matar. Vamos!

Avançaram, e o inglês fez fogo. Um guarda gritou e caiu de bruços. Por momentos, os outros hesitaram, à beira do pânico, mas um deles, que parecia ser um oficial, bradou ordens... Tarzan correu para diante, e ao mesmo tempo o leão, tendo decerto compreendido a intenção do Tarmangani, lançou-se à carga.

Abalados pela detonação da arma desconhecida, os guardas cederam terreno ante o assalto. O oficial berrava, furioso... mas à aproximação de Numa os homens dispersaram para todos os lados. O leão perseguia-os, enquanto Tarzan e o tenente inglês continuavam a avançar. Por momentos, o mais temível adversário foi o oficial. Brandindo o sabre, como só um prático poderia fazer, enfrentou Tarzan, que desconhecia quase completamente o manejo daquela arma. Smith-Oldwick receava disparar, com receio de ferir o homem da selva...e soltou um grito ao ver que, com um golpe hábil, o oficial fazia saltar o sabre da mão de Tarzan. Com um brado terrível, o guerreiro de Xuja ergueu a sua arma para o golpe final, que acabaria com a vida de Tarzan... mas de repente, espantados, Smith-Oldwick e o próprio Tarzan viram-no ficar rígido, com a boca coberta de espuma, abrir muito os olhos, largar a arma e cair pesadamente, como estrangulado.

Tarzan curvou-se apanhou o sabre do oficial morto e olhou para o inglês.

— O tipo era um epiléptico... — disse o tenente. — Creio que muitos deles são também. O que tem certas vantagens, porque um homem normal tê-lo-ia arrumado...

Os outros guardas pareciam ter ficado completamente desmoralizados pela perda do chefe. Haviam-se agrupado à esquerda da porta e gritavam, como a apressar os reforços que vinham a caminho. Seis homens estavam ainda de costas para a porta, os sabres rebrilhando à luz dos archotes. Numa perseguia dois outros que fugiam. Tarzan voltou-se para Smith-Oldwick:

— Terá de usar a sua pistola, porque temos de passar depressa!

Enquanto o inglês abria fogo, Tarzan atirou-se para a frente, brandindo o sabre como se não tivesse constatado que nada poderia fazer contra homens habituados a usar aquele tipo de arma. Dois homens caíram sob as balas de Smith-Oldwick, a terceira bala perdeu-se. Os quatro guardas restantes saltaram sobre Tarzan e sobre o inglês, dois para cada um. Smith-Oldwick abateu um dos seus antagonistas e verificou, ao querer disparar sobre outro, que o carregador da pistola estava vazio. Tarzan agarrou um dos guardas que o atacavam, esquivando um golpe que lhe era dirigido à cabeça, e serviu-se dele como escudo. O segundo guarda desferiu um talho de alto a baixo... e quase cortou em dois o corpo do companheiro. Um instante depois, Tarzan abatia-o.

Smith-Oldwic, com a pistola descarregada, sentia-se perdido quando um grande corpo negro, de juba espessa, voou como um raio, arrancando, de uma só pancada com as garras, metade da cabeça do guarda.

Durante os curtos segundos em que se havia desenrolado o combate, Obotu arrastara Bertha Kircher para a porta cujas trancas levantara, abrindo-a... e com a queda do último guarda o pequeno grupo saiu de Xuja e perdeu-se na escuridão para além da muralha. Nesse momento, uns cinco ou seis leões surgiram, vindos do centro da cidade... e ao vê-los, Numa, o do fosso, atacou. Os outros não tentaram sequer a luta, e dispersaram-se a toda a pressa... enquanto Tarzan e os seus companheiros corriam para a floresta.

— Seguir-nos-ão fora da cidade?... — perguntou Tarzan a Obotu.

— Não de noite... — volveu o negro. — Estou aqui há cinco anos, e nunca soube que essa gente saísse da cidade durante a noite. Se vão para além da floresta durante o dia, esperam a madrugada seguinte para voltar, porque receiam a escuridão e os leões negros. Não, Bwana... não nos seguirão hoje, mas amanhã virão apanhar aqueles de entre nós que ainda estiverem vivos...

Enquanto atravessavam o terreno descoberto, Smith-Oldwick voltou a carregar a pistola. Bertha caminhava em silêncio, entre Tarzan e o aviador. De repente o homem da selva parou e, voltando-se para a cidade, erguido, a túnica amarela claramente visível à luz das estrelas, levantou a cabeça e soltou o apelo do leão que chama os seus irmãos de raça. Smith-Oldwick estremeceu, enquanto Obotu, apavorado, caía de joelhos. Mas Bertha sentiu que o seu coração batia com mais força, numa estranha exultação, e aproximou-se de Tarzan até lhe tocar com um ombro. O movimento foi involuntário... e a jovem recuou no mesmo instante, corando intensamente. Não estava arrependida do seu impulso... mas do gesto que, se Tarzan o tivesse notado, seria repulsivo para ele.

Da porta da cidade veio a resposta de um leão, e o grupo esperou até que o vulto majestoso de Numa se aproximou, na trilha. Tarzan mergulhou os dedos da mão esquerda na espessa juba negra, e recomeçaram a caminhar. Da cidade dos doidos vinha um coro de gritos horríveis, onde as vozes dos dementes se misturavam com as dos papagaios e as dos leões.

Quando entraram na floresta, a escuridão total envolveu-os, e uma vez mais, sem querer, Bertha se aproximou do homem da selva, tocando-lhe... e desta vez Tarzan sentiu o contacto.

Ignorando ele próprio o medo, podia no entanto compreender até que ponto a jovem devia estar apavorada. Num impulso de bondade, tomou a mão dela e continuaram assim a avançar, tacteando a treva. Por duas vezes sentiram a proximidade dos leões da floresta, mas os rosnidos de Numa fizeram afastar os outros. Por várias vezes tiveram de parar, porque Smith-Oldwick estava completamente exausto, e pela manhã Tarzan teve de o transportar, na subida que levava para fora do vale.

 

Os ingleses

A luz do dia envolveu-os depois de terem entrado no desfiladeiro, mas embora cansados, com excepção de Tarzan, compreendiam que não podiam parar antes de terem encontrado um sítio onde pudessem escalar a muralha para alcançar o planalto. Tarzan e Obotu confiavam em que os homens de Xuja não os seguiriam para além do desfiladeiro, mas não encontravam qualquer ponto onde a escalada fosse possível. Sozinho, Tarzan poderia trepar, mas nenhum dos outros estavam em condições de o seguir... e, mau grado a sua força, o homem da selva não podia transportá-los na escalada.

Durante a primeira metade do dia, Tarzan tinha vindo a apoiar Oldwick, ou a carregá-lo aos ombros, mas agora via que Bertha estava também à beira do esgotamento. Compreendia o que a jovem tinha sofrido, e como os acontecimentos das últimas semanas haviam diminuído a sua vitalidade. Via-a lutar bravamente para não se afundar, na exaustiva caminhada sobre a areia e as pedras, e não podia impedir-se de a admirar.

O inglês também notou a situação da jovem, porque pouco depois do meio-dia parou e sentou-se no chão, dizendo a Tarzan:

— É inútil... Eu não posso continuar... e «miss» Kircher está a enfraquecer rapidamente. Terão de seguir sem mim.

— Não... — protestou a jovem — ... não podemos fazer isso... Passámos juntos demasiadas provações... Aconteça o que acontecer, ficaremos juntos... Mas você... — acrescentou ela, voltando-se para Tarzan — ...a quem tanto devemos e que não tem qualquer obrigação para connosco, deve ir... Decerto percebe, tão claramente como eu, que não pode salvar-nos... Nem mesmo a sua enorme força poderá levar-nos através do deserto...

Tarzan olhou-a e sorriu.

— Nenhum de nós está morto... — disse ele. — As pessoas só podem estar mortas ou vivas, e enquanto estão vivas devem apenas pensar na maneira de continuarem a viver. Pelo facto de pararmos aqui, para descansar, não devemos concluir que vamos morrer aqui. Não posso levar ambos até à região dos Wamabos... a mais próxima onde poderíamos achar caça e água, mas isso não é razão para desistir. Até aqui temos aguentado. Aceitemos as coisas como elas surgem. Descansemos, visto que você e o tenente precisam descansar. Quando estiverem mais fortes, continuaremos.

— Mas os homens de Xuja não nos seguirão até aqui?

— Provavelmente sim... mas preocupar-nos-emos com isso quando eles aparecerem.

— Gostava de ter a sua filosofia... — murmurou a jovem. — Mas receio que esteja fora do meu alcance.

— Se tivesse sido criada por feras, entre feras, compreenderia melhor o fatalismo da selva... — volveu Tarzan.

Dirigiram-se para o lado da sombra de uma rocha saliente, e estenderam-se sobre a areia quente, a descansar. Numa pôs-se a caminhar, agitado, de um lado para o outro. Finalmente, depois de se estender durante uns minutos junto de Tarzan, levantou-se e partiu, desaparecendo numa curva do caminho.

Tinham descansado durante cerca de uma hora quando Tarzan se levantou e, fazendo um gesto a pedir silêncio, pôs-se à escuta. Esteve assim um minuto, imóvel e atento. Por fim descontraíu-se e voltou-se para os outros.

— O que há?... — perguntou a jovem.

— Eles vêm aí... Não estão longe. As sandálias e as patas dos leões não fazem muito ruído na areia.

- Que fazemos?... — perguntou Smith-Oldwick.

— Vamos caminhar? Creio que poderei aguentar algum tempo, agora...

— Eu sinto-me com forças... — disse Bertha. — Sim, podemos caminhar...

Tarzan sabia que nenhum deles dizia a verdade. Ninguém se recompõe tão depressa de um esgotamento total. Mas não havia outra solução... e talvez adiante encontrassem maneira de escalar a penedia.

— Ajuda o tenente, Otobu... — disse ele. — Eu levarei «miss» Kircher.

E, embora a jovem protestasse, Tarzan tomou-a nos braços e pôs-se a caminho, seguido pelo negro e pelo inglês. Não haviam avançado muito quando ouviram os rosnidos dos leões, excitados pelo faro que lhes indicava a proximidade da presa.

— Gostaria de que o seu Numa voltasse... — murmurou Bertha.

— Sim, mas teremos de fazer o que pudermos, sem ele. Precisamos encontrar um ponto onde nos seja possível defender-nos contra um ataque por todos os lados. Assim talvez possamos mantê-los a distância. Smith-Oldwick atira bem... e os leões não me preocupam muito. Se abatermos os homens, os leões não oferecerão perigo.

— Pensa que há ainda esperança?

— Ainda estamos vivos... — volveu Tarzan, simplesmente. — Oh, eu lembrava-me daquilo! Vamos!

Apontava para um rochedo que devia ter caído do alto da penedia e estava enterrado na areia, a alguns pés da base. Era um grande pedaço de rocha, com cerca de três metros de altura, que deixara um estreito intervalo em baixo, entre ele e a muralha. Encaminharam-se para lá e encontraram uma passagem com uns três metros de comprido e meio metro de largo. A passagem era aberta de ambos os lados, mas, ao menos, o rochedo impediria um ataque frontal.

Mal haviam acabado de se esconder quando Tarzan ouviu ruído em cima. Olhou e viu um pequeno macaco empoleirado numa saliência rochosa. O feio animal olhou-os também e desapareceu na direcção do sul, de onde vinham os perseguidores. Otobu tinha visto também o macaco. Exclamou:

— Vai avisar os papagaios, e os papagaios avisarão os doidos...

— Não importa... — respondeu Tarzan. — Não podíamos pensar em que os leões não nos descobrissem.

Postou Smith-Oldwick na abertura do lado norte, juntamente com Obotu, enquanto ele defendia o lado oposto. Fez com que Bertha se estendesse no chão.

— Aí estará a salvo, mesmo que eles atirem as lanças...

Os minutos que se arrastaram, então, pareceram uma eternidade a Bertha Kircher... e foi quase com alívio que ouviu a aproximação dos perseguidores, os rugidos dos leões e os brados dos dementes. Durante alguns momentos, os homens de Xuja pareceram observar o refúgio dos fugitivos, que as feras haviam descoberto. A jovem ouvia-os avançar de ambos os lados, e de onde estava viu um leão atacar o homem da selva, diante dela. Viu o braço formidável de Tarzan erguer-se, empunhando o sabre, e desferir um tremendo golpe de cima para baixo, abrindo a cabeça do leão, tão limpamente como um magarefe poderia abrir a carcaça de um carneiro.

Os doidos atacavam agora Smith-Oldwick. A pistola do inglês detonou, houve um grito seguido por uma queda. Evidentemente desapontados com o resultado do primeiro assalto, os doidos recuaram — mas por pouco tempo. Desta vez um homem atacou Tarzan, enquanto um leão atacava o tenente. Tarzan avisara o inglês da inutilidade de disparar contra as feras, e foi Obotu quem, com a lança trazida de Xuja, enfrentou o felino. Mas só o derrubaram depois de o negro e Smith-Oldwick serem feridos, e foi preciso que o aviador usasse o sabre que a jovem trouxera da cidade dos doidos, e o cravasse no coração do animal. O homem que atacou Tarzan cometeu o erro de se aproximar demasiado... e um instante depois estava morto em cima do corpo do leão, com o pescoço quebrado.

Novamente os assaltantes recuaram, mas também por pouco tempo. O terceiro assalto foi feito em força, seis ou sete homens e outros tantos leões. Os dementes projectaram as lanças, enquanto os felinos vinham atrás, esperando o sinal de atacar.

— É o fim?... — perguntou a jovem.

— Não... — respondeu Tarzan — ...porque ainda estamos vivos!

Mal acabara de falar quando os guerreiros de Xuja se lançaram ao assalto, de ambos os lados, atirando lanças. Para defender a jovem, Tarzan foi atingido por uma das lanças, num ombro, e a arma havia sido atirada com tal força que o homem da selva caiu para trás. Smith-Oldwick disparou duas vezes e caiu também, com uma lança cravada numa coxa. Apenas Obotu lutava ainda, do seu lado, porque o inglês, enfraquecido ainda mais pelas novas feridas, perdeu os sentidos e tombou.

Bertha agarrou no mesmo instante a pistola que o tenente deixara cair... Quando Tarzan se erguia, um dos dementes saltou sobre ele, brandiu o sabre e ia desferir um golpe mortal... quando Bertha lhe meteu uma bala na cabeça, abatendo-o.

Nesse momento, atacados e atacantes ouviram o som de uma descarga de várias espingardas, que vinha da garganta. Como se fosse a voz de um anjo, as ordens berradas por um sargento inglês chegaram aos ouvidos de Tarzan, dominando os gritos dos doidos e o rugir dos leões, na altura em que Bertha Kircher e o homem da selva consideravam perdida toda a esperança.

Empurrando para o lado o corpo do demente que a jovem matara, Tarzan levantou-se, ainda com a curta lança cravada no ombro. Bertha levantou-se também, enquanto Tarzan arrancava a arma, e seguiu-o quando ele saiu do precário abrigo. A escaramuça que os salvara durou pouco.

Muitos dos leões escaparam, mas os homens de Xuja morreram todos. Quando Tarzan e a jovem apareceram, um soldado inglês apontou a arma para o homem da selva. Vendo o gesto, e compreendendo o erro natural do soldado, provocado pela túnica amarela que Tarzan envergava ainda, a jovem saltou, interpondo-se entre ele e o soldado, e gritando:

— Não dispare! Somos ambos amigos!

— Então levante os braços... — ordenou o soldado, a Tarzan. — Não corro riscos com um tipo de camisa amarela!

Foi então que apareceu o sargento inglês que comandava a guarda avançada da companhia, e quando Tarzan e a jovem, falando em inglês, lhe explicaram os seus disfarces, acreditou-os porque, evidentemente, não pertenciam à mesma raça dos homens que jaziam mortos em volta. Dez minutos depois apareceu a coluna expedicionária. As feridas de Tarzan e de Smith-Oldwick foram tratadas, e meia hora mais tarde iam a caminho da base da onde tinham vindo os salvadores.

Nessa noite ficou combinado que, no dia seguinte, Smith-Oldwick e Bertha Kircher seriam transportados para o comando inglês, por avião. Os dois aparelhos que acompanhavam a força expedicionária foram requisitados para esse fim. Tarzan e Otobu recusaram a oferta do capitão inglês, para acompanharem as tropas no seu regresso por terra. Explicaram que seguiriam para oeste e fariam a jornada em conjunto até à região dos Wamabos.

— Não vai connosco, então?... — perguntou Bertha a Tarzan.

— Não... — respondeu ele. — A minha casa é no oeste, irei nessa direcção.

Ela olhou-o, quase suplicante.

— Vai voltar para essa terrível selva? Nunca mais voltarei a vê-lo?

Tarzan fitou-a por instantes, em silêncio.

— Nunca mais... — respondeu, por fim. E, sem outra palavra, afastou-se.

De manhã, o coronel Capell veio da base, num dos aviões que transportariam Smith-Oldwick e a jovem. Tarzan estava a alguma distância quando o aparelho poisou e o coronel saltou para o chão. Viu Capell cumprimentar o capitão da força expedicionária e depois voltar-se para a rapariga que estava um pouco atrás. Tarzan conjecturou sobre o que sentiria a espia alemã, em tal situação, especialmente sabendo que ele conhecia a sua acção de espia. Viu o coronel caminhar para ela, de mãos estendidas, sorridente, e embora não pudesse ouvir o que diziam, notou a cordialidade do oficial.

Tarzan voltou-se, e quem estivesse perto dele poderia ouvi-lo rosnar. O seu país estava em guerra com a Alemanha, e não só o seu dever para com a Inglaterra, mas também o seu próprio ódio pelos alemães, exigiam que denunciasse a mulher. E no entanto hesitava... e porque hesitava rosnava, não contra a espia alemã, mas contra a sua própria fraqueza.

Não voltou a vê-la até que ela entrou no avião

que logo levantou voo para leste. Despediu-se de Smith-Oldwick, que lhe repetiu uma vez mais os seus agradecimentos, e viu-o partir por sua vez, no segundo aparelho.

Os soldados estavam prontos para a marcha de regresso, esperando ordens. Capell, porém, desejoso de observar pessoalmente o terreno entre o acampamento e a base, queria acompanhar as tropas. Quando tudo ficou pronto, voltou-se para Tarzan.

— Gostaria que viesse connosco, Greystoke... — disse ele — ...e se o meu desejo pode não o convencer, talvez atenda os desejos de Smith-Oldwick e da jovem que partiu há pouco. Pediram-me para insistir consigo, a fim de que regressasse à civilização.

— Não... — disse Tarzan. — Seguirei o meu caminho. «Miss» Kircher e o tenente Smith-Oldwick são movidos apenas por um sentimento de gratidão que os fez considerar o meu bem-estar.

— «Miss» Kircher?... — repetiu o coronel, rindo. — Conhece-a como «miss» Kircher, a espia alemã.

Tarzan olhou-o, surpreendido. Parecia-lhe inadmissível que um oficial inglês se referisse assim a uma agente inimiga, que tivera em seu poder e deixara escapar.

— Sim... — respondeu. — Eu sabia que ela era Bertha Kircher, a espia alemã.

— Apenas isso?

— Sim, apenas isso...

— Ela é a «Honorable» Patricia Canby... — volveu Capell — ...um dos mais valiosos membros do «British Intelligence Service», adida às forças do leste africano. O pai dela e eu servimos na índia, juntos, e conheço-a desde que ela nasceu... A propósito, tenho comigo os documentos que ela tirou a um oficial alemão e que manteve consigo apesar de tudo o que passou... Veja! Não tive ainda tempo para os examinar, mas há um mapa militar, anotado, um maço de relatórios e o diário de um tal capitão Fritz Schneider...

— O diário de Fritz Schneider?... — repetiu Tar-zan, em voz emocionante. — Posso vê-lo, Capell? Foi esse homem quem assassinou «Lady» Greystoke!

O inglês entregou-lhe o pequeno livro... e Tarzan folheou-o rapidamente, em busca de uma certa data. Quando a encontrou, leu rapidamente e soltou uma exclamação abafada. Capell olhou-o, interrogativamente.

— Deus!... — murmurou o homem da selva. — Poderá isto ser verdade? Escute... — e Tarzan leu em voz alta:

«Fiz uma boa partida ao porco inglês. Quando chegar, encontrará o corpo da mulher, carbonizado, no toucador... mas apenas «julgará» que é o corpo da mulher. Mandei Von Goss queimar o corpo de uma mulher negra, depois de lhe ter posto os anéis de «Lady» Greystoke. Esta valerá mais viva do que morta, para o alto comando alemão.»

— Está viva!... — exclamou Tarzan.

— Graças a Deus!... — disse Capell. — E agora?

- Irei com vocês, evidentemente... Creio que fiz

um mal terrível a «miss» Canby, mas não podia adivinhar... Cheguei a dizer a Smith-Oldwick, que a amava, que ela era uma espia alemã. Tenho de encontrar minha mulher e reparar o meu erro...

— Não se preocupe com o erro... — volveu Capell. Ela deve ter convencido o tenente de que não é uma espia alemã... porque Oldwick, antes de partir, confiou-me que Patrícia prometera casar com ele...

 

                                                                                            Edgar Rice Burroughs  

 

                      

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