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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TENSÃO NO GELO / Dean R. Koontz
TENSÃO NO GELO / Dean R. Koontz

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

 

 

                                             ANTES...

 

Do New York Times

GELO POLAR TEM A ÁGUA MAIS PURA DO MUNDO

MOSCOU, 10 de fevereiro - Segundo cientistas russos, a água que forma a capa de gelo do Ártico tem menor contagem de bactérias do que qualquer outra que utilizamos para beber ou para irrigar plantações. É uma descoberta que poderá fazer desse reservatório congelado um valioso recurso no futuro. Já que canalizar a água da calota de gelo polar poderá ser mais barato do que qualquer processo atual ou previsível de dessalinização, sobretudo porque a água não precisaria ser purificada, alguns pesquisadores russos especulam que milhões de hectares de terras cultiváveis poderiam, na próxima década, ser irrigados com icebergs derretidos.

 

CIENTISTAS ACREDITAM QUE ICEBERGS PODEM FORNECER ÁGUA POTÁVEL

BOSTON, 5 de setembro - Falando na convenção anual da Sociedade Americana de Engenheiros Ambientalistas, o Dr. Harold Carpenter disse hoje que a escassez crônica de água na Califórnia, Europa e outras regiões pode ser minorada pelo degelo controlado de icebergs, que seriam rebocados do Círculo Polar Ártico. A esposa do Dr. Carpenter e sua colega de pesquisas, Dra. Rita Carpenter, disse que os países interessados deviam considerar a possibilidade de reunir capitais para a pesquisa e desenvolvimento do projeto - investimento, segundo ela, que "teria um retorno, em dez anos, cem vezes maior".

De acordo com os Carpenters, co-vencedores no ano passado do Prêmio Fundação Nacional de Ciência, o conceito básico é simples. Um grande iceberg seria "solto" da extremidade da calota de gelo mediante uma explosão e acabaria arrastado para o sul pelas correntes marítimas. Depois, gigantescos cabos de aço seriam fixados no bloco. Um rebocador puxaria então a montanha de gelo até instalações de conversão, situadas no litoral e próximas de lavouras carentes de água. "Como o Atlântico Norte e o Pacífico Norte são oceanos gelados, talvez menos de 15 por cento do gelo derreteria antes que ele fosse convertido em água e bombeado do litoral para as fazendas castigadas pela seca", disse o Dr. Harold Carpenter.

O casal de cientistas advertiu que ninguém pode garantir que a idéia dará certo. "Há ainda um grande número de problemas a superar", disse a Dra. Rita Carpenter. "Pesquisas intensas na calota polar (...)".

 

SECA AFETA COLHEITAS NA CALIFÓRNIA

SACRAMENTO, Califórnia, 20 de setembro - Autoridades do Ministério da Agricultura calculam que a escassez de água na Califórnia poderá causar um prejuízo de 50 milhões de dólares na segunda etapa de colheitas diversas, como laranjas, limões, melões, alface (...)

 

FALTAM SUPRIMENTOS PARA MILHARES DE FAMINTOS NAS SECAS

NAÇÕES UNIDAS, 18 de outubro - O diretor do Escritório de Socorro às Calamidades da ONU anunciou que as péssimas colheitas nos Estados Unidos, Canadá e Europa impossibilitam que africanos e asiáticos castigados pelas secas comprem cereais e outras mercadorias dos países ocidentais, normalmente ricos em alimentos. Mais de 200 mil pessoas já morreram em (...)

 

FUNDO ESPECIAL DA ONU PERMITIRÁ IDA DE CIENTISTAS AO PÓLO NORTE

NAÇÕES UNIDAS, 6 de janeiro - Onze países-membros das Nações Unidas contribuíram para um fundo único que financiará uma série de experiências científicas na calota polar ártica. O principal objetivo será o estudo da viabilidade de se rebocar imensos icebergs para o sul, onde eles poderiam ser derretidos e canalizados para a irrigação das lavouras.

"Pode parecer ficção científica", disse uma autoridade britânica, "mas, desde a década de 60, a maioria dos especialistas em meio ambiente tem considerado seriamente a possibilidade." Se o esquema funcionar, os principais países produtores de alimentos nunca mais sofrerão com más colheitas. Embora os icebergs não possam ser rebocados até os mares quentes do sul da África e da Ásia, o mundo todo lucraria com a garantia de boas colheitas nos poucos países que o projeto beneficiaria diretamente (...)

 

EQUIPE DE CIENTISTAS DA ONU ESTABELECE ESTAÇÃO DE PESQUISA NA CALOTA POLAR

THULE, Groenlândia, 28 de setembro - Esta manhã, cientistas sob a direção dos Drs. Harold e Rite Carpenter, os dois ganhadores este ano do Prêmio Rothschild de ciência ambiental desembarcaram na calota polar ártica, entre a Groenlândia e Spitsbergen, Noruega. Eles iniciaram a construção de uma estação de pesquisa a duas milhas da extremidade da calote polar onde realizarão estudos, por pelo menos nove meses financiados pelas Nações Unidas (...)

 

EXPEDIÇÃO ÁRTICA EXPLODIRÁ AMANHÃ PEDAÇO DA CALOTA POLAR

THULE, Groenlândia, 14 de janeiro - À meia-noite de amanhã, cientistas da Estação Edgeway, das Nações Unidas, detonarão explosivos em série, com o objetivo de separar um iceberg de meia milha quadrada da extremidade da calota polar, a 350 milhas da costa nordeste da Groenlândia. Dois rebocadores da ONU, equipados com instrumentos eletrônicos de rastreamento, estão à espera 230 milhas ao sul, de onde monitorarão o deslocamento do iceberg, que recebeu equipamentos de emissão de sinais.

Numa experiência para determinar se as correntes do Atlântico mudam substancialmente nas regiões do norte durante o rigoroso inverno ártico (...)

 

                         ARMADILHA

MEIO-DIA EXPLOSÃO DENTRO DE DOZE HORAS

Com um estalido de cristal se partindo, a broca penetrou fundo no gelo ártico. Partículas branco-acinzentadas de neve respingaram do buraco, escorreram pela neve congelada e recongelaram em segundos. A broca reluzente não podia mais ser vista e a maior parte do comprido eixo de aço também tinha desaparecido no tubo de quatro polegadas de diâmetro.

Observando a perfuração, Harry Carpenter tinha a curiosa premonição de um desastre iminente. Um rápido lampejo de alarme. Como a sombra de um pássaro flutuando ao longo de uma paisagem luminosa. Mesmo dentro de sua roupa fortemente isolante, ele sentiu um arrepio.

Como cientista, Harry respeitava as ferramentas da lógica, do método e da razão, mas tinha aprendido a nunca desprezar um pressentimento - sobretudo no gelo, onde estranhas coisas podem acontecer. Era incapaz de identificar a fonte de seu súbito desconforto, embora intuições sombrias fossem possíveis de ocorrer num trabalho que envolvia explosivos de alta potência. A possibilidade de uma das cargas detonar prematuramente, matando todos eles, era quase nenhuma. No entanto...

Peter Johnson, o engenheiro eletrônico que também funcionava na equipe como perito em demolições, desligou a broca e afastou-se dela. Em sua roupa branca hibernai de Gore-Tex/Thermolite, casaco e gorro forrados de pêlo, Peter parecia um urso polar - exceto pelo rosto moreno-escuro.

Claude Jobert desligou o gerador portátil que fornecia corrente à broca. O silêncio que se estabeleceu tinha uma estranha qualidade de expectativa tão intensa que Harry olhou para trás e depois para o céu, meio convencido de que alguma coisa corria para ele ou ia cair sobre ele.

Se a Morte fosse beijar alguém hoje, era mais provável que ela subisse de debaixo de seus pés e não que tombasse do alto. A tarde sombria começava e os três homens se prepararam para baixar a última carga de explosivos de 50 quilos no interior do gelo. Era o sexagésimo pacote de demolição com que lidavam desde a manhã e todos eles estavam inquietamente conscientes do fato de pisarem sobre explosivos plásticos de alta potência, capazes de destruí-los num relâmpago apocalíptico.

Não se necessitava de imaginação fértil para pintar o quadro da morte deles naquele clima hostil: a calota de gelo era um cemitério perfeito, profundamente desprovido de vida, e isso encorajava pensamentos sobre mortalidade. Fantasmagóricas planícies branco-azuladas levavam a todas as direções, sombrias e tristes durante a longa estação de quase permanente escuridão, breves crepúsculos e céus perpetuamente encobertos. No momento, a visibilidade era razoável porque o dia chegara ao ponto em que um vago crescente de luz solar, filtrado pelas nuvens, pintava o horizonte. Entretanto, o sol tinha pouca coisa para iluminar na paisagem áspera. Os únicos pontos elevados eram as irregulares encostas de pressão e centenas de blocos de gelo - alguns apenas do tamanho de um homem, outros maiores do que casas - que brotavam do chão e se espalhavam como túmulos gigantescos.

Pete Johnson juntou-se a Harry e Claude, nos dois trenós motorizados que foram reconstruídos especialmente para os rigores do pólo, e anunciou:

- O eixo está a 26 metros de profundidade. É só prender uma extensão para a ponteira e o trabalho está feito.

- Graças a Deus! - exclamou Claude Jobert, estremecendo, como se a roupa térmica não lhe proporcionasse qualquer proteção. Apesar da camada transparente de gelatina de petróleo que protegia do ar frio as partes expostas do rosto, ele estava pálido e abatido. - Estaremos de volta à base esta noite. Vejam só! Não senti um minuto de calor desde que partimos.

Em geral, Claude não se queixava. Era um homenzinho jovial e enérgico. À primeira vista, parecia frágil. Impressão falsa. Com 1,70m, 60 quilos, era magro, resistente, duro. Tinha agora uma mecha de cabelo branco escondida sob o capuz. O rosto era castigado e curtido por toda uma vida em climas extremados, e ele possuía brilhantes olhos azuis, claros como os de uma criança. Harry jamais vira ressentimento ou ódio naqueles olhos. Até ontem, também nunca vira autopiedade neles, nem mesmo três anos antes, quando Claude perdera a mulher, Colette, num repentino e insensato ato de violência; ele fora consumido pelo desgosto mas jamais chafurdara na autopiedade.

Desde que haviam deixado o conforto da Estação Edgeway, no entanto, Claude não se mostrara nem jovial nem enérgico, e se queixara várias vezes do frio. Aos 59 anos, era o mais velho integrante da expedição, com 18 anos a mais do que Harry Carpenter, o que constituía o limite máximo para qualquer um trabalhando naquelas latitudes brutais.

Embora fosse um excelente geólogo ártico especializado na dinâmica da formação e movimento do gelo, a atual expedição seria sua última viagem a qualquer um dos pólos. Daqui para a frente, suas pesquisas seriam realizadas em laboratório e em computadores, bem longe das duras condições da calota polar.

Harry ficou pensando se Jobert não estaria aborrecido menos pelo frio do que pela consciência de que o trabalho que adorava tornara-se duro demais para ele. Um dia, Harry teria de se defrontar com a mesma verdade, e não estava certo de que seria capaz de ir embora com elegância. Os grandes espaços virgens do Ártico e da Antártica o encantavam: o poder das temperaturas extremas; o mistério que encobria as paisagens de branca geografia e empoçava sombras vermelhas em todas as crateras aparentemente sem fundo; o espetáculo das noites brancas, quando a aurora boreal salpicava o céu com riscos coloridos de luz bruxuleante; os vastos campos de estrelas, quando as cortinas da aurora se afastavam para revelá-las. Certos dias, ele era ainda o garoto que crescera numa tranqüila fazenda de Indiana, sem irmãos, irmãs ou amiguinhos: o garoto solitário que se sentia sufocado pela vida em que nascera, que sonhava com viagens para lugares distantes e em ver todas as exóticas maravilhas do mundo, que jamais quisera estar atado a apenas um único pedaço de terra e ansiava por aventuras. Agora ele era um homem adulto e sabia que aventura significava trabalho duro. Ainda assim, de tempos em tempos o menino dentro dele de repente se maravilhava, parava o que estivesse fazendo, girava em círculo para contemplar o deslumbrante mundo branco em redor e pensava: Veja só, bichinho, você está mesmo aqui, saiu de Indiana para os confins da Terra, o teto do mundo!

- Está nevando - disse Pete Johnson.

Enquanto Pete ainda estava falando, Harry viu os preguiçosos flocos espiralados descendo num balé silencioso. O dia estava sem vento, embora a calma pudesse não durar muito tempo.

- Não devíamos ter essa tempestade antes da noite - disse Claude Jobert, franzindo o cenho.

A viagem desde a Estação Edgeway - que distava do acampamento provisório seis quilômetros por ar a nordeste e oito de trenó motorizado, através de ribanceiras e abismos profundos -não tinha sido difícil. Entretanto, uma tempestade poderia tornar impossível a viagem de volta. A visibilidade se deterioraria rapidamente e eles poderiam se perder por causa das distorções da bússola. E se os trenós ficassem sem combustível, eles congelariam até a morte, já que nem mesmo suas roupas térmicas constituiriam proteção suficiente contra a exposição prolongada ao frio ainda mais mortífero que se seguiria a uma tempestade de neve.

Grandes nevascas não eram tão comuns na calota da Groenlândia quanto seria de se esperar, em parte por causa do frio extremo a que a temperatura podia chegar. A certa altura, em praticamente todas as tempestades, os flocos de neve metamorfoseavam-se em partículas de gelo; mas mesmo então a visibilidade era má.

- Talvez seja uma tormenta localizada - disse Harry, estudando o céu.

- Sim, foi exatamente isso que o serviço meteorológico On-line disse na semana passada daquela tempestade - lembrou Claude. -Que enfrentaríamos apenas tempestades locais na periferia do evento principal. E então tivemos neve e gelo em quantidade suficiente para obrigar Papai Noel a ficar em casa na véspera do Natal.

- Então é melhor acabarmos esse trabalho o mais rápido possível.

- Para ontem seria bom.

Como para confirmar a necessidade de pressa, um vento começou a soprar do oeste, tão ondeado e sem odor quanto pode ser um vento que varre centenas de milhas de puro gelo. Os flocos de neve encolheram e começaram a cair em ângulo, não mais espiralando lindamente como flocos num bibelô de cristal.

Pete soltou a broca da ponta da haste enterrada e tirou-a do seu suporte, manejando-a como se ela pesasse um décimo dos seus reais 42 quilos.

Uma década antes, ele tinha sido um astro de futebol americano na Pensilvânia, e recusara diversas ofertas de times da Liga Nacional. Ele se negara a desempenhar o papel que a sociedade reservava para todo herói futebolístico negro de 1,93m de altura e 100 quilos de peso. Em vez disso, conquistara bolsas de estudo, dois diplomas e um cargo muito bem pago no setor de projetos de uma indústria de computadores.

Agora ele era vital à expedição de Harry. Trabalhava com o equipamento eletrônico de coleta de dados em Edgeway e, tendo desenhado os dispositivos de explosão, era o único que poderia manejá-los com absoluta confiança se algo desse errado. Além do mais, sua enorme força era um bem valioso naquele inóspito teto do mundo.

Enquanto Pete tirava a broca do buraco, Harry e Claude pegaram uma extensão de um metro, num dos trailers de carga rebocados pelos trenós motorizados. Eles a introduziram no eixo dentado ainda enterrado no gelo.

Claude ligou novamente o gerador.

Pete ajustou a broca, girou o mandril de modo a ajustar os dentes da peça bem firmes em torno do eixo e terminou por enfiar o cabo de 27 metros, em cuja extremidade plantariam uma carga tubular de explosivos.

Enquanto a máquina rangia, Harry olhou para os céus. Em poucos minutos, o tempo se deteriorara de forma alarmante. A maior parte da luz cinzenta morrera dentro da escuridão opressiva. Estava caindo tanta neve que o céu não mais se apresentava matizado de cinza e preto; nada da verdadeira cobertura de nuvens podia ser vislumbrado através das torrentes de cristal. Acima deles havia apenas uma profunda e turbilhonante brancura. Já encolhendo e tornando-se semelhantes a grãos, os flocos alfinetavam de leve seu rosto engordurado. O vento aumentara para talvez 30 quilômetros por hora e sua canção era um sussurro lamentoso.

Harry continuou com a sensação de desastre iminente. O sentimento era sem forma, vago, mas impossível de expulsar.

Quando era garoto, na fazenda, nunca compreendera que aventura significava trabalho duro, embora tivesse percebido que era coisa perigosa. Para um menino, o perigo fazia parte da atração. No processo de crescimento, entretanto, ao perder os pais por doença e aprender a violência dos caminhos do mundo, tornara-se incapaz de ver qualquer coisa de romântico em relação à morte. Não obstante, se permitiu uma certa perversa nostalgia do inocente que fora capaz de achar uma agradável emoção no ato de assumir riscos mortais.

Claude Jobert abaixou-se e gritou, por sobre o barulho do vento e do rangido da broca:

- Não se preocupe, Harry! Estaremos logo logo de volta a Edgeway. Um bom conhaque, um jogo de xadrez, o CD de Benny Goodman tocando, tudo a que a gente tem direito.

Harry Carpenter fez que sim com a cabeça. E continuou a estudar o céu.

 

12:20

No barracão de telecomunicações da Estação Edgeway, Gunvald Larsson estava em pé junto à única pequena janela, mascando nervosamente a haste do seu cachimbo apagado e espiando o rápido crescimento da tormenta. Marés incessantes de neve turbilhonavam pela planície, como ondas fantasmas de um antigo mar evaporado há milênios. Meia hora antes, ele tinha raspado o gelo do exterior da janela de vidro triplo, mas já novos cristais em formato de plumas estavam crescendo no perímetro da vidraça. Dentro de uma hora, outra catarata estaria bloqueando a visão.

Do ponto de vista ligeiramente elevado de Gunvald, a Estação Edgeway parecia tão isolada - e contrastava tão ousadamente com o ambiente no qual se inseria - que poderia ter se constituído no único posto da humanidade num planeta estranho. Ela era o único borrão de cor nos campos de branco, prata e alabastro.

As seis cabanas Nissen na cor amarelo-canário foram transportadas por via aérea para a calota de gelo em seções pré-fabricadas, com enorme custo e esforço. Cada uma das estruturas, de um único andar, media 6,10 por 4,50m. As paredes - camadas de folhas de metal e isolamento térmico de espuma - eram presas por rebites a braçadeiras, e o assoalho de cada galpão fora encaixado no gelo.

A uns 100 metros ao norte do campo erguia-se uma estrutura menor, que abrigava os tanques de combustível que alimentavam os geradores. Uma vez que os tanques continham óleo diesel, que podia queimar mas não explodir, o risco de incêndio era mínimo. Mesmo assim, a idéia de se ver preso num incêndio estimulado por um vendaval ártico era tão terrível - especialmente quando não havia água, apenas gelo inútil para combatê-lo - que precauções haviam sido tomadas até em excesso, para o sossego de todos.

A paz de espírito de Gunvald Larsson fora quebrada horas atrás, mas ele não estava preocupado com fogo. Terremotos eram o que o inquietava agora. Especificamente, terremotos suboceânicos.

Filho de pai sueco e mãe dinamarquesa, ele participara das equipes suecas de esqui em duas Olimpíadas de Inverno, ganhara uma medalha de prata e era orgulhoso de sua herança: cultivava a imagem do escandinavo imperturbável e geralmente possuía uma calma interior que combinava com seu exterior frio. Sua mulher dizia que, como os calibradores de precisão, seus rápidos olhos azuis mediam continuamente o mundo. Quando não estava trabalhando lá fora, ele em geral usava calças folgadas e suéteres coloridas. Nesse momento, vestia-se como se se refestelasse num hotel de montanha depois de um dia agradável nas encostas, em vez de estar sentado numa cabana isolada no inverno da calota polar, esperando a calamidade atacar.

Durante as últimas horas, no entanto, perdera em grande medida as suas características. Mascando o cabo do cachimbo, deu as costas à vidraça congelada e franziu os olhos diante dos computadores e do equipamento de coleta de dados, alinhados ao longo de três paredes do galpão de telecomunicações.

No começo da tarde, quando Harry e os outros tinham tomado o rumo sul em direção à borda do gelo, Gunvald ficara para trás para monitorar chamadas de rádio e vigiar a estação. Essa não era a primeira vez em que todos, exceto um, deixavam Edgeway para realizar um experimento de campo; mas, nas ocasiões anteriores, sempre tocara a um outro permanecer. Após semanas vivendo numa comunidade minúscula, com oito vizinhos muito próximos, ele esperara ansioso por seu estágio de solidão.

Por volta das 4 horas do dia anterior, no entanto, quando os sismógrafos de Edgeway registraram o primeiro tremor, Gunvald começara a desejar que os outros integrantes da equipe não tivessem se aventurado tão perto da fronteira do gelo, onde a calota encontrava o mar. Às 4:14, o abalo fora confirmado pelo noticiário radiofônico de Reykjavik, Islândia, e de Hammerfest, Noruega. Tinha sido severo sobretudo na bacia marítima 90 quilômetros a nordeste de Raufarhöfn, Islândia. O choque ocorria na mesma cadeia de falhas geológicas interligadas que desencadeara as destrutivas erupções vulcânicas na Islândia há mais de três décadas. Desta vez, não houvera danos em qualquer ponto das terras limítrofes com o Mar da Groenlândia, embora o tremor registrasse sólidos 6,5 pontos na escala Richter.

A preocupação de Gunvald nascia da suspeita de que o terremoto não tinha sido um incidente isolado e sequer o evento principal. Tinha boas razões para acreditar que se tratava de um pré-choque, precursor de um evento de maior magnitude.

Desde o início, a equipe pretendera estudar, dentre outras coisas, os tremores no Mar da Groenlândia, para aprender mais sobre as cadeias de falhas locais suboceânicas. Estavam trabalhando num pedaço da Terra geologicamente ativo, em que jamais se poderia confiar, até que fosse mais bem conhecido. Se dezenas de navios fossem rebocar colossais icebergs naquelas águas, eles precisariam saber com que freqüência o mar era perturbado por grandes tremores submarinos e por grandes ondas resultantes. Um tsunami - onda titânica que se irradia do epicentro de um forte terremoto - podia colocar em perigo mesmo um navio grande, ainda que menos no mar aberto do que no caso em que a embarcação estivesse perto da costa.

Ele devia ficar satisfeito com a oportunidade de observar tão de perto as características e modelos dos grandes tremores da cadeia de falhas do Mar da Groenlândia. Mas não estava nem um pouquinho contente.

Utilizando uma rede de microondas para rastrear satélites de comunicação, Gunvald podia entrar em linha e acessar qualquer computador ligado na rede mundial Infonet. Embora geograficamente isolado, tinha à sua disposição virtualmente todos os dados de pesquisa e software que pudessem estar disponíveis em qualquer cidade.

Ontem, ele acionara esses impressionantes recursos para analisar os dados sismográficos do recente tremor. O que descobriu o deixou inquieto.

A enorme energia do terremoto tinha sido liberada menos por um movimento lateral da bacia oceânica do que por uma violenta irrupção para o alto. Este era precisamente o tipo de movimento do chão que provocava mais tensão na cadeia de falhas geológicas, no sentido leste de onde se constatara o primeiro evento.

A Estação Edgeway propriamente não estava em perigo iminente. Se ocorresse um grande deslocamento na bacia marinha próxima, um tsunami poderia se desenvolver sob a calota de gelo e precipitar algumas mudanças: primeiramente, formar-se-iam novas ribanceiras e encostas de pressão. Se o tremor se relacionasse com a atividade vulcânica submarina, na qual milhões de toneladas cúbicas de lava derretida esguichassem da superfície oceânica, talvez até mesmo crateras temporárias de água morna fossem abertas na calota de gelo. Mas a maior parte do terreno polar não seria afetada, e era pequena a probabilidade de que a área da base fosse danificada ou destruída.

Os outros membros da expedição, no entanto, não podiam ficar tão certos de sua segurança quanto Gunvald estava da dele. Além de criar abismos e encostas de pressão, um tsunami forte provavelmente arrancaria porções de gelo da borda da calota. Harry e os outros poderiam ver a capa de gelo desmoronar sob seus pés, enquanto o mar avançava, escuro, frio e mortal.

Às 9 horas da noite anterior, cinco horas após o primeiro tremor, um segundo - 5,8 pontos na escala Richter - atingira a cadeia de falhas. A bacia marítima tinha se revolvido violentamente 240 quilômetros a nordeste de Raufarhöfn. O epicentro se localizara 55 quilômetros mais perto de Edgeway do que o do primeiro terremoto.

Gunvald não encontrou conforto no fato de que o segundo tremor tinha sido menos potente do que o anterior. A diminuição de força não era absolutamente prova de que o segundo fosse apenas uma repercussão do precedente. Ambos podiam ter se constituído em pré-choques do grande evento ainda por vir.

Durante a Guerra Fria, os Estados Unidos tinham instalado uma série de monitores sônicos extremamente sensíveis no fundo do Mar da Groenlândia, assim como em outras áreas estratégicas dos oceanos do mundo, para detectar a passagem quase silenciosa de submarinos nucleares inimigos. Após o colapso da União Soviética, alguns desses sofisticados instrumentos tinham recebido o duplo encargo de monitorar submarinos e fornecer dados com finalidades científicas. Desde o segundo tremor, a maior parte das estações de escuta da profundidade oceânica do Mar da Groenlândia ficou transmitindo um rangido de baixa freqüência, fraco mas contínuo: o som detestável da crescente pressão elástica na crosta da Terra. Uma reação dominó em câmera lenta podia ter começado. E os dominós podiam estar caindo na direção da Estação Edgeway.

Durante as últimas 16 horas, Gunvald gastara menos tempo fumando seu cachimbo do que mordendo nervosamente a ponta dele.

Às 9:30 da noite anterior, depois que o rádio confirmou a localização e a força do segundo tremor, Gunvald tinha chamado o acampamento temporário a nove quilômetros a sudoeste. Contou a Harry sobre os tremores e explicou os riscos que eles corriam por permanecer no perímetro do gelo polar.

- Nós temos um trabalho para fazer - tinha dito Harry. -Há quarenta e seis pacotes no lugar, instalados e com detonador. Retirá-los do gelo novamente antes que detonem é mais difícil do que tirar a mão de um político do nosso bolso. E se não instalarmos os outros quatorze amanhã, sem todas as sessenta cargas sincronizadas, provavelmente não romperemos o iceberg do tamanho que precisamos. De fato, nós estaríamos abortando a missão, o que está fora de cogitação.

- Eu acho que você devia considerar isso.

- Não, não. O projeto é caro demais para ser jogado fora porque pode haver um risco sísmico. O dinheiro é escasso. Nós poderíamos não ter outra chance, se queimarmos essa.

- É, acho que você está certo - concordou Gunvald -, mas não estou gostando disso.

A freqüência aberta sofreu com a estática e Harry disse:

- Eu também não posso dizer que esteja achando uma maravilha. Você tem alguma projeção sobre o tempo que pode demorar para que um grande deslizamento atravesse uma cadeia inteira de falhas como essa?

- Você sabe que isso é uma coisa que ninguém pode prever, Harry. Dias, talvez semanas, até mesmo meses.

- Viu só? Temos tempo mais do que suficiente. Que diabo, pode demorar até mais.

- Ou pode ocorrer muito antes. Em questão de horas.

- Não dessa vez. O segundo tremor foi menos violento do que o primeiro, não foi? - perguntou Harry.

- Você sabe perfeitamente que isso não significa que a reação vai se comportar assim ou assado. O terceiro poderá ser maior ou menor do que os outros dois.

- De qualquer modo - disse Harry -, o gelo tem espessura de duzentos metros, onde estamos. Ele não vai se partir simplesmente como a camada superior de um lago no inverno.

- Mesmo assim, eu aconselho que vocês resolvam as coisas amanhã, o mais rápido possível.

- Não precisa se preocupar com isso. Morar aqui nesses malditos iglus infláveis faz com que os barracos infectos de Edgeway pareçam uma suíte do Ritz-Carlton.

Depois dessa conversa, Gunvald Larsson tinha ido para a cama. Não dormiu bem. Em seus pesadelos, o mundo se partia em pedaços, desmoronava a seus pés em enormes torrões, e ele tombava num vazio frio e sem fim.

Às 7:30 da manhã, enquanto Gunvald se barbeava, com os sonhos ruins ainda na cabeça, os sismógrafos tinham registrado um terceiro tremor: 5,2 na escala Richter.

Seu desjejum consistiu apenas de uma xícara de café preto. Estava sem apetite.

Às 11:00, o quarto sismo atingiu um ponto ao sul, a apenas 320 quilômetros: 4,4 na escala Richter.

Ele não se alegrou ao ver que cada evento era menos forte que o precedente. Talvez a Terra estivesse conservando sua energia para um único e gigantesco golpe.

O quinto tremor ocorreu às 11:50. O epicentro foi a aproximadamente 170 quilômetros ao sul. Muito mais perto do que qualquer um dos anteriores, praticamente na porta deles. Richter 4,2.

Chamara o acampamento temporário, e Rita Carpenter lhe assegurara que a expedição deixaria a beira da calota de gelo às 2:00 da tarde.

- O tempo vai ser um problema - preocupara-se Gunvald.

- Está nevando aqui, mas achamos que é uma tormenta localizada.

- Temo que não. A tempestade está mudando de curso e ganhando velocidade. Vamos ter neve pesada esta tarde.

- Estaremos com certeza em Edgeway por volta das quatro. Talvez antes - disse ela.

Às 12:12, outro deslizamento ocorrera na crosta submarina, 160 quilômetros ao sul: 4,5 na escala Richter.

Agora, às 12:30, quando Harry e os outros estavam provavelmente plantando o último pacote de explosivos, Gunvald Larsson mordia com tanta força o cachimbo que, com apenas uma leve pressão adicional, o teria quebrado ao meio.

12:30

A quase 10 quilômetros da Estação Edgeway, o acampamento temporário se situava sobre uma seção plana de gelo, junto a uma encosta de pressão, do lado oposto ao vento incômodo.

Três iglus infláveis e forrados, de náilon emborrachado, formavam um semicírculo a aproximadamente cinco metros da ribanceira de gelo de 12 metros de altura. Dois trenós motorizados estavam estacionados em frente a eles. Cada iglu tinha 3,50m de diâmetro e 2,40 de altura. Estavam solidamente armados com compridas hastes metálicas e possuíam pisos alcochoados, formados por leves cobertores isolantes de revestimento metálico. Aquecedores a óleo diesel para espaços pequenos conservavam a temperatura interior em 10 graus centígrados. Os aposentos não eram espaçosos ou confortáveis, mas eram temporários, para serem usados somente enquanto a equipe instalava os 60 pacotes de explosivos.

A 100 metros ao sul, no platô situado cerca de 1,70m acima do acampamento, um tubo de aço de 1,80m subia do gelo. Fixados nele estavam um termômetro, um barômetro e um anemômetro.

Com a mão enluvada, Rita Carpenter tirou a neve dos óculos, semelhantes aos de aviador, que protegiam seus olhos e limpou a neve dos mostradores dos três instrumentos no tubo. Obrigada a usar lanterna na escuridão cada vez mais acentuada, leu a temperatura, a pressão atmosférica e a velocidade do vento. Não gostou do que viu. Não se esperava que a tormenta os atingisse antes de pelo menos 6:00 da tarde, mas ela se acentuava e era provável que caísse com toda a força sobre eles antes que tivessem terminado o trabalho e completado a viagem de volta para a Estação Edgeway.

Deslocando-se desajeitadamente pela rampa de 45 graus entre o platô e a planície mais baixa, Rita iniciou o retorno ao acampamento provisório. Ela só conseguia se mover desajeitadamente, porque usava o equipamento completo de sobrevivência: roupa térmica de baixo tricotada, dois pares de meias, botas de feltro, botas externas revestidas de lã, calça e camisa de lã fina, conjunto térmico de lã, casaco de pele, máscara tricotada que cobria sua face do queixo aos óculos, capuz forrado de pêlo preso no queixo, luvas. Nesse clima cruel, o calor do corpo tinha de ser mantido à custa da mobilidade; embaraço e desconforto eram o preço da sobrevivência.

Embora Rita estivesse suficientemente agasalhada, o vento congelante e a paisagem estéril a gelavam emocionalmente. Por opção, ela e Harry tinham passado grande parte de sua vida profissional no Ártico e na Antártica; mas ela não possuía o amor de Harry pelos vastos espaços vazios, os horizontes monocromáticos, a curva imensa do céu e as tempestades primitivas. De fato, se ela se forçara a retornar repetidas vezes às regiões polares, fora sobretudo por ter medo delas.

Desde o inverno em que tinha seis anos de idade, Rita teimosamente sempre se recusara a se entregar a qualquer medo, mais e mais, não importando quanto essa entrega pudesse ser justificada...

Agora, quando se aproximava do iglu a oeste do acampamento, com o vento martelando suas costas, ela sentiu de repente uma reação fóbica tão intensa que quase tombou de joelhos. Criofobia: medo do gelo. Frigofobia: medo do frio. Quionofobia: medo da neve. Rita conhecia todos esses termos, porque sofria de formas amenas das três fobias. A freqüente confrontação com as fontes de suas ansiedades, como injeções contra a gripe, tinha garantido que ela geralmente sofresse somente com o desconforto ou a ansiedade, raras vezes com o terror pleno. Algumas vezes, no entanto, ela se sentia esmagada por lembranças contra as quais não havia injeções capazes de dar suficiente proteção. Como agora. O tumultuoso céu branco parecia descer com a velocidade de uma rocha, para pressioná-la sem cessar, como se o ar e as nuvens e o lençol de neve tivessem magicamente se metamorfoseado numa enorme lasca de mármore que a esmagaria na vazia planície congelada. Seu coração bateu forte e rápido, mais rápido ainda, depois mais ainda, até que sua cadência frenética foi como um tambor, ressoando tão alto em seus ouvidos que afogou o rugido de briga do vento.

À entrada do iglu parou e tentou se recuperar, recusando-se a fugir do que a aterrorizava. Ela se obrigava a suportar o isolamento daquele reino lúgubre e envolto em escuridão, como alguém que tem um medo irracional de cachorros se forçasse a acariciar um deles até que o pânico passasse.

Aquele isolamento era de fato a característica do Ártico que mais perturbava Rita. Em sua mente, desde que tinha seis anos, o inverno tinha sido indissoluvelmente associado à terrível solidão da morte, aos rostos cinzentos e retorcidos de cadáveres, ao olhar congelado de olhos mortos e vazios, a covas e túmulos e desespero sufocante.

Ela tremia tão violentamente que o feixe de luz de sua lanterna oscilava na neve a seus pés.

Dando as costas ao abrigo inflável, ela não encarou o vento, mas sim pôs-se de viés a ele, estudando a estreita passagem entre o platô e a encosta de pressão. Inverno eterno. Sem calor, consolo ou esperança.

Era uma terra para se respeitar, sim, por certo. Mas não se tratava de uma fera, não possuía propósito, não tinha intenção consciente de lhe fazer mal.

Ela respirou fundo, ritmicamente, através da máscara de tricô.

Para ajudar a acalmar seu medo irracional da calota de gelo, disse a si mesma que havia um problema maior esperando dentro do iglu. Franz Fischer.

Ela conhecera Fischer onze anos atrás, logo depois de se ter

doutorado e conseguido seu primeiro cargo de pesquisadora numa divisão da International Telephone and Telegraph. Franz, que também trabalhava para a ITT, era atraente e não sem charme quando queria, e eles haviam ficado juntos quase dois anos. Não tinha sido uma relação inteiramente calma, relaxada e amorosa. Mas pelo menos nunca se aborrecera nela. Eles tinham se separado há nove anos, pouco antes da data de publicação do primeiro livro dela, quando ficou claro que Franz não estaria completamente à vontade com uma mulher que era, profissional e intelectualmente, sua igual. Ele esperava dominar, e ela não seria dominada. Ela dera o fora nele, conhecera Harry, os dois se casaram um ano depois e jamais olharam para trás.

Por ter entrado na vida de Rita depois de Franz, Harry percebeu, no seu jeito infalivelmente doce e racional, que a história deles não lhe dizia respeito. Confiava no casamento e estava seguro de si mesmo. Mesmo sabendo do relacionamento anterior, recrutara Franz para ser o chefe da meteorologia na Estação Edgeway, porque o alemão era o melhor homem da área.

Na atual instância, o ciúme irracional teria sido mais útil a Harry - e a todos eles - do que a racionalidade.

Nove anos após sua separação, Franz ainda insistia em representar o amante desprezado, com direito a beicinhos e olhares intensos. Ele não era frio nem rude; ao contrário, lutava para criar a impressão de que à noite embalava, na solidão do seu saco de dormir, um coração despedaçado. Ele nunca mencionava o passado, mostrava qualquer interesse impróprio em relação à Rita ou se conduzia de um modo que não fosse cavalheiresco. Nos confins de um posto polar, no entanto, o cuidado com que exibia seu orgulho ferido era tão desagregador, à sua maneira, quanto teriam sido insultos gritados.

O vento gemia, a neve girava em torno dela e o gelo se estendia a perder de vista, como sempre havia sido desde tempos imemoriais - mas, gradualmente, a aceleração do coração foi diminuindo, até atingir a velocidade normal. Ela parou de tremer. O terror passou.

Vencera mais uma vez.

Quando finalmente Rita entrou no iglu, Franz estava ajoelhado, enrolando instrumentos em papelão. Ele havia tirado as botas externas, o casacão e as luvas. Ele não se atrevia a suar, porque isso resfriaria sua pele, mesmo dentro da roupa térmica, e desperdiçaria precioso calor corporal quando saísse lá fora. Olhou para ela, sacudiu a cabeça e continuou a empacotar.

Ele possuía um certo magnetismo animal, e Rita bem percebia por que ele a tinha atraído quando ela era mais nova. Cabelos loiros espessos, olhos azuis escuros profundos, feições nórdicas. Unha só 1,75m, apenas 2,5 centímetros mais do que ela, mas aos 45 anos era tão magro e musculoso quanto um garoto.

- O vento está a mais de 40 quilômetros - disse ela, tirando o capuz e removendo os óculos. - A temperatura está a 10 graus abaixo de zero e continua a cair.

- Com o fator vento, estará a menos 30, ou até pior, quando encerrarmos o acampamento - disse ele, sem levantar os olhos. Parecia estar falando consigo mesmo.

- Nós vamos regressar direitinho.

- Com visibilidade zero?

- Não vai piorar tanto em tão pouco tempo.

- Você não conhece o clima polar como eu, não importa quanto você já o tenha visto. Dê outra olhada lá fora, Rita. Essa frente está avançando mais rapidamente do que o previsto. Nós podemos nos ver em meio a uma brancura total.

- Sinceramente, Franz, essa sua natureza teutônica pessimista...

Um barulho de trovoada rolou atrás deles e um tremor atravessou a capa de gelo. O ruído foi aumentado por um quase inaudível guincho agudo, enquanto dezenas de filetes de gelo chocavam-se uns contra os outros.

Rita tropeçou, mas manteve o equilíbrio, como se atravessasse o corredor de um trem em movimento.

O ruído logo morreu.

A abençoada quietude voltou.

Franz finalmente a encarou. Limpou a garganta e perguntou:

- O muito anunciado grande terremoto de Larsson?

- Não. Muito pequeno. Um sismo grande nessa cadeia de falhas seria muito maior do que isso, muito maior ao longo da cadeia. Esse tremorzinho dificilmente seria registrado na escala Richter.

- Um tremor preliminar?

- Talvez - disse ela.

- Quando podemos esperar pelo evento principal?

Ela encolheu os ombros.

- Talvez nunca. Talvez esta noite. Talvez daqui a um minuto. Com uma careta, ele continuou a empacotar os instrumentos no papelão impermeável.

- E você estava falando da minha natureza pessimista...

 

12:45

Dentro dos cones de luz fornecidos pelos dois trenós motorizados, Roger Breskin e George Lin terminaram de fixar o transmissor de rádio no gelo com quatro pinos de mais de meio metro de comprimento e depois testaram sistematicamente o equipamento. Suas sombras compridas eram tão estranhas e distorcidas quanto as de selvagens curvados diante de um ídolo, e a canção assustadora do vento poderia ter sido a voz do violento deus a quem eles rezavam.

Mesmo o brilho lúgubre do crepúsculo de inverno tinha agora congelado no céu. Sem os faróis dos trenós, a visibilidade se reduziria a 10 metros.

O vento estivera brusco e gelado naquela manhã e, à medida que ganhava velocidade, tinha se tornado um inimigo cada vez mais mortal. Um vendaval naquelas latitudes podia pressionar o frio através de camada após camada da roupa térmica. A neve fina já estava caindo com tanta intensidade que parecia formar lençóis atrás deles, numa trajetória paralela à capa de gelo, como se caísse horizontalmente do oeste e não do céu £ não fosse jamais tocar o chão. A cada momento, eles eram obrigados a limpar os óculos e quebrar a crosta de neve das máscaras de tricô que cobriam a metade inferior de seus rostos.

Em pé atrás dos faróis em brasa, Brian Dougherty virava o rosto para escapar do vento. Flexionando os dedos dos pés e das mãos para escapar do frio, ele se indagava por que tinha ido parar naquele fim de mundo. Não fazia parte dele. Ninguém fazia. Nunca tinha visto antes um lugar tão desolado; mesmo os grandes desertos não eram tão sem vida quanto a calota polar. Cada aspecto da paisagem era um lembrete brutal de que toda vida não era senão o prelúdio da morte inevitável e eterna, e algumas vezes o Ártico o tornava tão sensitivo que ele podia ver o crânio sob a pele do rosto dos demais membros da expedição.

Naturalmente, era por isso mesmo que tinha vindo para a calota: aventura, perigo, a possibilidade da morte. Ele pelo menos tinha esse conhecimento sobre si mesmo, embora nunca se houvesse detido a respeito disso e tivesse apenas uma pálida noção de por que tinha a obsessão de assumir grandes riscos.

Tinha importantes razões para continuar vivo, afinal de contas. Era jovem. Não era um padrão de beleza, mas também não era o Corcunda de Notre Dame e estava apaixonado pela vida. E, detalhe não dos mais desprezíveis, sua família era imensamente rica, e, dentro de um ano e dois meses, quando completasse 25 anos, assumiria o controle de um fundo de 30 milhões de dólares. Não tinha a menor idéia do que iria fazer com todo esse dinheiro, se é que ia, mas sem dúvida era um conforto saber que seria seu.

Ainda por cima, o nome de família e a simpatia inspirada por todo o clã Dougherty abririam quaisquer portas que não pudessem ser escancaradas pela força do dinheiro. O tio de Brian, ex-presidente dos Estados Unidos, tinha sido assassinado por um atirador emboscado. E seu pai, senador pela Califórnia, fora alvejado e ficara paralítico durante a campanha das eleições primárias, nove anos atrás. As tragédias dos Doughertys eram material para infindáveis reportagens de capa, de People a Good Housekeeping, de Playboy a Vanity Fair, uma obsessão nacional que algumas vezes parecia destinada a transformar-se numa fantástica mitologia política, na qual os Doughertys não eram meros homens e mulheres, mas semideuses e semideusas, personificação da virtude, dos bons sentimentos e do sacrifício.

Com o tempo, Brian poderia fazer carreira política, se desejasse. Mas era ainda muito moço para enfrentar as responsabilidades do nome familiar e da tradição. Na verdade, ele estava fugindo dessas responsabilidades, do pensamento de ter um dia de encará-las. Quatro anos atrás, desistira de Harvard depois de apenas um ano e meio estudando Direito. Desde então, viajara pelo mundo, "vagabundeando" pelo American Express e a Carte Blanche. Suas aventuras arriscadas o tinham colocado na primeira página de jornais de todos os continentes. Tinha enfrentado um touro numa das arenas de Madri. Quebrara um braço num safári fotográfico na África, quando um rinoceronte atacou o jipe em que viajava; e, quando fotografava as corredeiras do rio Colorado, tinha caído e quase se afogado. Agora, estava passando o longo, impiedoso inverno no gelo polar.

Seu nome e a qualidade das diversas reportagens que escrevera para revistas não eram credenciais suficientes para conseguir o posto de cronista oficial da expedição. Mas a Dougherty Family Foundation tinha doado 850 mil dólares para o Projeto Edgeway, o que virtualmente garantia a aceitação de Brian como integrante da equipe.

Na maior parte do tempo, ele angariara simpatias. O único antagonismo provinha de George Lin, e mesmo assim não passara de uma breve perda de paciência. O cientista chinês se desculpara por sua explosão. Brian estava sinceramente interessado no projeto deles e essa sinceridade lhe conseguiu amigos.

Ele supunha que seu interesse derivava do fato de que era incapaz de se imaginar num empreendimento semelhante, como trabalho de uma vida inteira, mesmo que tivesse apenas metade da dureza da tarefa deles. Embora a carreira política fosse parte de sua herança, Brian odiava aquele jogo vil: a política era uma ilusão de servir que mascarava a corrupção do poder. Eram mentiras, logros, interesse pessoal e auto-engrandecimento: trabalho adequado somente para loucos, venais e ingênuos. A política era uma máscara de jóias que escondia a face desfigurada do Fantasma da Ópera.

Mesmo quando menino, havia visto demasiado nas entranhas de Washington, o suficiente para dissuadi-lo de algum dia procurar um destino naquela cidade corrupta. Infelizmente, a política o havia infectado com um cinismo que o levava a questionar qualquer interesse ou realização, dentro ou fora da arena política.

Ele sentia prazer de fato no ato de escrever e pretendia produzir três ou quatro ensaios sobre a vida no extremo norte. Na verdade, já tinha material para um livro, que cada vez mais se sentia compelido a escrever.

Uma tarefa tão ambiciosa o assustava. Um livro - tivesse ou não, àquela altura, talento e maturidade para escrevê-lo - era um enorme compromisso, precisamente o que ele vinha evitando há anos.

Sua família achava que ele fora atraído para o Projeto Edgeway por causa do potencial humanitário deste, porque Brian começava a se preocupar com seu futuro. Não queria desiludi-los, mas estavam errados. Inicialmente, fora atraído para a expedição meramente por se tratar de mais uma aventura, mais excitante do que aquelas em que embarcara antes, mas não mais significativa.

E ainda era apenas uma aventura, assegurava ele a si mesmo, enquanto observava Lin e Breskin testarem o transmissor. Era uma maneira de evitar, por mais algum tempo, pensar no passado e no futuro. Mas então... por que a compulsão de escrever um livro? Não conseguia se convencer de que tinha algo a dizer que não fosse um desperdício de tempo para qualquer leitor.

Os outros dois homens ergueram-se e limparam a neve dos óculos de proteção.

Brian aproximou-se deles e gritou acima do vento:

- Terminaram?

- Finalmente - respondeu Breskin.

O transmissor de 60 centímetros quadrados estaria amortalhado em neve e gelo dentro de horas, mas isso não afetaria seu sinal. Ele havia sido projetado para operar nas condições árticas, com uma bateria múltipla dentro de camadas isolantes desenvolvidas inicialmente pela NASA. Emitiria um forte sinal - dois segundos de duração, dez vezes por minuto - durante oito a 12 dias.

Quando o bloco de gelo fosse destacado com precisão quase

cirúrgica da calota polar, o transmissor seguiria nele à deriva pelos canais conhecidos como Alameda dos Icebergs e daí até o Atlântico Norte. Dois rebocadores, parte da Frota do Ano Geofísico das Nações Unidas, estariam à espera 370 quilômetros ao sul para monitorar o sinal contínuo do rádio. Com o auxílio de satélites polares geossincrônicos, eles estabeleceriam a posição do iceberg por triangulação e o acompanhariam até que pudesse ser identificado visualmente pela tintura vermelha, auto-expansiva e à prova d'água, que havia sido espalhada por vastas áreas de sua superfície.

O objetivo da experiência era ganhar um conhecimento básico de como as correntes marítimas de inverno afetavam o gelo à deriva. Antes que pudessem ser estabelecidos quaisquer planos de rebocar o gelo para o sul em direção às áreas costeiras afetadas pela seca, os cientistas precisavam aprender como o mar poderia trabalhar contra os navios e o que poderia ser feito para que trabalhasse a favor.

Não era prático mandar rebocadores até junto da calota polar para amarrar a gigantesca montanha. O Oceano Ártico e o Mar da Groenlândia estavam entupidos de pedaços de gelo e a navegação ficava difícil nessa época do ano. Dependendo dos resultados da experiência, entretanto, eles poderiam descobrir não ser necessário os rebocadores puxarem o gelo logo ao sul da Alameda dos Icebergs. Em vez disso, as montanhas poderiam seguir nas correntes naturais 200 ou 300 quilômetros mais, antes que fossem rebocadas mais para o sul e em direção à costa.

- Posso tirar umas fotos? - perguntou Brian.

- Não há tempo para isso - cortou George Lin. Ele esfregou as mãos, fazendo cair finas placas de gelo das grossas luvas.

- Leva só um minuto.

- Vamos voltar logo para Edgeway - disse Lin. - A tempestade pode nos isolar. De manhã nós faríamos parte da paisagem, bem durinhos.

- Podemos esperar um minuto - disse Roger Breskin. Ele não estava quase gritando como os outros, mas sua voz de baixo superava o vento, que havia subido seu tom, de um gemido sobrenatural para um rugido quase ululante.

Brian sorriu, pensativo.

- Está maluco? - perguntou Lin. - Vê essa neve? Se demorarmos...

- George - disse Roger Breskin -, você já desperdiçou quase um minuto em lamentações.

O tom de Breskin não era acusatório, apenas o de um cientista constatando um fato.

Embora Roger Breskin tivesse emigrado dos Estados Unidos para o Canadá há somente oito anos, era tão calado e calmo quanto o estereótipo do canadense. Contido, recluso, ele não fazia amigos ou inimigos com facilidade.

Atrás dos óculos, os olhos de Lin estreitaram-se. Ele rosnou:

- Tire suas fotos. Eu acho que Roger quer se ver em todas essas revistas fúteis. Mas depressa.

Brian não tinha escolha a não ser correr. As condições atmosféricas não permitiam fotos estudadas ou focadas com precisão.

- Assim está bem?-perguntou Roger Breskin, colocando-se à direita do transmissor.

- Ótimo.

Roger enchia a moldura do visor. Ele tinha 1,80m, pesava quase 90 quilos, era um pouco mais leve e mais baixo do que Pete Johnson, mas não menos musculoso do que o ex-astro de futebol americano. Tinha sido halterofilista durante vinte dos seus 36 anos. Seus bíceps eram enormes, riscados de veias que pareciam tubos de aço. Com a roupa de frio, lembrava a impressionante figura de um urso, mais integrado àquelas vastidões congeladas do que qualquer um dos outros.

Em pé à esquerda do transmissor, George Lin era tão diferente de Breskin quanto um beija-flor o é de uma águia. Era muito mais baixo e magro do que Roger, mas as diferenças não eram apenas físicas. Enquanto Roger permanecia tão silencioso e imóvel quanto um poste de gelo, Lin corria de um lado para outro como se fosse explodir de tanta energia nervosa. Ele nada tinha da paciência que e considerada um dos traços da mente asiática. Ao contrário de Breskin, não pertencia àquelas vastidões geladas, e sabia disso.

George Lin nascera Lin Shenyang, em Cantão, na China continental, em 1946, pouco antes que a revolução de Mao Tsé-tung expulsasse o governo do Kuomintang e estabelecesse um estado totalitário. Sua família só conseguira fugir para Formosa quando George tinha sete anos. Naqueles primeiros anos, algo de monstruoso lhe acontecera em Cantão, o que o traumatizaria e modelaria para sempre. Às vezes aludia a isso, mas se recusava a falar diretamente do fato, ou porque não era capaz de lidar com o horror daquelas lembranças ou porque a habilidade de Brian como jornalista era insuficiente para arrancar-lhe a história.

- Apresse-se - instou Lin. Sua respiração subia em meadas de fios cristalinos que se desenrolavam no ar.

Brian focalizou e apertou o botão.

O flash eletrônico refletiu-se na paisagem de neve e figuras de luz pularam e dançaram com figuras de sombra. Depois a escuridão profunda envolveu até o contorno dos faróis.

- Uma mais para... - disse Brian.

A capa de gelo ergueu-se de repente, precipitadamente, como o assoalho mecânico de uma casa de diversões. Inclinou-se para a esquerda, para a direita, depois despencou debaixo dele.

Ele caiu, batendo tão forte no gelo que mesmo a roupa térmica pesadamente acolchoada não o protegeu adequadamente e o doloroso impacto fez se chocarem seus ossos uns contra os outros, como se fossem pauzinhos de I Ching ressoando numa xícara de metal. O gelo levantou-se novamente, estremeceu e saltou, como se tentasse se libertar da cobertura da Terra e voar no espaço.

Um dos trenós de motor ligado tombou de lado, a centímetros de sua cabeça, e afiados cacos de gelo explodiram no seu rosto, agulhas afiadas, furando sua pele e por pouco não o atingindo nos olhos. Os esquis da máquina movimentaram-se com um leve barulho, como se fossem apêndices de um inseto, e o motor morreu.

Zonzo, chocado, o coração disparando, Brian levantou cautelosamente a cabeça e viu que o transmissor continuava firmemente ancorado. Breskin e Lin estavam esparramados na neve, depois de terem sido arremessados como se fossem bonecos, como acontecera com ele próprio. Brian começou a se levantar - mas caiu de novo, enquanto a vastidão saltava mais violentamente do que da primeira vez.

O terremoto suboceânico de Gunvald chegara, afinal.

Brian tentou apoiar-se dentro de uma rasa depressão no gelo, acomodando-se dentro de seu contorno natural para evitar ser arremessado contra os trenós ou o transmissor. Evidentemente, um tsunami violento estava passando debaixo deles e centenas de milhões de metros cúbicos de água subiam com toda a força e fúria vingativas de um deus zangado que fora despertado.

Inevitavelmente, ondas adicionais ainda grandes mas de força decrescente iriam se seguir, antes que a capa de gelo se estabilizasse.

O trenó virado revolveu-se de lado. Os faróis varreram Brian duas vezes, espantando as sombras como folhas varridas pelo vento morno soprado de latitudes mais quentes, e então pararam, iluminando os outros homens.

Atrás de Roger Breskin e George Lin, o gelo subiu de repente com um bum! ensurdecedor e rasgou-se numa grande boca demoníaca. O mundo deles estava se partindo.

Brian gritou um alerta.

Roger agarrou-se firme com as duas mãos a um dos grandes pinos de aço que fixavam o transmissor no chão.

O gelo levantou-se pela terceira vez. A planície branca oscilou em direção à nova cratera voraz.

Embora tentasse desesperadamente se agarrar, Brian deslizou da depressão em que procurara abrigo, como se não existisse qualquer fricção inibidora entre ele e o gelo. Voou em direção à fenda, agarrou o transmissor ao cruzar por ele, chocou-se forte contra Roger Breskin e manteve-se seguro com determinação feroz.

Roger gritou alguma coisa a respeito de George Lin, mas o uivo do vento e o ruído do gelo quebrando mascararam o sentido de suas palavras.

Vislumbrando através dos óculos cobertos por uma camada de neve, sem querer arriscar a se soltar para limpá-los, Brian olhou para trás.

Gritando, George Lin deslizou em direção à borda da nova cratera. Ele trepidou sobre o gelo escorregadio. Quando a última corrente do tsunami passou debaixo deles e o campo de neve se estabilizou, Lin desaparecera na ribanceira.

Franz tinha sugerido que Rita terminasse de empacotar os instrumentos enquanto ele se encarregava do trabalho pesado de arrumá-los no trailer de carga. Ele era tão inconscientemente condescendente com o "sexo frágil" que Rita rejeitou a sugestão. Ela puxou o capuz, colocou novamente os óculos nos olhos e levantou uma das caixas cheias, antes que ele pudesse argumentar com ela.

Fora, enquanto acomodava a caixa à prova d'água num dos trailers baixos e compridos, o primeiro tremor levantou o gelo. Ela foi jogada por sobre a caixa. Um canto aguçado do papelão atingiu sua bochecha. Ela rolou do trailer e caiu na neve que se acumulara na última hora em torno do veículo.

Tonta e assustada, correu quando chegou a primeira onda do tsunami. Os motores dos trenós estavam ligados, esquentando para a viagem de volta a Edgeway, e seus faróis furaram a neve que caía, com luz suficiente para que ela visse surgir a primeira grande rachadura na parede quase vertical de 15 metros de altura da encosta de pressão que havia abrigado - e agora ameaçava - o acampamento provisório. Uma segunda rachadura partiu da primeira, depois uma terceira, uma quarta, dez, uma centena, como a teia intrincada de fissuras no pára-brisa de um carro atingido por uma pedra. A fachada inteira ia desabar.

Ela gritou para Franz, que ainda estava dentro do iglu na extremidade oeste do acampamento.

- Corra, Franz! Saia!

E então seguiu o próprio conselho, sem ousar olhar para trás.

O sexagésimo pacote de explosivos não era diferente dos 59 instalados no gelo antes dele: 6 cm de diâmetro, 1,5m de comprimento, com macias extremidades redondas. Um sofisticado mecanismo de tempo e um detonador ocupavam o fundo do cilindro e estavam sincronizados com os dos demais pacotes. A maior parte do tubo estava cheia de explosivos plásticos. A parte superior do cilindro terminava numa alça de aço com um anel de segurança, preso a uma corrente de aço temperado.

Harry Carpenter desenrolou a corrente de um tambor com manivela, baixando o pacote - 15 quilos de invólucro e mais de 50 quilos de explosivos plásticos - no buraco estreito, com muito cuidado, já que a carga era equivalente a 150 quilos de TNT. Desceu 22 metros de corrente, antes de sentir que o cilindro tocava o fundo do tubo de 26 metros. Conectou outro anel de segurança à ponta solta da corrente, puxou os ressaltos de prender contra a parede do tubo e prendeu o anel de segurança a um pino enfiado no gelo, ao lado do buraco.

Pete Johnson estava agachado ao lado de Harry. Olhou por sobre o ombro para o francês e gritou, por cima do zumbido do vento:

- Rápido, aqui, Claude!

Um barril de metal, que eles tinham enchido de neve, estava sobre aquecedores elétricos num dos trailers de carga. A água pela borda fervia. O vapor evolava da superfície da água, congelava instantaneamente em nuvens de cristais brilhantes e se dispersava na neve rodopiante, como se uma infindável procissão de fantasmas subisse de um caldeirão mágico e fugisse para os confins da Terra.

Claude Jobert fixou com uma presilha de metal uma mangueira a uma válvula no barril. Abriu a válvula e entregou a boca da mangueira a Carpenter. Abrindo a torneira, Harry deixou a água quente jorrar da mangueira no interior do tubo. Em três minutos, o buraco estava selado: a bomba estava embutida em gelo novo.

Se ele deixasse o tubo aberto, a explosão se perderia no sentido vertical. A carga tinha sido armada para se expandir para baixo e para os lados, e, para isso, o buraco precisava estar bem fechado. A meia-noite, quando a carga detonasse juntamente com todas as outras, o gelo novo no tubo poderia saltar como a rolha de uma garrafa, mas a força maior da explosão não se dissiparia.

Pete Johnson bateu com os punhos enluvados contra o tampo recém-formado e comentou:

- Agora podemos voltar para Edge...

A calota de gelo saltou, avançou, oscilou com força diante deles, guinchou como um enorme monstro e depois gemeu antes de desmoronar, de volta à sua forma plana.

Harry foi jogado de cara no chão. Seus óculos vieram com força de encontro às suas bochechas e sobrancelhas. Lágrimas brotaram quando a dor se irradiou através dos ossos da face. Ele sentiu o sangue quente escorrer das narinas e o gosto de sangue estava na sua boca.

Pete e Claude tinham caído e um se segurava no outro. Harry mal teve tempo de vê-los, grotescamente presos no abraço um do outro, como se fossem dois lutadores.

O gelo chacoalhou outra vez.

Harry rolou contra um dos trenós. O veículo estava pulando para cima e para baixo. Agarrou-se a ele com as duas mãos e desejou que não tombasse sobre si.

Seu primeiro pensamento fora de que os explosivos plásticos haviam detonado no seu rosto e que ele estava morto ou morrendo. Mas quando o gelo inchou mais uma vez, compreendeu que ondas de choque deviam estar surgindo de sob a capa polar, provocadas sem dúvida por um terremoto na bacia marinha.

Quando a terceira onda chegou, o mundo branco em torno de Harry rachou e oscilou, como se uma criatura pré-histórica estivesse acordando de um longo sono debaixo dele, e ele se viu suspenso no topo de uma rampa de gelo. Só a inércia o manteve suspenso no ar, no alto do declive. A qualquer momento ele podia deslizar para o fundo juntamente com o trenó e ser talvez esmagado pela máquina

A distância, o som de gelo quebrando e esfacelando-se enchia a noite e o vento: os funestos protestos de um mundo quebradiço partindo-se em pedaços. O rugido aumentou e aproximou-se e Harry enrijeceu-se, à espera do pior.

E então, tão de repente quanto começara - há não mais do que um minuto -, o terror acabou. A planície gelada cedeu, nivelou-se e ficou imóvel.

Tendo corrido o suficiente para ficar a salvo de qualquer desabamento da deformada encosta de pressão, Rita parou e girou para olhar atrás o acampamento temporário. Estava sozinha. Franz não tinha emergido do iglu.

Um pedaço da ribanceira, do tamanho de um caminhão, rachou e tombou com terrível elegância, esmagando o iglu desabitado da extremidade leste do acampamento em forma de crescente. O teto inflável murchou como uma bola de soprar.

- Franz!

Uma seção ainda maior da encosta desmoronou. Lençóis, blocos, espirais, pedaços de gelo desabaram sobre o acampamento, fragmentando-se em estilhaços frios, achatando o iglu central, fazendo capotar um trenó, rasgando o iglu da extremidade oeste do acampamento, de onde Franz ainda não escapara, lançando milhares de fragmentos de gelo que brilhavam como uma chuva de fagulhas.

Ela tinha outra vez seis anos de idade, e gritava até que sua garganta se fechou - e de repente não mais sabia se chamava por Franz ou por sua mãe e seu pai.

Tivesse ela lhe gritado ou não uma advertência, Franz rastejou de sob o arruinado teto de náilon, enquanto o dilúvio se disseminava em torno dele, e correu na direção dela. Granadas de morteiro de gelo explodiam à esquerda e à direita, mas ele tinha a sorte de um corredor que encontra campo aberto e a velocidade proporcionada pelo terror. Ele correu da avalanche até a segurança.

Enquanto a encosta se estabilizava e o gelo parava de cair, Rita foi sacudida pela vivida visão de Harry esmagado por um brilhante monolito branco, em alguma parte da cruel noite polar em preto-e-branco. Cambaleou, não por causa do movimento da calota, mas Porque o pensamento de perder Harry a atingiu. Ela parou de tentar manter o equilíbrio, sentou no gelo e começou a tremer incontrolavelmente.

Só os flocos de neve se moviam, jorrando da escuridão a oeste e na direção da escuridão a leste. O único som era o da voz lamentosa do vento cantando uma canção fúnebre.

Harry agarrou-se ao trenó e ergueu-se. Seu coração batia tão forte que parecia chocar-se contra as costelas. Tentou produzir alguma saliva para lubrificar a garganta seca. O medo o tinha secado tanto quanto o teria feito uma onda de calor no deserto do Saara. Quando retomou a respiração, limpou os óculos e olhou em torno.

Pete Johnson ajudou Claude a erguer-se. O francês estava de pernas bambas mas obviamente não se machucara. Pete não tinha sequer joelhos fracos: talvez cada pedaço seu fosse tão indestrutível quanto o todo parecia ser.

Os dois trenós estavam de pé e inteiros. Os faróis luziam na vasta noite polar, mas pouco revelavam na faixa de neve soprada pelo vento.

Com a adrenalina no máximo, Harry logo sentiu-se outra vez um menino, brilhou na excitação alimentada pelo perigo, exultou pelo simples fato de haver sobrevivido.

Pensou então em Rita, e seu sangue gelou mais do que se ele tivesse ficado nu sob o impiedoso vento polar. O acampamento provisório havia sido estabelecido ao abrigo de uma grande ribanceira de pressão, à sombra de uma alta parede de gelo. Em geral, esse era o melhor lugar para isso. Mas, com todo o tremor que eles haviam acabado de enfrentar, a ribanceira podia ter-se rompido...

O menino perdido sumiu no passado, ao qual ele pertencia, tornou-se apenas uma lembrança, dentre outras, dos campos de Indiana e pedaços de páginas da National Geographic e de noites de verão gastas na contemplação das estrelas e horizontes distantes.

Mexa-se, pensou, banhado num medo muito maior do que o que sentira por si há apenas alguns momentos. Recomponha-se, mova-se, encontre-a.

Correu para os outros homens.

- Alguém ferido?

- Só um pouco chacoalhado - disse Claude. Era ele um homem que não só se recusava a se render à adversidade, como na verdade sentia-se estimulado por ela. Com um sorriso mais brilhante do que o que conservara durante todo o dia, acrescentou: - Que parada!

- E que tal você?-perguntou Pete a Harry.

- Bem.

- Você está sangrando.

Harry tocou o lábio superior e cascas brilhantes de sangue congelado como fragmentos de rubi aderiram às suas luvas.

- Sangramento de nariz. Já parou.

- É sempre uma cura certa para sangramento de nariz - disse Pete.

- O quê?

- Gelo atrás do pescoço.

- Você merecia ser deixado aqui por essa observação.

- Vamos juntar as coisas e nos mexer.

- Eles devem estar numa situação difícil no acampamento - disse Harry. E sentiu o estômago revolver-se novamente, ao considerar a possibilidade de ter perdido Rita.

- É o que eu estava pensando - concordou Pete.

O vento os socava enquanto trabalhavam. A neve que caía era bonita e espessa. A tempestade crescia sobre eles com velocidade surpreendente, e, num reconhecimento mudo do perigo crescente, eles se movimentavam com silenciosa urgência.

Quando Harry enrolava o último instrumento no segundo trai-ler de carga do trenó, Pete o chamou. Limpou os óculos e foi até a outra máquina.

Mesmo sob a luz incerta, Harry podia ler a preocupação nos olhos de Pete.

- O que é?

- Durante o tremor, eu acho... os trenós moveram-se um bocado por aqui, não?

- Sim, eles pularam para cima e para baixo como se o gelo fosse o danado de um trampolim.

- Só para cima e para baixo?

- O que há de errado?

- Não saíram de lado?

- O que é?

- Bem, é possível que eles tenham deslizado, como se girassem em torno?

Harry deu as costas ao vento e inclinou-se para mais perto de Pete.

- Eu estava agarrado firme a um deles. Ele não virou. Mas o que tem a ver?

- Me siga. Para que direção estavam os trenós voltados antes do tsunami?

- Leste.

- Tem certeza?

- Absoluta.

- Eu também. Eu lembro leste.

- Em direção ao acampamento provisório.

A respiração deles se juntava no espaço protegido entre os dois, e Pete passou a mão pelos cristais, para dispersá-los. Ele mordeu o lábio inferior.

- Então estou enlouquecendo ou o quê?

- Que foi?

- Bem, acontece uma coisa...

Ele bateu no mostrador de plexiglas da bússola do trenó, fixada na capota em frente ao pára-brisa.

Harry leu a bússola. De acordo com a agulha, o veículo estava voltado para o sul, uma mudança de 90 graus em relação ao local em que se encontrava antes de o gelo ser sacudido pelas ondas sísmicas.

- Isso não é tudo - disse Johnson. - Quando estacionamos aqui, eu sei muito bem que o vento atingia o trenó por trás e talvez ligeiramente à minha esquerda. Lembro como martelava a traseira.

- Lembro também.

- Agora está soprando de flanco, do meu lado direito, quando estou atrás das barras de direção. É uma grande diferença. Mas os ventos de tempestade são constantes. Eles não mudam 90 graus em minutos. Eles não fazem isso, Harry. Eles nunca fazem.

- Mas se o vento não mudou e os trenós não se moveram, isso quer dizer que o gelo sobre o qual nós estamos...

Sua voz sumiu.

Os dois ficaram em silêncio. Nenhum queria deixar transparecer o medo nas palavras.

Finalmente, Pete terminou o raciocínio:

- ...de modo que o gelo deve ter girado um quarto da bússola.

- Mas como seria possível?

- Eu tenho uma idéia.

- Eu também - disse Harry, sacudindo a cabeça com relutância.

- Só uma explicação faz sentido.

- É melhor darmos uma olhada na bússola da minha máquina.

- Nós estamos na merda, Harry.

- Não é um mar de rosas - concordou Harry. Caminharam apressados até o segundo veículo, e a neve fresca se amontoava e guinchava sob suas botas.

Pete bateu no mostrador de plexiglas da bússola.

- Este também está de frente para o sul.

Harry limpou os óculos, mas nada disse. A situação era tão tétrica que ele não queria expressá-la em palavras, como se o pior não tivesse acontecido até que o mencionassem.

Pete examinou a vastidão inóspita que os rodeava.

- Se o maldito vento prossegue e a temperatura continua a cair... e ela vai continuar... então por quanto tempo nós sobreviveremos aqui?

- Com nossos suprimentos, nem um dia.

- A ajuda mais próxima...

- Seriam os rebocadores da ONU.

- Mas eles estão a 320 quilômetros daqui.

- Mais, 360.

- E eles não vão tomar rumo norte numa grande tempestade, tendo que brigar com tantos blocos de gelo.

Nenhum deles falou. O espectral assovio do vento encheu o silêncio. A fúria solta da neve castigava as partes expostas do rosto de Harry, ainda que a pele estivesse protegida por uma camada de vaselina.

- E agora? - perguntou Pete finalmente. Harry sacudiu a cabeça.

- Só uma coisa é certa. Nós não vamos voltar para a Estação Edgeway esta tarde.

Claude Jobert juntou-se a eles, a tempo de ouvir a última frase. Ainda que a parte inferior de seu rosto estivesse coberta pela máscara de proteção e os olhos fossem apenas parcialmente visíveis sob os óculos, seu alarme foi nítido. Ele pôs a mão sobre o braço de Harry.

- O que aconteceu de errado?

Harry olhou para Pete. E Pete disse a Claude:

- As ondas de choque... elas romperam um pedaço da calota de gelo.

O francês apertou o braço de Harry. Claramente não desejando acreditar nas próprias palavras, Pete disse:

- Estamos à deriva, num iceberg.

- Não pode ser! - exclamou Claude.

- É horrível, mas é verdade - disse Harry. - Estamos nos distanciando da Estação Edgeway a cada minuto que passa... e cada vez mais para dentro da tormenta.

Claude convenceu-se com relutância. Olhou para Harry e Pete, depois para a paisagem amaldiçoada, como se na expectativa de ver alguma coisa que refutasse o que tinham lhe dito.

- Vocês não podem ter certeza.

- É absolutamente certo - afirmou Pete.

- Mas embaixo de nós... - disse Claude.

- Sim.

- ...essas bombas...

- Exatamente - disse Harry. - Essas bombas.

 

                                         NAVIO

 

1:00 EXPLOSÃO DENTRO DE ONZE HORAS

Um dos trenós estava tombado de lado. O dispositivo de segurança tinha desligado o motor quando o veículo virou, de modo que não tinha havido incêndio. O outro trenó estava inclinado contra um pequeno monte de neve. Os quatro faróis dividiam as cortinas de neve, iluminando o nada, apontando para fora do precipício em que George Lin desaparecera.

Embora Brian Dougherty estivesse convencido de que qualquer busca ao chinês fosse perda de tempo, engatinhou até a boca da cratera surgida e deitou-se de cara no gelo, junto à borda irregular. Roger Breskin juntou-se a ele e os dois ficaram estendidos lado a lado, espiando a terrível escuridão.

O enjôo tomou conta das entranhas de Brian. Ele tentou cravar as pontas de metal de suas botas no gelo duro como aço e se agarrou à superfície plana. Se outro tsunami pusesse o mundo a dançar, ele poderia tombar ou voar no abismo.

Roger dirigiu sua lanterna para longe, em direção à parede oposta da cratera. Exceto pela neve que caía, o facho amarelado de j luz nada revelou. A luz acabava em completa escuridão.

- Não é uma cratera - disse Brian - É um maldito canyon.

- Também não é.

A luz moveu-se vagarosamente para trás e para a frente. Nada. Absolutamente nada. Menos do que astronautas poderiam ver se espiassem o espaço profundo por uma escotilha.

- Eu não entendo - disse Brian, perplexo.

- Nós estamos separados da calota principal - explicou Roger, com sua característica serenidade, ainda assim impressionante.

Brian precisou de um momento para absorver a novidade e todo o horror que ela representava.

- Separados... você quer dizer que nós estamos à deriva?

- Num navio de gelo.

O vento investiu com tanta violência que, por meio minuto, Brian não se conseguiria fazer ouvir nem que gritasse. Os flocos de neve estavam ativos e furiosos como milhares de abelhas zangadas, ferroando as partes expostas da face, e ele puxou sua máscara protetora para cobrir o nariz e a boca.

Quando a rajada afinal serenou, Brian inclinou-se na direção de Roger Breskin.

- E os outros?

- Talvez estejam também neste iceberg. Mas tomara que tenham ficado na parte firme do gelo.

- Santo Deus!

Roger dirigiu o facho de luz para fora da escuridão, onde haviam esperado encontrar a parede mais afastada da cratera. O facho furava aqui e ali o vazio deprimente.

Não conseguiam ver a face da ribanceira que descia exatamente na frente deles, a menos que escorregassem à frente e se pendurassem parcialmente sobre o abismo. Nenhum deles estava com gana de se expor a esse risco extremo.

A luz pálida angulou para a esquerda, para a direita, então atingiu o mar descongelado, picado, escuro, que se agitava uns 25 a 30 metros abaixo deles. Mesas chatas de gelo, blocos irregulares de gelo, jangadas retorcidas de gelo e delicadas e mutantes fitas de gelo oscilavam e rodopiavam nas panelas de frígida água escura,

batendo-se na crista das ondas; tocadas pela luz, brilhavam como se fossem diamantes espalhados sobre veludo negro.

Atordoado pelo caos que a lanterna revelava, engolindo com dificuldade, Brian disse:

- George caiu no mar. Ele se foi.

- Talvez não.

Brian não via como poderia haver uma alternativa de esperança. Seu enjôo tinha evoluído para a náusea total.

Empurrando os cotovelos contra o gelo, Roger avançou alguns centímetros, até ser capaz de espiar por sobre a beira a parede do precipício.

Apesar da náusea - e embora estivesse preocupado com a possibilidade de que outro tsunami pudesse avançar sob eles e jogá-los na cova de Lin -, Brian moveu-se até o lado de Roger.

A luz da lanterna encontrou o lugar onde a ilha de gelo em que estavam entrava no mar. O paredão não mergulhava diretamente na água. Na base, ele se achatava em três plataformas dentadas, cada uma com seis a oito metros de largura e separadas uma da outra por uma altura de 1,5 a dois metros. As prateleiras eram tão fissuradas e cheias de pontas agudas e irregulares quanto a base de qualquer ribanceira em terra seca. Como havia uns 200 metros de montanha abaixo do nível do mar, as altas ondas não podiam passar inteiramente sob ela; elas se chocavam contra as três prateleiras e quebravam de encontro às muralhas brilhantes, numa explosão de gordas gotas de espuma gelada.

Colhido pelo sorvedouro, Lin deveria ter se arrebentado todo. Ele poderia ter tido uma morte mais misericordiosa se houvesse mergulhado naquelas terríveis águas geladas e sofrido um ataque de coração, antes que as ondas pudessem ter tido tempo de jogá-lo e triturá-lo de encontro ao gelo afiado.

O facho de luz subiu e desceu devagar, revelando mais do paredão. Das três prateleiras no fundo, a uma distância de 15 metros, o gelo se inclinava num ângulo de aproximadamente 60 graus - de modo irregular mas abrupto o suficiente para impedir a exploração por qualquer um que não fosse um alpinista experiente e bem equipado. Uns sete metros abaixo, outra plataforma cruzava a face da montanha. Essa tinha apenas um pouco menos de largura, em ângulo com a encosta. Acima da prateleira, o gelo era liso até a extremidade onde eles estavam.

Depois de uma pausa para raspar a crosta de neve de seus óculos, Roger Breskin explorou com a luz a prateleira rasa debaixo deles.

Três metros à sua direita, até então envolto na escuridão, jazia George Lin, na estreita saliência onde havia caído. Estava sobre seu lado esquerdo, as costas contra a ribanceira, o rosto voltado para o mar aberto. O braço esquerdo se enfiava sob o corpo e o direito estava atravessado sobre o peito. Tomara a posição fetal, com as pernas tão encolhidas e a cabeça abaixada quanto o permitia a volumosa roupa ártica.

Roger protegeu a boca com a mão livre, em forma de cone, e gritou:

- George! Você está me ouvindo? George! Lin não se moveu.

- Você acha que ele está vivo? - perguntou Brian.

- Deve estar. Ele não caiu muito. As roupas são acolchoadas, forradas, absorvem um pouco do impacto.

Brian colocou as duas mãos em torno da boca e chamou por Lin.

A única resposta veio do vento cada vez mais forte, e era fácil acreditar que o grito dele era cheio de maldade, que esse vento estava de alguma forma vivo e os desafiava a permanecerem na borda um pouco mais.

- Temos de descer e pegá-lo - disse Roger. Brian estudou a parede de gelo, vertical e escorregadia, que caía seis metros até o ressalto.

- Como?

- Temos cordas, ferramentas.

- Não temos equipamento para escaladas.

- Improvisamos.

- Improvisamos? - indagou Brian, perplexo.

- Você alguma vez praticou alpinismo?

- Não.

- Isso é loucura.

- Não temos escolha.

- Tem de haver outra maneira.

- Qual?

Brian não respondeu.

- Vamos ver as ferramentas - disse Roger.

- Nós podemos morrer tentando salvá-lo.

- Não podemos simplesmente dar-lhe as costas.

Brian olhou a figura curvada no ressalto. Numa tourada na Espanha, na planície africana, no rio Colorado, mergulhando nu num Bimini infestado de tubarões... nos mais longínquos lugares e das mais imaginativas maneiras, tinha desafiado a morte sem muito medo. Ele se perguntou por que hesitava agora. Virtualmente todos os riscos que correra haviam sido sem sentido, um jogo infantil. Agora havia uma boa razão para arriscar tudo: a aposta era uma vida humana. Qual o problema então? Ele não quisera ser um herói? Havia demasiados malditos heróis na família Dougherty, políticos sequiosos de poder que haviam se convertido em heróis nos livros de História.

- Vamos ao trabalho - disse Brian, por fim. - George vai congelar se ficar mais tempo deitado lá.

1:05

Harry Carpenter apoiou-se nas barras de direção e espreitou através da curva de plexiglas a paisagem branca. Grandes jatos de neve e dardos de geada caíam enviesados através da luz dos faróis. O limpador de pára-brisa oscilava monótono, incrustado de gelo mas ainda capaz de fazer seu trabalho razoavelmente bem. A visibilidade tinha caído para uns 10 ou 12 metros.

Embora a máquina correspondesse e pudesse ser freada numa curta distância, Harry seguia devagar. Temia dirigir diretamente para uma ribanceira, porque não tinha como saber onde o iceberg terminava.

Os únicos veículos utilizados pela expedição Edgeway eram trenós reforçados, com motores a combustão, com rodas especiais de 21 polegadas e suspensão de bogie com três deslizadores para neve. Cada veículo podia transportar dois adultos, com suas volumosas roupas térmicas, num banco acolchoado de 80 centímetros. O passageiro viajava atrás do motorista.

As máquinas, é claro, tinham sido adaptadas para operar no áspero inverno polar, em condições dramaticamente mais rigorosas do que as encontradas pelos entusiastas de veículos de neve nos Estados Unidos. Afora o duplo sistema de partida e o par de baterias especiais para o duro trabalho ártico, a principal modificação em cada veículo fora o acréscimo de uma cabine, para proteção dos passageiros, feita de folhas de alumínio rebitadas e plexiglas espesso. Um eficiente aquecedorzinho tinha sido montado sobre o motor e dois pequenos ventiladores sopravam o ar quente até o motorista e o passageiro.

Talvez o aquecedor fosse um luxo, mas a cabine fechada era uma necessidade absoluta. Sem ela, o contínuo bater do vento teria congelado o motorista até os ossos e poderia matá-lo em qualquer percurso acima de cinco ou seis quilômetros.

Alguns dos trenós tinham sido posteriormente modificados, para finalidades especiais. O de Harry era um desses, uma vez que transportava a broca. A maior parte das ferramentas era carregada num raso compartimento escondido sob o banco de molas do passageiro, ou num pequeno trailer, em forma de um caixão aberto, rebocado atrás. Mas a broca era grande demais para o compartimento interno e importante demais para ser exposta aos choques que sacudiam o reboque de carga; assim, a última metade do banco fora equipada com braçadeiras e a broca estava agora bem presa embaixo de Harry, ocupando também o espaço onde normalmente ficaria o passageiro.

Com essas poucas modificações, o trenó estava em condições de trabalhar bem no gelo da Groenlândia. A 45 quilômetros por hora, ele podia ser freado numa distância de 25 metros. O deslizador de meio metro de largura proporcionava excelente estabilidade em terreno moderadamente irregular. E embora pesasse 300 quilos em sua forma adaptada, o veículo podia alcançar 70 quilômetros por hora.

No momento, tinha muito mais motor do que Harry podia usar. O motorista tentava segurar o trenó na mais baixa velocidade possível. Se a borda do iceberg aparecesse de repente no meio da tormenta, ele teria no máximo nove ou 10 metros para perceber o perigo e parar o veículo. Se avançasse com velocidade, não seria possível parar a tempo. Se apertasse os freios no penúltimo momento, ele seria arremessado dentro da noite diretamente no mar. Perseguido por essa imagem mental, Harry mantinha o veículo na velocidade máxima de oito quilômetros por hora.

Embora cuidado e prudência fossem necessários, ele precisava fazer o melhor tempo possível. Cada minuto gasto em trânsito aumentava a probabilidade de que ficassem desorientados e totalmente perdidos.

Eles tinham rumado para o sul a partir do sexto poço de explosivos, e mantinham essa direção o máximo que podiam, na suposição de que o que havia sido leste antes do tsunami era agora sul. Nos primeiros 15 ou 20 minutos após a onda de choque, o iceberg tinha provavelmente girado em relação à bússola, até achar as suas proa e popa naturais; logicamente, ele devia estar agora navegando no seu curso natural. Se a presunção estivesse errada e a montanha ainda estivesse girando, o acampamento temporário não estaria mais a sul, tampouco, e eles estariam passando pelos iglus a uma distância considerável, e só deparariam com eles por acidente, na melhor das hipóteses.

Harry desejava poder encontrar o caminho de volta por referências visuais, mas a noite e a tempestade apagavam todas as referências. Além disso, na calota de gelo, uma paisagem monótona era muito parecida com outra e mesmo num dia claro era possível se perder sem uma bússola.

Ele olhou o espelho lateral, do lado de fora do plexiglas salpicado de gelo. Os faróis do segundo trenó - que levava Pete e Claude - brilhavam na escuridão de frigorífico, atrás dele.

Embora tivesse se distraído só por um segundo, ele rapidamente retomou o exame do gelo à frente, na expectativa de ver a boca aberta de um abismo logo à frente das ponteiras pretas dos esquis do trenó, A terra caiada ainda se estendia inteira dentro da longa noite.

Também esperava ver um brilho de luz no acampamento temporário. Rita e Franz deviam compreender que sem uma referência seria difícil, senão impossível, eles acharem o acampamento num tempo daqueles. Os dois na certa iam ligar os faróis do trenó e focalizá-los na parede de gelo atrás do acampamento. O brilho, refletido e intensificado, serviria com certeza como um farol.

Mas ele era incapaz de ver mesmo uma vaga, mortiça, luz à frente. A escuridão o preocupava, porque tinha para si que ela significava que o acampamento se fora, soterrado por toneladas de gelo.

Embora fosse em geral otimista, Harry às vezes era tomado por um medo mórbido de perder a mulher. No fundo, não acreditava que realmente a merecesse. Ela havia trazido mais alegria à sua vida do que jamais acreditara possível. Ela lhe era preciosa e o destino tinha o hábito de tomar do homem aquilo que ele conservava mais perto do coração.

De todas as aventuras que tinham enchido a vida de Harry desde que deixara aquela fazenda de Indiana, o relacionamento com Rita era de longe a mais excitante e gratificante. Ela era mais exótica, misteriosa, mais capaz de encantar e surpreender e deliciar do que todas as maravilhas do mundo juntas.

Ele considerou que a ausência de sinais de luz era mais provavelmente um sinal positivo. Eram boas as probabilidades de que os iglus ainda estivessem de pé no sólido continente de gelo e não no iceberg. E se o acampamento temporário ainda estava na calota, então Rita estaria a salvo na Estação Edgeway em poucas horas.

Mas, estivesse Rita no iceberg ou em terra firme, a encosta de pressão que se erguia atrás do acampamento podia ter desabado, esmagando-a.

Curvando-se mais sobre as barras de direção, espreitou por entre a neve caindo: nada.

Se encontrasse Rita viva, ainda que ela estivesse tão prisioneira quanto ele, agradeceria a Deus todos os minutos do resto de sua vida - que poderiam ser poucos e preciosos. Como haveriam eles de sair desse navio de gelo? Como sobreviveriam à noite? Um fim rápido seria preferível à miséria de uma lenta morte por congelamento.

A apenas 10 metros à frente, uma estreita linha negra surgiu sob os faróis, na planície varrida pela neve: uma rachadura no gelo, pouco visível da sua perspectiva.

Freou com força. A máquina deslizou cerca de 30 graus no seu eixo, com os esquis fazendo barulho. Ele girou as barras de direção para o lado, até retomar a trilha de novo, e então girou para a direita.

Ainda se movendo, deslizando como um jogador de hóquei, meu Jesus, a seis metros do buraco e ainda deslizando...

As dimensões da linha negra se tornaram mais claras. O gelo estava visível além dela. Assim, devia ser uma cratera. Não a borda do iceberg, com somente a noite além dele e o mar gelado em sua base. Apenas uma cratera.

...deslizando, deslizando...

Na saída do acampamento, o gelo não apresentava falhas. Aparentemente, a atividade submarina tinha também aberto essa fenda.

...cinco metros...

Os esquis chacoalharam. Algo bateu embaixo da cabine. A cobertura de neve era fina. O gelo oferece pouca tração. A neve ondeava dos esquis, do rodopiante deslizador de poliuretano, como nuvens de fumaça.

...três metros...

O trenó parou suavemente, balançando imperceptivelmente a suspensão com os deslizadores, tão perto da cratera que Harry não foi capaz de ver o limite do gelo sobre a frente inclinada da máquina, As ponteiras dos esquis deviam estar projetando-se no ar, além da borda. Mais uns centímetros e ele teria balançado como uma gangorra, oscilando entre a vida e a morte.

Ele fez o veículo deslizar de ré 50 ou 70 centímetros, até que pudesse ver o precipício.

E pensou se não seria clinicamente maluco, por querer trabalhar naquelas vastidões mortais.

Tremendo, mas não por causa do frio, baixou os óculos da testa, ajustou-os nos olhos, abriu a porta da cabine e saiu. O vento tinha a força de um golpe de malho, mas não se importou com isso. O arrepio que o atravessara era uma prova de que estava vivo.

Os faróis mostravam que a cratera tinha uma largura de apenas quatro metros no centro e se estreitava drasticamente em direção às duas extremidades. Com não mais que uns 15 metros de comprimento, não era grande, mas tinha tamanho suficiente para tê-lo engolido. Olhando a escuridão sob os faróis, Harry suspeitou que a fenda tivesse dezenas de metros de profundidade.

Estremeceu e deu as costas para o buraco. Sob as muitas camadas de roupa sentiu uma gota de suor, um puro destilado do medo, escorrer pelo meio das costas.

Seis metros atrás do seu trenó, o segundo veículo estava parado com o motor ligado, as luzes brilhando. Pete Johnson esgueirou-se pela porta da cabine.

Harry acenou e foi em sua direção.

O gelo rugiu.

Surpreso, Harry parou.

O gelo moveu-se.

Por um momento, pensou que outra onda sísmica estava passando sob eles. Mas estavam à deriva agora e não seriam afetados por um tsunami da mesma maneira que ocorrera na calota fixa. A montanha iria apenas oscilar como um navio no mar crespo e escapar da turbulência sem danos; ela não iria gemer, rachar, partir-se e tremer.

O distúrbio era inteiramente localizado - de fato, diretamente sob os seus pés. De repente, o gelo abriu-se na sua frente, uma rachadura em ziguezague com uns três centímetros de largura, depois mais larga, mais larga, agora da largura de sua mão e até mais. Ele estava de costas para a borda e a parede fraturada da cratera recente estava se desintegrando debaixo dele.

Hesitou, jogou-se para a frente, saltou a fissura, consciente de que ela se alargava debaixo dele quando ainda estava no meio do salto. Caiu do outro lado e rolou para além do traiçoeiro remendo de gelo.

Atrás dele, a parede da cratera partiu-se em barras grossas de gelo, que desmoronaram no abismo e ressoaram lá embaixo. O chão da planície estremeceu.

Harry ficou de joelhos, sem saber se ainda estava em segurança. Inferno, não! A borda do buraco continuava a se desintegrar, a brecha caminhava em sua direção e ele correu freneticamente para longe dela.

Arquejante, olhou para trás, a tempo de ver seu trenó, com o motor funcionando, deslizar no buraco. O veículo bateu de encontro à parede oposta da cratera e foi atingido por um bloco de gelo do tamanho de um caminhão. O combustível dos tanques principal e auxiliar explodiu. As chamas subiram no vento mas logo sumiram, enquanto os destroços em chamas procuravam as profundezas. Em volta e debaixo dele, fantasmas vermelho-laranja luziram brevemente no gelo leitoso; então o fogo sumiu e a escuridão tomou conta de tudo.

1:07

Criofobia. Medo do gelo.

As circunstâncias faziam com que fosse agora muito mais difícil para Rita reprimir aquele habitual terror persistente, debilitante.

Partes da encosta de pressão tinham desabado, enquanto outras tinham sido radicalmente reformadas pelo tsunami. Agora uma gruta rasa - de aproximadamente 12 metros de profundidade e nove de largura - brotava dessas muralhas brancas. O teto tinha cerca de seis metros de altura em alguns lugares e três em outros: uma metade suave e inclinada, a outra composta por incontáveis blocos e pedaços de gelo, juntados num apertado mosaico solidário branco, que tinha uma beleza malevolente e recordava a Rita os cenários surrealistas de um velho filme, O Gabinete do Dr. Caligari.

Ela hesitou na entrada do frio abrigo, relutando em seguir Franz Fischer através do portal, castigada pelo medo irracional de que estaria se movendo não apenas uns poucos centímetros à frente mas também no tempo, até àquele dia de inverno quando tinha seis anos, para o rumor e o estrondo e a morte viva do túmulo branco...

Apertando os dentes, lutando para reprimir um sentimento de medo quase paralisante, ela entrou. A tormenta rugia atrás e ela achou relativamente calmo o interior daquelas paredes brancas, além do alívio de escapar das mordidas do vento e da neve.

Com sua lanterna, Rita estudou o teto e as paredes, procurando indicações de que a estrutura não estava sob iminente perigo de desabamento. A gruta parecia suficientemente sólida no momento, embora outro poderoso tsunami, cruzando debaixo do gelo, pudesse pôr o teto abaixo.

- Arriscado - disse ela, incapaz de evitar que a voz fremisse nervosamente.

Franz concordou.

- Mas não temos escolha.

Os três abrigos infláveis tinham sido completamente destruídos. Ficar lá fora, sob a força cada vez mais feroz do vento, por um longo período, seria namorar a hipotermia, apesar da roupa isolante. A desesperada necessidade de abrigo superava o medo da gruta.

Eles saíram, apanharam o rádio de ondas-curtas - que escapara à destruição do acampamento - e o instalaram no chão da gruta de gelo, contra a parede do fundo. Franz puxou fios da bateria de reserva do trenó intacto e eles fixaram o transmissor. Rita ligou-o e a faixa de seleção brilhou num verde marinho. O ruído da estática e um assovio fantasmagórico escorreram pelas paredes de gelo.

- Está funcionando - disse ela, aliviada.

Ajustando o capuz, para torná-lo mais apertado na garganta, Franz disse:

- Vou ver o que mais posso salvar.

Deixando a lanterna com ela, ele saiu na tempestade, os ombros curvados e a cabeça baixa, na tentativa de protegê-la do vento.

Mal tinha Franz saído e chegou uma transmissão urgente de Gunvald, da Estação Edgeway.

Rita agachou-se sobre o rádio e respondeu logo ao chamado.

Que alívio ouvir sua voz - disse Gunvald. - Estão todos bem?

- O acampamento foi destruído, mas Franze eu estamos OK. Nós nos abrigamos numa gruta de gelo.

- E Harry e os outros?

- Não sabemos o que aconteceu com eles - disse ela e seu peito se apertou de ansiedade. - Eles estavam fora trabalhando. Demos 15 minutos para eles aparecerem, antes de sairmos à sua procura. - Rita hesitou e limpou a garganta.-O problema é que... estamos à deriva.

Por um momento, Gunvald ficou atônito demais para falar.

- Tem certeza?

- A mudança de direção do vento nos alertou. E depois a bússola.

- Um momento - pediu Larsson, com audível tristeza. - Deixe-me pensar.

Apesar da tempestade e dos fortes distúrbios magnéticos que acompanhavam o mau tempo naquelas latitudes, a voz de Larsson era clara e fácil de seguir. Mas então ele estava a apenas seis quilômetros de distância. À medida que a tormenta piorasse e o iceberg se afastasse no rumo sul, eles certamente teriam sérios problemas de comunicação. Ambos compreenderam que em breve perderiam contato, mas nenhum deles mencionou isso.

- Qual é o tamanho do iceberg de vocês? Tem uma idéia? -perguntou Larsson.

- Nenhuma. Não tivemos oportunidade de fazer um reconhecimento. Agora mesmo, estamos só procurando o que pode ser salvo do desastre do acampamento.

- Se o iceberg não for muito grande... A voz de Gunvald sumiu na estática.

- Não estou te ouvindo. Estalos de estática.

- Gunvald, você ainda está aí?

- ...se a montanha não for grande... - reatou ele - ...Harry e os outros podem não estar à deriva com vocês.

- Espero que seja verdade - disse Rita, fechando os olhos.

- Seja ou não, a situação é desesperadora. O tempo ainda está bom o suficiente para que eu possa mandar uma mensagem por satélite para a base da Força Aérea americana em Thule. Uma vez que eu os tenha alertado, eles podem contatar os rebocadores da frota da ONU, ao sul de vocês.

- Mas e daí? Nenhum comandante consciente traria um rebocador para o norte em meio a uma tempestade de inverno. Ele perderia o navio e sua tripulação tentando nos salvar.

- Eles têm em Thule o mais moderno avião de salvamento e uns danados de uns helicópteros capazes de manobrar nas piores condições.

- Ainda não inventaram um avião que possa voar com segurança numa tormenta dessas; capaz de descer num iceberg varrido pela ventania.

O rádio emitiu somente estalidos de estática e uns guinchos eletrônicos, mas ela sentiu que Gunvald ainda estava lá.

Sim, pensou ela, eu também fico sem palavras.

Olhou para os recortes angulosos que tinham se amontoado para formar o teto. Neve e filetes de gelo escapavam por entre algumas fendas. Finalmente, o sueco disse:

- OK, você está certa a respeito do avião. Mas não podemos abrir mão da esperança de salvamento.

- Concordo.

- Porque... bem... ouça, Rita, essa tempestade pode durar três ou quatro dias.

- Ou mais - reconheceu ela.

- Vocês não têm alimento suficiente para todo esse tempo.

- Quase nada. Mas alimentos não são tão terrivelmente importantes - disse Rita. - Nós podemos ficar mais de quatro dias sem comer.

Ambos sabiam que a inanição não era o grande perigo. Nada importava mais do que o frio interminável, de congelar os ossos.

- Revezem-se, aquecendo-se dentro dos trenós. Vocês têm uma boa reserva de combustível?

- O suficiente para voltar para Edgeway, se isso fosse possível. Nada mais que isso. O suficiente para fazer os motores funcionarem durante algumas horas, não durante dias.

- Bem, então...

Silêncio. Estática.

Ele voltou depois de alguns segundos.

- ...vou fazer aquela chamada para Thule de qualquer modo. Eles precisam saber. Eles podem encontrar uma solução em que nós não pensamos, ter uma perspectiva menos emocional.

- Edgeway ficou intacta?

- Ilido bem aqui.

- E você?

- Nenhum machucado.

- Bom saber disso.

- Eu vou viver. E você também, Rita.

- Eu vou tentar - disse ela. - Com certeza, vou fazer diabo para isso.

 

1:10

Brian Dougherty sifonou gasolina do tanque do trenó que ficara de pé e a derramou sobre um pedaço de gelo, de meio metro quadrado, à borda do despenhadeiro.

Roger Breskin riscou um fósforo químico e jogou-o na gasolina. As chamas irromperam, agitaram-se ao vento como brilhantes bandeiras esfarrapadas, mas apagaram-se em segundos. Ajoelhando-se onde o fogo existira, Brian examinou a borda do precipício. O gelo antes era irregular; estava agora suave e escorregadio. Uma corda de alpinista podia deslizar sobre ele sem se desgastar - Está bom? - perguntou Roger.

Brian fez que sim com a cabeça.

Roger curvou-se e agarrou a ponta solta de uma corda de 14 metros, que ele tinha amarrado ao quadro do trenó e ainda enrolado num comprido pino de rosca, idêntico aos usados para fixar o radiotransmissor. Rapidamente, passou-a em torno do peito e ombros de Brian, formando uma espécie de arreio. Apertou três nós bem fortes no centro do peito do jovem e disse:

- Está seguro. É de náilon, testada com 500 quilos. Lembre-se apenas de agarrar a corda acima de sua cabeça com as duas mãos, de modo que você pelo menos alivie uma parte da pressão sobre os ombros.

Por não confiar em que fosse falar sem gaguejar de nervoso, Brian sacudiu a cabeça.

Roger retornou ao trenó, que estava de frente para o precipício e desconectado do trailer de carga. Entrou na cabine e fechou a porta. Apertou os freios e acelerou o motor.

Tremendo, Brian espichou-se de barriga para baixo, achatado no gelo. Respirou fundo através da máscara de tricô, hesitou apenas um momento e impulsionou o corpo alguns centímetros sobre a borda do despenhadeiro. Embora não tivesse descido muito, sentiu um frio no estômago e um arrepio de terror o atravessou como uma corrente elétrica. A corda apertou-o, controlando a descida quando sua cabeça estava apenas alguns centímetros abaixo do topo do iceberg.

Ao mesmo tempo, muito pouco da corda ultrapassou a borda para permitir-lhe agarrar-se firme nela. Foi forçado a suportar o esforço inteiramente nos ombros. Imediatamente, uma forte pontada subiu pelas juntas, ao longo das costas e até a nuca. A pontada logo logo evoluiria para uma dor aguda.

- Vamos, vamos, Roger - murmurou. - Seja rápido.

Brian estava de frente para a parede de gelo. Atritou-se e bateu contra ela, enquanto o vento o castigava com socos.

Ousou virar a cabeça e olhar para baixo, na expectativa de não ver senão a negra boca aberta do buraco. Fora do clarão dos faróis, no entanto, seus olhos se acostumaram logo à escuridão e a vaga fosforescência natural do gelo lhe permitiu distinguir a muralha lisa contra a qual se pendurava e os blocos recortados no fundo. Dezoito ou vinte metros abaixo, as manchas brancas no mar fervilhante exibiam uma luminescência fantasmagórica peculiar, enquanto subiam de dentro da noite em fileiras sucessivas e chocavam-se com fúria espumosa contra o iceberg.

Roger Breskin puxou tanto o afogador que o trenó quase morreu.

Ele considerou o problema pela última vez: Dougherty tinha 1,83m de altura e a saliência estava seis metros abaixo; portanto, ele tinha de baixar Dougherty cerca de seis metros para pô-lo no ressalto e permitir-lhe ainda uma sobra de 1,80m de corda, de modo a assegurar-lhe suficiente mobilidade para lidar com George Lin. Eles tinham marcado os seis metros na corda com um pedaço de nano vermelho vivo, de modo que quando a marca desaparecesse sobre a borda, Dougherty teria chegado na posição. Mas a corda tinha de ser baixada o mais devagar possível, ou o rapaz podia ser nocauteado contra a face do iceberg.

Além do mais, o trenó estava a apenas 12 metros do precipício; se deslizasse muito rápido, Roger poderia não conseguir parar a tempo de se salvar, deixando abandonados Dougherty e Lin. Preocupava-o que a velocidade baixa do trenó acabasse se mostrando perigosamente rápida para esse trabalho; e hesitou, agora que estava pronto para começar.

Uma violenta rajada de vento apanhou Brian por detrás e para a direita, pressionando-o contra a face do despenhadeiro mas também para a esquerda, de modo que ficou pendurado num ligeiro ângulo. Quando o vento diminuiu depois de um momento, caindo para cerca de 45 quilômetros por hora, o rapaz começou a oscilar gentilmente como um pêndulo, num arco de meio a um metro.

Ele espiou o ponto onde a corda encontrava a borda da encosta. Mesmo que tivesse cuidadosamente amaciado o gelo com gasolina em fogo, qualquer atrito era capaz de gastar a corda de náilon.

Fechou os olhos e acomodou-se nos arreios, à espera de ser baixado no ressalto. Sua boca estava seca como a de um extraviado no deserto e o coração batia tão forte e intensamente que parecia capaz de rachar as costelas.

Já que Roger tinha grande experiência com o trenó motorizado, havia parecido lógico e razoável que Brian devesse ser o encarregado de descer e resgatar George Lin. Agora desejava que tivesse sido ele o bamba em trenó. Diabo, por que estava demorando tanto?

Sua impaciência evaporou, quando desceu de repente como se a corda tivesse se rompido. Aterrissou no ressalto com tanta força que a dor jogou suas pernas para o alto da espinha. Os joelhos dobraram como se fossem de papelão molhado. Caiu contra a face da ribanceira, chocou-se com ela e foi projetado fora da estreita laje em meio à noite batida pelo vento.

Estava assustado demais para gritar.

O trenó arremeteu e correu para a frente com excessiva rapidez Roger apertou os freios imediatamente depois de tê-los soltado A marca vermelha sumiu pela borda mas a máquina ainda estava se movendo. Como o vento havia varrido a neve e polido o gelo, o atrito era pequeno. Tão suavemente quanto um fantasma deslizando num assoalho encerado, o trenó escorregou mais três metros, os faróis furando uma escuridão eterna, antes de se deter finalmente, a menos de três metros da borda do abismo.

Os arreios apertaram com força o peito e as axilas de Brian. Comparada com a dor aguda nas pernas e a pontada nas costas, no entanto, a nova agonia era suportável.

Estava surpreso de que ainda estivesse consciente - e vivo.

Desprendendo a lanterna do cinto de ferramentas que trazia em torno da cintura, cortou a perfeita escuridão em volta de si com a lâmina da luz, e torrentes de flocos de neve jorraram sobre ele.

Tentando não pensar no mar gelado lá embaixo, espiou a laje sobre a qual tinha desabado. Ela estava a pouco mais de um metro acima de sua cabeça. Um metro à esquerda, os dedos enluvados da mão direita inerte de George Lin subiam pela plataforma.

Brian estava de novo oscilando num pequeno arco. Sua linha de vida raspava para a frente e para trás, no ressalto, que não tinha sido derretido por gasolina em chamas e reluzia asperamente. Partículas e navalhas de gelo choveram sobre ele, enquanto a corda esculpia uma cavidade rasa naquela borda abrasiva.

Um jato de luz tombou do alto.

Brian ergueu os olhos e viu Roger Breskin olhando-o do topo do penhasco.

Deitado sobre o gelo, a cabeça sobre o precipício e o braço direito estendido com a lanterna, Roger protegeu a boca com a mão livre e gritou alguma coisa. O vento despedaçou suas palavras num confete de sons sem sentido.

Brian ergueu a mão e fez um aceno fraco.

Roger gritou mais alto do que antes:

- Você está bem?

Sua voz soou como se chegasse da extremidade de um túnel ferroviário de 10 quilômetros.

Brian fez que sim com a cabeça da melhor maneira que pôde: sim, tudo bem. Não havia como transmitir, a não ser assim, o grau de medo e preocupação que lhe causava a persistente dor nas pernas.

Breskin gritou, mas só algumas de suas palavras chegaram a Brian:

- Vou... o trenó... marcha-à-ré... puxar você... para cima.

Brian fez outra vez que sim com a cabeça.

Roger desapareceu, obviamente correndo para o trenó.

Deixando sua lanterna acesa, Brian prendeu-a no cinto de ferramentas, com o jato de luz sobre o pé direito. Levantou os braços acima da cabeça e agarrou a corda esticada com as duas mãos, erguendo-se ligeiramente para ter uma noção da pressão sobre a parte superior dos braços, na iminência de deslocarem-se dos ombros.

O trenó puxou um pouco da corda. O movimento foi suave em comparação à descida e ele não foi jogado contra a ribanceira.

Dos joelhos para baixo, suas pernas estavam ainda abaixo da laje. Ele balançou-as e subiu-as, plantou os dois pés na estreita prateleira de gelo, agachou-se nela. Soltou a corda e pôs-se de pé.

Os tornozelos doíam, os joelhos pareciam feitos de geléia e a dor lhe percorria as coxas. Mas as pernas o sustentavam.

Pegou dentro do bolso do casaco, fechado com zíper, uma haste - um pino de 13 centímetros, com uma ponta aguçada e uma cabeça de uma polegada de diâmetro. Tirou um pequeno martelo do cinto de ferramentas e martelou a haste numa rachadura apertada da encosta.

Outra vez a lanterna de Roger brilhou no alto.

Quando o pino estava firme, Brian desprendeu do cinto um maço de linha de náilon de dois metros de comprimento. Antes de descer, atou uma das pontas a uma argola de alpinista; depois, enfiou a argola na haste e apertou o parafuso de segurança. A corda de segurança resultante o salvaria da morte se escorregasse e caísse da laje, mas estava livre o suficiente para socorrer George Lin. Assim amarrado pela cintura, desatou os nós que prendiam a armadura de cordas em torno do seu peito e braços. Quando se viu livre da corda principal, ele a enrolou e pendurou em volta do pescoço.

Para evitar um pouco da força prejudicial do vento, ficou de quatro e engatinhou até Lin. A luz de Roger Breskin o acompanhou. Pegou a própria lanterna do cinto e colocou-a sobre a laje, voltada para a ribanceira, com o facho brilhando sobre o homem inconsciente. Inconsciente ou morto?

Antes de saber a resposta, ele tinha de olhar o rosto de Lin. Virá-lo de costas não era tarefa fácil e Brian precisava ter muito cuidado para que o cientista não rolasse no abismo. Quando Lin ficou de costas, recuperou a consciência. Sua pele âmbar - pelo menos os poucos centímetros quadrados da face que estavam expostos - estava de uma palidez chocante. Contra a fenda de sua máscara, sua boca movimentou-se, sem produzir nenhum som. Por trás dos óculos cobertos de manchas congeladas, os olhos estavam abertos; eles expressavam alguma confusão mas não pareciam os olhos de um homem em dor profunda ou delirando.

- Como está se sentindo? - gritou Brian, por cima do barulho do vento.

Lin olhou-o sem entender e tentou se sentar. Brian pressionou-o para baixo.

- Cuidado. Você não vai querer cair.

Lin virou a cabeça e olhou a escuridão, de onde a neve escorria ainda mais rápido. Quando tornou a olhar Brian, sua palidez se acentuara.

- Está muito machucado? - perguntou Brian.

Por causa da roupa térmica de Lin, Brian não podia verificar se o homem tinha algum osso quebrado.

- Só um pouco de dor no peito - disse Lin, mal podendo se fazer ouvir no meio da tormenta.

- Coração?

- Não. Quando eu caí na ribanceira... o gelo ainda estava rolando... por causa da onda... a ribanceira estava inclinada. Eu deslizei para baixo... e aterrissei duro aqui de lado. É tudo o que lembro.   - Costelas quebradas?

Lin respirou fundo e piscou.

- Não. Provavelmente não. Só machucado, eu acho. Está doendo. Mas não há nada fraturado.

Brian tirou o rolo de corda do pescoço.

- Tenho de fazer um arreio por debaixo de seus braços, em volta do peito. Você vai agüentar?

- Tenho alguma escolha?

- Não.

- Então vou agüentar.

- Você tem de se sentar.

Gemendo, Lin ergueu-se com cuidado até ficar sentado, de costas contra a ribanceira, as pernas oscilando no vazio.

Brian rapidamente preparou uma armadura, amarrou um nó duplo apertado sobre o esterno de Lin e levantou-se. Curvou-se e ajudou o ferido a ficar de pé. Viraram-se, para deixar o mar e o vento mortal às suas costas. Neve seca, quase granular, batia na parede de gelo, saltava dela e espirrava no rosto deles.

- Pronto? - gritou Roger, seis metros acima.

- Sim. Mas vá com calma!

Lin bateu as mãos rapidamente, fazendo barulho. Partículas de gelo caíram de suas luvas. Ele flexionou os dedos.

- Sinto-me... todo entorpecido. Posso mover os dedos... mas mal os sinto.

- Você vai ficar bom.

- Não posso sentir... os dedos dos pés. Dormentes. Não é bom. Ele estava certo em relação a isso. Quando o corpo fica tão frio que é encorajado a adormecer para conservar o precioso calor, a morte pode não estar muito longe.

- Assim que chegar ao topo, entre no trenó - ordenou Brian. - Em 15 minutos, você estará tão quente quanto uma torrada. - Você chegou a mim na hora certa. Por quê?

- Por que como?

- Você arriscou a vida.

- Não, na verdade.

- Sim, é verdade.

- Bem, você não teria feito o mesmo?

A corda esticada foi puxada para cima, levando George Lin Sua ascensão foi suave. No topo do precipício, entretanto, Lin ficou preso, com os ombros acima da beira e o resto do corpo balançando no vento. Ele estava fraco demais para se alçar até a segurança.

Os anos de treinamento de Roger Breskin como halterofilista o ajudaram. Ele deixou o trenó e com facilidade puxou George Lin nos últimos centímetros até o topo do iceberg. Desamarrou a armadura de corda dos ombros do outro e jogou a corda para Brian.

- Teste em você... tão logo... George estiver acomodado! -gritou.

Embora sua voz fosse entrecortada pelo vento, a ansiedade era evidente nela.

Há apenas uma hora, Brian não poderia ter sido convencido de que Roger - sólido como uma rocha, com seu pescoço de touro e bíceps maciços e suas mãos poderosas e seu ar de total autoconfiança - pudesse estar com medo de alguma coisa. Agora que o medo do outro era evidente, Brian sentiu menos vergonha do terror que lhe dava um nó nas tripas. Se um filho da puta durão como Roger era suscetível ao medo, então mesmo um dos estóicos Doughertys poderia se permitir essa emoção umas poucas vezes na vida.

Ele agarrou a corda e se instalou nela. Depois desatou o fio de segurança preso à cintura, soltou a outra ponta da haste, enrolou-o e prendeu-o no cinto de ferramentas. Apanhou a lanterna sobre a laje e também a prendeu no cinto. Ele teria recuperado o pino também, se tivesse meios e forças para arrancá-lo do gelo. Seus suprimentos, combustível e ferramentas não tinham preço. Eles não se atreviam a se descartar de nada. Ninguém arriscaria predizer que miudeza, agora insignificante, poderia acabar sendo essencial para a sobrevivência deles.

Estava pensando na sobrevivência deles ao invés da sua, porque sabia que era o membro da expedição com menos probabilidade de sair com vida do sofrimento ainda por vir. Embora tivesse passado por quatro semanas de treinamento no Instituto Ártico do Exército americano, ele não estava familiarizado com a calota polar ou tão condicionado quanto os outros. Além disso, tinha 1,83m e pesava 85 quilos. Emily, sua irmã mais velha, o chamava de molengão desde que ele fizera 16 anos. Mas tinha ombros largos e seus braços magros eram musculosos: um molengão podia ser, mas não um fracote. Um fracote nunca poderia ter transposto as corredeiras do rio Colorado, acompanhado os caçadores de tubarões de Bimini, escalado montanhas no Estado de Washington. E desde que tivesse um iglu aquecido ou uma sala com aquecimento na Estação Edgeway para onde pudesse voltar depois de um longo dia de exposição no frio debilitante, ele podia agüentar tudo numa boa. Mas isso era diferente. Os iglus poderiam não mais existir; e ainda que existissem, poderia não haver suficiente combustível nos tanques dos trenós ou vida nas baterias para mantê-los aquecidos além de mais um dia. A sobrevivência, nesse caso, demandava uma força especial e uma dose de estamina que só vinham com a experiência. Não estava de jeito nenhum certo de ter a fortaleza para seguir adiante.

O que ele mais lamentava em ter de morrer era o desgosto de sua mãe. Era a melhor de todos os Doughertys, acima do estrume da política, e já tinha sofrido demais. Por Deus, Brian já lhe tinha causado não pouca...

Um jato de luz de lanterna o achou na escuridão.

- Pronto para subir? - gritou Roger Breskin.

- Assim que você quiser. Roger voltou para o veículo.

Mal tinha Brian se abraçado e a corda foi içada, pondo nova e mais terrível pressão nos seus ombros doloridos. Castigado pelo vento, meio zonzo de dor, incapaz de parar de pensar no imenso túmulo aquático que se agitava debaixo dele, deslizou ao longo da ribanceira tão suavemente quanto George Lin cinco minutos atrás. Quando chegou à borda, foi capaz de impulsionar o corpo e pisar o topo sem a ajuda de Roger.

Ergueu-se e deu uns passos incertos em direção aos faróis do trenó. Seus tornozelos e coxas estavam doloridos, mas a dor diminuiria com exercícios. Voltara virtualmente incólume.

- Inacreditável - disse. Começou a desatar os nós que mantinha presa a armação de corda. - Inacreditável.

- Do que você está falando? - perguntou Roger, aproximando-se.

- Eu não esperava conseguir.

- Não confiava em mim?

- Não é isso. Achei que a corda iria romper ou a ribanceira desabar ou algo assim.

- Você vai acabar morrendo - disse Roger, a voz profunda com um efeito quase teatral. - Mas este não era o lugar. E esta não era a hora.

Brian ficou tão espantado de ouvir Roger bancando o filósofo quanto teria ficado de saber que ele conhecia o medo.

- Se você não está ferido, é melhor ir andando.

- E agora? - perguntou Brian, esfregando os ombros late-jantes.

Roger limpou os óculos.

- Vamos desvirar o segundo trenó e ver se ainda funciona.

- E depois?

- Encontrar o acampamento temporário. Juntar-se aos outros.

- E se o acampamento não estiver sobre este iceberg, conosco? Roger não ouviu a pergunta. Ele já tinha se virado e tomado a direção do trenó tombado.

A cabine do trenó que restava só acomodava dois homens; assim, Harry decidiu viajar atrás no trailer aberto de carga. Claude queria ceder seu lugar e Pete Johnson insistiu em que não iria sentar atrás das barras de direção, como se viajar no trailer fosse uma coisa boa, quando na verdade a exposição poderia acabar sendo mortal. Harry os fez calarem a boca e usou a condição de chefe para conseguir para si o pior lugar.

O trailer continha a chapa para aquecimento, de 46 centímetros quadrados, e o barril de aço no qual derretiam a neve para encher de água os buracos com explosivos. Eles tiraram o barril do trailer e o rolaram; o vento o impulsionou até sumir na noite e, dentro de segundos, o ruído oco de seu rolar sumiu em meio à sinfonia da tormenta. A chapa quente era pequena e, como poderiam precisar dela mais adiante, Claude achou lugar para guardá-la dentro da cabine.

Oito ou 10 centímetros de neve haviam se acumulado no leito do trailer e escorregavam pelas paredes de cinco centímetros de altura. Harry varreu a neve com as mãos.

Uma rajada de vento atrás dele uivou como apaches num filme de faroeste, correu sob o trailer e o fez balançar ligeiramente sobre o gelo.

- Eu ainda acho que você devia dirigir - argumentou Pete, quando o vento diminuiu um pouco.

Harry estava quase terminando de limpar a neve do trailer.

- Eu guiei o meu próprio buggy direto para o abismo de gelo e vocês ainda acham que podem confiar em mim?

Pete sacudiu a cabeça.

- Homem, sabe o que há de errado com você?

- Estou gelado e assustado.

- Não é isso.

- Bem, eu não corto as unhas dos pés há semanas. Mas não vejo como você podia saber disso.

- Eu quero dizer, o que há de errado dentro da sua cabeça.

- Esta não é a ocasião ideal para psicanálise, Pete. Puxa, vocês californianos são obcecados com terapia. - Harry varreu o restinho de neve do trailer. - Suponho que você acha que eu quero dormir com minha mãe...

- Harry...

- ...ou matar meu pai.

- Harry...

- Bem, se é isso o que você pensa, eu não sei como vamos poder continuar sendo amigos.

- Você tem um complexo de herói, Harry - disse Pete.

- Por insistir em viajar no trailer?

- É. Nós devíamos tirar a sorte.

- Isso aqui não é uma democracia.

- Seria justo.

- Deixe-me entender isso direito; você está exigindo viajar na parte de trás do ônibus?

Pete balançou a cabeça, tentando parecer sério, mas não pôde reprimir um sorriso.

- Seu pedaço de idiota.

- E me orgulho de ser.

Harry deu as costas para o vento e afrouxou a cordinha do capuz sob o queixo. Meteu a mão dentro da parte de trás do casaco e agarrou a máscara de lã grossa que estava enrolada no pescoço. Puxou-a sobre a boca e o nariz; nem um pedacinho do rosto ficou exposto. O que a máscara não cobria, o capuz e os óculos escondiam. Ajustou outra vez o capuz e apertou o tirante.

- Pete, você é grande demais para viajar no trailer de carga - disse ele, através da máscara.

- Você também não é exatamente um anão.

- Mas sou pequeno o suficiente para me encolher de lado e escapar do pior do vento. Você teria de se sentar. É a única maneira de você caber. E você congelaria até morrer.

- OK, OK, você está decidido a bancar o herói. Mas lembre-se, nenhuma medalha será dada no fim desta campanha.

- Quem precisa de medalhas? - Harry subiu no trailer e sentou no meio. - Estou é atrás de santidade.

Johnson inclinou-se para ele.

- Você acha que vai para o céu sendo casado com uma mulher que sabe mais piadas sujas do que todos os homens de Edgeway juntos?

- Não é uma coisa óbvia, Pete?

- O quê?

- Que Deus tem senso de humor.

Pete examinou a calota de gelo castigada pela tempestade.

- É. Um verdadeiro senso de humor negro. - Ele voltou até a porta da cabine, olhou para trás e, com considerável afeição, repetiu: - Idiota.

Instalou-se então atrás das barras de direção e fechou a porta.

Harry deu uma última olhada para aquele pedaço da planície de gelo revelado pelo clarão dos faróis do trenó. Não costumava pensar por metáforas, mas algo na escuridão do topo do mundo, alguma qualidade da paisagem, requeria metáforas. Talvez a quase incompreensível hostilidade da terra cruel somente pudesse ser exprimida em termos metafóricos que a tornassem menos estranha, menos assustadora. O campo de gelo era um dragão esmagador de dimensões monstruosas. A escuridão suave e profunda era a boca aberta do dragão. O vento apavorante era seu grito de raiva. E a neve, assoviando em torno, tão espessa agora que ele não conseguia ver nem 10 metros adiante, era a saliva da fera ou talvez a espuma pingando de suas mandíbulas. Se ela se decidisse a isso, poderia engolir todos eles sem deixar rastro.

O trenó começou a se mover.

Afastando-se do dragão, Harry deitou do lado esquerdo. Encolheu os joelhos até o peito, a cabeça abaixada, dobrou as mãos sob o queixo. Era toda a proteção que podia se proporcionar.

As condições no trailer eram ainda piores do que havia pensado - e tinha esperado que elas fossem quase intoleráveis. O sistema de suspensão era primitivo ao máximo e qualquer irregularidade da planície de gelo era instantaneamente transmitida através dos esquis e molas do leito de carga. Ele sacudia e escorregava de um lado do estreito espaço para o outro. Nem mesmo a roupa pesada podia acolchoá-lo contra os choques mais cruéis e as costelas do lado direito logo reverberavam com uma dor suave. O vento rugia sobre ele de todas as direções; golpes de ar frio procuravam ativamente e sem descanso brechas em sua armadura ártica.

Consciente de que permanecer nessas condições só tornaria tudo muito pior, guiou seus pensamentos através de outros canais.

Fechou os olhos e evocou um vivido retrato de Rita. Mas para não pensar nela como poderia estar - gelada, assustada, ferida ou até mesmo morta - lançou sua mente para trás no tempo, de volta ao dia em que eles tinham se conhecido. A segunda sexta-feira de maio. Quase nove anos atrás. Em Paris...

Ele assistia a uma conferência de quatro dias para cientistas que haviam participado do Ano Geofísico das Nações Unidas. De todos os recantos do mundo, três centenas de homens e mulheres de diferentes especialidades tinham se reunido em Paris para seminários, palestras e discussões intensas, pagas por um fundo especial da ONU.

Às 3:00 da tarde de sexta-feira, Harry fez uma palestra para um punhado de geofísicos e meteorologistas interessados nos seus estudos do Ártico. Falou durante meia hora numa pequena sala do mezanino do hotel. Quando chegou ao ponto final, pôs as notas de lado e sugeriu que começassem o debate.

Durante a segunda parte do encontro, ficou surpreso e encantado com uma jovem e bela mulher que fez perguntas mais inteligentes e incisivas do que as que fizeram as vinte eminentes cabeças grisalhas presentes. Ela parecia meio irlandesa e meio italiana. A pele azeitonada parecia irradiar calor. Boca rasgada, lábios maduros: muito italiana. Mas a irlandesa também estava em sua boca, já que tinha um sorriso curioso, enviesado, que lhe dava uma qualidade de elfo. Os olhos eram verde irlandeses, claros - mas amendoados. Cabelos longos, castanhos, lustrosos. Num grupo que optava por tweeds, ternos práticos de primavera e vestidos simples, ela arrasava de jeans corduroy tingido e uma suéter azul-escura que destacavam sua figura excitante. Mas foi sua mente - rápida, inquisitiva, bem-informada, treinada-o que mais fascinou Harry. Mais tarde, compreendeu que havia provavelmente esnobado os outros na platéia ao gastar tanto tempo com ela.

Quando o encontro acabou, ele a alcançou, antes que ela deixasse a sala.

- Gostaria de agradecer-lhe ter tornado este encontro mais agradável do que era para ele ter sido. Mas nem mesmo sei o seu nome.

- Rita Marzano - disse ela, sorrindo de um jeito oblíquo.

- Marzano. Eu achei que você parecia meio italiana, meio irlandesa.

- Meio inglesa, na verdade. - Seu sorriso se ampliou, sempre lateralmente - Meu pai era italiano, mas fui criada em Londres.

- Marzano... soa familiar. Sim, é claro, você escreveu um livro, não é? O título...

- Mudando o amanhã.

Mudando o amanhã era uma popularização da ciência, um estudo do futuro da humanidade projetado a partir das atuais descobertas na genética, bioquímica e física. Fora publicado nos Estados Unidos e freqüentara algumas listas de best sellers.

- Você leu?

- Não - admitiu ele.

- Meu editor britânico despachou 400 exemplares para a convenção. Eles estão à venda com os jornais num canto do lobby. - Ela olhou o relógio. - Estou escalada para uma sessão de autógrafos agora. Se quiser um exemplar com dedicatória, não o deixarei esperando na fila.

À noite, ele não fora capaz de largar o livro até chegar à última página, às 3:00 da madrugada. Estava fascinado pela metodologia dela - sua maneira de ordenar os fatos, seu enfoque não-convencional mas lógico dos problemas, pois eles eram alarmantemente parecidos com seus próprios processos mentais. Sentiu-se quase como se estivesse lendo um livro que ele próprio houvesse escrito.

Dormiu durante as palestras da manhã e passou a maior parte da tarde procurando por Rita. Não conseguiu encontrá-la. Enquanto tomava banho e se vestia para a noite de gala, percebeu que não conseguia se recordar de uma única palavra da palestra a que comparecera.

Pela primeira vez na vida, Harry Carpenter começou a imaginar como seria a existência de um homem estabelecido ao dividir o futuro com uma mulher. Ele era o que muitas mulheres considerariam "um bom partido": quase 1,80m, 80 quilos, aparência agradável senão bonita, com olhos cinzentos e feições aristocráticas. Mas ele nunca quisera ser o partido de ninguém. Sempre quisera uma mulher que fosse sua igual, que não fosse dependente nem dominadora, uma mulher com quem pudesse dividir seu trabalho, idéias e esperanças, que o estimulasse no que o interessava. Pensou que talvez a tivesse achado.

Mas não sabia como se conduzir. Aos 33 anos, com oito anos de educação universitária nas costas, gastara demasiadas horas perseguindo metas acadêmicas e muito poucas aprendendo os rituais da conquista.

O programa para a noite incluía um filme-documentário sobre os principais projetos do Ano Geofísico das Nações Unidas, um banquete e um show, seguindo-se um baile ao som de uma banda com 12 músicos. Em princípio, ele teria ido apenas ao filme, quando muito. Mas havia uma boa chance de encontrar Rita Marzano num dos acontecimentos sociais.

Ela era a última da fila na sala de projeções do hotel, onde o filme seria mostrado. Parecia estar só e sorriu de lado quando o viu.

Com uma sinceridade que não podia controlar e um rubor que esperava que ela não notasse, ele disse:

- Estive procurando por você o dia todo.

- Eu fiquei entediada e fui fazer compras. Gosta do meu vestido novo?

O vestido não podia aumentar sua beleza, mas complementava tudo o que a natureza lhe dera. Era um longo, de mangas compridas, verde com botões bege. Os olhos dela capturavam a sombra do vestido, enquanto o cabelo castanho parecia mais brilhante pelo contraste.

O decote abaixo da linha do pescoço era incomum em áridas conferências de cientistas e o aderente tecido sedoso desenhava vagamente o bico dos seios. Com pequeno esforço, ela poderia encantá-lo tão rapidamente quanto uma flauta encanta uma cobra-

- Gosto dele - disse ele, tentando não olhar muito.

- Por que você me procurou durante todo o dia?

- Bem, por causa do livro, é claro. Eu gostaria de falar a respeito dele, se você tiver um minuto livre.

- Um minuto?

- Ou uma hora.

- Ou uma noite?

- Bem...

Com os diabos se ele não ficara vermelho de novo. Sentiu-se como o rapazinho de uma fazenda de Indiana.

Ela olhou a fila para a sala de exibições, voltou-se para Harry e sorriu.

- Se caíssemos fora daqui, teríamos toda a noite para conversar.

- Você não está interessada no filme?

- Não. Além disso, o jantar vai ser horrível. O show será mais do que convencional. E a orquestra vai desafinar.

- Jantamos juntos?

- Seria ótimo.

- Drinques antes no Deux Magots?

- Maravilhoso.

- Lapérouse para o jantar?

- É muito caro. - Ela franziu o rosto. - Você não tem de me levar para um primeira-classe. Fico tão feliz com cerveja quanto com champanhe.

- Essa é uma ocasião especial. Pelo menos para mim.

O jantar foi perfeito. Nenhum outro lugar de Paris oferecia uma atmosfera tão romântica quanto a parte superior do Lapérouse. O teto baixo e os murais em relevo nas paredes tornavam o restaurante quente e acolhedor. Da sua mesa, eles tinham a visão da cidade vestida de luzes, e mais abaixo o rio manchado de reflexos luminosos, o rio oleoso como o lenço negro desfraldado no pescoço do gigante de um conto de fadas. Comeram impecáveis oie rôtie aux pruneaux e, de sobremesa, tenros e minúsculos morangos em molho de gemada com vinho quente. Ao longo da refeição, desenrolaram um interminável novelo de conversação, logo tão à vontade quanto amigos que jantassem juntos há uma década. Na metade do ganso assado, Harry se deu conta de que ainda não discutira o livro, mas tinham divagado por arte, literatura, música, cozinha e muito mais, sem que em nenhum momento houvesse faltado assunto.

Quando terminou seu conhaque, ele se sentiu relutante em deixar que a noite acabasse tão depressa. Ela partilhou a relutância.

- Fomos franceses no jantar. Vamos agora bancar os turistas.

- O que você tem em mente?

O Crazy Horse constituía um atentado ao bom senso. Os clientes eram americanos, alemães, suecos, italianos, japoneses, árabes, britânicos, gregos e até mesmo uns poucos franceses, e sua conversação misturada resultava numa algaravia ruidosa freqüentemente pontuada com risos. O ar estava espesso de fumaça de cigarro, perfume e uísque. Quando a orquestra tocava, gerava um som de trincar cristais. Nas poucas vezes em que Harry quis falar com Rita, foi forçado a gritar, embora estivessem a meio metro um do outro, numa minúscula mesa.

O show no palco os fez esquecer o barulho e a fumaça. As moças eram maravilhosas. Pernas compridas. Seios fartos, empinados. Cinturas estreitas. Rostos irresistíveis. Mais variedade do que o olho era capaz de captar. Mais beleza do que a mente podia compreender facilmente ou o coração apreciar. Dezenas de garotas, na maior parte de seios nus. Todo tipo de fantasias, na maioria provocativas: cintos de couro, correntes, peles, botas, colares, penas, lenços de pescoço de seda. Seus olhos estavam pesadamente mascarados e algumas usavam desenhos com lantejoulas nas faces e corpos.

- Depois de uma hora isso acaba ficando chato - disse Rita. - Vamos?

Do lado de fora, ela disse:

- Nós não falamos sobre o meu livro, e isso era o que você de fato queria fazer. Se você topa, vamos caminhar até o Hotel George V, beber um pouco de champanhe e conversar.

Ele estava um tanto confuso. Ela parecia emitir sinais contraditórios. Eles não tinham ido ao Crazy Horse para ficarem ligados Não tinha ela esperado que ele tomasse depois alguma iniciativa? E agora ela estava pronta para falar de livros?

Enquanto cruzavam o lobby do George V e tomavam o elevador, ele perguntou:

- Eles têm aqui um restaurante no alto?

- Não sei. Nós vamos para o meu quarto.

A confusão dele aumentou.

- Você não está hospedada no hotel da conferência? Eu sei que é idiota dizer, mas este é terrivelmente caro.

- Eu ganhei uma bela quantia com Mudando o amanhã. Estou esnobando, desta vez. Tenho uma pequena suíte que dá para os jardins.

No quarto, uma garrafa de champanhe estava ao lado da cama, num balde de prata cheio de gelo. Ela apontou a garrafa.

- Moët. Abra, por favor.

Ele tirou a garrafa do balde - e viu que ela encolheu-se.

- O som do gelo - disse ela.

- O que é que tem? Ela hesitou:

- Me incomoda. Como unhas arranhando um quadro-negro. A essa altura, ele já estava tão sintonizado com ela que sabia que ela não estava dizendo a verdade, que ela se encolhera porque o gelo a recordava de alguma coisa desagradável. Por um momento, os olhos dela ficaram extraviados, afundados na lembrança que a fazia franzir a testa.

- O gelo quase não derreteu-observou ele. - Quando você pediu isso?

Afastando-se da lembrança perturbadora, ela o encarou e sorriu de novo.

- Quando fui ao banheiro, no Lapérouse.

- Você está me seduzindo - disse ele, incrédulo.

- Nós estamos no fim do século XX, você sabia?

- Bem, na verdade eu tenho observado que algumas vezes as mulheres usam calças nos dias de hoje - disse ele, fazendo humor à sua própria custa.

- Está ofendido?

- Por as mulheres usarem calças?

- Por tentar fazer você perder a cabeça.

- Pelo amor de Deus, não.

- Se eu fui atrevida demais...

- De jeito nenhum.

- Na verdade, eu nunca fiz uma coisa dessas antes. Quero dizer, ir para a cama no primeiro encontro.

- Nem eu.

- Mas parece certo, não é?

Ele soltou a garrafa no gelo e puxou-a para si. Seus lábios tinham a textura de um sonho e o corpo dela contra o seu parecia ser uma determinação do destino.

Eles desistiram do resto da conferência e permaneceram na cama. Pediam que mandassem para lá as refeições. Conversavam, faziam amor e dormiam como se estivessem drogados.

Alguém estava gritando seu nome.

Duro de frio, coberto de neve, Harry ergueu-se do fundo do trailer de carga e das lembranças deliciosas. Olhou por sobre o ombro.

Claude Jobert olhava-o através da janela traseira da cabine do trenó.

- Harry! Ei, Harry! - Mal se podia ouvir sua voz acima do barulho do vento e do motor. - Luzes! Adiante! Veja!

A princípio, não entendeu o que Claude queria dizer. Estava rígido, congelado e ainda um pouco no quarto do hotel em Paris. Então levantou o olhar e deu com uma nevoenta luz amarela que subia em meio aos flocos de neve e brilhava languidamente ao longo do gelo. Ficou de quatro, pronto para pular fora do trailer no momento em que ele parasse.

Pete Johnson dirigiu o trenó pelo familiar platô de gelo, até a bacia onde os iglus haviam estado. Os tetos estavam achatados, esmagados por enormes lajes de gelo. Mas um dos trenós estava funcionando, com os faróis acesos, e duas pessoas em roupas árticas estavam ao lado dele, acenando.

Uma delas era Rita.

Harry se lançou fora do trailer com o trenó ainda em movimento. Caiu na neve, rolou, ergueu-se derrapando e correu para ela.

- Harry!

Ele a agarrou, quase a levantou acima de sua cabeça, depois a baixou, tirou a máscara protetora e tentou falar, não conseguiu e tornou a abraçá-la.

Finalmente, com a voz trêmula, ela perguntou:

- Você está ferido?

- Sangue no nariz.

- Só isso?

- E está parando. E você?

- Só assustada.

Ele sabia que ela lutava o tempo todo contra o medo da neve, do gelo e do frio e nunca deixou de admirar a determinação indesviável dela de enfrentar suas fobias e de trabalhar no clima que ela mais detestava.

- Desta vez você tem boas razões - disse ele. - Escute, você sabe o que nós vamos fazer se escaparmos deste maldito iceberg?

Ela sacudiu negativamente a cabeça e levantou os óculos embaçados, de modo que ele pudesse ver seus adoráveis olhos verdes. Eles estavam maiores de curiosidade e alegria.

- Vamos a Paris - disse ele.

- Ao Crazy Horse-disse ela, sorrindo.

- Ao George V.

- Um quarto dando para os jardins.

- Moët.

Ele ergueu os óculos e ela o beijou.

Batendo com a mão no ombro de Harry, Pete Johnson disse:

- Tenha alguma consideração por aqueles cujas esposas não gostam do ar gelado. E ouviu o que eu disse? O bando está todo aqui - e apontou para um par de trenós vindo em direção a eles através da neve.

- Roger, Brian e George - disse Rita, com óbvio alívio.

- Deve ser - disse Johnson. - Não é provável que se trate de um punhado de estranhos andando por aqui.

- A turma está toda aqui - concordou Harry. - Mas, por Deus, o que vai acontecer agora?

1:32

No décimo quarto dia de uma missão de espionagem eletrônica de cem dias, o submarino nuclear russo Ilya Pogodin alcançou a primeira estação de monitoramento da sua escala. O comandante, Nikita Gorov, ordenou à tripulação que conservasse a embarcação dentro das correntes moderadas que correm de sudeste para noroeste da ilha Jan Mayen, a 60 quilômetros da costa da Groenlândia e a 30 metros de profundidade da tempestuosa superfície do Atlântico Norte.

O Ilya Pogodin tinha sido batizado com o nome de um funcionário Herói do Povo Soviético, antes que a burocracia corrupta tivesse fracassado e o Estado totalitário desabado sob o peso de sua própria ineficiência e venalidade. O nome do barco não fora mudado: em parte, porque a Marinha é tradicionalista; em parte, porque a nova quase-democracia era frágil e ainda era preciso cuidado para não ofender os amargos e potencialmente mortíferos integrantes da velha guarda do Partido, que tinham sido expulsos do poder mas poderiam um dia retornar barulhentamente para reabrir os campos de extermínio e as instituições de "reeducação"; e em parte, ainda, porque a Rússia estava agora tão assustadoramente pobre, levada tão à bancarrota pelo marxismo e por legiões de políticos corruptos, que o país não podia despender fundos para repintar nomes de embarcações e alterar os registros que refletem essas alterações.

Gorov era incapaz de conseguir até mesmo manutenção adequada para seu vaso de guerra. Nesses dias tensos depois da queda do império, ele estava preocupado demais com a integridade do casco, a usina de geração nuclear e as máquinas, para dar atenção ao fato de que o Ilya Pogodin ganhara o nome de um desprezível ladrão e assassino, que nada fizera de mais nobre do que defender o finado e não lamentado regime.

Embora o Pogodin fosse um velho submarino de frota que nunca carregara mísseis nucleares - somente alguns torpedos atômicos -, era assim mesmo um barco de respeito, com 110 metros de comprimento de proa a popa, 13 metros de vau e mais de 10 metros de largura. Deslocava mais de 8.000 toneladas quando totalmente submerso.

As correntes de sudeste tinham uma influência mínima sobre a embarcação. Ela não se afastaria mais do que uns 100 metros do local onde Gorov tinha determinado que estacionasse.

Peter Timoshenko, o jovem oficial de comunicações, estava no centro de controle, ao lado de Gorov. Em volta deles, as janelas e mostradores do equipamento eletrônico pulsavam, brilhavam e piscavam à meia-luz: vermelho, âmbar, verde, azul. Mesmo o teto estava repleto de periscópios, gráficos, telas e painéis de controle. Quando a sala de controle acolheu a ordem de Gorov de parar o submarino e a sala de motores e a sala de reatores foram informadas, Timoshenko disse:

- Peço permissão para lançar a antena, capitão. - Você está aqui para isso.

Timoshenko subiu ao corredor principal e caminhou nove metros até o compartimento de comunicações, um local surpreendentemente pequeno, entupido de equipamentos de rádio capazes de emitir e receber mensagens cifradas em freqüência ultra-alta (UHF), alta freqüência (HF), muito baixa freqüência (VLF) e extremamente baixa freqüência (ELF). Sentou no console e estudou o painel de telas e gráficos no seu extenso emaranhado de transmissores e computadores. Sorriu e começou a cantarolar enquanto trabalhava.

Na companhia da maioria dos homens, Peter Timoshenko se sentia acanhado, mas estava sempre bem na companhia das máquinas. Na sala de controle ele ficara à vontade, mas este local, com sua ainda mais forte concentração eletrônica, era sua casa de verdade.

- Está pronto? - perguntou outro técnico.

- Sim.

Timoshenko acionou um botão amarelo.

No topo de casco externo do Ilya Pogodin, um pequeno balão de hélio foi ejetado da torre, através de um tubo pressurizado. Elevou-se rapidamente através do mar escuro, estendendo atrás de si o fio de telecomunicações. Quando o balão rompeu a superfície, os técnicos no Pogodin ficaram em condições de monitorar qualquer mensagem, enviada através de virtualmente todos os meios de comunicação, exceto linhas telefônicas e de transmissão submarinas, para, da ou dentro da costa ocidental da Groenlândia. Como era da mesma aborrecida cor cinza-azulada do mar no inverno, o balão - e a curta e complexa antena presa a ele - não poderia ser visto do convés de um navio, mesmo que estivesse a 10 metros de distância.

Em terra e no meio de civis, Timoshenko sentia-se muito autoconsciente. Era alto, magro, ossudo, desajeitado e muitas vezes desastrado. Em restaurantes ou clubes noturnos, nas ruas, suspeitava de que as pessoas o observassem e se divertissem com a sua falta de jeito. No Pogodin, no entanto, seguro em seus profundos domínios, sentia-se invisível, como se o mar fosse não parte do mundo lá em cima, na superfície, mas uma dimensão paralela, e ele fosse um espírito deslizando através das frias profundidades, capaz de ouvir os habitantes do mundo de cima sem ser ouvido, de ver sem ser visto, ao abrigo de seus olhares, não mais um objeto de troça. Um fantasma.

Depois de dar um tempo a Timoshenko para içar a antena. examinar o largo espectro de freqüências, o capitão Gorov caminhou até a porta da cabine de comunicações. Cumprimentou com a cabeça o assistente-técnico.

- Alguma coisa? - perguntou a Timoshenko.

O oficial de comunicações estava sorrindo e segurava um único fone de ouvido junto à orelha esquerda.

- Captação total.

- De interesse?

- Por enquanto, não muito. Um grupo de fuzileiros americanos está testando equipamentos perto da costa.

Embora estivessem vivendo o fim do período sombrio da Guerra Fria, num mundo em que velhos inimigos haviam se tornado - acreditava-se - neutros um em relação ao outro ou até - dizia-se - se convertido em grandes amigos, a maior parte do antigo aparato de informações soviético permanecia intacto, tanto no país quanto no exterior. A Marinha russa continuava a realizar extensa coleta de dados ao longo do litoral dos principais países ocidentais, assim como na maioria dos pontos importantes, do ponto de vista militar, do Terceiro Mundo. Mudança era, afinal de contas, a única constante. Se inimigos podiam se tornar amigos da noite para o dia, da mesma forma podiam se converter em inimigos com a mesma rapidez.

- Mantenha-me informado - disse Gorov.

E foi para o rancho dos oficiais, almoçar.

1:40

Agachado junto ao rádio de ondas curtas, em contato com a Estação Edgeway, Harry perguntou:

- Você fez contato com Thule?

Embora a voz de Gunvald Larsson fosse filtrada por uma peneira de estática, era inteligível:

- Tenho estado em contínuo contato com eles e com as autoridades norueguesas da estação meteorológica de Spitsbergen, nos últimos 25 minutos.

- Poderiam uns ou outros nos alcançar aqui?

- Os noruegueses estão bloqueados pelo gelo. Os americanos têm vários Kaman Huskies em Thule. É o helicóptero-padrão de salvamento deles. Os Huskies têm tanques de combustível sobressalentes e longo alcance. Mas as condições em terra não são suficientemente boas para que decolem. Ventos terríveis. E quando eles chegassem até vocês... se pudessem chegar... o tempo teria piorado tanto que eles provavelmente não conseguiriam descer no iceberg de vocês.

- Não há por acaso um quebra-gelos ou um navio de guerra nas nossas vizinhanças?

- Os americanos dizem que não.

- Seria mesmo um milagre.

- Acha que vocês podem se agüentar?

- Fizemos um levantamento dos suprimentos que restam - disse Harry. - Estou certo de que não temos combustível suficiente para nos aquecer mais do que 24 horas.

Uma ruidosa onda de estática ecoou como uma metralhadora na caverna de gelo.

Gunvald hesitou. Então disse:

- De acordo com as últimas previsões, esta é uma tempestade maior do que qualquer outra que tivemos durante todo o inverno. Entramos numa semana de tormentas feias, uma após a outra. Sem uma folga entre elas.

Uma semana. Harry fechou os olhos para não ver a parede de gelo atrás do rádio, uma vez que lia claramente naquela superfície prismática o destino deles. Mesmo com roupas termais, mesmo abrigados do vento, não conseguiriam sobreviver uma semana sem aquecimento. Estavam virtualmente sem comida; a fome ia reduzir a resistência deles nas temperaturas abaixo de zero.

- Harry, você me entendeu?

- Entendi. - Abriu os olhos. - A coisa não parece boa, não é? Bem, estamos à deriva, na direção sul, para fora do mau tempo.

- Estive estudando os mapas aqui. Você tem alguma idéia de quantos quilômetros por dia o iceberg de vocês vai percorrer?

- Sei lá... Uns cinqüenta, talvez sessenta.

- É aproximadamente o mesmo cálculo que eu fiz com os mapas. E você sabe quanto isso representa em real movimento para o sul?

Harry pensou um pouco.

- Trinta quilômetros por dia?

- No máximo. Talvez apenas uns quinze.

- Quinze, tem certeza? Deixa pra lá, estupidez minha. É claro que você está certo. Qual é o tamanho do gráfico da tempestade? - Harry, ela alcança 200 quilômetros ao sul da sua última posição conhecida. Vocês levariam oito ou dez dias, até mais, para sair da tormenta até um local onde os helicópteros pudessem pegá-los.

- E os rebocadores da ONU?

- Foram informados pelos americanos. Os dois barcos estão indo na direção de vocês na máxima velocidade possível. Mas, de acordo com Thule, os mares estão muito agitados, mesmo fora da área da tempestade. E os dois rebocadores estão a 370 quilômetros de distância. Nas atuais condições, a velocidade máxima deles não significa muito.

Tinham de saber com precisão de todas as dificuldades, não importa quão precária pudesse ser a posição deles.

- Um navio daquele tamanho pode avançar 160 quilômetros ou mais, numa tempestade tão grande quanto esta, sem ser reduzido a pedaços?

- Penso que os dois comandantes são corajosos... mas não suicidas - disse simplesmente Gunvald.

Harry concordou com a afirmativa.

- Eles seriam obrigados a dar meia-volta - acrescentou Gunvald.

- Sim, eles não teriam nenhuma chance. - Harry suspirou. - OK, Gunvald, eu o chamarei de volta dentro de 15 minutos. Precisamos conferenciar aqui. Pode ser que nos ocorra alguma

- Estarei esperando.

Harry pôs o microfone sobre o rádio. De pé, olhou os outros:

- Vocês ouviram. Todos na gruta de gelo olhavam Harry ou o rádio, agora silencioso. Pete, Roger e Franz estavam perto da entrada; seus óculos estavam baixados, como se estivessem prontos para sair e percorrer as ruínas do acampamento temporário. Brian Dougherty estivera estudando um mapa do Mar da Groenlândia e do Atlântico Norte; mas, ao ouvir Gunvald, compreendeu que era inútil deter-minar a posição dos rebocadores e dobrou o mapa. Antes que Harry tivesse chamado a Estação Edgeway, George Lin estivera caminhando de um lado para o outro da gruta, exercitando os músculos machucados para evitar a rigidez. Agora permanecia imóvel, sem nem mesmo piscar, como se estivesse congelado vivo. Rita e Claude ajoelhados no chão da caverna, tinham relacionado o conteúdo de uma caixa de alimentos, seriamente danificados pela queda da encosta de pressão. Para Harry, por um momento, eles não pareciam pessoas de verdade, mas manequins sem vida numa pintura estranha - talvez porque, sem uma grande dose de sorte, eles já não passassem de mortos.

Rita disse o que todos estavam pensando mas ninguém tinha se preocupado em mencionar:

- Mesmo se os rebocadores nos alcançassem, eles não chegariam aqui antes de amanhã, no mínimo. Possivelmente não poderiam nos pegar antes de meia-noite. E à meia-noite todas as 60 bombas explodirão.

- Nós nem mesmo sabemos o tamanho do iceberg - disse Fischer.- A maior parte das cargas pode estar no pedaço da calota que não se separou.

Pete Johnson discordou.

- Claude, Harry e eu estávamos no fim da linha de bombas quando o primeiro tsunami passou sob nós. Acho que seguimos uma linha mais ou menos reta na volta ao acampamento, a mesma rota da ida. Assim, devemos ter dirigido ao longo ou através de todas as 60 cargas. E aposto meu braço direito como este iceberg não é grande o suficiente para suportar todas essas concussões.

Depois de um curto silêncio, Brian limpou a garganta.

- Você quer dizer que o iceberg vai explodir em milhares de pedaços?

Ninguém respondeu.

- Quer dizer que vamos ser todos mortos? Ou atirados ao mar?

- Dá no mesmo - disse Roger Breskin, com isenção. Sua voz de baixo retumbava nas paredes de gelo. - O mar está de congelar. Você não duraria cinco minutos nele.

Não há nada que a gente possa fazer para se salvar? -Perguntou Brian, o olhar viajando de um membro da equipe para outro. - Com certeza há alguma coisa que a gente possa fazer.

Durante toda a conversa, George Lin permanecera imóvel e calado como uma estátua, mas de repente voltou-se e deu três passos rápidos em direção a Dougherty:

- Você está assustado, rapaz? Você tem de estar. Sua toda poderosa família não pode tirá-lo desta enrascada!

Assustado, Brian recuou diante do homem furioso. Lin tinha os punhos cerrados.

- Como você se sente, desamparado?-Ele estava gritando. - Você gosta disso? Sua família, tão grande, rica e politicamente poderosa, não quer dizer merda nenhuma aqui. Agora você sabe como é duro para os outros, para os pequenos como nós. Agora você tem de se virar para se salvar. Exatamente como o resto das pessoas.

- Chega - disse Harry.

Lin virou-se para ele. Seu rosto estava transtornado de ódio.

- A família dele fica lá com todo o seu dinheiro e privilégios, fora da realidade mas certa de sua superioridade moral, ensinando como devemos viver e como devemos nos sacrificar por esta ou aquela causa nobre. Foram pessoas como eles que começaram as confusões na China, levaram Mao ao poder, nos fizeram perder nossa terra natal, dezenas de milhões de pessoas trucidadas. Você deixa esse pessoal pôr o pé na sua porta e os comunistas vêm atrás. Os bárbaros e os cossacos, os assassinos e os animais humanos atacam logo em seguida. Os...

- Brian não nos pôs neste iceberg - disse Harry, ríspido. -Nem ele nem sua família. Pelo amor de Deus, George, ele salvou sua vida faz menos de uma hora.

Quando Lin percebeu que estava se excedendo, a onda de raiva sumiu de suas faces. Pareceu confuso, depois embaraçado. Balançou a cabeça, como para sacudir as idéias.

- Eu... eu peço desculpas.

- Não a mim - disse Harry. - Peça a Brian.

Lin virou-se para Brian, mas não o encarou.

- Desculpe. De verdade.

- Tudo bem - tranqüilizou-o Brian.

- Eu não... não sei o que houve comigo. Você salvou minha: vida. Harry tem razão.

- Deixa pra lá, George.

Depois de uma breve hesitação, Lin fez que sim com a cabeça e se encaminhou para o fundo da gruta. Caminhou de um lado para o outro exercitando os músculos doloridos, olhando para o gelo que pisava.

Harry pensou sobre que experiências no passado do homenzinho o teriam ensinado a ver Brian Dougherty como um antagonista, o que ele deixara evidente desde o dia em que tinham se conhecido.

- Há alguma coisa que possamos fazer para nos salvar? - perguntou Brian outra vez, esquecendo elegantemente o incidente com Lin.

- Talvez - disse Harry.- Primeiro, teríamos de tirar algumas dessas bombas do gelo e desarmá-las.

Fischer ficou espantado.

- Impossível!

- Muito provavelmente.

- Como poderiam ser recuperadas? - perguntou Fischer, com desprezo.

Claude ergueu-se, ao lado da caixa de papelão com alimentos meio arruinados.

- Não é impossível. Nós temos uma broca auxiliar, picaretas e a serra elétrica. Com um bocado de tempo e paciência, seríamos capazes de abrir um buraco em ângulo para cada bomba, de certo modo cavar degraus no gelo. Mas Harry, nós levamos um dia e meio só para enterrá-las. Cavar para tirá-las seria muitíssimo mais difícil. Precisaríamos de pelo menos uma semana para recuperá-las, talvez duas.

- Só temos dez horas - lembrou-lhes Fischer, desnecessariamente.

Deixando o nicho na parede junto à entrada e caminhando até o centro, Pete Johnson disse:

- Um momento. Vocês não ouviram o homem? Harry disse que precisaríamos desarmar algumas bombas, não todas. E ele não disse que temos de desenterrá-las, do modo que Claude propôs. Você - virou-se para Harry - quer explicar?

O pacote de explosivos mais próximo está a quase 300 metros daqui. Se o recuperarmos e o desarmarmos, então estaremos a 315 metros da segunda bomba, uma vez que cada carga está 15 metros à frente da outra. Assim, se retirarmos dez delas, ganhare-mos uma área de segurança, distante da explosão mais próxima. As outras cinqüenta detonarão à meia-noite... mas nenhuma delas estará diretamente embaixo de nós. Nosso pedaço de iceberg pode-ria muito bem sobreviver ao choque. Com sorte, ele seria grande o suficiente para nos sustentar.

- Poderia - disse Fischer, com amargor.

- É a nossa grande oportunidade.

- Não das melhores - observou o alemão.

- Eu não disse que era.

- Se não podemos desencavar os explosivos, o que você aparentemente concorda ser inviável, então como chegar a eles?

- Com a broca auxiliar. Reabrir os buracos.

- Talvez não seja uma coisa inteligente. - Fischer franziu as sobrancelhas. - E se a broca atingir um pacote de explosivos?

- Ele não explodirá - garantiu-lhe Harry.

- A carga plástica só responde a uma certa voltagem de corrente elétrica - disse Johnson. - Nem o choque nem o calor farão nada, Franz.

- Além do mais - disse Harry -, a ponta da broca para o gelo não é dura o suficiente para cortar um invólucro de aço.

- E quando tivermos aberto o buraco? - perguntou o alemão, com evidente ceticismo. - Simplesmente vamos puxar a bomba por sua corrente, como um peixe na linha?

- Algo assim.

- Não funciona. Vamos arrebentar a corrente em pedaços quando reabrirmos o buraco com a broca.

- Não se usarmos as ponteiras pequenas. O buraco tem 10 centímetros de diâmetro. Mas a bomba, somente sete. Se usarmos uma ponteira de 3 polegadas, poderíamos passar além da corrente. Depois, é só puxá-la direto contra a parede do buraco.

Franz Fischer não estava satisfeito.

- Mesmo que você consiga abrir o buraco sem cortar a corrente, ela estará soldada ao gelo, assim como o invólucro da bomba.

- Prenderemos a ponta superior da corrente a um trenó motorizado e tentaremos puxar a corrente e o cilindro para fora do buraco.

- Não vai funcionar - disse Fischer, desistindo.

- Talvez você tenha razão - respondeu Harry.

- Deve haver outro jeito.

- Qual?

- Não podemos simplesmente cruzar os braços e esperar pelo fim, Franz - disse Brian. - Isso não teria nenhum sentido. - Ele voltou-se para Harry: - Mas se o seu plano funcionar, se nós tirarmos as bombas para fora do gelo, seria possível fazer isso com dez delas em dez horas?

- Não saberemos enquanto não tentarmos - disse Harry, recusando-se resolutamente tanto a cair no pessimismo teimoso de Fischer quanto a levantar falsas esperanças.

- Se não conseguirmos tirar dez, talvez oito. Se não oito, seguramente seis. Cada uma que conseguirmos nos dará mais segurança - disse Pete Johnson.

- Mesmo assim - disse Fischer, com o seu sotaque acentuando-se à medida em que ele ficava mais defensivo em seu negativismo -, o que teríamos a ganhar? Ainda estaríamos à deriva num iceberg, pelo amor de Deus. Ainda temos combustível suficiente para nos conservarmos aquecidos até amanhã ao meio-dia. Depois, congelaríamos até a morte.

Erguendo-se, Rita disse:

- Porra, Franz, pare de bancar o advogado do diabo ou seja lá o que você está querendo. Você é um homem bom. Você pode nos ajudar a sobreviver. Ou, sem a sua ajuda, podemos morrer todos. Ninguém é dispensável aqui. Precisamos de você do nosso lado, remando com a gente.

- São exatamente os meus sentimentos - disse Harry. Ele puxou o capuz sobre a cabeça e apertou o laço sob o queixo. - E se pudermos ganhar algum tempo recuperando algumas das bombas, mesmo que três ou quatro, bem, sempre haverá a chance de que sejamos resgatados mais cedo do que agora imaginamos possível.

- Como? - perguntou Roger.

- Um daqueles rebocadores...

Olhando para Rita, mas com não menos desafio na voz, como se ele e Harry estivessem de algum modo engajados numa competição pela mulher, Fischer disse:

- Você e Gunvald já concordaram em que não há como os rebocadores nos alcançarem.

Harry sacudiu a cabeça enfaticamente.

- Nosso destino não está escrito na pedra. Somos pessoas inteligentes. Podemos traçar nossos próprios destinos, se nos decidirmos a isso. Se um daqueles capitães é muito bom e cabeça-dura, se tiver uma tripulação de primeira, e se tiverem um bocado de sorte, eles poderão conseguir.

- São demasiados ses - disse Roger Breskin.

- Se ele for Horatio Hornblower, e o filho da puta do antepassado de todos os marinheiros que já existiram, se não for um homem, mas uma força sobrenatural dos mares, então eu acho que ele tem uma chance - disse Fischer, sombrio.

- Bem, se ele for Horatio Hornblower - disse Harry, impaciente - e aparecer aqui amanhã com todas as bandeiras desfraldadas e tremulando, eu quero estar aqui para lhe dizer alô.

Todos ficaram em silêncio.

- E o resto de vocês, o que acha? - perguntou Harry. Ninguém discordou dele.

- Muito bem, vamos precisar de todos os homens no projeto de recuperação de bombas - disse Harry, ajustando os óculos de cor sobre os olhos. - Rita, você pode ficar aqui e vigiar o rádio para entrar em contato com Gunvald?

- Claro.

- Alguém devia acabar de pesquisar o acampamento, antes que a neve encubra as ruínas - disse Claude.

- Eu cuidarei disso também - disse Rita. Harry encaminhou-se para a entrada da gruta.

- Vamos nos mexer. Eu posso ouvir o tique-taque daqueles sessenta relógios. Não quero estar muito perto deles quando o alarme tocar.

 

                                               PRISÃO

 

2:30

EXPLOSÃO DENTRO DE NOVE HORAS E TRINTA MINUTOS

Um ou dois minutos depois de deitar, Nikita Gorov sentiu que não conseguiria descansar. Vindo do passado, um pequeno fantasma se materializava para rondá-lo e garantir-lhe que não encontraria a paz do sono. Fechou os olhos e pôde ver o pequeno Nikolai, seu Nikki, correndo para ele através de uma suave névoa amarelada. Os braços do menino estavam abertos e ele ria. Mas a distância entre eles não podia ser completada, não obstante o quanto ou quão rapidamente Nikki corresse e Gorov desesperadamente tentasse chegar a ele. Os dois estavam separados por apenas três ou quatro metros, mas cada centímetro era uma infinidade. O capitão nada mais queria senão tocar seu filho, mas a distância insuperável entre a vida e a morte os separava.

Com um leve, involuntário suspiro de desespero, Gorov abriu os olhos e olhou a fotografia na moldura de prata, na escrivaninha do canto: ele e Nikolai estavam em pé, diante do tocador de acordeom, num barco de cruzeiro no rio Moscou. Algumas vezes, quando o passado tornava-se especialmente pesado para ele, Gorov sentia-se monstruosamente deprimido pela fotografia. Mas não podia tirá-la dali. Ele não podia guardá-la numa gaveta ou jogá-la fora, da mesma maneira que não podia cortar a mão direita meramente porque Nikolai a tinha apertado muitas vezes.

De repente, cheio de energia nervosa, levantou-se do beliche Queria caminhar, mas sua cabine era muito pequena. Com três passos percorria o estreito espaço entre a cama e o armário. Não podia permitir que a tripulação percebesse o quanto estava triste do contrário poderia caminhar no corredor.

Por fim sentou-se à escrivaninha. Pegou a fotografia com as duas mãos, como se a enfrentando - e à sua agonizante perda -pudesse aplacar a dor no coração e se acalmar.

Falou suavemente com o menino loiro da foto:

- Não sou responsável por sua morte, Nikki.

Gorov sabia que era verdade. Acreditava nisso também, o que era mais importante do que meramente saber. Ainda assim, oceanos de culpa o banhavam, em infindáveis marés corrosivas.

- Eu sei que você nunca me culpou, Nikki. Mas gostaria de poder ouvir você me dizendo isso.

Em meados de junho, sete meses antes, o Ilya Pogodin completara 60 dias de uma ultra-secreta missão de vigilância eletrônica de 90 dias, numa rota do Mediterrâneo. O barco estava submerso a 14 quilômetros da costa do Egito, diretamente ao norte da cidade de Alexandria. A antena de multicomunicação fora lançada e milhares de bytes de dados, importantes ou não, enchiam os computadores a cada minuto.

Às 2:00 da madrugada de 15 de junho, chegara uma mensagem do Escritório de Inteligência Naval de Sebastopol, subordinada ao Ministério da Marinha em Moscou. Ela pedia unia confirmação do Ilya Pogodin, acabando desse modo com o silêncio radiofônico que era uma absoluta necessidade durante uma missão clandestina.

Quando o especialista em códigos terminou de decifrar o texto criptográfico, Gorov foi acordado pelo oficial de comunicações da noite. Sentou no beliche e leu a mensagem num papel amarelo.

A mensagem começava com as coordenadas de latitude e longitude, seguidas da ordem de se juntar em 24 horas ao Petr Vavilov, um navio de pesquisas da classe Vostok que no momento se encontrava na mesma área do Mediterrâneo para a qual o Pogodin fora designado. Aquilo mexeu com a curiosidade de Gorov: um encontro à meia-noite no meio do mar era um episódio mais típico e intrigante de ação de capa-e-espada do que aqueles a que ele estava acostumado na era da espionagem eletrônica. O resto da mensagem o fez erguer-se, tremendo:

SEU FILHO EM SÉRIAS CONDIÇÕES HOSPITAL KREMLIN PONTO SUA PRESENÇA REQUERIDA MOSCOU MAIS CEDO POSSÍVEL PONTO TRANSPORTE ARRANJADO PONTO PRIMEIRO OFICIAL ZHUKOV ASSUMIR COMANDO NAVIO PONTO CONFIRME RECEPÇÃO

À meia-noite, Gorov passou o controle do submarino a Zhukov e se transferiu para o Petr Vavilov. Um helicóptero o apanhou no convés do navio de pesquisas e o levou até Damasco, Síria, onde ele embarcou num jato diplomático russo, para um vôo de carreira até Moscou. Chegou ao Aeroporto Sheremetyevo às 3:00 da tarde do dia 16.

Boris Okudzhava, funcionário do Ministério da Marinha, o esperava no terminal. Okudzhava tinha olhos de um cinza sujo de água de lavanderia. Uma verruga do tamanho de uma cereja desfigurava o lado esquerdo do seu nariz.

- Um carro está esperando, camarada Gorov.

- O que há de errado com Nikki? O que aconteceu com meu filho?

- Eu não sou médico, camarada Gorov. - Mas você deve saber alguma coisa. - Eu acho que o melhor é não perdermos tempo aqui. Explicarei no carro, camarada.

- Agora não se usa mais "camarada" - disse Gorov, enquanto passavam apressados pelo portão de desembarque.

- Desculpe. É apenas o velho hábito.

- É?

Embora as políticas social e econômica dos comunistas estivessem totalmente desacreditadas, embora a roubalheira e os assassinatos em massa tivessem sido denunciados, uma boa quantidade de antigos crentes ansiava pelo restabelecimento da velha ordem Eles ainda gozavam de considerável influência em muitos setores, incluindo a indústria de armas nucleares, onde a produção de ogivas e mísseis continentais não diminuíra. Para muitos deles, o repúdio à ideologia de linha dura do marxismo fora um mero reconhecimento à transferência de poder para forças mais democráticas, não uma mudança autêntica de coração ou mente. Eles trabalhavam com aparente diligência pela nova Rússia, enquanto aguardavam esperançosos a oportunidade de ressuscitar o Soviete Supremo.

Quando deixavam o terminal movimentado e saíam na agradável tarde de fim de primavera, Okudzhava disse:

- A próxima revolução deve ser por mais liberdade, não menos. Nós não avançamos o suficiente. Gente em demasia da velha nomenklatura continua no poder. Declaram-se campeões da democracia, elogiando o capitalismo, enquanto tratam de miná-lo a cada oportunidade.

Gorov não levou o assunto adiante. Boris Okudzhava não era um bom ator. O ardor excessivo com que falava revelava a verdade: a grotesca verruga ao lado do nariz brilhava com um vermelho vivo, como se fosse uma maldição de Deus, a inconfundível marca da Besta.

O céu baixo estava matizado de nuvens cinza-negras. O ar cheirava a chuva próxima.

Diversos camelôs tinham recebido autorização para estabelecer seus negócios do lado de fora do terminal. Alguns trabalhavam com grandes caminhões, outros com carrinhos de mão, apregoando cigarros, doces, mapas turísticos e lembranças. Faziam um comércio ativo e pelo menos alguns estavam relativamente prósperos, mas todos vestiam-se mal. Nos velhos tempos, a prosperidade era um crime que requeria processos, prisão e às vezes até mesmo execuções. Muitos cidadãos da nova Rússia ainda recordavam vividamente as antigas conseqüências do êxito e a fúria selvagem dos burocratas invejosos.

O carro do Ministério estava exatamente na frente do terminal, estacionado ilegalmente, com o motor ligado. Logo que Gorov e Okudzhava sentaram no banco de trás e fecharam a porta, o motorista - um jovem em uniforme da Marinha - arrancou.

- O que houve com Nikki? - perguntou Gorov.

- Ele deu entrada no hospital 31 dias atrás, com o que a princípio se pensou ser mononucleose ou gripe. Ele estava tonto, suava. Tão enjoado que não podia tomar sequer líquidos. Foi hospitalizado para receber alimentação intravenosa e prevenir a desidratação.

Na época do desacreditado regime, a assistência médica fora rigorosamente controlada pelo Estado - e era assustadora, mesmo pelos padrões dos países do Terceiro Mundo. A maioria dos hospitais funcionava sem equipamento adequado para conservar os instrumentos esterilizados. Aparelhos de diagnóstico eram terrivelmente escassos e os orçamentos da saúde tinham sido tão reduzidos que agulhas hipodérmicas sujas eram regularmente reutilizadas, disseminando com freqüência as doenças. O colapso do velho sistema tinha sido uma bênção; no entanto, o desgraçado regime deixara a nação mergulhada na bancarrota, e nos últimos anos a qualidade do atendimento médico se deteriorara ainda mais.

Gorov arrepiou-se ao pensar no jovem Nikki confiado ao cuidado de médicos que tinham estudado em faculdades não mais modernas ou bem equipadas do que os hospitais nos quais iriam trabalhar mais tarde. Com certeza, todos os pais do mundo rezavam para que seus filhos tivessem boa saúde, mas na nova Rússia, como no velho império que ela substituiu, a hospitalização de uma criança amada era causa não apenas de preocupação mas também de alarme, ou até de um silencioso pânico.

- Você não foi notificado - disse Okudzhava, esfregando distraído a verruga facial com a ponta do dedo indicador – porque estava numa missão altamente secreta. Além do mais, a situação não parecia crítica de jeito nenhum.

- Mas também não era mononucleose nem gripe? - perguntou Gorov.

- Não. Achou-se então que a causa podia ser uma febre reumática.

Tendo vivido tanto tempo sob a pressão de ser um comandante de submarino, tendo aprendido a nunca deixar transparecer preocupação pelas periódicas dificuldades mecânicas ou pelo poder hostil do mar, Nikita Gorov esforçava-se para conservar uma calma superficial, mesmo quando sua mente fervia com imagens do pequeno Nikki sofrendo e assustado num hospital entregue às baratas.

- Mas não era febre reumática?

- Não - disse Okudzhava, ainda esfregando a verruga, olhando não para Gorov mas para a nuca do motorista. - E então houve uma breve melhora nos sintomas. Ele pareceu estar no melhor de sua saúde durante quatro dias. Quando os sintomas voltaram, novos exames de diagnóstico foram feitos. E então... oito dias depois, descobriram que ele tinha um tumor cerebral canceroso.

- Câncer - disse Gorov, chocado.

- O tumor era grande demais para ser operado, avançado demais para o tratamento com radiação. Quando ficou claro que as condições de Nikolai estavam se deteriorando rapidamente, quebramos o silêncio do seu rádio e o chamamos. Era a coisa humana a fazer, mesmo se isso arriscasse comprometer sua missão.

Fez uma pausa e finalmente olhou para Gorov.

- Nos velhos tempos, é claro, não se correria um risco desses, mas estes são tempos melhores - acrescentou Okudzhava, com insinceridade tão patente como se estivesse ainda usando a foice e o martelo no peito, emblema de sua verdadeira lealdade.

Gorov pouco estava ligando para a nostalgia de Boris Okudzhava pelo maldito passado. Pouco estava ligando para a democracia, para o futuro, para si próprio - apenas para seu Nikki. O suor frio escorria ao longo do seu pescoço, como se a Morte o tivesse tocado de leve com dedos de gelo, enquanto ela se dirigia da ou para a cabeceira da cama do menino.

- Você não pode dirigir mais rápido? - perguntou ao jovem oficial atrás do volante.

- Logo estaremos lá - assegurou-lhe Okudzhava.

- Ele tem apenas oito anos - disse Gorov, mais para si do que para os homens com quem dividia o carro.

Nenhum deles replicou.

Gorov viu os olhos do motorista no espelho retrovisor, olhando-o como se estivesse com pena.

- Quanto tempo ele ainda tem para viver? - perguntou, embora quase preferisse não ouvir a resposta.

Okudzhava hesitou:

- Ele pode se ir a qualquer momento.

Desde que lera a mensagem decodificada em seu beliche do llya Pogodin, 37 horas antes, Gorov soubera que Nikki devia estar à morte. O Almirantado não era cruel, mas por outro lado não interromperia uma importante missão de espionagem no Mediterrâneo, a menos que a situação fosse desesperadora. Ele tinha se preparado cuidadosamente para essa notícia.

No hospital, os elevadores estavam parados. Boris Okudzhava conduziu Gorov pelas escadas de serviço, sujas e mal-iluminadas. Moscas zumbiam nas pequenas janelas, opacas de sujeira, em cada lance.

Gorov subiu até o sétimo andar. Parou duas vezes, quando pareceu que seus joelhos iriam fraquejar, depois arremeteu apressado para cima, depois de apenas uma breve hesitação.

Nikki estava numa enfermaria para oito pessoas com quatro outras crianças agonizantes, numa pequena cama, sob lençóis sujos e puídos. Não havia por perto um monitor de eletrocardiograma nem qualquer outro equipamento. Considerado incurável, ele fora trazido para a seção de doentes terminais, para sofrer até o último de seus momentos aqui neste mundo. O governo ainda estava encarregado do sistema de saúde e seus recursos tinham sido esticados até o limite, o que significava que os médicos faziam a triagem dos doentes e feridos de acordo com um impiedoso padrão de tratamento. Nenhum esforço heróico era feito para salvar um paciente que tivesse menos de 50% de possibilidade de se recuperar.

O menino estava terrivelmente pálido. Pele de cera. Os lábios cinzentos. Olhos fechados. O cabelo loiro estava liso, ensopado de suor.

Tremendo como se fosse um velho com paralisia, achando cada vez mais difícil manter a calma tradicional de um submarinista, Gorov parou ao lado da cama, olhando o filho, seu único filho.

- Nikki - disse ele, e sua voz era fraca, insegura.

O menino não respondeu nem abriu os olhos.

Gorov sentou na beira da cama. Pôs uma mão sobre a mão do filho. Havia muito pouco calor na carne dele.

- Nikki, estou aqui.

Alguém tocou o ombro de Gorov e ele olhou para cima. Um médico vestido de branco estava ao lado da cama. Ele indicou uma mulher no fundo da sala.

- Ela é a única que precisa de você agora.

Era Anya. Gorov estivera tão concentrado em Nikki que não a notara. Ela estava em pé junto a uma janela, fingindo observar as pessoas lá embaixo na velha Perspectiva Kalinin.

Gradualmente, Gorov tornou-se consciente da derrota na curvatura dos ombros da esposa e da sutil sugestão de dor na inclinação da cabeça, e começou a compreender o inteiro sentido das palavras do médico. Nikita já estava morto. Muito tarde para dizer "eu te amo" pela última vez. Tarde demais para um último beijo. Tarde demais para olhar nos olhos da criança e dizer "eu sempre tive orgulho de você", demasiado tarde para dizer adeus.

Embora Anya precisasse dele, não tinha forças para levantar da beira da cama - como se fazê-lo fosse assegurar que a morte de Nikki era permanente, ao passo que a pura negativa teimosa pudesse finalmente levar a uma miraculosa ressurreição.

Ele falou o nome dela e, embora fosse apenas um sussurro, ela voltou-se para ele.

Seus olhos brilhavam com as lágrimas. Ela mordia os lábios, para evitar soluçar.

- Eu queria que você estivesse aqui - disse ela.

- Só me avisaram ontem.

- Eu fiquei tão só.

- Eu sei.

- Assustada.

- Eu sei.

- Eu teria ido em seu lugar, se pudesse - disse ela -, mas não havia nada... nada que eu pudesse fazer por ele.

Por fim, ele encontrou forças para erguer-se da cama. Foi até a mulher e ela o abraçou apertado. Tão apertado.

Só uma das outras quatro crianças agonizantes na seção não estava em coma ou sedada e percebia a presença de Gorov e Anya. O observador solitário era uma menina, de talvez oito ou nove anos, cabelos castanhos e grandes olhos solenes. Ela jazia numa cama próxima, apoiada nos travesseiros, tão frágil quanto uma mulher que houvesse vivido cem anos.

- Está tudo bem - disse ela a Gorov. Sua voz era musical e doce, a despeito da terrível doença que lhe devastava e enfraquecia o corpo. - Você vai vê-lo de novo. Ele está no céu agora. Ele está esperando por você lá.

Nikita Gorov, produto de uma sociedade estritamente materialista, que na maior parte do século negara a existência de Deus, desejava achar forças numa fé tão simples e forte como aquela revelada pelas palavras da criança. Ele não era ateu. Tinha visto a que atos monstruosos os líderes da sociedade fecham os olhos quando eles não acreditam em Deus; sabia que não existe esperança na justiça, num mundo onde os conceitos da retribuição divina e da vida após a morte tinham sido abandonados. Deus precisa existir, do contrário a humanidade não pode ser impedida de se destruir, No entanto, faltava-lhe a tradição da crença na qual achar o grau de esperança e reafirmação que confortava a menina agonizante.

Anya chorava, apoiada em seu ombro. Ele a abraçava e lhe acariciava o cabelo dourado.

O céu manchado abriu-se de repente, em torrentes de chuva Gotas gordas bateram contra a janela e escorreram pelo vidro borrando o tráfego lá embaixo.

Durante o resto do verão, eles tentaram descobrir coisas em que achar graça. Foram ao Teatro Taganka, ao bale, a concertos e ao circo. Dançaram mais de uma vez no grande pavilhão do Parque Gorki e se cansaram como crianças no Parque Sokolniki. Uma vez por semana, jantavam no Aragvi, talvez o melhor restaurante da cidade, onde Anya aprendeu outra vez a sorrir comendo sorvete com geléia, enquanto Nikita desenvolvia o gosto pelo frango condimentado zatsivi suavizado em molho de nozes, e onde os dois bebiam demasiada vodca com caviar, demasiado vinho com o sulguni e o pão. Faziam amor todas as noites, um amor urgente e explosivo, como se sua paixão fosse uma recusa do sofrimento, do câncer e da morte.

Embora não mais de coração leve como sempre fora, Anya parecia se recuperar da perda mais rapidamente e mais completamente do que Nikita. E afinal ela tinha 34 anos, dez a menos do que ele. Seu espírito era mais flexível do que o dele. Além do mais, ela não carregava a culpa que ele levava como uma pesada canga. Sabia que Nikki tinha chamado repetidamente por ele durante as últimas semanas de vida e sobretudo durante as últimas horas. Ainda que consciente de estar sendo tolo e irracional, Gorov sentia que havia abandonado o menino, como se houvesse faltado a seu único filho. A despeito dos longos silêncios, pensativos e não característicos, de Anya, e de uma nova solenidade em seus olhos, ela gradualmente reganhava um brilho saudável e pelo menos uma parte do seu antigo espírito. Mas Nikita apenas fingia recuperação.

Na primeira semana de setembro, Anya estava de volta a seu trabalho em tempo integral. Ela era pesquisadora botânica num grande laboratório agrícola nas densas florestas de pinheiro a 30 quilômetros de Moscou. Seu trabalho logo se tornou mais uma avenida em direção ao esquecimento; ela viajava para além dele todos os dias, chegando cedo e saindo tarde do laboratório.

Embora continuassem a passar as noites e os fins de semana juntos, Gorov ficava muito só agora. O apartamento estava cheio de lembranças que aumentavam dolorosamente, assim como a dacha que tinham alugado no campo. Ele saía para longas caminhadas e, quase sempre, terminava no zôo ou no museu, ou em outro lugar onde ele e Nikki haviam ido juntos com freqüência.

Sonhava sem parar com o filho e costumava acordar no meio da noite com um sentimento doentio de vazio. Nos sonhos, Nikki sempre perguntava por que o pai o abandonara.

Em 8 de outubro, Gorov procurou os superiores no Ministério da Marinha e pediu para voltar para o Ilya Pogodin. A embarcação estava nos estaleiros de Kaliningrado para manutenção e para receber alguns novos instrumentos de alto nível de monitoração eletrônica. Voltou ao serviço, supervisionou a instalação do equipamento de vigilância e levou o submarino num cruzeiro de duas semanas no Báltico, na metade de dezembro.

Estava em Moscou com Anya no dia de Ano Novo, mas eles não saíram. Na Rússia, esse era um feriado para as crianças. Meninos e meninas estavam por toda a parte: nos espetáculos de marionetes ao vivo, no bale, nos cinemas, nos shows nas ruas e parques. Mesmo as áreas do Kremlin estavam abertas para eles. E em cada esquina os pequenos faziam, felizes, algazarra em torno dos presentes e dos homens de pão de gengibre que o Ded Moroz - o Vovô do Frio - lhes tinha dado. Embora Nikita e Anya estivessem juntos, um apoiando o outro, aquela era uma visão que eles não podiam enfrentar. Passaram o dia todo no seu apartamento de três peças. Fizeram amor duas vezes. Anya cozinhou chebureki, tortas fritas de carne da Armênia, e ajudaram a comida a descer com uma boa quantidade de Algeshat doce.

Ele dormiu durante a viagem noturna de trem para Kaliningrado. O balanço e o barulho ritmado das rodas nos trilhos não lhe trouxeram o puro sono sem sonhos que esperara. Acordou duas vezes com o nome do filho nos lábios, os punhos fechados e um fio de suor no rosto.

Nada é mais terrível para um pai do que sobreviver ao filho. A ordem natural parece demolida.

A 2 de janeiro, ele levou o Ilya Pogodin para uma missão de cem dias de espionagem no mar. Ansiava pelas 14 semanas sob o Atlântico Norte, porque parecia uma boa ocasião e lugar para se absolver do desgosto remanescente e de sua culpa inarredável.

Mas, à noite, Nikki continuou a visitá-lo, até as profundezas, através do mar escuro e das escuridões mais fundas da mente perturbada de Gorov, fazendo as perguntas familiares e irrespondíveis: Por que você me abandonou, pai? Por que não veio me ver quando eu precisava de você, quando eu estava com medo e o chamava? Você não se preocupou comigo, pai? Por que você não me ajudou? Por que não veio me salvar, pai? Por quê? Por quê?

Alguém bateu discretamente na porta da cabine. Como uma nota fraca reverberando no bronze vazio de um sino, a batida ecoou suavemente na pequena peça.                                                

Gorov voltou do passado e desviou os olhos da fotografia em moldura de prata.                                                                  

- Sim?

- É Timoshenko, senhor. O capitão largou a foto e virou-se na escrivaninha.

- Entre, tenente.

À porta, Timoshenko olhou-o e disse:

- Interceptamos uma série de mensagens que o senhor devia ler - informou o oficial.

- Sobre?

- Aquele grupo de estudos das Nações Unidas. Eles batizaram sua base de Estação Edgeway. Está lembrado?

- Claro.

- Bem, eles estão em dificuldades.

 

2:46

Harry Carpenter prendeu a corrente de aço a um anel de segurança e o anel a uma argola na traseira do trenó motorizado.

- Agora só precisamos de um pouco de sorte.

- Ela vai agüentar - disse Claude, dando um tapinha na corrente.

Ele estava ajoelhado na neve ao lado de Harry, com as costas para o vento.

- Não estou preocupado se ela vai rebentar - disse Harry, erguendo-se devagar e espreguiçando-se.

A corrente parecia delicada, quase como se tivesse sido confeccionada por um joalheiro. Mas ela havia passado, afinal de contas, por um teste de esforço de duas toneladas e devia ser forte mais do que o suficiente para o trabalho.

O trenó estava estacionado praticamente sobre o topo do tubo de explosivos reaberto. Na cabine, por trás do plexiglas ligeiramente embaçado, Roger Breskin estava nos controles, vigiando pelo espelho retrovisor o sinal de Harry para que arrancasse.

Depois de puxar a máscara de proteção sobre o nariz e a boca, Harry fez sinal a Breskin para começar. Voltou-se então na direção do vento e observou o buraco pequeno e perfeitamente redondo no gelo.

Pete Johnson, ajoelhado do outro lado do tubo, esperava que o trenó avançasse, de modo que pudesse monitorar a subida da bomba, quando ela começasse a se mover. Brian, Fischer e Lin tinham voltado para os outros trenós, para se aquecerem.

Depois de acelerar várias vezes, Roger engatou a mudança, o trenó moveu-se meio metro, até a corrente esticar. O barulho do motor foi aumentando, até seu ruído se tornar maior do que o uivo do vento.

A corrente estava tão esticada que Harry imaginou que produziria, se percutida, uma nota tão alta quanto a de um soprano na ópera.

Mas a bomba não se moveu. Nem um centímetro.

A corrente parecia vibrar. Breskin acelerava.

Apesar do que dissera a Claude, Harry começou a achar que a corrente ia se romper. O motor do trenó estava no máximo e gemia.

Com um estalido semelhante a um tiro de fuzil, os elos da corrente irromperam do tubo ao lado do qual eles tinham ficado congelando, e o cilindro saltou de sua cama de gelo. O trenó arremeteu para a frente com a corrente sempre esticada, e a bomba subiu, arranhando o tubo.

Pete Johnson ergueu-se e se pôs sobre o buraco, de pernas abertas, enquanto Harry e Jobert se juntavam a ele. Dirigindo o foco da lanterna para o estreito poço negro, ele olhou dentro por um momento e então fez sinal a Breskin para parar. Agarrando a corrente com as duas mãos, puxou o invólucro tubular de explosivos e, com a ajuda de Harry, extraiu-o do tubo. Eles o depositaram sobre o gelo.

Um a menos. Nove ainda para tirar.

 

2:58

Gunvald Larsson estava acrescentando leite em pó à sua caneca de café quando veio o chamado da base militar dos Estados Unidos em Thule, na Groenlândia. Ele largou a lata e correu para o rádio de ondas curtas.

- Aqui é Larsson, em Edgeway. Ouvindo você bem. Continue, por favor.

- Você teve mais alguma notícia do seu rebanho perdido? O oficial de comunicações em Thule tinha uma voz forte, harmoniosa, que parecia imune à estática.

- Não. Eles estão ocupados. A Sra. Carpenter deixou o rádio na gruta de gelo, enquanto salva o que pode das ruínas do acampamento temporário. Eu não espero chamado dela, a menos que ocorra uma mudança drástica na situação.

- Como está o tempo em Edgeway?

- Terrível.

- Aqui também. E vai ficar muito pior, antes que comece a melhorar. A velocidade do vento e a altura das ondas são um recorde em tempestades no Atlântico Norte.

- Você está tentando me dizer que os rebocadores da ONU estão dando meia-volta? - perguntou Gunvald, franzindo as sobrancelhas para o rádio.

- Um deles voltou.

- Mas eles tomaram o rumo norte há apenas duas horas!

- O Melville é dez ou doze anos mais velho do que o Liberty. Ele provavelmente poderia sair com razoável facilidade de uma tempestade dessas, mas não tem motor ou estrutura para mergulhar nela, a toda força e contra o vento. O comandante ficou com medo de que o barco rebentasse se não voltasse logo.

- Mas ele ainda está no limite da tormenta.

- Mesmo lá o mar está ruim.

Gunvald secou com uma mão o rosto subitamente molhado e esfregou a palma nas calças.

- E o Liberty continua?

- Sim. - O americano fez uma pausa. O rádio chiou com a estática, como se estivesse cheio de cobras - Olhe, se eu fosse você não depositava muitas esperanças nele.

- Eu não tenho mais onde depositá-las.

- Talvez não. Mas o comandante dele não está mais confiante do que o capitão do Melville.

- Suponho que vocês também não possam fazer um helicóptero voar-disse Gunvald.

- Estão todos em terra. E estarão durante dias. Não ficamos felizes com isso, mas não podemos fazer nada.

O ruído de estática encheu a transmissão. Gunvald não disse nada. Finalmente, parecendo embaraçado, o oficial em Thule disse:

- Sabe, talvez o Liberty consiga. Gunvald suspirou:

- Eu não vou contar ao pessoal sobre o Melville. Por enquanto não.

- Você é que sabe.

- Se o Liberty também voltar, aí então eu vou ser obrigado a lhes dizer. Mas não tem sentido deprimi-los com essas notícias. enquanto eles ainda têm alguma esperança.

- Estamos torcendo por eles - disse o homem em Thule. - A história já chegou aos Estados Unidos. Milhões de pessoas estão torcendo por eles.

3:05

O centro de comunicações do Ilya Pogodin estava cheio de luz e movimento, com os vídeos luminosos de sete terminais faiscando com as mensagens decodificadas que tinham sido captadas pela antena principal de vigilância, 30 metros acima. Os consoles de programação brilhavam com todas as cores primárias. Dois técnicos trabalhavam na extremidade da cabine atulhada e Timoshenko permanecia na entrada com Nikita Gorov.

Dentre as centenas de comunicações que iam sendo continuamente triadas e armazenadas pelos computadores do Ilya Pogodin, uma forte torrente de dados era dedicada à Crise Edgeway. O computador fora instruído para criar um arquivo com quaisquer mensagens que contivessem uma ou mais das cinco palavras-chave: Carpenter, Larsson, Edgeway, Melville, Liberty.

- Está completo? - perguntou Gorov, depois de terminar de ler o material Edgeway.

Timoshenko fez que sim.

- O computador produz um relatório atualizado a cada 15 minutos. Este tem apenas 10 minutos. Pode ter havido um pequeno desdobramento. Mas basicamente é isso, senhor.

- Se o tempo na superfície está tão ruim quanto estão dizendo, o Liberty também dará meia-volta.

Timoshenko concordou.

Gorov olhou o relatório, não mais lendo-o, sequer vendo-o. Atrás de seus olhos negros estava a imagem de um garoto loiro, rosto cheio de frescor, braços abertos. O filho que ele fora incapaz de salvar. Por fim, disse:

- Estarei na sala de controle até novas notícias. Informe-me imediatamente se houver qualquer novidade importante sobre eles,

- Sim, senhor.

Porque o Pogodin não estava na verdade navegando mas apenas pairando imóvel no mar, a vigilância na sala de controle a cargo de apenas cinco homens, além do primeiro-oficial Zhukov. Três estavam sentados nas cadeiras negras de comando, de frente para a parede de periscópios, medidores, botões, painéis e controles, do lado oposto ao setor de mergulho. Zhukov estava empoleirado num banco de metal no centro da câmara, lendo um romance que colocara sobre a grande mesa do mapa eletrônico.

Emil Zhukov era a única oposição em potencial que Gorov teria de enfrentar se fosse levar adiante o plano que começava a formular. Zhukov era o único homem a bordo do submarino com autoridade para destituir o capitão do comando se, na opinião dele, Zhukov, Gorov tivesse perdido o juízo ou desobedecido uma ordem direta do Ministério da Marinha. O primeiro-oficial só poderia usar seu poder em caso de extrema urgência, uma vez que teria de justificar a tomada de comando quando voltassem para a Rússia; de qualquer modo, ele representava um perigo real.

Emil Zhukov, aos 42 anos, não era muito mais jovem do que seu comandante, mas o relacionamento deles tinha uma sutil qualidade de aluno-professor, primeiramente porque Zhukov dava um alto valor à hierarquia e à disciplina, de tal modo que seu respeito pela autoridade beirava uma reverência não muito saudável. Ele teria olhado qualquer comandante como um mentor e fonte de sabedoria. Alto, magro, com o rosto estreito e comprido, intensos olhos cor de avelã e espesso cabelo escuro, o primeiro-oficial lembrava a Gorov um lobo; tinha uma graça lupina quando se movimentava e seu olhar direto às vezes parecia predatório. Na verdade, não era impressionante ou perigoso como parecia ser; era apenas um bom homem e um oficial confiável, ainda que não brilhante. Em geral, sua deferência para com seu comandante garantia sua fiel cooperação - mas, sob circunstâncias extremas, sua obediência não poderia ser considerada indiscutível. Emil Zhukov nunca perdia de vista o fato de que havia muitos homens com maior autoridade do que Gorov - e ele lhes devia maisrespeito e lealdade do que a seu capitão.

Gorov cobriu, com o relatório sobre o caso Edgeway, o romance que Zhukov lia na mesa do mapa.

- É melhor você dar uma olhada nisso.

Quando chegou à última página do documento, o primeiro-oficial disse:

- Eles se meteram numa armadilha e tanto. Mas li um pouco sobre esse Projeto Edgeway nos jornais, quando eles ainda estavam no estágio de planejamento, e me pareceu que esses Carpenters são gente extremamente inteligente. Eles poderão dar um jeito de sair dessa.

- Não foram os Carpenters que chamaram minha atenção. Outro nome.

Examinando rapidamente o relatório, Zhukov disse:

- Você deve estar se referindo a Dougherty. Brian Dougherty. Gorov sentou no outro banco da mesa luminosa de tampo de plexiglas.

- Sim. Dougherty.

- Ele é parente do presidente americano assassinado?

- Sobrinho.

- Eu admirava muito seu tio - disse Zhukov. - Mas acho que sou ingênuo nesses assuntos.

O desdém de Gorov pela política e os políticos era bem conhecido do primeiro-oficial, que no fundo desaprovava sua atitude. O capitão não podia fingir convincentemente ter mudado de opinião só para ganhar o apoio de Zhukov para a arriscada operação que ele desejava realizar. Encolhendo os ombros, disse:

- Política é uma coisa relacionada com o poder. Eu admiro as realizações.

- Ele era um homem de paz - disse Zhukov.

- Sim, paz é uma coisa que todos eles vendem.

- Você acha que ele não era um grande homem? - disse Zhukov, carrancudo.

- Um cientista que descobre a cura de uma doença... esseé um grande homem ou mulher. Mas políticos...

Zhukov não era daqueles que suspiravam por uma volta ao antigo regime, mas tinha tido pouca paciência com a série de governos instáveis que afligira a Rússia nos últimos anos. Ele admirava líderes fortes. Era um homem que necessitava ter alguém em que pudesse encontrar orientação e diretrizes - e os bons políticos eram seus heróis máximos, não importando a nacionalidade.

- Não levando em conta o que penso sobre o falecido presidente - disse Gorov -, tenho de admitir que a família Dougherty tratou a sua tragédia com elegância e coragem. Com muita dignidade.

Zhukov concordou solenemente.

- Uma família admirável. Muito triste.

Gorov sentiu como se seu primeiro-oficial fosse um sofisticado instrumento musical. Ele tinha acabado de tocar Zhukov. Agora estava prestes a tentar uma delicada melodia com ele.

- O pai do rapaz é senador, não é?

- Sim, e muito respeitado - disse Zhukov.

- Também atiraram nele, não foi?

- Foi; outra tentativa de assassinato.

- Depois de tudo que o sistema americano fez a essa família, por que você acha que os Doughertys continuam a apoiá-lo de maneira tão ardente?

- Eles são grandes patriotas - disse Zhukov. Puxando, pensativo, sua barba bem aparada, Gorov disse:

- Como deve ser difícil para uma família continuar patriota numa nação que mata seus melhores filhos.

- Ah, mas não foi o país que os matou, senhor. A culpa é de um punhado de reacionários. Talvez até mesmo da CIA. Mas não do povo americano.

Gorov fingiu meditar sobre isso por um minuto. Então disse:

- Acho que você tem razão. Pelo que tenho lido, os americanos parecem ter muito respeito e simpatia pelos Doughertys.

- Sem dúvida. Patriotismo na adversidade é a única maneira de se conseguir respeito. É fácil ser patriota em épocas de fartura, quando ninguém precisa fazer sacrifícios.

A melodia que Gorov tinha pretendido tocar com seu primeiro-oficial estava avançando sem uma nota desafinada e o capitão quase sorriu. Em vez disso, olhou o relatório Edgeway por um bom pedaço e então disse:

- Uma grande oportunidade para a Rússia.

Como o capitão esperava, Zhukov não acompanhou de imediato sua mudança de pensamento.

- Oportunidade?

- Para mostrar boa vontade.

- Hein?

- E numa época em que a Mãe Rússia necessita desesperadamente de boa vontade, mais do que em qualquer outro momento de sua história. Boa vontade leva a um bocado de ajuda externa, tratamento comercial preferencial, até mesmo cooperação militar e concessões estratégicas importantes.

- Não consigo ver a oportunidade.

- Nós estamos a apenas cinco horas da posição deles. Zhukov arqueou uma sobrancelha.

- O senhor bolou isso?

- Estou raciocinando. Mas é uma boa estimativa. E se fôssemos em socorro daquelas pobres pessoas perdidas no iceberg, nós seríamos heróis. Heróis mundiais. Percebe? E a Rússia seria heróica, por associação.

Piscando de surpresa, Zhukov disse:

- Resgatá-los?

- Afinal de contas, nós estaríamos salvando as vidas de oito valiosos cientistas de meia-dúzia de países, incluindo o sobrinho do presidente assassinado. Oportunidade como essa, para propaganda e boa vontade, surge uma em cada década.

- Mas precisaríamos da permissão de Moscou.

- É claro.

- Para obter a resposta rápida de que o senhor precisa, teríamos de enviar o pedido por satélite. E para usar esse equipamento, teríamos de subir à superfície.

- Estou consciente disso.

O tubo de transmissão a laser e o disco dobrável de recepção estavam montados no alto da torre do submarino, o grande projetor em forma de barbatana no convés externo, que também sustentava a pequena ponte, os mastros de rádio e radar, periscópios e o sonar. Eles teriam de emergir para que a aparelhagem de rastreamento pudesse ser conectada com uma série de satélites russos de telecomunicações e o laser pudesse operar apropriadamente. Mas se a quebra de segredo era uma desvantagem para uma embarcação como o Pogodin, a inacreditável velocidade da transmissão a laser superava esse lado negativo. De praticamente qualquer ponto do globo podia-se enviar uma mensagem a Moscou e receber imediatamente a confirmação de sua recepção.

Na comprida face saturnina de Zhukov desenhou-se de repente a ansiedade, porque ele compreendeu que teria de fazer uma escolha entre desobedecer a uma autoridade ou a outra - ou o capitão ou seus superiores em Moscou.                                                  

- Nós estamos numa missão de espionagem, senhor. Se emergirmos, comprometeremos toda a missão.

Com um dedo, Gorov acompanhou uma linha de latitude pintada sobre a superfície iluminada da mesa com o mapa eletrônico.

- Nessa extremidade norte, no meio de uma raivosa tempestade de inverno, quem iria nos ver? Nós seríamos capazes de subir, enviar e receber a mensagem, ficando totalmente anônimos.

- Sim, certo. Mas temos ordens para manter o rádio em silêncio total.

Gorov balançou a cabeça solenemente, como para dizer que tinha pensado a respeito do assunto e estava consciente da sua assustadora responsabilidade.

- Quando meu filho estava morrendo, Moscou rompeu o silêncio de nosso rádio.

- Mas era uma questão de vida ou morte.

- Pessoas estão morrendo também. Certamente temos ordens de manter o silêncio radiofônico. Eu sei o quanto é sério pôr de lado esse tipo de ordem. Por outro lado, numa emergência, o comandante tem permissão de desobedecer ao Ministério a seu critério.

Franzindo os olhos, as linhas de sua face comprida recortadas tão fundo que começavam a parecer feridas, Zhukov disse:

- Não tenho certeza de que podemos chamar isso de uma emergência. Não do tipo que eles tinham em mente quando estabeleceram as regras.

- Bem, é como eu chamo - disse Gorov, lançando um desafio silencioso mas não especialmente sutil.

- Nós teremos de responder perante a Comissão de Inquérito Naval quando tudo terminar - disse Zhukov. - E esta é uma missão de espionagem, de modo que os serviços de Inteligência também terão perguntas a fazer.

- É claro.

- E metade dos componentes é de ex-homens da KGB.

- Talvez.

- Com certeza.

- Eu estou preparado - disse Gorov. - Para um inquérito. Mas também para o que os serviços de inteligência poderiam fazer com o senhor?

- Para ambos.

- Eu sei como eles são.

- Eu posso ser durão. A Mãe Rússia e a Marinha me ensinada resistência.

Gorov sabia que eles estavam se aproximando dos últimos 16 compassos da música. O crescendo estava próximo.

- Minha cabeça estará também em jogo - disse Zhukov, de mau humor, enquanto empurrava o relatório por sobre a mesa para Gorov.

- Nenhuma cabeça estará em jogo.

O primeiro-oficial não se convencera. Seu rosto estava ainda mais franzido.

- Eles não são todos idiotas no Ministério - disse Gorov Zhukov encolheu os ombros.

- Quando eles pesarem as alternativas - disse Gorov, confiante -, darão a permissão que desejo. Tenho absoluta certeza. Claramente, a Rússia tem mais a ganhar enviando-nos numa missão de salvamento do que insistindo na continuação do que não é, afinal de contas, nada mais do que outra viagem rotineira de vigilância.

Emil Zhukov ainda tinha suas dúvidas. Erguendo-se do banco, enrolando o relatório na forma de um tubo, Gorov disse:

- Tenente, eu quero a tripulação em posição de combate em cinco minutos.

- Isso é necessário?

Exceto por manobras complicadas ou perigosas, o pessoal de serviço regular podia emergir ou submergir a embarcação.

- Se vamos quebrar uma determinação do Ministério a nosso próprio critério, podemos pelo menos tomar todas as precauções -disse Gorov.

Por um longo momento, eles se olharam, cada um querendo ler a mente do outro, tentando ver o futuro. O olhar do primeiro-oficial era mais penetrante do que nunca.

Finalmente, Zhukov ergueu-se, sem romper o contato ocular

Ele tomou sua decisão, pensou Gorov. Espero que possamos conviver com ela.                                                                

Zhukov hesitou... e então bateu continência.

- Sim, senhor. Estará feito em cinco minutos.

- Nós vamos emergir tão logo a antena de multicomunicação esteja colocada e segura.

- Sim, senhor.

Gorov sentiu como se centenas de dolorosos nós estivessem sendo desatados dentro dele. Tinha vencido.

- Vamos lá, então.

Zhukov deixou a sala de controle.

Caminhando para o seu posto circular de comando, rodeado por um corrimão, no fundo da sala de controle, Gorov pensou no pequeno Nikki e soube que estava fazendo a coisa certa. Em nome do filho morto, em homenagem a seu menino perdido, não pelo bem da Rússia, ele salvaria as vidas daquelas pessoas extraviadas. Elas não podiam morrer no gelo. Desta vez, ele tinha o poder de ludibriar a morte, e estava determinado a não falhar.

 

3:46

Tão logo o segundo pacote de explosivos tinha sido arrancado do gelo, Roger, Brian, Claude, Lin e Fischer moveram-se para o local do terceiro tubo selado.

Harry ficou para trás com Pete Johnson, que ainda tinha de desarmar o segundo petardo. Eles permaneciam juntos, de costas para o vento rangente. O cilindro de demolição jazia a seus pés, um pacote do mal: 15 centímetros de comprimento e seis de diâmetro, preto com letras amarelas, onde se lia PERIGO. Estava envolto num fino e transparente casaco de gelo.

- Você não tem de me fazer companhia - disse Pete, enquanto limpava cuidadosamente a neve dos óculos. Sua visão não podia estar obstruída quando começasse a trabalhar no mecanismo de detonação.

- Eu pensei que a sua gente tivesse medo de ser deixada sozinha no escuro - disse Harry.

- Minha gente? Você quer dizer os engenheiros eletrônicos, cara.

- De quem mais estaria falando? - disse Harry, sorrindo.

Um forte pé-de-vento pegou-os pelas costas, uma avalanche de ar que os teria derrubado ao comprido se não estivessem preparados para ela. Por um minuto, eles se curvaram com o vendaval, incapazes de falar, preocupados apenas em manter o equilíbrio.

Quando a rajada passou e o vento diminuiu para uns 60 quilômetros por hora, Pete terminou de limpar os óculos e começou a esfregar as mãos para tirar a neve e o gelo das luvas.

- Eu sei por que você não foi com os outros. Você não me engana. É o seu complexo de herói.

- Certo, eu tenho mania de ser Indiana Jones. - Você sempre tem de estar onde o perigo existe.

- É, eu e Madonna.- Harry balançou a cabeça com tristeza.

- Desculpe, mas você entendeu tudo errado, Dr. Freud. Eu prefiro com certeza estar onde não existe perigo. Mas me ocorreu que a bomba poderia explodir no seu rosto.

- E você me prestaria os primeiros socorros?

- Algo assim.

- Escute, se ela explodir na minha cara mas não me matar... pelo amor de Deus, nada de primeiros socorros. Simplesmente acabe comigo.

Harry piscou e começou a protestar.

- Tudo o que estou pedindo é misericórdia - cortou Pete.

Nos últimos meses, Harry tinha aprendido a gostar do grandalhão de cara larga e a respeitá-lo. Debaixo da feroz aparência exterior de Pete Johnson, sob as camadas de educação e treinamento, sob a competência fria, havia um menino que amava a ciência, a tecnologia e a aventura. Harry reconhecia em Pete muito de si mesmo.

- Existe realmente uma possibilidade grande de explosão, não é?

- Quase nenhuma - tranquilizou-o Pete.

- O envoltório bateu muito ao sair do tubo.

- Relaxe, Harry. O último foi bem, não foi?

Estavam ajoelhados ao lado do cilindro de aço. Harry segurava a antena, Pete abria a pequena caixa plástica de ferramentas de precisão.

- Desarmar essas filhas da puta é muito fácil - disse Pete. - O problema não é esse. Nosso problema é tirar mais oito delas do gelo antes que o relógio marque meia-noite e a carruagem se transforme numa abóbora.

- Nós as estamos recuperando à média de uma por hora.

- Mas vamos diminuir o ritmo - disse Johnson. Com uma pequena chave de fenda, ele começou a remover o fundo do cilindro que mostrava o parafuso que o prendia. - Precisamos de 45 minutos para desenterrar a primeira. Depois, 55 para a segunda Nós já estamos ficando cansados, vagarosos. É esse vento.

Era um vento brutal, que pressionava e esmurrava as costas de Harry com tanta força que ele se sentiu como se estivesse no meio de um rio turbulento e rodopiante; as correntes de ar eram quase tão tangíveis quanto as correntes em águas profundas. A velocidade do vento era agora de 60 ou 70 quilômetros por hora e crescia firme e rapidamente para a força de um vendaval. Mais tarde, se tornaria mortal.

- Você tem razão - disse Harry. Sua garganta estava ligeiramente dolorida pelo esforço de se fazer ouvir acima da tormenta, ainda que eles estivessem quase cabeça com cabeça, sobre o pacote de explosivos. - Não faz muito bem sentar dez minutos num trenó aquecido e depois passar a hora seguinte num tempo ruim desses.

Pete extraiu o último parafuso e removeu uma peça de 15 centímetros do cilindro.

- A quanto a temperatura caiu? É capaz de adivinhar?

- Quinze graus abaixo de zero.

- E com a sensação térmica do vento?

- Talvez 30 abaixo de zero.

- Uns 35.

- Pode ser. - Mesmo sua pesada roupa térmica não podia protegê-los. A lâmina gelada do vento apunhalava continuamente suas costas, furando a roupa de inverno, ferindo a espinha. -Nunca pensei que não teríamos condições de tirar dez bombas, eu sabia que iríamos diminuir o ritmo. Mas se desarmarmos umas cinco ou seis, podemos ganhar espaço suficiente para sobreviver à explosão da meia-noite.

Pete bateu na seção de 15 centímetros do envoltório e um timer deslizou para a sua mão enluvada. Ele estava conectado com o resto do cilindro por quatro fios espiralados: verde, amarelo, vermelho e branco.

- Eu acho melhor congelar até morrer amanhã do que ser reduzido a pedaços esta noite.

- Não se atreva a fazer isso comigo - disse Harry.

- O quê?

- Converter-se noutro Franz Fischer. Pete riu.

- Ou noutro George Lin.

- Esses dois. Os Irmãos Metralha.

- Você os escolheu - disse Pete.

- E assumo a culpa. Bem, inferno, eles são homens bons. Apenas estão sob muita pressão...

- Eles são um saco.

- Precisamente.

- Está na hora de você cair fora daqui - disse Pete, mexendo de novo na caixa de ferramentas.

- Eu vou segurar a lanterna.

- Vá pro inferno. Deixe-a no chão, de modo que ilumine aqui, e depois vá. Eu não preciso que você segure a luz. Só o que preciso de você é que faça aquele ato de piedade, se for necessário.

Relutante, Harry voltou para o trenó. Curvou-se atrás do veículo, protegido do vento. Encolhido lá, sentiu que o trabalho e todo o risco deles era para nada. A situação deles ia piorar muito, antes de começar a melhorar. Se é que ia melhorar.

 

4:00

O Ilya Pogodin singrava aos solavancos na superfície do Atlântico Norte. O mar turbulento batia contra suas curvas redondas e esguichava na escuridão, numa série interminável de ondas que soavam como janelas estremecendo numa trovoada de verão. Como a embarcação avançava na água com lentidão, ela estremecia apenas de leve com os impactos, mas poderia não suportar o castigo indefinidamente. A água cinzenta rodopiava no convés principal e a espuma estava espessa como um mingau junto à base da poderosa torre de aço. O barco não fora projetado ou construído para longas viagens na superfície durante tempestades. Apesar disso, a despeito de sua tendência a jogar, pôde agüentar-se o tempo necessário para Timoshenko trocar mensagens com a Sala de Guerra do Ministério da Marinha, em Moscou.

O capitão Gorov estava na ponte com mais dois homens. Todos eles usavam jaquetas forradas de pêlo, capas pretas de chuva com capuz sobre as jaquetas e luvas. Os dois jovens vigias permaneciam atrás, um virado para bombordo, outro para estibordo. Os três homens tinham binóculos e vigiavam o horizonte.

É um horizonte danado de próximo, pensou Gorov, enquanto o estudava. E muito feio.

Naquela extremidade norte, o entardecer polar não tinha ainda desaparecido inteiramente do céu. Um fantasmagórico brilho verdejante escorria por entre as pesadas nuvens tempestuosas e saturava os panoramas do Atlântico, de modo que parecia a Gorov estar olhando através de uma fina película de líquido verde. A luz mal iluminava o mar raivoso e revelava um suave brilho amarelo na crista espumante das ondas. Uma mistura de neve fina e geada assoviava do nordeste; a torre, o passadiço da ponte, a negra capa de chuva de Gorov, o volume do laser e os mastros do rádio estavam incrustados de gelo branco. Formações avulsas de neblina obscureciam ainda mais a paisagem proibida, e, no sentido norte, as ondas agitadas estavam escondidas por um nevoeiro marrom-acinzentado, tão denso que parecia uma cortina puxada sobre o mundo atrás dela. A visibilidade variava de meio quilômetro a 800 metros e seria muitíssimo pior se eles não estivessem usando binóculos noturnos.

Atrás de Gorov, no topo da torre de aço, a bandeja de rastreamento de satélites movia-se vagarosamente de leste para oeste. Sua contínua mudança não era perceptível à primeira vista, mas ela estava ligada a um satélite soviético de telecomunicações que seguia uma apertada órbita subpolar, acima das massas de nuvens cor de ardósia. A mensagem de Gorov fora transmitida por laser há quatro minutos. O disco de rastreamento aguardava a resposta de Moscou.

O capitão já tinha imaginado a pior resposta possível. Receberia ordens de entregar o comando ao primeiro-oficial Zhukov, que seria orientado a pô-lo sob a vigilância de 24 horas de uma guarda armada e a continuar com a missão programada. A corte marcial prosseguiria em sua ausência e ele seria informado da decisão dela no regresso a Moscou.

Mas tinha esperança de uma resposta de Moscou mais razoável do que aquela. Certo, o Ministério era sempre imprevisível. Mesmo sob o regime pós-comunista, com o seu maior respeito pela justiça, oficiais eram às vezes submetidos à corte marcial sem estarem presentes para se defenderem. Mas ele acreditava no que dissera a Zhukov na sala de controle: no Ministério, não eram todos burros. Eles mais provavelmente iriam ver a oportunidade de uma vantagem estratégica e de propaganda naquela situação e chegariam a uma conclusão apropriada.

Examinou o horizonte envolto em neblina.

O fluxo do tempo parecia ter diminuído até quase parar. Embora soubesse que se tratava de uma ilusão, ele via o mar rugindo em câmera lenta, as ondas erguendo-se como rugas num oceano de melado frio. Cada minuto era uma hora.

Bang!

Centelhas escaparam das aberturas no revestimento em liga de aço da broca auxiliar. Ela estalou, engasgou e desligou. Roger Breskin a estava operando.

- Inferno!

Ele apertou o botão de partida.

A broca não funcionou. Pete Johnson aproximou-se e ajoelhou-se, para dar uma olhada nela.

Todos se juntaram em volta, esperando o pior. Eles eram, pensou Harry, como curiosos em torno de um acidente de automóvel - exceto pelo fato de que os corpos do desastre podiam ser os deles mesmos.

- O que há de errado? - perguntou George Lin.

- Teremos de abrir o revestimento para descobrir - disse Fischer a Pete.

- É, mas eu não preciso abrir o aspirador para saber que não tenho como consertá-lo.

- O que você quer dizer? - perguntou Brian. Apontando para a neve e a graxa congelada em torno do terceiro tubo parcialmente reaberto, Pete perguntou:

- Está vendo aquelas manchas negras?

Harry abaixou-se e estudou os pedaços de metal espalhados pelo gelo.

- Os dentes da engrenagem. Todos ficaram em silêncio.

- Eu poderia provavelmente consertar um defeito na fiação - disse Pete. - Mas não tenho peças sobressalentes para isso.

- E agora? - perguntou Brian.

- É voltar para a gruta e esperar pela meia-noite - disse

Fischer, com teutônico pessimismo.

- Isso é desistir - disse Brian.

- Mas temo que seja tudo o que podemos fazer, Brian - disse Harry, erguendo-se. - Perdemos a outra broca quando o meu trenó caiu naquela cratera.

Dougherty sacudiu a cabeça, recusando-se a aceitar que eles não tinham como prosseguir.

- Mas antes Claude disse que podíamos usar o machado de gelo e a serra elétrica para cortar alguns degraus no campo de gelo, fazendo um ângulo em direção a cada pacote...

O francês o interrompeu:

- Isso funcionaria se nós tivéssemos uma semana. Precisaríamos de seis horas, talvez mais, para retirar esta bomba pelo método do degrau. Não vale a pena gastar tanta energia para ganhar só mais 15 metros de segurança.

- OK, vamos juntar as coisas, vamos lá - disse Harry, batendo as mãos com ênfase. - Não tem sentido ficar aqui, perdendo calor corporal. Nós podemos discutir isso na gruta, fora do vento. Ainda podemos pensar noutra coisa.

Mas ele não tinha esperança.

Às 4:02, o centro de comunicações informou que uma mensagem do Ministério da Marinha estava chegando. Cinco minutos depois, a folha decodificada foi passada à ponte, onde Nikita Gorov iniciou sua leitura, em meio a alguma trepidação.

 

MENSAGEM

MINISTÉRIO DA MARINHA

HORA: 1900 MOSCOU

DE: OFICIAL DE SERVIÇO

PARA: CAPITÃO N. GOROV

ASSUNTO: SUA ÚLTIMA TRANSMISSÃO #34-D

MENSAGEM COMEÇA:

SEU PEDIDO SOB ESTUDO ALMIRANTADO PONTO DECISÃO IMEDIATA NÃO PODE SER TOMADA PONTO SUBMERJA E CONTINUE MISSÃO PROGRAMADA POR UMA HORA PONTO A CONTINUAÇÃO OU NOVAS ORDENS SERÃO TRANSMITIDAS ÀS 1700 HORAS SEU HORÁRIO PONTO

 

Gorov ficou desapontado. A indecisão do Ministério elevou o nível de sua tensão. A hora seguinte seria mais difícil para ele do que a hora anterior. Voltou-se para os outros dois homens e ordenou:

- Deixar a ponte.

Prepararam-se para mergulhar. Os vigias precipitaram-se pela torre cônica e tomaram posição junto às rodas de mergulho. O capitão fez soar o alarme de rotina - dois toques curtos das cometas elétricas que repercutiram através dos alto-falantes de todos os aposentos do submarino - e então deixou a ponte, puxando com uma correia a alavanca de trancamento da portinhola.

O contramestre da vigia girou a roda de mão e disse:

- Tranca segura.

Gorov apressou-se até o posto de comando, na sala de controle. À segunda buzinada para mergulho, as aberturas de ar nos tanques de lastro tinham sido abertas e o mar ressoou no espaço entre os dois cascos da embarcação. À direita de Gorov, um subtenente vigiava o painel que continha uma luz vermelha e várias verdes. As verdes representavam trancas, aberturas, exaustores e equipamentos de expulsão junto à água. A luz vermelha trazia o registro: CONJUNTO DE TRANSMISSÃO LASER. Quando o equipamento laser encaixava no seu nicho no topo da torre, uma tranca a ar comprimido o fechava, a luz vermelha apagava e a lâmpada de segurança sob ela acendia.                                                                  

- Painel verde - anunciou o subtenente.

Gorov pediu que liberassem ar comprimido para o submarino e, quando o indicador de pressão não registrou uma queda, soube que o submarino estava vedado.

- Mais pressão! - gritou o oficial.

Em menos de um minuto, eles haviam encerrado os preparativos. O convés inclinou-se, a frente submergindo, e eles sumiram da vista de qualquer um que pudesse estar num navio ou avião.

- Descer 100 pés - ordenou Gorov.

A descida era medida por bips emitidos pelo computador.

- A 100 pés - anunciou o oficial de mergulho.

- Mantenha firme o rumo.

- Firme, senhor.

Quando o submarino ficou nivelado, Gorov disse:

- Substitua-me, tenente Zhukov.

- Sim, senhor.

- A sala de controle pode voltar à vigilância de rotina.

- Sim, senhor.

Gorov saiu e caminhou até o centro de comunicações.

Timoshenko voltou-se em direção à porta, quando o comandante entrou na peça.

- Permissão para içar a antena, senhor.

- Negada.

Piscando de surpresa, Timoshenko balançou a cabeça de um lado a outro e indagou:

- Senhor?

- Negada - repetiu Gorov.

Ele examinou o equipamento de telecomunicações que se alinhava nos tabiques. Tinha recebido apenas um treinamento rudimentar sobre seu uso. Por razões de segurança, o computador de telecomunicações era separado do computador principal de bordo, embora os teclados fossem operados da mesma maneira que os da sala de controle, com os quais ele estava familiarizado.

- Desejo usar seu codificador e o computador de telecomunicações.

Timoshenko não se moveu. Era um excelente técnico e um jovem brilhante sob vários pontos de vista. Mas seu mundo era composto de bancos de dados, chaves de programação, input, output e toda essa tralha - e ele não era capaz de lidar bem com pessoas, a menos que elas se comportassem de um modo previsível, maquinai.

- Você me ouviu? - perguntou Gorov, impaciente. Enrubescendo, confuso e embaraçado, Timoshenko disse:

- Ah... sim. Sim, senhor. Ele conduziu Gorov a uma cadeira diante do terminal primário do computador de comunicações.

- O que é que o senhor pretende?

- Privacidade - disse Gorov, asperamente, enquanto se sentava.

Timoshenko continuou ali de pé.

- Pode ir, tenente. Sua confusão aumentou. Timoshenko fez que sim, tentou sorrir, mas em vez disso parecia que tinha sido trespassado por uma agulha comprida. Retirou-se para o outro lado da peça, onde seus curiosos subordinados fingiam nada ter escutado.

O codificador - ou máquina criptográfica - estava ao lado da cadeira de Gorov. Tinha o tamanho e o feitio de uma escrivaninha de duas gavetas, envolto em aço galvanizado. Gorov tocou o botão de LIGAR. O papel amarelo crespo rolou automaticamente do alto do aparelho na bandeja.

Gorov digitou rapidamente uma mensagem. Quando terminou, ele a leu sem tocar o papel frágil e em seguida apertou um botão vermelho retangular de PROCESSAMENTO. A impressora a laser começou a funcionar e o codificador produziu a versão cifrada sob a mensagem original. Parecia uma coisa sem sentido: amontoados de números ao acaso, separados por símbolos diversos.            

Rasgando o papel da máquina criptográfica, Gorov girou na cadeira e ficou de frente para o terminal de vídeo. Tomou como referência a versão em código da mensagem e digitou cuidadosamente as mesmas séries de números e símbolos no computador de comunicações. Quando terminou, pressionou o botão de funções especiais que trazia a palavra DECODIFICAR e outro com IMPRIMIR.

Não tocou a tecla LEITURA, porque não queria que seu trabalho fosse exibido na tela grande do alto, em benefício de Timoshenko e dos outros técnicos. Depois de jogar a fina folha de papel da máquina criptográfica no picador de papel, inclinou-se para trás na cadeira.

Passou-se não mais que um minuto antes que o comunicado - agora decodificado e no seu estado original - estivesse em suas mãos. Ele fizera o ciclo completo em menos de cinco minutos. O impresso continha as mesmas 14 linhas que ele havia composto no codificador, mas estava na forma costumeira produzida pelo computador. Parecia-se agora com qualquer outra mensagem decodificada recebida do Ministério em Moscou, que era exatamente o que ele pretendia.

Instruiu o computador para apagar de sua memória todos os detalhes do que acabara de fazer. Com isso, o impresso era a única prova que permanecia de seu ato. Timoshenko não seria capaz de interrogar o computador sobre o que acontecera depois que Gorov deixasse a cabine.

Levantou e foi até a porta aberta. De lá, disse:

- Oi, tenente.

Timoshenko fingia estudar um diário de navegação. Ergueu os olhos:

- Sim?

- Naqueles despachos que você interceptou, sobre o grupo Edgeway, era mencionada a existência de um transmissor com eles, no gelo à deriva?

Timoshenko fez que sim e explicou:

- Eles têm um rádio padrão de ondas curtas, naturalmente Mas não é a ele que o senhor está se referindo. Eles têm também um rádio transmissor, um farol de rastreamento que emite um sinal de dois segundos, dez vezes por minuto.

- Você o captou?

- Há 20 minutos.

- É um sinal forte?

- É, sim.

- Você registrou o ramo?

- Sim, senhor.

- Bem, vamos verificá-lo novamente. Voltarei aqui no setor de intercomunicações daqui a pouco - disse Gorov.

Ele voltou à sala de controle para outra conversa com Emil Zhukov.

Harry ainda não acabara de dizer à Rita como a broca auxiliar havia se quebrado, quando ela o interrompeu:

- Ei, onde está Brian?

Ele voltou-se para os homens que tinham entrado na gruta de gelo, atrás dele. Brian Dougherty não estava entre eles. Harry franziu a testa.

- Onde está Brian? Por que ele não está aqui?

- Ele deve estar por aí. Vou dar uma olhada lá fora - disse Roger Breskin.

Pete Johnson saiu com ele.

- Ele provavelmente está atrás de algum montinho por aí -disse Fischer, embora com certeza soubesse de algo mais. - Nada especialmente dramático, eu aposto. Provavelmente teve que fazer alguma necessidade.

- Não - discordou Harry.

- Ele teria dito a alguém - disse Rita.

Lá fora, na calota de gelo, longe da segurança da Estação Edgeway ou dos iglus infláveis do acampamento provisório, ninguém podia se permitir ser discreto, nem mesmo sobre os seus hábitos de bexiga e intestinos. Quando iam satisfazer alguma necessidade, eles sabiam ser necessário informar pelo menos mais uma pessoa sobre exatamente qual elevação ou encosta de pressão serviria de biombo para seu banheiro. Muito atento sobre os caprichos da região polar e do tempo, Brian teria informado os outros sobre onde começar a procurá-lo caso não voltasse num tempo adequado.

Roger e Pete reapareceram em menos de dois minutos, erguendo os óculos e abaixando as máscaras de proteção riscadas por veias de gelo.

- Ele não está nos trenós - disse Roger. - E nem em qualquer outro lugar que pudéssemos avistar.

Seus olhos cinzentos, normalmente inexpressivos, estavam perturbados.

- Quem voltou com ele no trenó até aqui? – perguntou Harry.

Todos se entreolharam.

- Claude?

O francês sacudiu a cabeça:

- Eu não. Pensei que tinha vindo com Franz.

- Eu vim com Franz - disse George Lin.

Rita estava exasperada.

- Pelo amor de Deus, quer dizer que vocês o deixaram para trás naquela confusão? - exclamou ela, afastando de sob o capuz um fio extraviado de cabelo raivo.

- De jeito nenhum. Ele não ia permitir isso acontecer - disse Harry.

- A menos que ele quisesse - sugeriu George Lin.

- Por que ele iria querer ficar para trás? - perguntou Harry, perplexo.

Claramente indiferente à ansiedade com relação a Brian, Lin assoou sem pressa o nariz, dobrou displicentemente o lenço, colocou-o de volta no bolso com zíper do casaco e só então respondeu à pergunta:

- Você deve ter lido algumas daquelas reportagens nos jornais sobre ele. Espanha... África... em toda a parte ele sempre arriscou a vida, por travessura.

- E daí?

- Impulso suicida - disse Lin, como se isso devesse ser óbvio para todos.

Harry ficou perplexo e quase enraivecido.

- Você está dizendo que ele se deixou ficar para trás para morrer?

Lin encolheu os ombros. Harry nem perdeu tempo pensando a respeito e disse:

- Ora, ora, George, não Brian. O que é que há com você?

- Ele pode ter se ferido. - disse Pete. - Uma queda.

- Caiu, machucou a cabeça e não pôde gritar-disse Claude Jobert. - Nós estávamos tão ansiosos de sair de lá que nem reparamos.

Harry continuava cético.

- É possível - insistiu Pete.

- Talvez - disse Harry, dúbio. - Muito bem, vamos voltar lá e olhar. Você e eu, Pete. Dois trenós.

- Vou com vocês - disse Roger, dando um passo à frente.

- Dois podem resolver isso - disse Harry, colocando rápido os óculos no lugar.

- Eu insisto - disse Breskin - Olhe, Brian saiu-se muito bem no gelo hoje. Ele não hesitou quando teve de descer naquele penhasco para passar uma corda em volta de George. Eu teria pensado duas vezes. Ele não. Ele simplesmente foi. E se fosse eu que estivesse em dificuldade agora, ele faria tudo o que pudesse. Sei disso. De modo que podem contar comigo, precisem ou não de mim.

Tanto quanto Harry podia lembrar, este era o mais longo discurso que Roger Breskin tinha feito em meses. Ele estava impressionado:

- OK. Então venha. Você é grande demais para eu brigar com você.

O maior tesouro do Ilya Pogodin era seu cozinheiro. O pai dele tinha sido cozinheiro-chefe do Restaurante Nacional de Moscou e com ele o filho aprendera a operar milagres com alimentos que faziam a história bíblica da multiplicação dos pães e dos peixes parecer um episódio menor. Sua cotação era a mais alta em toda a força de submarinos.

Ele já tinha começado a preparar o peixe selianka como primeiro prato do jantar. Peixe branco. Cebolas. Folhas de louro. Ovos brancos. O aroma escapava da galeria atrás do centro de comunicações e enchia a sala de controle.

Quando Gorov entrou na peça, Sergei Belyaev, o oficial de mergulho de serviço, disse:

- Capitão, o senhor me ajudaria a fazer Leonid ver as coisas? Ele apontou para um jovem marinheiro de primeira-classe que vigiava o painel de alarme.

Gorov estava com pressa, mas não queria que Belyaev sentisse sua tensão.

- Qual é o problema? Belyaev fez uma careta.

- Leonid está no primeiro turno do rancho e eu estou no quinto.

- Ah.

- Eu prometi que se ele trocasse de turno comigo, eu o faria conhecer uma loira absolutamente maravilhosa, em Kaliningrado. Essa mulher é simplesmente espetacular, juro. Seios iguais a melões. Ela pode excitar até uma estátua de granito. Mas o idiota, o estúpido do Leonid não quer trocar comigo.

- Claro que não. - Gorov sorriu. - Que mulher pode ser mais excitante do que um jantar esperando por nós? Além do mais, quem seria ingênuo de acreditar que uma loira tão maravilhosa, com seios iguais a melões, iria dar bola para você, Sergei Belyaev?

As gargalhadas ressoaram na câmara de teto baixo. Sorrindo muito, Belyaev disse:

- Em vez disso, talvez eu devesse lhe oferecer alguns rublos.

- É muito mais realista - disse Gorov. - Melhor ainda, dólares, se você tiver alguns.

Ele caminhou até a mesa do mapa, sentou num dos tamboretes e pôs diante de Emil Zhukov um impresso dobrado. Era a mensagem que ele fizera passar pelo codificador e pelo computador de comunicações há apenas alguns minutos.

- Algo mais para você ler-disse ele, suavemente. Zhukov pôs de lado seu romance e ajustou os óculos de aro de metal, que haviam deslizado ao longo do nariz comprido. Desdobrou o papel.

 

MENSAGEM

MINISTÉRIO DA MARINHA

HORA: 1900 MOSCOU

DE: OFICIAL DE SERVIÇO

PARA: CAPITÃO N. GOROV

ASSUNTO: SUA ÚLTIMA TRANSMISSÃO # 34-D

MENSAGEM COMEÇA:

SEU PEDIDO SENDO CONSIDERADO PELO ALMIRANTADO PONTO PERMISSÃO CONDICIONAL CONCEDIDA PONTO FAÇA MUDANÇAS DE RUMO NECESSÁRIAS PONTO CONFIRMAÇÃO OU CANCELAMENTO DA PERMISSÃO SERÁ TRANSMITIDA ÀS 1700 HORAS SEU HORÁRIO PONTO

 

Depois de morder o lábio inferior por um momento, Zhukov voltou seu olhar intenso para Gorov e perguntou:

- O que é isso?

Gorov conservou a voz baixa, mas tentou não parecer confidencial para qualquer dos tripulantes que os pudesse estar observando.

- O que é? Eu penso que você pode ver o que é, Emil. Uma fraude.

O primeiro-oficial não soube o que dizer. Gorov inclinou-se para ele.

- É para sua proteção.

- Minha proteção?

Gorov puxou o impresso das mãos do seu primeiro-oficial e tornou a dobrá-lo cuidadosamente. Guardou-o no bolso da camisa

- Vamos estabelecer um rumo e partir imediatamente para aquele iceberg. - Ele bateu na mesa do mapa entre eles. - Nós vamos salvar aqueles cientistas de Edgeway e Brian Dougherty.

- O senhor não tem uma permissão de verdade do Ministério.

Uma fraude não se sustentará para...

- Precisa-se de permissão para salvar vidas?

- Por favor, senhor. Sei o que quer dizer.

- Uma vez que estivermos a caminho, eu lhe darei o comunicado que acabou de ler. Você o guardará, para sua proteção, se houver algum dia um inquérito.                                            

- Mas eu vi a mensagem verdadeira.      

- Negue isso.

- Poderia não ser fácil.

- Sou o único abordo que sabe o que você viu-disse Gorov. - Eu direi ao juiz de qualquer corte marcial que lhe mostrei a falsa mensagem e nada mais.

- Se eu for interrogado, há a possibilidade de que usem drogas. Além do mais, eu não gosto de desobedecer ordens quando...

- De um modo ou de outro, você estaria desobedecendo ordens. As minhas ou as deles. Agora me ouça, Emil. Isto está certo. É o que nós devemos fazer. E eu o protegerei. Você sabe que sou um homem de palavra, não sabe?

- Não tenho dúvidas - respondeu Zhukov.

Então o primeiro-oficial desviou o olhar, como se estivesse embaraçado pelo pensamento de que jamais deveria ter duvidado de seu comandante, de jeito nenhum.

- E então, Emil?

O primeiro-oficial permaneceu quieto e Gorov disse, tranqüilo mas firme:

- O tempo está correndo, tenente. Se vamos atrás deles, então, pelo amor de Deus, não vamos esperar até que estejam mortos.

Zhukov tirou os óculos. Fechou os olhos e os pressionou com a ponta dos dedos.

- Eu sirvo com o senhor há quanto tempo?

- Sete anos.

- Passamos por momentos de tensão - disse Zhukov.

Como esse, pensou Gorov. Zhukov tirou as mão do rosto, mas não abriu os olhos.

- Aquela vez que a corveta norueguesa nos pegou no fiorde de Oslo e jogou cargas de profundidade sobre nós.

- Foi tensão de verdade.

- Ou aquele jogo de gato e rato com o submarino americano ao largo da costa de Massachusetts.

- Nós os fizemos de bobos, não foi?-disse Gorov.- Nós temos formado uma grande equipe.

- Nenhuma única vez eu o vi em pânico ou dar uma ordem que achasse que não era apropriada.

- Obrigado, Emil.

- Até agora.

- Nem agora.

- Com o devido respeito. - Zhukov abriu os olhos. - Não parece coisa sua. É irresponsabilidade.

- Discordo. Não é irresponsabilidade. Absolutamente. Como já lhe disse, tenho certeza de que o Almirantado vai aprovar nossa missão de salvamento.

- Então por que não esperar pela transmissão das 17 horas?

- Não podemos perder tempo. O andamento burocrático do Ministério não é suficiente neste caso. Temos de chegar ao iceberg antes que se passem muitas horas. Uma vez que o tenhamos localizado, vamos precisar de muito tempo para tirar aquelas pessoas do gelo e trazê-las a bordo.

- São 4:20 - disse Zhukov, consultando o relógio. - Só temos de esperar mais 40 minutos para ter a decisão do Almirantado.

- Mas numa missão de resgate como essa, 40 minutos podem ser a diferença entre o êxito e o fracasso.

- O senhor está inflexível?

- Sim.

Zhukov suspirou.

- Você pode me destituir do comando - disse Gorov. - Agora mesmo. Você tem razão. Eu não deporia contra você, Emil.

Olhando as mãos, que tremiam ligeiramente, Zhukov perguntou:

- Se eles negarem a permissão que deseja, o senhor voltará e continuará a missão de vigilância?

- Eu não teria escolha.

- O senhor voltaria atrás?

- Sim.

- Não os desobedeceria?

- Não.

- Dá sua palavra?

- Dou minha palavra.

Zhukov refletiu. Gorov ergueu-se do tamborete.

- E então?

- Eu devo estar maluco.

- Você concorda com isso?

- Como o senhor sabe, eu dei o seu nome a meu segundo filho. Nikita Zhukov.

- Eu me senti honrado - disse o capitão, balançando a cabeça.

- Bem, se eu estive errado a seu respeito, se não devesse ter dado o seu nome a Nikita, eu nunca mais serei capaz de esquecer isso. Ficará como uma lembrança de quão errado eu estava. Não preciso desse espinho no meu calcanhar. De modo que vou lhe dar mais uma oportunidade de provar que estive certo todo esse tempo.

Sorrindo, Gorov disse:

- Vamos estabelecer uma nova rota e tomar a direção daquele iceberg, tenente.

 

Após voltarem ao terceiro tubo de explosivos, Pete e Roger estacionaram os dois trenós, com os motores funcionando e as luzes acesas. A fumaça de descarga subia em colunas cristalinas. Partiram em diferentes direções e Harry tomou uma terceira, buscando Brian Dougherty nas encostas de alta pressão e nas pequenas elevações de gelo em torno do local.

Cautelosamente, consciente de que poderia ser engolido pela tempestade tão rápida e completamente quanto Brian tinha sido, Harry examinou a paisagem em preto e branco, antes de se aventurar nela. Ele usava a lanterna como um facão, varrendo com ela a escuridão de um lado a outro. A fraca luz amarela cortava a neve que caía, mas a selva branca não era abalada por ela. A cada dez passos, olhava para trás, para ver se não estava se distanciando demais dos trenós. Já estava quase fora da área iluminada pelos faróis e sabia que não podia perder os trenós completamente de vista. Se se perdesse, ninguém ouviria seus gritos de socorro, em meio à zoeira da ventania. Embora difuso e atenuado pela nevasca incrivelmente pesada, o brilho dos faróis era seu único elo com a segurança.

Mesmo enquanto procurava atentamente em cada valeta ou atrás de cada monte de gelo, nutria apenas uma esperança muito pequena de que fosse localizar Dougherty. O vento estava feroz. A neve se amontoava à média de cinco centímetros por hora ou mais. Nos breves momentos em que ele se detinha para examinar melhor alguma sombra mais profunda, logo as botas começavam a afundar. Se Brian tivesse caído sobre o gelo, desmaiado ou sido atingido de alguma maneira, e ficado incapaz de se mover nos últimos 15 minutos, talvez mais... Bem, a essa altura o rapaz estaria coberto, um suave naco branco como qualquer outro montinho, congelando rapidamente no descampado.

Não dá para ter esperança, pensou Harry.

Então, a uns dez metros do tubo de explosivos, ele deparou com um monolito de gelo do tamanho de um caminhão Mack de 16 rodas e encontrou Brian do outro lado. O rapaz estava de costas, estendido ao comprido, um braço do lado e outro sobre o peito. Ele ainda usava os óculos e a máscara para neve. À primeira vista, parecia estar preguiçando lá, tirando uma soneca, sem qualquer problema. Como a pedra de gelo funcionava à maneira de um quebra-vento, a neve não o cobrira Pelo mesmo motivo, fora poupado de pegar o pior frio- Mesmo assim, não se mexia e provavelmente estava morto.

Harry ajoelhou-se ao lado do corpo e puxou a máscara protetora do rosto. Finos e espaçados bafos de vapor subiram dos lábios abertos. Vivo. Mas por quanto tempo? Os lábios de Brian estavam finos e descorados. Sua pele não era menos branca que a neve em volta dele. Apesar de cutucado, não se mexia e as pálpebras não batiam. Depois de ficar imóvel sobre o gelo por pelo menos um quarto de hora, mesmo que tivesse ficado abrigado do vento todo o tempo e mesmo que estivesse usando todo o equipamento de sobrevivência, ele já deveria estar sofrendo pela exposição. Harry ajustou outra vez a máscara para neve, recobrindo a face pálida.

Estava decidindo qual a melhor maneira de tirar Brian dali quando viu alguém aproximando-se através da escuridão turbulenta. Um facho de luz apareceu, a princípio nevoento, tornando-se mais intenso e brilhante à medida que se aproximava.

Roger Breskin cambaleou através da pesada cortina de neve, segurando a lanterna à frente como um cego conduz a bengala. Aparentemente, se desorientara e saíra fora da sua área de busca. Hesitou ao ver Brian.

Harry gesticulou para ele com impaciência. Roger correu para eles.

- Está vivo? - perguntou, abaixando a máscara protetora.

- Não por muito tempo.

- O que aconteceu?

- Eu não sei. Vamos colocá-lo dentro da cabine de um dos renós e deixar que o ar quente trabalhe nele. Pegue os pés dele e

- Posso levá-lo sozinho.

- Mas...

- Será mais fácil e rápido desse jeito.

Harry aceitou que Roger lhe entregou. O homenzarrão abaixou-se e levantou Brian como se o jovem não pesasse mais do que cinco quilos.

Harry abriu caminho através de depressões e elevações até os trenós.

 

Às 4:50, os americanos de Thule mandaram pelo rádio más notícias para Gunvald Larsson. Como acontecera com o Melville, o rebocador Liberty achara que a tempestade era uma força irresistível, contra a qual só grandes navios de guerra e imbecis tentariam lutar. Ele simplesmente não pudera navegar contra as ondas maciças e poderosas que surgiam por quase todo o Atlântico Norte e nas porções não-congeladas do Mar da Groenlândia. O barco retornara há cinco minutos, depois que um marinheiro descobrira que partes da proa a estibordo ameaçavam ceder. O americano do rádio assegurou repetidas vezes a Gunvald que todos em Thule estavam rezando pelos pobres infelizes do iceberg. Na verdade, orações estavam sendo feitas por eles em todas as partes do mundo.

Não havia número de rezas que fizesse Gunvald se sentir melhor. O fato, duro e frio, é que o comandante do Liberty, embora certamente por necessidade e com grande remorso, tomara uma decisão que virtualmente condenava oito pessoas à morte.

Gunvald não encontrou em si forças para dar a notícia à Rita. Não imediatamente, não naquele minuto. Talvez dentro de uma hora - ou um quarto de hora mais. Ele precisava de tempo para se controlar. Eles eram seus amigos e gostava deles. Não queria ser aquele que lhes daria a notícia de sua morte. Precisava de tempo para pensar sobre isso e lhes dizer.

Precisava de uma bebida. Embora não fosse um homem que usualmente procurasse alívio das tensões no álcool, e a despeito de ser conhecido por seus nervos de aço, serviu-se de uma dose de vodca da reserva de três garrafas da despensa do barracão de comunicações. Quando acabou a bebida, ainda não se sentia capaz de chamar Rita. Derramou outra dose, hesitou, depois duplicou-a antes de guardar a garrafa.

 

Embora os trenós estivessem parados, os cinco pequenos motores trepidavam firmes. Na planície de gelo, em meio a uma tormenta feroz, as máquinas nunca devem ser desligadas, porque as baterias morreriam e os lubrificantes dos motores congelariam em dois ou três minutos. O vento incansável estava ficando mais frio à medida que o dia se extinguia; ele podia matar homens e máquinas com facilidade.

Harry saiu da gruta de gelo e apressou-se até o trenó mais próximo. Quando se instalou na cabine aquecida, abriu a garrafa térmica que trouxera consigo. Tomou vários goles rápidos da sopa espessa e cheirosa de verduras. Ela fora obtida de uma mistura desidratada e fervida na chapa quente que eles tinham usado antes para derreter a neve dos tubos de explosivos abertos. Pela primeira vez no dia, ele pôde relaxar, embora soubesse que essa era uma paz temporária.

Nos três trenós à sua esquerda, George Lin, Claude e Roger estavam jantando com a mesma privacidade. Ele mal os via: formas apagadas dentro das cabines sem luz.

Cada um recebera três xícaras de sopa. Nessa média, eles tinham alimentos para só mais duas refeições. Harry decidira-se contra a idéia de racionar o alimento restante, porque, se não estivessem bem alimentados, o frio os podia matar muito mais cedo.

Franz Fischer e Pete Johnson estavam dentro da gruta de gelo. Harry os podia ver claramente, pois os faróis do seu veículo brilhavam através da entrada e forneciam a única luz do seu interior. Os dois homens caminhavam, esperando por sua vez nas cabines aquecidas e pelas garrafas térmicas cheias de sopa quente. Franz movia-se bruscamente, agitado, quase como se marchasse para a frente e para trás. Num contraste perfeito, Pete deslizava de um lado da caverna a outro, juntas soltas, fluido.

Rita bateu e abriu a porta da cabine, assustando Harry.

- Alguma coisa errada? - perguntou ele, engolindo a sopa.

Ela inclinou-se para dentro, usando o corpo para bloquear o vento e sua voz zombadora.

- Ele quer falar com você.

- Brian?

- É.

- Ele continua melhorando?

- Ah, sim. Bastante.

- Ele se lembra do que aconteceu?

- Deixe ele mesmo lhe contar - disse ela.

No quinto trenó, o estacionado mais longe da gruta, Brian recuperava-se vagarosamente. Rita passara os últimos 20 minutos com ele na cabine, massageando seus dedos gelados, alimentando-o com sopa e garantindo que ele não caísse num sono perigoso. Tinha recuperado a consciência durante a viagem de regresso do terceiro buraco de explosivos, mas sofria demais para poder falar. Quando acordara, tinha sido torturado com dores, como se a extremidade dormente de cada nervo estivesse dando uma resposta atrasada ao frio terrível que quase o matara. O rapaz não se sentiria medianamente normal antes de pelo menos mais uma hora.                

Harry fechou a garrafa térmica. Antes de baixar os óculos beijou Rita.

- Uhmmmm, mais - pediu ela.

Dessa vez, sua língua moveu-se entre os lábios dele. Flocos de neve cruzaram por trás da cabeça dela e dançaram em torno do rosto, mas seu hálito estava quente na pele oleosa dele. Uma pungente preocupação por ela o fulminou. Queria protegê-la de todo o mal.

- Eu te amo - disse ela, quando se afastaram.

- Nós vamos voltar a Paris. De alguma maneira. Quando sairmos disso.

- Bem, se não sairmos - disse ela -, nós não podemos nos queixar. Passamos juntos oito anos ótimos. Nos divertimos e ama-mos mais do que a maioria das pessoas durante a vida inteira.

Ele se sentiu impotente diante das dificuldades. Toda a sua vida tinha sido um homem lidando com crises. Sempre fora capaz de achar soluções até mesmo para os problemas mais difíceis. Esse novo sentimento de impotência o enraivecia.   Ela o beijou de leve no canto da boca: - Apresse-se. Brian está esperando.

 

A cabine do trenó estava desconfortavelmente atulhada. Harry sentou de frente para o estreito banco do passageiro e para a parte traseira do veículo, enquanto Brian Dougherty estava de frente para o motor. As barras de direção pressionavam suas costas e seus joelhos estavam encostados nos de Brian. Somente uma vaga radiação âmbar dos faróis filtrava-se através do plexiglas, e a escuridão fazia o pequeno recinto parecer ainda menor do que era.

- Como se sente? - perguntou Harry.

- No inferno.

- Você ficará assim ainda por um tempinho.

- Minhas mãos e pés latejam. Não estou dizendo que estão dormentes. É como se alguém estivesse enfiando um monte de agulhas compridas neles.

Sua voz estava sombreada de dor.

- Congelamento?

- Ainda não olhei meus pés. Mas eles estão iguais às minhas mãos. E não parece que elas estejam congeladas. Acho que estou salvo. Mas... - Ele engasgou de dor, o rosto contorcido. - Meu Deus, isso é horrível.

- Sopa? - perguntou Harry, abrindo a garrafa térmica.

- Não, obrigado. Rita me serviu um quarto da garrafa. Mais uma gota e vou estourar. - Ele esfregou as mãos, aparentemente para diminuir outra agulhada de dor. - A propósito, estou perdidamente apaixonado por sua esposa.

- Quem não está?

- E quero lhe agradecer por ter ido me procurar. Você salvou minha vida, Harry.

- Mais um dia, mais um ato de heroísmo - disse Harry. Tomou outro gole de sopa. - O que aconteceu com você lá?

- Rita não lhe contou?

- Ela disse que seria melhor você me contar.

Brian hesitou. Seus olhos brilharam nas sombras. Por fim disse:

- Alguém me golpeou.

Harry quase engasgou com a sopa.

- Nocauteou você?

- Me atingiu na nuca.

- Não pode ser.

- Eu tenho os galos para provar.

- Deixe ver.

Brian inclinou-se para a frente e baixou a cabeça.

Harry tirou as luvas e examinou a cabeça do rapaz. Os dois galos estavam altos e fáceis de achar, um maior do que o outro, ambos na nuca, um deles um pouco acima e à esquerda do primeiro.

- Concussão?

- Nenhum sintoma disso.

- Dor de cabeça?

- Ah, sim. Uma filha da puta duma dor de cabeça.

- Visão dupla?

- Não.

- Dificuldade de falar?

- Não.

- Tem certeza de que você não desmaiou?

- Positivo - disse Brian, endireitando-se.

- Você podia ter ganho um inchaço feio na cabeça se tivesse desmaiado. Você poderia ter caído contra uma saliência de gelo.

- Lembro bem de ter sido atingido por trás. - Sua voz endureceu-se de convicção - Duas vezes. Na primeira, ele não bateu com força suficiente. Meu capuz suavizou o golpe. Eu tropecei, conservei o equilíbrio, tentei me virar... e ele me atingiu com muito mais força da segunda vez. As luzes sumiram de vez.

- E então ele o arrastou para fora de nossas vistas?

- Antes que algum de vocês visse o que estava acontecendo, evidentemente.

- Não era muito provável que alguém visse.

- O vento estava redemoinhando. A neve estava tão espessa que eu não enxergava a dois metros. Ele tinha uma ótima cobertura. - Você está afirmando que alguém tentou matá-lo.

- Exatamente.

- Mas se foi isso mesmo, por que ele o arrastou para trás de um quebra-vento? Você teria congelado até morrer em 15 minutos, se estivessem no descampado.

- Talvez ele tenha pensado que o golpe tivesse me matado. De qualquer modo, ele não me deixou no descampado. Mas voltei a mim quando vocês tinham partido. Estava tonto, enjoado, gelado. Consegui me arrastar para fora do vento antes de desmaiar outra vez.

- Assassinato...

- Sim.

Harry não queria acreditar. Ele já tinha coisas demais na cabeça. Não tinha mais condições de lidar com outra preocupação.

- Aconteceu quando nós estávamos prontos para deixar o terceiro posto. - Brian parou e gemeu - Meus pés. Deus do céu, são como agulhas quentes, agulhas quentes banhadas em ácido.

Seus joelhos pressionaram com mais força contra os joelhos de Harry, mas depois de mais ou menos meio minuto ele começou a relaxar. Ele era forte; e continuou, como se não tivesse havido interrupção:

- Eu estava acomodando algum equipamento no último dos trailers de carga. Estavam todos ocupados. O vento soprava especialmente forte e a neve caía tão pesada que perdi de vista o restante de vocês; e então ele me golpeou.

- Mas quem? - Eu não vi.

- Nem mesmo com o canto do olho? - Não.

- Ele falou com você?

- Não.

- Se ele queria você morto, por que não esperar até a meia-noite? Como tudo indica agora, você estará então morto, com todos nós. Por que ele achou que devia apressar você? Porque não esperar até a meia-noite?

- Bem, talvez...

- O quê?

- Isso parece maluquice... mas, bem, eu sou um Dougherty. Harry compreendeu logo.

- Para um certo tipo de maníaco, sim, você seria uma vítima atraente. Matar um Dougherty, qualquer Dougherty... Há um sentimento de história envolvido nisso. Eu até imagino a cena de um psicopata conseguindo obter uma real emoção com isso.

Eles ficaram em silêncio. Então Brian disse:

- Mas quem entre nós é um psicopata?

- Parece impossível, não é?

- Sim. Mas você acredita em mim?

- É claro. Eu não posso me convencer de que você se golpeou duas vezes na nuca até ficar inconsciente e depois se arrastou para fora de nossas vistas.

Brian suspirou aliviado.

- Essa pressão sobre nós... - disse Harry. - Se um de nós for um caso fronteiriço, em potencial, talvez o estresse fosse o empurrão que faltava para jogá-lo por cima da borda. Quer tentar adivinhar quem seria?

- Adivinhar? Não.

- Eu acho que você aposta em George Lin.

- Por sei lá que razões, George não gosta de mim ou da minha família. Ele fez questão de deixar isso muito claro. Mas, seja lá o que haja de errado com ele, ou que bicho o tenha mordido, ainda assim não posso acreditar que seja um assassino.

- Não se pode ter certeza. Você não sabe o que se passa dentro da cabeça das pessoas. Há muito poucas pessoas na vida que você pode dizer que conhece de verdade. Para mim... Rita é a única pessoa em quem eu poria todas as fichas e sobre quem não teria dúvidas.

- Sim, mas eu salvei a vida dele hoje.

- Se ele for um psicopata, o que isso importaria para ele? Na verdade, em sua lógica distorcida, por alguma razão que nunca seríamos capazes de entender, esse poderia até mesmo ser o porquê de ele querer matar você.

O vento balançou o trenó. Partículas de neve martelaram e sopraram na capota da cabine.

Pela primeira vez, Harry estava à beira do desespero, exausto física e mentalmente.

- Será que ele vai tentar de novo? - perguntou Brian.

- Se for maluco, obcecado com você e sua família, então ele não vai desistir com facilidade. O que tem a perder? Quero dizer, ele vai morrer de qualquer maneira à meia-noite.

- Estou com medo, Harry - disse Brian, olhando pela janela lateral para a noite agitada.

- Se não estivesse assustado, rapaz, então você é quem seria psicopata.

- Você também está com medo?

- Assustado como você nem imagina.

- Você não demonstra.

- Nunca. Eu apenas mijo nas calças e fico torcendo para ninguém notar.

Brian riu, depois piscou com outro espasmo de dor aguda nas extremidades. Quando se recuperou, disse:

- Seja lá quem ele for, pelo menos agora eu estarei preparado para ele.

- Você não pode ficar sozinho - disse Harry. - Eu ou Rita estaremos com você o tempo todo.

Esfregando as mãos, massageando os dedos ainda gelados, Brian perguntou:

- Você vai dizer aos outros?

- Não. Vamos dizer que você não lembra o que aconteceu, que você deve ter caído e batido com a cabeça numa pedra de gelo.

Melhor do que seu possível assassino pensar que nós sabemos da existência dele.

- Pensei a mesma coisa. Ele será ainda mais cuidadoso se souber que na próxima vez estaremos esperando por ele.

- E se achar que nada sabemos, pode se tornar descuidado na próxima vez que tentar.

- Se ele é um maníaco, querendo me matar mesmo sabendo que provavelmente morrerei à meia-noite... bem, então eu acho que devo ser maluco também. Estou aqui me preocupando com ser assassinado, embora estejamos a apenas sete horas da meia-noite.

- Não. Você tem um forte instinto de sobrevivência, só isso. É um sinal de sanidade.

- A menos que esse instinto de sobrevivência seja tão forte que me impeça de reconhecer uma situação sem saída. Então talvez seja um sinal de maluquice.

- Não é sem saída - disse Harry. - Ainda temos sete horas. Muita coisa pode acontecer em sete horas.

- Como por exemplo?

- Qualquer coisa.

 

5:00

Como uma baleia irrompendo na noite do mar, o Ilya Pogodin emergiu pela segunda vez em uma hora. Cascatas brilhantes de água escorreram dos flancos escuros do barco, enquanto ele avançava nas ondas tempestuosas. O capitão Nikita Gorov e dois marinheiros saíram pela portinhola da torre cônica e tomaram posição de vigia na ponte.

Nos últimos 30 minutos, navegando à sua velocidade máxima, quando submergido, de 31 nós, o submarino desviara-se 26 quilômetros norte-nordeste da sua designada posição de vigilância. Timoshenko tomara como referência a emissão de rádio do grupo Edgeway e Gorov estabelecera uma rota direta para o ponto onde, previa-se, o submarino interceptaria o caminho do iceberg à deriva. Na superfície, o submarino era capaz de desenvolver 26 nós, mas, Por causa do mar ruim, estava fazendo somente três quartos daquela velocidade. Gorov estava ansioso para levar o barco outra vez para baixo, dessa vez para 300 pés, quando ele deslizaria como um peixe a mais e a turbulência da tormenta não o afetaria.

A aparelhagem de rastreamento de satélite ergueu-se da torre atrás da ponte e abriu como a primeira flor da primavera. Os cinco pratos do radar, em forma de pétala, que rapidamente se juntaram para formar uma bandeja, já começavam a brilhar e faiscar com gelo, à medida que a neve e a geada os congelavam; mesmo assim, eles diligentemente procuravam o céu.

Três minutos depois da hora, uma nota de Timoshenko foi enviada à ponte. O oficial de comunicações desejava informar o capitão de que uma mensagem em código do Ministério em Moscou começava a entrar.

Chegara a hora da verdade.

Gorov dobrou o pedaço de papel, colocou-o no bolso do casaco depois manteve os olhos nos binóculos noturnos. Esquadrinhou 90 graus do horizonte varrido pela tempestade, mas não foram ondas, nuvens e neve o que ele viu. Em vez disso, duas visões o assaltaram, cada uma mais vivida que a realidade. Na primeira, ele estava sentado à mesa de uma sala de conferência com um teto de friso dourado e um candelabro que emitia arco-íris nas paredes; ouvia a acusação do Estado em sua corte marcial e estava proibido de falar em sua própria defesa. Na segunda visão, olhava para baixo um menino pequeno que jazia numa cama de hospital, um menino morto que cheirava a suor e urina. Os binóculos para noite pareciam ser o conduto que ligava o passado e o futuro.

Às 5:07, a mensagem decodificada foi passada pela portinhola da torre às mãos do capitão. Gorov pulou as oito linhas de introdução e foi direto ao corpo do comunicado:

 

SEU PEDIDO CONCEDIDO PONTO VÁ À TODA VELOCIDADE EM SOCORRO MEMBROS EXPEDIÇÃO EDGEWAY PONTO QUANDO ESTRANGEIROS A BORDO TOMAR TODAS PRECAUÇÕES SOBRE MATERIAL SECRETO OU CONFIDENCIAL PONTO MEDIDAS SEGURANÇA TODAS ÁREAS SENSÍVEIS SEU COMANDO PONTO REPRESENTANTES EM WASHINGTON INFORMARAM GOVERNO AMERICANO INTENTO SALVAMENTO GRUPO EDGEWAY PONTO

                  

No pé da folha decodificada, Timoshenko escrevera duas palavras a lápis: RECEBIMENTO CONFIRMADO. Nada havia a fazer agora

senão seguir as novas ordens - o que eles vinham fazendo de qualquer forma há meia hora.

Embora não tivesse certeza de que havia tempo suficiente para recolher aquelas pessoas no iceberg, Gorov estava mais feliz do que conseguira ser em muito tempo. Pelo menos ele estava fazendo alguma coisa. Pelo menos tinha a possibilidade, ainda que muito pequena, de chegar aos cientistas da Edgeway antes que estivessem todos mortos.

Enfiou a mensagem decodificada no bolso do casaco e deu duas rápidas buzinadas nas cometas elétricas de mergulho.

 

Às 5:30, Brian tinha completado quase uma hora no trenó e começava a padecer de claustrofobia.

- Gostaria de sair e caminhar - pediu o rapaz.

- Não se apresse - disse Rita. Ela acendeu a lanterna e o clarão repentino fez seus olhos lacrimejarem. Ela estudou as mãos dele e perguntou: - Dormentes? Coçando?

- Não.

- Uma sensação de queimadura?

- Não mais. E meus pés parecem um bocado melhores. -Ele notou que Rita ainda tinha dúvidas. - Minhas pernas estão com cãibras. Preciso mesmo exercitá-las. Além disso, está quente demais aqui dentro.

- Seu rosto tem agora alguma cor. Quero dizer, outra que não o atraente azul que apresentava. E suas mãos não parecem mais

transparentes. Bem... está certo. Mas quando tiver esticado os músculos, se sentir qualquer comichão, qualquer dormência, volte imediatamente para cá.

- Entendido.

Ela enfiou as botas de feltro e depois pôs as botas externas. pegou o casaco entre eles no banco. Temerosa de pegar um suadouro no ar quente, ela havia tirado toda aquela tralha. Se transpirasse dentro da roupa, a umidade junto à sua pele roubaria o calor do corpo, o que seria um convite à morte.

Pelo mesmo motivo, Brian não estava usando o casacão, as luvas ou o par de botas.

- Não sou tão flexível quanto você - disse ele. - Mas, se você sair e me der mais espaço, acho que darei um jeito.

- Você deve estar rígido e dolorido demais para fazer isso sozinho. Eu o ajudarei.

- Você está fazendo eu me sentir como uma criança.

- Besteira. - Ela deu um tapinha no próprio ombro. -Ponha os pés aqui em cima, rápido.

- Você daria uma mãe maravilhosa - disse ele, sorrindo.

- Já sou uma mãe maravilhosa para alguém. Harry.

Ela ajustou as botas externas aos pés um tanto inchados dele. Brian gemeu de dor quando esticou as pernas; suas juntas estavam saltadas como uma fieira de bolinhas plásticas decorativas.

Quando Rita puxou os cadarços através dos ilhoses e os apertou, disse:

- Bem, pelo menos você tem um material valioso para aquelas reportagens em revistas

Ele ficou surpreso ao se ouvir dizer:

- Decidi não fazer nenhuma reportagem. Vou escrever é um livro.

Até aquele momento, sua obsessão tinha sido um assunto particular. Agora que a tinha revelado a alguém que respeitava, ele se obrigava a olhá-la menos como uma obsessão e mais como um empreendimento.

- Um livro? Você devia pensar duas vezes sobre isso.

- Pensei nisso mil vezes nas últimas semanas.

- Escrever um livro é um martírio. Escrevi três, você sabe. Precisa escrever 30 reportagens para ter o mesmo volume de palavras que um livro e, se fosse você, escreveria as reportagens e esqueceria a idéia de ser um "autor". Não se sofre num trabalho curto nem metade da agonia que a gente tem ao escrever um livro

- Mas eu tenho pensado muito nisso.

- Ah, eu sei como é. Ao escrever a primeira terça parte do livro, você quase está tendo uma experiência sexual. Mas você perde esse sentimento. Acredite-me, acontece. No segundo terço, você apenas está tentando provar alguma coisa a você mesmo. E quando você chega no terceiro, é simplesmente uma questão de sobrevivência.

- Mas eu imaginei como juntar tudo na narrativa. Eu já tenho o tema.

Rita piscou os olhos e balançou a cabeça com tristeza.

- Então você já foi longe demais para ouvir a voz da razão. - Ela o ajudou a enfiar o pé direito na bota de pele de foca. -Qual é o seu tema?

- Heroísmo.

- Heroísmo? - Ela fez uma careta, enquanto amarrava os cadarços. - Pelo amor de Deus, o que é que heroísmo tem a ver com o Projeto Edgeway?

- Acho que talvez tenha tudo a ver.

- Você é louco.

- Sério.

- Eu nunca vi nenhum herói aqui.

Brian estava surpreso com sua aparentemente sincera perplexidade.

- Você já se olhou num espelho?

- Eu? Uma heroína? Meu querido, ninguém está mais distante disso do que eu.

- Não no meu ponto de vista.

- Eu estou apavorada metade do tempo.

- Heróis podem sentir medo e ainda assim ser heróis. É isso que os torna heróis... agir apesar do medo. Esse projeto é um trabalho heróico.

- É trabalho, só isso. Perigoso, sim. Estúpido, talvez. Mas heróico? Você o está romantizando.

Ele ficou quieto, enquanto ela terminava de dar o nó.

- Bem, não é política.

- O que é que não é?

- O que vocês estão fazendo aqui. Vocês não estão aqui atrás de poder, privilégio ou dinheiro. Vocês não estão aqui porque desejam controlar as pessoas.

Rita ergueu a cabeça e o encarou nos olhos. Os olhos dela eram lindos - e profundos como o claro Mar Ártico. Ele sabia que ela o entendia, nesse momento, melhor do que qualquer outra pessoa até então, talvez até melhor do que ele próprio.

- O mundo pensa que sua família está cheia de heróis.

- Pensa.

- Mas você não.

- Eu os conheço bem.

- Eles têm se sacrificado, Brian. Seu tio foi morto. Seu pai levou um tiro.

- Isso pode parecer mesquinho, mas não seria se você os conhecesse melhor. Rita, nenhum deles esperava ter de fazer um sacrifício desses... ou qualquer outro tipo de sacrifício. Ser alvejado ou morto não é um ato de bravura... não mais do que é para um pobre coitado que leva um tiro inesperadamente enquanto está sendo roubado por um bandido. Ele é uma vítima, não um herói.

- Algumas pessoas entram na política para construir um mundo melhor.

- Não alguém que eu tenha conhecido. É uma coisa suja, Rita Tudo gira em torno de inveja e poder. Mas aqui é tudo tão limpo O trabalho é duro, o ambiente é hostil... mas limpo.

Em nenhum momento ela tirara os olhos dele. Ele não se lembrava de ninguém que tivesse sustentado seu olhar de modo tão firme quanto ela. Depois de um pensativo silêncio, ela disse:

- Quer dizer que você não é só um menino rico atrás de emoções, como a mídia divulga.

Ele foi o primeiro a desviar os olhos, ao puxar os pés do banco e se torcer no espaço apertado para poder enfiar os braços nas mangas do casaco.

- Era isso que você pensava que eu era?

- Não. Eu não deixo que a mídia pense por mim.

- Claro, talvez eu esteja enganando a mim mesmo. Talvez eu seja isso mesmo, tudo o que eles escrevem nos jornais.

- Há muito pouca verdade que se aproveite nos jornais - disse ela. - Na verdade, você só pode achá-la num lugar.

- Onde?

- Você sabe.

- Em mim mesmo - concordou ele, baixando a cabeça.

Ela sorriu. Vestindo o casaco, disse:

- Você vai ficar ótimo.

- Quando?

- Ah, talvez dentro de 20 anos.

Ele riu.

- Bom Deus! Eu espero não me foder nesse período.

- Talvez mais. Ei, a vida é assim: pouco a pouco, dia a dia, com dolorosa teimosia, cada um de nós aprendendo a como se foder menos.

- Você devia ser psiquiatra.

- Os bruxos são mais eficientes.

- Algumas vezes eu penso que preciso de um.

- Um psiquiatra? Melhor economizar o seu dinheiro. Meu querido, você só precisa de tempo.

Quando saiu com Rita para fora do trenó, Brian ficou surpreso com a força do vento. Ele o deixou sem ar e quase o derrubou de joelhos. Agarrou-se à porta aberta da cabine até recuperar o equilíbrio.

O vento o lembrou que seu desconhecido atacante, o homem que o golpeara na cabeça, não era a única ameaça à sua sobrevivência. Por alguns minutos, ele esquecera que eles estavam à deriva, tinha esquecido o tique-taque das bombas rumo à meia-noite. O medo lhe voltou como a culpa ao peito de um padre. Agora que estava determinado a escrever o livro, ele queria muito viver.

 

Os faróis de um dos trenós brilharam através da boca da gruta. Em alguns lugares, o gelo fraturado decompunha os raios em prismas brilhantes de luz em todas as cores primárias, e aqueles formatos geométricos faiscavam como jóias nas paredes da câmara, que, não fosse por isso, seriam brancas. As sombras deformadas dos oito membros da expedição encrespavam-se e deslizavam no fundo estonteante, aumentadas e encolhidas, misteriosas mas talvez não mais do que as pessoas que as projetavam - cinco das quais eram suspeitas e uma delas um assassino em potencial.

Harry observou Roger Breskin, Franz Fischer, George Lin, Claude e Pete, enquanto discutiam as opções abertas a eles, sobre como deviam gastar as seis horas e 20 minutos que restavam até a meia-noite. Ele devia estar conduzindo a discussão ou pelo menos contribuindo para ela, mas não conseguia se concentrar no que estavam dizendo. Por um lado, não importava como eles passassem o tempo, não tinham como escapar do iceberg ou recuperar os explosivos, de modo que a discussão podia não dar em nada. Além do mais, ainda que tentando ser discreto, ele não podia impedir-se de estudá-los intensamente, como se tendências psicóticas devessem ser evidentes na maneira como um homem caminha, fala e gesticula.

Sua corrente de pensamentos foi interrompida por um chamado da Estação Edgeway. A voz de Gunvald Larsson, em meio à estática, ressoou nas paredes de gelo. Os outros homens pararam de falar.

Quando Harry foi ao rádio e respondeu ao chamado, Gunvald disse:

- Harry, os rebocadores tiveram de voltar. O Melville e o Liberty. Os dois. Faz algum tempo. Eu já sabia, mas não consegui dizer para vocês. - Ele estava inacreditavelmente contente, excitado, como se as más notícias devessem fazê-los sorrir. - Mas agora isso não importa. Não importa, Harry!

Pete, Claude e os outros tinham se amontoado em volta do rádio, espantados com a excitação do sueco.

- Gunvald, que diabo, do que você está falando? - perguntou Harry. - Como não importa?

A estática permeou as ondas de rádio, mas a freqüência clareou quando Larsson dizia:

- ...Thule acaba de informar. Vinda de Washington. Há um submarino na vizinhança de vocês, Harry. Você me ouviu? Um submarino russo.

 

                                                   NOITE

 

8:20

EXPLOSÃO DENTRO DE TRÊS HORAS E QUARENTA MINUTOS

Gorov, Zhukov e o marinheiro Semichastny subiram à ponte e se puseram de frente para bombordo. O mar não estava nem calmo nem tumultuado como havia estado quando eles tinham subido à superfície antes, para receber a mensagem do Ministério da Marinha. O iceberg estava a bombordo, abrigando-os em parte da força das ondas tempestuosas e do vento.

Eles não conseguiam ver a montanha, embora as imagens do radar e do sonar indicassem que era maciça tanto acima quanto abaixo da linha d'água. Estavam a apenas 50 ou 60 metros do alvo, mas a escuridão era impenetrável. Somente o instinto dizia a Gorov que algo enorme como uma miragem surgia sobre eles, e a consciência de estar à sombra de um colosso invisível era um dos sentimentos mais estranhos e desconcertantes que ele jamais experimentara.

Eles estavam vestidos com roupas especiais e usavam óculos. Navegar a sotavento do iceberg, no entanto, possibilitava-lhes sair sem as máscaras para neve e a conversação não era tão difícil quanto fora quando tinham emergido algumas horas antes.

   - É como um calabouço sem janelas aqui fora – disse Zhukov.

Nenhuma estrela. Nenhuma lua. Nenhuma fosforescência nas ondas. Gorov nunca vira uma noite tão absolutamente sem luz.

Acima e atrás deles, na torre, a lâmpada de 100 watts da ponte iluminou a estrutura de aço e os três homens puderam enxergar uns aos outros. Semeadas de pequenos blocos espalhados de gelo, as ondas quebravam contra o casco curvo, refletindo a luz vermelha o suficiente para dar a impressão de que o Pogodin navegava não sobre água mas num oceano de sangue cor de vinho tinto. Além do minúsculo círculo iluminado, estendia-se uma escuridão impenetrável e tão sem falhas e profunda que os olhos de Gorov começaram a doer, ao olhar para ela por muito tempo.

A maior parte do corrimão da ponte estava revestida de gelo. Gorov o agarrou para se firmar enquanto o barco jogava, mas acabou por segurar num pedaço de puro metal. Sua luva congelou no aço. Ele a tirou e examinou a palma: a camada exterior de couro estava rasgada, e o forro de lã, exposto. Se estivesse usando luvas de couro de foca, não teria sido atingido tão rápido, e pensou que devia ter se lembrado de requisitar no almoxarifado aquele artigo especial de equipamento ártico. Se não estivesse de luvas, suas mãos teriam sido soldadas imediatamente no corrimão, e, quando as tivesse puxado, teria perdido um bom pedaço de carne.

- Incrível! - exclamou o marinheiro Semichastny, olhando espantado a luva rasgada do capitão.

- Eta lugar miserável - disse Zhukov.

- Realmente.

A neve que varria a ponte não vinha em flocos. As temperaturas abaixo de zero e o vento feroz conspiravam para produzir duras bolas de neve - o que um meteorologista chamaria "cascalho". como milhões de partículas brancas de chumbo grosso, a pior coisa possível, a não ser uma tempestade de filamentos de gelo.

Batendo no anemômetro da ponte, o primeiro-oficial disse:

- Pegamos ventos a 50 quilômetros por hora, mesmo a sota-vento do iceberg. Ele deve estar soprando duas ou três vezes mais forte no topo do gelo ou no mar aberto.

Com o fator vento, Gorov suspeitava que a sensação térmica no topo do iceberg teria de ser de pelo menos 45 ou 50 graus abaixo de zero. Resgatar os cientistas do Projeto Edgeway sob aquelas condições odiosas era um desafio maior do que qualquer outro que ele tinha enfrentado em toda a sua carreira naval. Nada seria fácil. Talvez o resgate fosse até impossível. E ele começou a se preocupar com a possibilidade de que, mais uma vez, tivesse chegado muito tarde.

- Vamos ligar alguma luz - determinou Gorov.

Semichastny imediatamente girou o farol para bombordo e apertou o interruptor. O jato de luz de mais de meio metro de diâmetro furou a escuridão como se a portinhola de uma fornalha tivesse sido aberta num porão escuro. Contido no seu anel inclinado, o grande jorro de luz iluminou um pedaço circular de mar a apenas 10 metros do submarino: ondas revoltas se enfeitavam com espuma de gelo, um redemoinho fervilhante que no entanto não era demasiadamente difícil de atravessar. Lençóis de espuma explodiam no ar amargo quando as ondas encontravam o barco, imediatamente congelavam em intrincadas e brilhantes fitas de gelo, ficavam suspensas por um tempo indefinido e então tombavam na água, com uma estranha beleza tão efêmera quanto a de qualquer momento num pôr-do-sol perfeito.

A temperatura do oceano estava uns poucos graus acima do congelamento, mas a água retinha calor suficiente e estava em tal tumulto - e, claro, estava suficientemente salgada-que o único gelo que continha era o que se havia descolado da calota polar, 25 quilômetros ao norte. Na maioria pequenos blocos, não maiores do que um carro, que cavalgavam as ondas e se chocavam uns com os outros.

Agarrando o par de hastes do holofote, Semichastny subiu o facho e girou mais diretamente para bombordo. A luz perfurante cruzou a escuridão polar e a neve turbilhonante - e iluminou uma parede de gelo alta como uma torre, tão imensa e próxima que a visão fez os três homens engasgarem.

A 50 metros, a montanha deslizava vagarosamente no sentido leste-sudoeste, numa amena corrente de inverno. Mesmo com o vento tempestuoso batendo por trás, a maciça ilha de gelo não era capaz de desenvolver mais do que dois ou três nós; a maior parte dela estava mergulhada na água e ela era levada não pela tempestade da superfície, mas pelos influxos profundos.

Semichastny movimentou o holofote vagarosamente para a direita, depois para a esquerda.

O penhasco era tão comprido e alto que Gorov não podia ter idéia da sua aparência como um todo. Cada círculo de gelo iluminado, embora visível nos mínimos detalhes da fileira de assentos deles, parecia dissociado do anterior que tinham visto. Apreender o conjunto da muralha era como tentar vislumbrar a imagem final de um jogo de quebra-cabeça somente pela visão de quinhentas peças desconexas e espalhadas.

- Tenente Zhukov, lance um sinal luminoso.

- Sim, senhor.

Zhukov estava carregando a pistola de sinalização. Ele ergueu-a como braço estendido - uma robusta pistola com um cano muito longo e gordo e boca de 60 centímetros - e disparou-a na direção do clarão de bombordo.

O foguete subiu ágil através da neve que caía. Foi visível por um momento, enquanto deixava um rastro de centelhas vermelhas e fumaça, mas depois sumiu na tormenta como se tivesse passado através de um véu para outra dimensão.

Noventa metros... 120 metros... 150 metros...

Lá no alto, o foguete converteu-se numa brilhante lua incandescente. Ele não começou a perder altitude logo, mas derivou para o sul com o vento.                                                                  

Abaixo do clarão, 300 metros em todas as direções, o oceano estava pintado com uma luz fria que revelava seu tom verde-acinzentado. As camadas de ondas arrítmicas e recortadas lançavam sombras afiadas e irregulares que flutuavam como bandos incontáveis de frenéticos pássaros negros alimentando-se de pequenos peixes em bandejas.

O iceberg delineou-se: uma presença fantasmagórica, de pelo menos 30 metros de altura e que desaparecia na escuridão à direita e à esquerda, uma imensa muralha, mais formidável do que as fortificações de qualquer castelo do mundo. Durante sua aproximação do local, guiada pelo sonar e o radar, eles tinham descoberto que a montanha tinha pouco mais de um quilômetro de comprimento. Erguendo-se dramaticamente do mar matizado de verde-cinza-preto, parecia curiosamente com um totem, um monolito construído pelo homem, com misterioso significado religioso. Ele alteava-se, em gelo liso, brilhante, sem ser maculado por grandes ressaltos ou reentrâncias: vertical, áspero, proibitivo.

Gorov tinha esperado encontrar uma encosta irregular, que conduzisse à água em degraus fáceis de descer. O mar não estava áspero em demasia a sotavento, e uns poucos homens seriam capazes de ir até o gelo. Mas ele não via lugar para eles desembarcarem.

Dentre os equipamentos do submarino, eles contavam com três botes infláveis a motor e uma grande quantidade de material de alpinismo de alta qualidade. Em quinze diferentes ocasiões nos últimos sete anos, o Ilya Pogodin havia transportado passageiros ultra-secretos - principalmente forças especiais operativas da divisão Spetsnaz, equipes do Exército altamente treinadas em sabotagem, assassinato e reconhecimento-e os tinha desembarcado à noite nas costas montanhosas de sete países ocidentais. Mais ainda, em caso de guerra, a embarcação podia transportar um comando de nove homens em acréscimo à tripulação completa e era capaz de deixá-los com segurança em terra em menos de cinco minutos, mesmo com mau tempo.

Mas eles precisavam achar um lugar onde aportar os botes. Uma pequena prateleira. Uma minúscula enseada. Um nicho acima da linha d'água. Alguma coisa.

Como se lesse a mente do comandante, Zhukov disse:

- Mesmo se conseguíssemos desembarcar alguns homens lá, seria um inferno para subir.

- Nós conseguiríamos.

- É tão empinado e liso quanto uma vidraça de janela de 30 metros de altura.

- Podíamos escavar no gelo apoios para os pés - disse Gorov - Temos picaretas de alpinista. Machados. Cordas e pinos. Temos botas de alpinista e ganchos. Tudo o que é necessário.

- Mas esses homens são submarinistas, senhor. Não montanhistas.

O clarão estava alto agora sobre o Ilya Pogodin, ainda desviando para o sul. A luz já não era forte ou branca; tinha adquirido uma tonalidade amarelada e estava extinguindo-se. Fumaça rodeava o clarão e emitia sombras bizarras que se enrolavam e entrelaçavam ao longo da face do iceberg.

- Os homens certos conseguiriam - insistiu Gorov.

- Sim, senhor - concordou Zhukov. - Eu sei que eles conseguiriam. Até mesmo eu conseguiria, se tivesse de ir, e tenho medo de altura. Mas nem eu nem os homens temos muita experiência nesse tipo de coisa. Não há um único homem a bordo que pudesse escalar aquela montanha nem mesmo no dobro do tempo que um alpinista experiente levaria. Precisaríamos de horas, talvez três ou quatro, talvez até cinco, para chegar ao topo e estabelecer um sistema para trazer os cientistas da Edgeway até os botes. E a essa altura...

- ...e a essa altura, quando tivéssemos conseguido uma maneira de descê-los, eles teriam muita sorte se lhes restasse ainda uma hora - disse Gorov, completando ele mesmo a argumentação do primeiro-oficial.

A meia-noite aproximava-se com rapidez.

O clarão apagou.

Semichastny ainda movimentava o holofote sobre o iceberg, movendo-o com vagar da esquerda para a direita, focalizando à altura da linha d'água, na esperança de encontrar uma bandeja, uma fissura, uma falha, qualquer coisa de que eles precisavam.

- Vamos dar uma olhada no lado ventoso - disse Gorov -Quem sabe, ele tem alguma coisa melhor a oferecer.

Na gruta, esperando por mais notícias de Gunvald, eles estavam eufóricos com a perspectiva de salvamento - mas contidos pelo pensamento de que o submarino podia não chegar a tempo de tirá-los do iceberg antes da meia-noite. Às vezes, ficavam todos em silêncio; outras horas, todos pareciam falar ao mesmo tempo.

Depois de esperar que o espaço ficasse repleto de conversas excitadas e os demais estivessem particularmente distraídos, Harry anunciou discretamente que precisava ir à latrina. Ao passar por Pete Johnson, ele sussurrou:

- Preciso falar com você a sós.

Pete piscou de surpresa.

Sem se deter enquanto falava, mal dando uma olhada para o engenheiro, Harry pôs os óculos no lugar, puxou a máscara para neve e saiu da caverna. Curvou-se no vento, acendeu a lanterna e dirigiu-se, trôpego, para os trenós ligados.

Duvidava que ainda restasse muito combustível nos tanques. Os motores podiam começar a falhar a qualquer momento. Não mais luz. Não mais calor.

Atrás dos trenós, a área que eles tinham usado como banheiro do acampamento provisório se situava na extremidade mais distante da forma em U, uma encosta de três metros de altura de gelo quebrado e neve acumulada, a 20 metros dos iglus infláveis que agora estavam arrasados. Harry na verdade não precisava se aliviar, mas o chamado da natureza fornecia a desculpa mais conveniente e menos suspeita para se afastar da gruta e das pessoas. Ele alcançou a abertura na encosta em forma de crescente que formava o quebra-vento, patinou na neve até aquele local de relativa paz e ficou de costas para a parede.

Achou que podia estar cometendo um grande erro com Pete Johnson. Como dissera a Brian, ninguém podia estar absolutamente seguro sobre o que se passa na cabeça de outro ser humano. Mesmo um amigo ou uma pessoa amada, a quem se conhece bem e em quem se confia, pode abrigar alguma necessidade sombria e indizível ou um desejo nojento. Cada um era um mistério dentro de outro mistério, envolto num enigma. Em sua busca de toda uma vida por aventuras, Harry tinha por acaso iniciado uma carreira que o punha mais em contato com pessoas pouco comuns do que teria conhecido em qualquer outra profissão; e, cada vez em que enfrentava um novo desafio, o adversário não era outra pessoa senão a Mãe Natureza. A natureza podia ser inóspita, mas nunca traidora; poderosa e impiedosa, mas nunca cruel de propósito. Em qualquer competição com ela, ele não tinha de se preocupar com trapaça ou traição. Não obstante, decidira arriscar e confrontar-se com Pete Johnson a sós.

Desejaria ter um revólver.

Considerando o ataque a Brian, parecia de uma estupidez sem limites ter vindo para a calota polar sem uma arma pessoal de grosso calibre, alojada todo o tempo dentro da roupa. É claro, em sua experiência, a pesquisa geológica nunca requerera antes que tivesse de atirar em alguém.

Num minuto, Pete chegou e juntou-se a ele na parede do fundo do abrigo sem teto, em forma de U.

Eles se encararam, com as máscaras para neve baixadas e os óculos na testa, o foco das lanternas dirigido para as botas. As luzes refletiam de volta para eles e o rosto de Pete brilhava como se a irradiasse. Harry sabia que seu rosto parecia da mesma maneira: mais brilhante em torno do queixo e da boca, mais escuro na altura da testa, os olhos luzindo das profundidades do que pareciam ser buracos escuros na cabeça - fantasmagóricos como uma máscara do Dia das Bruxas.

- Estamos aqui para fofocar sobre alguém? Ou você sentiu de repente um interesse romântico por mim? - perguntou Pete.

- Isto é sério, Pete.

- Claro que é. Se Rita descobre, ela vai me esculhambar.

- Vamos direto à questão. Quero saber... por que você tentou matar Brian Dougherty?

- Não gosto da maneira que ele reparte o cabelo.

- Pete, não estou brincando.

- Bem, OK, é porque ele me chamou de crioulo. Harry o olhou, mas nada disse.

Acima de suas cabeças, na crista da encosta, o vento da tempestade assoviava e bufava através das fendas naturais do amontoado de blocos de gelo.

- Homem, você está falando sério - disse Pete, parando de brincar.

- Não venha com papo furado, Pete.

- Harry, pelo amor de Deus, o que é que está acontecendo? Harry o observou durante longos segundos, usando o silêncio para desconcertá-lo, esperando ser atacado - ou não. Por fim, disse:

- Talvez eu acredite em você.

- Acreditar? Mas acreditar no quê?

A confusão no rosto largo e negro do homenzarrão parecia tão genuína quanto o ar de inocência de qualquer cordeiro; a única sugestão de mal era a do efeito teatral do reflexo da luz das lanternas.

- Você está dizendo que alguém tentou matá-lo? Quando? Perto do terceiro local de explosão, quando ele ficou para trás? Mas você disse que ele caiu. Ele disse. Ele nos disse que caiu e machucou a cabeça, não foi?

Harry suspirou e parte da tensão escorreu do seu pescoço e ombros.

- Porra, se foi você, você é muito bom. Eu acredito que você não sabe de nada.

- Espera aí, eu não sei mesmo.

- Brian não caiu e ficou inconsciente, e não foi deixado para trás por acidente. Alguém o golpeou na nuca. Duas vezes.

Pete não sabia o que dizer. Seu método de trabalho também não exigia que carregasse uma arma na cintura.

O mais rápido que pôde, Harry contou-lhe a conversa que tivera com Brian na cabine do trenó há poucas horas.

- Jesus! E você pensou que eu podia ser o culpado - disse Pete.

- Sim. Embora eu não suspeitasse de você tanto quanto dos outros.

- Você imaginou há um minuto que eu podia voar na sua garganta.

- Desculpe-me. Eu gosto de você um bocado, Pete. Mas eu só o conheço há oito ou nove meses, afinal de contas. Pode ter havido coisas que você me escondeu, certas atitudes, preconceitos..

Pete balançou a cabeça.

- Ei, não precisa se justificar. Você não tinha nenhuma razão para confiar mais em mim do que nos outros. Não estou pedindo que você se desculpe. Só estou dizendo que você teve peito. Você não chega a ser um fracote, mas fisicamente não poderia me encarar.

Harry teve de levantar os olhos para ver o rosto de Pete, e de repente o amigo lhe pareceu mais gigantesco do que antes. Ombros quase largos demais para uma porta convencional. Braços maciços. Se ele tivesse aceito aqueles convites para jogar futebol americano profissional, teria sido uma presença incrível no campo; e se um urso polar aparecesse agora, ele seria capaz de oferecer-lhe uma boa luta.

- Se eu fosse mesmo esse psicopata - disse Pete - e tivesse decidido matar você aqui e agora, você não teria tido muita chance.

- É, mas eu não tinha escolha. Precisava de mais um aliado, e você era o que oferecia melhores possibilidades. A propósito, obrigado por não me arrancar a cabeça.

Pete tossiu e cuspiu na neve.

- Mudei de idéia a seu respeito, Harry. Você não tem afinal de contas um complexo de herói. Isso é perfeitamente natural para você, esse tipo de coragem. Você é assim. Você veio ao mundo assim.

- Eu apenas faço o que tenho de fazer-disse Harry, impaciente. - Na medida em que estávamos extraviados sobre este iceberg, na medida em que parecia que íamos todos morrer à meia-noite, pensei que Rita e eu podíamos proteger Brian. Calculei que o assassino em potencial poderia se aproveitar de qualquer descuido nosso em relação ao rapaz, mas não pensei que ele se daria ao trabalho de criar uma nova oportunidade. Mas com esse submarino a caminho... Bem, se ele achar que Brian será salvo, poderá tentar algo ousado. Poderia fazer outra tentativa contra a vida do rapaz, mesmo que tivesse com isso de se desmascarar. E preciso de alguém, além de Rita e eu, para detê-lo, se a ocasião surgir.

- E eu fui o escolhido.

- Parabéns.

Uma rajada de vento bateu na encosta e redemoinhou em torno deles. Eles baixaram a cabeça, enquanto uma coluna de neve em rodopio passou sobre eles, tão densa que parecia quase uma avalanche. Durante alguns segundos, ficaram cegos e surdos. Depois a ventania afastou-se da boca do U.

- Até onde você refletiu, há alguém que devemos vigiar mais de perto do que os outros?

- Eu é que devo lhe perguntar. Já sei o que eu, Brian e Rita pensamos. Preciso de uma nova perspectiva.

Pete não teve de ponderar muito, para dar uma resposta.

- George Lin - disse, imediatamente.

- Foi minha primeira opção.

- E não a primeira e última? Você acha que é óbvio demais?

- Talvez. Mas isso não o descarta.

- O que há de errado com ele, afinal? Digo, o modo com que ele age em relação a Brian, a raiva... isso deriva de quê?

- Não estou certo. Alguma coisa lhe aconteceu na China quando era criança, muito criança. Deve ter sido nos últimos dias do governo de Chiang, algo traumático. Ele parece ligar Brian a isso, por pertencer a uma família de políticos.

- E a pressão a que está submetido há nove horas pode tê-lo derrubado.

- Acho possível.

- Ele não está bem.

- Não, não está.

Eles refletiram sobre isso. Pete Johnson começou a caminhar em volta, para evitar que os pés congelassem. Harry o acompanhou, pisando rápido para cima e para baixo, sem sair do lugar. Depois de mais ou menos um minuto se exercitando, Pete disse:

- E que tal Franz Fischer?

- O que tem ele?

- Ele é frio com você. E com Rita. Na verdade, não frio com ela... mas há algo de estranho no modo com que ele olha para ela.

- Você é observador.

- Talvez seja inveja profissional por todos esses prêmios científicos que vocês dois acumularam nos últimos anos.

- Ele não é flor que se cheire.

- Por quê?-Harry hesitou e Pete indagou: - Estou metendo o nariz onde não sou chamado?

- Ele a conhecia antes.

- Antes dela casar com você?

- Sim. Eles foram amantes.

- Então ele está com ciúme, mas não por causa dos prêmios.

- Aparentemente, sim.

- Ela é uma moça incrível - disse Pete.- Qualquer um que a perdesse não iria provavelmente achar que você é um ótimo sujeito. Acha que pode haver algum motivo para não incluir Franz na nossa lista?

- Se Rita e eu pudemos esquecer o passado, por que não ele?

- Porque ele não é você e Rita, cara. Ele é um CDF que só pensa em ciência, por um lado. Ele pode ser bonito, inteligente e sofisticado sob vários aspectos, mas é basicamente inseguro. Provavelmente aceitou o convite para integrar a expedição apenas para que Rita tivesse a oportunidade de compará-lo com você sob condições extremas. Achou na certa que você ia ficar tropeçando no gelo como um babaca, enquanto ele se comportaria como um verdadeiro esquimó do Norte, o bambambã do pedaço, um machão. Desde o primeiro dia, lógico, deve ter percebido que ia quebrar a cara, o que explica o fato de ter enchido tanto o saco.

- Não faz sentido.

- Para mim, faz.

Harry parou de se movimentar, com medo de provocar um suor frio.

- Franz pode me odiar e talvez até a Rita, mas como esse sentimento em relação a nós se refletiria num ataque a Brian?

Depois de mais uma dúzia de passos, Pete também parou de caminhar no mesmo lugar.

- Quem sabe como a mente de um psicopata funciona? Harry balançou a cabeça.

- Pode até ser Franz. Mas não porque tem ciúme de mim.

- Breskin?

- Ele é uma incógnita.

- Ele me dá a impressão de autocontido demais.

- Sempre tendemos a suspeitar do solitário - disse Harry -, do caladão que não se abre. Mas não há mais lógica do que em suspeitar de Franz meramente porque teve um relacionamento com Rita há anos.

- Por que Breskin emigrou para o Canadá dos Estados Unidos?

- Não lembro. Talvez ele nunca tenha dito.

- Pode ter sido por motivos políticos - sugeriu Pete.

- É, talvez. Mas Canadá e Estados Unidos têm políticas semelhantes. Quero dizer, se um homem deixa seu país natal e adota a cidadania de um novo país, você espera que ele vá para um lugar totalmente diferente, com um outro sistema político e econômico. - Harry fungou como se sentisse o nariz escorrendo. - Além do mais, Roger teve uma oportunidade de matar o rapaz no começo da tarde. Quando Brian estava balançando sobre o abismo, tentando alcançar George, Roger podia ter cortado a corda. Quem poderia descobrir?

- Mas ele não quer matar ninguém a não ser Brian. Talvez seja sua única obsessão. Se tivesse cortado a corda, ele não teria sido capaz de salvar Lin sozinho.

- Ele poderia ter cortado depois que Lin já estava lá no alto.

- Mas então George seria uma testemunha.

- Que psicopata tem esse grau de autocontrole? Além do mais, estou certo de que George não estava em condições de ser essa testemunha, semiconsciente que se encontrava.

- Mas como você disse, Roger é uma incógnita.

- Estamos andando em círculos.

À medida que respiravam, o vapor exalado se cristalizava entre eles. A nuvem tinha se tornado tão espessa que um não conseguia ver o outro com clareza, embora não estivessem a mais de meio metro um do outro.

Afastando a nuvem do caminho e longe da ribanceira o bastante para que uma corrente a levasse embora, Pete disse:

- Sobrou Claude.

- Ele parece o menos provável do lote.

- Você o conhece há quanto tempo?

- Quinze, dezesseis anos. Por aí.

- Já esteve no gelo com ele antes?

- Várias vezes - disse Harry. - É um sujeito maravilhoso.

- Ele fala muito na sua falecida mulher, Colette. Ele ainda fica balançado, com os olhos molhados, por causa disso. Quando ela morreu?

- Faz três anos este mês. Claude estava no gelo, sua primeira expedição em dois anos e meio, quando ela foi assassinada.

- Assassinada?

- Ela viera de avião de Paris para Londres num feriado. Estava na Inglaterra há apenas três dias. O IRA botou uma bomba no restaurante onde ela tinha ido almoçar. Ela foi um dos oito mortos na explosão.

- Meu Deus!

- Pegaram um dos homens envolvidos. Ele ainda está preso.

- E Claude sofreu muito - disse Pete.

- Ah, sim. Colette era ótima. Você teria gostado dela. Ela e Claude eram tão ligados quanto Rita e eu.

Por um momento, nenhum deles falou.

No topo da encosta, o vento gemeu como uma alma penada presa entre este mundo e o outro. Mais uma vez, o gelo lembrou a Harry um túmulo. Ele estremeceu.

- Se um homem está profundamente apaixonado por uma mulher e ele a perde, despedaçada por uma bomba, bem, ele poderia ficar transtornado pela perda -disse Pete.

- Não Claude. Arrebentado, sim. Deprimido, sim. Mas não transtornado. Ele é o mais bondoso...

- Sua mulher foi morta por irlandeses.

- E daí?

- Dougherty é irlandês.

- É um exagero, Pete. Irlandês-americano, na verdade. Da terceira geração.

- Você disse que um dos terroristas foi preso?

- Sim. Eles nunca "dedam" os outros.

- Você lembra o nome dele?

- Não.

- Era Dougherty ou algo parecido?

Harry fez uma careta e baixou a mão num gesto de negativa.

- Que é isso, Pete? Você está exagerando além da conta. O grandalhão recomeçou a se movimentar.

- Acho que estou. Mas você sabe... tanto o tio quanto o pai de Brian foram acusados de favorecer seus eleitores irlandês-americanos à custa de outros grupos. E muita gente diz que eles simpatizavam com a inclinação esquerdista do IRA, a ponto de, durante anos, terem canalizado secretamente fundos para a organização.

- Ouvi falar disso, também. Mas nunca ficou provado. Calúnias políticas, ao que me consta. O fato é que... temos quatro suspeitos, e nenhum deles parece uma aposta segura.

- Correção.

- O quê?

- Seis suspeitos.

- Franz, George, Roger, Claude...

- E eu.

- Você está descartado.

- De jeito nenhum.

- Não me sacaneie.

- É sério - disse Pete.

- Depois dessa conversa, eu sei que você não...

- Existe alguma lei dizendo que um matador psicopata não pode ser um bom ator?

Harry olhou-o, tentando ler sua expressão. De repente, a malevolência no rosto de Johnson não parecia ser apenas um truque do fundo luminoso especial.

- Você está me deixando nervoso, Pete.

- Bom.

- Eu sei que você falou a verdade, você não é o culpado. Mas o que você está dizendo é que não devo confiar em ninguém, nem mesmo por um minuto, nem mesmo se eu acho que o conheço como a um irmão.

- Precisamente. E isso vale para nós dois. Eis por que o sexto nome da lista de suspeitos é o seu.

- O quê? O meu?

- Você estava no terceiro local de explosão, com os demais.

- Mas fui eu quem o encontrou quando voltamos lá.

- E foi você quem designou as áreas de busca. Você poderia ter dado a você mesmo a área certa, de modo que pudesse se assegurar de que ele estava vivo antes de "encontrá-lo". Então Breskin tropeçou em você antes que tivesse tempo de dar o golpe de misericórdia em Brian.

Harry engoliu em seco.

- E se você estivesse suficientemente transtornado-continuou Pete -, poderia até nem compreender que há um assassino dentro de você.

- Você não acha realmente que eu sou capaz de matar alguém, acha?

- É uma possibilidade em um milhão. Eu já vi pessoas ganharem tendo menos probabilidades.

Embora soubesse que Pete estava lhe proporcionando um pouco do próprio remédio, fazendo-o saber como é ser tratado como um suspeito, Harry sentiu a dor da tensão retornar a seu pescoço e ombros.

- Sabe o que há de errado com vocês, californianos?

- Sei. Nós fazemos vocês, bostonianos, se sentirem inferiores, porque somos tão autoconscientes e maduros, enquanto vocês são reprimidos erigidos.

- Na verdade, tenho pensado que todos esses terremotos e incêndios e avalanches e distúrbios e assassinatos em série que há por aí devem ter tornado você um paranóico.

Eles sorriram um para o outro.

- É melhor a gente voltar - disse Harry.

 

Dois clarões flutuavam no céu noturno distantes 150 metros um do outro, e a inundação luminosa varreu a base dos brilhantes despenhadeiros de gelo.

O lado ventoso do iceberg não era tão proibitivo quanto o muro vertical e igual de sotavento. Três plataformas rugosas penetravam para trás e acima da linha d'água. Cada uma parecia ter de oito a dez metros de profundidade e juntas se erguiam de seis a oito metros acima do nível do mar. Atrás das plataformas, a parede subia num ângulo de 15 metros ou mais e depois quebrava num estreito ressalto. Acima do ressalto havia uma face lisa de gelo vertical de cerca de seis metros e então a borda.

- Os botes poderiam chegar àquelas prateleiras - disse Zhukov, examinando o gelo com seu binóculo. - E até mesmo homens sem treino subiriam aquela ribanceira. Mas não com este tempo.

Gorov mal podia escutá-lo acima da voz rouca da tempestade e das colisões rítmicas da embarcação com as altas ondas.

O mar estava notavelmente mais violento no flanco ventoso do que no lado protegido de sotavento. Ondas poderosas quebravam junto aos degraus da base do iceberg. Elas virariam um barco salva-vidas de tamanho médio e reduziriam um dos botes de borracha motorizados do Pogodin a pedaços. Mesmo o submarino, com suas turbinas de 40 mil cavalos de força e 6.500 toneladas de deslocamento, estava tendo dificuldade para abrir caminho. Freqüentemente a popa estava sob a água, e, quando o barco conseguia levantar o nariz, parecia um animal debatendo-se na areia movediça. As ondas batiam no convés externo com fúria chocante, fazendo estremecer o casco, explodiam contra a torre, varriam a ponte jogavam espuma acima da cabeça de Gorov. Os três homens estavam vestidos de gelo: botas cobertas de gelo, calças debruadas de gelo, casacos cheios de placas de gelo.

O vento brutal registrava 100 quilômetros por hora no anemômetro da ponte, com rajadas quase com a mesma intensidade. As pelotas de neve eram como um enxame de abelhas; elas ferroavam o rosto de Gorov e provocavam lágrimas nos olhos.

- Vamos circundar até sotavento outra vez - gritou o capitão, embora estivesse ombro a ombro com os subordinados na pequena ponte.

Ele lembrava-se vividamente do liso penhasco de 30 metros de altura do outro lado, mas não tinha escolha. O lado ventoso não lhes oferecia qualquer esperança.

- Até o outro lado... e então? - perguntou Zhukov. Gorov hesitou, enquanto pensava.

- Nós dispararemos um cabo até lá. Enviaremos um homem. Aprestaremos uma bóia aérea de salvamento.

- Lançar um cabo? - Zhukov estava cético. Inclinou-se mais para perto do seu comandante e gritou, preocupado: - Mesmo que dê certo, mesmo que se crave firme no gelo, isso poderá ser feito entre dois objetos se movendo?

- Numa situação de desespero, talvez. Não sei. Vamos tentar.

Se uns poucos homens com suficiente equipamento pudessem ser levados do submarino à face de sotavento do iceberg por meio de uma bóia aérea de salvamento, eles poderiam abrir com explosivos uma plataforma de desembarque que permitisse a chegada dos botes. Poderiam então jogar uma corda até o topo. Com isso seriam capazes de escalar a ribanceira tão facilmente quanto moscas uma parede.

- Três horas e meia - gritou Zhukov acima do vento apocalíptico, olhando o relógio. - É melhor começarmos logo.

- Abandonar a ponte - ordenou Gorov, e em seguida fez soar o alarme de mergulho.

Quando chegaram à sala de controle meio minuto depois, o subtenente anunciou:

- Painel verde!

Zhukov e Semichastny já tinham ido para suas cabines vestir roupa seca.

Quando Gorov saltou da escada da torre cônica, vertendo pedaços quebradiços de gelo ao se mover, o oficial de mergulho voltou-se para ele e solicitou as ordens.

- Vou trocar de roupa. Desça 75 pés e volte para o lado de sotavento do iceberg.

- Sim, senhor.

- Estarei de volta em dez minutos.

- Sim, senhor.

Na cabine, depois de trocar o ensopado e congelado traje por um uniforme seco, Gorov sentou-se à escrivaninha e pegou a foto do filho morto. Todos no retrato estavam sorrindo: o acordeonista, Gorov e Nikki. O sorriso do menino era o mais rasgado dos três - genuíno, não uma representação para a câmera. Ele segurava a mão do pai. Na outra mão segurava uma casquinha de sorvete de baunilha, com duas bolas que pingavam sobre os dedos. O sorvete manchava seu lábio superior. Seu cabelo dourado espesso e arrepiado pelo vento caía sobre o olho direito. Mesmo na superfície plana, bidimensional, da foto, podia-se sentir a aura de deleite, amor e prazer que o menino sempre irradiara em vida.

- Juro que vim tão ligeiro quanto pude - murmurou Gorov para a fotografia.

O menino olhava, sorrindo.

- Eu vou tirar aquelas pessoas do iceberg antes da meia-noite. - Gorov mal reconheceu a própria voz. - Não mais pôr assassinos e sabotadores em terra. Agora é salvar vidas, Nikki. Eu sei que posso conseguir. Não vou deixá-los morrer. É uma promessa.

Apertava a fotografia com tanta força que os dedos estavam pálidos, sem sangue.

O silêncio na cabine era opressivo, porque era o silêncio do outro mundo, para o qual Nikki tinha ido, o silêncio do amor perdido, de um futuro que nunca aconteceria, de sonhos abortados.

Alguém passou pela porta de Gorov, assoviando.

Como se o assovio fosse um tapa no rosto, o capitão sentou-se teso, de repente consciente de quão sentimental se tornara. Sentimentalismo não o ajudaria a se ajustar à sua perda; sentimentalismo era uma corrupção da herança de boas lembranças e risadas que seu menino honesto e de bom coração havia deixado.

Aborrecido consigo mesmo, Gorov depôs a foto. Ergueu-se e deixou a cabine.

 

O tenente Timoshenko estivera de folga nas últimas quatro horas. Ele jantara e tirara uma soneca de duas horas. Agora, às 8:45 da noite, 15 minutos antes do seu horário, estava de volta ao centro de comunicações, preparado para o último quarto do dia, que terminaria à uma hora da manhã. Um de seus subordinados manejava o equipamento, enquanto Timoshenko, sentado numa mesa de canto, lia uma revista e bebia chá quente numa caneca de alumínio.

O capitão Gorov entrou, vindo do corredor.

- Tenente, acho que é hora de fazermos contato direto pelo rádio com aquele pessoal lá no iceberg.

Timoshenko largou o chá e ergueu-se.

- Vamos subir de novo, senhor?

- Dentro de alguns minutos.

- Quer falar com eles?

- Deixo isso para você.

- E o que vamos dizer a eles?

Gorov explicou rapidamente o que eles haviam descoberto no passeio em volta da ilha de gelo - os mares tempestuosos sem remédio na face voltada para o vento, a parede lisa no lado de sotavento - e esboçou seu plano para uma bóia aérea de salvamento.

- E diga-lhes que daqui para a frente vamos mantê-los informados sobre o nosso progresso, ou falta dele, passo a passo. - Sim, senhor. Gorov virou-se para sair.

- Capitão, eles com certeza vão perguntar: o senhor acha que nós temos boas chances de salvá-los?

- Boas, não. Apenas razoáveis.

- Devo ser sincero com eles?

- Acho que é melhor.

- Sim, senhor.

- Mas também lhes diga que tudo o que for humanamente possível fazer para salvá-los, nós o faremos, de um jeito ou de outro. Não importa quais sejam as possibilidades, por Deus, nós vamos dar o melhor de nós para tirá-los de lá. Estou mais determinado do que jamais estive antes, em toda a minha vida. Diga-lhes isso, tenente. Não deixe de lhes dizer.

 

8:57

Harry ficou surpreso de ouvir sua língua materna falada com tanta fluência por um operador de rádio russo. Parecia até que o homem tinha se formado numa boa universidade inglesa de nível médio. O inglês era a língua oficial na expedição Edgeway, como o é em quase todos os grupos de estudos científicos internacionais. Mas, de qualquer modo, era muito estranho que um submarinista russo falasse com tanta perfeição. Gradualmente, no entanto, à medida que Timoshenko explicava por que o flanco de sotavento era a única avenida possível de aproximação, Harry foi se acostumando à fluência do outro e ao seu sotaque decididamente britânico.

- Mas se o iceberg tem 500 metros de largura - perguntou Harry -, por que seus homens não podem vir por uma extremidade ou outra?

- Infelizmente, o mar está tão agitado nas duas extremidades quanto no lado ventoso.

- Mas uma bóia aérea de salvamento! - questionou Harry. - Pode não ser nada fácil fazer uma ligação entre dois pontos em movimento, e ainda mais com esse tempo.

- Nós podemos igualar a nossa velocidade com a do gelo, o que tornaria a ligação quase igual à feita entre dois pontos imóveis.

Além disso, a bóia é apenas uma de nossas opções. Se ela não der certo chegaremos até vocês de outra maneira. Não se preocupem com isso.

- Não seria mais simples mandar mergulhadores através do gelo? Vocês devem ter equipamento de mergulho a bordo.

- E temos alguns homens-rãs muito bem treinados - disse Timoshenko.- Mas mesmo a sotavento o mar está agitado demais para eles. As ondas e correntes poderiam arrastá-los com grande rapidez, como se eles tivessem caído numa cachoeira.

- Com certeza não queremos que ninguém se arrisque demais por nossa causa. Não teria sentido perder algumas pessoas para salvar outras. Pelo que você disse, seu comandante parece confiante. Assim, acho melhor deixar para vocês toda essa preocupação. Você tem algo mais para me dizer?

- É tudo, no momento. Fiquem perto do rádio. Manteremos vocês informados dos acontecimentos.

 

Todos, exceto Harry e George, tinham alguma coisa a dizer sobre o chamado do oficial de comunicações do Ilya Pogodin -sugestões para serem feitas à equipe de salvamento, idéias sobre como eles poderiam ajudar os russos a escalar o paredão de sotavento - e todos pareciam determinados a falar em primeiro lugar, já e agora. Suas vozes, o eco de suas vozes e o eco dos ecos encheram a gruta de gelo.

Harry atuou como moderador, tentando impedi-los de falar de maneira dispersiva.

Quando George Lin viu que o excitamento começara a diminuir, e que eles começavam a ficar quietos, juntou-se finalmente ao grupo e se pôs diante de Harry. Ele tinha algo a dizer e ficara à espera até ter a certeza de que seria ouvido.

- O que um submarino russo estava fazendo aqui, nesta parte do mundo?

- Nesta parte do mundo?

- Você sabe o que estou querendo dizer.

- Acho que não, George.

- Ele não é daqui.

- Mas essas são águas internacionais.

- Eles estão muito longe da Rússia.

- Nem tão longe assim, na verdade.

- Mas como eles souberam a nosso respeito?

O rosto de Lin estava transtornado de raiva e sua voz tremia ao fazer aquela pergunta.

- Monitorando os comunicados pelo rádio, acho eu - respondeu Harry.

- Exato. Precisamente - disse Lin, como se tivesse provado uma tese. Olhou para Fischer e para Claude, procurando apoio. -Comunicados de rádio. Monitorando. - Voltou-se para Roger Breskin. - E por que estariam os russos monitorando as comunicações nesta parte do mundo? - Breskin encolheu os ombros e Lin continuou: - Vou lhes dizer por quê. Pela mesma razão por que esse tenente Timoshenko fala inglês tão bem: o Pogodin está numa missão de espionagem. É uma porra dum barco espião, isso é o que ele é.

- É muito provável - concordou Claude -, mas não chega a ser uma grande descoberta, George. Nós até podemos não gostar muito disso, mas todos sabemos como o mundo funciona.

- Claro que é um barco espião - disse Fischer. - Se fosse um submarino com mísseis atômicos, uma daquelas naves do apocalipse, eles nunca nos teriam deixado saber que estavam na área. Não quebrariam a segurança de um barco desses. Temos sorte que se trate de um barco de espionagem, algo que eles não se importem de comprometer.

Lin estava claramente perplexo com a falta de indignação deles. mas determinado a fazê-los ver a situação com o mesmo grau de alarme que ele obviamente sentia. Prosseguiu:

- Ouçam, pensem sobre isso: não se trata apenas de um barco espião. - Sua voz aumentou e as mãos, ao lado do corpo, abriam e fechavam com rapidez, de modo quase espasmódico. - Ele carrega botes motorizados, pelo amor de Deus, e equipamento para lançar bóias aéreas de salvamento até um ponto em terra. Isso quer dizer que ele deixa espiões no litoral de outros países, sabotadores e talvez até assassinos. Provavelmente ele os deixa em nossos próprios países.

- Assassinos e sabotadores pode ser um exagero – disse Fischer.

- Não é exagero nenhum - respondeu Lin, com furor. Seu rosto estava vermelho e seu sentimento de urgência crescia no momento, como se a maior das ameaças não fosse o frio mortal ou as 60 bombas enterradas no gelo, mas os russo que pretendiam salvá-los. - Assassinos e sabotadores, sim. Tenho certeza. Esses comunistas filhos da puta...

- Eles não são mais comunistas - observou Roger.

- O novo governo deles está cheio de antigos criminosos, os mesmos velhos criminosos, e na hora certa eles vão voltar. É melhor vocês acreditarem em mim. Eles são bárbaros, são capazes de qualquer coisa. Qualquer coisa.

Pete Johnson olhou para Harry e interveio:

- Escute, George, tenho certeza de que os Estados Unidos fazem a mesma coisa. São os fatos da vida, as relações internacionais são assim. Os russos não são o único povo que espiona os vizinhos.

- É mais que espionagem - disse Lin, tremendo visivelmente. - De qualquer modo, porra, não há razão para que legitimemos o Ilya Pogodin! Ele bateu com a mão esquerda fechada na palma da mão direita.

Brian piscou a esse gesto e olhou para Harry.

Harry pensou se essa seria a mesma mão - e o mesmo temperamento violento - que tinha jogado Brian sobre o gelo.

Rita, pondo gentilmente a mão no ombro de Lin, disse: - George, acalme-se. O que você quer dizer com "legitimá-lo"? O que você diz não tem muito sentido.

Virando-se rápido para encará-la, como se ela o tivesse ameaçado, Lin disse:

- Você não percebe por que esses russos querem nos salvar? Eles na verdade não estão preocupados se vamos morrer ou não.

Eles pouco estão ligando para nós. Não somos nada para eles. Eles não agem por princípios humanitários. O que lhes interessa é apenas a propaganda que esta situação lhes dará. Eles vão nos usar. Na melhor das hipóteses, somos peões no jogo deles. Eles vão nos usar para criar um sentimento pró-Rússia na imprensa mundial.

- Isso certamente é verdade - disse Harry.

- Claro que é verdade.

Lin voltou-se outra vez para ele, esperançoso de ter convertido alguém.

- Ao menos em parte.

- Não Harry, não em parte. É a absoluta verdade. Por inteiro. E não podemos permitir que eles consigam isso.

- Não estamos em condições de rejeitá-los - disse Harry.

- A menos que a gente fique aqui e morra - disse Roger Breskin.

Sua voz profunda, embora despida de emoção, dava à simples afirmação a qualidade de uma pavorosa profecia.

- É isso que você quer, George? - A paciência de Pete com Lin parecia ter se esgotado.- Você perdeu completamente o juízo? Você quer ficar aqui e morrer?

Lin ficou atrapalhado e sacudiu a cabeça numa negativa. dizendo:

- Mas vocês têm de ver que...

- Não.

- Vocês não entendem...?

- O quê?

- Quem eles são, o que pretendem? - O chinês disse isso de maneira tão triste que Harry ficou com pena dele.-Eles são... eles são...

- Quer ficar aqui e morrer? - Pete pressionou o ponto sensível. - Essa é a única coisa que interessa. Você quer morrer?

Lin coçou-se, procurando um sinal de apoio em seus rostos. então olhou para o chão:

- Não. Claro que não. Ninguém quer morrer. Eu só... apenas... Sinto muito. Desculpem-me.

Caminhou para o fundo da gruta e ficou andando de um lado ara outro, como fizera anteriormente, quando ficara embaraçado pela maneira como tinha tratado Brian.

- Por que você não vai lá falar com ele? - cochichou Harry aproximando-se de Rita.

- Claro - disse ela, com um largo sorriso teatral. – Nós podemos conversar sobre a conspiração comunista internacional.

- Ah, por favor, não.

- A conversa dele é encantadora.

- Você sabe o que estou pedindo - murmurou Harry, conspiratório. - Levante o ânimo dele.

- Acho que não tenho forças para isso.

- Se você não tem, então ninguém mais tem. Vá, fale-lhe de seu próprio medo, como você lida com ele todos os dias. Ouvir isso pode dar a George coragem para enfrentar o que ele teme.

- Se foi ele quem golpeou Brian, pouco me importa o que ele teme.

- Não sabemos se foi George.

- Se não foi ele, então foi o monstro de Loch Ness.

- Por favor, Rita...

Ela suspirou, cedeu e foi falar com George no fundo da gruta de gelo. Harry se juntou aos outros, perto da entrada.

- Nove e cinco - disse Roger Breskin, tirando o relógio do bolso com zíper do capote.

- Menos de três horas - disse Claude.

- Pode ser feito em três horas?- divagou Brian. - Será que es podem chegar a nós e nos tirar do gelo em apenas três horas?

- Se não puderem-disse Harry, tentando tornar o momento mais leve -, eu vou ficar puto da vida.

 

9:10

Emil Zhukov subiu para a ponte do submarino carregando um garrafa térmica com chá quente e três canecas de alumínio.

- Eles já prepararam o canhão?

- Mais alguns minutos ainda - disse Gorov, estendendo uma das canecas para que o primeiro-oficial a enchesse de chá.

De repente, a noite parecia cheirar a ervas, limão e mel, e a boca de Nikita Gorov se encheu de água. O vento soprou o vapor cheiroso que saía da caneca, o cristalizou e o levou para longe. Gorov bebeu um gole e sorriu. O chá começava a esfriar, mas ainda restava calor suficiente para acabar com os calafrios que lhe percorriam a espinha.

Abaixo da ponte, na parte dianteira do convés, emoldurados pelas quatro lâmpadas de emergência, três tripulantes montavam o canhão que seria usado para lançar um cabo de ligação até o iceberg. Os três usavam roupas pretas impermeáveis e isolantes, cintos térmicos e tinham os rostos cobertos por capuzes de borracha e grandes máscaras de mergulho. Cada um deles estava preso por um cabo de aço fixado na escotilha dianteira de saída. Os cabos eram suficientemente longos para que eles trabalhassem com liberdade, mas não o bastante para que corressem o risco de cair no mar.

Embora não fosse uma arma de guerra, o canhão parecia tão perigoso que um observador desinformado o imaginaria capaz de fazer detonar morteiros nucleares. Quase tão alto quanto qualquer um dos homens que o montavam e pesando cerca de 130 quilos, consistia de apenas três componentes básicos, agora muito bem fixados uns aos outros. A base quadrada continha o motor, que punha em funcionamento as roldanas para a bóia aérea de salvamento e estava amarrada a quatro anéis de aço presos no convés. Os anéis eram uma característica do Pogodin desde que começara a cruzar os mares para desembarcar agentes da força especial em terras estrangeiras. O componente intermediário do canhão, em forma de bloco, se encaixava em um suporte giratório preso na base e continha o mecanismo de disparo, as alças de apoio do atirador e um grande tambor com o cabo. A última peça era um cano de um metro e vinte de comprimento, com uma boca de 12 centímetros de diâmetro, que os três homens tinham acabado de enfiar no seu suporte; um visor para qualquer tipo de luminosidade tinha sido instalado na junção do cano com o suporte. O equipamento parecia capaz de fazer um buraco num blindado; num campo de batalha, entretanto, teria sido tão ineficaz quanto um estilingue.

Às vezes, o convés, normalmente alagado, ficava quase seco - mas não era habitual, e só permanecia assim por muito pouco tempo. Cada vez que a proa submergia e uma onda quebrava contra o casco, aparte da frente do submarino ficava inundada. Brilhando com o reflexo dos pedaços de gelo e das guirlandas de espuma congelada, o mar frio e escuro batia contra o convés, corria por entre as pernas dos tripulantes, chicoteava suas coxas e alcançava suas cinturas antes de espirrar para fora. Se o Ilya Pogodin estivesse a barlavento do iceberg, as enormes ondas provocadas pela tormenta teriam atingido violentamente os homens e os jogado impiedosamente ao mar. Abrigados a sotavento, entretanto, se conseguissem prever e se preparar para cada inclinação da proa, seriam capazes de manter-se em seus próprios pés e realizar suas tarefas, ainda que o mar fosse um turbilhão em torno deles. Nesses momentos em que o convés ficava livre da água, eles trabalhavam à toda velocidade e recuperavam o tempo perdido.

O mais alto dos três tripulantes afastou-se do canhão, olhou em direção à ponte e fez um sinal para o comandante de que estavam prontos para começar.

Gorov jogou fora o resto de seu chá e passou a caneca a Zhukov.

- Alerte a sala de controle.

Se quisesse que seu arriscado plano de usar a bóia aérea de salvamento tivesse alguma chance de dar certo, o submarino teria que compatibilizar sua velocidade com a do iceberg. Se a embarcação ultrapassasse o bloco de gelo, ou se este se adiantasse alguns centímetros que fosse, o cabo poderia esticar demais, ceder e se romper antes que eles tivessem tempo de desenrolá-lo um pouco mais para reduzir a tensão.

Gorov olhou seu relógio. Nove e quinze. Os minutos se esgotavam rapidamente.

Um dos homens no convés dianteiro desencapou a boca do canhão, que ficava coberta para proteger contra a umidade. Outro introduziu um projétil no cano.

O projétil que levaria o cabo tinha concepção simples. Lembra va um rojão: 60 centímetros de comprimento e uns 12 de diâmetro. Carregando o cabo de náilon e metal, atingiria a face da montanha gelada, explodiria com o impacto e cravaria um pino de dez centímetros no gelo.

O pino ao qual o cabo estava preso era capaz de penetrar 20 ou 25 centímetros numa rocha sólida, fundir-se com ela e lançar outros pinos de pontas curvas como anzóis, de modo a evitar que fosse arrancado. Soldado ao granito ou à rocha calcária - ou até mesmo à argila, se as camadas da rocha fossem suficientemente compactas -, o pino era uma âncora confiável. Com a certeza de que o outro extremo estava bem firme, um homem poderia chegar até a costa pelo cabo, se necessário, avançando com as mãos. Dependendo do ângulo de aproximação, poderia até mesmo se transportar até lá pendurado num laço suspenso de duas pequenas roldanas de aço revestidas de teflon, com sulcos fundos nos quais o cabo deslizava, impulsionado por uma manivela manual. De qualquer maneira, ele poderia levar a polia pesada e um cabo mais resistente, para montar um sistema ainda mais confiável do outro lado.

Infelizmente, pensou Gorov, não estavam lidando com granito, calcário ou argila. Entrara em cena o desconhecido; a âncora talvez não penetrasse no gelo apropriadamente ou não se fundisse tão bem com ele como com a maioria das rochas.

Um dos tripulantes segurou as alças do canhão, numa das quais estava instalado o gatilho. Com a ajuda de outros dois homens, pegou um controlador de alcance e um medidor de vento. O alvo era uma área dez metros acima da linha d'água. Semichastny o marcara com o holofote. Para compensar o vento, o atirador mirou à esquerda da marca.

Zhukov preparou dois foguetes de iluminação.

Gorov focalizou seu binóculo noturno no círculo de luz sobre a grande parede de gelo.

Um pesado vuuump! soou mais forte que o vento.

Antes mesmo que o barulho do disparo cessasse, o foguete explodiu contra o iceberg, 50 metros adiante.

- Alvo atingido! - disse Zhukov.

Com uma rajada de sons, a montanha se partiu. Rachaduras ziguezaguearam em todas as direções, a partir do ponto atingido pelo foguete. O bloco de gelo se mexeu, tremeu primeiro como uma gelatina e depois se despedaçou completamente, como o vidro de uma janela. Uma imponente parede de gelo - 180 metros de comprimento, 18 ou 20 metros de altura e uma espessura considerável - desprendeu-se do lado do iceberg e caiu violentamente no mar, fazendo a água escura subir como chafarizes de mais de 15 metros de altura.

O cabo de ligação desmoronou junto com o gelo.

Como um enorme e amorfo animal primitivo, uma imensa onda de seis metros, provocada pelo deslocamento da água, agitou-se pelos quase 50 metros de mar aberto em direção a bombordo do submarino, e não houve tempo para qualquer reação. Um dos três tripulantes que estavam no convés gritou quando a gigantesca onda rebentou contra o convés com força suficiente para sacudir o Pogodin a estibordo. Junto com o canhão do cabo de ligação, os três sumiram sob a maré negra. A água salgada e fria explodiu contra a torre, enquanto jatos subiam alto na escuridão da noite, como a desafiar a lei da gravidade, para cair do outro lado da ponte. Carregados pela inundação, centenas de fragmentos de gelo, alguns tão grandes quanto um punho humano, choveram sobre o aço e atingiram Gorov, Zhukov e Semichastny.

A água escorria através dos orifícios da ponte e a embarcação girou para bombordo. Uma segunda onda os atingiu, com muito menos intensidade.

No convés, os três tripulantes foram jogados violentamente no chão. Se não estivessem amarrados, teriam sido arrastados para fora e provavelmente morreriam.

Enquanto os tripulantes lutavam para se levantar, Gorov fixou o binóculo mais uma vez no iceberg.

- Droga, ainda está muito íngreme.

O enorme pedaço de gelo que fora arrancado mudara muito pouco a topografia vertical do flanco a sotavento.

Um dente de 180 metros de comprimento indicava o desmoronamento, mas mesmo com aquela nova feição a superfície continuava íngreme, perigosamente lisa, sem qualquer saliência, borda ou fissura que pudesse ser útil para quem se arriscasse a subir. A parede de gelo descia reta para o mar, praticamente como antes de ser atingida pelo foguete; ainda não havia qualquer cavidade ou nicho onde um bote motorizado pudesse chegar e ser amarrado.

Gorov baixou o binóculo. Virou-se mais uma vez para os três homens no convés dianteiro e fez sinal para que desmontassem o canhão e descessem.

Arrasado, Zhukov falou:

- Poderíamos chegar mais perto da borda e então mandar dois homens até lá com um bote. Eles poderiam manter a mesma velocidade do iceberg, navegar junto dele, arranjar um modo de prender a âncora e deixar que ele os rebocasse. Então o próprio bote poderia servir como uma plataforma para os alpinistas...

- Não. Muito instável - interrompeu Gorov.

- Ou eles poderiam levar explosivos no bote e dinamitar uma área para conseguirmos um ponto de desembarque e uma plataforma de operações.

Gorov sacudiu a cabeça.

- Não. Esta proposta é extremamente arriscada. Seria como acompanhar de bicicleta um trem-bala e tentar pegar carona nele. O iceberg não está se movendo tão rapidamente quanto um trem-bala, é claro, mas há o problema dos mares violentos, do vento. Não, não vou mandar ninguém para uma missão suicida. A plataforma de desembarque já deverá estar lá quando os botes chegarem ao gelo.

- E depois?

Gorov secou os óculos de proteção com o dorso da luva gelada. Estudou com o binóculo a ribanceira de gelo. Finalmente falou:

- Diga a Timoshenko para chamar pelo rádio o grupo de Edgeway.

- Sim, senhor. O que deve dizer a eles?

- Descubra onde fica a gruta deles. Se for a sotavento... Bem, pode não ser necessário, mas se for a sotavento, eles precisam sair de lá agora mesmo, todos juntos.

- Sair de lá? - perguntou Zhukov.

- Vou ver se consigo criar uma plataforma de desembarque torpedeando a base do iceberg.

- Os outros vão em frente - insistiu Harry. - Tenho que pôr Gunvald a par do que está acontecendo aqui. Assim que falar com ele, trago o rádio.

- Mas é claro que Larsson está monitorando toda a sua conversa com os russos - disse Franz.

Harry concordou com a cabeça.

- Provavelmente. Mas se não estiver, tem o direito de saber tudo.

- Você tem apenas poucos minutos - disse Rita, preocupada.

Ela procurou a mão dele, como se fosse puxá-lo para fora da gruta com ela, quisesse ele ou não. Logo, porém, pareceu ter percebido que havia um outro - e melhor motivo - para ele chamar Gunvald, motivo que ele preferia esconder dos demais. Seus olhos se encontraram e revelaram o entendimento entre os dois. Ela disse:

- Poucos minutos. Lembre-se disso. Não vá começar a lhe contar sobre antigas namoradas.

Ele sorriu:

- Nunca tive uma.

- Só novas, não é mesmo?

- Harry, realmente acho uma loucura... - disse Claude.

- Não se preocupe. Prometo que estarei fora daqui muito antes de começar o bombardeio. Agora vão se mexendo, todos vocês. Vamos, vamos.

A gruta de gelo não estava nem a sotavento do iceberg nem no centro dele, onde o radioperador russo tinha dito que o torpedo explodiria. Entretanto, eles tinham unanimemente decidido voltar para os trenós motorizados. O abalo provocado pelo torpedo seria sentido de uma ponta à outra do iceberg. E as centenas de placas de gelo que formavam o teto da gruta poderiam desabar com as vibrações.

Assim que ficou só, Harry ajoelhou-se diante do rádio e chamou Larsson.

- Estou te ouvindo, Harry.

A voz de Gunvald soava distante, fraca e embaralhada pela estática.

- Você tem escutado minhas conversas com os russos? -perguntou Harry.

- Aquilo que eu consigo ouvir. Esta tempestade está começando a dar uma bruta interferência e sua voz está sumindo a todo instante.

- Pelo menos você tem uma idéia geral da situação aqui - disse Harry. - Não tenho tempo para conversar sobre isso agora. Estou chamando para pedir que você faça uma coisa muito importante para mim. Algo que talvez você ache moralmente repugnante. Tão sucintamente quanto pôde, Harry contou a Gunvald Larsson sobre a tentativa de assassinato contra Brian Dougherty e em breves palavras explicou o que queria que fosse feito. Embora chocado com o ataque a Brian, o sueco entendeu o porquê da pressa e não perdeu tempo pedindo maiores detalhes.

- O que você quer que eu faça não é exatamente agradável - concordou -, mas nessas circunstâncias é...

A estática encobriu o resto da frase.

Harry praguejou, olhou para a entrada da gruta, voltou-se para o microfone de novo e disse:

- Melhor repetir. Não ouvi você. Estática.

- ...nessas circunstâncias... parece necessário.

- Você vai fazer, não vai?

- Vou. Em seguida.

- De quanto tempo você precisa?

- Para dizer a verdade... - A voz de Gunvald sumiu. Voltou.

- ...se eu estiver certo de que o que estou procurando está escondido... uma meia hora.

- Ótimo. Mas apresse-se. Vá em frente.

Mal Harry largou o microfone, Pete Johnson entrou na gruta.

- Cara, você quer se matar? Acho que me enganei pensando que você tinha nascido para ser herói. Acho que você nasceu mesmo foi para ser masoquista. Vamos dar o fora daqui antes que o teto desabe.

Enquanto desligava o microfone e o entregava a Pete, Harry disse:

- Isso não me incomodaria nem um pouco. Eu sou de Boston, lembre-se. Que o teto desabe. Não ligo a mínima.

- Talvez você não seja nem mesmo um masoquista. Talvez você seja um louco varrido.

Harry suspendeu o rádio pelas grossas tiras de couro para pendurar a tiracolo e disse:

- Somente cachorros loucos e ingleses saem de casa durante o sol da meia-noite.

Ele sequer mencionou o que pedira a Gunvald, porque decidira levar a sério o conselho de Pete. Não confiaria em ninguém, anão ser em si mesmo. Em Rita. E também em Brian Dougherty.

Ao sair da gruta para enfrentar aquela noite horrível e assustadora, Harry descobriu que a neve tinha afinal dado lugar a uma tempestade de gelo. Os minúsculos fragmentos eram mais duros do que o simples granizo; finos como agulhas, brilhavam contra as lâmpadas e se aproximavam como enormes nuvens de pó de diamante, num percurso quase horizontal, rente ao chão. Sibilantes, arranhavam qualquer superfície que encontravam. Feriram as partes expostas do rosto de Harry e imediatamente começaram a cobrir seu pesado casaco com uma armadura transparente.

 

O depósito de suprimentos da Estação Edgeway ficava em dois barracões Nissen geminados, onde a expedição guardava ferramentas, peças sobressalentes, todo o equipamento que não estivesse sendo usado, comestíveis e demais provisões. Assim que transpôs a porta, Gunvald desvencilhou-se de seu pesado casacão e o pendurou num cabide de madeira perto de um dos aquecedores elétricos. O casaco estava literalmente coberto de gelo, e a água começou a escorrer dele antes mesmo de Gunvald acabar de descalçar as botas externas.

Embora o trajeto da cabana de comunicações até o depósito de suprimentos fosse curto, ele tinha quase congelado, se movendo com dificuldade através dos montes de neve e das nuvens de partículas de gelo que, com a violência do vento, o atingiam como ferroadas. Agora gozava do abençoado calor.

Como estava usando botas de feltro, Gunvald não fez um ruído sequer ao se dirigir para a parte dos fundos da comprida cabana. Tinha uma imagem desagradável - mas nem um pouco perturbadora - de si mesmo: um ladrão na casa dos outros, roubando.

Da metade para trás o depósito jazia numa veludosa escuridão. A única luz vinha de uma pequena lâmpada na porta pela qual ele entrara. Por um momento, teve a arrepiante sensação de que alguém o espreitava, encoberto pelas sombras.

Que bobagem, estava só, é claro. Essa impressão desconfortável provinha da culpa. Não gostava nem um pouco do que teria de fazer, e sentia-se como se merecesse ser pego em flagrante.

Tateando na escuridão, localizou a corrente da luz e a puxou. Uma lâmpada nua de 200 watts iluminou de repente o ambiente com luz branca e fria. Quando soltou a corrente, a lâmpada balançou de um lado para o outro, e o depósito se encheu de sombras dançando em todas as direções.

Ao longo da parede dos fundos, nove armários individuais de metal pareciam estreitos cofres enfileirados. Em cada porta cinzenta havia um nome escrito com letras brancas, acima das três ranhuras para ventilação: H. CARPENTER, R. CARPENTER, JOHNSON, JOBERT, e assim por diante.

Gunvald foi até a prateleira das ferramentas e pegou um pesado martelo e um pé-de-cabra. Ele teria que arrombar cinco desses armários. Pretendia rebentar um após o outro, tão rapidamente quanto possível, antes que pudesse pensar duas vezes e desistir.

Expedições anteriores à calota polar lhe haviam ensinado que todo homem precisa de um espaço só seu, por menor que seja, mas que seja realmente seu e só seu, onde possa guardar seus objetos pessoais e onde nenhum estranho possa penetrar. No inóspito ambiente de uma estação de pesquisa no Ártico, ainda por cima instalada com um mínimo de recursos, em época de falta de dinheiro, e sobretudo durante longuíssimas jornadas de trabalho, o desejo normal de uma pessoa à privacidade poderia rapidamente degenerar em necessidade e até mesmo em obsessão.

Não havia qualquer privacidade na Estação Edgeway, nem quartos onde alguém pudesse dormir sozinho. A maioria das cabanas abrigava duas pessoas, além de vários equipamentos. E a amplidão do lado de fora do acampamento não oferecia qualquer refúgio para quem precisasse ficar um pouco sozinho. Quem quer que prezasse a vida jamais ousaria ir lá fora desacompanhado.

Muitas vezes, o único modo de ficar só e realmente se permitir uns poucos minutos de isolamento era ir a um dos dois toaletes aquecidos, instalados junto ao depósito de suprimentos. Entretanto, não era prático guardar objetos pessoais num toalete.

Afinal, todo mundo tinha pelo menos um punhado de coisas que preferiria guardar só para si: cartas de amor, fotografias, recordações, um diário, o que quer que fosse. Aparentemente, não haveria nada indecente a ser escondido nos armários, nada que pudesse chocar Gunvald ou causar embaraço a seu dono. Cientistas como eles, talvez excessivamente racionais e compulsivamente dedicados ao trabalho, formavam um grupo agradável, jamais do tipo que teria qualquer segredo tenebroso a esconder. O objetivo dos armários individuais era apenas manter um espaço totalmente pessoal, como modo de preservar o necessário sentido da identidade de cada um no ambiente comum e claustrofóbico onde, com o tempo, era fácil absorver a identidade do grupo e se tornar psicologicamente desagregado e deprimido.

Esconder os objetos pessoais embaixo da cama também não era uma boa solução, ainda que houvesse um acordo que considerava sagrado o espaço abaixo do colchão. Não que isso significasse que os membros de uma expedição automaticamente desconfiassem uns dos outros. Não se tratava de ter ou não confiança. A necessidade de um local seguro e privado era um sentimento profundo e talvez até mesmo irracional, e somente aqueles armários individuais de metal poderiam satisfazê-lo.

Gunvald usou o martelo para rebentar os segredos das fechaduras de cinco dos armários, um após o outro. Os pedaços quebrados batiam barulhentos no chão e contra a parede, fazendo o depósito parecer uma fundição em pleno funcionamento.

Se havia um assassino psicopata entre os membros da expedição Edgeway, se um dos cordeiros da ciência era um lobo disfarçado, e se havia provas que pudessem identificá-lo, então é claro que os armários individuais eram o lugar lógico - e único - a vasculhar. Harry tivera certeza disso. Relutantemente, Gunvald concordara com ele. Parecia razoável supor que em seus objetos pessoais mesmo um psicopata que passasse por normal teria alguma coisa reveladoramente diferente dos itens usuais que homens sadios guardariam e carregariam consigo até aquele fim de mundo. Algo que indicasse uma estranha fixação ou obsessão. Talvez algo assustador. Ou algo inesperado e tão incomum que imediatamente se saberia: Isto pertence a uma pessoa perigosamente perturbada.

Gunvald enfiou a ponta do pé-de-cabra no buraco de onde saltara o segredo da fechadura e o puxou para trás com toda a força, rebentando a lingüeta do primeiro armário. O metal ringiu, se curvou e a porta abriu de repente. Não parou para olhar o que havia dentro, e rapidamente continuou a arrombar os outros quatro: bang, bang, bang, bang! Feito!

Atirou o pé-de-cabra para o lado.

Suas mãos suavam. Secou-as em seu blusão térmico e em seguida em suas calças acolchoadas. Depois de meio minuto para recuperar o fôlego, pegou um engradado de madeira, cheio de comida desidratada, de uma das enormes pilhas de mantimentos junto da parede do lado direito. Colocou o engradado na frente do primeiro armário e sentou nele. Abriu o zíper do bolso de seu blusão para pegar o cachimbo, mas desistiu. Tocou a cabeça do cachimbo, seus dedos se contraíram e ele retirou a mão. O cachimbo o relaxava; estava associado a momentos agradáveis. E este não era exatamente um dos momentos mais agradáveis de sua vida. Se usasse o cachimbo, se fumasse enquanto vasculhava o conteúdo dos armários de seus amigos, então... Bem, ele tinha o pressentimento de que nunca mais seria capaz de sentir o prazer de uma boa baforada de novo. Tudo bem, então. Por onde começar?

Roger Breskin.

Franz Fischer.

George Lin.

Claude Jobert.

Pete Johnson.

Esses eram os cinco suspeitos. Eram todos homens corretos, pelo que Gunvald sabia, embora alguns fossem mais simpáticos e mais comunicativos do que outros. Eram mais inteligentes e equilibrados do que a média das pessoas comuns; tinham que ser assim se quisessem ser bem-sucedidos em suas carreiras de pesquisadores do pólo Ártico ou do Antártico, onde a dureza do trabalho e pressões de todos os tipos eliminavam rapidamente os que não tivessem bastante autoconfiança e uma estabilidade excepcional. Nenhum deles parecia ser candidato ao título de "assassino psicopata", nem mesmo George Lin, que tinha demonstrado comportamento estranho nesta expedição, e assim mesmo só recentemente, depois de ter participado de muitos outros projetos no gelo durante uma longa e admirável carreira.

Decidiu começar por Roger Breskin porque o armário de Roger era o primeiro da fila. Todas as prateleiras estavam vazias, a não ser a bem de cima, onde havia uma caixa de papelão. Gunvald pegou a caixa e a colocou entre seus pés.

Conforme esperava, o canadense carregava pouca coisa em suas viagens. A caixa continha apenas quatro itens: uma foto colorida oito por dez da mãe de Roger, uma mulher de queixo grande e sorriso vencedor, cabelos crespos e grisalhos, óculos de aro preto; um conjunto de pente e escova de prata, manchados pelo tempo; um rosário; e um caderno cheio de fotografias e recortes de jornal, todos fazendo referência à carreira de Breskin como halterofilista amador.

Gunvald deixou tudo no chão, moveu o engradado de madeira meio metro para a esquerda e sentou-se na frente do armário de Fischer.

 

O submarino estava de novo submerso, parado logo abaixo da superfície, numa profundidade que permitia o uso do periscópio. Esperava, junto à rota prevista do iceberg.

Na parte interna da torre, na sala de controle, Nikita Gorov se posicionou junto ao periscópio, segurando as duas hastes laterais. Embora a parte externa superior do periscópio ficasse a quase três metros acima do nível do mar, as ondas provocadas pela tempestade explodiam contra ele e o encharcavam, encobrindo de quando em quando a visão de Gorov. Quando ele estava fora da água, porém, podia-se perceber o mar noturno, fracamente iluminado por quatro clarões de sinalização tremulantes e tímidos.

O iceberg já começara a cruzar a proa do submarino, a quase 300 metros ao norte de onde estavam. A silhueta da montanha, de um branco brilhante, se destacava contra a escuridão da noite e do mar.

Zhukov parou perto do comandante. Estava com fones de ouvido e se comunicava com o subtenente, através de uma linha direta, na sala de torpedos.

- Tubo número um pronto - disse.

À direita de Gorov, um jovem marinheiro monitorava um painel de controle de segurança cheio de luzes verdes e vermelhas, que representavam os equipamentos da sala de torpedos. Quando Zhukov, informado pelo relatório da sala de torpedos, avisou que estava tudo pronto, o marinheiro no painel de controle de segurança confirmou:

- Verde e checado.

- Tubo de torpedo inundado.

- Inundação confirmada - disseram do painel de controle.

- Boca do tubo aberta.

- Vermelho e checado.

- Portinhola do tubo aberta.

- Vermelho e checado.

O Ilya Pogodin não era essencialmente um vaso de guerra, mas um coletor de informações, e não tinha mísseis nucleares. Entretanto, o Ministério da Marinha russa tinha planejado que qualquer submarino fosse capaz também de participar de combates, no caso de uma guerra não-nuclear. Por isso, a embarcação carregava doze torpedos. Com mais de uma tonelada e meia, carregado com 300 quilos de potentes explosivos, cada um daqueles tubarões de aço tinha enorme poder de destruição. O Ilya Pogodin não era essencialmente um vaso de guerra, mas, se tivesse de sê-lo, poderia fazer afundar muitas toneladas de armamento inimigo.

- Tubo número um pronto - disse Zhukov de novo, assim que o subtenente na sala de torpedos lhe repetiu o aviso através dos fones de ouvido.

- Tubo número um pronto.

Nikita Gorov compreendeu, pela primeira vez, que o processo de preparar e lançar um torpedo tinha um ritual estranhamente semelhante ao de uma cerimônia religiosa. Talvez porque tanto a liturgia quanto a guerra tratem da morte, ainda que de maneiras diferentes.

No penúltimo momento da ladainha, a sala de controle atrás do comandante ficou em silêncio, e só se ouvia o som macio das máquinas e o murmúrio eletrônico dos computadores.

Depois de um prolongado e quase reverente silêncio, Nikita Gorov ordenou:

- Conferir a posição... e... disparar!

- Disparar tubo um! - disse Zhukov.

O jovem marinheiro olhou para seu painel de controle de tiro quando o torpedo partiu.

- Tubo um disparado - anunciou.

Gorov deu uma olhada através do visor do periscópio, tenso e apreensivo.

O torpedo fora programado para procurar uma profundidade de quatro metros e meio. Deveria atingir o bloco de gelo exatamente naquela distância da linha d'água. Com sorte, a configuração do gelo, depois da explosão, seria mais apropriada do que era agora para receber dois botes motorizados e para a instalação da plataforma para os alpinistas.

O torpedo atingiu o alvo.

- Em cheio! - gritou Gorov.

O oceano negro se avolumou e se agitou na base do iceberg, e por um instante a água cobriu-se de uma luz amarela de fogo, como se serpentes marinhas com olhos incandescentes percorressem sua superfície.

Os ecos do choque fizeram vibrar o casco externo do submarino Gorov sentiu o convés inteiro estremecer.

A parte de baixo da montanha branca começou a se dissolver. Um pedaço daquela paliçada instável, do tamanho de uma casa, caiu na água e foi seguido por uma avalanche de gelo quebrado.

Gorov se encolheu. Ele sabia que os explosivos não eram suficientemente poderosos para fazer muito estrago no iceberg, muito menos para parti-lo em pedaços. Em verdade, o alvo era tão grande que o torpedo não conseguiria muito mais do que arrancar uma lasca dele. Entretanto, por alguns segundos, houve a ilusão de uma completa destruição.

O subtenente na sala de torpedos dianteira disse a Zhukov que a portinhola interna estava fechada, e o primeiro oficial avisou os técnicos.

- Verde e checado - confirmou um deles. Levantando o fone de um dos ouvidos Zhukov perguntou:

- Como estão as coisas lá fora?

Com um olho no periscópio, Gorov respondeu:

- Não muito melhores do que antes.

- Alguma plataforma para desembarque?

- Não, na verdade. Mas o gelo ainda está desmoronando. Zhukov fez uma pausa, escutando o que o subtenente dizia do outro lado da linha.

- Boca do tubo fechada.

- Verde e checado. - Tubo número um livre.

Gorov não estava concentrado na série de verificações de segurança, porque toda a sua atenção estava voltada para o iceberg. Alguma coisa estava errada. A montanha flutuante parecia agir de maneira muito estranha. Ou seria imaginação sua? Fechou um pouco os olhos, tentando conseguir uma visão melhor do monstro de gelo através das enormes ondas que continuavam a bater ritmadamente na parte superior do periscópio. O alvo não mais parecia estar avançando na direção leste. Em verdade, parecia que a sua "proa" estava até mesmo começando a se mover na direção sul. Lentamente, na direção sul. Não. É um absurdo. Não pode ser. Fechou os olhos e disse para si mesmo que estava vendo coisas. Mas, quando olhou de novo, teve mais certeza ainda de que...

O técnico do radar gritou:

- Alvo mudando de curso!

- Não pode ser! - exclamou Zhukov, alarmado. - Não nessa rapidez toda. Ele não tem força própria.

- Apesar disso, está mudando - disse Gorov.

- Não por causa do torpedo. Um torpedo apenas... nem mesmo todos os nossos torpedos... não causaria efeito tão profundo num objeto tão grande.

- Não. Alguma outra coisa está acontecendo aqui - disse Gorov, preocupado.

O comandante afastou-se do periscópio. Do teto, puxou um microfone com pescoço de mola de aço e falou para a sala de controle junto a ele e para a sala do sonar, que era o compartimento seguinte na parte da frente da embarcação.

- Quero uma análise completa do fundo do mar, até uma profundidade de 700 pés.

A voz que saía do alto-falante acima deles soava firme e convincente.

- Começando rastreamento completo, senhor.

Gorov olhou de novo pelo periscópio.

O objetivo do rastreamento era procurar uma corrente marítima suficientemente forte para afetar um objeto tão grande quanto um iceberg. Através do uso de sonar, sensores de análise térmica, sofisticados instrumentos de escuta e outros equipamentos de pesquisa marinha, os técnicos do Ilya Pogodin seriam capazes de traçar um gráfico dos movimentos de todas as formas de vida marinha abaixo e ao redor do submarino. Cardumes de pequenos peixes e milhões e milhões de minúsculos crustáceos em forma de camarão, que serviam de alimento para muitos dos peixes maiores, estavam sendo empurrados naquela direção por correntes mais fortes ou ali viviam por vontade própria, principalmente se aquelas rodovias oceânicas fossem mais quentes do que as águas adjacentes. Se essa quantidade toda de peixes e crustáceos - bem como uma grossa camada de plâncton - estivesse se movendo na mesma direção, e se vários outros fatores pudessem ser relacionados com o movimento, seria possível identificar uma corrente principal, fazer descer um medidor de corrente e obter, então, uma indicação razoável da velocidade da água.

Dois minutos depois de Gorov ter ordenado o rastreamento, o alto-falante voltou a ressoar:

- Detectada forte corrente na direção sul, com início a uma profundidade de 340 pés.

Gorov olhou longe através do periscópio e tirou de novo o fone do ouvido:

- A que profundidade ela corre, abaixo dos 340 pés?

- Não sei dizer, senhor. Está entulhada de vida marinha. Tentar medi-la é como tentar olhar através de uma parede. Conseguimos leituras até o máximo de 660 pés, mas não é ainda o fundo dela.

- A que velocidade se move?

- Aproximadamente nove nós, senhor.

- Repita - disse Gorov, empalidecendo.

- Nove nós.

- Impossível!

- Deus do céu! - exclamou Zhukov.

Gorov largou o microfone de qualquer jeito e, com um novo motivo para pressa, voltou ao periscópio. Estavam no caminho de um monstro. A ilha de gelo maciço se movera vagarosa e pesadamente em direção à nova corrente, mas agora toda a força da água estava exatamente atrás dela. A montanha ainda girava, voltando sua "proa" para o outro lado, mas estava principalmente na direção da lateral do submarino e continuaria assim ainda por alguns minutos.

- Alvo se aproximando - avisou o operador do radar. - Quatrocentos e cinqüenta metros! - leu, na medição que havia feito.

Antes que Gorov pudesse responder, o submarino sacudiu violentamente, como se uma mão gigantesca tivesse se apoderado dele. Zhukov caiu. Papéis que estavam em cima da mesa do mapa eletrônico também caíram. Tudo aconteceu em apenas dois ou três segundos, o suficiente para que todos ficassem aturdidos.

- Que diabo é isso? - perguntou Zhukov, tentando se equilibrar.

- Colisão.

- Com o quê?

O iceberg ainda estava a 450 metros de distância.

- Provavelmente com um pedaço de gelo - respondeu Gorov, e ordenou que fossem verificados possíveis estragos no submarino.

Sabia que não tinham colidido com nada grande, porque, se isso tivesse acontecido, já estariam afundando. O casco do submarino não era muito duro, porque é preciso um certo grau de flexibilidade para descer e subir rapidamente em meio a variações de temperatura e de pressão. Em conseqüência, mesmo uma única tonelada de gelo, deslocando-se com velocidade suficiente para alcançar grande força de impacto, faria um buraco no casco, como se estivesse esmagando um barco de papelão. O que quer que tivesse ido de encontro a eles, tinha com certeza tamanho limitado. Poderia, entretanto, ter causado algum estrago, ainda que pequeno.

O operador do sonar informou a posição do iceberg:

- Quatrocentos e vinte metros e se aproximando!

Gorov estava numa enrascada. Se não levasse o submarino para baixo, colidiriam com a montanha de gelo. Se mergulhasse antes de saber quais tinham sido os estragos, talvez nunca mais conseguisse voltar à superfície. Simplesmente não havia tempo para inverter a posição do barco e fugir para leste ou oeste. Como o iceberg se aproximava rapidamente pelo lado, a distância entre eles era de uns 400 metros tanto a bombordo quanto a estibordo. A corrente de águas profundas a nove nós, que começava a uma profundidade de 340 pés, não conseguiria voltar o lado estreito do iceberg para eles por mais uns minutos, Gorov não teria como escapar e seriam atingidos em cheio pela montanha.

Ele baixou a barra horizontal do periscópio e a encaixou na manga hidráulica.

- Trezentos e noventa metros e se aproximando! - gritou o operador de sonar.

- Mergulhar! - ordenou Gorov, mesmo sem ter ainda recebido os primeiros relatórios sobre as avarias. - Mergulhar!

As sirenes que anunciavam o mergulho ecoaram por todo o submarino. Ao mesmo tempo o alarme de colisão soou como um lamento.

- Vamos para baixo do gelo antes que ele nos atinja - disse Gorov.

Zhukov empalideceu e disse:

- É preciso descer 600 pés abaixo dessa maldita linha d'água! Com o coração acelerado e a boca seca, Nikita Gorov respondeu:

- Eu sei. Mas não tenho certeza se vamos conseguir.

 

Um vento feroz martelava implacavelmente os barracões Nissen. Os rebites das paredes metálicas estalavam. Cascalhos de gelo batiam contra as duas pequenas janelas de vidro triplo, como unhas de dez mil mortos tentando entrar, enquanto o ar gélido gemia lamuriento ao se chocar com as estruturas das construções.

No depósito, Gunvald não descobrira nada de interessante, embora tivesse vasculhado os armários de Franz Fischer e de George Lin. Se um dos dois tinha tendências assassinas ou se, por um motivo ou outro, não estava completamente normal, nada em seus objetos pessoais deixava transparecer isso. Gunvald avançou até o armário de Pete Johnson.

Gorov sabia que, entre os homens de outras nacionalidades, os russos eram tidos como mal-humorados, fechados, melancólicos. É claro que, apesar de uma alarmante tendência histórica a angustiarem-se com governantes autoritários e com trágicas e erradas ideologias, esse estereótipo carecia de fundamento, como qualquer outro. Os russos riam, se divertiam, faziam amor, se embebedavam e se faziam de bobos como qualquer pessoa em qualquer lugar do mundo. A maioria dos estudantes universitários do Ocidente tinha lido Feodor Dostoievski e tinha tentado ler Tolstoi, e a partir dessas poucas obras literárias formara suas opiniões sobre os russos dos tempos modernos. Entretanto, se algum estrangeiro entrasse na sala de controle do Ilya Pogodin neste momento, teria visto exatamente os russos que o estereótipo descreve: todos de cara amarrada, taciturnos, carrancudos, oprimidos e com profundo respeito pelo destino.

Os relatórios sobre avarias estavam prontos: nenhuma divisória danificada, nenhuma água dentro da embarcação. O choque fora pior na parte dianteira e fora especialmente ruim para os homens na sala de torpedos, no segundo convés abaixo da sala de controle. Embora as luzes de segurança dos painéis não registrassem risco imediato, o submarino tinha aparentemente sofrido algum dano no casco externo, a estibordo da proa, logo abaixo das câmaras de mergulho, que pareciam não ter sido afetadas.

Se o casco estivesse apenas arranhado, ou se tivesse sofrido somente uma pequena mossa, o submarino sobreviveria. Entretanto, se tivesse sido atingido com um pouco mais de força, ainda que moderada - e pior, se tivesse sofrido avaria nas emendas soldadas -, eles talvez não sobrevivessem a um mergulho profundo. As áreas danificadas não resistiriam uniformemente às pressões, talvez demasiadas para a embarcação, que poderia implodir e ir direto para o fundo do mar.

A voz do jovem oficial responsável pelo mergulho soou alto e, apesar das circunstâncias, firme.

- Duzentos pés e descendo.

O operador do sonar relatou:

- O perfil do alvo está estreitando. Continua vindo com a proa na direção da corrente.

- Duzentos e cinqüenta pés - disse o encarregado do mergulho.

Teriam de descer pelo menos 600 pés. Aproximadamente 30 metros de gelo estavam visíveis acima da linha d'água, e somente um sétimo do iceberg fica acima da superfície. Para estar seguro, Gorov preferia descer 700 pés, embora a velocidade de aproximação do alvo reduzisse suas chances de chegar sequer a 600 pés, a tempo de evitá-lo.

O operador do sonar informou a distância:

- Trezentos e cinqüenta metros e se aproximando.

- Se eu não fosse ateu - disse Zhukov -, começaria a rezar. Ninguém achou graça. Naquele momento, nenhum deles era ateu, nem mesmo Emil Zhukov, apesar do que dissera.

Embora cada um parecesse frio e confiante, Gorov podia sentir o cheiro do medo na sala de controle. Não era um exagero nem uma opinião pessoal. O medo tinha, sim, um odor pungente característico: o cheiro penetrante de um agridoce incomum. Suor frio. Praticamente todos os homens na sala de controle estavam transpirando. O local exalava medo.

- Trezentos e vinte pés - anunciou o oficial do mergulho.

O operador do sonar informou sobre o iceberg:

- Trezentos e vinte metros e se aproximando rapidamente.

- Trezentos e sessenta pés.

Estavam mergulhando de verdade. Para o fundo, à toda velocidade, Um bocado de pressão no casco.

Embora cada um estivesse monitorando o equipamento sob sua responsabilidade, todos ainda encontravam tempo para olhar repe-

tidas vezes para os painéis de mergulho, que, de repente, pareciam

ter se tornado o verdadeiro centro da sala. A agulha do medidor de profundidade estava caindo rapidamente, muito mais rápido do que jamais havia caído antes.

Trezentos e oitenta pés.

Quatrocentos.

Quatrocentos e vinte.

Todos sabiam que o submarino havia sido concebido para suportar manobras súbitas e radicais, mas esse conhecimento não aliviava nem um pouco a tensão deles. Nos últimos anos, como o país estivesse lutando para se recuperar do empobrecimento causado por décadas de totalitarismo, os orçamentos para a defesa haviam sido cortados - com exceção do programa de desenvolvimento de armas nucleares-e a manutenção de sistemas havia sido também reduzida, atrasada e, em alguns casos, até mesmo adiada indefinidamente. O Pogodin não estava na sua melhor forma-era um velho submarino de frota com muitos anos de fiel serviço-e talvez estivesse navegando com uma rachadura séria o suficiente para condená-lo a qualquer momento.

- Quatrocentos e sessenta pés - avisou o encarregado do mergulho.

- Alvo a 270 metros.

- Profundidade de 480 pés.

Gorov apertou com as duas mãos o corrimão do seu posto de comando e resistiu à pressão da inclinação do convés, até que seus braços doeram. Os nós dos dedos estavam tão marcados e brancos que pareciam osso puro.

- Alvo a 180 metros!

- Está aumentando a velocidade como se corresse ladeira abaixo - disse Zhukov.

- Quinhentos e vinte pés.

A descida era acelerada, mas não o suficiente para satisfazer Gorov. Precisariam descer pelo menos mais uns 180 pés até que estivessem absolutamente seguros embaixo do iceberg.

- Quinhentos e quarenta pés.

- Só duas vezes estive tão fundo, em dez anos de serviço - disse Zhukov.

- Bom assunto para sua próxima carta para casa - brincou Gorov.

- Alvo a 146 metros e se aproximando rapidamente - disse o operador do sonar.

- Quinhentos e sessenta pés - disse o oficial do mergulho, ainda que certamente soubesse que todos estavam de olho no enorme indicador de profundidade.

Mil pés eram a profundidade máxima oficial para o Ilya Pogodin, uma vez que não era uma das embarcações preparadas para guerra nuclear a grandes profundidades. É claro que se sua superfície externa tivesse sofrido avaria séria com a colisão, esse cálculo de mil pés perderia o sentido, e eles agora estariam à mercê da sorte. Os danos a estibordo da proa poderiam tornar o submarino vulnerável a implosão numa profundidade bem menor do que a mencionada no manual oficial.

- Alvo a 110 metros e se aproximando.

Gorov estava dando sua contribuição para o mau cheiro dentro da pequena sala. Sua camisa tinha manchas de suor no meio das costas e embaixo dos braços.

A voz do controlador de mergulho baixara até tornar-se quase um murmúrio, mas ainda assim era ouvida em toda a sala de controle.

- Seiscentos pés e descendo.

O rosto chupado de Emil Zhukov parecia uma máscara mortuária.

Ainda se agarrando ao corrimão, Gorov disse:

- Temos que arriscar mais uns 80 ou 100 pés. Temos que ficar bem abaixo do gelo.

Zhokov concordou com a cabeça.

- Seiscentos e vinte pés.

O operador de sonar lutava para controlar a voz, mas não conteve um tom de aflição ao passar a informação seguinte:

Alvo a 55 metros e se aproximando rapidamente. Morte na frente da proa. Vai nos atingir!

- Nada disso! - replicou energicamente Gorov. - Vamos conseguir.

- Profundidade de 670 pés.

- Alvo a 27 metros.

- Seiscentos e oitenta pés.

- Dezoito metros.

- seiscentos e noventa pés.

- Alvo perdido - disse o operador de sonar, sua voz subindo uma oitava na última palavra.

Todos gelaram, esperando pelo pesado impacto que esmagaria o casco.

Fui um maluco ao arriscar a minha vida e a de outras 79 pessoas apenas para salvar um décimo desse número, pensou Gorov.

O técnico que monitorava a profundidade gritou:

- Gelo acima!

Estavam debaixo do iceberg.

- Qual é nosso espaço livre? - perguntou Gorov.

- Cinqüenta pés.

Ninguém comemorou. Ainda estavam tensos demais para isso. Mas se concederam um modesto e coletivo suspiro de alívio.

- Estamos debaixo dele - disse Zhukov, admirado.

- Setecentos pés e descendo - disse o oficial de mergulho, apreensivo.

- Diminua a velocidade - instruiu Gorov. - Estabilize a 740 pés.

- Estamos salvos - desabafou Zhukov.

Gorov alisou a barba bem aparada e a sentiu úmida de suor.

- Não - disse ele. - Não totalmente salvos. Ainda não. Nenhum iceberg tem o fundo plano. Certamente deve haver protuberâncias isoladas abaixo dos 600 pés, e podemos até mesmo dar com uma que chegue ao nosso limite de profundidade. Não estaremos a salvo até que tenhamos saído completamente de debaixo dele.

 

Pouco depois de a explosão do torpedo ressoar por todo o iceberg, Harry e Pete abandonaram os trenós, onde os outros ainda continuavam abrigados, e voltaram cautelosamente para a gruta. Chegaram apenas até a entrada e pararam, com as costas voltadas para o vento furioso.

Precisavam levar o rádio, que Harry carregava, para a parte mais profunda e silenciosa da gruta, para fazer contato com o tenente Timoshenko, a bordo do Pogodin, e saber o que aconteceria agora. Do lado de fora, o vento era uma fera com mil vozes ensurdecedoramente altas, e se até mesmo nas cabines dos trenós o barulho do vento implacável tornava impossível alguém ouvir a própria voz, pior ainda seria entender o que estavam dizendo no rádio.

Com o facho da lanterna Pete examinou com atenção as placas de gelo do teto.

- Parecem OK! - gritou Harry, ainda que sua boca não estivesse a mais de cinco centímetros da cabeça do outro.

Pete olhou para Harry, sem saber ao certo o que ele dissera.

- OK! - gritou Harry mais forte, e fez um sinal positivo, com o dedão para cima.

Pete fez que sim com a cabeça.

Hesitaram, entretanto, porque não sabiam se o submarino russo lançaria outro torpedo.

Se voltassem para a gruta com o rádio e os russos alvejassem o iceberg novamente, o abalo poderia fazer o teto desabar desta vez. Seriam esmagados ou enterrados vivos.

O vento às suas costas, porém, era tão forte e assustadoramente frio que Harry sentiu como se alguém deixasse cair cubos de gelo em suas costas, por dentro da roupa térmica. Sabia que não ousanam ficar ali por muito tempo, paralisados pela indecisão, e decidiram entrar. Pete o seguiu com a lanterna, e, juntos, se dirigiram apressadamente para o fundo da gruta.

A cacofonia da tempestade diminuía consideravelmente conforme avançavam, embora mesmo junto da parede dos fundos houvesse tanto barulho que seria preciso aumentar o volume do rádio ao máximo.

O fio laranja utilizado em uma das baterias do trenó ainda estava lá dentro. Harry o conectou ao rádio. Preferia ligá-lo à bateria do trenó, sempre que possível, e economizar as baterias do próprio rádio, para o caso de precisarem delas mais tarde.

Enquanto trabalhavam, Pete perguntou:

- Você notou qual é a direção do vento?

Ainda precisavam elevar a voz para conseguirem se ouvir, mas não era mais necessário gritar. Harry respondeu:

- Quinze minutos atrás, o vento soprava com uma diferença de 90 graus, de acordo com a bússola.

- Então o iceberg mudou de direção novamente.

- O que fazer agora?

- Não tenho a menor idéia.

- Você é o técnico em demolições. O torpedo teria força suficiente para empurrar o iceberg inteiro temporariamente para fora de sua rota prevista?

Balançando a cabeça enfaticamente, Pete respondeu:

- Não, de maneira alguma.

- Também acho que não.

De repente, Harry sentiu-se desesperadamente esgotado e deprimido, com a sensação de total desamparo. Parecia que a Mãe Natureza decidira sair no encalço deles. As adversidades com relação à sua sobrevivência estavam aumentando a cada minuto, e logo seriam insuperáveis - se já não o fossem agora. Apesar da vaselina que cobria seu rosto e da máscara de tricô que era geralmente tão eficiente; apesar das camadas isolantes de Gore-Tex e Termolite de sua roupa; apesar de terem conseguido se abrigar na gruta uma parte da noite e no relativo calor das cabines dos trenós durante algum tempo, Harry estava sucumbindo ao implacável e impiedoso frio, capaz de fazer estourar qualquer termômetro. As juntas lhe doíam. Mesmo usando luvas, suas mãos estavam tão geladas como se ele tivesse ficado por meia hora arrumando coisas dentro de uma geladeira; e um enervante amortecimento começava a tomar conta de seus pés. Se o combustível dos trenós acabasse, negando-lhes as periódicas sessões de aquecimento nos dez graus das cabines, o congelamento de seus rostos seria um perigo real, e o pouco de energia que ainda lhes restava seria consumido rapidamente, deixando-os exaustos demais para conseguirem se manter em pé ou acordados, o que os impediria de ir ao encontro dos russos, a meio caminho.

Entretanto, por mais que o cansaço e a depressão pesassem sobre ele, não podia fraquejar, pois precisava pensar em Rita. Ele era responsável por ela, uma vez que ela não se sentia tão à vontade no gelo quanto ele. Ao contrário, ela temia o gelo mesmo com tempo bom. O que quer que acontecesse, estava determinado a ficar ao seu lado enquanto ela precisasse dele, até o último minuto de vida. E por causa dela ele tinha um motivo para viver: a recompensa de mais anos juntos, mais riso e mais amor, o suficiente para mantê-lo vivo, por mais violenta que se tornasse a tempestade.

- A outra única explicação - disse Harry ao ligar o rádio no volume máximo - é que talvez o iceberg tenha sido pego por uma nova corrente, muitíssimo mais forte, que o tenha tirado do curso anterior e o empurre na direção sul.

- Isto vai tornar mais fácil ou mais difícil a chegada dos russos aqui em cima para nos resgatar?

- Mais difícil, eu acho. Se o iceberg está voltado para o sul, e se o vento está vindo muito mais do norte, a única área a sotavento é a proa. Eles não podem mandar ninguém para cá, uma vez que o bloco está se movendo bem na direção deles.

- E já são quase dez horas.

- Exato - concordou Harry.

- Se não conseguirem nos tirar daqui a tempo... se ainda estivermos aqui à meia-noite, será que sairemos vivos? Sem sacanagem, qual é a sua opinião sincera?

- Eu é que deveria lhe perguntar. Foi você quem determinou a colocação daquelas bombas. Você sabe melhor do que eu o estrago que elas vão fazer.

Pete parecia compenetrado.

- O que eu penso é que... a seqüência de explosões vai destruir a maior parte do bloco de gelo em que estamos. Há uma chance de que uns 150 ou 160 metros quadrados do iceberg permaneçam intactos, mas não toda a extensão desde a "proa" até onde está colocada a primeira bomba. E se sobrarem somente 150 ou 160 metros dele, você quer saber o que vai acontecer?

Harry sabia muito bem.

- O iceberg terá 150 metros de comprimento e 200 de altura - disse.

- E não pode flutuar assim.

- Nem por um minuto. O centro de gravidade estará todo errado. Ele vai emborcar, procurar uma nova posição.

Um olhou para o outro, enquanto o rádio emitia ruídos estranhos e agudos que competiam com o vento que continuava a soprar forte fora da gruta.

Pete lamentou:

- Se pelo menos tivéssemos conseguido desenterrar dez daquelas bombas...

- Mas não foi o que fizemos. - Harry pegou o microfone,

- Vamos ver se os russos têm alguma boa notícia.

 

Gunvald não encontrou nos armários de Pete Johnson e de Claude Jobert qualquer coisa que os pudesse incriminar.

Cinco suspeitos. Nenhuma descoberta sinistra. Nenhuma pista-

Levantou-se do engradado de madeira e foi para o outro extremo da sala. Àquela distância dos armários arrombados - apesar de a distância em si não torná-lo nem um pouco menos culpado - sentiu que poderia encher seu cachimbo e acendê-lo. Precisava do cachimbo para acalmar-se e poder pensar. Em pouco tempo, o ar ficou tomado pelo aroma de cereja do fumo.

Fechou os olhos, apoiou-se contra a parede e pensou nos vários objetos que havia pegado dos armários. De modo geral, não vira nada de muito estranho nos pertences de seus colegas. Mas era possível que as pistas, se existissem, fossem sutis. Talvez as descobrisse apenas depois de muita reflexão. Por isso, relembrou cuidadosamente cada um dos itens que encontrara nos armários, e se deteve a pensar neles, buscando qualquer detalhe que pudesse ter deixado escapar enquanto realmente tivera os objetos nas mãos.

Roger Breskin.

Franz Fischer.

George Lin.

Claude Jobert.

Pete Johnson.

Nada.

Se um desses homens era mentalmente desequilibrado, um assassino em potencial, então era também muito esperto. Escondia sua loucura tão bem que nenhum vestígio dela podia ser encontrado, mesmo nos objetos pessoais mais íntimos.

Frustrado, Gunvald esvaziou o cachimbo numa lata cheia de areia, guardou-o no bolso do blusão e voltou aos armários. O chão estava coberto dos preciosos retalhos de cinco vidas. Enquanto recolhia os objetos e os recolocava no lugar onde os encontrara, sua culpa deu lugar à vergonha de ter violado a privacidade dos companheiros, ainda que obrigado a isso pelos acontecimentos do dia.

Foi então que viu o envelope. Vinte e cinco por 30 centímetros. Mais ou menos três centímetros de espessura. Bem embaixo no armário, contra a parede do fundo.

Na pressa, não o tinha visto, principalmente porque era acinzentado, parecido com o metal contra o qual se apoiava e também porque estava na parte bem de baixo do armário, enfiado lá no fundo, no espaço de 30 centímetros que havia sob a prateleira mais baixa. Em verdade, estava surpreso de tê-lo notado, mesmo agora. No momento em que o viu, teve uma forte premonição de que ele continha a prova devastadora que procurava.

O envelope estava bem preso contra a parede do armário. Quando o rasgou e o tirou para fora, viu que seis pedaços de fita isolante o prendiam com firmeza, e que tinha sido colocado ali deliberadamente, na esperança de mantê-lo em segredo, mesmo que o armário fosse arrombado.

O envelope estava fechado apenas com um grampo de metal, e Gunvald o abriu. Dentro, havia um caderno espiral recheado com o que parecia ser recortes de jornais ou de revistas.

Relutante, mas sem se deter, Gunvald abriu o caderno e começou a folheá-lo. Seu conteúdo o atingiu com a força de uma bofetada, chocou-o como jamais imaginou que pudesse se chocar Coisa terrível, página após página. Imediatamente, percebeu que quem fizera essa coleção, se não fosse um maníaco furioso, era pelo menos um indivíduo muito perturbado e perigoso.

Fechou o caderno, puxou rapidamente a corrente para apagar a luz no fundo da sala e vestiu correndo seu casaco e suas botas de gelo. Tropeçando nos montes de neve, com a cabeça bem para baixo para proteger o rosto do vento selvagem repleto de partículas de gelo, correu para a cabana de comunicações, ansioso por contar a Harry o que encontrara.

 

- Gelo acima. Cem pés.

Gorov abandonou o posto de comando e parou atrás do técnico que verificava os dados do medidor de profundidade.

- Gelo acima. Cento e vinte pés.

- Como pode estar recuando? - Gorov franziu o cenho, não querendo acreditar nos dados fornecidos pela mesma tecnologia em que sempre confiara. - A esta altura, o iceberg deve ter virado seu lado mais estreito para nós, de modo que não podemos ter ultrapassado sequer a metade de seu comprimento. Ainda há uma enorme e longa montanha de gelo boiando acima de nós.

O técnico parecia preocupado também:

- Não posso compreender, senhor. Mas agora ele está a 140 pés e ainda subindo.

- Cento e quarenta pés de água livre entre nós e o fundo do iceberg?

- Sim, senhor.

O medidor de profundidade que estavam utilizando era uma versão sofisticada da sonda acústica que fora usada durante anos para encontrar o fundo do oceano abaixo de um submarino. Emitia ondas sonoras de alta freqüência para cima em uma faixa rigidamente controlada, lançava um eco contra a parte de baixo do gelo - se efetivamente houvesse algum gelo acima - e determinava a distância entre o topo da torre e o teto gelado do mar. Era um equipamento comum em qualquer embarcação que tivesse qualquer chance - mesmo que rara - de passar sob a calota polar, quer a serviço quer para fugir de um vaso de guerra inimigo.

- Cento e sessenta pés, senhor.

O ponteiro do medidor de profundidade mexia-se para a frente e para trás em um rolo de papel próprio para gráficos. A faixa preta que desenhava se tornou visivelmente mais larga.

- Gelo acima. Cento e oitenta e oito pés.

O gelo continuava a recuar acima deles.

Não fazia sentido.

O alto-falante no alto do posto de comando chiou e estalou. A voz que saiu dele era áspera por natureza, e metálica como todas as vozes que vinham através do sistema interno de comunicação. O oficial encarregado dos torpedos informou o que Nikita Gorov não gostaria de ter sabido em nenhuma profundidade, muito menos a 740 pés:

- Comandante, nossa parede divisória dianteira está suando.

Todos os que estavam na sala de controle se retesaram. Sua atenção estivera voltada para os relatórios sobre o gelo e as informações do sonar, já que o maior perigo parecia ser o de irem de encontro a uma longa estalactite pendente do fundo do iceberg. A advertência do encarregado dos torpedos era uma irritante lembrança de que haviam colidido com um pedaço de gelo à deriva antes de começarem aquela descida maluca, e que estavam a mais de 700 pés da superfície, onde cada centímetro quadrado do casco sofria uma pressão brutal. Havia milhões e milhões de toneladas de água do mar entre eles e o mundo com céu, sol e ar livre, que era o seu verdadeiro lar.

Tirando um fone do ouvido, Gorov disse:

- Comandante para sala de torpedos. Há isolamento seco atrás daquela divisória.

O alto-falante tinha se tornado o centro das atenções, assim como o medidor de profundidade havia sido até um minuto atrás.

- Sim, senhor. Mas está suando, de qualquer modo. O isolamento atrás dele deve estar molhado agora.

É claro que tinham sofrido uma quantidade perigosa de danos ao colidirem com o pedaço de gelo solto.

- Há muita água?

- Está só suado, senhor. Apenas uma película.

- Onde você descobriu isso?

- Ao longo da solda na parede, entre os tubos quatro e cinco - respondeu o oficial de torpedos.

- Alguma deformação?

- Não, senhor.

- Fique atento - ordenou Gorov.

- Não vou tirar os olhos daqui, senhor.

Gorov soltou o microfone, que subiu, oscilante.

Zhukov estava no posto de comando.

- Poderíamos mudar de rumo, senhor.

- Não. Gorov sabia o que o primeiro-oficial estava pensando. Cruzavam por baixo do iceberg, no sentido de seu comprimento, com a metade dele - pelo menos 600 metros - ainda adiante deles. A bombordo e a estibordo, entretanto, a água estava livre a uns 200 ou 300 metros, pois a largura do iceberg era consideravelmente menor que seu comprimento. Mudar de rumo parecia razoável, mas seria um esforço inútil.

Gorov disse:

- Quando tivéssemos conseguido virar o submarino, teríamos já passado por baixo da "popa" do iceberg e estaríamos em água livre, de qualquer modo. Mantenha o rumo, tenente.

- Tudo bem, senhor.

- Leme firme na rota, e mantenha-o assim, a não ser que a corrente comece a nos empurrar noutra direção.

O operador sentado junto ao medidor de profundidade informou:

- Gelo acima. Duzentos e cinqüenta pés.

De novo o mistério do recuo do gelo.

Não estavam descendo. E Gorov sabia muito bem que o iceberg acima deles não estava erguendo-se do mar por um passe de mágica. Então por que a distância entre eles continuava a aumentar?

- Devemos subir o submarino, para mais para perto do gelo? - sugeriu Zhukov. - Se subirmos nem que seja para 600 pés, talvez a divisória da sala de torpedos pare de suar. A pressão seria consideravelmente menor.

- Firme em 740 pés - falou Gorov, secamente.

Ele estava mais preocupado com o suor de sua tripulação do que com o suor da divisória. Eram todos bons homens, e tivera muitos motivos para se orgulhar deles durante o tempo em que haviam trabalhado sob seu comando. Tinham passado por vários momentos difíceis juntos, e, sem exceção, tinham permanecido calmos e profissionais. Nas ocasiões anteriores, entretanto, não haviam precisado mais do que coragem e habilidade para se saírem bem. Desta vez, estavam precisando também de uma boa dose de sorte. Não haveria coragem e habilidade capazes de salvá-los se o casco trincasse sob a pressão titânica a que estava sendo agora submetido. Incapazes de confiar somente em si mesmos, eram obrigados a confiar também nos engenheiros anônimos que haviam concebido o submarino e nos operários do estaleiro que o haviam construído. Talvez isso não fosse muito difícil, se não soubessem perfeitamente que a debilitada economia do país provocara uma redução no tempo de permanência dos navios nos estaleiros para manutenção. Isso era suficiente para deixá-los um bocado emputecidos - e talvez descuidados.

- Não podemos subir - insistiu Gorov. - Ainda há aquele gelo todo acima de nós. Não sei o que está acontecendo, como este gelo está recuando desse modo, mas temos que ser cautelosos até eu conseguir tomar pé da situação.

- Gelo acima. Duzentos e oitenta pés.

Gorov olhou mais uma vez para o gráfico do medidor de profundidade.

- Trezentos pés, senhor.

Subitamente, a agulha parou de oscilar. Desenhou uma linha reta, preta e fina no centro do rolo de papel.

- Água livre! - exclamou o técnico, visivelmente atônito. - Nenhum gelo acima.

- Saímos de debaixo do iceberg? - perguntou Zhukov.

- Impossível - disse Gorov. - É um iceberg monstro, com pelo menos 1.200 metros de comprimento. Não mais do que a metade passou sobre nós. Não podemos...

- Gelo acima novamente! - gritou o operador que media a profundidade. - Trezentos pés. Gelo a 300 pés e agora descendo.

Gorov examinou a agulha de perto. O canal de água livre entre o topo da torre do Pogodin e o fundo do iceberg se estreitava rapidamente.

- Duzentos e sessenta pés. Duzentos e vinte. Cento e oitenta. Cento e quarenta. Cem. Oitenta. Sessenta.

A distância se manteve em 50 pés por alguns segundos, mas logo começou a variar assustadoramente: 50 pés, 150, 50 pés de novo, 100, 50, 200, para cima e para baixo, para cima e para baixo, nas mais imprevisíveis subidas e descidas. A seguir, atingiu mais uma vez 50 pés e finalmente a agulha começou a se mover menos desordenadamente.

- Mantendo a mesma distância - informou o técnico em profundidade. - De 50 a 60 pés. Pequenas variações. Mantendo a distância... ainda mantendo... mantendo...

- Poderia o medidor ter funcionado mal, antes? - perguntou Gorov.

O técnico balançou a cabeça:

- Não, senhor. Acho que não. Parece que está tudo bem agora

- Será que estou entendendo o que aconteceu? Passamos por baixo de um buraco no meio do iceberg?

O técnico olhou atentamente o papel do gráfico, pronto para gritar caso o teto do gelo acima deles começasse a cair abaixo da marca de 50 pés.

- É, acho que sim. Ao que tudo indica, um buraco. Mais ou menos no meio.

- Um buraco em forma de funil.

- Isso mesmo, senhor. O registro começou como se fosse um prato emborcado, mas quando estávamos bem embaixo dele, os dois terços superiores da cavidade estreitaram drasticamente.

Com crescente excitação, Gorov perguntou:

- E foi assim, direto, até o topo do iceberg?

- Não sei lhe informar, senhor. Mas foi assim até pelo menos o nível do mar.

O medidor de profundidade, é claro, não conseguia fazer leituras acima da superfície do mar.

- Um buraco - repetiu Gorov, pensativo. - Céus, como é que esse buraco foi parar lá?

Ninguém sabia responder.

Gorov encolheu os ombros e disse:

- Talvez alguém da Edgeway saiba. Eles têm estudado o gelo. importante é que ele está lá, seja lá o que tenha acontecido.

- Por que o buraco é tão importante? - perguntou Zhukov.

Gorov começou a ter uma idéia, a semente de um plano extremamente ousado para resgatar os cientistas da Edgeway. Se o buraco estava...

- Água livre - informou o técnico. - Nenhum gelo acima.

Emil Zhukov apertou alguns botões no console do painel de comando. Olhou para a tela do computador à direita.

- Confere. Considerando a corrente em direção ao sul e a velocidade com que avançamos, devemos estar totalmente fora dele. Desta vez, o iceberg realmente se foi.

- Água livre - repetiu o técnico.

Gorov consultou seu relógio: 10:02. Restavam menos de duas horas para que a carga de 60 explosivos rebentasse o iceberg. Naquele espaço de tempo a tripulação do Pogodin certamente não teria condições de preparar uma tentativa de resgate convencional que pudesse ser bem-sucedida. O esquema nada ortodoxo que o comandante tinha em mente poderia parecer coisa de um lunático, mas tinha a vantagem de ser um plano capaz de funcionar dentro do tempo que restava.

Zhukov pigarreou. Sem dúvida, o primeiro-oficial, pensando na divisória suada na sala de torpedos, esperava pela ordem de levar o submarino para cima, até uma profundidade menos perigosa.

Puxando para si o microfone, Gorov disse:

- Comandante para sala de torpedos. Como estão as coisas por aí?

A resposta veio do alto-falante suspenso:

- Ainda suando, senhor. Não melhorou, mas também não piorou.

- Fique de olho. E fique calmo.

Gorov soltou o microfone e voltou para o posto de comando. Motores a velocidade média. Leme todo à esquerda.

O espanto fez o rosto de Emil Zhukov parecer ainda mais comprido. Abriu a boca para falar, mas não conseguiu emitir um som. Engoliu em seco. Sua segunda tentativa deu certo:

- O senhor quer dizer que não estamos subindo?

- Não neste minuto - respondeu Gorov.-Temos que fazer mais uma incursão embaixo daquele monstro. Quero dar uma outra olhada no buraco no meio dele.

 

O volume do rádio de ondas curtas estava no máximo, para que o oficial russo responsável pelas comunicações no Pogodin pudesse ser ouvido, apesar da tempestade, que rugia como fera na entrada da gruta e sob o telhado de placas de gelo. O forte ruído causado pela estática e o chiado eletrônico provocado pela interferência ecoavam além das paredes de gelo, como um potente amplificador reproduzindo o som de unhas arranhando um quadro-negro.

Os outros haviam se juntado a Harry e Pete na gruta de gelo para ouvir as espantosas novidades em primeira mão. Estavam amontoados junto da parede do fundo.

Quando o tenente Timoshenko descreveu o buraco e a enorme área de gelo no fundo da prisão flutuante, Harry lhe explicou a provável causa. O iceberg tinha tido a capa quebrada por um tsunami, que por sua vez teria sido provocado por um terremoto no fundo do mar praticamente abaixo deles. Nessa parte do mundo, por causa de uma série de fissuras no fundo do mar, os vulcões entravam freqüentemente em atividade, como atestaram as violentas erupções na Islândia, poucas décadas atrás. Se a atividade vulcânica do fundo do oceano estivesse associada ao episódio de agora, uma enorme quantidade de lava poderia ter sido despejada no mar, lançada para cima com força tremenda. Os jatos brancos da lava quente poderiam ter cavado aquele buraco, e os milhões de litros de água fervente ali produzidos teriam facilmente esculpido as reentrâncias e saliências que marcavam o fundo do iceberg logo depois do buraco.

Embora vinda de um submarino a menos de um quilômetro de distância, a voz de Timoshenko soava distorcida por causa da estática, mas a transmissão não foi interrompida.

- Segundo o capitão Gorov, há três possibilidades. Primeiro, o buraco no fundo do iceberg de vocês deve acabar em gelo bem sólido acima da linha d'água. Em segundo lugar, pode levar a uma caverna ou ao fundo de uma fenda rasa. Ou, em terceiro lugar, pode até continuar por mais uns 30 metros acima do nível do mar e abrir no topo do iceberg. Parece razoável essa análise, Dr. Carpenter?

- Sim - respondeu Harry, impressionado pelo raciocínio do comandante -, e acho que sei qual das três possibilidades aconteceu.

Ele contou a Timoshenko sobre a cratera que tinha se aberto na altura da metade do iceberg quando as gigantescas ondas sísmicas passaram por baixo da borda da capa de gelo.

- Não existia, quando fomos colocar os explosivos, mas eis que lá estava ela, esperando por nós, no nosso caminho de volta ao acampamento temporário. Quase entrei direto nela, perdi meu trenó.

- E essa cratera segue aberta direto até o mar? - perguntou Timoshenko.

- Não sei, mas suspeito que sim. Pelo que posso calcular, ela coincide com o buraco que vocês encontraram aí embaixo. Ainda que o jato de lava não tenha atravessado os 30 metros de gelo acima da linha d'água, o calor necessário para fazer um buraco de baixo para cima, através de toda aquela massa de gelo submerso, teria pelo menos feito rachar o gelo acima da superfície. E essas rachaduras certamente descem direto até a água livre que o medidor de profundidade detectou.

- Se o buraco está no fundo da cratera... eu acho que devemos chamá-lo poço ou túnel, e não buraco... vocês estariam dispostos a alcançá-lo descendo por ela?-perguntou Timoshenko.

A pergunta soou estranha a Harry. Não via sentido em descer por aquela brecha onde seu trenó desaparecera.

- Se devêssemos fazer isso, acho que poderíamos improvisar algum equipamento próprio para escaladas. Mas de que serviria? Não entendo aonde você quer chegar com isso.

- É assim que vamos tentar tirar vocês do gelo. Através daquele túnel e por baixo do iceberg.

Na gruta, atrás de Harry, os outros sete responderam à sugestão com barulhenta incredulidade.

Harry fez um gesto para que ficassem quietos. Disse para o radioperador russo:

- Descer pelo buraco, pelo túnel, e dar um jeito de entrar no submarino? Mas como?

- Com equipamento de mergulho - respondeu Timoshenko.

- Não temos nenhum.

- Sim, mas nós temos.

Timoshenko explicou como o equipamento chegaria a eles.

Harry estava mais impressionado que nunca com a criatividade dos russos, mas ainda estava em dúvida.

- Já mergulhei um pouco antigamente. Não sou um especialista nisso, mas sei que ninguém pode mergulhar a tal profundidade, a não ser que seja treinado e que tenha equipamento especial.

- Nós temos esse equipamento - respondeu Timoshenko -, só que vocês vão ter que mergulhar sem o tal treinamento especial.

E passou os cinco minutos seguintes explicando em detalhes o plano do comandante Gorov.

O esquema era espetacular, criativo, ousado e muito bem pensado. Harry queria encontrar esse tal comandante Nikita Gorov, para ver que espécie de homem poderia ter uma idéia tão incrivelmente inteligente.

- Pode ser que funcione, mas é arriscado. E não há garantia de que o túnel de vocês realmente chegue até o fundo, até nós. Talvez não consigamos achá-lo.

- Talvez - concordou Timoshenko. - Mas é a melhor chance que vocês têm. Na realidade, é a única chance de vocês. Falta apenas uma hora e meia para os explosivos detonarem. Não podemos levar botes até o iceberg, subir até o topo e trazer vocês para baixo, como havíamos planejado. Não em 90 minutos. O vento está vindo da popa do iceberg, agora, soprando forte dos dois lados. Teríamos que levar os botes até a proa, mas é impossível, com toda essa montanha de gelo correndo em nossa direção a nove nós.

Harry sabia que era verdade. Dissera exatamente isso a Pete meia hora antes.

- Tenente Timoshenko, preciso discutir isso com meus colegas. Dê-me um minuto, por favor. - Ainda acocorado na frente do rádio, virou-se um pouco na direção dos outros e perguntou: - E então?

Rita teria que controlar sua fobia mais do que nunca, porque teria que se enfiar no gelo, ficar inteiramente rodeada por ele. Ainda assim, foi a primeira a se manifestar a favor do plano:

- Não vamos perder tempo. É claro que concordamos. Não podemos simplesmente ficar parados aqui, esperando a morte.

- Não temos muita escolha - disse Claude Jobert, balançando a cabeça.

- Temos uma chance em dez mil de sair desta vivos -avaliou Franz. - Mas é pelo menos uma chance.

- Pessimismo germânico - disse Rita, sorrindo.

Apesar de tudo, Fischer conseguiu sorrir.

- Isso foi o que você disse quando eu fiquei preocupado que pudesse haver um terremoto antes que chegássemos de volta ao acampamento.

- Pode contar comigo - disse Brian.

- E comigo - acrescentou Roger Breskin. Pete Johnson disse:

- Me uni a vocês pela aventura. Agora, com certeza, estou tendo muito mais aventura do que podia ter sonhado. Se conseguirmos escapar desta enrascada, juro que vou ficar bem feliz em passar minhas noites em casa, lendo um bom livro.

Voltando-se para Lin, Harry perguntou:

- E então, George?

Com os óculos sobre a testa e a máscara contra neve puxada para baixo, Lin demonstrava seu descontentamento em cada traço do rosto.

- Se ficarmos aqui, se não sairmos antes da meia-noite, não haveria uma chance de nos salvarmos das explosões em um pedaço de gelo grande o suficiente para nos agüentar? Tive a impressão de que estávamos contando com isso, antes de aparecer esse submarino.

Harry cortou secamente:

- Se temos apenas uma chance em dez mil de escapar da maneira que o capitão Gorov planejou para nós, não teremos uma chance em um milhão se ficarmos esperando as explosões da meia-noite.

Lin mordia o lábio inferior com tanta força que Harry não ficaria surpreso se começasse a escorrer sangue queixo abaixo.

- George? Você está conosco ou não?

Finalmente, Lin balançou a cabeça em concordância.

Harry voltou ao microfone:

- Tenente Timoshenko?

- Estou na escuta, Dr. Carpenter.

- Decidimos que o plano de seu comandante tem sentido, nem que seja porque precisamos que tenha. Faremos o que ele decidiu - se isso for possível.

- É possível, doutor. Estamos convencidos disso.

- Temos que agir rápido - disse Harry. - Não há muita esperança de que consigamos chegar à cratera muito antes das 11 horas. Isso nos deixa exatamente uma hora para todo o resto.

Timoshenko disse:

- Se todos tivermos bem clara na mente a imagem do que vai acontecer à meia-noite, seremos capazes de nos apressar e fazer o que precisa ser feito no tempo que resta. Boa sorte para todos vocês.

- Para vocês também - respondeu Harry.

 

Poucos minutos depois, quando estavam prontos para abandonar a gruta, Harry se deu conta de que ainda não tinha sabido de Gunvald sobre o conteúdo dos cinco armários. Quando tentou contato com a Estação Edgeway, através do rádio, não teve outra resposta senão os ruídos da estática e o chiado forte que indicava estar fora do ar.

Aparentemente, teriam de descer por aquele buraco profundo e atravessar o túnel existente sob ele, sem que ele soubesse quem dentre eles poderia atentar de novo contra a vida de Brian Dougherty, se tivesse oportunidade.

 

Nem mesmo o mais sofisticado equipamento de telecomunicações seria capaz de evitar a interferência que costuma acompanhar uma tempestade em latitudes polares no amargo coração do inverno. Gunvald não conseguia mais captar a potente transmissão vinda da base americana em Thule. Tentou todas as freqüências, mas a tempestade era mais potente do que qualquer uma delas. Os únicos vestígios de som humano que conseguia detectar eram fragmentos de um programa de música de orquestra que dava para ouvir aqui e ali. As caixas de som bramiam com a estática: um concerto de gritos, guinchos, assovios, batidas, um verdadeiro caos, sem se ouvir uma única voz humana.

Ele voltou para a freqüência em que Harry deveria estar esperando seu chamado, inclinou-se e segurou o microfone contra os lábios, como se pudesse forçar a conexão.

- Harry, você consegue me ouvir?

Estática.

Talvez pela qüinquagésima vez, Gunvald repetiu seu número e o número deles, falando cada vez mais alto, como se quisesse que seus gritos encobrissem a interferência.

Nenhuma resposta. Não era uma questão de ouvi-los ou de ser ouvido no meio da estática. Eles simplesmente não o estavam captando.

Sabia que teria de desistir.

Olhou para o caderno espiral em cima da mesa ao seu lado.

Embora já tivesse lido a mesma página dezenas de vezes, estremeceu.

Não podia desistir. Todos tinham de saber o tipo de animal que estava no meio deles.

Chamou-os de novo.

Estática.

 

                                       TÚNEL

 

10:45

EXPLOSÃO DENTRO DE UMA HORA E QUINZE MINUTOS

Na ponte do Pogodin, vestido com pesadas roupas de inverno, Nikita Gorov, circunspecto, vasculhava com seu binóculo noturno uma terça parte do horizonte, tentando, mais do que ver o iceberg que conduzia o pessoal da Edgeway, descobrir pedaços soltos de gelo. Aquela fantástica montanha branca estava exatamente à frente do submarino, ainda carregada pela forte corrente que se originava 100 metros abaixo da superfície e se alargava por mais de duzentos.

O mar agitado pela tempestade batia violentamente em todos os lados do submarino, em nada lembrando seu familiar balanço ritmado. O efeito que isso produzia sobre a embarcação era extremamente imprevisível, e impedia Gorov de preparar seu próximo ataque. Subitamente, o submarino caiu para bombordo de modo tão brusco que todos os que estavam na ponte foram jogados para o lado. O comandante chocou-se com Emil Zhukov e Semichastny. Conseguiu desvencilhar-se dos dois e agarrar firme o corrimão coberto de gelo, no momento exato em que uma parede de água foi de encontro à torre e inundou a ponte.

Quando o submarino conseguiu se endireitar, Zhukov gritou:

- Preferiria estar a 700 pés de profundidade!

- Ah! Está vendo? - gritou Gorov. - Você não sabia o quanto estava seguro lá embaixo!

- Nunca mais eu reclamo...

O iceberg não estava mais a sotavento, e por isso deixava o Ilya Pogodin completamente desabrigado. A tempestade atingia a montanha de gelo por trás, com toda a intensidade, ficando seus dois flancos vulneráveis ao vento feroz. O submarino se mantinha como podia na superfície, balançando de um lado para o outro, subindo e descendo violentamente, tão agitado como um ser vivo nos estertores da morte. Outra onda monumental bateu no casco a estibordo, estourou contra a torre e jogou torrentes de água do outro lado, literalmente encharcando quem estava na ponte. A todo instante, o submarino se inclinava a bombordo, atrás de uma onda que subia, gigantesca e escura, ao mesmo tempo monótona e aterradora. Todos os homens na ponte estavam encapotados em espessa camada de gelo, assim como tudo ao redor.

Onde o rosto de Gorov não era protegido pelos óculos ou pelo capuz, estava lambuzado de lanolina. Embora seu posto não o obrigasse a enfrentar diretamente a violência do vento, seu nariz e faces tinham sido cruelmente castigados pelo ar frio e cortante.

Emil Zhukov havia protegido a metade inferior do rosto com um cachecol, mas ele se soltou. No seu posto, tinha que enfrentar a tempestade de frente, e não podia ficar sem proteção, sob o risco de ter a pele arrancada pelas partículas de gelo que, sopradas pelo vento de 160 quilômetros horários, pareciam picadas de milhões de agulhas. Rapidamente, apertou o cachecol com as duas mãos. quebrando a camada de gelo que se formara nele, e logo voltou a amarrá-lo sob a boca e o nariz. Infeliz, mas estóico, recomeçou a vigiar o horizonte lúgubre.

Gorov baixou o binóculo e virou-se para os dois homens que trabalhavam no topo da torre, na parte de trás da ponte. Estavam parcialmente iluminados pela lâmpada vermelha da ponte e pela luz de um farolete portátil. Ambos lançavam sinistras sombras retorcidas, como demônios trabalhando arduamente nas tenebrosas máquinas do inferno.

Um desses tripulantes estava no topo da torre, encaixado entre os dois periscópios e o mastro do radar, o que tornava a experiência muitíssimo mais assustadora ou até mesmo mais divertida do que domar um cavalo num rodeio no Texas - dependendo de como fosse encarado o perigo -, embora estivesse preso por um cinto de segurança ao mastro de telecomunicações. Tinha uma das mais estranhas aparências que o capitão Gorov já vira. Usava tantas camadas de roupas à prova d'água que tinha dificuldade de se mover; mas, na sua perigosa função, exposto ao tempo, precisava de cada uma daquelas camadas de proteção, para evitar morrer congelado em seu posto. Como um poste humano iluminado, preso na parte mais alta do submarino, era um alvo para o vento furioso, para a incessante barreira de granizo e para os jatos da gelada água do mar. Sua couraça de gelo era extremamente grossa e não tinha, literalmente, qualquer abertura ou emenda. No pescoço, ombros, cotovelos, pulsos, quadris e joelhos, a capa de gelo formava bem delineadas pregas e dobras, mas mesmo nesses pontos não se podia ver o tecido por baixo do resplandecente manto de inverno. O pobre diabo brilhava, faiscava e reluzia da cabeça aos pés. Lembrou a Gorov o homenzinho de biscoito, coberto de açúcar branco, que se costumava dar às crianças em Moscou, no Ano-Novo.

O segundo marinheiro estava na escada que ia da ponte ao topo da torre. Amarrado bem firme a um dos degraus, para que suas mãos ficassem livres para trabalhar, estava prendendo diversas caixas de alumínio à prova d'água com uma corrente de liga de titânio.

Contente com o serviço quase pronto, Gorov voltou ao seu Posto e levou o binóculo aos olhos.

 

10:56

EXPLOSÃO DENTRO DE UMA HORA E QUATRO MINUTOS

Eles puderam seguir de trenó em direção à cratera porque o vento - embora continuasse muito violento - soprava pelas costas. Se tivessem pegado tempestade de frente, enfrentariam visibilidade quase zero e, nesse caso, teria sido a mesma coisa - ou talvez melhor - irem a pé. Teria sido, porém, necessário se amarrarem bem uns aos outros, para evitar que alguém, empurrado pelo vento, caísse e se perdesse. Dirigindo a favor do vento, entretanto, podiam enxergar de vez em quando uns dez ou quinze metros adiante, embora a visibilidade estivesse diminuindo a cada minuto. Em breve, estariam envoltos apenas pela brancura dos flocos de neve.

Quando já se aproximavam da cratera, Harry parou o carro e, relutante, desceu. Embora segurasse com firmeza o trinco da porta, uma rajada de vento de 160 quilômetros por hora o fez subitamente cair de joelhos. Quando a mortífera velocidade do vento diminuiu, levantou-se com esforço e pendurou-se na porta, maldizendo a tempestade.

Os outros trenós pararam atrás. O último veículo estava a apenas trinta metros do seu, mas ele não conseguia ver nada além de tênues auréolas amarelas onde deveriam estar os faróis. Pareciam tão fracas que talvez tudo não passasse de uma ilusão de sua vista embaçada.

Harry aventurou-se a soltar o trinco da porta, curvou-se para ficar o mínimo possível exposto ao vento, correu para a frente carregando sua lanterna e examinou o gelo, até que teve certeza de que os trinta metros seguintes eram seguros. O ar que enregelava os ossos era tão frio que respirá-lo, mesmo através da máscara de proteção, machucava a garganta e fazia doer os pulmões. Voltou rapidamente para o relativo calor do trenó e o conduziu cuidadosamente por 30 metros, antes de descer mais uma vez para o próximo reconhecimento.

De novo encontrara a cratera, ainda que desta vez tivesse evitado dirigir muito perto da beira. O declive tinha uns três metros de largura, estreitando em direção ao fundo, e a escuridão era maior do que a capacidade de sua lanterna de a iluminar.

Pelo que conseguia ver através dos óculos - que se recobriam de gelo no mesmo instante em que os limpava -, a parede, pela qual deveriam descer, parecia uma superfície bastante plana e não muito difícil de enfrentar. Não estava completamente seguro do que via: o ângulo que conseguia ver dentro do abismo, o modo curioso como o gelo refratava e refletia a luz, as sombras que, ao menor movimento de sua lanterna, pulavam feito demônios dançando, além da neve soprada pelo vento, que parecia encher de espuma a borda da fenda para então cair em espiral na profundeza - tudo conspirava contra uma visão mais clara do que havia lá embaixo. A menos de 30 metros estava o que parecia ser o fundo ou uma plataforma, que ele pensou que poderia atingir sem o risco de se matar.

Harry girou seu trenó ao contrário e, com dificuldade, colocou-o com a traseira voltada para a borda do abismo, movimento que poderia ter sido, com razão, considerado suicida. Entretanto, levando em conta que lhes restavam escassos 60 preciosos minutos, um pouco de ousadia parecia não apenas justificável, mas essencial. A não ser manequins e primeiros-ministros britânicos, ninguém jamais conseguiu qualquer coisa ficando parado. Este era um dos ditados preferidos de Rita - ela própria uma cidadã britânica -, e Harry normalmente sorria quando lembrava dele. Mas não sorriu agora. Corria um risco calculado, com muito mais possibilidade de fracasso do que de sucesso. O gelo poderia desmoronar sob seus pés, como já acontecera naquele dia, e levá-lo buraco abaixo.

Entretanto, estava preparado para confiar na sorte, e colocou sua vida nas mãos dos deuses. Se houvesse justiça no universo, ele estava prestes a se beneficiar de uma mudança de sorte - pelo menos merecia um pouco disso.

Quando os outros pararam seus trenós, desceram e aproximaram-se dele junto à borda da fenda, Harry já amarrara no gancho para reboque de seu trenó dois cabos feitos de 90 grossos fios de náilon, com resistência para 500 quilos. O primeiro era um cabo de segurança de 25 metros que permitira que fosse puxado rapidamente do fundo do buraco, caso caísse. Amarrou-o em torno da cintura. O segundo, que usaria para tentar uma descida calculada, tinha 30 metros, e ele jogou a ponta livre no abismo.

Pete Johnson aproximou-se da borda e deu a Harry sua lanterna.

Harry já estava com sua própria lanterna no cinto de ferramentas que carregava na cintura. Prendeu-a no quadril direito, com o cabo para cima e o facho para baixo. Em seguida, prendeu a lanterna de Pete no quadril esquerdo. Fachos gêmeos de luz amarela iluminaram as pernas de suas calças forradas.

Nem ele nem Pete tentaram falar. O vento gemia como uma alma que tivesse conseguido escapar das entranhas do inferno no dia do Juízo Final. Gemia tão alto que causava espanto, mais alto ainda do que gemera até então. Não teriam escutado um ao outro mesmo que tivessem gritado com toda a força de seus pulmões.

Harry espichou-se no gelo, de barriga para baixo, e segurou o cabo com as duas mãos.

Curvando-se até ele, Pete bateu levemente em seu ombro, num gesto de encorajamento. Em seguida, empurrou Harry vagarosamente para trás, por cima da borda, para dentro do buraco.

Harry pensava estar bem seguro no cabo, e acreditou que conseguira controlar sua descida, mas estava errado. O cabo escorregava em suas mãos como se estivesse engraxado, e ele, descontrolado, caiu no vazio. Talvez fosse a crosta de gelo de suas luvas, talvez a vaselina que deixara o couro muito macio, como resultado das inúmeras vezes em que, nos últimos dias, inconscientemente levara a mão ao rosto lambuzado. Qualquer que fosse a razão, o cabo parecia uma enguia viva em suas mãos, e ele mergulhou no abismo.

A parede de gelo passava por ele como uma flecha, a cinco ou seis centímetros de seu rosto, tremeluzindo com o reflexo dos dois fachos de luz que o precediam. Agarrou-se ao cabo tão firmemente quanto pôde, tentou prendê-lo entre os joelhos, mas de nada adiantou, já estava numa verdadeira queda livre.

Em meio à espiral de neve e à peculiar refração prismática da luz no fundo de gelo, Harry pensara que a parede fosse uma superfície plana e relativamente lisa, embora não tivesse certeza disso. Agora via que o cabo de segurança mais curto não teria condições de salvá-lo se encontrasse pelo caminho uma ponta afiada de gelo projetada da parede do buraco. Se caísse em alta velocidade contra uma dessas pontas, ela poderia furar inclusive sua pesada roupa de frio, rasgá-lo do fundilho à garganta, empalá-lo.

O cabo queimava suas mãos através da maciez das luvas, mas de repente conseguiu parar, talvez uns 20 metros abaixo da borda da fenda. Seu coração batia forte como centenas de tímbalos tocando, e sentia cada músculo de seu corpo mais rijo que o cabo era torno de sua cintura. Tentando recuperar o fôlego, balançou-se para a frente e para trás no cabo oscilante, batendo dolorosamente - e depois mais suavemente - contra a parede do abismo, enquanto frenéticas sombras e reflexos corriam de baixo para cima como centenas de espíritos tentando fugir do inferno.

Não ousou fazer uma pausa para acalmar os nervos. Os relógios nos pacotes de explosivos continuavam tiquetaqueando a contagem regressiva.

Depois de soltar mais quatro ou cinco metros do cabo, ele alcançou o fundo do buraco. Confirmando a previsão feita quando estudara a fenda lá de cima, ela tinha realmente cerca de 30 metros de profundidade.

Desprendeu uma das lanternas do cinto e começou a procurar pela entrada do túnel que o tenente Timoshenko descrevera. Lembrou que, em seu primeiro encontro com a cratera, mais cedo naquele dia, deduzira que ela tinha de 13 a 15 metros de comprimento, três ou quatro metros de largura no meio, estreitando-se nas duas extremidades. No momento, ele não tinha uma visão completa do fundo do buraco. Quando uma das paredes desmoronara sob o trenó, partes dela rolaram para o fundo, e agora constituíam uma espécie de parede de três metros que dividia o buraco em duas áreas de tamanho mais ou menos igual. Os destroços carbonizados do trenó estavam espalhados por cima dessa divisória.

A parte onde Harry caíra não tinha saída. Não havia passagens laterais, nem fissuras mais profundas que lhe permitissem descer mais um pouco, nem sinal de um túnel ou de água livre.

Escorregando, derrapando, com medo de que pedaços de gelo desmoronassem e o amassassem como um inseto entre dois tijolos, conseguiu escapar daquela câmara. Chegando ao topo da elevação, retomou seu caminho em meio aos restos queimados do trenó e blocos de gelo, que se moviam traiçoeiramente sob seus pés, e então deslizou para o outro lado.

Adiante da divisória, na outra metade da fenda, encontrou uma saída que conduzia a um reino gelado ainda mais profundo e misterioso. A parede da direita não tinha cavidades ou fissuras, mas a da esquerda não seguia direto até o fundo. Acabava a um metro e pouco acima do fundo do buraco.

Harry deitou-se de barriga para baixo e enfiou a lanterna dentro da pequena abertura. A passagem tinha uns 10 metros de largura e não mais de um metro e vinte de altura. Parecia avançar reta e nivelada por uns seis ou sete metros sob a parede da cratera, no sentido lateral, fazer uma curva fechada para baixo, e depois sumir de vista.

Valeria a pena explorá-la?

Consultou o relógio: 11:02.

Explosão dentro de 58 minutos.

Segurando a lanterna à sua frente, Harry rapidamente infiltrou-se na passagem horizontal. Apesar de estar se arrastando, o teto era tão baixo que em alguns lugares chegava a tocar a parte de trás de sua cabeça.                                                                          

Não sofria de claustrofobia, mas sentia um compreensível e saudável temor de ficar confinado em lugar tão estreito 30 metros abaixo do gelo, na solidão do Ártico, e cercado por 58 poderosos pacotes de explosivos que dentro de muito pouco tempo detonariam. Chegava a ser engraçado.

Enquanto isso, ele se espremia, se contorcia e se arrastava apoiado nos cotovelos e nos joelhos. Quando já havia avançado oito ou nove metros, descobriu que a passagem conduzia ao fundo do que parecia ser um enorme espaço aberto, um buraco bem no coração do gelo. Virou a lanterna para a direita e para a esquerda, mas, de onde estava, não conseguia ter uma noção razoável do verdadeiro tamanho da caverna. Deslizou para fora da passagem apertada, levantou-se e soltou a segunda lanterna do cinto.

Encontrava-se em um local circular de 30 metros de diâmetro, com dezenas de fissuras, passagens e caminhos conduzindo para fora dali. Aparentemente, o teto fora formado por um enorme jato ascendente de água quente e vapor: uma cúpula quase perfeita, lisa demais para ter sido formada por qualquer coisa que não fosse o mais fantástico dos fenômenos - uma atividade vulcânica monstruosa. O teto, marcado apenas por algumas pequenas estalactites e rachaduras que lembravam teias de aranha, tinha uns 20 metros de altura no ponto mais alto, e diminuía para uns 10 no ponto em que encontrava as paredes. O chão descia em direção ao centro do recinto em sete degraus progressivos, de 80 ou 90 centímetros cada, e o efeito do conjunto era o de um anfiteatro. No ponto mais baixo da caverna, onde ficaria o palco, havia uma piscina de 12 metros de diâmetro de agitada água do mar.

O túnel.

Dezenas de metros abaixo, aquele túnel largo abria num buraco no fundo do iceberg, conduzindo ao mundo sem luz do profundo Oceano Ártico, onde o Ilya Pogodin estaria esperando por eles.

Harry estava tão fascinado pela escura piscina como teria estado diante de um portão dividindo esta dimensão de outra, diante de uma porta no fundo de um guarda-roupa que abrisse para um mundo encantado, ou diante de um furacão capaz de transportar uma criança e um cachorro para Oz.

- Inacreditável - disse ele, e sua voz ecoou.

Sentiu-se subitamente energizado pela esperança.

No fundo de sua mente, duvidara um pouco da existência do túnel. Tinha chegado a pensar que o medidor de profundidade do Pogodin funcionasse mal. Como era possível, naqueles frios mares, um longo túnel permanecer aberto dentro do gelo sólido? Como não havia congelado e fechado novamente? Não perguntara se alguém tinha a explicação para isso. Não quisera preocupá-los. Passariam melhor a última hora de suas vidas com esperança do que sem ela. Não obstante, era um enigma para o qual não via solução.

Entretanto, agora encontrara a resposta. A água dentro do túnel continuava a ser afetada pela gigantesca força do mar lá embaixo. Não era água estagnada, nem mesmo tranqüila. Subia e em seguida caía com força e ritmo, alcançando dois metros ou mais de altura na caverna, agitava-se e batia, depois recuava rapidamente até alcançar o nível da boca do buraco. Crescendo e transbordando, crescendo e transbordando... O movimento contínuo impedia que a abertura congelasse, e inibia a formação de gelo dentro do túnel.

É claro, depois de algum tempo, talvez dali a dois ou três dias, o túnel ficaria mais estreito. Pouco a pouco, se formaria gelo novo nas paredes, apesar do movimento da maré, até que a passagem se tornasse intransponível ou se fechasse de vez.

Mas eles não precisavam do túnel dali a dois ou três dias. Precisavam dele agora, já.

A Natureza se colocara totalmente contra eles nas últimas 12 horas. Talvez agora estivesse trabalhando a seu favor e disposta a oferecer-lhes um pouco de compaixão.

Sobreviver.

Paris. O Hotel George V.

Moët & Chandon.

O Crazy Horse.

Rita...

Era possível escapar. Em cima da hora.

Harry prendeu uma das lanternas no cinto. Segurando a outra à sua frente, arrastou-se com dificuldade para trás, através do estreito espaço entre o teto da caverna e o fundo do buraco, ávido por fazer sinal aos outros para que descessem e começassem a tortuosa escapada daquela prisão de gelo.

 

11:06

EXPLOSÃO DENTRO DE CINQÜENTA E QUATRO MINUTOS

No posto de comando, Nikita Gorov monitorava uma série de cinco terminais de vídeo instalados no teto. Sem muita dificuldade, controlava os dados - alguns expressos em diagramas dimensionais - fornecidos por diferentes programas que, sem parar, coletavam informações sobre as posições do submarino e do iceberg, condições e velocidades relativas.

- Água livre - disse o técnico que operava o medidor de profundidade. - Nenhum gelo acima.

Gorov manobrara o Ilya Pogodin por baixo da cavidade em forma de disco, de 400 metros de comprimento, no fundo do iceberg. A torre do submarino estava exatamente abaixo do túnel de 12 metros de diâmetro no centro da cavidade. Em verdade, estavam completamente parados embaixo de um funil de gelo invertido e teriam de ficar assim enquanto durasse a operação.

- Velocidade igual à do alvo - disse Zhukov, repetindo a informação recebida da sala de manobras através do fone de ouvido.

Um dos técnicos junto à parede esquerda disse:

- Velocidade igualada e confirmada.

- Mantenha o leme - disse Gorov.

- Leme mantido, senhor.

Sem desviar a atenção, Gorov olhou para os monitores de vídeo, como se se dirigisse a eles e não ao pessoal da sala de controle:

- Fiquem de olho nesse maldito indicador de velocidade.

- Água livre. Nenhum gelo acima.

Uma enorme estrutura de gelo estava acima, é claro, uma enorme ilha, mas não diretamente acima do equipamento medidor de profundidade instalado na torre. Estavam emitindo sons diretamente para o topo do túnel de 12 metros de largura, e o sinal de retorno recebido indicava caminho livre até a superfície, 180 metros acima, onde o túnel acabava no fundo do buraco que o Dr. Carpenter descrevera a Timoshenko.

O comandante hesitou, relutando em agir até que estivesse absolutamente certo de que estavam corretamente posicionados. Estudou as cinco telas por mais meio minuto. Quando se convenceu de que a velocidade do submarino estava praticamente igualada à do iceberg - tanto quanto era humanamente possível estar -, puxou o microfone e disse:

- Comandante para centro de comunicações. Solte a antena, tenente.

A voz de Timoshenko soou no alto-falante:

- Antena solta.

Lá no alto, oito grandes caixas de alumínio, à prova d'água, estavam aninhadas entre os mastros, periscópios e tubos de entrada de ar da torre do Pogodin. Estavam amarradas com várias cordas de náilon de diferentes comprimentos, algumas das quais, como era de se esperar, tinham se rompido durante a segunda descida do submarino a mais de 700 pés.

Quando Timoshenko liberou a antena, um balão de gás hélio foi lançado de um tubo pressurizado no topo da torre, em meio a um enxame de bolhas. Se funcionasse bem-e sempre funcionara -, o balão estaria agora subindo rapidamente no mar escuro, arrastando atrás de si um cabo de multicomunicações. Como barco coletor de informações, o Ilya Pogodin já desenrolara aquele cabo desse mesmo modo milhares de vezes ao longo dos anos.

As oito caixas à prova d'água amarradas no topo da torre, entretanto, não eram normalmente usadas. Estavam presas ao cabo de comunicação por uma fina corrente de liga de titânio com fechos de mola. Quando o balão de hélio estivesse seis metros acima da torre, deveria dar um puxão forte na corrente, e levaria as caixas para o alto, com força suficiente para rebentar os nós do que ainda restasse das cordas de náilon. Como as caixas de alumínio eram flutuantes, subiriam por si mesmas e não precisariam ser puxadas pelo balão.

Em segundos, a esfera de gás hélio chegou a 600 pés, logo em seguida a 550 e depois a 500 - direto em direção à boca do funil invertido acima do submarino. Quatrocentos pés e subindo. As caixas de alumínio já deviam estar a caminho. Trezentos e cinqüenta pés. Desde o início, as bolhas de ar do tubo de pressão deixavam uma trilha atrás do cabo e das caixas, porque o hélio no balão se expandia e subia muito mais rapidamente do que o oxigênio nas bolhas. A aproximadamente 400 pés, o balão entraria suavemente pelo longo túnel e continuaria a subir sem esforço, puxando as caixas mais para cima, mais para cima, mais depressa, mais depressa...

Curvando-se para examinar melhor o gráfico do medidor de profundidade, o operador falou:

- Estou registrando sinais oscilantes dentro do túnel.

- Não é gelo?

- Não. Os sinais estão subindo.

- As caixas.

- Sim, senhor.

- Está dando certo - observou Zhukov.

- Parece que sim - concordou o comandante.

- Se o pessoal da Edgeway tiver localizado a outra ponta do túnel...

- Podemos começar a parte mais difícil - concluiu Gorov por ele.

Números e imagens piscavam, piscavam, piscavam, nos terminais de vídeo.

Finalmente, os alto-falantes chiaram e o tenente Timoshenko falou:

- O cabo subiu. Balão na superfície, senhor. Gorov puxou um microfone, limpou a garganta e disse:

- Desligue o sistema automático, tenente. Desenrole mais uns 20 metros de cabo.

Um instante depois, Timoshenko disse:

- Mais 20 metros de cabo desenrolados, capitão.

Emil Zhukov enxugou a mão no rosto sombrio:

- Agora a longa espera.

Gorov concordou:

- Agora a longa espera.

 

11:10

EXPLOSÃO DENTRO DE CINQÜENTA MINUTOS

O balão de hélio surgiu na ponta de cima do túnel e borbulhou alegremente sobre as ondas. Embora fosse de um opaco azul acinzentado, parecia - pelo menos para Harry - um colorido e brilhante balão de aniversário.

À medida que Timoshenko desenrolava o cabo na outra extremidade, as oito caixas chegavam, uma a uma, à tona. Batiam umas contra as outras, com golpes fracos, quase inaudíveis.

Harry não estava mais sozinho na caverna de teto abaulado. Rita, Brian, Franz, Claude e Roger tinham se juntado a ele. Nesse momento, era George Lin quem chegava ao fundo do buraco, enquanto Pete Johnson começava sua descida, agarrado à corda que o tiraria do topo do iceberg ainda açoitado pela tempestade.

Pegando o gancho que haviam improvisado com pedaços de cano de cobre e seis metros de cabo de alta resistência, Harry disse:

- Vamos lá. Vamos tirar todo esse material de dentro da água.

Com a ajuda de Franz e Roger, conseguiu laçar a corrente e puxar as caixas para fora da água. Os três ficaram molhados até os joelhos nessa operação, e em segundos suas roupas congelaram até a barriga da perna. Embora suas botas e roupas fossem à prova d'água, a imersão, mesmo parcial, tirara todo o calor de seus corpos. Tremendo de frio, rebentaram rapidamente as caixas de alumínio e retiraram o equipamento que fora mandado para cima pelo Ilya Pogodin.

Cada caixa continha um aparelho para respiração embaixo d'água. Não era, entretanto, um equipamento comum. Tinha sido concebido para uso em águas muito profundas e/ou extremamente frias. Cada roupa vinha com um conjunto de baterias preso a uma espécie de cinto, para usar na cintura. Quando ligado à roupa colante, a parte interna fornecia calor, mais ou menos como acontece num cobertor elétrico.

Harry colocou seu próprio equipamento no gelo da margem, bem adiante de onde a maré chegava em suas constantes idas e vindas. Um reservatório de ar comprimido acompanhava cada roupa. A máscara de mergulho era grande, cobria a maior parte do rosto, do queixo à testa, e eliminava a necessidade de usar um respirador na boca. O ar ia diretamente para dentro da máscara, de modo que o mergulhador podia respirar pelo nariz.

Para falar a verdade, eles não respirariam ar. O que havia dentro do reservatório era uma mistura de oxigênio e hélio, com vários aditivos especiais, recomendados para quem precisasse enfrentar grandes profundidades. Mais cedo, pelo rádio, enquanto explicava o equipamento, Timoshenko os tranqüilizara dizendo que a mistura de gases no reservatório permitiria um mergulho a grande profundidade com apenas "razoável grau de perigo" para os sistemas respiratório e circulatório. Harry tinha achado que as palavras do tenente não eram exatamente tranqüilizadoras. Entretanto, a lembrança das 58 cargas de explosivo plástico era argumento suficiente para que confiasse plenamente na tecnologia russa de mergulho.

As roupas de mergulho eram diferentes das tradicionais também em outros detalhes menos importantes. Eram inteiriças: as calças tinham pés, como os pijamas de criança, e as mangas da jaqueta acabavam em luvas. O capuz cobria toda a cabeça e o rosto, que não era, assim, protegido apenas pela máscara, o que confirmava que um centímetro que fosse de pele exposta era suficiente para provocar morte instantânea e extremamente violenta. As roupas à prova d'água pareciam uma versão compacta das incômodas e folgadas vestimentas usadas no espaço pelos astronautas.

George Lin entrara na caverna enquanto os outros abriam as caixas de alumínio. Estudou o equipamento com visível desconfiança.

- Harry, deve haver alguma outra coisa, um outro modo. Tem que haver...

- Não - respondeu Harry, sem sua habitual diplomacia e paciência. - É isso. Isso ou nada. Não temos mais tempo para ficar discutindo, George. Cale a boca e vista-se.

Lin parecia de mau humor.

Mas não parecia um assassino. Não mesmo.

Harry olhou para os outros, que estavam ocupados em tirar os equipamentos de suas próprias caixas. Nenhum parecia um assassino, mas ainda assim um deles golpeara Brian e, por alguma razão maluca qualquer, poderia dar-lhes ainda muito trabalho enquanto estivessem dentro da água, percorrendo o longo túnel de gelo em direção ao fundo.

Erguendo um pouco o traseiro, Pete Johnson se arrastou com dificuldade para fora do estreito espaço que levava à caverna, maldizendo o gelo ao redor. Passara mais apertado que os outros. Seus ombros largos tinham feito com que se espremesse com dificuldade ao longo da parte mais estreita da passagem.

- Vamos nos vestir - disse Harry. Sua voz parecia estranha e profunda, ao ressoar na abóbada do anfiteatro de gelo. - Não temos tempo a perder.

Trocaram seus equipamentos árticos pelas roupas recém-recebidas, com uma pressa que deixava claro seu desconforto e desespero. Harry, Franz e Roger já sofriam as conseqüências de terem ficado com as pernas de molho até os joelhos. Seus pés estavam dormentes, o que não era bom sinal, e da batata da perna até a ponta dos dedos tudo formigava, doía, queimava. Os outros haviam sido poupados desse sofrimento adicional, mas praguejavam e se queixavam amargamente durante o breve período de nudez. Não havia vento na caverna, mas a temperatura da água era talvez de 30 ou mais graus abaixo de zero. Por isso, trocavam em etapas as partes de cima e de baixo das roupas, para não ficarem completamente despidos em momento algum, vulneráveis ao frio mortal. Primeiro, tiraram as botas externas, as botas forradas, as meias, calças e ceroulas, rapidamente substituídas pelas calças colantes e com aquecimento interno. Em seguida, trocaram os casacos, blusões suéteres, camisas e camisetas pela jaqueta e capuz de borracha forrada.

O recato podia ser potencialmente tão mortal quanto a preguiça. Quando Harry levantou os olhos depois de ter vestido as calças de mergulho, viu os seios nus de Rita, enquanto ela lutava para enfiar a jaqueta de borracha. Sua pele estava branco-azulada pelo frio e toda arrepiada. Ela fechou o zíper da jaqueta, percebeu que Harry a observava e piscou o olho.

Ele se encantou com a piscadela. Podia avaliar o medo angustiante que ela devia estar sentindo. Ela não estava apenas no gelo, de novo. Estava dentro dele. Enterrada nele. Seu terror devia ser imenso a essa altura. Antes de descerem pelo túnel até o submarino e estarem a salvo - se, de fato, eles conseguissem fazer a travessia sem morrer -, ela certamente reviveria muitas vezes a morte de seus pais e lembraria de cada terrível detalhe da provação que enfrentara aos seis anos de idade.

Pete estava tendo problemas para entrar na roupa. Perguntou:

- Esses russos são todos pigmeus?

Todos riram.

A piada não tinha sido tão engraçada. O riso fácil indicava quão tensos todos estavam. Harry sentiu que o pânico aflorava em cada um deles.

 

11:15

EXPLOSÃO DENTRO DE QUARENTA E CINCO MINUTOS

O alto-falante trouxe a má notícia que todos na sala de controle esperavam receber do responsável pelos torpedos:

- A divisória está suando de novo, capitão.

Gorov afastou-se da bancada dos monitores de vídeo e puxou um microfone:

- Comandante para a sala de torpedos. É apenas uma película fina, como da última vez?

- Sim, senhor. Mais ou menos a mesma coisa.

- Fique de olho. Emil Zhukov disse:

- Agora que conhecemos a camada de gelo que temos acima de nós, poderíamos subir para 600 pés, em direção à boca do funil.

Gorov sacudiu a cabeça.

- Neste momento, só uma coisa deve nos preocupar: o suor naquela divisória da sala de torpedos. Se subirmos para 600 pés, continuaremos com o problema, e ainda teremos de nos preocupar com o iceberg, que pode de repente entrar numa nova corrente e ser carregado para fora desta.

Se subissem com cuidado pelo menos uns 100 pés dentro da cavidade, para aliviar um pouco a enorme pressão sofrida pelo casco, o Pogodin ficaria praticamente entalado dentro do icebergs, como um feto na barriga da mãe. Caso o iceberg começasse a se mover mais depressa ou mais devagar do que estava se movendo no momento, talvez não percebessem a tempo o que estaria acontecendo. Bateriam no gelo mais fundo à frente da proa, ou seriam batidos por trás, na popa.

- Continue como está - disse Gorov.

 

O caderno era tão terrível que Gunvald sentiu-se constrangido. O conteúdo o chocava, repugnava e enojava, mas assim mesmo não resistia e olhava mais uma página, mais outra, e mais outra ainda. Sentia-se como um animal selvagem que tivesse encontrado um semelhante parcialmente devorado, vítima de um predador. Enfiava o nariz nos restos e farejava ansioso, assustado mas curioso, envergonhado de si mesmo, mas inexplicável e morbidamente fascinado pelo terrível destino que poderia estar reservado a um de seus semelhantes.

Por um lado, o caderno era o diário de um demente, uma crônica do dia-a-dia de uma mente que trafegava entre os limites da sanidade e da loucura - embora seu dono não o considerasse assim. Para esse homem perturbado, poderia parecer um projeto de pesquisa, os registros de uma imaginária conspiração contra os Estados Unidos e contra a democracia em qualquer lugar do mundo. Os recortes de jornais e revistas estavam organizados por data de publicação e presos nas páginas com fita adesiva. Na margem, ao lado de cada recorte, o colecionador escrevera seus comentários.

Os recortes mais antigos pareciam ter sido tirados de várias revistas políticas de circulação limitada, produzidas amadoristicamente nos Estados Unidos tanto por grupos de extrema direita como de extrema esquerda. O homem encontrara, nos dois extremos, combustível para sua paranóia incandescente. Eram as mesmas histórias manjadas de sempre, sem sentido, sempre recheadas de escândalos: o presidente era um consagrado comunista linha-dura - se bem que num outro recorte fosse um consagrado fascista linha-dura, o presidente era um homossexual enrustido, que gostava de garotinhos - ou talvez um devasso para quem dez prostitutas eram contrabandeadas semanalmente para dentro da Casa Branca; o papa era alternadamente um desprezível fanático direitista que apoiava em segredo ditadores do Terceiro Mundo e um maníaco esquerdista que financiava a destruição da democracia e pregava o confisco das riquezas do mundo em benefício dos jesuítas. Em um determinado local, era dito que os Rockefeller e os Mellon eram descendentes de famílias com mentalidade conspiradora, que tentavam governar o mundo desde o século XIV ou talvez desde o século XII ou talvez desde o desaparecimento dos dinossauros. Um recorte dizia que as moças na China eram criadas desde a infância em "fazendas de prostitutas" mantidas pelo governo, e entregues aos 10 anos a políticos ocidentais tarados, em troca de segredos de segurança nacional. Empresários gananciosos estariam poluindo o planeta, tão ávidos por dinheiro que não se importariam nem um pouco se todos os filhotes de foca do mundo fossem exterminados, que faziam móveis para seus jardins com os últimos exemplares de árvores raras, que envenenavam crianças e destruíam o planeta na busca do todo-poderoso dólar. Suas tramas eram tantas e tão complexas, que não poderíamos garantir que nem mesmo nossa própria mãe não estivesse a serviço deles. Seres vindos de outras galáxias estariam tentando dominar o mundo, também, com a nefasta e clandestina cooperação do (escolha um!) Partido Republicano, Partido Democrata, Partido Liberal, judeus, negros, cristãos novos, liberais, conservadores, executivos brancos de meia-idade. O teor dos recortes era de tal tipo que Gunvald não teria se surpreendido se encontrasse um sobre a falsa morte de Elvis Presley para que ele pudesse controlar secretamente, de uma casa subterrânea na Suíça, o sistema bancário internacional.

Com o recorte de jornal da página 24, o caderno se tornava mais terrível e perturbador. Trazia a foto do ex-presidente Dougherty. Acima da foto uma legenda: ASSASSINATO DE DOUGHERTY – DEZ ANOS HOJE. Na margem, com letras vermelhas tremidas mas caprichadas, um desabafo psicótico: Seu cérebro apodreceu. Sua mente não mais existe. Sua boca não pode mais produzir mentiras. Ele foi consumido pelos vermes e fomos poupados de outros filhos que pudesse ter tido. Vi um pôster hoje que dizia: "Não posso convencer um homem de minha verdade simplesmente fazendo-o calar quando tenta dizer sua própria verdade." Mas isso é mentira. A morte convence um homem. E eu acredito que ajude a convencer seus seguidores. Gostaria de tê-lo matado.

Desse ponto em diante, mais e mais espaço do caderno era dedicado à família Dougherty. Na altura da página 100, mais ou menos um terço do caderno, essa se tornara sua única obsessão. Todos os recortes nas duzentas páginas seguintes tratavam do mesmo assunto. Havia colecionado histórias importantes e triviais: um relato sobre um discurso de campanha que o pai de Brian havia feito dois anos antes, uma notícia sobre uma festa-surpresa organizada no aniversário da viúva do ex-presidente, um despacho da UPI sobre as aventuras de Brian numa das tourada em Madri.

Na página 210, havia uma fotografia da família Dougherty, tirada no casamento da irmã de Brian e reproduzida na revista People. Abaixo dela, duas palavras escritas com caneta vermelha: O inimigo.

Na página 230, os últimos vestígios de sanidade desapareciam, dando lugar à manifestação clara da mais completa loucura. O colecionador colara a página de uma revista, uma foto colorida de Emily, a irmã mais velha de Brian. Uma bonita jovem. Nariz arrebitado. Grandes olhos verdes. Um pouquinho de sardas. Cabelos ruivos até os ombros. Olhava para o lado e ria de alguma coisa que alguém tinha dito ou feito fora do alcance da câmera. Com caligrafia caprichada, em torno de seu rosto, as três palavras que enchiam a página até o final de cada margem: porca, vagabunda, verme, porca, vagabunda, verme, porca, vagabunda, verme...

As páginas seguintes eram de fazer arrepiar os cabelos.

Gunvald tentou mais uma vez contato com Harry. Nenhuma resposta. Não conseguia se comunicar com ninguém. A tempestade era sua única companhia.

Pelo amor de Deus, o que estava acontecendo naquele iceberg?

Brian Dougherty e Roger Breskin eram os únicos do grupo que tinham grande experiência em mergulho. Como Brian não era membro oficial da expedição, meramente um observador, Harry não pensou que o rapaz deveria comandar a descida pelo túnel, que poderia ser muito mais perigosa do que eles até agora imaginavam. Por isso, Roger Breskin iria na frente.

Todos seguiriam Roger na ordem estabelecida: Harry em segundo lugar, depois Brian, Rita, George, Claude, Franz e Pete. Muito fora pensado para se estabelecer essa ordem. Brian estaria entre Harry e Rita, as duas únicas pessoas em quem ele podia confiar plenamente. George Lin estava atrás de Rita e poderia ser uma ameaça para ela e Brian. Por causa de sua idade e de seu temperamento expansivo, Claude Jobert parecia o menos suspeito além de Pete, e por isso ficaria atrás de Lin, de onde poderia certamente ver e impedir qualquer coisa errada. Se fosse Franz o culpado, sua possibilidade de atacar Brian seria bastante limitada, porque Pete estaria de olho nele, por trás. Na improvável hipótese de ser Pete Johnson o assassino em potencial, não seria fácil para ele passar por Franz, Claude, Lin e Rita até alcançar Brian.

Enquanto estivessem descendo pela escuridão do túnel cheio de água, a ordem da fila não importaria, porque então tudo poderia acontecer. Felizmente, as caixas de alumínio também carregavam três poderosas lâmpadas de halogênio, próprias para serem usadas embaixo d'água e sob pressão considerável. Roger carregaria uma na frente da procissão; no meio, George Lin levaria outra, e Pete ficaria encarregado da terceira. Se cada membro do grupo mantivesse três metros de distância de quem estivesse à sua frente no caminho de descida, a distância da primeira para a terceira lâmpada seria de aproximadamente 27 metros. Não estariam nadando à plena luz, mas Harry imaginava que a iluminação seria suficiente para impedir um assassinato.

Todas as roupas térmicas impermeáveis tinham um relógio à prova d'água, com um grande mostrador digital luminoso. Harry olhou para o seu quando acabou de se vestir. Onze e dezoito.

Explosão dentro de 42 minutos. Perguntou:

- Prontos para partir?

Todos estavam vestidos, com as máscaras colocadas. Inclusive George Lin.

Harry disse:

- Boa sorte, meus amigos.

Baixou a máscara, procurou no ombro esquerdo o dispositivo que acionava o alimentador de ar do seu reservatório e respirou fundo algumas vezes para se certificar de que o equipamento funcionava bem. Voltou-se para Roger Breskin e fez um sinal positivo com o dedão.

Roger pegou sua lâmpada de halogênio, chapinhou pela borda rasa do poço, hesitou por apenas um segundo e jogou-se de pé para dentro da boca do túnel de 12 metros de diâmetro.

Harry foi o segundo e mergulhou sem respingar tanta água quanto Roger. Embora experiente, esperava que o abraço gelado do mar tirasse seu fôlego, e involuntariamente respirou fundo quando a água fechou-se ao seu redor. Entretanto, o conjunto de baterias e o forro térmico de sua roupa impermeável funcionavam extremamente bem, e não sentiu qualquer mudança de temperatura da caverna para o túnel.

A água estava escura. Milhões de partículas de sujeira, nuvens de minúsculas algas em quantidade suficiente para alimentar um bando de baleias, e contas de gelo refletidas no facho difuso e amarelado da lâmpada à prova d'água. Atrás da luz de halogênio, Roger era um contorno indefinido, completamente preto e misterioso em sua roupa de borracha, como uma sombra que tivesse escapado da pessoa que a projetara, ou como a própria Morte sem sua costumeira foice.

Conforme a orientação, Brian pulou na água em seguida, para impedir um possível atentado contra sua vida depois que Harry e Roger tivessem deixado a caverna.

Roger já começara a se movimentar para baixo, acompanhando o cabo que os conduziria ao Ilya Pogodin.

Harry levantou o punho esquerdo até perto do rosto para olhar, através da máscara, o mostrador digital luminoso de seu relógio: 11:20.

Explosão dentro de 40 minutos.

Seguiu Roger Breskin rumo ao desconhecido.

 

11:22

EXPLOSÃO DENTRO DE TRINTA E OITO MINUTOS

- Responsável pelo rancho para o comandante.

Na sala de controle, Nikita Gorov procurou o microfone:

- Prossiga.

As palavras saíam do alto-falante tão rápidas e atropeladas que se tornavam quase que indecifráveis.

- Temos suor aqui na divisória.

- Qual divisória? - perguntou Gorov, aparentemente calmo, embora seu estômago se contraísse de pavor.

- A estibordo, senhor.

- Muito sério?

- Não muito, senhor. Não por enquanto. É como orvalho, dois metros de comprimento, uns seis centímetros de largura, logo abaixo do teto.

- Alguma indicação de empena?

- Não senhor.

- Mantenha-me informado - disse, sem revelar o quanto estava preocupado. Afastou o microfone.

O técnico que controlava o medidor de profundidade disse:

- Estou detectando bloqueio parcial do buraco, de novo.

- Mergulhadores?

O técnico estudou o gráfico por um momento.

- Sim. Pode ser. Mergulhadores. Todos os sinais indicam movimentos para baixo.

A boa nova tocou a todos. Os homens não estavam menos tensos do que um minuto antes. Entretanto, pela primeira vez em muitas horas, a tensão era acompanhada de um reservado otimismo.

- Sala de torpedos para o comandante.

Gorov disfarçadamente secou as mãos encharcadas nas calças e puxou mais uma vez o microfone.

- Prossiga.

A voz estava controlada, embora demonstrasse um velada ponta de aflição.

- O suor na divisória entre os tubos quatro e cinco está piorando, capitão. Não estou achando nada bom.

- Piorando em que sentido?

- A água está pingando no convés, agora.

- Quanta água? - perguntou Gorov.

O alto-falante chiou enquanto o encarregado dos torpedos avaliava a situação. Então respondeu:

- Uns cinqüenta ou sessenta mililitros.

- Só isso?

- Sim, senhor.

- Alguma empena?

- Nada visível.

- Os rebites?

- Nenhuma distorção na linha de rebites.

- Algum sinal de fadiga do metal?

- Examinamos tudo com um estetoscópio, senhor. Nenhum barulho preocupante, nenhum sinal de fadiga, apenas o normal.

- Por que então você parece tão preocupado? - perguntou Gorov, indo direto ao fundo da questão.

O oficial de torpedos não respondeu imediatamente, mas por fim disse:

- Bem, senhor, quando a gente põe a mão contra o aço... há uma vibração estranha.

- Vibração do motor.

A resposta do oficial da sala de torpedos veio pelo alto-falante:

- Não, senhor. É outra coisa. Não sei exatamente o que é. Mas é alguma coisa que nunca senti antes. Eu acho...

- O quê?

- Senhor?

- O que você acha? - perguntou Gorov. - Fale logo. O que você acha que sente quando põe a mão sobre o aço?

- Pressão.

Gorov tinha certeza de que a tripulação da sala de controle já perdera seu contido otimismo.

- Pressão? Não se pode sentir pressão através do aço. Sugiro que você controle sua imaginação. Não há razão para pânico. Apenas fique de olho.

O oficial, evidentemente, esperara uma reação diferente. Abatido, respondeu:

- Sim, senhor.

O rosto lupino de Zhukov estava desfigurado pelo medo e também pela dúvida e pela raiva, um mosaico de emoções desanimadoramente distintas e visíveis. Um primeiro-oficial precisava se controlar melhor, se quisesse se tornar um comandante. Falou tão suavemente que Gorov teve dificuldade em ouvir:

- Um buraquinho do tamanho de um alfinete, uma rachadura tão fina quanto um fio de cabelo no casco de pressão, e o submarino vai se despedaçar.

Pura verdade. E poderia acontecer numa fração de segundo. Tudo estaria acabado antes mesmo que tivessem tempo de perceber que tinha começado. Pelo menos, a morte seria misericordiosamente rápida.

- Vai dar tudo certo - insistiu Gorov.

Viu nos olhos do primeiro-oficial o conflito de lealdades, e se perguntou se não estaria errado. Pensou se não seria melhor levar o Pogodin algumas dezenas de pés para cima, para aliviar a pressão no casco, abandonando assim os cientistas da Edgeway.

Pensou em Nikki.

Era um juiz muito severo de si mesmo e por isso considerou a possibilidade de que o salvamento da expedição Edgeway tivesse se tornado uma obsessão, um ato de redenção pessoal, que não estava ligado aos interesses de sua tripulação. Se esse fosse o caso, teria perdido o autocontrole e não estaria mais em condições de comandar.

Vamos todos morrer por minha causa?, se perguntou.

 

11:27

EXPLOSÃO DENTRO DE TRINTA E TRÊS MINUTOS

A descida pelo cabo de comunicação provou ser muito mais difícil e exaustiva do que Harry Carpenter previra. Ele não tinha sequer uma fração da experiência de Brian e Roger na água, embora tivesse usado equipamento de mergulho em várias ocasiões ao longo dos anos e pensasse que sabia tudo o que poderia acontecer. Tinha falhado ao não levar em consideração que um mergulhador passa a maior parte de seu tempo nadando mais ou menos paralelamente ao fundo do oceano; a descida com a cabeça para a frente naquele túnel de 200 metros era perpendicular ao leito do mar, o que descobriu ser muito cansativo. Inexplicavelmente cansativo, na verdade, porque não havia razão física para ser tão mais difícil do que qualquer mergulho anterior seu. Em qualquer ângulo que nadasse, ficava praticamente sem peso embaixo d'água, e as nadadeiras eram tão úteis quanto teriam sido se estivesse nadando paralelamente ao fundo do mar. Suspeitava que seu cansaço inexplicável fosse principalmente psicológico, mas não conseguia se livrar dele. Apesar dos pesos de chumbo da roupa, parecia que lutava constantemente contra a tendência natural a boiar. Seus braços doíam. O sangue martelava em suas têmporas e por trás dos olhos. Logo percebeu que teria de parar periodicamente, trocar de posição e colocar a cabeça para cima, para retomar o equilíbrio. Caso contrário, apesar de o cansaço e a crescente desorientação serem, sem dúvida alguma, unicamente psicológicos, ele apagaria.

Liderando o grupo, Roger Breskin parecia avançar sem grande esforço. Deslizava a mão esquerda pelo cabo de comunicação enquanto descia, segurava a lâmpada na direita, e confiava inteiramente em suas pernas para impulsioná-lo, movendo-as suavemente. Sua técnica não era substancialmente diferente da de Harry, mas ele levava vantagem nos músculos, construídos através de constantes e puxados exercícios com pesos.

Enquanto sentia os ombros estalarem, aparte de trás do pescoço doer, e novas ondas de dor percorrerem seus braços, Harry pensou que deveria ter gasto tantas horas em academias quanto Roger nos últimos 20 anos.

Olhou por cima do ombro para ver se Brian e Rita estavam bem. O rapaz o seguia a uma distância de uns três metros, e mal podia vê-lo através da máscara de mergulho. As bolhas que saíam do escape do equipamento de Brian pareciam por um instante pintadas de dourado pela água lançada para trás pela lâmpada de Roger, mas desapareciam em seguida na escuridão acima deles. Apesar de tudo o que tinha passado nas últimas horas, parecia não estar tendo dificuldade em prosseguir.

Atrás de Brian, Rita mal podia ser vista, fracamente iluminada pela lâmpada que George Lin carregava, atrás dela. Os jatos de luz amarelados desafiavam a água turva, sinistramente iluminada, contra a qual Rita era apenas uma sombra ondulante, às vezes tão indefinida e estranha que não parecia humana, mas um ser desconhecido dos mares polares. Harry não podia ver seu rosto, mas sabia que seu sofrimento psicológico, pelo menos, devia ser grande.

Criofobia: medo do gelo.

A água gelada do túnel era tão escura que parecia ter sido tingida com nuvens de tinta de lulas, espessa de tantas algas, pedacinhos de gelo e partículas inorgânicas. Rita não conseguia ver o gelo que estava a apenas seis metros dela em todas as direções, mas continuava plenamente consciente de sua proximidade. Às vezes, o medo era tão grande que seu peito inchava, a garganta se apertava e ela não conseguia respirar. Cada vez, entretanto, que chegava à beira do pânico cego, conseguia se controlar, respirava a mistura de gases com gosto metálico do reservatório de ar e escapava da histeria.

Frigofobia: medo do frio. Ela não sentia nenhum frio com a roupa impermeável russa. Na verdade, estava mais aquecida agora do que em qualquer momento nos últimos meses, desde que tinham vindo para a calota polar e instalado a Estação Edgeway. Entretanto, estava absolutamente ciente do frio mortal da água, consciente de estar separada dela apenas por uma fina camada de borracha e por um forro aquecido eletricamente. A tecnologia russa era impressionante, mas se as baterias na sua cintura acabassem antes que ela chegasse ao submarino lá embaixo, o calor de seu corpo iria rapidamente embora. O intenso frio do mar penetraria fundo em seus músculos, em sua medula, torturando seu corpo e entorpecendo sua mente...

Para baixo, sempre para baixo. Envolta no frio que não podia sentir. Cercada pelo gelo que não podia ver. Paredes brancas e curvas fora do alcance de sua vista à esquerda, à direita, acima e abaixo. Cercando-a e encurralando-a. Túnel de gelo. Prisão de gelo. Inundado de escuridão e frio cortante. Silencioso, a não ser pelo sussurro de sua respiração e pelo tum-tum-tum de seu coração, Inescapável. Mais profundo que um túmulo.

Enquanto nadava rumo as profundezas desconhecidas, Rita, às vezes, tinha mais consciência da luz à frente dela do que em outras ocasiões, porque estava repetidamente recordando o inverno em que tinha apenas seis anos.

Alegre. Excitada. A caminho de sua primeira temporada de esqui com o pai e a mãe, experientes nas pistas e ansiosos por ensiná-la. O carro é um Audi. Seus pais sentam na frente, ela está sentada sozinha atrás. Subindo por um reino cada vez mais branco e fantástico. Uma estrada sinuosa nos Alpes franceses. Um mundo encantado de alabastro em torno deles, acima deles, ampla visão de florestas sempre verdes coroadas de neve, penhascos rochosos parecendo rostos envelhecidos de deuses vigilantes com barbas de gelo. Gordos flocos brancos começam subitamente a cair em espiral do céu cinza-escuro. Ela é uma criança da Itália mediterrânea, do sol, dos bosques de oliveiras e do oceano ensolarado, e nunca tinha estado na montanha. Agora seu coração jovem bate forte pela aventura. É tudo tão bonito: a neve, as subidas íngremes, os vales cobertos de árvores e sombras avermelhadas, salpicados com pequenas cidadezinhas. E, mesmo quando chega subitamente, a Morte tem uma terrível beleza, vestida resplandecentemente de branco. Sua mãe percebe a avalanche primeiro, à direita da estrada, bem acima, e grita dando o alarme. Rita olha pela janela lateral, vê a avalanche branca no alto da montanha, deslizando, crescendo rapidamente, como uma onda que, durante uma tempestade, varre o oceano em direção à costa, empurrando nuvens de neve, silenciosa no início, tão branca e silenciosa que ela mal pode acreditar que possa lhes fazer mal. Seu pai diz: "Conseguiremos escapar", e parece assustado, pois aperta o pé no acelerador, e sua mãe diz: "Rápido, pelo amor de Deus, rápido", e ela vem na direção deles, silenciosa e imensa e fascinante e maior a cada segundo... silenciosa... então, um barulho fraco como um trovão distante...

Rita ouviu sons estranhos. Vozes abafadas e distantes. Gritos ou súplicas. Como fracos lamentos de almas penadas que querem deixar de sofrer, e pedem, para isso, ajuda do além.

Compreendeu nesse momento que se tratava de uma única voz. A sua. Estava gritando, em pânico, dentro da máscara que lhe cobria o rosto, mas como seus ouvidos não ficavam dentro da máscara, ouvia seus próprios gritos apenas pela vibração deles através dos ossos do rosto. Se soavam como lamentos de almas penadas era porque, naquele momento, o inferno estava dentro dela, um pedaço escuro em seu próprio coração.

Olhou por sobre Brian e se concentrou desesperadamente no contorno da sombra distante, ao longo do cabo: Harry. Ele mal era visível na água turva, movimentando as nadadeiras em direção ao vazio escuro, tão perto e ainda assim tão longe. Três ou quatro metros separavam Rita de Brian; mais um 1,80m do rapaz, e talvez mais uns três metros entre ele e Harry: 10 ou 12 metros no total, separando-a do marido. Parecia um quilômetro. Se continuasse pensando em Harry e nos bons momentos que passariam juntos quando acabasse a provação, conseguiria parar de gritar dentro de sua máscara, e continuaria a nadar. Paris. O Hotel George V. Uma garrafa de fino champanhe. Seus beijos. Seus carinhos. Partilhariam tudo isso de novo, se ela conseguisse evitar que o pânico a dominasse.

 

Harry deu uma olhada para trás, em direção a Rita. Ela ainda estava onde deveria estar, atrás de Brian, acompanhando o cabo de comunicação.

Olhando novamente para a frente, ele disse para si mesmo que estava se preocupando exageradamente com ela. De um modo geral, as mulheres têm mais resistência do que os homens. Se isso era verdade, era especialmente verdade no caso desta mulher.

Sorriu para si mesmo e disse: "Agüente firme!", como se ela pudesse ouvi-lo.

Adiante de Harry, quando estavam a talvez uns 50 metros túnel abaixo, Roger Breskin finalmente parou para descansar um pouco. Deu uma cambalhota como se estivesse participando de um bale aquático e girou o corpo até que pôde olhar Harry de uma posição mais natural: cabeça para cima, pés para baixo.

Cinco metros atrás de Roger, Harry também parou, e estava pronto para dar sua própria cambalhota quando a lâmpada de halogênio de Roger apagou. Duas lâmpadas ainda iluminavam o caminho atrás de Harry, mas a luz era muito difusa por causa da água turva, e não chegava até ele ou Roger. A escuridão o envolveu.

Um instante depois, Breskin chocou-se com ele. Harry não conseguiu segurar-se no cabo. Os dois rolaram para longe na escuridão, em direção à parede do túnel, e por um instante Harry não compreendeu o que estava acontecendo. Então sentiu uma mão apertando sua garganta e soube que estava em perigo. Atracou-se com Breskin, pondo toda a sua força nos golpes, mas a água absorvia a energia de seus socos e os transformava em tapinhas de brinquedo.

As mãos de Breskin continuavam apertando firme a garganta de Harry. Ele tentou jogar a cabeça para o lado, voltar, mas não conseguia escapar. O levantador de pesos tinha mão de ferro.

Breskin deu uma joelhada no estômago de Harry, mas a água não o ajudou, suavizando e amortecendo o golpe.

Mais cedo e com mais violência do que esperava, as costas de Harry chocaram-se contra a parede do túnel, e uma dor violenta percorreu-lhe a espinha. O homenzarrão o encurralara contra o gelo.

As duas lâmpadas de halogênio restantes - uma carregada por George, a outra por Pete - estavam longe, lá em cima, a uns seis metros mais para o centro do túnel, como luzes fantasmagóricas vagando pela água turva. Harry estava praticamente cego. Mesmo a curta distância, não conseguia ver seu agressor.

A mão que lhe apertava a garganta subiu um pouco, até o queixo, e arrancou sua máscara.

Com aquele golpe estratégico, Harry não conseguia respirar e perdia o pouco de visão que lhe restava, além de ficar exposto ao frio mortal da água. Desamparado, desorientado, não era mais uma ameaça para Breskin, que o largou.

O frio era como um punhado de unhas arranhando com violência seu rosto, e o calor do corpo parecia escapar como líquido quente que vazasse pelos ferimentos.

Apavorado, à beira do pânico, mas consciente de que o pânico o levaria à morte, Harry debateu-se na água, tateando atrás de si à procura da preciosa máscara, que flutuava na outra ponta da mangueira de ar.

 

Um segundo depois de a lâmpada ter-se apagado na frente da procissão, Rita se deu conta do que acontecia: fora Breskin quem tentara matar Brian Dougherty. E um segundo depois, percebeu o que teria de fazer.

Embora não conseguisse enxergar Harry ou Breskin na escuridão abaixo dela, tinha certeza de que os dois travavam uma luta mortal. Apesar de ser muito forte, Harry teria poucas chances enfrentando um mergulhador experiente. Rita pensou em ajudá-lo, mas logo viu que era uma idéia maluca e desistiu. Emocionalmente, queria ir até Harry, mas não podia perder o controle de suas emoções, caso contrário, eles poderiam morrer todos. Se Harry não era adversário para Breskin, muito menos ela. A melhor coisa que podia fazer era torcer para que Harry conseguisse sobreviver, de um jeito ou de outro; enquanto isso, ela se afastaria do cabo na escuridão, à espera da oportunidade de vir por trás de Breskin quando ele tentasse pegar Brian.

Ela soltou o cabo e nadou para longe da luz âmbar da lâmpada de George, atrás dela, que deixava sua silhueta visível para Breskin. Rezando para que George não a seguisse, logo chegou até a parede do túnel, a curva e lisa parede de... gelo.

O ruído se torna um barulho ensurdecedor, e de novo seu pai diz: "Nós vamos conseguir escapar", mas suas palavras são agora mais uma prece do que uma promessa. A grande parede branca desce mais e mais e mais, e sua mãe grita...

Rita sacudiu o passado e tentou vencer o medo do gelo à sua frente. A parede não cairia em cima dela. Era sólida, com muitos metros de espessura, e, até que os pacotes de explosivo detonassem à meia-noite, não haveria pressão capaz de fazer a parede rebentar.

Deu meia-volta, apoiou as costas contra a parede e viu o cabo se movimentando. Resistiu à firme pressão para baixo que fazia o Peso de seu cinto, mexendo os pés na água e firmando uma mão com força contra o gelo ao seu lado.

O gelo não era um ser vivo, nem tinha consciência. Ela sabia disso muito bem. Ainda assim, tinha a impressão de que ele a queria. Podia sentir seu desejo, sua ânsia, sua convicção de que ela lhe pertencia. Não se surpreenderia se uma enorme boca se abrisse na parede abaixo de sua mão e a arrancasse até a altura do pulso ou se uma maior ainda a engolisse por inteiro.

Sentiu gosto de sangue. Lutava tão desesperadamente para escapar do pânico que mordera o lábio inferior.

O gosto de sal e de cobre - e a dor - desanuviaram sua mente e a fizeram pensar no perigo real que a ameaçava.

No centro do túnel, Roger Breskin surgira da escuridão profunda e estava agora iluminado pela luz fraca da lâmpada de George Lin.

Harry desaparecera no abismo, que subitamente parecia conduzir não somente a milhares de metros abaixo, mas à eternidade.

Breskin foi direto para Brian.

Brian recém-começara a entender realmente o que estava acontecendo. Não seria capaz de mover-se tão rapidamente a ponto de escapar de Breskin, ainda que também fosse um mergulhador experiente.

Rita pegou impulso contra a parede e nadou por trás do agressor, desejando que tivesse uma arma, torcendo para que o elemento surpresa lhe desse a vantagem de que necessitava.

 

Quando Brian viu Roger Breskin surgir como um tubarão da profundeza escura, lembrou de uma conversa que haviam tido mais cedo naquele dia, logo depois de terem resgatado George do abismo em que caíra. Brian tinha sido içado de volta ao topo do iceberg, tremendo, fraco, mas aliviado:

Inacreditável.

Do que você está falando?

Eu não esperava conseguir.

Não confiava em mim?

Não é isso. Achei que a corda iria romper ou a ribanceira desabar ou algo assim.

Você vai acabar morrendo. Mas este não era o lugar. E esta não era a hora.

Brian pensara que Roger estivesse sendo filosófico demais. Agora compreendia que ele tinha feito uma ameaça velada, uma impiedosa promessa de violência.

Talvez Breskin não tivesse desejado que George se tornasse uma testemunha, ou talvez não o tivesse golpeado antes por outras inexplicáveis e insanas razões que só ele conhecia. Desta vez, ele tinha mais de uma testemunha, mas parecia não se importar.

Enquanto recordava a conversa, Brian tentou afastar-se de Breskin e ir em direção à parede do túnel, mas os dois se chocaram e rolaram juntos para dentro da escuridão. As poderosas pernas de Breskin enlaçaram Brian, como se fossem as pinças de um caranguejo. Em seguida, uma mão na sua garganta. Na sua máscara. Não!

 

George Lin pensou que os mergulhadores russos do submarino os estivessem atacando.

Desde o momento em que os russos haviam se oferecido para ajudá-los, George sabia que eles tinham algum truque em mente. Tentara descobrir qual poderia ser, mas não pensara nisto: um assassinato à traição, no fundo do túnel. Por que se dariam ao trabalho de matar um grupo de cientistas ocidentais que já estavam condenados a explodir em pedaços ou a serem arremessados no frio mortal do mar, à meia-noite? Isso não tinha sentido, parecia uma loucura, mas por outro lado ele sabia que nada do que os comunistas haviam feito até então tinha sentido, em lugar nenhum do mundo, nem na Rússia, nem na China ou onde quer que fosse, nem uma única vez durante seu reinado de terror. Sua ideologia era tão-somente uma louca e ilimitada fome de poder; política e culto religioso estavam dissociados da moralidade e da razão, e sua violência sanguinária e crueldade sem fim jamais poderiam ser analisadas e compreendidas por alguém que não tivesse as mesmas doidas convicções.

Preferiria nadar direto para o topo do túnel, chegar à beira do poço, voltar para cima do iceberg, encontrar um local onde apoiar-se e esperar que a explosão da meia-noite o rebentasse em pedaços, pois essa seria uma morte mais limpa do que nas mãos daquela gente. Mas não conseguia se mover. Sua mão esquerda estava enrolada com tanta força no cabo que parecia estar soldada a ele. Com a mão direita, segurava a lâmpada de halogênio tão firmemente que seus dedos doíam.

Achou que morreria como sua irmã morrera. Como sua mãe morrera. Como seu avô e sua avó morreram. O passado surgia para dominar o presente.

Tinha sido tolo ao acreditar que escapara do terror de sua infância. Afinal de contas, nenhum cordeiro consegue escapar do açougueiro.

 

A mangueira de ar oscilava ao lado da cabeça de Harry, com a máscara de mergulho presa em sua ponta, flutuando acima dele. Ele puxou a máscara para baixo e a apertou contra o rosto. Estava cheia de água e ele não ousou respirar imediatamente, ainda que seus pulmões estivessem em fogo. Quando ergueu um canto da borda de borracha, o influxo da mistura de oxigênio e hélio fez a água sair por trás do visor de plexiglas, e, quando toda a água tinha saído, fixou de novo o canto e respirou fundo, e de novo, e ainda mais uma vez, ofegando, se engasgando e suspirando aliviado. O leve e estranho cheiro, e também o gosto do gás, eram mais deliciosos do que tudo o que já comera ou bebera em sua vida inteira.

Seu peito estava dolorido, seus olhos queimavam e sua cabeça doía tanto que parecia que ia explodir. Queria apenas ficar onde estava, suspenso no mar tenebroso, recuperando-se do ataque. Mas pensou em Rita, e movimentou as nadadeiras em direção às duas lâmpadas remanescentes e ao turbilhão de sombras.

 

Brian segurou o pulso esquerdo de Breskin com as duas mãos e tentou se livrar da mão de aço que prendia seu rosto, mas não conseguiu. A máscara de mergulho foi arrancada.

O mar estava mais frio do que o ponto de congelamento normal da água, mas ainda não tinha se transformado em gelo por causa do sal. Quando esguichou em seu rosto, o choque foi quase tão doloroso quanto o de uma tocha acesa que tivesse encostado em sua pele.

Mesmo assim, Brian reagiu com tanta calma que ele mesmo se surpreendeu. Fechou bem os olhos antes que a água gelada queimasse os tecidos dos globos oculares, cerrou os dentes e procurou não respirar, nem pela boca nem pelo nariz.

Não suportaria por muito tempo. Um minuto. Um minuto e meio. Depois respiraria involuntariamente, espasmodicamente...

Breskin firmou as pernas na cintura de Brian, enfiou os dedos revestidos de borracha entre os lábios comprimidos de Brian e tentou forçá-lo a abrir a boca.

 

Rita nadava por trás e acima de Roger Breskin, sob a luz fria da lâmpada de mão de George. Deslizou para as costas de Breskin e colocou as longas pernas em torno de sua cintura, como ele fizera com Brian.

Com os reflexos mais aguçados que entorpecidos pelo acesso de loucura, Breskin soltou Brian e prendeu Rita pelos tornozelos.

Ela sentiu como se estivesse montando um cavalo selvagem. Ele esperneava, pinoteava, uma fera potente, mas ela o prendia com suas coxas e procurava agarrar sua máscara.

Percebendo seu intento, Breskin, insano mas nada burro, soltou seus tornozelos e segurou seus pulsos, no momento em que ela conseguiu tocar a borda do visor de sua máscara. Ele se curvou para a frente, movimentou vigorosamente as nadadeiras, deu uma cambalhota. Virando-se na água, conseguiu arrancar as mãos dela de seu rosto, e, usando a dinâmica do mar para conseguir um impulso que ela não conseguiria igualar, empurrou-a para longe. Ela movimentou as nadadeiras o mais rápido que pôde, na esperança de alcançar o filho-da-puta daquele maluco, mas em vão.

Quando se orientou outra vez, viu que Pete e Franz haviam agarrado Breskin. Franz lutava para manter seu pulso preso enquanto Pete tentava prender pelo menos um dos braços do homem transtornado.

Breskin, entretanto, era um mergulhador experiente, e eles não. Eram lentos, desajeitados, atrapalhados pela física que tirava a gravidade do local em que lutavam, enquanto Breskin se movimentava como uma enguia, ágil, veloz e assustadoramente forte, sentindo-se em casa no fundo do mar. Conseguiu livrar-se dos dois, deu uma cotovelada no rosto de Pete, arrancou sua máscara e o empurrou contra Franz.

Brian estava junto do cabo, três metros abaixo de George Lin. Claude estava com ele. O francês segurava a lâmpada de Pete com uma mão e com a outra escorava Brian, enquanto ele tirava a água de dentro de sua máscara.

Distanciando-se de Pete e Franz, que caíram desajeitadamente, Breskin partiu de novo em direção a Brian.

Com o canto do olho, Rita percebeu o movimento, girou a cabeça e viu Harry surgir de sob a escuridão.

Harry sabia que Breskin não o tinha visto. Certo de que havia temporariamente batido todos os oponentes, o homenzarrão afastou-se de Pete e Franz, bateu as nadadeiras com toda a força muscular de suas pernas e foi direto para a sua presa preferida. Sem dúvida, ele sabia que podia livrar-se rapidamente de um homem da idade de Claude, e depois voltaria para acabar com Brian, antes que este tivesse condições de recuperar sua máscara e, com ela, a capacidade de respirar.

Surgindo por debaixo de Breskin, Harry poderia ter ido de encontro a ele na esperança de desviá-lo de Brian. Em vez disso nadou para o lado, passou perto do homem enfurecido e agarrou a mangueira de ar que conectava a máscara ao reservatório pressurizado, às suas costas. Harry movimentou de novo com força as nadadeiras, conseguiu subir e arrancou a mangueira do grampo que a fixava à válvula de alimentação na parte de cima do reservatório Como ele e Breskin se moviam em direções opostas, a mangueira também se desprendeu da máscara de mergulho.

 

A água gelada não entrou pela junção da máscara quando a mangueira foi arrancada. Devia haver um dispositivo de segurança, uma válvula de fechamento automático.

Ele tateou à procura da mangueira, mas compreendeu que ela fora arrancada não apenas da máscara, mas do reservatório às suas costas. Ela se fora e não poderia ser recolocada.

Alarmado, fechou as pernas como uma tesoura e procurou a boca do túnel tão depressa quanto pôde. Sua única esperança era alcançar a superfície.

Lembrou-se então de que o poço na caverna de gelo com teto abaulado estava a mais de 50 metros acima dele, longe demais para ser alcançado com o cinto de pesos que o puxava para baixo. Apalpou então a cintura, tentando livrar-se do pesado chumbo. Não encontrou o fecho onde pensou que ele estivesse, porque o maldito cinto fora feito pelos russos, e ele nunca havia usado equipamento nisso.

Roger parou de movimentar as nadadeiras para se concentrar na procura do fecho do cinto. Imediatamente, começou a afundar devagar túnel adentro. Apalpou, puxou, virou o cinto, mas ainda assim não conseguia encontrar o fecho, Jesus, meu Jesus, Deus Todo-poderoso, ainda não conseguia encontrar o fecho, até que, finalmente, percebeu que havia perdido muito tempo, não se atreveria a desperdiçar nem mais um segundo, teria de chegar à superfície, mesmo com o pesado cinto. Com os braços estendidos junto do corpo, tentando ser tão liso quanto uma flecha, para criar o mínimo possível de resistência à água, movimentou as nadadeiras suavemente, ritmadamente e lutou para subir, subir. Seu peito doía seu coração martelava como se fosse estourar e ele não conseguia mais suportar a necessidade de respirar. Abriu a boca, exalou com força e respirou desesperadamente, mas não havia o que respirar a não ser o escasso ar que há pouco havia soltado, que estava ainda mais fraco na segunda vez que exalou. Seus pulmões estavam queimando, e ele sabia que a escuridão ao seu redor não era mais a do túnel, mas uma escuridão atrás de seus olhos. Perderia a consciência se não respirasse, e, se desfalecesse, morreria. Então arrancou a máscara e respirou fundo o ar da caverna de teto abaulado, só que não estava sequer perto da caverna, é claro - como ele pensava ter alcançado a superfície, como podia ser tão idiota? -, e inalou a água excessivamente fria, que provocou uma dor aguda em seus dentes. Fechou a boca, engasgou violentamente, mas logo tentou respirar de novo. Só havia mais, mais água, água, nada além de água. Debateu-se na água com as duas mãos, como se ela fosse uma fina cortina que ele pudesse rasgar para obter um pouco do abençoado ar que estaria do outro lado. Compreendeu então que não movimentava mais as nadadeiras, que estava afundando com o peso do cinto. Tampouco continuava a se debater, apenas afundava mais e mais, ofegante, e parecia ter mais pesos de chumbo dentro do peito do que ao redor da cintura...

Viu que a Morte não tinha a aparência de um esqueleto nem o rosto de um homem. Era uma mulher. Pálida, de queixo grande. Tinha uma certa beleza. Seus olhos eram de um belo e luminoso cinza. Roger examinou esse rosto que subia na água à sua frente, e compreendeu que era o de sua mãe, com quem havia aprendido tanto, em cujos braços havia ouvido pela primeira vez lhe dizerem que o mundo era um lugar hostil e que pessoas excepcionalmente más governam secretamente os homens e as mulheres comuns, através de bem tramadas conspirações, com o único intuito de esmagar o espírito de liberdade de quem os desafia. E agora, embora Roger tivesse se tornado forte o suficiente para se defender, caso esses conspiradores o atacassem, embora tivesse se dedicado aos estudos e obtido dois diplomas para ter sabedoria suficiente para sobrepujá-los, eles, de qualquer modo, o haviam esmagado. Tinham vencido, exatamente como sua mãe lhe havia dito que aconteceria, exatamente do mesmo modo como sempre venceram. Entretanto, perder não era tão horrível assim. Havia paz na perda. A Morte lhe sorria, com seus cabelos grisalhos, seus olhos cor de cinza, e ele queria beijá-la, e ela o envolveu num abraço maternal.

 

Harry viu quando o corpo - com os pulmões cheios de água e pesado por causa do chumbo - passou por eles a caminho do fundo do mar. Bolhas de ar esguichavam do reservatório às suas costas.

 

11:37

EXPLOSÃO DENTRO DE VINTE E TRÊS MINUTOS

A tensão aguçara a mente de Nikita Gorov e o forçara a enfrentar uma desagradável mas inegável verdade. Tolos e heróis - percebia agora - estavam separados por uma linha muito tênue, próxima ao invisível. Havia feito questão de tornar-se herói. Para quê? Para quem? Para um filho morto? Heroísmo não mudaria o passado. Nikki estava morto e sepultado. Morto! E a tripulação do Ilya Pogodin - os 79 homens sob seu comando - estava muito viva. Ele era responsável por esses homens. Não havia desculpa para ter arriscado suas vidas apenas porque, de um modo estranho, quisera compensar a morte de seu filho. Havia pretendido ser herói, mas havia sido apenas tolo.

Agora não importava mais o perigo, não importava o que ele deveria ter feito. O que importava é que estavam em missão de salvamento. Não poderiam abandoná-la, agora que tudo estava dando certo. Não, a não ser que aquelas duas divisórias porejantes começassem a dar sinal de deterioração da estrutura do submarino. Levara seus homens até ali, e cabia a ele agora tirá-los dali, de modo a salvar sua pele sem os humilhar. Homens com aquela coragem não mereciam ser humilhados pelo fracasso dele, mas certamente se sentiriam pior ainda se virassem as costas agora e corressem, sem uma boa razão para isso. Ele tinha bancado o herói, mas agora tudo o que desejava era que eles se tornassem heróis perante os olhos do mundo, e que voltassem para casa sãos e salvos.

- Alguma mudança? - perguntou ao jovem técnico que lia o medidor de profundidade.

- Não, senhor. Os mergulhadores estão estacionados. Não desceram um centímetro sequer nos últimos minutos.

O comandante olhou para o teto, como se pudesse enxergar através do casco duplo e adiante ainda, até o topo do longo túnel. O que estariam fazendo lá em cima? O que teria dado errado?

- Será que eles não percebem que não há tempo a perder?-disse Zhukov. - Quando os explosivos estraçalharem esse iceberg àmeia-noite, temos que estar longe do fundo dele. Temos que estar!

Gorov examinou os monitores de vídeo. Olhou o relógio. Alisou a barba e disse:

- Se não começarem a se mexer dentro de cinco minutos, teremos que sair daqui. Um minuto a mais e não estarão a bordo antes da meia-noite, de qualquer maneira.

 

11:38.

Rita nadou até Claude e o abraçou. Ele correspondeu ao abraço. Os olhos dela brilhavam com lágrimas.

Encostaram o visor de uma máscara de mergulho contra o outro. Quando ela falou, parecia que estava em outra sala. O material do qual era feito o visor conduzia suas vozes bastante bem.

- Brian não caiu esta noite - contou ela. - Ele foi agredido, Podia ter morrido. Não sabíamos quem havia feito aquilo. Até agora.

Quando Rita concluiu, Claude disse:

- Fico me perguntando: por quê...? Eu queria ajudar a dominá-lo, mas Pete enfiou a lâmpada dele na minha mão, e me tirou do caminho. De repente, me sinto o velho que realmente sou.

- Você não tem sequer 60 anos.

- Então eu me sinto mais velho do que realmente sou.

- Vamos continuar a descer. Vou devolver a lâmpada a Pete - disse ela.

- Ele está bem?

- Está. Só o nariz sangrou um pouco quando a mascam foi arrancada de sua cabeça. Vai ficar bom.

- Alguma coisa não vai bem com George.

- Está chocado, eu acho. Harry está contando para ele sobre Roger.

- Você está com o rosto molhado de lágrimas - disse Claude.

- Eu sei.

- O que houve de errado?

- Nada - respondeu ela. - Harry está vivo.

 

11:39.

Enquanto seguia mais uma vez Claude Jobert ao longo do cabo, Franz pensava sobre o que diria à Rita, se chegassem ao outro lado da meia-noite.

Você se saiu muito bem. Você é demais. Você sabe, já te amei. Com os diabos, ainda te amo! Nunca consegui te esquecer. E aprendi uma porção de coisas com você, acredite ou não. Ainda sou um babaca, sim, eu concordo, mas aos poucos estou crescendo. É difícil abandonar velhas atitudes. Tenho agido como um completo idiota nos últimos meses, puxando briga com Harry e distante com você. Mas isso acabou. Sei que nunca mais voltaremos a ser amantes. Vejo o que você e Harry têm em comum, e isto é só de vocês, é muito mais do que você e eu tivemos ou poderíamos vir a ter. Mas gostaria que fôssemos amigos.

Pediu a Deus para viver o suficiente para dizer tudo isso.

 

11:40.

Brian nadou em direção ao fundo acompanhando o cabo.

Não estava muito preocupado com o tique-taque das bombas lá em cima. Cada vez se convencia mais de que ele e os outros chegariam a tempo ao submarino e sobreviveriam às explosões. O que mais o preocupava agora era o livro que pretendia escrever.

O tema seria com certeza o heroísmo. Chegara à conclusão de que havia duas formas básicas de heroísmo. O voluntário, como quando alguém escala uma montanha ou desafia um touro numa arena de Madri - e, uma vez que o homem precisa conhecer seus limites, a busca desse heroísmo era importante. Muito menos importante, entretanto, do que o heroísmo involuntário. Harry, Rita e os outros tinham dedicado suas vidas ao trabalho, porque acreditavam que estavam contribuindo para melhorar a condição humana, não porque quisessem testar-se. Além disso, ainda que quisessem negar, eram heróis todos os dias da semana. Eram heróis do mesmo modo que os policiais e os bombeiros eram heróis; do mesmo modo que milhões de pais e mães eram também silenciosos heróis, ao assumirem a enorme responsabilidade de manter suas famílias e educar seus filhos para serem bons cidadãos; do mesmo modo que os religiosos eram heróis por se arriscarem a falar em Deus num mundo que duvida da Sua existência e que zomba dos que acreditavam Nele; do mesmo modo que muitos professores eram heróis quando iam para escolas destruídas pela violência e, apesar disso, tentavam ensinar às crianças o que teriam que saber para sobreviver, num mundo que não se compadece de quem não tem instrução. O primeiro tipo de heroísmo - o voluntário - tinha um certo componente de egoísmo, mas o heroísmo involuntário era abnegado. Brian compreendia agora que era esse heroísmo involuntário, e não a efêmera glória da política ou da praça de touros, que representava a verdadeira coragem e a virtude maior. Quando acabasse de escrever o livro, quando tivesse elaborado todas as suas idéias sobre o assunto, estaria finalmente pronto para começar a vida adulta. Estava determinado a fazer do heroísmo silencioso o tema de seu livro.

 

11:41.

O técnico levantou os olhos do medidor de profundidade.

- Estão se movendo de novo.

- Para baixo? - perguntou Gorov.

- Sim, senhor.

O alto-falante trouxe-lhes a voz do subtenente da sala de torpedos. Continha um tom de urgência.

Pegando no alto o cabo do microfone, tão cuidadosamente como se lidasse com uma serpente, Gorov disse:

- Prossiga.

- Estamos com muito mais do que 50 ou 60 mililitros de água no convés agora, capitão. Parece um litro ou dois. A divisória da frente está suando em toda a extensão acima do convés.

- Alguma distorção na linha de rebites?

- Não senhor.

- Ouviu alguma coisa de anormal com o estetoscópio?

- Não, senhor.

- Estaremos a caminho dentro de dez minutos - disse Gorov.

 

11:42.

Em alguns lugares, o túnel se estreitava o suficiente para que a luz de halogênio refletisse no gelo, e o fato de que estavam prisioneiros não podia ser facilmente esquecido quando a escuridão reinava de todos os lados.

Rita oscilava o tempo todo entre passado e presente, morte e vida, coragem e covardia. A cada minuto, ela esperava que o tumulto interior serenasse, mas ele só aumentava.

Um trecho salpicado de árvores marca a encosta abrupta acima da estrada alpina. Não é uma floresta densa mas talvez seja uma barreira suficiente para quebrar a força da avalanche e conter o ruidoso desmoronamento: árvores altas e sempre verdes, de troncos grossos, velhas e fortes. E então a maré branca atinge as árvores, que se quebram como palitos. Sua mãe grita, seu pai grita, e Rita não consegue tirar os olhos da onda de neve que avança, a 30 metros de altura, que aumenta, desaparece no céu de inverno, imensa como a face de Deus. A força da natureza atinge o Audi, vira o carro, arremessa-o através da estrada, varrendo-o e cobrindo-o, atira-o além do guardrail numa ravina. O carro capota, várias vezes, desliza de lado, para baixo, para baixo, choca-se contra uma árvore, desvia-se, corre outra vez no grande rio de neve, sofrendo um impacto atrás do outro. O pára-brisa arrebenta e segue-se uma súbita imobilidade e um silêncio mais profundo do que aquele de uma igreja vazia.

Rita tentou escapar da lembrança, por meio de patéticos sons de terror, sem sentido.

George Lin, atrás dela, a estava apressando. Ela tinha parado de nadar.

Xingando a si mesma, movimentou os pés e recomeçou a descida.

 

11:43.

A cerca de 90 metros de profundidade, tendo percorrido pouco mais da metade da distância até o Ilya Pogodin, Harry começou a duvidar de que conseguiriam percorrer todo o caminho. Estava consciente da pressão incrível, sobretudo porque os tambores nos ouvidos continuavam a bater. O barulho de seu próprio sangue correndo através das veias e artérias era uma trovoada. Imaginava-se capaz de ouvir vozes distantes, vozes fantasmagóricas, mas as palavras não tinham sentido, e ele percebeu que realmente estaria a perigo quando entendesse o que lhe estavam dizendo. Perguntou-se se, como um submarino, ele também não poderia se quebrar sob extrema pressão e ser transformado numa massa achatada de sangue e ossos.

Anteriormente, no rádio de ondas curtas, o tenente Timoshenko tinha oferecido várias provas de que a descida podia ser feita com êxito, e Harry ficou relembrando algumas: no lago Maggiore, em 1961, mergulhadores suíços e americanos tinham alcançado 730 pés com aparelhagem de mergulho. Lago Maggiore. Setecentos e trinta pés. 1961. Mergulhadores suíços e americanos. Em 1990, mergulhadores russos, com equipamento mais moderno, tinham alcançado a profundidade de... esqueceu. Mas mais fundo do que no lago Maggiore. Suíços, americanos, russos... É, podia ser conseguido. Por mergulhadores profissionais, bem equipados, é verdade.

Quatrocentos pés.

 

11:44.

Seguindo o cabo, túnel adentro, George Lin disse a si mesmo que os russos não eram mais comunistas. Não no momento. Talvez um dia, no futuro, eles voltassem ao poder; o mal nunca desaparece de verdade. Mas os homens no submarino estavam arriscando a vida deles, e não tinham nenhum motivo sinistro para isso. Tentou se convencer, mas não era uma coisa fácil, já que vivera demasiados anos com o medo de uma maré vermelha.

Cantão. Outono de 1949. Três semanas antes de Chiang Kaishek ser expulso do continente. O pai de George estivera ausente, tomando providências para transferir a família e seus bens, em processo de encolhimento, para a ilha de Formosa. Havia mais quatro pessoas na casa: sua avó, seu avô, sua mãe e sua irmã de 11 anos, Yun-ti. Ao amanhecer, um contingente de guerrilheiros maoístas, à procura de seu pai, invadiu a casa. Nove homens fortemente armados. Sua mãe conseguiu escondê-lo dentro da lareira, atrás de uma pesada cortina de ferro. Yun-ti foi escondida em outra parte, mas os homens a encontraram. Enquanto Lin olhava da lareira, seus avós foram obrigados a se ajoelhar e levaram um tiro na nuca. Os miolos grudaram na parede. Na mesma peça, sua mãe e irmã foram estupradas pelos nove homens, várias vezes. Todas as degradações, todas as humilhações foram perpetradas contra elas. George era uma criança de menos de sete anos: pequena, aterrorizada, indefesa. Os guerrilheiros ficaram até as três horas da manhã seguinte, esperando pelo pai de George e, quando finalmente se foram, cortaram a garganta de Yun-ti. E depois a garganta de sua mãe. Sangue por todo lado. Seu pai tinha chegado 12 horas mais tarde – e encontrara George ainda escondido na lareira, incapaz de falar. Permanecera mudo por mais de três anos, depois de terem fugido para Formosa. E quando afinal quebrou o silêncio, as primeiras palavras foram os nomes da mãe e da irmã. Ao dizê-las, começou a chorar inconsolavelmente, até a chegada de um médico, que lhe deu um sedativo.

No entanto, os homens no submarino lá embaixo eram russos e não chineses, e já não mais eram comunistas. Talvez nunca tivessem sido realmente comunistas. Afinal de contas, soldados e marinheiros algumas vezes lutam por seus países mesmo quando acreditam que seus dirigentes são ladrões e imbecis.

Os homens lá embaixo não deveriam ser como os que violentaram sua mãe e sua irmã e depois as assassinaram. Eram pessoas diferentes, numa época diferente. Elas eram confiáveis. Ele devia confiar nelas.

E mesmo assim, ele estava infinitamente mais temeroso da tripulação do Pogodin do que de todos os poderosos explosivos do mundo.

 

11:46.

- Oficial do rancho ao capitão.

- Estou ouvindo.

- A divisória de estibordo está vazando, capitão.

- Está empenando?

- Não, senhor.

- Quanto de água?

- Meio litro.

Problemas tanto na sala de torpedos quanto no rancho dos oficiais. Em breve seria o inferno lá.

- Estetoscópio? - perguntou Gorov.

- Um bocado de barulho atrás da divisória, mas nenhum sinal-padrão de fadiga do material.

- Estaremos a caminho em cinco minutos.

 

11:47.

Como submarino já perto, Harry se lembrou de outros motivos para ter esperança. Segundo o tenente Timoshenko, mergulhadores britânicos em Alverstoke, Hampshire, e mergulhadores franceses em Marselha tinham atingido 1.500 pés com aparelhagem avançada de mergulho, em câmaras de simulação.

Claro, aquela frase especial impedia que a informação fosse tão estimulante quando ele gostaria: "câmaras de mergulho de simulação".

Aqui, a coisa era real.

O túnel alargou-se. As paredes de gelo afastaram-se, até que não mais refletiam a luz.

Ele teve o sentimento do imenso espaço em torno. Aáguaestava mais clara do que mais acima, provavelmente por haver menos partículas de gelo nela. Em segundos, pôde ver as luzes coloridas embaixo, primeiro verdes, depois vermelhas. E então a luz que carregava na mão mostrou uma grande forma cinzenta pairando no abismo lá embaixo.

Mesmo quando atingiu a torre do Ilya Pogodin e descansou contra o mastro do radar, Harry não sentiu euforia sobre suas chances de sobreviver à tremenda pressão. Estava meio convencido de que seus pulmões iam explodir com a força de granadas e de que seus vasos sangüíneos iam saltar feito balões. Ele não sabia muita coisa sobre os efeitos da grande pressão sobre o corpo; talvez seus pulmões não explodissem, mas a imagem mental era convincente.

Além disso, Harry não gostou da aparência do submarino. À espera dos outros, teve quase um minuto para estudar o barco. Todas as luzes estavam acesas: vermelhas a bombordo, verdes a estibordo, brancas na torre, um amarelo substituindo a luz... Talvez seus processos mentais estivessem afetados pela pressão ou exaustão, mas o Pogodin parecia alegre demais para ser verdadeiro. Após tanta escuridão, a embarcação parecia um maldito caça-níqueis ou uma árvore de Natal. Ela parecia frágil, delicada, uma construção em celofane escuro.

 

11:49.

Rita esperava que seu medo diminuísse quando ela alcançasse o fundo do túnel e o gelo não mais estivesse em volta dela. Mas a ilha de gelo ainda estava lá em cima, tão alta quanto um edifício de 70 andares e um quilômetro de comprimento, imensa como várias quadras de arranha-céus em Manhattan. Sabia que aquela coisa boiava e não iria afundar sobre ela e esmagá-la contra o fundo do mar, mas estava aterrorizada pelo pensamento de que pairava sobre si, e não se atrevia a olhar para cima.

Faz frio no Audi, porque o motor morreu e o aquecimento parou de vir. Neve e pedaços quebrados de árvores caíram sobre o assento dianteiro, através do pára-brisa despedaçado, cobrindo o painel e enterrando seus pais até a cintura. Eles estão imóveis na neve, ambos mortos, e à medida que o tempo passa Rita sabe que não poderá sobreviver apenas com seu casacão, até que o socorro chegue. As luzes do painel estão acesas, assim como a do teto, de modo que o interior do Audi não está escuro; ela pode ver a neve Pressionando em todas as janelas, de todos os lados; ela é uma menina inteligente e percebe que a neve pode ter 30 metros de profundidade, demasiadamente funda para que ela possa cavar um caminho e se salvar. As equipes de resgate levarão um tempo enorme até achá-la. Ela precisa do pesado casacão do pai, e, após uma demora muito perigosa, prepara-se para o que vai ver e arrasta-se até o assento dianteiro. Manchas de sangue escarlate escorrem do nariz e ouvidos do pai e a garganta da mãe está atravessada pela ponta irregular de um galho de árvore que penetrara com a avalanche através do pára-brisa. Seus rostos estão azul-acinzentados. Os olhos abertos dos dois estão completamente brancos, revestidos, de neve. Rita dá só uma olhada mantém a cabeça baixa e começa a cavar a neve em torno do pai. Tem apenas seis anos, é uma criança forte e ativa para a sua idade mas ainda é muito pequena. Seria impossível para ela tirar o casacão do corpo endurecido do pai, se os braços dele estivessem enfiados nas mangas. Mas, enquanto dirigia, ele se livrara do casacão. Agora o corpo está sentado sobre ele, e, depois de muito remexer e puxar, ela consegue tirá-lo de sob o pai. Ela engatinha com seu prêmio para o assento traseiro que a neve não ocupou, enrola-se, encolhida no casacão bem apertado, e espera pela chegada de socorro. Mantém até mesmo a cabeça dentro do casacão, conservando não só o calor corporal como a respiração dentro do forro de cetim, porque sua respiração é quente. Depois de um tempo, começa a ter dificuldade para se manter acordada e é arrastada pela mente para fora do carro frio, para outros lugares ainda mais frios. Cada vez que se ergue, tonta, de seu perigoso sono, está mais grogue do que na vez anterior, mas se lembra de ter ouvido os sons do resgate. Depois do que parecia um longo tempo, ela ouve - ou pensa ter ouvido - movimentos no assento dianteiro; o ruído do gelo quebrando, quando seu pai morto e sua mãe morta, cansados de ficarem sentados, decidiram rastejar ate o banco traseiro, junto a ela. Eles queriam se enfiar sob o conforto do grande casacão. Ruído: o som das manchas de sangue congelado caindo de suas narinas. Outra vez o ruído de gelo: aí vêm eles. O terrível som de gelo quebrando: eles devem estar subindo na traseira do carro. O crec-crec do gelo... e uma voz está chamando baixinho seu nome, uma voz familiar chamando seu nome? E urna mão gelada entra sob o casacão, invejosa do calor dela...

Alguém tocou em Rita e ela gritou de horror, mas pelo menos o grito espantou o Audi e a avalanche para o passado a que eles pertencem.

Pete está de um lado, Franz do outro. Evidentemente, ela havia parado de se mover e eles a estavam amparando pelos braços e trazendo-a para baixo, nos últimos metros. O submarino estava logo à frente. Ela viu Harry agarrado ao mastro do radar acima da torre.

 

11:50.

Harry estremeceu de alívio ao ver Rita entre Pete e Franz e um arrepio de esperança o atravessou.

Quando os outros seis se juntaram a ele, meio rastejou e meio nadou ao longo da torre, desceu a pequena escada da ponte e enfiou-se entre a linha de suportes para cordame do convés dianteiro. Se ele flutuasse para fora do barco, não seria capaz de agarrar-se a ele com facilidade, já que a corrente de nove nós não o afetaria exatamente da mesma maneira que ao barco de 90 metros de comprimento.

Sua relação com o submarino era muito semelhante à de um astronauta com sua nave durante uma caminhada espacial: havia uma ilusão de imobilidade, embora ambos se movessem a uma velocidade considerável.

Cauteloso mas consciente da necessidade de pressa, ele continuou a se impulsionar agarrando-se aos suportes de amarração, à procura da portinhola da câmara de ar que Timoshenko havia descrito pelo rádio.

 

11:51.

A sirene de alarme gritou.

Os números verdes e os diagramas dimensionais desapareceram da tela do vídeo central logo acima do posto de comando. Letras vermelhas os substituíram: EMERGÊNCIA.

Gorov acionou um botão do console com o registro MOSTRAR. A tela limpou imediatamente e a sirene calou-se. Uma nova mensagem apareceu, nas letras verdes habituais: PORTA DIANTEIRA CEDEU NO TUBO DO TORPEDO NÚMERO CINCO. TUBO CHEIO DE ÁGUA ATÉ PORTA TRASEIRA.

- Está acontecendo - disse Zhukov.

O tubo número cinco devia ter aberto quando eles colidiram com o gelo flutuante no começo da noite. Agora a porta dianteira do casco externo tinha cedido.

- Só a porta externa cedeu. Apenas a porta do focinho. Não a porta traseira. Não há água dentro do barco. Por enquanto, não... e nem vai haver - disse Gorov, rapidamente.

Um marinheiro que monitorava um dos painéis de segurança avisou:

- Capitão, nossos visitantes abriram a portinhola superior da câmara de ar.

- Nós vamos conseguir - disse Gorov à tripulação da sala de controle. - Nós vamos conseguir muito bem.

 

11:52.

A portinhola da câmara de ar no tanque dianteiro de escapamento foi aberta por alguém que estava no painel de controle do submarino. Harry espiou dentro de um minúsculo e brilhantemente iluminado compartimento cheio de água. Como o tenente Timoshenko o alertara, tinha tamanho suficiente para acomodar apenas quatro mergulhadores de cada vez - e mesmo com esse tamanho, era duas vezes maior do que os tanques de escapamento de muitos submarinos.

Um a um, Brian, Claude, Rita e George entraram na câmara redonda e sentaram no assoalho, com as costas pressionando as paredes.

De fora, Harry fechou a portinhola, o que era mais rápido de fazer do que se esperasse que alguém de dentro usasse uma correia para puxá-la para baixo e então girasse a roda da tranca.

Ele olhou seu relógio luminoso.

 

11:53.

Gorov vigiava ansioso a bancada de vídeos.

- Tanque de escapamento pronto - disse Zhukov, repetindo a mensagem que recebera, ao mesmo tempo em que a mesma informação aparecia em um dos vídeos.

- Processe os mergulhadores para dentro do submarino - ordenou Gorov.

 

11:54.

Na câmara de ar, Rita se segurou nas hastes da parede, enquanto bombas poderosas extraíam a água de dentro do recinto em 30 segundos. Ela não tirou a máscara, mas continuou a respirar a mistura de gases do seu tanque de mergulho, como fora instruída a fazer.

Uma portinhola abriu-se no centro do assoalho. Um jovem marinheiro russo apareceu, sorriu quase com acanhamento e chamou-os com um dedo.

Eles saíram rápido da câmara de ar, por uma escada, para a sala de controle da câmara de escape. Depois o marinheiro subiu, fechou de novo a portinhola interna, trancou-a e desceu rápido para o painel de controle. Com um rugido, a água inundou novamente a câmara superior.

Agudamente conscientes de que uma imensa ilha de gelo, carregada de explosivos, pairava bem acima da embarcação, Rita entrou com os outros na câmara de descompressão, ao lado.

 

11:56.

Harry forçou outra vez a portinhola e ela abriu. Esperou até que Pete e Franz tivessem entrado e os seguiu. Depois trancou a porta Por dentro.

Sentaram com as costas contra a parede.

Ele nem precisava olhar o relógio. Um crítico relógio interno o avisou de que eles estavam a quatro minutos da explosão. Os drenos dilataram e as bombas esvaziaram a câmara de escape

 

11:57.

Uma montanha de gelo à beira da desintegração violenta pairava sobre eles, e, se se despedaçasse enquanto estivessem ali embaixo, o barco provavelmente seria reduzido a sucata. A morte seria tão rápida que muitos deles não teriam tempo nem de gritar.

Gorov puxou um microfone de sobre sua cabeça, chamou a sala de manobras e ordenou que o barco desse imediatamente marcha-à-ré, a toda velocidade.

A sala de manobras confirmou a ordem, e um momento depois o submarino estremeceu em resposta à brusca inversão dos motores.

Gorov foi atirado conta o corrimão do posto de comando e Zhukov quase caiu. O alto-falante anunciou:

- Da sala de manobras para o capitão: motores em reversão total.

- Manter leme.

- Leme mantido.

O iceberg estava movendo-se na direção sul a nove nós. O submarino estava revertendo para norte a 10... 12... agora 15 nós, contra uma corrente de nove nós, resultando numa efetiva velocidade de separação de 15 nós.

Gorov não sabia se esta era uma velocidade suficiente para salvá-los, mas era o melhor que podiam fazer no momento; para imprimir maior velocidade, eles precisariam de mais tempo do que restava até a explosão.

- Gelo acima. A 60 pés de altura - anunciou o operador do medidor de altitude.

Eles já estavam fora da cavidade em forma de funil do centro da montanha.

 

11:58.

Harry entrou na câmara de descompressão e sentou ao lado de Rita. Eles se deram as mãos e olharam o relógio.

 

11:59.

A atenção no centro de controle estava centrada no relógio digital de seis números atrás do posto de comando. Nikita Gorov imaginou que podia detectar a crispação de cada tripulante à passagem de cada segundo.

11:59:10.

11:59:11.

- Como quer que isso termine-disse Emil Zhukov -, estou contente de ter dado o nome de Nikita a meu filho.

- Talvez você tenha dado a ele o nome de um idiota.

- Mas um idiota interessante. Gorov sorriu.

11:59:30.

11:59:31.

O técnico do medidor de altitude anunciou:

- Água livre. Nenhum gelo acima.

- Saímos de sob o iceberg - comentou alguém.

- Mas ainda não estamos fora de perigo - alertou Gorov, consciente de que ainda estavam dentro do raio de ação do gelo a ser arremessado pela detonação.

11:59:46.

11:59:47.

- Água livre. Nenhum gelo acima.

11:59:49.

Pela segunda vez em dez minutos, a sirene de alarme soou e a palavra EMERGÊNCIA brilhou, vermelha, numa das telas do alto.

Gorov apertou um botão e descobriu que outro tubo de torpedo tinha sucumbido parcialmente: PORTA DO NARIZ CEDEU NO TUBO DIANTEIRO DO TORPEDO NÚMERO QUATRO. TUBO CHEIO DE ÁGUA ATÉ A PORTA TRASEIRA.

Baixando um microfone, Gorov gritou:

- Capitão para a sala de torpedos! Abandonem seu posto e tranquem todas as portas à prova d'água.

- Ai, meu Deus - disse Emil Zhukov, o ateu.

- As portas traseiras agüentarão-disse Gorov, com convicção, rezando para que estivesse certo.

11:59:59.

12:00:00.

- Abracem-se!

- Água livre.

12:00:03.

- O que houve de errado?

- Onde está?

12:00:07.

A concussão os atingiu. Transmitida através do despedaçado iceberg para a água, e através da água para o casco, ela foi um rumor distante e surpreendentemente suave. Gorov esperava que a força das ondas de choque aumentasse, mas isso não aconteceu.

O operador de sonar informou sobre a maciça fragmentação do iceberg.

Às 12:02, entretanto, depois de o sonar não ter localizado nenhum fragmento substancial de gelo perto do Ilya Pogodin, Gorov sentiu que eles estavam salvos.

- Vamos subir.

A tripulação da sala de controle vibrou.

 

                                             DEPOIS...

 

18 DE JANEIRO DUNDEE, ESCÓCIA

Logo depois do meio-dia, dois dias e meio após terem escapado de sua prisão de gelo, os sobreviventes chegaram à Escócia.

Desde que escapara há tantos anos da China continental, com seu pai, num pequeno barco, George Lin não apreciava muito viagens por mar, fossem elas acima ou abaixo das ondas, e se sentia aliviado por estar outra vez em terra.

O tempo não estava nem ruim nem bom, para o inverno de Dundee. O céu cinzento estava baixo e ameaçador. A temperatura era de sete graus negativos. Um vento frio soprava do Mar do Norte, fazendo a água pular e redemoinhar ao longo do estuário de Tay.

Mais de 100 jornalistas de todas as partes do mundo haviam voado até Dundee para contar o final da história do Projeto Edgeway. Com sarcasmo amigável, alguém do New York Times tinha apelidado o lugar de "Dandy Dundee"[1] um dia antes, e o nome havia pegado. Entre si, os repórteres aparentemente haviam gastado mais tempo falando sobre o frio de congelar os ossos do que sobre os acontecimentos que tinham ido cobrir.

Mesmo após ter desembarcado do Pogodin às 12:30 e ter ficado ao vento por quase uma hora, George ainda gozava a sensação do vento no rosto, puro e muito mais gostoso do que o ar enlatado do submarino. E não estava nem tão frio e nem tão forte que ele pudesse temer sentir-se gelar, o que representava uma grande melhora em relação ao clima em que vivera nos últimos meses.

Caminhando energicamente de um lado para outro à beira do cais, seguido por um bando de repórteres, ele perguntou:

- Esse barco... não é uma linda visão?

Ancorado num canal de águas profundas atrás dele, o submarino hasteara uma enorme bandeira da Rússia e, por cortesia, uma bandeira da Escócia um pouco menor. Sessenta e oito marinheiros estavam formados em duas fileiras frente a frente, no convés, todos vestidos com jaquetas azuis de lã, em posição de sentido para o cerimonial de inspeção. Nikita Gorov, Emil Zhukov e os outros oficiais pareciam esplêndidos em seus uniformes e túnicas cinza de inverno com botões de metal. Um punhado de autoridades estava também na ponte e na prancha que conectava o submarino com o cais: um representante do governo de Sua Majestade, o embaixador da Rússia na Grã-Bretanha, dois de seus auxiliares, o prefeito de Dundee, dois representantes das Nações Unidas e funcionários da representação comercial da Rússia em Glasgow.

Um dos fotógrafos pediu a George para posar ao lado de uma pilastra de concreto, com o Ilya Pogodin ao fundo. Com um largo sorriso, ele concordou.

Um repórter perguntou-lhe qual era a sensação de ser um herói das primeiras páginas dos jornais de todo o mundo.

- Não sou herói - respondeu George imediatamente. Virou-se e apontou os oficiais e marinheiros do barco atrás dele: - Eles são os verdadeiros heróis.                                    

 

20 DE JANEIRO ESTAÇÃO EDGEWAY

Durante a noite, a velocidade do vento começou a diminuir pela primeira vez em cinco dias. Pela manhã, as partículas de gelo pararam de martelar o teto e as paredes da cabana de comunicações e suaves flocos de neve encheram o ar outra vez. As violentas tempestades do extremo Atlântico Norte começavam a cessar.

Pouco depois das duas horas da tarde, Gunvald Larsson conseguiu finalmente contato com a base militar americana de Thule, Groenlândia. O radioperador americano imediatamente informou que o Projeto Edgeway tinha sido suspenso pelo restante do inverno.

- Pediram-nos que retirasse você da calota polar. Se tivermos o bom tempo que eles estão prevendo, poderemos chegar até aí depois de amanhã. Isso será tempo suficiente para o fechamento dos prédios e maquinaria de vocês?

- Sim, tempo mais do que suficiente - disse Gunvald. -Mas, pelo amor de Deus, esqueça isso! O que aconteceu com o pessoal? Eles estão vivos?

- Ah, me desculpe - disse o americano, embaraçado. - É claro, você não podia saber, isolado como ficou.

Ele leu duas das reportagens dos jornais e depois acrescentou o que sabia.

Após cinco dias de tensão contínua, Gunvald decidiu que tinha direito a uma comemoração. Ele acendeu o cachimbo e abriu a garrafa de vodca.

 

25 DE JANEIRO

MENSAGEM E-MAIL TRANSMITIDA

DE MONTEGO BAY, JAMAICA, PARA

PARIS, FRANÇA

Claude, Franz e eu chegamos aqui a 23 de janeiro. Na primeira hora de nossa chegada, tanto o motorista de táxi que nos trouxe do aeroporto quanto o empregado da portaria do hotel se referiram a nós como "um grupo improvável". Gente, eles não sabem da missa a metade.

Não há sol que chegue. Até mesmo eu estou pegando um bronzeado.

Acho que encontrei a mulher dos meus sonhos. Ela se chama Majean. Franz foi apanhado no bar por uma mulher moderna que não acredita nos papéis dos sexos e ele está tentando aprender a deixar que ela abra as portas para si mesma, se assim o desejar. Ele está puto da vida com isso e às vezes eles brigam por causa de uma porta, mas ele está aprendendo. Enquanto isso, Claude parece estar na companhia constante de uma loira de 28 anos que acha que ele é uma gracinha e tem vertigens com o sotaque francês dele.

Estamos pensando em trocar de profissão e abrir um bar em algum paraíso tropical. Talvez você e Rita possam considerar a possibilidade de ser nossos sócios. Poderíamos ficar sentados o dia todo, bebericando coquetéis de rum com engraçadas sombrinhas de papel enfiadas neles. É com certeza melhor do que congelamentos, explosivos e lutas submarinas de vida ou morte com psicopatas. o problema mais sério que enfrentamos aqui é a umidade.

Como sempre, Pete.

 

26 DE JANEIRO PARIS, FRANÇA

Na sua suíte do Hotel George V, uma garrafa de Dom Perignon estava enfiada no balde de gelo, ao lado da cama.

Estavam nos braços um do outro, tão próximos quanto podem estar duas pessoas sem se fundirem de verdade e se tornarem uma única entidade - gerando calor suficiente para manter um posto no Ártico aquecido durante todo um longo inverno -, quando foram surpreendidos por um estalo ao lado da cama. Eles tinham sido salvos pelo Pogodin há mais de uma semana, mas seus nervos ainda estavam muito retesados. Ele sentou-se, ela saiu de debaixo dele e ambos viraram-se na direção do som, mas estavam sozinhos no quarto.

- Gelo - disse ela.

- Gelo?

- Sim, gelo. Dançando dentro do balde.

Ele olhou o balde no seu suporte de prata e o gelo mexeu novamente.

- Gelo - repetiu ela.

Ele a olhou. Ela sorriu. Ele deu um sorriso. Ela riu como se fosse uma escolar e ele estourou numa gargalhada.

 

[1] Jogo de palavras intraduzível. Seria "a elegante Dundee", numa referência irônica à pobreza do lugar. (N. do T.)

 

                                                                                Dean R. Koontz  

 

 

                      

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