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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TERRA DAS SOMBRAS / Emily Rodda
TERRA DAS SOMBRAS / Emily Rodda

 

 

                                                                                                                                                

  

 

 

 

 

 

O canal estreito que atravessava a rocha desapareceu na escuridão profunda, onde ecoava o som da água batendo nas pedras. Uma faixa larga de algas marinhas amarelas e cor-de-rosa flutuava na entrada.

Lief não precisou consultar o pequeno mapa que segurava para saber que aquele túnel sombrio era o Caminho Proibido — o único caminho para a ilha de Keras e a terceira parte da Flauta de Pirra. Mas, mesmo assim, ele examinou o mapa e a flecha desenhada pelo Flautista de Auron.

O mapa tinha sido molhado, marcado e rasgado, mas, apesar de todas as dificuldades, tinha sobrevivido. “Como nós”, Lief pensou, olhando para Jasmine e Barda.

Os dois amigos estavam sentados muito quietos, observando a fenda escura na rocha. Eles não tinham mais que se esforçar para enxergar através da luz ofuscante. Os guardas de Auron que rebocavam o barco haviam ordenado que as enguias nadassem mais devagar.

Como os barcos de Auron eram estreitos e sem espaço para que duas pessoas se sentassem lado a lado, Barda estava sozinho no banco do meio levando o único remo. Jasmine ia na frente levando Kree, cuja asa machucada ainda não tinha sarado completamente, no ombro, e Filli chilreando debaixo da gola de sua jaqueta. Lief estava no fundo.

— Não vamos poder voltar depois de entrar nesse túnel — Barda murmurou. — Vamos ter que prestar muita atenção.

 

 

 

 

 

Lief concordou. Certamente Doran, o amigo dos dragões, o primeiro explorador do mundo subterrâneo de Deltora tinha passado pelo Caminho Proibido. Mas isso tinha acontecido centenas de anos atrás, e muitas coisas haviam mudado desde então.

Assim que a proa do barco encostou nas primeiras algas brilhantes, os guardas soltaram o barco e se afastaram. Somente Penn, a preservadora da história de Auron continuou perto do bote falando suavemente com a enguia gigante, em cujo pescoço ela estava montada.

Os guardas, vestidos com roupas de pele de animais e carregando estranhas lanças de osso, eram selvagens e assustadores, mas não cruzavam a barreira de algas, o antigo aviso de perigo dos aurons, a menos que o seu líder, o Flautista, mandasse. E essa ordem não foi dada.

— Vamos dar um barco a vocês e levá-los até a fronteira de nosso território, mas essa é toda a ajuda que podemos dar — o Flautista tinha dito a Lief, Barda e Jasmine quando comeram a sua última refeição na pequena cabana de Penn. — Nenhum auron entra no Caminho Proibido.

— É a nossa lei mais antiga — Penn acrescentou, ansiosa para suavizar as palavras frias do Flautista. — Se os aurons entrarem no mar dos kerons, eles vão atacar.

— Os plumes dizem a mesma coisa de vocês — Jasmine observou.

— Eles disseram que vocês iriam nos matar assim que nos vissem.

— Os plumes são selvagens e mentirosos — o Flautista respondeu irritado, os olhos faiscando de raiva no rosto enrugado.

Lief e Barda olharam um para o outro arrependidos. Eles sabiam que não tinha sentido defender os plumes. O antigo ódio entre as tribos de Pirra era forte demais para ser apagado com os argumentos de três estranhos.

Mas Jasmine estava observando as duas aranhas de briga que dormiam pacificamente juntas em sua grande gaiola nova. Unidas pelo medo do inimigo comum, Flash e Fury tinham esquecido a amarga rivalidade e agora brigavam somente de brincadeira. Como resultado, elas iam ficar com Penn, que tinha começado a gostar muito delas, apesar de seu aspecto assustador.

— Até Flash e Fury descobriram que têm muitas coisas em comum

— Jasmine disse. — Mas os plumes, os aurons e os kerons insistem em brigar. É difícil acreditar que antes todos moravam em Pirra.

— Isso foi há muito tempo — o Flautista murmurou. — Pirra hoje é A Terra das Sombras, e os plumes e os kerons são os culpados. Se eles tivessem aceitado a flautista de Auron como líder, a Flauta de Pirra nunca teria sido dividida, e o Senhor das Sombras não teria roubado as nossas terras.

O rosto de Penn ficou sério. Ela, pelo menos, tinha o bom senso para admitir que os seguidores de Auron tinham sido tão teimosos quanto os rivais. Os três grupos tinham se dividido igualmente na precipitada decisão de dividir a Flauta de Pirra.

Agora, enquanto o barco balançava suavemente nas ondas provocadas pelo movimento das enormes enguias, Lief olhou para o rosto ansioso de Penn.

A preservadora da história tinha insistido em acompanhar o grupo até o Caminho Proibido e levar o fogo que acenderia as suas tochas. Ela tinha estado feliz durante a viagem pelo do mar do arco-íris, mas agora o medo estava visível em seus olhos.

Segurando a chama para o alto, ela incentivou a sua enguia a ir até a frente do barco e acendeu a tocha de Jasmine. Então, em silêncio, virou-se e foi até junto de Lief.

— Até logo, Penn — Lief se despediu. — Obrigado por tudo o que fez por nós.

— Eu não fiz nada — Penn respondeu, encostando a chama na tocha que Lief estendia para ela. — Mas nunca vamos poder pagar o que vocês fizeram por nós. Vou rezar por vocês... — ela curvou a cabeça, sem conseguir continuar.

— Não tenha medo — Barda disse com entusiasmo. — Nós vamos viver para comer mais empadas de peixe com você, Penn.

— Espero que sim — ela sussurrou. — Que Auron os proteja.

Ela sussurrou uma ordem para a enguia, que nadou para trás do barco obediente e o empurrou para a frente. O bote deslizou por cima da faixa de algas e entrou na boca do túnel.

Imediatamente, a mente de Lief se encheu com a música suave e insistente da Flauta de Pirra. O som era tão alto e forte que ele imaginou que Barda e Jasmine também o escutavam. Mas a expressão do rosto deles não revelava nada.

Ele olhou fixamente para a escuridão à sua frente. A boca dele estava seca, e a cabeça, dominada pela música. Lief percebeu vagamente que segurava com força a bolsa de pano que estava pendurada em seu pescoço debaixo da camisa, onde estavam escondidos o bocal e a haste da Flauta.

O último pedaço da Flauta os chamava da escuridão...

Pare com isso! Você precisa estar atento, preparado...

Lief se obrigou a apanhar um pouco de água e jogou-a no rosto. Ele abafou um grito quando o líquido gelado espirrou em sua pele quente.

O feitiço foi quebrado. A música desapareceu e deixou um vazio estranho e triste em seu lugar. Lief piscou rapidamente e voltou a enxergar melhor.

A luz diminuía rapidamente. Eles passavam depressa pelas paredes da passagem. Lief se virou para olhar para trás e ficou surpreso ao perceber que a entrada o túnel era apenas um pequeno ponto de luz na distância.

— O que está acontecendo? — Jasmine exclamou. — Por que estamos indo tão depressa?

— Alguma corrente está nos puxando — Barda respondeu inquieto. — Eu quase não estou remando e mesmo assim...

— É a Flauta — Lief conseguiu dizer. — Eu sinto...

E o barco avançou pela escuridão onde as paredes eram iluminadas somente pela luz amarela tremeluzente das tochas.

As paredes faiscavam com as cores do arco-íris, que logo se transformaram num verde vivo. Porém, onde as luzes das tochas não chegavam, havia somente uma profunda penumbra.

De repente, Kree grasnou quando Jasmine se retorceu no banco e bateu com a mão no pescoço.

— Alguma coisa caiu em cima de mim — ela exclamou.

— Pode ser uma mariposa — Barda sugeriu, concentrado em dirigir o bote que corria pela água. — Vi algumas por aí.

Então ele também bateu no pescoço. Algo tinha caído em sua pele e ficou grudado ali.

Lief sentiu cócegas na mão. Ele olhou para baixo e viu uma criatura parecida com uma lesma se retorcendo sobre sua pele. Lief sacudiu a mão, mas a criatura não se desprendeu. Assustado, percebeu que o bicho o mordia e enterrava a cabeça em sua carne.

E estava crescendo. O seu corpo inchava enquanto Lief o observava cheio de seu sangue.

— Sanguessugas! — ele gritou, sacudindo a mão de novo enojado. Ele viu Kree voando do ombro de Jasmine quando ela remexia na gola da jaqueta, tentando arrancar duas sanguessugas que estavam penduradas em seu pescoço. Com horror, Lief notou que mais criaturas asquerosas já tinham caído nas mãos da amiga.

— Cuidado! Em cima! — Barda gritou.

Lief olhou e congelou. O espaço acima deles estava cheio de sanguessugas voadoras, que se aproximavam formando nuvens grossas e agitadas na escuridão.

Desesperado, ele agitou a tocha sobre a cabeça. Dezenas de corpos alados e pegajosos queimaram na chama, mas, mesmo assim, muitas das criaturas conseguiram se desviar da barreira de fogo e chegar até os seus braços e mãos para se alimentar.

E aquelas eram apenas as primeiras e foram seguidas por outras centenas que voavam para baixo, vindas da escuridão.

— Jasmine, Barda! Abaixem-se! — Lief gritou, jogando a sua tocha na água sem pensar. Ele tirou a capa e atirou-a sobre o bote para formar uma cobertura.

Em instantes, os companheiros estavam deitados de bruços debaixo da capa. A primeira nuvem de sanguessugas aterrissou na capa, atraída pelo calor dos corpos ali escondidos e provocou um ruído semelhante ao da chuva. O ruído aumentou e se transformou num golpear incessante, e a capa começou a afundar.

Os braços e pernas de Lief tremiam com o esforço de manter a capa no lugar. As sanguessugas que tinham se colado nele antes de se esconder e as poucas que conseguiram entrar no abrigo estavam penduradas como bexigas inchadas nos pulsos e nas costas de suas mãos. Ele cerrou os dentes, lutando contra a vontade irresistível de arrancá-las.

A capa pesada começou escorregar da beira do barco. Apavorado, Lief puxava o tecido e tentava recolocá-la no lugar, mas algumas sanguessugas já entravam pela pequena fresta e se colavam às suas mãos e deslizavam por baixo das mangas de sua camisa.

A capa escorregou outra vez, e a fresta na lateral do barco ficou ainda maior. Sanguessugas invadiram o espaço como uma avalanche.

“É o nosso fim”, Lief pensou, de repente. “Depois de tudo por que passamos, estamos perdidos... derrotados pelas menores criaturas que já enfrentamos.”

Se não fosse tão horrível, poderia até ser engraçado.

Mesmo enquanto as suas mãos lutavam inutilmente para fechar a fresta, os seus pensamentos voaram até Del. Ele nunca voltaria. Os piores receios de Marilen tinham se tornado realidade.

“No entanto, não me arrependo de nada”, Lief pensou. “Fiz o que tinha que fazer.”

Uma paz estranha tomou conta dele e, junto com essa paz, veio a música da Flauta de Pirra, atingindo-o com intensa doçura.

Finalmente, Lief se rendeu à música. Ele se deixou levar pelas ondas do som e fechou os olhos.

Por esse motivo, Lief não percebeu quando, de repente, uma luz da cor de esmeralda começou a brilhar através do tecido que cobria a sua cabeça. Ele não notou que o som forte e insistente tinha parado. Ele não ouviu o leve barulho da água quando o barco foi levado pelo mar verde e ondulante até a segurança da terra firme.

 

Quando Lief voltou a si, o som da flauta tinha diminuído, e um peso enorme o empurrava para baixo. Com um movimento violento, ele finalmente conseguiu sair para a luz cor de esmeralda. Barda e Jasmine mexeram-se ao seu lado. Quando se sentaram, o barco se inclinou com o peso de milhares de sanguessugas mortas.

O barco balançava levemente na água verde e rasa que batia na praia arenosa. Mais adiante, havia uma floresta de árvores de suaves tons de verde e marrom.

— Estamos em Keras! — Barda disse devagar. — Acho que chegamos ao fim do Caminho Proibido. Quando saímos dele, todas as sanguessugas morreram por causa da luz.

Ele tremeu de repente e esforçou-se para sair do barco, seguido de perto por Jasmine e Lief. Eles mergulharam os braços e rostos na cintilante água verde várias vezes, como que para se livrar de todas as marcas das sanguessugas.

Quando se sentiram limpos, os amigos caminharam até a praia puxando o barco atrás deles. Eles empurraram a embarcação para um pequeno monte de areia e o viraram, tirando dele o seu carregamento horrível. Em seguida, Lief apanhou a capa, e eles avançaram para a sombra verde da floresta.

Uma trilha de areia dava voltas entre as árvores, e os companheiros decidiram segui-la. Vez ou outra, ouvia-se o som de alguma criatura fugindo rapidamente pela areia, mas esse era o único sinal de vida. O silêncio era sinistro.

— Então estamos no território da esmeralda — Barda afirmou num tom natural, mas muito baixo. — Acima de nós, está a Montanha do Medo, onde vivem os nossos amigos gnomos do medo.

Lief percebeu que Barda dizia a qualquer observador invisível que não se apressasse em atacá-los. Barda sentia, assim como ele, que a floresta não era tão deserta quanto parecia.

Eles chegaram a uma clareira densamente cercada por árvores, onde o silêncio parecia ainda mais profundo. Lief sentiu um arrepio na nuca e olhou rapidamente ao redor, mas nada se mexeu.

Os olhos de Jasmine moveram-se rapidamente até as grandes pedras preciosas que enfeitavam o cinturão na cintura de Lief. O rubi e a esmeralda não tinham perdido o brilho.

— Não podemos confiar nas pedras para nos darem avisos aqui embaixo — Barda murmurou.

— Sei disso, Barda — Jasmine respondeu. — Mas por que isso acontece? As pedras foram retiradas das profundezas de Deltora. Aqui elas deviam ser mais poderosas, e não menos.

— Quem são vocês? O que estão fazendo aqui?

Os companheiros deram um pulo para trás e puxaram as armas. As vozes que sussurravam pareciam vir de todos os lados, mas a clareira estava vazia.

— Respondam!

Jasmine respirou fundo e cutucou Lief. Seguindo o olhar da amiga, ele olhou para cima. Uma espada ardente pendia sobre a sua cabeça de ponta para baixo. Mais duas estavam penduradas sobre Jasmine e Barda. A testa de Lief se encheu de suor. Estava claro que as perguntas tinham que ser respondidas bem depressa e com cuidado.

— Eu sou Lief, o rei de Deltora, o reino acima de vocês — ele explicou. — Os meus companheiros são Jasmine e Barda. Muitas pessoas de nosso povo estão presas na Terra das Sombras, e somente a magia da Flauta de Pirra poderá salvá-las. Os plumes e os aurons nos emprestaram as suas partes da Flauta. Estamos aqui para implorar que o povo de Keras faça o mesmo.

Houve um momento de profundo silêncio. Então, bruscamente, as espadas desapareceram, e um grande grupo de pessoas apareceu como que do nada.

Assim como os plumes e os aurons, as pessoas eram pequenas, tinham olhos claros, narizes grandes e compridos e orelhas pontudas. Os seus trajes emitiam um brilho verde e, estranhamente, alguns tinham cabelos amarelos.

Uma dessas pessoas, uma mulher, que usava a touca alta de um flautista, aproximou-se dos visitantes. Mariposas verdes com asas cintilantes voavam sobre ela como uma coroa em movimento. Um menino com um rosto ansioso e magro e cabelos fartos e espetados tinha se aproximado dela.

— Os meus cumprimentos, primos! — a mulher disse com uma voz baixa e musical que tinha um toque de humor. — Eu sou Tirral, a Flautista de Keras. Por favor, guardem as suas armas.

Como Lief hesitou, houve um som leve e irritante e, no momento seguinte, as armas dos três companheiros estavam caídas aos pés de Tirral.

Jasmine e Barda deram um passo, mas, no mesmo instante, Lief estendeu um braço para impedi-los. Ele vira algo que passara desapercebido aos amigos. No momento em que se moveram, as mariposas verdes que voavam ao redor da cabeça de Tirral haviam se transformado em flechas cintilantes apontadas para os seus corações.

Tirral, que tinha ficado totalmente imóvel, sorriu.

— Desculpem os nossos cuidados, primos — ela disse. — Vocês dizem que as partes da Flauta de Pirra que carregam foram dadas a vocês, mas é muito mais provável que as tenham tomado à força.

— Pode ser mais provável, mas não é verdade — Lief retrucou, abaixando o braço devagar. — Mas continuem segurando as suas armas, se isso os faz sentir mais seguros.

Barda e Jasmine, atentos às flechas apontadas, recuaram relutantes.

As flechas encolheram e retomaram a forma de mariposas.

— Obrigada — Tirral disse com calma. — Não gostaríamos de ferir nossos parentes. Especialmente os que fizeram o que é certo e trouxeram consigo um excelente presente.

— Presente? — Barda grunhiu desconfiado.

— Uma quantidade imensa de iscas amontoada na praia! — disse o garoto de expressão agitada. — Ah, obrigado, graças a vocês, vamos ter frutos do mar por semanas! — ele agradeceu, lambendo os lábios. — Frutos do mar são deliciosos! E não há nada melhor do que sanguessugas da entrada do mar de Keras para apanhá-los. Se ao menos pudéssemos...

— Pegar sanguessugas é uma tarefa perigosa e quase nunca o fazemos — Tirral explicou, interrompendo o garoto.

— Se iluminássemos o túnel, só por alguns momentos... — o garoto começou.

— Não podemos iluminar o túnel, Emlis — Tirral disse com tristeza, como se já tivessem tido a mesma discussão muitas vezes antes. — A escuridão e as sanguessugas nos protegem dos aurons. Devemos nos arriscar a ser atacados por nossos inimigos por causa de algumas iscas?

— Estou surpresa por ver que vocês precisam de iscas para pescar, Flautista, pois a sua mágica é muito poderosa — Jasmine disse atrevida.

— Há muitos meios de pegar peixes — Tirral respondeu, sorrindo. — E se o peixe que se deseja puder ser fisgado com uma simples isca, tanto melhor — ela disse. — Por favor, sigam-me.

Ela se virou e se afastou, fazendo com que Emlis andasse à sua frente.

— Espero que nós não sejamos o peixe, nesse caso — Barda balbuciou quando ele, Lief e Jasmine acompanharam Tirral, seguidos de perto por outros kerons. — Somos convidados ou prisioneiros?

— Não vamos muito longe, primos! — Emlis avisou, esforçando-se para vê-los por cima dos ombros.

— Por que nos chamam de primos? Não somos parentes deles!

— Jasmine disse em voz alta.

— Mas vocês são! — Tirral respondeu, parando onde o caminho terminava num denso grupo de árvores. — Vocês não se lembram de sua história? — Ela se virou para encará-los e ajeitou as mechas de cabelos claros que apareciam sob a touca.

— A Garota dos Cabelos Dourados! — Jasmine exclamou perplexa.

— Alyss e Rosnan! Você quer dizer...?

— Certamente — Tirral respondeu. — Depois que se instalaram em Keras, Alyss e Rosnan tiveram muitos filhos que se casaram com kerons e também tiveram filhos. E assim foi durante várias gerações.

— Quase todos aqui têm sangue do povo do mundo superior correndo nas veias — Emlis interrompeu. — Até mesmo os que não têm cabelos claros como eu — ele correu os dedos pelos cabelos crespos com orgulho.

Tirral suspirou.

— E assim cumprimentamos vocês como primos distantes, como os nossos ancestrais cumprimentaram Doran, o amigo dos dragões, há muito tempo — ela completou. — Doran não ficou surpreso. Foi a história de Alyss e Rosnan que o trouxe para as cavernas, para começar.

— Foi a mesma história que nos trouxe para cá — Lief murmurou.

— E, é claro, Alyss e Rosnan pararam em Keras! — Jasmine gritou.

— A caverna cor de esmeralda é a última antes do lugar cinzento do qual tinham medo.

— Mas quem iria imaginar que depois de tanto tempo ainda haveria traços deles aqui? — Barda exclamou.

— Sangue é sangue, não importa o quanto ele tenha se diluído ao longo dos séculos — Tirral disse, dando de ombros. Ela ergueu a mão e três árvores que bloqueavam o caminho desapareceram e revelaram um grande grupo de crianças assustadas e com ar de culpa.

— Peixinhos malvados! Não mandamos que ficassem escondidos na loja de frutas? — Tirral repreendeu. — E se nós fôssemos um bando de aurons selvagens que tivessem vindo para comer vocês vivos?

Ela parecia muito zangada, mas escondeu um sorriso quando as crianças correram.

Agora os companheiros podiam ver que as árvores escondiam uma vila. Sem falar, Tirral levou-os pelas ruas largas e limpas.

A vila era grande, iluminada e agradável. As casas eram feitas de madeira verde das árvores que cresciam na praia e eram cobertas de algas secas. Peixes nadavam preguiçosamente nos lagos em quase todos os jardins, e as crianças que tinham sido enxotadas da entrada da vila espiavam por detrás dos muros.

Finalmente eles chegaram a um grande espaço aberto no meio do qual um fogo queimava num profundo berço de pedras. Esteiras estavam espalhadas no chão ao redor do fogo.

— É aqui que nos reunimos — Tirral contou, sentando-se em uma das esteiras e fazendo um sinal para que Lief, Barda e Jasmine a imitassem. — Aqui, Alyss e Rosnan contaram a sua história aos nossos ancestrais.

— Doran também se sentou aqui, naquela época — Emlis contou, jogando-se desajeitadamente ao lado dela. — Foi ele quem trouxe o fogo que ainda queima aqui.

Os outros kerons que estavam reunidos em volta do fogo sussurravam e observavam os visitantes com interesse, mas nenhum se mostrou tão curioso quanto Emlis. Trêmulo de entusiasmo, ele olhava os visitantes e prestava atenção a todos os detalhes de sua aparência.

— Esse é o Cinturão de Deltora, não é mesmo? — ele perguntou, ficando mais perto de Lief. — Doran disse que ele é muito poderoso.

Tirral olhou para o garoto com uma irritação afetuosa.

— Este é meu filho Emlis — ela disse. — Acho que ele tem mais sangue do mundo superior do que a maioria de nós, pois ele sonha em viajar e conhecer de cor as histórias de Doran. A chegada de vocês o deixou muito contente.

O jovem rapaz corou e abaixou a cabeça, resmungando algo atrapalhado.

— Pois bem! — disse Tirral, erguendo um pouco a voz. — Vocês são nossos parentes e, segundo as crenças do povo de Keras, é nosso dever ajudá-los se possível. A nossa parte da Flauta de Pirra é valiosa para nós, mas poderemos sobreviver sem ela se necessário. A nossa mágica é suficiente para as nossas necessidades.

As pessoas que os cercavam murmuraram, concordando solenemente. O coração de Lief começou a bater mais depressa.

Então, com uma pontada de desânimo, ele viu a expressão de Tirral se endurecer.

“Seja lá o que for que ela conta sobre as crenças de seu povo, ela não quer abrir mão de seu tesouro”, ele pensou. “Ela encontrou um meio de não nos entregar a ponta da flauta... um meio que o seu povo vai aceitar.”

— Não perderemos a Flauta — Lief garantiu depressa. — Juro que ela vai ser devolvida às cavernas!

Tirral continuou como se ele não tivesse dito nada.

— Mas também, segundo as nossas crenças, quando alguém nos pede algo emprestado e jura devolvê-lo, eu posso exigir algo como garantia dessa promessa. Algo que seja tão importante para vocês quanto o nosso tesouro é para nós.

Ela abriu um sorriso largo, mostrando todos os dentes brancos e pontiagudos.

 

Lief, Barda e Jasmine olharam para as pessoas silenciosas ao seu redor, junto ao fogo. Todos concordavam com uma expressão séria no rosto. Era evidente que Tirral falava a verdade.

“Mas é um truque”, Lief pensou. “Ela vai pedir uma coisa que, com certeza, sabe que não vamos dar.” Olhando para os companheiros, viu quando Jasmine acariciou Filli e Kree, que estavam em seu ombro em silêncio. Barda estava de cara feia, sem dúvida pensando na espada que tinha sido a sua fiel companheira por quase toda a vida.

Lief pensou em seus pertences mais preciosos — a espada feita para ele pelo pai e a capa tecida pela mãe, que os escondia em situações de perigo. Como ele poderia sobreviver na Terra das Sombras sem elas?

Ele esperou, num suspense terrível, quando Tirral se virou para eles com os olhos brilhantes. Finalmente, ela falou.

— Eu quero... esse lindo cinturão enfeitado de jóias que você está usando, rei de Deltora — ela disse.

— Mãe! — Emlis gritou horrorizado.

Uma forte onda de calor atordoante tomou conta de Lief. Ele ouviu os gritos de surpresa e raiva de Barda e Jasmine e as exclamações das pessoas que assistiam, mas ele só estava perturbado — perturbado pelo alívio que sentia. Ele abaixou a cabeça, pois não queria que Tirral visse os seus olhos.

Finalmente ele olhou para cima.

— Muito bem — ele disse. Ignorando os protestos surpresos de Barda e Jasmine, ele abriu o fecho do cinturão brilhante e o entregou a Tirral.

As pessoas presentes abriram a boca admiradas. Muitas se levantaram com um salto e correram para se reunir à líder, ansiosas para ver o famoso cinturão de perto.

Mas o rosto de Tirral era uma máscara confusa de raiva. Nunca, em momento algum, tinha imaginado que Lief iria concordar com sua exigência. Como todos os kerons, ela tinha crescido ouvindo as histórias de Doran e sabia o quanto o Cinturão de Deltora era importante para a segurança do mundo superior.

— Lief, o que você tem na cabeça? — Jasmine sussurrou furiosa.

— Três coisas — Lief sussurrou em resposta. — Primeiro, logo vamos estar na Terra das Sombras. Segundo, as pedras do Cinturão de Deltora não podem ser levadas para além das fronteiras de Deltora — e tenho certeza de que Tirral não sabe disso. E, terceiro, acho que este é o lugar mais seguro para esconder algo de grande valor.

A expressão de Jasmine mudou de repente. Ela vinha vivendo no presente por tanto tempo que tinha esquecido que Lief teria que deixar o Cinturão para trás se quisesse entrar na Terra das Sombras.

Mas o rosto de Barda estava enraivecido.

— Lief, você está dizendo que pretende mesmo cruzar a fronteira com a gente? — ele murmurou.

— Claro que sim! — Lief respondeu, olhando para ele espantado. — Eu já não disse isso?

Barda sacudiu a cabeça furioso.

— Não importa o que você disse. Pensei que, quando a hora chegasse, você iria criar juízo. Você ficou louco? Você não pode entrar na Terra das Sombras! Você e o Cinturão são as únicas coisas que estão entre Deltora e o Senhor das Sombras. Você perdeu o senso de dever?

— Dever? — Lief repetiu, os punhos fechados com força.

Nos últimos meses, a vida dele não tinha sido nada além de uma rígida dedicação ao dever. Ele trabalhou até cair de cansaço, se escondeu de tudo e de todos que amava, guardou segredos e foi criticado, foi mal compreendido e até odiado, porque a segurança do reino era a sua primeira responsabilidade e porque havia inimigos em todos os lugares.

Palavras entusiasmadas tremiam em seus lábios. Ele tinha um forte desejo de finalmente se livrar da carga que levava no coração.

Não! Você não deve fraquejar agora. Principalmente agora...

Lief cerrou os dentes e lutou para que palavras impensadas não saíssem de sua boca.

— Barda, a Flauta de Pirra me chamou quando eu nem mesmo sabia que ela existia — ele contou. — Sei que é meu dever encontrá-la e levá-la nesta missão. Não vou abandonar esta jornada agora.

— Então eu gostaria que nunca a tivéssemos visto — Barda respondeu irritado.

Jasmine tinha uma expressão preocupada e indecisa.

— Na verdade, Lief, o risco é muito grande. Talvez...

— Jasmine, não fique do lado de Barda contra mim! — Lief gritou. — Não posso ir contra a minha natureza! “Ou o meu coração”, ele pensou com tristeza. — Jasmine, você não entende? Mesmo que a Flauta de Pirra não existisse, como eu poderia não seguir você depois que partiu?

Lief percebeu que as pessoas agrupadas ao redor de Tirral estavam se afastando. Tirral carregava o Cinturão nas mãos com uma mistura de desprezo amargo e raiva no rosto.

— Essa não é uma troca justa! — ela exclamou em voz alta. — O cinturão não tem nenhum poder.

— Mãe, não pode ser! — Emlis falou depressa, corando, envergonhado da mãe. — Doran nos contou! O Cinturão de Deltora é tão poderoso quanto a Flauta de Pirra!

— No mundo superior, talvez — ela retrucou zangada. — Aqui, é apenas uma ninharia cheia de pedras preciosas.

Mas a multidão murmurava agitada e, quando Tirral olhou à sua volta, mordendo o lábio, Lief suspirou aliviado. Por mais que quisesse, a Flautista não podia recuar sem parecer desonrosa e perder a confiança de seu povo.

Rigidamente, como se todos os movimentos provocassem dor, Tirral pegou uma pequena caixa feita de conchas de dentro das dobras de sua túnica. No mesmo momento, Lief tirou a pequena bolsa de tecido vermelho que continha o bocal e a haste da Flauta de Pirra de dentro da camisa.

Tirral abriu a caixa e a estendeu para ele. A ponta da Flauta de Pirra estava lá dentro, protegida por uma cama de seda. Ela era muito pequena, e a sua superfície entalhada e estranha emitia um leve brilho verde debaixo da luz cor de esmeralda.

Ela ergueu a cabeça, e o olhar de ambos se encontrou, enquanto a música da Flauta flutuava ao seu redor.

O povo ficou em silêncio. Ele também podia ouvir a música. Mas Jasmine e Barda olhavam nervosos um para o outro, pois não conseguiam ouvir nada.

Atordoado pela música, Lief tirou a Flauta incompleta da bolsinha, e Tirral estendeu a ponta para ele. Lief finalmente reuniu as três partes.

A música parou de repente, como se tivesse sido fechada com uma tampa.

— Ela parou para chorar — Tirral sussurrou e, de repente, lágrimas brilhantes saíram de seus olhos claros e frios.

Espantado com o repentino silêncio, Lief olhou fixamente para o objeto mágico que segurava nas mãos. Ele brilhava muito levemente, como se tivesse uma luz em seu interior. Ali, finalmente, estava a Flauta de Pirra — inteira e perfeita pela primeira vez desde que as tribos rivais de Pirra a tinham dividido e silenciaram a sua voz. E, completa, ela tinha se transformado.

— Mas ela mudou! — Jasmine balbuciou admirada. — Ela brilha! E parece maior do que deveria ser.

Era verdade. A ponta da flauta era a menor parte das três e deveria ter aumentado muito pouco o instrumento. Mas agora, completa, a Flauta parecia muito maior e forte, muito mais estranha, bela e vibrante do que antes. Era como se fosse maior do que a soma de suas partes.

Mas ela estava silenciosa. Esperando. Esperando que um sopro cálido lhe devolvesse a vida. Esperando pelo toque hábil e carinhoso que recuperasse a sua música nos campos fantasmagóricos em que havia sofrido por tanto tempo e a deixasse cantar no presente.

“E eu não posso fazer isso”, Lief pensou, com uma pontada de tristeza. “Eu não saberia onde começar e, mesmo que tivesse capacidade, outra pessoa deveria tocá-la.”

Ele olhou para Tirral e viu o desejo em seus olhos brilhantes. De repente, ele soube o que devia fazer. Lief estendeu as mãos que seguravam a Flauta cintilante.

— Você é a Flautista, Tirral — ele disse devagar. — Toque, por favor.

 

E assim, pela primeira vez desde o começo do mundo, as notas puras da Flauta de Pirra soaram nas cavernas do mar secreto, enquanto o povo de Keras ouvia com expressões de êxtase e faces cobertas de lágrimas.

A música acariciou as águas encrespadas, ecoou nas rochas cintilantes até que o ar pareceu tremer com sua beleza, e nenhuma parede foi capaz de segurá-la.

Ela flutuou pelo Caminho Proibido, onde as sanguessugas a ouviram e se esconderam na escuridão. Ela cantou no mar de opala, onde as grandes enguias ergueram as cabeças da água e flutuaram ao seu som.

Os aurons, que trabalhavam em sua ilha, deixaram as suas tarefas paralisados quando o som chegou aos seus ouvidos. A expressão no velho rosto do Flautista não mudou, mas o seu corpo todo estremeceu, como que atingido por um vento forte e gelado. E Penn, que arrumava manuscritos em sua pequena cabana nas balsas, juntou as mãos feliz e maravilhada.

O som da Flauta atravessou as cavernas de arco-íris, onde as lagartas se enterraram no fundo da areia para dele fugir, e as criaturas rechonchudas do mar saltaram e brincaram. Ele encheu a luz com sua beleza e flutuou para o mar de rubi e a ilha de Plume.

Nols, que cuidava do túmulo do guerreiro Glock, deu um grito quando escutou a música. Ela se levantou com esforço e correu para a praia, onde pessoas admiradas e silenciosas entravam na água escarlate até a cintura, olhando na direção do som.

A música continuava a sua trajetória suave e persistente, até atingir os mais longínquos recantos do mar dourado, onde Clef e Azan, que pescavam em seu minúsculo bote, largaram as redes e ficaram sentados enfeitiçados. Então o último e pequeno vestígio de som se elevou acima de suas cabeças e atravessou a névoa cor de topázio. E, carregado pela brisa leve e fria, invadiu o sono encantado do dragão dourado, levando consigo sonhos de sol, ventos fortes, montanhas altas, magia e glória desaparecida.

 

Tirral ficou sentada em silêncio durante as comemorações que se seguiram à sua apresentação com a flauta. Havia comida, bebida e risos ao redor da fogueira, mas ela não participou de nada. Ela prestou atenção somente quando os kerons trouxeram as suas pequenas flautas de madeira.

De fato, valia a pena ouvir a música doce e suave. E, para surpresa dos companheiros, os tons mais agradáveis saíram da flauta de Emlis.

Quando eles o cumprimentaram, Emlis baixou o instrumento e se sentou ao lado da mãe tímido.

— Sempre fiquei feliz em tocar — ele disse. — Mas agora que ouvi a Flauta de Pirra, sei que os sons que tiro de minha flauta são apenas um leve reflexo do que pode ser a verdadeira música.

Desajeitado, ele limpou o instrumento na manga da camisa e estendeu-o a Barda.

— Você não quer tocar para nós? — ele pediu. — Tenho muita vontade de ouvir a música do mundo superior.

— É muito parecida com a de vocês — Barda respondeu, rindo. — Mas, eu sinto muito, não posso tocar para vocês. E nenhum de meus amigos sabe tocar também. Não entendemos nada de música.

— O quê?

A exclamação aguda de Tirral cortou a música e os risos como um raio. O silêncio caiu entre eles.

— Você está dizendo que nem sabem tocar flauta?

— Não sabemos tocar como vocês — Lief concordou desanimado.

— Mas é a mágica da Flauta de Pirra que conta, não a habilidade do músico. Uma única nota será suficiente para dominar o Senhor das Sombras.

— Você não tem certeza disso! — Tirral gritou. — Antigamente, a Flauta só era tocada pelos melhores músicos de Pirra!

Com o rosto radiante pela esperança renovada, ela apelou ao povo silencioso que a cercava.

— As nossas crenças não exigem que a gente ofereça ou empreste a Flauta para um primo se a sua causa for inútil, kerons! Não é verdade?

As pessoas concordaram com relutância.

— Pois então, muito bem! — Tirral gritou. — O que poderia ser mais inútil do que dar a Flauta de Pirra a quem nem sabe tocá-la? — ela perguntou, olhando ao redor com ar de triunfo.

— Isso não importa!

Todos se sobressaltaram quando a voz alta e nervosa interrompeu o silêncio. Todos olharam quando Emlis deu um passo à frente, corado até a raiz de seus cabelos loiros.

— Não... não importa se nossos primos não sabem tocar a Flauta

— Emlis balbuciou, encontrando o olhar zangado da mãe numa atitude de desafio. — Não importa porque... porque eu sei tocar muito bem. E eu vou com eles!

A declaração foi seguida de muitas discussões, mas a fúria de Tirral e os protestos dos companheiros de nada adiantaram. Para o povo de Pirra, o argumento de Emlis tinha derrubado o último obstáculo para que a Flauta de Pirra fosse levada para a Terra das Sombras.

— Então, vocês venceram e eu perdi — Tirral disse com amargura, quando devolveu as armas dos companheiros. — Eu perdi não só a Flauta de Pirra, mas também o meu filho. Vocês conquistaram o direito de destruir os dois, e também a vocês. Espero que a sua vitória lhes traga alegria.

O rosto de Tirral estava sombrio, e as mariposas que voavam ao seu redor mal se moviam.

— Tirral... — Lief começou, mas a Flautista já tinha se virado e se afastava rapidamente.

— Não podemos fazer nada se o filho dela quer vir com a gente — Jasmine sussurrou. — A culpa é toda dela. Se ela nos tivesse deixado ir em paz, Emlis nunca teria tido essa idéia.

— Teria, sim — Barda discordou. — Esse rapaz está tão ansioso quanto nós para escapar desta ilha. Acho que ele viu a oportunidade e a segurou com as duas mãos.

— Mas ele não sabe o que está fazendo! — Lief murmurou.

— Não — Barda retrucou. E nós, sabemos?

Poucas horas depois, dois barcos compridos remados por dois colhedores de sanguessugas de cara enrugada avançavam para o norte da ilha. Lief, Jasmine, Barda e Emlis estavam sentados na popa de um deles. No outro, estavam Tirral com uma expressão gelada no rosto e dois de seus conselheiros mais íntimos.

A água de cor esverdeada se estendia à frente deles e se transformava lentamente em cinza. O horizonte estava escondido pela escuridão.

Kree se mexia agitado.

— A Zona Cinzenta — Jasmine disse, observando o horizonte ameaçador.

Emlis concordou com um gesto de cabeça. O medo se misturava ao entusiasmo no seu rosto magro, que estava quase totalmente coberto pelo capuz da capa grossa e verde que os colhedores de sanguessugas costumavam usar.

— Não é tarde para você mudar de idéia, Emlis — sugeriu Barda, que estava sentado ao lado dele. — Isso não é um dos contos de Doran. Isso é real e pode ser mortalmente perigoso.

— Não posso mudar de idéia agora — Emlis replicou. — Vocês precisam de mim. Eles não vão deixar que levem a Flauta se eu não for junto.

— A sua pele não foi feita para o mundo superior, Emlis — Jasmine sussurrou, inclinando-se para a frente. — O sol vai te queimar, e a luz vai te cegar.

Emlis balançou a cabeça com teimosia.

— A capa vai me proteger do sol. E eu não sou o primeiro pirrano a sair das cavernas. Doran contou que sete pirranos fizeram isso na época de Alyss e Rosnan.

— E todos morreram, Emlis — Barda respondeu com crueldade.

— Eles morreram e nunca viram os seus lares outra vez.

— Eles foram mortos pelo povo do mundo superior, não pelo sol — Emlis falou com a voz trêmula. — E, de qualquer forma, eles eram plumes, e plumes são tão tolos e estúpidos quanto os aurons são malvados.

— Plumes e aurons não são estúpidos e maus! — Jasmine gritou.

— Eles são o seu povo. São seus parentes. Eles são muito mais próximos de vocês do que nós.

Os colhedores de sanguessugas que remavam o barco deles se viraram e olharam para eles com uma expressão feroz. Um deles emitiu um som baixo, e o outro mostrou os dentes de modo desagradável. Jasmine fechou a boca e retribuiu seus olhares sem piscar, até que finalmente eles se viraram e continuaram a remar.

— Por favor, não briguem mais comigo — Emlis pediu, os ombros curvados. — Esta é a minha única chance de fazer o que mais quero na vida. Ver um mundo diferente do meu. Se eu morrer na viagem, vai ser porque decidi assim.

Barda, desesperado, correu os dedos pelos cabelos emaranhados.

— Três deles — ele balbuciou baixinho. — Três jovens desatinados. Por Deus, dois já não eram suficientes?

A luz cor de esmeralda diminuiu aos poucos. Uma hora depois, a embarcação atravessava uma região envolta numa sombria cor cinzenta. O grupo já estava muito além do que indicava o mapa de Doran e já tinha ultrapassado as fronteiras de Deltora.

Quando olharam para cima, tudo o que viram foi uma agitada escuridão. Eles sabiam que acima deles se erguiam os cumes traiçoeiros que se agrupavam atrás da Montanha do Medo — rochas duras como ferro, cheias de grutas úmidas e secretas onde viviam monstros terríveis como Gellick.

O bote se movia mais devagar, e os rostos enrugados dos remadores estavam tensos e vigilantes.

À frente deles, surgiu uma sombra negra como a noite — a caverna que se encontrava embaixo da Terra das Sombras.

— Quando eles vão nos deixar? — perguntou Jasmine.

— Precisamos ir até a beira da sombra — um dos remadores avisou inesperadamente sem se virar. — Foi o que a Flautista disse. E ali vamos parar, graças a Keras, e mandar vocês para cima, para o lugar maligno que existe lá.

— Mandar a gente para cima? — Lief piscou confuso. Ele tinha imaginado que os kerons iam mostrar um caminho secreto para chegar à superfície. Mas parecia que...

— É possível que não precisemos da magia de sete para essa tarefa — disse o colhedor de sanguessugas — , mas achamos melhor garantir. Quem sabe qual é a profundidade da rocha? Mesmo com todas as suas idéias estranhas, ninguém vai querer que vocês sejam apanhados no meio do caminho, não é mesmo?

O seu companheiro soltou um riso sinistro. Lief sentiu Jasmine estremecer e percebeu que ela também imaginara o pesadelo que seria ficar presa em meio à rocha sólida.

— Não tenham medo — Emlis os tranqüilizou. — Nossos ancestrais, muitas vezes, mandaram Doran para a superfície sem problemas.

— Isso foi há muito tempo — Barda murmurou abatido. — E suponho que Doran não foi mandado para a Terra das Sombras.

— Ah, não! — Emlis concordou. — Doran sempre deixou as cavernas e foi para um lugar a oeste de Keras. Ele dizia que, na terra acima, exatamente nesse ponto, havia um grande canal e barcos que o ajudariam na viagem para casa.

— O rio Tor! — Lief exclamou. — Então era esse o caminho secreto de Doran. Ele reaparecia no matagal abaixo da Montanha do Medo, andava até o rio e esperava por um barco. Naquele tempo, não havia tantos piratas.

— Ou Ols — Jasmine completou. Kree grasnava nervoso no ombro da dona, mas ela não se virou para ele. Os olhos de Jasmine estavam fixos na massa escura que surgia diante deles.

A Terra das Sombras. Em breve, muito breve, ela poderia começar a procurar por Faith, a sua irmã desaparecida. E Lief e Barda estariam a seu lado.

Jasmine não tinha perdoado Lief por tentar esconder Faith dela. Mas tudo que passaram juntos depois que entraram nas cavernas fez a sua raiva perder a força. Agora ela tinha certeza de que o amigo guardara esse segredo somente para manter a ela, Jasmine, longe do perigo.

“Ele errou em me enganar”, Jasmine pensou. “Mas ele acreditou estar fazendo o que era certo.”

Apesar de não enxergar nada, os olhos dela estavam presos na sombra que aumentava na sua frente. A futura esposa de Lief, a moça nobre e instruída que seria uma rainha adequada e que daria à luz a uma criança que usaria o Cinturão de Deltora estava esperando por ele em Del. Mas era Jasmine que estava com Lief naquele momento. E ela era sua amiga — sua verdadeira amiga.

“E isso é o bastante”, ela disse a si mesma. Era assim que deveria ser. Afinal, o que ela sabia de palácios, boas maneiras e roupas finas? Absolutamente nada e tampouco queria aprender. Lief sabia disso.

Filli choramingou baixinho debaixo de sua gola, e ela ergueu a mão para acalmá-lo, inconscientemente tirando conforto do calor do animalzinho.

— A primeira vez que Doran veio até as cavernas, ele não conseguiu chegar a Keras — Emlis tagarelava para Barda. — Alguns plumes o encontraram se afogando no mar de topázio. Eles o salvaram, mas o mandaram imediatamente de volta para a superfície. Veja só como os plumes são estúpidos.

Ele parou de falar e olhou arrependido para Jasmine, mas ela ainda olhava fixamente para a frente.

— O plumes pensaram que Doran iria esquecer o que tinha acontecido — Emlis continuou. — Mas uma canção que eles cantaram enquanto remavam o bote ficou em sua mente e o fez lembrar. Assim ele voltou, e desta vez...

A sua voz ansiosa foi interrompida por um grito agudo.

A escuridão tinha caído como uma cortina. A água que os cercava era negra como a noite. Eles não conseguiam ver nada e só conseguiam ouvir o som das ondas e a pequena embarcação que os acompanhava batendo em seu barco levemente.

— Chegou a hora — a voz trêmula de Tirral flutuou na escuridão. — Agora vocês têm a última chance de mudar de idéia. Vocês vão voltar com a gente para a segurança de Keras? Lief... Barda... Jasmine... Emlis?

Houve uma longa pausa.

— Muito bem — a voz de Tirral estava rigidamente controlada agora. — Tenho um conselho para dar a vocês e, por favor, não deixem de segui-lo, pois acho que realmente vale a pena. As Sombras mergulharam no fundo do território de Pirra agora. Não importa o que os plumes e os aurons pensam, mas Pirra está perdida para sempre. Nunca vai poder ser recuperada.

— Sabemos disso — Lief disse. — E nem os plumes nem os aurons esperam que...

— Ainda não terminei — Tirral interrompeu. — Escutem! O poder do Senhor das Sombras está muito maior hoje do que quando a Flauta o manteve afastado do território de Pirra. Bem ou mal tocada, a Flauta vai dominá-lo somente por pouco tempo, e somente se for pego de surpresa. Guarde a sua mágica para quando for realmente necessária.

— Vamos fazer isso — Lief, Barda e Jasmine murmuraram juntos.

— Então, não tenho mais nada a fazer além de desejar sorte a vocês — Tirral disse na escuridão. — Abracem-se, fechem os olhos e não pensem em nada.

Como se estivesse num sonho, Lief passou para o centro do barco. Ele se ajoelhou nas tábuas duras, esticou os braços e segurou firme nos companheiros. Ele abaixou a cabeça e expulsou todos os pensamentos de sua mente.

— Boa sorte, primos — a voz rouca de um dos colhedores de sanguessugas trovejou baixinho em meio ao silêncio. Então...

Frio, um frio gelado. A escuridão. Uma tontura forte, insuportável...

De repente, um silêncio aterrador. Um cheiro amargo e estranho. Um som rápido e palpitante, muito próximo, misturado ao gemido do vento. Lief abriu os olhos e respirou com dificuldade pela primeira vez na Terra das Sombras.

 

Lief ficou deitado e muito quieto. Aos poucos, percebeu que o som latejante que ouvia eram os batimentos de seu coração. Ele estava de bruços na terra dura. O vento soprava sobre ele, uma corrente de ar, nem fria nem quente, que carregava com ela o cheiro amargo que tinha sentido antes.

Ele levantou a cabeça com cuidado, piscando na luz sombria. Jasmine estava agachada ao seu lado com Kree no ombro. Barda se levantava devagar não longe dali. Emlis, envolto na capa, ainda estava no chão, encolhido como uma pequena bola.

Com um estremecimento, Lief se deu conta de que estavam ao ar livre, numa planície varrida pelo vento, espremida entre duas crateras abertas. Um terreno coberto por uma argila branca e árida, ressecada e rachada como o leito seco de um rio, se estendia diante deles até onde a vista alcançava. Grossas nuvens cinzentas pairavam baixas e escondiam o sol.

A terra estava morta. Morta como ossos brancos e descorados.

Os olhos de Lief arderam quando as palavras do Conto da Flauta de Pirra vieram à sua cabeça de repente.

Há muito, muito tempo atrás, além das Montanhas, havia um país verdejante chamado Pirra, onde a brisa espalhava magia...

Pirra, antes um lugar repleto de beleza, sol e flores. O antigo lar dos kerons, dos plumes e dos aurons. Agora... um deserto.

E isso é o que Deltora poderia ter sido. E ainda pode ser. Se você estiver errado, Lief. Se você estiver errado...

Lief balançou a cabeça, tentando calar a voz em seus ouvidos, a voz torturante de sua consciência, mas ela não parava.

Você deveria ter deixado Jasmine partir. Você deveria ter ficado em Del. Esse era o seu dever. O seu dever...

Jasmine puxava o seu braço.

— Lief! Precisamos procurar um abrigo depressa — ela sussurrou. — Há coisas aqui... chegando mais perto.

Lief deixou de contemplar o horizonte árido e olhou para a amiga. Os olhos dela estavam assustados, arregalados, quase negros.

— Pessoas? Monstros? Ols? — ele perguntou depressa.

— Não... não sei — Jasmine murmurou. — Coisas — ela estremeceu. Filli choramingou em seu esconderijo debaixo da jaqueta.

Barda levantou Emlis do chão e correu para perto deles.

— Não fiquem parados aí! — ele disse agitado. — Se um Ak-Baba nos vir, vai se o nosso fim! — ele agarrou Lief pelo braço e fez com que ele se virasse.

Somente então Lief percebeu que não tinham sido abandonados no meio de uma grande planície, como havia imaginado. Atrás deles, as montanhas se erguiam como uma grande cerca recortada. Os seus cumes cruéis perfuravam as nuvens, e a sua base beirava a planície. O imenso contorno da Montanha do Medo se elevava ao fundo e se espalhava para o oeste.

“Mas claro!”, Lief pensou, correndo para o sopé da montanha acompanhado de perto dos companheiros. “Os kerons nos enviaram para a superfície com sua magia e chegamos exatamente na fronteira da Terra das Sombras. É claro que as montanhas estão aqui. No que eu estava pensando?”

Lief ouviu Emlis despertando, protestando e exigindo ser colocado no chão. Bem, isso era bom. Pelo menos Barda ficaria com as mãos livres para escalar. Lief contornou as primeiras grandes pedras cinzentas que estavam na beira da planície e começou a subir com dificuldade, procurando o abrigo que um penhasco maior oferecia.

Então, de repente, uma forte dor explodiu em sua cabeça quando um objeto atingiu a sua testa com uma força surpreendente. Ele cambaleou para trás agitando os braços desesperado, lutando para manter o equilíbrio. Através do som em seus ouvidos, ele escutou gritos abafados de alerta quando, com alívio, um braço firme apoiou as suas costas. Barda o empurrava e ajudava e ficar de pé.

Trêmulo, ele caiu de joelhos. Barda, Jasmine e Emlis agacharam-se bem perto dele para que a grande pedra os escondesse da planície.

— Lief, o que aconteceu? — ele escutou Jasmine sussurrar.

— Você não viu? — ele balbuciou, apertando a testa com as mãos. — Alguma coisa bateu em mim.

— Não! — ela sussurrou em resposta. — Não tinha nada aqui. Você só caiu para trás de repente, sem motivo. Num minuto, você estava correndo, no outro...

Barda respirava com dificuldade. Ele apanhou algumas pedras e as jogou no ar na frente deles. Perplexo, Lief viu que as pedras pararam em pleno ar, voltaram então caíram no chão.

— Uma parede invisível! — Jasmine murmurou.

— Sim — Barda concordou aborrecido. — Achei estranho as montanhas não terem nenhuma proteção. Parece que o Senhor das Sombras fechou a fronteira do seu próprio jeito.

Enquanto Barda falava, eles perceberam um movimento perto de onde as pedras tinham caído. Um pequeno lagarto marrom, listrado e com olhos brilhantes tinha saído de seu esconderijo.

— Mas ele veio da montanha! — Jasmine sussurrou animada. — De trás do muro invisível. Eu vi! Será que só os humanos são afetados pelo feitiço?

Lief sentiu-se mal. Ele tinha pensado em outra explicação e pôde ver, pela expressão de Barda, que o amigo tinha tido a mesma idéia.

A pequena língua bifurcada do lagarto entrou e saiu de sua boca por alguns instantes. Então, bruscamente, ele se virou e voltou para o alto da montanha. Quando chegou na frente da parede invisível, ele parou e caiu para trás.

— Foi o que pensei — Barda disse devagar. — Era o que eu temia. O feitiço não impede pessoas ou animais de entrar, apenas de sair.

Ele, Lief e Jasmine olharam um para o outro, sem vontade de falar. Então Lief começou a se levantar com esforço.

— Fique quieto — Jasmine falou baixinho, segurando o amigo pelo braço. — Você precisa descansar. Você bateu a cabeça...

— Não! — Lief protestou zangado, soltando-se da mão de Jasmine. Jasmine segurou-o com mais força, e ele caiu para trás com um gemido, sentindo a cabeça girar.

— Você disse que tinha uma coisa se aproximando — ele murmurou.

— Precisamos...

— Faça o que Jasmine mandou, Lief! — Barda ordenou sério, puxando a espada. — No momento, estamos tão seguros atrás desta pedra quanto em qualquer outro lugar. E, mesmo que Jasmine esteja ouvindo muitos ruídos, eu ainda não estou vendo nada.

O pequeno lagarto arranhava freneticamente a parede invisível. Ele corria ao longo dela de um lado a outro sem parar. De tempos em tempos, ele levantava e empurrava o ar com as patas dianteiras agitando a cauda freneticamente.

— Mas por que o Senhor das Sombras não protege a sua fronteira?

— Emlis perguntou em voz alta e trêmula. — Ele tem muitas pessoas de seu povo em seu poder. Ele não tem medo de que um exército... ou um pequeno grupo como o nosso possa cruzar as montanhas e invadir o seu território?

— É isso que ele espera, tenho certeza — Barda murmurou. — Afinal, ele deixou o caminho aberto.

— Mas por quê? — Emlis insistiu, a voz aguda.

O lagarto caiu para trás exausto. No mesmo instante, uma criatura semelhante a um besouro espinhento cor de laranja saltou de uma fenda no chão exatamente atrás dele. Num piscar de olhos, a criatura alaranjada agarrou o lagarto, comeu a sua cabeça e arrastou a carcaça que ainda se contorcia para debaixo da terra.

— Isso responde a sua pergunta? — Barda retrucou secamente.

Emlis olhou para ele boquiaberto.

Lief virou o rosto para o penhasco, o estômago revirado. E então ele viu... uma marca que tinha sido rabiscada com vigor na superfície dura da rocha. Ele olhou fixamente, mal acreditando no que via.

— O sinal da Resistência! — ele sussurrou, acompanhando o contorno do desenho com o dedo. O seu coração batia depressa.

Outro deltorano tinha buscado abrigo ali. Um deltorano que, de algum jeito, tinha escapado da prisão e se dirigido às montanhas, onde acabou encontrando o caminho para a liberdade fechado. Um deltorano que, possivelmente, usou as suas últimas forças não para chorar e amaldiçoar o destino, mas, sim, para rabiscar uma mensagem de desafio na pedra.

A confusão desesperada que tinha tomado conta de Lief desde que haviam chegado àquele lugar assustador pareceu desaparecer de repente e ele conseguiu raciocinar outra vez.

Barda estava examinando o sinal.

— Ele não foi feito recentemente, mas também não é muito antigo — ele disse devagar. — Acho que um ano ou dois, no máximo.

Lief se lembrou de outro sinal da Resistência que tinha visto numa rocha. Ele tinha sido a assinatura de uma mensagem escrita com sangue na parede de uma gruta na Montanha do Medo.

Aquela mensagem tinha sido escrita por Perdição que, segundo se dizia, era o único deltorano preso na Terra das Sombras que tinha conseguido escapar. E ele tinha escapado de...

Kree grasnou baixinho em sinal de advertência.

— A luz está mudando — Jasmine sussurrou, pegando a adaga.

Lief e Barda olharam para cima depressa. As nuvens baixas e agitadas exibiam manchas vermelho claro e a luminosidade da planície estava diminuindo.

— Não é possível que um pequeno lagarto tenha disparado o alarme da fronteira — Barda deduziu. — Essas coisas devem acontecer com freqüência.

— É o sol que está se pondo — Lief disse, olhando para o oeste, onde as nuvens mostravam um brilho mais forte. — A noite está caindo.

Houve um breve silêncio. Os companheiros tinham estado em cavernas durante tanto tempo que quase tinham esquecido que os dias no mundo superior eram regulados pelo movimento do sol.

— Doran disse que o pôr-do-sol é um espetáculo magnífico — Emlis disse, contemplando as nuvens desapontado. — Doran disse que ele parece uma fogueira vermelha e cor de laranja queimando no céu.

— Pelo jeito, não é o que acontece aqui — Barda resmungou. Jasmine não estava espiando o céu, mas, sim, a planície.

— Olhem — ela falou baixinho, apontando.

A planície pareceu criar vida. Pernas andavam, antenas ondulavam, centenas de besouros alaranjados surgiam das fendas na terra.

 

Lief olhou para baixo. Havia muito movimento nas fendas na terra perto de seus pés, embora até aquele momento nada tinha se aventurado a subir à superfície.

— Não gosto disso — Barda comentou. — É melhor sairmos daqui. Esses insetos são pequenos, mas são muitos e comem carne. Se estiverem com muita fome...

Ele não tinha completado a sentença, mas tinha dito o suficiente para que os amigos se levantassem depressa.

— Para que lado a gente vai? — Jasmine perguntou, olhando desesperada para os dois lados.

— Para o oeste — Lief respondeu de imediato, virando-se para observar o brilho vermelho escuro onde o sol se punha.

— Por que oeste? — ela quis saber. — Se quisermos encontrar o quartel-general do Senhor das Sombras em tempo...

— O quê? — Barda interrompeu, olhando para ela sem acreditar. — Que loucura é essa? O quartel-general do Senhor das Sombras? Esse é exatamente o lugar que temos que evitar de qualquer jeito.

— Mas... mas os escravos! — Jasmine balbuciou, corando. Ela tinha se traído, tinha esquecido que os seus companheiros não sabiam nada sobre os seus planos.

Jasmine tinha certeza de que Faith se encontrava perto ou dentro do quartel-general do inimigo. Para pedir ajuda, a garotinha tinha usado secretamente o que chamava de “o cristal”. E onde mais poderia estar esse instrumento mágico, senão na principal fortaleza do Senhor das Sombras? De alguma forma, Jasmine tinha que convencer os companheiros a procurar por ela.

Deveria ela contar o segredo, afinal? Contar para Lief e Barda o que Faith tinha dito?

Quase que imediatamente ela decidiu que não podia correr esse risco. Não ali, naquela planície varrida pelo vento, onde cada brisa trazia o cheiro do perigo. Ela tinha guardado o segredo durante muito tempo para pôr tudo a perder. Aquele não era o lugar ideal para brigas, perda de confiança ou palavras zangadas que ela acabaria dizendo assim que a interrogassem.

“Não. Agi sozinha até agora, e é assim que tenho que continuar até chegar o momento certo”, Jasmine pensou.

— Os escravos devem estar espalhados por todo esse maldito território — Barda grunhiu. — Por que você acha que...?

— Esperem! — Lief olhou rapidamente de um lado a outro. — Onde está Emlis?

Assustados, Jasmine e Barda se viraram bruscamente. Emlis não estava mais atrás deles. Ele tinha desaparecido.

— Mas... mas ele estava aqui! De pé, do lado dessa pedra! — Barda declarou.

— Pois agora não está mais — Lief disse preocupado. — Ele deve ter se afastado de nós enquanto a gente discutia.

Estava ficando cada vez mais escuro. Eles se separaram depressa e, chamando baixinho, procuraram nas proximidades. Mas Emlis não foi encontrado em nenhum lugar.

Eles se reencontraram na grande pedra, todos com medo e zangados.

— Não posso acreditar numa coisa dessas! — Barda vociferou. — Que jogo esse garoto bobo pensa que está brincando?

— Vamos ter que continuar sem ele — Jasmine disparou, queimando de impaciência. — Não temos tempo a perder. E esses insetos estão aparecendo aos montes.

Lief esforçou-se para enxergar na planície. O barro, escurecido pelo sol que se punha, tinha agora a mesma cor dos besouros. Se não fossem tantos, os insetos poderiam ficar totalmente camuflados. Eles faziam o chão parecer agitado, como se estivesse coberto por ondas provocadas pela maré.

As ondas pareciam especialmente grandes num ponto ao lado da cratera maior. Era como se elas quebrassem sobre uma grande pedra que estava caída ali.

“Parte de minha mente ainda está no mar secreto”, Lief pensou. Então, de repente, ele se inclinou para a frente e observou a penumbra com atenção. Por que os besouros se amontoavam tão perto uns dos outros exatamente naquele lugar? Era quase como se...

De repente, Lief compreendeu o fato terrível que estava acontecendo. Ele gritou e saltou para a frente.

Ele ouviu Jasmine e Barda seguindo-o, pedindo aos gritos para que parasse, enquanto corria pela planície, esmagando dezenas de besouros a cada passo pesado de seus pés. Mas não havia tempo para parar, para explicar. Não havia tempo para contar aos amigos por que o seu estômago se revirava, o seu coração batia acelerado....

Em poucos instantes, ele atingiu a massa enorme de besouros perto da cratera e mergulhou os seus braços em meio aos insetos. Então, ofegante e trêmulo, ele ergueu o corpo mole e ensangüentado de Emlis do chão.

Com exclamações de horror, Barda e Jasmine começaram a bater com as mãos nos insetos colados às roupas esfarrapadas de Emlis e arrancá-los da carne ferida. No chão, milhares de besouros corriam em pânico, lutando por espaço enquanto voltavam para as fendas na terra.

Emlis gemia fracamente e tentava falar.

— Como isso aconteceu? — Barda gritou. — Será que ele é tão louco que se afastou...

As palavras morreram em seus lábios e ele arregalou os olhos. Quando Barda ergueu a espada, Lief e Jasmine se viraram rapidamente para ver o que estava acontecendo.

Vultos saíam das crateras — vultos maltrapilhos de olhos brilhantes e dentes arreganhados que andavam arrastando os pés. As mãos cheias de garras se estendiam para eles. Grunhidos baixos e uivos agudos se juntavam num terrível coro de raiva frustrada.

Lief, que carregava e arrastava Emlis, se virou e voltou com dificuldade para as colinas no chão coberto por besouros. Barda e Jasmine o seguiram, as armas estendidas diante deles para afastar as criaturas medonhas que saíam rastejando da cratera em número cada vez maior.

As criaturas pareciam humanas, apesar de exibir mudanças horríveis. Algumas estavam cobertas de cabelos, tinham dentes enormes saindo das bocas abertas. Outras tinham braços e pernas encolhidos, caudas compridas e pele coberta de escamas. Outras ainda tinham corcundas cobertas por uma casca brilhante, pernas torcidas semelhantes às de insetos e nadadeiras espinhentas no lugar dos braços. Rugindo e uivando, elas começaram a se espalhar, cercando os amigos em fuga como um bando de animais se aproximando de sua presa.

Lief, Barda e Jasmine chegaram à pedra marcada com o sinal da Resistência e, mudos de terror, viraram-se para lutar. As criaturas chegavam de todos os lados. Não havia por onde fugir.

Então, de repente, um tremor pareceu atingir o grupo selvagem e ele parou onde estava. Houve um ruído longo e baixo parecido com um trovão distante e, no mesmo instante, a luz fraca ficou brilhante.

Instintivamente, Lief olhou para cima, e um calafrio percorreu a sua espinha. Em vez da Lua que esperava ver, outra figura se formava no céu. Enorme e ameaçadora, ela brilhou como um fogo branco e frio contra as nuvens cinzentas.

Gemendo e se lamentando, as criaturas caíram ao chão e cobriram os olhos.

— Agora! Corram! — Barda ordenou, erguendo Emlis sobre o ombro.

Juntos, ele deixaram a proteção da pedra, atravessaram o grupo de criaturas caídas no chão e começaram a correr ao longo da fileira de colinas na direção do oeste.

Após apenas alguns momentos, eles ouviram o som forte de pés atrás deles e um terrível coro de latidos, grunhidos e uivos. As criaturas se recuperaram do momento de medo provocado pelo surgimento da marca do Senhor das Sombras no céu e recomeçaram a perseguição cruel.

Sem ousar olhar para trás, os companheiros continuaram correndo, desviando-se de pedras, tropeçando no chão irregular, atingidos pelo vento implacável que varria a planície. Então eles viram, não longe de onde estavam, alguma coisa que bloqueava a passagem. Uma pedra comprida emergia da terra, cintilando na terrível luz que vinha do céu.

— Para cima! — Barda disse ofegante. — Não podemos nos arriscar a dar a volta. Não podemos deixar que eles... fiquem na nossa frente.

O grupo alcançou a barreira e saltou para cima, subindo para o alto com dificuldade e escorregando pelo outro lado.

Lief caiu no chão duro, torcendo o ombro. Quando Jasmine aterrissou ao seu lado, ele se ergueu de um salto e esperou Barda para ajudá-lo com Emlis. E então ele ouviu Jasmine gritar o seu nome. Ele se virou, carregando Emlis nos braços e viu algo que gelou o seu sangue nas veias.

Não muito longe deles, havia outra pedra imensa emergindo da terra, mais alta do que a que tinham acabado de escalar. E de sua sombra surgia uma figura enorme em forma de domo que emitia um brilho fosco igual ao das rochas. O seu corpo imenso ondulava e inchava horrivelmente enquanto se movia, como se a pele grossa e lisa cobrisse a carne, que nada mais era do que uma geléia trepidante.

Lief abafou um grito quando o vulto se arrastou para onde havia luz. Ele ouviu Filli guinchando apavorado, Kree grasnando e Barda praguejando. Ao redor do corpo do monstro, havia um colar formado de dezenas de cabeças, cada uma com olhos vidrados e abertos, bocas abertas sem lábios das quais pendia uma língua longa, fina e gotejante.

Os amigos se encostaram à rocha. Os uivos e o barulho de pés batendo no chão ficavam mais fortes. Os seus perseguidores estavam se aproximando. Virar-se e escalar por onde tinham vindo seria entregar-se diretamente nas mãos do inimigo.

Mas a besta caminhava na direção deles. Ela deslizava sem esforço no chão tortuoso sobre centenas de minúsculas patas quase escondidas debaixo de uma franja de pele que pendia do corpo como uma saia esfarrapada. Ele tinha dezenas de olhos, que tinham girado para se fixar nos intrusos. As suas línguas ficavam cada vez mais compridas e se enrolavam e tremiam ameaçadoras.

— Precisamos nos dividir e tentar dar a volta — Barda murmurou para Lief e Jasmine. — Vocês dois vão para a direita. Eu vou para a esquerda com Emlis.

Mas assim que deram o primeiro passo, ouviu-se um som agudo, e as línguas dispararam para a frente como cobras em ambas as direções, não atingindo Barda e Jasmine por pouco. Os companheiros recuaram e se recostaram à rocha. Era evidente que não poderiam se mover.

O corpo da besta se enrugava e parecia inchar enquanto se aproximava, e os seus olhos vazios brilhavam.

 

Ao lado de Jasmine e Barda, Lief observou o monstro. Ele ondulava diante deles, as suas línguas se agitando e enrolando, o corpo se achatando e espalhando, erguendo-se levemente do lado voltado para a rocha.

“Ele está se preparando para nos engolir”, Lief pensou.

Suas pernas enfraqueceram. O coração dele batia acelerado. A mão que segurava a espada estava úmida e escorregadia. Suor corria sobre suas sobrancelhas e, quando Lief ergueu a mão livre para limpá-lo devagar, o seu braço roçou a Flauta de Pirra escondida debaixo da camisa. De repente, ele se lembrou da promessa feita a Tirral.

A Flauta não estará perdida. Juro que ela vai ser devolvida para as cavernas.

Lief molhou os lábios secos. Aparentemente, essa promessa tinha sido inútil. Tão inútil quanto todas as suas promessas — aos plumes, aos aurons, a Marilen...

Não tenha medo, Marilen. Você só precisa esperar.

O vento gemia ao redor das rochas, como a voz fantasmagórica de seu desespero.

— A flauta, Lief — Barda sussurrou ao seu lado. — A flauta! Use-a!

Lief hesitou. Era possível que a Flauta parasse a besta e talvez lhes desse a chance de fugir. Mas, no momento em que fosse tocada, o Senhor das Sombras tomaria conhecimento dela e de sua presença.

Eles perderiam a vantagem da surpresa e seriam caçados sem piedade, não encontrariam os prisioneiros e nem conseguiriam libertá-los.

Ele se obrigou a deslizar a mão por debaixo da camisa e afrouxar o cordão que fechava a bolsa de tecido vermelho. A ponta de seus dedos encostaram na Flauta e a seguraram...

Um formigamento quente percorreu a sua mão, subiu por seu braço e depois por todo o seu corpo. Era como se sangue novo corresse em suas veias, fortalecendo as pernas trêmulas, acalmando o coração acelerado.

Lief endireitou os ombros, respirou fundo, de repente se sentindo vivo outra vez. Em meio ao lamento do vento, ele ouviu os sons enraivecidos do bando do outro lado do rochedo.

E de repente, soube o que devia fazer.

— Estamos aqui! — ele gritou o mais alto que pôde. — Venham pegar a gente!

— Lief! — Jasmine gritou aterrorizada.

Uivos e gritos de fúria encheram o ar, seguidos do som de pés escalando a rocha agitadamente e do raspar e bater de garras.

— Encostem bem na pedra! — Lief gritou, empurrando Barda e Jasmine para trás. — O mais que vocês puderem! Pronto...

Os amigos ouviram grunhidos agudos acima de suas cabeças e, no momento seguinte, figuras selvagens estavam se atirando cega e descuidadamente sobre a borda do rochedo. Gritos de triunfo se transformaram em guinchos de terror quando os atacantes perceberam o erro que tinham cometido. Retorcendo-se e uivando, eles caíram sobre o corpo ondulado da besta, perfurando a sua pele com garras e dentes, rolando e caindo estendidos no barro.

Arrastando Emlis com eles, os companheiros começaram a se esgueirar pela beira do rochedo na direção da planície aberta. O início da caminhada foi lento e cuidadoso, mas eles já não interessavam ao monstro. Inchando e girando, com um líquido claro borbulhando dos orifícios em sua pele, ele atacava os novos intrusos, os atacantes que tinham ousado feri-lo.

Sibilando, dezenas de línguas dispararam para fora e se enrolavam nos vultos retorcidos no chão. Outras línguas se atiraram para cima, tentando apanhar as criaturas ainda penduradas na beira do rochedo. As línguas agarravam os que estavam caídos no chão sobre seus pés e os arrastavam, aos gritos, para a morte.

Os companheiros já estavam perto do fim da rocha. Agora era o momento de tomar uma decisão: deveriam correr para a planície e arriscar-se a enfrentar os novos terrores que talvez estivessem à espera ali? Ou deveriam ir até a segunda rocha, o que significava cruzar um espaço perigoso no qual a besta ainda girava e grunhia?

Lief olhou para trás e ficou repugnado. O corpo da besta, rasgado e ondulante, estava se desfazendo. As cabeças que pendiam do seu lado fugiam da massa encrespada, arrastando grandes pedaços de carne.

Olhando apavorado, Lief ouviu os companheiros soltarem gritos abafados quando compreenderam o que acontecia. Então, de repente, ele também viu a verdade. As cabeças que rodeavam o corpo do monstro não faziam parte dele. Elas pertenciam a versões menores e mais jovens dele mesmo que ele carregava em bolsas ao redor do corpo enorme.

Os jovens rastejavam para longe da besta ferida, deixando grandes buracos atrás de si. Eles tinham o tamanho de um homem, mas eram quatro vezes mais largos. Todos estavam ansiosos por arrastar a presa que tinham capturado com a sua língua enrolada e se banquetear.

Com os uivos e gritos das vítimas engolidas pelos monstros em seus ouvidos, os amigos atravessaram correndo o espaço que os separava do segundo rochedo. Eles o rodearam e se dirigiram para as rochas espalhadas, que marcavam a beira da planície.

Ofegantes e trêmulos, se refugiaram atrás da maior pedra que encontraram. Emlis estava gemendo de dor. Barda o colocou no chão e, juntos, os companheiros limparam e trataram de seus ferimentos da melhor forma possível, usando a pomada e as ataduras que tinham recebido dos kerons.

Durante um longo tempo, eles não comentaram sobre o que tinham acabado de escapar. A lembrança ainda era muito brutal. Mas, finalmente, quando Emlis se acalmou, Barda conseguiu falar.

— Me desculpem — ele murmurou. — Não foi graças a mim que estamos salvos. Pensei que era o nosso fim. Não consegui pensar nem fazer nada, só consegui ficar desesperado. E ainda estou paralisado. Não sei o que aconteceu comigo.

Lief olhou para Jasmine. O rosto dela estava pálido e sombrio. Filli se escondia debaixo de sua jaqueta e só o seu nariz estava visível. Kree, com as penas arrepiadas, estava encolhido em seu ombro.

— Você também está se sentindo assim, Jasmine — Lief disse com calma.

Ela concordou.

— Venho tentando lutar contra essa sensação, mas é impossível — ela balbuciou. — É como se... o medo aumentasse cada vez que respiro. Como se o ar estivesse envenenado.

Com um sobressalto, Lief se lembrou do cheiro estranho e amargo que sentiu no ar quando chegaram à Terra das Sombras. Ele tinha se acostumado com ele e não tinha pensado nele por muito tempo. Mas agora Lief percebia que Jasmine estava certa. O vento era a forma encontrada pelo Senhor das Sombras para enfraquecer a vontade dos que entravam no seu reino. O cheiro amargo que carregava era o cheiro do desespero.

— Você tem razão! — ele exclamou. — Mas nós podemos combater esse cheiro — ele tirou a bolsa vermelha de dentro da camisa. Com cuidado, tirou a Flauta e estendeu-a a Barda e Jasmine. Assim que eles a seguraram, Lief notou a mudança em seus rostos. As expressões estranhas e desanimadas desapareceram, os seus olhos se iluminaram, as suas bocas ficaram firmes.

— Mas isso é um milagre! — Barda exclamou.

— Experimente em Emlis também — Jasmine pediu.

Eles colocaram a Flauta entre os dedos pálidos de Emlis e, de fato, somente alguns minutos depois, os olhos do jovem keron se abriram.

Ele olhou os companheiros confuso, estremeceu e tentou se sentar. A Flauta começou a escorregar para o chão. Lief a pegou antes que caísse e a guardou na bolsa vermelha.

— Onde estamos? — Emlis balbuciou. — O que aconteceu? As criaturas... me pegaram e carregaram e então... — ele arregalou os olhos apavorado quando se lembrou do que tinha acontecido.

— Fique quieto, Emlis — Lief mandou, enfiando depressa a bolsa vermelha debaixo da camisa. — Guarde as suas forças. Vamos ter que continuar daqui a pouco.

— É mesmo — Barda murmurou, olhando por cima do ombro na direção do rochedo, ainda muito próximo para que ficasse tranqüilo. Lief dominou um estremecimento. Ele não queria pensar no que estava acontecendo ali.

Jasmine também olhava para trás, mas por um motivo diferente.

— O caminho para o leste está impedido agora, a menos que a gente queira se arriscar a cruzar o território da besta outra vez — ela disse preocupada. — Por que está tão decidido a ir para o oeste, Lief?

Lief inclinou-se para a frente, ansioso em explicar.

— Porque me lembro de Perdição — ele disse. — Perdição fugiu da Arena das Sombras. Dali, ele atravessou as colinas e chegou a Deltora, e foi perseguido pelos Guardas Cinzentos ao subir a Montanha do Medo. Assim...

— A Arena deve ficar muito perto da fronteira e perto do lado oeste da Montanha do Medo! — Barda exclamou. — Claro! Como não pensei nisso? Se andarmos para o oeste, vamos chegar lá facilmente.

— E, com certeza, muitos prisioneiros devem estar na Arena das Sombras — concluiu Lief, olhando para Jasmine. — Se eles vão ser executados, como o pássaro te contou...

Ele fez uma pausa, e Jasmine concordou inquieta. Não tinha sido um pássaro, mas, sim, Faith que tinha contado que os prisioneiros estavam em perigo.

“A verdade não muda, não importa quem a conte”, Jasmine disse a si mesma.

Barda se levantou.

— Para o oeste, então — ele disse. — Não que a gente tenha outra escolha. Eu, pelo menos, não quero encontrar com a besta outra vez — ele afirmou, desafiando Jasmine a discordar.

Mas Jasmine tinha raciocinado depressa. Lief tinha razão. A Arena das Sombras tinha que estar perto da fronteira e também da Montanha do Medo. E ela tinha se lembrado de outro fato. O veneno que os Guardas Cinzentos usavam nas armas que atiravam as bolhas mortais era levado por uma trilha que ia da Montanha do Medo até a Terra das Sombras.

Ninguém carregaria frascos de vidro contendo veneno mortal por uma distância maior do que a necessária. Portanto, era quase certo que a fábrica onde as bolhas eram produzidas ficava perto da trilha, do lado das Terras das Sombras.

A Arena das Sombras e a fábrica. Dois lugares muito importantes. Ambos perto da Montanha do Medo. Fazia sentido que pelo menos uma das principais bases do Senhor das Sombras estivesse no mesmo lugar. E Faith, talvez, estivesse muito perto.

Ela baixou a cabeça para que Barda não visse o brilho de esperança em seu olhar.

— Muito bem — ela murmurou. — Se você estiver certo, vamos continuar avançando para o oeste.

Barda olhou para ela desconfiado. Jasmine não costumava concordar tão facilmente. Mas ele não queria perder tempo fazendo perguntas. Ansioso para partir, ele já estava ajudando Emlis a se levantar.

Lief estava parado ao lado deles e observava a planície. Ela estava inundada de luz, mas grossas nuvens cobriam a Lua e as estrelas. A marca do Senhor das Sombras dominava o céu, queimando como um fogo branco e frio.

— Vamos ter que andar com cuidado — ele murmurou, virando-se para olhar a fileira de rochas recortadas que se dirigia para o oeste. — Não vejo muitos lugares para a gente se esconder. Se nos virem...

— Vocês já foram vistos, idiotas! — grunhiu uma voz rouca vinda do chão. E antes que ele pudesse se mexer ou falar, os seus tornozelos tinham sido segurados por garras que o puxavam para baixo.

 

Tentando agarrar-se inutilmente ao chão duro, Lief sentiu as pernas raspando nas pedras. Apavorado, ele percebeu que estava sendo arrastado pelos pés para dentro de um buraco que se abria debaixo da rocha.

Desesperado, Lief estendeu os braços para a frente. Abafando um grito e assustados, Jasmine, Emlis e Barda o agarraram, tentando em vão puxá-lo para trás. Lief tentou chutar, mas as garras cobertas de escamas que prendiam os seus tornozelos o seguraram com mais força e puxaram com mais vontade. Ele sentiu como se estivesse sendo rasgado em dois. Ele gritou de dor e medo.

— Cale a boca ou vou matar todos vocês! — a voz rouca rugiu.

Ouviram-se insultos e grunhidos vindos de baixo. Então, de repente, Lief sentiu outro par de mãos agarrar as suas pernas e puxar. Os amigos não conseguiram mais segurar os seus braços e ele deslizou para baixo da rocha, caindo com um ruído surdo no chão duro.

No mesmo instante, ele foi levantado e jogado contra uma parede, enquanto o seu pescoço era apertado por uma mão enorme. Atordoado e quase estrangulado, ele viu que a rocha não era uma pedra solta, mas parte do teto de uma enorme caverna. Uma tocha tremeluzia nas paredes e no chão. Água gotejava nas sombras. Um pequeno grupo de seres de aparência estranha espiava para ele.

Havia um espantalho barbado em forma de homem cujas mãos eram garras cobertas de escamas, como as garras de uma ave de rapina. Do lado dele, estava uma mulher — jovem e alta, mas magra e com olhar de poucos amigos — com a marca do Senhor das Sombras cruelmente queimada na testa. E, prendendo Lief à parede, zombando, sujo, com um colar de ferro ao redor do pescoço, estava... Glock!

Lief abriu a boca ao ver o rosto bruto tão perto do seu. Não podia ser! Ele estava sonhando! Glock estava morto — morto e enterrado no túmulo de um herói na ilha de Plume. Teria um Ol assumido a sua forma para enganá-los? Um Ol grau três, capaz de imitar até o toque quente da pele de um ser humano?

Mas se isso fosse verdade, o Ol certamente fingiria reconhecê-lo, o chamaria pelo nome e usaria a voz de Glock. Mas nenhum sinal de reconhecimento brilhava nos olhos dele.

A mão imensa ao redor do pescoço de Lief pressionou mais ainda enquanto Jasmine atravessava o buraco do teto da caverna seguida de perto de Barda e Emlis. Os companheiros carregavam as suas armas nas mãos. Eles saltaram para o chão e congelaram ao ver Lief preso à parede.

— Dê mais um passo e vou quebrar o pescoço dele como se fosse um galho! — rugiu o ser parecido com Glock.

— Larguem as armas — ordenou o homem com mãos em forma de garras, dando um passo à frente. — Nós somos amigos.

— Amigos que arrastam nosso companheiro para esse lugar? — Barda vociferou, erguendo a espada levemente.

O homem inclinou a cabeça para o lado e observou Barda com curiosidade.

— Brianne, feche o alçapão — ele mandou por sobre o ombro. Com um olhar furioso, a mulher alta obedeceu.

— Você foi um idiota por trazer eles para cá, Garra! — ela criticou quando a luz da caverna diminuiu bruscamente. — Eu não lhe disse?

— Então eu deveria deixar que fossem apanhados pelos Selvagens? — o homem com as garras resmungou. — Você ficou bem satisfeita ao ser salva quando estava vagando pela planície, Brianne. Eles são inofensivos, ouvi a conversa deles.

O ser que se parecia com Glock cuspiu enojado.

— Inofensivos? Você está louco! Na melhor das hipóteses, eles são iscas, e espiões, na pior! Olhe para eles! Eles se parecem com escravos fugidos? Eles não mostram sinal da Tristeza.

— E eles vieram do leste, Garra — Brianne exclamou. — Todos os escravos estão no oeste. Vimos com os nossos próprios olhos quando eles atravessaram a planície, acorrentados e bem vigiados pelos guardas, enquanto um Ak-Baba voava acima deles. Com os nossos próprios ouvidos, escutamos quando os guardas os ameaçaram, dizendo que iriam para a Arena das Sombras. Como esses quatro poderiam ter escapado?

Jasmine respirou fundo. Lief imaginou o que ela estava pensando e era só o que podia fazer para manter o rosto inexpressivo. Ele estava certo. Todos os escravos tinham sido levados para a Arena. Algum plano terrível estava em ação. Eles tinham que fugir dali, e depressa.

Lief encontrou o olhar de Barda e piscou. Os lábios do amigo se apertaram levemente.

— Então, estranhos? — Garra disse secamente. — Vocês ouviram a opinião dos meus amigos. Quero explicações!

— Não temos que dar explicações a você — Lief disse com dificuldade. — Não queremos a sua ajuda ou sua companhia. Só queremos continuar nosso caminho.

— Mas claro! — Garra respondeu, curvando-se zombeteiro. — E por que iríamos deixar que fizessem isso?

Em segundos, Garra recebeu a resposta, pois, antes que pudesse piscar, Barda tinha dado um salto e apontava a espada para o seu pescoço.

Um gemido rouco escapou dos lábios de Lief quando a mão poderosa que segurava o seu pescoço apertou ainda mais.

Barda apenas sorriu.

— Então, vamos trocar uma vida por uma vida? — ele perguntou com indiferença. — Posso me virar sem o rapaz, que causa muito mais problemas do que vale a pena. Os seus amigos podem se virar sem você?

O atacante de Lief grunhiu zangado. Brianne, o rosto de pedra, cruzou os braços para disfarçar o tremor.

— Você tem um bom argumento — Garra respondeu, aparentemente sem se importar. — Solte o rapaz! — ele ordenou, erguendo a voz.

Lief sentiu o aperto afrouxar e então a criatura recuou. Lief escorregou para o chão da caverna tonto, o ar passando com dificuldade pela garganta machucada. Quando Emlis e Jasmine correram até ele, Barda empurrou Garra para junto do grupo.

Os outros moradores da caverna os olhavam, sem coragem para se mover.

— Acho que o nosso relacionamento começou mal — Garra disse com calma, como se estivesse conversando educadamente numa reunião social. — Isso é uma pena, porque eu acho que vamos ter que ajudar uns aos outros muito em breve. Vocês não agem como escravos fugitivos, isso é verdade. Mas também não acho que sejam criaturas do Senhor das Sombras.

— O que eles são, então? — Brianne perguntou irritada. Então, de repente, ela cobriu a boca com a mão e arregalou os olhos.

Garra concordou, sem tirar os olhos de cima de Barda.

— Eles são a prova do que eu disse no dia em que as nuvens vermelhas voltaram para cima das montanhas e os Selvagens gritaram e tremeram diante da fúria do inimigo. Deltora está livre. De alguma forma, o Cinturão de Deltora foi restaurado e o seu poder devolvido ao herdeiro. Nossos visitantes atravessaram as montanhas vindos de Deltora.

O rosto de Barda continuou inexpressivo.

O canto da boca de Garra se torceu como se ele estivesse se divertindo.

— Vocês não confiam em nós — ele disse. — Talvez as coisas melhorem depois das apresentações. Eu sou conhecido como Garra, por motivos que devem ser evidentes. Mas o meu verdadeiro nome é Mikal, de Del.

Ele viu os olhos de Lief se arregalarem, viu Jasmine e Emlis olharem rapidamente para as suas garras. Ele sorriu sem vontade.

— Vocês estão surpresos — ele observou. — Vocês pensaram que eu era uma criatura estranha de algum país distante? Ah, não, meus amigos. Sou um cidadão de Deltora — ou era, antes que ela tivesse me esquecido. Vivi e trabalhei na olaria. Vocês devem saber onde é.

Ele esperou e, ao não receber resposta, continuou.

— Quando vim para cá com a minha família, o Inimigo fez algumas ... melhorias na minha aparência. O inimigo gosta dessas experiências...

Ele estendeu as garras e as flexionou pensativo.

— Elas são fortes e muito úteis — ele declarou. — Eu escapei da Fábrica antes que o Inimigo tivesse terminado a sua obra. Eu sou um dos felizardos. Outros não tiveram tanta sorte assim. O seu pequeno companheiro com o capuz já deve ter conhecido alguns deles na Planície da Morte, quando eles o usavam como isca. Nós os chamamos de Selvagens.

Ele sorriu tristemente.

Lief ouviu Emlis choramingar baixinho, sentiu a tensão de Barda e a mão de Jasmine procurar a sua. Nauseado e aterrorizado, ele olhou para Garra, e se obrigou a enfrentar a terrível verdade. As criaturas selvagens que tinham raptado Emlis — aqueles terríveis seres metade animais, metade humanos que rondavam na planície árida — eram o seu próprio povo. Vítimas da maldade do Senhor das Sombras, enlouquecidas e sem esperanças.

Satisfeito com o efeito causado por suas palavras, Garra acenou para a mulher alta.

— Brianne é o mais novo membro de nosso grupo. — a boca dele se torceu num meio sorriso zombeteiro. — Muitas vezes, eu me arrependo do dia em que a trouxe. Ela é teimosa como uma mula e tem sido uma pedra no meu sapato desde o começo.

A mulher alta olhou para ele e endireitou os ombros.

— Brianne, de Lees — ela se apresentou bruscamente.

Uma lembrança passou pela cabeça de Lief. Brianne, de Lees. Onde já tinha ouvido esse nome?

Mas Garra continuava a falar.

— Brianne escapou da Arena das Sombras. Dizem que é a terceira dos deltoranos que conseguiu fugir. Mas o segundo está aqui.

Ele fez um gesto na direção da figura enorme que zombava ao lado de Brianne.

— Este é o último integrante de nosso grupo. O último e maior, segundo as suas próprias palavras. Gers, de Jalis.

— Gers! — Jasmine exclamou surpresa.

O homem que Garra chamou de Gers estendeu o queixo para a frente e fechou os punhos enormes.

— Está achando o nome engraçado? — ele rugiu. — Então lute comigo, fracote, e vamos ver se vai continuar sorrindo quando a luta terminar.

— Não tem nada de errado com o seu nome! — Jasmine gritou. — É só que... é que você é exatamente igual a... um amigo nosso.

— Um Jalis chamado Glock — Barda acrescentou, sem tirar a espada do pescoço de Garra.

O rosto de Gers ficou imóvel.

— Eu tinha um irmão chamado Glock — ele disse devagar.

— Não acredite neles, Gers! — Brianne exclamou. — Eles são criaturas do Inimigo! Eles estão tentando enganar você.

Os olhos de Gers se estreitaram.

— Ninguém vai me enganar. Eu tinha um irmão. Ele era só um ano mais velho do que eu. Mas faz muito tempo que ele morreu. Eu o vi ser derrubado no campo de batalha quando Jalis fez a última tentativa de combater o Inimigo, imediatamente antes de nós sermos capturados. — a mão enorme ajeitou o colar de ferro ao redor de seu pescoço.

— É possível que Glock tenha sido derrubado, mas ele não morreu

— Jasmine disse emocionada. — Ele viveu para ter uma participação importante na retirada do Senhor das Sombras de Deltora, e morreu como herói em...

Barda pigarreou e Jasmine parou de falar, percebendo que quase tinha falado demais.

— ...em nossos braços — ela concluiu sem firmeza. Quando Gers a olhou desconfiado, Jasmine tirou o talismã de Glock, que levava pendurado no pescoço, e o estendeu para ele.

— Glock me deu isso antes de morrer — ela contou. — Você sabe o que é?

Gers arregalou os olhos.

— O talismã de nossa família! — ele balbuciou, os lábios mal se movendo enquanto olhava a pequena bolsa desbotada. — O amuleto de madeira de um duende morto por um de nossos ancestrais. Uma pedra da serpente-diamante, e mais duas no ninho de um dragão. Ervas de grande poder. E a flor de uma Carnívora. Nunca imaginei que os veria outra vez.

Jasmine olhou para Lief e Barda. O seu rosto mostrou que pelo menos ela estava convencida. Ela estendeu a mão para Gers novamente.

— Pegue — ela insistiu com suavidade. — É seu por direito, e Glock gostaria que ficassem com você. Ele deu o talismã para mim, porque não tinha mais ninguém, e nós lutamos lado a lado. Ele não está mais completo, pois o que você chama de amuleto do duende não está mais aí. Mas, mesmo assim, talvez você goste de ficar com ele.

O homenzarrão olhou para ela, ainda sem fazer nenhum movimento para pegar a pequena bolsa.

— O que Glock disse quando deu isso para você?

— Ele disse... — a voz de Jasmine tremeu um pouco, mas ela se esforçou e continuou — ele disse “Você tem o coração de um Jalis. Pegue o talismã do meu pescoço. Agora ele é seu. Talvez ele ajude você.”

Gers molhou os lábios.

— “Pegue o talismã do meu pescoço. Agora ele é seu. Talvez ele ajude você” — ele repetiu. — Essas são as palavras. As palavras que sempre são ditas quando o talismã é passado adiante.

Ele se virou para Garra.

— Ela está falando a verdade! — ele disse, a voz rouca de emoção.

— Ela lutou junto com o meu irmão. E se ele disse que ela tem o coração de um Jalis, é verdade.

Gers olhou para Jasmine, curvou-se e tomou o talismã da mão dela.

— Espero que um dia eu também possa lutar ao seu lado — ele desejou. Esse, estava claro, era o maior cumprimento que ele poderia oferecer a alguém.

— Então deixe este lugar agora e vá com a gente para o oeste, Gers — ela respondeu, sorrindo. — Esse dia chegou.

 

Uma hora depois, os companheiros estavam mais uma vez avançando para o oeste. Mas eles não viajavam por terra, como tinham planejado. Eles rastejavam por um túnel debaixo da terra, e não estavam mais sozinhos. Não só Gers os acompanhava, mas também Garra e Brianne.

Lief estava muito satisfeito com a ajuda e a companhia dos moradores das cavernas, mas não tinha esperado por aquilo. Os novos companheiros nem sabiam os nomes dos visitantes. Após a sua história dramática, Jasmine apenas contara a Gers que ela e os amigos tinham a intenção de libertar os escravos da Arena das Sombras.

Ela não tinha contado nada sobre a Flauta de Pirra, de modo que a missão parecia realmente uma loucura. Lief entendeu por que Gers se mostrou interessado, mas tinha imaginado que Garra e Brianne seriam mais cuidadosos. Porém, havia um fato que Lief não tinha considerado.

Garra disse simplesmente que a caverna não era mais segura.

— Vocês não querem admitir que acabaram de chegar de Deltora, meus amigos, mas tenho certeza de que foi isso que aconteceu — ele disse. — Vocês passaram pelo feitiço que cria uma barreira nas montanhas, e o Inimigo foi avisado. Guardas Cinzentos estarão aqui aos bandos a qualquer momento, farejando vocês. Quanto mais cedo partirmos, melhor.

Gers apenas grunhiu, concordando, mas o rosto de Brianne se encheu de um desespero furioso quando se virou para encher um cantil de água.

Com uma expressão de pena, Emlis chamou Lief, Barda e Jasmine de lado.

— Por que não podemos contar a Garra que ele não precisa ter medo, porque chegamos às Terras das Sombras pelo subterrâneo? — ele sussurrou.

— Ninguém pode saber disso! — Lief sussurrou em resposta. — Seja lá como isso for terminar, o Senhor das Sombras não pode saber sobre as cavernas. O seu povo não pode ser traído.

— Mas eu tenho certeza de que podemos confiar em Garra e nos outros — Emlis afirmou. — Eles não vão contar.

— Talvez não espontaneamente — Barda concordou sombrio. — Mas, vindo com a gente ou não, eles podem ser capturados a qualquer momento. Existem meios de fazer um prisioneiro falar, e o Senhor das Sombras conhece todos.

Emlis pareceu aterrorizado.

— É por isso que dei poucas informações a Gers — Jasmine murmurou. — Quanto menos os outros souberem das nossas intenções, mais seguros nós vamos ficar, Emlis. E eles também, porque não poderão ser obrigados a contar o que não sabem.

Ela olhou para Lief surpresa por ele ainda não ter falado. A cabeça do amigo estava baixa, e ele parecia estar tomado por uma emoção muito forte.

— Você não concorda, Lief! — ela exclamou.

— Claro que concordo — ele disse, erguendo a cabeça e encontrando o olhar de Jasmine. — Nós poderíamos diminuir o peso que carregamos jogando nosso segredo sobre essas pessoas. Mas, se fizermos isso, talvez a gente os condene a morrer se culpando por trair os amigos e seu país. Precisamos ficar em silêncio. Mas concordo com Emlis que isso é difícil.

Antes que Jasmine pudesse responder, Gers passou por eles e desapareceu nas sombras no fundo da caverna. Garra o seguiu com uma tocha. Os companheiros ouviram o som de uma rocha raspando no chão. Então, quando Garra ergueu a tocha, eles viram que Gers tinha aberto a entrada de um pequeno túnel escuro.

— Este túnel leva a outra célula da Resistência mais para o oeste

— Garra contou. — Nós não o usamos desde o dia da ira do Senhor das Sombras, mas ele é mais seguro do que andar ao ar livre.

Ele notou a hesitação dos companheiros e ergueu as sobrancelhas.

— Nós vamos na frente, se preferirem.

— Gers e Brianne primeiro — Barda disse. — Você, Garra, entre a gente.

Garra concordou e levou Gers e Brianne para a entrada do túnel. Eles entraram sem hesitar, aparentemente por estarem acostumados. Jasmine entrou em seguida, e depois Emlis e Barda. Na vez de Garra, ele deu uma última olhada na caverna e sorriu com amargura.

— Quando vim para este lugar, ele era só um buraco debaixo da rocha, com espaço apenas para me esconder como um animal ferido — ele disse devagar. — Então eu ouvi o barulho de água. Louco de sede, comecei a cavar. Encontrei a caverna e a água. A nascente vem dos subterrâneos de Deltora — acho que da Montanha do Medo — pois vence o desespero provocado pela Terra das Sombras, que chamamos de Tristeza. Este lugar tem sido meu refúgio há muito tempo.

— Desculpe se você está indo embora por nossa causa — Lief murmurou com dor na consciência.

Garra abriu um sorriso largo.

— Não precisa se desculpar. Assim que vi as minas sendo abandonadas e o nosso povo sendo levado para o oeste, eu soube que não ficaria escondido por muito tempo. Enquanto eu podia fingir que o esconderijo atendia a um objetivo — que salvar algumas pessoas ou matar alguns Guardas enfraquecia o Inimigo — , eu pude suportar. Agora...

Ele apagou a tocha e foi atrás de Barda, seguido de perto por Lief.

O túnel era escuro e estreito. Os companheiros de Garra falavam pouco. Na jornada através do corredor escuro, apertado e cheirando a mofo que parecia interminável, Lief teve bastante tempo para se perguntar se estariam sendo levados a uma armadilha.

Mas, finalmente, eles pararam de andar. Houve outro som forte quando a pedra que fechava o túnel foi arrastada para o lado. Então, um longo e baixo grunhido ecoou pelo túnel.

— O que é isso? — Lief escutou Brianne sussurrar. — Gers? Não houve resposta.

A caminhada continuou quando Brianne, seguida pelos companheiros, se juntou a Gers na caverna do outro lado do túnel.

Lief ouviu um grito abafado, uma série de sussurros e, então, silêncio total. Com medo, ele se arrastou pela estreita abertura atrás de Garra.

Nenhuma tocha tinha sido acendida, mas a caverna não estava escura. Uma luz branca e fria entrava pelo teto que tinha sido quebrado como a casca de um ovo. Uma grossa camada de poeira cobria os restos de alguns poucos pertences tristemente espalhados no chão — roupas de cama queimadas, uma tigela quebrada, algumas roupas esfarrapadas.

A marca do Senhor das Sombras tinha sido gravada com fogo numa parede de pedra manchada de sangue.

Estava claro o que tinha acontecido ali — uma descoberta seguida de ataque. Até o ar tinha cheiro de medo.

Lief foi rapidamente para o lado de Barda, Jasmine e Emlis, que estavam parados sem se mexer debaixo do buraco do teto, perto do que restava de uma escada queimada.

— Hellena — Brianne gemeu, caindo de joelhos e apertando um xale azul rasgado junto ao rosto, mergulhada em profundo sofrimento. — Pi-Ban, Tipp, Moss, Pieter, Alexi...

Os lábios finos de Garra estavam apertados. Ele estava tão quieto que mal parecia respirar.

Gers cuspiu na marca do Senhor das Sombras.

— Tivemos sorte que os Guardas estavam ocupados demais destruindo tudo para fazer uma busca — ele murmurou. — Eles não encontraram o túnel. A rocha ainda estava no lugar.

— Isso não significa que eles não o encontraram — Garra respondeu sério. — Está claro que isso aconteceu alguns meses atrás, mas eles ainda podem estar lá em cima, como gatos esperando o rato sair da toca.

Brianne se levantou, alta e ereta, o rosto magro marcado, mas ainda bonito, frio como o gelo.

— Espero que estejam — ela disse, acariciando a adaga que levava na cintura.

Foi então, de repente, que Lief lembrou onde ouvira o nome dela. Tinha sido na estrada para Rithmere. Brianne, de Lees, tinha a fama de grande atleta, uma Campeã dos Jogos de Rithmere. Dizia-se que ela tinha se escondido para não dividir o prêmio que tinha conquistado com o seu vilarejo.

Essa história era falsa. Maldosamente falsa, pois tinha feito com que o seu povo a odiasse, como certamente os Guardas fizeram questão de lhe contar, já que gostavam de ver o sofrimento dos outros. Lief gostaria de poder contar a ela que o seu povo agora sabia o que tinha acontecido e sofria a sua perda. Mas ele não podia dizer nada. Ainda não.

Jasmine murmurou algo para Kree, que voou até o buraco no teto. Eles viram a silhueta negra do pássaro desenhada no céu, os seus olhos amarelos brilhando. Então Kree voltou para o ombro de Jasmine e emitiu uma série de grasnados. O rosto de Jasmine ficou atento.

Gers praguejou e apertou o talismã.

— Você viu isso? — Lief escutou-o sussurrar para Garra. — O pássaro está falando com ela.

— É o que parece — os olhos espertos de Garra observaram Jasmine e Kree com interesse.

— Kree não viu nenhum Guarda, mas há um edifício enorme um pouco para a esquerda — Jasmine informou.

— É a Fábrica — Garra disse. — Precisamos passar por ela para chegar na Arena das Sombras — a voz dele era baixa e firme, mas enquanto falava um nervo repuxou ao lado de seu olho e ele dobrou as garras sem perceber.

— É melhor a gente começar enquanto ainda é noite — Gers resmungou, olhando para ele.

Garra concordou e então, sem dizer nada, foi para debaixo do buraco e pulou, agarrou a borda do teto com as garras e se puxou para fora.

Jasmine, Barda, Lief e Brianne o seguiram e se viraram imediatamente para puxar Emlis enquanto ele era erguido por Gers, que saiu por último, grunhindo e praguejando com o esforço, as mãos enormes se apoiando na borda do buraco, as pernas dando impulso nas paredes da caverna.

Quando finalmente ele caiu deitado na terra seca, os companheiros se viraram para o oeste para observar a grande construção longa e escura que se erguia a distância.

A Fábrica se espalhava quase até as montanhas. As suas chaminés altas e finas atiravam chamas para o ar, colorindo de escarlate a nuvem quente que as cobria. O simples fato de vê-la encheu Lief de pavor.

Ele se virou para Jasmine e viu que ela estava olhando fixamente para o edifício ao longe, os olhos verdes fazendo cálculos, a boca firme e determinada. Lief ficou agitado. Por que Jasmine estava daquele jeito?

Eles começaram a andar abaixados em fila indiana, movendo-se depressa nos espaços abertos entre as rochas espalhadas. As chamas das chaminés queimavam altas, orientando o seu caminho. Os seus ouvidos estavam atentos a sons de perigo, mas tudo que conseguiam ouvir era o leve e monótono ronco que ficava cada vez mais alto a cada passo que davam.

As chamas se aproximavam. O som trovejante ficou mais forte, fazendo com que até o ar parecesse estremecer, e a própria terra sob seus pés parecesse vibrar. Um desagradável cheiro doce e azedo era levado até eles pelo vento.

Agora Lief via o tamanho colossal da Fábrica de perto. Ele via uma estrada larga que corria ao longo do edifício na direção do oeste e depois desaparecia atrás de uma colina alta. Ele também conseguia ver a fonte do cheiro terrível. Montes de lixo imensos e sombrios se formavam entre a estrada e as montanhas.

— Esses montes vão nos dar uma boa cobertura — Barda murmurou para Lief.

Garra se virou. O rosto dele brilhava de suor. Os seus olhos estavam vidrados, os lábios fixos num sorriso que mais parecia um rosnado.

— Boa cobertura — ele repetiu. — Ah, sim. Também acho. Então, repentinamente, ele arregalou os olhos.

— Gers, Brianne! — ele gritou com voz rouca.

Lief se virou depressa e viu, saltando na direção deles, um vulto verde e monstruoso, de formas humanas, com ombros largos e curvados, mãos em forma de garras e uma cauda agitada. As escamas iguais as de uma serpente brilhavam, a horrenda boca sem lábios aberta num sorriso selvagem, os olhos alaranjados queimando.

Lief sabia do que se tratava. Já tinha visto um ser parecido na Montanha do Medo. Ele era uma criação do Senhor das Sombras, feito para lutar. Uma máquina de matar insuperável. Um vraal.

 

As terríveis garras curvas e afiadas do vraal estavam estendidas. A sua cauda batia de um lado a outro e pedaços de argila se espalhavam atrás de seus cascos rachados quando ele saltava para a frente.

— Corra, menina! — Gers gritou para Jasmine. — Não tente lutar com ele.

O aviso era desnecessário para Jasmine, Lief e Barda. Eles já tinham tentado lutar contra um vraal uma vez, e tinha sido suficiente. Aquele monstro era invencível. Ele não se importava em sentir dor e não sabia o que era desistir ou ter medo.

Jasmine se virou e correu na direção dos montes de lixo. Arrastando Emlis no meio deles, Lief e Barda a seguiram com passos largos.

Furioso porque os seus oponentes não ficaram para lutar, o vraal começou a persegui-los. A corrente quebrada e enferrujada que ainda pendia da argola de ferro em seu pescoço chocalhou e tiniu, mas o vraal, acostumado ao som, não se importou. Ele tinha vivido com ele desde que escapara do cativeiro.

Para o monstro, o som de correntes quebradas representava liberdade.

Liberdade para matar e se alimentar quando tivesse fome, em vez de se submeter à vontade dos donos.

Liberdade para vaguear pela planície, tão aberta, tão diferente dos espaços apertados da cela debaixo da Arena das Sombras.

Liberdade para caçar os homens-bestas que comiam besouros, os escravos maltrapilhos, que cavavam buracos na terra, e os mestres cinzentos, que tinham um gosto horrível, mas que proporcionavam um bom exercício antes de cair gritando em suas garras e dentes.

Esses inimigos eram diferentes. Por causa do cheiro e também das atitudes, o vraal sabia que eles não eram iguais aos inimigos com que tinha sido obrigado a lutar antigamente. Sangue fresco e saboroso ainda corria em suas veias. O fogo ainda queimava em seus corações.

Esses eram inimigos que valia a pena matar. Eles eram como os inimigos dos velhos tempos da Arena das Sombras, fortes e cheios de energia, que eram trazidos todos os dias para lutar e morrer.

Mas esses inimigos não estavam lutando. Eles estavam correndo. Correndo para as colinas que cheiravam como carne podre, que o vraal só comia quando estava faminto.

O nariz do vraal era apurado e delicado e não gostava de mau cheiro como qualquer ser humano. Ele também sabia que os seus cascos, adequados para quase todos os tipos de superfície, não teriam bom desempenho nos morros que caíam aos pedaços. Mas ele hesitou só por um segundo antes de entrar no monte de sujeira.

Seus inimigos não conseguiriam se esconder por muito tempo. No fim, ele iria encontrá-los. Logo haveria luz, e o edifício que se erguia ao lado dos montes asquerosos — o edifício que soltava fogo — não servia de esconderijo. O vraal sabia que os humanos preferiam morrer a entrar lá.

Os moradores das cavernas tinham se espalhado e se enterrado nos montes até desaparecerem. Anos se escondendo tinham ensinado a eles que, ao primeiro sinal de ameaça, era preciso ir para o subterrâneo. Barda, Emlis, Lief e Jasmine, porém, não tinham sido tão rápidos e agora ouviam o vraal escorregando e se aproximando deles com dificuldade.

Com Jasmine na frente, eles tropeçaram na escuridão, muitas vezes mergulhados até os joelhos no lixo pegajoso e repugnante, tentando se afastar ao máximo da besta antes de tentar parar e se esconder. Mas os sons emitidos pelo vraal eram cada vez mais altos. Em vez de ficar para trás, ele se aproximava.

Então, de repente, enquanto eles avançavam com dificuldade pela lateral de um morro, a Fábrica apareceu na frente deles, sem janelas e sombria.

“Jasmine nos levou para o lado errado!”, Lief pensou apavorado. “Como isso tinha acontecido? Jasmine sempre foi capaz de se orientar, mesmo no escuro, e ela não hesitou por nenhum momento. Era como se ela quisesse estar perto da Fábrica. Mas isso é impossível!”

Nesse instante, Emlis também viu a Fábrica, soltou um grito agudo, escorregou e caiu em cima de Barda.

O homenzarrão cambaleou, e os seus pés se enterraram fundo na lateral do morro. A superfície solta começou a deslizar e logo toda uma seção do monte caiu. Sem poder fazer nada, os companheiros foram levados para baixo junto com uma massa de lixo e aterrissaram, assustados e sem fôlego, no alto de um pequeno monte, bem ao lado da estrada.

Meio cobertos pela sujeira, quase sufocados pelo mau cheiro, eles ficaram deitados ali, apavorados demais para se mover.

Lief não conseguia mais ouvir o vraal. Com cuidado, ele limpou a sujeira do rosto, olhou para os lados e para cima. Então ele o viu — o monstro havia escalado um morro exatamente atrás daquele que tinha caído. Com sua silhueta assustadora contrastando com o céu claro, ele não se mexia e espiava para baixo, procurando sinais de movimento.

— Sinto cheiro de carrapatos!

Lief sentiu o coração parar. A voz pouco clara tinha vindo do lado de seu ouvido, e ele se esforçou para virar a cabeça.

Um rosto medonho estava bem ao lado dele. Um rosto de olhos brancos, meio derretido, de feições embaçadas e retorcidas. Quando Lief se encolheu horrorizado, a boca torta mostrou um sorriso terrível e falou outra vez.

— Carrapatos de Deltora! Você ouviu, Carns?

Lief escutou o grito abafado de Jasmine, o choro alto e apavorado de Emlis, logo abafado, provavelmente pela mão de Barda.

— Fique quieto! — Barda sussurrou. — Ele não pode nos machucar. Você não viu que ele está meio morto?

— Carrapatos, sim, Cam 2 — outra voz grunhiu, muito perto.

— Os Perns querem esses carrapatos! — dessa vez, a voz vinha de debaixo do ombro de Lief. — Os Perns vão matar os carrapatos e agradar o mestre. Ele vai ver que ainda podemos prestar bons serviços por muitos anos!

Algo se mexeu no peito de Lief. O estômago dele se revirou quando percebeu que se tratava de uma mão de dedos inchados que saía de um braço coberto por um uniforme cinzento.

Então, de repente, houve movimentos em toda a sua volta, e foi como se os seus olhos pudessem ver, pela primeira vez, o que o cercava e o que estava debaixo dele. O morro era uma massa de corpos em uniformes cinzentos, empilhados um em cima do outro.

Cabeças afundadas e deformadas estavam viradas para cima. Pés saindo de botas rasgadas se retorciam sem poder fazer nada. Membros abertos e frouxos estremeciam. Mãos que se dissolviam abanavam e se debatiam. E vozes pastosas se ergueram num coro horrendo.

— Matem os carrapatos! Vamos pegá-los e satisfazer o senhor! Vamos mostrar ao senhor que não somos...

O vraal virou a cabeça na direção do som e do movimento. Os seus olhos avermelhados pareciam faiscar. A sua boca aberta como uma grande ferida vermelha mostrava uma fileira de dentes brancos.

Quando ele deu um passo à frente, Lief, Jasmine, Barda e Emlis levantaram-se de um salto, livrando-se das mãos agitadas que tentavam puxá-los para trás. Kree mergulhou do ar, usando o bico forte num Guarda que tentava pegar o tornozelo de Jasmine.

— Pássaro preto! Comunico presença de pássaro preto e garota! — o Guarda avisou. O grito foi ouvido pelos seus companheiros e sussurrado de um morro a outro, ecoando horrivelmente de centenas de gargantas secas. Pássaro preto e garota... informar o senhor, o senhor...

A respiração difícil, o peito apertado de medo e horror, os companheiros desceram tropeçando até a estrada e começaram a correr.

Olhando por cima do ombro, Lief viu que o vraal tinha chegado ao morro do qual tinham acabado de fugir. O monte ainda ondulava com o movimento dos guardas agonizantes. O vraal estava parado no alto, a cauda agitada, as garras abertas.

Lief sabia que o monstro estava apreciando o momento, ansioso pela caçada, pelo ato de matar, pela vitória certa. Em segundos, ele estaria atrás deles. Em segundos.

— Lief! — Jasmine gritou.

Lief olhou para a frente. Jasmine estava parada diante de uma porta de metal da Fábrica. Ela a segurava aberta, e Barda e Emlis já corriam para dentro.

Com um rugido, o vraal pulou. Antes de atingir o chão, Lief já se aproximava da porta. Ele se aproximou dela, empurrou Jasmine para dentro, entrou e a fechou no exato momento em que o vraal se chocava contra ela.

Os companheiros ficaram ofegantes de costas para a porta, enquanto a besta golpeava o metal, urrando e rugindo. Eles estavam em um quarto quadrado com portas em todos os lados. Uma das portas, a do lado direito, exibia um grande símbolo pintado de preto.

Jasmine correu até a porta, colou o ouvido nela e ouviu com atenção.

Lief olhou ao redor. Não havia lugar para se esconder. O quarto estava completamente vazio. As paredes eram duras, lisas e emitiam um brilho branco. O teto era iluminado com uma luz fria que parecia vir de lugar nenhum.

“Como o quarto de Fallow no palácio”, Lief pensou. No mesmo instante, ele se repreendeu e tentou bloquear a mente.

Tarde demais. Lembranças daquele outro quarto branco já passeavam em sua mente, trazendo com elas fraqueza e terror. Um suor frio escorreu por sua testa. Ele lutou contra as lembranças.

Mas não adiantou. O seu cérebro estava repleto de imagens e sons.

Sozinho e em segredo, confiando na proteção do Cinturão de Deltora, ele tinha tentado com todas as forças destruir o perigo e o mal encerrados no quarto de Fallow.

Tinha sido uma batalha desesperada e angustiante. Era uma batalha que ele tinha lutado sozinho, como sabia que tinha que fazer, e tinha perdido. No final, exausto, fraco e doente, ele teve que se satisfazer em fechar o quarto com tijolos e mandar o corredor ser vigiado por guardas para que ninguém entrasse. Então, ele tentou apagá-lo de sua mente, esquecer que existia.

Mas ele não conseguia esquecer. O conhecimento da profunda escuridão que estava escondida no coração do palácio continuava a atormentar Lief.

Ele nunca comentou o fato com ninguém. Somente uma pessoa sabia o que ele tinha passado naquele quarto fechado, e essa pessoa era Marilen, pois não podia haver segredos entre eles.

Marilen... Ele se lembrou da imagem da garota como a tinha visto da última vez — trêmula, envolvida em sua capa, o rosto assustado virado para o dele quando se despediram.

Ele se apegou à imagem como se fosse uma linha da vida, usando-a para se libertar da confusão de medos e lembranças que ameaçavam engoli-lo.

Jasmine estava puxando o seu braço e sussurrava algo para ele com insistência. Algo sobre um esconderijo. Sobre...

Ouviu-se um forte estrondo, e a porta de metal se curvou para dentro e o vraal chocou-se contra ela mais uma vez.

— Lief! Os Guardas vêm vindo! — Jasmine avisou ofegante, enquanto Filli guinchava freneticamente em seu ombro. Ela arrastou Lief até a porta que tinha o símbolo preto. Ela estava aberta, e Barda e Emlis já passavam para o quarto do outro lado.

— Não tem ninguém aqui — Jasmine conseguiu falar. — E acho que o sinal mostra que ele é proibido para Guardas Cinzentos. Isso vai nos dar algum tempo. Depressa!

Agora Lief também conseguia ouvir os passos duros e as vozes que gritavam e se aproximavam deles vindos de algum lugar do edifício. Ele atravessou a porta aberta, seguido de perto por Jasmine.

 

Enquanto Jasmine fechava a porta, Lief, Barda e Emlis contemplaram, espantados, o grande salão em que tinham entrado. Ele era tão branco e fortemente iluminado quanto o quarto de que tinham acabado de sair, mas era muito, muito maior. Ele era tomado por um zunido baixo e outros sons lentos, contínuos e borbulhantes. Como o que se ouve quando se cozinha mingau. O salão estava muito quente e cheio de vapor, e havia um cheiro estranho que lembrava a Lief o cheiro de ferro quente.

O aposento estava lotado de recipientes compridos de metal apoiados em pequenos pés. Eles estavam bem arrumados um atrás do outro e ocupavam quase toda a largura da sala. Da porta, Lief não conseguiu ver o que havia dentro deles.

Ele se aproximou de um deles e congelou. O som de botas pesadas pôde ser ouvido na sala ao lado. Vozes ásperas gritavam.

— A porta está torta. Alguém tentou entrar. Uma gangue de Selvagens certamente. Dê uma olhada, Bak 3.

Os amigos ouviram a porta de metal sendo aberta, um grito e um forte estrondo quando ela foi fechada com força.

— Vraal! — várias vozes gritaram em meio a pancadas e golpes do monstro que atacava a porta novamente.

Surpreendentemente, os Guardas ainda não tinham sentido o cheiro dos invasores e não tinham adivinhado que o vraal estava perseguindo os intrusos. Lief sentiu Jasmine tocar o seu braço. Ela pôs o dedo sobre os lábios e acenou. Então, muito devagar e em silêncio, ela começou a avançar pela sala.

— Ele não vai embora! — uma voz gritou do outro lado da porta.

— Chame os Perns!

— Não! Podemos cuidar disso sozinhos! — outra voz protestou.

— Temos as novas varinhas que soltam faíscas, não é? Agora vamos poder usá-las.

Os Guardas ainda estavam concentrados no vraal.

“Quando eles expulsarem o monstro, poderemos escapar. Mas Jasmine está certa em não ficar parada. Qualquer um pode nos ver aqui. Precisamos achar um esconderijo seguro enquanto esperamos”, Lief pensou.

Ele acompanhou Jasmine na ponta dos pés, seguido de perto por Barda, que praticamente carregava Emlis.

Mas quando chegaram ao primeiro recipiente de metal, eles congelaram. O recipiente era dividido em dez diferentes seções e dentro de cada compartimento havia algo parecido com uma sopa que fervia lentamente. No líquido cinza claro boiavam pedaços de formas estranhas.

— O que é isso? — Barda murmurou, franzindo o nariz.

— Não importa — Jasmine sussurrou, espiando dentro do recipiente e continuando a andar. — Não pare. Tem uma porta no fundo da sala. Vamos...

Jasmine cobriu a boca com a mão e soltou um som abafado.

Lief correu para junto dela com Barda e Emlis. Quando viu o que a amiga tinha descoberto, o seu estômago revirou.

Os compartimentos da segunda caixa estavam cheios até a metade com a sopa cinza claro, que cozinhava devagar, mas no líquido flutuavam corpos sem forma com cabeças, braços, pernas...

Barda praguejou baixinho. Emlis cobriu o rosto com as mãos. O rosto de Jasmine estava retorcido de horror.

— Pessoas mortas! — ela conseguiu falar. — Corpos sem vida se dissolvendo...

— Não! — Lief tinha andado ao lado do recipiente e tinha visto o que os amigos não viram. Havia três palavras gravadas no metal.

 

                       CASULOS DE CARNS

 

— Eles não estão se dissolvendo — ele disse com voz rouca, quando se virou para os amigos. — Eles estão se formando. Eles são Guardas Cinzentos. Eles não nascem, mas são criados! Aqui, na Fábrica!

Ele mostrou as palavras gravadas com o dedo trêmulo.

— Sabemos que os Guardas Cinzentos sempre vêm em grupos de dez. Dez irmãos idênticos com o mesmo nome, que trabalham e lutam juntos. Vocês não percebem? Cada um desses recipientes é um casulo. Esses são os casulos dos Carns.

— Os Carns que estão no monte de lixo, Lief! Como eles também podem estar aqui? — Barda perguntou intrigado.

— Porque... — Lief ia explicando.

Então, de repente, a porta do fundo da sala começou a se abrir. Com um raio, os companheiros se agacharam atrás do recipiente. — ... parece que era só um vraal furioso — disse uma mulher jovem.

— Os Baks vão cuidar dele.

— Ou o monstro vai cuidar deles — respondeu uma voz masculina.

— Esses Baks já passaram dez dias da data de vencimento. Eles estão começando a cometer erros. Além disso, na minha opinião, o modelo Bak nunca foi perfeito.

Ouviu-se o ruído de passos no chão duro. Espiando por trás dos pés dos recipientes, Lief viu dois pares de pés calçados em botas brancas, que passavam lentamente pelo salão, inspecionando a última fileira de caixas. Ele também viu que a porta estava só encostada.

— Esses Baks novos já estão quase prontos — disse a mulher com suavidade, depois de um instante. Lief achou a voz conhecida, mas isso era impossível. Estava claro que ela era uma serva do Senhor das Sombras.

— Já estava na hora — o homem respondeu irritado. — Eu já lhe disse. Os estoques de Guardas estão baixos demais. Quando verificarmos os Carns, você vai ver como a situação é grave. Tivemos que nos livrar dos velhos Carns semanas atrás, e os novos nem estavam formados!

Lief sentiu os olhos de Jasmine e Barda voltados para ele e soube que os companheiros tinham compreendido afinal. Os Guardas Cinzentos, criados apenas para servir, para serem cruéis, totalmente obedientes e sem nenhum traço de simpatia ou pena, viviam somente por um período limitado. Quando começavam a ficar gastos, eram simplesmente jogados fora e substituídos por modelos idênticos.

“Não é surpresa que a entrada deles nessa sala seja proibida”, Lief pensou. “Apesar da obediência cega, até eles poderiam reagir se vissem os seus substitutos crescendo aqui.”

As botas brancas se viraram e começaram a voltar para o outro lado do aposento. Os recém-chegados estavam inspecionando outra fila de Guardas em formação.

Com cuidado, Lief, Barda, Jasmine e Emlis começaram a rastejar para a frente, junto dos recipientes. Sair de onde estavam era arriscado, mas era um risco que eles tinham que enfrentar. Se ficassem onde estavam, logo seriam descobertos.

Felizmente, os inspetores estavam interessados demais em seu trabalho e em sua conversa para perceber os sons baixos de pés que se arrastavam do outro lado do salão.

— Esses Perns estão crescendo mais devagar do que a previsão — a mulher comentou, quando chegou ao final da penúltima fileira.

— Bom, não é minha culpa! — o seu companheiro exclamou. — A energia foi cortada duas vezes ontem — ele continuou com a voz queixosa. — É tudo culpa do Projeto de Conversão! Na minha opinião, ele usa material demais há muito tempo e toda a atenção do mestre.

“Projeto de Conversão?”, Lief repetiu mentalmente, prendendo a respiração e ouvindo com atenção. Os inspetores tinham passado pela próxima fila e voltavam devagar para onde os companheiros estavam escondidos. Esperar era perigoso, mas ele tinha que ouvir o que diziam.

— Parece que você tem muitas opiniões, 3-19 — a mulher comentou, endurecendo a voz. — Se eu fosse você, tomaria cuidado.

— O que você quer dizer? — o homem perguntou desconfiado.

— Por que você acha que o Projeto de Conversão passou a ser mais importante que tudo para o mestre, seu idiota? — a mulher perguntou irritada, perdendo a paciência. — É porque o recente desastre em Deltora o fez perder a confiança nos Ols de Grau 3. Em você e na sua raça, 3-19!

O coração de Lief acelerou. O ser chamado de 3-19 era um Ol de Grau 3! Um exemplo dos seres capazes de mudar de forma mais perfeitos e perigosos criados pelo perverso Senhor das Sombras. Capazes de imitar os humanos com tanta exatidão que podiam viver entre eles sem serem descobertos.

Quem — ou o que — era a mulher, então? Ele queimava de curiosidade para saber qual seria a aparência dos dois, mas não ousou levantar a cabeça.

— O mestre está achando que os Ols de Grau 3 foram um erro — a mulher continuou. — São parecidos demais com humanos. São orgulhosos, curiosos, fracos e desobedientes. E você, 3-19, parece estar provando que ele está com a razão!

Depois de dizer isso, ela se afastou depressa do companheiro. Lief deslizou para a frente e saiu depressa da passagem lateral bem a tempo de se esconder outra vez.

Ele podia ver os vultos agachados de Barda, Jasmine e Emlis algumas fileiras adiante. Ele também podia ver as pernas, cobertas com botas brancas, da mulher misteriosa no fundo da sala.

Com um estremecimento de pavor, Lief viu a ponta da capa verde de Emlis aparecendo no corredor. Se a mulher olhasse para a frente e para baixo...

Mas ela não parecia estar disposta a notar o que havia ao seu redor. Ela batia um dos pés com impaciência enquanto 3-19 corria para se juntar a ela, murmurando desculpas e explicações.

— ...não quis criticar ninguém — Lief escutou o Ol dizer. — Eu nunca duvidaria da opinião do mestre.

— Pois eu acho que era exatamente isso que você estava fazendo! — a mulher disparou, passando à próxima fileira de novos Guardas Cinzentos. — O Projeto de Conversão é a porta para o futuro, 3-19. Como você vai descobrir muito em breve.

— Breve? — 3-19 engasgou muito assustado. — Mas eu pensei...

— Todos os erros do processo foram corrigidos — a mulher replicou com frieza. — Você vê algum defeito em mim?

Houve um momento de silêncio.

— Eu... eu não sabia que você era um deles — 3-19 conseguiu balbuciar enfim.

— Pois bem, eu sou! — a mulher confirmou. — Agora, explique por que esses Krops parecem mais magros do que deveriam ser.

Eles estavam passando ao outro lado do aposento outra vez. Lief, Barda, Jasmine e Emlis se esgueiraram para fora do esconderijo e começaram a rastejar para a frente o mais depressa possível.

Em instantes, eles estavam quase na mesma altura que os dois inspetores, que naquele momento já tinham quase chegado ao fim do Casulo de Krops. Aquele era o momento mais perigoso. Um por um, os companheiros atravessaram o espaço entre os recipientes. Se um dos inspetores parados na extremidade do corredor se virasse, eles seriam vistos claramente.

Mas eles não se viraram. Olhando para os lados ao sair do esconderijo, Lief viu rapidamente os dois vultos vestidos de branco, um alto, o outro baixo e magro, parados juntos no fim do recipiente. O vulto baixo consultava um gráfico. O alto estava curvado para virar uma das alavancas do recipiente de metal reluzente.

Então, os dois ficaram fora das vistas de Lief mais uma vez quando ele seguiu os amigos, passou pelos dois últimos casulos junto da parede dos fundos, em direção da porta aberta.

Ainda abaixada, Jasmine espiou com cuidado para fora. Ela se virou, acenou para os amigos e rastejou pela abertura. Barda e Emlis a seguiram, mas, quando Lief ia acompanhá-los, percebendo que a outra sala era algum tipo de sala de trabalho, ele ouviu o Ol falar de novo, muito tímido.

— O plano do mestre...

— O mestre tem muitos planos! — a mulher interrompeu irritada. — E nenhum deles é da sua conta!

Jasmine acenava com insistência do outro lado do aposento, mas Lief não conseguiu mais conter a curiosidade. Assim que pôde, levantou-se e espiou com cuidado atrás da porta semi-aberta para dentro da sala de casulos.

Os dois vultos tinham começado a inspecionar mais uma fileira de Guardas. O mais baixo, a mulher, estava consultando o gráfico. O alto a seguia de perto.

Ele tinha o rosto magro e azedo de Fallow.

Lief agarrou a porta até os nós dos dedos ficarem brancos. “Aquele não é Fallow”, ele lembrou desesperado. “Fallow morreu. Aquela criatura, 3-19, apenas usa o mesmo rosto.” Mas, mesmo assim, a sua respiração se acelerou, e um calafrio percorreu o seu corpo.

Então, a mulher ergueu os olhos do gráfico e se virou para o companheiro. O seu rosto delicado e os seus olhos azuis claros foram iluminados pela luz forte.

Lief olhou para ela durante uma fração de segundo e então recuou atrás da porta chocado.

 

Barda, Jasmine e Emlis estavam reunidos na frente de uma porta estreita ao lado da sala de trabalho. Lief contornou uma longa mesa branca, onde havia muitos jarros, canecas de medidas e um pote contendo um líquido verde e borbulhante em cima de uma chama, e correu barulhentamente até eles.

— Não tem lugar para a gente se esconder aqui — Jasmine sussurrou. — Temos que procurar outro lugar — ela parou quando percebeu a expressão do rosto de Lief. — O que foi? — ela murmurou. — Parece que você viu um fantasma.

— Eu vi — Lief respondeu baixinho. — Aquela mulher, a da sala dos casulos, é Tira, de Noradz.

Barda e Jasmine olharam para ele horrorizados.

— Quem é Tira? — Emlis perguntou, olhando de um para outro.

— Uma amiga que uma vez arriscou a vida para nos ajudar — Jasmine contou desalentada. — Ficamos sabendo que o povo dela foi trazido para a Terra das Sombras. Esperávamos encontrá-la e salvá-la, mas...

— Mas parece que ela não quer ser salva — Barda retrucou zangado. — Ela se tornou uma criatura do Senhor das Sombras. O que fizeram com ela?

— Acho que a resposta está ali dentro — Jasmine disse devagar. Ela deu um passo para o lado e apontou o aviso na porta.

 

               PROJETO DE CONVERSÃO – ENTRADA PROIBIDA

 

Não se ouvia nenhum som atrás da porta. Lief segurou a maçaneta, que girou com facilidade. Ele abriu a porta um pouquinho e espiou na sala.

No início, tudo o que conseguiu ver foi uma luz rosa avermelhada. Ele piscou e, lentamente, conseguiu enxergar melhor. Era outra sala de trabalho, muito maior — enorme, silenciosa e vazia. A estranha luz vermelha brilhava das paredes, do teto e do chão. Na parede em frente a Lief, havia duas portas grandes firmemente fechadas.

Uma onda de medo o invadiu. Jasmine o empurrava, incentivando-o a andar, mas, durante um longo momento, ele resistiu. Tudo dentro dele ordenava que ficasse onde estava. Ele segurou a Flauta de Pirra debaixo da camisa e, finalmente, reuniu força suficiente para entrar tropeçando no quarto.

Várias mesas de trabalho estavam encostadas às paredes laterais, cada uma ocupando um terço da largura da sala, cada uma coberta com um conjunto de tiras de couro largas. Lief estremeceu quando a sua imaginação começou a encher o aposento de pessoas. As vítimas indefesas presas aos balcões, as criaturas vestidas de branco trabalhando nelas, obedecendo às ordens do mestre.

Fazendo... o quê?

O corredor formado no meio da sala estava vazio, mas o piso arranhado indicava que nem sempre tinha sido assim. Algo pesado, grande e quadrado tinha estado exatamente no centro. Marcas rasas, como as deixadas por rodas de carroças, mostravam que o objeto tinha sido arrastado para fora da sala, por uma porta dupla.

Apesar de não ter visto nada assustador, todo o corpo de Lief estremeceu ao se aproximar das marcas no chão. Ele sabia, sem dúvida alguma, que o mal tinha estado naquele aposento iluminado de vermelho.

Seus companheiros tiveram a mesma sensação. Emlis pareceu ter encolhido dentro da capa, o pequeno rosto aflito e os dentes ligeiramente à mostra. Barda respirava ruidosamente, como se tivesse corrido. O rosto de Jasmine estava pálido. Filli tinha desaparecido debaixo de sua gola, e Kree parecia uma estátua negra em seu ombro.

Por instinto, todos evitaram pisar nas marcas no chão. Eles as contornaram andando bem perto das mesas de trabalho e evitando olhar para elas.

Os companheiros se aproximaram da porta dupla e, depois de escutar com atenção e não ouvir nenhum som, eles a atravessaram.

Uma onda de poder maligno os atingiu em cheio no rosto, fazendo com que parassem onde estavam.

Eles se encontravam num espaço mal-iluminado por uma luz avermelhada, com uma porta dupla em cada parede. O espaço estava vazio, exceto por uma enorme caixa quadrada de metal colocada no centro, onde terminavam as marcas dentadas no piso. A caixa tinha a mesma altura de Jasmine, rodas e um alçapão em uma extremidade. A sua tampa estava aberta e pendia em uma das laterais. Não havia dúvidas de que era o objeto que tinha sido movido da sala de trabalho.

O mal soltava-se dela como uma onda de calor, mas, ao mesmo tempo, transmitia uma sensação de frio mortal, que parecia congelar o sangue dos amigos. Emlis começou a choramingar.

Lief obrigou-se a agarrar a Flauta de Pirra. Uma sensação de calor percorreu os seus dedos, e ele deu um passo a frente.

— Pare! — Jasmine sussurrou, segurando o braço dele. — Lief, não! Não chegue perto disso!

Mas Lief tinha que saber o que havia dentro da caixa. Agarrando a Flauta com mais força, ele deu outro passo, seguido por Jasmine, que tentava impedi-lo.

Ele estendeu a mão para a caixa e, assustado, olhou sobre a beirada.

No início, ele só conseguiu ver uma massa rosada que se retorcia. Mas então o seu coração pareceu parar quando se deu conta do que estava vendo — milhares de vermes compridos e claros, com cabeças escarlate, que se retorciam no banho de um líquido vermelho.

E então os vermes perceberam a sua presença. Eles começaram a se levantar para pegá-lo, agitando as caudas, as cabeças vermelhas perversas se esforçando para subir pela lateral da caixa.

Com um grito abafado, Lief recuou rapidamente, chocando-se contra Barda e Jasmine, que estavam bem atrás dele.

Ele não precisou perguntar aos amigos se eles tinham visto, pois os seus rostos horrorizados lhe diziam que sim.

— Temos que sair deste lugar — Barda murmurou. Ele apontou para a porta dupla à direita. — Por ali! O meu senso de direção me diz que os montes de lixo estão daquele lado. Talvez tenha outra porta...

— Não! — Jasmine protestou, balançando a cabeça, apontando para outra porta. Barda olhou para ela, e o rosto de Jasmine corou violentamente. — Precisamos continuar! — ela gritou desesperada. — Deve haver prisioneiros aqui.

Lief olhou de um amigo para outro e para Emlis, que se encolhia atrás deles.

“O tempo todo, Jasmine queria vir para cá...”, o pensamento passeou em sua mente e ali ficou. Ele sabia que tinha razão.

— Jasmine, quem...? — ele começou secamente. Ele só teve tempo de perceber o olhar assustado e culpado da amiga quando um ruído vindo da sala de trabalho fez com que parasse de falar.

Era o som de vozes e passos. Tira e o companheiro tinham terminado a inspeção muito antes do que ele tinha esperado.

— ...não se pode fazer nada! — Tira estava exclamando. — Você ouviu a mensagem. Precisam de nós imediatamente! O Projeto de Conversão está para ser colocado em ação.

Os companheiros olharam ao redor agitados. Não havia onde se esconder. Barda agarrou o braço de Lief e se dirigiu para a porta à direita, acompanhado por Emlis. Depois de hesitar um instante, Jasmine os seguiu.

Eles entraram na escuridão. A porta mal tinha se fechado atrás deles quando alguém entrou na sala da qual tinham acabado de sair.

— Ah, minhas belezinhas! — eles ouviram Tira dizer. — A hora de vocês chegou. Acabo de receber a ordem.

Houve um rangido, uma batida forte e quatro cliques, como se a tampa da caixa estivesse sendo fechada e trancada.

— O que está acontecendo? — Jasmine sussurrou em pânico. — O que eles vão fazer com aquelas... coisas?

— Psiu!

O assobio na escuridão silenciosa foi assustador. Lief, Barda, Jasmine e Emlis deram um pulo violento e se viraram.

Atrás deles, havia uma jaula de ferro sobre rodas, com o teto coberto por um emaranhado de pedaços de tecido. Dentro dela, alguma coisa se mexia.

— Me ajudem! — a voz grunhiu. — Me tirem daqui, pelo amor de Deus! Os companheiros dispararam até a jaula em silêncio. Aporta estava trancada com uma forte fechadura. Um Gnomo do Medo, de olhar assustado, espiava pelas grades, o rosto quase invisível na escuridão.

— Eu me chamo Pi-Ban — o gnomo balbuciou. — Pi-Ban, antes da Montanha do Medo. Vocês são a causa do pânico? Foi Garra que mandou vocês? Onde estão Brianne e Gers?

Barda agarrou duas das grades da jaula e puxou com toda a força, mas mesmo ele não conseguiu entortar o ferro grosso e rígido.

Sem falar nada, Jasmine estendeu a adaga. Lief a pegou e usou a sua ponta para tentar abrir a fechadura.

— Garra não nos mandou para cá, exatamente, Pi-Ban — ele sussurrou. — Mas já ouvimos o seu nome. Sabemos que você é um dos que foram capturados na caverna da Resistência que fica a leste deste lugar.

— Onde estão os seus amigos — Jasmine perguntou ansiosa, enquanto Barda recomeçava a tentar entortar as barras. — Onde ficam os prisioneiros?

O gnomo grunhiu, os olhos fixos nas mãos de Lief.

— As masmorras ficam no subsolo — ele informou, mal mexendo os lábios. — Mas elas agora estão vazias. Moss, Pieter, Tipp, Alexi, Hellena... foram levados embora, um por um. Tudo começou no dia em que fomos capturados. Moss foi o primeiro, e Hellena foi a última. Ela foi levada ontem. Só eu fiquei.

— Mas... mas deve haver outros escravos aqui — Jasmine disse com a voz tensa.

— Havia outros, no começo — Pi-Ban disse. — Muitos outros, novos e velhos. Alguns estavam na masmorra com a gente. Os mais calmos e obedientes faziam a limpeza e o transporte. Mas eles não estão mais aqui.

— Esses... esses mais calmos — Jasmine disse depressa. — Havia alguma menina entre eles?

— Uma garota chamada Tira, por exemplo? — Barda perguntou ofegante, interrompendo por um momento o esforço para abrir a jaula.

O gnomo ergueu o rosto abatido.

— Vocês vieram para buscar Tira? — ele perguntou com ar cansado. — Sim, eu sei quem é. Uma criatura delicada e com olhos cor do céu que, junto com outros, veio de Noradz. — Um pessoal estranho e tímido que usava roupas pretas e que limpava os corredores e levava água e comida para as masmorras. Primeiro, pensamos que eles serviam o Senhor das Sombras de boa vontade, mas não era verdade. Eles eram prisioneiros como nós.

Barda acenou tristemente com a cabeça e atacou as barras outra vez, como se as suas mãos enormes estivessem estraçalhando o próprio Senhor das Sombras. Lief estava concentrado na fechadura, com o olhar sério.

Como se fosse incapaz de esperar mais, Pi-Ban se virou e andou até o fundo da jaula. Ele agarrou as barras e caiu de joelhos, olhando para a escuridão.

Jasmine se aproximou dele e se ajoelhou para falar com ele cara a cara.

— Fiquei sabendo de outra menina que talvez estivesse aqui, Pi-Ban — ela disse em voz baixa. — Mais nova do que Tira — uma criança de cabelos pretos e olhos verdes chamada Faith.

Ela prendeu a respiração quando Pi-Ban ficou sério e pensativo.

— Faith. Estranho você mencionar esse nome — o gnomo disse finalmente. — Só há pouco tempo é que ouvi falar dele pela primeira vez, quando os Guardas me trouxeram para cá. Eles eram Baks, e o humor deles estava pior do que nunca. Três de seu grupo tinham acabado de ser destruídos por um vraal, que perseguia um quarto no deserto. Eles receberam ordens para abandonar a busca para me acompanhar. Eu lhes disse que fiquei contente com o que tinha acontecido e, por isso, levei um ou dois tapas.

Um sorriso selvagem brilhou brevemente por entre os fios emaranhados de sua barba, e então ele ficou sério outra vez.

— Eles me disseram que eu seria levado para a Arena das Sombras e que Faith tinha ido antes de mim — ele balbuciou. — Eles acharam que essa informação ia me atormentar porque eu conhecia a menina. Mas eu não a conhecia.

Ele olhou para Jasmine com ar esperto.

— Está claro que essa menina é muito importante para você. Quem é essa menina de cabelos pretos e olhos verdes iguais aos seus? E por que você faz de tudo para perguntar sobre ela enquanto os seus amigos não estão ouvindo?

Com a cabeça a mil, Jasmine se afastou dele depressa.

— Não consigo abrir, Barda! — Lief murmurou da frente da jaula.

— A fechadura é forte demais. Vamos ter que encontrar outro jeito.

Nesse momento, houve um ruído forte na sala da qual tinham vindo. Portas estavam sendo abertas, e pés marchavam naquela direção.

— Guardas! — Barda deduziu.

— Vão embora! Depressa! — Pi-Ban sussurrou. — Tem outra porta atrás da jaula. Acho que é uma saída.

— Não! — Jasmine sussurrou desesperada, levantando-se depressa.

— Não podemos ir embora agora!

— Vocês precisam! — o gnomo ergueu a cabeça despenteada com orgulho. — Se vou morrer, quero morrer como um Gnomo do Medo, não como um covarde que arrasta outras pessoas com ele. Saiam! Salvem-se!

Mas era tarde demais. A porta dupla foi empurrada, e a luz vermelha e opaca brilhou pela abertura. Os Guardas estavam entrando na sala.

 

Como um raio, Lief, Barda e Jasmine saltaram no teto da jaula, arrastando Emlis atrás deles. Eles se esconderam debaixo das camadas de tecido e ficaram quietos, espiando para fora com cuidado, os corações batendo forte.

— Chegou a hora de ir, escória! — zombou um dos Guardas. Ele se aproximou da jaula e empurrou um bastão pesado pelas barras. Houve uma série de faíscas e os companheiros ouviram Pi-Ban gemer e cair pesadamente no chão. Os Guardas se dobraram de tanto rir.

Dois vultos vestidos de branco atravessaram a porta — Tira e o Ol chamado de 3-19. Os Guardas ficaram imediatamente em silêncio.

— Você vai acompanhar a jaula, 3-19 — Tira disse secamente. — Eu vou seguir vocês com o Projeto.

— Só temos um prisioneiro — 3-19 protestou. — Ele pode ir acorrentado. A jaula não é necessária.

— Não é você quem decide o que é necessário — Tira replicou irritada. — Este prisioneiro foi guardado especialmente para este momento. Não podemos nos arriscar que ele fuja. Ele não deve ser machucado, portanto, vigie bem os guardas.

3-19 concordou, a raiva estampada no rosto magro.

— Nós, Baks, não precisamos de um Ol para nos dizer o que fazer — resmungou um dos Guardas.

— Silêncio! — Tira gritou. Ela se virou e voltou para a sala com a luz vermelha onde outro grupo de Guardas esperava, cinco de cada lado da caixa de metal.

3-19 pigarreou.

— Vocês escutaram! — ele disse para os Baks. — Tomem posição! Enquanto os Baks se colocavam ao lado da jaula de mau humor, ele passou por eles e abriu o outro par de portas. Uma luz fraca entrou no aposento, trazendo com ela o mau cheiro dos montes de lixo.

Lief ficou imóvel, temendo que fossem vistos a qualquer momento, mas não houve nenhum grito de alerta. Os Guardas olhavam ressentidos para 3-19, cujos olhos estavam fixos no caminho à frente.

— Andem! — Tira gritou do outro aposento.

— Mexam-se! — 3-19 murmurou para os Baks.

— Antes precisamos cobrir a jaula — um deles grunhiu.

Com um calafrio, Lief se deu conta de que os pedaços de tecido debaixo dos quais estavam escondidos eram abas feitas para serem puxadas sobre os lados da jaula.

— Não precisamos cobrir a jaula, idiota! — 3-19 respondeu irritado.

— Já é noite! Os prisioneiros não vão ver nada.

— Uma jaula em movimento precisa ser coberta — o Guarda insistiu teimoso. — Essas são as ordens. Nós, Baks, sempre...

— Vocês, Baks, já passaram do tempo de ir para o monte de lixo, e quanto antes forem, melhor! — 3-19 disparou furioso. — Andem!

Resmungando, os seis Baks encostaram os ombros na jaula e a empurraram para dentro da noite mal-cheirosa. Atrás deles, seguia barulhentamente a grande caixa de metal.

Pi-Ban, ainda deitado, resmungava atordoado. Lief, Barda, Jasmine e Emlis seguravam-se, desesperados, no teto da jaula cambaleante. Cada um dos servos do Senhor das Sombras estava ocupado com os próprios pensamentos de ressentimento ou triunfo.

E, por esse motivo, ninguém viu as três sombras que saíram do esconderijo oferecido pelos montes de lixo e os seguiram.

No início, Lief só conseguia ouvir o chacoalhar da jaula, mas, depois de alguns momentos, ele começou a perceber vozes vindas de baixo.

— Nós merecemos mais respeito — um dos Guardas resmungava.

— Nós demos o alerta! Fomos nós que estávamos lá fora lutando com o vraal. Fomos nós que ouvimos aqueles restos gritando no monte de lixo.

Lief ficou arrepiado e escutou com atenção.

— O Ol disse que nós deveríamos estar no monte de lixo, Bak 3 — outro Guarda disse.

— O Ol é um idiota! — Bak 3 resmungou. — Você sabe que não temos uma data de vencimento como os outros grupos, Bak 9. Disseram isso desde o começo e nos avisaram para não contar para os outros. Vocês esqueceram?

— Não — Bak 3 murmurou. — Mas o Ol disse...

— Esqueça o que ele disse! — Bak 3 respondeu irritado. — O mestre nunca se livraria de nós. Ora, fomos nós que demos as notícias que ele estava esperando: as notícias sobre a garota e o pássaro preto. Por que acha que estamos indo para a Arena agora?

O coração de Lief bateu com força. O Senhor das Sombras estava esperando por Jasmine o tempo todo. Eram as notícias sobre ela que tinham causado aquela pressa.

A suspeita que Lief vinha tentando afastar desde que chegaram à Terra das Sombras voltou à sua cabeça e, dessa vez, ele pensou nela com seriedade. Jasmine tem um segredo — um segredo perigoso. Ela os tinha levado à Fábrica. Ela tinha se recusado a fugir, quando uma fuga ainda era possível.

Lief estava ansioso por virar a cabeça e falar com Jasmine, pedir explicações a ela. Mas não teve coragem. O menor som ou movimento poderia traí-los.

Através de um buraco no tecido, ele pôde ver que a jaula estava rodeando a colina que tinha visto da Fábrica. Os Guardas estavam ofegantes ao empurrar as rodas barulhentas para a curva.

Então, de repente, a estrada ficou reta novamente. Agora ela acompanhava as montanhas e, mais à frente, estava a imensa Arena iluminada. Pelo barulho, havia uma grande multidão à espera.

— Mais depressa! — Tira gritou de trás, a voz aguda de entusiasmo. — Pare no túnel, 3-19! O Projeto deve entrar na Arena primeiro. Você ouviu?

— Não sou surdo! — resmungou 3-19. — Guardas! Mais depressa!

— Nós também não somos surdos, Ol — Bak 9 resmungou.

A jaula começou a se mover mais depressa. O barulho da multidão ficou mais forte. Então, de repente, a intensidade da luz diminuiu, e a jaula parou com um rangido. Lief viu pedras escuras e imaginou que estavam na entrada do túnel que atravessava os muros da Arena.

Ele ficou tonto, ouviu o som das rodas pesadas e se deu conta de que a caixa de metal estava sendo empurrada para a frente da jaula para que pudesse entrar na Arena primeiro.

— Espere ser chamado, 3-19! — Tira gritou de algum ponto adiante.

— A mulher de vermelho é a escrava Faith? — 3-19 perguntou curioso.

Lief sentiu Jasmine ficar tensa.

— É claro que não! — Tira respondeu com maus modos. — Ela é o caminho para o futuro, assim como eu. A escrava está acorrentada debaixo da plataforma. Perns! Em frente!

Um tambor começou a soar — um som profundo e pulsante como o bater de um coração. A multidão ficou em silêncio.

Lief tinha que ver o que estava acontecendo. Com cuidado, ele puxou um pouco do tecido para o lado.

Atrás de Tira, a caixa de metal, estava sendo empurrada por debaixo de um grande arco não muito longe dali. Ela saiu da escuridão e foi iluminada por uma luz muito forte. A luz da Arena.

Lief imaginou que haveria fileiras de assentos rodeando a Arena, mas não conseguia vê-los de onde estava. Ele também não conseguia ver os vraals, cujos rugidos se misturavam ao bater do grande tambor. Mas ele podia ver o chão com clareza. Tudo o que estava emoldurado pelo arco estava claro como o dia. Era como ver uma imensa imagem em movimento.

Guardas Cinzentos segurando bastões de choque estavam enfileirados ao longo do caminho pelo qual a caixa de metal passava. O caminho levava a uma imensa plataforma cercada de colunas brancas. Alguém usando uma túnica vermelha esperava ali, longe demais para que Lief pudesse ver com clareza.

Atrás dos Guardas, estavam pessoas esfarrapadas, apertadas umas contra as outras. Os ombros das pessoas estavam curvados, e os seus olhos mostravam medo e desespero. A maioria tinha a marca do Senhor das Sombras na testa ou na face e observava a passagem de Tira com a caixa de metal.

Lief ficou angustiado ao reconhecer entre elas o povo vestido de preto de Noradz, os vultos fortes de centenas de Jalis, alguns guardas do palácio. Ele não reconheceu todos, mas sabia que eram fazendeiros do nordeste, do oeste e de Plains, gladiadores de Rithmere, pescadores da costa, membros da Resistência, cidadãos de Del...

Muitos deltoranos. Espancados, explorados e castigados pelo vento do desespero até perderem o ânimo e a esperança. Eles acreditavam que tinham sido levados para lá para morrer. Para muitos, talvez, a morte poderia parecer um alívio para o sofrimento causado pela escravidão.

“Mas eles não vão morrer. Eles não vão mais ser escravos!”, Lief pensou com tristeza.

Mas eles eram tantos. Agitado, Lief encostou os dedos na Flauta de Pirra que escondia debaixo da camisa. Logo chegaria o momento de testá-la. Será que a sua magia daria tempo a eles para reunir as pessoas e tirá-las da Arena? Ela poderia quebrar o feitiço que fechava a saída das montanhas?

A caixa já estava perto da plataforma, e a luz da Arena estava mudando para um vermelho forte e sem brilho.

O dia estava raiando.

Um movimento chamou a atenção de Lief. Os Baks estavam se aproximando do arco. 3-19 estava olhando para Tira ressentido. Ninguém vigiava a jaula.

— Essa é a nossa chance de descer! — Barda murmurou.

— Não! — Jasmine sussurrou, ansiosa. — Precisamos ficar aqui. Que outro jeito temos de chegar até a plataforma em segurança?

— A plataforma? — Barda exclamou espantado. — Por que...?

Lief tinha certeza de que Jasmine tinha motivos para querer chegar até a plataforma. Mas ele também acreditava que eles deveriam ir para o centro da Arena.

— A Flauta deve ser tocada onde o Senhor das Sombras possa ouvir bem — ele sussurrou. — E as pessoas precisam nos ver. Emlis, vou dar a Flauta para você assim que chegarmos na plataforma. Esteja preparado!

Emlis concordou com um grunhido assustado.

— Esse plano é precipitado, Lief — Barda protestou. — As pessoas não foram avisadas. Elas não vão saber...

— Sshh! — Jasmine sussurrou.

Lief congelou. Então ele ouviu o que Jasmine tinha ouvido antes dele. Ruídos leves vinham do fundo da jaula. Vozes que sussurravam, um tinido como se alguém tivesse mexido na fechadura. Um grunhido de esforço e um xingamento abafado.

Então, algo bateu no pé de Lief.

— Desçam daí, seus idiotas! — ordenou uma voz rouca. — Não podemos soltar Pi-Ban, mas, pelo menos, podemos salvar vocês.

— Não, Garra! Vamos ficar em cima da jaula — Lief sussurrou.

— Você ficou louco, rapaz? — Garra se espantou.

— Não temos tempo para explicar — Barda disse depressa. — Se você quer ajudar a gente, entre na Arena. Diga a todas as pessoas que puder para ficarem prontas para lutar e sair daqui. Elas vão saber quando chegar a hora.

— Se tentarmos salvar todas elas, elas vão ser massacradas — Garra replicou. — E nós também. Algumas poderão...

— Diga para elas irem até a passagem atrás da Arena! — Barda interrompeu. — Agora, Garra, vá embora, pelo amor de Deus! Os Guardas vão se virar e ver você!

— A passagem está fechada por um feitiço — Garra respondeu.

— Deixe isso por nossa conta — Barda retrucou. — Apenas faça o que mandei.

— Você está louco! — Garra murmurou, tirando a mão de cima do pé de Lief.

Os companheiros ouviram mais alguns sussurros e depois tudo ficou em silêncio. Garra, Brianne e Gers tinham desaparecido nas sombras.

— Será que ele vai fazer o que você pediu? — Jasmine sussurrou.

— Quem sabe? — Barda disse preocupado. — E acho que estamos mesmo loucos como ele disse. Pelo que sabemos, a Flauta de Pirra não vai perturbar o Senhor das Sombras mais do que o zumbido de uma mosca.

— Olhem! — Jasmine sussurrou.

Uma mulher vestida de vermelho andava para a frente da plataforma, o rosto marcante e os cabelos macios e prateados agora claramente visíveis.

— Hellena!

O grito desesperado e surpreso tinha vindo de debaixo deles. De Pi-Ban.

3-19 se virou.

— Voltem aos seus postos! — ele ordenou aos Guardas furioso, para depois se virar para a Arena.

A mulher vestida de vermelho também tinha ouvido o grito de Pi-Ban e os seus lábios se torceram num sorriso frio.

Lief olhou horrorizado. Hellena tinha sido um membro do grupo de Pi-Ban. Ela era a amiga por quem Brianne tanto tinha chorado. No entanto, agora os olhos dela brilhavam triunfantes, enquanto os Perns empurravam a caixa de metal numa rampa até a plataforma. Ela se deliciava com a crueldade. Assim como Tira.

O Projeto de Conversão... o caminho para o futuro...

Hoje não vamos soltar nenhum vraal — Hellena avisou com voz aguda.

Uivos de desapontamento se ergueram do público — uivos que mudaram bruscamente para lamentações quando soou um trovão e um frio assustador percorreu a Arena.

Os Baks tremiam ao lado da jaula.

— O mestre está presente — Bak 3 choramingou.

— Hoje começa uma nova era! — Hellena anunciou. — Depois de hoje, nada mais vai ficar no caminho do mestre. Onde quer que ele coloque a mão, todos irão se curvar diante dele e cumprir a sua vontade. Vocês verão.

— Tragam Faith! — ela ordenou, erguendo a mão.

Dois Guardas subiram até a plataforma arrastando entre eles uma garota pequena de cabelos negros que se debatia e cujos olhos faiscavam com fúria.

Jasmine prendeu a respiração.

O coração de Lief pareceu parar. Barda praguejou baixinho.

A criança na plataforma, o pequeno rosto, tão parecido com o de Jasmine que poderiam ser irmãs, observava a multidão, os olhos cheios de medo e esperança.

— Essa é a irmã de uma das maiores inimigas do mestre! — Hellena gritou. — Mas, assim como o gnomo que vai lhe fazer companhia, um gnomo que é um perigoso traidor, ela logo vai se curvar, de boa vontade, diante do mestre.

O público rugiu.

— Já vamos ser chamados — tagarelou Bak 9 assustado. — O mestre vai pensar que desobedecemos às suas ordens. O dia raiou, e a jaula está descoberta.

Lief ficou tenso e Faith era a última de suas preocupações. Estava claro que, agora, que estavam tão perto, iria acontecer um desastre. Os outros Baks arrastaram os pés nervosos.

— O Ol disse... — um deles começou.

— Que se dane o Ol! — Bak 9 interrompeu com raiva. E, sem outro aviso, os seis pularam para os lados da jaula e puxaram a capa para baixo.

Emlis, repentinamente exposto, rolou apavorado e caiu. Ele atingiu o chão e ficou imóvel. Lief, Barda e Jasmine se esforçaram para se levantar e apanhar as armas, mas não tiveram chance. Os Guardas se recuperaram do susto rapidamente, e os bastões de choque começaram a funcionar sem piedade...

Lief viu Jasmine se encolher e cair para trás acompanhada de Kree. Ele viu Barda ser atingido uma, duas vezes. Então ele também sentiu um choque quente na nuca. Uma dor forte percorreu o seu corpo e tudo ficou escuro ao seu redor.

 

Lief recobrou os sentidos devagar. Algo batia nele sem parar, e cada batida mandava uma pontada de dor à sua cabeça. Ele estava deitado numa superfície dura, que sacolejava e machucava os seus ossos doloridos.

Ele se esforçou para abrir os olhos. A sua cabeça estava prensada nas grades frias. Ele não conseguia ver nada de onde estava, pois um tecido grosso o cobria.

Ele levou algum tempo para se lembrar do que tinha acontecido e para perceber, com pavor, onde estava. Lief estava na jaula e ela estava se movendo pela Arena. O som que ele ouvia era o bater do grande tambor.

Barda e Jasmine estavam se mexendo ao lado dele. Pi-Ban estava agachado perto da cabeça de Barda, com uma expressão de horror estampada no rosto.

Lief procurou a espada, mas era óbvio que tinha sido levada. Com um calafrio de medo, ele colocou a mão no pescoço e, com alívio, sentiu o cordão que prendia a Flauta de Pirra debaixo da camisa.

Vozes ásperas murmuravam algo perto deles. Lief se deu conta de que eram as vozes dos Guardas que empurravam a jaula.

— O Ol vai tentar colher os louros por essa prisão.

— Ele que experimente! Quando tirarmos a capa, ele não vai conseguir esconder a surpresa. O mestre vai entender que foram os Baks que trouxeram os três, e que o Ol não sabia de nada.

— O selvagem magricela que estava com eles...

“Emlis!”, Lief pensou, procurando na jaula desesperado. Então, ele se lembrou. Tinha visto Emlis pela última vez quando o pequeno keron caiu da jaula dentro do túnel.

Outro guarda estava falando. Lief fechou os olhos e tentou ouvir e ficou angustiado com o que escutou.

— O selvagem estava ferido. Ele se arrastou para morrer. Esqueça dele. São esses três que o Mestre quer. O rapaz, o homem grande e a garota com o pássaro preto. Que sorte tivemos, não é, Bak 3?

— Você já pensou a cara de idiota que o Ol vai fazer? Os Guardas riram baixinho.

Estremecendo por causa da dor na cabeça, Lief foi até a frente da jaula. No canto, as abas deixavam um espaço e ele espiou para fora.

O Ol 3-19 estava na sua frente, parado muito ereto de costas para a plataforma onde Tira esperava com uma expressão sombria. Ao lado de Tira estava Hellena, segurando a corrente de Faith com uma das mãos, enquanto a outra descansava na tampa da caixa de metal.

Atrás dos Guardas Cinzentos, que cercavam o caminho, estava o povo esfarrapado, assistindo a tudo com o olhar sem brilho. E, mais adiante, erguendo-se até perder de vista, fileiras de bancos lotadas de espectadores — de todos as formas, cores e tamanhos.

O público parecia brilhar, mudar e ondular... Lief esfregou os olhos.

Então, ele se deu conta de que os seus olhos não estavam com problemas. Havia alguns Ra-Kacharz nos bancos, alguns grupos de Guardas, e vários selvagens. Mas a maior parte do público era composta por Ols — de Grau 1 e 2, cujos formatos mudavam a toda hora, dissolvendo-se e transformando-se enquanto ele observava.

Ali, era evidente, não havia motivos para disfarçar. Os Ols de grau inferior não precisavam manter uma forma, se não quisessem.

Eles podiam mudar à vontade, por pura diversão ou para o fim que quisessem.

Ele se concentrou em um par e viu quando as suas cabeças com chifres, semelhantes aos de cabras, se dissolveram e se transformaram em caras de peixe com as bocas abertas, as mãos se transformaram em nadadeiras, e a sua cor mudou de marrom para prata esverdeado e os seus corpos incharam. Ao fazer isso, eles empurraram o par que estava ao lado deles, duas mulheres de gorro vermelho. A mulher resmungou zangada e, por um instante, mostrou o seu verdadeiro corpo, branco, sem formas, com bocas abertas sem dentes e olhos negros como carvões. No momento seguinte, as formas brancas encolheram e estreitaram e se tornaram serpentes retorcidas com rostos humanos.

Enojado, Lief olhou outra vez para os escravos, imóveis e silenciosos.

E então ele viu algo muito estranho. Parecia que ninguém estava se movendo, mas era como se ondas estivessem passando pela multidão.

Ele apertou o rosto contra as grades. Agora ele percebia que os mesmos gestos insignificantes eram repetidos por uma pessoa depois da outra. Uma pequena inclinação de cabeça, lábios se movendo tão levemente que seria impossível descobrir a distância que algo estava sendo dito.

Uma mensagem estava sendo transmitida entre os escravos, e Lief sabia onde ela tinha começado: com Garra, Brianne e Gers misturados à multidão na beira da Arena, sussurrando as mesmas palavras sem parar.

Fique de olho na plataforma. Prepare-se para lutar. Vá para a estrada atrás da Arena. Passe adiante.

A mensagem está se espalhando — Barda disse em seu ouvido. — Precisamos impedir.

Lief se virou. Barda estava atrás dele, olhando para a Arena por cima de sua cabeça. O homenzarrão estava visivelmente preocupado. Uma grande queimadura vermelha marcava a sua testa, que tinha sido atingida por um bastão de choque.

— Agora é tarde demais — Lief respondeu.

— Mas tudo mudou e, pelo que parece, Garra, Brianne e Gers não sabem disso — Barda sussurrou agitado. — Acho que eles ficaram escondidos fora do túnel quando fomos presos e não viram nada. Se eles puderem ver a jaula coberta agora, vão pensar que faz parte do plano.

Lief procurou a Flauta de Pirra e a tirou da bolsa. Uma sensação de calor fez a mão dele formigar e uma estranha paz o invadiu.

— Nada mudou, Barda — ele disse com calma. — Não se pode prender um som. Quando chegarmos à plataforma, vou tocar a Flauta exatamente como planejado. Não como Emlis faria, mas o melhor que eu puder.

— Não sei que poderes a Flauta tem, mas ela não pode derreter barras de ferro — Barda replicou mal-humorado. — É possível que os outros escapem, mas nós estaremos presos.

“Então é assim que vai ser”, Lief pensou. “Garra, Brianne e Gers podem levar o povo para a liberdade tão bem quanto nós.” Mas ele não disse nada.

Ao procurar por Jasmine, Lief viu que ela também tinha acordado e rastejara para a frente da jaula. Mas ela não se reuniu aos companheiros. Ela estava agachada em outro canto, espiando pela fresta do tecido.

“Ela está tentando ver Faith”, Lief pensou. “A irmã que vinha procurando o tempo todo.”

Ele passou para o lado de Jasmine e tocou a sua mão.

— Jasmine — ele sussurrou. — Por que você não me contou sobre Faith?

Jasmine virou-se para ele, os olhos tomados pelo sofrimento.

— Contar a você? Como pode perguntar isso? — ela disse em voz baixa.

— O que... o que você quer dizer? — ele balbuciou espantado.

— Até agora você tenta me enganar, Lief? — ela retrucou, fechando os punhos. — Você não entende? Eu sei. Eu sei o que você fez.

— O quê? — Lief perguntou desorientado.

Ele parou de falar quando as rodas da frente da jaula bateram na borda da rampa com um baque. Ele, Barda e Jasmine foram atirados com força para trás. A Flauta de Pirra voou da mão de Lief e começou a rolar para o fundo da jaula. Ele estendeu a mão para ela desesperado e conseguiu pegá-la exatamente quando os Guardas, resmungando pelo esforço, inclinaram a jaula e começaram a puxá-la para cima. Mais um segundo e a Flauta teria escorregado pelas grades e estaria perdida.

Com o coração batendo forte por causa do desastre do qual tinha escapado por um triz, Lief voltou para a frente da jaula.

“Esqueça tudo”, ele disse a si mesmo. “Tudo, menos o que deve ser feito.” Lief sentiu um conhecido calafrio de medo e soube que a jaula estava se aproximando da caixa de metal, e agarrou a Flauta com mais força.

— Atenção, escravos! — Hellena gritou. — Tenho um aviso importante para vocês. Escutem bem.

Lief foi até o canto da jaula e espiou pela fresta. Tira estava parada ao lado dela, junto de 3-19.

— Por que a jaula está coberta? — Tira murmurou furiosa para 3-19, enquanto olhava para cima nervosa.

— Isso é obra dos Baks — ele respondeu de mau humor. — Quando percebi que tinham desobedecido, nós fomos chamados, mas era tarde demais para tirar a capa.

— Você é um idiota incompetente! — Tira disparou. — Felizmente, o mestre acabou com você e a sua espécie.

Ela se virou. 3-19 olhou para ela, os dedos longos se retorcendo como se ele quisesse apertá-los ao redor do pescoço magro dela. Tira foi até o lado de Hellena. Hellena ergueu os braços.

— Eu já fui uma inimiga mortal do mestre — Hellena gritou. — Eu libertava os seus escravos. Eu matava os seus servos. Eu confesso. E a minha companheira foi uma das piores rebeldes que já existiu, uma espiã falsa e mentirosa que ajudava secretamente os inimigos do mestre!

— Eu confesso! — Tira disse em voz alta, erguendo o queixo.

Lief ouviu Barda gemer baixinho atrás dele, mas não se virou para olhar.

O olhar frio de Hellena passeou pela Arena.

— Agora, nós duas não temos mais dúvidas, medo ou pensamentos maus. Graças ao presente que o mestre nos deu, somos não apenas suas servas, mas também os seus olhos e ouvidos.

A sua mão alisou a caixa de metal com carinho.

— Como nós, vocês, escravos, merecem a morte. Mas o mestre é misericordioso. Vocês todos poderão receber o seu presente. Em breve, as suas dificuldades vão terminar. Vocês vão pertencer ao mestre, como nós.

O público aplaudiu animado. Os escravos no chão da Arena estavam em total silêncio. Hellena mostrou um sorriso frio.

— Vocês não precisam ter medo, escravos, não importa que boatos tenham ouvido — ela disse. — O Processo de Conversão foi aperfeiçoado. Ele é seguro, eficiente e simples. Depois de liberadas, as criaturas que carregam o presente do mestre encontrarão o caminho até vocês. Elas são pequenas e muito velozes. O processo se completa muito depressa.

Hellena tocou o ouvido.

— Uma pequena dor aqui, e o mestre estará com vocês para sempre. A sua Conversão vai trazer liberdade para vocês. Vocês vão voltar para as suas casas, misturar-se ao seu povo e cumprir a vontade do mestre com satisfação.

A pele de Lief estava arrepiada. Finalmente, ele compreendeu o que tinha acontecido com Tira e Hellena. Ele entendeu o que eram aqueles vermes terríveis e o que faziam. Ele percebeu qual era o plano do Senhor das Sombras.

O mestre tem muitos planos...

Uma imagem horrível se formou na mente de Lief. Milhares de prisioneiros libertados pelo Senhor das Sombras, voltando a Deltora, recebidos com alegria e carinho. Milhares de prisioneiros que pareciam ser exatamente o que eram antes, mas que, dentro de seus cérebros, carregavam o Inimigo, que orientava todos os seus pensamentos e ações.

Milhares de prisioneiros em cujos bolsos ou sacolas havia mais vermes mortais de cabeça escarlate. Assim, durante a noite, enquanto as suas famílias e vizinhos dormiam...

Hellena tinha recomeçado a falar.

— Embora não seja possível fugir do presente do mestre, é melhor que vocês não lutem — ela aconselhou. — Com a ajuda da escrava Faith e o gnomo que certa vez lutou ao meu lado contra o senhor, vou lhes mostrar como isso pode ser fácil

Ela se virou para os Guardas.

— Removam as capas! — ela ordenou.

 

As capas foram arrancadas da jaula. A luz entrou e expôs sem piedade as quatro pessoas que tinham se levantado de um salto e se recostado nas barras. Lief ouviu 3-19 gritar zangado, e as explicações barulhentas e triunfantes. Ele viu Tira e Hellena, de olhos brilhantes, observarem a fumaça vermelha que girava na torre acima delas e para a sombra escura dentro dela.

Raios saíram das nuvens agitadas. Uma ventania ameaçadora soprou sobre a Arena, derrubando Lief e os companheiros e prendendo-os ao chão. A jaula estremeceu, e as suas rodas se curvaram sob a força do vento.

Respirando com dificuldade, incapaz de se mover, apertado ao chão pelo vento que uivava, Lief ouviu os gritos dos escravos se contorcendo indefesos na Arena, os gritos de Tira e Hellena, os grunhidos dos Baks e dos Perns na plataforma quando eles lutaram para se erguer.

Grasnando, os sete Ak-Baba voaram para baixo, levados pela ventania, de garras estendidas e bicos curvos abertos. As colunas que rodeavam a plataforma tremeram e criaram vida. Ols! Chamas brancas sibilantes com a escuridão em seu interior, bocas desdentadas abertas, olhos ocos e mãos prontas para agarrar o que estivesse à sua frente, eles se ergueram e enfrentaram a força do vento. E, com um estrondo desagradável, portas de pedra deslizaram e fecharam a Arena.

Então Lief soube que não só Jasmine, mas todos eles tinham sido esperados. O Inimigo não sabia como ou quando eles iriam aparecer, mas sabia que viriam. E tinha se preparado para a sua chegada.

Mas havia uma coisa pela qual o Inimigo não esperava. Com os olhos lacrimejando e quase surdo pelo vento que rugia, Lief começou a levar a Flauta de Pirra até os lábios com esforço. Devagar, muito devagar, ele obrigou a mão a subir.

— 3-19! Os prisioneiros estão no chão! Eles estão prontos! — Tira gritou bem alto. — Abra o Projeto de Conversão!

O Ol com o corpo de Fallow andou até a caixa de metal com facilidade, sem ser perturbado pelo vento. Ele colocou a mão na fechadura que abria o alçapão.

— 3-19! — Lief chamou com todas as forças. — Cuidado! O Ol virou a cabeça e olhou para ele confuso.

— Não escute! — Tira gritou. — 3-19! Estou mandando!

— Se você abrir essa caixa, vai ser o seu fim, Ol! — Lief gritou. — Com seres humanos para fazer o que ele quer, o seu mestre não vai mais precisar de você. Você e toda a sua espécie vão apodrecer nos montes de lixo junto com os Guardas.

3-19 hesitou, franzindo o cenho.

— Baks! Perns! — Tira berrou furiosa.

Mas os Baks e Perns, que se debatiam sobre as tábuas da plataforma, não podiam se mover.

A mão de Lief que agarrava a Flauta já estava na altura do peito. Ele obrigou-a a subir até a boca. Ele precisava de mais um momento, só mais um instante...

Uma fumaça vermelha saiu furiosamente da torre cheia de uma feroz vontade de fazer o mal. Olhos faiscaram dentro da fumaça, e mãos sombrias se estenderam.

3-19 gritou aflito, se encolheu e caiu. O alçapão na ponta da caixa se abriu com violência. Vermes de cabeça escarlate saíram como uma forte torrente e se espalharam na jaula, procurando ansiosos por suas vítimas.

Lief pôde senti-los deslizando sobre seus pés e suas pernas. Os gritos apavorados de Jasmine e Barda machucavam-lhe os ouvidos. Kree grasnava desesperado. Pi-Ban deu um único grito agudo. Lief fechou bem os olhos e concentrou toda a sua energia num último esforço desesperado.

Então, finalmente, ele tinha a Flauta nos lábios. Ele soprou. Uma nota clara e pura.

O som penetrante se ergueu e ecoou pelas paredes da Arena e até as montanhas mais adiante.

E com o som, o avanço dos vermes parou. Eles se debateram, retorceram e morreram como as sanguessugas do Caminho Proibido expostas à luz.

A fumaça vermelha se enrolou com um ruído estrondoso que fez o chão tremer. A ventania se acalmou, e os Ak-Baba voaram sem rumo no céu. Os Ols abaixaram as mãos estendidas e ali ficaram cambaleantes. As criaturas nas fileiras de assentos se curvaram e gemeram. Os vraals uivaram nas jaulas.

Os escravos na Arena tinham sido avisados para esperar pelo sinal. De que outro sinal precisavam? Eles se ergueram de um salto e avançaram para a frente numa grande onda. Os Guardas confusos que cercavam a passagem tropeçaram e caíram, esmagados pelo seu peso.

Mas não havia saída. A Arena estava fechada com portas de pedra. Não havia como chegar à passagem que levaria à liberdade. Não havia para onde correr, nem onde se esconder.

Ofegante, erguendo-se com dificuldade, Lief encheu os pulmões de ar. A fumaça vermelha inchou e se torceu sobre ele enquanto a sombra dentro dela reunia forças. Lief soprou outra vez e, mais uma vez, a nota penetrante ecoou pela Arena, o trovão soou e a fumaça se recolheu.

Lief viu Pi-Ban se levantando de olhos arregalados e um verme retorcido caindo de seu ouvido sobre o ombro. Ele viu Barda e Jasmine se erguendo e se segurando às grades da jaula.

Fora da jaula, os guardas viravam de um lado a outro confusos. Tira e Hellena tinham caído de joelhos, e olhavam com uma repugnância atordoada para os vermes que haviam caído longe deles na plataforma. Faith estava parada, sozinha, pálida como um fantasma.

— Faith! — Jasmine berrou. — Pegue as chaves da jaula!

A criança se virou, a expressão séria. Os seus lábios se entreabriram. Então, a voz saiu — um sussurro baixo e mortal de congelar o sangue.

— Não há como escapar, Jasmine.

Jasmine olhou paralisada. A voz continuou a sussurrar.

— Você estava condenada a partir do momento em que olhou no cristal e me deixou entrar em sua mente. Eu sabia que você viria até mim. Eu só tinha que esperar. Mas não pense que eu me importava com você. Você era só uma isca. Eu sabia que ele a seguiria para onde você fosse.

Então, a menina soltou uma gargalhada horrível. E enquanto ria, ela estremeceu, se apagou e desapareceu num turbilhão de fumaça vermelha, como o fantasma que era.

Jasmine gritou repetidas vezes, agarrando as grades da jaula chocada, magoada e aterrorizada. Chocada por ter acreditado que uma miragem era de carne e osso. Sofrimento por uma criança que nunca tinha existido, e terror por perceber o quanto tinha sido enganada.

Uma lembrança voltou à memória de Lief. Tirral, falando na Ilha de Keras.

Há muitas formas de apanhar um peixe. E se o peixe que se deseja puder ser fisgado com uma simples isca, tanto melhor.

“Jasmine foi atraída pela isca jogada pelo Senhor das Sombras e eu logo depois”, Lief pensou. “Como tinha sido fácil! Com que tranqüilidade ele nos trouxe para a sua armadilha. Ele usou as nossas fraquezas, a solidão e a impaciência de Jasmine, e o meu amor por ela.”

— Pelos Jalis! — as palavras de Gers rugiram em meio ao trovão — ele saltou sobre a plataforma, liderando um exército maltrapilho de integrantes de sua tribo. Alguns dos Jalis se atiraram, urrando, sobre os Baks e Perns apavorados. Outros colocaram as mãos em duas das grades da jaula e puxaram.

O ferro se entortou como se fossem galhos de árvore. Pi-Ban saiu com dificuldade pelo espaço aberto. Barda o seguiu, meio que arrastando Jasmine. Logo depois, Lief saiu com a Flauta ainda presa entre os lábios.

Lief teve que respirar fundo mais uma vez, e mais uma vez a fumaça vermelha se retorceu e atacou. E mais uma vez, ela recuou quando a Flauta foi tocada novamente.

Mas o Inimigo estava reunindo forças. A cada toque da Flauta, ele recuava um pouco menos. Os sete Ak-Baba voavam ao redor dele, os seus gritos assustadores se misturando ao trovão. No centro da fumaça, brilhavam olhos malignos.

Durante quanto tempo a Flauta conseguiria evitar a aproximação das sombras?

E então, Lief escutou. Através do som da Flauta, do retumbar do trovão, veio um lamento leve e cansado.

Lief se virou bruscamente, mas Jasmine também ouvira o som. Jasmine e Barda tinham voltado para a jaula e estavam ajoelhados ao seu lado, espiando debaixo de sua base, gritando para Gers.

Então o Jalis e Barda levantaram a jaula para incliná-la, enquanto Jasmine escorregou para baixo dela e surgiu arrastando um pequeno vulto vestido numa capa com capuz verde. Emlis!

Emlis estava tagarelando sobre como se arrastou para baixo da jaula no túnel e depois se agarrou ao fundo dela enquanto era empurrada para a plataforma. Ele contou como ficou preso quando as rodas da jaula entortaram com a força do vento; como não pôde fazer nada, incapaz de se soltar, de fazer com que o ouvissem, até aquele momento...

No instante seguinte, Emlis estava ao lado de Lief e tomou a Flauta de suas mãos. Emlis tocou o instrumento e, pela primeira vez em incontáveis séculos, o país que antes tinha sido Pirra ouviu o verdadeiro som da Flauta de Pirra.

Pois, enquanto os Ak-Baba grasnaram e a fumaça vermelha voltou para o céu agitado, enquanto os Ols se encolhiam, gemendo, e os prisioneiros ouviam, encantados, Emlis tocou como os antigos Flautistas. Emlis tocou na Flauta de Pirra a música que vinha do fundo de seu coração.

O som maravilhoso encheu a Arena, ecoou das montanhas, tocou as paredes da Fábrica e avançou sobre a planície ressecada. A música levava consigo o lamento por antigas belezas perdidas, a ira pela maldade que só quer dominar e destruir, o medo pelo que poderia acontecer. E também, uma profunda saudade do lar.

Não Pirra, saqueada, transformada e perdida para sempre. Mas o único lar que Emlis conhecia.

Um lar em que águas profundas ondulavam, e a areia macia cobria praias tranqüilas. Um lugar onde a luz era suave e fria e onde o delicado som da água batendo na praia enchia o ar. Um lugar de que sentia falta e pelo qual sofria.

Lief ficou ouvindo paralisado. O seu coração parecia que ia partir enquanto a música se espalhava, implorando por ajuda, gritando por liberdade.

Então... a Arena desapareceu.

Frio, muito frio. A escuridão agitada...

E no momento seguinte, Lief estava se debatendo na água gelada e escura, enquanto os gritos de pavor de milhares de pessoas soavam em seus ouvidos.

O que tinha acontecido? Que novo feitiço era aquele?

— Jasmine! — ele chamou.

— Aqui! — Barda surgiu ao lado dele, apoiando Jasmine e Pi-Ban. Lief tomou Jasmine dele e segurou-a acima da água e sentiu a agitação das asas de Kree.

— A minha música! — Emlis nadou como uma enguia na direção deles. — O meu povo a ouviu! Eles nos trouxeram para casa! O Senhor das Sombras nunca vai saber o que aconteceu com a gente!

— O nosso povo vai se afogar, Emlis! — Jasmine disse mal conseguindo respirar. — Ah, eles são tantos! Os kerons não vão poder salvar tanta gente a tempo. Eles vão se afogar.

Então, Lief ouviu Jasmine engasgar, e no momento seguinte uma luz forte substituiu a escuridão, empurrando-a para longe, assim como a música mágica da Flauta de Pirra tinha feito o Inimigo encolher e se retirar. E com a luz veio um som agitado e latejante. Lief virou-se, tremendo. Ele piscou, mal acreditando no que via.

Pois, avançando na direção deles, vinha uma imensa esquadra de barcos. As embarcações semelhantes a conchas dos plumes, os botes novos e elegantes dos aurons, a barcos compridos e pesados dos kerons, navegando juntos, retirando pessoas da água, levando-as para a segurança.

Clef e Azan remavam furiosamente para acompanhar os guardas dos aurons sentados em enguias ágeis e os imperturbáveis colhedores de sanguessugas dos kerons. Nols, Flautista dos plumes, remava ao lado de Tirral, Flautista dos kerons, que procurava nas águas escuras o filho, cuja música tinha chamado a todos.

Mas foi Penn, a preservadora da história dos aurons, que tirou Lief e seus companheiros da água. E foi com ela que começaram a longa jornada para casa.

 

As pessoas dormiam enquanto eram carregadas pelas cavernas. Somente Pi-Ban estava acordado, para apertar as mãos de Lief, Barda e Jasmine, e então para ser enviado para o alto da montanha do medo, acima do mar de esmeralda.

— Acho que ele vai contar suas aventuras, apesar dos meus conselhos — Lief murmurou. — Os Gnomos do Medo são grandes contadores de histórias, Penn.

— Pi-Ban não vai contar — Penn replicou serena. — Ele vai se esquecer de tudo assim que respirar o ar do mundo superior. Você não sabe, Lief? Você leu os versos de Doran.

Lief inclinou a cabeça, relembrando.

— “Onde marés intermináveis ocultam as lembranças...” — ele murmurou finalmente.

— Sim. Os mares do subterrâneo são os mares do esquecimento — Penn sorriu. — Como você acha que vivemos aqui em segredo durante tanto tempo?

— Mas na Terra das Sombras nós lembramos — Barda protestou.

— Emlis estava com vocês — Penn explicou. — Além disso, o nosso pensamento estava concentrado em vocês.

— Mas quando voltarmos para casa, vamos nos esquecer de tudo?

— Jasmine perguntou muito séria.

Penn sorriu e pegou três pedras pequenas e lisas.

— Não se vocês conservarem isso com vocês — ela disse, entregando uma pedra a cada um. — Elas são pedras da alma. Todos os aurons carregam uma. Dizem que Doran sempre levava a dele. E essas são de vocês.

Lief, Barda e Jasmine contemplaram as pedras. Elas pareciam mudar de cor a cada momento — dourado brilhante, vermelho, verde, azul, preto, roxo, e todas as cores do arco-íris.

— É impossível dizer a cor dela — Barda disse maravilhado.

— É porque não há cor alguma — Penn disse com simplicidade. — A diferença está nos olhos de quem a observa. E descobrimos que o mesmo acontece com pessoas, quando a Flauta tocou em nossas cavernas pela primeira vez, há pouco tempo.

— Foi assim que...? — Jasmine começou.

— Nós, em Auron, ouvimos a Flauta. A sua música nos fez lembrar que antigamente o nosso povo era unido. Saímos para finalmente ver os companheiros da nossa espécie e para descobrir o que tinha acontecido com vocês. No Caminho Proibido, encontramos os plumes, que tinham viajado para o norte pelo mesmo motivo. Eles não pareciam tão selvagens como tínhamos imaginado. E assim, juntos, chamamos os kerons, pedimos que iluminassem o túnel e que nos deixassem entrar em seu território.

— E Tirral concordou? — Barda perguntou sem acreditar.

— Depois de algum tempo — Penn disse com calma, sorrindo.

— Parece que, assim como nós, ela e o seu povo tinham refletido sobre o bom senso de se manter uma rivalidade em tempos difíceis. Ficamos sabendo que o filho dela tinha ido com vocês até a Terra das Sombras. Então, juntos, esperamos pelo som que nos diria que ele, vocês e a Flauta estavam prontos para voltar. Juntos, finalmente, ouvimos a música e, juntos, trouxemos vocês de volta.

— A gente teria morrido sem vocês — Lief disse. — Devemos a nossa vida a vocês.

— Sem vocês, os pirranos teriam ficado separados para sempre — Penn respondeu. — A nossa dívida é ainda maior.

A esquadra pirrana deslizava pelas cavernas como folhas sopradas pelo vento. Porém, havia muito tempo para conversar e para relembrar, pois muitos barcos navegavam ao lado do de Penn. Clef e Azan vieram com a embarcação baixa pelo peso de Garra, Brianne e Gers. Nols se aproximou tendo Tira e Hellena tranqüilas aos seus pés. E Tirral veio com Emlis, que se livrara da capa verde com alívio.

— O meu filho parece mais alto do que antes de partir — Tirral disse.

— Ele cresceu, mas não foi só na altura — Barda comentou. — Ele tem um coração enorme.

— Quando eu for um pouco mais velho, e a capa de colhedor de sanguessugas me servir, vou ser um explorador como Doran — Emlis contou tímido. — Vou explorar e desenhar mapas das cavernas. Vou viajar pelos mares do plumes e dos aurons e por outros mares desconhecidos.

— Mares de um roxo delicado — Lief murmurou. — Mares negros cheios de estrelas. Cavernas que brilham como diamantes.

— Como você sabe? — Emlis perguntou surpreso.

Mas Tirral pôs a mão dentro de sua capa, tirou algo que brilhava na luz mágica e o entregou a Lief. Ele olhou o objeto, quase como se tivesse esquecido o que era.

— Eu lhe devolvo o Cinturão de Deltora — Tirral disse com seriedade. — Em troca da Flauta de Pirra.

— Obrigado — Lief hesitou. Havia algo que Lief queria dizer, mas achou que não seria sensato. Consciente do olhar de Barda e Jasmine, ele prendeu o cinturão brilhante ao redor da cintura e ficou em silêncio.

Finalmente, na caverna dourada de topázio, chegou o momento da despedida.

— Trouxemos vocês para o lugar em que os sinais de vida superior são mais fortes — Penn explicou aos companheiros com suavidade, enquanto os outros barcos se reuniam em volta dela. — Daqui, todo o seu povo pode voltar para casa.

— Lief! Barda! Jasmine!

Lief se virou e viu Emlis acenando para eles, não muito longe. Ele ainda estava segurando a Flauta de Pirra. Os companheiros acenaram de volta.

— E o que vai acontecer com a Flauta, Penn? — Lief perguntou. — Ela vai ser separada em três partes outra vez?

— Não — Penn garantiu. — Os kerons vão ficar com ela agora. Decidimos, antes de vocês voltarem que, se algum dia a flauta voltasse às nossas mãos, ela ficaria completa. Ela vai ficar com cada tribo por um ano inteiro para ser tocada de manhã, ao meio-dia e à noite pelo Flautista, como manda a tradição de Pirra. Então, ela vai ser passada adiante num grande festival organizado pela tribo que a estiver emprestando.

Os olhos de Penn cintilaram.

— Tenho certeza de que vai haver muita competição — ela acrescentou. — As tribos vão tentar tocar melhor do que as outras, e cada festival vai ser maior e mais estimulante do que o anterior. Mas eu, pelo menos, não vou me queixar. Festivais são muito melhores do que guerras. E ninguém gosta mais de uma festa do que eu. Bem... vocês estão prontos?

Lief sentiu um nó na garganta, mas concordou...

— Adeus, Penn— ele disse. Ele segurou as mãos de Barda e Jasmine e fechou os olhos.

— Adeus — ele ouviu Penn sussurrar. E então a conhecida escuridão os envolveu.

Os companheiros abriram os olhos sob a luz de Deltora. O dia tinha acabado de nascer. A grama em que estavam deitados ainda estava coberta de orvalho. A cor do céu era um azul muito claro com leves manchas cor-de-rosa. Uma brisa, fresca e doce, agitava as árvores e acariciava os seus rostos.

Lief percebeu que nunca tinha visto tanta beleza.

Ele se deu conta de que estavam nos jardins do palácio, perto das escadas que levavam ao grande salão de entrada. Dois guardas estavam parados junto às portas.

Por um momento, os guardas olharam sem entender, espantados, para a multidão que tinha aparecido na grama do palácio vinda do nada. Então, eles se viraram e correram para dentro, gritando a novidade com toda a força de seus pulmões.

Jasmine virou o rosto para o sol. Kree levantou vôo, esticando a asa machucada e grasnando feliz. Barda soltou um profundo suspiro.

Ao redor deles, as pessoas abriam os olhos, se sentavam e observavam, sem poder acreditar em tanta felicidade. Parecia que elas haviam sido transportadas da Arena das Sombras para aquele lugar maravilhoso, que tinha a aparência e o cheiro de seu lar num piscar de olhos. A maioria estava convencida de que estava sonhando.

Mas ali, se levantando devagar, estavam os três estranhos que tinham estado na plataforma diante deles. Um era o rapaz que tinha tocado a estranha flauta. Ao redor de sua cintura, estava um objeto brilhante. Um cinturão de aço, enfeitado com sete pedras preciosas.

Os escravos, agora libertados, observavam maravilhados, aceitando a verdade aos poucos.

Deltora não os tinha abandonado. Eles nunca tinham sido esquecidos. Eles estavam livres. E tinha sido o seu rei que os tinha trazido para casa.

As portas do palácio se abriram, e pessoas começaram a descer as escadas correndo, muitas ainda com ar sonolento, mas todas gritando e estendendo os braços. As pessoas na grama se levantaram e foram ao encontro delas tropeçando. As duas multidões se encontraram e se juntaram, parentes queridos e estranhos se abraçaram, choraram e riram de alegria.

Os sinos do palácio começaram a tocar, chamando o povo da cidade. Jasmine tocou o braço de Lief. Ele olhou para ela, o coração cheio de felicidade. Ela murmurou alguma coisa, mas o barulho que os cercava não o deixou ouvir. Ele se inclinou para perto dela.

— Eu disse que estou envergonhada por ter duvidado de você, Lief — Jasmine repetiu sem jeito. — Mas Faith parecia tão real. E ela disse...

— A culpa foi minha — Lief disse depressa. — Fui um idiota por não ter falado sobre o cristal, de fingir que ele não existia. Uma vez, eu falei dele para você e Barda, depois que o vi num sonho no Vale dos Perdidos. Pensei que você fosse se lembrar.

Jasmine pareceu confusa.

— No começo, pensei que sim — ela disse devagar. — Mas então olhei para o cristal e esqueci tudo, menos a mentira que via dentro dele — ela baixou o olhar. — Eu deveria saber que você nunca iria me enganar.

Lief hesitou. Esse era o momento que ele temia. Ele olhou para Barda, que fazia de conta que não ouvia. Ele pigarreou.

— Eu enganei você, Jasmine — ele disse em voz alta. — E a você também, Barda. Tem uma coisa...

Ele parou de falar. Jasmine tinha tirado a mão de seu braço e olhava para o palácio.

Um pequeno grupo de pessoas apareceu na porta, procurando ansioso na multidão. Sharn e Perdição estavam de um lado, sustentando Josef entre eles. Do outro lado estava Stephen, o mascate, oscilando, de braços dados com uma mulher alta e desconhecida, cuja cabeça raspada estava coberta por desenhos de espirais. Mas no centro estava Ranesh, com o rosto inexpressivo, Zeean, de Tora, e uma figura graciosa envolta numa longa capa.

Marilen.

 

Angustiado, Lief deu um passo à frente. Marilen o viu. Com um último olhar para Ranesh, ela ergueu a capa e desceu os degraus devagar, de cabeça erguida. Lief sentiu Jasmine e Barda se afastarem quando ela se aproximou.

A multidão festejava agitada ao redor deles, mas os quatro — os três companheiros e a garota que se aproximava — só tinham olhos um para o outro. Era como se estivessem numa ilha, fora do tempo e do espaço.

Marilen estendeu as mãos, o rosto iluminado pelo alívio e pela alegria. Lief as segurou.

— Ah, Lief, como desejei a sua volta! — Marilen murmurou. — Como desejei poder lhe contar... Está tudo bem, Lief! Está tudo bem. Estamos em segurança.

Lief curvou a cabeça cheio de gratidão. Ele sentiu as mãos da garota deixarem as dele e olhou para trás. Barda estava olhando para algum ponto à sua frente, mas Jasmine encontrou o seu olhar com um sorriso determinado.

Lief ficou confuso por um momento. Será que a sua companheira já sabia qual era o segredo que escondera deles por tanto tempo?

Mas ele não tinha tempo para pensar. Marilen estava esperando. O momento tinha chegado. Lief colocou as mãos na cintura, abriu o cinturão cintilante e o deixou cair. Ele ouviu Barda e Jasmine abafarem um grito.

Marilen abriu a capa, revelando um objeto de cores brilhantes que pareciam faiscar. Em seguida, ela tirou algo da cintura e o entregou a Lief. Sorrindo, aliviada, ela se afastou depressa para trás.

As grandes jóias do Cinturão de Deltora brilharam como estrelas debaixo do céu da manhã. Os refinados elos de aço cintilaram e aqueceram os dedos de Lief. Ele colocou o Cinturão, sentiu o seu peso conhecido, endireitou os ombros e se virou para olhar para Barda e Jasmine.

Os dois olhavam para ele boquiabertos.

— O verdadeiro Cinturão estava seguro em Del o tempo todo! — Barda resmungou. — Você estava usando uma cópia! Todo esse tempo... e não sabíamos de nada — ele apanhou o cinturão caído no chão e o sacudiu na frente de Lief. — Isso é só uma imitação!

Lief concordou envergonhado.

— Vocês dois têm o direito de ficar zangados, mas, por favor, tentem entender — ele balbuciou. — Perdição e eu fizemos a cópia em segredo na ferraria. Combinamos nossos encontros usando mensagens em um código simples em que cada letra era substituída pela letra seguinte do alfabeto, a mesma coisa acontecendo com os números.

— Então, “PERDIÇÃO” seria “QFSEJDBP” — Jasmine concluiu, lembrando-se do bilhete que tinha encontrado.

Lief olhou para ela curioso.

— Usamos pedras das jóias do palácio muito parecidas com as verdadeiras — ele continuou. — Elas têm algum poder, como todas as pedras preciosas, mas não valem nada quando comparadas aos talismãs do verdadeiro Cinturão.

Ele sorriu tristemente.

— Tirral tinha um bom motivo para não sentir nenhuma mágica no cinturão. Não havia nenhuma mágica nele!

— Você deixou o verdadeiro Cinturão para trás para que ficasse em segurança — Jasmine balbuciou. — A sua... a sua amiga o usou porque ela é a pessoa em quem você mais confia?

— Porque é a pessoa que tinha que usá-lo — Lief respondeu. — No caso de alguma coisa me acontecer — ele fez um gesto para Marilen, que voltou a se juntar a eles.

— Marilen é uma prima distante, minha parente mais próxima do lado de meu pai — Lief contou com um toque de orgulho. Ele riu quando Jasmine e Barda tentaram esconder a confusão. — Vocês dois ainda não entenderam? — ele gritou. — Marilen é minha herdeira, a próxima na linha de sucessão do Cinturão de Deltora.

— O quê? — Barda explodiu.

— Mas... — Jasmine começou, mas as palavras ficaram presas em sua garganta. Ela respirou fundo e tentou outra vez. — Mas eu pensei que somente o filho do rei ou da rainha poderia ser o herdeiro.

Lief concordou com um gesto, procurando a mão dela.

— Os conselheiros-chefes do palácio encorajaram essa crença, porque eles eram servos secretos do Senhor das Sombras — ele disse. — Mas quando pensei no assunto, imaginei que isso não podia ser verdade. Seria perigoso demais para Deltora. A minha vida ficou ameaçada no momento em que me tornei rei e eu não tinha um filho que pudesse usar o Cinturão depois de mim, se eu morresse.

Para Lief era um grande alívio finalmente poder contar a história. As palavras, guardadas por tanto tempo, escaparam de sua boca como as águas agitadas de um rio.

— O Cinturão de Deltora diz simplesmente que o Cinturão deve ser usado por um verdadeiro herdeiro de Adin. Isso quer dizer que, se o rei ou a rainha morrer sem ter tido filhos, o Cinturão vai para o próximo na linha de sucessão, um irmão ou irmã, por exemplo.

— Mas você não tem irmãos ou irmãs — Jasmine disse, mordendo o lábio quando a última palavra trouxe de volta lembranças desagradáveis.

Lief apertou ainda mais a mão dela.

— Não. Ou tios e tias. Tem sido um hábito real ter apenas um filho. Por acaso, o herdeiro de Adin teve somente um filho e assim isso se tornou uma tradição — e que os conselheiros-chefes insistiram para que continuasse.

— E que, sem dúvida, atendia muito bem a seus objetivos. Ver Deltora dependendo de uma vida frágil a cada geração — Barda murmurou.

— É verdade — Lief concordou. — E o trabalho deles foi tão bem feito que as minhas primeiras tentativas de encontrar um herdeiro pareceram inúteis. Mas então... — ele olhou para Marilen. — Mas então eu me lembrei de que Adin tinha tido muitos filhos.

— Todos eles se casaram com toranas — Jasmine concluiu pensativa. — Jinks me disse isso.

— Exatamente — Lief continuou, estremecendo ao ouvir o nome de Jinks, assim como Marilen, por motivos diferentes. — Assim, eu sabia que, se procurasse mais, acabaria encontrando um herdeiro em Tora, não importava que fosse um parente muito distante — ele sorriu levemente.

— Sangue é sangue, não importa o quanto ele se diluiu durante os anos, como alguém nos disse há pouco tempo.

— Então você procurou pistas nos livros e nos pergaminhos da biblioteca — Jasmine murmurou. — Histórias da família, registros de casamentos, crianças nascidas... Todas aquelas horas de trabalho.

— Eu tinha que garantir o futuro de Deltora antes de qualquer outra coisa — Lief disse. — E eu tinha que fazer isso em segredo. Perdição e minha mãe eram os únicos que sabiam. Eles sabiam como isso era importante e que a segurança de Deltora nunca mais deveria depender da vida de uma só pessoa.

Ele sorriu.

— Marilen é descendente do segundo filho de Adin. Quando a encontrei, sabia que finalmente tinha um herdeiro. É verdade que, quando eu tiver um filho, ele tomará o lugar dela como o primeiro da linha...

— Espero que esse momento chegue logo! — Marilen interrompeu com entusiasmo. — Quando Lief nos contou em Tora que eu era uma herdeira por parte de minha mãe, a novidade mais pareceu uma maldição do que uma alegria.

Lief sorriu para ela com carinho.

— Mas, mesmo assim, ela concordou em deixar seu lar, a sua família e seus amigos e vir até Del...

— Para usar o verdadeiro Cinturão de Deltora se você corresse perigo. Assim se algo de mal lhe acontecesse, ele brilharia para ela no mesmo instante! — Jasmine exclamou, terminando a frase para Lief. — E o tempo todo pensamos... todo mundo pensou...

Ela se soltou do aperto carinhoso de Lief e colocou a mão no rosto corado. A cabeça dela girava. Nada do que imaginara era verdade. Tinha interpretado tantas coisas de uma forma e agora via que tinha se enganado. Lief trancado na biblioteca. O pergaminho com o título de As principais famílias de Tora. As visitas secretas na ferraria. O sumiço das jóias reais. A viagem a Tora...

— Eu sei que Lief queria contar a vocês sobre mim, Jasmine — Marilen disse com suavidade, percebendo a aflição da garota. — Mas ele tinha jurado para o meu pai que apenas Sharn e Perdição saberiam quem eu era.

— Quanto mais pessoas soubessem que Marilen era a próxima na linha de sucessão, mais perigo ela iria correr — Lief acrescentou. — Se o Senhor das Sombras tivesse a menor desconfiança...

Jasmine respirou fundo e concordou.

— Então por que está contando para a gente agora? — ela conseguiu dizer.

Marilen sorriu feliz.

— Porque agora está tudo bem! — ela exclamou. — Lief só teve tempo de verificar a descendência do segundo filho de Adin. Mas Adin e Zara, a mulher dele, tiveram cinco filhos ao todo. Zeean e o meu pai examinaram os documentos que Lief levou para Tora. Eles descobriram muitos outros descendentes de Adin, não só em Tora, mas também em Del, e em todo o reino.

Ela bateu palmas, os olhos brilhando.

— Logo todos saberão que uma ameaça a Lief não significa uma ameaça a toda Deltora. Não haverá motivos para matá-lo, pelo menos não por esse motivo.

— E eu não vou mais precisar ficar trancado no palácio como um prisioneiro! — Lief exclamou com grande satisfação.

— Nem eu! — disse Marilen, igualmente feliz. — Se Lief morrer sem ter filhos, eu vou tomar o seu lugar. Se eu morrer, vai haver outro para tomar o meu lugar... e outro e mais outro! O Cinturão de Deltora sempre terá um herdeiro, e Deltora ficará em segurança.

— Que conversa é essa sobre morte? — Barda gritou, batendo no ombro de Lief e abrindo um sorriso largo. — Embora eu confesse que eu mesmo poderia estrangular Lief quando lembro dos terrores que passei, temendo por ele e por esse cinturão falso!

— Estou tão feliz, mas tão feliz que tudo tenha terminado bem — Marilen disse, sorrindo.

Jasmine concordou com um gesto de cabeça, ainda tendo dificuldade para encarar Marilen de forma diferente. — Esses dias devem ter sido difíceis para você — ela disse um pouco sem jeito.

— E foram mesmo — Marilen respondeu com franqueza. — Mas os perigos que enfrentei não foram nada comparados aos riscos que vocês correram. Eu tinha o Cinturão de Deltora, e sabia que Lief estava vivo, pois ele nunca brilhou para mim. E as pedras me ajudaram. Uma vez, a ametista perdeu a cor quando a minha comida foi envenenada. Eu vi e soube que algo estava errado.

O rosto dela se abriu num sorriso.

— Além disso, se eu não tivesse vindo para cá, não teria conhecido Ranesh — ela acrescentou.

Ela olhou ao redor e viu Ranesh ainda sozinho na escadaria, olhando para ela.

— Preciso ir até lá. Tenho muita coisa a explicar para ele e também para o pobre Josef.

Com outro sorriso, ela se afastou.

— Então... Marilen e Ranesh — Lief murmurou, erguendo uma sobrancelha. Ele olhou para Jasmine. Algumas vezes, ele tinha tido receio quanto aos sentimentos dela em relação ao rapaz.

Mas o sorriso de Jasmine quando o olhar dos dois se encontrou era muito real. Uma paz imensa invadiu o coração de Lief.

Então Marilen se virou.

— A propósito, Lief — ela disse. — Você sabia que todos acreditaram que eu vim para Del para me casar com você?

A expressão espantada de Lief respondeu a pergunta de Marilen. Ela riu e seguiu o seu caminho.

Lief se virou para Jasmine e Barda.

— Vocês sabiam dessa história? — ele perguntou.

Barda não demonstrou o que pensava e achou melhor ficar em silêncio. As faces de Jasmine ficaram vermelhas outra vez, mas ela deu de ombros.

— Boatos do palácio — ela disse indiferente. — Mas você é novo demais para se casar. Eu sempre disse isso.

Lief não soube o que dizer.

Barda viu Tira andando na direção das escadas, parecendo perdida. Ele murmurou algo e saiu atrás dela.

— Claro — Jasmine continuou, começando a sorrir quando ela e Lief caminharam atrás de Barda devagar. — Marilen teria sido a escolha ideal para a esposa do rei. Instruída, bonita, educada, elegante, acostumada a palácios...

— Quando a hora chegar — Lief disse, interrompendo Jasmine com firmeza —, vou seguir o exemplo de Adin e me casar por amor — ele olhou para ela. — Se a mulher que eu amar me quiser, é claro.

— Ela provavelmente vai querer — Jasmine respondeu. — Quando o momento chegar — e ela estendeu a mão para ele.

Um tumulto com gritos e vivas começou atrás deles. Uma grande multidão subia a estrada vinda da cidade para se juntar à multidão que já lotava o gramado. As pessoas nas escadarias riam e acenavam. Os sinos ainda tocavam, e o coração de Lief se encheu de alegria.

“E agora”, ele pensou “finalmente podemos começar.” 

 

                                                                                                    Emily Rodda

 

 

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