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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TIM / Colleen Mc Cullough
TIM / Colleen Mc Cullough

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

T I M

 

Harry Markham e sua turma chegaram ao trabalho exatamente às sete da manhã daquela sexta-feira. Harry e o contra mestre Jim Irvine ocupavam a cabine da caminhoneta e os três operários estavam na parte traseira aberta do veículo, empoleirados em qualquer canto onde conseguissem um espaço para seus traseiros. A casa que reformavam localizava-se na Praia Norte de Sidnei, no subúrbio de Artarmon, logo após o descampado desolado dos barreiros das olarias. Não se tratava de um trabalho importante, nem mesmo para um construtor sem grandes pretensões como Harry; tudo quanto deveria realizar era revestir o bangalô de tijolos vermelhos com estuque e acrescentar um puxado à varanda de trás; um tipo de trabalho que Harry recebia de braços abertos, de vez em quando, pois preenchia as lacunas entre as empreitadas maiores.

Se aquela manhã de sexta-feira prognosticasse alguma coisa, o fim de semana deveria ser de calor e muito sol. Os homens saíram da caminhoneta conversando em voz baixa, penetraram na alameda de acesso lateral, sombria e ladeada por árvores, e mudaram as roupas sem o menor constrangimento ou vergonha.

Após terem vestido os shorts de trabalho, dirigiram-se para os fundos da casa exatamente no instante em que a solteirona caminhava desajeitadamente pelo quintal, vestindo um roupão de banho, surrado e desbotado, de chenile rosa, da década dos 50, carregando com o maior cuidado um urinol de porcelana, decorado com flores. À cabeça um cintilante amontoado de pinças para marcar ondas, também da época de 1950. Para Mrs. Emily Parker... nada de rolos modernos, muito obrigada. O terreno posterior era em suave declive rumo à goela do despenhadeiro de saibro que, antigamente, servira como manancial de uma grande quantidade de tijolos de Sidnei; atualmente, era o lugar apropriado para a velha senhora esvaziar, todas as manhãs, o seu pinico, uma vez que se obstinava em usá-lo todas as noites fazendo questão de não abandonar seus costumes rurais.

Enquanto o conteúdo do urinol voava, formando um arco sólido de tonalidade âmbar claro ao fundo saibroso, ela virou a cabeça e observou, com impertinência, os homens semi-nus.

— Dia, Miz Parker! - gritou Harry em sua direção. — Acho que terminarei isto ainda hoje!

— E já não é sem tempo, também, sua cambada de preguiçosos! - esbravejou a velha senhora enquanto subia o aclive do quintal, totalmente à vontade.

— As coisas que fui forçada a agüentar por culpa de vocês! Ainda ontem {a noite, Miss Horton queixou-se porque seus gerânios cor de rosa, premiados, estavam totalmente cobertos de pó de cimento e a sua avenca ficou toda amassada quando algum bobalhão atirou um tijolo por cima da sua cerca.

— Se Miss Horton é essa solteirona, com cara de passa, aí do lado, sou capaz de apostar que a avenca não ficou aos pedaços apenas ontem, mas que já morreu há muitos anos por falta de fertilizantes! — murmurou Mick Devine para Bill Naismith.

A velha senhora, continuando a reclamar, desapareceu casa a dentro com o urinol vazio nas mãos. Alguns segundos mais tarde, os homens ouviram os ruídos produzidos por Miss Emily Parker ao lavar o recipiente no banheiro da varanda dos fundos, seguidos pela descarga do vaso sanitário e um barulho de porcelana cantando no momento em que dependurava o urinol no gancho, logo acima do mais tradicional repositório de dejetos humanos.

— Nossa, Henry, aposto como o capim está bem verdinho lá embaixo, no fundo de saibro! - exclamou Harry para um companheiro sorridente.

— É de espantar que ela não tenha ainda inundado tudo aquilo há muito tempo! - replicou Bill, por entre risinhos.

— Ora, se querem saber, ela não é nada viva - disse Mick, — Nos dias de hoje, nesta era, tendo duas latrinas em casa, ela ainda continua fazendo pipi na guzunda.

— Guzunda - repetiu Tim Melville.

— É, xará, na guzunda. Uma guzunda é uma coisa que guzunda a cama todas as noites e na qual você enfia o pé aquecido todas as vezes que se levanta apressado — esclareceu Harry. A seguir, olhou para o relógio. — Creio que o caminhão de concreto estará chegando a qualquer momento. Tim, vá lá para frente e espere por ele. Tire o carrinho de mão da caminhoneta, o maior, e comece a nos trazer a massa assim que o caminhão aparecer, entendeu?

Tim Melville sorriu, fez um sinal afirmativo com a cabeça e afastou-se rápdo.

Mick Devine, observando-o ao afastar-se com um olhar vago e ainda refletindo sobre as excentricidades das velhas senhoras, estourou na gargalhada.

— Oh, é verdade! Acabei de imaginar uma coisa ótima! Escutem, companheiros, esta manhã, na hora da merenda, tratem de me seguir e talvez consigamos ensinar a Tim uma ou duas coisas a respeito das guzundas ou coisas desse tipo.

 

Mary Horton enrolou seus longos e grossos cabelos formando o costumeiro coque sobre a nuca, enfiou mais dois grampos e olhou para o próprio reflexo no espelho sem alegria ou tristeza, ou até mesmo um grande interesse. O espelho era de boa qualidade e a reprodução da sua imagem era verdadeira, sem melhoramentos ou distorções. Se os seus olhos tivessem entregues a uma inspeção mais pessoal, teriam visto uma mulher pequenina, bastante atarracada, penetrando pela meia idade, de cabelos brancos tão incolores quanto um cristal, repuxados, impiedosamente afastados de um rosto quadrado mas de feições regulares. Estava sem maquilagem, pois considerava uma perda de tempo e dinheiro render homenagens à vaidade. Os olhos, em si, eram castanhos escuros e tremendamente espertos.

Olhos vividos que combinavam com os traços marcantes e ligeiramente duros de seu rosto. O corpo estava envolto naquilo que seus colegas de trabalho tinham classificado de há muito como o equivalente a uma farda do exército ou um hábito de freira: uma blusa muito branca abotoada até a altura da garganta, sobre a qual deslizava suavemente a parte superior de um costume de linho cinza, de corte clássico. A bainha da saia ultrapassava, convenientemente, os joelhos, e foi cortada com suficiente amplitude para evitar que se repuxasse quando estivesse sentada; As pernas estavam recobertas por meias visivelmente grossas e nos pés trazia sapatos pretos de amarrar e com saltos grossos.

Os sapatos eram engraxados até ficarem brilhantes, na alvura imaculada de sua blusa não havia um salpicado ou uma mancha, nenhuma dobra conspurcava a perfeição de seu costume de linho. Miss Horton padecia da obcessão de se manter impecável o tempo todo; sua auxiliar no escritório jurava ter visto Miss Horton tirar a roupa cuidadosamente, colocá-la num cabide, antes de usar o lavatório, a fim de que não se amarrotasse.

Satisfeita por constatar que estava dentro de seus padrões inflexíveis Mary Horton enfiou um chapéu de palha preto até atingir a parte superior do coque, meteu um alfinete de chapéu com um movimento único, calçou as luvas de couro negro e puxou a descomunal bolsa para a beira da penteadeira. Abriu-a e, metodicamente, examinou para ver se ali estavam: a chaves, dinheiro, lenço, curativo bandaid, caneta tinteiro e caderno de notas, agenda, cartões de crédito e carteira de identidade, carteira de motorista, cartão de estacionamento, alfinetes de segurança, alfinetes de cabeça, agulha e caixa de linha, tesouras, lixa de unha, dois botões sobressalentes para a blusa, chave de fenda, alicate, torquez, lanterna, trena de aço em centímetros e polegadas, caixa de balas 38 e o revólver do serviço policial.

Ela era uma atiradora de primeira. Uma de suas obrigações para com operações bancárias da Constable Steel & Mining e, desde a vez em que feriu no braço um delinqüente, enquanto este fugia com o dinheiro do pagamento da companhia, não havia um só criminoso em Sidnei com coragem suficiente para atacar Miss Horton quando saía do banco. Daquela feita, tinha entregue a pasta com tamanha tranqüilidade, com tanta compostura e sem protestar, que o ladrão julgara estar totalmente a salvo. Depois, tão logo este se virou para fugir, ela abriu a bolsa, tirou a arma, colocou-a em posição, mirou e disparou. O Sargento Hopkinns, do serviço de tiro da Polícia de New Soutú Wales, afirmava ser ela mais rápida do que Sammy Davis Júnior.

Vendo-se entregue a si mesma aos quatorze anos, resolveu dividir um quarto na Associação Cristã” de Moças com mais cinco jovens, e trabalhou como vendedora na loja David Jones até terminar o curso de secretariado que fazia à noite. Aos quinze anos, começou a fazer parte do quadro de datilógrafas da Constable Steel & Mining. Era tão pobre que usava, diariamente, a mesma saia e a mesma blusa, que lavava com o máximo cuidado, e cerzia as suas meias de algodão até ao ponto em que havia mais cerzidos do que a malha original.

Cinco anos mais tarde, a sua eficiência, a sua tranqüilidade inalterada e a sua notável inteligência, fizeram com que passasse a ocupar o cargo de secretária particular de Archibald Johnson, o diretor administrativo da C.S.M.. Contudo, durante os primeiros dez anos na firma, continuou morando na Associação Cristã de Moças, cerzindo e recerzindo as meias e economizando muito mais do que gastava.

Aos vinte e cinco anos, pediu a Archie Johnson que a aconselhasse sobre a melhor maneira de aplicar suas economias. Quando estava perto dos trinta, havia conseguido aumentar em muitas, e muitas vezes a quantia inicial. Portanto, aos quarenta, já’ possuía casa própria em Artarmon, um tranqüilo bairro da classe média; dirigia um caríssimo Bentley, porém de modelo clássico, forrado com couro e revestido de nogueira genuína; tinha um chalé construído numa área de vinte acres ao norte de Sidnei e mandava fazer os seus costumes no mesmo alfaiate que costurava para a esposa do Governador-Geral da Austrália.

Considerava-se totalmente satisfeita consigo mesma e com sua vida. Gozava dos pequenos luxos que apenas o dinheiro proporciona, mantinha-se fiel a si própria, tanto no trabalho quanto em casa, não tinha amigos com a exceção de cinco mil livros que recobriam as paredes do seu aposento particular, e diversas centenas de discos quase todos reproduzindo as músicas de Bach, Brahms, Bethoven e Handel. Adorava jardinagem e arrumação de casa, nunca assistia um programa de televisão ou ia a um cinema, como também jamais quiz ou teve um namorado.

Assim que Mary Horton saiu de casa, deixou-se ficar por um instante na varanda, perscrutando a neblina e examinando as condições do jardim da frente. O gramado precisava ser aparado e com urgência. Onde estaria aquele homem infernal a quem pagava para que o aparasse de quinze em quinze dias, nas quintas-feiras? Já fazia um mês que ele não aparecia e a aveludada superfície verde estava começando a ficar alta demais. Que coisa aborrecida, pensou, realmente que aborrecimento!

Havia um estranho zumbido enchendo o ar, um pouco de barulho e um pouco de sensação, como se fosse um bum, bum, bum muito suave que penetrava até os ossos, e isto fez com que a experiente mulher de Sidnei soubesse que o dia iria ser muito quente, talvez o mais quente do século. As folhas alongadas e azuladas dos dois eucaliptos que ladeavam o portão principal cangavam, inclinando-se para baixo num visível protesto contra o martelar do calor, os bezouros japoneses soltavam estalidos e moviam-se, ruidosamente, por entre as inúmeras flores amarelas das touceiras de acácias. Uma fileira de magníficos oleandros gêmeos - de cor vermelha - ladeava o caminho içado com pedras que, partindo da porta da frente, conduzia até a garagem; Mary Horton apertou os lábios e começou a caminhar por ali.

Foi então que a luta começou... a luta que tinha lugar todas as manhãs e todas as noites do verão. Assim que ela alcançou o primeiro arbusto, maravilhosamente florido, tiveram início os guinchos e a gritaria, num volume ensurdecedor que ressoava em seus tímpanos e deixavam a sua cabeça rodando.

Apoiou a bolsa no chão, tirou as luvas; Mary Horton dirigiu-se ao rolo verde e limpo da mangueira do jardim, abriu toda a torneira e começou a aguar os oleandros. Gradativamente, o som foi se afastando, à medida que os arbustos ficavam empapados, até que só restou um único e profundo barulho que partia da touceira mais próxima à casa. Mary sacudiu o pulso em sua direção, de maneira vingativa.

Ainda vou lhe pegar, seu velho nojento! - exclamou por entre os dentes cerrados.

— Breeeeeeek! - respondeu zombeteiramente o chefe do coro das cigarras.

As luvas foram calçadas, a bolsa apanhada... Mary prosseguiu rumo à garagem, tranqüila e calma.

Da pista de acesso aos carros podia-se ver a barafunda daquilo que um dia fora o encantador chalé de tijolinhos vermelhos de Mrs. Emily Parker, sua vizinha. Mary observou a devastação, reprovando-a, enquanto levantava a porta da garagem olhando displicentemente para a calçada.

As calçadas da Walton Street eram umas graças. Tinham uma estreita faixa cimentada e um gramado, bem largo e muito bem tratado, que se estende do caminho até ao meio fio. Em ambos os lados da rua, e a uma distâmcia de uns nove metros entre si, cresciam imensos oleandros, um branco, outro rosa, outro vermelho, mais um branco, em sucessivos quartetos que eram orgulho dos moradores da rua e uma das razões principais porque Walt Street costumava ganhar o concurso anual de jardins, promovido pelo pé. Herald.

Um pesado caminhão de concreto estava estacionado, com seu tambor girando preguiçosamente e batendo de encontro a um dos oleandros da cercada, em frente a casa de Mrs. Parker e uma calha de transporte descarregava litros de concreto cinzento e pegajoso em cima do gramado. A massa gotejava dos galhos petrificados e tristes da árvore, escorria e depositava-se, formando poças nos lugares em que o gramado estava desigual, e deslizando para a faixa acimentada. Os lábios de Mary cerraram-se tamanho era o seu aborrecimento. O que teria acontecido a Emily Parker para mandar rebocar as paredes de tijolos vermelhos de sua casa com aquela substância horrorosa? Não havia justificativa para os gostos ou para a falta deles, ponderou.

Um jovem estava de pé, ao sol, com a cabeça descoberta, observando, impassível, a profanação da Walton Street. De onde se encontrava, a uns metros de distância, Mary Horton olhou para ele estarrecida.

Se ele tivesse vivido a duzentos e cinqüenta anos atrás, Fídias e Praxítel teriam-no usado como o modelo para o mais estupendo Apoio de todos os tempos. Ao invés de estar de pé com tamanha desinibição numa rua tão acanhada de Sidnei para sofrer o esquecimento da mortalidade total, teria vivido para a eternidade nas curvas frescas, suaves e acetinadas de um mármore alvo e seus olhos de pedra teriam olhado de maneira indiferente por sobre as cabeças repletas de admiração de gerações e gerações de homens.

Porém, ali estava ele, em meio a uma barafunda de concreto meio liquefeito; era com toda a certeza um dos rapazes da turma de construção de Harry Markham, pois usava o uniforme composto de short caqui cujas pernas estavam enroladas até deixarem à mostra a parte mais baixa da curva das nádegas; a cintura tinha escorregado para baixo até a altura das cadeiras. Tirando o short e um par de grossas meias de lã, enroladas sobre a parte superior das botas de operário, não vestia mais nada, nem uma camisa, um jaleco e nem mesmo usava chapéu.

Virando-se, rapidamente, em sua direção, ele cintilava ao sol como se fosse feito de ouro derretido, as pernas tão maravilhosamente torneadas, que ela o imaginou como um corredor de longa distância. Na verdade, este era o aspecto de todo o seu físico, alto, esbelto e encantador, e enquanto ele girava em sua direção, observou-lhe o peito liso que ia se afinando dos ombros largos até as ancas, primorosamente estreitas.

E o rosto... ah, o rosto! Era perfeito. O nariz curto e reto, as maçãs altas pronunciadas, a boca suavemente curva. Perto do canto da boca transparecia um minúsculo vinco, bem do lado esquerdo, e esta diminuta ruga entristecida emprestava-lhe um ar perdido, de inocência infantil. Os cabelos, sobrancelhas e cílios eram da cor do trigo maduro, esplêndidos com o sol filtrando-se por entre eles, e os seus olhos imensos eram de uma tonalidade tão viva e profunda quanto a de um centauro azul.

Assim que Tim percebeu que estava sendo observado, sorriu para ela cheio de felicidade e aquele sorriso transformou a respiração de Mary Horton num suspiro incontrolável. Nunca arquejara tanto em toda a vida; horrorizada por ver-se tumultuada pela extraordinária beleza do rapaz, dirigiu-se numa corrida alucinada rumo ao abrigo de seu carro.

A recordação de Tim permaneceu com ela durante todo o trajeto até o centro comercial da zona norte de Sidnei, onde estava localizado o prédio de quarenta andares da Constable Steel & Mining. Tentando concentrar a atenção no trânsito e nos acontecimentos do dia que enfrentaria, Mary não conseguiu afastá-lo da sua lembrança. Se ele fosse efeminado, se o seu rosto fosse apenas bonito ou deixasse escapar uma indefinível aura animalesca, teria conseguido esquecê-lo com a facilidade que a auto-disciplina a tinha ensinado a duvidar de qualquer coisa desagradável ou perturbadora. Oh, meu Deus, como ele era lindo, que beleza completa e estarrecedora! Então, recordou-se que imily Parker tinha comentado que os operários deveriam terminar as obras naquele dia; continuou a dirigir com obstinação, porém tudo aquilo que se encontrava envolto na névoa palpitante e opaca do calor à sua volta pareceu ficar mais confuso ainda.

 

Assim que Mary Horton foi embora e a mangueira ficou impotente, o chefe do coro das cigarras emitiu um profundo e ressoante ’breeeekr do seu arbusto de oleandro, prontamente respondido pelo soprano que se encontrava num outro, pouco afastado. Um a um eles foram chegando, tenores, contraltos, barítonos e sopranos, até que o sol forte carregou seus minúsculos e irisados corpos esverdeados com tamanho poder de som que se alguém tentasse conversar ali por perto acabaria desistindo. O ensurdecedor coro espalhou-se, passando pelos ruidosos habitantes das acácias até alcançarem os eucaliptos em flor, ultrapassando a cerca até atingir os oleandros das calçadas de Walton Street e penetrando pela fileira de rododendros canforados que ficava nos fundos, separando os jardins de Mary Horton e Emily Parker.

Os operários laboriosos quase não notaram a presença das cigarras até que foram forçados a falar aos gritos uns com os outros, enquanto retiravam com pás de pedreiro o concreto de um monte que Tim Melville não parava de abastecer e atirando-o de encontro às laterais de tijolos vermelhos do chalé da velha senhora. O puxado já estava concluído faltando, apenas, uma última demão de estuque. Os operários, com suas costas nuas inclinando-se e erguendo-se ao sabor do balanço e do ritmo do trabalho pesado, circulavam com disciplina em volta da casa, os ossos aquecidos pela maravilhosa tepidez do verão, o suor secando antes de se transformar num filete sobre as peles morenas e acetinadas. Bill Naismith atirava o concreto úmido nas paredes, Mick Devine espalhava-o até formar uma camada una e contínua de reboco esverdeado e de aspecto granulado, grosso e, atrás dele, Jim Irvine andava sobre um andaime bambo, deslizando a talocha sobre a parede, para frente e para trás, em movimentos circulares e indolentes que imprimiam uma série de arcos espiralados à superfície. Harry Markham, supervisionando tudo, olhou para o relógio e gritou na direção de Tim:

- Hei, companheiro, vá até lá dentro e pergunte à velha senhora se pode colocar a chaleira para ferver, está certo?

Tim largou o carrinho de mão na passagem lateral, apanhou a chaleira improvisada com capacidade para um galão de água, a caixa de comida e bateu na porta dos fundos pedindo permissão para entrar.

Mrs. Parker apareceu logo depois, deixando entrever uma silhueta atarracada por trás da porta entelada.

— Oh, é você, meu querido? — perguntou, abrindo a porta.

— Entre, pode entrar! Quer que eu coloque uma chaleira para ferver para aqueles horríveis sujeitos que estão lá fora, não é? — entrou, acendendo un cigarro e olhando de soslaio para Tim que piscava sob o efeito do sol brilhante e forte.

— Sim, Mrs. Parker, se me faz favor - respondeu Tim de modo educado, sorrindo.

— Está certo, então. Acho que não me resta muita escolha, não é mesmo, caso queira ver o trabalho terminado antes do fim da semana. Sente-se enquanto espera que a água ferva, querido.

Movimentava-se na cozinha com negligência, os cabelos prateados encres pados numa porção de ondas, o corpo sem o espartilho, envolto num vestido de algodão estampado com amores perfeitos roxos e amarelos.

— Quer comer um biscoito, meu querido? - indagou, oferecendo-lhe o pote de vidro. — Aí tem alguns, de chocolate, que são muito gostosos.

— Sim, obrigado, Mrs. Parker — Tim sorriu, remexendo no pote até que sua mão agarrou um biscoito repleto de chocolate.

Sentou-se em silêncio, enquanto a velha senhora pegava a lata de comida de suas mãos e colocava umas cem gramas de folhas de chá dentro da chaleira improvisada. Assim que a água ferveu, encheu o recipiente pela metade, em seguida recolocou a chaleira sobre o fogo enquanto Tim arrumava sobre a mesa da cozinha algumas canecas de ágata maltratadas e, junto delas, uma garrafa de leite e um açucareiro.

— Aqui, criança, limpe as mãos na toalha de chá como um bom menino, está bem? - pediu a velha senhora a Tim quando notou que ele deixara uma mancha escura de chocolate sobre a beira da mesa.

Dirigiu-se até a porta dos fundos, pôs a cabeça do lado de fora e gritou, “Tudo pronto!” no mais alto que lhe permitiu a sua voz.

Tim serviu-se de uma caneca de chá, puro, negro como carvão, depois pôs tanto açúcar que o líquido transbordou e derramou em cima da mesa, o que fez com que a velha senhora recomeçasse a resmungar.

— Deus do Céu, você é mesmo um desmazelado! — mas disse isso sorrindo, desculpando-o. — Eu não faria assim com a caneca tão cheia, mas você não agüenta, não é mesmo, querido?

Tim sorriu para ela com afeto, agarrou a sua caneca e levou-a para o lado de fora enquanto os outros homens começavam a entrar na cozinha.

Tinham por hábito comer nos fundos da casa, onde estava localizada a sua quina, logo depois do puxado recém-construído. Era um local cheio de sombra, bastante distanciado das latas de lixo para que não houvesse muitas moscas e cada qual tinha arrumado uma pilha de tijolos, pequena e chata, para se sentar enquanto se alimentava. Os rododendros canforados plantados entre o quintal de Miss Horton e de Mrs. Parker pendiam sobre eles, formando uma sombra compacta que transformava aquele instante de repouso num prazer depois de tanto trabalho sob o sol escaldante. Os homens acomodaram-se ali, cada qual com sua caneca nas mãos, um saco pardo na outra, as pernas estiradas, soltando suspiros e espantando as moscas para longe.

Como pegavam no trabalho às sete e largavam às três, este intervalo matinal acontecia às nove, seguido pelo almoço às onze e meia. Costumavam referir-se à pausa das nove horas como ’fumaça à vista’ e sua duração era de meia hora. Comiam com grande apetite, de vez que seu trabalho era braçal, muito embora isso quase nada representasse para as suas estruturas musculares. Ao café da manhã tomavam um mingau quente, costeletas ou salsichas fritas com dois ou três ovos estrelados, diversas xícaras de chá e fatias de torradas, o que se dava por volta das cinco e meia em ponto. Na hora da ”fumaça à vista” deliciavam-se com sanduíches caseiros e fatias de bolo; na hora do almoço, a mesma coisa, apenas em dose dupla.

Na parte da tarde não havia intervalos. Às três retiravam-se, os shorts de trabalho enfiados em maletas estranhamente parecidas com as usadas pelos médicos, novamente vestindo camisas que não abotoavam no colarinho, calças de algodão leve, e dirigiam-se para o pub. Todos os dias conduziam, inexoravelmente, a isto, seu ponto culminante e mais importante. Dentro do pub barulhento e com aspecto de um toilete, podiam descansar, um pé apoiado no descanço do bar, numa das mãos uma caneca cheia de cerveja até a boca, pilheriando com os companheiros de trabalho e amigos do pub, namoriscando com as garçonetes inflexíveis. Depois disto, a volta a casa representava o anti-clímax, uma submissão um tanto desabrida à insignificância restrita das mulheres e dos filhos.

No instante em que os homens se sentaram para fazer a merenda matinal, a atmosfera entre eles era tensa e cheia de expectativas. Mick Dcvine e seu alegre colega Bill Naismith sentaram-se lado a lado, as costas de encontro a cerca de ripas, as canecas entre os pés e a comida espalhada sobre o colo; Harry Markham e Jim Irvine estavam em frente a eles, com Tim Melville bem junto à porta dos fundos da casa da velha senhora, pois poderia assim buscar e levar o que os outros lhes pedissem, com maior facilidade. Como era o membro mais jovem da turma, ocupava a posição de lacaio e escravo de todos. Nas anotações de Harry, seu título oficial era ”operário de construção - já estava com ele há dez anos sem nunca ter contado com uma promoção.

— Hei, Tim, o que tem no seu sanduíche esta manhã? - Indagou Mick, dando uma piscadela para os outros.

— Ora, Mick, o mesmo de sempre, geléia — respondeu Tim, levantando duas fatias de pão de forma branco cheias de uma espessa camada de geléia que se esparramava para o lado de fora.

— Qual o sabor da geléia? — Insistiu Mick, olhando para o seu sanduíche sem entusiasmo.

— Acho que é de abricó.

— Quer trocar? O meu é de salsichas. O rosto de Tim iluminou-se.

— Salsichas! Oh, adoro sanduíche de salsicha! Troco sim.

A troca foi feita. Mick mordeu o sanduíche de geléia de abricó, desajeitadamente, enquanto Tim, sem perceber os olhares maldosos dos outros, acabou com o sanduiche de salsichas de Mick com umas poucas dentadas. Preparava-se para engolir o último pedaço, quando Mick, com os ombros sacudindo devido ao riso que tentava conter, esticou uma das mãos e agarrou o seu pulso.

Tim ergueu os seus olhos azuis para Mick, o medo tornando-os mais brilhantes, e com uma expressão infantil e desanimada; a boca triste permanecia ligeiramente aberta.

— O que está havendo, Mick? - indagou.

— Nesse sanduiche infame, a salsicha nem passou por perto, companheiro! Que tal era o gosto, ou será que não deixou na sua boca o suficiente para descobrir, heim?

A minúscula prega no canto esquerdo da boca de Tim tornou a estremecer quando ele a fechou e olhou para Mick preocupado e surpreso.

— Estava bom, Mick — falou lentamente. - Tinha um gosto um pouquinho diferente... mas estava gostoso.

Mick estourou na gargalhada. Logo depois todos choravam de tanto rir, sentindo até dificuldade para respirar.

— Oh, Cristo, Tim, você é o máximo! Harry acha que você vale pelo menos sessenta centavos de um soberano*, mas eu disse que não valia mais de dez, depois de tudo isto, acho que quem está certo sou eu. Você não poderia mêsmo valer mais do que dez centavos de um soberano, companheiro!

— O que é que há? — perguntou Tim, enraivecido. - O que foi que eu fiz? Sei que não valho grande coisa, Mick, com sinceridade, sei disso!

— Se o sanduiche não tinha gosto de salsicha, Tim, qual era o seu sabor? perguntou Mick, por entre gargalhadas.

— Bem... não sei não... — As sobrancelhas douradas de Tim contraíram-se pensativamente. - Não sei! O gosto era diferente, só isso.

— Por que não abre este último pedacinho e não dá uma olhada bem boa companheiro?

As mãos quadradas, perfeitas, de Tim separaram os dois pedaços do pão. O último pedaço de salsicha estava amassado e sem formato, as bordas eram escorregadias e tinham um aspecto pegajoso.

— Cheire-a! — Ordenou Mick, olhando a sua volta e enxugando as lágrimas

 

(N da T. Soberano equivalia, antigamente, antes da libra passar ao sistema decimal, a dois xelins e meio dos olhos com as costas das mãos.)

 

Tim aproximou o pão ao nariz. Suas narinas contraíram-se, aspiraram e, em seguida, ele tornou a separar as fatias de pão, sentou-se e ficou olhando para seus colegas com uma expressão de surpresa estampada no rosto.

— Não sei o que é isto - disse, pateticamente.

— É excremento, seu grande tolo! — respondeu Mick, enojado. - Meu Deus, como você é idiota! Mesmo depois de ter cheirado isso aí, ainda não sabe o que é?

— Um excremento? — repetiu Tim, os olhos presos em Mick. - O que é um excremento, Mick?

Todos desabaram a rir e Tim continuou ali, sentado, a pequena sobra do sanduíche entre os dedos, olhando e esperando, cheio de paciência, que alguém recuperasse o controle e respondesse a sua pergunta.

— Um excremento, Tim, meu rapaz, é um pedaço bem grande de bosta - Respondeu Mick em meio ao riso.

Tim sentiu um calafrio e prendeu a respiração. Atirou o pão para longe, horrorizado, sentou-se torcendo as mãos, encolhendo-se todo. Os companheiros afastaram-se depressa, julgando que ele fosse vomitar, mas tal não aconteceu. Deixou-se apenas ficar ali, de olhar fixo em seus colegas, completamente aniquilado pela tristeza.

Acontecera novamente. Mais uma vez provocara o riso dos outros por ter feito alguma coisa idiota, porém não sabia o que era ou porque era tão gozado. Seu pai teria dito que precisava ser mais ’vivo’, significasse aquilo qualquer coisa, mas nunca fora vivo, tinha comido um sanduíche de salsicha que não era um sanduíche de salsicha. Um pedaço de bosta, foi o que lhes disseram que era, mas como poderia saber que gosto tinha um pedaço de bosta se nunca a tinha comido antes? Afinal, o que era tão engraçado? Gostaria de saber. Ansiava por saber, desejava entender para assim compartilhar do divertimento. Esta era sempre a sua maior tristeza, parecia que nunca conseguia compreender as coisas.

Seus olhos azuis encheram-se de lágrimas, o rosto voltou-se para cima repleto de angústia e começou a chorar como uma criancinha, soluçando alto, sem parar de torcer as mãos e encolhendo-se ainda mais.

— Meu bom Jesus Cristo, que cambada de canalhas são vocês, seus nojentos! — esbravejou a velha senhora, precipitando-se pela porta dos fundos como uma harpia, com os amores perfeitos amarelos e roxos sacudindo-se ao seu redor. Aproximou-se de Tim, segurou as suas mãos, puxou-o, ajudando-o a levantar-se enquanto olhava para os homens às gargalhadas. - Venha comigo, querido, vamos até lá dentro um minutinho; vou-lhe dar alguma coisa boa para acabar com esse gosto horrível que sente na boca — murmurou, dando-lhe pancadinhas nas mãos e acariciando-lhe os cabelos. - E quanto a vocês todos - esbravejou, encarando Mick de maneira tão furiosa que ele deu um passo atrás - espero que caiam de traseiro num esgoto, antes de mais nada, e depois numa grade de ferro pontiaguda! Vocês deviam ter vergonha de fazer uma coisa assim, seus grandiosíssimos nojentos! Tratem de acabar com este trabalho hoje mesmo, Harry Markham, ou não o terminará de jeito nenhum! Nunca mais quero ver nenhum de vocês!

Reclamando e acariciando, levou Tim para dentro e deixou os homens de pé olhando uns para os outros.

Mick encolheu os ombros.

— Mulher asquerosa! - disse. - Jamais conheci uma mulher que tivesse senso de humor. Vamos, tratemos de acabar com a empreitada hoje, também já estou cansado dela.

Mrs. Parker levou Tim até a cozinha e acomodou-o numa cadeira.

— Meu pobre coitado, — disse, dirigindo-se para a geladeira. — Não sei porque os homens acham tão divertido maltratar os tolos e os cachorros. Escute só, veja como estão se divertindo, soltando gargalhadas, é muito engraçado! Gostaria de fazer para eles um bolo de chocolate bem grande com sabor de bosta, já que acham isso tão engraçado! Você, você meu coitadinho, nem conseguiu vomitar toda essa imundice, mas eles estão lá fora divertindo-se, aqueles grandes heróis! - Virou-se para olhá-lo, abrandando um pouco a sua fúria pois ele continuava aos prantos, lágrimas enormes rolando pelas faces enquanto soluçava e fungava tristemente. — Ora, vamos, pare com isso! disse ela, retirando um lenço de papel de uma caixa e segurando o seu queixo nas mãos.

— Assoe o nariz, meu broto.

Ele sempre fazia o que lhe ordenavam, então agüentou a maneira rude como ela lhe limpava o rosto.

— Meu Deus, que desperdício! — disse, falando um pouco consigo mesma olhando para o rosto do rapaz. Em seguida, atirou o lenço de papel dentro da lata de lixo e deu de ombros.

— Bem, as coisas são assim mesmo, quero crer. Não se pode ter tudo, mesmo os maiores e melhores entre nós, não é meu querido?

— Acariciou o rosto de Tim com sua velha e calejada mão.

— Agora, diga-me do que mais gosta, doçura, sorvete com calda de chocolate ou um pedaço bem grande de pudim com molho de banana gelado por cima?

Ele parou de fungar, e deu um amplo sorriso.

— Oh, Mrs. Parker, prefiro pudim! Adoro pudim de geléia com molho frio de banana, é minha sobremesa preferida!

Mrs. Parker sentou-se em frente a ele, na mesa da cozinha, enquanto Tim enfiava pedaços de doce na boca em colheradas bem cheias mas ralhava com ele por comer rápido demais e aconselhava-o a se comportar bem.

— Mastigue com a boca fechada, querido, é horrível olhar-se para alguém que come com a boca aberta. E tire os cotovelos de cima da mesa, como um bom menino.

 

Mary Horton estacionou o carro na garagem às seis e meia da tarde. Sentia-se tão cansada que praticamente não conseguiu andar os poucos metros que a separavam da casa sem que seus joelhos tremessem. Durante todo o dia entregara-se ao trabalho de corpo e alma e conseguira amortecer todas as sensações, menos o cansaço. A casa de Mrs. Parker estava realmente terminada; o revestimento exterior em tijolos vermelhos tinha desaparecido, dando lugar ao estuque cinza esverdeado e úmido. Assim que fechou a porta da frente, o telefone começou a tocar e apressou-se em ir atendê-lo.

— É a senhora, Miss Horton? - reconheceu a voz áspera da vizinha. - Aqui é Emily Parker, queridinha. Escute, será que pode fazer uma coisa para mim?

— Claro que sim.

— Preciso sair agora, meu filho acaba de telefonar da estação e tenho que ir lá para apanhá-lo. Os operários terminaram esta bagunça, porém ainda há uma porção de coisas deles lá no quintal e Harry disse-me que voltaria para retirar tudo. Por favor, dê uma olhada quando ele aparecer, está bem?

— Sem dúvida, Mrs. Parker.

— Ótimo, querida! Até logo, amanhã nos veremos.

Mary deixou escapar um suspiro de desespero. Tudo quanto desejava era sentar na cadeira de balanço colocada ao lado da janela, pôr os pés para cima enquanto tomava o habitual sherry antes do jantar e ler o Sydney Morning Trald, como costumava fazer todas as noites. Dirigiu-se à sala de estar e abriu o bar, sentindo-se esgotada. O serviço de água era de cristal Waterford, finíssimo, e ela tirou um dos copos de sherry, de pé alto, do seu lugar na prateleira Envernizada. Apreciava um sherry meio-doce, preparado por si mesma, colocando meio copo de Almontillado seco e completando-o com sherry muito doce. Terminado o ritual, levou o copo até a cozinha e daí foi para o terraço dos fundos.

Sua casa era melhor projetada do que a de Mrs. Parker. Ao invés da varanda nos fundos, tinha um pátio amplo, pavimentado com lajotas de arenito acima do nível do terreno, que se afastava nos três lados como se fosse um jardim em plataformas até o gramado, cinco metros abaixo. Era um lugar muito bonito e, no auge do verão, bastante fresco, pois contava, num dos lados, com um caramanchão coberto de parreira e de glicínias. Durante o verão, se podia sentar sob o dossel espesso e verde, protegida do sol; no inverno, acomodava-se debaixo dos galhos contorcidos e nus e deixava que o sol a aquecesse; na primavera, os cachos lilás das glicínias em flor tornavam-no estupidamente lindo, e no final do verão e no outono o caramanchão ficava carregado de imensos cachos de uvas vermelhas, brancas e púrpuras.

Começou a caminhar silenciosamente sobre o pavimento de lajotas com seus sapatos pretos muito bem cuidados. Era uma pessoa que pisava leve, como os gatos, e gostava de aproximar-se dos outros em silêncio para que pudesse vê-los antes que a vissem. Às vezes, era muito bom apanhar as pessoas de surpresa.

Na parte mais afastada do pátio havia uma balaustrada de ferro batido, pintada de branco, com desenho de uva e que ladeava um lance de degraus qi conduzia até o extenso gramado mais abaixo. Sem fazer qualquer ruído Como de costume, deixou-se ficar de pé junto à balaustrada, o copo colocado em cima dela, olhando para o quintal de Mrs. Parker.

O sol se punha no horizonte, exatamente no ponto para onde olhava, se fosse do tipo de pessoa que se deixasse tocar pela natureza, teria ficado estarrecida com o espetáculo a sua frente. Entre o seu terraço e as Montanhas Azuis, a vinte milhas de distância, não havia a mínima elevação; até mesmo colinas Ryde não impediam a sua vista, muito pelo contrário, enriqueciam-na proporcionando-lhe uma perspectiva de meia-distância. Durante a tarde, a temperatura andara perto dos quarenta graus e mesmo naquele momento não devia estar muito mais baixa; não havia nuvens no céu, o que tornava o fim do dia espetacular. A própria luz era bonita, amarela profunda e ligeiramente bronzeada, tornando os tons verdes mais verdes ainda e todo o resto de cor âmbar. Mary protegeu os olhos com uma das mãos e observou o quintal de Mrs. Parker.

O rapaz que vira naquela manhã estava varrendo uma grande quantidade de pó de cimento para junto de um monte de lixo deixado pelos companheiros, a cabeça dourada inclinada, absorto naquela tarefa simples, como se gostasse de dar a tudo, até mesmo àquilo, toda a sua atenção. Ainda continuava meio despido, tão lindo quanto antes, talvez ainda mais bonito sob a luz suave do final da tarde do que quando o vira pela primeira vez, sob a claridade toda do dia. Mary, esquecendo-se do drinque, deixou-se ficar perdida na sua solidão enquanto observava Tim que, sem se dar conta disto, sem perceber a sua presença, sem ter a consciência de que ela estava possuída por uma emoção estranha, não se sentiu culpado ou perturbado. Mary simplesmente o olhava. Terminada tarefa, levantou a cabeça e a viu, agitou uma das mãos à guisa de cumprimento, depois sumiu. Mary estremeceu, sentindo o coração pular na garganta, e antes que pudesse se controlar, aproximou-se da fileira de rododendros canforados que se localizava entre os dois quintais e passou para o outro lado por um espaço existente na cerca viva.

Fosse qual fosse a sua tarefa ele já a tinha concluído, pois tinha a maleta nas mãos e tirava de dentro dela as roupas de sair.

— Alô — exclamou Tim, sorrindo para ela sem a menor sombra de constrangimento, como se não fizesse idéia de sua própria beleza nem de como ela causava um inevitável impacto nos outros.

— Alô - respondeu Mary, sem sorrir. Sentiu alguma coisa molhada na mão e ao olhar para baixo, viu que o sherry estava entornando pela borda do copo esquecido.

— Está entornando a sua bebida - observou Tim.

— É verdade, não é uma coisa tola de minha parte? — arriscou Mary, procurando dar às suas feições um aspecto agradável.

Tim não sabia como responder a uma observação daquele tipo, porém continuou a fítá-la com aquele seu modo interessado e alegre.

— Gostaria de ganhar um dinheirinho extra? — perguntou-lhe Mary de modo casual, mantendo os olhos nele de maneira indagadora.

Tim parecia intrigado.

— Como?

Mary ficou ruborizada, os olhos escuros examinavam-no com uma ponta de ironia.

— Meu gramado está precisando ser aparado com urgência e o homem que costuma fazer isto para mim já não aparece faz um mês, e creio que nunca mais o verei por aqui. Sinto muito orgulho de meu jardim e detesto vê-lo assim como está, contudo, é muito difícil encontrar alguém para cortar a grama. Vendo-o aqui, trabalhando fora de hora numa sexta-feira, pensei que talvez estivesse necessitando ganhar algum dinheiro a mais. Será que poderia vir amanhã e aparar a grama? Tenho uma máquina de ceifar, portanto é mais uma questão de tempo do que de esforço.

— Como? - tornou a dizer Tim, sem deixar de sorrir, porém sem grande naturalidade.

Mary sacudiu os ombros com impaciência.

— Ora, pelo amor de Deus! Se não lhe interessa o biscate, diga logo! Tudo quanto quero saber é se pode vir amanhã para cortar a grama. Posso lhe pagar mais do que aquilo que Mr. Markham costuma lhe dar.

Tim dirigiu-se até a brecha na cerca viva, examinou o seu quintal com curiosidade, e, em seguida, sacudiu a cabeça.

— É verdade, está precisando mesmo ser aparado, não está? Posso fazer isso para você.

Mary passou para o seu quintal e virou-se para encará-lo.

— Obrigada. Fico muito satisfeita e esteja certo de que será bem recompensado por isto. Amanhã pela manhã dirija-se aporta dos fundos e lhe darei todas as explicações necessárias.

— Está certo, Miss — replicou Tim, muito sério.

— Não quer saber como me chamo? - indagou.

— Acho que sim — replicou sorrindo.

Sua aparência de constante alegria atingiu-a em cheio e ela tornou a enrubescer.

— Meu nome é Miss Horton! — deixou escapar. - E o seu, meu rapaz, qual é?

— Tim Melville.

— Muito bem, espero-o amanhã de manhã Mr. Melville. Adeus e muito obrigada.

— Até logo. — disse Tim, sorrindo.

Quando Mary chegou ao último degrau do pátio, virou-se para tornar a olhar na direção do quintal de Mrs. Parker, mas o rapaz já se tinha retirado. Seu sherry também tinha terminado; o que restava dele tinha entornado quando, sem o notar, virara o copo na sua pressa de fugir daquele inocente olhar azul.

 

Os moradores de Randwick gostavam muito de ir tomar seus drinques no lotei Seaside. Eles vinham de todos os cantos do grande e extenso subúrbio. De Randwick, propriamente dito, de Coogee, de Clovelly e, até mesmo, de daroubra. Servia-se ali uma cerveja de excelente qualidade, bem geladinha, havia suficiente espaço para todos. Fosse qual fosse a razão de sua popularidade, não havia um único instante durante o horário de funcionamento em que não estivesse fervilhando de gente, cheio de animação com a algazarra dos alegres consumidores de cerveja.

Possuía diversos andares, as paredes em estuque muito branco, e, entre estas e a fileira de arcos no estilo de Alhambra que ficava na parte da frente, parecia-se um pouco com uma imponente casa de fazenda. Empoleirado a sessenta metros de altura acima do oceano a sua frente e a uma distância de oitocentos metros, possuía uma magnífica vista da praia de Cogee, uma das melhores praias para surfar dos subúrbios orientais.

A maior parte dos consumidores não ficava no bar, mas na grande varanda vernelha que, depois das três da tarde, ficava mergulhada na sombra. Era o lugar perfeito para se tomar um drinque nas noites quentes, de vez que o sol se punha na colina situada atrás do pub e a brisa do mar soprava naquela direção, vinda do Pacífico.

Ron Melville estava de pé na varanda, acompanhado por dois assíduos companheiros de drinques, os olhos passando do relógio para a praia lá embaixo, distante. Tim estava atrasado. Já eram quase oito horas e ele deveria [ter chegado por volta das seis e meia. Ron estava mais amolado do que aborrecido, pois a sua vivência tinha-lhe ensinado que a melhor maneira para sofrer um ataque cardíaco prematuro era preocupar-se com Tim.

O curto crepúsculo de Sidnei estava no auge, e os pinheiros de Norfolk Mand que ladeavam o calçamento da praia tinham passado do verde escuro para o preto. A maré enchia e a arrebentação aumentava em violência, espadando uma tênue camada de bolhas sobre a areia branca, extensa e inclinada e as sombras cresciam cada vez mais sobre a água. Os ônibus que vinham da colina passavam pelo parque da praia e o ponto ficava na esquina mais acima. Ron notou que um ônibus freou, parou no ponto, então começou a examinar os passageiros que desciam, procurando a inconfundível cabeleira de Tim. Lá estava ele... Ron virou-se imediatamente.

— Lá vem o Tim naquele ônibus, acho que vou buscá-lo para tomar uma cerveja. Que tal outra rodada? — perguntou com naturalidade.

Assim que se virou para o outro lado, notou que as luzes da rua já estavam acesas e Tim estava de pé sorrindo para os amigos de Ron.

— Alô, pai — disse, dirigindo-se a Ron, sorrindo.

— Olá, companheiro, onde esteve? — perguntou o pai mal humorado.

— Tinha que terminar um trabalho. Harry não queria voltar na segunda-feira.

— Está certo, sempre podemos trabalhar algumas horas extras.

— Consegui outro trabalho também. - Falou Tim com orgulho, enquanto apanhava o copo de cerveja do pai e esvaziava de um só gole. — Puxa, estava gostosa! Posso tomar outra, pai?

— Espere um pouco. Que outro trabalho é esse?

— Ah, isso! A senhora da casa vizinha quer que eu vá até lá amanhã’ cortar a grama.

— Casa vizinha de quem?

— A casa vizinha de onde eu estava hoje.

Curly Campbell disse, entre risos:

— Tim, você perguntou a ela onde queria que a grama fosse aparada? dentro de casa ou fora?

— Cale a boca, Curly, seu idiota! — exclamou Ron irritado. — Sabe muito bem que Tim não entende esse tipo de piada!

— O gramado da casa dela está muito alto e precisando ser cortado — explicou Tim.

— E você disse que iria cortá-lo, Tim? — Perguntou Ron.

— Falei que ia amanhã de manhã. Ela disse que me pagaria, por isso achei que você não ia se importar.

Ron fitou o rosto primoroso do filho com descrença. Se a senhora em questão tivesse alguma pretensão, esta teria um fim assim que estivesse com Tim durante cinco minutos apenas. Não havia nada melhor para esfriá-las que a descoberta de que Tim não era um tipo normal, ou, se isto não fizesse desistir, chegariam à conclusão que tentar seduzir Tim era uma causa perdida, de vez que não tinha a menor idéia do que as mulheres pretendiam, desejavam. Ron educara o filho no sentido de fugir assim que uma mulher ficasse muito excitada ou tentasse brincadeiras mais arrojadas. Tim era muito susceptível ao medo e desta forma era fácil amedrontá-lo.

— Posso tomar outra cerveja, pai? — tornou a perguntar Tim.

— Está bem, filho. Vá até lá dentro e peça a Florie uma tulipa. Reconheço que fez por merecê-lo.

Curly Campbell e Dave O’Brien ficaram observando aquele rapaz alto e Esbelto desaparecer sob os arcos.

— Conheço-o há mais de vinte anos, Ron - comentou Curly - e ainda não Consegui descobrir com quem o Tim se parece.

Ron deu um amplo sorriso.

— Também não sei, companheiro. Acho que Tim se parece com algum [antepassado de quem nunca ouvimos falar.

Os Melville, pai e filho, deixaram o Seaside um pouquinho antes das nove e passaram rápido por Cogee Oval até chegarem à série de leiterias profusamente iluminadas, salas de jogos e lojas de bebidas na extremidade mais distante da praça da praia. Ron fez com que o filho passasse por elas bem depressa cortando caminho desde Arden Street até Surf Street, certificando-se que os olhares curiosos de Tim na direção das prostitutas refasteladas não tivessem oportunidade para desenvolverem-se.

A casa dos Melville localizava-se em Surf Street, porém não na sua parte mais elegante, no topo da colina, onde vivia o jóquei Nobby Clark. Subiram num abrir e fechar de olhos a íngreme encosta da colina, sem que nenhum dos dois ficasse ofegante, de vez que o fato de ambos trabalharem na indústria construtora proporcionara-lhes excelentes condições físicas. A meio do caminho, no vale situado entre as duas montanhas, entraram pelo portão lateral de uma casa germinada, de tijolinhos e bastante comum.

As mulheres da família já tinham comido há muito tempo, contudo, assim que Ron e Tim entraram pela porta dos fundos, Esme Melville saiu da sala de estar e foi ao encontro deles na cozinha.

— O jantar de vocês ficou uma porcaria — disse, sem muita raiva.

— Ora, vamos, Es, você sempre diz isso - falou Ron por entre um amplo sorriso, sentando-se à mesa da cozinha, onde o seu lugar e o do filho continuavam à espera. - O que temos para comer?

— Como se isso tivesse importância quando está cheio de cerveja — retrucou Esme. — Hoje é sexta-feira, companheiro! O que é que sempre comemos às sextas-feiras, hein? Comprei lá no Dago, como sempre, peixe e batatas fritas.

— Oh, que maravilha! Peixe e batatas fritas! - exclamou Tim, radiante.

— Mãe, adoro peixe com batatas fritas!

A mãe olhou para ele repleta de ternura, esfregando os espessos cabelos do filho da única maneira que sempre o acariciava.

— Meu querido, não importa o que eu lhe der para comer, pois sempre dirá que é esse o seu prato preferido. Aqui está.

Esme colocou as travessas com peixe, coberto por um molho gorduroso e as batatas fritas francesas diante dos homens e voltou para a sala de estar, onde a televisão estava no meio de uma transmissão a respeito de algumas partes da Coronation Street. Este vislumbre da vida da classe operária inglesa era fascinante e ela adorava-o. Era capaz de se deixar ficar ali pensando na casa grande e bonita, no jardim, no clima delicioso, no tênis e na sua praia, sentindo pena dos moradores de Coronation Street com toda a sinceridade. Se não se pode deixar de pertencer à classe operária, a australiana era a única que servia.

Tim não se lembrou de contar aos pais a respeito de ter comido o sanduíche de excremento, simplesmente por ter se esquecido totalmente do fato. Assim que terminaram de comer o peixe com batatas fritas, deixaram os pratos vazios sobre a mesa e dirigiram-se para a sala de estar.

— Ora, Es, está na hora do programa de criquet - disse Ron, mudando canal.

Sua mulher deixou escapar um suspiro.

— Gostaria que ficasse um pouco mais fora de casa, talvez assim eu conseguisse ver um filme da Joan Crawford ou outra coisa qualquer em vez de esporte, esporte e mais esporte!

— Muito bem, se Tim conseguir mais alguns biscates, meu amor, compraremos uma televisão só para você — redarguiu Ron, atirando os sapatos para longe deitando-se no sofá. — Onde está a Dawnie?

— Acho que saiu com algum rapaz.

— Qual deles, desta vez?

— Que coisa, mas como poderia saber, querido? Nunca me preocupo com ela... é muito esperta para arranjar complicações.

Ron desviou o olhar para o filho.

— Não acha uma loucura o modo como as coisas acontecem nesta vida, Es. Temos o rapaz mais bonito de Sidnei e nada tem de inteligente, então tem a Dawnie. Ali está ele, só sabe assinar o nome e contar até dez, enquanto Dawnie é tão inteligente que consegue ganhar medalhas de ouro na Universidade sem precisar estudar.

Esme apanhou o seu trabalho de tricô, olhando com tristeza na direção de Ron. Este sentiu o peso daquela expressão, pobre e velho Ron, porém, à sua maneira, tinha sido muito bom para Tim, cuidara dele sem espezinhá-lo ou tratá-lo como uma criança. Não tinha permitido que o rapaz bebesse com ele Não tinha insistido para que Tim trabalhasse como qualquer rapaz normal? Isso era muito bom pois eles já não eram mais tão jovens.

Ron já estava com quase setenta anos e Esme era apenas seis meses mais moça do que o marido. Fora por isto que Tim nascera daquele jeito, assim tinham-lhe explicado os médicos. Agora estava com vinte e cinco anos e era o primogênito. Já tinham ultrapassado há muito tempo a casa dos quarenta quando Tim nascera. Os médicos explicaram que os ovários de Esme estavam cansados e além disso não tinham nenhuma prática. Depois, um ano mais tarde nascera Dawnie, perfeitamente normal, e os médicos disseram que era assim mesmo. Quando uma mulher começava a procriar após os quarenta anos, o primogênito é quem recebia o impacto maior.

Esme olhou para o filho quando este se sentou na cadeira preferida, junto à parede mais afastada, mais próxima do aparelho de televisão. Como acontece com as crianças, ele gostava de ficar bem junto da tela. O rapaz mais bonito e adorável de Sidnei ficou sentado ali, os olhos cintilando quando aplaudia as jogadas de criquet. Esme deixou escapar um suspiro, imaginando pela milésima vez o que iria lhe acontecer quando ela e Ron estivessem mortos. Dawmii, é claro, teria que tomar conta dele. A moça tinha um orgulho muito grande do irmão, porém dentro do desenrolar normal da vida ela iria se cansar de studar um dia e resolveria largar tudo para se casar e aí, sim, será que o marido gostaria de conviver com uma pessoa igual a Tim? Esme tinha profundas Dúvidas quanto a isso. Quem ia querer um adulto com mentalidade de um menino de cinco anos se não fosse carne de sua carne?

 

Sábado amanheceu tão lindo e quente quanto o fora na sexta- feira, portanto Tim saiu rumo a Artarmon, às seis da manhã, vestindo uma camisa esporte de mangas curtas, shorts bem talhados e meias três quartos. Sua mãe pré escolhia as roupas que iria usar, preparava seu desjejum, arrumava a merenda, certificava-se de que a maleta continha roupas limpas para trabalho, e se tinha dinheiro suficiente para enfrentar qualquer contratempo que aparecesse.

Quando Tim bateu na porta de Mary Horton eram sete horas em ponto e ainda dormia profundamente. Cambaleando, de pés descalços pelo meio da casa, enfiando um robe cinzento escuro por cima do pijama de algodão branco, ela afastou algumas mechas de cabelo do rosto com impaciência.

— Deus do céu, você costuma chegar sempre às sete da manhã? — murmurou, piscando para afastar o sono.

— Parece que esta é a hora em que devo começar o trabalho — retrucou, sorrindo.

Muito bem, já que está aqui é melhor lhe mostrar o que deverá fazer — resolvéu Mary, guiando-o pelos degraus do pátio e através do gramado até alcançarem uma cabana cercada por samambaias.

Estas disfarçavam o fato de ser ali, na realidade, um depósito de equipamentos de jardinagem, ferramentas e fertilizantes. Um trator de cidade, pequenino, estava cuidadosamente guardado, coberto com um tecido à prova dágua, a fim de protegê-lo caso o telhado chegasse a ter uma goteira algum dia, o que, é claro, jamais aconteceria de vez que pertencia a Mary Horton.

— Está aqui o trator, e a cortadeira já está presa no devido lugar. Sabe como guiá-lo?

Tim retirou a capa e acariciou a superfície brilhante do veículo, com muita ternura.

Oh, que beleza!

Mary controlou a sua impaciência.

— Beleza ou não, sabe como usá-lo, Mr. Melville?

— Oh, sim! Papai sempre diz que sou muito bom com as máquinas.

— Isso não é ótimo? - observou com aspereza. - Mr. Melville, acha que precisará de mais alguma coisa?

Os olhos azuis fitaram-na com espanto.

— Por que não pára de me chamar de Mr. Melville? - indagou. Melville é o meu pai! Eu sou apenas Tim.

— Meu Deus! — pensou com seus botões — ele não passa de uma criança! - Contudo, limitou-se a dizer: - Muito bem, vou lá para dentro. Caso necessite de alguma coisa, basta bater na porta dos fundos.

— Está bem, Missus, - disse com jovialidade, sorrindo.

— Não sou uma Missus’ - retrucou. - Meu nome é Horton, Miss Horton.

— Muito bem, Miss Horton — corrigiu-se Tim, cheio de alegria e totalmente à vontade.

Assim que chegou em casa, já tinha despertado de todo e desistido de mais duas ou três horas na cama. Dali a pouco ele começaria a usar o trator e então... adeus, silêncio! A casa contava com ar condicionado central, e por isso era fresca e seca fosse qual fosse a umidade e a temperatura exterior. Quando preparou o chá com torradas resolveu que seria muito agradável comer no terraço, de onde poderia ficar de olho no novo jardineiro.

Ao carregar a pequenina bandeja para o lado de fora, Mary já usava o uniforme caseiro de fim de semana: um vestido simples em algodão escuro, tão limpo e perfeito como tudo o mais a sua volta. Os cabelos, que costumava trançar para dormir, já estavam arrumados num coque, como era seu hábito usar durante o dia. Mary nunca usava sandálias ou chinelos, mesmo quando se encontrava na casa de praia, perto de Gosford. Assim que deixava a cama, vestia-se, o que significava meias e sapatos pretos abotinados.

Quando se sentou à mesa de ferro batido branco junto à balaustrada, serviu-se de uma xícara de chá, já fazia uns vinte minutos que a ceifa funcionava lentamente no quintal. Tim trabalhava junto à extrema mais distante, onde o quintal dava para o barranco de saibro, fazendo tudo lenta e metodicamente, da mesma forma que trabalhava ao lado de Ari Markham, descendo do trator assim que concluía uma faixa de grama a fim de se certificar que a próxima ficaria bem juntinha da anterior. Mary decidiu-se em ficar ali, mastigando as torradas e saboreando o chá, sem afastar os olhos da figura ao longe. Como não era dada a auto-análise nem mesmo a pequena introspecção, não lhe ocorreu perguntar a si mesma porque o observava com tanto interesse. Era suficiente ter consciência de que ele a fascinava. Nem mesmo por um instante lhe ocorreu que aquela sensação pudesse significar uma atração.

— Hei, bom dia, Miss Horton! - disse a voz áspera de Mrs. Parker.

No momento seguinte a velha senhora deixou-se cair pesadamente na cadeira vazia.

— bom dia. Mrs. Parker. Gostaria de tomar uma xícara de chá?’- indagou, com bastante frieza.

— Obrigada, querida, isto parece-me muito bom. Não, não se levante, posso buscar outra xícara.

— Não, por favor, não faça isso. De qualquer maneira, preciso fazer mais um pouco de chá.

Quando voltou para o pátio, com um outro bule de chá e mais algumas torradas, Mrs. Parker estava sentada, com o queixo entre as mãos, observando

— Foi uma ótima idéia ter chamado o Tim para aparar o gramado. Reparei que o homem que costumava fazer isto para você não tem aparecido. É aí que tenho sorte. Um dos meus filhos sempre vem até aqui para aparar o meu gramado, mas você não tem nenhum, não é mesmo?

— Muito bem, fiz o que me pediu ontem e estive no seu quintal para verificar se tudo estava em ordem no que diz respeito aos construtores e à desordem que fizeram. Foi então que encontrei o Tim, que, ao que parece, foi encarregado de fazer toda a limpeza sozinho. Creio que ficou muito satisfeito com a possibilidade de ganhar algum dinheiro extra.

Mrs. Parker não deu maior importância às últimas palavras de Mary.

— Isso é típico de sujeitos como eles! — esbravejou. — Não se contentando em tornar a vida do pobrezinho uma miséria durante o dia, trataram de ir até o Pub e deixar o trabalho pior entregue a ele! Tiveram a coragem de me dizer que todos voltariam para limpar o quintal! Seria uma boa idéia deduzir algum dinheiro da conta de Mr. Harry Markham!

Mary largou a xícara de chá e olhou para Mrs. Parker, intrigada.

— Qual o motivo de tanta indignação, Mrs. Parker?

Os amores perfeitos roxos e amarelos sacudiram-se quando Mrs. Parker inflou o peito imenso.

— Ora, você também não ficaria indignada? Ah, esqueci, não estive com você ontem à noite, portanto não pude lhe contar o que os miseráveis canalhas fizeram com esse pobrezinho. Às vezes, juro, seria capaz de matar cada homem que nascesse! Ao que parece eles não demonstram um pouquinho de simpatia ou compreensão para com os pobres diabos, a menos, é claro, que sejam uns bêbedos ou desencantados iguais a eles. Porém, por alguém como ele que trabalha decentemente durante o dia e procura comportar-se, eles não sentem a mínima pena.

Ele não passa de um palhaço para eles, seu bode expiatório, e o pobrezinho não tem inteligência suficiente para notá-lo! Que culpa tem ele de ter nascido assim? Isto é uma vergonha, não acha? Imagine um rapaz com esta aparência não ter inteligência! Tenho vontade de chorar! Ora, de qualquer maneira, espere até eu lhe contar o que eles lhe fizeram, ontem de manhã, na hora da merenda...

A voz anasalada e vulgar de Mrs. Parker piorou ainda mais enquanto contava para Mary a sua história horrível. Mas esta não lhe prestava muita atenção, os olhos mantinham-se presos na cabeça dourada e inclinada no fim do seu quintal.

Na noite anterior, antes de ir para a cama, tinha remexido nas prateleiras da biblioteca, procurando um rosto que se parecesse com o dele. Botticelli? - perguntou aos seus botões, contudo ao encontrar algumas de suas representações num livro liberou logo aquele artista. Aqueles rostos eram suaves e efeminados demais, muito ardilosos e felinos. Afinal, desistira de procurar totalmente insatisfeita. Somente nas antigas estátuas gregas e romanas encontrara algo de Tim, talvez porque o seu tipo de beleza ficasse melhor reproduzido através de uma pedra do que de uma tela. Ele era uma criatura tridimensional. E ela desejara ardentemente que nas suas mãos, nada talentosas, tivesse habilidade bastante para imortalizá-lo.

Mary se deu conta de que o seu terrível desapontamento era chocante, sentiu vomtade de chorar: a presença de Mrs. Parker tinha desaparecido no fundo de seus pensamentos. Era um tipo de anti-clímax irônico descobrir agora que a boca trágica e melancólica de Tim, seus olhos sonhadores, introspectivos, que não levavam a nada, que a sua energia tinha terminado muito antes de poder se transformar numa tragédia ou perda.

Ele não era melhor do que um cão, um gato, que se tem por serem agradáveis aos olhos, fiéis e amorosos sem limitações. Porém, não podiam pensar, jamais poderiam dar uma resposta inteligente e conseguir uma resposta brilhante de uma outra inteligência, tudo quanto o animal fazia era ficar sentado, sorrindo e amando. O mesmo acontecia com Tim, Tim o tolo. Após ter comido excremento, não tinha vomitado, como se o fato não tivesse a mínima importância; limitara-se a chorar, um cão teria ganido, e voltara a sorrir novamente diante da perspectiva de ganhar alguma coisa gostosa para comer.

Sem filhos, sem amor, destituída de qualquer influência humanizada, Mary Horton não contava com nenhuma base emocional para avaliar este novo e assustador conceito de um Tim sem discernimento. Retardada emocionalmente, como ele o era intelectualmente, ignorava que, apesar de tudo, podia ser amado exatamente devido a falta de desenvolvimento mental, pensado nele da mesma maneira que Sócrates deve tê-lo feito com relação Alcebíades, o velho, o repulsivo filósofo defrontando-se com um jovem de uma inigualável beleza física e intelectual. Tinha imaginado apresentar de Beethovem e Proust e ele, desenvolvendo sua inteligência insignificant que captasse a mensagem da música, da literatura, da arte, até que fosse tão belo interiormente quanto o era exteriormente. Mas ele era um tolo, um pobre diabo, um retardado.

Todas duas davam forma aos próprios pensamentos de um modo estranhamente pungente, recorrendo à dureza simples tão típica dos australianos que costumam comparar a inteligência ao dinheiro e expressam uma em torno do outro. Tim, que não possuía grandes dotes intelectuais, ”não valia um soberano”, estabelecendo elas assim, um valor para seus poderes intelectuais expresso em partes de dólar, ou no vernáculo soberano. Ele podia valer tanto quanto noventa centavos ou tão pouco quanto nove centavos e não valer um soberano. Mrs. Parker não percebeu que só tinha contado com um pouco de atenção por parte de Mary e continuou a tagarelar com entusiasmo sobre a insensibilidade da maioria dos homens, bebeu diversas xícaras de chá e respondia às próprias perguntas quando a outra não o fazia. Finalmente, pôs-se de pé e se despediu.

Até logo, minha querida, obrigada pela xícara de chá. Caso não tenha na geladeira alguma coisa que possa agradar ao Tim, mande-o até a minha casa que darei um jeito.

Mary respondeu de maneira ausente. A visita desapareceu degraus abaixo, enquanto ela voltava a contemplar Tim. Lançando uma olhadela para o relógio, viu que já eram quase nove horas e recordou-se que os operários gostavam de tomar o chá matinal naquele horário. Entrou, fez um bule de chá, descongelou um bolo de chocolate e cobriu-o com creme chantilly recém-preparado.

— Tim! - chamou, colocando a bandeja sobre a mesa, embaixo das videiras. O sol começava a bater na beirada do telhado e a mesa, próxima aos degraus, começava a ficar quente demais para ser confortável.

Tim levantou o olhar, agitou a mão na sua direção e parou, imediatamente, o trator para poder escutar o que ela lhe dizia.

— Tim, venha até aqui para tomar uma xícara de chá!

O rosto ficou iluminado por uma ansiedade infantil; saltou do trator, subiu o o aclive do quintal, entrou na pequenina cabana coberta pelas samambaias, reapareceu com um saco de papel pardo, subindo os degraus de dois em dois.

Puxa, Miss Horton, obrigado por ter me chamado, não tinha percebido que já era hora - disse com alegria, sentando-se na cadeira que ela lhe indicara, esperando, docemente, até que Mary lhe dissesse que podia começar a comer.

— sabe ver as horas, Tim? - indagou com delicadeza, surpresa por poder perguntar com delicadeza.

— Não, na verdade, não. Sei mais ou menos quando é hora de voltar para casa, isto é, quando o ponteiro grande está lá em cima e o pequenino no três horas. Mas não tenho um relógio, porque meu pai diz que vou acabar perdendo. Não me incomodo. Alguém sempre me diz que horas são, como na hora de fazer o chá para a merenda ou no intervalo para o almoço ou para voltar para casa. Não valho um soberano, mas todos sabem disto, portanto não tem importância.

Não, acho que não importa mesmo - replicou ela com tristeza. - Coma, o bolo é só para você.

— Ora, que bom! Adoro bolo de chocolate, principalmente com uma porção de creme, como este aqui. Obrigado, Miss Horton!

— Como gosta de tomar o chá, Tim?

— Com leite e com uma porção de açúcar.

— Uma porção de açúcar? Mas, qual a quantidade?

Ele olhou para ela, franziu as sobrancelhas, o rosto todo sujo de creme.

— Nossa, não me lembro. Eu ponho açúcar até que o chá transborde no pires... aí eu sei que está bom.

— Tim, você foi à escola? — quis saber, voltando a se interessar por ele.

— Apenas por algum tempo. Mas não conseguia aprender nada, por isso não me obrigaram a continuar. Eu ficava em casa e tomava conta da mamãe.

— Mas você entende o que lhe dizem pois lidou com o trator totalmente só.

— Algumas coisas são realmente fáceis, mas ler e escrever é difícil Miss Horton.

Profundamente surpresa consigo mesma, afagou a cabeça de Tim enquanto mexia o chá para ele.

— Ora, Tim, isso não importa.

— É isso que minha mãe diz.

Terminou comendo todo o bolo de chocolate, depois lembrou-se que tinha trazido um sanduíche de casa e comeu-o também, bebendo três xícaras de chá para acompanhar a merenda.

— Verdade, Miss Horton, isso foi um jantar! — soltou um suspiro, sorriu para ela cheio de contentamento.

— Meu nome é Mary. É muito mais fácil de dizer do que Miss Horton, não acha? Por que não me chama de Mary?

Ele olhou-a indeciso.

— Tem certeza que é direito? O pai diz que não devo chamar as pessoas mais velhas de outro modo que não seja Mister, Missus ou Miss.

— Às vezes é admissível, como por exemplo entre amigos.

— Como?

Ela tornou a tentar, retirando, mentalmente, todas as palavras polissílabas da frase.

— Não sou tão velha assim, Tim, são os cabelos brancos que me fazem parecer mais velha. Acho que seu pai não se importaria se me chamasse de Mary.

— Mary, quer dizer que seu cabelo branco não quer dizer que é velha? Sempre achei que era assim. O cabelo do pai é branco e o da mamãe também, é que são velhos.

Ele tem apenas vinte e cinco anos, pensou, logo o pai e a mãe são um pouco mais velhos do que eu. Contudo, disse alto:

— Bem, sou mais moça do que eles... logo não sou tão velha.

Tim levantou-se.

— Está na hora de voltar para o trabalho. Você tem um gramado grande, Mary. Espero terminar em tempo.

— Ora, se não conseguir, existem muitos outros dias. Poderá vir depois, numa hora qualquer, e terminar, caso prefira assim...

Tim refletiu sobre aquilo, avaliando o problema com seriedade.

— Acho que gostaria de voltar, desde que meu pai diga que posso

Sorriu para ela.

— Gosto de você, Mary, gosto mais de você do que de Mick e Harry. Jim, Bill, Curly e Dave. Gosto mais de você do que de qualquer outra pessoa. A não ser meu pai e minha mãe e a minha Dawnie. Você é bonita, tem uns cabelos brancos tão lindos.

Mary lutou com uma centena de emoções indefinidas que a assediavam por todos os lados e conseguiu dar um jeito de sorrir:

— Não pense nisso — disse negligentemente, e pulou degraus abaixo, agitando as mãos ao lado do rosto e com o traseiro arrebitado.

— Esta foi a minha melhor imitação de um coelho! — gritou lá do gramado.

— Tim, você esteve muito bem, assim que começou a saltar eu soube que era um coelho - replicou Mary.

Juntou as coisas do chá e carregou-as para dentro

Achou tremendamente difícil modificar a conversa até atingir um nível infantil, pois Mary Horton jamais tivera a ver com crianças desde o tempo em que deixara de ser uma garotinha e, na realidade, nunca fora jovem. Porém, possuía suficiente sensibilidade para saber que Tim podia se magoar com facilidade, que precisava tomar cuidado com as coisas que lhe diria, controlar seu temperamento e irritação; se o deixasse perceber a mordacidade de seu modo de falar ele poderia descobrir o teor daquilo que expressava e até mesmo o verdadeiro sentido de suas palavras.

Recordando-se da maneira impertinente como se dirigira a ele na véspera, quando então o julgara, deliberadamente, obtuso, sentiu-se mortificada. Pobre Tim, não tinha a menor consciência das nuances e duplos sentidos do modo de falar dos adultos e como era vulnerável. Ele gostava dela. Achava-a bonita devido aos seus cabelos brancos, semelhantes aos da mãe e do pai.

Como podia a sua boca ter uma expressão tão triste quando sabia tão pouco e era tão cheio de limitações?

Mary tirou o carro da garagem e foi até ao supermercado para fazer compras antes do almoço, de vez que nada tinha em casa que pudesse lhe agradar. O bolo de chocolate era a sua reserva de emergência para um caso de necessidade, o creme de leite um engano fortuito do leiteiro. Tim trouxera o almoço, sabia disso, porém, quem sabe não o bastante, ou talvez ficasse encantado com a possibilidade de comer hamburguers ou cachorros quentes, coisas de festas infantis.

— Já foi pescar alguma vez, Tim? — indagou Mary durante o almoço.

— Ah, sim, gosto de pescar — replicou ele, começando a comer o terceiro cachorro quente. — Às vezes o pai me leva para pescar, quando não está muito ocupado.

— E ele é muito ocupado?

— Bem, vai às corridas, aos jogos de criquet, ao futebol e coisas deste tipo. Não vou com ele porque fico enjoado no meio da multidão, o barulho e toda aquela gente faz a minha cabeça doer e meu estômago fica esquisito.

— Pois então, preciso levá-lo para pescar algum dia - disse Mary, e nada mais acrescentou naquele instante.

No meio da tarde, ele terminara o quintal e veio indagar a respeito da frente. Mary olhou para o relógio.

— Creio que não vamos nos preocupar com a frente, hoje, Tim, já está quase na hora de você voltar para casa. Por que não volta no próximo sábado para cortar o gramado da frente... caso seu pai o permita?

Tim sacudiu a cabeça com alegria.

— Está bem, Mary.

— Vá apanhar a maleta na cabana, Tim. Você pode trocar de roupa no banheiro, pois assim poderá ver se está tudo direitinho.

O interior da casa, tão simples e austero, deixou-o fascinado. Cruzou o living pintado em cinza, de pés descalços, mergulhando os dedos no carpete alto de lã com uma expressão de quase êxtase estampada no rosto e roçando a mão pelo estofado de veludo cinza pérola.

— Puxa, Mary, gosto da sua casa! - exclamou. - Tudo parece tão macio e é tão fresca!

— Venha comigo para ver a biblioteca - disse tão ansiosa para lhe mostrar o seu orgulho e alegria, que segurou a mão dele.

Contudo, a biblioteca não o impressionou de nenhuma maneira, deixou-o assustado e com vontade de chorar.

— Quanto livro! — exclamou horrorizado, e não quis ficar ali nem mesmo quando percebeu que a sua reação a tinha desapontado.

Foram necessários muitos minutos para que Mary conseguisse controlar o estranho pavor que demonstrara diante da biblioteca e tomou cuidado para não lhe mostrar mais nada que estivesse relacionado com intelectualidade.

Assim que se recobrou do encanto inicial e da perturbação, Tim demonstrou possuir uma faculdade crítica e comentou o fato dela não ter nada colorido em casa.

— Parece encantadora, Mary, mas é toda da mesma cor! — reclamou. Por que que não tem nada vermelho? Adoro o vermelho!

— Pode me dizer que cor é esta? — perguntou erguendo um marcador de livros em seda vermelha.

— Vermelha, é claro! — respondeu com desdém.

— Pois então, verei o que posso fazer - prometeu Mary. Entregou-lhe um envelope com trinta dólares, um pagamento bastante superior àquele que um operário poderia exigir em Sidnei.

— Dentro deste envelope, há um pedaço de papel com o meu telefone e endereço — explicou-lhe — quero que o entregue ao seu pai assim que chegar em casa, para que ele possa saber onde moro e como falar comigo. Muito bem, a gora não vá se esquecer de entregá-lo, está bem?

Tim fitou-a, ofendido.

— Nunca esqueço de nada quando as pessoas recomendam - replicou.

— Desculpe-me Tim, não queria magoá-lo - disse Mary Horton, que jamais se preocupou com o fato de ter magoado alguém pelo que tivese dito.

Não que fosse costume seu ofender os outros; contudo, Mary Horton evitava dizer coisas ofensivas por uma questão de tato, de diplomacia e de boa educação, e por não querer provocar aborrecimentos a qualquer outro ser humano. Após Tim ter recusado o seu oferecimento de levá-lo de carro até a estação de trem, Mary ficou nos degraus da frente da casa de onde lhe acenou um adeus. Assim que o rapaz tinha se afastado alguns metros, dirigiu-se até o portão e inclinou-se para ficar observando-o até desaparecer, ao dobrar a esquina.

Para qualquer outro morador da rua que o estivesse observando, Tim teria a impressão de um jovem surpreendentemente bonito, perambulando pela rua no auge da saúde e da beleza, tendo o mundo todo a seus pés. Mary sorriu pensando que aquilo mais se parecia com alguma pilhéria divina, o tipo piada que os imortais gregos gostariam de fazer com a sua criação, o homem, tão logo este tivesse a presunção ou se esquecesse de que lhes pertencia. Que gargalhada colossal Tim Melville deve ter provocado!

 

Ron, como sempre, encontrava-se no Seaside, porém muito cedo para um sábado. Tinha enchido sua geladeira portátil com cerveja efora ao jogo de criquet vestindo apenas um short, sandálias de couro e uma camisa totalmente desabotoada para aproveitar a brisa. Contudo, Curly e Dave não tinham aparecido e por um motivo ou por outro, o prazer de ficar deitado sobre a colina coberta de grama do campo de criquet e banhado pelo sol não era o mesmo quando se estava sozinho.

Ficou por lá durante algumas horas, mas como a partida continuava em ritmo arrastado e o cavalo em que apostara, vick Farm, tinha chegado em último lugar, por volta das três arrumou a cesta de cerveja, pegou o rádio e dirigiu-se para o Seaside com o instinto infalível de um cão de caça. Jamais lhe teria passado pela cabeça voltar para casa. Nos sábados à tarde, Esme ia sempre jogar tênis com as amigas, que Ron apelidara de Clube do Sucesso e das Risadinhas. E com Tim trabalhando, a casa estaria vazia. Dawmii estaria em algum lugar divertindo-se com um de seus misteriosos namorados

Quando Tim apareceu, logo depois das quatro, Ron ficou muito satisfeito ao vê-lo e pagou-lhe uma tulipa de chope

Como foram as coisas, companheiro? - perguntou ao filho enquanto ambos apoiavam as costas contra uma pilastra e olhavam o mar.

— Um barato, pai. Mary é realmente uma senhora maravilhosa.

— Mary?

— Ron examinou o rosto de Tim, assombrado e preocupado.

— Miss Horton Mandoo que a chamasse de Mary. Fiquei um pouco preocupado, mas ela disse que não tinha nada de mal. Não faz mal, não é, pai? - indagou cheio de ansiedade, percebendo algo fora do comum na reação do pai.

— Sei lá, companheiro. Que tal lhe pareceu essa Miss Mary Horton?

— Ela é um amor, pai. Deu-me uma quantidade de coisas gostosas para comer e mostrou-me toda a casa. Pai, tem ar condicionado! Os móveis são umas belezas, e o carpete também, mas tudo é cinzento, então perguntei a ela porque não tinha nada vermelho e respondeu que iria ver o que fazer sobre isso.

— Ela tocou em você?

Tim olhou para Ron cheio de espanto.

— Tocou em mim? Nossa, sei lá! Acho que sim. Segurou a minha mão quando me mostrou os livros.

Tim assumiu uma expressão pesarosa.

— Gostei dos livros dela, tem uma quantidade enorme deles.

— Ela é bonitinha, companheiro?

— Puxa, é sim! Tem a cabeça toda branca, uma beleza, Pai, igualzinha à da mamãe, só que é mais branca ainda. Foi por isso que não sabia se era certo eu chamá-la de Mary, porque você e mamãe sempre me disseram que não é educado chamar as pessoas de idade pelo primeiro nome.

Ron relaxou.

Oh! - Deu um tapinha no braço do filho, brincando com ele.

— É verdade, você deixou-me preocupado por um instante, fique certo. Ela é uma senhora, não é verdade?

— É.

— Ela lhe pagou conforme prometera?

— Pagou, está aqui, dentro deste envelope. O nome e o endereço dela também estão aí. Mandou que lhe entregasse pois você poderia qerer conversar com ela. Pai, por que você poderia desejar falar com ela? Não entendo porque iria querer falar com ela.

Ron pegou o envelope.

— Não quero falar com ela, companheiro. Você acabou o trabalho?

— Não, o gramado dela é grande demais. Se você não se importar, ela quer que eu volte no próximo sábado para aparar o jardim da frente.

No envelope havia três notas de dez dólares, recém saídas da impressão. Ron ficou olhando-as, estarrecido, bem como para a caligrafia clara, na qual se percebia a autoridade e educação de Mary Horton.

As mocinhas irresponsáveis e as donas de casa solitárias não tinham uma letra igual àquela, bem cono Trinta dólares em troco de um dia de jardinagem! Colocou as notas na carteira e deu uns tapinhas nas costas do filho.

— Trabalhou bem, companheiro, e se quiser poderá voltar no próximo sábado e terminar de aparar o gramado. Na realidade, pelo que lhe pagou, poderá trabalhar para ela todas as vezes que lhe pedir.

— Puxa, pai, obrigado! - Tim deslocou o copo vazio de um lado para outro, de maneira sugestiva. — Posso tomar outra cerveja?

— Tim, será que nunca vai aprender a beber devagar?

O rosto do rapaz adquiriu uma expressão infeliz.

— Nossa! Tornei a esquecer! Pai, pretendia beber bem devagarinho, estava tão gostosa que esqueci.

Ron arrependeu-se logo da sua falta de paciência.

— Não faz mal, companheiro, não se preocupe com isso. Vá até lá dentro e pede a Florie outra tulipa.

A cerveja extremamente forte como era a australiana, parecia não produzir o menor efeito em Tim. Alguns sujeitos ficavam logo altos só ao sentir o seu aroma. Ron ficava intrigado, mas Tim conseguia beber muito mais do que ele e ainda tinha condições de carregá-lo até em casa, tão pouco era o efeito produzido nele.

— Quem é essa Mary Horton? - perguntou Es, naquela noite, depois que Tim fora se deitar.

— Alguma velha senhora lá para os lados de Artarmon.

— Tim está bastante impressionado com ela, não acha?

Ron lembrou-se das trinta pratas na carteira e olhou para a mulher com delicadeza.

— Creio que sim. Ela é muito boa para o Tim e trabalhando aos sábados no seu jardim ele ficará longe das complicações.

— Deixa-o com liberdade para perambular pelos pubs e pistas de cavalos com seus amigos, é isto o que está querendo dizer. — Concluiu Es com a habilidade adquirida há muitos anos.

— Meu Deus do céu, Es, que coisa grosseira para dizer a um homem!

— Ora! - exclamou, largando o tricô. - A verdade machuca, não é? Ela pagou pelo trabalho, não?

Alguns trocados.

Os quais você embolsou, é claro.

Ora, não foi tanto assim. O que espera que se pague por um corte de grama, ainda por cima feito à máquina, sua velha desconfiada? Nenhuma fortuna, esta é a verdade!

Desde que eu tenha o suficiente para a nossa comida, pouco se me dá o quanto ela pagou ao Tim, meu amigo! - Levantou-se, espreguiçando-se.

Querido, quer uma xícara de chá?

Ah, isso seria muito bom. Onde está a Dawnie?

Mas que inferno... como vou saber? Está com vinte e quatro anos e é dona do próprio nariz.

Desde que não seja a dona de alguém! Es deu de ombros.

A juventude não pensa mais da maneira como nós pensávamos, meu amor, e não se pode fazer nada quanto a isso. Além do mais, tem coragem de perguntar a Dawnie por onde andou e se está fazendo amor com algum sujeito?

seguiu a mulher até a cozinha, dando palmadinhas carinhosas no seu traseiro.

— Claro que não! Ela olharia para mim, por cima daquele nariz comprido, diria uma quantidade de palavras que eu não iria mesmo entender e acabaria me sentindo o próprio idiota.

Gostaria que Deus tivesse dividido melhor a inteligência entre nossas duas crianças, Ron meu querido. — Es soltou um suspiro, enquanto colocava a chaleira sobre o fogo para ferver. - Se tivesse dividido ao meio. .. ambos seriam perfeitos.

— Águas passadas não movem moinho, minha garota. Tem bolo?

— de frutas ou de sementes aromáticas?

— de sementes aromáticas, meu amor.

Sentaram-se à mesa da cozinha, um em frente ao outro e devoraram metade do bolo de sementes aromáticas com seis xícaras de chá.

 

A auto-disciplina fez com que Mary Horton realizasse sua tarefa na Constable Steel Mining, como se Tim Melville não tivesse entrado na sua vida. Tirava as roupas antes de usar o banheiro, como era de seu hábito, atendia a Archie Johnson como sempre, reclamava das dezessete datilógrafas, contínuos e vendedores. Contudo, em casa, a cada noite passou a achar os livros desinteressantes e passava o tempo na cozinha, lendo livros de receitas, experimentando bolos, caldas e pudins.

Os comentários criteriosos de Emily Parker tinham-lhe dado uma melhor idéia das preferências de Tim quanto aos doces. Desejava ter uma quantidade variada deles no sábado para satisfazê-lo.

No horário de almoço, foi até um decorador de interiores e comprou uma mesa de café, cara, em vidro vermelho, em seguida descobriu um canapé, em veludo cor de rubi, que combinava na perfeição com a mesa. Logo no início, aquele toque de tonalidade escura e forte perturbou-a, porém, à medida que foi se acostumando, não pôde deixar de reconhecer que a sua sala de estar ficara com um aspecto muito melhor.

Inesperadamente, as paredes cinza-pérola e nuas, tornaram-se mais acolhedoras, e ficou imaginando se Tim, como tantas pessoas espontâneas, não tinha uma percepção instintiva com relação a arte. Quem sabe algum dia não poderia levá-lo para visitar algumas galerias de arte para ver o que os olhos dele descobririam.

Já sexta-feira foi se deitar muito tarde, esperando a qualquer minuto um telefonema do pai de Tim para informá-la que não queria que o filho fizesse biscates de jardinagem durante os preciosos fins de semana. Porém, o telefone não tocou e, precisamente, às sete da manhã do dia seguinte, despertou do sono profundo devido as batidas de Tim na porta dos fundos. Desta feita, introduziu-o logo na casa e perguntou-lhe se gostaria de tomar uma xícara de chá enquanto ela se vestia.

— Não, muito obrigado, estou muito bem - respondeu o rapaz, os olhos azuis cintilando.

— Pois bem, então pode utilizar o banheirinho que fica ao lado da lavanderia para se trocar enquanto me visto. Quero lhe mostrar o que deve fazer no jardim da frente.

Pouco depois, estava de volta à cozinha, pisando de leve, como sempre. Tim não percebeu quando ela entrou, por isso Mary deixou-se ficar, em silêncio, junto à porta, observando-o, tocada mais uma vez pela sua beleza total. Que coisa terrível, que injustiça, pensava ela, ver um invólucro tão maravilhoso abrigando um morador tão sem valor; em seguida, sentiu vergonha de si mesma. Talvez fosse essa, exatamente, a raison d’être* da sua beleza, de vez que a evolução rumo ao pecado e à vergonha tinham sido a barreira para aquela a inocência infantil. Se Tim tivesse se desenvolvido dentro dos padrões normais talvez tivesse um aspecto bem diferente, um verdadeiro Botticelli. Sorrindo disfarçadamente, com um brilho secreto por trás daqueles límpidos olhos azuis. Tim não pertencia, de modo nenhum, à classe adulta da raça humana, a não ser no que dizia respeito ao aspecto exterior.

— Venha, Tim, vou lhe mostrar o que deve ser feito lá na frente — disse finalmente, quebrando o encantamento.

As cigarras soltavam seus gritos agudos e cantavam em cada arbusto e árvore. Mary cobriu os ouvidos com as mãos, fez uma careta para Tim e, em seguida, dirigiu-se para a única arma de que dispunha... a mangueira.

— Pelo que me lembro, este foi o pior ano que tivemos com relação às cigarras - disse, assim que a algazarra tinha diminuído um pouco e os pesados rododendros lançavam grossas gotas de água sobre a alameda.

— Breeeek! — cantou o baixo profundo, o chefe do coro, depois que todos os outros tinham silenciado.

— Lá está ele, o verme velho!

Mary rumou para o rododendro mais próximo à porta da frente, afastando os galhos encharcados e examinando minuciosamente a parte interior, semelhante a uma catedral

— Não consigo, nunca, encontrá-lo - explicou acocorando-se sobre os calcanhares e virando a cabeça para sorrir para Tim, que permanecia atrás dela.

— Você o quer? - indagou o rapaz, muito sério.

— Mas claro que sim! É ele quem começa tudo, quem faz as outras cantarem... Sem ele parecem mudas

- Vou apanhá-lo para você.

Enfiou o torso nu no meio das folhas e galhos com a maior facilidade, fazendo desaparecer a parte de cima da sua cintura. Não usava botas nem meias naquela manhã, de vez que não havia concreto para fustigar e machucar a pele e o húmus úmido da grama grudou nas suas pernas.

— Breeeeek! - cantou a cigarra, já o suficiente seca para começar a ensaiar.

— Peguei-a! - exclamou Tim, saindo do arbusto, tendo na mão direita cerrada alguma coisa.

 

(* N. da T Raison d’être — em* francês no original. Razão de ser.)

 

Na verdade, Mary nunca vira nada mais além do que seu corpo amarronzado no meio da grama e portanto aproximou-se um tanto amedrontada, pois como a maioria das mulheres tinha medo de aranhas, bezouros e todos os insetos rastejantes, como também de qualquer coisa de sangue frio.

— Aqui está ela, dê uma olhada! - Exclamou Tim, orgulhoso, abrindo os dedos com cuidado até que a cigarra ficou completamente à vista, apenas presa pelo indicador esquerdo e o polegar de Tim que imobilizavam as pontas de suas asas.

— Ui! - Mary assustou-se, recuando sem olhar realmente.

— Ah, não tenha medo, Mary - implorou Tim, erguendo os olhos para ela e acariciando o inseto - Olhe só, ele não é um amor? Todo verde É tão lindo quanto uma borboleta!

A cabeça dourada estava inclinada na direção do inseto. Mary baixou os olhos observando os dois com uma pena inesperada e incontrolável. Tim parecia manter uma espécie de relacionamento com o pequenino animal, pois este estava imóvel sobre a palma de sua mão sem parecer em pânico ou com medo. Na verdade, era linda, assim que se conseguia esquecer suas antenas marcianas e a carapaça de lagosta.

Possuía um corpo gordo, verde brilhante, com cerca de dois centímetros de comprimento, com reflexos de tonalidade dourada e seus olhos cintilavam e faiscavam como dois topázios imensos. Por cima das costas, as asas, delicadas e transparentes, continuavam fechadas, enervuradas como uma folha, de um dourado vivo, amarelo e cintilante com todas as cores do arco-íris. E acima dela, estava Tim, tão estranho e maravilhoso quanto ela, tão vivo e esplendoroso.

— Você não quer que eu a mate, não é mesmo? - implorou Tim, levantando os olhos na sua direção, tomado de uma tristeza súbita.

— Não - replicou Mary, virando-se para se afastar. - Tim, torne a colocála no arbusto.

Perto da hora do almoço, ele já tinha terminado o gramado da frente. Mary serviu-lhe dois hamburguers com uma porção de batatas fritas, em seguida encheu o prato com um pudim quentinho, mergulhado num creme de banana.

— Mary, acho que já terminei - disse Tim ao beber a terceira xícara de chá. - Puxa, estou com pena que o trabalho não fosse maior. - Seus olhos inensos observavam-na vagamente. - Gosto de você, Mary - começou a dizer. - Gosto mais de você do que de Mick, ou de Harry, de Jim ou Bill, de vurly ou de Dave. Gosto mais de você do que qualquer outra pessoa, exceto meu Pai, rminha mãe e Dawmei.

Mary afagou a sua mão e sorriu com ternura.

É muita gentileza de sua parte dizer algo assim, Tim, contudo, não creio que seja realmente verdade, não me conhece o suficiente.

— Não tem mais grama para cortar - soltou um suspiro, ignorando a sua recusa em aceitar o elogio.

— Agrama torna a crescer.

— Hein? - Este pequenino som interrogativo era o seu sinal para ir devagar, significava que alguma coisa fora feita ou dita além da sua capacidade de compreensão.

— Você é capaz de suprimir as ervas daninhas dos canteiros tão bem quanto apara a grama?

— Acho que sim. Faço sempre isso para o pai

— Pois muito bem, gostaria de vir até aqui todos os sábados e tratar do jardim, isto é, aparar a grama quando se fizer necessário, replantar mudas e arrancar as ervas daninhas dos canteiros das flores, regar os arbustos, podar a cerca viva que ladeia as alamedas e fertilizar a terra?

Tim agarrou a sua mão, sacudiu-a e sorrindo com naturalidade disse

— Oh, Mary, gosto mesmo de você! Virei todos os sábados, cuidarei do seu jardim! Prometo que tratarei do seu jardim’

Naquela tarde, quando ele se foi, havia dentro do envelope que Mary entregara, outros trinta dólares

 

Quando Mary Horton telefonou para o pai de Tim naquela noite de quimta-feira, já tinha umas cinco semanas que o rapaz ia a sua casa. Ron atendeu ao telefone

— Quem fala? — perguntou

— Boa noite Mr Melville. Quem está falando é Mary Horton, amiga de sábado de Tim

Ron ficou logo atento e fez sinal para que Es se aproximasse a fimn de ouvir também

— É um prazer ouvi-la, Miss Horton. Como tem se saído o Tin? Tudo certo?

— Mr Melville, é um prazer tê-lo por aqui. Gosto muito de estar com ele.

Ron ficou satisfeito

— Pelas coisas que conta por aqui, parece-me que ele devora tudo o que ha por aí, miss Horton

— Não, de forma alguma. É um prazer vê-lo comer, Mr Melville

— Deseja alguma coisa, Miss Horton? Tim não deve ir aí esta semana?

— Bem, deve e não deve, Mr Melville. O problema é que preciso ir até Gosford, este fim de semana, para ver como estão as coisas na minha casa de verão. Infelizmente abandonei-a um pouco, até aqui, preocupada com o jardim aqui de casa. Pois bem, estive pensando se o senhor teria alguma objeção para fazer se eu levar o Tim comigo, para dar uma mãozinha. Precisarei de alguém Para me ajudar por lá, e Tim é formidável. Naquelas imediações tudo é tranqüilo e empenho minha palavra de que não terá contato com estranhos, trabalhará demais, ou coisas assim. Tim disse me que gostava muito de pescar e como o chalé está situado num local muito favorável a pescaria, julguei que talvez... talvez ele se divertisse. Tenho a impressão de que ele gosta de vir a minha casa e quanto a mim, não ha dúvida, gosto muito da comppanhia dele.

Ron franziu as sobrancelhas na direção da mulher, que fazendo sinal afirmativo, pegou o fone.

— Alô, Miss Horton, quem está falando é a mãe de Tim... Sim obrigada, como vai a senhora?. . . Ah, é um prazer. . . Miss Horton, é muita gentileza de sua parte ter pensado em convidar o Tim, sabe. . . não vejo porque ele não devesse ir com a senhora, acredito que a mudança lhe fará bem. . . Sim, ele gosta muito da senhora . . Espere um instante, vou passar o telefone para o meu marido, Miss Horton, e, muito obrigada.

— Miss Horton? - disse Ron, pegando o aparelho. - A senhora escutou o que disse a minha velha, ela acha que está bem e se está bem para ela, não pode deixar de estar para mim também. . . ah, ah, Sim, tudo bem! Está certo, mandarei que ele prepare uma maleta e deverá chegar a volta das sete horas de sábado... Muito bem, Miss Horton, muito... muito obrigado. . . Até logo e até mais ver.

Mary tinha planejado a viagem de sessenta milhas como se fosse um piquenique e tinha enchido a parte de trás do carro com comida, jogos e coisas triviais que Mary julgava não ter na casa da praia. Tim chegou pontualmente às sete da manhã. O dia estava esplendoroso, límpido, o segundo fim-de-semana que não ameaçava chover e Mary levou Tim, imediatamente, para a garagem.

— Vamos Tim, suba e fique à vontade. Está bem?

— Estou ótimo - retrucou o rapaz.

— A minha casa não fica propriamente em Gosford - explicou, à medida que o carro rumava para a auto-estrada do Pacífico, na direção de Newcastle. - Como vivo e trabalho na cidade, não quis comprar o chalé no meio de uma outra cidade populosa, por isto comprei a propriedade bem afastada, em Haekesbury, perto da Baía Broken. Teremos que passar por Gosford pois a única estrada que vai até a minha casa começa lá, entendeu?

— Nossa, como Gosford cresceu! Lembro-me de quando não tinha nada mais além do pub, uma garagem, dois homens e um cachorro; atualmente está repleto de residentes e veranistas... deve haver, no mínimo, umas sessenta mil pessoas, creio...

Mary continuou a falar, perturbada, olhando para o rapaz, subitamente embaraçada. Ali estava ela, tentando manter uma conversa com Tim, procurando se parecer ligeiramente com a idéia que fazia da mãe dele. Por sua vez, Tim esforçava-se para ser um bom ouvinte, afastando o olhar fascinado da paisagem, de vez em quando, para fixar os olhos brilhantes e adoráveis no perfil de Mary.

— Pobre Tim - comentou Mary. - Não ligue para mim, acalme-se e veja a paisagem através da janela.

Por muito tempo, depois disso, fez-se silêncio. Tim, não havia dúvidas, estava gostando da viagem, virado de lado, o nariz quase encostado na janela, sem perder nada, fez com que Mary ficasse imaginando se haveria alguma alteração no seu modo de vida e com que freqüência era tirado daquilo que devia ser uma existência muito monótona.

— O seu pai tem carro, Tim?

Desta feita, ele não se deu ao trabalho de virar o rosto para ela, continuando a olhar através da janela.

— Não... ele costuma dizer que é perda de tempo e de dinheiro na cidade. Diz que é muito mais saudável caminhar e muito menos complicado pegar um ônibus quando precisa ir de condução a algum lugar.

— Ninguém o leva, às vezes, para dar um passeio de carro?

— Muito raramente.. fico enjoado. Mary fitou-o, assustada.

— Como está se sentindo agora? Está enjoado?

— Não, estou me sentindo bem. Este carro não balança para cima e para baixo como a maioria dos carros, e, de qualquer maneira, estou na frente e não lá atrás, portanto ele não pula tanto, não é mesmo?

— Muito bem, Tim! É isso mesmo. Se você se sentir enjoado vai me avisar com bastante tempo, não? Se vomitar aqui dentro não será nada agradável.

— Prometo que lhe avisarei, Mary, porque você nunca grita comigo ou fica furiosa.

Mary soltou uma gargalhada.

— Vamos, Tim’ Não se faça de mártir! Tenho certeza que ninguém grita ou se enfurece contra você seguidamente e isso só acontece quando o merece.

— Bem... é mesmo — respondeu, sorrindo. — Mas a mãe fica uma fera quando eu vomito por cima de tudo.

— Não a culpo nem um pouquinho por isso. Eu também ficaria furiosa, portanto se ficar enjoado trate de me avisar e agüentar até que tenha saído do carro. Entendidos?

— Entendido, Mary.

Após alguns instantes, Mary pigarreou e tornou a falar.

— Tim... já saiu da cidade alguma vez? Ele balançou a cabeça.

— Por que?

— Não sei. Acho que a mãe e o pai não queriam ver nada fora da cidade.

— E quanto a Dawnie?

— A minha Dawnie vai a todos os lugares, ela já esteve até na Inglaterra.

— A maneira como falou fez com que parecesse que a Inglaterra ficava logo depois da esquina.

— E quanto às férias... quando era um garotinho?

— Ficávamos sempre em casa. A mãe e o pai não gostam de mato, só gostam da cidade.

— Muito bem, Tim, venho ao chalé com muita freqüência e poderá vir sempre também. Talvez, mais tarde, possa levá-lo ao deserto ou ao Great Bamer Reef para que goze umas férias de verdade.

Mas o rapaz não estava prestando atenção ao que Mary falava, pois aproximavam-se do rio Hawkesbury e a paisagem era maravilhosa.

— Oh, não é uma beleza — exclamou, mexendo-se no banco e apertando as mãos como costumava fazer sempre que ficava comovido ou zangado.

Mary estava esquecida de tudo, exceto de uma dor repentina, uma dor tão nova e estranha que, na verdade, não fazia a menor idéia porque a sentia. Pobre rapaz! De que maneira os acontecimentos tinham conspirado para afastar qualquer possibilidade de desenvolvimento ou expansão mental. Os pais preocupavam-se muito com ele, porém suas vidas eram limitadas e seus horizontes restritos ao céu de Sidnei. Mary não conseguia culpá-los, no fundo do seu coração, por não perceberem que Tim jamais poderia tirar tanto quanto eles daquele tipo de vida que eram forçados a levar. Simplesmente, jamais lhes ocorrera imaginar se estaria ou não realmente feliz, porque ele era feliz. Porém, será que ele ainda poderia sentir-se mais feliz? Como ficaria ele se se libertasse da cadeia da sua rotina, se pudesse expandir-se um pouco?

Era tão difícil entender os seus sentimentos com relação a ele. num momento pensava nele como se fosse uma criancinha, em seguida, a sua beleza física, fazia-lhe lembrar que Tim já era um adulto. E para ela era tão difícil ter qualquer sentimento, quando já fazia tanto tempo que fizera algo mais além de apenas viver. Não contava com uma sólida estrutura emocional diante da qual tivesse condições de distinguir piedade de amor, ansiedade de protecionismo. Ela e Tim eram como Svengali * e Trilby, estranhamente justapostos: quanto mais irracional, maior o magnetismo exercido sobre o intelectual.

Desde a primeira vez que vira Tim, muitas semanas antes. Mary tinha se limitado a agir, tinha se mantido mentalmente inteira, fazendo coisas. Jamais tinha se permitido ficar sentada no tranqüilo afastamento de uma contemplação totalmente sua, de vez que não tinha tendência para pesquisar como, porque e o que sentia. Mesmo naquele momento não seria capaz de fazê-lo, não se lançaria bastante longe no seu sofrimento para poder compreender a sua causa.

O chalé não contava com vizinhos a menos de duas milhas, pois a região ainda não estava ”desenvolvida”. A única estrada era péssima, não passava de uma pista de terra batida aberta em meio a floresta de eucaliptos; quando chovia, a lama tornava-a intransponível e, quando não chovia, a poeira levantava, formando nuvens espessas que caíam sobre a vegetação mais próxima da estrada, transformando-a em alongados esqueletos marrons.

Os sulcos, as saliências estreitas e os buracos da estrada colocavam os carros mais valentes num perigo tão grande que poucas eram as pessoas que tinham coragem de passar por tudo isto, por tanta amolação e desconforto apenas para isolar-se.

 

(* N. da T. Svengali: personagem pernicioso e hipnotizador da novela Tnlby. Da autoria de George Du Maurier. Refere-se a alguém que tenta, geralmente de maneira maligna, persuadir ou forçar outra pessoa a fazer o que deseja.)

 

A propriedade de Mary era bastante grande para a região.., cerca de vinte acres. Comprara-a pensando no futuro, sabendo que o desenvolvimento descontrolado da cidade acabaria, eventualmente, levando ao crescimento local e a lucros fantásticos. Até que chegasse este momento, o lugar satisfazia plenamente o seu amor pela solidão.

A pista, penetrando em meio as árvores, indicava o começo da terra de Mary. Virou o carro e entrou pela pista, que se prolongava uns oitocentos metros através de um bosque perfumado, bonito, virgem e perfeito. No final do caminho, havia um extenso espaço vazio que, na parte mais afastada, acabava numa minúscula praia. Além da trilha, o rio Hawkesbury, naquele local ainda salgado e sujeito à maré, serpenteava e redemoinhava através da paisagem elevada e pedregosa. A praia de Mary não tinha mais do que uns novecentos metros de comprimento e era franqueada, em ambas as extremidades, por penhascos íngremes, amarelados.

O chalé era simples, de estrutura quadrada, com um telhado de ferro ondulado e uma varanda larga e aberta que o circundava em toda a extensão. Mary mantinha-o pintado pois não era capaz de suportar a desordem ou o desmazelo, contudo, a tonalidade marron que escolhera não melhorava, em nada, o aspecto da casa. Nos fundos, de frente para a trilha, viam-se duas caixas d’água de ferro galvanizado, colocadas no topo de duas torres altas. Na clareira haviam sido plantadas árvores a intervalos regulares e, finalmente, estavam ficando bastante crescidas para acabar com aquela impressão de nudez. Mary não tinha tentado fazer um jardim e a relva crescia em liberdade, era alta, porém, apesar de tudo, o local tinha um certo encanto indefinível.

Há quinze anos, desde quando o comprara, Mary já tinha gasto muito dinheiro com o chalé. As imensas caixas d’água, para ter bastante água fresca nas modernas instalações hidráulicas; eletricidade, a fim de evitar lampeões a querozene ou lanternas. Mary não se deixava fascinar pelas lareiras, luz de vela ou por um banheiro construído do lado de fora da casa... tudo isso representava trabalho extra e inconveniência.

A casa, vista do carro que se aproximava, parecia menos atraente ainda, porem Tim estava fascinado. com alguma dificuldade, Mary conseguiu arrancá-lo do assento e arrastou-o até a porta dos fundos.

— Este é o seu quarto, Tim — disse ela, mostrando-lhe um quarto simples, mas amplo, com paredes brancas e algumas peças singelas... parecia-se mais com uma cela de freira. -

— Estive pensando... caso você goste daqui, talvez pudesse escolher a cor que gostaria mais para as paredes e o tipo de mobília do seu agrado. Poderíamos ir comprá-la lá na cidade, num dia desses.

Tim nem conseguia responder, tamanha era a sua excitação e o encanto que sentia diante da experiência de assimilar toda aquela delícia. Ela ajudou-o a desfazer a mala, arrumou tudo nas gavetas e armários, em seguida, pegou a mão de Tim e levou-o até a sala de estar.

Fora apenas ali que Mary fizera as modificações mais importantes na construção antiga, que contava, anteriormente, com uma sala de estar escura, acanhada, que acompanhava toda a extensão da varanda da frente. Pouco a pouco, puxara a parede externa e substituira-a por portas corrediças, envidraçadas do chão ao teto, de modo que, quando o tempo estava bom não havia nada entre a sala de estar e o exterior.

A vista daquela peça era de tirar o fôlego de qualquer um. A relva descia inclinada, até a areia, brilhante e amarelada, da pequenina e imaculada praia, a água azul do Hawkesbury espraiava-se com suavidade ao longo da margem e na parte mais afastada do largo rio, maravilhosos penhascos, esplendidamente coroados pela floresta, elevavam-se para encontrar-se com o límpido e elevado céu. Os únicos sons humanos que se percebiam eram aqueles que provinham do rio; os put-put dos motores aquáticos, o chug dos ferries de excursão, o roncar das lanchas de corrida rebocando os esquiadores. Porém, em cada árvore ouviam-se os gorjeios dos passarinhos, as cigarras enchiam o ar de forma ensurdecedora e o vento zumbia suavemente como se estivesse sendo filtrado pelos galhos que cantavam.

Mary nunca compartilhara o seu retiro com ninguém... porém, em diversas ocasiões, tinha imaginado a conversa que manteria com seus primeiros hóspedes. Eles soltariam exclamações e ficariam extasiados diante daquela visão e teceriam comentários intermináveis a respeito de tudo. Mas Tim não pronunciou uma única palavra; e Mary não fazia a menor idéia daquilo que poderia sentir nem da comparação que faria. Era evidente que o rapaz achara o lugar ”encantador”, porém tudo aquilo que não o deixava triste, era para ele ”encantador”. Será que Tim tinha capacidade para sentir diferentes gradações de felicidade? Gostaria mais de determinadas coisas do que de outras?

Assim que terminou de desfazer as suas coisas e abastecida a cozinha, Mary preparou o almoço. Tim falou muito pouco durante a refeição, mastigando com tranqüilidade toda a comida que lhe foi servida. A menos que estivesse faminto ou aborrecido, suas maneiras à mesa eram impecáveis.

— Você sabe nadar? — perguntou Mary, depois que Tim a ajudou a lavar os pratos.

O rosto do rapaz pareceu iluminar-se.

— Oh, sim! Sei sim!

— Então porque não veste o calção enquanto eu acabo isto aqui para irmos até a praia. Está bem?

Tim saiu logo, voltando tão rapidamente que Mary foi forçada a lhe pedir para esperar um pouco, enquanto ela acabava de limpar a cozinha e guardar todas as coisas. Carregando duas cadeiras de armar em lona, um guarda-sol e uma porção de outras coisas que se costumam levar para a praia, eles começaram a descer o gramado que ia até a areia.

Mary já tinha se acomodado na cadeira, aberto um livro antes que percebesse que Tim continuava de pé, fitando-a, intrigado e, ao que tudo indicava, angustiado.

Ela fechou o livro.

— O que está acontecendo, Tim? O que foi?

Tim agitou as mãos desanimado.

— Pensei que tivesse dito que íamos nadar!

— Nós, não, Tim - corrigiu-o, com delicadeza. - Quero que nade até ficar satisfeito, mas eu nunca entro na água.

Tim ajoelhou-se ao lado da cadeira onde ela estava, colocou as duas mãos em seu braço, bastante contrariado.

— Mas aí não é a mesma coisa, Mary! Não quero ir nadar sozinho! - Lágrimas coruscavam sobre seus cílios longos e claros, como pequeninas gotas de água em cima do cristal.

Por favor, ah, por favor não me obrigue a entrar sozinho!

Mary teve vontade de tocá-lo, porém encolheu rapidamente a mão que tinha estendido.

— Mas, Tim... não tenho um maiô! Não poderia entrar n’água nem se o quisesse.

Tim agitava a cabeça para frente, para trás, ficando cada vez mais agitado.

— Acho que você não gosta de ficar comigo, não acredito que goste de mim! Você está sempre toda arrumada como se fosse para a cidade, nunca põe shortes ou calças compridas ou fica sem meias como minha mãe costuma ficar!

— Oh, Tim, o que farei com você? O fato de eu estar sempre arrumada não significa que não aprecie estar ao seu lado! Não me sinto bem a não ser que esteja toda arrumada, esta é a pura verdade, apenas isso. O que acontece é que não gosto de vestir shortes, calças compridas ou ficar sem meias.

Porém, Tim não acreditou no que ela lhe dizia e virou a cabeça para o outro lado.

— Se estivesse se divertindo, usaria o tipo de roupa que minha mãe usa quando está se divertindo - continuou ele, obstinado.

Seguiu-se um prolongado silêncio, que demonstrava, muito embora Mary não o percebesse, estar ocorrendo a sua primeira disputa de vontade. Afinal, Mary deixou escapar um suspiro e colocou o livro no chão.

— Muito bem, vou até lá dentro ver o que encontro, porém há uma coisa que você terá que prometer de não pregar peças enquanto estivermos na água, não mergulhar por baixo de mim nem sumir da minha vista. Não sei nadar e isto quer dizer que terá que tomar conta de mim durante todo o tempo que eu estiver na água. Promete?

Tim era todo sorrisos.

- Prometo! Prometo! Mas Mary não se demore, por favor não demore!

Ainda que aquilo fosse contrário ao seu temperamento, Mary vestiu calças de Algodão limpas e sobre elas enfiou um de seus uniformes de fim de semana, muito cinza e abotoado na frente, que reduziu em tamanho com a ajuda de um par de tesouras. Cortou o comprimento da saia, mais ou menos à altura da metade da coxa, retirou as mangas e desbastou o decote até que as saboneteiras estivessem aparecendo. Tivera todo o cuidado ao cortar, é claro, porém não havia tempo para fazer a bainha ou colocar vistas, o que a deixou irritada e de mau humor.

Enquanto se encaminhava para a praia, sentia-se terrivelmente nua, com as pernas grossas e os braços de fora e sem sentir a pressão da cinta e das meias. Aquela sensação nada tinha a ver com Tim; mesmo quando estava só durante muitos dias, era de seu hábito usar todas aquelas coisas.

Tim, tendo conseguido o que queria, saltitava para cima e para baixo, cheio de contentamento.

— Oh, assim está muito melhor, Mary! Agora podemos ir, nós dois, nadár! Ande... vamos... vamos!

Mary entrou na água com dificuldade, trêmula e de má vontade. Tão impertinente quanto o mais altivo dos gatos, continuou a se adentrar na água, quando tudo o que desejava era dar meia-volta e retornar à sua cadeira de armar, cómoda e enxuta. Exibindo a importante maturidade de um homem muito jovem com toda a responsabilidade de um tesouro, Tim não deixou que fosse além do ponto onde a água alcançava a sua cintura. Ele andava em volta dela como uma pequenina e importuna mosca, cheio de ansiedade, confuso. Não adiantava; ele notava que ela detestava aquilo e ela sabia que estava estragando o dia do rapaz. Por isso, Mary conteve um forte tremor de repulsa, e mergulhou até o pescoço com um soluço devido à temperatura gelada dà água e soltando uma gargalhada involuntária.

Tudo quanto Tim aguardava era aquela gargalhada... começou a brincar em volta dela como uma toninha, tão natural e à vontade como qualquer peixe. Mary acompanhava-o, sem jeito, forçando o sorriso e batendo com as palmas das mãos sobre a superfície da água, esperando que aquilo fosse uma boa imitação de alguém que se divertisse com o banho.

A água estava tão maravilhosamente clara e limpa, que sempre que desviava seus olhos para o fundo sentia seus pés desconjuntados e vacilantes, como se fossem feitos de gelatina. O sol pousava no seu pescoço como se fosse uma mão morna e amiga. Mary começou a apreciar a sensação suave da salinidade. Estimulava-a e alegrava-a, e submergir até os ombros na frescura leve e deliciosa, tornava a força total do sol inesperadamente imponente e era realmente maravilhoso. A vulnerabilidade da sua falta de roupa diminuiu e ela começou a gozar a sensação do corpo liberto de todas as restrições.

Porém, não perdeu completamente o seu bom senso e, depois de vinte minutos, mais ou menos, chamou Tim para junto de si.

— Tim, tenho que sair agora, pois não estou acostumada com o sol. Está vendo como sou branca e você moreno? Pois muito bem, um dia desses estarei tão bronzeada quanto você, porém devo fazer isso muito, muito devagar; o sol queima as peles brancas como a minha e poderia me deixar muito doente. Por favor, não pense que não estou me divertindo, porque estou, porém não posso deixar de ir para a sombra agora.

O rapaz aceitou aquilo com calma.

— Eu sei, porque quando era um garoto bem pequenino, fiquei tão queimado do sol um dia que tive que ir para o hospital. Doía tanto que chorei todo o dia e toda a noite, todo o dia e toda a noite. Não quero que chore todo o dia e toda a noite, Mary

— Vou lhe dizer o que farei, Tim. Sentarei à sombra do guarda-sol e ficarei olhando para você Prometo-lhe que não vou ler, ficarei apenas cuidando de você. Está bem assim?

— Está bem, está bem e está bem! cantarolou Tim, fingindo ser um submarino, porém controlando-se para não torpedeá-la

Após ter se certificado que estava totalmente protegida pela barraca, Mary estirou o corpo gotejante sobre a espreguiçadeira e enxugou o rosto. Do coque, sobre a nuca, estava escorrendo água pela sua espinha abaixo, provocando-lhe uma sensação desagradável, por isto tirou os grampos que o prendiam e atirou os cabelos por cima do encosto para que secassem. Não podia deixar de admitir que estava se sentindo maravilhosamente, era como se a água salgada tivesse algum valor medicinal. Sua pele ardia, os músculos estavam lassos e os membros pesados

Ela estava no salão de beleza, coisa que costumava fazer com raridade, e o cabeleireiro estava escovando seus cabelos de modo ritmado, um, dois, três, um, dois, três, puxando com força o couro cabeludo cada vez que a escova empacava e deslizando deliciosamente, a medida que a escova percorria todo o comprimento do cabelo. Sorrinndo de prazer, Mary abriu os olhos e descobriu que não estava num salão de beleza, mas sim na praia, estirada sobre uma espreguiçadeira enquanto o sol deslizava por trás das árvores, cujas sombras já se projetavam totalmente sobre a areia

Tim estava de pé, por trás dela, a cabeça inclinada sobre o seu rosto, brincando com seus cabelos. O pânico dominou-a, Libertou-se do toque das mãos dele com um pavor inexplicável, agarrando os cabelos soltos e remexendo os bolsos do vestido recortado à procura dos grampos, Mantendo-se a uma distância segura e mais desperta, Mary virou-se para fitá-lo, os olhos arregalados de medo e o coração aos pulos

Ele deixou-se ficar imóvel, no mesmo lugar, olhando para ela com aquela expressão de grande desespero, de angústia que Mary só tinha visto quando ele sabia ter feito algo errado, mas não compreendia o que fizera de errado. Ele desejava reparar, desejava tanto entender que tipo de pecado cometera inconscientemente, nesses momentos, ele parecia sentir a sua exclusão da maneira mais aguda possível, pensou Mary, exatamente como um cachorro que ignora a razão pela qual foi punido pelo dono. Totalmente perdido, Tim ficou esfregando as mãos, a boca aberta

Mary estendeu os braços na sua direção num gesto de remorso e pena

— Oh, meu querido! Meu querido, não queria lhe assustar! Estava dormindo e você me assustou, foi só isso i Não olhe assim para mim’ Tim, jamais seree capaz de maltratá-lo, acredite! Ah, por favor, não me olhe assim!

Tim evitou as mãos dela, mantendo-se fora do seu alcance pois não estava certo se ela estava ou não sendo sincera, se não tentava apenas fazê-lo de tolo — Estava tão lindo - explicou com timidez. — Apenas queria tocar neles, Mary.

Ela fitou-o, atónita. Ele dissera ”lindo”? Sim, dissera! E o fizera como se soubesse realmente o significado da palavra, como se compreendesse que era diferente de ”bonitinho” ou ”bonito” ou ”super” ou ”formidável” ou ”maravilhoso” em gradação, pois estes tinham sido os únicos adjetivos elogiosos que o ouvira usar. Tim estava aprendendo! Estava, aos poucos, assimilando o que ela dizia interpretando-o de forma correta.

Mary sorriu para ele com ternura e aproximou-se, segurando as mãos relutantes e apertando-as com força. ’’

— Que Deus o proteja, Tim. Gosto mais de você do que de qualquer outra pessoa que conheço! Não fique sentido comigo, não queria magoá-lo, realmente não o pretendia.

O sorriso dele surgiu como um sol, a dor tinha desaparecido de seus olhos.

— Também gosto de você, Mary, gosto mais de você do que de qualquer outra pessoa, a não ser o pai, a mãe e a minha Dawnie. - Fez uma pausa, pensativo.

— Na verdade, gosto mais de você do que da minha Dawnie.

Acontecera mais uma vez! Tim dissera ”na verdade”, da mesma maneira que ela costumava falar! Naturalmente não passava de um simples ato de repetição, mas não totalmente; ela pressentia algo de segurança naquilo.

— Vamos, Tim, vamos lá para dentro antes que fique frio. Quando a brisa da noite sobe o rio, a temperatura cai com grande rapidez, mesmo no auge do verão. O que gostaria de comer no jantar?

Depois de terminada a refeição, os pratos lavados e guardados, Mary fez com que Tim se sentasse na sua confortável cadeira de balanço e, em seguida, remexeu nos discos.

— Gosta de música, Tim?

— Às vezes — respondeu o rapaz cautelosamente, erguendo o pescoço para poder vê-la, já que estava de pé atrás da cadeira.

Que música lhe agradaria? Na verdade, o chalé estava melhor equipado’ com o tipo de música que poderia ser do gosto dele do que a casa em Artarmon, de vez que levara para lá as músicas que lhe agradavam quando mais jovem. O Bolero de Ravel, a Ave Maria de Gounod, o Largo de Handel, i Marcha da Aida. Lost Chord de Sullivan, a Swedish Rhapsody, Finlândia” de Sibelius, melodias de Gilbert e Sullivan, a marcha Pomp and Ciscumstance de Elgar: todas elas estavam ali, uma porção de outras igualmente ricas em tons e melodias. Mary pensou: experimente esse tipo de música... ele não ligará se estiver fora de moda, portanto veja como se comporta.

Enlevado, Tim deixou-se levar totalmente pela música. Mary tinha lido alguma coisa a respeito do retardamento mental e lembrou-se, enquanto estava sentada ali observando-o, que muitos retardados adoravam a música de um modo ordenado e complexo. Notando aquele rosto enérgico e ansioso, que refletia uma mudança de sentimento, seu coração condoeu-se por ele. Como era lindo, que beleza!

Por volta da meia noite, o vento que vinha do rio tornou-se ainda mais frio, penetrando pelas portas envidraçadas escancaradas com tamanha determinação, que Mary foi forçada a fechá-las. Tim fora se deitar por volta das dez, esfalfado com toda a excitação e a interminável tarde passada na água. Mary pensou que talvez pudesse estar com frio, por isso remexeu no armário embutido do hall e retirou uma coberta para colocar em cima dele

Um pequenino lampião de querozene bruxoleava ao lado da sua cama. Tim tinha-lhe confidenciado, muito hesitante, que tinha medo do escuro e perguntou-lhe se tinha uma luz fraquinha que pudesse deixar ao seu lado. Caminhando sem barulho sobre o chão claro e nu, mantendo o cobertor apertado entre os braços a fim de evitar que roçasse em alguma coisa e fizesse qualquer ruído, Mary aproximou-se da cama estreita.

Tim estava deitado, todo encolhido, provavelmente por estar com frio, os braços cruzados em volta do peito, os joelhos praticamente tocando-o. Os lençóis estavam fora da cama, deixando suas costas desprotegidas contra a janela aberta.

Mary fitou-o, as mãos torcendo as dobras do cobertor, a boca aberta. O rosto adormecido demonstrava tanta paz, os cílios de cristal abaixados sobre as faces lisas, a magnífica massa dourada de seus cabelos emoldurando seu crânio modelado na perfeição. Os lábios estavam ligeiramente virados para cima, o pequenino vinco triste do lado esquerdo emprestando-lhe um sorriso de Pierrô e o peito enchia e esvaziava-se com tanta calma que, por um instante, Mary fez de conta que Tim estava morto.

Quanto tempo passou fitando-o daquele modo ela nunca o soube, porém, de repente estremeceu, afastou-se e desdobrou o cobertor. Não tentou puxar os lençóis que estavam presos sob o seu corpo, contentando-se em esticá-los sobre a cama e enfiá-los sob o colchão para, em seguida, colocar o cobertor sobre as costas do rapaz. Tim suspirou e mexeu-se, aninhando-se sob a tepidez, porém, num minuto, voltara a mergulhar no mundo de seus sonhos. Mary ficou imaginando o que sonharia um rapaz retardado: será que seu horizonte era tão restrito nas perambulações noturnas, como o era durante o tempo que se encontrava desperto, ou será que ocorria o milagre que o libertava de todos os grilhões? Não havia jeito de saber...

Depois que saiu do quarto dele, Mary achou a casa intolerável. Fechando a porta de vidro sem fazer nenhum ruído, atravessou a varanda e desceu os degraus até a trilha que conduzia à praia. As árvores moviam-se sem parar, ao sabor do vento, uma ave noturna cantava mópoc! mópoc! empoleirada com seus olhos redondos de coruja, piscando, devido à escuridão profunda, sobre um galho baixo que caía sobre a trilha. Mary olhou para o pássaro sem realmente vê-lo, e logo depois bateu em algo macio e pegajoso. Quando aquilo grudou no seu rosto, contraiu-se de pavor, depois se deu conta que se tratava de uma teia de aranha. Passou a mão pela roupa com cuidado, receando que a dona da teia pudesse estar perambulando pelo seu corpo, porém nada encontrou além do vestido.

A beira da praia estava repleta de galhos secos. Mary juntou uma quantidade deles até que tinha o suficiente para acender uma fogueira; em seguida arrumou-os no meio da areia, perto de uma pedra e riscou um fósforo nas toras da base. A fria brisa do mar era uma dádiva divina na costa leste, porém era fustigante para o corpo humano, que transpirava o dia todo e, de noite, congelava até os ossos. Poderia ter ido até em casa para apanhar um agasalho, porém havia alguma coisa muito agradável com relação ao fogo e Mary necessitava de conforto desesperadamente. Quando as chamas subiram e crepitaram, sentou-se sobre a pedra e estendeu as mãos para aquecê-las.

Balançando-se, preguiçosamente, para frente, para trás, de cabeça para baixo e preso pela cauda numa árvore ali por perto, um gambá fitava-a com atenção, com seus espertos olhos redondos, seu focinho doce cheio de apreensão. Que criatura estranha era ela, acocorada em frente àquela coisa bruxoleantt que o animal só conhecia como perigo, com a luz lançando bizarras sombras cujas figuras modificavam-se constantemente, sobre ela. Em seguida, ele abriu a boca, arrancou uma ameixa amarela do galho acima de onde estava e comeu-a ruidosamente. Ela não incutia medo, não passava de uma mulher acocorada com uma expressão de sofrimento estampada no rosto, sem ser bonita nem jovem, nem atraente.

O queixo enfiado nas mãos, Mary pensou que o sofrimento fazia parte de sua vida de há muito. Voltava aos seus tempos de garotinha, no dormitório do orfanato, choramingando para adormecer. Como fora só naquele tempo, tão só, que houve momentos em que tinha desejado a afável indiferença da morte. As pessoas diziam que a mente de uma criança não entendia nem podia ansiar pela morte, mas Mary Horton sabia que não era assim. Não possuía recordação de um lar, de braços amorosos, de ser desejada; seu desespero tinha sido de perda, uma perda pura e irreconhecível, pois não podia ansiar por alguma coisa que, na verdade, não sabia existir. Tinha pensado que a sua infelicidadf estava presa à sua falta de atrativos, a mágoa que experimentara quando a sua adorada irmã Thomas trocara-a, como sempre, por uma criança que era mais bonitinha e atraente.

Porém, se os seus genes não a tinham dotado com encantos pessoais, tinham-lhe transmitido os códigos de energia. Mary, à medida que crescia, autodisciplinou-se, até atingir os quatorze anos, e no momento de deixar o orfanato tinha aprendido a subjugar e ignorar a infelicidade. A partir daí, deixou de sentir as emoções num nível humano, emocional, contentando-se com o prazer alcançado ao trabalhar na perfeição e em observar as economias crescerem. Isso não tinha sido exatamente um prazer vazio, porém não a enternecera ou entusiasmara. Não, a sua vida não tinha sido vazia ou falha de estímulos, contudo fora inteiramente desprovida de amor.

Sem nunca ter experimentado os excitantes impulsos maternais ou a urgência de buscar um companheiro, Mary não era capaz de perceber a dádiva do amor que experimentava por Tim. Na verdade, nem mesmo sabia se o que sentia pelo rapaz, poderia ser, acertadamente, qualificado de amor.

Transformara-se, tão somente, na mola propulsora de sua vida. Em todos os instantes em que estava desperta, tinha consciência da existência de Tim, surgia na sua mente milhares de vezes por dia e se pensasse em Tim’, dava-se conta de que sorria e sentia algo que só podia ser chamado de dor. Era quase como se ele vivesse dentro de sua mente como uma entidade totalmente diversa de sua aparência real

Quando se sentava na sala de estar, mergulhada na penumbra, escutando as evoluções obsedantes de um violino ela procurava, mentalmente, algumas reservas de sentimentos desconhecidas e ainda reprimidas, porem quando se sentava na sala de estar, mergulhada na penumbra, olhando paraTim, nada havia para procurar, tudo aquilo que um dia perseguira encontrava-se enfeixado nele. Se tivesse esperado qualquer coisa por parte dele nas poucas horas entre o momento em que o conhecera e aquele em que se dera conta do seu retardamento mental, assim que descobriu a verdade, tinha deixado de esperar qualquer coisa além do simples fato da sua existência. Ele enfeitiçou-a, esta era a única palavra que conseguia encontrar e, assim mesmo, não a satisfazia inteiramente.

Todos os desejos e aspirações de seus anos de juventude tinham sido suprimidos com determinação, nunca a tinham subjugado pois sempre tivera o cuidado de evitar qualquer situação que os pudesse fazer florescer. Se considerava um homem atraente, ignorava-o, se uma criança começava a conquistar seu coração, certificava-se de que jamais veria a criança novamente. Mary evitava o lado físico de sua natureza como o fana com relação a uma peste, trancafiava-o em algum canto escuro e adormecido de sua mente e recusava-se a admitir que existisse. Fuja dos problemas, as freiras do orfanato tinham-lhe recomendado e Mary tinha evitado todos os problemas

Logo no início, a beleza e a fragilidade de Tim deixaram-na desarmada. Mary encontrou-se cercada pelos travessões de vinte e nove anos de solidão. Era como se ele precisasse dela realmente, como se pudesse ver nela alguma coisa que nem mesmo ela conseguia enxergar, para a qual estivesse totalmente cega. Até ao momento em que conhecera Tim, jamais alguém tinha demonstrado preferi-la a qualquer outra pessoa. O que teria ele descoberto de tão fascinante na sua personalidade reservada e seca?

A responsabilidade era uma coisa tremenda, tão difícil para lidar, principalmente para alguém tão ignorante a respeito de emoções. Tim tinha uma mãe portanto não era isso o que procurava e ele era tão infantil ainda e ela uma senhora para que pudesse se tratar de alguma coisa ligada ao sexo. Devia ter havido muitas, muitas pessoas, durante a sua vida, que tinham sido cruéis para com ele, porém também deviam ter existido outras tantas que foram delicadas, até mesmo amorosas

Ninguém com a aparência de Tim e aquele temperamento, poderia ficar sem amor. Então, qual o motivo daquela preferência por ela?

O fogo extinguia-se. Mary levantou-se para procurar mais alguns galhos secos, porém resolveu não reacendê-lo. Deixou-se ficar sentada por mais alguns momentos, os olhos presos nos pontos luminosos, bruxoleantes, no meio dos carvões, olhos um tanto perdidos. Um verme emergiu da areia e olhou para ela, o calor da fogueira penetrava, lentamente, terra abaixo e obrigava centenas de moradores minúsculos a fugirem ou morrerem fritos. Mary, sem se dar conta da confusão que a sua fonte de calor estava gerando, apagou o fogo con punhados de areia ao invés de usar água; atitude bastante judiciosa para cortar qualquer perigo gerado pelo fogo, porém sem oferecer nada de refrescante para a areia e seus habitantes.

 

Durante todo o verão, Mary continuou a levar Tim até Gosford em sua companhia. Quando abril aproximou-se, e com ele o outono, os pais de Tim já a conheciam bastante, porém somente por telefone. Nunca tinha convidado Ron e Esme para irem até Artarmon e eles não tinham gostado da idéia de pedir-lhe para ir visitá-los. Não tinha passado pela cabeça de nenhum dos quatro imaginar se todos tinham a mesma impressão de Mary Horton.

— Pretendo passar alguns dias em Great Batrier Reef durante o inverno, talvez em julho ou agosto, e gostaria muito de levar o Tim, vocês não se importam? - perguntou a Ron Melville, num domingo à noite.

— Nossa Miss Horton, a senhora está sendo boa demais para o Tim! Ele poderá ir com a senhora, porém somente se pagar as próprias despesas.

— Se prefere que seja assim, Mr. Melville, não há dúvida, porém esteja l certo de que ficaria encantada em levá-lo na qualidade de convidado.

— A senhora é muito, muito delicada, Miss Horton, contudo creio que Tim se sentiria melhor se pagasse a própria estadia. Podemos fazer isto por ele. Poderíamos tê-lo levado nós mesmos em qualquer momento, se tivesse nos ocorrido, porém parece que Es e eu nunca vamos além de Avalon ou pattamoUa.

— Compreendo, Mr. Melville. Adeus.

Ron desligou o telefone, enfiou os polegares no cinto das calças e dirigiu-se lentamente, para a sala de estar, assobiando.

— Olha, Es, Miss Horton quer levar o Tim para Great Barrier Reef quando for em Julho ou agosto - Comunicou Ron, enquanto deitava-se confortavelmente no sofá, com os pés mais altos do que a cabeça.

— É muita bondade dela - comentou Es.

Minutos mais tarde, o bater de saltos altos ressoaram sob a janela, seguido do ruido da porta dos fundos sendo fechada. Uma jovem entrou na sala, acenou para os dois, sentou-se e deixando escapar um suspiro atirou para longe os sapatos. Ela parecia-se e não se parecia com Tim; a altura e os cabelos claros ali estavam, contudo não possuía aquela perfeição absoluta da estrutura óssea, e os olhos eram castanhos.

— Creio que acabei de ver a misteriosa Miss Horton - murmurou por entre um bocejo, puxando uma banqueta para junto de si e pondo os pés sobre ela.

Es largou o tricô.

— Como é ela?

— Não pude ver muito bem, mas é um tanto atarracada, os cabelos brancos e presos numa espécie de coque sobre a nuca, uma típica senhora. Deve estar com uns sessenta e cinco anos, mais ou menos, embora não pudesse ver muito bem o seu rosto. Que carro, amigos! Um Bentley preto enorme parecido com o automóvel que a velha rainha Lizzie usa. Puxa... é preciso ter muito dinheiro... montes de dinheiro, é o que acho.

— Não sei nada a esse respeito, querida, mas suponho que deva estar muito bem de dinheiro, já que tem tantas coisas.

— É isso aí! Fico me perguntando o que ela vê no Tim... Às vezes isto me preocupa. Ele está tão impressionado com ela.

— Oh, Dawnie, acho isso muito bom - disse Es - Você está ficando preocupada demais com o Tim e Miss Horton.

— O que está querendo dizer com esse preocupada demais? — perguntou Dawnie, com aspereza. — Que inferno, ele é meu irmão! Não gosto dessa nova amizade dele, é isso aí. O que sabemos, na verdade, sobre essa Mis Mary Horton?

— Sabemos tudo quanto precisamos saber, Dawnie — replicou Es, com delicadeza. — Ela é muito boa para o Tim.

— Mas ele está tão envolvido com ela, mamãe! É só Mary isto e Mary aquilo, que às vezes sinto vontade de esganá-lo!

— Ora, vamos, Dawnie, não seja tola! Tenho a impressão de que está com ciúmes! — exclamou Es. rindo.

Ron olhou para a filha muito sério.

— Com quem saiu esta noite, boneca? - indagou, mudando o assunto.

Seu mau humor acabou à medida que seus olhos vivos e extremamente inteligentes, pareciam sorrir para o pai.

— O diretor administrativo de um laboratório internacional muito importante. Estou pensando em trabalhar na indústria.

— Minha Nossa Senhora! Acho que é a indústria que pretende tomar conta de você! Dawnie, como consegue controlar tantos caras ao mesmo tempo? Afinal de contas, o que eles vêem em você?

— Como posso saber? - Bocejou, em seguida, ficou atenta.

— Ah, Tim chegando.

Um instante depois, o rapaz entrava, cansado e feliz.

— Bom dia, companheiro! — exclamou o pai, repleto de alegria. - O fim-de-semana foi bom?

— Pra lá de bom pai. Estamos fazendo um jardim, cheio de flores, em volta da casa e estamos montando uma churrasqueira de tijolos lá na praia para podermos preparar a comida ao ar livre.

— Ao que parece, você está transformando o lugar numa coisa que se vê nos livros, não é, Es?

Mas Es não lhe respondeu. Repentinamente, endireitou o corpo, beliscando o braço do marido.

— Hei, Ron, como foi que Miss Horton pôde falar com você, ao telefone, inda há pouco e estar aí fora deixando o Tim aqui em casa?

— Pelas barbas do profeta! Tim, Miss Horton telefonou ainda há pouco para cá, antes de deixar você aqui?

— Telefonou, pai. Ela tem um telefone no carro.

— Santo Deus! Isto já está me parecendo um exagero, rapaz.

— Ela tem que ter um telefone no carro! - replicou Tim, indignado. - Explicou-me que, às vezes, o patrão dela, Mr. Johnson, precisa falar com ela com urgência.

— E por que não entrou para falar conosco pessoalmente se estava praticamente aí fora? - disse em tom de escárneo a irmã.

As sobrancelhas de Tim franziram-se.

— Não sei, Dawnie. Acho que ela é um pouquinho acanhada, do mesmo jeito que você diz que eu sou.

Ron fitou-o, intrigado, porém não teceu o menor comentário, esperando-o recolher-se ao quarto e adormecer. Então tirou os pés de cima do sofá, sentou-se de modo a poder ver a mulher e a filha sem esforço.

— Será que estou imaginando coisas, ou o Tim está melhorando um pouco, meninas? No outro dia fiquei aparvalhado ao constatar que ele está usando palavras mais rebuscadas, menos terra a terra.

Es fez um sinal afirmativo com a cabeça.

— É... eu também já tinha notado.

— E eu também, pai. Ao que parece Miss Horton passa algum tempo ensinando coisas ao Tim.

— Ora vivas e boa sorte para ela! - exclamou Es. Nunca tive paciência, e as professoras da escola também não, porém sempre achei que Tim tinha capacidade para aprender alguma coisa.

— Ora, mamãe, deixe disso! - retrucou Dawnie. - A próxima coisa que vai querer é que a chamemos de Santa Mary! - Levantou-se de repente. Como vocês não são capazes de arranjar nada mais interessante para conversarmos do que a influência que esta mulher exerce em Tim... vou me deitar!

Ron e Es ficaram atônitos, os olhos presos nela, assombrados e confusos.

— Sabe de uma coisa, Ron, acho que a Dawnie sente uma pontinha de ciúmes de Miss Horton - disse, finalmente, Es.

— Mas por que razão, meu Deus, sentiria ela ciúmes?

— Ora, sei lá, meu amor. Às vezes as mulheres são terrivelmente possessivas. Creio que a Dawnie está sentida porque o irmão já não anda tanto atrás dela, nesses últimos tempos.

— Mas deveria ficar contente! Ela sempre reclamou porque o Tim não largava do seu pé, e além disso, quanto mais velha for ficando, mais vontade terá de ter uma vida toda sua.

— Mas ela é humana, querido, e não vê as coisas desta maneira. É uma desmancha-prazeres.

— Muito bem, terá que ceder um pouco, só isso. Estou realmente satisfeito que Tim tenha encontrado Miss Horton ao invés de ficar perambulando por aqui esperando a volta de Dawnie, todo o dia.

No dia seguinte, Ron encontrou-se com o filho no Seaside, como sempre, e foram andando para casa por entre a escuridão, de vez que os dias já estavam ficando mais curtos.

Assim que entraram pela porta dos fundos, deram com Es a sua espera, com uma expressão estranha estampada no rosto. Tinha na mão um livrinho, fino e colorido, e agitava-o alegremente na direção de Tim.

— Tim, meu querido, este livro é seu? — arriscou, os olhos brilhantes. Tim olhou para o livro e sorriu, como se se estivesse recordando de um momento de prazer.

— É sim, mãe. Mary deu pra mim.

Ron pegou o livro, virou-o e leu o título. ”O Gatinho Que Julgava Ser um Rato”, leu devagarinho.

— Mary está me ensinando a ler - explicou Tim, perguntando aos seus botões a razão de tanta agitação.

— E já pode ler alguma coisa dele?

— Um pouquinho. É difícil demais, mas não tão difícil quanto escrever. Mas a Mary não se importa quando esqueço

— Ela está lhe ensinando a escrever, companheiro? - Quis saber Ron, sem poder acreditar no que ouvia.

— Está. Ela escreve uma palavra para mim, e copio de modo a ficar igual zinho ao que ela fez. Ainda não sei escrever uma palavra sozinho — Soltou um um suspiro. — É muito pior do que ler.

Nesse mesmo instante, Dawnie entrou em casa, praticamente sem respirar, tamanha era a sua excitação, as palavras prontas para saltar da boca, porém, pela primeira vez na sua vida, viu que perdia vez para o irmão, os pais nem se deram ao trabalho de lhe perguntar qual a razão de toda aquela excitação, limitaram-se a fazer ”Pssiiiiu” e fizeram com que ficasse ali ao lado de Tim.

O rapaz leu uma página, do meio do livro, sem precisar pensar demasiado, ou procurar uma palavra ou uma letra e, quando ele terminou, eles gritaram de contentamento, deram palmadinhas carinhosas nas suas costas, passaram as mãos sobre seus cabelos.

Estufando o peito como se fosse um pombo, dirigiu-se para o quarto segurando o pequenino livro, com ternura, entre as mãos e sorrindo. Nunca em toda a vida experimentara um momento tão maravilhoso. Ele deixara-os contentes, realmente tinha-os agradado com aquilo, notava que se sentiam tão orgulhosos dele quanto de Dawnie.

Logo depois que Tim foi se deitar, Es levantou os olhos do seu interminável tricô.

— Que tal uma xícara de chá, meu bem? - perguntou a Ron.

— Parece-me uma excelente idéia, minha velha. Venha, Dawnie, venha conosco para a cozinha como uma boa garota, está bem? Você esteve quieta demais a noite inteira.

— Tem um pedaço de bolo de frutas com glacê de laranja ou então bolo branco que comprei no Jungo esta tarde, disse Es, enquanto colocava as xícaras e os pires sobre a mesa da cozinha.

— Bolo branco! - exclamaram ao mesmo tempo Ron e Dawnie.

Pairava no ar um perfume delicioso, pois já era fins de abril e o calor mais violento já tinha terminado. Ron levantou-se e fechou a porta dos fundos, em seguida perseguiu uma mariposa imensa, com a ajuda de um rolo de jornal até que conseguiu atingi-la quando revoluteava contra a luminária no teto. O inseto caiu no chão em meio a uma fina chuva de pó dourado que revestia as suas asas. Ron pegou-a, ainda se debatendo alucinadamente, levou-a para o banheiro e, atirando-a no vaso, puxou a descarga.

— Obrigada, papai - disse Dawnie, acalmando-se novamente, — Puxa, tenho horror a esses insetos nojentos, esvoaçando e batendo as asas perto do meu rosto. Sempre tenho medo que possam entrar pelos meus cabelos.

Ron resmungou.

— Vocês... mulheres! Têm pavor de tudo aquilo que voa, salta ou rasteja. - Pegou um pedaço grande de bolo e meteu-o dentro da boca de uma só ’vez. - O que é que há, Dawnie minha querida? — murmurou indistintamente, lambendo o creme que circundava o nariz.

— Não foi nada, nada mesmo! — respondeu a moça, com vivacidade, cortando o seu pedaço de bolo e pondo um pedacinho na boca, com a ajuda de um garfo de sobremesa.

— Vamos lá, sabidona, não consegue enganar o seu velho! - disse de modo mais claro. - Vamos, diga logo! O que a está aborrecendo?

Dawnie largou o garfo, franziu as sobrancelhas, em seguida ergueu os olhos imensos e brilhantes para ele. Estes ficaram mais doces ao contemplá-lo, pois era realmente muito agarrada ao pai.

— Se querem saber dos mínimos detalhes... estou envergonhada de mim mesma. Tinha algumas novidades para lhes contar quando cheguei em casa esta noite, mas quando percebi que Tim era o alvo das atenções de todos... fiquei um tanto chateada. Devem entender que isto é horrível. O pobrezinho! perdeu a vez para mim, durante toda a sua vida, e hoje, quando tinha alguma coisa para nos mostrar e que nos deixaria orgulhosos, fiquei desesperada porque roubara o meu show.

Es levantou-se e afagou o braço de Dawnie.

— Não se aborreça com isso, querida. Tim não percebeu nada de errado e isto é o que interessa, não? Dawnie, você é uma garota muito boa, o seu coração está no lugar certo.

Dawnie sorriu. Inesperadamente estava muito parecida com o irmão e era fácil ver porque razão tinha tantos admiradores.

— Está bem, minha velha! Você é tão compreensiva, querida! Sempre descobre coisas bonitas para dizer, ou alguma coisa que acaba com a sensação de mal feito.

Ron soltou uma risada.

— Exceto quando fica furiosa comigo. Você é mesmo impossível, Es!

— E o que mais pode esperar um velho bêbedo igual a você?

Todos riram. Es coou o chá, derramou leite até a borda das xícaras e em seguida pingou uma gota de chá por cima, um chá tão negro quanto a borra de café. A bebida era marrom escuro e opaca por causa do leite. Serviram-se todos de muito açúcar e beberam de um só gole o líquido escaldante. Somente após alguns segundos é que recomeçaram a conversar.

— O que queria nos contar, Dawnie? - indagou a mãe.

— Vou me casar.

Fez-se um silêncio profundo, quebrado apenas pelo ruído da xícara de Ron ao ser colocada sobre o pires.

— Isto é uma bomba! - exclamou. — Meu Deus do céu, que bomba! Dawnie, jamais pensei que fosse se casar! Puxa... a casa ficará vazia sem você!

Es fitou a filha com ternura.

— Muito bem, querida, eu sabia que um dia desses iria levar as coisas a sério, e se é isso mesmo que quer, estou feliz por você, realmente feliz. Quem é ele?

— Mick Harrington-Smith, meu chefe.

Os pais fitaram-na, atônitos.

— Mas não é ele aquele rapaz a quem nunca deu confiança por ele achar que o lugar das mulheres era na cozinha e não num laboratório de pesquisas?

— É esse mesmo, é o meu Mick! - replicou Dawnie, cheia de alegria; sorriu. — Acho que resolveu se casar comigo por ser este o único meio de me afastar do laboratório de pesquisas e levar-me de volta à cozinha, onde devo ficar.

— Ele é meio difícil, não é? — indagou Ron.

— Às vezes, porém nem sempre, desde que se saiba levá-lo. Seu pior defeito é o esnobismo. Sabem ao que me refiro... escola em King, casa em Poinl Piper, antepassados que vieram para cá com a primeira esquadra... apenas não eram renegados, naturalmente, ou se eram, a família não o dirá. conseguirei afastá-lo de tudo isso depois de algum tempo.

— E como ele vai se casar com alguém como você? - perguntou Es, com azedume. - Não sabemos quem foram nossos antepassados, a não ser que não devem ter sido ladrões e assassinos — e a Surf Street de Coogee não é exatamente o endereço mais elegante de Sidnei, como o ginásio de Randwick não é a melhor escola para moças.

Dawnie suspirou.

— Ora, mamãe, não se preocupe com isto! O importante é que ele quer casar comigo e sabe, perfeitamente, de onde vim, o que e quem sou.

— Não podemos arcar com as despesas de um casamento elegante para você, querida - disse Es, com tristeza.

— Tenho algum dinheirinho que economizei, portanto poderei arcar com qualquer tipo de casamento que os pais dele exijam. Pessoalmente, espero que escolham uma cerimônia simples, porém se quiserem um casamento grande, Badalado, então terão um casamento grande e badalado.

— Você sentirá vergonha de nós - lamuriou-se Es, com os olhos cheios de lágrimas.

Dawnie soltou uma gargalhada, estendeu as mãos até que sentiu os músculos flácidos da mãe sob a sua maravilhosa pele bronzeada.

— Nunca em minha vida, queridos! Por que motivo haveria eu de sentir vergonha de vocês? Deram-me a melhor e mais feliz vida que uma moça poderia querer, educaram-me muito bem, tão bem que não tenho nenhuma dessas neuroses, ansiedades e problemas que parecem perturbar todas as outras pessoas da minha idade. Na verdade, vocês fizeram um trabalho muito melhor do que os pais do Mick, fiquem certos disso! Ou ele gosta de mim e de minha família ou nos ignora a todos, é a única coisa que tem a fazer. Creio que foi a atração dos pólos opostos. — Prosseguiu de modo mais ponderado. - Pois, na realidade, não temos nada em comum, a não ser a inteligência. De qualquer maneira, está com trinta e cinco anos e teve acesso a todas as moças de sangue azul de Sidnei para escolher nos últimos quinze anos, mas no fim das contas, acabou preferindo a simples, despretenciosa, desconhecida Dawnie Melville.

— Creio que isto marque um ponto a favor dele - disse Ron, muito sério. Suspirou. — Não acredito que vá, algum dia, querer tomar uma cerveja comigo e Tim lá no Seaside. Um uísque com água num saguão elegante parece fazer mais o gênero de um sujeito desse tipo.

— Até agora é, porém ele não sabe o que está perdendo. Espere para ver! No fim de um ano, ele estará se encontrando com vocês lá no Seaside

Es levantou-se, de repente.

— Deixe tudo como está, amanhã de manhã lavarei as coisas. Vou me deitar, estou cansada.

— Pobrezinha da Dawnie, vai passar por poucas e boas casando-se com um tipo desses - comentou Es para o marido, enquanto se enfiavam na antiga e confortável cama.

— Não concordo com você de nenhuma maneira, Es — replicou Ron com obstinação. — Quem me dera ela fosse menos inteligente, assim iria se casar com algum rapaz daqui mesmo e ficaria morando numa casa comum lá em Blacktown. Mas a Dawnii não aprecia os tipos comuns.

— Muito bem. . . espero que tudo dê certo, porém não vejo como isso possa acontecer sem que ela rompa os laços que nos unem, Ron. Ela não vai gostar de fazê-lo, porém acho melhor irmos, aos poucos, nos afastando dela após o casamento. Deixemos que ela arranje um lugar para si mesma no mundo deles, pois será nele que deverá criar seus filhos, não é?

— Está com toda a razão, minha velha. — Ron ficou com os olhos presos ao teto, piscando. - Tim é quem vai sentir a falta dela. Pobre rapaz, não entenderá.

— Não, não compreenderá, porém ele é como um garotinho, Ron, as suas recordações são poucas. Sabe como ele é, coitadinho. Ele sentirá a falta de Dawnie da mesma forma que um menino sentiria, logo no início, porém depois acabará esquecendo. O mesmo sucederá com relação a Miss Horton, creio. Provavelmente, ela não estará ao lado dele para sempre, porém espero que ainda esteja quando do casamento de Dawnie... penso que saberá como controlá-lo. - Deu uns tapinhas no braço do marido. - A vida nunca é como a gente deseja, não é mesmo? Cheguei a imaginar que Dawnie jamais iria se casar, que ela e Tim acabariam seus dias compartilhando desta velha casa depois que nós dois tivéssemos desaparecido. Dawnie gosta tanto dele. Contudo estou contente por ter tomado esta decisão, Ron. Como já o dissemos a ela uma porção de vezes, não queremos que sacrifique a sua vida por Tim. Não seria certo. Mas, apesar disso... continuo achando que sente um pouco de ciúmes de Miss Horton. Este noivado aconteceu tão repentinamente. Tim encontrou uma amiga, Dawnie fica sentida, magoada porque Miss Horton encontra tempo para ensiná-lo a ler e ela nunca o fez, e o passo seguinte, bump! sai e volta noiva.

Ron levantou-se e apagou a luz.

— Mas por que exatamente esse rapaz, Es? Nunca me passou pela cabeça que pudesse gostar dele.

— Oh, mas ele é bem mais velho do que ela e Dawnie está se sentindo lisongeada por ele a ter escolhido em vez de todas essas moças badaladas que estavam ao seu alcance. Provavelmente, também sente um pouquinho de medo dele, um tanto iludida com a sua origem e o fato dele ser seu patrão. Você pode ter a melhor inteligência do mundo e assim mesmo não ser mais esperto do que qualquer boboca de Callan Park.

Ron remexeu-se na cama até que sua cabeça encontrou a posição certa no travesseiro.

— Muito bem, meu amor, nada podemos fazer com relação a isto, não é mesmo? Ela tem mais de vinte e um anos e, de qualquer maneira, nunca nos prestou grande atenção. A única razão dela não ter se metido em encrenca é por ser esperta, tão esperta como uma raposa - Ron deu-lhe um beijo na boca. — Boa noite, amor. Estou cansado, e você? Foi tanta emoção!

— Tem toda a razão - bocejou - Boa noite, amor.

 

No sábado seguinte, quando Tim chegou na casa de Mary, em Artarmon, estava calado e um pouco retraído. Mary não tentou saber qual a explicação para o seu estado de espírito, porém mandou que entrasse no Bentley imediatamente e saiu estrada afora. Tiveram que dar uma parada numa chácara em Hornsby para apanhar uma quantidade de plantas e arbustos que Mary tinha encomendado durante a semana, e o trabalho de colocar tudo aquilo no carro manteve o rapaz tão ocupado que ela lhe disse para ficar no banco de trás assim que recomeçaram a viagem para que assim pudesse tomar conta das plantas e certificar-se de que nenhuma delas cairia ou mancharia o estofamento de couro.

Quando chegaram ao chalé, Mary deixou-o entregue à tarefa de retirar tudo do carro e dirigiu-se ao quarto dele com a maleta para desarrumá-la, embora naquela altura, ele já contasse com algumas peças de roupas que deixara lá. O quarto estava diferente, já não era mais branco e vazio. O assoalho estava recoberto por um espesso tapete cor de laranja, as paredes eram amarelo Pálido, as cortinas amarelo ouro e a mobília em linha moderna dinamarquesa. Assim que terminou a arrumação da mala, Mary dirigiu-se ao seu quarto e arrumou-se um pouco antes de voltar para o carro e ver como Tim estava se saindo.

Alguma coisa não estava certa com o rapaz, ele estava totalmente diferente. Preocupada, observou-o de perto enquanto retirava as últimas plantas da mala do carro. Não achou que o seu problema fosse físico, pois a sua pele estava, como sempre, com uma tonalidade dourada e saudável e os olhos claros e brilhantes. Ao que tudo indicava, aquilo que o martirizava acontecia dentro da esfera pessoal. Mary não acreditava que estivesse envolvida, a menos, é claro, que seus pais tivessem dito alguma coisa a seu respeito que o tivesse deixado aborrecido ou intrigado. Não devia ser isso, com toda a certeza! Ainda na véspera, conversara demoradamente com Ron Melville e este mostrara-se cheio de entusiasmo pelos progressos demonstrados por Tim na leitura e nas contas.

— A senhora é tão boa para ele, Miss Horton — dissera Ron. — Faça o que faça, não considere perda de tempo. Quem me dera Tim a tivesse conhecido há muitos anos, estou sendo sincero.

Almoçaram em silêncio e rumaram para o jardim sem que o problema de Tim, fosse ele qual fosse, tivesse sido mencionado. Ele haveria de contar quando julgasse que o momento certo tinha chegado. Talvez fosse melhor se ela agisse como se nada estivesse acontecendo, se deixasse as coisas correrem e lhe pedisse para ajudá-la a plantar tudo que comprara. No último fim de semana tinham se divertido tanto com o jardim, discutindo se deveriam fazer um canteiro apenas com goivos, ou se seria melhor misturar esporinhas e bocas de leão. Tim não sabia o nome de nenhuma flor, portanto ela pegara seus livros e mostrara-lhes as fotografias. Tim escutara-a falar sobre as flores com prazer e andara de um lado para outro repetindo para si mesmo todos aqueles nomes, vezes sem fim.

Trabalharam em silêncio durante toda a tarde, até que as sombras encompridaram-se e a brisa marinha subiu garganta acima para avisar da chegada da noite.

— Vamos acender um fogo na churrasqueira e preparar a comida lá na praia, - sugeriu Mary, em desespero. - Podemos nadar um pouco enquanto o fogo pega por si mesmo e depois poderemos fazer uma fogueira na areia para nos secarmos e aquecer-nos enquanto jantamos. Que tal lhe parece a idéia, Tim?

O rapaz procurou sorrir.

— Acho ótimo, Mary.

A esta altura, Mary já tinha aprendido a apreciar a água e até mesmo a dar algumas braçadas; pelo menos conseguia aventurar-se até o ponto onde Tim gostava de brincar. Mary tinha comprado um maiô de gorgurão preto com um saiote comprido por puro recato e Tim achara-o maravilhoso. Sua pele tinha escurecido, agora que ela já se expunha ao sol e o tom bronzeado dera-lhe uma aparência melhor, parecia mais jovem e saudável.

Tim não se comportou dentro d’água com a sua vivacidade normal. Nadou tranqüilamente, esquecendo-se de mergulhar e fazer as brincadeiras costumeiras com ela, e quando Mary sugeriu que fossem para a praia, seguiu-a imediatamente. Geralmente, para se conseguir arrancá-lo de dentro d’água era uma verdadeira guerra; se ela o permitisse, era capaz de ficar ali até a meia noite.

Mary tinha preparado pequeninas costeletas de carneiro e salsichas imensas e roliças, duas coisas pelas quais ele era alucinado, porém ele serviu-se, sem grande entusiasmo, de uma costeleta, durante algum tempo mastigou-a, dando a impressão de estar enfastiado, depois afastou o prato com um suspiro, sacudindo a cabeça com tristeza.

— Estou sem fome, Mary — disse.

Sentaram-se, um ao lado do outro, sobre uma toalha estendida diante de outra fogueira, aquecendo-se de modo agradável contra o vento cortante.”

O sol já se pusera e o mundo estava mergulhado naquele estágio de semi-escuridão, quando tudo perde a nitidez mas ainda não adquirira tonalidades negra, branca ou cinzenta. Acima deles, no céu imenso e limpo, uma estrela cintilava contra o horizonte verde maçã, e algumas outras, de maior grandeza, lutavam para dominar a luz, surgindo num momento para sumir no outro. Os pássaros chilreavam e guinchavam por todos os cantos, preparando-se para a chegada da noite com um exagero impertinente e o mato estava repleto de barulhos e sussurros misteriosos.

Mary não tinha o hábito de perceber estas coisas, sempre fora completamente indiferente ao mundo que a rodeava, a menos que este lhe impusesse a sua presença, mas, agora, descobria que estava consciente de tudo a sua volta, do céu, da terra e da água, de seus animais e plantas, tudo tão maravilhoso e lindo. Tim tinha-lhe ensinado a sentir tudo aquilo, a partir do momento em que lhe mostrara o chefe do coro das cigarras do seu rododendro. Estava sempre lhe mostrando algum pequenino tesouro na natureza que encontrara, uma aranha, uma orquídea silvestre ou algum bichinho, e Mary aprendera a não recuar com repulsa mas sim a vê-los como ele, pelo que valiam, pelo que eram, perfeitos, como uma parte tão importante do planeta quanto o era ela, quando não eram mais importantes ainda, pois às vezes Tim lhe trazia coisas muito raras.

Preocupada e aborrecida, Mary revirou-se sobre a toalha até que se sentou com os olhos presos ao perfil de Tim, desenhado contra a borda perolada do céu. O queixo, virado para ela, estava debilmente demarcado, o olho mergulhado no soquete escuro, a boca com uma expressão triste. Em seguida, ele deslocou-se ligeiramente e a pouca claridade que ainda restava iluminou as pequeninas e brilhantes lágrimas presas às pontas dos cílios, deslizando dali até as maçãs do rosto.

— Oh, Tim! - exclamou, estendendo as mãos na sua direção. - Não chore, meu querido, não chore! O que foi, o que está se passando? Não quer me contar? Somos tão bons amigos!

Recordou-se que Ron tinha-lhe dito que Tim costumava chorar muito, com soluços e ruidosamente como as criancinhas, mas que ultimamente já não o fazia mais. Agora, quando chorava, o que raramente sucedia, fazia-o como um adulto, explicara-lhe Ron, baixinho e para si mesmo. Exatamente como o fazia naquele instante, pensou Mary, imaginando quantas vezes acontecera naquele dia sem que ela o tivesse percebido, quando não estava ao seu lado ou atarefada demais para notá-lo.

Preocupada demais para questionar a sensatez de sua conduta, pousou as mãos sobre o braço dele e acariciou-o com ternura, procurando confortá-lo da melhor maneira possível. Tim virou-se logo para seu lado e antes que Mary pudesse se afastar, colocou a cabeça de encontro ao seu peito, acomodando-se, como se fora um animalzinho necessitado de um local para se abrigar, as mãos crispadas nos lados do corpo dela. Os braços de Mary pareceram encontrar um lugar de repouso nas costas dele e baixou o queixo até que este encostou na sua cabeça.

— Não chore, Tim — murmurou, acariciando a parte de trás da cabeça dele e beijando a sobrancelha.

Sentou-se sobre os calcanhares, acalentando-o, esquecendo-se de tudo o mais exceto da realidade de poder lhe dar algum consolo. Ele precisava dela, procurara-a e escondera o rosto como se ela estivesse capacitada a protegê-lo do mundo. Jamais estivera preparada para uma coisa como aquela. Jamais imaginara que a vida pudesse lhe proporcionar um momento de tanta ternura tão ligado à dor. Sob suas mãos, sentia as costas de Tim frias e escorregadias como se fossem de setim; o queixo barbado encostado logo acima de seus seios, arranhavam-lhe a pele como se fosse uma lixa muito fina.

Embaraçada e hesitante no início, puxou-o para mais perto de si, mantendo um dos braços às suas costas com decisão e delicadeza; o outro colocou sobre a sua cabeça, mergulhando os dedos nos cabelos espessos e ligeiramente salgados pela água do mar. Os quarenta e três anos de sua vida, vazios e sem amor, pareciam não mais existir; naquele pequenino instante Mary recuperara todo o tempo perdido. Já não significavam mais nada aqueles quarenta e três anos, e se devesse passar por outros tantos igualmente vazios, também seriam insignificantes... e Mary não se importaria. Agora não.

Depois de alguns momentos, Tim parou de chorar e ficou totalmente imóvel entre os braços dela, e apenas a movimentação de seu peito quando respirava davam-lhe a certeza de que estava vivo. Mary não se moveu também. A idéia de se mexer deixava-a apavorada, de vez que o instinto lhe dizia que assim que um deles fizesse o menor movimento, ou Tim se afastaria ou ela o teria que fazer. Mary aumentou a pressão dos lábios sobre os cabelos do rapaz, fechou os olhos, sentindo-se totalmente feliz.

Tim deixou escapar um suspiro profundo e entrecortado, mexeu-se um pouco para ajeitar-se melhor, mas para Mary era o sinal de que o seu momento tinha terminado. Delicadamente, afastou-se ligeiramente dele, de modo que Tim ainda permanecesse entre seus braços, mas pudesse erguer a cabeça para fitá-la. Aumentou a pressão exercida por sua mão mergulhada entre os cabelos do rapaz até que ele foi forçado a levantar o rosto e Mary sentiu o bafo do seu hálito de encontro a garganta. Na penumbra, a sua beleza tinha algo de alucinante, era um Oberon ou um Morfeu, irreal, extra-terreno. O luar, penetrando-lhe nos olhos, cobrira-os com uma camada azul prateada; fitavam-na às cegas, como se a estivesse vendo através de uma tênue cortina. Talvez ele a visse realmente assim, pois descobrira nela coisas que ninguém mais sequer imaginara, pensou Mary.

— Tim, por que não me conta o que o está deixando tão infeliz?

— É a minha Dawnie, Mary. Vai embora dentro em breve e não terei mais ocasião para vê-la sempre. Não quero que a minha Dawnie vá embora, quero que continue morando com a gente!

— Compreendo — Baixou o olhar e fitou aqueles olhos imóveis e iguais à pedra da lua. - Ela vai se casar, Tim? É por esta razão que vai embora?

— É, mas não quero que se case e vá embora! - gritou desesperado.

— Tim, à medida que os anos vão passando, a gente descobre que a vida é feita de encontros, conhecimentos e despedidas. Às vezes a gente gosta das pessoas que conhece, às vezes não gostamos delas, porém conhecê-las é a coisa mais importante que existe na vida, é isto que nos transforma em seres humanos. Veja bem... durante diversos anos recusei-me a admitir tal coisa e, por isso, não era um ser humano muito bom. Depois encontrei-o, e conhecê-lo causou uma espécie de transformação em minha vida, tornei-me um ser humano melhor.

— Ah, Tim, mas as despedidas!... Estas são os momentos mais duros, mais difíceis de serem aceitos, principalmente quando amamos. A separação significa que as coisas já não serão como antes. Alguma coisa deixou a nossa vida, falta um pedacinho de nós mesmos que nunca mais poderá ser reencontrado ou recolocado de volta no mesmo lugar. Contudo, existem diversas espécies de separações, Tim, porque elas fazem parte da vida assim como os encontros e os conhecimentos. O que tem a fazer é lembrar-se de que conhece a sua Dawnie. Não deve passar seu tempo lamuriando-se por ter que se separar dela de vez que esta separação não pode ser evitada, e tem que acontecer. Se conseguir se recordar de que a conhece ao invés de lastimar-se por perdê-la, não sofrerá tanto.

— E tudo o que eu disse é extenso e complexo demais e não entendeu uma única palavra, ou compreendeu, meu querido?

— Acho que entendi um pouquinho, Mary - respondeu Tim, muito sério. Mary riu, dispersando a duração daquele momento, e então afastou-se de seus braços. Endireitando o corpo novamente, ela estendeu a mão e ajudou-o a se ajeitar.

— Mary, o que disse... isto quer dizer que um dia também averei de ir embora?

— Não, a menos que o queira ou então se eu morrer.

A fogueira tinha se apagado, pequeninos anéis de fumaça emergiam do meio dos grãos de areia e, de repente, a praia ficou gélida, Mary tremeu de frio, encolheu-se toda.

— Venha, Tim, vamos voltar para casa que está quentinha e clara.

Tim deteve-a, os olhos presos em seu rosto com uma ansiedade intensa e bastante estranha a ele.

— Mary, sempre quis saber, mas ninguém vai me explicar! O que é morrer, morrendo e morto? É tudo a mesma coisa?

— Sim, tudo está relacionado com a mesma coisa. - Pegou a mão dele, colocou-a sobre o próprio peito, logo acima do bico do seio esquerdo. — Pode Sentir o seu coração batendo, Tim? Percebe esse pum-pum, pum-pum, Pum-pum sob a sua mão, essa vibração que está sempre presente, sem parar Por um segundo sequer?

Tim fez um sinal afirmativo com a cabeça, fascinado.

— Sim, sinto! Realmente sinto!

— Muito bem, enquanto ele bate, pum-pum, pum-pum, pum-pum, você pode enxergar e ouvir, andar, chorar e rir, comer e beber e acordar pela manhã, sentir o sol e o vento.

— Quando falo a respeito de viver é a isto que me refiro, ver e escutar, andar, rir e chorar. Mas você já viu as coisas ficarem velhas, gastas, espatifadas? Por exemplo, um carrinho de mão ou um misturador de concreto? Pois bem, nós, todos nós que temos um coração batendo sob as costelas — e isto toca a todos, Tim, todo mundo! — também ficamos velhos, cansados e desgastados. Finalmente, começamos a nos despedaçar e esta coisa que pulsa e que você sentiu acaba parando, como um relógio que esquecemos de dar corda. Isto acontece com todos, quando chega a nossa hora. Alguns se gastam mais depressa do que os outros, alguns desaparecem acidentalmente, se sofrem um desastre de avião ou algo parecido. Ninguém sabe quando desaparecerá, não é uma coisa que se possa controlar ou predizer. Um dia acontece, quando já estamos cansados e acabados demais para continuarmos.

— Tim, quando nossos corações param de pulsar, nós paramos. Nunca mais poderemos ver ou ouvir, não poderemos mais andar, não comeremos, não soltaremos gargalhadas nem choraremos. Estamos mortos, Tim, não existimos mais, paramos e teremos que ser colocados num lugar onde poderemos jazer e repousar sem sermos perturbados, debaixo da terra para todo o sempre.

— Isto acontece a todos nós e não há nada a se temer, não pode nos magoar, É a mesma coisa que dormir e nunca mais acordar... e quando se está dormindo nada pode nos fazer mal, não é verdade? É gostoso dormir, seja na cama ou debaixo da terra. O que temos que fazer é aproveitar a vida enquanto estamos vivos e depois não ter medo de morrer quando chegar a nossa hora de parar.

— Então vou morrer tão tranqüilo como você, Mary! - disse Tim, cheio de emoção, o rosto bem junto ao dela.

— Sim, é isso o que deve fazer, porém sou velha e você é jovem, portanto se as coisas correrem como devem, pararei antes de você. Estou mais gasta do que você, entende?

Mais uma vez Tim estava a ponto de chorar.

— Não, não e não! Não quero que morra antes de nim, não quero que seja assim!

Mary segurou as mãos dele, acariciando-as.

 

— Vamos, Tim, não se sinta triste! O que foi que acabei de lhe dizer? Viver é aproveitar cada minuto enquanto estamos vivos! Morrer é futuro... portanto, não nos devemos preocupar < com isso nem pensar a respeito!

— Morrer é a separação final, Tim, a pior de todas para se suportar, porque a separação para sempre. Porém, todos nós vemo-nos diante disso, logo não é uma coisa que possamos fazer de conta que não existe.

— Se somos adultos e sensíveis, se somos gente forte e boa, compreendemos a morte, sabemos da sua existência porém não permitimos que isto nos preocupe. Pois bem, sei que é um adulto e é sensível, sei que é uma pessoa forte e boa, portanto quero que me prometa que não vai se preocupar com a morte, que não terá medo que aconteça a mim ou a você. E desejo que prometa que nas horas das separações, tentará ser um homem, que não deixará a pobre Dawnie triste ficando triste. Dawnie também está viva, tem tanto direito quanto você de encontrar a sua maneira de gozar a vida e não deve tornar as coisas difíceis para ela, deixando-a perceber o quanto está aborrecido.

Mary pegou o queixo de Tim e olhou-o nos olhos enevoados.

— Sei que é bom, forte e delicado, Tim, portanto quero que demonstre tudo isto para a Dawnie e seja tudo isto com relação às coisas tristes que ainda possam lhe acontecer, porque não deve se sentir infeliz um minuto a mais do que o necessário. Promete?

Tim fez um sinal afirmativo com a cabeça.

— Prometo, Mary.

— Agora, vamos voltar para casa. Estou com frio.

Mary acendeu o aquecimento da sala de estar e pôs uma música que, sabia, iria deixá-lo feliz e alegre. A terapia deu certo e, pouco depois, Tim ria e conversava como se nada tivesse acontecido que pudesse ameaçar o seu mundo. Pediu a Mary para lhe dar uma lição de leitura, no que foi atendido com prazer. Depois exibiu uma outra forma de divertimento, rolando pelo chão aos pés de Mary e sentando-se com a cabeça apoiada no braço de sua cadeira.

— Mary? — disse Tim depois de algum tempo, exatamente no instante em que Mary abria a boca para lhe dizer que já era hora de ir para a cama.

— O que é?

Tim virou-se a fim de poder vê-la.

— Quando eu estava chorando e você me acariciou, como se chama isso?

Ela sorriu e bateu em seu ombro com ternura.

— Acho que não tem uma qualificação especial. Suponho que possa ser definido como conforto. Sim, creio que seja conforto. Por que?

— Gostei disso. A mãe costumava fazer isso há muito tempo atrás, quando eu ainda era um garotinho, mas depois disse que eu estava ficando grande demais e nunca mais tornou a fazer. Por que você não achou que eu estava grande demais?

Uma das mãos cobriu os olhos e Mary deixou-a ali até que deslizando para o colo apertou uma de encontro a outra.

— Acho que não pensei em você tão crescido, pensei como se você fosse ainda um garotinho. Porém não creio que o importante seja o seu tamanho, acho muito mais importante a densidade do seu problema. Talvez seja um homem adulto agora, porém o seu problema era muito maior, não era? Adiantou alguma coisa ser confortado?

Tim replicou, contente.

— Oh, sim, adiantou muito. Foi muito bom. Gostaria de ser confortado todos os dias.

Mary riu.

— Pode gostar de ser confortado todos os dias, mas isto não acontecerá.

Quando uma coisa acontece com muita freqüência, perde o seu encanto, não acha? Se fosse confortado todos os dias, quer necessitasse de consolo ou não, logo estaria enjoado. Deixaria de ser tão bom quanto parece.

— Mas preciso ser consolado o tempo inteiro, Mary, preciso ser consolado todo dia!

— Ora! Seu espertinho! Você é bem sabido, meu amigo, é um sabidão! Agora já é hora de ir para a cama, não acha?

Tim pôs-se de pé.

— Boa noite, Mary. Gosto de você, gosto mais de você do que qualquer outra pessoa, exceto o pai e a mãe e gosto de você tanto quanto gosto de meu pai e de minha mãe.

— Ah, Tim i ... E a pobrezinha da Dawnie?

— É, gosto da minha Dawnie também, porém gosto mais de você do que dela, gosto mais de você do que de qualquer outra pessoa, exceto meu pai e minha mãe. Vou chamá-la de minha Mary, mas não vou mais chamar a Dawnie de minha Dawnie.

— Tim, não seja rancoroso! Ah... isso é tão cruel e temerário! Por favor não deixe a Dawnie perceber que tomei o seu lugar entre aqueles por quem nutre afeição. Isto iria deixá-la muito triste.

— Mas, Mary, gosto de você... gosto mais de você do que da Dawnie. Não posso fazer nada a esse respeito, não posso mesmo!

— Tim, gosto de você também e muito mais do que de qualquer outra pessoa em todo o mundo, pois não tenho pai nem mãe.

 

Dawnie desejava se casar com Michael Harrington-Smith em fins de maio, o que lhe deixava pouco tempo para os preparativos. Conhecendo as origens da futura esposa de seu filho, os pais de Mick desejavam, tanto quanto Dawnie, reduzir o número dos convidados para o casamento ao mínimo possível.

Os pais dos noivos reuniram-se com eles num lugar neutro a fim de planejar o casamento, e este lugar neutro foi num dos quartos do Hotel Wentworth, onde seria dada a recepção. Todos sentiam-se constrangidos. Ron, de colarinho e gravata, e Es, com as roupas domingueiras sentaram-se na ponta das cadeiras e recusaram-se a manter uma conversa, enquanto que os pais do noivo, para quem colarinho, gravata e cinta eram roupas de todos os dias, falavam com uma voz aborrecida que dava uma ligeira sensação de terem uma batata na boca. Mick e Dawnie esforçaram-se ao máximo para diminuir as tensões, mas nada conseguiram.

— Dawn, é claro, casará com um vestido de noiva e terá no mínimo uma dama de honra - disse Mrs. Harrington-Smith, de modo desafiante.

Es parecia surpresa. Havia-se esquecido que o verdadeiro nome da filha era Dawn e achou indelicado procurarem lembrá-la que escolhera um diminutivo sem classe para usar.

— Hum — replicou. e, Mrs. Hamngton-Smith interpretou aquilo como uma anuência por parte dela.

— Os homens deverão usar para o casamento, ternos escuros e gravatas lisas de setim azul — prosseguiu Mrs. Harnngton-Smith. — Como a cerimônia será pequena e íntima, não ficaria nada bem usarem roupas claras ou casaca com gravata branca.

— Hum - tornou a murmurar Es. Por debaixo da mesa sua mão procurou a do mariddo e quando as duas se tocaram ela apertou-a agradecida.

— Farei uma lista das pessoas que a família do noivo deseja convidar, Mrs. Melvile.

E por aí continuou, até que Mrs. Harrington-Smith observou:

— Parece-me que Dawn tem um irmão mais velho, Mrs. Melville, contudo Michael não me disse qual seria a sua posição na cerimônia. A senhora compreende, é claro, que não poderá ser o padrinho de vez que Hilary Arbuckle-Heath, amigo de Michael, ficará com o encargo e, na verdade, não vejo o que restará para ele numa cerimónia tão simples. A menos, é claro, que Dawn mude de idéia e resolva levar duas damas de honra.

— Está bem, minha senhora - disse Ron muito sério, apertando a mão de Es. - Tim não está pretendendo comparecer ao casamento. Na verdade, achamos melhor deixá-lo passar o dia com Miss Mary Horton.

Dawnie disse com a voz entrecortada:

— Oh, papai, não pode fazer uma coisa dessas! Tim é meu único irmão, quero que assista ao meu casamento!

— Mas, Dawn, meu amor, você sabe que Tim não suporta estar no meio de muita gente! - protestou o pai. - Imagine só que vexame se ele vomitasse por todos os cantos! Santo Deus, ia ser uma maravilha, não? Não, acho melhor ele ir para a casa de Miss Horton, assim as coisas correrão muito melhor.

Os olhos de Dawnie encheram-se de lágrimas.

— Qualquer pessoa julgaria que sentimos vergonha dele, papai! Não tenho vergonha dele, quero que todos o conheçam e gostem tanto dele quanto eu!

— Dawnie, querida, acho que o seu velho está com razão no que diz respeito a Tim - disse Es, correndo em auxílio do marido. - Você sabe a ojeriza que ele sente pelas multidões, e ainda que não ficasse enjoado e não vomitasse haveria de se sentir muito triste se tivesse que ficar quieto, sentadinho, durante toda a cerimônia do casamento.

Os Harrington-Smith entreolhavam-se, totalmente desnorteados.

— Pensei que ele fosse mais velho do que a Dawn - comentou Mrs. Harrington-Smith. - Desculpe-me, não imaginei que se tratasse de uma criança.

— Bem... ele não é uma criança! — Retrucou Dawnie, enquanto seu rosto enchia-se de manchas vermelhas. — Ele é um ano mais velho do que eu mas sofre de um retardamento mental, é isto que eles tentam esconder de todo o mundo!

Seguiu-se um silêncio terrificante. Mr. Harrington-Smith tamborilou com os dedos sobre a mesa e Mick olhou para Dawnie repleto de surpresa.

— Nunca me contou que Tim era um retardado — falou, dirigindo-se a ela.

— Não, não comentei, porque nunca me passou pela cabeça que isto fosse tão importante! Convivi com Tim toda a minha vida e ele faz parte dela, é uma parte muito importante de minha vida! Nunca me lembro que é um retardado quando me refiro a ele, é só isso!

— Não fique zangada, Dawn! - implorou Mick. - Na verdade, isso não tem muita importância, tem toda a razão. Fiquei apenas um pouco surpreso.

— Pois bem, estou aborrecida! Não estou tentando esconder o fato de meu único irmão ser um retardado, parece que meus pais é que tomaram a si esse encargo! Papai, como teve coragem?

Ron parecia embaraçado.

— Bem, Dawnie, não estávamos exatamente tentando esconder a sua deficiência, pensamos, apenas, que seria menos uma preocupação para você, se ele não comparecesse. Tim não suporta multidões, sabe disto muito bem. Todos ficam com os olhos grudados nele e isto cria para ele uma situação estranha.

— Oh, meu Deus, é tão ruim olhar para ele? - indagou Mrs. Harrington-Smith, com uma ligeira expressão de dúvida estampada nos olhos ao fitar Dawnie.

Seria um mal de família? Como Mick fora idiota ao escolher uma moça de classe inferior como aquela depois de ter a oportunidade de se prender a tantas pequenas maravilhosas! Está claro, todos afirmavam que Dawn tinha uma inteligência fora do comum, porém isto não podia substituir um bom nascimento, nunca poderia sobrepujar a vulgaridade, e toda aquela família era vulgar, vulgar a não mais poder! A moça não tinha a menor polidez, não sabia se comportar ao lado de pessoas decentes.

— Tim é o homem mais bonito que jamais vi - replicou Dawnie, com orgulho. - As pessoas fitam-no assombradas e não por repulsa, contudo ele não sabe discernir entre as duas sensações! Tudo quanto percebe é que está sendo alvo de todos os olhares e isso não lhe agrada.

— Oh, olhar para ele é maravilhoso — acrescentou Es. — Parece-se com um deus grego, segundo afirma Miss Horton.

— Miss Horton? - indagou Mick, procurando mudar de assunto.

— Miss Horton é uma senhora para quem Tim faz serviços de jardinagens nos fins de semana.

— Ah, sim? Quer dizer que Tim é um jardineiro?

— Não, ele não é nenhum jardineiro! - exclamou Dawnie irritada, indignada com o tom em que foi formulada aquela pergunta. — Durante a semana ele trabalha como um operário em construção e ganha algum dinheiro extra nos fins de semana cuidando dos jardins dessa senhora rica.

A explicação de Dawnie só serviu para piorar as coisas ainda mais. Os Harrington-Smith remexiam-se nas cadeiras e evitavam olhar uns para os outros ou para os Melville.

— Tim tem um QI igual a 75. - Explicou Dawnie, já mais calma. - Como tal, não é uma pessoa capacitada ao trabalho, porém meus pais foram maravilhosos com ele, desde o começo. Compreenderam que não estariam aqui para sustentá-lo a vida inteira, portanto trataram de educá-lo de modo a ser auto-suficiente e independente na medida do possível. A partir dos quinze anos, ganhou para se sustentar como um operário sem especialização, o único tipo de trabalho que pode realizar. Devo acrescentar que trabalha até hoje Para o homem que o contratou quando estava com quinze anos, o que talvez Sirva para lhes demonstrar quanto vale e que bom empregado é.

— Assim que papai descobriu que ele sofria de um retardamento mental, tratou de fazer uma apólice para ele, assim não precisará ter preocupações financeiras, sempre terá o suficiente para viver. Quando comecei a trabalhar, ajudei a aumentar o prémio do seguro e uma parte do salário de Tim também é destinada a isso. Tim é o membro mais rico da família, não é divertido isso?

— Até há bem pouco tempo, ele não sabia ler nem escrever ou fazer qualquer tipo de contas, porém minha mãe e meu pai ensinaram-lhe as coisas realmente importantes, por exemplo, como se movimentar pela cidade para se deslocar da firma para o local de trabalho; e pela cidade sem precisar estar sempre acompanhado por alguém. Ensinaram-lhe a contar o dinheiro, embora não seja capaz de contar qualquer outra coisa, o que não deixa de ser estranho. Vocês diriam que poderia associar o que pode fazer com o dinheiro com outros tipos de conta, mas isto Tim não consegue. É uma das desagradáveis brincadeiras feitas pelas mentes retardadas. Contudo, sabe pagar a passagem de ônibus ou de trem, é capaz de comprar comida e roupas. Atualmente, ele não representa um fardo para nós, como, aliás, nunca o foi. Sinto muito orgulho de meu irmão e tenho por ele uma grande afeição. Não existe pessoa mais delicada, mais doce e mais maravilhosa do que Tim. E, Mick — acrescentou, dirigindo-se ao noivo — quando meu irmão ficar totalmente só e precisar de um lar, vou levá-lo para morar comigo. Se não estiver de acordo, as coisas não irão nada bem! Acho melhor resolver logo este problema!

— Minha querida, minha querida Dawn - respondeu Mick, imperturbável - pretendo casar com você de qualquer maneira, mesmo que tivesse dez irmãos retardados e totalmente mentecaptos.

A resposta não lhe satisfez, porém estava aborrecida demais para analisar a questão e, mais tarde, esqueceu-se de tudo.

— Não se trata de um problema de família — explicou Es, de maneira tocante. — Os médicos disseram que foi resultado dos meus ovários. Já estava com mais de quarenta anos quando me casei com o Ron e nunca tivera filhos antes. Por isso Tim não nasceu totalmente são, entendem? Dawnie nasceu normal porque meus ovários se recuperaram por si mesmos. Eles só atingiram o primogênito, o Tim. Mas estejam certos de uma coisa, não existe rapaz melhor do que ele, a Dawnie está com toda razão.

— Compreendo — respondeu Mrs. Harrington-Smith, sem saber o que poderia dizer. — Acho que cabe a Mr. e Mrs. Melville decidirem se o filho deve ou não comparecer à cerimônia do casamento.

— E nós resolvemos - disse Es, com determinação. - Tim não gosta de multidões, portanto não irá. Miss Horton ficará satisfeita se puder passar o fim de semana com ele.

Dawnie explodiu em lágrimas e correu para o toilete, onde sua mãe encontrou-a alguns minutos mais tarde.

— Não chore, queridinha. — falou Es, batendo levemente em seus ombros.

— Mamãe, tudo está saindo errado! Você e o papai não gostam dos Harrington-Smith, eles por sua vez, não gostam de vocês também e já nem sei mais o que Mick pensa! Oh, vai ser horrível!

— Deixe isso pra lá. Ron e eu, viemos de um mundo diferente do dos Harrington-Smith,, é só isso. Geralmente, pessoas como eles não se misturam com gente igual a nós, portanto como pode querer que eles saibam como agir, tendo que se envolver com pessoas como nós? E a mesma coisa aplica-se ao outro lado, querida. Os Harrington-Smith, não são o tipo de pessoas com que jogo as minhas partidas de tênis nas terças, quintas e sábados, ou como aqueles que Ron costuma encontrar no Seaside ou no Leagues Club

— Você é uma adulta, Dawnie, e uma pequena muito inteligente. Deveria saber que jamais poderíamos manter laços de amizade entre nós. Nós não nos encontraremos, não manteremos relações estreitas, só nos veremos, quem sabe, para os batizados e coisas assim. E é assim que deve ser. Por que razão, deveríamos ficar grudados uns nos outros, só porque nossos filhos se casaram, heim? Muito bem, você é suficientemente inteligente para compreender isto, não é verdade?

Dawnie enxugou as lágrimas

— Sim, acho que entendo Mas, oh, mamãe, queria que tudo fosse perfeito’

— Claro, mas, minha querida, a vida nem sempre é assim. Foi você quem escolheu o Mick e ele a você, não fomos nós nem os Harnngton-Smith. Se coubesse a nós a tomada de decisão, jamais teríamos juntado você e Mick e nem tampouco os Harrrngton-Smith o fariam. Ora veja, sobrenome duplo ligado por traço de união. Isso é o máximo do esnobismo, se quer mesmo saber. Porém estamos procurando levar as coisas da melhor maneira possível, meu bem, portanto, não crie tantos problemas por causa do coitadinho do Tim, pelo amor de Deus! Ele nada tem a ver com tudo isto e não está certo que você o envolva. Deixe que ele viva a sua vida e não obrigue os Harrington-Smiths a aceitá-lo. Eles não o conhecem como nós, logo como pode querer que o compreendam?

— Mamãe, você é mesmo um amor, não sei o que faria sem você. Todos pensam que sou a mais inteligente dos Melvilles, mas, às vezes, tenho uma sensação estranha, parece-me que você e o papai é que são os inteligentes. Onde conseguiu toda esta sabedoria?

— Não fui eu nem seu velho, meu bem. A vida faz-nos sensatos, a medida em que vivemos. Quando seus filhos estiverem com a sua idade, você também será formidável e eu já terei deixado este mundo

Finalmente, Ron telefonou para Mary Horton e pediu-lhe para solucionar a questão sobre a presença de Tin no casamento. Muito embora nunca tivessem se encontrado e Ron tivesse consciência de que Miss Horton pertencia muito mais ao meio dos Harnngton-Smith do que ao dos Melville, sentia-se muito à vontade com ela. Ela compreenderia o seu dilema e arranjaria a solução certa para ele

— As coisas não estão nada bem, Miss Horton - disse, com a respiração entrecortada - Os Harrington-Smith não estão muito satisfeitos com a mulher que o filho escolheu e, para ser honesto, não os posso criticar. Têm medo que ela não se adapte ao novo meio, e se Dawnie não fosse tão inteligente, eu também estaria receoso quanto a isto. Creio porém que ela aprenderá muito mais depressa do que eles possam pensar e ninguém jamais terá ocasião de sentir-se embaraçado por causa de qualquer coisa que ela diga ou faça.

— Não conheço a Dawnie pessoalmente, Mr. Melville, mas pelo que tenho ouvido a seu respeito, não tenho dúvidas de que tem razão. — Respondeu Mary, cheia de simpatia - Não me preocuparia com ela.

— Oh, mas não estou preocupado com ela! - Replicou Ron. - Dawnie tem muita fibra, saberá como conduzir as coisas. O Tim é que me deixa arrasado.

— O Tim? Por que?

— Bem... ele é diferente. Jamais amadurecerá e não sabe quando comete erros, não é capaz de aprender através da vivência. O que irá acontecer com o o pobrezinho quando nós nos formos?

— Acho que vocês realizaram um esplêndido trabalho com o Tim - disse Mary, sentindo um nó na garganta. - Vocês educaram-no de modo a ser independente e auto-suficiente.

— Ah, tenho consciência de tudo isso! — Retrucou Ron, com um pouco de impaciência. — Se o problema fosse esse... a senhora entende, se se tratasse apenas dele saber cuidar de si mesmo eu não me preocuparia, porém não é isso. Tim precisa do amor de seus pais para se sentir tranqüilo, de vez que não amadureceu o suficiente para encontrar alguém que nos substitua,! uma mulher e uma família toda sua, quero dizer, aquilo que normalmente fazem os homens.

— Mas ele ainda terá a companhia de vocês por muitos anos, Mr. Melville! Ainda são moços, tanto o senhor como a sua mulher.

— É aí que a senhora se engana, Miss Horton, Es e eu já não somos moços. Temos uma diferença de seis meses e completaremos setenta anos ainda este ano.

— Oh! - Houve um momento de silêncio, depois Mary tornou a falar com menos segurança. - Não imaginava que o senhor e Mrs. Melville fossem tão idosos!

— Bem... somos. Veja só, Miss Horton, a Dawnie se casando com um gran-fino que, evidentemente, não vai querer ver o irmão retardado de sua mulher] por perto... Es e eu estamos quase loucos por causa do Tim. Às vezes, durante a noite, escuto a coitada da Es chorando e sei que o faz por causa do Tim. Não conseguirá viver muito tempo depois que desaparecermos, a senhora entende isto, não? Quando vir que está totalmente só, vai morrer... espere e verá.

— As pessoas não morrem de angústia, Mr. Melville. — Disse Mary, com delicadeza, coisa pouco comum em sua maneira de ser.

— Ora que droga, não morrem não! — explodiu Ron. — Hum, desculpe-me, Miss Horton, eu Sei que não deveria xingar assim, porém não fique acreditando que as pessoas não morrem de angústia! Já vi isto acontecer, e mais de uma vez, pode ficar certa, com Tim acontecerá isso, irá definhando até morrer. Minha querida Miss Horton, a gente tanto precisa de vontade de viver quanto de saúde para prosseguir vivendo E, quando Tim não tiver mais ninguém para cuidar dele, morrerá. Vai ficar sentado num canto, chorando e esquecendo-se de comer até o fim.

— Bem enquanto eu estiver por aqui ele terá quem olhe por ele — ofereceu-se Mary

— Mas a senhora também não é mais uma jovem, Miss Horton. Esperava que Dawnie fosse tomar conta dele, mas agora já não posso mais contar com isso — Soluçou — Ora também não adianta nada chorar sobre o leite derramado, não é mesmo?

Mary esteve a ponto de lhe revelar que não estava com setenta anos, porém antes que pudesse falar, Ron retomou a palavra

— Liguei para a senhora, na verdade, para saber a sua opinião a respeito do Tim ir ou não ao casamento. Gostaria que comparecesse, mas sei que vai se sentir chateado, tendo que ficar sentado durante toda a cerimônia e depois ter que agüentar a recepção. Dawnie ficou muito aborrecida quando eu lhe disse que Tim não deveria ir, mas continuo pensando da mesma forma. Assim, imaginei que talvez a senhora não se importasse de ficar com ele nesse fim de semana

— Claro que não, Mr Melvile. Contudo, seria lastimável se ele não pudesse estar aí, na sua casa, para ver Dawnie se vestir e poder ir assistir ao casamento. Vou lhe dizer o que podemos fazer. Por que não o leva à igreja para assistir à cerimônia? Tão logo estivesse terminada, eu estaria esperando por ele do lado de fora, o que o desobrigaria de seguir para a recepção

— Ora, esta é uma idéia esplêndida, Miss Horton! Nossa, por que não pensei nisto? Isso solucionaria todas as nossas preocupações, não lhe parece?

— Sim, creio que sim. Assim que souber de todos os detalhes a respeito da hora, lugar e etcetera, avise-me por telefone e dou-lhe a minha palavra que tomarei conta de Tim depois da cerimônia

- Miss Horton, a senhora é genial, genial mesmo’

 

Tim achou os preparativos para o casamento emocionantes. Durante a semana que o antecedeu, desdobrou-se em cuidados e carinhos e dedicou-se completamente à família.

Na manhã do casamento, um sábado, Tim estava fascinado com a afobação e o pânico que parecia querer tomar conta de todos a qualquer instante. Ficou andando atrás de todos, cheio de sugestões prestimosas. Compraram para ele um terno novo, azul marinho com calças de tecido brilhante e um paletó acinzentado e ligeiramente amplo, a la Cardin, e Tim estava todo convencido. Enfiou-se na roupa assim que acordou e empertigou-se todo tentando observar-se em todos os espelhos espalhados pela casa.

Quando viu Dawnie pronta, ficou perplexo.

— Oh, Dawnie, você está igualzinha a uma princesa de contos de fadas! — suspirou, fitando-a com os olhos azuis arregalados.

A irmã abraçou-o com força, tentando conter as lágrimas.

— Ah, Tim, se algum dia tiver um filho, espero que seja tão lindo quanto você — murmurou, enquanto lhe beijava o rosto.

Tim estava maravilhado, não com a referência ao filho dela, o que não compreendeu, mas com o abraço.

— Você me confortou! - exclamou exultante. - Você me confortou, Dawnie! Gosto de ser confortado... é a coisa melhor que conheço.

— Agora, Tim, vá lá para o portão da frente e fique olhando os carros como um bom menino - disse-lhe Es, imaginando se ainda conseguiria ver as coisas de forma correta e procurando ignorar aquela dorzinha enjoada que vinha sentindo ultimamente do lado.

Dawnie tomou a primeira limusine ao lado do pai, a dama de honra seguiu na segunda e Es e Tim foram na última.

— Agora, Tim, fique sentado, bem quietinho e procure ser um bom menino - advertiu a mãe, acomodando-se de encontro ao encosto deliciosamente macio do assento traseiro e soltando um suspiro.

— Mamãe, você está linda - disse Tim, mais acostumado a andar em carros caros do que sua mãe e encarando aquilo com naturalidade.

— Obrigada, querido, mas quem me dera estar me sentindo bem — replicou Es.

Es procurara não exagerar na maneira de se vestir para a cerimônia, sabendo que os sogros de Dawnie não gostariam do costumeiro exagero das mães das noivas do meio dos Melvilles. Portanto, com um suspiro de pena tinha desistido do seu sonho maravilhoso a respeito de um vestido em renda de guipire lilás, casaco, sapatos e chapéu e um ramalhete de lírios tintos para combinar com a roupa. Ao invés disso, escolhera um vestido e casaco de shantung de seda azul bem claro sem o ramalhete, apenas duas modestas rosas brancas.

Quando ela e Tim acomodaram-se no banco reservado à família da noiva, a igreja já estava repleta. Ao caminhar pelo centro do templo percebeu, perfeitamente, os olhares que os convidados do noivo lançavam para Tim, perplexos, imaginou ela, como se eles fossem uns joão ninguéns. Mr. e Mrs. Harrington-Smith fitavam-no como se não pudessem acreditar nos próprios olhos, enquanto todas as mulheres abaixo de noventa anos ficaram logo apaixonadas por ele. Es sentia-se imensamente feliz por ele não comparecer à recepção.

Tim comportou-se magnificamente durante toda a cerimônia, que não foi muito demorada. Depois, enquanto os flashes dos fotógrafos explodiam e procedia-se aos cumprimentos, Es e Ron levaram o filho até a parede perto da porta de entrada da igreja e mandaram-no sentar sobre a mureta.

— Agora fique aqui esperando pela Mary como um bom menino e não fique perambulando por aí, está ouvindo? - disse Es com firmeza.

Tim fez um sinal afirmativo com a cabeça.

— Está bem, mãe, ficarei esperando aqui. Posso me virar para ver a Dawnie descer os degraus?

— Claro que pode. Só não quero que fique andando por aí, e se alguém aproximar-se e tentar puxar conversa, responda educadamente e depois não diga mais nada. Agora eu e o pai precisamos voltar lá-para dentro, pois devemos tirar os retratos, que Deus me ajude. Tornaremos a nos ver amanhã à noite quando Miss Horton o levar de volta à casa.

O cortejo dos noivos e os convidados já tinham ido embora quando Mary Horton descia a rua. Estava aborrecida consigo mesma, pois tinha se perdido no meio do emaranhado das pequeninas ruas que circundam o Darhng Point, pensando que St. Marks era uma outra igreja localizada perto da New South Head Road.

Tim continuava sentado sobre a pequena mureta de pedras na frente do templo, o sol filtrando-se por entre as árvores cheias de folhas, formando suaves listras douradas repletas de partículas de poeira. Ele parecia tão perdido, tão só e triste, os olhos presos no asfalto e, sem dúvida, perguntando a si mesmo o que tinha acontecido com ela. O terno novo caía-lhe com perfeição, porém, dava-lhe um aspecto de uma pessoa estranha, bem mais atraente e sofisticada. Somente a atitude era de Tim, obediente e tranqüilo como um garotinho bem comportado. Ou como um cãozinho, pensou Mary. Como um cachorrinho ele seria capaz de permanecer ali até morrer de fome mas não se afastaria numa tentativa de sobrevivência, de vez que as pessoas que amava tinham-lhe mandado ficar ali sentado e imóvel.

As palavras pronunciadas por Ron ao telefone a respeito da possibilidade de Tim morrer de tristeza, martelavam sem cessar na sua cabeça. Tinha a certeza de que Ron pensava pertencer ela à sua geração, estar a caminho dos setenta, porém Mary não o contradissera sentindo uma estranha relutância em deixar transparecer a sua verdadeira idade. E por que agi assim? perguntou a si mesma; foi desnecessário e tolo.

Será que alguém poderia, realmente, morrer de tristeza? Naquelas novelas antigas e românticas, tão fora de moda atualmente, as mulheres morriam de paixão. Mary sempre achara que o fim da heroína era simples fantasia da imaginação agitada do autor, bem como todo o resto da trama. Porém, talvez fosse mesmo possível que tal acontecesse. O que faria ela se Tim tivesse que se separar dela para sempre, sair de sua vida, afastado pelos pais revoltados ou, Deus o livre, pela morte? Como seria triste e vazia a vida se não existisse Tim... como seria fútil e inútil continuar no mundo sem ele. Ele transformara-se no centro de toda a sua existência, uma coisa que já diversas pessoas haviam notado.

Mrs. Emily Parker a tinha visitado em sua casa, não fazia muito tempo, e dissera-lhe:

— Não a tenho visto mais nos fins de semana, não é mesmo?

Mary tinha murmurado alguma coisa a respeito de andar sempre muito ocupada.

— Ah, ah, ah — e Mrs. Parker olhara-a de maneira maliciosa. — Ocupada é a palavra certa, não? — Piscou para a vizinha e tocou-lhe nas costelas com as pontas dos dedos, brincando. - A senhora gostou mesmo do jovem Tim, Miss Horton. As velhas faladeiras da rua não param de mexericar com as suas línguas afiadas a respeito de alguma coisa escandalosa.

— Realmente gosto muito do jovem Tim — replicou Mary com calma, recomeçando a recobrar seu equilíbrio. - Ele é um rapaz tão bom, tão ansioso por agradar e tão triste. No começo, pedi-lhe para cuidar do meu jardim por achar que um dinheirinho extra seria bom para ele, depois, quando comecei a conhecê-lo melhor, passei a gostar dele por si mesmo, ainda que não seja bom da cabeça, como todos costumam afirmar. Ele é sincero, afetuoso e nada astucioso. É tão gostoso encontrar alguém que não tem intenções dissimuladas, não acha? - e fitou Mrs. Parker com ternura.

Mrs. Parker fitou-a também, surpresa.

— Hum... bem, creio que sim. E como a senhora é tão sozinha, Tim é uma ótima companhia, não é mesmo?

— Sem dúvida alguma! Tim e eu nos divertimos imensamente. Fazemos jardinagem, ouvimos música, nadamos, fazemos piqueniques, uma quantidade de coisas. Seus gostos são simples, o que me está ensinando a apreciar a simplicidade. Não sou uma pessoa muito fácil para se conviver, porém o Tim, de alguma maneira, dá-se muito bem comigo. Está conseguindo tirar o melhor que existe em mim.

Apesar de toda a sua curiosidade, a velha senhora era uma boa pessoa e geralmente não fazia críticas. Bateu no braço de Mary, encorajando-a.

— Estou contente por você, minha cara. Acho muito bom que tenha encontrado alguém para lhe fazer companhia, sendo tão sozinha e tudo o mais. Vou tratar de pôr um fim nesse disse-me-disse dessas velhas mexeriqueiras aqui da rua. Já lhes afirmei que você não era do tipo capaz de comprar um namorado.

— Bem, que me diz de tomarmos uma xícara de chá? Quero saber tudo a respeito do jovem Tim e como tem passado.

Mas, por alguns momentos, Mary não se mexeu, e o seu rosto não espelhava a menor expressão. Depois, encarou Mrs. Parker, cheia de espanto.

— É isso o que estão pensando? — perguntou com tristeza. - Foi isso mesmo o que elas pensaram? Que coisa horrível! Que falta de classe! Não estou preocupada por mim, mas sim pelo Tim! Oh, meu Deus, que coisa mais revoltante!

Archie Johnson, o patrão de Mary, fora outra pessoa que já notara a transformação porque passava, muito embora não tivesse a mínima idéia do que a estava provocando. Estavam os dois num almoço rápido no restaurante da empresa quando Archie abordou o assunto.

— Sabe de uma coisa, Mary? Não tenho nada com isto e estou totalmente preparado para ser posto em meu lugar, caso seja inconveniente, mas ultimamente tem acontecido alguma coisa com você?

Mary encarou-o, perplexa e apanhada de surpresa.

— Como, senhor?

— Ora, Mary, deixe disso! E não me trate de ”senhor” ou de ”Mr. Johnson”! Estamos fora de horário de trabalho.

Mary pousou o garfo e a faca sobre o prato e olhou para ele com toda a tranqüilidade. Os dois trabalhavam juntos há muitos anos, tantos que nem se davam ao trabalho de contá-los, porém o relacionamento dos dois sempre fora estritamente profissional e ela ainda não se sentia muito à vontade quando estavam juntos nos encontros não muito freqüentes, porém, obrigatoriamente sociais.

— Archie, se está achando que estou mudada ultimamente, por que não diz logo? Não ficarei ofendida.

— Pois bem, era exatamente isto o que queria dizer. Você está diferente. Você ainda continua sendo aquela chefe tremendamente severa que assusta as jovens datilógrafas, porém está mudada. Por Deus, você realmente mudou! Até mesmo os outros habitantes do nosso pequeno mundo já o notaram, pelo menos, por um lado você parece estar com um aspecto bem melhor do que antes, como se andasse tomando banhos de sol ao invés de viver debaixo de uma pedra como uma lesma. E, para falar a verdade, ainda no outro dia, escutei-a soltando uma gargalhada, quando aquela tolinha da Celeste fazia as suas palhaçadas.

Mary sorriu com timidez para o patrão.

— Muito bem, Archie, creio que isto pode ser resumido de uma forma melhor se disser que finalmente passei a fazer parte da raça humana. Não acha esta frase adorável? Tão equilibrada e séria quanto o possa ser um clichê.

— Mas, afinal o que fez uma mulher madura como você passar a fazer parte da raça humana depois de tantos anos? Arranjou um namorado?

— Mais ou menos, muito embora não seja do tipo que todos possam estar imaginando. Meu caro Archie, às vezes acontecem coisas que podem ser positivas para uma mulher madura, bem mais positivas do que um simples prazer sexual.

— Oh, concordo com isso! O que opera milagres é o fato de se amar e de se sentir ser amado. Trata-se daquela maravilhosa sensação de ser querido, necessário e estimado. A parte sexual limita-se ao papel da cobertura de um bolo.

— Mas quanta perspicácia! Não é de se espantar se vimos nos dando tão bem durante tantos anos! Archie, você possui muito mais sensibilidades e percepção do que a maioria dos homens de negócios.

— Mary, apesar das poucas possibilidades de ardor... você modificou-se! E para melhor, devo acrescentar. Se continuar melhorando dessa maneira, talvez eu a convide para ir jantar comigo.

— Que maravilha! Gostaria imensamente de rever a Tricia!

— E quem disse que a Tricia estaria convidada? — falou, sorrindo com naturalidade. - Já devia adivinhar que não tinha sofrido uma modificação tão grande assim! Agora, falando sério, acho que a Tricia ficaria encantada de ver com seus próprios olhos a mudança porque passou, portanto, por que não vai jantar conosco uma noite dessas?

— Gostaria muito. Diga a Tricia para me telefonar e marcaremos o dia.

— Agora chega de divagações! De onde provém essa sua nova fonte de fé na vida, minha cara?

— Creio que deveria dizer que se origina numa criança, porém ele é um tipo de criança muito especial.

— Uma criança! — Archie recostou-se na cadeira todo alegre. — Deveria ter imaginado que se tratava de uma criança! Uma criatura incorruptível como você ficaria mais doce sob uma influência infantil do que sob a de um homem.

— A coisa não é tão simples assim — respondeu Mary, devagar, assombrada por estar tão calma, natural e consciente. Nunca se sentira tão à vontade ao lado de Archie como naquele momento. — Chama-se Tim Melville, está com vinte e cinco anos, mas, apesar disto, é uma criança. É retardado.

— Meu Deus, mas o que é isto? - exclamou Archie, com os olhos grudados em Mary. — Que diabo, como foi lhe acontecer uma coisa dessas?

— Acho que foi de repente. É muito difícil ficar na defensiva com alguém que não entende o que seja defesa e é ainda mais duro ferir os sentimentos de alguém que não compreende porque tal lhe acontece.

— Sim, tem razão.

— Muito bem, nos fins de semana levo-o comigo para Gosford e pretendo, neste inverno, ir com ele até Great Barrier Reef para passar as férias. Ele parece, realmente, preferir estar ao meu lado do que com outras pessoas, salvo o pai e a mãe. São excelentes pessoas.

— E por que razão não haveria ele de dar preferência a ficar com você, sua velha sabida? Pelas barbas do profeta, veja que horas são! Direi a Tricia para marcar uma data para o jantar, aí então quero tomar conhecimento de tudo isso. Enquanto isso, velha rabujenta, trate de trabalhar. O McNaughton comentou alguma coisa com você a respeito da concessão para a exploração em Dindanga?

Mary sentira-se bem, de certo modo, ao ver que tanto Mrs. Parker como Archie tinham aceitado a sua amizade com Tim de modo natural e que de certa forma tivessem ficado satisfeitos por ela. A data para o falado jantar com Archie e sua mulher, tão alegre quanto ele, ainda não fora marcada, porém Mary se deu conta de que, pela primeira vez em vinte anos, ansiava por esse encontro.

Assim que Tim viu o Bentley descendo a rua ficou com o rosto iluminado de alegria e, com um pulo, abandonou imediatamente o lugar onde estava sentado.

— Oh, Mary, estou tão contente em vê-la! — exclamou, acomodando-se no banco dianteiro. — Pensei que tivesse me esquecido.

Mary segurou a mão de Tim e, por um momento, manteve-a encostada ao rosto, tão penalizada e com remorsos por ter chegado atrasada que até se esqueceu da decisão tomada no sentido de nunca mais tocá-lo.

— Tim, jamais faria uma coisa dessas com você. Acontece que me perdi. Pensei que St. Marks era uma outra igreja e acabei ficando toda atrapalhada para chegar até aqui. Agora, fique quietinho aí e alegre-se... pois resolvi ir para Gosford.

— Puxa, que coisa boa! Pensei que íamos ficar em Artarmon porque já é muito tarde.

— Não, por que não podemos ir? Temos ainda muito tempo para darmos uma nadada quando chegarmos, se é que a água não estiver fria demais mas não importa, se estiver muito frio... nós cozinharemos e comeremos na praia. - Mary olhou-o de soslaio, deliciando-se com o contraste entre o seu sorriso feliz de agora e a sua solidão desesperada de alguns minutos antes. - Que tal foi o casamento?

— Foi lindo - respondeu, muito sério. — Dawnie parecia uma princesa de contos de fada e a mãe parecia a madrinha da princesa encantada. Ela estava com um vestido azul claro, tão lindo! e Dawnie usou um vestido comprido todo branco com uma porção de babados, um buquê bem grande na mão e um véu comprido e branco em cima da cabeça, como se fosse uma nuvem.

— Parece muito lindo. Todos estavam contentes?

— Acho que sim — disse, em dúvida. — Mas a mãe chorou, o pai também, só que ele me disse que o vento é que tinha irritado os seus olhos, então ele ficou zangado comigo quando eu falei que não tinha vento nenhum na igreja. A mãe falou que estava chorando por estar se sentindo feliz pela Dawnie. Não sabia que as pessoas choravam quando estavam felizes, Mary. Eu não choro quando estou feliz. Por que a gente vai chorar se está feliz?

Mary sorriu. Sentia-se repentinamente tão feliz que quase chorou.

— Não sei, Tim, mas às vezes acontece isso. Mas quando a sua felicidade é tão grande a ponto de você chorar, a sensação que se experimenta é diferente, é uma coisa gostosa.

— Pois então, queria poder me sentir tão feliz até chorar! Mary, por que não fico tão contente até chorar?

— Bem, acho que é preciso ser bem velho para que isso possa acontecer. Talvez isso lhe suceda algum dia também, quando já estiver velho e bastante grisalho.

Totalmente satisfeito agora, Tim recostou-se contra o encosto do banco e ficou olhando a paisagem, que nunca parecia cansá-lo. Possuía toda aquela curiosidade insaciável própria dos jovens e a capacidade de repetir sempre a mesma coisa, sem nunca se cansar. Todas as vezes que se dirigiam para Gosford ele agia como se fosse a primeira vez, perplexo com o cenário e o desfile de vida, deliciado ao ver o chalé no final da trilha, ansioso para ver o que teria crescido um pouco mais ou desabrochado numa flor, ou definhado.

Nessa noite, quando Tim foi se deitar, Mary fez uma coisa que nunca fizera antes. Foi até o quarto do rapaz, ajeitou os lençóis em volta de seu corpo e, em seguida, beijou-o na testa.

— Boa noite, Tim querido, durma bem - disse.

— Boa noite, Mary, dormirei - replicou sonolento. Assim que a sua cabeça tocava o travesseiro ele caía num sono profundo.

Então, quando Mary já fechava a porta bem devagarinho, escutou a voz dele mais uma vez:

— Mary?

— Heim, Tim, o que foi? — Mary voltou para o lado da cama.

— Mary... você nunca irá embora e se casará como a minha Dawnie, não é?

Mary soltou um suspiro.

— Não, Tim, prometo, não farei isso. Enquanto você se sentir feliz, estarei aqui. Agora trate de dormir e não se preocupe com isso.

 

Afinal, Mary não pôde se afastar do trabalho para levar Tim às prometidas férias. Constable Steel & Mining adquirira uma concessão mineral na região noroeste e longínqua do continente e, ao invés de ir para Great Barrier Reef com o rapaz, Mary teve de acompanhar o patrão numa viagem de inspeção. Esta, que deveria levar uma semana, acabou durando mais de um mês.

Geralmente, Mary apreciava essas excursões esporádicas. Archie era uma companhia formidável e seu modo de viajar era muito luxuoso. Desta feita, contudo, dirigiram-se para uma região que não contava com estradas, cidades importantes e gente. O último estágio da viagem teve que ser realizado por helicóptero, de vez que não havia a mínima possibilidade de se alcançar o local por via terrestre e o grupo acampou sob uma chuva fora de época, atormentado pelo calor, moscas, lama e o desencadear de uma desinteria.

O que Mary mais sentia era a falta de Tim. Não havia como lhe enviar uma carta e o rádio-telefone destinava-se tão somente a negócios e às chamadas de emergência. Sentada na sua tenda encharcada, tentando tirar um pouco da lama negra e pegajosa agarrada às suas pernas e roupas, com uma densa nuvem de insetos esvoaçando ao redor do solitário lampeão de querozene e o rosto inchado devido à descomunal quantidade de mordidas de mosquitos, Mary sentia saudades de casa e de Tim. A alegria de Archie diante dos resultados do teor mineral era difícil de agüentar, e foi preciso lançar mão de toda a sua habitual compostura para, ao menos, parecer entusiasmada também.

— Nosso grupo era composto de doze pessoas - Archie contou a Tricia quando chegaram de volta a Sidnei, sãos e salvos.

— Apenas doze? - Perguntou Mary incrédula, piscando o olho para a mulher de Archie. - Houve momentos em que eu seria capaz de jurar que éramos uns cinqüenta, no mínimo!

— Escute aqui, sua velha chata, cale essa boca e deixe-me contar a estória! Acabamos de chegar depois de termos passado o pior mês de minha vida e você já está roubando o meu número! Não precisava tê-la convidado para passar a sua primeira noite de volta à civilização sob o meu teto, mas o fiz, portanto, o mínimo que pode fazer é ficar sentadinha aí, bem comportada, quietinha e formal como costumava ser, enquanto conto a minha mulher o que aconteceu!

— Tricia, sirva-lhe um outro uísque antes que ele tenha um ataque apoplético. Esta é a razão porque está tão cheio de verme na sua primeira noite em casa. Durante as duas últimas semanas, desde que tomou a última gota da última garrafa de uísque não deixou mais ninguém em paz, e esteve insuportável.

— Ora, meu amor, como se sentiria? — Disse Archie apelando para a sua mulher. — Permanentemente encharcado até os ossos, sendo comido vivo por uma gama completa de todos os insetos do mundo, emplastrado de lama e sem nenhuma mulher por perto a não ser essa velha horrível e chata? E que tal lhe parece não ter mais nada para comer além de carne enlatada e sem uma gota sequer de bebida? Meu Santo Senhor, que lugar mais danado! Teria dado a metade do teor que encontramos por um simples bife e uma dose de Glen Grant para ajudá-lo a descer!

— Não precisa me contar nada disso — disse Mary rindo, virando-se para Tricia cheia de alegria. — Ele quase me deixou maluca! Você sabe como ele fica quando não pode comer seus pratos prediletos, não tem o seu uísque de doze anos e os charutos de Havana.

— Não, meu bem, não sei como ele é quando não pode contar com seus pequenos confortos, porém após trinta anos de casamento creio poder avaliar o que deve ter enfrentado.

— Garanto-lhe que não aguentei a situação por muito tempo — replicou Mary, saboreando, deliciada, o seu sherry. — Depois de ouvi-lo resmungar por uns dois dias, resolvi me afastar e tratei de caçar alguns pássaros que encontrei num pântano para que pudéssemos, pelo menos, variar a comida e não ter que ver aquela carne enlatada.

— O que aconteceu com os suprimentos, Archie? — Indagou Tricia, curiosa. - Não é de seu feitio deixar de incluir algumas coisas saborosas para casos de emergência.

— Culpe o nosso maravilhoso guia. A metade da turma era daqui de Sidnei, exceto os agrimensores que arranjamos em Wyndham juntamente com o tal guia, o danado do Mr. Jim Barton. Ele achou que deveria nos mostrar a fibra que os homens da floresta possuem, portanto, depois de ter-me assegurado que tomaria conta pessoalmente dos suprimentos, abasteceu-se com aquilo que come habitualmente... ensopado enlatado, mais ensopado e tome de ensopado!

— Não fale assim do coitadinho, Archie — protestou Mary. - Afinal de contas éramos estranhos ao ambiente e ele não. Caso ele viesse à cidade, não julgaria ser seu dever empanturrá-lo com todas as nossas perfumarias citadinas?

— Mas quanta desfaçatez, Mary! Foi você quem quase arrancou o couro dele, não eu! — E virando-se para a mulher: — Só queria que a tivesse visto voltando para o acampamento, meu amor! Lá estava ela, perambulando naquele seu uniforme de empregada inglesa, coberta de lama até a altura do botão da cintura, uma lama escura e fedorenta e arrastando atrás de si uma dúzia de pássaros imensos. Amarrara-os todos juntos, pelo pescoço, com um pedaço de barbante e arrastava-os pelo chão, usando o barbante como uma corda de amarração. Pensei que o nosso eficiente Tim Barton fosse ter um ataque... tão alucinado ficou!

— Estava mesmo, não foi? — Concordou Mary, com paciência.

— Ora, logo de saída não queria que a Mary nos acompanhasse, já que é um misógino confesso. Achava que ela ia nos atrasar, não passando de um peso morto, de uma tola rematada e uma quantidade de outras coisas. E lá vinha ela, trazendo-nos a salvação culinária, exatamente quando começava a demonstrar que nós nada mais éramos além de todos habitantes da cidade feitos para a moleza. Ha, ah! E a minha Mary colocou-o direitinho em seu lugar! Minha querida, você é mesmo terrível!

— Que espécie de pássaros era essa? - indagou Tricia, procurando manter a seriedade.

— Ora, meu Deus, sei lá! - respondeu Mary. - Apenas pássaros, tropicais e enormes. Eram gordos, e isto era apenas o que me interessava.

— Mas poderiam ser venenosos!

Mary explodiu numa gargalhada.

— Que loucura! Pelo muito que sei, pouca coisa dentre aquelas que classificamos como matéria viva é realmente venenosa, e se você consultar um computador a respeito dessa possibilidade verá que, a maior parte do tempo, a sorte está do nosso lado.

— Barton, o homem da floresta, também tentou essa aí, imagine só! Archie sorriu ao se recordar daquilo. — Mary retalhou as aves com algumas tampas das latas de ensopado e temperou-as com uma espécie de folhas que apanhou no meio do mato porque achou que o cheiro delas era gostoso. Barton, o homem da floresta, recomeçou tudo novamente, afirmando que podiam ser venenosas, porém Mary limitou-se a fitá-lo com aquele seu olhar gélido e disse-lhe que, na sua opinião, nossos narizes foram projetados, inicialmente, para nos informar se as coisas eram comestíveis ou não e o dela dizia-lhe que aquelas folhas nada tinham de errado. Está claro que estava com a razão, isso nem preciso dizer. Em seguida, ela continuou, dando-lhe uma aula a respeito do Clostridium botulinum, seja lá o que for, que, se não me engano, desenvolve-se nas latarias e é dez vezes mais tóxico do que qualquer outra coisa que se possa colher no meio do mato. Puxa... como ri!

— Mary, eles ficaram satisfeitos com a sua culinária? — indagou Tricia.

— O sabor era de néctar e ambrosia juntos - explicou Archie, antes que Mary pudesse falar. - Nossa... que refeição! Deliciamo-nos, enquanto Mary ficou sentada sem um fio de cabelo fora de lugar e um sorriso nos lábios. Vou lhe dizer uma coisa, Mary, a esta altura você passou a fazer parte das lendas locais em Wyndham e todos aqueles agrimensores devem estar tecendo comentários sobre você. Não tenha dúvidas, você deu uma ducha fria naquele Barton, o homem da floresta!

Tricia não conseguia controlar o riso.

— Mary, eu poderia sentir muito ciúme de você mas graças a Deus isto não acontece! Que outra mulher consegue não só não sentir a menor pontinha de ciúmes da secretária do marido, como também poder confiar nela sabendo que irá trazé-lo de volta, são e salvo, quando se mete em alguma confusão?

— De um modo geral, Tricia, é muito fácil trazê-lo de volta para casa disse Mary, muito séria. - Se existe alguma coisa que detesto é a idéia de enfrentar um chefe novo.

Tricia apressou-se para apanhar a garrafa de sherry.

— Aceita outro drinque, Mary? Por favor, tome mais um! Jamais imaginei que algum dia ainda lhe diria que estava gostando muito da sua companhia, porém não me recordo de ter passado momentos tão divertidos quanto estes! - Calou-se, colocando a mão sobre a boca, sem jeito. - Oh meu Deus! Isto não foi nada delicado, não? Não era exatamente o que eu pretendia dizer, mas sim que você está mudada, saiu de dentro da sua concha, só isso!

— Minha querida, você está apenas tornando as coisas piores — disse Archie, satisfeito. - Pobrezinha da Mary!

— Não diga “Pobrezinha da Mary”, Archie Johnson! Sei perfeitamente o que a Tricia está querendo dizer e creio que ela está cheia de razão!

 

Quando Tim bateu na porta dos fundos, no primeiro sábado após o retorno de Mary, ela sentiu um pouco de relutância ao deixá-lo entrar. Como seriam as coisas, vendo-o após a primeira separação? Abriu a porta correndo, as palavras na ponta da língua, porém jamais conseguiu pronunciá-las. Um nó imenso apertava-lhe a garganta e ela não conseguia se libertar dele para poder falar. Ali estava ele, de pé sobre os degraus, sorrindo para ela, os maravilhosos olhos azuis cheios de amor e boas vindas. Saiu, segurou as suas mãos sem dizer nada, os seus dedos apertando-as com força, as lágrimas rolando pelo rosto abaixo. Desta feita, foi ele quem a envolveu com os braços, comprimiu a cabeça dela de encontro ao peito enquanto uma das mãos acariciava-lhe os cabelos.

— Não chore, Mary - murmurou, passando a palma da mão sobre a sua cabeça. - Estou lhe consolando, portanto não precisa chorar. Vamos... vamos... pare com isso!

Porém, num instante ela afastou-se, procurando o lenço.

— Não se preocupe, Tim, não é nada - sussurrou, encontrando o lenço e enxugando os olhos. Sorriu para o rapaz e tocou nas suas faces, incapaz de resistir a tentação. — Senti tanto a sua falta que chorei de felicidade ao tornar a vê-lo, foi só isso!

— Também estou feliz demais por tornar a vê-la, mas não chorei. Puxa, Mary, como senti a sua falta! A mãe disse que desde que você partiu eu venho me comportando muito mal.

— Já tomou café? - perguntou, tentando se recompor.

— Ainda não.

— Então entre, sente-se, enquanto lhe preparo alguma coisa. — Fitou-o cheia de ansiedade, quase sem poder acreditar que ele estivesse realmente ali, que não a esquecera. - Oh. Tim, quanto prazer estou sentindo por tornar a vê-lo!

Enquanto ela se movimentava pela cozinha, ele acomodou-se à mesa sem afastar os olhos de Mary por um só instante.

— Senti-me como se estivesse doente durante todo o tempo que esteve fora, Mary. Eu estava realmente estranho! Não tinha muita vontade de comer e a televisão dava-me dores de cabeça. Até o Seaside não andava muito bom, a cerveja não me parecia tão saborosa. O pai dizia que eu era um tolo porque não conseguia ficar parado nem ficar num mesmo lugar muito tempo.

— Bem, você também deve ter sentido muito a falta de Dawnie, sabe disso. Acredito ter sido muito triste para você, não ter a Dawnie nem eu.

— Dawnie? — Repetiu o nome da irmã, como se estivesse sopesando a sua significação. — Nossa, não sei não! Parece que me esqueci da Dawnie. Foi você quem não consegui esquecer. Pensei em você o tempo todo, todo o tempo!

— Pois bem, agora estou de volta, portanto está tudo terminado — disse cheia de alegria. — O que vamos fazer neste fim de semana? Que tal irmos para o chalé, ainda que esteja muito frio para que possamos nadar?

Seu rosto iluminou-se de alegria.

— Oh, Mary, acho maravilhoso! Vamos partir agora mesmo para Gosford!

Virou-se para ele, sorrindo de uma maneira tão doce que se Archie Johnson estivesse presente não a reconheceria.

— Não, meu jovem, primeiro teremos que tomar nosso café. Você emagreceu muito desde que o vi pela última vez, portanto, serei obrigada a tornar a alimentá-lo.

Mastigando o último pedaço da costeleta, Tim fitou-a intrigado.

— O que foi? - perguntou Mary, olhando-o mais de perto.

— Não sei... ainda há pouco, quando a consolava, senti uma coisa esquisita... — Encontrava dificuldade para se expressar, buscando palavras que estavam além do seu vocabulário. — Foi uma coisa esquisita mesmo. — concluiu insatisfeito, incapaz de imaginar uma outra maneira de descrever o que sentira e consciente de que não conseguira transmitir o que queria.

— Talvez tenha se sentido um adulto, como o seu pai, não é? Na verdade, consolar alguém é coisa de adultos.

A expressão preocupada desfez-se de imediato e Tim sorriu.

— Mary, foi isso mesmo! Senti-me adulto.

— Já terminou? Então vamos juntar tudo que precisamos e partir, já está escurecendo muito cedo nessa altura do ano e vamos querer trabalhar o mais possível no jardim.

O inverno na região de Sidnei quase nem merecia ser assim qualificado, exceto para os seus habitantes muito friorentos. A floresta de eucaliptos não perdia as folhas, o sol brilhava e aquecia durante todas as horas de claridade, tudo continuava a germinar e a florescer, a vida não entrava naquele estágio quieto e adormecido como acontecia nos climas frios.

O jardim do chalé era um amontoado de flores: cravinas, dálias e goivos amarelos; o perfume saturava o ar por muitas centenas de metros. O gramado tinha melhorado muito e estava mais verde naquele inverno do que jamais estivera. Mandara pintar o chalé de branco com os caixilhos pretos e o telhado de ferro tinha sido restaurado em prateado.

Entrando na pequenina clareira onde se situava, Mary não pôde deixar de admirá-lo. Quanta diferença entre o seu aspecto atual e aquele de seis meses atrás! Virou-se para Tim.

— Sabe de uma coisa, Tim? Você é um ótimo crítico. Está vendo como está muito mais bonito agora, e isso só porque falou que não gostava da tonalidade marrom da pintura e por me ter forçado a trabalhar no jardim. Estava com toda a razão, tudo está muito mais bonito do que era antes. Sinto um enorme prazer quando chego aqui. Precisamos pensar em muitas outras coisas para que o seu aspecto continue melhorando sempre.

Tim ficou exultante ao receber aqueles elogios.

— Gosto de ajudá-la, Mary, porque me faz sempre sentir como se fosse normal. Você escutou o que falei. Isso faz com que eu me sinta igualzinho ao pai, como um adulto... um homem feito.

Mary desligou o carro e olhou para ele com ternura.

— Mas você transformou-se num homem, Tim. Não consigo pensar em você de outra maneira. E por que não escutaria tudo aquilo que me diz? Suas sugestões e críticas foram todas certas e de grande valia. Tim, não me importa o que os outros digam a seu respeito, sempre pensarei em você como sendo absolutamente normal.

O rapaz jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada, em seguida virou-se para Mary deixando-a ver os olhos brilhando pelas lágrimas.

— Oh, Mary, sinto-me tão feliz que quase chorei! Viu? Quase chorei! Mary saiu do automóvel...

— Ande, seu preguiçoso, mexa-se, nada de exibições de sentimentalismo! Já tivemos muito disso durante toda a manhã! Trate de tirar as roupas de sair e vista as de jardinagem, temos muito trabalho a fazer até a hora do almoço!

 

Certa noite, pouco tempo depois da viagem realizada com Archie Johnson, Mary leu um artigo no Sydney morning Herald entitulado ”O Professor do Ano”. Abordava o extraordinário sucesso de um jovem professor com o trabalho efetuado junto a crianças excepcionais e isto estimulou-a a ler o assunto com maior profundidade do que o vinha fazendo. Como encontrara publicações a respeito de retardamento mental nas prateleiras da biblioteca local, levara-as para a casa e lera-as com muita atenção; contudo, até ler o artigo do jornal não lhe ocorrera realizar pesquisas mais profundas.

A tarefa era árdua. Fora obrigada a ler com um dicionário médico ao seu lado, ainda que para um leigo fosse de pouca valia a explicação de termos técnicos e longos como Porencephaly, Lipidosis, Phenylketonuria e Hepatolenticular Degeneration. Na verdade, a maioria dos termos eram tão especializados que nem mesmo o dicionário médico os continham. Mary viu-se perdida em meio a um labirinto de palavras desse tipo, sentindo-se cada vez menos segura de si mesma e cada vez sabendo menos. Afinal, resolveu ir procurar o jovem professor do artigo, o tal John Martinson.

— Eu era um professor primário comum até que estive na Inglaterra e, casualmente, fui colocado numa escola para excepcionais — disse-lhe John Martinson enquanto a conduzia para a escola. - Fiquei maravilhado desde o início, porém não contava com nenhuma experiência formal, desconhecia as técnicas e teorias, por isso limitei-me a lhes ensinar como costumava fazer com as crianças normais. Estou me referindo, naturalmente, às crianças com um grau médio de retardamento; existem algumas que não têm a mínima possibilidade de absorver qualquer espécie de educação. Pois bem, fiquei impressionado com a grande capacidade de assimilação, e o quanto respondiam ao serem tratados como garotos normais. O trabalho foi muito duro, é claro, e precisei juntar toda a minha paciência, porém não desisti, fui perseverante não permitindo que eles desistissem. E comecei a estudar. Voltei aos bancos do colégio, pesquisei e visitei diversos lugares a fim de observar os métodos empregados por outros estudiosos do assunto. Foi uma carreira muito gratificante.

Enquanto ele falava, os seus olhos de um azul profundo não deixavam de observá-la, porém não demonstravam curiosidade Ele parecia aceitar a sua presença como um fenómeno que ela mesma se encarregaria de explicar quando julgasse oportuno

— Então pensa que as pessoas com um leve grau de retardamento podem aprender alguma coisa? - Perguntou Mary, pensativa

— Não tenho a menor dúvida. Muitas pessoas pouco informadas lidam com crianças que sofrem de um ligeiro retardamento como se fossem excepcionais, pois é muito mais fácil adotar este sistema do que se dar ao trabalho de gastar o tempo necessário a fim de obter uma resposta normal por parte delas.

Talvez muita gente julgue não possuir as qualidades necessárias para tanto - sugeriu Mary, lembrando-se dos pais de Tim

— Pode ser que sim. Essas crianças sentem falta de aprovação, de elogios e da inclusão na vida normal da família, contudo, muitas vezes são deixadas à parte, amadas porém meio-ignoradas. O amor não é a resposta absoluta para tudo mas é parte integral de tudo e deve ser temperado com paciência, compreensão, sabedoria e previsão especialmente quando se lida com alguém tão complexo quanto uma criança excepcional

— E o senhor procura mesclar o amor com todas essas coisas?

— Sim. É claro que temos tido alguns fracassos, porém já possuímos uma proporção bem maior de sucesso do que a maioria das escolas especializadas. Avaliar uma criança com exatidão, seja neurológica como psicologicamente, é praticamente impossível. Não se pode deixar de entender que, antes de mais nada esta criança é organicamente debilitada, não importando o grau de sobrecarga psicológica que possa estar também presente Alguma coisa aqui em cima, no cérebro, não funciona como era de se esperar

Deu de ombros e riu de si mesmo.

— Desculpe, Miss Horton! Não permiti que a senhora se pronunciasse, não lhe dei uma brecha, não é verdade? Tenho o mau hábito de falar pelos cotovelos sem fazer a mínima idéia das pretensões daqueles que me vêm procurar

Mary pigarreou para limpar a garganta

— Muito bem, Mr. Martinson, na verdade não se trata de um problema pessoal, o que me fez vir à sua procura foi mais a curiosidade interessada de um leigo. Mantenho amizade com um jovem de vinte e cinco anos que é ligeiramente retardado e desejo conhecer com mais profundidade a situação dele. Já tentei ler, porém não consegui entender muito bem o jargão técnico

— Compreendo. Existem muitas publicações para as autoridades no assunto, mas um bom livro básico para o leigo é muito difícil de se achar

— O que está acontecendo é o seguinte, desde que comecei a interessar-me por Tim, o que deve ter uns nove meses, mais ou menos, o rapaz demonstrou sinais de progresso. Foi preciso muito tempo, porém consegui ensinar-lhe a ler um pouquinho, mas consegui, e a fazer pequenas contas. Os pais notaram a mudança e estão maravilhados. Contudo, desconheço quanto progresso poderei esperar, e até onde poderei usar de severidade para motivá-lo.

O professor bateu no seu braço e colocou a mão sob o cotovelo de Mary para lhe fazer ver que chegara o momento de saírem de onde estavam.

— Vou levá-la para dar uma volta pelas classes e quero que olhe para todas as crianças de maneira muito atenta. Tente descobrir uma que se pareça com o seu jovem amigo, tanto em comportamento como em atitude. Não deixamos que as visitas perturbem as nossas classes, por isso faremos a observação através de janelas de vidro colocadas sobre as portas. Agora, acompanhe-me e vejamos o que acha de nossas crianças.

Mary jamais tinha, na realidade, prestado muita atenção ao número de crianças excepcionais que tinham cruzado o seu caminho, pois, como a maioria das pessoas, sentia-se muito sem jeito quando se surpreendia fitando alguém. Agora, estava assombrada ao descobrir o quanto os excepcionais eram diferentes no aspecto físico, para não falar na capacidade mental. Iam desde as crianças que pareciam totalmente normais até àquelas com deformações tais que seria necessário um esforço muito grande para não desviar os olhos delas.

— Houve um tempo em que lecionei numa classe de gênios — disse John Martinson, um tanto sonhador, enquanto se mantinha ao lado de Mary. — Não havia um único aluno cujo QI fosse inferior a 150. Mas quer saber de uma coisa... fico muito mais contente em passar um mês inteirinho ensinando a um destes meninos a amarrar o cordão do sapato. Eles nunca se cansam ou se aborrecem com a conquista de alguma coisa, e acredito que este comportamento seja devido à dificuldade que enfrentam para conseguir alguma coisa. Se todo mundo tem maior apreço pelas coisas difíceis de se conseguirem, porque iria ser diferente com um ser humano retardado?

Depois de terem percorrido as salas de aula, John Martinson levou-a até seu minúsculo escritório e ofereceu-lhe uma xícara de café.

— Muito bem, descobriu alguém que a fez lembrar de Tim? - perguntou.

— Diversos. - E assim dizendo, Mary descreveu-os. — Algumas vezes sinto uma vontade louca de chorar por causa de Tim, sinto tanta pena dele — falou. —Ele tem consciência da sua deficiência, o senhor compreende? É doloroso ter que ouvi-lo se desculpando por não ser ”muito bom da bola”, segundo os seus termos. ”Não sou muito bom da bola, Mary”, costuma falar, e só de ouvi-lo sinto uma angústia horrível.

— Contudo, parece-me que está capacitado a ser educado. Ele trabalha?

— Sim, como operário de obra. Acho que os seus companheiros são, a sua maneira, bastante bons para com ele, mas às vezes são por demais cruéis. Divertem-se pregando-lhe peças, como de certa feita quando o fizeram comer excremento. Nesse dia ele chorou, não pelo fato de ser a vítima mas sim por que não conseguira entender a piada. Ele queria tomar parte da pilhéria! — O rosto de Mary contraiu-se forçando-a a parar. John Martinson balançou a cabeça a fim de encorajá-la e demonstrar-lhe simpatia.

— Oh, esse tipo é bastante comum — disse — O que me diz dos pais, como costumam tratá-lo?

— Muito bem, de um modo geral — explicou as circunstâncias da vida de Tim, surpreendendo-se da própria fluência sobre o assunto. — preocupam-se com ele — e concluiu com tristeza — principalmente no que diz respeito ao que lhe sucederá quando eles se forem. O pai afirma que ele morrerá de pai-xão. No começo não queria acreditar numa coisa dessas, porém, à medida que o tempo vai passando, sinto-me inclinada a considerar bastante provável que isto venha a suceder.

— Oh, concordo com a senhora, é bem provável. Como não deve ignorar, existem muitos desses casos. Pessoas como o seu Tim precisam contar com um lar cheio de amor muito mais do que as pessoas normais, pois difícilmente aprendem a se adaptar à vida uma vez deixados à sós. Este nosso mundo, é um mundo muito difícil para eles. - Concluiu com seriedade. — Pelas crianças que a senhora mencionou como parecidas com Tim, parece-me que trata-se de um rapaz com um aspecto físico bastante normal, certo?

— Aspecto físico normal? - Deixou escapar um suspiro. - Se ele fosse apenas assim! Não, Tim não é uma pessoa de aparência normal. Sem dúvida,) é o rapaz mais bonito que já tive oportunidade de ver em toda a minha vida, parece-se com um Deus Grego, caso deseje uma descrição mais próxima da verdadeira.

— Oh! - John Martinson desviou os olhos dela para as suas mãos entrelaçadas, durante um segundo, depois suspirou. — Muito bem, Miss Horton, vou lhe dar alguns títulos de livros que me parecem não serão de difícil compreensão. A senhora verá que eles ser-lhe-ão bastante úteis.

Inclinando a cabeça educadamente, levantou-se e dirigiram-se para o hall] principal.

— Espero que traga o Tim até aqui para me conhecer, qualquer dia desses.] Gostaria muito de encontrá-lo. Contudo, talvez seja melhor que me telefone antes, pois acho que seria mais agradável para ele se a visita fosse feita à minha casa ao invés de ser aqui, na escola.

Mary estendeu-lhe a mão.

— Gostei disto. Adeus, Mr. Martinson e muito agradecida pela sua atenção.

Retirou-se pensativa e entristecida, consciente de que os problemas mais difíceis para solucionar são aqueles que, pela própria natureza, não deixam brechas para se sonhar.

 

A primavera em Sidnei não era a explosão de uma nova vida, maravilhosa e renovada, como acontecia no hemisfério norte. Nenhuma árvore, com exceção das poucas espécies trazidas do exterior, perdia as folhas durante o breve e suave inverno e durante todo o transcorrer do ano havia sempre alguma coisa em flor nos jardins da cidade. A transição de uma estação para outra era percebida pela suavidade acentuada que pairava no ar e que enchia o coração de esperanças e novas alegrias.

Se alguém tivesse tido ocasião de ver o chalé de Mary, este teria sido considerado o local mais lindo do município. Durante todo o inverno, ela e Tim tinham trabalhado no jardim, chegando ao ponto de adquirirem árvores já crescidas e convocarem um técnico para plantá-las. Assim, quando outubro chegou havia flores por todos os lados, aglomeradas em imensos canteiros ao longo da varanda e circundando cada uma das árvores. Papoulas da Islândia, cravos, astropólios, margaridas, flox, ervilhas de cheiro, tulipas, glicínias, narcisos do prado, jacintos, azaleas, palmas; flores de todas as gamas de tonalidade, tamanho e formato esparramavam suas cabeças coroadas em camadas de beleza por todos os lados e o vento carregava os seus perfumes através da floresta virgem e pelo rio acima.

Quatro cerejeiras, extraordinariamente raras, deixavam cair os galhos carregados de pontinhos rosas sobre os jacintos e tulipas que cresciam no gramado. Suavizadas pelos lírios do vale e narcisos do prado, seis amendoeiras em flor estalavam sob o peso de seus botões brancos.

Tim quase ficou louco de felicidade no primeiro fim de semana em que tudo ficou recoberto de flores. Saltava das cerejeiras para as amendoeiras, assombrado com a perspicácia de Mary ao escolher apenas os bulbos rosas para circundar as cerejeiras e os brancos e amarelos para as amendoeiras, soltando exclamações e imaginando como seria bonito se crescessem expontaneamente por entre a relva. Mary observava-o, sorrindo apesar da resolução tomada de se manter séria fosse qual fosse a reação dele. A sua alegria era tão visível, tão terna e empírica: Paris vagueando pelas encostas floridas do Monte Ida antes de voltar à lida da Tróia urbana. Era realmente um jardim maravilhoso, pensou Mary, os olhos acompanhando os movimentos de Tim revoluteando por ali; mas como ele o veria, como deveria parecer diferente aos olhos dele, para encantá-lo e deliciá-lo assim?

Os insetos e até mesmo alguns animais superiores, ao que se afirmava, viam o mundo de modo diverso através de seus olhos construídos de outra maneira, enxergavam cores e formas que um ser humano não conseguia perceber; qual a tonalidade do infravermelho, qual a gama do ultravioleta? Talvez Tim também conseguisse ver coisas além da sua percepção; talvez por entre os circuitos alterados do seu cérebro ele visse um espectro diverso e escutasse uma freqüência sonora diferente. Será que ele escutava a música dos céus, poderia ver o formato das almas e a cor da lua? Se houvesse uma maneira de saber! Porém, o mundo dele estava selado para sempre, ela não tinha condições de penetrar nele e ele não seria capaz de lhe contar como era.

— Tim — disse Mary, naquela noite, quando se sentaram no salão às escuras, com as portas de vidro escancaradas para que o vento saturado de perfumes pudesse entrar. — Tim, como está se sentindo agora, neste instante? Como sente o perfume das flores, como vê o meu rosto?

Ele distanciou-se, a contragosto, da música que estava tocando, virando os olhos embaçados e sonhadores para ela, repletos de ternura, sorrindo ao seu modo tão delicado e vazio. Mary teve a impressão de que o seu coração estremecia e dissolvia-se sob aquele olhar, algo indefinível tomou conta dela, sentiu-se tão envolta pela tristeza que quase chorou.

Tim estava sério enquanto refletia sobre as perguntas formuladas, e quando respondeu, fê-lo de maneira lenta e hesitante.

— Sentir? Sentir? Ora, sei lá! Acho que feliz, sinto-me bem. Sinto-me bem, é isso!

— E que tal o perfume das flores?

Tim sorriu para ela, pensando que estivesse pilheriando.

— Por que? Cheiram como flores, é claro!

— E o meu rosto?

— Seu rosto é lindo como o de mamãe e o de Dawnie. Parece-se com o de Sta. Teresa na fotografia que tenho.

Mary suspirou.

— Isso é muito delicado, Tim. Estou certa de que nunca pensei em mim mesma como se fosse parecida com Sta. Teresa.

— Pois bem... é — tornou a repetir. — Ela está pendurada no alto da parede da minha cama, lá em casa. Mamãe pendurou-a ali porque gosto dela, gosto dela. Ela olha para mim todas as noites e todos os dias pela manhã embora julgue que sou bom da bola... e é assim que você olha para mim, também, Mary. - Tim estremeceu todo, tocado por uma alegria quase dolorosa. - Mary, gosto de você, gosto mais de você do que da Dawnie, gosto tanto de você quanto do pai e da mãe. — Suas mãos perfeitas movimentaram-se e disseram muito mais através da gesticulação do que o que podia transmitir o seu vocabulário limitado. — Mas é um pouco diferente, Mary, diferente do pai e da mãe. Às vezes gosto mais deles do que de você e de outras vezes gosto mais de você do que deles.

Mary levantou-se de repente e foi até a porta.

— Tim, vou sair um pouco para andar, mas quero que fique aqui como um bom rapaz e escute a música. Voltarei logo.

Tim fez um sinal afirmativo com a cabeça, virou-se para a vitrola, ficando com os olhos presos a ela como se isso o ajudasse a ouvir a música.

O perfume bastante acentuado envolvia todo o jardim. Mary, vagando por entre os narcisos do prado como uma sombra, encaminhou-se para a praia. Na extremidade mais distante havia uma grande pedra sobre a areia, suficientemente alta para servir de encosto. Ela deixou-se cair de joelhos na areia e, apoiando-se na rocha, ali encostou o seu rosto. Os ombros juntaram-se e seu corpo contorceu-se num espasmo de enorme tristeza. Sentia-se tão desolada e desesperada que, por um segundo, algo dentro dela mesma recusava-se a participar daquilo tudo. Contudo, o sofrimento já não podia mais ser superado ou negado; ela chorou sofrendo bastante.

Ela e Tim eram como uma mariposa e uma luz intensa; ela era a mariposa, dotada de sensações e consciente da dignidade da vida... ele, a luz, enchendo todo o seu mundo com um fogo vivo e ardente. Ele desconhecia o quanto ela se debatia, desesperada, de encontro às paredes do seu isolamento, jamais poderia entender a profundidade e a urgência do seu desejo de se imolar nas chamas do seu fascínio. Lutando contra a inutilidade da sua fome e sabendo que estava além dele satisfazé-la, cerrou os dentes com raiva e dor e chorou de modo incontrolável.

Parecia que muitas horas deviam ter se passado quando ela sentiu a mão de Tim em seu ombro.

— Mary, você está bem? — Perguntou, cheio de medo. — Está doente? Oh, Mary, por favor, você está bem, por favor, diga que está bem!

Mary abaixou os braços trêmulos, deixando-os pender ao lado do corpo.

— Estou bem, Tim - respondeu baixinho, escondendo o rosto dele, embora já estivesse muito escuro. — Sentia-me um pouco enjoada, por isso vim aqui para fora para tomar um pouco de ar. Não’queria preocupá-lo, foi apenas isso.

— Ainda está enjoada? — Acocorou-se ao lado dela, procurou entender a expressão do seu rosto, sacudindo os seus ombros canhestramente. — Você estava enjoada?

Mary sacudiu a cabeça, escapando das mãos dele.

— Não, Tim, estou bem agora, realmente não sinto mais nada. Já passou. -Apoiando uma das mãos sobre a pedra para contar com um ponto de apoio, tentou levantar-se mas não o conseguiu, enrijeceu-se, sentindo-se frustrada.

— Oh Tim, estou tão velha e cansada - murmurou. — Estou tão velha e cansada.

Tim ergueu-se, fitou-a cheio de ansiedade, preocupado.

— A mamãe ficou doente uma vez e me lembro que o pai mandou que a levasse no colo para a cama. Vou levá-la para a cama, Mary.

Inclinou-se, ergueu-a sem o menor esforço, passando um de seus braços sob os joelhos e com o outro envolveu-lhe as costas. Exausta demais para protestar, deixou que a carregasse pela trilha acima, porém assim que Tim pôs os pés na varanda ela enfiou o rosto no seu ombro, para evitar que ele o visse. Tim parou, piscando devido à claridade, e encostou o seu queixo na cabeça de Mary com muito amor.

— Você é tão pequenina, Mary - disse, esfregando o rosto nos cabelos dela. - Você é toda quente e macia, como um gatinho. - Em seguida, suspirou e atravessou a sala de estar.

Não conseguia encontrar o comutador do quarto de Mary e quando já estava prestes a descobri-lo, ela interrompeu-o, fazendo uma ligeira pressão sobre a sua garganta.

— Não precisa se preocupar com a luz, Tim, pode ver o bastante para me pôr na cama. Tudo o que quero é ficar deitada no escuro por algum tempo, depois estarei ótima.

Tim deitou-a sobre a cama com todo o cuidado, agigantou-se na escuridão e ela notou a indecisão que tomava conta dele.

— Tim, você sabe que não lhe diria uma mentira, não sabe? Tim fez um sinal afirmativo com a cabeça.

— Sim, sei.

— Então tem que acreditar quando lhe digo que não deve se preocupar comigo, que agora já estou bem. Nunca se sentiu um pouco enjoado depois de ter comido alguma coisa que não lhe caiu bem?

— Sim, uma vez, depois que comi algumas frutas cristalizadas - respondeu muito sério.

— Então pode compreender como me senti, não? Agora quero que deixe de se preocupar comigo, vá para a cama, e durma, durma! Estou me sentindo muito melhor e tudo quanto preciso é dormir também, porém não vou consegui-lo se achar que está aborrecido ou preocupado. Agora, prometa-me que irá direto para a cama e se sentirá feliz.

— Prometo, Mary. - Parecia sentir-se aliviado.

— Boa noite, Tim, e muito obrigada por ter me ajudado dessa maneira. É tão bom ter alguém que cuide da gente e você fez isso muito bem. Creio que não precisarei me preocupar mais enquanto tiver você, não é?

— Sempre cuidarei de você, Mary. — Inclinou-se e beijou-lhe a testa, da mesma maneira como às vezes ela fazia quando ele já estava na cama. - Boa noite, Mary.

 

Quando Esme Melville alcançou a porta dos fundos naquela quinta-feira, à tarde, após a habitual partida de tênis, tudo quanto conseguiu fazer foi caminhar os poucos metros que a separavam da sala de estar para uma cadeira confortável. Suas pernas tremiam. Fora muito difícil chegar até em casa sem que ninguém notasse o quanto estava sofrendo. Sentia-se tão nauseada que após alguns instantes foi obrigada a abandonar a cadeira e dirigir-se ao banheiro. Mesmo ajoelhada, com a cabeça encostada à pia o enjôo não melhorou; contudo, não conseguiu vomitar, a dor embaixo da clavícula esquerda tornava o esforço feito para vomitar insuportável. Deixou-se ficar ali, na mesma posição, enquanto sentia dores, depois foi-se levantando aos poucos, agarrando-se ao armário do banheiro e à porta do box. Assustou-se quando viu o reflexo do próprio rosto no espelho, estava esverdeado e recoberto de gotículas de suor. Aquela visão fê-la sentir-se apavorada como jamais em toda a vida e, imediatamente, desviou o olhar do espelho. Conseguiu alcançar a sala e deixou-se cair na cadeira, sentindo-se sem ar, as mãos agitando-se inutilmente.

Depois, a dor apoderou-se dela e parecia rasgar seu peito como se fosse uma fera imensa e louca. Esme inclinou-se para diante, os braços cruzados sobre o peito, os punhos agarrados aos cotovelos. Deixava escapar pequeninos e sofridos gemidos cada vez que aquela agonia ia crescendo e não conseguia mais pensar a não ser naquela dor. Depois de uma eternidade, foi diminuindo; deixou-se recostar na cadeira, exausta, tremendo toda. Parecia que havia alguma coisa comprimindo o seu peito, retirando todo o ar dos seus pulmões e tornando impossível a inspiração. Todo o seu corpo estava encharcado; a roupa branca de tênis estava empapada de suor, o rosto coberto de lágrimas, o assento da cadeira molhado pela urina que não conseguira controlar durante os tremores convulsivos. Soluçando e sentindo-se sufocada, os lábios roxos, deixou-se ficar sentada ali, pedindo a Deus para que Ron tivesse a feliz idéia de dar um pulo em casa antes de ir para o Seaside. O telefone, preso à parede, encontrava-se a anos luz de distância, totalmente fora de seu alcance.

Já eram sete horas da noite, quando Ron e Tim entraram pela porta dos fundos da casa de Surf Street. Tudo estava estranhamente silencioso e parado; a mesa não fora posta na sala de jantar e não se sentia o cheirinho delicioso da comida.

— Alô, onde está a mãe? — Falou Ron com alegria assim que entrou com o filho na cozinha. — Es, meu amor, aonde está você? — chamou, em seguida deu de ombros. — Ela deve ter resolvido jogar algumas partidas a mais lá no Clube do Sucesso e das Risadinhas — comentou.

Tim foi para a sala de estar enquanto o pai acendia as luzes da sala de jantar e da cozinha. Um grito apavorante partiu de dentro da casa; Ron largou a chaleira que tinha nas mãos e correu para a sala de estar, sentindo o coração bater na boca. Tim estava de pé, esfregando as mãos e chorando, enquanto fitava Esme, largada na cadeira, estranhamente imóvel, os braços dobrados e as mãos cerradas, caídas ao longo do corpo.

— Oh, meu Deus!

Enquanto se dirigia para a cadeira e inclinava-se sobre sua mulher os olhos de Ron encheram-se de lágrimas e estendeu a mão trémula para tocar nela. Estava morna; quase sem poder acreditar, percebeu que o peito erguia-se e contraía-se muito lentamente. Pôs-se de pé imediatamente.

— Vamos, Tim, não chore - disse com os dentes batendo de nervoso. Vou telefonar para o Dr. Perkins e para a Dawnie, voltarei logo. Fique aqui e se a mamãe fizer qualquer movimento... grite. Está bem, companheiro?

Dr. Perkins encontrava-se em casa, jantando. Disse a Ron que chamaria uma ambulância e que se encontraria com eles na sala de pronto socorro do Hospital Prince of Wales. Passando as costas das mãos sobre os olhos para enxugar as lágrimas, Ron discou o número de Dawnie.

Mick atendeu ao telefone, a voz demonstrando a sua impaciência. Era a hora do jantar e ele detestava ser incomodado às refeições.

— Escute, Mick, aqui é o Ron — falou, com toda a cautela. — Olhe, procure não assustar a Dawnie, mas é a sua mãe. Creio que teve um ataque cardíaco, mas não tenho certeza. Vamos levá-la imediatamente para o pronto-socorro do Hospital Prince of Wales, logo não há razão para virem até aqui. Seria melhor que você e a Dawnie fossem nos encontrar no hospital assim que for possível.

— Sinto muito, Ron - murmurou Nick. - Dawnie e eu iremos para lá imediatamente, é claro. Procure não se preocupar.

Assim que Ron voltou para a sala de estar, encontrou o filho ainda de pé, os olhos presos na mãe, chorando desesperadamente. Esme não se movera. Ron passou os braços pelos ombros do filho, estreitando-o contra si, sem saber o que mais poderia fazer.

— Jesus, não chore, Tim, meu filho — sussurrou. — Sua mãe não tem nada de mais, a ambulância já está a caminho e vamos levá-la para o hospital.

Eles a porão boa num instante. Terá que ser um bom rapaz e manter-se calmo, para o bem de sua mãe. Ela não vai gostar se ao despertar o vir ao seu lado chorando como um bobinho, não é mesmo?

Fungando e soluçando, Tim tentou parar de chorar enquanto o pai aproximava-se da cadeira onde Esme jazia e ajoelhando-se, segurou-lhe os punhos cerrados colocando-os sobre o seu colo.

— Es! — chamou, o rosto envelhecido e vincado. — Es, meu bem, pode me ouvir? É o Ron, meu amor, o Ron!

O rosto de Esme denotava uma palidez cadavérica e sua fisionomia estava contraída. Porém, quando sentiu a presença do marido ali, ajoelhado ao seu lado, seus olhos se abriram enchendo-se de vida. Olhou para ele e retribuiu-lhe o carinho.

— Ron... Oh, Jesus, estou contente porque voltou para casa... Onde está o Tim?

— Está aqui, meu amor. Não se preocupe com ele, e não fique excitada. A ambulância já está a caminho e vamos levá-la para o pronto socorro agora mesmo. Como se sente?

— Como alguma coisa... que o gato arranhou... Ali, meu bom Cristo, Ron... a dor... é horrível... Molhei-me toda... A cadeira está encharcada.

— Não se preocupe com a droga da mobília, Es, ela secará. Que há de mal nisso quando somos amigos, hein? — Tentou sorrir, mas seu rosto contraiu-se. Apesar de todo o auto-controle que possuía, começou a chorar. — Oh, Es, não deixe que nada lhe aconteça, meu amor! Oh, meu Deus, o que farei sem você? Agüente firme, Es, agüente até que cheguemos ao hospital!

— Eu... agüentarei... Não posso... deixar o Tim... totalmente só agora.. Não posso... deixar o Tim... sozinho...

Cinco minutos depois de Ron ter falado com Dr. Perkins a ambulância chegou. Ron guiou os homens até a porta dos fundos, pois havia vinte degraus a subir para alcançar a porta da frente e a de trás ficava ao nível do chão. Eram homens grandes, tranqüilos, altamente treinados profissionalmente no campo da medicina de pronto-socorro. Ron, conhecedor da habilidade deles, assim como acontecia com todos os outros habitantes de Sidnei, não se preocupou com a decisão tomada pelo médico de encontrá-los no hospital. Examinaram as condições de Es com rapidez e puseram-na na maca. Ron e Tim, sentindo-se inúteis e indesejáveis, saíram pela porta dos fundos atrás dos seus uniformes azul marinho.

Ron mandou que o filho se acomodasse na frente da ambulância com um dos homens e foi na parte posterior com o outro. Parecia que se aperceberam logo da deficiência de Tim, pois o que dirigia a ambulância acomodou o rapaz no assento ao seu lado dizendo palavras alegres que surtiram mais efeito do que qualquer coisa que o pai tivesse dito.

Não ligaram a sirene. O enfermeiro que ia na parte de trás com Ron colocou um tubo plástico na boca de Esme, ligou-o à bala de oxigênio e, em seguida, inclinou-se para tomar-lhe o pulso.

— Por que não ligaram a sirene? - perguntou Ron, olhando à sua volta assustado, de vez que o oxigénio aumentava a sua preocupação.

Uns olhos imensos, tranqüilizadores, calmos, fitaram-no. O enfermeiro bateu nas suas costas.

— Agora, fique calmo, companheiro - disse com tranqüilidade. - Quando transportamos alguém para a emergência procuramos não ligar a sirene. O paciente fica apavorado, e isto pode lhe piorar o estado, você entende, não? Ela está bem e a esta hora da noite iremos tão rápidos quanto se estivéssemos com a sirene ligada. São alguns quilómetros apenas de distância.

A ambulância atravessou silenciosa o tráfego leve, entrando no setor de pronto-socorro do Hospital Prince of Wales, que estava profusamente iluminado, cinco minutos após ter deixado Surf Street. Assim que o brilhante e comprido veículo parou, Es abriu os olhos e arrancou o tubo de ar. O enfermeiro acorreu logo, porém julgou ser melhor deixá-la sem ele a menos que tivesse outro espasmo. Talvez desejasse dizer alguma coisa e isso era muito importan-’ te. Era melhor deixar que a paciente encontrasse seu próprio equilíbrio.

— Ron..

— Estou aqui, meu amor. Já estamos no hospital, daqui a pouco eles darão um jeito em você.

— Não sei não... Ron...

— O que, meu bem? - As lágrimas recomeçaram a rolar pelo seu rosto.

— E o Tim... Aquilo que nós... sempre tememos... O que... vai. acontecer... com o Tim... quando eu não estiver... mais aqui? Ron...

— Estou aqui, amor.

— Cuide... do Tim... Faça... tudo... direitinho... para... o Tim... Coitadinho do Tim... Pobre... Tim...

Estas foram as últimas palavras que Esme pronunciou. Enquanto Ron e Tim continuavam a andar de lá para cá em volta da entrada do pronto-socorro, sem saber o que fazer, o pessoal do setor desapareceu com a maca. Os Melvilles ficaram observando as portas brancas irem e virem até pararem, então dirigiram-se decididos, mas com educação, para a sala de espera. Apareceu alguém pouco depois trazendo-lhes chá e alguns biscoitos doces, porém recusando-se a lhes dar qualquer informação.

Meia hora mais tarde, chegaram Dawnie e o marido. Dawnie, que se encontrava grávida, deixava o marido muito preocupado. Dirigiu-se para junto do pai e sentou-se entre ele e Tim, chorando.

— Vamos, deixe disso, minha querida, não chore - consolou-a Ron. - A nossa velha ficará logo boa, chegou até aqui viva. Levaram-na para algum lugar e assim que houver alguma notícia nos dirão. Trate de ficar sentada e não chore. Pense no bebé, meu bem, não deve sofrer tensões no estado em que está.

— O que aconteceu? — perguntou Mick, acendendo um cigarro e procurando não olhar para Tim.

— Não sei. Quando Tim e eu chegamos em casa encontramo-la inconsciente numa cadeira da sala de estar. Não sei dizer há quanto tempo estava ali. Meu Deus, por que não voltei direto para casa depois do trabalho? Por que fui para o Seaside? Poderia ter ido logo para casa! Dawnie assoou o nariz.

— Papai, não se culpe. Você sempre volta para casa a semana toda nesse mesmo horário, como poderia adivinhar que hoje iria precisar de você? Sabe que ela não se aborrecia com as coisas que lhe davam prazer! Gostava de ver que você aproveitava aquela pausa após o trabalho e, além do mais, isto deu-lhe a oportunidade de conduzir a própria vida como era do seu agrado. Quantas vezes escutei-a dizer que era tão bom saber que não chegaria do Seaside antes das sete, pois assim podia jogar tênis até às seis e ainda ter tempo de preparar o jantar antes que vocês chegassem.

— Devia ter sabido que ela não estava indo bem, devia ter percebido.

— Papai, não adianta nada ficar se recriminando! O que está feito está feito. Sabe perfeitamente que a mamãe não queria que a vida dela ou a sua fossem diferentes do que eram. Não perca tempo lastimando-se por coisas que não podem ser refeitas, querido, pense nela e no Tim, ao invés disso.

— Oh meu Deus, e é exatamente isso o que estou fazendo! - Seu tom de voz era desesperador.

Viraram-se para olhar para Tim, sentado imóvel, com as mãos entrecruzadas, os ombros caídos na posição que sempre assumia quando a tristeza tomava conta de si. Tinha parado de chorar e os olhos estavam fixos em algo que os outros não podiam ver. Dawnie aproximou-se mais do irmão.

— Tim! — chamou baixinho, enquanto a mão pequenina e quadrada acariciava o seu braço’.

Retraiu-se, depois pareceu notar a presença de Dawnie. Os olhos azuis deixaram a expressão perdida no infinito para fitarem-na com tristeza.

— Dawnie! — exclamou, como se se perguntasse o que estava ela fazendo ali.

— Estou aqui, Tim. Agora... não fique preocupado com a mamãe, ela vai ficar boa, prometo-lhe.

O rapaz sacudiu a cabeça.

— Mary diz que a gente nunca deve fazer promessas que não possa cumprir.

O rosto de Dawnie contraiu-se e ela desviou a atenção para o pai, ignorando o irmão por completo.

A noite já ia bem avançada, quando o Dr. Perkins apareceu na sala de espera, o rosto contraído e exausto. Todos levantaram-se imediatamente, como se fossem réus diante do juiz à espera do pronunciamento da sentença.

— Ron, posso Lhe falar lá fora? - indagou baixinho.

O corredor estava deserto, os refletores espalhados no teto alto enchiam o chão de ladrilhos de luz. Dr. Perkins envolveu os ombros de Ron com os braços.

— Ela se foi, meu amigo.

Ron sentiu em seu peito um peso terrível e esmagador. Fitou a fisionomia velha do médico cheio de incredulidade.

— Não está falando sério!

— Nada pudemos fazer. Foi vítima de um ataque cardíaco violento e foi acometida por um outro assim que chegou aqui. Seu coração parou. Tentamos fazer com que ele voltasse a trabalhar novamente, porém foi inútil... totalmente inútil. Acredito que ela tenha sentido alguma coisa antes e esta queda de temperatura brusca mais o tênis não a ajudaram muito.

— Nunca me disse que se sentia doente, eu não sabia. Mas a Es era assim, nunca se queixava. — Ron estava sob controle, podia aguentar o baque. — Ah, Doutor, não sei o que farei! Ali estão o Tim e a Dawnie, pensando que ela está bem!

— Quer que eu diga a eles, Ron? Ron sacudiu a cabeça.

— Não, eu mesmo farei isso. Dê-me apenas um minuto. Posso vê-la?

— Pode. Porém mantenha o Tim e a Dawnie afastados.

— Então, Doutor, leve-me agora para junto dela, antes que eu lhes conte.

Esme tinha sido retirada do centro de tratamento intensivo e colocada numa pequenina peça reservada para ocasiões como essa. Todas as provas do atendimento médico que tivera tinham desaparecido, os tubos e cabos. Um lençol estava estirado por cima de sua cabeça. Ron teve a impressão de ter sido atingido por um punho gigantesco assim que chegou à porta e olhou para a forma, estranhamente imóvel, sob o lençol.

Aquilo ali fora a sua Esme, estava sob o lençol e nunca mais haveria de se mexer. Estava tudo terminado para ela, o sol e a alegria, as lágrimas e a chuva. Nunca mais, nunca mais. A sua participação na festa da vida estava terminada, ali, daquela maneira, num quarto a meia luz e com um pano tão branco quanto a neve cobrindo-a. Sem alardes, sem avisos. Sem nenhuma possibilidade para se preparar, nem mesmo o tempo de dizer-lhe adeus. Apenas acabada, terminada, morta. Aproximou-se da cama, percebendo, de repente, o odor adocicado e forte de junquilhos que estavam dispostos num vaso enorme sobre uma mesa ao lado do leito. Nunca mais ele agüentaria sentir o perfume dos junquilhos.

Dr. Perkins manteve-se na parte mais afastada da cama estreita e baixando o lençol novamente e com rapidez, virou o rosto. Será que alguém conseguia se acostumar com a visão do sofrimento estampado no rosto de outra pessoa? Será que algum dia o ser humano ainda iria se acostumar com a idéia da morte e aprender a aceitá-la?

Os olhos de Esme tinham sido abaixados e as mãos cruzadas sobre o peito. Ron olhou-a por um longo tempo, depois inclinou-se para beijar-lhe os lábios. Porém não experimentou a mesma sensação de quando beijava Es. Aqueles lábios descorados e gélidos não lhe deram nada da sua Es. Soluçando, afastou-se...

Na sala de espera, três pares de olhos ansiosos pousaram em seu rosto assim que entrou ali. Fitou-os, erguendo os ombros.

— Ela se foi — disse.

Dawnie desmanchou-se em lágrimas e deixou-se ficar entre os braços de Mick. Tim, limitou-se a ficar sentado, fitando o pai, perplexo, como uma criança perdida e confusa. Ron aproximou-se e segurou a mão do filho com extrema ternura.

— Vamos dar uma voltinha, companheiro — falou.

Saíram da sala de estar, deixaram o corredor para trás, rumando para o ar livre. Lá fora o dia começava a nascer, a luz surgindo e o ponto extremo leste do mundo estava perolado sob o efeito da tonalidade rosada e dourada. A suave brisa da madrugada roçava de leve sobre os seus rostos afastando-se logo em seguida.

— Tim, não adianta nada deixar que pense que a sua mãe voltará algum dia — disse Ron arrasado. — Ela morreu ainda há pouco. Ela se foi, companheiro, foi embora. Nunca mais poderá voltar, foi embora, para longe de nós, mas para uma vida melhor, sem sofrimentos ou tristezas. Teremos que aprender a continuar a nossa caminhada sem a sua companhia, e isto será terrível, terrivelmente duro... Mas ela quer que prossigamos sem ela, foi a última coisa que disse, para continuarmos e não sentirmos demais a sua ausência. No princípio sofreremos muito, porém quando nos acostumarmos não será mais tão difícil assim.

— Pai, posso vê-la antes que se vá? — pediu Tim, desesperado. Ron sacudiu a cabeça, engulindo com dificuldade.

— Não, companheiro. Nunca mais tornará a vê-la. Porém, não deve culpá-la por isto, não era assim que ela desejava que acontecesse, desaparecer tão depressa sem nenhuma chance de dizer adeus. Às vezes as coisas escapam do nosso controle, acontecem depressa demais para que possamos acompanhar o seu ritmo e, então, é tarde demais. A sua mãe morreu assim, cedo demais, cedo demais... Chegou a sua hora e ela nada pôde fazer para mantê-la longe, compreende, companheiro?

— Pai, ela está real e verdadeiramente morta?

— Sim, Tim, está real e verdadeiramente morta.

Tim levantou a cabeça para o céu sem uma nuvem. Uma gaivota gritou e voluteou ao longe, mergulhando na direção da terra estranha, partindo depois em busca de um ambiente líquido.

— Mary contou-me o que era a morte, pai. A mamãe vai dormir, vai dormir na terra sob uma camada de grama e ficará repousando ali até que todos nós iremos ao seu encontro, não é?

— Companheiro, é mais ou menos assim.

Quando retornaram para a sala de espera, Dr. Perkins estava a sua espera. Mandou que Tim fosse para junto de Dawnie e Mick, mas pediu a Ron que ficasse junto dele.

— Ron, há algumas medidas que precisam ser tomadas. Ron estremeceu.

— Oh, Deus! Doutor, o que faço? Não tenho a menor idéia!

Dr. Perkins conversou com ele a respeito dos agentes funerários e ofereceu-se para chamar um determinado homem.

— Ele é bom e educado, Ron — explicou o médico. — Não lhe cobrará mais do que possa pagar e executa tudo com muita calma, com um mínimo de confusão e luxo. Deverá ser enterrada amanhã porque depois de amanhã é domingo e o sepultamento não deve se realizar depois de quarenta e oito horas, sabe disso, não? É por causa do clima quente. Não mande embalsamá-la, de que adiantaria? Deixe-a como está. Direi ao Mortimer que são velhos amigos meus e ele cuidará de tudo. Agora, por que não chama um táxi e leva a sua gente para casa?

Quando chegaram em casa, Dawnie deu a impressão de reviver um pouco e começou logo a preparar o desjejum. Ron dirigiu-se ao telefone e ligou para Mary Horton. Ela atendeu logo, o que o deixou aliviado. Ficara apavorado ao pensar que talvez ainda estivesse dormindo.

— Miss Horton, aqui é o Ron Melville. Escute, sei que é terrível lhe pedir. Mas estou tão desesperado. Minha mulher morreu esta manhã, uma coisa) muito repentina... Sim, obrigado, Miss Horton... Sim, estou meio tonto...1 Sim, tentarei descansar um pouco... Liguei para a senhora por causa do Tim... sim, ele sabe, não fazia nenhum sentido esconder dele, um dia teria que saber e por que não agora?... Obrigado, Miss Horton, estou satisfeito por ver que a senhora acha que agi acertadamente. Também sou-lhe eternamente grato por ter explicado a ele o significado da morte... É, foi de grande valia agora, foi sim... Não, não foi tão difícil fazer com que entendesse como julguei que seria. Pensei que ia ser necessário o dia todo para que l compreendesse, porém encarou a coisa como um acidente normal... Sim,! está bem, está aceitando bastante bem, sem lágrimas ou desesperos. Foi ele quem a encontrou, que coisa horrível. Miss Horton, sei que trabalha a semana inteira, mas também sei que gosta muito do Tim, por isso armo-me de coragem para lhe pedir que me venha ver hoje, tão logo seja possível e quem sabe. levar o Tim para a sua casa até domingo. Ela será enterrada amanhã, não poderá ser sepultada depois porque cai num domingo. Não quero que Tim vá ao enterro... Está bem, Miss Horton, estarei à sua espera e o Tim também... Muito agradecido, muito obrigado, é um prazer... Sim, vou tentar, Miss Horton. Até logo. Até mais ver e novamente muito obrigado.

Enquanto Ron conversava com Mr. Mortimer, o agente funerário, que, na verdade, era exatamente aquilo que o Dr. Perkins prometera, Dawnie levou o irmão para o jardim. A morte numa família da classe operária na Austrália não era dispendiosa como também não era um negócio muito longo, e leis severas tornavam a exploração impraticável. Gente simples e descontraída, não se sentiam inclinados a fazer a coisa muito demorada ou cheia de preparativos para o morto; nada de caixões luxuosos, velórios ou exposição do corpo. Tudo era realizado com tamanha rapidez e tranqüilidade, que muitas vezes os amigos e vizinhos nem tomavam conhecimento a não ser através de comentários posteriores.

Pouco depois da partida do agente funerário, Mary Horton estacionava o seu Bentley na porta da casa dos Melvilles e subia os degraus de acesso à porta da frente. Alguma coisa transpirara de manha” bem cedo, pois enquanto Mary aguardava na varanda da frente que lhe abrissem a porta, pôde perceber, por trás das janelas entreabertas, os vizinhos curiosos a olhar por trás das cortinas. Mick, o marido de Dawnie, foi quem a abriu e olhou, perplexo, para Mary. Por um momento pensou que ela fosse alguém ligada profissionalmente ao agente funerário e disse:

— Oh, Mr. Mortimer acaba de partir, faz uns cinco minutos que se foi. Mary fitou-o aquilatando-o.

— Você deve ser o marido da Dawn. Sou Mary Horton e vim buscar o Tim. Porém, poderia fazer a gentileza de comunicar ao senhor Melville que estou aqui, mas sem que Tim o perceba? Ficarei aguardando.

Mick fechou a porta e caminhou pelo hall, os pensamentos em confusão. Pelo que os Melvilles diziam, tinha feito uma imagem de Miss Horton como a de uma senhora, porém, muito embora a mulher que esperava na varanda da frente tivesse os cabelos brancos, não tinha muita idade. Ron procurava despertar o interesse de Tim por um programa na televisão. Mick mexeu com as sobrancelhas, sem dizer uma única palavra, na direção da porta da frente e Ron levantou-se logo, fechando a porta que separava a sala de estar do hall, enquanto saía

— Dawn, Miss Horton está aqui — sussurrou Mick ao sentar-se ao lado da mulher.

Dawn encarou-o de modo estranho.

— E daí?

— Ela não é idosa, Dawn! Por que se referem a ela como se fosse da mesma idade do Ron? Quase não pude acreditar nos meus olhos quando abri a porta! Não deve ter mais do que quarenta e cinco anos, se é que já os tem!

— Mick, o que está acontecendo com você? É claro que é velha! Admito que não a vi muito bem naquela noite quando o carro estava estacionado aí fora, porém encontrava-me suficientemente perto para saber que era uma senhora. E os cabelos são ainda mais brancos do que os de papai!

— As pessoas encanecem, às vezes, aos vinte anos, sabe disso. Pois aposto como é uma mulher relativamente jovem!

Dawnie ficou em silêncio por uns instantes, depois sacudiu a cabeça, sorrindo com ironia.

— Que mulher mais sonsa! Então era este o jogo dela!

— Qual era o jogo?

— Claro que era o Tim! Está dormindo com ele! Mick assobiou.

— Sim, é lógico! Mas seus pais não teriam percebido alguma coisa desse tipo? Eles têm tanto cuidado com ele, Dawn.

— Mamãe não gostava de ouvir uma única palavra contra a sua preciosa Miss Horton e o papai tem agido como o gato que devorou o canário desde que Tim começou a trazer mais dinheiro para casa, o pagamento que Miss Mary Horton lhe faz para realizar os serviços de jardinagem. Ha, ha! Realmente, ele está cuidando do seu jardim!

Mick olhou rapidamente na direção de Tim.

— Fale baixo, Dawn!

— Ah, sou capaz de matar o meu pai por se fazer de desentendido! - exclamou Dawnie, através dos dentes cerrados. - Desde o princípio, achei que havia alguma coisa esquisita com essa mulher, mas o meu pai recusava-se a ouvir qualquer referência a esse respeito. Muito bem, posso entender que a mamãe não suspeitasse de nada, mas o papai deveria ter me escutado! Mas qual o que!... Estava ocupado demais pensando em todo aquele dinheiro extra que entrava aqui em casa.

Ron, por sua vez, surpreendeu-se com Mary Horton, perplexo com a própria ingenuidade por um instante.

— A senhora é Miss Horton? — deixou escapar, a voz partida pelo cansaço e a exaustão.

— Sim, sou Mary Horton. O senhor julgou que eu também fosse uma mulher de idade, Mr. Melville?

— Sim, pensei. — Controlou-se o bastante para manter a porta aberta. — Não quer entrar, Miss Horton? Espero que não se importe de passar algum tempo no quarto da frente antes que a leve até o Tim.

— Mas, claro que não. - Acompanhou Ron até o quarto, sentindo-se logo pouco à vontade. Aquela peça parecia ser o quarto do casal e ficou imaginando como Ron podia suportar a tensão e conversar com ela no lugar onde ele e sua mulher tinham dormido durante tantos anos de vida em comum. Contudo, ele parecia não notar o ambiente em que se achava. Não conseguia afastar os olhos do rosto dela. Ela nada tinha de parecido com a pessoa que imaginara e, ao mesmo tempo, era idêntica à sua imaginação. O rosto era jovem e sem rugas, não podia contar mais do que quarenta e cinco anos, se tanto. Contudo não era uma fisionomia ávida e extremamente feminina, era uma espécie de rosto ligeiramente severo com um toque de sofrimento, o mesmo acontecendo com os orgulhosos olhos castanhos e a boca resoluta. Os cabelos eram muito brancos, tão brancos quanto cristal. Apesar do choque sofrido ao descobrir que ela era bem mais moça do que pensara, Ron confiou naquele rosto e na pessoa que o tinha. Um aspecto exterior extremamente simpático, pensou ele, um aspecto bastante apropriado a Mary Horton, que sempre julgara como uma das pessoas mais generosas, mais educadas, mais compreensivas que jamais encontrara em toda a vida.

— Mr. Melvilíe, não consigo achar as palavras justas. Sinto tanto pelo que lhe sucedeu... sofro pelo senhor, por Tim e por Dawnie...

— Sei disso, Miss Horton. Por favor, não tente, eu compreendo. Foi um golpe terrível, mas conseguiremos suportá-lo. Sinto apenas que a Es não a tenha conhecido pessoalmente. Parece que não fizemos grande esforço nesse sentido, não é?

— Não, não fizemos e sinto muito por isto, também. Como está o coitadinho do Tim?

— Um tanto aturdido, creio. Não entende totalmente o que está se passando, exceto que a sua mãe está morta. Sinto tanto ser forçado a envolvê-la nisso tudo, porém não sei o que poderia fazer além disso. Não posso permitir que Tim vá ao enterro e não deve ficar sozinho enquanto não chegarmos.

— Concordo plenamente consigo, Mr. Melvile, estou tão satisfeita por ter se lembrado de me telefonar e pode estar certo de que tomarei conta do Tim para o senhor. Estive pensando em levar o senhor e o Tim, na noite de domingo, para o meu chalé na praia para ficarem por lá alguns dias, para saírem deste ambiente. Ficarei aqui em Sidnei com o Tim, hoje, amanhã e domingo, e à noite passaria por aqui para apanhá-lo e levá-los para o chalé. Que acha disso?

O rosto de Ron contraiu-se por um momento, em seguida voltou ao normal.

— Miss Horton, é muita delicadeza de sua parte e pelo bem de Tim aceito sua sugestão. O patrão dele e o meu não se importarão se tirarmos uma semana de férias.

— Então, estamos combinados. A Dawnie vai se sentir melhor ao lado do marido, não acha? Será menos um fardo às suas costas se souber que vocês dois não se encontram aqui, sozinhos nesta casa.

— Tem razão, será um fardo a menos nas suas costas. Ela já está com quase oito meses de gravidez.

— Oh... eu não sabia! — Mary umedeceu os lábios e procurou manter os olhos afastados da velha cama de casal, encostada à parede mais distante. — Será que podemos ir agora cumprimentar o Tim?

O pequeno grupo formado na sala de estar era bastante estranho. Mick e Dawnie agarradinhos no sofá, Tim sentado na sua cadeira preferida, todo encolhido e tombado para frente, os olhos presos na televisão sem enxergarem absolutamente nada. Mary deixou-se ficar junto à porta do hall, quieta, observando-o. O aspecto do rapaz: era o de um garotinho perdido, sem defesa e aturdido.

— Alô, Tim — disse Mary.

O rapaz pôs-se de pé, sentindo-se meio alegre e ao mesmo tempo muito triste para se alegrar; depois começou a contrair o rosto e as mãos... estendeu-as na sua direção. Mary dirigiu-se para perto dele, pegou-as, sorrindo com ternura.

— Tim, vim apanhá-lo para passar alguns dias na minha casa — disse com càlma.

Tim apressadamente retirou as mãos das de Mary. Pela primeira vez, desde que o conhecera, Mary notava-o sem jeito, absolutamente consciente de suas atitudes. Involuntariamente, seus olhos tinham fitado Dawnie, notando sua revolta e indignação e alguma coisa desenvolveu-se e amadureceu o suficiente em seu íntimo para perceber que Dawnie pensava ter ele feito alguma coisa imperdoável e que estava sendo condenado por segurar a mão da mulher amada. As mãos caíram-lhe ao lado do corpo, abandonadas e novamente vazias, ficou olhando para a irmã como se lhe implorasse algo. Dawnie comprimiu os lábios e adiantou-se de lado, sorrateira como um gato arisco, os olhos passando zangados de Tim para Mary. Mary avançou, a mão estendida.

— Alô, Dawnie, sou Mary Horton — disse de maneira agradável. Dawnie ignorou o gesto dela.

— O que está fazendo aqui? — indagou com revolta. Mary fingiu não ter percebido o seu tom.

— Vim apanhar o Tim - explicou.

— Oh, aposto que sim! - Exclamou Dawnie. - Olhe só para a senhora! Minha mãe nem está fria e a senhora já está aqui, com a língua de fora, a espera do pobre tolo Tim! O que estava pretendendo deixando-nos pensar que fosse uma velha? Fez-nos, a todos, de rematados idiotas, inclusive meu marido!

— Oh, Dawnie, pelo amor de Deus, cale-se! - interrompeu-a Ron, em desespero.

Dawnie virou-se para ele, fora de si.

— Só vou me calar quando tiver dito tudo quanto quiser, seu velho canalha! Vendendo seu próprio filho todos os fins de semana em troca de uns míseros dólares! Sente-se bem, bebendo a sua cervejinha extra no Seaside diariamente, não é? Olhe só para ela... tentando nos fazer acreditar que o seu interesse por Tim era puro, espiritual e totalmente altruístico! Muito bem, Miss Mary Horton - sibilou, virando-se para encarar Mary novamente. - Sou esperta demais para o seu joguinho sujo! Querendo nos fazer crer que tinha no mínimo noventa anos! Imagino quanta gente não deve estar se divertindo agora aqui em Surf Street por terem conseguido ver, à luz do dia, a anfitriã de Tim durante os fins de semana! A senhora nos fez bancar os palhaços de todo o bairro, sua velha vaca frustrada! Se precisava de um homem, por que diabo não comprou um gigolô em vez de escolher um débil mental como o pobre coitado do meu irmão? A senhora é uma mulher desprezível, asquerosa, nojenta! Por que não sai logo daqui e nos deixa em paz?

Mary deixou-se ficar no meio da sala de estar, as mãos caídas ao longo do corpo, com duas manchas vermelhas nas faces. As lágrimas rolaram pelo rosto abaixo num protesto mudo contra a acusação impiedosa. Sentia-se chocada e arrasada por não ter como se justificar. Não tinha nem energia nem vontade para lutar contra aquilo. Ron começara a tremer, apertando tanto as mãos que as juntas dos dedos ficaram brancas. Tim voltara à sua cadeira e deixara-se ficar aí, o rosto virado para o alto indo da acusadora para a acusada. Estava confuso, angustiado e sentia-se estranhamente envergonhado, mas a razão daquela sensação era incompreensível para ele; não conseguia compreendê-la. Tinha a impressão de que Dawnie julgava ser errado a amizade que nutria por Mary, mas por que era errado, como podia ser errado? O que tinha feito a Mary? Não lhe parecia justo ver a Dawnie gritando com Mary daquele jeito, porém não sabia como agir pois não entendia o porquê de toda aquela confusão.

E por que tinha vontade de fugir dali e ir se esconder em algum canto escuro, como fizera no dia em que roubara o bolo que sua mãe ia levar para o clube de tênis?

Ron tremia, procurando controlar a sua raiva.

— Dawnie, nunca mais quero ouvi-la dizendo coisas iguais a essas, está me ouvindo? Em nome de Deus, o que está acontecendo com você, menina? Uma mulher tão decente como Miss Horton! com todos os diabos, ela não precisa ficar aqui ouvindo toda essa porcaria! Você arruinou-me, você arruinou-me, acabou com a vida do Tim, desgraçou a sua pobre e falecida mãe, e logo num momento desses! Oh, por Deus, Dawnie, por que está dizendo todas essas coisas?

— Digo-as porque acho que são certas — retrucou Dawnie, aconchegando-se no sofá entre os braços do marido. - Você permitiu que o dinheiro dela, esse dinheiro nojento, o deixasse cego e surdo!

Mary passou a mão trêmula sobre o rosto, enxugando as lágrimas. Olhou para Dawnie e seu marido.

— Você está redondamente enganada, minha querida - conseguiu dizer. Compreendo o quanto deve estar chocada e sentida por tudo quanto aconteceu nas últimas horas e tenho certeza de que não pensa, na verdade, em nada disso que acaba de me dizer - Inspirou profundamente. - Não escondi a minha idade deliberadamente, apenas não julguei que fosse uma coisa tão importante assim, porque nunca me passou pela cabeça que alguém pudesse interpretar o meu relacionamento com Tim de uma maneira tão sórdida. Estou muito ligada ao seu irmão, mas não do modo como insinuou. Isto não é uma coisa nada lisonjeira para mim; tenho idade suficiente para ser sua mãe e do Tim, sabe disso. E, tem toda a razão, se eu quisesse um homem, poderia comprar um gigolô folheado a ouro. Por que razão haveria eu de colocar o Tim numa situação como essa? Pode dizer, com toda a sua sinceridade, notou qualquer prova de desenvolvimento sexual em Tim desde que me conheceu? Se tal tivesse acontecido, vocês teriam notado imediatamente. Tim é uma pessoa muito natural para conseguir esconder um sentimento tão profundo. Divirto-me muito com o seu irmão, e desculpem as minhas palavras, ele é puro e inocente. Tim é puro e inocente, é parte dele mesmo, do seu modo de se comportar. Não seria capaz de modificá-lo mesmo se tivesse dentro de mim dez mil demônios corroendo a minha carne sem parar. E agora você estragou tudo, estragou tudo para nós dois, porque se Tim não chega a entender, pode, pelo menos, notar a mudança. Era um sentimento tão perfeito e estou falando no passado deliberadamente. Nunca mais poderá ser assim... Tornou-me consciente de alguma coisa em que nunca tinha pensado e fez o Tim ficar embaraçado quando apenas demonstrava uma afeição normal por mim.

Mick pigarreou.

— Contudo, Miss Horton, deve ter lhe passado pela cabeça o que as outras pessoas poderiam imaginar. Acho muito difícil acreditar que uma pessoa tão madura e responsável como a senhora, pudesse passar, mês após mês, todo o seu tempo livre com um rapaz tão bonito sem ter lhe passado pela cabeça o que as outras pessoas poderiam imaginar.

— Então foi isso, heim? - Esbravejou Ron, puxando Mick do sofá e agarrando-o pela lapela. - Devia saber que a minha Dawnie não ia pensar nessa sujeirada toda se não fosse você! Você realmente não é fácil, companheiro! Durante os dez minutos que levei para atender a porta e encaminhar Mary Horton para o interior desta sala, você conseguiu meter todas essas insinuações maldosas e sujas na cabeça da minha filha, de tal maneira que ela nos envergonhou e desgraçou a todos! Você, seu nojento! Meu Deus, por que Dawnie não se casou com um rapaz simples, seu granfininho de uma figa? Eu devia lhe plantar um murro nesses dentes, seu miserável, seu nojento, seu desgraçado!

— Papai! — exclamou Dawnie, comprimindo a cintura. — Oh, papai! — E assim falando, explodiu em lágrimas, batendo com os saltos no chão.

Então, Tim levantou-se, tão rápido que todos levaram muito tempo para compreender o que tinha acontecido. Ron e Mick foram separados, Mick largado de volta no sofá e Dawnie e Ron jogados em cadeiras, sem que uma única palavra fosse dita. Tim deu as costas para o cunhado e tocou, de leve, no ombro do pai.

— Papai, não deixe que ele o enfureça - disse muito sério. - Também não gosto dele, mas a mãe disse que o devíamos tratar muito bem, mesmo se não gostássemos dele. Dawnie agora pertence a ele, foi o que a mãe falou.

Mary começou a rir, seu corpo sacudia-se todo, o ar faltava-lhe. Tim foi para o seu lado e colocou o braço sobre seus ombros.

— Mary, você está rindo ou chorando? — perguntou-lhe, observando o rosto dela. — Não se importe com o Mick ou Dawnie. Estão zangados. Por que não vamos embora agora? Posso arrumar a minha mala?

Ron olhava para o filho assombrado e com respeito.

— Companheiro, vá arrumar a valise, vá arrumar essa valise agora mesmo. Mary irá ajudá-lo num instante. E sabe de uma coisa, camarada? Você é grande, genuíno, puro!

Os maravilhosos olhos de Tim brilharam, o rapaz voltou a sorrir pela primeira vez depois de terem encontrado Es.

— Também gosto de você, pai - sorriu e saiu para arrumar a valise.

Após sua saída, fez-se um silêncio tenso. Dawnie ficou sentada olhando para todos os lados, menos para Mary Horton. Esta continuava de dpé no meio da sala, sem saber qual a melhor atitude a tomar.

— Acho que deve pedir desculpas a Miss Horton, Dawnie - disse Ron, fitando a filha.

Dawnie enrijeceu-se, os dedos crisparam-se.

— Se me desculpasse, estaria louca! — disse por entre os dents. — Depois de tudo que se passou aqui penso que o Mick e eu é que merecemos um pedido de desculpas! Insultando o meu marido desse jeito!

Ron fitou-a com tristeza...

— Estou realmente satisfeito por sua mãe não estar aqui - falou. - Sempre disse que você tinha mudado, que precisávamos sair da sua vida, porém sei muito bem que ela nunca imaginou que chegaria a este ponto. Minha garota, você está muito presunçosa e seria bom se tomasse algumas aulas de boa educação com Miss Horton, isso para não mencionarmos o chato do seu marido!

— Oh, por favor! - exclamou Mary, sentindo-se embaraçada. - Sinto muito por ter causado tanto aborrecimento. Se tivesse imaginado o que ia acontecer, asseguro-lhes que não teria vindo. Por favor, não discutam por minha causa. Detestaria pensar que fui a causadora de um rompimento permanente na família de Tim. Se não fosse por saber que ele necessita de mim agora, sairia de bom grado de suas vidas - inclusive da dele - e dou-lhes a minha palavra que assim que Tim se recuperar do golpe sofrido com a morte da mãe, é o que farei. Nunca mais tornarei a vê-lo ou causarei a qualquer um de vocês um sofrimento ou embaraço semelhante.

Ron levantou-se abandonando a cadeira em que Tim o forçara a sentar, com a mão estendida.

— Que rematada tolice! Não importa tudo quanto aconteceu, de qualquer modo estava para suceder a qualquer momento. No que diz respeito a mim e a mamãe, o único que importa é o Tim e ele sempre precisará da senhora, Miss Horton. A última coisa que a mãe disse foi: “coitadinho do Tim, faça o melhor por ele, pobre Tim, pobre Tim.” Pois muito bem, Miss Horton, é exatamente isso o que vou fazer, e se esse casal de tolos não vêem o problema como eu, pior para eles. Não posso deixar de cumprir as vontades de mamãe, pois não está mais aqui. — Sua voz partiu-se, mas ele levantou o queixo para o teto, engoliu por diversas vezes e conseguiu continuar. — A mãe e eu nem sempre éramos polidos um com o outro, a senhora entende, porém ensinamo-nos muitas coisas. Passamos juntos muitos anos bons e vou recordá-los com um sorriso erguendo o meu copo de cerveja. Ele não entenderia — fez um gesto de cabeça na direção do sofá — porém a mãe ficaria realmente desapontada se não a brindasse diariamente com uma cerveja lá no Seaside.

Foi com dificuldade que Mary dominou o impulso que sentiu de aproximar-se do velho apaixonado e consolá-lo fisicamente, porém sabia o que representava o próprio controle para ele, portanto não moveu os braços e tentou dizer-lhe, com os olhos marejados de lágrimas e um meio-sorriso, que o compreendia muito bem.

 

Durante todo o trajeto até Artarmon, Tim não pronunciou uma única palavra. Quase nunca dormia na casa de Sidnei e o quarto que sempre ocupava ali não lhe parecia tão seu como o do chalé. Ele dava a impressão-de não saber o que fazer quando Mary estava para deixá-lo a fim de que mudasse de roupa e fosse dormir; deixou-se ficar no meio do cômodo, brincando com os próprios dedos, olhando para ela de maneira suplicante. Sem nunca ter notado essa expressão nele, Mary suspirou e foi para o seu lado.

— Tim, por que não veste o pijama e procura dormir um pouquinho? perguntou-lhe.

— Mas ainda não é de noite, estamos no meio do dia! — protestou, deixando transparecer no timbre da sua voz o sofrimento e o medo que sentia...

— Não há nada com que se preocupar, amor - replicou Mary, sentindo um aperto na garganta. - Creio que conseguirá dormir se eu fechar as venezianas e escurecer o quarto.

— Estou enjoado - disse Tim, contendo a respiração.

— Oh, pobrezinho! — replicou logo, recordando-se como ele se sentia mal ao ser repreendido por fazer alguma coisa errada. - Vamos, eu segurarei a sua testa.

Assim que alcançaram o banheiro, Tim começou a vomitar. Mary manteve uma das mãos sobre as suas sobrancelhas, cantarolando baixinho e acariciando as suas costas enquanto ele sofria ânsias violentas e espasmos.

— Acabou? — perguntou Mary, com ternura, e quando Tim fez um sinal de cabeça afirmativo, acomodou-o na cadeira estofada do banheiro e ligou a água quente para um banho. — Você está todo sujo, não é verdade? Acho melhor tirar toda esta roupa e cair num bom banho... que tal? Vai se sentir muito melhor assim que estiver dentro d’água. - Umedeceu uma toalha e limpou o rosto e as mãos de Tim, tirou a sua camisa, dobrou-a cuidadosamente, depois usou-a como se fosse um esfregão para limpar o chão imundo. Tim observava-a impassível, muito pálido e trémulo.

— Sinto mui-mui-muito, Mary. - disse gaguejando. - Fiz uma sujei- susujeirada e vai ficar zanzan- zangada comigo.

Mary, que àquela altura limpava a cerâmica do chão do banheiro, olhou para ele e sorriu.

— Nunca, Tim, jamais! Você não podia fazer nada e tentou alcançar o banheiro em tempo, não foi? Isso é o que importa, querido.

A sua palidez e fraqueza deixaram-na assustada. Parecia que o rapaz não estava se refazendo como devia, portanto não ficou surpresa quando o viu cair de joelhos em frente a pia e recomeçar a vomitar.

— Acho que agora acabou — disse Mary, assim que cessaram as ânsias. — Que tal tomar um banho agora?

— Estou tão cansado, Mary — murmurou Tim, agarrando-se às bordas do assento da cadeira.

Ela não tinha coragem de deixá-lo sozinho. A cadeira era de espaldar reto e não tinha braços e, caso ele desmaiasse, com toda a certeza haveria de cair. O melhor lugar para ele era dentro da banheira cheia de água morna, onde poderia acomodar-se à vontade e aquecer-se até a alma. Afastando do pensamento as palavras mais virulentas pronunciadas por Dawnie e rezando a Deus para que ele jamais mencionasse aquilo em casa, tirou as suas roupas e ajudou-o a entrar no banho passando um dos braços em volta da sua cintura e o dele sobre o seu ombro. Ele mergulhou na água soltando um longo e agradecido suspiro. Aliviada, Mary notou que a sua cor estava voltando, e enquanto ele relaxava, terminou de limpar o chão e a pia. O cheiro de vómito era terrivelmente penetrante, então tratou de escancarar a porta e a janela para que a brisa outonal pudesse circular. Só então virou-se para a banheira fitando-o.

Tim estava sentado como uma criança, inclinado para frente e sorrindo suavemente enquanto observava as ténues camadas de vapor elevarem-se da superfície da água, os cabelos dourados e encacheados todos molhados. Como era lindo, como era bonito! Trate-o como uma criança, disse de si para si, enquanto apanhava um pedaço de sabonete; trate-o como uma criança que não é, não o olhe nem o veja como um homem. Embora pensando assim, seus olhos ficaram presos ao corpo do rapaz estirado sob o líquido transparente, pois Tim tinha-se deitado de costas, inesperadamente, deixando escapar dos lábios um murmúrio de contentamento quase voluptuoso. A nudez reproduzida num livro, afinal de contas, era bastante diversa da realidade de Tim. Ao vê-la nos livros jamais tivera o poder de mexer com ela ou excitá-la. Obrigou-se a afastar os olhos, porém, involuntariamente, eles retornaram ao ponto de partida, dissimuladamente, até que constatou que Tim fechara os olhos, e a sua expressão transformou-se numa espécie de volúpia fantasiosa mas disciplinada, não tanto um desejo carnal tão confuso e complicado.

Seu olhar dirigiu-se para o rosto de Tim quando percebeu que se mexera, e viu que ele a observava com cuidado e curiosidade ao mesmo tempo. Sentiu o sangue pulsar tão quente sob a pele que esperou algum comentário da sua parte, porém tal não aconteceu. com um movimento semelhante ao dos carangueijos, Mary sentou-se na borda da banheira e esfregou seu peito e costas com o sabonete, os dedos escorregadios deslizando pela pele lisa lhe dava a sensação de uma seda oleosa, e a todo instante segurava o pulso para senti-lo e ver se batia mais forte. Mas ele estava com um aspecto melhor e, na verdade, chegou até a rir quando Mary jogou água em cima da sua cabeça e mandou que se inclinasse para trás a fim de lhe lavar os cabelos. Não deixou que ele ficasse mais tempo ali do que o necessário, mandando-o levantar-se assim que estava todo ensaboado e abrindo o chuveiro, destampou a banheira para vazar a água. Mary deliciou-se ao constatar o seu prazer ingênuo ao ser envolvido pela toalha imensa que lhe entregou logo que tudo terminou; porém ficou muito séria, prestando toda a atenção quando Tim lha assegurou que nunca em sua vida tinha visto uma toalha tão grande e como era gostoso ficar todo enrolado nela como se fosse um bebê.

— Isto foi maravilhoso, Mary — confidenciou-lhe o rapaz, esticado na cama com as cobertas puxadas até o queixo. - Acho que a minha mãe costumava me dar banho quando era um garotinho, porém não me lembro mais. Gosto que me dêem banho, é muito melhor do que tomar banho sozinho.

— Pois então fico satisfeita — disse Mary, sorrindo. — Agora quero que vire de lado e trate de dormir um pouco, está bem?

— Está bem. — Soltou uma gargalhada. — Não posso dizer boa noite, Mary, porque ainda estamos no meio do dia.

— Como se sente agora, Tim? - perguntou, descendo as venezianas e mergulhando o quarto na penumbra.

— Estou me sentindo bem, mas exausto demais.

— Pois então durma, meu querido. Quando acordar pode sair do quarto e me procurar, estarei por aqui.

O fim de semana passou sem maiores problemas. Tim estava tranqüilo, mas ainda não era o mesmo. Contudo, Mary constatou poucos sinais de que ainda sentisse a falta da mãe. No domingo a tarde, colocou-o no banco da frente do imenso Bentley e rumou para Surf Street a fim de apanhar Ron. Este aguardava-os na varanda da frente e tão logo viu o carro aparecer na rua desceu os degraus de dois em dois, uma maleta na mão. Quantos anos terá? ficou pensando Mary, virando-se para destrancar a porta traseira. Apesar de sua excelente forma física e de seu modo juvenil de andar, sem dúvida, já não era um homem jovem. Ficou preocupada ao vê-lo; só conseguia imaginar o pobre Tim ficando totalmente só, sem pai e mãe. Depois da explosão de Dawnie na sexta-feira, tinha dúvidas imensas se poderia ou não substituí-los. O marido possuía ascendência sobre a irmã de Tim. Talvez isso fosse uma boa coisa para ela, porém era terrível para o resto da família. E como poderia ela, Mary Horton, levar Tim para viver ao seu lado caso sucedesse alguma coisa a Ron? Tinha a impressão que todo mundo pensava as piores coisas, então o que imaginariam se o rapaz fosse morar com ela definitivamente? Aquele pensamento deixou-a aterrada. Apenas Ron, Archie Johnson, a velha Emily Parker, sua vizinha, e o próprio Tim achavam bom aquele relacionamento. Estremeceu só de pensar o que diria Dawnie e o que seria capaz de fazer. Sem dúvida, haveria um escândalo, talvez chegasse até a mover uma ação contra ela. Porém, acontecesse o que acontecesse, Tim deveria ficar protegido contra o mal e o ridículo. Na verdade, não importava o que lhe aconteceria, ou a Dawnie ou mesmo às suas vidas. Tim era o único que importava.

Apesar do choque passado e do pesar que sentia, Ron divertiu-se com o comportamento do filho durante o trajeto até Gosford. Gostava do modo como grudava o nariz de encontro ao vidro do carro e a maneira apaixonada de como admirava a paisagem, totalmente encantado. Pelo espelho retrovisor, Mary surpreendeu-o olhando para o filho e sorriu.

— Tim não se cansa nunca, Mr. Melville. Não acha isso maravilhoso? Sabermos que se diverte em cada viagem como se fosse a primeira vez?

Ron sacudiu a cabeça.

— A senhora está com a razão, Miss Horton! Nunca notei o quanto ele gosta de viajar. As poucas vezes que tentamos levá-lo para dar um passeio de carro, só me recordo de vê-lo vomitar por todos os lados. Que porcaria! E bastante embaraçoso também, de vez que o carro não nos pertencia. Se pudesse adivinhar que isso se passaria, teria comprado um carro para dar umas voltas com ele. Fico louco por não ter experimentado isso mais cedo, veja só como se comporta agora!

— Ora, Mr. Melville, se fosse o senhor não me preocuparia com isto. Tim está sempre feliz quando as coisas correm bem. Trata-se de um tipo de felicidade diferente para ele, apenas isso.

Ron não lhe respondeu. Os olhos encheram-se de lágrimas e foi forçado a virar a cabeça e olhar através da sua janela.

Depois de tê-los acomodado no chalé, Mary preparou-se para retornar a Sidnei. Ron levantou os olhos, desapontado.

— Puxa, Miss Horton, a senhora vai embora? Pensei que fosse ficar conosco.

Mary sacudiu a cabeça.

— Infelizmente, não posso. Preciso estar no trabalho amanhã. Meu patrão está com a semana cheia de encontros importantes e tenho que estar ao seu lado para ajudá-lo. Creio que encontrará aqui tudo quanto necessitar. Tim sabe o lugar de tudo e lhe dará uma mão se tiver qualquer problema na cozinha ou aqui fora. Quero que se sinta totalmente à vontade, fazendo tudo que quiser e quando o desejar. Há uma variedade de alimentos, e tenho certeza de que não vai faltar nada. Se quiser ir até Gosford, chame um táxi - o número está anotado no caderno de telefones — e faço questão que mande pôr na minha conta.

Ron manteve-se de pé, pois Mary calçava as luvas, pronta para partir. Apertou a mão dela com calor e sorriu.

— Por que não me chama de Ron, Miss Horton? E eu a tratarei de Mary. Parece-me uma tolice continuarmos a nos tratar de senhor e senhorita.

Mary riu e por alguns instantes apoiou a mão no seu ombro com carinho.

— Sim, concordo, Ron. A partir de agora seremos Ron e Mary.

— Quando tornaremos a vê-la, Mary? - Perguntou Ron, sem saber se na qualidade de hóspede deveria levá-la até o carro ou se deveria ficar sentado na cadeira de balanço.

— Sexta-feira à noite, a qualquer hora, mas não me esperem para jantar. Talvez tenha que ficar na cidade e jantar com o meu chefe.

Quem a acompanhou até o carro foi Tim. Surpreso, Ron viu o filho meter-se entre eles dois como um cão em busca de afago por se sentir esquecido. Aproveitando aquela deixa, Ron tornou a se sentar para ler o jornal, enquanto Tim seguia atrás de Mary até o lado de fora.

— Queria que não tivesse que voltar, Mary - disse, fitando-a com uma expressão que ela nunca tinha visto em seus olhos e que não conseguia identificar.

Ela sorriu, batendo no braço dele.

— Tenho que partir, Tim, realmente preciso. Mas isto significa que deixo o seu pai entregue aos seus cuidados, pois não sabe andar pela casa nem pelo terreno tão bem quanto você. Seja muito bom para ele, sim?

Tim fez um gesto afirmativo. As mãos, abandonadas encontraram-se.

— Cuidarei dele, Mary, prometo-lhe que o farei.

Tim deixou-se ficar ali olhando a trilha até o carro desaparecer por entre as árvores, então deu meia volta e rumou para casa.

 

A semana de trabalho foi tão difícil quanto Mary esperara. De todas as reuniões do conselho da Constable Steel & Mining, esta era a mais importante delas. Três representantes da firma nos Estados Unidos tinham vindo para tomar parte da mesma. Houve os costumeiros problemas relacionados com hotéis que não satisfaziam, alimentos que não eram encontrados, mulheres entediadas, horários em atraso e tudo quanto se segue. Quando chegou a noite de sexta-feira, Mary deixou escapar um suspiro de alívio tão sincero quanto o de Archie Johnson. Sentaram-se, os dois, no escritório localizado no último andar do prédio da Constable, os pés para cima, olhando estonteados para a visão das luzes que se esparramavam em todas as direções até atingir o horizonte crivado de estrelas.

— Com mil demônios, Mary, estou contente que tudo esteja terminado e concluído! — exclamou Archie, empurrando a mesa vazia. — Teve uma idéia maravilhosa mandando vir um jantar chinês.

— Julguei que iria gostar disso. - Remexeu os dedos dos pés, satisfeita. — Tenho a impressão de que meus pés cresceram bem além da numeração e estava morrendo de vontade de tirar os sapatos durante todo o dia. Pensei que Mrs. Hiram P. Schwartz não ia conseguir encontrar o passaporte em tempo de pegar o avião e tive visões pavorosas ao imaginar que poderia ter que passar o fim de semana com ela.

Archie soltou uma gargalhada. Os sapatos da sua impecável secretária estavam atirados pela sala. Ela praticamente desaparecera no meio de uma cadeira descomunalmente grande, os pés, cobertos por meias, esticados sobre uma banqueta.

— Sabe de uma coisa, Mary, você devia ter adotado uma criança excepcional há muitos anos atrás. Meu Santo Senhor, como está diferente! Nunca pude passar sem a sua assistência, porém confesso-lhe que é muito mais divertido trabalhar com você atualmente. Jamais imaginei viver até o dia em que seria obrigado a reconhecer que aprecio a sua companhia, sua velha chata, mas gosto, gosto de verdade. Pensar que isto tudo estava escondido em seu íntimo, durante todos estes anos, e você nunca deixou transparecer nada. Isto, minha cara, é vergonhoso.

Mary suspirou e sorriu ligeiramente.

— Pode ser que sim. Mas sabe de uma coisa, Archie? Nada acontece antes do momento propício. Se tivesse conhecido o Tim anos atrás, jamais teria me interessado por ele. Há pessoas que levam a metade da vida para despertar.

Archie acendeu um charuto e tragou satisfeito.

— Estivemos tão ocupados que não tive chance de lhe perguntar o que aconteceu na sexta-feira passada. A mãe dele morreu?

— Sim. Foi uma coisa horrível. - Estremeceu. - Levei o Tim e o Ron, o pai dele, para o meu chalé no domingo e deixei-os lá. Vou ter com eles esta noite. Espero que estejam bem, porém acho que se tivessem tido qualquer problema teriam me telefonado. Tim ainda não se conscientizou do acontecimento, quero crer. Oh, ele sabe que a mãe está morta, sabe o que isto significa, porém a realidade concreta da sua partida ainda não começou a tomar conta dele; antes de eu vir embora ele ainda não tinha começado a sentir a sua falta. Ron afirma que ele se acostumará com rapidez e espero que isto aconteça. Sinto muita pena do Ron. A filha dele fez um escarcéu quando fui apanhar o Tim em casa, na sexta-feira passada.

— É mesmo?

— Sim. - Mary levantou-se e dirigiu-se para o bar. — Gostaria de beber um brandy ou outra coisa qualquer?

— Depois da comida chinesa? Não, obrigado. Tomarei uma xícara de chá, por favor - Archie ficou observando-a enquanto ela movimentava-se na parte de trás do bar, rumando para o minúsculo fogão e pia - Que tipo de escarcéu?

Mary estava com a cabeça abaixada sobre a chaleira.

— É um tanto desagradável falar sobre isso. Uma cena feia, deixemos as coisas assim. - Ela... ora, não faz mal! As xícaras bateram uma de encontro a outra.

— Ela o que? Ora, Mary, vamos logo com isso, despeje tudo!

Os olhos que o fitavam estavam brilhando de modo desafiador, devido ao orgulho ferido.

— Ela insinuou que Tim era meu amante.

— Mas quanta asneira! - Archie jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada. — Está fora de órbita, fora de órbita! Se tivesse me perguntado, teria lhe dito isso. - Levantou-se da cadeira e aproximou-se do bar. - Não deixe que isso a aborreça, Mary. Mas que peste deve ser essa moça!

— Não, ela não é uma peste. Ela casou-se com uma peste, só isso e esta peste está tentando transformá-la. Para dizer a verdade, não acredito que tenha dito tudo aquilo expontaneamente, acho que repetia o que o marido comentara ao seu ouvido. Ela gosta demais do Tim e é super-protetora. Mary abaixou a cabeça, ultrapassando o nível do bar, e as palavras pronunciadas em seguida saíram abafadas. — Veja bem, todos eles pensavam que eu fosse muito mais velha do que sou na verdade, por isso quando apareci para apanhar o Tim, ficaram todos chocados.

— E como criaram essa imagem?

— Tim disse-lhes que meus cabelos eram brancos e Ron julgou então que eu era uma velha, muito velha...

— Mas você nunca os vira antes do falecimento da mãe dele? Mary, não é do seu feitio andar se escondendo! Por que razão não procurou elucidar as coisas?

Mary enrubesceu repentinamente.

— Sinceramente, não sei porque, porém nunca falei pessoalmente com os pais de Tim. Se temesse que eles pudessem colocar um fim no nosso relacionamento, devido à minha idade, asseguro-lhe que esses temores eram totalmente inconscientes. Sabia que o rapaz estava a salvo ao meu lado. Gostava de ouví-lo falar sobre a família e creio que sempre adiei um encontro por achar que eles não fossem iguais às descrições de Tim.

Archie debruçou-se sobre o balcão do bar e bateu-lhe nas costas, amigavelmente.

— Ora, não se preocupe. Continue, você dizia que a irmã de Tim gosta imensamente dele.

— Sim, Tim também gostava muito dela até que se casou e ele afastou-se um pouco. Dava a impressão de que achava que ela abandonara-o, muito embora eu tenha tentado pôr os pingos nos is. Por tudo o que ele me disse sobre ela, julguei que fosse uma moça sadia, sensível e de bom coração. Muito inteligente. Não acha isso estranho?

— Não sei. Será? O que fez? Mary tornou a abaixar a cabeça.

— Fiquei desolada. Acho que chorei. Gozado... eu chorar! - Ergueu os olhos, tentando sorrir. - É inacreditável, não lhe parece? — Em seguida, deixou escapar um suspiro, o rosto ficou pensativo e triste. — Olhe Archie, mais tarde chorei de verdade, derramei muitas lágrimas.

— Isso é realmente inacreditável, mas creio no que afirma. É isso mesmo, todos deveríamos chorar de vez em quando. Eu também já o fiz — admitiu ele.

Mary riu, acalmando-se.

— Você é, usando o seu linguajar, um berne, Archie.

Observou-a servir o chá, com uma expressão de tristeza nos olhos. Deve ter sido um terrível golpe para o seu orgulho, pensou ele, ver aquela imagem tão especial, tão rara, reduzida a um nível tão baixo. Para ela o simples pensamento de um componente físico era aviltante; tinha o seu modo estranho de encarar a vida. Sempre tivera uma vida isolada, estranha e solitária! Somos o que somos, pensou Archie, e não podemos ir além do que as circunstâncias nos permitem.

— Muito bem, querida - disse, pegando uma das xícaras. Sentado novamente na sua cadeira, os olhos presos à janela, tornou a falar. — Gostaria de conhecer o Tim algum dia, Mary, se você estiver de acordo.

Fez-se um prolongado silêncio. Depois Mary falou, com muita tranqüilidade:

— Um dia desses. - Porém a maneira como o disse deixava claro que tal coisa demoraria muito a acontecer.

 

Já passava de meia-noite quando Mary estacionou o Bentley do lado de fora do chalé. As luzes da sala de estar ainda estavam acesas e Tim aproximou-se com muita presteza para lhe abrir a porta. Estava todo trêmulo pela alegria sentida ao revê-la e quase a levantou do chão quando a abraçou com força. Era a primeira vez que deixava transparecer a emoção sentida ao vê-la, e isto revelou-lhe mais do que qualquer outra coisa o quanto Tim se sentira infeliz durante a semana, o quanto sentira a falta da mãe.

— Oh, Mary, estou tão contente em revê-la! Ela libertou-se do seu abraço.

— Nossa Senhora, Tim, você não faz idéia da sua própria força! Pensei que já estivesse na cama a esta altura.

— Não ia me deitar antes de você chegar. Tinha que ficar acordado até você voltar. Ah, Mary, estou tão contente em vê-la! Gosto de você, gosto de você!

— Também gosto de você e estou contente em vê-lo. Onde está o seu pai?

— Lá dentro. Não deixei que saísse de lá, queria ser o primeiro a vê-la, sozinho. — Tim pulou ao lado dela, porém Mary notou que tinha rompido um pouco do encantamento, que o tinha desapontado de alguma maneira. Se ao menos soubesse como! — Não gosto daqui quando não está, Mary — prosseguiu o rapaz - só gosto quando você também está aqui.

Ao entrarem em casa, Tim já tinha se acalmado um pouco e Mary, estendendo a mão, encaminhou-se para junto de Ron a fim de cumprimentá-lo.

— Como vai? - perguntou com delicadeza.

— Estou bem, Mary. Fico satisfeito por revê-la.

— Como gosto de estar aqui.

— Você já comeu alguma coisa?

— Sim, já jantei, porém vou preparar uma xícara de chá. Gostaria de me acompanhar?

— Sim, gostaria.

Mary virou-se para Tim que se encontrava de pé a alguma distância deles. Seu rosto refletia aquela expressão perdida. Como foi que o desapontei? tornou a perguntar a si mesma. O que fiz para deixá-lo assim, o que deixei de fazer?

— O que está acontecendo, Tim? — perguntou Mary, aproximando-se dele. Balançou a cabeça.

— Não é nada.

— Tem certeza?

— Tenho, não foi nada.

— Meu amigo, acho que está na hora de ir para a cama. Tim balançou a cabeça desolado.

— Sei disso. — Assim que alcançou a porta, virou-se com um apelo mudo nos olhos. — Você irá arranjar as minhas cobertas?

— Não deixaria de fazê-lo por nada neste mundo, portanto apresse-se, vamos, ande logo! Estarei ao seu lado daqui a cinco minutos!

Assim que Tim desapareceu, Mary olhou para Ron e perguntou:

— Como se comportou?

— Bem e mal. Chorou muito por causa da mãe. Não foi fácil, porque ele não chorou como costumava fazer, aos prantos. Ficou sentado as lágrimas rolando pelo seu rosto e não consegui consolá-lo nem mesmo acenando-lhe com alguma coisa boa.

— Vamos juntos para a cozinha. Deve ter sido muito duro para si, e sinto muito por não ter podido ficar para ajudá-lo a carregar o peso deste fardo. — Encheu a chaleira, em seguida olhou para o relógio ansiosa. — Preciso ir dizer boa noite ao Tim. Estarei de volta logo.

Tim já estava deitado, os olhos grudados na porta. Mary aproximou-se da cama, remexeu as cobertas até que estivessem bem debaixo do queixo do rapaz e meteu-as por debaixo do seu corpo. Em seguida, inclinou-se e beijou-o na testa. Tim lutou com o cobertor até conseguir libertar os braços, passou-os ao redor do pescoço de Mary, puxando-a para baixo até vê-la sentada na borda da cama.

— Oh, Mary, queria tanto que estivesse aqui. - disse, pronunciando as palavras bem junto do seu rosto.

— Também gostaria de ter ficado. Mas agora está tudo certo, Tim, já estou aqui e sabe que enquanto puder ficarei sempre ao seu lado. A coisa que mais gosto neste mundo é estar a seu lado. Sentiu falta da sua mãe, não foi?

Os braços estreitaram-se ainda mais em torno do seu pescoço.

— Sim. Oh, Mary, foi horrível recordar que ela nunca mais voltará! Esquecia-me e depois lembrava, e eu queria muito que ela voltasse e sei que não voltará, e isso fica tudo embaralhado. Mas queria que ela pudesse voltar, quero tanto que volte!

— Eu sei... eu sei... Contudo, daqui a algum tempo, será menos difícil, meu coração. Não sofrerá tanto como agora, a dor diminuirá. Ela estará cada vez mais longe, e você acabará se acostumando e então não sofrerá tanto.

— Mas, quando eu choro, sofro, Mary! Dói demais, e isso não vai acabar nunca!

— Sim, eu sei. Também sinto a mesma coisa. Parece que alguém está cortando um pedaço bem grande do seu peito, não é assim?

— Está certa, é isso mesmo que sinto! - Tim passou a mão, meio sem jeito, pelas costas dela. - Oh, Mary, estou tão contente por você estar aqui! Você sempre sabe como são as coisas, pode me dizer e então sinto-me muito melhor. Sem você foi horrível!

Os músculos da perna, encostada a beira da cama, estremeceram um pouco e Mary libertou a cabeça do abraço do rapaz.

— Agora estou aqui, Tim, e ficarei durante todo o fim de semana. Depois iremos todos juntos para Sidnei, não vou mais deixá-lo sozinho por aqui. Agora, quero que se deite de lado e durma, durma por mim, pois amanhã temos uma porção de coisas para fazer lá no jardim.

Tim obedeceu ao seu comando.

— Boa noite, Mary. Gosto de você, gosto mais de você do que qualquer outra pessoa, menos do pai.

Ron preparara o chá e cortara um bolo de especiarias em uma porção de fatias. Ficaram sentados na cozinha, cada qual acomodado num dos lados da mesa, em frente um ao outro. Embora não tivesse se encontrado com Ron a não ser depois da morte de Esme, Mary sabia por instinto que ele envelhecera e definhara durante a última semana. A mão que segurava a xícara tremia e seu rosto não tinha o menor sinal de vida. Havia como que uma transparência a envolvê-lo, um enfraquecimento espiritual que tomara conta de sua carne. Mary estendeu uma das mãos e colocou-a sobre a dele.

— Como deve ter sido difícil para você, ser forçado a dissimular o próprio sofrimento e ainda por cima tomar conta do Tim. Oh, Ron, gostaria de poder fazer alguma coisa! Por que as pessoas tem que morrer?

Ron sacudiu a cabeça.

— Não sei. Esta é a pergunta mais difícil que existe no mundo, não acha? Jamais descobri uma resposta que me satisfizesse. Deus foi muito cruel ao nos dar as pessoas amadas, por nos ter feito à Sua imagem para que pudéssemos amá-las, para depois roubá-las de nós. Ele deveria ter imaginado uma maneira melhor para fazer isso, não lhe parece? Sei que nenhum de nós é anjo, e devemos parecer vermes para Ele, porém muitos dentre nós se esforçam por ter um bom comportamento, muitos de nós não são tão maus assim. Por que temos que sofrer tanto? É duro, Mary, é muito, muito duro!

A mão que estava sob a dela libertou-se para proteger os olhos e ele chorou. Mary deixou-se ficar sentada ali, sem nada poder fazer, sofrendo por ele. Se houvesse alguma coisa que pudesse fazer! Que coisa terrível... ter que ficar sentada ali, ver o sofrimento do outro e não ter forças para aliviá-lo. Ron chorou durante muito tempo, soluçando, como se alguma coisa dilacerasse a sua alma, de modo profundo e prolongado. Quando não pôde mais chorar, enxugou os olhos e assoou o nariz.

— Gostaria de tomar uma outra xícara de chá? — perguntou-lhe Mary.

Por um breve instante, o sorriso estampado em seus lábios era o sorriso de Tim.

— Sim, gostaria. — Soltou um suspiro. — Nunca imaginei que seria assim, Mary. Talvez eu esteja velho, não sei. Nunca’imaginei que a sua partida deixaria um vazio tão grande dentro de mim. Até mesmo o Tim já não parece ter muita importância para mim, só ela, só a sua perda é que importa. As coisas já não são as mesmas sem a minha velha resmungando e reclamando por eu ter voltado muito tarde do Seaside, bebericando cerveja, como costumava dizer. Tivemos uma vida muito boa juntos, Es e eu. Aí é que está o problema, você gosta cada vez mais do outro à medida que os anos vão passando, até que passamos a parecer um par de botas velhas, quentes e confortáveis. De repente. . . pronto... tudo acaba! Tenho a impressão de que metade de mim se foi também, deve ser o mesmo tipo de sensação que um cara experimenta quando perde um braço ou uma perna, entende o que estou querendo dizer, não? Ele continua pensando que está no lugar e fica terrificado quando vai se coçar e não encontra nada mais o que coçar. Não paro de pensar nas coisas que deveria ter-lhe dito, ou então tenho que me controlar para não dizer bem alto que ela haveria de gostar dessa piada, que riríamos juntos. É tão duro, Mary, e não sei se vale a pena lutar para viver.

— Sim, acho que o compreendo - disse Mary, - lentamente. - Uma amputação espiritual...

Ron pousou a xícara no pires.

— Mary, caso me aconteça alguma coisa, poderia tomar conta do Tim? Mary não tentou dissuadi-lo, não procurou lhe dizer que estava sendo mórbido ou tolo, limitou-se a balançar a cabeça e dizer:

— Sim, é claro que o farei. Não se preocupe com o Tim.

 

Durante o longo e triste inverno que se seguiu à morte da mãe, Tim modificou-se. Era como se estivéssemos vendo um animal padecendo. Perambulava de um lugar para outro procurando alguma coisa que não estava ali, os olhos iluminando-se, incansavelmente, ao deparar com algum objeto inanimado para depois se afastarem desapontados e desiludidos, como se estivessem sempre esperando que o inpossível fosse acontecer e estava além da sua compreensão do porque tal não acontecia. Ron comentou com Mary que nem mesmo Markham e sua turma conseguiam alguma coisa dele. Tim ia trabalhar diariamente sem faltar, contudo as brincadeiras maliciosas de tempos antigos não encontravam receptividadde: Tim suportava as piadas dos companheiros com tanta paciência quanto agüentava todo o resto. A impressão era de que havia se retirado do mundo verdadeiro, pensou Mary, passado para uma esfera que era só dele e na qual não permitira a entrada de intrusos.

Ela e Ron mantinham, durante as noites chuvosas, conversas intermináveis e inúteis a seu respeito. O vento fustigava as árvores que circundavam o chalé, enquanto Tim afastava-se sozinho para algum lugar ou então se ia deitar. Desde o falecimento de Esme, Mary fizera questão que Ron também fosse com eles passar os fins de semana no chalé, pois não tinha coragem de levar o filho todas as noites de sexta-feira e deixar o velho sentado, sozinho, ao lado da lareira vazia.

Os dois demonstravam o peso excessivo do sofrimento. Para Mary já não era a mesma coisa, tendo que compartilhar com ele a suas horas com Tim; para Ron nada tinha grande importância a não ser o vazio de seus dias; para Tim, ninguém sabia. Esta foi a primeira experiência de Mary com a tristeza e jamais imaginara que pudesse ser assim. A própria impotência, a incapacidade de pôr as coisas nos eixos era o que mais a frustrava. Nada que dissesse ou fizesse, fazia a mínima diferença. Era forçada a suportar intermináveis momentos de silêncio, os afastamentos furtivos para entender, através de lágrimas, o sofrimento.

Também passara a cuidar de Ron por ser o pai de Tim, porque estava sozinho, porque nunca se queixava, e à medida que o tempo passava ele ocupava mais e mais os seus pensamentos. Quando a estação fria estava próxima ao fim ela percebeu que a fragilidade de Ron aumentava. Às vezes, quando estavam sentados, lado a lado, sob o calor morno e fraco do sol, e ele estendia a mão contra a luz, Mary tinha a impressão de que aquela extremidade cheia de veias e descarnada deixava a luz filtrar-se a tal ponto que se podia ver a silhueta dos seus ossos. Tremia muito e o seu caminhar, que um dia fora tão firme, agora parecia hesitante mesmo quando não havia nenhum obstáculo a transpor. Por mais que tentasse alimentá-lo bem, Ron perdia peso constantemente. Estava sumindo diante de seus olhos.

O problema absorvia-a como uma força invisível. Tinha a impressão de caminhar sobre uma planície sem indicações ou direções e somente o trabalho ao lado de Archie Johnson tinha algum realismo. Na Constable Steel & Mining podia ser ela mesma, afastava a mente de Ron e Tim e mergulhava em algo concreto. Era a única influência positiva na sua vida. Passara a detestar as sextas-feiras e a ansiar pelos domingos. Ron e Tim tinham se transformado num pesadelo amarrado em volta de seu pescoço, de vez que não sabia o que fazer para evitar o desastre, cuja aproximação pressentia.

Logo no começo da primavera, num certo sábado pela manhã, Mary estava sentada na varanda do chalé olhando na direção da praia, onde Tim estava de pé bem no ponto onde a margem do rio beijava as águas do mar. O que ele estava vendo? Estaria procurando a mãe, ou buscava as respostas que ela não lhe soubera dar? O que mais a preocupava era o seu fracasso junto a Tim, pois sentia ser uma das principais razões do afastamento dele. Desde aquela noite em que voltara para o chalé depois da semana que Ron e Tim passaram sós, Mary percebera que Tim achava que ela fracassara com ele. Contudo, falar com ele era a mesma coisa que conversar com uma parede, parecia que ele não queria escutá-la. Tentara inúmeras vezes, abordara o assunto lançando mão de recursos infalíveis em outras oportunidades, porém ele os ignorava, praticamente desprezando-a. Tornara-se inatingível; Tim continuava com o mesmo comportamento polido, trabalhava com afinco no jardim e na casa, não expressava o menor descontentamento. Limitara-se a se isolar.

Ron apareceu na varanda com uma bandeja de chá e colocou-a numa mesa próxima à sua cadeira. Os olhos do velho acompanharam o seu olhar preso na silhueta imóvel, parada lá na praia e ele soltou um suspiro.

— Tome uma xícara de chá, Mary. Não comeu nada no desjejum, minha cara. Assei um bolo de especiarias muito bom ainda ontem, por que não come uma fatia com o chá, heim?

Mary afastou os pensamentos do rapaz e sorriu.

— Sinceramente, Ron, nestes últimos meses você se transformou num ótimo cozinheiro.

Ron mordeu os lábios para conter o tremor repentino.

— Es gostava muito de bolo de especiarias, era o seu preferido. Li no Herald que lá nos Estados Unidos come-se pão com especiarias, porém não costumam colocá-las em bolos. Puxa! Não posso imaginar nada pior do que sementes de alcarávia no pão, porém, num bolo amarelinho e fofo é o máximo.

— Os costumes diferem, Ron. Provavelmente, os americanos diriam a mesma coisa se lessem nos jornais de lá que os australianos colocam sementes de alcarávia em bolos ao invés de usá-las em pães. Mas veja, para ser franca, se você for a uma das padarias continentais de Sidnei já encontrará pão com especiarias.

— Na minha opinião, esses novos australianos não valem nada — disse com a prevenção dos velhos australianos para os novos imigrantes europeus. - De qualquer modo, isso não vem ao caso. Vamos, Mary, coma um pedaço do bolo.

Após ter comido metade da fatia, Mary largou o prato.

— Ron, o que está se passando com ele?

— Ora Mary, com mil demônios, já trocamos idéias a esse respeito há tantas semanas! — resmungou; em seguida, virou-se para apertar o braço de Mary com arrependimento. — Sinto muito, minha querida, não queria ser rude com você. Sei que está preocupada com ele, como também sei que é exatamente por esse motivo que não pára de fazer esta pergunta. Não sei, minha cara, realmente, não sei. Jamais imaginei que as coisas correriam dessa maneira depois que a mãe dele morresse, nunca pensei que fosse sentir tanto. Isso parte o seu coração, não?

— Está despedaçando-o. Não sei o que fazer, contudo não posso deixar de fazer algo... e rápido! Sinto-o afastar-se cada vez mais de nós, Ron, e se não conseguirmos trazê-lo de volta, acabaremos perdendo-o para sempre!

Ron aproximou-se de Mary e sentou-se sobre o braço da cadeira onde ela estava, puxando a sua cabeça para enconstá-la ao peito descarnado e aninhá-la ali.

— Quem me dera saber o que fazer, querida, mas não sei. O pior de tudo isto é que não consigo mais ficar preocupado como antigamente, é como se o Tim já não fosse mais meu filho, como se não devesse me incomodar. Isso parece horrível, contudo tenho as minhas razões. Espere aqui.

Inesperadamente, deixou-a onde estava, desapareceu dentro da casa, aparecendo um instante depois com uma pasta de papéis sob o braço. Colocou-a sobre a mesa ao lado da bandeja do chá. Mary fitou-o, intrigada e preocupada. Ron sentou-se diante de Mary, os olhos, brilhando estranhamente, dentro dos dela.

— Aqui estão todos os papéis relacionados com o Tim - disse. - Aí dentro está o meu testamento, todos os livros de cheques, apólices de seguro e anuidades. Tudo que dará uma segurança financeira ao Tim para o resto de sua vida. — Olhou para trás, na direção da praia e Mary já não podia mais ver o rosto dele.

— Mary, estou morrendo - prosseguiu, lentamente. - Não quero viver e não vejo de que maneira poderei me manter vivo. Estou correndo como um macaquinho de corda — você sabe quais são, batem num tamborzinho, marcham e param, então a corda começa a ficar curta, os movimentos vão se tornando mais lentos até que, finalmente, se imobilizam, os pés param de andar e o tambor emudece. Muito bem, eu estou assim. Correndo, porém a corda está quase terminada e não há nada que eu possa fazer com relação a isso.

— E sabe de uma coisa, Mary? Estou contente! Se fosse um homem mais jovem não teria sentido tanto o desaparecimento dela, mas a idade faz uma grande diferença. Ela deixou um vazio descomunal e não consigo preenchê-lo, com coisa alguma, nem mesmo com o Tim. Tudo que desejo é ficar ao lado dela, debaixo da terra. Não consigo parar de pensar no frio e solidão que minha Es deve estar sentindo. Não pode ser de outra maneira, não depois de ter compartilhado do sono ao meu lado durante tantos anos. - Ron ainda continuava com o rosto virado para a praia. — Não posso suportar o pensamento da solidão e do frio que está padecendo, não posso suportar isso. Nada mais resta depois que ela se foi e não consigo preocupar-me com o Tim. Por isso procurei o meu advogado, esta semana, e tratei de preparar tudo para que fique bem claro.

— Nada estou lhe deixando a não ser problemas, quero crer, porém, não sei exatamente porque, desde o começo percebi que gostava demais do Tim, que não se importaria com o fardo. Sei que isso é egoísmo de minha parte, mas não posso agir de outra forma. Mary, vou deixar o Tim aos seus cuidados e aqui estão todos os papéis. Fique com eles. Dei-lhe poderes de tutora com relação a todos os negócios de meu filho durante toda a sua vida. Não creio que Dawnie crie muitos problemas para você, de vez que Mick não quer o cunhado por perto, porém, por precaução deixei duas cartas aí, uma para Dawnie e a outra para o papalvo do Mick. Já comuniquei à firma que deixarei de trabalhar, estou me aposentando. Ficarei em casa e esperarei, porém quero continuar a vir passar os fins de semana com vocês, caso não se importe. De qualquer maneira, não será por muito tempo mais.

— Oh, Ron, oh Ron! - Mary começou a chorar. A esguia silhueta na praia dissolveu-se em meio as lágrimas e ela estendeu a mão na direção do pai de Tim.

Levantaram-se e apertaram-se com força, cada qual vítima de um diferente tipo de sofrimento. Depois de um instante, Mary descobriu que ele a consolava mais do que ela seria capaz de fazê-lo em relação a ele. Era estranhamente calmo e salutar estar de pé ali entre seus braços sentindo toda a sua ternura e compaixão, sua proteção intensamente masculina. Apertou-o mais, metendo o rosto no meio das pregas de seu pescoço magro e fechou os olhos.

Inesperadamente alguma coisa estranha intrometeu-se entre eles: um estremecimento de pavor percorreu a sua espinha e ela abriu os olhos com medo. Tim encontrava-se de pé há alguns metros de distância, fitando-os e, pela primera vez nesses longos meses de amizade, Mary viu-o zangado. Tremia todo de raiva; deixava transparecer aquele sentimento nos olhos que tinham adquirido uma tonalidade tão escura quanto duas safiras, os músculos de seu corpo tremiam todos. Terrificada, deixou os braços caírem e afastou-se de Ron tão inesperadamente que ele cambaleou e foi forçado a agarrar-se numa das pilastras de sustentação do teto. Virando-se, viu Tim. Fitaram-se durante um minuto sem dizer uma única palavra, em seguida, Tim deu meia volta e correu trilha abaixo na direção da praia.

— O que está se passando com ele, Ron? - Murmurou Mary, agastada. O velho fez um movimento para seguir o filho, porém Mary puxou-o de volta, agarrando-se a ele.

— Não, não faça isso!

— Mas, Mary tenho que ir ver o que está se passando com ele! O que foi que aconteceu? O que a fez saltar daquela maneira e fitá-lo com tanto medo? Deixe-me ir!

— Não, Ron, por favor! Deixe que eu vá atrás dele, por favor, fique aqui! Oh, Ron, não me pergunte porque, apenas deixe que eu o encontre por mim mesma!

Ron concordou com relutância e afastou-se da beira da varanda.

— Muito bem, pode ir, querida. Você é boa para ele e quem sabe não estará necessitando mais de um toque feminino do que de um masculino! Se a mãe dele estivesse aqui seria ela quem cuidaria disso, portanto por que não você?

Enquanto Mary descia correndo a trilha não conseguiu ver o rapaz na praia. Parou na beira da água, protegeu os olhos com as mãos e correu-os de ponta a ponta por toda a baía, mas ele não estava ali. Virou-se rumo às árvores, dirigindo-se para uma pequena clareira onde, ultimamente, Tim gostava de ir para ficar só. E lá estava ele. Respirando aliviada, Mary encostou-se a um tronco e ficou observando-o em silêncio. O desespero e o sofrimento de Tim deixaram-na tão aturdida como se tivesse sido golpeada por um martelo gigantesco; todas as linhas longas e tocantemente maravilhosas de seu corpo falavam de padecimento, o seu perfil puro estava marcado pela dor. Não podia ficar longe dele, porém aproximou-se tão silenciosamente que Tim só notou a sua presença quando ela tocou no seu braço. Ele puxou-o como se aqueles dedos o queimassem e a mão dela caiu inerte...

— Tim, o que foi? O que eu fiz?

— Nada... nada!

— Tim, não me esconda nada! O que foi que eu fiz?

— Nada! - exclamou, quase gritando.

— Mas eu fiz! Oh, Tim, há meses venho percebendo que de algum modo o decepcionei, porém não sei o que fiz de errado! Conte-me, por favor, conte-me!

— Vá embora!

— Não, não irei! Não irei embora até que tenha me dito o que está acontecendo! Isto está nos deixando, a seu pai e a mim, quase loucos e ainda há pouco, lá na varanda, olhou-nos como se nos odiasse. Nos odiasse, Tim! - Fez uma volta para fitá-lo e colocar as mãos nos seus antebraços, os dedos apertando a sua pele.

— Não me toque! — Libertou-se e virou-se de costas para ela.

— Por que, Tim? O que ”fiz para que não possa tocá-lo?

— Nada!

— Não acredito em você! Tim, jamais imaginei que”pudesse mentir para mim, mas é o que está fazendo neste momento! Por favor, conte-me o que está havendo, oh, por favor!

— Não posso! - disse por entre sussurros, desesperado.

— Pode sim, claro que pode! Você sempre me contou tudo! Oh, Tim, não fuja de mim e não me deixe mais fora da sua vida! Você está me estraçalhando, estou tão fora de mim, sinto-me tão preocupada e temerosa por você que já nem sei mais o que fazer! - Começou a chorar e passou a mão no rosto para enxugar as lágrimas.

— Não posso, não posso! Não sei! Sinto tantas coisas que nem consigo pensar, não sei o que elas significam!

Rodopiou sobre si mesmo para encará-la, atormentado e mortificado ao máximo, e ela recuou. Quem a fitava era um estranho, nada via de familiar nele.

— A única coisa que sei é que não gosta mais de mim, só isso! Agora, gosta mais do pai do que de mim, não gosta mais de mim! Desde que conheceu meu pai deixou de gostar de mim, e eu sabia que isso iria acontecer, sabia que aconteceria! Como iria gostar mais de mim quando ele é bom da bola e eu não? Eu gosto mais dele do que de mim!

Mary estendeu as mãos.

— Oh, Tim! Oh, Tim! Como pôde pensar uma coisa dessas? Não é verdade! Gosto tanto de você como sempre gostei, não deixei de gostar de você nem mesmo por um minutinho sequer! Como poderia deixar de gostar de você algum dia?

— Mas deixou sim, deixou assim que conheceu meu pai!

— Não! Não! Isso não é verdade, Tim! Por favor, acredite em mim, isso não é verdade! Gosto de seu pai, porém nunca poderia gostar tanto dele quanto gosto de você, nunca! Se quer mesmo saber, a principal razão porque gosto de seu pai é por ser ele seu pai; foi ele quem o fez. — Mary tentava manter a voz tranqüila, esperando assim acalmá-lo.

— Você é quem está mentindo, Mary! Posso sentir as coisas! Sempre pensei que você achava que eu era um adulto, mas agora sei, não acha, agora não, não agora que vi você e o pai! Não gosta mais de mim, gosta é do pai agora! Você não se importa quando o pai a abraça! Vi-a abraçando-o e consolando-o o tempo inteiro! Não vai deixar que a abrace e não vai me consolar! Tudo que faz por mim é ajeitar as minhas cobertas quando vou dormir e eu quero que me abrace e console, mas isso você não fará! Mas faz isso com o pai!

— O que há de errado comigo? Por que não gosta mais de mim? Por que ficou diferente desde o instante que o pai passou a vir aqui conosco? Por que sempre me deixam de fora? Posso jurar que não gosta de mim, posso jurar que gosta do pai!

Mary manteve-se absolutamente quieta, angustiada para responder àquele apelo de amor tão desesperado e triste, mas estupefata demais com a sua precipitação. Tim estava com ciúmes! Era violento e possessivamente ciumento! Considerava o próprio pai como um rival junto à sua afeição e não era, apenas, o ciúme de uma criança. Havia um homem por trás daquele sentimento: primitivo, possessivo, sensual. O fluxo de palavras tranqüilizadoras não surgia; Mary não encontrava nada para dizer.

Permaneceram olhando-se, tensos e na expectativa; em seguida, Mary constatou que suas pernas tremiam tanto que quase não suportavam o peso de seu corpo. Procurou um montículo de terra por perto e sentou-se sem desviar o olhar do rosto de Tim.

— Tim — disse, hesitante, tentando escolher as palavras com toda a delicadeza. — Tim, sabe que nunca menti para você. Nunca! Não poderia fazê-lo, pois gosto demais de você. O que vou lhe dizer agora é algo que não poderia contar a uma criancinha, só poderia fazê-lo a um homem feito. Assegurou-me que é um adulto, portanto será obrigado a aceitar todas as coisas duras e penosas que acompanham o fato de se ser um homem. Não sei como lhe explicar de maneira certa porque não o deixo me abraçar e ajo de modo diverso com relação ao seu pai, mas não é porque eu o julgue uma criancinha, mas sim por ele ser um homem idoso. Você interpretou as coisas da maneira errada, não entende isso?

— Tim, deve estar preparado para receber um novo golpe como aquele que sofreu quando da morte de sua mãe e precisa ser forte. Tem que ser adulto bastante para manter em absoluto segredo o que vou lhe contar, principalmente com relação ao seu pai. Ele jamais deverá saber que lhe contei.

— Lembra-se quando, há muito tempo atrás, expliquei-lhe o que acontecia quando as pessoas morriam, porque morriam, que elas apenas ficavam velhas e cansadas demais para continuar a luta, que paravam como um relógio quando a gente se esquece de lhe dar corda até que seus corações cessam de bater? Muito bem, às vezes sucedem coisas que aceleram o desgaste e isto vem acontecendo ao seu pai. Quando a sua mãe morreu ele começou a murchar rapidamente, foi ficando cada dia mais cansado por não viver mais com sua mãe.

Tim estava parado, de pé junto dela, todo trêmulo ao escutá-la, porém ela não sabia se aquilo era resultado de sua raiva ou uma reação àquilo que estava ouvindo. Mary prosseguiu no argumento.

— Sei que sente, terrivelmente, a falta de sua mãe, Tim, contudo não da mesma maneira que acontece com ele, porque você é jovem e ele velho. Seu pai anseia pela morte, deseja ser enterrado sob a terra ao lado de sua mãe. Adormecer da mesma forma que costumavam fazer, todas as noites, enquanto ela estava viva. Quer ficar novamente ao lado dela. São um do outro, entende, Ron não consegue mais viver sem a presença de sua mãe, Tim. Agora mesmo, quando me encontrou consolando-o lá na varanda, tinha acabado de me dizer que ia morrer. Não quer continuar andando e falando porque está velho e não tem forças para aprender a viver sem ela. Foi por isto que eu o abraçava. Fiquei triste e chorei por ele; na verdade, era ele quem me consolava, e não eu a ele. Você interpretou a coisa totalmente errada.

Um movimento feito com rapidez obrigou-a a erguer os olhos para ele e Mary levantou a mão.

— Não, não chore, Tim! Deixe disso, precisa ter muita coragem e ser muito forte, não pode permitir que ele perceba que esteve chorando. Reconheço que dediquei muito do meu tempo ao seu pai, e um tempo que você achava ser seu, com toda a razão, mas o tempo que resta a ele é tão pouco e você tem toda uma vida diante de si! Acha errado de minha parte procurar proporcionar um pouquinho só de felicidade ao seu pai a fim de aliviar o pouco tempo que ainda lhe resta? Dê-lhe esses dias, Tim, não seja egoísta! Ele está sozinho! Sente demais a falta de sua mãe, meu querido, sente a falta dela da mesma forma que sentiria a sua se morresse. Está vagando por um mundo em penumbra.

Tim não era capaz de mascarar seus sentimentos, nunca aprendera a manter as suas feições serenas; as emoções ficavam evidenciadas uma após as outras no seu rosto enquanto a fitava, e Mary falara de uma maneira tão simples que ele compreendeu o suficiente. Conseguir que Tim captasse alguma coisa era uma questão de se estar habituada com ele, e ele já a conhecia a tanto tempo, que não encontrava dificuldades nas palavras e frases por ela usadas. As nuances estavam além dele, mas a verdade não.

Mary deixou escapar um suspiro de cansaço.

— Não achei muito fácil durante todos estes meses ter que tomar conta de vocês dois em vez de um só. Houve muitos, muitos momentos em que desejei tê-lo novamente para mim. Porém, todas as vezes em que me surpreendi com este desejo senti vergonha de mim mesma. Veja bem, nem sempre as coisas podem ser como queremos. Muito raramente a vida é a ideal e tudo que nos resta fazer é saber tirar dela o melhor. Agora, devemos pensar primeiro no seu pai. Você sabe como ele é bom e delicado e se for justo terá que admitir que ele nunca o tratou como um bebê, não é verdade? Deixou que andasse por aí sozinho, cometesse seus próprios erros, adora passar o tempo livre no Seaside ao seu lado, tem sido o amigo mais sincero e melhor que já teve; tomou o lugar dos companheiros da sua faixa de idade que você nunca conseguiu achar. Assim mesmo ele tinha a sua vida, também, mas não por egoísmo; sempre teve você, a sua mãe e Dawnie presentes no pensamento, sempre lhes deu calor e conforto. Você tem muita sorte, Tim, por ter um pai igual ao Ron, portanto não lhe parece que devemos tentar lhe dar uma pequena parcela de tudo quanto ele lhe deu de todo o coração durante todos esses anos?

— De agora em diante, Tim, quero que seja muito bom para o seu pai e para mim também. Não deve mais preocupá-lo saindo por aí sozinho, como vinha fazendo, e nunca deverá lhe revelar a nossa conversa. Todas as vezes que seu pai estiver por perto quero que cante e converse como se sentisse feliz, realmente muito feliz.

— Compreendo o quanto é difícil para você captar o sentido destas palavras, porém ficarei aqui e repetirei tudo isto quantas vezes forem necessárias para você entender tudo.

Assim como a chuva, o vento e o sol, a tristeza e a alegria misturavam-se em seus olhos, depois obscureceram-se e Tim escondeu a cabeça no colo de Mary. Esta permaneceu sentada, afagou os seus cabelos e conversou baixinho, passando a ponta do dedo em volta do contorno de seu pescoço com imensa ternura.

Quando tornou a erguer a cabeça, Tim, finalmente, olhou para ela tentando sorrir, mas sem o conseguir. Depois a sua expressão modificou-se, o olhar vago reapareceu e os olhos maravilhosos refugiaram-se atrás do triste véu do isolamento. A pequenina ruga do lado esquerdo de sua boca ficou mais pronunciada; era o trágico palhaço de todas as comédias, era o amante indesejado, o cuco no ninho da cotovia.

— Oh Tim, não me olhe dessa maneira! - implorou Mary.

— No trabalho costumam me chamar de Tim, o Tacanho, — disse — porém se me esforço, consigo pensar um pouquinho. Desde a morte de mamãe, estive pensando em algo para lhe mostrar o quanto gosto de você, porque pensei que gostasse mais do meu pai do que de mim. Mary, não sei o que representa para mim, apenas sinto-o e não posso lhe dizer porque não conheço as palavras certas. Nunca consigo achar as palavras... Porém, nos filmes que assisto na televisão o homem abraça a mulher, depois beija-a e então ela fica sabendo o quanto ele a quer. Oh, Mary, gosto de você! Gostava de você até mesmo quando pensei que não me queria mais, gosto de você, gosto de você!

Agarrou-a pelos ombros obrigando-a a levantar-se e ao envolvê-la nos braços apertou-a com uma força incontrolável... a cabeça de Mary foi erguida, a procura de ar. Sem ’saber como encontrar a sua boca, Tim comprimiu a maça do rosto de encontro a dela até que descobriu seus lábios. Pegada totalmente de surpresa, de vez que suas últimas palavras e ações tinham sido rápidas demais e difíceis para uma compreensão imediata, Mary lutou desesperadamente para se libertar. Em seguida, nada mais tinha importância, só havia a sensação daquele maravilhoso corpo jovem e da boca ansiosa pela experiência. Tão inexperiente quanto ele porém muito melhor preparada intelectualmente, Mary percebeu a necessidade de ajudar e tranqüilizar o rapaz. Não podia desapontá-lo naquilo também, não podia esmagar o seu orgulho, humilhá-lo, repudiando-o. Os braços dele afrouxaram-se um pouco e ela pôde soltar as mãos que, imediatamente, tocaram a sua cabeça, acariciando as sobrancelhas e fechando os seus olhos, explorando a maciez de seda de seus cílios e as curvas marcantes de seu rosto... Tim beijou-a da maneira que julgava ser correta, seus lábios comprimiram-se totalmente cerrados e aquilo não o satisfez...

Mary recuou ligeiramente e, com um imenso carinho, pressionou o seu lábio inferior com o polegar obrigando-o a entreabri-lo; em seguida, colocou as mãos sobre a sua cabeça, puxando-a para trás. Desta feita Tim não se sentiu frustrado e o seu prazer descomunal transmitiu-se a ela.

Mary já o tinha envolvido em seus braços antes, porém como se ele fosse uma criança, nunca como um homem, e a surpresa de descobrir o homem que havia nele, amedrontou-a. Deixar-se ficar entre os braços dele, sentir a pressão de sua boca, deixar que as próprias mãos deslizassem pelo seu pescoço até alcançarem o peito muscular e macio, foi o mesmo que descobrir em si mesma a necessidade de tudo aquilo. Um prazer sofrido ao sentir o contato das mãos dele sobre seu corpo. Tim encontrou os ”contornos de seus seios sem precisar de orientação, em seguida sua mão escorregou sob a gola de seu vestido e deslizou pelos ombros nus.

— Mary! Tim! Mary! Tim! Onde estão? Estão me ouvindo? É o Ron! Respondam-me!

Mary afastou-se de Tim, agarrou sua mão e arrastou-o em busca da proteção das árvores. Correram até que a voz de Ron sumiu às suas costas, então pararam. O coração de Mary pulsava com tamanha rapidez que quase não conseguia respirar e, por um segundo, julgou que fosse desmaiar. Arquejante, sem fôlego, agarrou-se ao braço de Tim até sentir-se melhor, em seguida afastou-se um tanto embaraçada.

— Você está parecendo um bobinho — disse, virando-se para fitá-lo.

Tim estava sorrindo para ela naquele seu antigo e adorável jeito, mas agora havia uma diferença, uma pitada de encantamento e fascinação, como se ela tivesse ganho uma luta em dimensão aos olhos dele. Aquilo tranqüilizou-a mais do que qualquer outra coisa; pôs a mão na cabeça, procurando refletir. Como acontecera aquilo? Como poderia lidar com aquela situação inesperada, como poderia fazer as coisas voltarem ao que eram sem magoá-lo?

— Tim, não devíamos ter feito isso — disse, lentamente.

— Por que? — O rosto dele resplandecia de tanta felicidade. — Oh, Mary, não sabia que era assim! Gostei, gostei muito mais do que a abraçar ou ser consolado!

Mary sacudiu a cabeça com determinação.

— Isso não importa, Tim! Não deveríamos ter feito aquilo. Existem coisas que a gente não pode fazer e esta é uma delas. É uma pena que tenhamos gostado, porque não pode acontecer de novo, não deve acontecer nunca mais, não porque não tivesse gostado tanto quanto você, mas por não ser uma coisa certa. Precisa acreditar em mim, Tim, não é uma coisa permitida! Sou responsável por você, preciso cuidar de você da maneira que seus pais gostariam que eu fizesse e isto quer dizer que não podemos nos beijar, realmente não podemos.

— Mas por que, Mary? O que há de errado nisso? Gostei tanto! - Toda a alegria tinha desaparecido de seu rosto.

— Não há nada de errado na coisa em si, Tim. Porém, entre nós dois é proibido, é um pecado. Sabe o que é um pecado?

— Naturalmente que sei! É quando fazemos alguma coisa que desagrada a Deus.

— Pois muito bem, Deus não gosta que nos beijemos.

— Mas por que Deus se importaria com isso? Oh, Mary, nunca me senti assim antes! Foi o momento em que mais me senti perto de um homem normal! Por que Deus iria se importar? Não é justo se Deus se importa, realmente, não é justo!

Mary soltou um suspiro.

— Não, Tim, não é justo. Porém algumas vezes torna-se difícil para nós compreendermos os desígnios de Deus. Existem uma porção de coisas bastante tolas que temos que fazer sem entendê-las por completo, não é mesmo?

— Sim, creio que sim — replicou amuado.

— Bem, quando se deve compreender os desígnios de Deus nenhum de nós é brilhante — você não o é, eu não o sou, seu pai também não o é, o Primeiro Ministro da Austrália também não, nem mesmo a Rainha o é. Tim, precisa acreditar no que lhe digo! — suplicou Mary. — Tem que acreditar em mim, pois se não acreditar não poderemos mais ser amigos, seremos obrigados a deixar de nos ver. Não podemos mais nos abraçar e beijar, pois isto representa um pecado aos olhos de Deus. Você é apenas um rapaz e tem seus problemas, enquanto eu estou ficando velha e sou boa da cabeça. Tenho idade suficiente para ser sua mãe, Tim!

— E o que tem isso a ver?

— Deus não gosta que nos abracemos e beijemos quando existe uma diferença de idade tão grande como a nossa e de mentalidade também. É só isso, Tim. Gosto de você, gosto mais de você do que de qualquer outra pessoa no mundo todo, porém não posso abraçá-lo e beijá-lo. Isso não é permitido. Se tentar me beijar outra vez, Deus não deixará mais que eu o veja e não quero deixar de vê-lo.

Tim refletiu a respeito do que acabava de ouvir, depois suspirou desanimado.

— Bem, Mary, gostei demais de tudo aquilo, porém prefiro continuar a vê-la do que beijá-la e não a ver mais.

Mary bateu palmas, maravilhada.

— Oh, Tim, sinto tanto orgulho de você! Acabou de se expressar como um homem, como um homem autêntico e brilhante. Estou tão orgulhosa de você.

Tim riu deliciado.

— Continuo achando que isso não é justo, mas gosto quando você se orgulha de mim.

— Sente-se mais feliz agora que sabe de tudo?

— Muito mais feliz! — Sentou-se sob uma árvore e bateu sobre o chão ao seu lado — Sente-se Mary. Prometo-lhe que não a beijarei.

Mary acomodou-se ao seu lado, pegou a sua mão separando os dedos com amor.

— Isto é o máximo que podemos fazer quando nos tocarmos, Tim. Sei que não me beijará, não estou preocupada com a possibilidade de que quebre a sua promessa. Precisa prometer alguma coisa além disso, também.

— O que? — A mão que se encontrava livre agarrou alguns fios da relva sob a sua coxa.

— O que aconteceu, isto é, o beijo, tem que ser um segredinho nosso. Nunca deveremos contar isso a ninguém, Tim.

— Está certo - respondeu com docilidade. Estava retornando à sua condição infantil, aceitando o seu papel com aquele desejo de agradar e aquela doçura extraordinária que eram só dele. Depois de um instante, virou a cabeça para fitá-la, e os imensos olhos azuis estavam tão repletos de amor que Mary prendeu a respiração, aborrecida e magoada. Tim estava com toda a razão... não era justo, não era justo de nenhum modo.

— Mary, aquilo que me falou sobre o papai, de como ele deseja ficar deitado ao lado da mãe debaixo da terra... Sei o que quis dizer com isso. Se você morresse eu também teria vontade de morrer, não iria gostar de continuar andando, falando, rindo e chorando, é verdade mesmo. Gostaria de ficar ao seu lado, debaixo da terra... dormindo. Não vou gostar quando o pai não estiver mais aqui, mas sei porque quer partir.

Mary colocou as mãos dele em seu rosto e manteve-as ali.

— É muito mais fácil compreender as coisas quando a gente pode se pôr na mesma situação dos outros, não acha? Escute, o seu pai está nos chamando. Acha que pode conversar com ele sem chorar?

Tim fez um sinal com a cabeça muito tranqüilo.

— Ah, sim, estarei bem. Gosto demais do pai, depois de você é dele de quem mais gosto, mas ele pertence à minha mãe, não é? Eu lhe pertenço, por isso não estou tão preocupado agora como estava antes. Agora lhe pertenço. Mary, pertencer apenas, não é um pecado, é?

Ela sacudiu a cabeça.

— Não, Tim, não é um pecado.

A voz de Ron aproximava-se. Mary gritou para que ele soubesse onde estavam e levantou-se para esperá-lo. -Mary?

— Sim, que é?

Tim ainda estava esparramado no chão, olhando para ela com uma expressão de compreensão total.

— Acabo de me lembrar de uma coisa! Recorda-se do dia seguinte à morte de mamãe, quando foi me apanhar lá em casa?

— Sim, claro que me lembro.

— Muito bem, a Dawnie disse algumas coisas horríveis e más para você e não entendia porque ela estava tão zangada. Tentei, tornei a tentar, mas não consegui compreender o seu aborrecimento. Enquanto ela gritava com você senti uma coisa esquisita, porque achei que ela estava pensando que tivéssemos feito alguma coisa horrível. Agora acho que já sei! Ela pensou que nós já nos tínhamos beijado?

— Alguma coisa parecida com isso. Tim.

— Oh! - Por um momento, manteve-se pensativo. — Então, Mary, acredito em você, acredito que não temos permissão para nos beijar. Nunca via a Dawnie tão zangada antes e, desde aquele dia, ela tem sido muito ríspida comigo e com o pai. Algumas semanas depois disso ela teve uma briga enorme com o pai porque eu ia ficar com você e agora já não vai mais nos visitar. Portanto acredito que seja mesmo um pecado, deve ser um pecado senão a Dawnie não ia ficar tão furiosa. Mas por que ela achava que você ia deixar que nos beijássemos o tempo todo? Ela devia conhecer você melhor do que isso, Mary. Nunca deixaria que fizéssemos alguma coisa de errado.

— Sim, ela deveria sabê-lo, concordo com você. Porém, às vezes as pessoas ficam zangadas demais e não conseguem pensar direito e, afinal de contas, ela não me conhece tão bem quanto você e o seu pai.

Tim encarou-a, com uma expressão inteligente.

— Mas o pai ficou do seu lado... e naquele tempo ele também não a conhecia bem.

Ron apareceu no meio das árvores, ofegante.

— Está tudo certo, Mary minha querida? Ela sorriu, dando uma piscadela para Tim.

— Sim, Ron, tudo está totalmente certo. Tim e eu tivemos uma conversa e colocamos tudo nos seus devidos lugares. Fique tranqüilo, não havia nenhum problema, apenas um mal entendido.

 

Porém nem tudo estava certo; as feras tinham despertado. Mary tinha bons motivos para sentir-se agradecida por Ron estar fenecendo, pois se estivesse no seu estado normal de saúde teria notado, de imediato, a mudança operada em Tim. Do jeito que estavam as coisas, sentia-se satisfeito e nada mais almejava ao constatar que o relacionamento entre os dois voltara a ser descontraído e feliz. Apenas Mary se dava conta do sofrimento de Tim. Sabia que, diversas vezes por dia, haveria de surpreender seus olhos famintos e zangados presos nela e quando isto acontecia, Tim saía da sala imediatamente, sentindo-se culpado e perturbado. Por que as coisas devem mudar? perguntou a si mesma; por que uma coisa perfeita não podia continuar a ser perfeita? Porque somos todos seres humanos, responderia seu raciocínio, porque somos por demais complexos e imperfeitos, porque quando nos acontece uma coisa ela deve repetir-se e, ao repetir-se, altera a forma e a essência do que fora antes. Não havia como voltar à primeira fase da sua amizade, portanto só lhes restavam duas alternativas: ou continuar, ou deixar ficar como estava. Porém nenhuma das duas parecia-lhe possível ou exeqüível. Se Tim fosse mentalmente sadio ela teria tentado, porém voltar ao assunto só serviria para deixá-lo mais confuso, torná-lo mais infeliz ainda. Isto mais me parece um xeque numa partida de xadrés, pensou ela, a seguir balançou a cabeça com desespero e preocupação; aquilo era explosivo demais para ser um xeque. Então tratava-se de um impasse.

A princípio pensou em conversar com Archie Johnson a fim de trocarem idéias, porém afastou logo tal possibilidade. Ele era um homem inteligente e simpático, contudo jamais captaria as leves diferenças da situação. E que tal Emily Parker? Era uma senhora muito boa, tinha acompanhado o seu relacionamento com Tim desde o início, demonstrara um interesse intenso, porém alguma coisa em Mary era contrário a que expusesse o seu dilema àquela encarnação espalhafatosa de matriarca suburbana. Enfim, resolveu telefonar para John Martinson, o professor de excepcionais. Este lembrou-se imediatamente de Mary.

— Estava quase sempre perguntando a mim mesmo o que poderia ter lhe acontecido — disse ele. — Como vão as coisas, Miss Horton?

— Não estão muito boas, Mr. Martinson. Estou precisando, urgentemente, conversar com alguém e o senhor é a única pessoa a quem posso recorrer... Sinto muito por infligir-lhe os meus problemas, porém como não sei que atitude tomar, acho que preciso da ajuda de alguém qualificado no assunto. Estive pensando se seria possível levar o Tim para vê-lo.

— Naturalmente que sim. Que me diz se nos encontrássemos amanhã, depois do jantar, na minha casa?

Mary anotou o endereço, depois ligou para a casa de Mr. Melville...

— Ron, quem está falando é Mary.

— Oh, bom dia, meu amor. O que é que há?

— Na verdade, nada. Estive pensando se estaria de acordo se eu levasse o Tim para visitar uma pessoa, amanhã”, depois do jantar.

— Claro que pode. Quem é?

— Um professor de crianças excepcionais, um homem maravilhoso. Talvez ele pudesse nos dar uma ajuda no caso do Tim, dar-nos uma idéia de como poderia ensiná-lo melhor.

— Como queira, Mary. Até amanhã à noite, então.

— Ótimo. Por falar nisso, ficaria muito agradecida se não entrasse em detalhes com o Tim, quero que ele o conheça naturalmente.

— Tem razão. Tchau, amor.

John Martinson morava perto da escola, que estava localizada na cidade satélite de Penrith, bem no sopé das Montanhas Azuis. Tim, acostumado a viajar na direção norte, gostou muito de sair de Sidnei tomando outro rumo; a Post Road correndo paralela a Great Western Highway não deixou que afastasse o rosto da janela, contando os inúmeros salões para venda de carros feericamente iluminados, as lanchonetes que ficavam abertas a noite toda e os cinemas drive-inn.

A casa de Martinson era grande mas despretenciosa, construída com placas de fibra pintada de rosa claro e ressoava com as gargalhadas estridentes das crianças.

— Por que não entram pela varanda dos fundos? — convidou John Martinson, ao abrir a porta. - Transformei-a num escritório e ali ninguém nos incomodará.

Foram apresentados a sua mulher e aos três filhos mais velhos com quem falaram rapidamente e foram direto para a varanda dos fundos.

Os olhos de John Martinson pousaram em Tim cheios de curiosidade e com grande admiração. Enquanto falava, comodamente sentado numa cadeira imensa colocada num dos lados da escrivaninha, ele e Tim tomaram duas garrafas de cerveja. Durante meia hora Mary não disse uma única palavra enquanto os dois trocavam idéias e deliciavam-se com a cerveja. Tim gostou do professor e sentiu-se à vontade de imediato, e tagarelava sobre o jardim, e sobre o seu trabalho ao lado de Harry Markham, totalmente inconsciente de que estava sendo observado por um perito.

— Tim, você gosta de assistir os filmes de bang-bang na televisão? - Perguntou-lhe, finalmente, John Martinson.

— Ah, sim, adoro!

— Pois bem, tenho alguns assuntos para discutir com Miss Horton por alguns momentos e creio que não se divertirá se ficar aqui escutando. Que tal se o levar para dentro para ver os meus filhos? Daqui a instantes, começará um filme de faroeste formidável.

Tim acompanhou-o satisfeito e quando o anfitrião voltou ao escritório Mary pôde ouvir as gargalhadas de Tim vindo de alguma parte da casa.

— Ele vai se sentir muito à vontade, Miss Horton. Minha família está acostumada a lidar com pessoas iguais a Tim.

— Não estou preocupada.

— O que está acontecendo, Miss Horton? Posso tratá-la por Mary?

— Mas claro que sim!

— Ótimo! Chame-me John. Aliás, compreendo perfeitamente o que quis dizer quando me disse que o Tim era espetacular. Acho que nunca vi em minha vida um homem tão bonito, nem mesmo no cinema. - Riu, olhando para o seu corpo esquelético. — Ele faz-me sentir como um nanico de quarenta e cinco quilos.

— Pensei que fosse lastimar por uma pessoa tão bonita ser retardada mentalmente.

John pareceu surpreso.

— Por que deveria pensar uma coisa dessas? Nenhum de nós nasce sem alguma coisa maravilhosa e alguma coisa indesejável dentro de nós. Reconheço que o corpo e as feições de Tim são magníficos, porém não lhe parece que uma grande parte desta beleza totalmente surpreendente vem da alma?

— Sim - respondeu Mary, agradecida; ele entendia, tinha agido acertadamente ao escolhê-lo para confidente.

— Ele é uma pessoa maravilhosa, percebe-se logo isso. Uma das mais doces... Quer que o coloque sob a orientação de um perito?

— Não, não foi por esse motivo que o vim procurar. Aqui estou porque as circunstâncias colocaram-me, ao que tudo indica, num completo dilema e, na verdade, não sei qual a melhor maneira de agir. É pavoroso, pois seja qual for a decisão tomada, Tim ficará magoado, talvez profundamente magoado.

Os olhos de um azul profundo não se afastavam dela.

— Não estou gostando disso. O que aconteceu?

— Veja, tudo começou com a morte de sua mãe há nove meses atrás. Não tenho certeza se já lhe disse isso, mas ela estava com setenta anos. Ron, o pai de Tim, tem a mesma idade.

— Compreendo, ou pelo menos, acho que entendo. Tim sente a sua falta?

— Não, na verdade, não. O pai de Tim sim, e tão profundamente que meparece, não irá sobreviver por muito tempo. É um velhinho maravilhoso, porém com a morte da mulher parece que perdeu toda a motivação para viver. Vejo-o definhando, dia a dia, diante de meus olhos. E ele tem consciência desse fato; ainda no outro dia confessou-me isso.

— E quando ele morrer Tim ficará completamente só.

— Sim.

— E ele tem noção desse fato?

— Sim. Fui forçada a contar-lhe. Aceitou a coisa muito bem.

— Possui algum tipo de segurança financeira?

— Muitos. A família dele aplicou praticamente quase tudo que podia a fim de que Tim nunca viesse a passar necessidade.

— E quanto a você Mary, o que tem a ver com tudo isso?

— Ron - o pai de Tim — perguntou-me se ficaria com ele quando se fosse... e a minha resposta foi afirmativa.

— Tem consciência do que fez?

— Claro que sim. Porém existem complicações imprevisíveis. — Mary baixou os olhos na direção das próprias mãos. - Como poderei ficar com o Tim, John?

— Está querendo saber o que pensarão os outros?

— Em parte, muito embora se se tratasse apenas disso estaria preparada e disposta a arcar com as conseqüências. Não posso adotá-lo, já ultrapassou de muito a maioridade, porém o Ron deu-me totais poderes para cuidar dos bens de Tim e, de qualquer maneira tenho muito dinheiro... não preciso do de Tim.

— Então o que é?

— Tim sempre foi muito agarrado a mim, não sei lhe explicar porque. Era estranho. . . Desde o começo gostou de mim, era como se tivesse visto em mim coisas que nem eu mesma consigo ver. Já fazem quase dois anos que o conheci... Nos primeiros tempos foi tudo muito simples. Éramos amigos, grandes amigos. Então, quando a mãe dele faleceu fui fazer uma visita à família e a irmã de Tim, Dawnie, uma moça muito inteligente e dedicada ao irmão, agrediu-me com algumas acusações terríveis e totalmente falsas. Insinuou que eu era amante de Tim e que estava me aproveitando da deficiência mental do rapaz para explorá-lo e corrompê-lo.

— Entendo. Ficou chocada, não foi?

— Sim. Fiquei terrificada, porque nada do que dissera era verdadeiro. Quando disse tudo isso Tim estava presente, mas, felizmente, não percebeu o que Dawnie estava querendo dizer. Contudo, ela estragou tudo para mim e, conseqüentemente, para ele também. O pai estava presente também, porém ficou a meu favor. Não acha estranho essa atitude da parte dele? Recusou-se a acreditar numa única palavra da filha, portanto esse fato não deveria fazer muita diferença na minha amizade com Tim. Mas, influiu, talvez inconscientemente, talvez até mesmo conscientemente, sei lá. Tornou-se mais difícil para mim estar ao lado de Tim e, além disso, senti tanta pena do Ron que o levei conosco para passar os fins de semana no chalé.

— Isto continuou assim por seis meses, mais ou menos isso, e durante o passar desse tempo Tim modificou-se. Ficou cada vez mais calado e introspectivo, não era capaz de se comunicar com nenhum de nós dois. Estávamos preocupadíssimos. Então, certo dia de manhã, houve uma cena horrível entre Tim e eu, e tudo veio a tona. Tim sentia ciúmes do pai, pensava que ele o tivesse substituído na minha afeição. Foi por esse motivo que me vi forçada a lhe contar que o pai estava morrendo.

— E? — Indagou logo John Martinson quando percebeu a hesitação de Mary. Inclinou-se para diante, observando-a cuidadosamente.

Sem entender porque, o profundo interesse demonstrado pelo rapaz deu-lhe coragem para prosseguir.

— Tim ficou exultante quando se deu conta de que meus sentimentos com relação a ele não tinham mudado, que ainda gostava dele. A sua palavrinha mágica é gostar; costuma dizer que gosta de bolo, dos filmes de faroeste exibidos pela televisão, de pudins... assim ao se referir as pessoas que admira também diz: ”gosto” e nunca ”amo”. Estranho, não lhe parece? O seu pensamento é tão puro e direto que adotou a significação literal de gostar e de amar; sempre escutou os outros dizerem que adoram comer ou passar bons momentos, mas notou que ao falarem de outro ser humano dizem ”gosto”. Portanto, adotou esta mesma expressão, convencido de que estava agindo corretamente. Talvez esteja mesmo!

Suas mãos tremiam; mantinha-as firmes, unindo-as com força sobre o colo.

— Ao que tudo indica, durante esse período em que pensou que eu gostasse mais de Ron do que dele, ficou tão tumultuado que passou a imaginar um meio de provar-me que o sentimento que nutria por mim era verdadeiro e eterno. A televisão proporcionou-lhe a resposta; raciocinou que quando um homem gostava de uma mulher demonstrava-o beijando-a. Sem dúvida, percebeu também, que nos filmes, tal atitude geralmente resultava num final feliz. - Um ligeiro tremor sacudiu-a. — Sinto-me realmente culpada. Se tivesse sido mais perspicaz poderia tê-lo notado, mas fui burra demais para perceber isso em tempo. Idiota!

— Passamos momentos horríveis, quando Tim acusou-me de gostar mais de Ron do que dele, e outras coisas mais. Fui obrigada a explicar-lhe porque estava dando tanta atenção ao Ron, que Ron estava morrendo. Como bem pode imaginar, ficou em frangalhos. Nenhum de nós dois estava emocionalmente bem, estávamos preocupados e muito tensos. Assim que se recuperou um pouco do choque sofrido ao tomar conhecimento da situação do pai, Tim se deu conta que eu continuava gostando mais dele do que de Ron. Pôs-se de pé, de repente, agarrou-me de modo tão inesperado que não percebi o que ele fazia até que já era tarde demais.

Fitou John Martinson com uma expressão de súplica.

— Não sabia qual a melhor maneira de agir, mas não podia humilhá-lo rejeitando-o.

— Compreendo isso muito bem, Mary - disse o professor com delicadeza. — Então correspondeu, não foi?

Mary enrubesceu, sentindo-se embaraçada, porém conseguiu falar com calma.

— Sim. Naquele instante pareceu-me a melhor forma de agir, achei que o mais importante era certificar-me de que Tim não sofresse uma rejeição afastando-o de mim. Além do mais, eu... o meu envolvimento em tudo aquilo era tão grande que não consegui me dominar. Ele beijou-me e, felizmente, não tive que enfrentar nada mais além disso, pois escutamos a voz de Ron nos chamando e isso proporcionou-me uma ótima desculpa para afastar-me.

— Qual foi a reação de Tim com relação ao beijo?

— Não foi exatamente aquela que eu esperava. Ele gostou demais, excitou-o. A partir de então, ele começou a me ver de outra maneira, poderia até dizer que ele desejava repetir e experimentar outra vez aquela sensação. Expliquei-lhe que aquilo não era bom, era proibido, que muito embora pudesse acontecer entre muitas pessoas, não podia suceder entre nós e, superficialmente, ele compreendeu. Realmente, ele entendeu que era proibido e desde então tem cooperado magnificamente. Nunca mais tornou a acontecer, e jamais se repetirá no futuro.

Um inesperado grito de alegria partiu de dentro da casa; Mary saltou assustada, perdendo, por momentos, o fio do pensamento. Agarrando a alça da bolsa, sentou-se sem voz e muito pálida.

— Prossiga — disse John. — Nunca mais tornou a acontecer e jamais se repetirá no futuro.

— Suponho que, para Tim, tudo aquilo foi como uma porta se abrindo para um mundo totalmente novo e depois a constatação de que nele não se pode entrar. Contudo, mesmo sabedor disto, a porta continua aberta e o novo mundo é pródigo e maravilhoso. Tenho tanta pena dele e nada posso fazer para ajudá-lo. Sou eu a causa do seu sofrimento. Não tornará a me beijar, porém não consegue esquecer o momento em que o fez. Ron manteve-o numa total ignorância sobre assuntos relacionados com sexo, porém mesmo sem ter ouvido qualquer menção a respeito, terminou descobrindo-o por si mesmo, nada lhe escapou. Agora que experimentou um pouquinho, o amor o está corroendo sem piedade.

— Naturalmente — falou John, soltando um suspiro. — Isso era inevitável, Mary.

Incapaz de fitá-lo, deteve os olhos sobre a parede, por trás da cabeça de John, onde uma minúscula aranha andava...

— Está claro que não podia contar ao Ron o que tinha acontecido, mas, assim mesmo, tudo está modificado. Como poderei ficar com ele quando o Ron se for? Tenho certeza que se Ron tomasse conhecimento disso nunca me pediria para ficar com o Tim. Por enquanto vou dando um jeito, mantenho o rapaz ocupado e feliz dois dias na semana, principalmente devido à presença do pai. Porém, como poderemos, os dois, controlarmo-nos convivendo na mesma casa todo o tempo? Oh, John, não sei mesmo o que fazer! Se achasse que havia uma possibilidade, ainda que ínfima, de que Tim pudesse se esquecer, seria diferente, daria um jeito para encontrar forças. Mas sei que não esquecerá e quando o surpreendo olhando para mim, eu... Tim não é um desses simplórios de memória fraca, entende? Possui a capacidade de absorver e sedimentar as recordações se estas lhe causam uma forte impressão ou se determinadas coisas se repetem seguidamente. Todas as vezes que me olha, ele se recorda, e não é suficientemente inteligente para esconder isto. Está aborrecido, magoado e muito ressentido, e embora compreenda que aquilo não deve tornar a acontecer, nunca entenderá, realmente, o porquê.

— Já pensou numa solução, Mary?

— Na verdade, não. Existe, por acaso, algum tipo de hospedaria, onde as pessoas como o Tim, adultas fisicamente mas ainda crianças no pensamento, possam morar quando não têm mais ninguém e estão sós? Se fosse viver num lugar dessa espécie poderia levá-lo para passar comigo os fins de semana. Seria mais fácil assim.

— Tem mais alguma idéia?

— Nunca mais tornar a vê-lo. Mas como poderei fazer isso, John? Não seria bom para ele se ficasse na companhia da Dawnie... ou será que estou sendo egoísta? Será que realmente represento tanto para ele, tanto quanto penso, ou trata-se apenas de auto-sugestão. Creio ser possível que ele me esqueça tão logo esteja instalado na casa da irmã, porém não posso deixar de pensar que ela e o marido viverão a própria vida, colocando Tim num segundo plano. Ela tem outras responsabilidades, não poderá se dedicar tanto ao irmão quanto eu!

— Há uma outra resposta, você sabe.

— Existe? - Mary inclinou-se para diante, cheia de ansiedade. — Oh, se pudesse imaginar o quanto desejei escutá-lo dizer uma coisa assim!

— Por que não se casa com o Tim?

Mary ficou embasbacada, tão assombrada que levou alguns segundos para dizer:

— Você está brincando! — Repentinamente, a cadeira ficou muito dura e acanhada; levantou-se, atravessou o escritório, em seguida aproximou-se para fitá-lo. — Está brincando? - repetiu muito triste, transformando a frase numa interrogação.

Sobre a escrivaninha havia um cachimbo; John apanhou-o, começou a enchê-lo, comprimindo o fumo com vagar e muito cuidado, como se, assim agindo, pudesse se manter calmo.

— Não, não estou brincando, Mary. Esta é a única resposta lógica.

— Resposta lógica! Meu Deus do Céu, John! Esta não é uma resposta, de forma alguma! Como poderei me casar com um jovem mentalmente retardado com idade bastante para ser meu filho? Isso é um crime!

— Mas que tolice! - Puxou a fumaça com força, os dentes cerrados sobre o tubo. — Seja razoável, mulher! Que mais lhe resta fazer a não ser casar-se com ele? Compreendo que isto não lhe tenha ocorrido, mas agora que a idéia lhe foi sugerida não vejo razões para que não seja aceita! Se a rejeitasse, estaria cometendo um crime, já que gosta desta expressão. Case-se com ele, Mary Horton, case-se com ele!

— De jeito nenhum! — Mary estava revoltada.

— O que está havendo? Está com medo do que os outros dirão?

— Sabe perfeitamente que não se trata disto! Não posso me casar com Tim! A própria idéia é uma coisa de loucos!

— Quantos disparates e tolices! É claro que pode se casar com ele.

— Não, não posso! Tenho idade suficiente para ser sua mãe, sou uma mulher velha, amarga, feia, e não a companheira indicada para Tim!

John levantou-se, aproximou-se dela, agarrou-a pelos ombros e sacudiu-a até deixá-la tonta.

— Agora trate de me ouvir, Miss Mary Horton! Se você não é a companheira adequada ao Tim, ele também não é o companheiro ideal para você!, O que é isso? Um nobre ato de auto-sacrifício? Não consigo suportar a nobreza, ela só consegue criar infelicidades para todos. Disse que tinha que se casar com ele e não estou pilheriando! Quer saber por que?

— Claro que sim!

— Porque não podem viver um sem o outro, eis o porquê! Meu Deus, mulher, a gente percebe à distância o quanto está louca por ele e ele por você! Não se trata de uma amizade platónica e nunca o foi! O que aconteceria se escolhesse a segunda alternativa e parasse de vê-lo? Tim não sobreviveria ao pai mais do que uns seis meses sabe disso perfeitamente, e quanto a você viveria ainda muitos anos como uma sombra de si mesma, num mundo tão triste e cheio de lágrimas que iria desejar estar morta um milhão de vezes a cada dia interminável. Quanto à primeira alternativa, não existem lugares desse tipo porque, se houvessem, as listas de espera estariam literalmente cheias por anos sem fim. Tim não viveria o bastante para conseguir uma vaga. É isso o que deseja... matar o Tim?

— Não, não! - exclamou, procurando um lenço.

— Escute aqui! Tem que parar de pensar em si mesma como uma mulher velha, feia e amarga, ainda que isso representasse a expressão da verdade. Desafio qualquer um a explicar o que uma pessoa vê na outra e, no seu caso, não devia nem imaginar uma questão deste tipo. Pense o que pensar sobre si mesma, Tim julga-a totalmente diferente e muito mais desejável. Declarou-me não saber o que ele viu em você, fosse lá o que fosse não conseguia entender. Sinta-se agradecida que assim seja! Por que jogar tudo fora devido a um excesso de auto-sacrifício e orgulho? É um auto-sacrifício sem utilidade e fora de questão!

— Pensa que ele mudará, que acabará se cansando de você? Aja como adulta! Tim não é um homem maravilhoso e sofisticado do mundo, é uma criatura infeliz e tola, tão simples e devotado quanto um cachorro! Ah, não lhe agrada ouvir-me dizer coisas assim, não é? Muito bem, neste momento não há lugar para eufemismos ou ilusões, Mary Horton; só há lugar para a verdade, tão simples e sem rebuços como deve ser. Não me interessa os motivos que levaram Tim a dedicar-lhe a sua afeição, só me interessa o fato de que assim agiu. Ele a ama, apenas isso. Ama-a! Por mais inverossímel, inviável, inexplicável que possa ser, ele a ama. O porque não o sabemos, porém esse é um fato concreto. E afinal de contas o que é que há com você, que é capaz de pensar em jogar fora esse amor?

— Você não entende! — Mary soluçava, a cabeça entre as mãos, os dedos penetrando crispados por entre os cabelos bem arrumados.

— Ora, compreendo muito melhor do que possa imaginar! disse, com delicadeza. - Tim ama-a, com todas as forças de seu ser: ama-a. Por algum motivo, de todas as pessoas que teve oportunidade de conhecer, foi a você que dedicou a sua afeição e sempre a dedicará. Ele não se entediará ou se cansará de você, não irá preteri-la, daqui a dez anos, por uma mulher mais jovem, não está atrás do seu dinheiro nem seu pai também. Neste momento, você é uma pessoa solitária, portanto nada tem a perder, não? Além do mais, ele tem beleza bastante para todos dois.

Mary levantou a cabeça e procurou sorrir.

— Pelo menos é honesto.

— Sou, porque tenho que ser. Mas tudo isto ainda é pouco, não? Não venha me dizer que nunca admitiu para si mesma amá-lo tanto quanto ele a ama, não é mesmo?

— Oh, já reconheci isso — respondeu ela, depressa.

— Quando? Há pouco tempo?

— Há muito tempo, antes da morte de sua mãe. Certa noite, disse-me que me parecia com a imagem de Santa Teresa e por algum motivo esta declaração deixou-me sem fôlego. Amei-o desde o primeiro instante em que o vi, porém só vim a admiti-lo nessa oportunidade.

— E julga que se cansará dele?

— Cansar-me de Tim? Não, mas claro que não!

— Então por que não pode se casar com ele?

— Porque tenho idade bastante para ser sua mãe e porque ele é bonito demais.

— Mary, essa desculpa não me satisfaz. Toda essa conversa sobre aparência é falsa e não pretendo me dar ao trabalho de discuti-la com você. Quanto ao problema da diferença de idades, parece-me válido discuti-lo. Você não é a mãe dele, Mary! Não nutra por ele um afeto maternal e ele não a verá como uma mãe. Como sabe, esta situação não é normal; não estamos lidando com duas pessoas adultas mental e fisicamente mas sim com uma disparidade de idade o que deixa algumas dúvidas a respeito dos laços emocionais que as unem. Você e Tim são únicos nos anais do homem. Não estou querendo dizer com isto que uma solteirona na casa dos quarenta não tenha se casado com um rapaz que pudesse ser seu filho, talvez até mesmo um excepcional, estou querendo dizer que vocês são um casal diferente sob qualquer aspecto e creio que possa aceitar essa singularidade. Nada os mantém unidos a não ser o amor que sentem um pelo outro, não é verdade? Existe a diferença de idade, de beleza, de inteligência, de saúde, de status, de origem, de temperamento — poderia continuar indefinidamente, não poderia? Os laços emocionais entre você e Tim são verdadeiros, tão verdadeiros a ponto de terem ultrapassado todas essas diferenças inatas. Creio que ninguém neste mundo, inclusive você, poderá dizer qual a razão porque vocês foram feitos um para o outro. E na verdade o são. Portanto, case-se com ele, Mary Horton, case-se com ele! Terá que suportar uma quantidade de risinhos, dedos apontados para si e conjeturas, mas isso, na verdade, não importa, não é mesmo? Creio que já tem agüentado muitas dessas coisas até agora. Portanto, por que razão não dar aos mexeriqueiros alguma coisa que valha a pena ser comentada? Case-se com ele!

— Isso é... isso é indecente, praticamente obsceno!

— Estou certo de que todos dirão isso. Mary levantou o queixo.

— Não me importa o que os outros digam, só me preocupam as conseqüências sobre o Tim, como as pessoas o tratarão se se casar comigo.

John Martinson deu de ombros.

— Suportará muito melhor as suposições do que a separação, disso pode estar certa.

Mary mantinha as mãos unidas sobre o colo e John colocou as suas sobre elas, apertando-as com força, os olhos brilhando.

— Reflita sobre isto, Mary. Por que motivo o Tim não deveria se casar? O que há de tão especial nele? Pode me dizer quantas vezes quiser que o trata como um homem, mas não concordo. As únicas vezes que pensou nele como um homem, quase morreu de horror, não foi? Eis aí a razão: você cometeu o erro que toda gente comete com relação aos retardados mentais. Na sua cabeça, Tim não passa de uma criança. Mas não é uma criança, Mary! Os retardados, assim como ocorre com as pessoas normais, estão sujeitos ao crescimento e as mutações que surgem com a maturidade; dentro do limitado campo de seu desenvolvimento físico, deixam de ser crianças. Tim é um adulto, com todos os atributos físicos de um homem adulto e com o metabolismo hormonal perfeitamente normal. Se ele tivesse sofrido um acidente na perna caminharia claudicando, porém como o seu defeito é cerebral ele claudica mentalmente e este tipo de desvantagem não impede que seja também um homem, como o seria se seu defeito fosse na perna.

— Por que razão deveria o Tim passar toda a vida privado da oportunidade de satisfazer uma das necessidades mais impetuosas que conhece seu corpo e espírito? Por que lhe deveria ser negada a virilidade? Por que deveria ser protegido e escondido do próprio corpo? Oh, Mary, ele ja possui tantas deficiências! Tantas! Por que devemos despojá-lo ainda mais? Não é ele um homem com direito à sua virilidade? Mary Horton, honre o homem que há nele! Case-se com ele!

— Está bem, entendo. - Deixou-se ficar sentada, em silêncio, por alguns instantes, refletindo. Em seguida, levantou a cabeça. - Então, está bem, se você julga ser esta a melhor coisa a fazer sob as atuais circunstâncias, casarei com ele.

— Que boa garota! — O rosto de John enterneceu-se. - Ambos vão obter ótimos resultados com isso, sabe disso.

Mary ficou séria e franziu as sobrancelhas.

— Porém, as dificuldades serão tantas!

— Seu pai?

— Não creio. Acho que o Ron ficará satisfeito, muito embora acredite que será o único. Mas eu e Tim somos ambos igualmente inexperientes nesse assunto e não estou certa se terei condições de lidar com todos os problemas resultantes.

— Está se preocupando sem necessidade. O problema é que você é uma pensadora, procura argumentar com coisas que costumam ser solucionadas por si mesmas quando chega o momento certo. No que diz respeito às necessidades do Tim, você está muito bem capacitada, parece-me.

Controlando a vontade de saltar de alegria, Mary conseguiu manter-se discreta.

— Não devo ter filhos, ou devo?

— Não, não deveria. Não porque a deficiência do Tim seja hereditária, ao que se sabe não existe grande possibilidade nesse sentido. Contudo, está entrando numa faixa etária onde talvez não tenha condições de viver para acompanhar o desenvolvimento de um filho temporão e as condições de Tim não lhe permitem preencher o seu papel, caso lhe acontecesse alguma coisa. Além disso, já está com bastante idade para repetir a infelicidade de sua mãe e, se o fizesse, seria a maior ironia da vida. Falando estatisticamente, quando se começa a ter filhos após os trinta e cinco anos as chances de gerar uma criança normal são pouquíssimas e quanto mais longe se estiver desta marca, menores são estas possibilidades.

— Sei disso.

— Acha que sofrerá por não ter filhos? Acha que isto encherá sua vida de desapontamento?

— Não! Como poderia acontecer tal coisa? Nunca esperei me casar, ou sonhei com isto. Tim é mais do que o bastante para mim.

— Não será fácil.

— Sei disso.

John largou o cachimbo e suspirou.

— Muito bem, Mary, desejo-lhe toda a alegria e felicidade deste mundo. Agora cabe a você decidir.

Mary levantou-se, segurando a bolsa e as luvas.

— Agradeço-lhe muito, John. Sou-lhe eternamente grata e dou-lhe a minha palavra que procurarei ajudar a sua causa de toda maneira que for possível.

— Não me deve nada. A satisfação que sinto só por saber da felicidade de Tim é mais do que uma recompensa para mim. Apenas apareça para me visitar de vez em quando.

Ao invés de deixar Tim na porta de casa, Mary entrou com ele. Ron encontrava-se na sala de estar assistindo a um programa sobre esportes.

— Boa noite, Mary! Não pensei que fosse entrar pois é muito tarde.

Mary sentou-se no sofá enquanto Tim mantinha-se ocupado arranjando um lugar seguro para por a sua bolsa e luvas.

— Desejava ter uma conversa com você, Ron. Trata-se de um assunto muito importante e gostaria de abordá-lo e solucioná-lo enquanto tenho coragem para tanto.

— Está com toda a razão, querida! Que me diz de uma xícara de chá com um pedaço de bolo fofinho?

— Parece-me maravilhoso — Ergueu os olhos para Tim, sorrindo. — Tim, você tem que trabalhar amanhã?

Respondeu afirmativamente com a cabeça.

— Escute, não quero mandá-lo embora, porém acho que já está na hora de ir se deitar, amigo. Seu pai e eu precisamos ter uma conversinha, mas prometo-lhe que não o manterei sem saber do que se trata. Contarei tudo neste fim de semana. Está bem?

— Está bem. Boa noite, Mary. - O rapaz nunca lhe pedia para ajeitar as cobertas quando estava na casa de Es.

Ron arrumou as xícaras, pires e pratinhos de sobremesa sobre a mesa da cozinha enquanto esperava que a água fervesse na chaleira, ficou observando Mary com todo o cuidado com o canto dos olhos.

— Você parece arrazada, amor. — Observou.

— E estou mesmo. Foi uma noite exaustiva.

— O que foi que o tal professor disse a respeito do Tim?

A sua xícara estava lascada; Mary sentou-se passando o dedo sobre a rachadura da borda, para frente e para trás, refletindo mentalmente sobre o assunto e procurando a maneira certa para abordá-lo. Quando tornou a olhar para Ron, parecia velha e cansada.

— Ron, não fui totalmente franca com você a respeito do assunto que me fez levar o Tim a casa de John Martinson.

— Não?

— Não. — Seu dedo não parava de se deslocar em volta da beirada da xícara; baixou o olhar, incapaz de continuar falando com os olhos presos nos de Ron, tão grandes e azuis, tão parecidos aos de Tim no formato mas tão diversos na expressão. — É muito difícil para mim, pois não creio que tenha a mínima idéia do que vou lhe contar. Ron, por acaso imaginou o quanto será duro para mim tomar conta do Tim se lhe acontecer alguma coisa?

A mão que segurava o bule tremeu; o chá derramou sobre a mesa.

— Você mudou de idéia, certo?

— Não. Não acontecerá isso, Ron, a menos que não aceite o meu modo de solucionar o problema. — Cruzou as mãos diante da xícara e controlou-se o bastante para fitá-lo com calma. — Como sabe Tim e eu sempre tivemos um tipo muito especial de relacionamento. De todas as pessoas que jamais teve oportunidade de conhecer é de mim que ele mais gosta. Não sei porque e, de há muito, desisti de me perguntar qual a razão desta preferência. Creio não estar muito longe da verdade se disser que me ama.

— Não, não está. Ele realmente a ama, Mary. E esta é a razão porque quero que seja você quem tome conta dele depois que eu me for.

— Também o amo. Amei-o desde o primeiro instante que o vi, ali sob o sol, observando o caminhão de concreto descarregar todo o cimento sobre os oleandros de Emily Parker. Àquela altura, ainda não sabia que era retardado, porém ao descobri-lo nada se modificou... na verdade, só serviu para fazer-me amá-lo ainda mais. Por algum tempo, não dei muita importância a diferença de sexos, até que Emily Parker e depois a sua filha deram-me uma violenta ducha fria sobre o assunto. Vocês sempre protegeram o Tim contra esse tipo de coisa, não foi?

— Não podia ser de outra maneira, Mary. Como Es e eu éramos idosos, eu sabia que não havia grandes possibilidades de estarmos junto a Tim quando ficasse adulto, portanto trocamos idéia a respeito do que deveríamos fazer enquanto ele ainda era um garotinho. Sem contar conosco para cuidar de si, e sendo ele tão lindo quanto o é, pareceu-nos que Tim haveria de se envolver em muita confusão se chegasse a descobrir, durante a juventude quando o impulso é mais acentuado, para que serviam as mulheres. Foi fácil até que atingiu a idade de trabalhar, porém assim que começou a freqüentar a companhia de Harry Markham soube que iria ser duro. Portanto, procurei o Harry e conversei com ele, deixei bem claro que não admitia que nenhum de seus homens envolvesse o Tim em problemas ou tentasse despertá-lo para os prazeres sexuais. Adverti-o de que se tentassem alguma coisa atiraria a polícia em cima deles por estarem contribuindo para a corrupção de um menor que, ainda por cima, não era normal mentalmente. Limitei-me a lhe pedir isto e creio que se divertiram bastante atormentando-o com outras coisas, porém vejo-me da obrigação de reconhecer que foram muito bons com relação ao meu pedido a respeito de sexo; costumavam até mesmo vigiá-lo e manter as mulheres ao longe. Geralmente, Bül Naismith faz uma grande parte do trajeto de ida e volta para o trabalho com o Tim, pois mora no final da Coogee Bay Road. Portanto, pesando os prós e os contras, tudo saiu bem. Tivemos sorte, é claro. Havia sempre a possibilidade de que viesse a suceder alguma coisa, mas isto não aconteceu jamais.

Mary sentiu o sangue afluir-lhe ao rosto.

— Ron, por que motivo foram tão inflexíveis a esse respeito? — indagou, ansiosa para atrasar o momento da sua confissão.

— Veja Mary, a gente deve sempre comparar o prazer ao sofrimento, não lhe parece? E julgamos, eu e a Es, que o pobre Tim acabaria sofrendo mais do que se divertiria envolvendo-se com mulheres, sexo e tudo o mais. Achamos que seria muito mais feliz ignorando tudo isto. É realmente uma verdade que a gente não sente falta daquilo que desconhece, e como trabalhava muito isso nunca representou um sacrifício para ele. Suponho que possa parecer cruel para quem está de fora, porém acreditávamos estar agindo acertadamente. O que acha você, Mary?

— Tenho certeza, Ron, de que agiram para o bem de Tim. É isso o que sempre faz.

Contudo, Ron teve a impressão de que Mary lhe dava uma resposta discordante, pois apressou-se em dar-lhe maiores explicações.

— Felizmente, tivemos um ótimo exemplo bem diante do nosso nariz na época em que Tim estava crescendo. Havia uma garota excepcional na nossa rua e a sua mãe enfrentou problemas terríveis. Ela era muito pior do que Tim, acho que só devia valer uns quatro centavos de soberano, e muito feia. Quando estava com quinze anos um patife, um canalha, sentiu uma queda por ela. Há homens dispostos a tudo. E desde então estava sempre grávida, a pobrezinha, teve um filho depois do outro até que foi colocada numa instituição. A lei não está certa, Mary, deveria haver determinados casos em que o aborto fosse permitido. Até mesmo na instituição os homens aproveitavam-se dela e os médicos acabaram ligando as suas trompas. Foi a mãe dessa pequena quem nos aconselhou a não permitir que Tim ficasse imaginando coisas.

Ignorando as palavras tranqüilizadoras de Mary, Ron levantou-se e começou a andar de um lado para o outro sem cessar. Estava claro que a decisão tomada há tantos anos ainda o preocupava.

— Existem certos tipos e certas mulheres por aí que não se importam se o parceiro for retardado. Só andam em busca de um pouco de diversão e parecem gostar do fato de não precisarem se preocupar ao terminarem o romance, com a perseguição do outro, de vez que este não é bastante esperto para ficar dando em cima, criando-lhes problemas. Por que se importariam? Esses tipos acham que quando a pessoa é fraca da cabeça não tem condições de sofrer como todo mundo. São capazes de chutá-las como chutariam um cachorrinho, divertindo-se porque o idiota volta para apanhar ainda mais, abanando a cauda e rastejando. Contudo os deficientes mentais, como o Tim e a garota do fim da rua, sofrem, Mary, não são débeis mentais, principalmente o Tim. Santo Deus, até os animais sofrem! Jamais me esquecerei o que aconteceu quando Tim ainda era um garotinho, com sete ou oito anos. Foi quando começou a falar entendendo o significado das palavras... Um dia apareceu aqui em casa com um gatinho novo e Es deixou que ele ficasse. Pois muito bem, não demorou muito e o filhote transformou-se numa gata, de repente começou a inflar como se fosse uma bola de encher e pouco depois nasciam outros gatinhos. Estava a ponto de ficar louco, porém por sorte, pensei, ela os tivera por de trás da chaminé de tijolos no nosso quarto e decidi livrar-me de todos antes que Tim tomasse ciência do acontecimento. Fui forçado a arrancar a metade dos tijolos para conseguir chegar até onde se enfiara, e nem posso imaginar como foi que ela se meteu ali. Lá estava ela, toda cheia de fuligem, os gatinhos também e Es não parava de rir às minhas costas dizendo que ainda bem que a gata era preta e, assim não se via quase a fuligem. Pois muito bem, peguei todos os gatinhos, levei-os para o quintal e afoguei-os num balde de água. E jamais me arrependi tanto em toda a minha vida. a Coitadinha da gata passou dias inteiros andando por todos os cantos da casa, chorando e miando à procura dos filhotes, erguendo a cabeça para olhar para mim com aqueles enormes olhos verdes repletos de confiança, como se achasse que eu poderia encontrá-los para ela. E ela chorou, Mary, chorou lágrimas de verdade, lágrimas que rolavam pelo focinho como se fosse uma mulher de verdade. Nunca imaginei que os animais pudessem chorar como nós. Oh, meu Deus! Por um momento tive ímpetos de meter a cabeça dentro do forno e deixar-me asfixiar. Es não me dirigiu uma única palavra por toda uma semana e cada vez que a gata chorava... Tim chorava também.

Puxando a cadeira para mais junto da mesa, Ron sentou-se novamente com as mãos estendidas. A velha casa estava em silêncio e Mary se deu conta de que pensava, enquanto Ron procurava recuperar o auto-controle. Somente o tique-taque do velho relógio da cozinha e o ruído que Ron fazia ao engolir quebravam o silêncio. Não era de espantar que ele a odiasse depois de tê-la visto sob um prisma tão diferente.

— Portanto, veja bem, Mary — prosseguiu Ron — se um gato tem sentimentos, um retardado como o Tim também tem, e muito mais profundos, porque, afinal, a deficiência dele não é tão pronunciada. Talvez não seja capaz de impressionar o mundo com as suas idéias, mas tem um coração, Mary, um coração descomunalmente grande, repleto de amor. Se mantivesse um relacionamento mais íntimo com uma mulher haveria de amá-la, mas acha você que ela seria capaz de retribuir este sentimento, heim? Tim seria apenas uma coisa sem maior significação para ela, apenas isto, e ele haveria de amá-la intensamente. Não seria capaz de suportar uma coisa dessas.

— Tim realmente tem um rosto lindo e um físico maravilhoso, e tem havido mulheres - e homens! - que deram em cima dele... e isso desde que estava com doze anos! Quando se sentisse traído, o que acha que aconteceria com ele? Olharia para mim da mesma maneira que me fitava aquela gatinha, coitadinha, como se esperasse que lhe trouxesse a namorada de volta e sem conseguir entender porque nem ao menos o tentava.

Fez-se silêncio novamente. O ruído de uma porta batendo partiu de algum ponto da casa. Ron ergueu os olhos e pareceu recordar-se que Tim estava ali com eles.

— Desculpe-me, Mary, só por um instante.

Mary deixou-se ficar sentada escutando o barulho monótono do relógio até que Ron voltou, sorrindo consigo mesmo.

— Este rapaz é um australiano típico. Não se consegue que vista mais roupas além do necessário e, se tiver uma oportunidade, menor que seja, andará pela casa totalmente nu como nasceu. Tem o mau hábito de sair do banheiro depois do banho sem nada sobre o corpo e fica perambulando por toda a casa, por isso julguei melhor ir ver se não viria até aqui para apanhar alguma coisa. — Fitou-a muito sério. - Espero que ele se comporte quando fica na sua casa. Tem alguma queixa para me fazer?

— Tim comporta-se esplendidamente — retrucou, sem jeito. Ron tornou a se sentar.

— Sabe de uma coisa, considero uma bênção celestial pertencermos à classe operária, Mary. Isto nos facilitou a proteção dada a Tim, muito mais do que se fôssemos da mesma linhagem do marido de Dawnie. com aqueles insuportáveis esnobes temos que manter os olhos bem abertos, são mais ladinos, tanto os homens quanto as mulheres, mas sobretudo os homens, creio. Em vez de beber com os amigos no bar público do Seaside, Tim iria para um saguão elegante com todas aquelas mulheres frívolas e todas aquelas beldades do mundo. Graças a Deus, nossa classe mantém as coisas melhor organizadas. O preto é mais preto e o branco mais branco, e não existem tantos matizes de cinza entre eles. Espero que compreenda porque procedemos assim, Mary.

— Compreendo. Realmente compreendo. O problema é que Tim está despertando, uma gentileza do aparelho de televisão. Assiste às cenas amorosas e então resolveu achar que seria uma ótima maneira de me mostrar o quanto gosta de mim.

— Oh, meu Deus! - Exclamou Ron, sentando-se repentinamente. - Pensei que o tivéssemos assustado o bastante, julguei que o tivéssemos amedrontado tanto que nunca seria capaz de tentar uma coisa assim.

— Provavelmente, vocês realizaram um bom trabalho amedrontando-o, porém veja, na verdade, ele não associou o que fazia àquilo que vocês incutiram na sua mente. A coisa não teve início na sua mente como algo carnal. Tudo quanto queria era demonstrar o quanto gostava de mim. Infelizmente, assim agindo, também descobriu que aquilo lhe agradava.

Ron estava horrorizado.

— Está querendo dizer que a violentou? Não acredito nisso!

— Mas claro que não! Beijou-me, só isso. Porém gostou e, a partir de então, não pára de pensar no assunto. Consegui convencê-lo de que entre nós aquilo não era permitido, mas Ron... ele despertou, despertou mesmo! Só aconteceu uma vez, jamais permitiria que tornasse a suceder, porém como poderei eu ou você apagar a sensação da sua mente? O que está feito, feito está! Enquanto nada havia de verdadeiro naquilo que Dawnie ou Emily Parker, ou qualquer outra pessoa pudesse pensar, pouco se me dava, mas, a partir do momento em que Tim me beijou quase fiquei louca imaginando o que haveria de fazer com relação a ele, caso alguma coisa lhe aconteça, Ron.

Ron tornou a acalmar-se.

— Compreendo o que está querendo dizer.

— Olhe, não sabia a quem recorrer, com quem ventilar o assunto. Foi por isso que levei o Tim para conhecer John Martinson. Queria que ele tivesse contato com Tim para depois dar-me a sua opinião sincera sobre toda a situação.

— Por que não falou comigo, Mary? - Perguntou Ron, magoado.

— Como poderia falar com você, Ron? Você é o pai de Tim, está muito ligado a tudo para ser imparcial. Se tivesse ventilado a questão com você antes, não teria agora nada mais para lhe oferecer além dos fatos, não teria uma direção a seguir e nenhuma solução. Se tivéssemos conversado, teríamos, possivelmente, chegado a conclusão que a única atitude a adotar era afastar o Tim de mim. Fui procurar a ajuda de John Martinson devido à sua imensa experiência em lidar com pessoas mentalmente retardadas e porque se preocupa realmente com elas. De todas as pessoas que conheço, julguei que ele fosse a única capaz de pensar no Tim em primeiro lugar, e era exatamente isso o que eu queria, alguém capaz de pensar exclusivamente no Tim.

— Está certo, Mary, entendo as suas razões. O que ele disse?

— Ofereceu-me uma solução e a maneira como ela me foi apresentada fez-me ver que, sem dúvida, é a coisa mais sábia a fazer. Disse-lhe que achava que você concordaria ao tomar conhecimento dela, porém devo confessar-lhe que já não estou tão segura como quando assegurei-o ao John Martinson.

— Diga o que disser, pense o que pensar, assevero-lhe que já disse ou pensei nela, portanto nada que venha a declarar poderá me surpreender ou magoar. — Mary estendeu a xícara para que Ron lhe servisse mais chá, ansiosa por fazer alguma coisa. - Estou com quarenta e cinco anos, Ron, com bastante idade para poder ser mãe de Tim e sou uma mulher simples e deselegante, sem possuir nenhum tipo de atrativo físico para os homens. O que o Tim vê em mim está muito além de mim, mas assim mesmo consegue ver. John Martinson afirma que devo me casar com Tim.

— Acha mesmo? - Estranhamente, o rosto de Ron mantinha-se inexpressivo.

— Sim, essa é a opinião dele.

— Por que?

— Antes de mais nada porque Tim me ama e por ser ele homem e não uma criança. Quando John me disse o que achava que eu devia fazer, fiquei estupefata e, acredite-me, revoltei-me contra a idéia. É como se juntasse um cão de pedigree com um vira-lata, quer dizer, unir a juventude e a beleza de Tim a mim, e disse-lhe isso. Perdoe-me pelo que vou lhe dizer agora... mas a sua resposta foi que havia dois modos de encarar a coisa, ou seja, que juntar a minha inteligência à estultícia do Tim também não era nada bom. Suas palavras não foram essas, aliás disse: ”Se você não é a companheira ideal para o Tim, ele também não é o companheiro perfeito para você”. O que estava querendo demonstrar é que nem Tim, nem eu, podemos ser considerados como um prêmio matrimonial, portanto o que havia de tão aterrador? Continuei a me opor à sugestão, baseada sobretudo na grande diferença de idade existente, porém fez questão de deixar isso de lado, também. Tim gosta é de mim, e não da moça da casa vizinha ou da filha de um de seus colegas de trabalho.

— O que me convenceu de que John Martinson estava certo, foi uma coisa que não me tinha passado pela cabeça e, tenho certeza, que pela sua também não passou. Estambos muito ligados ao Tim para que possamos vê-la. — Sacudiu a cabeça. Ron, Tim é um homem adulto, sob este aspecto é inteiramente normal. Jouhn foi duma franqueza assustadora, agarrou-me pelos ombros, sacudiu até meus dentes baterem uns contra os outros, tal era a sua revolta diant da minha falta de visão com relação ao Tim. Perguntou-me o que estava acontecendo comigo, como tinha coragem de negar a Tim o direito de ser homem do único modo que jamais poderia sê-lo? Por que razão o Tim não pode tirar da vida o melhor proveito?

— Nunca considerei as coisas deste modo antes, estava preocupada demais com o que as pessoas pudessem pensar, o quanto se divertiriam às custas do Tim, como implicariam com ele e o atormentariam por ter se casado com uma solteirona rica com bastante idade para ser sua mãe. E deixei de lado o fato de ter direito de aproveitar tudo quanto a vida possa lhe proporcionar.

Mais uma vez Mary começou a passar a ponta do dedo pela borda da xícara trincada. Ron estava conseguindo esconder muito bem as suas reações. Mary não fazia menor idéia do que ele pensava e, para deixá-la ainda mais intrigada, segurou o bule para tornar a encher a sua xícara.

— Todos já ouvimos comentários sobre casos semelhantes. Lembro-me de uma vez que fiquei furiosa porque uma das garotas do nosso escritório apaixonou-se por um paraplégico que se recusava a casar com ela. Archie conhecia bastante a moça e estava convencido que ela era uma pequena para um homem só, i nunca mais na sua vida poderia ou seria capaz de substituí-lo por alguém. Então, Archie foi procurar o rapaz, aconselhou-o a não jogar fora a oportunidade de ser feliz apenas porque não era um homem perfeito. Todos nós achamos que Archie agia acertadamente, não havia nenhuma razão porque a pequena não devesse se casar com o seu homem numa cadeira de rodas. Há muito mais coisas na vida além disso, disse-lhe Archie.

— Há mais coisas na vida do que isso, Ron, mas o que me diz de Tim? Quais as perspectivas de vida para Tim e quantas poderão haver? Agora que a oportunidade se lhe apresentou expontaneamente, será que temos algum direito de negar a ele tudo quanto tem direito como um ser humano? Este foi o ponto crítico do argumento usado por John Martinson.

 

— Na verdade ele colocou os pontos nos is, não foi? - Ron passou as mãos sobre a cabeça com um ar cansado. - Acontece que nunca coloquei as coisas sob esse prisma.

— Bem, admiti a veracidade da sua argumentação, não poderia deixar de fazê-lo. Mas por que eu, indaguei? Tim pode passar sem mim? Pode? Pode, realmente? Seja eu quem for, Tim me ama. E seja ele como for, amo-o. Ao meu lado estará a salvo, Ron, e se ao me casar com ele posso dar um novo sentido à sua vida, oferecendo-lhe uma oportunidade sem igual, então casarei com ele doa a quem doer, inclusive a você.

A sensação que Mary experimentava de estar à beira de um precipício, desapareceu totalmente, à medida que falava. Ron observava-a cheio de espanto. Por diversas vezes tivera oportunidade de vê-la fora da calma costumeira, mas nunca como agora, quando cada nervo de seu ser vibrava. Ninguém poderia qualificá-la de água parada fosse qual fosse o seu estado de espírito, porém, na maioria das vezes, seu rosto simples e bom só demonstrava a sua força de caráter. Agora, parecia estar iluminada por uma beleza fugaz que iria desaparecer assim que seu entusiasmo diminuísse. De repente, Ron percebeu estar imaginando o que o casamento com Tim lhe traria de bom. Bem mais velho e vivido do que Mary, Ron sabia que jamais encontraria uma resposta com facilidade.

— Geralmente, as mulheres vivem mais do que os homens — continuou Mary, animada. — logo existe uma possibilidade bastante grande para que ainda fique ao lado de Tim por muitos anos. Não sou tão mais velha do que ele para que se tome em consideração a possibilidade de que eu possa vir a morrer antes dele. Tim não vai sair por aí procurando alguma jovem bonitinha porque a sua mulher está velha e acabada. Já estou velha e acabada, Ron, mas isso não o preocupa de nenhum modo.

— Considerei a possibilidade de apenas morar com ele, porque aos olhos da maioria das pessoas este seria considerado um pecado menor. Mas reconheço que John Martinson está com a razão. O casamento é a melhor solução. Casando-me com ele, passarei a ter autoridade total e legal sobre ele. Dawnie jamais poderá tirá-lo de mim. Olhe, às vezes preocupo-me por causa dela. Acho que não lhe ocorreu com que facilidade ela poderá tirar o Tim da minha custódia assim que lhe acontecer alguma coisa. E por que razão isso lhe iria passar pela cabeça? Dawnie é sua filha e você a ama de todo o coração. Porém, ela não gosta nem um pouquinho de mim e jamais admitiria para si mesma a possibilidade do irmão estar melhor ao meu lado do que ao seu. A carta que deixou para ela e Mick, o poder de tutela que me deu, todas essas coisas nada significam para a Dawnie, caso deseje realmente criar problemas. Após a sua morte, Dawnie seria considerada por qualquer tribunal nesta terra como a tutora legal de Tim, não importam as ordens deixadas por você. Não possuo nenhum laço de parentesco com Tim, nem mesmo o conheço há tanto tempo assim o nosso relacionamento é altamente suspeito.

— Assim que me pediu para ficar com o Tim, nada mais pensei; senão no fato de você confiar em mim cegamente, mas creio que seja bastante imparcial para poder ver a Dawnie friamente. Ela ama o irmão, porém odeia-me com a mesma intensidade e Tim haveria de se transformar na vítima do seu altar. John Martinson nã”o conhecia a enormidade da inimizade de Dawnie, e insistiu na única solução viável para o caso, Preciso me casar com o Tim.

Rom sorriu com ironia.

— A vida não é gozada? Você está certa quanto a uma coisa, Mary. As pessoas entenderiam bem melhor, se vocês apenas morassem juntos... ao invés de se casarem. Esta é uma situação estranha na qual o casamento é considerado como um crime, não é verdade?

— Foi exatamente esta palavra que usei ao conversar com John Martinson. Criminoso.

Ron levantou-se, contornou a mesa para colocar o braço em volta dos ombros de Mary, em seguida abaixou a cabeça e beijou-a.

— Você é uma pessoa maravilhosa. Mary. Ficarei realmente muito feliz vendo-a casada com meu filho. Eu e Es não poderíamos almejar uma melhor solução e acho que ela está felicitando-a.

— Porém, o casamento deverá ser realizado o mais breve possível, Mary, o mais breve possível. Se estiver aqui para assisti-lo e deixar uma declaração no testamento aprovando a união de vocês, Dawnie nâ”o poderá fazer quase nada. Deixe para depois da minha morte e puxarão o tapete de sob os seus pés. Deveria ter percebido tudo isto por mim mesmo, porém a gente sempre é um tanto cego com relação aos filhos.

— Foi por isso que quis abordar o assunto esta noite. Terei que hospitalizar-me durante alguns dias a fim de assegurar-me de que não terei filhos, mas também sou de opinião que o casamento deveria ser realizado o mais rápido que for possível.

— Está com toda a razão! Iremos até a cidade na próxima segunda-feira para tratar dos papéis, assim poderão se casar no final da semana, creio.

Mary afagou com ternura suas faces vincadas.

— Nunca poderia desejar um sogro melhor do que você, Ron. Muito obrigada pela sua compreensão e consentimento.

 

Afinal, ficou estabelecido que nada se diria a Dawnie a respeito do casamento senão depois da sua realização; contudo, no dia seguinte a sua conversa com Ron, Mary contou tudo para Archie Johnson.

— Não acredito, não está falando sério, sei que é uma brincadeira!

Foi preciso algum tempo para convencê-lo da seriedade da coisa. Mas depois do choque do primeiro momento, Archie demonstrou seu contentamento e cumprimentou-a com sinceridade.

— Mary, meu amor, não poderia me sentir mais feliz por você. Esta é a combinação mais estranha desde Chopin e George Sand, porém se existe alguém neste mundo louco, que saiba onde tem os pés, esse alguém é você. Não pretendo transformar a sua vida num inferno levantando toda a espécie de objeções pois, tenho certeza, já ponderou sobre todas elas. A única coisa que lastimo é que após todos esses anos pensando que eu me encontrava a salvo, irei perdê-la. Seria capaz de chorar por causa disso.

— Mas por que iria abandoná-lo?

— Ora, não vai abandonar o trabalho para poder tomar conta do seu Tim?

— Meu Deus do céu, claro que não! Terei que pedir três meses de licença quase que imediatamente, sem aviso prévio, sem nada, pelo que sinto muito, porém não vou deixar de trabalhar, nem o Tim, tampouco. Creio que ambos ficaremos melhor se mantivermos o contato com outras pessoas, através de nossos respectivos trabalhos. Se agíssemos de outra maneira dentro de muito pouco tempo estaríamos arruinados.

— Mary, gostaria de assistir ao casamento. Gosto imensamente de você e, muito embora não conheça pessoalmente o Tim, também gosto muito dele por ter modificado tanto a sua vida.

— Fico muito contente em saber que você e Tricia estarão presentes.

— Quando será?

— Na próxima sexta-feira à tarde, no Cartório do Registro Civil.

— Então porque não entra logo em gozo de licença? Se terei que agüentar a Celeste Murphy por três meses, poderei enfrentar o problema desde já.

— Deus lhe pague, mas muito obrigada. Darei algumas orientações a Celeste até quarta-feira. Não precisarei me afastar antes disso.

Emily Parker soube da novidade e demonstrou grande satisfação. Mary convidou-a para ir à sua casa depois do jantar e contou-lhe tudo.

— Como Deus é misericordioso, minha querida, é exatamente disso que todos dois precisam. Estou exultante, querida, realmente estou. À sua saúde e que vocês sejam muito felizes para todo o sempre.

— A senhora irá ao casamento?

— Mas claro que sim, não perderia essa cerimônia por nada deste mundo. Boa sorte para a senhora, Miss Horton! Estou muito orgulhosa de você!

Nessa noite, Mary foi procurar Harry Markham também, assim que conseguiu mandar Emily Parker para o outro lado da cerca de rododendros canforados.

Harry olhava para a sua visita cheio de curiosidade, certo de que já a vira em algum lugar, mas sem conseguir situar onde.

— O senhor se recorda da reforma que fez para Mrs. Emily Parker em Artarmon, há mais de dois anos, Mr. Markham?

— Claro que sim.

— Sou Mary Horton. A vizinha de Mrs. Parker. O rosto de Harry iluminou-se.

— Ah, decerto, claro! Sabia que a conhecia de algum lugar.

— Não estou aqui a negócios, Mr. Markham. Vim procurá-lo para falarmos sobre Tim Melville.

— Tim Melville?

— Exatamente, Tim Melville. Talvez o senhor receba um choque com a notícia, Mr. Markham, mas na próxima sexta-feira caso-me com Tim.

O pobre Harry ficou todo atrapalhado por algum tempo antes de encontrar voz para dizer:

— Vai se casar com Tim, o Tolo?

— Exatamente, na próxima sexta-feira. Sob circunstâncias normais, e tendo sabido através das informações de Mrs. Parker o tipo de brincadeiras que gosta de fazer com ele, sentir-me-ia tentada a convencer o Tim a procurar outro emprego, porém como ele gosta de trabalhar com o senhor, fico feliz que continue ali.

Os olhos de Harry passaram por ela e ficaram grudados no descomunal Bentley estacionado junto ao meio-fio bem em frente à sua casa. Lembrou-se de que ela era tida como a mulher mais rica de Artarmon e achou que valia a pena acalmá-la.

— Ora, a senhora seria capaz de me derrubar, Miss Horton! Quanta novidade contou-me, não?

— Estou certa que sim, Mr. Markham. Entretanto, como não disponho de muito tempo, gostaria de ser o mais breve possível. Existem algumas coisinhas que precisamos resolver agora mesmo. Em primeiro lugar, o senhor quer que Tim continue trabalhando ao seu lado, apesar dele tirar uma licença de três meses, a partir da próxima quarta-feira? Segundo, se deseja mantê-lo no emprego, pretende colocar os seus operários a par do casamento de Tim e exigir deles o maior respeito?

Ainda atônito, Harry sacudiu a cabeça para clarear as idéias.

— Puxa vida, Miss Horton, não sei o que responder!

— Pois então sugiro que tome uma decisão, Mr. Markham. Não posso passar a noite inteira aqui.

Harry refletiu por um momento.

— Muito bem, Miss Horton, serei franco com a senhora. Gosto do Tim e a turma também. O momento é apropriado pra abrir mão dos préstimos de Tim, de vez que o verão está chegando e será fácil encontrar um universitário ou dois como operários extras, embora seja obrigado a contratar mais de um para fazer a tarefa do Tim... esses rapazes não querem nada mesmo. O Tim já trabalha comigo há doze anos e é um operário danado de bom. Seria obrigado a levar mais de três meses para encontrar outro homem tão alegre, dedicado e de tanta confiança quanto ele, logo, se a senhora estiver de acordo, gostaria de ficar com ele.

— Ótimo, Quanto ao segundo ponto, espero que seja capaz de compreender o quanto seria ruim para o Tim se mexerem com ele a respeito do casamento. Sem dúvida poderá continuar com as brincadeiras e pilhérias pois me parece que o Tim as aceita com naturalidade. Ele não se importa mesmo com elas. Porém, o assunto de seu casamento é um tabu e, dou-lhe minha palavra, se algum dia eu descobrir que Tim foi humilhado ou se sentiu constrangido por ter-se casado com uma velha rica, acabarei com o senhor e com todo o seu pessoal, tanto moral como financeiramente. Não posso impedir que discutam o assunto entre vocês e, na verdade, tal coisa nem me passaria pela cabeça, pois estou certa de que é um mexerico muito interessante, fascinante mesmo. Mas, quando o Tim estiver por perto, este assunto não deverá jamais ser ventilado, a não ser para desejar-lhe as normais felicitações. Ficou bem claro?

Miss Mary Horton era demais para Harry Markham que concordou sem discussões.

— Sim, sem dúvida, Miss Horton, como a senhora quiser, Miss Horton. Mary estendeu-lhe a mão.

— Muito agradecida, Mr. Markham, grata pela sua compreensão. Adeus.

A próxima pessoa da lista de Mary era o ginecologista. Tendo resolvido o que fazer, Mary atacou os obstáculos um a Um e divertiu-se mais do que esperara. Este era o seu metier, fazer coisas; não sofria crises de dúvida, não tinha outros pensamentos depois que tomava a sua decisão.

Quando chegou ao consultório explicou a situação com a maior tranqüilidade.

— Doutor, não posso me arriscar a engravidar e tenho certeza de que entende porquê.

— Acredito que me mandará para o hospital a fim de ligar as minhas trompas, por isso enquanto eu lá estiver e sob seus cuidados, gostaria que fizesse alguma coisa... pois ainda sou virgem. Nâ”o quero comprometer o nosso relacionamento demonstrando qualquer tipo de dor, pois compreende que iniciar uma vida sexual na minha idade, deve ser realmente muito doloroso.

O ginecologista colocou rapidamente a mão no rosto para esconder um sorriso involuntário. Conhecia muitas mulheres do tipo de Mary Horton, muito mais do que a maioria dos homens, de vez que havia muitas solteironas trabalhando nos hospitais australianos. Velhas e dedicadas mulheres, pensou ele, são todas iguais. Enérgicas, práticas, desconcertantemente equilibradas, mas assim mesmo sob aquela capa eram orgulhosas, sensíveis e estranhamente ternas. Depois de ter conseguido se controlar, bateu com a caneta sobre a mesa, cantarolou e resmungou.

— Acho que concordo com a senhora, Miss Horton. Poderia fazer o favor de ir para trás daquele biombo e tirar a roupa? A enfermeira logo estará aqui para lhe entregar um balandrau.

No sábado de manhã, a única pessoa que ainda não estava a par de nada era Tim. Mary tinha pedido a Ron para não tocar no assunto, mas não queria ir sozinha com ele para o chalé.

— É claro que você irá conosco, Ron — disse, decidida. — Por que isto deveria fazer alguma diferença? Ainda não nos casamos, sabe disso muito bem. Posso sair para dar uma volta com Tim e contar tudo a ele.

A oportunidade surgiu na parte da tarde. Ron foi descansar um pouco, piscando para Mary antes de ir para o quarto.

— Tim, por que não vamos até a praia e não nos sentamos ao sol? O rapaz levantou-se rápido, exultante.

— Oh, Mary, acho isso formidável. Acha que já está bastante quente para nadarmos?

— Creio que não, porém isso não vem ao caso. Quero conversar com você, não nadar.

— Gosto de conversar com você, Mary — disse-lhe. — Já faz tanto tempo que falamos pela última vez.

Mary soltou uma gargalhada.

— Seu galanteador! Conversamos o tempo todo!

— Não da maneira quando você diz “Tim, quero conversar com você!”. Aí as conversas são ótimas, quer dizer que você tem alguma coisa boa para me contar.

Mary arregalou os olhos, assombrada.

— Como é esperto! Vamos, então, companheiro, não percamos tempo! Era difícil para ela libertar-se do seu estado de espírito dos últimos dias, tão determinado, prático e enérgico, e, por um instante, deixou-se ficar sentada sobre a areia em silêncio, procurando libertar-se de toda aquela agitação. A adoção dessa atitude tinha sido essencial para o seu bem estar mental; sem ela não conseguiria jamais dizer tudo quanto era necessário, pois qualquer sinal de vulnerabilidade em si mesma resultaria num fracasso. Naquele instante a obstinação não era necessária e devia ser esquecida.

— Tim, faz alguma idéia do que seja um casamento?

— Acho que sim, É o que mamãe e papai são e aquilo que a minha Dawnie fez.

— Pode me dizer mais alguma coisa sobre ele?

— Nossa, sei lá! — Enfiou os dedos entre os espessos cabelos dourados, fazendo uma careta. - Quer dizer que a gente vai viver com alguém ao lado de quem a gente não vivia, não é isso?

— Em parte. - Virou-se para fitá-lo. — Quando a gente cresce e já não é mais uma criança, acaba encontrando alguém de quem gostamos muito e então pensamos em morar com ele em vez de ficar morando com o pai e a mãe. E se a pessoa gosta de você com a mesma intensidade, procura-se um padre, um ministro ou um juiz para realizar o casamento. Os dois assinam um pequenino papel e, assim fazendo, estão casados; estarem casados significa que podem viver juntos para o resto da vida sem cometer uma ofensa contra Deus.

— Quer dizer que se pode viver junto para o resto da vida?

— Sim.

— Então por que não posso me casar com você, Mary? Gostaria de casar com você, gostaria de vê-la vestida como uma princesa de contos de fada, com um vestido branco comprido do jeito que a Dawnie estava, e a mamãe, também, na fotografia de casamento que está em cima da penteadeira do quarto dela.

— Muitas moças usam vestidos brancos compridos quando se casam, Tim, contudo não é o vestido branco comprido que as torna casadas e sim aquele pequenino pedaço de papel.

— Mas a mamãe e a Dawnie usaram vestidos brancos compridos! — tornou a dizer com obstinação, gostando da idéia.

— Gostaria mesmo de se casar comigo, Tim? - inquiriu Mary, afastando-o do pensamento o vestido branco comprido.

Sacudiu a cabeça com entusiasmo, sorrindo para Mary.

— Oh, sim, gostaria muito de casar com você, Mary. Então poderia viver ao seu lado o tempo todo, não precisaria mais voltar para casa nos domingos à noite.

O rio deslizava rumo ao mar, serpenteando e borbulhando alegremente; Mary espantou uma mosca impertinente que esvoaçava junto ao seu rosto.

— Quer viver comigo mais do que com o seu pai?

— Quero. O pai é da mamãe, só está esperando para poder ir embora e dormir debaixo da terra ao lado dela, não é? Eu pertenço a você, Mary.

— Escute, seu pai e eu estivemos conversando a seu respeito naquela noite em que o levei para conhecer Mr. Martinson e chegamos à conclusão que seria muito bom para você se nos casássemos. Preocupamo-nos muito com o que possa lhe acontecer, Tim, e não existe ninguém no mundo de quem gostemos mais do que de você.

Os olhos azuis cintilaram sob o efeito da claridade que partia do rio.

— Oh, Mary, está falando sério? Isso é sério de verdade? Vai se casar comigo?

— Sim, Tim, vou me casar com você.

— E depois poderei morar com você? Passo a ser seu de verdade?

— Sim.

— Podemos nos casar hoje?

Mary desviou o olhar para o rio, sentindo-se triste, de repente.

— Hoje não, meu querido, mas logo, logo. Na próxima sexta-feira.

— O pai já sabe quando será?

— Sim, sabe que será na próxima sexta-feira. Já está tudo arranjado.

— E você vai usar um vestido comprido todo branco como o da mamãe e da minha Dawnie?

Mary sacudiu a cabeça.

— Não, Tim, não posso. Gostaria de usar um vestido comprido branco por você, porém para fazê-lo demora muito e seu pai e eu não queremos esperar muito tempo.

Por um instante o desapontamento fez desaparecer o sorriso de seus lábios, mas pouco depois retornava.

— E depois disso não precisarei mais voltar para casa?

— Deverá voltar por alguns dias apenas, porque terei que ficar no hospital.

— Oh, Mary, não! Não pode ir para o hospital. Por favor, por favor... não vá para o hospital! - Os olhos encheram-se de lágrimas. - Você vai morrer, Mary, vai me deixar para ir dormir debaixo da terra e nunca mais tornarei a vê-la!

Mary pegou a mão dele e apertou-a com força e ternura.

— Ora, vamos, Tim! Ir para o hospital não quer dizer que eu vá morrer! Só porque a sua mãe foi para o hospital, isto não quer dizer que eu vá morrer também, entendeu? Uma porção de gente vai para o hospital e sai de lá sem morrer. O hospital é um lugar para onde se vai quando se está doente e se deseja ficar bom. O que acontece às vezes é que a pessoa está tão doente que não tem condições para melhorar, mas eu não estou doente como a sua mãe, estou? Não estou fraca e com dores, estou? Contudo, fui consultar um médico e ele quer consertar uma coisinha à toa que não está certa, e quer fazê-lo antes de você vir morar comigo... assim ficarei ótima para você.

Foi difícil conseguir que ele acreditasse, porém depois de algum tempo acalmou-se e pareceu aceitar o fato de que ela não morreria no hospital.

— Tem certeza de que não vai morrer agora?

— Sim, Tim, tenho certeza de que não vou morrer. Ainda não posso morrer. Não deixarei que isso aconteça.

— E vamos nos casar antes da sua ida para o hospital?

— Sim, já está tudo combinado para a próxima sexta-feira.

Tim apoiou-se sobre as mãos e suspirou de felicidade, em seguida rolou pela inclinação de areia até que foi acabar dentro d’água às gargalhadas.

— Vou me casar com a Mary, vou-me casar com a Mary! — cantarolava, jogando água em cima dela assim que chegou na margem do rio.

 

Em homenagem à ocasião, Mary usou um vestido de tussor rosa pêssego, um pequenino chapéu da mesma tonalidade e um raminho de rosas chá na lapela. Os convidados tinham combinado se encontrar na Victoria Square, do lado do Hyde Park, bem em frente ao Cartório do Registro Civil. Mary estacionou o carro na garagem subterrânea de Domain e escolheu o tapete rolante que levava à saída de College Street, depois atravessou o parque. Archie quisera levá-la no seu carro, mas ela recusara o oferecimento.

— Assim que terminar o casamento terei que ir para o hospital, portanto acho melhor ir dirigindo eu mesma.

— Mas, tem que me deixar levá-la, querida! - protestou ele. — O que pensa que vai fazer? Quando tiver alta, pretende ir dirigindo para casa?

— Claro que sim. Trata-se de uma enorme clínica particular que funciona como um hotel; além disso vou ficar por lá muito mais do que o necessário para que, ao chegar em casa, já esteja totalmente recuperada. Não quero provocar um desapontamento ao Tim, o que sem dúvida aconteceria, se, ao voltar para casa, não puder permitir que fique ao meu lado.

Archie fitou-a, intrigado.

— Muito bem, espero que saiba o que está fazendo, aliás sempre sabe. Mary tocou no braço de Archie com carinho...

— Meu caro Archie, sua confiança em mim é tocante.

Portanto, foi sozinha para o casamento e foi a primeira a chegar na esquina do parque. Archie e Tricia chegaram logo depois. Mrs. Parker compareceu usando um vestido novo de gaze cereja e azul elétrico e pouco depois apareceram Tim e Ron, vindos da entrada do metrô, distante apenas alguns metros. Tim usava o mesmo terno do casamento de Dawnie e Ron, a roupa do enterro de Esme. Ficaram todos ali, sob o sol forte, conversando animadamente. Tim deu-lhe uma caixa pequenina, mas só lhe entregou quando não havia ninguém olhando. Estava visivelmente nervoso e inseguro; escondendo a caixa nas mãos, Mary afastou-se com ele e manteve-se de costas para o grupo enquanto abria o minúsculo embrulho.

— O pai ajudou-me a escolher, pois queria lhe dar alguma coisa e o pai disse que tinha razão, que era certo lhe dar alguma coisa. Fomos ao banco, tirei dois mil dólares e fomos até aquela joalheria, aquela enorme, que fica no fim da Castlereagh Street, perto do Hotel Austrália.

Dentro do estojo havia um pequeno broche, com uma maravilhosa opala negra, rodeada de brilhantes, no formato de uma flor.

— Isto fez-me lembrar o seu jardim lá no chalé, Mary, todas as cores das flores e o sol brilhando em cima de tudo.

O ramo de rosas foi tirado da lapela, caiu sobre o asfalto duro e ali ficou despercebido. Mary tirou o broche da caixa de veludo e entregou-o a Tim, sorrindo para ele por entre uma cortina de lágrimas.

— O jardim já não me pertence mais, Tim, agora é o nosso jardim. Esta é uma das coisas resultantes de um casamento, tudo que possuímos pertence ao outro, portanto o meu carro, a minha casa, meu chalé e meu jardim também são seus depois que estivermos casados. Quer colocar o broche para mim?

Tim sempre era rápido e habilidoso com as mãos, como se elas tivessem escapado da sua força física. Segurou a beira da lapela de Mary entre os dedos, enfiou o alfinete pontiagudo com a maior facilidade no tecido, fechou o pega ladrão e depois a correntinha de segurança.

— Gosta dele, Mary? — perguntou, ansioso.

— Oh, Tim gosto tanto! Nunca possuí uma coisa tão bonita em toda a minha vida e jamais alguém me deu um broche. Cuidarei dele por toda a vida. Também tenho um presente para você.

Era um relógio de ouro, pesado e caro, e Tim ficou maravilhado com ele.

— Oh, Mary, procurarei não o perder, verdade. Agora que já sei ver as horas é maravilhoso ter um relógio só meu. E é tão lindo!

— Se o perder trataremos de comprar um outro. Não deve se preocupar com isso, Tim.

— Não vou perdê-lo, Mary. Cada vez que olhar para ele, irei me lembrar que foi você quem me deu.

— Agora temos que ir, Tim, já está na hora.

Archie segurou-a pelo braço para ajudá-la a atravessar a rua.

— Mary, você não me disse que o Tim era um rapaz tão bonito.

— Sei que não disse. É embaraçoso. Sinto-me como uma dessas mulheres velhas que a gente vê perambulando pelos pontos turísticos na esperança de poder comprar um rapaz bonito mas caro. - O braço sobre sua mão tremia. — Archie, esta é uma terrível provação para mim. Pela primeira vez estou expondo-me aos olhares curiosos dos outros. Já imaginou o que todos lá dentro vão pensar quando virem quem está se casando com quem? Ron parece um marido mais adequado a mim do que o Tim.

— Não deixe que isso a preocupe, Mary. Estamos aqui para apoiá-la e é exatamente isso que faremos. Por falar nisso, gostei da sua vizinha. Preciso sentar-me ao lado dela durante o jantar, pois possui o mais rico vocabulário jamais visto em toda a vida. Olhe só para ela e Tricia, tagarelando como duas velhas mexeriqueiras!

Mary fitou-o, agradecida.

— Obrigada, Archie. Sinto muito por não poder comparecer ao meu jantar de casamento, mas quero acabar com essa estória do hospital o mais rápido possível. Se me internar depois do jantar o meu médico não fará a operação amanhã, e isto adiará por mais uma semana, de vez que só opera aos sábados.

— Está bem, minha cara, beberemos a sua parte de champanha e comeremos o seu chateaubriand.

Como as testemunhas presentes ao casamento nãoeram muitas, somente um par de olhos encantadores examinaram o estranho casal, ou melhor o juiz que oficiou a cerimônia na qualidade de representante legal de Sua Majestade. A coisa foi rápida, desconcertantemente simples para uma cerimônia ou solenidade. Tim deu as respostas cheio de animação, um crédito a favor do pai que o preparou para a ocasião; Mary foi quem gaguejou. Assinaram a documentação exigida e saíram sem notarem que o velhinho que os casara não percebera que Tim era um retardado mental. Não viu as coisas sob esse prisma, de forma alguma; muitos rapazes bonitos casavam-se com mulheres que poderiam ser suas mães. O que lhe causou espanto foi não ter havido a clássica troca de beijos.

Mary deixou-os na mesma esquina onde tinham se encontrado antes do casamento, puxando a manga do paletó de Tim com ansiedade.

— Agora vai me prometer uma coisa, vai me esperar com paciência e não se preocupará comigo. Estarei muito bem.

Tim estava tão feliz que Tricia Johnson e Emily Parker sentiram vontade de chorar ao ver a expressão de seu rosto; a única coisa que toldou o seu dia foi a partida inopinada de Mary, mas nem mesmo isso conseguiu deixá-lo deprimido por muito tempo. Tinha assinado o pequenino pedaço de papel e portanto era de Mary, pertenciam um ao outro agora e seria capaz de esperar muito tempo, se fosse necessário, para então ir morar com ela.

Mary sofreu as dores e inquietações durante o período pós-operatório, mas agüentou bem. Na verdade, bem melhor do que esperava o seu ginecologista.

— A senhora é uma garota corajosa - disse-lhe, enquanto retirava os pontos. — Devia ter imaginado que agüentaria tudo muito bem. Mulheres como você só morrem a custa de machadadas. No que me diz respeito, pode ir para casa amanhã, contudo se quiser continuar por aqui esteja à vontade. Isto aqui não é um hospital, sabe disso, é um palácio de sangue. Assinarei sua alta hoje mesmo antes de sair e assim poderá ir embora no momento que quiser, esta semana, na próxima ou mesmo na seguinte. Caso continue aqui, passarei sempre para vê-la.

 

Afinal, Mary ficou ali por cinco semanas, mais por estar gostando da tranqüila privacidade da velha casa à beira da Baía Rose do que por medo de ver Tim. Não dissera a ninguém onde iria se submeter à cirurgia a não ser ao esquelético homenzinho que cuidava dos seus assuntos legais; os cartões postais enviados por Tim e escritos com grande dificuldade, chegavam-lhes às mãos através do escritório dele. Ron devia tê-lo ajudado muito, contudo a caligrafia era de Tim e também a maneira de se expressar. À medida que os recebia, lia-os guardando numa pequenina maleta com o maior cuidado. Durante as duas últimas semanas de estadia, Mary nadou na piscina e jogou tênis nas quadras do hospital, obrigando-se, assim, a reacostumar-se à movimentação e ao exercício. Quando finalmente se foi, já não sentia absolutamente nada, era como se nada tivesse acontecido, e dirigir o carro até em casa não lhe causou o menor cansaço.

A casa em Artarmon estava feericamente iluminada quando deixou o carro na garagem e entrou pela porta da frente. Emily Parker cumpria as promessas feitas, pensou Mary, satisfeita; A velha senhora dissera-lhe que manteria a casa como se houvesse alguém por lá. Mary largou a valise, tirou as luvas atirando-as sobre a mesa do hall junto com a bolsa; em seguida, dirigiu-se para a sala de estar. O telefone agigantou-se diante dela como se fosse um monstro, porém resolveu não ligar para Ron para informá-lo de que já tinha voltado. Havia muito tempo para isso, amanhã, depois de amanhã ou depois, ainda.

O cinza ainda predominava na sala de estar, porém havia diversos quadros nas paredes e ligeiros toques de vermelho, de uma tonalidade viva como o rubi, brilhavam como chamas de um fogo intenso por toda a peça. Um vaso de cristal vermelho da Suécia estava colocado sobre o consolo da lareira e um tapete de pele tinto na mesma tonalidade fora posto sobre o carpete cinza pérola e dava a impressão de um lago de sangue. Porém era gostoso estar em casa, pensou, passeando os olhos à sua volta para aqueles testemunhos mudos da sua riqueza e bom gosto. Logo estaria dividindo tudo aquilo com Tim, que dera ao cómodo um toque da sua geração, logo, logo... Mas será que desejo realmente dividir tudo isto com ele? - perguntou de si para si, caminhando de um lado para o outro sem cessar. Que coisa estranha... quanto mais se aproximava o momento da realização de tudo aquilo, mais relutava para deixar que acontecesse.

O sol tinha se posto uma hora antes e o céu ocidental estava tão escuro quanto o resto do mundo, vibrando com tonalidades avermelhadas projetadas pela iluminação da cidade sob uma camada baixa e compacta de nuvens. Porém a chuva caíra em outra região, deixando Artarmon entregue à poeira do verão. Que lástima, pensou; seria ótimo se chovesse por aqui, meu jardim está sedento. Dirigiu-se para a cozinha às escuras e ficou olhando através da janela posterior sem acender as luzes do pátio, tentando ver se a casa de Emily Parker estava iluminada. Mas esta ficava escondida pelos rododendros canforados; para poder ver bem teria que ir até o pátio.

Seus olhos já tinham se acostumado à escuridão quando saiu, sem fazer nenhum ruído, pela porta dos fundos, andando de leve, como sempre e, por um instante, deixou-se ficar ali aspirando o perfume das flores do verão e o cheiro de terra provocado pela chuva à distância, sentindo-se deliciada. Era bom estar em casa, ou seria, se o seu inconsciente não se sentisse apavorado diante da lembrança de Tim.

Como se tivesse poderes de desenhar conscientemente a sua imagem através de seus pensamentos, a silhueta da cabeça de Tim e do corpo também apareceram contra o céu molhado e distante. Ele estava sentado sobre a balaustrada, molhado e encharcado após o banho noturno, o rosto erguido para o céu sem estrelas como se estivesse escutando, maravilhado, uma música celestial que estava além das limitações dos seus ouvidos terrenos. O pouco da claridade que ainda havia, tinha-se fundido no meio dos cabelos do rapaz e derramava-se em linhas tênues e peroladas em volta dos contornos do rosto e tronco de Tim, onde a pele escorregadia estava bem esticada sobre a musculatura quieta e adormecida. Até mesmo a curvatura de seus cílios estava visível, as pálpebras cerradas para proteger os seus pensamentos contra a noite.

Um mês... mais de um mês, pensou; já faz mais de um mês que o vi pela última vez e ei-lo aqui como um filamento da minha imaginação, Narciso debruçado sobre a água envolto em sonhos. Por que razão a sua beleza me aturde tanto ao tornar a vê-lo pela primeira vez depois de algum tempo?

Mary caminhou silenciosamente sobre as lajotas de pedra e ficou por trás dele, observando o tendão do seu pescoço brilhar como uma pilastra de gelo até que a tentação de tocá-lo não pôde ser contida nem mais um minuto sequer. Seus dedos fecharam-se suavemente sobre os ombros nus e Mary inclinou-se para diante a fim de encostar o rosto de encontro aos cabelos úmidos, os lábios tocando-lhes os ouvidos.

— Oh, Tim, que coisa boa encontrá-lo aqui à minha espera — sussurrou.

A sua aproximação não o sobressaltou e Tim não se mexeu; parecia que ele pressentira a presença dela na tranqüilidade da noite, sentira-a atrás dele. Após um instante, ele deixou-se encostar suavemente nela; a mão que estivera sobre seus ombros, escorregou pelo peito até alcançar o outro ombro, aprisionando a sua cabeça dentro do círculo de seus braços. A mão livre deslizou pelo cotovelo até alcançar o lado do corpo, a palma fazendo pressão contra o ventre dele e empurrando-o com força contra ela. Os músculos do seu abdomem contraíram-se quando a mão de Mary passou sobre ele cheia de ternura, em seguida, ficaram estranhamente imóveis, como se Tim tivesse parado de respirar; virou a cabeça até que pôde fitá-la. Havia uma distante calma envolvendo-o e os olhos que buscavam os seus estavam muito sérios, uma névoa fosca e prateada dominava-os e aquela impressão sempre a mantinha afastada e ao mesmo tempo dominava-a como se Tim a visse mas não enxergasse Mary Horton.

Enquanto a sua boca tocava a dela, ergueu ambas as mãos para agarrar o braço que envolvia o seu peito e estas fecharam-se sobre ele. O beijo foi diferente do primeiro que trocaram, possuía uma sensualidade langorosa que pareceu a Mary tresloucada e sedutora, como se a criatura que tinha surpreendido sonhando não fosse o Tim, mas a encarnação de uma suave noite de verão. Levantando-se da balaustrada sem medo ou hesitação, colocou-a entre os braços e carregou-a.

Desceu os degraus que os separavam do jardim, a grama baixa roçando a sola de seus pés descalços. Sentindo vontade de protestar e obrigá-lo a voltar para dentro de casa, Mary escondeu o rosto em seu pescoço e conteve as palavras, submetendo a própria vontade ao seu estranho e silencioso objetivo. Tim fez com que sentasse sobre a grama à sombra dos rododendros canforados e ajoelhou-se ao seu lado, tocando delicadamente o rosto dela com as pontas dos dedos. Mary sentia tanto amor por ele que não era capaz de ver ou escutar, e inclinou-se para diante como uma boneca de trapos manuseada por um carinhoso toque de dedos, suas mãos abriram-se por completo e encostou a cabeça no peito dele. Tim manteve-a ali, acariciando-lhe os cabelos até sentir que estava calma e que as mãos crispadas, jaziam impotentes, sobre as suas coxas. Dos cabelos passou às roupas, tirando-as com tanto vagar e cuidado como se fosse uma criancinha despindo uma boneca, dobrando-as uma a uma e colocando-as numa pilha que crescia ao lado deles. Mary submeteu-se a ele com timidez, os olhos fechados. Seus papéis tinham se invertido de alguma forma; inexplicavelmente, ele tinha adquirido a ascendência.

Quando terminou, Tim pegou os seus braços e acomodou-os sobre os próprios ombros, puxando-a para junto de si. Mary ficou ofegante, abriu os olhos; pela primeira vez na sua vida sentia a presença de um corpo nu em toda a extensão do seu, e de qualquer maneira nada mais lhe restava fazer senão entregar-se àquela sensação, cálida, estranha e viva. Seu transe sonhador transformou-se de repente em realidade.

A pele sedosa sob suas mãos adquiriram forma e substância; a pele de Tim revestindo o corpo de Tim. Não havia mais nada sobre a terra, nada mais para lhe ser oferecido pela vida além da deliciosa sensação de ter Tim entre seus braços, prendendo-a contra o chão. Era o queixo de Tim causando-lhe ondas de dor no lado do seu pescoço, as mãos de Tim crispadas sobre seus ombros, o suor de Tim escorrendo pelo seu corpo. Notou que ele tremia, que o êxtase inconsciente que tomava conta dele era gerado por ela, que não importava se a sua pele fosse a de uma jovem ou de uma mulher de meia-idade desde que era Tim quem ali estava, dentro de seus braços e dentro do seu corpo, enquanto fosse ela, Mary, a dar-lhe aquilo, fazendo-o alcançar livremente aquele prazer tão puro e insensato, livre das correntes que sempre a cerceariam, porque ela podia raciocinar.

Quando já era bem tarde e a chuva fina afastara-se rumo às montanhas, ela arrastou-se para longe dele, juntou a pequena pilha de roupas comprimindo-as de encontro ao peito, e ajoelhou-se por cima dele.

— Precisamos entrar, meu coração — murmurou, os cabelos caídos sobre os braços abertos no ponto onde sua cabeça estivera apoiada. — Já está quase amanhecendo, temos que ir para casa.

Tim segurou-a em seus braços e, imediatamente, levou-a para dentro. As luzes da sala de estar ainda estavam acesas; esticando a mão por cima do ombro dele, Mary foi apagando-as, uma a uma à medida que ele a conduzia para o quarto de dormir. Acomodou-a sobre a cama e teria saído se ela não o tivesse impedido.

— Para onde vai, Tim? — perguntou, mudando de posição para lhe ceder lugar. — Esta cama agora é sua também.

Ele deitou-se ao seu lado, passando o braço por debaixo de suas costas. Mary colocou a cabeça nos ombros dele e a mão sobre o peito, acariciando-o meio sem jeito. Inopinadamente o movimento quase imperceptível e terno parou e ela deixou-se ficar imóvel ao seu lado, os olhos bem abertos e repletos de medo. Aquilo era demais para suportar; apoiou-se num dos cotovelos e estendeu a mão para alcançar o abajur sobre a mesa de cabeceira.

Desde o instante do silencioso encontro no pátio, Tim não dissera uma única palavra. De repente, tudo quanto desejava era ouvi-lo, se não falasse saberia que por qualquer razão Tim não estava ali.

Ele estava deitado com os olhos bem abertos, olhando-a sem piscar, apesar da claridade súbita e inesperada. O rosto estava triste e um pouco tenso, e aquela expressão Mary nunca tinha visto antes, possuía uma maturidade que jamais reparara. Os seus olhos estariam cegos, ou teria o rosto dele mudado? O corpo já não era mais estranho ou proibido a ela e podia observá-lo livremente, com amor e respeito, de vez que abrigava uma criatura tão viva e perfeita quanto ela o era. Como eram azuis os seus olhos, como era bem contornada a sua boca, como era trágica aquela minúscula ruga no canto esquerdo do lábio. E como era jovem, tão jovem!

Tim piscou e desviou o olhar perdido em alguma imensidão particular para a proximidade de seu rosto; os olhos pousaram sobre as rugas geradas pelo cansaço e preocupação, em seguida passaram para a boca reta e resoluta tão saciada com seus beijos que os lábios estavam inchados. Tim ergueu uma das mãos inertes e passou os dedos sobre os seus seios firmes e roliços com toda a delicadeza. Mary disse:

— Tim, por que não fala comigo? O que lhe fiz? Desapontei-o?

Os olhos do rapaz encheram-se de lágrimas; rolaram pelo seu rosto, caíram em cima do travesseiro, porém seu doce e maravilhoso sorriso reapareceu e a mão apertou o seio com mais força.

— Você disse-me que um dia haveria de me sentir tão feliz que choraria, e olhe! Oh, Mary, estou chorando! Sinto-me tão feliz que estou chorando!

Mary deitou a cabeça no peito de Tim, sentindo-se imensamente feliz.

— Pensei que estivesse zangado comigo!

— com você? - Enfiou a mão sob a sua cabeça aninhando-a ali, os cabelos escapando-lhe por entre os dedos. — Nunca poderia ficar zangado com você, Mary. Nem quando pensei que não gostava mais de mim não fiquei zangado.

— E por que se negava a falar comigo esta noite? Tim ficou surpreso.

— Eu tinha que falar com você? Não pensei que precisasse falar. Quando apareceu, não consegui pensar em nada para lhe dizer. Tudo o que queria era fazer as coisas a respeito das quais o pai conversou comigo enquanto você estava no hospital e, como tinha que fazer isso, não podia parar para conversar.

— Seu pai falou a você?

— Falou. Perguntei-lhe se ainda era um pecado se eu a beijasse estando casado com você e ele respondeu que não era pecado, de modo algum, quando a gente está casado. Também contou-me uma porção de outras coisas que se pode fazer. Disse-me que precisava saber o que devia fazer pois, caso contrário, eu a magoaria e você choraria. Não quero magoá-la nem fazê-la chorar, Mary. Não a machuquei nem a fiz chorar, não foi?

Mary riu, abraçando-o com força.

— Não, Tim, não me magoou nem me fez chorar. Estava ali, petrificada só de pensar que tudo dependia dela e sem saber se teria condições de conduzir as coisas.

— Mary, seja franca, não lhe machuquei mesmo? Esqueci-me que o pai avisou-me para não machucá-la.

— Você saiu-se esplendidamente, Tim. Estávamos em boas mãos, suas mãos inexperientes. Amo-o tanto!

— Esta palavra é melhor do que gostar, não é?

— Quando usada com propriedade é, sim.

— Vou usá-la apenas para você, Mary. A todos os outros direi que gosto deles.

— E é exatamente assim que deve ser, Tim.

No momento em que a madrugada penetrou no quarto e iluminou-o com a claridade suave do dia, Mary dormia profundamente. Tim olhava para a janela, totalmente desperto, tendo o cuidado de não se mexer para não incomodá-la.

Ela era tão pequenina e macia, exalava um perfume tão doce e atraente! Houve um tempo em que ele costumava abraçar o seu ursinho Teddy de encontro ao peito daquela mesma maneira, porém Mary estava viva e podia retribuir o abraço; era muito melhor. Quando tiraram o Teddy dele, dizendo que já era um homem e, portanto, não devia mais dormir com ele, chorara durante semanas a fio com os braços vazios envolvendo o peito sofrido, pranteando o amigo perdido. Sabia que a sua mãe não queria tirar Teddy dele, porém depois que chegou de volta do trabalho aos prantos e contara-lhe como Mick e Bül tinham rido dele por dormir com um ursinho, ela viu-se obrigada a separá-lo de Teddy, que nessa mesma noite foi parar dentro da lata de lixo. Ah, a noite fora tão grande, tão escura e repleta de sombras que se moviam misteriosamente, transformando-se em garras, bicos e dentes compridos e afiados.

Enquanto Teddy estivera ali e pôde esconder o rosto de encontro ao seu corpo as sombras jamais tinham ousado aproximar-se, limitavam-se a ficar na parede do outro lado; Tim levou muito tempo para se habituar com a presença delas no quarto, aproximando-se do seu rosto indefeso e chegando até a tocar no seu nariz. Depois as coisas melhoraram quando a sua mãe lhe deu uma lâmpada mais forte, e a partir desse mesmo dia passou a detestar a noite; ela era cheia de ameaças, repleta de inimigos secretos.

Esquecendo-se de que não pretendia se mexer para não despertá-la, virou a cabeça até poder olhar para baixo e vê-la, em seguida puxou o travesseiro para cima a fim de ficar mais elevado do que Mary. Fascinado, ficou com os olhos presos nela sob a claridade crescente, sorvendo a sua aparência estranha. Os seios mexiam com ele; não conseguia afastar os olhos dele. Só de pensar neles ficou excitado e o que sentira quando estavam grudados de encontro ao seu peito era indescritível. Parecia que as diferenças do corpo dela tinham sido criadas apenas para ele, não tinha se dado conta de que ela era exatamente igual a qualquer outra mulher. Ela era Mary e o seu corpo pertencia-lhe inteiramente da mesma forma que Teddy; era dele e apenas dele... para poder abraçar nas profundezas da noite, tão cheias de pavores e solidão.

O pai dissera-lhe que ninguém jamais a tocara, que o que lhe daria era fora do comum e estranho e ele compreendera a magnitude da sua responsabilidade muito melhor do que qualquer homem normal, de vez que possuira tão pouco e fora respeitado por muito pouca gente. Sob a ação do calor selvagem que devastara o seu corpo, não conseguira se lembrar de tudo quanto o pai recomendara, mas depois, recordando-se de tudo, achou que da próxima vez não haveria de se esquecer de nada. A sua dedicação a ela era totalmente altruísta; parecia originar-se em algum lugar fora dele, formada por gratidão, amor e uma segurança profunda e inabalável. Jamais teve a sensação, quando se encontrava ao seu lado, de que estava sendo colocado numa balança e que faltava peso. Como era bonita, pensou ele, vendo as rugas e a pele flácida mas sem achá-las feias ou indesejáveis. Via-a através dos olhos de um amor total e sem limites e assim considerava tudo que lhe pertencia maravilhoso.

Logo no início, quando o pai lhe dissera que precisava ir para a casa de Artarmon e esperar sozinho a chegada de Mary, não tinha querido ir. Mas, o pai obrigara-o a obedecer e não permitira que retornasse a Surf Street. Tim esperara toda uma semana, durante a qual aparara a grama, cuidara dos canteiros de flores e podara os arbustos os dias inteiros, depois perambulara pela casa vazia durante a noite até sentir-se suficientemente cansado para poder dormir, deixando todas as lâmpadas acesas para afugentar os demônios que povoavam a escuridão. Seu pai dissera-lhe que já não pertencia mais a Surf Street e quando implorara a Ron para ir fazer-lhe companhia enfrentou uma recusa decidida. Ali, naquele instante, ao recordar tudo aquilo enquanto o sol nascia, achou que o pai já sabia de antemão e com exatidão o que iria acontecer; seu pai sempre soubera de tudo mesmo.

Naquela noite o trovão tinha rugido no oeste e pairava no ar um cheiro adocicado de chuva e o odor de terra envolvia tudo. Quando era um menininho as tempestades assustavam-no, até que seu pai mostrara-lhe como era fácil libertar-se daquele medo... bastava ir até o lado de fora e observar como tudo ficava bonito com os raios riscando o céu escuro e o trovão grunhindo como um mamute, como um touro invisível. Assim, tomara seu banho de chuveiro, como fazia todas as noites, dirigiu-se totalmente nu até o pátio para apreciar a tempestade, perturbado e irrequieto. Dentro de casa, os duendes teriam se apressado em aborrecê-lo vindo de todos os cantos, mas no pátio com o vento úmido roçando a sua pele nua não poderiam dominá-lo. E, pouco a pouco, a noite suave enterneceu-o; passara para uma unidade sem sentido, lado a lado com as criaturas irracionais da terra. Tinha a sensação de que podia ver cada uma das pétalas de uma flor indistinta, e era como se os cantos de todos os pássaros do universo inundassem o seu ser com uma música muda.

A princípio, só percebera vagamente a sua presença, até que sua adorada mão agarrada ao seu ombro encheu-o de dor que não era bem uma dor. Não precisava ter capacidade de raciocínio para descobrir a mudança por que passara, a admissão de que ela gostava de tocá-lo tanto quanto ele ansiava poder tocá-la. Inclinara-se para trás a fim de sentir a pressão de seus seios de encontro às suas costas; a sensação causada pela sua mão sobre o seu ventre deixara-o mudo e eletrizado, não conseguia respirar temeroso que ela desaparecesse no ar. O primeiro beijo que trocaram, há tantos meses atrás, deixara nele uma sensação estranha que não sabia como definir, porém aquele segundo beijo encheu-o de um poder estranho e triunfante, armado como estava pelas coisas ditas pelo pai. Sentira vontade de tocar na pele dela mas só conseguia encontrar uma parte, impedido pelas roupas, por isso dera um jeito de se dominar o bastante para fazer o que tinha que ser feito, ou seja tirá-las delicadamente para não amedrontá-la.

Seus passos levaram-no para o jardim porque detestava a casa de Artarmon; não lhe pertencia como o chalé e não sabia para onde deveria levá-la. Só se sentia à vontade no jardim, portanto foi para ali que se dirigiu. E no jardim sentiu, finalmente, os seios dela, no jardim onde ele era simplesmente mais uma das milhares de criaturas e onde podia se esquecer que não era normal, podia perder-se no calor doce e cortante do corpo dela. E ficara perdido durante horas a fio, ligado aos prazeres indescritíveis de senti-la e sabendo que ela estava ao seu lado todo tempo e em cada parcela do seu corpo.

Quando Mary lhe disse para entrarem, a tristeza apoderara-se dele, e se deu conta que deviam se separar. Pegara-a no colo, mantivera-se agarrado a ela o mais que pudera, sofrera só de imaginar que a teria que deixar, imaginando quanto tempo teria que esperar para que tudo aquilo tornasse a acontecer. Tinha sido horrível colocá-la na cama e virar-se para retirar-se e ficar só; quando ela chamara-o de volta e mandara que se deitasse ao seu lado, obedecera totalmente perplexo, pois não lhe ocorrera perguntar ao pai se seriam exatamente iguais a sua mãe e seu pai e se poderiam dormir juntos todas as noites.

Foi nesse instante que ficou sabendo que realmente lhe pertencia, que poderia ir para debaixo da terra a fim de dormir seu último e infindável sono em segurança e liberto de qualquer espécie de medo pois ela estaria lá, ao lado dele, naquela escuridão eterna. Nunca mais sentiria medo de nada: tinha vencido o derradeiro pavor ao descobrir que nunca mais estaria só. A sua vida sempre tinha sido tão solitária, o mundo pensante sempre estivera fechado a ele, mantivera-se sempre na periferia observando, desejando entrar nesse mundo sem jamais o conseguir. Nunca pôde, nunca. Porém agora isso já não mais importava. Mary tinha se ligado a ele da maneira mais deliciosa possível. E ele amava-a, amava-a, amava-a...

Voltando a escorregar sobre a cama, Tim colocou o rosto entre os dois seios de Mary para sentir a sua maciez, e com as pontas dos dedos acariciava a borda dura e tentadora do bico do seio. Ela despertou com uma espécie de ronronar, passou os braços em torno do corpo de Tim. Ele sentiu vontade de beijá-la novamente, porém se deu conta que, ao invés disso, estava rindo.

— O que há de tão engraçado? perguntou Mary-sem jeito, espreguiçando-se já mais desperta.

— Ah, Mary, você é muito melhor do que o meu Teddy! — respondeu por entre risos.

 

Quando Mary telefonou para Ron a fim de lhe comunicar que já tinha voltado para casa e que Tim estava passando bem, teve a sensação de que ele estava cansado.

— Por que não vem para cá e fica conosco durante alguns dias? - perguntou-lhe.

— Não, obrigado, amor, acho melhor não ir. Vocês estarão bem melhor se eu não estiver por perto.

— Isto não é verdade, e sabe disso muito bem. Preocupamo-nos com você, sentimos sua falta e queremos vê-lo. Por favor, venha, Ron, ou então deixe que vá buscá-lo de carro.

— Não, não quero ir. - Parecia obstinado, resolvido a levar as coisas a seu modo.

— Então posso ir vê-lo?

— Quando voltar ao trabalho poderá vir uma noite, porém não quero vê-la antes disso, está bem?

— Não, não está nada bem, mas se é assim que quer, nada posso fazer. compreendo que esteja pensando estar agindo corretamente, que devemos ficar sós, porém está enganado, sabe disso. Tim e eu ficaríamos muito satisfeitos em vê-lo.

— Quando voltar ao trabalho, antes não. — Houve uma pequena pausa, depois tornou a falar com uma voz mais fraca e distante. - Como vai o Tim, amor? Está bem? Sente-se realmente feliz? Agimos corretamente e fizemos com que se sinta mais próximo da normalidade? Mr. Martinson estava certo?

— Sim, Ron, ele estava certo. Tim está muito feliz. Não mudou nada e ao mesmo tempo sofreu uma mudança tremenda. Está mais seguro de si, mais contente e sente-se menos como um estranho.

— Era isso o que queria ouvir - A voz de Ron transformou-se num sussurro. — Obrigado, Mary, Até logo.

Tim encontrava-se no jardim, transplantando avencas das rochas. Mary atravessou o gramado, aproximou-se dele sorrindo, com um balançar e um ritmo totalmente novos no seu modo de andar. Tim virou a cabeça e retribuiu o sorriso, em seguida tornou a se inclinar sobre as frágeis folhas, arrancando uma haste fina e escura bem embaixo do ponto onde a planta dava a impressão de estar fraca e sem cor. Sentando-se ao lado dele, Mary pousou o rosto sobre o seu ombro e soltou um suspiro.

— Acabei de falar com papai.

— Mas que coisa boa! Quando vem até aqui?

— Disse que não virá antes de voltarmos a trabalhar. Tentei convencê-lo a vir antes, mas não quis me dar ouvidos. Acha que precisamos ficar sós por enquanto, o que é muito delicado de sua parte.

— Acho que sim, mas ele não precisava fazer isso, não? Não nos importamos com as visitas. Mrs. Parker está sempre por aqui e nós nem ligamos, não é mesmo?

— Não, não ligamos, Tim, o que nada tem de estranho. Ela é muito boa.

— Gosto dela. — Tim largou a avenca no chão e passou o braço em volta da cintura de Mary. - Por que você tem estado tão linda ultimamente, Mary?

— Porque o tenho.

— Acho que é por você não se vestir daquele jeito como costuma fazer quando vai à cidade. Gosto mais quando está sem sapatos e meias e com os cabelos despenteados.

— Tim, que tal se fôssemos passar umas duas semanas no chalé? Aqui está tudo ótimo, porém lá será muito melhor.

— Ah, gostaria muito! Não gostava muito desta casa, antes, mas depois que voltou do hospital ela ficou muito gostosa. Agora tenho a impressão de que também faço parte dela. Mas o chalé é a minha casa preferida em todo o mundo.

— Sim, sei disso. Vamos agora mesmo, Tim, pois não há nada que nos obrigue a ficar aqui. Só queria ver o que papai desejava fazer, mas resolveu nos deixar a sós por algum tempo, portanto podemos ir.

Jamais passara pela cabeça dos dois ir além do chalé; os grandes projetos de Mary para levar Tim até o Great Barrier Reef e o deserto desapareceram no futuro distante.

Rumaram para o chalé naquela noite e divertiram-se muito decidindo o local onde iriam dormir. Afinal, passaram a enorme cama de casal de Mary para o quarto dele e fecharam o quarto pintado de branco até que sentissem vontade de ir até Gosford a fim de comprar tinta para redecorá-la. Havia muito pouca coisa a fazer no jardim florido e menos ainda dentro de casa, portanto passearam pelo bosque durante horas a fio, explorando o seu encantamento, suas passagens virgens, deitando-se com as cabeças unidas sobre os montículos de terra feitos pelas formigas atarefadas ao prepararem o formigueiro, ou deixando-se ficar totalmente imóveis enquanto uma ave do paraíso, macho, executava os complicados passos de dança que antecipava o acasalamento..

Quando embrenhavam-se demais no bosque e viam que não poderiam voltar ao chalé antes que a escuridão o envolvesse, deixavam-se ficar onde estavam, estendiam um cobertor sobre um leito feito com folhas secas e dormiam sob as estrelas. As vezes dormiam durante o dia e acordavam com o pôr do sol, depois, quando a noite caía, dirigiam-se para a praia, acendiam uma fogueira, deliciando-se com a liberdade recém-descoberta de ter o mundo apenas para si e sem sentirem o menor constrangimento. Tiravam as roupas, protegidos pela escuridão, dos olhos curiosos que poderiam estar na outra margem do rio e nadavam nus na água escura e parada, enquanto a fogueira transformava-se em pedaços de carvão recobertos de cinzas. Depois Tim deitava-a sobre uma coberta estendida na areia, sentindo uma vontade tão grande de amá-la que nem conseguia resistir por um minuto sequer. Mary estendia os braços a fim de puxá-lo para o seu lado, sentindo-se feliz como jamais supôs que poderia ser.

Certa noite, Mary despertou de um sono pesado na areia e, por um momento, ficou sem saber onde se encontrava. Lembrou-se, à medida que recuperava a consciência, que estava dormindo entre os braços de Tim. Ele jamais a soltava. Qualquer tentativa feita no sentido de se afastar dele, despertava-o logo. Quando isto acontecia, Tim tateava na escuridão até encontrá-la, puxava-a novamente para junto de si, deixando escapar um suspiro de alívio e, ao mesmo tempo, de medo. A impressão de Mary era que Tim receava que alguma coisa saída da escuridão pudesse arrancá-la dele, mas como nunca tocou no assunto ela não lhe perguntava nada, julgando que, no momento oportuno, ele haveria de lhe contar tudo.

O verão estava no auge, o tempo estava maravilhoso, os dias quentes e secos, as noites agradavelmente frescas devido a brisa que vinha do mar. Mary ergueu os olhos para o firmamento, prendeu a respiração diante de tanta beleza, de tanto esplendor. A faixa compacta da Via Láctea estendia-se de ponta a ponta através da abóbada celeste, bastante esmaecida pela claridade das estrelas que, até mesmo nas suas partes mais rarefeitas, lhe emprestavam um brilho tênue e poeirento. Nenhuma névoa encobria-as e as luzes da cidade estavam a muitas milhas ao sul. O Cruzeiro do Sul estendia os quatro braços brilhantes na direção do vento, a quinta estrela estava nítida e brilhante, as Guardas atraíam os olhos de Mary, afastando-os do globo parado e cerúleo da lua cheia. Todas as coisas estavam banhadas por uma luz prateada, o rio serpenteava e revoluteava como um raio imperturbável e buliçoso, a areia estava salpicada por um mar de minúsculos brilhantes.

E Mary teve a sensação, por um diminuto espaço de tempo, que ouvira alguma coisa, ou talvez pressentira algo: era algo desconhecido e suave, como um grito hesitante no limiar do nada. Fosse o que fosse, havia paz e finalidade nele. Ficou atenta por muito tempo, porém nada mais aconteceu e ela começou a achar que talvez, numa noite como aquela, a alma do mundo fosse solta para atirar-se como um. véu sobre as cabeças de todas as coisas vivas.

Muito embora não acreditasse na existência de Deus, sempre falava sobre ele com Tim, de vez que a concepção era simples e ele era simples demais para acreditar no intangível. Mary estava certa de que só havia uma vida para ser vivida. E não era isso o que importava, uma coisa completamente independente da existência de um ser superior? Que diferença havia se houvesse um Deus, se a alma era mortal, se a vida de qualquer espécie cessava na beira do túmulo? Quando pensava em Deus era nos termos de Tim e das crianças, o virtuoso e perfeito; sua própria vida tinha-a conduzido para tão longe do sobrenatural que parecia haver dois credos diversos, um para a infância e outro para a maturidade. No entanto aquela sensação meio-ouvida, meio-sentida que partira da noite deixara-a perturbada, teve um mau pressentimento e Mary lembrou-se, inesperadamente, da lenda antiga de que quando a alma de uma pessoa que acaba de falecer passa para o plano infinito, os cães uivam, erguendo os focinhos, para a lua e tremem como varas verdes enquanto choram. Sentou-se, agarrando os joelhos entre as mãos.

Tim percebeu logo que ela não se encontrava ao seu lado, despertando quando o seu tatear de mãos não a encontraram.

— O que foi, Mary?

— Não sei... Tenho a sensação de que alguma coisa aconteceu. É muito estranho. Sentiu alguma coisa?

— Não, apenas que já não estava mais junto a mim.

Tim quis fazer amor; ela procurou desligar-se da inesperada preocupação o suficiente para satisfazé-lo, mas não conseguiu. Alguma coisa estava presa no seu inconsciente como uma fera errante, alguma coisa ameaçadora e irreversível. Tim não ficou desapontado com a atitude assumida: desistindo da idéia, tentou levantá-la e contentando-se em envolvê-la em seus braços, no que Mary sempre qualificava como o abraço do ursinho Teddy, pois ele pouco lhe contara a respeito embora suspeitasse que nem tudo ele poderia relatar.

— Tim, você ficaria muito aborrecido se voltássemos para a cidade?

— Não, se este for o seu desejo, Mary. Não me incomodo desde que seja o que quer.

— Pois então vamos voltar agora, neste instante. Quero ver o papai. Alguma coisa me diz que ele está precisando de nós.

Tim levantou-se logo, sacudiu o cobertor para retirar todos os grãos de areia e dobrou-o, colocando com todo o cuidado embaixo do braço.

Quando o Bentley começou a subir a Surf Street já eram seis horas da manhã e o sol já nascera há muito tempo. A casa estava silenciosa e parecia estranhamente deserta, muito embora Tim assegurasse a Mary que seu pai estava ali. A porta dos fundos estava destrancada.

— Tim, por que não fica aqui por um minuto, enquanto eu entro para dar uma olhadela? Não quero assustá-lo ou preocupá-lo, mas acho melhor eu entrar só.

— Não, Mary, vou com você. Não ficarei assustado ou preocupado.

Ron encontrava-se estirado sobre a velha cama de casal que compartilhara com Es, os olhos cerrados, as mãos cruzadas sobre o peito, como se estivesse recordando a última vez que vira sua mulher. Mary não precisou sentir o contato da sua pele fria nem procurar um coração parado; soube, logo, que estava morto.

— Mary, ele está dormindo? — Tim contornou a cama e ficou com os olhos presos no pai; em seguida estendeu a mão e encostou-a nas faces encovadas. Olhou para Mary muito triste. — Ele está tão frio!

— Está morto, Tim.

— Ah, gostaria que tivesse podido esperar! Não via a hora de lhe contar como é bom morar com você. Queria perguntar-lhe uma porção de coisas e pedir-lhe para me ajudar a escolher outro presente para você. Nem disse até logo a ele! Não me despedi dele e agora já não consigo mais me lembrar como era quando estava com os olhos abertos, era feliz e estava vivo.

— Não creio que ele suportasse esperar nem mais um pouquinho, meu querido. Desejava tanto partir; isto aqui era tão triste para ele e nada mais havia para esperar de vez que estamos felizes. Não fique triste, Tim, pois isto não é triste. Agora poderá voltar a dormir com a sua mãe outra vez.

Imediatamente Mary entendeu porque a voz dele parecia tão distante no telefone; já tinha começado a morrer no momento em que Tim deixara a casa de Surf Street para sempre e quando Mary saiu do hospital estava mesmo no fim. Aquilo poderia ser qualificado de suicídio? Ela achava que não. O tambor parara de bater e os pés deixaram de se mexer, só isso.

Sentado na beirada da cama, Tim passou os braços sob as costas de Ron, ergueu aquele corpo endurecido e contraído até tê-lo entre os braços.

— Ah, Mary, vou sentir a falta dele! Gostava do pai, gostava mais dele do que de qualquer outra pessoa no mundo, a não ser você.

— Sei disso, meu amor. Também sentirei a sua falta.

Teria sido a sua morte a voz que escutara dentro da noite? ficou se perguntando. Coisas mais estranhas do que aquilo tinham acontecido a pessoas mais cheias de dúvidas sem que isso as perturbasse... Por que razão os fios vivos que ligavam um ser humano não podiam roçar os entes queridos no instante de sua partida? Ron estava sozinho quando morreu e ainda assim não estava só; ele chamara-a e ela acordara para responder-lhe. Às vezes a distância entre as pessoas não é nada, pensou, às vezes elas diminuem tanto a ponto de se transformarem na pausa entre dois batimentos de um coração.

 

Mary aborreceu-se muito no funeral de Ron e ficou satisfeita por ter conseguido convencer Tim a não ir. Dawnie e o marido tomaram conta de tudo, o que era certo, mas como representante de Tim não podia deixar de comparecer e acompanhar o pequeno cortejo até o cemitério. Sua presença foi claramente mal recebida; Dawnie e Mick fizeram questão de ignorá-la. O que teria sucedido quando Ron contara-lhes que ela e Tim tinham se casado? perguntou a si mesma. Só tinha falado com Ron uma única vez depois do casamento e ele nem mencionara o nome da filha.

Depois de terem coberto o caixão de Ron, os três afastaram-se lentamente da sepultura, e Mary colocou a mão no braço de Dawnie.

— Minha cara, sinto muita pena de você, pois sei o quanto o amava. Também gostava muito dele.

Quando Dawnie fitou-a, Mary percebeu algo parecido com Tim nos olhos da moça, porém nunca tinha surpreendido no marido aquela expressão amarga e atormentada.

— Não preciso de seus pêsames, cunhada! Porque não vai embora e me deixa só?

— Dawnie, por que motivo não pode me perdoar por amar o Tim? Seu pai não lhe explicou a situação?

— Oh, ele tentou! Você é uma mulher muito inteligente, não é? Não foi preciso muito tempo para que conseguisse enganá-lo como fez com relação ao Tim! Sente-se feliz, agora que conseguiu ter seu animalzinho de estimação ao seu lado de maneira permanente e legal?

— Tim não é um animal de estimação e sabe disso muito bem. E de qualquer maneira... isso tem importância desde que se sinta feliz?

— Como posso saber se está feliz? Conto apenas com a sua palavra a esse respeito e ela não vale nada!

— Por que não aparece lá em casa e vê por si mesma qual a verdade?

— Não sujaria meus sapatos entrando na sua casa. Mrs. Tim Melville. Escute, acho que conseguiu tudo quanto queria, ficou com Tim todo para si com todas as convenções satisfeitas e seus pais fora do caminho!

Mary empalideceu.

— O que está querendo dizer com isso, Dawnie?

— A senhora levou minha mãe à sepultura, Mrs. Tim Melville e agora o meu pai, também!

— Isso não é verdade!

— Ah, não é não? No que me diz respeito, agora que tanto meu pai quanto minha mãe estão mortos, meu irmão também está. Nunca mais quero tornar a vê-lo ou ouvir falar dele! Se vocês dois querem dar um espetáculo público às custas de si mesmos exibindo suas extravagâncias bem debaixo do nariz da sociedade, não quero mais saber de nada a esse respeito!

Mary deu-lhe as costas e afastou-se.

Sentiu-se melhor depois de ter percorrido a distância que separava o Cemitério de Botany de sua casa em Artarmon e pôde cumprimentar Tim com a fisionomia serena.

— O pai já está com a mãe? — perguntou ele, cheio de ansiedade, torcendo as mãos.

— Sim, Tim. Vi quando o colocaram debaixo da terra ao lado dela. Não precisa nunca mais se preocupar com nenhum dos dois, estão juntos e em paz.

Mary notou algo estranho na atitude de Tim; sentou-se, observou-o com toda a atenção, intrigada mas não alarmada.

— O que há, Tim? Não está se sentindo bem? O rapaz sacudiu a cabeça com tristeza.

— Não sinto nada, Mary. Só um pouco esquisito, só isso. É um tanto engraçado não ter mais papai e mamãe.

— Entendo, entendo... Comeu alguma coisa?

— Não. Não tenho fome.

Mary aproximou-se dele, fê-lo levantar-se da cadeira em que estava, fitando-o preocupada.

— Vamos até à cozinha e prepararei alguns sanduíches para nós dois. Talvez tenha vontade de comer quando vir o quanto são bonitos e apetitosos.

— Bem pequenininhos e sem nem um pedacinho de casca?

— Tão finos quanto uma folha de papel fino, em forma de triângulos bem pequenininhos e sem nem um pedacinho da crosta, prometo-lhe. Agora vamos entrar.

As expressões ”meu amor, meu querido, meu coração” chegaram até a ponta da língua, mas, por qualquer razão, ela não conseguia pronunciar palavras de carinho todas as vezes em que, como naquele instante, Tim parecia preocupado e perdido. Será que conseguiria, algum dia, tratá-lo como o amante que era e perderia aquele pavor pronunciado e dominante de bancar uma tola completa? Por que motivo ela só conseguia ficar totalmente à vontade ao seu lado quando estavam isolados no chalé ou na cama? O rancor de

Dawnie exasperava-a, e todos os olhares curiosos e cheios de insinuações que lhes eram lançados quando os dois passavam por Walton Street ainda tinham o poder de humilhá-la.

A coragem de Mary era fora do comum e só poderia ser assim mesmo. Durante toda a vida, até o momento em que conhecera Tim, sua vida tinha sido dirigida a conquista do sucesso material e grangeara a aprovação daqueles que tinham iniciado tudo com melhores possibilidades do que ’as suas, de vez que nada recebera como patrimônio. Contudo, não lhe parecia fácil, àquela altura, enfrentar as convenções, muito embora a sua união com Tim contasse com a aprovação legal. Enquanto desejava ardentemente esquecer-se de si mesma, sufocá-lo de beijos e carícias quando sentisse aquele impulso, a incapacidade de Tim para encorajá-la de uma forma amadurecida tornava isto totalmente impossível. Num instante de fraqueza, que veio a lamentar mais tarde, pediu a Tim para não comentar o casamento com pessoas que ainda não tivesse tido conhecimento dele, tamanho era o seu pavor de ser ridicularizada ou gozada. Não, não era fácil.

Como de costume, Tim quis ajudá-la enquanto preparava os sanduíches, apanhando o pão e a manteiga, fazendo barulho com a porcelana enquanto procurava os pratos necessários.

— Tim, poderia pegar o facão de carne para mim? É o único bastante afiado para que eu possa retirar toda a crosta do pão.

— Onde está ele, Mary?

— Na gaveta de cima — respondeu, distraída, espalhando uma camada de manteiga sobre cada fatia de pão.

— Aaaaiiiiii! Mary! Mary!

Ela virou-se, rápida, sentindo um aperto no coração, provocado por alguma coisa naquele seu grito.

— Oh, meu Deus!

Por um lapso de segundo teve a sensação de que toda a cozinha estava empapada de sangue. Tim estava de pé, junto ao console, totalmente imóvel, os olhos cravados no braço esquerdo com uma expressão de terror inacreditável. Rios de sangue escorriam desde o bíceps até as pontas dos dedos... uma torrente, uma fonte jorrando da cavidade do cotovelo. com a regularidade de um cronômetro o sangue esguichava através de um jato violento atingindo quase que o meio da peça, parava e jorrava outra vez; uma pequena poça formava-se junto ao seu pé esquerdo e o lado do corpo brilhava, deixando gotejar a sua parte no chão.

Junto ao forno havia um rolo de barbante e um par de pequenas tesouras dependuradas por um fio. Praticamente no mesmo instante em que se virara, Mary correu para o outro lado, cortou alguns metros de barbante, dobrando e redobrando-o a fim de transformá-lo num cordão grosso.

— Não tenha medo, meu adorado, não tenha medo! Estou aqui, já estou indo! - falou com voz ofegante, brandindo um garfo.

Mas ele não a escutou; a boca abriu-se num queixume fino e agudo e correu como um animal ferido, batendo de encontro à geladeira, resvalando pela parede, o braço ferido largado ao lado do corpo enquanto tentava livrar-se dele, jogá-lo fora como se já não fizesse parte dele. O choro de Mary misturou-se ao dele: Mary investiu contra ele mas não conseguiu pegá-lo, recuou e tentou novamente. Correndo em círculos desordenados, alucinados, Tim avistou a porta e dirigiu-se para ali, sacudindo o braço e berrando pungentemente. Os pés descalços caíram sobre a poça de sangue e escorregando, caiu estirado sobre o chão. Antes que tivesse tempo para se levantar, Mary já estava junto dele, obrigando-o a ficar ali e sem procurar acalmá-lo na sua ânsia de fazer um torniquete antes que fosse tarde demais. Meio-sentada, meio-deitada em cima do peito de Tim, agarrou o seu braço e enrolou o cordão em torno dele logo acima do cotovelo, amarrou-o com força e pôs o garfo sob o nó a fim de enroscar o cordão até vê-lo desaparecer por dentro da carne.

— Tim, fique quieto! Oh, por favor, por favor Tim, não se mexa! Estou aqui, não deixarei que nada lhe aconteça, mas deve ficar imóvel, Está me ouvindo?

Tim estava arrazado, perdido entre a perda de sangue e o pânico; deixou-se ficar deitado sob ela, o peito inflando sem cessar, soluçando. Mary abaixou a cabeça até encostá-la no seu rosto e só conseguia pensar nas vezes que não se permitira chamá-lo por todos aqueles nomes cheios de amor e obrigara-se a ficar sentada calmamente ao seu lado, quando tudo quanto desejava era pegá-lo em seus braços e beijá-lo até que ficasse sem fôlego.

Houve uma batida na porta dos fundos e ela ouviu a voz da sua vizinha. Erguendo a cabeça, Mary gritou.

— Escutei uma gritaria enorme lá da minha casa — balbuciou Mrs. Parker enquanto empurrava a porta; depois, quando viu a cozinha encharcada de sangue deixou escapar um som entre um arquejo e uma ânsia de vómito.

— Oh, meu Jesus Cristo!

— Chame uma ambulância! — implorou Mary, com medo de sair de cima de Tim e vê-lo entrar em pânico.

Mrs. Parker não conseguiu convencer Mary a levantar-se. Quando a ambulância chegou, menos de cinco minutos depois, continuava no chão com Tim, o rosto apertado de encontro ao dele e os dois enfermeiros foram obrigados a erguê-la e retirá-la dali.

Emily Parker acompanhou-a até o hospital, procurando confortá-la enquanto estavam na parte posterior do veículo juntamente com Tim e um dos enfermeiros.

— Não se preocupe com ele, menina, vai ficar bom. Parecia muita quantidade de sangue, mas já ouvi dizer que quando se perde um copo tem-se a impressão de que foram litros.

O hospital municipal não ficava longe. A ambulância chegou tão rápido que Mary nem teve tempo de recuperar sua voz quando levaram o Tim para o setor de pronto-socorro. Depois da queda, Tim parecia ter mergulhado numa espécie de estupor, sem ter consciência da presença dela ou do que acontecia à sua volta. Não tinha aberto os olhos nem uma vez, como se estivesse com medo do que poderia ver ao abri-los, ver aquela coisa horrorosa que um dia tinha sido o seu braço.

Mrs. Parker ajudou Mary a se sentar na elegante sala de espera, falando sem parar.

— Isto aqui não é bonito? — perguntou, tentando afastar Tim do pensamento de Mary. - Recordo-me de quando isto nada mais era do que alguns pequeninos quartos, apertados entre os aparelhos de radiografia e os arquivos médicos. Agora transformou-se nesse lugar enorme, realmente bonito. com todas essas plantas que espalharam por aqui a gente nem tem a impressão de estar num hospital! Tenho visto saguões de hotel muito piores, menina, sinceramente, vi mesmo. Agora fique sentadinha aqui, quietinha até o médico aparecer, enquanto vou procurar minha velha amiga Irmã Kelly e pedir-lhe para arranjar uma xícara de chá quente e alguns biscoitinhos para você.

O médico de plantão apareceu pouco depois que Mrs. Parker saíra para pedir o lanche. Mary conseguiu levantar-se, umedecendo os lábios na tentativa de falar. Ainda não tinha dito uma só palavra.

— Mrs. Melville? Acabei de estar com o enfermeiro e ele disse-me como se chama.

— Ti-Ti-Tim? - conseguiu balbuciar Mary, mas tremia tanto que foi forçada a cair na cadeira novamente.

— Tim vai ficar bom, Mrs. Melville, verdade! Acabamos de mandá-lo para a sala de operações a fim de tratar do braço, porém não há motivo para se preocupar com ele, dou-lhe minha palavra. Já está recebendo soro e, provavelmente, assim que soubermos qual o tipo do seu sangue faremos uma pequena transfusão... mas ele está bem, apenas está sob estado de choque devido ao sangue que perdeu, nada mais do que isso. Não vai ser difícil tratar do ferimento no braço, eu mesmo examinei-o. O corte está limpo. Como aconteceu isso?

— Creio que deixou o trinchante escorregar, não sei. Não estava olhando para ele quando tudo aconteceu, apenas escutei-o chamar por mim. — Ergueu os olhos cheios de pena. — Ele está consciente? Por favor, faça-o entender que estou aqui, que não fui embora nem o deixei sozinho. Fica tremendamente preocupado quando acha que o deixei só, mesmo agora.

— Neste momento, Mrs. Melville, ele encontra-se sob o efeito de uma anestesia leve, mas assim que voltar a si farei com que saiba que está aqui. Não se preocupe com ele, é um homem.

— Aí é que está, ele não é. Quero dizer... não é um homem adulto. Tim tem uma deficiência mental e sou a única pessoa que tem neste mundo. É da máxima importância que ele saiba que estou aqui! Diga-lhe apenas que Mary está do lado de fora, bem perto dele.

— Mary?

— Sempre me chama de Mary — disse como se fosse uma criança. — Não me trata de outro modo a não ser Mary.

O médico de plantão virou-se para se retirar.

— Vou mandar um dos residentes até aqui para anotar os detalhes, Mrs. Melville, mas ele será rápido. Trata-se de um simples caso de acidente, não vejo necessidade de grandes detalhes, a não ser que Tim tenha alguns problemas de saúde além do retardamento mental.

— Não, goza de ótima saúde.

Mrs. Parker voltou acompanhada pela Irmã Kelly, que trazia uma bandeja de chá.

— Beba isto enquanto está quente, Mrs. Melville - disse a Irmã. - Em seguida, vou levá-la até o banheiro, para que tome um bom banho quente de banheira. Mrs. Parker ofereceu-se para ir a sua casa buscar roupas limpas e, enquanto ela não estiver de volta, poderá usar um balandrau do hospital. Tim está muito bem e a senhora vai se sentir muito melhor depois de relaxar numa banheira cheia de água quente. Mandarei uma enfermeira para acompanhá-la.

Mary olhou para si mesma e só-então se deu conta de que estava toda suja de sangue.

— Tome primeiro o chá, enquanto o Dr. Fisher anota os detalhes do acidente.

Duas horas mais tarde, Mary estava de volta à sala de espera com Mrs. Parker, envergando roupas limpas e sentindo-se mais ela mesma. Dr. Minster, o cirurgião da emergência, apareceu para tranqüilizá-la.

— Pode ir para casa, minha cara, ele está ótimo. Suas cores eram ótimas enquanto se submetia à cirurgia e agora está dormindo como uma criancinha. Ficará na unidade de tratamento intensivo algum tempo, depois será transferido para uma das enfermarias. Serão apenas dois dias quando ficará sob observação, depois voltará para casa.

— Quero que tenha tudo do melhor, um quarto particular e tudo mais que se faça necessário!

— Então será levado para a ala particular — murmurou Dr. Minster com experiência. — Não se preocupe com ele, Mrs. Melville. Ele é um magnífico exemplar da raça humana, um rapaz muito bonito.

— Não poderei vê-lo antes de voltar para casa? — implorou Mary.

— Se quiser, porém não fique muito tempo. Está sob a ação de sedativos e preferiria que não procurasse despertá-lo.

Tim tinha sido colocado numa cama imensa e com rodízios, protegida por um biombo, num canto de um cómodo cheio de apetrechos fascinantes que emitiam ruídos leves, soluços e bips. Havia ali mais outros sete doentes, bastante mal para desencadearem o pânico de Mary. Uma enfermeira muito jovem estava de pé ao lado de Tim tirando um aparelho de pressão preso em volta do braço bom. Os olhos da moça estavam presos no rosto do paciente ao invés de estar prestando atenção no que fazia, e Mary deixou-se fica’r, por um momento, observando aquela admiração patente. Em seguida, apequena levantou os olhos, viu Mary e sorriu-lhe.

— Olá, Mrs. Melville. Ele está dormindo, só isso, portanto não há motivo para preocupações. A pressão sangüínea está excelente e já saiu do estado de choque.

A palidez cerúlea tinha desaparecido do rosto de Tim, deixando-o relaxado, macio e ligeiramente corado. Mary aproximou-se para afastar uma mecha de cabelo da sua testa.

— Vou levá-lo para a ala particular daqui a um pouquinho, Mrs. Melville. Gostaria de acompanhar-me e vê-lo acomodado antes de voltar para casa?

Pediram-lhe para só voltar no dia seguinte no final da tarde, de vez que ele continuava dormindo e a sua estada ali nada mais seria além de uma vigília. Ao chegar, Tim não se encontrava no quarto, fora levado para se submeter a alguns exames. Sentou-se e ficou, pacientemente, esperando a sua volta, recusando todos os oferecimentos de chá e sanduíches com um educado e cansado sorriso.

— Ele tem noção de onde está e do que lhe aconteceu? — perguntou à irmã enfermeira. — Ele entrou em pânico quando despertou e não me viu aqui?

— Não, portou-se muito bem, Mr. Melville. Recuperou-se rapidamente e parece estar muito feliz. Na verdade, ele é uma pessoa tão cheia de vida e bonita que se tornou o preferido da enfermaria.

Quando Tim a viu, sentada na cadeira à sua espera, teve ímpetos de sair da cadeira de rodas e estreitá-la nos braços, mas foi contido.

— Oh, Mary, estou tão contente porque está aqui! Pensei que fosse ficar muito tempo sem poder vê-la.

— Você está bem, Tim? — perguntou-lhe, beijando-o na sobrancelha com rapidez pois duas enfermeiras observavam-na.

— Estou me sentindo ótimo, outra vez, Mary! O doutor botou o meu braço bom; costurou-o onde a faca o cortou e já não tem mais sangue nem nada.

— Está doendo?

— Muito pouco. Menos do que aquela vez quando uma pilha de tijolos caiu em cima do meu pé e ele ficou quebrado.

No dia seguinte, bem cedinho, Mary recebeu um telefonema do hospital avisando-a de que podia levar Tim para casa. Passando rapidamente pela casa de Mrs. Parker para lhe contar as boas novas, disparou para o carro levando uma maleta com roupas para Tim numa das mãos e a torrada do desjejum na outra. Uma Irmã encontrou-se com ela na porta da enfermaria, pegou a maleta e depois levou-a para uma sala de espera.

Já estava começando a se impacientar quando o Dr. Minster e o médico de plantão entraram na sala.

— Bom dia, Mrs. Melville. A irmã disse-me que já tinha chegado. Tim deve estar pronto daqui a pouco, portanto não se preocupe. As freiras não deixam ninguém sair deste lugar sem tomar um banho, vestir roupas limpas e só Deus sabe o que mais.

— O Tim está bom? — indagou Mary, cheia de ansiedade.

— Completamente bom! Ficará com uma cicatriz para que se lembre de ter mais cuidado ao lidar com trinchantes, mas todos os nervos das mãos estão intactos, logo não perderá nem a força nem a sensibilidade. Dentro de uma semana traga-o para exame e verei como estão indo as coisas. Talvez retire os pontos nesse dia, ou os deixe por mais algum tempo, isso dependerá do aspecto.

— Quer dizer que ele está mesmo bom?

Dr. Minster jogou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada.

— Ah, as mães! Vocês são todas parecidas, cheias de preocupações e medos. Agora terá que me prometer que não ficará todo o tempo em cima dele, pois se notar que está nesse estado de nervos, porá idéias erradas na sua cabeça e começará a se preocupar mais do que deve com o braço. Sei que ele é seu filho e seus sentimentos maternais são fortes, sobretudo devido à grande dependência que o liga à senhora, mas deve resistir contra a sua tendência de estar sempre vigiando-o sem necessidade.

Mary sentiu o sangue fervendo sob a pele, mas comprimiu os lábios e ergueu a cabeça cheia de orgulho.

— Dr. Minster, o senhor equivocou-se. Engraçado que não me tenha ocorrido isto, mas creio que todos se enganaram. Tim não é meu filho, é meu marido.

Dr. Minster e o plantonista entreolharam-se mortificados. Qualquer coisa que tentassem dizer soaria errado e, afinal, nada disseram, limitaram-se a ir até a porta e retiraram-se. O que poderia alguém dizer após ter cometido uma gafe igual a essa? Que coisa horrível, que coisa pavorosa e embaraçosa! Coitada, pobrezinha, que lástima para ela!

Mary sentou-se com vontade de chorar, lutando contra a sua inclinação de dramatizar tudo, tendo para isto que reunir todas as suas forças. Sentisse o que sentisse, Tim não devia ver seus olhos vermelhos, nem ele nem uma dessas enfermeiras bonitinhas. Não era de espantar que nenhuma delas tivesse procurado disfarçar a sua admiração por Tim! As pessoas costumam dizer coisas diferentes para as mães e para as mulheres e, agora, que refletia sobre aquilo percebia que a tinham tratado muito mais como uma mãe do que como a mulher.

Muito bem, a culpa era toda sua. Se tivesse sabido se conter, se dominar, durante todas aquelas horas de espera e tensão, ninguém teria imaginado que fosse a mãe de Tim. Era até mesmo possível que tivessem lhe perguntado se era a mãe e tivesse respondido com uma afirmativa. Recordava-se do jovem interno perguntando-lhe se era a responsável legal pelo paciente, mas não se lembrava mais da resposta dada. E por que não iriam eles pensar que ela era sua mãe? Na melhor das hipóteses ela aparentava a idade que tinha, porém sob a ação do choque e da preocupação com o acidente de Tim pesando sobre si, deveria ter dado a impressão de ter pelo menos sessenta anos. Por que razão não tinha adotado um tratamento mais íntimo que lhes tivesse dado algumas pistas? Que estranhos são os caprichos do destino; ela devia ter dito e feito tudo para reforçar a má interpretação, e nada para afastá-la. Mrs. Parker devia ter agido da mesma maneira e Tim, pobre Tim, sempre tão ansioso para lhe agradar, tinha absorvido os seus ensinamentos muito bem. ou seja, quando lhe inculcara na cabeça que não devia andar tecendo comentários sobre o seu casamento com ela. Provavelmente acharam que ele a tratava por Mary por uma excentricidade qualquer, por ser aquela a sua maneira. E, além do mais, ninguém lhe tinha perguntado se ele era solteiro ou casado; tomando conhecimento de sua deficiência mental, simplesmente concluíram que fosse solteiro. Os retardados mentais não se casavam. Viviam, em suas casas, ao lado dos pais, até ficarem órfãos e serem então enviados para alguma espécie de instituição para esperar a chegada da morte.

Tim aguardava no quarto, totalmente vestido e ansioso para ir embora. Obrigando-se a se controlar, aparentando uma calma exterior e com muita compostura, Mary pegou a mão de Tim entre as suas e sorriu para ele com imensa ternura.

— Vamos Tim, vamos para casa — disse.

 

                                                                                Colleen Mc Cullough  

 

                      

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