Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TIVE DE O MATAR / Romana Petri
TIVE DE O MATAR / Romana Petri

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

TIVE DE O MATAR

 

Não havia senão o negro do escuro. E eu sabia que estava ali, dentro daquele negro. Revolvia os olhos para ver se havia algo mais, mas não havia senão o negro. «Mas que raio de sonho que estou a ter», pensava, «só sonho com o escuro.» E depois de o ter pensado várias vezes, aquele silêncio foi quebrado por um agudo ruído metálico que me caía sobre os olhos, qual viseira, dei­xando-me dentro dos ouvidos uma espécie de eco. Na mão direita senti algo frio, que apertei. Percebi então, ao longo das costas, um prazer que começou a envolver-me o corpo com revestimento de gelo, camada que me dava outra forma e muito mais peso. Alguém resfolegou pelas narinas e eu fui agitada por movimento não meu, musculatura que emanava calor, mesmo através daquela cobertura que me arrepiava a pele. Apertei com força a empunhadura, apalpei-a com paixão. Foi então que se abriu, ofuscante, a luz, e me entrou pelos olhos dentro, quase ferindo-os. Do pouco mundo que conseguia descortinar através da estreita fenda, vi o suficiente para perceber que ali onde eu estava era um campo redondo, rodeado de gente que gritava, incitando. Baixando os olhos, vi o meu peito e as pernas luzen­tes onde se reflectiam os raios do Sol que, reverberando, ficavam de mim pouco afastados, a esbaterem-se, formando como que um halo à minha volta. Com a mão esquerda acariciei a crina do cavalo, enquanto a cabeça, encerrada no elmo, retumbava com aqueles gritos indistintos e o corpo se tornava pesado de tanta armadura. Mas de todo o meu embaraço parecia não se dar conta o animal, que começara a agitar-se, nervoso, com o pêlo humedecido pela ânsia de avançar para outro cavaleiro e outro cavalo que, distantes de nós, estavam, porém, como nós: imó­veis. À espera.

Quando a ergui, direita na minha frente, a lança pesou menos do que eu esperava. Imperceptível foi então o toque de brida com que subtilmente puxei o freio do cavalo. Simples gesto de entendimento. Partimos no momento em que partiram os outros, e os gritos emudeceram nos meus ouvidos; via ape­nas a ponta luminosa da lança que na corrida me precedia a mim e ao cavalo, como se fosse ela que nos levava consigo. Íamos-lhes ao encontro. O ar era um sibilo longo e afiado. Enchia-me a cabeça um som como de concha retirada do mar e lançada em violenta corrida pelo ar. As equinas patas feriam com pesados golpes a terra, que permanecia intacta. Nenhuma poeira se levantava. Límpido era o dia, de céu azul. E, avan­çando, nada mais vi até ao momento do choque. Arranquei da sela o cavaleiro, que caiu com o cavalo. O animal levantou-se e deu duas voltas em torno do corpo que ficou no chão, como que a incitá-lo a voltar para a sela, depois afastou-se com movimentos de pescoço enfurecidos, levantando as patas dian­teiras, sinal de que se espantara. De repente parou, tranquilo, e pôs-se estupidamente a pastar.

A multidão gritava palavras, talvez uma só, que por ser dita por todos não conseguia perceber. Vencera. Isso percebia. O meu cavalo já começara a andar de outra maneira. De cabeça erguida, caminhava com arrojo, enfrentava todo aquele carrossel humano com grande altivez. De espaço a espaço, quando girava a cabeça de acordo com o modo como o guiava, via-lhe a expressão furi­bunda de um olho revirado.

Então aproximei-me do cavaleiro que ficara por terra. Com a lança levantei-lhe a viseira opaca. E, com espanto, vi-me olhada pelos meus olhos. Idêntico a mim, aquele rosto só era diferente nas cores, pois os olhos eram azuis e louros os cabelos. Um pequeno regato de sangue escorria-lhe dos lábios que, no entanto, ainda sorriam. Mal respirava. Desmontei para aproximar o meu rosto do seu, e ele, expirando no meio daquele fragor, com pouca voz, disse-me: «Venceste, mouro. Venceste tu, sarraceno.»

Encaminhei-me para a saída do campo, sem receber sequer os aplausos daquela gente que parecia enlouquecida. Fui-me embora levando o cavalo pelas rédeas, arrastando atrás de mim o meu ruído de sucata, enquanto a noite caía, veloz. Olhando o céu que escurecia rapidamente, disse: «Pai meu que já morreste, eu venci e tu não viste.» Assim que disse a frase, o negrume voltou, e mais nada soube senão que também eu estava dentro desse negrume.

 

Quando acordei, o dia despontara há pouco. Não estava inquieta, parecia-me ter tido um bom sonho. Tinha a impressão de ver ainda algumas imagens, que desapareceram em poucos instantes de lucidez. Nada podia fazer para recuperá-las, fugiam depressa. Bebi toda a água do copo que tinha em cima da mesa de cabeceira e olhei para o despertador. Eram cinco e meia, e senti-me invadida por um profundo sentido de justiça. Ergui o busto, apoiada nos cotovelos, dizendo «É coisa boa e justa», sabendo que a minha interpretação era bem diferente do que comummente se julga: não era justa por ser boa, mas boa por ser justa. Confortada por essa certeza, penso ter voltado a adormecer mais um bocado.

Está um lindo dia, é 10 de Setembro e é o meu aniversário. Faço trinta e oito anos, que é uma bela idade. Portanto, vi trinta e oito vezes as quatro estações do ano, o que significa que ao todo vi cento e cinquenta e duas estações. Ainda é Verão. Consola-me ter nascido ainda no Verão, pois parece-me haver algo de heróico nas cores estivais. Eu acho que é a sua violência. O dia 10 de Setembro está ainda longe do Outono. Depois de um sonho como o desta noite, poderia dizer que há algo de vencedor nos que nasceram no Verão. Mas no Verão os cadáveres fedem mais depressa e, além disso, não sei se aquele vencedor era mesmo eu. Quem sabe em que ambiente se desenrolará La ballade des pendus. Irmãos humanos... Cada vez que a leio na aula, penso que fará desencadear sabe-se lá que reacções. Há já quase dez anos que dou aulas na prisão, a tur­mas de poucas pessoas. Primeiro, homens, e agora, mulheres. Não sei por que razão, mas agora quase todos me parecem pessoas sim­páticas.

Eis porque leio muitas vezes esta poesia: para que as pes­soas que me escutam possam compreender que estou do seu lado. Já pagaram a conta, estão limpas. A última vez que a li, no fim disse: «Vocês são melhores do que eu.» Deram-me o maior aplauso que jamais recebi. Mas depois, ao fazer algumas perguntas, aper­cebi-me de que tinham entendido muito pouco da poesia, que não era essa a questão. Para eles, o importante era o que eu tinha dito. Foi por isso que me comoveram. Na prisão, emociono-me muitas vezes, tornei-me um coração de manteiga. Às vezes sinto um nó na garganta só de entrar na sala de aula. No final do ano passado, as raparigas quiseram fazer uma festa. Eram quase todas sul-ame­ricanas e cozinharam pratos das suas terras, coisas condimentadas, muito fritas. Para a festa convidaram-me apenas a mim e ao colega de Italiano, que lhes chama «as minhas prisioneiras». Estão um pouco apaixonadas por ele. Mas é normal, na prática é o único homem que vêem e, além disso, o meu colega não é nada de se dei­tar fora, tem uma bonita voz e só lê passagens de romances. Vestem-se de modo elegante e maquilham-se de forma provocante, põem-se bonitas para as aulas de Italiano. Também isso me comove. No Natal, uma delas teve uma licença de duas semanas. Quando se foi embora, as outras olharam-na languidamente e dis­seram-lhe: «Que sorte a tua.» Quando regressou, perguntei-lhe: «Então, o que fizeste durante estes dias?» «Fodi», respondeu-me, «fodi o tempo todo, bebi bom vinho e comi bem.» Disse-lhe que merecia um dezasseis por isso, e no momento em que lancei a nota vi que chorava. «Sabe-se lá quando é que isso me volta a aconte­cer», disse. «Se é pelo dezasseis, posso dar-to quando quiseres», res­pondi-lhe. Disse: «Não, não é pelo dezasseis, é que reencontrei o José Mareel, e quem sabe quando o volto a ver. E se espera por mim.» Disse-lhe que se não fosse louco com certeza que esperaria por ela, e ela começou a rir, e com as mãos, pelos dedos das mãos, contou até quinze, que eram os anos que lhe faltava cumprir. Disse-lhe: «Ana, só te faltam alguns dentes para ficares bonita. Quando saíres, prometo que peço a um meu amigo dentista, que foi também o meu amor falhado, para te pôr os dentes todos.» Contorceu-se de riso, e na sua língua angélica disse-me: «Muito mau, muito, muito mau, nunca se deve deixar falhar um amor.» Respondi-lhe que me parecia a letra de uma canção, e ela levan­tou-se e pôs-se a dançar meneando as ancas com um frenesim de pudim, enquanto as outras marcavam o ritmo com as mãos.

 

Dentro de alguns dias recomeça a escola. Na semana passada, durante a reunião geral de professores, o presidente, que é um homem de bom senso, lembrou-nos de que não temos de respeitar os programas do ministério, mas fazer o que acharmos mais ade­quado, criar sobretudo motivos de distracção. Disse: «Na cadeia, um bom professor deve fazer com que os reclusos se esqueçam do lugar onde estão.» A colega de Matemática levantou o braço. «E eu, o que devo fazer?», perguntou, num tom de voz desesperado. O presidente deu um longo suspiro, levantou os braços e deixou­-os cair sobre as suas ancas redondas. «Para si não há esperança», respondeu-lhe, «consigo, lembrar-se-ão sempre de onde estão.» Rimos todos, menos ela.

 

Hoje tomei o pequeno-almoço no meu terracinho de oito metros quadrados, cheio de plantas, onde consegui que coubesse ainda uma oliveira e um rododendro. Enquanto bebia o café, recordei-me que era filha de um grande amor, que os meus pais se amaram com uma extensão sem meias medidas ou palavras contidas. Revi-os jovens, durante as nossas longas férias na casa de Santa Marinella, quando à tarde perscrutavam o bronzeado um do outro e se acariciavam. Lembro-me de uma pergunta que o meu pai fazia muitas vezes, especialmente depois de uma grande comezaina. «Somos uma bela família, não somos?» A minha mãe e eu respondíamos que sim. Ela, não sei, mas eu, à noite, adorme­cia muitas vezes repetindo em pensamento a pergunta paterna, com entoação idêntica.

O meu pai era um artista de teatro. Cantava. Demorei um pouco a entender que isso também era uma profissão, e tive de lhe perguntar.

- Quem te dá dinheiro para viver?

- Os teatros.

- E para fazer o quê?

- Para cantar.

- Só para isso?

- Olha que não é nada pouco.

Uma carreira satisfatória, mas com muitos altos e baixos. Economicamente, as coisas correram de forma bastante descon­tínua e oscilante, poucas vezes ricos e amiúde bastante pobres, a ponto de termos algumas preocupações. Mas fomos felizes à mesma, gostávamos de brincar aos pobres e em casa divertíamo­-nos mesmo muito. Claro que também havia grandes crises de desespero. Chegava o aviso de pagamento dos impostos e nunca havia dinheiro para os pagar. O meu pai fechava -se no quarto e gritava: «Eu mato-me!», com o seu vozeirão melodramático. Mas a minha mãe e eu não acreditávamos. Era uma das suas repre­sentações que o deixavam derreado, deitado na cama a respirar com a barriga, todo ele coberto de um suor frio e perfumado. Essa é talvez a minha primeira recordação olfactiva, o cheiro bom do suor do meu pai. Quando ele partia, fechava-me sempre no seu armário para respirá-lo um pouco, assustando de morte a minha mãe, a minha avó e a Ângela, que não me conseguiam encontrar.

Hoje, que é o meu aniversário, quis tomar um pequeno­-almoço farto. Comi até mais não poder. E aproveitei a paz que ainda reina em casa. O meu filho está de férias com o pai, são os quinze dias que lhe pertencem. Folheei o jornal mas não li uma única linha, pensei muito no meu filho, que é uma criança de sete anos e diz coisas estranhas. Antes de partir, disse-me: «Sabes que eu sou o único homem que te conhece de verdade?» «E porquê?», perguntei-lhe. «Porque estive na tua barriga e, lá dentro, beijava­-te.» Hoje tentei imaginar o meu filho com o pai na praia. Passou muito tempo, já não consigo imaginá-los juntos. Lembro-me de umas belíssimas férias na Sardenha, em Barisardo. Davam longos passeios pela praia, procurando pedrinhas em forma de coração para me oferecerem. Encontraram tantas que acabaram por colá­-las num cartão. Ainda o tenho pendurado na casa de banho. Só não o deitei fora porque muitas das pedras foram achadas pelo meu filho, que na altura tinha dois anos. Foram as últimas férias que passámos os três juntos. Nada deixava adivinhar. O mar era de rara beleza e não havia nada para fazer durante todo o dia, senão estar ali a desfrutá-lo. Uma manhã acordei com uma frase na cabeça e pronunciei-a em voz alta: «Para ser feliz é preciso renunciar à felicidade.» O meu marido disse-me: «Estás maluca?» E eu respondi-lhe: «Não, é verdade.»

Embora estar em paz me dê um grande alívio, gostaria que o meu filho voltasse hoje para casa. Quando vem da praia está louro como um nórdico, mas em todas as outras cores é mediter­rânico, quase meridional, com os olhos negros e a tez morena. Nunca me conta o que faz com o pai, e eu não pergunto. No outro dia telefonei-lhe, disse-me que está contente e se diverte, e que também lá estão os primos. «Também estás na praia?», per­guntou-me. Apesar de não ser verdade, disse-lhe que sim. Não sei por que menti, nunca minto. «Então, tem cuidado», disse-me, «não te podes afogar de maneira nenhuma. Jura.» Despedimo-nos assim, com este juramento angustiado.

Certos sonhos deixam sensações estranhas. Aqui onde estou, no terracinho, podia jurar que ouvi um barulho de cascos de cavalo a andarem para a frente e para trás no corredor. Obviamente que nem sequer me levanto para ver se é verdade. Um cavalo no cor­redor, essa é boa! Não estou louca.

 

Até aos seis anos viveram connosco a mãe e o irmão do meu pai e, mais tarde, a Ângela, que se ocupava dos trabalhos do­mésticos e que era de uma aldeia perto de Como. A minha avó era enorme. Gostava de estar sentada numa cadeira de repouso, que tinha em frente da televisão e que estragava a decoração da sala de estar. Vivia para a televisão, começava de tarde com a programação para os miúdos e acabava com o último pro­grama, aquele com a sigla da antena. Só se levantava para des­ligar quando já não havia nada no ecrã. Para se separar do objecto precisava que este se separasse dela, nunca o desligava antes de aparecer a cor preta-antracite, onde de repente se reflectia toda a sua mole paquidérmica. Era uma mulher muito boa mas nem sempre sincera, talvez não por natureza, talvez os sustos da vida a tivessem tornado assim. O meu pai amava-a muito, mas desprezava este seu defeito. Não lhe posso tirar a razão, a mentira é uma coisa muito feia, independentemente de ser útil ou não.

Sabia que o meu pai valia mais que o seu outro filho, onze anos mais novo, mas, como mãe piedosa, preferia este último precisamente porque valia menos. E depois dizia que o meu pai lera demasiados livros e falava de forma complicada. «Às vezes não te entendo», dizia. «Com ele», e indicava o outro, «não me esforço tanto.»

Era grande, a minha avó, grandes mamas e grande barriga, grande rabo e grandes coxas, onde dava injecções sozinha espe­tando a agulha, sem hesitações, em toda aquela carne. Era de Paris, mas da capital francesa lembrava-se muito pouco, aos dezassete anos casara com um perusino que a trouxera para trabalhar como camponesa em Cenerente, a poucos quilómetros de Perugia. Um mau casamento, como tantos outros, ele traía-a. Mas ela tinha o espírito galhardo da aGuce France. Trai-me, trai-me, marido, vais ver como te lixo!

A minha avó tornou-se amante de Dolciarini, o sócio com o qual o meu avô, após ter deixado de ser camponês, abriu uma firma de transportes. O meu pai descobriu, aos doze anos, a mãe e o Dolciarini a beijarem-se. Mas não disse nada, guardou bem o segredo. Deu a sua aprovação à mãe, que desse modo humilhava o traste do pai. Assim, pelo menos, também ela tinha alguns carinhos, que bem merecia. A minha avó continuou a beijar o Dolciarini até que ficou viúva, e o meu avô a meter medo sem­pre que bebia de mais, enquanto viveu. «Atenção, meninos, que o pai bebeu, os dois a correr para a cama!» Sim, se conseguissem. A minha avó esperava que pelo menos as crianças escapassem, assim só ela é que levava tareia.

Acho que existe uma justiça, no fim tudo se paga. O meu avô morreu aos quarenta e nove anos, de uma broncopneumonia. Enterrado e poucas lágrimas. Paz.

O que o meu pai teve de bom é que não saiu nada ao pai, e quando soube que morreu esqueceu-o. Quando falava nele, dizia «O meu pobre pai», e acabava ali a recordação. Nunca gostara daquele homem, e não acreditava nos laços de sangue. Fazia bem. O meu pai tinha as suas teorias. Dizia-me: «Acredita nos bons, são poucos mas existem.»

Mas ser bom é difícil, ó meu pai que morreste deixando-me um vazio tão grande. Nunca existe um fundo de bondade. Posso dizê-lo eu, que vou todos os dias à prisão e conheço mais pes­soas boas lá dentro do que cá fora. E, no entanto, estão presas.

 

Esta noite voltei a sonhar com aquele cavalo. Estava albardado com trajes festivos e eu dizia-lhe: «Estás bonito, assim ves­tido,» E ele fazia a respiração trocista dos cavalos, quando levan­tam o lábio superior e mostram os dentes amarelos, enquanto as narinas se alargam e resfolegam profundamente.

 

O meu tio era um rapagão desengonçado, bondoso e incon­cludente. Todos os dias, quando voltava para casa, dizia-me: «Põe-te de joelhos com a cara em cima da almofada da poltrona, fecha os olhos e chama com força - Raio") Então eu ia a correr, sufocava contra a almofada e ali, abafada, chamava com toda a voz que tinha: «Raio! Raio!» E o Raio relinchava ao longe, até ouvia o seu galope no chão da casa. Mas ai de mim se me vol­tasse, nunca mais viria. Porém, se continuasse quieta, caíam-me do céu rebuçados, chocolates, lápis de cor... O Raio era assim, era meu amigo mas não queria ser visto. Era um cavalo branco e preto, malhado como os dos Apaches. Belíssimo. De noite sonhava muitas vezes com ele, só assim é que o podia ver.

O meu tio vivia numa adoração pelo meu pai e continuou assim, mesmo depois da sua morte. Ele queria ser artista e conse­guira-o. Os jornais estavam cheios de fotografias dele: o meu pai em trajes de teatro ou caminhando à civil pelas ruas do centro de Roma, em casa, no sofá, com a minha mãe ao lado e comigo ao colo. Gostava de me ver nos jornais. O meu pai era famoso e, por conseguinte, eu também. Um dia, a professora disse-me: «Vi-te nos jornais, que sorte. É claro, o teu pai é um artista. »

Claro que era, via-se a milhas de distância: alto, louro, olhos verdes, o rosto de um russo num corpo de Tarzan, mais bonito do que o Burt Lancaster em O Pirata Sangrento. E, além disso, era um atleta: salto em comprimento, salto em altura, corredor de cem metros, nadador, pugilista. No teatro, no papel de Mefistófeles, cantava saltando de mesa em mesa, enquanto com arte de toureiro girava uma capa negra forrada de cetim amarelo ofuscante. Os cantores líricos todos ofegantes e imóveis, ao passo que ele cantava e saltava em palco, sustinha a nota equilibrando­-se no ar e depois aterrava silencioso, como se nada pesasse. O agudo poderoso e vibrante.

O meu tio queria ter sido como o meu pai. Mas era diferente. Não era bonito, perdera cedo os cabelos e comportava-se como um duro sem nunca o ter sido. Imitava o meu pai no que podia. Tentou estudar canto mas parou, tentou pintar mas desistiu, ten­tou representar mas não fez nada de nada. E, além do mais, não sei se era assim tão bom quanto parecia; se o era, então tramou­-o a pouca perspicácia que o levou a fazer uma coisa de que muito se arrependeu e pela qual pagou caro.

O meu tio não trabalhou durante muitos anos. Era sustentado pelo meu pai, levava-o consigo em tournée, dando-lhe uma boa vida. Mais tarde, o meu tio tornou-se camionista e estiveram dezassete anos sem se verem. O meu pai era assim, quando erra­vas repudiava-te e, como o meu tio errou e a mãe quis justificá­-lo, repudiou os dois. O meu pai era drástico, se fosses bom até dava a vida por ti, se errasses apagava-te. Tinha uma expressão muito própria, dizia: «Desço a persiana.» Era um modo de racio­cinar acertado. Despachado. Fazia bem. Eu concordava e, embora só aproximadamente, fiz meu o seu raciocínio. Uma vez feito o erro, as coisas nunca voltam a ser como dantes. O erro é perda, subtracção da inocência. É algo que se quebra para sempre, rup­tura de morte, algo que não deixará mais que as coisas tornem a ser o que eram. O compromisso de quem aceita o erro de outro fá-lo baixar a cabeça, e depois continua assim, a olhar apenas para a ponta dos pés. Tirando, sempre tirando à vida.

O meu pai era mais rápido, descia a persiana e depois até era capaz de não sofrer mais. Habilidade prodigiosa, a do meu pai, verdadeiro sentido de justiça. Admirava-o sem limites.

 

Um belo dia, o meu pai cansou-se e disse-lhe: «Tens de arran­jar alguma coisa para fazer, ter uma ideia para também tu traba­lhares.» E ele respondeu-lhe: «E tenho, conheci um óptimo mecâ­nico que gostaria de abrir uma oficina, é um tipo que sabe alterar os motores dos carros e das lambretas, um talento! Mas falta-lhe o capital» «Bom», disse o meu pai, «entro eu com o capital, agrada­-me essa ideia dos motores. Eu vou em digressão a cantar e tu ficas a tomar conta disso.»

Uma ideia genial, os rapazes chegaram logo com os Cinque­cento e as lambretas. Diziam: «Alteras-me o motor?», e o talen­toso homenzinho alterava-os, e chovia dinheiro a potes. Quando o meu pai regressava das tournées, o meu tio dizia-lhe: «Já viste quanto dinheiro? Nem tu a cantar ganhas assim tanto.»

Mas, uma vez, o meu pai foi cantar ao Brasil, onde permane­ceu cerca de dois meses. No seu regresso encontrou o irmão de péssimo humor. Perguntou-lhe: «O que se passa? Já não está a correr bem o negócio dos motores?» O meu tio rezingou umas frases sem sentido, e então o meu pai, depois de ter pousado a grande mala em cima da cama e de ter tirado bonitas prendas para a minha mãe e para mim, vestiu um blusão de cabedal e foi à oficina.

A persiana estava praticamente toda descida, lá dentro já não estava nada. O meu tio tinha dívidas que não conseguira pagar e que com o tempo se tornaram ainda maiores, por isso, vendo-se em maus lençóis, perseguido pelos credores e sem saber o que fazer, vendeu a loja ao desbarato ao primeiro que apareceu, lucrando o mínimo para sair dos sarilhos em que estava metido.

       O meu pai voltou para casa tranquilo e pendurou o blusão no cabide. Abriu o móvel do bar, que era o seu orgulho, preparou um whisky com gelo e acendeu um Muram. Aspirou duas vezes de seguida. Tinha o seu olhar glacial de quando a coisa estava mesmo feia. Chamou então o irmão, que chegou perturbado, seguido da mãe. O meu pai disse: «Olha, não é pelo dinheiro jogado à rua e que nunca mais verei, mas pelos lucros futuros que permitiriam que as nossas famílias vivessem bem, sim, porque um dia tu também terás uma. E, além do mais, traíste a minha con­fiança. Podias ter-me -escrito, dizer-me como estavam as coisas, em vez disso deixaste que as encontrasse como estupidamente te convinha a ti. Amanhã vais embora desta casa.» A minha avó argumentou: «Não podes fazer isso, é teu irmão.» «Já o sustentei durante muito tempo», disse o meu pai, «já tem trinta e três anos, pode desenrascar-se sozinho». «Se o puseres fora de casa eu vou com ele», replicou a minha avó. «Sendo assim, arranjem-se os dois», disse o meu pai. Em seguida, levantou-se dizendo que estava cansado por causa do fuso horário e foi dormir.

No dia seguinte foram-se embora como estabelecido e, nos anos que se seguiram, nunca vi nos seus olhos uma sombra sequer do mais leve arrependimento. Sobre aqueles dois desceu a mais pesada das persianas que, dezassete anos depois, se voltou a levantar apenas ligeiramente para poucos e esporádicos encon­tros que nunca levaram à paz.

 

Trinta e oito anos não são assim tantos. Se quisesse, ainda podia ter mais dois filhos. Ontem fui ao dentista. Enquanto me        brocava um dente fiz-lhe sinal com a mão para parar.

- O que é, sentes dor? - perguntou-me.

- Não, não sinto nada, é que queria dizer-te uma coisa.

- Então diz.

- Lembras-te de quando éramos miúdos e andávamos juntos na escola e éramos colegas de carteira, e estávamos muito apai­xonados mas nunca o dissemos um ao outro?

- Claro que me lembro, não é nenhuma novidade. E depois? - E depois estava a pensar que fizemos uma grande asneira, que se tivéssemos sido menos estúpidos agora podíamos ser felizes.

- Ah, felizes, não exageremos.

- Sim, felizes, no fundo sabes que é possível e podia ter acon­tecido connosco.

       - Abre bem, abre bem a boca e deixa-me trabalhar, não me faças pensar nessas coisas, não me faças sofrer.

Como já era tarde, esperei que acabasse para irmos almoçar juntos. Fomos a Fiumicino de moto. Parados num semáforo, a nossa imagem reflectia-se numa montra. Fui a primeira a aperce­ber-me disso e ele depois também se voltou para olhar. «Bonitos, hem?», disse-me de dentro do capacete. «Muito bonitos», respondi­-lhe. Não dissemos mais nada durante toda a viagem, abraçava-o apenas como em outros tempos, sentia que tinha os mesmos mús­culos abdominais de então e acariciava-os, enquanto ele, de vez em quando, punha a mão esquerda no meu joelho e o apertava.

Fazia calor e comemos na esplanada ao sol. Debaixo da mesa pôs as suas pernas em volta das minhas.

- Não é certo, sabes? - sussurrou-me.

- O que é que não é certo?

- Que nós não consigamos. Acho que mais cedo ou mais tarde conseguiremos viver juntos. Está escrito assim desde aque­les tempos.

- E quando?

- Quando o ano for capicua; verás que no ano da capicua

seremos um do outro, começa a pensar nisso, aliás, começa a pensar agora, imagina que está escrito num quadro, 2002, da direita para a esquerda ou da esquerda para a direita é a mesma coisa, será num ano assim que ficaremos juntos.

- E em que estação do ano da capicua?

- No fim da Primavera, quase no Verão, ou talvez em pleno Verão, ou lá para o fim do Verão. De qualquer das maneiras, na estação que solta os sentidos, quando estás bronzeada.

- Eu nunca tenho a pele esbranquiçada.

- Eu sei, ou não gostaria de ti, as mulheres de pele muito branca fazem-me um bocado de impressão. Sabes qual é o tipo de mulher de que eu gosto, não sabes?

- Sim, Teresa Batista Cansada de Guerra.

- Muito bem, exactamente tu.

Depois passeámos à beira-mar e beijámo-nos apoiados ao molhe. É sempre assim de há uns tempos para cá, quando saímos juntos comemos e depois beijamo-nos até desfalecermos, sem dizermos nada, nem sequer uma palavra. O regresso foi menos alegre. Quando nos despedimos disse-me:

- Temos de nos ver mais vezes.

- Mais vezes, como?

- Ao pequeno-almoço, ao almoço, ao lanche e ao jantar.

- De que dia?

- De todos os dias, e eu devia trabalhar menos, e tu devias estar pelo menos um quarto de hora ao sol, para não perderes essa bela cor de pele, apenas o bastante para ficares assim, nem       mais escura nem mais clara.

- Mas acabaremos por ficar velhos.

- Quem?

- Nós os dois.

- Nem penses, acredita em mim, isso não acontece connosco. Quando regressei a casa fiz o que faço há já algum tempo, desde que nos vemos. Fui para o espelho olhar a minha boca e comecei a rir. É incrível, nunca nos beijámos ao longo de mais de vinte anos e beijamo-nos agora. Beijamo-nos agora.

 

Esta noite custou-me a adormecer. Seriam umas quatro da manhã quando adormeci. Às cinco, acordei com uma pancada na porta do meu quarto. Fiquei à escuta. Logo de seguida uma outra pancada, como a do casco de um cavalo. Disse: «Raio, és tu?»

 

Quando a minha avó e o meu tio se foram embora, ficaram connosco a Ângela e um cão que se chamava Derby, um coeker mastodôntico, gordo como uma foca.

A Ângela era uma mulherzinha estranha, minúscula, enfe­zada, que comia polenta com leite, polenta na salada, polenta com polenta. Era de uma aldeola perto de Como e nunca queria ouvir falar de amor: os homens eram todos uns canalhas e as mulheres umas putas. No dia do casamento fora abandonada pelo noivo no altar, vestida de noiva. Os convidados, em vez de terem pena dela, por crueldade ou ignorância, gozaram com ela o dia todo e riram-se até mais não poder, dizendo-lhe para contar os convidados de modo a ver qual era a mulher que faltava além do marido. E, de facto, faltava uma prima dela que fugira com o futuro marido para casar com ele em qualquer outro lugar, numa outra aldeola de montanha «polentosa». Naquele dia ninguém teve piedade de Ângela, nem mesmo o pai a poupou às suas pia­das ordinárias. A pobrezinha chorou toda a noite e, ao amanhe­cer, escondida da aldeia inteira, pegou na sua trouxa e fugiu para Roma, onde encontrou trabalho como engomadeira em casa de uma família.

Ângela acreditava muito em fantasmas, com aquela sua den­tadura postiça basculante mastigava umas lengalengas durante as lides da casa, e falava com eles continuamente pedindo vin­gança contra este ou aquele. Na minha opinião, não se tratava apenas da puta da sua prima e do canalha traidor do seu noivo, mas de todos aqueles que se tinham rido dela no dia do casa­mento falhado. E embora muitas dessas pessoas já devessem ter morrido há muito tempo, ela pedia aos seus amigos fantasmas uma vingança cruel mesmo naquele mundo para além da morte, uma vingança que no seu coração iria sempre muito mais além, até ao infinito ou ainda mais longe.

A Ângela atraía-me, embora me assustasse bastante. Quando os meus pais saíam à noite, não me poupava a nada. Dizia-me que falava com as almas dos mortos, que podem fazer tudo. «E como é que sabes quando elas chegam?», perguntei-lhe um dia. A Ângela fez uma cara, uma carita diabólica de pôr as pernas a tremer.

- Ouço a voz delas à distância - respondeu-me.

- E o que te dizem? - perguntei ainda.

- Dizem... dizem sempre a mesma frase, Venho pela força dos teus cabelos.

- E tu, o que fazes?

- Eu tiro os ganchos e solto a trança.

- E fazem-te mal?

- Muito mal. Parece que te salta a cabeça, mas é assim que tem de ser, em algum sítio elas têm de se agarrar a ti.

Toquei nos cabelos e agradeci ao meu pai por um dia me ter obrigado a cortá-los, por causa do calor que fazia. Depois, no escuro da noite, a enfezada Ângela fazia um vozeirão, precisa­mente quando eu, metida na cama, tentava adormecer. Fazia o vozeirão dos mortos, falava com as palavras deles, que ficavam a ressoar no meu cérebro durante várias noites. Saía do meu quarto ainda eu não estava a dormir e os meus pais não haviam voltado. Fazia isso porque era má e tinha prazer em deixar-me nos tormentos do terror, com os olhos arregalados na escuridão da noite, à espera que alguns fantasmas se contentassem mesmo com os meus cabelos curtos.

- Nunca digas nada destas coisas aos teus pais, senão vão pensar que somos loucas.

As crianças são assim, as maiores guardiãs dos segredos de alguém. E quanto mais assustadores são, mais os incubam dentro delas, a ampliar o susto. Também eu acabei por ver muitas coisas estranhas de noite. Transformei-me num catálogo de incompreen­síveis tiques nervosos que deixavam os meus pais aterrorizados. ´«Ísso vai passar», dizia o meu pai à minha mãe, «vais ver que isso passa.» E a minha mãe respondia-lhe: «Sim, claro, está a crescer, é a sensibilidade em demasia que a perturba um pouco.»

Uma ova, eu via uma mulherzinha tão horrorosa, um mons­tro de mulherzinha que não tinha mais de cinquenta centímetros de altura, que caminhava dardejando com duas tesouras no bolso. A mensagem era clara: ai de mim se abrisse a boca, ficava sem dedos. Também via muitos ratos que caminhavam em fila indiana pelas paredes, e doninhas, raposas, e um homem gigante com uma grande espingarda ao ombro.

Na minha casa, o telefone tocava muitas vezes para nada, ia atender-se e do outro lado não se ouvia uma única palavra, ape­nas a dolorosa respiração de quem escutava antes de desligar. Eram mulheres apaixonadas pelo meu pai que telefonavam na esperança de ouvir a sua voz. Quando era a Ângela a atender, as desgraçadas tinham azar. «Puta», dizia com a sua voz nortenha, «o que procuras? Aqui só há pessoas decentes, não são para o teu bico, sua putéfia!»

A minha mãe ria-se, dizia: «Ângela, mas elas ficam a ouvir até ao fim?» «Claro», respondia ela, com segurança, «putas são putas. Mas a senhora... a senhora Leda, o que sabe disso?»

 

A minha mãe era perfeita por dentro e por fora. Nela vi sempre a minha alma gémea. Não porque eu estivesse à sua altura, a questão é outra, difícil de explicar. Uma alma gémea, para mim, significa que se por acaso uma pessoa tivesse de se deitar em cima de outra e ficar assim durante um bocado, no fim, de forma natural, os dois corpos tornar-se-iam um único, que para sempre, sozinho, dormiria feliz.

A minha mãe parecia saída de um conto de fadas, muito irreal, feita de pensamentos e risadas suas que às vezes se esque­cia de partilhar connosco, porque tão depressa a assaltavam como se esquecia deles. Então, tinha vontade de lhe pedir: «Faz um esforço, tenta lembrar-te.» Mas não havia maneira, essa pon­tada de humorismo fora-se sabe-se lá para onde, para os pensa­mentos de sabe-se lá que outra sua vida. Aqui está uma coisa de que sempre estive certa, que a minha mãe não era apenas uma mas que, no mundo, deviam existir simultaneamente outras iguais a ela que partilhavam os pensamentos e as risadas, e que tudo acontecia tão rapidamente que nunca lhe dava tempo de se apro­priar de nada de forma definitiva.

A minha mãe. Vê-la caminhar sozinha pela rua, distraída, vê­-la de longe e pensar: «Se alguém lhe toca, corto-lhe a jugular com os dentes e deixo-o ali, estendido no chão, a fazer o dese­nho de si próprio tendo por fundo o seu sangue.»

Às vezes, nas tardes de Verão, à tardinha, quando o calor já nos amolecera, a minha mãe propunha-nos um jogo, o jogo dos sonhos. Era preciso abrir todas as janelas de casa para criar uma bela corrente de ar, a que ela chamava o ar do transporte, e nós os três tínhamos de nos deitar na cama grande, eu no meio e os meus pais um de cada lado, de preferência de barriga para baixo, com a cara virada para a porta aberta da varanda de onde se via o céu e o campo. Com aquela aragem a percorrer-nos, cada um de nós, à vez, devia contar o sonho. Não um sonho que se tem à noite, mas exactamente O sonho, aquele que mais lhe importava na vida. Dito assim parece coisa pouca, mas não era, era uma grande provação. Era preciso veia poética para contar O sonho, para transformá-lo em palavras. Naturalmente, era sempre eu quem vencia, porque o jogo fora inventado para mim. Per­guntava sempre: «O que ganhei?» E a minha mãe respondia: «O sonho, pois quem vence mais dia menos dia encontra-o e ganha-o.» E por isso, daqueles anos fiquei com a certeza de ter créditos estranhos em sonhos, uma via láctea de créditos que sabe-se lá que caminho acidentado terão feito para nunca se dei­xarem ganhar. Às vezes, um pouco antes de adormecer, tenho a sensação de entrever um crédito que, como uma lança de com­bate, atravessa a escuridão do meu quarto, mas de modo cómico, como poderia acontecer num desenho animado.

 

Na prisão, uma das minhas turmas é constituída por doze deti­das. Sete sul-americanas, uma romena e quatro italianas. Uma des­tas quatro chama-se Fernanda e é uma mulher enorme que até mete        medo. Um dia, depois da aula, chamou-me de parte e perguntou-me:

- Stôra, sabes por que é que estou presa?

- Claro que sei, homicídio.

Enxugou o suor da testa com a mão e sorriu tristemente.

- Stôra, transpiro continuamente, tanto de Verão como de Inverno. É o nervosismo, assim como toda esta chicha que eu criei aqui dentro. Não era nada assim. Se me tivesses visto antes... tinha cá um corpo. Mudamos, stôra, certas coisas mudam-nos.

- Eu sei.

- Também sabes quem matei?

- O teu marido.

- Dito assim é horrível, não é?

Não sabia se era horrível, há tantas coisas horríveis, assim era difícil de dizer. Se lermos isso como título de uma crónica de um jornal, viramos a página e pensamos logo noutra coisa. Para que as coisas causem realmente horror é preciso estar metido nelas. O caso da Fernand a defini-lo-ia mais como uma desgraça. Disse­-lho e respondeu-me que eu tinha razão. Claro que fora uma des­graça, no fundo o que podia ela fazer senão matá-lo? Encontrara o marido na cama com outra e desfizera-lhe o crânio à martelada. São coisas que podem acontecer. Um assassínio é outra coisa. O seu caso fora um incidente, isso, podíamos defini-lo assim.

Casaram-se ainda miúdos, ela herdara da sua mãe a banca de fruta e verduras na praça e sempre levara uma vida dura: des­pertar ao amanhecer, os mercados de abastecimento, o frio e o calor. Ele não, ele levava uma vida mais calma e nunca queria saber de trabalhar com ela na banca da praça. Tinha um emprego na função pública das oito às duas e fazia o turno da tarde uma vez por semana, trabalho absolutamente aprazível em relação ao da Fernanda. À sexta-feira, o jogo de futebol com os amigos, uma pizza. A Fernanda fazia o almoço e o jantar, os filhos tinha­-os criado ela. Não obstante a vida que levava, era optimista, muito mais do que ele. E, apesar de todo aquele frio e calor e das poucas horas de sono, nem sequer se tinha estragado muito. À noite, quando adormecia ao lado do seu homem, ainda que estivesse cansada, acariciava-lhe um pouco as costas, ou massa­java-lhas pensando que, no fundo, aquilo fosse o que uma vida feliz tinha de bom.

Mas, um dia, teve uma sensação estranha. Sentia-se outra, irascível, e não compreendia por que razão; uma outra, infeliz, que acordava de noite com arritmias e tinha muito medo; uma outra que sonhava que estava aprisionada dentro da perna de uma cadeira e, mesmo ficando sem respiração, não conseguia sair desse sonho; uma outra que não comia quase nada, vencida por uma gastroduodenite que lhe provocava dores lancinantes entre o peito e as costas, como se tivesse uma flecha de S. Sebastião a revolver-se dentro de si, dando-lhe pouca paz.

Uma manhã viram-na a fugir da banca pelas onze. Fora-se embora assim, arrebatada por uma urgência sem nome que a levava direita a casa. O que havia de encontrar em casa senão a paz silenciosa dos filhos, que tinham ido para a escola, e do marido, funcionário público, que àquela hora tomava café com o colega? E, no entanto... alguma coisa dentro do seu corpo dava sinais de morte triste: a pulsação demasiado acelerada, a respira­ção que não entrava nem saía, uma violenta pontada na cabeça e o obscurecimento da vista. Uma queda de tensão, podia ser isso, talvez uma coisa muito grave. Devia ter ido a uma farmácia mandá-la medir. Mas prosseguiu, movida sabe-se lá por que força.

Encontrou-os nus na sua cama de casal e ele estava a beijar os pés dela. Foi tudo muito rápido, porque Fernanda fez um exame de consciência num segundo, viu se em todos aqueles anos tinha falhado em alguma coisa, e num segundo se absolveu, pois durante todos esses anos fora uma óptima esposa, apaixo­nada e honesta. E foi uma casualidade estar um martelo em cima da cómoda, porque precisamente no dia anterior pendurara na parede uma imagem de Nossa Senhora, que tinha comprado para que a protegesse de todas aquelas aflições, que de repente a tinham transformado noutra pessoa. E essa Nossa Senhora pendurada na parede olhava timidamente para baixo, exactamente, como se olhasse para o martelo e, de modo discreto, lho indi­casse. Então, pegou nele e desferiu a primeira pancada na testa daquele traidor, que ainda para mais parecia importar-se pouco com o facto de ter sido surpreendido, e tinha aquele ar arrogante que os homens têm vinte e quatro horas por dia, quando traem a mulher. Desferiu a pancada com a parte das orelhas do martelo e a testa rebentou, fazendo esguichar o sangue como uma fonte, tirando-lhe finalmente aquela expressão imbecil dos olhos e fazendo com que a deusa de baixa categoria, à qual ele estava a acariciar os pés, fugisse de casa ainda meia nua. Teve até tempo de olhar de relance para as imperfeições daquele corpo que fugia: bastante mais flácida do que ela em muitas partes e também um corte na barriga, sabe-se lá de que cirurgia. Desferiu a segunda pancada enquanto o homem, que estava a deitar sangue, ainda conseguia mais ou menos caminhar. Acertou-lhe no mesmo ponto de antes, e as orelhas do martelo penetraram tão profun­damente que ficaram lá cravadas, e ela teve de fazer muita força para as tirar. Já estava morto, mas ela tinha de esborrachar aquele cérebro como deve ser, tirar-lhe todos os pensamentos, transfor­mar aquele injusto traidor em matéria líquida para limpar depois com um trapo ou com serradura, como mijo, vómito ou diarreia de cão. Em seguida, foi à casa de banho lavar-se, tirar todos os salpicos de sangue e a matéria pegajosa que, ao arrancá-la com as mãos, era filamentosa como os figos-da-índia quando, uma vez descascados, estão no frigorífico uns sobre os outros, num prato, e a polpa viscosa os aglutina como se estivessem cobertos de uma cola líquida, invisível. Depois mudou de roupa, pôs um vestido limpo e foi à esquadra da zona contar o que tinha feito.

Nunca se arrependeu, dizia que de outro modo a sua vida se teria arruinado muito mais do que está.

- Fazes uma ideia, stôra? Imagina as tretas que me teria con­tado para que eu o perdoasse. Não, foi melhor assim, foi melhor não ter ouvido tretas. Porque, por um lado, de certeza que ia na cantiga, mas, por outro, continuava a roer-me toda por dentro até dar cabo de mim.

Os filhos desapareceram por uns tempos, mas depois recome­çaram a aparecer, iam visitá-la duas vezes por mês. Nunca qui­seram falar do acontecido, iam vê-la à prisão para lhe fazerem um pouco de companhia. Aquele modo que às vezes a vida tem de se agarrar ao que resta. No dia em que sair em liberdade, serão pais de família, terão filhos já crescidos que verão pela primeira vez a avó assassina.

- A sério que nunca te arrependeste de nada? - perguntei­-lhe.

- Quer dizer, de uma coisa, sim, mas também é terrível.

- Do quê?

- De não ter matado também aquela puta que fugiu nua e esfrangalhada. Mas o que é que podia fazer, só podia matar um como deve ser e matei o pior, o que me tinha apunhalado pelas        costas.

- Quantos anos é que te faltam?

- Um exagero, stôra, vinte e cinco.

- Muitos.

- Stôra, quantos é que me mandavas cumprir?

- Por mim, podias ir para casa agora mesmo. Não és perigosa para ninguém. Bom, talvez fosses, mas só num caso.

- Qual?

- Se te casasses de novo e encontrasses um traste como o pri­meiro.

 

Houvera uma batalha muito sangrenta, vira morrer em campo homens de valor. Os seus corpos pareciam desmembrados por feras, tinham cortes verticais no peito e nos braços. O exército inimigo era constituído por onças, talvez homens-onça com den­tes de metal e armados de garras anavalhadas. A minha arma­dura tinha buracos em vários pontos, via-a pousada no chão e parecia-me que, embora esvaziada do meu corpo, se continuava a mover ligeiramente, como se quisesse pôr-se em pé. Lá fora estava o meu cavalo, que de vez em quando enfiava a cabeça na tenda para ver como é que me estava a safar. Perdera muito san­gue, mas não sentia dores. Perguntava às mulheres: «Quando éque posso voltar para o campo de batalha?» E elas olhavam umas para as outras, trocando expressões de compaixão. Aca­bado o curativo, deixaram-me sozinha. Então, o cavalo entrou na tenda e cheirou-me da cabeça aos pés, quase me roía com aqueles lábios equinos. Em seguida baixou a cabeça e apanhou do chão uma folha que me estendeu. Nela estava escrito o que se segue: Entre os Aquitanos havia um grupo de combatentes, os Solidurii, que juravam morrer na guerra ou, se assim não fosse, suicidar-se.

 

De há algumas manhãs para cá, acordo a tentar perceber a relação linguística entre as palavras que dizem respeito à esfera do divino: sagrado, sacramento, sacerdotal, sacrilégio, SACRI­FÍCIO.

Repito durante muitas horas a palavra sacrifício, cantaro­lando-a em todas as suas possíveis entoações. Às vezes grito, soletrando-a: SA-CRI-FÍ-CIO. E parece-me bela, de grande beleza mesmo. E sinto-me exortada por uma voz interior. E sinto um intenso cheiro a assado.

 

O meu filho regressa depois de amanhã. Telefonou-me ontem à noite, enquanto via sem interesse uma televenda de tapetes orientais. A minha atenção estava focada na mão do vendedor, que virava do avesso os cantos dos tapetes para mostrar ao público que eram realmente cosidos à mão. O canto do tapete e uma mão com as unhas pouco cuidadas, até um pouco sujas, ocupavam o ecrã todo.

Quando ouvi a sua voz, respirei de um modo que me pareceu ter-me feito sair de não sei que longa apneia. Disse-me: «Olá, mamão Vou para casa depois de amanhã. Pedi para voltar um pouco antes porque quero estar contigo. Mas tu também não estavas na praia? Como é que consegues estar na praia e aten­der-me o telefone em casa? Sabes que estou assim bronzeado e louro como tu e a avó gostam?» Comecei a rir e ele também, sem dizermos nada, ríamos os dois porque, como sempre, nunca me deixava dizer uma palavra. Para falar, tenho de o interromper rindo. Então, disse-lhe: «Quando voltares dou-te uns beliscões nessa pançollen bronzeaden e canto-te a canção do Filiberto durante meio dia.» «Canta-ma agora, mamã, só um bocadinho, vá lá, só o princípio, depois quando acabar o princípio desligo e des­pedimo-nos assim.»

 

                   Quando o Filiberto dança

                   Com a cabeça dança

                   Com a ca-be-e-ça dança

                   Dança dança Filibe', ué!

 

Quando acabei de cantar, desliguei e regressei ao meu estado de apneia, porque a ausência da voz do meu filho apavora-me.

Na cama, ao escuro, não fiz outra coisa senão pensar nele na praia de Barisardo, nas últimas férias que passámos os três jun­tos, umas férias tão boas que não deixavam adivinhar nada de mau para o futuro. Quando brincava com o pai na água, eu ficava à beira-mar a olhar para eles e sentia-me feliz pelos dois, pela sua beleza de pai e de filho, e, não sei por que pensamentos estranhos, sabia que fora eu quem os fizera, e que era eu que os fazia brincar assim na água e nadar, e depois correr e voltar para trás, e dizer coisas que lhes sugeria que dissessem um ao outro. Por vezes, depois de escutar pequenas conversas deles, deitava­-me ao sol de bruços, sorrindo e pensando: «Sabia perfeitamente que diriam aquilo.»

Agora tentava imaginá-los em qualquer parte do litoral tos­cano, arrendatários de um apartamentozinho num apart-hote1, devoradores de comida pré-confeccionada, obrigados a dizerem palavras de sua invenção. Depois adormeci e, como me acontece frequentemente, a última frase que me veio à ideia foi uma de lago no Otello de Verdi: A morte é o nada. Não sei porque penso nela, não acredito de todo que a morte seja o nada.

 

De vez em quando, o meu pai ia para fora em longas tour­nées. E a correspondência chegava todos os dias, até duas vezes por dia, e outras tantas vezes a minha mãe se sentava à escriva­ninha para lhe responder. Obviamente, nunca li nenhuma das cartas que lhe enviava, mas muitas vezes, quando se sentava, punha-me por um instante atrás dela. Essas cartas, todas as car­tas que lhe escreveu ao longo dos anos, começavam da mesma maneira: Meu amor.

O que escreviam um ao outro, todos os dias, um homem e uma mulher que se conheciam há anos? Um dia, muito depois de o meu pai morrer e a minha mãe envelhecer, vi-a a queimar car­tas no fogo da lareira.

- O que estás a fazer? - perguntei-lhe. - Estás a queimar as cartas do pai?

- Não todas, só algumas.

- Quais?

- Só as mais picantes - respondeu-me sorrindo.

Então sentei-me ao lado do fogo da lareira, a olhar para as folhas que rapidamente se transformavam em chamas, conser­vando ainda por alguns instantes uma aparência de página negra, antes de se volatilizarem em muitos fragmentos de cinza já sem peso.

 

Na minha vida houve aquele rapaz que nunca existiu e que fantasiei muito. Não quero nem contar os anos que já passaram, ficámos velhos. Ele diz sempre que temos todo o tempo do mundo à nossa frente, inclusive o que passou, pois é tão sábio que não acredita no passado que já não volta, vê-o sempre pronto a ressurgir, como um charlatão que volta a entrar em cena com um novo disfarce. Encoraja-me, é um homem que me enco­raja sempre. Na época da nossa juventude disse-me que o amor é uma coisa e que a vida em conjunto é outra completamente diferente. Quis que a vida em conjunto não nos empobrecesse. Foi ele que nos tornou uma lenda.

Às vezes sinto um impulso de gratidão por ele. Penso em dizer-lhe que foi algo de sublime exactamente por ir assim muito a custo, encalhando tanto e deixando os tempos correr sempre tão longos e distendidos, rectilíneos, como se só a nós fosse per­mitido: o tempo de espera sem a desistência. Se eu lhe disser: «Oh, que pena nunca termos conseguido», ele responde-me: «E quem te disse isso? Nada acaba enquanto não acabar.»

Uma vez, sentados à mesa de um restaurante, agarrei-o por um braço e sussurrei-lhe: «Lamento mesmo muito.» «O quê?», per­guntou. «Ter envelhecido», respondi-lhe. E ele deu uma das suas grandes gargalhadas de andorinha e perguntou-me: «A sério? Desde quando ?»

Em todos os momentos de sofrimento da minha vida, à noite, em pensamento, adormeci sempre nos seus braços. Adormecia pensando que me acariciava as omoplatas pontiagudas e, no grande sofrimento, encontrava esse modo incongruente de ser até bastante feliz. Sentia os seus beijos de animal marinho a escor­regarem-me pelo pescoço.

Foi no auge de um grande sofrimento meu que demos o pri­meiro beijo. Quase vinte anos depois. E sem sequer um pouco de tormento, um beijo que foi como uma lambidela de cão, saliva canina que tudo cura. Passei uma noite inteira a dizer-lhe: «Dir­-te-ei tudo o que sempre amei em ti, que és de outro mundo.»

Está casado há tantos anos e às vezes diz-me: «Contigo teria sido diferente, contigo talvez fosse almoçar a casa.» E depois beija-me em Fiumicino ou em Grottaferrata, à beira-mar ou con­tra os troncos das árvores maiores. Eu sei que comigo a sua vida teria sido diferente, não sou pessoa de me encolher, porque con­tinuo viva e espinhosa, pontiaguda, com a ponta afiada, esfero­gráfica de dez e mais cores, carregas na que precisares e escreves com a cor que gostares.

Posso dizer, de forma melodramática, que me parte o coração cada vez que me beija. É assim por causa do seu lado atormen­tado.

Esta manhã, ao acordar, quis tomar nota de duas coisas. A pri­meira é que os guerreiros do Tahiti são incitados a combater pelos Rauti, ou seja, homens exortadores. A segunda é que os Maori assa­vam os corações dos inimigos mortos e comiam-nos.

O coração de um humano não deve ter um sabor muito dife­rente do de um vitelo. A carne na frigideira crepita toda da mesma forma.

 

Hoje, finalmente, chegou o meu filho. Sempre que vai de férias com o pai tenho medo que possa conviver, ainda que por poucos dias, com... aquele tipo de gente. Nunca me atrevo a fazer per­guntas, mas esse tipo de gente com certeza não passaria desper­cebido aos olhos de uma criança de sete anos. Apenas uma vez, no regresso das férias, me disse uma frase preocupante: Nunca mais me dês de comer. Quando lhe perguntei por que motivo o deveria manter em jejum, respondeu-me: «Não quero crescer, se não crescer posso ter uma motocicleta de anão quando for grande.» Num ataque de fúria, telefonei ao meu marido e insultei­-o como nunca o fizera. Respondeu-me que era louca, que não tinha motivos para ter medo. Fiquei abraçada ao meu filho durante toda a noite. «Tu vais crescer e de que maneira», dizia-lhe enquanto dormia. «Crescerás e nunca serás um anão.»

 

A Ângela era raivosa e não era pouco, por isso é que falava com os mortos e os atiçava. Da vida, dizia: «Seignur, seignur, a vida é uma porcaria de fel.» E eu, em criança, não percebia bem esta palavra fel, dita por ela com a sua pronúncia do Norte, pen­sava que a vida fosse uma porcaria de mel. Nunca parava quieta, parecia comandada por uma fúria que a ressequia e muitas vezes falava sozinha, sempre a cuspir da dentadura que tinha na boca, como se fosse um brinquedo para mascar continuamente.

Um dia, quando já era crescidinha, ouvi-a a dizer: «Em vez de ter vindo embora, devia era tê-lo matado primeiro.» «Quem?», perguntei-lhe. «Aquele canalha», respondeu-me. E quando dizia aquele canalha não havia dúvidas, era o noivo que a abandonara no altar. «Mas acendes-lhe sempre uma vela na igreja!», disse-lhe. Então deixou cair o pano do pó no chão e foi-se sentar no sofá ao pé de mim, que estava a preparar a aula de história para o dia seguinte. Sentou-se daquele modo nervoso como só ela se sentava: sempre na borda, desconfortável por natureza. Piscou os seus olhinhos acinzentados e disse-me: «Claro que lha acendo, mas na esperança de que ele esteja morto.»

Explicou-me que não sabia o que na verdade tinha aconte­cido àquele canalha, mas algo lhe dizia que tivera um fim triste, porque ela, durante todos aqueles anos, sempre o pedira aos mor­tos, que apareciam de noite pela força dos cabelos dela; e que uma noite um monstro lhe dera mesmo a possibilidade de esco­lher. Um monstro que em vida podia ter sido um carrasco, de tanto que sabia sobre a morte. Fora uma noite longa e muito inflamada, pois não conseguia decidir-se verdadeiramente por uma única morte, e cada vez que lhe vinha uma à ideia parecia­-lhe sempre pouco, pouca morte. Por fim, quando estava quase a amanhecer e o monstro estava a perder a paciência e o tempo à sua disposição, disse-lhe: «Que seja atacado por cem gatos famin­tos, cegado e depois comido vivo.» E então o monstro dissera: «Finalmente! Será feito conforme pedes.» E uma semana depois, de noite, voltou para lhe dizer que podia dormir descansada, que o seu pedido fora devidamente deferido e que, nessa mesma noite, o veria em sonho com os seus olhos, confortavelmente sentada na primeira fila, como uma grande senhora. Ângela esfregara as suas mãos tortas e dissera: «Sim, pelo menos em sonho, como uma senhora», e adormecera de seguida, decerto com a boca aberta como sempre dormia, com a dentadura postiça a soltar-se, tor­nando a sua respiração semelhante ao assobiar do vento. E então, sim, divertiu-se a sério, sentada num trono de cetim vermelho, sentada no lugar de honra, ela que era uma velho ta que estava sempre de chinelos, com os cabelos grisalhos apanhados na nuca, quase marreca por causa do trabalho e com os pés tão deforma­dos que, vendo-os nus, pareciam ter seis dedos. Ela, que sabia a lixívia da cabeça aos pés, estava ali sentada num trono à espera de ver passar aquele canalha traidor, que no dia do casamento a abandonara no altar.

E finalmente viu-o chegar, novo como nos bons velhos tem­pos, mas não estava vestido à camponês como ela se lembrava, estava com um elegante fato de noivo, como ela não o vira. Caminhava ao longo de uma avenida com árvores que lhe faziam lembrar a sua terra, e assim que o viu começou a aplaudir, de qualquer das maneiras ele não a ouvia nem a via, e tinha aquele sorriso nos lábios, o sorriso dos traidores que se sentem trocistas e nunca culpados. Devia ter sido essa a expressão do seu rosto no dia da grande ausência, e quem sabe se se terá ido embora exac­tamente assim, ao longo de uma avenida, em passos lentos, sem pressa, de resto a outra esperava-o escondida sabe-se lá onde, também ela com um sorriso idêntico estampado nos lábios, o sor­riso de quem se sente importante sem saber o que isso é.    

Oh, como era bom vê-lo assim iludido, ignaro, feliz com a sua baixeza, saber que ele não sabia que estava perdido. À Ângela parecia-lhe estar no cinema, feliz como uma criancinha, ela que, desde os cinco anos, trepava para cima de um banco para lavar a louça de toda a família.

De súbito a cena muda, e da luz de um dia deslavado passa­-se a outra mais escura de um crepúsculo que imediatamente per­turba aquele canalha, tirando-lhe do rosto o sorriso trocista. De trás de uma árvore surge um gato papão que se aproxima dele em trote miúdo e se roça pelos seus tornozelos. Aquele canalha baixa-se para acariciá-lo, mas o gato arranha-o soltando um grito verdadeiramente assustador. A mão ensanguentada serve de chamariz, e de todas as árvores da avenida aparecem outros gatos enfurecidos a galope para cercá-lo, não lhe dando escapatória.

Ângela ri-se a bandeiras despregadas, com as perninhas no ar em cima do trono, aplaude com aquelas mãos desfiguradas pela água fria das cisternas e pela lixívia. Agora acha que viveu bem a sua vida, que valeu a pena. Uma vida sempre honesta, que finalmente recebia também a justiça. Os mortos são prodigiosos, basta amá-los que eles logo lutam pela felicidade dos vivos.

Aquele canalha não sabe o que fazer, cada vez há mais gatos a miar, que além de assustarem metem nojo; escancaram bocas vermelhas e sanguinárias, têm focinhos aguçados, triangulares. Ninguém se lembraria de chamar a esses gatos: gatinho, gatinho. Mas aquele canalha joga ainda esta última carta perdedora. Esfrega os dedos da mão direita uns nos outros, que por estarem suados não fazem sequer aquele barulhinho atraente, e com um fio de voz diz: «Gatinho, gatinho.» E os gatos, como que excitados por aquele som que aos seus ouvidos afinados é o gongo que dá iní­cio aos assaltos, saltam-lhe para cima em simultâneo, atirando-o ao chão.

«Agora! Agora!», grita Ângela com a fúria de uma Erínia. As pantufas voam pelo ar e as meias têm um buraco no calcanhar direito; o elástico aperta à volta do joelho, alterando a circulação daquelas perninhas que parecem de gesso.

Os gatos estão todos em cima dele, rosnam um grito de guerra abanando apenas a cauda rígida, lentamente, de um lado para o outro. O chefe é o gato papão, e está para dar início ao ataque. Ângela morde, frenética, as pontas dos dedos, quase sem unhas, morde-as até sangrar. É ela a fera, e agora está contra as feras que se demoram, odeia-as sem perceber que aquilo é a parte melhor: a espera do canalha aterrorizado. E aquele canalha tem agora o sangue frio, bloqueado, congelado, nem sequer respira. O medo às vezes faz isso, ilude com o pensamento de que na imo­bilidade está a salvação. E ele ilude-se mesmo, pois o gato papão arranca-lhe os olhos com duas patadas e dá início à festa.

Pareciam gatos-piranha, consumidores de carne humana. Tinham um modo de maltratar que nem sequer os fazia felizes, só davam ao queixo mecanicamente enquanto o canalha gritava, esperneando inutilmente. Os gatos levantavam de vez em quando os focinhos afilados, como que a recuperarem o fôlego após a imer­são, e das suas bocas pendiam bocados daquela carne que ainda gritava, e depois coisas que se identificavam com maior clareza pela cor e consistência. Quando era coisa escura podia ser fígado ou rim, quando era coisa clara e custava a arrancar, eram tripas.

Aquele canalha já não se mexia, Ângela levantou-se do trono para ir ver de perto se pelo menos ainda respirava. Fê-lo quase zangada, pois se já estivesse morto ela tinha saboreado pouco. O que viu deu-lhe volta ao estômago; tudo fora de tal modo arrancado, que o pouco que restava agarrado ao osso estava tão rendilhado que já parecia um formigar de vermes. Os gatos nem repararam nela, só o gato papão, que a cumprimentou de barriga cheia, com um miado interrompido por um arroto. Ângela incli­nou-se para olhar aquele canalha nas órbitas esvaziadas dos olhos. Sim, pouco, mas ainda respirava. E então sorriu-lhe com os seus labiozinhos acinzentados e os cabelos escorridos, pois de tanto se agitar no trono soltara-se-lhe o carrapito e agora caíam­-lhe, de cada lado, como fios de ferro.

«Feio)), disse-lhe. «Olha como és feioso.» Depois pôs-se muito séria e aproximou-se do ouvido dele. «Morre, merda de homem, morre e espero que me estejas a ouvir.» E virando-se para os gatos, bateu vigorosamente as mãos. «Vá, lindos, acabem o trabalhinho como deve ser. Não o deixem ficar assim, em meia cozedura.» Mas não se voltou a sentar no trono, ficou ali a olhá-lo de perto, aliás, pôs-se também ela de gatas e, só por afronta, deu duas mordidelas naquele desfiado de homem que restava.

De repente parou e pôs-se à escuta, e com um gesto peremptório mandou embora os gatos, que fugiram todos a sete pés, excepto o gato papão, que ficou a seu lado a protegê-la.

Embora agora estivesse sozinha fez: «5sst!», como que a pedir silêncio, e então ouviu muito bem a exalação do último suspiro daquele canalha. «Muito bem!», gritou. «Agora, sim, estás final­mente morto!»

O gato papão esticou a sua grande corcunda preta, aproxi­mou-se dela e ronronou-lhe, enroscado nos seus tornozelos magros. Disse-lhe: «Estás contente agora?» E ela, coçando-lhe a junção da cauda, respondeu: «Estou e agradeço-te. Pena que já tenha acabado tudo.» «A vingança é assim», disse o gato papão. «Pensava que soubesses isso. É como qualquer outra coisa pela qual se espera há muito tempo: uma vez passada, o prazer que nos deu parece uma ilusão. Mas verás que ao recordá-la em pen­samento, te dará cada vez mais satisfação.»

Ângela sorriu-lhe com aqueles seus olhinhos de cinza velha, pareceu quase emocionada. No seu íntimo, sentiu-se reconhecida.

 

Parece-me que o meu filho cresceu nestes poucos dias de praia. É um miúdo estranho, aparentemente sempre distraído, mas na verdade não deixa passar nada. E além disso, não sei, sente as coisas.

Nunca me conta nada do que fez durante as férias, diz-me apenas que se divertiu bastante. Nestes dias quer dormir comigo e mexe-se muito durante a noite, fala mas não o consigo enten­der. Os seus sonhos parecem ser sempre angustiantes, mas de manhã acorda sempre alegre e não recorda nada dos sonhos que teve. Contudo, às vezes conta-me aquilo que eu sonhei. Aquilo que ele pensa que eu sonhei. Esta manhã disse-lhe: «Magoaste­-me, encheste-me de pontapés.» «Mas não era eu», respondeu-me. «Então quem era?» «Era um cavalo chateado.» «E por que é que estava chateado?» «Porque aqui dentro aborrece-se, tem pouco espaço e não sabe onde há-de correr.

 

Quis dar-lhe corda, fingi que chamava o cavalo e ele entrou na brincadeira. Dizia: «Estás a vê-lo? Está triste, temos de o liber­tar, não podemos ter cavalos dentro de casa.» Sugeri-lhe que o levássemos para o parque e a ideia agradou-lhe. No patamar de casa disse que tínhamos de descer os cinco andares pelas esca­das, porque um cavalo não cabe num elevador. Quando chegá­mos ao parque esqueceu-se do cavalo e jogámos uma breve par­tida de futebol. Não foi propriamente uma partida, foi apenas uma série de remates à baliza. Venceu por oito a seis, e nunca me poupou a toda a mímica da vitória cada vez que marcava golo.

Após ter comido adormeci no sofá, estava aquele calor que às vezes cai subitamente em Roma na Primavera, e além disso bebi vinho que não devia ser de boa qualidade. As janelas estavam todas abertas, mas em casa não corria nem um fio de ar. Vieram­-me novamente à lembrança recordações felizes do meu marido, como por exemplo o dia em que o conheci, 28 de Maio, que sem­pre festejámos ao longo dos anos, pois as histórias começam quando começam, nunca depois, e a nossa começara no momento em que nos conhecemos, ainda que, naturalmente, não tivésse­mos dito nada um ao outro. Beijámo-nos pela primeira vez um mês e dois dias depois, a 30 de Junho. Mas nunca demos impor­tância a essa data.

Há ainda momentos em que todo o ódio pelo meu marido se dissolve em comoção. Então, choro tranquilamente, fico imóvel num canto e nem sequer me apercebo de que estou a chorar. Uma vez, ainda nos primeiros tempos, acordei de noite e abracei-o tanto que o acordei. «o que é que tens?», perguntou-me. «Sinto que quando nos separarmos ainda nos amaremos», respondi-lhe. E assim foi. Se hoje alguém me perguntasse qual é o modo mais definitivo para arruinar a vida, dir-lhe-ia que não há nada melhor do que separarmo-nos quando ainda nos amamos. É perfeito, uma ruína sem retrocesso.

É assim também para ele, durante estes anos escreveu-me muitas cartas, às vezes ainda me escreve, ou telefona-me com a desculpa de que tem de me dizer alguma coisa sobre o nosso filho. No fim, pergunta-me sempre se nos podemos ver, se não acho que já o fiz pagar o suficiente, se não chegou a hora de aca­barmos com esta dança que dura há anos. Ele está pronto, se eu quiser volta a casar comigo. Se fosse por ele nunca nos teríamos separado. Respondo-lhe que só tem cinquenta por cento de razão, que a presença dos sentimentos não exclui o horror, e que ele foi verdadeiramente louco por ter estragado tudo daquela maneira. «O que devo fazer?», pergunta-me, «devo matar-me?» Respondo­-lhe sempre que não, que não o deve fazer. Mas na verdade penso que o melhor e mais justo seria matá-lo eu.

Enquanto estava assim adormecida, o meu filho brincava com um carrinho no parquet do corredor. De súbito, parou de brincar e veio para ao pé de mim.

- Mãe, por quem estás apaixonada, por mim ou pelo pai?

- Pelos dois.

       Pôs-se de novo a brincar caminhando em passos miúdos, reproduzindo com a boca o som que fazem os cascos de um cavalo. Voltou-se para ver se estava a olhar para ele e disse-me: «Sabes, não houve nada a fazer, disse que também se aborrecia no parque e que prefere estar connosco.» Respondi-lhe que por mim estava bem, que até podíamos ficar com ele e que me agra­dava a ideia de ter um cavalo. Disse-lhe: «Quando era criança também tinha um cavalo em casa.» «A sério?» «Sim.» «E como é que se chamava?» «Chamava-se Raio.» Abandonou todas as brin­cadeiras e veío sentar-se ao pé de mim. Tive de contar-lhe a his­tória do cavalinho mágico que me trazia rebuçados, chocolates e lápis de cor. Não desconfiou nem por um momento que eu esti­vesse a inventar. Nem eu tão-pouco desconfiei.

Ao fim da tarde tive uma ideia genial. Perto da nossa casa há uma famosa gelataria que se chama São Crispim; perguntei-lhe se queria um gelado e ele disse: «Alinho!» Temos sempre de ir para a fila para comprar um gelado, até nos dão uma senha, e assim ficámos na rua à espera da nossa vez. Enquanto esperava, não sabendo o que fazer, pôs-se a ler em voz alta, letra a letra, o nome da gelataria.

- S-Ã-O-C-R-I-S-P-I-M, São Crispim. O que quer dizer? - É o nome de um santo - respondi-lhe.

- E que santo é?

- É o santo dos gelados.

- E como é que se tornou santo?

- Com os gelados, fez milagres prodigiosos com os gelados.

- Sabes algum?

- Sei-os todos, sei a vida toda e todos os milagres de São Crispim.

       Quando chegou a nossa vez, hesitou demoradamente e por fim perguntou-me:

- Com que sabor fez os seus milagres mais importantes?

- Com o merengue - respondi-lhe.

E por isso escolheu uma taça de gelado só de merengue, que começou a comer no regresso a casa, dizendo que aquele era um gelado milagroso e que com certeza dava sorte. Ficou em silên­cio apenas enquanto durou o gelado, e em casa disse-me:

- Então, esse São Crispim?

Saiu-me sem mais nem menos, muito facilmente, como se fosse verdade. Disse-lhe que era úmbrio e que falava em dialecto de Temi, aquele cheio de nd que dão à voz um som de sino; que fez o seu primeiro milagre em criança por ter sofrido uma grave injustiça, e que usava os cones de gelado como um anjo vinga­dor usa a espada de fogo. Recompensava os justos, mas ceifava vítimas sem piedade entre os maus e os desonestos. Aparecia do nada quando menos se esperava, mas era sempre anunciado por um forte tremor de terra, por céus que se rasgavam, por impres­sionantes flechas violáceas que incendiavam a luz do dia e a escuridão da noite. Era enorme como Polifemo e brandia sempre um enorme e monstruoso cone de gelado, quase sempre só de merengue, mas com pedacinhos de chocolate.

Sem me dar conta, nessa tarde assinei a minha condenação. Antes de adormecer, quis que lhe contasse a primeira aventura de São Crispim, e em seguida fez-me jurar que nos próximos dias lhe contaria todas, dando a cada uma um número, pergun­tando-me antecipadamente quantas eram para fazer as suas continhas de quantos dias durariam, pedindo-me até para es­crevê-las; assim, quando lhe apetecer poderá lê-las sozinho no futuro, e mais tarde lê-las aos seus filhos, quando os tiver. Na cama, falava a olhar para o tecto, falava com aquela agitação das crianças que lhes tira o fôlego, e com o olhar seguia qual­quer coisa. Adormeceu com a expressão insatisfeita de quem acabou de descobrir a verdadeira maravilha mas que sabe que lhe será dada a prestações.

Antes de adormecer também eu tive uma visão interior, revi uma cena de há muito tempo. O meu marido mostrava ao meu filho um carrinho novo que lhe acabara de comprar, e dizia-lhe: «Dou-to se puseres no lugar todos os brinquedos que desarru­maste.» O meu filho desatava a chorar e dizia que não, dando pontapés nos brinquedos enquanto com uma mão procurava que lhe desse o carrinho. Então o meu marido, pondo-o no armário, dizia-lhe: «Estás a vê-lo? Despede-te dele. Diz-lhe: Adeus carri­nho, foi bom pensar que serias meu.»

 

Há dias em que o telefone não toca uma única vez, são dias tranquilos, sem comunicação. Hoje é um desses dias. Abri a cadeira de repouso e pus-me a ler no terracinho. É um romance em que não consigo avançar, tenho sempre de reler as mesmas páginas. Não é um romance difícil, sou eu que não me concen­tro, mesmo quando estou a reler sinto que deixo escapar as coi­sas. Há uma sobreposição de pensamentos, leio e vejo outra coisa. É uma visão estranha, porque se trata de Alexandre Magno. Mas    que me interessa a mim Alexandre Magno?

- Interessa-te, interessa-te.

- E esta, agora começamos até a ouvir vozes!

- Não seria novidade.

- Está bem, não é novidade, e portanto digamos também que te vejo e que te ouço.

- Muito bem, então descreve-me.

- És um homem grande.

- Grande descoberta, sou Magno!

- Não acabei, és alto e louro, com esta luz não consigo dis­tinguir se os teus olhos são azuis ou verdes, digamos que são azul­-turquesa.

És robusto e tens o dom da eterna juventude. E és um homem generoso.

- Como é que sabes?

       - Recusaste um elmo cheio de água durante a travessia do deserto, ofereceram-to os teus homens que encontraram esse bem precioso na fenda de uma rocha. Disseste: «Só eu é que deverei saciar a minha sede?» Dito isto, entornaste a água sobre a areia, e esse teu gesto reanimou os soldados, como se todos eles tives­sem podido beber a água que tu derramaras.

- És minha admiradora.

- Sou obrigada a ser admiradora de todos os heróis do pas­sado e do presente.

- Por que razão?

       - Porque casei com um homem de sentimentos estranhos, sentimentos que em vez de amadurecerem ficaram na fase infan­til, de modo que tenho de me contentar com os heróis.

- Também há heróis presentemente?

- Sim, mas embora se possam ver, estão distantes. Deixa lá, não podes entender, presentemente é tudo muito passageiro.

- Se é passageiro, de pouco serve.

- Eu sei.

- Que mais sabes de mim?

- Que és um grande bebedor, apesar de não aguentares muito bem a bebida.

       - Pois, bêbado fiz o maior erro da minha vida, foi a única vez em que desejei morrer.

       - Não penses nisso, ele também estava bêbado.

       - Sim, mas salvara-me a vida, ninguém pode matar quem lhe salva a vida, nem mesmo um rei.

- Sim, mas sabes como é, o rancor da raiva, quando não se sacia, lança-se ao que encontra à mão. Se soubesses quantas vezes também me sinto tentada. O teu amigo Clito estava bêbado e foi escarafunchar num remorso que já te pesava bastante; não querias matá-lo, só querias que se calasse.

- Sim, claro, mas para o calar matei-o, trespassando-o com uma lança. Vinha contra mim, estás a ver, mulher?

De punho cer­rado, durante uma festa em minha honra... Melindrava-o o facto de me homenagearem assim tanto, e então fez questão de recor­dar a todos outro grande erro meu: a morte de Parménion. E eu, furioso como estava, o que podia fazer? A cegueira sugeriu-me ape­nas que lhe dissesse esta frase estúpida: «Então, vai, vai procurar o teu Parménionio» Mas, logo depois, vi-o morto dentro do seu sangue que eu fizera correr, e deu-me uma pena tão grande, um abalo tão forte na alma que, na minha opinião, foi aí que apareceram os ger­mes daquelas febres que mais tarde me vieram a matar.

       - Acaba com esse sofrimento, Alexandre, ao tempo que isso já lá vai.

- Eu, percebes? Eu que dissera aquela frase tão honesta: Ter o mundo como pátria e considerar estrangeiros apenas os maus. Que rico rei que eu fui. Tens alguma coisa que eu possa beber?

       - Vinho, vinho tinto e encorpado.

       - É bom o vinho tinto, quando é aromático, muito bom, suave reparador das consciências humanas.

       - Bebe, Alexandre, bebe e descansa, que morreste aos trinta e três anos, na flor da idade, como o teu modelo de vida, Aquiles.

Os heróis são mais bonitos quando dormem, são um pouco menos heróis e estão desprotegidos. Afago-lhe os cabelos louros que lhe caem aos caracóis sobre os belos ombros largos. Está bronzeado, o Macedónio, e dos seus lábios sai uma respiração boa e regular. Sei que voltará a visitar-me, os heróis têm sempre todo o tempo do mundo, quando há alguém que lho ponha à dis­posição. Olhando-o, penso numa coisa um pouco previsível, de mãe, pergunto-me se um dia o meu filho também será um herói belo como ele, por quem é impossível não nos apaixonarmos. Mas depois sinto um desconsolo, parece-me que todos os heróis têm de ser tristes e eu não quero que o meu filho seja triste, que­ria que fosse um herói feliz.

Alexandre Magno tem a testa suada, sabe-se lá que sonhos se terão apoderado dele. Acaricio-lhe uma mão áspera e sussurro­-lhe ao ouvido: «Sei como começavas os teus dias, espetavas a lâmina de uma faca no corpo palpitante de um animal e, enquanto o sangue da vítima jorrava, tu dizias orações.»

Os primeiros anos do meu casamento foram perfeitos. Quando conheci o meu marido, ele tinha vinte e nove anos e eu vinte e sete. Fui a sua primeira mulher a sério. Até àquela idade estivera apenas com mulheres a quem pagava. Dizia que fora assim porque ele quisera, uma regra que se impusera para não correr o risco de sofrer. Ele não tocava numa mulher se não houvesse dinheiro pelo meio. Até me tocar levou o seu tempo. Dias e dias de longos passeios muito silenciosos. «Sou lacó­nico», dizia, «sou assim.» Fui eu, um dia, que peguei na sua mão direita e a pousei sobre o meu seio esquerdo. A mão permane­ceu imóvel a formigar por si mesma. Passado um pouco, disse­-lhe: «Tenho de ir», e ele tirou a mão. Acompanhou-me à porta, com o braço direito visivelmente entorpecido. No patamar, em frente do elevador, beijou-me na testa e disse-me que era uma deusa. No trajecto que me levava do quarto andar ao rés-do­-chão olhei para o meu seio esquerdo, e pensei que graças a ele me tornara uma deusa.

A primeira vez foi num hotel à beira de um lago. Há algum tempo que vínhamos falando sobre isso, dissera-lhe: «Mais cedo ou mais tarde acontecerá.» Ele respondera que não era possível que acontecesse assim por acaso, não bastava pensar nisso quando íamos jantar ou passear, tínhamos de o planear.

Naquele pequeno quarto de hotel, a nossa tez ficava amare­lada à luz do néon. Pensei nisso enquanto lavava as mãos no quarto de banho capsular, mas, por outro lado, pensei que eram coisas que importavam muito pouco quando havia amor. E isso parecia-me que houvesse em abundância. Disse-lhe: «Eu não sou virgem.» Ele respondeu-me, rindo: «Mas eu, em certo sentido, sou.» Nunca tínhamos falado sobre isso, mas pareceu-me que fosse coisa acertada e justa dizer-lho antes. «De resto», acres­centei, «não fiques a pensar sabe-se lá o quê, foi apenas um. Mas coisa de pouca importância, aconteceu na juventude.»

Estávamos sentados na cama, imóveis, um ao lado do outro como num lugar onde apenas se espera, e, em vez de pensar no que estava para acontecer, pensava no seu passado solitário que me comovia muito. Pela primeira vez na minha vida, tive a forte sensação de que o amor falhado de quando era miúda, o que hoje beijo demoradamente, se enevoava na minha ca­beça, quase o esquecia. Estava enlevada nestes pensamentos evanescentes quando ele, virando-se e olhando-me dentro dos olhos, disse furiosamente: «Agora vou-te domar.» Devia ter levado a mal, ter achado vulgar, mas pareceu-me uma coisa bem dita, a única a dizer naquele momento. Eu também pensei em domá-lo e que esse fosse a partir de agora o nosso intento: saber o que éramos, mas ignorar o que seríamos depois de nos domarmos.

Percebi que assim começam as guerras e que aquela seria a nossa primeira batalha, onde talvez ainda não se morresse mas já muito se arriscasse. Sei que me viu frágil nesse instante e que se enganou. Eu conheço a doçura, sei o que é, é coisa que tenho por natureza, como todos aqueles, poucos, que nunca são completa­mente deste mundo e não se sabe de que mundo são, porque outros mundos não conhecemos. E conheço a dádiva, também sei o que isso é, e o meu amor falhado da juventude sempre me aler­tou contra mim mesma, dizendo: «Tem cuidado, tu que és uma piegas.» Mas esta minha pieguice também se transforma em dureza. Aliás, às vezes posso parecer, se não mesmo de ferro, pelo menos de alumínio. E algumas vezes, quando um médico me observa uma parte qualquer do corpo, quase me apetece pergun­tar-lhe: «Doutor, há engrenagens fora do lugar, algum parafuso enferrujado, alguns fios eléctricos queimados que fizeram curto­m-circuito ?»

       Acariciei-lhe uma rótula e disse-lhe: «Tens de ser bom, tu que és mau por dever.»

       Quando me beijou, dei-me conta de que não tinha os olhos fechados, e eu sabia que devia desconfiar muito disso.

Há algo de perverso em quem tem os olhos abertos quando beija, é falta de abandono e pretensão de controlar o abandono do outro. Há o comprazimento de quem pensa: «Eu reduzo-te a isso sem a isso me reduzir.» Também abri os meus olhos, mas pela ameaça que havia no peso daquele seu olhar, e tive medo. Porém, agora estava tudo perdido e já não podia voltar atrás.

As coisas são boas enquanto não se vê a sua parte feia, é uma simples questão que dura o tempo que puder. O meu marido e eu vivemos um bem provisório, o que, a seu modo, foi perfeito. Nunca havia dificuldades a ultrapassar, apenas um acordo fácil que acontecia naturalmente, éramos duas pessoas que se tinham encontrado e que tinham tido sorte.

O meu marido era professor de Latim e Grego no liceu, mas era essencialmente escultor. Figuras humanas em tamanho natu­ral, de bronze, que lhe custavam uma fortuna. Naqueles anos, lisonjeou-me muito com as suas esculturas. Desde que me conhe­ceu, não fez outra coisa senão reproduzir-me, cada estátua era eu. Reproduzia-me sempre de duas maneiras: em pé, ou langui­damente deitada de viés numa poltrona, com as pernas cruzadas sobre um braço daquela. E estava sempre nua. Dizia que era por­que gostava do meu corpo, que todas aquelas estátuas lhe ser­viam para o conhecer melhor, pois um corpo, na verdade, não faz outra coisa senão esconder-se. A princípio, embaraçava-me um pouco andar pela casa e encontrar-me assim tantas vezes. Não era uma coisa natural. Depois habituei-me, parecia-me que quase já não via todos aqueles eus que se distinguiam entre si apenas em imperceptíveis pormenores. Podia ser uma mão aberta, em vez de fechada, um joelho dobrado de forma mais evidente. Mas era o meu olhar superficial que as tornava tão pouco diferentes umas das outras. Mais tarde aprendi a identificar coisas em mim de que nunca me tinha dado conta. Apercebi-me de que tinha razão, que um corpo na verdade se esconde até de si próprio. Uma vez disse-lhe: «Nesta estátua fizeste-me os seios maiores do que nas outras.» Respondeu-me: «Não é verdade, nesse dia tinha­-los mesmo assim.» Fiz-lhe notar que nunca me pedira para posar senão uma única vez e que agora me reproduzia, ainda que per­feitamente, só de memória. Respondeu-me, sem pensar duas vezes, que me reproduzia depois de me ter medido bem durante os nossos amplexos. Essa escultura dos seios maiores fê-la numa minha fase pré-menstrual. Se observasse mais atentamente podia notar também um certo inchaço no ventre. Passei a mão sobre o ventre dessa estátua, depois fiz o mesmo numa outra, e sim, era ligeiramente mais proeminente, diferente do meu ventre habitual, que é quase metido para dentro. Deu-me vontade de rir e disse­-lhe: «Estranho que me tenhas querido esculpir assim, tu só gos­tas de mulheres com o ventre liso.» Respondeu-me que era ver­dade, que o meu ventre o atraía precisamente por isso, pela sua elasticidade atlética, mas que no período pré-menstrual me tor­nava mais bonita em tudo o resto e ele queria poder vê-lo cada vez que tinha vontade, guardá-lo na memória.

«Em tudo o resto?», perguntei-lhe. «Em quê, por exemplo?» Respondeu-me que no conjunto, no período pré-menstrual melhorava no alargamento. E a mim pareceu-me entristecer.

 

Do que eu gostava no meu pai é que era um homem bom, justo e impiedoso. De quando em quando sucedia condenar alguém à morte, e eram sempre condenações sem apelo. Era assim, quem o traía era morto. Dava a todos uma oportunidade, a segunda nunca a concedia a ninguém. Gostava dele principalmente por isso, porque se podia permiti-lo, porque nunca falava à toa e fazia sempre o que dizia sem nunca se arrepender depois. Porque condenava à morte e, cumprida a execução, esquecia-se do con­denado, que se transformava numa abstracção, fumo disperso no ar. Pessoa que nunca existiu.

Um dia íamos de carro para a praia, eu e ele sozinhos, com aquele impulso de intimidade que às vezes também atinge um pai e uma filha com apenas treze anos. Falávamos de muitas coisas, não me lembro de todas, mas sei que a dada altura alcançámos um silêncio onde cada um estava absorvido nos seus pensamentos mas, mesmo assim, perto um do outro. Saíramos da Aurelia e apanhára­mos uma estradazinha com muitas pontes de madeira, e o carro, ao passar por cima delas, parecia fazer explodir muitos foguetes jun­tos. Em ambos os lados da estrada havia campos de milho ainda verdes e muito densos. Veio-me à ideia que por entre esses campos se podia esconder um guerreiro ferido em fuga, e esse pensamento apertou-me por instantes a respiração. Então, voltei-me para o meu pai e perguntei-lhe: «Nunca sofreste por amor?» Fez uma expressão que lhe mudou a fisionomia do perfil e, naquela retracção, respon­deu-me: «Sim, e até bastante.» A minha respiração tornou-se ainda mais apertada na garganta. Perguntei-lhe: «Foi a mãe?» «Mas o que é que te deu?», disse-me, voltando à fisionomia de sempre. «Não, a mãe nunca me fez sofrer. Foi muito antes de a conhecer. Se quiseres, conto-te esta história assim que chegarmos à praia.»

E assim fizemos o resto da viagem sem dizer nem mais uma palavra, continuando apenas muito concentrados. Seriam sete da manhã, porque o meu pai queria chegar à praia sempre a essa hora, quando a praia estava deserta e havia aquela luz opalescente do ar sem vento. Estava convencido de que essas eram as melho­res horas, quando na verdade eram apenas as horas de ar sufo­cante, que nos tira o fôlego. O café onde íamos chamava-se O Sonho do Mar, e àquela hora o único cheiro dominante era o das bolas-de-berlim fritas e o do café. Embora soubesse que tinha a digestão lenta, o meu pai não podia deixar de comer pelo menos uma bola-de-berlim, obrigando-se desse modo a não tomar banho até à hora de nos irmos embora. Mas naquela manhã disse-me: «Hoje não como a bola-de-berlim.» «Sentes-te mal?», perguntei­-lhe. «Não, estou bem, mas hoje tenho de te contar aquela histó­ria e quero contar-ta dentro de água, como todas as histórias que te contava quando eras criança e a mãe nos esperava à beira-mar com as toalhas nos braços. Lembras-te disso? Estava ali desde o momento em que entrávamos na água, como se o facto de se pôr ali à beira, à espera, lhe desse a certeza de que não nos afogaría­mos. E nós estávamos ao largo mais de uma hora, desaparecíamos no horizonte, eu nadando, tu agarrada às minhas costas, ferrada como um caranguejozinho.»

Comecei a rir dessas recordações, enquanto ele pagava a entrada e duas espreguiçadeiras. Depois, disse-lhe: «Papá, olha que não consigo acompanhar-te a nadar durante uma hora, não vou para longe, sabes que nado mal e não tenho resistência.» «Afinal não percebeste nada», disse, irónico. «Disse que faremos como noutros tempos: eu nado e tu fazes de caranguejo.»

Nadava devagar na única direcção que conhecia, ia em direc­ção ao horizonte. E eu já não era a menina que se fiava, por isso vieram-me à ideia pensamentos de medo, os mesmos que a minha mãe devia ter quando nos esperava à beira-mar. Mas depois ele disse: «Aquela mulher chamava-se Mirta, como o femi­nino da planta ornamental consagrada a Vénus, símbolo por­tanto do amor e da poesia amorosa. Decorria o ano de 1944 e a guerra estava a acabar, tinha vinte e um anos, ela quase mais dez do que eu e nunca soube de onde ela era. Era uma das tantas refugiadas que apareciam nos campos, e encontrámo-nos assim, numa eira, num jantar cheio de pessoas que não se conheciam. Estava sentada nas escadas da casa de colonos dos meus tios, que alimentavam como podiam todos os que vinham sabe-se lá de onde, cansados das suas fugas. Comia, em lentas colheradas, uma sopa de massa e batatas. Agora, pensarás que era de rara beleza, mas digo-te que era apenas de espécie rara. Era uma mulher ossuda e até desgastada, mas falava muitas línguas e conhecia muitas literaturas. Esta história começou mesmo assim, comigo aos pés dela, comendo da mesma sopa e bebendo todas as suas palavras. Tu sabes o leitor furioso que eu era naquela idade, mas ao pé dela as minhas leituras não eram nada. Entre nós dois havia a distância de quem sabia tudo e de quem não sabia nada. Pelo menos assim me pareceu na altura, quando ao primeiro beijo, dado menos de duas horas depois de a conhecer, me pare­ceu ser outro, mais alto, embora eu já fosse um gigante. Per­guntava-lhe: "Quem és tu?" Ela só se ria sem me responder e aca­riciava-me os cabelos encaracolados e louros, apertava-os entre as mãos olhando-me com força dentro dos olhos, continuando a rir, como se a minha pergunta fosse uma coisa do outro mundo. Perguntava-lhe se era casada, se tinha filhos, e ela respondia-me: "O que é que isso te importa? O tempo passa tão depressa, o tempo é apenas uma enorme corrida que tu não podes parar." Tinha uma pronúncia estranha, do Norte, mas também um pouco estrangeira. Podia ser de qualquer parte do mundo. Nunca dizia nada de si, nem sequer se tinha irmãos, se os seus pais eram vivos. Quando à noite passeávamos abraçados, se alguém olhava para ela respondia descarada àquele olhar, depois insistiam, eu reagia e acabava sempre em grandes trocas de murros que eu vencia. E ela passava o resto da noite a beijar-me as feridas. Naquela idade não podia compreender que ela de mim só queria aquilo, ver-me bater-me por ela. Pensava ser o seu homem e, afi­nal, não passava do seu gladiador. Poder da juventude, minha filha, coisa que consome. Tive de me ausentar por alguns dias e fui a correr a casa do meu melhor amigo. Disse-lhe: "Irmão, tenho de partir e estou preocupado, tem-me a voluptuosa da Mirta debaixo de olho." Abracei-o, desesperado, e deixei-o como se já soubesse o que se iria passar.

Quando voltei encontrei-o à minha espera na estação. Respondeu-me com o olhar, tal como eu o interrogara. Só me disse o nome do homem e onde morava. Disse-lhe: "Leva-me tu a mala para casa, que eu não tenho tempo." Sabia quem era e também que gostava da Mirta. Mas aquela mulher que fumava tanto e não comia quase nada, citando versos com os olhos sem­pre avermelhados, aquela loba ossuda e vagabunda agradava a todos, porque nós éramos rapazes de província e ela vinha sabe­-se lá de que outro mundo, feito de outras coisas.

Abriu-me a porta e eu saltei-lhe para cima, atirando-o logo ao chão. Não sei se não reagiu porque foi apanhado de surpresa ou porque era impossível deter-me. Não me recordo como estava naquele momento mas, mais tarde, quando esse homem saiu do hospital, disse que foi como se tivesse aberto a porta à fúria de um exército louco e embriagado. Fui-me embora quando já não fazia sentido bater-lhe, nem sequer para a minha loucura. Saí daquela casa com o impulso de quem podia fazer quilómetros e quilómetros a correr, sem direcção. Foi assim que dei por mim, fora da cidade, a correr num campo de milho que me chegava ao peito, e de repente parei, já sem forças, para me atirar para o chão com a boca na terra, a derramar lágrimas e a rogar muitas pra­gas. Não me recordo exactamente do tempo que fiquei lá, mas devem ter sido pelo menos vinte e quatro horas, porque vi o fim do dia e depois vi a noite e a luz que voltava. Transformei-me no meu sofrimento, e fiquei assim a remoer todas as recordações e todas as frases ditas, os juramentos de amor que depois são per­jurados pela vida. Passado um bocado, quando me esgotei, matei­-a dentro de mim, e a terra onde chorara comi-a às dentadas como se fosse a sua veia jugular, e da jugular desci até ao seu coração desonesto e comi-o, como fazem alguns povos primiti­vos com o coração do inimigo. Matei-a fazendo-a em bocadinhos, aquela loba, e quando me senti cheio levantei-me camba­leando e, agarrando-me às folhas de milho, saí daquele campo e voltei para casa. Acho que depois não sofri mais, que o facto de me ter transformado no meu sofrimento me salvou.

Voltei a vê-la muitos anos depois, num restaurante em Milão. Continuava ossuda e desgastada e dessa vez também comia sozi­nha, lentamente. Cumprimentámo-nos e trocámos as poucas pala­vras embaraçosas que dizem aqueles que se separam bruscamente e com sofrimento. Surpreendeu-me descobri-la sem nenhum atrac­tivo, o tipo de mulher que nunca me poderia agradar. Gostaria de lhe ter dito, quase gostaria de lhe ter dito: "Vê bem como a vida é irónica, agora parece-me que tu nunca significaste nada para mim, mas noutros tempos pareceu-me quase morrer por ti. Mirta, ao olhar para ti agora, vejo como o tempo é corrosivo." Mas não lhe disse nada, despedi-me com gentileza sem me alterar, e mesmo tudo o que ouvira a seu respeito, que fora uma espia, uma cola­boradora dos alemães, me parecia apenas um grande disparate.»

Voltei-me para trás para ver até aonde é que tínhamos ido, e a praia estava muito distante. O letreiro grande lia-o, porque o sabia: O Sonho do Mar. O meu pai tinha quase cinquenta anos, conseguiria voltar para trás? Perguntei-lhe com um tom de voz brincalhão e ao mesmo .tempo receoso. «Estás a brincar?», per­guntou-me tomando o rumo do regresso. E assim voltámos, ele em silêncio com o seu ritmo de maratonista da água, eu a repe­tir para mim mesma toda aquela história da Mirta que o fizera sofrer. Nasceu um grande rancor dentro de mim, se me aparecesse pela frente... dizia-lhe como era: «Ah, monte de ossos, espia nazi, agora vais-te ver comigo, que sou sua filha!» Comecei a chorar, mas o maratonista não se apercebeu, as suas braçadas amplas e regulares eram o único som que os seus ouvidos escutavam. De resto, poucas lágrimas, em toda aquela água foram realmente uma coisa de nada.

Uma noite em que fora dormir cedo e acordara uma hora depois, saí do quarto e vi, ao fundo do corredor, o meu marido a acariciar uma das tantas estátuas que me reproduziam. Não eram carícias de comprazimento de autor, eram carícias sensuais e, tra­tando-se de uma estátua, até vagamente obscenas. Fiquei a observá-lo sem que ele me visse, e disse-lhe: «Ei, estou aqui eu em carne e osso, o que estás a fazer com as mãos no rabo de uma estátua?» O meu marido deu um salto e olhou-me quase com ódio, mas depois sorriu. «O que estás para aí a pensar? De qual­quer das maneiras és sempre tu», disse-me. Mas ficou perturbado, começou a mexer-se com aqueles seus modos de marioneta de quando se sente apanhado em flagrante, e depois começou a tagarelar sobre muitas coisas sem importância nenhuma, só para preencher o silêncio. Dentro de mim senti crescer um vómito involuntário, pequeno bolo de náusea que lhe queria ter vomi­tado aos pés, em sinal de um desprezo que não me parecia que pudesse sentir. Para desdramatizar, pegou-me à força na mão e pô-la no peito de uma estátua. «Sente que bonitas mamas tens», disse em tom excitado. Eu comecei a rir e tirei a mão, que ins­tintivamente limpei às calças do pijama.

Naquela noite, na cama, o meu marido estendeu uma mão para me fazer uma carícia. Esta era a sua técnica de aproxima­ção, sempre a mesma: estendia uma mão, tocava-me, depois aproximava-se, beijava-me e toca a andar. A técnica só mudava quando não estávamos na cama, mas mesmo nesse caso havia um único tipo de aproximação: via-me a passar e dizia-me: «Vem ali um instante.»

Nessa noite, quando me estendeu a mão, eu também lhe estendi a minha para lhe retribuir a carícia, mas disse-lhe: «Desculpa, estou muito cansada.»

E nessa noite sonhei com Ricardo Coração de Leão, era o dia do seu casamento com Berengária na capela de São Jorge, em Limassol. Foi uma cerimónia solene, mas sem beleza. Perto de mim estava uma jovem mulher vestida de escuro, que me sus­surrou ao ouvido: «A 26 de Março de 1199, uma flecha lançada ao acaso de um castelo rebelde em Lomousin porá fim à sua vida.

Dele se dirá que foi um mau filho, um mau marido, um mau rei, mas um corajoso e magnífico soldado.»

Acordei completamente banhada em suor e com um grito que me ficou entalado na garganta. Talvez ainda não estivesse com­pletamente acordada quando procurava inutilmente gritar, mas éprovável que emitisse sons estranhos, porque o meu marido disse-me: «o que é que tens?» Ao sentir os seus braços a abana­rem-me, respondi-lhe: «De ti nem tão-pouco se dirá que foste um bom soldado.»

Naquela manhã, enquanto tomávamos o pequeno-almoço, perguntou-me: «Por que é que deveria ser um bom soldado?» Olhei-o estupefacta, como se me estivesse fazendo uma pergunta que já continha em si a mais óbvia das respostas. «Porque todos o deveríamos ser», respondi-lhe. «Ninguém excluído.»

Depois daquela vez, aconteceu-me apanhar frequentemente o meu marido em poses amorosas com as estátuas. A princípio eram poses sobretudo românticas, e por isso até um pouco comoventes, mas mais tarde foram obscenas, e desta feita bastante grotescas e ofensivas. Com o passar do tempo não deu sequer muita impor­tância ao facto de eu me aperceber disso, limitava-se a encolher os ombros em sinal de desinteresse, ou então continuava como se eu lá não estivesse. Uma noite disse-lhe que a situação me parecia preocupante, e que se fosse a ele iria ao médico. (dá fui», respon­deu-me, «nenhuma anomalia.» «Disseste-lhe que apalpas estátuas?»Desatou a rir e respondeu-me: «De modo nenhum.» «E então?»«E então, um bom médico quando observa um paciente deve aper­ceber-se sozinho se há anomalias. Não encontrou nenhuma em mim.» «Esse tipo de médicos está habituado a ter pacientes que lhe dizem o que fazem», disse-lhe. «Então quer dizer que são médicos medíocres», respondeu-me, «eu fui ao melhor, portanto deduzo que apalpar estátuas seja normal. Tu, sim, tu é que devias ir ao médico.» «Eu? E porquê, o que faço eu de estranho?» «Estás a tor­nar-te uma mulher artificial, as estátuas são menos puritanas do que tu, não se fazem tão difíceis.»

Naquela noite perguntei-lhe se tinha desejos que nunca me confessara, e então disse-me que tinha muitos, mas que me conhecia bastante bem para nem tão-pouco mos propor, pois a minha resposta desiludi-lo-ia. Disse-lhe que antes de fazer juízos definitivos devia dizer-me o que lhe ia na cabeça. Olhou-me com o injustificado desprezo de quem, mostrando um bilhete de metropolitano a um selvagem, se espanta ao notar a total igno­rância do outro na matéria. Disse-lhe: «Pelo menos, tenta.» Então ele sentou-se diante de mim e começou a dizer que os corpos humanos se desgastam, que com o passar do tempo se aborrecem uns dos outros, e para que um corpo não seja maçador deve fazer coisas que nunca fez, tomar outros rumos. Nesse momento senti que era eu que o olhava com desprezo. Propus-lhe: «Continua e explica-te melhor, dá exemplos.»

«Bom», disse. «No princípio tu eras uma deusa só pelo facto de estares nua, bastava que te despisses para te transformares numa deusa. Durou o tempo que podia durar, agora devias mudar. Queres exemplos, eu dou-tos. Podíamos começar por eu ir para a cama com outras mulheres e tu com outros homens, darmo-nos um tempo de três ou quatro meses, e depois recomeçarmos jun­tos. Sabes o que é curioso entre dois corpos? É que durante os primeiros tempos cada um está habituado a outros contactos com que entrara em sintonia e, não sou só eu quem o diz, a sintonia aborrece muito, mesmo quando, como entre nós os dois, atingiu um excelente nível. Temos de atingi-la com outros e depois reco­meçarmos nós dois, voltar a procurá-la. Devia poder dizer: "Esta noite esta mulher será minha", mas não saber como será. Nos pri­meiros tempos nunca se sabe como será, pode haver sempre sur­presas. Se nós nos esquecermos de como somos juntos, podemos ser de novo uma surpresa um para o outro. Naturalmente tam­bém esta seria uma fase, não poderia continuar por tempo inde­terminado. Entendes o que quero dizer? Quero dizer que passado algum tempo não custaria nada reencontrarmos a nossa sintonia, e seria enfadonho. Numa segunda fase podíamos escolher reci­procamente os companheiros, no sentido em que devíamos aprová-los. A excitação poderia residir exactamente na expecta­tiva da aprovação do outro e, se ele não a desse, desistir e pro­curar noutro lugar. Não devia haver regras, que fique bem claro, tu poderias até dizer-me coisas do tipo: essa não, porque quase não tem mamas. Seria uma espécie de adoração do outro, não sei se estás a perceber. Seríamos completamente manipulados, tu por mim e eu por ti. Poderia decidir obrigar-te a escolher sempre homens que te metem nojo, e ter prazer pelo facto de saber que os estás a suportar contra a tua vontade, que o fazes por mim. Depois tomar-te-ia com uma fúria impetuosa e tu descobririas que nunca antes gostaras tanto de mim. Também esta fase podia ter uma boa duração, mas depois tornar-se-ia igual­mente enfadonha, e seria preciso continuar. Podíamos encon­trar outro casal, tornarmo-nos interpermutáveis, eu com outra e tu com outro, mas simultaneamente e na mesma casa. Seria fantástico encontrar-te no corredor, enquanto corres para a casa de banho com o sémen do outro a escorrer-te entre as coxas, ouvir através da parede alguns típicos gemidos teus, e enquanto fodo a outra poder pensar: "Ela, ou seja, tu, está quase a vir-se." E talvez pôr-me até a fazer tempo, e ficar con­tente se vos apanhar. Depois devíamos fazê-lo os quatro jun­tos, e vocês as duas, mulheres, deviam estar continuamente sob exame por parte de nós os dois, homens, ser continuamente interrogadas sobre os nossos comprimentos, durezas, desempe­nhos... Mas também isto, quanto tempo poderia durar? O seu tempo, nada mais. E depois recomeçar, mudar novamente de rota, fazer com que te tornes lésbica, primeiro obrigar-te e mais tarde convencer-te de que te agrada verdadeiramente, constatá-lo, achá-lo humilhante para ti e exaltante para mim. Estás a ouvir-me?»

Estava ainda sentado na cadeira, quando me levantei e lhe dei um pontapé no meio do peito que o fez cair no chão e bater com a nuca. Mas não se magoou muito, aliás, voltou imediata­mente a pôr-se direito e até sentiu vontade de rir. Disse-me: «Portanto, o que é que a minha freirinha concluiu? Interessa-lhe o artigo?»

Não pensava nada sobre ele; no centro dos meus pensamen­tos, nesse momento, estava o meu filho e eu. «Prefiro continuar a acreditar que és melhor do que aquilo que dizes», respondi-lhe.

Ontem à noite, enquanto o meu filho via televisão e eu fazia o jantar, receei por ele. Já se sabe como é que são as crianças, são capazes de guardar segredos perigosos. Por vezes não falam.

É interessante observar todas as mudanças de expressão de uma criança enquanto vê os desenhos animados, quase percebe­mos a história, apesar de estarmos ocupados com outra coisa. Eles estão ali, sentados no sofá, mas na realidade já ali não estão: acompanham as tremendas quedas do cimo de um arranha-céus que fazem um galo de pouca dura, o cilindro que reduz um gato a uma bolacha a andar. Riem da comicidade de uma desgraça que nunca é perigosa, e ficam satisfeitos com isso. Ao olhar para ele, temi que não conseguisse acompanhar completamente aquelas aventuras, que alguma coisa o perturbasse. Então, parei de cozi­nhar e sentei-me ao pé dele. Perguntei-lhe: «Quando estás com o papá, nunca te acontece encontrar pessoas estranhas?» Não res­pondeu, nem tão-pouco se deu conta de que eu estava a falar, permaneceu com o olhar hipnotizado no ecrã, na habitual cena final em que o gato persegue o rato com um mata-moscas. Então, repeti a pergunta e ele interrogou-me: «Que tipo de pes­soas estranhas, estranhas como?» «Estranhas no sentido de serem diferentes, por exemplo, diferentes de ti e de mim, dife­rentes das pessoas que geralmente se vêem na rua)), respondi­-lhe. Olhou-me perplexo, estava intrigado, procurava imaginar de que modo essas pessoas poderiam ser diferentes. «Por que me perguntas isso?», disse-me. «Por nada, só por curiosidade, por­que talvez tivesses conhecido pessoas estranhas e te apetecesse falar sobre isso, sei lá, uma pessoa gordíssima, ou magríssima, ou altíssima... ou baixíssima. A cada superlativo deu uma grande gargalhada, projectava sabe-se lá onde a imagem, via-a. Logo a seguir, pôs-se a desenhar estas quatro pessoas e perguntou-me qual delas me fazia rir mais. Respondi-lhe que eram todas muito cómicas e fiz-lhe a mesma pergunta. «A mim também», respon­deu, «todas elas me fazem rir, as pessoas ridículas fazem rir, não é, mamã?)) «E o papá, o papá conhece pessoas ridículas?», per­guntei-lhe. «Não, o papá conhece pessoas como vemos na rua, mas conhece poucas.»

Senti-me melhor, respirei fundo e acabei de fazer o jantar. Depois de comer pusemo-nos a desenhar juntos. Eu não sou capaz de fazer nada, borro as folhas só para lhe fazer companhia. Ele, pelo contrário, é bom, mas ultimamente um pouco macabro. Desenhou quatro tipos de túmulos diferentes e perguntou-me qual deles me metia mais medo, depois desenhou um homem sem cabeça e sem pés, todo remendado com costuras, à Frankenstein. No lugar das mãos fizera-lhe dois ganchos, e no gancho direito pendurara-lhe a cabeça ensanguentada. Disse-lhe: «Bolas, que raça de mundo tens na cabeça!» Levantou o olhar na minha direcção e, rindo, respondeu-me: «É o meu mundo mortal!»

A seguir fomos para a cama e adormecemos. Ainda faz calor como se fosse Verão, de modo que deixámos a janela aberta, fechando apenas as persianas para não acordarmos demasiado cedo com a luz.

Eu já não percebo quando é que sonho, penso, ou tenho visões. Lembro-me de na noite passada o meu filho, como é cos­tume, se ter mexido como um possesso, de ter suado exalando o cheiro bom do seu corpo, algo que fica no ar à sua volta. Os sonhos que se têm completamente durante o sono são algo que fica nas pregas desconexas do cérebro, galopam por caminhos que os levam apenas até aos intestinos, aonde tudo de nós, mais cedo ou mais tarde, chega. Não me lembro de alguma vez ter tido um sonho inteiro durante o sono. É por isso que nunca os digeri e reduzi a excrementos. Guardei-os sempre um pouco dentro e um pouco fora. Se deixarmos um buraco aberto nos nossos sonhos, eles nunca se vão embora completamente. Sonhos anti­gos regressam de repente, enquanto estás a podar uma planta no terraço, enquanto bocejas, enquanto estás sozinho e não sabes o que fazer. «Olá, lembras-te de mim?» «Lembro-me e de que maneira, aquele belo sonho de há uma década, foste dar outras voltas?» «Mais do que isso, visitei cabeças, mas nem todas como a tua, por algumas passei apenas assim... quase sem passar.»

Esta noite poderia ter feito um pedido do género: «Sonhos meus, peço-vos, voltem a visitar-me de vez em quando!» Ou tal­vez não, quem sabe que outra coisa terei pensado ou dito, o que é certo é que alguém respondeu: «Sim, mas tu sonhas os meus sonhos!» Então, soergui o busto e vi-o sentado na poltronazinha, com as pernas cruzadas.

- Estamos bem arranjados - disse-lhe. - Agora até os acto­res.

- Olha que eu não sou o actor, sou mesmo ele.

- Não, não, tu és o actor.

- Então ouve, tu como é que sempre o imaginaste?

- Com esta cara.

- Estás a vê-lo?

- Sim, mas também há fotografias suas, eu conheço a verda­deira cara dele.

- Se tivesse vindo com a minha cara ter-te-ia causado menos impacto, quando tu pensas em mim é assim que me vês, com o rosto de Peter O'Toole, assim vestido e assim bronzeado.

- Admito-o.

- Ainda te impressiono, hem?

- Sim, bastante, mas não como outrora, quando vi o filme pela primeira vez.

       - Vá, cumprimenta-me como deve ser, presta-me as devidas honras.

       - Olá, Lawrence, de que furto de sonhos estás a falar?

       - Do Ricardo Coração de Leão, o meu herói predilecto. Porque é que sonhas com ele?

- Não existem sonhos pessoais e, além do mais, não era a primeira vez que sonhava com o Ricardo, nem tão-pouco sei quantas vezes terei sonhado com esse cruzado, talvez precisa­mente porque tu sonhavas com ele.

- Sou bonito, hem?

- E bêbado.

- Não, nem uma gota, aliás, podias oferecer-me.

- Esquece, Lawrence.

- Chama-me Ned.

- Nunca.

- Está bem, chama-me o que quiseres e vamos ao que importa. Por que é que pensas no suicídio?

- Não penso absolutamente no suicídio, quando muito no homicídio, pois visto que sonho com quem sonho, parece-me ser mais apropriado.

- Mas não te parece que talvez seja uma pontinha de suicí­dio, um fiozinho de vontade, misturada com todo aquele rancor... vá, diz-me a verdade, às vezes gostarias de estar morta.

- Às vezes todos gostariam. Mas, pelo contrário, divirto-me muitas vezes com a ideia de carregar num botão e dizer: «XY», e aquele, pronto, eliminado, um número de telefone que ninguém    atende. Nunca marcaste o número de telefone de quem morreu?

- Não.

- Eu sim, sempre, cada vez que alguém morre marco o seu número e fico ali à espera até a linha cair.

- A mim acontecia-me o contrário, eram os mortos que me telefonavam, eu atendia e do outro lado falavam de demasiado longe para que os pudesse ouvir.

- Então o que devo fazer quando sonho com o Ricardinho do Topete, devo dizer-lhe: «Vai-te embora, que tu és propriedade do Lawrence da Arábia?»

- Não, se te agrada, sonha também com ele. Bom, tu gostas mesmo de sonhar com essas pessoas, vê-se pelo aspecto do teu filho.

- Porquê?

- Parece-se comigo, parece-se connosco, este lindo lourinho.

- Deixa estar o meu filho. Queres dizer-me alguma coisa? - Sim, quero dizer-te que nem todos os que hesitam estão perdidos.

- Porquê, achas que estou hesitante?

- Um pouco, mas farás aquilo que deves fazer, nem sequer falta muito tempo, quando vires que estás próxima do momento...

- Olha que não tenho qualquer intenção de me matar.

- Está bem, não te mates, eu queria dizer que quando chegar o momento em que deverás fazer...

- Fazer o quê?

- Queres deixar-me falar?

- Fala.

- Ah, bom, em suma, quando chegar esse momento em que decidirás cumprir o teu dever, qualquer que ele seja, só tens de me invocar a mim e aos outros. Em relação a mim, bastar-te-á       dizer Aurans iblis.

- Também não gosto desse nome.

- Talvez nesse momento esteja a meditar em cima do rochedo de Chalus, onde o nosso herói foi trespassado pela flecha mortal. Se assim for, chegaremos juntos. Quanto ao outro, aquele que queria dar outra forma à Ásia, tal como eu, trata tu disso, mas chama-o.

- Está bem, quando chegar o momento, farei o que puder.

 

Hoje vi o meu dentista e beijámo-nos. Li num jornal que uma famosa actriz de Hollywood ficou noiva de um dentista. Eu não fico noiva do meu dentista, beijo-o apenas de vez em quando e sempre que o beijo preocupo-me, porque penso que é um dentista e que talvez as bocas dos outros lhe metam até um pouco de nojo. Antes de ir ter com ele lavo sempre demoradamente os den­tes, esfolo as gengivas até sangrarem, passo o fio dental fissura a fissura. Depois encontramo-nos, comemos, beijamo-nos e eu preocupo-me, pois penso que posso ter sei lá que cheiros na boca. Também ele comeu antes de me beijar, mas para ele a questão é diferente, é dentista, é como se a profissão lhe purificasse conti­nuamente o hálito e os dentes. Mas eu não sou dentista e, por­tanto, não tenho a obsessão das bocas, e elas de forma geral não me metem nojo como com certeza lhe metem a ele. Quando sinto que a sua língua se enfia dentro da minha boca fico em pânico, começo a medir a quantidade que introduziu, se a introduz pouco penso que está a sentir nojo da minha cavidade oral. Entre um beijo e outro mastigo sempre pastilhas americanas de modo neu­rótico, duas mastigadelas só para me refrescar um pouco e depois deito-as fora. Mas quanto tempo dura o efeito benéfico de duas mastigadelas? E os resíduos de comida entre os dentes, quanto tempo demoram a fermentar e a produzir mau cheiro? E o que é que fermenta primeiro: a carne ou a omeleta? Quando pedimos os pratos no restaurante, estou ali a pensar durante horas, e no fim peço sempre aquilo que me parece mais neutro, quer para o hálito quer para os dentes. «Realmente, és muito estranha no que respeita à comida», disse-me hoje. «Porquê?» «Comeste batatas cozidas, pepinos não temperados, morangos e ananás. Achas que isso é almoço?» Respondi-lhe que queria sentir-me leve, o que mais lhe podia dizer, que a salada se entala entre os dentes e o toucinho da amatridana [1] se desfia e se enfia nas fissuras? No restaurante, não podemos usar palitos na companhia de um den­tista, visto que para eles é um instrumento infernal, algo que pode estragar-te a mastigação instantaneamente. Com um den­tista precisamos simplesmente de ter dentes perfeitos.

Hoje, entre um beijo e outro, disse-lhe que às vezes me ape­tece matar. «É normal», respondeu-me, «especialmente para uma pessoa como tu, isso parece-me muito normal, admirar-me-ia do contrário. Tens um grande sentido de justiça, é um tema que te persegue desde miúda, sempre compreendeste os erros viscerais, mas os cerebrais não tanto, desses nunca tiveste piedade.» Perguntei-lhe se não o horrorizava beijar uma pessoa que dizia estas coisas. «De modo algum», disse, «pelo contrário, sinto-me honrado, parece-me que uma pessoa como tu, não há nada melhor do que beijá-la. Além disso, não te espantes muito, por­que todas as pessoas podem matar, o bom em ti é que só o farias por justiça, para limpar máculas e culpas que não saberias elimi­nar de outro modo. Achas que podia ficar horrorizado? Eu admiro-te por isso.» A seguir, perguntou-me de que modo pen­sava matar as minhas vítimas e eu respondi-lhe que associo sem­pre à morte um grande derramamento de sangue, uma grande purificação com o espargimento, com o sacrifício. E disse-lhe que cada vez mais sentia que me custava bastante não o poder fazer, que me dava conta disso sobretudo nesse momento. «Isso é sede de justiça», respondeu-me, «durante toda a tua vida alimentaste o sonho de conservar a pureza à tua volta e não sabes perdoar-te

 

[I] Amatriciana: um molho para massas feito à base de toucinho, cebola e tomate, polvi­lhado com queijo de ovelha, Deve o seu nome a uma pequena cidade chamada Amatrice, situada na região do Lácioo (N. da T.)

 

por não o teres conseguido. Quem teve de te fazer mal, fê-lo ape­sar da tua vontade de não o deixar fazer. Tu só podias dar aulas na cadeia. Sabes, às vezes quando falamos ao telefone e eu te pergunto o que estás a fazer e tu respondes: «Nada de especial, agora vou para a cadeia», e depois me dizes tudo o resto, tudo o que vais fazer até ao fim do dia, detenho-me sempre naquela frase, quando me dizes « Vou para a cadeia», com o tom de quem se rende e como se confessasse: «Sabes, depois do que fiz o que é que me resta? Vou para a cadeia.» Vais para a cadeia e depois voltas para casa. Acho que talvez devesses deixar de dar aulas na prisão, sabes? Talvez não te faça bem. Há cinco anos, quando te aconteceu... em suma, nessa altura devias ter mudado de vida, ter ido dar aulas a miúdos numa escola. Já estiveste muito tempo na cadeia, viste e ouviste muitas coisas.» Disse-lhe: «Sabes, na pri­são também estão muitas pessoas boas.» «Eu sei», respondeu-me, «por isso é que já não te faz bem ir lá.» «Mas percebeste o que eu queria dizer?», perguntei-lhe. «Sim, percebi, queres dizer que estão lá muitas pessoas que mataram com razão.» Depois indi­cou-me com a mão o Sol que estava alto, e olhou-me com cum­plicidade, e não foi preciso dizermos que aquela luz, por vezes, nos enlouquece, que o clarão talvez ofusque exactamente porque toma todas as coisas muito nítidas, com contornos precisos, muito delineadas e claras, e que subitamente, vendo tudo claro, pode acontecer até que se tome alguma decisão definitiva e arrojada. «Diz-me, como é que os matas?», perguntou-me. E eu res­pondi-lhe: «Esquartejo-os e depois penduro-os em ganchos, como em alguns quadros de Francis Bacon, enquanto eu fico sen­tada num banco a olhar o gotejar do seu sangue injusto, que ao sair dos seus corpos injustos se transforma em sangue honesto.» Então empurrou-me docemente contra uma árvore e recomeçá­mos a beijar-nos daquele modo prolongado que é a nossa maneira de recuperar todos os anos da nossa vida em que não nos beijámos. Eu senti-me menos obcecada com o meu hálito e com os meus dentes, pois aqueles seus beijos honestos davam-me um novo vigor e vinham-me outros pensamentos à cabeça, coi­sas como: «Reinarei rodeada pelos meus servos que serão o leão, a serpente e o leopardo, e com eles me transformarei na trindade que mata; na Anatólia, Cíbele é a rainha dos leões; no Egipto, Sekhemet tem a juba em chamas; na Índia, Kali está montada num tigre; em Dr, Inanna está montada em dois leões; Ártemis tem um colar de testículos de touro.» E muito perto ouvia-se o ruído do mar, o dentista tinha o peito quente, e entre um beijo e outro sentíamos vontade de rir, e ele dizia-me: «Gosto muito de assassinas», e eu, não sei porquê, pensei que nunca lhe vira os pés, que estava a beijar um homem de quem não conhecia a forma dos pés, e disse-lho e ele respondeu-me: «Não seja por isso», e de imediato tirou um sapato e depois a meia e mostrou­-me um pé, que me pareceu bonito de mais para ser um pé. A seguir descemos até à praia e sentámo-nos à beira-mar, numa gaivota ancorada, e não nos beijámos nem falámos enquanto o Sol se encobria lentamente e o dia ficava mais ventoso e algo se tornava triste e sombrio. Antes de nos irmos embora, voltei-me para olhar outra vez o mar que sob aquele céu já não tinha uma cor bonita e, ao olhá-lo, vi Acre como se fosse uma recordação minha, uma coisa verdadeiramente minha. E então foi como se estivesse naquele massacre de 20 de Agosto, quando Ricardo, a sangue-frio, declarou que Saladino violara o pacto e ordenou o extermínio dos dois mil e setecentos sobreviventes da sua guar­nição. E num instante vi tudo, vi os soldados a empenharem-se com fervor no massacre, agradecendo a Deus esta boa oportuni­dade de vingança. Vi-os morrer a todos, mesmo as mulheres e os filhos dos prisioneiros. Vi que pouparam apenas alguns homens robustos que depois usaram como escravos, enquanto Ricardo estava montado no seu cavalo a olhar todo aquele derramamento de sangue com uma expressão quase ausente, com os cabelos cor de cobre esvoaçantes ao vento, a tez nórdica avermelhada, tam­bém no peito, depois de apanhar tanto sol.

 

Quando o meu marido me disse que estava a organizar uma exposição das suas esculturas, respondi-lhe que me parecia uma óptima ideia. Brincando, acrescentei ainda que finalmente tería­mos um pouco mais de espaço no nosso apartamento.

«Porquê?», perguntou-me. «Porque imagino que quererás expor todas as esculturas que temos em casa.» «Não, não», respondeu, «estas já fazem parte da mobília, não vão a lado nenhum. Para a exposi­ção levarei apenas as novas que tenho no atelier.»

Estivera apenas uma vez no seu atelier, poucos dias antes de nos casarmos. Disse-me logo que era cioso daquele lugar e que não gostava de levar lá ninguém. Não me causou nenhum espanto ouvi-lo dizer aquilo, estava a casar-me com um homem bastante estranho. Toda a vida passada do meu marido era estra­nha: uma infância à Dickens, uma adolescência à Port Royal, uma juventude sem amores, preenchida com prostitutas. Espantava-me apenas o facto de eu me casar com ele sem dar muita importância a estes aspectos, sobretudo ao último, que achava bastante abominável. Deduzi que fosse um homem cheio de encantos, e que eu casava com ele para os descobrir.

Naquele dia, quando me disse que exporia novas esculturas, apeteceu-me imenso ir ao seu atelier. Não lhe falei disso porque teria sido inútil, era evidente que se até àquele momento não me tinha pedido para ir vê-las, era porque não tinha nenhuma inten­ção de o fazer. Nesse dia fiz pela primeira vez uma coisa às escondidas: tirei da gaveta da mesa-de-cabeceira as chaves do atelier e fui lá sozinha. Durante a hora que levei a atravessar a cidade, tentei imaginar que género de esculturas poderiam ser. Não me ocorreu nada a não ser uma única certeza: o tema já não podia ser eu.

Afinal enganei-me, abri a porta e fiquei ali, à entrada, num estado de repugnante apneia que por alguns segundos me tirou a visão, convencendo-me de que ficara cega de repente. Mas a visão depressa regressou e revi o que já vira. O tema continuava a ser eu, mas desta vez não estava em pé ou recostada na pol­trona com as pernas sobre o braço desta. As oito estátuas que me reproduziam nua assumiam oito posições obscenas diferentes. Fechei a porta atrás de mim. Olhei-as primeiro no seu conjunto, depois uma a uma, detendo-me em cada pormenor. Tinham três coisas em comum: todas elas tinham orifícios autênticos e pene­tráveis, riam e podiam encaixar-se obscenamente umas nas outras, numa perversa roda orgíaca. Saí do atelier e fui comprar uma polaróide. Fotografei-as todas, infelizmente eram demasiado pesadas e, por isso, desisti do encaixe a que estavam evidente­mente destinadas para a exposição. Em seguida voltei para casa, coloquei as fotos num sobrescrito que pus dentro da mesa-de­-cabeceira do meu marido e esperei por ele. Entretanto, passei em revista as habituais estátuas de casa que em tempos me haviam perturbado. Acariciei cada uma delas, depois tirei do armário as minhas melhores roupas e vesti-lhas.

Quando o meu marido regressou a casa e viu os manequins vestidos, disse: «O que vem a ser esta palhaçada?» «Nada que se compare com a que me estavas a preparar», respondi-lhe, esten­dendo-lhe o sobrescrito.

Quando o abriu ficou contrariado, disse que me queria fazer uma surpresa, que devia ver aquelas estátuas apenas na exposi­ção, que não esperava mesmo nada de mim que eu fosse bisbi­lhotar, que agora, puff, como a surpresa evaporara, podia até nem ir à exposição. Digo-lhe: «Estás a brincar, é tudo fita, não?» De­pois dei pontapés a tudo o que encontrei pela frente, e ao que não dava pontapés dava murros, e aquilo a que não dava murros fazia tombar, passando-lhe por cima o antebraço. Uma fúria de três minutos massacrara o cenário habitual, transformando-o num ambiente de interior devastado por um tremor de terra. Ele deteve-me, agarrando-me como um enfermeiro agarra quem per­deu o juízo, lançando-se para cima de mim e aplacando-me sócom a força. Porém a sua força não lhe bastou, porque eu dava pontapés como uma mula, e levantando-me com um golpe de rins consegui dar um último pontapé, acertando em cheio na bar­riga de uma estátua, que caiu ao chão com um fragor tal que aba­nou a casa até aos alicerces. «Mas quem és tu?», gritava-lhe. «Que raça de nojento, pedaço de merda, filho da puta és tu?» Libertei­-me dele bruscamente e com toda a ira que me esventrava por dentro dei um último murro na parede que me esfolou os nós dos dedos da mão direita. Deixei-me então cair no chão, agonizei sozinha, mas até parecia uma mulher maori, daquelas que fazem tatuagens de linhas paralelas, linhas de baba que da boca descem pelo queixo, numa alusão ao sangue. «Só tens uma saída», disse­-lhe. «Ou mandas fundir aquela mercadoria ordinária e não se fala mais nisso, fazemos de conta que ficaste louco por um curto espaço de tempo e que logo depois recuperaste o juízo. Ou então fazes a exposição, como pretendia essa cabeça podre e bichosa, e separamo-nos no mesmo dia.»

Naquele dia, o meu marido assustou-se de verdade. Não me conhecia assim como me tinha visto. Aproveitei-me do seu ator­doamento e consegui que se fizesse um caldeirão daquela porca­ria, e que na exposição aparecessem as estátuas de sempre e, assim sendo, queria que elas estivessem vestidas como eu as ves­tira, para aquela linda festa que o fizera encontrar quando che­gou a casa; queria-as vestidas, cobertas como o Papa Pio IV obri­gou Daniele da Volterra a cobrir as barrigudas e os barrigudos de Miguel Ângelo. Aceitou todas as condições, estava arrasado.

Naquela noite, quando estávamos na cama, cada um distante no seu canto, perguntei-lhe friamente: «Por que motivo fazes também aqueles buracos tão reais?» Não sei se por raiva ou dor, mas soluçava, e essa minha pergunta tirou-lhe cá para fora o choro todo, tornou-o sonoro. Quase engasgado, respondeu-me: «Para as foder.»

 

Há muitos anos, o meu pai conheceu uma mulher que se apre­sentava como Louise Cimici, com acento no T. Não era francesa, não, mesmo aquele Louise era uma sua faceta de miséria. Foi ver o meu pai, que cantava o Macbeth no Maio Musical de Florença. No dia seguinte escreveu-lhe uma carta e deixou-a no hotel, no outro dia mandou-lhe garrafas de vinho, no dia seguinte ainda lhe telefonou e no outro a seguir foi ter com ele.

Ficara possuída pelo artista e quisera conhecê-lo pessoal­mente. A ele, pareceu-lhe uma velha, apesar de não o ser, pois tinha os mesmos cinquenta e poucos anos do meu pai, mas vendo-a assim como se apresentava parecia ter muito perto de setenta. Poucos cabelos grisalhos apanhados num carrapito na nuca, e em volta aquela auréola de cabelos em crescimento, encaracolada, que faz com que todos os penteados estejam sem­pre descompostos.

O meu pai ficou espantado ao descobrir que tinha a sua idade, e talvez mal tenha escondido o espanto com os olhos, visto que ela lhe disse: «Sim, eu sei, pareço muito mais velha, mas o que quer, mestre, a vida às vezes faz isto e a minha vida... deixemos estar, teremos oportunidade de falar disso numa próxima vez.»

E a oportunidade surgiu no encontro seguinte, quando a minha mãe e eu fomos ter com o meu pai e ela se apresentou no hotel, dizendo que estava a passar, por acaso, por aqueles lados. «Mas que bonita família!», dissera, e eu desde logo a odiei e a olhei de esguelha, soltei o meu hálito no ar esperando que algo fosse fulminado. Percebeu seguramente o meu mau génio de miúda de dezoito anos, que desde a infância soubera que no mundo há quem dê sorte e quem dê azar. Ela dava azar e talvez soubesse disso. Os que o dão são as primeiras vitimas e trazem consigo as marcas, a mais evidente é o alusivo desprezo que têm sempre no olhar. Quem não os reconhece acha que são pessoas altivas, de nariz emproado, quando na verdade são pessoas tris­tes que alimentaram o desprezo por si próprias, desprezo que, por sobrevivência, se estendeu ao mundo inteiro.

Era óbvio que gostava do meu pai, mas, consciente de si, a Cimici expunha-se pouco, procurava apenas incutir, gota a gota, um pouco de angústia no coração da minha mãe. Dizia-lhe: «Ah, um homem tão bonito, famoso, fascinante, devia estar muito alerta... a senhora, eu no seu lugar... tinha uma grande úlcera.» A minha mãe permanecia incólume como sempre, com o seu olhar feito de tudo o que tinha em si de bom e justo, de uma honestidade que o mal nem sequer calcula. A Cimici roia-se toda por vê-la tão invulnerável e cada vez mais bela, firme na sua posição de mulher coroada. Suave em cada gesto, a minha mãe limava os aguilhões que cresciam na Cimici a ponto de quase a ferir, como se cada osso seu, para se rebelar contra a má sorte, a furasse. A minha mãe não se dava conta de que a Cimici era sua inimiga, vivia feliz e tolerava todos sem nunca julgar o mundo.

 

Conhecíamos a Cimici há já dois anos, desde que os príncipes para quem trabalhava se separaram e a despediram. Mas como a Cimici e a princesa se tornaram praticamente amigas ao longo dos anos, esta pensou que fosse coisa bastante excêntrica mudar­-se, por uns tempos, para a casa de campo da governanta desem­pregada. A Cimici não queria acreditar, perdera o ordenado, da indemnização nem sombra, mas a princesa, que o marido pusera fora de casa, estava na sua casa! O príncipe italiano nem tão­-pouco os filhos lhe deixava ver, vendava-os sozinho e sozinho os atirava para a água para que aprendessem a nadar. Mas a prin­cesa pouco se importava com isso, porque os filhos, para alguns, são coisas que se substituem facilmente.

A Cimici era feliz, a princesa pagava todas as contas de casa, fazia compras principescas e comia-se e bebia-se à grande e à francesa. E depois, santo Deus, era uma princesa, uma princesa em casa transforma em príncipe até um interruptor da luz. Ela, a Cimici, se não era propriamente uma princesa, podia pelo menos começar a considerar-se baronesa.

Mas, passado pouco tempo, apareceu-lhe um bico-de-obra, uma verdadeira preocupação. A princesa já há muito tempo que não dava uma queca, o que fazer para não a deixar escapar, para não perder aquele nobre e fabuloso negócio?

Aquela mulher era esperta, para manter calma a aristocrata­zeca precisava de um divertimento duradouro, um pelo qual ela se pudesse interessar verdadeiramente. E quem melhor do que o meu pai, famoso cantor lírico, homem bonito mas casado e que, portanto, não a pode levar dali, bem pelo contrário, a mantém em casa da Cimici, continuando a pagar todas as contas?

Engendrou o seu belo plano. Como primeira jogada, fez com que a convidássemos para jantar na nossa casa levando consigo a princesa, «pois está comigo durante este período e está muito em baixo, pobrezinha». Mas a verdadeira intenção era bem dife­rente, a verdadeira intenção era: «Vejam quem eu sou, trago uma princesa a jantar em vossa casa!»

Apresentaram-se uma noite todas impregnadas de cânfora, devido a uma sessão de acupunctura que, segundo elas, lhes fizera desaparecer todas as dores antigas. A Cimici estava vestida como uma freira laica, a princesa com um vestido de malhinha rosa-bebé, um pouco aderente de mais para o seu corpo. Tinha a nobre fraqueza de uns lábios sempre um pouco intumescidos, uma camação cor de porquinho e dois olhos azuis sempre excita­dos. Ambas comeram muito, comportando-se sempre de um modo muito delambido, que seria embaraçante até para duas raparigas na flor da juventude.

Ah, como eu as olhava, com que desconfiança, quase não tocava na comida por causa do repetitivo e obsessivo desejo de vê­-las degoladas a ambas. Como que intuindo, já as ameaçava, tinha dentro de mim algo que não encontrava espaço quando tanto o exigia.

       Um mês depois o meu pai voltou a cantar em Florença e a Cimici telefonou-lhe para o hotel, perguntando-lhe se queria ir jantar a casa dela e da princesa, que tinha muita vontade de o rever.

As duas piedosas mulheres receberam-no calorosamente, mas a Cimici logo se desculpou porque a comida estava ao lume e tinha de cozinhar. Quem sabe como estaria vestida a princesa naquela ocasião, o que é certo é que foi bastante lânguida e, quando o meu pai lhe perguntou onde era a casa de banho, acom­panhou-o ao patamar, mostrando-lhe o caminho. Deixou que ele entrasse, imagino que o ouviu a urinar e depois a lavar as mãos. Quando o meu pai saiu encontrou-a na sua frente, ali onde o acompanhara, com o rosto vermelho e toda palpitante.

Saltou-lhe para cima e beijou-o de modo convulsivo, visco­samente prolongado. Quando o largou, o meu pai disse-lhe: «Deve ter havido um estranho equívoco, não sinto absolutamente nada por ti.» O jantar decorreu muito modestamente, mas mais para a Cimici do que para a princesa, pois esta, naquela frente, fosse como fosse conseguia desenrascar-se. Com efeito, alguns meses depois caiu de amores por um violentíssimo vendedor de vinho podre de rico, que a levou a morar em não sei que América do Sul, onde tinha vinhas a perder de vista. Parece que, de quando em quando, até lhe dava uns murros pelo facto de ela não pou­par nem um único dos seus garçons, mas no geral parece que se entendiam bem.

Quem ficou sem ordenado e sozinha a pagar todas as contas foi a Cimici, curvada de raiva. Não lhe restava senão saltitar entre a sala de estar, o corredor e o patamar com as suas patitas secas como raminhos de Outono, e aquecer-se desse modo atlético, visto que não tinha dinheiro para nenhum outro tipo de combustão.

Quando o meu pai, ao regressar a casa, nos contou aquele jantar da Cimici e das suas intenções que ele bem percebera, a minha mãe abanou a cabeça, mas em seguida sorriu de pura compaixão e disse: «Pobre Louise, a que ponto chegou!» E depois esqueceu-se, foi para a cozinha fazer uma pizza para o jantar.

Eu, pelo contrário, não me esqueci de todo, aliás, fiquei tão furiosa por dentro que de noite me revirava na cama como uma martirizada sobre uma grelha ardente. Já noite dentro, à beira do desfalecimento, tive uma iluminação: Ângela.

Há anos que se fora embora da nossa casa e há dois anos sou­bera também que morrera, pobrezinha. A falecida Ângela, quem melhor do que ela?

Então invoquei-a, soltei as tranças e invoquei-a com a sua frase fatídica. Disse-lhe: «Vem, vem pela força dos meus cabelos.»

E ela apareceu imediatamente, sentada na beira da minha cama. Levei alguns segundos até que percebesse que era mesmo ela, porque estava nova, elegante e bastante bonita. Tinha uma cabeleira loura e ondulada que lhe caía sobre os ombros e um pouco sobre o lado esquerdo, à Veronica Lake, mas também o sorriso seco de quem muito sabe da vida. E, por isso, apercebi­-me de que era mesmo ela.

- Ângela, que bom, vieste!

- Claro, chamaste-me.

- E estás tão bonita!

- Tu também ficaste bonita, mas eu disse-o logo, disse-o no dia em que nasceste: menina feia, bonita mulher.

- E tu, como é que estás lá do outro lado?

A esta minha pergunta respondeu que estava bastante bem, sempre a dar longos passeios com Derbolo, que em vida fora a sua alma gémea. Não o sabia? Nem a todos era concedido encon­trar a alma gémea durante a breve viagem que fazemos na Terra. Mas ela, sim, tivera esse privilégio e até a reconhecera em vida, e agora, como prémio, estavam eternamente juntas. Pela minha expressão enviesada, percebeu que estava à espera de que me dis­sesse mais qualquer coisa. E então, sorrindo com a malícia com que sempre a recordava pintada nos olhos, disse-me: «Queres saber daquele canalha? Claro que o vi, muito elegante mas des­consolado. E vinha atrás de mim como um pobre cão, mendi­gando uma palavrinha. Mas eu, nada, calada, ia dar os meus pas­seios, só o Derbolozinho se voltava para trás, rosnando com umas dentuças de meter medo. Foi assim durante uns tempos, o que é que pensas? Tinha-se-lhe metido na cabeça fazer as pazes comigo e vinha sempre atrás de mim, a um passo de distância, sempre a resmungar queixoso, dizendo mil palavras sedutoras. Mas sedutoras no som, porque eu não as estava a ouvir, não conheço essas palavrinhas. Porém, um belo dia não aguentei mais, virei-me de rompante e gritei-lhe naquela cara de canalha: «Desaparece, porque senão tenho de te matar outra vez!» E então fugiu, desatou a correr para longe e na louca corrida tornava-se cada vez mais pequeno, e no seu encalço foi um gato papão que, pelo contrário, a cada salto se tornava maior, um giganton, até que o alcançou e o papou de uma só vez. Mas não o mastigou, não, comia-o e cuspia-o, divertia-se e enojava-se. Assustava-o. Mas que vontade de rir ao vê-lo como um rato, que gargalhadas! Às vezes o gato papão tinha-o dentro da boca deixando-lhe de fora as pernitas a balançar, que se debatiam e enlouqueciam. «Morde!», pensava eu. «Arranca-lhe a cabeça!» Porém, aqui em cima não se morde, morde-se para nada, morde-se para voltar a morder outra vez. Mas no que toca a rir, ah, que risadas! Agora, quando me vê, dá uma grande volta, vai-se embora, muda logo de ar e eu, por divertimento, sopro-lhe de longe como se fosse um gato.»

Desatei a rir com ela, dando murros na cama, ríamos às gar­galhadas como se fosse uma história de vida verdadeira, estáva­mos numa alegria que se quebrou apenas quando Ângela ficou de novo séria e passou uma mão entre os cabelos louros, como que a mandar embora aquele resíduo de bom humor que nos con­tagiara.

- Então? - disse-me -, o que queres de mim, visto que me evocaste? O que posso fazer?

E assim, contei-lhe a história toda da Cimici sem omitir nada, enfatizando as más intenções da chupa-nobres, que só de farejá­-los no ar ficava possessa a ponto de caminhar a alguns centí­metros do chão, como se na verdade a nobreza conferisse às pes­soas sabe-se lá que encantos, que de outro modo nunca os teriam.

Como se um pé sujo de um nobre não pudesse cheirar tão mal como outro pé qualquer.

- Essa rameira desavergonhada revirada na merda! - disse Ângela, torcendo as mãos. - Nojenta miserável, rata de esgoto! Enfim, o que queres que faça por ti?

- Se fosse possível, queria matá-la - respondi-lhe.

- Tento de boa vontade. Diz-me, porém, como te agradaria.

       - Queria que lhe enfiasses uma palhinha invisível numa veia, e que lhe pusesses ao lado um mostrengo invisível, que devagar, devagarinho, lhe chupasse todo o seu sangue porco.

- É bem pensada, sim, uma bela morte, regular... mas pouco má, pouco dolorosa. Poderíamos fazer melhor. Tens mesmo a cer­teza de que esta morte te agrada?

       - Parece-me - disse-lhe rindo e com a voz rouca de um mafioso - um trabalhinho limpo.

       Ângela não se riu, nunca se ria de nenhuma piada, era de uma inteligência obtusa e não entendia as piadas.

       - Bom - disse -, tentarei matá-la dessa maneira. Queres pedir-me mais alguma coisa?

       - Sim, uma informação sobre a alma gémea, já que falaste nela ao princípio. Existe mesmo uma alma gémea para todos?

- Claro que sim, mas nem sempre a encontramos, talvez quase a encontremos, talvez nos passe ao lado por um instante. Mas depois, na vida eterna, estamos juntas o tempo que quisermos. Lembra-te de que na vida eterna só estamos com quem gostou de nós, quer de perto quer de longe. Lembra-te de que na vida eterna nunca mais queremos ver quem nos fez sofrer, ainda que uma única vez, mas nos tenha feito sofrer muito, não estamos com essa pessoa, e ela sofre todas as suas penas, sofre-as sem escapatória possível. Não há piedade na vida eterna, quem fez sofrer caminha sozinho. Embora na vida tenhamos amado, tenhamos perdoado essa pessoa, o mal... aqui em cima não se perdoa nada, aqui em cima põe-se tudo no lugar, e quem foi bom caminha contente, e quem foi mau cami­nha triste e sozinho, As almas gémeas aqui vêem-se, de quando em quando, a caminhar como se estivessem dentro de uma bola de vidro, enfim, a rebolar lá dentro numa alegria que nem te sei dizer. Mas parece que essas são as almas gémeas após muitas vidas bem­-sucedidas em conjunto, A bola onde estão é o reconhecimento que não deixa errar as contas a quem escolhe os regressos à Terra. Os que estão a rebolar juntos naquele jogo acabaram os regressos, já não voltam, Sim, um belo dia nós também estaremos ali juntos, eu e o Derbolozinho, Custa-me dizer-to, mas nesta vida que estás a fazer, parece-me que não encontras a alma gémea. Agora tenho mesmo de me ir embora, pobre animalzinho, estás a ouvi-lo, como ladra? Se não me vê, enlouquece, sabe-se lá o que me arranja. Deixa-me ir. Mas chama-me, hem, se precisares chama-me outra vez. Tu sabes... para coisas destas volto sempre de bom grado.

E assim como aparecera, desapareceu, deixando dentro de mim uma mescla de sentimentos feita de contentamento e tam­bém de pressa. Uma espécie de prurido um pouco gasoso, ar que respirava e me parecia gaseificado, mas que também me ia para o goto e voltava para cima fazendo comichão no nariz. Algo que dava sono mas que ao mesmo tempo excitava, grande agitação de todas as veias e de todas as tripas, de tal modo que, entre ten­tar percebê-la ou não, era melhor desistir.

Naquele dia de um Julho de calor insuportável, nas primeiras horas da tarde, tocou o telefone e o meu pai foi atender. Esteve pouco tempo ao telefone e não disse quase nada. Quando voltou para a sala de estar, onde eu estava a ler um livro de aventuras e a minha mãe repousava deitada no sofá, disse-nos em voz baixa: «Morreu a Cimici.» «Morreu de quê?» «Não se percebeu bem», res­pondeu o meu pai. «Parece que foi uma anemia gravíssima.»

Então, levantei-me e o livro caiu no chão e fui a correr para o meu quarto, onde fechei a porta e abri a da varanda, que ainda estava completamente exposta ao sol. Não havia outras casas na minha frente, apenas campo e ovelhas. Ao longe via-se uma velha fábrica de papel onde já não trabalhava ninguém. E assim me despi completamente e me deitei sobre o calor escaldante dos mosaicos, e quando a pele aderiu ao chão emiti um grito de dor que, no entanto, contive dentro de mim, um grito que foi acer­tar em cheio no cérebro, semelhante ao choque entre dois cor­pos fortes. Oferecia-me desta forma, dava-me em sacrifício em sinal de grande reconhecimento, e ali fiquei a arder na esperança de que o fumo da minha carne chegasse ao olfacto da Ângela, que era a minha deusa, e de que isso a saciasse. Então, fiquei assim até que o Sol girou para as traseiras da casa e me deixou à sombra num banho de suor e, de vez em quando, procurava abrir os olhos e olhar para o Sol, cegar-me um pouco. E, no ator­doamento da visão, pareceu-me até ver a Ângela e afigurou-se­-me que tinha qualquer coisa na mão. Pensei que podia ser um chapéu ou algo de idêntica dimensão, mas nisto ouvi-a falar com aquela sua vozinha que também sabia ser de bruxa: «Mas qual chapéu, qual carapuça, vê bem o que é este troféu que te mostro de tão longe.)) E àquele chamamento abri bem os olhos e vi perfeitamente: era uma grande e bela cabeça de alcoviteira. Então soltei o grito, deixei que saísse da minha boca enquanto me levantava, nua, e o suor me escorria ao longo do corpo, e dançava na varanda, sabendo que se tivesse de falar não teria dito uma palavra mas emitido sons, cantos de onça e de pantera que chegariam àquela cabeça degolada fazendo-lhe compreender que, às vezes, o que pensamos matar acabará, pelo contrário, por nos matar.

 

Portanto, era assim: o meu marido introduzia o seu membro humano dentro daqueles buracos gélidos de bronze. Lembrava­-me bem daquelas estátuas, trazia-as dentro de mim como uma imagem que se quer apagar mas que, ao invés, volta a aparecer do nada, mesmo na simplicidade de não pensar em nada, mesmo num momento de alegria. Coisa não chamada que regressa. Já conheço bem a técnica, acontece-me sempre quando sinto que chega o sono e sei que estou naquele cruzamento de curta dura­ção, quando se desvanece a consciência de uma vida para deixar entrar uma outra. É então que me aparecem muitos mascarões, uns atrás dos outros: caras. Algumas de grande beleza, outras monstruosas, mas de uma monstruosidade crescente e cativante, porque se manifestam sempre num horror aceitável, para a seguir se transformarem nas mais repugnantes deformações. E há sem­pre uma grande satisfação na sua expressão final, especialmente quando me reduzem ao ponto de ter de acender a luz para sair daquela entrada que leva ao sono. Naqueles dias, porém, foram apenas as minhas caras de bronze, não só antes de adormecer, mas também durante todo o dia, quando as mantinha tão dis­tantes a ponto de nem saber sequer que as mantinha distantes. Elas apareciam-me, apresentavam-se na minha frente como um transeunte com quem esbarramos ao virar da esquina. Essas minhas caras riam com uma submissão inconsciente, com olha­res drogados, de quem faz coisas que mais tarde não se recordará. Nunca vi um filme pornográfico, mas imagino que as expressões dos actores devam ser assim, que haja uma espécie de hilaridade baixa, animalesca, de subjugados, de seres inanimados que são activados mecanicamente, como se poderia fazer com um brin­quedo. Fantoches que se movimentam a bel-prazer do titereiro. Queria fazer-me uma surpresa, queria que durante a exposição eu me visse assim diante de todos. Talvez quisesse que, ao ficar hor­rorizada com isso, me sentisse perdida a ponto de me render, que a partir daquele momento começasse uma estranha evolução que me levaria às várias fases que ele desejava. Era uma manobra doentia, nascida no interior de uma mente enlouquecida. Não podia levar-me a lado algum, pois fosse o que fosse que esperasse de mim seria o seu fracasso. Mas, seja como for, numa coisa não fracassava: estava a demonstrar-me que, independentemente do que ele era ou do que se estivesse a tornar, eu permanecia a seu lado, porque, como ele dizia, o amor é raciniano e não corne­liano.

Já isto era suficiente para me enojar de mim própria, e se isso lhe bastava, então podia considerar-se satisfeito.

Por aqueles dias descobri que estava grávida. Comuniquei-lho deixando-lhe um bilhete pendurado no espelho da casa de banho: Espero um filho, uma estátua nunca poderia fazer o mesmo. Quando voltei para casa encontrei-o de óptimo humor. Comprara um bom vinho tinto e estava a cozinhar. Abraçámo-nos e, nesse momento, quis esquecer quem ele era.

A segunda pessoa a quem disse que estava à espera de um bebé foi ao meu dentista. Na altura, obviamente, ainda não nos beijávamos, nem tão-pouco podia imaginar que algum dia nos beijaríamos. Fôramos ambos o amor platónico da nossa juventude, mas nesses anos amávamos apenas a nossa recordação e éramos apenas amigos. Disse-me: «Fico muito contente que vás ter um filho, já era tempo.» Respondi-lhe que o conhecia bem de mais para não perceber que, pelo contrário, estava muito preo­cupado. Pediu-me para esperar que ele acabasse de dar mais duas consultas para depois irmos beber qualquer coisa juntos e falar­mos com calma. Pediu-mo com a expressão que, às vezes, Gérard Philipe fazia naquele filme de 1954, Monsieur Ripois, quando inclinava ligeiramente a cabeça para o lado esquerdo levantando um pouco o queixo para a frente, enquanto a testa se enchia de três bonitas rugas de juventude e a boca se franzia num sorriso de viés, que apenas se deixava adivinhar.

Sentámo-nos num café e disse-me que embora ainda fosse de tarde, aquela era uma boa ocasião para beber algo forte. «És médico», disse-lhe. «Sabes perfeitamente que uma mulher grávida não pode beber bebidas alcoólicas.» «Eu sei», respondeu-me. «Mas desta vez abrirás uma excepção. E não dês importância a todas estas novas regras, acredita em mim, continua a pensar que uma mulher grávida pode fazer aquilo que quiser se se sentir bem. Faz apenas o que o corpo te pedir e deixa a cabeça de lado. O que queres beber?» Depois de tantos anos, tentei imitar a cara que fazia quando éramos miú­dos, e respondi-lhe com a sua cara: «Um whisky duplo com gelo.»

Quando tínhamos de falar sobre coisas importantes começá­vamos sempre da mesma maneira, cada um estava um pouco com os seus pensamentos, como que a pô-los em ordem, e durante esses instantes não havia senão imperceptíveis comuni­cações de nervosismo físico: tocar com o dedo mindinho na mesa, mexer o maxilar até ouvirmos o estalido do osso, fungar do nariz como no princípio de uma constipação. Talvez não puséssemos ordem nenhuma nos pensamentos durante aquela espera, a mim acontecia-me muitas vezes nem sequer saber em que é que estava a pensar, e no entanto era uma pausa útil, por­que cada um tem os seus métodos, especialmente quando são duas pessoas e se conhecem há muito tempo. Nós dois, antes de falarmos, éramos como os instrumentos antes de serem afinados.

- Mais cedo ou mais tarde, já estava à espera que fosses mãe, era justo. Mas devias saber realmente bem com quem vais ter este filho. Basta que saibas isso e está tudo bem. Se, pelo contrário, te deixas levar por fantasias e te convences de coisas que não são ver­dadeiras, então... se calhar é melhor reflectires sobre isso. Olha, eu tive dois filhos e não sou nada feliz com a minha mulher, mas é diferente, sempre soube o que podia esperar, nunca me iludi, além disso, a minha mulher tem os seus defeitos, mas é uma pessoa...

- Podes acabar de dizer - interrompi-o. - A tua mulher é uma pessoa normal.

- Ouve, sou teu amigo há mais de vinte anos, queres mesmo que te diga quais são as tuas ilusões? Por ti própria já me pare­ces um tipo de pessoa dada a ilusões. É que és muito boa e que­res ver a bondade a todo o custo, és assim. E depois sempre leste muitos romances, talvez tenhas lido demasiados, e nunca qui­seste admitir que os romances são uma coisa e a vida é outra. As pessoas que pensam como tu lêem muitos romances, ao passo que as que pensam como eu lêem muito menos e pouco esperam da vida.

- De que me queres convencer?

       - De que estás grávida de um homem muito perturbado. De uma pessoa que faz estátuas daquele género podes esperar coisas estranhas. Se decidires ter este filho nunca te deves esquecer disso.

- Serve de alguma coisa?

- É a salvação.

- E se me esquecer disso?

- É a ruína.

- A minha maior ruína foste tu. Devíamos ter-nos casado.

- Era impossível.

- Porquê?

- Porque a perfeição não é deste mundo.

- Éramos perfeitos?

- Acho que sim.

- Diz-me que estás a brincar.

- De modo nenhum. Éramos perfeitos e eu não quis desafiar as certezas cósmicas. Fui sensato, por mim e por ti. Quem éramos nós dois para desafiar as certezas cósmicas? Não podíamos per­mitir-nos nada de semelhante, somos apenas dois seres humanos.

- Talvez fôssemos abençoados pelos deuses.

- Nunca te fies nos deuses, parecem-se demasiado connosco. As bênçãos dos deuses duram sempre muito pouco.

- Queres fazer um brinde comigo?

Brindámos enquanto caía uma chuva de Primavera que pare­cia fazer guinar os carros a cada curva. Estávamos atrás da vidraça da esquina do café, a olhar os carros que levantavam uma tal quantidade de água que até pareciam ondas a vir para cima de nós. Há três dias que era assim: de manhã um grande sol e de tarde a queda de uma chuva apocalíptica que voltava a tra­zer consigo todo o frio do Inverno. Disse-lhe: «Sabes o que é a chuva?» Mas não consegui permanecer séria enquanto lho dizia, deu-me vontade de rir e estraguei tudo, porque ele respondeu­-me: «É a ira de Deus», mas como eu me rira já não valia e, por isso, também ele se começou a rir, não sendo mais do que a paró­dia do jogo que fazíamos em miúdos, quando eu, com voz tene­brosa, lhe perguntava: «Sabes o que é a chuva?», e ele, com voz de fugitivo, me respondia: «É a ira de Deus.»

 

Vieram muitas pessoas à inauguração da exposição do meu marido. Todos admiraram as suas estátuas vestidas e ele respon­dia a todos que tinha sido uma ideia da sua mulher, que se enver­gonhava da sua nudez.

Mas não o dizia de modo polémico, dizia­-o como que para me dar todo o mérito, e parecia convencido disso. Tinha um ar tranquilo, falava de modo amável e bebia copos de vinho branco seco uns atrás dos outros. Tiraram-lhe muitas fotografias e chamava-me sempre para que ficasse a seu lado. Disse a um jornalista que o entrevistou que as suas estátuas eram uma sublimação. Mas perante o olhar perplexo do homen­zinho que tinha diante de si, acrescentou: «A minha sublimação, isto é, a minha mulher.» Apercebendo-se de que eu tinha ouvido, acenou-me com o copo. Tinha o seu olhar de grande dardejador e por esse olhar perdoei-lhe tudo, limpei-o de todas as coisas, construí-o novo em folha e .senti que aquela palavra, sublimação, me agredia o corpo como um eritema que aumentava o fluxo do meu sangue à superfície. Como se naquele momento nos elevás­semos ambos a uma dignidade suprema de planetas que adqui­riam sabe-se lá que virtude astrológica. Voei como um planeta por alguns instantes na companhia do feto que tinha na barriga. Embelezei-me assim. Mas depois apercebi-me de algo, que era voz e no entanto mordia por dentro, à altura dos rins, e que subia pelos lados, parava ao pé da cintura, apertava no centro e trepava pela coluna. Pode escutar-se uma voz àssim, uma voz que morde enquanto fala? O meu útero tornou-se mais espesso, transfor­mou-se numa dolorosa esponja, prisão vaporosa, e este vapor chegou-me ao pensamento e disse: «Eis a ilusionista de sempre, aquela que se aldraba sozinha.» E senti entre os cabelos uma mão que os penteava, uma piedosa mão de dentista que se compade­cia de mim.

 

De há uns tempos para cá não me agrada a ideia de ir para a escola. Parece-me que ir à prisão é algo que se pode tornar defi­nitivo. Um colega meu disse-me que é normal depois de alguns anos, que também lhe acontece muitas vezes. Entrar, ouvir todas aquelas portas que se voltam a fechar atrás de mim. Nas primei­ras vezes inspeccionavam-me a mochila. Abria-a, tirava para fora os livros, um a um, podia acontecer que até os folheassem. Agora já não acontece, têm confiança. Podia enlouquecer e fazer uma carnificina. No ano passado, perto do fim do ano, disse-o a uma guarda: «E se agora disparasse contra todos?» Fez um olhar surpreso por um instante e disse: «Vá, vá, deixa-te de brincadei­ras. Passa que estás atrasada.»

Dentro de quinze dias começa mais um ano lectivo. O meu filho vai para a segunda classe. Tenho de aprender a não pensar muito no futuro próximo, há pessoas que só têm quinze dias de férias e, quando o perspectivam, vêem o seu regresso ao trabalho como uma coisa muito distante. Estou a apanhar sol no terraço, tenho de aprender a adequar-me àquilo que faço, até uma meia possessa como a Ângela o sabia. Quando via a minha mãe beber o café em pé, dizia-lhe: «Mas, senhora, o café bebe-se sentado, vá por mim.»

Gosto de apanhar sol, mesmo no Inverno, basta que ele espreite um pouco e lá me ponho eu ao sol. É que sinto sempre frio, às vezes até estar ao sol me dá arrepios, enquanto não me aqueço até ao fundo dos ossos sou atravessada por pequenas tre­muras, mesmo no Verão. Um dia comentei na aula isto do sol, olharam-se entre si: «Professora, vem-nos dizer isso logo a nós?» Desculpei-me várias vezes de seguida e durante vários dias. Por vezes, falo à toa nas aulas, nem me lembro de onde estou. Cheguei a dizer: «Por uma coisa assim seria capaz de matar.» Quando me dei conta daquilo que dissera fiquei muda, fechei o livro e disse que a aula tinha acabado. Na aula seguinte, uma delas, Pilar, levantou-se e disse: «Tu lê siempre belas histórias y nosotros escuchamos, luego manda-nos escreber qualquer coisa, lo que nosotros pensa. Aprendiemos italiano, ler y escreber. Muito belo. Pero hoje não, profesora. Hoje eu conta historia y después tu escrebe ou diz lo que pensa. Mehor se escrebe y después lê aqui próxima vez.»

Então levantei-me e dei-lhe o lugar do professor, disse-lhe que preferia assim, ouvi-la sentada com as outras, nas carteiras. E se depois tivesse de fazer um trabalho escrito, era preciso res­peitar as regras. Pilar começou a rir e a turma deu um grande aplauso. Ficou de pé por um instante, depois sentou-se no meu lugar e começou por dizer o seu nome, como num interrogatório:

- Chamo-mi Pilar Hérnandez, com vinte e cinco anos, nas­cida de Bogotá de Colômbia. Vem a Itália com vinte e um anos e com mi esposo José. Vive em campo com outros, casa que não tem casa de banho, pero estava benisimo enamorada com mi esposo, pero sin nino, el ninõ a Colômbia com mis padres. Trabalho aqui, longe de casa do campo, Montecatini Terme: atraque à mano armada, assalto. Siempre aqui trabalhado com assalto, Montecatini Terme pueblo rico com muitisima tiendas de joyeria, cosas de oro. Roubava para vender. Yo não desparava, pero mi esposo sim, y matava tambien: bum bum y el herido o muerto. Depende. No bueno matar, pero... Estava muy mal, no me gustan los muertos, no agrada mortos. Ora, depois de um ano, uma prima minha vem de Colômbia a Itália para trabalho, pero traba­lho não agrada, pouco dinero, pués, mehor de trabalhar con nosotros em assalto Montecatini Terme. Yo soy como una nina, criança, não vejo lo que pasa, pero tengo mucho corazon, y un dia el corazon me duele. Yo triste. Mi prima, prima Isabel, y mi esposo José... No sei falar italiano, profesora, pero Isabel y José son enamorados, José siempre com Isabel. Durante de um assalto, el proprietario despara e José lo mata. Yo digo de ir embora rápido y a quel momento los dos, José y Isabel, se olhan y José me despara a mio A última cosa que veo son los dos que se besan, beijam-se, y riem, y luego nada mas. Acuordo no hospital, pre­gunto de mi esposo, siempre voy preguntando, perguntar. Nada. Ires semana de hospital, depois de hospital prisão. Yo soy buena, buenisima condocta, dos anos de prisão y me dejan, me deisano ir. Profesora, o que faço yo? Vou-os a buscar. El traidore y la trai­dora. No soy pistolera, no me agrada los mortos, pero que puedo ha,cer? Uma pistola la compro a un amigo meu de Venezuela, pago mucho dinero. Pregunto nas redondezas, no conosco la direccione de onde abitan. Uma senhora disse-ma, direccione de Norte de Itália. Uma longa viagem de tantos quilómetros. Bueno, quando yo cega desparo primero a ella porque era prima minha, filia de hermana de mi madre. Quanto llorava José, chora, chora, estava con medo de morirse. Pero yo estava tranquilita. Profesora, falo muy mal tu idioma. Pero tu me entiendes. AI final el ene­migo no puede vivir, o te mueres tu o se muere el.

A partir daqui, Pilar não disse nem mais uma palavra sequer em italiano. A descrição da morte do marido foi rápida mas por­menorizada, disse que deu quatro tiros à distância de alguns minutos uns dos outros, porque durante as pausas quis dizer-lhe tudo o que pensava dele, e enquanto lhe falava dava-lhe ponta­pés ou dava pontapés no cadáver da prima, dava-lhe pontapés no coração, porque uma pessoa como ela, coração não o podia ter. O último tiro foi na testa, apoiou o cano da pistola no meio dos olhos e carregou no gatilho depois de lhe ter dado tempo para que lhe pedisse perdão. Perdendo todo o sangue que tinha no corpo, disse-lhe: «Te pido el perdofl», mas ela calou-o disparando e depois de o ter matado cuspiu-lhe quatro vezes em cima, uma por cada tiro, precisamente em cima dos buracos que as balas lhe haviam aberto. Agora estava na prisão de muito bom grado, se lhe diziam que se comportava bem na esperança de sair antes do fim da pena, também desta feita respondia que não era verdade. Comportava-se bem porque era essa a sua natureza, podia ficar na prisão os anos que quisessem, na prisão o tempo passava e podia frequentar a escola. Era a primeira vez que podia estudar. Sentia pena, pelo contrário, do proprietário daquela joalharia de Montecatini Terme que morreu, e também de outro que o seu marido ferira e que viera a ficar numa cadeira de rodas. Soubera disso pelos jornais. Era muito nova quando assaltava joalharias juntamente com o José. Na altura parecia-lhe um trabalho como outro qualquer, mas agora, ao reflectir sobre isso, envergonhava­-se muito dele.

Quando Pilar acabou de contar a sua história faltavam ainda vinte minutos para a aula acabar. Eu não tinha nada a dizer, de resto prometera-lhe que faria uma composição em casa sobre a sua história, como as que mandava fazer à turma depois de uma leitura. E assim passei o tempo que restava lendo um conto fan­tástico de Gérard de Nerval, La sonate du diable, que obviamente li em italiano.

 

Na aula seguinte cheguei à sala sem livros na mão. Pilar estava sentada na primeira fila. Sentei-me, despachei as bre­ves tarefas de escrita no livro de ponto, fiz a chamada e elas responderam uma a uma. Depois, abri uma capa de plástico cor de laranja e, dirigindo-me a Pilar, disse-lhe que tinha feito o meu trabalho de casa. Tirei para fora a folha e comecei a ler:

- A história que a Pilar contou comoveu-me muito. Agradou­-me o modo como a contou, a simplicidade e a verdade das suas palavras. Nestes dias tive oportunidade de pensar muito nela. Reflicto bem sobre as pessoas e sobre a vida delas quando bebo café no terracinho. Voltei a escutar a sua história, mas também a vi. As palavras das histórias importantes podem ter esse efeito. Vi o rosto do joalheiro, o do José e o da Isabel. Até consegui ver o filho da Pilar que ficou na Colômbia com os avós. É estranho, mas à medida que continuava parecia-me ver a história toda, precisamente com os olhos daquela criança de quem nem sei o nome, porque Pilar nunca mo disse. E assim vi toda a história no passado, com as recordações imprecisas que irão permanecer na cabeça dessa criança quando for um homem. Por fim, transfor­mei-me nessa criança. Era um homem e pus-me a pensar na vida da minha mãe. E visto que ela está num país estrangeiro, muito longe daqui, e está condenada à prisão perpétua, decidi escrever­-lhe uma carta.

Querida mamã Pilar,

Os anos passaram a correr e eu fiz-me um homem. De ti, não me lembro quase nada porque quando foste embora era ainda muito pequeno. O que soube disseram-me mais tarde os avós e sempre em episódios diferentes uns dos outros, consoante a idade que tinha e aquilo que podia compreender. Foram inteligentes, fizeram as coisas de forma a que eu não te esquecesse, apesar de na realidade eu praticamente não te ter conhecido. Sinto pena do teu sofrimento, também dos erros que cometeste, obviamente, mas esses são outra coisa, cada um faz os seus, sinto pena do quanto tiveste de pagar por aqueles que fizeste, porque hoje o preço parece-me demasiado alto. Eras uma miúda quando seguias aquele louco do meu pai que te levava por aí a fazer assaltos à mão armada. Tu não percebias nada, erravas como muitas mulhe­res do nosso país, que fazem sempre aquilo que os homens lhes dizem. Pensa em quantas miúdas, aqui na nossa terra, ao domingo, aceitam ir beber um copo com um soldado que depois as viola e as engravida. Por um copo, numa festarola na praça, andam pelo mundo fora como criadas, para poderem sustentar os seus filhos indesejados. Tu foste quase uma privilegiada, eras casada, porém, o homem que escolheras era igualmente louco, tinha aquela exal­tação colombiana que pode levar muito longe. E, além do mais, o amor, aqui no nosso país, está todo nas canções e nas danças, poderia chamar-se amor de la fiesta, pois na vida real há dema­siada brutalidade, demasiada ignorância. Os avós disseram-me que sempre foram contra o vosso matrimónio. Os factos deram­-lhe razão, mas os motivos porque eram contrários eram bastante estúpidos: tinha a tez muito escura em comparação com a tua, e a sua família tinha menos terras do que a nossa, que já tinha poucas. Enquanto se continuar a pensar assim não se vai a lado nenhum. Tu fizeste o que podias, aguentaste, mas depois preva­leceu o sentido de justiça e por isso sou-te grato. Às vezes, há pessoas que me dizem que a minha mãe é a assassina do meu pai. São pessoas que não entendem nada, deixo-as falar sem as ouvir, nem sequer me chateio. Das pessoas boas, diz-se que não fariam mal a uma mosca. Ora, eu sei que tu és exactamente assim, que não farias mal a uma mosca e podias estar a acender o lume para o jantar na rua, enquanto elas voam à tua volta e te atormentam com as suas caminhadas, percorrendo as tuas costas e os teus braços. Deixá-las-ias voar e caminhar em paz sobre o teu suor de mulher que cozinha. O facto de que estou convencido é que existem vidas humanas que valem menos que a vida de uma mosca. E por isso penso que não poderias ter feito outra coisa senão o que fizeste, que não fizeste nada de mal e de mau, nem sequer foste muito vingativa. Porque, queres comparar o voo inócuo de uma mosca com a alma negra do meu pai que, para estar tran­quilo com a sua Isabel e se livrar de ti, disparou a frio contra ti durante um assalto e te deixou, na esperança de que morresses, meia exangue, nas mãos da polícia? A justiça é estranha, têm-te na prisão, mamã Pilar. Deixa estar, não dês valor a mais nada, esquece todos os mundos, constrói um que seja teu, cria moscas, faz com que voem à tua volta, adestra-as. Já imaginaste moscas adestradas, estas inúmeras compatriotas do Terceiro Mundo, que bela ajuda seriam para uma revolução? Recebe um grande beijo do teu filho, mamã Pilar, guarda-o contigo em compensação de todos os anos que nos tiraram à força.

Acabei de ler e pousei a folha em cima da minha mesa. Todas as prisioneiras se comoveram, excepto Pilar, que ficara ali, imó­vel, na primeira fila, de braços cruzados a olhar-me. Parecia a feliz e justa representação da violência essencial.

 

Hoje fui com o meu filho a uma grande livraria. Queria que lhe oferecesse um livro, por isso fomos directamente à secção infantil. De vez em quando aconselhava-lhe um, dizia-lhe: «Este é muito bom, leio-to esta noite.» Ele olhava para o livro e voltava a pô-lo no lugar. Respondia-me que agora já sabia ler sozinho e que, portanto, queria escolhê-lo sozinho. Disse-me que queria escolhê-lo com calma, que não o devia apressar. Tinha razão. Exactamente em frente da secção infantil havia um café, podia vê-lo dali se me sentasse e bebesse qualquer coisa. Sei que sou exageradamente apreensiva, mas tenho medo de deixar crianças sozinhas, mesmo as crianças dos outros. Pus-me a olhá-lo, pe­gava nos livros, folheava-os, voltava a pô-los no lugar, fazia ges­tos idênticos aos do pai. Recordo-me de que, nos primeiros tem­pos, todas as semelhanças entre eles me davam alguma satisfação. Hoje assustam-me, tenho logo de me consolar pensando que são apenas semelhanças físicas, que, por dentro, o meu filho é com­pletamente diferente, que a alma do pai não arranhou a sua. Tenho de o pensar, embora seja mortificador, porque o seu pai, apesar de tudo, foi meu marido, um homem com qualidades que nunca mais encontrarei em nenhum outro. Mas sei que não posso arriscar, que de entre as muitas qualidades podia herdar algo mais, e nesse algo mais não quero nem pensar, de modo que pre­firo eliminar tudo, desejar a diversidade total, porque sei que dessa dependerá o seu bem futuro. É um pouco como a questão do inferno, do purgatório e do paraíso. Lembro-me de que a dada altura da minha vida, quando era miúda, fiz um raciocínio defi­nitivo. Pensei que estaria disposta a aceitar um pacto: a inexis­tência do purgatório e do paraíso para os bons, para que os maus tivessem a certeza do inferno. Parecia-me um pacto justo, uma troca sã que me faria viver melhor. Talvez seja por isso que à noite sempre tenha adormecido pensando que A morte é o nada, como diz lago no Otello de Verdi, porque terei mesmo selado com sangue esse belo pacto com o Supremo. A morte é o nada para mim, está bem, mas só se no aqui e agora da minha vida puder ter a certeza de andar pelas ruas pensando que, pelo contrário, a morte será o início de um grande tormento para todos os trastes que encontro. E muitas vezes volta-me ao pensamento este pacto que gostaria de fazer, este absolutismo, que se paga caro, mas de repente o preço torna-se suave e pagá-lo não custa nada. É um raciocínio que estendi a muitas outras coisas, que continuo a estender como hoje, olhando para o meu filho na livraria e pen­sando: «É preferível que não tenha nenhuma grande qualidade do seu pai para que não tenha nenhum dos defeitos, porque apenas um único dos seus defeitos, mesmo o mais pequeno e inócuo, é como uma gota de veneno numa garrafa de água pura. Expe­rimenta depois beber essa água.»

Por fim, o meu filho decidiu-se. Vi que, de onde ele estava, procurava o meu olhar mas não me via. Então levantei um braço e ele respondeu ao meu sinal levantando o livro que tinha na mão. Ao sentar-se a meu lado, disse-me: «Cá está, escolhi este.» E pôs na minha frente um livro com poucas páginas, ilustrado com desenhos de outros tempos, parecidos com aqueles de quando eu era criança. Na capa estava desenhado um cavaleiro vestido com a cota de malha de ferro, nas costas levava o escudo a tiracolo, na mão direita segurava uma grande espada e na esquerda uma coroa de rei. O título dizia: A Verdadeira História de Ricardo Coração de Leão. Não me surpreendi, aliás, quase diria que já o esperava. Havia muitas destas transmissões de ideias entre mim e o meu filho e, além disso, eram histórias que sempre lhe contara, fábulas que inventava sobre a errância cavalheiresca, os meus ideais de juventude que nunca abandonei e que ainda sigo, a minha alma na sua alma. Folheei-o rapidamente enquanto ele bebia um sumo de mirtilo, e depois perguntei-lhe: «Por que é que escolheste exactamente este?» «Pelo nariz», respondeu-me, sério: «Olha, mãe, tem o nariz vermelho.» Então olhei-o dentro dos olhos e, enquanto olhava para ele, sentia que a minha expres­são, embora não a visse, era igual, igual à do meu pai, porque é assim que sucede quando o tempo passa, acontece que nos trans­formamos e nos tornamos um pouco menos nós próprios e um pouco mais quem nos pôs no mundo, procurando fixar em nós o que deles resta. E não é preciso estar diante de um espelho para o saber, sentimo-lo, porque algo nos suplanta dentro de nós, como um chamamento que nos diz: «Algum dia terias acreditado nisso?», e quase gostaria de responder com sarcasmo à voz que nos fala, algo como: «Olha que o sangue corre, apropria-se das tradições, conhece-as bem, claro que teria acreditado, sou sua filha, quanto mais passa o tempo mais nos tornamos filhos, quanto mais eles estão longe deste mundo mais tomamos o lugar deles.» O meu filho também me olhava dentro dos olhos, espe­rava, e então, como se eu fosse o meu pai e ele fosse eu quando era criança, disse-lhe: «Ruço de mau pêlo, esguicha veneno, papa-broas, rebenta esta noite.» E ele soltou uma das suas gar­galhadas luminosas, e todos na livraria se voltaram a olhar para ele, que ria irresistivelmente, continuando com os seus olhos contagiantes dentro dos meus, cúmplice mesmo de uma lenga­lenga que nunca ouvira antes, mas que reconheceu como algo que desde sempre lhe pertencera.

No regresso a casa, no metropolitano, pôs-se a cantarolar Ruço de mau pêlo com o ritmo sincopado do rap, balouçando-se em cima dos joelhos, caindo para cima de mim a cada paragem do comboio. Veio-me à lembrança um pensamento que me ocor­ria muitas vezes quando não tinha filhos, quando olhava para os filhos dos outros a fazer estas parvoíces, e pensava que nunca permitiria que o meu filho tivesse comportamentos tão manifestamente idiotas.

Procurei voltar a pôr-me naquela posição, mas não consegui, é um modo de pensar que perdi para sempre, nunca foi meu. Agora parece-me que em todos os comportamen­tos do meu filho há qualquer coisa de absolutamente genial. Mesmo em todos. Então declamei em voz alta um velho provér­bio, aquele que diz: «A mulher sem filhos, não pedir conselhos.»Parando de cantar, o meu filho perguntou-me: «Porquê?» E eu, no metropolitano, sem me importar com as pessoas que nos olha­vam, tornei-me rígida como se estivesse a transformar-me numa marioneta e, com movimentos lenhosos, com os braços em ângulo recto e um corte horizontal no lugar da boca, respondi-lhe: «Porque são assim, feitas de sebo.» E ele não me perguntou o que era o sebo, apesar de não saber o que era não sentiu necessidade de perguntar, disse: «Ah!», e ficou um pouco absorto, muito con­centrado na visualização da mulher de sebo.

Ao jantar foi a mesma história de sempre, só: «Abre a boca! Abre bem essa boca! Come! Se não comeres, desligo os desenhos animados!» Odiamo-nos à mesa. Eu limpo tudo em poucos segundos, ele leva mais de uma hora. A cada garfada faz caretas de enjoado ou então diz que tem vontade de vomitar, que tem de beber, beber muito, ou fazer cocó, muito cocó. Quando leva à boca a primeira porção de comida tece-me exagerados elogios sobre a boa qualidade dos meus cozinhados, dá gritinhos, faz amplos gestos rotatórios com a mão direita. À segunda, per­gunta-me se pode sobrar, negoceia, divide a comida no prato em várias partes: a que comerá seguramente toda, a que poderá até comer depois, caso ainda tenha fome, a que de certeza sobrará. A guerra só acaba quando cedo, por esgotamento. Não tenho outra escolha, ou cedo ou ponho-me às marteladas pela casa toda. Assim que o jantar se pode considerar oficialmente terminado, pergunta-me se pode comer um bolo, um pedaço de cho­colate, se lhe faço uma panqueca com xarope de bordo por cima, ou pizza branca com alecrim, ou um batido, uma maçã ralada, uma banana às rodelas com açúcar por cima para comer com um palito, ou uma chinesada qualquer, como a fruta frita carameli­zada, ou qualquer coisa flambé, para lhe levar enquanto a chama ainda está alta, porque gosta de a ver tornar-se pequena, pequena, até se apagar. Pede-mo em tom muito bajulador: «Essa delícia que só tu sabes fazer e que nunca nenhum dos meus colegas comeu, porque as mães deles não a sabem fazer.» Então põe-se a ver televisão e eu vou preparar-lhe uma destas coisas procurando manter a calma, repetindo para mim própria que o importante é apenas o número de calorias que ingurgita e não a cozinha que se suja de novo.

Fomos cedo para a cama, com A Verdadeira História de Ricardo Coração de Leão. As páginas escritas eram seis ao todo, cheias de imprecisões históricas, mas o que lhe despertou verda­deiramente interesse foram os desenhos. Embora já saiba ler, lê ainda com aquele esforço que impede a compreensão da frase, se lê não saboreia nada. A história deve criar-se em torno dos dese­nhos, deve nascer a partir deles. E não lhe basta olhar os desenhos enquanto lhe leio o texto. Tenho de lhos comentar, contar, isso é o que há de bom na história. Assim fizemos. A certa altura dei-me conta de que já não me ouvia, estava imóvel na cama, com o olhar parado no ar. Claro, estava quase a adormecer, mas estava principalmente a ver o seu filme pessoal sobre o Ricardo Coração de Leão. Cenas que surgiam a partir do que lhe acabara de contar, mas que agora eram suas, completamente refeitas, tal­vez apenas uma cena que projectava quem sabe quantas vezes de seguida até que ficasse perfeita.

Bom, adormecera. Respiro sempre de alívio quando adormece, mas, por outro lado, desagrada-me que esteja no seu mundo, onde não se ouve e não se pode responder a quem está acordado. Muitas vezes faço projectos sobre o que posso fazer enquanto dorme, mas geralmente não faço nada, especialmente se a esta­ção ainda é quente como agora e estamos deitados na cama, com as janelas abertas, a olhar as estrelas que se movem. Então des­ligo o telefone, para o caso de alguém me telefonar com vontade de conversar e me roubar estes momentos preciosos com a histó­ria da sua vida. Não consigo dizer a quem telefona que não tenho vontade de falar, fico contrafeita ao telefone a escutar tudo o que me dizem, enquanto me come viva a angústia de não poder seguir os meus pensamentos, de vê-los desaparecer nas palavras de outro, certa de que esses seriam, precisamente, os meus melho­res pensamentos. Mas esta noite, tendo desligado o telefone, os melhores pensamentos não chegaram. E recordei-me de uma frase que uma noite, há tantos anos, o meu marido me disse: «Se tens vontade de sonhar com qualquer coisa em especial, só há uma maneira, basta adormecer pensando em querer sonhar exacta­mente com ela. É um método infalível. Nunca experimentara, tal­vez nem nunca tivesse acreditado. Esta noite, olhando para o meu filho, tive a certeza de que estava a sonhar com o Ricardo Coração de Leão, pensei que podia ter começado com uma daquelas imagens que devia ter repetido tantas vezes ao procurar torná-la perfeita. Ao vê-lo tão longe, senti-me só e tive vontade de ir ter com ele. Então apaguei a luz, fechei os olhos e pensei: «Quero sonhar com o Ricardo Coração de Leão.» E pouco depois adormeci.

Acordei com uma dor de cabeça repentina, provocada pela cervical quando durmo numa posição errada. Acendi a luz para beber um pouco de água e vi que eram cinco e meia. Levantei­-me e fui à casa de banho procurar as gotas para dormir. Quando acordo a esta hora, se não tomo as gotas não consigo voltar a adormecer. Por cada gota, mais uma hora de sono. Não sei se é verdade, a mim fazem-me este efeito e, por isso, calculando quanto tempo ainda queria dormir, deitei quatro gotas num pouco de água. Voltei para a cama, apaguei a luz e, enquanto bebia, pen­sava: «Mas qual método infalível, não sonhei com ele nem sequer um minuto.» Depois pousei o copo em cima da mesa-de-cabe­ceira e adormeci imediatamente.

- Estava incompleta a frase, sabes? Não te recordaste bem dela. É verdade que para sonhar com qualquer coisa tens de pedir para sonhar com ela, mas enganaste-te no horário. Nem todos servem. Ele disse-te que só nas primeiras horas da manhã, quando acordamos por acaso, se pode escolher com o que se quer sonhar. Tu acordaste, pensaste em mim, e cá estou eu. Queres sonhar comigo por represália, é?

Ricardo Coração de Leão lá estava, com os cabelos ruivos caí­dos sobre o rosto, ao vento de Acre, de costas viradas para o mar, que era de um azul cintilante e escuro. Parecia pensativo e tinha um ar cansado.

- Por represália contra quem? - perguntei-lhe.

- Contra aquele falso árabe que não gosta de mim e me ator­menta. Não me agrada nada ser objecto das vossas disputas.

- Devias sentir-te lisonjeado.

- Deixa-te disso. Deixem-se disso. Não me fazem nenhum favor ao sonharem comigo. Tenho de voltar sempre aqui, a Acre, e não me agrada mesmo nada. Parece-te um lugar bonito?

- Um pouco macabro.

- Bem o podes dizer. E repara no fedor. De resto... com três mil mortos...

- Foste tu que os mandaste matar.

- Mas afinal já ninguém se lembra do que é uma guerra? - Quebraste um pacto. Foste acometido por um dos teus ata­ques de raiva incontroláveis e mandaste matar todos aqueles pri­sioneiros.

- O que deveria eu fazer, levá-los a passear?

- Podias deixá-los onde estavam.

- Diz-me outro rei que deixe em liberdade os seus prisionei­ros de guerra, encontra-me um.

       - Em todo o caso quebraste um pacto, foste mais bárbaro do que o bárbaro Saladino.

       - Esse curdo, no fundo, não era tão bárbaro quanto isso. Não teve uma mãezinha como a minha.

       - Foste muito amado e protegido por Leonor.

       - Oh, sem dúvida, era o seu preferido. Todas as cartas que meescrevia começavam sempre com a mesma palavra: Carissimus. Bom, também era uma grande rameira. A um filho homem não lhe faz nada bem ter uma mãe rameira. Pergunta aos outros dois que te são tão chegados. De facto, eles... no que toca às mãezi­nhas também não tiveram as coisas facilitadas.

       - Tu também não tiveste as coisas facilitadas, quero dizer, no que diz respeito à tua vida.

       - Estás a referir-te, por acaso, àquela minha inclinação? Olha, ao menos eu não fiz mistério disso. Não te lembras do que fiz em Messina, diante de todos aqueles bispos? Despi-me e, nu, flage­lei-me com um ramo de arbustos e depois, ainda na frente de todos, confessei ter cometido o pecado de sodomia.

- Foste destemido.

- Fui corajoso. De resto... se eu não o for...

- Mas casaste-te. .

- Claro, por que razão não o deveria ter feito? Era um rei, esqueceste-te disso? Berengária... a minha doce esposa, puah, nunca lhe toquei com um dedo.

- Que pena, era lindíssima.

- A nós, chefes, não nos agradam as mulheres. Preferimos talvez as nossas mães rameiras que, contudo, nos fizeram chefes. Aconteceu muitas vezes, sabes? Mãe rameira, filho chefe. Mulheres descaradas.

- Não é assim com todos. Olha o caso de Dom Quixote!

- Quem era? Nunca ouvi falar dele. Que terras conquistou?

- Esquece.

- Fala-me antes de Alexandre e da sua mãe, Olímpia, ou do mais recente Lawrence e da beata rameira da sua mãe. Diz-me outros nomes.

- Carlos Magno.

- Filho de rameira.

- Guilherme, o Conquistador.

- Filho de rameira.

- Júlio César.

- Filho de rameira.

- Gengiscão.

- Filho de rameira.

- Estás a inventar!

- Deduzo.

Voltou-se para olhar o mar. Murmurava qualquer coisa, talvez contasse. Depois pareceu-me sacudido por arrepios e achei-o ridí­culo. Veio-me então à lembrança a capa do livro que comprara ao meu filho. Era o nariz vermelho de bêbado que o tornava ridículo, e aqueles cabelos de corte impreciso, de cor vermelho queimado, que deviam estar duros do pó, quase vítreos. Toquei-lhes.

- O que estás a fazer?

- Uma carícia.

- Cuidado.

- O que fizeste ao meu filho?

- Qual filho? Não vi nenhum garoto aqui à volta, à parte os que passei a fio de espada juntamente com as mães deles.

- Estava certa de que ele estivesse a sonhar contigo.

- Não deixo que os infantes sonhem comigo. Aquilo com que sonham só pode ser o meu duplo. E depois, não mintas, tu que­res sonhar comigo porque eu matei. Isso interessa-te.

- O que queres dizer?

- Que talvez também tu queiras matar. Não querias que eu tivesse percebido?

       - Talvez sejas mais esperto do que o Lawrence, ele pergun­tou-me se por acaso me queria suicidar.

- Não, não és desse tipo, o que queres que saiba aquele pequenote, um falso beduíno que nem é carne nem é peixe? Diz­-lhe que não quero ter nada a ver com beduínos de origem     inglesa. Di-lo a esse panascazito.

- Não era.

- Era, era. Diz-lhe para te contar aquela historieta.

- Que historieta?

- Diz-lhe para ta contar. Em todo o caso, tu convives com os três porque queres saber como é que se mata e como é que nos sentimos depois.

- Se é por isso, com a profissão que tenho... podia pedir para me contarem tudo quanto quisesse, sobre como nos sentimos depois.

- Pensas que me enganas, ainda não percebeste com quem estás a lidar? Estás-te nas tintas para como nos sentimos depois lá, interessa-te como nos sentimos depois aqui, onde nós esta­mos: É por isso que convives connosco.

       - Dos três, és o menos simpático. Não sei por que escolhi sonhar contigo.

       - Eu sei. Escolheste-me porque dos três sou o único que também sou um pouco velhaco. Pode aprender-se muito com um velhaco.

- E então o que estás a fazer nos sonhos dos outros, sempre aqui em Acre?

- Disseste muito bem, nos sonhos dos outros. Quando não sonham comigo, nunca estou em Acre. São vocês que me fazem vir aqui. Seja como for, no que respeita à fase do remorso, não te posso dar grande ajuda. Nem pensar, eu pertenço a uma raça em que ninguém ama o próximo. Na minha família, o irmão luta contra o irmão e o filho contra o pai. Se queres que te diga como _ é que nos sentimos depois, digo-te apenas que, ou lá ou cá, me sinto muito bem.

- E em que me podes ajudar?

- Em coisas não pouco importantes. Por exemplo: coragem, estratégia e táctica. Para as motivações aconselho-te o Magno. Para o poético definhamento do remorso podes ir ter directamente com o beduíno. Ele é mestre nisso. Podes pedir para te contar outra historieta a esse propósito. Lembra-te, historieta número um: O esfincter, historieta número dois: O remorso. E agora procura acordar, por favor, estou com alguma pressa. Estás a ver, tenho de pôr todos estes muçulmanos malcheirosos a fazer estrume para batatas... Sou um rei, não me diverte fazer de coveiro. Sabes o que     me espera depois, não sabes?

- A vitória de Arsuf.

- Pois, então poderás compreender-me. Queres dizer-me um augúrio que possa acompanhar-me ao longo do caminho?

- Sanctum Sepulcrum, adiuva, serve?

- Bonito, agrada-me.

- Espero que te dê sorte.

Ainda o vi e ouvi por um momento antes de acordar. Mas já não estávamos em Acre e ele não se dava conta da minha pre­sença. Estava a gritar por causa de um falcão que escapara não sei de onde e que ele capturara e fizera seu. O camponês, a quem pertencia o falcão, saiu de casa armado com uma faca junta­mente com outros seus compadres munidos de espetos. A Ricardo, que estava sozinho com o seu escudeiro, não lhe res­tou senão fugir. E por isso gritava lá em Mileto, e estava zangado com os calabreses, aos quais chamava população bárbara que por pouco não o matou, por causa de um falcão. Ao vê-lo tão enrai­vecido pela má figura que fizera, desatei a rir às gargalhadas, e ele, bradando, disse: «Quem se está a rir do rei?» E eu levantei o braço para que ele me visse, pois o riso tirava-me a voz, e ele veio furioso na minha direcção, gritando: «Maldita mulher, ainda aqui estás?» E eu acordei.

 

Naquela manhã de há quase seis anos, estava sentada no jar­dim de um café a ler o jornal, enquanto o meu filho brincava com o cão do proprietário, um rafeirinho de estatura mediana capaz de fazer estranhas acrobacias de circo. Eram os últimos dias de um Outubro nunca visto, quente como o Verão e cheio de odores que iam desde a terra do jardim ao iodo do mar, ainda que não houvesse mar de verdade. Às vezes, em Roma, pode acontecer que chegue uma certa brisa marinha. Regressáramos há já um bom bocado das nossas belas férias na Sardenha, mas continuava a fazer bom tempo, de modo que, muitas vezes, íamos à praia durante o dia, porque faz bem às crianças estar na praia, forta­lece-as para o Inverno, que traz bronquites com tosse. O meu filho estava bronzeado e louro e, com quase dois anos, já falava bastante bem. De todos os erros linguísticos da infância há um que mantém, apesar de já ter sete anos: em vez de que diz te. Sabe muito bem que se diz de outro modo, se pensar também o sabe dizer, é uma questão de hábito ou de distracção, uma liga­ção com o seu passado que, conservando-o, lhe dá segurança. Na altura dizia muitas palavras estranhas, era a fase em que os pais fazem de intérpretes e se divertem com isso. O meu marido, que tem alma de filólogo, era melhor do que eu.

- O que é que disse? - perguntava-lhe.

- Látis.

- E o que quer dizer?

- Lápis.

- Pois, lápis.

Além de nós dois e do cão do proprietário do café estava lá um senhor idoso, um cliente habitual que todas as manhãs, enquanto fazia as palavras cruzadas, bebia lentamente o café com leite até ficar frio. A cada latido do cão provocado pelo meu filho abanava a cabeça em sinal de aborrecimento, mas logo a seguir olhava para ele a brincar e sorria. Sempre pensei que aquele fosse o símbolo da intolerância, da destruição e do remorso que ela pode provocar. A violência inútil é assim, dege­nera num momento e depois deixa espantado quem a sente. O latido do cão incomodava-o acusticamente, a tal ponto que nesse preciso instante poderia matá-los a ambos, cão e criança, assim, quase automaticamente, para em seguida se arrepender e voltar a ser o senhor idoso e gentil de sempre. É um género de violência que aprendi a detestar. Creio, quando muito, na violên­cia planeada e pensada, quando depois de muito pensar nos aper­cebemos de que essa é a única solução e que, uma vez realizada, tiraremos proveito dela e viveremos melhor. Sei que também poderei ser vítima de um gesto de violência gratuita de tipo ins­tintivo, todos nós o poderemos ser, mas quando penso nisso sinto muita pena e parece-me já ter perdido uma grande parte de mim. Mas também isso é difícil de estabelecer, visto que existem vio­lências imprevistas das quais não nos arrependemos depois.

Enquanto olhava o meu filho, pensei que às vezes há vozes do sangue que não gritam da terra porque ninguém as ouviria. E, naquele momento, entrou uma mulher.

A sua idade era indefinível, mas com certeza já era uma velha, e era vulgar. Tinha umas sandálias com saltos muito altos e um vestido de rede bege, com malhas tão largas que deixavam ver nitidamente os horrores do seu corpo flácido e nu. Mais do que gorda, era inchada, com o ventre dilatado e o peito caindo afuselado, com os mamilos a despontarem ora entre as malhas de uma rede ora entre as de uma outra. Por cima vestia um casaco de pele falsa que nunca teria podido abotoar. Estava maquilhada daquele modo devastado que acho que só se vê no rosto de algu­mas prostitutas já velhas, nas primeiras horas da manhã, quando após muito trabalho e muitas esperas na humidade da noite regressam a casa. Com tantas mesas livres que havia, estava a vir precisamente na minha direcção, e quando chegou diante de mim disse: «Posso?», e ao dizê-lo sentou-se cruzando um par de per­nas magras e venosas, cheias de sinais azulados. O que me impres­sionou foram as rugas do joelho, que não se esticaram nem sequer naquela posição.

Peguei na mala e fiz o gesto de quem quer pagar o que con­sumiu para se ir embora. Perguntou-me: «Meto-lhe muito nojo, linda senhora?» E eu respondi-lhe que não me metia nojo, só que tinha de me ir embora porque era tarde. Mas decerto não fui muito convincente, e ela sorriu irónica, dizendo: «Sim, sim.» Então acendeu um cigarro que tinha há já um pouco na boca, enquanto procurava o isqueiro na mala. Aspirou tão profunda­mente que queimou quase um terço do cigarro. Deitou fora o fumo. Tossiu. Pediu um café ao empregado que passava e depois virou-se para mim, coçando a sua enfraquecida cabeleira oleosa que lhe caía sobre as clavículas, e, movimentando todas as suas rugas, disse-me: «Você está ao corrente de que o seu marido, ultimamente, começou a apaixonar-se por anãs?» Por um ins­tante fiquei como que dentro da estupefacção da sua fealdade, depois visualizei algo que permaneceu diante dos meus olhos sem forma e que, à distância de anos, me parece recordar como se fosse um quadro que de repente me tinha caído na frente. Não sei porquê, mas foi como se, do alto, alguém tivesse descido um quadro, ou melhor, a moldura de um quadro sem quadro, mas dentro da moldura, em vez de ver um pedaço do jardim, eu não via rigorosamente nada.

- Disse anãs? - perguntei-lhe.

- Anãs.

- Quer dizer mulheres muito baixas?

       - Não, quero dizer mesmo anãs. Minúsculas e horríveis mulhe­res que medem entre os noventa e cinco centímetros e um metro e quinze, um metro e vinte.

Comecei a rir involuntariamente. Devia ser uma louca, aquela mulher que se aproximava de mim para me dizer coisas do género. A julgar pelo modo como se apresentava, era muito pro­vável que fosse uma louca. Olhei-a melhor. Claro que era isso, não se tratava de uma prostituta mas de uma louca.

- Sim, claro, anãs - disse-lhe.

- Não há muito de que rir, sabe? É uma coisa bastante séria, se fosse a si não a encarava assim tão alegremente. Você não faz sequer ideia... não sabe até onde algumas coisas podem che­gar. Não é uma questiúncula de pouca importância, deve estar atenta, mesmo para a criança, você não faz ideia. Siga o meu conselho, fique de olhos bem abertos, a situação deve estar sob controlo.

- Natural - respondi-lhe.

- Sim... mineral. Não quer acreditar em mim, hem? Compreen­de-se, uma linda senhora com uma criança... e depois chega a puta que diz a sua opinião. Não é justo, não é? Não se faz.

- Quer parar por aqui?

- Se é o que quer. Eu, o meu dever já o cumpri.

- Porquê, alguém a mandou fazer isto?

- Com certeza.

- E quem terá sido?

- O piloto.

- De Fórmula Um?

- Não brinque com isto. É um piloto de aviões.

- Que me conhece?

- Não, conhece o seu filho e gosta muito dele.

- Já percebi tudo.

- Eu, pelo contrário, acho que você não percebeu nada. Acredite em mim, fortaleça-se antes de enfrentar toda esta histó­ria. Sabe uma coisa?

- Diga-me.

- Serão precisos anos até que você saia desta situação.

- E você que sabe tudo, o que é que acha, vou conseguir?

- Precisará de ajuda, mas vai conseguir. Sairá desta situação de uma forma brilhante.

Ela quis pagar também por mim e pelo meu filho e depois foi­-se embora cambaleando sobre o cascalho do jardim em cima dos seus saltos. Olhando-a de costas, ao afastar-se, experimentei também eu uma sensação de vacilação. Mas talvez fosse o balou­çar das suas nádegas lentas, que dançavam soltas dentro do ves­tido de malhas largas, tido de malhas largas, nádegas separadas airosamente pela repu­xada tira dourada de um «fio dental».

O mais esquisito foi que, durante aquela curta conversa, o meu filho não se tenha importado minimamente connosco. Era verdade que só tinha dois anos e que estava a brincar com um cão acrobata, mas já na altura era uma criança curiosa a quem nada escapava. Quando me levantei para lhe dizer que tínhamos de ir embora, inclinei-me por um instante à sua altura e à do cão, e fingindo também eu brincar um pouco com eles, perguntei-lhe: «Viste aquela senhora que falava com a mamã?» Com a mãozi­nha dentro da boca babosa do cão, respondeu-me: «Sim.» «E o que achaste dela? Na tua opinião, era boa ou má?» Pensou por um momento, depois piscou o olho direito onde, ao brincar, lhe tinha entrado um pouco de terra. Esqueci-me da pergunta que lhe fizera, tirei um lenço de papel da mala, molhei-o em água mine­ral que tinha sobre a mesa e limpei-lhe o olho. A seguir peguei­-lhe na mão e encaminhámo-nos a pé para casa. Quando chegá­mos ao semáforo da praça Tuscolo, levantou um olhar astuto na minha direcção e disse: «Feia.»

 

Não havia tempo a perder. Telefonei a uma rapariga que de vez em quando ficava com o miúdo, perguntei-lhe se podia vir por duas horas. O meu marido partira para organizar uma expo­sição, não me lembro onde. Seguramente não era nada de grave, devia apenas verificar pessoalmente, por escrúpulo, e depois regressaria a casa para junto do meu filho. De há uns tempos para cá, ele gostava de um jogo que se chamava intransformação: cobríamo-nos com uns trapos, usávamos uma colher de pau da cozinha como microfone, e depois púnhamo-nos a cantar como verdadeiros cantores rock. Cantávamos até à exaustão, até que caíamos suados no chão e fingíamos que estávamos mortos. Vencia quem conseguia ficar morto durante mais tempo. E ven­cia sempre eu, porque ele, passado um bocado, preocupava-se e vinha ver se estava mesmo viva ou morta, e levantava-me os braços, que eu deixava cair novamente, as pálpebras, que eu vol­tava a fechar.

No fim, punha um ouvido à altura do. meu coração e então eu saltava como uma mola, como a serpente do Pinóquio, e ele desatava a rir, gritando, e depois abraçávamo-nos e mor­díamo- nos.

Abri a porta de olhos fechados. Fiquei ali sem os abrir. Pensei: «Agora conto até dez, abro-os, está tudo em ordem, fecho a porta e volto para casa, para o in travestimen to, porque tenho um grande desejo de me intravestir. Um... dois... três... dez... agora!» Estátuas obscenas de anãs, uma orgia de mostrengas, quinze está­tuas de horríveis e debochadas anãs encaixadas umas nas outras, em previsíveis posições quase acrobáticas. Pensei: «Grande força, pequenas como são!» E depois não consegui sequer correr para a casa de banho, porque vomitei ali, à porta, e apanhei um grande susto porque não sei vomitar e tenho medo de o fazer, pois habi­tualmente, das poucas vezes que me aconteceu, os vómitos são precedidos por batímentos cardíacos muito inquietantes que me tiram o fôlego; e além disso, por causa do esforço, sou acometida por uma taquicardia que me bate na garganta, e parece-me sempre que é a morte. Quando despejei tudo, assustei-me ainda mais, ; porque entre as manchas de vomitado, aqui e ali, notei alguns

veiozinhos de sangue. Aproximei-me do telefone e liguei ao den­tista.

- Desculpa se te incomodo a esta hora, podes falar?

- Tenho na minha frente um homem com a boca escanca­rada, ele não pode falar, mas eu posso.

- Ouve, estou no atelier do meu marido, e como vomitei... - Estás a sentir-te mal?

- Sim, muito, mas é que pareceu-me ver no vomitado um pouco de sangue, de modo que me assustei.

- Não é nada de grave, foi o esforço. Mas estás sozinha?

- Sim.

- O que é que se passa? Não é muito normal que estejas aí sozinha a vomitar.

       - Nada, não se passa nada, estava aqui e senti-me mal, e assustei-me, sabes como eu sou. Vi o sangue...

       - Queres que te vá buscar?

- Não, não venhas!

- Porquê? Não demoro nada. Mando fechar a boca a este senhor, dás-me o endereço e vou-te buscar. Ofereço-te um chá de     limão com muito açúcar.

- Não, trouxe o carro, não te preocupes.

- Ouve, Lulu, eu não me preocupo por teres vomitado. É que não me agrada o teu tom de voz, conheço-te e esse tom não me agrada mesmo nada. Escuta, tens realmente o carro?

- Sim.

- E consegues conduzir? Quero dizer, à parte o facto de teres vomitado que não é nada, consegues conduzir nessas condições?

- Sim, consigo, fica tranquilo.

- Então dá-me um toque quando chegares a casa, está bem? Telefonas-me e trocamos dois dedos de conversa.

Desliguei o telefone e olhei em volta. Havia as manchas do meu vomitado e aquelas anãs monstruosas. Eu não me chamo Lulu, nunca ninguém me chamou isso, só o meu dentista quando me quer comunicar o seu amor falhado. Escolheu este nome para as conversas rápidas. É uma velha história. Ele chama-me Lulu e eu percebo o que me quer dizer.

Fui ao quarto de banho lavar a boca, depois pus-me sentada em cima da sanita e apoiei a testa no lavatório. Essa é a posição em que choro melhor, empurrando a testa contra o frio da loiça, empurrando com toda a força que tenho dentro de mim, porque é dali que o choro desce, de uma exasperação occipital que parece quebrar os ossos do crânio, e se eu empurrar eles não podem explodir, se empurrar permanecem apertados entre si e, por muito mal que se esteja, chora-se demoradamente.

Primeiro que tudo limpei o vómito, e depois fotografei as estátuas. Cinco fotos que deixei secar sobre uma secretária. Tirei da mala um rebuçado de menta, abri-o e pu-lo na boca, ficando sentada numa cadeira. Fiquei imóvel a chupá-lo até que se tor­nou fino e parti-o com a língua, empurrando-o contra os den­tes. Depois peguei nas cinco fotos, certifiquei-me de que esta­vam secas, meti-as num sobrescrito para cartas e voltei para casa.

 

Naquela noite, o meu marido telefonou. Tinha o tom de voz de quando as coisas lhe correm bem e tem vontade de conversar. Contou-me pormenorizadamente o seu dia, disse-me todas as pessoas que tinha encontrado, as datas da próxima exposição. Tinha o tom de quem fala consigo próprio. No fim, perguntou­-me como é que eu e o nosso filho estávamos, disse que seria bom se estivéssemos ali com ele, que ia a um cocktail onde have­ria um óptimo vinho, disse que quando é grátis temos de beber até mais não poder, exagerar. Depois tomaria as gotas de Xanax e dormiria como gosta de dormir: como um embrutecido.

Não me lembro do tom de voz que eu tinha durante aquele telefonema, mas ele não se apercebeu de nada, e no fim despe­diu-se de mim no seu melhor modo, dizendo-me: «Adeus, linda.»

Quando pousei o auscultador veio-me à lembrança uma única palavra: fecaloma. E, por absurdo que pareça, vi um diante dos meus olhos. Era grande e continuava a crescer, e ao crescer criava manchas, e à medida que crescia ganhava uma forma à qual não se podia dar um nome, porque não se parecia com nada. E quando se tornou enorme explodiu com um jacto violento, como uma estação petrolífera. Aquela matéria que saltou pelos ares voltou a cair imediatamente no chão, sob a forma de muitas anãs.

Regressou a casa dois dias depois e trouxe-me um relógio de pulso lindíssimo, que há muito desejava. Um relógio masculino de ferro, muito grande e pesado. Estava muito bem-disposto, como sempre que regressava de viagem, e disse que não podia estar longe de nós. Respondi-lhe que era bom sinal, que é nestas coisas que se vêem as famílias unidas. Jantámos os três, ele só brincava, tudo o que levava para a mesa dizia que era alta cozinha e que preparara demasiadas coisas. «Porquê demasiadas?», disse-lhe. Regressara a casa e um regresso deve ser festejado assim. «Bom, estive fora pouco tempo para ser festejado desta maneira», disse. «Não», respondi-lhe, «um regresso é um regresso.» E fui à cozi­nha abrir uma garrafa de espumante. «o que se passa, esqueci­-me de alguma coisa? É um aniversário de que não me recordo?»Então, disse-lhe: «Brindemos.» Deitei o espumante nos copos, uma gota também no copo de plástico do nosso filho. Bebemos todos juntos.

Na cama disse-me que tinha muitas dores nas costas e pediu­-me se lhe podia fazer uma massagem. Fui ao quarto de banho buscar uma pomada e tirei também da mala o sobrescrito com as fotografias, que escondi debaixo dos lençóis. Enquanto o massa­java, perguntou-me: «Sentes alguma coisa?» «O que deveria sen­tir?» «Não sei, alguns enrijecimentos, tenho dores por todo o lado.» Não, não sentia nada, dali a pouco estaria melhor, devia apenas relaxar e fazer boas respirações. Disse que era o avião, o ar condicionado, a posição em que estava sentado. As pessoas tinham a mania do ar condicionado, mas a ele dava-lhe mil e uma dores nos ossos e também tosse. «Passei as noites a tossir, no hotel.» «Devias ir ao médico.» «Imagina, o que queres que um médico perceba disto, sou alérgico ao ar condicionado, sou o único no mundo que fica assim com o ar condicionado. Achas normal?» E depois começou a respirar mais regularmente, a cada toque das minhas mãos nas costas dava um gemido de libertação. Continuámos assim por um bocado. Depois, de repente, pergun­tou-me:

- Ainda vês o dentista?

- Algumas vezes.

- E ainda se amam?

- Não, amámo-nos muito quando éramos miúdos. Não fumcionou. Esse tempo já lá vai há muito. Somos bons amigos.

- É mesmo verdade que nunca se beijaram?

- Claro que é verdade, disse-to mil vezes.

- E agora, nunca tens vontade de beijá-lo?

- Tive muita, em devido tempo. Um belo dia deixei de a ter. Eu disse-te, foi assim. E tu?

- Eu o quê?

- Nunca sentes vontade de beijar uma anã?

Senti as suas costas enrijecerem sob as minhas mãos, e a sua respiração a engrossar, como se fosse de borracha, uma respira­ção que talvez criasse manchas e de um momento para o outro se pudesse transformar em fecaloma. Carreguei com as mãos na sua coluna como que a reforçar a massagem. Perguntou-me: «o que queres dizer?» E eu, levantando o lençol, respondi-lhe: «Quero dizer isto.» Abri o sobrescrito e coloquei as fotografias ao pé do rosto que estava de lado sobre o colchão. E ele a princípio nem sequer viu muito bem do que se tratava, e então soergueu o busto e pegou nas fotos com as mãos, que vi suadas.

- Então? - perguntei-lhe.

- Estátuas, como podes ver. O meu trabalho, a minha pró­xima exposição.

- Convives com anãs?

- Só por questões de trabalho, acabei de to dizer. Conheço algumas.

       - Eu nunca conheci sequer uma única anã em toda a minha vida, e tu conheces algumas? Quantas anãs conheces?

- Não sei, não as contei.

- Tenta dizer um número, um número aproximado.

- Não sei, umas quinze.

- Quinze anãs, conheces quinze? O que é, andas por aí à pro­cura de anãs? Aborda-las na rua?

       - Mas que estás tu a dizer, imagina! Pus um anúncio no jor­nal.

- Um anúncio? E o que é que escreveste, procuram-se anãs?

- Mais ou menos.

- Ouve, em que fase é que estás? Como é que se chama esta fase? - Não estou a perceber.

- Até onde é que chegaste?

- Não, não te estou mesmo a perceber.

- Estás a mentir, tu sabes que eu me dou conta de quando estás a mentir. É o teu modo de agir, foi sempre assim, deixar indícios para em seguida os negar. Gostas do risco, é? Queres ver até que fase eu ficarei a teu lado? Bom, então digo-te já, estás a aproximar-te da última fase, e queria recordar-te que temos um filho com dois anos e que quero que ele tenha uma vida normal.

- Não me agrada estar sob julgamento. Cansei-me de fazer o papel de monstro. Eu sou assim, esculpo anãs, uso anãs como modelos. Neste momento interessa-me o tema das anãs. Além do mais, espero que tu tenhas reparado que desta vez as estátuas não têm buracos.

- O que devo deduzir disso?

- Que não as fodo. É já um bom sinal, não achas?

- Oh, é uma maravilha!

- Olha que eu deixo-te viver a tua vida como queres, só me limitei a dizer-te aquilo que tu não me dás, nunca to impus.

- Generoso, irrepreensível, de uma generosidade comovente. O meu marido gostaria que eu fizesse porcarias por ele, mas foi tão generoso que me perdoou a minha recusa. Vejam só, não me impôs porcarias!

       - Podes dizê-lo alto e bom som. Por acaso critico a tua vida pequeno-burguesa, a tua falta de originalidade? Não, não o faço.

       - Estás doente, estás gravemente doente.

- Sou um artista, minha cara. Um grande artista.

- O que fazes com estas anãs?

- O que queres que faça? Elas posam...

- Posam naquelas poses?

- Sim, evidentemente que sim.

- E depois?

- E depois nada, falamos um pouco, convido-as para beber qualquer coisa. Os anões são objectos de luxo, não sabias? São objectos de luxo para ostentar, já o diziam os antigos Romanos. Justiniano teve uma equipa de gladiadores formada por anões. Velásquez também retratava anões, retratou a infanta Margarida com os seus dois anões: Maria Borbola e Nicolasico Pertusano. São capazes de fazer coisas incríveis. Imagina que uma delas é capaz de pôr de fora uma língua de trinta centímetros, com a qual lambe o nariz, como as vacas. Uma outra dorme com a cabeça apoiada entre os dois pés como se fossem almofadas e enfia os dedos grandes nas orelhas. Outra ainda, uma estrangeira, é uma parente afastada de um dos elementos do grupo musical Lillipuziani, que são todos anões. Encontraram-nos na Alemanha e na Áustria, depois andaram pela América e pela Europa em finais do século passado, obtendo sempre um enorme sucesso. Devias ouvir como canta. Uma voz poderosa!

- Podias levá-las todas a uma bela festa de aldeia.

- Sim, podia. Em vez disso vou levá-las à inauguração da minha próxima exposição, que se intitulará Prodígios.

- Não, não me parece um título adequado.

- Tens alguma ideia melhor para sugerir?

- Sim, podias chamar-lhe Aberrações da Natureza, ou então usares o nome inglês, Freaks. É mais imediato, não achas?

Fiz um grande esforço para manter aquele tom de conversa. Sentia que o sangue me corria por dentro de modo irregular, como um carro conduzido por um principiante. A cada jacto do fluxo enevoava-se-me ligeiramente a vista. Falámos pela noite dentro. Disse-me o nome de todas as suas anãs, que afinal eram dezoito, a cor dos cabelos delas, dos olhos. Naquelas que tinham um número mais baixo de centímetros fazia sempre uma pausa entre o nome e o número, em seguida virava-se para mim e, olhando-me nos olhos, dizia-me: «Tens noção? É minúscula.» Disse-me que o que mais gostava era de vê-las andar nuas no atelier cobertas apenas de jóias. Perguntei-lhe: «Compra-las tu?» Começou a rir. Não, não me devia preocupar. Gastara alguma vez dinheiro com outra mulher a não ser eu? E, além do mais, nem sequer eram jóias verdadeiras, eram quinquilharia que traziam de casa, coisas muito teatrais. Sabe-se lá onde as iam buscar.

Naquela noite aconteceu uma coisa insólita, adormecemos abraçados. Estava quase a pegar no sono quando uma sua inspi­ração mais profunda do que as outras me voltou a dar um momento de completa lucidez. Disse-lhe: «Diz-me cá, não sou comprida para ti, pois não?» Riu-se. «Não», respondeu-me, «para mim ainda estás bem assim.»

 

Hoje voltei para casa a correr. Não sei porquê, pus-me a cor­rer. Levara o meu filho a casa de um colega da escola que é tam­bém o seu melhor amigo. Não se viam desde o início das férias e ontem falaram ao telefone. Disseram-me que posso ir buscá-lo à tardinha, por volta das sete, e não sei por que motivo, mas ao sair de casa deles comecei a correr em direcção à minha. Quando abri .a porta sentei-me no sofá e estava toda suada. Devo ter fechado os olhos por alguns instantes, num estranho torpor. Depois ouvi um barulho de cascos no terracinho e disse: «Bucéfalo, és tu?» E uma voz respondeu: «Somos nós.»

Encontrei-os ao sol em toda a sua magnificência, Alexandre, o MacedónÍo, e o seu cavalo. Aproximei-me e acariciei o lindo focinho do animal e as botas do chefe. «Estou feliz por te rever», disse, mantendo os olhos semicerrados por causa do sol que neles incidia, forte e luminoso, num revérbero ultraterreno. «Senta-te», disse-me Alexandre, «a tua vida anda muito triste nestes dias.» «Eu sei.», respondi-lhe, «há algo que me oprime.»

       - Bons eram os tempos em que os homens viviam em piedade e em harmonia - disse, sem me olhar.

       - Oh, nem me fales disso, se ao menos tivesse conhecido esses tempos!

       - Sabes, às vezes quem destrói, no fundo, deseja encontrar a paz.

       - Devia destruir?

       - Quem sabe. Os inimigos devem ser mortos imediatamente, tivesse-o feito meu pai com Demóstenes e tudo teria sido muito mais harmonioso.

       - Não me fales de arrependimentos, Alexandre.

       - Os arrependimentos são apenas revelações que chegam demasiado tarde.

       - Mas pelo menos...

       - Sim, pode sempre remediar-se qualquer coisa. Voltar atrás, voltar lá onde deixámos a obra incompleta...

       - Mas eu esperei de mais, e durante a espera parece-me ter deitado fora todos os ideais.

       - Os ideais são os sintomas da tua visão da vida. Embora os tenhas feito esperar, não os perdeste.

- Como gostaria que tivesses razão.

- Não deves duvidar.

- Por favor, conta-me outra vez a história do teu cavalo.

- Um certo Filonico, da Tessália, um dia levou o cavalo Bucéfalo ao meu pai, Filipe. O meu pai disse: «Belo cavalo, quanto queres por ele?» E o outro respondeu: «Treze talentos.» Mas quando o levaram para o terreiro para experimentá-lo, este cavalo foi tão selvagem e feroz que os escudeiros disseram que nunca ninguém o poderia domar. Então, o meu pai declarou-o animal sem préstimo. E nesse momento, ao ver que o estava perdendo, eu disse em voz alta: «Ó deuses, que cavalo rejeitam, por não sabe­rem servir-se dele!» Expusera-me de tal modo que tive de aceitar a aposta do meu pai: se não o conseguisse domar, pagaria o seu valor. Então corri em direcção ao cavalo, agarrei-o pelas rédeas e fi-lo virar a cabeça para o Sol. E acariciei-o, ora com a mão, ora com a voz, e de um salto montei na garupa, e sem lhe bater nem o cansar pu-lo em marcha. Quando me apercebi de que após ter dado largas ao seu fogo só pedia para correr, afrouxei as rédeas e incitei-o com voz áspera e com golpes de calcanhar. E o cavalo andou pelo terreiro, e quando eu quis voltou para trás, e então o meu pai disse-me: «Filho meu, tens de procurar um reino que seja digno de ti. Um dia esta nossa Macedónia será muito pequena para te conter.»

- Dos três, serás sempre o meu preferido.

- Também, era melhor que não fosse. Sou o maior. O destino quis que eu brilhasse, qual astro solitário, no crepúsculo do eterno devir.

- Sorte a tua, eu ir-me-ei embora sem deixar marcas.

- Todos na vida podem cortar o seu nó górdio. Talvez tenha chegado a tua hora.

- Sou obcecada pelo sentido de justiça. Tenho medo de um pensamento que me ocorre ultimamente com muita frequência, acho que não há diferença entre o princípio de justiça e o prin­cípio de vingança.

- Não está errado, a violência é algo eminentemente comu­nicável, e às vezes a vingança é o melhor perdão.

- Sinto uma dor muito forte dentro do peito, dura há anos. Acordo de noite com ela, e às vezes parece que me está a matar. Esta noite tive um sonho. Estava na casa de campo da minha mãe e tinha no colo a sua gata, acariciava-a, quando entram mais dois gatos pela janela, uma fêmea tranquila e um macho de pêlo eriçado e a expressão dos olhos raivosa. Mal me vê, salta-me para o pescoço e começa a arranhar-me. Não conseguia livrar-me dele, as suas unhas e os seus dentes cravavam-se na minha carne. Prendíamo-lo dentro de uma rede, púnhamo-lo fora de casa, mas ele, sabe-se lá como, voltava sempre e cada vez mais feroz.

       Alexandre, quem era esse gato? Quem me está a ameaçar?

- Está atenta aos sonhos, porque temos de saber interpretá­-los. Dário, uma vez, sonhou que me tinha visto a cavalo pelos caminhos de Babilónia e depois, juntamente com Bucéfalo, desa­parecer no nada. Por ter sonhado comigo desse modo, estava certo de que iria vencer. Mas, afinal, sabes... na batalha de Isso... Foi ele quem teve de fugir na garupa de uma burra. Eu, ao invés, fundei a cidade de Alexandria. Ninguém te ameaça, esse gato és tu.

- Quantas vezes foste movido pela raiva?

       - Uma, mas trago ainda comigo os dolorosos sinais. Marca que não se apaga nem sequer com o remorso. Já te contei como aconteceu, foi efeito do vinho se matei Clito, o meu melhor amigo, aquele que no campo de batalha me salvou a vida, cor­tando o braço do bárbaro que estava para me ferir pelas costas. Bebêramos ambos naquela festa e ele, nessa ocasião, começou a minimizar as minhas proezas e a enaltecer as do meu pai. Já isso me alterou bastante, mas não foi nada em comparação com o momento em que me disse que devia as minhas vitórias aos Macedónios e, sobretudo, a Parménion, que eu próprio, mais tarde, mandara assassinar. Com a mão fechada, levantou-se da mesa e veio contra mim, gritando: Recorda-te de que foi esta mão que te salvou! Escuta as palavras da pura verdade e deixa de te rodeares de escravos e bárbaros que rastejam na poeira para bei­jar a bainha da tua veste! A raiva e o facto de ter bebido de mais cegaram-me e, visto que tanto se lamentava da minha conduta, respondi-lhe: Sentes assim tantas saudades de Parménion? Então vai, vai à procura do teu Parménion! E assim dizendo, trespassei­-o com a minha lança. Mas, mal o vi morto no seu sangue, tirei­-lhe a lança do corpo e com essa mesma lança tentei matar-me. Detiveram-me alguns amigos que me levaram à força para o meu quarto, onde fiquei deitado durante três dias, recusando-me a comer e a beber, atormentado por um remorso que nunca mais me abandonou. Não vês? Continuo sempre a contar esta história, não consigo deixar de o fazer e... Mas isto não te diz respeito, o gato que te morde e arranha a cabeça não é movido pela raiva, quando muito procura reavivar a tua, que receia estar injusta­mente apagada.

- O Clito é um pouco a tua Acre, não é?

- Acre, o que é Acre?

       Parou de falar e voltou-se de perfil para olhar o Sol, qual águia que o pode fazer. O suave vento de Roma agitava-lhe os cabelos louros e trazia na minha direcção o perfume bom da sua pele e o da sua suave respiração. Tinha a cabeça um pouco incli­nada para o lado esquerdo e o olhar virado sabe-se lá para que lugar remoto do seu imenso império. Bucéfalo roía a pouca erva que havia dentro de um vaso. Não o fazia por fome, mas por aborrecimento equino. Então, algo transmigrou do pensamento de Alexandre para o meu, e vi-o tal como ele estava a ver-se a si próprio: reconhecia-se à distância pelo brilho resplandecente da armadura, pelo penacho branco do elmo, que oscilava sempre que a batalha era mais renhida.

«É bom depender da sinergia entre músculos e metal», disse, respirando melancólico. E assim dizendo, desapareceu juntamente com Bucéfalo. Dentro do vaso, uma erva acabada de ser mordida reemergiu da terra embebida de saliva.

 

Pelas seis e um quarto telefonou a mãe do amigo do meu filho. Estavam a brincar muito bem e não tinham vontade nenhuma de se separar, podia deixá-lo jantar e dormir lá? Respondi que não tinha nada em contrário, mas, como era a pri­meira vez que isso sucedia, pedi-lhe que lhe passasse o telefone para verificar.

- Olá, então estás a divertir-te?

- Sim.

- É verdade que queres ficar a dormir aí?

- Sim, posso?

- Por mim está bem, mas tens de ter a certeza. Uma vez, quando tinha a tua idade, insisti muito para ficar a dormir em casa das minhas primas. E depois não deixei dormir ninguém, porque tive saudades e queria voltar para casa. Não vais fazer o      mesmo, pois não?

- Não, eu já sou crescido, tenho sete anos.

- Bom, eu também tinha, e naquela noite também havia chi­cória aquecida na frigideira, de que eu não gostava nada, para o jantar. Se ficas, tens de comer o que te derem e depois dormir tranquilo, sem começares a chorar de repente e acordares toda a gente.

- Tu eras mulher. Eu como o que gostar, o resto deixo ficar, e depois durmo sem chorar.

- Tens a certeza?

- Certezinha.

- Então está bem, diverte-te e boa noite. Passo a buscar-te amanhã de manhã.

- Obrigado, mãe. Boa noite.

Quisera certificar-me de que tinha a certeza do que fazia e quisera tranquilizá-lo. Mas quem me tranquilizava a mim? Não estava preparada para um pedido deste tipo, fazia-me um efeito estranho. Quando ia com o pai era diferente, sabia-o antecipada­mente e habituava-me com tempo. Eram as regras estabelecidas pelo juiz, e há cinco anos que funcionavam ao seu ritmo. Desta vez era diferente. Não iria dormir em casa e soubera-o às seis e um quarto da tarde. Senti um desalento bastante idiota, vieram­-me à lembrança coisas de pouca importância como a sua escova de dentes, o seu pijama, o sumo de fruta que bebia antes de ador­mecer. Não eram verdadeiras preocupações. Então deixei-as pas­sar e concentrei-me na única preocupação verdadeira: dormiria sem ele. Pensei isso duas vezes de seguida e telefonei ao dentista.

- Ouve, é uma emergência. Sei que ao dizer-to assim de repente não saberás o que inventar, mas não poderias vir jantar a minha casa esta noite?

- Deixa-me pensar, que dia é hoje?

- Quinta-feira.

- Está bem, não há problema, a minha mulher hoje faz o turno da noite, não tenho de inventar nada. Vou ter contigo assim que acabar de trabalhar.

- Ainda te falta muito?

- Uma hora, uma hora e meia no máximo. Mas aconteceu alguma coisa?

- Não, não te preocupes, depois falamos.

- Está bem. Tens vinho tinto?

- Acho que não.

       - Então vai comprá-lo. Quando eu sair já as lojas estão fecha­das. Um vinho tinto qualquer, não te preocupes muito com isso, porque não percebo nada de vinhos. Desde que seja tinto.

Uma hora ou uma hora e meia por si só já não era pouco, mas conhecendo o seu ritmo de trabalho podiam até duplicar. Sempre foi um tipo assim, não calcula a duração do tempo. O seu con­sultório é o consultório de dentista com o horário mais elástico que já vi na minha vida. Sempre que lhe pergunto: «Por que tra­balhas assim tanto?», ele responde-me: «Consolo-me assim. Cada vez que alguma coisa corre mal, lá vai um furo com a broca.» «Mas não te fartaste, não ouves o barulho da broca até de noite?» «Claro que ouço, mas não me fartei. É a minha banda sonora.»

Este homem que conheço desde os tempos da escola é um tipo especial. É um alegre triste, o mais triste e o mais alegre de todos. Não demonstra nada a idade que tem, continua a parecer um miúdo, nem sequer lhe dão trinta anos. Tem um bonito rosto liso, sem uma ruga.

- Caramba, sabes que ainda não tens uma ruga?

- Eu tenho as rugas dentro de mim, quem as tem por dentro não as pode ter por fora.

Falar a sério com ele nunca é tarefa muito fácil, tende sempre para brincar dramaticamente. Responde por metáforas, alude, se o compreenderes, muito bem, de outro modo, adeus. Eu com­preendo-o, é o nosso lado melhor, sempre rimos muito os dois e entendemo-nos sempre com um olhar. Quando exagero com as invasões do mal e me sinto completamente cheia e lhe tento explicar o peso que é, ele, a dada altura, interrompe-me e per­gunta-me:

«Quantos anos temos agora?»), e eu respondo-lhe: «Trinta e oito.» «Muito bem, então agora tenta pensar que daqui a quarenta, ou melhor, cinquenta anos, já ninguém se importará com estes males insuperáveis que te afligem hoje. Ninguém, per­cebes? Acabou. E então deixa estar, quando acordares de manhãpensa só numa coisa: vou à guerra. E depois vai. E o que tiver de acontecer acontece.»

Chegou pontualmente. Não podia ter feito de propósito, por­que quando lhe telefonei não sabia que o convidaria para jantar, mas estava vestido exactamente como no dia do exame de curso complementar. A única diferença eram os cabelos, que agora estão mais curtos do que naquela época. Digo-lhe sempre para os deixar crescer, ele evita o barbeiro por um ou dois meses, mas depois acaba por cortá-los.

Fiz o jantar enquanto ele estava comigo na cozinha, a beber um pouco do vinho tinto que lhe tinha comprado. De vez em quando acariciava-me uma nádega ou um ombro, e eu também o acariciava enquanto cozinhava. Quando estamos juntos faze­mos gestos de casal unido há anos e que ainda se ama. Fazemos gestos deste tipo, muito insólitos em casais juntos há anos. Digamos que com ele realizo uma utopia. Quero dizer que realizo o que seguramente teríamos feito se fôssemos casados, se a per­feição fosse deste mundo em vez de o não ser. Bastava enganar o mundo por um momento, fingir que não éramos mesmo per­feitos, e tínhamos conseguido. Agora estaríamos aqui a acariciar­-nos há anos.

Gosta de olhar para quem está a cozinhar, pois ele nunca teve tempo de aprender. Tem uma vida estranha. À noite chega a casa depois de a família já ter comido há um bocado. Alguém lhe aquece o jantar, põe-lho num tabuleiro e ele leva-o e senta-se em frente da televisão. Quando acaba de comer, vai-se deitar. Não nasceu para fazer esta vida, fá-la contra a sua vontade, como que   por um desafio em que o único a perder é ele.

- Por que voltas para casa sempre assim tão tarde?

- Volto quando a loja já fechou. Volto para fazer o papel daquele que apaga as luzes.

Comemos e bebemos bastante. Riu-se muito quando lhe expliquei o motivo pelo qual o convidara para jantar. «Estás nesse ponto?», disse-me. E eu confessei-lhe que sim, que estava mesmo nesse ponto. «Olha que não falta muito para teres muitos serões como este.» «Eu sei», respondi-lhe, «os filhos crescem e as mães envelhecem.» Mas depois desatei a rir e ele esta não podia entender, porque os filhos crescem e as mães embranquecem são as palavras de uma canção que me cantava a minha avó, eu der­ramava um rio de lágrimas com essa canção.

Foi naquele momento que ele tomou conta da situação: começámos a beijar-nos no sofá. Continuámos assim durante horas, de modo extenuante. E eu nem sequer me preocupei com os resíduos de comida que podia ter entre os dentes, porque bebera demasiado para pensar nisso e, além do mais, quando penso na minha infância sinto-me numa felicidade desacordada, como quem perdeu tudo depois de o ter desfrutado até ao fim. Eram beijos que duravam muito, e entre um e outro olhávamo­-nos curiosos, cada um esperando ouvir dizer qualquer coisa. Mas não dizíamos nada, recomeçávamos a beijar-nos assim, milagrosamente, sem pedir mais nada. Por fim deitámo-nos no chão, sobre o tapete, e, enquanto estávamos imóveis com os olhos fixos no tecto, disse-lhe: «E se eu te confessasse que tenho visões e que falo com elas?» Pegou-me na mão, aproximou-a dos        lábios, mordiscou-a e respondeu-me: «Acreditaria em ti.»

- Não acharias que era louca?

- Nem um bocadinho.

- Tu também falas com visões?

- Eu não, mas tu com certeza que sim.

- Queres que te fale sobre elas?

- Gostaria, mas se te aparecem e falam só contigo, talvez elas não gostem.

       - Ouve, estás com um ar muito tranquilo, não me convences, para mim ou estás a gozar comigo ou estás a par de alguma coisa.

- Nem uma coisa nem outra, sei que não és louca, acredito em ti, e além disso nem sequer és a primeira pessoa a falar-me dessas coisas.

- Quem mais?

- Um homem, há muitos anos, entrava em bilocação, ador­mecia em qualquer lugar e de um momento para o outro, puff, saía-lhe a alma do corpo e ia pelo mundo fora.

- E tu acreditavas nele?

- Claro, além do mais trazia provas das suas viagens, uma vez fê-lo diante dos meus olhos. Disse-me: «Ora olha.» Depois tirou o sobretudo e deu-mo para a mão para que eu o inspeccionasse. Não havia nada nos bolsos, voltei a dar-lho, ele vestiu-o e em seguida sentou-se numa poltrona e adormeceu. Terá dormido durante uma meia hora e eu estive sempre ali a vê-lo. Depois abriu os olhos, enfiou uma mão dentro do bolso e tirou um bilhete do metropoli­tano de Paris, com a data desse dia. Enquanto eu girava o bilhete do metro entre as mãos, disse-me: «O Sol estava pálido e não esta­riam mais de oito, nove graus.» Depois disse-me ainda o título da primeira página do Le Monde, agora já não me recordo, mas com­prei-o para verificar se era verdade, e era, era mesmo.

- A sério que não queres que te diga com quem falo?

- Se me concentrar sei que chego lá sozinho. Seja como for, não, preferia saber o que te dizem.

       - Falam-me de tantas coisas, até da vida deles. Muito do que dizem já o sei porque se trata de personagens muito famosas e...

- Não é por acaso que escolheram aparecer justamente a ti, talvez sejam personagens em quem pensaste muito ao longo da tua vida, que te apaixonaram. Eu sei como tu és. Lembras-te de como eras na escola? Apaixonavas-te por qualquer coisa e durante uns tempos só estudavas isso.

- Dois, seguramente, o terceiro não sei, sim... apaixona-me bastante, mas... bom, de resto, não é que me apareça mesmo, o    terceiro, sonho com ele e basta.

- Percebeste o que eles querem de ti?

- Creio que o problema é outro.

- Qual?

- Trata-se sobretudo de estabelecer o que eu quero deles. Estou certa apenas de uma coisa, que não foram eles que esco­lheram aparecer-me, mas eu que os evoquei.

- Na minha opinião tu já o sabes, ainda não queres é dizê-lo. Olha que eu entendo-te, não devem ser coisas que se contem assim. Isso não é gente que se desloque por coisa pouca.

       - Não, creio mesmo que não. Ouve, acho que me estão a inci­tar a fazer algo que tenho vontade de fazer.

       - O que quer que seja, fá-lo. Procura percebê-lo rapidamente e fá-lo logo.

- O que é, estás a apressar-me?

- Sim.

- O que ganhas com isso?

- Qualquer coisa ganharei.

- Tens a certeza?

- Sinto-o.

- Sendo assim, quero saber alguma coisa, também... da maneira que tu falas perceberei muito pouco.

- Porquê, como é que eu falo?

- Quando queres, sabes deixar tudo no escuro. Não te lem­bras de como te chamava?

- Se me lembro. Eu era Relâmpagos no escuro.

- E assim ficaste. Vá, dá-me um relâmpago. Um apenas.

- Está bem, um relâmpago. Se compreenderes, muito bem, caso contrário não me peças outro.

- Prometido.

- Eu, às vezes, convivo... enfim, tenho contactos com o rei da velocidade. Vou ajudar-te. Trata-se de um tipo que é mais espaço do que tempo.

- Fim de relâmpago?

- Fim.

- Bom, não compreendi nada, mas já é alguma coisa. O rei da velocidade, um tipo que é mais espaço do que tempo. Pensarei        nisso.

- Não, não deves pensar nisso, irás descobri-lo.

Aquele relâmpago no escuro deu-me tanta alegria que reco­meçámos a beijar-nos no nosso modo extenuante. Muito repeti­damente. Já eram três da manhã, e uma fraqueza fora do tempo começou a incomodar-me dentro do estômago com a leveza de asas de libélula. Agarrei-lhe o rosto com as mãos, pendurei-me nele como se repentinamente me tivesse transformado num apên­dice da sua expressão, e disse-lhe: «Não te vás embora. Se a tua mulher está a fazer o turno da noite, fica a dormir comigo. Vais embora de manhã, a tempo de chegares a casa antes de ela voltar.»

Então fui ao quarto de banho vestir o pijama e emprestei-lhe outro que me estava grande. E ele também foi vesti-lo ao quarto de banho. Quando voltou, disse-me: «Estás a ver, estamos a fazer progressos. Agora já podes dizer que viste os meus dois pés.»

Fomos para a cama deixando a janela aberta porque ainda fazia muito calor, e também porque o céu estrelado tinha de ser visto, de tão belo que estava e percorrido por nuvens passageiras. Não nos beijámos mais, ficámos só abraçados a transpirar e a fundir. E essa foi a minha primeira noite de verdade, e algo dentro de mim come­çou a derreter-se, a princípio num forte espasmo de apreensão e depois cada vez mais docilmente, até que o espasmo abrandou com­pletamente e adormeci nos seus braços. Quando ainda não estava completamente dentro do sono, senti soprar ligeiramente na testa. Então abri os olhos e, na escuridão iluminada apenas pelo luar, vi que sorria para mim. «Diz-me como te definirias agora?», perguntou­-me. E eu respondi-lhe: «Doce. E de uma felicidade inaudita.»

Acordámos às sete e tomámos o café juntos na cozinha, sem falar. Perguntei-lhe apenas se queria pelo menos um biscoito e ele disse que não. Depois voltou a vestir as suas roupas que dei­xara no chão e disse-me: «Agora tenho mesmo de ir.» À porta, perguntei-lhe: «Ainda pensas que a perfeição não é deste mundo?» Deu a sua gargalhada de andorinha e respondeu-me: «Deste mundo não, mas de outro, quem sabe...»

Esperei no patamar que chegasse o elevador pensando em duas coisas. A primeira: esperar daquela maneira era um com­portamento de mulher casada. A segunda: fora uma mulher casada mas nunca o fizera.

O elevador chegou com ruído de roldana. Ele abriu a porta. «Deste mundo, não, mas de outro, quem sabe», pensei para comigo. Quando estava atrás da grade de ferro despediu-se de mim, ace­nando-me com a mão.

- Relâmpago no escuro? - perguntei-lhe. - Relâmpago. Muito relâmpago. Adeus, Lulu.

 

Hoje não faço mais nada senão pensar naquele cão, naquele meu velho cão chamado Aldo, naquela espécie de curandeiro. Quando ele chegou, eu não suportava mais a distância que exis­tia entre mim e a minha infância. A única solução seria ter um filho, mas naqueles anos não saberia mesmo com quem fazê-lo. E assim, uma noite dei por mim a pedir ajuda, e então comecei a pensar nos mortos importantes da minha vida, nas pessoas que amara quando era criança. Adormeci na ilusão de que de manhã acordaria consciente de trazer dentro de mim uma espécie de bonequinha que me dificultaria a digestão mas que melhoraria a minha vida de adulta. Quando finalmente adormeci, sonhei com a Ângela que passeava com o Derby, naquela felicidade de almas gémeas. Caminhavam numa bela atmosfera primaveril, cheia de insectos que zumbiam em volta de todo aquele desabrochar de giestas ultraterrenas em flor, ao longo do rio que era pouco mais que um riacho. Caminhavam em passos de vento, como que sem pés e sem patas, por serem muito velozes. E embora os chamasse em voz alta, não me ouviam. Então, caminhei escondendo-me entre as árvores, ultrapassei-os e esperei por eles mais à frente, sempre escondida mas pronta a saltar para fora no momento certo. E assim fiz quando estavam a poucos metros de distância, e a Ângela reconheceu-me imediatamente, e até o cão, mas fez uma expressão com o rosto, como que a dizer: «Reconheço-te, mas tenho de fingir que não te vejo», e deste modo passou à minha frente, mas não antes de me ter piscado o olho em sinal de cumplicidade. Todavia, como os sonhos misturam tudo, eu pensei: «Outro relâmpago no escuro, e sabe-se lá o que me quer dizer.» E depois não sonhei mais.

De manhã acordei com o mesmo peso da perda da infância que sentia há já algum tempo, saí nesse estado de ânimo, fui comprar o jornal e tomar o pequeno-almoço no café. Enquanto estava sentada à mesa, vi reflectida no passeio a inconfundível sombra de uma mulherzinha minúscula e enfezada. Voltei-me para ver de onde vinha, mas naturalmente não encontrei a sua origem, e então continuei a fixá-la no asfalto até que se esbateu. Quando desapareceu por completo, no seu lugar encontrei no chão um bilhete que não estava lá antes. Dizia: RoccaprÍora: ven­dem-se lindíssimos cachorros boxer. Dirigir-se, às horas das refei­ções, ao senhor Alla. Foi o nome deste homem que quase me fez perder os sentidos. Se disser Alla, basta acrescentar um h no fim... e o que tens? O nome daquele que para muitos é grande.

Telefonei apesar de não ser hora de refeição, mas tive sorte e respondeu-me o próprio Alla em pessoa, que marcou imediata­mente um encontro comigo na praça Aldo Moro, em frente à uni­versidade. «A senhora vê-os primeiro, se gostar deles fechamos negócio.» «Porquê?», perguntei-lhe, «trá-los todos consigo?» «Claro, senão como é que a senhora pode escolher?» «Daqui a quanto tempo?» «Não mais de uma hora. É o tempo que demoro a chegar.»

Escolhi-o entre cinco cachorros, e não foi o mais bonito, foi o único que vi.

Na manhã seguinte, antes de mais nada, despi-me completa­mente e fui-me pesar. Conseguira, tinha exactamente um quilo a mais em relação ao dia anterior. A bonequinha instalara-se comodamente nas minhas tripas.

Aldo crescia pensando muito, era um cachorro alegre e triste ao mesmo tempo, mas era principalmente suspirante, suspirava acordado e a dormir, e sonhava de tal maneira que acordava repentinamente com os olhos esgazeados, quase nunca me reco­nhecendo ao primeiro olhar. Havia nele uma estranha sabedoria canina, eu perguntava e ele emanava telepaticamente, modo mais fácil de estar no mundo. O mundo, canção muito famosa de Pino Donaggio. Cantava-a sempre que acordávamos, enquanto, escon­didos atrás dos cortinados da janela, espreitávamos os pombos e as pombas que vinham comer as sementes que púnhamos todas as noites, numa tigela, sobre o parapeito. Ora escutava a canção, ora olhava os voadores a depenicar a comida sem harmonia recí­proca, ferindo-se sempre inutilmente no pescoço, senão mesmo directamente na cabeça, por uma única semente, ainda que hou­vesse milhares delas. «Estás a ver?», dizia-lhe. «Odeiam-se para nada.» E ele suspirava.

No Natal fazíamos sempre o presépio juntos. Levava uma tarde inteira a ajeitá-lo sobre uma prancha de madeira tão grande como uma cama de solteiro, que apoiava sobre dois caixotes de verdura. Ele gostava do musgo, do papel das rochas, do papel do céu, de todas as lindas figurinhas, cheirava tudo antes de ser colocado, ai de mim se me esquecia. Ladrava com um olhar acabrunhado. «Então, não me deixas cheirar?» Depois ficava horas a admirar a obra completa, e nunca estragou nada nem uma única vez, nunca atirou nada ao chão, nem sequer com a respiração. As pessoas nem imaginam quanto um cão nos pode fazer felizes, talvez nem o saibam mesmo os que os têm, porque nunca pensaram que um cão é sempre um regresso: de uma outra vida, da nossa vida, de uma vida que encontraremos sabe-se lá em que outra vida futura.

Eu, desde os meus vinte anos, sofri sempre de estranhos ata­ques histéricos, devidos a sabe-se lá que perplexidade minha sobre a saúde. É algo de que nunca nos curamos completamente, nem sequer reflectindo lucidamente sobre isso, porque cada vez, apesar de ter acontecido tantas vezes antes, pode ser sempre a definitiva, aquela que nos rapta à vida. Ele dava-se conta antes de mim, e então vinha para a minha beira e fazia-me de encosto, como que a dizer: «Apoia-te em mim, que eu não conheço a histeria.» Quando isso acontecia, agachava-me à sua altura, e na testa dele apoiava a minha. Ficávamos assim até eu sentir subir o fluido bom de cada movimento solto e depois, recuperada, vol­tava a fazer o que estava a fazer antes, sem pensar no pior. Ainda hoje, embora ele tenha morrido há dez anos, sempre que tenho aqueles momentos de susto concentro-me no poder da sua testa até me sentir bem.

Quando aos seis anos começou a sofrer do coração as coisas mudaram bastante. O veterinário disse-me que devia evitar que ele tivesse emoções fortes, mas como o podia eu fazer se ele era um desvairado que ladrava com ódio a todos os cães que encon­trava, se quando eu regressava a casa depois de ter ido apenas comprar pão me fazia festas que teriam quebrado até o coração de um astronauta? Não podia fazer nada, e assim vivemos apreensi­vos, porque de vez em quando estes ataques faziam-no desmaiar durante alguns segundos, e começavam sempre com uma tosse­zita seca e cansada que lhe vinha precisamente do coração.

Aldo morreu a 25 de Abril, há dez anos. Já em meados de Fevereiro tivera aquilo a que se chama um ameaço, e nunca mais voltou a ser o mesmo. É triste dizê-lo, mas ficara meio tolo. Não só não tinha equilíbrio como também já não conseguia perceber bem as coisas. Chamava-o da esquerda e ele virava-se para a direita, em casa já não reconhecia onde estavam os quartos, muitas vezes cami­nhava sem parar, rodopiando, ou até embater numa parede, sem por isso se dar por vencido, continuando sempre a marchar. Dormia de dia e de noite, caminhava como uma alma penada, chorando. Eu pegava nele ao colo e embalava-o como um bebé, adormecia por um pouco e depois acordava, continuando no seu tormento.

No dia 25 de Abril, em casa da minha mãe, no campo, Aldo teve o último ameaço, aquele a sério. Caiu no chão e foi atacado por convulsões. Tentei chamar o meu veterinário, mas não estava nesse feriado. Fui a correr à quinta dos camponeses que ficava a um quilómetro, deram-me o telefone do veterinário que ajudava as vacas deles a parir.

Chegou um homem que se parecia com o Trinca-Fortes, com uma bata suja de velhas manchas de sangue. Chamava-se Agresti. Deu-lhe muitas injecções, a intervalos de dez minutos. Aldo con­tinuava a agitar-se, com o olhar vítreo fixado no nada que agora via. Estivemos assim durante duas horas, no fim disse-me: «Já não há nada a fazer. Ou o deixa morrer naturalmente ou dou-lhe uma última injecção. Pense um momento.»

Aproximei-me de Aldo, que se mexia desvairadamente, como uma tartaruga caída na carapaça, de barriga para cima. Talvez fosse verdade que já não percebia nada, como dizia Agresti, mas eu conhecia-o melhor do que qualquer médico. Aldo estava ater­rorizado. Embora tivesse perdido o juízo e a consciência, estava consumido pelo medo.

Fui ter com o médico e disse-lhe: «Como é que se chama essa injecção?» «Chama-se Tenax.», respondeu-me. «Bom, dê-lha.»

Vi-o deixar lentamente de fazer o movimento agitado das quatro patas, enquanto com os olhos, que já nada viam, me olhava pela última vez, com aquele sentimentalismo apocalíptico que lhe dera cabo do coração.

Tive de ser eu a decidir matá-lo, coube-me a mim esse horror. Enquanto o médico preparava a injecção olhei para a caixa vazia do Tenax e pensei: «Sabes lá quantas pessoas mereciam ser pos­tas a dormir em vez de ti!»

Ia morrendo à medida que o líquido circulava, paralisando tudo. E finalmente morreu, com aqueles olhos que ficaram aber­tos, com uma expressão que devia ser completamente vazia e em vez disso era belíssima. Foi naquele 25 de Abril que eu percebi o que era o amor puro, aquele que te pode fazer dizer, como numa ária de Verdi, Eu morrerei, mas com o coração feliz.

Sepultei-o lá, na terra da casa da minha mãe, debaixo de um pessegueiro. O veterinário cobrou uma insignificância, embora tivesse vindo a casa num feriado. Aquele homem, que metia medo só de olhar para ele, foi-se embora a chorar. Quando lhe abri o portão para o deixar passar com o carro, disse-me: «Quem é que se poderá esquecer deste dia? !»

Voltei a vê-lo algumas vezes nas ruas da aldeia. Nunca mais trocámos uma palavra, cumprimentamo-nos apenas com um aceno de entendimento, que é um sinal de recordação e, simulta­neamente, de desejo de esquecer. Quando o Aldo morreu, eu vol­tei a sentir o vazio enorme da minha infância perdida. Durou três anos, até que nasceu o meu filho.

 

Uma noite, o meu marido regressou a casa um pouco pertur­bado. «Aconteceu alguma coisa?», perguntei-lhe. Então ele sen­tou-se e contou-me que tinha sido abordado na rua por um homenzinho bastante ambíguo, vestido como um gangster dos anos trinta, com um fato escuro às riscas que devia ter envelhe­cido no seu corpo, e com estranhos cabelos amarelados que ema­navam um forte cheiro a mofo, untados com gel sabe-se lá quan­tas vezes sem nunca terem sido lavados. Faltavam-lhe dois dentes da frente e, por isso, quando falava podia acontecer que lhe saíssem da boca, juntamente com as palavras, bolinhas de saliva que rebentavam não muito silenciosamente. Abordara-o na rua, indo ao seu encontro com um sorriso cúmplice, como se se conhecessem e tivessem marcado um encontro. Quando estava ao seu lado, disse-lhe: «o senhor tem consciência do facto de lhe estarem para pregar uma partida de mau gosto? Não é que o senhor não mereça, mas eu em todo o caso tenho de avisá-lo, é meu dever. Olhe que se trata mesmo de um grande golpe, vai pas­sar por um mau bocado. Não queria estar no seu lugar.» E dito isto fora-se embora, engolido por uma multidão que de repente sur­gira do nada e o levara embora. Acabado o relato, o meu marido aproximou-se de mim e, acariciando-me um joelho, disse-me:

       - Não és tu quem me vai pregar essa partida de mau gosto,    pois não?

       - Nunca se sabe. Até pode ser que sim - respondi-lhe.

Vi-o empalidecer e então disse-lhe, rindo, que tinha de deixar de dar ouvidos a todos os que o abordavam na rua. Ele tinha uma cara estranha que atraía os meio-loucos. Já não se lembrava dela, daquela mulher que, há uns anos, viera ter com ele dizendo-lhe que corria um grande perigo, que tinha dentro dele carradas de mal que lhe estavam a envenenar o sangue, e se todo aquele mal atingisse um certo ponto, já não me lembro qual, ele morreria seguramente? Lembrava-se dela? E depois?, o que fizera essa mulher a seguir? Pedira-lhe que esperasse um momento por ela, foi-se embora e voltou trazendo-lhe uma ampulheta cheia de um pó mágico que vinha sabe-se lá de onde. Lembrava-se dela ou não?

       O meu marido empalideceu novamente e voltou a sentar-se na poltrona.

       - Bolas!

- Bolas o quê?

- Já não me lembro onde pus aquele pó. E se o tivesse per­dido?

- Nesse caso, terias poucas horas de vida.

- Não brinques com estas coisas.

- Não estou a brincar.

Naquele dia de meados de Outubro levara o meu filho ao infantário. Vinha-me embora sempre angustiada porque, como muitas outras crianças, ele também ficava desesperado ao ver a sua mãe ir embora. Nós, as mães, levávamos quase uma hora para deixar a escola. Aqueles longos corredores enchiam-se de crianças lacrimosas que nos perseguiam, que escorregavam, que tínhamos de arrastar à força. Todos os dias me sentia tentada a dizer-lhe: «Está bem, não faz mal, vem comigo para casa e nunca mais voltamos aqui.» Mas não o podia fazer. Procurava imaginar o que lhe poderia passar pela cabeça ao ver-me assim decidida a abandoná-lo. O que estava a sua mãe a fazer, talvez se estivesse tentar livrar dele? E o que fizera ele de errado? De resto também eu, na sua idade, fizera idênticas fitas ao longo de idênticos corredores. Um dia a minha mãe voltou para casa dizendo ao meu pai: «Amanhã leva-la tu, para mim é muito doloroso, atira-se para o chão, as freiras levam-na agarrando-a pelos braços, e eu venho embora enquanto ela me chama a gritar. Não aguento. Talvez contigo faça menos fitas.» De modo que, no dia seguinte, o meu pai levou-me à escola de carro, e lembro-me de que ia muito deva­gar, que fazia as curvas com suavidade, quase em câmara lenta. E durante o caminho elogiava todas as belezas da escola, a quanti­dade de amigos que teria, as brincadeiras. Em abstracto, tudo era muito aliciante. Sabe-se lá que cálculos ia fazendo na minha cabeça durante aquele trajecto. Decerto terei pensado que com o meu pai não me podia permitir fazer tantas fitas como com a minha mãe. Não me recordo de sentir uma grande apreensão enquanto estava no carro. Os preparativos eram sempre agradáveis: o cesto com muitos bolos, fruta, uma ou duas tabletes de chocolate que se chamavam carros armados, aliás, se me recordo bem, carrarmaü, escrito tudo pegado. E havia ainda os guardanapos com as minhas iniciais bordadas, uma toalhinha aos quadrados brancos e vermelhos, e os sumos de fruta. Todas as manhãs a minha mãe, enquanto me enchia o cesto, cantava-me uma cantiga que eu ouvia quase todos os dias num velho gramofone, chamava-se Quem quer lan­char comigo e era extraída da história do Capuchinho Vermelho, que os meus pais me tinham oferecido em disco.

O meu pai estacionou mesmo em frente à escola. Ao sair do carro demos as mãos e entrámos no vestíbulo. Tudo foi perfeito até à porta da minha sala, onde comecei a exibir o meu habitual repertório de desespero. A principio o meu pai foi bastante duro, até levantou a voz, o que surtia geralmente um óptimo efeito em mim. Mas nada me fez parar, continuei até ao fim. Fui de tal modo convincente que a dada altura o meu pai disse à freira: «Não há nada a fazer, hoje não há maneira. Tentaremos de novo amanhã.» Lembro-me de que ao sair daquele vestíbulo junta­mente com o meu pai experimentei uma sensação de contenta­mento difícil de definir. Compreendo-a melhor hoje, pois mesmo à distância de anos recordo as sensações _o pormenor e sei chamá-las pelos nomes. Tratou-se de uma vitória esmagadora sobre um considerável grupo de inimigos: as horríveis freirinhas, tão simpáticas na frente dos pais e impiedosas quando ficavam a sós connosco, coisas do tipo: «Se dizes mais uma vez que tens sede, nunca mais te deixo beber!» E as minhas colegas de turma, as perdedoras, aquelas que tinham ficado nas mãos dos monstros por falta de habilidade táctica, elemento não pouco importante que faz com que se vençam as batalhas e as guerras. A minha tác­tica, evidentemente, foi uma táctica de nível bastante elevado, porque quando regressámos a casa o meu pai disse à minha mãe: «Sabes o que te digo? É ainda muito pequena para ir para o infan­tário. Só tem três anos, de que lhe servem três anos de infantário? Deixa estar, ouve o que te digo, logo vai para o próximo ano.

O meu filho talvez não soubesse usar a táctica certa, ou tal­vez os tempos fossem outros. Eu trabalhava e a minha mãe não, portanto ela podia permitir-se não me mandar para a escola, ao passo que eu, não me podendo permiti-lo, tinha de passar por cima dos seus desesperos, minimizá-los.

Pensando nestas coisas, caminhava pela Rua Magnagrecia quando cheguei ao semáforo da praça Tuscolo. Parei porque estava a ficar vermelho, e apercebi-me de que do outro lado do passeio estava uma mulher, e que estava a olhar para mim. Não podia ter dúvidas, uma pessoa assim não se esquece, era a mulher do café. Quando ficou verde fomos na direcção uma da outra, caminhando lentamente como dois pistoleiros, que a seguir têm de ser rápidos. Chegáramos quase uma diante da outra, quando a vi meter uma mão no bolso. «Já está», pensei, «agora mata-me.» Mas afinal tirou um sobrescrito branco e, aproximando-se de mim, disse em voz baixa: «Então não quer mesmo perceber? Tinha-lhe dito que era uma coisa importante, mas você é teimosa. Neste sobrescrito estão um endereço e as chaves. Vá lá esta tarde às cinco. Vá, e depois tome providências.» Estava já a ir-se embora quando lhe gritei: «Mas quem diabo a mandou?» Voltou-se com um sorriso muito cansado. «Então você também tem memória curta», respondeu­-me. «Não se lembra? Mandou-me o piloto.» «Qual piloto?», gritei. _ «O piloto», respondeu, já sem se voltar. «O piloto.»

Abri o sobrescrito quando o semáforo estava a ficar verme­lho, fiquei no meio da estrada enquanto os carros me buzinavam e me evitavam. Cheguei ao outro lado a muito custo, com mui­tos insultos. Era um endereço numa zona completamente dife­rente, uma zona que conhecia bem porque nascera lá: Rua de Villa Ada, n.O 25, mesmo em frente do parque homónimo onde passara toda a infância. Com aquele bilhete e aquelas chaves na mão, revi algumas coisas do meu passado: eu a sair de casa, do n.º 6 da Rua Filomarino, com os patins na mão, em direcção ao parque onde tinha um encontro com a Carlota e a Cecília; aquele meu colega de escola que, para nos fazer rir, se estendia no meio da estrada fingindo ter sido atropelado; os pacotes de leite em forma de pirâmide, que ia comprar a uma leitaria minúscula; a minha primeira menstruação, precisamente quando a minha mãe corria risco de vida, dando à luz o meu irmão.

Eram nove da manhã. O meu filho sairia do infantário às qua­tro e meia. Podia ir buscá-lo juntamente com a rapariga que às vezes tomava conta dele. Em seguida, ela levá-lo-ia para casa e ficaria com ele até ao meu regresso. Apanhando a tangencial, não demoraria mais de vinte minutos da escola do meu filho até à Rua de Villa Ada. Podia estar lá às cinco em ponto.

Quem diabo era aquela mulher? Quem era aquele piloto que a mandava vir ter comigo para me dizer que o meu marido era um monstro? O meu marido era um grande artista que ultima­mente esculpia anãs.

Era um homem estranho, é verdade, mas não era tudo culpa sua. Tivera uma infância difícil, era por isso que lhe custava ser afectuoso. Falava pouco, mas sabia-me fazer feliz à sua maneira. Tínhamos uma visão diferente da vida. Eu separava o bem do mal Ele mantinha-os unidos. Ele era moderno. Eu era antiquada. Eu amava os heróis. Ele, não. Para mim, as coi­sas só eram boas quando eram justas. Para ele, eram boas e justas se lhe convinham. Eu era fiel Ele, não. Eu detestava os monstros. Ele sentia-se atraído por eles. Mas ele, o mal, apenas o fantasiava, e a fantasia não faz mal a ninguém. Ele era com certeza muito melhor do que fazia crer aos outros. Era simplesmente infantil E, além disso, estava disposto a tudo só para me contradizer. Bastaria que eu tivesse sido um pouco mais esperta e ele teria feito exactamente o contrário. Para fazer com que ele separasse o bem do mal, teria sido suficiente que eu apenas fingisse amar o mal, e assim com tudo o mais. Se tal não aconteceu, foi por culpa minha, que ponho a honestidade à frente de tudo, que sou obcecada por ela, que estou convencida de que não basta uma vida inteira votada à honestidade para sermos suficientemente honestos. Não conseguia fingir, e ele tornou-se aquilo que é. Mas quero conti­nuar a defendê-lo, isto é uma conspiração contra ele, contra nós. Quem é aquela mulher? E o que quererá o tal piloto do meu filho?

Esperei deste modo pelas horas que me separavam do momento em que entrei no carro para ir em direcção à Rua de Villa Ada, em defesa daquele pobre homem que, apesar de tudo, continuava a ver como quando o conhecera, como quando se conhece uma pessoa e não se sabe nada sobre ela, e a vemos tal como nos apa­rece. Consegui estar quase contente e, se nem sempre contente, fui pelo menos muito irónica no modo como encarei a questão. Porém, quase no fim, fiquei também apreensiva. E se tivesse sido uma armadilha daquela mulher? Que mais poderia esperar de uma mulher assim? Não seria melhor ir à Rua de Villa Ada com alguém? Não havia uma esquadra da polícia mesmo por baixo da minha casa? Não custava nada, bastava contar como acontece­ram os factos, mostrar aquele bilhete e as chaves. Mas, em vez disso, esperei e fui sozinha.

À saída da escola estava alegre com o meu filho, até lhe levei um brinquedo. Saíra cinco minutos antes. Mandei ele e a rapariga entrarem no carro e fui levá-los a casa. Quando os vi entrar pela porta da rua senti-me mais descansada e fui apanhar a tangencial. A tangencial leste é uma estrada que sempre me inspirou muito, lembro-me de uma amiga minha, poetisa, que nas longas filas a meio da tarde até era capaz de escrever uns poemas. Um viaduto que em muitos pontos parece não ter fim, um fluir contínuo de curvas onde os carros correm por entre prédios, numa atmosfera que é sempre ligeiramente ofuscada pelos tubos de escape. Uma estrada que de noite está fechada ao trânsito, porque senão quem vive nos prédios defumados enlouquece. Quando saí da tangen­cial tinha a respiração ligeiramente ofegante. «Esta é a última vez», pensei. «A última vez que faço aquilo que me sugere aquela ex-prostituta, gerente de bordel. O que é que ela tem a ver comigo, com o meu marido e com o meu filho?» Apanhei uma estrada paralela a um parque, pensando que, em tempos, também ali pas­seei sem suspeitar do futuro. Também pensei no dentista, mas sóde fugi da, como um acto falhado que provocara muitos outros. Para o diabo com a perfeição deste mundo que tanto apregoava, se nós nos tivéssemos casado, não estaria agora a seguir ordens malucas ditadas sabe-se lá por que mente doente. Cheguei ao semáforo da Rua Nera, parei, olhei para a fonte à minha esquerda onde, em criança, depois de brincar no parque, bebia água das mãos da minha mãe. Arranquei quando ficou verde, com o esó­fago a dilatar-se e o ar que inspirava a descer a conta-gotas, como o soro. «Malditos sejam», pensei. «Todos vocês, ninguém excluído, que arruinaram a minha vida, vocês que vivem de fase em fase humilhando, vocês que triunfam apenas à custa da humilhação dos outros.» Não, o homem com quem casara, pai do meu filho, não podia pertencer a essa categoria. Ele só pertencia em teoria, na prática conservava-se incólume. Na prática, usava apenas aquele pouco que bastava para me perturbar, pois quando muito a sua finalidade era esta: tornar-me menos sólida do que eu era por natureza. Mais mal do que isso não fazia. Meteria a minha mão no fogo, arriscando-me a que depois me chamassem maneta.

Estacionei na Rua de Villa Ada, em frente do n.º 25. Uma entrada colossal com duas colunas dóricas de cada lado. Abri a porta da rua com a chave pequena e fiquei logo perturbada pelo facto de ela funcionar. Fechei-a atrás de mim, pensando: «Demos início a esta farsa, esperemos a qualquer momento a brincadeira que terei de engolir, se calhar foi mesmo o meu marido que orga­nizou tudo. Às tantas, encontro-o na minha frente a dizer-me: "Quando é que deixarás de achar que sou o mais porco dos por­cos? Quando é que deixarás de acreditar na primeira puta que me pinta como um monstro?" Caminhava em passos penosos, pen­sando: "Queira Deus que assim seja. Se assim for, pedir-lhe-ei perdão de joelhos e recuperaremos tudo com as nossas belas férias deste ano: as extensas e infinitas praias de Barisardo, os mexilhões de Tortoli, que comprávamos aos três quilos de cada vez, os figos-da-índia que tu limpavas com as mãos nuas, pra­guejando, aquela noite em que estendeste um colchão na varanda e nos amámos enquanto o nosso filho dormia e havia tantas, demasiadas estrelas, e eu te disse que pareciam todas cadentes. Pedir-lhe-ei perdão e ele dir-me-á que eu tinha razão, que não existiam fases, que mesmo isso era um jogo das suas tristezas mais antigas, dos actos falhados, da vida que, antes de me encontrar, correu como correu. Dir-me-á definitivamente uma coisa: que às vezes o orgulho se sente duplamente ferido pela genero­sidade de um benfeitor.»

Tinha de escolher a escada e, por instinto, escolhi a A. Quanto ao andar, não tinha dúvidas, a ser verdade só podia ser o subter­râneo, a cave. Desci então uma escada escura, e ali não havia nada a escolher, só havia uma porta.

Vi um lindo espectáculo. Edificante. O meu marido, nu, agi­tava-se como um louco debaixo de um enxame de anãs. E o seu frenesim embriagado era tal que nem se aperceberam de que entrara na sala. Só se deram conta quando uma delas, casual­mente, se virou na minha direcção, e então sim, gritaram todas juntas e em uníssono saltaram, espalhando-se pela sala com a velocidade dos ratos, e, não sabendo onde se esconder, ficaram todas encostadas às paredes a chiar com as bocas escancaradas, cheias de pequenos dentes aguçados e amarelos. E assim ficaram enquanto também eu lá fiquei, dando gritos não humanos com um hálito fedorento, de cair para o lado. Antes de me ir embora, fixei na minha cabeça cada uma das suas monstruosidades, fosse uma corcunda ou outra deformação, enquanto o meu marido, esgotado, embora me tivesse visto não ousou sair de onde estava, fazendo apenas pequenos sinais como que a dizer: «Porquê? Diz­-me, de que é que te adianta?»

Já não me recordo de como voltei para casa, entre a Rua de Villa Ada e a minha casa existe um buraco negro que não sei como terá sido preenchido. Terei conduzido, claro, terei seguido pelas ruas certas e, por fim, estacionado o carro. Recomeço a lembrar-me a partir do momento em que vi o meu filho, que veio ter comigo no seu carrinho verde a pedais, que ainda hoje guar­damos e no qual ele, de vez em quando, ainda quer andar, con­seguindo guiá-lo como um gigante raquítico. Abracei-o e logo a seguir saímos juntos para ir à loja de brinquedos que fica do outro lado da rua, em frente à porta do nosso prédio. Lembro-me de que escolhemos um carro telecomandado, e de que também lá estava a senhora do andar de baixo com o filho, a escolherem um carro. Lembro-me de ter falado com essa senhora, que é bonita e alegre e ensina dança clássica, falámos cordialmente durante um bom bocado, como duas mães que compram brinquedos para os filhos. Recordo-me de que quando saímos da loja o meu filho estava feliz e de que eu quase não percebia mais nada. Lembro­-me de ter pensado: «Não me resta mais nada senão a visão.» Pois espantava-me o facto de continuar a ver: continuar a ver que aquela era a rua da minha casa, e que na rua havia carros, e que a passadeira servia para atravessar a estrada em segurança. Lembro-me de que continuava a ver as coisas mas sem as perce­ber, de que apenas as via, e que isso já me parecia muito, uma espécie de prodígio do meu corpo que sentia despedaçado.

       Naquela noite fiz o jantar para mim e para o meu filho, e

depois comemos juntos a ver desenhos animados. Depois fomos para a cama e abraçámo-nos, ele adormeceu logo e eu fiquei no escuro, com os olhos abertos, abraçada àquele pequeno corpo que respirava sobre o meu pescoço. E na escuridão nada mais havia para ver, eu não via. Até aquela última e neutra função do meu corpo deixava de me fazer companhia. Então dei-me conta de que até ali não fizera mais nada senão enumerar as coisas que via, e que agora, no escuro, as estava abandonando uma a uma, numa estranha lista de despedida.

Cerca da uma da manhã abriu-se a porta de casa e acendeu­-se uma pequena luz na sala de estar. Ouvi passos e, a seguir, o peso de um corpo que caía no sofá. Levantei-me da cama e espreitei pela porta do quarto, que tinha entreaberta. O meu marido tinha um ar cansado, descalçara-se e as plantas dos pés, apoiadas no braço do sofá, tapavam-lhe parte do rosto de des­terrado. Vira-o assim uma vez, mas em tempos bem diferentes: ao acordar da anestesia, após uma operação a uma clavícula que partira aquando de uma queda. Vi-o, ainda meio adormecido, ser colocado por duas enfermeiras na cama. Lembro-me de me ter aproximado dele e de lhe ter pegado numa mão, e ele, que ainda pouco percebia do mundo, disse-me: «Não te preocupes, correu tudo bem.»

Abri lentamente a porta e olhámo-nos.

- Não devias ter voltado - disse-lhe.

- E o que devia fazer, então?

- Desaparecer. Esperava nunca mais te ver.

- Parvoíces. A vida é uma parvoíce atrás da outra.

- A tua.

- Desculpa-me. Tu és perfeita, não é? Por isso, desculpa-me. É assim que se comportam os bons.

- Não sou boa, eu procuro apenas ser justa. E honesta.

- Sim, eu sei, não sei quantas vezes me terás repetido isso ao longo destes anos. Porém, recordo-me também de uma frase que me leste, tirando-a não sei de onde. Dizia que ser bom com quem nos faz bem todos o sabem ser. Ser bom com quem nos faz mal, pelo contrário, poucos sabem. Sê uma desses poucos.

- Estás dominado por aqueles monstros, és um homem doente.

- E quem te diz a ti que não sou eu que as domino?

- Em que fase estás agora?

- Na última, na última fase.

- És asqueroso.

- Devias estar-me grata por isso. Tornei-me asqueroso para te deixar impoluta.

       - Não havia necessidade disso. Sabes, não haveria maneira de me conspurcar.

- Podias ser mais compreensiva, o que terei feito de tão errado? Sou como uma criancinha. Eu nem sei o que faço. Faço o que posso, recupero o tempo, desenrasco-me assim.

       - Mas tu gostas mesmo daquelas mulheres monstruosas? Além de serem anãs, são velhas.

- Gosto... não te saberei explicar. São muito excitantes, assim... todas juntas, num molho. Sabias que as anãs são insaciáveis?

- Cala-te, metes-me nojo.

- Mas perdoas-me, não é?

- Com que garantia?

- Nenhuma. Na fase onde estou já não se volta atrás.

- E tu o que querias, o meu consentimento?, Queres que ainda te aceite como pai do meu filho?

- Não estávamos a falar dele, ele fica fora disto.

- Enganas-te, tu és o pai dele! Ouve, mesmo que eu quisesse já não posso, percebes? Dormir contigo, ser tua mulher... não, depois do que vi hoje, não posso mesmo. Horrorizas-me. Acabou.   Nós temos de nos separar.

- Não sei viver sem ti. Queres matar-me, é isso?

- Tu mataste-me a mim.

- És tão exagerada! O que tem de mal um pouco de perver­são? O que é que pensas, quase todas as pessoas que vês na rua têm alguma. Há quem se vista de mulher, quem se deixe chico­     tear, quem chicoteie, quem goste de trocar.

- Há quem foda anãs.

- Sim, há também quem foda anãs. Não te tornaste racista, pois não? Tens alguma coisa contra as anãs?

       - A essas perguntas nem sequer te respondo. Mas quero dizer-te outra coisa, podes achá-la bastante absurda, mas quero dizer-ta na mesma, ouve-me bem. Se tu me dissesses que te apai­xonaste por uma anã, uma anã que fez com que te esquecesses de que era anã... bom, eu diria que tinhas enlouquecido, que havia em ti um lado tenebroso que não conhecia, mas consegui­ria entender e encontraria uma razão para isso.

- Não digamos loucuras. Eu, apaixonar-me por uma anã! Mas estamos loucos? Aquelas criaturas não suscitam amor. É algo diferente, não podes perceber. Ah, se tu pudesses entender que não te tiram nada! Se tu conseguisses compreender, mesmo um pouco que fosse, a ideia grotesca do divertimento que mulheres assim podem dar. Especialmente as que têm uma corcunda e uma evidente expressão prógnata de anã. Se soubesses o especialista que me tornei! Poderiam mostrar-me uma fotografia em que apa­reçam apenas, sei lá, os lábios, que eu saberia dizer-te que são lábios de anã. E o mesmo com os olhos, a testa, o nariz, as mãos. Já para não falar da rata. Ah, a inconfundível rata duma anã, o inconfundível buraco do cu duma anã... Mas o que tens, estás a chorar?

- Não, não é nada. Até é ridículo, isto é quase para rir, não é?

- Ora aí está, é precisamente só para rir. Não fazes ideia de quantas gargalhadas eu te poderia fazer dar, se levasses as coisas      um pouco mais na desportiva.

- Na desportiva?

- Sim, o que mais? São bichinhos. E não são tão dóceis quanto isso, sabes? Olha aqui, olha que raio de dentadas dão com os seus dentinhos anões que se espetam profundamente na carne.

       - Cobre-te! Não quero ver nada. Não quero mais nada. Eu        nem sequer poderia...

       - Nem sequer o quê, beijar-me?

       - O quê? Eu nem sequer poderia tratar de ti, se adoecesses. Nunca mais seria capaz de te tocar, nem ao de leve.

       - E o teu grande amor por mim? Acabou? Aparecem as anãs e desaparece um grande amor?

- Diz-me quando é que começou esta terrível porcaria.

- Há quanto tempo estamos juntos?

- Há oito anos.

- E há quanto tempo nos casámos?

- Há três anos.   

- Começou há três anos, dois dias antes de nos casarmos.: Fodi a primeira anãzita precisamente nessa altura. Mas o que foi, estás a destruir-te?   g

- Quero saber por que o fizeste, diz-me por que o fizeste pre- _ cisamente nessa altura.

- Porque me apetecia, divertia-me a ideia. Apareceu uma boa _ oportunidade e não a deixei escapar. Uma anãzita com duas maminhas enrugadas que eram um verdadeiro espectáculo, um rabinho flácido e uma grandíssima verruga mesmo ali à entrada. Ah, ninguém se pode esquecer dela. Não, a primeira anã nunca    se esquece.

- Por que não estás morto?

- Morto, querias que o teu amado esposo morresse por tão pouco? Não é assim tão arriscado ir para a cama com anãs, sabes?

- Devias morrer.

- Não, garanto-te, é uma coisa de pouca importância. São mulherzinhas limpas, muito ciosas da higiene. É encantador da tua parte preocupares-te com isso, mas garanto-te que são muito saudáveis. São peixinhos sempre deslizantes. Excitadas a ponto de meterem nojo.

- Não duvido.

- O que tens, não estás bem? Tens dores de cabeça, de bar­riga, ou dores menstruais? Estás a precisar?

- Quem serei eu amanhã?

- Serás a mesma beata de sempre. Serás aquela que sempre foste, a mulher que amo.

- Nunca mais me fales do teu amor, nunca mais!

- Está bem, está bem. Tantas romancices de meia-tigela. Que melodrama! Quase que as anãs são mais divertidas.

- Ainda bem, a partir de amanhã só as terás a elas.

- Sim, sim, és mesmo chata. Vá, vamos dormir que já é tarde.

- Deves estar cansado.

- Muito cansado. Aquelas putas deixaram-me derreado. Se tivesses sido um pouco mais puta também tu...

- Esta é a última noite que tens uma família. - Cala-te.

Dormiu toda a noite no sofá. De manhã ouvi-o a fazer o café. Trouxe-me uma chávena e deixou-a na mesa-de-cabeceira. A seguir, inclinou-se para me beijar os cabelos. Foi um instante. Lembrei-me de uma coisa que um dia o meu pai me disse sobre a luta corpo a corpo: «Uma mulher deve ser ágil contra um homem. Olha, assim.» E assim fiz, rígidos como aço, finquei-lhe o indicador e o dedo médio na maçã-de-adão para lhe sufocar a respiração, enquanto com a esquerda lhe espremia aqueles colhões esvaziados pela volúpia das anãs. E, em voz baixa, para não acordar o meu filho, disse-lhe: «Seu pedaço de merda, tu vais-te embora daqui agora, percebeste? Agora.)) E, controlando­-o desse modo, fi-lo andar para trás, levando-o para fora do quarto onde dormia o meu filho. Levei-o, até que foi bater com as costas contra a parede do corredor, e dei-lhe uma bela cabe­çada no nariz, que começou a sangrar. Viera-me uma força monstruosa. Eis quem eu era: era a presa que se rebelava contra a fera, que se transformava em predador; era Sekhemet, que quer destruir o mundo; era Astartéia, que nunca dá paz; era o labrys, o machado de dois gumes, era a Serpente Arco-íris, era o venezuelano Mawadi, era o bushido, era o tsuji-giri, o alinhamento dos cruzamentos. Era o templo transformado em matadouro. Era o dia do sangue.

Mas parei a tempo. O ouvido tísico de mãe escutou alguns movimentos suspeitos que vinham do quarto onde dormia o menino. Arrastei-o para o quarto de banho, lavei-lhe a cara, pus­-lhe algodão no nariz, o dinheiro e os documentos dele no bolso das calças, e pu-lo fora de casa, dizendo, com um tom de voz dis­creto: «Aqui dentro nunca mais, entendido? Se te volto a ver, mato-te.)) Fechei a porta e, na dúvida de que ainda tivesse a chave com ele, deixei a minha na fechadura. Mas ouvi-o chamar o elevador. Tossir. Ir-se embora.

Lavei as mãos no quarto de banho. Nem sequer tremia. Apenas o coração um pouco agitado, alguns batimentos que se perdiam. Entrei no quarto e deitei-me ao pé do meu filho. Sem que lho pudesse dizer, gritei-lhe em pensamento: «Por que és filho dele?, E na grande pena que me fez, beijei-lhe suavemente o pescoço e os cabelos até ele acordar. Então, murmurei-lhe: «Bom dia», e ele fez um dos seus belos sorrisos, com as bochechas ainda um tanto cinzeladas do sono, e disse-me: «Podemos acordar?» E eu res­pondi-lhe: «Já estamos acordados», e ele pediu-me: «Então, vamos tomar o pequeno-almoço a ver os desenhos animados», e eu disse­-lhe: «Não, nada de desenhos animados, tomamo-lo na cama. Ou melhor, vamos fazer uma coisa, transformamo-nos em desenhos animados», e ele respondeu-me: «Eu sou o samurai jovem.» E eu disse-lhe: «E eu sou o velho, que dá os bons conselhos ao jovem.3 Começou a rir e disse: «Então, quero bolinhos de arroz para o pequeno-almoço.» E eu respondi-lhe: «E os conselhos?» «Sim, também os quero. » «Bom, então escuta-me, Super Sayan, recorda­-te que devemos separar sempre o mal do bem, o mau do bom, o feio do belo, porque de cada um deles nasce o seu semelhante, e ao misturá-los corre-se um grande risco que não te posso expli­car. Mas tu, para que possas compreendê-lo, tenta imaginar mis­turar a noite com o dia, e depois diz-me que cor de luz obtiveste. E agora repete-o tu.» Mas ele esquecera-se, disse apenas: «o mal do bem», e depois aborreceu-se e deu pontapés debaixo do lençol, dizendo que eram palavras a mais.

 

No dia seguinte, ao regressar a casa, encontrei um embrulho na caixa do correio. Lá dentro estava um sobrescrito fechado e uma cassete.

Sentei-me confortavelmente, pus a cassete na aparelhagem e, ao mesmo tempo, abri o sobrescrito e carreguei no play. No sobrescrito estavam fotos obscenas do meu marido com as anãs e na cassete estavam gravados os seus orgasmos. As fotos deitei-as logo fora, mas quis ouvir a gravação até ao fim. Quem ma tinha enviado queria, obviamente, que eu ouvisse algo importante.

As anãs falam muito enquanto fodem, e querem que lhe digam muitas coisas. O meu marido também tinha a língua solta. Escutava num estado de desespero tranquilo, as lágrimas escor­riam-me num fluxo regular, grandes e bastante densas como se tivessem sido espessadas por alguma alteração química. Enquanto ouvia e chorava, via todas as hipóteses possíveis do meu suicídio. Via-me a voar pela janela e seguia o lançamento até à queda, a seguir andava à volta do meu corpo inanimado que lentamente espalhava o seu sangue e abandonava a alma. Via-me a disparar um tiro de revólver na boca, o movimento de espasmo do corpo apenas um instante antes de cair para trás levando comigo a cadeira onde estava sentada, o sangue circun­dava-me a cabeça numa auréola. Via-me a ingerir muitos sopo­ríferos para uma morte de puro abandono, seguia aquele lento perder da consciência, num entorpecimento do corpo que na dor se fecha em si mesmo, contava os meus últimos suspiros. Via-me a dar cabeçadas no canto da mesa de mármore que está na cozi­nha, de joelhos diante daquela aresta que, cabeçada após cabe­çada, me abria o crânio deixando sair algo mole, parecido com a polpa de um cogumelo cozido. Depois, de repente, voltei a mim. Estava a passar a parte da gravação que me dizia respeito. Magnífico, o meu marido e as anãs precisavam de falar de mim enquanto fodiam. As anãs pediam que me insultasse e o meu marido assim fazia. Não sei se era possivel, mas este joguinho verbal divertia-os tanto que até conseguiam rir. Fodiam, insulta­vam-me e riam. Depois a gravação acabou e, após alguns segun­dos de silêncio, em que ouvia apenas o ruge-ruge da fita que continuava a andar para a frente, ouvi uma voz de mulher que já conhecia a dirigir-me a palavra:

- Lamento, mas tinhas de engolir também este sapo. Sei que estás de rastos, mas eu disse-te, um dia sairás disto de forma bri­lhante. Palavra do piloto.

Continuei a chorar até que veio a noite. Contudo não conse­gui parar e continuei assim durante dias e dias até arranjar um leve descolamento da retina que me obrigou a usar óculos. O problema maior, porém, era o meu filho, a quem já não sabia que desculpa inventar. A mamã tem uma forte dor de cabeça, uma forte dor de barriga, de costas, de ossos, de dentes. É por isso que a mamã chora.

Alguns dias depois telefonei ao meu marido, que fora viver para aquele seu novo atelier.

- Queria que viesses cá um instante. Tenho de falar contigo.

- Posso ir agora?

- Sim, quanto mais depressa melhor.

- Vou já.

Mandara o meu filho dar um passeio com a rapariga, quando ele chegou. Tinha um ar cansado e parecia muito envelhecido. Aproximou-se de mim para me dar um beijo na face, mas eu esquivei-me. Disse-me: «És muito bonita, és a mulher mais bonita que jamais vi.» Devo ter feito um sorriso de muito des­prezo. Mordeu o lábio inferior e ficou de pé, em silêncio. «Senta­-te», disse-lhe. «Sirvo-te uma aguardente.»

Obedeceu com um ar um pouco alarmado, com aquela expressão infantil de quem sabe que, seja como for, não tem razão e se assusta por se horrorizar consigo próprio. Pus diante dele o sobrescrito com as fotos, coloquei-lhe os auscultadores do walkman, que já rebobinara até à parte que me dizia res­peito, e estava preparada com o polegar direito para carregar no play. Então, disse-lhe: «Quando carregar no botão para come­çar, tu abres o sobrescrito, mas antes quero dizer-te uma coisa. Tu conheces bem as regras do futebol, não conheces? És um bom jogador. Aqui é um pouco como num jogo. Até hoje foste apenas castigado. Vês, apesar do que me tocou ver no outro dia, tinha pensado no castigo. Disse para mim: «Mantenho-o afas­tado por alguns meses, quem sabe se muda, se sofrer verdadei­ramente.» Mas com a chegada deste material o caso fica ainda mais sério. Sabes, devias ter-me deixado completamente de fora. Não é verdade que te tornaste asqueroso para me deixar impoluta. Mentiste. Terias feito melhor em deixar-me de fora, ao trazeres-me à baila perdeste o castigo. A partir deste momento, considera-te expulso. Eliminado do jogo para sempre. O advo­gado está à nossa espera amanhã às cinco. Por favor, não arran­jes desculpas. E carreguei no play.

Estou a abusar da mãe do melhor amigo do meu filho. Devia ter retribuído o convite, mas em vez disso o meu filho vai jantar novamente a casa deles. Disse-lho ao telefone: «Não sei como lhe agradecer. Com todo o trabalho que tenho, você tem sido mesmo um anjo durante estes dias. Sabe como é que dizia o meu pai? Dizia: «Um anjo descido do céu para mostrar milagres.» Bom, você durante estes dias é assim. Começou a rir e disse-me que tinha muita sorte em ter tanto trabalho, ela infelizmente não tra­balhava, não se podia distrair com nada e, ainda por cima, era um período em que estava bastante mal, descobrira há pouco que o seu marido tinha outra. Disse-lhe: «Você está a falar precisa­mente em casa de enforcado, eu separei-me há cinco anos.» «Pela mesma razão?», perguntou-me. «Digamos que sim.»

Ao desligar o telefone veio rapidamente à minha memória uma lembrança. O meu marido e eu no advogado para a separação, nós dois a sair do escritório e a encontrarmo-nos na rua. Ele a perguntar­me: «Posso oferecer-te uma bebida?» E eu dizendo-lhe que sim. Não estava ninguém no café. O empregado vê-nos e pergunta-nos: «O que vão tomar?» O meu marido pede vinho branco seco, e eu digo: «Ainda existe o Anão Gelado [2]?» O empregado responde: «Claro que sim.» «Bom», disse-lhe. «Então quero um Anão Gelado. Não importa se é        mesmo gelado, desde que seja muito anão.» E desatei a rir.

- Boa piada, muito bem. Desde que sea muito anão. Excelente.

Voltei-me, vi-o aplaudir e rir com os dentes muito brancos, bronzeado a ponto de parecer tostado pelo sol. Vestia um fato de seda branca e na cabeça tinha a kefiah beduína. Olhei-o encan­tada com a sua beleza e com o grande desejo de lhe dizer: «És o único actor no mundo que eu amei verdadeiramente.» Mas não lho disse porque ele era e não era aquele actor. Era o seu corpo, claro, porém era o Lawrence, que não tinha nada a ver com Hollywood. Nada de afectações.

- Não estava à tua espera.

- Tens a certeza? Eu acho que, pelo contrário, estavas à minha espera e até me querias perguntar umas coisinhas.

 

[2] Nano Gbiacciato é uma marca de vinho branco seco. (N. da T.)

 

- Que género de coisinhas?

- Coisinhas como historieta número um e historieta número dois.

- Não, nem pensei nisso.

- Então, vê-se que pensava eu. Como é que aquele tipo me chama?

- Vá, deixa estar.

- Não deixo estar nada. Aquele pervertido... Beduíno é ele, aliás, beduíno para ele já é muito.

       - Bem, não exageres, apesar de tudo continua a ser Ricardo Coração de Leão.

- Sim, Coração de Lebre. O leão durou pouquinho, depois tor­nou-se o homem do nim e o homem do não. Sabes, do género... ataco Jerusalém ou não ataco? Ponho-me em marcha ou não me ponho? De resto, o que estás à espera de um tipo que queria dar a sua irmã em casamento a um muçulmano?

       A ti com certeza nunca te passaria pela cabeça semelhante       ideia. A quem é que poderia interessar a beata da tua irmã?

       - De onde é que está a falar?

       - Do sonho, como é habitual. Consegue sempre que sonhe­ mos com ele quando quer. Façamos de conta que não é nada, não lhe respondamos.

       - Ouve, Lawrence, mas sou eu que estou a sonhar com ele ou és tu?

- Que diabo de pergunta. Achas porventura que eu posso sonhar? Logo com uma pessoazinha como o nosso Ricardo do Topete. Quando tiveres vontade de o picar pergunta-lhe por que é que, após a vitória de Arsuf, ficou a calacear em Jafa.

Diz a esse esquizofrénico para se meter na vida dele. Não mandava exilar os meus homens como ele fazia!

- Não lhe dês corda. Não lhe respondas.

- Não deveria estar a ouvir-nos.

- Bom, não estás à espera de delicadezas de um tipo como ele, pois não? A propósito de historietas numeradas, e aquela da morte estranha do pobre Corrado di Monferrato que, SE a ti­vessem conquistado, repito, SE, deveria ter-se tornado rei de Jerusalém? Não terá sido precisamente o Ricardinho quem o mandou apunhalar?

Por que faria isso? Quantas vezes deveria ter sido rei? Por que é que em vez disso não contas as tuas historietas?

- Faz muita questão que eu tas conte. Façamos-lhe a von­tade, talvez depois nos livremos dele. Então, escuta-me. A his­torieta número um, aquela que tem o belo título requintado, começa nas estradas de Der'a. Andava eu a calacear tranquilo, quando um sargento me pega por um braço e me leva ao bei. Sabes o que tinha acontecido? Aquele bei maldito, assomando à janela, vira-me talis qualis como um árabe verdadeiro, mas de olhos azuis, e apaixonara-se imediatamente e ordenara que um seu pau-mandado me viesse prender.

Sim, como dom Rodrigo com Lucia Mondella!

       - Cala-te! No quartel faço-me passar por um circassiano, não era preciso muito, pois falava as suas linguagens. Enfim, lavam­-me, dão-me de comer e no fim dizem-me que se eu agradasse ao bei não me aconteceria nada de mal. Agora ouve bem, e por favor acredita em mim. Eu não tinha nada contra os homosse­xuais, mas só a ideia de uma relação com um homem...

H-lo que se atiça.

       - só A IDEIA de uma relação com um homem me dava a volta ao estômago. Em suma, levam-me até ao bei, e ele, um gordo asqueroso, salta-me para cima, arrasta-me para a cama. Eu dou-lhe uma grande joelhada no estômago. Então, ele chama duas sentinelas e um cabo que me imobilizam, e recomeça a babar-se em cima de mim. Louco como era, até me enfia a ponta de uma baioneta nas costelas, dá-lhe uma voltinha e em seguida tinge o dedo no meu sangue, e com ele desenha-me três rabiscos no peito e nas coxas. São três a segurar-me, mas eu contorço-me como uma serpente. Nada feito. Então levam-me para a prisão e dão-me tantas que tinha mesmo de me contro­lar para gritar em árabe e não na minha língua materna. Olha, sinceramente, com todos aqueles murros, tive por instantes um estímulo sexual, que me deixou espantado a mim antes de mais ninguém.

Quando é um pouco porco toma-se mais simpático, não achas?

- DESMAIEI. Levaram-me novamente até ao bei. Mas estava tão mal que ele repreendeu os seus homens por terem exagerado. E, deste modo, visto que eu não estava próprio para consumo, o bei reteve o seu cabo. Fecharam-me dentro de uma barraca de madeira e ali me deixaram a gemer de dor durante toda a noite. Quase ao amanhecer, um soldado teve piedade de mim e deixou­-me fugir. E aqui acaba a historieta número um. Quer agrade ou não ao nosso amigo, a mim não me interessavam nem os homens nem as mulheres. Ficaria feliz se finalmente se dissesse a verdade sobre mim, isto é, que achava detestável tudo o que era corpóreo. No que respeita à historieta número dois, a que foi intitulada O remorso, enfim... Entre os muitos homens que matei na guerra, há um que continuo a matar, mato-o eternamente. Não consigo recordá-lo, porquanto me custou fazê-lo. Para evitar a vingança, que sabe-se lá quanto teria durado, entre a tribo dos Ageyl e dos Atban. Um dos Ageyl fora morto por vingança. Não havia nada a fazer, a um homem estendido no chão devia seguir-se-lhe um dos outros. Para matar o mouro Hamed dos Atban, que matara Salem dos Ageyl, era necessário um executor. Houve um conse­lho de guerra e percebi que o executor só podia ser uma pessoa estranha à tribo, que não tivesse parentes e que fosse de outra raça. Na prática, eu. Conduzi Hamed por um estreito canal húmido e arenoso, que à medida que avançávamos se restringia até se tornar uma fenda de poucos centímetros. Parei ali e dei-lhe poucos segundos, os quais passou a chorar deitado no chão. Então disparei-lhe para o peito e ele caiu, gritando e contor­cendo-se tanto que rebolou quase até aos meus pés. Disparei de novo, mas tremia, pelo que lhe despedacei apenas um pulso e ele continuou a gritar. Aproximei-me e disparei mais uma vez, no pescoço, à altura do maxilar. O seu corpo tremeu por um instante, depois morreu. Chamei os homens da sua tribo para que o enter­rassem. Mas sobrestimara-me. Não é fácil matar um homem quando não há provas contra ele, quando não é um inimigo de guerra, quando é apenas um homem. Para matar é preciso uma razão. E assim peguei na Wodehja, a minha camela, e com ela cavalguei debaixo de um sol impiedoso, até que me veio a febre. E comecei a delirar, via-me só, nu, cambaleando, perseguido pelo corpo desfeito de Hamed. E eu corria, corria por uma planície de lava negra, e ele seguia-me com o seu corpo esfrangalhado. Caí em Abu Marka, e alguém me pôs num leito fétido cheio de pio­lhos. Estava arrasado por causa de uma disenteria que me quei­mava por dentro, estava cheio de feridas. Fiquei ali a delirar, mas no entanto via esvanecer-se o meu sonho de guerrilha, porque não tinha tempo para mais nada a não ser para aquele homem morto que me perseguia por todo o lado. Reflecti então sobre o meu destino de oficial inglês que viera combater com bandos de salteadores numa guerra um tanto estranha, algo que nunca teria imaginado nem sequer lendo as Rêveries sur l'Art de la Guerre, do Marechal de Saxe. Permaneci ali até que Hamed me despol­pou toda a consciência. Senti-o a entrar dentro de mim, através das feridas abertas que tinha. Deixei-o entrar. Quando acabou, até a febre desaparecera. A minha vida continuou, lutei ainda em muitas batalhas, mas não penses que passou, o remorso de ter matado a frio nunca me abandonou. Não dês ouvidos ao Ricardo, pode acontecer que se sofra muito, mesmo quando matar é a coisa justa. Mas o que pode perceber disso aquele selvagem? Para ele, massacrar era um divertimento. Justificava-se dizendo que desse modo proporcionava um pouco de distracção saudável aos seus soldados. Antes de tirar uma vida é preciso pensar bem. No campo de batalha não, ali não há tempo. Mas tu tens de ir à guerra, é? Ó meu Deus, tudo é uma guerra, todas as dores o são. Quando tens de matar o inimigo porque sabes que tens mesmo de o fazer, vê-o como sendo a morte, como sendo a tua morte, e verás que serás forte e não terás mais dúvidas, e depois não terás remorsos.

- É isso que vocês os três me estão a dizer, não é?

- É isso que tu nos estás a perguntar.

- E também sabem o que eu quero fazer?

- Não, nós sabemos as coisas à medida que tu também as sabes.

       - Queria pedir-te informações mais precisas. Queria saber

       quem era aquela mulher e de que piloto me falava.

       - Demos tempo ao tempo, sabê-lo-emos juntos.

       - Estás no bom caminho, acredita em mim, se a experiência

       não me engana acho que não te falta muito.

       - Onde é que vais agora, depois de me deixares?

       - Vou dar uma volta no oásis de Dedan. Sabes, o dos profe­ tas bíblicos. Há bem à vontade vinte espécies de tamareiras.

- Deve ser um lugar bonito.

- É um oásis.

- Quando te volto a ver?

- Em breve. Não te preocupes. Sair-te-ás de modo brilhante. - O que é que disseste?

- Nada, tenho de ir.

- O que tens dentro desse bolso?

- Biscoitos de pimenta. Queres um?

 

Hoje está um calor terrível, o meu filho quis vestir o fato-de­-banho e está no terracinho a brincar com água. O pai ofereceu­-lhe animais de plástico que aumentam de volume dentro de água. Não quer entender que eles não aumentam de repente, mas que aumentam três vezes mais no espaço de setenta e duas horas. Ele, pelo contrário, mantém-nos sob controlo. Não é um raciocínio completamente errado, diz que se aumentam no es­paço de setenta e duas horas, então quer dizer que aumentam progressivamente, e ele quer aperceber-se desse aumento. Pro­curei explicar-lhe que essas coisas não se vêem a olho nu, que seria como pretender ver desabrochar uma flor. Mas não o con­venci. Agora está ali a regar as plantas, embora lhe tenha dito mil vezes que não o deve fazer enquanto há sol, está ali a amas­sar a terra e a v igiar um caranguejo e uma foca imersos numa bacia pequena. De vez em quando chama-me, quer convencer­-me de que está a aperceber-se, ainda que pouco, de um modo quase imperceptível, de que aqueles dois estão a aumentar de volume.

Faz um calor sufocante para meados de Setembro. Passo o dia entre a cama e o duche. Penso tanto no dentista que sinto uma grande vontade de lhe telefonar e de lhe pedir para passarmos outra noite juntos. Não dissemos nada um ao outro quando se foi embora naquela manhã, mas percebia-se que havia bastantes relâmpagos no escuro. Sentia vontade de lhe dizer. Mas em vez disso telefonei à minha mãe. Tem setenta anos e vive sozinha no campo, na Úmbria. Quando decide vir visitar-me, pega no carro e faz cento e sessenta quilómetros em auto-estrada como se nada fosse. Teve sempre muitos achaques, é por isso que está tão bem. Hoje deu-me uma notícia surpreendente. Estávamos a falar do calor, dos dias que começam apenas cerca das sete da tarde, quando fica um pouco mais fresco. Dizíamos que era um calor anormal e que decerto o pagaríamos com um Inverno muito frio, como o de há dois anos, quando nevou tantos dias lá para os seus lados e ela ficou isolada em casa, e por fim quase não tinha mais nada para comer. Eu estava a dizer-lhe que não sabia como pas­sar os dias com aquele calor, ela, pelo contrário, disse-me que encontrara uma nova maneira de os passar sem sequer se dar conta, e que lhe agradava mesmo muito.

- Sabes, comecei a escrever um livro.

- Um livro?

- Sim, um livro, uma espécie de romance, não sei bem. - E fala sobre o quê?

- Fala de nós, da nossa família e da minha quando era miúda. É um livro feito de recordações. Cheguei aos setenta e dois anos e senti a necessidade de escrever tudo aquilo que me aconteceu   na vida. São as histórias de uma velha.

- Mãe, é fantástico. Quanto é que já escreveste? - Um caderno inteiro e três quartos de outro.

- E só mo dizes agora?

- A princípio envergonhava-me um pouco, não sabia se iria continuar. Agora, pelo contrário, parece-me mesmo que vou con­tinuar. Faz-me companhia. À tarde, após ter repousado um pouco na poltrona em frente da televisão, que me serve de soporífero, faço uma chávena de chá, sento-me à mesa ao pé da janela que dá para a pequena alameda, e ponho-me a escrever enquanto tenho vontade. A seguir, releio em voz alta o trabalho do dia. Se soubesses que risadas e que prantos! Tivesse eu sabido antes o quanto é belo escrever! Tu também devias experimentar, com toda a imaginação que tens, quem sabe, talvez escrevas um romance.

- Não, a minha cabeça é demasiado veloz. Em cinco minutos sou capaz de ter uma ideia que encheria seiscentas páginas. Dai a nada desaparece e já estou a pensar em tantas outras coisas. Tenho curiosidade de ler o que escreveste. Poderias ler-me qual­quer coisa pelo telefone?

- Pelo telefone?

- Sim, poucas páginas, se dizes que é um livro de recorda­ções, lê-me uma.

E assim ouvi a sua voz aclarar com uma tossidela, e em seguida começar a ler a recordação de quando ela e o meu pai eram namorados e iam passear para o Pincio e se sentavam num banco e, em vez de se beijarem, a minha mãe tinha de tapar o rosto com as mãos, pedir a expressão desejada e depois ver a interpretação facial do meu pai. Pedia coisas como o furor, o bêbado, o irónico, o assassino, o idiota, e ele interpretava. Lia com a sua voz discreta, mas quebrada de vez em quando por um pouco de vergonha, como se o facto de a ler a uma outra pessoa a tornasse menos segura daquilo que escrevera. E, enquanto lia, eu pensava: «Esta é a minha mãe, aos trinta e oito anos havia de descobrir que a minha mãe também é uma boa escritora.» E foi isso que me comoveu, o seu insuspeitável talento, a naturalidade com que as palavras certas, apenas essas, lhe haviam chegado à caneta. Poderiam ser páginas cheias de retórica bacoca, mas, ao invés, eram páginas bonitas, mesmo bonitas, páginas de quem tem talento e também o ofício. Quando lho disse no fim, ela res­pondeu-me que com certeza estava enganada, que eu gostava porque eram coisas nossas, histórias da família que também me eram familiares.

       - Não, não, mãe, és mesmo boa de verdade. Tens de publicar esse livro.

       - Sim, imagina, quem é que achas que o publica?

- Eu acho que até poderás escolher.

- O que é, estás a envaidecer-me? Conta-me antes tu algu­mas novidades. Falámos só de mim.

       - Bom, parece-me que eu e o dentista nos estamos mesmo a apaixonar.

- Grande novidade, estão apaixonados desde os quinze anos.

- Sim, mas parece-me que agora... não te sei explicar.

- O que é, parou de dizer que a perfeição não é deste mundo?

- Não, de todo.

- Então tem cuidado. Com tudo aquilo que já passaste com o teu marido, depois de todo aquele horror, minha filha.

- A propósito, não escreveste isso no livro, pois não?

- O quê, sobre o teu marido? Estás maluca! Nem sequer o mencionei. Continuando a propósito do dentista, tu sabes quanto gosto dele e quanto, no seu tempo, eu tinha esperança. Porém, ele também é um pouco estranho, com aquela história da perfeição que vos estragou a vida. E, ainda por cima, é casado e tem dois filhos.

- Mãe, não estou a fazer projectos. Estou só a dizer-te que algo está a mudar e que talvez comece a não me sentir tão infe­liz. Não sei como dizer-to, não é uma coisa que tem apenas a ver com ele, também tem muito a ver comigo, com a minha vida, com certas coisas que tenho de fazer.

- O que tens de fazer?

- Ainda não me é muito claro, porém sinto que se adivinham grandes mudanças no horizonte, que terei de fazer alguma coisa importante que mudará a minha vida para melhor.

       - Ao ouvir-te falar assim, parece que tens de ir sabe-se lá para que guerra.

       - Não és a primeira a dizer-mo.

       - Bom, acredito bem que sim, a vida é uma grande guerra para todos.

- Sabes o que o dentista diz, quando lhe telefono para lhe perguntar qualquer coisa e ele tem de se despedir de mim porque a sala de espera está cheia de pacientes?

       - Não, o que diz?

       - Diz: vou a guerra.    

Quando nos despedimos fui para o terracinho e pedi ao meu' filho para me dar um banho com a mangueira. Nem queria acreditar. Apoiei-me à parede e ele abriu a água no máximo. A seguir, sentei-me na cadeira de repouso para me secar ao sol, e senti uma violenta nostalgia, uma dor tão forte dentro do peito que as lágri­mas caíram velozes, e o meu filho não se apercebeu disso porque estavam misturadas com toda a água que me atirara para cima. Talvez porque acabara de falar com a minha mãe, que me havia dito que estava a escrever um livro, talvez por causa daquela recordação que me lera... senti a falta lancinante do meu pai, que morreu há quinze anos, uma exasperação violenta, misturada com a dor e com a consciência de ter perdido o único homem que teria dado a vida por mim. E então disse, em voz baixa: «Se esti­vesses aqui há cinco anos, quando descobri o que descobri, até já me parece ver o massacre que terias feito. Tê-los-ias passado, um a um, a fio de espada, e eu sentiria que a minha vida não teria sido tão estragada.

A água que se me secava no corpo, e aquele sol, os gritos sel­vagens do meu filho que brincava nu... senti todo aquele encan­deamento de luz dentro de mim, como um remoinho que come­çava nos pés e subia com violência até acima. Não sabia muito bem como eram estas coisas, mas senti-as e escancarei a boca, e deixei sair algo de muito frio que me levou para longe, para o dia da morte do meu pai.

 

Eu não estive presente no dia da sua morte, cheguei tarde de mais. Encontrei-o na cama do hospital com os braços ao lado do corpo e uma expressão feliz no rosto. Os olhos verdes abertos em grande serenidade, como numa bênção ou numa acção de graças. Agora, porém, estava presente naquela tarde de 26 de Janeiro de há quinze anos, ele via-me e naturalmente não sabia que lhe res­tavam poucas horas de vida, e nem o sabia tão-pouco a minha mãe, que estava a sair de casa, regressando daí a duas horas, e se despediu de nós logo a seguir ao almoço, quando o meu pai estava para ir descansar um pouco no quarto. Eu e o meu pai ficámos sozinhos em casa, e eu, sim, sabia que ele devia morrer, e ele acendeu um cigarro que fumou voluptuosamente em três fumaças ao todo, vestia um fato de lã castanho, e antes de ir des­cansar disse-me: «Tomas conta do aquecedor? Vê lá, não te esqueças de lá meter um bocado de lenha de vez em quando, senão apaga-se e depois quem é que atura a tua mãe, quando chegar e encontrar a casa fria?» Enquanto subia as escadas a caminho do quarto ouvi-o dizer, a mim e a si mesmo: «Há alguns dias que tenho dores numa anca. O que se há-de fazer, já vivi bastante.»

Ficou a descansar durante meia hora e eu, sozinha, olhei e toquei todos os objectos dele. O livro que estava a ler, Max Thursday, Investigador, de Wade Miller, estava na página 256, ter-lhe-iam bastado mais uns poucos dias de vida para que aca­basse de o ler, mas uma dobra no alto da página deixá-lo-ia para sempre por terminar. Era por esse motivo que nunca lhe empres­tava os livros de bom grado, tinha esse vício de marcar os livros dobrando o canto da página. Toquei nos seus óculos e experi­mentei-os, lendo umas poucas linhas da página 256. Via tudo confuso, como ele também veria, daí a instantes, o pedaço de mundo que lhe restava ver. Toquei no jornal que lera antes do almoço, na caneta com que tinha preenchido o totobola, no bole­tim de apostas registado, nas palavras cruzadas deixadas a meio porque não tinha paciência. Terminá-las-ia a minha mãe. No baralho de cartas com que jogavam de vez em quando, sobretudo no Inverno. Era muito novo, sinal de que o anterior tinha sido atirado com raiva para dentro da salamandra. O meu pai fazia sempre isso quando perdia. E a minha mãe assistia àquele ritual sem se alterar, resignada. Até aprendera a não se rir disso. Peguei naquele baralho de cartas napolitanas e joguei uma paciência, aquela em pirâmide. Mas não resultou. Acariciei o cão do meu pai, Poldino, que dormia com o crânio contra a salamandra a escaldar. Tentei mudá-lo de posição, mas não houve maneira, gostava de fazer ferver o cérebro. Fui tocar também na cafeteira de uma só chávena com que ele fizera o café. Lá dentro havia um resto de café, deitei-o numa chávena. Seis gotas. E bebi-as na chávena em que ele bebera, a sua chávena. Aquela que até era capaz de imitar. «Papá, como é a tua chávena?» E ele punha as mãos em forma de concha e sorria, pois a sua chávena era mesmo assim. Quando a minha mãe se enganava e lhe levava o café numa outra chávena, ele fazia aquela expressão e ela dizia: «Oh, desculpa, enganei-me, vou já deitá-lo na tua.» Ao passar em frente do espelho sobre a consola também eu tentei imitar a chá­vena. «Rum, assim e assim», disse para mim. Voltar a tentar. Provei um gole do seu whisky, bebendo-o pelo tubo da garrafa, como ele fazia quando sentia uma súbita vontade de beber. a meu pai quase nunca tomava bebidas alcoólicas, diria que não lhe agradavam. Porém, às vezes acontecia-lhe sentir uma von­tade repentina de beber whisky, tão repentina que não conseguia sequer deitar uma gota no copo. Em seguida limpei a boca com as costas da mão e repeti a frase que ele sempre dizia: «Gosto de o beber assim, sofregamente.» A sua carteira estava em cima da consola. Nunca o teria feito noutro momento, mas quis abri-la e ver o que havia lá dentro. Pouco dinheiro, um livro de cheques, que já só tinha um, o resto eram só os canhotos, nos quais estava escrito eu próprio, uma foto da minha mãe com o meu irmão. A minha mãe está com um vestido de noite que agora me ofere­ceu, sentada no sofá piemontês, e a seu lado, em pé, o meu irmão com sete anos de idade, também ele muito elegante. Estão ambos preparados para ir ao teatro, acho até que me recordo, podia ser A Tosca, nas Termas de Caracalla. Tirou-lha pouco antes de sair­mos todos para a estreia. Há ainda uma foto minha, também esta tirada por ele, talvez a mais bonita das minhas fotografias. Tenho dezoito anos e estamos de férias em Monte Conero, é uma foto de corpo inteiro, com as árvores do jardim como fundo. Tenho uma expressão doce, o rosto redondo, a cabeça ligeiramente reclinada para a esquerda e, ainda que não possa ser verdade, parece que estou a olhar para o Sol. Ambas as fotos estão um pouco gastas nos cantos. Pego no seu porta-chaves, consciente de que é o meu porta-chaves há já quinze anos. Mas agora tem ainda as suas chaves, e não as minhas.

Ouço-o a descer as escadas. Vou ter com ele e abraço-o. Beijo­-o no ombro esquerdo, que é o ponto onde lhe chego com os lábios. Ele inclinou a cabeça e beijou-me numa face. «És bonito», digo-lhe. «Pareces ainda um miúdo.» «Ah, sim, um rapaz de ses­senta e três anos. Queres um café?» Respondo-lhe que sim. Poldino levanta-se cambaleando e vai ao seu encontro numa demora atordoada do seu cérebro, há muito recozido. «Este ani­malzinho não é normal», disse, rindo. «Toca-o, está a escaldar.»

Pergunto-me quem sou, quem sou eu, que espero a sua morte quinze anos depois de ele ter morrido. Ouço-o a lavar as mãos na casa de banho. «Tomas conta do café?», diz-me por entre o ruído da água. E eu respondo-lhe que está pronto, que já apaguei o lume. Bebemo-lo sentados à mesa ao pé da janela, de onde se vê a alameda, a mesma onde agora a minha mãe escreve o livro dela. «Que tempo infernal», diz-me. «Olha para a chuva e vento que faz. O Inverno no campo é longo. Sabe-se lá como terá con­seguido a tua mãe acompanhar-me até aqui. Sabes? Arrependi­-me de ter vindo viver para aqui, arrependi-me sobretudo por ela, que o fez por mim. A dada altura da minha vida nunca mais con­segui viver em paz, tu sabes o que aconteceu, os teatros que me contratavam ano sim, ano não. No fim, chegou a reforma e eu parei completamente. Quando comprámos esta casa, a tua mãe fingiu que estava contente; vínhamos de Roma aqui, ver as obras. Até era bom. Mas viver aqui foi um pouco diferente. Ela não se lamentava, ao contrário de mim. E ela consolava-me, fazia-me ver os aspectos positivos. A certa altura compreendi que cada um constrói o seu manicómio pessoal, e que o meu era este. Às vezes pergunto-me: «Mas que raio de castigo quiseste dar a ti próprio?» Recolhermo-nos no campo, sim, pode ser bom, mas com outro espírito. Agora é inútil dizer o contrário, eu fugi para aqui, fechei-me aqui dentro. Mas, no ano que vem, talvez venda tudo e voltemos para Roma. O que achas, a mãe ficaria contente?» Respondo-lhe que sim, mas tinha uma tempestade na cabeça, e ele fazia uma cara estranha, como se ma lesse. No ano seguinte claro que a minha mãe estaria em Roma, aliás, estaria mesmo daqui a poucos dias, desesperada. E não terá querido ver esta casa por uns bons tempos, e depois... vê lá tu, no fim de contas deci­dirá voltar a viver aqui, sempre por amor a ti, amando verdadei­ramente esta casa. Olhava-me enquanto eu pensava. Acariciei­-lhe uma face. Estava ali à espera que morresse, porque desta vez era-me permitido estar a seu lado sabe-se lá por que razão que eu ainda ignorava. Quanto tinha aplacado eu a dor da sua morte ao longo de quinze anos? Um pouco, com certeza, o tempo que passa, o nascimento do meu filho. Sentia uma grande vontade de lhe dizer que tinha um filho: «Papá, sabes que tenho um filho?» Mas fiquei muda, a olhar pela janela aquele tempo infernal. «Sem dúvida», disse, «que a tua mãe escolheu mesmo um bom dia para ir ao cabeleireiro. O que vamos fazer, vemos um programa qual­quer na televisão?» «O que estão a dar a esta hora?», perguntei­-lhe. «Um telefilme, uma série que me diverte, chama-se Boomer, cão inteligente. Vê-la comigo?» Ligámos a televisão e sentámo­nos um ao pé do outro no sofá. Gostava das histórias de cães, ria­se e comovia-se. Levantava grosseiramente um braço e depois deixava-o cair sobre a sua coxa em sinal de grande admiração. «Mas viste isto?», dizia-me. «Como é que lhe terão ensinado? Um cão a pedir boleia. É mesmo incrive1!» Ria-se com vontade e então, por um instante, saía daquele manicómio que mandara construir à sua volta, tijolo a tijolo, e ia para outro lugar, para aquelas grandes estradas da América atrás de um cão.

De repente levou as mãos ao ventre. Disse-lhe: «O que tens?» E ele respondeu: «Não sei, uma dor muito grande e já não sinto as pernas. Telefona para o hospital.» E eu corri para o telefone, folheei a lista telefónica e chamei uma ambulância, explicando onde estávamos: «Sim, a estrada para Moiano, e depois continua­-se em direcção a Chiusi, até à Madonnina.» «Como é que te sen­tes?» «Não sei, ouço e vejo menos.» Então atirei-me para cima dele e apertei-o contra mim, tal como estava, estendido no sofá, mas só com o busto, as pernas estavam no chão. E disse-lhe: «Ouve, sabes o que está a acontecer, não sabes?» E ele respondeu­-me: «Sim, ambos o sabíamos.» «Então porquê?», perguntei-lhe, «diz-me, porquê uma outra vez quinze anos depois?» E ele, quase a sorrir, disse-me: «Porque desta vez precisavas de estar ao pé de mim.» «Para quê?», perguntei-lhe. «De que me serve estar aqui a ver-te morrer?» «Minha filha, eu fui um homem forte e corajoso, e tu agora precisas de força e coragem e deves tomá-las de mim enquanto eu morro. Quando aconteceu, há quinze anos, tu esta­vas demasiado longe, chegaste tarde de mais, e por isso a minha força dispersou-se e não te serviu de nada. Foi por causa disso que passaste por tantos problemas. Desta vez estarás tu ao meu lado em vez da tua mãe, e presta bem atenção para não perderes nada, esta é a tua última oportunidade. Ou tomas agora a minha força ou perdê-la-ás para sempre. Deves fazê-lo não só por ti mas também pelo teu filho.» «O quê?», gritei. «O que devo fazer?» «Tu agarra a força e não penses em mais nada. Escuta, desta vez não morro no hospital, morro na ambulância. Quando chegarem, tu entras na ambulância comigo e olhas sempre para mim, e não sofras porque já sofreste muito no tempo devido, e esta repetição não é para te fazer sofrer mais. Quando for hora deves concen­trar-te e respirar fundo até ficares tonta, percebeste? Quase até desmaiares ou, de qualquer maneira, até te sentires muito mal. Promete-me que não pensarás na minha morte, que não te dei­xarás perturbar, que pensarás apenas na tua tarefa de me toma­res toda a força e coragem que tinha em vida, aquele meu antigo modo de descer a persiana e de matar quem merecia morrer. Tu terás de ser mais forte e corajosa do que eu fui, e ser-te-á exigido ainda mais. Mas fica sabendo que o que quer que seja será justo e deverás fazê-lo, e não poderás recuar, pois se o fizeres nunca mais terás paz. Não são as tuas lágrimas que quero agora. Promete­-me que não me farás morrer uma outra vez para nada.

Jurei-lho e juntos esperámos pela chegada da ambulância, falando de coisas mais agradáveis, da minha mãe, por exemplo, de como tinha sido inteligente e se tinha desenrascado bem, mesmo sozinha, desde que ele morrera. Falei-lhe das obras que tinha feito: fez dois quartos de um e uma cozinha no andar de baixo, visto que por algum tempo viveu do turismo rural. Não lhe agradou muito a ideia de pessoas estranhas terem dormido na sua casa, mas suspirou, dizendo que efectivamente ele deixara pouco dinheiro.

«A propósito de dinheiro», disse-lhe, «a mãe ficou sempre muito surpresa por ser assim tão pouco. Não imaginas quanto nos intrigou, porque sabes, desde que tu faltaste ela não conse­guiu juntar muito dinheiro, mas seguramente foi mais do que aquele que tu nos deixaste.» «Já estava à espera que se tivessem interrogado sobre isso. Pois é, fui de mal a pior. Quando ganhava muito dinheiro gastava-o todo, quando comecei a ganhar muito menos tomei isso como uma injustiça do destino, fiquei furioso. O que queres, na vida dão-se tantas cabeçadas. Tinha-se-me metido na cabeça que estava em crédito com a vida, dizia que a vida me devia pelo menos meio milhão. Quem sabe por que motivo se me metera na cabeça precisamente este número, como se tivesse falado e feito contas com a vida. E deste modo pus-me a jogar totobola após totobola, aposta após aposta, cada vez mais dispendiosos. Eis o motivo por que estávamos reduzi­dos a uma vida insignificante. Jogava quase metade da minha reforma. Queria indemnizar-vos a todos e, em vez disso, empo­breci-vos cada vez mais. Lamento, errei, também foi por isso que acabei por morrer.»

«Porquê?», perguntei-lhe. «Não devias morrer e fazer-nos sofrer tanto por uma coisa tão insignificante. Nunca nenhum de nós pen­sou no dinheiro. Só nos espantámos que não houvesse quase nenhum no banco.»

«Eh, mas tu sabes como eu era, repreendi-me tanto que por fim desci a última persiana sobre mim. Mas esqueçamos isso, as coisas correm à sua maneira. Erramos muito na vida... e às vezes nem nos serve de nada. A mãe ainda era nova quando eu morri,     podia ter voltado a casar.»

- Estás louco? - disse-lhe. - Tu tê-lo-ias feito, no lugar dela? - Não - respondeu.

- E então por que o deveria ter feito ela? Sabes bem o que pensa sobre isso. Para ela, ainda hoje, ter outro significaria que­brar o pacto que havia entre vocês. Não te esqueceste, hem? Era realmente amor.

- Claro que não me esqueci. De todo. A ti não te correu muito bem, pois não?

- Bom, deixa-te de rodeios, a mim correu-me mesmo mal. - Não o merecias.

- Eu sei.

- Mas tens um lindo filhote.

- Tenho mesmo.

- Dedica-te a ele.

- Dedico-me, dedico-me. Imagina que, quando estava grá­vida dele, meteu-se-me na cabeça que eras tu que voltavas.

- Sim, ouvi dizer isso.

- Mas é verdade?

- Quem sabe.

Ficámos um pouco a olhar-nos. Via que ia abandonando aos poucos o pensamento, que estava cansado da vida. «Agora passa», disse, «é um bocadinho de nada.» A seguir ouviu-se um ruído ao longo da estrada, que se tornou mais forte sobre o cascalho da alameda. «Ei-los», disse, ((estão a chegar. Rápido, vai abrir a porta.» Levantei-me de um salto, mas ele pegou-me num braço. «Lembras­-te do que eu te disse, não lembras?» «Sim, lembro-me.» «Tens uma missão.» «sim, sim, são tantos a dizer-mo.» «Então está tranquila, verás que, seja o que for, tu vais-te sair de forma brilhante.» Sorri­-lhe já sem vontade de lhe perguntar e saber, acariciei-lhe a testa que estava a suar, beijei-a. Sussurrei-lhe: «Amei-te desmesurada­mente.» ((Eu sei, disse-me, mas agora faz como te digo.»

Entraram dois homens não muito altos. Custou-lhes pô-lo na maca. Depois, antes de o levantarem, ouvi-o dizer as suas últimas palavras. «Tenham cuidado, hem, peso muito, quase uma tonelada.»

Perdera a consciência na ambulância, olhava-o dentro dos seus olhos arregalados sem ser vista. Devia estar concentrada, nenhuma comoção, nenhum turbamento, só devia estar atenta. À terceira curva, ouvi um dos homens dizer ao outro que estava a conduzir: «Os monstros? Olha que os monstros devem ser eliminados.»

Morreu naquele instante, e eu respirei como só o pode fazer quem se afoga dentro de água. Naufraguei de coração e pulmões, à medida que um estremecimento em espiral de todo o meu san­gue me percorreu de cima a baixo, desarticulando todos os meus movimentos como se tivesse sido incendiada pela corrente eléc­trica.

Fiz uma imensa combustão, rebentei com uma morte que me pareceu verdadeira, senti um martelar interno, nas têmporas e um calor que me pulverizava os ossos. Depois, mais nada, ape­nas o mergulho num túnel sem luz onde ia sendo arrastada pela velocidade. No fim choquei contra algo que senti gelado e prepotente, e então abri os olhos e respirei de novo, como quem renasce com o ar, mas ao mesmo tempo quase volta a morrer de tanto que ele é. E deste modo vi o meu filho que ria, sujo de terra dos pés à cabeça, com a mangueira na mão e um jacto violento contra mim, que esbracejava como num despertar de quartel. Fiquei perplexa, regada sob aquele grande sol, com pouca visão e um ouvido que talvez ainda me traísse, pois ouvia tantas coi­sas juntas, em demasia. Até os cascos de um cavalo que corria dentro de casa.

 

Esta noite está muito quente, não é normal tanto calor a 17 de Setembro. O meu filho custou a adormecer, agora está aqui, todo suado, limpo-lhe o suor com as mãos, e cheiro-o. Esta noite tirou um livro da minha estante e perguntou-me se era para adul­tos ou para crianças. «Para ambos», respondi-lhe, e ele fez uma carinha estranha. Fez-me notar que aquele livro tem desenhos: uma jibóia que come animais enormes, uma criança estranha vestida de modo estranho, algumas ovelhas, alguns baobás, pás­saros migratórios, um homem que olha para dentro de um óculo de grande alcance, pequenos vulcões,.uma rosa. «O que fazem os adultos com um livro como este?», perguntou-me. Respondi-lhe que o lêem, e ele disse: «Ah», e fez de novo uma carinha estra­nha. «Tu também o podias ler», disse-lhe, «agora já sabes ler.»Disse-me que preferia olhar só para as imagens, e folheámo-lo

juntos várias vezes, comentando todas as imagens, mesmo nos pormenores mais insignificantes. Estávamos na cama, com a luz da mesa-de-cabeceira acesa e a janela aberta com todos os ruí­dos da rua a ouvirem-se claramente. Pensei em tantas noites de Verão passadas neste quarto com o meu marido, que nunca quis dormir com a janela aberta. Trancava tudo, vestia o pijama de manga comprida e ainda se enfiava debaixo dos lençóis. «É melhor sufocar de calor do que ouvir o barulho», dizia. «Está bem», res­pondia-lhe, «mas por que é que tens o pijama abotoado até ao último botão e ainda te metes debaixo dos lençóis?» «Mas eu estou-me nas tintas», dizia-me. «A noite é noite, e eu tenho um comportamento nocturno.»

Uma mulher, que estava a estender roupa na varanda da casa em frente, olhou para nós várias vezes. O meu filho apercebeu-se e acenou-lhe com a mão, e a mulher também lhe retribuiu a sau­dação. Quando fechámos o livro, disse-me: «Não te apercebeste de nada?» «Do que é que me devia ter apercebido?», perguntei­-lhe. «Desta criança que se parece comigo.» «empre soube disso», respondi-lhe. «E por que nunca mo disseste?» «Não sei.» «E o papá, ele também o sabia?» «Talvez.»

Depois apagámos a luz e abraçámo-nos. O meu filho tem um corpo firme, de pequeno nadador. É louro como o meu pai e tem a coluna direita como a dele, o mesmo porte, as mesmas pernas. E é muito forte, para a idade que tem deixa-nos boquiabertos. Especialmente quando se chateia, vem-lhe uma força endiabrada. Intui-se, mesmo enquanto dorme, até que ponto poderá ser forte.

Levanto-me da cama e vou à janela, onde o ar quente da rua me chega sob a forma de uma ligeira brisa. Vejo os carros para­dos no semáforo, as pessoas sentadas na esplanada de uma gela­taria, muitos outros carros em segunda fila. Quando o meu marido morava aqui comigo desejava que morressem todos: os vendedo­res de gelados, os comedores de gelados, os automobilistas, os motociclistas. Sonhava com a grande eliminação do seu próximo, um mundo quase desabitado, as lojas quase vazias, a falência de todos os comerciantes. Sonhava com a infelicidade para todos.

Dizia que só os tristes não são barulhentos. Chamava-lhes os amados e inofensivos tristonhos.

Já é muito tarde e o calor não me deixa dormir. Também mui­tas outras coisas não me deixam dormir, mas esta noite parece que não têm nome. São vagas. Eu estou ora à janela, ora a cami­nhar, ora a beber rios de água que não me tiram a sede. Algo arde fortemente dentro de mim. Oh, o belo ardor interior! Quando estava casada, às vezes perguntava ao meu marido: «Mas que será?», e ele respondia-me: «Que Saramago?» Éramos a deusa Tanit e o seu esposo Baal-Hammon.     Passam-me pela cabeça pensamentos que não se podem dizer tal, eu diria mais frases, coisas como algumas populações de caçadores até hoje existentes parece que riem ao verem as con­vulsões de um animal a morrer, ou então, o homem não é comida para gatos, ou no funeral de Pátrodo foram imolados doze jovens de Tróia, e ainda, os antigos havaianos veneravam os tubarões e ofereciam-lhes sacrifícios, ou a sede da deusa Sekmet um dia foi aplacada com sete mil vasos de cerveja, tingida da cor do san­gue. Bebeu-as todas. Sinto um Heiliger Schauer, ponho-me a tre­mer de modo estranho. Por que estou eu a repetir assim à toa? Os homens começaram a enterrar os mortos há cinquenta mil anos. E a mim, o que me importa isso? As primeiras armas e couraças de bronze surgiram na Mesopotâmia em 3500 a. C. Não sei o que fazer com estas informações. Quando os cátaros disseram que matar era, em qualquer caso, pecado, mesmo na guerra e em nome de Deus, o Papa Inocêncio III mandou-os exterminar. Ponho a cabeça debaixo da torneira de água fria, deixo-a correr assim. Mas que raio de tinta pus nos meus cabelos, da última vez? Escorre uma água muito colorida. Ponho-me de novo à janela para me secar. Vai-me fazer mal secar-me desta maneira, amanhã vou ter dores na cervical. Tudo o que serpenteia sobre a terra. Embora, embora, mandar embora, fingir que não é nada, não ouço nenhuma frase, não falo nada. Isto é do cansaço. Dizem-no os melhores médicos: é melhor tomar um soporífero do que não dormir. Pois, as gotas de Minias, mas onde as pus? Procuro-as no armário dos medicamentos. Uma procura bastante inútil, pois eu espalho os medicamentos pela casa, no armário nunca está quase nada, apenas alguns medicamentos já fora de prazo que ainda não deitei fora. Deito-os agora. Não estão na cozinha. Mas estão em casa, lembro-me delas, metade de um frasquinho. Volto ao quarto. Não, não estão na mesa-de-cabe­ceira. No armário, entre as camisolas, muito menos. Tenho de pensar nos sítios mais estranhos possível, tenho de reflectir sobre aquele não deixar ao alcance das crianças. Tenho de pensar em lugares altos onde o meu filho não chegue. Lugares altos. Vou à casa de banho, passo a mão na prateleira mais alta. Encontro limas velhas para as unhas, alguns ganchos enferrujados, cai também uma lata ao chão, espuma de barbear Proraso, coberta de muito pó lanuginoso que ficou agarrado a uma camada de gordura. A sujidade quase não deixa ler o nome do produto, se o decifrei depressa foi porque me lembro dele, em instantes revejo­-o em pé, em frente do lavabo, com aqueles seus pijamas debo­tados de manicómio para pobres, ou em camisola interior, sem­pre encardida devido a lavagens mal feitas, que ele próprio fazia na máquina de lavar a roupa. Espuma de barbear Proraso, espuma rápida de eucalipto, enchia o pescoço de espuma e depois vinha por aí abaixo com navalhadas que lhe cortavam a carne em fatias. O branco alvo da espuma de barbear Proraso, estriado com o ver­melho do seu sangue. Cada vez que o via barbear-se naquele modo sentia-me a desmaiar. Quando acabava punha uma toalha velha em volta do pescoço e fazia-me sempre a mesma pergunta: «Vê lá se cortei também a verruga!» Então tirava a toalha e eu, entre aqueles desastres de guerra, tinha de ir procurar a fatídica verruga com o tacto. Uma vez encontrei-a meio arrancada. «Cortaste-a!», gritei-lhe. «Não faz mal, voltará a colar-se», respondeu-me.

A lata de Proraso estava escondida ali em cima há mais de cinco anos. Vou deitá-la no lixo. Ao ouvir o estrondo que faz no balde do lixo vem-me à memória uma pequena conversa com o meu filho, que aconteceu há cerca de um ano. Perguntara-me pela primeira vez por que motivo eu e o seu pai já não vivíamos juntos.

       - Sabes, já não nos entendíamos - disse-lhe. - Às vezes pode acontecer.

- Podiam fazer as pazes.

- Não, não conseguimos.

- Façam agora.

       - E porquê?  .

- Ele não tem outra mulher, tu não tens outro homem. O que estão a fazer sozinhos?

Fico a olhar para o Proraso permanecendo com o pé em cima do pedal do balde do lixo. Em seguida, tiro o pé e a tampa fecha­-se sozinha. Procuro novamente as gotas de Minias, procuro-as em todas as minhas malas, estivais e invernais. Encontro um frasco vazio, tento sorvê-lo apertando com força, mas não cai nada. É um frasco seco pelo tempo. Olho para o céu que se expande na noite, lá fora, digo: «Gotas de Minias, onde estão?», e depois, como se fosse natural: «Minhas estudantes prisioneiras, o que fizeram na prisão durante o Verão?» Voltarei a vê-las den­tro de poucos dias, senti rsaudades dessas mulheres. Assim que chegar à aula, em primeiro lugar, sento-me como se fosse um dia como outro qualquer, não digo nada, olho para o livro de ponto, faço a chamada de modo formal. Elas trocarão olhares perplexos, perguntar-se-ão em quem me tornei em tão pouco tempo. Uma delas acenderá um cigarro e deitará fora o fumo, com o ar de quem pensa: «Achávamos que tu eras um pouco diferente, mas afinal és igual a todos os que estão lá fora.» Calarei todas as suas palavras com um frio gesto de mão, esperarei que cheguem ao limite da suportação, esperarei que uma delas, desiludida, se levante para abandonar a sala em sinal de reprovação. Sei como elas são, assim que uma se levantar irá logo outra atrás. Só então direi: «Um momento, antes que vocês se vão embora, quero pelo menos dizer-vos qual será o meu programa para este ano lectivo, bem, só para vos informar. Talvez continuem a frequentar o curso, se vos agradar. Ora, o meu programa para este ano é liber­tar-vos. Não sei como o farei, mas libertar-vos-ei a todas.»

Continuo a remexer no armário e encontro uma velha caixa de tecido, onde outrora guardava a bijuteria. Vou abri-la na casa de banho, onde posso acender a luz principal. Não me lembro mesmo do que possa estar aqui dentro. Encontro um molho de chaves debaixo de uma camada de pérolas falsas soltas, sabe-se lá de quantos fios. Ataca-me outro Heiliger Schauer, e desta vez à altura da coluna, que sinto apertada como se por um alicate, percorre-me a espinha desde o pescoço até ao sacro, com muitos alicates apertados, uns atrás dos outros, em volta de todas as vér­tebras. O que estão as chaves do atelier dele a fazer aqui dentro desta caixa? Nunca estiveram aqui, tenho a certeza, e, além do mais, desde que nos separámos e ele se mudou para o atelier, nunca mais tive essas chaves. Aliás, eu nunca as tive verdadeira­mente, deu-mas aquela mulher dentro de um sobrescrito, quando... Sim, recordo-me de ter aberto a porta, mas depois as chaves fica­ram lá na fechadura. Em seguida, fugi apenas. Quem as pôs aqui dentro? Ele tinha duas, lembro-me bem, mas também me lembro de que levou as duas quando se foi embora. Fico a olhar para elas sob a luz principal da casa de banho, tiro-as da caixa e pouso-as no lavatório. Levanto então os olhos para interrogar a minha imagem reflectida no espelho, mas não sou eu que estou a olhar­-me, é o ruço coroado que ri verdadeiramente muito divertido, com as costas apoiadas a um corrimão de ferro forjado, e ao fundo um mar ao crepúsculo, com todas as cores do dia quase terminado, que lhe deslizaram para dentro.

- Bem, mexe-te, não?

- O que é, adormeci e estou a sonhar contigo?

- Não, desta vez dei-me ao luxo de aparecer. Apetecia-me.

- Foste tu que puseste estas chaves aqui dentro, não foste?

- Não faças sempre tantas perguntas. São aquelas chaves.

- E daí?

- E daí que deves ousar. Diz-me cá, tens coragem que che­gue, agora?

- Olha que se passaram cinco anos, poderá ter mudado a fechadura e....

- Talvez nunca a tenha chegado a mudar. Só há uma maneira de saber isso: experimentar as chaves. Parece-me também a melhor maneira de saber o que deves fazer.

       - O que queres dizer?

       - Se abrirem, deves ter coragem e ir até ao fim. Se não abri­ rem, voltas para casa, faço com que encontres as gotas e pões-te a dormir. Ouve, tens de entender de uma vez por todas, nunca se é apenas uma pessoa, somos muitas pessoas umas dentro das outras. Esta noite sê aquela que tenta a sua sorte. Sê aquela que não é magnânima.

- O que te deu para me incentivares deste modo?

- Tens de acabar com esta história, hem! Olha que aqui nin­guém te está a incentivar, estamos apenas a sacrificar-nos por ti. És tu que queres ser incentivada, nós procuramos apenas dar-te uma ajuda, cada um à sua maneira. Não me vais dizer que o teu pai hoje se divertiu, pois não?

- O que é isto, sabem tudo, já não me posso mexer, já não posso pensar? O que é isto?

- Exactamente, sabemos tudo de todos. E não penses que é um grande divertimento. Sim, de vez em quando até pode ser divertido mas... cada vez menos. Imagina, toda esta confusão para toda a eternidade. Tu não tens ideia da chatice que é!

       - Ouve, como é que faço? Tenho aqui o meu filho a dormir, não o posso deixar sozinho. E se ele acorda?

       - Primeiro que tudo, não vai acordar, e depois, estou aqui eu, não?

       - Mas estás a brincar! Não te conhece, apanharia um susto.

       - Não me conhece? E aquele livro que comprou sobre mim? Olha que se trata do teu filho e não de uma outra pessoa. Aquele, se acordar, diz-me: «Olá, Ricardo do Topete, conta-me um pouco da época em que te meteram na prisão e tu, embora estivesses amarrado, desafiavas os teus carcereiros para um braço de ferro.» Olha que se ele acordar sou eu quem se deve assustar; para o fazer adormecer novamente, toca-me cantar um sirventês com­ prido como daqui até...

- Ouve, tenho de pensar.

- Não, chegou a hora. É a história de sempre, que acontece de vez em quando na vida, aquela de pegar ou largar.

- Tem mesmo de ser esta noite?

- Sim, tem mesmo.

- Eu amei muito aquele homem.

- Essa é outra velha história, como sabemos. Deves decidir, ou os sentimentos ou aquilo em que acreditas. Qual das duas coi­sas vem primeiro? Ouve, faz-me um favor, não me respondas sequer, porque se me dizes que são os sentimentos, dou uma grande gargalhada. Uma pessoa como tu, vá lá, não me digas que mudaste de ideias?

- Não, não digo.

- Então, continua a ser a coisa justa e acertada, estou a dizer bem? Nem sequer se te disser que de repente se tornou a coisa acertada e justa, pois não?

- Já te respondi, não insistas.

- Portanto, a questão do miúdo está resolvida: está aqui um rei. Para o resto dou-te duas ou três indicações, e podes delinear o plano.

- Vamos por partes.

- Que partes? Pega nas chaves do carro, nas chaves do atelier e vai-te embora! Como é que diz aquele desenho animado de que tu e o teu filho gostam tanto? EM DIRECÇÃO AO INFINITO E MAIS ALÉM!! Vais até à superação dos teus limites e depois voltas como nova, como se a vida nunca tivesse existido. Olha que ainda há mais, não to posso dizer, mas há. Se eu te digo que te convém, deves acreditar em mim.

- Mais o quê?

- Eu disse que não te posso dizer porque não sei. Ou seja, sei, mas não sei do que se trata... oh, enfim, tu pensa em agir. É muito difícil dizer-te como é que sabemos isso.

- Explica-te um pouco melhor.

- Ouve, é a mesma doutrina de sempre, do devir: potência e acto. Aquela história, que o pintainho é a galinha em potência e a galinha é o pintainho em acto. Só te posso dizer que tu agora estás apenas em potência, mas que se agires podes ficar em acto, percebeste? Eu não sou bom nestas coisas, devias perguntar ao Macedónio, ele é        mais abalizado. Seja como for, acredita. Acreditas?

- Quero acreditar.

- Deves acreditar.

- Porquê?

- É a tua cruzada contra o bárbaro, não é? Só tens de me dizer se queres uma sarissa ou uma teutónica Saint Maurice.

- De que estás a falar?

- Da arma, aconselho-te a escolher uma destas duas. É pre­ciso um pouco de força mas vale a pena. São armas que dão uma grande satisfação. É uma pena que sejas mulher.

- Porquê?

- São pesadas, pouco manuseáveis.

- Explica-me pelo menos como funcionam. Para mulher, sou bastante forte. Sei dar bons murros e pontapés que chegam muito alto. Posso dar um pontapé na boca a um homem de um metro e oitenta sem nenhum esforço. É um novo tipo de pugilato. Por que te estás a rir?

       - Penso no Macedónio. Disseste um metro e oitenta sem nenhum esforço, não foi?

       - Sim.

       - Bom, com o Macedónio não terias de te esforçar mesmo nada. Apercebeste-te de quanto é baixo?

       - Não, vejo-o sempre a cavalo e além do mais parece-me bas­tante alto.

- Ora, essa é boa. Algum dia conheceste um chefe alto? Dis­seram que o Macedónio media apenas um metro e trinta e cinco. Praticamente um anão.

       - Não?!

       - Olha, um metro e trinta e cinco até a mim me parece uma malvadez, mas era mesmo um anãozeco. Eu acho que se chegasse        ao metro e meio já era muito.

       - Não posso e não quero acreditar.

       - Desculpa, mas não te deste conta sequer de como é baixo o beduíno?

- Alto aí, eu nunca vejo nem falo com o Lawrence da Arábia. Eu falo com o actor e, por favor, não quero ouvir nenhum comen­tário sobre ele.

- Essa é mesmo boa, envergonha-se tanto do seu aspecto que manda outro! A próxima vez que o vir vai ouvir das boas.

       - Não tenho vontade de falar sobre anões. Falemos antes de armas. Estávamos a falar de armas, não era?

- Muito bem, gosto de ti assim. Forte.

- Então como é que é essa sarissa?

- Portanto, a sarissa, ou lança dos Macedónios, é em primeiro lugar uma arma impressionante, daquelas que provocam imedia­tamente o pânico no inimigo, uma arma extraordinária. O seu modelo mais comprido atinge os seis metros, e em cima tem uma ponta de ferro de cerca de trinta centímetros. Não te aconselho uma destas dimensões. No caso de a escolheres, indicar-te-ei uma mais pequena. Seja como for, a empunhadura é uma chapa de metal que serve para a equilibrar e também para a pôr no chão em descanso, ou como defesa contra um ataque frontal do ini­migo. É de madeira de comiso, de grão duro, e, como te disse, deve pegar-se nela com as duas mãos.

- Fala-me da outra.

- A SaÍnt Maurice é uma espada pesada, com uma lâmina direita, comprida e larga, afiada nos dois lados, e que termina em ponta. Também esta é uma arma para segurar com as duas mãos, sobretudo quando se ataca com o gume, com a ponta e com a prancha.

- Na prática, aconselhaste-me a arma do MacedónÍo e a tua.

- Na prática, sim.

- E por que não também a espingarda do Lawrence?

- Uma espingarda? Uma espingarda para o que tu queres fazer? Não brinques, mulher, sabes melhor do que eu que a espingarda não dá nenhuma satisfação. Uma coisa destas com uma espingarda! Pum, pum, e acabou ali. Não, nem pensar. Se quiseres uma espingarda procura-a sozinha. Não contes comigo.

- Não é isso, é que me parece mais seguro. Há menos riscos. - Mas o que tens esta noite? Pareces-me outra.

- Olha, Ricardo, tu estás habituado a estas coisas. Mas para mim até agora foi só teoria, o que é que pensas?

- Muito bem, é normal. Depois de muita teoria passa-se à prática... Repito, pum, pum, e vais-te embora. De que te serve? Não sonhaste sempre com algo mais grandioso? Queres ser um cavaleiro ou não? Decide-te. Agora não é hora de calcular riscos, não achas? Seria pouco digno. Uma espingarda, puah, é como não matar ninguém, quem matou foi a espingarda. Mérito da       espingarda. Tu queres também algum mérito, não queres?

- Sim, quero. Dá-me a SaÍnt Maurice.

- Óptima escolha. Queres falar do elmo?

- O elmo? Queres porventura mascarar-me? Diz-me, queres que se riam de mim?

- Gostavas tanto, sonhaste com ele a vida toda... pensava que para a ocasião... olha que não sou eu quem quando adormece, precisamente nos momentos antes de dormir, se concentra no ruído, que digo, no som maravilhoso da viseira que o cavaleiro desce sobre o rosto antes da batalha. Quem tem estes pensamen­tos há anos és tu. E agora não pões um elmo!... Quantas oportu­nidades pensas que ainda vais ter na vida para usares um elmo de cruzado? Não me respondas, eu digo-te. Nenhuma. E além disso não tens de sair de casa nesses preparos. Não, vais encontrar tudo no lugar, o elmo e a Saint Maurice.

- O que quer dizer no lugar?

- Quer dizer que tu meterás a chave na fechadura e, se a chave ainda for aquela e der duas voltas antes de abrir a porta, tu entrarás no atelier e, à tua direita, encontrarás o elmo e a SaÍnt Maurice pousados no chão. Podes sempre precisar de um elmo, o que é que pensas? Não sabes como é que as coisas vão correr. Seja como for, é uma batalha, quase seguramente a teu favor, é   o que nós todos desejamos, mas não deixa de ser uma batalha.

- Voltemos por um instante à questão do miúdo.

- Não te armes em mãe apreensiva, já disse que estou cá eu. Assim que saíres vou deitar-me ao pé dele.

- Receio que possa acordar. Desculpa, mas ele é uma criança de sete anos. Está ali, dorme tranquilo, mas de repente acorda porque tem sede, procura-me e descobre o Ricardo Coração de Leão no meu lugar.

- Nada mal, pois não?

- Não brinques, ele começa a gritar, morre de medo! - Ouve, não serás tu que estás a morrer de medo?

- Talvez.

- Bom, então vai dormir tranquila e não incomodes mais nenhum de nós os três. Fica com a tua alma em paz, em vez de estar ali sempre em ebulição. Quando te vierem à mente os habi­tuais baldes de sangue, que há anos queres ver derramados, bem, é melhor mudares de canal, põe-te a ver um daqueles filmes cor­-de-rosa. Ou, melhor ainda, vai ver ao cinema os baldes de san­gue, contenta-te com esses.

- Diz-me mais uma vez o que acontecerá se o meu filho acordar.

       - Portanto, primeiro que tudo ele não acordará, quando vol­tares encontrá-Io-ás na mesma posição em que está a dormir agora. Mas no caso, digo no caso, de acordar: a) Não terá medo de mim, porque é teu filho; b) Creio ter tido uma vida bastante aventureira para lhe poder contar algumas historietas.

- Então eu vou agora.

- Sim, agora, corajosa.

- Não me dizes nada?

- Que mais queres que te diga?

- Não sei, uma frase para me acompanhar enquanto conduzo. - Diz-me antes tu uma, vá, a daquele filósofo francês muito inconcludente que dizia demasiadas frases. Aquela de que tu gostas tanto. Diz-ma, vá lá.

- Os maus não devem ser castigados, devem ser eliminados.

- Ah, isso é um bálsamo para os meus ouvidos!

- Não sei se é um bálsamo, tu também foste muito mau!

- E daí? Não fui porventura eliminado? Todos têm a sua vez, o que pensas? Mas quando foi a minha vez... aí, não deixei esca­par nenhum mau. Eliminei-os todos. Sabes como é que fazia, não sabes? Na dúvida, duplicava, triplicava... Vá, vai agora, vai.

- Como está o meu aspecto?

- És um grande pedaço de mulher. Alta, muito alta.

- Ricardo, o que estás para aí a dizer? Tu nunca gostaste de mulheres, não era minha intenção...

       - Eu sei, eu sei. Mas ao imaginar-te assim, com o elmo... a        Saint Maurice...

       - Eu vou, hem?

       - Sim, está na hora. Agora estás pronta.

 

Já não me lembro onde é que estacionei o carro. Dou duas voltas ao quarteirão e não o vejo. Tento outra rua, se calhar, depois de ter andado às voltas sem encontrar lugar, fui estacioná­-lo mais longe e agora não me lembro.

Vou de uma rua a outra com uma aceleração do meu batimento cardíaco que posso dupla­mente justificar: preciso do carro neste momento e não o encon­tro, se mo roubaram ou rebocaram por causa de alguma proibição é um grande sarilho. Mas apercebo-me de que estou caminhando cabisbaixa. Como posso eu encontrar o carro assim? Dou nova­mente a volta ao quarteirão de cabeça erguida. Não está lá. Recordo-me então, de repente: voltei para casa depois de ter ido às compras ao supermercado, descarreguei os sacos deixando por um momento o carro em segunda fila em frente de casa, a seguir fui procurar um lugar, mas como não o encontrava continuei para lá da praça, para lá da ponte. Estacionei-o em frente ao Blackbuster, onde até aluguei um filme para o meu filho. Começo a subir depressa a Rua Concordia, onde não há uma única loja, mas muitos cocós de cão. No escuro é preciso termos cuidado onde pomos os pés. O sol forte todo o dia queimou os cocós, que agora emanam exalações desagradáveis, é pior à noite que de dia. O dia solidifica-os, a noite humedece-os e fortalece-os. Procuro suster a respiração, como me havia ensinado a minha avó quando se dava conta de uma pequena fuga de gás na cozinha: «Não res­pires enquanto eu não abrir a janela!» Corro ouvindo apenas o ribombar dos meus passos naquele slalam de maus cheiros. Chego à Praça lama, uma praça feia, com um grande parque de estacionamento que está sempre cheio, e onde nunca encontrei lugar. Atravesso a praça, passo a ponte. Vejo-o finalmente, mal estacionado, com o focinho a sair da curva. Um carro estranho, este Ford, sólido e ao mesmo tempo inseguro, veloz sem aderir bem à estrada, pesado mas capaz de voar com um pouco de vento. É preciso saber conduzir esta armadilha, nunca percebi como é que saiu assim. Ford Sierra 2000, um nome perturbador. É a palavra sierra que faz pensar em muitas coisas. Entro no carro e acendo os faróis. São três da manhã. Respiro fundo. O meu filho dorme tranquilo. Já não me recordo do caminho para o atelier dele. Amnésia. Assobio, ponho-me a assobiar com os vidros abertos e o motor ligado. E enquanto assobio vem-me à ideia que é uma noite sem luar. Talvez seja por isso que não me lembro de nada. Como é que se faz, sem a Lua? Concentro-me na forma dos olhos do Peter O'Toole, na perfeição de cada traço do seu rosto. Se alguém agora ousa negar que foi o homem mais bonito à face da Terra... Mas o que me importa isso? O batimento agora está por sua conta, já o sinto por todo o lado, até nos cotovelos, na barriga das pernas, dentro do estômago é um fragor. Meto a pri­meira e decido arrancar. Que seja o carro a encontrar o caminho, sinto que é esta a maneira. E de facto o volante mexe-se sozinho, as mudanças metem-se sozinhas umas atrás das outras. Em beleza, não estava mesmo à espera desta. Ponho-me a olhar para esta parte um pouco periférica da cidade, faço de passageiro sen­tado no lugar do condutor. Estou de braços cruzados, respiro o ar quente. Ligo o rádio. Gralha um pouco, mas depois ouve-se uma canção muito ao longe, é uma canção árabe que nunca mais acaba, aquele tipo de música que só de ouvi-la sentes um cheiro e a cabeça poderia começar às voltas, ainda que ficasse em cima do pescoço, tudo poderia começar às voltas, até o Ford, um pouco assim, escorregadiamente, como na areia. Vejo a correr estrada fora um cão típico do deserto, de pêlo branco e nádega magra, ligeiramente para dentro. Tem a língua pendurada e lança-me um olhar humano. Entretanto, imito os sons árabes, eu gosto, akdir torojasah, akdar benjin sedisch. É preciso ondular a cabeça enquanto se canta, fingir que estamos a ser levados. Agora apanhamos uma grande estrada larga, vamos a uma velocidade considerável. De vez em quando o carro guina um pouco. E as casas vão alter­nando, ou são casarões feios ou habitações minúsculas de terra, de onde saem e entram muitas crianças que parecem ratos. Akdir torojasah, akdar benjin sedisch. Se me virar para olhar para trás, vejo que o carro levanta uma grande poeira. É a estrada que anda rápido, não é o carro, agora estou certa disso, é a estrada que se transformou num tapete rolante. Já nem sequer é o carro a esco­lher. A noite continua sem luar. Aquele rosto pálido esconde-se. São os astros, brincam a dizer-nos que já não existem. E a estrada é iluminada apenas a intervalos, vê-se e não se vê. Recordo-me de uma longa viagem, uma viagem que nunca mais acabava, e eu dizia continuamente ao meu filho que faltava pouco, embora não fosse verdade. Após muitas respostas minhas que reduziam o tempo de espera, ele, aborrecido, disse-me: «Pouca estrada não vejo.» E eu escrevi esta frase, apontei-a numa folha para não me esquecer dela. E agora também eu estou como alguém que não vê a estrada, mas nem muita nem pouca, e pergunto ao carro: «Quanto é que falta?», e uma rajada de areia atravessa o carro de uma janela à outra queimando-me dentro dos olhos. O que é esta estrada em serpentina, onde me leva? Deveria reconhecer alguma estrada lateral, deveria poder orientar-me e dizer onde estou. Mas afinal não reconheço nada. Digo para mim que é uma estrada diferente, que a estrada foi por um atalho. «Ouve, Ford Sierra 2000, quanto é que falta?» Mas as luzes apagam-se todas, só con­tinua a dar aquela canção que nunca mais acaba. Akdir torojasah, akdar benjin sedisch. E a canção já nem sequer vem da rádio, vem da estrada escura, onde está decerto muita gente escondida a cantá-la. Vejo que o rádio do carro está desligado, está tudo des­ligado, e não há acompanhamento musical, apenas vozes. Começa agora a descida, parecida com as montanhas-russas que nos fazem subir e descer o estômago, e tenho de me segurar ao volante, ficar de olhos fechados, pensar no meu filho a dormir, saber que tudo depende de mim: o carro, o rádio, a estrada, a can­ção, o seu sono tranquilo, sou eu que mantenho tudo em equilí­brio. Tenho de me abandonar, controlando. Depende de mim e não depende. Aguento todas estas coisas juntas, se as mantenho jun­tas, então possuo-as. Estou a perceber isto durante a descida íngreme. Agora, mais nada de montanhas-russas. Apenas descida. Aqui não se volta a subir. Só se desce. E está a acabar, agora é muito claro. A chegada está no fim desta última descida.

Estou a puxar o travão de mão, estou a puxá-lo eu. O motor está ligado, um forte barulho farfalhudo de bom motor. Rodo a chave e desliga-se com duas tossidelas, aquele modo que o Ford Sierra 2000 tem de permanecer ligado ainda por um instante, quando é desli­gado. Um dia terei sem dúvida um carro melhor, mas vou ter sau­dades do Sierra, apesar de sempre ter sabido que era traiçoeiro.

Agora percebo bastante bem o que se está a passar. Re­conheço o lugar. Acabei de estacionar em frente à porta da rua.

Óptimo estacionamento. Saio, fecho o carro. Certifico-me, como sempre, de que está fechado. Tirei o auto-rádio, meti-o no porta­-luvas. Estou na rua, com os pés no chão. Dou poucos passos, o espaço que vai daqui ali. Meto a chave à porta. Há pouco de que temer, a chave da porta da rua há-de ser a mesma. E é, dá a volta na perfeição. Abre-se. Conheço o caminho. Atravessar o pátio e ir para a escada A, a que está mesmo em frente ao lago com os peixes vermelhos. Bonito ruído da água, até é iluminado por den­tro. Peixes, estou a ver-vos. A chave desta porta não pode ter mudado. De facto, não mudou. Agora desço as escadas. Tiro os sapatos por prudência, seguro-os com uma mão. Chegámos, é esta a porta. Seguro na terceira chave com a outra mão. Antes de a enfiar, molho-a com saliva. O melhor seria lubrificá-la com óleo. Recordo-me de uma fábula sobre o óleo. Lubrifica com óleo todos os objectos e tirar-lhes-ás a voz. Mas a princesa esqueceu­-se de olear o galheteiro e este falou e meteu-a em sarilhos. Ficou com cabeça de burro e teve de contar mil sacos de grãos de trigo numa única noite, ao som de uma vozinha que dizia: Cri cri cri, não será sempre assim. Fico com a chave lá dentro, fico imóvel. Tudo depende destas voltas da chave. Primeira, segunda, terceira, quarta volta. Abre-se. Empurro a porta, levantando-a um pouco. Não faz ruído. Encosto-a apenas atrás de mim. Respiro pouco, poupo o ar, deito-o fora a pouco e pouco, como quem está den­tro de água. Estendo a mão para a direita. Cá está ela, encontro a Saint Maurice. Logo ao pé dela está o elmo. Mas ainda há mais qualquer coisa, o que é? Uma sarissa, é o que é. Se está aqui, quer dizer que deve ser usada. Mudança de programa. Ainda não aca­bou, há outra. Que raça de história... Nada de histórias, continuar. Pouso os sapatos no chão. Pego no elmo, que está frio, de metal gelado. Ponho-o na cabeça. Pela janela aberta entra a pouca luz de um candeeiro da rua, e no esptdho vejo-me com o elmo na cabeça. As minhas roupas de Verão e o elmo. Pego nas armas. Todas três. A sala grande está vazia. Sei onde está a dormir. Desde que veio para aqui viver, deve ter feito da arrecadação o seu quarto. Caminho devagar pela sala. Pesam, estas três armas, pesam muito. Sorte que as sarissas têm um bom ponto de apoio.

Abro devagar a porta do quarto. E vejo-o. Há quanto tempo não o vejo? Nem sequer percebo se envelheceu, vejo apenas que dorme de bruços como sempre, e respiro o cheiro ligeiramente a alho da sua pele escura. Habituo-me ao escuro, vejo o seu nariz de perfil. Algo me aflige dentro do peito, como uma garra de jaguar que corta a carne em grandes fatias. O homem que amara, o pai do meu filho. Se o acordar agora e lhe disser que estou aqui, desatará aos soluços, abraçar-me-á a anca com um braço, ainda deitado, e puxar-me-á para baixo, para ao pé de si, mantendo­-me de lado, e falar-me-á atrás de mim, e sentirei as suas lágri­mas enquanto com a mão direita me cingirá com força o ventre, assim como fazia em tempos, quando me esforçava por acreditar que havia amor em toda aquela dor. Mas havia, sim, e até muito, imenso. Naquele hotel de Ravena, naquele quarto estranho que parecia de crianças, acordou-me de manhã agarrando-me daquele modo, acordou-me dizendo: «Meu amor infinito.» E senti bem todo o desespero que havia na sua voz, ele próprio sabia todo o mal que podia dar. Estava agarrado a mim como um demónio arrependido. E eu fiquei com ele, demónio como era. Contentei-me em fingir que não o sabia. Olho-o agora enquanto dorme, o meu demónio. Encosto as sarissas à parede e aproximo­-me para olhá-lo melhor, agora que os meus olhos começam a ver bem mesmo no escuro. Algo me invade, torcendo-me por dentro as tripas, uma felicidade dilacerante: ver-me a levá-lo de novo para casa e a acordarmos juntos o nosso filho. Poderia acordá-lo com uma carícia: «Gostas de mim com este elmo na cabeça, meu amor? Trouxe-te como presente uma Saint Maurice e duas sarissas. Digamos que é um símbolo, ambos depomos as armas, tu serás um pouco menos aquilo que eras, eu serei um pouco menos idealista. Sinto muito bem o tipo de choro que agora me está a subir, começa com um soluço do estômago, pare­cido com uma coisa digestiva, depois borbulha lentamente no esófago como uma bebida gasosa, quando está ali e não o dete­nho a tempo sei que transborda, num arrastamento que nunca sei onde vai parar. Sorrio. O que estou a fazer, sinto-me culpada? É este, portanto, o seu enorme poder? As sarissas encostadas à parede atrás de mim, a Saint Maurice que seguro debilmente na mão. Agora ajoelho-me e dou-lhe um beijo na testa. Sim, acordo o monstro que está a dormir com um beijo, e levo-o comigo. Mas algo se move à sua esquerda e à sua direita, não percebo o que é, espécie de inchaço, talvez duas almofadas que tem debaixo dos lençóis e movimenta levemente, com as mãos. Estendo uma mão, desvio o lençol. Faço-o descer imperceptivelmente. Então, as borbulhas gasosas do esófago voltam a descer, tornam a ser uma coisa digestiva no estômago e que dele desaparece para me dei­xar sem mais nada. Não são duas almofadas, são duas anãs que estão coladas a ele. Uma delas tem a boca ligeiramente aberta, não sei por que defeito. Noto que lhe falta um dente, um incisivo. Ambas dormem assobiando, horrendas e tumefactas, emanando odores fortes daquele estropiamento de corpos que me toca ver nus. Os pés enormes,. os joelhos encurvados e deformados, os ventres proeminentes e flácidos, os seios compridos e afuselados, os maxilares prógnatos, as testas pequenas, os cabelos eriçados. Enquanto dorme, o monstro acaricia as nádegas das mostrengas, ambos os indicadores escavam nas rachas, e a esse seu toque ligeiro mas demorado as anãs fremem, e os ventres delas mal reentram para de novo se estenderem.

Dou um passo atrás, oscilo, se não me apoio na parede caio. Fico assim, com as costas aderentes à parede, a respirar com o arquejo de um peixe acabado de pescar. Concentro-me. Não, não posso vomitar, tenho de reencaminhar o vómito para baixo, ou melhor, comê-lo. Não devo fazer um único ruído. Respira, respira lentamente. Eis porque eram três armas, eis porquê também o elmo. Não sabes como é que vão correr as coisas. Seja como for, é uma batalha, quase seguramente a teu favor, é o que nós todos desejamos, mas não deixa de ser uma batalha. Portanto, o Ri­cardo sabia que o número me era desfavorável. Grande ideia, o que é que faço com estas três armas tão pesadas? Com o número ímpar precisava era da espingarda do Lawrence, a sua boa Lee Enfield, pum-pum-pum, e acabava ali. Encontrava à mesma a minha satisfação, três contra um, encontrava-a e de que maneira. Afinal o que é isto, trata-se talvez do meu suicídio?

Não, vai tranquila. Estas armas aqui não pesam nada. É tudo fogo de vista. Experimenta!

Então deixo por um momento a Saint Maurice no chão. Estratégia veloz. Não tenho tempo. Agarro as sarissas. Em vez de segurar uma com ambas as mãos, tenho uma em cada mão, hop! Confirmo, não pesam nada, dois brinquedos. Coisas de anões. Os músculos dos braços, atléticos, distendem-se. Desgrudei da parede, caminho devagar, vou para a frente da cama. Sarissa esquerda para a anã esquerda, sarissa direita para a anã direita. Fum! Fum! Atingidas em pleno ventre, ambas. Nem um ai, só escancararam a boca e arregalaram os olhos. Estão as duas a ver-me. Saúdo-as. Aceno olá, olá, com a mão. A da direita menstrua-se de repente, de morte. Ainda nem uma única gota da ferida mortal, mas em con­trapartida, sangue abundante dali de baixo. Facto curioso, talvez de anões. A da direita gorgoleja qualquer coisinha. Faço com as mãos o gesto de quem quer dizer: «Não entendo, lamento, falas dum modo estranho.» Por educação, aproximo-me e sussurro-lhe ao ouvido: «Olha para mim, venho do reino das deusas Diras, guerra e morte te trago!» E a seguir, ao ver a obtusidade da sua expressão, até especifico, «Vergílio, Eneida, Alecto fala a Turno para o induzir à guerra. Adeus, Cinthia.» Não sei por que lhe chamo isto, e em falsete. Talvez ela se adapte à vulgaridade do nome, do th, o pior nome que há para mulher, dizia o meu pai. Enquanto morre aperto-lhe a grande narigana entre as mãos e abano-a, assim como se faz na brincadeira com os amigos.

Bom, agora o número é de novo como deve ser: um contra um. Não preciso de recuperar as sarissas, deixo-as espetadas nas duas feiosas. Fazem um bonito efeito. Tinha razão o ruço, armas espantosas. Agora sim, que se expande o sangue, desce como uma torneira aberta. Pena não ter um balde. «Hei, Ricardo do Topete, o que achas, parece-te um filme?»

Olho-o, continua a dormir. Bolas, quantos Xanax terá tomado para dormir tão profundamente? Levanto do chão a Saint Maurice. Assobio, imitando um pastor. Abre os olhos grunhindo, diz: «Qual de vocês duas faz o café?» Respondo-lhe: «Eu, faço-o eu.» Então acorda mesmo, reconhece a minha voz, diz: «És tu!»

E ao procurar levantar-se da cama, apoia-se nas mãos, que se afundam no sangue. «o que é isto?», grita, levando as mãos à frente dos olhos. Mas está escuro, não vê, sente apenas o líquido viscoso, o olfacto que lhe resta também é pouco. «É sangue», res­pondo-lhe. «O sangue de duas das tuas putas feiosas. As duas mais azaradas.» Levanta-se bruscamente, escorrega no sangue, tenta acender a luz. «O que meteste tu na cabeça?», pergunta-me. «Um elmo», respondo-lhe. E ao responder-lhe desço a viseira sobre os olhos, e tudo o que me resta ver vejo-o agora bem enquadrado, rectangular, como em cinemascópio. Levantou-se, para não cair segurou-se na parede, sujando-a de sangue. Procura pegar numa sarissa, mas quer pela untuosidade do san­gue quer por estar muito bem cravada naquela barriga, não con­segue tirá-la. Tenta com a outra. Agora está de novo em cima da cama, em pé, com os pés dentro do sangue, um chape-chape ina­creditável, chlap, chlap, como se estivesse a fazer vinho. Desce da cama com a intenção de fugir, mas escorrega no chão, esbraceja naquele lago que escorre da cama. É uma cena piedosa à qual ponho fim, levantando com ambas as mãos a bela Saint Maurice. Atinjo-o com a prancha contra uma anca, corto-a. «Porra», digo. «Nunca ninguém fica quieto!» Volto a erguer a minha espada, apercebo-me de todo o seu peso. E depois, para baixo, no cora­ção, como se faz aos vampiros. E olhamo-nos assim, nos olhos, quatro olhos que se tornam apenas dois. Os meus, que sinto nas órbitas, são os seus, e os seus, dele, que morre, são os meus. Então, enquanto nos olhamos, tão unidos que quase sinto dentro do meu coração este longo metal, enquanto também eu quase me vou embora deitando fora a alma, vejo-o expelir uma bolha de saliva e sangue da boca, que logo rebenta no ar, num puff de último sopro de vida. E assim ficando, enquanto daquele coração monstruoso extraio a bela Saint Maurice, digo-lhe do alto: «Desta vez és tu que morres, sarraceno.»

Depois, deixo tudo como está. Nem sequer fecho a porta atrás de mim. Subo as escadas, levando os sapatos na mão. Calço-os quando estou lá em cima, no pátio. E atravesso-o a correr, depois abro a porta da rua com o botão automático, que faz taco Bom, eis-me na rua, no escuro ainda bem negro da noite. Que raio de horas serão que ainda não amanheceu? Salto para a garupa do Sierra, dou-lhe um ligeiro toque de esporas. «Vamos, lindo», digo­-lhe, «a galope para casa!» E juntos deslizamos num regresso aos soluços, quase estilhaçado, com aquele género de movimentos que de vez em quando, a fingir, se detém como num bloqueio da imagem, aquele modo que uma câmara pode ter de dilacerar as luzes eléctricas e fazer delas estrelas desfiadas de várias cores, que atravessam as ruas e circundam os prédios, nos postais. Chegamos fumegantes à Praça Tuscolo, abrandamos para procu­rar um lugar, vamos cautelosos, damos três voltas ao prédio. Bairro desajeitado, de prédios de dez andares cada um, como é que encontras um lugar com toda esta gente que aqui vive? Somos muitos, aqui. Não há ninguém que saia de casa? Hei, não há ninguém? Voltamos lá em cima, depois da Praça Zama, talvez aquele lugar um pouco em estacionamento proibido, aquele lugar de esquina que deixámos há pouco. Aquele pertence-nos, metemo­-nos ali. Saio, volto a atravessar a ponte, paro a meio do cami­nho para olhar para baixo, para a linha, onde um comboio passa.

. Dá sorte um comboio a passar, quase como um rebanho de ove­lhas visto da auto-estrada. Saúdo-te, belo comboio, dá-me sorte, dá-me sorte! Atravesso de novo a praça, volto a percorrer a rua dos cocós com menos apreensão. Já se começa a ver algo. Abro a porta de casa, chamo o elevador que está parado lá em cima, no andar das famílias argentinas. Subo no ruído de roldana, amplificado pelo silêncio do prédio. Abro a porta de casa. O meu filho está ainda ali a dormir, na mesma posição em que o deixei. Acaricio-lhe o suor do pescoço e beijo-lhe um ombro polpudo. Vou ao quarto de banho lavar as mãos, sabe-se lá se estão sujas de sangue. Acendo a luz, olho-me no espelho. Tenho ainda o elmo, não o tirei. Sabe-se lá quem me terá visto voltar nestes pre­paros, a cavalo de um Ford Sierra 2000, de noite, com um elmo guerreiro. Tiro-o agora e pouso-o no lavatório. Um suor um pouco ferrugento cai-me da têmpora direita. Sacudo a cabeça que sinto subitamente leve, respiro fundo. Vou para a sala de estar e deito-me no sofá, decido esperar pelo dia assim, talvez passe um pouco pelo sono. E olho para as mãos. Não, não há sangue nas minhas mãos. Limpas, limpas.

 

- Mamã, estás aí? Mamã, corre, vem ver!

Acordo como se chamada por um susto, por uma pancada na porta, respondo:

- O que é?

- Mamã, vem ver, está aqui uma prenda para mim, uma prenda lindíssima.

Entro no quarto, quase não me tenho em pé por me ter levan­tado tão bruscamente. O meu filho está de joelhos na cama e na mão tem uma coroa de rei. Mamã, olha que bonita, encontrei-a em cima da almofada! Estende-ma e eu ponho-lha na cabeça. Coroa-o.

- Também eu tive uma prenda - disse-lhe. - Um humilde elmo. Portanto, tu és o meu rei e eu o teu cavaleiro. Mas isso já nós sabíamos.

Quis ver o meu elmo, quis ver-me com ele posto. Estamos sentados na cama, um rei e o seu cavaleiro a brincar de manhã cedo. Depois vamos mirar-nos ao espelho.

- Somos bonitos? - pergunta-me.

- Somos especiais - respondo.

- Vamos tomar o pequeno-almoço no terraço?

- Está bem.

- Mas assim enfarpelados.

- Claro.

- Pareço-me com alguém?

- Com um rei.

- Com qual?

- Com o rei da Terra. Ricardo Coração de Leão.

- Quem, aquele do livro?

- Sim, aquele da coroa que tens na cabeça.

       Pusemos uma mesa no terraço e comemos, enquanto o ar subi­tamente se refresca. A senhora que esta noite estava a estender roupa está de novo à janela e, divertida, olha para nós. «Somos um rei e o seu cavaleiro!», grita-lhe o meu filho. A senhora faz um gesto de entendimento, como que a dizer: «Estou a ver.»

Depois o meu filho esquece-se da coroa, tira-a e coloca-a no sofá. Liga a televisão, a esta hora da manhã estão a dar alguns desenhos animados de que ele gosta, e um programa que se chama Art Attack, onde ensinam a fazer coisas prodigiosas com papel e cola. Fico sozinha na cozinha e sou assolada por um ter­ror retroactivo, que se apresenta agora com toda a sua força. Mas o que fiz eu? Revejo tudo agora, esta noitada infernal de tanto sangue. Abro a janela que dá para o pátio de uma esquadra da polícia. Lucky, o cão deles, levanta a cabeça e olha-me, com a cauda move a tigela de plástico vermelha que está atrás dele. Às vezes está preso, outras vezes não. Agora, não. Ladra com aquele tom que certos cães têm mesmo em adultos, quando cumprimen­tam quem lhes é simpático, solta uma vozita estridente, quase em falsete. Respondo-lhe imitando-o, ele torce a cabeça. Matei o meu marido e duas anãs. Digo-o em voz baixa, enquanto um polícia lava um automóvel. Primeiro molhou-o com a mangueira, agora está a ensaboá-lo. O cão está perto dele para brincar, ele afasta-o salpicando-lhe um pouco de espuma com as mãos. Lucky põe-se em posição de brincadeira: rabo para o ar e patas da frente no chão. Finge rosnar. Eu não matei a fingir. Matei a fingir? Conheço aquele polícia, é quase sempre ele que leva o cão a passear. Eu conheço todos os proprietários de cães do bairro, falo com todos, apetece-me sempre saber algo sobre os seus cães, o que fazem, como brincam, os tiques deles. O polícia levanta o olhar por acaso e v_-me. Faz-me um gesto de saudação com a mão e diz-me: «Viva.» Eu também respondo com a mão, mas em voz baixa digo-lhe: «Algum dia te passaria pela cabeça que eu era uma assassina?», mas ele não percebe aquilo que eu digo, sorri-me, termina dizendo: «Finalmente um pouco de fresco, não é?» E eu respondo-lhe: «É verdade.» E a seguir continuo em voz baixa, dizendo: «Não é nada de grave, apenas matei um monstro. Até tu o terias matado. O que achas, os monstros devem ser eli­minados? Vale a pena fazer um pouco de limpeza? E depois, que mais? Que mais se poderia fazer, continuar? Não ter a satisfação?

o que faço agora, sou a mata-monstros?» Mas digo todas estas coisas já sem que ele me veja ou ouça, pôs-se de novo a lavar o carro e Luckyrecomeçou a importuná-lo, morde a mangueira, vai espetar o focinho dentro do balde com o detergente. Enquanto estou à janela sinto correr, atrás de mim, a água do lava-louça.

- Ouve, podias vir ao terraço? Estamos à tua espera. Volto-me e vejo Lawrence a passar as mãos por água. Seca­-as com um pano e sorri-me.

- O meu filho está em casa - digo-lhe.

- Nós sabemos, não importa. Anda, não desgrudará da tele­visão. Temos de fazer alguns projectos, não te parece?

- O que é agora?

- Então, não queres ser homenageada?

No terraço, Alexandre está a escovar Bucéfalo com uma escova que uso para os tapetes. Assim que nos ouve chegar, volta-se para nós e começa a aplaudir, olhando-me. É verdade, agora que o vejo em pé é bastante baixo, mas felizmente não é um anão como me haviam dito. É apenas um homem de estatura inferior à média. E, além do mais, há que pensar no seu tempo, à época um homem de um metro e setenta provavelmente era considerado um gigante.

- Não sei se mereço propriamente os aplausos - digo-lhe. - Fizeste o que devias fazer. Questionámo-nos muitas vezes durante estes dias. Dizíamos: «Quem sabe se conseguirá.» Bom, finalmente cortaste este nó górdio. Não era sem tempo.»

- Matei o homem que em tempos amei. O pai do meu filho.

- Querias talvez que o teu filho se tornasse adulto e soubesse dos horrores paternos? Fizeste a coisa certa, salvaste-lhe o pai. Quando for adulto inventarás como era o seu pai, não será difí­cil para ti. Bastar-te-á descrevê-lo tal como quiseste vê-lo durante tanto tempo. E depois, deixa-te de histórias, não é o único homem    que amaste.

- Isso é outra coisa. Não é deste mundo.

- Pois, é provável que seja de um mundo melhor.

- Alexandre, o que devo fazer agora?

- O que queres dizer?

- Matei um homem e...

- O que é, queres acusar-te, matar-te? Portanto, terias feito todo este esforço para nada? Lawrence, diz-lho tu também.

- Sim, temos outros projectos para ti. De morrer nem sequer se fala, para ti ainda não chegou a hora de cortar as rédeas da mente e de a tornar livre. Tens um longo caminho a per­correr. Afasta ideias estranhas, nada mais tens a pagar. Agora estás livre.

       - Deixei provas por toda a parte. Será uma brincadeira para a polícia chegar até mim.

       - Oh, claro. Em quarenta e oito horas estarão aqui – diz Alexandre.

- E então, o que devo fazer?

- Deves fugir.

- E para onde querem que vá?

- O mundo é grande - responde Lawrence. - Digamos, aliás, que há mesmo mundos imensos, impérios quase incalculáveis, não é, Alexandre?

- Com certeza, e são de tal modo grandes que mesmo a vida de um homem muito longevo não chegaria para percorrê-los a todos. Achas que em lugares do género não há um bom sítio onde        tu e o teu filho possam viver em paz?

- Não percebo.

- Muitas são as coisas incompreensíveis. Imagina o que pode ter sido para um possesso como eu, que ia de uma ponta à outra da Terra a combater e a conquistar sem descanso, ver certos sábios indianos ficarem imóveis durante dias inteiros sob os ramos do banyan! Contudo vi-os, e sabes o que um deles me disse? Perguntou-me: «O que queres possuir? Só possuímos o pedaço de terra que nos cobrírá depois de mortos.» Percebes? A mim! Lawrence, conta-lhe também tu algumas incompreensões.

- Bem, a morte de Frederico Barba Roxa. Morreu a 10 de Junho na Cilícia, em circunstâncias bastante misteriosas. Afogou­-se no Salef, um rio sem água.

- Coincidência curiosa - diz Alexandre. - Eu também morri a 10 de Junho. Bom, seja como for, vês, há coisas incompreensí­veis.

Neste momento não deves estar a compreender mesmo nada, deixa-te ainda ser ajudada. Depois verás que, tal como eu

percebi que aqueles homens estranhos de barbas coloridas esta­vam imóveis todo o dia para manterem longe as dores e as ale­grias do amor, e assim como Frederico Barba Roxa terá percebido sem dúvida do que é que morreu, também para ti chegará a hora de compreenderes.

       - Mas de que impérios me estão a falar? Que império me poderá esconder?

       - O meu - responde Alexandre.

       - Ouve, eu agora não queria contradizer-te nem dar-te um desgosto, mas o teu império já não existe.

- Oh, claro, eu sei. Todavia... como é que posso explicar-te... existem manipulações estranhas, algo que o tempo faz, misturas suas. Nunca nada deixa de existir. Todas as coisas permanecem, percebes? Cosmicamente.

- Lawrence - digo, virando-me para ele. - Tu és mais moderno, podes entender-me melhor. Que história é esta? Eu tenho de levar o meu filho comigo, tenho de saber para onde o levarei. A vocês, tudo vos parece fácil. Vocês chegam, aparecem­-me... por amor de Deus, é tudo verdade, tenho ali uma coroa e um elmo. Mas aqui a situação está a ficar bastante séria. O que significa ir para o império de Alexandre Magno? Pessoas que querem fugir após ter cometido um assassínio há muitas, quando têm sorte vão para o outro lado do mundo, compram um bilhete, apanham um avião. Enfim, fogem.

- Cá está, é disso mesmo que se trata - responde-me Lawrence. - Apanharás um avião.

- Um avião que me levará ao império de Alexandre Magno?

- Porquê, como pensavas lá chegar?

- Ah, não sei. E, além disso, ouçam, está a surgir-me uma dúvida. Digam-me a verdade: eu matei mesmo, esta noite?

- A ti, o que te pareceu?

- Pareceu-me mesmo que sim.

- Bom, diria que é suficiente. O que é, queres começar de novo com os remorsos? Dissemos-te que estás ilibada, fizeste o teu dever. Palavra daquele a quem chamaram the supreme artÍst of war.

- E também palavra minha, que fui definido como o Recon dliador do mundo - acrescentou Alexandre. - A nossa absolvi­ção deveria tirar-te todas as dúvidas.

       - Oh, a dúvida - diz Lawrence. A nossa coroa de espinhos moderna. Queres deitá-la fora, por favor? Tive bastantes em vida...

       - Vamos acabar com isto? O Bucéfalo está a enervar-se.

Lawrence, por favor, em vez de falares sempre de ti, expõe o plano.

- Bem. Portanto, ora vejamos: hoje dedicar-te-ás à bagagem. Vê lá, coisas leves, não precisas de levar muitas coisas contigo. Amanhã de manhã, às oito em ponto, tu e o teu filho sairão de casa. Encontrarão um táxi à vossa espera mesmo em frente à porta da rua. Quem estará ao volante já saberá aonde vos levar. Irão para o aeroporto da Urbe, o que fica na Salaria. Entrarão sem problemas e ninguém vos deterá. Chegarão à pista de descolagemo Ali encontrarão um avião à vossa espera, e está feito. Falta só o lugar de destino. Alexandre, tu pensaste em alguma coisa?

- Sim, mas que fique bem claro, nada de impositivo, não é meu hábito. Digamos que se trata apenas de uma sugestão. Proporia Babilónia, um lugar encantador. E se o digo eu, que estou morto, podem acreditar em mim. De resto, uma vez ali poderá ir para onde quiser.

- Concordas com Babilónia? - pergunta-me Lawrence.

- O que querem que vos diga? As últimas vinte e quatro horas começam a pesar-me um pouco.

       - Encontra paz de espírito, porque as próximas não serão mais fáceis.

- Não creio de todo que consiga. Tenho de fugir, mas não tenho de matar mais ninguém, pois não? Em todo o caso, como estou de tal forma incapaz de decidir, Babilónia está muito bem, entrego-me completamente a vocês. No que respeita a mim, já nem sequer sei quem sou.

       - Voltarás a sabê-lo, sabê-lo-ás rapidamente. Bem, o que

fazemos, despedimo-nos?

       - Como assim?

- Olha que não és o único caso que nos cabe acompanhar.

Contigo já terminámos. Tens noção de quantas pessoas no mundo       precisam de ajuda?

- O que é, são uma seita?

- Uma seita... Alexandre, o que faço, posso dizer-lhe?

- Sim, podes.

- Em certo sentido somos uma seita, ocupamo-nos a pôr um pouco de ordem. Pequenas coisas, obviamente, algumas gotas de água no oceano. Um pouco de justiça sã, aqui e ali. Alguém tem de continuar a acreditar na justiça, não achas?

- E como fazem, escolhem ao acaso?

- Depende.

- Do quê?

- Da intensidade. Sabes, há pessoas para quem mais injustiça ou menos injustiça não faz qualquer diferença, navegam nela maravilhosamente. Tu, pelo contrário, parecias estar quase a afo­gar-te nelas.

- E agora vão ter com quem?

- Com o primeiro que se lamentar mais.

- Eu lamentava-me?

- Bastante.

- Como é que me lamentava? E qual de vocês me ouviu pri­meiro?

       - O encarregado das lamentações sou eu, ninguém melhor que um beduíno para as lamentações. Em relação ao modo como te lamentaste... quanto a isso, tenho um ponto de referência bem preciso. Uma recordação da minha vida. Ficou gravada dentro de mim a lamentação de Ghazala, outra das minhas amadas camelas da criação dos reis. Ouvi-a um dia chorar porque lhe morrera o filho, que acabara de nascer. Cheirava-o e lambia-lhe

a pele seca. Nunca mais ouvi um lamento assim. Quando tenho de escolher a lamentação de alguém, penso nela. Tu parecias-te muito com ela. Escolho a lamentação quando me faz pensar numa perda.

- Embora nunca mais nos vejamos, eu continuarei a ver-te quando quiser.

- De que modo?

- Vendo o filme. Antes de partir, quero comprar a videocas­sete. Quero levá-la para a Babilónia. Haverá lá um vídeo?

- Se queres que lá esteja, lá estará.

- Ouve, voltando à conversa de antes, à conversa da seita. Quem faz parte dela tem de estar morto, não é?

- Condição indispensável.

- E... o meu pai...?

- Sim, é um dos nossos. Bom, vamos despedir-nos?

Aproximo- me primeiro de Alexandre Magno, que acaricia a crina de Bucéfalo, procurando acalmá-lo. De pé, um em frente do outro, dá-me pelo queixo, e, para olhá-lo na sua excentricidade de ter um olho escuro e outro azul, tenho de baixar a cabeça. Não sei porquê, mas ao olhá-lo digo-lhe: «Por favor, não estejas triste.» Tem a tez clara, que fica vermelha sob este primeiro sol do dia, os cabelos louros, lábios de homem frágil que me sorriem. Responde-me: «O que queres, queria estender as minhas conquis­tas até ao fim do mundo, lá onde o Ganges desagua no oceano. Ainda penso nisso de vez em quando e dá-me uma grande melancolia. Lamento que te tenhas apercebido disso.»

Digo-lhe que lhe agradeço por tudo e ele, torcendo a cabeça, põe-se a olhar o Sol. É um herói pequeno, um homem que, se o vestíssemos como nós e o mandássemos andar pela rua, ninguém daria por ele. Mas o que podemos hoje perceber de homens como ele? Ao olhá-lo, sinto claramente uma coisa, percebo que às vezes deve ser mesmo impossível manter a moderação nas pai­xões imoderadas. Como se tivesse escutado o meu pensamento, desvia o seu olhar do Sol para o dirigir de novo a mim. «Quero dar-te um conselho», diz-me. «Sê irascível, mas aplacável. Saber isso é bastante útil.»

Viro-me para o Lawrence, que se sentou no bordo do vaso da oliveira. Tem a mão esquerda sobre um joelho e a direita na terra. «O que fazes com uma árvore tão grande num terraço tão pequeno?», pergunta-me, arrancando um raminho para meter na boca. Respondo-lhe que não sei, mas que agora não vale a pena sabê-lo, visto que devo ir embora. Então tira-o dos lábios e estende-mo, rindo. Tem os dentes muito brancos e está tão bron­zeado que parece de couro. Devia ter cerca de vinte e sete anos, foi com essa idade que Peter O'Toole rodou o Lawrence da ArábÍa. Nunca vi olhos mais bonitos que os dele, oblíquos e com as pál­pebras paralelas à junção das pestanas, cabelos de um louro quei­mado do sol e lábios tão cansados, e ombros tão ossudos, e mãos tão cheias de veias em relevo. Sinto de súbito algo forte que me aperta as entranhas, algo de palpitante que me diz que ainda amo o meu marido e que queria que ele me tivesse amado de um modo honesto, sem todas aquelas ferroadas mortais que por fim me obrigaram a matá-lo sem piedade, como um monstro.

Os cabelos de Aurans Íblis esvoaçam ao vento de muitas recordações suas, brilham ao sol. As coisas terríveis que penso, ele sabe-as todas. Então consola-me, enquanto eu pego no rami­nho de oliveira que me oferece. Sorri com os seus lábios cansa­dos e diz-me: «Parte, vai embora de modo a estares bem, esquece o desalento do mundo.»

Deixo ambos no terraço, sob a luz forte do Sol: Alexandre Magno, com aquele impaciente Bucéfalo, e Lawrence da Arábia. Entro de novo em casa. Assim que viro costas, sei que desapa­receram.

 

Sinto vontade de fazer mais um café. Mas, que horas são? Quase meio-dia. Não importa, faço-o à mesma. O meu filho pôs de novo a coroa na cabeça e ainda está em frente da televisão. Digo-lhe: «Vossa Majestade, daqui a pouco come-se, hem?» Ele faz que sim com a cabeça, mas não ouviu o que eu disse, em frente dos desenhos animados fica como se estivesse drogado. Haverá desenhos animados em Babilónia? Tenho poucas coisas no frigorífico. Bem, é melhor gastar o que há. Restam fatias de carne congelada, ponho-as cá fora para o jantar de hoje à noite. Para o almoço, massa simples e ovos estrelados. Ainda há meio litro de leite para o pequeno-almoço de amanhã de manhã. Tudo em ordem, não tenho de sair. Hoje desfruto a casa. Tomo o café regressando à janela e vejo que Lucky já está a mijar contra a roda do carro acabado de lavar. Fê-lo por despeito, percebe-se pelo ar furtivo com que vai esconder-se atrás da cisterna. Conheço a mentalidade dos cães: Enquanto lavavas não me dei­xaste brincar? Pois agora mijo-te em cima. O modo de eles verem a vida pode resumir-se a uma frase como esta. A minha mãe tam­bém tem um cão assim, no campo. Cada gesto seu é uma repre­sália amorosa. A minha mãe di-lo continuamente: «Este cão vai enlouquecer-me.» O cão da minha mãe foi meu durante três anos, recolhi-o um dia ao sair da escola, ou seja, da cadeia. Devia ter sido abandonado, porque tinha coleira e estava no limite das for­ças. Peguei nele ao colo e pu-lo no carro. Tinha todas as doenças do mundo, mas curou-se rapidamente. De doenças ficou apenas com uma, a síndroma do abandono. Tem sempre medo de ser outra vez enganado. Quando nasceu o meu filho tive de o dar à minha mãe, pois ficara ciumento de mais, olhava o berço com um ar que não me agradava nada. Tive medo. Justifiquei-me dizendo que um cão está mais feliz no campo, especialmente um cão daquele tamanho, porque na cidade os demasiado grandes aca­bam por se tornar nevróticos. Mas talvez seja exactamente por isso que há sete anos que põe a minha mãe doida, porque apesar de gostar dela preferia viver comigo.

Eu gostaria de viver toda a vida com o meu marido. Enquanto não se transformou num monstro, fomos felizes. Nos primeiros tempos não vinha com todas aquelas conversas estranhas sobre sexo, sobre as várias fases. Não, não deixava prever nada de semelhante. Percebia-se apenas que era um homem perturbado, mas esse era também o seu encanto. Falava-me de uma infância terrivel, de uma adolescência triste. Amei-o com muita aflição no coração, amava-o e protegia-o. Não devia mudar daquela ma­neira horrível, devia agarrar-se às coisas boas que lhe dava, não pensar em recuperar a sua juventude perdida afogando-se em todas aquelas perversões. Dizia-lho sempre: «Tu não sabes viver no presente. Pensas sempre no que podes fazer amanhã para te desforrares do que não fizeste ontem.» Depois não aguentei mais, quando exagerou eu parei. Eis que estou já a começar a recordar­-me das coisas boas - também da dor, claro, mas as coisas boas estão a vir ao de cima. Com o tempo os horrores apagar-se-ão, de resto foi por esses que pagou, em certo sentido, agora está limpo. Pena que não possamos ressuscitar depois da morte, seria mais justo, agora poderia dizer: «Está bem, basta assim.» E a seguir ir a um gabinete próprio para o efeito e pedir o regresso do meu marido à vida, mas de um marido novo, que fique bem claro. No gabinete dariam uma vista de olhos ao processo e um empregado dir-me-ia: «Sim, podemos aceitar o seu pedido, nesta altura ele já deve estar em condições. Volte cá daqui a duas sema­nas. Quando lhe convém, numa quinta-feira? Está bem, à quinta­-feira as entregas são das 15.00 às 17.00, só tem de apresentar este recibo no andar de cima.» Sei como sou, quando lá me encontrasse pediria para levá-lo imediatamente. «Está a brin­car?», dir-me-ia o funcionário. «Duas semanas são indispensáveis para fazer todos os controlos. Não quererá arriscar-se a levá-lo ainda com defeitos, pois não? Tenha paciência, só duas semanas e terá uma garantia de pelo menos quarenta anos. Verá a cate­goria de consciência que lhe reconstruímos. Queria-o alado? Duas semanas, e sê-lo-á.»

Fiz o almoço e chamei o meu filho. Para separá-lo dos dese­nhos animados tenho sempre de inventar qualquer coisa. Hoje não foi muito difícil, prometi-lhe que se viesse comer lhe diria uma coisa muito interessante. Então, voltou-se e disse-me: «Sim, mas com uma condição.» «Qual condição?», perguntei-lhe. «De comermos no terraço, numa mesinha baixa e sentarmos-nos no chão, como Sampei.» Respondi-lhe: «Está bem, é uma óptima ideia.» Então, desligou a televisão e ajudou-me a pôr a mesa.

Agora estamos aqui, faz sol mas está-se bem, levantou-se um belo vento que não nos deixa suar. Estamos sentados no chão, sobre almofadas, a comer um prato de lasanhas finas com azeite e parmesão. O meu filho é canhoto e não consegue enrolá-las bem à volta do garfo, enrolo-lhas eu e passo-lhe as garfadas, dizendo sempre «Boca bem aberta», que é um jogo nosso que remonta ao seu desmame, quando eu levava hora e meia para que ele fizesse uma refeição normal e repetia esta frase constante­mente com ele, que me escancarava histericamente a boca, apenas para me mostrar que ainda a tinha cheia de comida. Às vezes ainda faz isso, fá-lo porque se diverte a ver a minha cara de eno­jada e a ouvir-me dizer: «Fecha essa porcaria!»

       - Então - pergunta-me -, onde está essa coisa interessante que tinhas para me dizer?

- Ah, sim, queria perguntar-te se me ajudas a fazer as malas.

- Porquê, ao onde vamos?

- Vamos de férias.

- De férias? Mas já fui duas vezes, uma contigo e outra com o papá!

- Mas vais outra vez comigo. Não estás contente?

- E a escola? Não começa daqui a poucos dias?

- Exactamente, daqui a poucos dias.

- Vamos por poucos dias?

- Por agora vamos, depois veremos.

- E aonde vamos?

- A um lugar que se chama Babilónia. Muito longe.

- Mas é uma ideia estúpida. Se temos poucos dias vamos a um sítio mais perto.

       - Ouve, apetece-me ver esta cidade. Fazemos uma bela via­gem, não? Qualquer pessoa no teu lugar estaria contente...

- Quando partimos?

- Amanhã de manhã.

       Acabámos de comer e fomos para a cama. É sempre a mesma história, depois de comer nunca quer ir descansar, mas acaba por adormecer logo. Também eu dormi, mas pouco. Demasiada agita­ção, demasiados sonhos velozes. Recordo-me apenas de um: lavava continuamente os dentes. Aproveitando o facto de o meu filho estar a dormir, tomei um banho quente. Disse para mim «Sabe-se lá quando poderei voltar a tomar um banho quente» e enchi a banheira. Antes de entrar na água pesei-me e notei que tinha emagrecido. Não sei porquê, mas, embora seja magra, a ideia de emagrecer põe-me sempre de bom humor. Deixei ajanela aberta, pois o apartamento do lado há anos que está vazio e nin­guém pode espreitar-me. Vai lá de vez em quando um senhor estranho, que tem um ar milito distinto. Percebe-se quando está em casa pela quantidade incrível de roupa estendida na varanda, toda monocromática, predominantemente verde ou branca. Pode fazer até dez lavagens em dois dias. Além disso, rega dois vasos cheios de ervas, onde passeiam os pombos, e vai embora para voltar sabe-se lá quando. Só uma vez, no patamar, enquanto estava a descarregar malas, vi a porta daquela casa aberta. Não pude deixar de esticar o pescoço e olhar para dentro, tendo visto um longo corredor cheio de garrafas de plástico vazias. Ao notar o meu interesse encostou logo a porta e cumprimentou-me, fazendo um gesto brusco com a cabeça. Em tantos anos que moro aqui, não o terei visto mais de dez vezes. Veste-se como um alpi­nista, só anda de bicicleta, que tem em casa e leva debaixo do braço escada acima e escada abaixo, tem uns olhos azuis inquie­tantes e pendurada na porta de casa tem uma foto da Boca da Verdade. Sempre o achei simpático por isso, senti-o como um aliado. Pensava que dentro dele pensasse: «Queres entrar na minha casa? Bom, não há problema, mas primeiro enfia a mão naquela boquinha, se tiveres coragem. Se estiver tudo em ordem, podes entrar. É assim, a minha lei é esta: nada de mentirosos na minha casa.» O meu marido dizia que podia ser um monstro, um serial killer. Sabe-se lá o que aquele senhor algum dia terá pen­sado do meu marido...

Da banheira, com a janela aberta, vejo apenas o céu. Estão a passar muitas gaivotas. Sou perfeitamente capaz de imitar o gras­nar das gaivotas. Ensinou-me um namorado de há muitos anos, mais novo do que eu. Esta noite matei o meu marido, mais duas anãs, e agora estou dentro de água a reproduzir o grasnar das gaivotas. Não estarei a ficar louca?

Os banhos quentes não refrescam nada. Mas quem disse que refrescam? Uma vez li um romance que se desenrolava no Verão, com um calor tórrido, e o protagonista só tomava banhos gela­dos. Aqueles sim, devem refrescar, mas eu tenho medo de banhos gelados, estou convencida de que fazem mal ao coração. Sei lá, há tantas coisas que fazem mal ao coração. Enquanto estava em trabalho de parto, sei lá porquê, estava convicta de que o meu coração não ia aguentar. E então, durante as contracções, não fiz outra coisa senão comer açúcar às colheradas. Recordo-me de que não estava muito preocupada, de que tinha fome e não via a hora de me despachar a fazer sair este filho da barriga, para a poder encher de comida. E, afinal, depois não comi nada, pus-me a tremer de frio. Este banho quente também me está a dar arre­pios. Saio da água e enfio-me no roupão. Seco-me à pressa e vou à despensa escolher duas malas, não muito grandes. Desde que me separei, ir de férias com o meu filho foi sempre problemático. Antes, quem fazia de bagageiro era o meu marido, eu não me posso permiti-lo, sofro de dores nas costas. Tenho de contar até os gramas daquilo que meto dentro das malas. Além disso, desta vez foram explícitos: devo levar pouca coisa. Sim, mas não per­guntei para que estação. Não está escrito no jornal quantos graus estão em Babilónia. Oficialmente, o que existe hoje no lugar de Babilónia? Ouço um barulho vir do quarto. O meu filho deve ter acordado.

- Mamã, onde estás?

- Estou a tirar as malas.

- Fazemo-las agora?

- Sim.

- Podemos levar a coroa e o elmo?

- Não, são demasiado pesados.

- Mas ofereceram-no-los, eu quero levá-los!

- Deixamo-los aqui, encontrá-los-emos no regresso.

- Mamã, temos de os levar. Levo-os eu.

- Não penses nisso agora.

       Levo as malas para o quarto e começo a enchê-las. Calções, calças, sapatos leves, sapatos mais quentes, camisolas de algodão, camisolas de lã, dois blusões, dois fatos de banho.

- Mamã, mas para onde é que vamos?

- Para Babilónia, já te disse.

- Sim, mas como está o tempo em Babilónia? É Verão ou Inverno?

- Não sei. Nós levamos de tudo um pouco.

Quando as malas estiverem feitas, ponho-as em frente à porta de casa. Sempre fizemos assim. Fazia-o o meu marido e eu continuei a fazê-lo. As malas fazem-se no dia anterior e passam a noite em frente da porta de casa.

Pergunto- me o que será feito desta casa. Pergunto-me se deve­ ria telefonar à minha mãe para lhe dizer que tenho de fugir. Seria justo fazê-lo, mas como, em que termos? Telefono-lhe e digo-lhe: «Sabes, depois de cinco anos de separação, decidi que o meu marido devia mesmo morrer. Recordas-te daquela frase de Diderot de que eu gostava tanto? Não? Como não? Aquela que diz: Os maus não devem ser castigados, devem ser eliminados. Bom, por fim decidi pô-la em prática, porque, senão, que sentido faz iden­tificarmo-nos tanto com determinadas ideias se depois não vive­mos de modo condizente? A propósito, com ele estavam as anãs do costume, desta vez eram duas. Também tive de matá-las. Em suma, estás a ver, tenho de me pôr a milhas, não há outra saída. Em todo o caso não te preocupes, vou para Babilónia. Como? Já não existe? Existe, existe. Não sei por quanto tempo. Claro que levo o meu filho comigo. Não, não sei quando voltaremos, seja como for, fica descansada, hem, telefono-te assim que puder. Talvez vás ter connosco.»

Não, impossível. Tenho de desaparecer deste modo, no nada, dar-lhe este grande desgosto. Também escreverá isto no seu livro? Acabá-lo-á assim, com o desaparecimento da filha e do neto, transformando-se em pessoas que nunca existiram? Pobre mãe, não o merece mesmo, mas que posso fazer? Não, qualquer     coisa posso fazer, telefono-lhe e conto-lhe uma mentira.

- Olá, mãe.

- Olá, querida, como é que estão?

- Muito bem, mas aqui faz um calor...

- Pois, aqui para os meus lados refrescou bastante. Choveu muito esta noite. Sabes que o maluco do teu cão fugiu outra vez?

- A sério?

- Sim, mas já voltou, pouco antes do almoço. Ouve, se eu te disser o que ele trouxe não vais acreditar.

- O quê?

- Um frango assado.

- Um frango assado?

- Sim, perfeitamente cozinhado. Percebes o que faz? Foge, entra nos jardins e rouba o que encontra na mesa. Da outra vez nem sequer te quis dizer, para não te preocupar, mas viram-no junto de outros cães vadios a assaltar um rebanho e a comer uma ovelha.

       - Obrigaram-te a pagá-la?

       - Claro, mas não é isso. Não te faz impressão saber que fez uma coisa tão horrível?

- É um animal, mãe, segue a natureza.

- Mas com toda a comida que lhe dou...

- Sabes, às vezes não é por fome, pode ser por um repentino tapataki migila.

- O que é isso, uma doença dos cães?

- Não, quer dizer «tornar impuro». De repente, sei lá, enquanto estás a andar apercebes-te de que algo te torna impura, contra a tua vontade. Não tens escolha, tens de eliminar essa coisa. É uma      violência purificadora.

- Mas, perdeste a cabeça?

- Não, é assim.

- Olha, seria já bastante terrível pensá-lo para as pessoas, mas meter certas ideias na cabeça de um cão... O que queres que um cão perceba disso?

- Estava a brincar, mamão O quê, acreditaste?

- Em parte sim, em parte não.

- A propósito, disse-te que aqui ainda faz um calor horroroso, não disse? Faz tanto calor que decidi ir para fora alguns dias.

- Mas se está quase a começar a escola, o que dirás ao director?

- Já está tudo arranjado. Não há problema, sabes, só os pri­meiros dias é que são sempre de adaptação. O director com­preendeu.

- Que estranho, dizes sempre que é um chato.

- Não, mudou muito. Disse-lhe: «Senhor Director, o meu filho e eu temos demasiado calor. Vamos uns dias para fora, para onde faça mais fresco. As prisioneiras, venho libertá-las noutra altura.»

- Pára de dizer parvoíces! Mas, afinal, pode saber-se para onde tu e essa criança vão?

- Para o mar Vermelho.

- Para o mar Vermelho?

- Sim.

- Por tão pouco tempo, querem ir até lá abaixo?

- Não tínhamos alternativa.

- Como assim?

- Era uma oportunidade... um pacote muito barato.

- Mas vê bem que ideia!

- Boa, não é?

- E quando partem?

- Amanhã.

- Estão contentes?

- Ah, ele está contentíssimo. Queres falar com ele?

- Sim, deixa-me despedir dele.

- Estou, avó.

- Olá, querido. Então, ouvi dizer que estão de partida, que tu e a mãe vão fazer uma bela viagem.

- Sim, vamos para Babilónia.

- Para onde?

       - Estou, mãe, é o nome do aldeamento turístico. Sabes como são estas agências de viagem, põem nomes assim. Volto a pas­sar-to.

- Sabes, avó, levamos fatos de banho e também sobretudos. - Não é verdade, mãe, são apenas duas camisolinhas para vestir à noite. Vá lá, agora despede-te da avó como deve ser. - Adeus, avó.

- Adeus, amor, mas porque tens essa vozinha triste?

       - Porque a mamã não quer levar a coroa e o elmo, diz que são demasiado pesados. Mas eu gosto deles, ofereceram-no-los esta noite. Eu sou o rei e ela é o cavaleiro. Dizes-lhe tu que eu quero levá-los?

- Sim, passa-ma por um momento.

- Estou, mãe.

- Que história é essa da coroa e do elmo? Quem é que vo-los ofereceu?

       - Nada, são brinquedos. Mas não os posso meter na mala.

       - Ah, foste tu que fizeste com que ele os encontrasse esta manhã?

       - Sim, não to podia dizer.

       - Quantas coisas estranhas metes na cabeça dessa criança. Não será já grandinho para ainda acreditar que de noite venha alguém oferecer coroas e elmos? Não sei, temo que tu o faças sonhar demasiado.

- Não, não é demasiado, está descansada. Brincamos.

- Ouve, telefonas-me assim que chegares, sim? Não vão dei­xar-me preocupada, hem?

       - Não te preocupes. Telefono-te logo, assim que nos instalar­mos no aldeamento.

- Mas é um lugar bonito? Viste-o ao menos nos prospectos? Sabes, quando as coisas são baratas de mais cheiram-me sempre a vigarice.

- Claro que vi, é lindíssimo. E, além disso, já lá esteve um amigo meu.

       - Ah, bom.

       - Está bem, mãe, agora tenho de me despedir de ti. Temos um monte de coisas para fazer.

- Façam boa viagem, e vê lá, olha bem por esse miúdo, fá­-lo comer, mas não o deixes ir ao banho enquanto estiver a fazer     a digestão.

- Sim mãe, fica tranquila. Um grande abraço.

- Um grande abraço também para vocês os dois.

Já está, pelo menos não ficará logo agitada. Mas haverá tele­fones em Babilónia? Quem sabe, talvez seja como com o vídeo: Se queres que haja, haverá. Agora são cinco da tarde. Restam-me quinze horas para passar nesta casa. O meu filho pôs-se a dese­nhar, se eu lho dissesse sabe-se lá como reagiria. Talvez de nenhum modo particular, ainda não tem o mínimo sentido do tempo. De vez em quando digo-lhe «Recordas-te da coisa tal?» e ele responde-me: «Sim, aquela que comprámos há quarenta anos.» Diz números ao acaso, para ele não há muita diferença entre meia hora e quarenta anos. Mesmo no relógio, ainda não aprendeu a ver as horas, gosta de o ter mas vem sempre pergun­tar-me que horas são.

Talvez seja eu a culpada, nunca lhe ensi­nei o tempo. De qualquer maneira, para mim, que o percebo, quinze horas são mesmo muito poucas. Como tudo é relativo: se agora dissesse que daqui a quinze horas viriam amigos meus, parecer-me-ia que antes de vê-los teria de passar muito tempo; mas se pensar que daqui a quinze horas vou embora daqui... Sei lá, talvez nunca ninguém tenha aprendido o tempo, ou talvez eu nunca o tenha aprendido e, portanto, muito menos o tenha sabido ensinar. Faz-me rir a frase ensinar o tempo, faz-me pen­sar em alguém que deve aprender a dançar, a cantar, não a viver. E, afinal, talvez sirva também para isso. Um avião à nossa espera no Aeroporto de Urbe. Passei lá em frente milhares de vezes na minha vida, é um letreiro que sempre li involuntaria­mente, sem o ler, algo que encontrava com os olhos enquanto saía da cidade de carro, para ir apanhar a auto-estrada. Não sabia, passava em frente dele sem saber que aquele seria o ponto fundamental da minha história nesta cidade. A minha história na urbe acabará, portanto, no Aeroporto de Urbe, na Rua Salaria, a dos concessionários de automóveis, uns atrás dos outros, novos e usados. Passava lá em frente para ir a casa da minha mãe, no campo, e não sabia. Bom, é normal, nunca se sabe nada na vida. Mesmo quando encontrei o meu marido, não podia imaginar que um dia o mataria juntamente com duas anãs - aliás, este acontecimento parece-me bastante mais imprevisí­vel. Qualquer pessoa que eu abordasse na rua e a quem per­guntasse: «Desculpe, na sua opinião, é mais provável que a dada altura da sua vida uma pessoa apanhe um avião no Aeroporto de Urbe para abandonar definitivamente esta cidade ou que mate o próprio marido que dorme com duas anãs?», estou certa de que acharia muito mais improvável a segunda hipótese. De resto, no aeroporto apanham-se aviões.

O meu filho desenha monstros que devoram monstros que devoram monstros que devoram monstros. Desenha en abime, sabe-se lá por causa de que obsessão sua. Muitas vezes pergunto­-me que filho teria tido se o tivesse feito com outro homem, com o dentista, por exemplo. Pois, o dentista, daqui a menos de quinze horas vou embora para sempre. Devo absolutamente ouvir a voz dele pela última vez. Sei que a esta hora é quase impossível falar com ele, mas tenho de tentar, direi à sua secretária que é muito urgente; qualquer que seja o dente podre que esteja a brocar, tem de vir imperiosamente ao telefone.

- Consultório de estomatologia, boa tarde.

- Olá, Fiore, sou eu. O que está a fazer o doutor?

- Adivinha lá.

- Ouve, tenho mesmo de lhe falar, é verdadeiramente urgente.

- Espera, vou ver, se não se puder mesmo mexer levo-lhe o telefone sem fios, está bem?

- Claro, perfeito.

       Ouço-a caminhar pelo consultório e dizer-lhe que sou eu ao telefone. Ouço também a voz do meu dentista, a sua bela voz tranquilizante de homem feito, viril de modo garantido, mas composto. Ouço os passos de Fiore a regressar, a sua voz que me diz que mo vai passar.

- Cá estou eu. Qual é a urgência?

- Tudo e nada. A urgência era ouvir a tua voz.

- Parece-me uma urgência justa.

- Não podes falar, pois não?

- Não, evidentemente.

- Tens na tua frente um homem?

- Sim.

- É feio?

- Bastante. É estúpido, principalmente. Adivinha como está.

- Com a boca escancarada.

- Adivinhaste! Mas continua, posso ouvir.

       - Então ouve-me. Aconteça o que acontecer, quero que sai­bas que te amei muito para além do que uma pessoa normal possa imaginar.

- Porquê, vai acontecer-te alguma coisa?

- Não, disse isto de modo geral, porque na vida nunca se sabe, especialmente numa vida como a nossa.

       - Sobre estes dois últimos pontos estou perfeitamente de acordo. Continua, sinto que me agrada.

       - E, depois, queria dizer-te que sinto pena de nos termos ape­nas beijado, de nunca termos feito amor.

       - Concordo plenamente.

       - O que lamento dolorosamente, pois ambos o desejámos toda a vida, e não o termos feito foi uma loucura.

       - Remediaremos em breve a situação.

       - Olha, é mesmo uma pena enorme, e todo aquele assunto da perfeição que não é deste mundo, desculpa, mas era uma grande estupidez.

- Tens razão. Hoje tens razão em tudo. Até o senhor que jaz aqui diante de mim inerme, se ouvisse os teus argumentos tedaria razão. Ouve-lo? Não pode falar, mas emite sons.

- Não brinques.

- De modo nenhum.

- Então agora inventa uma desculpa, por favor. Mete-lhe um aspirador na boca e vai por um instante até à máquina do café.

- Estou a seguir a ordem.

- Estás pronto?

- Sim, estou. Mas o que se está a passar contigo, o que tens, Lulu?

- Nada, não tenho nada.

- Então por que estás a chorar?

- Nada, é de comoção imbecil. Tens este efeito sobre mim, sempre tiveste. Cada vez que penso em como podia ter sido a nossa vida...

       - A nossa vida não acabou, sabes o que penso sobre isso.

       O melhor para nós ainda está por vir.

       - Mas se eu tivesse sido a tua mulher, tu o que farias hoje?

- Iria todos os dias almoçar a casa, comeríamos muito e dar­-te-ia grandes beliscões no rabo. Porque terias um rabalhão gordo, sabes?

       - Que estupidez.

       - Não tanto. Mas agora tenho mesmo de ir. Vemo-nos em breve. Vemo-nos em breve e remediamos tudo.

       - Sim, sim. E quando?

       - Muito antes do que tu imaginas. Faremos um belo pro­grama arejado.

       - Ouve, diz-me uma palavra definitiva, uma palavra que eu possa recordar e que...

- Ri.

- Ri?

- Sim, bela Lulu, minha bela Lulu. Começa a rir.

Não lhe pude responder, desligou. Ri. Bom, não tenho muita vontade de rir. Daqui a alguns dias telefonar-me-á e o telefone tocará em vão. Perguntar-se-á o que me aconteceu, lerá os jor­nais. Perceberá, e não conseguirá acreditar. Por fim, transformar­-me-ei numa recordação impressionante.

A carne descongelou, o prato sujou-se ligeiramente de san­gue. Duas moscas esvoaçam à volta dela. É melhor pô-la no fri­gorífico até à hora do jantar. Agora o meu filho cansou-se de desenhar monstros, ligou a televisão e perguntou-me se lhe podia pôr a cassete sobre o lndricotherium e vê-la com ele. «Ponho-ta e vemo-la juntos», respondi-lhe. «Mas primeiro queria que tu me explicasses um pouco estes desenhos.» «Não há nada para expli­car», disse-me. «Estão todos mortos.»

Não sei quantas vezes já teremos visto esta cassete. Chama-se Os predadores da pré-história e há uma cena que, para ele, é sem­pre um tormento cada vez que a vê. Começa com uma voz fora do campo de visão, que diz estas palavras: Há trinta e cinco milhões de anos o clima começou a estabilizar e os níveis do mar baixaram consideravelmente. As cerradas e extensas florestas dos trópicos deram lugar a vastas pradarias... Dura cerca de meia hora e o episódio acompanha os primeiros três anos de vida de uma cria de lndricotherium e da sua mãe, obrigada a defendê-lo de todos os modos dos terríveis entelodontes e do creodonte, o carnívoro mais feroz daquela época. É uma história de que ele gosta muito, mas só até certo ponto, ou seja, enquanto dura o idí­lio. Depois, quando a mãe afasta o filhote porque tem de dar à luz mais um, a história já não lhe agrada. Eu digo-lhe sempre: «Desligamos?» Mas ele quer vê-la até ao fim, quer sofrer, quer deliciar-se. Abraça-se a mim e injuria aquela mãe cruel que afu­genta o filho.

Tento sempre explicar-lhe como são as coisas, digo-lhe que os animais não são como os homens, que aquela mãe tem de fazer aquilo, porque senão o filho maior mataria o mais pequeno. Mas a seguir vem aquela famosa cena que para ele é um tormento: o filho afugentado fere-se numa pata e volta para junto da mãe, para que esta trate dele, mas a mãe, que pariu há pouco, afugenta-o de novo. Consola-o apenas o facto de saber que estes animais já não existem, usa com gosto a palavra extin­ção, e diz: «Extinguiram-se, não é, mãe?» Pergunta-mo várias vezes e todas as vezes tenho de confirmar, decidida, e cada sim meu lhe retira um pouco do tormento. Diz que é justo assim, que quando as mães são más a raça se extinga. Usa com frequência, como eu, a palavra justiça. Gosta dela. Eu também gosto que a use, sinto-o profundamente meu filho. Pergunta-me o que teria feito dele, se tivesse tido outro filho. Digo-lhe: «Mas que raio de pergunta estranha, não vês quantas mães há no mundo que têm mais do que um filho?» Porém, se lhe respondo a uma pergunta com outra pergunta, não se convence e repete-a de novo. Tenho de responder o que eu teria feito. E eu sei o que tenho de res­ponder, tento sempre ficar-me pelo geral de toda a Humanidade, mas é o seu jardim que ele quer ver cultivado e tenho de lhe res­ponder que desde o dia em que nasceu que decidi não ter mais filhos, porque ele era o filho, os outros sê-lo-iam sempre um pouco menos. Hoje, que até tem na mão a amada coroa, acres­cento ainda que ele não só é o filho como também o rei. Ninguém aprovaria uma resposta destas, mas estou-me nas tintas para a pedagogia.

Finalmente, a cassete termina. No genérico aparecem maca­cos que fazem coisas realmente divertidas. E ele ri. Ri. Hoje disse­-me isso, o meu amado dentista, o homem que talvez me tivesse salvo a vida, se tivesse casado com ele. Sabe-se lá porque é que naquela noite não nos amámos com o corpo, em vez de darmos todos aqueles beijos extenuantes. Dormimos abraçados e, por uma noite, depois de tantas noites, não senti dores no peito, nem subir o pranto do rancor e do tempo deitado às urtigas, dos dias desperdiçados. Olhei-o a dormir, do meu modo possessivo, assim como se olha um grande amor que dorme. E, traço após traço, guardei-o todo dentro de mim, fiz um desenho dele que gravei nos meus músculos e tendões. Desapareço assim, sem poder dizer nada a ninguém. Começa a rir tu, meu amor, darás muitas gar­galhadas a sério, quando souberes quem sou e o que fiz. Ou pen­sarás: «Já estava à espera» e, com o tom de quem percebeu ver­dadeiramente tudo, dirás: «Ela era assim.» É aquele era que me agrada pouco. Não me resta senão fazer uma coisa, escrever-lhe­-ei de Babilónia e dir-lhe-ei como estão as coisas. Uma vez, ele também veio com uma conversa estranha sobre o futuro da nossa relação, falou de protocolo, de deveres e de riscos, falou de coi­sas a levar honestamente até ao fim, de todos os compromissos assumidos na vida. «Mas para todas as coisas há um prazo, o que é que pensas?», disse-me. «O importante é chegar lá e não se dei­xar enganar pela renovação.» Eu devo compreendê-lo deste modo, superficialmente, devo deixá-lo falar e apanhar o sentido. Naquele mesmo dia, deitados na praia de Castel Fusano, en­quanto me acariciava uma anca por baixo da saia e me beijava o pescoço quase às mordidelas, com o vento do mar que chegava aos salpicos com o seu ruído marinho, que pode ser pacificador e ao mesmo tempo ensurdecedor, contou-me uma história verdadeira e explicou-ma. Disse-me: «Sabes, o meu avô materno, de quem eu quase não me recordo, porque morreu era eu ainda muito pequeno, parece que era um homem muito parecido comigo no aspecto e no carácter. Não te podes lembrar de como eram aqueles tempos, do ponto de vista médico, pois nunca tiveste médicos na família. Naquela época, quando as pessoas se sentiam mal metiam-se na cama, nem sempre iam ao hospital. O meu avô teve um enfarte e o meu pai, que era médico, man­dou-o para a cama e prescreveu-lhe apenas repouso. A minha mãe tomava conta dele e fazia-lhe companhia, comigo ao colo. Uma tarde, ele disse-lhe: «Tina, está um lindo dia, leva o menino até ao Pincio.» A minha mãe disse que não queria deixá-lo sozi­nho, mas ele tranquilizou-a, assegurando que se sentia realmente melhor, que podíamos ir descansados. Fomos ao Pincio e quando voltámos o avô tinha morrido. Não calculas durante quantos anos a minha mãe se sentiu culpada pela sua morte, até que eu me tornei adulto e lho expliquei. Quisera que fosse assim por causa de mim, que era pequeno, se não me podia poupar a encontrar um morto em casa, poupara-me pelo menos a visão de como, no fim, se morre nesta vida. Fora sabedoria. De facto, quando regressei a casa fiquei a brincar com uma bola na entrada, e a minha mãe fechou a porta do quarto do avô à chave, e eu, que era pequeno de mais para aquelas coisas más, soube apenas que tinha morrido, mas só assim, como se pode saber qualquer coisa naquela idade. O meu avô tinha um grande amigo, um certo Peppe. Eram tão amigos que na vida deles não houve um único dia em que não se tivessem visto. Um pouco depois de o meu avô ter morrido, Peppe foi lá a casa falar com a avó. «Quero uma recordação do meu grande amigo», disse-lhe, «mas como nós gostávamos tanto um do outro e nos víamos todos os dias, quero uma coisa que ele usasse sempre.» A minha avó disse­-lhe: «Leva o que quiseres», ao que ele respondeu: «Sendo assim, levo a sua gilete, porque ele pegava nela todos os dias, tal como todos os dias me via a mim.» Na época, quando o meu avô mor­reu, Peppe tinha sessenta e cinco anos. Viveu ainda muitos anos dum modo incrível, ultrapassou os cem anos e com um andar cheio de saúde... Caminhava direito sem bengala, lia o jornal, comia e digeria tudo. Só quando o encontrava na rua e o cha­mava de longe é que tinha de ir ter com ele e pegar-lhe num braço. Quando finalmente me via na sua frente, desculpava-se: «Lamento», dizia. «Já não tenho o ouvido tão apurado como nou­tros tempos.» Morreu numa noite em que lhe entraram ladrões em casa. Drogaram-no demasiado e por isso morreu, aos 106 anos. Olha, quis contar-te isto para te dizer uma coisa, como médico, que apesar de não estar muito divulgada está provada cientifica­mente. Ouve bem, a morte não é algo que chega e nos leva embora, a morte tem a sua cortesia, gosta de nos conhecer, enfim, ainda que não nos apercebamos dela, a morte visita-nos bastan­tes vezes durante a nossa vida. Bom, às vezes pode suceder que a morte se sinta atraída, que ache alguém muito simpático, que quase se apaixone por essa pessoa. Em suma, gosta muito de ficar ali na sua companhia, a falar e a estar junto dela. Pode acontecer que, no fim, se esqueça de levá-la embora. Ouve, passa-se um determinado limiar e depois já não se morre, ou torna-se uma casualidade, como foi com o Peppe. Não contes por aí esta histó­ria, tomam-te por louca, mas nós, médicos, sabemo-lo bem. É certo que alguns de nós a refutam, mas são apenas os imbecis. Está cien­tificamente provado, passas aquele limiar e já não morres. E agora acredita em mim, por favor acredita em mim sem quereres provas, é isto que nos espera a nós. Eu sei. É assim. Uma vez terminados os protocolos, todos os deveres e os compromissos assumidos nesta primeira parte da vida, nesta ninharia de tempo, uma vez acabado tudo e tendo o cuidado de nada renovar, eu e tu seremos livres de estarmos juntos nessa vida que não acaba, e continuaremos infini­tamente, e será um continuar completamente em harmonia. Porque isso, Lulu, foste tu que mo ensinaste, na vida não deve haver senão harmonia. E nós dois, agora, por ela esperamos.

Apertei-o contra mim com força e beijei-lhe o peito. Disse­-lhe: «É bonito, mas seja como for entristece-me um pouco.»«E porquê?», perguntou-me. «Porque com certeza será como dizes tu, mas, por outro lado, a juventude terá terminado.» «Lulu, estás a brincar, não estás? O quê, não te apercebeste mesmo de nada?» «Do quê?» «Ouve, não te apercebeste hájá algum tempo, digamos, desde que te beijo e te acaricio, da bonita pele com que ficaste, e do corpo elástico, e das belas coxas firmes, e das costas lisas, de cima a baixo, e do pescoço juvenil, e do ventre liso e musculoso, não te apercebeste de que estás a melhorar fisicamente?» «Sim, é verdade, mas pensava que fosse por causa do desporto, de certas vitaminas que compro na ervanária.» «Pois sim, o desporto, as vitaminas!» «Não, linda, sou eu que te preparo, sou eu que te amasso, Lulu.» Desapertei-lhe a camisa e apoiei uma bochecha ao peito dele, enquanto com a mão esquerda lhe acariciava as costas. «E de ti?», disse-lhe. «De ti trato eu?» Começou a rir e agar­rou-me no queixo com os dedos da mão direita e levantou­-o, levando-o à altura da sua boca, e depois, com a língua, lam­beu-me os lábios como se para me pôr um novo batom. «Sim», disse-me. «De mim tratas tu.»

Sinto um grande receio. Em suma, o que devo fazer, devo escre­ver-lhe ou não, de Babilónia? E poder-se-á enviar uma carta, de Babilónia? E no caso de não se poder, a quem devo pedir para abrir uma excepção? Se queres que haja, haverá. Esperemos bem que sim, tenho de começar a fazer uma lista de coisas que espero que haja... Não posso esquecer-me de nada. Enquanto sinto este medo vem-me à memória o título de uma antologia de poesias, talvez o título mais bonito que alguma vez se deu a uma antologia de poesias: Cada coisa a cada coisa disse adeus. Abro o Atlas de Geografia, quero ver o que existe hoje no lugar de Babilónia. Portanto, ora vejamos, ficava na margem do Eufrates... sim, claro, actualmente é o Iraque. Que estupidez, hoje, no lugar de Babilónia, estão as ruínas de Babilónia, entre as cidades de Carbala e Bagdade. O Iraque. Capital do país: Bagdade, cidade com 3 845000 habitan­tes, república presidencial, divisão administrativa em dezoito pro­vincias; superfície: 348 317 km2; densidade de habitantes por km2: 45; primeira língua: árabe; segunda língua: curdo; religião: muçulmana sunita 50% e xiita 45%; esperança de vida: 66 anos para os homens, 68 para as mulheres. Eu tenho 38. Se tudo me correr bem, vou viver mais trinta anos no Iraque. Pois, mas quem me diz o que é o Iraque? Se quiseres que haja, haverá.

Ri. Não sinto vontade nenhuma de rir. Estou muito preocu­pada. E apavorada. Sim, começo a sentir muito medo. Vou para lá com o meu filho que tem sete anos, que vai embora comigo ignorando tudo, que nunca mais voltará a ver a escola, os seus colegas, o Parque dos Cipiões, a poucos minutos de casa a pé, a loja dos brinquedos no passeio em frente, a pizza simples do padeiro da Praça Tuscolo, o quiosque que vende os carrinhos Burago. São oito da noite, faltam apenas doze horas. Se telefo­nasse de novo ao dentista encontrá-lo-ia seguramente ainda no consultório. Sinto uma grande vontade de lhe telefonar e de lhe dizer: «Adeus, tenho de me ir embora para sempre. Fica tu aqui a fazer de highlande]».

       Ponho a cozinhar a carne que descongelei. Assim que ouve ruído na cozinha, o meu filho pergunta-me se também podemos jantar no terraço. Digo-lhe que não, que se levantou muito vento, que com certeza ficaria com tosse e seria mesmo uma pena, visto que vamos de férias amanhã. A palavra férias abafa-se-me na garganta, pronuncio-a mal e ele desata a rir por causa do modo como o faço. Eu, ao invés, apetece-me chorar. Quase, quase decido já não partir. Disseram-me que tenho quarenta e oito horas antes de ser descoberta pela polícia. Bom, restam-me cerca de trinta e seis horas. Podia voltar ao atelier do meu marido, pegar na sua agenda, procurar os endereços de todas as anãs e passar as horas que me restam a matá-las uma a uma. Quem decidiu que eu deveria parar? Quem foi que o disse? Não seria igualmente justo e bom matá-las todas? Porquê aquelas duas e as outras não? Simples, para dizer com franqueza. Porque não se pode ter tudo. Porque a perfeição não é deste mundo. Porque, por essa razão, vou embora sabe-se lá para que outro mundo. Pego no desenho do meu filho. Disse-me que não havia nada para explicar, que os monstros que comem os monstros que comem os monstros estavam todos mortos. Olho para ele enquanto vê tele­visão. O que queria dizer? O que quer dizer que estão todos mor­tos? Todos, quem? Nós dois também? Seremos, por acaso, tam­bém nós monstros que comeram monstros que comeram monstros que comeram monstros?

Digo-lhe que está pronto, que é hora de desligar aquela tele­visão. Sentamo-nos à mesa. Não pus a toalha de tecido, come­mos na toalha de tela impermeável vermelha, cheia de cortes e manchas de pincel. Diz-me que esta noite não estamos elegantes. Não, não estamos. Para beber não há vinho, nem água mineral, nem sumos de fruta. Bebemos água da torneira e o pão ficou bas­tante pegajoso. Mas, estranhamente, ele come sem fazer fita, mastiga de forma distraída e deglute. Está sentado torto e bate com um pé contra a perna da mesa.

- O que há a seguir? - pergunta-me.

- A seguir não há mais nada - respondo-lhe.

       Estamos ambos cansados. Levanto a mesa mas não lavo os pratos. Com o escuro, o pátio do quartel dos polícias acende as suas luzes douradas e Lucky ladra aos namoricos dos gatos. Digo ao meu filho que são horas de ir lavar os dentes. Chega ao quarto de banho com a coroa na cabeça, os calções sujos por ter brin­cado no chão, as plantas dos pés pretas. Digo-lhe que esta noite não lhe lavo os pés, por uma vez poderá sujar os lençóis. Diz-me: «Não estamos muito contentes por partir, pois não, mamã?» Respondo-lhe que partir é como outra coisa qualquer, que pode ir para a cama. Sem pijama? Claro que sim, sem pijama.

Há muito que não estava assim cansada. Faço as contas das coisas feitas. Estranho era se não estivesse cansada. Convenci o meu filho a tirar a coroa para dormir. Nenhum rei dorme com ela. Não me pediu para lhe contar uma história, perguntou-me se conhecia uma boa anedota. Não, nada, ou talvez sim, mas não me vem nem uma à lembrança. Diz: «Que pena!» Eu respondo­-lhe: «Pensa numa que já conheças e ri dessa.» Mas dá duas ou três voltas, naquelas estranhas convulsões infantis de esgota­mento, e adormece.

Quem dorme vai para outro lugar, e quem está ao seu lado fica sozinho. Aqueles três corpos mortos que deixei no atelier estarão ainda na sua idêntica e última posição. Último movi­mento em vida e depois caímos no chão, mortos, para jazer assim até que nos levem dali. Quanto sangue deles se terá coagulado? Adeus chape-chape. Ponho o relógio para despertar e apago a luz. Até que ponto será plausível que haja luar sem que se vislumbre uma estrela? Estou muito cansada, tudo me cansa. Até a minha respiração. Sinto-a e não sinto. Dentro da cabeça ouço um grito. Após esse grito, sei que geralmente adormeço.

 

O despertador tocou às sete. Dormi um sono ininterrupto e sem sonhos. Deixo que o meu filho durma ainda alguns minutos. Qual quê, acorda.

- Mamã, tenho os pés sujos. - Eu sei, agora lavo-te todo. - Tomamos duche juntos?

- Claro que sim, despachamo-nos mais depressa.

Tomamos o pequeno-almoço com os roupões vestidos. Pare­cemos normais, nós os dois de todos os dias. Um pouco de leite, algumas bolachas. Lá fora está sol. Dou a volta a todas as jane­las da casa, como enquanto caminho. Quero ver pela última vez o que vi durante anos das minhas janelas. A esquadra da polícia da sala de estar, da cozinha, do quarto de banho e do quarto do meu filho. Prédios de oito e dez andares do terracinho do escri­tório e da janela do meu quarto. Virar a cabeça enquanto estou sentada à escrivaninha e saber que verei o abaulamento da terceira varanda da casa cor-de-rosa. Enfim, nada de especial. Contudo, coisas conhecidas, coisas há muito sabidas. Cada coisa a cada coisa disse adeus.

Vestimo-nos apressados. «Quem sabe onde iremos dormir esta noite», diz-me o meu filho. «Pois, quem sabe.» Pensamento que sempre me agradou antes de todas as viagens, mas desta vez não tanto. Pensar em como será o hotel, ou a casa alugada sem a ter visto. Adeus férias em Barisardo, adeus extensa praia cheia de pedras em forma de coração, adeus braçadas. Amanhã, um belo mergulho no Eufrates!

O dentista a esta hora já deve estar acordado, já estão todos em movimento naquela casa. Ele, a mulher, os filhos. «Sê feliz», digo-lhe em pensamento. «Ri-te tu.»

«Está na hora», digo ao meu filho. Mas digo-lho num tom que o assusta. A coroa cai-lhe da cabeça. «Mamã, queria tanto levá­-la comigo», disse. «Não, querido, não podemos, temos de estar leves, percebes? Levar pouca coisa. Olha, pomos a coroa e o elmo em cima da mesa de jantar, um diante do outro. Farão compa­nhia um ao outro enquanto estivermos fora.»

Vamos embora deste modo, deixando uma casa onde há uma coroa e um elmo. Fechamos a porta e chamamos o elevador. São oito em ponto. O táxi está lá fora à nossa espera, com o motor ligado. Abro a porta. Deixo entrar primeiro o meu filho. A seguir entro eu e fecho a porta. Ao volante está uma mulher com um cigarro na mão, sujo de batom. Olho só para isso. Depois, a mulher volta-se.

- Aeroporto de Urbe, certo? - pergunta-me. - A senhora?

- Porquê, de quem estava à espera?

- Portanto, a senhora também...

- Estou morta e sou da seita, obviamente. Então, tinha-lhe ou não lhe tinha dito que se sairia de forma brilhante? Foi muito corajosa. Claro, foi preciso o seu tempo, não foi rápido, podia não ter levado tantos anos, porém correu bem, não lhe parece? E este       rapazote? Cresceu. Olá, lindo, lembras-te de mim?

- Não.

- Não acredito. Incomoda-te se fumar?

- Não, a mamã também fuma de vez em quando.

- A mamã também quer um?

- Não, obrigada, nunca fumo a esta hora.

- Sorte a sua, eu fumo a todas as horas. Bom, vamos, que há mujto trânsito. Quando vinha para aqui apanhei bastante.

- De onde vem?

- Eeeh... de onde venho...

Meteu a primeira e arrancou, galharda. Percebe-se logo que tem uma condução nervosa, trava no último minuto, buzina ao primeiro abrandamento, vai ora para a direita ora para a esquerda, procurando sempre espaços por onde se enfiar. Da minha casa a San Giovanni já se exibiu em todas as suas especialidades. E enquanto guia tem o cigarro na boca, mas continua tranquila­mente a aspirar e a expirar o fumo, com uma expressão que se assemelha à de Jack Palance. Está vestida exactamente como quando a vi pela primeira vez, há tantos anos, a mesma vulgari­dade exibida com ostentação. Mas agora não a acho antipática, agora gosto dela.

- Portanto, a senhora foi a primeira - digo-lhe.

- A primeira a quê?

- A primeira a falar comigo.

- Sim, mandaram-me a mim.

- Têm um nome? São escolhidos segundo que critério?

- Somos os mensageiros e somos escolhidos conforme a dispo­

nibilidade. Um pouco como os radiotáxis, leva-se em linha de conta a proximidade. Naquele dia, quando a senhora estava sentada no café com o seu filho, eu estava a dar uma volta de reconhecimento na zona. Calhei-lhe eu. Não lhe agradou muito, pois não?

- Não, nada.

- Rapazote, tens mesmo a certeza de que não te recordas de mim?

- Recordo-me só um bocadinho - respondeu-lhe o meu filho. - Ah, bem me queria parecer! És um belo tipo, tu, vais dei­xar marcas.

- Boas ou más? - pergunto eu.

- Muito boas. A senhora tem um filho formidável, sabe?

- Claro.

- Não, a senhora ainda não o sabe. Mas sabê-lo-á, em breve se aperceberá disso sozinha.

- Sabe para onde vamos? - perguntou-lhe o meu filho.

- Diz-mo tu.

- Vamos de férias para Babilónia. Já lá estiveste?

- Eu não, mas disseram-me que é um lugar muito bonito. Verás como te divertirás lá.

- Sim, mas não pude trazer a coroa.

- Porquê, já és um rei?

- Claro que sim.

- Não digas mentiras. Na tua idade, e bonito como és, podes ser apenas um principezinho.

- Não, sou mesmo um rei.

- Está bem, sê-lo-ás em breve. Sê-lo-ás, apesar de não teres podido trazer a coroa. Encontrarás outra em Babilónia. Não sabias? Babilónia está repleta de coroas, encontram-se a cada      esquina de rua.

- Pois sim, pensas que estou a dormir?

- Bom, se tens sono está à vontade.

Na tangencial, o trânsito abranda. A mulher abre o vidro para deixar sair o fumo. É muito velho este táxi que nos leva, tem um motor que tange como um bater de sucata, especialmente quando estamos parados. Deve ser um Fiat 128. Encanta-me principal­mente o odor que está cá dentro, uma coisa forte, concentrada, como se alguém tivesse ido a um sucateiro comprar o cheiro de todos os resíduos bélicos e os tivesse colocado aqui dentro. Aspiro com força este grande cheirete a mundo humano, assi­milo-o com gosto, como se fosse o concentrado de um medica­mento de efeitos formidáveis. Um Fiat 128 anti-radicais livres. Inalo a sua vitalidade.

- Faz bem em fazê-lo - diz a mulher. - É um verdadeiro bál­samo. Diga ao seu filho para respirar também a plenos pulmões.

As casas que ladeiam a tangencial parecem muitos rostos de desenhos animados após a explosão de um cartucho de dinamite. E as janelas estão quase todas fechadas. Quem sabe que ar se res­pira dentro dessas casas e que cores terá a roupa que estendem, que raio de depósito cinzento indelével. Só lençóis coloridos, com certeza. Um vermelho-acinzentado, um amarelo-acinzentado, um azul-acinzentado. A mulher deitou fora a ponta do cigarro e acen­deu outro. Tem uma tosse forte, de fumadora destemida.

- E que medo quer que eu tenha agora?

       Sobre o vidro aberto apoiou um cotovelo ossudo e cheio de pregas. Tem uma cor diferente do resto da pele, aquele cotovelo, uma espécie de calosidade escura. Carência de vitaminas, alimen­tação errada. Nunca nada fresco, só sanduíches. Vejo isso mesmo. Tira uma de um saco de papel.

- São servidos?

       Põe-se a comer avidamente, em grandes dentadas que lhe deixam, à volta dos lábios, amplas tiras de maionese com má cor, quase esverdeadas.

- Não se arme em defensora extremista da saúde. Tinha-a aqui há algum tempo, o que devia fazer, deitava-a fora? É muito boa, embora tenha má cor.

Três dentadas e a sanduíche desapareceu. Abandonamos a tangencial, viramos na saída que diz Salaria. Olho e não penso. Não me apetece pensar que é a última vez que vejo tudo isto para que estou a olhar. Há uma certa imbecilidade nestes raciocínios, já fiz demasiados. Estamos a caminho, o táxi anda, eu de dentro do táxi vejo coisas. Não há mais nada a dizer. Está um dia bonito, isso sim, de céu descoberto e limpo, da cor do Danúbio. Este é um raciocínio que se pode fazer, quero chegar ao aeroporto assim, com pensamentos neutros que não fazem mal.

- Deixe a sua cabeça ir para onde quiser - diz-me a mulher.

- Está a brincar? É melhor manter a minha cabeça quieta. Tem noção do que me aconteceu?

- E não está contente? Tem ideia de quantas pessoas quere­riam estar no seu lugar? É uma pena se não se apercebe disso. Nem quero pensar nisso. Significaria que nos esforçámos tanto para nada. Percebeu, ou não, que raça de organização está por detrás de tudo isto?

- Não, não percebi. Eu sou uma pessoa, uma mulher de trinta e oito anos, tenho uma relação difícil com a realidade, não dis­tingo o acaso da necessidade. Vi as coisas a acontecer, tentei fazer parte delas, nada mais fiz a não ser repetir a mim mesma que a realidade é acontecimento. Porém, há acontecimentos e acontecimentos, há os lógicos e os absurdos.

- Está tudo em ordem. Os acontecimentos foram normais. Queria justiça, não era? Sempre defendeu a ideia de que os maus devem ser castigados, estou certa? Bom, agora não chateie.      Procure não ser demasiado chata. Faça um esforço.

- Quer que esteja calada?

- Não seria má ideia. Aliás, dou-lhe um conselho melhor, pense intensamente nas coisas que ainda deseja. Faça uma lista completa.

- Posso obter tudo o que quero?

- E quem o pode garantir?

- O que é, é o Eldorado?

- Sei lá.

O táxi corre pela Rua Salaria e as árvores que a ladeiam são altas. Vejo as mãos da mulher no volante, o seu olhar voltado para a estrada através do espelho retrovisor, as unhas daquelas mãos feias, com o verniz estalado e as pontas dos dedos amare­lecidas pela nicotina. Respiro os imensos maus cheiros que im­pregnam estes bancos e os tapetes de borracha. O meu filho estácalmo. Também eu, aparentemente, estou. Os seus cabelos lou­ros esvoaçam ao vento, parecem um campo de trigo. Quem sabe por que faço uma comparação tão óbvia. O que devo fazer, can­tarolar?

- Se isso lhe dá prazer, pode fazê-lo.

       - Era o que faltava. Olhe, pôr-me-ia a cantar uma canção que não me agrada, sei lá, só pela última ideia que me ocorreu.

       - Talvez goste dela, se a cantar agora. Se a quiser ouvir, ligo o rádio. Se quiser, deixo-a ouvi-la cantada por si.

       - Porquê, gravei um disco?

       - Se o pôs na lista, existem grandes probabilidades de o ter feito.

- Falta muito?

- O que foi, ficou cega de repente?

Vejo muito bem o velho letreiro: Aeroporto de Urbe. O táxi faz um pisca barulhento, vira e entra. Seguimos tranquilamente, é um lugar cheio de militares e de operários com fardas de traba­lho amarelo-fosforescente. Ninguém parece aperceber-se de nós, ou parece que a nossa presença aqui é a coisa mais normal do mundo. Um operário troca um sinal de entendimento com a mulher.

- Vem aqui muitas vezes? - pergunto-lhe. - Não, nunca cá venho.

- Dar-me-ia um cigarro agora?

- Faça favor.

Estende-me um maço estranho. É uma caixa rígida e rectan­gular que se abre como uma cigarreira. A única palavra que con­sigo entender é Santé, que deve ser o nome da marca, tudo o resto está numa língua que não conheço. A caixa é vermelha, atravessada por uma risca dourada, e no centro da risca está o desenho do rosto de uma mulher loura, que tem o pescoço ligeiramente inclinado para a direita, como se se alongasse, para olhar a cara de quem abre o maço. É uma bela imagem feminina dos anos sessenta, daquelas que aqui se encontram ainda nas cai­xas dos cubos de caldos. Mas esta é uma mulher sensual, tem os olhos muito maquilhados e os lábios pintados de vermelho. Dentro do maço encontro também o isqueiro. Acendo o cigarro e aspiro a primeira vez sem pensar, como se se tratasse de um cigarro qualquer. E afinal fico sem fôlego, é mais forte que um charuto. Começo a tossir como se fosse vomitar, saltam-me os olhos das órbitas. A mulher ri.

- Onde compra esta porcaria? - pergunto-lhe assim que volto a respirar.

- São gregos.

- Vai até lá para comprar os cigarros?

- Só gosto destes. Sempre fumei esta marca. Se quer um con­selho, não o deite fora, dê outra passa e verá que corre muito melhor.

Aspiro de novo, desta vez com mais cautela. É verdade, afi­nal não é tão forte, tem um bom sabor, muito aromático, quase licoroso. À terceira passa fumo-o como outro cigarro qualquer. Divirto-me ainda a fazer círculos de fumo em direcção ao meu filho, que em cada círculo enfia um dedo. «Não podias fazer um que não se desfaça?», pergunta-me. Respondo-lhe que o fumo é feito de nada. Ele sopra e a mulher ri, mostrando uma dentadura estragada.

- Se quiser arranjar os dentes, posso mandá-la a um dentista meu amigo - digo-lhe.

       - Não vou a dentistas.

- Mas vá a este, diga que vai da minha parte e verá que a põe como nova. Vai dar-se muito bem. Se for, não se esqueça de lhe dar os meus cumprimentos e de lhe dizer que assim que puder lhe darei notícias minhas, e que não se preocupe...

- Não quer mais nada? Acabei de lhe dizer que não vou a dentistas.

- Não iria sequer para me fazer o favor?

- Por que não desfruta do cigarro em paz?

- Sim, talvez seja melhor. São bons, sabe? Acha que os pode­rei encontrar em Babilónia?

- Se quiser que...

- Sim, sim, percebi, se quiser que haja, haverá.

- Muito bem. Ponha-os na lista.

Entramos na pista de descolagem. A mulher acelera e o táxi põe-se a correr como um maluco, a vibrar em todas as suas peças, que se mantêm unidas por milagre. Pelo espelho retrovisor vejo que sente um grande prazer em correr desta maneira. O conta­-quilómetros marca 120, mas pelo barulho que ouço poderia ser o dobro. Percebi o que lhe passou pela cabeça, deu-lhe uma grande vontade de descolar, está a tentar fazê-lo com o táxi.

- Se quisesse, podia fazê-lo - disse-me.

- Não tenho dúvidas.

- Não o faço porque hoje não está no contrato.

- Claro.

- O que é, está a fazer pouco? Eh, está a ouvir-me?

- Ouça antes você, não me diga que o nosso avião é aquele lá ao fundo?

- Claro.

- É muito pequeno!

- Vocês são só três.

- Mas tem de chegar a Babilónia!

- Esteja tranquila.

À medida que nos aproximamos, o avião não aumenta de dimensões. É antigo, não sei de que ano, não sou entendida nisso, mas não tem ar de ser de confiança. O táxi pára a poucos metros, silenciado pelo barulho do motor do avião. Ficamos os três em silêncio, a olhar para ele. A mulher acende outro cigarro. Tem as mãos decrépitas e os cabelos, de tantas descolorações, parecem estopa. Sob a luz do Sol têm reflexos esverdeados, como a maio­nese da sanduíche.

- Deixo-vos aqui - diz-me.

- Imagino que não tenho de pagar a viagem.

- Imagina bem.

- Sabe o que pensei durante todo o percurso?

- Diga-me.

- Pensei que sou louca. A senhora, o que acha?

- Eu acho que está bem.

- Bem, como?

- Muito singular.

- Não estou a perceber.

- Não faz mal.

- Ouça, deixava-me dois cigarros?

- Dou-lhe um maço.

- Não vai ficar sem eles para si, pois não?

- Eu tenho um carregamento que você nem imagina. Vá, agora vão-se embora.

Saímos do táxi e somos arrastados pelo vento. O meu filho olha para o avião e ri-se, tapa os ouvidos. A mulher debruça-se do vidro do carro e passa-lhe bruscamente uma mão pelos cabe­los. Ele nem sequer se dá conta. Saltita.

- Ouça - digo-lhe. - Posso perguntar-lhe uma última coisa?

- Pergunte.

- Qual era a sua profissão anterior?

- Era puta. Porquê, não se vê?

Afastamo-nos, mas volto-me mais uma vez para olhá-la.

Fuma. Depois vejo-a pôr o cigarro na boca, segurar o volante com ambas as mãos, torcê-lo, virar o táxi na pista. Noto que a matrí­cula é PT e dá-me vontade de rir. É uma velha história de quando era miúda. Quando alguém tinha um carro com a matrícula de Pistoia, na brincadeira dizia-se que era dos Poste e Telegrafi [3].

O avião tem uma escadinha de poucos degraus titubeantes. Deixo subir primeiro o meu filho, resguardando-o do vento. Quando chega lá a cima, o piloto-aviador dá-lhe as boas-vindas.

- Finalmente voltamos a ver-nos, jovem - disse-lhe.

- Olá, Tó - responde-lhe o meu filho.

- Vejo com agrado que continuas louro e que ainda és uma criança.

- Era uma promessa, não era?

- Bom, nem todos as mantêm.

- Vocês os dois conhecem-se? - pergunto, sem saber a quem me dirigir.

- Amigos de velha data - responde-me o piloto-aviador. - Bem-vindos a bordo do Berguet 14. Um avião-correio de todo o respeito: motor de trezentos cavalos, hélice de madeira, car­linga aberta, nada de rádio, nada de suspensões, nada de travões nem de instrumentos credíveis.

 

[3] Poste e TeJegrafi: Correios e Telégrafos. (N. da. T.)

 

- Uma maravilha!

- Bem pode dizê-lo, nada melhor do que um Berguet 14. Tem uma alma própria, sabe? Lembre-se de que um avião nunca é um conjunto de parâmetros, é um organismo do qual se sente o pulsar.

       - Tem razão, mamã - diz o meu filho. - Além disso, ele é um fenómeno com os aviões, se se avariam ele arranja-os num minuto.

       - Não exageres, jovem, um minuto é um minuto até para mim. Está bem que eu não ligo muito ao tempo, mas...

- Não me diga que você é...

- Em pessoa. Porquê, não me tinha reconhecido?

- Não, imaginava-o menos alto, menos forte.

- E afinal sou um homenzarrão que fala de homenzinhos, de desenhos, de céus nocturnos... A noite é o meu forte. Gosta da noite?

- Tó, desenhas-me uma ovelha? - pede-lhe o meu filho.

       - Depois, agora estou a falar com a tua mãe. Quantas vezes tenho de te dizer que não se interrompe os adultos quando estão a falar?

- Tó, enlouqueceste?

       - Pois, devo ter ficado um pouco maluco. Vá, pega nesse bocado de papel. Mas não te garanto nada, entendeste? Faço-te uma ovelha às três pancadas. Portanto, como estávamos a dizer, você gosta da noite?

- Depende.

- Não gosta da exploração do escuro? Olhe que você sonha muito vezes com o escuro.

- Sim, sim - diz o meu filho.

- Ouçam - digo eu. - Vocês os dois conhecem-se bem, tive­ram juntos uma bela experiência, enfim, são amigos. Como é que     você diz, senhor Tó?

- Digo que nos familiarizámos.

- Pois é, familiarizaram-se. Eu, pelo contrário, só li os seus livros...

- Gostou?

- Obviamente. Mas agora compreenderá a minha situação: encontro-me consigo neste pequeno aeroplano que me parece uma carripana e ainda por cima está aqui o meu filho, e um barulho infernal, e a carlinga aberta, que não esperava de todo, porque, desculpe, mas até Babilónia bem se pode apanhar uma bronco­pneumonia. Ponha-se no meu lugar, está-me a dar um medo infer­nal. Temos de descolar e você pergunta-me se eu gosto da noite. O que quer que eu perceba neste momento?

- É sempre assim tão nervosa?

       - Você não sabe pelo que passei nos últimos dias, aliás, sabê­-lo-á, com certeza, porque vocês, os defuntos pertencentes à seita, sabem tudo sobre a minha vida. Mas não, não sou sempre assim tão nervosa. Posso saber daqui a quanto tempo levantamos voo?

- Esteja tranquila, por favor. Eu de mim já sou um tipo dis­traído, se você me transmite toda a sua agitação acabo por par­tir antes das ordens da torre de controlo.

- Que torre de controlo?

       - A torre, senhora, a que decide quando um avião deve par­tir. Temos ainda alguns minutos. Usemo-los para nos conhecer­mos um pouco, o que acha?

- Por mim...

- Faço-lhe apenas uma perguntinha, digamos, uma... talvez até duas. Gosta de Robinson Crusoe?

- Mamã, vê lá como respondes.

- Robinson Crusoe... não, parece-me que não.

- Graças a Deus! O livro de um imbecil. Imagine que aquele escritor, nem sequer o nomeio, afirmava que oferecer uma trama recorrendo à invenção é um pecado mortal, uma mentira que faz mal ao coração e que abre caminho ao hábito de dizer mentiras. Vejam só, um livro que aconselha a desenvolver o sentido da realidade. Como se ela não existisse já em demasia. Raio de idiota! - Sim, e além disso estava cheio de pormenores inúteis.

       - Tem muita razão. Ouça, faça-me um favor, apenas simbo­licamente. Finja pegar naquele livro e atire-o para fora do meu avião. Faça-o dar um grande e belo salto.

- Não seria melhor fazê-lo quando estivéssemos a voar?

- Nem pensar. Descolar com aquele livro podia dar azar. Espero que você seja supersticiosa.

- Se sou!...

- Muito bem. Então, força, do que está à espera? Deite fora aquele tédio mortal.

- Agora?

- Quando eu disser três. Um, dois... três!

- Já está.

- Sente como já se respira melhor? Tu como estás a respirar, rapaz?

- Bem. Mas a ovelha está torta.

- Ficas com ela assim como eu a fiz. Eu gosto muito. - Depois, vira-se para mim: - E o que me diz do Rousseau?

- Oh, ouça, não me faça enlouquecer. O que quer que lhe diga? Eu gostava bastante de Rousseau, era um pouco bazófio mas gostava dele. Falava de justiça, de sinceridade. São as pou­cas coisas que me comovem. E, olhe, digo-lhe mais, por Rousseau sou capaz de descer do seu avião. Sabia que ele foi o ídolo da adolescência de Tolstoi? E não me toque em Tolstoi, entendido? Sobre Tolstoi não quero ouvir sequer uma palavra, com aquela frasezinha que repetia de vez em quando... Enche-me a boca quase todos os dias, ouça quanto é bonita: Nunca somos suficiente­       mente honestos. O que lhe parece?

- Muito bonita. Nunca a ouvira.

- Sim, é bonita. Tinha determinado um objectivozinho de nada, hem? Agora faço-lhe eu uma pergunta. Pegue no Nietzsche e ponha-o ao lado de Tolstoi. O que acontece?

- O Nietzsche desaparece.

- Exacto. Podemos partir agora? Parece-me ouvir uma ordem vinda da torre de controlo. Não ouve nada?

       - Claro que ouço. Todos aos seus lugares, então. Apertar os cintos de segurança, pôr o capacete e os óculos. Concentrados. - Para que serve a concentração?

- Rapazote, diz-lhe tu, vejamos se te lembras.

- Para manter o avião no ar - responde-me o meu filho. – Os aviões não se mantêm no ar sozinhos.

       As rotações do motor do avião aceleram, ribombando, às vezes parecem falhar. Prefiro fechar os olhos e entregar-me aos sentidos. Decido que ficarei assim até estarmos em pleno céu. Estou a vibrar por dentro, é sobretudo o coração que vibra. Já me aconteceu em outras ocasiões, mas agora é mais forte. Os outros músculos também vibram, especialmente os abdominais. Sinto o latejar. Estamos a andar, apenas a andar. Depois aumenta a velo­cidade, uma velocidade de carro desportivo, com o vento todo a arrepiar-nos a pele. Penso que procurei continuamente entender­-me com o mundo, sem nunca o conseguir. Penso que nascemos sempre fora do mundo em que depois seremos obrigados a viver. Penso que para desafiar o mundo é necessário não o compreen­der. Pergunto-me se tenho uma religião e respondo que tenho, que a minha religião é a cavalaria, e que muitas vezes me parece que sou uma versão mais grotesca e patética de Cristo na cruz, vestido de cruzado. Digo a mim própria que a vida é um trânsito e que a sua verdadeira realização será no Além. Estamos a correr à rédea solta pela pista. A realidade é acontecimento, um contí­nuo correr, mesmo quando parece que estamos parados, na rea­lidade estamos em movimento. Sinto-me muito preocupada, jáme vejo náufraga sabe-se lá onde, ainda nem sequer deixámos o chão e já me vejo caída. Sinto o avião a precipitar-se em para­fuso, o grande zumbido de enorme moscardo atingido por insec­ticida. Toco os ombros do meu filho, aperto-os. Será a mesma coisa se pensar em segurá-lo a ele em vez do avião? Não sei se o meu filho está a ver o que está a acontecer, não posso saber, pois decidi ficar de olhos fechados. Nem sequer posso falar com ele, porque com todo este barulho não me ouviria, e além do mais é melhor não arranjar confusões, este piloto-aviador é um tipo notoriamente distraído, teve muitos acidentes, só faltava que jus­tamente eu o distraísse, e logo neste momento tão delicado. É pior a descolagem ou a aterragem? Penso num livro que não li, intitulava-se O Japão e a Glória. Estamos a correr como nunca pensei que esta carripana pudesse fazer. Será também capaz de voar? Sei que, seja no que for que eu estiver a pensar, o piloto­-aviador sabe-o, sei que lhe chega por transmissão telepática. Penso que, numa situação do género, Ricardo Coração de Leão se borraria de medo, Alexandre Magno exigiria um vaticínio aos adivinhos e Lawrence da Arábia morreria de riso. Eu, em vez disso, penso em segurar o meu filho e espero que ele esteja a pen­sar em segurar o avião. Se sairmos vivos desta aventura estamos safos, se assim for então o dentista terá razão: sou um highlan­der. Pena que o seja longe dele, e consciente do facto de ele, por­tanto, também ser um highlander, e de a vida nos ter enganado mais uma vez, tomando-nos inutilmente eternos.

Agora pulamos, damos grandes saltos sobre as rodas saltitan­tes da carripana. Os saltos tornam-se um pouco mais altos e as quedas no chão mais preocupantes. O que pode acontecer? Pode incendiar-se? Aperto a mão do meu filho, a sua mão e a minha são duas tenazezinhas. Viver ou morrer, ser ou não ser. Se subir­mos continuamos a ser, se cairmos deixamos de ser. O piloto­-aviador está-se nas tintas para isso, seja como for, para ele nada muda. Já foi abundantemente devorado pelos peixes em Julho de 1944. Está-se nas tintas para os nossos simulacros de náufrago. Se eu não tiver a boca fechada, enche-se de vento. Prometi não espreitar e não espreito. Eis o salto mais forte, e não o sinto vol­tar ao chão, ou melhor, é um salto prolongado. É o salto. Conto até vinte, se até lá não nos tivermos despedaçado podemos dizer que conseguimos. Agora, a sério, não me distraio, estou concen­trada, seguro-o, como nos exercícios na barra, quando era criança: barriga para dentro, nádegas encolhidas, pernas esticadas, braços alongados. Se ficar assim até Babilónia torno-me de aço. Vinte! Abro os olhos e vejo que estamos no ar. O meu filho ges­ticula com os braços, como num bailado. O piloto-aviador tem    um livro sobre os joelhos e está a ler.

- O que está a fazer? - pergunto-lhe.

- Estou a ler.

- Durante o voo?

- Não só em voo, também na descolagem. É um policial, sabe como são os policiais, não é? Quando se começa a ler já não se consegue parar. Mesmo agora, estou a falar consigo mas conti­nuo a ler. Faltam-me duas páginas para acabar.

- Você é um irresponsável! Tem dois passageiros a bordo, dois passageiros vivos!

- O que pensa, que antes não fazia o mesmo? É um hábito meu: voar escrevendo, voar lendo, voar desenhando. Senão, é um grande tédio. E, para mais, aqui em cima estamos muito inspira­dos. Sabia que foi aqui em cima que tive as melhores ideias para os meus livros?

- Não, não sabia. Sei apenas que me parece um hábito bas­tante perigoso, aliás confirmado pelos factos.

- Que factos?

- Não foi você que desapareceu no nada?

- Sim, mas não foi por distracção minha.

- Então foi porquê?

- Está a brincar, não? Tornei-me uma lenda por causa disso e você queria que lhe revelasse o que aconteceu para contar a todos? Não, senhora, continuo envolto em mistério, gosto mais. Você é muito jovem, não se pode lembrar disso. Não ima­gina os grandes títulos nos jornais! Seja como for, deixemos isso, pense em desfrutar desta viagem. É bonito aqui em cima, não é?

- Sim, porém... nada de rádio, nada de suspensões, nada de travões. Tem ao menos uma bússola?

- Oh, olhe, a bússola é uma grande invenção, mas na reali­dade parece-se com um catavento. Fique descansada, sou a prova evidente de que é possível despenharmo-nos sem nos magoar­ mos. Depende tudo da elasticidade do avião.

- E este como é?

- É do melhor. E depois são outros tempos, não há guerra.

Sabe, naqueles anos os aviadores eram apreciados como as per­dizes, assim que viam um, pum pum!

- Vamos desenhar qualquer coisa? - pergunta o meu filho.

- Está à vontade. Aqui há lápis e algumas folhas de papel.

- Sim, mas tu também tens de desenhar.

- Naturalmente, decidamos o tema e vejamos quem faz o desenho mais bonito. Decide tu.

- Nós os três no avião.

- Aceite.

- Gosta muito do meu filho, não é?

- Claro que gosto, entre bons amigos é assim. Certas experiên­cias, quando as fazemos com alguém - como é que se diz? -, for­talecem. E além do mais, é inútil negá-lo, ao longo da minha vida      só as pedras não foram duras comigo. O seu filho foi uma excepção.

- Que mar é aquele lá em baixo?

- Sei lá.

- Como sei lá? Não sabe onde estamos?

- Olhe que céu azul, olhe que maravilha! Sabe o que parece­mos? Uma canoa em alto mar.

Observo-os a desenhar. Sei que o meu filho será com certeza melhor. Vejo as nucas deles inclinadas sobre as folhas. Posso estar tranquila, afinal, pilotar um avião é completamente dife­rente de guiar um carro, não é preciso estar a olhar para o cami­nho. O ar que me bate na cara é apenas fresco, inodoro. E o mundo lá em baixo, afinal, não está muito longe, voamos a uma altitude que ainda permite ver as coisas. Voamos a uma altitude de aves de rapina e de vez em quando até nos cruzamos com algumas. Não consigo perceber de que lado está o Sol. Vire-me para que lado me virar, parece-me vê-lo. Há algo aqui no ar que deve produzir algumas leves alucinações. Vejo como que tudo junto. Em baixo vejo tanto mar como terra, e em volta vejo mon­tanhas que estão suspensas no céu, e o Sol, e a Lua, e as estrelas também, e de vez em quando outros aviões, levando figuras que me parecem conhecidas, ainda que depois não saiba dizer quem   são. Pessoalmente, não gostaria de matar ninguém.

- Já fiz - disse o meu filho.

- Deixa-me ver. Bonito, és bom. Também gosto do título: O Tó que nos leva de avião para Babilónia. Tu, sim, sabes desenhar.

       - Obrigado, ensinou-me o meu pai. Ele era habilidoso. Deixa­-me ver o teu.

       - Nada de especial. Não estava inspirado. Deitei-o fora. Já não tenho idade para desenhar. Crescer foi um grande e duro exílio.

       - Tó, pode-se dormir uma soneca no avião?

       - Claro que se pode, às vezes até eu durmo. Agacha-te aqui. Olha, até te dou uma almofadinha e uma manta escocesa. Estás bem?

       - Sim, vou dormir uma sesta. Não me deixem dormir muito, hem? Só um bocadinho.

       - Já está. Que maravilha. Dizem que têm sono e adormecem logo.

- Ouça, não está uma serpente neste avião, pois não?     :

- Que serpente?

- Aquela serpente, aquela que já o mordeu uma vez e que o levou consigo. Juro-lhe que se você...

- Calma, senhora, o que lhe está a passar pela cabeça? Por quem me toma, por um tipo que mata crianças? Eu nunca matei ninguém na vida. Além disso, ele é meu amigo, eu estou a levá­-los para um lugar seguro. Dê-lhe um beliscão, se não acredita em mim. Está só a dormir.

- Desculpe, estou tão cansada, não sei o que digo. Você não

sabe nada sobre mim.

- Eu sei tudo sobre si.

- Mesmo aquilo que eu fiz?

- Claro que sei. Estou sempre informado sobre os meus pas­sageiros.

- Preferia que não soubesse. O que eu fiz é muito feio.

- Também é muito feio o que lhe fizeram. Tudo é um pouco feio naquele mundo, é assim. Não lho digo para a consolar, mas também tive uma mulherzinha... pôs-me maluco. Dizia que o ciúme sexual é a forma mais monstruosa de egoísmo. Recordo­-me de uma frase dela como se ma tivesse dito agora: Proibirias a tua mulher de comer e de dormir enquanto estás fora? Está a ver, uma frase deste género, para uma pessoa que estava sempre em viagem. Se não a matei dessa vez... Em vez disso, escrevi-lhe uma oração para dizer por mim. Tem noção? Queria até as suas orações. Devia ser mesmo meio tolo.

- Talvez estivesse apenas muito apaixonado.

- Na minha opinião você estava mais, porque fez aquilo que fez.

- Bem, o meu caso foi um pouco particular. Não se tratava apenas de cornos. Por amor de Deus, foram também aquelas... Aliás, tudo começou desse modo, com cornos normais. E, no entanto, já então havia algo de estranho. Escolhia sempre mulhe­res muito medíocres, era a sua maneira de mortificar o amor que tinha por mim. Eram sempre mulheres prematuramente murchas, queixosas, choramingas, pouco atraentes. Deixava-se rodear por aquele tipo de mulheres. Depois as coisas degeneraram, até que...

- Sim, sim, sei de tudo. Uma coisa hedionda. Não pense nisso. Pelo contrário, sabe o que deve fazer? Deve fazer como eu, que penso muitas vezes nas coisas boas. Sabe como pedi em casa­mento a minha Consuelo? Dando-lhe a cópia dactilografada de um romance meu e assinando-a assim: Seu marido, se a senhora o permitir. Ainda hoje me orgulho muito disso.

- Que romance era?

- Voo Nocturno. Leu-o?

- Claro.

- Contudo, talvez não saiba que, em 1933, Guerlain se inspi­rou nesse meu romance para fazer um perfume. Era bom, sabe, andar pelas ruas de Paris e sentir que muitas mulheres cheiravam a Vol de Nuit. Era um homem muito traído pela mulher, mas mui­tas mulheres tinham a minha marca na pele. Aquele perfume fez­-me sentir um sedutor.

Concentra-se em algo que tem diante de si, comandos, prova­velmente, mas usa-os apenas para apoiar o olhar. Está a pensar na sua vida com pouco distanciamento, vê-se que está a sentir pie­dade de si próprio. O meu filho dorme ao seu lado, com uma madeixa de cabelo louro a sair-lhe do capacete. Nunca me decidi a cortar-lhe os cabelos, chegam-lhe até aos ombros. Tive sempre medo de que, ao cortá-los, eles escurecessem. Desde que nasceu que me convenci de que, se ficasse louro, também seria bondoso. Envergonho-me desta ideia, não a digo a ninguém. Quando estava grávida, pensava que se fosse rapaz queria dizer que o meu pai vol­tava a viver. Morrerajá há dez anos, quando uma noite sonhei com ele. Disse-me: «É um rapaz, mas não sou eu que volto. Contudo, como sei que te fará feliz, será louro, e quando for grande terá um fisico atlético igual ao meu. Tu, é inútil que te apaixones por homens morenos, gostas dos louros porque és infantil. Olha os actores, por exemplo, sempre gostaste dos louros.» Olho para o meu filho a dormir. É louro mas tem os olhos do pai, às vezes até algu­mas das suas inúteis durezas. Passo-lhe uma mão pela testa e depois pego-lhe numa mão, aproximo-a dos meus lábios e beijo-a, imi­tando o gesto cavalheiresco de quando ele mo faz a mim. Tem um dom especial para o beija-mão. Deve tê-lo visto sabe-se lá em que desenhos animados e de vez em quando gosta de o fazer.

- Faz ideia de onde estamos? - pergunto ao piloto-aviador. - Uma vaga ideia.

- E falta muito?

       - Não lhe sei dizer com exactidão quanto falta, mas não se deve preocupar. Eu sou o rei da velocidade. Na prática, sou mais espaço do que tempo.

- O que disse?!

       - Percebeu muito bem. Fiz sempre de tudo para fazer correr o tempo. O tédio foi o pesadelo da minha vida, para fugir ao tédio não resta senão fazer correr o tempo. Tornei-me mestre. Contra o tédio, acredite, só os ponteiros dos minutos.

       - Ouça, você é o rei da velocidade e gosta muito do meu filho, não é?

       - Exacto.

       - Eu ouvi nomeá-lo por mais do que uma pessoa. Com quan­ tas pessoas entrou em contacto antes de me encontrar?

       - Deixe-me ver... é uma grande organização, vê-se muita gente. Não, é difícil dizê-lo, não me recordo.

- Faça um esforço, talvez haja alguém que não seja da seita. - Que palavra feia, digo «organização».

- Enfim, você contactou também alguém que não era da organização, alguém... que ainda está vivo?

- O que salva um homem é o primeiro passo, depois o segundo, o terceiro e por aí adiante. Por que não dá um passo de cada vez? Você está a agitar-se muito, esteja tranquila, o avião está a andar perfeitamente, o céu está limpo, não há verdadeiros perigos no ar enquanto não se encontrar uma corrente da cor da cinza. Está a correr tudo muito bem. Estamos perfeitamente den­tro do horário. Olhe o seu filho, como dorme tranquilo. Por que não dorme você também uma sesta?

Dito e feito. Não é propriamente dormir, mas um torpor de sono que te faz dizer que estás e não estás, e um pensamento que não sabes até que ponto é verdadeiro. A palavra recorrente neste momento é matança e provoca-me uma grande euforia. Mas vejam só que raio de palavra para se pensar no céu! Enfim, a pesca tam­bém é uma lotaria. Recordo-me das festas de beneficência, na aldeia, com aquelas barracas cheias de coisas inúteis com um número pendurado por cima. Mesmo que ganhasses uma estupidez ficavas contente. Coisas como um naperon, uma fruteira decorada, uma lanterna sem pilha. O meu marido comprava sempre muitas rifas e depois estava ali horas a misturar com a mão antes de tirar o número. Ficava sempre desiludido. Os outros, ainda que tivessem ganhado coisas piores, aos seus olhos eram sempre mais afortuna­dos do que ele. Viste aquele? Só comprou uma rifa e ganhou uma cerveja. Bom, a lotaria também é uma matança, todos a mexerem com a mão dentro daqueles cestos cheios de rifas enroladas em forma de tubo, com um elástico incolor à volta. Em redor das bar­racas havia sempre o cheiro a salsichas assadas, fumos que subiam, odores de molhos. Na Bretanha vimos festas semelhantes, com um palco e os cantores que alternavam, uns a seguir aos outros, acom­panhados por poucos instrumentos. Aquelas canções numa língua dura, e aquela estranha dança serpenteante, a que também nos juntámos. Une autre gavotte, gritava uma voz ao microfone, e dávamos todos as mãos ao ritmo daquela música, e dávamos pas­sos um pouco automáticos, de enorme centopeia. Era a primeira vez que via o meu marido dançar. Estava contente por poder tocar noutras mulheres, ser arrastado por uma onda de inevitáveis esfre­      gadelas. Trois matelots du port de Brest. Trois matelots...

- Quer beber alguma coisa? - pergunta-me o piloto-aviador. - Quanto tempo estive a dormir?

- Um pouco. Quer um conhaque? É de uma marca reles, mas aquece.

       - Desculpe, mas quando o conhaque não é bom queima-me o estômago.

       - É aquele que a empresa dá.

       - Mas você não era rico?

- De família nobre, isso sim... Sabe, aquele de antes do ape­lido, uma das famílias mais antigas de França. Remontamos nada menos que à época das Cruzadas. Mas, no que toca a dinheiro, passei sempre por dificuldades. E ainda por cima com aquela mulher, que era uma mãos-largas e de pouca saúde. Sabe onde guardávamos as nossas poupanças? Num cinzeiro. Um dia, um amigo nosso apagou ali um charuto e adeus poupanças!

- Não faz mal, não tenho sede nem frio. Quanto tempo falta? - Muito pouco. Já descemos de altitude. Olhe para baixo. - Deserto, só deserto.

- E não gosta? Olhe que é muito bonito. Eu conheço-o bem, que noitadas! Os meus piores acidentes foram em 1933, na baía   de São Rafael, e no deserto da Líbia, em 1936.

- Foi aí que conheceu o meu filho, não foi?

- Sim. Mas em todo o caso não é ali que iremos aterrar.

- Ainda bem, sabe, a mil milhas de toda a Terra habitada parecer-me-ia demasiado.

       - Sim, eu também sou da mesma opinião. Bom, tinha-lhe dito que estávamos dentro do horário e afinal até estamos adiantados.

       - Não importa, não está ninguém à nossa espera.

       - À minha espera não estará com certeza ninguém. Eu sou apenas o transportador. Assim que vos deixar, volto logo para trás para outro transporte. Mas acho mesmo que estará alguém à sua espera.

- Quem?

- Alguém que finalmente quer concluir algo que se estava a tornar extenuante.

- Seja mais claro, por favor, estou a sentir-me mal.

- O seu marido.

- Não, olhe que se engana. E ainda dizia que sabia tudo sobre mim! Eu, o meu marido, ma...

- Eu sei, eu sei.

- Portanto, não pode ser ele.

- Ah, não? Agora baixo de altitude por breves instantes. Feche os olhos e segure-se bem, senão esvaziará o estômago de um ano de almoços.

- Quer despenhar-se outra vez no deserto?

- Qual deserto? Já não estamos no deserto. Ainda não perce­beu? Sou o rei da velocidade. Segure-se muito bem e engula toda a saliva que puder. Dir-lhe-ei quando deve abrir os olhos. Não os abra até lá.

Digo todas as orações que conheço, misturo-as às três panca­das, no meu estômago não há nada para esvaziar, mas em con­trapartida há bastante na minha cabeça. Pouso uma mão na cabeça do meu filho, que está a dormir. Peço ajuda ao meu pai, que está morto. Vêm-me à memória duas frases, a primeira diz: Se não souberes do que necessitarás amanhã nunca serás grato, e eu acho que quem a pensa se refira a um espírito livre, a um nómada que muda continuamente de lugar, a alguém que nunca pode fazer p

rogramas e que aceita cada boa acção simplesmente como um caso de sorte. A segunda diz: A realidade triunfa mas não encanta, e esta creio ser mesmo eu, eu em pessoa que a penso, eu em voo picado que deixo o meu testamento em caso de morte. E sei que o estou a dizer ao meu filho que está a dormir, que lhe estou a transmitir esta minha única convicção, porque, caso ele sobreviva ao despenhamento, quero que continue a pen­sar assim, porque quem tem uma fé inocente mais cedo ou mais tarde conseguirá contagiar o mundo real. Estamos a descer, sinto-o, isto chama-se cair em parafuso, volta da morte, como diabo se chama? O piloto-aviador deve ter enlouquecido. Eh, aviateur-pilote! Mas não lho estou a dizer, só estou a pensá-lo. Seguro-me bem e estou concentrada. Tenho de manter o avião, mantê-lo no ar, fazer com que recupere altitude. Para cima, para cima, para cima. O pedido é este: voltar a subir. Restabelece-se, sinto que volta a voar normalmente. Maluco do piloto-aviador francês, sempre meio bêbado! Como se eu não tivesse percebido por que se despenhou de forma lendária, por que deu aquele mergulho final na Côte d'Azur. Maldita Consuelo! A chilreadora Consuelo! Vejo-a quando recebe a notícia. Duas lagrimazecas e toca a ir para a cama com o primeiro que apareceu. Morreste em vão, piloto-aviador, aquela de sangue caliente arranjou logo com que se entreter, não perdeu tempo. Deixaste de escrever e de voar, por uma pessoa como ela. Aguentamos, aguentamos, estamos concentrados para aguentar melhor, mas por fim... piloto-avia­dor, é um mundo de putedo, um mundo que nos abate. Tornamo­-nos perdizes no dia em que abre a caça.

- Já acabou de pensar em todas essas coisas más?

- Porquê, posso abrir os olhos?

       - Um minuto ainda. Escute-me, estamos a voar a baixa alti­tude, mas ainda não estamos a aterrar. Como já lhe disse, esta­mos adiantados e tenho de aguardar ordens.

- Sim, mas não me venha falar de torres de controlo.

       - Esqueça as torres de controlo. Portanto, a altitude é sufi­cientemente baixa para permitir que veja, depois voltaremos a subir e, quando tudo estiver pronto, ou seja, quando você estiver pronta...

- Está bem, já percebi. O que faço, abro-os?

       - Está bem, abra-os e diga-me quem é aquele senhor lá em baixo, o que está encostado àquele carrão cintilante. Pois bem, abra-os agora.

       - Caramba! Mas aquele é o meu dentista! O que faz aqui o        meu dentista?

       - Aquele é o seu marido.

       - Ouça, está a dizer-me que eu não o reconheço? Aquele é o meu dentista.

       - Exactamente, o seu marido.

       - Meu marido uma oval O que é, deu-lhe vontade de brin­car?

- Acredite em mim, é o seu marido. Um marido renovado. Era o que tinha pedido, certo? Foi você que o pôs na lista. Foi um desejo seu. O que lhe parece?

       - Parece-me uma coisa do outro mundo! Do outro mundo!

- Pois é, um mundo melhor, quase perfeito. Olhe, até tenho aqui a garantia. Está tudo escrito, preto no branco, de modo claro. Leio-lha. Ora vejamos, número das peças substituídas, peças reparadas... Cá esta ela, diz exactamente que... Não, aqui deve haver um erro. As garantias geralmente são de quarenta anos, de resto, se não me engano, você mesma indicara esta duração. Sim, geralmente é assim. Bom, enfim, aqui enganaram­-se, imagine que está aqui escrito, garantido por mil anos. É de loucos, não é?

- Talvez não seja um erro, sabe?

- Como diz?

- Talvez tenham cumprido as indicações de uma outra lista.

- A lista de quem?

- Do meu dentista.

- E isso é possível?

- Ele é médico e diz que está cientificamente provado que, se se ultrapassar um determinado patamar, já não se morre. Era um desejo dele. Nunca ouviu falar de highlander?

- O que é isso?

- Pessoas que não morrem.

- Que raio de invenção! Interessante e... olhe, viu-a. Está a cumprimentá-la. Não responde?

- Tem algo na mão, está a abanar alguma coisa.

       - Sim, a mim também me parece. Espere, já verifico com o

óculo de longo alcance. Deixe-me ver... Sim, é um certificado de garantia. Deve ser o seu.

- O seu de quem?

- O seu de si. Não me vai dizer que, tendo chegado até aqui, quer viver menos de mil anos, pois não?

- Ouça, diga-me a verdade, aquele não é o meu marido.

- Digo-lhe que sim, em suma, é... como hei-de dizer, um mélange. Um bocado de um e um bocado de outro. Bem, como hei-de dizer? O seu, você tinha-o deixado um pouco maltratado. Não havia muito que recuperar, sabe?

- Espero que tenham escolhido as partes melhores.

- Obviamente. Genialidade, cultura, o que é que pensa? Este dentista irá surpreendê-la e não vai ser pouco. Verá o que se porá a fazer!

- O que se porá a fazer?

- Esculturas.

- Não me diga que...

- Não, não, esteja descansada. Não se encarniçará contra si nem contra as aberrações da Natureza. Um homem como ele, de   resto, tão planetário, que esculturas quer que faça?

- Que tipo de esculturas fará?

- Planetas, muitos planetas vulcânicos, ligados uns aos outros por esplêndidas pontes de ferro.

- Bonitos, parecem a capa de um livro.

- Sim, muito bonitos. Mas o seu grande sucesso serão os den­tes. Grandes, gigantescos mastigadores molares. O que quer, nunca ninguém se esquece completamente de si próprio. Mas será um sucesso, acredite em mim.

- Não diga parvoíces. Está a gozar comigo. Nunca ninguém se pôs a esculpir dentes molares.

- Justamente, será o primeiro. Verá depois quantos imitado­res! Muitos se porão a esculpir dentes. Claro, haverá quem se especialize em caninos, outros em incisivos... Nunca se tem cora­gem de imitar autenticamente. Mas, seja como for, ele será o indiscutível chef d'école, o único inovador de uma arte que se estava a tornar demasiado abstracta. Faz ideia? Dentes. Existe porventura algo mais útil?

- Não, não me engana. Aquele não é o meu marido.

- Não? Olhe, se não está convencida, posso demonstrar-lho. O rapaz está a acordar, pergunte-lhe a ele.

- Mamã, já chegámos?

- Acho que sim.

- Estamos em Babilónia, não é, Tó?

- Sim, fim do voo. Iremos aterrar dentro de alguns minutos. A companhia agradece e espera nunca mais vos voltar a ver neste voo. Dá uma olhadela para baixo. Há um senhor que vos está a        cumprimentar e eu queria que dissesses à tua mãe quem é.

- Onde está?

- Lá em baixo, estás a ver? Um homem encostado àquele car­rão.

       - É o papá! Mamã, é o papá, ele também veio para Babilónia. Mas, afinal, passamos as férias juntos? Fizeram as pazes?

       - Olha bem para ele, tens a certeza de que é ele?

       - Mamã, claro que tenho a certeza. Estás a vê-lo? Está a ace­nar-me. Olá, papá! Papá! Papá, estás a ouvir-me? Papááá!...

       - Ouça, senhor piloto-aviador, diga-me uma coisa. Porquê logo eu?

- Você era professora de Francês, certo?

- Certo.

- Dava aulas numa cadeia, talvez tenha ensinado um pouco pela rama, mas alguma coisa deve saber.

- Claro que sei.

- Eram-lhe simpáticos, os jansenistas?

- Bastante.

- Ora, digamos que, segundo a teoria deles, você seria uma eleita, uma predestinada. Enfim, calhou-lhe em sorte esta pren­da. Parece-me uma coisa boa, não acha? Ou melhor, uma coisa justa.

       - Se é por isso, quer dizer, na minha opinião, é uma coisa justa e boa.

       - Bom, então está tudo bem, não está? Começamos a prepa­   rar-nos para a aterragem?

       - Para a aterragem? Não, não estou pronta.

       - Claro que está. Um passo de cada vez, lembra-se? Começa­-se sempre pelo primeiro.

       - Falta-me coragem, aqui quem tem coragem é você.

       - Não, as únicas coisas com que me preocupo são o taquí­metro, o barómetro e o altímetro. Lembre-se de que a coragem vinha em último lugar, até na lista das virtudes de Platão. Se posso mesmo dizer a verdade, acho que no fim de contas a cora­gem é apenas uma emoção banalmente desportiva. Uma coisa quase embaraçosa. Em todo o caso, já não precisa de coragem.       Agora precisa de fé, e você devia ter bastante.

- Sim, mas o que lhe direi assim que o vir?

- Confia em alguém que pediu uma mulher em casamento daquele modo?

- Cegamente.

- Então, posso sugerir-lhe uma frase, diga-lhe: Desci do céu, as estrelas são minhas irmãs. E depois acrescente: Espero que tenhas aprendido bem a lição, não estão previstas outras repara­ções por parte do mecânico.

- Mas porquê, ele...

- Não faça demasiadas perguntas.

- Queria só saber qual dos dois, se o meu marido ou o den­tista, decidiu submeter-se...

       - Bom, devia chegar lá sozinha, não? Esteja tranquila. Apertar os cintos de segurança. Está, sala das máquinas?

       - Qual sala das máquinas, com quem está a falar?

       - Com ninguém. Deixe-me brincar.

 

Ganhámos altitude outra vez e agora estamos a descer de novo. Tenho os olhos postos nele, que neste momento é apenas um pontinho ao longe. Não percebo que aspecto tem Babilónia, vista daqui de cima parece apenas uma estação de serviço, daquelas que se vêem nos filmes americanos. Há uma construção quadrada bastante grande e uma grande estrada onde daqui a pouco iremos aterrar. Não vejo mais nada em volta. Mas talvez aqui não seja mesmo Babilónia, de resto ele veio buscar-nos de carro. Será a alguns quilómetros daqui. Estão a passar-me mui­tas coisas pela cabeça. Está alguém à minha espera que quer ter­minar algo que se estava a tornar extenuante. Então, dentista, decidiste-te a concluir? Queres concluir, hem? Apetece-me rir. Sim, parece-me que até há muito para rir. Porém, sinto também um tremor que parte do esófago e desce até ao fundo, uma espé­cie de fibrilação, uma pulsação, asas que batem. É verdade, que­rido dentista, já não podíamos mesmo aguentar mais. Tiveste realmente uma grande ideia. Se a perfeição não é de um mundo, será de outro. E o que é preciso? Ei-lo ali que se projecta reno­vado, um homem novo em folha. Substitui-se uma peça, arranja­-se outra. E o que é preciso? Será que não acredito em milagres? Acredito, acredito. Os homens são de dois tipos: os que têm necessidade de compreender tudo e os que acreditam nos mila­gres. Irei descer do avião e iremos trocar as garantias. Ei, olha que se não tiveres uma também para o meu filho vou embora agora mesmo. Mil anos também para ele, acrescento-o agora à lista. Já está. Começo a ver-te um pouco melhor. És bonito e jovem. Até deixaste crescer um pouco os cabelos, exactamente como naqueles tempos, hem? Tempos de juventude, quando me punhas maluca com aquele sorriso de andorinha. Está bem, final­mente és meu marido, se até o meu filho o diz é porque és. Mas devo mesmo acreditar nisso? Quero ver mesmo essa garantia. Presumo que as peças originais sejam poucas. Muito poucas. Bom, o que se come esta noite? Se queres que haja, haverá. Agora começo mesmo a ver-te e tu também me vês. Acendes um cigarro segurando o fósforo dentro das mãos, para resguardar a chama do vento. Gesto típico teu. E que vento impetuoso. Vento de juven­tude. Conhecemo-nos há um quarto de século e até hoje só nos beijámos. Bem, não fazemos propriamente um jantar, hem? Mantenhamo-nos leves. Estou a chegar do céu, estás a ver? Digo­-to a sussurrar porque, seja como for, sei que me estás a ouvir, Sou a Lulu, irmã das estrelas. Não o devia dizer, porque estamos ainda demasiado distantes, mas parece-me mesmo que tu estás a rir. Sei lá, não sei. Sabes o que te digo? Tu prepara-te, porque entretanto começo eu a rir.

 

       - Quer que lhe faça um joguinho de prestidigitação com as cartas? Gostaria de aterrar assim?

       - Não, obrigada.

 

Deve ser uma alucinação. Matei o meu marido, recordo-me muito bem. Estava a dormir com duas anãs. Primeiro matei as anãs e em seguida matei-o a ele. Foi assim que se passaram as coisas. Depois aconteceu tudo o resto.

 

- Sabe uma coisa? Adorei sempre os mecanismos. Uma vez fiquei fascinado com o funcionamento de um conta-gotas. Quer que lhe conte?

 

- Não, obrigada.

 

Claro que é uma alucinação, penso que estou num avião e afi­nal sabe-se lá onde estou. Você não é um piloto, pois não?

 

       - Quer saber de quando eu era um elefante, um leão, um macaco?

       - Não, por favor, deixe-me respirar, não vê que me falta o ar?

 

É tudo muito mais simples do que eu penso. A realidade triunfa mas não encanta. O problema é este, não quero que triunfe a realidade. Aqui deve haver alguém que quer ver como reajo. Tudo depende de como eu reagir. Se responder à letra, tal­vez tenham em conta as atenuantes.

 

- Então diga-me você uma coisa, está bem? Eu deixo-a res­pirar, mas você diz-me uma coisa. Ouça, faltam poucos segundos para a aterragem, não toca o chão se não me disser que tipo de felicidade está a sentir.

- Deixe-me em paz, já lhe disse, não estou em condições, estou mal!

 

Estão a tentar salvar-me ou a lixar-me? Aquele homem lá em baixo, por exemplo, aquele que está à minha espera encostado a um cartão, onde é que o foram desencantar? Tem cuidado, podia ser um filme. Não é preciso muito para projectar pessoas. Pensas que são verdadeiras e afinal não são.

Cumprimenta-me. Faz-me um bonito gesto de entendimento. Eu quero que seja o meu dentista, nada mais. Gosto do dentista. Da ideia de lhe ver outra vez ambos os pés. O meu marido matei­-o, e não quero salvar mais nada dele.

 

- Olhe que não quero saber se é pouco feliz, bastante feliz, muito feliz. Não é a quantidade que me interessa, quero a quali­dade.

- Cale-se, por favor, é só o que lhe peço. Esteja calado!

 

Conceder-me-ão algumas atenuantes? Enfim, ia para a cama com anãs, não era muito normal. Eu era normal. Era normal e depois devo ter enlouquecido. É uma atenuante, não?

Não me apetece desistir da ideia da seita. Devia fazer uma coisa muito justa e eles ajudaram-me. É simples como a vida. Eles são justos e de quando em quando oferecem um pouco de justiça também cá em baixo. Decidem eles.

 

- Tem de me dizer de que modo você é feliz, percebeu?

- Basta!

 

       E o meu filho? O que será do meu filho? A mãe matou-lhe o pai e acaba na cadeia. Quem tomará conta dele?

Agora tenho medo de que até esta criança, que parece con­tente, seja uma das suas projecções para me manterem tranquila. Mas o meu filho, o verdadeiro, onde está?

       A realidade triunfa mas não encanta. E eu, pelo contrário, não a quero deixar triunfar porque quero ser encantada.

Não foi por acidente que o piloto morreu há anos. Foi a Consuelo. Naquela noite voava embriagado e a dada altura terá dito para si: Queres saber uma coisa? Vai-te lixar, puta! E assim terá desligado o motor e ter-se-á posto a desenhar, ou a ler um policial que estava quase a acabar. Foi só o tempo de descer aos abismos do mar e terá sabido como acabava a história. Olha como sou bom, Consuelo, mato-me para não te matar!

 

       - Deve ser concisa, usar um único adjectivo, mas dar-me uma ideia o mais exacta que possa. Está a compreender o conceito?

       - Se disser mais uma palavra parto-lhe a cara!

 

Estou a ir bem? Não sei como se deve fazer nestes casos. Apavorados, agitados, arrependidos? Não, não consigo arrepen­der-me. Estava enraivecida quando matei aqueles três, aliás, colérica, pois a raiva é o princípio da cólera e eu já tinha ido bem mais além. Não tinha outra saída. Foi uma coisa justa e boa, assim.

 

Não há ninguém que tenha uma conta em suspenso, uma dor profunda, uma mortificação, uma vida que não tenha digerido?

 

- Uma única palavra, mas que indique o grau de gravidade ou de intensidade que exclui todos os confrontos e talvez provo­que desorientação, temor...

- Esteja calado ou mato-o! Percebeu? Mato-o!

 

Tenho de tentar seduzir todos, tenho de ser absoluta e con­vincente, como uma bela rosa de Maio. Quem pode resistir a uma rosa de Maio? Eu sou pura e fresca como uma rosa de Maio. Sou a rosa. Num jardim, no mês de Maio, havia uma rosa...

 

       - Explique-me exactamente que tipo de felicidade é agora a sua. Percebeu o que eu disse?

       - Vá para o diabo!

 

Não há ninguém que me possa dizer quando comecei a perder alguns parafusos? Matei o meu marido e agora estou a aterrar em Babilónia, onde um homem, que é idêntico ao meu dentista, está à minha espera para começar uma nova vida comigo. Mas, vá lá...

 

- Nenhuma quantidade, nem sequer uma breve referência ­quero conhecer o modo, quero saber de que modo é feliz. Acha­-me muito indiscreto?

- Por favor, suplico-lhe...

 

Fiz o que devia ter feito. Queria viver dum modo muito ajus­tado e queria ajustá-lo também a ele. A virtude é o bem supremo e com a virtude é preciso viver-se ajustado. Viste? Às vezes os parafusos de pouco servem. Melhor perdê-los, então. Todos.

 

- Estamos a descer, está a sentir? Já abri o trem de aterragem. Mas volto a fechá-lo e tento uma subida muito perigosa se você não mo disser. Ou melhor, despenho-me se não mo diz agora. Percebeu? - Maldição, esteja calado! Calado!

 

Estou realmente orgulhosa de mim. Mereço um prémio por aquilo que fiz. Acreditar no que vejo é o meu prémio. Se acredi­tar, sou premiada. Terei, por acaso, outra escolha?

Estou feliz porque percebi o que é a sabedoria: compreensão das implicações dos acontecimentos. Submissão à natureza. Adesão ao bem em que acredito.

Quem possui uma virtude deve possuir forçosamente também todas as outras.

 

       - Diga-mo agora! Diga-me de que modo é feliz e deixo-a em paz. Preciso disso. Depressa, diga-o! Diga-o agora! Agora!

       - Cristo! Sim, sou feliz... sou feliz... Meu Deus, não desça assim depressa!

 

       Estou contente por morrer, mas lamento. Lamento morrer, mas estou contente...

       Maramao, porque morreste? Pão e vinho não te faltavam. A alface estava na horta e uma casa tinhas tu...

 

Canto mesmo qualquer coisa, sim, estou a convencer-me de verdade. Porém, que raio de génio, aquele jansenista! Pois, mas de que lado convém deixar entrar esta persuasão? Respiro fundo? Inspiro-a? Persuado-me desse modo?

 

- Agora! Diga-o agora ou despenho-me! Agoraaa!

- Sou feliz... sim, diabos o levem, sou feliz dum modo... dum modo... inauditoooooo!!!!

 

Inaudito, inaudito. Aterragem inaudita, entre braços inaudi­tos. Com o meu filho inaudito. Depois de o ter morto, estou feliz e absolvo-me deste modo. Não tenho outro adjectivo. Gosta de inaudito? Persuade? É suficientemente sábio? É suficientemente virtuoso?.. É suficientemente de outro mundo?

 

- Ámen.

- Bem, então é-o.

 

                                                                                Romana Petri  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

              Biblio"SEBO"