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TRAGÉDIA EM TRÊS ATOS / Agatha Christie
TRAGÉDIA EM TRÊS ATOS / Agatha Christie

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

TRAGÉDIA EM TRÊS ATOS

 

                                                           PRIMEIRO ATO / SUSPEITA

 

               O TOPO DO MASTRO

Mr. Satterthwaite, sentado no terraço do Topo do Mastro, observava seu anfitrião, Sir Charles Cartwright, subir pelo caminho que vinha do mar.

O Topo do Mastro era uma agradável casa de campo das de melhor qualidade. Nada de estilos de época, nada de mansardas, nada das excrescências caras aos arquitetos de ter­ceira categoria. Era uma edificação simples e branca — enganadora quanto ao tamanho, pois era bem maior do que parecia. Devia seu nome à sua localização, num ponto bem alto, que descortinava o Porto de Loomouth. Na verdade, de um canto do terraço, protegido por uma forte balaustrada, havia uma queda vertical para o mar, lá embaixo. Pela estrada, o Topo do Mastro ficava a menos de dois quilômetros, da cidade. Ela corria para a colina e subia em ziguezague até chegar ao alto. A pé, podia-se chegar à casa em sete minutos, pela trilha de pescador, por onde no momento estava subindo Sir Charles Cartwright.

Sir Charles era um homem de meia-idade, queimado de sol e com boa constituição. Usava umas calças velhas de flanela cinza, e um suéter branco. Seu andar gingava um pouco, e as mãos pendiam meio fechadas, enquanto andava. Nove pessoas em dez diriam: “oficial de Marinha reformado — o tipo é inconfundível”. A décima, mais criteriosa, hesi­taria, intrigada por algo indefinível que soava um tanto falso. E então possivelmente se formaria uma imagem, vinda sem querer, do tombadilho de um navio — mas não de um navio de verdade — de um navio delimitado a cada extremidade por cortinas de algum tecido grosso e caro — com um homem, Charles Cartwright, postado nele, com uma luz que não era solar, brilhando-lhe em cima, as mãos meio fechadas, o andar solto e a voz — a voz agradável de um cavalheiro naval inglês, porém com o tom bastante ampliado.

— Não, senhor — estava dizendo Sir Charles Cartwright — temo não poder responder-lhe tal pergunta.

E zás, fechava-se a cortina, as luzes acendiam-se, ouvia-se a música sincopada do mais recente sucesso, e moças com laçarotes exagerados no cabelo começavam a dizer “Choco­lates? Limonada?”. Terminara o primeiro ato de O Chamado do Mar, com Charles Cartwright no papel do Comandante Vanstone.

De seu posto de observação, olhando para baixo, Mr. Satterthwaite sorriu.

Homenzinho ressequido como uma passa, Mr. Satterth­waite, patrono das artes e do teatro, resoluta porém agradavel­mente esnobe, estava sempre incluído entre os convidados dos mais bem organizados programas de fins-de-semana e dos melhores acontecimentos sociais (as palavras “e Mr. Satterth­waite” apareciam invariavelmente no final das listas de convi­dados). Em última análise, um homem de inteligência consi­derável, e um astuto observador de pessoas e de coisas.

No momento, murmurava, sacudindo a cabeça:

— Nunca pensei. Realmente, nunca pensei.

Passos soaram no terraço e ele virou a cabeça. O ho­mem grandalhão e grisalho que puxou uma cadeira e sentou-se tinha a profissão estampada em seu rosto arguto, bondoso, e maduro. “Doutor” e “Harley Street”. Sir Bartholomew Strange era um profissional bem sucedido. Era conhecido especialista de moléstias nervosas, e recentemente fora feito cavaleiro por ocasião da concessão das Honrarias do Aniver­sário Real.

Colocou sua cadeira ao lado da de Mr. Satterthwaite e disse:

— Nunca pensei o quê? Hein? Vamos, diga.

Com um sorriso, Mr. Satterthwaite chamou a atenção para a figura que subia rapidamente a trilha.

— Nunca pensei que Sir Charles pudesse continuar feliz por tanto tempo no... hum... exílio.

— Pois juro que nem eu tampouco! — O outro riu-se, atirando a cabeça para trás. — Conheço Charles desde me­nino. Estivemos juntos em Oxford. Sempre o mesmo... melhor ator na vida real do que no palco! Charles está sem­pre representando.   É mais forte do que ele... é uma segun­da natureza. Charles não sai de uma sala... tem de “re­tirar-se”... e de modo geral dizendo uma fala importante. Mas mesmo assim gosta de mudar de papéis... nada mais divertido no mundo. Há dois anos afastou-se dos palcos... declarou que queria viver simplesmente, no campo, longe do mundo, e satisfazer sua velha atração pelo mar. E então veio para cá e construiu isto aqui, que é a idéia que ele faz de uma casinha de campo. Três banheiros e toda espécie de coisas elétricas que há! Eu era como você, Satterthwaite; não pensava que durasse. Afinal das contas Charles é hu­mano... e precisa de público. Dois ou três comandantes reformados, um bando de velhotas e um pároco... já vi pla­téias melhores. Pensei que a idéia do “homem simples, que ama o mar” não durasse seis meses. Naquele tempo, pensava que ele ia se cansar do papel, para falar a verdade. Pen­sei que o gênero seguinte seria o do velho blasé dos cassinos de Monte Carlo, ou então o do castelão escocês, de saiote e tudo... pois não há dúvida de que Charles é muito versátil.

O doutor calou-se. Falara muito. Havia em seus olhos muita afeição e um toque de divertimento enquanto olhava o homem que estava lá embaixo, inconsciente de seus comen­tários. Em alguns instantes estaria junto deles.

— Entretanto — continuou Sir Bartholomew — parece que nos enganamos. Os atrativos da vida simples parece que funcionam.

— Todo homem que se autodramatiza é julgado erronea­mente de vez em quando — lembrou Mr. Satterthwaite. — Não se leva sua sinceridade a sério.

O doutor concordou.

— É — disse pensativo. — Isso aí é verdade.

Com uma saudação alegre, Charles Cartwright subiu cor­rendo os degraus que levavam ao terraço.

— Mirabelle portou-se como nunca — disse ele. — Você devia ter vindo, Satterthwaite.

Mr. Satterthwaite sacudiu a cabeça. Já sofrera demais cruzando a Mancha para ter ilusões a respeito da resistência de seu estômago sobre as águas. Tinha observado o Mira­belle de sua janela durante a manhã. O vento estava soprando forte, e Mr. Satterthwaite tinha dado devotas graças aos céus por estar em terra firme.

Sir Charles chegou até a janela da sala e pediu bebidas.

— Você devia ter vindo comigo, Tollie — disse ele a seu amigo. — Você não passa a metade da vida sentado em seu consultório em Harley Street, dizendo a seus clientes o bem que lhes faria uma viagem por mar?

— A grande vantagem de se ser médico — retrucou Sir Bartholomew — é não se ter a obrigação de seguir os pró­prios conselhos.

Sir Charles riu-se. Continuava sem ter consciência de estar representando um papel — o do simpático e alegre lobo do mar. Era um homem extraordinariamente bem parecido, muito bem proporcionado, com um rosto fino e divertido, ao qual um toque de cinza nas têmporas trazia maior dis­tinção. Parecia ser o que era — primeiro um cavalheiro, depois um ator.

— Foi sozinho? — perguntou o doutor.

— Não. — Sir Charles voltou-se para pegar seu copo de uma copeira impecável que carregava uma bandeja. — Tinha um tripulante. Aquela menina, Egg, para falar a verdade.

Havia algo, algum leve traço de embaraço em sua voz que fez com que Mr. Satterthwaite levantasse rapidamente os olhos.

— Miss Lytton Gore? Ela entende um pouco de bar­cos, não é?

Sir Charles deu um riso meio tristonho.

— Ela tem a capacidade de me fazer parecer um idiota completo, com pelo menos oito dedos em cada mão; mas estou aprendendo aos poucos... graças a ela.

Uma série de pensamentos sucedeu-se rapidamente na mente de Mr. Satterthwaite.

— Será... Egg Lytton Gore... talvez seja por isso que ele ainda não se cansou... nessa idade... uma idade perigosa... nessa época da vida é sempre alguém muito jovem...

Sir Charles continuou:

— O mar... não há nada igual no mundo... o sol, o vento o mar... e uma choupaninha simples quando se chega a casa. E...

E olhou com prazer para a casa branca atrás dele, equi­pada com três banheiros, água quente e fria em todos os quartos, o melhor em matéria de calefação central, tudo quanto há de geringonça elétrica, servida por copeira, arru­madeira, chef e ajudante de cozinha. A interpretação de Sir Charles da expressão “uma vida simples” era talvez um pouco exagerada.

Uma mulher alta e excepcionalmente feia saiu da casa e abateu-se sobre eles.

— Bom dia, Miss Milray.

— Bom dia, Sir Charles. Bom dia — (para os outros dois, uma ligeira inclinação da cabeça). — Este é o menu para o jantar. Não sei se deseja fazer alguma alteração.

Sir Charles tomou-o e murmurou:

— Vejamos. Melão gelado, sopa Bortch, pescada fresca, Soufflé Sourprise, Canapé Diane... Não, tudo me parece muito bem, Miss Milray. Todos vão chegar pelo trem das quatro e meia.

— Já dei as ordens a Holgate. Por falar nisso, Sir Char­les, se me permite, seria melhor que eu me sentasse à mesa hoje à noite.

Sir Charles pareceu surpreendido, porém disse cortesmente:

— Seria um prazer, sem dúvida, Miss Milray... mas... ah...

Miss Milray passou tranqüilamente a esclarecer.

— De outro modo, Sir Charles, ficariam treze à mesa; e há muita gente supersticiosa.

Seu tom parecia indicar que, pessoalmente, Miss Milray sentar-se-ia com treze à mesa, todos os dias, sem qualquer desconforto. Continuou:

Creio que está tudo arranjado. Disse a Holgate que o carro deverá ir buscar Lady Mary e os Babbingtons. Certo?

— Perfeitamente. Era exatamente o que estava a ponto de lhe pedir.

Com um sorriso de ligeira superioridade em seus traços mal arranjados, Miss Milray saiu.

— Essa mulher — disse Sir Charles quase reverente­mente — é notável. Eu sempre fico com medo de que ela apareça para escovar os meus dentes.

— É a própria eficiência — disse Strange.

— Está comigo há seis anos — disse Charles. — Primei­ro como minha secretária em Londres, e, aqui, eu acho que é uma espécie de governanta mais sofisticada. Tudo funciona como um relógio. E agora, vejam se é possível, vai-se embora.

— Por quê?

— Diz ela — Sir Charles esfregou o nariz, duvidando — diz ela que tem uma mãe inválida. Eu pessoalmente não acre­dito. Esse tipo de mulher nunca tem mãe de espécie alguma. Geração espontânea de dínamo. Não, a razão deve ser outra.

— É muito possível — disse Sir Bartholomew — que te­nha havido comentários.

— Comentários? — O ator arregalou os olhos. Comen­tários sobre o quê?

— Meu caro Charles. Você sabe o que se quer dizer com comentários.

— Você está dizendo sobre ela... e eu? Com aquela cara? E com aquela idade?

— Deve ter menos de cinqüenta.

— Vai ver que sim — Sir Charles ponderou o assunto. — Mas falando sério, Tollie, você já reparou na cara dela? Tem dois olhos, um nariz e uma boca, mas não é o que se possa chamar um rosto... não um rosto de mulher. Nem a velha mais fofoqueira das redondezas seria capaz de fazer qualquer ligação séria entre aquela cara e paixão sexual.

— Você está subestimando a imaginação da solteirona in­glesa.

Sir Charles sacudiu a cabeça.

— Não acredito. Miss Milray tem qualquer coisa de apavorantemente respeitável que até mesmo uma solteirona in­glesa seria capaz de reconhecer. Ela é a personificação da virtude e da respeitabilidade, além de ser uma mulher muito útil. Sempre escolho secretárias que sejam breves contra a lu­xúria.

— Você é um homem sábio.

Sir Charles ficou perdido em seus pensamentos por al­guns minutos. Para distraí-lo, perguntou Sir Bartholomew:

— Quem é que vem, hoje à tarde?

— Angie, para começar.

— Angela Sutcliffe?   Que ótimo.

Mr. Satterthwaite inclinou-se para a frente, interessado, ansioso por conhecer os nomes dos hóspedes. Angela Sutclif­fe era uma atriz, já não muito jovem, porém firme em seu domínio do público, e célebre por seu espírito e por seu char­me. Falava-se nela, às vezes, como a sucessora de Ellen Terry.

— Depois os Dacres.

Novamente Mr. Satterthwaite acenou a cabeça para si mesmo. Mrs. Dacres era dona da Ambrosine, Ltd., famosa casa de modas. Via-se sempre nos programas: “Os vestidos que Miss Fulana usa no Ato I são de Ambrosine, Ltd., Brooks Street.” Seu marido, o Capitão Dacres, tinha ligações suspeitas com corridas de cavalos. Passava boa parte de seu tempo nos prados de corridas — ele próprio tinha corrido no Grand National, anos atrás. Tinha havido algum problema — ninguém sabia exatamente o que — muito embora corres­sem muitos boatos. Nenhum inquérito fora aberto — nada viera à luz, mas o fato era que, quando se falava em Freddie Dacres, havia sempre uma sobrancelha que se levantava.

— E depois Anthony Astor, o autor teatral.

— Claro — disse Mr. Satterthwaite. É a autora de Mão Única. Já vi duas vezes. Grande sucesso.

Ele gostava muito de mostrar que sabia que Anthony Astor era mulher.

— Isso mesmo — disse Sir Charles. — Esqueci seu nome verdadeiro... acho que é Wills. Só a encontrei uma vez. Convidei-a para agradar Angela. Acho que é só... como hós­pedes, quero dizer.

— E a turma local? — perguntou o doutor.

— Ah, os locais!   Bom, há os Babbingtons... ele é o pároco, sujeito muito simpático, nada de excessos clericais, e a mulher é realmente uma simpatia. Vêm eles e Lady Mary e Egg. É só. Ah, esqueci, há ainda um rapaz jovem chama­do Manders, que é jornalista, ou coisa no gênero.   Rapagão bonito.   A lista está completa.

Mr. Satterthwaite era de natureza metódica. Por isso fez as contas.

— Miss Sutcliffe, um, os Dacres, três, Anthony Astor, quatro, Lady Mary e a filha, seis, o pároco e a mulher, oito, o rapaz, nove, nós três, doze. Ou a sua conta ou a de Miss Milray está errada, Sir Charles.

— Garanto que não é a de Miss Milray — disse Sir Charles com segurança. — Aquela mulher nunca se engana. Vamos ver: raios, você tem razão. Eu tinha esquecido um hóspede. Escapou-me por completo.

Deu uma risadinha.

— Ele não haveria de gostar disso. É um dos diabos mais convencidos que já encontrei na vida.

Os olhos de Mr. Satterthwaite brilharam. Sempre tinha sido de opinião de que os homens mais convencidos deste mundo eram os atores. E isso sem excetuar Sir Charles Cartwright.   Ver o roto falando do esfarrapado divertia-o.

— E quem é o tal poço de egocentrismo? — perguntou.

— Um camaradinha muito esquisito — disse Sir Char­les. — Mas mesmo assim um camaradinha bem célebre. É possível que já tenha ouvido falar dele. Hercule Poirot. É belga.

— O detetive — disse Mr. Satterthwaite. — Já conheço. Uma personalidade notável.

— É um tipo — disse Sir Charles.

— Nunca o encontrei — disse Sir Bartholomew — mas já ouvi falar muito dele. Aposentou-se há algum tempo, não é?   Provavelmente a maior parte do que eu tenho ouvido já é lenda.   Bom, Charles, espero que não tenhamos nenhum crime durante o fim-de-semana.

— Por quê? Por que teremos um detetive hospedado aqui? Isso é botar o carro adiante dos bois, não é, Tollie?

— Bom, é uma espécie de teoria que eu tenho.

— Qual é a sua teoria, doutor? — perguntou Mr. Sat­terthwaite.

— Que os acontecimentos são atraídos pelas pessoas... e não as pessoas pelos acontecimentos. Por que será que al­gumas pessoas parecem ter vidas excitantes, e outras vidas cacetes? Por causa das circunstâncias? Nunca. Há homens que podem ir até os confins do mundo que nada lhes acon­tece. Haverá um massacre na semana antes dele chegar; e um terremoto no dia seguinte à sua partida, e o navio, que quase pegou afunda. Mas outro mora no subúrbio e vai tra­balhar na cidade todo dia, e coisas lhe acontecem. Fica envolvido com quadrilhas de chantagistas ou mulheres deslum­brantes ou bandidos motorizados. Há pessoas com talento especial para naufrágios, mesmo num laguinho ornamental alguma coisa lhes acontece. Do mesmo modo homens como Hercule Poirot não precisam ir em busca do crime... ele vem a ele.

— Neste caso — disse Mr. Satterthwaite, — talvez seja realmente conveniente que Miss Milray se reúna a nós, e que não sejamos treze à mesa.

— Bem — disse Sir Charles, com todo o seu charme, — pode providenciar seu assassinato, Tollie, já que parece estar tão interessado. Só estipulo uma coisa... que eu não seja o cadáver.

E, rindo, os três homens entraram na casa.

 

               INCIDENTE ANTES DO JANTAR

O interesse principal da vida de Mr. Satterthwaite era gente.

De modo geral as mulheres o interessavam mais do que os homens. Para um homem viril, Mr. Satterthwaite conhe­cia excessivamente as mulheres. Havia um veio de feminili­dade nele que lhe permitia penetrar fundo na mente femini­na. Toda a sua vida as mulheres o haviam feito seu con­fidente, porém nunca elas o haviam tomado a sério. Por vezes isso o deixava amargurado. Ficava, parecia-lhe, na pla­téia assistindo à peça, em lugar de pisar o palco para tomar parte no drama. Porém na verdade o papel de observador ia-lhe a calhar.

Nessa noite, sentado no grande salão que dava para o terraço, habilmente decorado por uma firma moderna para que parecesse a cabina de luxo de um transatlântico, viu-se particularmente interessado pela cor precisa que havia sido alcançada pelos cabelos de Cynthia Dacres. Era uma tonali­dade inteiramente nova — trazida direto de Paris, segundo suspeitava — com o efeito curioso e agradável de bronze es­verdeado. Qual seria o verdadeiro aspecto de Mrs. Dacres, era impossível descobrir. Era uma mulher alta, com o cor­po inteiramente disciplinado segundo as exigências do mo­mento. Seu pescoço e braços apresentavam o tom queimado que ela sempre usava para o campo no verão — e se ha­via sido produzido por meios naturais ou artificiais seria im­possível dizer. O cabelo bronze esverdeado estava penteado segundo um estilo novo que só o melhor cabeleireiro de Lon­dres poderia produzir. As sobrancelhas cuidadosamente de­senhadas a pinça, os cílios sombreados, o rosto magistralmen­te maquilado, os lábios desenhados por um batom que lhes dava uma curva que naturalmente não tinham, tudo isto pa­recia integrado à perfeição de seu vestido longo, de um azul profundo e pouco usual, parecendo ter corte muito simples (o que estava longe de ser verdade), e de um tecido menos usual ainda — fosco, porém contendo uma luminosidade oculta.

— Eis uma mulher de talento — disse Mr. Satterthwaite, olhando-a de maneira aprovadora. — Eu me pergunto como ela será na realidade.

Porém agora estava pensando em mente, e não em corpo.

As palavras saíam arrastadas dos lábios dela, como era moda no momento.

— Meu querido, não era possível. Quero dizer, ou as coi­sas são possíveis ou não são.   E isso não era.   Era simples­mente palpitante.

Era a palavra da moda, agora — tudo era “palpitante”.

Sir Charles estava sacudindo uns coquetéis com grande energia e conversando com Angela Sutcliffe, uma mulher alta e grisalha, de boca travessa e olhos excepcionais.

Dacres estava conversando com Bartholomew Strange.

— Todo o mundo sabe o que é que há com o velho Ladisbourne.   Não há coudelaria que não saiba.

Ele falava com uma voz aguda e cortante — um homen­zinho vermelho, com ar de raposa, um bigodinho curto e olhar um tanto sonso.

Ao lado de Mr. Satterthwaite estava sentada Miss Wills, cuja peça, Mão Única, havia sido aclamada como das mais espirituosas e ousadas vistas em Londres nos últimos anos. Miss Wills era alta e magra, meio sem queixo, com cabelos louros muito mal penteados. Usava pince-nez e estava com um vestido de gaze verde murchíssimo. Sua voz era fina e sem personalidade.

— Fui ao sul da França — disse ela. — Mas, na ver­dade, não gostei muito. Não é nada agradável. Mas é claro que é muito útil para o meu trabalho... ver aquele movimen­to todo, sabe.

Pensou Mr. Satterthwaite: “Pobre coitada. Levada pelo sucesso para longe de seu lar espiritual... uma pensão em Bournemouth. É onde gostaria de estar.” Fascinava-o a di­ferença entre a palavra escrita e o autor que a escrevia. Aquele requintado tom de “homem do mundo” que Anthony Astor emprestava a suas peças — que vago vestígio dele poderia ser vislumbrado em Miss Wills? E então notou que os olhos azul pálido por trás do pince-nez eram singularmente inteligentes. Estavam, no momento, voltados para ele com um aspecto de avaliação que o desconcertou um pouco. Era como se Miss Wills o estivesse decorando cuidadosamente.

Sir Charles estava servindo o coquetel.

— Vou lhe dar um coquetel — disse Mr. Satterthwaite, levantando-se com agilidade.

Miss Wills deu um risinho nervoso.

— Acho que vou aceitar — disse ela.

A porta abriu-se e Temple anunciou Lady Lytton Gore e Mr. e Mrs. Babbington e Miss Lytton Gore.

Mr. Satterthwaite forneceu seu coquetel a Miss Wills e depois gravitou para as imediações de Lady Lytton Gore. Como já foi dito antes, ele tinha um fraco por títulos.

Além disso, posto de lado o esnobismo, gostava de da­mas, e isso não há a menor dúvida que Lady Mary era.

Ficando viúva em circunstâncias as mais difíceis com uma filha de três anos, ela tinha vindo para Loomouth, alu­gando uma pequena casa onde vivera desde então com uma empregada dedicadíssima. Era uma mulher alta e magra, pa­recendo ter mais do que seus cinqüenta e cinco anos reais. Sua expressão era mais doce do que tímida. Adorava a fi­lha, porém esta a deixava sempre um tanto alarmada.

Hermione Lytton Gore, mais conhecida — por motivos obscuros — como Egg, parecia muito pouco com a mãe. Não era bonita, decidiu Mr. Satterthwaite, porém, incontestavelmente atraente. E a causa de sua atração, pensou ele, es­tava em sua infindável vitalidade. Parecia ter duas vezes mais vida do que qualquer outra pessoa ali presente. Tinha cabelos escuros e olhos cinza, e era de meia altura. Era qualquer coisa no jeito do cabelo encaracolar na nuca, no olhar destemido dos olhos cinza, na curva do rosto, ou em seu riso contagiante que dava aquela impressão de juventude e vitalidade incontroláveis.

Ela estava de pé, conversando com Oliver Manders, que acabava de chegar.

— Não compreendo como é que você pode achar velejar cacete.   Antigamente você gostava.

— Egg, minha querida. A gente cresce.

Ele arrastava as palavras, levantando as sobrancelhas.

Era um rapaz bonito, aí pelos vinte e cinco anos. Havia, talvez, algo um tanto escorregadio em seu aspecto. Algo mais, talvez... algo... seria estrangeiro? Havia nele algo de pouco inglês.

Havia outra pessoa observando Oliver Manders. Um ho­menzinho com cabeça de ovo e bigodes de aspecto muito es­trangeiro. Mr. Satterthwaite fizera-se relembrar a M. Hercule Poirot. O homenzinho tinha sido muito afável. E Mr. Sat­terthwaite suspeitou de que ele exagerasse propositadamente seus maneirismos estrangeiros. Seus olhinhos brilhantes pare­ciam dizer: “Esperam que eu seja um bufão? Que represen­te uma comédia para vocês? Bien... será exatamente como querem!”

Porém de momento não havia nenhum brilho nos olhos de Hercule Poirot. Parecia grave, e um pouco entristecido.

O Reverendo Stephen Babbington, Reitor de Loomouth, veio juntar-se a Lady Mary e Mr. Satterthwaite. Era um ho­mem de sessenta e poucos anos, com olhos bondosos e desbotados, e uma timidez cativante.   Disse a Mr. Satterthwaite:

— Temos muita sorte em ter Sir Charles morando entre nós. Ele tem sido muito bondoso... e muito generoso. Um vizinho agradabilíssimo de se ter. Tenho a certeza de que Lady Mary concordará.

Lady Mary sorriu.

— Eu gosto muito dele. Não foi estragado pelo sucesso. Sob muitos aspectos — o sorriso ampliou-se — ainda é uma criança.

A copeira aproximou-se com a bandeja de coquetéis no momento em que Mr. Satterthwaite comentava consigo mes­mo o quanto as mulheres são eternamente maternais. Per­tencendo a uma geração vitoriana, naturalmente ele apro­vava tais sentimentos.

— Você pode tomar um, Mãezoca — disse Egg, apareci­da de não sei onde, com um copo na mão. — Mas só um.

— Muito obrigada, querida — disse Lady Mary, humil­demente.

— Creio — disse Mr. Babbington — que minha esposa permitiria que eu tomasse um.

E deu seu suave risinho clerical.

Mr. Satterthwaite voltou o olhar para Mrs. Babbington, que conversava apaixonadamente com Sir Charles sobre o problema do estrume.

“Tem olhos notáveis”, pensou ele.

Mrs. Babbington era uma mulher grande e desarruma­da. Parecia ter muita energia e ser isenta de idéias mesqui­nhas.   Como dissera Charles Cartwright, uma simpatia.

— Diga-me — Lady Mary inclinou-se para a frente. — Quem é a moça com quem o senhor estava falando quando chegamos... aquela de verde?

— É a autora teatral Anthony Astor.

— O quê? Aquela... aquela moça de aspecto anêmico? Oh! — Ela controlou-se. — Fui muito grosseira. Mas foi real­mente uma surpresa. Ela não parece, quero dizer, ela tem o aspecto exato de uma ama-seca sem prática.

A descrição era tão apropriada à aparência de Miss Wills que Mr. Satterthwaite teve de rir. Mr. Babbington espiava para o outro lado da sala com seus bondosos olhos míopes. Tomou um golinho de seu coquetel e engasgou-se um pouco.

“Não está habituado a tomá-los”, pensou Mr. Sat­terthwaite, “é provável que para ele ainda sejam símbolos de modernices... e nem sequer gostava”. Mr. Babbington tomou um outro gole, resoluto, com o rosto um pouco con­traído, e disse:

— Trata-se daquela senhora ali? Ora, que coisa...

Sua mão subiu à garganta.

A voz de Egg Lytton Gore soou claro:

— Oliver... Mas que Shylock mais matreiro...

“Claro”, pensou Mr. Satterthwaite, “é isso... não é es­trangeiro... é judeu!”

Que lindo par eles faziam. Ambos tão jovens e atraen­tes... e além do mais brigando... o que é sempre um bom sinal...

Um som, a seu lado, chamou-lhe a atenção. Mr. Bab­bington pusera-se de pé e estava cambaleando. O rosto estava em contrações.

Foi a voz de Egg que chamou a atenção dos que estavam na sala, muito embora Lady Mary se tivesse levantado e es­tendido a mão, preocupada.

— Olhem — disse a voz de Egg, — Mr. Babbington está passando mal.

Sir Bartholomew Strange adiantou-se, apressadamente, sustentando o doente, e quase tendo de carregá-lo para um sofá do outro lado da sala. Os outros todos juntaram-se em volta, ansiosos por ajudar, porém impotentes...

Dois minutos mais tarde Strange levantou-se e sacudiu a cabeça. Falou rudemente, sabendo que não adiantava nada tentar atenuar o golpe:

— Sinto muito — disse ele. — Está morto...

 

                 SIR CHARLES PENSA

— Será que podia vir aqui, um momento, Satterthwaite?

Sir Charles apenas fizera seu rosto aparecer no vão da porta.

Passara-se uma hora e meia. A paz dera lugar à con­fusão. Lady Mary conduzira a chorosa Mrs. Babbington para fora da sala e, finalmente, levara-a para casa. Miss Milray fora eficiente no telefone. O médico local chegara e assu­mira o controle de tudo. Um jantar simplificado fora ser­vido, e de comum acordo os hóspedes, logo depois, haviam ido para seus respectivos quartos. Mr. Satterthwaite estava, ele mesmo, batendo em retirada, quando Sir Charles o cha­mou da porta do grande camarote naval no qual a morte ha­via ocorrido.

Mr. Satterthwaite entrou, reprimindo um ligeiro arrepio ao fazê-lo. Já tinha idade suficiente para não gostar de ver morte... Pois em breve, talvez, ele próprio... Mas por que ficar pensando nisso?

“Ainda posso continuar uns bons vinte anos” disse corajosamente Mr. Satterthwaite a si mesmo.

O único outro ocupante da sala era Bartholomew Stran­ge, que acenou sua aprovação ao ver Mr. Satterthwaite.

— Um bom homem — disse ele. — Podemos usar Sat­terthwaite.   Ele conhece a vida.

Um tanto surpreendido, Mr. Satterthwaite sentou-se numa cadeira de braços perto do doutor. Sir Charles cami­nhava para cima e para baixo. Havia esquecido as mãos meio fechadas, e tinha aspecto positivamente menos naval.

— Charles não está gostando — disse Sir Bartholomew. — Da morte do pobre do Babbington, quero dizer.

Mr. Satterthwaite considerou que o sentimento tinha sido mal expressado. Ninguém poderia “gostar” do que havia ocor­rido. Compreendeu que Strange estava querendo dizer algo muito diferente daquilo que as meras palavras transmitiam.

— Foi muito perturbador — disse Mr. Satterthwaite, cautelosamente, descobrindo onde pisava. — Muito perturba­dor, mesmo — acrescentou com um arrepio provocado pela lembrança.

— Hum, realmente, foi um tanto doloroso — disse o médico, deixando por um momento que o tom profissional penetrasse em sua voz.

Cartwright parou de andar.

— Alguma vez você já viu alguém morrer exatamente daquele jeito, Tollie?

— Não — disse Sir Bartholomew, pensativo. — Não posso dizer que vi. Porém — acrescentou após alguns momen­tos, — na realidade não tenho visto tantas mortes quanto se possa imaginar. Um especialista de nervos não mata muitos clientes. Procura mantê-los vivos, para tirar deles seus meios de subsistência.   Não tenho a menor dúvida de que MacDou­gal já viu muito mais gente morta do que eu.

Dr. MacDougal, que havia sido chamado por Miss Mil­ray, era o principal médico de Loomouth.

— MacDougal não viu o pobre coitado morrer. Já es­tava morto quando ele chegou. Só pode saber o que nós lhe dissemos, ou o que você lhe disse. Disse ele que foi alguma espécie de ataque, que Babbington era idoso, e que sua saú­de não era lá das melhores. O que não me satisfaz.

— Provavelmente não satisfaz a ele tampouco — res­mungou o outro. — Porém, um médico tem que dizer alguma coisa. Ataque é uma boa palavra que não quer dizer abso­lutamente nada, mas parece satisfazer a mente leiga. E, afi­nal das contas, Babbington era idoso, e sua saúde andava meio abalada; a mulher dele falou nisso. É possível que hou­vesse algum ponto fraco não identificado, em algum lugar.

— Foi um ataque ou colapso típico, ou sei lá como o chama?

— Típico de quê?

— De alguma doença conhecida?

— Se você tivesse estudado medicina — disse Sir Bartho­lomew, — saberia que caso típico é coisa que praticamente não existe.

— Exatamente o que é que o senhor está sugerindo, Sir Charles? — perguntou Mr. Satterthwaite.

Cartwright não respondeu. Fez um gesto vago com a mão. Strange deu um breve riso.

— Nem Charles sabe — disse ele. — É só que sua mente fica se voltando muito naturalmente para as possibilidades dramáticas.

Sir Charles fez um gesto de reprovação. Seu rosto esta­va absorto, pensativo. Sacudiu ligeiramente a cabeça, abs­traído.

Uma semelhança fugaz espicaçou Mr. Satterthwaite — mas de repente ele a identificou. Aristide Duval, o chefe do Serviço Secreto, a destrinçar o complicadíssimo enredo de Fios Subterrâneos. Em mais um instante, tinha a certeza, Sir Charles estaria claudicando inconscientemente. Aristide Du­val era conhecido como “O Homem que Manca”.

Sir Bartholomew continuava a aplicar um bom senso implacável às suspeitas ainda amorfas de Sir Charles.

— Bom, do que é que você está suspeitando, Charles? Suicídio? Assassinato? Quem haveria de querer matar um sacerdote inofensivo? É fantástico. Suicídio? Bom, aí é possível alguma coisa. Talvez possamos conceber alguma ra­zão para o velho Babbington querer se liquidar...

— Que razão?

Sir Bartholomew sacudiu suavemente a cabeça.

— Quem pode conhecer os segredos da mente humana? Mas vamos fazer uma sugestão... suponhamos que Babbing­ton tivesse sido informado de que sofria de uma doença incurável, assim como câncer. Uma coisa desse tipo poderia nos dar um motivo. Poderia querer poupar à esposa a dor de testemunhar seu próprio sofrimento prolongado. Claro que isso não passa de uma sugestão. Não há nada no mundo que nos leve a pensar que Babbington quisesse acabar com a própria vida.

— Não era tanto de suicídio que eu estava pensando — começou Sir Charles.

Bartholomew Strange novamente deu seu riso discreto.

— Exatamente. Você não está procurando o provável. Você quer sensação... um veneno novo e não identificável nos coquetéis.

Sir Charles fez uma careta expressiva.

— Não tenho tanta certeza de querer isso. Afinal das contas, Tollie, você precisa se lembrar de que eu preparei os benditos coquetéis.

— Um ataque repentino de homicídio compulsivo, hein? Vai ver que no nosso caso os sintomas são retardados, mas que estaremos todos mortos pela manhã, não é?

— Raios, não precisa fazer piada; mas... — Sir Char­les interrompeu-se irritado.

— Não estou realmente fazendo nenhuma piada — disse o médico.

Sua voz tinha-se alterado. Estava grave, muito embora não sem um toque de compreensão.

— Não estou brincando com a morte do pobre do Bab­bington. Estou me divertindo com as suas sugestões, Charles, porque... bem... porque não desejo que você, agindo impen­sadamente, cause maiores danos.

— Danos? — perguntou Sir Charles.

— É possível que compreenda o que estou tentando di­zer, Mr. Satterthwaite?

— Creio que posso adivinhá-lo — respondeu o outro.

— Você não percebe, Charles — continuou Sir Bartho­lomew — que essas suas suspeitas gratuitas podem ser posi­tivamente danosas? Esse tipo de coisa corre logo. A mais longínqua sugestão de má-fé, sem qualquer fundamento, pode causar sofrimento e problemas para Mrs. Babbington. Já vi esse tipo de coisa acontecer uma ou duas vezes. Uma morte repentina, algumas línguas compridas trabalhando, boatos por todo canto, boatos que crescem cada vez mais... Raios, Charles, não há quem possa fazer esse tipo de coisa parar. Com os diabos, Charles, você não percebe como seria inútil e cruel uma coisa dessas? Você está apenas deixando sua tendência natural para o imaginativo sair galopando por caminhos me­ramente especulativos.

Um ar de hesitação apareceu no rosto do ator.

— Eu não tinha pensado nesse aspecto — confessou.

— Você é um sujeito de primeira, Charles, mas sempre se deixa levar pela imaginação.   Vamos, vamos: você sincera­mente acha que alguém, quem quer que seja, haveria de que­rer assassinar um velho absolutamente inofensivo?

— Creio que não — retrucou Sir Charles. — Não; como diz você, é ridículo. Desculpe, Tollie, mas eu não estava “re­presentando”. Eu realmente tive um palpite de que havia al­guma coisa de errado em tudo isso.

Mr. Satterthwaite tossiu discretamente.

— Posso fazer uma sugestão? Mr. Babbington passou mal momentos depois de ter entrado na sala, e logo após ter tomado seu coquetel. Bem, acontece que eu notei que ele fez cara de quem não estava gostando muito da bebida. Jul­guei que não estava habituado a beber. Porém suponhamos que a sugestão tentativa de Sir Bartholomew esteja corre­ta... que Mr. Babbington pudesse ter alguma razão para querer se suicidar. Essa me pareceria ficar dentro dos limi­tes do possível, enquanto que a sugestão de assassinato parece inteiramente ridícula!

“Creio que é possível, embora não provável, que, sem que nós pudéssemos ver, Mr. Babbington tenha posto algu­ma coisa em seu copo.

“Acontece que vejo que nada foi ainda tocado aqui na sala. Os copos de coquetel estão exatamente onde foram dei­xados. Este aqui é o de Mr. Babbington. Eu sei, porque estive sentado aqui, conversando com ele. Eu sugiro que Sir Bartholomew mande analisar o copo... o que pode ser feito discretamente, sem provocar qualquer tipo de comentário.”

Sir Bartholomew levantou-se e pegou o copo.

— Muito bem — disse ele. — Até aí eu vou para satisfa­zer os seus “palpites”, Charles; mas aposto dez por um que não vamos encontrar nada a não ser gim e vermute de boa qualidade.

— Feito — disse Sir Charles.

E então acrescentou, com um sorriso enigmático:

— Você precisa saber, Tollie, que em boa parte você é o responsável por minhas elocubrações imaginativas.

— Eu?

— Isso mesmo, com tudo aquilo que me disse sobre cri­mes, hoje de manhã. Você disse que esse tal de Hercule Poi­rot era uma espécie de pára-raios de crimes, e que, onde ele ia, lá iam os crimes atrás. E mal ele chegou ficamos com uma morte suspeitissimamente repentina nas mãos. É claro que imediatamente meus pensamentos tinham de se voltar para o crime.

— Eu me pergunto... — disse Mr. Satterthwaite, e parou.

— Exato — disse Charles Cartwright. — Também já pen­sei nisso. O que acha, Tollie? Será que poderíamos perguntar o que ele acha disso tudo?   Quero dizer, será de acordo com a etiqueta?

— Boa pergunta — comentou Mr. Satterthwaite.

— Conheço etiqueta médica, mas macacos me mordam se sei alguma coisa a respeito da detecção de crimes.

— Não se pode pedir a um cantor profissional que can­te — murmurou Mr. Satterthwaite. — Será que se pode pedir a um detetive profissional para detectar? É uma questão mui­to sutil.

— Só queremos uma opinião — disse Sir Charles.

Houve uma batida discreta na porta, e o rosto de Her­cule Poirot apareceu, espiando para dentro com expressão de quem pede desculpas.

— Entre, homem — gritou Sir Charles, levantando-se de um salto. — Estávamos mesmo falando do senhor.

— Julguei que pudesse talvez estar me intrometendo.

— De modo algum. Quer tomar alguma coisa?

— Não, obrigado. Raramente bebo uísque. Um cálice de xarope de... bem...

Porém os xaropes preparados não estavam incluídos na idéia que Sir Charles tinha de líquidos bebíveis. Tendo ins­talado seu hóspede numa cadeira, o ator foi direto ao ponto.

— Nada de rodeios — disse ele. — Estávamos justamente ralando a seu respeito, M. Poirot, e... e... do que aconteceu aqui, hoje à noite. Escute aqui, parece-lhe que possa ha­ver alguma coisa de esquisito no caso?

As sobrancelhas de Poirot ergueram-se. Disse:

— Esquisito?   O que querem dizer com... esquisito?

Bartholomew Strange esclareceu:

— O meu amigo aqui encasquetou a idéia de que o Ve­lho Babbington possa ter sido assassinado.

— E o senhor acha que não... não é?

— Gostaríamos de saber o que o senhor pensa.

Poirot disse, pensativo:

— Ele, na realidade, foi acometido de um mal súbito... muito súbito, para sermos mais exatos.

— Exato.

Mr. Satterthwaite explicou a teoria do suicídio, bem como sua sugestão de que o copo fosse analisado. Poirot acenou sua aprovação.

— E o resultado da análise, segundo o senhor, será... o quê?

Poirot deu de ombros.

— Eu? Só posso adivinhar. Pedem que eu adivinhe qual será o resultado da análise?

— É?...

— Então dou o palpite de que só serão encontrados os restos de um excelente martini. — Fez uma pequena inclina­ção na direção de Sir Charles. — Envenenar um homem com um coquetel, um entre muitos servidos em uma bandeja... bom, seria uma técnica muito... muito... difícil. E se aquele sacerdote encantador tivesse desejo de se suicidar, duvido que o fizesse em uma festa. Tal gesto seria da maior falta de consideração para com todos os presentes, e Mr. Babbington pareceu-me uma pessoa cheia de consideração para com os outros. — Fez uma pausa. — Essa, já que me perguntam, é a minha opinião.

Houve um momento de silêncio. E então Sir Char­les deu um profundo suspiro. Abriu uma das janelas e olhou para fora.

— O vento rondou ligeiramente — disse ele.

O marinheiro revivera, e o investigador do Serviço Se­creto desaparecera.

Porém ao observador Mr. Satterthwaite pareceu que Sir Charles sonhava com o papel que, afinal, não iria fazer.

 

                   UMA ELAINE MODERNA

— Sim, o que é que o senhor acha, Mr. Satterthwaite? O que é que acha mesmo?

Mr. Satterthwaite olhou para um lado e para o outro. Mas não havia fuga possível. Egg Lytton Gore o havia en­curralado definitivamente no cais de pesca. Como eram im­piedosas essas mocinhas modernas — e assustadoramente vivas.

— Foi Sir Charles que meteu essa idéia em sua cabeça — disse ele.

— Não meteu nada. Já estava lá. Desde o princípio. Foi repentino de assustar.

— Ele era um homem idoso, e sua saúde não era das melhores...

Egg cortou o discurso em meio.

— Que bobajada. Ele sofria de nevrite; com um ligeiro toque de artrite reumática. Isso não faz ninguém ter ataques. Ele nunca teve ataque nenhum. Era daquela espécie de por­teira que dá uns rangidos suaves de vez em quando, mas que vive até os noventa. O que é que o senhor achou do in­quérito?

— Pareceu-me perfeitamente... ora... normal.

— O que é que o senhor achou do depoimento do Dr. MacDougal? Técnico de doer, e tudo mais... descrição de­talhada dos órgãos... mas o senhor não teve a impressão de que por trás daquela chuva de palavras ele estava embromando? O que ele disse foi mais ou menos o seguinte: não ha­via nada que provasse que a morte não teve causas naturais.

— Você não está entrando por muitos melindres, minha cara?

— Eu não sei, mas ele estava... ele estava perplexo, mas não tinha nenhuma base para investigar, e por isso, re­fugiou-se em cautela médica. O que é que Sir Bartholomew Strange pensou?

Mr. Satterthwaite repetiu os comentários do médico.

— Fez pouco, não é? — disse Egg pensativa. — É claro, ele é muito cauteloso... acho que todo medalhão de Har­ley Street tem de ser.

— Não havia nada no copo do coquetel a não ser gim e vermute — lembrou-lhe Mr. Satterthwaite.

— E com isso, tudo fica resolvido. Mas mesmo assim aconteceu uma coisa depois do inquérito que me fez pensar...

— Alguma coisa que Sir Bartholomew lhe disse?

Mr. Satterthwaite começou a sentir uma deliciosa curio­sidade.

— Não a mim... a Oliver. Oliver Manders... ele es­tava no jantar, naquela noite, mas é possível que não se lembre.

— Lembro-me muito bem. Ele é grande amigo seu?

— Costumava ser. Agora nós brigamos quase o tempo todo. Ele entrou para o escritório do tio, na City, e está fi­cando... sei lá, meio sebento, se é que percebe o que quero dizer. Fica sempre falando de largar tudo para ser jornalis­ta... ele escreve bastante bem. Mas acho que agora é tudo só farol. Quer ficar rico. Creio que todo mundo é meio no­jento em questões de dinheiro, e o senhor não, Mr. Sat­terthwaite?

A juventude dela atingiu-o em cheio, então — sua in­fantilidade crua e arrogante.

— Minha cara — disse ele — tanta gente é tão “nojen­ta” por causa de tanta coisa...

— Claro que a maior parte das pessoas é repugnante — concordou Egg alegremente. — E é por isso que fiquei tão revoltada por causa do pobre do Mr. Babbington. Porque, sabe, ele era uma gracinha. Foi quem me preparou para a crisma, e esse tipo de coisa, e muito embora boa parte desse negócio todo não passe de mistificação, ele foi realmente ma­ravilhoso em tudo o que fez por mim. O senhor sabe, Mr. Satterthwaite, eu realmente acredito no cristianismo... não como a Mãezoca, cheia de livrinhos e ofícios matinais, e coi­sas no gênero, mas inteligentemente, como uma questão his­tórica. A Igreja está toda entulhada de tradição paulina. Para falar a verdade a Igreja está um caos, mas o cristianis­mo em si não é nada mau. É por isso que eu não consigo ser comunista, como o Oliver. Na prática as nossas convic­ções parecem que funcionam de modo muito parecido, tudo em comum, propriedade comunitária e assim por diante, mas a diferença... bom, não precisa ficar falando disso. Mas os Babbingtons eram realmente cristãos; não ficavam xeretando, e se metendo, e condenando, e jamais foram maldosos a res­peito de ninguém ou de coisa nenhuma. Umas graças... e tinha também o Robin...

— Robin?

— O filho... Ele estava na Índia e foi morto... Eu... eu era meio gamada pelo Robin...

Egg apertou os olhos. Seu olhar dirigiu-se para o mar...

E depois sua atenção voltou para Mr. Satterthwaite e para o presente.

— De modo que, por tudo isso, senti muito tudo o que aconteceu. Suponhamos que a morte não tenha sido na­tural...

— Minha cara!

— Bem, mas foi muito esquisito! O senhor há de con­cordar que foi muito esquisito!

— Mas você mesma acaba praticamente de provar que os Babbingtons não tinham um único inimigo.

— Pois isso é que torna tudo ainda mais esquisito. Eu não consigo descobrir qualquer motivo concebível...

— Fantasias! Não havia nada no coquetel.

— É possível que alguém lhe tenha dado uma injeção qualquer.

— Contendo veneno de seta dos índios da América do Sul — sugeriu Mr. Satterthwaite, ridicularizando suavemente a idéia.

Egg sorriu.

— Isso mesmo; nada como aquelas coisas misteriosas que não deixam vestígios. Pois muito bem, parece que todos es­tão resolvidos a fazer pouco do assunto. Mas é possível que, algum dia, descubram que nós estávamos com a razão.

— Nós?

— Sir Charles e eu.

Ela enrubesceu ligeiramente.

Mr. Satterthwaite pensou nas palavras e ritmos de sua geração, quando um volume de Citações para Todas as Ho­ras era encontrado em toda estante do país.

“Com ao menos duas vezes sua idade,

No rosto a cicatriz feita por sabre,

Queimado e rijo, fez que os olhos dela

O amassem, num amor de perdição.”

Sentiu-se um pouco envergonhado por pensar em termos de citações — Tennyson também merecia muito pouca con­sideração hoje em dia. Além de que Sir Charles não era bronzeado nem tinha cicatrizes, e Egg Lytton Gore, apesar de capaz de alguma paixão saudável, não tinha aspecto de quem morre por amor, nem fica à deriva em barcaças per­didas em rios. Não havia nela nada do frágil lírio de Astolat.

“A não ser”, pensou Mr. Satterwaite, “sua juventude...”

As moças sempre se sentiram atraídas por homens de meia-idade com passados interessantes. Ao que tudo indica­va, Egg não era nenhuma exceção à regra.

— Por que ele nunca se casou? — perguntou ela abrup­tamente.

— Bem... — Mr. Satterthwaite fez uma pausa. Sua res­posta, se quisesse ser inteiramente franco, seria “Cautela”, po­rém compreendia que a palavra não seria aceitável para Egg Lytton Gore.

Sir Charles Cartwright tinha tido muitos casos com vá­rias mulheres, atrizes ou não, mas sempre havia conseguido manter-se afastado do matrimônio. Egg obviamente estava procurando alguma razão mais romântica.

— Aquela moça que morreu tuberculosa... uma atriz cujo nome começava com M... não diziam que ele gostava muito dela?

Mr. Satterthwaite lembrava-se muito bem da senhora em questão. Boatos haviam ligado o nome de Charles Cartwright ao dela, porém apenas muito de leve, e nem por um momen­to Mr. Satterthwaite acreditaria que Sir Charles tivesse fica­do solteiro a fim de lhe ser fiel à memória. E com o maior tato deu a entender sua opinião.

— Suponho que ele tenha tido pilhas de casos — dis­se Egg.

— Ah... hum... provavelmente — disse Mr. Sat­terthwaite, sentindo-se inteiramente vitoriano.

— Gosto de homens que têm casos — disse Egg.— Assim a gente sabe que não são frescos, nem coisas assim.

O vitorianismo de Mr. Satterthwaite levou novo e violen­to golpe. Ficou sem saber o que dizer. Egg não notou seu embaraço. Continuou a se ocupar com a própria imaginação.

— Sabe, Sir Charles na verdade é muito mais vivo do que se pensa. Claro que ele faz muita pose, que se autodra­matiza loucamente; mas por trás daquilo tudo a cabeça fun­ciona, e muito. Ele veleja muito melhor do que se possa pen­sar, ouvindo o que ele mesmo diz. Se a gente só pensasse no que ele diz, ia achar que tudo é pose, mas não é. E neste caso é a mesma coisa. A gente pensa que ele está querendo impressionar, que está querendo fazer o papel do grande detetive. Mas eu só tenho a dizer que acho que ele o faria muito bem.

— É possível — concordou Mr. Satterthwaite.

A inflexão que emprestou à voz demonstrava claramente seus sentimentos. Egg mordeu a isca e disse o que ele pen­sava.

— Mas na sua opinião A Morte do Pároco não se presta para história de detetive, não é? É apenas O Lamentável Incidente de um Jantar. Não passa de uma catástrofe social. O que M. Poirot achou? Ele deveria saber.

— M. Poirot aconselhou-nos a aguardar o resultado da análise do copo; porém em sua opinião tudo estava perfeita­mente em ordem.

— Ora, vá lá — disse Egg. — Ele está ficando velho. Seu tempo já passou. — Mr. Satterthwaite sentiu-se apunhalado. Egg continuou, sem notar a própria brutalidade: — O senhor precisa ir lá em casa tomar chá com minha mãe. Ela gosta do senhor. Ela disse que gosta.

Delicadamente desvanecido, Mr. Satterthwaite aceitou o convite.

Ao chegarem, Egg ofereceu-se para telefonar a Sir Char­les explicando a ausência do hóspede.

Mr. Satterthwaite sentou-se na minúscula sala de estar, com seus estofados desbotados e seus enceradíssimos móveis antigos. Era uma sala vitoriana, aquilo que em sua mente Mr. Satterthwaite chamava de uma sala feminina, que me­recia toda a sua aprovação.

Sua conversa com Lady Mary foi agradável, nada bri­lhante, mas uma deliciosa conversa miúda. Falaram de Sir Charles. Mr. Satterthwaite o conhecia bem? Não intimamen­te, disse Mr. Satterthwaite. Tivera interesse financeiro numa das peças de Sir Charles havia alguns anos, e desde então ti­nham ficado amigos.

— Ele tem muito charme — disse Lady Mary, sorrindo. — Sou sensível a ele, tanto quanto Egg. Suponho que já per­cebeu que ela está com um caso agudo de culto de herói?

Mr. Satterthwaite perguntou a si mesmo se, como mãe, Lady Mary não ficava ligeiramente perturbada com tal culto. Porém não parecia.

— Egg vê tão pouco do mundo — disse ela, com um sus­piro. — Nós temos tão pouco. Uma de nossas primas cuidou de seu debut e levou-a a alguns lugares, mas desde então ela praticamente não tem saído daqui, a não ser por visitas oca­sionais. Eu acho que os jovens precisam ver gente e luga­res... mas particularmente gente. De outro modo... bem, a proximidade pode às vezes ser perigosa.

Mr. Satterthwaite concordou, pensando em Sir Charles e no barco, porém não era isso que Lady Mary tinha em men­te, como ficou claro logo depois.

— A vinda de Sir Charles tem sido muito benéfica para Egg. Seus horizontes ampliaram-se. Deve saber que há pou­cos jovens por aqui... especialmente rapazes. Sempre temi que Egg se casasse apenas pelas circunstâncias levarem-na a ver sempre a mesma pessoa, sem conhecer outras.

Mr. Satterthwaite teve uma intuição imediata.

— A senhora está pensando no jovem Oliver Manders?

Lady Mary enrubesceu de surpresa fabricada.

— Ora, Mr. Satterthwaite, como é que o senhor soube? Era nele que eu estava pensando. Ele e Egg andavam muito juntos há uns tempos atrás, e eu sei que sou muito antiquada, porém não gosto das idéias dele.

— A juventude tem de ser assim mesmo — disse Mr. Satterthwaite.

Lady Mary sacudiu a cabeça.

— Tenho temido tanto... ele é muito boa pessoa, é cla­ro, pois sei tudo a respeito dele; e o tio, que recentemente o admitiu em sua firma, é um homem muito rico. Não é isso... sei que é tolice minha... mas...

Sacudiu a cabeça, incapaz de continuar a expressar suas idéias.

Mr. Satterthwaite sentiu-se curiosamente íntimo da casa. Disse, tranqüilo e direto:

— Mesmo assim, Lady Mary, a senhora não gostaria de que sua filha se casasse com um homem que tem o dobro da idade dela.

A resposta dela o surpreendeu.

— Pode ser mais garantido assim. Numa situação dessas ao menos se sabe a quantas se anda.   Nessa idade as tolices e pecados de um homem já são coisas do passado; não es­tão... ainda para acontecer.

Antes que Mr. Satterthwaite pudesse fazer mais qualquer comentário, Egg reuniu-se a eles.

— Você demorou muito, querida — disse a mãe.

— Estava conversando com Sir Charles, doçura. Ele fi­cou esplendorosamente só. — Voltou-se para Mr. Satterth­waite, repreendendo-o. — O senhor não me disse que os hóspedes tinham debandado.

— Foram embora ontem... menos Sir Bartholomew Strange. Ele ia ficar até amanhã, mas foi chamado urgente­mente por telegrama esta manhã. Um de seus pacientes está em estado grave.

— Que pena — disse Egg. — Porque eu queria estudar os convidados. Talvez conseguisse alguma pista.

— Pista de quê, querida?

— Mr. Satterthwaite sabe. Bem, não tem importância. Oliver ainda está aqui. Vamos conquistá-lo para a causa. Quando ele quer, cabeça é que não lhe falta.

Quando Mr. Satterthwaite chegou ao Topo do Mastro en­controu o anfitrião sentado no terraço que dava para o mar.

— Olá, Satterthwaite. Foi tomar chá com as Lytton Gore?

— Fui. Espero que não se importe.

— Claro que não. Egg telefonou... Garota estranha, Egg...

— Muito atraente — disse Mr. Satterthwaite.

— Hum, é, creio que sim.

Ele se levantou e deu alguns passos a esmo.

— Eu só pedia a Deus — disse ele repentina e amarga­mente — que eu nunca tivesse posto os pés neste desgraçado lugar.

 

               FUGINDO DE UMA DAMA

Mr. Satterthwaite pensou consigo mesmo: “Ele está mal. Pegou em cheio”.

Sentiu repentinamente pena de seu anfitrião. Com cin­qüenta e dois anos, Charles Cartwright, o alegre e despreo­cupado despedaçador de corações, estava apaixonado. E, como ele mesmo o sabia, só podia esperar uma desilusão. A juventude quer a juventude.

“Não há moça que goste de alardear seu amor”, pensou Mr. Satterthwaite. “Egg exibe para todo lado o que sente por Sir Charles. Não o faria se fosse realmente sério. O jovem Manders é o eleito”.

Mr. Satterthwaite costumava ser muito Percuciente em suas deduções.

Mesmo assim, havia provavelmente ao menos um fator que ele não estava levando em conta, por não ter condições para ter consciência dele: a supervalorização da juventude pelos que já têm mais idade. Para Mr. Satterthwaite, um ho­mem já maduro, o fato de Egg preferir um homem de meia-idade a um jovem parecia absolutamente impossível. Para ele a juventude era, entre todos, o mais miraculoso dos dons.

Suas convicções foram fortalecidas quando Egg telefonou depois do jantar, pedindo licença para trazer Oliver com ela para “uma consulta”.

Sem dúvida, um rapaz bonito, com seus olhos escuros, de pálpebras pesadas, seus movimentos fáceis e harmoniosos. Tinha, ao que tudo indicava, apenas concordado em ser arras­tado até ali — o que era um tributo à energia de Egg; po­rém sua atitude era preguiçosamente cética.

— Será que o senhor não pode tirar isso da cabeça dela? — disse ele a Sir Charles. — É essa vida bucólica e assusta­doramente saudável que ela leva que faz com que tenha tanta energia. Sabe, Egg, você na verdade é revoltantemente bem disposta. E seus gostos são infantis...   crimes... sensa­ções... toda essa porcaria.

— Você é muito cético, Manders.

— Bom, senhor, fora de brincadeira. Aquele velhinho simpático, sempre balindo. É loucura pensar em qualquer coisa que não sejam causas naturais.

— Vai ver que tem razão — disse Sir Charles.

Mr. Satterthwaite deu-lhe uma olhada. Que papel esta­ria ele representando agora? Não era o de oficial reforma­do — nem o do detetive internacional. Não, era algum pa­pel novo, desconhecido.

Foi um choque para Mr. Satterthwaite descobrir que Sir Charles estava fazendo papel de coadjuvante, o de “o amigo fiel que ama em silêncio”. Ele estava dando o papel princi­pal a Oliver Manders.

Ele se inclinou para trás com a cabeça na sombra, obser­vando os dois, Egg e Oliver, enquanto discutiam — Egg es­quentada, Oliver lânguido.

Sir Charles parecia mais velho do que de costume — velho e cansado.

Por várias vezes Egg apelou para ele — com calor e con­fiança — porém sua reação não correspondeu.

Eram onze horas, quando saíram. Sir Charles foi até o terraço com eles e ofereceu para emprestar uma lanterna elé­trica para ajudar na descida da trilha.

Porém não havia necessidade. A noite estava linda e en­luarada. Partiram os dois, as vozes tornando-se mais fracas à medida que se afastavam.

Com luar ou sem luar Mr. Satterthwaite não queria arris­car um resfriado. Voltou para a sala. Sir Charles ainda de­morou-se um pouco no terraço.

Depois de entrar trancou a porta atrás de si e, cruzando até a mesa das bebidas, serviu-se de uísque com soda.

— Satterthwaite — disse ele, — amanhã vou deixar isto aqui de vez.

— O quê? — exclamou Mr. Satterthwaite, atônito.

Uma espécie de prazer melancólico pelo efeito obtido apareceu por um minuto no rosto de Charles Cartwright.

— É a Única Coisa A Fazer — disse ele, obviamente fa­lando com maiúsculas o tempo todo. — Vou vender isto aqui. O que significou para mim ninguém jamais saberá. — A voz baixou, ralentou, ficou pairando no ar, com grande efeito.

Depois de toda uma noitada como coadjuvante, o egoís­mo de Sir Charles estava se vingando. Esta era a grande Cena da Renúncia, que ele tantas vezes representara em tan­tas peças diferentes. Abdicar da Mulher do Outro, ou Re­nunciar à Moça que Amava.

Havia um toque de corajoso descaso em sua voz, quando continuou.

— Perdas e danos... não há outra saída... Aos jovens, a juventude... Aqueles dois foram feitos um para o outro... Eu vou dar o fora...

— E vai para onde? — perguntou Mr. Satterthwaite.

O ator fez um gesto de descaso.

— Qualquer lugar. O que importa? — acrescentou com ligeira mudança de tom. — Provavelmente Monte Carlo. — E então, para consertar o que seu sensibilíssimo bom gosto lhe dissera ter sido um ligeiro anticlímax: — Perdido num deserto ou numa multidão... que diferença faz? O verdadei­ro âmago do homem é solitário... é sozinho. Eu sempre fui... uma alma solitária...

Estava claro que essa era uma fala de final de cena.

Ele inclinou a cabeça para Mr. Satterthwaite e deixou a sala.

Mr. Satterthwaite levantou-se e se preparou para seguir o exemplo do anfitrião, indo deitar-se.

“Mas no deserto é que não vai ser”, pensou de si para si, com uma ligeira risadinha.

Na manhã seguinte Sir Charles pediu a Mr. Satterth­waite que o perdoasse por ter de ir à cidade naquele dia.

— Mas não abrevie sua visita aqui, meu caro. Você ia ficar até amanhã, e sei que vai daqui para os Haberstons em Tavistock. O carro o levará. O que eu acho é que, já que tomei uma decisão, não devo olhar mais para trás. Não, não posso olhar.

Sir Charles endireitou os ombros com resolução viril, apertou com fervor a mão de Mr. Satterthwaite, e entregou-o às capacíssimas mãos de Miss Milray.

Miss Milray pareceu tão preparada para enfrentar esta situação quanto sempre estivera para qualquer outra. Não expressou nem surpresa nem emoção ante a decisão repentina de Sir Charles. E nem Mr. Satterthwaite conseguiu que se manifestasse de, qualquer modo a respeito. Nem mortes re­pentinas nem mudanças repentinas de planos conseguiam per­turbar Miss Milray. Aceitava tudo como fato, e partia para lidar com ele de modo eficiente. Telefonou a vários agentes imobiliários, mandou telegramas para o estrangeiro, e mar­telou muito na máquina de escrever. Mr. Satterthwaite es­capou daquela deprimente exibição de eficiência caminhando até o cais. Estava caminhando sem saber para onde, quando foi agarrado no braço por trás, e voltou-se para deparar com uma moça pálida como um lençol.

— Que história é essa? — perguntou Egg com violência.

— Que história? — defendeu-se Mr. Satterthwaite.

— Está correndo por todo lado que Sir Charles vai em­bora... que ele vai vender o Topo do Mastro.

— Exatamente.                                                  

— Ele vai embora?

— Já foi.

— Oh! — Egg largou-lhe o braço. Repentinamente pa­recia uma criança pequena que tinha sido cruelmente ferida.

Mr. Satterthwaite não sabia o que dizer.

— Para onde ele foi?

— Para o estrangeiro. Sul da França.

— Oh!

Ele continuava sem saber o que dizer. Pois obviamente o caso não era apenas de culto de herói...

Sentindo pena dela, estava pensando em várias expres­sões de consolo possíveis quando ela falou de novo — e lhe deu um susto.

— Com qual daquelas vagabundas? — perguntou Egg com ferocidade.

Mr. Satterthwaite fixou os olhos nela, a boca aberta de surpresa. Egg tornou a agarrá-lo pelo braço e sacudiu-o violentamente.

— O senhor deve saber — gritou. — Qual delas? A gri­salha ou a outra?

— Minha querida, não sei do que está falando.

— Sabe sim, tem de saber. Claro que tem de ser alguma mulher. Ele gostava de mim... sei que gostava. Uma da­quelas duas mulheres que estavam lá naquela noite deve ter percebido também, e na certa resolveu afastá-lo de mim. Odeio as mulheres. Bando de fofoqueiras. O senhor viu só a roupa dela, aquela com o cabelo verde? Eu fiquei me tor­cendo de inveja. Uma mulher com roupas como aquelas tem muita influência, não se pode negar. Ela é arcaica, e feia de doer, mas isso não importa. Faz todo mundo parecer mais dona de casa de subúrbio. Foi ela? Ou foi a outra, de cabelo grisalho? Ela é muito divertida, qualquer um pode ver. E é tremendamente sexy. E ele a chamou de Angie. Não pode ser aquela que parecia um repolho murcho. É a elegante ou é a Angie?

— Minha cara, você meteu as idéias mais esquisitas do mundo em sua cabeça. Ele... hum... Charles Cartwright não está interessado nem de longe em nenhuma daquelas duas mulheres.

— Não acredito. Pelo menos elas estão interessadas nele...

— Nada disso, você está totalmente enganada. Tudo isso é pura imaginação.

— Vagabundas! — disse Egg. — Isso é que elas são.

— Minha querida, evite usar essa palavra.

— Pois fique sabendo que sei de outras muito piores para usar.

— É possível, é possível, mas rogo-lhe que não o faça. Estou certo de que você está se perturbando à base de um engano total.

— Então por que é que ele foi embora... assim?

— Creio que... hum... porque achou que era melhor assim.

Egg deu-lhe um olhar fulminante.

— O senhor que dizer... por minha causa?

— Bem... mais ou menos isso. É possível.

— Quer dizer que ele deu no pé. Bom, acho que tam­bém abri o jogo um pouco cedo demais... Os homens de­testam ser procurados, não é?   No final das contas a Mãe­zoca tem razão... O senhor não faz idéia de como ela ê uma gostosura quando fala de homem. Sempre na terceira pessoa... tudo muito vitoriano e correto. “Os homens não gostam de ser perseguidos; uma moça deve sempre deixar que o homem corra atrás dela.” Não é engraçadinho, ele “correr atrás dela”? Dá a impressão de que ele não quer realmente alcançá-la. Mas Charles correu mesmo. Só que tem que correu para o lado oposto. Correu de mim. Está com medo. E o pior de tudo é que eu não posso ir atrás. Se eu fosse, acho que ele tomava um navio e se embrenhava pela floresta africana, ou coisa que o valha.

— Hermione — disse Mr. Satterthwaite, — você está falando sério a respeito de Sir Charles?

A moça lançou-lhe um olhar impaciente.

— Claro que estou.

— E Oliver Manders?

Egg liquidou Manders com um movimento impaciente de cabeça. Estava mais interessada em seguir uma linha de pensamento própria.

— O senhor acha que eu devia escrever para ele? Nada que o assustasse. Só conversa boba de moça de minha ida­de... sabe como é, deixá-lo à vontade, para passar o susto...

Ela franziu a testa.

— Como eu fui boba. A Mãezoca aposto que enfrentava a situação muito melhor. Aquelas vitorianas eram cra­ques em matéria de fisgar homem. Todas enrubescidas e tímidas. E me enganei redondamente. Eu pensava mesmo que ele precisava uns empurrõezinhos. Ele parecia... bem, parecia precisar de uma ajuda. Diga-me — ela se voltou abruptamente para Mr. Satterthwaite, — ontem à noite ele me viu fazendo aquela cena de beijo com Oliver?

— Não tenho a menor idéia. A que horas?...

— Ao luar. Na hora em que estávamos descendo a encos­ta. Eu pensei que ele ainda estivesse olhando do terraço. Achei que talvez, se me visse com Oliver, bom, que talvez isso desse uma sacudidela nele. Porque ele gostava de mim. Eu juro que gostava.

— Mas isso não foi um pouco injusto para com Oliver?

Egg sacudiu decididamente a cabeça.

— Nem um pouco. Oliver acha que é uma honra para qualquer moça ser beijada por ele. Claro que não foi bom para o convencimento dele; mas também não se pode pensar em tudo. Eu queria instigar Charles. Ultimamente ele an­dava diferente... mais distante.

— Minha filha — disse Mr. Satterthwaite, — creio que você não compreendeu realmente a razão pela qual Sir Char­les partiu tão repentinamente. Ele achava que você amava Oliver. Ele só partiu para poupar-se maiores sofrimentos.

Egg virou-se como um raio. Agarrou Mr. Satterthwaite pelos ombros e olhou-o diretamente nos olhos, como que examinando-o.

— Isso é verdade? É verdade mesmo? Mas que bocó! Que débil! Oh!...

Largou Mr. Satterthwaite repentinamente e passou a an­dar a seu lado, quase aos pulos.

— Então ele vai voltar — disse ela — Vai voltar. Se não...

— Bem, e se não?...

Egg riu.

— Eu consigo trazê-lo de volta. Vai ver se não.

Parecia que, a não ser pelas naturais diferenças na lin­guagem usada, Egg e o lírio de Astolat tinham muito em comum, porém Mr. Satterthwaite reconheceu que os métodos de Egg eram mais práticos do que os de Elaine, e que mor­rer com o coração partido não faria nunca parte deles.

 

                                                               SEGUNDO ATO / CERTEZA

 

                 SIR CHARLES RECEBE UMA CARTA

Mr. Satterthwaite tinha vindo passar o dia em Monte Carlo. Tinha terminado uma série de visitas de alguns dias com cada amigo, e na verdade gostava muito da Riviera em setembro.

Estava sentado no jardim gozando o sol e lendo o Daily Mail da antevéspera.

Repentinamente um nome atraiu sua atenção. Strange. Morte de Sir Bartholomew Strange.   Leu o parágrafo todo:

Lamentamos profundamente ter de comunicar a morte de Sir Bartholomew Strange, famoso especialista em sistema ner­voso. Sir Bartholomew estava recebendo um grupo de hós­pedes em sua residência de Yorkshire e parecia estar gozando de perfeita saúde, e ótima disposição, tendo falecido repen­tinamente no final do jantar. Ele estava conversando com os amigos e tomando um cálice de porto quando um mal súbito o acometeu, vindo a falecer antes que pudesse receber quaisquer cuidados médicos. Sir Bartholomew será profunda­mente pranteado. Ele foi...

Seguia-se uma descrição detalhada da carreira e das obras de Sir Bartholomew.

Mr. Satterthwaite deixou o jornal cair-lhe das mãos. Tinha recebido um impacto profundamente desagradável. Lembrou-se do médico qual o vira pela última vez — grande, corado, brincalhão, em ótima forma. E agora — morto. Certas palavras destacaram-se do contexto e passaram a flu­tuar desagradavelmente na mente de Mr. Satterthwaite. “To­mando um cálice de porto”. “Mal súbito... faleceu antes... cuidados médicos...”

Porto, em lugar de um coquetel, mas de outro modo curiosamente semelhante à morte na Cornualha. Mr. Sat­terthwaite tornou a ver o rosto contorcido do velho e bon­doso sacerdote...

Supondo que, afinal...

Ele levantou os olhos para dar com Sir Charles Cart­wright cruzando o gramado em sua direção.

— Satterthwaite, mas que maravilha! Exatamente o ho­mem que eu queria ver. Já leu a notícia sobre o velho Tollie?

— Estou acabando de ler.

Sir Charles deixou-se cair numa cadeira a seu lado. Es­tava imaculadamente vestido para o iatismo. Nada mais de flanelas amarrotadas nem suéteres velhos. No momento era o iatista sofisticado do Sul da França.

— Escute, Satterthwaite; Tollie estava gozando da mais perfeita saúde. Nunca esteve doente na vida. Será que eu estou fazendo papel de idiota total, ou toda esta história lem­bra a você também da...

— Daquela outra história em Loomouth? É lógico! Mas é claro que podemos estar enganados. A semelhança pode ser inteiramente superficial. Afinal das contas, as mortes súbitas podem ser devidas a um sem-número de causas.

Sir Charles acenou com impaciência. Depois disse:

— Acabo de receber uma carta... de Egg Lytton Gore.

Mr. Satterthwaite disfarçou um sorriso.

— É a primeira vez que ela lhe escreve?

Sir Charles nem desconfiou.

— Não. Recebi outra logo que cheguei aqui. Que andou de um lado para o outro até conseguir me alcançar. Só con­tando as novidades e coisas assim. Eu não respondi... Raios, Satterthwaite, não tive coragem de responder... Ela não sabia de nada, é claro, e eu não estava disposto a fazer papel de bobo.

Mr. Satterthwaite passou a mão sobre os lábios nos quais o sorriso ainda continuava.

— E agora? — perguntou.

— Muito diferente. Está pedindo socorro.

— Socorro? — As sobrancelhas de Mr. Satterthwaite ergueram-se.

— Ela estava lá... sabe... na casa... quando aconteceu.

— Quer dizer que ela estava hospedada em casa de Sir Bartholomew Strange quando ele morreu?

— Exato.

— E o que diz ela de tudo isso?

Sir Charles tirara uma carta do bolso. Hesitou um mo­mento, depois entregou-a a Mr. Satterthwaite.

— É melhor você mesmo ler.

Mr. Satterthwaite desdobrou a página com grande curio­sidade.

“Prezado Sir Charles, não sei quando receberá isto. Espe­ro que em breve. Estou muito preocupada e não sei o que fazer. O senhor já terá visto nos jornais, estou certa, que Sir Bartholomew Strange morreu. Bom, ele morreu igual­zinho a Mr. Babbington. Não pode ser coincidência — não pode — não pode... Eu estou morrendo de preocupação..

Escute aqui, será que o senhor não podia voltar para casa e fazer alguma coisa? Dito assim parece meio estúpido, mas o senhor antes sentiu suspeitas, e ninguém prestou aten­ção, e agora um amigo seu foi morto; e é possível que se o senhor não voltar ninguém jamais descubra a verdade, e eu tenho a certeza de que o senhor pode descobrir. Eu sei que o senhor pode.

E há outra coisa. Há alguém que positivamente me preocupa... Ele não teve nada a ver com a história, isso eu sei, mas as coisas podiam ser interpretadas de modo esqui­sito. Por carta não dá para explicar. O senhor não quer voltar? O senhor poderia descobrir a verdade. Eu sei que sim.

A sua apressadíssima,

Egg.”

— E então? — perguntou Sir Charles com impaciência. Claro que é um pouco incoerente; foi escrita muito às pres­sas. Mas, que tal?

Mr. Satterthwaite dobrou a carta vagarosamente para se permitir um minuto ou dois antes de responder.

Concordava que a carta era incoerente, porém não jul­gava que tivesse sido escrita às pressas. Em sua opinião, tra­tava-se de um produto muito bem elaborado. Tinha sido concebido para atingir a vaidade, o cavalheirismo e o espírito esportivo de Sir Charles.

Pelo que Mr. Satterthwaite conhecia do ator, aquela carta não podia falhar.

— Quem você acha que ela quer dizer com “alguém”, e “ele”? — perguntou ele.

— Manders, suponho.

— Quer dizer que ele estava lá?

— Deve ter estado. Não sei por quê. Tollie só esteve com ele aquela única vez na minha casa. Por que razão haveria de convidá-lo para hospedar-se lá é que não consigo imaginar.

— Ele tinha muitos fins-de-semana assim com tanta gente?

— Três ou quatro por ano. Sempre havia um para as corridas.

— Ele passava muito tempo em Yorkshire?

— Tinha um grande sanatório... ou clínica de repouso, ou sei lá qual o nome que dão a essas coisas, bem grande. Ele comprou Melfort Abbey (uma casa antiquissima) e cons­truiu a clínica no parque.

— Compreendo.

Mr. Satterthwaite ficou silencioso por alguns instantes.

— Eu gostaria de saber quem mais esteve hospedado lá dessa vez.

Sir Charles sugeriu que talvez os nomes tivessem sido publicados por algum jornal, e os dois saíram para investigar as bancas.

— Aqui está — disse Sir Charles.

Leu alto:

Sir Bartholomew Strange continua a honrar sua tradição de receber por ocasião de St. Leger. Entre os hóspedes figu­ram Lord e Lady Eden, Lady Mary Lytton Gore, Sir Jocelyn e Lady Campbell, Capitão e Mrs. Dacres, e Miss Angela Sut­cliffe, a famosa atriz.

Ele e Mr. Satterthwaite entreolharam-se.

— Os Dacres e Angela Sutcliffe — disse Sir Charles. — Nada a respeito de Oliver Manders.

— Vamos comprar o Continental Daily Mail de hoje? — disse Mr. Satterthwaite. — Talvez traga alguma notícia.

Sir Charles deu uma olhada no jornal. De repente ficou tenso.

— Deus do céu, Satterthwaite, escute só isto:

SIR BARTHOLOMEW STRANGE.

No inquérito a respeito da morte de Sir Bartholomew Strange foi dado um veredicto de “morte por envenenamento com nicotina”, não tendo sido determinado como ou por quem foi ministrado o veneno.

Sua testa ficou franzida.

— Envenenamento com nicotina. Não parece muito vio­lento... não é o tipo de coisa que faça um homem ter um ataque, assim. Não compreendo...

— O que pretende fazer?

— Fazer? Vou reservar um leito no Trem Azul para hoje à noite.

— Bem — disse Mr. Satterthwaite, — acho que é melhor eu fazer o mesmo.

— Você? — Sir Charles voltou-se para ele, surpreendido.

— Esse tipo de coisa sempre me interessou muito — disse Mr. Satterthwaite com modéstia. — Já tenho tido... hum... alguma experiência nesse campo. Além disso, co­nheço bem o Chefe de Polícia daquela zona... o Coronel Johnson. Pode ser que seja útil.

— Assim é que eu gosto — retrucou Sir Charles. — Vamos à agência da Wagon Lits.

Mr. Satterthwaite pensou consigo mesmo:

“A moça conseguiu. Levou-o de volta. Bem que ela disse que levava. Eu só fico imaginando quanto daquela carta é verdadeiro.”

Não havia dúvida de que Egg Lytton Gore era uma oportunista.

Quando Sir Charles saiu para a agência de viagens, Mr. Satterthwaite passeou vagarosamente pelos jardins. Sua mente continuava agradavelmente engajada no problema de Egg Lytton Gore.   Admirava sua inventiva e sua energia, mesmo que ao preço de reprimir todo o lado vitoriano de sua natureza que desaprovava a idéia de qualquer integrante do sexo frágil tomar a iniciativa em assuntos do coração.

Mr. Satterthwaite era um homem observador. Em meio a suas cogitações a respeito do sexo feminino em geral, e de Egg Lytton Gore em particular, não pôde resistir a dizer para si mesmo:

“Onde será que eu já vi aquela cabeça de feitio tão esqui­sito antes?”

O dono da cabeça estava sentado num banco, pensando, olhando o horizonte. Era um homenzinho pequeno, cujos bigodes eram inteiramente desproporcionais a seu tamanho.

Uma menininha inglesa de aspecto infeliz estava ali por perto, apoiando-se primeiro num pé, depois noutro, e ocasio­nalmente dando um pequeno pontapé meditativo na borda florida de um canteiro.

— Não faça isso, querida — disse a mãe, que estava fascinada por uma revista de modas.

— Eu não tenho nada para fazer — disse a menina.

O homenzinho virou a cabeça para olhá-la, e Mr. Sat­terthwaite reconheceu-o.

— M. Poirot — disse ele. — Mas que surpresa agradável.

  1. Poirot levantou-se e curvou a cabeça como saudação.

— Enchanté, monsieur.

Apertaram-se as mãos, e Mr. Satterthwaite sentou-se.

— Parece que todo o mundo está em Monte Carlo. Não há meia hora que encontrei Sir Charles Cartwright, e agora aqui está o senhor.

— Sir Charles, ele também está aqui?

— Tem andado de iate. Não sabe que ele abandonou a casa de Loomouth?

— Ah, não, não o sabia. Estou surpreso.

— Eu não diria o mesmo. Não creio que Sir Charles seja do tipo de homem que goste de viver permanentemente afastado do mundo.

— Ah, não, nisso eu concordo com o senhor. Fiquei surpreendido por outro motivo. Pareceu-me que Sir Charles tinha uma razão muito particular para ficar em Loomouth... uma razão muito encantadora, hein? A pequena demoiselle a quem chamam tão pitorescamente de ovo? 1

Seus olhos tinham um brilho discreto.

— Quer dizer então que notou?

— Certamente que notei. Tenho o coração muito sus­cetível aos que se amam... e o senhor também, parece-me. E la jeunesse é sempre muito comovente.

Suspirou.

— Eu penso — disse Mr. Satterthwaite — que na verdade o senhor atinou com a razão pela qual Sir Charles deixou Loomouth.   Estava fugindo.

— De Mademoiselle Egg? Mas é óbvio que ele a adora. E, nesse caso, por que fugir?

— Ah! — disse Mr. Satterthwaite — o senhor não com­preende os nossos complexos anglo-saxões.

  1. Poirot estava seguindo o fio de seu próprio pen­samento.

— É claro — disse ele — que não deixa de ser uma boa jogada. Foge-se de uma mulher, e ela logo corre atrás. Sem dúvida Sir Charles, que é um homem muito experiente, sabe disso.

Mr. Satterthwaite divertiu-se com a idéia.

— Não creio que tenha sido exatamente assim — disse ele. — Mas diga-me, o que está fazendo por aqui? Tomando umas férias?

— Hoje em dia eu estou sempre de férias. Tive sucesso. Estou rico. Aposentei-me. E então agora viajo para ver o mundo.

 

1 (N. da T.) — O jogo de palavras fica perdido em português: egg = ovo.

 

— Esplêndido — disse Mr. Satterthwaite.

— N’est-ce pas?

— Mamãe — disse a menininha inglesa — não tem nada para fazer?

— Querida — disse a mãe em tom ligeiramente repreen­sivo, — você não acha maravilhoso ter viajado para ver esse sol maravilhoso?

— Acho, mas não tem nada para a gente fazer.

— Corra um pouco... divirta-se. Vá olhar um pouco o mar.

— Mamam — disse uma menina francesa que apareceu repentinamente. — Joue avec moi.

Uma mãe francesa levantou os olhos de seu livro.

— Amuse toi avec la baile, Marcelle. Obedientemente a menina começou a jogar sua bola com expressão tristonha.

— Je m’amuse — disse Hercule Poirot; e havia uma ex­pressão muito curiosa em seu rosto.

E então, como se respondendo alguma coisa que tivesse lido no rosto de Mr. Satterthwaite, disse:

— Pois não, o senhor é de percepção muito rápida. É exatamente como pensa...

Ficou em silêncio um instante, depois disse:

— Veja o senhor, em criança eu era pobre. Éramos muitos. Tínhamos de progredir na vida. Entrei para a Po­lícia. Trabalhei duro. Vagarosamente fui sendo promovido. Comecei a fazer nome. Eu mesmo fiz o meu nome. Come­cei a ter reputação internacional. E finalmente, estava pron­to para me aposentar. Então veio a guerra. Fui ferido. Como refugiado triste e cansado cheguei à Polônia. Uma senhora bondosa ofereceu-me sua hospitalidade. Ela morreu... po­rém não naturalmente; não, ela foi morta. Empreguei mi­nhas pequenas células cinzentas. Descobri seu assassino. Des­cobri que ainda não estava acabado. Não, na verdade, todos os meus poderes estavam no auge. E então começou a minha segunda carreira, a de investigador particular na Inglaterra. Tenho resolvido muitos problemas fascinantes e perplexos. Ah, monsieur, eu tenho vivido! A psicologia da natureza humana é maravilhosa. Fiquei rico. Algum dia, eu costu­mava dizer a mim mesmo, terei todo o dinheiro de que neces­sito.Realizarei todos os meus sonhos.

Ele pousou a mão sobre o joelho de Mr. Satterthwaite

— Meu amigo, cuidado com o dia no qual todos os seus sonhos se realizam. Aquela criança ali perto na certa tam­bém sonhou com o dia em que pudesse fazer uma viagem ao estrangeiro... com as novidades... com o quanto tudo iria ser diferente. Compreende?

— Eu compreendo — disse Mr. Satterthwaite — o senhor não está se divertindo.

Poirot acenou com a cabeça.

— Exatamente.

Havia momentos em que Mr. Satterthwaite ficava pare­cido com Puck. E este era um deles. Seu rostinho enrugado parecia endiabrado. Hesitou. Será que devia? Será que não devia?

Vagarosamente ele desdobrou o jornal que ainda tinha nas mãos.

— Já viu isto, M. Poirot?

Com o indicador mostrou o parágrafo a que se referia.

O pequeno cavalheiro belga tomou o jornal. Não houve nenhuma mudança em seu rosto, porém o inglês teve a im­pressão de que seu corpo se enrijecera, como o de um cão de caça que fareja uma pista.

Hercule Poirot leu duas vezes o parágrafo, depois dobrou o jornal e devolveu-o a Mr. Satterthwaite.

— Muito interessante — disse.

— Sim. Parece que, afinal, Sir Charles Cartwright estava certo e nós estávamos errados.

— Sim — disse Poirot. — Parece que nós estávamos er­rados... Eu confesso, meu amigo, que não conseguia acre­ditar que um senhor tão inofensivo, tão amável, pudesse ter sido assassinado... Muito embora, veja o senhor, esta outra morte possa ser mera coincidência. As coincidências acon­tecem... coincidências as mais surpreendentes. Eu, Hercule Poirot, já tenho visto coincidências que o surpreenderiam...

Fez uma pausa, e continuou:

— O instinto de Sir Charles pode ter estado certo. Ele é um artista... sensível... impressionável... ele sente as coisas mais do que raciocina a respeito delas... Um tal método de vida é muitas vezes desastroso... porém outras vezes é justificável. Eu me pergunto onde Sir Charles está agora.

Mr. Satterthwaite sorriu.

— Isso eu lhe posso informar. Está na agência da com­panhia dos Wagons Lits. Ele e eu voltamos para a Inglaterra hoje à noite.

— Ha! — Poirot conseguiu dar enorme significação à exclamação. Seus olhos, brilhantes, indagadores, travessos, faziam uma pergunta. — Como é zeloso o nosso Sir Charles. Quer dizer então que ele está resolvido a fazer esse papel, o papel do detetive amador? Ou há alguma outra razão?

Mr. Satterthwaite não respondeu, porém de seu silêncio Poirot pareceu deduzir uma resposta.

— Já percebi — disse ele. — Os olhos brilhantes de mademoiselle estão envolvidos na história.   Não é só o crime que o chama!

— Ela escreveu a ele — disse Mr. Satterthwaite — im­plorando-lhe que voltasse.

Poirot concordou com a cabeça.

— Eu me pergunto... — disse ele. — Não chego a compreender...

Mr. Satterthwaite interrompeu-o.

— O senhor não compreende a moça inglesa moderna? Bem, não é de espantar. Eu mesmo nem sempre as com­preendo. Uma moça como Miss Lytton Gore...

A essa altura Poirot interrompeu-o.

— Pardon. O senhor compreendeu-me mal. Compreen­do Miss Lytton Gore muito bem. Já encontrei outras as­sim... muitas outras. O senhor chama o tipo de moderno; porém ele é... como direi... de todos os tempos.

Mr. Satterthwaite ficou ligeiramente irritado. Tinha a impressão de que ele... e só ele... compreendia Egg. Esse estrangeiro ridículo não sabia nada a respeito das mulheres inglesas.

Poirot ainda estava falando. Seu tom era sonhador — indagador.

— O conhecimento da natureza humana pode ser uma coisa muito perigosa.

— É uma coisa muito útil — corrigiu Mr. Satterthwaite.

— Talvez. Tudo depende do ponto de vista.

— Bem — Mr. Satterthwaite hesitou, e levantou-se. Es­tava ligeiramente desapontado. Tinha lançado uma isca mas o peixe não havia mordido. Sentiu que seu próprio conheci­mento da natureza humana havia sido falho. — Desejo-lhe férias agradáveis.

— Eu lhe agradeço.

— Espero que em sua próxima ida a Londres venha me visitar. — Puxou um cartão. — Aqui está meu endereço.

— O senhor é muito amável, Mr. Satterthwaite. Ficarei encantado.

— Adeus por agora, então.

— Adeus, e bon voyage.

Mr. Satterthwaite afastou-se. Poirot ficou olhando em sua direção por alguns instantes, e depois novamente fixou os olhos bem à sua frente, para o azul do Mediterrâneo.

E assim ficou sentado pelo menos dez minutos.

A menina inglesa reapareceu.

— Já olhei o mar, mamãe. E agora, o que é que eu faço?

— Uma pergunta notável — disse Hercule Poirot baixinho.

Ele se levantou e começou a caminhar lentamente — na direção da agência dos Wagons Lits.

 

                   O MORDOMO DESAPARECIDO

Sir Charles e Mr. Satterthwaite estavam sentados no estúdio do Coronel Johnson. O chefe da polícia local era um homenzarrão com voz de caserna e modos alegres.

Havia saudado Mr. Satterthwaite com toda indicação de prazer, e estava obviamente encantado por conhecer o famoso Charles Cartwright.

— A patroa vai muito ao teatro. Ela é... como é mes­mo que os americanos dizem?... sua fã. Isso, fã. Pessoal­mente também gosto de uma boa peça... coisa limpa, é claro, não o tipo de coisa que muitas vezes botam no palco hoje em dia. Uma vergonha!

Sir Charles, cônscio de sua retidão sob esse aspecto — jamais montara uma peça “ousada”, reagiu de forma ade­quada, com todo o seu charme e afabilidade. Quando che­garam ao motivo de sua visita, o Coronel estava inteiramente pronto a dizer-lhes tudo o que sabia.

— Quer dizer que era amigo seu? Uma pena... uma pena.... Sim, era muito popular por estas bandas. Aquele sanatório dele goza da melhor reputação, e Sir Bartholomew era um sujeito de primeira sob todos os aspectos, além de famoso como profissional. Não há nada que indique suicídio, e qualquer acidente está fora de cogitações.

— Satterthwaite e eu acabamos de voltar do exterior — disse Sir Charles. — Só vimos uma ou outra notícia no jornal.

— E muito naturalmente querem saber de tudo. Bem, eu não sei exatamente em que pé estão as coisas. Creio que não há dúvida de que o mordomo é a pessoa que devemos procurar. Era empregado novo... Sir Bartholomew só es­tava com ele fazia uns quinze dias, e logo após o crime ele sumiu... evaporou-se. É meio esquisito, não é?

— Os senhores não têm a menor idéia de para onde foi?

O rosto naturalmente rubro do Coronel Johnson ficou ainda um pouco mais rubro.

— Vai julgar que foi negligência nossa. Confesso que há de parecer assim. É claro que o sujeito estava sendo vigiado... exatamente como todos os outros. Ele respondeu a nosso interrogatório de modo perfeitamente satisfatório... inclusive o nome da agência londrina por meio da qual foi empregado. Seu último emprego fora com Sir Horace Bird. Foi muito cortês nas respostas, nenhum indício de pânico. E, de repente, sumiu... muito embora a casa estivesse sendo vigiada. Fiz um interrogatório dos diabos com os meus ho­mens, mas todos juram que nem piscaram enquanto estavam de serviço.

— Que coisa extraordinária — disse Mr. Satterthwaite.

— Além do mais — disse Sir Charles pensativo — parece ser uma idiotice. Ao que parece ninguém suspeitava dele. Mas sumindo desse jeito só conseguiu chamar a atenção sobre si mesmo.

— Exatamente. E sem nenhuma possibilidade de fuga. Foi divulgada uma descrição detalhada por todo o país. Mais dia, menos dia, terá de ser apanhado.

— Muito esquisito — disse Sir Charles. — Não com­preendo.

— Bom, a razão é muito clara. Perdeu a coragem. De repente se apavorou.

— Mas será que um homem que tem a coragem de co­meter um assassinato não tem bastante coragem para depois ficar quieto?

— Depende. Depende. Já vi muitos criminosos. A maio­ria é covarde. Ele pensou que estávamos suspeitando dele, e deu no pé.

— As declarações dele já foram verificadas?

— Naturalmente, Sir Charles. Isso é rotina. A agência em Londres confirmou a história. Ele tinha uma carta de recomendação de Sir Horace Bird, altamente elogiosa. Sir Horace, no momento, está na África.

— Quer dizer que a carta poderia ser falsificada?

— Exato — disse o Coronel Johnson, sorrindo para Sir Charles com o ar de um professor que elogia um aluno bri­lhante. — Naturalmente já telegrafamos a Sir Horace, porém é possível que se passe algum tempo antes de termos alguma resposta. Ele está num safari.

— Quando foi que o homem desapareceu?

— Na manhã seguinte ao crime. Havia um médico pre­sente no jantar... Sir Jocelyn Campbell... que aparente­mente é um toxicólogo apreciável; ele e Davis (o nosso ho­mem local) concordaram sobre o caso, e o nosso pessoal foi chamado imediatamente. Entrevistamos todos na mesma noi­te. Ellis (o mordomo) foi para seu quarto, como de hábito, e pela manhã já tinha desaparecido. A cama nem sequer estava desfeita.

— Quer dizer que aproveitou a escuridão para escapulir?

— É o que parece. Uma das senhoras hospedadas na casa, Miss Sutcliffe, a atriz... talvez o senhor a conheça?...

— Muitíssimo bem.

— Miss Sutcliffe sugeriu-nos outra coisa. Que o homem tivesse deixado a casa por meio de alguma passagem secreta. — Ele assoou o nariz, como que pedindo desculpas. — Cheira um pouco a Edgar Wallace, mas parece que realmente existia algo no gênero. Sir Bartholomew tinha muito orgulho do fato, e havia mostrado a passagem a Miss Sutcliffe. A saída fica perto de umas ruínas a cerca de um quilômetro daqui.

— Claro que essa seria uma explicação — concordou Sir Charles. — Apenas... será que o mordomo conhecia a tal passagem?

— Claro que essa é que é a questão. A minha patroa sempre diz, por outro lado, que empregado sempre sabe de tudo. E acho que ela tem razão.

— Soube que o veneno usado foi nicotina — disse Mr. Satterthwaite.

— Isso mesmo. Creio que é usado muito raramente. É relativamente raro. Mas pelo que me disseram as coisas se complicam quando a vítima fuma muito, como no caso de Sir Bartholomew. Quero dizer, ele poderia ter morrido de en­venenamento por nicotina, porém de forma natural. Só que tem, naturalmente, que foi repentino demais para ser o caso.

— Como foi ministrado?

— Não sabemos — confessou o Coronel. — O que cons­titui o aspecto mais fraco do caso. Segundo o testemunho médico, só poderia ter sido ingerido poucos minutos antes da morte.

— Creio que estavam bebendo vinho do porto, não?

— Exatamente. Parece que a droga estava no porto; mas não estava. Analisamos o cálice. Não continha nada além de vinho do porto. Os outros cálices já tinham sido levados, naturalmente, porém estavam todos numa bandeja na copa, ainda por lavar, e não havia nada em nenhum deles, nada que não devesse estar lá, quero dizer. E quanto ao jantar, ele comeu exatamente o mesmo que todos os outros. Sopa, peixe grelhado, faisão com batatas, suflê de chocolate, caviar com torradas. Faz quinze anos que a cozinheira está com ele. Enfim, não havia maneira nenhuma de lhe dar o veneno, no entanto lá estava o veneno no estômago. É um problema aborrecido.

Sir Charles voltou-se na direção de Mr.Satterthwaite.

— A mesma coisa — disse, excitado. — Exatamente como da outra vez.

Dirigiu-se ao Coronel para justificar suas palavras.

— Devo-lhe uma explicação. Ocorreu uma morte em minha casa na Cornualha...

O Coronel Johnson pareceu interessado.

— Creio que já ouvi falar disso. Foi uma moça... Miss Lytton Gore.

— Sim, ela estava presente. Ela lhe contou?

— Contou. Muito convicta de suas teorias. Porém o senhor sabe, Sir Charles, não creio que a teoria seja válida. Ela não explica a fuga do mordomo. O seu mordomo não fugiu, fugiu?

— Eu não tenho mordomo... só uma copeira.

— E não havia possibilidade de ser um homem disfarçado? Pensando em sua elegante e obviamente feminina copeira, Sir Charles sorriu.

O Coronel também sorriu, embaraçado.

— Foi só uma idéia — disse ele. — Não, não vejo razão para dar muito crédito à teoria de Miss Lytton Gore. Pelo que soube, a morte em questão foi de um clérigo idoso. Quem haveria de querer liquidar um clérigo idoso?

— É justamente isso que nos deixou a todos perplexos — disse Sir Charles.

— Creio que terminarão por ver que foi apenas coinci­dência. Pode confiar que o culpado é o mordomo. É pos­sível que seja criminoso reincidente. Infelizmente não con­seguimos encontrar nenhuma impressão digital. Um técnico vasculhou toda a copa, porém sem sucesso.

— E sendo o mordomo, qual teria sido o motivo?

— Essa é uma de nossas dificuldades — admitiu o Coro­nel. — O homem poderia ter feito algum plano de roubo e ter sido descoberto por Sir Bartholomew.

Tanto Sir Charles quanto Mr. Satterthwaite mantiveram-se cortesmente calados. Até mesmo o Coronel Johnson pa­recia considerar a sugestão pouco plausível.

— O fato é que não podemos fazer mais do que teorizar. Assim que tivermos John Ellis trancafiado e pudermos veri­ficar sua identidade, inclusive possíveis entradas anteriores na polícia... bom, então o motivo poderá tornar-se claro como o dia.

— Suponho que já tenha examinado todos os papéis de Sir Bartholomew?

— Naturalmente, Sir Charles. Demos particular atenção a esse aspecto. Eu preciso apresentá-lo ao Superintendente Crossfield, que está encarregado do caso. Homem da maior confiança. Chamei sua atenção, e ele concordou prontamente comigo sobre possíveis ligações da atividade profissional de Sir Bartholomew com o caso. Um médico conhece muitos segredos profissionais. Os papéis de Sir Bartholomew esta­vam todos arquivados de forma impecável. Sua secretária, Miss Lyndon, examinou-os com Crossfield.

— E nada?

— Nada de sugestivo, Sir Charles.

— Não havia nada faltando na casa... pratas, jóias, coi­sas assim?

— Absolutamente nada.

— Exatamente quem estava hospedado na casa?

— Tenho aqui uma lista... ora essa, onde está? Ah, creio que está com Crossfield. Precisam conhecê-lo; na ver­dade, a qualquer momento ele deve aparecer para fazer seu relatório. — Ouviu-se uma campainha. — Provavelmente é ele.

O Superintendente Crossfield era um homem grande, de aspecto sólido e fala lenta, porém dotado de um par de pene­trantes olhos azuis.

Fez continência a seu oficial superior, e foi apresentado aos dois visitantes.

É possível que se Mr. Satterthwaite estivesse só, ele ti­vesse tido alguma dificuldade em fazer Crossfield falar. Este último não tinha cavalheiros londrinos em muito boa conta — eram amadores que estavam sempre tendo “idéias”. Sir Char­les, no entanto, era um caso diferente. O Superintendente Crossfield tinha reverência quase infantil pela magia do teatro. Já tinha visto Sir Charles representar duas vezes, e a exci­tação, a emoção de ver seu ídolo da ribalta em pele e osso tornou-o tão amável e loquaz quanto se pudesse desejar.

— Eu o vi em Londres, meu senhor. Vi mesmo. Eu e minha mulher. O Dilema de Lord Aintree, era esse o nome da peça. Fui de galeria, é claro, e não havia um só lugar vazio no teatro inteiro. Ficamos duas horas na fila. Mas não havia jeito de fazer a mulher desistir. “Eu tenho de ver Sir Charles fazer O Dilema de Lord Aintree”, dizia ela. Foi no Teatro Pall Mall.

— Bem — disse Sir Charles, — agora, como sabe, estou afastado do palco. Mas lá no Pall Mall eles ainda se lem­bram de mim. — Tirou um cartão e rabiscou nele umas palavras. — Entregue isto na bilheteria a próxima vez que for passear em Londres com Mrs. Crossfield, e eles lhe darão dois bons lugares.

— Muita bondade sua, Sir Charles... muita, mesmo. Minha mulher vai ficar acesa quando eu contar que o conheci.

Depois disso o Superintendente virou cera nas mãos do ex-ator.

— É um caso estranho. Eu nunca tinha visto um só caso de envenenamento por nicotina em toda a minha car­reira. E nem o Dr. Davis.

— Eu sempre pensei que isso era uma doença que se pegava por fumar demais.

— Para falar a verdade, eu também. Porém o médico disse que o alcalóide puro é um líquido inodoro, e que umas poucas gotas são o suficiente para matar um homem quase que instantaneamente.

Sir Charles deu um assovio.

— Que coisa forte.

— É como diz, senhor. E no entanto tem uso muito difundido. Há certas soluções usadas no cultivo das rosas. E é claro que pode ser destilado de tabaco comum.

— Rosas — disse Sir Charles. — Ora essa, onde é que eu ouvi?...

Franziu a testa e sacudiu a cabeça.

— Alguma coisa nova a relatar, Crossfield? — perguntou o Coronel.

— Nada de definitivo, senhor. Tivemos informações de que Ellis foi visto em Durham, Ipswich, Balham, e Land’s End, além de mais meia dúzia de outros lugares. Claro que cada informação tem de ser verificada, só por via das dúvidas. — Virou-se para os outros dois.

— No momento em que é circulada a descrição de um homem que está sendo procurado, imediatamente há gente que o vê por toda a Inglaterra.

— E qual é a descrição dele? — perguntou Sir Charles.

Johnson pegou um papel.

— John Ellis, estatura mediana, em torno de um metro e setenta e cinco centímetros, ligeiramente curvado, cabelo grisalho, costeletas longas mas discretas, olhos escuros, voz rouquenha, falha de um dente superior, que se torna visível quando ri, sem sinais particulares.

— Hum! — disse Sir Charles. — Tudo muito neutro, a não ser pelas costeletas, que a esta altura já devem ter sido raspadas, e o dente, que não será visto se ele não rir.

— O problema — disse Crossfield — é que ninguém jamais observa nada. Não imaginam como foi difícil conse­guir qualquer tipo de descrição das criadas da casa. É sem­pre a mesma coisa. Já ouvi um mesmo homem ser descrito como alto, magro, baixo, gordo, estatura média, retaco, es­belto... em cinqüenta pessoas não há uma sequer que use os olhos como deve.

— E o senhor pessoalmente está convencido de que Ellis é o homem?

— De outro modo, por que haveria de fugir? Dessa não escapamos.

— Esse é realmente o tropeço — disse Sir Charles pensativo.

Crossfield voltou-se para o Coronel Johnson e relatou todas as providências tomadas. O Coronel concordou com a cabeça, e pediu ao Superintendente a lista de todos os ocupantes da casa na noite do crime. A relação foi entregue aos dois interessados. Era a seguinte:

Marta Leckie, cozinheira.

Beatrice Church, arrumadeira.

Doris Coker, auxiliar de arrumadeira.

Victoria Ball, auxiliar de limpeza.

Alice West, copeira.

Violet Bassington, ajudante de cozinha.

(Todas elas a serviço do falecido já há algum tempo, todas com excelentes folhas de serviço. Mrs. Leckie está no emprego há quinze anos.)

Gladys Lyndon — secretária, trinta e três anos, há três com Sir Bartholomew Strange, incapaz de fornecer sugestões para prováveis motivos.

Convidados:

Lord e Lady Eden, Cadogan Square, 187.

Sir Jocelyn e Lady Campbell, Harley Street, 1256.

Miss Angela Sutcliffe, Cantrell Mansions, S.W.3, 28.

Capitão e Mrs. Dacres, St. John’s House, W.1, 3.

(Mrs. Dacres trabalha no comércio como Ambrosine, Ltd., Bruton Street.)

Lady Mary e Miss Hermione Lytton Gore, Rose Cottage, Loomouth.

Miss Muriel Wills, Upper Cathcart Road, 5, Tooting.

Mr. Oliver Manders, Messrs. Speier & Ross, Old Broad Street, E.C.2.

— Hum — disse Sir Charles — o detalhe de Tooting foi omitido pelos jornais. E vejo que o jovem Manders também estava presente.

— Isso foi inteiramente acidental, Sir Charles — disse o Superintendente Crossfield. — O jovem cavalheiro bateu no muro que cerca a velha Abadia, e Sir Bartholomew, que ao que parece o conhecia ligeiramente, convidou-o para passar a noite.

— Um grande descuido — disse Sir Charles alegremente.

— Sem dúvida — disse o Superintendente. — Para falar a verdade, tenho a impressão de que o rapaz estava um pouco alto, como se diz. Não consigo compreender como poderia bater naquele muro se estivesse sóbrio.

— Vai ver que estava distraído — disse Sir Charles.

— Acho que deve ter sido algo um pouco mais forte que isso, senhor.

— Pois ficamos-lhe muito gratos, Superintendente. O se­nhor tem alguma objeção a fazer se nós formos dar uma espiada na casa, Coronel?

— Claro que não, meu caro. Muito embora duvide que descubra alguma coisa além do que já lhe dissemos.

— Há alguém lá?

— Só os empregados — disse Crossfield. — Os convida­dos partiram logo depois do inquérito, e Miss Lyndon voltou a Harley Street.

— Será que poderíamos também conversar com o Dr. Davis? — sugeriu Mr. Satterthwaite.

— Boa idéia.

Receberam o endereço do médico, e depois de agrade­cerem ao Coronel por sua atenção, partiram.

 

                   QUAL DELES?

Enquanto andavam pela rua, Sir Charles perguntou:

— Alguma idéia, Satterthwaite?

— O mesmo lhe pergunto eu — disse Mr. Satterthwaite. Era seu hábito evitar fazer declarações positivas até o último momento possível.

Já não era esse o caso de Sir Charles, que declarou enfaticamente:

— Eles estão enganados, Satterthwaite. Completamente enganados. Meteram o tal mordomo na cabeça. O mordo­mo fugiu... ergo, é o mordomo. Mas não encaixa. Não encaixa mesmo. Não se pode deixar de lado aquela outra morte... que aconteceu em minha casa.

— Continua a julgar que as duas estão ligadas?

Mr. Satterthwaite fez a pergunta já sabendo que, segundo seu próprio pensamento, a resposta tinha de ser afirmativa.

— Ora, homem, tem de estar ligadas. Tudo indica... O que precisamos é encontrar o fator de ligação... alguém que tenha estado presente em ambas as ocasiões...

— Sim — disse Mr. Satterthwaite. — O que não vai ser tão simples assim, ao que parece. Há fatores comuns de­mais. Já percebeu, Cartwright, que praticamente todas as pessoas que estavam presentes ao seu jantar estavam aqui também?

Sir Charles concordou.

— Claro que já percebi... mas você já notou as con­clusões que podem ser deduzidas do fato?

— Não estou compreendendo bem.

— Raios, homem; está achando que é pura coincidência? Não; foi proposital. Por que razão estariam todas as pessoas presentes à primeira morte presentes também à segunda? Por acidente? Nunca na vida.Isso foi planejado... trabalhado. Deve ter sido plano do Tollie.

— Oh! — disse Mr. Satterthwaite. — Bem, é possível...

— Tenho certeza. Você não conhecia Tollie tão bem quanto eu, Satterthwaite. Era um homem muito reservado quanto a suas opiniões, e muito paciente. No tempo todo que o conheci nunca o ouvi emitir uma opinião ou fazer qualquer julgamento de modo precipitado.

— Pense só no seguinte: Babbington é assassinado... sim, assassinado... não pretendo desconversar nem usar circunlóquios... assassinado uma noite em minha casa. Tollie fez pouco de mim por causa de minhas suspeitas sobre o caso, mas no fundo ele tinha suas próprias suspeitas. Mas não fala sobre elas... porque não é seu jeito. Porém na calada, em sua mente, vai preparando seu caso. Não tenho idéia do que lhe ocorreu. Eu pessoalmente não consigo elaborar acusação alguma contra qualquer um dos presentes em particular. Mas ele devia julgar que uma daquelas pessoas era respon­sável pelo crime, e por isso fez seu plano, talvez para fazer alguma espécie de teste, que lhe revelaria qual o culpado.

— E quanto aos outros convidados? Os Edens e os Campbells?

— Camuflagem. Para não dar na vista.

— Em sua opinião, qual seria o tal plano?

Sir Charles deu de ombros — um gesto exageradamente não inglês. Ele era Aristide Duval, o supercérebro do Ser­viço Secreto. Capengava do pé esquerdo ao caminhar.

— Como poderemos saber? Não sou mágico. Nem posso ficar adivinhando. Mas havia algum plano... Não deu cer­to, porque o assassino era um pouco mais esperto do que Tollie pensava... Ele agiu primeiro...

— Ele?

— Ou ela. Veneno é uma arma tão feminina quanto masculina... talvez até mais feminina.

Mr. Satterthwaite ficou calado. Sir Charles disse:

— Como é? Não concorda? Ou vai ficar com a maioria? “Só pode ser o mordomo. Foi ele.”

— E qual a sua explicação para o mordomo?

— Nem pensei nele. Em minha opinião ele não tem a menor importância. Mas posso dar uma sugestão.

— Qual é?

— Bem, digamos que a polícia tenha razão numa coisa... Ellis é um criminoso profissional, que trabalha, digamos, para uma organização de ladrões. Ellis consegue o emprego com credenciais falsas. E aí Tollie é assassinado. Onde fica Ellis? Um homem é morto, e na casa há um outro já identi­ficado na Scotland Yard, muito conhecido da polícia. Não é de espantar que fique assustado e desapareça.

— Pela passagem secreta?

— Que se dane a passagem secreta. Escapuliu-se da casa enquanto um desses policiais estúpidos, que deveria estar vi­giando, tirava um bom cochilo.

— Bom, realmente parece muito mais plausível.

— Como é, Satterthwaite; e qual é a sua opinião?

— A minha? — disse Mr. Satterthwaite. — Ora, mais ou menos a mesma que a sua. Sempre foi. O tal mordomo me parece uma pista falsa das mais grosseiras. Estou con­vencido de que Sir Bartholomew e o pobre do velho Babbing­ton foram mortos pela mesma pessoa.

— Um dos convidados?

— Um dos convidados.

Houve um momento de silêncio, e depois Mr. Satterth­waite perguntou, com ar muito casual:

— Em sua opinião, qual deles?

— Deus do céu, Satterthwaite, como é que eu posso saber?

— Saber, é claro que não pode — disse Mr. Satterth­waite suavemente. — Julguei apenas que pudesse ter alguma idéia... sabe como é, nada de científico ou bem arrazoado. Apenas um palpite comum.

— Bem, eu não tenho... — Pensou por um momento, e depois explodiu: — Sabe, Satterthwaite, no momento que se começa a pensar parece impossível que seja qualquer um deles.

— Creio que sua teoria está certa — divagou Satterth­waite. — Estou falando sobre a idéia de reunir os suspeitos. Temos de levar em consideração que havia algumas exclusões claras. Nós dois, e Mrs. Babbington, por exemplo. E o jo­vem Manders, que também fica de fora.

— Manders?

— Sim, sua chegada ao local foi mero acidente. Não foi convidado e nem era esperado. Isso o elimina do círculo dos suspeitos.

— E aquela autora de peças... Anthony Astor.

— Não, não; ela estava presente. Miss Muriel Wills de Tooting.

— É mesmo... eu tinha esquecido que o nome dela era Wills.

Ele franziu a testa. Mr. Satterthwaite era bastante efi­ciente em saber o que os outros estavam pensando. E cal­culou com bastante precisão o que se estava passando na mente do ator. Quando o outro falou Mr. Satterthwaite deu-se uma palmadinha de aprovação nas costas.

— Sabe de uma coisa, Satterthwaite, acho que tem razão. Não creio que ele tenha convidado especificamente pessoas de quem suspeitava, pois, afinal, Lady Mary e Egg estavam presentes... Não, ele queria encenar alguma espécie de re­produção do primeiro episódio, talvez... Ele suspeitava de alguém, mas queria outras testemunhas oculares presentes para poder confirmar a questão. Coisa assim...

— Uma coisa assim — concordou Mr. Satterthwaite. — Nesta altura não se pode fazer mais do que generalizar. Mui­to bem, as Lytton Gore estão eliminadas, e nós dois, Mrs. Babbington e Oliver Manders também estamos de fora. Quem resta? Angela Sutcliffe?

— Angie? Mas, meu caro! Ela é amiga de Tollie há anos.

— Bem, então ficam os Dacres... Para falar a verdade, Cartwright, creio que desconfia dos Dacres. Poderia ter dito logo, quando perguntei.

Sir Charles olhou para ele. Mr. Satterthwaite tinha ar triunfante.

— Suponho — disse lentamente Cartwright — que sim. Bom, não diria que suspeito deles... Apenas parece ser mais possível que sejam eles do que qualquer outro. Para início de conversa, não os conheço muito bem. Mas por nada na vida posso perceber por que razão Freddie Dacres, que passa a vida nas corridas de cavalos, ou Cynthia, que passa a vida desenhando roupas maravilhosas e caríssimas, haviam de que­rer acabar com um sacerdote bondoso e insignificante...

Ele sacudiu a cabeça, depois seu rosto iluminou-se.

— Mas há aquela tal Miss Wills. Tornei a esquecer-me dela. Por que será que sempre a esqueço? Acho que ela deve ser a pessoa mais sem personalidade que já vi na vida.

Mr. Satterthwaite sorriu.

— Acho que ela é a encarnação daquela famosa linha de Robert Burns sobre uma sombra que fica entre nós to­mando notas. Tenho a impressão de que Miss Wills passa o tempo todo tomando notas.   Aqueles olhos escondidos pelos óculos são muito penetrantes.   Garanto que qualquer coisa que valesse a pena ser notada nisso tudo não passou desaper­cebida a Miss Wills.

— Acha mesmo? — disse Sir Charles, com dúvida.

— A próxima coisa a ser feita — disse Mr. Satterthwaite — é almoçar. Depois disso podemos ir até à casa para ver o que se descobre no local.

— Você parece estar aceitando tudo isto muito bem, Satterthwaite — disse Sir Charles, com um brilho divertido nos olhos.

— A investigação criminal não é nenhuma novidade para mim — respondeu Mr. Satterthwaite. — Certa vez meu carro teve um desarranjo, e eu estava hospedado numa pousada muito isolada...

Só conseguiu chegar até aí.

— Eu me lembro — disse Sir Charles, com sua voz clara e alta de ator bem treinado — que quando excursionei em 1921...

Sir Charles ganhou.

 

                   O TESTEMUNHO DA CRIADAGEM

Nada podia ser mais tranqüilo do que o parque e a arqui­tetura de Melfort Abbey quando os dois homens os viram naquela tarde ensolarada de setembro. Parte da Abadia da­tava do século XV. Tinha sido restaurada, e uma ala nova fora acrescida. O Sanatório, de construção recente, não fi­cava à vista, e tinha seu próprio parque.

Sir Charles e Mr. Sattertwaite foram recebidos por Mrs. Leckie, a cozinheira, uma senhora volumosa respeitosamente vestida de preto, que estava chorosa e falante. Já conhecia Sir Charles, e por isso foi a ele que dirigiu a maior parte de sua conversa.

— Tenho certeza de que o senhor compreende o que tudo isto foi para mim. Polícia por todo lado, a meter o nariz por todos os cantos... imagine que até nas latas de lixo meteram os narizes, e perguntas que não tinham fim! Não havia meio de pararem de fazer perguntas. Nunca pensei que chegasse a ver uma coisa dessas em minha vida... o doutor sempre foi um cavalheiro tão sossegado, e feito Sir Bartho­lomew, o que foi um dia inesquecível para todos nós, como Beatrice e eu sempre lembramos, muito embora ela só esteja aqui há dois anos. E que perguntas fazia aquele sujeito da polícia (de cavalheiro é que não hei de chamá-lo, pois sem­pre fui acostumada a lidar com cavalheiros e sei muito bem quem é e quem não é) e aquele sujeito que por mim tanto se me dá que seja Superintendente ou que não seja — Mrs. Leckie fez uma pausa, tomou fôlego, e procurou uma saída para a confusão em que se metera com suas frases compli­cadas. — Perguntas e mais perguntas, sobre as empregadas da casa, que são todas elas muito boas moças... não que eu diga que Doris se levante sempre na hora certa de manhã para fazer o serviço. Eu reclamo pelo menos uma vez por semana, e Vickie às vezes é um pouco impertinente, mas hoje em dia não se pode esperar que essas mocinhas sejam treinadas como deviam... mas são boas moças, e não há ninguém da polícia que me faça dizer que não são. ‘Isso mesmo’, eu disse a ele, ‘não adianta pensar que eu vá dizer alguma coisa contra as minhas meninas. São muito boazinhas, e em matéria de andarem se metendo em assassinatos, é até pecado sequer fazer qualquer sugestão a respeito!’.

Mrs. Leckie fez nova pausa.

— Agora o Mr. Ellis... esse é um caso diferente. Não sei nada a respeito dele, e não poderia responder por ele de modo algum, pois foi trazido de Londres, não era daqui, e só para as férias de Mr. Baker.

— Baker? — perguntou Mr. Sattertwaite.

— Fazia sete anos que Mr. Baker era mordomo de Sir Bartholomew, meu senhor. Passava a maior parte do tempo em Londres, na casa de Harley Street.   Não se lembra dele? — A pergunta era feita a Sir Charles, que acenou que sim com a cabeça. — Sir Bartholomew trazia-o para cá quando ia ter muitos hóspedes. Mas a saúde dele não andava muito boa, pelo que Sir Bartholomew me disse, e então ele teve dois meses de férias, tudo pago, tudo mesmo, num lugar na praia, perto de Brighton... o doutor era um cavalheiro muito bondoso... e por isso ele tomou Mr. Ellis temporariamente, de modo que sendo assim, como eu disse ao Superintendente, eu não podia saber nada a respeito de Mr. Ellis, apesar de que, pelo que ele mesmo disse, parecia ter trabalhado com famílias excelentes, e tinha muito boas maneiras, como um cavalheiro.

— A senhora não notou nada de... particular ou estranho a respeito dele? — perguntou Sir Charles esperançosamente.

— Bem, olhe que é esquisito o senhor perguntar isso, meu senhor, porque, se é que me entende, notei e não notei.

Sir Charles fez um ar encorajador, e Mrs. Leckie continuou:

— Eu não sei dizer exatamente o que era, meu senhor, mas havia alguma coisa.

Sempre há — depois — pensou Mr. Sattertwaite de si para si, desencantado. Por menos que Mrs. Leckie gostasse da polícia, nem por isso era imune à sugestão. Se fosse con­firmado que Ellis era o criminoso, bem, Mrs. Leckie tinha notado alguma coisa.

— Para início de conversa, ele não se misturava conosco. Eu sei que era muito educado, muito correto... como eu disse, esteve nas melhores casas. Mas ficava sempre distante, passava a maior parte do tempo no quarto dele; e ele era... bom, eu não sei como descrever, não sei mesmo... mas ele era... sei lá, tinha alguma coisa...

— A senhora não desconfiava de que ele não fosse... que ele não fosse realmente um mordomo? — sugeriu Mr. Satterthwaite.

— Não, ele conhecia bem o serviço de gente fina, meu senhor. E sabia tanta coisa... e também sabia muita coisa a respeito de uma porção de gente conhecida.

— Como, por exemplo? — perguntou suavemente Sir Charles.

Porém Mrs. Leckie tornou-se vaga, reticente. Não que­ria repetir os comentários feitos pelos empregados. Para ela isso seria uma falta grave contra a etiqueta do serviço doméstico.

Para deixá-la mais à vontade Mr. Satterthwaite disse:

— Talvez a senhora pudesse nos descrever sua aparência.

Mrs. Leckie ficou mais animada.

— Pois não, meu senhor. Era um homem de aspecto muito respeitável... costeletas longas e cabelo grisalho, um pouquinho curvado, e estava começando a engordar... isso o preocupava muito. E as mãos tremiam um tantinho só, porém não por causa do que os senhores podem estar pen­sando. Era um homem inteiramente abstêmio... ao contrário de muitos que andam por aí. Acho que os olhos eram um pouco fracos, eu acho, porque a luz fazia muito mal a ele... especialmente luz forte, que o fazia lacrimejar. Lá dentro ele sempre ficava de óculos. Só tirava na hora de servir o patrão.

— Ele não tinha nenhuma marca visível? — perguntou Sir Charles. — Nenhuma cicatriz? Nenhum dedo torto? Ou pintas?

— Não, senhor; nada dessas coisas.

— Os livros de detetive são sempre muito melhores do que a vida real — suspirou Sir Charles. — Nas obras de ficção sempre há algum sinal característico.

— Faltava-lhe um dente — disse Mr. Satterthwaite.

— Dizem que sim, meu senhor; eu pessoalmente nunca notei.

— De que modo comportou-se ele na noite em que se deu a tragédia? — perguntou Mr. Satterthwaite um pouco livrescamente.

— Ora, meu senhor, não tenho a menor idéia. Lembre-se de que eu estava muito ocupada, na minha cozinha. Não tinha tempo para ficar reparando esse tipo de coisa.

— Claro que não; claro que não.

— Quando veio a notícia de que o patrão estava morto foi o mesmo que uma bomba para nós.   Eu chorei, e não conseguia parar; e Beatrice foi a mesma coisa. As mais moças, é claro, ficaram muito excitadas, além de comovidas. Naturalmente Mr. Ellis não ficou tão perturbado quanto nós, já que era novo aqui, mas portou-se com muita consideração, e insistiu que Beatrice e eu tomássemos um cálice de vinho do porto para diminuir o choque. E pensar que nisso tudo tinha sido ele... que velhaco...

Mrs. Leckie não tinha palavras para se expressar, mas seus olhos brilhavam de indignação.

— Pelo que compreendi ele desapareceu nessa mesma noite?

— Sim, senhor. Foi para seu quarto, como todo mundo, e de manhã não estava mais lá. Foi isso que botou a polícia atrás dele.

— Eu sei, foi uma grande tolice da parte dele. A senho­ra tem alguma noção de como ele deixou a casa?

— Nenhuma. Ao que parece a polícia ficou vigiando a casa a noite inteira, e ninguém e viu sair... mas é isso mesmo, os policiais são tão humanos quanto qualquer outra pessoa, apesar de se darem ares muito importantes, metendo o nariz na casa de gente distinta.

— Ouvi dizer que havia uma história de uma passagem secreta — disse Sir Charles.

Mrs. Leckie empertigou-se.

— Isso é o que a polícia diz.

— Mas ela existe?

— Eu já ouvi falar — disse Mrs. Leckie cautelosamente.

— A senhora sabe onde é que ela começa?

— Não sei não, senhor. Essa história de passagens se­cretas é muito interessante, mas não é coisa que se comente entre os empregados. Pode botar idéias na cabeça das moças. Depois elas podiam pensar em escapulir por lá. As minhas meninas entram e saem pela porta de serviço, e temos conversado.

— Esplêndido, Mrs. Leckie. A senhora tem muito bom senso.

Mrs. Leckie banhou-se ao sol da aprovação de Sir Charles.

— Gostaria de saber — continuou ele — se nós podería­mos fazer algumas perguntas aos outros empregados.

— Claro que sim, Sir Charles; mas não creio que saibam nada mais além do que eu já disse.

— Sem dúvida. Não estava pensando em Ellis e sim no próprio Sir Bartholomew... como estava naquela noite, e coisas assim. Como sabe, era um grande amigo meu.

— Eu sei, meu senhor. Compreendo muito bem. Há a Beatrice e a Alice. Alice naturalmente serviu a mesa.

— Sim, creio que gostaria de ver Alice.

Mrs. Leckie, entretanto, acreditava em hierarquia. Bea­trice Church, a arrumadeira principal, foi a primeira a apa­recer.

Era uma mulher alta e magra, de boca apertada, e de aspecto agressivamente respeitável.

Após algumas perguntas sem importância, Sir Charles levou a conversar para o comportamento dos convidados na noite fatal. Todos tinham ficado muito perturbados? O que haviam dito ou feito?

O modo de Beatrice tornou-se um pouco mais animado. Não lhe faltava o habitual fascínio mórbido pela tragédia.

— Miss Sutcliffe realmente ficou em pedaços. É uma senhora de muito bom coração, já se hospedou aqui outras vezes. Eu perguntei se ela não queria uma gotinha de brandy, ou uma xícara de chá, mas ela não quis nem ouvir falar em nada. Só tomou uma aspirina. Disse que sabia que não ia conseguir dormir. Mas estava dormindo como um bebê na manhã seguinte quando eu lhe levei a primeira xícara de chá.

— E Mrs. Dacres?

— Eu acho que nada no mundo perturba muito aquela senhora.

Pelo tom de Beatrice, não havia gostado de Cynthia Dacres.

— Ela estava louca para ir embora, isso sim. Disse que os negócios dela iam ser prejudicados. Ela é uma costureira muito famosa em Londres, segundo Mr. Ellis.

Costureira famosa, para Beatrice, significava “comercian­te”, e comerciante era coisa que merecia seu desprezo.

— E o marido dela?

Beatrice fungou ligeiramente.

— Ele é do tipo que acalma os nervos com brandy. Ou tonteia os nervos, segundo dizem outros.

— E Lady Mary Lytton Gore?

— Uma senhora muito distinta — disse Beatrice num tom muito mais suave. — Minha tia-avó foi doméstica do pai dela, no castelo. Sempre ouvi dizer que foi uma moça linda.   Pode ser que seja pobre, mas vê-se logo que é al­guém... e tem tanta consideração, nunca dá trabalho, e sem­pre dizendo alguma coisa amável. A filha também é uma moça muito simpática. Elas não conheciam Sir Bartholomew muito bem, é claro, mas ficaram muito abaladas.

— E Miss Wills?

Beatrice tornou a ficar um pouco mais rígida.

— Garanto que não posso dar a menor idéia do que Miss Wills possa ter sentido, meu senhor.

— Ou o que você sentiu sobre ela? — perguntou Sir Charles. — Vamos, Beatrice, seja humana.

Um sorriso inesperado apareceu no rosto sério de Bea­trice. Havia qualquer coisa de menino endiabrado na maneira de Sir Charles. Ela não era imune ao encanto que tantas platéias haviam sentido tão intensamente.

— Ora, meu senhor, assim eu fico sem saber o que dizer.

— Diga só o que pensou e sentiu a respeito de Miss Wills. — Não senti nada, meu senhor, absolutamente nada. Claro que ela não era...

Beatrice hesitou.

— Continue, Beatrice.

— Bom, ela não tinha exatamente a mesma classe dos outros. Eu sei que não é culpa dela — acrescentou Beatrice bondosamente. — Mas ela fazia coisas que uma verdadeira dama nunca faria. Ficava espiando tudo, se é que me com­preende, andando aqui e ali, para ver tudo o que podia.

Sir Charles fez tudo para que ela explicasse o que havia dito, mas Beatrice manteve-se vaga. Miss Wills tinha es­piado tudo, mas quando se pedia que ela desse um exemplo dessa curiosidade, Beatrice parecia incapaz de fazê-lo. Apenas repetia que Miss Wills se metia nas coisas que não eram da conta dela.

Finalmente desistiram, e Mr. Satterthwaite disse:

— O jovem Mr. Manders chegou inesperadamente, não foi?

— Foi, sim senhor; ele teve um acidente com o carro, bem perto do portão do parque. Disse que foi uma sorte que tivesse acontecido logo aqui. A casa estava cheia, é claro, mas Miss Lyndon fez uma cama para ele no estúdio pequeno.

— Ficaram todos surpreendidos por vê-lo?

— É claro; naturalmente.

Quando lhe perguntaram sua opinião sobre Ellis, Bea­trice manteve-se reticente. Tinha-o visto muito pouco. Fugir daquele jeito tinha deixado as coisas feias para o lado dele, muito embora ela não pudesse imaginar nenhuma razão pela qual ele pudesse querer fazer mal ao patrão. Ele ou quem quer que seja.

— E o doutor, como estava? Parecia estar contente com a vinda dos convidados? Ou estava preocupado?

— Parecia muito alegre, meu senhor. Ficava rindo so­zinho, assim como se estivesse fazendo alguma piada. Cheguei mesmo a ouvi-lo brincar com Mr. Ellis, coisa que nunca fez com Mr. Baker. Ele normalmente era um pouco fechado com os empregados, embora sempre muito bondoso; só não con­versava muito.

— O que foi que ele disse? — perguntou ansiosamente Mr. Satterthwaite.

— Ora, agora eu já esqueci, meu senhor. Mr. Ellis deu um recado que recebera pelo telefone, e Sir Bartholomew perguntou se ele tinha a certeza de que não tinha trocado os nomes, e Mr. Ellis disse que tinha toda a certeza... falando muito respeitosamente, é claro. E então o doutor riu e disse: “Você é um bom sujeito, Ellis; um mordomo de primeira classe. Você não acha, Beatrice?” Eu fiquei tão surpreendida, meu senhor, do patrão falar daquele jeito, muito diferente do costume, que fiquei sem saber o que dizer.

— E Ellis?

— Tinha aspecto de desaprovação, meu senhor, como se fosse um tipo de coisa à qual não estava habituado. Meio empertigado.

— E qual foi o recado que ele deu? — perguntou Sir Charles.

— O recado, meu senhor? Ah, era do sanatório... di­zendo que um paciente que acabara de chegar fizera muito boa viagem.

— Você se lembra do nome?

— Era um nome muito esquisito — Beatrice hesitou. — Mrs. de Rushbridger... uma coisa assim.

— Ah, sei — disse Sir Charles consolador. — Não é nome fácil de se entender bem no telefone. Bem, muito obrigado, Beatrice. Talvez agora nós pudéssemos ver Alice.

Quando Beatrice saiu da sala, Sir Charles e Mr. Satterth­waite compararam suas impressões por uma troca de olhares.

— Miss Wills metia o bedelho, o Capitão Dacres embe­bedou-se, Mrs.Dacres não mostrou qualquer emoção. Isso dá alguma coisa? Muito pouca.

— Menos não poderia ser — concordou Satterthwaite.

— Depositemos nossas esperanças em Alice.

Alice era uma mulher recatada, de trinta anos, com olhos escuros. Ficou contentíssima de poder falar no assunto.

Pessoalmente ela não acreditava que Mr. Ellis tivesse qualquer ligação com o caso. Era cavalheiro demais para essas coisas. A polícia tinha sugerido que ele fosse um ladrão qualquer. Alice tinha a certeza de que ele não era nada disso.

— Você tem absoluta certeza de que ele era apenas um autêntico mordomo, como qualquer outro? — perguntou Sir Charles.

— Não como qualquer outro, meu senhor. Não era como nenhum outro mordomo com o qual eu já tenha tra­balhado. Ele organizava o trabalho de modo diferente.

— Mas você não acha que ele tenha envenenado o seu patrão.

— Ora, meu senhor, o que eu não vejo é como ele ia conseguir.Eu estava servindo com ele a mesa, e não poderia ter posto nada na comida do patrão sem que eu visse.

— Mas as bebidas?

— Ele passou o vinho, sim senhor. Primeiro xerez, com a sopa, e depois o branco e o tinto. Mas o que é que poderia ter feito? Se tivesse alguma coisa no vinho ele teria envene­nado todo o mundo... ou pelo menos todos os que tomaram. Não é assim como se o patrão tivesse tomado coisas dife­rentes dos outros. E a mesma coisa com o vinho do porto. Todos os cavalheiros tomaram, e algumas das senhoras também.

— Os copos foram recolhidos numa bandeja?

— Foram. Eu segurei a bandeja e Mr. Ellis colocou os cálices nela, e eu levei a bandeja para a copa, e lá eles fica­ram até a polícia chegar para examiná-los. Os cálices do porto ainda estavam na mesa. E a polícia não encontrou nada.

— Você tem certeza de que o doutor não comeu nem bebeu nada que ninguém mais tocasse?

— Não que eu tenha visto, meu senhor. Francamente, tenho a certeza de que não.

— Nada que algum dos hóspedes lhe tenha dado...

— Ah, não, meu senhor.

— Você sabe alguma coisa a respeito de uma passagem secreta, Alice?

— Um dos jardineiros disse qualquer coisa a respeito. Vai sair no bosque, lá onde há umas paredes e coisas todas caídas. Mas eu nunca vi nenhuma entrada para ela dentro da casa.

— Ellis nunca lhe falou disso?

— Não, senhor; eu tenho a certeza de que ele não podia saber nada a respeito da passagem.

— Quem é que você acha que realmente matou o patrão, Alice?

— Não sei, meu senhor. Não posso acreditar que nin­guém pudesse matá-lo... Fico achando que tem de ser al­guma espécie de acidente.

— Hum. Obrigado, Alice.

— Se não fosse pela morte do velho Babbington — disse Sir Charles quando a moça saiu da sala — nós poderíamos usá-la para criminosa. É uma moça bem bonita... E serviu a mesa...   Não, não dá certo. Babbington foi assassinado; e seja como for Tollie nunca olhava para moças bonitas. Não era o gênero dele.

— Mas ele estava com cinqüenta e cinco anos — disse Mr. Satterthwaite pensativo.

— Por que diz isso?

— É a idade em que um homem pode perder completa­mente a cabeça por causa de uma jovem... mesmo que não o tenha feito antes.

— Com os diabos, Satterthwaite, eu... hum... estou quase com cinqüenta e cinco.

— Eu sei — disse Satterthwaite.

E ante seu suave mas delicioso olhar, Sir Charles baixou os olhos.

E incontestavelmente enrubesceu...

 

                 NO QUARTO DO MORDOMO

— Que tal examinar o quarto de Ellis? — sugeriu Mr. Satterthwaite, depois de ter apreciado até a última gota o embaraço de Sir Charles.

O ator agarrou a oportunidade de mudar de assunto.

— Excelente, excelente. Era exatamente o que eu ia sugerir.

— É claro que a polícia já examinou tudo.

— A polícia...

Aristide Duval demonstrou com ligeiro gesto a pouca importância que dava à polícia. Ansioso por esquecer o momentâneo embaraço que sentira, Sir Charles atirava-se com maior entusiasmo ainda a seu papel.

— Esses policiais são uns tontos — disse ele, liquidando o assunto. — O que terão eles procurado no quarto de Ellis? Provas de sua culpa. Nós vamos procurar provas de sua inocência... o que é inteiramente diferente.

— Está assim tão convencido da inocência de Ellis?

— Se nós estivermos certos a respeito de Babbington, ele tem de ser inocente.

— Sim, além do que...

Mr. Satterthwaite não completou a frase. Estava a ponto de dizer que se Ellis fosse um criminoso profissional e tivesse sido descoberto por Sir Bartholomew, assassinando-o por isso, o caso todo ia ficar insuportavelmente cacete. Mas lembrou-se a tempo de que Sir Bartholomew tinha sido grande amigo de Sir Charles Cartwright, e sentiu-se devidamente horrori­zado com a insensibilidade de seus próprios pensamentos.

A princípio o quarto de Ellis não pareceu oferecer mui­tas probabilidades para descobertas. As roupas penduradas no armário, bem como as que estavam nas gavetas estavam todas cuidadosamente arrumadas. Eram bem cortadas, mas traziam a marca de vários alfaiates diferentes. Era claro que se tratava de roupas ganhas de vários antigos patrões. A rou­pa de baixo estava no mesmo caso. Os sapatos estavam engraxados e arrumados em seu lugar.

Mr. Satterthwaite pegou um sapato e murmurou:

— Nove, então é isso, tamanho nove.

Porém não havia nenhuma marca de pé ligada ao caso, tal verificação não parecia levar a lugar algum.

Tornou-se claro, por estar ausente, que Ellis havia partido usando seu uniforme de mordomo, e Mr. Satterth­waite fez notar a Sir Charles que isso lhe parecia muito extraordinário.

— Qualquer pessoa de bom senso teria envergado um terno comum.

— Sim, é muito esquisito... Chega quase a parecer, o que seria absurdo, que ele na realidade não deixou a casa... O que é uma bobagem, é claro.

Continuaram sua busca. Nada de cartas ou papéis, a não ser um recorte de jornal sobre uma cura para calos, que incluía um parágrafo, logo abaixo, a respeito do casamento da filha de um duque.

Na mesa de cabeceira havia um pequeno mata-borrão e um vidrinho pequeno de tinta — mas não havia caneta. Sir Charles segurou o mata-borrão junto ao espelho, porém não adiantou nada. A página estava muito marcada, for­mando uma total confusão, enquanto que ambos acharam que a tinta parecia estar velha.

— Ou ele não escreveu nada desde que chegou aqui, ou então não usou o mata-borrão — deduziu Mr. Satterthwaite. — Este mata-borrão é velho. Ah, sim... — Com alguma gratificação indicou um “L. Baker” dificilmente discernível em meio da confusão.

— Tenho a impressão de que Ellis não usou nada disso.

— O que é muito estranho, não acha? — disse Sir Charles vagarosamente.

— Estranho por quê?

— Bem, normalmente as pessoas escrevem cartas...

— Não se se tratasse de um criminoso profissional.

— Aí não; você pode ter razão... Devia haver alguma coisa de errado a respeito dele, para fugir desse jeito... Só não concordamos que ele tenha assassinado Tollie.

Examinaram o chão, levantando o tapete e espiando de­baixo da cama. Não havia nada em lugar nenhum, a não ser uma mancha de tinta perto da lareira. O quarto estava desapontadoramente vazio.

Saíram um tanto desconcertados. Seu entusiasmo de dete­tives amadores pelo menos momentaneamente se arrefecera.

É possível que lhes tenha ocorrido que nos romances as coisas sempre são um pouco mais bem organizadas.

Trocaram algumas palavras com o resto da criadagem, ajudantes de aspecto assustado, com muito medo de Mrs. Leckie e de Beatrice, e de nenhum deles conseguiram arran­car o que quer que fosse.

Finalmente despediram-se.

— Bem, Satterthwaite — disse Sir Charles enquanto ca­minhavam pelo parque (havia ordens para que o carro de Mr. Satterthwaite os pegasse junto à casa do porteiro), algu­ma coisa chamou sua atenção... por mínima que seja?

Mr. Satterthwaite pensou. Não gostava de dar respostas apressadas e menos ainda quando sentia que devia ter notado alguma coisa. Confessar que toda a expedição fora uma perda de tempo não o agradava. Repassou na mente o teste­munho de cada uma das empregadas — e a informação a ser obtida era mínima.

Como Sir Charles resumira havia pouco, Miss Wills me­tera o bedelho, Miss Sutcliffe ficou muito perturbada, Mrs. Dacres não ficara nada perturbada, e o Capitão Dacres ficara bêbado. O que era muito pouco, a não ser que os desmandos de Freddie Dacres fossem indicação da tentativa de anestesiar uma consciência pesada. Porém Mr. Satterthwaite sabia que Freddie Dacres se embebedava muito freqüentemente.

— Então? — insistiu Sir Charles, impaciente.

— Nada — confessou com relutância Mr. Satterthwaite. — A não ser... bom, creio que podemos deduzir do recorte encontrado que Ellis tinha calos.

Sir Charles deu um sorriso amargo.

— A dedução parece muito razoável... ela nos leva a alguma coisa?

Mr. Satterthwaite confessou que não.

— A única outra coisa... — disse ele, porém interrompeu-se.

— O que é? Continue, homem. Qualquer coisa pode ajudar.

— Pareceu-me um pouco estranho aquela brincadeira de Sir Bartholomew com o mordomo... lembra-se do que a co­peira nos contou. Não me parece nada típico dele.

— E não foi típico — disse Sir Charles, com ênfase. — Eu conhecia o Tollie muito bem... melhor do que você... e posso garantir que ele não era homem dessas coisas. Ele nunca teria falado assim, a não ser que... bem, a não ser que por alguma razão ele não estivesse inteiramente normal no momento. Tem razão, Satterthwaite, esse ponto é impor­tante. Mas aonde nos leva ele?

— Bem — começou Mr. Satterthwaite; mas era óbvio que a pergunta de Sir Charles havia sido meramente retórica. Ele não queria ouvir as opiniões de Mr. Satterthwaite; queria apenas divulgar as suas.

— Lembra-se do momento em que aconteceu o incidente, Satterthwaite? Logo depois de Ellis dar-lhe um recado tele­fônico. Creio ser uma dedução razoável julgar que o recado foi a causa da hilaridade repentina e pouco usual de Tollie. Não se lembra de que eu perguntei qual tinha sido o recado?

Mr. Satterthwaite acenou que sim.

— Dizia que uma mulher chamada Mrs. de Rushbridger havia chegado ao sanatório — disse, para mostrar que tam­bém ele havia reparado no ponto em questão. — O que não parece particularmente excitante.

— Não há dúvida de que não. Porém, se nosso racio­cínio estiver correto, é preciso que o recado tenha alguma significação particular.

— S...s...sim — disse Mr. Satterthwaite, com dúvidas.

— Sem dúvida alguma — disse Sir Charles. — Temos de descobrir qual é essa significação. A mim ocorre que ela possa ter sido alguma espécie de mensagem em código... uma coisa que parece inócua, mas que na verdade significa outra completamente diferente. Se Tollie andasse fazendo indagações a respeito da morte de Babbington, é possível que fosse relacionado com tais indagações. Podemos até admitir que ele houvesse contratado um detetive particular para verificar algum fato. E é possível que lhe tenha dito que, no caso de sua suspeita ser justificada, ele deveria telefonar-lhe e usar exatamente essa frase, que não daria a menor pista sobre a verdade, a quem quer que fosse que recebesse o recado. Isso explicaria o seu júbilo, explicaria sua pergunta a Ellis se tinha certeza do nome... já que ele mesmo sabia que tal pessoa não existia. Em poucas palavras, o ligeiro desequilíbrio de que pode ser acometida uma pessoa quando verifica que um palpite vaguíssimo realmente deu certo.

— Julga então que não existe ninguém com o nome de Mrs. de Rushbridger?

— Bem, creio que teremos de verificar este ponto.

— Como?

— Poderíamos dar um pulo até o sanatório e perguntar à enfermeira-chefe.

— Ela poderá achar um tanto estranho.

Sir Charles riu-se.

— Deixe isso comigo — disse ele.

Os dois mudaram de direção e foram para o sanatório.

Mr. Satterthwaite disse:

— E quanto às suas idéias? Alguma coisa chamou-lhe a atenção? Estou falando de nossa visita à casa, é claro.

Sir Charles respondeu lentamente:

— Sim, houve qualquer coisa... mas o diabo é que não me lembro o que foi.

Mr. Satterthwaite olhou-o surpreso.

— Como hei de explicar? Houve alguma coisa... alguma coisa que no momento me pareceu errada... ou imprová­vel... só que tem que... no momento não tive tempo de pensar a respeito. Então deixei a idéia de lado.

— E agora não consegue lembrar-se do que foi?

— Não... só me lembro de que, no momento, pensei comigo mesmo: “Isso é esquisito.”

— Foi quando interrogamos as empregadas? Qual delas?

— Estou dizendo que não me lembro. E quanto mais tentar, menos me lembrarei... Se eu deixar para lá acaba voltando.

O sanatório já estava à vista, um grande edifício branco e moderno, separado do parque por uma cerca. Havia um portão, pelo qual passaram, e depois tocaram a campainha e pediram para ver a enfermeira-chefe.

Esta era uma mulher alta, de meia-idade, de rosto inteli­gente e ar de competência. Claramente conhecia Sir Charles de nome, como amigo de Sir Bartholomew Strange.

Sir Charles explicou que estava recém-chegado do exte­rior e que ficara horrorizado não só de saber da morte do amigo, mas também das terríveis suspeitas que havia, tendo por isso ido até a casa para descobrir tudo o que pudesse a respeito A enfermeira falou em tons comovidos a res­peito da perda de Sir Bartholomew para ambos, e também de sua carreira como médico. Sir Charles mostrou-se ansioso por saber o que aconteceria ao sanatório. Ela explicou que Sir Bartholomew tinha dois sócios, ambos médicos muito com­petentes, sendo um residente no sanatório.

— Bartholomew tinha muito orgulho disto aqui, eu sei — disse Sir Charles.

— Sim, seus tratamentos eram muito bem sucedidos.

— Principalmente doenças nervosas, não era?

— Exato.

— O que me lembra que um sujeito que conheci em Monte Carlo tinha uma espécie de parenta que vinha para cá. Não me lembro direito do nome... era muito esquisito... Rushbridger... Rush brigger... qualquer coisa no gênero.

— O senhor quer dizer Mrs. de Rushbridger?

— Isso mesmo. Ela ainda está aqui?

— Sem dúvida... mas creio que não poderá vê-la... por algum tempo ainda. Está numa cura de repouso severís­sima. — A enfermeira deu um sorriso ligeiramente provo­cante. — Nada de cartas, ou de visitas excitantes...

— Bom, espero que não seja nada de muito grave.

— Um colapso nervoso bastante severo... falhas de me­mória e total exaustão nervosa. Mas com o tempo havemos de pô-la bem de novo.

A enfermeira sorriu de forma reconfortante.

— Deixe-me ver... será que não ouvi Tollie... Sir Bar­tholomew... falar dela? Era amiga dele, além de paciente, não era?

— Creio que não, Sir Charles. Pelo menos o doutor nunca disse nada. Ela chegou recentemente das Índias Oci­dentais... na verdade, foi muito engraçado; deixe que eu lhes conte. O nome é muito difícil para os empregados lembra­rem certo, e uma das ajudantes aqui é Bastante bronca. Ela chegou para mim e disse: “Mrs. West Índia acaba de chegar”, e pode ser que para ela West Índia e Rushbridger possam ser parecidos... mas foi uma coincidência porque era de lá que ela tinha vindo.1

— É sim... quero dizer... muito divertido. O marido também está aqui?

— Não; ele ainda está nas ilhas.

 

1 (N. da T.) — West índia, Índias Ocidentais.

 

— Ah, exato... exato. Eu devo estar confundindo-a com outra pessoa. O caso interessava o doutor por alguma razão particular?

— Os casos de amnésia são bastante comuns, porém sempre interessam aos médicos... por causa das variantes. É raro que dois casos sejam iguais.

— Todos eles me parecem muito estranhos. Minha se­nhora, foi um prazer poder conversar um pouco com a senho­ra. Sei o quanto Tollie a estimava. Falou-me muitas vezes da senhora — concluiu mentirosamente Sir Charles.

— Como fico contente em ouvi-lo. — A enfermeira-chefe ficou a um tempo embaraçada e desvanecida. — Um homem esplêndido... uma grande perda para todos nós. Aqui fica­mos todos chocadíssimos... estupefactos talvez fosse a pala­vra mais exata. Assassinado! Quem haveria de querer as­sassinar Dr. Strange, disse eu. É incrível. Aquele monstro daquele mordomo. Espero que a polícia o apanhe. Sem mo­tivo, nem nada.

Sir Charles sacudiu a cabeça com tristeza e os dois despediram-se, seguindo pela estrada até onde o carro os esperava.

Para se vingar de seu silêncio forçado durante a entre­vista com a enfermeira-chefe, Mr. Satterthwaite demonstrou interesse exagerado pelo local do acidente de Oliver Manders, fazendo inúmeras perguntas ao porteiro, um pobre coitado de raciocínio lento, mais ralentado ainda pela meia-idade.

É, tinha sido ali mesmo, onde o muro estava mostrando marcas de ter sido quebrado. O rapaz estava de motocicleta. Não, não tinha visto o acidente em si. O jovem cavalheiro estava parado ali... exatamente onde agora estava o cava­lheiro. Não parecia estar ferido. Só estava olhando muito triste para a motocicleta... que, para falar a verdade, estava parecendo um montão de lixo. Ele perguntou o nome do lugar onde estava, e quando soube que a casa era de Sir Bartholomew Strange, disse: “Mas que sorte a minha!” e dirigiu-se para lá. Parecia ser um cavalheiro muito calmo — mas denotava cansaço. Como é que o acidente podia ter acontecido, isso o porteiro não conseguia sequer imaginar, mas achava que às vezes as coisas funcionavam mal.

— Foi um acidente estranho — disse Mr. Satterthwaite pensativo.

Ele olhou para a estrada, larga e reta, sem nada que levasse um motociclista a virar, de repente, na direção de um muro de três metros de altura. Sim, muito estranho o acidente.

— Em que está pensando, Satterthwaite? — perguntou Sir Charles, com curiosidade.

— Nada — disse Mr. Satterthwaite — nada.

— Não há dúvida de que é estranho — disse Sir Charles, e também ele ficou olhando o local do acidente com olhar intrigado.

Entraram em seu carro e partiram.

Mr. Satterthwaite estava entregue a seus pensamentos. Mrs. de Rushbridger — lá se foi a teoria de Cartwright — não era nada de mensagem em código — existia tal pessoa. Porém será que haveria alguma coisa de especial a respeito dela, da própria mulher? Seria ela acaso algum tipo de testemunha, ou será que foi apenas por ela constituir um caso interessante que Sir Bartholomew Strange havia-se mostrado tão inusitadamente alegre? Seria ela, acaso, uma mulher atraente? Apaixonar-se aos cinqüenta e cinco anos (como muitas vezes já observara Mr. Satterthwaite) mudava radical­mente o caráter de um homem. Podia fazê-lo brincalhão quando era sério anteriormente...

Seus pensamentos foram interrompidos. Sir Charles in­clinou-se para a frente.

— Satterthwaite — disse ele — será que se incomodaria se nós voltássemos?

Sem esperar qualquer resposta, ele tomou o tubo de comunicação e deu as ordens ao motorista. O carro dimi­nuiu a marcha, parou, e encontrou um local apropriado para poder manobrar para a pista certa. Em poucos instantes estavam a toda velocidade na direção oposta.

— O que foi? — perguntou Mr. Satterthwaite.

— Eu me lembrei — disse Sir Charles — do que foi que me pareceu tão estranho. Foi a mancha de tinta no chão do quarto do mordomo.

 

               A RESPEITO DE UMA MANCHA DE TINTA

Mr. Satterthwaite encarou o amigo com surpresa.

— A mancha de tinta? O que quer dizer com isso, Cartwright?

— Está lembrado dela?

— Lembro-me de que vimos uma mancha de tinta, sim..

— Lembra-se da posição em que estava?

— Bom... não exatamente.

— Perto do rodapé junto à lareira.                          

— Isso mesmo. Agora já me lembro.

— E como lhe parece que a mancha tenha sido causada. Satterthwaite?

Mr. Satterthwaite refletiu alguns momentos.

— Não era grande — disse finalmente. — Não podia ser o resultado de um tinteiro tombado. Eu diria que provavel­mente o homem deixou cair ali sua caneta-tinteiro... lem­bre-se de que não havia nenhuma caneta no quarto. (Ele vai ver que eu noto as coisas tanto quanto ele, pensou Mr. Satterthwaite). De modo que parece que se o homem jamais escreveu, que seria por ele ter sua própria caneta-tinteiro, porém não há provas de que jamais tenha escrito naquele quarto.

— Há sim, Satterthwaite. Há a mancha de tinta.

— Poderia não estar escrevendo — retrucou Satterth­waite. — Pode simplesmente ter deixado a caneta cair no chão.

— Mas se a caneta não estivesse aberta não teria deixado a mancha.

— Você pode ter razão — disse Mr. Satterthwaite. — Mas não percebo o que há de estranho em tudo isto.

— É possível que não haja nada de estranho — disse Sir Charles. — Não saberei enquanto não voltar lá para dar mais uma olhada.

Estavam entrando pelo portão principal. Alguns minutos mais tarde haviam chegado até a casa, e Sir Charles estava acalmando a curiosidade causada por sua volta com a descul­pa de um lápis esquecido no quarto do mordomo que aca­bara de inventar.

— E agora — disse Sir Charles fechando a porta do quarto depois dos dois terem entrado, tendo-se desembaraçado de Mrs. Leckie com extraordinária habilidade, — vamos ver se eu estou fazendo o maior papel de idiota, ou se há alguma coisa nesta minha idéia.

Na opinião de Mr. Satterthwaite a primeira alternativa era de longe a mais provável, porém era cortês demais para dizê-lo. Sentou-se na cama e ficou apreciando o outro trabalhar.

— Aqui está a mancha — disse Sir Charles, indicando-a com o pé — bem junto ao rodapé, num ponto diametral­mente oposto ao da mesa. Em que circunstâncias um homem deixaria sua caneta cair exatamente ali?

— Caneta pode ser deixada cair em qualquer lugar — disse Mr. Satterthwaite.

— É claro que pode ser atirada de um extremo do quarto para o outro — concordou Sir Charles. — Porém normal­mente ninguém trata a própria caneta desse modo. Mas não sei. Caneta-tinteiro é um dos objetos mais infernais do mundo. Seca ou se recusa a escrever sempre no momento em que mais precisamos dela. É possível que essa seja a solução. Ellis perdeu a paciência, disse: “Esta porcaria que vá para os infernos,” e atirou-a do outro lado do quarto.

— Creio que há várias explicações possíveis — disse Mr. Satterthwaite. — Ele pode simplesmente ter pousado a caneta em cima da prateleira da lareira, e ela pode ter escor­regado para o chão.

Sir Charles fez experiências com o lápis. Deixou-o rolai de uma extremidade da lareira. O lápis caiu pelo menos a um pé de distância da marca, e rolou para dentro, na direção do aquecedor de gás.

— Bem — disse Mr. Satterthwaite. — E qual é a sua explicação?

— Estou tentando encontrá-la.

De seu lugar, sentado na cama, Mr. Satterthwaite passou então a testemunhar um espetáculo muito divertido.

Sir Charles tentou deixar cair o lápis de sua mão en­quanto andava na direção da lareira. Tentou sentar-se na beira da cama, escrever ali e depois deixar cair o lápis. Para deixar o lápis cair no local certo era preciso ficar sentado ou em pé agarrado à parede, em posições absolutamente implausíveis.

— É impossível — disse Sir Charles em voz alta.E lá ficou ele observando a parede, a mancha e o aquecedor a gás.

— Se ele estivesse queimando papéis, aí... — disse pen­sativo. — Mas ninguém queima papéis nesse tipo de aque­cedor...

Repentinamente pareceu ter uma inspiração.

Um momento mais tarde Mr. Satterthwaite estava tendo uma idéia total da capacidade profissional de Sir Charles.

Charles Cartwright estava transformado em Ellis, o mor­domo. Sentou-se à mesa para escrever. Sua atitude era furtiva, vez por outra levantava os olhos, dando rápidas olha­das para um lado e outro. Repentinamente pareceu-lhe ouvir alguma coisa — Mr. Satterthwaite percebeu até o que é que ele estava ouvindo — passos no corredor. O homem tinha alguma culpa a lhe pesar na consciência. Para ele aqueles passos tinham alguma significação. Levantou-se de um salto, o papel em que estivera escrevendo em uma das mãos, sua caneta na outra. Correu até o outro lado do quarto, até a lareira, com a cabeça meio virada, ainda alerta — escutando — amedrontado. Tentou enfiar os papéis debaixo do aque­cedor a gás, e para fazê-lo jogou para um lado a caneta, com impaciência. O lápis de Sir Charles, que era a “caneta” do drama, caiu precisamente sobre a mancha de tinta...

— Bravo — disse Mr. Satterthwaite, aplaudindo com entusiasmo.

A interpretação fora de tal categoria que ele ficara con­vencido de que aquela era absolutamente a única maneira pela qual Ellis poderia ter agido.

— Viu? — disse Sir Charles, retomando sua própria personalidade, e falando com exultante modéstia. — Se o sujeito ouviu a polícia chegar e tinha de esconder o que estivera escrevendo... bem, onde poderia tê-lo escondido? Nem numa gaveta, nem debaixo do colchão... pois se a polí­cia desse busca no quarto seria imediatamente encontrado. Não havia tempo para soltar uma tábua do chão. Não, atrás do aquecedor a gás era sua única possibilidade.

— O próximo passo — disse Mr. Satterthwaite — é veri­ficar se há alguma coisa escondida atrás do aquecedor.

— Exatamente. É claro que pode ter sido um alarme falso, e que ele tenha tornado a tirar o papel dali mais tarde. Mas vamos torcer para que ainda esteja lá.

Tirando o paletó e arregaçando a manga da camisa, Sir Charles deitou-se no chão e tentou espiar pela fresta sob o aquecedor.

— Há qualquer coisa lá — informou. — Uma coisa branca. Como poderemos tirar? Precisamos de uma coisa assim como um alfinete de chapéu de senhora.

— Há muito tempo que as senhoras não usam mais alfi­netes de chapéu — disse Mr. Satterthwaite, com um pouco de tristeza. — Talvez um canivete servisse.

Porém nenhum dos dois tinha canivete.

Afinal Mr. Satterthwaite saiu e tomou uma agulha de tricô emprestada de Beatrice. Apesar de morrer de curiosi­dade para saber por que razão ele havia de precisar de uma coisa daquelas, a noção de boas maneiras da moça não per­mitiu que fizesse qualquer pergunta.

A agulha resolveu. Sir Charles conseguiu recuperar meia dúzia de folhas de papel amarrotadas, que haviam sido enfia­das de uma só vez.

Cada vez mais excitados, ele e Mr. Satterthwaite estica­ram as folhas. Tratava-se obviamente de vários rascunhos de uma mesma carta — escritos com uma caligrafia pe­quena, de escriturário.

Isto é para dizer (começava o primeiro) que o signatário não deseja criar maiores dificuldades, e pode mesmo ter-se enganado a respeito do que julgou ver esta noite, porém...

Aqui o autor obviamente não se sentiu satisfeito, e parou, para fazer nova tentativa.

John Ellis, mordomo, apresenta seus cumprimentos, e gos­taria de obter uma entrevista a respeito da tragédia desta noite antes de se dirigir à polícia com algumas informações que obteve...

Ainda descontente, experimentou de novo.

John Ellis, mordomo, está informado de alguns fatos sobre a morte do doutor. Ainda não transmitiu tais fatos à polícia...

Na vez seguinte, havia abandonado o uso da terceira pessoa.

Estou muito precisado de dinheiro. Mil libras não me fariam mal algum. Há certas coisas que poderia contar à polícia, mas não gosto de criar caso para ninguém...

A última era ainda menos reservada.

Sei como o doutor morreu. Não disse nada à polícia — ainda. Se me encontrar...

Esta última carta era interrompida de modo diverso das outras — depois de “encontrar” a pena tinha começado a rabiscar, e havia algumas palavras incompreensíveis. Era óbvio que foi enquanto estava escrevendo essa versão que Ellis tinha ouvido alguma coisa que o assustou. Tinha amarrotado os papéis e corrido para escondê-los.

Mr. Satterthwaite respirou fundo.

— Parabéns, Cartwright — disse ele. — Seu palpite sobre a mancha de tinta estava certo. Bom trabalho. Agora veja­mos exatamente onde estamos.

Ele parou um instante.

— Ellis, exatamente como julgávamos, é um tratante. Não era o assassino, mas sabia quem era, e estava preparando uma boa chantagem para explorar a ele ou a ela...

— Ele ou ela — interrompeu Sir Charles. — É irritante não sabermos qual dos dois. O Sujeitinho bem que poderia ter começado ao menos um de seus rascunhos com ‘Meu Senhor’, ou ‘Minha Senhora’, o que já nos ajudava bastante. Ellis parece ter sido um estilista. Pelo menos gastou um bocado de energia na elaboração da carta da chantagem. Se ao menos nos tivesse dado uma pista... umazinha só... sobre a pessoa à qual se dirigia.

— Não importa — disse Mr. Satterthwaite. — Estamos progredindo. Lembre-se de que disse que estaríamos procurando neste quarto alguma prova da inocência de Ellis. Pois muito bem, já a encontramos. Essas cartas mostram que ele era inocente, na questão do assassinato, quero dizer. Em outros assuntos não prestava para nada. Porém não matou Sir Bartholomew Strange. Isso foi outra pessoa. Alguém que também matou Babbington. Creio que até mesmo a polícia terá de concordar conosco agora.

— Pretende contar tudo isto a eles?

A voz de Sir Charles indicava insatisfação.

— Não vejo o que mais poderíamos fazer. Por quê?

— Bem — Sir Charles sentou-se na cama. Sua testa estava franzida, indicando que estava pensando muito em al­guma coisa. — Como hei de dizê-lo? No momento sabemos de alguma coisa que ninguém mais sabe. A polícia está pro­curando por Ellis. Eles pensam que ele é o criminoso. Todo o mundo sabe que eles pensam que é ele o culpado. De modo que o verdadeiro criminoso deve estar se sentindo muito à vontade. Ele (ou ela) não está o que se possa dizer preve­nido, em guarda; pelo contrário, deve estar muito confiante. Não será uma pena modificar esse panorama? Não será exatamente essa a nossa oportunidade? Quero dizer, nossa oportunidade de descobrir a ligação entre Babbington e uma dessas pessoas? Nenhum deles sabe que alguém está ligando esta morte com a de Babbington. Ninguém está suspeitando de nada. É uma chance maravilhosa.

— Compreendo o que pensa — disse Mr. Satterthwaite. — E concordo. É uma chance inacreditável. Mas, mesmo assim, não creio que possamos fazê-lo. É nosso dever, como cidadãos, relatar imediatamente o que descobrimos à polícia. Não temos o direito de ocultar os fatos.

Sir Charles olhou-o de modo travesso.

— Você é um exemplo de bom cidadão, Satterthwaite. Não tenho nenhuma dúvida de que o correto é o que está dizendo... mas eu não sou nem de longe tão bom cidadão quanto você. Não teria o menor escrúpulo em ocultar esta descoberta, ficar sozinho com ela, por um dia ou dois... só um ou dois... que tal? Não? Está bem, então eu concordo. Sejamos pilares da lei e da ordem.

— Compreendo — explicou Mr. Satterthwaite, — John­son é meu amigo e... foi muito correto em toda esta história... contou-nos tudo o que a polícia sabia... todas as informações, sabe como é.

— Ora, tem razão — suspirou Sir Charles. — Toda a ra­zão. Só que tem que a única pessoa que se lembrou de es­piar debaixo do aquecedor fui eu. A idéia nunca passou por nenhuma daquelas cabeças duras da polícia... Mas seja como você quiser.

— Eu suponho — disse Mr. Satterthwaite — que ele con­seguiu o que queria. Foi pago para desaparecer... e desa­pareceu... de forma muito eficiente.

— Sim — disse Sir Charles. — Suponho que seja essa a explicação. — Um arrepio passou-lhe pelo corpo.

— Não gosto deste quarto, Satterthwaite. Vamos embora daqui.

 

                 PLANO DE CAMPANHA

Sir Charles e Mr. Satterthwaite chegaram de volta a Lon­dres na noite seguinte.

A entrevista com o Coronel Johnson tinha sido conduzi­da com o maior tato. O Superintendente Crossfield não tinha ficado lá muito contente que meros “cavalheiros” tivessem descoberto alguma coisa que ele e seus auxiliares não haviam percebido. E fez os maiores esforços para “salvar a face”.

— Muito meritório, meu senhor. Jamais me ocorreu pro­curar debaixo do aquecedor a gás. Para falar a verdade, não consigo imaginar o que os levou a procurar por lá.

Os dois homens fizeram então um relato detalhado das teorias provocadas pela mancha de tinta que haviam termina­do por levá-los até lá.

— Estávamos apenas xeretando — foram os termos de Sir Charles.

— Seja como for, o fato é que olharam — continuou o Superintendente, — com inteira justificativa. Não que o que encontraram me pareça muito surpreendente. Como podem ver, é lógico que se Ellis não fosse o assassino, era preciso que tivesse alguma boa razão para desaparecer, e durante todo esse tempo sempre tive em mente, lá no fundo, que talvez a chantagem fosse a especialidade dele.

Uma coisa ao menos resultou da descoberta que fi­zeram. O Coronel Johnson ia comunicar-se com a polí­cia de Loomouth. A morte de Stephen Babbington certamen­te deveria ser investigada.

— E se descobrirem que morreu de envenenamento por nicotina, até mesmo Crossfield há de admitir que as duas mortes têm relação uma com a outra — disse Sir Charles en­quanto iam para Londres a toda velocidade.

Ele continuava um pouco contrariado de ter tido de en­tregar suas descobertas à polícia.

Mr. Satterthwaite havia tentado acalmá-lo, salientando que a informação não seria divulgada, nem comunicada à im­prensa.

— A pessoa culpada não desconfiará de nada. A busca de Ellis será mantida no mesmo ritmo.

Sir Charles admitiu que isso era verdade.

Ao chegarem a Londres ele explicou a Mr. Satterthwaite que pretendia entrar em contato com Egg Lytton Gore. A carta que ela lhe mandara trazia um endereço em Belgrave Square. Esperava que ela ainda estivesse lá.

Mr. Satterthwaite concordou gravemente com tal decisão. Ele mesmo estava ansioso por ver Egg. Ficou resolvido que Sir Charles telefonaria para ela tão logo chegasse a Londres.

Egg ainda estava na cidade. Ela e sua mãe estavam hos­pedadas com parentes e não voltariam a Loomouth antes de uma semana. Não foi difícil persuadir Egg a sair para jantar com os dois.

— Ela não poderia vir aqui mesmo, suponho — disse Sir Charles dando uma olhada por seu luxuoso apartamento. — A mãe provavelmente não aprovaria, não é? Claro que teríamos Miss Milray também... porém acho melhor não. Para falar a verdade, Miss Milray sempre me deixa um pou­co constrangido. Ela é tão eficiente que eu fico com com­plexo de inferioridade.

Mr. Satterthwaite sugeriu sua casa. Mas no fim resolve­ram jantar no Berkeley. Depois, se Egg assim o desejasse, poderiam ir para algum outro lugar.

Mr. Satterthwaite notou imediatamente que a moça esta­va mais magra. Seus olhos pareciam maiores e mais febris, o queixo mais resoluto. Estava pálida e com olheiras. Po­rém seu encanto era o mesmo de sempre, sua sinceridade qua­se infantil tão intensa quanto antes.

Ela disse a Sir Charles:

— Sabia que viria...

Seu tom dava a entender: “Agora que já veio tudo es­tará bem...”

Mr. Satterthwaite pensou para consigo mesmo: “Mas ela não tinha certeza de que ele viria — não tinha mesmo. Está pisando em ovos. A Coitadinha está a se torturar”. E pen­sou: “Mas será que o homem não percebe? Via de regra não falta vaidade aos atores... Será que ele não sabe que a moça está loucamente apaixonada por ele?”

Refletiu que era uma situação estranha. Que Sir Charles estava completamente apaixonado pela moça, ele não duvida­va nem por um instante. E ela igualmente apaixonada por ele. E o elo que os unia — o elo ao qual os dois se agar­ravam desesperadamente — era um crime — um crime du­plo da mais revoltante natureza.

Durante o jantar pouco se disse. Sir Charles falou de suas experiências no exterior. Egg falou de Loomouth. Mr. Satterthwaite encorajava a ambos cada vez que a conversa parecia estar a ponto de fracassar. Quando terminaram, fo­ram para a casa de Mr. Satterthwaite.

Ele morava no Chelsea Embankment. Era um casa gran­de, onde havia inúmeras obras de arte. Havia quadros, escul­turas, porcelanas chinesas, cerâmicas pré-históricas, marfins, miniaturas, e várias peças autênticas de móveis Chippendale e Hepplewhite. No geral, havia uma atmosfera de suavidade e compreensão.

Egg Lytton Gore não via nada, não notava nada. Atirou seu casaco de noite sobre uma cadeira e disse:

— Finalmente. Agora contem-me tudo.

Ela ouviu com vivida atenção enquanto Sir Charles con­tava suas aventuras em Yorkshire, prendendo repentinamente a respiração quando ele descreveu a descoberta das cartas de chantagem.

— O que aconteceu depois disso só podemos conjeturar — concluiu Sir Charles. — Presumivelmente Ellis foi pago para guardar silêncio, e sua fuga foi facilitada.

Porém Egg sacudiu negativamente a cabeça.

— Oh não — disse ela. — Não percebem? Ellis está morto.

Ambos os homens surpreenderam-se, porém Egg reafir­mou o que dissera.

— É claro que está morto. É por isso que desapareceu tão bem que ninguém consegue encontrá-lo. Ele sabia de­mais, e por isso, foi morto. Ellis é o terceiro crime.

Embora nenhum dos dois homens tivesse admitido tal possibilidade anteriormente, foram forçados a confessar que não era de todo improvável.

— Mas olhe aqui, minha cara — argumentou Sir Charles, — é fácil dizer que Ellis está morto. Mas onde está o cor­po? Há várias e sólidas dezenas de libras de mordomo de que será necessário dar conta.

— Eu não sei onde está o corpo — disse Egg. — Mas deve haver muitos lugares.

— Nem tantos — murmurou Mr. Satterthwaite. — Nem tantos...

— Há muitos — repetiu Egg. — Deixem-me ver... Sótãos; há pilhas de sótãos aos quais ninguém nunca vai. Pro­vavelmente está em alguma mala num sótão qualquer.

— É pouco provável — disse Sir Charles. — Mas possí­vel, é claro. Poderia não ser descoberto... hum... por al­gum tempo.

Não era assim que Egg evitava assuntos desagradáveis. Enfrentou imediatamente o ponto que Sir Charles tinha em mente.

— Cheiro sobe, não desce. Um corpo em decomposição seria encontrado muito antes num porão do que num sótão. E, além disso, durante muito tempo as pessoas ficariam pen­sando que era um rato morto.

— Se sua teoria fosse correta, indicaria claramente um homem como o assassino. Uma mulher não conseguiria arras­tar um corpo por uma casa afora. Para falar a verdade, até mesmo para homem não é fácil.

— Bem, há outras possibilidades. Existe uma passagem secreta lá, como sabe. Miss Sutcliffe me disse, e Sir Bartholomew prometeu me mostrar. O assassino poderia ter dado o dinheiro a Ellis e dito a ele como poderia deixar a casa... depois era só entrar antes dele e matá-lo lá dentro. Uma mulher poderia fazer isso. Poderia apunhalá-lo pelas costas, ou coisa assim. Depois era só deixar o corpo lá, vol­tar para a casa, e ninguém ficava sabendo de nada.

Sir Charles sacudiu a cabeça com dúvidas, porém já não desacreditava da teoria de Egg.

Mr. Satterthwaite tinha a certeza de que a mesma sus­peita lhe ocorrera no quarto de Ellis por um momento quan­do eles haviam encontrado as cartas. E lembrou-se do arre­pio de Sir Charles. A idéia de que Ellis poderia estar morto lhe ocorrera naquele instante...

Mr. Satterthwaite pensou: “Se Ellis está morto, então estamos tratando com uma pessoa extremamente perigosa... sim, extremamente perigosa...” E de repente ele sentiu um arrepio gelado descer-lhe pela espinha...

Uma pessoa que já matara três vezes não hesitaria em matar de novo...

Se eles descobrissem muita coisa...

Voltou à realidade com o som da voz de Sir Charles.

— Há uma coisa que não compreendi em sua carta, Egg. Você falou de Oliver Manders como se ele estivesse em peri­go... como se a polícia o suspeitasse. Não percebi que eles sentissem qualquer suspeita em relação a ele.

Pareceu a Mr. Satterthwaite que Egg sentiu-se ligeira­mente desconcertada. Chegou a suspeitar de que a vira enru­bescer um pouco.

“Ah!” — disse Mr. Satterthwaite a si mesmo. “Agora vamos ver como se sai dessa, minha menina”.

— Foi bobagem minha — confessou Egg. — Pensei que o fato de Oliver chegar assim como chegou, com o que po­deria parecer uma desculpa fabricada... bem, eu fiquei certa de que a polícia iria suspeitar dele.

Sir Charles aceitou muito bem a explicação.

— Sim — disse ele. — Compreendo.

Mr. Satterthwaite falou.

— E a desculpa foi fabricada? — perguntou ele.

Egg virou-se contra ele.

— O que é que o senhor está querendo dizer?

— Foi um acidente muito estranho — disse Mr. Sat­terthwaite. — Julguei que se ele tivesse fabricado toda a his­tória talvez você soubesse.

Egg negou.

— Não sei de nada.   Nunca pensei nisso. Mas por que razão haveria Oliver de fingir que tinha tido um acidente se não tivesse?

— Poderia ter suas razões — disse Sir Charles. — Das mais naturais.

Estava sorrindo para ela. Egg ficou rubra.

— Oh não! — disse ela. — Não!

Sir Charles suspirou. Ocorreu a Mr. Satterthwaite que seu amigo interpretara o enrubescimento de Egg de forma in­teiramente errônea. Sir Charles pareceu mais triste e mais velho quando tornou a falar.

— Bem — disse ele, — se nosso jovem amigo não está correndo perigo, então onde é que eu entro nisto tudo?

Egg avançou rapidamente e agarrou-o pela manga do casaco.

— O senhor não pode ir embora de novo. Está pensando em desistir? O senhor vai descobrir a verdade... a verdade. Eu não acredito que ninguém seja mais capaz de descobrir a verdade. Só o senhor. O senhor é quem pode.

Ela estava sendo totalmente sincera. Sua vitalidade, como uma onda que crescia, parecia criar um torvelinho naquele ambiente tranqüilo.

— Você acredita em mim? — disse Sir Charles. Esta­va comovido.

— Claro, claro, claro. Nós vamos descobrir a verdade. Nós dois, juntos.

— Com Satterthwaite.

— Naturalmente, com Mr. Satterthwaite — disse Egg sem interesse algum.

Mr. Satterthwaite disfarçou um sorriso. Quisesse Egg ou não incluí-lo, ele não tinha a menor intenção de ficar de fora. Adorava mistérios, e gostava de observar a natureza humana, além de ter um fraco pelos que se amavam. Reu­nidos, neste caso, estavam seus três grandes prazeres.

Sir Charles sentou-se. Sua voz mudara. Agora assumira o comando, estava dirigindo uma produção.

— Em primeiro lugar temos de esclarecer a situação. Acreditamos ou não acreditamos que uma mesma pessoa ma­tou Babbington e Sir Bartholomew Strange?

— Eu, sim — disse Egg.

— Eu, também — disse Mr. Satterthwaite.

— Acreditamos que o segundo assassinato foi resultado direto do primeiro? Quero dizer, acreditamos que Bartholo­mew Strange foi morto para que não revelasse a verdade so­bre o primeiro crime, ou pelo menos aquilo que suspeitava ser a verdade?

— Sim — disseram novamente Egg e Mr. Satterthwaite, desta vez em uníssono.

— Então é o primeiro assassinato que devemos investi­gar, e não o segundo...

Egg concordou.

— Para mim, enquanto não descobrirmos o motivo do primeiro crime, dificilmente poderemos querer descobrir o assassino. E o motivo apresenta dificuldades indescritíveis. Babbington era um senhor idoso inofensivo, agradável e gen­til, dir-se-ia que sem um só inimigo no mundo. E o entan­to, foi assassinado... e é preciso que tenha havido alguma razão para que fosse assassinado. Temos de encontrar essa razão.

Fez uma pausa, depois disse em tom mais normal:

— Enfrentemos os fatos. Que razões existem para que se mate alguém? Em primeiro lugar, creio, o ganho, o lucro.

— Vingança — disse Egg.

— Mania homicida — disse Mr. Satterthwaite. — O crime passional dificilmente seria aplicável neste caso. Porém há o medo.

Charles Cartwright acenou que sim. Estava escrevendo num pedaço de papel.

— Bom, acho que já vimos todas as possibilidades — disse ele.   — Em primeiro lugar, ganho. Há alguém que lu­cre com a morte de Babbington? Ele tinha dinheiro... ou estava por herdar dinheiro?

— Acho muito pouco provável — disse Egg.

— Eu também, mas seria bom que conversássemos com Mrs. Babbington a respeito.

“A seguir temos vingança. Será que Babbington fez al­gum mal a alguém... talvez quando era mais moço? Será que casou com a mulher que algum outro homem queria? Temos que investigar isso, também.

“Mania homicida. Será que tanto Babbington quanto Tol­lie foram mortos por algum desequilibrado? Não acredito muito nessa teoria. Até mesmo um lunático tem alguma es­pécie de justificativa para seus crimes. Quero dizer, um lu­nático pode considerar sua missão sagrada matar médicos, ou então matar sacerdotes. Mas não a ambos. Com isso creio que podemos eliminar o maníaco homicida. Mas permanece o medo.

“Pessoalmente, creio que essa deve ser a solução mais pro­vável. Babbington sabia de alguma coisa a respeito de alguém — ou reconheceu alguém. Foi morto para não revelar quem era esse alguém.”

— Eu não vejo como é que alguém como Mr. Babbing­ton podia saber de alguma coisa comprometedora a respeito de qualquer das pessoas que estiveram presentes naquela noite.

— É possível — disse Sir Charles — que se tratasse de alguma coisa que ele não sabia que sabia...

E continuou, tentando esclarecer sua idéia.

— É difícil dizer exatamente o que estou pensando. Su­ponhamos, por exemplo (e é só um exemplo), que Babbing­ton tivesse visto uma certa pessoa em certo lugar a certo mo­mento. Que ele soubesse, não haveria nenhuma razão para que a tal pessoa não estivesse ali. Mas suponhamos também que essa pessoa tivesse elaborado um alibi muito hábil para provar que, naquele instante exato, estava em outro lugar, a cem quilômetros de distância. Bem, a qualquer momento o velho Babbington, na mais santa inocência, podia entornar o caldo.

— Compreendo — disse Egg. — Digamos que tenha ha­vido um assassinato em Londres, e Babbington viu o homem na estação de Paddington, porém o homem provou que não era o culpado porque tinha um alibi mostrando que estava em Leeds naquele momento. Nesse caso Babbington poderia es­tragar toda a história.

— Era exatamente o que eu estava querendo dizer. Cla­ro que não passa de uma hipótese. Poderia ser outra coisa. Alguém que viu o homem naquela noite, mas que o conhece­ra antes com outro nome...

— Poderia ser alguma coisa relacionada a algum casa­mento — disse Egg. — Sacerdotes estão sempre casando gen­te. Podia ser alguém que tinha cometido bigamia.

— Ou poderia ser ligado a algum nascimento ou morte — sugeriu Mr. Satterthwaite.

— Há muitas possibilidades — disse Egg, torcendo o na­riz. — Teremos de trabalhar de trás para adiante. Temos de partir das pessoas que estavam presentes ao jantar. Vamos fazer uma lista. Quem estava em sua casa, e quem estava na de Sir Bartholomew.

Ela tirou o lápis e o papel de Sir Charles.

— Os Dacres estavam nos dois lugares. E aquela mulher que parece um repolho murcho... como é mesmo o nome dela... Miss Wills. Miss Sutcliffe.

— Angela você pode deixar de fora. Há anos que eu a conheço — disse Sir Charles.

Egg franziu a testa, rebelando-se.

— Não podemos fazer esse tipo de coisa — disse ela. — Deixar as pessoas de fora só porque as conhecemos. Temos de ser objetivos. Além do que, eu não sei nada a respeito de Angela Sutcliffe. Ela pode ter cometido o crime tanto quan­to qualquer outra pessoa... talvez até mais.   Toda atriz tem um passado. Eu diria que ela é a pessoa mais provável.

Ela encarou Sir Charles desafiadora. Os olhos dele chis­param com a resposta.

— Nesse caso, também não podemos deixar Oliver Man­ders de fora.

— Como poderia ser Oliver? Ele já tinha encontrado com Mr. Babbington uma porção de vezes.

— Esteve nos dois lugares, e sua chegada foi... um tan­to suspeita.

— Muito bem — disse Egg. Fez uma pausa, depois acres­centou: — Nesse caso é melhor botar também mamãe e eu... o que faz seis suspeitos.

— Não creio...

— Ou fazemos tudo certo, ou então não fazemos nada. — Os olhos dela soltavam faíscas.

Mr. Satterthwaite pacificou o ambiente sugerindo que to­massem alguma coisa. Tocou a campainha e pediu bebidas.

Sir Charles caminhou para um canto afastado para admi­rar uma bela escultura africana de uma cabeça. Egg apro­ximou-se de Mr. Satterthwaite e tomou-lhe o braço.

— Que estupidez a minha, ter perdido a calma — mur­murou ela. — Eu sei que sou uma idiota, mas por que razão haveríamos de deixar aquela mulher de fora? E por que ra­zão estaria ele tão interessado em fazê-lo? Ora essa, por que raios eu hei de ser assim tão ciumenta?

Mr. Satterthwaite sorriu e deu-lhe um tapinha na mão.

— O ciúme nunca compensa, minha querida — disse ele. — Se sentir ciúmes, não demonstre. Por falar nisso, você pensou realmente que alguém pudesse suspeitar do jovem Manders?

Egg deu uma risadinha. Uma risadinha amiga e infantil.

— Claro que não. Eu só falei nisso para não assustar o homem. — Ela virou rapidamente a cabeça. Sir Charles continuava emburrado, admirando a cabeça esculpida. — Sabe... eu não queria que ele sentisse que eu estava correndo atrás dele. Mas também não quero que pense que estou apaixonada por Oliver, porque não estou. Como tudo é di­fícil! Agora ele voltou para a atitude de “Deus vos abençoe, meus filhos”.   Não é nada disso que eu quero.

— Tenha paciência — aconselhou Mr. Satterthwaite. — Você sabe que no fim tudo dá certo.

— Eu não sou paciente — disse Egg. — Eu gosto de conseguir as coisas imediatamente; se for possível, ainda um pouco antes.

Mr. Satterthwaite riu-se, e Sir Charles virou-se e cami­nhou em direção a eles.

Enquanto tomavam seus drinques, fizeram seu plano de campanha. Sir Charles voltaria ao Topo do Mastro, para o qual ainda não arranjara comprador. Egg e sua mãe volta­riam para Rose Cottage um pouco antes do que ha­viam planejado. Mrs. Babbington ainda estava morando em Loomouth. Obteriam dela todas as informações possíveis, e agiriam segundo o que descobrissem.

— Teremos sucesso — disse Egg. — Eu sei que teremos.

Ela inclinou-se na direção de Sir Charles, com os olhos fulgurantes. Levantou seu copo para tocar no dele.

— Bebamos ao nosso sucesso — ordenou ela.

Vagarosa, muito vagarosamente, com seus olhos fixos nos dela, ele levou seu copo até os lábios.

— Ao sucesso — disse ele — e ao Futuro...

 

                                                       TERCEIRO ATO / DESCOBERTA

 

               MRS.   BABBINGTON

Mrs. Babbington tinha-se mudado para uma pequena casa de pescador, não muito longe do cais. Esperava uma irmã que voltaria do Japão dentro de aproximadamente seis meses. Enquanto a irmã não chegasse, não queria fazer qual­quer plano para o futuro. A casinha por acaso estava vazia, e ela a alugou por seis meses. Ainda estava por demais aba­lada por sua perda súbita para deixar Loomouth. Fazia dezesseis anos que Stephen Babbington era pároco de St. Petroch, em Loomouth. Tinham sido, de modo geral, dezesseis anos felizes e tranqüilos, apesar da tristeza causada pela mor­te de seu filho Robin. Dos filhos que restavam, Edward estava no Ceilão, Lloyd na África do Sul, enquanto que Ste­phen era terceiro oficial a bordo do Angolia. Escreviam fre­qüente e afetuosamente, porém não estavam em condições de oferecer nem lar nem companhia à mãe.

Margaret Babbington estava profundamente só.

Não que ela se permitisse muito tempo para pensar. Continuava ativa na paróquia — o novo pároco era solteiro, e ela passava boa parte de seu tempo trabalhando o pequeno pedaço de terra que tinha na frente da casa. Era do tipo de mulher para quem as flores são parte da vida.

Estava trabalhando no jardim, uma tarde, quando ouviu o ruído da tranca do portão, e ao levantar os olhos viu Sir Charles Cartwright e Egg Lytton Gore.

Margaret não ficou surpreendida de ver Egg. Sabia que a moça e sua mãe estavam para voltar a qualquer momento. Mas ficou surpresa de ver Sir Charles. Corriam boatos insis­tentes de que ele havia deixado definitivamente aquela região. Lera notícias nos jornais sobre o que ele fazia no Sul da França. Uma tabuleta de “À VENDA” tinha sido colocada no jardim do Topo do Mastro. Ninguém esperava que Sir Charles voltasse. É, no entanto, tinha voltado.

Mrs. Babbington afastou o cabelo desmazelado da testa, e olhou consternada suas mãos sujas de terra.

— Não estou em condições de apertar as mãos de nin­guém — disse ela. — Sei que deveria usar luvas no jardim. Às vezes eu começo de luvas. Mas sempre acabo tirando. Sentem-se as coisas muito melhor com as mãos nuas.

Caminhou na frente conduzindo-os para a casa. A pe­quenina sala de estar tinha sido tornada aconchegante com chintzes. Havia fotografias e vasos com crisântemos.

— É uma surpresa vê-lo por aqui, Sir Charles. Julgava que havia abandonado para sempre o Topo do Mastro.

— Eu também — disse o ator com franqueza. — Porém há certas ocasiões, Mrs. Babbington, em que o destino é mais forte do que nós.

Mrs. Babbington não respondeu. Voltou-se na direção de Egg, porém a moça impediu que fossem ditas as palavras que lhe estavam nos lábios.

— Escute, Mrs. Babbington. Esta não é apenas uma vi­sita. Sir Charles e eu temos uma coisa muito séria para lhe dizer. O único problema... é que eu não gostaria de fazê-la sofrer.

Mrs. Babbington olhou para a moça e depois para Sir Charles. Seu rosto tinha ficado mais pálido e abatido.

— Em primeiro lugar — disse Sir Charles, — eu gostaria de lhe perguntar se a senhora recebeu alguma comunicação do Ministério do Interior.

Mrs. Babbington abaixou a cabeça.

— Compreendo... bem, talvez isso facilite o que temos a lhe dizer.

— É por isso que estão aqui... por causa da ordem de exumação?

— É. Sei que é... creio que deve ser... muito pertur­bador para a senhora.

Ela deixou-se comover pela solidariedade que sentiu na voz dele.

— Talvez não me afete tanto quanto possa pensar. Para algumas pessoas a idéia de exumação é muito aterradora... mas não é o meu caso. Não é o barro morto que importa. Meu marido querido está em outro lugar... em paz... onde não há quem possa perturbar seu descanso. Não, não é o fato que me afeta. O que é chocante para mim... é a idéia em si, a terrível idéia de que Stephen não tenha morrido de morte natural. Parece-me impossível... inteiramente impos­sível.

— Temo que deva parecê-lo à senhora. Assim também pareceu a mim... a nós... a princípio.

— O que quer dizer com a princípio?

— Que tal suspeita cruzou-me a mente na noite da mor­te de seu marido, Mrs. Babbington. Como no seu caso ago­ra, no entanto, parecia-me de tal modo impossível que pro­curei afastá-la de mim.

— Eu também pensei nisso — disse Egg.

— Você também? — Mrs. Babbington olhou-a atônita. — Você achou que alguém poderia ter matado... Stephen?

A incredulidade de sua voz era tal que nenhum dos dois visitantes conseguia saber exatamente como continuar. Mas finalmente Sir Charles retomou sua narrativa.

— Como a senhora sabe, Mrs. Babbington, eu viajei para o exterior. Quando estava no Sul da França li no jornal que meu amigo Sir Bartholomew Strange havia morrido em cir­cunstâncias praticamente idênticas às do seu marido. E rece­bi também uma carta de Miss Lytton Gore.

Egg acenou concordando.

— Como a senhora sabe, eu estava presente quando acon­teceu. Mrs. Babbington, foi exatamente a mesma coisa... exatamente. Ele bebeu um pouco de vinho do porto e seu rosto alterou-se, e... e... bem, foi igualzinho. Morreu dois ou três minutos mais tarde.

Mrs. Babbington sacudiu lentamente a cabeça.

— Não consigo compreender. Stephen! Sir Bartholo­mew... um médico bondoso e competente! Quem quereria matar qualquer um dos dois? Deve ser algum engano.

— Ficou provado que Sir Bartholomew foi envenenado; lembre-se disso — disse Sir Charles.

— Então deve ter sido obra de algum louco.

Sir Charles continuou:

— Mrs. Babbington, eu quero chegar ao fundo de tudo isso. Quero descobrir a verdade. E sinto que não há tempo a perder. Uma vez que seja divulgada a notícia da exuma­ção o criminoso ficará prevenido. Temos de pressupor, para apressar nosso trabalho, que sabemos o que será verificado pela autópsia do corpo de seu marido. Ou seja, que ele tam­bém morreu envenenado com nicotina. Para começar, a se­nhora ou ele tinham qualquer conhecimento a respeito do uso da nicotina pura?

— Eu sempre uso uma solução de nicotina para tratar das rosas. Não sabia que era venenosa.

— O que imagino (andei lendo a respeito do assunto ontem à noite) é que em ambos os casos deve ter sido usado o alcalóide puro. Os casos de envenenamento por nicotina não são nada usuais.

Mrs. Babbington sacudiu a cabeça.

— Eu não sei nada a respeito de envenenamento por ni­cotina... a não ser por imaginar que fumantes inveterados possam vir a sofrê-lo.

— Seu marido fumava?

— Fumava.

— Agora, diga-me, Mrs.Babbington. A senhora expres­sou a mais completa surpresa de que alguém pudesse querer matar seu marido. Isso significa que, ao que saiba, ele não tinha nenhum inimigo?

— Tenho a certeza de que Stephen não tinha inimigos. Todos gostavam dele. Às vezes um ou outro queria que ele ficasse um pouco mais moderno — e ela sorriu um sorriso tristonho. — Mas ele estava ficando idoso, como sabem, e com um pouco de medo de inovações; mas todos gostavam dele. Era impossível não gostar de Stephen, Sir Charles.

— Eu suponho, Mrs. Babbington, que seu marido não deixou muito dinheiro, certo?

— Não. Praticamente nenhum. Stephen não sabia guar­dar nada para si. Dava muito mais do que podia. Eu até costumava ralhar com ele.

— Não tinha qualquer herança em vista? Não tinha pa­rentes ricos de quem fosse herdeiro?

— Nada disso. E nem tinha muitos parentes. Ele tem uma irmã casada com um sacerdote em Northumberland, mas eles são muito pobres, e todos os tios e tias já faleceram.

— Quer dizer então que não parece que ninguém pudes­se lucrar com a morte de Mr. Babbington?

— Positivamente não.

— Voltemos um momento à questão de inimigos. A se­nhora diz que seu marido não tinha inimigos; mas talvez ti­vesse tido algum quando jovem.

Mrs. Babbington pareceu cética.

— Eu diria que é muito pouco provável. Stephen não era de natureza de brigar com ninguém. Sempre se deu bem com as pessoas.

— Não desejo parecer melodramático — Sir Charles tos­siu um pouco nervosamente, — mas... bem... quando fi­cou noivo da senhora, por exemplo, não havia nenhum outro candidato que se considerasse desapontado?

Um brilho momentâneo apareceu nos olhos de Mrs. Bab­bington.

— Stephen era cura de meu pai. Foi o primeiro rapaz que vi quando voltei do colégio interno. Apaixonei-me por ele, e ele por mim. Ficamos noivos quatro anos, até ele con­seguir uma paróquia em Kent, e então pudemos nos casar. A nossa foi uma história de amor muito simples, Sir Char­les... e muito feliz.

Sir Charles curvou a cabeça. A singela dignidade de Mrs. Babbington tinha sido encantadora.

Egg assumiu o papel de inquisidora.

— Mrs. Babbington, a senhora acha que seu marido ti­nha conhecido antes algum dos convidados que estavam na casa de Sir Charles naquela noite?

Mrs. Babbington pareceu intrigada.

— Bem, querida, por certo você e sua mãe, e o jovem Oliver Manders.

— Isso eu sei; mas algum dos outros?

— Nós ambos havíamos visto Angela Sutcliffe numa peça, em Londres, há cinco anos. Tanto Stephen quanto eu estávamos muito excitados com a idéia de conhecê-la em pessoa.

— Nunca a haviam visto em pessoa antes?

— Não. Nunca havíamos conhecido nenhuma atriz... ou nenhum ator, para falar a verdade... até Sir Charles vir morar aqui. O que foi — acrescentou Mrs. Babbington — um grande acontecimento. Não creio que Sir Charles possa ter idéia de como foi maravilhoso para nós todos.   Algo de romântico de repente entrou em nossas vidas.

— Não tinham conhecido o Capitão e Mrs. Dacres?

— Era aquele homem pequeno, com a mulher usando roupas maravilhosas?

— Era.

— Não. E nem a outra senhora... a que escreve peças. Coitada; ela parecia um tanto fora de seu ambiente, eu creio.

— E nunca tinham visto nenhum deles antes?

— Tenho absoluta certeza de que eu não tinha... e pra­ticamente a certeza de que Stephen também não. É preciso que compreendam, sempre fizemos tudo juntos.

— E Mr. Babbington não lhe disse nada, o que quer que fosse — insistiu Egg, — sobre as pessoas que iriam encon­trar, ou depois que as encontraram?

— Não disse nada antes... a não ser que achava que ia ser uma noite muito interessante. E depois que chegamos... bem, não houve muito tempo. — Seu rosto contraiu-se repen­tinamente.

Sir Charles interrompeu imediatamente.

— Desculpe-nos por importuná-la desta maneira. Porém compreenda que julgamos que deve haver alguma coisa, desde que possamos localizá-la. É preciso que haja alguma razão, para um assassinato brutal e aparentemente gratuito.

— Eu compreendo — disse Mrs. Babbington. — Se foi assassinato, deve ter havido alguma razão... Mas eu não sei... não consigo sequer imaginar... qual poderia ter sido.

Houve um momento ou dois de silêncio, depois Sir Char­les disse:

— Será que poderia dar-me um pequeno resumo biográ­fico da carreira de seu marido?

Mrs. Babbington tinha ótima memória para datas. As notas que Sir Charles reuniu foram as seguintes:

“Stephen Babbington, nascido em Islington, Devon, 1868. Educado no Colégio St. Paul e em Oxford. Ordenado como diácono e destacado para a Paróquia de Hoxton em 1891. Or­denado sacerdote em 1892. Foi cura em Eslington, Surrey, junto ao Reverendo Vernon Lorrimer, 1894-1899. Casou-se com Margaret Lorrimer em 1899, quando transferiu-se para Gilling, Kent. Transferido para St. Petroch, Loomouth, em 1916.”

— Isso já nos dá um ponto de partida — disse Sir Char­les. — Creio que as melhores chances serão o período em que foi vigário de St. Mary’s, em Gilling. Antes disso parece remoto demais para poder ser relacionado a qualquer das pes­soas que estiveram em minha casa naquela noite.

Mrs. Babbington teve um arrepio.

— O senhor julga realmente... que um deles?...

— Não sei o que pensar — disse Sir Charles. — Bartho­lomew viu alguma coisa, ou adivinhou alguma coisa, e Bar­tholomew Strange morreu do mesmo modo. E cinco...

— Sete — disse Egg.

— ...dessas pessoas também estavam presentes. Uma de­las deve ser culpada.

— Mas por quê? — exclamou Mrs. Babbington. — For quê? Que motivo poderia haver para alguém querer matar Stephen?

— Isso — disse Sir Charles — é o que nós vamos des­cobrir.

 

                   LADY MARY

Mr. Satterthwaite tinha vindo para o Topo do Mastro com Sir Charles. Enquanto seu anfitrião e Egg Lytton Gore estavam visitando Mrs. Babbington, Mr. Satterthwaite toma­va chá com Lady Mary.

Lady Mary gostava de Mr. Satterthwaite. Apesar do re­finamento de seus modos, era uma mulher com idéias muito definidas a respeito de quem gostava e de quem não gostava.

Mr. Satterthwaite estava tomando chá chinês numa xí­cara Dresden, enquanto comia um sanduíche minúsculo e conversava. Em sua última visita haviam descoberto que ti­nham muitos amigos e conhecidos em comum. A conversa desta vez começara na mesma tecla, porém, gradativamente encaminhara-se para assuntos mais íntimos. Mr. Satterthwai­te era uma pessoa compreensiva — ouvia os problemas alheios sem impingir-lhes os seus. Até mesmo em sua primeira vi­sita parecera natural a Lady Mary falar-lhe de suas preocupação quanto ao futuro de sua filha.   Agora falava como se a um amigo de muitos anos.

— Egg é tão teimosa — disse ela. — Atira-se às coisas de corpo e alma. Sabe, Mr. Satterthwaite, não me agrada o modo por que ela está... bem, envolvendo-se nesse assunto tão desagradável. Não me parece... sei que Egg iria rir de mim se ouvisse isto... não me parece coisa para uma moça fazer.

Ficou embaraçada ao falar. Seus olhos castanhos, suaves e ingênuos, voltaram-se para Mr. Satterthwaite num apelo.

— Sei o que quer dizer — disse ele. — Confesso que também não me agrada muito. Sei que não passa de um pre­conceito antiquado, mas aí está. Mas mesmo assim — disse com certa malícia, — não podemos esperar que as mocinhas de hoje fiquem em casa cosendo e tendo arrepios ante a idéia de crimes de violência em nossos tempos esclarecidos.

— Não me agrada pensar em assassinatos — disse Lady Mary. — Jamais pensei ser envolvida em coisa semelhante. Foi terrível. — Teve um estremecimento. — Pobre Sir Bar­tholomew.

— A senhora não a conhecia muito bem? — arriscou Mr. Satterthwaite.

— Creio que só o havia encontrado duas vezes. A pri­meira, há cerca de um ano, quando veio passar um fim-de-se­mana com Sir Charles, e a segunda naquela noite pavorosa em que o pobre Mr. Babbington faleceu. Na verdade, fiquei bastante surpreendida quando recebemos seu convite. Só acei­tei porque imaginei que a pobre Egg haveria de se divertir. Ela não tem muitas oportunidades, coitada, e parecia-me que andava meio tristonha, sem se interessar por nada.   Achei que um fim-de-semana festivo talvez a alegrasse um pouco.

Mr. Satterthwaite acenou, concordando.

— Diga-me alguma coisa a respeito de Oliver Manders. — disse ele. — O rapaz me interessa bastante.

— Acho que é muito inteligente — disse Lady Mary. — Claro, as coisas têm sido difíceis para ele.

Ela enrubesceu e depois, obviamente respondendo à per­gunta feita pelos olhos de Mr. Satterthwaite, continuou:

— Acontece que o pai e a mãe dele não eram ca­sados...

— Realmente? Eu não tinha a menor idéia.

— Por aqui todo mundo sabe, de outro modo eu não o teria mencionado. A velha Mrs. Manders, avó de Oliver, mora em Dunboyne, aquela casa meio grande na estrada de Plymouth. Seu marido era advogado aqui. O filho entrou para uma firma na cidade e saiu-se muito bem. É muito rico. A filha era uma moça bonita, que se apaixonou perdidamente por um homem casado. Eu acho que a culpa foi muito dele. Seja como for, afinal, depois de muito escândalo, os dois partiram juntos. A mulher recusou-se a conceder o divór­cio. A moça não viveu muito depois que Oliver nasceu. O tio, em Londres, é que tomou conta dele. Ele e a mulher não tinham filhos. O menino sempre repartiu o tempo en­tre os tios e a avó. Sempre vinha para cá, nas férias de verão.

Fez uma pausa, depois continuou:

— Sempre senti pena dele. E ainda sinto. Tenho a im­pressão de que boa parte daquela atitude de convencimento dele é pura representação.

— Não me surpreenderia — disse Mr. Satterthwaite. — É fenômeno muito comum. Sempre que encontro alguém que parece pensar muito bem de si mesmo, ou que se gaba mui­to, sempre fico certo de que há algum sentimento de inferioridade em algum canto.

— Parece muito estranho.

— O complexo de inferioridade é uma coisa muito pe­culiar. Crippen, por exemplo, sem a menor dúvida era um bom exemplo. Freqüentemente é o que jaz por trás de um crime. É o desejo de afirmar a personalidade.

Ela pareceu encolher-se um pouco. Mr. Satterthwaite deu-lhe um olhar quase sentimental. Gostava de sua figura graciosa, de ombros caídos, e dos suaves olhos castanhos, e da total ausência de maquilagem.   Pensou:

— Como ela deve ter sido linda quando moça...

Não teria sido uma beleza espetacular, como a da rosa — não, antes a da modesta e encantadora violeta, que escon­de sua doçura...

Seus pensamentos corriam fáceis, sempre na linguagem de sua mocidade.

E de repente ele se descobriu contando a Lady Mary seu caso de amor — o único caso de amor que tivera na vida. Não tinha sido um caso de amor muito espetacular, em ter­mos de hoje, mas havia sido muito caro a Mr. Satterthwaite.

Contou-lhe sobre a jovem, como ela era linda, e sobre o dia em que tinham ido ver as campânulas no Jardim Botâ­nico de Kew. Era sua intenção pedi-la em casamento naquele dia. Havia imaginado (e estes eram os termos em que o havia imaginado) que ela reciprocava seus sentimentos. E então, enquanto estavam olhando as campânulas, ela lhe fi­zera confidências. E ele descobriu que ela amava outro. E por isso escondeu o que lhe ia no peito, e passou a desempe­nhar o papel de Amigo Fiel.

Talvez não se tratasse de um romance muito violento, mas soava bem ali, cercado de chintz um pouco desbotado e de porcelana casca-de-ovo na sala de estar de Lady Mary.

Mais tarde Lady Mary falou-lhe de sua própria vida, de sua vida de casada, que não fora das mais felizes.

— Fui uma moça tão tola... as moças são sempre to­las, Mr. Satterthwaite. Têm tanta certeza de tudo, tanta con­vicção de que têm resposta para tudo. Todo mundo escreve e fala muito a respeito do “instinto feminino”. Pois eu, Mr. Satterthwaite, não acredito que isso exista. Não parece ha­ver nada que proteja uma moça contra certo tipo de homem. Nada dentro delas, quero dizer. Os pais avisam, mas isso não adianta nada... ninguém acredita. Eu sei que é terrível dizer uma coisa dessas, mas parece haver qualquer coisa de muito atraente, para uma moça, a respeito de um homem que se possa chamar de mau. Imediatamente ela passa a jul­gar que seu amor o reformará.

Mr. Satterthwaite concordou suavemente.

— A gente sabe tão pouca coisa. Quando passa a saber mais, já é tarde.

Ela suspirou.

— Foi tudo culpa minha. Minha família não queria que eu casasse com o Ronald. Ele era bem nascido, mas tinha má reputação. Meu pai disse-me sem rodeios que ele não prestava. E eu acreditei que, por meu intermédio, ele come­çaria uma vida nova...

Ficou silenciosa um momento, lembrando o passado.

— Ronald era um homem muito fascinante. Meu pai tinha toda a razão a respeito dele. Não custei muito a desco­brir. Sei que é antiquado dizê-lo... mas ele me partiu o co­ração. Isso mesmo, partiu-me o coração. Eu sempre tinha medo... do que poderia acontecer a seguir.

Mr. Satterthwaite, sempre intensamente interessado nas vidas dos outros, emitiu um cauteloso ruído de compreensão.

— Pode até parecer pecado dizer uma coisa dessas, Mr. Satterthwaite, mas foi um alívio quando ele apanhou pneumonia e morreu... Não que eu não me importasse com ele... amei-o até o último momento... porém já não tinha ilusões a seu respeito. E havia Egg...

Sua voz tornou-se mais terna.

— Ela era uma coisinha tão engraçada. Muito gordu­cha... tão gorducha que caía cada vez que queria ficar em pé... rolava como um ovo; foi daí que veio esse apelido ridículo...

Fez nova pausa.

— Alguns livros que tenho lido nos últimos anos me têm trazido um grande conforto. Livros sobre psicologia. Pare­ce que está provado que sob muitos aspectos as pessoas não podem deixar de ser como são. É uma espécie de cicatriz. Às vezes pode aparecer nas melhores famílias. Em menino, Ronald roubou dinheiro no colégio... dinheiro de que ele não precisava. Hoje em dia, eu sei que era mais forte do que ele... nasceu marcado...

Com muita delicadeza, e com um lencinho mínimo, Lady Mary enxugou os olhos.

— Não foi o que me ensinaram a crer — disse ela como a pedir desculpas. — Ensinaram-me que todo mundo sabe a diferença entre o bem e o mal. Mas de algum modo... creio que nem sempre isso é verdade.

— A mente humana é um grande mistério — disse Mr. Satterthwaite gentilmente. — Até aqui ainda estamos tatean­do nos caminhos de sua compreensão. Mesmo sem chegar a ser um caso extremo, pode acontecer que determinada natu­reza tenha falta daquilo que eu chamo de capacidade de con­trole. Se a senhora ou eu dissermos, por exemplo: “Odeio Fulano — queria que estivesse morto”, a idéia sairia de nossas cabeças no momento em que completássemos a frase. Os controles agiriam automaticamente. Porém em algumas pessoas a idéia, ou a obsessão, se fixa. Elas não conseguem enxergar nada além da gratificação da idéia concebida.

— Eu receio — disse Lady Mary — que isso já seja um pouco complicado para mim.

— Desculpe-me, de repente fiquei um pouco livresco.

— O senhor estava querendo dizer que os jovens, hoje em dia, não são suficientemente cerceados? Isso me preocupa às vezes.

— Não, não, não era isso de todo. Menor cerceamento parece-me ser uma boa coisa... mais saudável. Suponho que a senhora estivesse referindo-se a Miss... hum... Egg.

— É melhor chamá-la só de Egg — disse Lady Mary, sorrindo.

— Obrigado. Miss Egg soa um tanto ridículo.

— Egg é muito impulsiva, e uma vez que mete uma coisa na cabeça, não há nada que a faça parar. Como já disse, de­testo que ela esteja envolvida em tudo isto, porém a mim ela não ouve.

Mr. Satterthwaite sorriu ante a aflição expressada pelo tom de Lady Mary. Pensou consigo mesmo:

“Eu me pergunto se ela já percebeu ao menos por um momento, que essa fascinação de Egg pelo crime não passa de uma nova variação sobre aquele antiquíssimo tema... a perseguição do macho pela fêmea? Não creio que ficaria aterrorizada com tal idéia.”

— Diz Egg que Mr Babbington também foi envenenado. O senhor acha que é verdade, Mr. Satterthwaite? Ou será que se trata de outro desses exageros de Egg?

— Não teremos certeza enquanto o corpo não for exu­mado.

— Quer dizer então que haverá uma exumação? — arre­piou-se Lady Mary. — Que coisa horrível para a pobre Mrs. Babbington. Não posso conceber nada de mais penoso para uma mulher.

— A senhora conhecia os Babbingtons bastante bem, su­ponho?

— Claro que sim. Eles são... ou eram... nossos amigos muito queridos.

— A senhora sabe de alguém que pudesse ter alguma queixa grave do vigário?

— Certamente que não.

— Ele nunca mencionou alguma coisa assim?

— Não.

— E os dois se davam bem?

— Era um casal perfeito... felizes entre si e também com os filhos. Claro que eram muito pobres, e Mr. Babbing­ton sofria de artrite reumática. Creio que esses eram os úni­cos problemas que tinham.

— Oliver Manders se dava bem com o vigário?

— Bem — hesitou Lady Mary, — eles nunca se deram muito bem. Os Babbingtons sentiam pena de Oliver, e ele costumava ir muito à casa paroquial para brincar com os fi­lhos do casal, nas férias, muito embora eu creia que eles nunca chegaram a ser muito amigos. Oliver nunca foi exatamen­te um menino popular. Gabava-se muito do dinheiro que ti­nha, e do quanto se divertia em Londres. O senhor sabe como criança consegue ser cruel com essas coisas.

— Sim; porém mais tarde... depois que cresceram?

— Não creio que ele e o pessoal da casa paroquial se te­nham visto muito freqüentemente. Para falar a verdade, cer­ta vez Oliver foi um pouco rude com Mr. Babbington, aqui na minha casa. Há cerca de dois anos.

— O que foi que aconteceu?

— Oliver desferiu um ataque muito pouco cortês ao cris­tianismo. Mr. Babbington teve muita paciência e compreen­são para com ele. O que pareceu só servir para piorar Oli­ver. Ele disse. “Todo mundo metido em religião torce o na­riz para mim porque meu pai e minha mãe não eram casa­dos. Suponho que eu seja aquilo que costumam chamar filho do pecado. Pois fique sabendo que eu admiro quem tem co­ragem de assumir suas convicções, e pouco se importa com o que os hipócritas e os párocos possam dizer.” Mr. Babbington não respondeu, porém Oliver continuou: “Isso o senhor não responde. O clericalismo e a superstição é que puseram o mundo na bagunça em que está. Eu gostaria de acabar com as igrejas do mundo inteiro.” Mr. Babbington sorriu e disse: “E com o clero também?” Creio que foi o fato de ele sorrir que irritou Oliver. Achou que não estava sendo levado a sé­rio. Então disse: “Odeio tudo o que a Igreja representa: pre­sunção, segurança e hipocrisia. Acho que o melhor é liquidar com todo o bando.” E Mr. Babbington então sorriu e disse: “Meu caro rapaz, mesmo que você destruísse todas as igrejas que jamais foram construídas ou planejadas, ainda assim te­ria de acertar suas contas com Deus.”

— E o que disse o jovem Manders a isso?

— Pareceu ficar desconcertado, mas depois recuperou-se e readquiriu seus modos habituais de petulância e condescen­dência. Disse: “Creio que tudo o que eu disse não foi lá muito elegante, padre, nem muito facilmente assimilado pela sua geração.”

— A senhora não gosta muito do jovem Manders, não. é, Lady Mary?

— Tenho pena dele — disse Lady Mary na defensiva.

— Mas não gostaria que ele se casasse com Egg.

— Ah, não.

— Eu me pergunto, por que, exatamente?

— Porque... porque ele não é bondoso... e porque...

— Sim?

— Porque há algo nele, em algum lugar, que não con­sigo compreender. Algo de frio...

Mr. Satterthwaite olhou para ela, pensativo, por um mo­mento, e disse:

— O que pensava dele Sir Bartholomew Strange? Al­guma vez ele o mencionou à senhora?

— Lembro-me que disse considerá-lo um estudo interes­sante. Disse que ele o lembrava de um caso que estava tra­tando no momento no sanatório. Respondi que Oliver pare­cia-me particularmente forte e saudável, e ele disse: “Sim, sua saúde é ótima, porém ele está a caminho de um pro­blema.”

Fez uma pausa, depois continuou.

— Suponho que Sir Bartholomew fosse excepcionalmente bom como especialista em casos nervosos.

— Creio que gozava da melhor reputação entre seus co­legas.

— Eu gostava dele — disse Lady Mary.

— Ele alguma vez lhe disse alguma coisa a respeito da morte de Babbington?

— Não.

— Jamais a mencionou sequer?

— Creio que não.

— A senhora acredita... e sei que é difícil, se não a conhecia muito bem... mas acredita que alguma coisa o es­tivesse preocupando?

— Pareceu-me estar de ótimo humor... até mesmo di­vertido, por alguma razão... alguma brincadeira particular, sua. Disse-me no jantar, naquela noite, que iria fazer-me uma surpresa.

— Ah, disse?

A caminho de casa, Mr. Satterthwaite ponderou essa úl­tima declaração.

— Qual teria sido a surpresa que Sir Bartholomew esta­va preparando para seus hóspedes?

— Seria ela, quando acontecesse, tão divertida quanto estava parecendo a ele?

— Ou será que seu jeito alegre estava apenas mascarando uma resolução discreta, porém firme?   Será que alguém jamais chegaria a saber?

 

                       VOLTA HERCULE POIROT

— Francamente — disse Sir Charles, — fizemos algum progresso?

Era um conselho de guerra. Sir Charles, Mr. Satterthwai­te e Egg Lytton Gore estavam sentados no salão do Topo do Mastro. Havia fogo na lareira, e lá fora uivava uma tem­pestade equinocial.

Mr. Satterthwaite e Egg responderam ao mesmo tempo.

— Não — disse Mr. Satterthwaite.

— Sim — disse Egg.

Sir Charles olhou de um para o outro. Mr. Satterthwai­te indicou, com elegância, que a dama deveria falar pri­meiro.

Egg ficou em silêncio um momento, organizando suas idéias.

—Fizemos algum progresso — disse finalmente. — Pro­gredimos porque não descobrimos nada. Isso parece boba­gem, mas não é. O que quero dizer é que nós tínhamos algumas idéias muito vagas; agora já temos a certeza de que são todas fracassos completos.

— Progresso por eliminação — disse Sir Charles.

— Isso mesmo.

Mr. Satterthwaite limpou a garganta. Gostava de definir as coisas.

— A idéia de ganho pode ser definitivamente afastada — disse ele. — Parece não haver ninguém que (para usar a linguagem detetivesca) colhesse benefícios com a morte de Stephen Babbington. A vingança parece estar igualmente fora da jogada. A partir da índole amigável e pacífica da ví­tima, duvido que ele fosse suficientemente importante para fazer inimigos. De modo que só nos resta a última das idéias vagas...   medo. Pela morte de Stephen Babbington alguém poderia sentir-se mais seguro.

— Ficou tudo muito claro — disse Egg.

Mr. Satterthwaite mostrou-se moderadamente satisfeito consigo mesmo. Sir Charles pareceu um pouco irritado. O papel principal era dele, não de Mr. Satterthwaite.

— O importante — disse Egg — é o que iremos fazer agora... realmente jazer, quero dizer.   Vamos investigar as pessoas, ou o quê? Vamos nos disfarçar para segui-las?

— Minha criança querida — disse Charles, — eu sempre me recusei a fazer papel de velhos barbados, e não é agora que pretendo começar.

— Então o quê? — começou Egg.

Mas foi interrompida. A porta se abriu, e Temple anunciou:

— Mr. Hercule Poirot.

Mr. Poirot entrou sorridente, e cumprimentou três pes­soas absolutamente estupefactas.

— Será permitido — disse ele com malícia, — que eu assista a esta conferência? Estou certo, não estou... trata-se de uma conferência?

— Meu caro, estamos encantados em vê-lo. — Sir Char­les, recobrando-se da surpresa inicial, sacudiu entusiásticamente a mão do visitante, e instalou-o numa vasta poltrona. — De onde foi que apareceu, assim tão subitamente?

— Fui procurar meu bom amigo Mr. Sattertwaite em Londres. Disseram-me que estava fora... na Cornualha. Eh bien, saltou-me aos olhos onde ele tinha ido. Tomei o primeiro trem para Loomouth, e aqui estou.

— Sim — disse Egg. — Mas veio por quê?... Quero dizer — disse ela encabulando ao perceber a possível descor­tesia contida em suas palavras — veio por alguma razão especial?

— Eu vim — disse Hercule Poirot — para confessar um erro.

Com um sorriso encantador voltou-se para Sir Charles e abriu as mãos, num gesto extremamente estrangeiro.

— Monsieur, foi nesta mesma sala que o senhor declarou que não estava satisfeito. E eu... eu julguei que se tratasse de seu instinto dramático... eu disse a mim mesmo: ele é um grande ator, e a qualquer preço precisa ter drama. Pareceu-me, devo confessá-lo, incrível que um senhor incapaz de fazer mal a alguém pudesse ter morrido sem ser de causas naturais. Mesmo agora ainda não percebo como o veneno poderia ter sido ministrado, e nem consigo conceber qualquer motivo. Parece absurdo... fantástico. E no entanto... desde então já houve uma outra morte, outra morte em circuns­tâncias semelhantes. Não se pode atribuí-la a uma coinci­dência. Não, deve haver uma ligação entre as duas. E as­sim, Sir Charles, vim aqui para pedir-lhe que me desculpe... para dizer-lhe que eu, Hercule Poirot, estava errado, e pedir-lhe também que me admitam em seus conselhos.

Sir Charles limpou a garganta, nervoso. Parecia um pouco embaraçado.

— É realmente uma enorme bondade sua, M. Poirot. Mas não sei... vai tomar muito do seu tempo... eu...

Parou, sem saber o que dizer. Seus olhos consultaram Mr. Satterthwaite.

— É muita bondade sua... — começou Mr. Satterthwaite.

— Não, não, não é bondade alguma. É a curiosidade... e, também, o meu orgulho ferido. Tenho de reparar minha falta. Meu tempo... isso não é nada... por que ficar via­jando? A língua pode mudar, mas por toda parte a natureza humana é a mesma. Porém é claro que se não for bem-vindo, se sentirem que estou me intrometendo...

Ambos os homens falaram ao mesmo tempo.

— De modo algum.

— Claro que não.

Poirot voltou seus olhos para a moça.

— E Mademoiselle?

Por um momento Egg ficou em silêncio, e sobre os três homens foi transmitida a mesma impressão: Egg não queria a ajuda de M. Poirot...

  1. Satterthwaite julgava que sabia por quê. Esta era a aventura particular de Charles Cartwright e Egg Lytton Gore. Mr. Satterthwaite havia sido admitido — de má von­tade — à base da compreensão clara de que sua participação era dispensável. Porém Hercule Poirot era um caso dife­rente. Ele faria um papel principal. Possivelmente até mes­mo Sir Charles teria de ceder-lhe a primazia. E nesse caso os planos de Egg iriam por água abaixo.

Ele observou a moça, compreendendo sua dificuldade. Os outros dois homens não compreendiam, porém ele, com sua sensibilidade semifeminina, percebia seu dilema. Egg es­tava lutando por sua felicidade...

O que diria ela?

Afinal das contas, que poderia ela dizer? Como poderia revelar a ele seus verdadeiros pensamentos? “Vá-se embora — vá-se embora — a sua vinda pode estragar tudo — não quero que fique aqui...”

Egg Lytton Gore disse a única coisa que poderia dizer.

— É claro — disse ela com um pequeno sorriso. — Gostaríamos muito de tê-lo conosco.

 

                       REVISÃO DA MATÉRIA

— Ótimo — disse Poirot. — Então somos colegas. Eh bien, façam então o favor de me por au courant da situação.

Ouviu com a maior atenção enquanto Mr. Satterthwaite delineava os passos que tinham dado desde a volta à Ingla­terra. Mr. Satterthwaite era bom narrador. Tinha a facul­dade de criar atmosfera, de pintar um quadro. Sua descrição da velha Abadia, dos empregados, do Chefe de Polícia, foi admirável. Poirot foi caloroso em apreciar a descoberta, por Sir Charles, das cartas inacabadas atrás do aquecedor de gás.

— Ah, mais c’est magnifique, ça! — exclamou extasiado. — A dedução, a reconstrução... perfeito! O senhor deveria ter sido um grande detetive, Sir Charles, em lugar de um grande ator.

Sir Charles recebeu tais encômios com um ar modesto que lhe ia muito bem — com uma modéstia toda sua. Ele não poderia ter recebido elogios por suas atuações no palco durante tantos anos sem aperfeiçoar um modo adequado de aceitá-los.

— Sua observação, também, foi das mais justas — disse Poirot, voltando-se para Mr. Satterthwaite. — Falo de sua observação quanto à repentina familiaridade com o mordomo.

— Acredita que haja alguma possibilidade na idéia a res­peito de Mrs. de Rushbridger? — perguntou Sir Charles ansioso.

— É uma idéia. Que sugere... bem, que sugere mui­tas coisas, não acham?

Ninguém tinha muito certeza a respeito dessas muitas coisas, porém não tiveram coragem de confessá-lo, de modo que houve apenas murmúrios de aprovação.

Sir Charles assumiu o relato nesse momento. Descreveu a visita que ele e Egg haviam feito a Mrs. Babbington e seus resultados geralmente negativos.

— E agora estamos em dia — disse ele. — Já sabe o que estamos fazendo. Diga-nos: o que lhe parece tudo isso?

Ele inclinou-se para a frente, com a ansiedade de um menino.

Poirot ficou em silêncio por alguns momentos. Os ou­tros três o observavam.

Finalmente ele falou:

— A senhorita é por acaso capaz de se lembrar qual o tipo de cálice de porto era usado na mesa de Sir Charles?

Sir Charles interferiu no momento em que Egg sacudia a cabeça, negativamente, um tanto irritada.

— Eu sei.

Ele se levantou e foi até um armário, de onde tirou al­guns cálices de xerez, pesados e lapidados.

— Naturalmente eram de forma ligeiramente diferente... mais arredondados... especiais para porto, mesmo. Comprou-os no leilão do velho Lammersfield... todo um jogo de cris­tais de mesa. Eu admirei-os, e como havia mais do que ele precisava, cedeu-me alguns. São muito bons, não acha?

Poirot pegou um cálice e girou-o na mão.

— Sim — disse ele. — São excelentes. Imaginei que tivesse sido usado algo no gênero.

— Por quê? — exclamou Egg.

Poirot apenas sorriu para ela.

— Sim — disse ele, — a morte de Sir Bartholomew Strange poderia ser muito facilmente explicada; porém a morte de Stephen Babbington é mais difícil. Ah, se ao menos elas se tivessem dado ao contrário!

— O que quer dizer, ao contrário? — perguntou Mr. Satterthwaite.

Poirot voltou-se para ele.

— Pense um pouco, meu amigo. Sir Bartholomew é um médico célebre. Pode haver muitas razões para a morte de um médico célebre. Um médico conhece segredos, meu amigo, segredos importantes. Um médico tem certos pode­res. Imagine um paciente nas regiões limítrofes da sanidade. Uma palavra do médico e ele pode ser afastado do mundo... que tentação para um cérebro desequilibrado! Um médico pode ter suspeitas a respeito da morte súbita de um de seus pacientes... oh, sem dúvida, é possível encontrar muitas razões para a morte de um médico.

— E então, como eu disse, se ao menos as mortes se tivessem dado ao contrário... Se Sir Bartholomew Strange ti­vesse morrido primeiro, e depois Stephen Babbington. Porque Stephen Babbington poderia ter visto alguma coisa... poderia ter tido alguma suspeita a respeito da primeira morte.

Ele suspirou e continuou.

— Porém não se pode esperar que os casos venham como se quer. Os casos são como são. Há apenas uma pequena idéia que gostaria de sugerir. Eu suponho que não seria possível que a morte de Stephen Babbington fosse um aci­dente... que o veneno (se é que houve veneno) fosse desti­nado a Sir Bartholomew Strange e, por engano, o homem errado tivesse sido morto.

— Que idéia engenhosa — disse Sir Charles. Seu rosto, que se iluminara, ficou novamente desapontado. — Mas não creio que funcione. Babbington entrou na sala cerca de quatro minutos antes de passar mal. Durante esse tempo nada lhe passou nos lábios a não ser meio coquetel... e não havia nada naquele coquetel...

Poirot interrompeu-o.

— Isso o senhor já me disse... mas suponhamos, apenas como hipótese, que houvesse alguma coisa naquele coquetel. Poderia ele ter sido planejado para Sir Bartholomew, e bebido por engano por Mr. Babbington?

Sir Charles sacudiu a cabeça.

— Ninguém que conhecesse bem o Tollie jamais pen­saria em envenená-lo com um coquetel.

— Por quê?

— Porque ele jamais os tomava.

— Jamais?

— Jamais.

Poirot fez um pequeno gesto de desagrado.

— Ah... isto tudo marcha errado. Não faz sentido...

— Além do que — continuou Sir Charles — não vejo como falar em um copo ser confundido com outro... ou coisa no gênero. Temple simplesmente passou a bandeja, e cada um tomava o copo que quisesse.

— Isso é verdade — murmurou Poirot. — Não se pode impingir um coquetel como se impinge determinada carta do baralho. E como é essa sua Temple?   É a empregada que me abriu a porta esta noite?

— Exato. Está comigo há três ou quatro anos... menina quieta, equilibrada... conhece bem o trabalho. Não sei de onde veio... porém Miss Milray poderia informá-lo de todos os detalhes.

— Miss Milray é a sua secretária? Aquela alta... que lembra um pouco um granadeiro?

— Lembra muito um granadeiro — concordou Sir Charles.

— Eu já jantei com o senhor em várias ocasiões, porém não me lembro de a ter conhecido antes daquela noite.

Sir Charles explicou as circunstâncias, às quais Poirot ouviu muito atentamente.

— Foi sugestão dela própria que estivesse presente? Compreendo.

Ficou um momento perdido em seus pensamentos, de­pois disse:

— Será que eu poderia conversar com a sua copeira, com essa Miss Temple?

— Mas é claro, meu velho.

Sir Charles apertou uma campainha. Foi atendido ime­diatamente.

— O senhor chamou?

Temple era uma moça alta, de uns vinte e dois ou vinte e três anos. Tinha uma certa elegância — o cabelo era bem escovado e brilhante, porém não era bonita. Seus modos eram calmos e eficientes.

— M. Poirot deseja fazer-lhe algumas perguntas — disse Sir Charles.

Temple desviou seu olhar de superioridade para Poirot.

— Estávamos falando da noite em que Mr. Babbington faleceu aqui — disse Poirot. — Está lembrada?

— Oh, sim, senhor.

— Eu gostaria de saber exatamente como foram servidos os coquetéis.

— Perdão, meu senhor?

— Gostaria de saber a respeito dos coquetéis. A senho­rita os preparou?

— Não, senhor. É uma coisa que Sir Charles gosta de fazer pessoalmente. Eu trouxe as garrafas... o vermute, o gim, essas coisas.

— Onde as colocou?

Ela indicou uma mesa junto da janela.

— A mesa com os copos estava ali, meu senhor. Sir Charles, quando acabou de preparar, serviu todos os copos. Então eu peguei a bandeja e ofereci-a a todos os presentes.

— Todos os coquetéis estavam na bandeja que a senho­rita serviu?

— Sir Charles deu um a Miss Lytton Gore; estava con­versando com ela naquele instante, e pegou também um para ele. E Mr. Satterthwaite — seus olhos voltaram-se para ele um momento — veio e pegou para uma senhora... creio que foi para Miss Wills.

— Perfeitamente — disse Mr. Satterthwaite.

— Os outros eu servi; creio que todos aceitaram, menos Sir Bartholomew.

— Será que a senhorita poderia fazer o favor de repetir exatamente o que fez? Vamos colocar algumas almofadas para representarem os convidados. Eu estava parado aqui, segundo me lembro... Miss Sutcliffe estava ali.

Com a ajuda de Mr. Satterthwaite, a cena foi reconsti­tuída. Mr. Satterthwaite era muito observador. Lembrava-se bastante bem onde cada pessoa tinha estado. E então Tem­ple fez seu percurso. Certificaram-se de que começara com Mrs. Dacres, tinha passado a Miss Sutcliffe e Poirot, para chegar depois a Mr. Babbington, Lady Mary e Mr. Satterth­waite, que estavam sentados juntos.

Tudo estava de acordo com as lembranças de Mr. Sat­terthwaite. Finalmente Temple foi dispensada.

— Pah — explodiu Poirot. — Não faz sentido. Temple foi a última pessoa a lidar com os coquetéis, mas teria sido impossível que ela interferisse de algum modo com qualquer deles, além de, como já disse, não ser possível obrigar uma pessoa a pegar um determinado copo de coquetel.

— Instintivamente pega-se o que está mais perto — disse Sir Charles.

— Possivelmente isso poderia funcionar servindo a pes­soa desejada em primeiro lugar... porém mesmo assim seria incerto. Os copos ficam muito juntos; nenhum deles parece estar muito mais perto do que os outros. Não, um método tão fortuito não pode ser adotado. Diga-me, Mr. Satterth­waite, Mr. Babbington pousou seu copo, ou ficou com ele na mão?

— Pousou-o aqui nesta mesa.

— Alguém se aproximou da mesa depois disso?

— Não. Eu era a pessoa que estava mais perto dele, e asseguro-lhe que não toquei no copo por qualquer razão... mesmo que se admitisse que pudesse fazê-lo sem ser observado.

Mr. Satterthwaite havia falado em tom um tanto severo. Poirot apressou-se em explicar-se.

— Não, não, não estou fazendo nenhum tipo de acusa­ção... quelle idée! Porém quero ter os fatos muito claros. Segundo a análise não havia nada de anormal no copo... agora tornou-se claro que além do que disse a análise, verifi­camos que não poderia haver nada no coquetel. Obtivemos assim os mesmos resultados de dois testes diferentes. Porém Mr. Babbington não comeu nem bebeu nada além do coquetel, e se ele foi envenenado com nicotina pura, a morte se daria muito rapidamente. Estão percebendo aonde isso nos leva?

— A lugar nenhum, raios! — disse Sir Charles.

— Eu não diria isso... não, eu não diria isso. Fica sugerida uma idéia muito monstruosa... que espero e confio que não seja verdadeira. Não, é claro que não é... a morte de Sir Bartholomew o prova... E, no entanto...

Franziu a testa, perdido em seus pensamentos. Os ou­tros o observavam com curiosidade. Levantou os olhos.

— Percebem o ponto, não? Mrs. Babbington não estava em Melfort Abbey, e portanto fica inocentada de qualquer suspeita.

— Mrs. Babbington... mas ninguém jamais sequer pen­sou em suspeitar dela.

Poirot sorriu caridosamente.

— Não? Que coisa curiosa. A idéia me ocorreu imediata­mente... mas imediatamente. Se o pobre cavalheiro não foi envenenado com o coquetel, então deve ter sido envenenado poucos minutos antes de entrar na casa. De que modo? Numa cápsula? Talvez em alguma coisa a ser tomada para prevenir contra indigestão. Mas quem poderia preparar a dose? Somente a esposa. Quem poderia, talvez, ter algum motivo que nenhum estranho pudesse suspeitar? Novamente a esposa.

— Mas eles eram devotadíssimos um ao outro — excla­mou Egg, indignada. — O senhor não compreende nada.

Poirot sorriu bondosamente para ela.

— Não. O que é precioso. A senhorita os conhece, porém eu não. Vejo os fatos sem interpretá-los, sem idéias preconcebidas. E deixe que lhe diga uma coisa, Mademoi­selle... no curso de minha experiência já encontrei cinco casos de esposas assassinadas por maridos devotados, e vinte e dois de maridos assassinados por esposas devotadas. Les femmes, ao que parece, são mais capazes de manter as aparências.

— Eu acho o senhor horroroso — disse Egg. — Eu sei que os Babbingtons não são assim. É... é monstruoso!

— O assassinato é monstruoso, Mademoiselle — disse Poirot, e havia uma repentina severidade em sua voz.

Mas continuou em tom mais leve.

— Porém eu... que vejo apenas os fatos... concordo que Mrs. Babbington não cometeu essa coisa. Compreenda, ela não estava em Melfort Abbey. Não, como Sir Charles já disse, a culpa deve ser de alguém que estava presente em ambas as ocasiões... um dos sete de sua lista.

Houve um silêncio.

— E como o senhor nos aconselha a agir? — perguntou Satterthwaite.

— Mas sem dúvida os senhores já têm um plano! — sugeriu Poirot.

Sir Charles limpou a garganta.

—A única coisa exeqüível parece ser um processo de eliminação — disse ele. — Minha idéia seria tomar cada pes­soa da lista e considerá-la culpada até provarmos sua ino­cência. Com isso quero dizer que devemos assumir que existe uma ligação entre essa pessoa e Stephen Babbington, e usar todos os nossos recursos para descobrir qual possa ser tal ligação. Se não descobrirmos ligação alguma, passaremos à pessoa seguinte.

— Como psicologia, é muito bom — aprovou Poirot. — E seus métodos?

— Isso ainda não tivemos tempo de discutir. Agradece­ríamos um conselho seu sobre o assunto, M. Poirot. Talvez o senhor mesmo...

Poirot levantou a mão.

— Meu amigo, não me peça para fazer nada de natureza ativa. Tem sido minha convicção de toda a vida que qual­quer problema pode ser resolvido pelo pensamento. Deixem-me ser o que se poderia chamar o Encarregado da Obser­vação. Continuem as suas investigações, que Sir Charles vem dirigindo com tanta capacidade.

“E quanto a mim?” pensou Mr. Satterthwaite. “Esses atores! Sempre sob os refletores, fazendo o papel principal!”

— É possível, de tempos em tempos, que possam pre­cisar daquilo que poderíamos descrever como um Conselheiro. Eu serei o Conselheiro — disse Poirot.

Sorriu para Egg.

— Não lhe parece justo assim, Mademoiselle?

— Excelente — disse Egg. — Tenho a certeza de que sua experiência será útil para nós.

O rosto dela parecia aliviado. Ela olhou para o relógio e soltou uma exclamação.

— Preciso ir para casa. Mamãe vai ter um ataque.

— Eu a levarei de carro — disse Sir Charles.

 

                 DISTRIBUIÇÃO DE TAREFAS

— Como viu, o peixe mordeu a isca — disse Hercule Poirot.

Mr. Satterthwaite, que tinha estado olhando para a porta que acabara de se fechar atrás dos outros dois, teve um sobres­salto e voltou-se para Poirot. Este último estava sorrindo, divertido.

— Sim, não o negue. Deliberadamente o senhor lançou-me a isca naquele dia em Monte Carlo. Não foi assim? Mostrou-me a notícia no jornal. Esperava que meu interesse fosse despertado... e que eu me ocupasse do caso.

— É verdade — confessou Mr. Satterthwaite. — Porém julguei que havia falhado.

— Não, não falhou. O senhor é um avaliador perspicaz da natureza humana, meu amigo. Eu estava enfadado... não tinha... nas palavras daquela criança que estava perto de nós... “nada para fazer”. O senhor chegou no momento psicológico adequado. (E, por falar nisso, como o crime de pende, também ele, do momento psicológico! O crime e a psicologia andam de mãos dadas.) Mas voltemos ao assunto. Este é um crime muito intrigante... deixa-me inteiramente perplexo.

— Que crime... o primeiro ou o segundo?

— Só existe um... o que o senhor chama o primeiro ou o segundo assassinato não passam de duas metades de um mesmo crime. A segunda metade é simples... o motivo... o meio utilizado...

Mr. Satterthwaite interrompeu.

— Mas sem dúvida o meio apresenta as mesmas dificul­dades. Não foi encontrado nenhum veneno no vinho, e todos comeram da mesma comida.

— Não, não; é completamente diferente. No primeiro caso não parece que seja possível a quem quer que seja enve­nenar Stephen Babbington. Sir Charles, se assim o quisesse, poderia ter envenenado um de seus hóspedes, porém não qualquer hóspede em particular. Temple possivelmente po­deria ter introduzido alguma coisa no último copo, porém o copo de Mr. Babbington não foi o último. Não, o assassinato de Mr. Babbington parece tão impossível que ainda sinto que talvez ele seja impossível... que ele tenha morrido de morte natural, afinal das contas... Porém isso sabere­mos logo. O segundo caso é diferente. Qualquer um dos presentes poderia ter envenenado Bartholomew Strange. Esse não apresenta qualquer dificuldade.

— Não percebo — começou Mr. Satterthwaite.

Poirot continuou:

— Eu o provarei a qualquer momento com uma pequena experiência. Mas vamos passar para um outro assunto, muito importante. É vital, como vê (e o senhor sem dúvida o vê, já que tem coração sensível e muita compreensão) que eu não me transforme num desmancha-prazer.

— Quer dizer — começou Mr. Satterthwaite com o início de um sorriso.

— Sir Charles tem de ser o astro do espetáculo! Está habituado a isso. E, além do mais, há outra pessoa que es­pera isso dele. Não estou certo? Não agrada a Mademoiselle que eu me ocupe deste assunto.

— O senhor não perde nada, M. Poirot.

— Ah, mas salta aos olhos! Eu não sou muito susce­tível... e quero sempre ajudar um romance... não atrapalhá-lo. O senhor e eu, meu amigo, temos de trabalhar juntos nisto... para honra e glória de Charles Cartwright; não é assim? Quando o caso estiver resolvido...

— Se — disse Mr. Satterthwaite timidamente.

— Quando! Não me permito falhar.

— Nunca? — perguntou Mr. Satterthwaite, penetrante.

— Têm havido ocasiões — disse Poirot com dignidade — em que por algum tempo eu não percebi as coisas com a rapidez necessária.   Em que não percebi a verdade tão cedo quando o poderia ter feito.

— Mas nunca fracassou inteiramente?

A persistência de Mr. Satterthwaite era pura e simples curiosidade. Ele queria saber...

— Eh bien — disse Poirot. — Uma vez, há muitos anos, na Bélgica. Não falemos disso...

Mr. Satterthwaite, sua curiosidade (e sua malícia) satis­feitas, apressou-se em mudar de assunto.

— Pois não. O senhor dizia que quando este caso esti­ver resolvido...

— Sir Charles o terá resolvido. Isso é essencial. Eu não passarei de uma pequena engrenagem na máquina — abriu os braços. — A um momento ou outro, aqui e ali, direi uma palavrinha... não mais que uma palavrinha... uma pequena sugestão, não mais do que isso. Não procuro hon­ras... nem fama. Tenho toda a fama de que possa precisar.

Mr. Satterthwaite estudou-o com interesse. Divertia-se com o ingênuo convencimento, o imenso orgulho, daquele homenzinho. Porém não cometeu o engano de julgar que estivesse apenas vangloriando-se. Um inglês normalmente é modesto a respeito do que faz bem; por vezes fica satisfeito consigo mesmo pelo que faz mal; mas um latino tem apreciação mais exata de sua capacidade. Quando tem algum talento não vê nenhuma razão para ocultar o fato.

— Eu gostaria de saber — disse Mr. Satterthwaite, — eu ficaria muito interessado em saber... exatamente, o que o senhor pessoalmente espera tirar disto tudo? É só a emoção da caçada?

Poirot sacudiu a cabeça.

— Não... não... não é bem isso. Como o chien de chasse eu sigo o faro, e fico excitado, e quando pego a trilha nada pode afastar-me dela. Tudo isso é verdade. Porém há mais... É... como direi?... uma paixão por chegar à verdade. No mundo inteiro não há nada tão curioso, tão interessante, ou tão belo quanto a verdade...

Houve um silêncio de alguns momentos depois das pala­vras de Poirot.

E então ele pegou o papel no qual Mr. Satterthwaite havia copiado cuidadosamente os sete nomes, e leu-os alto.

“Mrs. Dacres, Capitão Dacres, Miss Wills, Miss Sutcliffe, Lady Mary Lytton Gore, Miss Lytton Gore, Oliver Manders.”

— É — disse ele — sugestivo, não?

— Sugestivo de que modo?

— A ordem na qual os nomes aparecem.

— Não vejo nada de sugestivo nela. Nós apenas escre­vemos os nomes, sem ser em nenhuma ordem determinada.

— Exatamente. A primeira da lista é Mrs. Dacres.   De­duzo daí que ela é considerada a pessoa que mais provavel­mente cometeu o crime.

— Não mais provavelmente — disse Mr. Satterthwaite. — Talvez seja melhor dizer menos improvavelmente.

— E uma terceira frase expressá-lo-ia ainda melhor. Ela talvez seja a pessoa que todos aqui preferissem que fosse a criminosa.

Mr. Satterthwaite abriu impulsivamente os lábio, depois

deparou com o olhar delicadamente travesso dos brilhantes olhos verdes de Poirot, e mudou o que estava a ponto de dizer.

— Quem sabe... talvez, M. Poirot, o senhor tenha razão... subconscientemente pode ser que seja verdade.

— Eu gostaria de lhe perguntar uma coisa, Mr. Sat­terthwaite.

— Pois não... pois não — respondeu Mr. Satterthwaite, complacente.

— Pelo que o senhor me disse, deduzo que Sir Charles e Miss Lytton Gore foram juntos entrevistar Mrs. Babbington.

— Justo.

— O senhor não os acompanhou?

— Não. Três teria sido demais.

Poirot sorriu.

— E pode ser também que sua inclinação pessoal tenha sido em outra direção. Tinha, digamos, suas próprias inda­gações a fazer. Aonde foi o senhor, Mr. Satterthwaite?

— Tomei chá com Lady Lytton Gore — disse, rígido. Mr. Satterthwaite.

— E sobre o que conversaram?

— Ela teve a bondade de me confiar algumas das dificuldades que teve no início de sua vida de casada.

E repetiu, em essência, a história de Lady Mary. Poirot meneou a cabeça compreensivamente.

— Isso é bem a vida como ela é... a jovem idealista que, casa com o mau caráter, recusando-se a ouvir quaisquer conselhos. Mas não falaram de mais nada? Não falaram, por exemplo, de Oliver Manders?

— Para falar a verdade, sim.

Mr. Satterthwaite repetiu o que Lady Mary lhe havia dito. E depois acrescentou:

— O que o fez pensar que havíamos falado dele?

— O fato de o senhor ter ido lá para esse fim. Sim. sim, não adianta protestar. O senhor pode desejar que Mrs. Dacres ou seu marido tenham cometido o crime, porém acha que foi o jovem Manders.

Ele silenciou os protestos de Mr. Satterthwaite.

— Sim, sim, é de sua natureza guardar segredos. Tem suas próprias idéias, mas gosta de guardá-las para si. Com­preendo-o muito bem. Eu também sou assim...

— Eu não suspeito dele... isso é absurdo. Mas queria apenas saber um pouco mais a respeito dele.

— É o que estou dizendo. Ele é a sua escolha instin­tiva. Também eu estou interessado no rapaz.   Interessei-me por ele na noite do jantar aqui, porque vi...

— Viu o quê? — perguntou Mr. Satterthwaite, espicaçado

— Vi que havia pelo menos duas pessoas (talvez mais) que estavam representando papéis. Uma era Sir Charles. — Sorriu. — Ele estava fazendo o papel de oficial de marinha, certo?   É muito natural. Um grande ator não pára de repre­sentar só porque não está mais no palco. Porém o jovem Manders também estava representando. Estava fazendo o pa­pel de um jovem caceteado e blasé... mas na realidade ele não estava nem caceteado nem blasé... estava extremamente vivo. E portanto, meu amigo, eu o notei.

— E como sabe que eu venho pensando nele?

— Por muitas coisas pequenas. O senhor tinha ficado interessado no acidente que o levou a Melfort Abbey naquela noite. Não foi com Sir Charles e Miss Lytton Gore para ver Mrs. Babbington. Por quê? Porque estava querendo se­guir outra pista, só sua, sem ser observado. Foi ver Lady Manders para informar-se a respeito de alguém. Quem? Só poderia ser alguém daqui mesmo. Oliver Manders. E muito caracteristicamente o senhor colocou o nome dele em último lugar na lista. Quem são na verdade as pessoas menos sus­peitas, no seu ponto de vista? Lady Mary e Mademoiselle Egg... porém o senhor põe o nome dele depois dos delas, porque é o seu “azar”, e o senhor deseja guardá-lo para si.

— Ora, ora — disse Mr. Satterthwaite. — Será que eu realmente sou um homem desse tipo?                    

— Précisément. O senhor é perspicaz em seus julga­mentos e observações, e gosta -de guardar para si os resul­tados. Suas opiniões sobre as pessoas constituem a sua co­leção particular. Não as exibe para que todo mundo as veja.

— Eu creio — começou Mr. Satterthwaite, porém foi interrompido pela volta de Sir Charles.

O ator entrou com andar leve e alegre.

— Brrr — disse. — A noite está violenta.

E serviu-se de um uísque com soda.

Tanto Mr. Satterthwaite quanto Poirot recusaram.

— Bem — disse Sir Charles, — vamos planejar nossa campanha. Onde está aquela lista, Satterthwaite? Ah, obri­gado. E agora M. Poirot, Consultor, por favor. Como have­mos de dividir nossas tarefas?

— Como sugeriria o senhor que o fizéssemos?

— Bem, podemos dividir essa turma... para facilitar o trabalho, sabe? Em primeiro lugar temos Mrs. Dacres. Egg parece estar entusiasmada com ela. Parece pensar que qual­quer pessoa tão perfeitamente arrumada não receberá trata­mento imparcial por parte de meros homens. Pareceria boa idéia uma aproximação pelo lado profissional. Satterthwaite e eu poderíamos trabalhar também, por outro ângulo, se pa­recer aconselhável. Depois há Dacres. Conheço alguns de seus companheiros de prado. É possível conseguir-se alguma coisa por aí. Depois há Angela Sutcliffe.

— Bom, essa também deve ficar a seu cargo, Cartwright — disse Satterthwaite. — Conhece-a bastante bem, não conhece?

— Conheço. E é por isso que preferia que fosse outra pessoa destacada para enfrentá-la... Em primeiro lugar — disse um pouco amuado — serei acusado de não estar me aplicando devidamente, e em segundo... bem... ela é minha amiga, compreendem?

— Parfaitement, parfaitement... naturalmente sente a delicadeza dá situação. É muito compreensível. O nosso bom Mr. Satterthwaite... ele o substituirá nessa tarefa.

— Lady Mary e Egg... claro que elas não contam. E o jovem Manders? Sua presença na noite da morte de Tollie foi acidental? Mas creio que mesmo assim teremos de incluí-lo.

— Mr. Satterthwaite ficará encarregado de Manders — disse Poirot. — Porém creio, Sir Charles, que o senhor pulou um nome na lista.   Passou por cima de Miss Muriel Wills.

— É mesmo! Bem, se Satterthwaite fica com o jovem Manders, eu fico com Miss Wills. Está resolvido? Alguma sugestão, M. Poirot?

— Não, não... creio que não. Estarei interessado em conhecer os resultados.

— É claro. Nem precisa dizer. Uma outra idéia: se conseguíssemos fotografias de toda essa gente, poderíamos usá-las para fazer algumas indagações em Gilling.

— Excelente — aprovou Poirot. — Havia uma coisa... já sei: o seu amigo, Sir Bartholomew, não tomava coquetéis, mas tomava vinho do porto?

— Sim, tinha um fraco todo especial por porto.

— Parece-me estranho que ele não tenha sentido nenhum gosto estranho. A nicotina pura tem um gosto muito pun­gente e desagradável.

— É preciso que se lembre — disse Sir Charles — que provavelmente não havia nicotina no porto. O conteúdo do copo foi analisado, lembre-se.

— Ah, sim... que tolice a minha. Mas de qualquer modo que tenha sido ministrada, a nicotina tem um gosto muito desagradável.

— Não creio que isso tenha muita importância — disse Sir Charles vagarosamente. — Tollie teve uma gripe muito violenta na primavera, que o deixou com o olfato e o paladar bastante prejudicados.

— Ah, sim — disse Poirot pensador. — Isso pode expli­car muita coisa. Tudo fica consideravelmente mais simples.

Sir Charles foi até a janela e olhou para fora.

— Ainda continua a ventania.Vou mandar buscar suas coisas, M. Poirot. O Rose and Crown pode ser satisfatório para pintores entusiásticos, porém creio que o senhor há de preferir mais higiene e uma boa cama.

— O senhor é muito gentil, Sir Charles.

— Nada disso. Vou providenciar tudo.

Deixou a sala.

Poirot olhou para Mr. Satterthwaite.

— Se me permite uma sugestão.

— Pois não?

Poirot inclinou-se para a frente e disse em voz baixa:

— Pergunte ao jovem Manders por que ele fingiu ter um acidente. Diga-lhe que a polícia suspeita dele... e veja o que ele diz.

 

                       CYNTHIA DACRES

Os salões de desfile de Ambrosine Ltd. tinham a mais pura das aparências. As paredes de um branco atenuado por algo indefinível — os tapetes espessos de tal modo neutros que pareciam não ter cor — o mesmo acontecendo com os estofados. Um ligeiro toque de crômio brilhava aqui e ali, e em uma das paredes havia um gigantesco desenho geo­métrico em azul pavão e amarelo limão. A decoração fora assinada por Mr. Sydney Sandford — o mais novo e mais jovem decorador no momento.

Egg Lytton Gore sentou-se numa cadeira de desenho mo­derno — vagamente parecida com uma cadeira de dentista — e ficou olhando as elegantérrimas e ondulantes jovens de ros­tos lindos e caceteados, que deslizavam quais serpentes à sua frente. A maior preocupação de Egg era conseguir fazer cara de alguém para quem pagar cinqüenta ou sessenta libras por um vestido é ninharia.

Mrs. Dacres, com seu aspecto maravilhosamente irreal de sempre, estava (como disse Egg para si mesma) vendendo o seu peixe.

— Gosta desse? Esses nós nos ombros... não são uma graça? E a cintura é devastadora. Mas eu não escolheria essa cor de cobre, sabe... acharia melhor aquela cor nova... Espanhol... que é muito atraente... meio mostarda, só com um toque de pimenta. Muito devastadora, e um pouco ridí­cula. Hoje em dia não se pode levar a roupa a sério.

— É muito difícil escolher — disse Egg. — A senhora sabe — seu tom tornou-se confidencial — eu nunca pude gastar dinheiro em roupas antes. Nós sempre fomos tão pobres. Eu nunca esqueci como a senhora estava maravi­lhosa naquela noite lá no Topo do Mastro, e por isso pensei: “Agora que tenho dinheiro para gastar, tenho de procurar Mrs. Dacres e pedir que ela me aconselhe.” Porque real­mente eu achei a senhora maravilhosa naquela noite.

— Minha querida, que simpático. Eu adoro vestir moças jovens. É tão importante que uma moça não fique parecendo assim crua... você sabe o que é que eu quero dizer.

— E a senhora não tem nada de crua, não é? — disse Egg ingrata. — Tudo, tudo cozinhado “ao ponto”, não é?

— Você tem tanta personalidade — continuou Mrs. Da­cres. — Não pode usar nada que seja comum. Suas roupas têm de ser simples e devastadoras... e apenas visíveis. Com­preende? Você quer várias coisas?

— Pensei em mais ou menos quatro vestidos de noite, uns dois para de dia, mais uns conjuntinhos esporte... uma coisa assim.

O mel do tom de Mrs. Dacres tornou-se ainda mais doce. Por sorte ela não sabia que naquele momento o saldo ban­cário de Egg era exatamente quinze libras e doze shillings, e que ia ter de durar até dezembro.

Outras moças com outros vestidos desfilaram em frente a Egg. Nos intervalos das informações técnicas Egg foi intro­duzindo outros assuntos.  

— Acho que desde aquela noite a senhora não foi mais ao Topo do Mastro, foi? — perguntou.

— Não. Minha querida, seria impossível. Foi tão pertur­bador... e além disso eu sempre achei que a Cornualha é um foco de boêmia artística... e eu não suporto artistas. Tanto seus corpos quanto suas roupas sempre parecem ter formas estranhíssimas.

— Foi uma coisa horrível, não foi? — disse Egg. — E o velho Mr. Babbington era um amor, sabe?

— Um pouco no gênero peça de museu, me parece — disse Mrs. Dacres.

— A senhora já o tinha conhecido antes em algum lugar, não tinha?

— Aquele caquinho velho e simpático? Será? Não me lembro de todo.

— Tenho a impressão de que ele disse alguma coisa sobre isso — disse Egg. — Não na Cornualha. Acho que toi num lugar chamado Gilling.

— Foi? — os olhos de Mrs. Dacres estavam vagos. — Não, Marcelle... quero que vista o Petite Scandale... o mo­delo de Jenny... e depois aquele Patou azul.

— Não foi incrível — disse Egg — aquela história de Sir Bartholomew ter sido envenenado?

— Minha querida, foi tão devastador que eu nem sei o que dizer! Para mim foi ótimo. Toda espécie de mulheres horrendas aparecem aqui e compram vestidos meus só pela sensação. Veja, esse modelo de Patou seria perfeito para você. Repare só aquele enfeite perfeitamente ridículo e inú­til... é o que torna tudo adorável. É jovem sem ser sem graça. É, a morte do pobre Sir Bartholomew para mim tem sido um maná. Sempre há pelo menos uma chance vaga de ter sido eu a assassina. Eu tenho trabalhado muito para capitalizar isso. Mulheres gordíssimas ficam me olhando de olhos esbugalhados. Absolutamente devastador. E aí, sabe como é...

Porém foi interrompida pelo advento de uma americana monumental, evidentemente muito boa cliente.

Enquanto a americana porfiava suas necessidades, que pareciam ser amplas e muito custosas, Egg conseguiu bater numa discreta retirada, dizendo à jovem que substituíra Mrs. Dacres que pensaria um pouco antes de tomar sua decisão final.

Quando emergiu em Bruton Street, Egg deu uma olha­dela no relógio. Faltavam vinte para a uma. Dentro em pouco ela poderia botar em funcionamento seu segundo plano.

Andou até Berkeley Square vagarosamente, e depois vol­tou. À uma hora estava com o nariz grudado numa vitrina onde estavam expostos objects d’art chineses.

Miss Doris Sims saiu rapidamente pela porta que dava em Bruton Street e virou na direção de Berkeley Square. Quando ia atingi-la ouviu uma voz a seu lado.

— Desculpe — disse Egg, — mas será que eu poderia falar-lhe por um instante?

A moça voltou-se, surpresa.

— Você é um dos manequins de Ambrosine, não é? Re­parei em você hoje, lá. Espero que não fique ofendida se eu disser que você tem positivamente o corpo mais bem feito que já vi na minha vida.

Doris Sims não ficou ofendida. Ficou apenas um tanto confusa.

— Muita bondade sua, minha senhora — disse ela.

— E você tem jeito de ter muito boa disposição, tam­bém — disse Egg. — E é por isso que eu vou pedir-lhe um favor. Será que poderia almoçar comigo no Ritz ou no Ber­keley para eu poder dizer o que quero?

Após um momento de hesitação Doris Sims concordou. Estava curiosa e gostava de comer bem.

Uma vez que estavam devidamente instaladas e que o almoço já havia sido pedido, Egg começou logo as explicações.

— Tenho de lhe pedir que não comente isto com nin­guém — disse ela. — Acontece que eu tenho um emprego... eu escrevo a respeito das várias profissões que há para mu­lheres. E gostaria de saber se você poderia me dar algumas informações sobre esse negócio de alta costura.

Doris pareceu ligeiramente desapontada, porém concor­dou muito amavelmente, dando uma série de informações objetivas a respeito de horários, normas de salário, vantagens e desvantagens da carreira. Egg anotou tudo num livrinho que tinha trazido.

— Puxa, você foi ótima — disse ela. — Eu sou absoluta­mente idiota para esse tipo de coisa. Estou começando. Sabe, eu vivo com a maior dificuldade, e esse bico no jornal vai fazer muita diferença para mim.

Continuou em tom de confidência.

— Foi muito cinismo da minha parte entrar lá na Am­brosine e fingir que tinha dinheiro para comprar uma porção de modelos. Para falar a verdade, só tenho umas poucas libras para gastar em roupa até o Natal. Tenho a impressão de que Mrs. Dacres ia ficar possessa da vida se soubesse.

Doris deu um risinho.

— Sem dúvida que ia.

— Você acha que eu fiz direito? — perguntou Egg. — Parecia mesmo que eu tinha dinheiro?

— A senhora foi sensacional, Miss Lytton Gore. Mada­me pensava que a senhora ia comprar uma porção de coisas.

— Pois receio que vá ficar muito desapontada — disse Egg.

Doris deu outra risadinha. Estava gostando do almoço, e achou Egg simpática. “Pode ser que ela seja da Sociedade,” pensou consigo mesma, “mas não fica botando banca, nem fazendo farol. Tão simples!”

Uma vez que um relacionamento agradável se estabele­ceu, Egg não teve a menor dificuldade em levar sua compa­nheira a falar livremente a respeito de sua empregadora.

— Eu sempre achei — disse Egg — que Mrs. Dacres tinha cara de ser uma víbora. E é?

— Nenhuma de nós gosta dela, Miss Lytotn Gore; disso pode ter certeza. Mas é claro que ela é esperta, e tem uma cabeça e tanto para negócios. Não é como algumas dessas tais “Damas da Sociedade” que se metem a abrir casas de modas e vão à falência porque as amigas levam os vestidos mas não pagam. Ela é dura de roer, a Madame... muito embora deva dizer que é justa... e que tem muito bom gosto... sabe dar valor às coisas, e tem um talento especial para levar as pessoas a usarem um estilo de roupa que com­bine com elas.

— Ela deve ganhar muito dinheiro...

Um olhar esquisito apareceu no rosto de Doris.

— Não fica bem para mim falar nisso... ficar con­tando boatos.

— Claro que não — disse Egg. — Continue.

— Mas já que a senhora está perguntando... a firma está à beira da falência. Um senhor judeu esteve lá con­versando com Madame, e tem havido uma ou duas coisi­nhas... tenho a impressão de que ela tem levantado emprés­timos para agüentar até ver se os negócios tornam a melho­rar, e que se afundou com vontade. Sabe, Miss Lytton Gore, às vezes até assusta ver a cara dela. Está desesperada. Não sei como é que a cara dela ia ficar sem toda aquela maqui­lagem. Tenho a impressão de que ela não dorme de noite.

— Que tal o marido dela?

— Aquele é muito do esquisito. Acho que não presta, não. Não que o tenha visto muito. Nenhuma das outras moças concorda comigo, mas eu acho que ela ainda gosta muito dele. Sei que se tem dito muita coisa de mal...

— O que, hein? — perguntou Egg.

— Bom, eu não gosto de estar passando essas coisas adiante. Nunca foi o meu gênero.

— Claro que não. Continue, você estava dizendo...

— Bem, as meninas, lá, sempre ficam falando. Sobre um moço, bem moço... muito rico e muito fácil de levar. Não chega a ser bobo... também não é assim... mas meio mais ou menos, sabe? E Madame tem tirado o que pode da situação. Ele poderia ter salvo tudo... mas de repente teve ordens de fazer uma longa viagem por mar... foi muito de repente.

— Ordens de quem... de um médico?

— É; alguém de Harley Street. Acho que foi aquele tal médico que foi assassinado em Yorkshire... dizem que foi envenenado.

— Sir Bartholomew Strange?

— Isso mesmo. Madame estava lá passando o fim-de-semana, e nós todas lá dentro comentamos... entre nós, sabe... só de brincadeira... que imaginem só se fosse Ma­dame que tivesse liquidado com ele... para se vingar, sabe? Claro que foi só de brincadeira...

— Naturalmente — disse Egg. — Brincadeira de moci­nhas. Compreendo. Sabe, para mim Mrs. Dacres tem bem o tipo da assassina... fria e sem piedade.

— Ela não tem pena de ninguém... e tem um tempera­mento de cão! Quando perde as estribeiras, ninguém tem coragem de chegar perto. Dizem que o marido morre de medo dela... e não é de espantar.

— Alguma vez você ouviu-a falar de um homem cha­mado Babbington, ou de um lugar em Kent... acho que é Gilling?

— Para ser franca, não posso dizer que tenha.

Doris olhou para o relógio e soltou uma exclamação.

— Ih, tenho de ir correndo. Vou chegar atrasada.

— Então até logo. E muito, muito obrigada.

— Foi um prazer. Adeus, Miss Lytton Gore, e espero que seu artigo seja um sucesso. Vou ler com muito interesse.

“O seu interesse não vai adiantar nada, menina”, pensou Egg, quando pedia a conta.

Depois, riscando suas supostas notas para o artigo, escre­veu em seu caderninho:

“Cynthia Dacres. Acredita-se que esteja em grandes di­ficuldades financeiras. Descrita como tendo ‘um tempera­mento de cão’. O rapaz (rico), com quem se pensa que esti­vesse tendo um caso, teve ordens de Sir Bartholomew Strange de viajar. Não demonstrou qualquer reação ante a menção de Gilling ou da sugestão de que Babbington já a conhecesse.”

“Parece não haver mais nada a dizer”, pensou Egg. “Um possível motivo para o assassinato de Sir Bartholomew Stran­ge, mas muito precário. Pode ser que M. Poirot consiga de­duzir alguma coisa disso tudo. Eu não consigo.”

 

                   CAPITÃO DACRES

Egg ainda não havia terminado sua programação para aquele dia. Seu próximo passo foi St. John’s House, o edi­fício em que ficava o apartamento dos Dacres. Tratava-se de uma construção recente, com um privilegiado conjunto de apartamentos extremamente caros. A entrada era suntuosa­mente decorada com plantas e flores, e o uniforme dos porteiros de tal modo magnífico que pareciam generais estrangeiros.

Egg não entrou no edifício. Ficou passeando para cima e para baixo na calçada em frente a ele. Ao fim de uma hora disso calculou que já tivesse caminhado alguns quilô­metros. Eram cinco e meia.

E então um táxi aproximou-se da entrada, e dele saltou o Capitão Dacres. Egg deixou que se passassem três minu­tos, e depois atravessou a rua e entrou.

Egg tocou a campainha do N.° 3 e o próprio Dacres abriu a porta. Ainda estava tirando o sobretudo.

— Oh — disse Egg. — Como está? O senhor se lembra de mim, não lembra? Nós nos conhecemos na Cornualha, e depois novamente em Yorkshire.

— Claro... claro. Testemunhas de mortes em ambas as ocasiões, não foi? Entre, Miss Lytton Gore.

— Eu queria ver sua esposa. Ela está?

— Está em Bruton Street... na loja de modas.

— Eu sei onde é... estive lá hoje. Pensei que a esta hora talvez já estivesse em casa, e que ela talvez não se importasse que eu viesse até aqui... só que tem, é claro, que eu estou criando dificuldade...

Egg interrompeu-se, em tom de apelo.

Freddie Dacres disse para consigo:

“Bonita egüinha. A garota até que é muito linda.”

Alto, disse ele:

— Cynthia não chega antes das seis. Eu estou acabando de chegar de Newbury. O dia foi péssimo, então saí cedo. Você não quer ir até o Club Setenta e Dois e tomar qual­quer coisa?

Egg aceitou, muito embora tivesse graves suspeitas de que o Capitão já tivesse ingerido mais álcool do que devia.

Sentados na obscuridade subterrânea do Club Setenta e Dois, e bebericando um Martini, disse Egg:

— Eu nunca tinha vindo aqui antes. É ótimo.

Freddie Dacres deu um sorriso indulgente. Gostava de moças novinhas e bonitas. Talvez não tanto quanto gostava de algumas outras coisas... mas mesmo assim gostava.

— Uma ocasião meio perturbadora, não foi? — disse ele. — Lá em Yorkshire, quero dizer. É meio gozado um médico morrer envenenado... percebe... fica tudo ao con­trário, não é? Geralmente os médicos é que envenenam as outras pessoas.

Ele riu-se muito da própria piada, e pediu outro gim rosado.

— Essa foi muito bem bolada — disse Egg. — Nunca tinha pensado no assunto exatamente desse jeito.

— Claro que foi só brincadeira — disse Freddie Dacres.

— É estranho, não é? — disse Egg — que sempre que nós nos encontramos seja para testemunhar uma morte.

— Meio esquisito — admitiu o Capitão. — Está falando daquele padre velhinho na casa daquele... como é mesmo o nome dele?... aquele ator?

— É. Foi muito estranho que ele morresse assim tão rapidamente.

— Coisa muito desagradável — disse Dacres. — A gente começa a se sentir meio pé-frio, com gente caindo morta por todo lado. Sabe como é, a gente começa a pensar “da próxi­ma vez vai ver que sou eu”, o que dá um arrepio desgraçado.

— O senhor já conhecia Mr. Babbington antes, não co­nhecia? De Gilling?

— Não sei onde fica isso. Não, jamais tinha visto o pobre do velhote antes. É muito engraçado ele ter morrido do mesmo modo que o velho Strange. Isso é meio esquisito. Será que ele também foi liquidado?

— Bem, é isso que o senhor acha?

Dacres sacudiu a cabeça.

— Não é possível — disse após pensar um pouco. — Ninguém mata um pároco velhinho. Médico ainda é outra coisa.

— É — disse Egg. — Suponho que com médicos seja di­ferente.

— Claro que sim. É óbvio. Médico é um tipo de pessoa que se mete na vida dos outros. — As palavras saíram um pouco enroladas. Ele se inclinou para a frente. — Não sa­bem deixar ninguém em paz. Compreende?

— Não — disse Egg.

— Eles ficam se intrometendo na vida dos caras. Têm muito mais poderes do que deviam. Não devia ser permitido.

— Eu não estou compreendendo bem o que o senhor está querendo dizer.

— Minha menina, pois se eu estou lhe dizendo. Podem trancafiar qualquer um... mandá-lo para o inferno. Meu Deus, como eles são cruéis. Trancam o cara e o mantêm afastado do que ele mais quer... e por mais que se peça e implore, não dão mesmo. Pouco se importam com a tor­tura do que você está passando. Assim é que os médicos são. Eu estou dizendo... e eu sei.

O rosto dele contorceu-se dolorosamente. Suas pupilas, contraídas, olhavam o espaço, para além dela.

— É um inferno... eu garanto... um inferno. E cha­mam isso de cura! Ainda fingem que estão fazendo uma boa ação. Porcos!

— Mas Sir Bartholomew Strange também...? — começou Egg com cautela.

Ele arrancou-lhe a palavra.

— Sir Bartholomew Strange. Sir Bartholomew Vigarista. Eu só queria saber o que acontece naquele famoso sanatório dele. Casos nervosos. Isso é o que eles dizem. O desgraça­do entra e não pode mais sair. E eles dizem que ele entrou por livre e espontânea vontade.Vontade! Só porque eles agarram o pobre na hora que está com tremedeira.

Ele começou a tremer. Sua boca repentinamente ficou caída.

— Eu estou aos pedaços — disse ele, desculpando-se. — Aos pedaços. — Chamou o garçom, insistiu para que Egg tomasse outro coquetel, e quando ela recusou, pediu nova dose para si mesmo.

— Agora estou melhor — disse ele quando esvaziou o copo. — Agora estou mais controlado. A gente passa mal quando se deixa descontrolar. Não posso deixar Cynthia ficar zangada. Ela me disse para não falar. — Acenou com a cabeça uma ou duas vezes. — Não ia ficar bem eu contar tudo isso para a polícia, não é? — disse ele. — Podiam pensar que fui eu quem liquidou o tal Strange. Não é? É impossível que você não perceba que alguém tem de ter feito aquilo. Um de nós tem de tê-lo matado. É um pensamento estranho. Qual de nós? Essa é que é a questão.

— Talvez o senhor saiba qual foi — disse Egg.

— Por que diz uma coisa dessas? Como é que eu pode­ria saber?

Ele a olhou com raiva e suspeita.

— Garanto que não sei nada sobre o caso. Eu não ia fazer aquela desgraçada cura dele. Pouco me importa o que a Cynthia diz... não ia não. Ele estava com alguma idéia na cabeça... os dois estavam. Mas não conseguiram me enganar.

Ele se empertigou.

— Eu sou um homem forte, Miss Lytton Gore.

— Tenho certeza disso — disse Egg. — Diga-me, o senhor sabe alguma coisa a respeito de uma tal Mrs. de Rushbridger, que está no sanatório?

— Rushbridger? Rushbridger? O velho Strange disse al­guma coisa a respeito dela. O que foi mesmo? Não consigo me lembrar de nada.

Ele suspirou, e sacudiu a cabeça.

— Estou perdendo a memória, é isso. E eu tenho inimi­gos... muitos inimigos. É possível que estejam me espio­nando agora mesmo.

Ele olhou em volta, desconfiado. Depois inclinou-se por sobre a mesa em direção a Egg.

— O que será que aquela mulher estava fazendo no meu quarto naquele dia?

— Que mulher?

— Aquela com cara de coelho... que escreve peças. Foi na manhã seguinte... à morte dele. Eu acabava de subir do café. Ela saiu do meu quarto e passou pela porta no fundo do corredor... a porta que os empregados usam para o serviço. Não é esquisito? Por que será que ela entrou no meu quarto? Para início de conversa, para que estava ela a meter o nariz nas coisas? O que é que ela tem com isso? — Inclinou-se mais, e disse em tom confidencial: — Ou será que acha que o que Cynthia diz é verdade?

— O que é que Mrs. Dacres diz?

— Diz que foi imaginação minha. Diz que eu estava “vendo coisas”. — Deu um risinho inseguro. — De vez em quando eu vejo, realmente. Ratos cor-de-rosa... cobras... coisas assim. Mas ver uma mulher é diferente... Eu vi. Muito esquisita, aquela mulher. Tem uns olhos muito es­tranhos. Parece que entram dentro da gente.

Ele se encostou no conforto de sua cadeira estofada. Parecia estar adormecendo.

Egg levantou-se.

— Agora eu tenho de ir. Muito obrigada, Capitão Dacres.

— Nada de agradecer. Foi um prazer. Um prazer... enorme...

A voz foi desaparecendo.

“É melhor eu dar o fora antes que ele desmaie de uma vez”, pensou Egg.

Ela saiu do ambiente enfumaçado do Clube Setenta e Dois para o ar refrescante do crepúsculo.

Beatrice, a empregada, dissera que Miss Wills metia o bedelho em tudo. E agora Freddie Dacres contava essa his­tória. Por que estaria procurando Miss Wills? Seria possí­vel que ela soubesse alguma coisa?

Será que havia alguma coisa naquela história mal con­tada a respeito de Sir Bartholomew Strange? Será que Fred­die Dacres o odiava e temia em segredo?

Parecia possível.

Mas em nada da história havia o menor indício de qual­quer conhecimento culposo do caso Babbington.

“Como seria estranho”, disse Egg para consigo mesma, “se ele não tivesse sido assassinado de todo.”

E nesse momento sua respiração alterou-se ao ver as enormes letras do cabeçalho de um jornal na banca à sua frente: “O CASO DA EXUMAÇÃO NA CORNUALHA — OS RESULTADOS.”

Apressadamente pegou uma moeda e agarrou um jornal. Ao fazê-lo, colidiu com outra mulher fazendo o mesmo. Ao pedir desculpas Egg reconheceu a secretária de Sir Charles, a eficiente Miss Milray.

De pé, lado a lado, ambas procuraram a notícia de última hora. Sim, lá estava ela.

RESULTADOS DA EXUMAÇÃO NA CARNUALHA.

As palavras dançavam na frente de Egg. Análise dos ór­gãos... Nicotina...

— Quer dizer então que foi assassinado — disse Egg.

— Ai, meu Deus — disse Miss Milray. — Mas isso é horrível... horrível...

Suas feições rudes estavam contorcidas de emoção. Egg olhou-a com surpresa. Sempre havia considerado Miss Mil­ray como pertencendo a algum tipo de categoria subumana.

— Eu estou muito emocionada — disse ela, a título de explicação. — Acontece que eu o conheci a minha vida inteira.

— Mr. Babbington?

— É. Sabe, minha mãe mora em Gilling, onde ele foi vigário. Naturalmente eu tenho de me sentir perturbada.

— Mas é claro.

— Por falar a verdade — disse Miss Milray — eu não sei o que fazer.

Enrubesceu ligeiramente ao ver o olhar atônito de Egg.

— Eu gostaria de escrever a Mrs. Babbington — disse ela rapidamente. — Só que tem que não parece... bem, sabe... eu simplesmente não sei o que se deve fazer numa hora dessas.

De algum modo, esse esclarecimento não pareceu a Egg inteiramente satisfatório.

 

                ANGELA SUTCLIFFE

— Bem, mas o senhor é um amigo ou um detetive? Eu simplesmente tenho de saber.

Miss Sutcliffe fez brilhar um par de olhos brincalhões enquanto falava. Estava sentada numa cadeira reta e sem braços, com o cabelo grisalho arrumado de forma harmonio­sa e as pernas cruzadas. Mr. Satterthwaite admirou a perfei­ção de seus pés primorosamente calçados e de seus tornozelos esbeltos. Miss Sutcliffe era uma mulher fascinante, prin­cipalmente devido ao fato de ela raramente levar qualquer coisa a sério.

— Mas essa pergunta é justa? — perguntou Mr. Sat­terthwaite.

— Mas claro que é justa, meu caro. Sua visita é devida apenas aos meus belos olhos, como dizem os franceses tão encantadoramente, ou será que estou diante de um homem malvado que só quer me sugar a respeito de duas mortes?

— Será que pode duvidar que a primeira alternativa seja a correta? — perguntou Mr. Satterthwaite com uma pequena inclinação de cabeça.

— Posso e duvido — respondeu enérgica a atriz. — O senhor é uma daquelas pessoas que parecem muito delicadas, mas que no fundo adoram chafurdar em sangue.

— Nunca.

— Sempre. A única coisa que eu não consigo decidir é se devo considerar um elogio ou um insulto a possibilidade de ser encarada como uma assassina em potencial. Mas, grosso modo, acho que é elogio.

Inclinou ligeiramente a cabeça para um lado e sorriu o famoso sorriso feiticeiro que nunca falhava.

Mr. Satterthwaite pensou para consigo mesmo:

“Que criatura adorável.”

Em voz alta disse:

— Devo confessar, minha querida senhora, que a morte de Sir Bartholomew tem me interessado muito. Como sabe, já me meti em casos desse gênero anteriormente...

Fez uma pausa de modéstia, talvez esperando que Miss Sutcliffe de algum modo indicasse conhecer suas atividades. No entanto, ela apenas perguntou:

— Diga-me apenas uma coisa... há qualquer coisa de real no que aquela moça disse?

— Que moça, e o que disse ela?

— Aquela moça Lytton Gore. A que está tão fascinada por Charles. (Que desgraçado que é o Charles, não desiste nunca do mesmo jogo!) Diz ela que acha que aquele senhor na Cornualha também foi assassinado.

— O que lhe parece a idéia?

— Bem, não há dúvida de que aconteceu do mesmo modo... E ela, sem dúvida, é uma moça inteligente. Diga-me... para o Charles aquilo é sério?

— Tenho a impressão de que a sua opinião, no caso, será muito mais valiosa do que a minha — disse Mr. Sat­terthwaite.

— Que homem irritantemente discreto o senhor é! — exclamou Miss Sutcliffe. — Mas eu — suspirou — sou assus­tadoramente indiscreta...

Agitou os cílios em direção a ele.

— Conheço Charles bastante bem. Conheço os homens bastante bem. Ele me parece estar apresentando todos os sintomas do desejo de se fixar em alguma coisa. De repente passa a ter um ar virtuoso. Num abrir e fechar de olhos está na base de exibir a prataria e conseguir fundar uma família em tempo recorde... essa é a minha opinião. Como os ho­mens ficam cacetes quando resolvem “se estabelecer”. Per­dem todo o seu encanto.

— Eu muitas vezes me perguntei, por que razão Sir Charles nunca se casou — disse Mr. Satterthwaite.

— Meu caro, ele nunca deu a menor demonstração de querer se casar. Nunca foi aquilo que se chama “o tipo casadoiro”. Mas era um homem muito atraente... — Suspirou. Um ligeiro brilho moleque apareceu em seus olhos enquanto olhava para Mr. Satterthwaite. — Houve um tempo em que ele e eu... bem, para que negar o que todo mundo sabe? Foi muito agradável enquanto durou... e continuamos ótimos amigos. Acho que é por isso que aquela menina Lytton Gore me olha com tamanha fúria. Desconfia de que eu te­nha alguma tendresse por Charles. Será que tenho? É pos­sível. Mas pelo menos ainda não escrevi minhas memórias, descrevendo em detalhes todos os meus casos de amor, como já fez a maioria de minhas amigas. Se o fizesse, sabe, a me­nina não ia gostar. Ficaria chocada. As meninas de hoje se chocam com a maior facilidade. Já a mãe dela não fica­ria chocada de todo. Não há nada mais difícil de se chocar do que uma boa vitoriana... Não dizem muita coisa, mas sempre pensam o pior...

Mr. Satterthwaite contentou-se em dizer:

— Creio que está certa em julgar que Egg Lytton Gore não confia em si.

Miss Sutcliffe franziu a testa.

— Bem, eu mesma não tenho certeza de não sentir um pouco de ciúme dela... As mulheres são todas umas pes­tes, não são? Miamos, arranhamos e ronronamos como gatas...

Ela riu-se.

— Por que razão Charles não veio me catequizar sobre este assunto? São excessos de sensibilidade, na certa. Vai ver que o homem acha que sou eu a culpada... Será que sou eu, Mr. Satterthwaite? Qual a sua opinião?

Levantou-se e estendeu a mão para a frente.

— Nem todos os perfumes da Arábia poderão adoçar esta mãozinha...

Interrompeu-se.

— Não, eu não sou nenhuma Lady Macbeth. Meu gê­nero sempre foi a comédia.

— Há também uma certa ausência de motivo — disse Mr. Satterthwaite.

— Realmente. Gostava de Sir Bartholomew. Éramos amigos. Não tinha a menor razão para desejar que ele desa­parecesse. E porque éramos amigos gostaria de tomar parte ativa na busca de seu assassino. Faça o favor de me dizer quando houver qualquer coisa que eu possa fazer.

— Suponho, Miss Sutcliffe, que não tenha ouvido e nem visto nada que pudesse trazer luz à questão?

— Nada que já não tenha relatado à polícia. Os hóspe­des tinham acabado de chegar, como sabe. Sua morte ocor­reu logo na primeira noite.

— O mordomo?

— Nem reparei nele.

— Algum comportamento anormal por parte de algum dos convidados?

— Não. Claro que aquele menino... como é o nome dele?... Manders, apareceu meio inesperadamente.

— Sir Bartholomew pareceu ficar surpreendido?

— Sim, creio que sim. Disse-me logo antes de entrar­mos para o jantar, que era uma coisa meio esquisita, “um novo método para os penetras”, acho que foi isso que disse. “Só que tem, que neste caso penetrou pelo muro, não pelo portão”.

— Sir Bartholomew estava de bom humor?

— Ótimo!

— O que é a tal passagem secreta que a senhora men­cionou à polícia?

— Creio que começa na biblioteca. Sir Bartholomew prometeu-me mostrá-la... mas é claro que não pôde fazê-lo porque o pobre homem morreu.

— Como é que o assunto veio à baila?

— Estávamos discutindo uma recente compra que ele fi­zera... uma velha escrivaninha de nogueira. Eu perguntei se havia alguma gavetinha secreta. É uma mania que eu te­nho. E ele disse: “Não, que eu saiba não há gavetas secre­tas... mas tenho uma passagem secreta na casa.”

— Ele por acaso mencionou uma paciente sua, uma tal Mrs. de Rushbridger?

— Não.

— A senhora conhece um lugar chamado Gilling, em Kent?

— Gilling? Gilling, não, não que eu lembre. Por quê?

— Bem, a senhora conhecia Mr. Babbington, anterior­mente, não?

— Quem é Mr. Babbington?

— O homem que morreu, ou foi morto, no Topo do Mastro.

— Ah, o sacerdote. Tinha esquecido o nome dele. Não, nunca o tinha visto na vida. Quem lhe disse que eu o co­nhecia?

— Alguém que deveria saber — disse corajosamente Mr. Satterthwaite.

— Pobre do velhinho, já estavam pensando que eu tinha tido um caso com ele? Os diáconos por vezes são muito le­vados, não é? Por que não os vigários, também? Por dentro do uniforme vive um homem, não vive? Porém devo limpar a memória do pobre homem. Nunca o tinha visto em toda a minha vida.

E com tal declaração Mr. Satterthwaite teve de contentar-se.

 

                       MURIEL WILLS

Número Cinco, Upper Cathcart Roard, Tooting, parecia incongruente como o lar de um autor dramático satírico. A sala em que Sir Charles se encontrou tinha paredes em tom de aveia dormida, com um friso de folhagens ao alto. As cortinas eram de veludo rosa, havia muitas fotografias e muitos cachorros de porcelana, o telefone era pudicamente oculto por uma dama de saia de babados, e um sem-número de mesinhas espalhadas era coberto por suspeitíssimas peças de bronze oriental, fabricado em Birmingham.

Miss Wills entrou na sala tão silenciosamente que Sir Charles, que no momento examinava um pierrô ridiculamen­te comprido deitado num sofá, não a ouviu. O som de sua vozinha fina dizendo: “Como está, Sir Charles. Mas que prazer vê-lo aqui”, fê-lo virar-se com um susto.

Miss Wills estava vestida com um conjunto amarrotado que ficava desoladamente pendurado em torno de suas formas angulares. Suas meias estavam ligeiramente caídas, e calçava sapatos rasos de verniz preto com saltos altíssimos.

Sir Charles apertou-lhe a mão, aceitou um cigarro e sen­tou-se no sofá ao lado do pierrô. Miss Wills sentou-se de­fronte dele. A luz da janela caía em seu pince-nez, fazendo a lente reluzir de vez em quando.

— Não sei como me descobriu aqui — disse Miss Wills. — Minha mãe vai ficar excitadíssima. Ela adora teatro... principalmente as coisas românticas. Aquela peça em que o senhor fez o papel de um príncipe numa universidade... ela está sempre falando nela. Sabe como é, ela vai a matinês, e come bombons o tempo todo... é desse tipo. E realmente adora.

— Que bom — disse Sir Charles. — A senhora não sabe como é agradável ser lembrado. A memória do público não costuma ser boa! — suspirou.

— Ela vai ficar emocionadíssima de conhecê-lo — disse Miss Wills. — Miss Sutcliffe esteve aqui, no outro dia, e Mamãe ficou tão contente de conhecê-la!

— Angela esteve aqui?

— Esteve. Ela vai montar uma peça minha, sabe: O Cachorrinho Riu.

— É claro — disse Sir Charles. — Eu li a notícia. O título é muito intrigante.

— Fico contente que ache. Miss Sutcliffe também gos­ta. É uma espécie de versão moderna de uma história para crianças... daqueles versinhos tradicionais... uma tolice leve... Hey diddle, diddle, e o escândalo do prato e da co­lher. Claro que tudo gira em torno do papel de Miss Sutcliffe... ela toca e os outros dançam... essa é a idéia.

Disse Sir Charles:

— Nada mau. Hoje em dia esses versinhos infantis es­tão muito em moda. E o cachorrinho riu de ver tanta bo­bagem, hein?

E repentinamente ele pensou: “Mas claro que a nossa amiga aqui é que é o cachorrinho: fica olhando tudo e rindo.”

A luz mudou no pince-nez de Miss Wills e ele pôde ver seus olhos azul-pálido, observando-o inteligentemente através das lentes.

“Esta mulher”, pensou Sir Charles, “tem um senso de humor macabro.”

Em voz alta disse:

— Não sei se já adivinhou a tarefa que me traz aqui hoje...

— Bem — disse Miss Wills com maldade, — não supo­nho que tenha sido apenas pelo prazer de me ver.

Sir Charles conscientizou repentinamente a diferença en­tre a palavra falada e a escrita. No papel Miss Wills era espirituosamente cínica; falando era apenas maldosa.

— Na verdade foi Satterthwaite quem meteu a idéia na minha cabeça — disse Sir Charles. — Ele se considera ex­celente avaliador de personalidades.

— Ele conhece gente muito bem — disse Miss Wills. — É uma espécie de hobby dele, parece-me.

— E ele está inteiramente convencido de que se houve alguma coisa a notar naquela noite em Melfort Abbey, a se­nhora a teria notado.

— É o que ele diz?

É.

— Devo confessar que fiquei muito interessada — disse Miss Wills vagarosamente. — Lembre-se de que eu nunca havia visto um assassinato de perto em minha vida. Quem escreve tem de encarar tudo como material, não é verdade?

— Creio que ninguém põe isso em dúvida.

— De modo que muito naturalmente — continuou Miss Wills, — tentei observar tudo o que me foi possível.

Naturalmente esta era a versão de Miss Wills do que Beatrice descrevera como uma mania de meter o nariz em tudo.

— Sobre os hóspedes?

— Sobre os hóspedes.

— E exatamente o que notou?

O pince-nez mudou de ângulo de luz.

— Não cheguei realmente a descobrir nada... e des­cobrisse teria dito à polícia, é claro — acrescentou virtuo­samente.

— Porém notou certas coisas.

— Eu sempre noto as coisas. É mais forte do que eu. Nasci assim. — E deu um risinho.

— E o que a senhora notou?

— Ora, nada... isto é... nada que se possa dar impor­tância, Sir Charles. Apenas um ou outro detalhe a respeito do caráter das pessoas. As pessoas sempre me parecem mui­to interessantes. Quero dizer, são tão típicas.

— Típicas de quê?

— Delas mesmas. Ora, não sei explicar. Eu sou muito tola para dizer as coisas. — Deu outro risinho.

— Sua pena é mais mortífera que sua língua — disse Sir Charles.

— Não creio que seja muito simpático de sua parte di­zer mais mortífera, Sir Charles.

— Minha cara Miss Wills, admita que, com uma pena na mão, a senhora é inteiramente impiedosa.

— Acho o senhor um homem horrível, Sir Charles. É o senhor que está sendo impiedoso para comigo.

“Eu preciso sair deste atoleiro de asneiras”, disse Sir Charles para si mesmo. Em voz alta continuou:

— Quer dizer que não encontrou nada de concreto, Miss Wills?

— Não... não exatamente. Ao menos, houve uma coi­sa. Alguma coisa que notei e deveria ter dito à polícia, só que tem que me esqueci.

— E o que era?

— Era sobre o mordomo. Tinha uma espécie de marca de nascença avermelhada no pulso esquerdo. Notei quando ele me serviu as verduras. E suponho que esse tipo de coisa possa ser útil.

— Creio que seria muito útil. A polícia está tentando desesperadamente encontrar o tal Ellis. Falando sério, Miss Wills, a senhora é uma mulher notável. Nenhum dos hós­pedes ou dos criados mencionou a tal marca.

— A maior parte das pessoas não usa os olhos, não é? — disse Miss Wills.

— Onde era exatamente a marca? E de que tamanho?

— Se o senhor esticar seu braço. — Sir Charles assim o fez, — obrigada. Era aqui. — Miss Wills colocou um dedo certeiro no lugar. Era aproximadamente do tamanho de uma moeda de seis pence, e mais ou menos do feitio da Austrália.

— Obrigado, ficou claríssimo — disse Sir Charles, reco­lhendo o braço e endireitando o punho.

— O senhor acha que eu devo escrever à polícia con­tando?

— Claro que sim. Pode ser de muita ajuda para se en­contrar o homem. Que diabo — continuou Sir Charles com entusiasmo — nas histórias de detetive o vilão sempre tem alguma coisa que o identifique. Sempre lamentei que a vida real fosse tão menos previdente.

— Nas histórias geralmente é uma cicatriz — disse pen­sativa Miss Wills.

— Marca de nascença também serve — disse Sir Charles.

Ele parecia contente como um menino.

— O problema — continuou ele — é que a maioria das pessoas é tão indefinida. Não há nada que se possa agarrar.

Miss Wills olhou-o indagadora.

— Veja o velho Babbington, por exemplo — continuou Sir Charles. — Tinha a mais vaga das personalidades.   Muito difícil de se caracterizar.

— As mãos dele eram muito características — disse Miss Wills. — Eram o que eu chamaria de mãos de estudioso. Li­geiramente deformadas por artrite, porém com dedos muito refinados e unhas lindas.

— Como a senhora é observadora. Bom, mas natural­mente já o conhecia antes.

— Conhecer Mr. Babbington?

— Sim, lembre-se de que ele me disse que sim... onde foi mesmo que ele me disse que a encontrara?

Miss Wills sacudiu a cabeça firmemente.

— Não a mim. O senhor deve estar confundindo com outra pessoa... ou ele confundiu. Eu nunca o tinha visto antes.

— Devo estar enganado. Pensei que era... Gilling...

Ele a observou com cuidado. Miss Wills parecia inteira­mente composta.

— Não — disse ela.

— Já lhe ocorreu alguma vez, Miss Wills, que ele tam­bém pudesse ter sido assassinado?

— Sei que o senhor e Miss Lytton Gore pensam assim... ou antes, que o senhor pensa assim.

— Oh... e... hum... o que é que a senhora pensa?

— Não me parece provável — disse Miss Wills.

Um pouco perplexo ante a óbvia falta de interesse de Miss Wills pelo assunto, Sir Charles adotou outra linha de ataque.

— Por acaso, Sir Bartholomew mencionou alguma vez uma Mrs. de Rushbridger?

— Não, creio que não.

— Era paciente do sanatório. Tinha tido um colapso ner­voso e estava com perda de memória.

— Ele mencionou um caso de perda de memória — disse Miss Wills. — Disse que era possível hipnotizar uma pessoa e trazer-lhe a memória de volta.

— Disse, mesmo? Será que... isso poderia ser impor­tante?

Sir Charles franziu a testa e ficou perdido em seus pen­samentos.

— Não há nada mais que possa me dizer? Nada a res­peito de nenhum dos hóspedes?

Pareceu-lhe que houve uma pausa mínima antes de Miss Wills responder a pergunta.

— Não.

— Sobre Mrs. Dacres? Ou o Capitão Dacres? Ou Miss Sutcliffe? Ou Mr. Manders?

Ele a observou cuidadosamente enquanto pronunciava cada nome.

Uma vez pareceu-lhe que o pince-nez se agitara, porém não conseguiu ter certeza.

— Receio que não haja nada que possa dizer-lhe, Sir Charles.

— Ah, bem! — ele se levantou. — Satterthwaite vai fi­car desapontado.

— Sinto muito — disse Miss Wills com grande respeita­bilidade.

— E eu sinto muito, também, por tê-la incomodado. Suponho que estava ocupada, escrevendo.

— Para falar a verdade, estava.

— Uma nova peça?

— É. Para falar a verdade, pensei em usar alguns dos personagens da reunião em Melfort Abbey.

— E os processos por difamação?

— Não se preocupe, Sir Charles; já constatei que as pessoas nunca se identificam. — Deu um risinho. — Não se, como o senhor mesmo disse há pouco, o autor for realmente impiedoso.

— A senhora quer dizer — disse Sir Charles — que nós todos temos conceitos inflacionados sobre nossas próprias per­sonalidades e não reconhecemos a verdade se ela for brutal­mente retratada. Eu tinha razão, Miss Wills, a senhora é uma mulher cruel.

Miss Wills afligiu-se.

— Não precisa ter receio, Sir Charles. As mulheres nor­malmente não são cruéis para com os homens — a não ser que se trate de algum homem em particular... só são cruéis para com as outras mulheres.

— Quer dizer que está a ponto de enfiar seu bisturi ana­lítico em outra mulher. Qual será?   Talvez possa imaginar. Cynthia não costuma ser muito apreciada por seu pró­prio sexo.

Miss Wills não disse nada. Continuou a sorrir — uma espécie de sorriso de gato.

— A senhora escreve suas coisas, ou dita?

— Ora, eu escrevo, depois mando datilografar.

— A senhora deveria ter uma secretária.

— É possível. O senhor ainda tem aquela admirável Miss... Miss Milray, não é?

— Sim, ainda tenho Miss Milray. Ela saiu por uns tem­pos para cuidar da mãe, que mora longe, porém já voltou. É muito eficiente.

— É o que me pareceu. Talvez um pouco impulsiva.

— Impulsiva? Miss Milray?

Sir Charles esbugalhou os olhos. Nunca, nem era seus. momentos de maiores divagações imaginativas, havia associa­do impulsividade com Miss Milray.

— Talvez só ocasionalmente — disse Miss Wills.

Sir Charles sacudiu a cabeça.

— Miss Milray é o robô perfeito. Adeus, Miss Wills. Perdoe-me por havê-la perturbado, e não se esqueça de in­formar a polícia sobre a tal marca.

— A marca no pulso direito do mordomo? Não, não es­quecerei.

— Bom, adeus... um momento... pulso direito? Ainda há pouco a senhora disse esquerdo.

— Disse? Mas como eu sou tonta.

— Bem, e qual era?

Miss Wills apertou os olhos, concentrando-se.

— Deixe-me ver. Eu estava sentada assim... e ele... será que o senhor se importava, Sir Charles, de me oferecer aquela bandeja como se fosse o prato das verduras? Pela es­querda.

Sir Charles apresentou-lhe a atrocidade de bronze da ma­neira indicada.

— Repolho, madame?

— Muito obrigada — disse Miss Wills. — Agora já te­nho certeza. Era o esquerdo, assim como disse da primeira vez. Que estupidez a minha.

— Nada disso — disse Sir Charles. — Esquerda e direi­ta são sempre um problema complicado.

E despediu-se pela terceira vez.

Enquanto fechava a porta, ele olhou para trás. Miss Wills não estava olhando para ele. Estava de pé, onde a dei­xara. Olhava para a lareira, e em seus lábios havia um sor­riso de malícia satisfeita.

Sir Charles ficou atônito.

“Aquela mulher sabe de alguma coisa”, disse para con­sigo mesmo. “Eu juro que ela sabe de alguma coisa. Mas não diz o que é... O que será que ela sabe?”

 

                   OLIVER MANDERS

No escritório de Messrs. Speir & Ross, Mr. Satterthwai­te perguntou por Mr. Oliver Manders e entregou seu cartão.

Daí a pouco foi levado até uma sala pequena, na qual viu Oliver sentado junto à escrivaninha.

O rapaz levantou-se e apertou-lhe a mão.

— Que gentil de sua parte vir procurar-me, senhor — disse ele.

Seu tom dava a entender: “É isso o que eu tenho de di­zer, mas é tudo cacetíssimo.”

Mr. Satterthwaite, no entanto, não era fácil de desenco­rajar. Sentou-se, assoou o nariz, pensativo, e depois disse, espiando por cima do lenço:

— Leu as notícias de hoje de manhã?

— Quer dizer da seção financeira? Bem, o dólar...

— Não, nada de dólares — disse Mr. Satterthwaite. — De morte. O resultado da exumação em Loomouth. Bab­bington foi envenenado... com nicotina.

— Ah, isso... sim, eu vi. A nossa Egg, tão cheia de energia, ficará muito satisfeita. Sempre insistiu que era assas­sinato.

— Porém o assunto não lhe interessa?

— Meus gostos não são tão grosseiros. Afinal, assassina­to — ele deu de ombros. — Muito violento e pouco artístico.

— Nem sempre pouco artístico — disse Mr. Satterth­waite.

— Não? Bem, é possível que não.

— Isso depende, não acha, de quem comete o crime. O senhor, por exemplo, tenho a certeza de que cometeria um assassinato de modo excepcionalmente artístico.

— Muito gentil de sua parte — resmungou Oliver.

— Porém para falar com franqueza, meu rapaz, não te­nho muito boa opinião a respeito do acidente que fabricou. E pelo que ouvi, a polícia também não.

Houve um instante de silêncio — e então uma caneta caiu no chão.

Oliver disse:

— Perdão, não o compreendi bem.

— A sua atuação muito pouco artística em Melfort Abbey. Eu teria realmente o maior interesse em saber por que fez aquilo.

Houve outro silêncio, depois Oliver disse:

— Diz o senhor que a polícia... tem suspeitas?

Mr. Satterthwaite concordou de cabeça.

— Parece um pouco suspeito, não acha? — perguntou em tom agradável. — Mas é possível que possa oferecer uma explicação perfeitamente válida.

— Eu tenho uma explicação — disse Oliver vagarosa­mente. — Se é válida ou não, não tenho a menor idéia.

— Será que me permitiria julgar?

Houve uma pausa, depois Oliver disse:

— Eu apareci lá... da maneira pela qual apareci... por sugestão do próprio Sir Bartholomew

— O quê? — Mr. Satterthwaite estava perplexo.

— Meio estranho, não é? Mas é verdade. Recebi uma carta dele sugerindo que eu fingisse ter sofrido um acidente e pedisse sua hospitalidade. Dizia que não podia dar suas razões por escrito, porém, que me daria todas as explicações na primeira oportunidade.

— E deu?

— Não, não deu... Eu cheguei lá logo antes do jan­tar. Não o vi a sós. No final do jantar ele... ele morreu.

Toda indolência havia desaparecido das atitudes de Oli­ver. Seus olhos escuros estavam fixos em Mr. Satterthwaite. Parecia estar estudando atentamente as reações causadas por suas palavras.

— Ainda tem a carta?

— Não. Rasguei-a.

— É uma pena — disse Mr. Satterthwaite secamente. — E não disse nada à polícia?

— Não; ia parecer-lhe... tão... tão fantástico.

— É fantástico.

Mr. Satterthwaite sacudiu a cabeça. Teria Bartholomew Strange escrito uma tal carta? Parecia muito pouco caracte­rístico. A história tinha um tom melodramático que lembra­va muito pouco o bom senso saudável do médico.

Ele olhou para o rapaz. Oliver continuava a observá-lo. Mr. Satterthwaite pensou: “Está olhando para ver se eu engulo.”

E disse:

— E Sir Bartholomew não deu nenhuma razão para o seu pedido?

— Nenhuma.

— É uma história extraordinária.

Oliver não falou.

— Mas mesmo assim obedeceu ao chamado?

Voltou um pouco da indolência de atitude.

— Sim, pareceu-me refrescantemente fora da rotina, o que atraiu meu paladar um tanto cansado.   Confesso que me senti curioso.

— Há algo mais?

— O que quer dizer com algo mais?

Mr. Satterthwaite não sabia dizer exatamente o que es­tava querendo dizer. Era algum instinto obscuro que o esta­va guiando.

— Quero dizer — disse ele — alguma coisa mais que po­deria ser tomada... contra a sua pessoa?

Houve uma pausa. Depois o rapaz deu de ombros.

— Suponho que é melhor abrir o jogo. Aquela mulher não vai ficar calada, mesmo.

Mr. Satterthwaite fez uma pergunta com os olhos.

— Foi o que aconteceu na manhã seguinte ao crime. Eu estava conversando com aquela mulher, a tal de Antho­ny Armstrong. Tirei algo de minha carteira e uma coisa caiu de dentro. Ela apanhou e me devolveu.

— E o que era a coisa?

— Infelizmente ela deu uma olhada rápida antes de me devolver. Era um recorte de jornal a respeito de nicotina... como é venenosa etc.

— E por que razão ficou tão interessado nesse assunto?

— Não fiquei. Devo ter metido aquilo lá em algum mo­mento, não sei quando, mas garanto que não me lembro de tê-lo feito. Meio embaraçoso, não é?

Mr. Satterthwaite pensou: “Que história mais mal con­tada.”

— Eu suponho — continuou Oliver Manders — que ela tenha contado à polícia!

Mr. Satterthwaite sacudiu a cabeça.

— Acho que não. Creio que ela é do tipo de mulher que... bom... que gosta de guardar as coisas para si mes­ma. Ela coleciona conhecimentos.

Oliver Manders inclinou-se repentinamente para a frente.

— Eu sou inocente, senhor; absolutamente inocente.

— Não sugeri que seja culpado — disse Mr. Satterthwai­te suavemente

— Mas alguém sugeriu... alguém deve ter sugerido. Al­guém botou a polícia atrás de mim.

Mr. Satterthwaite sacudiu a cabeça.

— Não, não.

— Então por que razão o senhor veio aqui hoje?

— Em parte, como resultado de minhas... er... inves­tigações no local. — Mr. Satterthwaite tornou-se um tanto pomposo. E em parte por sugestão de... um amigo.

— Que amigo?

— Hercule Poirot.

— Aquele homem! — As palavras pareceram explodir dentro de Oliver. — Ele está de volta à Inglaterra?

— Está.

— E por que razão ele voltou? Mr. Satterthwaite levantou-se.

— Por que razão um cão sai caçando? — perguntou ele. E, bastante satisfeito com sua frase, saiu da sala.

 

                   POIROT OFERECE UM XEREZ

Confortavelmente sentado numa poltrona de seu aparta­mento ligeiramente enfeitado demais, no Ritz, Hercule Poi­rot escutava.

Egg estava pousada no braço de uma cadeira, Sir Char­les de pé em frente à lareira, Mr. Satterthwaite sentado um pouco mais afastado, observando o grupo.

— É o fracasso mais completo que eu já vi — disse Egg.

Poirot sacudiu delicadamente a cabeça.

— Não, não, Mademoiselle exagera. Quanto a desco­brir alguma ligação com Mr. Babbington não conseguiram nada... é verdade; porém, reuniram outras informações su­gestivas.

— Aquela tal de Wills sabe de alguma coisa — disse Sir Charles. — Eu juro que ela sabe de alguma coisa.

— E o Capitão Dacres, também ele não tem a consciên­cia muito clara. E Mrs. Dacres precisava desesperadamente de dinheiro, e Sir Bartholomew estragou sua chance de me­ter a mão em algum.

— O que acha da história do jovem Manders? — per­guntou Mr. Satterthwaite.

— Parece-me peculiar e extremamente pouco caracterís­tica do finado Sir Bartholomew Strange.

— Quer dizer que acha que é mentira? — disse Sir Charles, sem rodeios.

— Há tantos tipos de mentiras — disse Hercule Poirot.

Ficou silencioso um instante, depois disse:

— Esta Miss Wills, ela escreveu uma peça para Miss Sutcliffe?

— Escreveu. A estréia é quarta-feira que vem.

— Ah!

Novamente ficou em silêncio. Egg disse:

— Diga-nos: O que faremos agora?

O homenzinho sorriu para ela.

— Só há uma coisa a fazer... pensar.

— Pensar? — exclamou Egg. Sua voz expressava re­volta.

Poirot abriu-lhe um vasto sorriso.

— Mas sim, é isso. Pensar! Com pensamento, todos os problemas podem ser resolvidos.

— Mas não podemos fazer nada?

— Para si a ação, hein, Mademoiselle? Mas, bem cer­to, ainda há coisas que podem ser feitas. Há, por exemplo, esse tal lugar, Gilling, onde Mr. Babbington residiu por tan­tos anos. Podem fazer indagações por lá. A senhorita disse que a mãe de Miss Milray, que é inválida, mora lá.   Uma inválida sabe de tudo. Ouve tudo e não esquece nada. Faça suas indagações com ela; é possível que levem a alguma coi­sa... quem sabe?

— Mas o senhor não vai fazer nada? — perguntou Egg, persistente.

Os olhos de Poirot brilharam.

— A senhorita insiste que eu, também, seja ativo? Eh bien. Será como deseja. Somente eu, pessoalmente, não dei­xarei este lugar. Aqui estou muito confortável. Porém digo-lhe o que farei: darei uma festa... uma sherry party... está na moda, não está?

— Uma sherry party?

— Précisément, e para ela eu convidarei Mrs. Dacres, o Capitão Dacres, Miss Sutcliffe, Miss Wills, Mr. Manders, e sua encantadora mãe, Mademoiselle.

— E eu?

— Naturalmente. Os presentes estão todos incluídos.

— Viva! — exclamou Egg. — O senhor não me enga­na, M. Poirot. Alguma coisa vai acontecer nessa festa. Vai, não vai?

— Vamos ver — disse Poirot. — Mas não espere muita coisa, Mademoiselle. Agora deixe-me com Sir Charles, pois há algumas pequenas coisas a respeito das quais quero pedir seus conselhos.

Quando Egg e Mr. Satterthwaite estavam esperando o elevador, Egg disse em êxtase:

— Que maravilha... bem como nas histórias de detetive. Todo mundo vai estar lá, e então ele vai dizer qual deles é o assassino.

— Será? — disse Mr. Satterthwaite.

 

A festa realizou-se na noite de segunda-feira. Todos ha­viam aceitado o convite. A encantadora e indiscreta Miss Sutcliffe riu-se travessamente dando uma olhada em volta.

— Bonita teia de aranha, M. Poirot. E aqui estão todas as pobres moscas que foram gentilmente convidadas a se aproximar. Tenho a certeza de que o senhor vai nos dar o mais fascinante résumé do caso e depois, repentinamente, apontar para mim e dizer: “Tu és a mulher”, e todos vão gritar: “Foi ela”, e eu vou cair em prantos e confessar, porque eu sou a pessoa mais sugestionável do mundo. Ai, M. Poirot, o senhor não sabe o medo que eu tenho do senhor..

— Quelle histoire — exclamou Poirot. Estava ocupado com uma bela garrafa de cristal e os cálices. Ele lhe serviu um cálice de xerez, fazendo um ligeiro cumprimento. — Esta é apenas uma festinha amiga. Não falemos de assassinatos, nem de sangue, nem de veneno. Làlà, essas coisas, elas es­tragam o paladar.

Ele entregou um cálice a Miss Milray, seriíssima, que viera acompanhando Sir Charles, e que estava com uma ex­pressão altamente condenatória no rosto.

— Voilá — disse Poirot quando terminou de executar seu ritual de hospitalidade. Esqueçamos a primeira ocasião em que estivemos reunidos. Agora é preciso ter apenas espí­rito de festa. Comamos, bebamos, divirtamo-nos, pois ama­nhã, estaremos mortos. Ah, malheur, eu novamente mencio­nei morte. Madame — ele se inclinou na direção de Mrs. Dacres, — seja-me permitido desejar-lhe boa sorte e congra­tulá-la por seu vestido encantador.

— A você, Egg — disse Sir Charles.

— Tudo de bom — disse Freddie Dacres.

Cada um murmurou alguma coisa. Tudo parecia ter um ar de alegria forçada. Todos estavam resolvidos a parecer alegres e despreocupados. Só Poirot parecia estar naturalmen­te nesse estado de espírito. Ficou falando sem parar, muito contente...

— Le sherry, eu o prefiro ao coquetel... e mil vezes ao uísque. Ah, quel horreur, o uísque. Ao beber o uísque se arruina, absolutamente arruina, o paladar. Os vinhos delica­dos da França, para apreciá-los, não se deve nunca... nun­ca... ah qu’est ce qu’il y a...?

Um som estranho interrompeu — uma espécie de grito abafado. Todos os olhos se voltaram para Sir Charles en­quanto ele cambaleava, com o rosto convulsionado. O cáli­ce caiu de sua mão, ele deu alguns passos, cegamente, e de­pois caiu.

Houve um momento de silêncio estupefacto, depois An­gela Sutcliffe gritou e Egg avançou de um pulo.

— Charles — gritou Egg. — Charles.

Ela lutou para abrir caminho. Mr. Satterthwaite delica­damente tentava retê-la.

— Ai, meu Deus — exclamou Lady Mary. — Ou­tro, não!

Angela Sutcliffe esbravejou:

— Ele também foi envenenado... Que horror. Oh, meu Deus, que horror!

E desabando repentinamente num sofá, ela começou a so­luçar e a rir — um som apavorante.

Poirot assumira o controle da situação. Estava ajoelha­do junto ao homem prostrado. Os outros afastaram-se en­quanto ele fazia o exame. E então ele se levantou, automa­ticamente limpando os joelhos das calças. Girou os olhos por todo o grupo. O silêncio era completo, a não ser pelos so­luços sufocados de Angela Sutcliffe.

— Meus amigos — começou Poirot.

Não foi além disso, pois Egg cuspiu-lhe as palavras, di­zendo:

— Idiota. Seu idiota absurdo, metido a inventar repre­sentações! Fingindo ser tão sensacional, tão maravilhoso, sa­bedor de todas as respostas! Para no fim deixar isso acon­tecer. Outro assassinato. E debaixo do seu nariz... Se ti­vesse deixado tudo em paz nada disto teria acontecido... A culpa do assassinato de Charles é sua... sua... seu... seu...

Ela parou, incapaz de continuar a falar.

Poirot acenou grave e tristemente com a cabeça.

— É verdade, Mademoiselle. Confesso. Fui eu quem assassinou Sir Charles. Porém eu, Mademoiselle, sou um tipo muito especial de assassino. Eu sou capaz de matar... e de restaurar a vida. — Virando-se, e num tom de voz diferente, uma voz de todo dia, um tanto embaraçada, disse:

— Uma atuação magnífica, Sir Charles. Meus parabéns. Talvez agora o senhor queira fazer os agradecimentos.

Com um riso o ator ficou de pé e arremedou um agra­decimento de cena.

Egg deu um suspiro profundo.

— M. Poirot, sua... sua peste!

— Charles — gritou Angela Sutcliffe. — Você é um re­finado diabo...

— Mas por quê?...

— Como?...

— Por que cargas d’água?...

Por meio de uma mão levantada, Poirot conseguiu si­lêncio.

— Messieurs, mesdames. Rogo a todos que me perdoem. Esta pequena farsa foi necessária para provar a todos, e in­cidentalmente provar a mim mesmo um fato que minha ra­zão já me havia garantido ser verdade.

“Escutem um pouco. Nesta bandeja eu coloquei um cá­lice com uma colher de chá de água, representando nicotina pura. Estes cálices são perfeitamente semelhantes aos de pro­priedade de Sir Charles Cartwright e Sir Bartholomew Stran­ge. Devido ao entalhe sobre cristal muito pesado, uma pe­quena quantidade de líquido incolor não pode ser identifica­da. Imaginem, portanto, o cálice de porto de Sir Bartholo­mew Strange. Após ele ter sido colocado na mesa alguém introduziu no mesmo uma quantidade suficiente de nicotina pura. O que poderia ter sido feito por qualquer pessoa. O mordomo, a copeira, ou qualquer um dos hóspedes, que po­deria deslizar até a sala de jantar a caminho da reunião. Após a sobremesa, o cálice foi servido. Sir Bartholomew bebe... e morre.

“Esta noite nós tivemos a representação de uma terceira tragédia... uma tragédia falsa... e eu pedi a Sir Charles para fazer a vítima. O que ele fez de modo soberbo. Porém suponhamos por um instante que não se tratasse de farsa, e sim, de verdade. Sir Charles está morto. Quais serão as pro­vidências tomadas pela polícia?”

Miss Sutcliffe gritou:

— O cálice, é claro. — Ela inclinou a cabeça para onde o cálice jazia no chão, tal como havia caído da mão de Sir Charles. — O senhor só colocou água nele, porém se tivesse sido nicotina...

— Suponhamos que fosse nicotina. — Poirot tocou o cá­lice delicadamente com a ponta do pé. — É sua opinião que a polícia iria analisar o cálice, e nele seriam encontrados ves­tígios de nicotina?

— Exatamente.

Poirot sacudiu a cabeça lamentando.

— Está enganada. Não seria encontrado nenhum traço de nicotina.

Todos ficaram olhando para ele.

— Precisam saber — sorriu ele — que aquele não é o cálice do qual Sir Charles bebeu. Com um sorriso do pedido de desculpas, tirou um outro cálice do bolso. — Este foi o cálice que ele usou.

Continuou:

— Trata-se, como vêem, do princípio básico com que contam os mágicos. A atenção não pode ficar em dois pon­tos ao mesmo tempo. Para fazer minha mágica eu preciso chamar a atenção para outro ponto. Bem, há um momento psicológico. Quando Sir Charles caiu, morto... todos os olhos da sala concentraram-se em seu corpo inerte. Todos avança­ram para chegar perto dele e ninguém, absolutamente nin­guém, olhou para Hercule Poirot, e naquele momento exato troquei os cálices sem ninguém ver...

“De modo que, assim, fica provado o que eu queria... Que houve um outro momento semelhante no Topo do Mas­tro, e um outro também em Melfort Abbey... e por isso, não se encontrou nada nem no copo de coquetel nem no cá­lice de vinho...”

Egg exclamou:

— Quem fez a troca?

Olhando para ela, Poirot respondeu:

— Isso, nós ainda temos de descobrir.

— O senhor não sabe?

Poirot deu de ombros.

Um pouco desconcertados, os hóspedes deram sinal de co­meçar a partir. A maneira de todos estava bastante fria. Sentiam que haviam sido redondamente enganados.

Com um gesto Poirot reteve-os.

— Um momento, eu lhes peço. Ainda há uma coisa que desejo dizer. Hoje, aqui, não há dúvida de que representa­mos uma comédia. Porém uma comédia pode ser represen­tada de verdade, e tornar-se uma tragédia. Sob determinadas circunstâncias o assassino atacará uma terceira vez... E por isso, digo agora, a todos os presentes. Se algum dos senhores sabe de alguma coisa... alguma coisa que possa de algum modo ter alguma importância com relação a este crime, eu imploro, a esse alguém, que fale agora. Reter qualquer in­formação para si a esta altura, pode ser perigoso... tão pe­rigoso que a morte pode vir a ser o resultado desse silêncio. Portanto eu imploro novamente... se alguém souber de alguma coisa, que fale agora...”

Pareceu a Sir Charles que o apelo de Poirot estava sendo endereçado particularmente a Miss Wills. Se assim foi, não obteve resultado. Ninguém falou ou respondeu.

Poirot suspirou. Sua mão tombou.

— Assim seja, então. Eu avisei. Não posso fazer mais do que isto... Lembrem-se de que ficar em silêncio é um pe­rigo...

Mesmo assim ninguém falou.

Canhestramente, os hóspedes partiram.

Egg, Sir Charles e Mr. Satterthwaite permaneceram.

Egg ainda não havia perdoado Poirot. Ela ficou sentada muito quieta, as faces em chama, os olhos irados. Não con­seguia olhar para Sir Charles.

— Essa sua idéia foi sensacional, Poirot — disse Sir Char­les com entusiasmo.

— Impressionante — disse Mr. Satterthwaite, rindo um pouco. — Eu não seria capaz de acreditar se me dissessem que eu não veria alguém trocando os cálices.

— Exatamente por isso — disse Poirot — é que não me foi possível fazer qualquer confidência a ninguém. Só assim a experiência seria válida.

— E foi essa a única razão pela qual preparou tudo isso?... foi só para ver se era possível trocá-los sem ser notado?

— Bem, não exatamente.   Eu tinha ainda um outro ob­jetivo.

— Sim?

— Eu queria observar a expressão no rosto de uma pessoa quando Sir Charles caísse morto.

— Que pessoa? — perguntou Egg, cortante.

— Isso é o meu segredo.

— E conseguiu observar o rosto dessa pessoa? — per­guntou Mr. Satterthwaite.

— Sim.

— Bem?

Poirot não respondeu. Ele apenas meneou a cabeça.

— Não poderá dizer-nos o que viu nele?

Poirot disse vagarosamente:

— Vi uma expressão da mais absoluta surpresa...

Egg deu um suspiro intenso de susto.

— Quer dizer — disse ela — que o senhor sabe quem é o assassino?

— Pode-se dizer assim, se quiser, Mademoiselle.

— Mas... então... então o senhor sabe de tudo?

Poirot sacudiu a cabeça.

— Não; ao contrário, eu não sei nada. Pois, compreen­da, eu não sei por que Stephen Babbington foi morto. Até agora não sou capaz de provar nada... E tudo gira em tor­no disso... do motivo da morte de Stephen Babbington...

Houve uma batida na porta e um mensageiro entrou com­um telegrama numa bandeja.

Poirot abriu-o. Seu rosto alterou-se. Entregou o telegra­ma a Sir Charles. Debruçando-se por sobre o ombro de Sir Charles, Egg leu, em voz alta.

“Favor vir ver-me, imediatamente, posso fornecer infor­mações valiosas sobre morte Sir Bartholomew — Margaret Rushbridger.”

— Mrs. de Rushbridger! — exclamou Sir Charles. — Então tínhamos razão, apesar de tudo. Ela tem alguma liga­ção com o caso.

 

                     UM DIA EM GILLING

Imediatamente começou uma discussão acalorada. Um guia ferroviário foi encontrado. E foi decidido que sair cedo de trem seria melhor do que ir de carro.

— Finalmente — disse Sir Charles, — vamos conseguir esclarecer ao menos esse detalhe do mistério.

— E o que acha que seja o mistério? — perguntou Egg.

— Não tenho a menor idéia. Mas é impossível que não esclareça alguma coisa sobre o caso de Babbington. Se Tollie reuniu o grupo de propósito, e tenho a certeza de que foi o que aconteceu, então a “surpresa” de que falava em fazer-lhes tinha alguma ligação com essa tal Rushbridger. Creio que podemos supor que assim seja; não acha. M. Poirot?

Poirot sacudiu a cabeça com perplexidade.

— Este telegrama complica tudo — murmurou ele. — Porém precisamos agir depressa... muito depressa.

Mr. Satterthwaite não percebia a necessidade de tamanha pressa, porém concordou polidamente.

— Certamente, podemos ir pelo primeiro trem da manhã. Er... isto é, desde que seja necessário que todos nós façamos a viagem.

— Sir Charles e eu tínhamos planejado ir até Gilling — disse Egg.

— Mas podemos adiar — disse Sir Charles.

— Não creio que devamos adiar nada — disse Egg. — Não há necessidade de quatro pessoas irem a Yorkshire. É absurdo. M. Poirot e Mr. Satterthwaite podem ir a Yorkshire e Sir Charles e eu a Gilling.

— Eu preferia investigar esse negócio da Rushbridger — disse Sir Charles um pouco desapontado. — Está lembrada, eu... er... fui eu quem falou com a Enfermeira-chefe da primeira vez... quero dizer que, afinal, já tinha conseguido botar o pé para dentro da porta.

— É exatamente por isso que deve ficar afastado — disse Egg. — Depois de inventar todas aquelas mentiras, ago­ra que Mrs. de Rushbridger está consciente vai ser apanha­do como o. maior mentiroso do mundo. É muito mais im­portante que vá a Gilling. Se quisermos ver a mãe de Miss Milray é mais provável que ela converse com o senhor do que com qualquer outra pessoa. Como empregador da fi­lha, há de inspirar-lhe confiança.

Sir Charles olhou o rosto iluminado e sincero de Egg.

— Irei a Gilling — disse ele. — Acho que tem toda a razão.

— Eu sei que tenho — disse Egg.

— Em minha opinião é um arranjo excelente — disse Poirot, eficiente. — Como diz Mademoiselle, Sir Charles é a pessoa indicada para entrevistar Mrs. Milray. Quem sabe, é possível que descubram por meio dela fatos muito mais im­portantes do que os que nos dirão em Yorkshire.

E assim foi resolvido o assunto, de modo que no dia se­guinte Sir Charles foi buscar Egg, em seu carro, às quinze para as dez. Mr. Satterthwaite já havia deixado Londres de trem.

Era uma manhã linda, de frio seco, com apenas um to­que de geada no ar. Egg ficava cada vez mais animada com cada volta dos inúmeros atalhos que o experimentadíssimo Sir Charles descobria ao sul do Tâmisa.

E, finalmente, lá estavam eles voando suavemente, pela estrada de Folkestone. Depois de atravessar Maidstone, Sir Charles consultou um mapa e deixou a estrada principal, e por algum tempo serpentearam por pequenas estradinhas cam­pestres. Faltavam cerca de quinze minutos para o meio-dia quando, finalmente, alcançaram seu objetivo.

Gilling era uma aldeia que o tempo deixara para trás. Tinha uma velha igreja, uma casa paroquial, duas ou três lojas, uma fila de simpáticas casas de campo, três ou quatro casas novas de financiamento pelo governo, e um lindo par­que municipal.

A mãe de Miss Milray morava numa casinha minúscula que ficava no parque, do lado oposto ao da igreja.

Quando o carro ia parando Egg perguntou:

— Miss Milray sabe que vamos visitar a mãe dela?

— Claro que sim. Ela escreveu uma cartinha para pre­parar a velha.

— E acha que isso foi boa idéia?

— Mas, minha cara menina, por que não?

— Sei lá... Mas de qualquer jeito não a trouxe junto.

— Para falar a verdade, achei que ela ia me deixar sem graça. Ela é muito mais eficiente do que eu... e na certa ia ficar me ensinando o que dizer.

Egg riu.

Mrs. Milray, descobriram, era quase que grotescamente diferente da filha. Enquanto Miss Milray era dura, ela era suave; se Miss Milray era angulosa, ela era arredondada. Mrs. Milray parecia um imenso bolo permanentemente colo­cado numa cadeira de braços convenientemente colocada de modo que ela pudesse, pela janela, observar o mundo lá fora.

Mas parecia agradavelmente excitada com a chegada das visitas.

— Quanta gentileza a sua, Sir Charles. Tenho ouvido a minha Violet (Violet! Que nome singularmente inadequado para Miss Milray) falar muito do senhor. O senhor não ima­gina o quanto ela o admira. Tem sido tão interessante para ela trabalhar com o senhor todos esses anos. Não quer sen­tar-se, Miss Lytton Gore? Desculpem-me por não me levan­tar. Já faz muitos anos que perdi o uso das pernas. É von­tade do Senhor, e não me queixo, e sempre digo que sempre se pode ficar habituada a tudo. Talvez aceitassem algum re­fresco, depois de toda essa viagem?

Tanto Sir Charles quanto Egg disseram que não havia necessidade de refrescos, porém Mrs. Milray não lhes deu atenção. Bateu palmas, à moda oriental, fazendo aparecer chá e biscoitos. Enquanto provavam de um e outros, Sir Charles foi ao objetivo de sua visita.

— Creio que já ouviu falar, Mrs. Milray, da trágica mor­te de Mr. Babbington, que foi vigário aqui.

O bolo acenou com a cabeça concordando vigorosamente.

— Ouvi, sim. E li tudo a respeito da exumação no jor­nal. E não consigo imaginar quem pudesse querer envene­ná-lo. Um homem muito bom, e todos gostavam dele por aqui... e dela também. E das crianças e tudo.

— É realmente um grande mistério — disse Sir Char­les. — Estamos todos desesperados. Na verdade, ficamos imaginando se a senhora não poderia trazer alguma luz ao assunto.

— Eu? Mas eu não vejo os Babbingtons... deixe-me ver... acho que há mais de quinze anos.

— Eu sei, porém alguns de nós imaginamos que talvez houvesse alguma coisa no passado que pudesse explicar sua morte.

— Pois não posso conceber o que pudesse ser. Levavam uma vida muito tranqüila... muito pobres, os coitados, com toda aquela filharada.

Mrs. Milray estava perfeitamente disposta a fazer re­miniscências, porém tais reminiscências pareciam trazer mui­to pouca luz ao problema que estavam querendo resolver.

Sir Charles mostrou-lhe ampliações de um instantâneo antigo no qual apareciam os Dacres, também um retrato an­tigo de Angela Sutcliffe, e uma reprodução bastante desbo­tada de Miss Wills tirada de um jornal. Mrs. Milray exami­nou-os com grande interesse, porém sem qualquer sinal de re­conhecimento.

— Não posso dizer que me lembre de nenhum deles... embora, é claro, que já foi há muito tempo. Mas esta aldeia é muito pequena. Não aparece muita gente nova, nem muita gente sai daqui. As meninas Agnew, filhas do médico... es­tão todas casadas, aí pelo mundo, e o médico novo, que ainda é solteiro, tem um sócio há mais ou menos pouco tempo, ainda jovem. Depois tinha as irmãs Cayleys, velhinhas, que sempre ficavam em lugar de destaque na igreja... mas já morreram todas há muitos anos. E os Richardsons... ele morreu e ela se mudou para Gales. E o pessoal da aldeia, claro. Mas esses quase que não mudam. Tenho a impressão de que Violet poderia dizer-lhes mais do que eu. Era menina nesse tempo, e ia muitas vezes brincar na casa dos Bab­bingtons.

Sir Charles tentou imaginar Miss Milray como menina, mas não conseguiu.

Perguntou a Mrs. Milray se ela se lembrava de alguém chamado de Rushbridger, porém o nome não provocou ne­nhuma reação.

Finalmente os dois apresentaram suas despedidas.

O próximo passo foi um almoço improvisado na padaria. Sir Charles sentia-se mais tentado a procurar alguma coisa de melhor, porém Egg lembrou que ali poderiam talvez pegar alguma coisa dos mexericos locais.

— E não lhe fará mal almoçar ovos cozidos e bolachas para variar ao menos uma vez — disse ela com severidade. — Os homens adoram criar caso por causa de comida.

— Eu sempre acho comer ovos tão deprimente — disse humildemente Sir Charles.

A mulher que os serviu era bastante comunicativa. Tam­bém ela havia lido no jornal a notícia da exumação, e fi­cado devidamente excitada com o fato de se tratar do “ve­lho vigário”.

— Eu era criança naquele tempo — explicou. — Mas me lembro muito bem dele.

Não lhe era possível, no entanto, dizer-lhes muita coisa sobre ele.

Depois do almoço eles foram até a igreja e examinaram os registros de casamentos, nascimentos e mortes. E ainda uma vez verificaram que não havia nada que desse esperan­ças ou sugestões.

Saíram para o cemitério e caminharam por ele devagar. Egg ia lendo os nomes nas lápides.

— Que nomes esquisitos eles têm — disse ela. — Olhe só, uma família inteira de Stavepennys e ali uma Mary Ann Sticklepath.

— Nenhum é mais esquisito do que o meu — murmurou Sir Charles.

— Cartwright? Mas não me parece nada esquisito.

— Não falava de Cartwright. Cartwright é meu nome profissional, embora eu tenha acabado por adotá-lo legal­mente.

— Qual é o seu nome real?

— Não posso contar. É meu segredo mortal.

— Mas é horrível a esse ponto?

— Não tão horrível quanto cômico.

— Ah!... conte para mim.

— Certamente que não — disse Sir Charles com firmeza.

— Por favor.

— Não.

— Por que não?

— Você ia rir.

— Não ia.

— Você não conseguiria deixar de rir.

— Ah, conte; conte, por favor. Por favor.

— Mas que criatura persistente você é, Egg. Por que razão quer saber?

— Porque não quer me contar.

— Você é uma criança adorável — disse Sir Charles, um pouco abalado.

— Eu não sou uma criança.

— Não? Eu me pergunto se não.

— Conte — Egg sussurrou suavemente.

Um sorriso divertido e melancólico a um tempo apare­ceu nos lábios de Sir Charles.

— Está bem, lá vai. O nome de meu pai era Mugg.

— Mentira!

— Verdade verdadeira.

— Bem — disse Egg. — É realmente um tanto catas­trófico.   Passar a vida como Mugg...

— Não teria ido muito longe na carreira. Concordo. Lembro-me — continuou Sir Charles, sonhador — que andei brincando com a idéia (eu era muito jovem a esse tempo), de me chamar de Ludovic Castiglione mas acabei me resol­vendo pela tradição aliterativa inglesa de Charles Cartwright.

— Mas o Charles é seu mesmo?

— Sim, graças à providência de meus padrinhos. — Ele hesitou e depois disse: — Por que você não me chama de Charles... e esquece o Sir?

— Pode ser.

— Ontem você chamou. Quando... quando... pensou que eu estava morto.

— Ah, naquela hora. — Egg tentou manter a voz di­ferente.

Sir Charles disse abruptamente:

— Egg, não sei por que, mas esta história dos assassi­natos não me parece mais real. Hoje, particularmente, me parece inteiramente fantástica. Eu estava querendo esclare­cer aquilo mais do que... mais do que qualquer outra coisa. Foi uma espécie de superstição. Eu associei o sucesso em so­lucionar problemas... com uma outra espécie de sucesso. Raios! Por que é que eu fico me perdendo nestes rodeios todos? No palco eu sou sempre maravilhoso nas cenas de amor, mas na vida real me sinto inseguro... Sou eu ou o jo­vem Manders, Egg? Eu tenho de saber. Ontem eu achei que era eu...

— E achou certo...

— Meu anjo, você é incrível — exclamou Sir Charles.

— Charles, Charles, você não pode me beijar num cemitério...

— Eu a beijarei onde eu quiser...

 

— Não descobrimos nada — disse Egg mais tarde, quan­do seguiam para Londres a grande velocidade.

— Que bobagem, nós descobrimos a única coisa que vale a pena descobrir... Que me importam vigários mortos e mé­dicos mortos? Você é a única coisa que importa... Você sabe, querida, eu sou trinta anos mais velho do que você... tem certeza de que isso não importa?

Egg beliscou-lhe o braço com doçura.

— Não seja tolo... Será que os outros descobriram alguma coisa?

— Que façam bom proveito — disse Sir Charles, generoso.

— Charles... você estava tão entusiasmado, antes.

Porém Sir Charles não estava mais fazendo o papel do grande detetive.

— Bem, o espetáculo era meu. Mas agora passei-o para as mãos do Bigodudo. É o ramo dele.

— Você acha que ele realmente sabe quem cometeu os crimes? Ele diz que sabe.

— Provavelmente não tem a menor idéia, mas tem que proteger sua reputação profissional.

Egg ficou em silêncio. Sir Charles disse:

— No que é que está pensando, minha querida?

— Estava pensando em Miss Milray. Comportou-se de modo tão estranho naquela noite de que lhe falei. Ela tinha acabado de comprar o jornal que falava da exumação, e disse que não sabia o que fazer.

— Que bobagem — disse Sir Charles alegremente. — Aquela mulher sempre sabe o que fazer.

— Fale sério, Charles. Ela parecia preocupada.

— Egg, minha querida, o que me importam as preocupa­ções de Miss Milray? O que me importa, o que quer que seja, a não ser você e eu?

— Acho melhor se importar um pouco com o trânsito... — disse Egg. — Não quero ficar viúva antes de me casar.

Chegaram de volta ao apartamento de Sir Charles a tempo para o chá. Miss Milray veio recebê-los.

— Há um telegrama para o senhor, Sir Charles.

— Obrigado, Miss Milray. — Ele riu, um riso nervoso, de menino. — Escute, preciso contar-lhe as nossas novidades. Miss Lytton Gore e eu vamos nos casar.

Houve um instante de pausa, depois Miss Milray disse:

— Oh! Estou certa... estou certa de que serão muito felizes.

Havia alguma coisa estranha em sua voz. Egg notou-o, porém antes que pudesse comentar suas impressões, Charles Cartwright se havia voltado violentamente para ela, com uma exclamação.

— Meu Deus, Egg, olhe isto aqui. É de Satterthwaite.

Ele enfiou o telegrama nas mãos dela. Egg leu-o, e seus olhos esbugalharam-se.

 

                 MRS. DE RUSHBRIDGER

Antes de pegar o trem, Hercule Poirot e Mr. Satterth­waite tiveram uma rápida entrevista com Miss Lyndon, a secretária do finado Sir Bartholomew. Miss Lyndon tinha tido a melhor das boas vontades, porém não tinha tido nada de importante para lhes dizer. Mrs. de Rushbridger só era mencionada nos arquivos de Sir Bartholomew em termos pura­mente médicos. Sir Bartholomew nunca a havia mencionado em quaisquer outros termos.

Os dois homens chegaram ao sanatório cerca das doze horas. A empregada que abriu a porta parecia afogueada e excitada. Mr. Satterthwaite foi o primeiro a perguntar pela Enfermeira-chefe.

— Não sei se poderão vê-la hoje — disse a moça, com ar de dúvida.

Mr. Satterthwaite pegou um cartão seu e escreveu algu­mas palavras nele.

— Por favor, entregue-lhe isto.

Foram levados para uma pequena sala de espera. Dentro de aproximadamente cinco minutos a porta abriu-se e a En­fermeira-chefe entrou. Nem parecia aquela pessoa eficiente e seca que conhecera.

Mr. Satterthwaite levantou-se.

— Espero que se lembre de mim — disse ele. — Estive aqui com Sir Charles Cartwright, pouco depois da morte de Sir Bartholomew Strange.

— Mas naturalmente, Mr. Satterthwaite; claro que me lembro. E parece uma coincidência tão estranha que naque­le dia Sir Charles tenha perguntado pela pobre Mrs. de Rushbridger.

— Permita-me que lhe apresente M. Hercule Poirot.

Poirot acenou com a cabeça e a Enfermeira-chefe res­pondeu distraída. Ela continuou:

— Não compreendo como pode ter recebido o telegrama de que fala. Tudo me parece muito misterioso. Mas não é possível que tenha qualquer ligação com a morte do pobre doutor. Deve haver algum louco à solta... é a única expli­cação que posso encontrar. Com a polícia aqui, e tudo o mais. Tem sido uma coisa horrível.

— A polícia? — disse Mr. Satterthwaite, surpreendido.

— Sim, estão aqui desde as dez horas.

— A polícia? — disse Hercule Poirot

— Talvez nós pudéssemos ver Mrs. de Rushbridger ago­ra — sugeriu Mr. Satterthwaite. — Já que ela nos pediu que viesse...

A Enfermeira-chefe interrompeu-o.

— Oh, Mr. Satterthwaite, então o senhor não sabe!

— Não sabe o quê? — perguntou Poirot, incisivo.

— A pobre Mrs. de Rushbridger está morta.

— Morta? — exclamou Poirot. — Mille tonnerres! Isso explica tudo.   Sim, isso explica. Eu devia ter percebido... — Ele se interrompeu. — Como foi que ela morreu?

— É muito misterioso. Uma caixa de bombons chegou para ela... bombons com licor... vieram pelo correio. Ela comeu um... devia estar com um gosto horrível, porém ela deve ter sido apanhada de surpresa, e engoliu-o. Ninguém gosta de cuspir algo que está na boca.

— Oui, oui, e se repentinamente um líquido desliza pela garganta abaixo, é muito difícil.

De modo que ela o engoliu e gritou, chamando, e a en­fermeira veio correndo, mas não pôde fazer nada. Morreu em aproximadamente dois minutos. Então o doutor chamou a polícia, e eles vieram e examinaram o chocolate. Todos os bombons da camada superior tinham sido mexidos. Os da de baixo estavam em ordem.

— E qual o veneno utilizado?

— Acham que foi nicotina.

— Sim — disse Poirot. — Nicotina de novo. Que golpe! Que audácia!

— Chegamos tarde demais — disse Mr. Satterthwaite. — Nunca saberemos o que ela tinha a nos dizer. A não ser... a não ser... que ela tenha confiado em alguém aqui? — Deu um olhar interrogador na direção da Enfermeira-chefe.

Poirot sacudiu a cabeça.

— Não terá dito nada, pode ter a certeza.

— Podemos perguntar — disse Mr.   Satterthwaite. — Uma das enfermeiras, talvez?

— Pergunte, se quiser — disse Poirot; mas não havia a menor esperança em sua voz.

Mr. Satterthwaite voltou-se para a Enfermeira-chefe, que imediatamente mandou chamar as duas enfermeiras, a do dia e a da noite, que tinham estado encarregadas de Mrs. de Rushbridger, porém nenhuma das duas sabia de nada além do que já lhes fora dito. Mrs. de Rushbridger jamais men­cionara a morte de Sir Bartholomew, e nem sequer tinham a menor idéia de que um telegrama havia sido mandado.

A pedido de Poirot, os dois homens foram levados até o quarto da morta. Encontraram o Superintendente Cross­field controlando a situação, e Mr. Satterthwaite apresentou-o a Poirot.

Então os dois homens foram até a cama e olharam a morta. Tinha cerca de quarenta anos, era pálida e seus ca­belos eram escuros. Seu rosto não estava sereno — ainda refletia a agonia de sua morte.

Mr. Satterthwaite disse vagarosamente:

— Pobre alma...

Ele olhou para Hercule Poirot. Havia uma expressão estranha no rosto do pequeno belga. Alguma coisa que viu nele fez Mr. Satterthwaite ter um calafrio...

Mr. Satterthwaite disse:

— Alguém sabia que ela ia falar, e matou-a... Foi mor­ta para não falar...

Poirot concordou com a cabeça.

— Sim, foi exatamente assim.

— Foi assassinada para que não pudesse nos contar o que sabia.

— Ou o que não sabia... Porém não percamos mais tempo... Há muito o que fazer. Não pode haver mais mortes.Temos que tomar providências para isso.

Mr. Satterthwaite perguntou curiosamente:

— Isto se coaduna com a sua idéia da identidade do assassino?

— Sim, sem dúvida... Porém compreendo uma coisa, também: o assassino é mais perigoso do que eu pensava... Precisamos ter cuidado.

O Superintendente Crossfield seguiu-os quando saíram do quarto, e foi informado do telegrama que eles haviam rece­bido. O telegrama havia sido passado no correio de Melfort, e quando investigaram foram informados de que tinha sido levado até lá por um menino. A moça encarregada lem­brava-se, porque a mensagem a havia excitado muito, já que mencionava a morte de Sir Bartholomew.

Depois de almoçarem na companhia do Superintendente, e depois de mandar um telegrama para Sir Charles, a busca continuou.

Às seis horas da tarde o menino que levara o telegrama foi encontrado. Contou imediatamente sua história. Um ho­mem vestido com roupas velhas lhe havia entregue o telegra­ma. O homem dissera que o telegrama lhe havia sido dado por uma “dona lélé” na “Casa do Parque”. Ele o havia jogado pela janela, enrolado em torno de duas meias-coroas. O homem tinha tido medo de se envolver em alguma coisa que não devia, e estava pronto para ir embora dali, de modo que deu o telegrama e o dinheiro ao menino dizendo-lhe que podia ficar com o troco.

Foi organizada uma busca para achar o homem. No meio tempo não parecia haver mais nada a fazer, e Poirot e Mr. Satterthwaite voltaram para Londres.

Era perto da meia-noite quando os dois homens chega­ram de volta à cidade. Egg tinha voltado para a casa da mãe, e os três homens discutiram a situação.

— Mon ami — disse Poirot — deixe que lhe diga. Só uma coisa poderá resolver este caso... a matéria cinzenta do cérebro. Ficar correndo para cima e para baixo da Inglaterra, esperando que uma pessoa ou outra nos diga o que queremos saber... tais métodos são amadores e absurdos. A verdade só pode ser atingida por dentro.

Sir Charles pareceu um tanto cético.

— O que deseja fazer, então?

— Quero pensar. Peço-lhes vinte e quatro horas... para pensar.

Sir Charles sacudiu a cabeça com um ligeiro sorriso.

— E pensar lhe dirá o que aquela mulher lhe teria dito se estivesse viva?

— Creio que sim.

— Não me parece muito possível. No entanto, M. Poi­rot, será como o senhor quiser. Se o senhor conseguir pe­netrar este mistério, garanto-lhe que é mais do que eu con­sigo. Eu fui derrotado, e o confesso. De qualquer modo tenho mais em que pensar.

É possível que ele desejasse que alguém lhe perguntasse sobre suas palavras, porém se assim foi ficou desapontado. Mr. Satterthwaite chegou a levantar os olhos, com curiosi­dade, porém Poirot permaneceu perdido em seus pensamentos.

— Bem, tenho de ir — disse o ator. — No momento, há apenas uma coisa sobre a qual estou preocupado... Miss Wills.

— O que tem Miss Wills?

— Ela desapareceu.

Poirot encarou-o.

— Desapareceu? Para onde foi?

— Ninguém sabe.... Fiquei pensando nas coisas depois de receber o seu telegrama. Como lhe disse antes, estava convencido de que aquela mulher sabia de alguma coisa que não nos contara. Pensei em tentar arrancá-la dela. Fui até a casa dela... eram mais ou menos nove e meia quando cheguei lá... e perguntei por ela. Parece que saiu de casa hoje de manhã... para passar o dia em Londres... foi o que disse. A família recebeu um telegrama de tarde dizendo que ela não voltaria por um dia ou dois, e que não se preocupassem.

— E eles estavam preocupados?

— Parece que sim. Aconteceu que ela não levou baga­gem de espécie alguma.

— Estranho — murmurou Poirot.

— Eu sei. Parece que... sei lá.   Sinto-me intranqüilo.

— Eu a avisei — disse Poirot. — Avisei a todos. Lembre-se do que eu disse a eles: “Falem agora”.

— Eu sei, eu sei. Crê que ela, também...

— Tenho minhas idéias — disse Poirot. — No momento prefiro não discuti-las.

— Primeiro o mordomo... Ellis... agora Miss Wills. Onde está Ellis? É incrível que a polícia nunca tenha con­seguido por a mão nele.

— É que não procuraram o corpo no lugar certo — disse Poirot.

— Quer dizer que concorda com Egg. Acha que ele está morto?

— Ellis nunca mais será visto vivo.

— Meu Deus! — explodiu Sir Charles. — É um pesa­delo... a coisa toda é completamente incompreensível.

— Não, não. Ao contrário, é inteligente e lógica.

Sir Charles encarou-o.

— Tem coragem de dizer isso?

— Claro. Compreenda, minha mente é muito organizada

— Não o compreendo.

Mr. Satterthwaite também olhou o detetive com curio­sidade

— Que espécie de mente é a minha? — perguntou Sir Charles, ligeiramente ofendido.

— A mente de um ator, Sir Charles; criativa, original, sempre atenta para os valores dramáticos. Aqui o Mr. Sat­terthwaite tem mente de espectador, ele observa os persona­gens, tem percepção para climas.   Porém a minha mente é prosaica. Eu só vejo os fatos, sem os efeitos dramáticos, sem iluminação especial.

— Quer dizer que devemos deixá-lo só para pensar.

— É o que creio. Por vinte e quatro horas.

— Então, boa sorte. Boa noite.

Enquanto saíam juntos Sir Charles disse a Mr. Satterth­waite:

— Esse sujeito tem a si mesmo em muito boa conta.

Seu tom era bastante frio.

Mr. Satterthwaite sorriu. O papel principal! Então era isso. Disse:

— O que quis dizer quando declarou que tinha mais em que pensar, Sir Charles?

No rosto de Sir Charles apareceu o olhar encabulado que Mr. Satterthwaite aprendera a conhecer muito bem de tanto freqüentar casamentos em Hanover Square.

— Bem, para falar a verdade, eu... er... bem. Egg e eu...

— Encantado em sabê-lo — disse Mr. Satterthwaite. — Meus parabéns.

— Claro que eu sou velho demais para ela.

— Ela acha que não... e só ela pode julgar.

— Muito obrigado por colocar a coisa assim, Satterth­waite.   Sabe, eu tinha metido na minha cabeça que ela gos­tava do jovem Manders.

— Não sei o que o fez pensar nisso — disse Mr. Satterth­waite inocentemente.

— Seja como for — disse Sir Charles com firmeza, — não gostava...

 

                   MISS MILRAY

Poirot não chegou a ter exatamente as vinte e quatro horas ininterruptas que havia estipulado.

Quando faltavam vinte para as onze, na manhã seguinte, Egg entrou sem se fazer anunciar. Para sua estupefação en­controu o grande detetive construindo castelos de cartas de baralho. Seu rosto expressou desprezo de tal modo intenso que Poirot sentiu-se impelido a defender-se.

— Não é, Mademoiselle, que eu tenha me tornado in­fantil na velhice. Não. Porém a construção de castelos de cartas eu sempre achei estimulante para a mente. É um velho hábito meu. Esta manhã, logo cedo, saí e comprei um bara­lho. Infelizmente cometi um engano; não é um baralho real. Mas para mim também serve.

Egg olhou mais de perto para o que estava erigido na mesa. E riu.

— O que é isso? Venderam Famílias Alegres para o senhor!

— O que está dizendo, as Famílias Alegres?

— Ora, é um jogo. Para ser jogado por crianças.

— Ah, bem, podem-se construir castelos do mesmo jeito.

Egg apanhou algumas das cartas que ainda estavam dei­tadas na mesa, e olhou-as com afeição.

— Mestre Bun,1 o filho do padeiro, sempre gostei muito dele. E aqui está Mrs. Mug,2 a mulher do leiteiro. Ora essa, acho que essa sou eu.

— Por que fazer um retrato tão cômico de si, Made­moiselle?

— Por causa do nome.

Egg riu-se da expressão atônita de Poirot, e depois co­meçou a explicar. Quando acabou, ele disse:

— Ah, então era isso que Sir Charles quis dizer ontem à noite. Eu me perguntava... Mugg... ah, sim, na gíria diz-se, não é assim, que fulano é um mug... um tolo? Natu­ralmente a senhorita haveria de mudar esse nome. Made­moiselle não gostaria de ser Lady Mugg, hein?

Egg riu-se. E disse:

— Bem, deseje-me felicidades.

— Eu lhe desejo felicidades, Mademoiselle. Não a breve felicidade da juventude, porém a felicidade que dura... a felicidade que se constrói sobre uma pedra.

— Eu direi a Charles que o senhor o chamou de pedra — disse Egg. — E agora deixe-me dizer por que vim. Eu tenho me preocupado muito com aquela história do papel que caiu da carteira de Oliver. Sabe, aquele que Miss Wills apanhou e entregou a ele. A mim parece que ou Oliver está contando uma mentira incrível quando diz que não se lembra de tê-lo posto lá, ou então o papel nunca esteve lá. Ele pode ter deixado cair qualquer outro pedacinho de papel, e aquela mulher fingiu que era o recorte sobre nicotina.

— E por que razão haveria ela de fazer isso, Made­moiselle?

— Porque queria livrar-se dele. Então empurrou o pa­pel para o Oliver.

— Quer dizer que ela é a criminosa?

É.

— E qual o seu motivo?

 

1 (N. da T.) — Bun = pãozinho.

2 (N. da T.) — Mug = caneca.

 

— Não adianta ficar me perguntando essas coisas. Eu só posso sugerir que ela seja louca. Gente inteligente mui­tas vezes é meio louca. Não consigo encontrar nenhuma razão... para falar a verdade eu não consigo encontrar mo­tivo para coisa nenhuma.

— Positivamente esse é um impasse. Eu não pediria que a senhorita adivinhasse qual poderia ser o motivo. É a mim mesmo que eu faço sem parar a mesma pergunta. Qual foi o motivo por trás da morte de Mr. Babbington? Quando eu conseguir responder essa pergunta o caso estará resolvido.

— E não acha que é só loucura? — sugeriu Egg.

— Não, Mademoiselle... não loucura no sentido em que está usando a palavra. Há uma razão.   E essa razão eu pre­ciso encontrar

— Bem, adeus — disse Egg. — Desculpe ter vindo per­turbá-lo, porém a idéia me ocorreu assim, de repente. Estou com pressa. Eu vou com Charles ao ensaio geral de O Ca­chorrinho Riu... sabe, a peça que Miss Wills escreveu para Angela Sutcliffe. Amanhã é a estréia.

— Mon Dieu! — exclamou Poirot.

— O que foi?   Aconteceu alguma coisa?

— Sim, não há dúvida de que aconteceu alguma coisa Uma idéia. Uma idéia soberba. Ora, eu tenho sido cego... cego...

Egg ficou olhando para ele. E como se percebendo sua própria excentricidade, Poirot controlou-se. Deu umas pal­madinhas no ombro de Egg.

— Pensa que eu estou louco. De modo algum. Ouvi o que disse. Vai ao teatro ver O Cachorrinho Riu, na qual Miss Sutcliffe trabalha. Pois então vá, e não preste atenção ao que eu disse.

Meio duvidosa, Egg partiu. Ficando só, Poirot cami­nhou para cima e para baixo em seu quarto, resmungando. Seus olhos brilhavam com o verde do olhar de um gato.

— Mais oui... isso explica tudo. Um motivo curioso... muito curioso... um motivo como eu jamais encontrei em toda a minha carreira, mas mesmo assim um motivo razoá­vel, e, dadas as circunstâncias, natural. Sob todos os aspectos um caso muito curioso.

Passou pela mesa na qual ainda permanecia seu castelo de cartas. Com um largo gesto de mão derrubou as car­tas todas.

— A Família Feliz, não preciso mais dela — disse ele. — O problema está resolvido. Só resta agir.

Pegou o chapéu e vestiu o sobretudo. E então desceu e o porteiro chamou-lhe um táxi. Poirot deu o endereço do apartamento de Sir Charles.

Ali chegado, pagou o táxi e entrou no edifício. O por­teiro não estava, tendo subido com o elevador. Poirot subiu pelas escadas. Quando chegou ao segundo andar, a porta do apartamento de Sir Charles abriu-se e Miss Milray saiu.

Ela ficou assustada quando viu Poirot.

— O senhor!

Poirot sorriu.

— Eu? Bem, oui, c’est moi!

Miss Milray disse:

— Receio que Sir Charles não esteja. Foi ao teatro com Miss Lytton Gore.

— Não é Sir Charles que eu procuro. É minha ben­gala, que acho que esqueci aqui na outra noite.

— Ah, sim. Bem, é só tocar a campainha, e Temple a encontrará para o senhor. Desculpe eu não poder ficar. Vou tomar um trem. Vou a Kent ver minha mãe.

— Eu compreendo. Não me deixe atrasá-la, Made­moiselle.

Ele se afastou e Miss Milray passou rapidamente, escada: abaixo. Ela levava consigo uma pequena pasta para papéis.

Porém quando ela desapareceu, Poirot pareceu esquecer-se da razão pela qual viera. Em lugar de seguir pelo cor­redor ele tornou a descer a escada. Chegou à porta da frente bem a tempo de ver Miss Milray tomar um táxi. Outro táxi vinha lentamente ao longo do meio-fio, Poirot levantou a mão e ele parou. Poirot deu ordens que seguisse o outro.

Nenhuma surpresa refletiu-se em seu rosto quando o pri­meiro táxi virou para o norte e finalmente chegou a Padding­ton Station, muito embora Paddington seja uma estação muito esquisita para se tomar um trem para Kent. Poirot foi até o guichê e pediu uma ida e volta para Loomouth. O trem devia partir em cinco minutos. Levantando a gola do sobre­tudo para proteger as orelhas do frio, Poirot instalou-se num canto de um compartimento de primeira classe.

Chegaram a Loomouth cerca das cinco horas. Já estava escurecendo. Ficando um: pouco para trás, Poirot ouviu Miss Milray ser saudada pelo amável carregador da pequena estação.

— Ora essa, Miss, não estávamos à sua espera. Sir Char­les também vem?

Miss Milray respondeu:

— Eu vim um pouco inesperadamente. Vou voltar ama­nhã de manhã. Só vim buscar umas coisas. Não, não quero táxi, obrigada. Eu subo pelo caminho da encosta.

O crepúsculo estava mais acentuado. Miss Milray an­dava rápido pelo ziguezague do caminho acima. A uma boa distância, vinha Hercule Poirot. Pisava leve como um gato. Miss Milray, ao chegar ao Topo do Mastro, tirou uma chave da bolsa e entrou pela porta do lado, deixando-a encostada apenas. Reapareceu um ou dois minutos mais tarde. Trazia nas mãos uma chave enferrujada e uma lanterna elétrica. Poirot escondeu-se atrás de um arbusto conveniente.

Miss Milray passou para os fundos da casa e caminhou por uma picada coberta de mato raso. Hercule Poirot se­guiu-a. E lá foi subindo Miss Milray até chegar repentina­mente a uma velha torre de pedra do gênero muito encontradiço naquela região da costa. Esta, em particular, estava com aspecto decrépito e dilapidado. Havia, no entanto, uma cortina por trás da janela suja, e Miss Milray meteu a chave na grande porta de madeira.

A chave girou com um gemido de protesto. A porta guinchou ao girar nas dobradiças. Miss Milray e sua lan­terna entraram.

Apressando o passo, Poirot aproximou-se. Por sua vez ele entrou, sem fazer ruído, pela porta. A luz da lanterna de Miss Milray brilhava hesitante sobre retortas de vidro, um bico de Bunsen — e vários outros equipamentos.

Miss Milray havia apanhado um pé de cabra. Estava com ele levantado sobre o equipamento de vidro, quando uma mão tomou-lhe o braço. Ela prendeu a respiração e voltou-se.

Os olhos verdes e felinos de Poirot olhavam os dela.

— Não pode fazer isso, Mademoiselle — disse ele. — Pois o que está querendo destruir é uma prova.

 

                       CORTINA FINAL

Hercule Poirot estava sentado numa enorme poltrona. Os lustres estavam apagados, só havia uma lâmpada de mesa que derramava seu brilho sobre a figura na poltrona. Parecia haver algo de simbólico no fato — só ele ficava iluminado — e os outros três, Sir Charles, Mr. Satterthwaite e Egg Lytton Gore — o público de Poirot — ficavam na escuridão.

A voz de Hercule Poirot era sonhadora. Parecia estar falando mais para o espaço do que para aqueles que o ouviam.

— Reconstituir o crime... esse é o objetivo do detetive. Para reconstituir-se um crime é preciso colocar um fato sobre o outro, do mesmo modo que se colocam as cartas quando se faz um castelo de cartas. E se os fatos não se enquadram... se a carta não se equilibra... bem... então é preciso co­meçar todo o castelo de novo, porque senão ele cairá...

“Como eu disse no outro dia, existem três tipos diver­sos de mentes: há a mente dramática... a mente do diretor, que percebe o efeito de realidade que pode ser produzido por recursos mecânicos... há também a mente que reage facil­mente à aparência dramática... e há a jovem mente român­tica ... e, finalmente, há a mente prosaica... a mente que não vê um mar azul e um jardim de mimosas, e sim um telão pintado.

“E assim chegamos, mes amis, ao assassinato de Ste­phen Babbington em agosto último. Naquela noite Sir Char­les Cartwright apresentou a teoria de que Stephen Babbington tinha sido assassinado. Não concordei com tal teoria. Eu não podia acreditar (a) que um homem como Stephen Bab­bington tivesse probabilidades de ser assassinado, e (b) nem que fosse possível ministrar veneno a uma determinada pessoa nas circunstâncias existentes naquela noite.

“Mas agora tenho de confessar que Sir Charles estava certo e eu estava errado. Estava errado porque estava enca­rando o crime de um ângulo inteiramente falso. Foi somente há vinte e quatro horas atrás que eu repentinamente percebi qual era o ângulo adequado de visão... e permitam-me que lhes diga que a partir desse ângulo o assassinato de Stephen Babbington se torna a um tempo razoável e possível.

“Porém deixemos de lado esse ponto por um momento, enquanto eu os conduzirei, passo a passo, ao longo do ca­minho que eu mesmo percorri. A morte de Stephen Bab­bington pode ser chamada o primeiro ato de nosso drama. Ato esse que terminou quando saímos do Topo do Mastro.

“O que chamo o segundo ato do drama começou em Monte Carlo, quando Mr. Satterthwaite mostrou-me a notícia no jornal relatando a morte de Sir Bartholomew. Tornou-se imediatamente óbvio que eu estivera errado, e Sir Charles certo. Tanto Stephen Babbington quanto Sir Bartholomew Strange tinham sido assassinados, e os dois assassinatos faziam parte de um mesmo crime. Mais tarde um terceiro assassi­nato completou a série... o assassinato de Mrs. de Rush­bridger. O que precisamos, portanto, é uma teoria de bom senso razoável que possa ligar essas três mortes... em outras palavras, que os três crimes foram cometidos pela mesma e única pessoa, e que traziam vantagens e benefícios a essa mesma pessoa.

“Devo agora dizer que o que me preocupava principal­mente era o fato do assassinato de Sir Bartholomew Strange ter vindo depois do de Stephen Babbington. Encarando os três assassinatos sem distinção de tempo e lugar, as proba­bilidades indicavam o assassinato de Sir Bartholomew como sendo o crime central ou principal, sendo os outros dois de natureza secundária, ou seja, oriundos das possíveis ligações das outras duas pessoas com Sir Bartholomew Strange. No entanto, como já disse antes, os crimes não aparecem como queremos. Stephen Babbington foi assassinado primeiro, e Sir Bartholomew Strange algum tempo mais tarde. Parecia, portanto, que o segundo crime tinha necessariamente de ter nascido do primeiro, e que, conseqüentemente, deveria ser o primeiro crime aquele que precisaríamos investigar para ter a pista do todo.

“Eu cheguei a inclinar-me de tal modo para a teoria da probabilidade, que considerei seriamente a idéia de ter havido um engano. Não seria possível que Sir Bartholomew tivesse sido escolhido como a primeira vítima, e que Mr. Babbington tivesse sido envenenado por engano? Fui forçado, no en­tanto, a abandonar tal idéia. Qualquer pessoa que conhe­cesse Sir Bartholomew com um mínimo de intimidade saberia que ele não adotara o hábito de tomar coquetéis.

“Uma outra sugestão: Teria Stephen Babbington sido assassinado por engano, mas em lugar de qualquer um dos outros convidados daquela primeira festa? Não consegui en­contrar qualquer prova nesse sentido. Tive então de voltar à idéia, à conclusão, de que o assassinato de Stephen Bab­bington havia sido intencional — e imediatamente deparei com um obstáculo insuperável — a aparente impossibilidade de tal coisa ter acontecido.

“Deve-se sempre iniciar qualquer investigação com a mais simples e óbvia das teorias. Dado que Stephen Bab­bington havia tomado um coquetel envenenado, quem teria tido a oportunidade de envenenar o dito coquetel? À pri­meira vista, pareceu-me que apenas duas pessoas poderiam tê-lo feito (isto é, as que tocaram os copos), o próprio Sir Charles e a copeira Temple. Porém, muito embora todos dois presumivelmente pudessem ter introduzido o veneno no copo, nenhum dos dois tinha tido qualquer oportunidade para conduzir aquele copo em particular às mãos de Mr. Bab­bington. Temple poderia tê-lo feito por uma hábil manipula­ção da bandeja, que lhe permitisse oferecer a ele o último copo (o que não era fácil, mas poderia ser feito). Sir Char­les poderia tê-lo feito tomando o copo em questão e entregando-o diretamente nas mãos do outro. Porém nenhuma dessas duas coisas acontecera. Parecia que o acaso, nada mais que la chance, havia conduzido aquele copo determinado a Stephen Babbington.

“Sir Charles e Temple haviam manipulado os coque­téis. Um dos dois tinha estado em Melfort Abbey? Não. Quem tinha tido as melhores oportunidades de interferir com o cálice de porto de Sir Bartholomew? O mordomo desa­parecido, Ellis, e sua ajudante, a copeira. Porém aqui, no entanto, não poderia ser posta de lado a possibilidade de al­gum dos convidados tê-lo feito. Era arriscado, porém pos­sível, que qualquer um dos convidados tivesse entrado na sala de jantar e colocado nicotina no cálice de porto.

“Quando eu cheguei ao Topo do Mastro os senhores já haviam elaborado uma lista dos nomes presentes, tanto ao Topo do Mastro quanto a Melfort Abbey. Devo dizer que os quatro nomes que encabeçavam a lista... o Capitão e Mrs. Dacres, Miss Sutcliffe e Miss Wills... descartei imediatamente. Era impossível que qualquer um deles tivesse sabido com antecedência que ia encontrar Stephen Babbington no jantar. O uso da nicotina como veneno demonstrava exis­tir um plano cuidadosamente preparado, não alguma coisa a ser improvisada por inspiração momentânea. Havia três outros nomes na lista — Lady Mary Lytton Gore, Miss Lytton Gore e Mr. Oliver Manders. Embora não fossem prová­veis, esses eram possíveis. Eram pessoas do lugar, e poderiam de algum modo ter motivos para desejar o desapareci­mento de Stephen Babbington, e ter escolhido a noite do jantar para por seu plano em execução.

“Por outro lado, não consegui encontrar nenhuma es­pécie de indício de que qualquer um dos três efetivamente tivesse feito o que foi feito.

“Mr. Satterthwaite, creio, raciocinou por caminhos mui­to semelhantes aos meus, e concentrou suas suspeitas em Oliver Manders. Devo dizer que a essa altura o jovem Man­ders era, sem dúvida, o suspeito mais provável. Demonstrou todos os sinais de alta tensão nervosa naquela noite no Topo do Mastro... tinha uma visão um tanto destorcida da vida em função de seus problemas particulares... sofre de forte complexo de inferioridade, o que constitui freqüente causa de crimes, estava numa idade pouco equilibrada, tinha efetivamente brigado, ou pelo menos digamos que havia demonstrado grande animosidade em relação a Mr. Babbington. E além disso havia as curiosas circunstâncias da chegada dele a Melfort Abbey. E mais tarde tivemos a história um tanto incrível da carta vinda de Sir Bartholomew Strange, e o teste­munho de Miss Wills dele ser dono de um recorte a respeito de envenenamento por nicotina. Oliver Manders, então, era claramente a pessoa que deveria ter sido colocada em pri­meiro lugar na lista dos sete suspeitos.

“Porém, a essa altura, meus amigos, fui presa de uma sensação curiosa. Parecia claro e lógico que a pessoa que cometeu os crimes tinha de ter sido alguém que esteve pre­sente em ambas as ocasiões; em outras palavras, uma pessoa daquela lista de sete... porém tive a sensação de que aquela obviedade era uma obviedade fabricada. Era o que qualquer pessoa sã e lógica teria de pensar. Senti, de fato, que não estava olhando para a realidade, e sim para um cenário muita bem pintado. Um criminoso realmente inteligente teria com­preendido que qualquer pessoa cujo nome aparecesse naquela lista seria necessariamente suspeita, e portanto ele ou ela tomaria providências para que o seu não estivesse lá.

“Em outras palavras, o assassino de Stephen Babbing­ton e de Sir Bartholomew Strange estava presente em ambas as ocasiões — porém não aparentemente.

“Quem estivera presente na primeira ocasião, porém não na segunda? Sir Charles Cartwright, Mr. Satterthwaite, Miss Milray e Mrs. Babbington.

“Poderia algum desses quatro estar presente na segunda ocasião sob alguma condição que não a sua natural? Sir Charles e Mr. Satterthwaite tinham estado no Sul da França, Miss Milray em Londres, Mrs. Babbington em Loomouth. Dos quatro, portanto, Miss Milray e Mrs. Babbington pare­ciam as mais indicadas. Porém como poderia Miss Milray estar presente em Melfort Abbey sem ser reconhecida por nenhum dos presentes? Seus traços não são facilmente disfarçáveis nem esquecíveis. Decidi que era impossível que Miss Milray pudesse ter estado em Melfort Abbey sem ser reconhecida. E a mesma coisa aplicava-se a Mrs. Babbington.

“E quanto a isso, poderia Mr. Satterthwaite ou Sir Charles ter estado em Melfort Abbey sem ser reconhecido? Mr. Satterthwaite mal e mal ficava dentro do possível; porém quando chegamos a Sir Charles Cartwright entramos numa questão muito diversa. Sir Charles é um ator, acostumado a fazer papéis diversos. Que papel poderia ele ter desem­penhado?

“E nessa altura comecei a ponderar sobre o mordomo Ellis.

“Uma pessoa muito misteriosa, esse Ellis. Uma pessoa que apareceu do nada uma quinzena antes do crime, e que desaparece com total sucesso logo depois do crime. For que razão Ellis foi tão bem sucedido? Porque Ellis não existia realmente. Ellis, novamente, parecia ser feito de tinta e pa­pelão e teatralidade... Ellis não era real.

“Porém havia nisso alguma probabilidade? Afinal, toda a criadagem de Melfort Abbey conhecia Sir Charles Cart­wright, e Sir Bartholomew era seu amigo íntimo. A criada­gem foi fácil de explicar. Fazer o papel de mordomo não era risco nenhum... ora, não fazia mal algum... tudo pode­ria ser considerado uma brincadeira. Se, por outro lado, uma quinzena se passasse sem provocar qualquer suspeita, então a situação era perfeitamente segura. E lembrei-me de que me haviam dito que o mordomo “parecia um cavalheiro”, e tinha estado “em boas casas”, e sabia de vários escândalos interessantes. Tudo isso era fácil de fazer. Porém uma de­claração muito significativa havia sido feita pela copeira Alice. Disse ela que “ele organizava o serviço de um modo diferente de qualquer outro mordomo que eu já vi”. Quando esse comentário foi feito, conformou-se para mim a minha teoria

“Porém Sir Bartholomew era um caso diferente. É di­fícil supor que seu amigo o pudesse enganar. Ele deve ter tido conhecimento da trama. Havia alguma prova disso? Sim. O perspicaz Mr. Satterthwaite acertou na mira logo a princípio... notando o zombeteiro comentário de Sir Bartho­lomew (totalmente incaracterístico de seu modo de tratar os empregados): — “Você é um mordomo de primeira, não é, Ellis?” Comentário perfeitamente compreensível se o mor­domo fosse Sir Charles Cartwright e Sir Bartholomew tivesse conhecimento da mascarada.

“Pois sem dúvida era assim que Sir Bartholomew en­carava o assunto. Assumir a personalidade de Ellis era uma brincadeira, talvez até mesmo uma aposta, cujo ponto máximo seria enganar os hóspedes... donde o comentário de Sir Bar­tholomew a respeito de uma surpresa, bem como seu bom humor. Notem, também, que ainda haveria tempo de desis­tir. Se algum dos hóspedes reconhecesse Charles Cartwright naquela primeira noite, durante o jantar, nada de irrevogável tinha ainda acontecido. Tudo poderia ter sido explicado como uma brincadeira. Porém ninguém pareceu notar o mordomo recurvado, de meia-idade, com seus olhos escurecidos com beladona, suas costeletas longas, sua marca de nascença pin­tada no pulso. Este foi um sutilíssimo toque de identifica­ção... que não funcionou, graças à falta de espírito de obser­vação da humanidade! A marca de nascença deveria ter sido grande destaque na descrição de Ellis... e durante toda aquela quinzena ninguém a notou! A única pessoa que o viu foi a observadora Miss Wills, a quem nos referiremos em breve.

“O que aconteceu depois? Sir Bartholomew morreu. Desta vez não foi possível atribuir a morte a causas naturais. Veio a polícia. Interrogaram Ellis e os outros. Mais tarde, naquela mesma noite, Ellis partiu pela passagem secreta, re­tomou sua própria personalidade, e dois dias mais tarde estava passeando nos jardins de Monte Carlo, pronto a mostrar-se chocado com a novidade da morte de seu amigo.

“Tudo isso, notem, não passava de teoria. Faltavam-me provas, porém tudo o que aconteceu fortalecia a teoria. Meu castelo de cartas estava realmente construído com soli­dez. E quanto às cartas de chantagem encontradas no quarto de Ellis? Pois fora o próprio Sir Charles quem as encontrara!

“E quanto à suposta carta de Sir Bartholomew Strange pedindo ao jovem Manders que simulasse um acidente? Bem, o que seria mais fácil do que Sir Charles escrevê-la com a caligrafia de Sir Bartholomew? Se Manders não tivesse ele mesmo destruído a carta, Sir Charles, no papel de Ellis, po­deria muito bem fazê-lo quando arrumasse as coisas do jovem cavalheiro. Do mesmo modo o recorte de jornal poderia ter sido facilmente introduzido na carteira de Oliver Manders.

“E agora chegamos à terceira vítima... Mrs. de Rush­bridger. Qual foi a primeira vez que ouvimos falar de Mrs. de Rushbridger? Imediatamente após o comentário desconcer­tante e brincalhão a respeito de Ellis ser o mordomo per­feito... e que fora considerado muito pouco característico de Sir Bartholomew. A qualquer preço seria necessário afas­tar a atenção da atitude de Sir Bartholomew para com seu mordomo. Sir Charles imediatamente perguntou qual fora o recado que o mordomo dera. E era sobre essa senhora... essa cliente do doutor. E imediatamente Sir Charles joga toda a sua personalidade no sentido de dirigir a atenção para a mulher desconhecida, esquecendo o mordomo. Vai ao sana­tório e interroga a Enfermeira-chefe. Enfim, explora até onde pode Mrs. de Rushbridger, como uma pista falsa.

“Devemos agora examinar o papel desempenhado por Miss Wills no drama. Miss Wills tem uma personalidade curiosa. É uma dessas pessoas que não têm um mínimo de capacidade para causar impressão no ambiente em que estão. Não é nem bonita, nem espirituosa, nem brilhante, e nem ao menos particularmente simpática. É neutra. Porém é extremamente observadora e extremamente inteligente. E vin­ga-se do mundo com sua pena. É dona da grande arte de ser capaz de reproduzir personalidades no papel. Não sei se havia alguma coisa no mordomo que lhe causasse particular impressão, porém o fato é que foi. a única pessoa à mesa que o notou. Na manhã seguinte ao crime sua curiosidade insaciável levou-a a meter o bedelho em tudo, como disse a arrumadeira. Entrou no quarto dos Dacres, entrou pela porta de serviço na ala dos empregados, levada, creio, apenas por seu faro natural para descobrir coisas.

“Foi a única pessoa a causar alguma preocupação a Sir Charles, Foi por isso que estava tão ansioso a ser ele quem a interrogava. A entrevista deixou-o mais tranqüili­zado, e ficou satisfeitíssimo por ela ter notado a marca de nascença. Porém aí deu-se a catástrofe. Não creio que até aquele momento Miss Wills tivesse ligado e mordomo Ellis com Sir Charles Cartwright. Creio que só vagamente lhe tivesse ocorrido que havia alguma semelhança entre o mor­domo Ellis e alguém. Porém era muito observadora. Quando o jantar foi servido ela notou automaticamente... não o rosto... mas as mãos que seguravam as travessas.

“Não lhe ocorreu que Ellis fosse Sir Charles. Porém quando Sir Charles estava conversando com ela, repentina­mente ocorreu-lhe que Sir Charles era Ellis! E por isso pediu-lhe que fingisse servir-lhe as verduras. Porém o que queria notar não era se a marca de nascença era no pulso direito ou esquerdo. Queria um pretexto para observar suas mãos... mãos na mesma atitude em que vira as de Ellis, o mordomo.

“E com isso a verdade saltou-lhe aos olhos. Porém ela é uma mulher muito peculiar. Sentia prazer em pura e simplesmente saber das coisas, além de não ter a menor certeza de que Sir Charles matara seu amigo. Ele se havia fantasiado de mordomo, isso sim... porém isso não o trans­formava necessariamente num assassino. Há muita gente ino­cente que se cala porque se falar vai ficar numa posição constrangedora.

“E então Miss Wills guardou o que sabia para si... e divertiu-se com isso. Porém Sir Charles estava preocupado. Não gostara da expressão de malícia satisfeita que vira em seu rosto ao deixar a sala. Ela sabia de alguma coisa. De quê? Será que isso o afetava? Não podia ter certeza. Porém intuía que era alguma coisa ligada ao mordomo Ellis. Pri­meiro Mr. Satterthwaite, e agora Miss Wills. Era preciso afastar a atenção desse ponto vital. Era preciso conduzi-la para qualquer outra questão. E ele concebeu um plano... simples, audacioso, e, segundo lhe pareceu, capaz de com­plicar as coisas de modo definitivo.

“No dia da reunião que organizei imagino que Sir Char­les se tenha levantado muito cedo, ido a Yorkshire, e, dis­farçado com roupas velhas, dado o telegrama a um menino para que o mandasse. E depois voltou para a cidade, a fim de representar o papel que eu lhe preparara em meu pequeno drama. Ele fez mais uma coisa. Despachou pelo correio uma caixa de bombons para uma mulher que nunca tinha visto, e a respeito de quem não sabia absolutamente nada...

“Já sabem o que aconteceu naquela noite. Pela intran­qüilidade de Sir Charles tive bastante certeza de que Miss Wills tinha certas suspeitas. Quando Sir Charles fez sua “cena de morte” observei o rosto de Miss Wills. Vi a expres­são de surpresa que apareceu nele. E então soube que Miss Wills definitivamente suspeitava de que Sir Charles fosse o assassino. Quando ele aparentou morrer envenenado como os outros dois ela julgou que suas deduções estavam erradas.

“Mas se Miss Wills suspeitava de Sir Charles, então ela corria grande perigo. Um homem que já matou duas vezes mata de novo. Fiz um aviso solene. Mais tarde, na­quela mesma noite, comuniquei-me com Miss Wills por tele­fone, e a conselho meu ela saiu repentinamente de casa no dia seguinte. Desde então ela está hospedada aqui neste hotel. O acerto de minhas providências foi provado pelo fato de Sir Charles ter ido a Tooting na manhã seguinte, depois de ter voltado de Gilling. Chegou tarde. O pássaro havia ba­tido as asas.

“Nesse meio tempo, do ponto de vista dele, o plano tinha funcionado bem. Mrs. de Rushbridger tinha algo de importante a nos dizer. Mrs. de Rushbridger morreu antes de poder falar. Que coisa dramática! Exatamente como nas histórias de detetive, como em peças, como em filmes! Ainda uma vez papelão, luzes, e o telão pintado.

“Porém eu, Hercule Poirot, não me deixei enganar. Mr. Satterthwaite me disse que ela tinha sido morta para não poder falar. Concordei. Ele continuou, dizendo que ela foi morta antes de poder dizer-nos o que sabia. Eu respondi: “Ou o que NÃO sabia”. Creio que ele ficou atônito. Porém deveria ter percebido a verdade. Mrs. de Rushbridger foi morta porque, de fato, não podia nos contar nada. Porque não tinha nenhuma ligação com o crime. Ela só podia ser uma boa pista falsa para Sir Charles se estivesse... morta. E assim morreu Mrs. de Rushbridger, uma pobre desconhe­cida inocente...

“No entanto, naquele aparente triunfo Sir Charles co­meteu um erro colossal... infantil! O telegrama foi man­dado para mim, Hercule Poirot, no Hotel Ritz. Porém Mrs. de Rushbridger nunca tinha ouvido falar de minha ligação com o caso! Ninguém naquela região sabia dela. Foi um erro surpreendentemente infantil.

“Eh bien, então eu já havia atingido um certo estágio. Conhecia a identidade do assassino. Porém não sabia o mo­tivo para o primeiro crime.

“Refleti.

“E novamente, e com maior clareza do que nunca, vi a morte de Sir Bartholomew como o assassinato principal e significativo. Que razão poderia ter Sir Charles para matar seu amigo? Ser-me-ia possível imaginar um motivo? Acre­ditei que sim.”

Houve um suspiro profundo. Sir Charles Cartwright le­vantou-se e caminhou até a lareira. E lá ficou, de pé, com uma mão no quadril, os olhos baixados para Poirot. Sua ati­tude (como nos poderia dizer Mr. Satterthwaite) era a de Lord Eaglemount ao olhar desdenhosamente para o advogado que conseguira que fosse aceita contra ele uma acusação de fraude. Irradiava nobreza e nojo. Era o aristocrata olhan­do, do alto, o ignóbil canaille.

— O senhor tem uma imaginação extraordinária, M. Poi­rot — disse ele. — Dificilmente vale a pena dizer que não há uma só palavra de verdade em toda essa história. Como teve a desfaçatez e a impertinência de concatenar essa absur­da baboseira de mentiras, não consigo saber. Porém conti­nue, estou interessado. Qual foi o meu motivo para matar um homem que conheci desde a infância?

Hercule Poirot, o pequeno burguês, levantou os olhos para o aristocrata. Falou rapidamente, porém com firmeza,

— Sir Charles, nós temos um provérbio que diz “Cher­chez la femme”. E foi exatamente onde encontrei meu mo­tivo. Eu o havia visto com Mademoiselle Lytton Gore. Era óbvio que a amava... que a amava com aquela terrível paixão avassaladora que vem aos homens de meia-idade, e que nor­malmente é provocada por uma moça jovem e inocente.

“O senhor a amava. Ela, percebi logo, sentia pelo senhor a adoração que se reserva para os heróis. Bastaria uma pa­lavra sua para que ela caísse em seus braços. Porém o se­nhor não dizia tal palavra. Por quê?

“O senhor fingiu para o seu amigo, Mr. Satterthwaite, que era o amante cego que não consegue reconhecer a cor­respondente paixão da amada. Fingiu pensar que Miss Lytton Gore estava apaixonada por Oliver Manders. Porém eu digo, Sir Charles, que o senhor é um homem do mundo. Um ho­mem de grande experiência com as mulheres. Não poderia se ter enganado. O senhor sabia muito bem que Miss Lytton Gore gostava do senhor. Então, por que não se casava com ela? Era o que queria.

“Deveria haver algum obstáculo. Que obstáculo poderia ser esse? O único obstáculo possível seria o de que já tivesse uma esposa. Porém ninguém jamais falou do senhor como um homem casado. Sempre passou por solteiro. O casa­mento, então, deve ter tido lugar quando o senhor era muito jovem... antes de se tornar conhecido como um jovem ator promissor.

“E que teria acontecido à sua esposa? Se ainda conti­nuava viva, por que razão ninguém sabia nada a respeito dela? Se estivessem vivendo separados, sempre haveria o re­curso de um divórcio. Se sua esposa fosse católica, ou não acreditasse em divórcio, mesmo assim alguém saberia que existia, muito embora vivendo separados.

“Porém há duas tragédias para as quais a lei não oferece alívio. A mulher com quem se casou poderia estar cumprindo uma sentença de prisão perpétua, ou poderia estar internada num asilo de loucos. Em nenhum dos dois casos ser-lhe-ia possível obter um divórcio, e se tudo tivesse acontecido en­quanto ainda era muito moço, ninguém saberia nada a respeito.

“Se ninguém soubesse, poderia casar-se com Miss Lytton Gore sem dizer-lhe a verdade. Mas suponhamos que uma pessoa soubesse... um amigo que o conhecia de toda a vida? Sir Bartholomew Strange era um médico honrado e correto. Poderia ter pelo senhor a mais profunda compaixão, poderia aceitar uma ligação qualquer, ou uma vida irregular, porém não ficaria calado, deixando-o contrair um matrimônio bígamo com uma jovem inocente.

“Antes que se pudesse casar com Miss Lytton Gore, Sir Bartholomew Strange teria de ser removido...”

Sir Charles riu-se.

— E o velho Babbington? Ele também sabia de tudo?

— A princípio pensei que sim. Mas logo verifiquei que não havia nada que comprovasse tal teoria. Além do que, meu empecilho inicial permanecia. Mesmo se fosse o senhor quem tivesse posto a nicotina no copo, não havia meios de fazer que ela fosse servida a uma determinada pessoa.

“Esse era o meu problema. E repentinamente uma pala­vra dita ao acaso por Miss Lytton Gore elucidou tudo.

“O veneno não tinha de ser dado especialmente a Stephen Babbington. Ele podia ser dado a qualquer dos presentes, com três exceções. As exceções eram Miss Lytton Gore, a quem o senhor teve o cuidado de servir um copo sem perigo, o senhor mesmo, e Sir Bartholomew Strange que, como o senhor bem sabia, nunca tomava coquetéis.”

Mr. Satterthwaite exclamou:

— Mas isso é uma tolice! Que significação pode ter isso? Nenhuma!

Poirot voltou-se para ele. Havia triunfo em sua voz.

— Pode ter, sim. Uma significação estranha... muito estranha. Foi a única vez na minha vida em que encontrei um tal motivo para um assassinato. O assassinato de Stephen Babbington não foi nada mais nada menos de que um ensaio geral.

O quê?

— Sim, Sir Charles era um ator. E obedeceu seus ins­tintos de ator. Ele testou seu assassinato antes de cometê-lo Nenhuma suspeita poderia recair sobre ele. Ele não poderia ser beneficiado pela morte de nenhuma dessas pessoas, e além do mais, como todos já viram, nunca seria possível provar o desejo de se assassinar uma determinada pessoa. E, meus amigos, o ensaio geral correu muito bem. Mr. Babbington morre, e nem sequer houve suspeita de que houvesse crime. A substituição do copo foi realizada sem qualquer dificuldade. Na verdade, ele pode ter a certeza de que, quando o espetá­culo em si for realizado, “a noite será um sucesso”.

“Como sabem, os acontecimentos tomaram rumo ligeira-mente diverso. Da segunda vez havia um médico presente, que imediatamente tece suspeitas de envenenamento. E dadas as circunstâncias era do interesse de Sir Charles enfatizar a morte de Babbington. A morte de Sir Bartholomew precisava ser presumivelmente resultado da anterior. Era preciso foca­lizar a atenção no motivo do assassinato de Babbington, e não em qualquer possível motivo para o desaparecimento de Sir Bartholomew.

“Porém havia uma coisa que Sir Charles não previu... o controle eficiente de Miss Milray. Ela sabia que seu em­pregador divertia-se com algumas experiências químicas na torre do jardim. Miss Milray pagava as contas das soluções para o tratamento de rosas, e verificou que uma quantidade considerável havia desaparecido inexplicavelmente. Quando soube que Mr. Babbington havia morrido de envenenamento por nicotina, seu cérebro agudo chegou rapidamente à conclu­são de que Sir Charles havia extraído o alcalóide puro da so­lução para as rosas.

“E Miss Milray não sabia o que fazer, pois conhecera Mr. Babbington quando era menina, e estava apaixonada, profunda e devotadamente como só uma mulher feia o pode estar, por seu fascinante empregador.

“Afinal ela resolveu destruir o equipamento de Sir Char­les. O próprio Sir Charles tinha tido tamanha certeza de seu sucesso que jamais julgou tal medida necessária. Ela foi à Cornualha, e eu a segui.”

Novamente Sir Charles riu-se. Mais do que nunca pare­cia um grande senhor enojado por um rato.

— E a única prova que tem é um pouco de equipamento químico? — perguntou com desdém.

— Não — disse Poirot. — Há o seu passaporte mostran­do as datas em que voltou à Inglaterra e novamente a deixou. E há o fato de existir no Asilo de Loucos do Condado de Harverton uma mulher, Gladys Mary Mugg, mulher de Char­les Mugg.

Até então Egg tinha ficado sentada e em silêncio — uma figura congelada. Porém agora ela se moveu. Um pequeno grito — quase um gemido — partiu dela.

Sir Charles voltou-se, soberbo.

— Egg, você não acredita numa só palavra dessa histó­ria absurda, acredita?

Ele riu-se. Suas mãos estavam estendidas em direção dela.

Egg avançou, vagarosamente, como se hipnotizada. Seus olhos, implorando, torturados, voltaram-se para os do seu amado. E então, logo antes de chegar até ele, ela hesitou, os olhos baixaram, voltaram-se para aqui e para ali, como se buscando apoio.

E então, com um grito, ela caiu de joelhos junto a Poirot.

— Isso é verdade? É verdade?

Ele pousou ambas as mãos nos ombros dela, com toque firme, porém bondoso.

— É verdade, Mademoiselle,

Naquele momento o único som era o dos soluços de Egg. Sir Charles parecia ter envelhecido repentinamente. Ti­nha agora o rosto de um velho, de um sátiro lúbrico.

— Vá para o inferno — disse ele.

E nunca, em toda a sua carreira de ator, palavras haviam saído de seus lábios com tão completa e forte malevolência.

Depois ele deu meia volta e saiu da sala.

Mr. Satterthwaite ia saltando de sua cadeira, porém Poi­rot sacudiu a cabeça, a mão ainda acariciando a moça que soluçava.

— Ele vai fugir — disse Mr. Satterthwaite.

Poirot sacudiu a cabeça.

— Não, ele escolherá sua saída. Terá de ser lenta, aos olhos do público, ou rápida, como quem sai do palco.

A porta abriu-se e alguém entrou. Era Oliver Manders. Sua habitual expressão de pouco caso tinha desaparecido. Pa­recia pálido e infeliz.

Poirot inclinou-se para a moça.

— Veja, Mademoiselle — disse ele com suavidade. — Aqui está um amigo seu que vai levá-la para casa.

Egg pôs-se de pé. Olhou incerta para Oliver, depois deu um passo trôpego em direção a ele.

— Oliver... Leve-me para Mamãe. Oh, leve-me para Mamãe.

Ele passou o braço em volta dela e conduziu-a para a porta.

— Sim, eu a levarei. Venha.

As pernas de Egg tremiam tanto que ela mal podia an­dar. Entre eles, Oliver e Mr. Satterthwaite guiavam-lhe os passos. Junto à porta ela se controlou e levantou a cabeça.

— Eu estou bem.

Poirot fez um gesto, e Oliver Manders tornou a entrar na sala.

— Seja muito bom para com ela — disse Poirot.

— Serei, meu senhor. Ela é a única coisa que prezo nes­te mundo... o senhor sabe disso. Amá-la tornou-me amargo e cínico. Porém agora serei diferente. Estou disposto a espe­rar. E algum dia, talvez...

— Creio que sim — disse Poirot. — Creio que ela esta­va começando a amá-lo quando ele apareceu e a ofuscou. O culto do herói pode ser uma coisa muito perigosa para os jo­vens. Algum dia Egg irá se apaixonar por um amigo, e en­tão ela construirá sua felicidade sobre uma pedra.

Ele ficou olhando bondosamente para o rapaz que saía.

Dentro em pouco Mr. Satterthwaite voltou.

— M. Poirot — disse ele. — O senhor foi maravilhoso... absolutamente maravilhoso.

Poirot adotou sua atitude de modéstia.

— Que nada... que nada. Uma tragédia em três atos... e agora já caiu o pano.

— Se me desculpa... — disse Mr. Satterthwaite.

— Sim, há algum ponto que ainda deseja que lhe ex­plique?

— Há uma coisa que desejo saber.

— Pois então pergunte.

— Por que razão o senhor às vezes fala inglês muito bem, e em outras não?

Poirot riu-se.

— Ah, vou explicar. É verdade que sei falar o inglês correto, e idiomático. Porém, meu amigo, falar inglês de pé quebrado tem enormes vantagens. Leva as pessoas a fazer pouco de quem fala. Dizem consigo mesmo... ora, um es­trangeiro... que nem sequer sabe falar inglês direito. Não é minha política apavorar as pessoas... ao invés, eu convido-as a um delicado ridículo. E além disso gabo-me muito! E os ingleses têm tendência para dizer: “Um homem que pensa tão bem de si mesmo não pode ser grande coisa.” Esse é o ponto de vista inglês. Que não tem nada de verdadeiro. E assim, como vê, eu faço com que as pessoas não fiquem em guarda. Além do que — acrescentou — tornou-se um hábito.

— Deus do céu — disse Mr. Satterthwaite — mas isso é ardiloso como uma serpente.

E ficou em silêncio por alguns momentos.

— Receio que não tenha brilhado muito neste caso — disse ele, um tanto embaraçado.

— Pelo contrário. Compreendeu a importância daquele ponto... o do comentário de Sir Bartholomew ao mor­domo... e compreendeu o quanto Miss Wills era astu­tamente observadora. Na realidade, o senhor poderia ter re­solvido todo o problema, se não fosse por sua reação de pla­téia ante o efeito dramático.

Mr. Satterthwaite ficou mais alegre.

Repentinamente um pensamento ocorreu-lhe. A boca abriu-se.

— Que horror — exclamou ele. — Acabo de compreen­der uma coisa. Aquele crápula, com seu coquetel envenena­do! Qualquer pessoa poderia tê-lo tomado. Poderia ter sido eu.

— Houve uma possibilidade ainda mais terrível que o se­nhor não levou em consideração — disse Poirot.

— O quê?

— Poderia ter sido EU — disse Hercule Poirot.

 

                                                                                Agatha Christie  

 

                      

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