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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TRAQUINAS / Condessa de Ségur
TRAQUINAS / Condessa de Ségur

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

T R A Q U I N A S

 

               UM GRACEJO DE MAU GOSTO

Muitas crianças brincavam no jardim do Sr. Dupuis; estava um dia lindo, mas demasiado quente.

Jaime, Luís, Nicolau e Júlio descansavam num banco.

Jaime enxugava a testa com um lenço; tinha cavado, regado, amanhado e descansava, a conversar com os amigos.

JAIME - Que calor está hoje! É como se estivéssemos no Verão.

LUÍS - Pois bem perto estamos dele.

NICOLAU - Nada disso; ainda agora começou a Primavera.

LUÍS - E a Primavera não está ligada ao Verão?

NICOLAU - Sim, mas também está ligada ao Inverno.

JAIME - Não é a mesma coisa; o Inverno fica para trás e o Verão vem à frente; a prova é que amanhã é o 1.? de Abril.

JÚLIO -O 1.? de Abril amanhã! Nem me lembrava. É o dia dos enganos, das petas. Tentemos enganar alguém.

JAIME - Não contes comigo. Não gosto de enganar.

JÚLIO - És parvo! Não é coisa que faça mal, é apenas para rir.

NICOLAU - Sou da mesma opinião! Muitas vezes preguei partidas no 1.? de Abril, muito ingénuas e inocentes.

LUÍS - Que partidas pregaste?

NICOLAU - Certo dia escrevi a um tal Sr. Poucque, amigo de minha tia Dupont, a dizer-lhe que ela o esperava para jantar com um missionário que fora martirizado na China e desejava muito conhecê-lo. Precisamente nesse dia 1.? de Abril, minha tia jantava em nossa casa. O tal sujeito chegou, vestido a rigor; alugara um carro, porque estava a chover. O porteiro disse-lhe que minha tia havia saído; quis subir para a esperar; o porteiro garantiu-lhe que só voltaria mais tarde; o Sr. Poucque zangou-se e o porteiro também; discutiram ambos durante muito tempo. O sujeito subiu e não encontrou vivalma; chovia a cântaros; não arranjou meio de transporte para regressar a casa e viu-se obrigado a voltar a pé. Entrou em casa encharcadíssimo e fulo; o criado saíra; não tinha jantar e só havia em casa pão e bolachas, e no dia seguinte escreveu a minha tia uma carta furiosa, que esta não percebeu. Ela pediu-lhe que fosse visitá-la; então, ele mostrou-lhe a carta de convite; minha tia adivinhou que fora uma partida que lhe haviam pregado; procuraram e não encontraram o culpado (porque eu fizera copiar a carta por um dos meus condiscípulos, para não se reconhecer a letra).

"Minha tía contou-nos a história; fiquei radiante por ter sido tão bem sucedido, e é esta a razão por que este ano queria também enganar alguém."

LUÍS - E chamas a isso uma partida inocente? Foi prejudicial para esse pobre Sr. Poucque, que não jantou, apanhou uma grande molha e passou uma noite muito desagradável.

JAIME - Sem levar em conta que é pobre e gastou dinheiro no carro.

NICOLAU - Ora, ora... Se estivéssemos a pensar nessas coisas, nunca nos divertiríamos!

LUÍS - Eu não acho graça alguma em causar desgostos seja a quem for.

NICOLAU - És palerma! Não? é grande desgosto ser-se enganado.

JAIME - Não, mas é um aborrecimento, fica-se sempre vexado ao saber que nos ludibriaram.

JÚLIO - Então, não estão dispostos a ajudar-me a pregar uma pequena partida à criada de teus primos Pedro e Henrique? Sabes como ela é aborrecida! Leva sempre teus primos quando estamos mais entusiasmados nas nossas brincadeiras.

JAIME - Não é para os desgostar; precisam de voltar para casa a fim de estudarem as lições.

JÚLIO - Ora, vamos! Queres ou não ser dos nossos no dia 1 de Abril?

JAIME - Não, não quero.

LUÍS - E eu também não.

JÚLIO - Vocês não passam de dois patetas. Eu e Nicolau vamo-nos divertir imenso e vocês ficarão bastante arrependidos por haverem recusado.

JAIME - Divertir-nos-emos a nosso modo e melhor do que vocês, porque faremos o possível para desmascarar as vossas partidas.

NICOLAU - É o que havemos de ver, cavalheiro.

Quando se me encasqueta na cabeça qualquer coisa, não é fácil impedir-me de fazer o que pensei.

JAIME - Tanto pior para ti se queres proceder mal.

Proferindo tais palavras, Jaime e Luís levantaram-se e recomeçaram os seus trabalhos de jardinagem.

Nicolau e Júlio tornaram a envergar os fatos e foram-se embora para combinar a partida de que tinham falado.

NO DIA PRIMEIRO DE ABRIL

PEDRO, oito anos - HENRIQUE, seis. A AMA de PEDRO, que ficara como aia das crianças.

(O quarto de dormir dos pequenos. PEDRO levanta-se, HENRIQUE espreguiça-se e fica parado junto da bacia do lavatório.)

A AMA - Vamos, meninos, aviem-se, pois já não é nada cedo.

HENRIQUE, bocejando - Ainda estou com sono. É tão aborrecido a gente lavar-se!

PEDRO, rindo - Todos os dias dizes a mesma coisa.

HENRIQUE, com vivacidade - Se digo a mesma coisa, é porque todos os dias o caso se repete; é preciso levantarmo-nos, lavarmo-nos, vestirmo-nos. Achas isto divertido?

PEDRO - Dir-se-ia que és só tu! Pois eu faço isso todos os dias e não resmungo.

HENRIQUE - Que admira, se és o mais velho! Assim, não é caso para espantos.

PEDRO: Não é por ser o mais velho; sou razoável,

enquanto tu não o és.

HENRIQUE - És razoável porque o paizinho diz que estás na idade da razão; de contrário, não o serias.

Pedro ri, a ama imita-o, Henrique zanga-se; os seus grandes olhos começam a brilhar; as faces coram, fita Pedro e a ama com o aspecto de um leão colérico; a ama já não ri e evita a tempestade, dizendo:

- Ora, vamos lá! Não percamos tempo. Miss Albina está a chegar para dar as lições e nenhum de vocês está pronto. Depressa, Pedro; depressa, Henriquinho; acabem de se lavar e vestir.

Truz, truz, batem à porta.

A AMA - Quem é? Entre.

UM CRIADO - É o almoço dos meninos e uma carta para si.

A AMA - Está bem; dê cá. Enquanto os pequenos almoçam, leio eu a carta.

A ama ajuda os petizes a vestirem-se; deita o chocolate nas chávenas, coloca-as em cima da mesa, põe uma cadeira diante de cada chávena. As crianças rezam e sentâm-se à mesa.

Depois de haver arrumado o quarto, a ama abre a carta, lê algumas linhas, dá um grito e cai numa poltrona. Os pequenos correm para ela e perguntam-lhe, ansiosos, o que tem. A ama soluça e não pode responder. Henrique precipita-se para a ama, a chorar, e aperta-a nos braços. Pedro corre para o quarto da mãe, aonde chega, pálido e sufocado.

A MÃE - Pedro, meu querido filho, que tens?

PEDRO - Mãezinha, mãezinha, venha depressa acudir à nossa ama, a quem trouxeram uma carta, que leu e, em seguida, caiu na poltrona a soluçar. Não nos diz o que tem!

A MÃE - Decerto recebeu alguma notícia má.

PEDRO - Foi talvez um dos filhos que lhe morreu.

A MÃE - Ou o marido. Vamos vê-la e tentemos confortá-la.

PEDRO - Vou buscar a água de flor de laranja para ela beber alguns goles.

A MÃE - Que pode fazer a flor de laranja a um desgosto? A melhor consolação será demonstrar-lhe a nossa amizade.

PEDRO - É verdade, mãe; contudo, Henrique beija-a e isso não a consola.

A MÃE - A princípio não, mas, mais tarde, será grande lenitivo à sua dor.

Chegaram junto da ama que continua a soluçar, beijando Henrique, que soluça tanto como ela.

A MÃE - Recebeste alguma notícia triste? Trata-se de teu marido ou de teu filho?

A AMA, soluçando - Não... minha senhora... É... de... meu... pai.

A MÃE - Teu pai está doente?

A AMA - Não... minha... senhora... É minha mãe.

PEDRO, comovido - Tens a mãe doente?

A AMA - Morreu, meu menino! Morreu no espaço de duas horas, de uma apoplexia.

As duas crianças soltam um grito e choram ao mesmo tempo, enquanto a mãe tenta confortar a ama e os pequenos.

A MÃE - Minha pobre ama, deves agradecer a Deus haver-te dado o prazer de teres passado com ela uns quinze dias recentemente e tê-la visto confessar-se e comungar no domingo anterior à tua partida. Piedosa como ela era, deves estar certa da sua felicidade, de que se encontra junto de Deus, da Virgem e dos anjos, e agradece a Deus havê-la chamado a si.

A AMA - É verdade, minha senhora, mas, mesmo assim, é muito triste para mim não a tornar a ver.

A MÃE - Neste mundo, não, mas no outro, sempre, para nunca mais a deixares.

A AMA - Seja como for, é muito triste. E meus pobres filhos que tanto gostavam dela!

A MÃE - Vão ficar com o avô e a tia.

HENRIQUE, soluçando - Que pena não ter sido o sogro da ama que tivesse morrido! Não o choraria tanto.

A ama não pôde deixar de sorrir, a despeito do seu pesar; beijou ternamente o bom Henriquinho.

HENRIQUE - Consola-te, minha querida ama, pois te darei todas as minhas moedas de prata.

A AMA - Não é isso que me consolará, meu querido menino.

HENRIQUE - E depois comprar-te-ei um belo doce que tanto aprecias... e posso dar-te... e dar-te-ei... o quê? - acrescentou, olhando à sua volta com ar angustiado. - Nada tenho... senão brinquedos.

A MÃE - Dá-lhe o teu coração, meu Henrique; é o que poderás dar-lhe de mais agradável.

- O meu coração? - volveu Henrique, desabotoando o casaco e abrindo a camisa. - Como? Precisava de uma faca.

- Meu querido filho - replicou a mãe a sorrir e tomando-o nos braços -, não é o coração que bate no peito a que me refiro, mas a ternura do teu coração, o teu afecto.

A ama beijou também, a sorrir, o bom Henriquinho, que se dispunha a deixar que lhe tirassem o coração para consolar a ama.

Entretanto, Pedro reflectira no modo de suavizar um desgosto que profundamente o afligia, e encontrara-o.

- Ama - disse ele - tenho cinco francos; com eles mandarei dizer cinco missas por alma da tua pobre mãe e iremos rezar por ela, a fim de que seja feliz junto de Deus.

A AMA - Obrigada, meu amiguinho. Aceito-lhe o oferecimento, se a senhora mo consentir, porque o luto vai levar-me todas as economias e...

A MÃE - Não te inquietes com o luto; pago-to eu. Guarda esse dinheiro para os teus filhos.

A AMA - A senhora é muito bondosa, e isso será um grande alívio para mim.

A mamã ainda permaneceu algum tempo junto da ama, que continuou a chorar, mas mais calma. Depois, recolheu aos seus aposentos; Pedro acompanhou-a. Henrique não quis abandonar a ama, a quem tentava confortar por todos os meios possíveis. Repetia muitas vezes:

- Que pena não ter sido o teu sogro que tivesse morrido! Se eu fosse Deus, teria feito morrer o teu sogro e faria viver tua mãe até ao dia em que todos morrêssemos juntos. Não seria bom assim, ama?

A ama sorria por entre as lágrimas, abraçava Henrique e continuava a chorar; o pobre pequeno afligia-se e não sabia que imaginar para a distrair. A mãe veio buscá-lo a fim de deixar sair a ama para tratar do luto. O petíz foi sentar-se no quarto da mãe e viu-a estar a arrumar os objectos. Quando quis tornar a pôr no seu lugar as roupas que tirara dos armários e da cómoda, em vão procurou um xale e um vestido pretos, de lã.

- É extraordinário! - exclamou ela. - Não os encontro! Acabo de colocá-los no divã, com outras coisas.

HENRIQUE - Que procuras, mãezinha?

A MÃE - Um xale e um vestido pretos; não há maneira de os achar.

HENRIQUE - Fui eu quem os levou, mãezinha.

A MÃE - Tu? Onde os puseste? Porque os levaste?

HENRIQUE - Levei-os para o quarto da ama, mãezinha. Nunca os usavas; então pensei que não precisavas deles e que dariam grande prazer à minha pobre ama.

A MÃE - Era precisamente para ela que os procurava, meu Henriquinho; fizeste bem em querer consolá-la com as tuas dádivas, mas não devias levá-los daqui sem minha licença.

HENRIQUE - Vou buscá-los e trazer-tos, mãezinha; simplesmente ficaria bem contente em dá-los à ama, pois notei que quando se lhe dá alguma coisa fica muito satisfeita.

A MÃE - Eu é que queria dar-lhos, mas, como tiveste o mesmo pensamento, deixa-os lá ficar, meu filho, visto que já os levaste.

O semblante de Henrique tornou-se radiante.

PEDRO - Mãezinha, vamos jantar hoje a casa da avó?

A MÃE - Vamos, sim. Jantarão com os primos.

HENRIQUE - Mas eu não vou.

PEDRO - Porquê?

HENRIQUE - Porque hoje não é dia para a gente se divertir. Ficarei com a ama.

PEDRO - A ama acompanha-nos, bem sabes que vai sempre com a gente a casa da avó.

HENRIQUE - Mas hoje não; está demasiado desgostosa para ver rir e brincar.

PEDRO - Pelo contrário, isso há-de distraí-la; não se lembrará da mãe enquanto estiver entretida connosco.

HENRIQUE - Supões isso? Nesse caso, vou. Antes, porém, hei-de perguntar-lhe se prefere ir a casa da avó, ou ficar comigo aqui.

A MÃE - Tenho a certeza, meu filho, de que preferirá acompanhar-nos a privar-te do prazer que sentes em jantar com teus primos. Mas aprecio muito o sacrifício que querias fazer e que prova o teu bom coração.

Algum tempo depois, apareceu a ama, a quem Henrique, da parte da mãe, deu o xale e o vestido que antecipadamente lhe levara para o quarto, e perguntou-lhe se queria que ele ficasse a fazer-lhe companhia ao jantar.

HENRIQUE - Como estás triste, minha pobre ama, há-de causar-te pena ver os outros divertirem-se e rirem. Por minha vontade não os acompanhava e ficaria junto de ti, além de que tenho medo de me rir, sem querer, ao ver rir os outros.

A AMA, abraçando-o - Querido e excelente menino, há-de brincar e rir com os outros; quanto a mim, será uma distracção e um prazer vê-los bem divertidos.

HENRIQUE -Oh, muito obrigado, ama! Sinto-me satisfeito, muito satisfeito mesmo, por isso te distrair. Vou a correr participá-lo à mãezinha e ao Pedro.

- Mãezinha - gritou Henrique, todo esbaforido, ao entrar nos aposentos da mãe-, vou jantar a casa da avó com o Pedro; a ama também vai; quer que eu brinque; diz que, só de nos ver rir e divertir, ficará satisfeita em vez de desgostosa.

A MÃE-Eu tinha a certeza; assim, o vosso dia está combinado; irão passear às duas horas, depois das lições; voltarão às quatro para estudar; às seis irão jantar a casa da avó e, à noite, vamos a casa do vosso tio de Fleurville.

PEDRO, entrando - Mãezinha, vem aí míss Albina

dar-nos lição.

HENRIQUE - Ai, meu Deus! E eu que não estudei a minha fábula e as palavras inglesas!...

PEDRO - Vê lá como tu és! Guardas tudo para a última hora. Se estudasses ontem as lições, ao mesmo tempo que eu, sabê-las-ias.

HENRIQUE - Eu podia lá saber que a minha pobre ama sofreria um desgosto! Como querias que eu adivinhasse?

PEDRO - Não podias adivinhar isso, mas podias imaginar outra coisa.

HENRIQUE-Que coisa?

PEDRO - Não sei; é sempre melhor estudar as lições na véspera. Agora, vais ser castigado.

HENRIQUE, a chorar - E, contudo, não foi por minha culpa, pois não tive tempo hoje de manhã.

A mãe não dizia palavra; fingia não ouvir e continuava a pentear-se.

Miss Albina entrou; era uma inglesa alta, de dentes compridos; cumprimentou; deu os bons-dias aos pequenos e tomou o seu lugar à secretária. Pedro apresenta ousadamente os seus cadernos, que miss Albina examina.

MISS ALBINA -Muito bem! Very well, my dear! E você, my little Henry, que estudou?

HENRIQUE, chorando - Nada sei; não tive tempo!

MISS ALBINA -Ah! mister Henry! Como não ter tempo? Shocking, Shocking! Menino merecer castigo, e pedir à senhora vossa mãe para jantar sozinho no seu quarto.

HENRIQUE, soluçando e correndo para a mãe - Mãezinha, mãezinha, miss Albina não quer que eu vá jantar com a avó; quer que jante sozinho. A culpa não foi minha, a culpa não foi minha!

A MÃE, beijando-o - O castigo não é justo, miss; Henrique saberia as lições se a ama não tivesse um inesperado desgosto, e foi isso que o impediu de tratar de outra coisa que não fosse o pesar da ama.

MISS ALBINA - Contudo, mister Pedra estudar tudo e pensa que mister Henríca poder fazer o mesma. O meu opinião é ser castigada.

A MÃE - Esteja certa, miss, de que se merecesse castigo, a tal não me oporia, mas, neste caso, peço-lhe que não pense em tal.

MISS ALBINA - Very Well, minha senhora; ser feita vossa vontade. Simplesmente ser de opinião que um castiga ser sempré boa para meninos!

A MãE - Quando é justo, é possível; de contrário, prejudica mais do que beneficia.

PEDRO - A mãezinha tem razão; um castigo injusto ou demasiadamente pesado irrita e dá vontade de fazer mal, como vingança.

MISS ALBINA - É o Que faria a seu irmão?

PEDRO - Nada, porque ele nada fez de mal.

MISS ALBINA, irritada -Very well, mister Pedro, julgar como um estorninho.

Pedro ia para responder, mas a mãe impôs-lhe silêncio e pediu a miss Albina que começasse a lição.

As crianças trabalharam com gosto. Nos intervalos, Henrique corria ao quarto da ama para ver se esta chorava. Sentia-se feliz quando a encontrava serena e ocupada nos seus afazeres matinais; quando a via triste, tentava confortá-la com carícias e risonhos projectos de futuro.

Terminadas as lições, miss Albina envergou a capa, pôs o chapéu, cumprimentou e saiu; o almoço estava na mesa; os pequenos continuavam penalizados e mal comiam. Iam a levantar-se da mesa, quando a porta se abriu dando passagem a Jaime e a Luís, que entraram, precipitadamente, acompanhados pela criada. Lançaram um olhar aos primos, viram-lhes os semblantes tristes e os olhos de Henrique vermelhos ainda das lágrimas que chorara.

- Que tens? Porque choraste, Henrique? Porque estão tristes os dois? - inquiriu Jaime, com vivacidade.

PEDRO - Porque a pobre ama perdeu a mãe.

LUÍS - Perdeu a mãe? Como o soube? Quem lho participou?

PEDRO - Soube-o esta manhã por uma carta do pai.

JAIME - Aposto como não é verdade. É uma maldade do Júlio e do Nicolau.

A MÃE - Jaime, meu filho, isso não se diz. Como é que Júlio e Nicolau se lembrariam de semelhante maldade.

LUÍS - Com muita razão o dizemos, tia, porque ontem falavam de uma partida a pregar à pobre ama; chamam a isso uma peta do 1. de Abril e nós recusámo-nos a acompanhá-los.

A MãE - Mas qual o motivo por que causaram semelhante desgosto à ama que nunca lhes fez mal?

JAIME - Queriam castigá-la por trazer sempre os primos para casa, quando mais satisfeitos estamos com a brincadeira.

A MÃE - Mas isso é abominável. Venham falar à ama, meus filhos; vou ver se a carta tem o carimbo do correio de Méaux, onde mora o pai.

Os pequenos correram à frente; a mãe seguiu-os mais devagar.

HENRIQUE, esbaforido - Ama, ama, dá-nos depressa a carta; Jaime e Luís dizem que não é verdade; que Júlio e Nicolau foram maus.

A AMA - Que não é verdade? Que foram maus?

HENRIQUE - Já vais ver; tua mãe não morreu; se te digo que foram o Júlio e o Nicolau!...

A ama tornou-se pálida e trémula; tirou a carta da algibeira, a fatal carta, em que Pedro agarrou para dar à mãe, que acabava de entrar. A mãe leu a direcção; era o carimbo de Paris. Abriu, febril, e viu no alto da carta: 1.? DE ABRIL em grandes caracteres e, por baixo, em vez de Méaux; CRACSHOURIE.

- É uma peta! - exclamou a Sr.a de Arcé, indignada. - Uma pérfida e miserável peta! Ama, tua mãe não morreu nem está doente. Jaime e Luís vieram avisar-nos de que Júlio e Nicolau se lembraram de te pregar uma estúpida partida no dia 1º de Abril, e, de facto, ei-la abominável e negra como o coração desses meninos.

A ama não podia acreditar no que ouvia; quis ver a carta, mas as mãos tremiam-lhe tanto, que foi inpossível ler fosse o que fosse. Os pequenos riam e pulavam; beijavam a ama, a mãe e os primos. A ama principiara a refazer-se do susto. O semblante da S.a de Arcé demonstrava viva indignação.

- Estes meninos hão-de ser castigados pela sua má acção! E merecem-no bem! - declarou com firmeza.

PEDRO - Como serão castigados, mãezinha?

A SR.a DE ARCÉ - Tu verás; todos hão-de assistir ao seu castigo.

LUÍS - E quando, tia?

A SR.a DE ARCÉ - Esta noite, meu filho, no serão da nossa tia de Fleurville.

JAIME - Que vai fazer, tia?

A SR.a DE ARCÉ - Esta noite o saberás; entretanto, contem-me pormenorizadamente como souberam do projecto desses maus rapazes.

Luís e Jaime referiram a conversa da véspera, sem omitir a história do Sr. Poucque. Veremos, como as crianças, qual foi o castigo de Júlio e de Nicolau.

 

             O SERÃO DAS PETAS

A Sr.a de Fleurville convidara muitos dos seus sobrinhos e alguns amigos para ir ao serão do 1 de Abril. Jaime, Luís, Júlio, Nicolau, Pedro e Henrique faziam parte dos convidados. Camila e Madalena de Fleurville preparavam as coisas para divertir os primos e amigos. Sofia e Margarida, as suas amigas mais íntimas, ajudavam-nas.

CAMILA - Basta de bonecas, Sofia, tapas toda a mesa.

SOFIA -As bonecas distraí-los-ão muito; nunca são de mais.

MARGARIDA - Mas tudo quanto é de mais aborrece.

SOFIA - Isso pode ser realmente assim, mas eu continuo a dizer que não são de mais.

MARGARIDA - Mas tu bem vês que já não há espaço para pôr mais nada.

SOFIA - E que queres tu pôr mais?

MARGARIDA - Livros, tintas, dominós, cartas, balões, papagaios, saquinhos...

SOFIA, em tom trocista-...provisões, bugigangas, camas...

MARGARIDA - Tudo, menina; eu digo coisas acertadas e tu só dizes disparates.

CAMILA - Em vez de discutirem, melhor será que nos ajudem a arrumar as coisas; já ouço os primos.

De facto, Pedro, Henrique, Jaime e Luís entravam a correr; beijaram as primas depois de haverem cumprimentado os tios.

JAIME - Que estão a fazer? Porque arranjam tudo isso?

MADALENA - Para os distrair esta noite.

LUÍS - Ora, ora! Mais nos distrairemos jogando a cabra-cega, às escondidas ou outros jogos vulgares. É muito mais divertido.

- Tem razão! Tem razão! - aprovaram ao mesmo tempo Camila, Madalena, Sofia e Margarida.

Chegaram outras crianças, entre as quais se contavam Júlio e Nicolau, que olharam com ar velhaco, para Pedro e Henrique. Luís e Jaime já tinham contado a estúpida partida que de manhã havia sido feita à pobre ama de Pedro e de Henrique, mas sem citar Júlio e Nicolau como autores da proeza, porque a Sr.a de Arcé os havia proibido disso. Todos os pequenos, dotados de bom coração, ficaram indignados com a patifaria; falavam dela na presença de Júlio e Nicolau, sem darem pelo silêncio e pelo embaraço em que estes se encontravam. À noite, os pais deixaram os filhos na sala grande e na casa de jantar e fugiram da bulha, recolhendo-se a uma saleta.

No auge dos divertimentos, a porta da antecâmara abriu-se de par em par. Um criado anunciou: O comissário da policia. Os divertimentos pararam; as crianças juntaram-se ao fundo da sala de jantar; Júlio e Nicolau colocaram-se prudentemente atrás de todos.

O comissário da polícia empunhava uma carta. Fitou as crianças com ar severo, encaminhando-se para elas, e perguntou:

- Qual de vocês escreveu esta carta que tenho na mão?

- É aquela que esta manhã tanto fez chorar a minha ama - disse Pedro, reconhecendo a carta.

HENRIQUE - E a mim também me fez chorar durante muito tempo.

- Vamos, vejamos a carta! - disseram os pequenos, abeirando-se do comissário da polícia.

Só Júlio e Nicolau ficaram encostados à parede e pareciam aterrados.

- Sabem quem escreveu esta carta, meus meninos?

- Eu não sei! - gritaram as crianças em coro. Jaime e Luís mantínham-se calados.

- Ora aqui estão dois cavalheiros espertos que devem saber alguma coisa - volveu o comissário. Aproximem-se.

 

Luís e Jaime acercaram-se sem receio, pois sentiam-se inocentes.

- Conhecem aqueles dois cavalheirinhos que estão ali pregados à parede, como se se quisessem meter por ela dentro?

Jaime virou-se, sorriu e respondeu:

- São Júlio e Nicolau de Bricone.

- Não seriam eles os autores desta carta? Têm toda a aparência de culpados!

Luís e Jaime nada responderam.

- Não querem acusar esses cavalheiros: é grande generosidade da vossa parte, meus meninos, mas essagenerosidade não os livrará de serem castigados se forem os culpados. Aproximem-se, Sr. Júlio e Sr. Nicolau de Bricone - acrescentou o comissário em voz forte e severa.

Júlio e Nicolau aproximaram-se vagarosamente; os seus dentes batiam castanholas, as pernas dobravam-se-lhes e tremiam como varas verdes.

- Qual de vocês escreveu esta carta?

- Foi o Júlio - acusou Nicolau.

- Foi o Nicolau - denunciou Júlio.

- O que quer dizer que foram ambos, E imaginam que é permitido imitar uma assinatura, anunciar uma notícia falsa que devia afligir profundamente a infeliz mulher a quem escreveram? Imaginam que é permitido fazer uma maldade sem se ser castigado? A lei condena-os a ser julgados como portadores de notícias falsas, e vão para a cadeia, onde aguardarão julgamento.

- Perdão, perdão, Sr. Comissário! - bradaram Júlio e Nicolau, caindo de joelhos diante dele.

- Perdão! Foi o Nicolau quem me aconselhou.

- Perdão! Foi o Júlio quem me obrigou.

- E ainda por cima são maus e cobardes - tornou o comissário em tom pesaroso. - Fazem o mal juntos e acusam-se um ao outro. Os juizes discernirão qual dos dois é o mais culpado; quanto a mim tenho a ordem de os meter na cadeia e vou procurar os meus guardas. Esperem-me aqui e não tentem fugir; bem depressa os apanharia.

O comissário saiu, deixando Júlio e Nicolau presos de horrível desespero; rojavam-se pelo chão; davam gritos lamentosos, que, em breve, atraíram os pais.

O casal de Bricone, ao ver os filhos no estado de aflição em que os deixara o comissário, abeirou-se deles, levantou-os e perguntou aos outros pequenos o que tinha acontecido. Em vez de demonstrarem inquietação e desgosto pela ameaça do comissário, os pais fitavam com rostos sorridentes as pessoas que haviam ficado ao fundo da sala. O Sr. de Bricone disse com serenidade:

- Quando se fazem maldades, sempre se recebe castigo. O Sr. Poucque também se queixou contra vocês, porque acabou de os descobrir e não estão em muito bons lençóis.

- Paizinho, paizinho, proteja-nos, acuda-nos! Não torno mais, juro! - suplicou Júlio de mãos postas e com o semblante inundado de lágrimas.

- E eu também, nunca mais, nunca mais! - secundou Nicolau.

- Isso é verdade? O vosso arrependimento é sincero?

- Muito sincero, muito verdadeiro. Paizinho, salva-nos!

- Bom, vou tentar resolver isso. Voltemos para casa; depois, irei falar com o comissário e espero sair-me bem da incumbência.

O Sr. e a Sr.a de Bricone levaram Júlio e Nicolau, trémulos ainda, mas mais tranquilos. Quando se foram embora, a Sr.a de Arcé disse para os pequenos:

- Então, meus filhos, que dizem à minha partida do dia 1.º de Abril? Júlio e Nicolau não foram bem castigados?

PEDRO - Nesse caso, mãezinha, o comissário...

A SR.a DE ARCÉ - Não é um comissário, mas um amigo da Sr.a de Fleurville que quis ter a amabilidade de nos ajudar no castigo de uma feia acção.

HENRIQUE - E os guardas que o iam buscar? A SR.a DE ARCÉ - Não aparecerão, porque não os chamou.

CAMILA - E o Sr. e a Sr.a de Bricone sabiam isso?

A SRa DE ARCÉ - Pois claro; estamos todos no segredo; não me permitiria fazer representar uma cena como esta sem o consentimento do Sr. e da Sr.a de Bricone.

MADALENA - E o Júlio e o Nicolau sabem que foi mentira?

A SR.a DE ARCÉ - Só amanhã o saberão.

A SR.a DE Fleurville - Agora, meus filhos, vão brincar, enquanto não chega a hora da ceia.

Mas os pequenos, porém, tinham ficado tão impressionados com a visita do pseudo-comissário e com o desespero de Júlio e de Nicolau, que preferiram falar a respeito dessa aventura a entregarem-se a brincadeiras ruidosas. Voltaram por fim ao chamamento das mães para comer bolos e doces, e, em seguida.., retiraram-se.

 

             COMO SE TINGE DE PRETO UM CARNEIRO

- Mãezinha - pediu Artur, que tinha seis anos -, não me dá a tinta preta?

A MÃE - Decerto que não; vais deitar nódoas em toda a parte e sujaras as mãos e o fato.

ARTUR - Afianço-te que não, mãezinha; tomarei cuidado e nada sujarei.

A MÃE - Para que queres tu a tinta preta?

ARTUR - Para brincar, mãezinha; para pintar.

A MÃE - Tens uma caixa de tinta, pincéis, papel; não precisas de mais nada para pintar.

ARTUR -Mas, mãezinha...

A MÃE, impaciente - Deixa-me ler e vai brincar com o teu irmão.

Artur sai devagar; chega ao quarto pegado onde seu irmão Leôncio o espera.

LEÔNCIO, de oito anos - E então... arranjaste a tinta preta?

ARTUR - Isso sim! A mãezinha não ma quis dar.

LEÔNCIO -E agora? Precisávamos tanto dela...

ARTUR -E se a pedíssemos à Sofia?

LEÔNCIO - Sofia não no-la poderá dar, porque também não tem.

ARTUR - Não, mas tem ideias: alguma coisa há-de inventar.

LEÔNCIO - Oxalá que sim; então vai; eu espero aqui para responder à mãezinha se perguntar o que estamos a fazer. Vai devagarinho; abre as portas sem causar barulho.

Artur sai em bicos de pés; entra no quarto de Sofia, que tem sete anos; encontra-a ocupada em lavar a boneca na água da torneira; a água corre por toda a parte; tem as mangas e o vestido molhados.

- Pst! Pst! Sofia.

SOFIA, rindo-se - Que é? Até me assustaste; julguei que era a mãezinha ou a minha criada.

ARTUR - Schiu!... Fala mais baixo. Leôncio manda-me perguntar se tens tinta preta?

SOFIA - Não, não tenho. Que querem fazer com a tinta preta?

ARTUR - Tingir o nosso grande carneiro, que é tão branco que se suja com facilidade.

SOFIA - Ora! Ora! Ora! Mas isso é uma riquíssima ideia; vai ser muito divertido e o carneiro ficará mais bonito; além disso, é muito raro um carneiro preto.

ARTUR - Mas o pior é que não temos tinta e venho perguntar-te o modo como havemos de a obter.

SOFIA, reflectindo - Como? Deixa-me pensar... Tenho uma ideia! Servimo-nos do tinteiro e entornamos a tinta em cima do carneiro.

ARTUR - Um tinteiro não chega; o carneiro é muito grande!

SOFIA - Nesse caso temos a garrafa de tinta que está no escritório da mãezinha.

ARTUR - Bravo, Muito bem! Anda comigo, mas muito devagarinho para a mãezinha não nos ouvir.

Artur e Sofia encaminham-se para o escritório a fim de encontrarem a garrafa da tinta e chegam em bicos de pés, perto de Leôncio que espera, impaciente.

LEÔNCIO - E então, sempre arranjaram?

ARTUR -Olha! Uma garrafa de tinta. Foi Sofia quem se lembrou.

LEÔNCIO - Excelente lembrança. Depressa, comecemos. Com que deitamos a tinta em cima do carneiro?

SOFIA - Entornando-a devagar na cabeça, no dorso e em toda a parte. Ficará perfeitamente tingido e aplicá-la-emos com as mãos.

LEÔNCIO - É isso! Tu, Artur, e tu, Sofia, apliquem a tinta, enquanto eu a entorno com cuidado.

Leôncio principia a entornar; deita de mais e a tinta corre pelo tapete. Sofia e Artur sujam as mãos, os fatos; alguns salpicos chegam-lhes às caras. Leôncio ri, Sofia zanga-se e aplica a mão cheia de tinta no rosto de Leôncio que, por sua vez, se zanga e a atira para o rosto de Sofia; Artur quer arrancar-lhe a garrafa das mãos; debatendo-se, Leôncio espalha tinta por todos os lados; o tapete, as cortinas, os móveis, tudo está cheio de tinta. Dirigem-se algumas injúrias em voz baixa: - Má! Estúpida! Parva! Idiota! - A confusão das vozes irritadas e dos desordenados movimentos dos três combatentes estabelece estranha bulha que chama a atenção da mãe que, do quarto pegado, grita:- Que é isso, meus filhos! Que bulha é essa? Dir-se-ia que guerreiam.

Nenhum dos pequenos responde. Mas todos se imobilizam, olhando aterrados, para os fatos cheios de tinta, os rostos e as mãos enegrecidos e os vestígios de tinta que os cercam.

- E então, que temos? - interrogou a mãe, ao entrar.- Que fizeram vocês?...

Nota os prejuízos causados e fica estupefacta. A surpresa emudece-a.

- Oh, oh! - exclama por fim. - Bonito serviço! Todos os móveis manchados, as cortinas cheias de tinta; mãos e semblantes pretos. Muito bem!... Irão para a mesa como estão; vossos tios de Mocqueux, que vêm jantar connosco, hão-de ficar radiantes com a vossa pintura. E, quanto aos prejuízos, serão reparados em parte com o dinheiro das vossas economias e com o que costumo dar-vos por semana. Durante três meses, não receberão um ceitil.

A mãe chama a criada, a quem diz:

- Tente tirar as manchas de tinta que estes marotos puseram em toda a parte, e, quanto a eles, deixe-os ir para a mesa consoante estão.

Os pequenos choram; a mãe afasta-se sem os fitar; a criada ralha-lhes e troça deles, ao mesmo tempo que lava com água e sabão as cortinas, os móveis, o tapete: por mais que se esforce, as manchas ficam muito visíveis.

- Vai ser preciso mudar as cortinas e tapar os móveis! - diz. - Tiveram uma ideia de se lhe tirar o chapéu.

LEÔNCIO - Não fomos nós, foi a Sofia.

SOFIA - Decerto não a teria se Artur não me desafiasse.

ARTUR - Foi Leôncio; quis tingir o carneiro. Eu nem em tal pensava.

LEÔNCIO - Foste tu que quiseste que eu perguntasse a Sofia como se havia de fazer.

SOFIA - Leôncio é quem tem sempre ideias estúpidas e depois pede-nos auxílio.

LEÔNCIO - E tu és sempre quem tem lembranças absurdas, que nos fazem sofrer castigo.

SOFIA - Porque as achas boas e as aceitas, se são absurdas?

LEÔNCIO - Porque não tive tempo para reflectir; se me concedesses apenas dois minutos para pensar, veria que só fazes disparates.

SOFIA - Nesse caso és um parvo que pede conselho a uma estúpida e faz sempre o que a estúpida lhe aconselha.

LEÔNCIO - Não, menina, não sou parvo, sou bom de mais, é o que é.

SOFIA - Bom de mais! Ah! ah! deixa-me rir. É um elogio que fazes a ti próprio: ninguém te acusará de bom de mais. És pior do que a sarna; pergunta ao Artur.

LEÔNCIO - Sarna és tu! Pergunta ao Artur.

SOFIA, com vivacidade - Artur, porque é que sou sarna?

ARTUR - Por nada; és apenas demasiado azougada.

LEÔNCIO - Artur, porque é que sou mau?

ARTUR, enleado - Sei lá! Como queres que saiba?

SOFIA, triunfante - Quer dizer que és mau, masnão se atreve a dizê-lo. Ah! ah! ah! Ficaste vexado, meu homenzinho. É bem feito! É bem feito!

E Sofia desata a dançar, batendo palmas, em volta de Leôncio que, vermelho e fulo, tenta esbofeteá-la. Sofia, lesta e hábil, evita-o sempre; Artur afasta-se prudentemente para um canto, junto da porta, que entreabre a fim de poder escapulir-se no caso de Leôncio querer atacá-lo. Este cada vez se enfurece mais e, não conseguindo apanhar Sofia, atira-lhe com livros, cadernos, caixas, tudo quanto lhe vem parar às mãos; Sofia baixa-se, foge, volta-se sempre a tempo de evitar a agressão e continua a zombar de Leôncio, a quem faz figas.

A bulha atrai a mãe, o pai e mais duas pessoas que se encontram na sala. Ao verem aqueles semblantes enegrecidos, um rindo, o outro animado pela cólera, e o terceiro assustado e meio escondido pelo reposteiro, todos soltam uma gargalhada. Os pequenos param; o rubor da vergonha transparece sob a tinta que os enegrece. Artur é o primeiro a escapulir-se; Sofia manobra habilmente para alcançar a porta; Leôncio quer fazer o mesmo, mas o pai agarra-o por um braço e diz-lhe:

- Alto, meu menino! Hás-de responder por todos, primeiro por seres o mais velho, depois porque deves ser o mais culpado, visto Artur estar tão assustado como uma lebre; Sofia ria e parecia zombar de ti; enquanto tu parecias um gato assustado.

LEÔNCIO -Mas, paizinho...

O PAI - Não te peço explicações. Ordeno-te que vás reparar a desarrumação do quarto e que ponhas tudo no seu lugar.

LEÔNCIO -Mas, paizinho...

O PAI - Cala-te! Apanha o que está no chão e arruma tudo. Logo que acabares, vai-te lavar e mudar de roupa.

A MÃE - Eu dera-lhes como castigo irem jantar sujos como estavam.

O PAI - Querida amiga, peço perdão, não para eles, mas para mim e para os meus amigos. Causa náuseas vê-los; ser-nos-ia impossível jantar com tais tintureiros na nossa presença.

A MÃE - Se é por nós, concordo que se lavem e limpem. Vá, Sr. Leôncio, lavar-se e vestir-se, e diga à sua criada que faça o mesmo a Sofia e Artur.

Leôncio, tendo acabado de arrumar e apanhar tudo, foi ter aos aposentos da criada, onde estava Sofia e Artur.

- Gertrudes - disse-lhe com ar triunfante -, dá-me depressa água morna, sabonete, toalha e roupa limpa.

A CRIADA - Sua mãe disse que os deixasse ir para a mesa conforme estavam, bem sabe.

LEÔNCIO - Sim, mas o paizinho disse que não queria, que lhe causava náuseas ter-me, assin, junto dele, à mesa; por isso, a mãezinha mandou que me lavasses e vestisses.

SOFIA - E eu e Artur também?

LEÔNCIO - Não; vocês jantarão nesse estado.

SOFIA - Por que motivo nós e não tu?

LEÔNCIO - Porque fico perto do paizinho e vocês mais longe.

SOFIA - Mas ele tanto nos vê a nós como a ti.

LEÔNCIO - O paizinho assim o disse.

Sofia e Artur choramingaram; afligiam-se mais àmedida que Leôncio se tornava branco e limpo. Leôncio fitou-os com ar zombeteiro.

A criada compadeceu-se dos pobres pequenos e censurou Leôncio pelos seus gestos triunfantes e velhacos. Soou a hora de jantar; o criado grave veio buscá-los. Leôncio foi o primeiro a avançar, todo satisfeito. Todos três entraram na sala, onde se encontravam os tios e dois amigos. Surpresa geral com o aspecto de Sofia e Artur transformados em pretos.

O PAI - Em que estado se apresentam aqui, meus filhos? Porque não os lavaram?

SOFIA, de olhos baixos - Porque a mãezinha nos proibiu.

A MÃE - Mas eu mandei dizer por Leôncio que o paizinho desejava que também os lavassem.

SOFIA - Leôncio disse que era só ele e que eu e Artur devíamos ficar como estávamos.

A MÃE - Que quer isto dizer, menino Leôncio? Porque pregaste essa mentira?

LEÔNCIO, muito enleado - Mas... mas... eu julguei... não percebi...

O PAI, com severidade - Percebeste muito bem e eu também percebi muito bem que és um mau garoto, que quis vingar-se, não sei porquê, de seus irmãos mas a maldade vai ser punida.

O pai puxa o cordão da campainha; aparece um criado.

O PAI - A criada dos meninos que venha cá. A criada entra.

O PAI - Gertrudes, leve os três meninos; lave e vista depressa Sofia e Artur e mande-os para jantar.

Tome conta de Leôncio, que jantará, no quarto, sopa, carne e o pão que quiser. Ficará aí todo o serão.

Coube a vez de Leôncio chorar. Sofia e Artur tiveram algum dó do irmão, dizendo de si para si que merecera o castigo. Deixaram-se lavar e vestir, calados; ao sair, Sofia disse, baixinho, a Leôncio:

- Eu trago-te os bolos e o que me couber da sobremesa.

- Obrigado, Sofia - agradeceu Leôncio. - És bondosa.

Com efeito, Sofia, sub-repticiamente, meteu na algibeira dois bolos, uma tangerina, uma maçã e frutos cristalizados. Julgou que ninguém a tivesse visto e felicitou-se pela sua habilidade. Depois da refeição escapuliu-se da casa de jantar para ir visitar Leôncio e levar-lhe o que pudera guardar. Leôncio agradeceu-lhe, abraçou-a e comeu com viva satisfação a sobremesa de Sofia; queria, ao menos, reparti-la entre os dois, mas ela recusou, dizendo que tinha comido muito e que nada lhe apetecia.

Quando Sofia voltou à sala de jantar, o pai chamou-a.

- Sofia, esqueceste-te da sobremesa; aqui a tens, completa: tangerina, maçã, frutos cristalizados. Nada

comeste.

SOFIA, admirada - A minha sobremesa? Mas eu ti vê-a.

O PAI - Tiveste-a e comeste-a?

SOFIA - Tenho a certeza de que a tive.

O PAI, sorrindo - E comeste-a?

SOFIA, comprometida - Paizinho... está comida; sim, está comida.

O PAI -Mas foste tu a comê-la?

Sofia cada vez se atrapalhava mais; mas não queria mentir, nem queria dizer que a dera a Leôncio. Permaneceu corada e muda.

O PAI - Não é para te censurar do uso que fizeste da tua sobremesa, minha querida filha, que te faço estas perguntas, mas para me certificar da tua bonita acção. Estava desconfiado de que levaste a Leôncio o que com tanta destreza meteste na algibeira. É um acto bom e generoso da tua parte. Não quis que ficasses privada da tua sobremesa e fiz-te servir o que te cabia. Come-a, minha filha, e sê sempre boa e generosa como o foste há pouco. Talvez nunca sejas recompensada por isso neste mundo; mas o bondoso Deus, que tudo vê, espalhará sobre ti as Suas bênçãos e auxiliar-te-á a tornares-te cada vez melhor.

Sofia agradeceu ao pai, a quem beijou, e ele, apertando-a nos braços com ternura, entregou-lhe o prato da sobremesa; Sofia aceitou-o e comeu o conteúdo com dupla satisfação.

O MAU CONSELHO

Decorridos alguns dias, uma tia de quem Artur gostava muito deu-lhe uma linda cadelinha branca, de pêlo comprido e longos bigodes. Artur correu logo a mostrar a cadela a Sofia e a Leôncio; Sofia ficou encantada, enquanto Leôncio se mostrou descontente, pois era invejoso.

LEÔNCIO - Não sei porque minha tia te deu o cão, a ti, pois não saberás cuidar dele.

ARTUR - Cuidarei dele, tão bem como tu.

LEÔNCIO - Nem sequer saberás passear com ele.

ARTUR - Não é difícil; levá-lo-emos connosco.

LEÔNCIO - E que farás quando estiveres a brincar?

ARTUR - Brincará com a gente.

LEÔNCIO - Como? Fa-lo-ás correr, saltar a corda, atravessar o arco?

SOFIA - Nada disso. Como és parvo! Enquanto brincamos, prendemo-lo a uma cadeira, ao pé da criada.

LEÔNCIO - Parva és tu com as tuas invenções.

SOFIA - Não disseste o mesmo no dia em que te levei a minha sobremesa, que comeste como um glutão.

LEÔNCIO - Se ma levaste era para eu a comer, evidentemente.

SOFIA - Não digo o contrário, mas isso não indica que fui parva. De resto, porque te zangas por minha tia ter dado a cadela a Artur em vez de ta dar a ti? Podes brincar tanto com ela como eu.

LEÔNCIO - Ora, adeus! Imaginas que estou com inveja por esse belo presente? Para que quereria eu esse aborrecido animal? Afianço-te que te enganas.

SOFIA - Se assim é, porque resmungas?

LEÔNCIO - Eu não resmungo, menina; não sabes o que dizes.

ARTUR, interrompendo-os - E que nome lhe poremos? Precisa de ter um nome.

SOFIA - É verdade! Chama-lhe Branquinha.

LEÔNCIO - Branquinha é corriqueiro! Ah! ah! ah! É feio e estúpido!

SOFIA - Então, como se há-de chamar? Açor, Medor, Castor? É muito mais corriqueiro.

LEÔNCIO, em tom trocísta - Tratem-na por Feiarrona, que lhe ficará bem!

SOFIA - Não, cavalheiro. Ela é encantadora e por isso não será Feiarrona. Chama-lhe Bonitote, Artur.

ARTUR - Não quero, porque a prima Berta já tem um cão com esse nome.

SOFIA - É verdade! Então... então... não sei. Diz tu. Não te lembras de nenhum nome?

ARTUR - E se lhe chamássemos Jóia?

SOFIA - Muito bem, muito bem! Anda cá Jóia, vem cá para te fazer festas.

Jóia, que dormia nos joelhos de Artur, não se mexeu. Sofia acariciou-a brandamente, beijou-lhe as patinhas cor-de-rosa e propôs a Artur deitá-la na cama da boneca. Levaram-na para o quarto da criada; Artur meteu-a cuidadosamente na cama da boneca e Sofia tapou-a com a coberta. Leôncio acompanhou-os, zombando deles, e desatou a fazer bulha, arrastando as cadeiras e atirando com os brinquedos para o chão.

SOFIA - Acaba com isso! Vais acordá-la!

LEÔNCIO - É uma desgraça, se acorda!

E redobrou de barulho, batendo com as caçarolas e a louça de Sofia, e rufando no tambor de Artur. Sofia correu para a caixa da louça para lha arrancar das mãos. Artur agarrou o tambor, Leôncio deu alguns sopapos. Sofia e Artur desataram a gritar; Jóia acordou e, vendo uma batalha, saltou para Leôncio e mordeu-lhe as pernas; Leôncio defendeu-se a pontapés, que felizmente não a atingiram, mas a enfureceram mais; principiou a rosnar, a atirar-se sobre o seu inimigo, que começou a ter medo e a esconder-se atrás dos móveis; Sofia e Artur batiam palmas e riam às gargalhadas, bradando:

 

- É bem feito! É para te ensinar a não a despertares.

A criada, achando Leôncio bastante castigado, colocou-se-lhe em frente e tentou acalmar Jóia, que se deixou agarrar. Logo, porém, que ele fazia menção de se mexer, mostrava os dentes e recomeçava a rosnar. Por fim, Leôncio conseguiu fugir. Quando se encontrou em segurança, exclamou:

- Maldito animal! Eu me vingarei da tua maldade! Não perdes pela demora.

No dia seguinte, conduzindo o cão, que os pequenos haviam levado preso a passear, Artur notou que as patas, a barriga e o rabo da cadelinha estavam enlameados.

- É pena ser branca! - disse. - Se, ao menos, os pêlos não fossem tão compridos, não se sujaria tanto. Que se há-de fazer para se evitar que se suje?

Leôncio, que se encontrava sozinho com ele, sorriu com ar malévolo.

- Ouve - volveu. - Notei que aquilo que se queima enegrece. A madeira queimada fica preta; o papel queimado torna-se preto; a rolha queimada faz-se preta. Parece-me que poderiam experimentar.

- Queimar o meu pobre bichinho - Admirou-se Artur. - Decerto que não; não farei isso; não quero.

LEÔNCIO - E quem te fala em queimá-lo, palerma? Sei muito bem que, se o queimasses, morreria.

ARTUR - Então para que serve o que tu dizes?

LEÔNCIO - Para te dar um bom conselho, como vais ver. Basta apenas queimar-lhe a ponta dos pêlos, é suficiente para lhos tornar mais curtos e pretos. Não lhe pode fazer mal, pois só deixarás arder a ponta, só a ponta dos pêlos.

Artur estava hesitante; não sabia se devia seguir ou não o conselho de Leôncio. Olhava para Jóia, que dormia nos seus joelhos.

- Pobre animal! - disse. E se o queimasse de mais?

- Não é possível, visto que eu acudiria logo que lhe queimasse a ponta dos pêlos.

E, para acabar de resolver Artur, deu-lhe uma caixa de fósforos que estava em cima da cómoda.

- Anda, vamos, avia-te; a mãe ou a criada daí a pouco estão aí; a Jóia ficará suja; é preciso lavá-la penteá-la, o que a aborrece e, como vês, a culpa será tua.

Artur, convencido com os argumentos de Leóncio e desejando poupar um aborrecimento ao seu predilecto, tomou o fósforo das mãos de Leóncio, fê-lo inflamar, esfregando-o na caixa, e aproximou-o da Jóia adormecida; num segundo, a pobre cadelinha ficou toda em chamas; os pêlos do corpo ardiam por todos os lados; acordou a ganir e tentando saltar para o chão; Artur, porém, aterrado, quer apagar o fogo e segura-a nos braços. A Jóia debate-se, atira-se para o chão e cai, felizmente para ela num grande alguidar cheio de água que a criada preparara para uma barrela. O fogo apagou-se logo; a cadelinha saiu do alguidar a fumegar, a sacudir-se e ainda a ganir.

 

Coube então a vez ao Artur de gritar; o fogo pegara-se-lhe ao bibe enquanto segurava nos braços o cachorro incendiado; as mangas, as calças começaram a arder e a estalar; os braços e as coxas principiavam, a crestar. A criada acudiu aos gritos. Vendo-o envolto em chamas, agarrou-o e mergulhou-o no alguidar que já salvara também o cãozito. O fogo apagou-se imediatamente, mas os braços e as pernas tiveram algumas queimaduras. A criada banhou-as com aguardente e envolveu-lhas em algodão, também embebido em aguardente, o que tirou prontamente as dores e evitou as empolas e as feridas.

Leóncio fugira ao primeiro latido do cachorro e ao primeiro grito de Artur; tornou para o seu quarto, assustado com o que fizera e receando que o feitiço se voltasse contra o feiticeiro, isto é, que a sua vingança contra a cadela recaísse nele, o que não deixou de acontecer.Artur contou à criada, entre lágrimas, o que Leôncio lhe dissera; a criada adivinhou logo os maus intuitos do pérfido garoto. Quando os pais apareceram, ficaram consternados ao conhecer o desastre, que poderia ter sido mais terrível.

O pai mandou chamar Leôncio, que entrou e permaneceu trémulo, à porta, ao ver o severo semblante paterno.

- Aproxime-se, cavalheiro... Mais perto, mais perto.

Leôncio avançou, preso de um terror de que o pai não se condoeu.

O PAI - Porque deste a teu irmão um conselho que podia causar a morte da cadela e talvez a dele?

LEÔNCIO - Não sabia, paizinho... Julgava que se podia... que se apagaria... que se sopraria...

O PAI - Não sabias que o fogo queimava? Não sabias que, uma vez incendiados os pêlos da cadela, não se apagariam por si e que teu irmão era pequeno de mais para poder apagá-los?

Leôncio não deu palavra; baixou cada vez mais a cabeça, trémulo, e compreendeu que não podia esquivar-se a uma correcção que merecia.

O pai fitou-o durante alguns instantes, calado; por fim disse:

- Teus irmãos sofrem constantemente com as tuas ruindades, com a tua inveja, a tua baixa inveja. As tuas más acções tornam-se cada vez mais perigosas para que eu possa deixar-te viver junto deles. Vai para o teu quarto e deixa-te lá estar. Amanhã levo-te comigo para te meter num colégio, onde serás severamente mantido e vigiado. Vai-te daqui.

Leôncio retirou-se sem proferir palavra; ao entrar no quarto, desatou a chorar amargamente.

"Num colégio! Meu Deus! Meu Deus! Como vou ser infeliz! Sozinho, sem amigos, com professores ríspidos."

E Leôncio soluçava tão alto, que Sofia o ouviu no seu quarto. Inquieta com o desgosto do irmão, a quem amava a despeito das suas contínuas maldades, correu para ele a fim de saber a causa do seu pesar.

Leôncio não a ouviu, nem a viu entrar; com a cabeça escondida nas mãos, gemia e chorava, pensando apenas na sua desventura.

Sofia aproximou-se, passou-lhe os braços em volta do pescoço e disse-lhe num tom comovido:

- Que te aconteceu para chorares tanto, Leôncio? Leôncio ergueu a cabeça e, notando que Sofia tinha

os olhos rasos de lágrimas, ficou sensibilizado, pagou-lhe os beijos e respondeu a soluçar:

- Sofia, Sofia, sou muito infeliz, mas sê-lo-ei mais ainda. O paizinho quer meter-me amanhã no colégio.

Sofia soltou um grito.

 

SOFIA - No colégio?! Pobre Leôncio! Que vai ser de ti entre esses maus professores que não deixarão de te ralhar e castigar, e maus condiscípulos que só pensarão em fazer-te ralar? Vai já pedir perdão ao paizinho. Diz-lhe que não tornas mais... Mas que fizeste tu? - acrescentou Sofia, reflectindo.

LEÔNCIO - Aconselhei Artur a queimar os pêlos da cadela para os encurtar e enegrecer, e estiveram quase.a ficar ambos queimados.

SOFIA, recuando - Foste tu?!... Isso é mal feito, na verdade!... O pobre Artur tem os braços e as coxas queimados. E a pobre cadelinha está horrível! Lembra um coelho esfolado.

LEÔNCIO - E o Artur está mal? SOFIA - Não. Não sofre desde que a criada lhe pôs algodão impregnado de aguardente; apenas sente pena por haver tornado a Jóia. tão feia.

LEÔNCIO - Está realmente feia? SOFIA - Horrenda, horrenda! Se a visses não poderias deixar de rir! Tem um aspecto tão lastimoso, tão esgrouviado! E uma cor esquisita! Ah, ah, ah! Eu fartei-me de rir quando a vi. O Artur não estava satisfeito; dizia que eu devia chorar. Tentei; mas não houve maneira! Ria sem querer; por fim acabei por chorar à força de rir. Não sabia que tinhas sido tu quem dera esse conselho ao Artur. Sabes que foi, de facto, uma ruindade! Bem sabias que o fogo queimava.

LEÔNCIO - Bem sei que fui ruim. Mas afianço-te que nunca mais o serei. Peço-te, suplico-te que o digas ao paizinho. Pede-lhe perdão em meu nome. Diz-lhe que nunca mais voltarei a fazê-lo.

E Leôncio desatou a chorar outra vez. Sofia, enternecida, prometeu-lhe pedir ao pai que lhe perdoasse e foi a correr procurá-lo.

Não o achou nos seus aposentos, nem na sala; então, voltou para o quarto da criada, pensando que estaria com Artur. Encontrou-o, de facto, e, lançando-se-lhe nos braços, disse-lhe:

- Paizinho, peço-lhe, suplico-lhe que perdoe ao pobre Leôncio; chora, está consternado; nunca mais será assim; prometeu-mo. Não o meta no colégio, paizinho; peço-lhe, meu querido pai; deixe-o ficar ao pé de nós.

ARTUR - O paizinho quer meter o Leôncio no colégio? Ah, pobre Leôncio! Se vai para o colégio, ficarei pesaroso como ele, não deixarei de chorar!

O PAI - Meus queridos filhos, Leôncio já fez muitas diabruras; a de hoje, porém, é pior do que as outras; podias ficar todo queimado; Deus permitiu que a criada estivesse perto e o alguidar se encontrasse cheio de água, e que ela tivesse a feliz lembrança de te lá meter; mas não quero que estejam expostos a tais perigos e, por isso, é preciso afastar aquele que á eles os expõe.

Artur e Sofia prosseguiam nas suas súplicas, com tal insistência e tal desgosto, que o pai, meio convencido, prometeu-lhes ir falar ao Leôncio.

- Se, de facto, o vir completamente arrependido, como dizes, Sofia, prometo deixá-lo ficar em casa ao pé de vocês; mas, se reincidir, não lhe perdoo mais; irá para o colégio à primeira maldade que faça, por pequena que seja.

O pai deixou os pequenos depois de os haver beijado e entrou no quarto de Leôncio, que encontrou lacrimoso, de olhos inchados e faces afogueadas.

Leôncio levantou-se quando ele se aproximou e, caindo de joelhos diante do pai, suplicou-lhe, de maneira comovedora, que lhe perdoasse.

 

- Paizinho, estou arrependido, realmente e com sinceridade. Sei que fui muito ruim, mas não supunha que o infeliz Artur se pudesse queimar e pensei que a Jóia ficasse apenas chamuscada. Acredite, paizinho, pois falo verdade; afianço-lhe que, se adivinhasse o mal que fiz ao Artur, não lhe teria dado esse mau conselho. Estava desesperado contra a Jóia, que, na véspera, me mordera; era dela que queria vingar-me. E disso também me arrependo. Sei que fui muito ruim para com o pobre bicho. Não gostava dele porque ficara com inveja de que minha tia o tivesse dado ao Artur em vez de ser a mim.

O PAI - Tua tia teve razão; sabe que o Artur é bondoso e tu mau.

LEÔNCIO - Sim, sim, isso é bem verdade, paizinho. Artur e Sofia são muito bondosos, cem vezes melhores do que eu, e a tia anda bem em gostar mais deles do que de mim.

O PAI - Tua tia estimar-te-á tanto quanto mereceres. Quero acreditar no teu arrependimento, mas durará ele? Não recomeçarás as tuas maldades com Sofia e Artur?

LEÔNCIO - Não, não paizinho. Acredite. Não tornarei porque lhes estou muito grato pela sua bondade; sei que foram eles que intercederam a meu favor; Sofia só me deixou depois de me haver confortado. Já não terei inveja, porque sinto muito bem que são melhores do que eu; e então terei por eles mais afecto e procurarei não lhes causar mal.

- Nessas condições, posso perdoar-te, meu amigo

- volveu o pai, levantando Leôncio, que ainda estava de joelhos diante dele. - Não se fala mais nisso; prova-me que tive razão em perdoar-te, mudando por completo de sentimentos e tornando-te bom irmão e bom filho. Pede a Deus que te ajude nessa mudança e, ao mesmo tempo, perdão pelo dia de hoje.

LEÔNCIO - Ah, sim, paizinho. Hoje e todos os dias lhe pedirei que me ajude a tornar-me tão bom como Sofia e Artur. Obrigado, paizinho; também é bondoso e torna-me muito feliz.

O PAI - E tu, por tua vez, me tornas feliz, meu filho, prometendo corrigir-te com a ajuda de Deus, porque, sem Ele, nada poderemos fazer; mas roguemos-Lhe e ouvir-nos-á.

Leôncio deixou-se cair nos braços do pai, que o beijou com ternura em sinal de perfeita reconciliação; conduziu-o ao quarto de Sofia e de Artur, que aguardavam, ansiosos, o resultado da visita paterna.

- Trago-lhes um colegial que acabou o seu castigo - disse, a sorrir. - Um irmão muito mudado. Ao contrário de Jóia, que se fez preta de branca que era, Leôncio volta agora branco como um lírio, de preto que era: reconhece os seus erros, tão bem, tão sinceramente e humildemente, que estou persuadido de que não tornará a cair noutra.

SOFIA - Não, não cairá noutra; há-de ser um bondoso e excelente irmão, a quem muito estimamos e que mais estimaremos ainda, não é verdade, Leôncio?

- Tentarei ser tão bom como vocês - replicou Leôncio, enternecido.

O PAI - Muito bem, meu amigo. Deixo-os para levar a boa nova a vossa mãe, que está aflita e crê que Leôncio deve partir amanhã.

Quando os pequenos ficaram sós, Sofia saltou ao pescoço de Leôncio, que se debulhou em lágrimas.

SOFIA - Que é isso? Que mais temos agora? Não ouviste o pai dizer-te que estavas completamente perdoado? De que tens medo?

LEÔNCIO - Choro de alegria, não de medo. Estou sensibilizado com a bondade do pai e com a vossa, Sofia e Artur, que, em vez de estarem satisfeitos por me verem castigado, pediram perdão para mim.

ARTUR - Como poderia eu ser tão mau, que me regozijasse com o teu desgosto, meu pobre Leôncio?

LEÔNCIO - E contudo é o que me acontecia bastas vezes quando me sentia invejoso e procurava vingar-me; era mau quando vocês eram bons.

SOFIA - Tinhas-nos inveja? Que tolice! Então não me enganei quando dizia que estavas com inveja de nossa tia ter dado a Jóia ao Artur e não a ti.

LEÔNCIO - Não, não te enganaste e foi por isso. que tive raiva à pobre Jóia.

ARTUR - Mas agora que não tens inveja, já não a detestarás e não lhe farás mal? LEÔNCIO - Não, não, prometo!

ARTUR, muito contente - Nesse caso posso tirá-la do esconderijo.

E dirigiu-se a um armário, que abriu e donde a Jóia saiu, toda satisfeita.

Ao vê-la tão preta e tão feia, Sofia desatou a rir; Artur também não pôde conter-se e riu. Só Leôncio se conservou sério e pensativo.

SOFIA - Não a achas divertida e horrenda? LEÔNCIO - Horrenda, sim, mas não divertida, visto ter sido eu o causador da sua fealdade.

SOFIA, trazendo Jóia para junto de Leôncio Anda cá, minha pobre Jóia, vem cumprimentar o teu novo dono. Não tenhas medo, pois já não te fará mal. O pobre animal, sem rosnar, veio lamber a mão que o seu primitivo inimigo lhe estendia. Leôncio, sensibilizado com essa demonstração carinhosa, tomou-o nos braços e beijou-o repetidas vezes. Desde então, Leôncio tornou-se amigo e protector da Jóia e o mais dedicado amigo de Sofia e de Artur; no Jardim só pensava em protegê-los contra as exigências e os arrebatamentos dos seus companheiros mais velhos; certo dia não temeu atacar um alto e gordo rapaz de doze anos que, por capricho, queria pôr Artur fora das brincadeiras. Leôncio lutou com tanta valentia, que os outros rapazes, que tinham principiado a rir, assistindo ao combate, se indignaram contra a cobardia do rapagão que socava fortemente Leôncio, a quem dava pontapés; puseram-se no meio dos combatentes e deram uma sova no rapagão, que se chamava Justino, e que, fulo, se foi apresentar noutro grupo, constituído por todos os brigões, batalhadores, vadios, expulsos das outras brincadeiras. Aquele em que se encontravam Leôncio e Artur tomou o nome de grupo dos Verdadeiros Franceses e o de Justino o de Bersaglierí. Nunca entravam reciprocamente nas suas brincadeiras. Aconteceu que algumas vezes os Bersaglierí tentavam provocar os Verdadeiros Franceses com injúrias e punhados de terra atirados contra o grupo.

Mas os Verdadeiros Franceses desprezaram tais insultos, fizeram figas aos inimigos e continuaram a brincar, protegidos pelos guardas do jardim, que os reconheciam pela docilidade e delicadeza.

 

                     A LIÇÃO

Sofia estava sozinha no seu quarto, sentada numa cadeira baixa, em frente de uma mesa em que se viam dois livros, um caderno de papel pautado, uma caneta e um tinteiro. Não lia nem escrevia; conservava-se de braços cruzados e de lágrimas nos olhos. A porta do quarto entreabriu-se; uma cabeça loura surgiu; Sofia virou-se e conheceu sua prima Valentina, mas não deu palavra.

- Não me conheces? - inquiriu Valentina, entrando.

- Muito bem, mas não posso sair daqui - volveu Sofia, com tristeza.

VALENTINA - Porquê?

SOFIA - Porque a minha mestra me ordenou que ficasse aqui até acabar a lição.

VALENTINA - E ainda te falta muito?

SOFIA - Se ainda não comecei!

VALENTINA - Isso é aborrecido! Começa depressa para também acabares depressa e depois vamos brincar.

SOFIA - Não posso acabar depressa porque tenho muito que fazer.

VALENTINA - E, contudo, precisas de acabar.

SOFIA - Não, porque não principiei. Há mais de meia hora que estou aqui.

VALENTINA - Mas tu não podes ficar todo o dia defronte do caderno a olhar para ele.

SOFIA - E contudo assim é preciso, pois tenho muito que escrever e decorar.

VALENTINA - Ouve; deixa ver a tarefa que te deu a mestra.

SOFIA -Aqui tens, vê. Dez grandes linhas a decorar e depois preciso de as escrever em caligrafia apurada. E ainda algarismos que não percebo.

VALENTINA - Achas muito? Eu tenho sete anos como tu, dão-me mais e no entanto faço tudo. Mostra-me o que tens a decorar.

Lendo:

Se eu fora rei, dizia o Gordo João ao Pedro,

Se eu fora rei, eis o que faria:

Teria um cavalo com dois penachos

Para melhor poder guardar os carneiros e as vacas.

Se eu fora rei, se eu fora rei.

Se eu fora rei, lhe redarguiu o Gordo Pedro, Se eu fora rei, eis o que faria: Aliviaria a sorte de meu velho pai. Daria pão alvo a minha mãe, Se eu fora rei, se eu fora rei.

Isto é muito bonito e fácil de aprender; a mim dão-me coisas mais aborrecidas e difíceis, pois não as percebo. Tenta, vais ver como depressa o saberás.

SOFIA - Não, não quero; nunca o saberia.

VALENTINA - Por quem és, Sofia, peço-te, tenta, l faz um esforço. Queres que te ajude? Vamos, começa, e repete comigo... Se eu fora rei...

SOFIA - E que ganharei eu em saber, visto que depois tenho de escrever?

VALENTINA - Ganhas até muito porque, à medida que souberes uma frase, escrevê-la-ás e nunca mais a esquecerás.

SOFIA - Como? Eu não sei fazer isso.

VALENTINA - Vais ver que sabes. Comecemos... Se eu fora rei... Repete comigo: Se eu fora rei...

SOFIA - Se eu fora rei... E depois?

VALENTINA - Agora escreve: Se eu fora rei... Presta atenção, escreve bem; não é comprido... Apenas quatro palavras.

SOFIA - Pronto, já está. E agora? Que é preciso fazer?

VALENTINA -Repete... Dizia o Gordo João a Pedro...

SOFIA -Dizia o Gordo João a Pedro... E depois? VALENTINA - Vamos, escreve no teu caderno. SOFIA -O quê?

VALENTINA - Mas o que acabas de dizer... Dizia o Gordo João a Pedro...

Sofia escreveu. Valentina continuou a ditar-lhe a lição, frase a frase, com uma paciência tanto mais meritória quanto é certo que Sofia fazia de propósito, como quem não percebe e seguia continuamente: E depois? E que mais? Que é preciso fazer?

Valentina esteve várias vezes vai-não-vai para pôr o livro de banda, para dizer a Sofia que estava a fazer-se de novas, mas reprimiu tão bem a sua impaciência, que Sofia não deu por ela. À medida que escrevia a lição, graças à boa prima, sentia desfazer-se-lhe o tédio; recuperava coragem e depois de tudo acabado ainda perguntou: E depois?

VALENTINA, respondeu triunfante-Depois... mais nada. Acabou-se; já escreveste tudo.

SOFIA, surpreendida- - Acabou-se? Julguei que fosse mais comprido.

VALENTINA - Como vês, eu falava verdade. Agora estás mais bem disposta e estudarás as tuas lições com mais facilidade. Vê se já sabes.

Sofia principiou e continuou sem parar, sem hesitar um instante.

- Obrigada, boa Valentina - agradeceu, beijando-a.

- Tiraste-me o aborrecimento, um aborrecimento que me fazia chorar...

VALENTINA, sorrindo - Chorar... um pouco mais por aborrecimento do que por desgosto, não é assim, Sofia?

SOFIA, corando - Sim, é verdade. Estava tão colérica contra a minha mestra que, se não fosses tu, nada teria feito.

VALENTINA - E que aconteceria?

SOFIA - Sei lá!

VALENTINA - Mas sei eu; estarias mais aborrecida e zangada... cada vez mais até a mestra voltar; ralhar-te-ia, terias respondido inconvenientemente; ela queixar-se-ia à tia que, por sua vez, te ralharia também...

SOFIA - E, naturalmente, castigar-me-ia.

VALENTINA - Como vês, ficarias desgostosa, e agora, pelo contrário, estás alegre e bem disposta.

SOFIA - Também é verdade; para a outra vez farei como me ensinaste e o certo é que eu não sabia... Mas ainda tenho outra coisa a fazer. Ora vê como é difícil. Não percebo nada.

VALENTINA - "A Sofia encontrou 2 nozes a um canto, 4 no cesto, 3 na algibeira e 5 na gaveta da mesa. O irmãozinho tira-lhe 2; um rato leva-lhe 1; o gatinho faz rolar 2 para o lume. Com quantas fica?"

SOFIA - Como queres que adivinhe, entre todos estes algarismos, com quantas nozes fico?

VALENTINA - Nada mais fácil, como vais ver. Ora, vejamos em primeiro lugar quantas nozes encontraste. Escreve: 2... 4... 3... 5... Nota como é fácil.

SOFIA -Pronto: 2, 4, 3, 5. dois mil quatrocentos e trinta e cinco.

Valentina fita-a, surpreendida, pega no caderno e dá uma risada. Sofia começa a irritar-se.

SOFIA - De que te ris? Escrevi conforme disseste.

VALENTINA, rindo sempre - Puseste os algarismos ao lado ums dos outros.

SOFIA, impaciente - E como queres que os ponha? VALENTINA - Por baixo uns dos outros Assim:

 

     2

     4

     3

     5

 

SOFIA - E o que dará isso?

VALENTINA - 2 e 4 são 6; e mais 3, 9; mais 5, 14. SOFIA - É verdade, tens razão. Não me tinha lembrado.

VALENTINA - Por conseguinte, tens 14 nozes. SOFIA - Ou, antes, queria ter mas não tenho. VALENTINA - Mas, como vês, isto não passa de uma lição, para te ensinar a contar. Agora conta quantas te tiraram.

Sofia escreve:

 

     2

     1

     2

 

Pronto... pronto... Espera... 2 e 1, 3, depois 2 são 5.

VALENTINA - Muito bem; agora escreve 14 e por baixo 5.

 

   14

     5

 

Esplêndido. Quantas te ficam? 9. Vês como é fácil?

SOFIA - Tens razão! Como fizeste isto depressa! Eu não seria capaz. A mestra nada me explica.

VALENTINA - Quem é?

SOFIA -Uma inglesa... Miss Albina.

VALENTINA - A minha é uma excelente francesa, a menina Frichon.

SOFIA-A minha vontade era que a mãezinha a tomasse também, pois não gosto dos ingleses e nunca aprenderei inglês; preferia saber alemão, como tu.

VALENTINA - Eu tenho uma criada alemã; por isso o sei tão bem. Pede à tia que te dê uma criada alemã.

SOFIA - Vou tentar afastar miss Albina.

VALENTINA -E como?

SOFIA - Nada aprenderei, nada estudarei e então julgar-se-á que a culpa é de miss Albina.

VALENTINA - Isso não, Sofia, era mau para ti, pois serias castigada. Lembra-te de que miss Albina faria queixa de ti; ficarias de castigo e davas prova de mau coração, prejudicando-a.

- É verdade - emendou Sofia, suspirando. - E, contudo, é muito aborrecido aprender inglês.

Assim conversando, as primas arrumaram os livros e os cadernos. Valentina acabou por convencer Sofia de que devia submeter-se à vontade da mãe, estudar as lições que miss Albina lhe marcasse e até aprender inglês. Apesar da sua boa vontade, Sofia não progredia muito nem em escrita, nem em contas e principalmente no inglês; ao fim de um ano não podia conversar em inglês, nem perceber com facilidade o que lia; e para as outras coisas, o resultado era idêntico.

Certo dia - dia do triunfo - miss Albina disse a Sofia, ao despedir-se:

- Despeço-me de vez miss Sofia, porque parto para a Grã-Bretanha e nunca mais voltarei.

 

Sofia soltou um grito de alegria, que miss Albina tomou por grito de desespero; ficou muito lisonjeada e contou em toda a parte que a boa miss Sofia gostava tanto dela, que, ao separarem-se, a pequena quase tinha caído no chão, com o desgosto.

A mãe de Sofia deu-lhe como mestra a menina Frichon, e, a datar de então, Sofia progrediu tanto, que depressa se pôs a par de Valentina. Enfim, o último desejo de Sofia ficou satisfeito de todo, quando a mãe lhe participou que ia ter uma criada alemã, irmã da de Valentina. Foi tal o contentamento de Sofia, que desatou a pular no meio da casa, sem saber onde punha os pés e tanto, que tombou uma mesa em cima da qual estavam um candeeiro e um copo de água com açúcar; o petróleo, e a água entornaram-se sobre o tapete; a mãe gritou, o pai ralhou e Sofia fugiu para o quarto, onde encontrou a criada que acabava de chegar. MINA

Mina era o nome da nova criada de Sofia; nada sabia de francês e Sofia foi obrigada, bem como os irmãos, a aprender muitas palavras em alemão; fizeram tão rápidos progressos, que ao cabo de dois meses, ficaram em condições de não só perceberem o que Mina lhes dizia, mas também de lhe perguntarem em alemão tudo quanto era preciso para a sua vida habitual. Leôncio melhorara muito, de mau que era; ficara-lhe contudo um pouco de malícia e de gosto pela travessura.

Um dia havia muitas crianças em casa da Sr.a de Chattemur; divertiam-se em disfarçar-se de várias maneiras; tinham licença para se servirem dos vestidos, xailes, capas, bonés, etc., da Sr.a de Chattemur, que até as ajudava a mascararem-se. Quando estavam prontas iam à sala mostrar-se; por vezes representavam uma comédia.

A criada e a mãe acabavam de disfarçar Sofia de enfermeira.

- Um guardanapo para servir de braçadeira - pediu a Sr.a de Chattemur. - Mina, arranje-me um guardanapo.

- Que pede a senhora? Não percebi - disse Mina, em alemão, a Leôncio.

- Um bacio - respondeu o pequeno, da mesma maneira.

- Será possível, menino Leôncio?

- É verdade, verdadinha e deve levá-lo à sala porque a Sofia vai fazer de enfermeira da Valentina e o bacio faz-lhe falta.

Mina retirou-se, um pouco enojada. Enquanto esperavam por ela, que já se demorava, Sofia e Valentina entraram na sala; o seu aparecimento, uma de enfermeira e a outra de doente com uma touca de algodão na cabeça, envergando um vestido de casa transformado em roupão, provocou um ataque de riso em todos os assistentes. A alegria duplicou quando a porta da frente se abriu quase ao mesmo tempo e deixou ver Mina, perturbada e corada, que surgira com o bacio -na mão e se dirigia para Sofia.

- Não quero isso, não quero isso! - gritava Sofia, rindo e fugindo.

 

Mina, vermelha e enleada, perseguia-a sem proferir palavra, e, não conseguindo fazê-la aceitar aquele objecto, apresentou-o a Valentina. Os risos redobravam assim como o enleio de Mina, que explicava em alemão ao Sr. de Chattemur que cumpria uma ordem da sua patroa. Ninguém percebia as palavras da pobre rapariga; supunham que também desempenhava um papel; as crianças torciam-se a rir; Leôncio estava radiante com o efeito da sua travessura. Desatou a saltar em volta de Mina; a doente, a enfermeira e os outros pequenos juntaram-se-lhe e a pobre alemã, cercada, perdeu a cabeça, deixou escapar das mãos o bacio, de que não pudera libertar-se e, ao vê-lo quebrado, lançou a Leôncio um olhar suplicante e desatou a chorar.

O PAI - Que foi isto? Parece-me que Mina está a chorar; é alguma coisa arranjada por vocês?

Leôncio, que estava longe de esperar este desfecho da comédia e que julgava ter feito apenas um inocente gracejo, ficou muito penalizado com o desgosto de Mina e, abeirando-se dela, explicou-lhe, em alemão, que o caso não passava de uma brincadeira; que a mãe não lhe pedira o bacio, mas um guardanapo e que ele quisera apenas alegrar um pouco a brincadeira. E em francês explicou o mesmo ao pai.

LEÔNCIO - Asseguro-lhe, paizinho, que estou arrependido por ver a pobre Mina afligir-se com uma coisa tão simples: se eu adivinhasse que a desgostava, decerto não o teria feito.

O SR. DE CHATTEMUR - Se Mina estivesse numa casa há muito tempo, com certeza não estaria tão tímida e envergonhada como está. Não esqueças que há sempre grande diferença entre um criado antigo e um criado moderno, que não sabe se agrada ou desagrada. Aposto em como está inquieta, imaginando tomarmos o seu desaire por uma falta de respeito.

Quando Leôncio, virando-se para Mina, a interrogou, ela disse temer que lhe ralhassem.

- Seu pai e estes senhores e senhoras vão-me julgar bastante atrevida, menino Leôncio, e formarão má opinião de mim, e isso assusta-me muito.

LEÔNCIO - Nada disso, minha boa Mina; acabo de explicar a toda a gente que a culpa foi minha, que fui eu quem a fez acreditar que a mãezinha ordenava que trouxesse esse bacio para a comédia da Sofia; e o paizinho disse-me que andara mal e que precisava de a sossegar, porque todos sabem que lhe fiz uma estúpida partida.

MINA - Obrigada, menino Leôncio; agora estou mais tranquila.

Mina apresentou alguns cumprimentos de desculpa e de agradecimento e foi-se embora, levando os cacos do bacio, que as crianças ajudaram a apanhar.

SOFIA - Porque disseste aquilo à Mina, Leôncio? Isso não se faz.

LEÔNCIO - Afianço-te que estou zangado comigo mesmo, pois não julgava causar-lhe desgosto. Contudo, devemos confessar que foi um pouco pateta em desatar a chorar.

VALENTINA - Não, senhor. Não é nada pateta; isso prova, pelo contrário, que é bastante inteligente.

LEÔNCIO - Como? Não percebo.

VALENTINA - Aqui está! Também não percebes nada. A Mina pensou logo que tinha ar de quem zomba das pessoas que estavam na sala e, como é muito bondosa e muito delicada, ficou penalizada. E tu... tu continuas a ser ruim.

LEÔNCIO - Ora... deixa-me em paz! Não o fiz por maldade e já não sou ruim.

VALENTINA - Então és estúpido.

LEÔNCIO, reflectindo - É possível. Não digo o contrário... Mas... prefiro ser estúpido a ser mau. Quando eu era ruim, sentia doer-me o coração e nunca estava satisfeito. Quando faço um disparate, zango-me por ter causado pesar; mas não é a mesma coisa... Nem sei como explicar isto.!

VALENTINA - Afinal, meu pobre Leôncio, és bom e não és nem ruim nem estúpido; estava um pouco agastada contigo por haveres feito chorar Mina, que é irmã da minha criada, a quem muito estimo; perdoa-me e beija-me.

Leôncio e Valentina beijaram-se com ternura.

O pai de Valentina, que os ouvira, chamou Leôncio.

- Queres que te explique, meu amigo, o que, há bocado, não podias perceber?

LEÔNCIO -Sim, tio, peço-lhe.

O SR. DE RÉGIS -Quando causas desgosto a ?alguém, sem querer, o teu coração sofre porque é bom, mas a tua consciência permanece tranquila.

VALENTINA - Então, paizinho, que diferença existe entre o coração e a consciência? Onde está a consciência? Fica perto do coração?

O SR. DE RÉGIS - A diferença, minha filha, é que pelo coração amamos, afligimo-nos, regozijamo-nos, e pela consciência sentimos que procedemos bem ou mal, sentimos que merecemos um castigo e que o teremos. Este é o motivo por que o Leôncio sentia esse mal-estar, essa tristeza que o tornava infeliz quando era ruim.

LEÔNCIO - Ah, sim, sim! Agora compreendo. Posso corrigir o desgosto que causei e não posso evitar o castigo que mereci.

O SR. DE RÉGIS - Isso mesmo; compreendeste muito bem.

VALENTINA - Mas, paizinho, não me disse onde estava a consciência. Não a sinto em parte alguma.

O SR. DE RÉGIS - Sim, não está em parte alguma. Ê um pensamento e tu não podes ver nem tocar nos pensamentos.

VALENTINA, baixo, a Sofia - Percebeste, Sofia?

SOFIA, do mesmo modo - Nada. Não percebo coisa nenhuma.

VALENTINA -O mesmo se dá comigo.

SOFIA - Bem, vamos brincar. Onde está o Artur? Olha, está ali a dormir no divã. Anda brincar, Artur.

VALENTINA - Nem se mexe. Como dorme! Camila, Madalena, venham ver como o Artur dorme profundamente, não ouve nada.

CAMILA - Pobre pequeno! Deixemo-lo dormir. Como está bonito! Mandemos o Luís chamar Mina, que o deitará na cama. Luís! Onde é que ele está?

SOFIA - Procuremo-lo; naturalmente escondeu-se.

Os pequenos procuraram e chamaram o Luís por todos os lados.

- A tia naturalmente mandou-o para casa - lembrou Sofia.

CAMILA - Talvez; perguntemos-lhe... Tia, não achamos o Luís; mandou-o para casa deitar-se?

- Não - respondeu a Sr.a de Préau. - Está escondido em qualquer parte.

SOFIA - Mas nós fartámo-nos de o procurar.

A Sr.a de Préau, um pouco assustada, levantou-se para procurar com os filhos. Ao entrar no quarto de dormir da Sr.a de Chattemur, viram, ou melhor, ouviram o cãozinho a latir, receoso e zangado, junto da sua casota, onde queria entrar mas sem se atrever.

- Que tem ele para estar assim a ladrar? - indagou a Sr.a de Préau aproximando-se da magnífica e bonita casa, forrada de veludo vermelho, almofadada de tafetá. Baixou-se, viu qualquer coisa escura por que puxou - era o Luís que se escondera na cama do Bonito,ao qual expulsara ao ouvir as primas chamarem-no. O cachorro traíra-o.

A SR.a DE PRÉAU - Há um quarto de hora que as primas andam à tua procura; porque não respondias, Luís?

LUÍS - Queria fazer-lhes acreditar que me tinha perdido: se não fosse o palerma do cão, nunca mais me encontrariam.

A SR.a DE PRÉAU -E não te lembraste de que ficaria ainda mais inquieta do que já estava e que teria grande desgosto em não te encontrar.

LUÍS - Estava já inquieta, mãezinha? Porquê? Eu sentia-me tão bem ali!

A SR.a DE PRÉAU -Mas nós não sabíamos! Receava que tivesses fugido para a rua e sei lá que mais...

LUÍS - Perdão, mãezinha, estou bastante penalizado; não imaginei que lhe causaria desgosto.

A SR.a DE PRÉAU - Para outra vez, quando souberes que te procuram há muito tempo e com inquietação, sai do teu esconderijo ou responde. Deixaremos de estar assustados.

Luís prometeu. Entretanto, Mina encontrara Artur a dormir no divã e levara-o, despira-o e metera-o na cama sem que acordasse. Era muito tarde; levaram também os outros pequenos. Sofia e Leôncio foram igualmente deitar-se. E assim findou o divertido serão.

NO CAMPO -AS CASTANHAS

Em meados do Verão, a Sr.a de Fleurville reuniu em sua casa, grande parte da família; os pequenos eram em grande número e aproveitavam-se dos prazeres inocentes que o campo oferece em todas as estações.

- Venham depressa, todos, procurar e apanhar castanhas! - gritava Jaime, aos primos, sentados em volta de uma pilha de flores, que colhiam e metiam em açafates para uma procissão que devia realizar-se no dia seguinte, na aldeia. - Aviem-se; toda a gente se vai embora.

HENRIQUETA - Toda a gente? Quem?

JAIME - Os trabalhadores da quinta! Vão trepar aos castanheiros, sacudir os ramos, as castanhas cairão e nós apanhá-las-emos e depois, sentar-nos-emos debaixo das árvores, comendo pão e queijo e bebendo cidra.

- Já vamos! Já vamos! - responderam as crianças em coro, levantando-se prestes.

- E as flores? E a procissão? - observou Camila, em tom consternado.- Voltaremos mais tarde; temos tempo! - responderam os pequenos, fugindo.

Camila ficou só, junto das flores espalhadas na sua frente.

- São novos - disse, suspirando-, mais novos do que eu. Gostam de brincar; é muito natural.

E a bondosa Camilita apanhou as flores, meteu-as nos açafates colocados na relva e continuou a colhê-las e a encher os cestos.

- Ali há mais flores para colher, mas os açafates já trasbordam; vejamos se cada um de nós tem o seu.

E Camila pôs-se a enumerar as crianças e a colocar em cada açafate os bilhetes com os nomes.

 

- Madalena... Isabel... Henriqueta... Maria Teresa... Margarida... Leôncio... Artur... Luís... Jaime... Valentina... Armando... Sofia... Paulo... Pedro... Henrique... Castão... Ora, não há nenhum para mim. E no entanto, está aqui o bilhete com o meu nome... Poderia muito bem substituí-lo pelo de Paulo; é tão pequeno que se contentaria com um saquinho ou um lenço... Não; seria mal feito, seria egoísmo; o pobre petiz não se pode defender... Talvez chorasse... E eu já sou crescida... posso muito bem passar sem cesto... Em vez de seguir com as crianças da procissão que atiram flores, seguirei ao lado da mãezinha... Em todo o caso faz pena!... - acrescentou, suspirando. - Gostava tanto de atirar flores a Nosso Senhor!... E se eu trocasse os bilhetes? Bem, bem! Nada de fraquezas, nada de egoísmos! Adeus, flores! Adeus, açafates! Já não quero vê-los... Tentam-me demasiado.

E, correndo para casa, chamou a criada:

- Ama. minha boa ama, todos os cestinhos estão prontos para amanhã, em cima da relva do jardim; fá-los transportar para os nossos quartos. Os nomes estão nos açafates.

E Camila correu a juntar-se aos primos; chegou entre risos e gritos jubilosos. Os rapazes estavam empoleirados nos castanheiros; abanavam os ramos, fazendo cair uma chuva de castanhas; os que se encontravam em baixo apanhavam com elas nas costas ou em cima das cabeças.

- Parem! Parem! Isto dói - gritavam.

- Cuidado lá em baixo! - avisavam os rapazinhos, sacudindo com gana os ramos.

Nos intervalos, todos se precipitavam para apanhar a maior porção possível de castanhas; cada um tinha o seu monte. Quando Camila chegou, havia alguns muito grandes, outros muito pequenos. Estes eram dos quatro mais novos: Paulo, Castão, Armando e Maria Teresa. Estavam os quatro junto dos seus montes e contemplavam-nos com tristeza.

- Vê, Camila, se temos poucas é porque somos pequeninos; os maiores são mais desembaraçados: apanham tudo.

E, contudo, os pequenitos estavam corados e alagados em suor, tanto trabalho haviam tido para conseguir os míseros montinhos.

CAMILA - Esperem, meus amores; descansem enquanto vou apanhar mais; vou tentar fazer uns montes tão grandes como os dos outros.

CASTÃO, gritando - Verdade, verdadinha?

- Obrigado, obrigado, boa Camila - bradaram

em coro.

Camila meteu mãos à obra, com tal zelo. que assustou os outros.

JAIME - Andas depressa de mais, Camila; assim apanhas tudo.

LUÍS -Vais ficar com um monte maior do que os nossos, embora só agora tivesses chegado!

HENRIQUETA-Toma cuidado, Camila. Estão a sacudir as árvores.

CAMILA-Não faz mal. O chapéu protege-me a cabeçâ.

E, enquanto os outros fugiam, Camila continuava a apanhar castanhas. Quando tinha o avental cheio, despejava-o nos montes dos mais pequenos, que saltavam em volta deles à medida que os viam crescer.

 

Camila, porém, embora destra, não podia fornecer castanhas bastantes para tornar os quatro montes tão grandes como os dos outros, que trabalhavam cada um para o seu. O exemplo de Camila deu aos pequenos vontade de fazer como ela; todos se empenhavam em apanhar as castanhas com admirável ardor; os montes cresciam a olhos vistos; os dos quatro pequenitos aumentavam também, mas não tanto.

- Como estás cansada, pobre Camila! - disse Gastão, detendo-a para a impedir de continuar a tarefa.

- Descansa, Camila-pediu Armandinho.

- Sim, sim, descansa - recomendaram Paulo e valentina.

CAMILA - Mas os vossos montes ainda não estão grandes, meus amorzinhos.

MARIA TERESA - Não faz mal; agora, já tenho Bastantes; não quero que te canses mais!

ARMANDO - Como estás corada e fatigada, Camila! PAULO - E como transpiras!

- Quem é que quer assar as castanhas? - bradou Isabel.

- Eu! Eu! - responderam todos os outros ao mesmo tempo.

ISABEL - Então vão apanhar lenha. Todos correram para o mato, rebuscando ao longo das sebes e apanhando ramos secos.

- Está bem, está bem - volveu Camila, rindo. Vamos adiantar o nosso trabalho entretanto. Digam-me, rapazinhos - inquiriu dos pequenos, que estavam empoleirados nas árvores. - Querem ajudar-me a apanhar castanhas? Cada um de vocês receberá uma dúzia pelo trabalho.

- Com certeza, menina Camila, e com grande prazer - responderam os garotos, escorregando lentamente para o chão.

Eram oito e todos se entregaram à tarefa. Como se encontravam folgados, o trabalho caminhou depressa e, dentro de alguns minutos, houve tantas castanhas, que os montes dos quatro pequenitos ficaram maiores do que os dos outros. As crianças estavam radiantes: corriam de um monte para o outro para avaliar o tamanho; mediam-nos com pequenas varas.

ARMANDO - Olha, Maria Teresa, vê como o meu está grande.

ISABEL - E o meu, repara, tão grande como o do Leôncio.

PAULO - E o meu está quase do meu tamanho.

GASTÃO -E o meu... Esse, então, parece uma montanha.

ARMANDO -E onde está o da Camila?CAMILA - Eu não tenho; cheguei tarde de mais. MARGARIDA - Como, tarde de mais? Foste tu que fizeste crescer os nossos montes.

CAMILA - Mas foi para os ajudar, porque vocês eram muito pequenos.

GASTãO - Nesse caso, não quero o meu, se não tens; será para ti.

ARMANDO - E o meu também; guarda-o, minha boa Camila.

ISABEL - Eu também prescindo do meu a favor de Camila.

PAULO - Aqui tens, Camila, aqui tens o meu monte. Só tens de esperar que eu encha as algibeiras... e depois o chapéu... e depois o lenço... e depois... onde mais, hem?

E, enquanto falava, Paulo enchia as algibeiras e preparava-se para fazer o mesmo ao chapéu e ao lenço.

CAMILA, rindo - Guarda tudo, meu pequenito. É tudo para ti; eu não quero, acredita. Agradeço a todos, meus queridos pequenos; são muito amáveis. Quando as tiverem assadas, bem satisfeita ficarei se cada um de vocês me ceder duas.

PAULO - Tantas quantas quiseres; até todas, se o desejares.

Camila viu que os oito rapazes esperavam a prometida recompensa.

CAMILA - Já me esquecia, meus pequenos; aqui têm a parte que compete a cada um.

 

Camila tirou de um dos montes com que pagar a dois pequenitos, e como havia oito pagou a todos, dos quatro montes. Os garotos foram-se embora, contentes. Camila esperava, com os primos, o regresso dos mais velhos, que riam, davam cambalhotas e soltavam gargalhadas. Por fim, apareceram, cada um por seu lado, um de um valado, outro transpondo uma sebe, o terceiro surgindo entre duas árvores e todos trazendo um feixe de lenha à cabeça, ou às costas.

Atiraram com a lenha para perto dos montes de castanhas e juntaram-se em volta para ver se era bastante.

MADALENA - Não será precisa mais, Leôncio?

LEÔNCIO - Não; esta já deve chegar, Madalena, Sossega; há aqui para fazer uma fogueira.

ISABEL -E tu, Camila? Que estás aí a fazer? Pareces cansada!

PAULO - E é natural que isso aconteça, pois a pobre Camila, se assim está, foi para nos alegrar! Apanhou castanhas para os quatro em tamanha quantidade, que se cansou.

ARTUR - É verdade. Que grandes montes!

LUÍS - São maiores do que os nossos.

HENRIQUETA - Mas que belas castanhas!

JAIME - E aquele é o monte da Camila?

CAMILA - Não tenho, nem preciso.

JAIME - Precisas tanto como nós.

CAMILA - Os pequenos prometeram dar-me quando estivessem assadas.

JAIME - Quantas?

OS QUATRO PETIZES, em coro - Duas cada um e já é muito.

JAIME, indignado - Parece impossível! Então a pobre Camila esfalfou-se para lhes apanhar as castanhas e vocês só lhe dão duas cada um?...

ARMANDO - Não fales tão alto, pois nem tu nem os outros maiores lhe deram uma única.JAIME - Eu não dei porque não sabia que Camila trabalhava para vocês, em vez de trabalhar para ela. Mas, agora, que sei, dar-lhe-ei metade do meu monte.

- E nós também! - acrescentaram os outros.

GASTÃO - Não. Camila receberá as nossas. Fomos os primeiros a oferecê-las e antes que Jaime tivesse vindo; tu bem sabes, Camila.

CAMILA - Vocês todos são muito bonzinhos, e agradeço-lhes. Sabem o que é preciso fazer? Juntemos todas as castanhas e vamos dividi-las igualmente. ISABEL - É uma ideia excelente. HENRIQUETA - Que monte não vai ser! VALENTINA - Ouçam! Leva tempo a repartir. Antes de começar, acendamos a nossa fogueira para assar as castanhas que vamos comer.

LEÓNCIO - Mas para acender são precisos fósforos. LUÍS - Preparemos primeiro a lenha; tudo está a monte em cima da erva; é preciso fazer uma pequena fogueira.

MADALENA - Mas, como é que as castanhas se assam na chama? Queimar-se-ão.

ISABEL - Vão rebentar e saltar-nos para a cara. SOFIA - Tenho uma ideia. Abrimos uma cova no chão; colocamos a lenha no fundo, depois um bocado de terra, em seguida as castanhas e por cima mais uma porção de lenha. Assim, as castanhas assam suavemente, como se estivessem debaixo de cinza.

 

As crianças, encantadas com a ideia de Sofia, principiaram a escavar com os ramos, com as facas e até com os dedos; e, dentro em pouco, a cova ficou aberta. Deitaram nela pequenos bocados de lenha e depois puseram as castanhas.

- Esperem! gritou-lhes Camila. - Golpearam as castanhas antes de as meterem na cova?

ARTUR - Golpeá-las, para quê? CAMILA - Se não as golpearam, saltam e vocês queimam-se.

LEÔNCIO - Não é possível, porque lhes pomos terra por cima e um montão de lenha. Achas que as castanhas farão saltar o montão?

CAMILA - Sim senhor e mais alto do que tu.

SOFIA - Ora, isso são tolices; não fazem saltar nada; deixem-me proceder e não se assustem.

JAIME - Seja como for, eu não ficarei ao pé. Parece-me que a Camila tem razão.

VALENTINA - E eu acompanho-te. Sempre é mais seguro.

MARGARIDA - Eu vou para junto de Camila. Tenho medo.

- E eu também - declararam os outros, que começavam a acreditar que a prevenção de Sofia não fosse infundada.

PAULO - E nós para onde vamos? Para casa?

- Não, não é preciso ir para tão longe - respondeu Camila, rindo. - Cheguem-se apenas um pouco para trás.

Leôncio fora buscar fósforos; estava tudo pronto; acendeu com eles as folhas secas que estavam nos ramos; em dois minutos a lenha ardia. Camila levara os pequenos para muitos passos de distância; todos a haviam acompanhado; a própria Sofia se afastara, embora rindo dos sustos.

A fogueira ardia, a lenha consumia-se e nada saltava. Sofia começava a triunfar.- SOFIA - Eu bem disse que não havia perigo.

CAMILA - Espera um bocadinho; as castanhas só saltam quando estão muito quentes, pois a pele estoura, abrindo-se.

SOFIA - Mas tu bem vês que a fogueira está a apagar-se.

JAIME - Na verdade, parece que podemos...

O pequeno não teve tempo de concluir a frase; forte explosão se fez ouvir e viu-se que as castanhas, a cinza, os pequenos bocados de madeira queimada saltavam em todos os sentidos e a distância bastante grande do lume para fazer fugir os pequenos mais longe ainda.

- Camila tinha razão - volveu Jaime, quando o susto passou.

SOFIA - Parece impossível que as castanhas possam atirar para tão longe o lume e a cinza! Se não visse, não acreditava.

HENRIQUETA - Foi uma felicidade Camila ter-nos avisado. Ficaríamos queimados vivos, graças à feliz ideia de Sofia.

SOFIA - Que tolice! Queimados vivos! Apenas a cinza nos atingia.

ISABEL - Cinza na cara, nos olhos, brasas ardentes na roupa, que se incendiaria.

SOFIA - Então rolaríamos pela erva! Não era coisa difícil.

CAMILA, jubilosa - Mas foi muito melhor que tal não acontecesse. Deus preserva-nos hoje como sempre. Agradeço-Lhe de todo o coração.

ARMANDO - E as nossas castanhas? Ficamos sem elas.

PAULO - Pois gostava bastante de comer uma.

LUÍS - E como há-de ser?

CAMILA - Sabem o que é preciso fazer? Vamos procurar os carrinhos de mão e a carrocita, carreguemo-los com as castanhas e levemo-las para casa: o cozinheiro assará quantas quisermos.

MADALENA - Pois sim, vamos, vamos! Cada um toma conta do seu carrinho. Camila, Pedro e Leôncio puxarão a carrocinha.

Partiram todos de corrida a ver qual era o primeiro a chegar; os quatro pequenitos ficaram para trás, apesar dos seus esforços. Camila, sempre bondosa e atenta, ao vê-los quererem apressar-se sem conseguirem chegar, voltou para trás.

- Não vamos mais longe, meus amores; esperemos por eles; hão-de passar por aqui.

- É verdade. Já estou cansado! - volveu Gastão, deixando-se cair por terra.

Paulo, Armando e Maria Teresa sentaram-se junto dele e de Camila. Esperaram, esperaram durante muito tempo. Ninguém voltou. Camila começava a achar grande a demora; os pequenitos estavam aborrecidos e queriam regressar.

- Vamos - aceitou Camila.

Levantaram-se e dirigiram-se vagarosamente para casa. Estava tudo sossegado quando chegaram; não se via nem ouvia coisa alguma. Camila perguntou ao cozinheiro se não tinha visto os primos.

- Sim, menina, já voltaram há bocado; comeram as castanhas que tinha para eles e que acabara de assar...

- E nós? E nós - bradaram os quatro petizes.JANUÁRIO - Também querem? Tirem daqui as que quiserem.

E apresentou-lhes uma grande tigela cheia de castanhas ainda quentes, o que os consolou da longa espera e do seu aborrecimento. Camila comeu também.

CAMILA - Sabes para onde foram, Januário?

JANUÁRIO - Para o pomar, colher uvas.

OS PEQUENITOS - Vamos também; Camila, vamos ao pomar, anda. Devem ser boas as uvas, depois das castanhas.

Camila foi com eles ao pomar, onde encontraram os primos em cima de escadas a colher cachos de uvas que metiam em cestos.

CAMILA - Acham bonito terem-nos abandonado? Esperámo-los lá em baixo, contando que voltassem!

- Como? Pois tinham ficado para trás à nossa espera? Coitados! Nós não sabíamos.

Jaime desceu da escada, segurando o seu cesto da vindima, que ofereceu a Camila, e esta tirou um cacho; depois, os pequenitos caíram-lhe em cima e apanharam tantos quantos as mãozinhas puderam conter.

CAMILA - Jaiminho, queres chamar as criadas? Já estou cansada de tomar conta das crianças.

Jaime pousou o cesto no chão e correu a chamar as amas, que libertaram Camila do seu encargo. Todas as crianças foram oferecer uvas a Camila, que aceitou um cachinho de cada uma.

- E que é feito das nossas castanhas? - inquiriu. LEÔNCIO - Mandaram-nas buscar numa carrocinha e hão-de colocá-las debaixo do telheiro.

MARGARIDA - O que é cómodo, pois iremos lá buscá-las quando quisermos.

HENRIQUETA -E onde estão as nossas flores? Desapareceu tudo! Flores, açafates, tudo?

CAMILA - Fui eu quem arrumou num açafate as flores que colhi.

ISABEL- Obrigada, Camila! Como és bondosa! Foi por isso que foste tão tarde ter connosco aos castanheiros?

CAMILA - Foi, pois queria que tudo estivesse pronto para amanhã.

Todos os pequenos lhe agradeceram e pediram para ver os açafates.

- Estão nos seus quartos - indicou Camila. - Cada açafate tem o nome escrito num bilhete preso na asa.

 

                     A RECOMPENSA

No dia seguinte havia festa na aldeia; realizava-se uma procissão com estandartes levados por meninas vestidas de branco; Camila devia ir à frente, como a mais velha. Mas como podia ela, sem flores e sem açafate, colocar-se à cabeça das outras meninas? Era Camila quem devia dar o sinal de paragem, atirando flores diante dos estandartes da Virgem. Poderia dar parte do seu impedimento aos primos, mas não quis porque sabia que todos lhe cederiam o seu açafate, e os privaria do prazer por que esperavam havia oito dias.

"Não farei isso - disse consigo -, pois sei, por mim própria, o desgosto que sentiriam. Eu, como mais velha, devo ser a mais ajuizada e saber privar-me para agradar aos outros; Deus saberá recompensar-me do sacrifício." E a hora avizinhou-se; Camila não sabia como proceder; por fim, encontrou uma solução.

Meia hora antes da partida, pediu licença à mãe para sair primeiro a fim de atravessar a mata e visitar um pobre velho que estava muito doente.

- É melhor vires por lá depois da missa e da procissão - respondeu-lhe a mãe. - Não esqueças que tens de levar o teu açafate, que te há-de estorvar durante o teu longo trajecto.

CAMILA - Oh, não, mãezinha! Os açafates seguem todos juntos e encontrá-los-emos na sacristia.

A MÃE - Isso não é de pessoa ajuizada, Camila. Não podes ir sozinha pela mata; não tens quem te acompanhe.

CAMILA - Peço-lhe, mãezinha.

A MÃE - Mas, que tens para pedires com tanta insistência uma coisa pouco ajuizada? Escondes qualquer motivo. Vamos, Camila, diz-me a verdade. Porque não queres ir com teus primos?

Camila julgou acertado não ocultar por mais tempo a verdade à mãe; contou-lhe então o que se dera com os açafates e como queria renunciar a incorporar-se na procissão.

- Concorde, mãezinha - acrescentou, tomando um ar risonho -, que não me havia de penalizar muito caminhar atrás da procissão consigo, em vez de ir à frente; pelo contrário, pois veria o efeito que eles produziriam atirando as flores.

- És uma excelente rapariga - tornou a mãe, beijando-a- e mereces bem a surpresa que os primos e todas as crianças da aldeia te querem fazer.

CAMILA - Que surpresa, mãezinha? Não me disseram nada.

A MÃE - Visto tratar-se de uma surpresa, não deviam dizer-te nada; eu, no entanto, estou no segredo.

CAMILA - E traiu-o por bondade comigo, mãezinha.

A MãE - Assim é, mas não podia nem devia deixar-te na preocupação que me contaste e na tristeza que via transparecer no teu semblante sempre tão jovial. Partamos agora para nos juntarmos aos que nos esperam.

- Camila! Onde está Camila? - indagavam os pequenos quando ela entrou.

CAMILA - Estou aqui, meus amigos; venho com a mãezinha.

ISABEL - E onde tens o teu açafate? Cada um de nós leva o seu.

- Não tenho - volveu Camila, após curta hesitação.

- Não tens? Pois precisas de ter um. Vai buscá-lo, anda, avia-te.

- Já disse que não tenho - repetiu Camila. Os pequenos fitaram-na, admirados.

A MÃE - Camila achou a menos um açafate, meus filhos; como foi ela que os encheu e marcou para todos, sacrificou-se, consoante é seu costume; privou-se de um prazer para que nenhum de vocês fique descontente.

- Boa Camila! - bradaram os pequenos, uns após outros, com visível enternecimento. - Boa Camila! repetiram.

Todos quiseram fazê-la aceitar o seu açafate conforme previa; por mais que recusasse, suplicaram-lhe com tanta insistência e, bom é confessá-lo, com tanto barulho, tal impertinência, que ela não sabia a qual atender. A mãe, depois de ter rido durante alguns instantes com os seus clamores e os seus pulos, chamou-os, dizendo-lhes que tinha um segredo a confiar-lhes e 83

que Camila não devia ouvi-lo. Acorreram todos e, depois de haverem escutado o que a Sr.a de Fleurville lhes tinha a dizer, acalmaram e sossegaram, sorrindo maliciosamente.

MARGARIDA - É verdade; Camila não precisa de açafate.

SOFIA - Cala-te, pois já estão a falar de mais.

MARGARIDA - Eu não disse nada. Não é verdade, Camila, que nada sabes?

SOFIA-E lá tornas tu! Cala-te, já te disse...

JAIME - Deixa-a, Sofia; não fez mal nenhum; é tão pequenina!

A MÃE - Então! Basta de discussões. Já estamos atrasados; partamos depressa.

Todos se puseram a caminho para se juntarem às crianças da aldeia, que esperavam no largo; acharam-nas agrupadas. As crianças tomaram o seu lugar para entrarem na igreja. Quando chegaram a alguns passos da porta, viram surgir o cura, empunhando um pequeno estandarte de seda branca, em que estava pintada uma imagem da Virgem; por baixo viam-se bordados em letras de ouro os seguintes dizeres:

AFECTUOSA OFERTA

DE TODAS AS CRIANÇAS QUE ASSISTIRAM

À PROCISSÃO

DE 16 DE OUTUBRO

À MENINA CAMILA DE Fleurville, A MELHOR DE TODAS. O abade adíantou-se e procurou com os olhos Camila que, como não levava açafate, se colocava atrás das crianças e perto da mãe.

- Menina Camila - disse ele -, tenha a bondade de vir receber o presente das crianças da aldeia, de seus primos e amigos, como prova de gratidão e afecto.

Camila, deveras surpreendida, adiantou-se e recebeu das mãos do sacerdote o bonito estandarte cuja inscrição ele lhe fez ler. Lágrimas de felicidade inundaram os olhos de Camila, que se virou para as crianças agrupadas, agradecendo:

- Obrigada, meus amigos; mil vezes obrigada. Como são bons e amáveis! Eu é que lhes devo estar grata. Que boa e amável surpresa! Obrigado, Sr. Abade - acrescentou, voltando-se para ele. - Tenha a bondade de benzer o estandarte e quem o há-de levar.

E, ajoelhando-se aos pés do cura, com o estandarte inclinado para ele, recebeu a bênção.

 

As filas tornaram a formar-se, com Camila à frente da procissão. Todos admiravam o estandarte e a encantadora menina que o conduzia com tanto recolhimento. Camila sentia-se feliz, mas não vaidosa, pois não sabia o que era orgulho e tomava como um acto de bondade o que não era mais do que a justa recompensa da sua própria bondade, da sua dedicação e da sua modéstia. Finda a cerimónia, Camila pediu ao Sr. Abade licença para oferecer o seu estandarte à Virgem. O sacerdote acedeu e Camila foi levar o bonito estandarte para, junto do altar.

VALENTINA - Porque não trouxeste para casa a oferta que te fizemos? Esse estandarte honrava-te.

CAMILA - Honrar-me-ia demasiado. Em qualquer ocasião poderiam julgar-me melhor do que sou. Além disso, um estandarte fica melhor numa igreja do que num quarto.

VALENTINA - Que fazes para ser tão boa? Nunca te zangas, nunca te queixas de ninguém.

CAMILA - E porque deveria zangar-me? E de quem poderia queixar-me? São todos tão bons para mim!

VALENTINA - Nem sempre. Assim, quando pus cera no teu bordado... Achas que foi bonito?

CAMILA - Fizeste-o por falta de jeito e não por maldade.

VALENTINA - Não sei... Um pouco por maldade também, porque me não deixaste contar os teus fios de seda. Vês? Encontras sempre motivos para não acusar.

CAMILA - Tentas fazer-me orgulhosa e isso não é bonito.

Valentina beijou a encantadora Camila e foi ter com os seus amiguinhos.

A RATOEIRA

ARMANDO - Minha ama, ouves este ruído? Que é? Olha, lá está outra vez.

A AMA - É um rato que está a roer dentro do armário... Sempre faz uma bulha!

ARMANDO - Gostava de o ver, ama. Não abres o armário?

A AMA - Mas se o abrir, o rato foge e o menino não vê nada.

Armando não quis acreditar no que a ama lhe dizia: foi abrir o armário, ouviu um pequeno roçagar do papel que se encontrava em baixo e nada mais. Olhou, procurou por todos os lados e de rato nem sombra.

ARMANDO - Onde está ele? Por onde fugiu?

A AMA - Tão pequeno buraco basta para um rato poder passar, que o menino não dará por ele.

ARMANDO - E como se apanham?

AMA - Com uma ratoeira.

ARMANDO - E que é uma ratoeira?-

A AMA - É uma casinha em que se mete manteiga, queijo ou uma noz, presos a um cordel, e quando o rato entra nessa casinha e rói o que lá está dentro, fica preso.

ARMANDO - Ó minha ama, vê se consegues apanhar um.

A AMA - Vou já arranjar uma ratoeira; daqui a bocado vamos tentar apanhar este rato.

Armando correu para a ama a fim de ver como ela arranjava a casinha. Encontrou Henrique, que lhe perguntou onde ia a correr.

ARMANDO - Vou com a ama arranjar uma casa para apanhar ratos.

HENRIQUETA - Deve ser engraçado! Eu também quero ver.

- E eu também! - concluiu Paulo, que brincava no pátio, ao pé da cozinha.

 

Em menos de cinco minutos, todos os pequenos se agruparam e encheram a cozinha. Não eram, felizmente, horas de jantar, de maneira que não incomodaram ninguém, excepto a ama a quem rodearam tão de perto, que ela não podia estender os cordéis: um empurrava-a com o cotovelo, o outro pisava-lhe os pés e o terceiro puxava-lhe as mãos para ver melhor. Por felicidade era meiga e paciente, de maneira que não se zangava; acabou por arranjar a ratoeira.

- Agora - recomendou - ninguém lhe toque. Vou armá-la e pô-la no armário.

Todos os pequenos a seguiram.

A AMA - Se vocês continuam a fazer esse barulho lá no quarto, o rato foge para outra parte e não poderemos apanhá-lo.

- Schiu! Schiu! - fizeram os petizes, esforçando-se por não fazerem barulho, Não me empurres, Leôncio.

- Estás a pisar-me, Henrique.

- Não me faças doer as costas, Isabel.

- Ai! ai! Tu sufocas-me! - gritou Paulo.

Por fim, conseguiram instalar-se e manter-se quietos. Ao cabo de alguns instantes, ouviu-se o pequeno remexer de papéis no armário, depois um estalido seco e nada mais.

- O rato foi apanhado - disse a ama, passados instantes.

- Foi apanhado! Foi apanhado! - gritaram os pequenos, simultaneamente.

A ama abriu o armário, tirou a ratoeira, onde estava um grande rato estrangulado, pendendo de um dos buracos da ratoeira.

- Aqui têm! - disse a ama, desprendendo o arame que estrangulou o animal.

ARMANDO - Mas ele não se mexe! Tem os olhos fechados!

A AMA - Porque está morto; o arame estrangulou-o. ARMANDO - Mas eu não quero que esteja morto! Pobre rato! Julguei-o vivo.

A AMA - Para o ter vivo é preciso uma ratoeira de outro género, com uma pequena porta e uma rede de arame na outra extremidade.

ARMANDO - Minha boa ama, peço-te, vai buscar uma ratoeira dessas. Gostava tanto de ter um rato vivo! LEÔNCIO - Que farias dele? ARMANDO - Guardava-o numa caixa.

ISABEL - Que ele roeria, fugindo pelo buraco que fizesse com os dentes.

ARMANDO - Então prendia-o por uma pata.

MARGARIDA - É nojento, um rato; cheira mal.

ARMANDO - Prendê-lo-ia a uma árvore, no jardim.

HENRIQUETA - Mas seria infeliz. Ficarias contente se te prendessem por uma perna e te deixassem sozinho lá fora durante a noite?

ARMANDO - Eu sou outra coisa. Eu penso; um rato não pensa.

MADALENA - Mas sofre.

ARMANDO -Está bem, não o prendo. Por quem és, ama, apanha-me um rato vivo.

A AMA - Vou fazer-lhe a vontade, mas só o conservará durante um dia; depois, matá-lo-emos, pois acabaria por fugir.

Armando não respondeu; mas disse de si para si que esconderia tão bem o rato, que não o encontrariam.

 

A ama foi procurar uma ratoeira de arame e de gancho; não tardou a armá-la com um bocado de toucinho, preso no gancho, e que deveria atrair os ratos. Colocou-a no armário, como fizera à outra, e os pequenos esperaram. Não estiveram muito tempo sem ouvir a queda da porta: o rato fora apanhado.

Os petizes haviam esperado com muita paciência, tanta vontade tinham de ver o rato vivo. Quando a ama abriu o armário e tirou de lá a ratoeira, todos se agruparam em volta para ver melhor. O pobre rato não parecia muito sossegado no meio daqueles gritos de alegria e daqueles seres terríveis para ele, pois se julgava perdido, e, como se vai ver, tinha razão.

ARMANDO - E agora como se tira dali?

LUÍS - Abre a porta e agarra-o.

ARMANDO - Mas... não me atrevo.LUÍS - Tens medo de um rato?

ARMANDO - Creio que sim! Um rato tem garras e dentes!

LUÍS - Ora! Umas garrinhas e uns dentinhos!

ARMANDO - Pequenos mas aguçados. Olha, quando abre a boca, vêem-se dentinhos agudos.

HENRIQUETA - Visto que não te atreves a tocar-lhe, é melhor matá-lo, o que não é lá muito divertido. Que lhe fazemos?

ARMANDO - Vais ver. Pomos-lhe um cordel numa das patas.

HENRIQUETA - Está bem, quando o tirares da prisão.

ARMANDO - Mas eu já te disse que tenho medo.

ISABEL - Ouçam, meus amiguinhos, se prometem não fazer mal ao animal, vou abrir a porta de mansinho e agarrá-lo-ei com a mão.

A AMA - Não, menina Isabel, não suje as mãos; um rato cheira tão mal! Deixem-me proceder; vou apanhá-lo, prendê-lo e ligar-lhe um cordel na pata, sem lhe fazer mal.

E a ama envolveu a mão num guardanapo, ergueu devagar o alçapão e agarrou o rato no momento em que ia a escapulir-se; em seguida, prendeu-lhe a pata com o cordel que segurava na outra mão.

- Aqui o tem - disse, entregando a Armando a ponta do cordel. - Segure-o bem, não o largue.

E pôs no chão o rato que, supondo-se livre, correu com toda a presteza das suas pernas. A corrida não durou muito: o cordel deteve-o; então desatou a andar em volta de Armando, que começava a assustar-se ao ver o rato tão perto dos pés; daí a pouco soltou horrível grito, largando o cordel, porque o rato lhe trepava pelas pernas. A ama agarrou o cordel e puxou-o; o rato não largou a perna de Armando, que cada vez gritava mais; os outros pequenos tinham fugido para cima das cadeiras, das camas e até das mesas. A ama vira-se obrigada a agarrar o rato com ambas as mãos para o fazer desprender-se.

- Vês, Armando, que já não é divertido ter um rato vivo? Queres que o mate?

- Oh! não, minha ama: coloca-o em frente da casa, amarrado a uma árvore.

- Não gosto dessas brincadeiras - disse Valentina.

- São cruéis.

A AMA - A menina Valentina tem razão. É melhor dar cabo deste animal, já meio morto de susto.

Armando tanto suplicou à ama que não o matasse, que esta consentiu em colocá-lo no jardim e amarrá-lo a uma árvore. Todos os pequenos foram assistir à operação, que foi curta, e viram, compadecidos, o pobre animalejo correr espavorido para a direita e para a esquerda e fazer desesperados esforços para fugir.

 

De súbito, o rato estacou como que petrificado; o corpo tremeu-lhe; soltou alguns gemidos fracos, mas agudos, sem sair do lugar onde estava. Os pequenos fitavam-no, surpreendidos, não percebendo aquele duplicado terror. Daí a pouco tudo se explicou, quando ouviram atrás deles um feroz miar, logo seguido de prodigioso salto. Era o gato que se aproximava sem fazer bulha e que fixava os coruscantes olhos no desventurado rato, com o qual contava deliciar-se De facto, antes de os pequenos terem tempo para o deter, caíra sobre o

rato e esmagara-lhe a cabeça. As crianças deram um grito de pavor.

- O meu rato! O meu rato! - exclamou Armando.

- Pobre bicho! Estúpido gato! - bradaram os outros.

E todos desataram a perseguir o gato, que levava na boca os despojos sangrentos do rato; cortara com os dentes a pata atada ao cordão e fugia diante da gritaria dos pequenos.

Não tardou a trepar por uma escada que levava ao sótão, onde pôde sossegadamente concluir o improvisado jantar.

Os petizes estavam fulos com o gato, cuja crueldade os indignava.

- Agora estão virados contra o gato - volveu por fim Isabel - e contudo nada fez de mau.

MARGARIDA - Nada de mau? Então achas ainda pouco o ter feito mal ao nosso rato, comendo-o?

ISABEL - Não; porque os gatos comem ratos como nós comemos galinhas; simplesmente, temos cozinheiros que as matam e as fazem cozinhar, enquanto o gato é o seu próprio cozinheiro.

SOFIA - Mas magoa-os horrivelmente com os seus dentes.

ISABEL - Não tanto como imaginamos, porque lhes esmaga a cabeça num ápice. E julgas que lhe não fizemos pior com o terror que lhe causámos?

JAIME - É verdade, tinha o ar tão assustado, que metia dó.

ARMANDO - Já não quero ratos vivos. Vou pedir à ama que use das outras ratoeiras que estrangulam logo.

JAIME - O que farão muito bem, porque vejo que estes divertimentos são maus. Divertir-se a gente em fazer sofrer os animais, não é das coisas melhores; Deus não gosta disso: foi a Camila quem mo disse.

- E a menina Camila tem muita razão, meus filhos

- recomendou a ama, que entrava naquele momento.

- E agora, que vamos fazer? - perguntou Sofia.

- Vão preparar-se para o jantar, pois daqui a pouco chamam-nos.

Os pequenos voltaram para os seus quartos, e decorridos alguns instantes, achavam-se na sala de jantar. Referiram o cruel fim do rato e prometeram não tornar a brincar desse modo.

- E farão muito bem - aprovou Camila. - Esse rato faz-me lembrar um conto de fadas que a minha ama me contou, quando eu era pequena.

- Queres, contá-la, Camila? Pedimos-te - bradaram os pequenos.

- Da melhor vontade, mas agora não; quando nos levantarmos da mesa.

 

             BASÓFIA. MALÍCIA E A RATAZANA

Após o jantar, os pequenos foram sentar-se no relvado, junto de Camila, que lhes contou a história que esperavam com impaciência.

Era uma vez uma menina chamada Malícia; pobre e órfã, fora recolhida por caridade em casa de parentes pobres também; assim, por vezes faltava o pão em casa, mas Malícia parecia não se apoquentar com isso.

Esses parentes, chamados Sem-Coração, tratavam Malícia com frieza e, contudo, esta era bondosa.

Toda a gente da região a estimava, excepto um rapagão que dava pelo nome de Basófia e que possuía uma casa perto da dos parentes de Malícia. Era rico, mau e avarento; fazia toda a espécie de maldades a Malícia e aos parentes; ora lhes arrancava os legumes, ora cobria de porcaria o linho que punham a secar no jardim. Pedira-lhes que vendesse parte desse jardim para aumentar o seu, principalmente por possuir uma pereira que dava tão bons frutos, que era conhecida pela pereira maravilhosa. Basófia era guloso e avarento; queria comer e vender essas maravilhosas pêras. Por diversas vezes, tinha tentado roubar-lhes e sempre lhe acontecia qualquer coisa desagradável: em certa ocasião caiu da árvore e deslocou um pulso; de outra foi cair em cima de um balde de água suja.

Quando Sem-Coração lhe recusou o jardim e a pereira, jurou vingar-se.

- Hei-de possuir a sua pereira, ainda que tenha de o fazer morrer de fome e de desgosto! - disse, colérico.

Sem-Coração encolheu os ombros e a mulher fez o mesmo. Malícia sorriu. Basófia, não se atrevendo a atacar os parentes, virou-se para a pequena, a quem disse, ameaçando-a:

- Hão-de pagar-me esse riso insolente.

- Deixa-nos em paz, enredador, amador de pêras!

- tornou Sem-Coração, levantando-se e caminhando para Basófia que era poltrão e por isso achou mais prudente não deixar que o inimigo se aproximasse dele e, abrindo com presteza a porta, saiu, fechando-a violentamente.

Pequeno grito rouco, mas agudo, se fez ouvir.

Malícia olhou para o sítio donde lhe pareceu ter vindo e avistou uma ratazana cuja pata se encontrava entalada na porta e que envidava vãos esforços para a libertar. Um gemido lamentoso fugia-lhe de quando em quando; Malícia correu para ela, entreabriu a porta e pô-la em liberdade; a dor, porém, impediu-a de fugir e por isso Malícia pegou nela e viu-lhe a patita ensanguentada e meio decepada.

- Pobre animalzinho! Como sofre! Prima, peço-lhe que me dê óleo de milfurada.

- Para quê, filha? Bem sabes que tenho muito pouco e é preciso poupá-lo.- Prima, é para deitar algumas gotas nesta pobre ratazana que tem a patinha quase esmagada pela porta.

- E imaginas que eu gastaria óleo com uma ratazana? Deita fora o nojento animal! Que se cure como puder!

Malícia não respondeu; no quarto pegado, estavam uns bocados de manteiga num prato; apanhou-os e aplicou-os delicadamente na patita doente da ratazana e envolveu-a num trapo, que encontrou a um canto; depois pô-la no chão.

- Malícia! - disse uma vozinha aflautada. Malícia voltou-se para todos os lados e nada viu.

- Malícia! - repetiu a mesma vozinha.

- Quem me chama? Não vejo ninguém - disse, surpreendida.

- Aqui em baixo a teus pés - tornou a vozinha. Malícia olhou para os seus pés e apenas viu a ratazana que a fitava.

- Sou eu que te chamo - volveu esta. - Agradeço-te haveres-me libertado, e teres aliviado a minha dor, em vez de me matares, como o fariam outros. Quero provar-te a minha gratidão; pede-me o que queiras, pois te concederei.

MALÍCIA - Decerto és fada, ratazaninha, para falares tão bem.

A RATAZANA - Sim, sou fada, e tenho muito poder.

MALÍCIA - Se fosse a ti, aproveitar-me-ia do poder para ter outra forma que não fosse a de ratazana, que todos perseguem e o gato come.

A RATAZANA - Não fui eu que escolhi a minha triste -situação; foi a rainha das fadas, que me condenou a ficar ratazana durante mil anos por haver desobedecido às suas ordens.

MALÍCIA - Que ordens?

A RATAZANA - Sempre és muito criança! Em vez de falares tanto, melhor seria dizeres-me o que desejas ter; já te afirmei que to concederia. Queres terras, oiro, jóias, casas?

- Não - retorquiu Malícia, mexendo a cabeça com ar reflexivo. - De que serve a riqueza, o oiro e tudo isso? Para nos tornarmos preguiçosos, maus e orgulhosos. Não, não quero nada do que me ofereces.

A RATAZANA - Nada desejas? MALÍCIA - Perdoa-me. Desejo uma coisa, que me não poderás conceder.

- Sabes lá! Experimenta. Diz o que queres.

- Queria - respondeu a rapariga, corando ligeiramente - livrar os meus parentes da vizinhança de Basófia e obrigá-lo a ir para tão longe, que nunca mais ouvíssemos falar dele.

- É coisa fácil - respondeu a ratazana. - Abre a porta e segue-me.

Malícia abriu a porta; a ratazana saltou para fora com tanta presteza como se não tivesse a pata partida; corria com tanta ligeireza, que Malícia mal podia segui-la; não foi, porém, muito longe. Ao fundo do jardim, junto da pereira, a ratazana entrou num pequeno buraco e desapareceu.

- É-me impossível seguir por esse buraco, senhora ratazana - gritou Malícia, rindo. - Adeus, passe muito bem e desejo as melhoras da sua patita.

- És muito esperta, minha filha - disse uma voz atrás dela.Malícia virou-se e viu uma carruagem, que examinou com grande surpresa. Quatro ratazanas estavam atreladas a uma enorme concha de tartaruga, em que se via sentada a ratazana numa almofada de pele de gato. Diante dela estava uma gaiola de grades, através das quais se divisava um gato amarrado e açaimado e que só podia demonstrar a sua cólera com coruscantes olhares.

- Foi para te ser agradável que desapareci - continuou a ratazana. - Apanhei e açaimei o protector do teu inimigo Basófia, que já não conseguirá resistir ao nosso poder. Aqui tens - acrescentou - um dedal que ??conservarás cuidadosamente; quando o meteres no terceiro dedo, far-te-á trabalhar com presteza e habilidade pasmosa; se o meteres no segundo, tornar-te-ás invisível; no quarto, dar-te-á extraordinária força e o poder de te transportares para onde quiseres; no mendinho, fornecer-te-á todo o oiro de que careceres. No médio, poderás assustar e atormentar Basófia a ponto de o fazer fugir daqui.

A rapariga sorriu maliciosamente, agradeceu à ratazana com toda a vivacidade do seu carácter e dispunha-se a ir embora, quando a ratazana a chamou para lhe dizer:

- Ia-me esquecendo de te avisar de que, se alguma vez precisares de mim, basta bateres com o pé esquerdo, proferindo estas palavras: "Patinha partida, acode-me!" Guarda com cuidado o dedal e não fales dele a pessoa alguma. Se o perderes ou deres a conhecer o seu poder, o teu inimigo recuperará todo o seu poderio.

- Obrigada, senhora ratazana. Nunca esquecerei as suas recomendações.

A ratazana e a carruagem sumiram-se, deixando Malícia radiante com a prenda da fada; quis logo experimentá-la e meteu-a no quarto dedo, desejando estar ao pé de Basófia. Imediatamente se encontrou diante dele e dum grande monte de moedas de oiro que este contava com avidez.

Quando viu Malícia, risonha, na sua presença, ficou apavorado.

- Como entraste, se todas as portas estão fechadas? Por única resposta, Malícia passou o dedal para o

segundo dedo e desapareceu aos olhos de Basófia, aterrado.

- Malícia! - chamou com voz trémula.

- Estou aqui! - volveu a rapariga, dando-lhe uma grande bofetada na face direita.

Basófia virou-se, fulo, e, não vendo ninguém em parte alguma, permaneceu trémulo e imóvel.

- E, contudo, eu vi essa maldita pequena, na minha frente, a contemplar o meu oiro!

- Que é mais bonito do que tu - tornou Malícia.

- Onde está essa insolente para lhe bater à vontade?

- Aqui - respondeu Malícia, dando-lhe segunda bofetada violenta na face esquerda.

- Ai! Ai! Que quer isto dizer? - bradou Basófia caindo na cadeira.

- Ah! Ah! - gritou-lhe Malícia ao ouvido, espalhando com a mão todo o oiro, que rolou em vários sentidos.

Basófia caiu ao chão e, colocando-se de bruços em cima do oiro, estendeu os braços para o apanhar na maior quantidade possível. Malícia, satisfeita com aprimeira experiência obtida pelas virtudes do dedal, desejou encontrar-se em casa e, pondo-se junto da porta, meteu o dedal na algibeira.

- Ora até que enfim! - disse a tia Sem-Coração.

- Muito tempo perdeste. Onde estiveste?

- No jardim, prima; vou recuperar o tempo perdido.

- O tempo perdido não se recupera, rapariga. Por mais que faças, não consegues acabar a tua saia hoje.

- Vai ver, prima. Quando penso numa coisa, faço-a. E Malícia, sentando-se junto da prima, pegou na

saia mal principiada ainda e que uma hábil costureira dificilmente acabaria num dia. As mãos, a agulha andavam numa dobadora com tanta presteza, que atraiu a atenção da tia.

- Não andes tão depressa, pequena, não vás tão depressa. Vais estragar o trabalho e tens de o fazer de novo. Se tal é possível! Duas costureiras num quarto de

hora!

- Não há perigo, prima. Veja se está mal.

A tia Sem-Coração tomou o trabalho, examinou-o, olhou para a pequena com um espanto que fez sorrir Malícia e restituiu-lho, dizendo:

- Não te supunha tão hábil, minha filha; nunca te vi fazer trabalho tão bem executado e em tão pouco tempo.

Malícia não respondeu e retomou o trabalho, sorrindo; decorridas duas horas, a saia estava completamente acabada. A tia Sem-Coração não podia acreditar no que via.

- E, contudo, é verdade! - dizia a meia-voz, virando e revirando a saia em todos os sentidos. Acabou... E está bem acabada!... Eu não faria outro tanto... Onde aprenderia a coser tão bem? E com que ligeireza!... Não se parece nada com o trabalho de ontem... Enfim, acabou-se!

O dia adiantava-se, o tio Sem-Coração ia regressar do seu trabalho para jantar. Enquanto a tia Sem-Coração preparava a sopa e cozia as batatas. Malícia metia o dedal no quarto dedo.

- Vamos fazer uma visitinha a Basófia. Vejamos como está!

Achou-se na presença de Basófia, que se encontrava a jantar; na sua frente tinha um prato de sopa de hortaliça e ao lado um frango assado e uma torta de cerejas. Mal teve tempo de ver Malícia, que desapareceu logo.

- Que pesadelo! - disse a meia-voz. - Julguei estar ainda a ver diante de mim a excomungada desta manhã! Felizmente, enganei-me!

- Não por completo - disse Malícia, arremessando-lhe para o chão o prato da sopa.

- Socorro! É o diabo! É o diabo!

- Ainda não está tudo - tornou Malícia, tirando-lhe o frango e a torta, que se tornaram invisíveis como ela.

- Bichano! Bichano! Acode-me! Onde estás, fiel Bichano?

Malícia, deixando Basófia diante do pão seco, desejou-se em casa de uma família que passava necessidades; encontrava-se em mísero casebre: uma pobre mulher reparte pelos quatro filhos uma bucha de pão que, a bem dizer, mal chegaria para um dos pequenos esfomeados. O pai, pálido e macilento, tapava a cara com ambas as mãos e rogava a Deus que o socorresse, dizendo:

- Ai, meu Deus! Já não. sinto forças para trabalhar sem comer. Pão, meu Deus, pão! Pão para meus filhos, para minha mulher e para mim!

Alegre grito lhe fez levantar a cabeça; qual não foi a sua surpresa ao ver um grande frango assado e uma bela torta! No momento em que ia a perguntar quem lhes trouxera aquele socorro tão necessário, um grande pão, uma garrafa com vinho e frutas apareceram em cima da mesa, junto do frango. Como a fome se fazia sentir cruelmente, toda a família começou a comer pão, frango e torta, e a beber esse bom vinho que lhe deu forças. Perguntaram-se depois como é que tudo aquilo ali viera parar, sem que pudessem atinar com a resposta. O espanto do pai redobrou ao ver algumas moedas de oiro no fundo de um copo.

- É Deus quem me manda estes tesouros. Agradeçamos-Lhe, meus filhos, do fundo do coração.

Malícia, radiante por haver empregado tão bem o jantar do pérfido Basófia, bem depressa se desejou em casa; encontrou-se nela no momento em que a tia Sem-Coração punha na mesa a sua modesta refeição: comeu a sua parte, com bom apetite, não tendo pena do frango nem da torta, sentindo-se satisfeita por com eles haver presenteado a pobre família.

- Estou cansada - disse Camila, parando. - Já estou a falar há muito tempo.

VALENTINA - Que pena! É tão engraçado! MARGARIDA - Quando o acabas?

CAMILA - Amanhã à tarde, se quiserem.

SOFIA - Ai, não, não havemos de querer, visto tu dizeres que não a podes acabar esta noite.

CAMILA - Demais a mais já é muito tarde; agora vamo-nos deitar.

ISABEL - Digam, meus amiguinhos: não lhes parece, como a mim, que Malícia é um tudo-nada maldosa?

JAIME - Não o é de mais; amedronta o pérfido Basófia; não demonstra grande maldade nisso.

ISABEL - Não; entretanto, ele tem um medo terrível, apanha duas bofetadas e come pão seco.

PEDRO - Ora! Não morreu por isso. Quem anda em viagem nem sempre tem pão.

VALENTINA - Onde? Em que país há só pão seco?

SOFIA - Primeiro, entre os chineses, depois entre os árabes e os Cabeçudos e ainda os Pernas-Gordas.

LEÔNCIO - Que gente é essa? Onde foste buscar os Cabeçudos e os Pernas-Gordas?

SOFIA - Fui buscá-los onde os encontrei, menino. Se não sabes nada, não é razão para eu também ser como tu. Sei coisas muito interessantes a respeito dos chineses.

HENRIQUE, em tom zombeteiro - Como as soubeste? Na tua última viagem à China?

SOFIA - Não, ouvi-as contar a um antigo missionário da China, que se chamava o padre Alue.

HENRIQUE - E que te contava esse missionário?

SOFIA - Nunca o saberás; contá-lo-ei a todos, menos a ti.

HENRIQUE -Que te fiz para estares zangada comigo?SOFIA - Que fizeste? Troçaste de mim, como de costume; queria possuir o dedal de Malícia para te dar algumas bofetadas que não retribuísses.

HENRIQUE -Não precisas do dedal de Malícia para dar bofetadas, e nós sabemo-lo muito bem.

SOFIA - Não, não! Quando tenho a má sorte de lhes chegar, vocês não me ficam atrás; por isso é que queria ser invisível como Malícia para esbofetear à minha vontade, quando me impacientassem.

CAMILA - Felizmente para nós, és muito visível e, felizmente para ti também, és mais má em palavras do que em obras; quem te ouvisse havia de julgar que és colérica, injusta, egoísta, quando, afinal, no fundo és bondosa e amável.

SOFIA - Obrigada pelo elogio e sobretudo por o pensares, minha boa Camila; tu é que és bondosa e amável.

MARGARIDA - Quando acabas a história? Estou com empenho em saber se Malícia consegue expulsar Basófia.

CAMILA - Conto acabar amanhã, mas, como é muito comprida, não sei se poderei.

Alguns começavam já a abrir a boca; os mais pequenos enovelavam-se ou deitavam-se em cima da erva para dormir; até os maiores tentavam encostar a cabeça aos braços. Estes movimentos, acompanhados de silêncio, chamaram a atenção das mães, que os mandaram deitar, o que os pequenos fizeram prestamente.

A tarde do dia seguinte estava soberba; sentaram-se de novo na erva e Camila reatou o fio da história. CONTINUA-SE O CONTO ANTERIOR

Enraivecido, Basófia tinha comido o pão seco, desejando vingar-se, mas sem saber sobre quem e como.

"Se ao menos - pensava - tivesse a certeza de que era a garota da Malícia que me prega todas estas partidas! Quando, porém, julgo vê-la, desaparece; não é ela. Seja como for, é a voz dela que ouço, é a ela que suponho ver e é nela que me hei-de vingar! Amanhã de manhã, quando o tio Sem-Coração for para o trabalho, vou fazer-lhe uma visita e havemos de ver!"

Confortado com esse propósito de vingança, Basófia deitou-se, embora trémulo ainda e lamentando amargamente o seu bichano, que o auxiliava em todas as maldades com maravilhosa inteligência. Na manhã imediata, espreitou a saída de Sem-Coração, e quando o supôs bastante longe, entrou em casa de Malícia, que já trabalhava ao pé da prima.

- Já a trabalhar, vizinha! Porque trabalha com tanto ardor?

- Não é por sua causa, com certeza!... Desastrado!

- exclamou, levantando-se com vivacidade.

Basófia, entornara por cima da saia da tia Sem- Coração o tinteiro que tinha na mão.

- Foi por maldade e não por falta de jeito - volveu Malícia, reparando no mau e hipócrita sorriso do gordo Basófia.

BASÓFIA - Ai, meu Deus! Pois pode imaginar isso? Estou desolado! Fiquei sem tinta!

MALÍCIA, com vivacidade - Há-de pagar a saia que estragou; nós não temos com quê.

BASÓFIA - Ora, com certeza não me vai obrigar a tal.

- É o que havemos de ver - respondeu Malícia saindo do quarto.

Basófia aproveitou-se da ausência de Malícia para causar novo estrago. Estendeu a mão para agarrar uma pilha de pratos, colocada num aparador, e deitá-la por terra. Antes de poder chegar-lhe, sentiu-se levantar pelos cabelos e ficou suspenso no ar, gritando e esperneando. Fora Malícia que só saíra para voltar invisível, metendo o dedal no quarto dedo; levantou Basófia como se fora uma pena e disse-lhe ao ouvido, disfarçando a voz:

- Pede já perdão e paga a saia.

- Nunca, nunca! - bradou Basófia, esperneando cada vez mais.

Zás, zás! Duas tremendas bofetadas acompanharam nova ordem de pedir perdão e pagar a saia.

- Não, não, nunca - tornou a gritar Basófia. Uma saraivada de pancada caiu na cara, nas costas,

na rotunda barriga de Basófia, que barafustava, praguejava, ameaçava em vão. Por fim, vencido pelas dores, volveu em voz enrouquecida:

- Perdão, perdão, eu pago.

Nesse mesmo instante sentiu-se no chão e liberto das garras que o empolgavam. Olhou à sua volta, aterrado, e, vendo apenas a tia Sem-Coração, que assistia a esta cena com cómico espanto, sossegou, compôs o fato, a gravata, anediou o cabelo e quis sair.

Violento pontapé, aplicado no traseiro, recambiou-o para o meio do quarto.

- Paga! - ouviu dizer.

- Não! É um roubo, é um... Ai! ai! socorro! gritou, saltando e correndo pelo aposento.

Foi nova sarabanda de pancada e de pontapés que o fizeram pular e correr mais depressa do que queria. Derrotado, moído, caiu no chão, bradando:

- Pago!

A pancada cessara. Tentou levantar-se, mas extraordinária força o manteve no chão e a voz proferiu:

- Não ficarás livre enquanto não pagares. Muitos esforços baldados, sempre acompanhados de

várias bofetadas, provaram-lhe a necessidade de ceder. Meteu a grosseira mão na algibeira do colete, donde tirou bem recheada bolsa.

- Quanto tenho a pagar pela saia manchada? perguntou em tom resignado.

- Pagarás quinze francos. Foi quanto me custou.

- Isso é horrível! Quinze francos... Não posso... Não concluiu; forte empurrão veio recordar-lhe a

promessa.

- Aqui estão os quinze francos. Não passam de ladrões. Vou denunciá-los à justiça.

- Ora, deixe-se disso! Ladrões! Conhecem-nos bem. Ninguém o acreditará. Para que veio aqui? Quem o chamou cá? Nada percebo dos seus gestos, dos seus gritos, dos seus pulos. Pague o estrago que fez, vá-se embora e nunca mais volte; é a única coisa que se lhe pede.

Basófia, vencido pelo invencível inimigo, atirou os quinze francos para cima da mesa sem proferir palavra e saiu precisamente no momento em que Malícia voltava. A tia Sem-Coração contou-lhe o que se passara, excepto as palavras de Malícia, que não ouvira, de maneira que não percebia nada do procedimento de Basófia.

- Com certeza perdeu o juízo! Realmente, assustou-me por momentos; os pés estavam no ar, gritava, esperneava, barafustava. E depois, esse rapagão, que não daria um ceitil para salvar a vida de um homem, deu-me quinze francos sem que eu lhos pedisse.

- É verdade, prima, é muito singular, mas eu preferia que esta pérfida criatura nunca mais aqui pusesse os pés.

- Estou em crer. rapariga, que não voltará cá muitas vezes.

A tia Sem-Coração e Malícia retomaram o trabalho. Quando foi preparar o jantar, Malícia, que tinha vontade de se distrair, dirigiu-se para junto de Basófia; não teve muito que andar, porque ele estava perto do muro que separava os dois jardins. Tinha a algibeira cheia de pedras que atirava aos frutos da pereira maravilhosa. Nem sequer tinha conseguido um único. Malícia, mais hábil do que ele. apanhava e atirava também as pedras que saíram das mãos de Basófia e atingia-lhe sempre as faces e o nariz avermelhados, Basófia julgou a princípio que qualquer coisa lhe saltava para a cara, mas a quantidade de contusões que recebia fez-lhe recear novo ataque do seu invisível inimigo e retirou-se apressadamente; as pedras perseguiam-no até à porta de casa. Uma vez lá dentro, banhou-se com água fresca. Quando terminou, o recipiente que continha a água voltou-se e encharcou-o dos pés à cabeça; na mesma ocasião, a bilha fez o mesmo e depois a talha, seguindo-se-lhe a garrafa de azeite e uma grande tigela de leite, que era o seu almoço do dia seguinte.

Aterrado, sufocado, Basófia caiu sobre uma cadeira; desta feita não gritou, chorou.

- Que fazer? Que vai ser de mim? Onde esconder-me? Como evitar este demónio que me dá pancada, que me faz morrer de fome, que me rouba o meu pobre dinheiro, que me enche de toda a casta de imundícies?

- Corrige-te - disse uma voz. - Torna-te justo e bom e deixar-te-ão em paz; ou, então, abandona esta terra.

Basófia não respondeu, mas disse de si para consigo que lhe havia de ser custoso tornar-se justo e bom e que seria melhor ficar consoante era e abandonar a terra.

Foi obrigado a lavar-se dos pés à cabeça e a mudar de roupa, pois a que tinha estava cheia de água, de azeite, e de nata.

Malícia voltou para casa sem que a prima tivesse dado pela sua ausência. Durante a refeição a tia Sem-Coração falou-lhe diversas vezes de Basófia e da estranha cena que vira.

- O que não chego a perceber - disse - são os quinze francos que me deu... Valha-me Deus! Malícia,onde estás? Por onde passou ela, que não a vi nem ouvi sair?

- Estou aqui, prima, ao pé de si.

- Onde, se te não vejo?

A tia voltou-se para todos os lados e de Malícia, nem a sombra. Ouvia a pequena, mas não a via. Aterrada com tal prodígio, ia a chamar por socorro, quando Malícia tornou a aparecer na cadeira, junto da prima, fitando-a com ar muito embaraçado. Nova surpresa. Malícia, corada, de olhos baixos, não proferia palavra. A tia Sem-Coração tomou um aspecto cada vez mais descontente.

- Que quer isto dizer, Malícia? Como fizeste para desaparecer e reaparecer? Dize-me a verdade. Vamos, fala.

- Nada lhe posso dizer, prima - respondeu Malícia, de lágrimas nos olhos.

- Porquê? Porque não te atreves a dizer que tens pacto com o diabo?

- Oh, prima, não creia em tal...

- Nesse caso, explica-me a tua desaparição de há pouco.

- Tudo quanto posso confessar, prima, é que me proibiram de o dizer.

- E imaginas que vou conservar-te em casa para ser enfeitiçada, endemoninhada como tu? Já não és minha parente. Vai-te daqui e que nunca mais te veja.

- Suplico-lhe, prima! Não me ponha fora de casa; juro-lhe que estou inocente. Espere, ao menos, até logo, até o primo voltar.

De boa vontade te concedo o que pedes. Pega na costura e trabalha.

Malícia, com os olhos turbados pelas lágrimas, procurou o dedal, sem o encontrar. Fora o dedal que metera por distracção no quarto dedo que a tornara invisível aos olhos da prima; logo que Malícia dera por isso, tinha-o tirado e, embaraçada, em vez de o meter na algibeira, pusera-o perto de si, em cima da mesa. A prima apanhara-o e metera-o na algibeira sem mais pensar no caso.

- Que procuras - perguntou a prima, com dureza.

- O meu dedal, para coser.

- Tens mais do que esse; arranja outro, pois também fará bom serviço.

Malícia não se atreveu a redarguir, mas, não deixando de costurar, olhava para todos os lados, tentando achar o precioso dedal. O trabalho não adiantava; caminhava mal; os pontos eram desiguais. A prima colocou-se ao pé dela para coser; tirou um dedal da algibeira; era o de Malícia.

- O teu dedal está aqui, mas não te conhecia este. Vou enfiá-lo no segundo dedo. Não sei porquê, este dedal faz-me lembrar Basófia. Sempre queria saber o que ele faz.

Mal manifestara tal desejo, encontrou-se nos aposentos de Basófia, que estava a contar o seu ouro. Ela deu um grito de terror, no que foi imitada por Basófia.

- Tu e tua prima são então dois demónios encarregados de me fazer morrer de terror?! - exclamou, tremendo. - Ontem foi ela, hoje és tu.

O susto da tia Sem-Coração incutiu alguma coragem a Basófia. Levantando-se vagarosamente da cadeira, encaminhou-se para a sua inimiga, que parecia petrificada, e, agarrando-lhe as mãos, puxou-a para a porta, que abriu, e pô-la fora. A tia Sem-Coração não resistiu; ainda não se refizera do espanto quando voltou para casa. Malícia, pálida e trémula, correu para ela e, tomando-lhe as mãos, não viu o dedal; lançou angustioso grito:

- O meu dedal, o meu dedal?! Que fez do meu dedal?

- Sei lá dele. Caiu e ficou em casa de Basófia, para onde fui transportada não sei como nem por quem.

- Ah, prima! Que foi fazer! Sem o meu dedal, estamos perdidas; Basófia tem-nos nas suas mãos; vai tentar vingar-se.

A tia Sem-Coração caía de surpresa em surpresa. Malícia, vendo o dedal perdido, contou a sua aventura com a ratazana, o presente da fada e a sua proibição de revelar a virtude do dedal e de o perder. A tia Sem-Coração ficou aterrada.

- Como salvar esse dedal, decerto caído em qualquer canto onde se conserva despercebido?

- Já sei - disse Malícia.

- Que queres fazer, rapariga?

- Vai ver, prima; vou buscar duas pêras da pereira maravilhosa; direi a Basófia que a prima tinha ido levar-lhas, mas que se assustou tanto, que se esqueceu de lhas entregar. Como gosta muito de pêras, estas tapar-lhe-ão a boca e deixar-me-á procurar o dedal. Deixe-me lá ir sozinha; teria medo, se fôssemos ambas.

- Vai, rapariga, e que Deus te proteja.

Malícia correu a apanhar as pêras, chegou lesta a casa de Basófia, bateu à porta e entrou.

- Tu outra vez?! - bradou Basófia, fulo.

- Trago-lhe pêras, Sr. Basófia. Causou tanto medo a minha prima, que nem sequer lhas ofereceu; como, porém, sei que gosta delas, vim trazer-lhas.

- Olha, olha - exclamou Basófia, desconfiado. Que bicho te mordeu para estares assim tão generosa? Dá cá as pêras. Boa noite, pequena.

- Perdão, Sr. Basófia. Dá-me licença que procure o meu dedal, que a minha prima deixou cair aqui em sua casa?

- Procura, enquanto como as pêras.

 

Malícia procurou em toda a parte, pelos cantos, debaixo dos móveis, mas nada encontrou. Debruçando-se junto da cadeira de Basófia, o gato, que ela vira engaiolado na carruagem da ratazana, apareceu-lhe com o dedal na boca; deixava-o cair e depois fazia-o rolar com as patas. Malícia acercou-se cautelosamente, falou em tom meigo ao gato e quis apanhar o dedal no momento em que rolava pelo chão. Uma sapatada do Bichano arranhou-lhe as mãos e fê-la dar um grito; com a outra mão, tentou apanhar o dedal que rolara para junto dela: o gato estendeu a pata, tapou o dedal com as garras e conservou-se imóvel, fitando Malícia com olhos faiscantes.

- Vamos, basta! - volveu Basófia. - Já acabei de comer as pêras; vai-te embora.

- O meu dedal! - bradou Malícia. - O seu gato tem o meu dedal debaixo da pata!

- Não é grande a perda; o meu gato voltou há uma hora e não quero que o façam irritar. Vai-te embora sem o dedal; deixa-nos em paz.

Malícia não podia resolver-se a ir embora sem o dedal; Basófia, pegando-lhe pelos braços, ia pô-la fora da 114

porta, quando Malícia se lembrou da recomendação da fada; baixando-se com rapidez e batendo o pé esquerdo, disse em segredo:

- Patinha partida, acode-me.

No mesmo instante, Basófia encontrou-se atirado contra a parede do seu quarto, onde ficou pegado; o gato desapareceu e o dedal encontrou-se no quarto dedo de Malícia. Esta tranquilamente saiu de casa de Basófia e voltou para a sua, onde encontrou a prima, que a esperava, inquieta, e a quem contou o êxito da sua inovação à ratazana.

- Por esta noite, basta, meus amigos - disse Camila.

- Já tenho as goelas secas de tanto falar.

JAIME - Muito desejava saber se Basófia ainda continua a fazer maldades à Malícia.

CAMILA - Parece-me bem que sim e uma de truz, mas será a última.

LUÍS - Dize-nos qual foi, Camila.

CAMILA - Não, não; amanhã saberão o resto; por hoje basta.

Os pequenos, de boa ou má vontade, tiveram de esperar pela noite seguinte para conhecerem o fim da história de Basófia e de Malícia. Quando chegou a hora da narrativa, Camila viu-se rodeada e atormentada pelas crianças, até recomeçar o conto.

Após a saída de Malícia, Basófia chamou o gato, mas este havia desaparecido sem ele ter percebido em que momento e porque meio.

- É singular! - disse Basófia, com os seus botões.

- Não sou capaz de compreender o que me acontece há dois dias; apareceu, desapareceu, sou agredido, esbofeteado... Tenho quase a certeza de que é Malícia a autora de tais proezas e afigura-se-me ter achado excelente meio de me vingar da garota e dos primos. Tenho uma ideia; amanhã pô-la-ei em prática. A garota será enforcada ou queimada e eu terei o jardim e a pereira. Enquanto o pérfido Basófia assim reflectia, Malícia, radiante por haver recuperado o dedal, tornou a costurar, mas o trabalho não luzia e, contudo, o dedal estava no dedo.

Inquieta com semelhante mudança, quis experimentar as outras virtudes do dedal e, enfiando-o no quarto dedo, perguntou à tia Sem-Coração:

- A prima vê-me?

- Creio que sim; ainda não estou cega graças a Deus.

- Ai, que o dedal perdeu as suas virtudes! Já não nos livrará de Basófia.

 

Enquanto falava, a ratazana surgiu no meio da casa e disse-lhe:

- Desobedeceste-me, Malícia; disseste a tua prima o que eu te proibira de contar. Perdeste assim a força que te havia dado para resistir a Basófia. Eu bem te preveni. Só de ti é que tens de te queixar das fatalidades que te ameaçam.

Malícia chorava, sem dar palavra. Que havia ela de dizer? A ratazana tinha razão. Mas a ratazana era bondosa fada: as lágrimas e o silêncio de Malícia enterneceram-na e por isso disse-lhe:

- Ouve: há um meio de recuperares o que perdeste: é consentires em conservar prisioneiro em tua casa obichano de Basófia, a despeito das suas ameaças e. em especial, das suas promessas. Se o guardares com fidelidade, sem nunca lhe permitires que saia da prisão, e se nunca te esqueceres de lhe dar todas as manhãs e todas as tardes um rato para seu sustento, continuarei a proteger-te. Aceitas?

MALÍCIA - Mas como proceder, senhora ratazana, para lhe dar um rato duas vezes por dia e todos os dias? Não será correndo atrás deles que os apanharei.

A RATAZANA - Não, mas podes apanhá-los em laços ou ratoeiras. Mais uma vez: aceitas?

MALÍCIA - E se me recusar, que acontece? A RATAZANA - Serás como dantes, atormentada por Basófia, fulo pelas partidas que lhe pregaste.

MALÍCIA - E se não puder conseguir ratos em quantidade bastante para o gato?

A RATAZANA - Tornarás a cair em poder do gato, que é o génio mau protector de Basófia e que se vingará sobre vocês todos da prisão que lhe fiz sofrer.

MALÍCIA - E o que acontece a meus primos, se recusar guardar o gato?

A RATAZANA - Os teus primos nada têm a temer; a única ameaçada és tu.

- Nesse caso, recuso - volveu Malícia, sem hesitar.

A RATAZANA -Toma cuidado Malícia: reflecte bem.

MALÍCIA - Não preciso de reflectir para ver que, se aceitasse as condições que tem a bondade de impor-me e que não poderia cumprir, faria sofrer a meus primos as minhas fatalidades; ao passo que, ficando como estou, sou eu só quem corre perigo.

A RATAZANA - Adeus, Malícia. Se mudares de opinião, chama-me; estarás sempre a tempo até à tua morte.

A ratazana desapareceu. A tia Sem-Coração nada tinha dito durante a conversa de Malícia com a ratazana. Assim que esta se sumiu, a primeira observou-lhe:

- Acho que andaste mal; facilmente encontrarias dois ratos por dia e libertar-nos-ia desse pérfido Basófia.

MALÍCIA - E se algum dia me acontecer não encontrar um rato, vocês sofreriam tanto como eu, enquanto assim serei o único alvo da cólera de Basófia.

A TIA SEM-CORAÇÃO-Tens razão. Mas que mal te poderá fazer? Saberás defender-te tão bem, como tens feito até agora.

- Sim, minha prima - volveu tristemente Malícia, que se sentia penalizada por ver a prima aceitar tão friamente os perigos de que estava ameaçada.

 

O dia acabou tranquilamente. Malícia guardara o dedal, mas não passava agora de um dedal vulgar e que só serviria para lhe não deixar picar o dedo.

No dia seguinte, de manhã cedo, um ruído bastante estranho se fez ouvir à porta do quarto; parecia que muitas pessoas questionavam a meia-voz; avançava-se e recuava-se. Malícia que almoçava com os primos, antes de meter as mãos à obra, foi ver o que se passava; abriu a porta; mal dera um passo, gritos de terror se fizeram ouvir e um bando de rapazes, capitaneados por Basófia, fugiu para todos os lados. Malícia, surpreendida com esses gritos e essa fuga, perguntou-lhes o que acontecia.

- Prendam a bruxa! - bradou Basófia. - Cautela, não lhes fuja: escorrega-nos das mãos como se fora uma enguia.

Os mais audaciosos adiantaram-se com aspecto receoso e, abeirando-se de Malícia, quiseram agarrá-la; Malícia, aterrada, voltou precipitadamente para casa, fechando a porta sobre si mesma. Os gritos e o tumulto recomeçaram. Sem-Coração e a mulher não sabiam que resolução tomar; adivinhavam que Basófia fizera acreditar aos aldeões que Malícia era bruxa, como quem diz, uma protegida do diabo, e que por intermédio do poder demoníaco podia causar doenças, atear fogos, desencadear tempestades e fazer cair as maiores fatalidades sobre as pessoas de quem tinha de vingar-se.

O tio Sem-Coração tentou salvar a primita do furor daquela gente reunida diante da porta; fê-la passar para o quarto pegado, abriu um alçapão que levava ao subterrâneo, fê-la descer, tornou a fechar o alçapão, pôs-lhe em cima um lençol que tirou de um armário e tornou a entrar prontamente no primeiro quarto, no momento preciso em que a turba arrombava a porta e penetrava na casa, com Basófia à frente.

- Onde está a bruxa? - interrogaram todos a um tempo.

- De que bruxa falam, meus amigos? Onde é que ela está? Quanto a mim, não conheço nenhuma nesta terra.

- Há uma e essa é sua prima; queremos queimá-la no meio da praça.

- E podem acreditar em semelhante mentira? Qual de vocês tem razão de queixa de minha prima? Fez-lhes algum mal? Pelo contrário, não esteve sempre disposta a servi-los? Não é uma rapariga crente, que vai à missa e ora por vocês? Bem vêem que estão enganados e que os fizeram sair de casa cedo e os distraíram dos trabalhos por simples maldade.

- Isso é verdade. Uma bruxa não se comporta como a Malícia.

- Uma bruxa não vai à igreja nem reza.

- Uma bruxa tem ar velhaco e malévolo: Malícia tem um rosto alegre e simpático.

- De resto, nunca se viu uma bruxa de dez anos. As velhas é que se fazem bruxas.

- Porque nos mentiu o Basófia?

- Porque nos distraiu do nosso trabalho?

- Porque os trouxe aqui para assustar esta pobre gente e obrigar-nos a fazer um disparate?

- Por causa dele vamos ser alvo das assuadas, dos ditos e das gargalhadas de toda a aldeia.

- Abaixo Basófia!

- Sovemos Basófia!

- Toma para te ensinar a não mentir!

- Zás, trás, pás!

 

As pancadas choviam em cima de Basófia, que arqueava o lombo e fazia uma cara arreliada, mas que não deixou por isso de apanhar uma sova mestra.

- Enganam-se, meus bons amigos; não menti, não caluniei. Juro-lhes que vi, muitas vezes, a Malícia entrar em minha casa, com as portas bem fechadas, e depois desaparecer sem que eu possa dizer como; que a ouvi falar aos meus ouvidos sem a ver; que me esbofeteou e bateu sem que me fosse possível enxergá-la; numa palavra: é uma bruxa como não há outra.

Basófia falou tanto, que mais uma vez conseguiu fazer-lhes acreditar que Malícia era uma bruxa, e aquela turbamulta, que estivera quase a despedaçá-lo algunsmomentos antes, preparou-se para, sob sua direcção, cometer odiosa injustiça.

Desta feita, Sem-Coração não conseguiu fazer-se ouvir; teve medo por ele mesmo e, abandonando a prima à vingança de Basófia e à fúria da populaça, fugiu por uma porta traseira, arrastando consigo a mulher.

Malícia ouvia o que se dizia e se fazia; semi-morta de terror, caíra de bruços no chão e permanecia imóvel.

"Ratazana, ratazana. - pensou-, abandonaste-me!" A multidão procurava-a por toda a parte e dispunha-se a retirar, imaginando que ela tinha fugido, como os primos, pela porta traseira. Basófia, fulo por ver frustrada a vingança, continuava as suas pesquisas; o lençol que se encontrava no chão despertou-lhe suspeitas; puxou por ele, avistou o alçapão, abriu-o e, com grande alegria, viu a desventurada criança estendida no chão a meio do subterrâneo.

- Está aqui; encontrei-a! A mim meus amigos! Apanhemos a bruxa!

A multidão acudiu; dois homens desceram a escada que dava acesso ao subterrâneo, levantaram Malícia, pálida e sem fazer o mais pequeno movimento, e subiram-na, não sem alguma repugnância. Aquela criança fazia-lhes dó; quase não acreditavam nas palavras de Basófia, a quem menosprezavam e detestavam no mais elevado grau.

- Ei-la! - disseram, pondo-a no chão. - A pobre pequena mete dó. Ora digam-me se tem o aspecto de bruxa! Uma criança desta idade!

- Meus caros amigos, afianço-lhes - começou Basófia em tom melífluo.

- Cala-te aí, pote de graxa; só sabes mentir!

- A ti é que deviam queimar em vez dela!

- Que bom assado não farias!

- E que lindas cores te não daria o fogo!

- Para o fogo não, mas para a água, o gordo Basófia! Flutuará.

- Para a água, a língua viperina!

- Para a água, o coração de pedra que não tem compaixão alguma por esta criança!

 

De repente, Basófia sentiu-se perdido; quis falar; um soco fechou-lhe a boca, partindo-lhe quatro dentes. Quis fugir, quatro braços robustos o seguraram. O pavor tomou-o; tremeu como fizera tremer a sua vítima e, como ela, caiu no chão. Em vez, porém, de inspirar compaixão, inspirou nojo. Levantaram-no, ampararam-no, rindo do seu medo, e iam fazê-lo, caminhar para lhe aplicar forte correctivo, quando Malícia, que voltara a si havia alguns instantes e vendo a mudança de ideias da multidão, resolveu salvar o desventurado, com risco da própria vida.

Surgiu mais branca do que um lençol; todos estacaram.

- Perdão para este homem! - pediu. - Meus amigos, perdão, perdão para ele!

- Mas queria fazer-te queimar como bruxa!

- Bem sei; perdoo-lhe. Perdoem-lhe também.

- Mas ele só vive para fazer mal.

- E vocês, meus amigos, vivem para a bondade e para a generosidade. Perdoem-lhe por havê-los enganado e desencaminhado; o crime não é grande.

- E, afinal, tu não passas de uma excelente rapariga.

- E dizer que te tomámos por bruxa!

- A quem nós queríamos fazer matar!

- Mercê deste nojento ser! - bradou um dos homens que o amparavam, empurrando-o.

- Viva Malícia! Vamos levá-la em triunfo!

- Sim, sim, sim! Levemo-la em triunfo! Levemo-la à aldeia! Merece essa honra!

E, apesar da resistência de Malícia, sentaram-na na cadeira levantada por quatro homens e deram com ela uma volta ao largo, bradando:

- Viva Malícia! Abaixo Basófia!

Malícia da melhor vontade teria fugido e voltado para casa, mas em vão o tentou; a multidão julgava reparar o mal que tinha feito; de resto, este passeio divertia essa boa gente; tudo quanto é novo e ruidoso diverte a multidão; grita-se por se ouvir gritar os outros; corre-se porque se vê os outros correrem. Só concederam liberdade a Malícia quando se sentiram cansados de correr e de gritar.

Enquanto deram o triunfal passeio de Malícia, Basófia recebera o seu castigo. Uma parte da multidão tinha ficado um pouco para trás; havia amarrado a uma escada, que quatro homens levavam no ar; todos clamavam:

- Abaixo Basófia, o mentiroso!

- Dêmos um banho ao Basófia, o caluniador! gritou uma voz. - Queria fazer queimar a pequenita; lavemo-lo desse estúpido pensamento!

- À água, à água! - uivou a multidão, encaminhando-se para um tanque que usualmente servia de bebedouro aos animais.

Acercaram-se do tanque, inclinaram a escada e deixaram-no cair na água.

Chape! Basófia apanhou um mergulho, depois outro e em seguida, terceiro; por fim, desamarraram-no e restituíram-lhe a liberdade, após algumas bofetadas de um lado e de outro. A multidão ainda o apedrejou, dispersando em seguida.

Só Basófia ficara; os membros entorpecidos pelas cordas, a frialdade da água e o fato encharcado retardaram-lhe a fuga.

"E se eles voltarem!-pensava. - Vadios, cobardes, miseráveis! Como conservar-me nesta terra após semelhante vergonha? Vou-me embora daqui! Esta noite arranjarei a troixa, levarei os meus sacos de ouro e irei para quinhentas léguas de distância... Ouço bulha!... Vem aí gente! Estou perdido!"

 

De facto alguém se aproximava: mas era Malícia, que, com ele fugia da multidão e que corria para casa. Avistou Basófia e teve medo. Mas o andamento vagaroso e o ar abatido do seu inimigo tranquilizaram-na; passando-lhe à frente, lançou-lhe um olhar compassivo e reparou que tinha o fato encharcado e parecia caminhar a custo.

Parou e perguntou-lhe interessada:

- Que vem Sr. Basófia? Quer que o ajude a regressar a casa?

- Pois sim - volveu ele, aceitando o auxílio que Malícia lhe prestava.

Demoraram muito tempo a chegar. Basófia tiritava, tremia e parava constantemente; Malícia não demonstrou impaciência; ele não dizia palavra, e ela imitava-o. Quando chegaram diante da casa de Basófia, este deixou Malícia e agradeceu-lhe sem a fitar; abriu a porta e fechou-a sobre si. Malícia pensou que ele devia agradecer-lhe melhor do que fizera.

"Mas - disse consigo - a culpa não é dele; o pobre homem não tem coração."

Quando entrou não achou ninguém; contudo a refeição esperava-a, e que refeição! Nunca Malícia comera uma idêntica! Um frango assado e uma torta de cerejas.

"Que quer isto dizer? - perguntou de si para si.

- A mesma excelente refeição que tirei a Basófia e que dei a essa pobre gente que não conheço. Só está um talher! Onde estarão meus primos? Embora esteja com fome, vou esperar por eles."

- Come, Malícia, come, não esperes; estão muito longe e não voltam esta noite.

Malícia virou-se para ver quem falava e logo notou a ratazana, que a fitava com olhares benévolos.

- Não te abandonei, minha filha, embora não tivesses querido invocar o meu poder. É verdade que havias revelado a tua prima o segredo do dedal, mas tinhas feito bom uso do meu presente; castigaste Basófia com prudente medida; foste caritativa para com uma família pobre; não te aproveitaste, para enriquecer, das virtudes do dedal. Arrependeste-te da tua desobediência; dedicaste-te a teus primos, que não merecem o teu afecto; pagaste a Basófia o mal com o bem. Fui eu quem mudou os sentimentos da multidão com respeito a ti. Se não fosse eu, serias queimada como bruxa. De futuro, velarei por ti; não saberás o que seja miséria, doença ou fatalidade. Adeus, minha filha; come a refeição que te preparei; não tornes a recear Basófia e, se alguma vez precisares de mim, chama-me.

Malícia agradeceu respeitosa e afectuosamente à ratazana, à qual pediu licença para lhe beijar a pata; como a ratazana consentisse, Malícia baixou-se até ao chão; a ratazana estendeu a pata que Malícia beijou com reconhecimento. Enquanto esta se punha de pé, a ratazana desapareceu.

Malícia comeu com apetite, em seguida deitou-se e adormeceu profundamente.

No dia seguinte, muito cedo, viu Basófia entrar em casa dela, o que deveras a assustou, pois estava sozinha e em seu poder.

- Malícia - disse ele, sem levantar os olhos -, aqui tens este papel; és bondosa e fis-te mal; tentei repará-lo. Deixo esta terra para nunca mais cá voltar; levo o meu ouro; dou-te a minha casa e os meus bens; o papel que te entrego concede-te o direito de dispores deles. Agradeço-te o que ontem fizeste por mim. Adeus, Malícia; és uma excelente rapariga e nunca mais te esquecerei.

- Adeus, Sr. Basófia - respondeu Malícia. - Eu também lhe agradeço o que fez por mim; aceito, reconhecida, e também nunca mais o esquecerei.

 

Estendeu a mão a Basófia, que a apertou e beijou. Em seguida saiu, depois de lhe haver entregue a chave da cave.

Após a sua partida, Malícia correu a visitar a sua nova propriedade. A casa era grande, bonita, bem mobilada. Mas como viver ali sozinha?

Mal fizera esta observação, ouviu gemer na rua; olhou pela janela e viu, surpreendida, a família pobre que socorrera dias antes. Como não tinha dinheiro para pagar a renda da casa, haviam-nos posto na rua e não sabiam o que ia ser deles.Malícia dirigiu-se-lhes, falou-lhes, propôs-lhes irem viver com ela, o que aceitaram com extrema alegria. Quartos e camas não faltavam na nova casa de Malícia; logo aquelas pobres criaturas lá se instalaram; abundante almoço apareceu em cima da mesa, como o jantar na véspera. Malícia levava vida agradável e alegre no meio daquela excelente família. Nunca lhe faltava coisa alguma; a fada-ratazana velava por tudo e nunca deixou de proteger Malícia. O grande Bichano ficou preso por ordem do rei dos génios até se tornar um indivíduo obediente e virtuoso; contínua preso e assim continuará, porque não se arrepende. Basófia foi viver para longínqua e desconhecida terra, tornou-se um pouco melhor, sem se fazer completamente bom; a lembrança de Malícia sensibilizara-o e impedia-o de praticar o mal, mas conservava-se guloso e avarento.

- Uf! Estou cansada - suspirou Camila. - Julguei que nunca mais acabasse.

- Obrigado, Camila - agradeceram as crianças, em coro. - É muito engraçado.

VALENTINA - O medo que tive quando quiseram queimar a pobre Malícia!

JAIME - E eu fiquei bem contente quando mergulharam o pérfido Basófia na água.

MARGARIDA - Muito mal andaram os primos em abandonar a pobre Malícia.

SOFIA - E que foi feito deles? Não nos chegaste a dizer.

CAMILA - Voltaram ao cabo de alguns dias, tanto foi o medo que tiveram, e não mais se importaram com Malícia, ao saberem que podia viver sem eles.

JOANA - Não gosto dessa gente. Não têm coração.

HEnRIQUETA - Por isso na história eram chamados Sem-Coração.

ISABEL - O que acho estranho é que o gato nada fez, nem a favor de Basófia, nem contra Malícia.

CAMILA - Talvez tenhas razão; houve coisas que esqueci; quando a ama me contava esta história, explicava o motivo porque o gato era preciso.

LUÍS - O que é engraçado é quando Basófia recebe as bofetadas, os pontapés e foi levado ao ar. É pândego e faz rir.

SOFIA - Detesto o pérfido Basófia.

JAIME - Que bom coração provou ter Malícia ao dar a refeição de Basófia a essa pobre gente, em vez de a comer!

HENRIQUE - E por nada haver desejado para ela quando tinha o dedal.

PEDRO - E agora não me parece desacertado irmos para a cama; já é tarde e bocejamos.

MARGARIDA - Principalmente, a pobre Camila, que está exausta.

Os pequenos foram deitar-se, depois de mais uma vez terem agradecido a Camila a sua história.

OS CHINESES

 

Passados alguns dias, os pequenos estavam sentados na erva e falavam de Basófia e de Malícia.

ISABEL - Devíamos todos contar uma história, cada um por sua vez. Seria divertido.

MADALENA - Divertido para quem ouve, mas não para quem conta.

CAMILA - Afianço-te que não aborrece; sente-se prazer em ver os outros contentes.

PEDRO - Mas é só isso o que queres?

- E eu também! Eu também! - bradaram os outros.

LEÔNCIO - Nesse caso, tiremos à sorte o primeiro que há-de contar. Metem-se os números num saco e cada um tira o seu por ordem de idade.

HENRIQUE - Quem é que tira?

CAMILA -É o Pedro.

PEDRO - Não, é a Camila.

VALENTINA - Não; a Isabel, já que se lembrou disso.

MADALENA - Há-de ser o mais novo, Paulo, que ainda não sabe ler.

TODOS - Isso mesmo, muito bem. Paulo! Onde está o Paulo?

Vão procurar o Paulo e trazem-no.

CAMILA - Anda cá, Paulito, tira um número deste saco.

PAULO, escondendo a mão - Não, não quero.

CAMILA - Por quem és, Paulo, mete a mãozinha

no saco.

PAULO - Não, não quero.

As crianças rodearam-no e suplicaram-lhe. Paulo, radiante pela súplica, continuou a recusar.

HENRIQUE - Então, Sr. Paulo, não seja teimoso; vou buscar Maria Teresa, que vai ser mais amável do que o senhor.

PAULO - Não, não quero.

SOFIA - Vai-te daqui com o teu: Não, não quero. Já não precisamos de ti. Feio!

PAULO - Então para que me foram buscar?

- Por imaginarmos que serias amável, mas tal não acontece. Aí vem a Maria Teresa; anda, anda cá, Maria Teresinha, tirar um número do saco.

MARIA TERESA -Ama! Quero a ama!

VALENTINA - Vais ter com a ama daqui a bocadinho; agora, mete a mãozinha no saco; vê como é bonito.

MARIA TERESA - Não é bonito nada.

MADALENA - Mas mete lá a mão. Pega num papelinho.

MARIA TERESA - Quero amêndoas.

SOFIA - Não as tenho aqui, minha querida pequerrucha; mas dar-te-ei uma se tirares um papelinho. Tira, anda, tira.

MARIA TERESA - Não; quero amêndoas.

SOFIA - Vai-te embora, estupidazinha! Ela não tira.

PEDRO - Quase nos fazem perder a paciência, estas crianças assim!

SOFIA - Vai-te embora; és uma menina feia e, por isso, não terás amêndoas nem nada.

MARIA TERESA - Quero amêndoas.

SOFIA - Não dou nada. Isabel, tem paciência, vai buscar o Armandinho.

Levaram Maria Teresa, que gritava, ao sair:

- Quero amêndoas.

Isabel traz Armando.

 

MADALENA - Armandinho, queres meter a mão no saco e tirar de lá um papelinho?

ARMANDO - Da melhor vontade, Madalena.

MADALENA - Bonito rapazinho! Toma, Armando, toma.

Armando mete a sapuda mãozinha no saco, rindo, e tira-a, cheia de papelinhos.

LEÔNCIO - Não é assim; basta um só.

ISABEL - Espera. Vou arranjar isto. Mete lá os papelinhos e tira só um.

ARMANDO - Não; quero todos.

ISABEL - Depois os terás. Agora tira um só.

ARMANDO - Não quero um, quero todos.

SOFIA - Dá cá já os papelinhos.

Armando foge, a rir; correm para ele, vendo-se apanhado, atira os papelinhos pela janela que está aberta.

LEÔNCIO - Sempre és muito mau! Que feio! Vai-te daqui, foge da minha vista.

PEDRO - Não há meio de conseguir nada destes miúdos. São insuportáveis.

JAIME - E agora como há-de ser?

CAMILA - Ouçam; façamos uma coisa mais simples: tomemos tantos números quantos somos; metamo-los no saco; cada um de nós tira o seu; aquele que tirar o número 1 principiará, o número 2 conta depois e assim sucessivamente.

JAIME- Muito bem! Muito bem! Camila tem razão.

E procedeu-se como Camila indicou. Foi Sofia que tirou o número 1.

VALENTINA - Bem! É Sofia quem começa. Que vais contar-nos?

SOFIA - Bonitas coisas, muito divertidas e que vocês não conhecem.

MARGARIDA - E como se chama?

SOFIA - Chama-se Os sapos. É bonita.

LUÍS - Isso é conforme. Se a história for divertida, é bonita; de contrário, é feia.

SOFIA - Mas se te digo que é bonita!

ARTUR -Vamos lá ver. Começa.

SOFIA - Certo dia um missionário, que se chamava Alue, jantou em nossa casa. Comia-se doce de compota e ele disse: "Comi doce melhor do que este na China, doce de sapos". O paizinho disse: "Que horror!" A mãezinha disse: "É repugnante!" Eu disse: "É impossível!" E o padre Alue disse...

PEDRO - É muito aborrecida a tua história.

SOFIA - Mas espera; ainda agora começou.

LEÔNCIO - Mas isso não é uma história.

SOFIA - Calem-se! deixem-me acabar.

HENRIQUE - Então avia-te para acabares mais depressa.

SOFIA - Nada disso, Henrique, fá-la-ei durar o mais tempo possível, de propósito para te fazer rabiar.

PEDRO - Nesse caso, dormiremos uma soneca enquanto não chega o número 2. Quem tem o número 2?

CAMILA - É Jaime.

SOFIA - O padre disse: "É excelente e não repugna". Eu disse...

JAIME - Lá volta ela com a conjugação do verbo: eu digo, tu dizes, ele diz...

SOFIA - Não, senhor, não volto, continuo. Eu digo: "Como é que isso se faz"?

LEÓNCIO - Ah, ah, ah! Como é que isso se faz é bonito.

SOFIA - Deixa-me em paz. O padre Alue responde: "Apanham-se sapos..."

LEÓNCIO -...e comem-se.

SOFIA - Cala-te, não sejas aborrecido. "Enfiam-se por uma pata; prendem-se os cordéis, com os sapos enfiados, em grandes telheiros; deixam-nos secar; quando estão secos..."

LEÓNCIO -...deitam-se fora.

SOFIA - Deixem-no falar. "Pisam-se em almofarizes até se reduzirem a pó, que se mistura com óleo de gergelim e com mel; e desta mistura fazem-se excelentes doces."

HENRIQUE - E depois?

SOFIA - Nada mais. Comem-se.

PEDRO - E chamas a isso uma história?

SOFIA - Espera, pois ainda não acabei. O padre Alue disse também que os chineses são muito maus, que atormentam os homens, que os cortam aos pedaços

sem compaixão; atiram com os filhinhos aos porcos, batem nas mulheres, vendem os filhos, o que é abominável, e muitas outras coisas assim divertidas.

LEÔNCIO - Realmente isso é imensamente divertido.

SOFIA - És um pateta... Pergunta aos outros.

Ninguém responde. Sofia olha: dormem ou fingem dormir, excepto Camila, que receia melindrar Sofia.

SOFIA - Olha estão a dormir! E, contudo, era muito divertido; não achas, Camila?

CAMILA - Nem por isso é muito divertido, para dizer a verdade.

SOFIA - É singular! Imaginava que isto os divertiria muito. Vou acordá-los; dormem como arganazes.

CAMILA - Eu suponho que estão mas é a fingir.

SOFIA - Ah, estão a fingir... Pois vais ver como acordam.

Sofia agarra num regador que se encontrava ao pé dela, mete-lhe as mãos e asperge-lhes os semblantes; todos se levantam à pressa, e precipitaram-se para Sofia, que Camila tentou proteger e se esquivou no meio daquela balbúrdia causada pela regadela; uns enxugavam a cara, os outros sacudiam os vestidos e os fatos. todos falavam ao mesmo tempo e estavam fulos contra Sofia.

PEDRO - Muito tolas são as ideias da Sofia!

LEÔNCIO - Há-de sempre inventar coisas absurdas.

HENRIQUE - E que imagina encantadoras e muito engraçadas.

ARTUR - Mas que são tão estúpidas como ela. VALENTINA - No entanto, devemos dizer que é boa rapariga.

MARGARIDA - Lá isso é verdade; perde às vezes a cabeça, mas é coisa pouco duradoira.

ISABEL - Sim, sempre que prega alguma partida como a de há pouco...

MADALENA - Não foi mal feito ter-nos salpicado de água.

LUÍS - Chamas a isto salpicar? Tenho o calção todo encharcado.

JAIME - E eu o cabelo e o pescoço! Não faço outra coisa senão enxugar-me desde que ela fugiu.

JOANA - Seja como for, a sua história era maçadora.

HENRIQUETA - Tão complicada que nem a percebi.

CAMILA - Vejamos, meus amiguinhos. Agora que todos disseram uma palavra de censura, confessamos que fizemos tudo quanto pudemos para a impacientar.

LEÓNCIO - Como? Que lhe fizemos nós?

CAMILA - Primeiro interrompiam-na a cada frase; em seguida trocaram-na; depois bocejaram e, por fim, fingiram adormecer. Nada disto é agradável e até sou de parecer que muita paciência teve ela.

Sofia apareceu na fresta do celeiro, de onde lhes perguntou, rindo:

- Então, ainda estão molhados e zangados?

Os pequenos levantaram as cabeças. Ao verem aquele semblante risonho e sem malícia, a má disposição desapareceu-lhes e bradaram:

- Podes descer; já não estamos zangados. SOFIA - Bom, já desço. E isso é verdade? não me

reservam alguma maldade?

CAMILA - Não, não, Sofia, responsabilizo-me por eles; serás bem-vinda.

Passados dois minutos, surgiu Sofia, rindo.

- Então toda a minha história era aborrecida? perguntou a Isabel.

ISABEL - Muito aborrecida, afianço-te.

SOFIA - Querem que lhes conte outra muito divertida, de macacões a que se dá o nome de orangotangos?

ISABEL - Pelo amor de Deus, não! Aquela bastou.

MARGARIDA - De resto, agora cabe a vez ao Jaime.

JAIME - Tenho medo de também os aborrecer; não.sei grande coisa, e, depois não sou capaz de contar como a Camila.

SOFIA - Não faz mal, conta sempre; decerto há-de ser tão boa como a minha senão melhor.

CAMILA - Ora vejam como a Sofia é modesta; não tens orgulho, Sofia, e isso fica-te bem, afianço-te.

SOFIA - Bem estúpida seria se o tivesse.

CAMILA - Sempre é estúpido tê-lo, e, contudo, há tanta gente que o tem! Vamos, Jaiminho, conta uma história.

O GATUNO DE ESTAMPAS

JAIME - A minha história intitula-se O gatuno de estampas.

MARGARIDA - Há-de ser bonito e divertido, creio eu.

JAIME - Era uma vez um rapazito de oito anos, que se chamava Marcos e era criado num solar.

VALENTINA -O quê? Um criado de oito anos?

JAIME - Um criado, quero dizer, não era bem um criado; era, porém, filho de um criado, e tinha como serviço brincar com os filhos dos donos do solar, comer os pastéis e a fruta que lhes sobravam do jantar, e outras coisas desse género. Havia na casa outro rapazito de nove anos, chamado Miguel, que era filho do cocheiro e que, de boa vontade, faria o mesmo serviço do Marcos; mas a criada não queria, por Miguel ser mentiroso e resmungão.

"Certo dia chuvoso, como os pequenos não podiam sair, divertiam-se em ver os bonitos livros cheios de bonecos; Marcos estava com eles, como de costume. Conservavam-se tão atentos a ver uma estampa representando uma caçada ao leão, que não viram entrar Miguel, que olhava para os bonecos por cima da cabeça deles.

Depois de haverem estado muito tempo a contemplar o leão, que segurava nos dentes a cabeça de um desgraçado árabe e que se encontrava cercado por homens, mulheres e crianças degolados e esfacelados, Marcos, levantando a cabeça e vendo Miguel, exclamou:

"- Olha o Miguel! Que queres?

"- O teu pai chama-te; manda dizer que vás imediatamente - disse Miguel.

"- Lá vou - respondeu Marcos, levantando-se. Perdão meus senhores, se os deixo, mas como o paizinho precisa de mim, tenho de lá ir.

"- Que aborrecimento! - volveu o rapaz mais alto, que se chamava Carlos. - Vai ter connosco à estufa.

"Marcos saiu. prometendo voltar. Miguel ficou impassível. Para o fazer ir embora, a criada deu-lhe o livro de estampas, dizendo-lhe que o pusesse em cima da mesa da sala de estudo.

"Miguel pegou no livro e desceu.

"Passado algum tempo, os pequenos foram brincar para a estufa; só decorrido uin grande pedaço, Marcos foi ter com eles; tinha aspecto preocupado e inquieto; falou pouco, brincava sem saber o que fazia, parecia impaciente por sair dali; de facto, deixou os pequenos ao cabo de meia hora, dizendo ter que fazer.

"Depois do jantar os pequenos tornaram a pegar no livro de estampas e baldadamente procuraram a da caçada ao leão e mais duas ou três que os sensibilizaram: a de um trenó cheio de caçadores, perseguido por lobos, que matavam os caçadores à medida que se aproximavam; a de uma merenda de crianças na erva; e, a terceira, finalmente, representava um naufrágio; desgraçados saltavam do navio em labaredas para lanchas que já estavam cheias.

"Os pequenos, por mais que virassem as páginas e procurassem por toda a parte, não encontraram essas estampas; por fim, chamaram o pai para lhes dizer o que acontecera com aquele livro.

"O pai pegou no livro e examinou-o com atenção, dizendo:

"- Cortaram as estampas; reparem, até cortaram metade das páginas que as ladeavam; e foi com uma faca que isto foi cortado. Com quem viram as estampas, meus filhos?

"- Com o Marcos, paizinho, e bem sabe que o Marcos nunca teria feito semelhante roubo. De resto, já se tinha ido embora, quando a criada mandou levar daqui o livro.

"-A quem mandou levá-lo daqui? Foi ao Marcos?

"- Não; foi ao Miguel, que viera chamar o Marcos.

"-Ah! ah! Preciso de ver os dois.

"O pai saiu; permaneceu algum tempo ausente.

"- E então, paizinho? - perguntaram-lhe os pequenos quando este entrou. - Sabe quem cortou as estampas?

"- Suponho que foi o Miguel, embora todas as aparências sejam contra o Marcos.

"- Como, paizinho?

"- Miguel é um mau garoto; já estou de sobreaviso com ele. Quando levou o livro, esteve muito tempo sem aparecer, depois de ter pedido ao cozinheiro uma faca para a vossa criada, que não a pedira e não recebeu. Ele escondia as mãos debaixo da blusa ao ir-se embora e ficou durante algum tempo metido no quarto. De facto, as gravuras apareceram no quarto de Marcos. Nós, porém, sabemos que este é bom e. honrado rapazinho. Foi a casa do pai para prepararem a surpresa que amanhã lhes querem fazer, meus filhos, e. até os deixou mais cedo para terminar o seu trabalho. Mostrou-se surpreendido e indignado quando Miguel o acusou; quando se encontraram as estampas no sítio indicado por Miguel, o seu rosto exprimiu justa cólera e exclamou:

- "Foste tu que ali as puseste!" Todas as aparências são contra Miguel e, na minha opinião, a favor de Marcos. Daqui a pouco me certificarei de quem é o verdadeiro culpado.

"- E que vai fazer, paizinho?

"- Depois verão. Tenham um pouco de paciência durante uma hora.

"Os pequenos esperaram com impaciência. Decorrida uma hora, o pai mandou chamar os filhos à casa de jantar, onde acharam reunidos todos os criados. O criado de quarto, pai de Marcos, trouxe um cesto tapado com um guardanapo e pô-lo em cima da pequena mesa, colocada no meio da casa. O pai adiantou-se e disse:

"- Este cesto contém o segredo de dar a conhecer o gatuno das estampas. Cada um, por sua vez, vai meter a mão nele, sem proferir palavra, e voltará também para o seu lugar sem falar também, por mais maravilhosa que lhe pareça a coisa em que tocar. Nada se mexerá quando estejam inocentes; mas quando for o culpado, sairá do cesto espantosa bulha, e a mão do mesmo ficará presa pela tampa, de maneira que não a possa tirar. Mas só às escuras se procede a esta operação. Levem as luzes para o quarto pegado e deixem a porta entreaberta, de maneira a poder ver-se a mesa e encontrar-se o cesto.

"Arnaldo (o criado de quarto) levou os candeeiros; via-se apenas o suficiente para não se esbarrarem uns contra os outros...

"- Comecem, meus filhos - ordenou o pai.

Os pequenos adiantaram-se, meteram a mão no cesto e voltaram para os seus lugares. Os criados, fizeram o mesmo; nada se ouvia. Miguel foi o último. Quando terminou, ouviram-no saltar um suspiro de satisfação.

"- Tragam as luzes - disse o pai.

"Arnaldo foi buscar os candeeiros.

"-Levantem todos a mão que meteram no cesto.

"Todas as mãos se levantaram; estavam cheias de farinha. Só Miguel tinha a mão limpa.

"- Temos mãos de moleiro! - exclamaram os pequenos - Olhem, olhem para o Marcos, tem farinha em toda a parte. E o cozinheiro, também! E o fato de Filipe está cheio dela!

"- Foi Miguel, o gatuno - disse o pai, dirigindo-se para ele.

"- Eu?! - volveu Miguel, trémulo. - O cesto não se mexeu; ninguém o ouviu; tirei a mão como os outros.

"- Porque não te atreveste, a mergulhá-la no cesto, pois te sentias culpado; acreditaste na minha ameaça. O cesto contém apenas farinha; os que não tinham motivo algum para recear, meteram a mão; tu, que te sentias culpado, receaste ser descoberto e puseste a mão em cima do guardanapo sem abrir o cesto.

"O Sr. de Aurlin virou-se para o pai de Miguel, dizendo-lhe:

"- Ponho na rua o maroto do seu filho. Que se vá embora amanhã de manhã.

"- O patrão é muito severo para com o meu pobre filho; algumas estampas não exigem castigo tão ríspido.

 

"-Tirou-as com espantosa destreza; depois quis atirar as culpas para cima do pobre Marcos e teve a maldade de as esconder no quarto do pobre rapazito. Se acha pequeno este acto abominável, é porque seria capaz de fazer outro tanto e, assim, ficam ambos despedidos. Partam amanhã. Venham, meus filhos, lavem as enfarinhadas mãos. E tu, Marcos, fica sabendo que me sinto satisfeito por dar a saber, na presença de todos, que te julgava inocente desde logo; tinha a certeza de que um rapazinho honesto e crente como tu não podia ser culpado de um roubo ou de uma mentira.

"Marcos e o pai saíram radiantes; Miguel e o pai foram-se embora fulos e desolados, não por haverem cometido uma má acção, mas por deixarem uma casa onde eram bem tratados, bem vestidos, bem aquecidos, bem pagos e bem alimentados.

"E acabou-se a minha história - disse o Jaime.- Aborreceu-vos?"

CAMILA - Pelo contrário, distraiu-nos muito.

ISABEL - Foi encantadora.

SOFIA - Muito mais bonita do que a minha.

VALENTINA - Que excelente ideia teve esse senhor... senhor quê?

JAIME -Aurlin.

MARGARIDA - E como o Miguel foi estúpido! Devia ter pensado que um cesto não pode adivinhar!

MADALENA - Mas ele não sabia o que estava lá dentro; podia imaginar que fosse algum animal que lá se encontrava.

MARGARIDA - Um animal pode adivinhar um gatuno, tanto como um cesto!

PEDRO - Os maus têm sempre medo de ser descobertos; é este o motivo por que se assustam com tanta facilidade. HENRIQUE - É por isso que os ingleses têm sempré medo dos franceses.

LEÔNCIO - Quem te disse?

HENRIQUE - Foram eles próprios. Os inglesinhos que eu vi este Inverno no jardim, estavam sempre a dizer que os franceses os atacariam, os queimariam, lhes tomariam as cidades e que, por isso, seriam obrigados a fabricar canhões, construir navios e muitas outras coisas caras. Eu ficava contente quando tal me diziam, porque sei bem que os franceses zombam dos seus canhões, dos seus navios e das suas muralhas.

PEDRO - Quando for homem, hei-de ser mari- nheiro, para combater os ingleses.

-E eu também! E eu também! - entusiasmaram-se todos os rapazes.

SOFIA - E que faremos nós para os auxiliar?

JAIME - Serão as nossas enfermeiras.

VALENTINA - Isso mesmo! Cuidaremos de vocês quando estiverem feridos.

ISABEL - E enterrá-los-emos quando morrerem!

ARTUR - Desde já te agradeço! Um belo serviço que nos prestarão!

ISABEL - Maior do que imaginas, porque oraremos por vocês ao enterrá-los, sem que ninguém pensasse em tal.

MADALENA - Enquanto não há enterros, continuemos as nossas histórias. Quem tem o número 3?

PEDRO - Sou eu, mas como é um pouco tarde, contarei amanhã.

CAMILA - Pedro tem razão; está na hora para nos deitarmos.

 

Os pequenos conversaram um pouco a respeito da história do Jaime e foram descansar das fadigas do dia num sono de dez ou onze horas.

 

             O PORCO MORTO POR EMBRIAGUEZ

No dia seguinte, à hora costumada, os pequenos juntaram-se e Pedro começou:

- A história que vou contar não é comprida, mas é incrível.

SOFIA - Então porque vais contá-la?

PEDRO - Porque é extravagante, isto é, terrível.

MARGARIDA - Vais assustar-nos?

PEDRO - Nada disso; pelo contrário, hão-de rir.

HENRIQUE - E porque dizes que é terrível?

PEDRO - Vais ver. Em primeiro lugar chama-se O porco morto por embriaguez. Como vês, o título é pândego. Não achas, Camila?

CAMILA - Parece-me muito bonito e muito divertido.

PEDRO -Ouvem vocês o que diz Camila?

SOFIA - E se começasses a história?...

PEDRO - Vou já começar. Digo: O porco morto por embriaguez; reparem que não digo apenas embriagado! Digo morto por embriaguez.

LEÔNCIO - Sim, sim, já demos por isso. Vê se começas.

PEDRO - Vou começar. Agora não me interessa parar, porque, se me interrompem, as ideias embrulham-se-me e depois não digo coisa com coisa.

SOFIA - Pelo visto, as tuas ideias já estão embaralhadas. Há um quarto de hora que falas e não dizes nada.

PEDRO - Perdão, há cinco minutos, e continuas a interromper-me. Vou começar. Um dia... isto é, uma noite... não noite por completo, mas... já um pouco tarde para dia. Percebem?

LEÔNCIO - Percebemos, sim. Continua.

PEDRO - Assim, certo dia, isto é, certa noite estávamos a ver o cozinheiro deitar licor de groselha em garrafas, que eram muitas. Depois de todo deitado, restavam os bagos. Perguntei-lhe:

"- Que vais fazer de todos esses bagos, Luciano? E se mos desses?...

"-Ah, não, menino Pedro; far-lhe-iam mal. Agora têm terrível força, pois estão impregnados de aguardente; estão bons para deitar fora.

"E Luciano deitou o conteúdo do frasco dentro de uma tigela, que pôs no chão, cá fora.

"Enquanto Luciano arrolhava as garrafas, um porco da quinta veio ver se achava alguma coisa de comer; viu a tigela, avizinhou-se, meteu-lhe dentro a tromba para saber o que era, farejou, cheirou-a bem, saboreou um pouco, achou excelente e comeu, comeu, tão bem e tão depressa que, em dois minutos, engoliu tudo. Chamámos o Luciano.

"-Olha, Luciano! O porco comeu todos os bagos!

"- Ora o glutão - bradou Luciano. - Oxalá não

lhe façam mal. Anda, vai-te embora daqui! - disse-lhe o cozinheiro, empurrando-o com o pé.

 

"O porco dá um passo de lado e cambaleia; anda para a direita, anda para a esquerda, salta, rola, parece dançar. Faz coisas tão pândegas, que desatámos a rir, e Luciano connosco. Chamámos todos para ver um porco embriagado; a criadagem acorre: divertiino-nos imenso com esse pobre porco. Por fim, tornou-se tão barulhento, tão grunhidor, tão mau até, que o empurraram, obrigando-o a voltar para a quinta e entrar na pocilga; caiu em cima da palha e adormeceu. Então, fomo-nos embora.

"Imaginam talvez que concluí; ainda não; apenas principiei."

JAIME-Ainda bem, porque é muito divertido.

PEDRO - Bastante contente me sinto por isto os divertir. Vão ver. Contámos na sala como o porco se embriagara, como saltava, dançava e fazia muitos disparates, e em seguida deitámo-nos.

"Ainda não é tudo. Vão ouvir. Na manhã seguinte, levantámo-nos, almoçámos e saímos. Mal saímos, vimos chegar a gorda caseira, pois já me esquecia de dizer-lhes que era muito gorda. A gorda caseira chegou a toda a pressa e aflita.

"- Meninos, desejava muito falar à mãezinha; tem tão bons remédios para tudo, que lhe quero pedir um para o nosso porco, com sua licença.

"Empregam sempre estes termos quando falam de um porco. Perguntámos-lhe se o porco estava doente.

"- Não sei o que tem; desde ontem que não se mexe, parecendo estar morto; ficou deitado de lado no sítio em que ontem o vimos cair. Por mais que o puxassemos, o sacudíssemos, nada se conseguiu; nem sequer abre os olhos.

"Levámos a gorda caseira à mãezinha, a quem disse o que nos contara. A mãezinha aconselhou-a a deitar algumas gotas de amoníaco numa colher de água e a fazer o porco tomá-lo. A caseira agradeceu e foi-se embora. Passada uma hora, a mãezinha propôs-nos ir saber novas do porco; ficámos encantados com a ideia e fomos. O porco ainda não estava melhor; não se tinha movido. A mãezinha notou-lhe um aspecto singular; apalpou-lhe as orelhas: frias como pedra; o nariz frio como gelo; descerrou-lhe um dos olhos: fixo como o de um morto; levantou-lhe a pata: hirta como uma perna de pau.

"- O seu porco está morto - disse ela. - Já morreu há muito tempo. Está frio e hirto.

"- Ai o nosso pobre porco! Pobre animal! Francisco, anda cá ver. A patroa diz que o porco está morto! Que fatalidade! Um animal que valia uma excelente maquia!

"Francisco examinou, apalpou por sua vez e disse, como a mãezinha, que o porco estava morto e bem morto.

"- Será possível?... - perguntavam eles. - Por ter comido groselhas! Se ontem o tivesse sabido, dar-lhe-ia remédios, o remédio da patroa. Já estava morto esta manhã quando lho ministrei.

"E nós fomo-nos embora, pois já nada tínhamos a fazer a favor do porco. Não podíamos compreender como é que as groselhas o poderiam ter matado. O veterinário explicou à mãezinha que o sangue rebentara no cérebro e corria por toda a parte debaixo da pele, e outras coisas que não percebi bem.

"E aqui têm a minha história. Vejo que os divertiu a valer, porque não me interromperam.

- Sim, era divertida, mas não a achei terrível. PEDRO - Não achas terrível que o pobre porco tivesse morrido a dormir?

JAIME - Por minha fé, que não. Morreu como glutão; não é aflitivo nem aterrador.

CAMILA - Mas foi muito divertida e muito bem contada.

PEDRO -E tu, Sofia, não dizes nada? SOFIA - Estou a reflectir para saber se o que contaste é possível e... creio que não.

 

PEDRO - Não? Porquê? Se te digo que vi, que foi diante de mim que o porco comeu as groselhas, ficou embriagado, bailou, saltou, brincou, e que depois o vi morto e a dona desolada!

SOFIA - Bem sei que o disseste, mas creio que foi para nos distrair, como fez a avó, que principia muitas vezes: "Quando eu era pequenina" e depois conta-nos tolices incríveis, como se a avó só fizesse tolices...

CAMILA - Já não as faz desde que se tornou senhora; quando, porém, era pequena fazia tantas como nós.

SOFIA - A avó! Ah, ah, ah! Sempre gostava de ver a avó fazer tolices! Devia ser pândego! Vou pedir-lhe que faça alguma esta noite.

VALENTINA - Vais fazer com que a tua mãezinha te ralhe. SOFIA - Ora, ela não o saberá; falarei baixinho í à avó. HENRIQUETA - Mas a avó vai dizer-lho. SOFIA - Ora, não há perigo! A avó é fina; conta coisas nossas à tua mãezinha, à de Pedro e de Henrique; mas não há perigo que as diga à mãezinha, nem à mãezinha de Margarida, nem à de Madalena, nem à de Valentina.

LUÍS - Isso imaginas tu.

SOFIA - Já ouvi a avòzinha quase mentir para me desculpar.

JAIME - Isso não é verdade: a avó nunca mente.

SOFIA - Eu não disse que mentiu: disse apenas quase; quase não é por completo.

MADALENA - Como queres que quase se minta? Ou mente-se ou não se mente.

SOFIA - Não, menina. Quase se pode mentir. Assim, esta manhã, quando Margarida pediu para chapinhar na água a fim de lavar as mãos, a avó não queria. "Vais molhar-te, fazer tolices, e a mãezinha ralha contigo". "Ah! não, avó; peco-lhe, avó, diverte-me tanto"! Então a avó. que nos dá sempre o que queremos, e tu bem o sabes, deu água tépida, um sabonete cor-de-rosa e uma graciosa esponjinha, e Margarida começou a brincar e e molhou-se toda. Minha tia apareceu. "Que tolices estás a fazer, pequena? És tola e suja! És mesmo levadinha da breca! Feia!" A pobre Margarida fez beicinho, porque tinha medo de que a tia a castigasse; a avó, porém, acudiu a dizer, muito lépida: "Não lhe ralhes; ela não foi culpada; fui eu que lhe dei com que lavar as mãos; devia ter dobrado as mangas, mas não me lembrei de lho recomendar. Não vale a pena ralhar-lhe". E minha tia calou-se. Como vês, a avó quase mentiu, porque fez-lhe crer que era por obediência que Margarida lavava as mãos.

ISABEL - Sim, lá isso é verdade.

JAIME - Não, não é mentir; a avó falava verdade e ao mesmo tempo salvava a pobre Margarida.

SOFIA - Meu Deus, como são parvos! Não percebem o que quero dizer.

LEÔNCIO - Estou-te muito reconhecido pelas amabilidades que nos diriges!

SOFIA - Ora, não me macem! E eu chego a dizer que não acredito que os irracionais possam embriagar-se.

CAMILA - Perguntemos ao paizinho, que deve saber.

As pequenas correram todas a perguntar ao Sr. Eliant se a história podia ser verídica.

O SR. ELIANT -Qual história? Não a conheço.

Contaram-lhe a embriaguez e a morte do porco.

 

O SR. ELIANT - Vou fazer-lhes uma demonstração esta tarde; há-de ser mais divertida ainda do que a história do Pedro. Vamos buscar aveia, que faremos molhar em aguardente, e dá-la-êmos às galinhas; vão ver o efeito que produzirá.

CAMILA - E se as galinhas morrerem como o pobre porco?

O SR. ELIANT - Não; não lhe daremos tanta, que lhes faça mal; apenas para se embriagarem um pouco.

Os pequenos pediram ao tio que fizesse logo a demonstração. O Sr. Eliant acedeu. Foram todos ao celeiro buscar aveia; deitaram numa tigela meia garrafa de aguardente e depois a aveia, que os pequenos mexeram e remexeram até estar bem impregnada.

O SR. ELIANT - Agora, vamos à quinta - Quem leva a tigela?

- Eu! Eu! - ofereceram-se todos, simultaneamente.

- Não são precisos dez para levar uma tigela volveu o Sr. Eliant. - Tiremos à sorte, pelo jogo das palhinhas.

- E como é esse jogo, tio?

- Vou tomar tantas palhinhas quantos são vocês. Cada palhinha deve ter tamanho diferente; tomá-las-ei na mão, de maneira a só deixar ver as extremidades, e na outra mão esconderei o resto das palhinhas. Cada um de vocês tirará uma e aquele que tiver a mais curta é que levará a tigela.

Os pequenos puseram-se a procurar as palhinhas; o Sr. Eliant cortou-as em diversos tamanhos e, embrulhando-as todas, apresentou-as às crianças. Cada um tirou a sua, e viu-se ser Camila quem ficara com a mais curta; mas esta notou que Luís entristeceu por não lhe haver cabido a ele; Camila fingiu achar a tigela muito pesada e deu-a a Luisinho, cujo rosto se tornou radiante. O Sr. Eliant foi o único que reparou na bonita acção de Camila, a quem beijou ternamente, dizendo, em voz baixa:

- Fizeste muito bem, Camilinha!

Quando chegaram à quinta, os pequenos principiaram a chamar as galinhas, que não tardaram a acorrer. Todos lhes deitaram a aveia molhada em aguardente: as galinhas comeram-na com avidez e não tardaram a apresentar os mesmos sintomas de embriaguez manifestados pelo porco: saltavam, cacarejavam, espolinhavam-se, faziam extraordinário alarido. Quando a caseira apareceu, ficou admirada com aquela agitação e quis fazê-las voltar para a capoeira, porque já era hora de recolherem. Teve um trabalho insano para as obrigar a entrar.Quando uma parte das galinhas se tinha juntado, a outra dispersava e recomeçavam os saltos e as bicadas; os pequenos divertiam-se muito com aquela agitação e todos se empenharam em ajudar a caseira, que transpirava, sem poder mais. Por fim, conseguiram recolher as galinhas, mas os cacarejes continuavam a fazer-se ouvir. Não disseram à caseira que as galinhas estavam embriagadas, com receio de que ralhasse, de forma que ela não percebia aquela extraordinária animação.

- E agora? Acreditas na minha história? - perguntou Pedro a Sofia, indo-se embora.

SOFIA - Acredito, sim! Estavam pândegas as galinhas! Como saltavam!

JAIME - E como se bicavam! Havia até algumas que caíam de costas!

LUÍS - E outras rolavam e não conseguiam pôr-se de pé!

JOANA - Tenho medo de que se biquem horrivelmente na capoeira.

VALENTINA - Não! Depressa adormecem, como aconteceu ao porco.

 

MARGARIDA - E se não tornassem a acordar? CAMILA - Sossega; o paizinho disse que não deitava tanta aguardente que lhes pudesse fazer mal.

LEÔNCIO - Seja como for, faz mal estar embriagado.

MADALENA - Como sabes?

LEÔNCIO - Porque me embriaguei uma vez e sei o mal-estar que isso provoca.

ISABEL - Embriagaste-te? Mas é nojento, isso.

LEÔNCIO - Não o fiz de propósito. Vais ver como o caso se deu. Estava com muito calor e tinha muita sede. Deitei, num copo, vinho tinto, e depois água; bebi, achei excelente e bebi segundo copo; passados minutos, a cabeça andava-me à roda, e caminhava aos ziguezagues; a criada assustou-se, perguntou-me o que bebera; mostrei-lhe as duas garrafas. O que eu julgava ser água era vinho branco. A criada correu a prevenir a mãezinha, que me fez cheirar um frasco com amoníaco. Sentia-me enjoado, não dizia coisa com coisa; queria continuar a passear e a beber mesmo das garrafas. Deitaram-me; cantei, pulei na cama; por fim, adormeci, enquanto a mãezinha me refrescava a testa e a cabeça, com água fria. Dormi doze horas seguidas e, ao acordar, ainda me sentia enjoado e com dores de cabeça. Como vês, sei muito bem o que é estar embriagado.

HENRIQUE - Isso é esquisito. Eu também gostava de me embriagar.

LEÔNCIO - Não te gabo o gosto! Quando uma pessoa está embriagada parece um idiota, um irracional. Afianço-te que, desde que o estive sem querer, disse de mim para mim que devia ter mais cuidado de futuro.

Os pequenos foram deitar-se. No dia seguinte, à hora do almoço, a Sr.a Eliant contou que a caseira viera ter com ela, toda assustada, dizendo:

- Minha senhora: precisamos de nos desfazer das galinhas o mais depressa possível e purificar a capoeira. Estão possessas do demónio!

- Que está para aí a dizer, Maturina? Sabe tão bem como eu que isso é impossível!

- A senhora não falaria assim se tivesse ficado na quinta. Se ouvisse a grazinada que as galinhas fizeram até à meia-noite, diria o mesmo que eu. Já ontem à tarde, o patrão e os meninos poderiam ter dito à senhora o trabalho que me deram a fazê-las recolher. Não houve meio de as segurar. Uma vez lá dentro, fizeram um barulho infernal. Se quer acreditar-me, fará degolar todas essas galinhas e mandará chamar o cura para benzer a capoeira com água benta.

Deixou-a desabafar até ao fim e depois disse-lhe:

- O que a minha pobre Maturina não sabe é que meu marido se entretivera a embebedar as galinhas com aveia embebida em aguardente. Por isso, elas não estavam endemoninhadas, mas sim embriagadas. Quando a embriaguez lhes passar, ficarão quietas. Lamento que meu marido não lho tivesse dito.

- Ah! O patrão entretém-se com essas brincadeiras? - respondeu ela em tom agastado. - Nunca acreditaria que um homem de juízo como o patrão pudesse entreter-se com tais disparates. Pois pode gabar-se de me haver feito passar uma noite terrível. E meu marido não conseguiu também pregar olho. Pode dar os meus parabéns ao patrão, pela ideia! Que belo entretenimento, não tenha dúvida! Uma bela lição que deu aos filhos! Ora, francamente! Embebedar as minhas galinhas! Gastar aguardente em semelhante brincadeira!

- Sossegue, minha boa Maturina - respondeu ela.

- Não voltará a fazê-lo, prometo-lhe.

Ela afastou-se, resmungando e muito indignada.

 

                     VISITA AOS MACACOS

No dia seguinte, quando chegou a hora das histórias, ninguém se apresentou para as contar; os pequenos estavam todos sentados em círculo, esperando, impacientes, que o número 4 quisesse principiar, mas ninguém dizia palavra.

- Então, vamos a isso! Que venha o número 4 para contar uma história - bradou Sofia, agastada. - Estamos a perder tempo. Quem é o número 4?

- É a Isabel - responderam duas ou três vozes. SOFIA - Porque não começas, se a ti te cabe a vez? ISABEL - Porque não sei nenhuma história divertida. Não estou de maré.

SOFIA - Ora, se estás! Eu também não estava de maré e contei o melhor que pude.

ISABEL - Vamos com Deus, que ainda nos aborreceste um pouco.

SOFIA - Foi porque a minha vez seguiu logo à de Camila, que contou tão divertida história. Começa e verás como te sais bem. Repete três ou quatro vezes: VOU começar, como fez Pedro; já é alguma coisa.PEDRO - Ora! Eu não disse vou começar três ou quatro vezes, menina, mas uma única vez; exageras sempre.

SOFIA - Eu, pelo menos, contei três vezes. Pergunta à Camila.

CAMILA - Em vez de discutirmos, ouçamos a história que Isabel prepara.

SOFIA - Caluda! Ouçamos.

Isabel recolhe-se, levanta a cabeça e principia:

- Vou contar-lhes uma visita ao Jardim Zoológico. Bem sabem que o Jardim Zoológico reúne no seu seio...

SOFIA - Ah. ah, ah! Não sabia que um jardim tinha seio!

ISABEL, rindo - Nas suas entranhas, se preferes...

SOFIA - Melhor ainda! Deve ser bonita a tua história a ajuizar pela primeira frase.

LEÔNCIO - Tornas-te aborrecida, Sofia! Criticas tudo, interrompes constantemente. É impossível contar, pois estás sempre a fazer observações! Nunca se sabe como se há-de dizer.

VALENTINA - Não lhe dês ouvidos, minha pobre

Isabel. Conta a tua visita ao Jardim Zoológico; estou certa de que há-de ser divertida.

ISABEL - Creio que sim. Há duas coisas a mencionar: uma, terrível; a outra, pândega. Começo pela

terrível. Nesse dia havia muita gente no Jardim Zoológico...

SOFIA -Nesse dia?... Qual dia?

ISABEL - No dia a que me refiro. Já não volto a responder-te. A multidão comprimia-se no recinto onde se encontravam os ursos; atirava-lhes pão e pastéis; os ursos trepavam aos rochedos que havia no seu recinto; eu não estava contente ao vê-los lá no alto; afigurava-se-me que iam cair sobre a multidão. Enquanto víamos os ursos comer, trepar e brincar, ouvimos os gritos de uma senhora que bradava:

"- Meu filho! Meu filho! Perdi o meu filho!

"Todos corriam para esse lado; a senhora continuava a gritar:

"-Paulo, Paulo! Paulito, onde estás?

 

"De repente, ouve-se, de entre a multidão, uma vòzinha abafada, a responder:

"-Mãezinha! Socorro! Levam-me...

"As pessoas que se encontravam perto dessa vòzinha viram um homem de barba preta semelhante a um diabo; tentava fugir, arrastando consigo um petiz dos seus três a quatro anos. De todos os lados se gritava:

"-Prendam o ladrão! Tirem-lhe a criança!

"Os guardas acudiram; o homem percebeu que ia ser apanhado; largou a criança e meteu-se pela multidão na esperança de poder esconder-se, mas os guardas perseguiram-no; correu de um lado para o outro, mas por toda a parte via a passagem cortada, saltou para a parede do recinto dos ursos e quis transpô-la; o pé escorregou-lhe, esperneou, quase caiu no fosso, agarrou-se a meio caminho da parede e gritou por socorro; correu um guarda que estendeu um lenço; no momento em que ia apanhá-lo, o urso avançou para ele, pôs-se de pé nos quartos traseiros e grunhiu violentamente; o homem sentiu tal susto, que largou o lenço e caiu no fosso; o urso ficou tão espantado que permaneceu imóvel; o homem levantou-se e pediu que lhe atirassem uma faca ou qualquer arma para se defender. Só se encontrou um pau, pois ninguém trazia faca; atiraram-lho; correu para o apanhar, mas o urso, que fora mais lesto do que ele. foi o primeiro a chegar; segurou o pau e partiu-o com as duas patas, como se fora um fósforo. Atiraram-lhe outro pau, que o homem conseguiu apanhar; o urso veio ter com ele; o homem brandiu o pau, deu algumas tremendas pancadas na cabeça e nas patas do urso, que se enfureceu e arremeteu contra ele com tal violência, que o deitou por terra. Precisamente nesse momento, muitos soldados que haviam sido prevenidos, acudiram com as espingardas carregadas. Tencionavam disparar sobre o urso. Era impossível: o urso e o homem debatiam-se, rolavam pelo chão; querendo matar o urso, os soldados matariam também o homem.

"Por fim, o urso largou o homem, que rolou a distância; os soldados aproveitaram-se desse momento para desfechar ao mesmo tempo contra o urso, que pareceu ficar muito ferido, pois rolou, rugindo; o sangue corria-lhe de diversos ferimentos; contorcendo-se e rebolando-se, aproximou-se do homem a quem dilacerou com as garras e que ainda gritava, mas dèbilmente; os soldados haviam carregado de novo as espingardas, que voltaram a disparar na ocasião em que urso rolara para longe do homem e, desta feita, após dois ou três horríveis gemidos, o urso ficou imóvel. Trouxeram escadas, desceram ao fosso e pegaram no desventurado homem, que estava dilacerado e ensanguentado; contudo, ainda não tinha morrido, mas parecia mal sem cura, tão mordido e dilacerado fora. Enquanto o urso maltratava o homem, a senhora tornava a achar Paulito, que ele quisera roubar. Soube-se depois que este indivíduo roubava crianças para as vender a saltimbancos, que obrigavam as crianças a fazerem mais do que as suas forças consentiam. Deus, desta feita, castigara-o bem castigado. O que tornou tudo isto menos horrível foi a má acção do escuro e barbudo sujeito; todos se mostraram satisfeitos por ter Deus o castigado tão horrivelmente. Eu também me sentia contente, desejando vê-lo levado pelos soldados. Quando a pobre mãe tornou a encontrar o filho, tanto chorou, que lhe foram buscar água fresca para impedir de ter convulsões; o pequenito também chorava, beijando a mãe. Quando levavam o homem, passaram diante deles; o petiz deu um grito, escondendo-se nas saias da mãe, que disse: "- Desventurado homem, que Deus te perdoe, como eu te perdoo de todo o coração!" e perguntou se ele era pobre e se tinha necessidade de alguma coisa; como, porém, lhe tivessem respondido que naturalmente morria, pediu o favor de mandarem chamar um padre para o confortar e ajudá-lo a morrer, pedindo perdão a Deus. Prometeram-lhe e ela deu dinheiro para pagar um carro que levasse o homem para o hospital ou para casa dele e deixou a sua morada, a fim de lhe mandarem dizer onde ele residia.

"-Vou mandar-lhe - dissera - uma boa irmã de caridade para tratar dele e um padre para lhe assistir.

"Em seguida, partiu de carruagem com o Paulito.

"Aqui têm a minha história terrível. Agora vou contar-lhes outra."

MADALENA - De facto foi bem terrível, mas deveras interessante essa história.

MARGARIDA - E o que prova ter sido interessante foi o facto de Sofia não haver interrompido.

SOFIA - Olha, é verdade! Nem sequer me lembrei. De resto, sosseguem: já não tornarei a interrompê-los, porque vejo ser por maldade que o fazia, para impacientar quem conta e vingar-me também das vossas interrupções enquanto eu contei. Mas, repito, acabou-se, nunca mais os interrompo.

JAIME - A Sofia falou muito bem, não acham, meus amigos? Aprecio muito a simplicidade com que ela se acusa quando procede mal.

CAMILA - Porque é realmente bondosa e sem orgulho; percebendo, de facto, que anda mal, confessa-o logo.

SOFIA - Toma cautela, Camila, não me faças envaidecer com os teus elogios. Mas ouçamos a outra história da Isabel.

ISABEL - Após a partida da senhora e do ladrão, ninguém? quis voltar às feras e fomos ver os macacos. Estava um dia bonito, mas quente; todos os macacos andavam fora das gaiolas. Divertiam-se com muitas brincadeiras; os maiores andavam quase sempre em luta. Avistei a um canto uma macaca com a sua cria, um macaquinho; punha-o no chão e o filho não cessava de chiar enquanto ela não o tomava nos braços; por fim, a mãe, aborrecida, deu ao filho uma grande bofetada; o macaquinho esfregou o focinho, olhando, fulo, para a macaca, que se levantou e deu alguns passos; o filho seguiu-a e pôs-lhe o pé no rabo; a mãe voltou-se; o macaquinho saltou lesto para o lado. A macaca continuou a andar com gravidade; o filho voltou a pisar-lhe o rabo sem que a mãe reparasse. Após três ou quatro vezes, porém, voltou-se tão de repente, que o filho não teve tempo de fugir e ela percebeu-lhe a maldade. Então quis agarrá-lo; o filho escapou-se, a mãe perseguiu-o e bem depressa o agarrou; tomou-o nos braços e, a despeito dos seus gritos, deu-lhe alguns açoites bem puxados e, em seguida, atirou-o para o chão; o macaquito retirou-se, mal-humorado, para um canto, donde observou a mãe, que pegou numa cenoura e comeu sossegadamente. O macaquinho agarrou num punhado de areia e atirou-o para uma das orelhas da mãe. que estava a olhar para o lado oposto; ela virou-se para o filho, mas este tão prontamente retomou o seu ar descuidado e tranquilo, que não o julgou autor de semelhante insulto; recomeçou a trincar a cenoura; o macaquito agarrou segundo punhado de areia e atirou-o, como da primeira vez, escolhendo momento oportuno, A mãe começou a desconfiar que era o filho o autor da gracinha; permaneceu mais atenta do que nunca e voltou-se precisamente no instante em que o filho arremessava terceiro punhado. A mona atirou fora a cenoura e correu para o filho, que não teve tempo de se esquivar. Deu-lhe duas enormes bofetadas e preparava-se para lhe chegar ainda mais a roupa ao pêlo; os guinchos do símio chamaram a atenção dos outros macacos, que se juntaram em volta da macaca e da cria, e uns tomaram o partido da mãe e outros o do filho.

"Desataram todos a guinchar, a assobiar, a bater os dentes; trocaram-se alguns sopapos, depois atiraram-se uns contra os outros e, dentro de pouco tempo, o combate generalizou-se; mordiam-se, esgadanhavam-se, rebolavam e pisavam-se; finalmente, foram tais os guinchos, tal a chiadeira, que os guardas acudiram, separaram os combatentes, à chicotada, e fizeram-nos recolher à sua guarida; o filho foi restituído à mãe e decerto apanhou

unbom correctivo pela sua impertinência. Semelhante espectáculo divertiu-nos muito, principalmente quando todos os macacos acudiram e começaram a discutir; a triste impressão do homem e do urso apagou-se-nos por completo com a visita dos macacos e saímos, risonhos e muito alegres.

"Foi esta a minha segunda história. Acabei."

- Muito bem, nuito bem - bradaram os pequenos.

- São bem bonitas as tuas histórias!

PEDRO - Quem deve contar agora a seguir? MARGARIDA -É o Henrique.

HENRIQUE - Eu, em primeiro lugar, digo que nada conto, porque nada sei.

JAIME - Sempre hás-de achar alguma coisa, como nós.

HENRIQUE -Que queres que eu ache? JAIME - Não sei! Um cão, por exemplo. HENRIQUE -Que cão? JAIME- Sei lá! Tu é que deves procurar. Henrique procura; todos esperam; ninguém dá palavra para não o importunar; por fim, Pedro pergunta-lhe:

- E então? Achaste?

Henrique não responde; está cabisbaixo e não olha para pessoa alguma.

PEDRO - Mas responde, Henrique! É aborrecido! Há dez minutos que estamos à espera.

A respeito de resposta, três vezes nove... Os pequenos abeiram-se dele, fitam-no e reparam que está a chorar.

SOFIA - Então que é isso? Que tens? Porque choras?

HENRIQUE, chorando - Não sei história nenhuma... nem sei que dizer.

CAMILA - Mas não merece a pena chorar por causa disso, Henriquinho. Não és obrigado a contar uma história; foi para nos divertirmos que imaginámos isto; se tal não te diverte, a isso não és obrigado.

HENRIQUE - Todos vão dizer que sou parvo!

VALENTINA - Parvo, não, mas pateta!

HENRIQUE - Então conta tu, se imaginas ser muito fácil. Cedo-te a minha vez; aqui a tens.

VALENTINA - Da melhor vontade e é para já, se os meus primos assim o quiserem.

 

TODOS OS PEQUENOS - Pois decerto; conta em lugar de Henrique, visto teres ideias.

VALENTINA - É um conto de fadas que vou narrar.

HENRIQUE - Ainda bem! Eu gosto tanto de contos de fadas!

MARGARIDA - Também eu; oxalá ele seja tão bonito como o de Camila.

VALENTINA - Não creio que seja tão bonito, mas contá-lo-ei o melhor que puder.

SOFIA - Como se chama?

VALENTINA - Chama-se: A FADA PRÓDIGA E A FADA BOM-SENSO

"Era uma vez um rei e uma rainha, que governavam pequeno país longínquo e remoto.

"Os monarcas não tinham ainda filhos, mas possuíam uma muito poderosa amiga, uma fada, que se chamava pródiga."

HENRIQUETA - Como eram amigos?

VALENTINA - É que a mãe da fada Pródiga era a fada Graciosa, e a rainha era filha de uma princesa Loura e de um príncipe Maravilhoso, de quem a fada Graciosa gostava muito.

"A fada Pródiga tinha uma irmã, chamada a fada Bom-senso; esta fada Bom-senso gostava também deveras da rainha, mas a rainha não correspondia a essa amizade porque aquela não lhe concedia tudo quanto lhe pedia e por vezes lhe pregava sermões de moral acerca das más acções que ela praticava.

"Certo dia, a soberana encontrava-se sozinha e a chorar..A fada Bom-senso vinha precisamente visitá-la.

"-Porque chora, querida rainha? - perguntou-lhe."

A RAINHA - Porque todos os meus súbditos têm filhos; só eu não os tenho. E eu que gosto tanto de crianças! Ficaria tão contente se os possuísse!

A FADA - Se tivesses filhos, querida rainha, talvez fosse para a tua fatalidade; deixe as fadas e a rainha das fadas arranjarem as coisas como lhes prouver; sabem o que lhe falta.

A RAINHA - Falta-me um filho e serei muito infeliz enquanto não o tiver.

A FADA - Não é ajuizada, querida rainha. Deixo-a desolar-se sozinha - acrescentou, ao ver que o pranto da soberana redobrava - porque, para sua felicidade, não quero conceder-lhe o que deseja.

"Ditas estas palavras, a fada desapareceu, e a rainha recomeçou os seus lamentos.

"- Fada Pródiga! Fada Pródiga - bradou. - Decerto não me recusará, como fez sua irmã. o que eu peço!

A fada Pródiga surgiu logo.

"-Que tem, minha boa rainhazinha? Chamou-me? E porque essas lágrimas em seu formoso rosto?"

A RAINHA - Bondosa e querida fada, quero um filho e não o tenho.

A FADA - E é por isso que chora a minha rainhazinha? E, contudo, é feliz! Quem sabe se essa felicidade não se transtornará com filhos!

A RAINHA, chorando com mais força - Seja como for, quero um. Ah! boa fada, conceda-me um filho.

A FADA - Conceder-lhe-ei dois, minha rainhazinha. Alguma razão há-de haver para me chamar Pródiga. Terá duas filhas dentro de pouco tempo.

 

"- Obrigada, bondosa e amável fada; sua irmã, a quem fiz idêntico pedido, recusou; tinha a certeza de que não faria o mesmo.

"- Minha irmã é prudente em demasia - volveu a fada, sorrindo - e as pessoas assim prudentes são por vezes aborrecidas. Adeus e até breve, minha boa rainha; voltarei a vê-la logo que nasçam as suas filhas.

"A fada desapareceu, deixando a soberana radiante de alegria; correu a contar ao marido a promessa da fada; ele ficou contente embora se conservasse um pouco inquieto pela recusa da fada Bom-Senso. Algum tempo depois, a soberana teve duas filhas, consoante lhe dissera a fada. Assim que nasceram, a fada Pródiga apareceu e, pegando numa das princesas ao colo, beijou-a e disse-lhe:

"Baptizo-te com o nome de INSACIÁVEL e concedo-te o dom de te saíres bem de tudo quanto empreendas e de obteres tudo o que desejares...

"- Salvo se o seu desejo for injusto ou cruel, minha irmã - contrariou a fada Bom-Senso, que surgiu de repente-, e apenas até aos quinze anos. Corrijo assim o mal que lhe fazes e ela poderia fazer aos outros. Quanto a ti, pequerrucha - acrescentou a fada BomSenso, dirigindo-se à outra petizinha-, dou-te o nome de MODESTA e doto-te com grande prudência, para nunca desejares senão o que for justo e razoável. Velarei por ti - acrescentou a fada - e aqui está o meu presente de madrinha para a minha afilhada.

"Apresentou à rainha um espelho numa moldura de ouro, de diamantes e de rubis.

"- Toda a pessoa que se mirar neste espelho - disse

- verá nele como deve proceder, o mal que fez e o bem que pode fazer.

"A rainha tomou o espelho, mirou-se um instante, corou, restituiu-o à fada com ar de despeito e pediu-lhe que o guardasse até que Modesta estivesse crescida bastante para se servir dele.

"A fada sorriu ao receber o espelho e meteu-o no cofre, cuja chave confiou à rainha.

"A fada Pródiga ficara contrariada com a presença da irmã e descontente pelo impedimento que causava, para o futuro, aos desejos de sua afilhada Insaciável. Esta não tardou a provar que merecera o nome que a madrinha lhe dera, porque nunca estava satisfeita e gritava constantemente. Modesta, pelo contrário, era meiga e sossegada e nunca gritava.

"O rei e a rainha deveriam preferir Modesta à Insaciável; a rainha, porém, sentia grande afeição por Insaciável e grande indiferença por Modesta. À medida que as duas meninas cresciam, Insaciável, de dia para dia, mostrava a sua má índole, só ela queria ser acarinhada e cuidada. Modesta, embora lhe cedesse tudo quanto possuía, nunca conseguia contentá-la.

"Certo dia, Modesta comia um bolo que lhe havia dado uma das aias da rainha. Insaciável, que já comera dois, desejou também o da irmã; Modesta estava com fome e não quis ceder o que lhe pertencia. Insaciável atirou-se a ela para lho arrancar, mas não pôde agarrá-lo; por mais que estendesse o braço e abrisse a mão, não podia atingir o bolo.

 

"Desatou a gritar, enraivecida; a rainha quis contentá-la e apanhar o bolo, mas também nada conseguiu. Lembrou-se então do que a fada. Bom-senso acrescentara ao dom de Pródiga e ficou descontentíssima. O seu mau génio caiu sobre a pobre Modesta.

"- Levem daqui esta pequena - ordenou. - Esta insuportável; só contraria e faz chorar a irmã.

"Noutro dia, Insaciável viu um ninho de passarinhos nas mãos de Modesta.

"- Quero um ninho como o da Modesta! - bradou.

"Logo um pagem entrou e apresentou a Insaciável um ninho muito semelhante, que tinham trazido para ele.

"- Quero outro ninho!

"Outro ninho lhe foi trazido.

- Quero o ninho da Modesta! - exigiu.

"Mas, como lhe acontecera com o pastel, não conseguiu apanhá-lo.

"Muitas vezes idênticas cenas se repetiam. Insaciável, habituada a ver satisfeitos todos os seus caprichos, enfurecia-se terrivelmente perante a mais pequena resistência, e como era sempre com a irmã que havia essas contrariedades, criou-lhe rancor e pediu à rainha que expulsasse Modesta, que constantemente a atormentava.

"A soberana deu ordem para Modesta ser levada para um castelo afastado. A aia que educava Modesta; foi encarregada de a acompanhar com numerosa comitiva, "Modesta compreendia que a mãe não gostava dela; sofria as consequências do mau carácter da irmã, por isso partiu sem pena. O castelo em que ia habitar era encantador; havia ao lado uma granja onde Modesta passava parte do dia com as vacas, os carneiros, as galinhas, perus e passarinhos de toda a espécie. Vivia aí feliz com a aia, de quem gostava muito, e sua irmã de leite, de quem gostava mais ainda; recebia muitas vezes a visita da madrinha, a fada Bom-Senso, que lhe testemunhava grande amizade.

"A Insaciável, por seu lado, não deixava de querer uma coisa e logo outra; tudo a aborrecia porque tudo conseguia com demasiada facilidade; possuía em tal quantidade brinquedos, livros, vestidos, jóias, que nada lhe causava prazer nem inveja. O mesmo se dava com o seu trabalho: aprendia com tanta facilidade, que nada lhe interessava.

"Obrigava constantemente o pai a substituir os ministros e as leis, a mudar de aliados e amigos: por toda a parte espalhava a perturbação. Fazia tudo quanto queria e. contudo, nunca estava satisfeita. Todo o reino vivia em confusão por sua causa.

"Entretanto, ia completar quinze anos. Nessa altura, disse ao pai que queria pòr-se à frente das tropas. A princípio obteve algumas vitórias; mas o tempo passava, os quinze anos de Insaciável chegaram e ela perdeu muitas batalhas; os soldados revoltaram-se e recusaram segui-la. Foi obrigada a fugir vergonhosamente.

"Quando a Insaciável chegou à corte do pai, tudo estava desordenado; todos a maldiziam, a detestavam; chegaram a chamar a esse reino um país sem rei nem roque, por irrisão, por troça. O monarca, ao ver que fora ela a causa das suas desgraças, expulsou-a da sua presença; a rainha convidou-a a ir juntar-se à irmã e aconselhou-a a mirar-se no espelho de Modesta. Insaciável, aflita, humilhada, foi ter com a irmã e perguntou-lhe onde estava o espelho de que a mãe lhe falara.

 

"-Aqui o tens - disse Modesta, apresentando-lho.

- Foi ele o meu mestre, que me impediu de praticar o mal e me mostrou o que devia fazer de bom.

"Insaciável pegou nele. lançou-lhe uma olhadela e soltou um grito, mas não pôde desviar dele a vista; via todo o mal que causara desde que nascera; não podia acreditar nos seus olhos. Depois de haver visto tudo, caiu nos braços da irmã e chorou amargamente. Em vão Modesta tentou acalmá-la; a lembrança dos males que causara perseguia-a dia e noite; já não comia, já não dormia. Por fim caiu em tal estado assustador, que Modesta mandou um mensageiro ao rei e à rainha; conpareceram ambos e, ao ver a filha tão mal, apelaram para o socorro de Pródiga, que apareceu, triste e taciturna.

"- Nada posso fazer - disse. - A sua consciência é que a faz morrer; sente que todos a odeiam, a desprezam, e não pode viver; mas como se arrepende, perdoar-lhe-ão.

"Insaciável, sentindo-se morrer, pediu perdão ao rei, à rainha, à irmã, a toda a corte e expirou nos braços de Modesta. Poucos a lamentaram, embora pranteassem o seu triste fim. Os monarcas também se miraram no espelho da fada Bom-Senso. Aterrados com os crimes da sua vida, resolveram emendar-se e chamaram para junto deles a princesa Modesta, desterrada havia tantos anos. Esta ficou satisfeita com esse gesto de ternura dos pais, mas teve sempre muita pena da granja e do castelo onde tanto tempo vivera sossegada e sem desgostos. De resto, viveu muito feliz, casou com um excelente príncipe e sucedeu ao pai após a morte deste. A sua irmã de leite nunca a abandonou e dedicou-lhe todos os dias.

"E acabou a história meus pequenos; foi extensa e sinto-me fatigada."

- Obrigado, obrigado, Valentina - agradeceram todas as crianças. - Foi encantadora e muito divertida.

Nesse dia, os pequenos conversaram demoradamente a respeito da história que tinham acabado de ouvir.

MADALENA - Não foste tu que a compuseste, pois não, Valentina?

VALENTINA - Fui. sim, fui eu.

SOFIA - Quando a fizeste?

VALENTINA - Contando-a. Inventava à medida que falava.

LEÒNCIO - Mas foi soberba, surpreendente! Eu não a poderia fazer como tu.

VALENTINA - Se tentares, verás que não é difícil, e amanhã é precisamente a tua vez.

                 OS LOBOS E OS URSOS

No dia imediato, quando os pequenos se juntaram em volta de Leôncio, este começou com gravidade:

- Meus amigos, já sei que querem saber o nome da minha história: tem dois nomes terríveis...

- Meu Deus! - exclamou Joana.

- Não te assustes, Joana - volveu Leôncio. - Os lobos e os ursos de que vou falar estão, felizmente, longe de nós. Vivem na Lituânia, país que pertence à Rússia, e a minha história intitula-se OS LOBOS E OS URSOS. Ouçam com atenção e não me interrompam.

MARGARIDA, rindo - Mas que ares os teus!

LEÔNCIO - Tenho os ares que sempre tive.

MARGARIDA - Não, nada disso; tens uns ares graves como se fosses julgar-nos ou condenar-nos.

LEÔNCIO, jovial - De facto, condeno-os a ouvir a minha história depois de os julgar dignos de ouvi-la.

ISABEL -Ah, ah, ah! Que bonito! Somos todos ouvidos.

LEÔNCIO - Havia uma família que vivia na Rússia,

numa bonita e aprazível província do Sul; essa família não era grande: era constituída por pai, mãe, três filhos, duas filhas e uma irmã idiota.

SOFIA - E dizes tu que não era grande! Que mais te falta?

LEÔNCIO - Sofia, Sofia, eu pedi que não me interrompesses. Digo que esta família não era grande para a Rússia, visto que, nesse país, uma família chega a contar doze ou catorze filhos.

HENRIQUETA -Que disparate!

LEÔNCIO - Qual disparate! Tenho uma tia russa que teve dezassete filhos. E, agora, caluda! Essa família devia ir passar alguns meses à Lituânia, junto de um velho avô muito doente.

JOANA -Que tinha ele?

LEÔNCIO - Uma hidropisia, como quem diz, uma doença que faz com que a barriga se encha de água e sufoque a pessoa. Iam, pois, à Lituânia; a neve já cobria a terra; tinham mandado pôr o grande carro, que levava toda a família, em cima de patins.

HENRIQUE - Que são patins?

LEÔNCIO - São trenós a que se ajustam os carros, quando gela e quando há neve. Não voltes a interromper-me. Já não sei onde estou.

"Haviam posto o grande carro em cima dos patins; tinham-lhe atrelado dois bons cavalos e não seguiam muito depressa pois o caminho era longo e era necessário poupar forças para a travessia da floresta. Uma vez aí chegados, o carroceiro devia chicotear os cavalos e caminhar depois rapidamente, para não dar tempo a que as alcateias de lobos os perseguissem. Preciso de dizer-lhes que as florestas dessa região estão cheias de lobos. Quando se encontra um. dois ou até três, é caso para troça, porque os lobos são poltrões e só se atrevem a acometer os carros quando se reúnem em alcateia. "Chegaram à floresta; o cocheiro parou os cavalos durante alguns minutos, deu-lhes aveia, soltou-lhes as rédeas de novo e penetrou na floresta. Os cavalos trotavam, galopavam, seguiam em bom andamento; o cocheiro regozijou-se só por faltar meia hora para transpor a floresta, quando se ouviu longínquo uivo.

"- Os lobos! - bradou o cocheiro. - Os lobos! - Chicoteia os cavalos, Nikita - ordenou o patrão, que se chamava Bogoslafe -, chicoteia-os com força; tentemos sair da floresta antes de os lobos nos atingirem. "O cocheiro chicoteou; os cavalos, trémulos também, corriam como o vento. Contudo, os uivos avizinhavam-se; o medo dava asas aos cavalos. Nikita voltava-se de vez em quando; não via os lobos; mas uma vez, em seguida ao ter-se voltado, bradou:

"-Ei-los! Vejo negra massa ao longe; são mais de quinhentos.

"- Estamos perdidos! - disse o Sr. Bogoslafe.

"- Não, meu querido patrão. Se Deus nos proteger, talvez nos possamos salvar. Conheço um refúgio a cem metros daqui. Se o portão estiver aberto, estamos salvos.

"E, chicoteando os cavalos com enérgico vigor, dirigiu-se para o refúgio cujo portão estava felizmente aberto para conceder aos viajantes a facilidade de entrar e pôr-se ao abrigo dos lobos que, em geral começavam a dispersar-se. Os uivos dos lobos tornaram-se cada vez mais distintos; a massa negra continuava a aproximar-se; Nikita atingiu a granja e entrou a toda a brida; cavalos caíram ao tocar a parede com a cabeça. Nikita,deixou-os debater-se, saltou da boleia e correu a fechar os dois batentes; fechou um e os lobos aproximaram-se; empurrou o outro e aferrolhou-os precisamente a tempo de impedir que os lobos se precipitassem na granja. O Sr. Bogoslafe abrira a portinhola e apeara-se para ajudar Nikita a barricar solidamente o portão, de maneira que os lobos não pudessem forçar a entrada. O refúgio era grande, pouco iluminado, porque se haviam feito aberturas pequenas e muito altas para que os lobos lá não pudessem entrar. Quando toda a família estava um pouco refeita do seu terror, todos se prostraram de joelhos para agradecer a Deus havê-los salvo; de seguida, o patrão abraçou Nikita e disse-lhe, comovido:

"- Meu amigo, foste tu, após Deus, quem nos salvou. E se Deus permitir que saiamos vivos daqui, conceder-te-ei a liberdade e dar-te-ei uma pensão para poderes viver sem servir.

"Nikita ajoelhou, beijou a mão do amo, enxugou os olhos com as costas da mão e dirigiu-se para os cavalos, a fim de os desatrelar e tratar deles. Os pobres animais ainda estavam trémulos do susto que tinham apanhado com os uivos dos lobos, com a velocidade da corrida e com a violência da queda. Enquanto Nikita preparava a cama dos cavalos com a palha que estava amontoada a um canto, o Sr. Bogoslafe fazia sair a mulher e os filhos do carro, para onde tinham querido entrar de novo, julgando-se mais seguros contra os lobos.

"- Examinem bem este refúgio - disse-lhes - e vejam como está solidamente construído: os lobos, por mais que esgadanhem e saltem, não podem abrir-lhe brecha.

"A Sr.a Bogoslafe e os filhos deixaram-se por fim convencer e deram uma volta pelo refúgio, para se certificarem de que não havia passagem alguma possível para os lobos.

"-E quanto tempo nos demoraremos aqui? - inquiriu a Sr.a Bogoslafe.

"- Não sei - respondeu o marido. - Não podemos sair daqui enquanto os lobos não se forem embora; ignoro quais sejam os seus hábitos nestas ocasiões. Que dizes, Nikita? Quanto tempo poderemos estar cercados pelos lobos?

"-Quando perseguem pessoas que lhes escaparam, patrão, não costumam deixá-los tão depressa. Amanhã ainda lá estarão, a menos que não persigam qualquer outro viajante que seja menos feliz do que nós.

"-E supões, Nikita, que temos de passar a noite neste refúgio?

"- Sim, patrão, e bem espantado ficaria se os inimigos nos deixassem sossegados antes de amanhã.

"- E que havemos de fazer? Homens e cavalos, não temos de comer nem de beber.

"- Perdão, patrão, alimento não nos faltará. Enchi as duas caixas do carro; e quanto a bebida, deve aqui haver uma cisterna; há sempre o cuidado de construir uma nestes refúgios que servem de defesa contra os lobos.

"- E o que darás tu aos cavalos?

 

"- Em primeiro lugar, trago um grande saco de aveia debaixo da boleia, e depois os pobres animais quase não têm vontade de comer, pois estão muito assustados. Para dormir, há ali bastante palha ao canto. Não, nada nos há-de faltar.

"Os filhos da Sr.a Bogoslafe acabaram por sossegar um pouco; à tarde, pediram de comer; Nikita tirou as provisões de dentro das caixas do carro; estendeu uma camada de palha no canto mais afastado dos cavalos, trouxe e colocou ao lado os pastéis, carnes frias, pastelões, vinho, cerveja e tirou água de uma cisterna que encontrou noutro canto da casa.

"Puseram-se no chão. em cima da palha, e comeram com bom apetite, embora silenciosamente. O Sr. Bogoslafe deu a Nikita o resto das provisões. Comeu pouco e guardou cuidadosamente o resto.

"- É preciso ser económico - disse. - Nunca se sabe o que pode acontecer. Se os lobos teimam em ficar perto do refúgio, não são de mais as provisões que temos, e mesmo assim... sabe-se lá...

"Quando anoiteceu o número de lobos parecia ter aumentado, a ajuizar pela força dos seus uivos. A Sr.a e o Sr. Bogoslafe e os filhos haviam-se estendido em cima da palha, tapando-se com as peliças. Nikita não se deitou; velou para manter a fogueira que acendera.

"Quando surgiu o dia, os uivos dos lobos diminuíram. Nikita encostou uma escada à parede a fim de subir a uma janela e ver se eles ainda lá estavam. Viu com terror que os lobos haviam acampado perto da granja; estavam estendidos na neve por todos os lados. Nikita contou cento e vinte e três; o resto estava escondido debaixo das árvores. Desceu da escada, muito triste.

"- E então, Nikita? - observou o Sr. Bogoslafe. Pela tua cara se depreende que nada viste de bom!

"-Estão ali, patrão, e ali permanecerão... Tenho uma coisa a propor-lhe: é uma sorte a tentar... É preciso sacrificar os cavalos.

"- E para que serviria tal sacrifício? Oito cavalos não podem matar a fome de quatrocentos a quinhentos animais ferozes. E depois, como seguiremos sem cavalos?

"-Não nos hão-de faltar, se quiser ouvir-me. Os cavalos comeram e beberam bem e estão bastante folgados; pô-los-ei fora daqui à chicotada; ficarei apenas com dois, e vai ver porquê. Os cavalos, aterrados com a presença dos lobos pôr-se-ão a correr para o lado da casa de onde viemos; todos os lobos os perseguirão; quando estiverem longe, tomarei um dos cavalos e correrei à cidade próxima, onde pedirei uma escolta e cavalos para nos levarem. Se eu hão voltar com a escolta até ao fim do dia, então, o patrão montará o outro cavalo e talvez tenha, se Deus o ajudar, melhor sorte do que eu.

"- Excelente homem! - replicou o Sr. Bogoslafe. O teu plano é bom, mas serás a primeira vítima dele e não posso aceitar a tua dedicação; serei eu o primeiro a partir.

"- Não, patrão, porque o perigo está aqui se os lobos não se afastarem muito; há sempre atrasados entre eles. O senhor é o chefe da família, tem de ficar junto da senhora e dos filhos; eu sou o criado e devo tentar salvar todos. De resto, patrão, a ideia é minha e cumpre-me o direito de a executar.

"-Vai, meu bom Nikita, e que Deus te proteja!

"Nikita tirou o chapéu, persignou-se, desprendeu seis cavalos e colocou-os perto da porta.

 

"- Descerre a porta, patrão.

"O Sr. Bogoslafe abriu-a de maneira a dar passagem a um cavalo. Nikita chicoteou fortemente os cavalos, que correram para fora; fechou a porta a toda a pressa e barricou-a. Logo que os cavalos saíram, ouviram-se uivos, os lobos precipitaram-se de todos os lados em perseguição dos animais, que, como Nikita o previra, desataram a correr pelo mesmo caminho percorrido na véspera. Toda a alcateia ululante os perseguiu. Quando mais nada se ouviu, Nikita montou um dos cavalos restantes, cumprimentou o patrão persignou-se e encaminhou-se para a porta.

- Abra, patrão, e que Deus os proteja, a si, à senhora e aos meninos.

"O Sr. Bogoslafe também se persignou, abriu a porta e tornou a fechá-la nas costas do fiel servo que talvez pagasse com a vida a sua dedicação pelos amos. O Sr. Bogoslafe apurou o ouvido, mas nada distinguiu além do galopar do cavalo; em seguida alguns uivos ao longe e depois mais coisa nenhuma. Duas horas se passaram na mais viva inquietação. Nenhum ruído mais se ouviu; terceira hora decorreu e nada ainda.

"- Vou partir - disse o Sr. Bogoslafe. - Sem dúvida o nosso pobre Nikita foi atacado e devorado pelos lobos.

- Espera ainda - pediram-lhe a mulher e os filhos.

- Mais uma hora.

"O Sr Bogoslafe esperou mais uma hora e preparou-se para partir a despeito do desespero e do terror da mulher e dos filhos.

"Ia a montar a cavalo, quando estranha bulha o deteve.

"- Mais uma alcateia de lobos! - disse.

"A bulha avizinhava-se. Vivas, exclamações de júbilo tranquilizaram a desventurada família, que sem custo adivinhou que era a escolta trazida por Nikita.

"-Abra a porta, patrão - bradou Nikita, com voz triunfante.

"A porta abriu-se; o patrão caiu nos braços do servo e beijou-o como se fora um irmão; Nikita estava radiante. Atrelaram ao carro oito cavalos folgados e robustos; a família Bogoslafe meteu-se nele; Nikita tomou o seu lugar na boleia e o carro partiu a galope escoltado por duzentos cavaleiros.

"Chegaram sem novidade de maior a casa do avô, que mandou distribuir aguardente e dinheiro pela escolta. Nikita nesse dia recebeu a liberdade e considerável maquia. Pediu ao patrão para continuar a servi-lo como cocheiro, dizendo:

"- O senhor é bom patrão e sinto-me feliz junto de si. Que seria de mim se vivesse sem fazer coisa alguma? Aborrecer-me-ia e talvez só fizesse disparates.

"Nikita ficou, pois, em casa do Sr. Bogoslafe até à sua morte e foi tratado mais como amigo do que como criado. "- Acabou-se! - concluiu Leôncio, enxugando a testa. - Como nos faz transpirar o contar histórias!" PEDRO - Foste tu que a inventaste? LEÔNCIO - Não por completo; li uma história desse género e resumi-a ao contá-la.

ISABEL - É muito interessante e bem terrível, consoante disseste. Mas onde estão os ursos? Não vi um único. LEÔNCIO - Acredito, pois isso é outra história. Mas a dos lobos foi grande e sinto-me cansado. JAIME - E conta-la amanhã? LEÔNCIO - Conto, se não se aborrecem.

CAMILA - Como podes imaginar tal, se contas tão bem?

LEÔNCIO - Depois de mim, cabe a vez à Joana. JOANA - Nesse caso, faço como o Henrique. Chorarei.

SOFIA - Ora, adeus! Se todos chorarem em vez de contarem histórias, não as ouviremos.

JOANA -É muito difícil contar; nada sei inventar ?não me lembro de coisa alguma divertida.

SOFIA-Farás como eu; conta uma história estúpida.

JOANA - Troçarão de mim como te fizeram a ti, e julgas que isso é agradável?

SOFIA - Tanto pior para os que troçam. A gente vinga-se, troçando também.

JOANA - Mas eu não quero troçar de ninguém; não sou tão inteligente como tu.

SOFIA - O que quer dizer que és melhor do que eu. Não é preciso ser-se inteligente para troçar; mas apenas ser um pouco maldoso.

MARGARIDA - Então, tu és má?

SOFIA - Suponho que sim; pergunta a Camila.

CAMILA - Não Margarida; ela não é má, mas um pouco maliciosa e demasiado viva.

MARGARIDA - E sabes o que penso? Que é muito agradável ser maliciosa, porque se diverte toda a gente. A Sofia é muito divertida.

CAMILA - É verdade, mas às vezes causa pena e é preferível não divertir, e nunca desgostar seja quem for.

SOFIA - Camila tem razão: sinto muitas vezes remorsos por haver impacientado e desgostado meus primos, e é pouco agradável ter remorsos.

JOANA - E porque é desagradável?

SOFIA - Porque se sente que se foi mau; o nosso desejo seria pedir perdão e envergonhamo-nos. Não saber a gente como proceder é triste.

JOANA - Eu não seria tão estúpida. Se tivesse feito alguma maldade, pediria logo perdão e prometeria não tornar mais.

SOFIA - Tens razão; tentarei fazê-lo na próxima vez.

LEÓNCIO - Ah, ah, ah! Isso é muito bonito! Queres ser má, porque dizes para a outra vez...

SOFIA-Aborreces-me com as tuas reflexões. Dize-nos antes se os pobres cavalos foram devorados pelos lobos.

LEÓNCIO - Nem pensei nisso; é forçoso fazê-los devorar?

JAIME - Não, não, pobres animais! É melhor salvá-los.

LEÓNCIO - Nem todos se podem salvar. Houve quatro que voltaram para casa e dois que desapareceram, o que devem crer que os lobos os devoraram.

JAIME - Estou desgostoso com isso, visto que foste tu a compor a história, e podes muito bem dizer que os seis voltaram.

LEÓNCIO - O que seria pouco provável. Imagina quinhentos lobos a perseguir seis cavalos: decerto devoraram, pelo menos, dois.

HENRIQUE - Isso não, Leôncio. Peço-te: salva-os todos.

LEÓNCIO - Seja! Então, como conclusão da história, sempre digo que os cavalos possuíam tal vigor, mercê dos cuidados de Nikita, que conseguiram pôr em fuga os lobos, partindo-lhes as mandíbulas com os coices quando se aproximavam demasiado, e que os ursos, os abutres e os gaviões lhes devoraram os cadáveres. Estou esperançado em que todos fiquem satisfeitos com este fim tão feliz.

Os pequenos desataram a rir e esperaram, impacientes, pelo dia seguinte, para ouvirem novas histórias.

 

               NARRATIVA DE HENRIQUETA

Haviam resolvido, durante o dia, que seria Henriqueta quem começaria, ao que ela se resignou da melhor vontade e, quando se reuniram, principiou sem se fazer rogada e sem parecer contrariada:

- Havia uma menina não maior do que Grão de milho e se chamava Ervilhinha. Era maliciosa e inteligente. A mãezinha dava-lhe muito mimo por ser tão pequenina. Não podia castigá-la por ser tão miúda! Uma bofetada ou uma paulada podiam matá-la; assim, era mais feliz do que Balofo e sua irmã Bochechuda, que apanhavam muita pancada. Isso causava pena à Ervilhinha, que gostava muito deles, embora fosse muito rabina e não simpatizasse com a mãezinha: procurava sempre acudir-lhes quando faziam algum disparate e ficava encantada por pregar partidas à mãe. Certo dia encontraram um cesto com castanhas que a mãe apanhara; encheram com elas as algibeiras, assaram-nas debaixo da cinza e comeram-nas. Depois de comerem tudo, Bochechuda exclamou:

"- Ai o que nós fizemos! A mãe, que contou as castanhas, vai ver que lhe falta grande quantidade. Que havemos de fazer? Ervilhinha, acode-nos!

"- Estejam sossegadas. Eu cá arranjarei tudo.

"E Ervilhinha saltou para o chão, da sua cadeirinha da altura da mão, pegou numa varinha, fez rolar umas brasas até perto do cesto, acendeu a uma das brasas um bocado de papel e pegou fogo ao cesto; quando tudo estava em labareda, Ervilhinha empurrou as castanhas para esse improvisado braseiro e, vendo-as crepitar e arder, disse a Balofo e a Bochechuda que fossem buscar lenha.

"-Tragam tanta quanta puderem; não digam que voltaram para casa, e a mãe imaginará que foi o fogo que chegou aqui e queimou o cesto e as castanhas.

"- Obrigado, Ervilhinha - agradeceram os irmãos, fugindo.

Ervilhinha, radiante por haver feito aquela maldade à mãe, foi para o seu quarto para fingir desconhecer o que acontecera às castanhas. A mãe Giesta não tardou a aparecer; ao ver a cozinha cheia de fumo, desatou a gritar que a casa estava a arder; acudiram vizinhos e ajudaram-na a deitar alguns baldes de água sobre as castanhas inflamadas e fumegantes. Tudo se extinguiu sem custo.

-Como seria isto? - perguntou a tia Francisca.

A MÃE GIESTA - Naturalmente o lume chegou ao cesto.

A TIA FRANCISCA - E porque pôs as castanhas tão perto, do lume?

A MÃE GIESTA - Ora. para as secar, pois estavam muito húmidas.

A TIA FRANCISCA - Por isso agora estão bem secas!

A MÃE GIESTA - E não seria Ervilhinha, que por acaso as tivesse feito queimar? - e chamou: - Ervilhinha!

ERVILHINHA - Estou aqui, mãezinha no meu quarto.

"Ervilhinha desceu lépida e fingiu estar bastante consternada pela perda das castanhas.

 

"- Onde estão Balofo e Bochechuda? - perguntou a mãe, olhando em roda.

"- Estão a trabalhar lá fora; não devem demorar para jantar-respondeu Ervilhinha.

"De facto, voltaram daí a pouco com um carregamento de lenha, o que fez com que a mãe acreditasse que tinham estado a trabalhar toda a manhã.

"Ervilhinha tinha o péssimo costume de correr atrás das pessoas da casa que iam à adega, ao celeiro; muitas vezes não a viam. por ser muito pequenina. Frequentemente a mãe a proibia de tal, mas Ervilhinha zombava dela e não lhe obedecia. Certo dia. seguiu uma criada que ia secar linho ao celeiro. Quando o linho ficou estendido, a criada saiu e fechou a porta.

"E aqui temos Ervilliinha prisioneira; grita, barafusta tanto quanto pode; tinha, porém, tão fraquinha voz, que ninguém a ouvia: enquanto corria para um lado e outro, a gritar, um gato entrou pela fresta, tomou-a por um rato e atirou-se a ela; Ervilhinha fugiu, mas o gato era lesto e hábil; agarrou Ervilhinha, deu-lhe uma dentada e cortou-lhe a cabeça. Os cabelos de Ervilhinha eram muito compridos e estrangularam o gato, que caiu, asfixiado, junto do corpo decapitado de Ervilhinha."Decorridas algumas horas, Balofo e Bochechuda fizeram outro disparate e desataram a chamar por ervilhinha, como já era costume, mas Ervilhinha não apareceu. Aterrados com a sua prolongada ausência, Balofo e Bochechuda procuraram-na por toda a parte e subiram ao celeiro; ao entrar, viram o gato morto e Ervilhinha. sem vida; os seus gritos foram melhor ouvidos do que os de Ervilhinha, pois eram agudos e terríveis. Todos acudiram; mas que fazer? Não se podia pôr uma cabeça nova a Ervilhinha, nem restituí-la ávida; então, construíram-lhe um caixãozinho, onde meteram o seu corpito, que foi enterrado. Quanto ao gato foi para a estrumeira. Sobre Balofo e Bochechuda caiu-lhes uma chuva de pancada como nunca tinham apanhado, porque eram glutões, ladrões, mentirosos e preguiçosos, e Ervilhinha já ali não estava para lhes servir de capa de misericórdia. Depois de crescidos, tornaram-se ladrões e foram-lhes cortadas as cabeças, de maneira que os três filhos da tia Giesta morreram sem cabeça.

"Acabei. Afigura-se-me que a minha história foi bonita. Muito gostaria eu de ver a Ervilhinha!" Os pequenos desataram a rir.

MARGARIDA - Como eu desejaria ter uma boneca como a Ervilhinha!

JOANA - Pois eu, não. Far-me-ia zangar de manhã até à noite.

HENRIQUETA - Mas, afinal não disseram se tinham achado bonita a minha história.

CAMILA - Muito bonita, minha pequena, e foste bastante amável em contá-la tão bem.

HENRIQUETA - Obrigado, Camila; mas eu gostava de saber o que pensa a Sofia.

SOFIA - Porque hei-de ser eu e não os outros?

HENRIQUETA - Porque os outros, por bondade, fariam como Camila; mas tu hás-de dizer francamente a tua opinião.

SOFIA - Bem... nesse caso... francamente, achei-a um pouco estúpida.

HENRIQUETA -Estúpida, porquê?

SOFIA - Por que a Ervilhinha é simultaneamente boa e má e foi castigada por uma forma horrível, como se fora uma desalmada. Porque Balofo e Bochechuda não são castigados pelas maldades que fizeram à mãe. Porque se tornam ladrões sem se saber o motivo. Porque aos ladrões não se corta a cabeça; metem-se na cadeia. Em resumo, porque nada da tua história tem uma finalidade.

HENRIQUETA, chorando -Já. vês que eu tinha razão em não querer contar. Sabia muito bem que não sabia. A culpa é toda de vocês; obrigaram-me, quando eu não queria.

JAIME - Sofia, porque afliges a pobre Henriqueta, que fez o melhor que pôde, e cuja história nos divertiu muito?

SOFIA - Ela pediu a minha opinião. Que querias que eu fizesse? Querias que mentisse?

MADALENA - Não; podias, porém, julgar com menos severidade. Quanto a mim a história da Ervilhinha distraiu-me.

- E a mim também! E a mim também! - secundaram Margarida, Valentina e Joana.

Camila, Pedro, Leôncio e Luís não disseram palavra e imobilizaram-se enquanto os outros rodeavam Henriqueta, a confortavam e a beijavam, repelindo Sofia, chamando-lhe má.

Sofia fitava-os com ar zombeteiro, e, por fim. disse, encolhendo os ombros:

- Ainda não acabaram com as momices? Mas que estupidez fazerem tantos esforços para confortar Hen riqueta, que chora de envergonhada por não ter contado uma história de jeito!

- Maldosa! Ruim! Vê se te calas! - bradaram os pequenos, indignados.

SOFIA - Pergunta a Camila, a Leôncio, a Pedro e a Luís se acham que não tive razão e que só vocês é que a têm toda.

Jaime voltou-se e, vendo em silêncio e imobilidade aqueles cuja opinião apreciava, perguntou-lhes se a razão estava da parte de Sofia ou de Henriqueta.

Houve um momento de hesitação. Camila, vendo que ninguém exprimia a verdadeira opinião, tomou a palavra.

CAMILA - Creio que meus primos acham, como eu, que vocês são injustos com Sofia, que só falou quando Henriqueta quase a isso a obrigou. O seu parecer foi severo, mas, no fundo, justo; e creio que há efectivamente mais despeito do que desgosto nas lágrimas de Henriqueta. Em suma: Sofia não merece a vossa zanga, nem as vossas censuras.

LEÔNCIO - Penso como Camila. Apenas acrescento que não me parece que Henriqueta mereça tantas carícias e consolações.

PEDRO - Abundo nas mesmas ideias de Leôncio e de Camila. Henriqueta, se não queria ter uma resposta franca, escusava de a pedir a Sofia.

LUÍS - Eu também penso do mesmo modo.

Simplesmente, estimaria mais que Sofia não dissesse tudo quanto pensava e se lembrasse de que Henriqueta contou a história por condescendência e com repugnância.

SOFIA - E eu acho que todos quatro julgaram muito bem e que fui, como é meu costume, rude de mais. Perdoa-me, Henriquetazinha, haver-te melindrado com a minha injusta severidade; consola-te com a ideia de que a tua história foi muito mais bonita e mais bem contada do que a minha, de que eles, com muita razão, troçaram. Mas há uma diferença: tu choras e eu defendo-me do injurio. És bondosa e meiga e eu má e colérica. Como vês. ainda é um remorso para mim.

CAMILA - Não, boa Sofia, não tenhas remorsos, peço-te, pois, se foste um pouco rude, não hesitaste em reparar a tua dureza e, estou certa de que Henriqueta não te quer mal por isso.

- Não, não, Sofia; afianço-te que continuo a ser tua amiga -volveu Henriqueta, saltando-lhe ao pescoço.

O enternecimento subjugou todos os culpados; todos abraçaram Sofia, que acabou por pedir tréguas, pois o que, tinha começado por um sentimento de ternura e de justiça redundou em brincadeira, e Sofia sentia-se esmagada pelos abraços e as cabeças que a rodeavam, a princípio com lágrimas nos olhos e sorriso nos lábios e, por fim, com gargalhadas e gritos de júbilo.

- Socorro! - gritava Sofia, rindo como eles, a bandeiras despregadas. - A mim os maiores, os mais atilados!

Os maiores acudiram ao chamamento; Camila, Leôncio, Pedro e Luís acudiram ao motim e o combate tornou-se sério. A quantidade era pelo ataque; a qualidade, isto é, a força e a idade, pela defesa. Os mais novos metiam-se por baixo das pernas dos outros, saltavam-lhes para as barrigas e puxavam-nos para trás. Aqueles forçavam as trincheiras, penetravam junto de Sofia, de quem se encontravam separados pela massa dos pequenos que a cercavam por toda a parte. Por fim, Leôncio conseguiu agarrar uma das mãos de Sofia: Camila segurou-lhe a saia e, puxando, empurrando, rindo, gritando, auxiliados por Pedro, que formava a vanguarda, e Luís, que era a retaguarda, conseguiram libertá-la e trazê-la em triunfo. Se alguém entrasse na sala naquela ocasião, julgaria assistir a uma batalha a valer, tanto os cabelos estavam emaranhados, os fatos e os vestidos em desalinho: um perdera a gravata; a outra a fita do cabelo; o terceiro não tinha botões no colete; a quarta tinha a cauda do vestido arrancada em toda a largura; este procurava um sapato, aquele um colarinho; todos estavam corados e a transpirar.

Foi no meio desta balbúrdia que a porta se abriu e a Sr.a de Fleurville fez entrar os novos vizinhos que tinham vindo fazer uma visita e desejavam travar conhecimento com os pequenos.

A Sr.a de Fleurville ficou interdita perante o geral aspecto das crianças.

- Que temos? Que aconteceu, meus filhos, para se apresentarem em tal estado? Onde está Camila?

A Sr.a de Fleurville esperava que Camila, pelo menos, estivesse apresentável. Camila adiantou-se, com os cabelos desgrenhados, uma das mangas rota, o semblante a transpirar e muito embaraçada com a sua pessoa.

- Queira desculpar, minha senhora - disse a Sr.a de Fleurville -, o desalinho em que se encontram estas crianças. Parecem que tivessem pelejado? - acrescentou, lançando um olhar descontente a Camila.

CAMILA - Brincávamos, mãezinha, a querer libertar Sofia do bando que a cercava, e por isso estamos um pouco despenteadas.

- Um pouco, é bem achado! Despenteados, despidos parecem garotos da rua. Deixemo-las nas suas desaustinadas brincadeiras. Quando estiverem apresentáveis, vão à sala.

A Sr.a de Fleurville retirou-se com as pessoas que trouxera; os pequenos ficaram um pouco atrapalhados; depois, sorriam, olhando uns para os outros; de seguida, soltaram grandes gargalhadas e correram todos a comporem-se, cada um por seu lado.

Quando a nova vizinha - a Sr.a Delmis - se despediu, a Sr.a de Fleurville chamou os pequenos.

- Que maneira de brincar inventaram vocês – disse - para terem a aparência de esfarrapados e de doidos, quando entrei com a Sr.a Delmis? A roupa esfarrapada, as caras coradas, os cabelos ouriçados ou desgrenhados; o chão todo cheio de calçado, de lenços, de farrapos de roupas; tudo isto lhes dava aspecto tão terrível que fiquei envergonhada por vocês e por mim.

- Mãezinha - respondeu Camila -, não pensámos que alguém pudesse entrar na sala onde estávamos; tínhamos começado por estar muito ajuizados e quietos e depois animámo-nos, defendendo e atacando Sofia e, por fatalidade, a mãezinha entrou no mais aceso da batalha.

A SR.a DE Fleurville -Batalha? Então guerreavam?CAMILA - Uma batalha a fingir.

A SR.a DE Fleurville - São brincadeiras que não devem repetir-se, meus filhos. A Sr.a de Delmis podia ter acreditado que se batiam a sério e sinto-me desgostosa por vossa causa; tem duas filhas; receio que não queira apresentá-las a meninos que guerreiam.

SOFIA - Minha tia, diga-lhe que a culpa foi minha e meus primos estão inocentes.

A SR.a DE Fleurville - Porque queres que eu minta, minha pobre Sofia? És muito generosa.

SOFIA - Mas não se trata de mentira, tia; digo a verdade.

E Sofia contou à tia o que se dera e, como ao reparar uma tolice, enternecera os primos, que quase a sufocaram, e como os outros tinham vindo em socorro dela.

A Sr.a de Fleurville sorriu, beijou Sofia e deixou-os, aconselhando-lhes brincadeiras mais calmas. Quiseram recomeçar as histórias. Era agora a vez de Luís; como porém, era tarde de mais, decidiram recomeçar no dia imediato. A VIAGEM

Quando tudo estava reunido, Luís sentou-se na cadeira reservada a quem contava.

- Sofia - disse -, peço-te que não me interrompas.

SOFIA - Sossega, que não darei palavra.

LUÍS - Bem, se tu falas, calo-me eu.

SOFIA - O que talvez não seja grande mal.

LUÍS - Porquê, menina?

SOFIA - Não temos a certeza de que nos vais divertir.

LUÍS - Põe algodão nos ouvidos, se te aborreceres.

SOFIA - Era preferível eu fechar-te a boca.

LUÍS - Que gracinha tem a menina! Como é amável e animadora!... Peço que a ponham fora daqui e a impeçam de ouvir.

SOFIA - Ora essa, pois não, cavalheiro! Mas com muito gosto! Vou-me embora com muito prazer! Tenho a honra de o cumprimentar, cavalheiro, que não quer suportar uma observação e só quer aplausos.

Sofia faz uma grande reverência a Luís, dá-lhe um piparote no nariz e foge às gargalhadas; Luís quer persegui-la, mas os outros detêm-no, dizendo-lhe que Sofia é jovial e risonha e não má; ele então acalma e principia.

 

- Vou contar a viagem de uma tia minha que foi à Alemanha e tinha de atravessar uma floresta. Uma floresta! Mas que floresta! Vão ver!-Um dia horrível! Vão ver! E terríveis caminhos! Vão ver.

Ouviu-se prolongado e ruidoso suspiro; os pequenos voltaram-se e viram Sofia, que regressava, sem ser pressentida, e ouvia com ar travesso, continuando a suspirar.

LUÍS - Tu, outra vez? Porque voltaste? Porque me incomodas? Porque suspiras?

SOFIA - Voltei, porque gosto de te ouvir. Não te incomodo nada. Suspiro porque receio, com tanta coisa que temos a ver, que não tenhamos tempo de ver e ouvir tudo.

Luís não sabia se havia de se rir, se zangar-se. Camila tomou a palavra.

- Realmente, Sofia, és muito rabina! Afianço-te que procedes mal.

- Perdão, perdão, Camila; não tornarei - respondeu Sofia, a rir.

Saltou ao pescoço de Camila e beijou-a; virou-se para Luís, fazendo piruetas, beijou-o também; atirou-se para a cadeira que deixara, cruzou os braços e cerrou os olhos, dizendo:

- Fala, fala, serei muda... mas não surda: ouço-te.

- Tanto pior - volveu Luís, sorridente. - Gostava mais que fosses surda; já não ririas da minha história. Vou começar.

Sofia fitou-o com olhar malicioso; estava mortinha por falar, mas mordeu o beiço e conservou-se imóvel e silenciosa. Luís continuou, lançando-lhe, de quando em quando um olhar desconfiado.

- Assim, minha tia ia viajar pela Alemanha. Estava com pressa de chegar a Praga, que ficava ainda a muitos dias de caminho, porque nessa época se viajava a cavalo: não se tinha ainda inventado o caminho-de-ferro. Haviam-lhe aconselhado a pernoitar numa cidade cujo nome me esqueceu, mas ela imaginava ter tempo de chegar antes da noite a outra cidade que ficava dez léguas mais longe. Chovia, havia já alguns dias, os caminhos estavam horríveis; goteiras, buracos, pedras! O carro saltava, inclinava-se a ponto de quase perder o equilíbrio; os cavalos seguiam a passo, paravam a cada instante. Para tornar mais difícil ainda a viagem, estalou uma tempestade; o vento soprava com tal violência que, por todos os lados, se ouviam quebrar e cair os ramos; chovia torrencialmente; o granizo fustigava o focinho e o lombo dos cavalos; o postilhão e o criado iam numa sopa; o trovão começou a ribombar; os relâmpagos seguiam-se, ininterruptos; os cavalos recusavam-se a avançar. A tia ia desolada por haver continuado a viagem; chamou o criado, a quem disse:

"- Fritz, não haverá aqui perto uma aldeia ou uma quinta onde possamos passar a noite?

"- Não sei, minha senhora. Vou perguntar ao postilhão.

"Voltou daí a pouco para anunciar a minha tia que a cem passos dali havia uma pousada habitada por dois homens e uma mulher, mas que nessa pousada faltava tudo e que se passaria muito mal.

"- Sempre lá estaremos melhor do que aqui, na estrada - observou minha tia. - Tente lá chegar, Fritz, para lá pernoitarmos.

 

"Com grandes dificuldades, conseguiu-se fazer caminhar os cavalos, e chegaram à porta da pousada. Apesar da bulha que faziam as pessoas e os cavalos, ninguém apareceu: a porta conservava-se fechada. Continuaram a chamar, a bater; por fim um homem entreabriu a porta e, em tom carrancudo, perguntou o que queriam. O postilhão e o criado explicaram-lhe o que minha tia desejava e declararam ao hospedeiro que, se não quisesse deixá-los entrar a bem, entrariam à força. O hospedeiro não respondeu e abriu a porta; minha tia apeou-se da carruagem com a criada grave; o postilhão desatrelou os cavalos e meteu-os na estrebaria; Fritz ajudou a criada a conduzir as maletas e o cofrezinho que continha o dinheiro e as jóias de minha tia.

"O hospedeiro, sempre calado, conduziu minha tia para um quarto do rés-do-chão, onde havia uma cama. uma mesa, duas cadeiras e um bufete.

"- Queria um quarto com duas camas, para que a minha criada grave ficasse ao pé de mim - disse minha tia.

"- Não tenho - respondeu bruscamente o hospedeiro.

MINHA TIA - Quero, pelo menos, que a minha criada grave fique perto daqui.

O HOSPEDEIRO - Ficará no quarto ao lado. MINHA TIA - E o meu criado? O HOSPEDEIRO - Com o postilhão. MINHA TIA - E ficam perto do meu quarto?

O HOSPEDEIRO - Não: lá ao fundo, ao pé da estrebaria.

MINHA TIA -Valha-me Deus! Mas, assim, fico sozinha.

"O homem fitou-a de um modo singular, sorriu um pouco e disse-lhe com rudeza:

"-Tem medo? Teme pelo seu cofrezinho?

"- Nada disso - volveu minha tia, com voz trémula.

- O meu cofrezinho nada tem de precioso.

"O homem tornou a fitá-la com um meio sorriso feroz e perguntou-lhe:

"- Então porque o trouxeram com tanto cuidado?

"É... porque contém... os meus objectos de toucador - replicou minha tia, cada vez mais assustada.

"- Quer cear? - indagou o homem, sempre sorridente.

"- Sim, não, como queira - respondeu minha tia, não sabendo já o que dizia.

"O hospedeiro saiu; mal ele se retirara, a criada grave entrou, pálida como um cadáver.

"Minha senhora!... Minha senhora!...

"Os dentes batiam uns contra os outros de tal maneira, que não podia falar.

"- Que é isso? Que tens, Pulquéria? - inquiriu minha tia, não menos assustada do que ela.

"-Minha senhora... estamos num covil de bandidos... No meu quarto... debaixo da cama... um homem morto... um cadáver!

"Minha tia meteu um lenço na boca para abafar o grito que lhe ia a escapar; caiu numa cadeira.

"-Um... cadáver... Tens a certeza?

PULQUÉRIA - Vi-o, minha senhora.. Apalpei-o.. Frio como mármore!

MINHA TIA - Vão-nos degolar esta noite!

PULQUÉRIA - Mais que certo!... Como nos havemos de salvar?

 

"Minha tia levantou-se, examinou o quarto, que só tinha a porta de entrada; foi à janela; podia-se com facilidade saltar para o pátio. Minha tia recuperou a serenidade.

"-Ouça. Pulquéria: assim que o hospedeiro trouxer a ceia, e saia para não voltar, vou ter consigo e saltaremos pela janela; tentaremos encontrar Fritz e o postilhão, e partiremos logo que os cavalos estejam atrelados. Schiu! Ouço-o! Faça de conta que nada sabe.

"O hospedeiro entrou, pareceu surpreendido por ver a criada grave, observou-as atentamente, mas não deu palavra. Pôs em cima da mesa os pratos que trouxera.

"Minha tia não se atrevera a perguntar pelo criado, tanto receava irritar o assassino e apressá-lo na execução do crime a que ela queria eximir-se; sentou-se à mesa como para comer e disse à criada grave que a acompanhasse; depois, pediu uma garrafa de cerveja. O hospedeiro retirou-se. Minha tia deu-se pressa em deitar nos pratos a sopa e a carne, sujou dois talheres e deitou o conteúdo dos pratos num balde que havia debaixo da cama.

"- É para fazer acreditar que comemos - explicou à criada grave, admirada. - Talvez isto tudo esteja envenenado.

"O hospedeiro voltou, trazendo uma garrafa de cerveja. Minha tia deitou-a num copo, mas teve o cuidado de não o levar aos lábios. Quando o hospedeiro saiu, atirou a cerveja para o mesmo balde, onde já deitara a sopa e o guisado.

"Daí a pouco tudo ficou tranquilo na casa; Pulquéria voltara para o seu quarto, a convite do hospedeiro. Minha tia pensou em executar o seu projecto da fuga; quis abrir a porta que dava para o corredor; baldados esforços: estava fechada com duas voltas. Mais convencida do que nunca de que o hospedeiro não tardaria para a degolar, abriu a janela sem ruído, saltou lépida para o chão e dirigiu-se à janela do quarto de Pulquéria; mas por mais que batesse no caixilho, primeiro de mansinho e depois com mais força, ninguém respondeu e a janela continuava fechada. Que fazer, que ia ser dela, sozinha, à chuva, ao vento? A noite estava escura; caminhou às apalpadelas, contornando a parede da pousada, e viu-se, enfim, abrigada; pensou que devia ser um telheiro e, continuando a avançar, sentiu uma coisa quente debaixo da mão. Era qualquer animal, um bezerro, decerto, ou uma vaca. Permaneceu perto do desconhecido animal, que não devia ser mau, pois não fazia ouvir ruído e não demonstrava contrariedade com aquela inesperada visita; mas, a um movimento que ela fez, ouviu um grunhido muito forte que a obrigou a recuar alguns passos.

"Decorridos instantes, a Lua apareceu; minha tia pôde distinguir os objectos e, aterrada, viu que se encontrava a dois passos de um urso preso à parede por uma corrente e que ele puxava com todas as suas forças para atingir minha tia e decerto para a devorar. Se não fosse o medo que lhe causava o hospedeiro, teria soltado gritos para despertar toda a casa; mas, não se atrevendo a gritar, não sabendo onde se encontravam a criada grave, o criado e o postilhão, teve coragem de calar-se e de não cair, a despeito de toda a sua tremura. Recuou, contudo, alguns passos e sentiu-se ainda detida por qualquer coisa que se mexia e se agitava violentamente; voltou-se, era um lobo, cujo rabo pisara; felizmente estava açaimado, de contrário teria devorado minha pobre tia. De repente, perdeu toda a coragem e desatou a dar lamentosos gritos. A porta da pousada permaneceu fechada; ninguém saiu. mas a porta da estrebaria abriu-se; Fritz e o postilhão mostravam-se meio adormecidos e perguntavam o que havia, porque se gritava.

"- Fritz, postilhão, socorro! Salvem-me - bradou minha tia, com a voz estrangulada pelo terror.

Ajudados pelo luar, Fritz e o postilhão avizinharam-se de minha tia e, por sua vez, ficaram também assustados ao ouvirem os grunhidos do urso e os uivos do lobo.

"Pegaram nela e levaram-na para a estrebaria, perguntando-lhe como se encontrara ali e o que lhe acontecera. Minha tia confiou-lhes as suas suspeitas, o que Pulquéria vira e como tivera de fugir sozinha, visto não ter podido fazer-se ouvir pela criada.

"- Oxalá não a tivessem degolado - disse. ?- Devem ter fugido com o meu cofrezinho e é por isso que não vemos nem vimos pessoa alguma.

"Fritz quis ir em busca de Pulquéria, porque partilhava do mesmo receio da ama; disse-lhe que o ospedeiro não quisera nunca deixá-lo entrar, sob o pretexto de que a senhora nada queria, visto ele estar fatigado e molhado e devia aquecer-se e repousar. Mas por mais que batesse e empurrasse, a porta estava solidamente fechada com trancas e ferrolhos.

"Pobre Pulquéria! - lamentou minha tia. - É horrível! Não quero abandoná-la; partamos os vidros, entremos como pudermos!

"Fritz não teve grande trabalho em partir o vidro de uma janela, com um soco; passou o braço, abriu o fecho da janela, empurrou-a e esta abriu-se; Fritz saltou para o quarto; o postilhão seguiu-o, e minha tia, com medo de ficar sozinha, entrou também. O luar iluminava perfeitamente; pôde ver-se que o quarto estava vazio; abriram uma porta, depois outra, sem encontrar viva alma; num terceiro quarto, viram baldes e roupa molhada que acabara evidentemente de ser lavada.

"-É - disse minha tia - a roupa das pessoas que assassinaram.

"Subiram ao primeiro andar, empurraram uma porta; estava fechada.

"- Socorro! - bradou uma voz trémula, atrás da porta. Era a voz de Pulquéria.

"- Ainda viva! - disse minha tia. - Salvemo-la e deixemos depressa esta casa de assassinos.

"Fritz e o postilhão não tiveram grande trabalho em meter a porta dentro. Encontraram Pulquéria toda vestida, pálida como um cadáver; sem pronunciar palavra, seguiu minha tia, que tão caridosamente acabava de a libertar. Todos desceram e acompanharam Fritz à estrebaria; os cavalos estavam muito folgados; a tempestade passara; quando, porém, quiseram atrelá-los, não viram a carruagem: tinham-na levado. E aqui temos minha tia mais aflita do que nunca.

"- Se a senhora me permite um conselho - disse Fritz-, talvez nos possamos salvar todos. O postilhão e eu montaremos cada um num cavalo; a senhora sentar-se-á na garupa atrás de mim, e Pulquéria atrás do postilhão. Iremos assim até Bamberg. onde apresentaremos queixa na polícia.

 

"Minha tia nunca montava a cavalo; essa maneira de viajar na garupa causava-lhe terrível medo, mas não havia outro meio de salvação; os assassinos poderiam voltar com amigos e dar cabo de todos; assim, acedeu a subir para a garupa, atrás de Fritz. Pulquéria quis gritar, debater-se; minha tia disse que a deixassem ali, visto estar a fazer-lhes perder tempo com os seus estúpidos receios; não mais se debateu e pôs-se em cima do cavalo como se nunca tivesse feito outra coisa durante a sua vida. Partiram a galope e chegaram de manhãzinha a Bamberg. As pessoas que os viram passar riam e admiravam-se ao verem uma senhora vestida de seda e com uma capa de veludo sentada à garupa atrás de um homem de libré e seguida de outra mulher, também à garupa, atrás de um postilhão.

"Ao primeiro grupo que encontraram, Fritz perguntou a onde devia dirigir-se para fazer uma participação de roubo e de assassínio. O espanto subiu de ponto nessa gente e, após algumas perguntas, indicaram uma casa que havia na praça. Quando minha tia chegou, Fritz mandou guardar os cavalos pelo postilhão, e entraram todos na morada do burgomestre. Ali minha tia contou em alemão (pois falava muito bem essa língua) o que lhe acontecera. Pulquéria confirmou a narrativa da ama; Fritz disse o que tinha visto com o postilhão. O burgomestre pareceu deveras admirado com semelhante narrativa; perguntou a minha tia o nome para fazer um inquérito.

"-Princesa de Guémenées - respondeu.

"Ao ouvir tão ilustre título, o burgomestre cumprimentou respeitosamente e ofereceu-lhe os seus serviços para tudo quanto lhe fosse agradável. Minha tia pediu que prendessem imediatamente o assassino e lhe procurassem o cofrezinho e a carruagem.

"O burgomestre cedeu um aposento a minha tia, onde pudesse recolher-se e almoçar, enquanto ele dava as suas ordens para o inquérito. Minha tia agradeceu e aceitou com prazer. O burgomestre levou-a para um belo quarto e mandou-lhe uma criada para receber as suas ordens. Minha tia, após um curto descanso, preparou-se, auxiliada por Pulquéria; em seguida, almoçaram. Estavam prontas para partir, quando o burgomestre veio pedir-lhe que o acompanhasse à pousada. Minha tia e Pulquéria meteram-se numa carruagem com o burgomestre; Fritz e o postilhão seguiram a cavalo com a escolta. Quando chegaram diante dessa pousada, minha tia estremeceu ainda com a lembrança do perigo que correra. Ao barulho que a carruagem fez com a sua escolta, o hospedeiro saiu e ofereceu alojamentos.

"- É ele! é ele! Prendam-no! - bradou minha tia.

"Cinco ou seis soldados correram sobre o hospedeiro, que lhes perguntou, com ar espantado, porque o prendiam.

"- Por assassínio e roubo - respondeu o burgomestre.

"- Assassínio de quem e roubo de quê? - indagou o hospedeiro.

"- Roubo do cofrezinho e da carruagem da sr.a princesa de Guémenées, assassínio de um desconhecido cujo cadáver esconderam.

"- O cofrezinho da senhora está no seu quarto, onde o deixou; a carruagem foi guardada na cocheira. Quanto ao cadáver - acrescentou com tristeza -, era o de meu pai, que morreu ontem de manhã; desejava ser enterrado na terra dele, em Krasnacht; levámos esta noite o seu corpo para o enterrar no dia seguinte; e, como chovesse, pensámos que poderíamos servir-nos da carruagem desta senhora sem que ninguém o soubesse; tomei os nossos cavalos e regressámos de manhã cedo; com grande surpresa minha, não vi ninguém. Lembrei-me de que estas senhoras se tivessem assustado. Minha mulher colocara o corpo de meu pai em cima de um colchão, debaixo, da cama que a criada grave devia ocupar; quando essas senhoras cearam, adivinhei, pelo seu ar assustado, que a criada grave tinha visto o corpo; foi por isso que a mudei de quarto; quando se despediu da ama, fechei o da senhora com duas voltas, com medo de que ela visse também o corpo de meu pobre pai.

"Minha tia ouvia com a maior surpresa e um pouco envergonhada a explicação tão simples do hospedeiro. O burgomestre não estava menos admirado.

"- O que este homem diz parece-me ser muito natural, senhora princesa - volveu, sorrindo. - Mas vamos já saber se fala verdade a respeito do cofrezinho. Queira mostrar-me o quarto que ocupou.

"Minha tia levou-o prontamente, quase não desejando encontrar o cofrezinho, tão confusa se sentia com a falsa acusação.

"Quando entraram, encontraram o quarto consoante minha tia o deixara; o cofrezinho, as capas, o relógio, tudo ali estava; não faltava coisa alguma. Minha tia pediu mil desculpas ao burgomestre, testemunhou o seu vivo arrependimento ao hospedeiro e deu-lhe importante quantia para lhe fazer esquecer a falsa denúncia. O burgomestre pediu a minha tia que subisse para a sua carruagem, a fim de regressar a Bamberg. Minha tia não se atreveu a recusar, mas sentia-se tão envergonhada, que preferiria estar só com Pulquéria na sua berlinda.

"Antes de partir, perguntou ao hospedeiro como se encontrara tão perto de um urso e de um lobo. O hospedeiro sorriu e disse-lhe que o mau tempo forçara um domador de ursos e lobos amestrados a pedir-lhe um abrigo para aquela noite e que metera as feras na cocheira em vez da carruagem. Tudo estava explicado, com a maior confusão de minha tia, que imaginava que o urso e o lobo estavam ali para devorar os corpos das pessoas assassinadas pelo hospedeiro.

"O burgomestre riu-se com tanto gosto do erro de minha tia, que acabou por pô-lo à vontade e ela própria se divertiu também. Continuou e acabou com felicidade a sua viagem; foi ela mesmo que nos referiu esta história, que tanto nos divertiu."

- E eu também a achei bastante divertida - exclamou Sofia, saltando ao pescoço de Luís, a quem beijou.

- Quando começaste, não acreditava que fosse tão boa.

LUÍS - Era preciso dar-me tempo para me animar. Ao princípio, custa um bocado.

PEDRO - Mas foi interessante. É uma das mais bonitas histórias que temos ouvido.

- É verdade, é verdade! - proclamaram todos os pequenos.

MARGARIDA - E então, Henrique, o exemplo de Luís não te incute coragem?

HENRIQUE - Não, pelo contrário; e como estou certo de nada encontrar de jeito, nem sequer procurarei.

LEÔNCIO - Pois é preciso que encontres, porque se não contas, és expulso da nossa sociedade.

CAMILA - Não digas tal, Leôncio, a culpa não é dele se não sabe contar histórias.

HENRIQUE, a chorar - Não quero que me expulsem!

CAMILA - Não, meu pequenino, não te expulsarão. Leôncio é que inventou isso.

SOFIA - Leôncio é mau! Está sempre a arreliar a gente.

LEÔNCIO - Aconselho-te a que te cales, tu que não fazes outra coisa e que ainda há pouco arreliaste tanto o pobre Luís, que te bateria, se eu não interviesse.

SOFIA - Tenta bater-me e verás como me defendo.

VALENTINA - Ora, vamos, Sofia; estás sempre a guerrear!

SOFIA - Ouve! Não gosto de me deixar esmagar!

LEÔNCIO - Esmagar! Ah, ah, ah! Esmagar? Quem se atreveria a esmagar esse corpanzil? Com as tuas faces bochechudas, os teus grossos braços, as tuas fortes pernas?

SOFIA - É porque me invejas as faces bochechudas, os lindos braços e as bonitas pernas que falas assim! Tu, que és magro, seco, esgrouviado como um arame. Pareces um aranhiço... Quanto a mim...

LEÔNCIO - Pareces a rã que incha.

SOFIA - Cá temos o cavalheiro agastado! Só ele é que pode injuriar! Mas isso tanto se me dá! Estás fulo, o que prova que eu disse a verdade.

LEÔNCIO, levantando-se - Meus amigos, façam-na calar, peço-lhes. Que insuportável criatura!

SOFIA, levantando-se também - Ora vamos! Que queres? Jogar o soco?

Sofia colocou-se em posição de jogar o "boxe". Leôncio corre para ela; Sofia foge, rindo, e já não volta. Leôncio esconde-se ao pé da porta pela qual saiu Sofia, que aparece pela porta que fica atrás de Leôncio; faz sinal aos outros para nada dizerem. Leôncio espreita com cuidado a ver se ela aparece; um pequeno pingo de água lhe cai na nuca e numa orelha. Enquanto se volta para ver de onde esta veio, Sofia foge apressadamente.

- Que é isto? Que é isto? - tornou Leôncio, fulo.

- Quem me atirou com água?

Todos os pequenos riem; Sofia volta e diz:

- Fui eu, Leôncio, fui eu! Quis refrescar-te o sangue, seringando-te com água. Tudo isto é para rir, repara bem. Gosto muito de ti, tu bem sabes; quando te arrelio, é sempre por brincadeira.

Leôncio não parecia demasiado resolvido a aprovar o gracejo de Sofia; como, porém, era bom rapaz, decidiu-se a rir.

 

               A PESCA AO CAMARÃO

No dia seguinte, a Sr.a de Fleurville propôs aos filhos uma pesca aos camarões. Todos aceitaram com grandes demonstrações de alegria.

ISABEL - Há muito tempo que desejava apanhar camarões.

MADALENA - Agora é a época própria de os apanhar, porque o Verão acabou e daqui a pouco há frio.

JOANA - Há-de ser bonito e engraçado apanhar esses animaizinhos vermelhos.

HENRIQUETA - Vermelhos, não; pardacentos.

JOANA - Olha que ideia! Onde é que viste pardacentos? Que disparate! Pardacentos!

HENRIQUETA - Tenho-os visto em toda a parte e sempre pardacentos.

JOANA - Se te digo que são vermelhos! Tenho comido bastantes camarões e sei-o muito bem.

HENRIQUETA -E eu insisto em que são pardacentos, antes de cozidos, quando estão vivos.

JOANA - E eu teimo em afirmar que não sabes o que dizes. Vamos perguntar a Camila. Camila, não é verdade que os...

HENRIQUETA - Não é assim que se pergunta. Camila, os camarões são pardacentos ou vermelhos?

CAMILA - São pardacentos e vermelhos; pardacentos, quando vivos; vermelhos, quando cozidos.

JOANA - Bem vês que eu tinha razão.

HENRIQUETA -Tu não. Eu, eu...

JOANA - Se Camila disse que eram vermelhos...

HENRIQUETA - Nada disso: pardacentos.

JOANA - Camila, não é verdade que aqueles que comemos no outro dia eram vermelhos?

CAMILA, rindo - Pois decerto; tu bem o sabes.

JOANA -Vês? Não te tinha dito?

HENRIQUETA - Camila, não é verdade que os camarões são pardacentos?

CAMILA - Pois decerto. Estão aí a discutir há que tempos e, afinal, ambas vocês têm razão, visto que os camarões vivos têm o tom pardacento, mas tornam-se vermelhos com a cozedura.

JOANA - O mesmo é dizer que eu tinha razão.

HENRIQUETA - Isso é de mais! Se me não contenho, digo algum disparate.

JOANA - Diz, diz e verás como te respondo.

HENRIQUETA - Não, quero conter-me e ser meiga como a Sofia.

JOANA - Meiga como a Sofia! Isso é como os teus camarões pardacentos.

HENRIQUETA - Exactamente! Como os meus camarões que são pardacentos e vermelhos, Sofia é colérica por natureza e meiga por vontade.

Enquanto durou a discussão, faziam-se os preparativos para a pesca, uns levaram camaroeiros; outros metiam-lhes pedaços de carne crua; outros ainda examinavam as linhas que prendiam os camaroeiros. Quando tudo estava pronto, partiram para começar a pesca. Havia um grande prado a atravessar; descia-se em ladeira até um pequeno ribeiro sombreado por choupos, bétulas e ulmeiros. A água era tão pouco profunda, que se podia atravessar, molhando-se até meia-perna, e tão límpida que se viam os seixos pousados no fundo.

Quando chegaram, todos correram para atirar os camaroeiros à água. A Sr.a de Fleurville deteve-os.

- Vocês não apanham nada, se correm todos ao mesmo tempo, meus filhos. E, além disso, fazem muito barulho e os camarões conservar-se-ão dentro das cavidades.

VALENTINA -O quê, tia! Estão em buracos? Eu imaginava que nadavam como os peixes!

A SR.a DE Fleurville - Só se metem à água para procurar o seu sustento; permanecem habitualmente em cavidades formadas por pedras. Agora, mãos à obra; os rapazes vão colocar os camaroeiros sem fazerem bulha, as raparigas apanharão os camarões que se encontrarem nas redezinhas, quando forem levantadas.

JOANA - E com que os apanhamos, tia?

A SR.a DE Fleurville - Com as mãos.

HENRIQUETA-Mas eles mordem-nos, fazem doer.

SOFIA - Medrosa! Olha! eu hei-de apanhá-los.

ISABEL - Ora, também já tenho apanhado muitos com as mãos.

JAIME - O que é preciso é agarrá-los com jeitinho pelo meio do corpo.

PEDRO - Comecemos... Duas redezinhas à água.

LEÔNCIO -E mais duas.

Meteram as redezinhas no ribeiro e os outros continuaram a tarefa até que todas as doze lá estivessem. Depois, sentaram-se na erva e esperaram durante alguns instantes. Puxaram os camaroeiros: os de Pedro, Leôncio e Henrique tinham muitos camarões; os de Jaime, Artur e Luís, apenas dois ou três.

As meninas correram e todas quiseram, salvo Camila e Madalena, agarrar camarões; para apanhar mais, Sofia tomou-os aos punhados da redezinha de Leôncio; logo depois de os haver agarrado soltou grande grito e abriu a mão e os camarões tornaram para a água.

- Os meus camarões! - bradou Leôncio.

- Ai, a minha mão! Morderam-me até fazer sangue!

- exclamou Sofia.

A SR.a DE Fleurville -Aqui tens o que faz ser tão impaciente e egoísta! Quiseste apanhar mais do que os outros e, afinal, não só não tens nenhum, como ainda te morderam!

SOFIA, chorando - Meu Deus, como me morderam! A minha mão sangra.

CAMILA - Mergulha-a; a frescura da água há-de fazer-te bem.

Enquanto Sofia banhava a mão, os outros não perdiam o tempo; agarravam os camarões um a um e metiam-nos num cesto de vime, donde não podiam fugir. Leôncio estava muito contrariado por haver perdido a sua pescaria.

- É pena... - lamentou-, pois havia lá dois enormos. Esta Sofia há-de sempre fazer disparates!

- Havemos de recuperá-los; tenho uma maneira; vais ver - disse Jaime, descalçando os sapatos e as meias, e arregaçando as calças.

PEDRO - Que vais fazer?

JAIME - Entrar no ribeiro e apanhá-los à mão.

LUÍS - Vais ficar com os pés molhados.

JAIME - Ora, adeus! Com o dia bonito como está, a água até está morna.

E o Jaime, saltando para a água, começou a procurar com as mãos em todas as cavidades e debaixo das pedras.

JAIME - Já aqui está um e é bem grande.

LEÔNCIO - Magnífico! Parece um dos meus.

Jaime - Outro. Dois!

E os outros rapazitos, ao ver que a pesca à mão dava melhor resultado, fizeram como Jaime e todos patinhavam na água. O barulho atraiu a atenção dos primos e da Sr.a de Fleurville, que lhes disse:

- Mas vocês vão constipar-se, meus filhos!

HENRIQUETA - Não há perigo, tia. A água está quente.

- Eu também queria ir para a água - exclamou Sofia.

A SR.a DE Fleurville - Que ideia a tua! Ficarias com as saias molhadas.

SOFIA - Mas eu levanto-as.

A SR.a DE Fleurville - Que bonito! As meninas não podem fazer como os rapazes! Apanha os camarões como tuas primas; estão aqui redezinhas que têm muitos.

SOFIA - Não, não, tia. Já não quero mexer-lhes.

A SR.a DE Fleurville -Não tens razão; porque

fizeste uma tolice em agarrá-los à mão, não quer dizer que não possas mexer-lhes.

SOFIA - É verdade, tia. Vou tentar.

Agarrou um com cuidado e meteu-o no cesto sem ter sido mordida. Animada com o bom resultado, continuou a apanhá-los e acabou por não ter medo. Dentro de pouco tempo, os pequenos apanhavam tanta quantidade, que o cesto já estava cheio.

PEDRO - Que boa pesca fizemos!

JAIME - É verdade e em bem pouco tempo. Há duas horas que começámos.

HENRIQUETA - Vês agora, Joana, como os camarões são pardacentos?

JOANA - É certo, mas, seja como for, tornam-se vermelhos.

HENRIQUETA - Sim, depois de cozidos.

JOANA - E se fôssemos ver como se cozem?...

HENRIQUETA - Pois sim; há-de ser engraçado. Até queria ver como os fazem morrer. Tu sabes?

JOANA - Não, mas penso que os degolam, como aos carneiros.

HENRIQUETA - Como queres que se degolem, pois nada se lhes vê no pescoço quando os servem à mesa?

JOANA - É verdade!... Então, talvez os asfixiem...

HENRIQUETA - Não é fácil asfixiar os camarões com a sua dura carapaça. De resto, vamos sabê-lo, porque os veremos cozer na cozinha, e tu estás convencida de que os matam antes de cozer.

JOANA - Pois claro; sei-o muito bem.

Foi só o tempo de chegar à cozinha, e entregaram o cesto cheio de camarões ao cozinheiro.

- Vai matá-los, já Luciano? - perguntou Joana.

LUCIANO - Sim, menina. Vou já fazê-los cozer.

JOANA - Ainda bem, porque queria ver como é que os mata.

LUCIANO - Não os mato; morrem por si.

JOANA -E de quê? De medo?

LUCIANO - Creio que não; é o calor que os asfixia.

HENRIQUETA - É singular! Então, como faz? Para que tira a cauda a esses grandes?

LUCIANO - São lagostins. É para os esvaziar; tiro-lhes as entranhas, menina.

HENRIQUE - Mas isso causa dores aos pobres animaizinhos! É mau o que faz, Luciano.

LUCIANO - Que quer, menina? Assim é preciso, porque será amargo se lhe não tirar as entranhas.

Assim conversando, Luciano preparou a panela ou caçarola em que se deviam cozer os camarões, e as crianças viram, surpreendidas, que os deitavam vivos ao recipiente.

HENRIQUETA - Então, não os mata?

LUCIANO - Não, menina; vão morrer pela cozedura.

HENRIQUETA - Mas isso é muito cruel! É abominável! Porque os faz morrer dessa maneira terrível?

LUCIANO - Foi sempre assim que se prepararam; nem mesmo há outra maneira.

Joana e Henriqueta não quiseram assistir até ao fim ao suplício dos pobres camarões; saíram e foram contar aos primos o que tinham acabado de ver.

CAMILA - Mas, Joana, fazem-se sofrer todos os animais que comemos; olha os peixes: abrem-lhes a barriga, vivos ainda, arrancam-lhes as entranhas e cortam-nos às postas; as postas ainda palpitam quando as põem a fritar. E as galinhas, os carneiros e todos os outros animais, imaginas que não sofrem quando lhes cortam o pescoço?

JOANA - Isso é verdade! Os pobres animais sofrem... Compreendo que tudo isso seja preciso... mas, o que admira, é que Deus, tão bom, permita que as pessoas sofram também muitas vezes.

CAMILA - Quando fores mais crescida, compreenderás e verás que isso não impede que Deus seja bondoso.

JOANA - Di-lo já, Camila; eu compreenderei, afianço-te.

CAMILA - Pois bem! Deus permite que as pessoas sofram para nos demonstrar que a nossa verdadeira vida não é neste mundo e, depois, para nos castigar do mal que fazemos constantemente todos os dias.

JOANA - Compreendo muito bem... É isso; é justo; no entanto, se eu fosse Deus, procederia de outro modo.

CAMILA - Se fosses Deus, respeitar-te-ia e venerar-te-ia doutra maneira diversa daquela que eu faço, pois serias também diferente do que és. Como, porém, não passas de ser a Joaninha, aconselho-te a ires ter com a tua criada, porque vou agora dar a minha lição com a mãezinha.

 

               O CÃO

Os pequenos brincavam certo dia debaixo do grande carvalho, que ficava perto da estrada; uns desciam a correr uma íngreme ladeira, que havia ao lado; outros tentavam trepar aos ramos do carvalho; Jaime e Luís tinham subido muito alto e diziam que viam para além da mata coisas encantadoras, mas muito afastadas.

- Um sujeito que vem a cavalo - explicou Jaime.

- Acompanhado por um bonito cão branco e outro preto - acrescentou Luís.

VALENTINA - Onde? Onde está o sujeito? Onde está o cão?

MADALENA - Não vês que estão a inventar e que não há nenhum sujeito, nem nenhum cão!

JAIME - Olha, o cão branco parece dirigir-se para aqui.

LUÍS - Decerto! Lá entrou ele na mata.

Valentina correu para a mata a fim de ver melhor.

MADALENA - É para te enganar, que dizem isso; querem divertir-se à nossa custa, mas nós não acreditamos.

Mal a Madalena proferiu aquelas palavras, um bonito cão perdigueiro branco surgiu da mata e aproximou-se dos pequenos.

- E, afinal era verdade, porque o cão branco está aqui - disse Madalena.

ISABEL - Porque fica ele a olhar para nós, em vez de acompanhar o dono?

O cão deitou-se-lhe aos pés.

MADALENA - Que está ele a fazer? Agora, deitou-se em vez de ir ter com o dono que se vai embora.

VALENTINA - Jaime, vês o dono do cão?

JAIME - Quase não o vejo; vai já muito longe com o outro cão preto.

ISABEL - É estranho! Mas o pobre cão fica perdido.

LEÓNCIO - Nada disso. Os cães encontram o rasto dos donos a dez e vinte léguas.

O cão continuava deitado; quando os pequenos se aproximavam e o acariciaram, movia a cauda, lambia-lhes as mãos e tinha ar de satisfeito.

Quando os pequenos quiseram sair dali a fim de irem jantar, o cão levantou-se e seguiu-os com grande alegria. Levaram-no assim até casa e pediram licença aos pais para o conservar.

- Pois fiquem com ele, meus filhos - responderam os pais -, já que foi ele próprio que os escolheu para donos. É um bonito cão! Que bela cauda!

CAMILA - E que orelhas sedosas e que bonito pêlo!

A SR.a DE Fleurville -É singular que tenha assim abandonado o dono.

JAIME - E eu não compreendo como soube que estávamos ali e porque veio para junto de nós. Avistei-o quando subi ao cimo do carvalho. Acompanhara o cavalo do dono, que acariciava outro cão preto; então o branco parou, levantou o focinho como se farejasse qualquer coisa no ar, depois entrou na mata e veio direito a nós.

PEDRO - Que nome lhe havemos de pôr?

ISABEL - Fiel não, pois foi infiel ao dono.

LEÔNCIO -Ah, também fazes trocadilhos! Chamemos-lhe Capricho, pois foi por capricho que veio ter connosco.

- Muito bem! - aprovaram os pequenos. - Capricho é um nome que lhe fica bem.

O cão, apesar do seu novo nome, conservava-se fiel aos pequenos donos e não consentia que qualquer outro cão se aproximasse. As crianças notavam, surpreendidas, o ódio que nutria por todos os cães; quando via algum que parecia querer travar conhecimento com ele, os olhos brilhavam-lhe, os pêlos eriçavam-se-lhe, pronto para arremeter contra o intruso, que fugia prudentemente para evitar os dentes de Capricho.

Havia quase um mês que vivia tranquilo com os pequenos, quando, num passeio que davam pela estrada, viram aparecer um sujeito a cavalo, seguido por um cão preto. O sujeito parou a certa distância das crianças, desmontou e abeirou-se delas.

- É o dono de Capricho! - bradou Jaime.

VALENTINA - Ai, meu Deus! Vai levá-lo!

HENRIQUE - Tratemos de fugir.

PEDRO - É impossível! Viu-nos e dirige-se para aqui.

- Senhores e meninas - disse o sujeito, cumprimentando muito delicadamente-, peço que me desculpem, se os importuno, mas creio que possuem um cão que é meu, o qual perdi há tempo; venho pedir-lhes licença para o levar.

VALENTINA - Oh, não, não, senhor! Peço-lhe, deixe-nos Capricho! Gosta tanto de nós! É tão bom!

- Ah, davam-lhe o nome de Capricho - volveu o sujeito, sorrindo. - Foi bem posto; lamento desgostá-la, bonita menina, mas tenho de levar comigo o cão; preciso dele para as caçadas que vão começar. Aqui, Brilhante, aqui! - chamou o sujeito, em tom imperativo e duro.

Brilhante não se movia; permanecia assustado e trémulo atrás de Camila e de Madalena, fitando-as com ternura. Parecia dizer-lhes:

"Minhas donazinhas, que escolhi, protejam-me contra o ruim homem, que me maltrata e não gosta de mim."

Camila, comovida com o olhar suplicante do pobre cão, adiantou-se para o sujeito e animou-se a dizer-lhe: - Sabemos muito bem que o senhor tem o direito de levar Capricho, visto ser seu, mas todos nós lhe pedimos que não o leve, porque nos escolheu para donos, de quem gosta tanto como nós dele; seria grande desgosto para nós ficarmos sem Capricho.

- Minha querida menina - volveu o sujeito, passados alguns instantes de hesitação -, este cão não tem igual para caçar; preciso de levá-lo a quinze léguas daqui, para casa de meu irmão, que me espera.

Ao findar estas palavras, o sujeito cumprimentou delicadamente, aproximou-se de Brilhante, prendeu-lhe uma correia ao pescoço e quis levá-lo. O cão, porém resistiu com todas as suas forças; não queria andar,

deixava-se arrastar, debatia-se, ganindo lamentosamente e olhando para as crianças como a implorar-lhes socorro. Os pequenos, obrigados a ceder, estavam bastante consternados por perderem Capricho; uns voltavam-se para não ver a luta do cão e do dono; os outros seguiram-nos de olhos marejados. O dono, ao ver baldados os seus esforços para se fazer seguir de Brilhante, tirou da algibeira um chicote de caça e chicoteou-o algumas vezes; o pobre Brilhante ganiu, gemeu, lançou às crianças um derradeiro olhar de despedida e seguiu o antigo dono, contrariado e à força; algumas chicotadas fizeram-no andar mais ligeiro. O sujeito voltou a montar e o cavalo partiu a galope; os pequenos ficaram consternados.

- Que homem tão ruim! - exclamou Valentina.

SOFIA - Vocês podiam bem cair sobre ele e expulsá-lo.

PEDRO - Não podíamos. Tinha o direito de levar o cão, que lhe pertencia; além disso, era o mais forte e só teríamos conseguido que maltratasse o desventurado Capricho, que não tinha vontade alguma de voltar com o antigo dono.

JAIME - Pobre Capricho! Como vai ser infeliz com esse malvado homem!

Os pequenos bem se lamentaram, mas não tiveram remédio senão resignarem-se a perder o cão, ao qual se haviam afeiçoado e que parecia gostar tanto deles.

Souberam por um guarda vizinho que o dono. que se chamava Anacleto, acorrentara Capricho, que o levava a passear à trela e lhe dava vida desgraçada.

Havia três semanas que Capricho tinha sido levado, quando um amigo do Sr. de Fleurville ofereceu às crianças um bonito cão de água com pêlo sedoso e branco.

Aceitaram-no com prazer e, no dia seguinte, o cão Brincalhão foi instalado na casa; não substituía Capricho, cujas raras qualidades não possuía, mas acompanhava os pequenos por toda a parte e distraía-os com os seus movimentos pesados e desajeitados.

 

Certo dia, estava-se à mesa; o Brincalhão latia, impacientava-se, pedindo de comer, quando a porta foi empurrada e Capricho correu alegremente para as crianças. Trazia ainda no pescoço um bocado da corrente que conseguira partir e a sua magreza provara quanto sofrera durante aquelas três semanas ou um mês. Tinha o ar satisfeito por se encontrar entre amigos; ia de um para outro, fazia-lhes mil carícias, quando, de repente, avistou o Brincalhão. Estacou como que pasmado; fitou as crianças com ar de censura; toda a alegria lhe desapareceu: soltou lamentosos latidos, foi lamber a mão de cada um dos pequenos e, sem nada ouvir, retomou o caminho da porta, que ficara aberta. Os pequenos seguiram-no, chamaram-no; Capricho voltou-se, parou, pareceu indeciso, quando Brincalhão correu também e saltou em volta deles. Ao ver o rival, Capricho tornou a fugir e desapareceu para nunca mais voltar. Transpusera, a correr, dez léguas, a fim de tornar a juntar-se aos seus donozinhos. Ao chegar, encontrara outro cão instalado em seu lugar. A sua índole ciumenta não lhe permitiu suportar um rival; afligiu-se com o que julgava ser ingratidão dos donos e voltou para ser acorrentado e retomar a sua triste existência. Os pequenos souberam que morrera pouco tempo depois; passava o tempo a uivar lamentosamente e morrera num aterrador estado de magreza. Foi muito lamentado e chorado pelos pequenos, que não quiseram conservar o Brincalhão.

- Foi ele - diziam - o causador da fuga e do desgosto do nosso pobre Capricho. Vai-te embora, não queremos nada contigo.

Brincalhão, um pouco estúpido, não percebia o que Leôncio lhe dizia e queria voltar para casa; mas algumas vergastadas fizeram-lhe compreender que era mais prudente ir-se embora.

O bom tempo findava; o Inverno avizinhava-se; o campo já não era agradável para lá se viver; todos se preparavam para regressar a Paris. A Sr.a de Fleurville fazia as suas visitas de despedida; Camila acompanhava-a. Foram a casa de uma vizinha de campo que tinha um filho e uma filha. Enquanto a mãe conversava com a Sr.a de Fleurville, Camila brincava como podia com a menina e o rapaz, que deviam andar pelos doze e catorze anos.

- Como eu desejava ir a Paris! - disse Inocêncio.

- A mãezinha nunca lá vai.

- E eu também! O que não daria eu por passar um Inverno em Paris! - acrescentou sua irmã Simplícia.

CAMILA - Paris não é tão divertido como imaginam! Muitas vezes haviam de ter saudades do campo. Quanto a mim, preferia passar todo o ano no campo a viver em Paris.

INOCÊNCIO - Ah, menina, mas será possível? Como pode falar assim? Não é crível!

CAMILA - Asseguro-lhe que, se passassem um Inverno em Paris, não o achariam tão agradável.

SIMPLÍCIA - E eu garanto-lhe que, se a menina passasse um Inverno no campo, o acharia insuportável.

CAMILA - Já tenho passado muitos e sempre me senti satisfeita.

INOCÊNCIO - Pois quê? À menina, que parece ser tão inteligente, agrada-lhe o campo?

CAMILA - Muito; decerto tenho a inteligência muito acanhada para lhe sentir os aborrecimentos; mas, repito; encontro-me no campo mais agradavelmente do que em Paris.

SIMPLICIA - Diz-se, porém que em Paris há muitos divertimentos! O hipódromo, o Jardim Zoológico, o bosque de Bolonha, os bairros cheios de estabelecimentos iluminados toda a noite, os atletas, os carroceis e tantas outras coisas que só há em Paris!

CAMILA - E a lama, e as carruagens que nos salpicam, nos atropelam e as pessoas que nos acotovelam e os nevoeiros que nos cegam e o aborrecimento de não ver as pessoas de quem mais se gosta, e tantas outras coisas aborrecidas que não se encontram no campo.

INOCÊNCIO - Podem ver-se as pessoas que se estimam, visitando-as.

CAMILA - Mas a gente vai e não as encontra; vêm a nossa casa e nós temos saído!

INOCêNCIO - Apesar de tudo, menina, conto que, se formos este ano a Paris, teremos o prazer de visitá-la e de que nos visite.

CAMILA - Podem experimentar; será um modo como qualquer outro de passear e passar o tempo.

SIMPLICIA - Desejaria, Camila, que me desse a morada de seus primos, em Paris.

CAMILA -Da melhor vontade; dar-lha-ei na primeira ocasião em que lá nos encontremos.

A conversa continuou assim durante todo o tempo da visita da Sr.a de Fleurville, o que deveras aborreceu Camila, que era demasiado bondosa para o deixar transparecer, e, quando se foi embora, Inocêncio e Simplícia acharam-na encantadora.

- Como tem aparência de bondosa e amável! comentou Simplícia.

INOCÊNCIO - É verdade; não é como tu, com o teu ar aborrecido e presunçoso.

SIMPLÍCIA - Também tu és aborrecido com o teu aspecto de vadio e maneiras de macaco.

INOCÊNCIO - A menina Camila nunca diria os disparates que tu dizes, durante o dia.

SIMPLÍCIA - Não os digo, e se os dissesse, seria para te imitar, meu doutor das dúzias.

INOCÊNCIO - Tu esqueces que, na minha qualidade de mais velho, sou também o mais forte e que, se quisesse dar-te um estalo, não te pediria licença.

SIMPLÍCIA -Um estalo! Que bonito!

INOCÊNCIO - Como é que tu dirias, menina pretenciosa e estúpida?

SIMPLÍCIA -Não diria. Daria. Olha, assim.

E Simplícia, juntando o gesto à palavra, deu no irmão uma bofetada que soou como uma batedeira em roupa molhada. Inocêncio ripostou com um murro que atirou Simplícia ao chão. Enquanto esta se levantava, Inocêncio desapareceu majestosamente, mas com prontidão, para evitar nova demonstração da força e da agilidade da irmã.

Enquanto discutiam e se agrediam, Camila contava à mãe a conversa que tivera com Inocêncio e Simplícia.

- Estava já tão aborrecida com o que eles diziam, mãezinha, que me sentia com medo de lhes responder alguma coisa desagradável. Fiquei bastante contente quando me foste buscar para irmos embora.

- Contudo espero que não irão a Paris e que não os tornaremos a ver; não gosto de visitar gente pretensiosa e que só pensa em divertir-se. Como se não houvesse nada mais do que divertimentos!

Quando todos voltaram, os pequenos referiram o que tinham visto nas visitas feitas. Camila pouco falava, e respondia, indecisa, às perguntas que os primos lhe formulavam.

SOFIA - Mas fala, Camila; não contas nada.

CAMILA - Como nada tenho a dizer, calo-me.

SOFIA - O que significa não teres nada de agradável a contar e, para não dizeres mal, preferes ser aborrecida.

JAIME - Camila nada tem de aborrecida; não compreendo onde descobriste isso.

SOFIA - Descobri-o com a minha sabedoria, porque fica a saber, Sofia quer dizer sabedoria.

VALENTINA -Em que língua?

SOFIA - Grega, minha ignorante.

VALENTINA - Não sou obrigada a saber grego, menina sabichona.

LEÔNCIO - Decerto não vais agora fazer de vaidosa e levar-nos a acreditar que sabes grego!

SOFIA - Sempre sei mais do que tu, meu estúpido.

LEÔNCIO - Não tão estúpido que não veja em ti uma parva.

CAMILA - Meus amigos, não discutam, peço-lhes. Se a menina Simplícia e o menino Inocêncio os ouvissem, haviam de dizer boas coisas das pessoas de Paris.

ISABEL - E que dizem dos parisienses?

CAMILA - Imaginam que são as pessoas mais felizes do mundo...

PEDRO - E vamos lá, que não erraram muito.

CAMILA - É certo, mas entendem que a nossa felicidade consiste em passar o Inverno em Paris.

ISABEL - Pois eu gostava mais de passá-lo no campo, todos juntos, como estamos aqui.

LEÔNCIO - E eu também, mas com a condição de prenderem a língua de Sofia.

SOFIA - Quem me prender a língua tem de ser muito hábil.

PEDRO - O quê? Não haverá nenhum que o tente?

SOFIA- E que o tente, não conseguirá fazê-lo, pois eu não sou nenhum cordeiro.

LEÔNCIO - Não precisas de dizê-lo; vê-se, mesmo sem óculos.

SOFIA - Como os teus defeitos... e as tuas boas qualidades - acrescentou, após uns momentos de reflexão.

MADALENA - Bem, Sofia! Acabaste bem depois de haveres começado tão mal. Não achas, Leôncio?

LEÔNCIO - Acho. Fui vencido pelo final da frase, que foi agradável e generosa. Seja como for, Sofia é sempre boa.

SOFIA - Porque fui lisonjeira?

LEÔNCIO - Não; por ser verdade.

CAMILA - Em resumo, meus queridos amiguinhos, hão-de travar conhecimento este Inverno com a menina Simplícia e o menino Inocêncio; pediram-me a morada de todos.

MADALENA - Espero que não lha tivesse dado.

CAMILA - Não, não dei. Prometi-lhes apenas dá-la no primeiro encontro em Paris.

ISABEL - Que nunca se verificará, confio.

CAMILA - Talvez, e talvez também os nossos vizinhos de campo ganhem num Inverno em Paris.

ISABEL - Que queres que eles ganhem?

CAMILA - Bom senso, sabedoria, para serem parecidos com a Sofia.

SOFIA - Também tu troças de mim, Camila? Mas peço para observares que falei no meu nome e não na minha pessoa.

CAMILA - Eu julgava que formavam um todo.

Os pequenos continuaram a contar as impressões das suas visitas matinais.

Passados alguns dias abandonaram o campo e regressaram a Paris, onde dispersaram, indo cada um para sua casa.

Não obstante a dificuldade de aí os encontrarmos, esquecemo-nos de dizer que talvez possamos vê-los, se acompanharmos Simplícia e Inocêncio que, afinal, sempre partiram para Paris.

Fechemos o livro e partamos com eles.

É possível que nos divertamos mais do que eles quereriam com as aventuras que lhes hão-de acontecer e das quais contarei as que puder descobrir.

 

                                                                                Condessa de Ségur  

 

                      

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