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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


TRATAMENTO SILENCIOSO / Michael Palmer
TRATAMENTO SILENCIOSO / Michael Palmer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

TRATAMENTO SILENCIOSO

Primeira Parte

 

- O Doutor vai recebê-lo agora.

 

Assim que Ray Santana ouviu estas palavras, percebeu que ia morrer de uma morte horrível.

 

Tinham decorrido cerca de dez horas desde que lhe haviam retirado a fita adesiva que lhe cobria os olhos. Dez horas durante as quais estivera amordaçado e amarrado a uma cadeira de espaldar alto, com a cabeça e o queixo tão apertados, com tal mestria, que ele nem conseguia mexer-se. Dez horas passadas a ouvir as bandas de mariachis e os cantores na rua de cima, sabendo que, além do bem que lhe estavam a fazer, os foliões estavam também a comemorar a sua Fiesta de Nogales, em Março. Dez horas sem ver outros movimentos que não fossem as idas e vindas de uma enorme barata.

 

A barata tinha quatro centímetros de comprimento. Talvez cinco. Saiu de uma fenda existente na parede bolorenta da cave e, particularmente apressada, encaminhou-se para o soalho. Ray seguiu o insecto com o olhar até ele abandonar o seu campo visual, e aguardou o seu regresso. Durante algum tempo, pensou em baratas: como é que acasalariam, se escolheriam ou não um único parceiro sexual para toda a vida. Depois, imaginou a sua própria família: Eliza a cantar, enquanto mexia a sua extraordinária paella... Ray Jr. prestes a entrar na terceira classe. Pensou na sua vida antes de conhecer Eliza: os Road Warriors, as drogas... a sua decisão de abandonar o grupo e de tentar a universidade... a ironia de ter acabado como agente secreto da DE A.

 

Agora, depois de dez anos na profissão que se haviam pautado por uma prudência meticulosa, estava prestes a conhecer o Doutor. E dentro de pouco tempo - muito pouco, desconfiava ele - estaria morto.

 

Sem saber porquê, as coisas tinham falhado completamente. Ao fim de quase três anos de trabalho, chegara o momento de formalizar as acusações federais e de reunir as tropas. O seu disfarce era tão oculto, tão impenetrável como sempre fora. A reunião em que apresentaria o seu depoimento a Sean Garvey, da sede, fora marcada com as maiores precauções quatro horas de intenso movimento, meia dúzia de pistas falsas e de alterações de última hora, e um percurso impossível de seguir. Mas, de repente, os homens de Alacante cercaram-nos. E no espaço de segundos, assim sem mais nem menos, tudo acabou. Nem um tiro de defesa, nem um murro. Pura e simplesmente... ponto final. Garvey fora levado sabe Deus para onde, e Ray vira-se de olhos vendados, enfiado no porta-bagagens de um Mercedes e de regresso à cidade. Uma hora depois, fora arrastado para a cave de uma casa e, em seguida, conduzido ao longo de um túnel longo e húmido para aquele subterrâneo.

 

Ray não sabia se o Doutor já vira Garvey.

 

O velho Garves podia demorar um pouco a citar nomes, pensou Ray. Mas, por trás da sua aparência de esperteza, o homem era um frouxo. Assim que visse uma gota do seu próprio sangue, que sentisse a primeira dor - o berbequim eléctrico, a faca, o torno, ou fosse o que fosse que eles usavam -, vomitaria as tripas. Deitaria cá para fora todos os nomes que lhe viessem à cabeça, acreditando piamente que, se não desse muito trabalho aos homens de Alacante, eles lhe poupariam a vida. Que engano!

 

- ... Em Tijuana?... Oh, devia ser um tipo chamado Gonzales. Há três anos que tinha um pequeno lugar de fruta na cidade, mas é um agente federal... Em Vera Cruz? Sim, também conheço esse tipo...

 

”Merda, Garves, desculpa”, pensou Santana de repente. ”Eu compreendo... com os diabos, eu sou um homem de campo. Tu és um tipo de gabinete. Eu posso estar aqui sentado como se fosse o rei Tut, a pensar que tu não prestas porque estás a ceder às pressões deles. Mas eles ainda não me tocaram. Além disso, tu não sabes uma décima parte do que eu sei acerca da organização secreta mexicana. E eu não tenciono revelá-la, aconteça o que acontecer. A minha iniciação nos Road Warriors foi pior do que tudo aquilo que eles me possam fazer aqui, pelo amor de Deus. Limita-te a fazer o teu melhor, Garves.

 

Faz o teu melhor. Tenta não lhes facilitares demasiado as coisas.”

 

Passou-se mais meia hora. Talvez mais tempo. Santana fechou os olhos e desejou estar morto. Ou pelo menos adormecido. Na cave, o ar estava saturado e cheirava a mofo. Respirá-lo exigia-lhe um tal esforço que era impossível adormecer. Que ironia. Durante três anos, reunira informações suficientes para formular várias dezenas de acusações formais. O seu verdadeiro erro fora não escolher como alvo o célebre oleoduto de Alacante - o túnel que ligava uma ou mais casas de Nogales, no Arizona, a outras em Nogales, no México. Agora, a menos que estivesse muito enganado, não só descobriria o oleoduto, como fora verdadeiramente arrastado para ele. Eliza tinha razão, como de costume. Ele devia ter saído enquanto podia - devia ter feito o trabalho de campo de que estava sempre a falar, e ter deixado os actos heróicos para os loucos. Agora...

 

Ouviu qualquer coisa a arrastar atrás de si, uma parte da parede a deslocar-se. Segundos depois, apareceu Orsino. Um agente de Alacante e um assassino implacável, Orsino sobrevivera a uma explosão que o deixara sem metade do lábio inferior e do queixo. O que restava da sua boca encontrava-se do lado direito da cara. Ray pensou que talvez Orsino gostasse do seu próprio aspecto.

 

- Está na hora - rosnou ele, com o orgulho enfatuado de um homem insignificante que é atirado para a companhia de uma lenda viva. - Está na hora de conheceres o Doutor.

 

Um homem de quarenta e poucos anos, aspecto banal e estatura média entrou na sala. O seu rosto só era digno de nota por ser totalmente desprovido de traços que o distinguissem de qualquer outro. Não era bonito nem feio. Nada de feições invulgares. Nem tiques. Nem cicatrizes. O cabelo era castanho e curto, sem entradas. O homem não usava óculos. Empurrava um carrinho de aço inoxidável em cima do qual se encontrava uma mala de couro gasto. Voltou-se de costas para Ray quando abriu a mala.

 

Ray agarrou-se de tal modo ao braço da cadeira que os nós dos dedos empalideceram.

 

- Chamo-me Perchek. Doutor Anton Perchek - disse o homem.

 

Santana sentiu um aperto no estômago. A bílis subiu-lhe à garganta. O nome era uma sentença de morte. O Doutor. Toda a gente da agência - toda a gente em Washington - sabia quem era Perchek. Mas, tanto quanto Ray sabia, ainda ninguém o vira, nem sequer em fotografia.

 

- Pela sua expressão, posso avaliar que reconhece o meu nome - disse Perchek, contemplando Ray com um sorriso enigmático. - O que é bom. Muito bom.

 

Ray ficou com a boca seca. Anton Perchek era médico, nascera e fora treinado na União Soviética e há muito que deixara o seu país natal. Agora, não pertencia a país nenhum e pertencia a todos. Era um verdadeiro filho do mundo. Durante anos, o Doutor ganhara fama de ser o melhor naquilo que fazia, e que era manter vivas e a falar as pessoas que torturava. Era raro estar inactivo. Sri Lanka, Bosnia, Paraguai, Iraque, África, Haiti - onde quer que houvesse conflitos ou repressão política, os seus serviços eram requisitados. Corria mesmo o boato - não confirmado - de que trabalhava para a CIA de vez em quando. Um grande júri federal americano condenara Perchek à revelia por cumplicidade na morte de vários operacionais secretos americanos, dois dos quais Ray conhecia bem.

 

- Então, Senor Santana - começou ele, no seu espanhol sem sotaque mas incaracterístico. - Prefere que eu fale em inglês?

 

O homem ficou à espera da resposta. Depois virou-se e reparou no adesivo que tapava a boca de Ray. Riu-se do seu próprio descuido.

 

- As minhas desculpas, Senor Santana. Senor Orsino? com a metade da boca arreganhada no que devia ser um sorriso, Orsino avançou e arrancou cruelmente o adesivo. Primeiro da boca de Ray e depois do queixo.

 

- Então? - voltou a perguntar Perchek. - Espanhol ou inglês? O que vai ser?

 

Ray exercitou os movimentos do maxilar.

 

- O seu espanhol é melhor do que o meu - respondeu.

 

- Sou levado a concluir que o seu espanhol mexicano é bastante bom, sobretudo para quem vem de Bronx. Mas, muito bem. Seja o inglês.

 

O seu inglês, talvez com um ligeiro sotaque britânico, não era menos fluente do que o espanhol. Ray estava convencido de que o homem falava várias línguas.

 

- Falo mais doze línguas, por sinal - disse ele, como se lesse a mente de Ray. - Embora o meu árabe e o meu suaíli estejam a ganhar uma certa ferrugem.

 

O seu rosto banal abriu-se num sorriso para Ray. Mas, nesse momento, Ray reparou numa coisa que nada tinha de banal. Eram os olhos do homem. As íris eram desmaiadas como ele nunca vira, quase translúcidas. Azul-glacial era o termo mais apropriado para as definir. De facto, azul-glacial era uma descrição quase perfeita, porque Ray nunca vira uns olhos humanos tão duros nem tão frios.

 

- Não sei o que significa tudo isto - afirmou Ray, a custo.

 

Os olhos azul-glaciais chisparam, mas nada mais se alterou no aspecto de Perchek.

 

- Então vamos ajudá-lo a lembrar-se - disse ele.

 

Estendeu a Orsino um cabo enrolado e apontou para o pequeno suporte existente no tecto. Depois de o fio estar seguro e a balouçar, Perchek virou-se para a mala. Tirou um frasco de plástico com uma solução intravenosa, ligou-o a um tubo de plástico e pendurou-o no cabo.

 

- Zero vírgula nove por cento de cloreto de sódio - revelou ele, calçando umas luvas de borracha. - Uma solução salina normal.

 

Apertou uma tira de borracha mesmo por cima do cotovelo de Santana, esperou um pouco que as veias se dilatassem e depois introduziu um cateter intravenoso com a facilidade de quem já fizera aquilo centenas de vezes. Em seguida, enfiou-lhe uma manga para medir a tensão arterial no outro braço e apertou-a.

 

- Ouçam - disse Ray, esforçando-se por manter a calma e a capacidade de raciocínio. - Orsino, você tem de me ouvir. Eu estava a dar a volta àquele agente federal, o Garvey. Ele ia passar-me umas informações sobre a nova estratégia da DEA contra o Alacante.

 

- Você está a mentir - disse Orsino.

 

- Não, é verdade.

 

- Veremos o que é verdade e o que não é - declarou Perchek, enchendo uma grande seringa com uma solução ligeiramente turva. Enfiou a agulha comprida no tubo através de uma anilha de borracha e encostou a seringa ao braço de Ray.

- Não tardaremos a saber. Mister Orsino?

 

Orsino ajoelhou-se, e o seu rosto ficou apenas a cerca de trinta centímetros do de Ray. Mentalmente, Santana defendeu-se do hálito do homem, saturado de cigarros e de alho, e olhou com repulsa para as meias filas de dentes amarelados.

 

- Nomes - ordenou Orsino, enquanto uma pequena bolha de saliva se lhe formava do lado bom da boca. - Dos agentes secretos mexicanos. Todos.

 

Ray olhou para o homem e depois para Perchek. Perguntou a si próprio o que o esperava no interior da mala coçada. O soro da verdade, talvez. Dizia-se que, em geral, Perchek deixava o trabalho sujo para os seus empregados. A sua tarefa consistia em manipular as drogas de modo a manter as pessoas vivas e acordadas. Mas parecia difícil acreditar que Orsino, um indivíduo bronco e de compreensão lenta, tivesse a paciência e a habilidade necessárias para executar um trabalho eficiente que consistisse em infligir apenas a dose adequada de dor.

 

- Não conheço nenhum deles - disse Ray. - Vocês têm de acreditar em mim.

 

Durante o seu ano de treino na agência, os cadetes tinham partilhado várias aulas com os seus homólogos da CIA. Uma delas intitulava-se mesmo ”Como Lidar com Interrogatórios Hostis”. Os formandos chamavam-lhe Tortura 101. O instrutor, um ex-piloto de bombardeiro chamado Joe Dash, passara quatro anos num campo de prisioneiros vietcongue. Não tinha olhos.

 

”Há três coisas em que vocês têm de pensar quando estão a ser sujeitos a um interrogatório hostil”, sublinhara Dash.

 

Como sempre, considerava que havia três pontos essenciais em qualquer situação. Três, nem mais nem menos.

 

”Primeiro, qualquer coisa que vos prometam em troca de respostas não passa de uma treta. Segundo, se vocês não lhes derem o que eles pretendem, talvez eles resolvam adiar a vossa morte e tentar noutro dia. Terceiro, e o mais importante, enquanto estiverem vivos, há uma hipótese de serem salvos.”

 

- Nós queremos saber esses nomes - disse Orsino.

 

- Juro que não conheço nenhum. Vocês têm de acreditar em mim.

 

”Há três fases pelas quais vocês devem passar quando estão a responder a um interrogatório hostil. Cada fase deve ser prolongada ao máximo, enquanto for humanamente possível. Primeiro, neguem que sabem seja o que for. E continuem a negar.

 

Depois, admitam que sabem algumas coisas, mas dêem-lhes informações erradas - em especial se eles forem obrigados a gastar tempo para comprovar aquilo que vocês lhes disseram. Quanto mais tempo eles levarem a concluir que vocês estão a mentir, mais hipóteses terão de ser salvos, e acreditem em alguém que passou por essa situação. A terceira fase corresponde a dizerem-lhes aquilo que eles pretendem saber. O facto de alcançarem ou não essa fase depende um pouco daquilo que vocês são e muito da eficiência dos vossos interrogadores.”

 

A mão carnuda de Orsino apertou de tal modo o rosto de Ray que ambas as faces se tocaram.

 

- Agrada-me que você não nos tenha dito nada - disse ele entre dentes.

 

Recuou. Ray foi imediatamente trespassado pelo olhar azul-glacial.

 

- Percebe alguma coisa de química, Mister Santana? perguntou Perchek. - Não interessa. Talvez esteja interessado em saber o nome químico do conteúdo desta seringa. É carbamato clorídrico, hidroxílico, trimetílico e fluorodimetílico. Na realidade, há também duas séries químicas marginais, portanto o nome é ainda mais longo.

 

- Estou impressionado - ironizou Ray.

 

- O nome químico mais curto é hidrocloreto de hiconidol. Um amigo farmacêutico fez a síntese, mas foi o meu trabalho de investigação que produziu o conceito.

 

- Bravo.

 

- Mister Santana, na extremidade de cada nervo álgico do corpo humano há um transmissor químico que o liga ao nervo seguinte e o faz disparar. O impulso acciona esse nervo e o transmissor passa-o ao seguinte. E assim sucessivamente. Pouco depois... é muito rápido, de facto, a mensagem é transmitida do ponto afectado para o centro de dor do cérebro e... ai!

 

- Muito bem explicado.

 

Santana já sabia aonde Perchek queria chegar. E tinha a certeza de que o seu interlocutor o percebia pelo seu olhar.

 

- O hiconidol corresponde quase, átomo por átomo, à substância química dos neurotransmissores responsáveis pela dor. Isso significa que eu posso estimular esses nervos todos ao mesmo tempo e quando quiser. Todos. Pense nisto, Mister Santana. Nada de feridas... Nada de espalhafato... Nada de sangue. Apenas dor. Dor, pura e simplesmente. O hiconidol na tem qualquer valor do ponto de vista clínico, excepto para o trabalho que eu faço. Mas, se alguma vez o comercializarmos, pensei que um nome adequado para ele seria Agonil. É um produto incrível, se me é permitido dizer isto. Uma pequena injecção? Uma picadinha. Uma grande? Bem, tenho a certeza que você percebe.

 

A boca de Ray estava seca como um deserto. O coração batia-lhe com tal força no peito que Ray tinha a certeza que o Doutor o via.

 

Por favor, não faça isso. Por favor..., gritou ele em silêncio.

 

O polegar de Perchek carregou no êmbolo.

 

- Acho que vamos começar por qualquer coisa mais modesta - disse ele. - O equivalente, talvez, a uma pequena brisa fresca nas cavidades dos seus dentes.

 

A última voz que Ray ouviu antes da injecção foi a de Joe Dash.

 

Há três maneiras que um homem pode escolher para morrer...

 

           SEIS ANOS DEPOIS

 

Há doze anos que o Jade Dragon, no Upper West Side de Manhattan, se orgulhava de servir comida excepcional a preços razoáveis. Consequentemente, num dia de semana normal, os seus 175 lugares eram utilizados duas vezes e, nos fins-de-semana, cinco vezes. Nessa noite quente de Junho, uma sexta-feira, era preciso esperar uma hora para conseguir uma mesa.

 

Sentado no seu lugar habitual, Ron Farrell comentava com a mulher, Susan, e com os amigos, Jack e Anita Harmon, como o restaurante crescera desde que ele e Susan lá tinham comido pela primeira vez, há dez anos. Agora, embora se tivessem mudado três vezes, faziam questão de continuar a ir ao Jade Dragon, sozinhos ou com amigos, todas as sextas-feiras, quase com a precisão de um mecanismo de relógio.

 

Estavam quase a terminar a refeição, que na opinião dos Harmon fora a melhor das refeições chinesas que alguma vez tinham comido, quando Ron parou no meio da frase e começou a friccionar o abdómen. Inesperadamente, fora acometido de fortes cólicas intestinais, acompanhadas por ondas de náusea. Sentiu o suor a escorrer nas axilas e na face. A sua visão toldou-se.

 

- Ronnie? Sentes-te bem? - perguntou a mulher. Farrell respirou fundo várias vezes, devagar. Sempre lidara bem com a dor. Mas esta parecia estar a piorar.

 

- Não me sinto bem - respondeu a custo. - Tenho... Tenho esta dor, aqui mesmo.

 

- Não pode ser do que comeste - disse Susan. - Todos nós comemos o mesmo...

 

De repente, o rosto de Susan ficou cor de cinza. Gotas de transpiração brotaram-lhe da testa. Depois, sem dizer mais nada, inclinou-se para o lado e vomitou no chão.

 

À porta da cozinha do restaurante apinhado, o jovem ajudante de cozinheiro observava o burburinho que aumentava à medida que os quatro clientes da mesa 11 adoeciam, um por um. Por fim, voltou a entrar na cozinha enorme e, com indiferença, encaminhou-se para o telefone público ali instalado para uso do pessoal. O número que marcou estava escrito à mão num pequeno cartão.

 

- Sim? - respondeu uma voz de homem do outro lado da linha.

 

- Aqui Xia Wei Zen.

 

- Sim?

 

O cozinheiro leu cuidadosamente as palavras impressas no cartão.

 

- O trevo tem quatro folhas.

 

- Muito bem. Sabes onde deves ir depois de acabares o turno. O homem do automóvel preto levará o frasco vazio que está em teu poder, em troca do resto a que estás obrigado.

 

O homem desligou sem esperar pela resposta.

 

Xia Wei Zen olhou à volta para se certificar de que ninguém o observava e depois regressou ao seu posto. O trabalho não lhe custaria tanto até ao fim do turno. Por um lado, tinha uma boa maquia à sua espera. Por outro, nessa noite viriam muito menos encomendas da sala de jantar.

 

O telefonema foi recebido nas urgências do Hospital Good Samaritan às 9 horas e 47 minutos. Quatro doentes de Prioridade Dois, provenientes de um restaurante chinês a vinte quarteirões de distância, iam a caminho, transportados pelo piquete de socorro. O diagnóstico preliminar era envenenamento alimentar agudo.

 

Prioridade Dois. Doença ou ferimento potencialmente grave, que não punha a vida em risco naquele momento.

 

A azáfama era própria de uma noite de sexta-feira. Os enfermeiros e os internos do grande hospital escolar já estavam atrasados três horas. As vinte salas de tratamento disponíveis estavam cheias, assim como a sala de espera. O ar estava saturado com os odores da transpiração, dos desinfectantes e do sangue. À volta, ouviam-se os sons característicos da doença, do sofrimento e da dor: gemidos, bebés a chorar, tosses incontroláveis.

 

- Já alguma vez comeste num sítio chamado Jade Dragon?

- perguntou a enfermeira que recebeu a chamada do piquete de socorro.

 

- Acho que sim - respondeu a enfermeira-chefe.

 

- Bem, da próxima vez, talvez seja preferível optares pelo italiano. Vem a caminho um piquete com dois casos provocados por um eventual envenenamento alimentar. E chegarão mais dois. Ao todo, dois homens e duas mulheres, todos com quarenta e tal anos, todos a soro, todos a vomitar.

 

- Têm sinais vitais?

 

- Os valores estão bem neste momento. Mas, segundo o pessoal que acorreu ao local, nenhum deles tem bom aspecto.

 

- Sarilhos a quadruplicar.

 

- Onde queres instalá-los?

 

- O que temos?

 

- O sete pode ficar livre se quiseres falar ao doutor Grateful Dead, ou lá como é que ele se chama, e convencê-lo a passar umas receitas.

 

- Óptimo. Põe lá os que te parecem piores e deixa os outros no corredor. Serão transferidos para quartos à medida que for possível. Requisita também análises de rotina e um electrocardiograma para cada um.

 

- De acordo.

 

Ron Farrell gemeu de dor quando a sua maca foi colocada na plataforma, em posição de transporte. Estava deitado de lado, em posição fetal. A dor no estômago era imparável. Jack Harmon, que depressa começara a sentir-se ainda pior do que Susan, fora na ambulância com ele. Naquele momento, Ron viu-o acenar-lhe com um gesto débil, quando ambos transpuseram, de cadeira de rodas, as portas automáticas e entraram na zona de recepção, fervilhante e inundada de luz fluorescente.

 

Nos minutos seguintes, houve uma confusão de perguntas, agulhas, espasmos de dor e exames feitos por gente de bata branca. Ron foi levado para uma pequena sala com várias prateleiras cheias de material e um frasco de aspiração na parede. O pessoal mostrara-se cortês para com ele, mas era evidente que todos estavam arrasados. O médico assistente de Ron não fazia parte do corpo clínico do Good Samaritan, tanto quanto ele sabia. Não podia fazer nada a não ser esperar pela medicação que lhe tinham prometido para o aliviar das dores.

 

- Sente-se melhor? - disse uma voz de homem com um forte sotaque estrangeiro que Ron não conseguiu identificar.

 

Ainda na posição fetal, que lhe dava um mínimo de conforto, Ron conseguiu abrir os olhos e olhou para cima. O homem, de bata azul como quase todo o pessoal das urgências, sorriu-lhe. A luz vinda de cima, eclipsada pela cabeça do médico, formava um halo à sua volta e obscurecia-lhe o rosto.

 

- Sou o doutor Kozlansky - disse ele. - Parece que você e os outros sofreram um envenenamento alimentar.

 

- No maldito Jade Dragon. A minha mulher está bem?

 

- Está, está. Garanto-lhe que está muito bem.

 

- Óptimo. Ouça, doutor, o meu estômago está a dar cabo de mim. Pode dar-me qualquer coisa para esta dor?

 

- É exactamente para isso que estou aqui - respondeu o médico.

 

- Formidável.

 

O médico encheu a seringa com um líquido de cor clara e esvaziou-o no tubo intravenoso.

 

- Obrigado, doutor - agradeceu Farrell.

 

- Talvez queira esperar para me agradecer quando... quando vir como isto resulta.

 

- Está bem, não...

 

De súbito, Farrell não conseguiu falar. Teve uma horrível e devastadora sensação de vazio no peito. E naquele momento percebeu que o seu coração deixara de bater.

 

O homem continuava a sorrir-lhe com um ar benévolo.

 

- Sente-se melhor? - perguntou ele.

 

Ron sentiu as pernas e os braços a tremer de uma forma incontrolável. Arqueou as costas até ficar só com a cabeça e com os calcanhares apoiados na cama. Os seus dentes tilintaram. Depois, começou a perder a consciência. Os seus pensamentos tornaram-se mais desconexos. O medo terrível abrandou e por fim desapareceu. O seu corpo caiu, sem vida, em cima da cama.

 

Durante um minuto, o homem ficou ali a olhar. Depois, meteu a seringa no bolso.

 

- Agora tenho de o deixar - segredou ele com uma voz sem sotaque. - Por favor, tente descansar.

 

             UM ANO DEPOIS

 

Harry Corbett ia na sua décima quinta volta do circuito interno quando sentiu a primeira dor no peito. O circuito, uma varanda com cerca de duzentos metros de comprimento a toda a volta do prédio, ficava no último andar do Edifício Cinzento do Manhattan Medical Center. Três metros mais abaixo, havia um ginásio de equipamento modesto, com pesos, as máquinas habituais, sacos de areia e alguns colchões. Aquele fitness center, único na cidade, destinava-se exclusivamente ao pessoal hospitalar e aos empregados. Fora criado graças à herança do Dr. George Pollock, um cardiologista que atravessara duas vezes o canal da Mancha a nado. Pollock morrera com noventa anos por ter caído de uma escada, quando andava a limpar as goteiras da sua casa de campo.

 

Quando se apercebeu da dor, Harry estava a pensar em Pollock e em como seria viver até aos noventa anos. Abrandou um pouco e fez rodar os ombros. A dor continuou. Não era muito forte - talvez de nível dois, na escala de um a dez que os médicos utilizavam. Mas estava ali. Recusando-se a interromper a corrida, Harry engoliu em seco e massajou a parte superior do abdómen. Era impossível localizar o mal-estar. Ora parecia concentrar-se abaixo do esterno, ora no meio das costas. Abrandou um pouco o seu ritmo, passando de oito minutos para dez minutos e meio por cada mil e quinhentos metros. A dor situava-se agora do lado esquerdo do peito... Não, desaparecera... Não, não desaparecera, estava algures entre o mamilo direito e a clavícula.

 

Harry abrandou ainda mais. Por fim, parou. Inclinou-se para a frente, com as mãos nas ancas. Não era angina de peito, disse com os seus botões. Aquilo não tinha nada da chamada dor cardíaca. Harry conhecia o seu corpo e conhecia a dor, evidentemente. Esta dor não era grave. E, se não era do coração, ele estava-se nas tintas para a sua origem.

 

Harry sabia que a sua lógica era incorrecta: nunca faria um diagnóstico a um paciente por dedução. Mas, como sucedia a quase todos os médicos com sintomas físicos, a sua negação era mais forte do que qualquer lógica.

 

Steve Josephson, que corria na direcção oposta, aproximou-se dele.

 

- Sentes-te bem? - perguntou.

 

Ainda a olhar para o soalho de cortiça do circuito, Harry respirou fundo. A dor desaparecera, sem mais nem menos. Desaparecera. Harry esperou alguns segundos para se certificar. Nada. Não havia a mínima dúvida. Definitivamente, não restava o menor vestígio, voltou a dizer a si próprio.

 

- Sim. Sim, sinto-me bem, Steve - respondeu Harry. Continua até ao fim.

 

- Ouve, tu foste o fundamentalista que me encaminhou para este circuito absurdo - disse Josephson. - Aceitarei qualquer desculpa para parar.

 

Josephson transpirava mais do que Harry, embora não tivesse percorrido mais de metade do circuito. Tal como Harry, Steve Josephson era médico de clínica geral - um ”especialista em medicina familiar”, como os burocratas tinham resolvido chamar-lhes. Não trabalhavam em equipa, mas asseguravam as noites e os fins-de-semana com mais quatro médicos de clínica geral. Eram seis e meia da manhã - mais cedo do que era habitual. Mas tinham à sua frente um dia agitado e importante.

 

Às oito horas, depois das rondas da manhã e de uma reunião de emergência do Departamento de Medicina Familiar, todo o pessoal médico se reuniria no anfiteatro. Após meses de entrevistas e de investigações, o grupo de trabalho encarregado de determinar se deveriam ou não ser reduzidos os privilégios dos clínicos gerais do hospital estava pronto para apresentar as suas conclusões. Pelo que Harry ouvira dizer, as recomendações da Comissão Sidonis seriam implacáveis o equivalente, no domínio profissional, a uma castração.

 

Estando em causa uma parte do rendimento de Harry e uma fatia significativa do seu brio profissional, a apresentação iminente era um motivo suficiente para justificar as úlceras, os espasmos musculares ou o que quer que provocara a misteriosa dor. E o relatório da comissão nem sequer era aquilo que mais o preocupava.

 

- Há quase um ano que corremos juntos três ou quatro vezes por semana, e eu nunca te vi parar antes de completares os sete quilómetros e meio - disse Josephson.

 

- Bem, Stephen, isto serve apenas para mostrar que há uma primeira vez para tudo.

 

Harry examinou o rosto preocupado do amigo e abrandou.

 

- Ouve, pá, eu dizia-te, se fosse alguma coisa. Acredita que eu diria. Hoje não me apetece correr. Tenho coisas a mais na cabeça.

 

- Compreendo. A Evie dá entrada amanhã?

 

- Depois de amanhã. O Ben Dunleavy é o neurocirurgião dela. Fala em lhe extrair o aneurisma cerebral como se fosse remover uma verruga ou qualquer coisa do género. Mas acho que é o que ele vai fazer.

 

Os dois amigos saíram do circuito quando os corredores do ginásio se aproximaram.

 

- Como é que ela está a reagir? - perguntou Josephson. Harry encolheu os ombros.

 

- Considerando a situação, parece bastante calma. Mas ela é muito reservada quanto aos seus sentimentos.

 

Reservada. O eufemismo da semana, pensou Harry, magoado. Já nem se lembrava da última vez em que Evie partilhara quaisquer sentimentos com ele.

 

- Bem, diz-lhe que eu e a Cindy lhe desejamos felicidades e que eu irei vê-la assim que esse tumor for extraído.

 

- Obrigado - disse Harry. - Tenho a certeza que ela vai gostar de ouvir isso.

 

Na realidade, Harry duvidava que assim fosse. Por muito afectuoso, inteligente e cuidadoso que Steve Josephson fosse, Evie nunca conseguira ultrapassar a sua obesidade.

 

- Já o ouviste respirar? - perguntara ela uma vez, quando Harry enaltecia as virtudes do amigo como médico. É como se eu estivesse a conversar com um touro com cio. E aquelas camisolas interiores brancas, de alças, que ele usa por baixo das camisas.

 

- Ouve lá, antes de tomarmos duche, porque não me contas mesmo o que se passou ali? - perguntou Josephson, ao entrarem no vestiário.

 

- Já te...

 

- Harry, eu ia a meio do circuito e bem vi que ficaste sem cor.

 

- Não foi nada.

 

- Bem sabes que passei vários anos a ensinar como fazer perguntas indirectas. Não me obrigues a voltar atrás.

 

Harry e Josephson faziam de médicos um do outro em formulários de seguros ou para receitas ocasionais. E, embora cada um recomendasse ao outro que marcasse um exame completo, nenhum deles o fizera. O máximo que tinham conseguido fora um acordo feito logo a seguir à comemoração dos quarenta e nove anos de Harry. Harry, que já era obsessivo em relação às dietas e ao exercício físico, prometera ir fazer um checkup e um electrocardiograma com prova de esforço. Steve, seis anos mais novo, mas com vinte e cinco quilos a mais, aceitara fazer jogging e inscrevera-se nos Weight Watchers. Mas, à parte as voltas ao circuito, que Josephson dava de má vontade, nenhum fizera nada.

 

- Tive uma pequena indigestão - admitiu Harry. - Mais nada. Incomodou-me durante um minuto e depois desapareceu.

 

- Hum, uma indigestão. Não estarás a chamar indigestão a uma dor no peito?

 

- Steve, eu dizia-te, se tivesse sentido uma dor no peito. Bem sabes que eu o faria.

 

- Uma pequena correcção. Eu sei que não o farias. Quantos homens é que empurraste para a faca?

 

Embora Harry raramente falasse no assunto, ao longo dos anos quase toda a gente do hospital ouvira contar uma versão dos acontecimentos de Nhatrang, ou construíra uma. Nas histórias, o número de feridos que ele salvara antes de ser gravemente ferido variava entre três - o número pelo qual ele fora condecorado - e vinte. Uma vez, Harry ouvira um doente a gabar-se de que o seu médico matara uma centena de vietcongues e salvara igual número de soldados americanos.

 

- Stephen, eu não sou um herói. Longe disso. Se eu pensasse que a dor tinha a mínima importância, dizia-te.

 

Josephson não estava convencido.

 

- Deves-me uma prova de esforço. Quando é que fazes cinquenta?

 

- Daqui a duas semanas.

 

- E qual é a data dessa maldição familiar?

 

- Ora, vá lá.

 

- Harry, tu é que me falaste nisso. Quando é?

 

- Em Setembro. No dia um de Setembro.

 

- Tens quatro semanas.

 

- Eu... Está bem, está bem. Assim que a situação da Evie estiver regularizada, marco o exame. Prometo.

 

- Estou a falar a sério.

 

- Bem sabes que, apesar do que todos dizem de ti, eu sempre acreditei nisso.

 

Harry despiu-se e foi para o duche. Sabia que Steve Josephson, sem querer, examinava as suas costas retalhadas pelas cicatrizes. Trinta e um estilhaços de morteiro, metade de um rim e uma costela. O desenho formado pela sua remoção confundia-se com uma página de um mapa de estradas. Harry lembrou-se de repente da sensação incrível provocada pelos seios de Evie a deslizar lentamente sobre as feridas cicatrizadas, durante aquilo a que ela chamava o seu dever patriótico para com um herói de guerra. ”Quando foi a última vez?” Já não se lembrava, reconheceu, pesaroso.

 

Abriu a torneira da água quente até ficar envolvido em vapor. Faltavam duas semanas para fazer cinquenta anos. Cinquenta anos! Nunca fora acometido de qualquer crise da meia-idade, tanto quanto se lembrava. Mas talvez o pavor que o assolava ultimamente fosse isso mesmo. Naquele momento, os fragmentos de que era feita a sua vida deviam estar no seu lugar. Mas as opções parecia-lhe serem alvo de ataques constantes. E desmoronavam-se.

 

Pensou no dia em que, em pleno período de convalescença, optara por deixar de ser cirurgião interno e dedicar-se à clínica geral. Algo lhe acontecera durante aquele ano e meio no Vietname. Já não lhe apetecia estar na ribalta. Não era que o dramatismo e a intensidade que caracterizavam a sala de operações o afectassem. De facto, gostara até do tempo que lá passara. Mas chegara à conclusão de que queria ser simplesmente médico de família. Simplesmente. Se havia uma palavra que melhor descrevia a vida que Harry escolhera para si próprio era simplesmente. Levantar-se de manhã, fazer o que lhe parecia certo, tentar ajudar algumas pessoas no caminho, criar um ou dois motivos de interesse fora do ambiente de trabalho, e mais tarde ou mais cedo as coisas fariam sentido. Mais tarde ou mais cedo, as grandes perguntas teriam resposta.

 

Bem, ultimamente, as coisas não faziam muito sentido. As grandes perguntas eram tão enganadoras como sempre. Ainda mais. O seu casamento estava periclitante. Os filhos que ele sempre desejara nunca tinham nascido. A segurança económica, que ele esperara que aumentasse a pouco e pouco ao longo do tempo, estava associada a um ramo da medicina que ele não queria praticar. Nunca permitira que o seu consultório se transformasse numa fábrica de fazer dinheiro. Nunca mandara um cobrador atrás de ninguém. Nunca se recusara a tratar de um doente por ele não poder pagar. Nunca se mudara para os subúrbios. Nunca regressara à formação que o teria transformado num especialista de segunda classe. O resultado era um carro com sete anos e um PPR que duraria indefinidamente até que ele resolvesse reformar-se.

 

Agora, a sua situação profissional estava a ser afectada, a mulher enfrentava o bisturi do neurocirurgião e, apenas a quatro semanas do dia um de Setembro, do seu quinquagésimo primeiro ano de vida, tivera uma dor no peito.

 

A reunião do Departamento de Medicina Familiar, convocada à pressa, foi pouco conclusiva. Todos os médicos que usaram da palavra durante a sessão emotiva de quarenta e cinco minutos parecia terem informações diferentes a respeito das conclusões da Comissão Sidonis. No fim, não foram apresentadas moções nem aprovados actos de protesto. À parte a comparência de uma frente unida no anfiteatro, não havia nada a fazer até que fossem conhecidas as recomendações específicas do grupo de trabalho.

 

- Harry, não disseste uma palavra lá dentro - comentou Steve Josephson, à saída.

 

- Não havia nada a dizer.

 

- O Sidonis e os seus vigilantes andam numa caça às bruxas, e tu bem sabes. Toda a gente está assustada. Tu podias tê-los acalmado. Tu és... tu és uma espécie de líder do grupo. O kahuna não oficial.

 

- Uma maneira simpática de dizer que sou mais velho do que a maioria.

 

- Não era isso que eu queria dizer. Eu ajudo bebés a nascer. A Sandy Porter desnuda veias e faz outras coisas na sala de operações. Os irmãos Kornetsky são melhores nos cuidados intensivos do que a maioria dos cardiologistas. Quase todos nós desenvolvemos uma actividade específica. Tu és o único que fazes tudo.

 

- E depois? Steve, o que havemos de fazer? Desafiar os especialistas para umas olimpíadas médicas?

 

- Ora, que disparate. Harry, não sei o que está a acontecer-te ultimamente. Espero que não seja para sempre.

 

Harry preparava-se para responder que não sabia do que Josephson estava a falar. Mas limitou-se a murmurar uma desculpa. Nunca fora um orador veemente, mas ao longo dos anos a sua frontalidade e o seu bom senso na resolução de conflitos tinham-lhe granjeado respeito no hospital. Além disso, nunca recuara perante um confronto. Podia ter dito - devia ter dito - alguma coisa. Os membros do departamento, em especial os mais novos, estavam verdadeiramente preocupados com o seu futuro.

 

A crise no Manhattan Medical Center era a consequência directa de três processos judiciais sucessivos por negligência médica movidos ao hospital no espaço de meses. Todos os casos envolviam clínicos gerais. Harry tinha a sensação de que o carácter epidémico da litigação não passava de uma coincidência. Na nova ordem médica que consistia em processar primeiro e perguntar depois, era possível atingir números semelhantes, que provavam que os especialistas eram igualmente vulneráveis. Mas o corpo clínico entrara em pânico e fora criada a Comissão dos Médicos Generalistas. Caspar Sidonis, um cardiocirurgião carismático e muito conhecido, fora nomeado presidente.

 

Sidonis e Harry nunca se tinham dado bem, embora Harry nunca percebesse porquê. Agora encontravam-se em lados opostos da mesa e disputavam um jogo que só tinha interesse para os clínicos gerais. E Sidonis estava de posse de todas as cartas.

 

- Steve, desculpa - repetiu Harry, quando atravessavam as urgências. - Acho que ando abatido ultimamente. E não sei porquê. Deve ser a andropausa, ou qualquer outra coisa. Talvez eu precise, não sei, de lutar contra moinhos de vento.

 

O corredor, que encurtava o caminho entre a sala de reuniões e o anfiteatro, estava fechado ao público mas não ao pessoal do hospital. Naquele dia, a azáfama nas urgências era enorme. Os quartos estavam todos ocupados. Grandes cirurgias, pequenas cirurgias, ortopedia, otorrinolaringologia, pediatria, medicina, cardiologia.

 

- Cada um tem uma história - disse Harry, enquanto caminhava.

 

- É verdade - murmurou Steve. - Bem, daqui em diante é melhor habituarmo-nos a ler as Cliffs Notes.

 

Atrás deles, vinha uma enfermeira a correr que entrou num dos quartos de cardiologia.

 

- Dêem-lhe mais três de morfina - ouviram dizer a um interno, quando se aproximaram do quarto.

 

- Quanto é que ele tomou de Lasix,

 

- Oitenta, doutor...

 

- Isto é uma taquicardia, tenho quase a certeza.

 

- A tensão arterial está a baixar, doutor.

 

- Raios! Alguém devia ter ligado para a cardiologia.

 

- Eu enviei-lhes uma mensagem pelo pager, mas eles não responderam.

 

Os dois clínicos gerais pararam à porta. O doente, um negro de aspecto robusto, talvez de setenta e poucos anos, estava numa grande aflição, sentado na maca, quase hirto, sem conseguir respirar. Cada vez que inalava, ouvia-se um gorgolejar ruidoso no seu peito. O ritmo cardíaco aproximava-se das cento e setenta pulsações. O jovem interno que tratava do caso era um médico competente, mas tinha fama de perder a frieza em situações difíceis.

 

- Qual é a tensão arterial? - perguntou ele.

 

- Talvez setenta, doutor. É muito difícil ouvi-la.

 

Havia um nervosismo indisfarçado na voz da enfermeira. O uso repetido do título do interno constituía uma exigência para que ele fizesse qualquer coisa.

 

- Não podemos esperar pela cardiologia - disse ele. Prepare-o para os choques. Alguém que volte a chamar a cardiologia. Janice, quero trezentos joules.

 

Steve Josephson, de olhos muito abertos, voltou-se para Harry.

 

- Edema pulmonar - disse Josephson.

 

- Exactamente - respondeu Harry.

 

- Mas não se vêem taquicardias no monitor.

 

- Concordo. É uma velha variante da taquicardia sinusal, diria eu. Devido ao stress da situação.

 

- Não podemos permitir que ele lhe aplique choques. Harry hesitou por momentos e depois concordou. Aproximaram-se ambos da cama do doente.

 

- Sam, isto é uma taquicardia sinusal - segredou Harry, para que ninguém, excepto o interno, ouvisse. - Se lhe aplicar choques, pode matá-lo.

 

O interno olhou primeiro para o monitor e depois para as enfermeiras e para os técnicos que rodeavam o doente. Num espaço de segundos, a sua expressão passou da confusão para a fúria e do embaraço para o alívio.

 

- Quer encarregar-se deste caso? - perguntou ele de repente. - Por favor, continue.

 

Sem responder, Harry pegou numa toalha e enxugou o suor que inundava o sobrolho do doente. Deitou um olhar à pulseira plástica de identificação do homem.

 

- Mister Miller, sou o doutor Corbett. Aperte-me a mão se perceber o que eu digo. Óptimo. Vai melhorar, mas tem de tentar respirar mais devagarinho. Eu sei que é difícil e sei que está assustado neste momento, mas vai conseguir. Vamos ajudá-lo. Como está o electrocardiograma, Steve?

 

- Talvez um pequeno MI anterior - respondeu Josephson. - O coração está a bater demasiado depressa para dizermos ao certo.

 

- Hematócrito?

 

- Cinquenta por cento. Se ele não for fumador, o sangue concentra-se bem.

 

Olharam ambos para o interno, que abanou a cabeça.

 

- Nunca fumou na vida - respondeu ele. - Mas o que tem a concentração de glóbulos vermelhos a ver com tudo isto?

 

O exame de Harry não revelou inchaço dos tornozelos nem quaisquer outros sinais de excesso de líquido. A deficiência cardíaca, fosse qual fosse a causa, estava a causar uma pressão regressiva na circulação pulmonar. O soro, a parte não celular do sangue, estava a ser obrigada a atravessar as paredes dos vasos sanguíneos e a ir para os pulmões do homem. Consequentemente, os glóbulos vermelhos, que eram demasiado grandes para atravessar as paredes dos vasos sanguíneos, começavam a depositar-se. Harry examinou as pupilas do doente para verificar se havia contracção, a qual assinalaria o efeito narcótico. As pupilas estavam pequenas, mas não reduzidas ao mínimo.

 

- Mais três de morfina - pediu Harry. - Por favor, arranje-me um saco de flebotomia. Vamos tirar-lhe sangue. Preparem-se para o entubar se for necessário.

 

Voltou a enxugar a testa do homem.

 

- Mister Miller, está a portar-se muito bem. Tente abrandar um pouco mais.

 

- Desculpe, mas vão-lhe tirar sangue! - segredou o interno, atónito.

 

- Vamos.

 

- Mas... Mas já ninguém faz uma coisa dessas.

 

- Está cada vez melhor, Mister Miller - disse Harry. Depois, voltando-se para o interno, acrescentou: - com que então, já ninguém faz uma coisa dessas? Pois bem, nós fazemos, Sam. Sobretudo quando o hematócrito de alguém está tão alto como o deste homem. Só porque um método não é de alta tecnologia, isso não significa que seja inútil. Muitas vezes, o recurso aos diuréticos para retirar líquido do corpo de um doente pode não ser tão eficaz como julgamos. E, numa pessoa cujo sangue já está tão concentrado, os diuréticos podem ser muito mais perigosos. Qualquer porção de líquido retirada com diuréticos pode contribuir para concentrar ainda mais os glóbulos vermelhos. E se estes espessarem demasiado, mais tarde ou mais cedo obstruirão um vaso sanguíneo. A tensão, por favor?

 

- Mantém-se nos oitenta. Ouve-se melhor - respondeu a enfermeira.

 

Harry fez sinal a Steve Josephson, que inseriu a grande agulha de flebotomia numa veia, com uma destreza que a largura dos dedos não faria supor. No mesmo instante, uma coluna de sangue deslizou pelo tubo e começou a encher o frasco de plástico.

 

A inversão do edema pulmonar de Clayton Miller era espectacular.

 

- Estou... estou a respirar... um... pouco... melhor - disse o homem a custo, passado um minuto.

 

- O que achas, Steve? Tiramos-lhe mais cem centímetros cúbicos?

 

- Se a tensão estacionar, eu sugeria que lhe tirássemos duzentos.

 

Harry ajustou ligeiramente a agulha e o fluxo de sangue aumentou. No minuto seguinte, reinou o silêncio.

 

- Oh, meu Deus - exclamou Miller, de repente, enchendo os pulmões com um movimento prolongado e reconhecido.

- Oh, meu Deus, sinto-me melhor... Muito melhor...

 

O doente continuava sem fôlego, mas estava muito melhor. O padrão cardíaco no monitor descera para cem. O formato das imagens parecia agora normal. Duas enfermeiras trocaram olhares ostensivos de alívio. O interno colocou-se entre os dois clínicos gerais.

 

- Isto é incrível - disse ele. - Não sei o que dizer. Mister Miller, o doutor Corbett e o doutor Josephson ajudaram-no muito, e a mim também.

 

A custo, o homem ergueu os polegares.

 

- Ouçam, ouvi falar na comissão que eles formaram para alterar os vossos privilégios. Se precisarem que eu escreva alguma coisa acerca do que se passou aqui esta manhã, contem comigo.

 

- Talvez seja um pouco tarde para isso, mas porque não envia uma comunicação ao doutor Sidonis? - alvitrou Harry.

- Talvez ele a leia, desde que ela comece por ”Excelência”.

 

Ouviu-se um leve ruído atrás deles. Olharam os três para a porta no momento em que Caspar Sidonis, com um rosto impenetrável, deu meia volta e se dirigiu para o anfiteatro.

 

Green Dolphin Street. A composição de Wes Montgomery. A melodia surgiu na mente de Harry assim que ele se sentou na última fila do anfiteatro. Green Dolphin Street. Harry executou um solo fazendo tamborilar os dedos no braço metálico da cadeira. Adorava música de todos os estilos, mas era um fanático de jazz. Tocara contrabaixo desde os primeiros anos do liceu e ainda se sentava num combo quando tinha tempo. Ao longo dos anos, habituara-se a que Green Dolphin Street lhe viesse à cabeça quando estava excitado - tenso, mas pronto a agir. Cantarolara-a quando ia para os exames de Química Orgânica, e mais tarde nas reuniões dos médicos de família. E, evidentemente, durante a guerra, parecia que estava sempre a ouvi-la quer em disco quer na sua imaginação. Agora, pela primeira vez desde há muito tempo, a melodia estava de volta.

 

- Casa cheia, Harry - comentou Doug Atwater, apontando para o anfiteatro que se enchia rapidamente. - Até parece que andaram a distribuir estetoscópios de graça.

 

O Manhattan Medical Center era o maior dos três hospitais que trabalhavam com a Manhattan Health Cooperative. Como administrador responsável pelo marketing e pelo desenvolvimento da unidade prestadora de cuidados de saúde em rápida expansão, Atwater tinha um gabinete em cada um deles. Ingressara na empresa há seis ou sete anos, vindo algures do Midwest. Eram muitos, incluindo Harry, os que pensavam que, sem a energia criadora e o sentido empresarial de Atwater, a cooperativa e os seus hospitais talvez já não existissem. Mas a Manhattan Health captara uma quota razoável do mercado e tornara-se uma verdadeira força no sector. Tal como Harry, Atwater era um adepto fervoroso do jazz, embora não tocasse. Ambos arranjavam tempo para irem a um clube de três em três ou de quatro em quatro meses. E de vez em quando, Doug passava pelo C. C.’s Cellar, quando Harry estava sentado com o combo que tocava regularmente no local.

 

- O Sidonis ou alguém da comissão lhe falou nisto? perguntou Atwater.

 

- Claro. O Dan Twersky, o psiquiatra, foi encarregado de falar comigo. Você conhece-o? Não podia ter sido mais pomposo nem mais condescendente, mesmo que quisesse. Queria saber como é que o Marv Lorello podia ter suturado tão mal o polegar daquele tipo. Eu disse-lhe que, tanto quanto podia afirmar, o Marv não suturara nada mal. O Twersky perguntou porque é que o Lorello não mandara chamar um especialista em cirurgia da mão. Eu respondi-lhe que tudo o que havia a fazer era limpar a ferida e suturá-la. O cirurgião mais hábil do mundo poderia ter alcançado o mesmo resultado infeliz de Marv. Por vezes, a circulação numa ferida não se processa como deve ser e ocorre uma perda de tecidos. Ele disse-me que lhe parecia que eu estava a defender um pouco os clínicos gerais. Eu respondi-lhe que preferia milhões de vezes ter curado aquela ferida sem recorrer a um cirurgião da mão e que, em noventa e nove por cento dos casos, as duas partes se uniriam perfeitamente. O Twersky ficou ali sentado e sorriu. Com um sorriso do género: ”Diga o que lhe apetecer, doutor, mas não pense que alguma vez tratará do meu polegar.”

 

Atwater deu-lhe uma palmada no ombro, para o encorajar.

 

- Harry, você é um médico formidável - assegurou. E nada do que o Sidonis ou a comissão dele possam fazer alterará essa realidade.

 

Steve Josephson abriu caminho na fila, acenou a Atwater e sentou-se ao lado de Harry.

 

- Acabaram de levar o Clayton Miller lá para cima - disse ele. - O homem está a reagir bem. Uma recuperação extraordinária. Depois de tu saíres, a respiração voltou quase à normalidade e ele desatou a falar de basebol, sem parar. Foi um profissional, um colega do Satchel Paige nas ligas de basebol para negros. E repara nisto: ao que parece, o filho trabalha para os Yankees. Ele diz que nos arranja bilhetes quando tu e eu quisermos.

 

- O doente que me convém - concluiu Harry.

 

- O que há? - perguntou Atwater.

 

Harry deu a palavra a Josephson, que contou o que se passara em pormenor e com todo o dramatismo próprio de um piloto de bombardeiro que descreve um combate aéreo. Atwater escutava, fascinado.

 

- É pena que o Sidonis não saiba o que vocês fizeram - disse ele.

 

- Ele sabe. Mas não creio que se deixe impressionar ao ponto de chamar os vigilantes. De facto, não me parece que esteja impressionado.

 

- Bem, mesmo assim, vocês são formidáveis. Depois de vos ouvir, gostaria sinceramente que estivessem nas primeiras filas em vez de se sentarem aqui em cima. Harry, o que se passa com a Evie?

 

- É internada no fim desta semana. Talvez depois de amanhã.

 

Atwater puxou de um bloco de apontamentos onde escreveu o nome de Evie e a palavra ”flores”.

 

- Ela é formidável. Tenho a certeza de que se sairá bem - declarou ele.

 

Provara-se que as dores de cabeça de Evie, que ela começara por atribuir a alergias, depois a stress provocado pelo trabalho e por último a stress causado por Harry, tinham uma causa mais estrutural e virulenta. Harry passou várias semanas frustrantes a tentar convencê-la a ir ao médico e a fazer um exame ao cérebro. Por fim, Evie viu-se numa enfermaria de neurologia, com a voz entaramelada e pouca força no braço direito. Os testes revelaram um grande aneurisma na artéria cerebral anterior, que rebentara e voltara a cicatrizar. Evie teve sorte. A recuperação dos sintomas neurológicos fora rápida. Um período de repouso associado a várias radiografias fora o que o neurocirurgião lhe recomendara. Agora, chegara o momento de reparar a dilatação na parede da artéria.

 

- Harry, peço-lhe que me avise se eu ou a Anneke pudermos fazer alguma coisa para vos ajudar - disse Atwater.

 

- A Anneke?

 

Doug fez um sorriso travesso. Quando Harry e ele iam ouvir música, Doug aparecia invariavelmente com uma namorada sempre diferente e cada uma aparentemente mais nova e atraente do que a anterior.

 

- Ela é meio sueca e meio alemã - explicou Doug.

 

Ficou a pensar e depois acrescentou:

 

- Creio que a metade de cima é que é sueca.

 

- Salve, César, nós que estamos à beira da morte saudamos-te - exclamou Steve Josephson, apontando para o pequeno palco existente no extremo inferior do anfiteatro. Caspar Sidonis acabara de tomar o seu lugar à mesa, no meio dos seis membros da sua comissão.

 

- Peço a vossa atenção, por favor - disse Sidonis, batendo no microfone. - Vamos começar. Temos muitos assuntos importantes a tratar... Por favor, ocupem os vossos lugares...

 

- Se as pessoas continuarem a falar, não sei se ele não começará a atirar-lhes coisas, como faz nas urgências - segredou Josephson a Harry. - Ouvi dizer que há queixas das enfermeiras contra ele suficientes para encher a lista telefónica. O hospital não faz nada em relação aos seus ataques de mau génio porque tem medo que ele vá para outro lado. O tipo faz entrar milhões de dólares.

 

- O Caspar consegue tudo o que quer - cantarolou Harry.

 

- Isto não me cheira nada bem, Harry.

 

- Nem vejo motivos para isso.

 

Caspar Sidonis, de quarenta e poucos anos, parecia uma estrela de cinema e, para acentuar o seu bom aspecto, andava sempre impecavelmente vestido. Fora o primeiro da sua turma em Harvard, e nunca ninguém se esquecera disso. Também ganhara os campeonatos de ténis e de squash do Manhattan Medical Center durante vários anos seguidos e dizia-se que fora campeão de boxe nos seus tempos de faculdade.

 

Green Dolphin Street aumentou de volume na cabeça de Harry. Com música ou sem ela, não queria que lhe dissessem o que podia ou não podia fazer como médico: nem os colegas do hospital, nem as companhias de seguros, nem, sobretudo, um tecnocrata pomposo, espalhafatoso e irritante como Sidonis. Olhou à sua volta, para os outros clínicos gerais que se encontravam na sala, pensando em todos aqueles anos de estudo, nas inúmeras horas passadas em cursos sucessivos, na determinação com que suportavam o baixo prestígio e a ainda mais baixa remuneração que eram apanágio de um médico de família. Mereciam ser recompensados, e não sujeitos a restrições.

 

- Harry, pelo amor de Deus, diga qualquer coisa. Eles estão a crucificar-vos.

 

Doug, sentado à direita de Harry, cerrava o punho de frustração, à medida que as recomendações da Comissão de Sidonis eram apresentadas ao corpo clínico. À esquerda de Harry, Steve Josephson abanava a cabeça, incrédulo. Tentara argumentar contra a primeira proposta da comissão, segundo a qual um obstetra certificado pela direcção deveria assistir a todos os partos. Uma vez, o nome de Josephson viera nos títulos dos jornais quando, fechado numa carruagem de metropolitano avariado, ajudara a nascer dois gémeos. Agora, tudo indicava que só seria autorizado a fazer partos nas mesmas circunstâncias.

 

Apesar dos argumentos emocionados e da linguagem bombástica de Josephson, a votação foi quase unânime. Só os três clínicos gerais que ainda faziam partos votaram não. Os restantes abstiveram-se, julgando talvez que a direcção os julgaria suficientemente responsáveis para se policiarem a si próprios, e que não apoiaria as outras medidas restritivas.

 

- Lá vai o frigorífico novo - disse Harry.

 

A resolução seguinte, que exigia que os clínicos gerais entregassem os doentes da Unidade de Cuidados das Coronárias a um cardiologista ou a um interno, passou com facilidade. O cardiologista que se encarregara de Clayton Miller foi um dos poucos opositores que não era clínico geral. Seguiu-se a votação para limitar a participação dos clínicos gerais nos actos cirúrgicos, aos quais passariam apenas a assistir. Mais uma vez, foi a vontade da Comissão de Sidonis que prevaleceu.

 

- A próxima ficará na história como a Cláusula Marv Lorello - segredou Harry, quando a última proposta da comissão começou a ser discutida.

 

- Recomenda-se que todas as suturas efectuadas nas urgências do Manhattan Medical Center por um especialista que não seja cirurgião sejam previamente aprovadas pelo chefe da equipa de serviço.

 

O murmúrio que percorreu o anfiteatro deu a entender que muitos tinham sido apanhados de surpresa por esta proposta final, talvez a mais humilhante. Harry fora avisado, mas mesmo assim as palavras eram contundentes.

 

- Têm sido apresentados vários casos à nossa comissão de reclamações, nos quais certos generalistas recorreram a técnicas inadequadas ou fizeram avaliações erradas. Mistress Brenner, do nosso departamento de gestão de risco, garantiu-me que a implementação de uma política interna de triagem anterior ao tratamento reduziria significativamente o número de reclamações apresentadas contra os nossos médicos não especialistas - disse Sidonis.

 

Olhou vagamente na direcção de Marv Lorello e foi seguido por várias dúzias de pares de olhos. Lorello ingressara no hospital há uns anos, depois de ter trabalhado durante três anos numa reserva do Serviço de Saúde indiano. As suas credenciais académicas eram impressionantes, aliadas a um idealismo revigorante quanto à prática da medicina. O processo por negligência médica - o primeiro da sua carreira - e as suas consequências tinham-no afectado profundamente. Harry fez o possível por manter a calma, mas Green Dolphin Street continuava a tocar, agora a um ritmo acelerado e cada vez mais alto.

 

De súbito, a música parou. Só alguns segundos depois é que Harry percebeu que estava de pé, e que a sua figura era o centro das atenções de todos aqueles que se encontravam no anfiteatro. Pigarreou. Os rostos voltaram-se para ele, expectantes.

 

- Se o presidente da comissão estiver de acordo, eu.. Acho que há algumas coisas que eu preciso de exteriorizar antes de votarmos esta última proposta, a mais degradante para os médicos de família.

 

Harry fez uma pausa para quem tivesse objecções a levantar e teve a sensação de que Sidonis ia levantar alguma. No entanto, o silêncio foi total.

 

- Muito bem. Obrigado. Não tenciono subvalorizar a especialidade de ninguém, dando a entender que alguém com menos experiência consegue fazer exactamente o mesmo. Mas quero sublinhar que nós, generalistas, estamos bem preparados para fazer algumas dessas coisas. Somos reconhecidos como médicos de família, não como ignorantes. Frequentámos a universidade tal como vós, cuidamos dos nossos doentes e prosseguimos a nossa instrução tal como vós, e, o que é mais importante, reconhecemos as nossas limitações tal, espero, como vós.

 

”Quase todos nós suportamos ser tratados com o desprezo a que hoje assisti.

 

Harry percorreu a assistência com o olhar, na direcção de Sidonis. O silêncio impressionante não se quebrou. Ninguém tossiu. Ninguém pigarreou. Não se ouviu um estalido.

 

- Todos nós suportamos essa atitude porque acreditamos no carácter específico da medicina que escolhemos. Actualmente, somos úteis às companhias de seguros e às unidades prestadoras de cuidados de saúde. Chamam-nos médicos de cuidados de saúde primários. Mas, na realidade, somos polícias de trânsito médico, que fazem a triagem das queixas triviais e insignificantes, para que os especialistas mais caros não tenham de lidar com elas. E não há problema. Também quase todos nós nos adaptámos a essa nova ordem. Tal como nos habituaremos a assistir em primeiro lugar a apendicectomias e outras operações simples que fizemos dúzias de vezes, ou a entregar os nossos doentes cardíacos a alguém que eles não conhecem.

 

”Mas isto, isto é que eu não posso aceitar. - Harry apontou para o enorme ecrã atrás de Sidonis, no qual se lia a última recomendação da comissão. - Como sabem, nós, médicos, acusamos sistematicamente os advogados da crise da negligência médica. Há advogados a mais. O sistema de contingência está errado. O modo como eles se publicitam é exaltante. Bem, que seja. Mas a história não acaba aqui. Os doentes já não nos conhecem. Não nos apresentamos como parceiros na tarefa de os mantermos saudáveis. Pelo contrário, muitos de nós apresentam-se tal como são: especialistas, interessados apenas em garantir que a parte do corpo em que se especializaram funcione bem. Ouça, minha senhora, tem de ir para Brooklyn, porque eu nunca passo pela Rua Quarenta e Dois. Bem, eu sei suturar. Suturei feridas inacreditáveis em situações inacreditáveis. Sou muito bom nisso. Assim como o doutor Josephson, que está aqui, e o Marv Lorello, e todos nós que suturamos os nossos doentes quando eles se cortam. Não preciso que me digam o que posso ou não posso fazer. Nenhum de nós precisa disso.

 

”Por isso digo: basta. O regresso aos bons velhos tempos do médico de família sobrecarregado, de bata amarrotada, é bom para as conversas em sociedade. Mas, quando chega o momento de decidir, ninguém quer desafiar a grande ciência divina, e dizer que ainda há lugar para os médicos que conhecem os doentes no seu todo, e querem tratar deles independentemente do que está mal. Seria preferível que, em vez de terem limitado esta sessão aos médicos, tivessem convidado alguns desses doentes para estarem aqui. Quando perceberem o que significa para eles ter um médico, talvez se lembrem do que ser médico devia significar para nós. Estas propostas são todas humilhantes e desnecessárias. Mas esta é ainda pior. Não a deixem passar.

 

Harry hesitou e depois sentou-se. O pesado silêncio manteve-se. Por fim, Steve Josephson aproximou-se dele e tocou-lhe na mão.

 

- Obrigado - balbuciou, com a voz embargada. - Obrigado por teres tentado.

 

Depois, irromperam os aplausos em todo o anfiteatro. Depressa se propagaram a toda a sala e foram poucas as pessoas que não os secundaram. Algumas levantaram-se. Várias soltaram gritos de aclamação. Outras bateram nas costas dos bancos de madeira que tinham à frente. Caspar Sidonis manteve-se sentado, hirto. Um tom escarlate sobrepunha-se ao bronzeado eterno do seu rosto. Os outros membros da comissão agitavam-se, incomodados, nas cadeiras.

 

- Parece que esta proposta suscita uma grande emoção - disse Sidonis, depois de ter conseguido restabelecer a sua autoridade. - Sugiro que adiemos a discussão até que a nossa comissão possa reunir-se outra vez com o pessoal da gestão de risco e repensar esta questão.

 

- Não, vamos votar! - gritou alguém.

 

- E se votássemos outra vez todas essas propostas? - gritou mais alguém.

 

De repente, todos os médicos parecia conversarem e discutirem ao mesmo tempo. Sidonis, atrapalhado e sem saber bem como havia de gerir a situação, olhou à sua volta em busca de auxílio. Foi salvo pelo chefe da equipa médica, um cirurgião ortopédico corpulento, que já jogara duas vezes à defesa em Penn State.

 

- Acalmem-se, todos! - vociferou ele. - Exactamente. Obrigado. Quero agradecer ao doutor Sidonis e à sua comissão o bom trabalho realizado. Parece que esta última questão é suficientemente controversa para que nos debrucemos um pouco mais sobre ela. Sei que isto não foi fácil e gostaria de louvar o grupo de trabalho pela sua coragem e os clínicos gerais pela sua compreensão.

 

Dois médicos apuparam-no.

 

- Vamos lá, cresçam - disparou o médico. - Nós mandatámos o doutor Sidonis e a sua comissão, e eles estiveram à altura do seu mandato. Agora, acho que lhes devemos uma ovação.

 

Relutante, a assistência acedeu. A sessão terminou com um louvor ao trabalho árduo desenvolvido pela Comissão de Sidonis e com um apelo à compreensão e à unidade de todos os médicos.

 

- Vocês, os que prestam cuidados de saúde primários, continuam a ser os alicerces do nosso sistema. Nunca se esqueçam disso - concluiu Sidonis.

 

Harry aceitou os apertos de mão e as felicitações de Doug Atwater, Steve Josephson e de vários outros médicos. Mas sabia que, apesar de ter ajudado os clínicos gerais a salvar a honra, o seu estatuto sofrera uma grave perda. O apoio recebido após a sua intervenção não alterara a situação. Abriu caminho e dirigiu-se para a porta de saída junto do palco. Ia a chegar quando Caspar Sidonis apareceu à sua frente. Por instantes, Harry julgou que o ex-jogador de boxe lhe ia aplicar um directo.

 

- Goze o seu espectaculozinho enquanto pode, Corbett - disse ele. - Você sempre falou de mais. Mas desta vez escolheu a pessoa errada para lixar.

 

Sidonis deu meia volta e desapareceu.

 

- Veio convidá-lo para tomar chá? - perguntou Doug Atwater.

 

Harry recompôs-se e fez um sorriso forçado.

 

- Passa-se qualquer coisa entre aquele tipo e eu. Qualquer coisa oculta que eu nem sei o que é - respondeu.

 

- Esqueça-o - disse Doug. - Venha daí. Deixe-me oferecer-lhe uma Coca-Cola. Você é um tipo formidável. Um tipo formidável.

 

A meio da manhã, Harry acabou de ditar dois relatórios de alta e saiu do hospital, que ficava a seis quarteirões do seu consultório na Rua 116 da zona ocidental. O céu não tinha nuvens e o dia estava fresco e revigorante. No entanto, apesar do tempo, Harry sentiu o regresso daquela monotonia persistente que o atormentava há uns meses. Era um sentimento diferente de todos os que já experimentara - mesmo durante o seu ano de sofrimento e de incapacidade. E o facto de não conseguir afastá-lo pura e simplesmente estava a tornar-se cada vez mais frustrante. Distraído, atravessou Lexington Avenue ao encontro da luz e por pouco não chocou com um camião da Federal Express.

 

- Hola, doutor, aqui!

 

O motorista, que estava a descansar, acenou-lhe do outro lado da rua. Harry reconheceu o marido de uma das suas doentes de obstetrícia, uma das suas últimas doentes de obstetrícia, pensou tristemente.

 

- Hola, Mister Romero. Como vai o bebé? - perguntou ele, depois de atravessar a rua.

 

O homem sorriu e ergueu o polegar.

 

- Precisa de uma boleia?

 

- Não, não, Mister Romero. Muito obrigado. O homem sorriu de novo e partiu.

 

Esta breve troca de palavras animou Harry. Recomeçou a andar, estugando um pouco o passo.

 

O Mercedes descapotável amarelo-canário estava estacionado junto da boca de incêndio em frente do edifício onde Harry tinha o consultório, no rés-do-chão. Sentado ao volante, Phil Corbett sorriu-lhe.

 

- Merda - disse Harry em voz baixa.

 

Não era que não gostasse do irmão mais novo. Pelo contrário. Mas custava-lhe mais a aturar Phil nuns dias do que noutros. E aquele era um dos dias difíceis.

 

- Um Duzentos e Vinte SL vintage, em óptimo estado, com vinte e quatro mil quilómetros - disse Phil, fazendo-lhe sinal para que entrasse. - Fui buscá-lo agora mesmo ao meu stand no centro da cidade. Imaginas quanto é que vale este menino?

 

A educação formal de Phil terminara ao fim de um mês na faculdade local, quando ele desistira de competir com Harry e ingressara na marinha. Três anos depois, regressou à vida civil e começou a vender automóveis. A profissão era feita à medida do seu sorriso ingénuo, da sua mente extrovertida e do seu eterno optimismo. Cinco anos depois da primeira venda, Phil comprou a agência. Em seguida, começou a expandir-se. Agora, já com seis agências, tinha duas filhas e um filho em colégios particulares, uma mulher encantadora que não conseguia gastar tudo o que ele ganhava mesmo que quisesse, e uma quota num dos country clubs mais elitistas de Nova Jérsia. Além disso, não tinha dificuldades em lidar com as grandes perguntas da vida. Nunca as formulava.

 

- Oitocentos e setenta e três mil quatrocentos e noventa e dois dólares e setenta e três centimes - retorquiu Harry. - Fora os impostos e os encargos do vendedor. Foste ver a mamã?

 

- Vou amanhã. Como é que sabes quanto é que isto custa?

 

- Não sei. É o meu ordenado bruto durante toda a vida. Fui ao lar na terça-feira. Ela não sabia quem eu era.

 

- Creio que é o resultado de todas aquelas tromboses.

 

- Muito engraçado.

 

Phil examinou o irmão mais velho.

 

- Harry, sentes-te bem? Estás com um aspecto horrível.

 

- Obrigado.

 

- Mas estás. Tens papos debaixo dos olhos. E voltaste a roer a unha do polegar.

 

- Tenho a cabeça muito cheia, Phil - explicou Harry, olhando para o relógio. - Ouve, daqui a dois minutos começo a ver os doentes.

 

- Então o que te preocupa? A Evie? Quando é que ela é operada?

 

- Daqui a uns dias.

 

- Vai correr tudo bem. Ela é de... aço.

 

- Não comeces, Phil.

 

- Eu não disse nada de mal.

 

- Pouco faltou.

 

- Porque havia eu de dizer mal da minha cunhada? Ela telefona-me e pede-me que a ajude. Que fale com o meu irmão e o convença a aceitar esse emprego que lhe ofereceram num laboratório farmacêutico. Eu digo-lhe que, apesar de ser um cargo muito sonante, e que talvez dê mais dinheiro, acho que deve ser o meu irmão a decidir se quer desistir da sua prática clínica e passar a fazer comprimidos e anúncios em revistas. Ela diz que eu sou um egoísta e que me sinto ameaçado pelas andanças do meu irmão. E daí para cá não me dirije mais de uma dúzia de palavras. Porque havia eu de dizer mal da minha cunhada?

 

- Ela tinha razão, Phil. Eu devia ter aceitado o lugar.

 

- Harry, tu vês as pessoas quando elas estão doentes e ajuda-las a curarem-se. Não percebes como isso é maravilhoso?

 

- Já não chega.

 

- Ouve, tu tens quarenta e nove anos. Eu tenho quarenta e quatro. É a minha vez de ter uma crise da meia-idade. Já devias ter ultrapassado a tua.

 

- Bem, mas não ultrapassei. Não sei, Phil, é como... Passei demasiado tempo da minha vida a aceitar as coisas como elas eram. Não defini objectivos suficientes, talvez. Agora, parece que não tenho nada por que lutar. Eu devia ter aceitado aquele lugar. Pelo menos teriam surgido alguns novos desafios.

 

- Tu estás a sair-te bem, Harry. É o dia dos teus anos que aí vem que te impressiona. O meio século...

 

- Está bem, Phil. Não é preciso falares nisso.

 

Harry falara ao irmão da maldição dos Corbett, mas só uma vez. A indiferença de Phil perante a teoria tinha tanto de enfático como de previsível. Num dia um de Setembro, o avô paterno, poucos meses depois de fazer setenta anos, morrera de um ataque cardíaco. Vinte e cinco anos depois - exactamente vinte e cinco anos depois - o pai de ambos sofrera o seu primeiro ataque. Tinha precisamente sessenta anos e cinco semanas nesse dia um de Setembro. O facto de ele não ter morrido logo foi simultaneamente trágico e, para Harry, imaterial. Os dois anos que viveu, incapacitado, foram um inferno para todos.

 

Um de Setembro. A data fora assinalada no calendário mental de Harry desde o ataque cardíaco do pai. Mas, depois de uma determinada conferência num curso de cardiologia, Harry destacara-a a vermelho.

 

Pode dever-se a factores sociais ou genéticos, afirmara o cardiologista. Possivelmente a ambos. Mas detectamos frequentemente um padrão nas famílias, a que chamamos a ”lei das décadas”. Simplificando, o primeiro ataque cardíaco do filho parece ocorrer precisamente dez anos antes do ataque do pai. Como é óbvio, há excepções à lei. Mas, reparem. Se tiverem um homem de cinquenta e quatro anos com um problema nas coronárias e uma história familiar positiva, existe uma boa hipótese de o pai ter sofrido o seu primeiro ataque com sessenta e quatro anos. Não aos sessenta e três ou aos sessenta e cinco. Dez anos exactos...

 

- Mas tu sentes-te bem fisicamente, Harry - disse Phil.

 

- Não é verdade?

 

- Claro, Phil, sinto-me bem. Talvez seja porque não tenho quinze dias de férias há quase três anos, o meu carro está a desconjuntar-se e...

 

- Ouve, acredites ou não, foi um dos motivos que me levou a passar por aqui. Tenho um bom negócio para ti. É um C Duzentos e Vinte novo. A preço de revenda. Não ao preço de revenda de que falamos a toda a gente. Ao verdadeiro preço de revenda. Um Mercedes novo. Pensa como a Evie ficaria contente. Quem sabe, talvez ela...

 

- Phil!

 

- Está bem, está bem. Tu é que disseste que precisavas de um desafio, mais nada.

 

Harry abriu a porta do carro e saiu.

 

- Dá saudades minhas à Gail e aos miúdos - recomendou.

 

- Estou preocupado contigo, Harry. De um modo geral, és muito engraçado. E, o que ainda é mais importante, achas-me graça.

 

- Hoje não tens graça, Phil.

 

- Dá-me outra oportunidade. E que tal se almoçássemos juntos para a semana?

 

- Deixa ver o que acontece com a Evie.

 

- Está bem. E não te preocupes, Harry. Se precisares, tenho a certeza que surgirá qualquer coisa que te motive.

 

Depois de vinte e uma admissões no Hospital Parkside, Joe Bevins conseguia fechar os olhos e saber as horas pelos sons e pelos cheiros que vinham do corredor até à porta do seu quarto. Até sabia quem eram algumas enfermeiras e auxiliares pelos passos, em especial no Pavilhão 5. Conseguia quase sempre que os funcionários das admissões o enviassem para ali. O pessoal daquele piso era o mais simpático do hospital e o mais sabedor quanto aos cuidados a prestar aos doentes que sofriam de insuficiência renal crónica e que faziam hemodiálise. Joe também gostava dos quartos do extremo sul daquele piso, os melhores do hospital, com vista para o parque e, ao longe, para o Empire State Building.

 

Não era uma grande vida estar ligado à electricidade no centro de hemodiálise três vezes por semana, nem ter de ser levado à pressa para Parkside sempre que a circulação falhava, que surgia uma infecção, que o açúcar no sangue se descontrolava, que o seu ritmo cardíaco se alterava ou que a sua glande prostática inchava tanto que ele nem podia urinar. Mas aos setenta e um anos, com diabetes e uns rins que não funcionavam, não podia exigir mais.

 

Do lado de fora da porta, ouviu o ruído de duas macas que traziam doentes da fisioterapia. Um deles, uma senhora só e sem família, perdera as duas pernas devido a uma gangrena. Agora, mantinham-na ali até haver lugar num lar. ”Podia ser pior”, disse Joe com os seus botões. ”Muito pior.” Pelo menos, ele tinha o Joe Jr., Alice e os miúdos. Pelo menos, ele tinha visitas. Olhou para a outra cama do seu quarto. O indivíduo que ocupava aquela cama, vinte anos mais novo do que ele, estava lá em baixo a ser operado aos intestinos, uma maldita operação a um cancro.

 

”Oh, sim”, pensou Joe. Por muito má que fosse a sua situação, não devia esquecer-se de que ela poderia ser sempre pior.

 

Sentiu a presença de alguém à sua porta, ainda antes de ouvir o homem pigarrear. Quando se virou, viu um técnico de laboratório, de bata branca, a ajustar os tubos fechados no seu cesto metálico quadrado.

 

- Deve ser novo aqui - disse Joe.

 

- Sou. Mas não se preocupe. Já faço este trabalho há muito tempo.

 

O homem, que devia ter quarenta e tal anos, sorriu-lhe. Tinha uma cara simpática, concluiu Joe: não era uma cara que lhe agradasse muito, mas também não revelava cansaço nem insensibilidade.

 

- O que está aqui a fazer? - perguntou Joe.

 

Os médicos diziam-lhe quase sempre quais os exames que tinham receitado. Sabiam que ele gostava de saber. Naquela manhã, já fora visitado por três especialistas e nenhum lhe falara no sangue.

 

- Isto é uma solução anticorpos HTB-R vinte e nove respondeu o homem com naturalidade, pousando o seu cesto em cima da cama. - Há uma infecção no hospital. Todas as pessoas com problemas renais e pulmonares estão a ser examinadas.

 

- Ah!

 

O técnico tinha um sotaque qualquer. Não era muito acentuado e Joe não conseguiu situá-lo. Mas existia.

 

- Donde é o senhor? - perguntou.

 

O homem sorriu, enquanto preparava os tubos e a agulha. Na etiqueta de plástico azul que trazia ao peito lia-se G. Turner, flebotomista. Tentando não ser ostensivo, Joe olhou para o seu distintivo de identificação. Estava de tal modo torcido que era impossível lê-lo.

 

- De origem? - retorquiu o homem. - De origem, sou da Austrália. Mas vim para os Estados Unidos em criança. O senhor tem um ouvido muito apurado, Mister Bevins.

 

- Eu era professor de Inglês antes de adoecer.

 

- Ah, compreendo - disse Turner, olhando rapidamente para a porta, que deixara entreaberta. - Bem, vamos a isto.

 

- Tenha cuidado com o meu shunt.

 

Turner levantou o antebraço direito de Joe e passou os dedos, devagarinho, pelo shunt, o vaso firme e distendido criado pela junção de uma artéria e de uma veia. Os seus dedos eram longos e bem tratados, e Joe admitiu que o homem tocasse piano, e tocasse bem.

 

- Vamos usar o seu outro braço - disse Turner. Aplicou um torniquete de borracha oito centímetros acima do cotovelo de Joe e levou muito menos tempo do que a maioria dos técnicos levava a localizar uma veia adequada.

 

- O senhor parece aceitar tudo isto com calma. Isso agrada-me - disse ele, calçando as luvas e desinfectando com álcool a pele por cima da veia.

 

- Todos esses médicos não chegam para me manter vivo. A minha atitude é essencial - respondeu Joe.

 

- Acredito. Vou usar uma pequena agulha intravenosa em borboleta. É mais suave para a sua veia.

 

Antes de Joe poder reagir, a agulha fina, ligada a um cateter esguio, de plástico, estava lá dentro. O sangue entrou no cateter. Turner ligou uma seringa ao extremo do cateter e injectou uma pequena dose de líquido transparente.

 

- Isto é apenas para clarear o tubo.

 

Esperou talvez uns quinze segundos. Depois, retirou uma seringa cheia de sangue, puxou a agulha e pressionou a pequena picada.

 

- Perfeito. Perfeito - asseverou ele. - Sente-se bem? ”Sinto-me bem.”

 

Joe tinha a certeza que pronunciara as palavras, mas não ouviu nada. O homem junto da sua cama continuava a sorrir-lhe com uma expressão benevolente, enquanto mantinha a pressão no sítio em que a agulha entrara.

 

”Sinto-me bem”, tentou Joe dizer outra vez.

 

Turner largou-lhe o braço e colocou a agulha usada e o tubo no cesto metálico.

 

- Bom dia, Mister Bevins. Foi muito cooperante - disse ele.

 

Começando a sentir-se invadido pelo pânico, Joe viu o homem dar meia volta e sair do quarto. Sentia-se estranho, distante, a flutuar. A atmosfera do quarto estava a ficar densa e pesada. Estava a acontecer-lhe qualquer coisa. Qualquer coisa horrível. Pediu ajuda, mas voltou a não ouvir qualquer som. Tentou virar a cabeça, descobrir o botão de chamada. Pelo canto do olho, avistou o fio, que chegava ao chão. Estava paralisado, incapaz de se mexer ou mesmo de respirar. O botão estava apenas a um metro de distância. Joe fez um esforço para mexer a mão, mas o braço estava inerte. O ar estava cada vez mais pesado e Joe sentiu que a consciência começava a fugir-lhe. Estava a morrer, a afogar-se no ar. E não podia fazer absolutamente nada. Absolutamente nada.

 

Os desenhos do tecto toldaram-se, escureceram e enegreceram. E, à medida que a escuridão avançava, o pânico de Joe desvanecia-se.

 

Do outro lado da porta entreaberta, Joe ouviu o som do carrinho onde eram servidas as refeições a ser levado para a cozinha, ao fundo do corredor. Depois, sentiu o cheiro da comida.

 

E depois de vinte e uma hospitalizações em Parkside, quase todas no Pavilhão 5, Joe sabia que eram exactamente onze e um quarto.

 

Sete das dez cadeiras da sala de espera de Harry estavam ocupadas, embora em três se sentassem os netos de Mabel Espinoza. Mabel, uma octogenária, contemplou-o com o sorriso que nenhuma dor ou tragédia pessoal conseguira apagar. Tinha a tensão arterial elevada, problemas vasculares, hipotiroidismo, retenção de líquidos, um caso amoroso com alimentos condimentados e gastrite crónica. Há anos que Harry a mantinha inteira com o equivalente médico à saliva e ao arame. E graças a isso, Mabel conseguira cuidar dos netos, e a filha conseguira manter o emprego.

 

Harry lembrou-se que não havia nenhuma Mabel Espinoza associada ao cargo de director clínico da Hollins/McCue Pharmaceuticals.

 

Mary Tobin, recepcionista e responsável pelo consultório de Harry, examinou a sala de espera do seu cubículo envidraçado. Era uma negra corpulenta, que fora muitas vezes avó, e que trabalhava com Harry desde o seu terceiro ano de prática clínica. Era muito franca nas suas opiniões, e tinha uma opinião acerca de quase tudo.

 

- Como decorreu a reunião? - perguntou ela quando Harry entrou no seu cubículo para verificar o livro das marcações.

 

- Reunião?

 

- Foi assim tão má?

 

- Digamos que, durante todos estes anos, você trabalhou para um barítono, e que agora trabalha para um tenor - respondeu Harry.

 

Mary Tobin sorriu.

 

- O que é que eles sabem? O senhor vai conseguir, doutor Corbett - disse ela. - Já passou por muitos maus bocados e encontrou sempre o caminho certo.

 

- Continue a dizer-me isso. Houve telefonemas para mim?

 

- Apenas a sua mulher. Telefonou há meia hora.

 

- Ela está bem?

 

- Acho que sim. Pediu que lhe telefonasse para o escritório.

 

Harry passou pelas três salas de observação e foi para o gabinete. Além de Mary Tobin, tinha uma jovem enfermeira chamada Sara Keene, que trabalhava para ele há quatro anos, e uma assistente, que devia ser a vigésima contratada por ele no instituto mais próximo. Uma daquele grupo despedira-a ele por roubo. As restantes tinham saído para ter bebés ou, o que era mais frequente, por melhores salários. Sara, que estava sentada à secretária, levantou a cabeça e acenou-lhe.

 

- Ouvi o que disse acerca da reunião, doutor Corbett - exclamou ela alegremente. - Não se preocupe.

 

- Se mais alguém me disser que não me preocupe, começarei a preocupar-me - respondeu Harry.

 

O seu gabinete pessoal era um espaço amplo nas traseiras de um prédio de apartamentos outrora elegante. Além de uma antiga secretária e de cadeiras de nogueira, havia um tapete rolante, que Harry usara para provas de esforço até os prémios por negligência médica, que lhe estavam associados, terem tornado os testes proibitivamente caros. Agora, servia-se dele para fazer exercício. As paredes do gabinete, noutro tempo cobertas de painéis daquilo a que Evie chamava ”pinho do Clube do Alce”, tinham sido revestidas de pedra a seu pedido e pintadas de branco. Nelas se via a habitual bateria de diplomas, certidões e atestados, além de uma coisa que só alguns médicos podiam exibir nas suas paredes: uma estrela de prata do Vietname. Viam-se igualmente três óleos originais escolhidos por Evie, todos contemporâneos e abstractos, e nada do que Harry teria escolhido fora deixado ao seu gosto. Mas parecia agradarem à maioria dos doentes.

 

Havia três fotografias emolduradas em cima da secretária. Uma era de Harry com os pais, tirada no dia da sua licenciatura em Medicina; outra era de Phil, na companhia de Gail e dos miúdos; e a terceira era de Evie. Era um busto, uma fotografia de estúdio, a preto e branco, tirada num dos melhores fotógrafos da cidade. Harry tinha na secretária várias dezenas de fotografias dela que teria preferido emoldurar, mas Evie insistira no retrato. Agora, instalado na cadeira, Harry embalava a moldura nas mãos e apreciava os malares proeminentes, a boca sensual e os olhos escuros e intensos da mulher. A fotografia fora tirada pouco antes do casamento, há nove anos. Evie tinha então vinte e nove e era, e continuava a ser, a mulher mais bela que ele conhecia.

 

Harry pegou no telefone e marcou o número da revista Manhattan Woman.

 

- Evelyn Della-Rosa, por favor - disse ele, pondo a fotografia no seu lugar. - É o marido.

 

Há cinco anos que Evie era a editora da combativa revista. Harry sabia que se tratava de uma desagradável despromoção para ela, em comparação com o cargo que já ocupara numa estação de televisão. Mas admirava a sua tenacidade e o seu empenho em regressar às luzes da ribalta. De facto, sabia que se estava a passar qualquer coisa de bom na vida profissional da mulher. Ela não lhe diria do que se tratava, porque era raro confiar-lhe que estava a trabalhar numa história com grande potencial.

 

Evie atendeu passados três minutos.

 

- Desculpa ter-te feito esperar, Harry - disse ela. - Tinha este técnico pronto a funcionar no laboratório que fica na cave de um prédio da InSkin Cosmetics, e o patife raspou-se.

 

- Estás bem?

 

- Se me perguntas se há um minuto em cada hora em que não pense neste maldito balão que tenho na cabeça, estou bem.

 

- Houve a tal reunião no hospital.

 

- Reunião?

 

- A da Comissão do Sidonis.

 

- Ah... Ah, sim... Como é que correu?

 

- Digamos que eu devia ter aceitado aquele lugar na Hollins-McCue.

 

- Agora já é tarde.

 

- Por favor, Evie. Eu já admiti que errei. O que posso dizer mais?

 

Harry sabia que não podia dizer nada que não piorasse as coisas. A decisão que tomara, há mais de um ano, de declinar a oferta de emprego fora quase a machadada final no seu casamento. De facto, considerando que podia contar pelos dedos da mão quantas vezes tinham feito amor desde então, a situação estava a agravar-se.

 

- Recebi um telefonema do consultório do doutor Dunleavy.

 

- E então?

 

- Vagou uma cama no piso de neurocirurgia e a sala de operações está disponível. Ele quer que eu entre amanhã à tarde e que seja operada na quinta-feira de manhã.

 

- Quanto mais depressa melhor.

 

- Desde que não seja a tua cabeça, não é verdade?

 

- Evie, vá lá.

 

- Ouve, eu sei que prometi ir ouvir-te tocar esta noite no clube, mas agora não me apetece ir.

 

- Não faz mal. Não é importante. Eu não sou obrigado a tocar.

 

Harry teve o cuidado de afastar o ressentimento da sua voz. Durante o namoro e nos primeiros anos de casados, Evie adorava a sua música, adorava ouvi-lo tocar. Agora, não se lembrava quando fora a última vez. Estava ansioso por dar esse pequeno passo atrás na vida que ambos tinham partilhado em tempos. Mas compreendia.

 

- Harry, preciso de falar contigo - disse Evie, de repente. - Podes ir para casa a horas de irmos jantar fora?

 

- Claro. O que há?

 

- Eu... Eu falo contigo esta noite, está bem?

 

- Há algum problema?

 

- Harry, por favor. Esta noite?

 

- Está bem, Evie. Amo-te. Fez-se uma pausa.

 

- Eu sei, Harry - respondeu.

 

Kevin Loomis, o primeiro vice-presidente da Crown Health and Casualty Insurance Company, guardou um dossier na pasta, arrumou a secretária e verificou a agenda para o dia seguinte. Era um trabalhador meticuloso e nunca saía ao fim do dia sem resolver tudo o que pudesse. Chamou a secretária e ligou um cronómetro mental. Seis segundos depois, ela entrou no gabinete.

 

- Sim, Mister Loomis?

 

Brenda era fabulosa. Inteligente, organizada, leal e uma mulher de fazer parar o trânsito. Kevin herdara-a de Burt Dreiser, que era agora o presidente do conselho de administração da companhia. Kevin desconfiava que ela e Dreiser tinham um caso fora do escritório. Mas isso não tinha importância. Dreiser empurrara-o para a frente de outros mais antigos e, em certos casos, mais qualificados do que ele. E na opinião de Kevin, se Dreiser dormisse com Brenda Wallace, maior seria o seu poder.

 

- Temos mais alguma coisa a tratar? - perguntou ele. Vou sair e já não volto.

 

- A segunda e a quarta terças-feiras, eu sei - disse ela, sorrindo. - Boa sorte.

 

O jogo de póquer. Há vários anos que Dreiser, que era um conhecido maníaco do trabalho, saía do escritório às quatro horas, todas as segundas e quartas terças-feiras de cada mês. Era necessário dar uma explicação. Brenda era demasiado eficiente e atenta para não perguntar. O jogo de póquer ajustava-se perfeitamente à situação. Agora, Kevin, apoderara-se não só do antigo cargo de Dreiser, do seu gabinete e da sua secretária, como também, na opinião de Brenda Wallace, do seu lugar no jogo de cartas. Nas segundas e quartas terças-feiras do mês. As quatro horas. De facto, Dreiser fizera questão de corroborar a história do póquer a Nancy, a mulher de Kevin. O necessário rito de passagem para ascender na escada da companhia era uma explicação confortável para a ausência do marido, que passava duas noites por mês no centro da cidade. O secretismo assumido que envolvia o local do jogo implicava a necessidade de Nancy comunicar com ele apenas através do bip.

 

- Há quatro meses que jogo e terei ganho uma vez - disse Kevin secamente, dirigindo-se a Brenda. - Acho que é por isso que o Burt me convidou para jogar em primeiro lugar. Ele sabia que eu era um novato na matéria. Ouça, como a Oak Hills decidiu renovar o contrato connosco, acho que devíamos fazer qualquer coisa por eles. Você tem os nomes dos membros da direcção da escola e do presidente do sindicato. Envie a cada um uma garrafa de champanhe. Melhor ainda, chocolates. Godiva. Cerca de cem dólares para cada um. Escreva qualquer coisa simpática nos cartões.

 

- Vou tratar disso imediatamente, Mister Loomis.

 

Brenda saiu depois de o contemplar com um sorriso que teria derretido um bloco de gelo. Os êxitos de Kevin eram os dela, e o facto de a escola de Oak Hills ter renovado o sistema constituía uma vitória. O sistema era enorme, um dos maiores de Long Island. E, de um modo geral, os seus professores eram jovens e saudáveis. Jovens e saudáveis, as palavras mágicas em qualquer seguro de saúde de grupo. Era uma pena no chapéu de Kevin Loomis, com toda a certeza. Mas a vitória pertencia verdadeiramente à Roundtable. Fora graças a ela que o sistema de Oak Hills chegara à Crown. A concorrência viria dos que não eram membros da Roundtable. E, evidentemente, a especialidade desta era lidar com concorrentes que não pertencessem à organização.

 

O contrato da Oak Hills também era importante a outro nível. Os primeiros quatro meses de Kevin na Roundtable tinham ficado assinalados pela controvérsia. Na sequência de uma situação complicada, o grupo deixara de reunir-se no Hotel Camelot e passara para as Suites Garfield, e o caso envolvera Kevin. Mas, na verdade, a culpa não fora sua. Felizmente, os outros também se aperceberam disso. Kevin não imaginava o que teria acontecido se assim não fosse.

 

Pegou na pasta e na mala com a roupa para a noite e demorou-se um pouco a gozar a vista da cidade, do rio e do campo, lá ao longe. Kevin Loomis Jr., passara de contínuo a director, de um cubículo de cortiça para um gabinete de canto. Os pais, se fossem vivos, ter-se-iam orgulhado muito - muitíssimo - do modo como ele subira na vida. Kevin engoliu em seco para desfazer o nó que se lhe formava na garganta sempre que pensava neles. Depois, encaminhou-se para o elevador. Começara a sua transformação em ”Sir Tristão, cavaleiro da Távola Redonda”.

 

As Suites Garfield ficavam em Fulton, a um quarteirão e meio do World Trade Center. A viagem de táxi demorou vinte minutos. Kevin sentia-se calmo, atento à cidade que passava por ele, mas vendo pouco. As mudanças extraordinárias que se tinham operado na sua vida não podiam ser mais abruptas do que se tivesse ganho a lotaria. É certo que ele era bom, muito bom, no que fazia - vender seguros - há anos. Trabalhara cinco anos seguidos no departamento de vendas da Million Dollar Roundtable, uma empresa industrial, fora director da filial e depois um bem sucedido chefe de departamento na sede. Para um homem relativamente novo, do lado errado de Newark, era uma proeza notável. Mas, de repente, Dreiser começara a convidá-lo para almoçar e, pouco depois, para jantar.

 

O que acha você de?... O que faria você se?... Suponha que lhe pediam para... Primeiro vieram as perguntas, feitas e refeitas, vezes sem conta. Depois, com as respostas de Kevin, aparentemente aceitáveis, vieram os segredos. A mesa-redonda da bem publicitada equipa de vendas tinha uma contrapartida ao nível executivo, explicara Burt. Mas, ao contrário da Million Dollar Roundtable, que era uma empresa industrial para ser enaltecida em anúncios, cabeçalhos e cartões-de-visita, esta Roundtable não só era muito exclusiva como muito secreta.

 

Quando Kevin aceitou tornar-se Sir Tristão, para substituir Burt Dreiser como representante da Crown, apercebeu-se de que já sabia de mais para recusar a oferta e manter o emprego. As suas recompensas por aceitar a nomeação foram a promoção, um aumento generoso e um bónus anual de cem mil dólares ou um por cento daquilo que a Roundtable poupasse ou ganhasse naquele ano para a Crown, mesmo que fosse uma quantia superior. Dreiser assegurou-lhe que o contrato equivalia ao que fora celebrado com os outros cavaleiros.

 

Depois do susto recente, os cavaleiros tinham tomado algumas medidas no sentido de proteger a pequena organização e os seus membros. Aderindo a uma delas, Kevin saiu do táxi em Gold and Beekman e percorreu dois quarteirões a pé até chegar às Suites Garfield, atravessando um armazém e andando um pouco para trás. Certo de que não era seguido, entrou no átrio do hotel. A sua reserva, em nome de George Trist, já estava paga. Quem quisesse detectar a origem do pagamento através daquele nome depararia com uma conta falsa de uma empresa cujos directores tinham morrido há muitos anos. Sir Galaaz, o responsável pela segurança, fazia bem o seu trabalho. Era paranóico com os pormenores. E após a descoberta da repórter disfarçada, ficara ainda mais obcecado, se é que isso era possível.

 

Do outro lado do átrio, Kevin viu Sir Persival à espera do elevador. Persival pertencia à Comprehensive Neighborhood Health Care, a maior empresa de prestação de cuidados de saúde do Estado. Kevin não sabia mais nada acerca do homem. Nem sequer o seu nome, nem sequer o cargo que ocupava na CNHC. Burt dissera-lhe que não se preocupasse com essas coisas - só ao fim de três anos é que soubera os nomes dos outros seis cavaleiros. O olhar de ambos cruzou-se por instantes, e depois Persival desapareceu. Kevin olhou para o relógio. Daí a três horas, começaria a reunião, no décimo nono andar.

 

Atravessou o átrio e dirigiu-se à recepção. O secretismo, os nomes em código, a natureza dos projectos... Kevin gostava da intriga e do mistério que envolviam a pequena sociedade. E, a pouco e pouco, aprendia também a lidar com as suas facetas menos agradáveis - alguns dos métodos usados para atingir os seus objectivos e, evidentemente, o risco constante da descoberta.

 

O número 2314 era uma suite de duas salas com uma vista razoável do World Trade Center. Kevin parou na sala de estar e abriu uma lata de Heineken que tirou do frigorífico bem fornecido. Em seguida, tirou a gravata e pendurou o casaco nas costas de uma cadeira. Acabara de descalçar os sapatos quando ficou hirto. Não estava só. Estava alguém no quarto. Tinha a certeza absoluta. Encaminhou-se para a porta que dava para o corredor. Havia telefones internos junto do elevador. Podia telefonar a Galaaz ou para a segurança do hotel.

 

- Está aí alguém? - perguntou uma voz feminina.

 

Kevin entrou no quarto. A mulher, de vinte e poucos anos, se tanto, estava ao pé da cama enorme. Via-se que estivera a dormir e, naquele momento, escovava os cabelos negros que lhe chegavam à cintura. Estava um pouco maquilhada de mais para o gosto de Kevin, mas era perfeita em todos os outros aspectos. As feições asiáticas, o corpo esguio, os seios volumosos e empinados, as pernas. Perfeita. Usava um vestido verde-esmeralda, muito justo, com uma abertura do lado direito que lhe chegava à anca.

 

- Quem é você? - perguntou ele.

 

Ela pousou a escova, alisou a parte da frente do vestido e humedeceu os lábios antes de responder:

 

- Sou a Kelly.

 

- Quem é que a mandou cá?

 

- Não... Não percebo.

 

Kevin deitou-lhe um olhar furioso. Depois do que acontecera com a repórter, de certeza que isto era uma brincadeira ou uma espécie de teste.

 

- Donde é que você veio? É uma pergunta muito simples. Como é que entrou aqui? É outra pergunta simples.

 

O medo chispou nos olhos escuros da mulher.

 

- Um homem veio ao meu encontro lá fora e entrou comigo. Cada uma de nós ficou à espera num quarto. Eu... Eu estou aqui para lhe agradar em tudo aquilo que desejar.

 

- Sente-se e fique onde está - disse Kevin, apontando para a cama. - Não! Sente-se aí! - ordenou, quando ela pôs as mãos atrás das costas, preparando-se para mexer no fecho do vestido.

 

Kevin dirigiu-se à sala e fechou a porta do quarto.

 

Segundo Burt Dreiser, as mulheres faziam parte das segundas e das quartas terças-feiras desde que a Roundtable existia, há seis anos. Lancelote, que estava lá desde o início, era responsável por elas. E até há dois meses, nunca houvera qualquer problema. Os cavaleiros que queriam sexo tinham-no. Os que não pretendiam mais do que uma massagem ou uma bela companheira para o jantar, também viam os seus desejos satisfeitos. O serviço de acompanhantes utilizado por Lancelote era um dos melhores e mais discretos da cidade. Mas uma repórter - e não uma polícia - conseguira infiltrar-se.

 

Kevin pegou no telefone.

 

- Ligue-me ao quarto de Mister Lance, por favor.

 

Lancelote, Pat Harper da Northeast Life and Casualty, era o único membro da Roundtable que Kevin conhecera antes de se juntar à organização. Em estatura e aparência, Harper era tudo menos um Lancelote, com uma natureza expansiva, uma pele rosada, um charuto gordo e um riso estridente que o aproximavam mais de Dickens que de Camelot. Uma vez, Kevin jogara no mesmo grupo com ele durante um torneio de golfe patrocinado por uma empresa, com fins de beneficência, e fora derrotado numa dúzia de lances. Harper tinha mulher e três ou quatro filhos pequenos. Para além disso, Kevin não sabia nada acerca do homem, excepto que ele gostava de mulheres jovens e belas.

 

- Lancelote, daqui fala o Tristão - disse Kevin. - Julguei que tínhamos decidido não receber mais mulheres.

 

- Ah, a Kelly... O que acha dela? É uma beleza, não concorda?

 

- Sim, mas ela não devia estar aqui.

 

- Ora, não leve as coisas tão a sério, meu amigo. A vida é curta. Resolvemos não receber mais mulheres vindas do antigo serviço de acompanhantes. A Kelly e as outras são de um novo serviço. Não se preocupe, que todas elas foram submetidas a um controlo rigoroso. Não haverá mais chatices.

 

A repórter usara o nome de Desiree. Passara duas terças-feiras com Sir Ga wain e outras duas com Kevin. A proprietária da empresa de acompanhantes soubera da dupla profissão de Desiree por uma das outras mulheres, a quem a repórter tentara entrevistar e que tinha a certeza de que a impostora gravara as sessões com os dois clientes. Galaaz insistira para que o serviço terminasse imediatamente e para que as sessões da Roundtable fossem transferidas para outro local.

 

Durante os interrogatórios tensos que se tinham seguido à descoberta, Kevin soubera algumas coisas de Gawain, o último membro admitido no grupo antes dele. Kevin considerara desde o início que a compostura do homem e o seu sotaque próprio de um clube desportivo universitário eram ameaçadores. Gawain parecia adaptar-se bem aos outros, enquanto a educação tosca de Kevin, vindo de Newark, o transformou logo num pária. Agora Kevin sabia que Gawain e ele tinham pelo menos uma coisa em comum: ambos eram chefes de família felizes, que nunca queriam nem recebiam mais do que uma massagem ou dois dedos de conversa das suas acompanhantes.

 

Contudo, ao que parecia, Lancelote recebera luz verde para contratar um novo serviço. Kevin ia a dizer ao homem que não queria que lhe mandassem mais mulheres para o quarto. Mas lembrou-se das advertências de Burt Dreiser acerca da Roundtable.

 

”Está tanta coisa em jogo que ninguém confia em ninguém”, afirmara Dreiser. ”O melhor que tem a fazer é não se evidenciar. Apresente-se e aja como todos os outros, e só terá a ganhar com isso.”

 

Kevin conformara-se, até ao ponto em que o seu conformismo não implicasse ter relações sexuais com as mulheres trazidas por Lancelote. Mas nunca falara nisso a ninguém. De facto, se durante a investigação não lhes tivessem perguntado, a ele e a Gawain, se faziam sexo com Desiree, nenhum elemento do grupo teria sabido.

 

- Ouça, Lance - disse ele. - Não fique ofendido. A Kelly é muito bonita. Agrada-me muito. Foi só para me certificar de que não havia problemas. Mais nada.

 

Desligou e voltou para o quarto. Kelly, afagando lentamente a sua juba espessa de cabelos cor de ébano, sorriu-lhe da cama.

 

- Está tudo bem? - perguntou ela.

 

Ao vê-la ali sentada, com a perna direita nua até à anca, Kevin sentiu um afluxo incontrolável de sangue na parte inferior do corpo.

 

- Está tudo bem - respondeu ele. - Ouça, e se pedisse que nos trouxessem o jantar ao quarto? Encomende o que quiser para si. Eu quero um bife do lombo. Nem bem nem mal passado. E depois, talvez uma massagem. Você é boa nisso?

 

- Sou muito boa nisso - respondeu ela.

 

Harry vivera em Manhattan durante uma grande parte da sua vida de adulto, mas nunca entrara na Tiffany’s. com a ajuda de Mary Tobin, saíra do consultório hora e meia mais cedo, fizera as rondas no hospital mais cedo do que era costume e fora para casa. A ideia de preparar qualquer coisa especial para Evie fora sua. A sugestão fora de Mary.

 

Agora, cantarolando a versão de Moon River de Joe Kincaid, Harry tentava imitar a descontracção de George Peppard em Boneca de Luxo, enquanto a empregada colocava jóias proibitivamente caras, umas a seguir às outras, no expositor de veludo negro.

 

- Esta pulseira de ténis é encantadora - disse ela. - Alterna muito bem rubis e diamantes, cada um com um oitavo de quilate.

 

- A minha mulher não joga ténis muitas vezes... Mas quanto custa?

 

- Três mil e seiscentos dólares, senhor.

 

”Ouça, e se me mostrasse antes uma pulseira de pingue-pongue?”

 

Pouco depois, decidiu-se por um pendente formado por um diamante de meio quilate ladeado por dois pequenos rubis. Evie adorava pedras preciosas. Com a ajuda do ex-marido e dos ex-pretendentes - pelo menos era o que Harry suspeitava -, ela fizera uma colecção razoável, que já possuía quando ele começara a namorá-la.

 

”Quero vender tudo o que tiver para podermos comprar uma caravana e viajarmos por todo o país”, dissera ela pouco depois do casamento.

 

Harry sabia que Evie nunca acampara na sua vida e desconfiava que ela não se deixaria enamorar de moscas-varejeiras e de bifes esturricados. A declaração fazia parte do seu empenho em transferir-se da vida apressada a que estava habituada para outra mais calma, que julgava ser a de Harry. Mas, pouco depois, ela deixara de falar na vida simples e guardara as jóias num cofre. Nunca foram acampar.

 

”Não há motivo para preocupações... Espero que isto assinale um recomeço para nós... Tudo vai correr bem... Acredites ou não, há sítios aonde quero levar-te e onde podes usar isto...” Harry pensou e depois rejeitou várias mensagens para o cartão, antes de escrever apenas ”Amo-te”.

 

Preciso de falar contigo... Com as palavras de Evie a dançarem-lhe na cabeça, apanhou um táxi para o apartamento que tinham comprado pouco depois do casamento. Tinha seis divisões amplas e um pequeno escritório e ficava no sexto andar de um prédio bem conservado de Upper West Side, a um quarteirão de Central Park. Ao fim de oito anos de uso, o apartamento passara, segundo as palavras de Evie, de ”requintado” para ”adequado”, depois para ”pequeno” e, mais recentemente, para ”deprimente”.

 

Preciso de falar contigo... Acerca da saúde? De dinheiro? Do casamento? Do emprego? Estaria grávida? Há tanto tempo que ela precisava de falar com ele fosse do que fosse. Talvez ela quisesse finalmente desanuviar o ambiente e recomeçar.

 

Havia dois apartamentos no sexto andar. O estreito corredor que os separava estava sempre impregnado de Evie: talvez uma combinação do seu perfume, do seu champô e da sua maquilhagem. Como de costume, o aroma despertava sensações fortes em relação a ela. Mas, naquela tarde, Harry estava demasiado distraído. Bateu uma vez à porta e depois serviu-se da chave.

 

- Harry? - gritou Evie do quarto.

 

- Sim.

 

- Já lá vou.

 

Pelo seu tom, Harry percebeu que ela estava ao telefone.

 

Harry pousou a caixa da Tiffany’s em cima da mesa da casa de jantar e começou a andar de um lado para o outro. O apartamento estava imaculado, animado por várias jarras com flores frescas, a imagem de marca de Evie. No CD, tocava um disco de Eric Clapton. Clapton era um dos favoritos de Harry, que perguntou a si próprio se o facto de Evie estar a ouvi-lo naquele momento não seria significativo.

 

- Queres beber alguma coisa?

 

- Tenho uma vodca com água tónica na bancada da cozinha. Junta um cubo de gelo...

 

Ela devia estar ao telefone.

 

- Eu não me demoro. Reservei uma mesa no SeaGrill, se achares bem.

 

- Acho bem.

 

Harry tentou ler qualquer coisa - qualquer coisa - na voz dela, mas não conseguiu.

 

Evie saiu do quarto com umas calças pretas e uma blusa de seda vermelha. As cores ficavam-lhe muito bem. Quase todas. Ela beijou-o na face. Foi quase um beijo no ar.

 

- Foi difícil saíres do consultório? - perguntou ela, pegando no copo.

 

- Não. A Mary ajudou-me a despachar-me. Ela consegue tudo quando se dispõe a isso.

 

- Como está ela?

 

- A Mary?

 

- Sim.

 

Harry já não se lembrava quando é que Evie perguntara pelo pessoal do consultório, pelos tipos da banda ou pelos seus colegas de trabalho.

 

- A artrite nas ancas anda a massacrá-la. Mas, de um modo geral, está bem. E tu, estás bem?

 

- Tão bem quanto posso esperar.

 

Evie esvaziou o copo. Harry desistiu de apurar o que se escondia atrás daquela conversa superficial e estendeu-lhe o colar. Ela pareceu verdadeiramente encantada e impressionada com o presente e substituiu logo o fio de ouro que trazia ao pescoço.

 

- Isto é muito querido da tua parte - disse ela, olhando outra vez para o cartão.

 

- Eu queria que soubesses que tudo vai correr bem. Ela fez um sorriso enigmático, mas havia uma tristeza inconfundível no seu olhar.

 

- Tu dizes-me sempre que as coisas vão correr como deviam.

 

- Eu sou assim. Harry Corbett, o clínico geral das boas maneiras, de dia, e o filósofo impenetrável, de noite.

 

- Bem, creio que, desta vez, acertaste, o impenetrável. As coisas têm o seu preceito.

 

Evie olhou para a janela, afagando o pendente, distraída. A luz crepuscular reflectiu-se na sua pele clara e realçou-lhe o perfil impecável. Estava ainda mais bela que da primeira vez em que se tinham encontrado.

 

- Tu... disseste que precisavas de falar comigo.

 

Ao ouvir as suas próprias palavras, Harry amaldiçoou-se por não ter sido mais comedido. Se Evie estivesse disposta a dizer alguma coisa, teria dito.

 

Evie olhou para ele e depois virou-se para a janela, dizendo:

 

- Queria apenas conversar um pouco esta noite. Afinal, apesar de as técnicas de cirurgia cerebral estarem muito avançadas, uma operação ao cérebro sempre é uma operação ao cérebro.

 

- Compreendo - disse Harry. Mas a verdade é que não estava certo de ter compreendido. - Então... estás... estás com fome?

 

- Quando lá chegarmos, estarei.

 

- Queres ir a pé?

 

A pergunta foi quase retórica. Evie estava sempre demasiado apressada para ir a pé fosse onde fosse.

 

- Vamos a isso - decidiu ela, de repente. - Vamos a pé. Harry, este colar é lindo. Estou muito sensibilizada.

 

Harry procurou o cinismo a que estava habituado nela, mas não o encontrou. As suas fantasias quanto a um regresso à vida de outrora começaram a fervilhar. Evie já se voltara e dirigia-se para o quarto quando ele percebeu que o telefone estava a tocar.

 

- Eu atendo - exclamou ela, correndo pelo corredor. Tenho de ir buscar a minha carteira.

 

Harry encolheu os ombros e, sentindo-se ainda esquisito, foi à cozinha e deixou o copo no lava-louça. Através dos oito altifalantes Bose instalados no apartamento, Eric Clapton lembrou-lhe que ninguém conhecia ninguém quando esse alguém estava em baixo e distante.

 

Ao fundo do corredor, no quarto, com a mão sobre o bocal do telefone, Evie mantinha uma conversa rápida e em surdina.

 

- Não... não, ainda não lhe falei de nós - disse ela. Mas vou falar.

 

Desligou e pegou no diamante para o ver bem.

 

- Pelo menos, acho que vou - disse, em voz baixa.

 

Galaaz... Gawain... Merlim... Tristão... chegaram à sala de conferências do décimo segundo piso à hora prevista, pela ordem prevista e pelas rotas previstas. Galaaz escolhera o hotel e a sala de reuniões e encarregara-se do protocolo. Também inspeccionara a sala para se certificar de que não havia microfones nem câmaras.

 

Embora as mulheres do serviço de acompanhantes estivessem contratadas por toda a noite, Kevin Loomis - Sir Tristão - mandara embora Kelly há uma hora, antes de sair do quarto. Amava a mulher e estava satisfeito com a sua vida sexual. Mas todos os homens tinham os seus limites. Nancy não gostava de dar fricções nas costas nem de recebê-las. Cinco minutos de massagens pouco inspiradas era o máximo que ela conseguia. Mas Kelly era incansável, e os óleos de aroma adocicado que tirava do seu saco teriam agradado a um potentado. Se Kevin tivesse passado toda a noite com ela, a sua força de vontade teria atingido o ponto de ruptura.

 

Naquele momento, razoavelmente descontraído, Kevin viu as horas, ligou para o quarto de Merlim e deixou o telefone tocar seis vezes. Certo de que Merlim saíra, apanhou um elevador para o segundo piso e depois um outro para o décimo oitavo. As medidas de segurança pareciam-lhe excessivas, mas a verdade é que aumentavam a sensação de estar sempre à beira do perigo e da descoberta, e desde os jogos arriscados na escola até às várias dúzias de saltos quando fizera parte de um clube de pára-quedismo, aos trinta anos, Kevin sempre se sentira atraído por ambos.

 

Subiu as escadas até ao último piso, espreitou o corredor e esgueirou-se para o quarto 1902, a Suite Stuyvesant. Já lá estavam três cavaleiros, sentados nos lugares assinalados com os seus nomes da Roundtable gravados em pequenas placas de ouro. Cumprimentaram-no com sorrisos e acenos formais. Persival, Lancelote e Kay chegaram a seguir, exactamente com três minutos de intervalo.

 

Com excepção de Galaaz, que tinha um controlo absoluto da segurança, não havia um chefe dos cavaleiros. A condução das reuniões era rotativa. Estas começavam às sete e meia e prolongavam-se até não haver mais assuntos a tratar. Há quatro meses que Tristão ingressara no grupo e duas sessões já tinham ultrapassado a meia-noite. Ambas se tinham concentrado na quebra da segurança provocada pela repórter, a autodesignada Desiree. Durante três horas extenuantes, os cavaleiros tinham escalpelizado Kevin e Gawain, dissecando as suas conversas com a mulher, palavra por palavra.

 

Ela perguntou-lhe qual era o seu ramo de negócio?... O que respondeu?... Você citou o nome de algum de nós?... Em que é que ela se mostrou mais interessada?... Ela perguntou o seu último nome?... Você disse-lhe?... Fez amor com ela?... Despiu-se na presença dela?... Adormeceu quando ela estava consigo?... Você deixou-a sozinha no quarto com a sua carteira?... com as suas roupas?... E a sua mala?... Há alguma hipótese de ela o ter drogado?

 

Durante o interrogatório, Galaaz, o inquisidor-mor, nunca se mostrou hostil. Mas havia nele uma frieza, um profissionalismo que Kevin considerou irritante. Ainda mais desconcertante foi a sensação de Kevin de que o interrogatório se centrara mais nele do que em Gawain, que irradiava autoconfiança, autoridade e boas maneiras. Kevin manteve-se de sobreaviso durante a sessão e sentiu um alívio indescritível quando ela terminou. Essa noite, em dado momento, Galaaz pô-los-ia ao corrente da sua investigação sobre a mulher. Kevin esperava que fosse a última vez que ouvia falar do assunto.

 

Examinou o grupo, enquanto os homens se instalavam e preparavam os seus apontamentos. Com trinta e sete anos, talvez fosse o mais novo, logo seguido por Gawain. Lancelote, Pat Harper, era talvez o mais velho, entre os cinquenta e cinco e os cinquenta e nove anos, pelos seus cálculos. Todos aqueles homens estavam habituados ao poder e ao estatuto. Há menos de seis meses, Kevin não passava de um empregado de um membro da Roundtable. Agora, era seu companheiro de armas. E tinha a certeza que, a seu tempo, quando eles conhecessem as suas capacidades e o seu empenho, o aceitariam como seu igual.

 

- Muito bem, irmãos. Vamos começar - disse Merlim.

 

Merlim, que conduzia as reuniões de Agosto, tinha quarenta e tal anos e era bastante endomórfico. Era inteligente e arguto, mas o seu sentido de humor irreverente parecia deslocado ante a seriedade das actividades da Roundtable. Se alguma coisa corresse mal, todos eles se arriscariam a cair em desgraça, a perder o emprego, a serem multados e até a serem presos. E, apesar de os presidentes das companhias saberem da existência da pequena sociedade, não havia qualquer prova dessa ligação.

 

- Há comentários, anedotas, piadas novas ou mexericos, antes de começarmos? - perguntou Merlim. - Muito bem. Primeiro as finanças. Lancelote?

 

Lancelote pôs de lado a cigarrilha apagada que estava a mascar, pigarreou e distribuiu pela mesa folhas impressas que tirou de um pequeno monte. As folhas eram os alicerces nos quais assentava a Roundtable.

 

- Actualmente, a nossa conta particular está abaixo dos duzentos e sessenta e dois mil dólares. Isto significa que vamos precisar de cinquenta mil dólares por companhia para voltarmos aos seiscentos mil dólares de capital circulante que acordámos. Todos cumpriram este orçamento, excepto Persival. Vai apresentar um relatório acerca disso, não é verdade?

 

Seguiu-se uma troca de olhares silenciosa e tensa entre os dois homens, e Kevin estava no local ideal para a observar. Era óbvio que Persival, o homem da Comprehensive Neighborhood Health Care, não gostava de ser discriminado. Era a oitava vez que Tristão assistia a uma sessão da Roundtable, mas só agora é que começava a conhecer os vários cavaleiros. O mais respeitado, e talvez o mais temido, era Galaaz, o representante de uma empresa prestadora de cuidados de saúde. Persival, por outro lado, parecia ter menos influência e menos responsabilidade que os restantes.

 

Se havia uma clique, os seus membros seriam Galaaz, Lancelote, Merlim, e talvez Kay, um perito em números que era o especialista em estatística do grupo. Tristão e Gawain, ainda sob um escrutínio microscópico, eram considerados as apostas da irmandade. E Persival, embora fosse tolerado, mais parecia um forasteiro. Uma vez, Kevin perguntara a Burt Dreiser se havia um grupo restrito de cavaleiros na Roundtable. Dreiser respondera-lhe com uma palmadinha nas costas, uma forma enigmática de lhe recordar que a confiança total levava tempo.

 

- Verifiquei os números dos últimos dois meses - continuou Lancelote. - São excelentes, como vocês terão ocasião de ver. Talvez o dado estatístico mais significativo, graças a Sir Kay, seja o facto de a idade média dos subscritores das nossas companhias se situar agora quatro vírgula um anos abaixo da média das restantes companhias que operam na zona metropolitana.

 

Os cavaleiros aprovaram a informação batendo com as canetas no tampo da mesa. Kevin ignorava o número exacto, mas sabia que cada um daqueles anos se traduzia em dezenas de milhões de dólares de poupanças anuais. O truque consistia em evitar subscritores de grupo que fossem lentos a dispensar os empregados mais velhos ou, pior ainda, que contratassem pessoas com mais de quarenta anos. A triagem desses grupos era uma competência que a Roundtable dominava.

 

Um por um, os outros cavaleiros apresentaram os seus relatórios. Gawain foi aplaudido por ter conseguido os nomes de pelo menos 80 por cento das mulheres do Sul do estado de Nova Iorque, cujos exames ginecológicos tinham sido maus no ano anterior. Os testes, mesmo aqueles que revelavam apenas inflamações mínimas e que não levantavam suspeitas da existência de células pré-cancerosas, seriam usados para assinalar a hipótese de ocorrência de um cancro cervical no período de doze meses previsto pela lei, ou para retirar a cobertura a essas mulheres. Outras seguradoras, ou talvez a Medicald, poderiam aceitá-las, mas o problema era delas.

 

Persival distribuiu uma folha com informações actualizadas sobre os directores-gerais das 250 maiores empresas e sindicatos da zona - não só dados como os rendimentos, o estado civil, as habilitações, a marca do automóvel, o valor da casa e a filiação religiosa, mas também os passatempos, o consumo de álcool, cocaína e marijuana, as preferências sexuais e uma classificação da sua acessibilidade”, numa escala de um a dez. Os cavaleiros decidiram por votação que fosse efectuado um assédio agressivo a sete directores-gerais.

 

A seguir, Merlim chamou Sir Tristão. Kevin, ainda constrangido pelas atenções que se concentravam nele, sentiu-se demasiado inseguro na sua apresentação. O seu pelouro e a acção política tinham sido os de Dreiser. A actividade seguradora já possuía lobbies fortes quer em Washington D.C. quer em Albany, por isso Dreiser concentrara os seus esforços nalguns legisladores-chave do Estado, no chefe do departamento de seguros e num dos seus delegados. Na maioria dos casos, a única alavanca necessária era o dinheiro. Mas o chefe de departamento fora um osso duro de roer. O detective particular de Dreiser precisou quase de seis meses para obter fotografias decentes do homem - vídeos, por sinal - partilhando a sua cabina de caça com um interno de dezassete anos que frequentava um curso de Verão em Oneonta.

 

- As informações que Merlim apresentou na última reunião revelaram-se correctas - dizia Kevin naquele momento.

- O chefe de departamento falara em reformar-se a alguns assistentes. Eu contactei-o através dos nossos canais e esclareci que essa seria uma decisão insensata no momento presente. Nesta altura, ele está a reconsiderar. Creio que verá as coisas com clareza.

 

Kevin não imaginava como é que a Roundtable agiria, se o chefe de departamento resolvesse obrigá-los a justificarem-se. Segundo Burt Dreiser, tal situação nunca se verificara. O segredo, afirmara, estava numa investigação e numa preparação meticulosas - nisso e em nunca fazer um pedido que ultrapassasse muito o anterior.

 

Houve gestos de aprovação à volta da mesa. Kevin tentou manter uma expressão e postura naturais com as quais os cavaleiros mais velhos conotavam o êxito. Apesar do desastre ocorrido com Desiree, o apreço dos colegas por ele estava claramente a aumentar. E Kevin estava encantado. Depois de Nancy ter dito que casava com ele, a oferta do lugar de Dreiser na Roundtable fora o acontecimento mais importante da sua vida. O facto de o grupo estar a infringir a lei pouco significava para ele. Numa indústria altamente competitiva, os fortes tornavam-se mais fortes e os mais fracos estavam condenados. A colaboração entre empresas, apesar de ser tecnicamente ilegal, fazia sentido em termos empresariais.

 

- Muito bem, irmãos - disse Merlim. - Mais comentários sobre as informações do Tristão? Sugestões? Muito bem.

 

Um excelente trabalho, Tristão. Excelente. Agora, se não há mais nenhum assunto a tratar, ouçamos o relatório do Galaaz. O chefe da segurança pigarreou, pôs um gravador portátil em cima da mesa e prosseguiu a reunião. Kevin esperava que a sua expressão naquele momento não reflectisse a ansiedade que ele sentia pelo facto de o assunto de Desiree voltar à carga.

 

- Deixem-me informá-los sobre a nossa misteriosa acompanhante. O Lancelote passou muito tempo a conversar com Page Proctor, a mulher que dirige o serviço de acompanhantes. O meu homem falou com várias empregadas da Proctor. Temos tentado identificar esta Desiree, mas até agora sem êxito. Ela nunca deu um número de telefone à Proctor. Em contrapartida, telefonava em certas noites para saber se havia trabalho para ela. Não sei como, soube que a Proctor descobrira que ela era repórter. Não telefonou durante quase um mês. Depois, na semana passada, telefonou a perguntar se a Proctor lhe concedia uma entrevista exclusiva. Infelizmente, a Page descontrolou-se e isso custou-nos a oportunidade de sabermos quem é a Desiree. A única coisa acertada que ela fez foi gravar a conversa. Aqui está um excerto.

 

Galaaz ligou o gravador.

 

- ... Tenho de saber porque é que você me fez uma coisa destas.

 

- Eu não lhe fiz nada.

 

- Os seus clientes estão muito aborrecidos. Perdi um negócio que me rendia mais de dez mil dólares por mês. Agora andam umas pessoas muito zangadas e muito nervosas atrás de mim para apurar o que é que você soube e o que tenciona fazer com as informações.

 

- Page, já lhe disse. Estou a trabalhar num artigo sobre serviços de acompanhantes de primeira categoria. O seu foi apenas um de vários em que trabalhei.

 

- O que vai fazer com a história?

 

- Por enquanto ainda não posso dizer-lhe.

 

- Essa gente quer saber.

 

- Então diga-me quem são, que eu convido-os a virem ao meu encontro.

 

- Você é muito egoísta.

 

- Tem mais perguntas a fazer?

 

- Ela continua, mas o essencial é isto. A única coisa que a mulher admite é que está a trabalhar numa história sobre serviços de acompanhantes. Não falou à Page uma única vez em nós nem na indústria seguradora. Contactámos gente nas estações de televisão, nos jornais e nas revistas locais, e até um amigo no Sixty Minutes. Ninguém sabe nada de uma história sobre serviços de acompanhantes.

 

- Eu julgava que você já conseguira descobrir quem ela é

- disse Persival, nervoso. - Acha que estamos em segurança?

 

- Que alternativas temos? - lamentou-se Lancelote. Como é que havemos de suborná-la, se não conseguimos descobri-la?

 

- Em primeiro lugar, não faço ideia se ela sabe alguma coisa a nosso respeito. Em segundo lugar, não permitiremos que ninguém faça chantagem connosco. Essa é uma proposta condenada à partida.

 

Kay tinha feições aristocráticas e uma voz suave mas convincente. A avaliar pelas expressões à volta da mesa, era óbvio que a sua opinião tinha peso.

 

Galaaz encolheu os ombros.

 

- O Tristão e o Gawain juram que ela não fez mais do que umas perguntas de passagem sobre o seu tipo de actividade. Mas nenhum deles tem gravações das conversas, e vocês podem apostar que essa mulher as tem. Palpita-me que ela diz a verdade quando afirma que está a trabalhar numa história sobre os serviços de acompanhantes e nada mais. Mas é óbvio que não tenho a certeza.

 

- E então? - perguntou Persival.

 

- Não vejo como é que ela possa ter informações melindrosas a nosso respeito - disse Kay, antes que Galaaz pudesse responder. - Parece-me que tudo isto é uma coincidência.

 

- Mesmo assim, talvez devêssemos interromper as reuniões por uns tempos - alvitrou Persival. - Concretamente, proponho que suspendamos a nossa actividade por dois meses.

 

Ninguém se incomodou a comentar a moção. Merlim fez a votação, que foi inicialmente de seis a zero a favor da continuação das segundas e quartas terças-feiras. A princípio Persival absteve-se, mas depois tornou a decisão unânime.

 

- Então, está decidido - afirmou Merlim. - O Galaaz tenciona continuar a tentar descobrir quem é essa repórter?

 

- Tenciono. Fomos demasiado longe para permitir que alguém ameace o nosso trabalho.

 

- Mas não se precipite - disse Merlim. Sorriu e acrescentou:

- Pelo menos até ter a certeza que ela não detém nenhuma apólice das nossas companhias.

 

Harry tinha experiência suficiente do que podia correr mal nos hospitais para recear ser internado nalgum. Todos os dias, milhares de doentes eram tratados em hospitais em Manhattan e nos arredores. A maioria dos médicos, dos enfermeiros, dos auxiliares e dos técnicos era dedicada, competente e atenta. Mas, de vez em quando, num determinado dia, alguns não eram assim. Havia demasiados doentes, demasiadas doenças e demasiados prestadores de cuidados de saúde com fraquezas humanas para que o sistema fosse perfeito.

 

Ao longo dos seus vinte e cinco anos de prática da medicina, Harry fora confrontado ou soubera de toda a espécie de desastres, muitos dos quais ultrapassavam tudo aquilo que era possível imaginar. Sumo de laranja introduzido nas veias de um doente por uma enfermeira que compreendera mal as ordens de um médico, dadas pelo telefone, e que não tivera a coragem de telefonar outra vez a confirmá-las. Uma dose letal de medicamentos administrados a uma criança porque um médico apressado omitira uma casa decimal. Sangue B positivo introduzido na corrente sanguínea de um doente com sangue A negativo. Depois, havia os inúmeros frascos de líquido intravenoso que se tinham esvaziado mais depressa do que deviam, as grades das camas que se tinham soltado por descuido e as inesperadas psicoses em reacção a tranquilizantes e a barbitúricos.

 

Além dos desastres previsíveis, havia as chamadas complicações, o documentado e aceite 1 por cento, ou 0,1 por cento ou 0,01 por cento de reacções adversas a medicamentos e a métodos invasivos, que eram enumerados nos manuais, nos PDR e na literatura que acompanhava os fármacos, e que só eram importantes se acontecessem ao próprio.

 

Tentando afastar estes pensamentos, Harry percorreu os corredores do MCC, em direcção à unidade neurocirúrgica do Bloco Alexander 9. Eram oito e cinco da noite. Os visitantes convergiam para as saídas. Harry planeara chegar mais cedo, mas um dos seus doentes fora levado para as urgências por estar a vomitar sangue. Depois de ter estabilizado a hemorragia provocada por uma úlcera, Harry conseguira finalmente passar o testemunho ao médico de serviço.

 

Naquele mesmo dia, encontrara-se com Evie no átrio principal e acompanhara-a ao gabinete das admissões. Oferecera-se para ficar com ela durante o ritual da pré-admissão, mas ela recusara. Parecia preocupada e distraída, tal como na noite anterior. Decerto tinha em mente a operação. Mas havia mais alguma coisa. Harry tinha a certeza disso.

 

Na noite da véspera, tinham ido a pé de casa para o SeaGrill, no meio de um silêncio total. Embora falassem durante o jantar, só discutiram um assunto de interesse. Evie obrigou-o a prometer que não faria qualquer tentativa para lhe prolongar a vida se o cérebro fosse afectado. E, quando regressavam a casa, ela pedira-lhe desculpa por não ter apostado devidamente no casamento de ambos. Havia um propósito amargo e doce no modo como ela o disse. Harry aceitou as desculpas, mas não conseguiu descortinar o seu significado.

 

O Alexander 9, um ”L” com quinze quartos em cada braço, vivia a transição da tarde para a noite. Os corredores estavam vazios, excepto uma enfermeira que trazia um doente da sala e um funcionário da limpeza, que preparava a sua grande enceradora de metal. O balcão das enfermeiras ficava a meio caminho entre os elevadores e o quarto de Evie. Uma enfermeira ruiva, atraente, de unhas pintadas de vermelho, estava sentada atrás do balcão, a escrever. Harry nunca a vira.

 

- Olá, sou o doutor Corbett - disse ele.

 

- Eu sei - respondeu a mulher. - A sua mulher está a reagir bem.

 

- Óptimo. Falei com ela ao telefone há pouco e ela pareceu-me bem, mas estava desanimada com a companheira de quarto.

 

A enfermeira fez um esgar.

 

- E não é a única. Todas nós estamos fartas da Maura Hughes. Acho que devia haver um pesado imposto sobre o álcool para pagar o tratamento médico de pessoas assim.

 

- Não percebo.

 

- Os alcoólicos. Oh, julguei que a sua mulher lhe tinha falado nisso. Na companheira de quarto, a Maura. Infelizmente, não há mais quartos vagos neste piso.

 

- A Evie disse que não era assim tão mau.

 

- Se o Librium fizer efeito, não é. Ela entrou pelas urgências e veio para aqui há três dias. Estava muito embriagada, caiu nas escadas do prédio e fracturou o crânio. A radiografia revelou uma grande quantidade de sangue subdural, por isso tivemos de drená-lo. Ela reagiu muito bem até ontem, quando começou de repente a queixar-se das aranhas no tecto e das formigas debaixo dos lençóis.

 

- Isso é mesmo próprio do delirium tremens.

 

- Oh, se é. Ela desestabilizou o piso inteiro. Estas pessoas são tão egocêntricas, tão irresponsáveis. Nunca pensam nas consequências da sua bebida.

 

Harry já estava farto de a ouvir. Onde estivera esta mulher nos últimos quinze anos?

 

- Desculpe ter vindo cá depois da hora da visita, mas tive um homem nas urgências com uma hemorragia gástrica. Posso ir ver a Evie?

 

- Claro que pode. Se a choramingas da Maura o incomodar, nós cortamos-lhe o pio e levamo-la para o corredor. A propósito, ela também vai receber uma visita. O irmão telefonou há pouco. É polícia. Há uns tempos que não estava de folga e quer vir vê-la. Pouco faltou para eu lhe dizer que trouxesse um chicote e uma cadeira.

 

- Bem, Miss... - Harry olhou para a etiqueta com o nome da enfermeira. - Miss Jilson, obrigado por me deixar infringir as regras.

 

- Quando quiser. A sua mulher é muito bonita, doutor Corbett.

 

- Sim... Sim, obrigado.

 

Harry afastou-se à pressa e dirigiu-se ao quarto 928.

 

- ... e elas são más para mim. Más e porcas. Não gostam de mim porque julgam que este maldito piso está muito asseado e eu estou sempre a mostrar-lhes os insectos que andam por toda a parte. Meu Deus, detesto insectos. Altivas, snobes, com a mania que sabem tudo...

 

A várias portas do quarto, já Harry ouvia a lengalenga de Maura Hughes. Tratara de todas as espécies de casos de abandono do álcool enquanto vivera em Bellevue e durante os vários anos de clínica privada numa das zonas mais pobres da cidade. O delirium tremens, apesar de ser divertido às vezes, era potencialmente letal: acelerava o ritmo cardíaco e a respiração, fazia subir a temperatura, provocava uma irritabilidade acentuada, perda de líquidos através da transpiração e uma hiperventilação intensa, e o influxo de líquidos ficava reduzido ao mínimo. Harry conhecia os estudos que indicavam uma taxa de mortalidade de 25 por cento provocada pelo delirium tremens. E, além disso, Maura Hughes fora submetida a uma crânio tomia há três dias. Em termos clínicos, era uma bomba de relógio, a última companheira de quarto que ele teria escolhido para Evie.

 

Harry olhou para o corredor e viu o empregado da limpeza, que deslocava a enceradora tranquilamente de um lado para o outro. O homem tinha um Walkman e abanava a cabeça de vez em quando ao ritmo da música, totalmente esquecido dos dramas que se desenrolavam à sua volta. Harry perguntou a si próprio o que seria ter à sua responsabilidade um soalho lustroso.

 

A cama de Evie estava ao pé da janela e era a mais distante da porta. A cortina que separava as duas camas estava corrida. Ao passar, Harry olhou de relance para Maura Hughes, que estava amarrada à cama. Os pulsos estavam presos com tiras de couro largas. Não era velha. Pouco mais se percebia acerca dela. Por baixo da ligadura que lhe envolvia a cabeça, viam-se equimoses arroxeadas à volta dos olhos, que lhe chegavam aos cantos da boca. Os tubos de oxigénio tinham-se soltado do nariz e ventilavam-lhe o ouvido esquerdo. Os lábios gretados e secos abriam-se num estranho esgar. A primeira impressão de Harry foi que ela estava a mostrar-lhe os dentes. Depois percebeu que estava a sorrir.

 

- Olá - disse Harry. - Sou o marido da Evie, o Harry.

 

- ”Mexe remexe o infernal cozinhado. Não pare a fervura no fogo encantado” - respondeu ela.

 

Harry esboçou um sorriso e afastou a cortina. Evie aceitou o beijo que o marido lhe deu na testa sem reagir.

 

- Ela conhece Shakespeare - segredou ele.

 

- Ela sabe muitas coisas. Mas os insectos, as cobras e as aranhas é que se metem no caminho.

 

- Os rastejantes. Ela teria graça se os insectos não fossem reais para ela. Deve sair daqui a um ou dois dias.

 

- Xô! Sai do meu lençol, maldito insecto! Venham cá, ajudem-me!

 

- Diz qualquer coisa - pediu Evie. - Tenta acalmá-la. Harry contornou a cortina.

 

- Vens muito atrasado, Gene - disse Maura, dirigindo-se a ele. - Ele mordeu-me e foi-se embora.

 

Harry apercebeu-se de que ela era mais nova do que ele julgara: teria talvez uns trinta e cinco anos.

 

- Desculpe. Chamo-me Harry, e não Gene.

 

- Bem, você parece o Gene Hackman.

 

- Obrigado. Eu gosto do Gene Hackman.

 

- Também eu. Julguei que você era actor.

 

- Mas não sou. Porquê? ...

 

- Por causa do seu emblema.

 

Por instantes, Harry não percebeu ao que a mulher se referia. Depois, lembrou-se do emblema que a sobrinha, a filha mais velha de Phil, Jennifer, lhe oferecera. Era uma reprodução minúscula de rostos trágicos e cómicos, um prémio que ela ganhara no grupo de teatro da escola. Há cerca de um ano, Harry ajudara-a a pregá-lo na lapela daquele casaco desportivo, e ali ficara. Era raro lembrar-se dele. Maura Hugues identificara-o a dois metros e meio de distância.

 

- Estou admirado por a senhora ter reparado nisto - confessou ele.

 

- Eu reparo nas coisas.

 

De repente, Maura começou a debater-se e a tentar libertar-se dos atilhos.

 

- Raios, Gene - exclamou ela. - Tens Southern comfort ou não? Tu prometeste e... Raios, Gene, cuidado! Aí na parede, mesmo ao pé da tua cabeça. O que é isso? Um escorpião? Um camarão?

 

Sem querer, Harry olhou para a parede.

 

- Tente descansar - pediu.

 

Harry voltou para junto da mulher, que estava deitada de costas na cama, a olhar para o tecto.

 

”Não me excluas”, apeteceu-lhe dizer. ”Depois de nove anos, depois de todas estas noites, porque não partilhas comigo o que se passa dentro de ti?”

 

- Não há mais camas vagas neste piso - disse ele. - Não há lugar para transferir uma de vocês. Se as enfermeiras não puderem dar-lhe mais medicamentos, talvez possam dar-te alguma coisa.

 

- Não quero nada - retorquiu ela, sem tirar os olhos do tecto. - Quero que o meu cérebro funcione em pleno até ao último minuto.

 

- Compreendo. Vais reagir bem.

 

Foi então que Harry reparou no líquido intravenoso, um saco com 5 por cento de dextrose em água, pendurado de um gancho no tecto disfarçado pela cortina que separava as duas camas, libertando pequenas gotas para o tubo.

 

- Quando é que trouxeram isto?

 

- Há umas horas.

 

- Nem tinha reparado. Não sei porque é que puseram isto aqui esta noite e não amanhã na sala de operações. Sabes quem é que requisitou isto?

 

- Foi o anestesista, acho que foi o que a enfermeira disse.

 

- Hum...

 

- Porquê?

 

- Por nada.

 

Seguiu-se um silêncio prolongado e desconfortável.

 

- Ouve Harry, acho que preciso de estar só - disse ela de repente.

 

As palavras atingiram-no como uma bofetada. Harry olhou para ela, sem saber o que havia de dizer.

 

- Podes dizer-me o que se passa? - perguntou ele.

 

- Não se passa nada. Tenho... Tenho muitas coisas na cabeça.

 

Evie respirou fundo. Aparentemente, ficou mais aliviada.

 

- Ouve, eles disseram que eu podia comer até à meia-noite. Eu digo-te o que me apetece. Estou morta por beber um batido de chocolate de malte da Alphano, muito grosso. Traz-me um e depois falamos, está bem?

 

A Geladaria Alphano ficava a dois quarteirões do apartamento - a quinze minutos de táxi do hospital, se o trânsito estivesse razoável. Mas Harry ficou agradecido por fazer alguma coisa - qualquer coisa - para a ajudar.

 

- Está bem - disse ele, levantando-se. - Volto daqui a uma hora. E não precisamos de conversar. Já me dou por satisfeito por ficar um pouco ao pé de ti.

 

Harry inclinou-se para a beijar, mas não houve reacção. Depositou-lhe outro beijo na testa.

 

- Gene, Gene, não sejas mau para mim. Dá-me o berbequim, cuidado com o farolim - cantarolou Maura quando Harry passou por ela.

 

Lá fora, no corredor, o homem da enceradora interrompera o trabalho e ajoelhara-se. Continuava a ouvir o Walkman e examinava o motor da sua máquina quando Harry passou por ele. Curiosamente, Harry ficou satisfeito por ver que, afinal, a vida do homem não era isenta de complicações.

 

Ao fundo do corredor, a enfermeira, Sue Jilson, sorriu-lhe quando ele se aproximou.

 

- Vai-se já embora?

 

- A minha mulher quer um batido de leite que só fazem numa loja da zona ocidental. Talvez esteja de volta às nove e meia, se não houver problema.

 

- Não há problema.

 

- Quer um?

 

- Não, obrigada. Fiz um acordo com as minhas jeans, para continuar a caber dentro delas. Como está a lamurienta?

 

- Agitada e um pouco desorientada. Talvez lhe pudessem dar mais qualquer coisa, desde que lhe tenha sido receitado.

 

- Vou verificar. Não há nada de que mais gostemos do que dar sedativos à Maura.

 

- Obrigado. Volto daqui a uma hora.

 

Harry apanhou um táxi para West Side, no meio de uma chuva miudinha e de um trânsito mais ou menos denso. A fila na geladaria era mais comprida do que o habitual, e a lentidão do serviço era irritante. Harry pediu um batido de chocolate bem espesso. Depois, perguntando a si próprio se Maura Hughes não estaria em órbita, pediu mais um. Se ela não pudesse bebê-lo, ele faria o sacrifício.

 

Eram nove e meia quando saiu da geladaria e perto das dez quando voltou a entrar no hospital. Depois das horas da visita, só a entrada principal é que estava aberta. Harry atravessou o átrio deserto e mostrou a sua identificação ao segurança, cuja secretária vedava o corredor principal que dava acesso ao hospital.

 

- Tem de assinar aqui, senhor doutor - disse o homem.

- Tem de ser, depois das nove.

 

Harry escrevinhou o seu nome e o destino. O guarda olhou para o que ele escrevera.

 

- Alexander Nove - confirmou ele. - Vai lá para cima para o código noventa e nove?

 

Naquele instante, o pager começou a chamar o Dr. Richard Cohen ao Alexander 928.

 

Harry correu para os elevadores. Acontecera alguma coisa a Maura Hughes, pensou. Ela não estava com muito bom aspecto quando ele saíra, mas parecia não correr perigo iminente. Depois, de repente, lembrou-se que Richard Cohen pertencia à mesma equipa de neurocirurgia de Ben Dunleavy, o neurocirurgião de Evie. Era Cohen que fazia a noite. Assolado de um forte pressentimento, Harry continuou a carregar no botão de chamada do elevador até uma das portas se abrir. Até chegar ao Alexander 9 decorreu uma eternidade.

 

O quarto 928 ficava a meio caminho do ”L”. O posto das enfermeiras e o corredor mais próximo estavam desertos. Harry pousou o saco da Alphano e desatou a correr, com o coração em sobressalto. Bastou-lhe virar a esquina para ver confirmados os seus piores receios. Havia meia dúzia de enfermeiras e de estudantes de Medicina à porta do quarto 928, que tentavam ver o que se passava. Maura Hughes, que continuava amarrada à cama, fora levada para o fundo do corredor. A seu lado, um jovem polícia, fardado, acariciava-lhe a mão.

 

Harry passou por eles, a correr, e entrou no quarto.

 

A cena era igual às que ele vira ou em que participara centenas de vezes ao longo dos anos. Os monitores, os tubos, o carrinho de pensos, o desfribilhador, as enfermeiras, os médicos e os técnicos deslocavam-se penosamente entre o equipamento e a cama, como um batalhão de formigas guerreiras. Mas dessa vez, no meio daquele caos controlado, entubada pelo nariz e a ser ventilada por um recipiente de borracha, estava a sua mulher. O monitor cardíaco mostrava um ritmo regular. Mas, de dez em dez segundos, os braços dela estendiam-se totalmente e rodavam, com as palmas das mãos viradas para fora, numa posição estranha e anormal. Postura descerebrada. Sinal de um prognóstico terrível. O aneurisma devia ter rebentado. Harry aproximou-se da cama. A enfermeira, Sue Jilson, foi a primeira a aperceber-se da sua presença.

 

- Quando é que isto aconteceu? - perguntou ele.

 

O neurocirurgião de serviço que fazia a reanimação levantou a cabeça.

 

- É o doutor Corbett, o marido dela - explicou a enfermeira.

 

- Oh, desculpe - disse o interno. - Parece que o aneurisma rebentou. O doutor Cohen está a substituir o doutor Dunleavy. Disseram-me que ele vem a caminho.

 

- O que aconteceu? - perguntou Harry. - Quando a deixei, há cerca de uma hora, ela estava bem.

 

Sue Jilson abanou a cabeça.

 

- Meia hora depois de o senhor sair, vim dar os medicamentos à Maura. Ouvi um gemido atrás da cortina. Quando olhei, a sua mulher tinha vomitado e estava quase inconsciente. A primeira vez que lhe medi a tensão arterial, ela estava muito alta. Já tinha uma pupila maior do que a outra.

 

Harry olhou para Evie. A sua mente recusava-se a associar o que estava a ver com uma hemorragia cerebral. Aproximou-se e levantou-lhe levemente as pálpebras. As pupilas estavam tão dilatadas que quase não se via a cor da íris. Harry sentiu-se atordoado, como que num sonho. Estava tudo acabado.

 

O Dr. Richard Cohen entrou no quarto, a correr. Já sabia a história da doente, que contou ao interno, sem fôlego. O interno fez-lhe um pequeno resumo dos últimos trinta minutos.

 

- Você fez tudo bem - disse Cohen, examinando os olhos de Evie com um oftalmoscópio.

 

Rápido, verificou os reflexos e a reacção à dor. Depois, passou a ponta do martelo de reflexo pelas solas dos pés de Evie, descrevendo um arco entre o calcanhar e o dedo grande. O reflexo de Babinski - o dedo grande a empinar-se em vez de se encaracolar - era um sintoma muito grave de que o seu córtex cerebral, a parte do seu cérebro que pensava, já não influenciava os movimentos do corpo. Harry observava a cena, atordoado.

 

- Vamos fazer uma craniotomografia, mas, com toda a franqueza, não me parece que possamos levá-la para a sala de operações - explicou Cohen, desolado. - O inchaço cerebral é enorme. Ambos os discos ópticos revelam um grave edema papilar.

 

Edema papilar, a obstrução do nervo óptico causada por uma pressão acentuada, e em geral irreversível, no interior do crânio. A descoberta ainda tornava a cena envolvente mais surrealista.

 

- Ela... Ela não quer medidas heróicas - disse Harry, quase sem dar por isso.

 

- As artérias estão a funcionar - atalhou outro interno.

- A sístole continua a dois-noventa.

 

- Isso é muito estranho - disse Cohen. - Já lhe demos uma grande quantidade de hipertensores, mas a tensão não se alterou.

 

- Mas você não esperava que a tensão subisse desta maneira depois de uma grande hemorragia? - perguntou Harry.

 

- Temporariamente, talvez. A maioria das hemorragias cerebrais provoca uma subida acentuada durante um certo período. Mas elas reagem quase sempre ao tratamento convencional, e os internos já foram além disso.

 

- Oh, meu Deus - murmurou Harry, sentindo-se ainda distante e irreal.

 

- Vamos continuar a tentar baixar-lhe a tensão - disse o neurocirurgião. - E vamos fazer uma craniotomografia para documentar o que já sabemos. Entretanto, Harry, dada a dificuldade da situação, há uma coisa em que você devia pensar.

 

- Compreendo - respondeu Harry em voz baixa.

 

Evie era uma mulher jovem e completamente saudável, cujo único problema orgânico era o aneurisma. Naquele momento, ela era o tipo de prémio cobiçado por todos os especialistas em transplantes de órgãos - uma fonte de vida ou de visão para algumas pessoas.

 

- Vamos fazer o exame e eu depois digo-lhe alguma coisa - disse Harry. - Entretanto, avance com a tipificação dos tecidos.

 

Meia hora depois, a batalha para controlar a tensão arterial astronómica de Evie estava finalmente ganha. Mas todos os que estavam envolvidos no caso sabiam que a guerra estava perdida. Harry, desesperado, ficou à porta enquanto o técnico respiratório ajustava os controlos do ventilador que era agora a única ligação de Evie à vida. Evie tinha tubos intravenosos nos braços e outros tubos no estômago, na vesícula e nos pulmões. De dois em dois minutos, sem reagir a nada em especial, todo o seu corpo se retesava e se distendia numa postura descerebrada. Harry já assistira muitas vezes àquela cena na sua vida profissional e no Vietname. Mas, em termos emocionais, nunca se sentira tão próximo dela.

 

Inevitavelmente, uma parte de si próprio recusava-se a aceitar que estava tudo acabado.

 

”Espera. Dá-me mais cinco minutos. Tem paciência. Esta mulher vai levantar-se e sair daqui pelo seu pé... Vais ver...”

 

- Não, obrigado - respondeu Harry a uma enfermeira que lhe ofereceu café. - Eu... Eu tenho de ir telefonar à família da Evie.

 

Harry olhou para o corredor atrás de si. Maura Hughes parecia mais calma. O irmão, um homem ruivo com uma cara demasiado jovem para o uniforme que envergava, continuava a acariciar-lhe a mão enquanto observava a cena de horror que se desenrolava no quarto 928. Naquele momento faltava um quarto para as onze. O exame ao cérebro estaria pronto daí a cinco minutos. Já tinham sido enviadas amostras de sangue para o laboratório, a fim de determinar o tipo dos tecidos. Depois da craniotomografia, Evie faria o primeiro de uma série provável de electroencefalogramas. Dois electroencefalogramas no espaço de doze horas eram considerados o equivalente electrofisiológico da morte. Harry aproximou-se, obtuso, e enxugou uma lágrima que lhe deslizava pela face.

 

- Corbett, o que diabo se passa aqui?

 

Ainda meio atordoado, Harry virou-se na direcção da voz. Caspar Sidonis encontrava-se a alguns metros de distância, de mãos nas ancas, com um ar aflito e irritado.

 

- Não sei do que você está a falar - conseguiu responder Harry. - Mas agora estou um pouco atarefado. Sabe, a minha...

 

- Refiro-me à Evie, com os diabos! - disparou Sidonis.

- Oh, esqueça.

 

Empurrou Harry e entrou no quarto. Richard Cohen, o neurocirurgião, verificava de novo os olhos de Evie. Sue Jilson estava do outro lado da cama a ajustar os tubos intravenosos.

 

- Dick, o que se passa aqui? - perguntou Sidonis.

 

- Ah, olá, Caspar. Esta mulher é sua doente?

 

- Não. É... É uma amiga íntima.

 

- Bem, o marido está aí...

 

- Eu não quero falar com ele, Dick. Quero falar consigo. Diga-me o que aconteceu.

 

Era uma exigência, não um pedido. Cohen, abalado pela agressividade do médico, recuperou rapidamente a compostura.

 

- Sabe que ela ia ser operada a um tumor?

 

- Sim, sim. Claro que sei.

 

- Bem, há pouco, Sue Jilson, que está aqui, entrou e encontrou-a sem reagir, com uma pupila dilatada e uma pressão sistólica superior a trezentos. Demos-lhe todos os medicamentos que podíamos e mesmo assim passou-se muito tempo até a pressão baixar para um-trinta, tal como está agora. Entretanto, a outra pupila dilatou. Ela tem um edema papilar bilateral, indicador de uma pressão intracraniana maciça, e está em postura descerebrada.

 

- Meu Deus! - exclamou Sidonis, abalado.

 

À porta, Harry observava a cena, estupefacto, enquanto o cardiocirurgião se inclinava e tomava carinhosamente as mãos de Evie na sua. Depois, com a outra, acariciou-lhe a face. Richard Cohen ficou atrapalhado. Sue Jilson estava de olhos esbugalhados.

 

- Dick, ela tem alguma hipótese? - perguntou Sidonis. Para qualquer médico, independentemente da craveira de Sidonis, era impossível fugir à pergunta. O neurocirurgião olhou para ele com um ar embaraçado.

 

- Eu... Bem... Não me parece, Caspar - respondeu ele.

- Estamos à espera que a levem para fazer uma craniotomografia e um electroencefalograma.

 

- Ele estava aqui com ela? - perguntou Sidonis, apontando para a porta.

 

- Como disse?

 

Só então é que Harry saiu do marasmo relutante perante o que se estava a passar e entrou no quarto. Tanto quanto sabia, Sidonis e Evie talvez se tivessem encontrado nalguma festa, mas ela nunca lhe falara do homem.

 

- Caspar, você conhece a minha mulher? Sidonis virou-se como um gato assustado.

 

- Bem sabe que sim. Você esteve aqui com ela antes... antes disto acontecer?

 

- Claro que estive com ela. Ela é minha mulher. Agora, o que diabo...

 

- Dick, esteve aqui alguém depois dele?

 

- O quê?

 

- Perguntei se esteve aqui mais alguém com a Evie depois do Corbett.

 

Sidonis estava quase aos gritos.

 

- Caspar, acalme-se. Acalme-se - disse Cohen. - Vamos falar para o corredor.

 

Deixando o técnico respiratório com a doente, os três médicos saíram do quarto, seguidos por Sue Jilson.

 

- Então, o que significa tudo isto? Tem alguma relação com a reunião desta manhã? - perguntou Cohen, em voz baixa.

 

Sidonis não conseguia dominar a sua fúria. Falou alto, sem se preocupar com Maura Hughes, com o irmão, e com os dois internos que se encontravam a seu lado.

 

- Eu só perguntei se entrou mais alguém neste quarto entre o momento em que o Corbett... desculpe, o doutor Corbett saiu e aquele em que foram encontrar Evie naquele estado.

 

- Acho que posso responder a essa pergunta - disse Sue Jilson. - Não entrou mais ninguém. O doutor Corbett só saiu às oito e quarenta e cinco. É o que consta dos meus apontamentos. Depois das oito horas só se pode entrar no corredor pelos elevadores, o que obriga a passar pelo posto das enfermeiras.

 

O agente Hughes... o tal irmão da Maura, o homem que está ali junto dela, chegou a este piso por volta das nove e meia, mas nós já estávamos lá dentro com Mistress Corbett. Podem verificar isto com a Alice Broglio, a única enfermeira que está neste piso, mas tenho a certeza que ela confirmará o que eu disse.

 

- Eu sabia - disse Sidonis, de punhos cerrados.

 

- Caspar, pode dizer-nos o que se passa? - perguntou Cohen.

 

- Perguntem-lhe.

 

- Ao Harry?

 

- Não faço ideia do que se está a passar - disse Harry.

 

- Tretas - ripostou Sidonis. - A Evie ia deixá-lo para vir viver comigo, e você bem sabe. Ela disse-lho ontem à noite no restaurante. No SeaGrill. Está a ver, eu até conheço esse local. O que é que você lhe fez?

 

- Seu patife...

 

Ao acesso de raiva e de ódio de Harry seguiu-se quase imediatamente um profundo desespero. Não tinha motivo para duvidar do que acabara de ouvir. Evie e o maldito Caspar Sidonis. De repente, havia muitas coisas que faziam sentido. Os meses e meses de frieza e de distanciamento. O estranho comportamento dela. As estadas fora da cidade. As desculpas para evitar as relações sexuais. O telefonema crítico da véspera. ”Harry, preciso de falar contigo”... Sidonis!

 

”Você está a mentir”, apeteceu-lhe gritar. ”Seu patife, você está a mentir!” Mas sabia que o homem não estava a mentir. Durante meses, sentira que lutava contra uma tristeza persistente e inexplicável. Agora percebia ao que reagira. Sem dizer mais nada, afastou-se e voltou para o quarto 928.

 

- Dê-me um minuto. Não se importa? - disse ele ao técnico de respiração. - Eu chamo-o se houver algum problema.

 

Harry apagou a luz forte do tecto, puxou uma cadeira para junto da cama de Evie e sentou-se. A seu lado, o ventilador zumbiu baixinho, depois lançou um jacto de ar enriquecido de oxigénio para os pulmões de Evie, fez uma pausa e voltou a zumbir. Há cerca de dez anos que se tinham conhecido. Dez anos. Tinham sido apresentados por um amigo comum, que tinha a certeza de que cada um deles era exactamente aquilo de que o outro precisava. Harry ganharia aventura, espontaneidade e alguns carimbos no seu passaporte quase vazio. Evie alcançaria a calma e a estabilidade de que tanto necessitava. Ela seria a vela e ele o leme. E resultara, também. Pelo menos, durante algum tempo. Mas, por último, ela nunca conseguira modificar-se como esperara. Queria... mais. Pura e simplesmente.

 

- Raios, Evie - murmurou, baixinho. - Porque não falaste comigo? Porque não me disseste o que se passava? Porque não nos deste uma oportunidade!

 

Harry inclinou-se sobre a cama e pegou-lhe na mão. Fora estúpido e ingénuo ao acreditar que ela poderia transformar-se noutra pessoa... ou mesmo que ela o desejava verdadeiramente.

 

Sentiu que alguém lhe pousava a mão no ombro.

 

- Harry, sente-se bem?

 

Doug Atwater olhava para ele, preocupado.

 

- Como? Olá, Doug. Não. Não estou nada bem.

 

- O que há com o Sidonis? Ele está no posto das enfermeiras, a telefonar para o médico legista e para a Polícia. Perguntei-lhe o que se passava e ele deitou-me um olhar furibundo. Cheguei a pensar que ele ia mandar-me à fava.

 

Harry abanou a cabeça. Isto era um pesadelo. O médico legista... a Polícia...

 

- Doug, eu não sei o que se passa. O aneurisma da Evie rebentou. Ela não vai conseguir salvar-se.

 

- Oh, meu Deus.

 

- O Sidonis anunciou que dormia com ela e que ela ia deixar-me por causa dele. Está convencido de que ela me contou tudo ontem à noite, mas ela não me contou nada.

 

- Oh, Harry, desculpe.

 

- Ora essa. O que está você a fazer aqui a esta hora?

 

- A Anneke e eu tínhamos ido ao cinema. Eu passei por aqui para levar uns documentos e o guarda lá em baixo disse-me o que estava a acontecer. Deixei a Anneke no meu gabinete e subi. Porque é que o Sidonis está a telefonar para a Polícia?

 

Harry afastou-se da cama. Era simultaneamente triste e repugnante pensar que Caspar Sidonis tocara na sua mulher.

 

- Eu fui a última pessoa que esteve aqui com ela. Ele deve pensar... De facto, estou-me nas tintas para o que ele pensa.

 

Harry saiu do quarto na companhia de Doug Atwater. Nesse momento, chegaram os serventes que vinham buscar Evie para fazer o exame. Richard Cohen olhou para Harry e encolheu os ombros.

 

- Harry, o Caspar foi telefonar para o médico legista e para a Polícia. Ele está convencido de que você deu qualquer coisa à sua mulher para lhe fazer subir a tensão, que lhe deu alguma droga. Pensei em telefonar para o Bob Lord e para o Owen, para lhes comunicar o que está a acontecer.

 

Lord era o chefe do pessoal médico. Owen Erdman era o director do hospital.

 

- Telefone a quem quiser. Isto é ridículo - respondeu Harry.

 

- Eu telefono ao Owen - ofereceu-se Atwater. - O Sidonis está doido ou quê?

 

- Não sei se ele está doido, mas está furioso - respondeu o neurocirurgião. - Harry, ele diz que falou com a sua mulher quando vocês iam a sair de casa ontem à noite, e que ela lhe jurou que lhe diria o que se passava entre os dois.

 

- Ela não me disse nada.

 

- Bem, ouça. Temos de fazer alguma coisa. Eu vou telefonar ao Lord dos raios X. Fique aqui, está bem? Assim que eu tiver a tomografia venho falar consigo. A técnica do electroencefalograma vem a caminho, mas ela mora em Bronx.

 

Com o técnico da respiração que ajudava Evie a respirar com um saco Ambu, o servente encaminhou a cama para o elevador. Cohen e Sue Jilson foram atrás deles, além dos dois internos que se tinham mantido no quarto a pedido de Cohen.

 

Doug Atwater olhou para Maura Hughes.

 

- É a companheira de quarto da Evie - explicou Harry.

- O polícia é irmão dela. Ela está com delirium tremens.

 

- Está com delirium tremens neste momento?

 

- Creio que lhe deram uma medicação muito forte. Doug, eu não acredito que isto esteja a acontecer.

 

Atwater encaminhou Harry para uma cadeira de plástico e fez sinal para que se sentasse.

 

- Vai ficar aqui no hospital? - perguntou ele, pondo um joelho no chão.

 

- Acho... acho que sim. Pelo menos até virem os exames. O Cohen quer a minha autorização para que a Evie doe os seus órgãos. É provável que eu tenha de tomar essa decisão até amanhã,

 

- Oh, merda.

 

Atwater conhecia o casal quase tão bem como qualquer pessoa no hospital. Fora duas vezes jantar a casa de ambos e encontrara-se com eles mais duas vezes, embora os tivesse visto juntos pela última vez há dois ou três anos. Era um homem encantador, extrovertido e por vezes - sobretudo depois de beber uns copos - extremamente espirituoso. Evie falara mais do que uma vez em apresentá-lo a uma ou outra das suas amigas. No entanto, como o casamento se deteriorara, ela deixara de falar num encontro e encorajava frequentemente o marido a ir sair com Doug, a passar uma ”noite entre homens”. Não era de admirar.

 

- Julguei que o Sidonis era casado - disse Harry.

 

- Não, desde que eu cá estou. Ele tem uma miúda ou duas algures. Isso sei eu. Mas é casado com a sala de operações, com o corretor, com o agente de publicidade e, evidentemente, com o espelho. Até ouvi dizer que ele era homossexual.

 

Harry riu-se amargamente.

 

- Parece que não é - disse ele.

 

- Ouça, Harry, é melhor eu ir telefonar ao Owen. Também preciso de ir ter com a Anneke. Quer que eu fale com o Sido... Não é preciso. Lá vem ele.

 

Sidonis aproximou-se deles.

 

- O médico legista telefonou para o laboratório e mandou tirar umas amostras de sangue à Evie, para analisar - anunciou ele, com um ar triunfante. - E o detective Dickinson também vem a caminho. Ele pede se você fica aqui até ele chegar.

 

- Eu não vou a lado nenhum. Mas não tenho nada a dizer-lhe nem a ninguém que você mande chamar.

 

- Caspar, porque faz uma coisa destas?

 

Sidonis olhou para o executivo com um ar desconfiado. Era óbvio que colocara Atwater do lado do inimigo.

 

- Você não sabe? - respondeu ele. - Eu e a Evie tínhamos um caso há mais de um ano. Ontem à noite, ela disse ao Harry que ia deixá-lo. Esta noite, tinha uma tensão arterial perfeitamente normal e o aneurisma não dava sinais de vida há mais de um mês. Quando entra no quarto, está bem. Ele sai e, menos de meia hora depois, a tensão dela sobe para mais de trezentos e o aneurisma rebenta. Você não desconfiaria?

 

Atwater enfrentou o olhar do cirurgião.

 

- Talvez, se eu não conhecesse o Harry Corbett - respondeu ele. - Mas você não é para aqui chamado. E, se o que diz é verdade acerca de si e da mulher deste homem, você é que merece censura por ter estragado o casamento deles. Agora, se me dão licença, vou telefonar ao Owen Erdman para lhe dizer o que se passa aqui. Harry, volto mais tarde. Mantenha a calma.

 

- Espere aí - protestou Sidonis, correndo atrás dele. Se vai telefonar ao Erdman, eu quero falar com ele...

 

Ainda ia a barafustar quando ambos desapareceram à esquina. De súbito, o corredor ficou em silêncio.

 

- Hum... desculpe.

 

- Como?

 

Harry olhou à sua volta. O irmão de Maura Hughes, que continuava junto da cama da irmã, pigarreou e alisou a camisa. Harry reparou nas divisas da sua farda impecável. O homem era sargento.

 

- Chamo-me tom Hughes - disse ele com um ligeiro sotaque nova-iorquino. - A Maura é minha irmã.

 

- Olá - retorquiu Harry, impassível. Sentia-se embaraçado por o polícia ter assistido ao ataque de fúria e ao destempero de Sidonis. Mas, na realidade, não era grave.

 

- Lam... Lamento aquilo que o senhor está a passar.

 

- Obrigado.

 

- A Maura disse-me que o senhor foi amável para ela. O homem olhou para trás, para a irmã, que ressonava, um pouco artificialmente.

 

- Acho que o sedativo fez efeito.

 

- Parece que sim.

 

- Olhe, eu não quero intrometer-me mas, do sítio onde eu estava, era impossível não ouvir a conversa.

 

- Eu sei.

 

De repente, Harry sentiu-se desconfortável. Além disso, não se julgava capaz de manter uma conversa, mesmo que fosse superficial. Levantou-se e afastou a cadeira com o pé. Ainda não telefonara à família de Evie. Talvez devesse telefonar também a Steve Josephson. Devido à operação de Evie, já cancelara os doentes da manhã e entregara-os aos cuidados de Steve até à uma hora. Talvez fosse melhor telefonar e cancelar as consultas do dia inteiro.

 

- Desculpe, por eu estar para aqui a pairar - disse Hughes.

 

- Eu sei que o senhor tem a cabeça cheia e um grande peso às costas. Mas há uma coisa que eu preciso de lhe dizer. Harry hesitou e depois atravessou o corredor.

 

- Aquele médico, aquele de cabelo preto, aquele que diz que... - disse Hughes em voz baixa.

 

- Sim, sim, eu sei a quem se refere. O Sidonis.

 

- Bem, parece que o doutor Sidonis anda a fazer muito barulho com o relatório da enfermeira, segundo o qual o senhor foi a última pessoa a estar com a sua mulher antes de ela...

 

- Sim.

 

- Mas não foi.

 

- O quê?

 

- O senhor não foi o último. Pouco depois de sair, entrou um homem. Um médico, por sinal.

 

- Tem a certeza? tom Hughes ficou a pensar e depois respondeu:

 

- Absoluta. Tenho a certeza absoluta.

 

- Mas... como é que sabe?

 

O polícia hesitou mais uma vez, de olhar fixo num dos rodízios da cama. Quando voltou a olhar para Harry, foi com um ar tímido.

 

- Foi a minha irmã que me disse - respondeu.

 

- Tenho a certeza de que não lhe parece, mas a Maura é uma pessoa muito especial, com muito talento e muito bondosa.

 

Após alguns minutos de conversa com tom Hughes, havia várias coisas que eram claras para Harry. Embora fosse muito jovem, Hughes era muito inteligente e mais arguto do que qualquer outro polícia; e apesar dos problemas óbvios da irmã mais velha, era-lhe muito dedicado. Harry também estava convencido que estivera mesmo lá o homem que ela afirmara ter visto entrar no quarto.

 

- Pouco depois de o senhor sair, entrou um homem de bata branca - contou Hughes a Harry. - Parece que a Maura estava aos gritos nesse momento... Ela disse-me que as enfermeiras só lhe prestam atenção quando ela faz barulho. O médico sorriu-lhe, acariciou-lhe a testa e segredou-lhe que se acalmasse. Depois, contornou a cortina, esteve a falar com a sua mulher e saiu. Tinha trinta ou quarenta e poucos anos, um metro e sessenta de altura, mais ou menos, cabelo castanho curto, olhos castanhos muito escuros, um anel com um grande diamante no dedo mindinho da mão esquerda e um alfinete de gravata azul e verde.

 

- Um alfinete de gravata? Como é que ela o viu?

 

- Garanto-lhe que ela, embriagada ou sóbria, ou mesmo com delirium tremens, é uma mulher espantosa. É uma artista, pinta e tem um olho incrível para os pormenores.

 

Harry lembrou-se da rapidez com que ela reparara no seu emblema na lapela.

 

”Eu reparo nas coisas”, afirmara.

 

- Bem, talvez algum médico tenha entrado pelo outro lado ou passado sem as enfermeiras o verem.

 

- Talvez tenha passado sem as enfermeiras o verem - disse Tom. - Mas não pode ter vindo pelo outro lado. A porta está fechada à chave e o alarme é ligado a partir das oito horas. A enfermeira avisou-me quando eu lhe telefonei a perguntar se podia cá vir mais tarde. Quem entrar neste edifício depois das oito horas da noite tem de vir de elevador e identificar-se no posto das enfermeiras.

 

- Acho que já sabia - disse Harry. - Trabalho aqui há dez ou vinte anos. Porque não falou nesse médico misterioso ao Sidonis ou às enfermeiras?

 

- Da maneira que as coisas estavam, eu não podia dizer fosse o que fosse a ninguém. Além disso, eles não gostam da minha irmã, aqui no Alexander Nove. Acho que eles não dão muito crédito ao que ela diz... sobretudo se contraria o que eles dizem.

 

- Talvez tenha razão.

 

Passavam poucos minutos das onze naquele momento. Em vez de incomodarem o pessoal do Alexander 9, levaram a cama de Maura para o quarto 928. Um quarto de hora depois, viera o telefonema do neurocirurgião Richard Cohen que Harry tanto receava. Evie ainda estava a fazer a tomografia, mas as imagens iniciais eram piores do que eles temiam. A hemorragia era extensa. O inchaço rápido e a pressão tinham empurrado uma parte do cérebro para o osso da base do crânio, interrompendo a circulação, de uma forma total e irreversível, no córtex cerebral, a massa cinzenta responsável pelo pensamento. A operação já não estava no horizonte. Restava submetê-la a uma série de electroencefalogramas... e tomar uma decisão.

 

Maura Hughes continuava mergulhada no seu sono estertoroso e artificial. Harry sentou-se em frente do irmão dela, no quarto pouco iluminado. Apesar de lhe apetecer estar só para pensar no que se passara com Sidonis e para tomar a decisão a que seria chamado em breve, sentia-se grato pela companhia do homem.

 

- Ninguém conseguiu explicar-me o que é o delirium tremens nem como é que a minha irmã entrou nele - queixou-se Hughes. - Não há dúvida de que ela estava embriagada quando caiu, mas conheço muita gente que bebe mais do que ela e nunca teve problemas.

 

- A maioria dos alcoólicos que abandonam o álcool tem convulsões e problemas intestinais - explicou Harry. - Há duas coisas assustadoras que eles podem ter: convulsões e delirium tremens. Em geral, as convulsões surgem nos primeiros dois dias. O delirium tremens surge mais tarde: entre dois a oito dias ou mais, depois da última bebida.

 

- Mas a Maura é muito lúcida em relação a certas coisas, mesmo quando vê insectos.

 

- O que eu posso dizer é que a situação não é invulgar. A mistura de fantasia e de realidade é inexplicável. Eu trato de muitos alcoólicos na minha vida profissional. Muitos deles estão sóbrios há anos, e outros encontram-se em sérias dificuldades. Se o senhor e a sua irmã quiserem, posso pedir a um ou dois que venham falar com ela.

 

- Refere-se aos Alcoólicos Anónimos?

 

- Por exemplo.

 

- Já tentei convencê-la a recorrer aos AA. Mas ela nunca iria. É demasiado orgulhosa, acho eu.

 

- E se a filmasse ou lhe tirasse umas fotografias neste momento? tom Hughes riu-se da sugestão.

 

- Talvez não fosse má ideia - respondeu. - Doutor Corbett, não se importa que eu lhe pergunte o que há entre o senhor e aquele outro médico?

 

- O Sidonis? - Harry encolheu os ombros. - Creio que o senhor ouviu a maior parte da conversa. Ele afirma que a minha mulher tinha um caso amoroso com ele e que tencionava deixar-me por causa dele. Julga que ela me contou tudo ontem à noite, no restaurante. Ele até sabe o nome. Agora que recordo o nosso serão, creio que a Evie queria dizer-me qualquer coisa. Mas não disse.

 

- Então acredita nele? Acho que há outra possibilidade. Ele podia andar obcecado pela sua mulher e tê-los seguido até ao restaurante.

 

Harry olhou para o chão e engoliu em seco, com um nó na garganta.

 

- Não, eu acredito nele - disse por fim.

 

- E ele acha que, como o senhor sabia, deu alguma coisa à sua mulher para... Para quê?

 

- Para que a tensão arterial subisse de tal maneira que provocasse a ruptura do aneurisma cerebral.

 

- Meu Deus! Há medicamentos desses?

 

- Vários, por sinal. Chamam-se pressores. Usamo-los para tratar o estado de choque, que em geral se caracteriza por uma tensão arterial perigosamente baixa,

 

- Então, isso... esses pressores... é o quê? É injectável? Ou é um comprimido, ou um líquido?

 

Harry sorriu, desanimado.

 

- Não, não - respondeu. - Não é administrado por via oral. Os doentes que precisam desse tipo de medicação estão demasiado atrapalhados para beber seja o...

 

- O que é?... Doutor Corbett? Harry levantou-se.

 

- Talvez não seja nada - respondeu. - Mas lembrei-me de uma coisa. A Evie tinha um tubo intravenoso no braço. Cinco por cento de água açucarada. Era aquilo a que chamamos uma infusão KO, de keep open. Suficientemente rápido para impedir que o cateter de plástico que ela tinha na veia ficasse obstruído.

 

- E então?

 

- O método pareceu-me um pouco invulgar na véspera da operação, sobretudo quando a situação dela estabilizara há tanto tempo. Até lhe perguntei quem é que tinha dado ordens para aquilo. Ela julgou que fosse o anestesista. Mas, em geral, os anestesistas administram as substâncias intravenosas na sala de operações.

 

Harry encaminhou-se para a porta do quarto.

 

- Se alguém telefonar, estou no posto das enfermeiras. Não me demoro.

 

Na ficha clínica de Evie lia-se:

 

D5W; 1000 cc; KO a 50 cc/h. O.T. Dr. Baraswatti.

 

O.T. significava ordem dada pelo telefone. Harry leu o texto por alto. Baraswatti examinara Evie ao fim da tarde, para redigir a história pré-operatória e o exame físico feito a todos os doentes que seriam submetidos a anestesia geral. No entanto, a ordem relativa ao líquido intravenoso só fora transmitida às seis e meia. Harry ligou para a telefonista do hospital. O Dr. Baraswatti ainda era o anestesista de serviço. O homem não fez qualquer esforço para disfarçar que o telefonema de Harry o acordara.

 

- Não sei do que está a falar, doutor Corbett - disse ele, com um forte sotaque indiano. - Eu administro sempre as substâncias intravenosas na sala de operações. Porque havia de agir de outro modo?

 

- Não... não sei - gaguejou Harry.

 

Desligou o telefone no momento em que o anestesista lhe perguntava se queria saber mais alguma coisa.

 

Harry sentou-se na beira do balcão e examinou cuidadosamente a ficha clínica de Evie. A mulher chegara ao Alexander 9 à uma e meia. Às quatro e meia, o anestesista subira, examinara-a e escrevera as suas ordens. Às seis e meia, alguém que se fizera passar pelo anestesista telefonara à enfermeira daquele piso e dera ordens para que fosse administrada uma infusão keep open. A enfermeira do piso notificara a enfermeira responsável pelas substâncias intravenosas. Às seis e cinquenta, esta colocara um angiocateter na mão esquerda de Evie. Algumas horas depois, pelo menos segundo Maura Hughes, um médico entrara no quarto. E, pouco depois, o aneurisma de Evie rebentara, provocado por uma tensão arterial sistólica superior a trezentos, ou provocando-a.

 

Agora, Caspar Sidonis acusava Harry de ter introduzido na solução intravenosa um pressor qualquer que provocara a catástrofe. Seria possível que Harry estivesse a ser armadilhado por Sidonis? O médico descrito por Maura - fosse ele verdadeiro ou um produto da sua imaginação - não era parecido com o arrogante cardiocirurgião, que tinha muito mais de um metro e sessenta de altura, cabelo espesso e bigode. Havia qualquer coisa que estava errada... Confuso e apreensivo, Harry regressou ao quarto 928.

 

Maura Hughes estava acordada e agitava-se violentamente.

 

- Pouco depois de o senhor sair, ela começou a gemer como se estivesse com dores ou talvez com um pesadelo - explicou Tom. - Depois, de repente, acordou. Agora está muito agitada, com alucinações ainda piores do que já teve e quer livrar-se dos atilhos.

 

- Chame a enfermeira - disse Harry.

 

Reparando que Maura estava ensopada em suor, enxugou-lhe a face e certificou-se de que o líquido intravenoso estava a circular. A mulher parecia muito tensa, mas não em perigo.

 

- Talvez seja o efeito do sedativo que está a passar. Nenhum dos medicamentos que usamos actualmente altera o que se passa na cabeça de um doente com delirium tremens. Eles limitam-se a refrear as reacções a ele. Eu vou examiná-la.

 

- Gene, Gene, não sejas mau - cantarolou Maura tentando libertar-se dos atilhos. Sorriu-lhe e de súbito adoptou um sotaque de Dixie do qual Scarlett O’Hara se teria orgulhado. - Juro pela alma da minha mãe, querido, que se afastasses estes insectos de mim eu me sentiria bem. Eu ficaria bem.

 

Servindo-se do estetoscópio e do oftalmoscópio de bolso, Harry examinou-a o melhor possível, dadas as circunstâncias. Maura nem o ajudou nem lhe ofereceu resistência. Manteve uma torrente verbal constante enquanto tentava afastar os insectos. A enfermeira respondeu pelo intercomunicador. Estava na sala de reuniões a receber o relatório da mudança de turno. A menos que a situação fosse verdadeiramente grave, só lá iria depois de acabar o que estava a fazer.

 

- Não encontro motivo para preocupações - disse Harry a Tom. - Veremos como é que ela se comporta sem a ajuda dos tranquiliz...

 

- Procuro um indivíduo chamado Sidonis. O doutor Cash Sidonis. Uma coisa parecida com isso.

 

Harry e Tom viraram-se para a porta. Um homem pálido e calvo, com um fato de poliéster, examinava-os. Trazia na mão um bloco de apontamentos, já gasto, onde leu o nome de Sidonis. Os seus olhos pequenos e encovados estavam envoltos em sombras. A dois metros de distância, Harry percebeu pelo cheiro que o homem fumava dois ou três maços de tabaco por dia.

 

- Tenente Dickinson! - exclamou Tom.

 

Piscando os olhos, o homem apontou para Tom, tentando identificá-lo.

 

- É o yalie, não é verdade? tom fez um esgar.

 

- Sim, acho que me pode tratar assim. Chamo-me tom Hughes. Este é o doutor Harry Corbett. Harry, este é o tenente Albert Dickinson. É detective na vinte e oito. Há lá uma vaga para detective a que eu me candidatei. Ele faz parte da equipa de selecção.

 

- Você e metade da unidade - retorquiu Dickinson, sem grande amabilidade. - Eu não contaria com nada, se fosse a você. A concorrência é feroz. Feroz. Alguns tipos da Polícia e a malta da imagem acham que o facto de você ser um yalie joga a seu favor. Mas muitos de nós, que trabalhamos nas ruas, não estão tão certos disso. Muitos de nós procuram um tipo licenciado pela ”Faculdade do Murro”, percebe? O chamado filho da mãe.

 

A gargalhada rouca do homem transformou-se numa tosse seca. Tom manteve-se aparentemente imperturbável. Harry perguntou a si próprio se a abominável grosseria do homem não seria uma espécie de teste.

 

- Eles chamam yalies aos licenciados - explicou Tom, bem-disposto. - No meu caso, isso é verdade, embora não seja importante.

 

- Corbett, hem? - disse Dickinson. - Você é o tipo de que o Sidonis se queixou. Depois de falar com ele quero falar consigo. O patife deve ter algum poder para os obrigar a mandarem-me cá numa noite como esta. Deve ter algum poder.

 

- Raios, deixem-me! - gritou Maura. - Malditas formigas. Saiam daqui. Estou farta disto!

 

Dickinson olhou para ela com indiferença.

 

- Álcool? - perguntou, apontando para a cama.

 

- É... é a minha irmã Maura - disse Tom, endireitando-se um pouco.

 

Harry reparou que um dos punhos de Tom, o que não se encontrava na linha de visão de Dickinson, estava cerrado. Dickinson voltou a espreitar Maura. Em dez segundos, fez a sua avaliação. Maura Hughes era uma alcoólica sem remissão.

 

- Vocês sabem porque é que os Irlandeses têm uísque e os Árabes têm petróleo? - perguntou ele de repente. - Desistem? É porque os Irlandeses foram os primeiros a escolher.

 

Preparava-se para soltar outra gargalhada repugnante quando Maura lhe cuspiu. A cerca de dois metros de distância, falhou apenas por trinta centímetros.

 

- Cabra - resmungou Dickinson, certificando-se de que ela não o atingira.

 

- Estúpido - ripostou Maura.

 

A enfermeira do turno da noite falou pelo intercomunicador.

 

- O detective Dickinson está aí no quarto? Se está, devia ter-se identificado no posto das enfermeiras antes de entrar no quarto de um doente. Além disso, o doutor Sidonis está à sua espera. Está na sala de reuniões, junto do posto das enfermeiras.

 

Dickinson olhou para Harry.

 

- Não se vá embora, Corbett. Nem você, yalie - disse ele.

 

Guardou o bloco de apontamentos no bolso do casaco e saiu do quarto. Tom esperou até se certificar de que o homem não o ouvia.

 

- Isto não vai ter graça nenhuma - avisou ele. - O Dickinson é completamente insuportável. Não seria capaz de dar um passo para ajudar a própria mãe.

 

- Mas ele faz parte da equipa que selecciona os novos detectives.

 

- É a lógica da Polícia de Nova Iorque. Disseram-me que eu sou o candidato principal para conseguir a promoção, mas, como o senhor ouviu, nunca se sabe. Não precisava nada de ter tido este encontrozinho com o Albert D.

 

- Desculpe.

 

- A culpa não é sua. Ouça, não se preocupe com ele. O Albert incomodá-lo-á com algumas perguntas tiradas do manual dos detectives, só para escrever alguma coisa no relatório. Depois, quando perceber que não há motivo para desconfiar de jogo sujo, afasta-se e vai para o Dunkin Donuts.

 

- Mas há - disse Harry.

 

- O quê?

 

- Motivo para desconfiar de jogo sujo.

 

Harry contou em pormenor a sua conversa telefónica com o anestesista e o que lera na ficha clínica de Evie. Estava precisamente a acabar quando trouxeram Evie. Abalado, percebeu que já começara a pensar nela e na sua vida em comum em termos de passado. Para todos os efeitos, a mulher com quem fora casado durante nove anos estava morta.

 

- O electroencefalograma revelou uma certa actividade, mas não muita - disse Richard Cohen, enquanto a ligavam ao monitor e aos sistemas respiratórios. - Não a suficiente para impedir que as várias equipas avancem, se você autorizar. Como sabe, o tempo é crucial nestas situações. Os órgãos começam a deteriorar-se.

 

- Eu sei - afirmou Harry. - Quando tenciona fazer um segundo electroencefalograma?

 

- Às dez da manhã.

 

Harry olhou para a mulher. Durante mais de vinte e cinco anos de prática da medicina, partilhara todas as experiências possíveis que envolviam a morte e a perda. Mas nenhuma o preparara para esta situação. Ainda há poucas horas ela era a pessoa mais importante da sua vida. Ainda há poucas horas, com Sidonis ou sem ele, ambos tinham a hipótese de dar uma volta ao casamento, de o pôr a funcionar outra vez. Mas, de repente, tudo acabara. E agora, pediam-lhe que validasse a morte de Evie, autorizando a doação dos seus órgãos vitais. Sempre ajudara as famílias que se encontravam na mesma situação. Quando precisavam dele, surgiam as palavras certas. Mas nunca fora obrigado a decidir.

 

- Deixe os documentos no posto das enfermeiras - disse ele, quase sem dar por isso. - Eu assino-os antes de sair. Mas quero vê-la de manhã, antes de avançarem com isto.

 

- Eu trato do assunto.

 

Cohen agradeceu-lhe, pronunciou em surdina umas breves e desconfortáveis palavras de condolências e saiu do quarto. Pouco depois, concluídos os ajustamentos no ventilador, o técnico de respiração saiu também. Sue Jilson verificou a tensão arterial de Evie e o gráfico do monitor e depois virou-se para Harry.

 

- O técnico da craniotomografia tirou isto à sua mulher - disse ela com frieza, entregando a Harry o pendente com o diamante da Tiffany’s. - Creio que não faz sentido voltar a pôr-lho.

 

Harry deitou-lhe um olhar gélido.

 

- Eu ponho - afirmou ele.

 

Voltou a pôr o colar à mulher. Quando se voltou, estava sozinho com Tom Hughes e com as duas doentes. Maura prosseguia o seu balbuciar quase imparável, e calava-se apenas para tirar das roupas da cama os insectos que a atormentavam. O ventilador ligado a Evie zumbia baixinho, fornecendo oxigénio aos órgãos que agora só tinham valor em termos individuais.

 

Tom desligou a luz do tecto, deixando apenas acesas as lâmpadas fluorescentes por cima das camas.

 

- Lamento tudo aquilo por que está a passar - disse Tom. Harry olhou para a mulher.

 

- Obrigado - respondeu, a custo.

 

- Se quiser falar mais sobre o assunto, eu tenho tempo e não estou cansado.

 

- No corredor, talvez. Aqui, não - respondeu Harry. Levaram as cadeiras lá para fora. O corredor estava pouco iluminado e silencioso, excepto o ruído característico das noites em branco passadas no hospital.

 

- Não precisa de falar mais da sua mulher, se não lhe apetecer - disse Hughes.

 

- Talvez ajudasse.

 

- Muito bem. Não tenha vergonha de me mandar calar. Confesso que, como polícia, o pouco que me contou até agora me intrigou. O que acha que está a acontecer?

 

- Não faço ideia. Talvez haja uma explicação estúpida e simples para tudo. A enfermeira que recebeu a ordem pelo telefone enganou-se no nome do anestesista... Houve algum médico nosso amigo que veio visitar um doente a este piso e passou por aqui para ver a Evie...

 

- São duas explicações simples. Diz-me a experiência que, quando precisamos de invocar mais de uma explicação para uma coincidência, nenhuma delas é verdadeira. Não se importa de voltar ao quarto comigo por instantes?

 

Harry considerou o pedido e depois foi atrás do polícia.

 

Pensativo, Hughes começou a andar à volta da cama de Maura e depois da de Evie, examinando as paredes, os interruptores e as próprias camas. Maura observava-o, curiosa.

 

- Em vez de assumir a explicação mais benigna, vamos considerar o pior - disse Tom, continuando a sua inspecção.

- Um médico, ou talvez alguém que se fez passar por médico, telefonou a dar instruções para que aplicassem um líquido intravenoso no braço da sua mulher e deu o nome do anestesista de serviço. Mais tarde, entrou no quarto, sem ser visto pelas enfermeiras, falou com a minha irmã e administrou um pressor à sua mulher. Em seguida, saiu deste piso, evitando mais uma vez ser visto. Precisamos de um motivo para justificar o seu acto e de explicar como é que ele entrou e saiu neste piso sem ninguém o ver.

 

- O Dickinson entrou aqui sem ser visto.

 

- À chegada, é verdade. As enfermeiras estavam a passar os relatórios da mudança de turno quando ele entrou neste piso. Mas ter duas oportunidades dessas, à entrada e depois à saída, mesmo que as tenha planeado, é pedir muito.

 

- Então o que procura neste momento?

 

- Locais onde o nosso médico misterioso tenha deixado uma ou duas impressões digitais. É pena não termos as impressões digitais de todos os médicos da...

 

- Muito bem, doutor Corbett - interrompeu Albert Dickinson. - Chegou o momento de termos uma conversazinha.

 

O detective, encostado à ombreira da porta, suspirou, com um ar cansado.

 

- Pedem-me que lhe diga que tem direito a permanecer calado, mas que qualquer coisa que diga pode ser usada contra si em tribunal. Você...

 

- Espere aí - disse Tom. - Está a ler-lhe os direitos? Está a prendê-lo?

 

- Por enquanto, não, mas ele vai ser preso. Julguei que podia evitar as formalidades.

 

- Tenente Dickinson - disse Hughes. - Passaram-se aqui algumas coisas que você desconhece.

 

- Quer saber o que eu sei, yaliei Eu sei que por muito que os médicos tenham... sexo, dinheiro, poder, drogas ou seja lá o que for, querem sempre mais. São assim mesmo. Indique-me um crime por resolver em que um em cada dez suspeitos não seja um médico. Doutor Corbett, se não se importa...

 

- Tenente, veio aqui outro médico ver Mistress Corbett depois de o Harry sair ontem à noite - disse Tom Hughes.

 

- Não esteve cá ninguém. A pessoa que entrou neste piso a seguir ao doutor Corbett foi você. E, nessa altura, Mistress Corbett já estava mal. Verifiquei isso com as enfermeiras. Elas registam o nome de todos os visitantes.

 

- Bem, as enfermeiras estão enganadas. Esteve aqui alguém. Um homem branco, de quarenta e poucos anos, de bata branca. Um metro e sessenta, cabelo castanho e olhos castanhos.

 

- Quem é que disse?

 

A expressão de Tom deixou entrever que ele esperava a pergunta, mas ainda não descobrira uma maneira fácil de responder.

 

- A minha irmã - respondeu ele, com ar de desafio. O homem falou com ela, passou para o outro lado da cortina e foi ver Mistress Corbett, e depois saiu. Pouco depois, o aneurisma dela rebentou.

 

Dickinson sorriu com malícia.

 

- Foi isso que você viu, senhoreca?

 

- Estúpido. Você devia dar um tiro a quem lhe fez esse capachinho. Eu era capaz de pintar uma alface com graxa de sapatos e dar-lhe um ar mais real.

 

Dickinson sorriu com um ar benevolente, mas era óbvio que ficara picado. Só então é que Harry reparou que o homem usava uma cabeleira postiça. Mais um ponto a favor do poder de observação de Maura.

 

- Porque não bebe mais um copo, senhoreca? - ripostou Dickinson.

 

- Maura, porque não te deixas de piadas e não contas ao detective o que viste? - suplicou Tom.

 

Maura afastou qualquer coisa no ombro, mas não disse nada.

 

- Não se incomode - retorquiu Harry. - Não me parece que o detective lhe preste muita atenção. Vá lá, tenente. Vamos acabar com isto.

 

- Tenente Dickinson, acha que vale a pena telefonar para alguém dos laboratórios?

 

- Para quê?

 

- Talvez o médico que esteve cá tenha deixado impressões digitais.

 

- Ora, impressões digitais num quarto de hospital! Parece-me uma grande ideia, yalie. Talvez tenham entrado aqui umas cem ou duzentas pessoas nas últimas vinte e quatro horas.

 

- As impressões digitais de quase todas as pessoas que entraram neste quarto, incluindo os médicos, constam dos ficheiros dos serviços de segurança do hospital - disse Harry. Há vários anos que o hospital adoptou essa política, desde que um pedófilo condenado mentiu no formulário que preencheu e conseguiu emprego como servente na unidade pediátrica.

 

- Óptimo. Tenho a certeza de que os tipos do laboratório ficarão encantados por saírem numa noite como esta por causa de uma mulher com delirium tremens, que afirma ter visto uma pessoa que mais ninguém viu.

 

- Garanto-lhe que conheço a minha irmã e sei que esteve aqui alguém.

 

- E eu garanto-lhe que as aranhas, as formigas e as cobras gigantes não deixam impressões digitais. Agora, Corbett, vamos acabar com isto. Verá que se sente muito melhor quando deitar tudo cá para fora...

 

Só muito depois da meia-noite é que Harry acabou de responder ao interrogatório frio e monótono de Albert Dickinson. O detective já decidira que o cenário pintado por Caspar Sidonis é que estava certo. Harry, sem querer admitir que a mulher ia fugir com outro homem, administrara-lhe um medicamento que lhe fizera subir a tensão arterial. Aparentemente, a sua morte ficar-se-ia a dever à ruptura do aneurisma e ninguém faria perguntas. Naquele momento, tinham sido enviadas amostras do sangue dela para análise. Se fossem descobertas substâncias raras, sobretudo associadas à subida da tensão arterial, havia boas hipóteses de se conseguir um mandado de captura para Harry.

 

- Motivo, método, oportunidade - concluiu Dickinson.

- Neste momento, só nos falta o método.

 

Harry considerou que não valia a pena falar ao detective hostil na ordem dada pelo telefone para aplicar o líquido intravenoso a Evie. Seria, sem dúvida, a primeira coisa que Pramod Baraswatti verificaria de manhã. O relatório do incidente seria arquivado e, mais tarde ou mais cedo, a situação iria condizer com as palavras de Dickinson. A conclusão do detective seria, evidentemente, que fora o próprio Harry a fazer o telefonema, abrindo caminho para a injecção letal.

 

Motivo, método, oportunidade.

 

Dickinson seguiu Harry até ao quarto.

 

- Yalie, quero aqui um agente enquanto ela estiver viva e ele se mantiver neste piso.

 

- Ela já foi dada como clinicamente morta - disse Hughes.

 

- Ouça, você vai mandar alguém para aqui, ou vai mostrar-nos que anda a brincar?

 

- Alguém anda a brincar - notou Hughes, entre dentes.

 

- O que é que você disse?

 

- Disse que fico aqui a protegê-la.

 

- Já calculava. Já disse às enfermeiras que não o quero aqui sozinho enquanto ela estiver viva.

 

- Mas...

 

- Fiz-me entender?

 

- Claro, tenente.

 

Harry acompanhou Dickinson até ao fundo do corredor e viu as portas dos elevadores fecharem-se atrás dele.

 

- Ele já se foi embora? - perguntou Hughes quando Harry voltou.

 

- Por agora. Diz que eu serei preso se for detectada alguma coisa no sangue da Evie.

 

- Acha que surgirá alguma coisa?

 

Harry esfregou os olhos, cujo ardor constante o atormentava.

 

- Não sei o que hei-de pensar - respondeu. - Aquele homem é um idiota. O mínimo que ele podia fazer era mandar chamar alguém para tirar as impressões digitais. Reconheço que é muito difícil, mas a dificuldade não é nenhuma se...

 

- Não precisamos dele - disse Tom, empurrando Harry para os elevadores.

 

- O quê?

 

- Temos o Dweeb. Ele vem a caminho neste momento. Logo a seguir, as portas do elevador abriram-se e saiu um negro de aspecto fraco, quase débil. Trazia um blusão dos Detroit Tigers e um boné dos Detroit Lions, uma pasta numa mão e uma grande caixa com apetrechos de pesca na outra.

 

- Ele viu-te? - perguntou Tom.

 

- Não. Passou mesmo rente a mim. Aposto que o Albert não veria um cadáver mesmo que estivesse pendurado no tecto da casa dele.

 

- Agradeço-te a tua presença, a sério - disse Tom. Harry Corbett, apresento-lhe Lonnie Sims, mais conhecido por Dweeb.

 

Sims pousou a caixa e apertou a mão de Harry com a força de um defesa.

 

- Ele está connosco - disse Tom à enfermeira do turno da noite, que passou por eles, apressada. - É outro detective.

 

Entraram no quarto 928.

 

- Eu e o Lonnie fomos colegas na Universidade de Nova Iorque, quando eu fiz o mestrado em Criminologia - explicou Tom. - É o melhor criminologista que a faculdade formou. E adora tirar impressões digitais.

 

- Lá isso é verdade, meu rapaz - concordou Sims, pousando a caixa em cima de uma cadeira e abrindo-a. - Lá isso é verdade.

 

- Um amigo meu, o Doug Atwater, tem muito poder cá dentro - disse Harry. - Talvez você o tenha visto, Tom. Ele esteve aqui há pouco.

 

- Alto, bem-parecido e de cabelo alourado?

 

- Exactamente. Acho que ele conseguirá arranjar os ficheiros das impressões digitais junto da segurança ou do pessoal.

 

- Óptimo - proferiu Sims, enfiando as luvas de borracha e entregando um par a Tom e outro a Harry. - Também conheço uns tipos no laboratório do FBI que podem ajudar-nos. Agora, vamos fazer uma pequena representação. Tom, tenta que a tua irmã se vire para nós e procura não tocar em nada, sobretudo nas grades da cama. Harry, faça de conta que é o tal desconhecido misterioso. Não toque em nada.

 

- Está bem.

 

Harry olhou para Evie. Até a sua postura descerebrada se interrompera naquele momento. Evie tivera pelo menos uma vida secreta com Caspar Sidonis. Teria havido outras? E se uma delas a tivesse conduzido à morte? Harry dirigiu-se para a porta, para começar a desempenhar o seu papel na representação. Uma coisa lhe parecia quase certa. Os exames laboratoriais do sangue de Evie, que podiam levar dias ou até semanas a concluir, iriam revelar alguma coisa. E, algures no dia seguinte, Evie morreria e o seu quarto seria desinfectado. Se tivessem alguma hipótese de recolher as impressões digitais do Dr. x, seria naquele momento.

 

- Diga-me, porque lhe chamam Dweeb? Lonnie Sims olhou para Tom.

 

- Ele... bem... Ele saiu-se muito bem na faculdade - explicou Tom. - De facto, dizer isto não é suficiente. A verdade é que, se eles não tivessem aumentado as notas na nossa turma, só aqui o Dweeb é que teria passado.

 

Quando Harry saiu do hospital, os primeiros raios de sol inundavam a cidade. A sessão com Lonnie Sims durara mais de duas horas. E o homem parecia ser mesmo um génio, tal como lhe tinham dito.

 

- A chave está no polegar - disse-lhe Dweeb. - Nesse polegar furtivo e oponível. Os chamados especialistas em impressões digitais deitam o pó por cima dos objectos. A solução está em deitar o pó por baixo deles. Mostrem-me um técnico de laboratório que tenha porcaria até aos joelhos, e eu digo-lhes que ele sabe o que está a fazer.

 

Com a ajuda de Maura, conduziu lentamente Harry e Tom em meia dúzia de acções possíveis, observando-lhes os movimentos e mandando-os parar quando pretendia verificar uma impressão digital. O médico misterioso não usara luvas, assegurou-lhes Maura. Sims espalhou o seu pó por baixo das mesas de fórmica e nas grades das camas. Fez o mesmo nos puxadores das portas, nas maçanetas dos candeeiros, nos dois lados das cabeceiras e dos pés das camas e até nas louças da casa de banho. Serviu-se de pós especiais e de uma luz infravermelha, de lentes e de uma pequena máquina fotográfica de último modelo. Recolheu cerca de cinquenta impressões digitais, umas muito nítidas, outras difusas.

 

Por fim, disse-lhes que, se Doug Atwater conseguisse assegurar o acesso aos ficheiros de impressões digitais do hospital, tudo era possível. Quando Sims pegou na caixa, fechou a pasta e saiu do Alexander 9 na companhia de Tom Hughes, eram três horas da manhã. Harry telefonou a Phil e à família de Evie. Depois, sentou-se junto da cama de Evie, às escuras, durante algum tempo, sem pensar em nada... e a pensar em tudo.

 

- Agora, tenha cuidado, Gene - disse Maura quando ele saiu do quarto.

 

Harry julgava que ela estava a dormir. Só agora reparava que estava bem acordada e que se mantivera em silêncio por ele, talvez durante os últimos momentos que ele passara a sós com a mulher. Talvez o efeito do sedativo tivesse passado, pensou. Talvez os horrores do delirium tremens estivessem a desvanecer-se. Ou talvez ela tivesse tido força de vontade suficiente para os refrear durante algum tempo.

 

- Terei - respondeu Harry. - E você tenha cuidado também, Maura. E obrigado pela sua ajuda desta noite.

 

Antes de sair do piso, parou no posto das enfermeiras e assinou os documentos em que autorizava que os órgãos de Evie fossem retirados. A noção de que, algures, alguém iria receber o coração pelo qual eles tinham rezado ajudou a acalmar a profunda tristeza que sentia. Mas nada o ajudou a sentir-se menos confuso, nem a dissipar o seu pressentimento.

 

As ruas estavam completamente desertas. Emocionalmente esgotado, Harry meteu-se no carro e foi para casa, envolvido numa película granulosa de fadiga. Estacionou na garagem que ficava a um quarteirão do seu apartamento. Como era habitual, Rocky Martino, o porteiro da noite, estava a dormir numa cadeira de couro gasto, mesmo à vista de qualquer pessoa que espreitasse pelas portas de vidro do edifício. Embora nunca o admitisse, Rocky tinha mais de sessenta anos. Também não admitia que bebia mais do que era aconselhável para a sua saúde, nem que bebia nas horas de serviço, mas quase todos os residentes sabiam que ele fazia ambas as coisas. Desde que Harry morava ali que se falava em despedi-lo nas reuniões do condomínio. Mas, como nunca acontecera nada de grave durante os turnos de Rocky e ele era um homem simpático, não tinham desencadeado qualquer acção. Harry pensou em bater no vidro ou tocar à velha campainha. Por fim, tirou as chaves. Ao primeiro ruído metálico, Rocky levantou-se.

 

- Doutor, o senhor pregou-me um grande susto - exclamou, ele, abrindo a porta interior. - Julguei que já tinham entrado todos no prédio esta noite. Quando é que saiu?

 

- O que quer dizer com isso?

 

- Bem, eu não o vi sair depois de trazerem aquela comida chinesa que o senhor encomendou.

 

Harry sentiu a pulsação a acelerar-se.

 

- Tem a certeza que a comida era para mim?

 

- Claro que tenho.

 

- Tocou à minha campainha antes de deixar subir o homem? - perguntou Harry.

 

- Hum... Acho que sim.

 

- E o homem saiu logo a seguir?

 

Rocky estava nitidamente a entrar em pânico. E também era óbvio que estava a mentir.

 

- Claro - respondeu ele. - Ele subiu e desceu logo. Harry dirigiu-se para o elevador.

 

- Rocky, a que horas foi isso?

 

- Não sei, doutor. Às dez, talvez. Às onze. Porquê? Harry aproximou-se do elevador e manteve a porta aberta.

 

- Porque eu não passei a noite em casa nem encomendei comida chinesa, Rocky - respondeu Harry mais impaciente do que queria.

 

A porta do apartamento estava fechada à chave, mas isso não queria dizer nada. Eles tinham uma fechadura de polícia, mas nunca a usavam a menos que estivessem em casa. Uma vez, quando Evie se esquecera das chaves na fechadura do lado de dentro, o responsável pelo prédio conseguira abri-la com o cartão de crédito. Harry lembrou-se de chamar a Polícia sem entrar em casa. Mas estava exausto e os agentes podiam levar horas a chegar lá.

 

Abriu a porta devagarinho, esperando encontrar a casa às escuras. As luzes estavam acesas no vestíbulo e, ao que parecia, em todas as divisões. Do sítio onde estava, via que a casa fora revistada. Admitiu que o intruso ainda estivesse lá dentro. Uma pessoa em seu perfeito juízo não sairia do vestíbulo e chamaria a Polícia de lá. Mas, naquele momento, Harry sabia que não estava em seu perfeito juízo. Percorreu o corredor, esperando que o homem lhe saltasse para cima. Precisava desesperadamente de bater em alguém.

 

O apartamento estava vazio e a devastação era enorme. Todos os quadros tinham sido tirados da parede, todas as gavetas tinham sido abertas e esvaziadas. Os colchões tinham sido afastados, e tudo o que estava dentro dos roupeiros fora atirado para cima deles. Até as carpetes tinham sido levantadas. Era como se o intruso procurasse um cofre. Se assim era, ficara decepcionado. Eles tinham pouco dinheiro em casa e as jóias mais valiosas de Evie - de longe as suas posses mais extravagantes - estavam guardadas num cofre-forte. Mesmo assim, alguns dos objectos mais valiosos tinham sido levados.

 

O cofre das jóias de Evie estava vazio. O seu casaco de vison desaparecera, assim como as pratas, alguns objectos de cristal e pequenas obras de arte, como um desenho de Picasso que Evie trouxera do seu primeiro casamento, e que valia talvez quinze mil dólares.

 

Porém, no pequeno escritório é que o trabalho fora mais completo. As gavetas da secretária tinham sido esvaziadas e tudo o que lá estava dentro fora passado a pente-fino e cuidadosamente empilhado junto da parede. As gavetas estavam partidas e o estofo da cadeira fora golpeado. Todos os livros das prateleiras, do chão até ao tecto, tinham sido abertos, examinados e atirados para o lado. Havia qualquer coisa que não batia certo, pensou Harry, afastando com o pé o que estava no chão. Fora um assalto, sem dúvida, mas um assalto com um objectivo.

 

Harry foi até à cozinha, que fora tão bem revistada como o resto da casa. Ficou a olhar para aquela desolação durante alguns minutos, antes de reparar nas quatro caixas de cartão fechadas que estavam em cima da mesa. Cada uma tinha uma refeição chinesa, já fria. Em cima de uma delas, numa embalagem fechada de papel de cera, estava um biscoito da sorte. O primeiro impulso de Harry foi pegar nele e atirá-lo à parede, juntamente com o resto da comida. Em vez disso, abriu-o.

 

O Farol da Sorte Continuará a Iluminar o Teu Caminho, lia-se lá dentro.

 

Eram quase oito horas quando Harry saiu finalmente do seu apartamento em desalinho e apanhou o autocarro que atravessava a cidade para o hospital. Os dois polícias, que tinham aparecido na sequência do seu telefonema, tinham tentado recolher algumas impressões digitais mas, no essencial, a sua investigação do local do crime não fora inspirada. Era óbvio que um assalto num apartamento de Manhattan era tão importante para eles como um vagabundo a agitar as moedas na sua caixa de cartão a quem passava na rua.

 

A conclusão dos agentes, que chegaram meia hora depois, era que se tratava de um assalto vulgar feito por um ladrão profissional, que podia ou não saber que Harry ficaria até mais tarde no hospital. Afastaram a ideia de Harry, segundo a qual o ladrão tinha outros planos, e disseram-lhe que o mais que podia esperar era que alguns dos objectos roubados aparecessem numa loja de penhores ou na posse de algum receptador conhecido da Polícia. Entretanto, o melhor que ele tinha a fazer era sacar o que pudesse à companhia de seguros, substituir aquilo de que precisava e depositar no banco o dinheiro que restava.

 

Harry atravessou o átrio do MMC e encaminhou-se para o corredor que dava acesso aos elevadores para o Alexander 9. À sua volta, o movimento era o habitual. Perguntou a si próprio por quantas centenas, por quantos milhares de famílias não passara ele ao longo dos anos, que iam ao hospital - tal como ele naquele momento - para verem uma mulher, um filho ou um parente pela última vez. A sua vida com Evie fora complicada e desprovida de emoções durante muito tempo. Porém, até à noite da véspera, Harry nunca deixara de acreditar que eles voltariam a viver como no princípio do seu casamento.

 

Ao passar pelo posto das enfermeiras do Alexander 9, apercebeu-se dos olhares de soslaio e das mudanças de conversa. Não havia dúvida de que a acusação de Caspar Sidonis já chegara às mais altas esferas do hospital. Harry nunca gostara de ser alvo de mexericos, fossem eles positivos ou negativos. Agora, estremecia ao pensar nas distorções que a história de Sidonis sofrera desde a primeira vez que fora contada; a realidade já era suficientemente má. Harry também sabia que, a menos que surgissem explicações para a ordem dada pelo telefone e para o médico misterioso de Maura Hughes, se seguiriam mais histórias. Muitas mais.

 

Os pais de Evie, Carmine e Dorothy Della-Rosa, estavam sentados junto da cama de Evie, em silêncio. Um carteiro reformado e uma secretária administrativa, casados há muito mais de quarenta anos, eles eram os pilares da Igreja Católica na sua pequena cidade de Nova Jérsia. Eram tão vulgares e reservados quanto a filha era vibrante e espectacular. Evie era filha única.

 

Harry apertou a mão a Carmine e beijou Dorothy na face. O casal sempre fora cordial para com ele, mas nunca fora afectuoso. ”O gótico de Nova Jérsia”, chamava-lhes Evie às vezes.

 

- Pareceu-nos que a Evie mexeu os braços - disse Dorothy.

 

- Talvez. Há reflexos que fazem com que os músculos se contraiam. Mas isso não tem qualquer significado, Dorothy. Não posso deixá-la pensar que tem.

 

Harry apontou para a cama de Maura, que estava vazia e feita de novo.

 

- Para onde foi a mulher que estava aqui?

 

- Está ao fundo do corredor, noutro quarto - respondeu Dorothy. - As enfermeiras disseram que tinha vagado uma cama. Não quiseram que ela perturbasse estes... estes momentos.

 

Harry sabia que, a menos que fizesse uma pergunta directa a Carmine Della-Rosa, e à qual só ele soubesse responder, Carmine deixaria que a mulher falasse pelos dois. Harry resolvera não lhes falar no que estava para vir. Mais tarde ou mais cedo, seria obrigado a isso, mas naquele momento eles já estavam suficientemente abalados pela tragédia e pela sua decisão de ter doado os órgãos de Evie.

 

Na cama, junto deles, Evie jazia tranquilamente. Tinha os olhos vendados e continuava ligada a um ventilador e a um I.V. Mas os tratamentos para diminuir o inchaço do cérebro hiperventilação para reduzir o teor de dióxido de carbono e aumentar o pH do sangue, e diuréticos para induzir a desidratação - tinham sido interrompidos. Um segundo grupo de exames - um teste ao fluxo sanguíneo cerebral e tentativas para a obrigar a respirar espontaneamente - confirmara o diagnóstico da morte cerebral.

 

Agora, restava-lhes apenas despedirem-se dela e deixar que um médico a declarasse oficialmente morta. Em seguida, entraria em acção o pessoal dos Serviços Regionais de Transplantes de Nova Iorque. Harry pegou na mão de Evie e segurou-a durante um tempo, perguntando a si próprio se os Della-Rosa já teriam ouvido falar de Caspar Sidonis. Não faltaria muito. Sendo a causa da morte de Evie a ruptura de um aneurisma, o médico legista não precisaria de ordenar uma autópsia, sobretudo quando estava em causa a doação de vários órgãos. Mas ele ordenara numerosos exames toxicológicos.

 

- O padre Moore acabou de sair - disse Dorothy.

 

- Lamento não o ter visto.

 

- Ele ministrou a extrema-unção à Evelyn.

 

- Ainda bem.

 

Evie não se considerava católica há anos e não fizera qualquer tentativa para que o seu primeiro casamento fosse anulado. Mas nem o pai nem a mãe admitiriam tal coisa.

 

- Não sei se esta decisão sobre os órgãos foi acertada. A Evelyn era tão... bonita.

 

- Foi uma decisão acertada, Dorothy. A Evie ficará igualmente bonita quando isto acabar... Ficará ainda mais bonita... Está bem?

 

- Sim. Acho... acho que sim. Hum... e o funeral? Harry percebeu o que ela queria dizer.

 

- Quer que eu trate disso? - perguntou ele.

 

- Obrigada. Preferia ser eu.

 

- O que fizer estará bem. A agência funerária que escolher pode combinar tudo com o hospital.

 

- Sabe se a Evelyn tinha algum livro de endereços?

 

- Oh, sim. Por sinal, ela tem-no aqui. Eu telefono-lhe mais tarde, se quiser, e verifico os nomes consigo.

 

- Não será necessário. Eu tenho amigas que podem telefonar para todos os números. Assim, quem quiser poderá comparecer. A nossa igreja não é assim muito grande, mas não temos muitos parentes, portanto haverá espaço. O Harry fala às pessoas de cá?

 

- Claro que sim.

 

Harry tirou a mala de Evie debaixo da mesa-de-cabeceira. Ela deixara a carteira em casa, mas insistira em trazer a maquilhagem, algum dinheiro e o livro de endereços. Harry retirou o pequeno livro de capa de couro e folheou-o à pressa. Os nomes estavam meticulosamente escritos em letra maiúscula. Muitos deles suscitavam recordações imediatas e vivas dos anos mais felizes do seu casamento. Harry ia a entregar o livro quando reparou em dois pedaços de papel enfiados na contracapa. Em cada um deles havia um nome, um endereço e aquilo que parecia ser um número da Segurança Social. Curioso, Harry tirou-os e guardou-os na algibeira do casaco, esforçando-se para que Dorothy não desse por isso. Distraída, ela pegou no livro e agradeceu-lhe. Em seguida, aproximou-se da cama com o marido e depois saiu.

 

- Era uma rapariga linda - afirmou.

 

Harry esperou até ter a certeza que os Della-Rosa não voltavam atrás por qualquer motivo. Depois, voltou a abrir a carteira de Evie. Além da sombra para os olhos, do baton, do blush e de uma nota de vinte dólares, havia um porta-chaves com uma pata de coelho cinzento, com três chaves. Duas eram chaves de uma porta qualquer, novas. Harry comparou-as com as suas próprias chaves de casa. Não eram iguais. A terceira era de uma caixa do correio. Preparava-se para examinar os dois pedaços de papel quando Ben Dunleavy entrou no quarto.

 

O neurocirurgião de Evie era respeitado em todo o hospital, mas também era temido pela sua volatilidade e pela sua intolerância. A decisão de retardar a operação de Evie, apesar de ter uma base clínica sólida, fora dele. Agora, antes de operar a sua doente, ela morrera.

 

- Harry - disse ele.

 

Tanto o seu aperto de mão como o seu tom foram mais frios do que seria de esperar naquelas circunstâncias. Era óbvio que Sidonis falara com ele.

 

- Está aqui para confirmar a morte da Evie?

 

O neurocirurgião fez um sinal afirmativo e olhou para ela. Sem mais dramatismos, fez o que tinha a fazer. Harry olhou para o relógio de parede. Nove horas, doze minutos e trinta e cinco segundos da manhã. Oficialmente, Evie morrera.

 

- Escusado será dizer que lamento que isto tenha acontecido - disse Dunleavy. - Há anos optei também por retardar a operação a um aneurisma como o dela. A Evie é o meu primeiro caso mortal. Só tive dois doentes cujo aneurisma rebentou antes de eu os operar, e ambos se saíram bem.

 

Harry percebeu nas entrelinhas o que o homem queria dizer. Não viu razão para não ir direito ao assunto.

 

- Ben, o Sidonis pode ter tido um caso com a Evie. Não sei. Mas está enganado naquilo de que me acusa.

 

O olhar de Dunleavy era desapaixonado.

 

- Espero que sim, Harry - concordou. - Avise-me se eu puder fazer mais alguma coisa.

 

E saiu antes que Harry pudesse responder. Primeiro, o pessoal de enfermagem, agora Dunleavy. Mesmo sem provas concludentes, havia já quem não quisesse conceder-lhe o benefício da dúvida. Harry sentiu um aperto desagradável no estômago. Ia haver sarilho.

 

Sentou-se junto da cama, na cadeira deixada por Dorothy, e tirou os dois papéis da algibeira. Eram fragmentos, um rasgado da página de uma revista e outro de uma folha de papel em branco. Em cada um deles havia o nome de um homem, o endereço, o número do telefone, a data de nascimento e o número da Segurança Social, escritos pela mão de Evie, mas à pressa. O primeiro era James Stallings, de quarenta e dois anos, que morava em Upper East Side. O segundo era um tal Kevin Loomis, de trinta e sete anos, de Queens.

 

Harry meteu os papéis na carteira e o porta-chaves no bolso. Em seguida, verificou a carteira mais uma vez e deitou-a no cesto dos papéis. Por fim, inclinou-se sobre o corpo de Evie e beijou-a ternamente na testa.

 

- Desculpa, querida - disse, em voz baixa. - Desculpa-me por tudo.

 

Acariciou-lhe a face com as costas da mão e saiu do quarto. Ia a chegar aos elevadores quando ouviu atrás de si, ao fundo do corredor, uma voz conhecida a gritar:

 

- Venham cá! Venham cá e livrem-me destes malditos insectos!

 

- Ele piscou-me o olho, Sherry. Juro que piscou.

 

De bata e com a máscara, a enfermeira Marianne Rodriguez espreitou para a incubadora onde o pequeno Sherman O’Banion passara todos os momentos das suas duas semanas e meia na Terra. A Unidade de Cuidados Intensivos dos Recém-Nascidos, do Hospital Pediátrico de Nova Iorque, era a mais sofisticada de Manhattan, e naquele momento estava cheia: trinta recém-nascidos, cujo peso à nascença variava entre mais de meio quilo e cinco quilos. Sherman, nascido com vinte e cinco semanas, pesava seiscentas e cinquenta gramas. A mãe era uma dona de casa, que tinha mais dois filhos. O pai trabalhava na linha de montagem de uma fábrica, no turno da noite. Dado o seu peso à nascença e outros problemas, Sherman estava a reagir muito bem.

 

- Não pensas no que virão a ser estes pequerruchos quando crescerem? - perguntou Sherry Hiller.

 

- Aposto que o Sherman será jogador de futebol. Conheces o pai?

 

A criança, no seu invólucro, parecia um visitante de outro planeta. À sua volta, havia tubos, fios e máquinas auxiliares. Estava envolvida em Saran Wrap para estar mais quente. Um painel de luzes de fototerapia incidia nela para reduzir a icterícia. Pequenos filtros protegiam os seus olhos dos raios ultravioletas. Um ventilador controlava-lhe a frequência e o volume respiratório. Sensores no abdómen e nas pernas mediam-lhe a temperatura, o ritmo cardíaco e a concentração de oxigénio no sangue. Um tubo intravenoso, inserido numa pequena veia da cabeça, fornecia líquido e antibióticos. Um tubo que lhe chegava ao estômago através do nariz alimentava-o.

 

Marianne deslocava-se junto da incubadora, tomando nota da temperatura, do ritmo cardíaco e da cor da criança. Os níveis de oxigénio estavam um pouco baixos, e a cor escura, os valores das análises e o exame tinham permitido detectar uma deficiência cardíaca importante que teria de ser corrigida daí a um tempo, mediante uma operação. Mas Marianne não estava preocupada. Há cinco anos que era enfermeira na UCI e vira várias crianças piores do que Sherman O’Banion saírem do hospital em grande forma. É claro, havia outros que não tinham tanta sorte. A cegueira provocada por vários factores, a paralisia cerebral, o atraso mental, as operações múltiplas, a morte súbita, provocada por paragem cardíaca, ou prolongada, causada por uma infecção - e eventuais perdas de conhecimento eram complicações que todas as enfermeiras daquela unidade tinham de enfrentar, quando não de aceitar.

 

Alguém bateu no vidro da sala. Marianne olhou. A mulher que trazia da cozinha as fórmulas especialmente preparadas acenou-lhe alegremente com a mão enluvada. Marianne nunca a vira, ou pelo menos tinha quase a certeza disso. De acordo com as normas em vigor, a mulher usava uma touca, uma máscara e uma bata cirúrgica. Só a sua elevada estatura e os seus olhos castanho-escuros estavam à vista. Os olhos cor de castanha tinham um brilho especial, e Marianne teve a sensação de que se tratava de uma pessoa alegre. Fez-lhe sinal para deixar as fórmulas em cima da bancada. As enfermeiras viriam buscá-las. A mulher fez um sinal afirmativo, obedeceu e saiu da UCI.

 

Marianne regressou aos seus deveres, fazendo uma pausa para verificar cada peça do equipamento. O seu trabalho requeria quase tantas aptidões mecânicas como médicas. Mas cada tipo de aparelho era assistido por um grupo de técnicos especialmente treinados e, em certos casos, por um departamento inteiro. Os custos dos cuidados intensivos para recém-nascidos, tanto os de curto como os de longo prazo, eram astronómicos. Uma vez, alguém indicara a Marianne os verdadeiros números, que eram qualquer coisa como nove mil dólares por dia para casos difíceis. Uma criança, cuja mãe a abandonara numa lixeira, ficara na UCI do hospital durante cerca de nove meses, antes de sucumbir a uma infecção. Realizara-se um serviço religioso em memória da criança. Só as enfermeiras e alguns médicos é que compareceram. O custo de a manter viva durante aqueles meses ultrapassara o milhão e meio de dólares.

 

- Muito bem, Sherm, está na hora da papa - disse Marianne.

 

- Traz a papa da Jessica quando vieres, está bem? - pediu Sherry Killer.

 

- Claro. É preciso acrescentar alguma coisa?

 

- Não.

 

As fórmulas vinham em frascos etiquetados, chamados biberões graduados, uma dose diária para cada criança. Alguns biberões continham leite materno com aditivos. Outros eram preparados com vários ingredientes. Todos possuíam um selo resistente às falsificações, constituído por uma fita de celofane fortemente adesiva. Marianne calçou as luvas antes de pegar nos biberões. Depois, quebrando os selos, destapou os de Sherman e inseriu o suplemento de glucose que fora receitado pelo médico. Em seguida, voltou a selar todos excepto um, servindo-se do rolo de celofane que tirou da bancada. Como sempre, não percebia porque é que o departamento se incomodava com a fita adesiva se tanta gente tinha acesso a ela. Verificou duas vezes os rótulos e guardou-os todos no frigorífico, com excepção dos de Jessica Saunders e Sherman O’Bannion. Em seguida, aproximou-se de novo das incubadoras.

 

- O que se faz a um homem esfomeado? - cantarolou ela, alimentando o recém-nascido através do seu tubo.

 

Segurou no biberão por cima do corpo do bebé, até ele se esvaziar completamente.

 

- Marianne, tratas da Jessica? - pediu Sherry. - O monitor do Moonface Logan continua a desligar-se. Creio que os cabos estão soltos. Quero substituí-los todos.

 

- Claro - voltou a responder Marianne.

 

Marianne estava ocupada a dar a fórmula à menina quando ouviu tocar o alarme de um dos monitores cardíacos próximos. Durante trinta segundos, ignorou-o, convencida de que ele se devia aos cabos soltos da criança a que chamavam Moonface. O alarme continuava a tocar.

 

- Sher, é o do Moonface, não é? - perguntou ela, sem levantar a cabeça.

 

Por instantes, ouviu-se apenas o zumbido contínuo do alarme.

 

- Merda! - gritou Sherry, de repente. - Marianne, é o Sherman.

 

O monitor cardíaco de Sherman mostrava uma linha totalmente plana. Marianne soltou o biberão e correu para a incubadora da criança. O pequeno tórax com duas semanas subia e descia em resposta à ventilação mecânica. O aspecto do bebé era o mesmo de sempre, mas a pele escurecera consideravelmente. Naquele momento, o alarme que indicava a saturação de oxigénio começou também a tocar. Marianne verificou os cabos. Nenhum estava solto. A enfermeira fez deslizar o estetoscópio para o peito da criança. Nada. Nem uma batida. Rapidamente, acelerou o ritmo da ventilação e iniciou a compressão cardíaca.

 

- Ele está a ir-se embora, Sher - exclamou ela, com uma aflição controlada. - Diz à Laura que venha cá. Raios!

 

Em menos de um minuto, a reanimação de Sherman O’Banion era levada a cabo por Laura Pressman, dois pediatras internos e duas enfermeiras. Marianne fornecia os medicamentos necessários, mas desde o início que teve um pressentimento terrível. O ritmo cardíaco de Sherman descera de cento e trinta, um valor aceitável, para zero. Não houvera abrandamento, nem batidas irregulares. Era o equivalente a um automóvel que desacelerasse de sessenta para zero ao chocar com um muro. Era óbvio que algo falhara no coração defeituoso do bebé: talvez uma faixa muscular, ou uma das frágeis paredes divisórias. Prosseguindo as compressões cardíacas exteriores, a equipa do hospital começou a administrar medicamentos. Epinefrina... atropina... mais epi... bicarbonato. Tentaram reanimar o bebé durante mais de meia hora. Mas, a cada minuto que passava, Marianne convencia-se cada vez mais da irreversibilidade da situação. Por fim, Laura Pressman interrompeu as compressões cardíacas. Afastou-se da incubadora, olhou para os companheiros e abanou a cabeça.

 

- Lamento. Todos vocês fizeram um excelente trabalho - disse ela.

 

Marianne Rodriguez aceitou um abraço de consolação e algumas palavras de Sherry Hiller. Depois, contendo as lágrimas que viriam mais tarde ou mais cedo, começou a desligar os tubos e os fios de Sherman O’Banion. A incubadora seria levada e substituída por outra totalmente desinfectada. E, pouco depois, entraria um outro recém-nascido.

 

Seis andares mais abaixo, na subcave do hospital, a robusta funcionária das dietas, ainda com a máscara, a bata e a touca, bateu à porta de um vestiário masculino pouco utilizado. Depois, esgueirou-se lá para dentro, fechou a porta à chave e acendeu a luz.

 

A toxina cardíaca que usara era tão forte que lhe bastara uma dose microscópica. Mesmo que a fórmula de Sherman O’Banion fosse analisada, o que era quase improvável, ninguém saberia o que procurar, e nada seria descoberto.

 

O saco de lona estava escondido debaixo de um monte de toalhas de papel usadas no grande cesto do lixo. Dez minutos depois, saiu do vestiário um homem com o saco na mão. Nele iam a bata, a touca e a máscara cirúrgica, bem como uma almofada, uma cabeleira postiça de mulher e uma caixa de lentes de contacto. O homem tinha cabelo castanho bem curto, vestia umas calças de ganga e uma sweatshirt folgada e calçava uns Nike muito gastos. A sua altura, o seu peso e o seu aspecto não despertavam as atenções.

 

A Capela de Santa Ana estava a abarrotar para o funeral de Evie. Lá fora, o dia estava tão cinzento e sombrio como a disposição de quem se encontrava lá dentro. Evelyn Della-Rosa, vibrante, uma rainha de beleza encantadora, uma escritora e repórter dotada, morrera de repente aos trinta e oito anos. Eram poucos os presentes que não reflectiam na transitoriedade da vida e nos caprichos da doença e da sorte.

 

A igreja de pedra branca, com cento e cinquenta anos de existência, erguia-se no relvado pitoresco de Sharpston, a cidade do Norte de Nova Jérsia onde Evie fora criada e os pais ainda viviam. Harry observou que, naquele dia, ela albergava muita gente - uma verdadeira homenagem a Evie. Mas, à medida que as pessoas iam chegando, Harry sentia que conhecia cada vez menos a mulher. Além dos parentes, de vários amigos de Harry, do hospital e dos vizinhos do prédio, havia colegas da revista e vários artistas e patronos das artes. Via-se gente da estação de televisão onde Evie já não trabalhava há mais de dez anos e algumas pessoas que Harry nem conhecia. Pouco antes do serviço religioso, o primeiro marido de Evie, John Cox, agora um elemento importante de uma cadeia de televisão, entrou com uma jovem deslumbrante. Tanto quanto Harry sabia, Evie não falava com o ex-marido desde o divórcio de ambos, extremamente hostil. Contudo, ali estava ele.

 

Os dias de luto que se seguiram à morte de Evie tinham sido estragados por visitas de Albert Dickinson aos vizinhos de Harry no prédio, aos colegas no hospital e a Carmine e Dorothy Della-Rosa. Dorothy telefonara a Harry assim que o polícia saíra e fizera-lhe perguntas acerca de Caspar Sidonis.

 

- Dorothy, não sei se esse tal Sidonis está ou não a falar verdade - respondera Harry. - E, francamente, não me interessa. Eu amava a Evie e tenho a certeza que ela me amava. Mesmo que ela estivesse envolvida com esse outro homem, o que duvido, tenho a certeza que teríamos resolvido as coisas a tempo.

 

- Oh, meu Deus! - foi o que Dorothy conseguiu dizer. Quando o serviço religioso estava prestes a começar, Harry olhou para trás e avistou Caspar Sidonis a entrar na última fila. Ao ver o homem, sentiu um misto de fúria e de vergonha. Cornudo era uma palavra repugnante e um conceito ainda mais desagradável.

 

- O Sidonis entrou agora mesmo - segredou ele a Julia Ransome, a agente literária que era a melhor amiga de Evie na cidade.

 

- E estás ralado com isso? - retorquiu ela, sem se incomodar a olhar para trás.

 

Harry pensou nas suas palavras. Talvez fosse por ser agente literária, mas Julia sempre tivera o condão de chegar à essência de qualquer situação.

 

- Não - respondeu ele por fim. - Para dizer a verdade, acho que não.

 

A partir do momento em que se afastara do corpo de Evie e saíra do seu quarto no hospital, Harry tentara separar os seus sentimentos. Pensou em mudar-se, abandonar a medicina e partir, talvez em recomeçar num daqueles paraísos eternamente quentes e com uma baixa taxa de criminalidade, que os médicos estavam sempre a enaltecer. Porém, tal como não conseguira trocar os seus doentes pelo emprego na Hoolins-McCue, saberia que não os abandonaria neste momento. Nem Albert Dickinson o deixaria partir.

 

A pequena urna com os restos mortais de Evie estava assente num estrado coberto, rodeado de flores. Ao meio de uma grinalda de rosas brancas, via-se um exemplar do mesmo retrato imaculado, insípido e profissional que ela pusera em cima da secretária de Harry. Não haveria enterro. No dia em que a notícia da sua morte fora publicada no Times, um advogado de Manhattan entrara em contacto com Harry. Três semanas antes, Evie fizera um novo testamento que introduzia algumas alterações no anterior. Nele, pedia para ser cremada e alterava o beneficiário das suas jóias e obras de arte, Harry. Agora os beneficiários eram os pais - outro sinal de que ela antevira o fim do seu casamento. Harry era o beneficiário de uma apólice de seguro de duzentos e cinquenta mil dólares, que ambos tinham feito há alguns anos. No testamento, não havia qualquer referência a Caspar Sidonis.

 

Harry sentou-se na primeira fila, entre Julia e os pais de Evie. O irmão, Phil, Gail e os três filhos estavam à direita de Julia. Doug Atwater estava sentado atrás dele. Harry sentia-se agradecido por nenhum deles conseguir ler-lhe os pensamentos, que, naquele momento, eram dominados pelo desejo de que tudo aquilo acabasse para ele voltar para casa. Com a ajuda do sócio, Steve Josephson, da mulher deste e de uma empresa de serviços de limpeza, o apartamento voltara ao normal, excepto algumas gavetas partidas e os valores roubados. Agora, Harry só queria passar uma ou duas noites sentado no C. C.’s Cellar, com o seu pequeno conjunto, e depois entregar-se à sua actividade e aos seus doentes.

 

A missa foi digna e razoavelmente breve. Harry poderia ter usado da palavra, mas optou por não o fazer. O padre, que conhecia Evie desde a infância, fez o possível para dar um sentido à sua morte, mas Harry só ouvira fragmentos do que ele dissera. Preocupava-se em tentar extrair um sentido da sua vida. O seu pensamento continuava a resvalar para o tubo intravenoso de Evie e para o médico ou impostor que conseguira entrar e sair da unidade neurocirúrgica sem ser visto pelo pessoal. Agora, para complicar ainda mais o enigma, havia três chaves numa corrente com uma pata de coelho.

 

- Estás bem? - segredou-lhe Julia, quando o padre terminou o elogio fúnebre.

 

- Nem por isso - respondeu Harry. - Ouve, Julia, podes vir tomar um copo comigo esta noite? Há umas coisas acerca das quais gostava de falar contigo.

 

Embora Evie e ele se encontrassem de vez em quando com Julia e o marido numa festa, Harry nunca estivera a sós com ela. Julia era mais velha do que Evie, magra, atraente e muito inteligente. A sua agência era uma das mais bem sucedidas de Manhattan. Julia ia no terceiro casamento.

 

Julia ficou a pensar no pedido de Harry. Alguns minutos depois, durante a comunhão, inclinou-se e disse-lhe ao ouvido:

 

- Às nove horas no Ambrósia.

 

Embora Phil, Julia e Doug Atwater se oferecessem para lhe fazer companhia, Harry ficou sozinho no santuário, até sair toda a gente.

 

- Posso fazer alguma coisa?

 

O padre Francis Moore falou baixinho, mas mesmo assim Harry assustou-se.

 

- Não. Não, obrigado, padre. Eu estava só a pensar.

 

- Compreendo.

 

Harry deu meia volta e encaminhou-se para a saída. O velho padre caminhava a seu lado, com a Bíblia na mão.

 

- Acompanha os Della-Rosa? - perguntou ele.

 

- Sim. Um pouco. Estou muito cansado.

 

Harry não podia deixar de acompanhar os sogros, mas estava decidido a regressar à cidade logo que pudesse.

 

- Compreendo - disse outra vez o padre Moore. - Embora ainda não nos conhecêssemos, a Dorothy e o Carmine sempre me disseram muito bem de si. Acham que é uma pessoa muito gentil e amável.

 

- Obrigado - disse Harry.

 

Saíram da igreja. Harry ia uns centímetros à frente do padre. À distância, encontravam-se alguns grupos de pessoas a conversar ou à espera de transporte. Harry chegara ao fundo das escadas quando Caspar Sidonis se aproximou e o defrontou.

 

- Você matou-a, seu patife - segredou ele, com uma voz rouca e ameaçadora. - Você sabe e eu sei. E não tarda que toda a gente saiba. Você não suportou perdê-la e por isso matou-a.

 

Há trinta e três anos que Harry não dava um murro na cara de ninguém. Dessa vez, limitara-se a esfolar a face do valentão que o desafiara. A retribuição do rapaz, maior do que ele, fora rápida e memorável. Desta vez, o murro de Harry, aplicado de um ângulo muito mais favorável e com muito mais raiva e autoridade, foi mais eficaz. Atingiu fortemente a parte lateral do nariz de Sidonis. O cirurgião caiu de costas num arbusto baixo e ensopado pela água da chuva. O sangue brotou-lhe instantaneamente do nariz.

 

Chocado, o padre Moore deixou cair a Bíblia. Harry apanhou-a tranquilamente, limpou-a às calças e entregou-lha, dizendo:

 

- Acho que afinal não sou assim tão gentil, padre.

 

O Ambrósia era um clube de primeira categoria, sempre cheio, que ficava em Lexington, junto da Rua 79. Harry passou uma hora no consultório a ler relatórios laboratoriais sobre os doentes e a fazer trabalho burocrático, antes de apanhar o táxi para o clube. A chuva miudinha que caíra durante quase todo o dia desaparecera, e o nevoeiro denso começara a dissipar-se. A cidade parecia limpa e renovada. Ainda não eram nove horas, mas Julia Ransome já lá estava, afagando um copo, numa das mesas altas de acrílico negro, em frente do bar. Era relativamente cedo para os padrões de Manhattan, mas o bar já estava cheio.

 

Julia e Harry beijaram-se na face. Julia trazia uma blusa de seda preta e um colete indiano, e parecia muito à vontade no meio daquela gente bela.

 

- A quem é que tiveste de pagar para conseguires esta mesa? - perguntou Harry.

 

- O Donny, o empregado do bar, anda a escrever um romance há dez anos, mais ou menos - respondeu ela, a sorrir.

- Prometi lê-lo quando ele o acabar. Entretanto, telefono com antecedência e ele senta um ou dois tipos nos bancos até eu chegar. É uma das vantagens de ser uma agente literária. A minha costureira também anda a escrever o seu primeiro romance. E o canalizador, que aparece em minha casa dez minutos depois de eu telefonar, seja de dia ou de noite. O truque é conseguir adivinhar quais as pessoas que nunca terão a sorte de concluir o seu livro. De vez em quando, engano-me. Quando isso acontece, tenho mesmo de o ler e começo a procurar um novo mecânico, um novo dentista, etc.

 

- Bem, obrigado por teres aceitado encontrar-te comigo nestas circunstâncias.

 

- Se julgas que eu não o faria, é porque não consegui dar-te a entender que és uma das pessoas de quem eu mais gosto.

 

- Obrigado.

 

- Falo a sério, Harry.

 

Julia acabou de beber o que tinha no copo e chamou o criado com um simples gesto de cabeça.

 

- O que bebes esta noite?

 

- Um bourbon puro. Pode ser duplo.

 

- Uau! Um bourbon duplo, puro. Há uma faceta tua que eu nunca conheci.

 

- Não te preocupes. Se eu chegar a acabá-lo, terão de me levar daqui num carrinho de mão.

 

Harry esperou que o empregado voltasse com as bebidas e se afastasse. Depois disse:

 

- Julia, fala-me da Evie.

 

Julia examinou o copo.

 

- O que queres saber?

 

- Nesta fase, quase tudo o que queiras partilhar comigo será uma novidade para mim. O cirurgião de que te falei hoje na igreja, aquele que diz que a Evie estava apaixonada por ele, está convencido de que eu lhe dei alguma coisa, uma droga, para provocar a ruptura do aneurisma. Ele está enganado a meu respeito, mas não sei se não estará certo quanto ao resto da sua teoria... - Harry falou da noite de pesadelo no Alexander 9, da sua conversa com o anestesista e das suas conclusões. - Julia, não faço ideia se a Evie estava envolvida com outro homem, apesar de, neste último ano, não se ter mostrado interessada em mim. Admito que ela te tenha falado nalgumas coisas que... que eu ignorava.

 

No silêncio que se seguiu, Harry teve a certeza que Julia ia negar que sabia do que ele estava a falar. Mas, de súbito, a mulher levantou a cabeça e fez um sinal afirmativo.

 

- Foste ultrapassado desde o início, Harry. Talvez tenhas conseguido lidar com os vietcongues, mas nunca tiveste hipótese contra a Evie Della-Rosa. - Julia lançou-lhe um sorriso rápido e irónico e prosseguiu. - Eu e ela conhecemo-nos durante um Verão em que vivemos juntas, quando andávamos na faculdade. Já lá vão quase vinte anos. Ela era uma pessoa empolgante e misteriosa em muitos aspectos, e Deus bem sabe que vou sentir a sua falta. Mas, ao longo de todos estes anos, nunca a conheci bem. Tivesse ela o que tivesse... tivesse ela quem tivesse, queria sempre mais. E não se preocupava muito com o que acontecesse ou, infelizmente, com quem saísse ferido no processo. Essa sua faceta, esse carisma sedutor, sempre me assustou. Impediu que nos aproximássemos mais. Hoje, o John Cox estava no funeral. Viste-o?

 

- Sim, vi.

 

- O que é que a Evie te contou sobre a separação de ambos?

 

- Que o apanhou a enganá-la com outras mulheres e que, quando o confrontou, ele a despediu e a baniu do sector das telecomunicações.

 

- Isso condiz com o facto de ele ter aparecido hoje no funeral dela?

 

- Não. Confesso que fiquei admirado ao vê-lo.

 

- O John Cox era louco pela Evie. Ela é que tinha um caso com o patrão do John, Harry. Só sei o que o John me contou, e não é muito, mas o patrão, e não o John, é que lhe deu com os pés. É que a baniu do sector. Acho que o John lhe teria dado outra oportunidade. Mas ela não estava interessada.

 

- Ela foi feliz comigo?

 

- Durante algum tempo... Talvez durante um ano ou dois. Harry, a Evie precisava de estar no galarim. Precisava de ser o centro das atenções. Uma parte dela combatia essa necessidade. Por isso é que ela casou contigo, acho eu. Por uma questão de estabilidade. Mas vencer era o impulso mais forte.

 

- Sabias da existência do Sidonis?

 

- Não. Nem da dele nem da de outros homens durante o vosso casamento, se é que os houve. Creio que não era assunto suficientemente importante para que a Evie falasse dele. Ou talvez ela não confiasse assim tanto em mim.

 

- Sei que ela estava descontente com o emprego na revista, mas...

 

- Odiava-o. Ela nasceu para estar à frente das câmaras, Harry. Bem sabes. Pelo menos, devias saber. A partir do momento em que ela começou a trabalhar na Manhattan Woman, começou a tentar o regresso à ribalta.

 

- Ultimamente, eu tive a impressão de que ela andava envolvida em qualquer trabalho especial.

 

- Acho que tens razão.

 

- Sabes o que era? Julia abanou a cabeça.

 

- Tentei que ela me contasse, da última vez que estivemos juntas. Ela só me disse que era uma coisa em grande e que os produtores de A Current Affair e de outros programas condensados já começavam a oferecer-lhe bom dinheiro e garantias, só para ver quais eram as suas possibilidades.

 

Harry olhou para uma das paredes do clube. Nela, artisticamente feita, estava uma escultura de néon, com um metro e oitenta de altura, que representava o perfil e a mão de uma mulher. Aparentava vinte e poucos anos e fumava um cigarro numa grande boquilha. Embora Evie raramente fumasse, havia na escultura qualquer coisa que lhe lembrava a mulher. Desconfiava que se passaria muito tempo antes que isso deixasse de acontecer.

 

- Não tenho mais perguntas a fazer, Meretíssima - disse Harry, acabando o seu bourbon. - Obrigada por te teres encontrado comigo assim, Julia.

 

- Que disparate. És um tipo bestial. E quer ela apreciasse quer não, a Evie teve sorte por te ter conhecido. Harry, achas que alguém a matou de propósito?

 

- Não sei o que pensar. A análise ao sangue dela deve estar concluída dentro de algumas semanas, ou mais cedo, se o detective da Polícia que quer exibir o meu escalpe no seu gabinete fizer por isso. Estou preocupado com o que pode acontecer se um dos testes for positivo, mas também não sei se confiarei nos resultados se eles forem negativos.

 

- Então acreditas nessa mulher, na companheira de quarto de Evie?

 

Harry examinou a fumadora de néon enquanto pensava na pergunta. Dois dias depois da morte de Evie, voltara ao Alexander 9, mas Maura Hugues fora mandada para casa. ”A tremer como varas verdes, mas já sem andar à caça de aranhas.” Fora assim que uma das enfermeiras descrevera Maura quando esta tivera alta. Harry tinha a certeza que o verdadeiro motivo da sua rápida saída do hospital fora a recusa da companhia de seguros em pagar mais dias de internamento. Um cenário típico. As companhias encurtavam os internamentos e recusavam -se a pagar, quase com o mesmo vigor com que negavam quaisquer responsabilidades nas consequências das suas apólices.

 

- Harry? - Julia olhava-o com curiosidade. - Fiz-te uma pergunta sobre a companheira de quarto da Evie no hospital. Pareceu-me que ias responder, mas depois afastaste-te.

 

Harry olhou para o copo vazio. Vários anos de abstinência tinham-no reduzido à condição de amador. Sabia que o facto de se distrair com facilidade era a primeira prova de que ainda não estava bêbedo, mas pouco faltava para isso.

 

”E depois? Quanto mais bêbedo, melhor”, pensou.

 

- Sim, acredito nela. Um médico, ou alguém que se fez passar por médico, entrou no quarto depois de eu ter saído. Pouco depois, o aneurisma da Evie rebentou. Creio que ele lhe injectou qualquer coisa no líquido intravenoso. Talvez isso em que a Evie andava a trabalhar tenha alguma relação com o que aconteceu. Quem me dera saber o que tudo isto significa.

 

- Contactaste com alguém do escritório?

 

- Da revista?

 

- Não, do da Village.

 

- O quê?

 

- Ela tinha um escritório alugado... um local de trabalho, percebes? Algures em Greenwich Village. Não sabias?

 

- Eu... não. Também não sabia. Sabes onde era?

 

- Não faço ideia.

 

Harry meteu a mão na algibeira, onde guardava a pata de coelho e as chaves de Evie.

 

- Julia, preciso de encontrar esse escritório - disse ele. Julia olhou para ele, preocupada.

 

- Precisas de ir para casa e dormir, Harry. Amanhã, esse escritório ainda estará no mesmo sítio. Além disso, se não sabes onde fica, pode não ser fácil descobri-lo. Ela não tinha telefone. É tudo o que me lembro de ela ter dito acerca dele.

 

- Obrigado - agradeceu Harry. - Julia, quem era a Evie?

 

A agente literária deixou uma nota de vinte dólares e outra de dez debaixo do copo e encaminhou-o para a saída, para a atmosfera fresca da noite.

 

- Harry, se fizesses essa pergunta a dez pessoas diferentes da vida da Evie, talvez recebesses dez respostas completamente diferentes. Serias como aqueles cegos que tentam descrever um elefante pelas partes que sentem. Cobra, árvore, muro, pedra, folha. Todos têm razão... mas só até certo ponto. Vamos no mesmo táxi para casa?

 

Harry sabia que ela vivia quase na direcção oposta do seu apartamento.

 

- Ouve, não te preocupes comigo - respondeu. Preciso de andar um bocado a pé para tirar umas teias de aranha da cabeça. Vou descansar, prometo.

 

Esperaram que aparecesse um táxi para Julia e depois abraçaram-se.

 

- Telefona, se precisares de mim - disse ela. - E não moas a cabeça a tentar ver mais do que o resto dos cegos.

 

Harry viu o táxi desaparecer à esquina e depois encaminhou-se lentamente para o centro da cidade.

 

Harry desceu Lexington até chegar à Rua 58 e depois atravessou para a zona sul de Central Park. Adorava andar pela cidade a qualquer hora, mas sobretudo à noite. Também era verdade que não tinha pressa. O bourbon duplo estava definitivamente a atrasá-lo. Pensou em dar a noite como perdida e entrar em mais um ou dois bares. Mas queria pensar no que Julia Ransome lhe contara e nunca fora grande pensador quando estava embriagado.

 

Durante os dezoito meses passados no Vietname, tornara-se uma espécie de alcoólico funcional, bebendo muitas vezes em excesso para conseguir enfrentar os horrores do seu trabalho. Nesse domínio, não era muito diferente dos outros oficiais. Felizmente, conseguira praticamente deixar de beber depois da guerra; e, acima de tudo, nunca cedera ao impulso de amortecer o que sentia com narcóticos. Para muitos médicos que tinham feito essa opção, a guerra continuava a atormentá-los, e assim seria até morrerem.

 

Atravessava a rua junto da fonte, em frente da Plaza, quando olhou para a Quinta Avenida. Os escritórios da revista Manhattan Woman ficavam na Rua 47. Eram quase onze horas. A menos que alguém estivesse a trabalhar na produção, não era provável que conseguisse ter acesso ao gabinete de Evie. Mas ainda não lhe apetecia ir para casa, e o C. C.’s Cellar devia estar muito cheio. O grupo que lá actuava nesse momento não era dos seus preferidos: um quarteto popular e progressista, cuja música considerava pretensiosa. Antes de ter oportunidade de repensar na opção de uma noite de farra, encaminhou-se para o escritório da revista. Comprou um pacote de rebuçados de hortelã-pimenta para disfarçar o cheiro a álcool.

 

Comeu-os todos durante os dez quarteirões que percorreu até chegar à Rua 47.

 

O guarda, sentado à secretária no átrio do edifício restaurado com gosto, pôs de lado o National Enquirer e olhou-o, desconfiado. Harry falou na morte de Evie e no seu desejo de ver as coisas dela, antes que estas fossem atiradas para uma caixa de cartão e guardadas por alguém. Tirou uma fotografia da carteira e uma nota de vinte dólares ao mesmo tempo. Durante algum tempo, o guarda examinou a mulher espectacular da fotografia, em seguida enfiou a nota no bolso e fez um telefonema. Três minutos depois, Harry saía do elevador e entrava nos escritórios da Manhattan Woman, que ficavam no vigésimo terceiro andar.

 

- Doutor Della-Rosa, todos nós lamentamos muito a morte da Evie. Sou o Chuck Gerhardt, da maquetagem.

 

O homem, de trinta e poucos anos, cabelo curto e ralo, vestia umas calças de ganga pretas justas e uma camisola de gola alta da mesma cor. A escultura abstracta de vidro e metal que trazia ao pescoço, pendurada numa pesada corrente, lembrou a Harry uma tuba. O seu aperto de mão frouxo não lhe custou mais do que uma caloria.

 

- Muito prazer - disse Harry. - E obrigado pelas suas condolências. Não posso acreditar que ela já não é viva.

 

Dr. Della-Rosa. Harry concordava com Evie e com todas as outras mulheres que optavam por não trocar o seu apelido pelo do marido. Mas não valia a pena corrigir o homem. Harry nunca fora convidado a subir ao escritório, ao longo de todos aqueles anos, e não tencionava voltar a pôr lá os pés. Procurava uma pista, uma pista qualquer que lhe permitisse desvendar o projecto secreto de Evie, ou o conduzisse ao seu esconderijo em Greenwich Village. É claro que quaisquer outros elementos que o esclarecessem acerca da vida da desconhecida com quem fora casado durante nove anos seriam bem-vindos.

 

- Tem sorte em eu estar aqui - disse Gerhardt. - A revista sai para a semana e eu tenho montes de trabalho para fazer. Chamamos-lhe o método do pânico. Por isso é que eu não fui ao funeral hoje. Os chefes foram todos, mas aqueles que trabalham verdadeiramente aqui dentro ficaram amarrados às secretárias.

 

- Lamento que não tenha conseguido ir. Foi um belo serviço religioso. E peço desculpa por o incomodar assim.

 

- Ouça, não há problema. Nem posso acreditar que a Evie morreu. Ela era a melhor, doutor Della-Rosa. Era capaz de despir a própria camisa para a dar.

 

- Eu sei - afirmou Harry. A ironia implícita na metáfora do homem não lhe passou despercebida. - Ouça, não tenho tido mãos a medir desde o funeral. Andava a passear pela cidade e resolvi passar por cá, para levar as coisas da Evie.

 

Chuck Gerhardt deitou-lhe um olhar estranho.

 

- Doutor Della-Rosa, tenho a certeza que o homem que o senhor cá mandou já se encarregou disso. Ontem. Não, anteontem. Lembro-me porque...

 

- Viu esse homem?

 

Harry sentiu todos os músculos do corpo a retesarem-se.

 

- Só de passagem. Por acaso, estava na recepção quando ele entrou. A Kathy, a recepcionista, é que foi com ele ao gabinete da Evie. O que há?

 

- Oh, nada - respondeu Harry, disfarçando. - Eu sei o que aconteceu. Foi o meu sócio. O ginásio dele fica aqui perto. Ele ofereceu-se para passar por cá há uns dias. Com tudo o que se tem passado, esqueci-me. Mas não se importa que eu lá vá?

 

- Claro que não.

 

- É ao fundo daquele hall, não é?

 

- Não... hum, o gabinete dela fica ao fundo desse corredor. Há dois anos.

 

- Sim, sim, claro. Já há algum tempo que cá não vinha.

 

O nome de Evie ainda figurava na porta de madeira de carvalho. Harry entrou, sabendo que o gesto era inútil. E tinha razão. O gabinete estava completamente limpo. Não havia nada nem em cima nem dentro da secretária, nada no arquivador, nada nas paredes. Os livros que antes se encontravam na pequena estante estavam cuidadosamente empilhados a um canto. Harry não tinha dúvidas de que tudo fora esquadrinhado, em busca de papéis ou de compartimentos secretos. A pequena dúvida que tinha quanto ao assalto ao seu apartamento desvaneceu-se. O roubo destinara-se apenas a encobrir uma busca radical. Mas para quê?

 

Só para apaziguar a consciência, Harry verificou a parte de baixo de cada prateleira, assim como o fundo das três gavetas da secretária. Nada. O cesto dos papéis estava vazio. Harry tentou imaginar como é que alguém podia ter entrado no gabinete, esvaziando-o daquela maneira. A história contada à recepcionista devia ter sido muito convincente e contada com muito cuidado. O próprio homem devia ser frio como gelo. Não se tratava de um amador.

 

Os roubos do apartamento e do gabinete de Evie estavam ligados à sua morte? Como é que poderiam não estar? Por impulso, Harry sentou-se na cadeira da secretária e ligou o computador de Evie. O disco duro manifestou-se imediatamente. Harry respondeu e ficou à espera. Mas não aconteceu mais nada. Não havia ficheiros. Nem um. Nem uma carta, nem um artigo, nem sequer um programa de processamento de texto. Os dados armazenados no computador tinham sido extraídos como moedas de um mealheiro.

 

- Precisa de ajuda?

 

Chuck Gerhardt estava à porta, a sorrir, com um ar compreensivo.

 

O sorriso débil e confuso de Harry era totalmente sincero.

 

- Não, obrigado. Obrigado por tudo.

 

Gerhardt pôs três notas de dez dólares em cima da secretária.

 

- Eu devia isto à Evie - disse ele. - Agora acho que os devo a si.

 

- Que absurdo. Por favor fique com o dinheiro. Se ela quis emprestar-lho, tenho a certeza que gostaria que ficasse com ele.

 

- Oh, não foi um empréstimo. Ela tinha um amigo na Village que trabalhava em joalharia exótica. A corrente desfez-se e o medalhão caiu no chão de mármore da entrada, lá em baixo. Partiu-se em vários pedaços. Comprei-o na Alemanha, durante umas férias muito especiais com uma amiga muito especial. Julguei que não tinha arranjo, mas o joalheiro da Evie salvou a situação.

 

A Village. Quando fazia compras, Evie nunca ia além da Saks da Quinta Avenida. Até o C.C.’s lhe parecia boémio. A primeira vez que Harry ouvira falar de uma ligação entre Evie e Greenwich Village fora quando Julia se referira ao escritório secreto. Agora, isto.

 

- Chuck, por acaso sabe quem é esse joalheiro?

 

- Bem, a Evie nunca me disse, mas o cartão dele vinha dentro da caixa onde veio o medalhão. Tenho quase a certeza que o guardei. Venha ao meu gabinete.

 

Harry foi atrás de Gerhardt, até chegar a um grande estúdio repleto de ferramentas e de outros utensílios necessários à sua actividade. O maquetista vasculhou na secretária e depois exibiu, com um ar triunfante, um cartão de visita. Paladin Thorvald, Joalharia Fina, Antiguidades e Peças de Colecção. Harry copiou os dados.

 

- Agora pode ficar com o dinheiro à vontade, Chuck - disse ele, dando-lhe uma palmadinha nas costas. - Bem o mereceu.

 

Harry parou junto de uma máquina de multibanco para levantar dinheiro e depois apanhou um táxi para a Village. A joalharia e loja de antiguidades de Paladin Thorvald ficava mesmo em frente de Bleecker Street, a dois quarteirões de distância da Bowery. Era quase uma hora da madrugada, mas, naquele local, tal como em muitos outros de Manhattan, ainda se viam várias pessoas na rua - algumas, evidentemente, os noctívagos omnipresentes, que aguardavam o seu quinhão da noite.

 

Harry não tinha mais nada em mente a não ser mostrar a fotografia de Evie a alguém que a reconhecesse. Se não tivesse sorte, iria para casa dormir e voltaria na manhã seguinte. A rapidez era importante. Quem quer que revistara o apartamento e o gabinete de Evie era poderoso e estava suficientemente desesperado para matar. E para piorar a situação, Albert Dickinson estava à espera de um relatório positivo do médico legista antes de se lançar sobre o seu único suspeito, um tal H. Corbett.

 

O pequeno estabelecimento de Thorvald ficava no primeiro andar de um prédio degradado de tijolos amarelos. Tinha grades de ferro na única montra e uma pequena placa com o horário de funcionamento, que era das 9 às 19 horas. Harry espreitou lá para dentro. Uma única lâmpada fumada iluminava uma colecção que, em grande parte, parecia ter atravessado a fronteira que separa as antiguidades da sucata. Não era o género de Evie. Não era possível que ela se tivesse desviado do seu caminho para visitar aquele estabelecimento. Harry tinha a certeza. O escritório dela devia ser ali perto.

 

Harry mostrou a fotografia dela a três pessoas que saíam de uma loja de conveniência, e depois ao empregado. Este, que era paquistanês ou indiano, reconheceu em Evie uma cliente habitual, mas não sabia onde ela vivia. O homem trabalhava apenas no turno da noite, a partir das onze horas.

 

Harry não imaginava a mulher a andar por aquelas ruas sozinha, de noite. Pelo menos até esse momento. À medida que ia andando, sentia que os noctívagos o fixavam e se aproximavam. Tomavam-no ou por homossexual ou por uma vítima fácil, possivelmente por ambos. Não tardaria que o atacassem. Harry olhou para o relógio. Fora estúpido em ir ali àquela hora. Espreitando por cima do ombro várias vezes ao passar por cada quarteirão, voltou para trás, na direcção da loja de Thorvald. Duas pessoas que passaram por ele nunca tinham visto Evie e outras duas afastaram-se a correr quando ele se aproximou. Resolveu apanhar um táxi e ir para casa. Ao passar pela loja de antiguidades, voltou a espreitar pelas grades. Um homem grande, de barba, com uma camisa solta ou um cafetã, andava de um lado para o outro nas traseiras do estabelecimento.

 

Harry bateu no vidro. O homem levantou a cabeça e fez-lhe sinal para que se fosse embora. Harry bateu outra vez. Dessa vez mostrou a fotografia de Evie e duas notas de vinte dólares. O homem hesitou e depois aproximou-se. Com o seu cafetã profusamente bordado, a barba comprida, um rabo-de-cavalo grosso e um único brinco, pesado, de ouro, mais parecia o resultado de um cruzamento entre Eric, o Vermelho e Ivan, o Terrível. Mas o seu rosto, susceptível de assustar uma criança, era amável e inspirava confiança. Espreitou a fotografia através da montra. Harry percebeu que ele a reconhecera e apressou-se a apontar para a aliança, para a fotografia, para si próprio e por último para as notas. Paladin Thorvald hesitou, depois encolheu os ombros, desactivou uma espécie de sistema de alarme e abriu a porta.

 

- Você é o marido de Desiree? - perguntou, depois de Harry se ter apresentado. - Nunca imaginei que ela fosse casada. E muito menos com um médico.

 

Harry recordou as muitas horas que Evie e ele tinham passado a escolher o anel de noivado e depois as alianças. Saber que ela vagueava pela Village de madrugada, com o nome de Desiree e sem aliança, já quase não o surpreendia.

 

- Garanto-lhe, Mister Thorvald. Sou o marido dela. Pelo menos até há pouco tempo. Posso entrar e falar consigo por um minuto?

 

Embora Thorvald tivesse recuado alguns passos para o deixar entrar, Harry percebeu que o homem estava receoso. Resolveu que não havia motivo para esconder nada, a não ser que a morte de Evie estava a ser investigada como um possível homicídio. Deu-lhe as duas notas.

 

- Ouça, guarde isso - disse ele.

 

Thorvald não precisou de ouvir a oferta duas vezes. Enfiou as notas no fundo da algibeira do cafetã e ouviu, impassível, a história de Harry.

 

- Então, o que quer saber exactamente? - perguntou ele quando Harry terminou. Continuava a mostrar-se cauteloso.

 

- Se me pudesse dizer onde ela vivia, seria óptimo.

 

- Há muitos tipos de gente que vive aqui na Village por vários motivos diferentes. Um deles é o respeito pela privacidade que temos aqui e que não existe em muitos outros locais. Vivemos e deixamos viver, se é que percebe o que eu quero dizer. Se a Desiree era sua mulher, e não lhe disse onde vivia, lá teria as suas razões.

 

Harry não fez um grande esforço para imprimir dramatismo à sua voz.

 

- Mister Thorvald, por favor. A Evie morreu. Tinha trinta e oito anos e morreu. Tínhamos casa, amigos e planos para o futuro. Preciso de saber quem era a Desiree. Independentemente do que chamava a si própria, era minha mulher. Estou certo de que tenho as chaves da casa dela. Por favor. Diga-me qual é o prédio e eu saio já daqui. Não lhe peço mais nada. Só isso.

 

Thorvald afagou a barba e olhou para as sandálias que tinha nos pés.

 

- Duas portas mais abaixo - alvitrou por fim. - Uma porta vermelha recém-pintada. Segundo andar, acho que foi o que ela me disse uma vez. Não tenho a certeza. Nunca entrei no prédio.

 

- Obrigado. Sei que não queria dizer-me nada - disse Harry. - Não voltarei a incomodá-lo.

 

Paladin Thorvald examinou o rosto de Harry.

 

- Lamento a morte da sua mulher - concluiu.

 

Por cima da porta vermelha, havia duas pequenas vidraças. Harry pôs-se em bicos de pés e espreitou lá para dentro. A entrada estava deserta. Harry olhou à sua volta para ver se a gente das sombras ainda andava perto, e depois tirou a pata de coelho e as chaves da algibeira. No seu íntimo, subsistia a ideia de que partira de um conceito errado e construíra uma vida secreta para Evie à volta dele. Essa última réstia de esperança desvaneceu-se quando deu a primeira volta na fechadura.

 

Entrou e fechou a porta vermelha atrás de si. O átrio pequeno e pouco iluminado, apesar de não cheirar mal, beneficiaria decerto com uma limpeza. Havia uma mesa pequena e riscada para revistas, duas filas de caixas de correio, cerca de vinte e cinco no total, e duas colunas de telefones internos. Harry examinou os nomes das caixas, cada uma das quais tinha um rótulo de plástico preto no qual figuravam uma primeira inicial e o último apelido. Tinham sido acrescentados alguns apelidos com tiras de papel adesivo. Nenhuma das iniciais era D e nenhum dos apelidos era familiar a Harry. Mas o apartamento 2F não tinha nome. A chave do correio que se encontrava no porta-chaves de Evie era daquela fechadura. A caixa estava vazia. De repente, ouviu-se um pequeno ruído do lado de fora da porta, como se alguém estivesse a raspá-la. Harry virou-se. O seu pulso, já acelerado pelo estado de alerta, latejava. Não viu ninguém a espreitar pela janela, mas era quase certo que alguém o fizera.

 

Harry pensou em ir espreitar a rua, mas mudou de ideias. Era provável que não quisesse falar com quem quer que estivesse do lado de fora da porta. O que lhe interessava era chegar ao apartamento 2F.

 

O primeiro andar era constituído por um corredor escuro com paredes de estuque, ladeado por várias portas de apartamentos. De um dos lados, havia uma escada não alcatifada e tão estreita que Harry não percebia como é que as pessoas dos andares de cima conseguiam passar por ali com um sofá ou um frigorífico. Não lhe pareceu que houvesse elevador. Ainda nervoso com a ideia de que alguém pudesse tê-lo espreitado, Harry subiu a escada com cautela e sem fazer barulho.

 

O apartamento 2F ficava nas traseiras do prédio. Harry aproximou-se, tentando imaginar Evie a percorrer aquele mesmo corredor. Ao chegar à porta, pôs-se à escuta. Não ouviu nada. Bateu devagarinho. Nada. Por fim, mais uma vez com o pulso a fazer-se notado, Harry meteu a segunda chave na fechadura, rodou-a e entrou no mundo da mulher que se autodenominava Desiree.

 

O apartamento estava completamente às escuras. Harry aproveitou a luz do corredor para localizar um candeeiro, acendeu-o e fechou a porta atrás de si.

 

A sala pequena e com pouca mobília contrastava fortemente com o apartamento imaculado e impecavelmente decorado onde ambos tinham vivido. Era óbvio que se tratava do refúgio de uma escritora atarefada. Na carpete coçada viam-se arquivadores de cartão e pequenas pilhas de folhas manuscritas. Todas tinham etiquetas, cujos títulos sugeriam a existência de mais do que um projecto em curso. Em cima de uma mesa articulada encontrava-se uma máquina de escrever eléctrica e, ao lado, uma mesa de computador com um PC e uma impressora laser. No chão, ao lado, havia um televisor, um gravador vídeo e sete ou oito vídeos, uma garrafeira semicheia, um gravador de cassetes e duas dúzias de cassetes. Havia também um telefone. Harry ouviu o sinal de chamada e voltou a pousar o auscultador no descanso. O telefone não tinha número. Era provável que algumas pessoas tivessem acesso à linha. Mas a melhor amiga de Evie, Julia, não estava incluída nesse grupo.

 

Harry verificou a casa de banho, que estava vazia, e depois a cozinha. Havia uma reserva de soda diet, uma máquina Braun de fazer café e um forno microondas. Nos armários havia aperitivos e comida enlatada e, no frigorífico, algumas refeições congeladas e meia dúzia de gelados Ben & Jerry, os preferidos de Evie, de sabores diferentes.

 

Ao lado da cozinha, havia uma pequena casa de banho com um duche mas sem banheira. O champô era da marca de Evie e o aroma misto de pós e de sabonetes fez-lhe lembrar a mulher. Por cima do lavatório, havia um armário de medicamentos.

 

Harry viu-se ao espelho. Tinha um aspecto horrível, cansado, abatido e a precisar de fazer a barba. Perguntou a si próprio se Gene Hackman tivera alguma vez um aspecto tão desagradável. Dentro do armário, viam-se vários frascos de comprimidos sem rótulo. Harry reconheceu o Valium, o Seconol e uma série de anfetaminas. Desconfiava que os outros fossem analgésicos. Todos os rótulos tinham sido arrancados. Havia também um pequeno frasco com pó branco. Harry pôs uma pitada no dedo humedecido e esfregou-o numa parte das gengivas. O torpor imediato que sentiu levou-o a admitir que se tratava de cocaína. Evie nunca revelara o mínimo interesse por drogas, e Harry não se lembrava de a ter visto aceitar sequer um pouco de marijuana que lhe tivessem oferecido numa festa.

 

Desiree devia consumir drogas para se distrair ou, quando muito, com raridade. Apesar da sua dupla identidade, se Evie fosse toxicodependente, Harry teria dado por isso.

 

Harry abriu a única gaveta existente e ficou completamente arrasado ao ver o seu conteúdo. Tinha apenas preservativos talvez de quinze tipos e marcas diferentes, em caixas e em embalagens individuais - uns vulgares, comprados em supermercados, e outros exóticos, adquiridos em estabelecimentos especializados. Harry pegou numa embalagem. De um lado, tinha um rótulo onde se lia Thai Tickler, e do outro, um desenho lascivo, acompanhado de uma promessa: Prazer Garantido para Ele e para Ela. Furioso, Harry atirou-o para dentro da gaveta e fechou-a. Uma parte dele queria ir-se embora, pura e simplesmente sair dali e esquecer tudo. Já soubera mais acerca da mulher e do seu alter ego do que queria saber. E receava ter de enfrentar as revelações que o aguardavam nas folhas de papel e nos ficheiros do computador da sala. Mas sabia que não podia recuar. Caíra no meio de um pesadelo e a única maneira de sair dele era suportá-lo até ao fim.

 

No quarto, mal havia espaço para um toucador estreito e uma cama grande feita de lavado. Armários duplos, de ripas, cobriam uma das paredes. Harry espreitou debaixo da cama e em seguida abriu um dos armários. Os vestidos de noite - catorze, ao todo - eram elegantes, sensuais e nada baratos. No chão, por baixo deles, viam-se diversos pares de sapatos, todos provenientes das lojas caras que Evie frequentava. Noutro armário, havia uma colecção de camisas de noite, túnicas, roupa interior e outras peças de vestuário extremamente provocantes. A colecção espalhafatosa não era muito atraente aos olhos de Harry. Excitava-o muito mais o toque do corpo de Evie por baixo de uma camisa de noite de flanela ou até de uma camisola de algodão. Talvez fosse por isso que ela raramente usava as poucas peças de vestuário de renda que tinha em casa. Ou talvez os métodos de Evie fossem apenas diferentes dos de Desiree. Confuso e mais triste do que irritado, Harry regressou à sala e aos textos que, muito provavelmente, tinham custado a vida a Evie.

 

Pegou num dossier estreito, em cuja etiqueta se lia apenas Introdução, e abriu-o na primeira página.

 

       EM VALE DE LENÇÓIS

       O PODER E A INFLUÊNCIA EXTRAORDINÁRIA

       DO SUBMUNDO SEXUAL NA AMÉRICA

 

Os homens dizem que sou bela. As mulheres também, por sinal. Sempre que me apercebo dessa reacção, consigo utilizá-la em meu benefício. Sou inteligente e culta e interesso-me por muitas coisas. Mas o que mais me interessa é o sexo. O sexo e o poder. Ao longo das páginas deste livro, saberá como eu - e as muitas, muitas mulheres com quem tenho trabalhado e que tenho entrevistado - me sirvo do aspecto e da atracção física de outras pessoas, homens e mulheres, para as seduzir e controlar. Saberá de decisões empresariais que deram a ganhar ou deitaram a perder milhões de dólares, que foram tomadas apenas para agradar a uma de nós. Saberá de detentores de importantes cargos políticos que foram despedidos e de outros que foram admitidos só porque uma de nós o exigiu. Às vezes, pagam-nos para exercermos a nossa influência - grandes somas. As vezes, controlamos juizes, políticos, empresários e outros, só para provar que somos capazes.

 

Valemos esse dinheiro? Leia este livro e tire as suas próprias conclusões...

 

Harry pousou o dossier e abriu outro onde se lia Correspondência. Continha cartas dos responsáveis de várias grandes editoras, que se mostravam muito interessados em receber amostras dos capítulos de Em Vale de Lençóis, de Desiree. A correspondência era enviada para a caixa postal de um agente de Manhattan, chamado Norman Quimby. Harry nunca ouvira Evie referir-se ao homem e perguntou a si próprio se ele existiria. Outras cartas eram de produtores de programas de televisão condensados. Essas cartas tinham sido escritas a Evie e remetidas para outra caixa postal. Nelas se dava a entender que, se ela conseguisse entregar Desiree e todo o material que afirmava ter em cassete e em filme, haveria sérias hipóteses de conseguir um contrato de longo prazo. Os produtores também prometiam averiguar como haviam de implementar um sistema de defesa altamente especializado, destinado a proteger a identidade de Desiree e a realçar a mística que a envolvia. Um dos produtores escrevera:

 

Creio que é uma ideia maravilhosa fazer da identidade de Desiree o segredo mais bem guardado desde Pearl Harbor. Quando a série for para o ar, o livro será posto à venda e o entusiasmo que despertaremos deverá criar um fenómeno do tipo Madame x, Sydney Barrows, Christine Keeler e Heidi Fleiss num só, com uma pitada de Marylin e de Kennedy à mistura. Ainda não posso falar-lhe de números, mas asseguro-lhe que, se me entregar o que afirma estar ao seu alcance, conseguiremos fazer negócio.

 

Harry pegou num dos vídeos, em cuja etiqueta se lia apenas #1. Examinou os dossiers que estavam no chão. Num lia-se Vídeos. Lá dentro estavam seis histórias, cada uma com duas ou mais páginas e com um título constituído por um só algarismo. Harry escolheu o número 1 e pôs de parte os restantes. Introduziu a cassete no gravador.

 

Esta cassete descreve uma mulher que diz chamar-se Briana, leu Harry.

 

Tem trinta e um anos e foi rainha de beleza numa grande universidade do Sul do país. De dia, é fisioterapeuta numa clínica mesmo à saída de Washington, D. C. À noite, trabalha para um serviço de acompanhantes. Os seus honorários são de 2000 dólares por noite. Tem apenas alguns clientes e só trabalha quando quer. O acordo que tem com a agência é de meio por meio. Há pouco tempo, engravidou do namorado e resolveu retirar-se do serviço de acompanhantes. O vídeo - uma espécie de presente oferecido por Briana a si própria - foi gravado por uma câmara oculta atrás dum espelho no seu apartamento. A proprietária do serviço de acompanhantes a que ela pertencia não sabia de nada. Briana agia por conta própria. Mas já vendera os seus serviços a um poderoso lobby do tabaco. Os seus honorários por ter influenciado o voto do senador que aparece com ela neste vídeo foram de 50 000 dólares. Quanto ao vídeo propriamente dito, custou outros 50 000 dólares. O seu rosto e a sua voz, assim como os do senador, foram disfarçados através de métodos electrónicos... com um fascínio mórbido, Harry viu uma mulher de seios grandes e jovens, corpo perfeito e musculado de adolescente a deixar-se despir por um homem cujo corpo não estava tão bem conservado. Tratando-o por ”senador”, ela gracejava, roçava-se nele e por último fazia amor com ele em troca da sua promessa de não apoiar o lançamento de mais um imposto sobre o tabaco. A mulher era extraordinariamente sensual, atraente e hábil... a tal ponto que o senador não aguentou mais de dois minutos desde o momento em que começou verdadeiramente a fazer amor com ela.

 

O disfarce dos rostos e das vozes não permitia identificar o homem, e Harry perguntou a si próprio se, de facto, o filme seria genuíno ou algo que Desiree encenara. Não figuraria a própria Desiree num ou mais vídeos’? Infelizmente, era muito provável. Harry resolveu não ver os restantes antes de examinar todo o outro material.

 

Viu as horas. Eram quase duas da manhã. Em silêncio, agradeceu à sua profissão o facto de poder autocontrolar-se hora a hora ou até minuto a minuto e folgar uma noite inteira, seguida de um dia inteiro de trabalho. Ficaria ali até ao amanhecer, depois passaria por casa para tomar um duche e mudar de roupa e seguiria para o hospital. Assim que se despachasse do consultório, voltaria.

 

Examinou os dossiers e as folhas soltas, tentando perceber como havia de organizar-se. Havia uma pequena pilha de papéis que lhe chamou a atenção. Tinha, talvez, cinco ou dez páginas, unidas por um elástico. No rótulo por baixo do elástico, Evie escrevera à mão, num autocolante amarelo: Executivos de Empresas (notas preliminares). Ver também Diário de Desiree.

 

Eles reúnem-se de duas em duas semanas no Hotel Camelot. São jovens, elegantes e poderosos. Fui escolhida pela Page para integrar um grupo de mais seis mulheres, todas seleccionadas entre as mais belas e mais apetecíveis da cidade. Os honorários por cada noite de trabalho são de mil dólares, em dinheiro. Cada uma de nós foi destinada a um deles. Na minha primeira noite, uma terça-feira, mandaram-me para o quarto de...

 

Harry ficou hirto. Ouviu um ruído no corredor, do lado de fora da porta. Tinha a certeza. Alguém estava encostado à porta, à escuta. Voltou a pôr os papéis onde estavam, aproximou-se de uma das janelas em bicos de pés e subiu cuidadosamente a persiana. Havia uma escada de salvação e, por baixo, uma rua estreita. Mas as janelas tinham grades de ferro fechadas a cadeado. Harry voltou a aproximar-se da mesa onde deixara as chaves de Evie e manuseava-as sem fazer barulho quando ouviu dois toques suaves na porta. Avançou, mas depois parou. Alguém bateu mais duas vezes, dessa vez com mais insistência. Harry olhou para os papéis de Desiree. Não conseguiria esconder tudo.

 

- Quem é? - perguntou, aproximando-se para ouvir a resposta.

 

- É o Thorvald. Paladin Thorvald - respondeu o homem numa surdina forçada. - Preciso de falar consigo.

 

- Como é que veio cá ter?

 

- Por favor, é muito importante.

 

Harry olhou de novo à sua volta. Depois, encolhendo os ombros, abriu o ferrolho. Assim que rodou o puxador, dois homens de blusão escuro entraram. Um era alto e tinha a constituição física de um lutador profissional. O outro era muito mais baixo, mas entroncado. Ambos tinham enfiado meias de nylon na cara.

 

- Menti - grunhiu o mais alto, empurrando Harry para o interior do apartamento.

 

A reacção de Harry foi puramente reflexa. Desferiu um soco em cheio na cara do homem mais alto, que foi embater na parede junto da porta. Em seguida, deu um pontapé ao outro, atingindo-o na parte lateral do joelho. O homem caiu de lado, a praguejar. Harry passou por ele a correr, em direcção à porta, mas o mais alto apanhou-o pelas pernas e fê-lo estatelar-se no corredor.

 

- Socorro! - gritou Harry, levantando-se a custo.

 

Antes que conseguisse fugir, o homem enorme agarrou-o pelos tornozelos. Harry deu outro grito e tentou libertar-se. Pesava noventa quilos, mas o homem gigantesco manejava-o como se ele fosse um fantoche. O seu rosto, oculto pela meia, estava coberto de sangue.

- Dá cá isso, pelo amor de Deus. Este tipo é doido varrido! - exclamou ele, arrastando Harry para o interior do apartamento.

 

Com um pé livre, Harry atingiu o homem no queixo, conseguindo libertar-se mais uma vez. O homem mais forte, a cambalear mas de pé, tentou manietar Harry. Mas este estava possesso. Com o cotovelo, atingiu o homem na garganta e, qual dervixe rodopiante, deu uma volta de trezentos e sessenta graus, de que Baryshnikov se teria orgulhado. O homem atarracado voltou a cair.

 

A cambalear, Harry dirigiu-se para a porta. Mas a hesitação foi o suficiente para que o gigante o agarrasse outra vez. Todavia, Harry ainda tinha os braços livres. Concentrou-se mas, ao dar uma volta completa, sentiu uma dor terrível no peito e nas costas. Era a mesma sensação de electrochoque que tivera no circuito de manutenção do hospital, mas mais forte. Sentiu que os joelhos tocavam um no outro. A vista turvou-se-lhe. E, no mesmo instante, os dois homens caíram sobre ele e imobilizaram-no em cima da alcatifa.

 

- Dá cá essa coisa - disse um deles.

 

- Está bem, está bem, tenho-a aqui. Tenho-a aqui.

 

A transpirar e atordoado pela dor insuportável, Harry sentiu o cheiro adocicado e enjoativo do clorofórmio. Pouco depois, aplicaram-lhe um pano embebido em anestésico no nariz e na boca. A dor terrível no peito impediu-o de oferecer resistência. E de facto, quando começou a perder a consciência, sentiu um certo alívio por se libertar também da dor. Debateu-se enquanto pôde, recusando-se a inalar. Mas, com vários quilos em cima, a sua tenacidade foi de pouca dura.

 

”Qual será a sensação de estar morto?”, foi a última coisa em que pensou antes de perder a consciência.

 

Quais são os nomes dos ficheiros que leste?...

 

De que nomes é que te lembras?...

 

Ouviste alguma das cassetes?...

 

O que diziam?...

 

As perguntas flutuavam na escuridão como penas, roçando na consciência de Harry e afastando-se em seguida.

 

A tua mulher alguma vez te falou do seu trabalho?...

 

Como é que soubeste que este apartamento existia?...

 

Há quanto tempo sabes da sua existência?...

 

Quem mais é que sabe?...

 

A voz, masculina, era suave e nada exigente. Mas Harry sentia-se incapaz de resistir às respostas. As perguntas, cada vez mais monótonas, eram intercaladas com respostas lentas e indistintas numa voz que era a sua, e contudo não parecia uma voz humana.

 

Vamos recomeçar, Harry. Conta-nos tudo o que leste aqui esta noite...

 

Diz-me todos os nomes de que te lembras...

 

Todos os nomes...

 

Todos os nomes...

 

Harry estava deitado de costas, como que amarrado a uma cama. Tinham-lhe tapado os olhos com algodão. Podia mexer as mãos, mas não os braços, e a cabeça, mas não os ombros.

 

- Deixem-me levantar - disse ele, com uma voz esquisita.

 

- Quando eu estiver convencido de que me disse tudo o que tem a dizer, será libertado. Dêem-me mais Pentotal, por favor.

 

O cérebro de Harry começou a ganhar nitidez. A dor terrível no peito desaparecera, e ele não morrera... pelo menos era o que julgava.

 

- Esteja quieto, Harry. Não tente mexer o braço. Daqui a pouco já se sente melhor.

 

A voz do seu inquiridor era educada e inteligente; não era a de nenhum dos homens que o tinham atacado. Mas os outros dois estavam presentes. Harry tentou imaginar os três junto da cama, a olharem para ele.

 

- Ainda vou precisar mais disso. Encham-me metade dessa seringa com aquela cetamina. Não acredito que ele tenha mais alguma coisa a dizer-nos, mas veremos - disse o homem da voz educada.

 

Harry apercebeu-se do movimento junto do seu braço esquerdo e, de repente, sentiu um tubo intravenoso. ”És tu, não é verdade?”, pensou. ”És tu o médico do Alexander Nove!”

 

Um calor agradável sobrepôs-se à escuridão. Harry sentiu que começava a pairar. E, mais uma vez, as perguntas e as suas próprias respostas começaram a passar por ele.

 

De que mais é que te lembras?...

 

De que nomes?...

 

De que locais?...

 

De que cassetes?...

 

Que mais?...

 

Que mais?...

 

Que mais?...

 

Harry sentiu-se erguer das profundezas de um mar quente, escuro e impenetrável. Sentia a cabeça inchada, e o peito parecia um balão. As bolhas giravam à sua volta, à medida que, a pouco e pouco, palavra por palavra, o seu encontro com os dois rufiões e o subsequente interrogatório feito pelo homem da voz suave adquiriam contornos nítidos na sua mente. Estava amarrado a uma cama e... Esperem! Devagarinho, levantou primeiro um braço e depois o outro. Os atilhos tinham desaparecido. Também as pernas estavam soltas. Tocou na fita adesiva que tinha nos olhos. Lentamente, com uma sensação de desconforto, retirou o adesivo. O quarto estava escuro como breu. Resistindo a uma náusea súbita, levantou-se da cama e abriu a persiana. O sol da manhã ofuscou-o. Escondeu a cara no braço e ficou à espera.

 

Por fim, conseguiu olhar à sua volta. Encontrava-se no quarto de Desiree. Estava completamente vestido, embora os sapatos estivessem no chão, ao pé da cama. O seu relógio desaparecera. Tinha uma pequena ferida provocada por uma picada na pele da parte de dentro do cotovelo esquerdo, decerto o sítio por onde entrara o tubo intravenoso. Com excepção do mobiliário, o quarto estava vazio. Não havia roupas no roupeiro. Não havia perfumes no toucador. Nada. A casa de banho e a sala tinham sido igualmente limpas dos haveres de Evie. O computador desaparecera e a gaveta do armário da casa de banho fora esvaziada do seu conteúdo deprimente. O armário dos medicamentos estava vazio. As chaves de Evie tinham sido levadas, embora as suas próprias chaves e a carteira estivessem em cima da mesa.

 

Harry deixou-se cair no sofá, com uma dor de cabeça castigadora que não parecia disposta a abandoná-lo tão cedo. Pegou no telefone e ligou para o consultório. Mary Tobin ficou muito aliviada ao ouvi-lo.

 

- Doutor Corbett, telefonei para todo o lado - disse ela.

- Até para a Polícia.

 

- Que horas são?

 

- Como disse?

 

- As horas, Mary.

 

- Meio-dia. Quase meio-dia. Onde é que está?

 

- Digo-lhe quando a vir. Preciso de ir a casa. Não estarei antes das três horas. Dê uma desculpa às pessoas. Compensarei o tempo no sábado.

 

- Está bem?

 

- Digamos que já estive melhor. Depois falo consigo.

 

Harry calçou os sapatos, fez uma inspecção final e infrutífera ao apartamento e foi para casa. As respostas tinham estado ali mesmo, ao seu alcance. Por não ter sido mais cuidadoso, perdera a oportunidade de se salvar a si próprio. Mas sabia muito melhor quem era verdadeiramente Evie Della-Rosa. E além disso tinha uma voz... uma voz suave e educada, com um ligeiro sotaque britânico.

 

Embora fossem apenas cinco da manhã, Kevin Loomis já estava pronto para ir trabalhar. Foi para a cozinha sem fazer barulho e fechou a porta com cuidado. Lá porque não conseguia dormir, isso não era motivo para acordar Nancy nem os miúdos. Deitara-se depois da meia-noite e levara pelo menos uma hora a adormecer. O que perfazia um total de dez horas de sono desde que vira a fotografia de Evie Della-Rosa no obituário do Times. Por instantes, teve a certeza que a mulher da fotografia era Desiree. Mas depois duvidou. Havia semelhanças inegáveis, mas a mulher da fotografia parecia mais nova, embora não tão atraente como Desiree.

 

Aqueceu um copo de café da véspera no microondas e levou-o para o escritório da cave, um pequeno espaço que tinha entre os caixotes, o equipamento desportivo, as condutas de aquecimento e o carvão. Não passara muito tempo ali desde que fora promovido, mas aquele continuava a ser um bom local para se esconder a pensar. Além disso, não faltava muito para que o arremedo de escritório que lhe fora tão útil pertencesse ao passado. A sua casa, com três assoalhadas, situada numa rua ladeada de árvores em Queens, tinha um letreiro de Para Venda no relvado da frente. Andavam em negociações com um canalizador e a mulher. Assim que a venda se realizasse, a oferta que Nancy e ele tinham apresentado para uma casa fabulosa em Port Chester tornar-se-ia definitiva. Doze assoalhadas, três lareiras e quatro casas de banho, num terreno com meio hectare. Era a casa dos seus sonhos, que nunca imaginaram conseguir realizar.

 

Emprego novo, carro novo, casa nova, colegas novos, segredos novos... tudo acontecia tão depressa. Talvez fosse isso que o preocupava. Não era o assunto de Desiree, de Kelly ou da Roundtable, mas o assunto de Kevin Loomis. Por muito que tentasse sentir-se diferente, não conseguia afastar a sensação de que vivia acima da sua condição.

 

”A maioria dos cavaleiros ocupa cargos executivos há anos”, dissera Burt Dreiser no dia em que fizera a proposta que tanto alterara a vida de Kevin. ”E eles criaram um vínculo único como membros da Roundtable. A princípio, vai sentir-se intimidado por eles. Mas não é preciso. Há muito tempo que o observo e não lhe proporia ocupar o meu lugar se não tivesse uma confiança total em si. O que interessa é que você perceba o que a Roundtable pretende, que acredite que a nossa causa justifica os meios que utilizamos para resolver os problemas.”

 

Kevin não se lembrava exactamente da resposta que lhe dera, mas era óbvio que fora a resposta certa. Também falara verdade. Ao longo da vida, muitas vezes limara arestas - legais, morais e outras - por coisas que desejava ou por causas em que acreditava. Não havia nada na Roundtable nem nos seus programas que ele não pudesse aceitar, sobretudo quando era a sua companhia e ele próprio que estavam em jogo. Tudo seria perfeito, totalmente perfeito, se ele se sentisse um pouco mais à vontade em tudo aquilo.

 

Alisou a notícia da morte de Evelyn Della-Rosa em cima da secretária e voltou a lê-la. O cargo de editora da revista Manhattan Woman condizia bem com o que ele sabia de Desiree, mas não o facto de ela ser mulher de um médico. Embora ela não tivesse tido relações sexuais com Kevin, mostrara-se disposta e desejosa disso. Gawain também admitira que mantivera certas intimidades. Negou ter feito amor com ela, mas Kevin sempre teve a noção de que ele estava a mentir. Situações em que mulheres de médicos passam a prostitutas finas aconteciam, de certeza. Quem não lera artigos sobre o sexo suburbano ou os relatórios da Hard Copy? Mas Kevin nunca julgou ver-se envolvido em tal coisa. Continuou a ler.

 

... faleceu de repente num hospital de Manhattan.

 

Faleceu de repente. O que significava aquilo?

 

Não sabia se diria alguma coisa a Galaaz e aos outros. Talvez. Na reunião seguinte decidiria. Talvez o fizesse.

 

- Que diferença faz? - perguntou a si próprio em voz alta.

 

Mesmo que Desiree fosse Evelyn Della-Rosa, o que havia de mal nisso? Nada sugeria que a sua morte tivesse qualquer relação com a Roundtable. Absolutamente nada. Estava prestes a convencer-se quando se lembrou da troca final de palavras - entre Galaaz e Merlim - na última reunião.

 

Fomos demasiado longe para permitir que alguém ponha em risco o nosso trabalho.

 

Não fora o que Galaaz dissera? Fora sem dúvida uma coisa parecida, pensou. E o que respondera Merlim?

 

Mas não se precipite... Pelo menos até ter a certeza de que ela não detém nenhuma apólice das nossas companhias.

 

Talvez as palavras não tivessem sido exactamente estas, mas eram parecidas. Já então Kevin sentira que havia algo de ameaçador no comentário de Merlim. Não eram as palavras, mas a inflexão, talvez... e a expressão do seu rosto. Era como se Galaaz saboreasse intimamente uma anedota.

 

E agora morrera uma mulher que podia ser a Desiree... De repente... Num hospital...

 

Kevin assustou-se quando o telefone começou a tocar. Levantou imediatamente o auscultador.

 

- Kevin, daqui fala o Burt. Espero não o ter acordado. Ouça, aconteceu uma coisa de que lhe queria falar. Nada de grave, nada que seja motivo para se preocupar. Mas gostava que se encontrasse comigo no meu barco, digamos, às sete e meia.

 

O barco. O único local onde Dreiser se sentia verdadeiramente em segurança. Era com certeza um assunto da Roundtable.

 

- com certeza - respondeu Kevin, tentando ocultar a tensão que sentia. - Saio de casa dentro de alguns minutos.

 

Guardou o obituário de Evie Della-Rosa num envelope e empurrou-o para o canto da gaveta da secretária. Em seguida, subiu as escadas, deixou um bilhete para Nancy e para os miúdos em cima da mesa da cozinha e dirigiu-se para a garagem.

 

- Ouve lá, homem eléctrico, não te esqueceste de nada? Nancy chamou-o da porta da rua. Tinha a pasta dele numa mão e um saco de pistácios, o vício mais duradouro de Kevin, na outra. Vestia o roupão de seda bege que ele lhe oferecera no Natal. A luz do Sol da manhã, filtrada pelos bordos do outro lado da rua, dava-lhe um aspecto muito atraente. Tinham-se conhecido no nono ano, no piquenique da igreja, e apaixonaram-se imediatamente. Nancy Sealy era muito bela nesse tempo; e agora, passados vinte e quatro anos e já com três filhos, ainda era bonita. De repente, à sua imagem sobrepôs-se a de Kelly, nua, entre as suas pernas abertas, a acariciá-lo pacientemente, habilmente. Por instantes, tal como naquela noite, todo o seu mundo parecia reduzir-se aos pêlos púbicos reluzentes e negros de azeviche dessa mulher. Ele deixara que ela o lambesse e até que o metesse na boca durante algum tempo - não havia nenhum homem no mundo que recusasse essa situação. Mas, tal como sucedera com Desiree, Kevin não tivera relações sexuais com ela. E estava grato por se ter reprimido.

 

Pegando na pasta e nos pistácios, Kevin beijou a mulher na face, depois na boca, e mais uma vez na boca, ainda com mais paixão.

 

- Isto é um convite? - perguntou ela, mordiscando-lhe a orelha. - Se é, posso telefonar para o escritório a dizer ao Marty que...

 

- Querida, não posso. Tenho uma reunião com o Burt. Mas tentarei vir para casa cedo. Melhor ainda, telefono. Talvez possamos encontrar-nos no Motel Starlight.

 

Nancy ficou radiante com a ideia.

 

- Estás a falar a sério?

 

O facto de se encontrar com Kevin num motel para fazerem amor era uma fantasia de que Nancy falava muitas vezes, desde os tempos da universidade em que ambos o tinham feito.

 

- Eu telefono ao princípio da tarde - disse ele. - Se for possível, faremos isso.

 

Beijou-a mais uma vez e correu para o seu Lexus. Seria a última vez que se encontraria com Kelly ou com qualquer outra acompanhante, prometeu a si próprio. Era fiel, mas não era nenhum santo. Mais tarde ou mais cedo, se continuasse a brincar com o fogo, queimar-se-ia. Falaria da sua decisão a Burt, apenas por uma questão de cortesia, considerando tudo o que o homem fizera por ele. Mas estava decidido. Lancelote teria de convidar menos uma jovem para o grupo ou então de arranjar-se com duas. Sir Tristão estava fora desse círculo.

 

Atalhou pelos arredores e dirigiu-se para Midtown Tunnel. O barco de Dreiser, um magnífico Bertram de doze metros, estava ancorado num clube naval perto da doca da Rua 79, na margem do rio Hudson. Atravessaria a Rua 42 e depois subiria a auto-estrada de West Side, pensou Kevin. No último minuto mudou de ideias e tomou a FDR. Podia atravessar a 72 e depois em Central Park. Talvez tivesse sorte e conseguisse chegar bastante adiantado. Tinha a secretária portátil no banco traseiro e muito trabalho para fazer. O computador portátil custara à Crown 4500 dólares, mais do que ele ganhava em seis meses, quando estava a começar.

 

Pôs um disco de Sinatra no CD e fechou as janelas. A aparelhagem de som fora feita à medida e tinha doze altifalantes e um iqualizador de doze bandas. ”Mas que potência”, pensou Kevin. ”O automóvel de sonho. O emprego de sonho. A casa de sonho.” A sua vida funcionava como uma máquina bem oleada. E ali estava ele a tentar misturar tudo na sua mente. Encontrava sempre um defeito, uma nuvem, em qualquer situação. O caso de Evelyn Della-Rosa resumir-se-ia talvez a duas mulheres com uma forte semelhança física, e a sua imaginação fértil já estava a funcionar.

 

O trânsito na cidade era menos denso do que era habitual. Kevin chegou à doca com cerca de meia hora de antecedência. Mesmo assim, Burt já estava no barco, a tomar o pequeno-almoço no convés da popa. Burt era um homem de cinquenta e um anos, atraente, de cabelos grisalhos e feições aristocráticas.

 

- Passei a noite na cidade - explicou ele, fazendo sinal a Kevin para se servir de café e de sumo.

 

Na cidade significava no barco. E Kevin desconfiava fortemente que no barco significava com Brenda Wallace. Talvez fosse acerca dela que Burt queria falar: Burt precisava de um álibi.

 

- Se tem de ficar na cidade, esta é uma boa solução - disse Kevin, apontando para o Hudson.

 

- Já tem uma resposta acerca da sua casa?

 

- Hoje ou amanhã, calculo eu.

 

- Port Chester, não é verdade?

 

- Sim.

 

- Port Chester tem zonas bonitas. Muito bonitas.

 

- A casa é maravilhosa. A Nancy ficará desfeita se o negócio falhar.

 

- Se tiver problemas, avise-me. Sou muito bom a arranjar maneiras de resolver os problemas.

 

- Obrigado.

 

Dreiser deitou pela borda fora o que restava do seu muffin. Uma gaivota apanhou-o no ar.

 

- Então, o que se passa consigo e com a Roundtable? perguntou ele, de repente.

 

Kevin sentiu a cor fugir-lhe da face.

 

- Não sei do que está a falar.

 

- Kevin, fui levado para a Roundtable há cinco anos, pouco depois de ela ser constituída. Após aceitar a presidência da Crown, tive necessidade de me distanciar do grupo. O nosso acordo é que, se a Roundtable alguma vez fosse investigada, os presidentes das companhias teriam de negar que sabiam da sua existência. Os cavaleiros quiseram pura e simplesmente eliminar o meu lugar. Talvez com o objectivo de trazerem alguém de outra companhia. Não imagina como tive de lutar com eles para permitirem que eu fosse substituído por um elemento da Crown.

 

- Ainda bem que conseguiu.

 

- Bem pode dizê-lo. Deixe-me dar-lhe uma ideia do que o facto de pertencer à Roundtable significa para nós. Há cerca de um ano, um dos cavaleiros sofreu um envenenamento alimentar num restaurante chinês, depois teve um ataque cardíaco no hospital e morreu. O presidente da sua companhia não foi autorizado a recomendar um substituto. Tinha havido uns problemas com o homem. Os cavaleiros, incluindo eu próprio, consideravam que lhe faltava empenho naquilo que todos nós tentávamos alcançar. Ninguém confiava nele. Se não tivesse morrido, era provável que fosse afastado da Roundtable daí a pouco tempo. O que seria a primeira vez que acontecia. Mas, a menos que ele mudasse de métodos e de atitude, isso teria acontecido. Por ter ficado sem a sua representação, a Mutual Cooperative Health perdeu qualquer coisa como dezanove milhões, no ano passado. Dezanove milhões é muito dinheiro, e eu não quero que isso aconteça à Crown.

 

- E então?

 

- Kevin, como já lhe disse muitas vezes, esses homens são muito cautelosos e desconfiados. Esse caso com a repórter da revista... Como é que ela se chamava?

 

- Disse que se chamava Desiree, mas creio que o seu verdadeiro nome era Della-Rosa. Ela...

 

- Sim, bem, esse caso com a repórter aborreceu algumas pessoas. Eles estão preocupados com aquilo que você possa ter-lhe dito.

 

- Eu não disse...

 

Dreiser levantou a mão.

 

- Kevin, por favor. Deixe-me acabar.

 

- Desculpe - disse Kevin em voz baixa.

 

- Não foi nada de especial, mas você era o mais novo no grupo. Eles não o conhecem, portanto não confiam totalmente em si. É compreensível, não é verdade?

 

- É.

 

- Muito bem. A palavra-chave aqui é confiança. Kevin, se esses homens não estiverem à vontade consigo, não confiam em si. E, se não confiarem em si, você sai. E por tudo o que eu conheço, a Crown também pode sair. Isso aleijar-nos-ia, Kevin. Dezanove ou vinte milhões por ano, e Deus sabe o que seria nos anos seguintes, aleijar-nos-iam muito.

 

- Compreendo.

 

- Então por que diabo é que você telefonou ao Lancelote a queixar-se da rapariga que ele lhe mandou? - perguntou Dreiser, elevando um pouco a voz.

 

Kevin ficou espantado por o presidente da sua companhia ter recebido um relatório tão completo da situação. No último instante, resolveu não apresentar qualquer desculpa ou explicação. Só havia uma coisa, e só uma, que Dreiser queria ouvir naquele momento.

 

- Foi um mal-entendido - respondeu Kevin. - Não volta a acontecer.

 

- Excelente, excelente - exclamou Dreiser, cerrando o punho e erguendo-o, para dar mais ênfase às suas palavras. Kevin, não me interessa o que você faz com essas jovens depois de elas entrarem no seu quarto. Mas, quanto mais os outros cavaleiros sentirem que você faz parte do grupo, mais depressa você se integrará. Isto pode parecer-lhe trivial. Mas acredite que nada neste grupo é trivial. Estão demasiadas coisas em jogo.

 

- Compreendo.

 

- Óptimo. Você vai conseguir, desde que nunca se esqueça do que está em jogo.

 

Seis dias depois do funeral de Evie, e exactamente um dia antes de fazer cinquenta anos, Corbett apercebeu-se de que já não era um possível suspeito de um provável caso de homicídio. Era o único suspeito de um caso de homicídio.

 

A manhã começara como todas as outras desde a morte de Evie. Harry tentava mostrar-se concentrado e profissional, mas os seus pensamentos rodopiavam como um tornado. Embora tivesse quase a certeza de que o homem que o drogara e depois o interrogara naquela noite era o responsável pela morte de Evie, parecia não haver absolutamente nada que pudesse fazer. Depois de sair do apartamento, passara pela loja de Paladin Thorvald. Os dois rufiões que o tinham atacado tinham-se servido do nome de Thorvald. Mas o joalheiro não sabia nada deles e os seus modos davam a entender que ele desconfiava cada vez mais da sanidade mental de Harry. Harry calculou que, dentro de pouco tempo, Thorvald teria companhia.

 

Quando saíra da loja de Thorvald, dirigira-se à esquadra da Polícia local. Entrou, sabendo o que o esperava, saiu e foi para casa. A um quarteirão de distância, recorreu à sua coragem, preparou-se para mais um golpe na sua auto-estima e voltou à esquadra. Sem as chaves do apartamento de Desiree, a única coisa que podia fazer era relatar o que acontecera por escrito e esperar hora e meia que o agente localizasse o responsável do prédio. O apartamento 2F fora alugado a uma tal Crystal Glass, com seis meses de renda paga adiantada, em dinheiro. Harry perguntou a si próprio se Crystal Glass seria outra das personalidades de Evie ou apenas um produto da sua imaginação. Esperava ardentemente ter negligenciado qualquer coisa no apartamento, que permitisse, pelo menos, admitir a hipótese de ele não ser louco. Mas não havia nada. Absolutamente nada.

 

- Contacte-nos se conseguir mais alguma informação, doutor Corbett - disse o detective, num tom muito paternalista.

 

- com certeza - respondeu Harry.

 

Os dois intrusos deviam tê-lo seguido, concluiu. Mas durante quanto tempo? Preocupava-o a hipótese de ter colocado Julia Ransome em perigo inadvertidamente e telefonou a avisá-la. Mas, nos dias seguintes, nada aconteceu.

 

Quando Albert Dickinson chegou ao seu gabinete para anunciar a nova prova que lhe conferia o estatuto de único suspeito, Harry estava a acabar de fazer um exame cardíaco com esforço a um tipógrafo de setenta e seis anos, reformado, chamado Daniel Gerstein. Gerstein, um homem mal-humorado, sobrevivente dos campos de concentração nazis, recusava-se terminantemente a consultar outros médicos para fazer a prova de esforço destinada a averiguar a causa de uma dor constante no peito, e por isso Harry retomara temporariamente esse método. O seu doente não revelava sintomas nem alterações no electrocardiograma. Era uma artrite degenerativa das costelas e dos ombros, disse-lhe Harry. Gerstein exigia um diagnóstico mais impressionante e a medicina exuberante que os amigos recebiam dos seus médicos. Harry optou por uma ”avançada artralgia torácica não cardíaca” e receitou-lhe Motrin.

 

Ao ver o ritmo cardíaco do velho a subir, sem qualquer anomalia, no ecrã do monitor, Harry perguntou a si próprio se a sua prova de esforço daria um resultado tão bom. A dor que sentira no peito quando estava no apartamento de Evie levara-o a contactar um cardiologista. Porém, quando lhe disseram que o homem estava fora da cidade, num congresso, Harry não tentara contactar mais nenhum. Em vez disso, correra com especial vigor nos dias seguintes, no circuito de manutenção. Não voltara a sentir-se mal. E cada dia sem sintomas dissipava as recordações da sensação de atordoamento e produzia várias explicações plausíveis.

 

O que estava a acontecer, concluiu Harry, era que a sua história familiar - a maldição dos Corbett - lhe conferira uma hipersensibilidade cardíaca. As mais pequenas dores, que a maioria das pessoas ignoraria pura e simplesmente, ganhavam uma importância exagerada na sua mente. O irmão também devia ter dores no peito, de vez em quando. Não havia ninguém que não tivesse. Contudo, Phil não andava sempre a consultar o calendário nem os cardiologistas. Por isso é que não acreditava que a genética o tivesse condenado a uma doença cardíaca precoce.

 

”Qualquer dia”, pensava Harry enquanto receitava a Daniel Gerstein os comprimidos para a pressão arterial. Qualquer dia consultaria um e faria uma prova de esforço. Mas, naquele momento, com maldição ou sem ela, tinha preocupações maiores na sua vida.

 

Foi então que ouviu a voz de Mary Tobin através do intercomunicador, anunciando que tinha duas visitas, um tal agente Graham e o detective Dickinson.

 

Dickinson encaminhou o agente Graham, que vinha fardado, para uma das cadeiras que Harry lhes ofereceu, mas ficou de pé, andando de um lado para o outro enquanto falava. Continuava a tresandar a cigarro e Harry teve a impressão de que ele trazia o mesmo fato de poliéster, mal confeccionado, que lhe vira no hospital.

 

- Bem, doutor, eu disse-lhe, naquela noite no hospital, que havia de voltar. E cá estou - disse ele, examinando os diplomas e as obras de arte.

 

- Cá está - repetiu Harry, num tom sardónico.

 

- A sua sala de espera está muito cheia. Está sempre assim tão ocupado?

 

- Tenente, acha que pode voltar às cinco horas? Muitas das pessoas que estão lá fora tiveram de alterar substancialmente os seus compromissos para conseguir a marcação. Tento ser pontual.

 

- Quem me dera que o meu médico se preocupasse tanto com o tempo. É o doutor McNally, na zona ocidental de Central Park. Conhece-o?

 

- Não. Tenente, quanto tempo calcula que isto vá levar?

 

- Depende.

 

- De quê?

 

- De si, doutor. O nome de...

 

O homem puxou do bloco de apontamentos e leu a palavra, sílaba a sílaba.

 

- ... me-tar-am-i-nol diz-lhe alguma coisa?

 

Harry sentiu-se desfalecer. A réstia de esperança que tinha de que a análise ao sangue de Evie fosse negativa desaparecera.

 

- Metaraminol - disse Harry, corrigindo a pronúncia. O nome de marca pelo qual nós, médicos, conhecemos essa substância é Aramine.

 

- E sabe o que ela faz?

 

- Sim, sei o que faz. Tenente, vá direito ao assunto.

 

- Tem cá esse tal me-tar-a-mi-nol?

 

- Agora é raro usá-lo. Não tenho cá nenhum. Nunca tive. Agora não se importa de dizer o que tem a dizer e sair? Tenho doentes para...

 

Dickinson avançou para ele.

 

- Eu digo o que tiver a dizer quando me apetecer - respondeu ele, de punhos cerrados. - Se você não consegue fazer o que o meu médico faz, que é manter todos sentados até você ter vontade de os ver, então chame a recepcionista e diga-lhe que os mande todos para casa.

 

- Saia daqui. Já - disse Harry.

 

- Se não, o que acontece? Chama a Polícia? Dickinson suspirou, ostensivamente para se acalmar.

 

- Ouça, doutor. Vamos tentar colaborar nisto. Será melhor para todos.

 

Harry pegou no telefone, disposto a falar para a Polícia. Depois hesitou, pousou o auscultador e recostou-se na cadeira.

 

- O que deseja?

 

- Quero que você assuma o que fez à sua mulher.

 

- O quê?

 

- Doutor, eu sei que foi você, você sabe o que fez, e todas as pessoas que conhecem este caso sabem que foi você. Agora, o que tem a fazer é admitir que o fez.

 

- Eu não fiz nada. A Evie tinha Aramine no sangue? Dickinson sorriu, com um ar condescendente.

 

- O suficiente para fazer explodir a cabeça de todos os elementos da equipa de futebol dos New York Giants. O médico legista diz que só um médico ou alguém ligado à indústria farmacêutica é que podia conhecer esse produto. Vá lá, doutor. O que tem a dizer?

 

- Eu não a matei.

 

Foi a vez de Harry suspirar. Por muito infundamentadas que fossem as suas informações, não fazia sentido escondê-las de Dickinson.

 

- Ela foi morta por um homem que julgo ser médico. Talvez o homem que a Maura Hughes viu entrar no quarto. A Evie andava a trabalhar numa história que incomodava muito alguém. Só sei que isso estava relacionado com prostitutas finas e gente muito importante. Ela foi morta para não acabar a história. Na noite após o seu funeral, encontrei o material com que ela andava a trabalhar num apartamento da Village.

 

- E?

 

- E esse médico e dois dos seus capangas agrediram-me antes de eu conseguir ler uma parte substancial.

 

Mais tarde ou mais cedo, Harry seria obrigado a revelar a natureza do alter ego de Evie e dos seus artigos. Mas ainda não estava pronto para isso.

 

- Como sabe que ele é médico?

 

- Não tenho a certeza. Creio que é porque ele se move bem nos hospitais e com as drogas. Enfiou-me um tubo intravenoso no braço, quando eu estava no apartamento, e depois aplicou-me uma droga muito sofisticada e interrogou-me durante várias horas. Por fim, limpou completamente o apartamento e saiu.

 

- E deixou-o vivo depois de você lhe ter visto a cara?

 

- Eu... Eu nunca lhe vi a cara, nem as dos outros dois. Harry apercebeu-se de que o cinismo na expressão de Dickinson dera lugar à incredulidade.

 

- Os dois capangas tinham meias enfiadas na cabeça explicou ele. - Quando o médico, ou lá o que ele era, entrou em cena, eu tinha os olhos vendados. A Maura Hughes é a única pessoa que eu conheço que lhe viu a cara.

 

Harry não levara muito tempo a perceber por que motivo é que o misterioso médico o deixara vivo. Sob a influência dos fortes hipnóticos, ele dissera tudo o que sabia, antes de examinar a fundo o material de Evie. E não havia nada nele que Harry tivesse lido ou visto e que incriminasse fosse quem fosse. Nem nomes, nem datas, nem locais. Se o médico confiava nos seus próprios métodos - e havia todos os motivos para pensar que ele era um especialista em interrogatórios -, sabia que Harry não constituía nenhuma ameaça para ele.

 

No entanto, agora Harry percebia que havia outro motivo mais lógico para o terem deixado viver. Se Caspar Sidonis não tivesse desencadeado uma tempestade com a sua fúria e a sua desconfiança, ninguém teria questionado se a morte de Evie se ficara a dever a causas naturais. A hemorragia em qualquer fase do processo era uma complicação dos aneurismas bem aceite. O médico legista teria assinado a certidão de óbito sem hesitar. Mas, por insistência de Sidonis, fora feita uma análise completa ao sangue de Evie. O assassínio ou o desaparecimento de Harry só contribuiriam para desencadear uma investigação intensa do caso de Evie. Harry fora poupado às mãos dos gladiadores a favor de uma retirada mais prolongada dos leões.

 

- Então, diga-me, doutor, como sabe que esse tipo do apartamento é o mesmo que matou a sua mulher?

 

- Não sei... Pelo menos não tenho a certeza. Agora, não se importa de sair?

 

- Tenho um mandado para fazer uma busca a este consultório e encontrar essa droga, doutor. E para revistar a sua casa, também.

 

- Oh, isto é ridículo! Se eu tivesse feito o que você diz, não seria estúpido ao ponto de ter aqui um fornecimento de Aramine.

 

- Doutor, você foi suficientemente estúpido para matar a sua mulher e julgar que conseguia safar-se. Não é estúpido ter aqui um fornecimento de Aramine. Estás a ver, Graham? Eu disse-te. Estes médicos julgam que os outros não têm miolos. É por isso que se lixam, e é por isso que são sempre apanhados.

 

O jovem agente mexeu-se na cadeira, embaraçado, e desviou o olhar.

 

- Vai revistar este consultório enquanto eu estou a ver os doentes?

 

- Não precisaremos de o fazer se nos disser a verdade. Olhe, eu sei do caso da sua mulher com o superdoutor. Sei que ela tencionava deixá-lo. Sei da apólice de seguro que você se prepara para arrecadar. Sei da droga que você usou. E sei que você era a última pessoa a querer que ela vivesse. E agora, doutor? Talvez tenha sido uma coisa de momento. Ela era uma linda mulher. Você não conseguiu suportar o facto de ela o deixar. De repente, passou pela farmácia. Pensou naquele aneurisma. A seguir, viu-se com a droga na mão... Segundo grau. Era o que você apanharia. Mais nada. Um homicídio do segundo grau não é grande coisa, doutor. Podia sair dentro de cinco anos. Talvez até não cumprisse a pena, se arranjasse um bom advogado.

 

Dickinson leu as palavras inscritas na estrela de prata. Matou três dos inimigos. Harry sabia que aquelas palavras não passariam despercebidas. De repente, teve uma ideia, ocorreu-lhe fazer uma pergunta e ouvir a resposta.

 

- Tenente, diga-me uma coisa - disse ele. - Se sabe isso tudo a meu respeito, e se está tão certo de que eu matei a minha mulher, porque não apareceu aqui com uma ordem de prisão?

 

- Desculpe?

 

- Um mandado de captura. Algum juiz ou magistrado ou seja quem for recusou-se a emitir um mandado de captura para mim, por homicídio, a menos que você tivesse encontrado Aramine. Não é verdade?

 

A expressão de Dickinson - a crispação à roda da boca revelou que ele fora descoberto.

 

- E se for? - ripostou ele. - Daqui a duas semanas, o grande júri reúne-se. E garanto-lhe que, com as provas que tenho para lhes apresentar, eles não terão problemas em condená-lo. Graham, vamos começar.

 

- Espere aí, agente.

 

Finalmente na ofensiva, Harry não tencionava deixar-se abater.

 

- Tenente, há mais qualquer coisa, não há? É a Maura Hughes? O seu magistrado acreditou nela quando ela disse que estivera mais alguém no quarto depois de mim. É isso, não é?

 

- Você matou aquela mulher, Corbett.

 

- Eles acreditaram nela, não foi?

 

- Não foi ela - respondeu Dickinson, mal conseguindo dominar a frustração e a raiva. - Foi o maldito do yalie. Aquele idiota ultrapassa-me. Fez um relatório. Lixou-se, foi o que ele fez. Acredite que o Charles Manson ainda há-de apanhar aquele maldito detective. E não julgue que comeram a história dele. Ele obrigou-os a aguardar que fossem averiguadas certas coisas, mais nada. E, quanto à sua testemunha embriagada, o irmão não vai conseguir fazer nada dela. E, assim que alguém olhar para ela e a ouvir falar, ninguém acreditará no que diz, a não ser as aranhas e as moscas. Agora, vai deixar-nos fazer o nosso trabalho?

 

- Tenho alternativa?

 

- Não, Corbett. Não tem alternativa. Você é um patife peneiroso. Detesto patifes peneirosos. E matou a sua mulher.

 

Também detesto quem faz uma coisa dessas. Isto ainda vai no princípio, doutor. Repare bem no que eu lhe digo. Vou apertá-lo até mais não poder. É, mais tarde ou mais cedo, você há-de confessar. Conte com isso. Anda, Graham. Vamos ao trabalho.

 

Dickinson e Graham levaram duas horas a revistar o consultório, sala por sala. Harry esperou até se certificar de que o detective não voltaria. Depois bebeu um café morno, comeu um bolo e voltou para o gabinete, tirou o pedaço de papel da carteira e telefonou a Maura Hughes. Ela atendeu ao sexto toque.

 

- Miss Hughes, fala Harry Corbett, o marido da Evie. Lembra-se de mim?

 

- Lembro.

 

Embora se percebesse o que ela dizia, a voz da mulher estava rouca e um pouco entaramelada. Harry não percebeu se ela voltara a beber.

 

- Como se sente? - perguntou.

 

- Tenho estado melhor.

 

- Desculpe.

 

- Mas também já estive pior.

 

Harry esperou que ela se mostrasse mais solícita, mas depressa percebeu que não valia a pena.

 

- A Polícia falou consigo?

 

- Não.

 

- Bem, eles saíram agora do meu consultório e creio que irão contactá-la dentro de pouco tempo. Encontraram uma droga no sangue da Evie. Ela foi assassinada.

 

Manteve-se o silêncio do outro lado da linha.

 

- Esse tal tenente Dickinson está convencido de que fui eu. Eu acho que deve ter sido o médico que você viu.

 

O silêncio continuou.

 

- Miss Hughes, ainda aí está?

 

- Fala a Maura. Ainda cá estou.

 

- Está bem?

 

- Quer saber se eu estou a beber?

 

Harry imaginou a mulher de roupão, sentada à mesa da cozinha de um apartamento acanhado e sujo, a olhar para um copo meio cheio e uma garrafa meio cheia de Southern cornfort. A imagem provocou-lhe um nó na garganta.

 

- Sim, acho que sim - respondeu Harry. - Desculpe.

 

Não tenho nada com isso. Ouça, quero encontrar-me consigo. É muito importante para mim.

 

- Porquê?

 

- Aquele polícia, o Dickinson, está apostado em prender-me pelo assassínio da Evie. Saiu daqui depois de ter revistado o meu consultório à vista de todos os meus doentes. Na realidade, houve momentos em que a única coisa que me impediu de lhe atirar uma cadeira à cabeça foi lembrar-me do que você lhe chamava. Estúpido.

 

- Eu lembro-me disso.

 

- Bem, eles só não me prenderam até agora porque alguém, um juiz, ou um delegado do Ministério Público, ou talvez um dos superiores do Dickinson, está preocupado que o homem a que o seu irmão se referiu no depoimento tenha mesmo lá estado.

 

- E esteve.

 

- Eu sei. É por isso que preciso de a ver. Tenho de saber quem é ele, e você foi a única pessoa que o viu.

 

Seguiu-se um longo silêncio.

 

- Quando é que você me quer ver? - perguntou ela, por fim.

 

- Não sei. Esta noite?

 

- Não posso.

 

- Amanhã, então. - Harry pensou em acrescentar que era o dia dos seus anos, dos seus cinquenta anos, mas mudou de ideias. - Maura, ouça, por favor não fique envergonhada por causa da bebida.

 

- Às sete e meia - respondeu ela. - Você tem o meu número de telefone, portanto presumo que sabe onde vivo.

 

- Sei. Obrigado, Maura.

 

- Doutor Corbett?

 

- Sim?

 

- Já não me lembro da última vez em que me senti envergonhada com aquilo que fiz. Mas, já que pergunta, a verdade é que, se parece que eu estive a beber, é só porque estava a dormir a sesta. Não bebo desde o dia em que fui operada.

 

- Ena, isso é formidável.

 

- Mas pouco faltou.

 

- Por favor, não faça isso!

 

Havia desespero nas palavras de Harry.

 

Mais uma vez, seguiu-se um longo silêncio.

 

- Acho que consigo aguentar, pelo menos até amanhã à noite. Talvez não me apeteça beber. Talvez eu esteja só chateada.

 

- O seu irmão disse que você pintava. Tem conseguido pintar desde que está em casa?

 

- Não. Não tenho feito grande coisa, excepto andar por aqui, dormir, ter pena de mim própria e pensar em beber.

 

- Ouça, talvez amanhã à noite pudéssemos ir jantar fora. É sobretudo graças a si que eu ainda estou em liberdade. Eu espevitava-lhe o cérebro e você saía um pouco de casa.

 

Se ela estivesse deprimida como parecia, não iria aceitar. Harry percebeu que ela procurava a melhor maneira de o dizer.

 

- Tenho de ir bem vestida? - perguntou ela, de repente.

 

- Não, só se lhe apetecer. Quando não estou a trabalhar, ando sempre de calças de ganga.

 

- Nesse caso, aceito. Gostava muito - respondeu Maura.

 

À meia-noite, quando dobrou oficialmente o cabo dos cinquenta anos, Harry celebrou o seu aniversário com uma taça de champanhe e bombons de chocolate Famous Amos. Não tivera cancro nem fora atropelado por um autocarro nos passados trezentos e sessenta e cinco dias, mas pensando bem, o seu quinquagésimo ano de vida fora bastante mau. E o começo do quinquagésimo primeiro não era muito prometedor. Durante algum tempo, entregou-se à autocomiseração, folheando o álbum do seu casamento com Evie. Depois, para adormecer, leu meia página do seu melhor soporífero, Moby Dick. Ahab também não estava a ter um grande ano.

 

Às cinco e quarenta e cinco, quando o rádio despertador tocou, Harry já acordara há quase uma hora e acabava o conjunto de exercícios físicos da marinha, que fazia nos dias em que não ia correr. Sempre fora uma espécie de atleta: basebol da Little League, corta-mato e alguns jogos de basquetebol na faculdade. Faltava-lhe a habilidade natural para ser uma estrela em qualquer actividade desportiva, mas o seu ardor competitivo fizera dele um vencedor bastante consistente. Contudo, nos últimos dez anos, o vigor que ainda possuía fora canalizado para lutar contra a passagem do tempo. Agora, enquanto resmungava depois de sessenta flexões e a caminho das setenta e cinco, descobria que ia buscar força à sua aversão desgastante a Albert Dickinson.

 

Na noite anterior, Harry chegara a casa e encontrara lá o detective, acompanhado de um outro polícia fardado. Estava a interrogar Armand Rojas, o porteiro de dia, mas calou-se assim que Harry apareceu à porta, e apresentou um mandado de busca do apartamento. Depois do fiasco de Rocky com o homem que fora entregar a comida chinesa, Harry gratificara generosamente os dois porteiros e implorara-lhes que estivessem alerta. Mesmo assim, quando se dirigia para o apartamento, seguido pelos dois polícias preparados para iniciar a busca, perguntou a si próprio se o misterioso médico não teria conseguido lá entrar outra vez para deixar uns frascos de Aramine. Por outro lado, receava também que Dickinson arranjasse uma maneira de fazer o mesmo.

 

Para seu grande alívio, a busca de hora e meia não revelou nada. Mas, à medida que o tempo ia passando, Dickinson ficava mais aborrecido, e mais determinado. Quando os dois polícias saíram, já Dickinson tinha mimoseado Harry com várias ameaças coloridas e insultuosas de lhe estragar a vida.

 

Havia um pequeno terraço fechado junto do quarto principal, donde se avistava metade de outro prédio de apartamentos. Podia ser considerado um solário, se alguma vez recebesse mais do que uma amostra de sol. Evie tinha muitos planos para o quarto quando se tinham mudado para aquela casa, mas depressa se desinteressou deles. Havia terraços semelhantes em todos os andares do edifício. Os dos andares superiores tinham vistas amplas e horas de sol directo. Com o tempo, o terraço passou a simbolizar aquelas coisas que Evie considerava de segunda categoria na sua vida, e ela nunca mais foi para lá.

 

Pouco depois, Harry substituíra a mesa, as cadeiras e o pequeno sofá pelo seu colchão de ginástica, pela bicicleta fixa, pelos pesos e por um televisor de trinta centímetros. Naquele momento, ligou-o para ver o noticiário da manhã e iniciou uma sequência de exercícios de elevação de pesos de cinco quilos, destinados a manter a força nos músculos dorsais - os músculos que tinham sido operados depois de dilacerados em Nha-trang. Naquela manhã, a notícia principal era acerca dos rumores crescentes sobre o comportamento sexual indecente que continuavam a fustigar o presidente e a minar a sua eficácia. A segunda notícia era sobre o flibusteiro republicano, que fora o único a rejeitar os capitais necessários para cobrir os prémios de seguros de saúde exigidos pelo pacote de cuidados de saúde da Administração Central. A terceira história era sobre o assassínio de Evie.

 

”Evelyn Della-Rosa, editora da revista Manhattan Woman e mulher do proeminente médico de Manhattan, doutor Harry Corbett, morreu de uma hemorragia cerebral na semana passada, no Manhattan Medical Center.” A fotografia de Evie apareceu atrás da locutora, atravessada pela palavra ASSASSINADA escrita a vermelho. ”Agora, de acordo com fontes policiais fidedignas, a morte da ex-rainha de beleza e repórter televisiva foi considerada um homicídio...”

 

Harry abandonou os pesos e pôs um joelho em terra, enquanto os pormenores das conclusões do médico legista eram apresentadas na televisão. Atrás da repórter, apareceu primeiro uma fotografia do MMC, depois uma imagem que representava um frasco de Aramine com uma seringa espetada na tampa e, por fim, uma fotografia do próprio Harry, tirada quando ele tinha vinte anos, fardado, e que alguém ressuscitara da morgue fotográfica do Times.

 

”De acordo com fontes policiais, o único suspeito que está a ser investigado pelo assassínio de Evelyn Della-Rosa é o marido, um clínico geral pertencente ao corpo clínico do hospital em que ela morreu. Diz-se que o doutor Corbett, que foi condecorado com a estrela de prata por actos de bravura cometidos no Vietname, foi a última pessoa a visitar a mulher antes da hemorragia fatal. Segundo a Polícia, o casal atravessava uma fase de problemas conjugais. Neste momento, não temos mais pormenores...”

 

Harry escondeu o rosto nas mãos. A fadiga e a transpiração faziam-lhe arder os olhos. Tal como prometera, Dickinson andava a fazer das suas. E, além de manter a maior compostura possível antes da erupção iminente, Harry não podia fazer mais nada. Nesse momento, o telefone começou a tocar. Era Rocky Martino, o porteiro da noite. Uma equipa de filmagem do Canal 11 acabara de entrar no átrio e o repórter exigia ver Harry para o interpelar sobre o assassínio da mulher.

 

”Diga-lhes que se lixem”, pensou Harry.

 

- Diga-lhes que não haverá entrevistas e não lhes conte nada. Absolutamente nada. Posso sair do prédio por aquela porta metálica da casa da caldeira?... Óptimo. Rocky, acredite que eu não fiz nada para magoar a Evie... Obrigado. Obrigado por dizer isso. Agora lembre-se, por muito que queira ajudar-me, não diga nada a ninguém.

 

Pouco depois de Harry ter desligado, o telefone voltou a tocar. Dessa vez era o irmão. Antes do funeral de Evie, Harry contara ao irmão uma grande parte do que transpirava no hospital com Sidonis e Dickinson. Phil oferecera-se para o pôr em contacto com um advogado de primeira água, mas Harry resolvera esperar.

 

- Tens estado a ver televisão? - perguntou Phil.

 

- Tenho.

 

- Estás bem?

 

- E tu estarias?

 

- Quando é que tiveste a certeza de que essa droga fora administrada a Evie?

 

- Ontem à tarde. Eles apareceram e revistaram o consultório. Depois, ontem à noite, revistaram-me a casa.

 

- Aposto que não encontraram nada. Harry, devias ter-me telefonado quando os polícias te apareceram no consultório. Tu tens direitos. Devias ter-me deixado telefonar ao meu amigo Mel. Ele é uma besta. É o filho da mãe mais odioso que eu conheço. Isto é um cumprimento, claro. Queres que eu lhe telefone agora?

 

- Como é que o conheceste, Phil?

 

- O que achas? Ele compra-me um Mercedes novo todos os anos, desde que eu estou neste ramo. Este ano foi um

 

600 S EL, dos grandes. Preto. É a primeira coisa que tens de saber quando contratares um advogado. Não é a universidade onde ele se formou ou a média de curso. É o automóvel que ele tem. É claro que isso te custa dinheiro. Talvez ele te cobre uns vinte ou vinte e cinco mil dólares.

 

Harry ficou escandalizado.

 

- Deixa-me pensar, está bem?

 

- Não leves muito tempo. Oh, Harry...

 

- Sim?

 

- Parabéns.

 

Mary Tobin telefonou a seguir. Harry vinha na primeira página de dois jornais. Garantiu-lhe que passaria o dia inteiro no consultório e disse-lhe que não discutisse com ninguém que quisesse desmarcar a consulta ou mudar de médico. Rocky, depois Phil e agora Mary... Eram apenas seis e meia. Em silêncio, agradeceu a Evie por insistir para que o número do telefone não viesse na lista.

 

Despiu o pijama e estava a esperar que a água do duche aquecesse quando o telefone começou de novo a tocar. Dessa vez, resolveu activar o atendedor de chamadas, mas ficou perto para saber quem era.

 

”Olá, ligou para casa de Evie e Harry...”

 

A voz era a de Evie. Era simultaneamente desagradável e fantasmagórico ouvi-la falar assim. Antes de sair para o emprego, tinha de fazer uma nova gravação, pensou.

 

”Doutor Corbett, fala Samuel Rennick. Sou o chefe dos serviços jurídicos do hospital. Se está a filtrar as chamadas, agradeço que atenda...”

 

Harry encostou-se à ombreira da porta da casa de banho. ”Maldito Dickinson”, pensou.

 

”...Muito bem. Acho que vou deixar uma mensagem e depois tento encontrá-lo no hospital...” O advogado fez de novo uma pausa. Era como se ele soubesse que Harry estava a ouvir. ”... O doutor Erdman gostava de falar consigo acerca das notícias desta manhã. No gabinete dele, às dez horas. Se não puder a essa hora, é favor telefonar à secretária dele. O doutor Erdman pediu-me que estivesse presente, assim como o doutor Lord, do pessoal, o doutor Josephson que é o chefe do seu departamento e o doutor Atwater da Manhattan Health. Estarei no gabinete do doutor Erdman a partir das oito. Poderá encontrar-me lá, se for preciso. Obrigado.”

 

Owen Erdman, um endocrinologista altamente comprometido com a política, que se licenciara e fizera o estágio em Harvard, era o director-geral do MMC há quase dez anos. Durante esse tempo, presidira à transformação física de uma instituição estafada e dera uma volta à sua reputação periclitante. A jóia da coroa da sua reforma fora a associação com a Manhattan Health. Mas Harry sabia que, com as novas políticas federais de saúde, as alianças entre os prestadores de cuidados de saúde eram tão frágeis como o gelo da Primavera, e que a fidelidade só tinha significado enquanto fosse rendível. A publicidade negativa para o MMC era forçosamente um motivo de preocupação para o seu director-geral.

 

Harry soubera pelos mexericos do hospital que a sua pequena vitória sobre as resoluções da Comissão de Sidonis não tinha caído bem junto de Erdman. Agora era responsável por mais um contratempo para a empresa do homem. Tomou um duche à pressa e depois telefonou ao irmão.

 

- Phil, resolvi aceitar a tua sugestão acerca desse advogado - disse ele.

 

- Boa jogada, mano.

 

- Se assim é, trata-se da primeira que faço desde há uns tempos.

 

O adiantamento do advogado Mel Wetstone, ”reduzido em vinte e cinco por cento por Phil ser um bom amigo”, era de facto de 20 000 dólares, além de uma taxa horária de 350. E ali estava o presidente a bater-se e a virar irmãos contra irmãos em todo o país para efectuar a reforma dos cuidados de saúde, pensou Harry. Talvez o sistema legal merecesse também uma certa atenção.

 

Harry resolveu retirar os 20 000 dólares do seu PPR, em vez de levantar uma boa parte das suas poupanças. Encontrou-se com o advogado na sala de reuniões dos médicos de família, que ficava no sétimo piso do Edifício Alexander do MMC. Wetstone era um homem próspero, de quarenta e tal anos, com cerca de doze quilos a mais, e cabelo escuro e ralo que parecia ter sido aumentado por via cirúrgica. A sua respiração era um pouco ofegante. Por vezes forçado a esquecer-se de que a bandeirada era de 350 dólares por hora, Harry contou toda a sua história em pormenor pela primeira vez, incluindo o encontro na Village com aquele que parecia ser o seu carrasco. Wetstone era um ouvinte compreensivo e só raramente interrompia a narrativa com uma pergunta.

 

- Portanto, o que o martiriza é que você não fez nada de mal e os outros julgam que fez - disse ele, depois de Harry ter acabado. - O meu trabalho será impedir que alguém o lese. Na sua opinião, o que se irá passar nesta reunião das dez horas?

 

- Não sei ao certo. Ultimamente, tenho tomado posições que não têm sido muito populares junto da administração. Agora, estou a criar-lhes uma má imagem pública. Não creio que me demitam neste momento, embora me pareça que podiam fazê-lo. É mais provável que me peçam para eu me auto-suspender até que a situação esteja resolvida.

 

- E você quer fazer isso?

 

- Não. Claro que não.

 

- Então, esse será o nosso objectivo. Você já me disse quem é esse Erdman e eu conheço o Sam Rennick. Quem são os outros tipos?

 

- O Bob Lord é o chefe do pessoal. É um cirurgião ortopédico. Não gosta que eu lidere a luta para continuar a permitir que os clínicos gerais tratem fracturas simples e não deslocadas com gesso sem recorrerem a um especialista. Dá muita importância às pessoas que estão e não estão no poder, e creio que está muito ligado ao cirurgião com quem a Evie andava envolvida. Não consigo imaginá-lo a pôr-se do meu lado. O Josephson e o Atwater são diferentes. São os melhores amigos que cá tenho. O Steve... é o Josephson, é o chefe interino do Departamento de Medicina Familiar, até que a Grace Segal regresse da licença de parto. O Atwater e eu somos ambos maluquinhos por jazz. Vamos juntos aos clubes, de vez em quando, e às vezes ele vai ouvir-me tocar.

 

Harry esperava que ele fizesse as perguntas habituais: ”Oh, que instrumento é que toca?” ou ”É profissional? Onde é que toca?” Mas Wetstone arrumou os seus apontamentos e levantou-se.

 

- Quero ver se consigo falar com o Sam Rennick antes de entrarmos - disse ele. - Deixei-lhe um recado para me contactar pelo pager, mas ele não o fez.

 

- Você disse que o conhecia. Talvez ele tenha medo de si. Wetstone sorriu, mas os seus olhinhos escuros eram frios e transbordavam profissionalismo.

 

- Não sei, mas devia ter - respondeu ele.

 

O Edifício Alexander tinha quinze pisos. Para baixo, o elevador ia quase cheio quando chegou ao sétimo piso. Ao chegar ao átrio, ia apinhado. Um letreiro na parede avisava os passageiros para terem cuidado com os carteiristas. Após milhares de viagens, Harry já mudava inconscientemente a carteira do bolso de trás para o da frente. Pensou no que seria trabalhar num hospital de uma zona rural, sem aglomerações nem avisos contra carteiristas. Duvidava que houvesse algum pequeno hospital rural que o aceitasse, nem que fosse no fim do mundo, se ele fosse afastado do MMC.

 

A sala de reuniões contígua ao gabinete de Owen Erdman possuía uma longa mesa de madeira de cerejeira polida, com os cantos abaulados e o emblema do MMC ao centro. Cada uma das cadeiras de espaldar alto, a condizer, tinha um emblema idêntico em miniatura, no topo. Harry entrara naquela sala há alguns anos, mas tinha a certeza que aquela mobília magnífica não existia nessa altura. Tentou avaliá-la rapidamente, mas depois desistiu quando percebeu que não tinha qualquer ponto de referência. ”A Evie saberia. Talvez ao pormenor do dólar, pensou.

 

Steve Josephson, Doug Atwater e o ortopedista Bob Lord já lá estavam quando Harry e Wetstone chegaram.

 

- Como estás? - perguntou Steve.

 

Harry respondeu encolhendo os ombros, como quem diz: ”Como achas que estou?”

 

Wetstone recomendara-lhe que não expusesse a sua teoria a ninguém, nem mesmo aos seus aliados.

 

- Lembra-se daquele jogo do telefone que costumávamos jogar nas festas, quando éramos crianças? - perguntara o advogado. - Bem, ouça a voz da experiência. Por muito bem-intencionadas que as pessoas sejam, no momento em que as palavras lhe saem da boca e elas as ouvem, a versão original começa a mudar.

 

Apesar da advertência de Wetstone, Harry não teria hesitado em contar os pormenores da vida secreta de Evie a Josephson ou a Atwater, se Bob Lord não estivesse presente. Fez-se um minuto e meio de silêncio incómodo antes de Erdman e de o consultor jurídico do hospital entrarem na sala. com eles vinha uma mulher bem arranjada e com um ar profissional, que se apresentou como Miss Hinkle, a responsável pelas relações públicas do hospital. Ao cumprimentá-la, Harry teve a sensação de que pegava num gelado.

 

- Doutor Corbett, poderia começar por rever os acontecimentos, tal como os vê, desde a noite em que a sua mulher morreu? - disse Sam Rennick.

 

- Um momento, Sam - interpôs Wetstone imediatamente. - Julguei que tínhamos assentado quais seriam as regras básicas aqui...

 

Sentindo-se estranhamente distante e distraído, Harry escutava os dois advogados, que nem sequer conhecia até então, e que agora debatiam a sua situação. De vez em quando, um dos outros presentes intervinha. Harry até ouviu a sua própria voz uma ou duas vezes. Mas as vozes pareciam distorcidas, e muitas vezes o significado das palavras perdia-se. Toda a situação era demasiado surrealista. Em vez de serem precisos e concentrados, os pensamentos de Harry eram difusos. Harry tentou imaginar quantas horas - centenas, talvez - teria ele de passar em processos legais. Atravessara para o outro lado do espelho e entrara num mundo em que tudo era possível, por muito ilógico ou bizarro que fosse.

 

Inexplicavelmente, apesar de o seu futuro profissional estar a ser discutido à sua volta, deu consigo a pensar numa doente, uma adolescente chamada Melinda Olivera, cuja grave mononucleose ele diagnosticara há pouco tempo e atacara com tal agressividade que, um dia depois, ela estava apta a ir ao baile do liceu. A prática da medicina sempre lhe parecera uma profissão muito frontal. Quando surgia um doente, ele fazia tudo o que podia para o curar. Agora, de súbito, havia advogados, administradores e directores de relações públicas.

 

- Discordo totalmente.

 

As palavras duras de Doug Atwater atravessaram o nevoeiro mental de Harry, que não fazia ideia do que estava a ser discutido.

 

- Já falei do assunto ao director-geral da Manhattan Health, que falou com o director clínico e com outros elementos-chave da empresa. Nunca houve uma única queixa do doutor Corbett... sobre a sua competência, sobre os seus honorários ou sobre a sua conduta. Não vemos motivo para que ele não continue a fazer parte do grupo de prestadores de cuidados de saúde da Manhattan Health.

 

- Mas o que dirá o público se...

 

- Doug - interrompeu Miss Hinkle.

 

- Por favor, não quero ser incorrecto, Barbara, mas do que precisamos é de uma declaração firme do hospital, na qual se diga que o doutor Corbett não foi formalmente acusado de nada até agora, e nós, neste hospital...

 

Harry ouviu pouco do que se seguiu, mas não porque estivesse ausente. Procurara uma caneta no bolso direito do seu blusão. Mas, em vez da caneta, deparara com dois objectos que não se encontravam lá quando ele vestira o blusão, de manhã. De facto, sabia que eles nem sequer estavam na sua posse. Devagar, agarrou neles e pousou-os no regaço.

 

- Está combinado - dizia Mel Wetstone. - O hospital assumirá a posição de apoiar um elemento respeitado do seu pessoal, que não foi condenado nem tão-pouco acusado de um crime. Pela sua parte, o doutor Corbett abster-se-á de fazer declarações públicas sem as esclarecer com Miss Hinkle. E os seus privilégios neste hospital permanecerão intactos, seja nas admissões seja nos tratamentos. Isto parece-lhe bem, doutor Corbett?... Doutor Corbett?

 

- Como? Oh, sim. Obrigado a todos. É excelente.

 

Mal conseguia desviar a atenção do que tinha na mão, agora aberta no regaço. Na palma da mão encontravam-se o seu relógio, a pata de coelho de Evie e as chaves, desaparecidos quando ele acordara no apartamento de Desiree. Algures nessa manhã, talvez no elevador cheio de gente, o assassino de Evie estivera atrás dele, ou talvez ao seu lado. As chaves destinavam-se a lembrar-lhe como ele era vulnerável: eram um aviso para que tivesse cuidado com o que dizia e a quem. Mas também havia outra possibilidade, ainda mais perturbante e assustadora: talvez ele não fosse mais do que um brinquedo, um penhor em qualquer jogo macabro, para o assassino da mulher.

 

- O que disse? - perguntou Wetstone.

 

- Desculpem? - respondeu Harry, reparando mais uma vez que estava distante.

 

- Harry, você disse algo como: ”... mas eu não serei assim tão fácil”. O que significa isso?

 

- Oh, nada. Nada importante - respondeu Harry, enfiando de novo o relógio e as chaves no bolso.

 

Juiz DETERMINA QUE MORTE DE REPÓRTER DE MANHATTAN FOI HOMICÍDIO

 

Kevin Loomis observava o título do Times. A fotografia de Evelyn Della-Rosa era a mesma do seu obituário. Tal como na semana anterior, Kevin tentou convencer-se de que a semelhança dela com Desiree era uma coincidência. Mas, no seu íntimo, sabia qual era a verdade. Há um mês e meio, só com um soutien e umas calcinhas, ela ajoelhara-se entre as suas pernas para lhe dar massagens que lhe aliviaram a rigidez das costas, fazendo-lhe perguntas sobre ele e a família num tom lisonjeiro e desarmante.

 

Kevin leu o artigo. As mãos tremiam-lhe tanto que teve de manter o jornal colado à mesa. Na última reunião, fora mais ou menos assumido que Desiree não constituía uma ameaça séria para a Roundtable. Alguns dias depois, ela fora assassinada na sua cama de hospital. O marido, um médico, era um dos suspeitos, mas não fora detido. Talvez porque não fora ele que a matara.

 

Kevin sentia-se esquisito. No caminho para a cidade, tentara convencer-se de que estava a reagir assim devido à intimidade, embora artificial, que partilhara com a mulher não havia muito tempo. Os jornais - e ele já lera a notícia em todos falavam de problemas conjugais. O Daily News aludia a um amante. Evelyn Della-Rosa, Desiree ou fosse ela quem fosse, fora morta pelo marido.

 

Kevin não se lembrava de ter feito nenhuma das curvas do caminho entre a rampa da sua casa e o edifício da Crown, no centro de Manhattan. Estacionou o carro no espaço assinalado com o seu nome pintado a azul na parede e apanhou o elevador para o seu gabinete no trigésimo primeiro piso. Brenda Wallace aguardava-o, e mal conseguia conter o entusiasmo quando lhe deu a notícia.

 

- A sua mulher telefonou há uns minutos, Mister Loomis

- começou ela, sem fôlego. - Disse que as pessoas que vão comprar a sua casa conseguiram a hipoteca e que o banco aprovou a operação para a sua nova casa em Port Chester.

 

Na soleira da porta, atrás dela, Burt Dreiser ergueu o polegar, fazendo um sinal de vitória a Kevin. A sua expressão não deixava dúvidas que ele interviera no sentido de apressar a venda.

 

”Sou muito bom a arranjar maneira de resolver os problemas”, dissera ele nesse dia, no barco.

 

- O contrato é assinado na quarta-feira - acrescentou Brenda, esfuziante. - Mistress Loomis diz que o senhor pode telefonar-lhe para o escritório, se quiser. Ela estará lá até às cinco horas. Também me pediu para lhe dizer que a casa não é muito importante, e que o senhor não é obrigado a ir avante, mas que este é o segundo dia mais feliz da vida dela, depois do dia do casamento.

 

O apartamento de Maura Hughes ficava em Upper West Side, a meio quarteirão de Morningside Park. Harry saiu do consultório e foi a pé, esperando que Maura honrasse a promessa de estar sóbria. O seu consultório ficava numa zona relativamente pobre e ele conhecia a doença do alcoolismo na sua forma mais virulenta e letal, além do seus múltiplos disfarces. Não seria um exagero afirmar que vira ainda mais tragédias provocadas pela bebida do que vira no Vietname durante dezoito meses. E não era muito tranquilizador ter o seu futuro ligado a uma mulher que ia perdendo a vida por beber. Mesmo sóbria, a credibilidade de Maura era pouca. Se recomeçasse a beber, deixaria de existir.

 

Graças ao facto de Maura ter afirmado que vira um médico misterioso e à falta de provas que ligassem Harry à injecção de Aramine, Dickinson não conseguira um mandado de captura. Mas Mel Wetstone corroborara a afirmação do detective de que um júri poderia condená-lo com base na impressionante prova circunstancial. O advogado parecia entusiasmado ante a perspectiva de defender Harry naquilo que poderia vir a ser um julgamento com as proporções do de Von Búlow. Sexo, adultério, dinheiro do seguro, a vida secreta de uma bela repórter, prostituição, venenos misteriosos e médicos. O director de um círculo mediático a 350 dólares por hora. Harry tentou recordar-se se alguma vez admitira a hipótese de cursar Direito.

 

Passou por uma florista, pensou em comprar um ramo de flores, mas depressa rejeitou a ideia. As flores faziam lembrar o hospital e prestavam-se a más interpretações. Não era que Maura Hughes parecesse mais interessada nele do que num copo de Southern Comfort. Mas, ao longo dos anos, Harry passara por experiências desagradáveis com doentes de ambos os sexos que tinham interpretado mal o seu empenho. Num dos casos, preocupado com o estado de uma mulher, telefonara-lhe fora de horas, e nem se apercebera da sua paixão por ele. Noutro, tivera uma longa conversa de madrugada com um jovem, junto da sua cama de hospital.

 

Por fim, Harry decidiu-se por uma caixa de bombons com recheio de hortelã-pimenta. Se Maura fosse um caso típico das pessoas que tinham deixado de beber há pouco tempo, o desejo de álcool seria em parte sublimado por uma paixão por doces.

 

As casas melhoravam consideravelmente à medida que ele se aproximava do quarteirão onde Maura habitava. Os prédios tinham porteiros e muitos estavam bem conservados. Eram quase sete e meia, mas o fim de tarde estava quente, sem nuvens e bastante claro. Harry parou junto de um parque infantil, onde um grupo de crianças, negras e brancas, jogavam basquetebol num campo alcatroado em mau estado. Eram essencialmente adolescentes e não tinham qualquer espírito de equipa, mas era divertido observar as suas técnicas. Harry inspirou a energia da cidade e começou a libertar-se um pouco da tensão que caracterizava aquele dia absolutamente horrível. Os únicos elementos positivos tinham sido os esforços bem sucedidos de Doug Atwater para o manter no hospital, pelo menos por enquanto, e os telefonemas e os gestos de apoio quase contínuos dos seus doentes.

 

Embora não soubesse o que esperar de Maura Hughes, [apercebeu-se de que estava ansioso por se encontrar com ela. Desde que Evie morrera, fora uma vez tocar contrabaixo com os colegas do C.C.’s, mas passara a maior parte das noites sozinho.

 

Maura morava num prédio de arenito de quatro andares, ibem conservado, com seis amplos lanços de escada em cimento, desde o passeio até uma porta de mogno esculpido. Havia um piso ao nível da rua, sem entrada exterior e com janelas protegidas por grades de ferro forjado. Harry desconfiou que se tratasse do apartamento de Maura. Ficou admirado ao ver [que, das três campainhas, a dela era a de cima. Identificou-se pelo intercomunicador e ela abriu-lhe a porta.

- Ao cimo das escadas - disse ela.

A voz dela parecia aguda e animada, o que era um sinal de esperança. Harry subiu as escadas, um pouco aliviado. Por muito que precisasse de companhia, tomar conta de uma alcoólica em plena actividade não era a melhor maneira de passar o seu tempo livre. Maura estava à porta. A imagem que Harry retivera dela no hospital era a de uma pessoa bastante baixa. Na realidade, era alta, com um metro e setenta e cinco ou um metro e oitenta, um porte majestoso e um corpo esguio que parecia perfeito dentro de uns sapatos de ténis, de umas calças de ganga gastas e de uma blusa de algodão muito larga. Usava um turbante branco e a sua única jóia era um par de brincos grandes, chapas de esmalte colorido ligadas umas às outras de tal modo que mudavam de aspecto como um caleidoscópio sempre que ela mexia a cabeça. Maura tinha um ar cansado e doente. A mão, magra e macia, estava fria. Excepto pelo penteado, Harry nunca reconheceria naquela mulher, de corpo flexível e desprovida de afectação, a doente inquieta e de olhar esgazeado que conhecera.

 

Ofereceu-lhe os bombons. Ela agradeceu-lhe com um sorriso ténue, mais triste do que alegre.

 

- Entre. Entre, por favor - disse ela.

 

- Esses brincos são muito bonitos.

 

- Obrigado. Fui eu que os fiz.

 

Harry foi atrás dela e entrou numa sala de estar enorme, um aposento quadrado, alegre e arejado, talvez com dez metros de lado. O soalho feito de tábuas estreitas de madeira de carvalho estava envernizado e coberto de carpetes orientais. O tecto era alto, e a luz indirecta provinha de reentrâncias que não podiam deixar de ter sido concebidas por um especialista. A casa não tinha qualquer comparação com o apartamento esquálido e deprimente de duas divisões que ele imaginara.

 

- Está admirado? - perguntou Maura, interpretando a expressão de Harry.

 

Harry apontou para as paredes, que estavam repletas de belos quadros. De um modo geral, as telas eram grandes e quase todas eram óleos ou acrílicos. Mas também havia aguarelas e colagens. Algumas, sobretudo os retratos, eram tristes e fortemente realistas. Mas os restantes eram abstractos, mundos dinâmicos de cor e forma, onde a organização meticulosa convivia com o caos absoluto. Harry nunca estudara arte, mas sempre fora sensível a ela. E o que sentia nesse momento era uma vibração extraordinária e uma raiva intensa e dominadora.

 

- Isto é espantoso - murmurou ele, passeando-se lentamente pela sala.

 

- Eu já não pinto assim. Não é que não queira.

 

- Estes são todos seus?

 

- Até os alcoólicos são capazes de fazer coisas - disse ela friamente.

 

- Desculpe, se lhe pareceu que era isso que eu queria dizer. Não era. Estes quadros são de facto espantosos.

 

- Obrigada. Quer beber alguma coisa? Uma Coca-Cola, Vinho?

 

- Uma Coca-Cola.

 

Harry ia comentar que era perigoso ter álcool em casa, mas refreou-se a tempo. Foi atrás dela para a cozinha, que era pequena, mas fora concebida por alguém que sabia cozinhar. A esquerda, viu outra divisão enorme: um estúdio com vários cavaletes, pilhas de telas e uma grande clarabóia. No canto oposto, por baixo de uma estante cheia de livros do chão até ao tecto e rodeada de fetos e de várias palmeiras, estava a cama de Maura.

 

- Olhe, desculpe se lhe pareço tensa ou nervosa - avisou ela, de costas, enquanto enchia dois copos. - É que estou mesmo. Talvez devesse ter-lhe telefonado a cancelar o encontro.

 

Estendeu-lhe o copo, levou-o para a sala e fez-lhe sinal para se sentar num sofá em frente de uma cadeira. Em cima da mesa de tampo de vidro estava o Times, aberto na página do artigo acerca de Evie. Harry apontou para o jornal.

 

- Aposto que, se tivesse convidado um suspeito de assassínio para beber uma Coca-Cola, também estaria um pouco nervoso - disse ele.

 

- Espero que saiba que não é por isso. Ambos sabemos que não foi você que deu aquela droga à sua mulher.

 

- Então quem foi?

 

- Doutor Corbett, por que motivo está aqui?

 

- Ouça, por favor. O meu nome é Harry. Assim que saio do consultório, deixo de ser o doutor Corbett.

 

- E saiu?

 

- Saí donde?

 

- Do consultório. Doutor Corbett... Harry... O meu irmão contou-me que você lhe dissera que era uma espécie de perito em alcoolismo e que conhecia gente capaz de me ajudar e ir comigo às reuniões dos AA, e tudo isso. Se veio cá para me salvar a alma, creio que poderemos ambos poupar-nos a um serão longo e incómodo. A minha alma está mais pronta a ser conservada em álcool do que a ser salva.

 

- Ouça, eu não sei exactamente o que disse ao seu irmão, mas não sou perito em coisa nenhuma, excepto talvez em tratar de doentes.

 

- Então não é por isso que está aqui? Não está aqui para se certificar de que eu não bebo?

 

- Também não foi isso que eu disse. Diga-me uma coisa. Se julgava que eu vinha cá para lhe salvar a alma, porque acedeu?

 

- Porque ontem, cá no meu íntimo, não me apetecia beber. Hoje, apetece-me.

 

Harry sentiu as paredes a fugir. Ou agira mal, ou ela estava determinada a levá-lo a isso. Se tentasse mentir-lhe naquele momento quanto aos seus motivos, ela perceberia. Se lhe dissesse a verdade ou tentasse pregar-lhe um sermão, talvez voltasse outra vez para o campo de basquetebol onde os miúdos jogavam, antes que a Coca-Cola aquecesse.

 

- Maura, estou aqui porque estou em apuros - disse ele, por fim. - Há um polícia que me quer crucificar e o meu hospital anda a tentar afastar-me. Você é a única pessoa que sabe qualquer coisa que pode ajudar-me. E eu não sei quem é que você viu junto da cama de Evie, nem por que motivo é que esse homem a matou. Mas, uma destas noites, ele poderia ter-me matado também, e não o fez. Creio que não o fez porque tem a certeza que, mais tarde ou mais cedo, a Polícia me prende. Poupou-me a vida porque julga que eu não tenho cartas para jogar. Mas eu tenho... Duas, por sinal. Eu ouvi a voz dele e você viu-o.

 

- E você julga que, se eu beber, não lhe serei útil.

 

- O que eu penso é que você ia morrendo da última vez que bebeu. E eu não quero que você morra.

 

Maura observou-o atentamente.

 

- Eu quero mesmo beber - afirmou.

 

- Eu sei - respondeu ele, com uma verdadeira empatia.

- Eu quero fugir disto tudo. Para um sítio onde o calor seja insuportável, onde se usem conchas como moedas e onde não se tenha ouvido falar de processos por negligência médica, nem do Serviço Nacional de Saúde, nem de jurados. Mas não vou fugir.

 

Maura abriu a caixa de bombons com recheio de hortelã-pimenta, meteu um na boca e fechou os olhos enquanto ele se lhe derretia na boca.

 

- Você conhecia o truque dos doces, não é verdade? perguntou ela.

 

Harry sentiu que se fazia uma pausa na construção do muro.

 

- Isso não faz de mim um perito. Maura saboreou outro bombom. - dez ou onze mil calorias em bombons, Life Savers e Kit Kats e ainda não aumentei trinta gramas. Imagine.

 

- Tem sorte. Eu, só de olhar para isso, tenho de alargar o cinto, imagine.

 

Maura pronunciou as palavras em uníssono com ele e por pouco não se riu. Por pouco. Harry ficou à espera. Ela pegou na ponta da caixa dos bombons, fechou-a e pô-la em cima da mesa. Harry sabia que era aquele o momento indicado. Ela tencionava pedir-lhe que abandonasse a sua cruzada para a manter sóbria e que se fosse embora. E, se o fizesse, ele seria obrigado a sair e ela beberia durante uma ou duas horas.

 

- Harry, desculpe-me por estar a criar-lhe tão mau ambiente - disse ela, por fim. - Suponho que você sabe que, neste momento, é a única coisa que me separa de uma garrafa de Southern Comfort que eu tenho na cozinha.

 

- A única coisa que a separa dessa garrafa é você mesma, Maura. Se o facto de eu saber isso faz de mim um perito, então talvez o seja.

 

No silêncio que se seguiu, Harry sentiu que o cimo do muro desabava. ”Cala-te!”, suplicou ele, no seu íntimo. Dissera o que pudera. Mais alguma coisa e ela ficaria deprimida. ”Nem mais uma palavra. Nem mais uma...”

 

- O que acha deste turbante? - perguntou ela, de repente. - Sinto-me muito envergonhada por ter tão pouco cabelo. Tentei usar uma cabeleira, mas achei ridículo.

 

- Como o Dickinson.

 

- O que disse?

 

- Como o Albert Dickinson. Você destroçou-o quando lhe disse que o capachinho dele parecia uma alface. Lembra-se?

 

Harry percebeu que ela não se lembrava.

 

- Ah, sim - respondeu ela sem convicção. - Você acha o turbante feio. Aposto. Acha que o devo tirar?

 

- Acho que você deve fazer o que quiser.

 

- Ainda quer ir jantar fora?

 

- Claro que sim.

 

- Mesmo com uma mulher atordoada e careca que está sempre a comer M&M de amendoim e Raisinets?

 

- Ponha-me à prova.

 

Maura tirou o turbante e atirou-o para o outro lado da sala. O seu cabelo louro quase ruivo crescera um pouco, embora ainda se visse a cicatriz da operação.

 

- Você está a observar-me.

 

Harry sabia que estava, embora não pelo motivo que ela julgava. Sem o turbante, era como se lhe visse o rosto pela primeira vez. O inchaço e as nódoas negras que tanto a desfiguravam tinham desaparecido. A pele era macia e clara, com um leve rubor natural e algumas sardas que lhe realçavam os malares salientes e bem feitos. Os olhos, de um verde-mar forte, pareciam possuídos de uma luz interior. E a boca era grande e sensual. Harry sentiu a boca seca.

 

- Eu... Hum... Não me parece que precise do turbante conseguiu ele dizer.

 

- Está bem, lá está você com a história do turbante. Se ainda lhe apetece ir jantar, sou doida por comida indiana.

 

- Apetece e conheço um bom restaurante.

 

Harry olhou à sua volta e percebeu que dois ou três dos retratos eram da própria Maura. Eram impecáveis. Indiscutivelmente. E havia uma certa constância no modo como ela se via a si mesma. Porém, na opinião de Harry, nenhum deles captara sequer o mais pequeno traço do fascínio e do mistério subtil que emanavam da mulher que estava sentada à sua frente.

 

- Sabe, você é um tipo simpático - disse ela. - Gostava de o ajudar, se puder.

 

Maura pegou num blusão que estava em cima de uma cadeira e vestiu-o.

 

- Harry, já alguém lhe disse que é parecido com... Espere, que eu estou a pensar... Oh, já sei, com o Gene Hackman. Acho que você é parecido com o Gene Hackman.

 

Harry olhou para ela com curiosidade, sem saber o que havia de responder. A expressão dela era tão natural. Ela não se lembrava.

 

- Humm... Sim. Já alguém me disse que eu era parecido com ele.

 

- Foi a sua mulher?

 

- Não, não. Foi outra pessoa. Maura, eu tencionava falar no médico misterioso depois do jantar, mas pode só dizer-me como é que ele era... Como é que o descreveu ao seu irmão?

 

Maura ia a responder. Depois, semicerrou os olhos. Harry percebeu que ela estava confusa.

 

- Sabe, lembro-me de ver alguém a entrar no quarto - respondeu ela. - Pelo menos, acho que sim. Mas mais nada.

 

- Quer dizer que não consegue descrever a cara dele? Maura deitou-lhe um olhar desanimado e abanou a cabeça.

 

- Harry, só agora é que me apercebi disso, mas não consigo. Não consigo descrever nada que se tenha passado naquela noite. Absolutamente nada.

 

- Repare nesse miúdo a marcar - disse Harry, quando se encontravam junto da vedação alta que rodeava o campo de basquetebol. - O pequeno, com a T-shirt da Knicks.

 

O adolescente, mais baixo e mais rápido que todos os outros, justificou a atenção, dando um salto e enfiando a bola no cesto.

 

- Belo salto - comentou Maura.

 

Ficaram a ver o jogo durante mais alguns minutos e depois desceram Manhattan Avenue na direcção de Central Park.

 

- Tem a certeza que quer ir a pé até ao restaurante? perguntou Harry.

 

- Sei que custa a acreditar, mas antes de torcer um pé a descer aquelas escadas era uma corredora razoável.

 

- Então vamos a pé.

 

Harry contou pormenores dos seus próprios esforços para se manter em forma.

 

- Você está a ser muito paciente por não me falar naquele médico do hospital - disse ela.

 

- Podemos falar disso mais tarde.

 

- É terrível, mas não me lembro do aspecto dele. Não tenho pensado muito no hospital, sobretudo porque não quero. Agora quero, mas é como se... Como se o meu cérebro fosse um queijo suíço. Certas coisas, algumas conversas, são claras como água. Outras...

 

- Só por curiosidade, lembra-se do amigo do seu irmão, o Lonnie? Ele estava no quarto nessa noite. Aquele a que chamavam Dweeb.

 

- Ele é negro, não é?

 

- Exactamente - respondeu Harry, entusiasmado.

 

Lembra-se do que ele levava vestido? Do que ele fez nessa noite?

 

- Usava chapéu. Um boné...

 

- Óptimo. Exactamente. E que mais?

 

Maura fixou o olhar num edifício e depois abanou a cabeça tristemente.

 

- Nada. Desculpe, Harry. É como se tentasse lembrar-me de quem estava sentado ao meu lado na terceira classe. Sei que lá estive, e consigo recordar algumas imagens nebulosas, até o vestido que a minha professora usava. Mas sem pormenores.

 

Harry lembrou-se da rapidez com que ela reparara no emblema de Jennifer e na cabeleira de Dickinson e como reagira durante as acções criadas por Dweeb. A zona especializada do seu córtex, responsável pela consciência, funcionara bem naquela noite, talvez com maior acuidade do que era normal. Mas a sua capacidade de arquivar informação, ou pelo menos de a recuperar, fora claramente afectada, muito afectada, aparentemente.

 

- Não é de admirar, suponho - disse ele, esperando que a sua preocupação e o seu desapontamento não fossem muito óbvios. - A concussão, a cirurgia, o álcool, a saída, a medicação... Considerando tudo isso, acho que você se saiu muito bem.

 

- Desculpe - repetiu ela. - Vou continuar a tentar. Se me lembrar de alguma coisa, você será o primeiro a saber.

 

- Obrigado. Já chega. Proponho que mudemos de assunto. Vamos falar de arte.

 

- E de heróis de guerra.

 

Ao longo dos anos, na maior parte das reuniões sociais, era raro Harry puxar a conversa. Digno de reflexão, era o modo como ele classificava esse tema; enfadonho, era o reparo frequente de Evie. Mas era extremamente fácil conversar com Maura Hughes. Harry divagou enquanto caminhavam e, de repente, deu consigo a falar candidamente na maldição dos Corbett e nas suas dores episódicas no peito - coisas que ele não partilhara com ninguém.

 

- Então, quem é o seu médico? - perguntou Maura quando ele acabou.

 

- Ando à procura de um - respondeu Harry à pressa. Maura parou, pegou-lhe nos braços e obrigou-o a voltar-se para ela. À preocupação ensombrava-lhe o rosto.

 

- Promete?

Harry não fazia ideia de quanto tempo é que esteve a observar os seus olhos cor de esmeralda antes de responder.

 

- Com tudo o que está a passar-se, não sei dizer quando. Mas prometo.

 

A luz mudou. Atravessaram Columbus e estavam a meio quarteirão de Central Park quando ela disse:

 

- Você devia saber que, apesar do meu comportamento dessa noite, tenho uma memória fotográfica para as coisas que me prometem. E consigo ser muito maçadora quando quero.

 

- Tenho a impressão que você é espantosa em qualquer coisa quando quer.

 

Harry ficou muito admirado com as suas próprias palavras. Estaria a namoriscar?

 

- Mas que comentário tão simpático, Harry - respondeu ela. - Sobretudo considerando que, neste momento, você viu-me mais com o delirium tremens do que sem ele.

 

- Diga-me, o que a levou a atravessar a fronteira?

 

- Refere-se à bebida?

 

- Refiro. Ela riu-se.

 

- Você julga que houve alguma tragédia, algum acontecimento horrível e medonho no meu passado que me atirou para a bebida?

 

- Eu... Hum... Acho que era isso que eu julgava, sim.

 

- Bem, lamento desiludi-lo. Há muita coisa no meu passado que eu desejaria que nunca tivesse acontecido. Mas não há nenhuma catástrofe, nenhuma tragédia. De facto, se houve alguma coisa, o álcool foi uma dádiva de Deus, pelo menos durante uns tempos.

 

Maura contou que fora criada por pais abastados, falou dos seus Verões em picadeiros, dos seus anos no colégio interno e, por último, da sua breve passagem pelo colégio de Sarah Lawrence. Nessa época, a revolta contra o estilo de vida e a hipocrisia dos pais já cavara um fosso entre eles que nunca seria transposto.

 

- Pouco depois, o meu... o meu pai sofreu graves reveses financeiros e a minha mãe deixou-o. Ele morreu num acidente de viação... algures à saída de Los Angeles. Não estava nada sóbrio, se é isso que quer saber... Uma mulher que ia com ele no carro também morreu.

 

Quando ela falou do pai, Harry notou uma alteração impressionante tanto na expressão como na voz de Maura. Os músculos do pescoço retesaram-se. A fala tornou-se difícil e hesitante. Era como se uma sombra opaca lhe caísse sobre os olhos - uma membrana protectora que lhe cobria os sentimentos.

 

- E a sua mãe? - perguntou ele, ansioso por ajudá-la a mudar de assunto.

 

- A minha mãe ainda é viva. Mas nem o tom nem eu sabemos dela, excepto no Natal. Duvido que esteja sóbria muitas vezes. Talvez porque os meus pais nunca falavam desses assuntos, tanto quanto me lembro, sou muito sensível às coisas do mundo que são trágicas ou injustas.

 

Maura contou que passara vários anos a tentar escrever o grande romance americano, incluindo dois anos numa reserva dos Navajos, no Arizona. Mas faltava chama à sua escrita, e as suas experiências com os Navajos e com outros povos que eram pobres e oprimidos parecia acentuarem ainda mais a sua sensação de impotência. Era como se quanto mais ela lutasse, menos sentido fizesse a sua vida.

 

- Um dia, não tanto para ter respostas como por uma questão de terapia, limpei o pó à minha caixa das tintas e estiquei umas telas. Tinha aprendido alguns rudimentos no liceu, mas nunca tinha pintado. Dessa vez, desde o início, pareceu-me que a pintura era a actividade certa para mim. Eu também não era má, mas parecia que ninguém reparava no meu trabalho. Depois, aconteceu-me uma coisa maravilhosa, o Southern Comfort. Descobri que a bebida me libertava de qualquer coisa que estava dentro de mim, ou que talvez limasse as arestas. Não sei. Mas sei que, quanto mais eu bebia, melhor pintava.

 

- Ou pelo menos julgava que pintava - corrigiu Harry.

 

- Não. Pode não acreditar, mas eu era melhor. As galerias viram e as pessoas que compravam arte, também. Durante algum tempo, as minhas obras foram muito procuradas. Até comprei aquele prédio onde vivo. Depois, a princípio sem me aperceber, comecei a passar cada vez mais tempo a beber ou a dormir durante as ressacas, e a pintar cada vez menos. Há três anos que ninguém se interessa por aquilo que eu faço. Não me lembro quando vendi a minha última obra.

 

- Você nunca procurou tratar-se junto de um conselheiro ou dos AA?

 

- Para quê? Eu tinha sempre motivos para beber: relações que se tinham deteriorado, injustiças, más recordações, problemas profissionais. Durante um tempo, frequentei uma psicoterapeuta. Ela disse que eu tinha apenas o temperamento e a paixão de uma artista. E, além disso, sempre acreditei que conseguiria sair quando me apetecesse. Agora, depois do que me aconteceu, não estou tão certa disso.

 

- É um começo.

 

- O quê?

 

- Admitir que talvez não consiga abandonar a bebida quando quiser...

 

O restaurante que Harry recomendara ficava na Rua 93, perto de Lexington. Entraram em Central Park pela Rua 97. Eram oito e quarenta e cinco, mas ainda havia uma réstia de luz do dia. Optaram por um caminho pavimentado que ia dar ao reservatório. A atmosfera estava quente e silenciosa, e a água parecia um espelho.

 

- Adoro esta cidade - disse Harry. - Sobretudo o parque.

 

- Vem muitas vezes passear para aqui, à noite?

 

Tanto quanto podiam ver, o caminho à volta do reservatório estava deserto.

 

- Considero que ainda não é de noite, mas a resposta é afirmativa. Não desafio a sorte metendo-me por entre os arbustos, mas as estradas aqui são seguras.

 

Harry atirou uma pedrinha à água.

 

- Treze saltos. Um novo recorde do mundo.

 

- Como é que eu só contei oito?

 

- Estou a ver que vou ter problemas consigo. Gozando o bem-estar e a tranquilidade que sentiam um com o outro, dirigiram-se para um caminho arborizado que ia dar à estrada. Os últimos vestígios da luz do dia tinham dado lugar ao crepúsculo.

 

- Ouça, Harry - disse ela. - Tenho estado a pensar e quero propor um acordo. Você acha que eu devia ir a um conselheiro ou aos AA. Eu acho que você devia consultar um cardiologista para averiguar o que se passa com essa dor. O acordo é o seguinte: se você enfrentar o seu problema, eu enfrento o meu.

 

- Já prometi que o faria.

 

- Eu estou a falar em enfrentá-lo depressa. Se quiser, eu vou a uma dessas reuniões amanhã.

 

- Acredite que eu não tenho angina de peito. Eu conheço a angina de peito. É que me sinto inquieto com esta dor no peito por causa da minha história familiar e...

 

- Está combinado ou não?

 

Pararam e olharam um para o outro. Harry engoliu em seco.

 

- Está combinado - respondeu ele. - Desde que você prometa que não bebe nada alcoólico sem me telefonar primeiro e sem me dar a oportunidade de a dissuadir.

 

- Combinado.

 

O sorriso de Maura era terno e cheio de esperança. Depois, de repente, a sua expressão alterou-se. Abriu muito os olhos.

 

- Harry! - exclamou, olhando por cima do ombro dele.

 

- Nem uma palavra, nenhum de vocês! - rosnou o homem atrás de Harry.

 

Harry reconheceu logo a voz. Pertencia ao mais corpulento dos homens que o tinham atacado no apartamento de Desiree. Harry ia a voltar-se, mas o rufião, mais alto do que ele, pôs-lhe um braço à volta do pescoço e apontou-lhe uma arma às costelas. Instintivamente, Maura virou-se para fugir e colidiu com o outro homem, que descera o caminho pelo lado da estrada, anulando qualquer tentativa de escapar nessa direcção. O local que tinham escolhido não se via da estrada que passava por cima, nem do reservatório mais abaixo. Maura deu um grito e o homem mais baixo e atarracado pegou-lhe no pulso e torceu-lhe o braço bem atrás das costas. Em seguida, obrigou-a a sair do caminho e a subir o declive na direcção dos arbustos. O homem que agarrara Harry empurrou-o rudemente atrás dela.

 

- Nada de murros desta vez, idiota - rosnou ele.

 

Harry tropeçou na raíz de uma árvore, mas o braço do gigante à volta do seu pescoço impediu-o de cair. Vinte metros mais à frente, a vegetação rasteira e a inclinação da encosta impediram-nos de continuar. Estava muito mais escuro ali do que no caminho.

 

- De joelhos, os dois - ordenou o homem mais alto. Derrubou Harry com um pontapé forte na parte de trás do joelho. Maura, com o braço levantado quase até ao pescoço, não conseguia resistir.

 

- Belo corpo - disse o rufião, quando a obrigou a deitar-se no chão, de cara para baixo. - É mesmo giro - acrescentou, ajoelhando-se em cima dela.

 

- Deixe-a em paz - suplicou Harry. - Ela não constitui qualquer ameaça para ninguém. Não se lembra de nada. Nada. Têm de acreditar em mim.

 

- Cala-te, raios!

 

Qualquer coisa sólida - o punho do homem ou o cano do revólver - atingiu Harry mesmo atrás da orelha direita. A dor e uma luz branca e cauterizante atravessaram-lhe a cabeça. Harry inclinou-se para a frente e caiu em peso, libertando o ar que tinha nos pulmões.

 

- Não! Por favor, não...

 

Através de uma névoa criada pelo estado de semi-inconsciência, Harry ouviu o grito de Maura. Depois, de repente, as suas palavras deram lugar a um murmúrio assustador. Harry sentia a debater-se, a bater desesperadamente com os pés no chão, ao lado da sua cara. Levantou a cabeça. Não via nada, mas, através da escuridão, avistou o homem atarracado sentado nas costas de Maura, com as mãos carnudas à volta do pescoço dela, a puxar-lhe a cabeça para cima e a incliná-la para trás, tentando estrangulá-la.

 

- Não! - gritou Harry, mas a sua voz não passava de um murmúrio rouco e impotente. - Não façam isso!

 

Debateu-se para tentar levantar-se, mas o monstro que estava atrás dele derrubou-o de novo com um pontapé no meio das costas.

 

De súbito, o homem que estava em cima de Maura soltou um gemido, caiu para a frente e para o lado e depois resvalou pela encosta na direcção do reservatório, como se fosse um boneco de trapos. No mesmo instante, o homem mais alto soltou um grito de dor e caiu no chão, agarrado ao braço direito. Instintivamente, deu duas voltas no chão e tentou abrigar-se atrás de um grande carvalho. Harry recuperava rapidamente a lucidez, mas ainda não conseguia perceber o que estava a passar-se. Depois, avistou a arma do homem a cerca de dois metros. Rastejou na sua direcção, esperando que o gigante não chegasse lá primeiro. Mas o homem, ainda agarrado ao braço e a cambalear, desapareceu no meio dos arbustos.

 

Harry agarrou no revólver e depois aproximou-se de Maura, a rastejar. A mulher estava deitada de barriga para baixo e muito quieta, mas respirava. Harry virou-a com cuidado e afagou-lhe a cabeça com a mão livre.

 

- Maura, já passou - segredou-lhe ele ao ouvido. - Sou o Harry. Você está bem?

 

Com os sentidos apurados e o dedo junto do gatilho do revólver, Harry tentou descortinar um movimento ou um vulto na escuridão. O ruído do assaltante a fugir desvaneceu-se e foi substituído por um silêncio tão denso como a escuridão do arvoredo.

 

Harry verificou a pulsação de Maura, palpando-lhe as carótidas. Era normal. Sentia a sua própria pulsação na cabeça. Os olhos de Maura abriram-se e ela desatou a soluçar baixinho. Harry continuou a perscrutar as árvores. Segurou a arma com a perna e acariciou a face de Maura.

 

- Ele estava a estrangular-me - queixou-se, tentando afastar a rouquidão. - Eu não conseguia respirar.

 

- Eu sei. Agora é mais fácil. Você já está bem?

 

- O que... aconteceu?

 

- Não tenho a certeza. Acho que os dois homens foram alvejados, mas não ouvi nenhum disparo. Você está bem?

 

- Estarei, assim que deixar de tremer. Foi tudo tão rápido.

 

- Eles trabalham para aquele médico que você viu. Acho que eles queriam matá-la e deixar-me vivo para tentar convencer a Polícia de que não fora eu.

 

Harry ajudou-a a sentar-se, mas continuou a apoiá-la com o braço à volta do ombro.

 

- Está ali alguém? - perguntou ela em voz baixa, apontando para a escuridão.

 

Puseram-se de novo à escuta. Mais uma vez, respondeu-lhes apenas o silêncio. Sem largar o revólver, Harry ajudou-a a levantar-se. Sentia a cabeça a latejar, a par de um certo atordoamento. Um ligeiro traumatismo, concluiu. Nada mais. Tocou na ferida que tinha atrás da orelha e fez um esgar de dor. Não tinha qualquer inchaço, o que não lhe permitia provar que tinham sido assaltados. Os dois rufiões sabiam o que estavam a fazer. Mas alguém os abatera.

 

Maura e Harry desceram o declive amparados um ao outro. O caminho, escuro mas um pouco mais iluminado do que os arbustos, estava deserto. Harry encostou de novo o dedo ao gatilho do revólver, enquanto ambos procuravam lentamente ao longo das árvores.

 

- Tinha a certeza que o patife caíra aqui - disse Harry.

 

- Talvez ele esteja apenas ferido, como o outro.

 

- Não teria rolado daquela maneira, mas talvez.

 

- Não me parece que queira voltar aqui ao parque mais alguma vez - afirmou ela.

 

- Acho que talvez não seja má ideia sairmos daqui.

 

Nesse momento, Maura apontou para a base de uma árvore, vários metros acima, no declive. Um braço saía de trás dela, e uma mão inerte balouçava, com a palma virada para cima. Harry e Maura deram uma grande volta e depois aproximaram-se da árvore pelo lado de cima. O homem que ia estrangulando Maura até à morte estava encostado ao tronco. Envergava umas calças de ganga escuras e uma camisola preta de gola alta. Um dos lados da cara estava encostado ao solo húmido. O seu olho visível estava aberto, sem nada ver, como se ele observasse o cimo do declive.

 

- Aqui. Olhe - disse Harry, apontando para uma mancha no pescoço do homem.

 

Maura inclinou-se e viu um buraco do tamanho de uma moeda, e um círculo de sangue que alastrava.

 

- O que havemos de fazer? - perguntou ela.

 

Harry procurou uma carteira nas calças do homem, mas sabia que não encontraria nenhuma.

 

- Não ouvi nenhum tiro - repetiu ele. - E você?

 

- Não, estava ocupada a ouvir as goelas a abrirem-se.

 

- Acho que quem alvejou estes tipos tinha um silenciador.

 

- E depois?

 

- Os assassinos profissionais usam silenciadores. Maura, acho que devemos sair daqui.

 

Maura esfregou o pescoço.

 

- Concordo - disse ela.

 

A descoberta de um homem morto a tiro em Central Park foi o tema principal dos noticiários da noite e dos jornais da manhã. A Polícia descobriu o corpo às dez horas, após um telefonema anónimo feito de uma cabina. A vítima não tinha carteira e ainda não fora identificada. As primeiras impressões indicavam que se tratara de um assalto, mas a Polícia não excluía a hipótese de que a morte fosse o resultado de um ajuste de contas.

 

Harry entrou no hospital para fazer as rondas matinais, com os pensamentos desordenados, como vinha sendo habitual. O mistério que envolvia a morte de Evie permanecia obscuro. E agora havia outras perguntas sem resposta que ensombravam ainda mais a situação. Quem é que estivera no caminho de Central Park, com um revólver munido de silenciador na mão, pronto a matar? A chegada do seu salvador teria sido uma coincidência? Tratar-se-ia de um vigilante anticrime? Nenhuma das explicações fazia muito sentido.

 

Algumas coisas, muito poucas, pareciam óbvias. Harry continuava convencido de que a sua vida não se encontrava em perigo: estava a ser poupada para desviar a responsabilidade pelo assassínio de Evie. Mas a sobrevivência de Maura não estava tão assegurada. Talvez Albert Dickinson não desse crédito ao relato da testemunha ocular, mas era óbvio que o assassino dava.

 

Durante a noite, ela pouco falara da sua provação. Mas Harry estremecia ao pensar no que ela tinha sentido, com um assassino a apertar-lhe o pescoço e a espinha quase a atingir o ponto de ruptura.

 

Depois de saírem do parque, tinham ido para o apartamento de Harry. Concluíram que a casa de Maura era demasiado vulnerável. E embora Rocky, o porteiro da noite, não assegurasse uma protecção que desse sossego a ninguém, era melhor do que nada. Maura tinha a certeza que o irmão já pusera em perigo o seu futuro na esquadra ao redigir um relatório formal a confirmar a sua história. Dessa vez, insistiu para que ele não fosse envolvido, pelo menos em termos oficiais. Harry não concordou totalmente, mas, depois de tudo que ela passara, não tentou fazê-la mudar de ideias. Contactou a esquadra de Central Park, de um telefone público. Por enquanto, tom Hughes ficaria de fora.

 

Quando chegaram ao apartamento, sentaram-se no sofá do pequeno gabinete de trabalho revestido de painéis de madeira de carvalho e acenderam a televisão. Maura, fisicamente esgotada, pouco falou. Bebeu um chá de ervas, comeu uns biscoitos e ficou a olhar para o ecrã. Cerca de uma hora depois, o noticiário do Canal 2 começou com a notícia do homicídio junto do reservatório de Central Park.

 

- Harry, acho que estou preparada - disse ela, depois de ouvir o breve relato. - Pode dizer-me o que está a acontecer?

 

- Quem me dera saber - respondeu ele.

 

Contou-lhe as descobertas confusas e deprimentes que fizera no apartamento de Evie em Greenwich Village. Disse-lhe que se lembrava do médico com o sotaque requintado e dos dois homens que o acompanhavam e que os tinham assaltado no parque. Maura ouviu tudo sem o interromper.

 

- Então está tudo ligado ao sexo - concluiu ela, quando ele terminou.

 

- De certo modo, acho que podemos dizer que sim. Algures na sua... O que posso chamar-lhe? Investigação? A Evie cruzou-se com a pessoa errada. Quem quer que a assassinou, ou mais provavelmente quem a mandou assassinar, fê-lo de modo a não levantar quaisquer suspeitas. Os aneurismas como o dela rebentam com frequência. Tenho a certeza que não era para ser criado qualquer tumulto à volta disso, nem para haver autópsia. Mas como Caspar Sidonis afirmou que eu tinha razões para a matar, isso alterou tudo. Agora, quem a matou na realidade está empenhado em provar que o Sidonis tem razão.

 

- E em eliminar a única testemunha ocular - acrescentou Maura. - Harry... Parece que a Evie era uma pessoa triste e confusa.

 

- Acredite quando lhe digo que ela não era assim.

 

- E quanto a filhos? Você não os desejava quando se casou?

 

- Oh, muito.

 

- E ela?

 

- Costumava dizer que sim, mas não creio que fosse sincera. Olhe, sei que parece que eu devia ter acabado com o casamento há vários anos, ou que nem sequer me devia ter casado. Mas, quer acredite quer não, no dia-a-dia não foi assim tão mau. Éramos iguais a muitos outros casais. Levantávamo-nos, íamos para o emprego, tínhamos algum dinheiro, tínhamos amigos, íamos de férias de vez em quando, comprávamos algumas coisas bonitas, fazíamos amor, pelo menos ao princípio. Eu olhava pelos meus doentes, tocava a minha música, fazia os meus exercícios físicos, corria no parque. Creio que não analisava a situação muito de perto.

 

- Compreendo. Acho que todas as pessoas que têm um mau casamento são culpadas de não quererem ver a realidade, às vezes durante muito tempo.

 

Maura recostou-se e fechou os olhos.

 

- Ainda há muito tempo, Harry.

 

- Para quê?

 

Ela bocejou e espreguiçou-se.

 

- Para tudo...

 

Horas depois, ensopado em suor, acordou de um sonho que já tivera muitas vezes. Era passado em Nha-trang, visto pelo cano da espingarda de Harry. Do outro lado do cano, um jovem soldado vietcongue erguia a arma. O seu rosto e a sua expressão eram indeléveis na mente de Harry. Com os olhos esbugalhados de medo, tenta nivelar a sua arma semiautomática. A espingarda de Harry dispara. O peito do jovem rebenta como um melão maduro. Ele é projectado para trás e cai no esquecimento. Pouco depois, outro soldado, ainda mais novo que o primeiro, aparece no extremo do cano. Vê Harry e o homem ferido no chão, a seu lado. Levanta a arma. A espingarda de Harry dispara outra vez...

 

A televisão tremeluzia na sala às escuras, com o som quase inaudível. Maura Hughes, coberta com uma manta de lã, dormia ao lado de Harry, com a cabeça no seu regaço. Harry desligou o televisor e sentou-se na penumbra, acariciando-lhe a face e o novo cabelo. Durante toda a noite, Maura não apresentara desculpas para ela própria ou para a sua vida, não racionalizara o vício da bebida. Não se lamentara da situação terrível para a qual fora lançada. Podia não ter medalhas, mas, à sua maneira, Maura Hughes era uma heroína. E Harry sentiu-se muito próximo dela. Mudou a posição das pernas. Ela gemeu baixinho, depois levantou-se e olhou para ele.

 

- Hum. Não o deixo ir para a cama? - perguntou, sonolenta.

 

- Não. Ultimamente, tenho passado mais noites neste sofá do que na cama. Porque não vai para o quarto de hóspedes para dormir a sério?

 

- Posso antes ficar aqui?

 

- Se quiser.

 

Com as pálpebras a fecharem-se, sorriu-lhe e depois encostou-se para o seu lado.

 

- Eu quero - murmurou em voz baixa...

 

Harry tinha três doentes no hospital. O primeiro, uma menina de quatro anos com asma, estava pronta para ter alta. Harry escreveu instruções pormenorizadas para a mãe, que era pouco mais do que uma criança. Mas não havia informações ou palavras de conforto que fossem suficientes para a acalmar. Harry tirou um cartão-de-visita da carteira.

 

- Aqui tem, Naomi - disse ele, escrevendo no verso do cartão. - Este é o número do telefone de minha casa. Se houver problemas com a Keesha, nem sequer tem de falar para o atendedor, a menos que eu não esteja em casa. Mas ela vai melhorar.

 

A adolescente guardou o cartão no bolso das calças de ganga, e depois aceitou a alta e os esforços de Harry para lhe dar um abraço.

 

O segundo doente, um velho, passara de um cardiologista para Harry, na sequência de uma estada de três dias no serviço de cardiologia. Era um velho desdentado, cuja mente confusa durava desde que Harry era o seu médico, há quinze anos ou mais. Com os serviços sociais e as enfermeiras do serviço ambulatório a trabalhar no seu caso, havia boas hipóteses de ele voltar para casa nessa semana. Deu uma palmada nas costas a Harry, chamou-lhe Dr. Carson e disse-lhe que continuasse a tentar porque ainda viria a ser um bom médico.

 

Harry sorriu tristemente ao pensar como eram vulgares as rondas como aquela, desde sempre. Naquele momento, ao atravessar o hospital, tinha consciência dos olhares, dos dedos apontados e dos segredinhos.

 

É aquele. O médico que matou a mulher. Não posso acreditar que o deixem andar pelo hospital desta maneira...

 

Apanhou o elevador para o quinto piso do Edifício Alexander. O elevador era o mesmo em que descera com Mel Wetstone. Dessa vez, o assassino de Evie fora uma das pessoas que viera encostada a eles. Agora, Harry ia só.

 

O último doente que visitara encontrava-se no quarto 505. Era um arquitecto de trinta e três anos, chamado Andy Barlow. Barlow era seropositivo há dois anos e agora lutava com uma pneumonia Pneumocystis carinii, o primeiro indício de que desenvolvera sida. Durante esses anos isentos de sintomas, Andy continuara a trabalhar numa empresa no centro da cidade, dedicava inúmeras horas de voluntariado a visitar os sem-abrigo e os desafortunados num hospício, e liderava a campanha a favor da troca de seringas e da melhoria dos serviços de saúde locais destinados aos doentes com sida.

 

”Outro verdadeiro herói”, pensou Harry ao entrar no quarto.

 

Andy Barlow, com os tubos do oxigénio no nariz, não tinha tão bom aspecto como Harry desejava. Tinha uma cor amarelada e um pouco escura, e os lábios mais arroxeados do que devia. Estava sentado num ângulo de oitenta graus, para que o ar lhe entrasse nos pulmões. Mesmo assim, conseguiu sorrir.

 

- Olá, doutor - disse ele, no meio de um ataque de tosse.

 

- Olá.

 

Harry puxou uma cadeira e sentou-se, folheando a ficha clínica de Barlow. Os resultados dos exames - contagem de glóbulos, níveis de oxigénio, análises, radiografia ao tórax pareciam melhores do que o doente. Eram uma razão para que ele estivesse, pelo menos, um pouco animado.

 

- Quais são as notícias? - perguntou Barlow.

 

- Bem, os relatórios destas pequenas jurisdições internas indicam que estamos a ganhar.

 

- Diga isso aos meus pulmões.

 

- Sente-se assim tão mal?

 

- Por acaso, não - respondeu Andy, fazendo uma pausa para tomar fôlego. - A minha respiração está um pouco melhor e já não tusso tanto.

 

Voltou a tossir várias vezes e depois riu-se de si próprio, acrescentando:

 

- Como de costume, o homem falou antes de tempo. Harry examinou-lhe a garganta, o peito, o coração e o abdómen.

 

- Não está mal - afirmou, verdadeiramente animado. Como se sente da cabeça?

 

Andy encolheu os ombros.

 

- Acho que ser seropositivo durante dois anos me ajudou um pouco a preparar-me para isto, mas ainda estou lixado e... e um pouco assustado.

 

- Também eu - disse Harry.

 

- Eu sei. E aprecio que o diga.

 

Andy Barlow não era o primeiro doente com sida de que Harry tratara, nem sequer o décimo. Hábitos saudáveis, exercício, cuidados preventivos e tratamento agressivo com injecções tinham contribuído significativamente para a qualidade e a duração das suas vidas. Mas alguns já tinham morrido. A infecção pulmonar de Barlow assinalava a primeira etapa de um novo caminho. Já se sabia que ele desenvolvera a doença e quando. Agora, médico e doente tinham de reordenar as suas prioridades e expectativas. Harry simulou mais um exame ao peito até ter a certeza de que conseguia dominar as suas emoções.

 

- Não se ofenda com o que eu vou dizer, mas acho que não tenho tanto medo de morrer como de estar sempre doente. Tenho passado tanto tempo nos hospitais com os meus amigos que já receio transformar-me num deles - disse Andy.

 

- Compreendo. Bem, prometo-lhe que farei tudo o que puder para o tirar daqui o mais depressa possível e para mantê-lo lá fora. E, quanto a estar sempre doente, sei que nada do que eu possa dizer afastará essa preocupação. Tente concentrar-se na realidade que é o seu presente... É tudo o que qualquer de nós tem. A única coisa que pode fazer é tentar vivê-lo ao máximo.

 

- Não deixe que eu me esqueça disso.

 

- Não deixo, se assim o quer. Agora, ouça. Julgo que o Bactrim intravenoso inverteu a corrente. A sua radiografia está um pouco melhor, assim como a sua contagem de glóbulos.

 

- Ainda bem, porque sou um dos principais criadores das remodelações no Claridge Performing Arts Center, e quero estar presente na estreia, no dia vinte e um.

 

- Daqui a dez dias? Não há problema, homem. Nem que vá com o meu estetoscópio atrás das costas.

 

- Está garantido?

 

- Tem a minha palavra.

 

Andy, que tinha um tubo intravenoso na mão direita, apertou a mão direita de Harry com a esquerda.

 

Harry apertou-lhe a mão com força, depois voltou-se rapidamente e saiu do quarto. Era uma situação a que nunca se habituaria. E, na verdade, nem queria habituar-se.

 

Regressou ao posto das enfermeiras e deu ordens por escrito para que a terapia respiratória de Andy Barlow fosse intensificada. Ali perto, duas enfermeiras conversavam com a enfermeira de serviço. Harry trabalhara com todas elas durante algum tempo, num ou noutro caso, e todas se tinham mostrado cordiais. Naquele momento, nenhuma das três interrompeu a conversa para lhe dar atenção. Harry fez-lhes sinal com as receitas e pôs a ficha clínica em cima da secretária.

 

- São receitas - disse ele.

 

- Obrigada, doutor - respondeu a mulher, sem levantar a cabeça. - Ficam entregues.

 

Harry ainda pensou em forçar um confronto com o grupo: uma contestação por estar a ser julgado prematuramente. Mas mudou de ideias. Apesar das garantias constitucionais, sabia que na mente de muita gente era culpado até ser provado o contrário. Enquanto a sua situação não se resolvesse, haveria frieza, distância e silêncio. E ele não podia fazer nada contra isso.

 

Desceu ao primeiro piso e saiu do hospital. A manhã não tinha nuvens e estava quente, e, como faltavam vinte minutos para começar a atender o seu primeiro doente no consultório, podia ir a pé e gozá-la. Como estaria Maura? Quando saíra de casa para ir trabalhar, ela começava a aperceber-se da sua verdadeira situação. Parecia irritável, vazia e distraída. E embora não o dissesse, pensava que tudo seria mais fácil se bebesse um copo. Tinham resolvido que ela voltaria a casa com uma amiga, meteria umas roupas na mala e se mudaria para casa de Harry durante uns dias. Entretanto, talvez resolvesse telefonar ao irmão. Harry oferecera-se para contratar um guarda pessoal quando ela regressasse a casa.

 

- Até quando? - perguntara ela.

 

Harry não tentara discutir com ela acerca desse ponto. Sobretudo porque ela tinha razão. Se alguém, sobretudo um profissional, lhe quisesse mal ao ponto de a matar, ela teria de esconder-se bem, caso contrário, seria morta mais cedo ou mais tarde. Era tão simples como isso.

 

Havia uma única pessoa sentada na sala de espera quando Harry chegou ao consultório, um homem que ele nunca vira. Os olhos encovados e o rosto esquelético denunciavam tempos difíceis. O cabelo preto, que começava a embranquecer, estava cortado curto, e Harry apercebeu-se da tensão nervosa do homem. Trazia umas calças de ganga desbotadas, uns ténis gastos e um blusão azul-marinho com um logotipo dos Yankees ao peito. Harry cumprimentou-o com um aceno de cabeça antes de entrar no cubículo de Mary Tobin. O homem respondeu com um sorriso ténue.

 

- Quem é o nosso amigo? - perguntou Harry em voz baixa, examinando o livro das marcações, onde se viam vários cancelamentos e não figurava o nome de nenhum doente.

 

- Chama-se Walter Concepcion. Está desempregado e não tem seguro de saúde.

 

- E que mais?

 

- Queixa-se de dores de cabeça.

 

- Quem o recomendou?

 

- Quer acredite quer não, ele diz que soube da sua existência pelos jornais.

 

- Médico suspeito de assassinar a mulher... Que melhor recomendação pode um doente desejar?

 

- Bem, o senhor nunca mandou embora nenhum doente, que eu me lembre, por isso tomei a liberdade de preencher uma ficha e de lhe entregar um questionário.

 

- Óptimo. Parece que não vamos ficar sepultados numa avalancha de marcações.

 

- Oh, cá nos arranjaremos. Mas diga-me, como está? ”Além de Maura quase ter sido assassinada ontem à noite, de eu ter presenciado um assassínio e de não fazer ideia do que se está a passar, não estou mal. Nada mal.”

 

- Vou para a cama confuso e levanto-me confuso - respondeu Harry.

 

- Nisso não é diferente das outras pessoas - disse Mary, a sorrir. - Descanse, que as respostas hão-de aparecer.

 

Mary tinha um aspecto mais esgotado e cansado do que nunca. No entanto, competia-lhe acalmar os doentes que telefonavam, aceitar cancelamentos sem fazer comentários, afastar os repórteres e ainda estava preocupada com ele. Harry incluiu-a na sua lista de heróis.

 

Pegou no bloco com o questionário que o seu novo doente preenchera. Walter Concepcion tinha quarenta e cinco anos, um irmão em Los Angeles e um endereço no Spanhish Harlem e não tinha telefone. Tal como Mary avisara, não tinha seguro de saúde. Mas indicava uma ocupação: detective particular. Harry apresentou-se e fez sinal ao homem para que o seguisse.

 

- Eu era detective particular encartado - explicou Concepcion em resposta à pergunta de Harry. - Mas tive um pequeno problema há uns anos e eles tiraram-me a licença.

 

O seu sotaque nova-iorquino, sem resquícios latinos, sugeIria que ele nascera nos Estados Unidos.

- Em Março, espero reavê-la. Continuo a fazer uns trabalhos, mas por baixo da mesa, se é que me faço entender.

 

A tensão que Harry sentira na sala de espera era visível no tique intermitente nos músculos do lado direito da face de fconcepcion, e nos dedos, que parecia estarem quase sempre em movimento.

 

- O problema que teve estava relacionado com drogas? - perguntou Harry.

 

Sem hesitar, Concepcion fez um sinal afirmativo.

- Cocaína. Crack, na realidade. Julguei que aguentava.

- Ninguém aguenta.

 

- Tem razão. Mas já há ’quase três anos que estou limpo. Nem drogas, nem álcool, nem vinho. Nada. Não é que mereça uma medalha por isso, mas regressei à minha actividade.

- É uma grande proeza - retorquiu Harry. - Não é preciso negá-lo.

 

Agradava-lhe a frontalidade do homem. Os olhos de Conception, embora encovados, eram brilhantes e inteligentes, e não se desviavam dos de Harry.

 

- Bem, Mister Conception, tenho vinte minutos para o atender - disse Harry. - As dores de cabeça são os sintomas mais difíceis de diagnosticar correctamente, mas farei o que puder. Talvez tenha de cá voltar mais uma ou duas vezes.

 

- Por mim, tudo bem, doutor, desde que possa espaçar os meus pagamentos. Não estou falido, mas tenho de me equilibrar, se é que me faço entender.

 

- Não há problema - respondeu Harry. - Entre na segunda porta à esquerda para eu ouvir a sua história clínica e o examinar.

 

Concepcion levantou-se e saiu do aposento no momento em que o telefone particular de Harry começou a tocar.

 

A linha particular, directa para o gabinete das traseiras, permitia que Harry fizesse telefonemas sem ser pela linha do escritório. Também garantia que as chamadas de emergência do hospital não seriam retidas por um sinal de interrompido.

 

- Doutor Corbett - disse Harry, verificando um pequeno monte de correspondência, quase tudo lixo, que Mary lhe deixara em cima da secretária.

 

- Estou muito aborrecido consigo, doutor - respondeu uma voz com um ligeiro sotaque que lhe era familiar. - Muito aborrecido.

 

Harry ficou tenso. Mesmo que quisesse avisar Mary, não tinha nenhuma linha de rede na secretária.

 

- Quem é você? - perguntou ele.

 

- O homem que você atraiu e matou com tanta crueldade, ontem à noite, era muito importante para mim.

 

As palavras eram desprovidas de qualquer emoção.

 

- Ouça, eu não atraí ninguém. Os seus capangas é que tentaram matar-nos. Não lamento que alguém nos tenha salvo a vida. Mas não sei quem foi.

 

- Acho que está a mentir, doutor Corbett. Eu é que tive a culpa por não me ter lembrado que você poderia ter arranjado alguém que o seguisse. Mas verá que se tratou de uma decisão infeliz e insensata para si. Muito infeliz e muito insensata.

 

- Quem é você? Porque anda a fazer isto? Porque matou a Evie?

 

- O senhor tornou-se um grande empecilho para mim, doutor Corbett - disse a voz. - E tenciono fazer alguma coisa por isso. Facilitaria a vida a muita gente se arranjasse uma maneira inteligente e indolor de acabar com a sua vida.

 

- Vá para o diabo.

 

- Morto ou condenado a prisão perpétua. Receio que estas sejam agora as únicas opções que lhe restam. Se não quiser matar-se agora, prometo que o fará dentro de pouco tempo. O homem cuja morte planeou ontem à noite era meu sócio. Será vingado.

 

Harry teve vontade de desligar o telefone, mas ficou ali sentado, transfigurado, tentando desesperadamente encontrar palavras que alterassem a situação.

 

- Porque não nos deixa em paz? Não sei quem você é, nem a Maura Hughes. Ela não se lembra do que se passou no hospital. De nada.

 

- Ah, quem me dera acreditar nisso. Voltemos ao duplo tema do seu castigo e do seu suicídio. Considero ambos essenciais. Para lhe mostrar que estou a falar a sério, escolhi aquele jovem com quem você esteve a falar há pouco. Barlow, não é?

 

- Seu patife! Não lhe toque!

 

- Um tipo simpático, ao que parece, mas que teve a pouca sorte de o ter como médico.

 

- Não!

 

- Pense nas suas opções, doutor Corbett. A morfina administrada por via intravenosa é totalmente indolor. Uns comprimidos para dormir também servem. Assim como o monóxido de carbono. Cair de uma grande altura também seria maravilhoso, e o sofrimento seria de curta duração. Uma bala no céu da boca talvez ainda doesse menos.

 

- Por favor - suplicou Harry. - Por favor, dê-me tempo. Dê-me tempo para decidir.

 

- Oh, você tem o tempo todo que quiser.

 

- Obrigado. Muito obrigado.

 

- Mas receio que Mister Barlow não tenha tempo nenhum. bom dia, doutor.

 

- Nããão! Raios, não - gritou Harry ao sentir o telefone a desligar.

 

Naquele momento, Harry levantou a cabeça e lembrou-se que Walter Concepcion estava à porta.

 

- Eu... Eu só queria saber se me dispo - disse ele, embaraçado.

 

Mary Tobin, reagindo ao grito de Harry, entrou a correr no gabinete.

 

- Telefone para o Alexander cinco - ordenou ele. - Peça-lhes que mandem alguém ao quarto quinhentos e cinco. Andrew Barlow. Quarto quinhentos e cinco. Eu vou a caminho.

 

- Sim, doutor - respondeu Mary.

 

- Mister Concepcion, terá de cá voltar outra vez.

 

Sem esperar pela resposta, Harry passou pelo homem estupefacto, saiu do consultório e viu-se na rua inundada de sol. Separavam-no seis quarteirões do Manhattan Medical Center.

 

Nessa parte da cidade, as pessoas não se admiravam muito de ver um homem de fato completo a correr pelo passeio, evitando os peões. Era como se Harry atravessasse uma zona de melaço. A temperatura aproximava-se já dos trinta graus e a manhã estava bastante húmida. As pessoas que passavam por ele afastavam-se e algumas viravam-se para trás. Mas quase todas continuavam a olhar depois de ele passar, para verem quem é que o perseguia. Harry sabia que era capaz de correr mais depressa, mas, como continuava a ignorar a causa da dor no peito, tinha relutância em esforçar-se demasiado. Mesmo assim, sentia umas pontadas do lado esquerdo. E, à medida que avançava, perguntava a si próprio quando é que aquele mal-estar fragilizante e envolvente se apoderaria dele.

 

Quando chegou ao hospital, levava o casaco na mão e serviu-se de uma das mangas para limpar o suor da face. Entrou a correr pela porta principal, esperando que o pager accionasse o Código 99 no Alexander 5. Mas tal não aconteceu, e o aparelho que levava preso ao cinto não disparou. O átrio estava cheio de gente, como de costume. Por deferência para com o hospital e os doentes, Harry abrandou a marcha e desceu o corredor até virar para o Edifício Alexander. A certas horas do dia, talvez fosse mais rápido ir de elevador. Mas Harry nem pensou duas vezes. Agradecido aos seus exercícios no circuito de manutenção, subiu as escadas a dois e dois. Voltou a sentir um certo mal-estar no peito, mas nada de grave, nada que parecesse do foro cardíaco. Talvez uma coisa de origem muscular ou gastrintestinal, concluiu.

 

O carrinho do Código 99 estava estacionado à porta do quarto 505. Harry soltou uma praga em voz alta, correndo para ele. Ia a aproximar-se quando percebeu que a tampa não fora removida. As duas enfermeiras, que o tinham desprezado de uma forma tão ostensiva há uma hora, estavam ali perto, a conversar. Olharam para ele, e Harry apercebeu-se do seu desdém.

 

- O que se passa? - perguntou.

 

- Nós não sabemos - respondeu uma das mulheres acintosamente. - Diga-nos o senhor.

 

Harry passou por elas e entrou no quarto. Steve Josephson, de estetoscópio ao peito, encontrava-se do outro lado da cama, inclinado sobre Andy Barlow, a examinar-lhe o peito e as costas. O jovem arquitecto, que inspirava oxigénio a um ritmo de seis litros por minuto, parecia o mesmo que deixara durante a ronda, doente, mas não moribundo.

 

- Problemas na base dos dois pulmões - murmurou Josephson, com os seus botões.

 

Levantou a cabeça e viu Harry.

 

- Olá, cá estás tu - disse ele. - Eu andava neste piso a acabar as rondas quando as enfermeiras me apanharam. Parece que a enfermeira do teu consultório telefonou e disse que havia uma emergência com Mister Barlow.

 

Harry aproximou-se da cama, ciente de que um grupo de pessoas - enfermeiras, a secretária do serviço e dois internos

- se juntava à porta. Sabia que, dissesse o que dissesse, a sua credibilidade, já muito afectada no hospital, em breve desapareceria. Fora apanhado por um louco, e com grande mestria.

 

- Recebi uma chamada pelo telefone directo do meu consultório - explicou Harry quase em surdina, esperando não ser ouvido pelo resto dos presentes. - O homem que falou comigo deu a entender... - Harry olhou para o seu doente e mediu as suas palavras com todo o cuidado -, ... que tencionava fazer mal ao Andrew, aqui, de qualquer maneira.

 

- Mas porquê? - perguntou Barlow, cujas palavras foram quase abafadas por um acesso de tosse.

 

Harry voltou-se para a multidão.

 

- Não se importam de fechar a porta? - pediu ele. Ninguém do grupo se mexeu. Harry aproximou-se para ser ele a fechá-la. A enfermeira-chefe, Corinne Donnelly, entrou.

 

- Autorizo-o a fechar a porta, mas tenciono ficar e ouvir exactamente qual é a explicação que o senhor tem a dar para isto - disse ela.

 

Donnelly, que tinha mais ou menos a mesma idade de Harry, já uma vez entregara uma amiga íntima aos seus cuidados. Agora, olhava-o com um ar de desafio, quase a implorar um confronto.

 

- Entre - convidou Harry, cansado.

 

A enfermeira fez sinal às outras pessoas para se afastarem e fechou a porta atrás de si. Steve Josephson encostou o corpanzil à parede. Harry virou-se para o seu doente.

 

- Andy, ainda não falámos disto, mas calculo que saiba da morte da minha mulher e o que alguns jornais e noticiários televisivos têm dito a meu respeito.

 

- Sei. Não acreditei neles.

 

As duas frases provocaram-lhe um novo ataque de tosse. Harry perguntou a si próprio o que estaria aquela cena a custar ao seu doente em termos de forças.

 

- Faz bem em não acreditar nos jornais - disse Harry. Eu não fiz mal à minha mulher. Mas quem lhe administrou aquela injecção letal está muito zangado comigo... Eu... eu não tenho a certeza se sei porquê. Parece que esse homem está decidido a atingir-me, ameaçando os meus doentes.

 

Steve Josephson perguntou:

 

- Queres dizer que, por causa do ódio que te tem, esse tipo matou a Evie e agora quer fazer mal aos teus doentes?

 

- Creio que há outros motivos pelos quais ele matou a Evie. Julgo que ele se sentia ameaçado por uma investigação que ela andava a fazer. Mas quanto ao Andy, a resposta é afirmativa. Sei que isto parece uma loucura, Steve, mas...

 

- Isso não parece uma loucura, doutor Corbett - disse Corinne, interrompendo-o. - Isso é uma loucura. Doutor Corbett. Acho que temos de falar no meu gabinete.

 

Harry olhou para o seu doente.

 

- O que tem a dizer... pode dizer aqui mesmo.

 

- De acordo, como queira, doutor. Tenciono telefonar à directora de enfermagem agora mesmo e pedir-lhe que fale com o doutor Erdman e com o doutor Lord imediatamente. Não acredito na sua história... acerca da sua mulher e desse homem misterioso que lhe telefonou. Não sei o que está a acontecer, o que se passa consigo, mas sei que o senhor sofreu uma mudança drástica nestes últimos tempos. Talvez seja uma espécie de síndroma de stress pós-traumático, qualquer coisa relacionada com a guerra. Ou talvez esteja relacionado com a sua mulher e com o doutor Sidonis. Seja como for, o senhor precisa de ajuda antes que alguém sofra com isso. E, a bem de todos, devia afastar-se voluntariamente deste hospital até se apurar a verdade. Este jovem já tem problemas suficientes e não precisa que o seu próprio médico o ponha em perigo. Harry olhou para o seu amigo de longa data. Josephson, embaraçado, mudou de posição e olhou para o chão. No meio do silêncio, ouviam o ruído do lado de fora da porta. O pessoal continuava ali, sem dúvida tentando ouvir o que estava a acontecer. Corinne Donnelly mexeu-se para pôr fim à escuta, mas Harry fez-lhe sinal para ficar.

 

- Está bem - disse ele. - Mistress Donnelly, tem razão. Tenho de fazer o que puder para impedir que os meus doentes sejam ameaçados por esse... esse lunático sádico. Mas não há motivo para pensar que o facto de eu sair do hospital porá cobro a esta situação. Deixar de exercer medicina seria admitir que eu cometi um erro, e eu não cometi nenhum. Desculpe, mas tenciono ficar a acompanhar isto até ao fim.

 

- O que não acontecerá se eu tiver uma palavra a dizer - disparou a enfermeira.

 

A mulher deu meia volta e saiu do quarto, quase chocando com o grupo de pessoas que estavam encostadas à porta.

 

- Harry, estou cem por cento contigo - afirmou Josephson. - Diz-me apenas se posso fazer alguma coisa. Até logo, Mister Barlow. Espero que saiba que não poderia ter um médico melhor do que este.

 

- Eu sei.

 

Josephson apertou a mão a Andy, depois deu uma palmada no braço de Harry e saiu, fechando a porta.

 

- Parece que ambos temos tempos difíceis à nossa frente

- disse Barlow.

 

A sua respiração era cada vez mais problemática. Harry percebeu que ele estava exausto e que precisava muito de descansar. O stress era perigoso para um homem no estado de Andy. Harry sentiu-se simultaneamente furioso e impotente. Estava a ser manipulado como um fantoche por um louco que tinha prazer em infligir sofrimento.

 

- Andy, desculpe - disse ele.

 

- O que pode fazer?

 

- Telefono mais tarde para saber se está tudo a correr bem consigo.

 

- Obrigado... Ouça, Harry.

 

- Sim?

 

Pela segunda vez naquela manhã, o jovem que acabara de contrair sida estendeu o braço e pegou na mão de Harry.

 

- Tudo correrá bem - assegurou.

 

- Sim, eu sei.

 

Harry voltou-se e saiu do quarto à pressa, e por pouco não chocou no corredor com um homem de pele cor de bronze, de bata cirúrgica, que levava o recipiente metálico do serviço intravenoso.

 

- Oh, desculpe - disse o homem, com um forte sotaque indiano.

 

Harry disse em voz baixa que não havia problema. Consciente de que todos se tinham voltado e de que toda a actividade parara assim que ele se aproximou do posto das enfermeiras, saiu daquele piso o mais depressa possível. Quando chegasse ao consultório, telefonaria a Doug Atwater para a Manhattan Health, no sentido de recolher apoios, caso Corinne Donnelly ou mais alguém tentasse afastá-lo do hospital. Também seria aconselhável telefonar a Mel Wetstone.

 

Ao descer as escadas, Harry perguntou a si próprio o que teria acontecido se, em vez de ter alvejado os dois homens em Central Park, o misterioso pistoleiro os tivesse apanhado e entregue à Polícia. Talvez todo aquele pesadelo tivesse acabado. Mas o assassino de Evie decidira que Harry pagaria por aquele tiroteio.

 

Harry entrou no corredor principal, apercebendo-se mais uma vez dos olhares e dos segredos. ”Isto ainda poderá ser pior?”

 

Cinco pisos acima, o enfermeiro do serviço intravenoso entrou no quarto 505, sem ninguém dar por ele, e preparou o equipamento junto da cama. Usava um turbante e uma barba de sique. Andrew Barlow olhou para ele, sonolento.

 

- Está tudo bem? - perguntou Andy.

 

- Oh, sim. Está tudo bem - respondeu o homem, num inglês sincopado. Examinou o equipamento intravenoso de Andrew através dos seus óculos de tartaruga. - É apenas um exame de rotina. Nada de agulhas. Nada de mais tubos.

 

- Oh, ainda bem.

 

Andrew fez um sorriso débil e fechou os olhos. O enfermeiro, cuja etiqueta do MMC o identificava como Sanjay Samar, enfermeiro, verificou o saco da glucose e os tubos de plástico. Em seguida, injectou uma pequena quantidade de líquido no tubo de borracha.

 

- É só para desentupir os tubos - disse ele, em voz baixa.

 

- Hummm - murmurou Andrew, sem abrir os olhos. Sanjay estava a arrumar o seu recipiente de metal quando reparou numa zona de pele clara no lado interior do cotovelo. De futuro, pensou, quando usasse aquele pigmento na pele, teria de ser mais cuidadoso. Saiu do quarto e encaminhou-se para as escadas que ficavam mais longe do posto das enfermeiras. Todo ele era profissionalismo, mas, por baixo dos óculos e das lentes de contacto castanho-escuras, os seus olhos azul-claros faiscavam.

 

- Bem doutor, vamos recomeçar.

 

- Donde?

 

- Do princípio, evidentemente.

 

Albert Dickinson, cujo fato amarrotado estava a precisar desesperadamente de uma limpeza a seco, apagou um Pali Mall e preparou-se para acender outro. O cinzeiro estava a abarrotar. O pequeno gabinete de interrogatórios tresandava a tabaco, a café e a odor corporal. Harry mexeu-se desconfortavelmente na cadeira com encosto de ripas e perguntou a si próprio se deveria dizer mais alguma coisa sem telefonar a Mel Wetstone. Mas a verdade é que não fizera nada de mal. E, à parte o seu envolvimento íntimo no crime de Central Park, na noite anterior, não tinha nada a esconder. Mesmo assim, os seus problemas aumentavam rapidamente. E agora...

 

                                                                                CONTINUA  

 

                      

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