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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM AMOR ASSASSINO / Julie Garwood
UM AMOR ASSASSINO / Julie Garwood

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio "SEBO"

 

 

 

  

A mãe de Avery Elizabeth Delaney, Jilly, era completamente louca.

Felizmente, partiu para parte incerta três dias depois de Avery nascer.

Avery foi criada pela avó Lola e pela tia Carrie. As três gerações de mulheres viviam tranquila e modestamente numa casa de dois andares em Barnett Street, apenas a dois quarteirões da praça central, em Sheldon Beach, na Florida. A atmosfera em Barnett Street ficou muito diferente depois de Jilly ter partido. A casa, que dantes estava em constante alvoroço, encontrava-se agora tranquila. Carrie até reaprendeu a rir, e durante cinco maravilhosos anos a sua vida foi praticamente idílica.

Porém, os anos anteriores com Jilly haviam deixado a sua marca na avó Lola. Ela só fora mãe quando já estava prestes a atingir a mudança de idade, e agora era uma mulher velha e cansada. Quando Avery fez cinco anos, Lola começou a sentir dores no peito. Mal conseguiu pôr a cobertura no bolo de aniversário da neta, tendo por vezes de se sentar e repousar um pouco.

Lola não contou a ninguém o seu problema, e não consultou o seu médico habitual em Sheldon Beach porque achou que ele seria incapaz de guardar segredo sobre o seu diagnóstico. Podia lembrar-se de falar a Carrie da sua doença. Marcou então uma consulta com um cardiologista em Savannah e foi até lá de carro. Depois de lhe ter feito um exame completo, o diagnóstico do médico foi penoso. Receitou-lhe medicamentos que aliviariam a dor e ajudariam o seu coração, disse-lhe que tinha de moderar as suas actividades e também sugeriu, o mais gentilmente que pôde, que ela pusesse todos os seus assuntos em ordem.

Lola ignorou os seus conselhos. O que poderia saber aquele curandeiro? Ela podia estar com um pé para a cova, mas, por Deus, iria manter o outro firmemente pousado no chão! Tinha uma neta para criar e não tencionava ir a lado nenhum até ter cumprido a sua missão.

Lola era especialista em fingir que estava tudo bem. Aperfeiçoara essa arte durante os anos turbulentos em que tentara controlar Jilly. Quando regressou de Savannah, convencera-se de que era saudável como um touro.

E pronto.

A avó Lola recusava-se a falar de Jilly, mas Avery insistia, queria saber tudo. Sempre que fazia uma pergunta sobre a mãe, a avó unia os lábios numa linha fina e respondia a mesma coisa.

- Desejamo-la bem. Desejamo-la bem longe daqui.

Então, antes de Avery poder tentar de novo, a avó mudava de assunto. E isso, claro, não era uma resposta satisfatória, sobretudo para uma criança curiosa.

A única maneira que Avery tinha de descobrir tudo sobre a mãe era perguntando à tia. Carrie adorava falar de Jilly, e não esquecera nem uma das coisas más que a irmã fizera, que, por sinal, haviam sido muitas.

Avery idolatrava a tia. Considerava-a a mulher mais bonita do mundo, e desejava ser mais parecida com ela do que com a mãe que não prestava. Carrie tinha o cabelo da cor do doce de pêssego que a avó fazia, e olhos mais cinzentos que azuis, como os do gato branco peludo de que Avery vira desenhos num dos seus livros de histórias. Carrie estava constantemente de dieta para perder oito quilos, mas Avery achava-a perfeita assim mesmo. Com um metro e sessenta e dois, Carrie era alta e charmosa, e, quando punha um dos seus travessões brilhantes para afastar o cabelo dos olhos enquanto estava a estudar ou a fazer qualquer coisa em casa, parecia mesmo uma princesa. Avery também adorava o cheiro dela, a gardénias. Carrie contou a Avery que era o seu perfume de marca, que Avery sabia ter de ser muito especial. Quando Carrie estava fora de casa e Avery se sentia sozinha, enfiava-se no quarto da tia e borrifava os braços e as pernas com um pouco do perfume especial, e fingia que a tia estava ali ao lado.

No entanto, o que Avery apreciava mais em Carrie era o facto de ela a tratar como se fosse uma adulta. Não a tratava como um bebé, como a avó Lola fazia. Quando Carrie se referia a Jilly, começava sempre por ser directa:

- Não vou adoçar a verdade só porque tu és pequena. Tens o direito de saber.

Uma semana antes de Carrie se mudar para a Califórnia, Avery entrou no seu quarto para a ajudar a fazer as malas. Estava sempre a atravessar-se no caminho e, quando Carrie se fartou, sentou a sobrinha no toucador e pôs diante dela uma caixa de sapatos cheia de bijutaria. Coleccionara as bugigangas nas vendas de garagem dos vizinhos para as dar de presente a Avery antes de partir. A criança ficou encantada com os tesouros reluzentes e começou imediatamente a enfeitar-se diante do espelho oval.

- Porque é que tens de ir para a Califórnia, Carrie? Devias ficar em casa comigo e com a avó.

Carrie soltou uma gargalhada.

- Devia?

- É o que a Peyton diz. A Peyton diz que a mãe dela diz que já foste para o colégio e que agora devias ficar em casa a ajudar, porque eu dou muito trabalho.

Peyton era a melhor amiga de Avery, e, como tinha mais um ano, Avery acreditava em tudo o que ela dizia. Na opinião de Carrie, a mãe de Peyton, Harriet, era uma metediça, mas como era simpática para Avery, Carrie continuava a aturar as suas ocasionais intromissões na sua vida.

Depois de ter dobrado a camisola preferida de angora azul-bebé e de a ter metido na mala, Carrie tentou explicar mais uma vez por que motivo se ia embora.

- Tenho aquela bolsa, lembras-te? Vou tirar uma licenciatura e sei que já te expliquei pelo menos umas cinco vezes por que motivo ter mais estudos é importante. Tenho de ir, Avery. É uma excelente oportunidade para mim, e depois de ter a minha empresa e ficar rica e famosa, tu e a avó vão viver comigo. Teremos um casarão em Beverly Hills com muitos criados e uma piscina.

- Mas depois não posso ter as minhas aulas de piano, e Mistress Burns diz que devo ter porque tenho bons ouvidos.

Como a sobrinha mostrava um ar tão sério, Carrie não ousou rir.
- Ela acha que tens bom ouvido, e isso quer dizer que, se praticares, poderás ser boa, mas podes sempre ter aulas de piano na Califórnia. Também podes ter aulas de karaté.

- Mas eu gosto de ter aulas de karaté aqui. O Sammy diz que os meus pontapés estão a ficar mais fortes, mas sabes uma coisa, Carrie? Ouvi a avó dizer à mãe da Peyton que não gosta que eu tenha aulas de karaté. Diz que não é próprio de uma senhora.

- Azar - respondeu Carrie. - Eu é que estou a pagar as aulas e quero que cresças sabendo defender-te.

- Mas porquê? - indagou Avery. - A mãe da Peyton também perguntou porquê à avó.

- Porque não quero que ninguém te trate como a Jilly me tratou. Não vais crescer com medo. E tenho a certeza de que há excelentes escolas de autodefesa na Califórnia, com professores tão simpáticos como o Sammy.

- A mãe da Peyton diz que a avó disse que a Jilly se foi embora para ser uma estrela de cinema. Não queres ser também uma estrela de cinema, Carrie?

- Não. Quero montar uma empresa e ganhar uma pipa de massa. Vou tornar as outras pessoas estrelas de cinema.

Avery virou-se para o espelho e colocou uns brincos grandes de brilhantes verdes. Depois desemaranhou o colar correspondente e pô-lo ao pescoço.

- Sabes o que mais disse a Peyton? - Não esperou por resposta. - Que a mãe dela disse que, quando a Jilly me teve, já tinha idade para saber como eram as coisas.

- Precisamente - respondeu Carrie. Pegou na gaveta das meias, despejou o conteúdo em cima da cama e começou à procura dos pares. - A Jilly tinha dezoito anos.

- Mas o que queria dizer a mãe da Peyton? O que devia ela saber?

Carrie ignorou a pergunta. Não queria ter de explicar à sobrinha o que eram o sexo e os contraceptivos. Avery era demasiado nova para ouvir aquelas coisas.

- Sabes, tens muita sorte - declarou ela, tentando desviar a atenção de Avery.

- Porque te tenho a ti e à avó para tomarem conta de mim, que sou muito travessa?

- Sim, senhora. Mas também porque a Jilly não bebeu demasiado álcool nem se encharcou em comprimidos quando estava grávida de ti. Se ela tivesse enfiado todo aquele lixo dentro dela, tu terias nascido com problemas graves.

- A Peyton diz que a mãe dela diz que eu tenho sorte por ter nascido.

- A mãe da Peyton gosta muito de falar da Jilly, não gosta? - retorquiu Carrie, exasperada.

- Sim. Os comprimidos fazem mal?

- Fazem. Matam-nos.

- Então porque é que as pessoas os tomam?

- Porque são estúpidas. Guarda essas jóias e vem-te sentar em cima da mala, para eu a conseguir fechar.

Avery guardou cuidadosamente os brincos e os colares na caixa de sapatos. Subiu para a cama de dossel.

- Posso ficar com isto? - perguntou, pegando num livro pequeno com capa de vinil azul.

- Não podes, não. É o meu diário - respondeu Carrie. Arrancou o livro das mãos de Avery e meteu-o num dos bolsos laterais. Fechou a mala e Avery empoleirou-se em cima dela. Aplicando todo o seu peso, Carrie conseguiu finalmente trancá-la.

- Porque estás a fazer a mala agora e não na próxima semana? - perguntou Avery enquanto Carrie a ajudava a descer da cama. - A avó diz que estás a fazer as coisas ao contrário.

- Fazer as malas antes de pintar o quarto para ti não é fazer as coisas ao contrário. Assim, as minhas coisas deixam de estorvar e podemos instalar-te neste quarto antes de eu me ir embora. Amanhã, vamos as duas à loja das tintas escolher a cor.

- Eu sei. Já me disseste que posso escolher a cor. Carrie?

- Sim? - perguntou ela pousando a mala junto à porta.

- A minha mãe má odiou-me quando me viu?

Carrie virou-se, viu a mágoa nos olhos de Avery e ficou furiosa. Embora Jilly já lá não vivesse, continuava a causar dor. Quando terminaria?

Carrie lembrava-se, como se tivesse acontecido na véspera, da noite em que descobrira que a irmã ia ter um bebé.

Jilly terminara o liceu numa sexta-feira amena de Maio. Depois chegara a casa e arruinara a comemoração ao anunciar que estava grávida de quase seis meses. A barriga ainda mal se notava.

Chocada, Lola pensou primeiro na vergonha que a família teria de suportar, mas depois caiu em si.

- Nós somos uma família - disse. - Haveremos de resolver isto. Haveremos de arranjar uma solução, não é, Carrie?

De pé junto à mesa da sala de jantar, Carrie pegou na faca e cortou uma fatia do bolo que Lola passara a manhã a decorar.

- Nos tempos que correm é preciso uma pessoa ser muito estúpida para se deixar engravidar. Nunca ouviste falar em contraceptivos, Jilly, ou és completamente idiota?

Jilly encontrava-se encostada à parede, de braços cruzados, a fulminar Carrie com o olhar. Lola, desejando evitar uma gritaria entre as filhas, interveio apressadamente.

- Não é necessário seres grosseira, Carrie. Não queremos perturbar a Jilly.

- Tu é que não queres perturbá-la - corrigiu Carrie.

- Não me fales nesse tom!

Arrependida, Carrie baixou a cabeça e pôs a fatia de bolo no prato.

- Sim, senhora.

- Não pensei em contraceptivos - declarou Jilly. - Fui a um médico em Jacksonville para me livrar do bebé, mas o médico recusou-se a fazer o serviço porque parece que a gravidez já estava demasiado avançada.

Lola sentou-se numa cadeira e cobriu o rosto com a mão.

- Foste a um médico...

Jilly já não estava interessada no assunto. Foi para a sala de estar, atirou-se para o sofá, agarrou no comando da televisão e ligou o aparelho.

- Ela faz as asneiras e depois afasta-se - murmurou Carrie.

- Nós que tratemos de tudo. É mesmo típico!

- Não comeces, Carrie - implorou Lola. Esfregou a testa, como se para aliviar uma dor de cabeça, e acrescentou: - A Jilly nem sempre pensa nas coisas.

- E porque haveria de o fazer? Estás cá tu para reparar os erros dela. Deixa-la safar-se sempre porque não suportas os seus ataques de fúria. Acho que tens é medo dela.

- Isso é ridículo! - exclamou Lola. Levantou-se e foi para a cozinha lavar a louça. - Somos uma família e haveremos de ultrapassar isto! - gritou de lá. - E tu vais ajudar, Carrie. A tua irmã precisa de apoio moral.

Carrie cerrou os punhos, frustrada. Do que é que a mãe precisaria para abrir os olhos e ver a criatura egoísta que criara? Não seria capaz de ver a verdade?

O resto desse Verão era uma recordação desagradável. Jilly exigiu tudo e mais alguma coisa, e a mãe esfalfou-se para lhe fazer todas as vontades. Felizmente, Carrie tinha um trabalho de férias no Sammy’s Bar, e fez o maior número possível de horas extraordinárias para não ter de estar em casa.

Jilly entrou em trabalho de parto no fim de Agosto. Depois de ter dado à luz no hospital local, olhou para a criança chorosa e de rosto inchado que lhe causara tantas dores e decidiu que não queria ser mãe. Nem naquele momento, nem nunca. Se os médicos tivessem concordado, teria retirado o útero ou laqueado as trompas nesse mesmo dia.

Lola arrastou Carrie até ao hospital para ver a irmã. Ainda não tinham entrado bem no quarto quando Jilly anunciou que era demasiado nova e bonita para ser sobrecarregada com uma filha. Havia um mundo muito vasto para lá de Sheldon Beach, Florida, à espera de lhe dar alguma atenção, mas nenhum homem com dinheiro repararia nela se a visse com um bebé ao colo. Não, a maternidade não era para si. Além disso, estava determinada a tornar-se uma estrela de cinema. Começaria por se fazer coroar Miss América. Já pensara em tudo, declarou. Vangloriando-se que era muito mais bonita que aquelas vacas que vira o ano anterior na televisão a desfilar pelo palco em fato de banho, estava certa de que os juizes, assim que a vissem, não hesitariam em entregar-lhe a coroa.

- Credo, és mesmo ignorante - murmurou Carrie. Eles não entregam coroas a raparigas que tiveram filhos.

- Tu é que és ignorante, Carrie.

- Calem-se as duas! - ordenou Lola. - Querem que as enfermeiras vos ouçam?

- Não me importa que ouçam - respondeu Jilly.

- Já te mandei calar! - exclamou Lola. - Usa a cabeça, Jilly. Agora és mãe.

- Não quero ser mãe, quero ser uma estrela! - gritou Jilly. Mortificada, Lola puxou Carrie para dentro do quarto e mandou-a fechar a porta. Agarrando no vaso com uma planta que trouxera para Jilly com uma mão, e com a outra segurando o braço de Carrie, para que ela não fugisse.

Carrie não gostou de ser obrigada a dar apoio à irmã. Encostou-se à porta e fulminou-a com o olhar.

- Jilly, não me interessa o que tu queres - anunciou Lola num murmúrio furioso.

A mãe não costumava empregar aquele tom com Jilly. Carrie animou-se e começou a prestar atenção à conversa.

- Vais ser responsável - prosseguiu Lola. A sua voz adquiriu um tom mais grave à medida que se foi aproximando da cama. - Vais ser uma boa mãe, e a Carrie e eu vamos ajudar-te a criar o bebé. Vai tudo dar certo. Verás. Acho que devias telefonar ao pai do bebé... - O riso de Jilly interrompeu-a. - Onde é que está a piada?

- Em ti! - respondeu Jilly. - Já planeaste a minha vida toda, não foi? Sempre a quereres obrigar-me a portar-me bem e a agir como tu queres. Francamente, mãe. Já sou adulta. Tenho dezoito anos - lembrou. - E farei o que bem me apetecer.

- Mas, Jilly, o pai tem o direito de saber que tem uma filha.

Jilly bocejou enquanto dava umas palmadas na almofada.

- Não sei quem é o pai. Pode ser aquele estudante de Savannah, mas não tenho a certeza.

Lola largou o braço de Carrie.

- Não tens a certeza? Mas disseste-me...

- Menti. Queres que te diga a verdade? Está bem, vou dizer. O pai pode ter sido um de doze homens.

Lola abanou a cabeça. Recusava-se a acreditar na filha.

- Pára de falar assim. Diz-me a verdade. Carrie levantou a cabeça.

- Oh, meu Deus, Jilly.

Jilly adorava chocar as pessoas e ser o centro das atenções.

- Estou a dizer a verdade. Já perdi a conta aos homens com quem dormi. Não faço ideia de quem é o pai. - Viu o nojo na cara da mãe. - Estou a incomodar-te? - perguntou, satisfeita com a possibilidade. - Os homens adoram-me. Fazem qualquer coisa para me agradar. Dão-me prendas caras e dinheiro, que tenho escondido de ti e da Carrie, para que vocês não fiquem com ciúmes nem como estão agora, armadas em santarronas. Vocês ter-me-iam tirado o dinheiro e as jóias, não teriam? Só que não vos quis dar essa oportunidade. Sou mais esperta do que julgas, mãe.

Lola fechou os olhos, combatendo a náusea.

- Com quantos homens estiveste?

- Como é que hei-de saber? Não ouviste o que eu disse? Já perdi a conta. Só tive de os deixar usar o meu corpo durante algum tempo. Eles adoram-me, e eu deixo. Sou muito mais bonita que todas as actrizes de Hollywood juntas, e vou ser mais famosa. Espera só para veres. Além disso, gosto de sexo. Sabe bem quando eles o fazem bem. Não compreendes as mulheres modernas. És velha, mãe, toda mirrada por dentro. Provavelmente já não te lembras de como é o sexo.

- Aceitas dinheiro por sexo? Sabes o que isso te torna?

- Uma mulher emancipada - rosnou Jilly. Carrie afastou-se da porta.

- Não. Torna-te uma prostituta, Jilly. Não passarás disso.

- Não sabes do que estás a falar! - gritou Jilly. - Os homens não te querem como me querem a mim. Consigo deixá-los loucos e, a ti, eles ignoram-te. Sou emancipada e tu tens é ciúmes.

- Anda, mãe, vamos embora. - Carrie tocou no ombro da mãe.

- Sim, vão-se embora - disse Jilly, virando a cara para a almofada. - Tenho sono. Vão-se embora e deixem-me descansar.

Carrie teve de ajudar Lola a chegar ao carro. Nunca vira a mãe tão perturbada, e isso assustou-a.

Enquanto se afastavam do hospital, Lola olhava apática pela janela.

- Sempre soubeste como ela era, e tentaste dizer-me, mas eu não te dei ouvidos. Tenho vivido iludida, não é verdade?

Carrie assentiu.

- Há qualquer coisa errada com a Jilly. A tendência nela para o mal vai para além de... não é normal.

- Fui eu que lhe fiz isso? - perguntou Lola, perplexa. O teu pai mimou-a, e, depois de ele se ter ido embora, eu também a mimei, para ela não se sentir abandonada. Será que a fiz o monstro em que ela se transformou?

- Não sei.

Nenhuma voltou a falar até chegarem a casa. Carrie estacionou o carro diante da garagem e desligou o motor. Estava a abrir a porta quando Lola lhe agarrou no braço.

- Lamento muito a forma como te tenho tratado. - Depois começou a chorar. - És tão boa menina, e eu sempre te tomei como certa estes anos todos. As nossas vidas desenrolaram-se em torno da Jilly, não foi? Parece que passei a maior parte dos dezoito anos dela a mantê-la calma... feliz. Só quero que saibas que tenho orgulho em ti. Nunca to disse, pois não? Acho que foi preciso este pesadelo para perceber o tesouro que és. Amo-te, Carrie.

Carrie não soube como responder. Não se lembrava se a mãe alguma vez dissera que a amava. Sentiu-se como se tivesse ganho uma espécie de concurso, mas por desistência do adversário. A menina de ouro estava manchada, e como ela era a única que restava, recebeu o prémio.

Não bastava.

- O que vais fazer a respeito da Jilly?

- Vou obrigá-la a fazer o que é correcto, claro. Carrie afastou-se.

- Ainda não percebeste. Ela não irá fazer o que é correcto. Talvez não possa. Não sei. Ela está doente, mãe.

Lola abanou a cabeça.

- É mimada, mas eu posso concentrar-me... Carrie interrompeu-a.

- Ainda estás a viver no mundo dos sonhos - murmurou. Bateu com a porta quando saiu do carro e entrou em casa.

Lola seguiu-a até à cozinha, tirou o avental do cabide e atou-o à cintura.

- Lembras-te do que aconteceu no meu oitavo aniversário?

- perguntou Carrie ao puxar uma cadeira e ao sentar-se nela pesadamente.

Esperando evitar a recordação desagradável, Lola não se virou.

- Agora não, querida. Porque não pões a mesa enquanto eu preparo o jantar?

- Ofereceste-me aquela Barbie que eu queria.

- Carrie, agora não quero falar disso. Desta vez, a filha não ia deixar-se silenciar.

- Nessa noite fui ao teu quarto.

- Carrie, por f...

- Senta-te, bolas! Não podes continuar a viver assim. Tens de enfrentar os factos. Senta-te, mãe. - Queria agarrá-la pelos ombros e fazê-la ganhar juízo.

Lola desistiu. Sentou-se na cadeira em frente à da filha e uniu as mãos no regaço.

- Lembro-me que o teu pai ficou muito incomodado com as tuas acusações - disse ela. - E que a Jilly estava a chorar. Acordaste a casa toda nessa noite com o barulho.

- Ela queria a minha boneca - declarou Carrie. - Como não lha dei, disse que me ia arrancar os olhos com uma tesoura. Acordei por volta da meia-noite e ela estava de pé junto à minha cama com a tua tesoura na mão. Tinha um sorriso doentio no rosto. Abria e fechava a tesoura, fazendo um barulho horrível. Depois levantou a minha nova Barbie e eu vi o que ela tinha feito. Arrancara os olhos da boneca, mãe, e aquele sorriso na cara dela... era horrendo. Quando eu ia começar aos gritos, ela baixou-se e murmurou: ”Agora é a tua vez.”

- Eras demasiado nova para te lembrares exactamente do que aconteceu. Este incidente adquiriu proporções desmesuradas na tua mente.

- Oh, isso não é verdade! Foi exactamente isto que aconteceu. Tu não viste a expressão dos olhos dela, mas eu garanto-te que ela queria matar-me. Se eu estivesse sozinha em casa com ela, era mesmo isso que teria feito.

- Não, não, ela estava apenas a tentar assustar-te - insistiu Lola. - Nunca te teria feito mal. A Jilly adora-te.

- Se tu e o pai não estivessem em casa, ela ter-me-ia feito mal. É maluca, mãe. Não me interessa o que lhe irá acontecer, mas agora há um bebé inocente no meio. - Respirou fundo. Acho que devíamos encorajar a Jilly a dar o bebé para adopção

- disse ela muito depressa.

Lola ficou escandalizada com a sugestão.

- De maneira nenhuma! - exclamou, batendo com a mão na mesa. - Aquela criança é tua sobrinha e minha neta, e não vou permitir que desconhecidos a eduquem.

- É a sua única esperança de ter um futuro decente - argumentou Carrie. - Já está em desvantagem tendo a Jilly como mãe. Só espero que o desequilíbrio da Jilly não seja genético.

- Oh, por amor de Deus! O único problema da Jilly é estar habituada a levar a dela avante. Hoje em dia muitas raparigas andam metidas com homens. É errado - acrescentou muito depressa -, mas percebo por que motivo a Jilly queria que os homens a amassem. O pai dela foi-se embora e ela tem tentado...

- Ouves o que estás a dizer? - gritou Carrie. - Por momentos, achei que irias finalmente ver quem a Jilly é, mas creio que me enganei. Nunca irás abrir os olhos. Perguntaste-me se tinhas criado o monstro em que ela se tornou, lembras-te?

- Queria dizer que o comportamento dela era monstruoso, mas agora a Jilly é mãe. Quando a for buscar ao hospital mais ao bebé, vais ver. Ela vai ficar bem.

Era como falar com uma parede.

- Achas que o instinto maternal vai aparecer?

- Sim, acho. Vais ver - repetiu. - A Jilly irá querer fazer o correcto.

Carrie desistiu. Enojada, foi para o quarto e ficou aí o resto do dia. Quando saiu na manhã seguinte, encontrou um bilhete na mesa da cozinha. A mãe fora à Sears comprar um berço, roupas de bebé e uma cadeira para o carro.

- Estás mesmo a sonhar... - murmurou Carrie.

Na segunda-feira de manhã, Lola foi ao hospital para trazer Jilly e o bebé ainda sem nome para casa. Carrie recusou-se a acompanhá-la. Disse-lhe que tinha de começar a trabalhar cedo no Sammy’s e saiu de casa antes que Lola começasse a fazer-lhe perguntas.

Jilly estava à espera da mãe. Encontrava-se vestida diante do espelho da casa de banho a escovar o cabelo. Indicou com a mão o bebé choroso que largara na cama por fazer segundos depois de a enfermeira ter saído do quarto, e disse a Lola que podia ficar com ela, vendê-la ou dá-la - não lhe interessava. Depois pegou no saco e saiu do hospital com o dinheiro que roubara da conta da irmã escondido no sutiã.

O levantamento só apareceu no extracto bancário duas semanas depois. Carrie ficou furiosa. Trabalhara bastante para juntar aquele dinheiro, a fim de poder ir para a faculdade, e estava determinada a recuperá-lo. Tentou participar o roubo à polícia, mas Lola não permitiu.

- Os problemas da família ficam dentro da família - declarou.

Carrie concluiu o secundário na Primavera seguinte e, durante o Verão, trabalhou em dois empregos. Lola utilizou algumas das suas poupanças para ajudar Carrie a pagar as propinas, e Carrie conseguiu um trabalho a tempo parcial no complexo universitário para pagar as despesas. Quando foi a casa nas férias do Natal, mal podia suportar olhar para a filha de Jilly.

No entanto, Avery não era o tipo de criança que gostasse de ser ignorada. Bastaram alguns sorrisos para Carrie sorrir também. De cada vez que ia a casa, o elo entre as duas fortalecia-se. A criança adorava-a e o sentimento, embora nunca declarado, era recíproco.

Avery era a mais doce e mais inteligente das crianças, e Carrie tornara-se a sua nova mãe. Tinha o instinto protector de uma mãe. Faria qualquer coisa para manter Avery em segurança.

No entanto, ali estavam elas agora, cinco anos mais tarde, e Jilly continuava a fazer sofrer a família.

- Ela odiava-me, Carrie?

Carrie obrigou-se a concentrar-se na pergunta da criança. Colocando as mãos nas ancas, respirou fundo.

- O que te interessa o que a Jilly pensava a teu respeito? perguntou.

Avery encolheu os ombros.

- Não sei.

- Ouve o que te digo. A tua mãe devia odiar-te, mas não por seres quem és nem por causa do teu aspecto quando nasceste. Eras um bebé perfeito. A Jilly não queria era a responsabilidade. - Apontou para a cadeira junto da cama. - Vou dizer-te uma coisa importante, mas quero que prestes atenção, por isso, senta-te.

Avery apressou-se a fazer o que lhe mandavam.

- Deves ser demasiado nova para ouvir isto, mas vou dizer-te na mesma. A tua mãe é maluca.

Avery sentiu-se desapontada. Julgara que ia ouvir uma coisa nova.

- Já me disseste isso, Carrie. Muitas vezes.

- Estou só a lembrar-te. A Jilly nunca foi normal. Aliás, devia ter sido trancada num manicómio há muitos anos.

A criança ficou intrigada com a ideia de ter a mãe trancada.

- O que é um manicómio?

- É um sítio para onde vão as pessoas doentes.

- A Jilly está doente?

- Sim - respondeu Carrie. - Mas não é o tipo de doença de que tenhamos pena. Ela é má, cruel e maluca. Tinha de ser maluca para abandonar uma criança tão maravilhosa como tu acrescentou Carrie. Inclinando-se para a frente, afastou o cabelo dos olhos da sobrinha. - A tua mãe tinha um parafuso a menos na cabeça. Pode não ser uma sociopata, mas anda lá perto, raios!

Os olhos de Avery arregalaram-se.

- Carrie, disseste raios! - murmurou.

- Eu sei o que disse, e sei do que estou a falar.

Avery levantou-se e sentou-se ao lado de Carrie na cama.

- Mas eu não sei do que estás a falar - disse ela, pegando-lhe na mão.

- Eu explico. Um sociopata é uma pessoa que não tem consciência e, antes que perguntes, eu digo-te o que é consciência. É aquilo que está na tua cabeça e te diz quando fazes alguma coisa má. A tua consciência faz-te sentir... mal.

- Como quando eu disse à avó que tinha estado a treinar piano, mas não tinha, e ela disse-me que eu era uma menina bonita, mas não era, porque menti, e me senti mal?

- Sim, isso mesmo. A tua mãe não tem coração nem alma, essa é que é a verdade.

- Como aquela canção que costumas cantar? É esse tipo de coração e de alma?

- Sim, como a canção - asseverou Carrie. - A Jilly não tem espaço no coração para sentir emoções que não a envolvam directamente ou a beneficiem.

Avery estava encostada a ela, a olhar para cima com aqueles olhos cor de violeta lindíssimos, muito mais até que os da mãe. Carrie quase conseguia ver a pureza e a bondade atrás deles.

- A Jilly anda demasiado ocupada a amar-se para poder amar os outros, mas não deves perder tempo a sentir-te mal por causa disso. A culpa não é tua. Acreditas em mim, não acreditas?

Avery assentiu.

- A culpa é da minha mãe.

- Precisamente - disse Carrie com um sorriso.

- Eu tenho uma alma?

- Sim, tens. Toda a gente tem uma alma, menos a tua mãe.

- Antes de a Jilly ter magoado o Whiskers ele tinha uma alma?

- Talvez - respondeu Carrie, pensando no gato que Jilly lhe tirara de forma cruel.

- Onde está?

- A tua alma? - Carrie teve de pensar alguns segundos na pergunta antes de poder responder. - Está dentro de ti, a envolver o teu coração. A tua alma é tão pura como a de um anjo, e quero ajudar-te a conservá-la assim. És muito diferente da Jilly, Avery.

- Mas sou parecida com ela, tu disseste isso.

- O teu aspecto não é importante. O que está dentro de ti é que importa.

- A Jilly gosta de ti e da avó e não gosta de mim? Carrie sentiu-se exasperada.

- Julguei que tinhas percebido o que estou a dizer. A Jilly não gosta de ninguém, só dela própria. Não gosta da avó, não gosta de mim, não gosta de ti. Percebes?

Avery assentiu.

- Posso brincar agora com as jóias, Carrie?

Esta sorriu. Parecia que a criança passara para assuntos mais importantes. Viu-a sentar-se diante do toucador e começar a remexer na caixa.

- Sabes qual a melhor coisa que te aconteceu? Avery não se virou quando respondeu.

- Ter-te como tia.

- Achas que isso é a melhor coisa? - perguntou Carrie, surpreendida e agradada. - Porquê?

- Porque foste tu que me disseste que isso era a melhor coisa.

Carrie riu-se.

- Sim, bem, mas há uma coisa ainda melhor.

- O quê?

- Não estás sempre com medo como eu estava. A Jilly não vai voltar. Não vais ter de a ver... nunca. Essa é que é a melhor coisa.

Carrie sentiu um arrepio assim que as palavras lhe saíram da boca. Estaria a tentar o destino ao fazer aquela afirmação? Poder-se-ia invocar um demónio ao proclamar que ele não existia? O arrepio parecia uma premonição. Mas claro que não era. Ela preocupava-se sem razão, mais nada. Afastando aqueles pensamentos, regressou ao trabalho.

A semana seguinte foi bastante atarefada. Avery escolheu o cor-de-rosa para as paredes e Carrie acrescentou a orla branca. Achava o quarto muito berrante, mas a sobrinha adorava-o. Ficou instalada no domingo à tarde. As malas de Carrie encontravam-se no porta-bagagem. Carrie iria dormir essa última noite no antigo quarto de Avery.

Para o jantar, Lola preparara os pratos preferidos de Carrie, proibidos na sua dieta perpétua: frango frito, puré de batata com molho e feijão verde salteado com bacon. Fizera também uma salada com os legumes que cultivava nas traseiras, mas Carrie mal lhe tocou. Já que decidira interromper a dieta durante um dia - um dia maravilhoso, sem culpas - serviu-se duas vezes de cada uma das outras coisas com grande avidez.

Depois de a avó Lola ter lido uma história a Avery e de a ter deitado, Carrie foi dar-lhe um beijo de boas-noites. Acendeu a luz de presença, fechou a porta do quarto e desceu as escadas para pôr em ordem mais umas papeladas.

Uma coisa levou à outra e só voltou a subir depois das onze. Lola já estava a dormir no seu quarto nas traseiras. Carrie foi ver como estava Avery - oh, como iria ter saudades daquela pequenita - e quase soltou uma gargalhada ao ver a sobrinha na cama grande. Pusera pelo menos cinco colares e quatro pulseiras. A tiara escurecida à qual faltavam já quase todos os brilhantes encontrava-se entre as suas madeixas e inclinada para um lado da cabeça. Dormia de barriga para cima, com um ursinho puído no braço. Carrie sentou-se na cama e tentou não acordar a sobrinha enquanto tirava com cuidado as jóias.

Depois de as ter guardado na caixa, avançou silenciosamente até à porta.

- Boa noite, Carrie - murmurou Avery, quando ela já estava a fechá-la.

Tinha os olhos fechados quando Carrie se virou para a observar. A criança parecia um querubim vista à luz do candeeiro da rua. Carrie achava que não conseguiria amá-la mais se fosse sua filha. O instinto para a proteger era avassalador. Detestava ter de ir-se embora, sentia que estava a abandoná-la.

Tinha de partir, recordou a si própria. O futuro de Avery dependia de si. Quando fosse financeiramente independente, poderia sustentar a mãe e a sobrinha como elas mereciam. A culpa era um dissuasor poderoso, mas Carrie não iria permitir que interferisse com os seus planos. Tinha os seus objectivos e os seus sonhos, e Avery e Lola estavam ligadas a ambos.

- Estou a fazer o correcto - murmurou ela ao avançar pelo corredor até à casa de banho. Ainda tentava convencer-se disso quando entrou no duche.

Carrie acabara de abrir a torneira quando as portas de um carro a baterem acordaram Avery. Ouviu uma gargalhada e saiu da cama para ver quem estava a fazer aquele barulho. Viu um homem e uma mulher. Encontravam-se ao lado de um carro velho, as cabeças juntas, a rir e a falar.

A mulher tinha cabelo louro. O homem era bastante escuro. Tinha qualquer coisa na mão. Avery espreitou pela parte lateral da janela, para que eles não a vissem e não lhe gritassem para parar de ser bisbilhoteira. O homem levantou uma garrafa e bebeu um grande gole. Depois ofereceu a garrafa à mulher, e também ela inclinou a cabeça para trás e bebeu.

O que estariam a fazer diante da casa da avó? Avery ajoelhou-se e escondeu-se atrás das cortinas de renda. Baixou-se quando a mulher começou a subir o passeio. O homem de aspecto cruel não a seguiu. Encostou-se ao carro, um tornozelo cruzado sobre o outro. Bebeu outro gole, depois atirou a garrafa vazia para a estrada. O som do vidro a partir-se foi quase tão alto como a exclamação de Avery. Era mau fazer lixo. Fora a avó Lola que lhe dissera.

O homem não estava a olhar para a casa. Observava a rua, por isso Avery achou que podia endireitar-se e ver melhor. Viu qualquer coisa a sair do bolso de trás quando o homem se voltou para o carro. O que seria? Outra garrafa?

O homem de aspecto cruel com uma T-shirt suja devia estar cheio de sede porque tirou do bolso de trás a garrafa. Só que afinal não era uma garrafa. Ela tornou a soltar uma exclamação. O homem mau tinha uma pistola preta reluzente. Tal como as que ela vira na televisão.

Estava demasiado excitada para ter medo. Mal podia esperar por contar a Peyton o que estava a ver. Deveria acordar a avó e Carrie e falar-lhes da arma? Talvez devessem ligar ao agente

Calli Frenendly, e depois ele viria e levaria o homem mau com ele. Avery deu um salto quando começaram a bater com força na porta da rua. Era a mulher, pensou ela, a visitar a avó a meio da noite.

A mulher gritava palavras horríveis. Avery correu para a cama e escondeu-se debaixo dos cobertores, não fosse a avó passar por ali antes de ir lá abaixo mandar a mulher calar-se. Sabia que a avó diria à mulher: ”Está a tentar acordar os mortos?” Era isso mesmo que lhe iria dizer. Dizia sempre o mesmo a Carrie quando ela tinha a televisão ou a aparelhagem de som altas de mais. Mas se a avó fosse ali ao quarto e visse que Avery estava levantada antes de ir lá abaixo, então Avery nunca saberia o que estava a passar-se.

Às vezes tínhamos de fazer coisas más para descobrir o que era importante. Peyton dissera-lhe que não era muito mau ouvir o que as outras pessoas diziam desde que não se contasse a ninguém o que se tinha ouvido.

As pancadas tornaram-se mais fortes quando a mulher exigiu que a avó a deixasse entrar.

A avó abriu a porta e Avery ouviu a mulher gritar mais. Compreendeu todas as palavras. De repente, deixou de sentir curiosidade. Ficou horrorizada. Destapando-se e saltando para o chão, deitou-se e rastejou para baixo da cama. Encostou-se à parede e enroscou-se numa bola, com os joelhos junto ao queixo. Era uma menina crescida, demasiado crescida para chorar. As lágrimas que lhe corriam pelo rosto tinham aparecido porque ela fechara os olhos com muita força. Tapou os ouvidos com as mãos para tentar afastar os gritos.

Avery sabia quem era a mulher. Era a sua mãe, Jilly, e voltara para a levar.

 

 

 

 

                                         CAPÍTULO 1

A espera estava a enlouquecer Avery. Encontrava-se sentada no seu pequeno cubículo quadrado, as costas contra a parede, as pernas cruzadas, a tamborilar com os dedos de uma mão na secretária e a segurar o gelo sobre o joelho ferido com a outra. Porque estariam a demorar tanto tempo? Porque não fora Andrews chamado? Olhou para o telefone, tentando fazê-lo tocar. Nada. Nem um som. Fazendo rodar a cadeira giratória, olhou pela centésima vez para o relógio digital. Eram agora dez e cinco, tal como há dez segundos. Bolas, ela já deveria ter ouvido qualquer coisa!

Mel Gibson levantou-se, inclinou-se sobre a divisória que separava o seu espaço de trabalho do de Avery e lançou-lhe um olhar de comiseração. Aquele era mesmo o seu nome, mas Mel achava que o estava a prejudicar porque ninguém na agência o levava a sério. No entanto, recusava-se a mudá-lo para ”Brad Pitt”, como haviam sugerido os colegas.

- Olá, Brad - disse Avery. Ela e os outros ainda estavam a experimentar o novo nome, para ver se ele se adequava. Na semana anterior fora ”George Clooney”, e esse nome conseguira a mesma reacção que ”Brad” estava a obter naquele momento, um olhar sério a lembrá-la que o seu nome não era ”George”, não era ”Brad”, nem era ”Mel”. Era ”Melvin”.

- A esta hora já devias saber - observou ele.

Ela não permitiu que ele a irritasse. Alto, com ar de parolo, uma maçã-de-adão enorme, Mel tinha o irritante hábito de usar o dedo médio para empurrar os óculos metálicos no nariz adunco. Margo, outra colega, contou a Avery que ele fazia de propósito.

Era a sua maneira de dar a entender aos outros três como se sentia superior.

Avery discordava. Mel seria incapaz de fazer qualquer coisa menos própria. Vivia segundo o código de ética que acreditava personificar o FBI. Era dedicado, responsável, trabalhador, ambicioso e vestia-se para aquele emprego... com um pequeno senão. Embora tivesse apenas vinte e sete anos, as suas roupas lembravam as que os agentes haviam usado nos anos cinquenta. Fatos pretos, camisas brancas de manga comprida, gravatas pretas brilhantes, sapatos de pala muito bem engraxados, e um penteado curto que aparava de duas em duas semanas.

Apesar dos seus hábitos estranhos - sabia de cor todas as falas do filme The FBI Story, com Jimmy Stewart -, tinha uma mente bastante arguta e era o companheiro de equipa ideal. Só precisava de se animar um pouco, mais nada.

- Quero dizer, não achas que já devias saber alguma coisa?

- Soava tão preocupado como ela.

- Ainda é cedo. - Então, menos de cinco segundos depois, acrescentou: - Tens razão. Já devíamos saber qualquer coisa.

- Não - corrigiu ele. - Eu disse que tu já devias saber qualquer coisa. O Lou e a Margo nada tiveram a ver com a tua decisão de chamar a SWAT.

Céus, no que teria ela pensado?

- Por outras palavras, não querem ouvir a reprimenda se eu me tiver enganado?

- A reprimenda não. O tombo. Eu preciso deste trabalho. É o mais perto que posso chegar de ser um agente. Com a minha miopia...

- Eu sei, Mel.

- Melvin - corrigiu ele automaticamente. - E as regalias são óptimas.

Margo levantou-se para poder participar na conversa.

- Mas o ordenado é uma porcaria. Mel encolheu os ombros.

- Também o ambiente de trabalho - disse ele. - Mas mesmo assim... é o FBI.

- O que há de errado com o nosso ambiente de trabalho?

- perguntou Lou ao levantar-se. O seu posto de trabalho era à esquerda do de Avery. Mel ficava à frente, e o cubículo de Margo era adjacente ao de Lou. O cercado - como chamavam àquele minúsculo espaço - ficava atrás da sala das máquinas, com os seus aquecedores e os compressores barulhentos. - A sério, o que há de errado com ele? - repetiu, admirado.

Lou estava como de costume às aranhas, mas era um querido, pensou Avery. Sempre que olhava para ele lembrava-se do Pig-Pen, aquele personagem da banda desenhada do Snoopy. Lou estava sempre em desalinho. Era um génio, mas parecia não ser capaz de encontrar a boca quando estava a comer, e a sua camisa de manga curta costumava ter pelo menos uma nódoa. Naquela manhã eram duas. Uma era da geleia de framboesa dos donuts que Margo comprara nessa manhã. A grande nódoa vermelha estava por cima da mancha preta da caneta de tinta permanente no bolso da camisa.

Lou enfiou as fraldas da camisa nas calças pela terceira vez nessa manhã.

- Eu gosto de estar aqui. É acolhedor.

- Trabalhamos num canto da cave, sem janelas - observou Margo.

- E depois? - perguntou Lou. - Não somos menos importantes por causa do sítio onde trabalhamos. Fazemos parte de uma equipa.

- Eu gostava de fazer parte da equipa que tem janelas afirmou Margo.

- Não se pode ter tudo. Diz-me, Avery, como é que está esse joelho? - perguntou ele, mudando de repente de assunto.

Ela levantou o gelo com cuidado e inspeccionou os danos.

- O inchaço desapareceu.

- Como é que fizeste isso? - perguntou Mel. Era o único que ainda não ouvira os pormenores escabrosos.

- Uma velhota quase a matou - respondeu Margo, passando os dedos pelos seus caracóis escuros.

- Com um Cadillac - acrescentou Lou. - Aconteceu na garagem. A mulher não a viu. Devia haver um limite de idade para a renovação da carta de condução.

- Ela bateu em ti? - perguntou Mel.

- Não - respondeu Avery. - Atirei-me para o lado para sair da frente dela, quando vi o carro dobrar a esquina a grande velocidade. Acabei por voar por cima do capo de um Mercedes e bati com o joelho no símbolo. Reconheci o Cadillac. Pertence a Mistress Speigel, que mora no meu prédio. Creio que deve ter uns noventa anos. Já não devia andar a conduzir, mas de vez em quando vejo-a pegar no carro para ir às compras.

- Ela parou? - perguntou Mel. Avery abanou a cabeça.

- Acho que ela nem me viu. Ia a uma velocidade tal que ainda bem que não apareceu mais ninguém no caminho.

- Tens razão, Lou - disse Margo. Desapareceu atrás da parede do cubículo, baixou-se para empurrar a caixa de papel de fotocópias para o canto e pôs-se de pé em cima dela. De repente, ficou tão alta como Mel. - Devia haver um limite de idade para a renovação da carta. A Avery disse-nos que a mulher era tão pequena que nem lhe conseguiu ver a cabeça pela janela de trás. Apenas uns fiapos de cabelo grisalho.

- Os nossos corpos mirram com a idade - observou Mel.

- Pensa, Margo: quando tiveres noventa, ninguém conseguirá ver-te.

Margo, uma mulher pequena com um metro e cinquenta e cinco, não se sentiu ofendida.

- Hei-de usar sapatos com saltos mais altos.

O telefone tocou, interrompendo a conversa. Avery deu um salto, e a seguir olhou para o relógio: era dez e catorze.

- E agora - sussurrou ela, quando o telefone tocou uma segunda vez.

- Atende - disse Margo, ansiosa. Avery atendeu ao terceiro toque.

- Avery Delaney.

- Mister Cárter gostaria de a ver no seu gabinete às dez e meia, Miss Delaney.

Ela reconheceu a voz. A secretária de Cárter tinha sotaque do Maine.

- Lá estarei.

Três pares de olhos observaram-na a pousar o auscultador,

- Bolas! - exclamou ela, baixinho.

- O que foi? - perguntou Margo, a mais impaciente do grupo.

- O Cárter quer falar comigo.

- Hum. Não pode ser coisa boa - observou Mel, mas depois, ao perceber que dissera o que não devia, acrescentou: Queres que te acompanhemos?

Serias capaz de fazer isso? - perguntou Avery, surpreendida com a sugestão.

- Não quero, mas seria capaz.

Não é preciso. Eu levo com a bala sozinha.

- Acho que devíamos ir todos - sugeriu Margo. - Um despedimento em massa. Quero dizer, estamos todos juntos nisto, não estamos?

- Sim - concordou Avery. - Mas vocês os três tentaram dissuadir-me de ir ter com o Andrews. Lembram-se? Fui a única a fazer porcaria. - Levantou-se, pôs o gelo em cima do arquivo, e pegou no casaco.

- Não pode ser coisa boa - repetiu Mel. - Estão a saltar as hierarquias. Deve ser muito mau para o chefe do chefe se envolver. O Cárter acabou de ser promovido a chefe das operações internas.

- O que quer dizer que é agora o chefe do chefe do chefe - observou Margo.

- Certo - murmurou Avery. - Talvez os três queiram disparar contra mim à vez. - Abotoou o casaco. - Que tal estou?

- Parece que foste atropelada - respondeu Mel.

- Tens um buraco nos colãs - disse Margo.

- Eu sei. Julgava que tinha outro par na gaveta, mas afinal não tenho.

- Mas tenho eu.

- Obrigada, Margo, mas tu és mais pequena que eu. Mel, Lou, voltem-se ou sentem-se.

Assim que eles se viraram, ela enfiou as mãos sob a saia e tirou os colãs. Depois tornou a calçar-se.

Já estava arrependida de ter trazido o fato. Normalmente andava de calças e blusa, mas como ia a um almoço nesse dia decidira vestir o fato Armani que a tia Carrie lhe oferecera havia dois anos. Era de um cinzento amarelado muito bonito, e tinha uma camisola sem mangas a combinar, com decote em V. A saia tivera uma racha obscena de lado, mas Avery cosera-a. Era um fato muito bonito. Iria recordá-lo como o fato que tinha vestido quando fora despedida.

- Apanha! - exclamou Margo, atirando-lhe uma embalagem de colãs. - São tamanho único. Vão-te servir. Tens de usar colãs. Conheces bem a etiqueta.

Avery leu a embalagem. Dizia realmente que eram tamanho único.

- Obrigada - agradeceu, voltando a sentar-se. Tinha as pernas compridas e receou rasgar os colãs quando os puxou nas ancas, mas pareciam servir-lhe.

- Vais chegar atrasada - disse Mel quando ela voltou a levantar-se e ajeitou a saia. Porque não reparara no seu tamanho reduzido? Mal lhe chegavam aos joelhos.

- Ainda me restam quatro minutos. - Depois de pôr batom e prender o cabelo com um travessão, voltou a calçar os sapatos. Só então se deu conta de que o salto direito estava um pouco lasso. Devia tê-lo partido quando batera no capo do carro.

”Agora já não posso fazer nada”, pensou. Respirou fundo, endireitou os ombros e coxeou na direcção do corredor. O joelho latejava a cada passo.

- Desejem-me sorte.

- Avery! - chamou Mel. Esperou até ela se voltar e depois mostrou-lhe a identificação para prender ao peito. - Acho que devias levar isto.

- Sim, tens razão. Depois hão-de tirar-ma quando me acompanharem até à saída.

- Ei, Avery, pensa na coisa da seguinte maneira! - exclamou Margo. - Se fores despedida, não tens de te preocupar com o trabalho que vai ficar a acumular-se quando estiveres a descansar naquele spa elegante com a tua tia.

- Ainda não decidi se me vou encontrar com ela. A minha tia acha que eu ainda vou acompanhar aqueles miúdos em Washington.

- Mas agora que isso foi cancelado, deves ir mimar-te um pouco - retorquiu Margo.

- É isso mesmo, devias ir - asseverou Lou. - Devias ficar um mês inteiro em Utopia, e preparar o teu currículo.

- Vocês não me estão a ajudar nada! - exclamou Avery sem se voltar para trás.

O gabinete de Cárter ficava quatro lanços de escada acima.

Noutro dia qualquer, ela teria ido pelas escadas, mas o joelho esquerdo doía-lhe muito e o salto do sapato direito abanava. Sentia-se exausta quando chegou ao elevador. Enquanto esperava, ensaiou o que iria dizer quando Cárter lhe perguntasse o que julgara ela que estava a fazer.

As portas abriram-se. Deu um passo em frente e ouviu o estalido. Olhando para baixo, viu que o salto do sapato ficara preso no espaço entre o elevador e o chão. Como se encontrava sozinha, levantou a saia e apoiou o joelho bom no chão para tentar soltar o sapato. Foi nesse momento que as portas se fecharam, batendo-lhe na cabeça.

Soltando uma imprecação, Avery caiu de costas. O elevador começou a subir e ela agarrou-se ao varão. Agarrou no salto partido com a mão e levantou-se no momento em que as portas se abriram no primeiro andar. Quando chegou ao quarto, o elevador estava cheio de passageiros, e ela encostada à parede do fundo. Sentindo-se uma idiota, pediu licença para chegar à porta e lá foi a coxear.

Infelizmente, o gabinete de Cárter ficava ao fundo de um grande corredor. As portas de vidro encontravam-se tão longe que ela nem conseguia ler o nome.

”Aguenta-te”, pensou, quando começou a andar. Ia a meio caminho quando parou para olhar para o relógio e descansar a perna. Tinha um minuto. Ia ser capaz, pensou ao recomeçar a andar. O travessão soltou-se, mas ela apanhou-o antes de ele cair. Voltou a pô-lo no sítio e continuou a andar. Começava a desejar que o carro de Mrs. Speigel a tivesse mesmo atropelado. Assim não teria de inventar desculpas e Cárter poderia ligar-lhe para o hospital e despedi-la pelo telefone.

”Aguenta-te”, repetiu. Poderiam as coisas piorar?

Claro que sim. No momento em que abriu a porta, os colãs começaram a escorregar. Quando coxeou até junto da recepcionista, o elástico já ia nas coxas.

A morena de ar imponente, com um fato Chanel lindíssimo, pareceu um pouco admirada com a aproximação de Avery.

- Miss Delaney?

- Sim.

A mulher sorriu.

Chegou mesmo a tempo. Mister Cárter gosta disso. Tem todos os minutos contados.

Avery inclinou-se para a frente quando a mulher pegou no telefone para a anunciar.

- A casa de banho das senhoras fica perto?

- Ao fundo do corredor, depois dos elevadores, à esquerda.

Avery olhou para trás e pensou nas opções. Podia chegar tarde à reunião, tentar correr como uma louca pelo enorme corredor e despir os malditos colãs, ou...

- Mister Cárter vai recebê-la agora - anunciou a recepcionista, interrompendo os seus pensamentos.

Ela não se mexeu.

- Pode entrar.

- A questão é que...

- Sim?

Avery endireitou-se devagar. Os colãs não desceram mais.

- Então vou entrar - disse ela com um sorriso.

Rodou e manteve o sorriso ao apoiar-se à secretária, tentando em seguida caminhar como se ainda tivesse o salto. Com sorte, Cárter não iria reparar.

Mas quem queria ela enganar? O homem fora treinado para ser um bom observador.

Alto, de aspecto distinto, cabeleira farta já um pouco grisalha e queixo quadrado, Tom Cárter levantou-se quando ela entrou. Avery foi avançando. Quando chegou junto da cadeira diante da secretária, só lhe apetecia atirar-se para cima dela, mas esperou que ele lhe desse autorização para se sentar.

Cárter debruçou-se sobre a secretária para lhe apertar a mão, e foi nesse momento, quando ela se inclinou para a frente, que os colãs desistiram de lutar. O elástico estava agora nos seus joelhos. Em pânico, ela apertou a mão dele e sacudiu-a com vigor. Percebeu demasiado tarde que segurava ainda o salto do sapato na mão direita. Não se lembrava de transpirar tanto desde que fizera o exame de admissão.

- É um prazer conhecê-lo, senhor. Uma honra. Queria falar comigo? Céus, como está calor! Importa-se que dispa o meu casaco:

Estava a divagar, mas parecia incapaz de se conter. No entanto, o comentário sobre a temperatura prendeu a atenção dele. Felizmente, os boatos estavam certos. Cárter tinha o seu próprio termostato e gostava de manter o gabinete quase gelado. Parecia túmulo no Alasca. Avery admirou-se de não ver o seu hálito fumegar. Foi nesse momento que percebeu que não estava a respirar.

”Acalma-te”, disse a si própria. ”Respira fundo.”

Cárter assentiu entusiasticamente. Não referiu o salto que caíra em cima das pastas empilhadas na sua secretária.

Também achei que estava quente, mas a minha assistente está sempre a dizer-me que o gabinete é um gelo. Deixe-me baixar o termostato mais um pouco.

Ela não esperou que ele lhe desse autorização para se sentar. Assim que Cárter se virou, tirou o salto de cima das pastas que, reparou, tinham o seu nome e os dos seus três colegas - e deixou-se cair na cadeira. Os colãs já estavam nos joelhos. Desabotoou rapidamente o casaco, despiu-o e cobriu com ele os joelhos.

Os braços e os ombros ficaram com pele de galinha pouco depois.

”Aguenta-te”, pensou ela. Ia tudo correr bem. Assim que ele se sentasse, ela poderia tirar os colãs devagarinho e livrar-se deles. Cárter não daria por nada.

Era um excelente plano, e teria corrido bem se Cárter colaborasse, mas ele não regressou à sua cadeira. Aproximou-se dela e sentou-se na beira da secretária. Avery não era baixa, mas teve de inclinar a cabeça para trás para o fitar nos olhos. Pareceu detectar neles um certo brilho que achou estranho, a menos, claro, que ele gostasse de despedir pessoas. Céus, talvez esse boato também fosse verdadeiro.

- Reparei que veio a coxear. Como magoou o joelho? perguntou ele. Baixou-se para pegar no travessão que caíra.

- Num acidente - respondeu ela, pegando no travessão e pondo-o no regaço.

Percebeu pela expressão inquiridora dele que não lhe dera uma resposta satisfatória.

Uma senhora de idade... de bastante idade, por sinal, ao volante de um carro de grandes dimensões, não me viu quando eu me dirigia para o meu carro na garagem do prédio. Tive de saltar do caminho para não ser atropelada. Acabei por aterrar em cima de um Mercedes, e acho que foi aí que parti o salto e magoei o joelho. - E, antes que ele pudesse fazer um comentário acerca do infeliz acidente, ela prosseguiu: - Por acaso, nessa altura o salto só ficou solto. Partiu-se no elevador quando as portas se fecharam na minha cabeça. - Ele parecia estar a fitar uma idiota. - A manhã não me está a correr nada bem, senhor.

- Então se, fosse a si, preparava-me - disse ele num tom soturno. - Ainda vai correr pior.

Os ombros de Avery curvaram-se. Cárter foi finalmente para trás da secretária e sentou-se. Ela aproveitou a oportunidade. Enfiando as mãos por baixo do casaco, fez descer os colãs. Era complicado, mas exequível e, além de parecer que estava a contorcer-se na cadeira, Avery foi bem-sucedida. Enquanto Cárter abria a sua pasta e lia as notas que ele ou outra pessoa escrevera contra ela, Avery amarfanhou os colãs numa bola. Já calçara os sapatos quando ele tornou a olhar para ela.

- Recebi um telefonema do Mike Andrews - começou ele. Lá estava de novo aquele tom soturno do eu-vou-despedir-te.

Avery sentiu um aperto na barriga.

- Sim, senhor?

- Creio que o conhece.

- Sim, senhor, mas não muito bem - apressou-se a acrescentar. - Encontrei o número dele e liguei-lhe antes de sair do gabinete.

- E durante esse telefonema convenceu-o a mandar uma equipa da SWAT para o First National Bank em... - Tornou a olhar para baixo, procurando na pasta o nome do local.

Ela deu-lhe a morada, acrescentando:

- A dependência fica perto da fronteira do estado. Ele recostou-se na cadeira e cruzou os braços.

- Conte-me o que sabe a respeito destes roubos.

Avery respirou fundo e tentou descontrair-se. Estava de novo em terreno seguro, a controlar. Desde que passara para computador os relatórios dos agentes e vira as gravações dos bancos decorara quase todos os pormenores.

- Os assaltantes autodenominam-se Os Políticos - disse ela. - São três.

- Continue - incitou ele.

- Houve três assaltos nos últimos três meses. Os homens, todos vestidos de branco, entraram no primeiro banco, o First National Bank and Trust, na Rua Doze, a quinze de Março, exactamente três minutos depois de o banco abrir as portas. Utilizaram armas para dominar os funcionários e um cliente, mas não dispararam. O homem que gritava as ordens encostou uma faca ao pescoço do segurança. Quando os outros dois iam a correr para a porta, o líder apunhalou o segurança, largou a faca e foi-se embora. O segurança não fizera nada para o provocar. Não havia qualquer razão para o matar. Pois não - concordou Cárter.

- O segundo assalto teve lugar a treze de Abril no Bank of America, em Maryland. A gerente do banco foi morta durante o assalto. O líder ia a caminho da porta. Virou-se de repente e disparou à queima-roupa. De novo, parecia não haver qualquer razão, porque os funcionários foram bastante cooperantes.

- E o terceiro assalto?

- Esse teve lugar a quinze de Maio, no Goldman’s Bank and Trust, em Maryland. Como sabe, houve uma escalada na violência. Morreram duas pessoas, e uma terceira foi deixada como morta, mas recuperou miraculosamente.

- Muito bem, já expôs os seus factos. Agora diga-me: o que a levou a pensar que um pequeno balcão do First National Bank na Virgínia iria ser o alvo seguinte?

O ar dele era enervante. Avery olhou para o regaço enquanto ordenava as ideias; depois levantou a cabeça. Sabia como chegara àquela conclusão, mas explicá-la ao manda-chuva das operações iria ser difícil.

- Acho que se pode dizer que foi devido à forma como olho para as coisas. Estava tudo lá... pelo menos a maior parte, no dossiê.

- Mais ninguém viu nada no dossiê - observou ele. Assaltaram três bancos diferentes durante os três assaltos, mas a senhora convenceu o Andrews de que eles iam assaltar outra dependência do First National.

- Sim, senhor, pois foi.

E... extraordinária a forma como fez isso. - Nem por isso - respondeu ela, esperando que Andrews não tivesse contado a Cárter tudo o que ela dissera.

- Usou o meu nome. Ela encolheu-se.

- Sim, senhor, usei.

- Disse ao Andrews que a ordem partira de mim. É verdade, Delaney?

”Aí vem”, pensou ela. ”A parte do vais-ser-despedida.”

- Sim, senhor.

- Voltemos aos factos, está bem? O que quero saber é o seguinte: Os Políticos tinham atacado a quinze de Março, treze de Abril, depois a quinze de Maio. Não sabíamos por que motivo eles faziam os assaltos nesses dias, mas a senhora sabia, não é verdade? Foi isso que disse ao Andrews - recordou ele. - Mas não explicou como.

- Não havia tempo.

- Mas agora há. Como chegou a essa conclusão?

- Shakespeare, senhor - respondeu ela.

- Shakespeare?

- Sim, senhor. Os assaltos seguiram todos o mesmo padrão, quase uma espécie de ritual. Pedi uma impressão dos registos do primeiro banco na semana anterior ao assalto. Fiz o mesmo com os outros dois bancos. Achei que poderia aparecer alguma coisa a relacioná-los. - Fez uma pausa e abanou a cabeça. - Tinha resmas e resmas de folhas no gabinete, e encontrei de facto uma coisa curiosa. Felizmente, tinha os discos dos bancos, por isso pude cruzar a informação com o computador.

Cárter coçou o queixo, distraindo-a. Avery viu uma certa impaciência no seu olhar.

- Senhor, tenha mais um pouco de paciência. Ora, o primeiro banco foi assaltado a quinze de Março. Essa data diz-lhe alguma coisa? - Antes de ele poder responder, ela avançou: Os idos de Março? Júlio César?

Ele assentiu.

- Isso devia estar no meu subconsciente na noite passada, quando estava a ler os papéis do banco, e reparei que fora feito um levantamento no multibanco por um homem chamado Nate Cassius. Ainda não tinha juntado tudo - admitiu ela. - Mas percebi, se estivesse certa, e esperava estar, que o líder dos Políticos estava a deixar pistas. Talvez fizesse um jogo retorcido. Talvez estivesse à espera de ver quanto tempo levávamos a apanhá-lo.

Conseguira a atenção dele.

- Continue - disse Cárter.

- Como já referi, as datas intrigavam-me até ter investigado. Olhei para o calendário romano e descobri que quando os omanos andavam a calcular o tamanho dos meses descobriram também a data dos idos. Sabemos pela peça Júlio César, de Shakespeare, que os idos de Março calham a quinze. Mas não em todos os meses. Alguns calham a treze. Assim, usando essa lógica, voltei a analisar os levantamentos do multibanco na semana anterior ao segundo e ao terceiro assaltos, e adivinhe o que descobri?

- Que o Nate Cassius fez um levantamento nesses bancos?

- Não, senhor - respondeu ela. - Mas um William Brutus fez um levantamento num banco, e um Mário Casca noutro... e os levantamentos ocorreram dois dias antes dos assaltos. Acho que estavam a estudar a disposição dos bancos.

- Prossiga - disse ele, inclinando-se para a frente.

- Só percebi tudo no último minuto. Tive de analisar todas as transacções efectuadas em todos os bancos na zona de Nova Iorque, Nova Jérsia e Connecticut a partir do dia onze.

- Porque os outros dois levantamentos haviam sido efectuados exactamente dois dias antes dos assaltos.

- Sim. Passei a maior parte da noite a cruzar a informação do dia onze que tinha no computador e lá estava! Mister John Ligarius fizeram um levantamento naquela pequena dependência do First National, às três e quarenta e cinco da manhã. Todos estes nomes - Cássio, Bruto, Casca, Ligário - eram de conspiradores contra César. Não tive tempo para investigar os donos destes cartões, mas descobri que tinham sido emitidos por bancos em Arlington. Fazia sentido. Ligarius fez um levantamento no First National Bank. Por isso, esse banco seria o alvo seguinte.

”Percebi que o tempo não era muito, e o meu superior, Mister Douglas, não estava disponível. Já partira para apanhar um voo de quatro horas e eu não tinha possibilidade de falar com ele. Usei a minha iniciativa - salientou ela. - E preferia ter-me enganado e perder o emprego do que ter ficado calada e descobrir mais tarde que afinal tivera razão. Senhor, as minhas conclusões e acções subsequentes irão constar do relatório que estou a elaborar e, quando o ler, irá reparar que assumo inteira responsabilidade pelas minhas acções. Os meus colegas nada tiveram a ver com a minha decisão de chamar Andrews. Mas, em minha defesa... - apressou-se a acrescentar -, eu, tal como os meus colegas, somos licenciados, e somos muito bons naquilo que fazemos. Não somos meros escriturários que introduzem as notas dos agentes na base de dados. Analisamos a informação que nos é dada.

- Tal como o programa informático.

- Sim, mas o programa não tem coração nem instinto. Nós temos. E, senhor, já que estamos a falar de descrição de funções, gostaria de referir que o salário mínimo já foi aumentado, mas os nossos ordenados não.

Ele pestanejou.

- Está a pedir-me um aumento?

Ela fez um esgar. Talvez tivesse falado de mais, mas, pelo menos, já que ia perder o emprego, o Lou, o Mel e a Margo poderiam beneficiar alguma coisa. Sentiu-se subitamente furiosa por ela e os colegas serem tão subvalorizados.

- Estou cada vez mais convencida de que tive razão. Não me restava alternativa a notificar o Andrews, e ele não teria agido se eu não tivesse referido o seu nome. Sei que ultrapassei a minha autoridade, mas não havia tempo e eu tinha de...

- Apanharam-nos, Avery. Ela calou-se.

- Desculpe, senhor?

- Eu disse que o Andrews e os homens dele os apanharam. Avery não sabia por que motivo estava tão chocada com a notícia.

- A todos? Ele assentiu.

- O Andrews e a equipa estavam à espera e, precisamente três minutos depois das dez, os três homens entraram no banco.

- Alguém ficou ferido? - Não.

Ela suspirou.

- Graças a Deus. Cárter assentiu.

- Estavam todos vestidos de branco. Descobriu o significado da cor?

Claro. Os senadores romanos usavam túnicas brancas.

Os três homens estão neste momento a ser interrogados, e imagino que já descobriu o que eles queriam fazer.

Provavelmente consideram-se anarquistas, e tentam destituir o governo. Irão dizer-lhe que pretendem matar César e que se consideram mártires da causa, mas sabe de uma coisa? Se pusermos de lado toda essa conversa, a ganância foi a verdadeira motivação. E agora estão a armar-se em espertos.

Ela sorria, bastante satisfeita consigo própria, quando lhe ocorreu algo.

- Senhor, disse há pouco que a manhã ainda me iria correr pior. A que estava a referir-se?

- Vai haver uma conferência de imprensa dentro de... fez uma pausa para ver as horas. -... dez minutos, e você é a vedeta. Sei que detesta ser o centro das atenções. Eu também não gosto de conferências de imprensa, mas fazemos o que temos de fazer.

Avery sentia o pânico aumentar.

- O Mike Andrews e a equipa é que deviam estar na conferência de imprensa. Foram eles que apreenderam os suspeitos. Eu estava apenas a fazer o meu trabalho.

- Está a ser modesta, ou...

Ela inclinou-se para a frente, interrompendo-o.

- Senhor, preferia ir desvitalizar um dente.

Ele sorriu, mas o brilho regressara aos seus olhos.

- Então esta aversão tem raízes fundas?

- Sim, senhor. Tem. - Gostou que ele tivesse tentado brincar, mas a sua apreensão era cada vez maior. - Posso fazer-lhe uma pergunta?

- Sim?

- Porque está a minha pasta na sua secretária? Eu segui as normas... o melhor que pude - salientou. - E se não queria despedir-me...

- Queria familiarizar-me com o seu departamento - disse ele, pegando na pasta.

- Posso perguntar porquê?

- Vai ter um novo chefe.

Ela não gostou da notícia. Davam-se todos bem com Douglas, e a mudança seria difícil.

- Mister Douglas vai aposentar-se? Anda a falar disso desde que entrei.

- Sim - respondeu Cárter. ”Bolas!”, pensou ela.

- Posso perguntar quem é o meu novo chefe? Ele levantou o olhar da pasta que tinha na mão.

- Eu - respondeu. Deixou-a absorver a informação antes de prosseguir. - Vocês os quatro vão ser transferidos para o meu departamento.

Ela animou-se.

- Vamos ter um gabinete novo? O ânimo esmoreceu de imediato.

- Não, vão continuar onde estão, mas, a partir de segunda-feira, reportam-se directamente a mim.

Avery tentou mostrar-se contente.

- Então vamos subir as escadas a correr de cada vez que precisarmos de falar consigo? - Sabia que estava a lamuriar-se, mas agora era demasiado tarde.

- Aqui há elevadores, e a maior parte dos nossos funcionários consegue andar neles sem entalar a cabeça nas portas.

O sarcasmo não a atingiu.

- Sim, senhor. Posso perguntar se vamos ser aumentados? As nossas avaliações já deviam ter sido feitas há muito tempo.

- A sua avaliação está a decorrer neste momento.

- Oh! - Ela desejou que ele tivesse dito aquilo logo no início. - Que tal me estou a sair?

- Esta é a parte da entrevista, e durante a entrevista eu faço as perguntas e a senhora responde. É assim que funciona.

Ele tornou a abrir a pasta e começou a ler. Começou pela declaração pessoal que ela escrevera ao candidatar-se, depois passou para a parte biográfica.

- Viveu com a sua avó, Lola Delaney, até aos onze anos.

- Exacto.

Viu-o folhear as páginas, confirmando factos e datas. Queria perguntar-lhe por que motivo sentia ele necessidade de rever a sua história, mas sabia que, se o fizesse, ia parecer estar à defesa ou até ao ataque, por isso uniu as mãos e ficou em silêncio. Cárter era o seu novo chefe, e ela desejava começar com o pé direito.

- Lola Delaney foi assassinada na noite de...

Catorze de Fevereiro - respondeu ela sem emoção. -

Dia de São Valentim. Ele fitou-a. Você assistiu.

- Sim.

Ele recomeçou a ler.

Dale Skarrett, o homem que matou a sua avó, já era procurado pela polícia. Havia um mandado de captura em seu nome por causa do assalto a uma joalharia onde o dono foi assassinado, e mais de quatro milhões de dólares de pedras em bruto roubados. Os diamantes não foram recuperados, e Skarrett nunca foi formalmente acusado.

Avery assentiu.

- As provas contra ele eram circunstanciais, e com certeza não teria sido condenado.

- É verdade - concordou Cárter. - Jill Delaney também era procurada para interrogatório a respeito do assalto.

- Sim.

- Não estava presente na noite em que a sua avó foi assassinada.

- Não, mas tenho a certeza de que ela mandou o Skarrett raptar-me.

- Porém, você não colaborou.

O nó no estômago de Avery começou a ficar mais apertado.

- Pois não.

- Ninguém soube o que acontecera até à manhã seguinte, e quando a polícia chegou Skarrett já partira há muito e o estado da senhora era crítico.

- Ele julgou que eu estava morta.

- Foi levada num helicóptero para o Hospital Pediátrico em Jacksonville. Um mês mais tarde, depois de ter recuperado dos seus ferimentos... um feito notável, dada a gravidade das lesões... a sua tia Carolyn levou-a para a sua casa em Bel Air, na Califórnia. - Recostou-se na cadeira. - Foi aí que Skarrett voltou a encontrá-la, não foi?

Avery sentia a tensão aumentar dentro de si.

- Sim - respondeu. - Eu era a única testemunha que podia pô-lo na prisão para sempre. Felizmente, eu tinha um anjo da guarda. O FBI estava a proteger-me sem eu saber. Skarrett apareceu na escola quando eu ia a sair.

- Não ia armado e, mais tarde, disse às autoridades que queria apenas falar consigo. Skarrett foi preso e acusado de homicídio involuntário - disse ele. - Foi condenado e cumpre actualmente pena na Florida. Pediu liberdade condicional há uns anos, mas foi-lhe recusada. A próxima audiência será em breve, ainda este ano.

- Sim, senhor. Eu consulto regularmente o Ministério Público, e serei notificada quando a data da audiência for marcada.

- Vai ter de ir.

- Não faltaria por nada.

- E quanto ao novo julgamento? - perguntou Cárter. Bateu com os nós dos dedos nos papéis. - Fiquei curioso por saber por que motivo o advogado dele julga ter argumentos.

- Receio que ele tenha razão. Parece que o delegado do Ministério Público ocultou informação importante. A minha avó tinha um problema de coração, e o médico dela apresentou-se depois de ter lido sobre a sua morte. Essa informação não foi entregue ao advogado do Skarrett.

- Mas ainda não sabe se vai haver um novo julgamento?

- Não, senhor, não sei.

- Voltemos a si.

Ela estava cada vez mais impaciente.

- Senhor, posso perguntar-lhe por que motivo está tão interessado no meu passado?

- A senhora está a ser avaliada - recordou ele. - Duas semanas depois de Skarrett ter sido condenado, Jill Delaney morreu num acidente de viação.

- Sim.

Avery tinha esquecido a maior parte da sua infância, mas lembrava-se claramente desse telefonema. Acabara de comemorar o aniversário de Carrie, uma comemoração atrasada porque Avery estivera hospitalizada na data certa, e encontrava-se a ajudar a empregada a pôr os legumes na mesa antes de se sentarem para jantar. Avery pusera o puré de batata ao lado do prato do tio Tony e a tia Carrie foi atender o telefone. O dono de uma agência funerária estava a ligar-lhe para dizer que Jilly ficara calcinada num acidente de viação, mas que havia restos suficientes para serem colocados numa urna. Ele queria saber o que Carrie desejava fazer com as cinzas e com os objectos pessoais, que incluíam uma carta de condução chamuscada. Avery estava junto à janela da sacada a olhar para os colibris quando ouviu Carrie dizer-lhe para os deitar no caixote do lixo mais próximo. Recordava-se de todos os segundos.

Cárter voltou a prender a sua atenção ao mudar de assunto.

- Estudou na Universidade de Santa Clara, especializando-se em Psicologia, Ciência Política e História. Depois foi para Stanford e fez um mestrado em Justiça Criminal. - Fechou a pasta. - Na sua declaração pessoal afirmou que decidiu vir para o FBI quando tinha doze anos. Porquê?

Ela sabia que ele já lera a resposta. Encontrava-se também na pasta.

- Um agente do FBI chamado John Cross salvou-me a vida. Se não estivesse a vigiar-me... se o Skarrett me tivesse levado da escola, a minha vida teria chegado ao fim.

Cárter assentiu.

- E acha que pode fazer alguma diferença ao trabalhar para o FBI?

- Sim.

- Então porque não se tornou uma agente de campo?

- Por causa da burocracia. Fui parar ao meu actual posto. Ia aguentar mais seis meses e depois pedir transferência.

- Mister Cárter, estão à sua espera - interrompeu a secretária.

O pânico tornou a invadir Avery.

- Senhor, o Mike Andrews devia ir à conferência de imprensa. Os louros cabem-lhe a ele e à equipa.

- Olhe, nenhum de nós gosta de fazer isto, mas este caso é bastante mediático e, francamente, a maior parte das pessoas gosta de ter algum reconhecimento.

- Os meus colegas e eu preferíamos ter um aumento... e janelas, senhor. Também gostaríamos de ter janelas. Sabe que o nosso gabinete fica atrás da casa das máquinas?

- O espaço é muito caro. E de onde tirou a ideia de que estávamos a negociar?

Ela retesou-se.

- Senhor, numa avaliação...

- Disse-me que agiu sozinha quando telefonou ao Andrews - interrompeu ele.

- Sim, é verdade, mas os outros... foram fundamentais. Sim, foram fundamentais ao ajudarem-me a procurar os nomes naqueles ficheiros.

- Percebe que mentir não ajuda a levar um aumento, não percebe?

- Senhor, o Mel, o Lou, a Margo e eu somos uma equipa. Eles ajudaram. Só não tinham tanta certeza como eu...

O intercomunicador dele zuniu.

- Vou já - disse Cárter, depois de carregar no botão com impaciência. A seguir, pegou no casaco e vestiu-o, sempre de sobrolho franzido para Avery. - Descontraia-se, Delaney. Já está safa. Não vou obrigá-la a ir à conferência de imprensa.

O alívio deixou-a trémula.

- Obrigada, senhor.

Levantou-se quando ele contornou a secretária, os colãs ocultos sob o casaco por cima do braço. Cárter parou junto à porta e a seguir virou-se ainda de sobrolho franzido.

- Não volte a utilizar o meu nome sem autorização, Delaney.

- Sim, senhor.

- Mais uma coisa.

- Sim?

- Bom trabalho.


                                         CAPÍTULO 2

O casamento não é para os melindrosos. Tanto o marido como a mulher devem permitir que as crianças dentro de si façam jogo sujo se quiserem que o casamento sobreviva e floresça. Têm de deixar as crianças dentro de si rolarem na lama. Os erros serão inevitáveis, claro, mas o amor e o perdão irão purificar a união, e a cura começará então.

Que parvoíce! Carolyn Delaney Salvetti ouvia com uma expressão de descrença os disparates que o conselheiro matrimonial debitava, retirados do seu manual de auto-ajuda com edição de autor, adequada e ridiculamente intitulado Deixe a Criança Dentro de Si Sujar-se. O idiota estaria a falar de casamento ou de luta na lama? Carrie não sabia, e naquele momento também não estava muito interessada.

Sem dar nas vistas, puxou o punho da camisa de seda para cima e olhou para o relógio Cartier. Faltavam dez minutos. Céus, aguentaria ela tanto?

Respirou fundo, largou o punho da camisa e reclinou-se na cadeira assentindo com ar sabedor, para que o marido e o idiota julgassem que ela estava a prestar atenção.

O casamento não é para os melindrosos, repetiu ele no seu tom arrastado e nasalado de barítono. A sua voz era como uma esponja áspera, irritando todos os nervos do seu corpo.

O conselheiro era uma fraude pomposa, gorda e flatulenta que insistia em ser tratado por Dr. Pierce, pois achava que o seu nome completo, Dr. Pierce Ebricht, era demasiado formal para uma discussão tão íntima. Afinal de contas, devia estar a ajudá-los a contarem os seus problemas. Após a primeira sessão, Carrie alcunhara-o de Dr. Parvo. O marido, Tony, escolhera-o porque de momento o homem estava na moda. O conselheiro, com o seu curso por correspondência, era o novo guru à volta de quem todos andavam para tentarem salvar os seus casamentos. O Dr. Pierce era como o Dr. Phil dos ricos e famosos, mas, ao contrário do Dr. Phil, o tipo era um completo idiota.

Mas Tony também era. Estava sentado ao lado de Carrie, as mãos suadas unidas como que em oração, com um ar tão sério e empenhado como uma marioneta manipulada pelo conselheiro matrimonial, assentindo rapidamente sempre que o Dr. Parvo interrompia a leitura da sua bíblia e olhava para cima com ar expectante.

Só a morder o lábio conseguia impedir-se de rir... ou de gritar. Bolas, como lhe apetecia gritar! Porém, não ousava. Fizera um acordo com o seu reles marido traidor, e se não se comportasse e fingisse estar a tentar salvar o casamento, teria de pagar pensão de alimentos o resto da vida. Era uma possibilidade aterradora.

Tudo parecia estar contra ela. Tony vinha de uma família com muitos elementos centenários. O tio Enzo ainda extraía vinho do seu minúsculo terreno no lado bom de Napa com a provecta idade de oitenta e seis anos, e não parecia querer abrandar. A sua única cedência para uma vida saudável fora, aos oitenta e cinco, ter deixado de fumar Camel sem filtro - três maços por dia - e aumentar a quantidade de alho que punha em tudo o que comia, incluindo as torradas de pão de trigo que comia pela manhã. Se Tony se viesse a revelar tão saudável e em forma como Enzo, quando Carrie batesse a bota teria sido chupada até ao tutano financeiramente, e não haveria nada nos cofres para deixar à única pessoa que amava, a sobrinha Avery. Se, por outro lado, ela colaborasse com Tony e fosse às dez sessões com o Dr. Parvo, e mesmo assim o casamento chegasse ao fim - um desfecho óbvio, na sua opinião -, então, prometera Tony, ele desistiria do seu interesse no negócio e não pediria um tostão em pensão de alimentos.

Carrie não era parva. Muito cínica, não estava disposta a aceitar a palavra de um homem que considerava um mentiroso e um ladrão. Faltavam cento e trinta e três mil dólares de uma das contas da empresa. Ela não podia provar que Tony ficara com o dinheiro, mas sabia que ele o levara, provavelmente para comprar coisas caras para a amante. Filho-da-mãe! E assim, para garantir que ele não mudaria de ideias e fosse mais tarde pedir-lhe pensão de alimentos, ela fizera-o prometer isso por escrito, e em seguida chamara a sua assistente para testemunhar a assinatura do documento. O papel encontrava-se guardado no seu cofre do First Commerce Bank.

Como tinham chegado àquilo?, perguntou a si própria. Tony já fora um homem carinhoso e atencioso.

Carrie lembrava-se da noite em que acordara com dores atrozes. Estava certa de que a sua agonia se devia a uma intoxicação alimentar - tinham jantado num novo restaurante tailandês que todos os seus amigos haviam elogiado. Recusara-se a ir para o hospital e Tony ficara preocupadíssimo. Finalmente pegara nela, metera-a no carro e levara-a ao hospital. Nessa noite salvara-lhe a vida. Depois de receber tratamento nas urgências, deu entrada no hospital e Tony passou a noite sentado numa cadeira ao pé da cama a vigiá-la. Foi muito simpático para as enfermeiras e auxiliares, convencendo-os a suportar as queixas e exigências dela, e encheu-lhe o quarto de gerberas, as suas flores preferidas.

Na altura Tony era muito carismático. Ainda era, bolas, e devia ser por isso que todas as jovens candidatas a estrelas esvoaçavam em redor dele. Seria a tentação demasiado grande? Afinal de contas, ela estava a envelhecer e o passar dos anos começava a notar-se. Fora por isso que ele decidira ser infiel?

Olhando de novo sub-repticiamente para o relógio, conteve um suspiro. Dali a cinco minutos a sessão chegaria ao fim e ela não teria de fingir simpatia para com o Dr. Parvo. Então, quer gostassem quer não, ela iria partir sozinha para uma pequena cura de rejuvenescimento. As roupas desportivas Prada encontravam-se dentro das malas Gucci, juntamente com o computador portátil ultramoderno, três embalagens de baterias e dois telemóveis com carregadores. A bagagem aguardava na bagageira da limusina que a levaria desde o consultório do Dr. Parvo ao aeroporto.

Iria ser a primeira vez, em oito anos, que se afastava da Star A-atcher, e sentia-se nervosa e feliz. Tinha uma boa equipa de colaboradores, e sabia que eles podiam lidar com todos os problemas que surgissem durante a sua ausência, porém ela gostava de controlar tudo e não suportava a ideia de deixar que outros tomassem decisões, mesmo que apenas por quinze dias. Segundo Avery, Carrie tinha uma personalidade Tipo A. Não suportava estar desocupada nem aborrecida. Nem sequer gozara uma longa lua-de-mel quando casara com Tony. O breve fim-de-semana passado em Baja parecera um ano de afastamento da sua empresa, o que por sinal era bastante irónico, tendo em conta que, na altura, ela estaria apaixonada.

A reserva gravada a ouro do elegante Spa Utopia chegara três semanas antes - imediatamente após a segunda sessão com o Dr. Parvo, e Carrie, após uma olhadela ao convite, tivera a certeza de que Tony estava por detrás do esquema para a tirar de Los Angeles. O marido fingira surpresa, mas ela não se deixara enganar. Há meses que ele andava a tentar convencê-la a fazer uma pausa no trabalho e aproveitar esse tempo para tentar recuperar o casamento.

Por mais que insistisse com Tony para que admitisse que fora ele a fazer a reserva, ele negou. Disse que não fizera qualquer reserva, nem pagara aquele preço escandaloso, e como era ainda mais teimoso que ela, Carrie acabou por desistir de tentar extorquir-lhe a verdade.

A reserva vinha acompanhada de uma brochura elegante com fotografias das luxuosas instalações e com a lista dos tratamentos disponíveis no Utopia. Vinha ainda uma carta com uma lista de depoimentos de pessoas famosas que eram clientes habituais.

Ela já ouvira falar no spa - toda a gente em Hollywood o conhecia - mas não sabia da sua popularidade entre os ricos e famosos. Como o preço era tão exorbitante, nem sequer pusera a hipótese de lá ir.

Carrie sentia-se dividida. Até que ponto era importante ir? A mesa onde se sentava nos restaurantes in de Los Angeles era de vital importância, porque uma pessoa era vista, mas um spá Seria tão elegantemente discreto que só as pessoas que lá estivessem na altura saberiam da sua presença? Iria o proprietário pedir-lhe para prestar também um depoimento? Céus, isso seria maravilhoso! Se o seu nome entrasse na lista dos ricos e famosos seria excelente para a empresa. No seu ramo, o único motivo para fazer alguma coisa era o de impressionar os outros e fazê-los roerem-se de inveja. Apenas os ricos que não precisavam de trabalhar arranjavam trabalho em Hollywood.

Mas que garantia teria ela de que o seu nome constaria dessa lista? Carrie fez as contas, calculou até ao último tostão o custo da estada, e decidiu ficar em casa. Não iria deixar que Tony gastasse todo aquele dinheiro. Ligaria para o spa na manhã seguinte e pediria um reembolso. Não tencionava descansar a gastar tanto dinheiro. Deve ter gritado essas palavras a Tony umas cinco vezes antes de ele começar a ler em voz alta os nomes das pessoas que o frequentavam regularmente e o elogiavam. Ela parou de gritar quando ouvira o nome de Barbara Rolands. Todos comentavam que a actriz, já de certa idade, com três Óscares no palmarés, fizera o melhor face-lift da costa oeste. Barbara desaparecera durante três semanas no ano anterior, e, quando reaparecera numa festa elegante para angariação de fundos, estava com um aspecto incrível. Teria feito o face-lift no spá?

Carrie arrancou os papéis das mãos de Tony. Leu os nomes dos funcionários à disposição dos clientes para a satisfação de todas as suas necessidades. Entre eles encontravam-se os de dois cirurgiões plásticos de nomeada.

Iria ser examinada pelos mesmos médicos que haviam examinado alguns dos homens e mulheres mais influentes do século? Deus sabia que ela precisava de fazer qualquer coisa. Não umface-lift - ainda não tinha quarenta e cinco anos -, mas os papos sob os olhos estavam cada vez mais pronunciados e ela tinha de fazer algo. A falta de sono, as muitas horas de trabalho, as vinte canecas de café forte por dia e o nunca ter tempo para fazer exercício estavam a fazer-se notar.

Segundo a carta, ela voaria de Los Angeles para Denver, e a seguir apanharia um avião mais pequeno para Aspen. O Spa Utopia ficava nas montanhas, a quinze minutos da pista de ski mais próxima. Ela chegaria ao fim da tarde, e na manhã seguinte seria observada pelos médicos. A lipoaspiração, notou Carrie, era uma das escolhas disponíveis. Vinha logo a seguir a uma massagem de corpo inteiro.

Como poderia recusar? Como, especialmente depois de Tony ter comentado que a prenda anónima não era reembolsável? Ela percebeu que ele utilizara dinheiro da empresa para pagar a viagem. O homem era incapaz de poupar dinheiro. Desde que haviam fundido as duas empresas e ela conseguira a primeira representação multimilionária, ele começara a viver dos rendimentos. Não tinha o menor jeito para o negócio.

Tony disse que não interessava quem pagara o convite e sugeriu que ela encarasse a viagem como uma prenda de aniversário antecipado. Acreditava piamente que a cavalo dado não se olhava o dente. Disse-lhe que esperava que ela aproveitasse o tempo para reflectir em todas as maravilhosas palavras de sabedoria do Dr. Parvo sobre a santidade do casamento. Carrie sabia que Tony esperava que ela, ao abrandar o ritmo, como faziam as pessoas quando estavam de férias, percebesse que fora injusta nas suas acusações e que, no seu íntimo, ainda o amava.

Carrie tinha outros planos. Enquanto estivesse a ser mimada no spa, trataria de inventar um anúncio fabuloso que permitiria à sua empresa conquistar outro cliente. Há muito tempo que haviam recebido o último prémio, quase quatro anos, e ela sentia-se cada vez mais ansiosa. A publicidade era um negócio complicado, e a concorrência, sediada essencialmente em Manhattan, era agressiva. A malta dos vinte anos estava a ganhar terreno. Alguns executivos recusavam-se até a falar com alguém com mais de trinta anos, e fora por isso que Carrie contratara três jovens empenhados e dinâmicos. Chamava aos fanáticos da Nintendo os seus bebés.

Era imperativo que Carrie se mantivesse a par das novas tendências. No seu trabalho, não importavam as conquistas do passado. Com todos os novos concorrentes a abrirem caminho até ao seu círculo de influência, a Star Catcher precisava de ter a maior visibilidade possível. Hollywood era uma cidade volúvel. Os que detinham o poder interessavam-se apenas por quem nesse dia estivesse na mó de cima. Se Carrie não insistisse constantemente com os seus funcionários para conseguirem contratos cada vez maiores, ver-se-ia relegada para segundo plano num ápice.

Devia o primeiro cliente à sobrinha. Pedira-lhe que interviesse quando a temperamental actriz adolescente que contratara fizera uma birra e exigira receber o dobro do caché. A tonta julgara ter a Star Catcher nas mãos devido à falta de tempo, mas se Avery não tivesse ido ao estúdio de gravações com Carrie nesse

dia, esta teria de ter pago à rapariga. Avery ficara mortificada por causa daquilo que a tia queria que ela fizesse, mas tinha uma boa voz e um belo corpo, e nada mais era preciso. O anúncio ao sabonete foi um êxito estrondoso e Carrie, desempenhando o papel de agente de Avery, poderia ter-lhe arranjado trabalho para um ano. Porém, Avery não estava interessada. Assim que acabaram as férias da Páscoa, ela foi concluir o liceu e entrou na universidade.

Avery continuou a trabalhar com Carrie todos os Verões, mas detestava ter de sair do escritório para se encontrar com pessoas de outras empresas. Carrie não conseguia entender essa reserva. Avery parecia não saber - ou se sabia, não se importava

- que era, como Tony dizia muitas vezes, figura encantadora.

O problema com a sobrinha era que ela não era minimamente superficial. Era doce e íntegra e valorizava o que era importante na vida. Mas que podia Carrie esperar? Afinal de contas, fora assim que a educara. Era irónico que Carrie tivesse ido parar a um ramo onde reinava o superficial. Que hipócrita saíra! Quando aprenderia a praticar aquilo que pregara toda a vida a Avery? Talvez depois de ter ganho mais uns milhões?

Carrie acabou por se sentir animada com a ida para o spa. Depois de ter tomado a decisão, ligou a Avery e pediu-lhe que lhe fizesse companhia no Utopia durante uma semana. Sabia que Avery gastava parte das suas férias a acompanhar adolescentes em Washington, e Carrie tentou fazê-la sentir-se culpada e dedicar-se também à família. Estava confiante de que Avery iria pelo menos uns dias, mas sabia que teria uma apoplexia se descobrisse o quanto estava a custar à tia. Carrie não tinha o menor problema em pagar a despesa de Avery. Faria qualquer coisa por ela, qualquer coisa. Provavelmente porque Avery nunca lhe pedira nada. Carrie não sabia como é que a sobrinha conseguia viver com o magro salário que auferia, e, embora lhe oferecesse dinheiro de cada vez que falavam, Avery declinava sempre. Estava a sair-se bem, pelo menos era o que dizia.

Avery mantinha-a com os pés assentes no chão e Carrie sabia que a sobrinha a impediria de aproveitar todos os tratamentos disponíveis no spa.

Avery iria ter um ataque quando descobrisse que Carrie estaVa a pensar fazer uma lipoaspiração. Sorriu ao pensar nos argumentos que a sobrinha utilizaria. Avery também abanaria a cabeça quando visse a sua roupa de desporto. Tudo combinava e tinha a marca de costureiros famosos. Oh, sim, Avery rolaria os olhos, sem dúvida, depois lançar-se-ia no seu sermão preferido sobre como ficar em forma e saudável. Céus, como tinha saudades da miúda!

- Porque estás a sorrir, querida? - perguntou Tony. Arrastada para o presente, Carrie percebeu que o marido e o conselheiro matrimonial a fitavam. Encolheu os ombros para ocultar o embaraço.

- Estava a pensar nas coisas em que tenho de pensar. Aquele disparate foi o melhor que lhe ocorreu no momento.

O Dr. Parvo parecia suficientemente satisfeito para se rolar na lama com a criança dentro dele. Assentiu a sua concordância e levantou-se, indicando que a sessão chegara ao fim.

Tony caminhou ao lado de Carrie enquanto se dirigiam para a limusine.

- Tens a certeza de que não queres que eu vá contigo ao aeroporto?

- Tenho.

- Lembraste-te de trazer a reserva?

- Sim. - Ela afastou-se do marido quando o motorista lhe abriu a porta de trás. - Ainda não tive notícias da Avery, e deixei-lhe três mensagens. Esperava falar com ela antes de deixar Los Angeles.

- Sabes que ela trabalha muito. Provavelmente ainda não teve tempo para te ligar.

- E se houver uma emergência enquanto eu estiver fora?

- Então ela liga-me ou tentará ligar para o teu telemóvel.

- Não me agrada a ideia de ela trabalhar com miúdos. É demasiado cansativo. Ela...

- Não o faria se não gostasse - observou ele. - Tens de deixar de te preocupar. A Avery já é crescida.

- Vê os e-mails quando chegares a casa - pediu Carrie. Talvez ela me tenha enviado algum.

- Está bem. Depois ligo-te.

- A audiência é no dia dezasseis. Será que a Avery já foi notificada? Acabei de receber a minha...

- Claro que ela sabe. Porque estás a preocupar-te agora com isso?

Não posso faltar. Vou sempre com a Avery. Ambas falamos antes de a comissão decidir...

Querida, não vais faltar à audiência, nem a Avery. Ainda falta um mês, por amor de Deus! Não faltaste à última nem vais faltar a esta. Agora descontrai-te. Quero que te divirtas.

Ela assentiu.

- Sim, está bem. Não soara sincera.

- Estás tensa porque há muito tempo que não tiras umas férias - disse ele de sobrolho franzido. - É o nervosismo de última hora.

Ela tornou a assentir, depois tentou entrar no carro, mas Tony agarrou-a pelos ombros e beijou-a.

- Amo-te - murmurou. - Sempre te amei. Desde o momento em que nos conhecemos. Quero que este casamento resulte de novo.

- Sim, eu sei - respondeu ela num tom seco.

O segundo carro arrancou e Carrie pegou no computador portátil. Tinha-o acabado de ligar quando o telemóvel tocou. Calculando que fosse Tony de novo a chateá-la por causa do casamento, ela atendeu com aspereza.

- O que foi agora?

- Adivinha! - exclamou Avery.

- Olá, querida. Pensei que era o Tony. Estás a gozar as tuas férias?

- Ainda não. Preciso de acabar umas coisas aqui no escritório. Tive uma grande reunião com o meu novo chefe há uns dias e estou ansiosa por te falar do caso que ajudei a solucionar. Que tal jantarmos assim mais para o tarde em Aspen?

Carrie guinchou.

- Vens fazer-me companhia? A minha insistência deu resultado desta vez?

- Se eu disser que sim, tu ficas cada vez pior. Desta vez foi a culpa, Carrie, mas não julgues...

- O que aconteceu aos miúdos que ias arrastar por Washington?

- A viagem foi adiada.

- Ah. Então ganho por defeito. - Queres que eu vá ou não?

- Claro que quero que vás. Vou ligar já para o Spa Utopia Já compraste o bilhete de avião?

- Estou neste momento a olhar para o ecrã do computador. Consigo um voo de ligação para Denver, mas só lá chego bastante tarde.

- Deixaste-me bastante animada! Vamos divertir-nos imenso. Diz-me a que horas chegas. Assim que reservares o voo, telefona-me. Até breve, Avery. Adoro-te.

A disposição de Carrie melhorara consideravelmente. Desligou a chamada e ligou para o Utopia. Depois disso, pôs-se a trabalhar. Tomou apontamentos até a limusina chegar ao aeroporto. As filas nas máquinas de controlo avançavam muito devagar. Carrie, mudando a alça do saco de um ombro para o outro, tirou um gravador do bolso e ditou instruções para os funcionários. Quando o avião levantou voo e ela se viu muito bem instalada em executiva com um copo de chardonnay gelado, abriu o computador e voltou a trabalhar.

Tornou a pensar em Avery. Podia ligar-lhe naquele momento, decidiu, para saber a que horas chegava o avião. Estendeu a mão para o telefone junto ao apoio para o braço, mas mudou de ideias. Seria melhor esperar. Se utilizasse o telefone do avião teria de gritar para se fazer ouvir acima dos motores, e os outros passageiros ouviriam tudo.

Assim que desceu do avião em Aspen, afastou-se para o lado e sentou-se para procurar o telemóvel no saco. Tinha tirado tudo quando se lembrou que o enfiara na mala. Não era nada seu hábito ser tão desorganizada, pensou. Olhou para cima e viu um homem que tinha na mão um cartaz com o seu nome. O motorista da outra limusine, pensou, com um fato azul-escuro. Tinha um ar bastante distinto e atraente, uma versão jovem de Sean Connery. Levantou-se rapidamente, metendo o telemóvel no bolso do casaco.

- Sou Carolyn Salvetti - apresentou-se, enquanto ajeitava a gola da camisa.

O sorriso dele era radioso.

- Boa tarde, Mistress Salvetti. - Tinha um sotaque britânico encantador. O crachá na lapela indicava ”Mr. M. Edwards.”

- Trabalha para o Utopia?... para o spa,

- Sim, trabalho. Tem consigo o voucher?

Ela estendeu a mão para o saco de viagem.

- Está aqui.

Oh, não preciso de o ver, Mistress Salvetti. Só queria certificar-me de que tinha os papéis consigo. Vamos buscar a sua bagagem?

Ela sentiu-se ridícula, praticamente a correr nos sapatos abertos Manolo Blahnik para tentar acompanhar o homem de pernas compridas. Escorregou uma vez, e, se ele não lhe tivesse agarrado o braço, Carrie teria caído. Tinha pensado em mudar de sapatos antes de entrar no avião, mas deixara-se enredar pelo trabalho e esquecera-se.

Passaram por algumas cabinas telefónicas e Carrie lembrou-se de que ainda não sabia a que horas Avery chegaria. Bolas, pedira-lhe para lhe ligar assim que reservasse o voo. Carrie sabia o que acontecera. Avery devia estar cheia de trabalho e tinha de fazer tudo à pressa para conseguir despachar-se.

Provavelmente já era demasiado tarde para a apanhar no trabalho ou em casa. Ela já devia estar no aeroporto ou no avião. Mesmo assim, Carrie quis tentar. Talvez Avery ouvisse as mensagens quando chegasse a Denver. Sim, telefonaria assim que chegasse à zona de recolha de bagagem.

- Vão mais pessoas connosco para o spá? - inquiriu.

- Sim - respondeu Mr. Edwards. - Aguardam-nos na sala de espera. Assim que levantar a sua bagagem vamos ter com elas.

- Tem de ir buscar mais alguém esta tarde ou esta noite?

- Não, esta é a minha última viagem. Porque pergunta?

- A minha sobrinha, Avery Delaney, vai ter comigo ao spa. O comentário surpreendeu-o tanto que o fez parar no meio do corredor.

- Está à espera de Miss Delaney? Ela não tinha acabado de o dizer?

- Sim, mas ela vem de Washington. Se não lhe pediram para a vir buscar, devem mandar outra pessoa.

Continuaram a andar.

Sim, deve ser isso - disse ele, parecendo um pouco Preocupado.

- Ainda não sei em que voo chega a Avery, mas ela pode ter ligado para o spa a pedir que alguém fosse buscá-la. Importa-se de ligar para o Utopia para ver se assim é? Seria óptimo Se pudéssemos esperar por ela. Sei que vem por Denver - acrescentou ainda.

- Terei todo o gosto em ligar para o spa - disse ele Olhando em volta, indicou algumas cadeiras vazias diante de uma porta de embarque. - Porque não se senta? - sugeriu, pondo o saco dela no chão.

- O ”M” é de quê? - perguntou Carrie.

- Desculpe.

- O seu nome. ”Mister M. Edwards.” O ”M” é de quê? Ele não viu razão para mentir.

- Monk. O ”M” é de Monk.

- Que nome tão original.

- Prefiro que os clientes me tratem por Mister Edwards. ”Que formal!”, pensou ela.

- Sim, claro.

- Se me der licença... - Aproximou-se da janela, tirando o telemóvel do bolso. Carrie agarrou no saco e foi atrás dele. Queria perguntar-lhe se havia algum recado para ela no spa.

O homem estava de costas quando ela se aproximou. Carrie bateu-lhe no ombro.

- Mister Edwards? Surpreendido, ele voltou-se.

- Um momento - disse para o telefone. - Sim?

- Importa-se de perguntar ao recepcionista se há algum recado para mim?

Ele repetiu a pergunta, aguardou um momento e em seguida abanou a cabeça. Carrie sentiu-se uma idiota ali de pé, por isso voltou a sentar-se.

Mr. Edwards não se demorou muito ao telefone e, quando regressou para junto dela, pegou no saco e pediu desculpa pelo atraso.

- Há outro motorista atribuído a Miss Delaney.

- Não podíamos esperar?

- Desculpe... disse alguma coisa? A distracção dele era irritante.

- Perguntei se podíamos esperar pela minha sobrinha.

- Receio bem que não - respondeu ele. - Os outros dois clientes estão à sua espera. Não posso pedir-lhes para aguardarem mais. Espero que compreenda.

- Sim, claro.

Obrigado. As outras pessoas irão, sem dúvida, apreciar a sua colaboração.

- Quem são? - perguntou ela abruptamente.

- Desculpe?

Perguntei, Mister Edwards, quem são os outros clientes.

Mistress Trapp é de Cleveland, e o avião da juíza Collins chegou de Miami.

Carrie nunca ouvira antes aqueles nomes e perguntou a si mesma se seriam pessoas famosas. Esperava que sim. Iria tentar estabelecer o máximo de contactos com pessoas influentes. Talvez a juíza fosse uma daquelas vedetas de televisão. Seria espectacular!

Chegaram por fim à zona de recolha da bagagem e juntaram-se às hordas de passageiros que abriam caminho até à frente.

- Quanto tempo irá demorar a viagem até ao spãí

- Pouco tempo - respondeu ele. - No entanto, esta noite não irá directamente para o Utopia. Há um problema com a conduta da água, mas à meia-noite já estará reparada. Para não serem incomodadas, o director reservou quartos para a senhora, Mistress Trapp e para a juíza Collins num hotel.

Carrie estava prestes a protestar, aquilo seria um incómodo. Teria de desfazer e voltar a fazer as malas...

- Creio que Mister Cruise e uma acompanhante foram os últimos hóspedes - acrescentou Mr. Edwards.

Os olhos dela arregalaram-se.

- Tom Cruise?

- Sim. E amanhã de manhã - continuou ele calmamente a senhora será levada até ao Utopia.

- A minha sobrinha também vai ficar nesse hotel?

Não tenho a certeza. Se o problema já tiver sido resolvido quando o voo dela chegar, a sua sobrinha será levada directamente para o Utopia.

- O hotel fica perto de Aspen?

Mesmo à saída, nas montanhas, numa zona chamada. terra Entre os Lagos. É muito bonito. Noites frias e dias soalheiros e quentes a maior parte do ano. O clima indicado para andar a pé e acampar.

Não gosto muito de andar ao ar livre, mas o senhor evidentemente gosta - disse ela, reparando nos ombros largos e nos músculos que se notavam sob o fato feito por medida. Quanto pagariam aos motoristas?

Devem ter esperado lado a lado uns bons dez minutos até o tapete ter começado a andar.

- Aquela é a minha - disse ela, apontando para uma mala preta Gucci. - Tenha cuidado. Está pesada.

- É só esta?

Com certeza ele estava a brincar.

- Não. Há mais três.

- Quanto tempo vai ficar no Utopia? - perguntou ele.

- Duas semanas. Há quanto tempo trabalha lá? - perguntou ela, fazendo conversa para ajudar a passar o tempo. Se lhe perdessem alguma mala, ela estava metida em sarilhos por causa das baterias para o computador portátil e do outro telemóvel.

- Um ano - respondeu Mr. Edwards.

- Que bom - observou ela, embora apenas por uma questão de cortesia. Onde estariam as suas outras malas? Estava a ficar ansiosa e respirou fundo. ”Descontrai-te”, disse a si própria. ”Estás de férias.”

Olhou em volta e viu a casa de banho.

- Antes de saírmos, gostaria de passar um pouco de água fria pelo rosto.

- Se pudesse esperar até...

- Por acaso, não posso esperar - interrompeu ela. Entregou-lhe o saco, mas ficou com a mala. - Não perca esse saco. Tem lá dentro o meu computador e o meu telemóvel.

Depois apressou-se a ir à casa de banho. Quando estava a lavar as mãos, lembrou-se de que pusera o outro telemóvel no bolso e decidiu ligar a Avery.

Carrie foi para a última cabina, a fim de ter alguma privacidade, rezou para não ficar sem rede, e marcou. Ligou primeiro para o apartamento de Avery, ouviu o atendedor de chamadas, e pediu-lhe para ligar assim que recebesse aquela mensagem. Depois, ligou para o gabinete. O voice mail atendeu ao segundo toque.

- Bolas, Avery, tinhas ficado de me ligar a dizer a que horas chegavas, mas esqueceste-te, não foi? Espero que já estejas a caminho e que ouças as mensagens quando chegares a Denver.

Acho que estou a ficar obcecada porque não quero que deixes de vir. Sei como esse teu trabalho é absorvente. Se descobrir que perdeste o voo porque ficaste retida numa dessas reuniões horríveis, dou-te uma descasca tão grande que vais ficar com os ouvidos a zunir durante um mês. A sério, Avery, quando penso nas coisas que podias estar a fazer e no dinheiro que podias estar a ganhar e te vejo aí, presa nessa masmorra sem janelas a analisar sabe Deus o quê! É um desperdício dos teus talentos. Com certeza percebes isso. Gostava que me deixasses ajudar-te a mudar de carreira. - Carrie percebeu o que estava a fazer e riu-se. Cá estou eu a divagar. Já ouviste isto tudo, não foi? Seja como for, liguei a dizer que neste momento estou em Aspen. Queria esperar até o teu voo chegar para podermos ir juntas para o spa, mas estão aqui outros hóspedes, e seria uma grande maçada fazê-los esperar. Não vou directamente para lá. Parece que há um problema com a canalização, mas o motorista diz-me que já deve estar resolvido quando chegares. As outras duas senhoras e eu vamos passar a noite num hotel luxuoso nas montanhas. Já me esqueci dos nomes delas, mas uma é juíza. Aposto que é famosa. Amanhã chego ao Utopia e vou à tua procura.

Carrie sentia-se bastante animada.

- O hotel fica numa zona chamada Terra Entre os Lagos. Não é engraçado? O Tom Cruise foi o último hóspede, por isso tem de ser um sítio espantoso. Quero dizer, ele tem tanto dinheiro que não o iriam pôr numa espelunca. É melhor desligar antes que o motorista venha à minha procura à casa de banho. Estou ansiosa por te ver, vamos divertir-nos imenso. Bolas, já estão a chamar-me. O spa mandou um belo jovem vir buscar-me. É um bocado sisudo e formal, e tem um ligeiro sotaque britânico. E, oh, é muito sexy. Chama-se Monk Edwards, mas, acredita, não se parece nada com um monge. Adeus, miúda, até breve.


                                       CAPÍTULO 3

O trilho conduzia ao Utopia. John Paul Renard seguia o assassino profissional há mais de um ano, mas não fora bem-sucedido. O último golpe tivera lugar na Riviera: fora a execução de um homem procurado chamado John Russell, mas, desde essa altura, o assassino que se chamava Monk parecia ter desaparecido da face da terra. Houvera um rasto da sua presença em Paris e em Cannes, mas nada de suficientemente substancial para ser considerado uma verdadeira pista.

Até àquele momento.

Quando John Paul estivera nos fuzileiros e depois trabalhara durante algum tempo para a CIA, aprendera a ter paciência. Achou que o assassino acabaria por regressar aos Estados Unidos. Fora um palpite, nada mais, mas estivera certo. Três semanas antes, Monk voltara a emergir. Também cometera um erro. Usara um dos seus velhos cartões de crédito. Era um gesto tão desleixado e tão pouco característico de um homem que, até àquele momento, não cometera uma única falha. John Paul perguntou a si mesmo se Monk teria deitado fora o cartão, e alguém o tinha encontrado e usado.

Valia a pena verificar isso. Fora feita uma despesa num spa do Colorado chamado Utopia, para uma mulher de nome Carolyn Salvetti. John Paul investigou a mulher e descobriu que ela tinha dinheiro mais do que suficiente para comprar uns dois spas. Qual seria a sua ligação com Monk? Tê-lo-ia ela contratado para matar alguém? Ou seria ela a sua próxima vítima?

John Paul também fez correr o nome dela na base de dados do governo. Serviu-se do seu antigo código para ter acesso, sabendo perfeitamente que assim que fizesse o login, os homens com quem trabalhara saberiam de imediato e concluiriam erradamente que ele estava pronto a regressar. Por esse motivo, não esteve muito tempo no computador. Em menos de dois minutos, descobrira o que precisava de saber. Salvetti estava limpa. Não tinha mandados pendentes, multas de estacionamento nem qualquer actividade ilegal. O marido também estava limpo. Carolyn Salvetti era a presidente de uma empresa chamada Star Catcher. Tony Salvetti era o vice-presidente.

A base de dados não lhe dera respostas. Se Carolyn Salvetti era o próximo alvo de Monk, então quem o contratara? Quem queria ver a mulher morta?

John Paul estava decidido a descobrir. Uma vez que o seu irmão Remy vivia em Colorado Springs, ele decidiu fazer-lhe uma visita. Conhecido na sua cidade natal, Bowen, na Luisiana, como um eremita mal-humorado, John Paul chocou a família e os amigos a comprar um velho jipe Ford. Fez algumas alterações, reforçou o motor, encheu-o com umas cadeiras de cozinha que fizera para Remy e pôs-se a caminho.

Passou dois dias com o irmão, mas, a dezasseis de Junho, no dia em que Salvetti devia chegar ao spa, John Paul estava à sua espera. Esperava que Monk aparecesse também, e assim poderia prender o estupor.

Carolyn Salvetti não apareceu. O recepcionista, um jovem tenso e bastante nervoso com uns dentes enormes, informou John Paul de que Mrs. Salvetti cancelara a sua reserva em cima da hora.

- Mas tenho aqui uma nota, na sua antiga reserva, que diz que a sobrinha, Avery Delaney, irá ficar no spa. Miss Delaney só vai poder ficar uma semana - lembrou-se ele de acrescentar. Isto ajuda-o?

Em vez de responder à pergunta, ele pediu para falar com o gerente. O funcionário tropeçou ao virar-se, depois foi a correr chamar o patrão.

Tim Cannon apareceu um momento depois, com o funcionário meio escondido atrás de si. Como John Paul saíra da CIA, não tinha qualquer identificação com que ameaçar o homenzinho nervoso e transpirado, por isso usou a intimidação. Como de costume, funcionou às mil maravilhas. Por alguma razão que não compreendia, as pessoas tendiam a ter medo de si. A irmã, Michelle, dissera-lhe que isso se devia ao seu tamanho e ao facto de ele raramente sorrir. Embora achasse curioso que desconhecidos recuassem na sua presença, utilizava o medo deles para sua vantagem. Cannon, partindo erradamente do princípio que John Paul trabalhava para o governo - um princípio que John Paul sugerira, mas não declarara -, e, é óbvio, com vergonha de admitir estar com medo dele, não chamou a segurança nem lhe pediu a identificação. O gerente não podia ter sido mais solícito. Convidou-o para o seu gabinete, disse-lhe para usar a sua secretária e o seu telefone, e, gaguejando uma desculpa acerca de ter uma coisa urgente para fazer, saiu e fechou a porta atrás de si.

Assim que ficou sozinho, John Paul ligou o computador de Cannon, encontrou o site e digitou o seu código de acesso. Detestava a tecnologia, mas era a única forma de obter a informação de que necessitava. Queria ver se fora emitido algum alerta em relação a Monk, e ficou agradavelmente surpreendido ao verificar que não. O spa ainda não estava pejado de agentes - na opinião de John Paul, eram tão facilmente detectáveis como as freiras nos seus hábitos negros - o que queria dizer que o FBI ainda não sabia que Monk regressara aos Estados Unidos. John Paul não se sentiu tentado a informá-los. O FBI iria estragar tudo. Monk veria os agentes, assustar-se-ia e voltaria a desaparecer.

John Paul não queria que isso acontecesse. Estava um passo à frente do FBI, e não precisava de mais nada. Tinha um motivo pessoal para ir atrás do assassino e não iria permitir que alguém se atravessasse no seu caminho.

Pouco mais de um ano antes, Monk tentara matar a irmã de John Paul, Michelle, e, se não tivesse sido o marido dela e um amigo, teria conseguido. Monk fugira, o que, na opinião de John Paul, era imperdoável. Jurou não descansar até apanhar o estupor e poder mandá-lo para o inferno, onde ele merecia estar.

Depois de ter começado a investigação, a necessidade de vingança de John Paul intensificou-se. Um caso abalara-o bastante. Um pai contratara Monk para matar a filha adolescente, a fim de poder receber o dinheiro do seguro e pagar as dívidas de jogo. O FBI sabia que Monk matara a rapariga, porque o assassino

deixava sempre uma rosa, e, embora o pai dela tivesse feito desaparecer essa prova, fora encontrado um espinho nos lençóis da jovem. Não havia mais nenhum familiar para chorar ou tentar que a rapariga fosse justiçada. John Paul sabia que havia outras vítimas cuja existência o FBI ainda desconhecia. Quantos mais inocentes iriam morrer antes de o assassino ser travado?

 

                                               CAPÍTULO 4

Monk manteve as três mulheres entretidas enquanto as conduzia ao destino. Carrie achou-o encantador e muito correcto. Era o seu ideal de mordomo inglês.

Pusera a bagagem delas na mala de um Lana Rover novo em folha, todo equipado, explicando que o jipe era indicado para as estradas rurais e que por essa razão não as fora buscar numa das limusinas do spa. Anne Trapp ia à frente, e Carolyn seguia atrás ao lado da juíza Sara Collins. Os bancos eram de couro bege e muito confortáveis.

Estavam todas animadas, porém nervosas, e falaram pouco. Monk contou-lhes uma breve história do spa e a seguir deliciou-as com vários pormenores fascinantes sobre algumas das pessoas famosas que tinham ficado na casa da montanha para onde iria levá-las.

Carrie não percebeu bem quanto tempo durou a viagem. Não olhara para o relógio quando tinham saído do aeroporto, mas parecia que passara pelo menos uma hora, talvez mais. As histórias de Monk intrigaram-na tanto que ela não se importou com o longo percurso nem com o ligeiro enjoo. Enquanto Sara soltava exclamações, maravilhada com a paisagem à medida que iam subindo, e Anne seguia muda e queda, Carrie interrogou Monk sobre os hóspedes que ele já servira. Não estava especialmente interessada em ouvir coisas sobre políticos. Queria saber tudo sobre as peculiaridades das estrelas de cinema.

- Russel Crowe foi um dos hóspedes? Como era ele?

Monk respondeu, contando um episódio divertido sobre o actor australiano.

Ele gostou bastante da casa - acrescentou -, e quis comprá-la.

Deve ser realmente bonita - observou Sara.

Monk garantiu-lhes que a casa tinha todos os luxos e que ele seria o mordomo delas até chegarem ao Utopia.

Espero sinceramente que não haja mais confusões - observou Anne, irritada.

- Houve alguma confusão? - perguntou Sara.

- Sim, senhora - respondeu Anne. Virou-se para trás, a fim de poder olhar para Sara. - Não havia ninguém do spa à minha espera para me ajudar, e se não tivesse visto Mister Edwards com o cartaz junto à sua porta de desembarque quando me dirigia para a zona de recolha da bagagem, teria ficado sozinha. Sentia-me muito cansada - confessou. - E era quase insuportável pensar em levar as malas para a fila de táxi.

- As hospedeiras de terra podiam tê-la ajudado - disse Carrie.

- A questão não é essa - retorquiu Anne. - Devia estar alguém à minha espera para me ajudar.

”Que mal-humorada!”, pensou Carrie. A expressão de Anne era quase cómica. Fazia beicinho como uma criança de oito anos.

- Garanto-lhe, Mistress Trapp, que todas as suas necessidades serão satisfeitas por funcionários de primeira categoria, e peço mais uma vez desculpa.

- Haverá empregados no hotel? - perguntou ela.

- Sim, com certeza.

- Quantos?

- Quatro - respondeu ele. - Devem estar a chegar do spa.

- Quero um só para mim - exigiu Anne. - Trata disso?

- Com certeza. Anne assentiu.

- Óptimo - disse, parecendo mais calma. Sara e Carrie entreolharam-se.

Agrada-me saber que não estaremos sozinhas esta noite... Para o caso de acontecer algo... ou alguma coisa se avariar. Nunca se sabe.

Estão a instalar um alarme novo. Os fios ainda não foram escondidos, mas funciona - prometeu ele. - Assim que estiver ligado, as senhoras não conseguirão abrir as janelas nem as portas que dão para a rua, claro, mas como aqui à noite arrefece bastante calculo que não queiram janelas abertas.

Carrie observou as suas companheiras de viagem. Pareciam-lhe vagamente familiares, mas não se lembrava de onde as vira.

Olhou para a nuca de Anne, até que por fim lhe bateu no ombro e lhe perguntou. A loura de olhos castanhos encovados virou-se e esboçou um ligeiro sorriso.

- Acho que nunca nos vimos - disse ela. - Já esteve em Cleveland?

- Não - respondeu Carrie.

Vista de perto, reparou que a compleição da mulher era bastante pálida. Não lhe parecia que Anne estivesse de boa saúde. Tinha os olhos mortiços e a pele quase da cor da cera, mas isso talvez se devesse à maquilhagem exagerada. Talvez Anne tivesse pago para fazerem uma espécie de cura milagrosa ao seu corpo esguio, quase anoréctico. Carrie calculou que fosse mais ou menos da sua idade.

A juíza Sara Collins era o oposto. Podia perfeitamente perder uns quinze ou vinte quilos. Talvez fosse fazer uma lipoaspiração ou colocar uma banda gástrica. Parecia velha, com cerca de setenta anos, e o seu rosto denotava a idade. Talvez fosse fazer um face-lift. Carrie estava morta por perguntar, mas não teve coragem.

De onde poderia reconhecê-la? Talvez a tivesse visto na televisão. Estavam na moda as séries passadas em tribunais.

Teria perguntado, mas o motorista transformara-se num guia turístico e mantinha um monólogo constante sobre o Colorado. As histórias encadeavam-se umas nas outras, mas eram interessantes, e Carrie achou que seria rude interromper. Mesmo assim, ele não estava a dar-lhes tempo para se conheceram umas às outras. Decidiu perguntar a Sara se ela era famosa quando estivessem instaladas.

A seguir começou a interrogar-se sobre o que as outras mulheres pensariam a seu respeito. Sabia que parecia mais velha do que era. ”Bruxa velha”, pensou. Sim, devia ser isso que as outras pensavam de si.

Já há algum tempo que seguiam por estradas particulares, e o terreno era cada vez mais íngreme. As curvas deixavam Carrie cada vez mais enjoada. ”Fantástico”, pensou. ”Vou vomitar em cima do nosso mordomo inglês. Não seria uma excelente forma de impressionar as outras?”

A empresa detém toda esta terra? - perguntou Sara a Monk.

- Sim, minha senhora.

- A casa ainda fica muito longe? - indagou Carrie.

- É já ao virar da esquina.

Estavam no meio de nenhures. Num ermo, pensou Carrie, começando a sentir-se pouco à vontade... nervosa. Apercebeu-se subitamente de que não via uma casa ou uma cabana já há bastante tempo. A seguir ocorreu-lhe que um alarme não lhes serviria de nada. Se ele soasse, quem o ouviria? Estaria ligado à esquadra mais próxima e, em caso afirmativo, onde ficaria ela? A uma hora de distância? Duas? Ou o alarme soaria no spá?

Sim, devia ser isso. E isso significava que o spa ficava perto. Tendo chegado a essa conclusão, Carrie recostou-se no banco e tentou descontrair-se.

A casa surgiu subitamente. Era incrível. Empenas de cedro maciço elevavam-se na direcção do céu, e vidros com a altura de dois andares reflectiam os picos das montanhas atrás delas, como se aquela estrutura magnífica tivesse sido ali colocada com o único objectivo de homenagear a grandeza que a rodeava. Um caminho de acesso circular terminava junto do enorme alpendre que se estendia pela frente da casa. Havia um muro de pedra com um metro de altura para protecção do abismo nas traseiras.

Sara ficou boquiaberta.

- Olhem para aquele alpendre maravilhoso e para aquelas lindas cadeiras de baloiço! Tenho de experimentar uma.

Monk estacionou o Land Rover no meio do caminho de acesso de pedra e apressou-se a abrir as portas às suas passageiras.

- Se estiverem no alpendre e olharem pela janela, podem Ver através da casa até ao panorama lá atrás - observou ele.

- Oh, é encantadora - disse Anne. - Parece nova em folha - acrescentou, dirigindo-se para o muro lateral em relação ao caminho de acesso e olhando para as árvores lá em baixo.

- Foi construída há quatro anos.

- Como é que conseguiram trazer cá para cima todo aquele vidro? - perguntou Sara.

- Com muito cuidado, imagino - respondeu Carrie.

- Acho que as senhoras vão ficar muito bem instaladas aqui - disse Monk.

- Oh, sim, vamos! - Sara estava tão entusiasmada que Carrie não se surpreenderia se ela começasse a bater palmas.

Não estaria ela habituada àquele ambiente? Era juíza, por favor! Com certeza tinha dinheiro. E Anne também. Nenhuma delas poderia frequentar aquele spa se não fossem abastadas.

- Se não se importarem de ir entrando, há champanhe lá dentro à vossa espera. Eu levo as malas.

Carrie abriu a porta e foi à frente. Reparou nos arames finos no chão e nas paredes e partiu do princípio que faziam parte do alarme.

- Olhem para o chão - avisou ela. - Vejam lá não tropecem nos fios.

O piso térreo era amplo e muito espaçoso. À esquerda da enorme entrada de mármore ficava uma magnífica escada em espiral que subia dois andares. O espaço estava inundado de luz e, quando olharam para cima, viram as nuvens através de uma clarabóia rectangular comprida.

- As escadas não são bonitas? - perguntou Sara. - A madeira... os degraus, têm o dobro do comprimento e da profundidade dos que eu costumo ver. Devem ter custado uma fortuna

- acrescentou. - Olhem para o corrimão. Está muito bem feito. Carrie concordou.

- As montanhas parecem estar em fogo com o pôr do Sol

- gritou Anne lá de fora. - Venham ver! - Nem Anne, uma mulher difícil de contentar, era capaz de refrear o seu entusiasmo.

Carrie deteve-se na entrada a admirar a vista. No chão de mármore castanho-claro da sala encontravam-se espalhados tapetes orientais coloridos - de excelente qualidade. Em harmonia com as montanhas, os tecidos eram também em tons de castanho-claro e bege. A lareira de pedra tinha no mínimo cinco metros de altura e era parecida, pensou ela, com a lareira na casa do mau da fita, no filme Intriga Internacional. A sala também era quadrada como a sala do filme. Não, esta era bastante melhor, os móveis modernos e mais elegantes.

Em frente, o Sol estava a pôr-se e o brilho da bola de fogo enchia a sala de uma tonalidade alaranjada.

- Parece que estou no céu - disse Sara.

Se subir aquelas escadas em espiral então é que estará no céu - brincou Carrie.

Anne viu o balde de prata no aparador com uma garrafa de champanhe. Ao lado encontrava-se uma bonita jarra de cristal com três rosas vermelhas de caule comprido. As pétalas começavam a abrir.

- Vamos beber um pouco de champanhe?

- Claro - respondeu Sara.

As três mulheres detiveram-se diante da janela a olhar para a paisagem enquanto Anne tentava abrir a garrafa. Riu-se nervosamente quando a rolha saltou e o líquido brotou, enchendo em seguida os flútes de cristal Waterford.

- Devíamos fazer um brinde - disse Carrie.

- Boa ideia - concordou Sara.

Ela e Anne levantaram os copos e esperaram que Carrie fizesse as honras.

- À nossa - disse ela. - Que todos os nossos sonhos se tornem realidade.

- Muito bonito! - comentou Anne.

Sentaram-se nos sofás estofados de penas a beber o champanhe, a conversar sobre trivialidades, evitando cuidadosamente temas pessoais, enquanto Monk levava as malas para as suítes no primeiro andar. Carrie continuava a sentir-se um pouco enjoada, por isso não bebeu mais do que um gole.

Monk juntou-se-lhes dez minutos mais tarde com um tabuleiro de canapés. Enquanto ele colocava guardanapos de linho junto do tabuleiro em cima da mesinha, Carrie ouviu uma porta recriar-se. Olhou para o corredor que saía da sala de jantar e viu uma mulher com um vestido preto entrar na cozinha.

- As empregadas chegaram - comentou ela com Sara.

- Prove um destes canapés de pepino - sugeriu Anne, acabando de comer um. - São muito saborosos.

Carrie não queria dizer às outras que não se sentia bem, e muito menos iria admitir que enjoara na viagem., Sim, já provo - disse ela. Meteu um pequeno canapé na boca mal o mastigando antes de o engolir. - É bom.

Não conseguiu comer mais nada e ficou ainda mais enjoada ao ver Anne comer dois vol-au-vents de salmão bem como os canapés de pepino, e Sara devorar o dobro.

Poucos minutos depois estavam a bocejar. Monk reparou.

- Se as senhoras quiserem seguir-me, irei mostrar-vos os quartos - disse ele, dobrando-se para acender um dos candeeiros de mesa. Agora que o Sol se pusera, a sala estava cheia de sombras.

- Tenho tanto sono - disse Anne.

- Deve ser o ar da montanha - sugeriu Sara. - Eu própria estou bastante letárgica.

Seguiram Monk até à escada em espiral. Carrie olhou para cima.

- Quem haveria de pensar que as escadas podiam ser uma obra de arte? - comentou ela.

- Detesto escadas - disse Anne. - A próxima casa que mandar construir vai ter só um piso.

Sara e Carrie ignoraram o comentário.

- Já desfiz as vossas malas. Mistress Trapp, a senhora e a juíza Collins vão ficar em suítes no primeiro andar, em extremidades opostas do piso. Mistress Salvetti, a senhora está um piso acima. Espero que as instalações sejam do vosso agrado.

Anne ia atrás de Monk, depois seguiam-se Carrie e Sara, apoiada ao corrimão.

- Tenho a sensação de que já estive nesta casa - disse Sara. - Contudo, nunca vi uma escada em espiral como esta, por isso não sei a que se deve a sensação.

- Acho que é por causa da lareira - comentou Carrie. Parou num degrau e tornou a admirar a sala. - Já alguma vez viu o filme Intriga Internacional?. Entra o Cary Grant e a Eva Marie Saint, e, no momento mais tenso, tiveram de trepar às caras dos presidentes?

- Vi, sim. A lareira de pedra é muito parecida com a do filme. Deve ser por isso que me parece tão familiar.

- Nunca vi esse filme - disse Anne. Carrie ficou estarrecida.

- Deve estar a brincar! É um dos melhores do Hitchcock. Anne encolheu os ombros.

- Estava muito ocupada a dirigir a minha empresa. Não tinha tempo para ir ao cinema.

- Mas é um clássico. Já deve ter passado na televisão umas cem vezes! - exclamou Sara.

Oh, eu nunca vejo televisão.

Carrie não sabia o que mais dizer à mulher. Anne parecia vangloriar-se do facto de nunca ver televisão. A vida de Carrie girava em torno das estações televisivas e dos seus patrocinadores. Olhou para Anne como se esta fosse um extraterrestre. Não via televisão nem ia ao cinema? Espantoso. Não admirava que fosse tão chata.

Não sentiu remorsos por causa daqueles pensamentos. Anne, sem o saber, acabara de insultar aquilo para que Carrie trabalhava e em que acreditava.

Monk levou primeiro Sara à suíte.

- Acho que me vou deitar - disse ela. - Vejo-vos amanhã de manhã.

- Boa noite - desejou Carrie, ao seguir Monk pelo corredor.

Ele abriu a porta do quarto de Anne e, em seguida, voltou-se para Carrie.

- A sua suíte fica mesmo por cima da da juíza Collins anunciou. Levou-a escadas acima.

- Então há quatro suítes? - perguntou Carrie.

- Sim - respondeu ele.

Chegaram à porta, e Monk recuou para a deixar entrar. O quarto amplo com uma sala anexa tinha uma cor âmbar reconfortante. Junto à lareira havia duas cadeiras, e a cama de dossel de pinho estava coberta por um edredão de penas.

Ela bocejou ruidosamente. Monk ou uma das empregadas tinha colocado o seu roupão e a sua camisa de noite em cima da cama. Viu o trolley no suporte destinado à bagagem. Estava aberto e vazio, e ela ia perguntar onde se encontrava o computador quando uma onda de náusea e tonturas a atingiu, e foi obrigada a sentar-se. Respirou fundo várias vezes, apoiando-se a uma das colunas da cama.

- Está tudo bem, Mistress Salvetti?

Ela não queria ser difícil nem queixar-se como Anne, por isso disse apenas que se sentia cansada após aquele longo dia.

Normalmente deito-me tarde, por volta das duas ou três da manhã, mas hoje mal consigo manter os olhos abertos. A expressão de Monk era compreensiva.

- É preciso algum tempo para se habituar ao ar da montanha, e os funcionários do spa sugeriram que as senhoras se deitassem cedo esta noite. O dia de amanhã promete ser muito agitado.

- Sim, tenho a certeza de que será.

- Eu vou ser o último a deitar-me - disse ele já a caminho da porta. - Nessa altura, ligo o alarme. Por favor, lembre-se de que não deve abrir as janelas.

- O que acontece se o alarme disparar? Quem o irá ouvir? Estamos no meio de nenhures.

- O alarme está ligado ao spa. Julgava que já tinha referido isso. Se precisarmos de ajuda, ela chegará em menos de três minutos.

- O spa fica assim tão próximo? Ele assentiu.

- Se não fossem as árvores, poderia ver as cúpulas da janela. Quer que feche as cortinas?

- Não, prefiro tê-las abertas. - Ela virou-se, agarrada a uma das colunas da cama, agora que a bílis lhe subia pela garganta. Ia perguntar-lhe onde ficavam os aposentos dos criados, mas a garganta ardia-lhe demasiado para fazer a pergunta. Boa noite - disse. - Feche a porta quando sair.

Assim que ouviu o trinco fechar-se, correu para a casa de banho com uma mão a cobrir-lhe a boca. Mal teve tempo de levantar a tampa da sanita antes de vomitar o canapé que comera. O maldito enjoo! Tinha esse problema desde criança. Devia ter dito que não podia viajar no banco de trás. Preocupada com o que as outras pensariam a seu respeito, não abrira a boca.

Que raio se passava consigo? O que lhe importava o que desconhecidas pensavam a seu respeito? Provavelmente não voltaria a vê-las depois do pequeno-almoço.

O estômago pôs-se às voltas quando ela pensou em comida. Não se sentia tão doente há vários anos, não desde aquela intoxicação alimentar. Avery tinha catorze anos na altura, e faltara às aulas para ficar a tomar conta de Carrie. Na altura também Tony fora um querido. Ela lembrava-se de como ele a abraçara quando os arrepios tinham piorado.

Carrie sentia-se demasiado fraca para tomar duche. Lavou os dentes, o rosto e vestiu a camisa de dormir. Cambaleou para o quarto, ouviu copos a tinir, e calculou que Monk devia estar em arrumações. Depois ouviu o riso de uma mulher. Estaria a empregada a namoriscar com ele? Bem que podia, pensou Carrie. Não tinham mais nada para fazer, uma vez que ela, Anne e Sara estavam já a deitar-se. Céus, ainda não eram nove da noite e ela já estava tão cansada que mal conseguia concentrar-se.

O quarto continuava às voltas. Como se sentia mal! Caiu na cama, cobriu-se a custo e tentou adormecer de lado. As náuseas ainda se faziam sentir. Devagar, pôs-se de barriga para cima. Assim estava melhor, muito melhor. Fechou os olhos e adormeceu.

Não soube quanto tempo dormiu, mas o quarto continuava às escuras quando ouviu alguém a chamá-la. Não foi capaz de responder. Depois ouviu vários cliques. Não, era o estalar de dedos, várias vezes, ou o som de facas a serem afiadas. Carrie não percebia por que motivo o barulho não cessava.

Alguém lhe tocou no ombro, tornando a chamar o seu nome.

Não foi capaz de reunir energias para abrir as pálpebras.

- Sim? - sussurrou.

- Carrie.

- Sim?

O barulho dificultava-lhe a concentração. E, oh, tinha tanto sono! Tentou, mas não foi capaz de levantar a mão para cobrir os olhos quando a luz se acendeu.

- Vá-se embora - pediu com voz rouca.

- Ouvi o teu brinde, Carrie. Lembras-te do que disseste?

- Não...

- Que os nossos sonhos se tornem realidade. E os nossos pesadelos? Eles também se tornam realidade.

As palavras não faziam o menor sentido.

- O quê? Pesadelos? Não... pesadelos não.

- Abre os olhos, Carrie.

O som tornara-se mais forte.

- Vá lá, olha para mim.

A voz que flutuava acima dela tornou-se mais exigente, mais ameaçadora. Carrie conseguiu por fim abrir um pouco os olhos. Viu uma tesoura a abrir-se e a fechar-se junto ao seu rosto. A tesoura brilhava. Era o tal ruído que ouvira. Mas porque havia ali uma tesoura?

A seguir o ruído parou, e a tesoura desapareceu. Um rosto surgiu a centímetros do seu, e aquele sorriso, aquele sorriso horrendo que era terrivelmente familiar.

Carrie tentou gritar.

- Não... não... não... oh, meu Deus, ajuda-me... não... Jilly.

 

                                                 CAPÍTULO 5

Avery perdeu a noção do tempo. Estava agitadíssima a tentar despachar o máximo possível de trabalho antes de ir para o aeroporto. Deixara a secretária limpa na noite anterior. Chegara ao escritório às seis e meia da manhã para ter tempo de fazer tudo.

Tinha os olhos tão cansados que mal conseguia olhar para o computador. Alguém, não sabia quem, deixara vinte e duas pastas na sua secretária, e ela tinha de transferir toda a informação para a base de dados. Também tinha ainda pelo menos uns sessenta e-mails para ler e responder, e não se lembrara de verificar o voice mail particular nas últimas vinte e quatro horas.

O seu cubículo continuava a parecer ter sido atingido por um ciclone. As pastas aparentavam multiplicar-se, mas como era isso possível?

- Não devias estar num avião? - perguntou Margo. Equilibrava nos braços uma pilha de pastas, a garrafa de água vazia e uma caixa de donuts.

- Ainda me resta algum tempo - respondeu Avery, digitando a resposta a um dos e-mails.

Lou levantou-se e esticou os braços.

- Margo, ainda há algum donuts?

- Um. A Avery não comeu o dela.

- Serve-te - disse Avery.

Lou tirou a caixa dos braços de Margo e abriu-a.

- Quando é que te vais embora?

- Em breve.

- Vais de avião?

Claro que vai de avião - respondeu Margo.

- Já calculei tudo até ao último minuto. Se sair às quatro e um quarto em ponto, tenho tempo de ir a casa, mudar de roupa, pegar na mala e depois apanhar a auto-estrada até ao aeroporto, deixar o carro no parque de estacionamento e chegar a tempo à porta de embarque.

Margo tirou a mala da gaveta e aproximou-se da colega.

- Olha, Avery, ligaste à empregada de Mistress Speigel e pediste-lhe para esconder melhor as chaves do carro?

- Não, esqueci-me.

- Queres que eu procure o número dela e ligue? Ela tem de fazer alguma coisa para proteger o público daquela mulher.

- Agradecia-te muito - disse Avery. - Mas não sejas mandona, Margo. Mistress Speigel é uma querida. Ela sabe que não pode conduzir, mas às vezes confunde-se.

- Avery, ela quase te matou! - Margo soltou um suspiro.

- Está bem, não vou ser mandona. Mel juntou-se à conversa.

- A auto-estrada deve estar engarrafada. Devias apanhar a Jefferson Davis e depois sair na noventa e cinco. Poupavas uns vinte minutos.

Margo discordava.

- Ela vai sair na hora de ponta. A auto-estrada é muito mais rápida.

Avery mal os ouvia. Os seus dedos voavam sobre o teclado enquanto respondia a questões dos outros departamentos.

- Sinto-me muito mal por vos deixar o meu trabalho todo - disse ela.

- Não te preocupes com isso - retorquiu Lou.

- Dividimos o trabalho entre os três - declarou Margo.

- Lou, tens açúcar em pó no cinto. - Esticou a mão por cima da cabeça de Avery, tirou um lenço de papel da caixa que se encontrava na prateleira e entregou-o a Lou. Depois tornou a virar-se para Avery. - Tenciono deixar-vos o meu trabalho todo quando for a San Diego no próximo mês ao casamento da minha prima.

- Acho melhor imprimir os possíveis caminhos a tomar até ao aeroporto - disse Mel. - Dou-te a folha quando fores a sair.

- Desde que seja às quatro e um quarto.

- Eu certifico-me de que é - prometeu Mel. - Vamos sincronizar os nossos relógios?

Isso é mesmo de tarados da informática - observou Margo. - O Brad Pitt nunca...

O telefone tocou, interrompendo-lhe o raciocínio. Enquanto corria para o seu cubículo, Lou pegou na deixa.

- Sejamos realistas. Nós somos tarados da informática.

- E que mal tem isso? - perguntou Mel. - Quero dizer, o Bill Gates é um tarado da informática e saiu-se muito bem.

- Talvez, mas nós não ganhamos os milhões que ele ganha, pois não? E toda a gente do FBI acha que somos tarados da informática.

- Não acredito nisso - retorquiu Mel. - Somos todos membros importantes da equipa.

Margo interrompeu-os.

- O agente Andrews vem aí. A secretária do Douglas ouviu-o perguntar onde é que era o cercado.

- Deve vir aí agradecer-te, Avery, por o teres deixado ficar com os louros - observou Lou.

- Já vem atrasado - ripostou Margo. - Devia ter-lhe agradecido no outro dia, depois da conferência de imprensa.

- O Andrews vai atrasar-te - disse Mel. - Talvez seja melhor eu imprimir já a folha com as alternativas de caminho. No carro podes depois decidir qual o melhor a seguir. Não te esqueças é de ligar o rádio e ouvir as informações de trânsito.

Avery tentou não sorrir. Mel tinha tendência para ficar obcecado com os mais ínfimos pormenores.

- Deixamos o Andrews falar quanto tempo? Quatro, cinco minutos?

- Seria bom.

- Depois tu interrompes - disse Mel a Lou. - És bom nisso.

Andrews deu-lhes cabo do horário. Embora Avery nunca tivesse visto o agente, definiu-o em menos de um minuto. Ele julgava-se encantador. Mas estava errado. Passou rapidamente a fase dOs ”obrigados”, mas depois sentou-se na ponta da secretária dela e convidou-a para jantar. O seu olhar não era bem de soslaio mas andava lá perto. Lou e Mel tentaram imediatamente Ver-se livres dele.

- A Avery vai hoje de férias - interveio Mel. - Tem de ir apanhar um avião.

Ao ver que Andrews não percebia, Lou decidiu ser mais directo.

- É melhor ir-se embora. Ela tem os minutos contados, e você está a empatá-la.

A resposta de Andrews foi cruzar os braços e esboçar um sorriso idiota.

Não era preciso ser-se detective para perceber o que estava a acontecer. Andrews sofria de LAPV, ”luxúria à primeira vista”, mas isso não o tornava raro. A maior parte dos homens que se aproximava de Avery ficava temporariamente a sofrer desse debilitante mal. Mel achava que a síndrome era provocada pelos grandes olhos azul-claros da colega. Quando ela olhava para um homem e lhe dedicava toda a sua atenção, o cérebro dele desligava-se. Lou não concordava com a análise de Mel. Os olhos azuis podiam de facto ajudar a prender a atenção do indivíduo, mas era o corpo esbelto de Avery e o seu cabelo louro e sedoso que o transformavam num idiota palrador.

Andrews já estava a pairar. Era triste, realmente, ver um profissional calejado deixar-se atolar tão depressa.

Mel, o mais protector de Avery, esperava que Andrews se despachasse e a elogiasse. Todos o faziam, mais tarde ou mais cedo, e nessa altura Avery despachava-os. Mel olhou para o relógio e rezou para que Andrews dissesse a Avery o quanto ela era bonita. Se não se atirasse a ela rapidamente, ela perderia o avião.

”Vá lá, vá lá”, pensou Mel. ”Atira-te. Diz-lhe que ela é fantástica.”

- Tenho de lhe perguntar uma coisa - disse Andrews.

- Sim? - inquiriu Avery.

- Como é que uma mulher tão bonita como você está enfiada nesta cave? - O agente quase cantarolou a pergunta como um intérprete de música country. - Com o seu aspecto... Não foi mais longe. O coitado nem soube o que o atingiu.

- Agente Andrews, não tive nada a ver com o meu aspecto

- respondeu abruptamente Avery numa voz furiosa. - Agora, se me dá licença, tenho trabalho a fazer, e calculo que o senhor também. Levante-se da minha secretária e vá-se embora.

Ao acabar de falar, girou a cadeira e começou de novo a escrever no computador. Andrews tinha no rosto aquela expressão ”mas o que foi que eu disse?” ao levantar-se e ir-se embora, corado como uma adolescente.

Mel só começou a rir depois de ele se ter afastado.

- Então calculo que não vás jantar com o Andrews quando regressares das férias...

- Estou a tentar trabalhar.

Lou estendeu a mão e Mel, franzindo o sobrolho ao tirar a carteira do bolso de trás, extraiu uma nota de dólar e entregou-a ao colega. Os dois tinham uma aposta constante acerca da natureza dos elogios feitos a Avery. Como Andrews não dissera nada a respeito das pernas dela, Lou ganhara o dólar. As pernas dela eram espectaculares, e a maior parte dos homens reparava imediatamente nelas, mas parecia que Andrews não era um homem de pernas.

- Porque é que aquilo nunca me acontece? - perguntou Margo. - Eu sou gira, não sou?

- Sim, claro que és - disse Lou.

- E um dia quero casar e constituir família - prosseguiu ela como se Lou não tivesse aberto a boca. - Já a Avery deixou bem claro em inúmeras ocasiões que não quer casar. Não é justo. Eu seria perfeita para o Andrews. Seria mesmo. Mas ele nem sequer olhou na minha direcção.

- O que te faz pensar que serias perfeita para ele? - indagou Lou.

- Porque ele é uma brasa - respondeu ela. - E ninguém aprecia mais uma brasa do que eu. Seríamos perfeitos um para o outro - disse ela por cima do ombro, regressando ao seu posto de trabalho.

Mel guardou a carteira no bolso e voltou ao trabalho. Às quatro e um quarto, pôs-se de pé.

- São horas de ires andando, Avery - anunciou.

- Dá-me só mais dez minutos...

Os dez minutos transformaram-se em quarenta e cinco e ela só saiu do escritório depois das cinco da tarde. Felizmente, o seu joelho já estava muito melhor, e conseguiu correr. No entanto, perdeu o voo. Havia um acidente na auto-estrada, com corte de ambas as faixas, e quando ela chegou ao aeroporto e correu para o terminal, o avião já levantara voo.

Avery ainda pensou na possibilidade de regressar a casa e dormir na sua cama. Há mais de uma semana que não dormia mais de quatro horas por noite e estava exausta. Porém, não ousou ceder a essa vontade. Carrie matá-la-ia se ela chegasse um dia atrasada.

Ir para um spa não era o seu ideal de férias. Ia apenas para agradar à tia. Quando ia a um local novo, gostava de ver a paisagem, de absorver as cores locais. Não lhe agradava ficar fechada num spa durante seis dias, mas Avery dera a sua palavra, por isso não podia voltar atrás.

O voo seguinte para Aspen estava cheio, pelo que ela teve de apanhar um outro. Acabou em Grand Junction, no Colorado. Teria de esperar até à manhã seguinte para apanhar o voo de ligação. Depois de ter ido levantar a bagagem e feito o check-in num hotel ao lado do aeroporto, ligou para o telemóvel de Carrie. Ouviu o voice mail ao primeiro toque. Calculou que a tia estivesse a carregar a bateria do telemóvel e já se fora deitar - era meia-noite em Aspen. Deixou recado a dizer que chegaria ao spa por volta do meio-dia no dia seguinte.

Depois ligou para o spa a informar que chegaria atrasada. Como já deixara uma mensagem no telemóvel de Carrie, não pediu para lhe ligarem à suíte.

Nessa noite, Avery dormiu que nem uma pedra. Na manhã seguinte, enquanto tomava o pequeno-almoço continental, constituído por torradas, sumo e leite, ligou para o voice mail do escritório. Havia mais de vinte mensagens na sua caixa de correio, mas felizmente nenhuma era urgente. Ela tomou notas enquanto ouvia e em seguida apagou-as. A mensagem de Carrie fê-la sorrir. Parecia tão animada por ir ficar numa casa de montanha onde Tom Cruise supostamente havia estado. Era mesmo típico da sua tia ficar entusiasmada com uma coisa tão insignificante. Avery apagou a mensagem e prosseguiu até ter terminado.

Às oito e um quarto estava na recepção a fazer o check out. Enquanto o recepcionista imprimia a sua conta, Avery olhou para o mapa do Colorado. Aspen não ficava muito longe de Grand Junction, apenas a duas horas e meia de carro. A seguir ouviu um casal idoso a falar da magnífica paisagem da zona e, num impulso, decidiu alugar um carro e conduzir até ao spa. Apanhou o autocarro até ao aeroporto, alugou um carro e arrancou.

Avery vestia o seu uniforme de fim-de-semana, umas calças de ganga velhas, uma T-shirt branca e uns ténis puídos. Carrie não aprovaria a indumentária, mas Avery preferia o conforto à elegância.

Assim que entrou na 1-70 e virou para este rumo a Aspen, sentiu que se encontrava verdadeiramente de férias. Estava uma manhã linda de Verão. O Sol brilhava, e o céu tinha uma tonalidade azul brilhante que parecia quase artificial. Abriu a janela e respirou fundo. Era magnífico. O ar era tão limpo e leve que parecia que ela estava a respirar oxigénio puro. Uma mudança agradável depois da poluição da grande cidade.

Parou num MacDonald’s para comprar uma garrafa de água e uma Coca-Cola Light. Depois de ter pago, sentou-se a uma mesa e olhou para o mapa. Podia aproveitar para ver alguma coisa a caminho do spa, talvez qualquer coisa histórica. Sabia que assim que chegasse, Carrie não a deixaria sair, e ela queria ver um pouco do Colorado. As coisas que já vira até ali eram muito bonitas, mas sentia que estava apenas a descobrir uma pequena parte do que o estado tinha para oferecer. Para além disso, Carrie já estaria irritada por causa do seu atraso. Que diferença faria se chegasse uma ou duas horas ainda mais atrasada?

Abriu o mapa na mesa e tentou localizar o sítio onde Carrie disse que passaria a noite. Como se chamava? Terra dos Lagos? Não.

- Está perdida, querida?

A voz grave de barítono perturbou-a. Também a irritou. Não estava com disposição para ser cortejada. Reprimindo um suspiro, franziu o sobrolho ao levantar a cabeça, pronta para dizer a quem a incomodara que se fosse embora, mas a seguir viu

o cavalheiro ali parado e sorriu. Tinha pelo menos oitenta anos. imaculadamente vestido com uma camisa de ganga acabada de Passar a ferro, uma gravata espanhola e umas Levis enfiadas nas botas à cowboy com bordados no cano, um chapéu bege numa

mão e uma caneca de café fumegante na outra. Tinha um rosto Simpático, desde os olhos cor de avelã brilhantes, à pele curtida e ao bigode fininho muito bem aparado. Tanto o bigode como o cabelo eram brancos. Desculpe? Perguntei-lhe se estava perdida - repetiu ele. - Vi-a olhar para o mapa e calculei que pudesse ajudá-la, já que conheço todos os recantos do Colorado. Vivi aqui todos os meus oitenta e quatro anos, que comemorarei em Setembro.

- Por acaso estava à procura de locais de interesse para visitar - disse ela. - A sua ajuda até me dava bastante jeito. Quer sentar-se:

- Com todo o prazer - respondeu ele. Pousou o café e sentou-se em frente a Avery, pousando com cuidado o chapéu na cadeira ao lado. - Não me posso demorar. A minha neta vem buscar-me. Tem uma loja muito bonita de artigos regionais, e eu ajudo-a duas vezes por semana. É por isso que estou assim vestido - explicou. - Então para onde é que vai?

- Aspen.

- Não se poderá perder. Há placas por todo o lado. Aspen fica a poucos quilómetros.

- Sim, eu sei. Mas estava a tentar localizar uma zona chamada Terra dos Lagos ou Em Redor dos Lagos. Já ouviu falar?

- Se está a referir-se à Terra Entre os Lagos, sim, já ouvi falar. Chamo-me Walt Gentry, a propósito.

- Avery Delaney - disse ela, estendendo a mão para o cumprimentar.

- É um prazer conhecê-la. - Afastou o café para o lado, para não lhe bater quando pousasse as mãos em cima da mesa.

- Não vai encontrar esse sítio no mapa, por isso pode desistir de procurar. A maior parte das pessoas fora do Colorado desconhece a sua existência. Sabe, vem para cá gente da Califórnia e de Washington comprar terra. Depois constróem uma casa grande e acham que devem dar-lhe um nome, como se fosse a Ponderosa ou coisa do género. Um tipo chamado Parnell, Dennis Parnell, comprou há algum tempo dezasseis hectares de boa terra numa zona acima de Aspen. Não devia ter podido comprá-la, mas comprou - acrescentou ele com um encolher de ombros.

- Então, há cerca de seis anos, decidiu construir lá a casa dos seus sonhos. Levou mais de dois anos e meio a terminá-la, e pôs os ambientalistas fora de si ao revolver aquela bela terra virgem. Pôs camiões a subir e a descer a montanha, cortou árvores para fazer uma estrada. O que o Parnell fez foi uma vergonha, mas conseguiu fazê-lo porque o dinheiro tem muita força e ele obteve todas as autorizações necessárias. Acho que hoje em dia isso não seria possível - acrescentou. - Nos últimos dois anos foram aprovadas leis mais rígidas para proteger a terra. Bem, quando a casa do Parnell ficou pronta, ele construiu uma vedação à volta. Ouvi dizer que a casa valia oito milhões de dólares, mas isso foi há uns anos, por isso o preço já deve ter duplicado. Consta que o Parnell pagou a pronto e é dono da casa e do terreno. Não acredito em boatos, mas as pessoas daqui acreditam, e é claro, começaram a perguntar-se onde é que ele teria arranjado tanto dinheiro.

Avery estava fascinada com a história.

- E onde é que o arranjou?

- As pessoas daqui achavam que era dinheiro da droga, mas afinal o Parnell era dono de uma empresa de informática em Silicon Valley. Um dos seus engenheiros desenhou um novo chip informático que revolucionou o negócio. Não percebo nada disso - admitiu ele -, mas como aquele engenheiro trabalhava para o Parnell, ele registou a patente. Fez uma fortuna, vendeu a empresa antes de ela se ir abaixo e mudou-se para cá.

- Já não é dono da casa, pois não? - perguntou ela, pensando que Parnell devia tê-la vendido ao dono do Utopia, para usufruto de clientes importantes.

- E e não é - respondeu Walt. - É aqui que a história se torna sórdida. O Parnell casou numa igreja a dois quilómetros daqui. Foi um grande acontecimento e custou uma fortuna. Foram convidadas quinhentas pessoas. Ouvi dizer que foi preciso um ano para planear a festa. Até mandaram vir flores da Europa. Calculo que as flores dos Estados Unidos não fossem suficientemente boas. Bem, a preparação do casamento durou mais do que o casamento propriamente dito. O Parnell só esteve casado dezoito meses e depois pediu o divórcio.

Fez uma pausa e abanou a cabeça.

- Não percebo este mundo moderno. Eu e a minha mulher, Ona May, estamos casados há quarenta e sete anos, e claro, houve alturas em que me apeteceu ir embora e nunca mais voltar. Imagino que ela tenha sentido o mesmo algumas vezes, mas ficamos juntos porque fizemos os nossos votos e jurámos mantê-los. Agora leio nos jornais que há uma nova tendência chamada ”Primeiro casamento”. Já ouviu falar?

Sim, já - respondeu ela com um sorriso.

- Não compreendo. Aqueles casais deviam apenas viver juntos e deixar os votos à parte. Acho que o Parnell julgou que estava num primeiro casamento, visto ter pedido o divórcio tão depressa. Foi um divórcio bastante atribulado, com muitos golpes sujos que, é claro, foram noticiados nos jornais. As pessoas adoram ler essas coisas. Toda a gente está à espera de saber quem é que vai ficar com a casa. A futura ex-mulher jura que ele lha prometeu, e acha que deve poder ficar com ela. O juiz está agora a decidir a quem é que a vai dar. A Pamela Parnell disse que só por cima do seu cadáver o marido fica com ela, e ele respondeu que não tem qualquer problema com isso. Estão ambos a comportar-se como duas crianças, na minha opinião. Ainda a semana passada o Parnell deu outra entrevista e afirmou que, independentemente da decisão do juiz, não vai deixar que a mulher fique com a casa. Que dois! - exclamou ele. - Mas as pessoas aqui e em Aspen são igualmente más. Sabe que fizeram uma aposta?

- Quer dizer que estão a apostar em quem é que vai ficar com a casa?

- Exacto. As probabilidades são de noventa para dez a favor da Pamela Parnell, por causa da forma duvidosa como o Dennis conseguiu as autorizações de construção. Fala-se que ele será indiciado. E o juiz que vai decidir qual dos dois desgraçados ficará com a casa é um ambientalista ferrenho. Creio que o tempo irá decidir.

Inclinou-se para a frente, e bateu no mapa com o dedo indicador.

- É aqui - disse ele. - A Terra Entre os Lagos. Deu-se-lhe esse nome porque ela fica entre dois grandes lagos de águas cristalinas. Tem uma caneta? Posso fazer um círculo no local.

Avery enfiou a mão na mochila, encontrou uma esferográfica e entregou-a a Walt. Os dedos dele estavam deformados pela artrite. Teve alguma dificuldade em segurar na caneta.

- Fica a duas horas de caminho daqui. Na zona há outras casas elegantes, mas não poderá aproximar-se porque as estradas são particulares e há portões.

- Pensei que a minha tia ia ficar num local chamado Terra Entre os Lagos, mas devo estar enganada. Talvez não tenha ouvido bem. Havia muita interferência.

Será que ela disse Lagos Gémeos? - perguntou Walt. -

A Terra Entre os Lagos fica a norte, mas os Lagos Gémeos são a sul daqui, e vêm no mapa.

Apontou para o local. Avery assentiu, depois dobrou o mapa e meteu-o na mochila. Tornou a apertar-lhe a mão quando se levantou.

- Muito obrigada pela sua ajuda.

- O prazer foi meu. Não se esqueça de apertar o cinto,

querida. Há por aqui muito condutor maluco a fazer aquelas curvas a cento e dez quilómetros por hora. Estão a chamar a morte. Não deixe que a levem consigo.

Ela meteu-se no carro e seguiu viagem. A culpa impediu-a de fazer desvios. Além disso, já se tinha apercebido um pouco do que era a região ao falar com Walt. Era um cavalheiro muito simpático, e gostara muito de o ouvir.

Talvez conseguisse convencer Carrie a darem uns passeios a pé. A ideia era tão absurda que ela se riu. Avery ouvira dizer que a tia fora uma grande atleta na escola secundária. Jogava voleibol, basquetebol, e praticava vários outros desportos. Avery lembrava-se de brincar com os trofeus desportivos de Carrie. Será que a tia ainda os tinha, ou já os deitara fora? Ora, não importava. Hoje em dia Carrie não gostava do ar livre. Detestava exercício físico.

Para Carrie, o objectivo da estada no Utopia era ser apaparicada, não posta em forma à força. Avery suspirou. Esperava que a tia não a obrigasse a fazer aquelas coisas todas, os banhos de laTia e os tratamentos com algas. Não que tivesse alguma coisa contra ser apaparicada, mas não tinha muito tempo para se divertir e preferia explorar o campo.

Avery atravessou Aspen e prosseguiu viagem. Uma hora depois teve a certeza de que estava perdida. Ia parar e tornar a olhar para o mapa quando viu a tabuleta a indicar o Utopia. A estrada descrevia uma curva acentuada, depois subia e estreitava-se, passando a gravilha. A seguir surgiu o portão. Ela parou Para dar o nome ao segurança.

O seu nome não está na lista das entradas de hoje.

Eu fiz uma reserva - insistiu. - O meu nome deve estar aí.

Ele aproximou-se do carro e sorriu.

- Tenho a certeza de que não passa de um mal-entendido. Pode esclarecer tudo na recepção.

- Obrigada! - gritou ela ao entrar.

Deviam ser muito simpáticos no spa, a avaliar pelo segurança. Olhou pelo espelho retrovisor e viu-o parado no meio da estrada a vê-la afastar-se.

O seu cabelo grisalho fê-la recordar-se do tio Tony. Oh, esquecera-se de lhe ligar na noite anterior. Assim que chegasse ao quarto faria isso. Tony preocupava-se imenso. Avery sabia que ele e Carrie estavam com problemas, mas esperava que conseguissem resolvê-los. Carrie devia ser a culpada. Embora Avery amasse a tia, não era cega em relação aos seus defeitos. Às vezes era uma chata. Casar com Tony fora a melhor coisa que ela fizera e talvez, quando estivesse descontraída no spa, tivesse tempo para pensar nas coisas verdadeiramente importantes. Sempre tomara Tony como certo, e nenhum casamento sobrevivia a isso. Felizmente, o tio tinha a paciência de um santo. Aguentar-se-ia no lugar durante mais tempo do que qualquer outro.

Avery descreveu outra curva acentuada. Caramba, onde ficaria o spá?. Desde que passara o portão já subira meia montanha e continuava rodeada por vegetação. Então, quando já julgava ter metido por uma estrada de serviço, o Utopia apareceu.

O nome assentava que nem uma luva.

- Meu Deus! - exclamou ela.

O local era deslumbrante e parecia irradiar tranquilidade. Os edifícios amarelos estavam no meio de uma vegetação luxuriante. O edifício principal parecia fazer parte do declive da montanha. Na colina havia pequenos bungalows com carreiros de pedra a serpentearem pelo meio dos pinheiros. Viam-se flores silvestres por todo o lado. Ouvia o som de água a correr. Virou-se e viu uma fonte com degraus construída no declive da colina mais baixa. A água borbulhante escorria por uma laje e batia numa esfera dourada suspensa num tanque circular.

Uma carrinha dos serviços técnicos apareceu diante do carro de Avery, vinda de uma estrada de serviço. Ela travou e esperou que os funcionários descarregassem rapidamente uns barris enquanto abarcava a beleza e a serenidade do ambiente. Um casal jovem, obviamente apaixonado, chamou-lhe a atenção. Desciam devagar de mãos dadas o carreiro paralelo à fonte. Pararam a meio, viraram-se um para o outro, e beijaram-se apaixonadamente.

Avery sentiu uma ponta de inveja e desviou o olhar. Depois não conseguiu impedir-se de voltar a observar o casal, reparando na forma como se olhavam. Deviam ser recém-casados, pensou.

A carrinha saiu da frente e, com um suspiro, ela avançou. No cimo havia um patamar empedrado. Diante dos degraus de mármore que conduziam à entrada estavam enormes vasos de barro com trepadeiras e flores cor-de-rosa e amarelas, como sentinelas.

Viu pessoas a entrar e a sair, em passo calmo. Tal como o casalinho que vira, os hóspedes vestiam fatos de treino azul-escuros iguais. No blusão, por cima do bolso, estava um pequeno logotipo com uma esfera e o nome do spa bordado a ouro.

Avery desligou o carro quando o porteiro avançou na sua direcção. Abriu-lhe a porta e, estendendo a mão para a ajudar, disse:

- Bem-vinda ao Utopia.

 

                               CAPÍTULO 6

Monk estava apaixonado. Embora não acreditasse que tal milagre pudesse acontecer, conhecera a mulher dos seus sonhos e desde essa altura comportava-se como um idiota. Jilly era a sua alma gémea. Eram perfeitos um para o outro, pois partilhavam os mesmos sonhos, as mesmas fantasias, os mesmos objectivos e, acima de tudo, gostavam ambos de jogar sujo.

Ela hipnotizara-o desde o momento em que o conhecera naquele bar imundo nos arrabaldes de Savannah. Ele ficara sem fôlego quando a vira entrar, uma beldade de vestido de seda vermelho e sapatos de salto alto da mesma cor. Era simplesmente... magnífica. Como lhe dissera ao telefone, ele aguardava na mesa do canto com uma pasta azul na mão. Quando o viu, sorriu, e nesse instante Monk soube que estava perdido.

O entusiasmo do primeiro instante não esmorecera. Ele ainda andava nas nuvens devido ao amor que sentia por ela. Mesmo quando estava a trabalhar não conseguia deixar de sorrir. Nos últimos tempos, os seus pensamentos giravam apenas à volta de Jilly. Enquanto fazia o necessário trabalho de vigilância, uma das suas formas preferidas de passar o tempo era recordar, até ao mais ínfimo pormenor, a primeira vez que tinham feito amor. Acontecera exactamente três horas depois de se terem conhecido. Jilly levara-o para o seu quarto de hotel, despira-o da roupa e das inibições e fizera apaixonadamente amor com ele. Monk fechou os olhos deliciado com a recordação. O gosto doce dela na sua boca, o cheiro almiscarado do seu perfume, o calor do seu corpo macio de encontro ao seu, os sons guturais, quase animalescos que ela soltara quando ele lhe tocara. Mostrara-se selvagem, poderosa, e bruta - tal como ele apreciava - e contudo, simultaneamente, também vulnerável.

Monk admirava-se com a sua falta de disciplina no que tocava a Jilly - Nunca nos seus sonhos mais remotos se julgara capaz de um comportamento romântico tão tolo, ou sequer que seria capaz de casar. No entanto, tinha-a pedido em casamento havia dois meses - com um joelho no chão e tudo - e ela encantara-o ao aceitar. Dissera-lhe que faria qualquer coisa por ela, qualquer coisa mesmo, e decidira prová-lo. Desesperado por agradar-lhe, sabia que era um fantoche nas mãos dela, mas não se importava.

Jilly foi a primeira pessoa no mundo em quem ele confiara para guardar os seus segredos. Também sabia os dela. Viviam já há quatro meses quando, a meio da noite, depois de terem feito amor e estarem aninhados no sofá com os roupões de seda a beber champanhe gelado, ele se abrira e lhe contara a sua vida triste na quinta árida do Nebrasca, com os pais sisudos, apáticos e incapazes de amar. O pai não o poupara a tareias, e a mãe, uma fraca com medo da própria sombra e que nunca ia a lado nenhum nem fazia nada fora de casa, a não ser ir à missa ao domingo de manhã, ficava parada com as mãos atrás das costas e via o marido espancar o filho único com o chicote. Monk aprendera bem cedo a não se queixar à mãe, porque ela contava sempre ao marido o que ele dizia. Aos dez anos, ele odiava ambos, e adormecia à noite a pensar em formas de os torturar.

A sua vida fora claustrofóbica. Roubara dinheiro do cofre da igreja - um pouco aqui e ali aos domingos. Depois de concluir o ensino secundário, pegara na mala, que na verdade não passava de uma saca, e abandonara a quinta. Frequentara a faculdade em Urnalia. Poupara o suficiente durante o primeiro semestre e recebera um empréstimo do governo para pagar o resto das propinas, empréstimo esse que ele nunca tencionara pagar. Quatro anos mais tarde, deixara o Nebrasca e jurara nunca mais voltar.

Não sabia se os pais estavam vivos ou mortos, nem queria saber.

Nunca gostara verdadeiramente de ninguém - até àquele momento.

Contou a Jilly tudo a seu respeito. Contou-lhe como matara Pela primeira vez com a madura idade de vinte e dois anos.

Também lhe contou que já sonhara em trabalhar no teatro. Adorava mascarar-se e representar vários papéis. E era tão bom actor, gabava-se, que até concorrera para um papel numa peça de Verão. Outro actor fizera chacota da sua interpretação e humilhara-o diante do encenador. Monk ficara tão incomodado com isso que fez uma péssima figura na audição e, claro, não conseguiu o papel. Jurando vingar-se, dois anos depois foi atrás do rapaz. Na altura servira-se da faca e achara a experiência simultaneamente excitante e libertadora.

- Quando mudaste de nome? - perguntou Jilly.

- No dia em que me matriculei na faculdade. Arranjei uma certidão de nascimento falsa e consegui fazê-la parecer suficientemente verdadeira para enganar a secretaria. Foi tudo um pouco atamancado, mas conseguiu o objectivo.

- Eu não fui para a faculdade - disse ela. - Queria ir, mas a minha mãe achava que eu não era inteligente. Pegou no dinheiro que eu poupara e usou-o para pagar os estudos da Carrie.

- Como foi a tua adolescência?

Os olhos de Jilly encheram-se de lágrimas.

- Sem amor - respondeu. - Não me lembro do meu pai. Ele partiu quando eu era pequena. Por causa dela.

- Da tua mãe?

- Sim. Ela afastou-o. Ele fugiu com outra mulher, mas agora, ao olhar para trás, não o posso culpar. A minha mãe era uma mulher fria e amarga. Nunca mostrou o menor afecto por mim, e acho que foi por isso que me meti em apuros... sabes... que engravidei. Andava à procura de alguém que me amasse. Envergonhei a minha família. Perdi o conto às vezes em que a minha irmã e a minha mãe me gritaram essas palavras. - Abanou a cabeça e murmurou: - Eu era tão inocente. Tinha a certeza de que, assim que tivesse o bebé, a minha mãe e a minha irmã, a menina perfeita, iriam perdoar-me e ajudar-me a criá-la.

- Mas não foi isso que aconteceu, pois não? Ela apertou a mão dele.

- Não. Foi horrível. A minha mãe e a Carrie foram ao hospital. Achei que tinham ido buscar-me, e à minha filha.

- O que aconteceu, meu amor? - perguntou ele quando ela ficou demasiado comovida para continuar. Inclinou-se para a frente para lhe deitar mais champanhe no copo.

A Carrie saiu do quarto do hospital com a minha filha.

Não me disse nem uma palavra. Limitou-se a ir ao berço, a pegar nela e a ir-se embora. A minha mãe agarrou-me no braço quando tentei ir atrás da minha irmã. Perguntei-lhe para onde tinha ido a Carrie com a minha menina, e ela respondeu que fora levar a Avery para casa. ”Avery”. Foi o nome estúpido que a minha mãe arranjou para a minha filha. - Limpou as lágrimas com as pontas dos dedos. - Nem sequer me deixaram escolher o nome. A Carrie tomava todas as decisões, dizendo à minha mãe o que ela tinha de fazer, e a minha mãe fazia tudo o que a sua filha preferida dizia.

- E depois o que aconteceu?

- A minha mãe disse-me que eu tinha de sair da cidade e nunca mais voltar. Disse que eu a humilhara, e à Carrie, pela última vez. Não consegui convencê-la, e embora lhe tivesse implorado que me perdoasse, ela não o fez. Ainda consigo ver a sua expressão feia. Tal e qual a da Carrie. Chamou-me nomes terríveis, e depois abriu a carteira e tirou de lá uma nota de cem dólares. Atirou-ma à cara e saiu da sala.

- Não havia ninguém que te ajudasse? Ela abanou a cabeça.

- A minha mãe era muito amiga do chefe da polícia. Mandava nele. Ele ia lá a casa de vez em quando, às horas em que devíamos estar a dormir, mas uma noite ouvi uns gemidos e fui lá abaixo ver o que se passava. Espreitei para a sala e lá estava o chefe da polícia esparramado no sofá com as calças pelos tornozelos. A minha mãe encontrava-se de joelhos entre as pernas dele, a fazer o serviço. Aquele porco gordo era casado - acrescentou - - E fazia tudo para evitar que a minha mãe fosse contar à mulher o seu romance sórdido. A minha mãe disse-me que o homem me prenderia se eu não saísse já da cidade. Sabia que tinha poderes para isso.

Jilly soluçava descontroladamente. Monk puxou-a para si e abraçou-a até ela se acalmar.

- O que aconteceu à tua filha? - perguntou ele então.

A Carrie criou-a e pô-la contra mim. A minha irmã sempre me odiou. Não era... bonita como eu era, e vivia roída de

inveja. Roubar a minha filha foi a sua forma de se vingar, acho.

Como é que conheceste o Dale Skarrett? - inquiriu Monk.

- Depois de ter saído de Sheldon Beach, trabalhei em vários lados para me conseguir sustentar. Tentei juntar dinheiro para contratar um advogado e recuperar a minha filha. Não tinha grande experiência, por isso trabalhei em bares e restaurantes. Roubei dinheiro algumas vezes para ajudar a pagar a renda, e dormi com homens também. Doze no total - admitiu ela. - Contei-os... não sei porquê, mas contei-os, e tomei todas as precauções para não apanhar nenhuma doença nojenta. Detestava fazer aquilo, mas precisava do dinheiro. Estava tão desesperada por recuperar a minha filha. - Virou o rosto para o lado ao recordar a sua angústia. - Então, uma noite em que estava a trabalhar num bar infestado de pulgas em Savannah, conheci o Dale Skarrett. Céus, como ele me meteu nojo. Mas tinha dinheiro. Certificou-se de que eu via o maço de notas, e disse que me queria. Vivemos juntos durante o que me pareceu uma eternidade. Eu tentei continuar com a minha vida, mas ele estava sempre a voltar. E então uma noite falou-me de uma joalharia que ele e os amigos, Frank e Larry, iam assaltar. O Larry andava metido com a filha do dono, e ela gostava de falar do dinheiro da família. O Dale planeou o assalto, mas eu ajudei-o com os pormenores.

- Então foste cúmplice.

- Sim - respondeu ela. - O assalto correu lindamente, mas o Frank era um linguarudo e começou a falar do dinheiro que iria ter quando ele e o Dale vendessem os diamantes. O Dale escondera as pedras por lapidar, e todos concordámos em esperar pelo menos seis meses antes de as vender.

- Mas as coisas correram mal, não foi?

- Oh, sim. Um informador contou à polícia a conversa do Frank. Prenderam-no para interrogatório, e ele acabou por fazer um acordo com eles. Deu-lhes o nome do Larry, mas, só mais tarde, lhes deu o meu e o do Dale. Acho que estava à espera de conseguir um acordo melhor. O Larry telefonou-nos e avisou-nos, e conseguimos fugir. Mas ele não. Houve um tiroteio e o Larry matou um agente antes de ser morto.

Jilly começou de novo a chorar.

- Não me interessavam os diamantes. O Dale prometeu-me que me ajudaria a recuperar a minha filha. Esse seria o meu pagamento por tê-lo ajudado no assalto. Dirigimo-nos a Sheldon Beach e ele foi a casa da minha mãe buscar a Avery. Na altura não considerei aquilo um rapto. Estava simplesmente a recuperar aquilo que a minha irmã me roubara. Não sabia que a Carrie tinha feito a minha mãe ir a tribunal para fazer com que a Carrie fosse nomeada tutora da Avery. O tribunal tirou-me todos os direitos de mãe e entregou-os à minha irmã. Ela roubou-me a minha filha, Monk. Roubou-ma...

- Sei que estás com o coração destroçado, querida.

- A Avery era uma criança quando o Dale a foi buscar, mas a Carrie já a virara contra mim. O Dale disse-me que tentou acalmar a Avery dizendo-lhe o quanto eu a amava e que ela seria feliz comigo. A Avery ficou histérica. Só Deus sabe que mentiras horríveis a Carrie lhe contara. Lutou como uma gata, esperneando e tentando arrancar-lhe os olhos. Ele disse que tirou o cinto para lhe prender as mãos e que lhe deu umas bofetadas para a acalmar.

Monk passou-lhe outro lenço de papel para ela poder limpar as lágrimas.

- Continua. Vais sentir-te melhor quando deitares todo esse veneno cá para fora.

Ela assentiu.

- Sim, tens razão. Os gritos da Avery acordaram a minha mãe. Ela apareceu a correr com uma caçadeira na mão. O chefe da polícia dera-lha para sua protecção. Ela tentou matar o Dale. Ele disse-me que ia a sair de casa com a Avery quando ela disparou. Alvejou a minha filha por engano. - Estremeceu. - Só passado muito tempo é que o Dale me contou, por isso não fui visitá-la ao hospital.

- O que aconteceu à tua mãe?

- O Dale contou-me que, quando viu o que fizera, ela gritou agarrou-se subitamente ao peito e caiu no chão. Já estava morta antes de aterrar... segundo o Dale.

- Ataque cardíaco?

- Sim, mas eu não chorei a sua morte. Virara-se contra mim. e eu fiz-lhe o mesmo. Não verti uma única lágrima - declarou com orgulho.

- Compreendo.

O Dale tentou manter a sua promessa. Seguiu a Avery quando ela foi viver com a minha irmã na Califórnia. Vigiou a escola dela, pensando que poderia raptá-la quando ela saísse. No entanto, ela tinha um guarda-costas, um agente do FBI. A Carrie deve tê-los convencido de que o Dale iria atrás da Avery, A minha irmã é muito esperta - acrescentou ela com desdém.

- Deve ter alertado o presidente do conselho executivo da escola, porque ele disse aos seguranças que o Dale era perigoso. Havia sempre alguém a vigiá-la. O Dale tentou agarrá-la quando ela atravessou o complexo, mas o agente do FBI viu-o e deitou-o ao chão. O Dale não estava armado - acrescentou Jilly. - Foi preso e reenviado para a Florida, para ser julgado pela morte da minha mãe.

- E foi condenado.

- Sim. A autópsia provou que a minha mãe teve um ataque cardíaco, mas o júri continuou a achar que o Dale havia sido responsável.

- E tu não achas?

- Não me interessa se ele foi ou não responsável, mas a minha mãe tinha um coração fraco. Agora preciso de confessar uma coisa, querido. Por favor, não te zangues. Deixa-me explicar antes de reagires.

- Não seria capaz de me zangar contigo. Prometo.

- Lembras-te do dinheiro que me deste para pagar as minhas dívidas?

- Os trinta mil dólares?

- Sim - sussurrou ela. Deslizou para debaixo do roupão dele e começou a acariciar-lhe o peito. - Dei a maior parte do dinheiro a um advogado.

- Porquê? Para que precisaste de um advogado?

- Contratei-o para ajudar o Dale. Quero que ele saia da prisão, e agora parece que isso está prestes a acontecer. Quando o advogado verificou as provas, encontrou o recibo de um cardiologista de Savannah. Foi visitá-lo - prosseguiu ela. - E o cardiologista contou-lhe que o problema da minha mãe era fatal. Mais importante, disse que informara a acusação de que tratara a minha mãe, mas a acusação sonegou essa informação do defensor oficioso que fora atribuído ao Dale.

Monk sentiu-se subitamente inseguro e nervoso, mas ocultou as suas emoções.

Continua.

O advogado que contratei conseguiu. O Dale vai ter um novo julgamento, e em breve. O juiz ficou escandalizado quando soube que o promotor público ocultara provas para poder ganhar. Parece que os dois homens já se davam mal, e isto foi a gota de água. O advogado do Dale contou-me que adiaram outro caso e que o juiz deu ao Dale essa data. A Carrie e a Avery não podem depor. O Dale ficará na prisão se elas o fizerem.

- E a audiência para a liberdade condicional? Ainda está marcada?

- Sim, mas nessa altura o julgamento já deve ter terminado. Se o Dale não sair da prisão, nunca deitarei a mão àqueles diamantes. Depois de tudo o que passei, acho que os mereço. Claro, aquilo que eu tiver também te pertence. Achas que estou a ser gananciosa?

- Não, acho que não. Mas agora tens de ser sincera comigo. Ainda sentes alguma coisa pelo Dale?

- Oh, céus, não! - exclamou ela. - Sempre o detestei e sei como posso provar-to.

- Como? - inquiriu ele, intrigado com o sorriso matreiro dela que achava tão estimulante.

- Assim que o Dale nos conduzir aos diamantes, vou deixar que me vejas a matá-lo.

Todas as inseguranças dele se desvaneceram com aquela promessa.

- Amo-te de todo o coração - murmurou ela depois de o beijar. - Preferia morrer a magoar-te. Matar o Dale irá provar o meu amor, mas quero também uma prova tua.

- O que posso eu fazer? - perguntou ele. Não era um homem dado à poesia, mas tentou ser romântico quando jurou: - Se quiseres que eu caminhe sobre água, juro que arranjarei maneira de o fazer. Farei qualquer coisa por ti, querida Jilly. Qualquer coisa.

Ela aninhou-se contra ele.

A minha irmã e a Avery depuseram na última audiência Para a liberdade condicional. Foi por causa delas que ele não saiu.

- E queres que eu arranje uma maneira de manter a tua irmã e a tua filha afastadas do tribunal e da audiência? É isso que queres?

- Querido, não quero que as mantenhas apenas afastadas. Quero que as impossibilites de testemunhar. Quero que as mates.

 

                                               CAPÍTULO 7

Carrie acordou com suores frios. O pesadelo consumira-a, aterrara-a. Tremendo como uma criança, embrulhou-se no edredão de penas e esperou que o coração se acalmasse. Tinha a sensação de estar a ter um ataque cardíaco. Levou as mãos ao peito e respirou fundo várias vezes. O pesadelo fora tão real. Meu Deus, o que o teria provocado? Há anos que não pensava em Jilly. Porque estaria a irmã a atormentá-la de novo no sono?

Talvez estivesse apenas demasiado cansada. Sim, era isso, pensou, agarrando-se a essa possibilidade. Fazia sentido, não era? Trabalhara entre setenta a oitenta horas por semana nos últimos dois meses, esforçando por adquirir e conseguir a representação extremamente lucrativa da Bliss. Os contratos estavam assinados e entregues, e agora que ela podia abrandar, o seu cérebro exausto tivera um ligeiro esgotamento.

Rolando de forma a ficar de barriga para cima, fechou os olhos contra a luz intensa do Sol que entrava pelas cortinas parcialmente abertas e tentou recordar os exercícios de ioga que Avery lhe ensinara. Inspirar e expirar profundamente. Pelo menos lembrava-se disso. Limpar a mente e concentrar-se em descontrair todos os músculos do corpo. Está bem, começava a recordar-se do resto. Primeiro os dedos dos pés. Depois as pernas.

- É isto”, pensou. ”Agora descontrai-te, bolas!”

Não estava a resultar. A ansiedade, como um papão escondia-se no roupeiro, continuava à espreita, à espera do momento para atacar.

Por amor de Deus, fora apenas um pesadelo! Muito real, mas mesmo assim imaginário, por isso era melhor acalmar-se.

Carrie desejou que o Valium ainda estivesse na moda. Teria tomado dois para acalmar os nervos. Depois percebeu que começava a acalmar-se. O coração já não parecia querer saltar-lhe do peito como uma daquelas criaturas do filme Alien, O Oitavo Passageiro.

Do que precisava era de um banho tranquilo. Carrie destapou-se e sentou-se. Que horas seriam? O Sol nasceria mais intenso ali nas montanhas que em Los Angeles? Claro que sim, porque não havia poluição.

”Café”, pensou. ”Vou pedir café. A cafeína irá fazer desaparecer o nevoeiro na minha cabeça, e conseguirei voltar a pensar como um ser humano.”

Carrie preparava-se para pôr as pernas no chão quando a viu. Ali, apontada para si em cima da mesa-de-cabeceira, estava uma tesoura. Imobilizou-se, um grito sufocado na garganta. Não conseguia desviar o olhar, fazer desaparecer a tesoura.

O coração galopava novamente. Poderia uma pessoa morrer de susto? Seria aquilo uma piada de mau gosto? Não. Quem pusera ali a tesoura não podia saber do seu pesadelo. ”Pensa, raios. Tenta pensar.”

Seria real? Carrie esticou o braço a medo, pensando que estava a ter uma alucinação. Quando os seus dedos tocaram no aço frio da tesoura, ela gemeu. Filha-da-mãe, era real.

Tinha de haver uma explicação. Talvez a tesoura já estivesse na véspera em cima da mesa-de-cabeceira, e, embora ela não tivesse reparado, o seu subconsciente apercebera-se da sua presença. A possibilidade parecia um pouco rebuscada, mas Carrie agarrou-se a ela. Depois viu o envelope amarelo com o seu nome escrito numa bela letra cursiva encostado ao candeeiro. Tinha a certeza de que não estava ali na noite anterior. A mão tremia-lhe quando pegou nele e o abriu. O papel era caro, mas não tinha nenhum selo nem logotipo do Utopia, nem um remetente.

- Que diabo se passa? - sussurrou ela. A seguir tirou as duas folhas, desdobrou-as e leu.

Carrie:

Choraste quando ouviste dizer que eu tinha morrido naquele acidente de viação há muitos anos? Ou comemoraste? Sempre te achaste tão superior. Eu era apenas uma rapariga estúpida. Lembras-te de me chamares isso? Eu nunca me esqueci. O teu maior problema foi teres-me sempre subestimado. Sempre. Com certeza recordas-te de como eu adorava vingar-me. Esse glorioso dia chegou finalmente, agora estás onde eu quero que estejas.

A casa está armadilhada, Carrie, e não há saída. Se abrires uma janela ou uma porta que dê para a rua... bum! Basta um simples carregar no botão e a casa vai pelos ares. Será que te perguntas quanto tempo esperarei?

Tiquetaque. Tiquetaque. Estás com medo?

Queres que te conte todos os planos que fiz? Comecei por encontrar o homem dos meus sonhos. Ele ama-me, claro, mas eles amam-me todos, não é? Este é bastante especial. Um perfeccionista, por acaso. Chama-se Monk, e, quando o seduzi, devo confessar que ele era muito determinado. É um assassino profissional, o meu assassino, embora prefira ser chamado ”um profissional”.

Ele faz aquilo que eu lhe peço, e em troca eu ensino-o a divertir-se com o seu trabalho. É um homem orgulhoso, orgulhoso do que faz, e é cuidadoso e metódico, por isso não irá deixar que eu cometa erros. No passado, só aceitava um trabalho de cada vez, mas eu convenci-o a tentar coisas maiores e melhores. Já fora contratado para fazer explodir a casa. Só foi preciso mais um pouco de planeamento para matar ao mesmo tempo umas mulheres insignificantes.

Sabes porque tens de morrer. Roubaste-me o meu sonho e desbarataste-o. Também me roubaste a minha filha e viraste-a contra mim. Estas são apenas duas razões, Carrie, mas no fim, o teu maior pecado foi teres-me feito infeliz.

Jilly

PS: Não te preocupes com a Avery. Eu também vou tratar dela.

Carrie gritou e começou a chorar. Estava apavorada. A tremer saltou da cama e correu para as portas de vidro deslizantes.

Agarrou nas cortinas, afastou-as com força e olhou para fora.

Depois para baixo. Viu a luz vermelha intermitente dos explosivos tão cruel e horrenda como os olhos do diabo.

- Oh, meu Deus, oh, meu Deus! - gritou.

Correu para a porta da casa de banho, tropeçou nos sapatos, e bateu com o pé direito no pé da cama. A dor subiu-lhe pela canela. Praguejando, continuou. Parou no corredor, junto à porta.

- Está aqui alguém? - chamou.

Nada. Nem um som. Demasiado tarde, percebeu que devia ter pegado na tesoura, usando-a como a uma arma, não fosse alguém estar ali à sua espera, mas Jilly tocara naquela tesoura. Jilly, que escrevera aquela carta horrorosa. Jilly, a psicopata.

Que Deus as ajudasse a todas.

Avançou até à escada em espiral. Tinha medo de olhar para baixo, medo de não olhar. Levou um minuto a reunir coragem e depois, o alívio, o doce alívio, fê-la ficar fraca porque não havia ninguém lá em baixo a olhar para ela. Talvez Carrie, Sara e Anne estivessem sozinhas na casa. Não, já não era uma casa. Era uma bomba.

Desceu as escadas a correr, depois apressou-se até à suíte da juíza. Não se deu ao trabalho de bater, escancarou a porta e avançou.

O quarto estava escuro como breu. Carrie nem conseguia ver a sua mão à frente do corpo. Tacteou o caminho pela sala, quase tombando um candeeiro quando o seu cotovelo bateu no quebra-luz. Agarrou nele e lá conseguiu acendê-lo.

Sara estava na cama. Carrie via um volume sob o cobertor, mas não lhe via o rosto. As cortinas estavam corridas. Carrie abriu-as e olhou para baixo.

- Filho-da-mãe - murmurou. Ali estava, outra luz vermelha intermitente.

Virando-se, aproximou-se devagar da cama, esforçando-se por ouvir o som da respiração de Sara. Ouviu apenas o barulho do ar condicionado.

Carrie abanou-a suavemente.

- Acorde, Sara - ordenou.

A juíza não se mexeu. Carrie tornou a abaná-la, desta vez com mais força.

- Vá lá, Sara, tem de acordar. Sara gemeu.

Carrie pousou os dedos no pulso de Sara, tentando sentir-lhe a pulsação. Quando isso aconteceu, teve vontade de gritar de alívio.

Carrie sabia o que acontecera. A comida que haviam ingerido na noite anterior estava drogada, mas como ela vomitara, livrara-se da maior parte do veneno. Quanto teriam Sara e Anne comido?

Agarrou nos ombros de Sara e começou a abaná-la.

- Abra os olhos, raios! Acorde, Sara.

A única resposta foi outro gemido. Carrie olhou para o relógio na cómoda e viu que era já quase uma da tarde. Quando se voltou para a mesa-de-cabeceira viu, tal como esperara, um envelope com o nome de Sara encostado ao candeeiro. A letra era a mesma.

Deveria abri-lo?

- Vá-se embora.

Carrie deu um salto ao ouvir a voz áspera de Sara. Tentava abrir os olhos. Carrie recuou quando Sara se pôs de barriga para cima e a mandou de novo ir-se embora.

- Não - disse ela. - Mantenha os olhos abertos. Tem de acordar.

Sara ouviu-a. Tentou sentar-se, mas só chegou a meio e voltou a deixar-se cair na almofada. Olhou para Carrie, ainda com uma expressão meio apática.

- O que... o que está aqui a fazer?

- Ouça-me - ordenou Carrie. - A senhora foi drogada. Compreende o que estou a dizer? Por favor, tente prestar atenção. Estamos em apuros.

- Drogada? - Sara abanou a cabeça. - Não, eu não tomo drogas.

- Eles puseram-na na comida, Sara! - gritou Carrie frustrada. - Percebe o que estou a dizer?

- Sim. Está a dizer-me que a comida estava drogada?

- Sim, exacto. Mantenha os olhos abertos. Vou buscar um Pano molhado. Vá lá, Sara, sente-se.

Quando Carrie regressou da casa de banho com uma luva de banho a pingar água fria, Sara conseguira sentar-se. Estava enfiada à cabeceira.

Olhou para Carrie como se apenas naquele momento a tivesse visto.

O que está a fazer no meu quarto?

Carrie tentou encostar a luva de banho molhada ao rosto de Sara mas esta repeliu-a.

- Estamos em apuros - repetiu. - Tenho de ir acordar a Anne. Por isso precisa de ouvir o que estou a dizer-lhe. Está bem? Já consegue concentrar-se?

- Importa-se de não gritar comigo? Já estou acordada. De que tipo de apuros está a falar?

- A casa está armadilhada. Sara pestanejou.

- Não compreendo.

- Somos prisioneiras. Se uma de nós abrir uma porta ou uma janela, a casa explode. Olhe para a porta de vidro. Está a ver a luz vermelha a piscar?

Sara não acreditou nela.

- Isto é apenas uma piada de mau gosto.

- Não, não é. - Depois pegou no envelope. - Abra-o. Eu também recebi um. Leve a carta até à sala, que eu levo também a minha. Mesmo que não acredite, não abra portas nem janelas. Está bem? Agora tenho de ir acordar a Anne antes de ela acordar e decidir abrir uma janela.

Sara assentiu.

- Está bem. Já vou ter consigo lá abaixo.

Estava a abrir o envelope quando Carrie saiu a correr. A suíte de Anne ficava no mesmo piso, na outra ponta do corredor. Correu até lá.

Anne não se encontrava na cama. Carrie ouviu-a na casa de banho. Estava a vomitar. Carrie bateu à porta.

- Anne, precisa de ajuda?

A outra não respondeu. Carrie tentou uma e outra vez. Não soube durante quanto tempo esteve a bater à porta. Finalmente, Anne abriu-a.

A mulher magra parecia adoentada.

- O que quer? - perguntou. Oscilava ligeiramente.

- Deixe-me ajudá-la - disse Carrie. Pôs-lhe um braço à volta da cintura, que era quase do diâmetro de um lápis, e ajudou-a a voltar para a cama.

- Não deve aproximar-se muito - disse Anne, com voz fraca. - Devo estar com uma virose qualquer. Assim irá apanhá-la.

- Não - retorquiu Carrie. - Você não está com uma virose. - Quase que carregava a mulher pelo quarto. Quando chegou junto da cama, puxou o lençol para trás e ajudou-a a sentar-se.

- Estive metade da noite a pé, a vomitar - disse ela. Claro que tenho uma virose. Provavelmente é daquelas que só duram vinte e quatro horas.

Não havia nenhum envelope na mesa-de-cabeceira de Anne.

- Esteve levantada durante a noite? - perguntou Carrie enquanto a ajudava a deitar-se. - Ouviu alguém... viu alguém?

- Não, ninguém - respondeu Anne. - Deixe-me. Não quero deitar-me. - Ajeitou as almofadas e apoiou o corpo num cotovelo.

- Fomos drogadas - explicou Carrie. - A substância devia estar na comida que ingerimos.

- Isso é ridículo! A comida estava era estragada. Vou reclamar quando chegarmos ao spa. Podia mover-lhes um processo - disse. - E talvez o faça. Primeiro, por causa da confusão no aeroporto, e agora por intoxicação alimentar. É imperdoável!

Carrie não discutiu. Continuou a falar, referindo-se aos envelopes que ela e Sara tinham recebido.

- A coisa mais importante que tem de saber é que há detonadores em todas as janelas e portas desta casa. Se abrirmos uma, a casa vai pelos ares.

Anne olhava-a como se ela tivesse perdido o juízo.

- Oh, por amor de Deus! O que é que lhe deu, para tentar assustar-me desta maneira?

- Não estou a tentar assustá-la. Estou a dizer-lhe a verdade. Encontrou algum envelope com o seu nome?

- Não.

A resposta foi demasiado rápida, demasiado furiosa. Carrie sabia que a outra estava a mentir, mas não percebia porquê. - Anne, estamos nisto juntas. Tem de me dizer a verdade.

- Eu estou a dizer a verdade! - retorquiu Anne, indignada. - Agora saia daqui e deixe-me em paz.

Não - respondeu Carrie. - Não sei de quanto tempo dispomos, e tenho de descobrir uma maneira de saírmos daqui sem detonar os explosivos.

O rosto tenso de Anne começava a ficar vermelho.

Pedi-lhe para se ir embora. Carrie tentou uma abordagem diferente.

- A Sara e eu... nós precisamos de si, Anne. Temos de perceber o que está a passar-se.

- Porque precisam de mim? - perguntou Anne, furiosa.

- Porque você é inteligente.

- Não pode saber se sou ou não inteligente.

- Dirige a sua empresa, não dirige? Foi isso que me disse. O queixo de Anne subiu uns centímetros.

- Comecei sem dinheiro e transformei o meu passatempo... era isso que o meu pai chamava à minha empresa de navegação... numa companhia com lucros de quarenta milhões de dólares - disse ela, alisando o lençol na cintura. - Em Janeiro próximo, terei aumentado a margem de lucro de forma a quadruplicar o montante esperado pelos meus contabilistas.

Carrie não tinha tempo para aquilo. Era inconcebível ter de massajar o ego da mulher para obter a sua colaboração. Será que Anne não percebia o que estava a passar-se?

Com algum esforço, Carrie conseguiu controlar-se.

- Acha que podia juntar-se a mim e a Sara na sala de estar lá em baixo, para falarmos da situação? Dava-nos jeito o seu... conselho, para sabermos como prosseguir.

Anne inclinou a cabeça para o lado e fitou Carrie durante um minuto, sem dizer palavra.

- Você está mesmo a falar a sério, não está? Acredita...

- É verdade - interrompeu Carrie. Anne assentiu.

- Como é que se chama? Já me esqueci.

- Carolyn - respondeu ela, esforçando-se por não gritar àquela mulher obtusa. - Pode tratar-me por Carrie, se quiser.

- Muito bem, Carrie. Já vou ter consigo e com a Sara lá abaixo.

- Se não se sentir com forças, eu e a Sara podíamos vir para aqui...

- O que a faz pensar que não sou suficientemente forte? Parecia de novo zangada.

- Ouvia-a na casa de banho. Estava a vomitar.

- Você disse que a comida tinha sido envenenada.

- Sim.

- Foi por isso que vomitei. Não estou doente.

Que interessa se estás ou não doente?, quis Carrie perguntar.

- Está bem - disse Carrie, depois de respirar fundo. Venha ter connosco lá abaixo.

- Continuo sem perceber o motivo de tanta agitação.

- Agitação?! - exclamou Carrie de cabeça perdida. - Estamos sentadas em cima de uma bomba-relógio. Não ouviu o que eu disse?

- Sim, ouvi. Mas a resposta não está diante dos seus olhos? Pegue no telefone e ligue para o Utopia. Eles que mandem alguém desactivar a bomba.

O telefone. Céus, porque não se lembrara ela de pedir ajuda? Carrie correu para o outro lado da cama e levantou o auscultador. A sua animação e esperança foram de pouca duração. O telefone não funcionava.

- Não funciona - disse ela, atirando o auscultador para cima da cama.

- E os telemóveis? - perguntou Anne. - Acha que aqui temos rede? - Olhando para a mesa-de-cabeceira, franziu o sobrolho. - Onde está o meu telemóvel? Pu-lo aqui a carregar ontem à noite, mas agora não o vejo... Tirou-o daqui?

- Eles levaram-no! - exclamou Carrie. Dirigiu-se para as portas de correr que davam para a varanda de Anne e abriu as cortinas. - Está a ver aquela luz, Anne? Está a vê-la?

- Pare de gritar.

- Está a ver os fios? A casa está armadilhada. Já percebeu? - Sim, está bem - respondeu Anne, parecendo amuada. Talvez Sara conseguisse falar com a mulher. Carrie respirou fundo.

- Vou voltar para o meu quarto e ver se me tiraram os telemóveis. Por favor, vá depressa lá para baixo, e lembre-se de não abrir nem portas nem janelas - acrescentou.

- Já percebi.

Carrie não tinha assim tanta certeza. Não quis antagonizar a mulher, por isso fingiu concordar.

Leve a carta consigo... por favor - disse ela, detendo-se junto à porta. A Sara e eu vamos levar as nossas.

Não havia nenhum envelope na minha mesa-de-cabeceira ripostou Anne.

Carrie voltou-se para trás.

- Eu nunca falei em mesa-de-cabeceira...

Anne desviou o olhar.

- Feche a porta quando sair.

O que diabo se passaria com Anne? Porque estaria a mentir? O que teria a ganhar?

Carrie não tinha respostas. Regressou à suíte, mas estacou assim que entrou. As suas belas malas Gucci tinham sido rasgadas com uma faca, e as roupas encontravam-se espalhadas em cima do sofá e da cadeira. Porque não tinha ela reparado antes na desarrumação? Tal como desconfiava, um dos seus dois telemóveis, os carregadores e o computador haviam desaparecido.

Correu para o roupeiro.

- Por favor, meu Deus - murmurou ao escancarar as portas duplas. Talvez Jilly não tivesse sido tão minuciosa. Talvez não tivesse encontrado o telemóvel no bolso.

Carrie começou a chorar quando viu o casaco no chão. A irmã descobrira o telefone. Desviou o olhar, soluçando quando a magnitude da situação a atingiu.

Permitiu-se chorar durante uns minutos, depois esforçou-se por controlar as emoções.

- Estou a entrar em histeria - disse em voz alta. Limpando o rosto com as costas das mãos, pôs-se de pé e dirigiu-se para a casa de banho. Olhou-se ao espelho. Céus, que má cara. Tinha os olhos inchados e o rosto pálido.

Lavou os dentes e a cara. Tirou o roupão do cabide atrás da porta e vestiu-o. Sentia-se melhor agora, com mais controlo da situação. Depois de ter pegado na carta e no envelope que a sua querida e louca irmã lhe deixara, desceu as escadas.

Nem Sara nem Anne estavam à sua espera. Carrie foi até à cozinha e constatou admirada que a despensa continuava cheia. Havia caixas por abrir de cereais, legumes enlatados, e fruta. Reparou que estava tudo cheio de pó, o que indicava que se encontravam ali há algum tempo. O frigorífico estava vazio, mas havia uma embalagem de café no congelador.

Foi várias vezes ao corredor ver se Sara ou Anne já haviam descido. Por que raio estariam a demorar-se tanto? Regressou à cozinha, fez uma cafeteira de café e levou uma caneca fumegante para a sala. Manteve-se afastada das janelas, não fosse alguém estar à espreita.

Sentou-se numa das espreguiçadeiras e aguardou tensa.

A mão tremia-lhe e entornou um pouco de café, queimando os dedos. Cinco minutos depois, viu Sara descer lentamente a escada em espiral. Envergava um roupão de seda às flores. Pela forma como se agarrava ao corrimão, parecia continuar um pouco tonta.

- Precisa de ajuda? - perguntou Carrie quando Sara parou pela quinta vez. Tinha os nós dos dedos brancos devido à força com que se agarrava.

- Não, eu consigo. Estou um pouco tonta. O que diabo estaria na comida?

- Não sei, mas era potente.

- Podia ter-nos morto.

”Isso é que teria sido um assombro”, pensou Carrie. Morrer devido a um canapé e não chegar a saber todo o trabalho que Jilly tivera. A irmã teria ficado furiosa. Carrie sorriu, embora o pensamento fosse tenebroso.

- Quer um café?

- Acho que ainda não sou capaz. Como é que sabe que não tem também veneno?

- Não tem - asseverou Carrie. - A minha carta foi escrita pela minha irmã. Ela deu-se a imenso trabalho para me aterrorizar. Quer que eu sofra antes de morrer, e o veneno agiria demasiado depressa.

- Então porque drogaram a comida?

- Para nos pôr fora de combate - respondeu Carrie. Esperou que Sara se sentasse à sua frente. - Ela foi aos nossos quartos ontem à noite.

- Alguém esteve lá - concordou Sara. - Ele ou ela vasculharam as minhas coisas. O meu telemóvel e o meu Palm Pilot desapareceram.

- O telefone da casa também não funciona.

- Sim, eu verifiquei.

Ocorreu subitamente a Carrie que a juíza parecia demasiado calma. Perguntou-lhe porquê.

- Não vejo motivo para ficar histérica. De que adiantaria? refiro gastar as minhas energias a tentar arranjar maneira de sair daqui... inteira.

Carrie bebeu outro gole de café. Estava tépido e amargo, mas bebeu-o à mesma.

- A minha irmã regressou do túmulo.

- Desculpe?

- A minha irmã... pensei que tinha morrido num acidente de viação há uns anos - respondeu Carrie. - O meu marido e eu comemorámos depois de a minha sobrinha se ter ido deitar. Disseram-me que o corpo dela ficara calcinado, mas alguns objectos da carteira dela saltaram com o impacto da colisão e esses objectos convenceram a polícia de que a vítima era a minha irmã. Fui uma idiota por acreditar nisso. AJilly era procurada pela polícia na altura.

- Então simulou a própria morte - disse Sara, assentindo.

- Foi inteligente.

- Oh, sim - concordou Carrie. - A Jilly foi sempre muito esperta e matreira. - Levantou-se e entregou a carta a Sara.

- Contratou um assassino. É isso que lhe chama: o seu assassino.

- A sua irmã fez-lhe isto?

Sara não parecia admirada, apenas intrigada. Carrie estranhou a reacção dela. Nas famílias normais, se é que as havia, as irmãs discutiam. Algumas até se odiavam, mas quantas iriam ao ponto de contratar alguém para matar a irmã?

- Não ficou chocada - observou.

- Não, não fiquei. Carrie abanou a cabeça.

- A Jilly não é como as pessoas que conhece.

- Quer apostar? - perguntou Sara com secura. - Mandei prender centenas de homens e mulheres que perpetraram crimes horrendos. Acho que já ouvi e vi de tudo nos vinte e dois anos da minha magistratura. Já nada me choca.

- Eu não apostaria nisso - comentou Carrie. - Então diga-me, Sara: quem é que a quer ver morta?

Sara ajustou o cinto do roupão de forma a fazer um laço perfeito, depois colocou as mãos no regaço.

- Quem é que me quer ver morta? Oh, bastantes pessoas, julgo.

Entregou a carta a Carrie e viu-a desdobrá-la e lê-la. Era breve e sucinta.

Juíza Collins:

Eu disse-lhe que me vingaria, e sou um homem de palavra.

Agora é a sua vez de sofrer. Gostava de poder estar aí a observar... de uma distância segura, claro. Vai morrer muito em breve.

Apodreça no inferno, cabra!

Carrie pousou a carta na mesinha. Depois entregou a Sara a carta de Jilly.

- Enquanto lê essas breves, mas não doces palavras, eu vou buscar outro café.

- Agora sabia-me bem um - pediu Sara.

Carrie regressou à cozinha e quando voltou, um minuto depois, Sara colocara a carta na mesa, ao lado da que recebera. Carrie entregou-lhe a caneca, avisou-a de que o café estava muito quente e sentou-se.

- A sua irmã odeia-a.

- Oh, sim.

- Acusa-a de lhe ter roubado a filha e de a ter posto contra ela.

- Isso nunca aconteceu.

- Ela parece acreditar que todos os seus fracassos foram culpa sua e que o seu êxito lhe foi roubado.

Carrie assentiu.

- A Jilly teve sempre jeito para reescrever a história. Depois de dizer uma coisa, ela tornava-se real na sua mente.

- Parece uma psicopata.

- E é. Nunca lhe foi feito um diagnóstico oficial, mas tenho a certeza de que o é.

Sara percorreu com o dedo a ruga de preocupação na testa enquanto ouvia Carrie. Para trás e para a frente, para trás e para a frente. Estava tão embrenhada nos seus pensamentos que provavelmente nem reparara no gesto.

- O que aconteceu à criança?

- Avery - disse Carrie. - Chama-se Avery, e já é adulta. A Jilly deixou-a no hospital. Disse à minha mãe e a mim que podíamos ficar com ela, vendê-la ou dá-la. - As lágrimas surgiram nos olhos de Carrie. Detestava-se por revelar fraqueza diante de uma desconhecida, mas nada podia fazer contra isso. Jilly também vai atrás da Avery. Oh, céus, já a pode ter presa ein algum lado. A minha sobrinha ia juntar-se a mim no spa...

- Cobriu o rosto com a mão. - Temos de sair daqui rapidamente. Temos de descobrir uma forma.

- A sua irmã teve bastante trabalho para a magoar - disse Sara.

Carrie contou-lhe que Jilly fora ao seu quarto a meio da noite e que ela julgara estar a ter um pesadelo. Sara era uma boa ouvinte e muito calma; Carrie sentiu-se melhor.

- A Jilly era muito paciente quando queria de facto uma coisa e, oh, adorava planos complicados. Nunca nada podia ser simples.

Sara pousou o café e inclinou-se para a frente.

- Quanto tempo acha que temos?

- Ela teve muito trabalho a planear isto. Acho que quer prolongar a minha agonia.

Olhavam de vez em quando para as escadas, à espera de ver Anne aparecer.

- Já inspeccionei todas as janelas que consegui ver. Estão todas armadilhadas.

- Sim, seria de esperar.

- Gostava de ter a sua calma.

- Eu não estou calma - protestou Sara. - Estou bastante... agitada.

A escolha daquela palavra fez Carrie sorrir.

- Eu também.

- Estava a pensar...

- Sim?

- Que é muito curioso estarmos as três juntas nesta casa. O que é que temos em comum?

- Não sei - respondeu Carrie. - E não sei se teremos tempo para descobrir.

- Iremos sair daqui.

A determinação de Sara estimulou Carrie.

- Sim, temos de sair e iremos sair.

- O que será que está a demorar Anne?

- Ela vai ser um problema.

- Ai sim? Carrie assentiu.

- Não admite ter recebido uma carta.

- Talvez esteja em estado de choque.

Carrie achou que talvez Sara tivesse razão.

- E em negação.

- Vamos ter de trabalhar juntas, mas não sei se serei uma grande ajuda. Farei o que puder. Tenho sessenta e oito anos. Sara encolheu os ombros. - E estou em muito má forma. Quando recebi o convite para duas semanas grátis no spa, pensei para comigo, ”porque não?”. Os peritos dizem que nunca é demasiado tarde para darmos uma volta à nossa vida. Decidi pôr-me em melhor forma. Como pode ver, tenho peso a mais, e assim que sairmos daqui... e havemos de arranjar maneira de o fazer - disse com convicção -... não serei capaz de andar muito. Devia ter substituído as rótulas há muitos anos. O osso já roça no osso.

- Então a Anne e eu iremos escondê-la nalgum sítio... num sítio seguro na floresta, enquanto vamos buscar ajuda.

Ouviram uma porta fechar-se, e ambas olharam para cima. Anne decidira finalmente juntar-se-lhes. Carrie ficou de boca aberta quando viu a mulher começar a descer as escadas. Não acreditava no que os seus olhos viam. Anne vestira um calça-casaco cor-de-rosa. Os brincos de ouro combinavam com os botões. Tivera tempo para se pintar e enrolar o cabelo. Quando chegou ao fundo das escadas sorriu e atravessou a sala para se lhes juntar. Os seus saltos faziam barulho no chão de mármore. Onde diabo pensava ela que ia? A um pequeno-almoço formal?

- Céus - murmurou Sara.

- Bom dia, minhas senhoras - cumprimentou Anne. Ou melhor, boa tarde.

Parecia muito animada. Teria enlouquecido?, perguntou Carrie de si para si. Ia perguntar à mulher o que raio se passava com ela quando Sara sugeriu que se sentasse.

- Dormiu bem? - perguntou Anne a Sara. Depois, antes de a outra poder responder, continuou: - Nem acredito que dormi tanto. Deve ser deste magnífico ar da montanha. Vinda de Cleveland, é uma mudança maravilhosa.

- Quer um café? - perguntou Sara. Observava-a atentamente, como se tentasse interpretar o seu comportamento bizarro.

- Ainda não. Peço-o à empregada quando quiser. Carrie virou-se para Sara.

- Eu disse-lhe que ela ia ser um problema.

- Desculpe, o que foi que disse? - inquiriu Anne. Sentara-se cuidadosamente, um tornozelo sobre o outro.

Carrie virou-se para ela.

- Não foi o maravilhoso ar da montanha que a fez dormir muito, Anne. Fomos todas drogadas.

- Que disparate. Olhem para onde estamos - disse ela. Quem faria uma coisa dessas num sítio tão belo...

Carrie interrompeu-a.

- Trouxe a carta?

- Não sei do que está a falar.

- Eu não lhe disse? - perguntou Carrie a Sara. A juíza tomou as rédeas da conversa.

- Anne, a Carrie e eu recebemos umas cartas. Estão na mesinha. Faça o favor de as ler.

Carrie reparou que a mão de Anne tremia violentamente quando ela estendeu o braço para as cartas. Pegou-lhes, mas logo a seguir tornou a pousá-las.

- Não preciso de as ler.

- Precisa sim - asseverou Sara suavemente. - Vai ver que estamos em apuros. Alguém armadilhou esta casa para nos matar.

- Que disparate - murmurou Anne. - Não vou ter o meu dia estragado por causa deste vosso jogo ridículo.

- Estamos trancadas nesta casa - observou Sara.

- Não estamos, não.

- Não adianta - disse Carrie. - Tentei explicar-lhe isto tudo lá em cima.

- Está a mentir - declarou Anne.

Carrie considerou a possibilidade de bater na mulher. Achou que talvez a matasse se o fizesse, visto Anne ser tão magra e doente. Uma boa rajada de vento teria acabado com ela.

- Se uma de nós abrir uma janela ou uma porta, a casa explode - explicou Sara pacientemente.

Nem ela nem Carrie anteciparam a reacção da mulher. Esta levantou-se da cadeira e correu pela sala.

- Só estão a mentir para me perturbarem. A casa não está armadilhada, e vou provar-vos.

Dirigiu-se para a porta da frente.

 

                                   CAPÍTULO 8

John Paul teve de ficar no Utopia mais tempo do que o previsto, mas a espera valeu a pena. Encontrava-se sentado, ou melhor, esparramado, numa espreguiçadeira meio escondida atrás de umas palmeiras no bar da recepção quando Avery Delaney entrou. Uma olhadela e percebeu logo o que ela era. Uma loura típica da Califórnia. Não, talvez não fosse típica. Era única, teve de admiti-lo. Mas preocupava-se demasiado com o corpo. Por que outro motivo iria ela, ou outra pessoa qualquer, passar uma semana no spá!

A mulher vestia uma T-shirt branca que lhe moldava os seios fartos, e calças de ganga justas, obviamente destinadas a realçar as pernas compridas e as ancas estreitas. O cabelo louro, liso e comprido, brilhava com a luz do Sol. Parecia natural, mas ele duvidou que fosse. Devia ser descolorado. Os óculos de sol ocultavam-lhe os olhos, mas ele calculou que ela usasse lentes de contacto coloridas. A T-shirt tapava-lhe o umbigo, mas John Paul não ficaria surpreendido se encontrasse um piercing. Não era essa a moda?

Ela era encantadora, lá isso era. Avery Delaney era uma mulher linda, mas não fazia o seu género. Era demasiado perfeita Para o seu gosto. Porém, sensual como o pecado. Quando a viu Parar e olhar em volta - fingindo não reparar que os outros hóspedes estavam especados a olhar para ela -, John Paul perguntou a si mesmo quanto dela seria real e quanto fora cosmeticamente ”melhorado”. Os seios, sem dúvida. E talvez também o rabo.

Não era o tipo de mulher com quem ele gostaria de ter uma relação duradoura, mas, por outro lado, ele não queria uma relação duradoura com nenhuma mulher. No entanto, uma noite com ela parecia uma excelente ideia. Raios, a mulher devia ter o QI de uma mosca-tsé-tsé, mas, na cama, a inteligência não importava.

A menina cabeça-de-vento parecia não ter percebido onde era o balcão da recepção. Estaria à espera que alguém lhe pegasse na mão e atravessasse com ela o átrio? Olhava para a esfera dourada que girava lentamente como uma daquelas bolas de espelhos das discotecas. Teria ficado hipnotizada?

Avery sabia que estava especada como uma turista. Não conseguia evitá-lo; o Utopia era incrível. A recepção era gigantesca, o chão de um mármore brilhante cor de ébano. Por cima dela, pendendo de uma cúpula dourada, girava uma esfera brilhante. Não conseguia desviar os olhos dela. Seria de ouro? Devia ter custado uma fortuna aos proprietários, pensou.

Virou-se para a direita e tornou a estacar. Uma das paredes era uma queda-d’água, e no centro do lago havia uma estátua de Atlas. Tinha outra esfera mais pequena ao ombro. A escultura e a queda-d’água destinavam-se a impressionar os hóspedes dispostos a pagar uma fortuna para serem mimados naquele ambiente, e, na opinião de Avery, isso fora conseguido.

Abanando a cabeça ante tanto dinheiro mal gasto, pegou na alça da mochila Gucci que Carrie lhe dera e atravessou o átrio até ao balcão da recepção. Atrás dele encontrava-se um homem com chapa de identificação, na qual se lia ”Oliver”. O sorriso dele era estonteante, os seus dentes espantosamente brancos. Assustadoramente brancos. Ele ou o dentista tinham exagerado no branqueamento, e o rosto de um bronzeado artificial, realçava ainda mais a cor dos dentes. Tentou não ficar embasbacada quando lhe deu o nome e se encostou ao balcão enquanto ele verificava a sua reserva no monitor encastrado.

O sorriso de Oliver desvaneceu-se, felizmente.

- Mau, mau.

- Desculpe?

- A sua reserva foi cancelada, Miss Delaney - disse ele, de olhos postos no monitor.

- Não, isso deve ser engano. Eu não cancelei.

- Segundo o meu computador, cancelou. Está aqui anotado acrescentou ele, apontando para o monitor, que ela só conseguiria ver se fizesse um salto mortal por cima do balcão.

- Houve um engano.

- O computador nunca se engana. A senhora ligou para o Utopia exactamente às... - Estava a tentar descobrir a que horas ela ligara.

- Oliver - disse ela. O seu tom começava a ser impaciente. - Eu não cancelei. Aliás, até liguei para avisar que chegaria um dia atrasada.

- Pois foi - concordou ele, tornando a apontar para o ecrã. - Mas depois tornou a ligar e cancelou.

- Não fiz nada disso.

- Mas o meu computador...

Ela interrompeu-o antes de ele poder tornar a dizer-lhe que o computador era infalível.

- Porque não me arranja outro quarto? Qualquer coisa serve. Levantou a mochila e pô-la em cima do balcão. Começou

à procura da carteira, para poder entregar o cartão de crédito a Oliver. Contra a sua vontade, a semana fora paga pela tia, mas Avery queria que a despesa fosse transferida para o seu cartão. Reparou que Oliver deixara de escrever.

- Passa-se alguma coisa?

Ele tossiu delicadamente e, por fim, olhou para ela.

- Receio que não seja possível arranjar-lhe outro quarto, e o que a senhora cancelou já foi atribuído a outro hóspede. Estamos completamente cheios - prosseguiu ele. - Terei muito gosto em colocá-la em lista de espera, mas tenho de preveni-la: há poucas hipóteses de conseguir cá ficar. Os nossos hóspedes reservam com meses de antecedência.

- Tenho a certeza de que a minha tia reservou um quarto Para mim aqui - protestou ela. - Se tivesse havido algum problema, ela ter-me-ia avisado.

Ele batia de novo freneticamente no teclado. Depois parou e assentiu.

- Parece que outra reserva foi cancelada! Isto é curioso acrescentou. - Os nossos hóspedes raramente cancelam em cima da hora.

franziu o sobrolho ao dizer isto, como se ao cancelar ela tiVesse cometido uma enorme gafe.

- Mas eu não cancelei - repetiu ela. Céus, aquilo estava a tornar-se frustrante. - Venho ter com a minha tia - explicou.

- Ela chegou ontem à tarde, ou ao princípio da noite. Pode dar-me o número do quarto dela? A minha tia chama-se Carolyn Salvetti.

- Lamento, mas não estou autorizado a dar o número dos quartos dos nossos hóspedes.

Claro que não estava. Ela sabia isso.

- Por favor, ligue para o quarto dela. Estou certa de que este mal-entendido se resolverá de imediato. Ela pode ter decidido que ficaríamos no mesmo quarto.

Oliver pareceu aliviado por o problema estar prestes a resolver-se e por poder livrar-se dela. Felizmente, não havia outros hóspedes à espera.

- Tenho a certeza de que foi isso que aconteceu - disse ele com um sorriso. - Os hóspedes não cancelam em cima da hora como a senhora fez.

Avery teve vontade de o agarrar pelos ombros e de o sacudir até ele admitir que o spa cometera um erro. Rangendo os dentes para evitar dizer algo de que se arrependeria, soletrou o nome Salvetti e aguardou.

- Eu conheço esse nome - disse ele.

- Ai sim? Ele assentiu.

- Esteve aqui ontem um cavalheiro a perguntar pela sua tia. Ficou muito desapontado por não a encontrar. - Começou de novo a teclar, mas segundos depois franziu novamente o sobrolho.

- Há algum problema? - perguntou ela, sabendo perfeitamente que havia.

- No Utopia não há problemas - disse ele, e a resposta foi tão rápida e automática que ela achou que ele fora programado para dizer aquelas palavras. - Contudo, de vez em quando temos pequenos transtornos.

”Por favor!”

- Está bem. Explique-me qual é o pequeno transtorno.

- Mistress Salvetti cancelou a reserva.

- Não cancelou, não senhor.

Os ombros de Oliver curvaram-se. Ela sabia o que ele estava a pensar: ”lá vamos recomeçar.”

- Receio que Mistress Salvetti tenha mesmo cancelado. Concordo que é estranho. É tão raro termos dois cancelamentos em cima da hora! Claro, as senhoras são da mesma família, por isso podemos dizer que foi apenas um cancelamento para dois quartos.

- Ouça-me. A minha tia não cancelou a reserva. Ela ligou-me ontem do aeroporto de Aspen.

- Talvez tenha surgido qualquer coisa que a obrigou a regressar a casa - sugeriu ele.

- Há aqui um problema qualquer.

- Está aqui no meu computador, Miss Delaney. A sua tia ligou ontem à tarde.

O que raio estaria a passar-se? Por muito que Avery quisesse continuar a discutir com Oliver, sabia que de nada serviria. Não sabia o que fazer em seguida. Se houvesse surgido uma emergência e Carrie tivesse sido forçada a regressar a Los Angeles, ter-lhe-ia ligado. Não teria deixado Avery pendurada daquela maneira. Céus, e se alguma coisa lhe tivesse acontecido, ou ao tio Tony? Se tivesse havido um acidente?

”Acalma-te”, disse para consigo. Se tivesse acontecido alguma coisa a Carrie ou a Tony, um deles ter-lhe-ia ligado.

Avery começou a procurar o telefone na mochila. Ligaria a Carrie naquele preciso instante e descobriria o que estava a passar-se.

Tirou a agenda e a carteira, segurou na mão direita e continuou à procura do telefone com a mão esquerda. O maldito aparelho acabava sempre por ir parar ao fundo.

- A minha tia não cancelou a reserva - murmurou ela. Depois, mais para si própria do que para Oliver, acrescentou: Deve ter havido uma emergência no trabalho. Só isso faria com que a Carrie voltasse para trás.

- Oh, o seu amigo voltou. - Oliver não parecia muito animado.

- Desculpe?

- O seu amigo... vem para cá. Talvez ele possa esclarecer o mal-entendido.

Avery não sabia do que é que ele estava a falar. Não combinara encontrar-se ali com ninguém. Virou-se para ver de quem é que Oliver falava, mas viu apenas um homem a dirigir-se ao balcão.

Um homem corpulento, corrigiu ela. Estranho, mas ele parecia estar a fitá-la. E não parecia muito feliz.

- Está a referir-se ao cavalheiro que vem nesta direcção?

- Sim - respondeu ele. - Era dele que eu estava a falar. Veio cá ontem, à procura da sua tia. - Em voz baixa, acrescentou: - Se há alguém a quem a nossa massagem de aromaterapia para alívio do stresse faria bem, esse alguém seria o seu amigo. Sugeri-lhe o tratamento, mas ele mostrou-se bastante...

- Bastante quê?

- Renitente à ideia. Por acaso, foi muito difícil a respeito de tudo. Não devia estar a dizer mal de um potencial hóspede, mas o seu amigo é uma pessoa muito tensa. Devia praticar ioga todos os dias. Quero dizer, o homem rosnou-me! Rosnou mesmo. Imagina? Eu disse-lhe que estávamos à sua espera. Havia uma nota na reserva de Mistress Salvetti, e foi por ela que ele perguntou quando aqui esteve. A sua tia ligou a cancelar. Eu tive o difícil dever de o informar. Deixe-me que lhe diga que ele não ficou nada contente com a notícia. Disse-me que voltaria hoje para falar consigo, e chegou bastante cedo. Reparei nele quando peguei ao serviço. Espero que esteja mais bem-disposto.

Avery não estava a prestar muita atenção ao arengar de Oliver. Observava o homem que atravessava o átrio. Era um espanto. Nunca vira ninguém como ele, talvez apenas nos filmes. Quanto mais se aproximava, maior ficava. Alto e musculado, com cabelo escuro e pele curtida. Calculou que ele devesse passar muito tempo ao ar livre ou algures num ginásio a trabalhar os abdominais. Era bastante atraente, com um jeito descuidado, mas preocupava-se demasiado com o físico para a poder interessar. Avery preferia a inteligência aos músculos.

O homem tinha uma estrutura óssea fantástica. Esse pensamento conduziu a outro, e, de repente, ela achou que sabia quem ele era e o que queria.

- A senhora conhece o cavalheiro, não é verdade?

- Não há problema. Tenho a certeza de que ele é amigo da minha tia.

Carrie devia tê-lo usado num dos seus anúncios e talvez, como ele se encontrava na zona e descobrira que ela estava no spa, tivesse decidido passar por ali para a cumprimentar. Ou era isso, ou o senhor músculos estava desempregado e esperava que Carrie lhe oferecesse trabalho.

Avery tinha muita pena dos actores, porque era uma profissão muito competitiva e a maior parte das decisões estava fora do seu alcance. As probabilidades de se ter êxito em Hollywood eram muito reduzidas. Ela decidiu fazer os possíveis por ajudá-lo. Esperou até ele se encontrar a um metro de distância, depois estendeu a mão e apresentou-se.

- Sou a Avery Delaney. - Oh, sim, ele era mesmo um actor. Tinha um olhar penetrante.

Ele apertou-lha.

- Eu sou o John Paul Renard. - A sua voz era grave e tinha um maravilhoso sotaque sulista.

Céus, que olhos espantosos! Da cor do cinzento da alvorada. Não conseguiu imaginá-lo com um rolo de papel de cozinha na mão. Explosivos, sim, mas não papel de cozinha.

A linguagem corporal dele intrigou-a. Virou-se de forma a ficar de costas para o balcão; o seu olhar percorreu o átrio. Ela teve a sensação de que ele estava a memorizar todos os rostos.

- É amigo da minha tia Carrie?

- Sim.

Mais nenhuma explicação, nada.

- É actor, não é?

A pergunta surpreendeu-o, e ele sorriu.

- Não.

- Oh... pensei... então o que é que faz na vida? - Céus, odiava quando as pessoas lhe faziam aquela pergunta, e, de facto, ela não tinha nada de saber como é que o homem, que nem se dava ao trabalho de olhar para ela quando ela lhe dirigia a palavra, pagava a renda.

- Sou carpinteiro. Impossível.

- Carpinteiro?

- Sim. - Ele arrastou a resposta e fitou-a nos olhos. Avery sentiu calor no rosto e rezou para não ter corado. O homem era bastante misterioso.

Carrie tinha razão. Ela precisava mesmo de voltar a sair com homens. Já passara demasiado tempo. Se um bruto daqueles conseguia afectá-la...

- Carpinteiro - repetiu ela. - Está bem. - Iria alinhar no jogo dele. - E tem estado a fazer algum trabalho para a minha tia?

- Não. - Voltara a observar as pessoas no átrio. - Preciso de falar com ela - acrescentou com impaciência. - É importante. Onde está ela?

- Não sei bem - respondeu Avery. - Mas estou quase a descobrir. - Virou-se para tornar a procurar o telemóvel na mochila quando um pensamento súbito lhe ocorreu. Quase gemeu em voz alta. - A minha tia queria que o senhor falasse comigo?

Carrie voltara aos velhos truques, tentando arranjar-lhe um namorado, concluiu Avery. Ficou um pouco surpreendida. Achou que a última conversa séria que tivera com a tia havia posto fim àquilo. Ela prometera nunca mais tentar arranjar-lhe namorado.

- A Carrie não está cá hoje - declarou Avery com brusquidão. - Se o senhor estiver nas proximidades, pode tentar apanhá-la amanhã.

Ele não percebeu a indirecta e não se foi embora. Decidindo ignorá-lo - um grande feito, tendo em conta o tamanho dele -, continuou a procurar o telemóvel. Encontrou-o finalmente no fundo e pegou nele. Oliver abanou a cabeça.

- Há algum problema? - perguntou ela.

- Não há problemas no Utopia, mas a utilização de telemóveis aqui dentro não é bem-vista. - Tendo dito isto, ele apontou para um cartaz preto e dourado ao canto do balcão.

- Então é melhor fechar os olhos - disse ela, marcando o número de Carrie.

John Paul gostou da resposta. Garra, pensou. Que surpresa. A californiana de plástico com os olhos demasiado azuis tinha carácter.

O atendedor de chamadas de Carrie respondeu após o primeiro toque, o que significava que o telemóvel estava a ser carregado ou não tinha sinal. Ligou a seguir para o tio Tony. Ele atendeu, e assim que ouviu a voz dela pregou-lhe um raspanete por não ter ligado antes de a tia ter partido para o spa.

- Sabes que ela fica muito preocupada quando não tem notícias tuas.

- Desculpa. Falaste com a Carrie desde que ela saiu de Los Angeles? Ela ligou-te?

- Não, mas não conto ter notícias dela. A tua tia nem me deixou levá-la ao aeroporto - disse. - E prometi-lhe que não a incomodaria no spa. Ela está aí para se descontrair e pensar nas suas... prioridades. Mas tenho a certeza de que quer falar contigo. Liga-lhe e diz que eu lhe mando beijos.

O tio não sabia que ela se encontrava no Utopia. Avery estava prestes a explicar-lhe a sua decisão de última hora de se juntar a Carrie, mas mudou de ideias. Não queria afligir Tony por causa do que ela esperava que fosse um mal-entendido.

- Se ela não atender o telefone, não te preocupes. Estará provavelmente a fazer uma massagem,

O átrio começava a encher-se. Um grupo ruidoso de doze pessoas entrou. Avery tapou o outro ouvido com a mão.

- Tony, surgiu algum contratempo no trabalho? Ligaram-te do escritório?

- Não - respondeu ele. - Estás à espera de algum contratempo? Falei com a Jeanie esta manhã. Está tudo em ordem. A Star Catcher não vai desmoronar-se em duas semanas. Quando falares com a Carrie, diz-lhe que não se preocupe.

- Está bem, eu digo. Ligo-te mais logo, Tony. Beijos. Desligou o telefone e olhou para Oliver.

- Gostava de falar com o gerente.

Oliver pareceu ofendido com o pedido. Endireitou-se.

- Garanto-lhe que Mister Cannon irá dizer-lhe o mesmo que eu disse - declarou com arrogância. Terei todo o gosto em ajudá-la a procurar alojamento em Aspen. Nada que se compare com o Utopia, claro, mas pode sempre vir ao nosso spa. Estou certo de que iria gostar das nossas massagens com pedras aquecidas para redução do stresse. São bastante revigorantes.

O seu tom era ofensivamente condescendente. Ela não estava interessada nas malditas massagens. Queria encontrar a tia. Manter controlada a irritação era difícil, mas Avery lá o conseguiu. Nunca se servira da sua profissão para contornar obstáculos, e não tencionava começar naquele momento, mas a vontade era irresistível. Oh, como teria adorado sacar do crachá e pespegá-lo na cara de Oliver. De certeza que ele deixaria logo de ser arrogante! Mas não podia fazê-lo, porque não seria honesto agir como uma agente de plenos poderes quando não passava de alguém que trabalhava na cave a transferir relatórios para o computador. Além disso, não era um verdadeiro crachá do FBI, e qualquer pessoa minimamente esperta perceberia isso.

Sentiu de súbito que estava a projectar a sua frustração e a sua ira sobre o inocente funcionário. Oliver limitava-se a fazer o seu trabalho. Talvez Carrie tivesse perdido a noção do tempo. Podia ter encontrado uma estrela de cinema no retiro da montanha e decidido lá ficar.

Devia ser isso. A tia estava muito atarefada a estabelecer contactos e esquecera-se de telefonar. Porém, a sua ansiedade não desapareceu. Porque teria Carrie cancelado a reserva no spa?.

- Preciso mesmo de falar com o gerente. Oliver não se mexeu.

- Faça o que a senhora pede - interveio John Paul, calmamente.

- Mister Cannon foi lá abaixo à sala do correio tratar de uma encomenda.

- Chame-o e diga-lhe que John Paul Renard está de volta e que quer falar de novo com ele. Esperamos no gabinete.

Não foi tanto o que John Paul disse, mas a forma como o disse, que pôs Oliver em marcha. Deu um passo para trás, virou-se e correu pelo corredor.

John Paul não deu tempo a Avery para fazer perguntas ou argumentar. Começou a meter as coisas dela dentro da mochila, depois agarrou-lhe na mão e puxou-a.

- Venha, eu sei o caminho.

- Eu sou capaz de tratar disto, Mister Renard. Não tem de...

- Trate-me por John Paul. - Passaram para trás do balcão, e seguiram por um corredor comprido com um tapete vermelho.

Ela libertou-se dele e estacou à entrada do gabinete do gerente.

- Muito bem, quero algumas respostas - exigiu. - Primeiro: como é que conhece a minha tia?

Ele respondeu com uma pergunta.

- Porque é que não disse ao seu tio que a sua tia estava desaparecida?

- Não quero que ele fique preocupado. Tenho a certeza de que ela não está desaparecida.

- Então onde está?

Boa pergunta. Carrie devia estar a beber cocktails no alto da montanha e a divertir-se à grande. E a deixar Avery muito aflita.

Não, Carrie nunca poderia ser tão descuidada. Passava-se qualquer coisa.

- Não sei onde ela está, mas vou fazer uns telefonemas e encontrá-la.

- Porque havia ela de cancelar a reserva? - perguntou John Paul. - O funcionário disse que uma mulher telefonou...

- Devem ter-se enganado com as nossas reservas. Não precisa de ficar aqui. Se quiser deixar-me o seu número de telefone, eu entrego-o à Carrie. Ela deve estar a chegar ao spa com uma desculpa escandalosa.

Avery não acreditou em nenhuma das suas palavras, mas esperava que ele acreditasse e se fosse embora.

- Então espero consigo até ela chegar.

Avery desistiu. O homem era mais tenaz do que ela. Depois de localizar a tia, iria descobrir quais eram os planos dele.

Dez minutos mais tarde, estava sentada diante da secretária art déco de Mr. Cannon, no espaçoso gabinete com vista para uma piscina. A ventoinha do tecto zunia baixinho e fazia um clique a cada rotação. O barulho fê-la recordar-se de Mrs. Speigel. A querida velhota fazia o mesmo som quando falava por causa da prótese mal ajustada.

Cannon tinha outra ventoinha em cima do arquivo preto laçado, mas esta rodava à velocidade máxima. Os pisa-papéis na sua secretária eram esferas douradas.

- O Cannon está a demorar demasiado. Enquanto faz os seus telefonemas, eu vou à procura dele - disse John Paul. Não saia daqui.

Avery esperou que ele saísse e fechasse a porta para ligar para casa. Esperava que Carrie tivesse deixado recado no atendedor a explicar a sua ausência, mas tal não acontecera. Avery tentou em seguida o voice mail do escritório, mas também ali não havia Mensagens da tia.

E agora? Desesperada, ligou para os colegas. Talvez Carrie tivesse falado com Margo, Lou ou Mel.

Margo atendeu.

- Ainda bem que ligaste, Avery. Não vais acreditar. Liguei Para a empregada da tua vizinha, como te prometi...

- Margo - interrompeu Avery -, contas-me isso depois. tenho um problema e preciso da tua ajuda.

- Tens de saber o que eu descobri - insistiu a amiga. Mistress Speigel fracturou a anca.

Avery estava com os nervos à flor da pele, mas sabia que teria de esperar que Margo acabasse a história para conseguir falar.

- Lamento saber isso.

- Ela fracturou a anca há duas semanas, e depois apanhou uma pneumonia. Quase morreu - acrescentou. - Mas a Marilyn, a senhora que toma conta dela, disse-me que os antibióticos estão finalmente a fazer efeito, e parece que ela vai recuperar. É espantoso, tendo em conta que Mistress Speigel está nos noventa.

- Porque estás a contar-me isso? - perguntou, esfregando a testa.

- Não percebes? Mistress Speigel não podia ir a conduzir. Estava no hospital. Alguém lhe roubou o carro, e quem foi estava com tanta pressa para sair da garagem que quase te atropelou.

- Antes de Avery poder comentar, Margo prosseguiu cheia de entusiasmo. - O carro foi abandonado na Rua M. Estava mal estacionado, por isso rebocaram-no. A Marilyn disse-me que Mistress Speigel ficaria destroçada se a família lhe vendesse o carro. Embora nunca ande nele, sente-se independente tendo-o na garagem. A Marilyn costuma levá-la nele de vez em quando. Não ficaste feliz por saber que Mistress Speigel não tentou matar-te? - perguntou Margo com uma gargalhada.

- Margo, preciso de ajuda. Pára de falar um minuto e escuta. A minha tia desapareceu. - Contou-lhe o que sabia. - Está aqui um homem à espera de falar com a Carrie. Não me diz como a conheceu, nem o que quer. É um tipo forte, calado. Verifica o nome dele no computador, está bem? O tipo é estranho. Chama-se John Paul Renard.

- O que queres dizer com ”estranho”?

- Ele diz que é carpinteiro, mas não tem ar disso.

- Que ar deve ter um carpinteiro?

- Vá lá, Margo. Vê se há alguma coisa no sistema.

- Estou a digitar o nome neste momento. Andas à procura de multas de estacionamento ou de outra coisa?

- Não sei do que é que ando à procura - admitiu. - Ele tem um ar estranho. Quando o vi pela primeira vez no átrio, tive a certeza de que era um actor, mas mais tarde reparei que observava as entradas e saídas das pessoas. Pode ser... perigoso. Acho que pode. - Suspirou. - Provavelmente exagero, mas é que estou muito preocupada com a Carrie. Não é nada dela desaparecer assim. Investiga o nome, está bem?

- Credo, Avery. Achas que ele pode ser um criminoso?

- Não sei...

- Uau!

- O quê? Encontraste alguma coisa?

- Se encontrei! O teu John Paul não é um criminoso.

- Ele não é o meu John Paul.

- Trabalhou para o governo. Espera, estou a ver. Uau! Ouve isto: o ficheiro é secreto.

- Secreto? - Avery não estava preparada para ouvir aquilo.

- Estou a tentar aceder... ah, aqui está. Eu posso perder o emprego por causa disto, fica já a saber.

- Eu sei. Diz-me só o que estás a ver, está bem?

- O Renard esteve nos fuzileiros. Exoneração honrosa acrescentou. - Foi recrutado quando ainda era fuzileiro, segundo o ficheiro.

- Recrutado para quê?

- Não sei. Diz apenas ”operações especiais”. Vejo uma série de números e de iniciais, mas não sei o que querem dizer. Leu a informação a Avery à medida que ela ia passando no ecrã.

- Está de licença. - Depois, segundos mais tarde, suspirou ruidosamente. - Não consigo ver mais nada porque não tenho a credenciação necessária. Espera. Estou a carregar numa fotografia. Ah, aqui vamos. - Assobiou.

- O quê?

- Acho que estou apaixonada.

- Deixa-te de brincadeiras. - Descreveu John Paul para confirmar.

- Acho que é o mesmo tipo. É da Luisiana. Tem lá família.

cunhado é advogado no departamento de justiça. - Leu mais

alguns elementos pessoais e acrescentou: - Parece que esteve em muitas missões quando era fuzileiro. Espera, há aqui uma coisa interessante. Diz que numa das missões teve de salvar reféns do Médio Oriente, mas ouve só, o Renard cumpriu a missão apesar de ter o braço esquerdo fracturado. - Margo calou-se enquanto lia o resto do texto. - Para além do tempo que passou nos fuzileiros, aqui não há mais nada. Queres que vá falar com o Cárter? O homem assusta-me, mas faço o que quiseres. Tenho a certeza de que ele tem acesso ao ficheiro do Renard.

- Não, não lhe digas nada. Pelo menos até eu ter tempo de pensar no assunto.

- O que se passa? - perguntou Margo. - O que tem este Renard a ver com a tua tia Carrie?

- Não sei. Escuta, Margo, quando a Carrie me ligou do aeroporto de Aspen, disse que havia um motorista do spa à espera para a levar a ela e a outras duas mulheres para uma casa na montanha, onde passariam a noite. A Carrie disse que o spa teve um problema na canalização ou coisa do género. O nome do motorista era Monk Edwards... ou Edward Monk. Não sei bem. Sei que não é muito, mas é tudo. Lembro-me de que a Carrie também disse que o motorista tinha sotaque britânico. Insere o nome no computador e, se encontrares alguma coisa, liga-me para o telemóvel.

- Fazes ideia de quantos Edwards existem nos Estados Unidos?

- Mas Monk não é um nome muito comum... a menos que seja alcunha.

- Está bem - disse Margo. - Dá-me o número do teu quarto para o caso de eu não conseguir apanhar-te no telemóvel.

- Não vou ficar no Utopia porque a minha reserva foi cancelada. Vou-me embora de qualquer maneira - acrescentou. A Carrie disse que estava numa casa que pertence ao spa. Espero que ainda lá esteja. Senão...

- Não inventes problemas. A tua tia deve ter ido parar a um sítio muito mais interessante que o spa. Há-de entrar em contacto contigo. Verás. E, entretanto, vou investigar esse Monk Edwards ou Edward Monk.

Margo acabara de desligar o telefone quanto este voltou a tocar. Era o chefe do departamento a recordar-lhe que ela ainda não entregara o mapa de férias. Passou dez minutos à procura do mapa e a preenchê-lo, ao mesmo tempo que atendia o telefone ao departamento de pessoal. Depois teve de o ir entregar. Só a meio da tarde conseguiu fazer a pesquisa para Avery.

Depois de escrever o primeiro nome que Avery lhe dera e ter posto o programa na busca, ligou a Lou e a Mel, que iam a caminho do almoço, e falou-lhes de Carrie. Cada um deles apresentou uma teoria sobre o que lhe teria acontecido. Lou estava certo de que ela regressara a Los Angeles - todos sabiam que a mulher era dependente do trabalho -, mas Mel achava que ela devia estar com algum contacto profissional no Colorado, ligara para o Utopia a deixar recado para Avery, mas o spa baralhara-se e ou perdera ou apagara o recado.

- Nunca recebo recados quando estou num hotel grande - disse ele.

- Ela deve ter arranjado coisa melhor para fazer do que estar num banho de lama o dia inteiro, e esqueceu-se da Avery sugeriu Lou.

- A Carrie não seria tão cabeça no ar - argumentou Margo. - Ela e a Avery são muito chegadas. Voltou-se para o computador e viu um alerta a piscar. - O que... - Fazendo andar o cursor para baixo viu em letras grandes e negrito o código de prioridade. Gritou para Mel e Lou enquanto lia a informação.

- Oh, meu Deus!

Margo levantou-se de um pulo e começou a correr na direcção do gabinete de Cárter.


                                         CAPÍTULO 9

Mr. Timothy Cannon, vestido para os trópicos com um fato branco, entrou no gabinete e apresentou-se. Era um cavalheiro garboso com uma voz suave e efeminada.

- Já conseguiu localizar a sua tia?

Nesse instante, John Paul entrou no gabinete. Avery viu-o fechar a porta e encostar-se a ela. Quando cruzou os braços, reparou numa cicatriz ténue, com cerca de cinco centímetros, no antebraço esquerdo. Como podia ter achado que ele era um actor? Como podia o seu instinto estar tão errado?

Forçou-se a concentrar-se no gerente.

- Não, ainda não. Posso fazer-lhe algumas perguntas?

- Sim, claro.

Cannon sentou-se na cadeira atrás da secretária, cruzou as pernas e começou a alisar o vinco as calças com o indicador e o polegar.

- Mandam sempre um funcionário ao aeroporto buscar os hóspedes?

- Sim, com certeza. Não queremos que os nossos clientes tenham o trabalho de procurar transporte sozinhos ou carregar com as malas.

- Mandou alguém ontem ao aeroporto? Cannon sorriu.

- Estou a ver onde quer chegar. Acha estranha a vaga de cancelamentos das reservas, não acha? É tão fora do comum, sabe, ter um cancelamento de última hora no Utopia. Os quartos são reservados com meses de antecedência, mas alguns dos nossos hóspedes mais proeminentes têm compromissos de última hora e tentamos ser flexíveis.

- O que quer dizer com vaga de cancelamentos?

Ele pareceu admirado com a pergunta. Julgava que ela sabia.

- Tinha agendada a recolha de três hóspedes ontem à tarde no aeroporto. Eram todas senhoras - acrescentou. - Lembro-me que um dos voos chegou às três e cinquenta. Outro às quatro e vinte e o último às cinco e um quarto. Posso ver a que horas a sua tia estava para chegar.

- Gostaria que me desse informações sobre os voos, número de cartões de crédito e tudo o mais que tiver sobre as mulheres.

- Lamento, mas não posso dar-lhe essa informação.

Ah, sim, podia. E iria, pensou ela. No entanto, ainda não queria pôr o gerente à defesa. Precisa de ver respondidas primeiro muitas outras perguntas e Cannon fazia os possíveis por colaborar.

- Se as três mulheres iam chegar com pouco tempo de diferença, porque ia mandar três carros separados?

- Porque isto é o Utopia - respondeu ele. - Orgulhamo-nos do nosso excelente serviço. Nenhum dos nossos hóspedes deveria ter de esperar por outro. Seria um grande transtorno. Por isso eu estava para mandar três carros ao aeroporto, mas quando todas as hóspedes cancelaram em cima da hora, informei os funcionários de que não era preciso irem. Chegaram outros hóspedes de surpresa ontem à noite e ficámos encantados por termos quartos vagos.

Avery arquivou a informação e fez imediatamente a pergunta seguinte.

- Ontem teve algum problema com a canalização?

- Problemas com a canalização? No Utopia? - repetiu ele com ar desdenhoso. - Não houve qualquer problema. Temos uma excelente equipa técnica e eles antecipam os problemas antes de eles surgirem.

- Teve de ir buscar água fora do spa. Algum dos canos rebentou?

- Não.

E quanto a uma casa na montanha... um retiro? - perguntou ela. - O Utopia tem alguma casa dessas nas montanhas para os hóspedes quando há um problema? Ele rangeu os dentes.

- Não temos problemas no Utopia - insistiu. - E os donos do Utopia não têm um retiro na montanha. Os nossos clientes ficam sempre aqui. Não os enviamos para outro lado.

Depois de ter terminado a explicação, Cannon fez questão de olhar ostensivamente para o relógio.

- Se não tem mais perguntas, tenho de voltar ao trabalho. A maior parte dos clientes que vem esta semana chega hoje. Vai haver bastante movimento. Se eu fosse a si, não me preocupava com a sua tia - acrescentou, pondo-se de pé. - Tenho a certeza de que ela irá aparecer em breve.

Estava a despachá-la. Avery não se mexeu na cadeira.

- Pode dar-me uma lista com os nomes dos seus empregados? De todos os seus empregados?

- E o que quer fazer com ela?

- Procurar um determinado nome.

- Orgulho-me de conhecer todos os meus funcionários. Dê-me o nome e dir-lhe-ei se trabalha ou não no Utopia.

- Edwards - disse ela. - Ou é Monk Edwards ou Edward Monk.

Cannon não reagiu ao nome. Limitou-se a abanar a cabeça. No entanto, John Paul reagiu como se lhe tivessem atirado uma tocha. Desencostou-se subitamente da porta e avançou para a secretária à velocidade da luz. Pousando as mãos em cima do mata-borrão, inclinou-se para Avery.

- Como é que conhece esse nome? - inquiriu.

A expressão dele provocou-lhe pele de galinha. E não era nada agradável. Sentiu um certo temor.

- Como é que o senhor conhece esse nome? - retorquiu.

- Responda-me.

- A minha tia telefonou-me do aeroporto de Aspen. Deixou recado a dizer que ela e duas outras senhoras iam ser levadas para uma casa na montanha por um funcionário do Utopia. Disse que ele se chamava Monk Edwards. Também disse que ele tinha um sotaque britânico. - Virando-se para Cannon, indagou: - Tem algum funcionário...

- Com sotaque britânico? Não, acho que não. Alguém anda a pregar-nos uma partida. Ontem não mandei nenhum funcionário ao aeroporto. Talvez a sua tia tenha sido... mal informada.

John Paul pegou no telefone da secretária de Cannon e começou a marcar um número. Virou costas a Avery e falou em voz baixa, mas ela conseguiu ouvir tudo.

- Noah, é o John Paul. Sim, bem, o que queres que te diga? Pára de me interromper e ouve. Estou num spa chamado Utopia perto de Aspen. O Monk voltou. Parece que desta vez apanhou três. Deve estar a tentar bater algum recorde.

Avery pôs-se de pé e empurrou a cadeira para trás. Enfiou a mão na mochila.

- É melhor chamares os reforços. Sabemos que não irão encontrar nada, mas ainda assim deves seguir o procedimento de rotina. É tarde de mais - acrescentou. - Ele já as apanhou.

Desligou e dirigiu-se para a porta, mas parou quando ela perguntou.

- Onde é que vai?

- Chamei umas pessoas que irão ajudá-la - respondeu John Paul, continuando a andar.

- Que pessoas? A polícia?

- Não, o FBI. - Parou junto à porta. - O Noah é amigo do meu cunhado. Conhece muito bem o Monk. Ele explica-lhe tudo quando chegar.

- Acha que o FBI vai conseguir localizar a minha tia?

Ele não lhe disse que achava que a tia dela já se encontrava morta e que os agentes, se tivesse sorte, conseguiriam apenas encontrar o seu cadáver... a menos que Monk a tivesse abandonado a mercê dos animais selvagens.

- Sim, claro.

- Diga-me a verdade.

- Está bem. Acho que eles vão estragar tudo. Avery ficou espantada com o veneno na voz dele.

- Porquê?

- Porque são o FBI. Ela não respondeu.

- E onde é que vai? - repetiu.

- Vou verificar algumas possibilidades, mas duvido que encontre alguma coisa.

- E depois?

- Vou para casa.

Se ela tivesse uma arma, teria considerado a possibilidade de lhe dar um tiro no pé. Que grande parvo!

- Não sai daqui enquanto não me disser aquilo que sabe sobre o Monk.

- Olhe, minha senhora, neste momento não posso fazer nada para a ajudar. Julguei que levava algum avanço, mas já cheguei tarde de mais. Mandei vir ajuda para si, por isso tenha paciência e deixe o FBI fazer o seu trabalho. - E saiu do gabinete.

Avery virou-se para Cannon.

- Quero os nomes, moradas, números de telefone e qualquer outra informação pertinente sobre as duas mulheres que viajavam com a minha tia... as duas que cancelaram as reservas. Se eu não obtiver essa informação nos próximos dois minutos, juro que dou cabo deste sítio, e fá-lo-ei prender por obstrução à justiça. Agora, dê-me essa informação.

Pegou na identificação do FBI e agitou-a diante dos olhos dele. Cannon pestanejou duas vezes, depois correu para o computador, a fim de procurar a informação pretendida.

- Isto é altamente irregular - murmurou quando ela agarrou na mochila, a meteu ao ombro e foi a correr atrás de John Paul. - Altamente irregular.

Avery apanhou John Paul junto à recepção. O átrio estava repleto de pessoas acabadas de chegar, e ela teve de contornar três grupos para o alcançar. Agarrou-lhe então no antebraço e tentou fazê-lo parar.

O filho-da-mãe nem sequer abrandou. Continuou a andar, arrastando-a. Ela reparou que ele não contornava as pessoas. Elas afastavam-se para o deixar passar. Apertou-lhe o braço com mais força. Se tivesse as unhas compridas, tê-las-ia partido todas. John Paul tinha a pele quente, o que significava que era humano, mas os seus músculos pareciam pedra.

- Importa-se de parar? Tenho de falar consigo. - Depois ao ver que ele não abrandava, acrescentou: - Por favor, John Paul, preciso da sua ajuda.

Ah, bolas! A rapariga parecia estar prestes a chorar. Ele nada podia fazer para a ajudar, mas ela era demasiado ingénua para saber isso. Provavelmente vivera sempre protegida da vida real e era incapaz de a enfrentar. Quer gostasse quer não, estava prestes a descobrir que a vida nem sempre tinha um final feliz.

Sentiu pena dela. Praguejando, virou-se para Avery. Ainda pensou em tentar suavizar a história, mas depois decidiu que, mais cedo ou mais tarde, ela teria de enfrentar a verdade.

- Não posso ajudá-la.

- O que queria dizer quando afirmou que já era tarde de mais? Ouvi-o dizer isso ao telefone.

- Vou deixar que seja o FBI a explicar-lhe isso. Pode chamar alguém para vir fazer-lhe companhia? Algum familiar ou amigo chegado que possa olhar por si?

Avery estacou. Céus, ele era mesmo insensível.

- Acha que a minha tia está morta, não acha?

Ele não respondeu de imediato, mas observou-a tentando perceber se ela era suficientemente forte para ouvir a verdade. Recearia que ela ficasse histérica?

- Não vou desmaiar. Responda-me. Ele aproximou-se.

- Sim. Acho que a sua tia e as outras duas mulheres já estão mortas.

Ela largou-lhe o braço e recuou.

- Porquê? Porque acha isso?

- Tem alguém a quem possa...

- Telefonar? A minha tia Carrie e o marido são a minha única família, e não vou assustar o meu tio como você está a tentar assustar-me até dispor de todos os dados. Diga-me como conhece esse Monk.

- Miss Delaney?

Era Oliver. Virou-se e viu o funcionário com o auscultador na mão, a chamá-la.

Não podia ser Margo, pensou ela. A amiga ter-lhe-ia ligado para o telemóvel. Então quem seria? Carrie... talvez fosse Carrie. Sentiu tanto medo que mal conseguia respirar. ”Meu Deus, permite que seja a Carrie.”

Deixou cair a mochila quando passou pelo meio de duas Pessoas. Estava com demasiada pressa para a apanhar.

- Dizem que é urgente - informou Oliver quando ela se aproximou.

John Paul seguiu-a com a mochila. Viu-a pegar no auscultador

- Carrie? - perguntou ela.

- Desculpa, querida. Não é a Carrie.

Avery ficou chocada com o tom e a voz murmurada da mulher ao telefone.

- Quem fala?

- Quem fala não é importante, mas a tua Carrie é, não é? Nós temo-la. Gostavas de voltar a vê-la?

A voz parecia disfarçada. Avery achava que nunca a ouvira antes.

- O que é que lhe fizeram? Ela está bem? Se a magoaram...

- Cala-te e ouve, estúpida! - ordenou a mulher. - Só vou dizer isto uma vez, por isso presta atenção. Três vidas dependem da tua colaboração. Deixei um envelope de papel manilha com o teu nome em cima do balcão. Está aí, à tua esquerda. Ah, não te mexas - disse ela com um sussurro que deixou Avery arrepiada. - Se me vires, as regras irão mudar e a pobre Carrie e as suas novas amigas irão pagar.

Avery ficou hirta.

- Onde está?

- Aqui - respondeu a voz. - Estou a observar-te. Gostavas de me ver, não gostavas? - Riu-se. - Não sejas desmancha-prazeres e não me dês cabo do jogo. Pega no mapa, Avery. Assim mesmo. Vês o relógio? Mete-o no pulso. Agora.

Avery pegou no Swatch de modelo masculino e prendeu-o ao pulso.

- Muito bem - disse a mulher. - Agora abre o mapa e descobre o X que assinalei. Despacha-te.

Avery prendeu o auscultador com o ombro, abriu o mapa e começou à procura do X. Deixou cair o telefone quando se inclinou para a frente, tentando ver o reflexo de um rosto no granito brilhante atrás do balcão.

John Paul aproximou-se e pegou no auscultador. Ela arrancou-lho da mão.

- Desajeitada - repreendeu a voz.

- Desculpe.

John Paul observou-a atentamente. A cor desaparecera-lhe do rosto e tinha os nós dos dedos brancos de apertar o auscultador. Não pôde impedir-se de pôr um braço à volta de Avery, receando que o que ela estava a ouvir fosse demasiado. Não era muito bom a confortar mulheres - nunca o tentara antes - mas sentiu-se obrigado a tentar.

- Oh, que querido - comentou a voz com um tom melado - É o teu amante?

Ela ficou tão furiosa que não conseguiu pensar.

- Sim... não. A mulher riu-se.

- Quem é ele?

- Ninguém.

- Ai sim?

Avery disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça.

- É um actor. Trabalhava... trabalha para a Carrie, a fazer anúncios. Vou mandá-lo embora.

- Não, não faças isso. Ele agora está no jogo, minha querida. Já deve saber que estás com dificuldade em encontrar a Carrie. Não queremos que ele comece a fazer perguntas nem que chame a polícia. Além disso, irá divertir-se mais na caça ao tesouro contigo. Mas mais ninguém. Se disseres alguma coisa a alguém, nós iremos saber. Assim que desligares o telefone, estaremos a vigiar os teus passos. Vais dizer ao gerente que a Carrie telefonou e que está tudo bem. Depois vais tirar o telemóvel da mochila e atirá-lo para a fonte à saída. Percebido?

- Sim.

- Pega no telemóvel do teu namorado. Quero ver. Avery virou-se para John Paul.

- Dê-me o seu telemóvel.

- Não tenho telemóvel.

Ela repetiu o que ele disse para o bocal.

- Já saberemos se ele está a mentir. Mas também não interessa. Não vais ter rede no sítio para onde vais, mas mesmo assim quero que te livres do teu telemóvel.

- Assim farei. A Carrie está bem? Ela...

- Está óptima... por enquanto. Faz o que te digo se quiseres que ela continue assim. - O tom da voz tornou-se duro, mas deixava transparecer uma certa excitação. - Encontraste o

X vermelho?

Sim, estou a vê-lo.

Segue as direcções que escrevi no fundo. Tens exactamente duas horas para lá chegares.

- Mas isto fica a pelo menos três horas de viagem daqui! Não é possível. Parece que não há estradas depois de...

- Eu disse duas horas - interrompeu a mulher. - Cento e vinte minutos, Avery, e nem mais um. Ouviste?

- Sim, mas e se não chegarmos a tempo? Se chegarmos tarde de mais.

A mulher riu-se.

- Bum!

 

                                       CAPÍTULO 10

A mulher parecia louca. Estava a rir-se quando desligou o telefone. Avery, profundamente abalada, entregou o auscultador a Oliver e, ao mesmo tempo, carregou no botão do telemóvel que marcava automaticamente o número dos colegas de trabalho. Aguardou um momento, depois carregou no asterisco para indicar alerta. Cannon correu na sua direcção e pousou no balcão as folhas com a informação que ela solicitara.

- O senhor tinha razão - disse ela, tentando mostrar-se animada. - Era a Carrie ao telefone. Foi tudo um mal-entendido. Agora, se nos dá licença, o John Paul e eu vamos dar uma volta.

Tentava não deixar transparecer o seu nervosismo. Enfiou na mochila os papéis que Cannon trouxera antes que ele os voltasse a agarrar, pegou no telemóvel e na mochila e correu para a entrada.

Olhou para todos os rostos por que passou, mas havia tanta gente parada no enorme átrio que era impossível ver bem todas as mulheres. Onde seriam as cabinas telefónicas? Havia por todo o lado enormes palmeiras e figueiras. A mulher podia estar escondida enquanto a observava.

- Vamos - gritou a John Paul antes de perceber que ele estava mesmo atrás de si.

- O que se passa?

Ela não respondeu. Correu para a fonte, deixou cair o telemóvel na água, e seguiu apressada na direcção da porta, chocando com o porteiro.

- Miss Delaney, se me der o número do seu quarto, eu mando levar a bagagem...

Ignorando-o, Avery desceu as escadas e parou no meio da rotunda enquanto tentava localizar o carro que alugara. Onde estaria?

John Paul tirou o saco de viagem do carrinho da bagagem.

- Este é dela? - perguntou.

- Sim, senhor. Veja, tem o seu nome. Ela já fez o check-in?

- Onde é que meteu o meu carro? - gritou ela ao mesmo tempo.

Ia a correr para junto do posto do arrumador quando John Paul a interceptou. Ela não iria a lado nenhum até ele deixar, e isso só sucederia quando ela lhe contasse o que diabo estava a acontecer. Avery tremia violentamente.

- Respire fundo e acalme-se. Não vai desmaiar, pois não?

- Não.

- Muito bem, então diga-me o que aconteceu.

- Era uma mulher. Não lhe reconheci a voz. Diz que têm a minha tia.

- Têm? Está certa de que ela disse ”têm”?

- Sim - respondeu Avery. Estava cada vez mais nervosa.

- A Carrie está em apuros, e tenho de chegar até ela antes que seja tarde de mais.

- A mulher disse-lhe para se livrar do telemóvel?

- Sim - murmurou ela. - Olhe, isto não é uma partida de mau gosto. Percebi logo. Ela disse que matariam a Carrie e as outras duas mulheres que estão com ela se não nos pusermos a andar. Por favor - implorou, desesperada. - Tem de ir comigo. Ela disse que você agora faz parte do jogo. Temos de nos apressar. Ela deu-nos duas horas para chegar a um lugar assinalado no mapa, e não sei como é que lá chegaremos a tempo. Fica tão longe...

- Sabe que isto pode ser uma armadilha, não sabe? Tem de saber...

- Sim! - gritou ela, já não se importando com quem a ouvia. - E quando estivermos a caminho, irei pensar numa maneira de me manter viva e de salvar a Carrie. Ouça: não tenho alternativa. Se fosse a sua mãe, ou a sua filha, ficava aqui parado a analisar a situação? Sei que não. Faria exactamente o que eu vou fazer. Alinharia e aproveitaria as oportunidades. Agora mexa-se, Renard. O tempo está a passar.

Avery tinha razão. Ele teria pago o resgate ou feito o que fosse humanamente possível para manter alguém que amasse vivo por mais algum tempo.

- Vá, iremos no meu carro - disse ele.

- Obrigada - disse ela a tremer de alívio por ele não ter discutido.

John Paul agarrou-lhe na mão e correu para o parque de estacionamento, com ela a acompanhá-lo a custo. O jipe dele estava mal estacionado diante de uma passagem para peões. Ao lado do veículo encontrava-se um segurança a abanar a cabeça.

- O senhor é o dono deste... - Calou-se quando viu a expressão de John Paul e recuou rapidamente, pisando um canteiro de amores-perfeitos.

John Paul ignorou-o. Carregou no botão da chave para abrir as portas e atirou o saco de Avery para cima das suas coisas no banco de trás, enquanto ela contornava o carro, abria a porta e se sentava no banco do passageiro.

Tinha na mão o mapa e apontava já para o X vermelho quando ele se sentou ao volante.

- Dispomos exactamente de duas horas. Não, de uma hora e cinquenta e sete minutos, para chegarmos a este local. Vamos.

John Paul observou o mapa durante dez segundos.

- Vai ser à tangente - disse ele, ligando o motor.

- Mas seremos capazes?

- Talvez. Você dá as indicações. Ponha o cinto.

Só pôde acelerar quando saíram do parque de estacionamento, mas quando chegaram ao portão no fim do caminho longo e cheio de curvas, já ia a setenta.

Avery sentava-se inclinada para a frente, balançando, como se esse movimento os ajudasse a aproximarem-se do destino. Reparou no que estava a fazer e obrigou-se a encostar-se ao banco enquanto aguardava o momento seguinte para lhe dar indicações.

Ele acelerou na auto-estrada.

- Ali! - gritou ela quando viu a placa. - Saia na próxima. Deve ser daqui a uns dois quilómetros. Depois siga por essa estrada de duas faixas durante uns trinta ou quarenta quilómetros. - Unindo as mãos, olhou para a estrada até a saída surgir.

- Abrande. Aqui está ela. Assim não consegue virar.

- Estou a vê-la - respondeu ele calmamente. Descreveu a curva sobre duas rodas. Avery pousou uma mão no tabliê para se manter direita. Aqueles jipes não estavam sempre a capotar? Era só o que lhe faltava, que John Paul tivesse um acidente. Carrie estaria perdida.

”Acalma-te”, disse a si própria. ”Vamos conseguir. Temos de conseguir.”

Olhou para baixo, viu o Swatch de modelo masculino meio em cima do seu pequeno Timex, e tirou-o rapidamente. Depois de o ter examinado cuidadosamente de ambos os lados, pousou-o no suporte para copos entre ambos.

A estrada seguia a direito e ele fitou Avery.

- Agora comece a falar. Conte-me exactamente o que ela lhe disse.

Avery contou-lhe aquilo de que conseguia recordar-se.

- Ela estava a observar-nos. Tentei descobri-la à saída, mas havia tanta gente.

- Talvez ela não estivesse lá dentro. Não reparou nas câmaras?

Ela abanou a cabeça.

- Não.

- Só precisava de estar ligada ao sistema. Não tinha de estar presente. A voz dela tinha alguma característica especial?

- Não, nada. Soava apenas...

- O quê?

- Assustadora. Disse-me para não ser desmancha-prazeres, que o que estava a fazer era um jogo. Não queria que eu lhe estragasse o divertimento.

Avery lembrou-se dos papéis que enfiara na mochila e tirou-os.

- O que é isso?

- Pedi ao Cannon que me desse toda a informação que tivesse sobre as outras duas mulheres que cancelaram em cima da hora. Ela disse-me que estão duas mulheres com a Carrie. Devem ser as mesmas. A primeira chama-se Anne Trapp. Vive em Cleveland e é dona da Empresa de Navegação Trapp. Depois há a juíza Sara Collins de Miami. Parece que as três reservas foram feitas com os cartões de crédito. Cada um com um nome diferente. - Disse-lhes os nomes.

Esses nomes têm algum significado para si?

- Não - respondeu ela. - Acho que a Carrie nunca me falou delas, e não sei se as conhecerá. A Carrie e o meu tio vivem em Bel Air.

- Calculei que você fosse de lá.

- Durante um tempo fui. Agora vivo na Virginia. - Pegou no relógio e tornou a olhar para as horas. - Não podemos ir mais depressa?

- Vou quase a cento e vinte. O limite é oitenta. Só espero que a brigada de trânsito não ande por aí.

Céus, ela não se lembrara disso. Se os mandassem parar, perderiam um tempo infinito.

- Então abrande.

- Decida-se, querida. Depressa ou devagar? Você é que manda.

- Compensaremos na estrada secundária. Agora abrande. Ele assim fez.

- Tem a certeza de que a mulher disse ”nós”?

- Já me perguntou isso, e sim, tenho a certeza de que ela utilizou o plural. Porque é isso tão importante?

Ele mal podia conter a excitação.

- Porque talvez o Monk esteja à sua espera nesse X do mapa, o que me dá a oportunidade única de matar o filho-da-mãe. Se eu conseguir arranjar maneira de me antecipar a ele...

Calou-se, mas ela notou que ele aumentara a velocidade.

- Acho que está na altura de responder a algumas perguntas

- disse ela.

- Tais como?

- Porque andava à procura da Carrie? Como é que a conhece?

- Não a conheço - confessou ele.

- Mas disse...

- Menti. Conheço o homem que...

Ia dizer ”o homem que a matou” porque, se Monk continuasse a agir como até ali, aquelas três mulheres já estavam mortas e enterradas. No entanto, ele modificara uma coisa, notou John Paul. Arranjara uma parceira.

- que apanhou as mulheres. Diz chamar-se Monk. Duvido que seja esse o nome que está na sua certidão de nascimento.

- Diga-me o que sabe sobre ele. Quem é?

- Um assassino profissional.

- Um quê?

Ele repetiu e olhou para o rosto de Avery, para ver como ela reagira. Não muito bem. Nada bem. Começava a ficar com uma coloração esverdeada.

- Vai vomitar? - perguntou ele com secura.

- Não.

John Paul não acreditou.

- Baixe o vidro e ponha a cabeça de fora se achar...

- Eu estou bem - respondeu ela enquanto carregava no botão que abria automaticamente o vidro. Respirou fundo algumas vezes. O ar tinha um cheiro almiscarado e a terra. Fê-la engasgar-se. Não, o ar fresco não estava a ajudar.

Um assassino profissional. ”Meu Deus”, pensou ela.

Respirou fundo e tentou ordenar as ideias. ”Analisa os factos. Pensa.”

Anne Trapp. Sara Collins. Aquelas mulheres perturbavam a sua análise. Qual seria o denominador comum?

- Tem de haver uma ligação - disse, mas, assim que as palavras lhe saíram da boca, abanou a cabeça. - Não, não posso partir desse princípio.

Ele concentrou-se na estrada. Voltara a acelerar porque não havia mais carros e apostava que a brigada de trânsito estava a vigiar áreas mais congestionadas. Aliviou a pressão do pé no acelerador quando chegou aos cento e dez.

- A estrada acaba daqui a sete quilómetros. Ela agarrou no mapa.

- Como é que sabe?

- Acabei de ver a placa.

- Devemos apanhar a estrada secundária.

- Estou atento.

Ela olhou pela centésima vez para o relógio e viu que tinham passado vinte minutos. Depois calculou mentalmente a distância até ao X.

Ele observou-a.

- Sem uma estrada boa, vai ser à tangente. Talvez não cheguemos a tempo, Avery.

- Havemos de chegar - insistiu ela. - Temos de chegar.

Ah, aqui está - disse ele, virando para a estrada secundária Os pneus levantaram gravilha e esta bateu no pára-brisas cuando ele derrapou estrada acima. Esta tinha largura apenas para um carro, e os ramos dos sempre-verdes rasparam no jipe.

Vamos na direcção certa, e isso é que importa - disse ele.

- Se tivermos sorte, talvez apanhemos uma estrada melhor

lá mais à frente.

- Ou não apanhemos nenhuma estrada.

- O que é que sabe exactamente acerca do Monk?

- Nunca o vi, se é isso que quer saber. Ele tornou-se uma espécie de passatempo para mim. Tentou matar uma pessoa que me é muito chegada.

- Alguém o contratou para matar essa pessoa sua amiga?

- Não, mas ela atravessou-se-lhe à frente. Foi a minha irmã. Foi contratado para obter informações que ela possuía, e tentou matá-la para as obter. Felizmente, o plano correu mal e ele acabou por desaparecer.

- Então já anda atrás dele há algum tempo.

- Sim - respondeu ele. - O homem a quem liguei do gabinete do Cannon também está interessado no Monk.

- Quem é?

- Clayborne - respondeu ele. - Noah Clayborne. É do FBI - acrescentou com uma nota de desdém.

- Mas é um amigo seu?

- Nem por isso.

Ela inclinou a cabeça, observando-o. Qual seria o problema dele?

- Como já disse, o Monk desapareceu durante um ano. Nunca mais vi sinal dele... até agora.

- Como é que sabia que ele estava no Colorado?

- Usou um cartão de crédito que já usara em Bowen... é onde vivo - acrescentou. - Em Bowen, na Luisiana.

- Então o FBI também sabe que ele está no Colorado disse ela.

- Não, não sabe.

- Mas se você o localizou pelo recibo do cartão de crédito, com certeza que o FBI...

- Eles não têm conhecimento desse recibo.

- Não os informou?

- Credo, não!

Lá estava de novo aquela hostilidade.

- Porque não?

- Porque não queria que eles estragassem tudo.

- O FBI não estraga as investigações. São especialistas e muito eficientes no seu...

Ele interrompeu-a.

- Poupe-me. Já conheço a propaganda de cor e salteado. Não acreditei nela antes e não acredito nela agora. O FBI encheu-se de chefes que tentam pisar os agentes que trabalham sob eles para chegarem ao cimo. Já não há lealdade. É um mundo cão. São... burocratas - acrescentou com um encolher de ombros.

- Você é um cínico.

- Pode crer.

Ela olhou para a janela.

- Mas obrigada na mesma.

- Porquê?

- Por vir comigo. Podia ter recusado.

- Quero que perceba uma coisa: não estou a fazer isto por si nem pela sua tia. Quero deitar a mão ao Monk antes que ele mate mais alguém.

- Por outras palavras, tem os seus planos e não vai fazer-me favores. Compreendo.

Mas não compreendia. Como é que alguém podia ser assim? Perguntou a si mesma se ele alguma vez se desviaria do seu caminho para ajudar alguém em apuros. Provavelmente não. Era o tipo de homem que passava de carro por acidentes sem parar e passava a pé por cima de vítimas de ataques cardíacos.

Seguiram em silêncio durante vários minutos.

- Diga-me o que sabe do Monk: ele deve seguir um padrão. Todos seguem.

John Paul achou estranho ela saber aquele tipo de coisas.

- Realmente seguia um padrão, mas é óbvio que o alterou.

- Alterou como?

- O Monk foi sempre muito discreto. Aparecia e desaparecia o mais depressa possível.

- Até parece que o admira.

Não o admiro, só estou a dizer que o padrão nunca se alterou muito. No início, os homicídios ocorriam sempre todos os anos, durante duas semanas. Foi assim durante sete anos, e eu tenho uma teoria para isso.

- Acha que ele tem um emprego a tempo inteiro algures? Que tem duas vidas separadas?

- Acho que costumava ter - corrigiu ele. - É evidente que os homicídios eram muito mais rentáveis, por isso ele deve ter deixado o anterior emprego. Está-se mesmo a vê-lo sentado a uma secretária, a trabalhar diligentemente. Faria o papel do bom homem. Dinâmico, empreendedor, e como gostavam tanto dele, as pessoas contavam-lhe os seus problemas. Aposto que quando ele for apanhado, as pessoas com quem trabalhava ficarão chocadas. Todas dirão o mesmo. O Bob era um homem tão simpático.

- Também o Ted Bundy era.

- Exacto.

- Como é que sabe que os primeiros homicídios foram obra dele? Deixou algum cartão ou coisa parecida para ficar com os louros?

- Mais ou menos - respondeu. - Gosta de rosas. Deixa uma rosa vermelha de caule comprido.

- Isso é assustador - disse ela. - Então dantes trabalhava das nove às cinco, e matava pessoas nas férias, mas agora é um assassino profissional a tempo inteiro... a qualquer altura do ano. Em que é que ele hoje está diferente? Parece ter estudado de perto o trabalho dele...

John Paul assentiu.

- Ele nunca tentou nada do género... três vítimas. Não é exibicionista. E sempre agiu sozinho antes. Agora parece que está ligado a uma mulher. Talvez queira impressioná-la.

Passaram por cima de um buraco. Avery tornou a agarrar-se ao tabliê quando bateu com a cabeça no tejadilho.

- Ainda estamos a avançar para norte? - Era impossível dizer. As árvores ocultavam o céu, e naquela zona da floresta estava muito escuro.

- Noroeste - respondeu ele.

Ela ouviu um grito à distância. Não, era o guincho de um animal. O som fê-la arrepiar-se.

- Como é que ele recebe as encomendas? Sabe?

- Não, mas calculo que pela Internet. É fácil. É anónimo e, até agora, foi cuidadoso e selectivo na escolha dos seus alvos. Provavelmente tem trabalho suficiente para os próximos cinquenta anos. Ficaria surpreendida se soubesse quantos maridos querem ver as mulheres mortas e quantas mulheres pagariam para se livrarem dos maridos.

- O meu tio Tony não teve nada que ver com isto.

- Tem a certeza?

- Sim - afirmou ela. Ele não insistiu.

Disse que devia haver uma ligação entre as mulheres...

- Estava a analisar aquilo que sabemos, a tentar juntar as peças. Parti do princípio que um homem ou uma mulher contratou Monk para matar as três mulheres, e foi por isso que tentei pensar em algo que elas pudessem ter em comum. Mas posso estar enganada.

- Então?

- Temos de considerar também a possibilidade de três pessoas diferentes terem contratado Monk e de, por qualquer razão, ele ter decidido matar as vítimas ao mesmo tempo.

John Paul teve de admitir que ela tinha razão.

- Uma coisa é certa. O Monk recebeu uma pipa de massa para matar estas mulheres. Não é um tipo barato. Se tem de as matar às três, a pergunta mais importante é a seguinte: quem quererá ver morta a sua tia?

Ele esperava que ela respondesse imediatamente que a tia era uma mulher muito doce e afável que não tinha um único inimigo no mundo.

- Muita gente não gosta da minha tia. Alguns, imagino, odeiam-na.

Ele não estava preparado para aquilo. Até sorriu.

- Ai sim?

- Às vezes, a Carrie é muito... abrasiva.

- Não me diga. Avery assentiu.

- Trabalha num meio muito competitivo.

- E que meio é esse?

- O da publicidade.

- Desculpe?

- Ela faz anúncios.

Ele soltou uma gargalhada, o som demasiado elevado no habitáculo.

- No entanto - continuou Avery, ignorando a reacção dele., nenhum dos seus concorrentes se daria a tanto trabalho para se ver livre dela.

- Como é que pode ter tanta certeza?

- Tenho e mais nada.

- Está bem, então regressamos ao seu tio Tony. Como vai o casamento deles? Algum problema de que tenha conhecimento?

Avery sentiu um aperto no estômago.

- A Carrie acha que o Tony a anda a enganar.

- Ah!

- Têm andado a consultar um conselheiro matrimonial.

- Ai sim?

- O Tony ama a Carrie.

- Conhece bem o seu tio?

- Não tão bem quanto devia - admitiu ela. - Estive num colégio interno e só vinha a casa nas férias do Verão, e nessa altura passava o tempo no escritório da Carrie. Mesmo assim, acho que sou boa a avaliar as pessoas. O Tony nunca seria infiel.

- As mulheres costumam saber...

- A Carrie não é uma mulher vulgar. É muito desconfiada. Acho que, lá no fundo, não consegue acreditar que um homem seja capaz de a amar. E... insegura, e é por isso que é muitas vezes tão abrasiva. Não quer que ninguém perceba a sua vulnerabilidade.

- Isso leva-nos de volta a...

- Se forem contratos separados, e alguém contratou o Monk para matar a Carrie e me matar a mim, então...

- Então o quê?

- Sei quem ele é.

 

                                           CAPÍTULO 11

A primeira hora foi um pesadelo, depois piorou.

A maluca da mulher quase as fizera ir desta para melhor. A mão de Anne estava já na maçaneta da porta quando Carrie a deitou ao chão. Era tão magra que tombou com estrondo, e Carrie aterrou em cima dela. Gritavam as duas. Carrie não conseguiu fazer com que a mulher desse ouvidos à razão. Contorcendo-se, Anne tentou arrancar os olhos de Carrie com as suas unhas compridas de silicone. Pôs-se de joelhos e quase conseguiu libertar-se de Carrie quando Sara a agarrou pelos tornozelos e a arrastou para longe da porta.

Embora Anne parecesse magra e frágil, a raiva dera-lhe uma força quase sobre-humana, mas, por sorte, esta esgotara-se rapidamente. Ofegando, Carrie manteve a mulher presa ao chão sentando-se em cima das costas dela. Exerceu pressão na base do pescoço, não a deixando levantar a cabeça.

- Veja se encontra qualquer coisa com que a possamos amarrar! - gritou Carrie a Sara para conseguir fazer-se ouvir acima dos guinchos de Anne.

Dez minutos mais tarde, Anne encontrava-se sentada à mesa redonda da cozinha. Tinha os pulsos amarrados aos braços da cadeira com dois fios de telefone.

- Como ousam tratar-me desta forma! Não vão safar-se. Esperem só para ver. Vou fazer queixa de vocês.

Carrie, extenuada, deixou-se cair na cadeira ao lado da de Anne. Encostou a testa à mão, o cotovelo assente na mesa.

- Como é que tenciona fazer isso, Anne? - perguntou ela calmamente.

- Sua cabra! Vou chamar a polícia.

- Faça o favor. Use o telefone. Oh, espere. Não pode, porque o telefone foi desligado.

- Está a mentir.

Carrie virou-se para Sara, que estava encostada à bancada, a observá-las.

- Ela estará noutro planeta? Acho que enlouqueceu.

- Talvez - admitiu Sara. - O choque às vezes torna as pessoas... irracionais.

- O que iremos nós fazer? - murmurou Carrie.

Sara puxou uma cadeira e sentou-se de frente para Anne. Uniu as mãos em cima da mesa.

- Anne, não dá para continuar a fingir que está tudo bem. Estamos em apuros e precisamos da sua ajuda.

- Deixe-me em paz, sua porca gorda - foi a resposta imediata de Anne.

- Que lindo... - murmurou Carrie.

- Cabra! - gritou Anne.

- Se continuar aos berros, Anne, vou ter de a amordaçar avisou Sara. - Vai acalmar-se?

O olhar de Anne tornou-se ainda mais assassino.

- Anne, onde está a carta que lhe foi deixada? - Quando Anne lhe virou a cara, Sara continuou: - Agora decidiu ficar em silêncio?

- Não seria uma bênção? - brincou Carrie.

Sara encostou-se para trás e ajeitou o roupão de seda sobre a camisa de dormir.

- Sabe, Anne, se não recebeu uma carta...

- Não recebi - interrompeu Anne.

- Então pode ser uma vítima inocente que foi apanhada neste nosso... dilema.

Dilema? Carrie estava prestes a protestar com a escolha de palavras de Sara. Por favor, estavam sentadas em cima de uma bomba! Porém, o seu olhar cruzou-se com o da juíza e decidiu manter-se em silêncio quando ela abanou rapidamente a cabeça.

- Está a ver, Anne - prosseguiu Sara num tom calmo -, como juíza, mandei prender vários criminosos cruéis ao longo

dos anos. Era conhecida por dar penas pesadas, mas, em todos estes casos, os homens e as mulheres que julguei eram criminosos com longas carreiras. Não estou nada arrependida.

Anne olhou finalmente para Sara com uma expressão de desdém.

- Porque está a contar-me isso?

- Porque é importante. Já recebi várias ameaças de morte, mas nunca me preocupei seriamente com elas.

Foi à sala buscar as cartas que ela e Carrie tinham recebido. Regressou à mesa e leu a Anne a carta que recebera. Quando terminou, mostrou-lhe a folha para a outra ver que ela dissera a verdade.

- E acha que um desses criminosos está a cumprir a ameaça?

- Sim, é exactamente isso que acho. Ou é um ex-recluso ou alguém ainda preso que arranjou ajuda cá fora.

- Onde iria um ex-recluso ou um recluso arranjar dinheiro para contratar um assassino?

- Que interessa isso? - interveio Carrie.

- Não estou a falar consigo, sua cabra - sibilou Anne. Sara levantou a mão a pedir silêncio. Não queria que o temperamento de Carrie desse origem a outra birra.

- É uma pergunta válida. Não sei onde ele arranjou o dinheiro. Talvez um familiar tenha recebido uma herança, ou...

- Talvez você tenha mandado prender um homem inocente e esses familiares o saibam.

- Sim, talvez seja isso.

Carrie começava a impacientar-se e só a custo não interrompia. Queria dizer às duas mulheres que naquele momento precisavam de descobrir uma maneira de sair daquela casa, e depois, assim que estivessem a salvo, poderiam especular sobre o quem o como e o porquê.

- A carta da Carrie não era como a minha - disse Sara. Estava assinada.

Anne pareceu intrigada.

- Então ele queria que você soubesse o quanto a odeia antes de morrer?

- ”Ele” não, ”ela” - corrigiu Sara.

Carrie assentiu. Anne continuava a não olhar para ela, mas Carrie não se importava.

- A minha carta foi escrita pela minha irmã Jilly.

A notícia chocou tanto Anne que esta foi incapaz de continuar a ignorá-la.

A carne da sua carne quer vê-la morta?

- Sim.

- Que tipo de família é a sua? - perguntou Anne, estarrecida.

Carrie manteve a calma.

- Disfuncional, Anne. A minha família é muito disfuncional. A minha irmã é louca.

- Céus! - exclamou Anne. - Espere lá. Está a mentir? Quero dizer, se a sua irmã é realmente louca, porque não foi internada?

- Disseram-me há muitos anos que a Jilly morreu num acidente de viação. A agência funerária quis enviar-me as cinzas dela. Parece que a Jilly era muito mais esperta do que eu julgava. Aguardou e planeou todos estes anos a sua vingança contra mim.

- Porquê? O que é que você lhe fez?

- Ela acha que lhe roubei a filha.

- E roubou?

- Não, a Jilly abandonou-a quando ela era bebé. A minha mãe e eu criámo-la.

- E a sua irmã nunca voltou?

- Oh, sim, quando a Avery tinha cinco anos, a Jilly voltou com o patife de um namorado chamado Dale Skarrett. Achou que poderia entrar por ali adentro e levar a Avery. Já conseguira extorquir dinheiro da minha mãe. É verdade - disse ela, quando Anne fez um ar assombrado. - A minha mãe teve de pagar para ficar com a Avery. Eu estava em casa quando eles apareceram, e enquanto tentava expulsar a Jilly lá de casa, a minha mãe chamou a polícia. Quando Dale Skarrett ouviu as sirenes, pegou na Jilly e pôs-se a milhas. Eu mudei-me para a Califórnia na manhã seguinte. Enquanto me esforçava por construir a minha carreira, a minha mãe tomava conta da Avery. Depois, quando a Avery tinha onze anos, a Jilly mandou o Skarrett raptá-la. A Avery não se mostrou disposta a ir em silêncio. Lutou com unhas e dentes e ele deu-lhe uma tareia tal com o cinto que a deixou às Portas da morte. Era tão pequenina... e indefesa! Acho que me Considerava mais ou menos mãe dela, mas quando ela precisou de mim, eu não estava presente para a proteger, como uma mãe deve fazer.

- E a sua mãe? Porque não fez nada? Carrie baixou os olhos.

- O chefe da polícia era amigo dela, dera-lhe uma arma e ensinara-a a usá-la. A minha mãe estava no quintal e só ouviu os gritos quando entrou em casa. Já estava um bocadinho surda acrescentou. - Por aquilo que a polícia conseguiu apurar, a minha mãe tentou matar o Skarrett. Deve tê-lo avisado, porque ele agarrou na Avery quando ela disparou. A bala acertou na minha sobrinha.

As palavras saíram num tom monocórdico, mas havia lágrimas nos olhos de Carrie.

- Deixei uma mulher de idade a tomar conta da minha sobrinha, sabendo que a Jilly andava à solta.

- Mas com certeza não podia ter adivinhado...

- Oh, eu sabia do que a Jilly era capaz!

- O que aconteceu à sua mãe? - perguntou Sara.

- Teve um ataque cardíaco. Estava morta quando a polícia chegou lá a casa, e a Avery moribunda. Apanhei um avião de Los Angeles para Jacksonville. Quando lá cheguei, a Avery já tinha sido operada e estava nos cuidados intensivos. A primeira coisa que o médico me disse foi que ela recuperaria, mas não me deu tempo para comemorar, porque disse que ela nunca poderia vir a ter filhos. Fizera uma histerectomia aos onze anos. Deve ter batido o recorde - murmurou com amargura.

Sara pareceu sobressaltada, e Carrie julgou que ela estava a reagir ao relato daquela história terrível.

- Pobre criança - disse Anne. Parecia estar verdadeiramente compadecida.

- Lembro-me dela - sussurrou Sara.

- O quê? - perguntou Carrie quase num grito. Sara assentiu.

- Os nomes... foram tantos ao longo dos anos; não é possível lembrar-me de todos. E só me recordei da Avery quando você falou da histerectomia aos onze anos. Nunca me esquecerei da leitura das transcrições do julgamento.

- Não compreendo - disse Carrie. - Porque haveria de ler as transcrições? Hamilton foi o juiz do julgamento.

- Sim, mas o Hamilton morreu antes da data da leitura da sentença. Teve um enfarte e o caso foi-me entregue. Fui eu que condenei o Skarrett, e ele tem todos os motivos para me querer morta. Dei-lhe perpétua.

Abismada, Carrie encostou-se à cadeira.

- Então sempre há uma ligação entre nós as duas. O Dale Skarrett... e ajilly.

- A Jilly nunca foi acusada, pois não? - perguntou Sara.

- Não havia provas suficientes contra ela. Além disso, tinha desaparecido - explicou. - Foi o depoimento da Avery que ajudou a condenar o Skarrett por homicídio involuntário. Algumas semanas depois da leitura da sentença, recebi o telefonema de uma agência funerária em Key West, a perguntar-me o que queria eu fazer às cinzas de Jilly. Foi assim que soube que ela estava morta.

- Só que ela não está morta - observou Anne.

- Pois não. Vi-a em carne e osso ontem à noite. Não envelheceu muito. Continua linda... e completamente louca.

Sara tirou uma chávena e um pires do armário da cozinha.

- Eu sempre quis ter uma filha, mas o meu marido não queria filhos. Convenceu-me de que isso estragaria o nosso estilo de vida - disse Anne.

- Como era o vosso estilo de vida? - perguntou Sara, enquanto servia o café.

- Trabalho, só trabalho. Sentia-me culpada disso - confessou. - Por isso cedi ao meu marido em todas as pequenas coisas.

Acharia Anne que os filhos eram uma ”pequena coisa”?, perguntou Carrie a si própria.

- Estou a ver - disse ela.

- O Eric é dez anos mais novo que eu - continuou Anne.

- Mas a idade nunca lhe interessou. Ele ama-me muito.

- Tenho a certeza que sim.

- Tomou conta das operações. Sabem, da gestão da empresa, e ele é muito inteligente. Conseguiu um seguro para a frota que é menos de metade do outro que estávamos a pagar.

Carrie não percebia por que motivo Anne queria falar daquilo naquele momento. Sara soltou o braço esquerdo de Anne e colocou a chávena de café à frente dela.

- Não há leite - disse. - Mas encontrei açúcar, se quiser.

- Não, obrigada.

Carrie já estava farta daqueles disparates. As outras pareciam estar num salão de chá.

- Que diabo vamos fazer?

- Tentar sair daqui - respondeu Sara. - Somos três mulheres inteligentes. Devemos conseguir pensar em alguma coisa.

Anne não parecia minimamente interessada naquele assunto.

- Sara? O que queria dizer quando observou que eu podia ser uma vítima inocente?

Sara tornou a encher a sua chávena e sentou-se.

- Se não tinha nenhuma carta em cima da mesa-de-cabeceira...

- Não tinha - asseverou Anne rapidamente.

- Então acho que sei o que aconteceu. O seu avião aterrou uns minutos antes do meu, lembra-se?

- Sim.

- E não nos disse que estava irritada por o motorista do spa estar à minha espera junto à porta de desembarque, e não haver ninguém à sua espera? No carro disse-nos que se não tivesse visto o homem com um cartaz do Utopia teria de ter ido buscar as suas malas sozinha e de arranjar um táxi.

Anne assentiu.

- Sim, lembro-me perfeitamente, e estava furiosa. Ainda vou reclamar junto da gerência. Devia estar um motorista à minha espera na minha porta.

- Por isso - prosseguiu Sara como se Anne não tivesse divagado -, talvez você não devesse estar aqui. No entanto, vai morrer à mesma quando esta casa for pelos ares.

- Mas porquê? Eu não fiz nada de mal!

- E nós, fizemos? - perguntou Carrie. Anne encolheu os ombros.

- Responda - exigiu Carrie. - Acha mesmo que merecemos morrer desta maneira?

- Não sei. Deve ter feito alguma coisa terrível para enfurecer a sua irmã, e Sara, você deve ter mandado um inocente para a prisão.

Carrie julgara que Anne iria começar a ser razoável, mas os seus comentários indicavam que não.

- Continuo sem compreender porque é que ele me trouxe para cá - disse ela.

Porque você viu a cara dele - respondeu Carrie. - Como é que conseguiu dirigir uma empresa? Faz tantas perguntas estúpidas!

- Não gosto de si. - Anne bebeu um gole de café depois de fazer aquele comentário infantil.

- Estou-me nas tintas se gosta de mim ou não.

- Minhas senhoras, isto não nos leva a lado nenhum - interrompeu Sara. - Anne, o assassino não podia deixá-la para trás. Você já tinha falado comigo e, se tivesse ido para o spa, ter-se-ia queixado à gerência, e isso teria feito soar o alarme... uma vez que eles sabiam que não tinham mandado um motorista ao aeroporto.

- Também podia ter dado à polícia uma descrição do homem. Ele corria demasiados riscos se a deixasse para trás - explicou Carrie. - E você podia ter dito à polícia para onde é que ele nos ia levar - acrescentou.

- Oh, tenho a certeza de que ele mentiu em relação ao destino. Mentiu acerca de tudo o resto, não foi? - perguntou Sara.

- Não, ele não mentiu acerca disso.

Tanto Carrie como Sara franziram o sobrolho.

- Como é que sabe? - indagou Carrie.

- Porque vi a placa. Era uma placa de metal escurecido no meio do portão de ferro. O motorista carregou no botão do comando à distância e li a placa enquanto o portão se abria. Terra Entre os Lagos. Por isso não mentiu acerca disso.

- Foi muito observador da sua parte - disse Sara.

- Mas de nada nos serve - respondeu Anne. - Não podemos contar a ninguém.

A cabeça de Carrie levantou-se de repente.

- Oh, céus, eu contei.

- O que é que disse?

- Liguei à minha sobrinha do aeroporto. Estava na casa de banho, e lembrei-me que tinha o telemóvel no bolso do casaco, Por isso liguei-lhe. Atendeu o voice mail, e deixei recado a dizer onde iríamos passar a noite. Que idiota sou! Fartei-me de falar sobre os hóspedes famosos que já aqui tinham ficado. O Monk... Se é que esse é o seu verdadeiro nome... deve ter feito alguma Pesquisa. - Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. - Foi por

isso que me contou aquelas histórias estúpidas sobre as estrelas de cinema. Sabia que eu iria ficar impressionada. Sou mesmo tola.

- Ele manipulou-nos a todas - interveio Sara. - Disse à sua sobrinha o nome da propriedade?

- Sim - respondeu Carrie. - Não sei se ela recebeu a mensagem porque talvez já tivesse partido para o aeroporto. E se ele estava à espera dela? - Soluçou.

Sara estendeu o braço por sobre a mesa e deu-lhe uma palmadinha na mão.

- Se ele estivesse à espera dela, tê-la-ia trazido para cá, não acha? Talvez seja disso que está à espera - acrescentou. - Talvez seja por isso que eles ainda não...

- Ainda não o quê? - perguntou Anne.

- Ainda não nos mataram - respondeu Sara abruptamente.

- Mas disse que eles deixaram comida na despensa e no congelador, por isso é evidente que nos querem manter vivas mais algum tempo - redarguiu Anne.

Sara discordou.

- A comida... isso é que é tão alarmante. Não acham assustador não terem esvaziado os armários?

Carrie não encarara as coisas dessa maneira, mas agora concordava com Sara.

- Acho que isso significa que vão rebentar com a casa em breve. Não nos vão deixar ficar aqui até termos comido tudo. Também não cortaram a água - observou. - Temos de sair daqui. - Escondeu o rosto nas mãos. - Tenho de contactar a Avery. Se aquele monstro a apanha...

- Concentre-se em descobrir uma saída, Carrie, para podermos ajudar a sua sobrinha.

Anne endireitou-se na cadeira e assentiu.

- Enquanto ambas concordarem que sou inocente, ajudarei e não farei nenhuma loucura, como abrir uma porta. Prometo, mas têm de dizê-lo.

Carrie levantou a cabeça.

- Dizer o quê?

- Que eu sou inocente.

Claro que estava a sugerir que Sara e Carrie não eram. Aquela atitude era escandalosa, mas Carrie apercebeu-se do aceno de cabeça de Sara e decidiu que tinham de alinhar com Anne se queriam que ela colaborasse.

- Sim, você é inocente - concordou.

Depois de Sara ter dito o mesmo, Anne virou-se para Carrie.

- Deve tentar fazer as pazes com a sua irmã, corrigir o mal que fez.

Oh, como Carrie odiava a mulher. Conteve-se enquanto Anne continuava a pregar.

- A família é o mais importante na nossa vida. Aprendi há pouco essa verdade. Poder contar com alguém... como o meu marido, quando os tempos são difíceis... isso é muito importante. Tenho muita sorte - continuou. - O meu marido adora-me.

Parecia muito animada quando se virou para Sara.

- Ele dará o alarme! O meu marido liga-me todos os dias. Nunca falhou. Eu disse-lhe para não se maçar enquanto eu estivesse no spa, porque ia fazer aqueles tratamentos todos, e seria difícil ele conseguir apanhar-me, mas ele não me deu ouvidos. Disse que não conseguiria dormir à noite se não falasse comigo. Estão a ver? Se não encontrarmos uma saída, o meu marido porá a polícia a passar o Colorado a pente fino à minha procura.

- Estamos ansiosas por que isso aconteça - objectou Carrie.

Sara abanou a cabeça, censurando-a pelo comentário.

- Parece que tem um casamento muito feliz - disse a Anne.

- Sim, tenho. Somos imensamente felizes. E ele virá à minha procura - acrescentou em tom de desafio.

- Sim, com certeza - aplacou Sara. - Mas talvez não tenhamos tempo para esperar que a polícia nos encontre. O Colorado é um estado muito grande.

Anne assentiu.

- Sim, tem razão. Temos de fazer qualquer coisa. Muito bem - disse, desatando os fios que lhe prendiam o braço direito. - O que posso eu fazer? Não sei se serei de grande ajuda porque acabei de sair de um longo período de convalescença. Perdi peso e ainda não recuperei as minhas forças. No entanto, sou uma excelente cozinheira. Podia fazer qualquer coisa para comermos.

- Seria óptimo - disse Sara. - Muito obrigada, Anne. Carrie não estava assim tão certa. Talvez Anne tivesse recuPerado o juízo. Talvez estivesse só a manipulá-las. Não podia confiar nela. Carrie decidiu que ou ela ou Sara tinham de estar sempre de olho na mulher.

- Alguém tem fome? - perguntou Anne pondo-se de pé.

- Eu tenho - respondeu Sara.

Desta vez, Anne não aproveitou para fazer um comentário sarcástico sobre o excesso de peso de Sara. Aliás, pediu desculpa pelo que dissera antes, e pareceu realmente sincera.

- Nunca devia ter-lhe chamado porca gorda. Estava muito perturbada, mas isso não serve de desculpa por tê-la ofendido.

- Sara, porque não fica aqui a fazer companhia à Anne enquanto eu vou revistar a casa outra vez? - sugeriu Carrie. Começo lá em cima e depois vou descendo. Deve ter-nos escapado qualquer coisa.

Começava a sentir-se optimista quando subiu as escadas a correr. Vestiu as calças de fato de treino de marca e tornou a inspeccionar todas as aberturas. Havia uma janela muito pequena no canto do seu quarto. Carrie levou bastante tempo a encostar a cómoda à parede, e subiu para cima dela; no entanto, não era suficientemente alta. Correu até lá abaixo para ir buscar uma das cadeiras da sala de jantar. Reparou que Sara estava de pé em cima de uma cadeira junto às janelas. Tinha na mão um batom e escrevia ”Socorro” no vidro.

Carrie deteve-a.

- Se o Monk, ou lá como é que ele se chama, pôs um detonador lá fora... - Não precisou de terminar.

- A casa explodirá quando chegar a ajuda.

- É uma possibilidade - disse Carrie, pegando na cadeira e começando a subir as escadas.

- Eu paro já - gritou Sara. Desceu da cadeira e foi buscar uma toalha para limpar as letras que tinha desenhado.

- Já pensaram em cortar o vidro? - ouviu Carrie Anne perguntar enquanto ia subindo.

Os braços de Carrie doíam devido ao esforço de colocar a cadeira em cima da cómoda. Foram precisas três tentativas, e ela ofegava imenso porque estava em baixo de forma. Caiu ao tentar subir para a cadeira, mas felizmente caiu na cama. Encostou a cadeira à parede e tentou de novo. Quando finalmente conseguiu chegar à janela, rompeu em lágrimas. O filho-da-mãe também a armadilhara.

Ela não iria desistir, por muito que a situação parecesse desesperada. Talvez a sugestão de Anne funcionasse. Talvez conseguissem cortar o vidro sem tocar nos fios. Limpando as lágrimas, raspou com o diamante do anel no vidro da porta de correr. Parou quinze minutos depois. Só conseguira fazer um pequeno risco no vidro.

Carrie desceu até ao piso inferior e passou em revista o quarto de Anne e depois o de Sara. Passou horas a tentar uma coisa e depois outra, até que desistiu. Desperdiçara a tarde e parte da noite com o impossível.

 

                                               CAPÍTULO 12

Jilly contornou o banco de pedra dentro da gruta virada para a piscina. Deteve-se para observar um instrutor vestido com roupas de tai chi brancas a ensinar aqueles antigos movimentos aos alunos. O instrutor era bastante gracioso, mas os alunos eram novatos, com movimentos rígidos e desajeitados.

Continuou até ao local onde Monk estacionara o jipe Mercedes. Por todo o lado havia flores. Até no parque de estacionamento. Utopia era encantador, e talvez depois de aquele assunto estar concluído ela ali fosse passar uma semana.

O telemóvel tocou quando ela se sentou ao volante do carro novo. Estivera à espera que Monk lhe ligasse e atendeu ao primeiro toque.

- Olá, querido.

Monk sorriu. Adorava a voz grave dela e a forma como sussurrara o termo.

- Ela já chegou? - perguntou ele.

- Sim, acabei de a mandar embora e vou sair. Apanho o atalho que descobriste para mim e chegarei quarenta minutos antes dela.

- Gostaste de falar com a tua filha?

- Oh, foi óptimo - respondeu Jilly. - Ela está com medo. Obrigada, querido, por me deixares fazer isto. No entanto, há um pequeno problema.

- Sim?

- A Avery não estava sozinha.

- O quê?! - exclamou Monk. - Quem ia com ela?

- Um homem - respondeu Jilly. Segurando o telemóvel

com o ombro, ligou o jipe e saiu do parque de estacionamento. Sem dúvida o namorado. Tive de o incluir no programa porque ele sabe que a Carrie desapareceu. Foi ao gabinete do gerente com a Carrie. Fiz bem?

Monk sabia que ela precisava de ser tranquilizada.

- Sim, claro que fizeste bem. Apanhaste por acaso o nome dele? Sabes alguma coisa a seu respeito?

- Não - respondeu ela. - Pensei em perguntar a um funcionário ou ao gerente, mas decidi esperar e falar primeiro contigo. Queres que volte para trás e tente descobrir quem ele é?

- Não, não faças isso. Só chamarias a atenção. És tão bonita que ninguém iria esquecer-se de ti... e és muito parecida com a Avery. Vou descobrir quem ele é.

- Muito bem. Estás preparado para os dois?

- O plano alterou-se.

- Ai sim?

- A loja junto ao rio está aberta e o movimento, lamento dizer-te, é imenso. Desde manhã que tem mais gente que uma loja de conveniência.

- Como é possível? Tu verificaste! O dono foi ferido por um urso e só sai do hospital daqui a uma semana. Tu verificaste! - repetiu.

Estava a ficar perturbada. Monk apressou-se a tranquilizá-la.

- Vai correr tudo bem.

- Mas como é que a loja está aberta? - insistiu ela.

- O primo do dono abriu a loja esta manhã. O homem deve ter-lhe pedido que viesse do Arcansas para o ajudar. Não interessa - salientou. - Passamos para o plano B. Lembras-te, eu disse-te que tinha sempre um plano de contingência.

- Sim, lembro-me - respondeu ela, aliviada. - És tão inteligente, querido.

O menor elogio fazia-o querer agradar-lhe ainda mais. - Espera - disse ela num tom insistente. - O embrulho com o lenço da Carrie. Ainda está em cima do balcão?

- Não, mas isso agora não interessa - respondeu Monk. Pensara muito no assunto. O plano original era atrair Avery até a igreja, colocando um envelope grande com o nome dela em cima do balcão junto à janela, para que ela o visse quando olhasse la para dentro. Tentaria logo arrombar a porta. Monk estaria à espera dela, e, depois de a ter morto, enterraria o corpo na floresta, cem metros atrás da loja. Até já abrira a cova. O buraco era suficientemente grande para acomodar também o namorado, achava ele, mas agora que a loja estava aberta e havia sempre clientes a entrar e a sair, Monk sabia que não os poderia matar ali. - Tens a carteira da Carrie contigo?

- Sim, na minha mala.

- Óptimo - disse ele. - Então iremos usá-la.

- Sempre vou ajudar? Tu prometeste...

Como poderia dizer-lhe que não? Teria sido tão mais fácil se ela tivesse concordado em ficar no spa, deixando-o fazer o seu trabalho. Jilly complicava-lhe a vida, fazia-o atrapalhar-se para ter tudo pronto como ela queria, mas era um prazer tão grande estar com ela que ele não se importava. Tentara convencê-la a fazer explodir a casa na noite anterior, mas ela nem quis ouvir falar de tal. Queria que a irmã acordasse, soubesse quem iria matá-la e porquê.

Não agradara a Monk deixar as mulheres, mas não podia estar em dois sítios ao mesmo tempo, e a chegada inesperada de Avery apanhara-o desprevenido. Não permitiria que Jilly percebesse como aquelas mudanças de última hora o tinham incomodado, mas agora que recapitulara tudo, sentia-se de novo com o controlo da situação. Desejava ter tido mais tempo para estudar o plano, mas tal não fora possível.

- Ouviste, querido? Eu sempre vou ajudar, não vou? Ele afastou da mente as preocupações.

- Sim, claro que vais ajudar. Gostavas de voltar a falar com a Avery?

Ela riu-se.

- Oh, adorava. Vou já ter contigo. Estou naquela estradinha que descobriste. Não falta muito. Quando aí chegar, tens de me dizer exactamente o que queres que eu lhe diga. Não quero estragar tudo outra vez como na Virgínia, quando roubei o carro daquela velhota.

- Não fales nisso agora. Não te preocupes mais. São águas passadas. Além disso, és uma novata - disse ele com uma gargalhada. - É natural que cometas erros.

- Só queria agradar-te, e achei que, se conseguisse imobilizá-la, te facilitaria o trabalho. Poderias ter arrombado a porta do apartamento dela e tê-la morto lá. Podias ter feito com que parecesse um assalto.

Já tinham falado daquele assunto pelo menos umas dez vezes, e de cada uma delas ele tranquilizava-a, dizendo que lhe perdoara. Jilly nunca deveria ter tentado atropelar Avery com aquele carro, não só por causa do perigo que ela própria correra, mas também porque poderia ter morto a rapariga. Jilly sentira-se tão orgulhosa da sua investigação. Vigiara o prédio, descobrira o velho Cadillac empoeirado da velhota que nunca o conduzia, e fora muito habilidosa ao entrar no apartamento e roubado a chave. E também se divertira, porque se disfarçara de mulher polícia a recolher dinheiro para o fundo das viúvas.

Mesmo assim, Jilly não planificara bem as coisas. Quando ele observara que se ela tivesse matado Avery, Carrie teria desmarcado as férias, Jilly ficara mortificada. Agora perguntava-lhe sempre primeiro antes de agir, para não fazer nada precipitado. Ele gostava da admiração que ela tinha por ele, da sua confiança nas suas capacidades,

- Encontramo-nos no local combinado. Agora, quero que faças o seguinte - começou ele.

Ela ouviu, ficando cada vez mais animada com os pormenores.

- É perfeito, querido - disse Jilly com uma gargalhada quando ele terminou. - Absolutamente perfeito.

 

                                                 CAPÍTULO 13

- Chama-se Dale Skarrett - disse Avery -, e está preso.

- Onde? - perguntou John Paul.

- Na Florida - respondeu ela. - Há uns anos foi a uma audiência para obter liberdade condicional, e a Carrie eu estivemos presentes. Falámos perante a comissão, e eles ouviram o que tínhamos para dizer. Foi por nossa causa que ele não saiu.

- Então tem óptimos motivos para vos querer ver mortas.

- Sim.

- O que fez ele?

Ela detestava recordar aqueles acontecimentos. Voltariam a abrir as feridas.

- Conto-lhe mais tarde - respondeu Avery, tentando ganhar tempo.

- O que fez ele? - repetiu John Paul muito calmo. Ela olhou para a janela.

- Matou a minha avó. - Olhou para o relógio. - Temos vinte e três minutos para chegar ao local misterioso. O que devemos esperar?

Ele percebeu que ela tentava fazê-lo concentrar-se no problema imediato para não lhe fazer muitas perguntas. Acabaria por lhe dizer o que ele quisesse e precisasse de saber para poder sair vivo daquela situação, mas naquele momento não insistiu para que ela lhe contasse os pormenores. Como Avery dissera, dispunham apenas de vinte e três minutos.

- Qualquer coisa que pareça estranha.

Ainda continuavam a subir a montanha. Avery já perdera o sentido de orientação, mas, felizmente, John Paul não.

A luz do Sol voltara a entrar pelo meio dos ramos, e a zona já não tinha tanta vegetação. Avery julgou que estivessem a aproximar-se de uma clareira, ou do cume. Não se transformariam então em alvos?

- Vamos ter hemorragias nasais se continuarmos a subir. Está com frio? - perguntou ela.

- Não.

Ele sabia que ela estava. Vira-a esfregar os braços uns minutos antes. Ligou o aquecimento do carro. Avery ajustou imediatamente as saídas de ar, de modo a que lhe apontassem para os braços.

- O que acha que ela queria dizer?

- O quê?

- A mulher, quando disse ”bum!”. Estou sempre a imaginar aquelas mulheres amarradas a cadeiras com explosivos.

- Talvez - disse ele. - Ou talvez estejam dentro de alguma coisa armadilhada.

- Nesta zona há grutas e velhos poços, não há?

- Sim, centenas.

Avery tornou a olhar para o relógio.

- Vinte e um minutos.

- Eu sei que horas são - observou ele.

- Não consegue ir mais depressa?

- Quer você levar o carro?

- Não - respondeu ela. Percebeu que estava a dirigir a sua frustração e medo para a pessoa errada. - Desculpe, não queria criticá-lo. Sei que está a fazer o melhor que pode.

Ocorreu-lhe então que sabia pouca coisa acerca do homem em cujo carro tivera tanta pressa de entrar. Não, isso não era verdade. Sabia o suficiente para confiar nas suas capacidades. Ele provara ser um militar capaz. Avery só esperava que as coisas que ele aprendera pudessem ser postas em prática, se ele ainda as recordasse.

Decidiu descobrir.

- Você era bom no que fazia antes de ser exonerado? A pergunta surpreendeu-o.

- Do que está a falar?

- Você foi militar.

- Como é que descobriu isso?

- Uma amiga minha fez uma investigação a seu respeito no computador.

Ficou à espera de uma reacção. Já preparara uma boa razão para ter invadido a sua vida privada, caso ele perguntasse. No entanto, ele não perguntou nada. Aliás, ficou em silêncio durante algum tempo.

- Quando é que fez isso?

- Investiguei? Quando estava no gabinete do Cannon no spa. Você tinha ido à procura dele.

- Investigou-me. - Parecia ter dificuldade em acreditar nela.

- Sim.

O olhar que ele lhe lançou podia ter-lhe queimado o rosto.

- Onde é que esta sua amiga trabalha?

- Quântico.

Oh, diabo. Ele não gostou nada de saber isso.

- Filha da...

- Você foi fuzileiro.

Viu-o respirar fundo e percebeu que ele tentava controlar-se. Oh, sim, estava zangado; o pescoço dele adquirira uma tonalidade rosada. Mas ela não se importou. Fizera o que tinha de fazer, e ele teria de se aguentar.

Os músculos do maxilar contraíram-se. Céus, como era bem-parecido! Aquele pensamento surgiu-lhe de repente. ”Vá lá, Avery, controla-te!” Tanto quanto sabia, o homem podia estar a pagar pensão de alimentos a oito ex-mulheres. Afastou rapidamente esse pensamento. Não podia haver oito mulheres nos Estados Unidos dispostas a casar com ele. Era impossível.

- Você foi fuzileiro - repetiu ela.

- E depois?

Avery teve de agarrar-se bem quando ele guinou para evitar um tronco. Havia sulcos profundos na estrada de terra provocados por outros carros e camiões que se tinham aventurado por aquela estrada, mas era uma estrada tão isolada, tão... silenciosa que ela se sentiu um pouco enervada. Estava completamente fora do seu elemento. Era uma rapariga da cidade que adormecia ao som das buzinas dos carros e das sirenes. O silêncio parecia-lhe naquele momento quase ensurdecedor.

Enxames de mosquitos vinham embater no pára-brisas. Avery olhou para o relógio e tornou a ver as horas. Faltavam dezassete minutos.

John Paul olhava bastante para Avery. Calculou que ele esperava que ela acabasse o que começara.

- Gostei de saber - declarou.

- Porquê?

- Porque os fuzileiros são bons em combate, e talvez isso seja útil. - Ele não respondeu à observação. - Também descobri que você foi recrutado para operações...

Ele não a deixou acabar.

- Olhe, eu sei o que fui. Não é preciso falar nisso.

Bolas. Esperara que ele acabasse de lhe contar o resto da história e lhe dissesse o que ela desconhecia. Teria estado nas operações especiais ou clandestinas? E qual fora exactamente a sua especialidade?

Olhou para o mapa enquanto reunia coragem. Não podia descobrir a menos que perguntasse, pois não?

- Então o que fez exactamente?

- Não sabe?

- A minha amiga não conseguiu aceder ao seu ficheiro.

- Era de esperar.

Lá estava de novo aquele tom desdenhoso.

- Ensinaram-no a ser mal-educado, ou você nasceu assim? Tem um ar alienado...

- Avery, esqueça.

- Não me mete medo.

Os olhos dele semicerraram-se quando a olhou de novo.

- Meto sim.

- Pois...

Ele sorriu apesar do mau humor. Talvez não lhe metesse medo. ”Interessante”, pensou. ”E diferente.”

- Acha que eles os dois estão juntos? O Monk e a mulher que me telefonou?

- Não sei. Se as desaparecidas continuam vivas e ele as amarrou ou as escondeu num sítio isolado, talvez esteja com elas. Está muita coisa a acontecer - disse. - Isto se as mulheres ainda se encontrarem vivas.

- Ele tem de estar de olho nelas. E tem de nos seguir.

- Acho que não está a seguir-nos. Mas sabe onde estamos, não sabe?

Ele quase sorriu.

- Como? - perguntou. Já sabia a resposta, mas tinha curiosidade em saber como é que ela descobrira.

- Há um aparelho qualquer dentro deste relógio.

- Sim. Ele sabe exactamente onde estamos.

Avery estremeceu. O assassino monitorizava o seu avanço.

- Não devíamos livrar-nos disto?

- Não. Acho que devíamos utilizá-lo para nosso proveito. Vamos esperar e vermos o que acontece quando chegarmos perto do X.

Avery pegou no relógio e observou-o atentamente.

- Não tem marcas nem riscos que indiquem que tenha sido aberto.

- O Monk é um profissional. Não iria deixar marcas.

- Então ele percebe muito de transmissores? Compreende essa tecnologia?

- Sim.

- Como é que você sabe tantas coisas acerca dele?

- Li o dossiê dele.

- O do FBI? - Os olhos dela arregalaram-se. - Se você foi exonerado, isso deve ser ilegal.

- Aposto que sim.

- John Paul, assim pode meter-se em apuros.

Parecia preocupada com ele. Era uma rapariga cheia de surpresas, e estava a dar-lhe luta. Se John Paul não tivesse cuidado, ainda acabaria por gostar dela.

- Tenho contactos que me fariam sair mediante caução.

- Como o seu cunhado?

- Como é que sabe do Theo?

- Quando a minha amiga o investigou, falou-me dele.

- Dá jeito ter um familiar a trabalhar no Departamento de Justiça.

- Não gosta do seu cunhado? Que pergunta estranha.

- Claro que gosto. A minha irmã ama-o e são felizes os dois. Porque perguntou isso?

- Porque disse as palavras ”Departamento de Justiça” num tom desdenhoso.

Ele sorriu. Avery era perspicaz.

- Não disse nada.

Ela decidiu não discutir.

- Acha que a mulher que me ligou contratou o Monk?

- Pode ser, mas não me parece. Por aquilo que você me disse dela, ele está a dar-lhe protagonismo. Acho que ela pode ser mais que uma sócia. É estranhíssimo. O Monk nunca esteve com joguinhos antes. Então para quê a caça ao tesouro?

- Não sei.

- Talvez tenhamos alguma sorte se a mulher tomar uma ou outra decisão. Talvez não seja tão perfeccionista como ele.

- Ela conhece-me a mim e à Carrie.

- Porque diz isso?

- Por causa da forma como falou. Disse o nome da Carrie num tom de gozo. Não gosta dela.

- Isso é óbvio.

- O que quer dizer que interagiu com ela.

- E consigo?

- Chamou-me estúpida. Tenho de partir do princípio que também não gosta de mim - murmurou com secura.

- Não me diga...

- Talvez o Skarrett lhe tenha falado de nós. Mas a forma como ela falou... parecia que isto era pessoal.

Avery tornou a pegar no Swatch e colocou-o no suporte para copos. Imaginava uma luz vermelha lá dentro, a pulsar como um coração. A imagem assustou-a.

John Paul era um bom condutor. Ela decidiu deixá-lo concentrar-se na estrada, para não ficar atolado na lama nem furar um pneu numa pedra. Fechando os olhos, inclinou-se para trás e deixou que a sua mente analisasse várias possibilidades. O que estaria a escapar-lhe? Sentia que tinha a resposta daquele quebra-cabeças louco algures na cabeça, mas não conseguia chegar-lhe.

- Quanto tempo falta? - Assim que ela respondeu, ele prosseguiu: - Não sei o que é que vamos encontrar, por isso ouça. Você faz o que eu lhe disser. Se eu lhe disser para se deitar no chão, não discuta. Obedeça. Assim que eu perceber onde é o X vou tentar contorná-lo. Você fica no carro.

- Eu tenho de aparecer. - Não tem, não.

- É maluco? Claro que tenho. A mulher disse que matariam a Carrie e as outras se eu chegasse atrasada. Se não me Mostrar...

- Essa mulher apresentou-lhe alguma prova de que elas estavam vivas? Você pediu alguma?

- Não. Devia tê-lo feito, mas não fiz. A conversa foi breve, e ela não me deixou fazer perguntas.

- Então você devia ter dito que não.

- Dizer-lhe que não alinhava com ela?

- Sim - respondeu ele. - Era isso que eu teria feito. Avery abanou a cabeça.

- Não acredito em si. Mas lamento não ter pedido provas. Devia tê-lo feito.

- Devia, podia... agora é demasiado tarde. Acho que há noventa por cento de hipóteses de irmos deparar com uma armadilha, por isso quero que...

Ela não o deixou terminar.

- Já lhe disse que não me resta alternativa. Tenho de aparecer. Espero conseguir descobrir uma maneira de aplacar aquela louca.

- Aplacar uma louca? Isso é uma contradição, não é?

- Não se arme em... Ele arqueou o sobrolho.

- Em espertinho? Era isso que ia dizer?

- Não.

- Então o que era? Ela pôs-se à defesa.

- Olhe, se quer ir-se embora, por mim está tudo bem. Leve-me até ao X e ponha-se a milhas.

- Não me vou embora.

- Então muito bem - respondeu ela, irritada por parecer tão aliviada. - Sei que há uma boa hipótese de o Monk já ter cavado as nossas sepulturas, mas se acha que vou esconder-me no meio das árvores e esperar que nada de mal aconteça, está louco!

- Só estou a dizer que, se tiver sorte, talvez veja onde ele está e consiga aproximar-me.

- E não quer preocupar-se comigo. Quer obediência cega.

- Exacto.

- Duas cabeças pensam melhor que uma.

- Quanto treino de sobrevivência teve até agora? Boa pergunta.

- Nenhum, mas posso ajudar à mesma.

- Pois...

- Pare com essa atitude, John Paul. Eu posso ajudá-lo. Tenho alguns trunfos na manga.

- Aposto que sim.

- O que quer isso dizer?

- Nada.

Ela estava furiosa. Com tanta gente no mundo, tinha de lhe calhar uma detestável.

- Acha que já sabe tudo a meu respeito, não é?

- Sim - respondeu ele.

Avery concentrou-se na estrada. Felizmente, o Homem da Selva não fez mais comentários sarcásticos. O seu esgar desdenhoso podia ser esculpido.

Avery julgou ouvir algo; abriu rapidamente a janela e esforçou-se por escutar.

- Você ouviu isso?

John Paul desligou o aquecimento do carro, baixou a sua janela também e assentiu. O som de água corrente era ténue, mas ouvia-se.

- Andámos mais do que eu julgava, se já estivermos perto do rio. Talvez seja um afluente. Parece uma queda-de-água.

Chegaram a outra bifurcação. Esta era mais concorrida que as outras. Havia uma placa pregada a uma árvore: ”Loja Típica Ultima Oportunidade. Cerveja e Aluguer de Pirogas.” Sob a placa havia uma seta a apontar para oeste.

A estrada descrevia uma curva descendente. Embateram num sulco e avançaram rapidamente pelo meio das árvores.

- A loja deve ser depois daquela curva lá em baixo - disse ele, aproximando-se das árvores do outro lado. Havia espaço suficiente para fazerem inversão de marcha. Satisfeitos por não serem vistos da estrada, ele parou o carro e desligou o motor.

- Quanto tempo temos?

- Doze minutos. Acha que é ali? - perguntou ela.

- Tem de ser. Dá nas vistas, não dá?

Ele tinha razão. ”Por favor, meu Deus, permite que ele tenha razão.” Conseguia entrever uma pequena casa rústica por entre as árvores. Ficava junto ao rio, e era um local onde as pessoas que viajavam pelo rio podiam parar para comprar mantimentos.

Ele desapertou o cinto, enfiou a mão debaixo do banco e tirou de lá uma SIG Sauer. Quando viu a arma, a boca de Avery abriu-se.

- Vou deixar aqui as chaves - disse ele, ignorando a reacção dela. - Se ouvir disparos, saia daqui. Ouviu?

Ela não queria afastar-se dele, mas julgou que ele discutiria se ela lhe dissesse a verdade, por isso limitou-se a assentir.

- Está carregada? - perguntou ao abrir a porta.

- Claro!

”Que pergunta estúpida!”, pensou ela. Claro que estava carregada.

- Tenha cuidado. - Passou para o banco do condutor.

- Dê-me o relógio.

- Vai levá-lo?

- Acha que vou deixá-lo aqui consigo para que o Monk saiba exactamente onde você está? Dê-mo.

- O que vai fazer?

- Vou caçar.

 

                                         CAPÍTULO 14

O tempo esgotara-se. Avery decidira ir nesse momento atrás de John Paul quando ele abriu a porta. Nem o ouvira aproximar-se.

- O Monk não está por perto. Talvez venha a caminho, mas não está aqui agora.

- Vamos de carro para baixo ou a pé?

- Eu guio.

Ela passou para o banco do passageiro, batendo com o joelho no tabliê. John Paul ligou o motor.

- Como é que sabe que ele não está escondido algures, atrás de uma árvore ou de um arbusto?

- Porque verifiquei. Não encontrei quaisquer vestígios.

- Tê-los-ia visto?

- Claro que sim, se eles lá estivessem.

Ela ficou tranquilizada com a arrogância dele.

- Então está bem.

- Há um atrelado junto à loja, uns trinta metros para sul, e ao lado uma carrinha velha. Não havia ninguém dentro do atrelado.

- Foi lá dentro? Ele não respondeu.

- Na loja havia um homem e uma mulher. Ela estava no ”critério das traseiras ao telefone, e ele ao balcão, na parte da frente. Estava sempre a olhar pela janela, como se esperasse alguém. Enquanto lá estive, apareceu uma carrinha de leite e outro tipo estava a descarregar grades de cerveja. Havia três ou Quatro clientes.

Meteu o carro na estrada e começou a descer o declive. Tinha a arma no regaço.

- Está a ver aquele homem a olhar para nós? - perguntou ela. - À direita da porta.

Viram um jovem casal sair com dois filhos pequenos pela porta, e a seguir o homem fechou a loja.

- Que diabo... - murmurou John Paul quando o homem virou o cartão na porta. - Fechado uma ova!

Estacionou junto à parte lateral da loja, para que Avery estivesse protegida ao descer. Desligou o motor, enfiou as chaves nas calças de ganga, e enquanto contornava o carro ela viu-o enfiar a arma no cós das calças.

Ouviram música rap quando um carro parou no parque de estacionamento. John Paul foi até à esquina e olhou para a parte da frente. Quatro jovens saíram e ficaram de pé junto ao carro a beber as suas cervejas. No tejadilho do velho Chevy havia dois caiaques.

John Paul fez sinal a Avery para que ela não se mexesse e voltou para trás.

- Vou voltar a inspeccionar as traseiras.

Deixou que o homem à janela o visse dirigir-se para o bosque, depois descreveu um círculo, aproximou-se da porta das traseiras e olhou lá para dentro. A mulher continuava à secretária, a falar ao telefone.

Embora fosse demasiado nova, fazia-lhe lembrar Ma Kettle nos filmes antigos que ele costumava ver na televisão em miúdo. Com um fato-macaco sujo e uma camisa de flanela desbotada com as mangas arregaçadas, ia dizendo números para o telefone à medida que virava as páginas de um catálogo da Sharper Image. Não reparou que ele a observava. John Paul recuou quando a porta de vaivém se abriu. Um homem espreitou para a sala e segurou a porta com a mão, para evitar que esta lhe batesse.

- Chrystal, temos um problema - disse ele com um sotaque de campónio. - Estão dois carros lá fora. De um saíram quatro bêbedos. Calculo que queiram vir comprar mais cerveja, mas estou mais preocupado com a rapariga do outro carro. Acho que ela me viu espreitar pela janela, porque o carro dela está parado na parte lateral da loja. Achas que é a tal?

- Importa-se de esperar um momento? - disse Chrystal

para o bocal do telefone. Virou a cadeira giratória e franziu o sobrolho para o homem moreno. - Provavelmente é, mas eu ainda não despachei este catálogo, e tu prometeste-me...

- Talvez não seja ela - interrompeu o homem. - Se calhar precisa só de ir à casa de banho. Havia um tipo corpulento com ela, mas ele dirigiu-se para o bosque, à procura da sua própria casa de banho, espero, como aqueles quatro rapazes bêbedos. Um deles está a urinar em cima das petúnias.

- Não vês que estou ocupada, Kenny? Se aquela rapariga quer usar a nossa casa de banho, fá-la comprar primeiro qualquer coisa, e não a deixes demorar-se. Ainda me faltam umas dez páginas.

- Não sei porque é que não te lembraste de fazer isso mais cedo. Tinhas de esperar até ao último minuto?

John Paul voltou para a entrada e estava no alpendre no momento em que Kenny destrancou a porta.

Avery apareceu a correr da esquina e parou junto dele. Ele empurrou-a para trás de si. Estava a tentar protegê-la e ela não se importou. Tinha tanto medo de não estarem no local certo que não conseguia pensar em mais nada.

- Não vê que estamos fechados? - perguntou o homem. Avery colocou-se ao lado de John Paul.

- É uma emergência.

- Então primeiro tem de comprar qualquer coisa.

- Desculpe?

- Ouviu o que eu disse. Tem de comprar qualquer coisa e só depois de pagar é que a deixo ir à casa de banho.

Kenny rosnava-lhe como um cão de fila. Era um homem de aspecto bastante desagradável, com cabelos de azeviche e sobrancelhas farfalhudas castanhas. Tinha uma camisa aos quadrados enfiada dentro das calças de ganga pretas desbotadas. A barriga pendia-lhe por cima do cinto.

- Ouviu o que eu disse? - perguntou ao ver que ela não respondia. - Não saio daqui até você concordar.

Mudou de ideias quando John Paul deu um passo em frente. Se não se tivesse desviado, Kenny tinha a certeza de que o grandalhão o teria abalroado.

De perto, Kenny era muito mais novo do que John Paul julgara. Era também ágil. Manteve os olhos postos em John Paul e correu para trás do balcão como se aquela barreira pudesse protegê-lo.

Pousando as manápulas no balcão, inclinou-se para Avery e sorriu. Um dos dentes tinha uma capa de ouro que brilhava com o sol que entrava pela janela suja.

- Está bem, menina. Vou dizer-lhe o que vou fazer. Como é muito bonita, vou infringir as regras. Não tem de comprar nada. Nada mesmo. A casa de banho fica além - disse ele, apontando para uma porta no outro canto.

Ela abanou a cabeça.

- Chamo-me Avery Delaney, e este senhor é John Paul Renard. Apareceu aqui alguém à nossa procura?

- Não - respondeu ele, um pouco depressa de mais. Estava a mentir. Os sinais eram evidentes. Não a fitava nos olhos, e ia ficando cada vez mais agitado. Também hostil. Olhava para John Paul enquanto mudava o peso do corpo de um pé para o outro.

A porta bateu na parede quando foi escancarada. Avery e Kenny viraram-se para ver quem iria entrar, mas John Paul manteve os olhos postos em Kenny. Não tencionava confiar naquele patife.

Três dos quatro rapazes tinham entrado e estacaram cambaleantes quando viram Avery. Ela ouviu o quarto rapaz. Estava debruçado no alpendre a vomitar.

- Olá - saudou um deles. Outro tentou assobiar, mas conseguiu apenas cuspir.

Dois dos rapazes eram obviamente irmãos, pois eram parecidos e tinham a tatuagem de uma águia nos antebraços. O mais velho do grupo tinha uma barbicha e um piercing na sobrancelha.

- A loja está fechada - gritou Kenny.

- Não está, não - disse o Barbicha. - Você deixou-os entrar - acrescentou, apontando para Avery e John Paul. - Só queremos cerveja.

- Sim, cerveja - papagueou um dos irmãos.

Cambalearam para a arca frigorífica. Um deles tropeçou numas latas empilhadas e fê-las rolar em todas as direcções. Barbicha achou isso hilariante.

Kenny não estava a achar a menor piada. Parecia ter vontade de matar alguém.

- Vai pegar nessas latas todas e empilhá-las como estavam. Ouviu?

Um dos irmãos deu uma risada, enquanto Barbicha fez um manguito a Kenny.

- Saiam da minha loja! - gritou Kenny. A seguir dirigiu a sua ira para Avery. - Se não querem ir à casa de banho nem comprar nada, é melhor irem-se embora.

- E telefonemas? - perguntou ela, desesperada. - Recebeu algum telefonema para mim.

- Não.

Um dos irmãos estava a cerca de um metro de Avery e olhava-a fixamente, enquanto oscilava. O seu olhar era enervante.

- Pare de olhar para mim.

Ele esboçou um sorriso estúpido, depois lançou-se com os braços estendidos, pretendendo abraçá-la.

John Paul ia afastá-la para o lado, mas ela já estava em acção. Atingiu o bêbedo com um pontapé rápido e sem esforço. O pé atingiu-o em cheio na barriga e empurrou-o contra a parede. Ele embateu nela com um baque, escorregou e aterrou de rabo.

- Fique aí - disse ela, apontando-lhe um dedo.

E o sorriso estúpido continuava no rosto do bêbedo. Ele estava demasiado embriagado para sentir qualquer dor. Avery tornou a concentrar-se em Kenny.

- Posso usar o seu telefone? - Pelo canto do olho viu Barbicha e o outro irmão aproximarem-se. Cada um deles tinha na mão seis latas de cerveja e um saco com gelo. Não se conteve.

- Para além, vocês os dois. Sentem-se ao lado do vosso amigo e fiquem calados até eu terminar.

Barbicha abanou a cabeça.

- Não me podes dar ordens, querida.

- Não temos telefone - murmurou Kenny ao mesmo tempo.

- Claro que têm - asseverou John Paul, dando um passo na direcção de Kenny.

- O que aconteceu, Mark? - perguntou o outro irmão. Barbicha avançou, achando que conseguiria abrir caminho entre Avery e John Paul.

- É a minha vez - disse John Paul antes de mandar o Barbicha de cabeça disparado contra a parede. Deixou cair a cerveja e o gelo em cima de Mark, depois tombou ao seu lado.

Não foi preciso dizer ao terceiro bêbedo para ir fazer companhia aos amigos. Ele cambaleou nessa direcção, pousou a cerveja e sentou-se. Encostando-se à parede, abriu uma lata e bebeu um longo gole.

Kenny percebeu que John Paul estava a olhar para o telefone em cima do balcão.

- O que eu queria dizer é que temos um telefone. Claro que temos, mas não funciona. Não há sinal e são precisas várias semanas para alguém cá vir reparar a avaria. Caso ainda não tenham reparado, estamos no meio de nenhures. - Falava tão depressa que as palavras se encavalitavam umas nas outras.

Kenny percebeu que John Paul não estava a acreditar em nada, por isso virou-se para Avery. O sorriso falso voltara.

- O seu amigo tem algum problema? - Enquanto continuava a sorrir para Avery, estendeu lentamente a mão para debaixo do balcão.

Olhou para baixo e percebeu, tarde de mais, que nunca devia ter desviado os olhos de John Paul. Ouviu um clique e olhou para cima, deparando com o cano da arma de John Paul apontado à sua testa.

- Espere lá! Não há necessidade disso - gaguejou ele.

- John Paul, precisamos da colaboração do homem - disse Avery.

- E é assim que vamos obtê-la. Kenny, vire-se e ponha as mãos na parede atrás de si. Avery, vá buscar a arma debaixo do balcão.

Ela contornou-o e viu de imediato o Magnum na prateleira. Pegou nela devagar e depois abriu-a. Estava carregada. Pô-la em segurança, reparou na caixa de munições e pegou também nela, enfiando-as num saco de plástico com o desenho de um esquilo.

- O que faz você com um Magnum? Tem licença? - perguntou ela a Kenny.

- Não é da sua conta.

A fachada de bom rapaz desvanecera-se. Começava finalmente a aparecer a verdadeira personalidade.

- Posso recusar-me a atender quem quiser - rosnou ele -, e se quiser ter uma arma carregada aqui, então tenho. Posso virar-me agora? Estou a ficar com dores no pescoço. Pode usar o telefone. Estava apenas... com receio de que quisesse fazer uma chamada interurbana, e o meu primo George, o dono desta loja, via a conta e dizia-me: ”Kenny, vais pagar por isto.”

- Onde está o George? - perguntou Avery.

- Foi atacado por uma ursa. Só percebeu que ela estava por perto quando viu uma das crias - respondeu Kenny. - Posso virar-me agora e baixar as mãos? Estou a colaborar e vocês têm a minha arma.

- Sim, pois - respondeu John Paul.

Avery dirigia-se para o telefone quando, pelo canto do olho, viu uma carteira de senhora entre dois talões no caixote do lixo ao lado da caixa registadora. Baixou-se para a apanhar. Depois susteve a respiração. Era uma carteira Prada, preta e nova. As coisas de Carrie eram todas Prada.

Kenny observava John Paul.

- Se tenciona roubar-me, mais vale saber que não tenho muito dinheiro. Talvez duas notas de cem e quarenta dólares em trocos.

- Onde é que arranjou as notas de cem dólares? - perguntou John Paul.

- Um cliente.

- Não viemos aqui para o roubar - disse Avery. Abriu a carteira, viu que estava vazia, e mostrou-a a John Paul. - Acho que isto é da minha tia.

Kenny agarrou-a por trás. Pôs-lhe os braços à volta do tronco e levantou-a, de forma a poder usá-la como escudo. Os seus braços pareciam feitos de aço, mas o peito era macio, quase mole.

- Largue-me! - ordenou ela. - Não tenho tempo para isto.

Kenny tentava esconder-se atrás dela para que John Paul não pudesse fazer-lhe pontaria.

- Só quando o seu amigo pousar a arma.

John Paul ficou admirado por Avery não estar com medo. Quando muito, parecia irritada.

-

Isso não vai acontecer. Avery vai ter de mudar de roupa. O comentário intrigou-a. Parou de se contorcer. - Porquê?

- Porque vai ficar cheia de sangue quando eu rebentar com esse...

- Não - retorquiu ela. - Kenny, sei que esta carteira é da minha tia, e não me importo que tenha ficado com o dinheiro. Mas vai dizer-me onde a arranjou. Agora largue-me.

- Nem pensar - rosnou ele perto do seu ouvido, apertando-a com mais força.

Os dedos dele estavam entrelaçados em torno da cintura dela. Avery pegou num dedo mindinho e puxou-o para trás com força. No mesmo instante, baixou o queixo, depois bateu com a nuca na cara dele. Ouviu um estalido e um grito de dor, e foi largada.

- Ai! - exclamou ela. Bolas, aquilo doía. Afastou-se de Kenny e esfregou a nuca enquanto se dirigia para John Paul. Não era tão fácil como nos filmes, pensou. Lição aprendida.

Reparou na expressão incrédula de John Paul.

- O que foi?

- Nada mau - respondeu ele com um sorriso lento e fácil. Ela revirou os olhos, exasperada, e olhou para Kenny, que se encostara ao balcão.

- Preciso de saber onde arranjou essa carteira.

- Era da minha mulher, Chrystal. Fartou-se dela e pô-la no lixo.

- Pare de mentir. Isto é um assunto de vida ou morte disse ela, num tom já hostil. - Não me interessa que tenha tirado o dinheiro da carteira - repetiu -, mas tenho de saber onde a arranjou.

- Acabei de lhe dizer...

Não iria admitir nada. O pânico inicial de Avery dissipara-se assim que vira a carteira, porque assim sabia que fora ter ao local certo. No entanto, ainda sentia uma pressão no peito, e começava a enfurecer-se com a atitude pouco cooperante do homem.

O nariz de Kenny sangrava. Encostou um lenço de papel ao nariz e olhou para ela de lado.

- Vou processá-la, sua cabra. É isso que vou fazer.

- John Paul, acho que afinal vai ter de lhe dar um tiro. Kenny não pareceu preocupado, até que John Paul perguntou:

- Que tal uma rótula?

Felizmente, Kenny tornou-se crente de um momento para o outro.

- Está bem, está bem - disse. - Quando abrimos esta manhã, eu e a Chriystal encontrámos um envelope com o nome dela. - Apontou para Avery. - Estava em cima do balcão, por isso a Chrystal decidiu abri-lo.

- E? - incitou Avery.

- Era apenas um lenço vermelho. Tinha um cheiro a perfume que não agradou à Chrystal, por isso ela voltou a guardá-lo no envelope e a atirá-lo para o lixo.

- Como é que arranjou a carteira?

- Já lá ia chegar - respondeu ele com ressentimento. Há pouco entrou aqui uma mulher. Deu-me uma nota de cem novinha em folha em troca do envelope com o lenço, e nós aceitámos, claro. Depois ela tirou outro envelope da prateleira. Serviu-se sem pedir licença. Virou-se, para não podermos ver o que fazia, e meteu a carteira lá dentro. Depois de fechar o envelope, escreveu o seu nome e disse-nos que nos daria mais cem dólares se prometêssemos dizer-lhe para ficar aqui até ela lhe telefonar.

- Mas abriu o envelope assim que ela saiu? - perguntou John Paul.

- Não, não foi logo. Mas a Chrystal estava curiosa. Tinha de espreitar, e, quando viu a carteira cheia de dinheiro, serviu-se. Qualquer pessoa teria feito o mesmo.

Avery não perdeu tempo a discutir ética com ele.

- O que disse exactamente a mulher da nota de cem dólares?

- Acabei de lhe dizer.

- Diga outra vez - ordenou John Paul.

- Ela vai ligar-lhe. Foi isso que disse. Que sabia a que horas vocês deviam aparecer na loja, e que deviam esperar até ela telefonar.

- Mas não ia dizer-nos nada disso, pois não? - perguntou John Paul. - Ia mandar-nos embora sem falar na carteira ou na mulher.

Kenny encolheu os ombros.

- Não havia muito dinheiro na carteira. Só algumas notas de vinte.

- Quase que não valia a pena partir o nariz por causa disso, Pois não?

- Olhem, eu devia ter-lhes contado, e lamento não o ter feito - disse Kenny. - Quando a minha mulher desligar o telefone, tenho a certeza de que a outra liga. Só vão ter de esperar.

- Onde está a sua mulher? - perguntou Avery.

- No escritório das traseiras - respondeu John Paul. Agarrou-lhe no braço quando ela se dirigia para lá.

- Sabe usar uma arma?

Ela libertou-se e correu para as traseiras.

- Não vou disparar contra ninguém, John Paul.

- Tenha cuidado.

Avery seguiu o aviso à letra. Quando chegou à porta de vaivém abriu-a devagar e espreitou lá para dentro. Viu uma mulher sentada de costas para a porta. Continuou debruçada com o auscultador encostado ao ouvido enquanto Avery avançou devagar.

- Não, quero cinco. Isso mesmo. Cinco. Agora o número da última coisa é A três, quatro, nove, um. A aparelhagem com os suportes para CDs. Quero oito. Não, ponha antes dez. É isso mesmo. Quer tomar nota do número do meu cartão de crédito? O quê? Oh, o meu nome é Salvetti. Carolyn Salvetti. Vou usar o meu American Express para pagar esta mercadoria, mas quero que a envie para a minha casa do Arcansas.

Avery ficou furiosa. Aproximou-se e arrancou o telefone das mãos da mulher. Chrystal levantou-se de um pulo, empurrando a cadeira contra a parede.

- De onde é que...

Mantendo os olhos postos em Chrystal, Avery falou para o telefone.

- Cancele a encomenda. Ela usou um cartão de crédito roubado.

- Não! - gritou Chrystal quando Avery desligou o telefone. - Não tem o direito de entrar por aqui adentro. Dê-me esse telefone.

- Você e o Kenny vão para a cadeia.

- Espere lá, não fizemos nada de mal.

Os olhos de Chrystal eram demasiado juntos e o seu rosto redondo encontrava-se desfigurado pela ira. Não era bonita, decidiu Avery enquanto a via aproximar-se com ar ameaçador. Os seus olhos castanhos olhavam de um lado para o outro, como os de uma ratazana encurralada a considerar as suas opções.

Não há motivo para chamar a polícia.

A mulher era mais alta que Avery e tinha mais uns trinta quilos. Quando viu um brilho súbito nos olhos dela, Avery soube que ela acabara de perceber que o tamanho lhe dava vantagem.

- Nem pense.

- Isto é propriedade privada! - gritou Chrystal. E atacou.

Avery não precisou de se defender. Limitou-se a dar um passo à esquerda e viu a mulher cair em cima da secretária. O seu precioso catálogo rasgou-se e caiu no chão.

Que falta de jeito!

- Porte-se bem - disse Avery, como uma professora a repreender um aluno. - Agora levante-se e vá para a loja. Depressa! - gritou, vendo que Chrystal não se mexia.

A carta de condução de Carrie e todos os seus cartões de créditos encontravam-se em cima da secretária, excepto o American Express. Viu Chrystal enfiá-lo no bolso.

- Não desiste, pois não? Dê-me o maldito cartão! Chrystal atirou-lho. Avery apanhou-o no ar e indicou com acabeça a porta de vaivém.

Chrystal abriu a porta e avançou. Tentou fazê-la bater na cara de Avery, mas esta parou-a com um pé.

- Mula! - rosnou Chrystal. Depois viu Kenny e descarregou nele a raiva. - Eu disse-te que íamos meter-nos em sarilhos, mas tu não me deste ouvidos.

John Paul meteu a arma atrás, no cós das calças, e olhou para Avery, à espera de uma explicação. Ela aproximou-se dele.

- A Chrystal estava a fazer umas comprinhas com o American Express da minha tia.

- Não estão bem um para o outro?

- Mais uma razão para eu nunca me casar - disse Avery.

- Não vejo necessidade de meter a polícia nisto - murmurou Chrystal.

- Quem é que falou em polícia, Chrystal? - perguntou Kenny. - Porque é que tinhas de os meter nisto?

- Não fui eu, bode velho. Foi a loirinha - acrescentou, apontando para Avery. - E a culpa é toda tua, Kenny. Se alguém for preso, esse alguém és tu. Eu já tenho cadastro. Não te disse que não devias ter-me deixado abrir o envelope? Não te disse? - guinchou como uma galinha furiosa. - Obrigaste-me a fazê-lo.

- Cala a matraca - ordenou Kenny.

Chrystal reparou finalmente no estado do marido. Encontrava-se sentado em cima do balcão, a abanar as pernas para trás e para a frente enquanto apertava um lenço de papel contra o nariz. Também reparou em John Paul.

- Quem é ele? - perguntou. - Porque estás a tirar macacos do nariz?

- Não estou a tirar nada. A rapariga atrás de ti partiu-me a porra do nariz. Vou arranjar um advogado e processá-la.

- Da prisão? - berrou Chrystal. - Paspalhão! Não vais processar ninguém!

John Paul já estava farto do casalinho. Foi até à porta e olhou lá para fora. O adolescente que vomitara estava agora a dormir profundamente no alpendre.

- Parem de discutir - exigiu Avery. Ficou um pouco admirada ao ver que Kenny e Chrystal lhe obedeciam.

- Não é preciso gritar connosco, menina. Não vê que estamos a colaborar?

- Muito bem. Estão a colaborar. Onde está o envelope?

- Aquele onde estava a carteira? - perguntou Chrystal.

- Sim.

- Atirei-o para o caixote do lixo junto às casas de banho. Só lá estava a carteira, mas vou buscá-lo para você ver.

Atravessou calmamente a loja e regressou um minuto mais tarde com o envelope amarelo.

- Veja, está vazio - disse, atirando-o a Avery.

O nariz de Kenny parara de sangrar; ele atirou o lenço de papel para o cesto dos papéis atrás, mas falhou.

- Eu contei-vos tudo o que a rapariga me disse, mas ela fartou-se de conversar com a Chrystal.

- Pois foi. Estava muito conversadora. Disse-me que vocês andavam numa caça ao tesouro. São um pouco velhos para andarem nesse tipo de jogos, não?

Avery sentiu vontade de arrancar o cabelo de frustração. Aquelas pessoas estavam a deixá-la doida.

- Quando ela chegou viram o carro em que vinha? Ficou alguém à espera dela?

- Tinha um belo Mercedes novo - respondeu Kenny. mas não havia ninguém lá dentro.

- Ela disse-vos para onde é que ia mandar-nos?

A sua ansiedade evidente encheu Chrystal de confiança.

- Depende - respondeu.

- Depende de quê?

Chrystal esfregou os dedos, o gesto universal para dinheiro. Avery não estava com paciência para negociar.

- A mulher também deixou instruções, mas o Kenny e eu não abrimos mais a boca até vocês nos compensarem.

- Muito bem, John Paul, voltamos a fazer as coisas à sua maneira. Pode disparar contra um deles. Isso soltará a língua do outro.

Ele gostou da ideia. Dois segundos mais tarde, a arma estava cá fora, pronta a disparar. Chrystal levantou as mãos.

- Esperem lá! Não é necessário violência. O Kenny e eu somos pacíficos, não somos, Kenny? Vamos dizer-vos o que querem saber. A mulher disse que vinha aí uma rapariga. Que o nome dela era Avery. - Virou-se para ela. - É você, não é? Tem de ser você.

- Sim. O que mais disse ela?

- Disse que iria telefonar e que você iria sair daqui à pressa, mas enganou-se, não foi? Quero dizer, você ainda aqui está.

- Só podem sair daqui à pressa depois de ela telefonar, sua estúpida! - exclamou Kenny.

- Avery, quero mesmo dar uns tiros nestas pessoas. Pôr fim à sua infelicidade - disse John Paul.

Ela compreendia-o.

- Guarde a arma, John Paul.

Assim que ele baixou a arma, Chrystal animou-se e conseguiu sorrir.

- Kenny, eles vão precisar de mantimentos. Leva o que eles quiserem para o carro enquanto eu faço mentalmente a soma.

Virou-se para Avery. - Tem dinheiro consigo, não tem?

- Não precisamos de mantimentos.

- Quer saber para onde ela irá mandá-la?

Avery compreendeu. Por outras palavras, tinham de comprar Mantimentos.

- Sim - respondeu.

- Não lhes faças descontos, Chrystal. E nada de cartões de crédito. Estes tipos não vão viver até o recibo chegar à central.

Chrystal assentiu.

- A mulher vai mandar-vos para uma prisão. De que raio estariam eles a falar?

- Não sei como é que pensam descer o rio - disse Kenny.

- Tem chovido tanto que só os idiotas tentam. Vão afogar-se, antes de chegarem aos primeiros rápidos. - A possibilidade animou-o tanto que ele riu. - Por muita experiência que tenham.

- Isso mesmo, querido - disse Chrystal. - Vão morrer afogados. A mulher disse que vocês iriam ver uma placa com uma coisa escrita e que encontrariam o que procuram mesmo ao lado.

- Ela disse-vos o que está escrito na placa?

- Coward’s Crossing. As pessoas daqui também usam esse nome para designar aquela zona estreita de onde se pode olhar para o rio, mesmo que se tenha medo de lá entrar. Há muitos anos havia ali uma ponte de corda, e é por isso que lhe chamam vau.

- Vão ter de ir a pé até lá. Conheço aquela zona porque venho para cá desde miúdo, e não há nenhum caminho.

Chrystal não concordou e começou a discutir com o marido.

Avery estendeu a mão para o telefone, e depois parou. Um telefonema rápido para Margo, a dizer-lhe onde estava e o que se passava. Arriscaria?

Kenny ganhou finalmente o concurso dos gritos e enquanto Chrystal amuava, explicou a Avery como chegar a Coward’s Crossing. Ela tirou o mapa do bolso e pediu a Kenny para assinalar a zona.

John Paul tinha dois sacos de plástico com água engarrafada e comida. Agarrou em mais duas tabletes de proteínas, enfiou-as no saco mais pequeno e dirigiu-se para o carro. Kenny saltou o balcão para ir atrás dele, só para se certificar de que não iria arrancar sem pagar.

Avery agarrou num papel e escreveu o número de Margo.

- Chrystal, quero que vá de carro até outro telefone e ligue para este número. Diga a quem atender que eu estive aqui e para onde vou. Pode ganhar muito dinheiro se fizer este telefonema - prometeu. - Mas não use este telefone.

- Quanto dinheiro?

- Cinco mil dólares. - Disse o primeiro número que lhe veio à cabeça. - E quando capturarmos o homem que procuramos, o dinheiro duplicará, e você recebê-lo-á todo.

- Quanto, exactamente?

- Dez mil. - As mentiras saíam cada vez com mais facilidade.

Chrystal parecia desconfiada.

- Como é que eu sei que você não fica com esse dinheiro todo?

- Porque eu sou do FBI. A minha identificação está no carro. Quer que a vá buscar?

- Eu devia ter adivinhado - respondeu a outra com ar desdenhoso. - Gosta muito de mandar nas pessoas. Não precisa de me mostrar a sua identificação. Acredito em si. Tem ar de FBI, e aquele movimento de karaté que fez no escritório também me levou a desconfiar. Devia ter prestado atenção ao alarme na minha cabeça.

De que movimento estaria ela a falar? Avery só se lembrava de se desviar da frente da mulher.

- É muito perspicaz da sua parte - respondeu com secura.

- Agora, fale-me outra vez do dinheiro. No total seriam uns quinze mil dólares?

- Claro.

Chrystal olhou de esguelha para Avery.

- E diz que eu só tenho de fazer o telefonema?

- Sim, e importa-se...

Chrystal interrompeu-a. Olhou para o número no papel.

- Espere lá. Isto é uma chamada interurbana. Posso pôr a pagar no destinatário?

- Sim.

- Está bem, eu faço-a, mas continuo sem perceber. Você podia usar este telefone - disse, apontando para o balcão. Qual é o problema?

Ela não perdeu tempo a explicar a Chrystal que o telefone Podia estar sob escuta.

- Não pode usar este telefone e pronto. Espere vinte minutos, depois pegue na sua carrinha e vá ao telefone mais próximo.

- Você paga a gasolina?

Avery teve vontade de gritar.

- Sim.

John Paul acabara de entrar na loja quando o telefone tocou. Avery encolheu-se.

- Deve ser ela. Não recebemos nenhum telefonema desde que reabrimos a loja esta manhã, por isso só pode ser ela. Quer que eu atenda?

Avery agarrou no telefone e atendeu ao segundo toque.

- Chegaste atrasada.

- Não chegámos nada. Chegámos a horas. A mulher a quem deixou o pacote estava ao telefone quando chegámos.

- Pois estava.

Avery soube então que a outra tinha a linha sob escuta. Ainda bem que não tentara ligar a Margo.

- Já te disseram para onde tens de ir?

- Sim. Quero falar com a Carrie.

- Isso é impossível.

- Como é que sei que ela está viva?

- A Carrie está viva... pelo menos por agora. Compete-te a ti mantê-la, e às amigas, vivas.

- Porque está a fazer isto?

- Chega de perguntas, ou desligo já o telefone. Percebido?

- Sim.

- Estás numa bela caça ao tesouro e vais ganhar pontos à medida que fores avançando. O prémio é a Carrie. Queres voltar a vê-la, não queres?

- Sim.

- Muito bem. - Deu uma gargalhada. - Gostas tanto de agradar. É melhor despachares-te, Avery.

- Quanto tempo...

- Despacha-te.

A mulher desligou. O coração de Avery galopava.

- Era ela? - perguntou Chrystal.

- Sim. Chrystal, descreva-ma.

- Quer saber como é que ela era?

- Sim.

- Era mais velha que você, mas não tão velha nem pesada como eu. Kenny? - gritou. - Que idade achas que a mulher tinha?

Kenny entrou. Coçou o queixo enquanto pensava.

- Não sei. Nunca fui muito bom a calcular idades. Mas era uma mulher vistosa.

Chrystal assentiu.

- Tinha cabelo louro, e, por acaso, tem piada você estar a perguntar-me como é que ela era.

- Porquê? - indagou Avery.

- Bem... porque... - Chrystal encolheu os ombros. - Ela era parecida consigo.

 

                                           CAPÍTULO 15

Chrystal disse a Kenny que iriam receber uma grande recompensa se fossem à cidade fazer um telefonema para Avery. Kenny não acreditou na mulher e recusou-se a ir. Avery achou que talvez isso se devesse ao facto de o seu nariz ter voltado a sangrar.

Ao contrário de Avery, John Paul não parecia interessado em convencê-los a colaborar, porque percebeu como funcionavam os seus pequeninos cérebros. Já estava farto daqueles dois. Encostou Kenny à parede e disse-lhe calmamente que iria apanhá-lo e esfolá-lo vivo se ele não fizesse o que Avery pedira. Tão simples como isso. A expressão dos olhos de John Paul indicava que ele não era o tipo de homem que fazia ameaças vãs.

Chrystal deu um salto para trás quando John Paul passou por ela. Deixou cair o telefone do balcão e pegou nele rapidamente. Encostando instintivamente o auscultador ao ouvido para se certificar de que não havia ninguém na linha, desligou.

- O telefone não funciona - disse ela a Kenny.

- Estás a dizer que não há sinal? - perguntou ele, agitado.

- Não acabei de te dizer que estava estragado?

- Foi ela - decidiu Kenny, olhando para Avery. - Deve tê-lo avariado quando acabou de falar com a mulher e desligou. Viste-a bater com o auscultador, não viste, Chrystal? Vai ter de pagar o arranjo - disse ele a Avery.

Esta pegou no telefone para ver se Chrystal estava a dizer a verdade. Não havia sinal. Aquilo é que era rapidez, pensou. Deviam ter estado à espera.

John Paul, da porta, tentava chamar a atenção de Avery.

- Avery...

- Só um minuto. - Dirigiu-se aos adolescentes sentados no chão. Dois deles estavam enroscados como gatos, a dormir profundamente, mas o rapaz de olhos descaídos chamado Mark continuava sentado a observar todos os seus movimentos com o sorriso estúpido ainda estampado no rosto sardento.

- Quem é o condutor?

- Hum?

Ela deu-lhe um toque no pé.

- Quem é que guia?

- Eu.

- Dá-me a chaves.

O sorriso não se desvaneceu.

- Não sou obrigado - disse ele, enfiando a mão no bolso e tirando de lá o porta-chaves. Abanou-o diante do rosto. Depois sorriu.

Avery arrancou-lhe as chaves da mão e atirou-as para o balcão.

- Chrystal, certifique-se de que estes rapazes não se metem no carro, percebido?

- Não vou fazer de ama-seca. Espera que eu fique aqui a vigiá-los?

- Obrigue-os a dormir lá fora, mas não lhes dê as chaves.

- Virou-se para partir, mas John Paul levantou a mão para a fazer parar.

- Mais clientes - disse ele. Espreitou pela janela e viu duas senhoras de idade, com roupas de caminhada, a saírem de um Ford. Tirou a mão de Avery do puxador da porta. - Você não vai comigo.

- Ai isso é que vou - insistiu ela.

- Ouça-me - ordenou ele. - Você vai voltar à cidade com aquelas mulheres e vai a uma esquadra. Fique com a arma, não vá ser preciso.

- Enquanto você vai a Coward’s Crossing?

- Sim. Se conseguir chegar lá depressa, talvez encontre um bom sítio para preparar uma emboscada.

Ela abanou a cabeça.

- Se o matar, não conseguiremos encontrar a Carrie e as outras.

- A mulher sabe onde elas estão.

- Ela há-de desaparecer do mapa, e você sabe-o bem. É demasiado arriscado. Além disso, se Monk ou a mulher descobrem que não estou consigo...

- Não vão descobrir.

- Tem de me levar.

- Não. É demasiado perigoso para si, e irá atrasar-me.

- Então vou segui-lo. O Kenny explicou-nos o caminho. Sou capaz de encontrar Coward’s Crossing. Levo o carro dos miúdos. É tão simples como isso, John Paul. - Encostou-lhe um dedo ao peito. - Precisa de mim para o apanhar. Agora saia-me da frente.

Ele não queria perder mais tempo com discussões. Decidiu que teria de encontrar um local onde a deixar a meio do caminho. Um local seguro. Sim, era isso que iria fazer.

Abriu a porta.

- Fique por perto - murmurou ao recuar, para que as duas senhoras de idade pudessem entrar.

As senhoras passaram pelos adolescentes e não pareceram reparar neles quando se dirigiram à casa de banho.

Avery virou-se para Chrystal que, naquele momento, era a mais simpática dos dois.

- Quanto tempo acha que levaremos a chegar a Coward’s Crossing?

- Não vai conseguir lá chegar antes do anoitecer - respondeu Chrystal. - Com esta chuva toda, os caminhos estão cheios de lama.

- Ei, espere lá! - gritou Kenny quando John Paul abriu a porta. - Não vai levar a minha arma, pois não? Preciso de ter algo com que me proteja, aqui sozinho com a patroa.

- Esquece, Kenny - disse Chrystal. - O George nunca pediu a licença de porte de arma.

O rosto de Kenny ficou muito vermelho.

- Porque é que tinhas de abrir a matraca e falar no assunto?

- Ela teria querido vê-la - retorquiu Chrystal. - Querem sempre.

- Querem?

- O FBI. - Disse cada letra como se estivesse a dizer uma blasfémia.

- O quê? - berrou Kenny. - Estás a dizer que a rapariga é do FBI? - perguntou de olhos arregalados.

- Oh, gaita, vamos ser cangados - disse Mark. Ignorando o bêbedo, John Paul fechou a porta na cara de Avery.

- É agente do FBI? - perguntou.

Bolas. Olhou para a expressão dele e encolheu-se interiormente. Parecia tão ofendido que ela achou que não seria boa ideia explicar-lhe naquele momento. Talvez mais tarde, quando ele estivesse a dormir.

- Responda-me - exigiu. - É agente do FBI?

Não iria desviar-se até ela responder. Avery engoliu em seco.

- Mais ou menos.

E então Chrystal que, segundo Avery, tinha mesmo uma matraca, decidiu intervir.

- Ela disse que deixou a identificação no carro, mas que podia ir buscá-la se eu quisesse vê-la.

- Vou-me embora - anunciou Avery. Serviu-se de toda a sua força para afastar John Paul do caminho, a fim de tentar chegar à porta.

Ele não se mexeu.

- Mais tarde falamos.

Avery esperou até que ele se desviasse e avançou para a porta.

- Não, não falamos - respondeu como uma criança que queria ter a última palavra.

O jipe derrapou ao sair do parque de estacionamento para a estrada de terra quando John Paul carregou a fundo no acelerador, os pneus a levantar pedrinhas e bocados de terra. Ele dirigia-se para o rio e conduzia como um alucinado.

- Abrande - ordenou ela.

Ele aliviou a pressão sobre o acelerador enquanto Avery verificava as indicações.

- Devia ter perguntado à Chrystal mais ou menos quantos quilómetros fica Coward’s Crossing da loja.

- Vamos ter de fazer parte do percurso a pé.

- Acompanho o ritmo que você imprimir ao andamento.

- Veremos. O que disse a mulher ao telefone? Ela repetiu a conversa, e acrescentou:

- Exigi falar com a Carrie, mas ela respondeu que não era Possível.

Ele abanou a cabeça.

- E continua a acreditar que a sua tia está viva?

- Sim, continuo. Acho que a mulher quer ter a Carrie por perto... pelo menos durante mais algum tempo. - Não sabia por que motivo achava aquilo. Talvez fosse apenas o desespero da esperança. - Sabe o que é que não entendo?

- O quê?

- Porque é que estão a dar-se a tanto trabalho se querem matar-me? Porquê complicarem as coisas? Tiveram mais do que tempo de me preparar uma emboscada a caminho do spa, antes de você ficar envolvido. Teria sido muito mais simples. - Deu uma palmada na testa. - Claro! Não sabiam que eu iria de carro para o spa. Quando perdi o avião, tiveram de improvisar. Você foi mais uma complicação. Estava no spa a fazer perguntas. Agora faz sentido.

Abanou a cabeça. Devia estar cansada. Levara tanto tempo a perceber aquilo. Fechou os olhos por um momento e tornou a pensar no telefonema.

- A mulher... está a divertir-se.

- Desculpe?

- Percebi pela voz dela. Estava muito animada, mesmo quando me murmurava e me chamava estúpida. Não quer que isto acabe cedo de mais. Quer prolongar o prazer. - Pensou no assunto durante um minuto. - Ela gosta de dar ordens, e desde que façamos o jogo dela, ou a sua caça ao tesouro, como lhe chamou, talvez prolongue ainda mais as coisas.

Ele conduzia o mais depressa que as estradas de terra lhe permitiam enquanto ela lhe ia dando indicações. Avery recordou várias vezes a conversa telefónica, analisando os poucos dados de que dispunha. Era tão frustrante.

- Muito bem, Avery, já chegou o mais tarde - interrompeu John Paul.

- Desculpe?

- Eu disse que já chegou o mais tarde, e vamos falar agora do assunto. Por que diabo não me disse que era agente do FBI?

- Você deixou bem claro que não gosta do FBI.

- Sim? E quando foi isso?

- Quando estávamos no escritório do gerente do Utopia, e você ligou ao seu amigo Noah. Ouvi-o dizer-lhe para mandar reforços.

- E?

- E depois disse-me que eles dariam cabo da investigação. Quando insisti, você ficou bastante hostil. Além disso... - Sentiu-se corar. - Ainda não sou propriamente uma agente.

Ele abrandou o carro.

- Ai não? Então porque é que diz às pessoas que é? - Abanou a cabeça. - Quem, no seu perfeito juízo, quereria fazer-se passar por um agente do FBI?

Avery detestava ter de se pôr à defesa. Céus, ele era mesmo um idiota obstinado e de ideias fixas!

- Não costumo dizer às pessoas que sou agente. Disse apenas à Chrystal, porque queria ver se ela colaborava. Ao contrário de si, não uso a coacção e a força bruta para obter o que quero.

John Paul ignorou a crítica às suas tácticas. Porquê arranjar o que não estava estragado? A força bruta sempre funcionara.

- Faço aquilo que sou bom a fazer. É esse o meu lema.

- Cuidado - avisou ela, quando ele fez uma curva e quase atropelou um veado. John Paul travou a fundo e guinou para fora da estrada, evitando o animal por pouco. O carro saltou e balançou, mas manteve as rodas no chão.

Era demasiado perigoso tentar manter aquela velocidade.

- A Chrystal tinha razão - disse ele, abrandando. - Não vamos lá chegar antes do anoitecer.

- Pense coisas positivas.

- Porquê? - perguntou ele, genuinamente perplexo.

- Talvez encontremos uma boa estrada em breve. Fizeram outra curva apertada. Mais abaixo, a oeste, havia uma estrada que parecia ter bom piso. Ele decidiu ir apanhá-la.

- Segure-se - disse quando começaram a descer o declive. Este era bastante íngreme, e ele tinha de ter cuidado com as rochas pontiagudas.

Avery agarrou-se ao banco enquanto seguiam aos saltos.

- Então mentiu a respeito da identificação? - perguntou ele.

- Tenho as credenciais na minha mochila.

- Mas não é agente.

- Não.

- Então o que diabo anda a fazer com as credenciais?

- Eu trabalho para o FBI, só que não sou agente de campo.

- Ainda bem.

- Porquê? Por você odiar o FBI?

- Não, porque você é péssima nisso.

- Como é que sabe se eu sou boa ou má? - Céus, o tipo era irritante. De cada vez que abria a boca, dizia qualquer coisa que a chateava. Nunca nenhum homem a afectara tanto como John Paul.

- Falta-lhe o instinto - disse ele. - E antes de ficar toda amofinada e se pôr a discutir, responda-me a uma coisa com franqueza.

Ela cruzou os braços e olhou para ele de sobrolho franzido.

- O quê?

- Adivinhou que o Kenny poderia ter uma arma escondida sob aquele balcão? Chegou a considerar essa possibilidade?

- Não.

- Aí está.

- Não fui treinada para agente de campo. Não frequentei a academia.

- Isso não é desculpa. Ou se tem jeito, ou não. Você mexe-se bem - acrescentou. - Foi impressionante o pontapé que deu ao miúdo. Mas, mesmo assim, daria uma péssima agente de campo.

Ela recusou-se a comentar.

- O que faz para o FBI?

John Paul viu-a de novo corar. Ou estava atrapalhada ou zangada. Era mesmo bonita. Ah, bolas, de onde viera aquilo? Não tinha nada de pensar aquelas coisas, especialmente agora que sabia que ela representava tudo o que detestava.

- Escrevo à máquina - respondeu. Notou que estava à defesa quando acrescentou: - Não há mal nenhum em ser dactilógrafa.

- Eu não disse que havia.

- Faço parte de uma equipa muito especial.

- Ah, bolas!

- O quê?

- Você acreditou em tudo, não foi? Fazer parte de uma equipa. Também deve ser uma liberal, não?

- Por acaso sou - respondeu ela. - E não tenho vergonha de ser dactilógrafa... é uma profissão honrada, afinal de contas.

- Está bem.

- Pare de ser tão condescendente. Não fui contratada para dactilógrafa, mas é praticamente isso que faço o dia todo, todos os dias. Transfiro informação para a base de dados. Agora, podemos esquecer este assunto?

- Sim, está bem. Parecia preocupado.

- No que está a pensar? - perguntou.

- Esta estrada é boa. Talvez consigamos chegar a Coward’s Crossing antes do anoitecer. Fazemos a pé uns quantos quilómetros, arranjamos um sítio para você se esconder, e depois eu posso...

Ela não o deixou falar mais.

- Isso não vai acontecer. Você deixa-me, descobre outra estrada e, com sorte, ainda consegue chegar a Aspen antes do anoitecer.

- E porque havia eu de querer voltar para Aspen?

- Tenho estado a pensar...

- Oh, não...

Ela ignorou o insulto.

- Acho que deve ir-se embora enquanto puder. Pode dizer ao FBI para onde me dirijo.

Ele pestanejou.

- Está a brincar?

Ela começou a fechar e a abrir as mãos.

- Não, estou a falar a sério. O que podem eles fazer se você se for embora? Nada. A sério, não precisa de se envolver nisto. Foi você mesmo que o disse. Querem-me a mim, não a si. Além disso, ligou ao Noah, e ele é do FBI. Tenho a certeza de que alertou a equipa local, e já devem vir a caminho. Quando conseguir chegar a um telefone, pode ligar-lhe outra vez e dizer para onde é que eu vou.

- Tenho uma oportunidade de deitar a mão ao Monk, e você julga que eu vou... - Estava tão furioso que lançava perdigotos. Abanou a cabeça. - Deixe-me esclarecer isto. Acha mesmo que vou deixá-la e arrancar?

- Não era esse o seu plano?

- Bolas, não! Ia procurar um sítio seguro onde você se pudesse esconder até eu voltar, um sítio onde o Monk nunca a encontrasse.

- Por outras palavras, ia deixar-me no meio de nenhures e arrancar. - Não lhe deu tempo para pensar. - Não vai deixar-me em lado nenhum, a menos que tencione voltar para Aspen.

- Você é maluca, não é? Completamente maluca.

- Deduzo que seja um não. Ele ignorou o sarcasmo dela.

Avery afastou o cabelo do rosto com os dedos e pousou as mãos em cima da cabeça.

- Quem me dera que pudéssemos sair deste carro. Preciso de um sítio sossegado para pensar.

- Não consegue pensar num carro?

Ela sabia que ele não iria compreender. Quando estava no seu cubículo no FBI, sentia o mesmo que quando estava a fazer ioga. Aperfeiçoara a técnica de se concentrar e a seguir introduzia os primeiros dados, ao mesmo tempo que as suas mãos o faziam no teclado. Não, ele não conseguiria compreender, e ela não podia explicar.

- Então quem é que é parecida consigo?

- Desculpe, o que é que perguntou?

- Lá na loja, a Chrystal disse que a mulher era parecida consigo. Portanto tenho de lhe perguntar se tem familiares malucos a tentar matá-la.

- Não. Só a minha tia Carrie e o marido, Tony. Não tenho mais familiares.

- Os seus pais morreram?

Ela virou-se no banco e olhou para o perfil dele.

- Não sei quem era o meu pai. Acho que a mulher que me teve também não sabia.

Observou-o atentamente para ver se o chocara. A expressão dele não se alterou.

- Ela morreu num acidente de viação há uns anos. Não há mais ninguém.

- A Chrystal disse...

- Eu ouvi o que ela disse, John Paul. Sabe quantas mulheres se encaixam na descrição dela?

Ele fitou-a.

- Então é verdadeiro?

- Desculpe?

- O seu cabelo. É verdadeiro?

Ela pestanejou.

- Está a perguntar-me se uso uma peruca?

- Não, estou a perguntar-lhe sobre a cor. É uma loura verdadeira ou isso é oxigenado?

- Que lhe importa a si a cor do meu cabelo?

- Não me importa nada - respondeu ele, irritado. - Mas a mulher era parecida consigo, por isso tenho de pensar...

- Não, não pinto o cabelo.

Ele ficou surpreendido e não escondeu a reacção.

- Sim? E a cor dos seus olhos?

- O que é que tem?

- Lentes de contacto coloridas? Ela abanou a cabeça.

- Não.

- Não me diga.

- Você quer mesmo parecer um idiota?

- Olhe, estou só a tentar perceber as coisas. O Kenny disse que a mulher era bonita. Fascinante.

- E?

Ele encolheu os ombros.

- Tem-se olhado ao espelho nos últimos tempos? Temos de saber...

- Saber o quê? - insistiu ela, ao ver que ele não continuava. John Paul franziu o sobrolho.

- Bolas, mulher. Você é bonita!

Foi o elogio mais hostil e contrariado que ela alguma vez recebera, e o mais estranho foi não a ter aborrecido. Pela primeira vez na vida, não sentiu necessidade de declarar que a aparência não era nada importante.

Tentou concentrar-se no problema que tinha em mãos.

- Os dados não são suficientes para chegar a uma conclusão.

- Credo, você parece um computador. Há muitas coisas que não fazem sentido.

Ela concordou com um aceno. Doía-lhe o estômago. Parecia que tinha um carvão quente alojado no esófago. Pegou na moxila, encontrou o antiácido, uma garrafa de água e duas tabletes energéticas. Abriu a garrafa, meteu os comprimidos na boca e engoliu. Depois passou a garrafa a John Paul e abriu uma das tabletes para ele comer.

- Obrigado - disse ele, depois de ingerir um longo gole de água. Deu uma dentada na tablete e engoliu-a com outro gole de água. - Sabe a cartão.

- De nada.

O sorriso dele durou meio segundo, mas ela viu-o e reagiu. Admirou-se consigo própria. Não suportava o homem uma hora atrás, mas agora não achava que ele fosse assim tão horrível. Tinha um perfil bonito... e era muito sensual. Não havia motivo para fingir que não reparava.

Ele também parecia querer protegê-la. Tentara mandar nela na loja, quando ela desatara a correr para o gabinete das traseiras. Agira... com preocupação. Preocupação com a sua segurança. ”Que simpático”, pensou ela. Afinal, não era um bruto insensível.

- Vai chover - observou ele.

- A chuva irá abrandar-nos.

- Ainda não é para já. O Sol vai pôr-se em breve. Vamos deixar o relógio num sítio qualquer daqui a dois ou três quilómetros. Depois continuaremos enquanto pudermos. - Estacionou o carro e pegou no relógio. - O que fez à arma que trouxemos?

- Está no chão.

- Pegue nela e ponha-a ao colo. Tem treinado o tiro?

- Não.

Ele suspirou.

- Mantenha a arma travada. - Tirou-lha das mãos. Não me demoro.

Desapareceu antes de ela poder dizer-lhe para ter cuidado. Começou a cair uma chuva miudinha que cobriu o pára-brisas. Parecia que passara uma hora quando ele surgiu a correr colina abaixo na direcção do carro. Quando abriu a porta, uma lufada de ar gelado encheu o habitáculo.

Assim que ele pôs o carro a funcionar, ela ligou o aquecimento.

- Onde é que deixou o relógio?

- Num ramo junto a uma encruzilhada, a oeste. Se ele nos está a seguir, espero que pense que continuamos pela outra estrada.

Prosseguiu viagem, agradecendo a Deus ter um jipe com tracção às quatro rodas. Ziguezagueou montanha acima pelo meio das árvores. Quando o terreno ficou com demasiadas árvores para poderem continuar, dirigiu o carro para junto a um maciço de pinheiros, fez inversão de marcha e a seguir marcha atrás até ter a certeza de que o carro não podia ser visto da estrada lá em baixo.

A noite caiu. A chuva miudinha engrossara. Ouviram um trovão. Ela estremeceu.

- Tem uma arma para o que for preciso, comida e água.

- O que quer dizer com isso? Acha que me vai deixar aqui? Ele estendeu a mão para o fecho da porta.

 

                                   CAPÍTULO 16

Quando Carrie se deixou cair no sofá da sala sentia-se como uma condenada. Jilly e Monk haviam pensado em todas as saídas possíveis. Oh, sim, tinham armadilhado todas as janelas... excepto, talvez uma. Olhou para a clarabóia por cima da escada em espiral. O rectângulo ficava nove metros acima delas. Abanou a cabeça. Mesmo que empilhassem todas as mesas em cima de todos os guarda-roupas não conseguiriam chegar lá acima.

Anne preparara o jantar com aquilo que encontrara na despensa, e as três mulheres comeram num silêncio desanimador. O Sol pusera-se e a casa estava fracamente iluminada pelas velas que Anne encontrara. Nenhuma delas queria acender as luzes, com receio de que Jilly e Monk estivessem a vigiá-las, e não havia cortinas para cobrirem as enormes janelas. Sara também aventara a possibilidade de Monk ter instalado uma câmara para vigiar os movimentos delas. Isso enervou tanto Carrie que ela voltou a passar a casa em revista, desta vez à procura de uma câmara.

Anne reclinara-se no sofá e Sara estava numa espreguiçadeira quando ela voltou.

- Não encontrei nada - disse Carrie. - Procurei em todo o lado. Até verifiquei os casquilhos, pelo menos aqueles a que consegui chegar - acrescentou. - Acho que não há ninguém a vigiar-nos.

- Que diferença faz eles conseguirem ou não ver-nos? perguntou Anne.

Carrie achou a pergunta estúpida, mas não o disse.

- Porque se abrirmos um túnel na cave e eles nos virem” carregam no botão e mandam-nos pelos ares.

Escavar a cave estava, claro, fora de questão. A porta encontrava-se trancada, e tinha um papel grande colado. Uma única palavra, mas fora suficiente para dissuadir as três mulheres de tentarem arrombar a fechadura. ”Bum!”

Exaustas e assustadas, Sara e Carrie sentaram-se em silêncio a olhar pelas janelas para o crepúsculo que se adensava.

Anne endireitou-se a custo. Carrie reparou numa pilha de papéis no sofá ao lado dela.

- O que é isso tudo? - perguntou.

- Recortes de jornais que encontrei na arca da entrada. Um dos donos da casa deve tê-los guardado. Aqui estão - disse, estendendo a Carrie a fotografia de uns noivos no dia do casamento.

- Parecem felizes.

- Imagino que eram - respondeu Anne. - Mas agora estão a divorciar-se e a lutar por esta casa. Olhe, tome os recortes

- disse, empurrando os papéis para Carrie. - É bastante sórdido. Alguém quer sobremesa?

Parecia mesmo a anfitriã de uma festa. Carrie achou a pergunta hilariante e riu até as lágrimas lhe surgirem nos olhos. Sara também achou graça e deu uma risada.

- Oh, não sei se tenho espaço para a sobremesa - observou Sara. - Depois deste excelente jantar de tomates e beterrabas enlatados, estou cheia.

- Não se esqueça do milho com natas - relembrou Anne.

- Tive imenso trabalho para conseguir misturar a quantidade certa de pimenta.

- Estava muito saboroso - elogiou Sara.

- Fiz um inventário da despensa - continuou Anne. Lembrei-me que talvez pudéssemos comer pêssegos em calda à sobremesa. Querem comer na cozinha à luz das velas? Fechei os estores para que ninguém nos possa ver lá de fora.

Anne soava tão alegre que Carrie se sentiu alarmada. O seu ataque de riso devera-se a histeria, mas Anne não estava histérica. Comportava-se como se se estivesse a divertir imenso com velhas amigas.

- Depois da sobremesa tenho uma surpresa para vocês disse Anne. O seu sorriso fez Carrie recordar-se do gato que acabara de comer o canário.

- Não vai tentar abrir a porta da garagem pois não? Essa também está armadilhada - disse Sara. - Verifiquei-a.

- Por outras palavras, leu o papel que estava na porta... - retorquiu Carrie.

- Bem, sim - admitiu Sara envergonhada.

Carrie estendeu a mão e ajudou Sara a levantar-se da espreguiçadeira.

- Estou um pouco perra - disse ela.

Anne já fora para a cozinha. Ouviam-na cantar. Carrie, imaginando Anne a subir para o balcão de granito e a abrir a janela por cima do lava-louça, apressou-se a ir para lá. Felizmente, a imagem não era real. Anne estava a abrir a lata de pêssegos.

Carrie não conseguia deixar de se preocupar. A mulher ainda não percebera a gravidade da situação.

- Anne, não vai ter outro ataque de loucura, pois não? Anne deu uma gargalhada. Era um som agudo, como de louça a partir-se.

- Não me parece. Agora descontraiam-se e sentem-se. Nesse momento, Carrie soube que teria feito qualquer coisa que Anne e Sara lhe dissessem. Sentia-se tão abatida! Estava muito preocupada com Avery, e, embora lhe custasse admiti-lo, sentia a falta de Tony.

- Tenho saudades do meu marido. - Ficou admirada ao dizer o pensamento em voz alta. - Acho que afinal o amo.

- Não sabe? - perguntou Anne. Colocou as taças de gelado em cima da mesa e pôs os pêssegos nelas.

- Achei que ele me estava a enganar. Disse que não, mas eu não acreditei. Havia uma mulher a ligar lá para casa a altas horas da noite. O telefone está do meu lado da cama, e sou sempre eu que o atendo. Ela pedia para falar com o Tony, mas quando ele pegava no auscultador, dizia-me que ela tinha desligado. E se era a Jilly a telefonar?

- Não confiava no seu marido?

- Não.

As três mulheres comeram em silêncio enquanto Carrie continuava cheia de pena de si própria.

- Sabem o que espero?

- O quê? - perguntou Sara.

- Quando acontecer, espero que estejamos todas a dormir e não demos por nada.

- Isso é sinistro - observou Sara.

- Será que o som da explosão nos vai acordar antes da dor de sermos incineradas...

- Pare, Carrie - exigiu Sara. - Não temos tempo para pensamentos tão negativos.

- Ouça, se quiser...

- Minhas senhoras, por favor - interrompeu Anne. - Estão prontas para a minha surpresa?

- Você é louca - murmurou Carrie. - Encontrou algumas bolachas?

Anne decidiu ignorá-la.

- Construí duas casas nos últimos dez anos. A segunda tinha mais de duzentos e oitenta metros quadrados. Tapumes de cedro - acrescentou. Soltou uma risada nervosa. - Contratei um empreiteiro, claro, mas estive lá todos os dias para garantir que tudo era feito como eu queria. Dei com o empreiteiro em doido.

- Aposto que sim - comentou Carrie.

- Porque nos está a contar isto? - quis Sara saber.

- Já vos falo da minha surpresa - disse Anne. Respirou fundo e a seguir murmurou: - Descobri-a.

- Descobriu o quê? - perguntou Carrie. Anne esboçou um sorriso radiante.

- Uma saída.

 

                                         CAPÍTULO 17

- Você fica bem aqui - disse John Paul a Avery.

- O que quer dizer com isso? Está a pensar em ir agora a pé até Coward’s Crossing? No escuro... no meio de uma tempestade? É doido?

- Avery - começou ele. Ela agarrou-lhe no braço.

- Muito bem, se está decidido, eu vou consigo.

Soube que John Paul discutiria, e é claro que ele fez exactamente isso. Foi muito cortês quando lhe disse que ela iria abrandá-lo, que não queria, precisava, nem tinha de se preocupar com a presença dela. Ao ver que isso não resultava, ele tentou a intimidação, chegando ao ponto de ameaçar amarrá-la ao volante.

Ela deixou-o falar enquanto passava para o banco de trás, tirava do saco de viagem o blusão de jogging preto e o vestia, procurando em seguida o boné de basebol.

Prendendo o cabelo sob o boné preto e cor de laranja dos Orioles, baixou a pala, encostou-se ao banco e descalçou os ténis. O seu objectivo era tentar fundir-se com a noite, e os ténis brancos seriam facilmente vistos.

Felizmente resolvera trazer as suas botas de montanhismo. Sabia que John Paul observava todos os seus movimentos.

- Acho que é uma loucura andarmos à noite pela floresta... só um idiota o tentaria, mas se é isso que quer fazer, então vou atrás de si.

- Você fica aqui - disse ele entre dentes. Avery fingiu não o ouvir.

- Não vamos chegar longe, e um de nós pode torcer um tornozelo ou cair num buraco. Se fosse eu a tomar as decisões

- acrescentou enquanto colocava cuidadosamente os ténis, com as solas para cima, em cima da roupa e voltava a fechar o saco - diria para ficarmos no carro até ao nascer do dia. Depois conseguiríamos andar mais depressa.

- Sim, mas não é você que está a tomar as decisões, sou eu.

Ela tirou o saco de cima do banco, pousou as mãos no encosto de cabeça e inclinou-se até ficar com o rosto bem perto do dele.

- Porquê?

Ele foi incapaz de continuar zangado quando ela sorriu. Caramba, até pestanejara aqueles olhos azuis de bebé...

- As dactilógrafas do FBI são todas tão espertinhas como você?

Tentava pô-la à defesa, para que deixasse de discutir e ele poder fazer aquilo para que fora treinado. Era um óptimo plano, pensava ele, mas, infelizmente, Avery parecia não concordar.

- Os ex-militares são todos embirrantes e teimosos como você?

Ele conseguiu reprimir um sorriso.

- Provavelmente.

- Vamos ou não? Estamos a perder tempo, John Paul.

- Vamos esperar até ao nascer do dia - disse ele. - Não me olhe com esse ar presunçoso, querida. Eu já tinha decidido esperar.

- Pois.

John Paul era suficientemente esperto para saber que estava na hora de parar de discutir. Ela era mais teimosa que ele, e isso impressionava-o. Não tencionava deixá-lo vencer aquela batalha, mas ele já tinha outro plano. Iria esgueirar-se um pouco antes do nascer do dia. Quando ela acordasse, teria de ficar no carro à espera que ele voltasse.

E se ele não voltasse...

- Vou deixar as chaves no carro.

- Está bem.

- Venha para a frente, para eu poder reclinar os bancos de trás. Tenho um saco cama - acrescentou. - Você pode usá-lo.

- Vamos usá-lo ambos.

- Ai sim?

Ela revirou os olhos.

- Não se ponha com ideias, Renard.

- Com ideias?

Avery já encontrara os fechos e soltou os bancos de trás. Quando ficaram na horizontal, ela estendeu o saco cama. Colocou as botas debaixo do banco, despiu o blusão e atirou-o para o chão. John Paul esticou-se e encostou os pés ao tabliê. Parecia confortável, com as mãos sobre o peito e os olhos fechados.

Tremendo de frio, ela teve de passar por cima das pernas dele para chegar ao outro lado. Batia os dentes quando se deitou ao lado dele. Não conseguia chegar ao blusão, que se encontrava no banco debaixo dele. Um cavalheiro tê-la-ia abraçado para a aquecer. John Paul não era um cavalheiro, decidiu Avery, quando ele a ignorou.

Ela sempre fizera questão de nunca se queixar. Normalmente sabia aguentar o desconforto ou a dor em silêncio. Mas John Paul fazia surgir nela o pior. Apetecia-lhe mesmo pôr-se com lamúrias e estava mais descontente consigo própria do que com ele. John Paul não podia evitar ser um idiota. Ela podia.

”Aguenta-te”, disse a si própria. Pouco depois, quando os dedos dos seus pés ficaram congelados, não aguentou mais.

- Que se lixe.

- O quê?

- Eu disse que estava frio.

- Hum.

- Hum o quê?

- Ia jurar que a ouvi dizer ”que se lixe”.

Ele gostava mesmo de ser grosseiro, calculou ela, e não admirava, já que era tão bom nisso. Avery sorriu, apesar do desconforto.

- Não acha que está frio?

- Não.

- Devíamos partilhar o nosso calor corporal - disse ela, ignorando a resposta dele. John Paul não se mexeu. - Ponha o raio dos braços à minha volta, Renard. Estou gelada. Por amor de Deus, seja um cavalheiro.

Ele continuou sem se mexer. Avery estava quase em cima dele, tentando roubar algum do calor gerado pelo seu corpo. O homem parecia um cobertor eléctrico.

- Mexa-se. - Ela fez uma careta depois de dar a ordem. Parecia um sargento.

John Paul tentava não se rir.

- Se eu puser os braços à sua volta, querida, posso não continuar a ser um cavalheiro.

Oh, por favor!

- Eu aceito correr o risco, querido.

Levantou-se um pouco para ele poder esticar o braço, e, assim que o fez, ela aninhou-se ao lado dele. John Paul rolou e abraçou-a.

Teve a sensação de estar a agarrar num bloco de gelo. O seu queixo tocava na cabeça dela. Bolas, cheirava mesmo bem. À mentol, talvez, pensou ao começar a esfregar-lhe as costas.

- Você está gelada.

Avery não tinha energia para falar. O calor dele era tão reconfortante que ela fechou os olhos e deixou que ele a acariciasse. A sua T-shirt subira acima do umbigo e ela sentiu as mãos dele sob o tecido. Pousara as mãos nas suas costas.

Avery esticou-se no instante em que os dedos dele tocaram na cicatriz e bateu com a cabeça no queixo dele.

- Bolas! - exclamou ele, inclinando-se para trás. - Porque fez isso? - perguntou, esfregando o queixo.

Avery puxou rapidamente a T-shirt para baixo e afastou-se dele.

- Durma.

Voltou a encostar-se a ele rapidamente. John Paul deitou-se de barriga para cima e fechou os olhos. O que diabo tinha acontecido às costas dela? Sabia que tocara numa cicatriz. Quem lhe havia feito aquilo?

- Deixe-me em paz - murmurou Avery.

Estava pronta a lutar. Aguardou tensa o início do interrogatório, sustendo a respiração. Exalou ruidosamente. Porque estaria ele calado? Porque não lhe fazia perguntas?

Disse a si mesma que não tinha de ter vergonha, mas muito poucos homens haviam tocado ou visto as suas costas, e ela memorizara as suas reacções. A expressão de choque, e, uma das vezes, de nojo. Recordava-se de que um homem, que ela não considerava superficial, chegara até a estremecer. Depois, claro, vinham a pena e as perguntas... as centenas de perguntas.

No entanto, John Paul nada dizia. Avery não suportava o seu silêncio. Virou-se para ele, ergueu-se sobre um cotovelo e fitou-o. Os seus olhos estavam fechados, como se ele estivesse a dormir. Mas Avery sabia que era a fingir.

- Abra os olhos, raios!

- O meu nome é John Paul, não raios.

O que diabo se passava com ele? Porque não lhe fazia perguntas... ou se retraía? Avery sabia que ele sentira as suas cicatrizes.

- Então? Ele suspirou.

- Então o quê?

Avery ficava mais zangada a cada minuto que passava.

- No que está a pensar?

- Confie em mim, querida, você não quer saber.

- Oh, sim, quero. Diga-me.

- Tem a certeza?

- Responda-me - exigiu ela. - Quero saber o que está a pensar.

- Muito bem. Estou a pensar que você é uma grande chata. Ela ficou boquiaberta.

- O que disse?

- Você ouviu. Acho que você é uma chata. Quase me partiu o queixo quando deu aquele salto. Num momento, queria que eu a aquecesse, e no seguinte tentou matar-me.

- Não tentei matá-lo. Ele esfregou o queixo.

- Podia ter lascado um dente. Céus!

- Olhe... desculpe, está bem? Sobressaltei-me e... espere lá. Porque é que estou a pedir-lhe desculpa?

Ele esboçou um sorriso travesso. O coração dela começou a bater mais depressa.

- Porque deve - respondeu ele com o seu sotaque arrastado do Sul.

O idiota estava calmo e impassível... então porque se sentiria ela tão agitada? Com a luz dos relâmpagos conseguia ver o rosto dele com clareza. A barba de um dia devia fazê-lo parecer desmazelado, mas não. Avery teve de resistir ao impulso de lhe tocar na cara. O cheiro maravilhoso que ele emanava também a perturbava. Cheirava a gualtérias, a almíscar e a aparas de madeira. E quando ele a abraçara, o seu corpo parecera um bloco de mármore esculpido. Tudo nele era sensual, raios! Ele era tão másculo, tão... ”Controla-te”, disse. ”Lembra-te, tu é que mandas.” Sim, pois.

- Falta-me isto para começar a odiá-lo - disse ela, aproximando o indicador do polegar.

A ira transparecia na sua voz. Também acenava com a cabeça, para que ele soubesse que falara a sério.

John não se mostrou impressionado nem intimidado. Limitou-se a fechar os olhos.

- Posso viver com isso - disse com preguiça.

 

                                                 CAPÍTULO 18

- Vamos pela parede - disse Anne, esperando a reacção das mulheres à sua sugestão. Sara parecia incrédula; Carrie irritada.

- Sim, pois - murmurou Carrie. - Vou usar os meus pontapés de karaté sobre-humanos e a minha visão de raios X...

- Vá lá, Carrie, ouçamos o que a Anne tem para nos dizer

- repreendeu Sara.

- Digo-vos que podia resultar. Quando saí do carro, aproximei-me do muro de pedra e olhei para baixo. A encosta da montanha fica deste lado da casa. Não é um abismo como do lado das janelas da sala.

- Continue - incitou Sara.

- Também reparei que os lados da casa são em madeira de cedro, não em pedra como à frente. Há uma parede exterior na despensa. Sugiro que façamos um grande buraco na folha de material prensado perto do chão, para, quando partirmos as tábuas de cedro, não sermos vistas do exterior.

- Mas Anne, não há apenas material prensado e tábuas de cedro - observou Sara.

- Eu sei exactamente o que há entre aquelas paredes - vangloriou-se Anne. - Há isolamento, mas esse não é difícil de destruir, e talvez alguns fios, que poderíamos contornar, e uma camada de revestimento...

- E que mais? - perguntou Sara. Inclinou-se para a frente enquanto considerava a ideia de Anne.

- Pregos - respondeu Anne. - Os barrotes estão normalmente a intervalos de quarenta centímetros. Devemos ser capazes de passar pelo meio.

- Como é que fazemos um buraco no material prensado com os punhos?

- Usamos o atiçador da lareira - disse Anne. - E facas para alargar o buraco. Fiz um inventário e as facas de cozinha continuam nas gavetas. Se começarmos agora, quem sabe? Talvez consigamos sair daqui amanhã de manhã.

- O tempo está a esgotar-se - observou Carrie. - Sugiro que tentemos partir uma janela e esperar que não... - Calou-se quando Sara abanou a cabeça.

- É demasiado arriscado - declarou Sara. - Sugiro que sigamos o plano de Anne.

- E as tábuas de cedro?

- Não serão tão difíceis como julgam - disse Anne. - Estão pregadas, mas se lhes batermos com força ou lhes dermos pontapés, elas acabam por se soltar.

- Céus, temos um plano! - exclamou Sara. Bateu com as mãos na mesa e sorriu. - Tenho a certeza de que não conseguiremos encontrar corda para descermos, mas será que podemos usar lençóis?

- Nos filmes usam sempre lençóis para sair - disse Carrie.

- A sério? - perguntou Anne. Carrie assentiu.

- Você não vê mesmo televisão, pois não? Anne abanou a cabeça.

- Eu posso ir tratando dos lençóis. Se calhar, em vez de tentar fazer nós, talvez consiga arranjar uma maneira de os entrançar... ou coisa parecida.

- Óptimo - disse Sara. - Enquanto faz isso, eu e a Carrie começamos a tratar da parede. Anne, você é brilhante. Eu nunca me teria lembrado de sair pela parede. Creio que é exequível.

- Temos de sair durante a noite - afirmou Carrie. - Não me agrada a ideia de andar na floresta a meio da noite, mas se conseguirmos chegar lá abaixo até termos passado pela vedação, conseguiremos chegar à estrada e ir por ela até à povoação.

Fizera aquilo parecer muito fácil. Estaria a ser ingénua, ou aquilo poderia ser assim tão simples?

- Devíamos levar umas quantas facas afiadas connosco sugeriu Sara. - Para o caso de depararmos com animais selvagens.

- Ou com o Monk - disse Carrie. - Acho que preferia lutar com um animal selvagem do que encontrá-lo. Sabem... - Calou-se de repente, com vergonha do que estivera quase a confessar.

- O quê? - perguntou Sara.

- Vão pensar o pior de mim, mas eu até o achei giro. Sara deu uma gargalhada.

- Eu também! Adorei o sotaque. Acha que era verdadeiro?

- Pareceu-me - respondeu Carrie. - Achei-o muito sensual.

Anne ouvira em silêncio a conversa até Carrie fazer aquele comentário. Foi incapaz de continuar calada; a sua desaprovação era evidente.

- Que vergonha, Carrie. Você é uma mulher casada.

- Sou casada, sim, mas não sou cega, e não há mal nenhum em apreciar um homem bem-parecido. Com certeza você já...

- Nunca - interrompeu Anne. - Seria incapaz de trair o meu Eric pondo-me a desejar outros homens.

- Eu disse que o desejei?

- Parem com isso - implorou Sara. - Assim apetece-me abrir uma porta!

 

                                             CAPÍTULO 19

John Paul foi buscar o relógio e em seguida percorreu a pé vinte quilómetros. Descreveu um círculo em torno do perímetro do local assinalado no mapa à procura de alguma pista - qualquer coisa fora do vulgar, como um atirador furtivo escondido num arbusto. Quando teve a certeza de que estava sozinho, largou novamente o relógio e recuou seis quilómetros até Coward’s Crossing.

Não havia dúvida de que se encontrava no local certo. Viu uma placa pintada à mão de forma grosseira que fora espetada no chão havia pouco tempo. A tinta branca com as palavras ”Coward’s Crossing” não estava gasta pelo tempo e, por conseguinte, não podia ter mais de dois ou três dias. A seta por cima da placa apontava para um poço de mina abandonado e entaipado. Havia uma echarpe de seda vermelha pregada a outra tábua por cima da entrada.

A alvorada surgira, e a névoa começava a ser dissolvida pelo Sol nascente. John Paul estava bem oculto pelas árvores e pelos arbustos. Do local onde se encontrava conseguia ver a entrada do poço. Não lhe agradava lá entrar. Estariam as mulheres ali? Ele duvidava. Monk não as teria raptado para depois dar a Avery um mapa a indicar o local. Não, Monk queria isolar a presa. Disso não havia dúvidas.

Quando é que ele atacaria? Talvez achasse que eles queriam entrar no poço. Como é que Monk planeara matá-los? Talvez com explosivos, pensou John Paul. Sim, era isso que Monk iria fazer. Limpa e eficaz, uma explosão subterrânea que ninguém ouviria, e também não precisava de se preocupar em sepultar os corpos.

”Vá lá”, pensou John Paul. ”Mostra-te.” Havia cerca de trinta metros de espaço aberto entre as árvores e o poço. ”Vem inspeccionar a área, Monk. Deixa-me dar-te um tiro limpo.” Iria tentar incapacitá-lo para poder interrogá-lo e, eventualmente, descobrir onde estavam as mulheres.

Havia ali alguém. O silêncio na floresta confirmava-o. Nada de aves a cantar, de esquilos a juntarem comida para o Inverno. Nada, a não ser o vento a assobiar uma melodia melancólica através dos ramos de um trovão ocasional ao longe.

John Paul era um homem paciente. Conseguia esperar o tempo que fosse preciso. Mas Avery? Quanto tempo iria ela dormir? E quando acordasse e visse que ele desaparecera, será que tentaria ir encontrá-lo? A possibilidade fê-lo arrepiar-se. Imaginou-a a dirigir-se para a armadilha e teve de afastar da mente a imagem de a ver levar uma bala.

Julgou ouvir alguma coisa e inclinou a cabeça. O som não se repetiu.

O que estaria Avery a fazer naquele momento? A dormir? Deixara-a aninhada no saco-cama com a arma ao lado.

Bolas, detestara deixá-la daquela maneira. ”Esquece!”, ordenou a si próprio. ”Ela está bem. O jipe foi bem escondido e está a mais de dezasseis quilómetros.” Sim, ela estava bem. Ah, raios, por muito que tentasse, não conseguia convencer-se.

Como é que ela conseguira afectá-lo tão depressa? E o que diabo se passaria consigo para se sentir atraído por ela? A rapariga era uma maldita liberal, pensou, uma daquelas que andava sempre a dizer ”vamos salvar o mundo”. Pior, gostava de jogar em equipa, e a equipa com que gostava de jogar era a do FBI.

Eram completamente, inteiramente, absolutamente incompatíveis. E contudo ali estava ele, raladíssimo por causa dela.

Monk podia tê-los detectado... um ramo estalou atrás dele. Sem fazer barulho, virou-se, tentando localizar a origem do som. Pareceu-lhe que era a uns dez ou quinze metros, mas com o vento forte era difícil ter a certeza.

Durante mais de cinco minutos não mexeu um músculo. Depois ouviu outro som, um ligeiro restolhar de folhas. Lentamente, levantou-se e dirigiu-se em linha recta para o local de onde viera o som, e fez pontaria.

Então viu aqueles olhos azuis a fitarem-no entre dois raminhos que ela afastara a tanto custo.

John Paul ficou lívido. Quase matara a mulher. O que teria passado pela cabeça dela para se aproximar daquela maneira? Se não tivesse ficado imóvel, deixando-o ver o seu rosto, se tivesse feito mais algum movimento, ele podia tê-la atingido. ”Filho-da-mãe”, praguejou enquanto tirava o dedo do gatilho. ”Filho-da-mãe.”

Graças a Deus não a magoara. Um pensamento estranho, tendo em conta que naquele momento só lhe apetecia torcer-lhe o pescoço.

Os seus músculos retesaram-se devido ao esforço para não gritar com ela. Levantou a mão, fazendo-lhe sinal para ficar quieta. Ela abanou a cabeça devagar e levantou um dedo. Em seguida, apontou para trás de si.

Ele avançou na sua direcção.

Avery sabia que ele estava furioso. Tinha os maxilares tão apertados que pareciam ir partir-se. Ela pôs-se lentamente de joelhos, encostou-se a ele até a sua boca quase lhe tocar na orelha.

- Ele encontrou o carro - murmurou então.

John Paul ouviu movimento e viu o brilho do aço por entre as árvores, a cerca de quinze metros. Como um leão, saltou.

Avery não teve tempo para reagir. Num momento estava a sussurrar-lhe ao ouvido, no outro estava de barriga para baixo no chão, o rosto colado às folhas mortas com John Paul a cobri-la enquanto disparava. O pó do chão começava a entranhar-se-lhe no cabelo.

Ele rolou, disparou mais duas vezes e pô-la de joelhos.

- Mexa-se! - ordenou.

Depois do primeiro disparo, soube que Monk tinha uma espingarda potente. Provavelmente com mira telescópica de visão nocturna. O estupor só precisava de acertar uma vez. Não, duas.

Calculou que Monk estivesse a tentar forçá-los na direcção da clareira ao disparar para a outra única saída.

Avery colaborou inadvertidamente. Guinou para a direita, afastando-se da saraivada de balas, mas John Paul agarrou-a com um braço e levantou-a do chão, levando-a à frente, usando o seu corpo para a escudar das balas.

- Vá, vá, vá - murmurou, incitando-a.

Um ramo surgiu próximo do rosto de Avery. Ele bloqueou-o com o antebraço e empurrou-a. Ela bateu nele, endireitando-se antes de ele conseguir arrancar-lhe a articulação do braço, e continuou a andar. Subiam agora através de um labirinto. Ouviu um bramido e julgou que era o coração a bater.

Estava enganada. Chegou a um penhasco. A superfície estava molhada e escorregadia. Pôs-se de gatas e estacou. Céus, havia um precipício de quinze metros, e, lá em baixo, água e espuma.

Que se lixasse aquilo. Não via alternativas. Por baixo encontravam-se os rápidos, mas o assassino aproximava-se a grande velocidade. Quando Avery olhou para a água branca pensou que teriam mais hipóteses de sobreviver se enfrentassem Monk.

Correu o fecho do bolso do blusão e sacou da pistola. John Paul esvaziou o carregador, tirou-o, e voltou a meter outro. Depois travou a arma, olhou para ver o que havia lá em baixo, e enfiou a arma no bolso de Avery. Subiu o fecho, pegou na arma dela, meteu-a no outro bolso e fechou-o também.

Avery não gostava do rumo que as coisas estavam a tomar.

- Ficamos e lutamos - disse.

John Paul abanou a cabeça. Ela assentiu, frenética. Ouviam Monk aproximar-se no meio da vegetação. Disparava ao acaso, mas sem parar. John Paul agarrou na cintura de Avery, apertando-a num abraço de urso.

- Sabe nadar? - perguntou ao saltar.

 

                                                             CAPÍTULO 20

Se ela sabia nadar? Ele tivera o desplante de lhe fazer a pergunta depois de ter saltado com ela nos braços. Avery não gritou. A vida também não lhe passou pelos olhos naquele salto interminável até à água lá em baixo. Estava demasiado ocupada a bater-lhe para que ele a largasse. E demasiado assustada para emitir qualquer som. ”Oh, meu Deus, não permitas que nos afoguemos!”

Bateram com força na água. Parecia que mil agulhas lhe tinham picado os pés e viajado à velocidade da luz até ao cérebro. O impacto era paralisante.

Ele nunca a largou. Nem quando foram puxados para baixo pela água enfurecida, nem durante a tentativa de regressar à superfície enquanto deslizavam a grande velocidade pelos rápidos. Quando Avery julgou que os seus pulmões iriam explodir, conseguiram finalmente pôr a cabeça fora de água, mas teve apenas tempo de os encher antes de serem de novo puxados pela corrente.

Viu um urso pardo observá-los da margem. Ia jurar que ele lhe sorriu e não quis que essa fosse a sua última imagem antes de morrer. Queria sobreviver para se poder vingar de John Paul por ele ter tentado afogá-la. Voltou a mergulhar, como se alguma coisa a tivesse puxado pelos tornozelos. Teria de se esforçar muito mais se quisesse sobreviver. Crescera a nadar no oceano, primeiro na Florida e depois na Califórnia, e era melhor nadadora que muitos, mas aquilo não era nadar. Flutuavam e mergulhavam como rolhas.

Chegaram de novo à superfície. Abrindo a boca para inspirar a maior quantidade possível de ar, viu um ramo velho retorcido a flutuar. Agarrou-o com as duas mãos quando ele se aproximou.

O rio descrevia curvas e contracurvas, mas estavam a aproximar-se da margem. Ela começou a espernear com toda a força. John Paul pôs um braço em cima do ramo e encaminhou a bóia improvisada na mesma direcção. Quando finalmente tiveram pé, ele levantou-se e puxou-a para a margem.

Deitados lado a lado na erva, sentiram-se demasiado exaustos para se mexerem. Avery ofegava e tremia tanto que batia os dentes.

- Está bem, querida? - perguntou ele.

Avery sentou-se subitamente e tossiu. Devia ter engolido metade da água do rio.

- Se sei nadar? - perguntou. - Foi isso que me perguntou antes de me empurrar para o vazio?

- Então ouviu, hem? - Esticou o braço e afastou-lhe dos olhos uma madeixa encharcada.

Ela olhou para a água revolta. Deus devia ter tido uma mãozinha na sobrevivência deles, pensou. Não havia outra explicação.

- Muito bem, então agora sabemos o que é um rápido de dificuldade cinco - disse Avery.

John Paul sentou-se.

- Sim? Ela sorriu.

- Eles detestam rápidos - explicou. - Este era dos bravos. Grau cinco.

Ele abanou a cabeça. Tinham atravessado juntos o inferno e ela dizia-lhe que eles detestavam os rápidos?

- Bateu com a cabeça, ou coisa do género?

- Não, só calculei o grau de dificuldade, mais nada.

- Quer experimentar outra vez?

- Já não é preciso. - Olhou para os penhascos acima deles. - Acho que o despistámos.

- Não sei. - Por muito que não lhe apetecesse mexer-se, obrigou-se a levantar-se. Sacudiu-se como um cão que acabara de tomar banho, depois estendeu-lhe a mão.

Ela cometeu o erro de a agarrar. Ele puxou-a com força, quase lhe voltando a arrancar o braço. O homem desconhecia a força que tinha. Agora, o que estava ele a fazer? Virara-se e olhava para o local onde haviam estado deitados.

- O que foi?

- Agarre nuns ramos e cubra as nossas marcas. Não, esqueça. Só iria piorar. Deixe estar, que eu faço.

Ela caminhou para junto das árvores e viu-o cobrir com alguns ramos a terra.

- Porque é que parte logo do princípio que sou incompetente? Tem alguma coisa contra mim, ou é assim com todas as mulheres?

- Só consigo.

Avery viu-o sorrir antes de ele lhe virar costas. Sabia mesmo como a irritar, decidiu ela, mas sentia-se demasiado cansada depois do exercício para morder o isco.

- Faz ideia de onde estamos? - perguntou. Falava com voz entaramelada, e tremia bastante.

- Não.

Aquela não era a resposta que ela esperava.

- Então calculo que não tenha sido escuteiro...

- Consigo ir para onde temos de ir.

- Para junto do carro?

- Não. Levaríamos demasiado tempo a descobrir um local para atravessar o rio.

- Temos de chegar a um telefone. - ”E a um banho quente e roupa seca”, pensou ela.

Ele acabou de ocultar as pegadas que haviam deixado, recuou para contemplar o trabalho e assentiu com ar satisfeito.

- Um telefone dava jeito - disse ele, aproximando-se dela.

- Bolas, mulher, você está gelada, não está?

- E você não? - retorquiu Avery quando ele a abraçou e lhe começou a esfregar vigorosamente os braços.

- Eu estou bem - respondeu. - Já me disseram que tenho gelo nas veias.

- Quem disse uma coisa dessas?

- A minha irmã.

- Oh. Ela lá sabe.

- Ainda lhe restam forças? - Abriu o fecho do blusão dela para poder chegar à arma. A sua estava ligeiramente húmida. Enfiou-a atrás, no cós das calças, e tornou a correr o fecho do bolso dela.

- Restam-me tantas forças como a si.

- Então comece a correr. Vai ver que aquece num instante.

- Em que direcção?

- Temos de subir antes de podermos descer. Ela olhou para as montanhas que os rodeavam.

- Seria mais fácil seguir o rio, mas o Monk deve ter antecipado isso.

Virou-se e começou a correr pelo meio das árvores. Sentiu água nos dedos dos pés. Ter cubos de gelo a derreter dentro das botas não era agradável.

John Paul acompanhou o ritmo dela durante quase uma hora. Não pararam nem falaram.

Estava impressionado com a energia dela. Depois de ter estabelecido o ritmo, Avery nunca abrandou. Também não se queixou, nem pôs a mão na barriga. Percebeu que ela estava em forma. Bastava olhar para a aquele corpo para ver isso. Mesmo assim, a forma como ela avançava, tão segura e constante, provava que fazia mais do que uma aula de aeróbica por semana no spa perto de casa.

John Paul viu um riacho mais à frente e achou que podiam parar para recuperar o fôlego.

- Vamos parar um minuto. ”Graças a Deus, graças a Deus.”

- Tem a certeza de que não quer continuar?

Se ele tivesse respondido que sim, ela teria desatado a chorar ou cairia de exaustão. A cicatriz na parte lateral do tronco doía-lhe como se lhe tivessem encostado um carvão em brasa à pele; precisou de toda a sua força de vontade para não se dobrar com as dores.

Reparou que ele não estava minimamente ofegante. Avery fez alongamentos para não ficar com cãibras nas pernas antes de se deixar cair no chão. Pôs a mão em concha e bebeu avidamente do riacho.

- Acha que ele vem atrás de nós? - perguntou um minuto mais tarde.

- Provavelmente. Mas tem de descobrir um sítio para atravessar os rápidos, por isso dispomos de algum tempo. Conte-me o que aconteceu no carro. - Já se amaldiçoara por tê-la deixado sozinha.

Ela sentou-se e encostou-se a uma árvore.

- Acordei e você tinha desaparecido. Por isso decidi ir atrás de si.

Ele sentou-se ao seu lado, tocando-lhe com o ombro.

- Não cheguei longe - admitiu Avery. - Tinha começado a subir quando vi a luz de uns faróis no meio do nevoeiro. Confesso que quase corri na direcção do carro para o mandar parar, depois caí em mim e decidi esperar que ele se aproximasse.

- Bolas, você podia ter caído direitinha nas mãos dele antes de... - murmurou John Paul, calando-se, incapaz de continuar. Ficava doente só de pensar no que lhe podia ter acontecido.

- Ele estacionou lá em baixo, depois saiu. Tinha uma lanterna e uma espingarda debaixo do braço e subiu na direcção do sítio onde o nosso carro se encontrava estacionado. Deve tê-lo localizado antes de você ter deslocado o relógio. Eu sabia que era o Monk, claro, por isso mantive-me escondida.

- Depois o que aconteceu?

- Ele revistou o carro.

- Viu a cara dele?

- Não. Podia ter visto, se tivesse mudado de sítio, mas tive medo de fazer barulho, não fosse ele perceber que eu estava ali à espreita. Abriu o capo do carro, tirou de lá qualquer coisa e atirou-a para a ravina. Sou capaz de a descobrir se voltarmos lá. Tinha o gorro do blusão na cabeça, por isso não lhe vi a cara nem a cor do cabelo, mas o tipo tinha pelo menos um metro e oitenta. Mas não era magro. Era bastante musculado. Fez-me lembrar aqueles tipos do body building.

- Ele é exímio nos disfarces - comentou John Paul. O FBI está a utilizar a descrição do Noah, mas ele também não o viu bem. Por aquilo que ouvi dizer do Monk, ele podia estar hoje na mesma sala que o Noah que duvido que o reconhecessem.

- Não sei se ele estava sozinho ou não. Ia num Land Rover, mas quando abriu a porta e saiu, a luz não se acendeu, e ele estava estacionado longe. Acha que a mulher estava com ele?

- Não sei.

- Ele é muito bom no que faz, não é? - perguntou Avery, abatida.

- Sim, é.

- Ficou ali muito tempo, talvez uns cinco minutos. Não mexeu um músculo. Foi assustador.

- Provavelmente estava a ouvir os sons da floresta e a tentar aperceber-se de algo estranho.

- Como eu.

- Sim. - Ele pôs-lhe o braço em cima dos ombros e puxou-a para si. - Ainda bem que não tentou correr.

- Ainda pensei em tirar a pistola do bolso, mas estava tão perto dele que receei que ele ouvisse o fecho.

- Se você estivesse a dormir, o Monk...

- Matava-me? - interrompeu ela. - Digo-lhe uma coisa, John Paul, se voltar a deixar-me para trás é precisamente isso que eu lhe vou fazer.

Como ela estava quase agarrada a ele para tentar aquecer um pouco, a ameaça teve pouco peso.

- Não vou voltar a deixá-la - prometeu ele com voz rouca. - Nunca devia tê-lo feito. Acho que estive fora disto demasiado tempo. O meu instinto já não funciona.

- Esteve fora do quê demasiado tempo, John Paul? - atacou logo ela.

- Vá lá, querida, devíamos continuar a andar. Estamos a perder tempo.

Por outras palavras, esquece o assunto. Ela decidiu fazer-lhe a vontade e tentar mais tarde. Estava toda dorida quando se levantou. Gemendo, esfregou o rabo, não se importando de parecer pouco feminina.

- Sabe do que é que eu preciso?

- De comida, de roupa seca...

- Sim, disso também. Mas também preciso de me pôr na minha posição ioga, descontrair-me e fazer os meus exercícios de associação livre.

- A sua quê? - Ele receou não ter ouvido bem. Ela repetiu.

- Deixamos que os fragmentos pairem na nossa mente; depois, quando estamos completamente descontraídos, agarramos num deles e analisamo-lo. Mas só conseguimos isso depois de estarmos completamente descontraídos.

John Paul viu-a esticar as pernas compridas.

- E como é que atinge o relaxamento total?

- Através da visualização. Vou para um lugar onde me sinto completamente segura e livre, como um lar. Sabe, vou para o meu... sítio feliz.

- Está a brincar.

- Não. Ele riu-se.

- Sabe que isso soa a coisa de malucos, não sabe?

- É mal de família - respondeu ela muito séria.

Uniu as mãos atrás das costas e torceu o tronco, depois sacudiu os braços e as pernas e começou de novo a correr, desta vez mais devagar mas com igual determinação. John Paul foi de novo atrás dela e manteve-se assim até ela ficar ofegante. Subiam desde que haviam deixado o rio, e, até àquele momento, não tinham visto vestígios de civilização. Onde diabo estariam? Será que continuavam no Colorado?

Ela estacou de repente, dobrou-se e inspirou várias vezes. Depois pôs as mãos nas ancas e inclinou-se lentamente.

- Está tudo bem? - perguntou John Paul.

Porque não estaria ele ofegante? Era humano, não era? Avery decidiu que, por muito que lhe custasse, não se queixaria. Não diria uma única lamúria.

- Tudo óptimo. - Tentou parecer animada; alegre seria pedir demasiado.

- Quer descansar?

O papa era católico? Raios, sim, claro que queria descansar!

- Não - respondeu com voz fraca. Depois, com mais força. - Estou pronta a continuar... a menos que você queira...

- Não, continuemos.

- Ainda estamos a dirigir-nos para norte? - perguntou ela, tentando ganhar mais um minuto. O ar era tão rarefeito que ela sentia a cabeça à roda. - Estou um pouco desorientada. Se o Sol já tivesse nascido...

- Estamos a ir para noroeste.

”Um pé à frente do outro”, disse a si mesma. ”Com calma. Vá lá, Delaney, imprime o ritmo. O tempo está a passar. Aguenta-te.”

Continuou a incitar-se enquanto corria pela floresta. Tentou não pensar na roupa interior ensopada encostada à pele, nem no facto de ter pelo menos meio quilo de lama preso a cada uma das botas.

Um ramo partido surgiu no chão à sua frente; ela fez mal as contas, tropeçou e teria batido com a cabeça num tronco se John Paul não a tivesse agarrado. O terreno estava a ficar mais íngreme, mais traiçoeiro. Os músculos da barriga das pernas começaram a doer-lhe, e ela foi finalmente forçada a abrandar.

De repente, parou. Tinham chegado a uma rocha com vista sobre o vale. Diante deles estendia-se uma vista panorâmica das colinas mais baixas. Havia prados verdes luxuriantes no meio de cumes com centenas e centenas de árvores, os ramos estendendo-se na direcção do céu. Era tudo tão verde, tão vivo. E nem vivalma por perto. As pessoas rumavam todas àquele paraíso, não era? Então porque estariam escondidas?

- Não é pitoresco?

- Sim, sim, é pitoresco - murmurou ele.

- Você é daqueles para quem o copo está sempre meio vazio? - perguntou ela, tentando parecer animada. - Não é capaz de apreciar...

- Já viu onde estamos? - interrompeu ele. - Vamos precisar de uns dois dias para regressar à civilização. - Observou o terreno lá em baixo à procura de estradas, mas não teve sorte. Contudo, conseguira pelo menos orientar-se.

- Não nos resta muito tempo - disse ela. Tinha os ombros curvados, e quando olhou em volta, a beleza transformou-se subitamente em algo ameaçador, e compreendeu a situação desesperada em que se encontravam. As coisas poderiam ainda piorar? Apetecia-lhe chorar, mas resistiu. ”Aguenta-te.” - Vai correr tudo bem.

- Ai sim? O que a faz pensar isso?

Teve de pensar um minuto para poder arranjar uma resposta.

- Porque vamos ter um golpe de sorte não tarda nada. E foi nesse momento que começou de novo a chover.

 

                                         CAPÍTULO 21

Anne era talvez a mulher mais conservadora que Carrie já conhecera. Tinha a certeza de que ela não teria o menor préstimo, mas afinal enganara-se. Anne cumpriu mais do que a sua parte. Depois de acabar de prender os lençóis uns aos outros, ajudou-as com a parede. Era uma grande trabalhadora, com uma energia surpreendente. Não tinha o menor sentido de humor, mas também não havia motivo nenhum para rir, pois não? Desde que o casamento sagrado de Anne não fosse discutido, ela era uma companhia quase agradável.

Também era a chefe, dando-lhes ordens enquanto trabalhavam lado a lado. Não demoraram a abrir um buraco na parede de material prensado com o atiçador. O isolamento não foi difícil de retirar. Encheram um saco com ele. Felizmente, não havia fios eléctricos nem canos naquela zona. A seguir, cortaram o revestimento com facas de cozinha.

Depois, passaram às tábuas. Isso foi mais difícil. Carrie teve de fazer uma pausa quando o seu polegar começou a sangrar. Enquanto Anne retirava a lasca com uma pinça e fazia o penso, Sara deitou mãos à obra.

Às três da manhã estavam exaustas.

Sara e Carrie tinham pensos em todos os dedos. Anne continuava um primor. Nem sequer as unhas lascara.

- Que tal está a corda de lençóis? - perguntou Sara. Arregaçou as mangas da blusa às riscas até aos cotovelos e atirou-se para uma cadeira.

- Pronta a usar - respondeu Anne. Colocou uma tigela de sopa de tomate diante de Sara e regressou ao fogão para encher a de Carrie.

- Estou muito cansada para comer - queixou-se Carrie.

- Vai precisar de conservar as energias - retorquiu Anne quando pousou a tigela na mesa.

Sara reparou que Anne tirou dois comprimidos do bolso. Virou-lhes as costas quando os pôs na mão e bebeu um copo de água.

- O que é que tomou? - perguntou Sara.

- Oh, nada - respondeu Anne, sentando-se diante de Carrie.

- Aspirina? - perguntou esta.

- Sim - respondeu Anne, mas Sara abanou a cabeça.

- Não era aspirina. Eram cápsulas cor-de-rosa.

- É muito observadora - comentou Anne. - É um medicamento para a náusea. Estou a convalescer de uma doença.

Carrie mal a ouvia. Pousara um cotovelo em cima da mesa e encostara a cabeça à mão. Sentia-se demasiado exausta para se preocupar com a etiqueta à mesa.

- Que doença? - perguntou Sara, mexendo a sopa com a colher.

- Nada de especial - respondeu Anne. - Encontrei um pequeno alto há dezoito meses, e falei disso ao Eric. Ele foi comigo ao médico. Afinal, não era nada de especial.

- Felizmente - disse Carrie. Sara observava os olhos de Anne.

- Onde é que encontrou esse alto?

- Na mama direita. Fiz uma biópsia e depois prossegui com a minha vida. Como disse, não era nada de especial.

- Então não era maligno - disse Sara.

Carrie perguntou a si mesma porque estaria a outra a insistir no assunto. Anne não tinha acabado de dizer que estava tudo bem? Achou que Sara estava a ser inconveniente.

- Ela ainda há pouco o disse - começou Carrie.

Sara não olhou para Carrie enquanto lhe dava um toque com o pé debaixo da mesa.

- Mas não era maligno? - repetiu.

- Só um bocadinho - respondeu Anne, olhando para a sopa.

- Foi isso que os médicos disseram? - perguntou Carrie, endireitando-se.

- Oh, vocês sabem como são os médicos - respondeu Anne. Fez um aceno com a mão quando acrescentou: - Todos uns alarmistas. O Eric disse que eles só ganham dinheiro se mandarem fazer muitos exames... e operações... quando não é preciso.

Carrie olhou para Sara.

- Então eles recomendaram que fosse operada? - inquiriu.

- Claro, mas o Eric não concordou e, é claro, que tinha razão. Acharam que podiam convencer-me a retirar o seio. Imaginam o que isso representaria quanto aos prémios que pagamos à seguradora?

- Não, não imagino - respondeu Sara.

- Teriam aumentado imenso. Além disso, a seguradora também não iria pagar uma pequena operação.

Retirar um seio era uma pequena operação? Carrie estava demasiado atordoada para falar. Pegou na sopa e fingiu comer.

- O Eric fez uns óptimos investimentos com o excedente. É tão esperto! Eram investimentos seguros que eu, claro, aprovei quando ele me falou deles.

- Depois de ele os ter feito? Contou-lhe depois?

- Sim, claro. Ele tem carta branca. Quero dizer, é sócio da empresa, e tem uma quota igual à minha.

Carrie e Sara perceberam que Anne começava a ficar à defesa. Sara comeu uma colher de sopa.

- Boa escolha para o jantar, Anne. Adoro sopa de tomate. Anne sorriu.

- Eu também.

- Então porque julga que a seguradora não iria pagar?

- Por causa de uma condição preexistente - explicou Anne. - A velha apólice já expirara e a nova que o Eric descobriu tinha um prémio muito mais razoável que só começava dali a trinta dias. Fiz a biópsia durante esse período. O Eric disse-me para esperar, mas eu estava muito ansiosa. Tínhamos dinheiro para pagar a operação - acrescentou rapidamente -, se tivéssemos achado que era necessária. Ele fez muita pesquisa na Internet, e decidimos explorar métodos alternativos. A sua sopa está a arrefecer, Carrie.

- Quanto a essa... - começou Carrie. Sara deu-lhe um pontapé debaixo da mesa.

- Sim? - perguntou Anne, de novo com uma expressão de reserva.

- Há bolachas de água e sal?

- Não, lamento.

- Tem muita sorte por ter o Eric ao seu lado - observou Sara.

Carrie engasgou-se com a sopa.

- Pois tem - disse. - Foi uma pena ele não ter querido vir consigo para o spa.

- Eu ainda tentei convencê-lo. Ele ofereceu-me esta semana como prenda de aniversário. Queria que eu descansasse e me descontraísse, e quando voltasse iríamos de novo aos médicos para ver o que tinha de ser feito. Preocupava-me o custo disto tudo, mas o Eric não me deu ouvidos. Disse-me que se tivéssemos de gastar até ao último tostão para me pôr boa, gastaríamos.

”Filho-da-mãe”, pensou Carrie. Estava a querer livrar-se dela, mas Anne, talvez ainda em choque, não era capaz de aceitar a verdade, por isso pintara aquele quadro encantador do seu querido marido. Ter-lhe-ia ele deixado uma carta, ou queria que ela morresse sem saber que ele era o responsável?

- Devíamos arrancar antes do nascer do dia - disse Sara, interrompendo os pensamentos de Carrie.

- Tenho as mãos feridas, e você também. Descer por aquela corda...

- Vamos conseguir.

- Anne, trouxe alguma roupa de ginástica? - perguntou Carrie. - Não pode descer a montanha de saltos altos, nem com os chinelos que tem agora calçados.

- Não, não trouxe.

- Com as minhas coisas e as da Sara, havemos de conseguir equipá-la - disse Carrie.

A sua atitude para com Anne alterara-se radicalmente. Apetecia-lhe protegê-la.

- Porque não prepara alguma comida para levarmos? - sugeriu Carrie a Anne. - E um estojo de primeiros socorros?

- Podem usar a minha bolsa de levar à cintura - sugeriu Sara. - Está em cima da minha cómoda, mas não tenho energias para ir lá acima buscá-la.

- Oh, eu vou lá. Adoro ser útil. Não toquem nesses pratos

- ordenou ela antes de sair da cozinha. - Lavo-os mais tarde.

- O filho-da-mãe! - sussurrou Sara assim que Anne se afastou.

Carrie assentiu.

- Agora tenho outro motivo para querer sair disto com vida. Vou matar aquele filho-da-mãe.

- Você segura a arma que eu puxo o gatilho.

 

                                             CAPÍTULO 22

Havia algo a rugir e não era um ser humano. Avery chegou mais perto de John Paul. Prometendo-lhe que ela podia descansar vinte minutos, encontrara um abrigo sob uma rocha saliente. O terreno estava seco e a área era suficientemente larga e funda para ele esticar as pernas.

Avery tentara convencê-lo a procurar uma gruta. John Paul vetara a ideia porque não queria companhias inesperadas, como pumas, ou ursos, a partilhar o espaço.

Ela sugeriu uma fogueira, mas ele também vetara essa ideia. O fumo poderia ser visto a vários quilómetros.

Ela ouviu de novo o rugido. Parecia mais próximo. Deu uma cotovelada a John Paul.

- Está a ouvir aquilo? - sussurrou.

- Hum, hum.

Ele parecia estar meio a dormir. Encostara-se à rocha, as pernas compridas e musculadas estendidas, um tornozelo sobre o outro. Pôs um braço à volta dela e mandou-a descontrair-se.

Avery encostara a cabeça ao seu ombro e, de vez em quando, o queixo dele tocava-lhe. Não percebeu se ele tentava ser afectuoso ou se a barba do dia lhe estava a provocar comichão.

Ouviram restolhar um pouco abaixo. Ela ficou tensa. Depois julgou ouvir outro rugido. O que seria aquilo? Um urso? Um puma? O quê?

John Paul pusera a arma no chão ao lado do corpo e a sua mão repousava no punho.

Avery respirou fundo e tentou não pensar no desconforto que sentia. ”Pensamento positivo”, disse para consigo. ”Sê optimista.”

Oh, céus, iriam morrer ali. Suspirou. Lá se ia o optimismo. Ele devia tê-la sentido tremer, pois começou a esfregar-lhe o braço. Ela achou o gesto ternurento. Tentou mesmo descontrair-se, mas a ansiedade não permitia que o seu cérebro parasse. Poderia um corpo estar demasiado exausto para repousar? Quando se sentara, estivera à beira do colapso, e sabia que tinha de descansar se queria ser capaz de voltar a correr.

O que faria agora a mulher com Carrie e com as outras? Teria John Paul razão? Já estariam mortas?

Forçou-se a afastar o pensamento e tentou pôr-se de novo confortável. Todos os músculos do seu corpo doíam, e os dedos dos pés latejavam. Tentou descalçar-se, mas John Paul impediu-a. Os seus pés precisavam de se aclimatizar às botas molhadas e as cãibras teriam de desaparecer com a caminhada. Ele agia como um especialista, e como ela sabia que ele tivera treino de sobrevivência com os fuzileiros, aquiesceu. Além disso, sentia-se demasiado cansada para discutir.

Avery estava determinada a não se transformar numa cínica, como a tia e John Paul. Quando a chuva começara a cair e John Paul gracejara porque ela dissera que estava na altura de descansarem, ela observara que a chuva miudinha era muito agradável e vinha acompanhada de uma neblina que era, insistira, encantadora. Sim, fora isso que dissera. Também sorrira. Depois a chuva miudinha transformara-se num dilúvio. E ainda assim ela tentara manter a atitude positiva. O que mais poderia acontecer? Já estavam molhados.

Fora então que o dilúvio trouxera granizo do tamanho de bolas de golfe que os atingiram antes de se protegerem sob as árvores.

O som de mais folhas a restolhar trouxe-a de novo ao presente. Teria ele ouvido o barulho? Ela levantou a cabeça do ombro dele e apurou os ouvidos. Uma luz acinzentada passava por entre os ramos e a chuva continuava a cair.

John Paul tinha os olhos fechados, mas quando ela o fitou, eles abriram-se devagar. O seu olhar fixou-se no dela. Avery sentia-se tão agradecida por ele estar ali consigo. Não tinha de viver sozinha aquele pesadelo, e a força dele confortava-a e dava-lhe esperança.

- Quero... - Não conseguiu dizer o resto das palavras, não foi capaz de lhe dizer o quanto agradecia a sua ajuda. Não conseguia desviar os olhos da boca dele.

- Sim, eu também quero.

Mais tarde, ela não soube dizer quem começara o beijo. Sabia que se encostara a ele, e que a sua cabeça se inclinara para ela. Ou tê-lo-ia ela puxado e ele fizera-lhe a vontade? Não se lembrava. As suas bocas haviam-se apenas... fundido.

E, oh, foi uma sensação maravilhosa. A boca dele era tão quente, e céus, como sabia baixar as defesas de uma mulher! Fê-la querer mais, muito mais. Era meigo e generoso, mas, ao mesmo tempo, bruto e exigente. A mão dele segurou-lhe o queixo e exerceu uma ligeira pressão, dando a entender que queria que ela abrisse a boca.

Avery saltou para o colo dele e pôs os braços à volta do seu pescoço. Quando ele começou a acariciá-la, ela libertou-se das suas inibições, e os seus ossos pareciam gelatina. Sentiu arrepios na barriga. A língua dele estava a deixá-la louca, fazendo-a querer ser mais ousada.

O calor do toque dele irradiou por todo o corpo de Avery. Quando terminou o beijo, reparou que as mãos dele se encontravam sob a sua T-shirt. Percebeu que ele ficara tão afectado com o beijo quanto ela, pois sentia o coração dele bater rapidamente.

Tentou sair do seu colo, retrair-se, mas ele não permitiu. Apertou-a com força, e depois encostou suavemente a cabeça dela ao seu ombro.

- Sabes o que seria bom agora? - perguntou ele num murmúrio rouco e sensual.

Ela ainda não conseguira recuperar o fôlego. Sentia o gosto dele nos lábios, e recordava todos os segundos daquele beijo maravilhoso.

A pergunta atingiu-a finalmente.

- Por favor, John Paul!

- O que foi?

- Queres sexo.

Ele não respondeu durante um longo minuto, parecendo estar a meditar na resposta.

- Bem, sim. Isso também seria bom agora. Querida, se te estás a oferecer, eu não vou recusar. - Ela não estava a olhar para ele, por isso ele pôde sorrir. - Mas o que eu queria mesmo era um cheeseburger.

A cabeça dela ergueu-se de repente. Ele conseguiu desviar o queixo mesmo a tempo.

- O quê?

- Estava a pensar que agora me saberia bem comer um cheeseburger. Com batatas fritas e uma cerveja gelada - acrescentou.

- Não te chegaram os arbustos? Ele riu-se.

- Não eram arbustos. O que te obriguei a comer eram folhas e bagas. Vão dar-nos energia - acrescentou. - Mas continuo a querer um cheeseburger. O meu cunhado viciou-me em fastfood.

- Estavas mesmo a falar de comida? Ele sorriu.

- Sim, estava, mas se estás desesperada por sexo, acho que podia fazer-te a vontade.

- Eu não quero sexo.

- Disseste que querias. Ele era mesmo exasperante.

- Não disse, não.

- E beijaste-me - observou ele. - Por isso parti do princípio...

- Oh, por favor!

- É evidente que não és capaz de tirar as mãos de cima de mim.

Não admirava que o amor e o ódio estivessem tão intimamente relacionados. Naquele momento, ela só queria estrangulá-lo. Ele gostava de a provocar e parecia estar a divertir-se.

Avery queria ter a última palavra.

- Foi um beijo sem importância.

- Então porque ficaste cheia de calor e perturbada?

- Não fiquei nada!

- Mentirosa.

Só ele para fazer com que um insulto parecesse uma carícia.

- Tu ficaste perturbado e com calor?

- Bolas, não! Ela riu-se.

- Agora quem é que está a mentir?

- A primeira regra de uma missão é dizer o mínimo de mentiras possível. Agora tenta descansar. Daqui a dez minutos partimos.

Ela não era capaz de descansar, só se se descontraísse, e havia apenas uma única maneira de o fazer. Afastou-se de John Paul, colocou-se na posição de lótus que aprendera com o professor de ioga, pôs as mãos nos joelhos, as palmas para cima, endireitou as costas e fechou os olhos. Concentrou-se na respiração, em inspirar profundamente, tentou afastar os ruídos da floresta e os seus pensamentos. Levou cinco minutos antes de sentir os músculos a abrandar.

- O que estás a fazer?

A pergunta dele trouxe-a de volta.

- O meu exercício de relaxamento.

- Ioga?

- Mais ou menos. Desanuvio a mente, e depois vou...

- O quê?

Ela suspirou. ”Para casa”, pensou, ”vou para a minha casa perfeita.”

- Vou para o meu sítio feliz - respondeu. - Está bem? Ele não se riu.

- Ai sim? Então falavas mesmo a sério? Pensei que estavas a brincar.

- Imagino um local onde me sinto bem. É um alpendre disse ela. - E vejo-me sentada num balouço. Sinto o cheiro dos lilases e ouço o barulho da água ao longe. E... tranquilizador, e liberta-me a mente. Depois começo a filtrar os dados que recolhi.

- Cada um tem as suas taras.

Ele não compreendia, mas ela também não esperara que compreendesse. Tornou a fechar os olhos, ignorando-o, e concentrou-se de novo na respiração.

Passaram mais uns minutos, e Avery começou a juntar algumas peças do quebra-cabeças. Curiosamente, foi algo que John Paul dissera que a pôs a pensar.

- O que querias dizer? - perguntou ela.

- Acerca do quê?

Ela esticou as pernas e voltou-se para ele.

- A primeira regra de uma missão é não mentir?

- Não, eu disse que se deve dizer o mínimo de mentiras possível.

- Sim, foi isso que quis dizer. Porque é que isso é uma regra?

- As mentiras podem voltar-se contra nós... atrapalhar-nos. Por isso...

- Por isso, se dissermos sempre a verdade, nunca nos atrapalhamos. Oh, meu Deus, claro!

Parecia tão excitada como uma criança numa loja de brinquedos. Abriu o fecho do bolso e tirou de lá um mapa ensopado.

- Sou mesmo idiota. O Monk pode ter lido sobre a casa no jornal e quando a Carrie lhe perguntou para onde estava a levá-la, ele lembrou-se do nome. Eu parti do princípio de que ele estava a mentir. Porque não havia de o fazer? Ele mentira a respeito de tudo o resto, mas John Paul, e se estivesse a dizer a verdade?

A tagarelice dela afligia-o.

- Estás a ficar confusa? Ela sorriu.

- Sim, mas continua a fazer sentido.

- O que estás a tentar dizer-me?

- Acho que sei onde a Carrie e as outras mulheres estão. A declaração pô-lo completamente atento.

- Achas que sabes? Como?

- A Carrie disse-me para onde é que o Monk ia levá-la. Ele semicerrou os olhos.

- E só agora é que me dizes?

- Escuta. Eu pensei que ele lhe tinha mentido. Disse-te que a minha tia deixou um recado no meu atendedor de chamadas, e que eu o apaguei, e ouviste a pergunta que fiz ao Cannon, não ouviste?

- Ouvi-te perguntar se tinha havido algum problema com a canalização.

- E o Cannon respondeu que no Utopia isso nunca acontecia. Também lhe perguntei se o spa tinha alguma casa nas montanhas.

John Paul assentiu.

- Lembro-me que ele respondeu que não.

- Como ele disse que não, não lhe fiz mais perguntas sobre a casa. A Carrie chamou-lhe retiro. Parti do princípio de que tudo o que o Monk lhe contou era mentira. Mas, e se não era?

- Porque achas que ele lhe diria a verdade em relação ao local de destino?

- É como tu dizes. Porquê mentir quando não é preciso? As mentiras podem voltar-se contra nós. O Monk já a apanhara, certo? E já lhe dissera como se chamava. Ela foi com ele sem oferecer resistência, provavelmente sem a menor desconfiança. Mas ligou-me da casa de banho das senhoras. E duvido que tenha dito ao Monk que fez a chamada. Não haveria motivo para isso.

- Se o Monk lhe tivesse dito para onde iria levá-la, não a teria perdido de vista por um minuto.

- Não podia ir com ela para a casa de banho das senhoras

- observou Carrie. - E podia não saber que ela tinha um dos telemóveis com ela.

- Um dos telemóveis? Carrie assentiu.

- Ela anda sempre com dois. É viciada no trabalho, e fica histérica se uma das baterias se vai abaixo. Além disso, um é para assuntos pessoais, outro para assuntos profissionais.

- Mais valia andar com uma bateria a mais.

- Oh, e anda! Então, o que achas?

- Queres a verdade? Acho que tens muita imaginação.

- Não, estou a analisar os dados e creio que há cinquenta por cento de probabilidades de eu ter razão. Temos de confirmar.

- Sabes onde fica essa casa?

Enquanto ele desdobrava o mapa, ela falou-lhe do cavalheiro idoso com quem conversara no MacDonald’s.

- Sim, estou a ver o círculo que ele desenhou.

Avery falou-lhe então do casal que lutava pela posse da casa.

- O juiz deve decidir em breve qual dos dois fica com ela. O senhor também me disse que a casa está vazia há semanas.

John Paul assentiu devagar.

- Está bem, acho que vale a pena irmos até lá. Acabou-se o recreio. Toca a andar.

- Temos de chegar a um telefone. Essa é a prioridade.

- Não - murmurou ele. - A prioridade é mantermo-nos vivos para conseguirmos chegar a um telefone.

E isso, sabia ele, era mais fácil de dizer do que de fazer.

 

                                             CAPÍTULO 23

Agora que as três mulheres estavam finalmente prontas para partir, sentiam-se paralisadas pelo medo.

Eram quatro da manhã e calculavam que dispunham de duas horas antes da alvorada. Sentaram-se à mesa da cozinha, vestidas para a floresta com várias camadas de roupa, a beber chá quente para se protegerem do ar frio. Uma brisa gelada entrava na cozinha pelo buraco na parede da despensa.

- E se o Monk espalhou fios pela encosta da montanha? perguntou Carrie. - O que fazemos então? Não conseguiremos vê-los no escuro.

Pensaram durante uns momentos nessa possibilidade.

- Acho que ele não se ia dar a esse trabalho - comentou Sara. - Deve pensar que nos tem aqui bem presas.

Carrie estava com tanto medo que tremia.

- Ouçam - murmurou. - Se não nos safarmos...

- Não diga isso. Vamos todas safar-nos - interrompeu Sara, mas faltava convicção à sua voz.

- Deixem-me dizer isto - insistiu Carrie. - Se eu morrer, quero que me prometam que obrigam a polícia a procurar a Avery e a protegê-la. Telefonem ao meu marido - acrescentou.

- O Tony há-de querer ajudar a Avery... - Soluçou e foi incapaz de continuar.

- Concentre-se numa preocupação de cada vez - sugeriu Sara.

- Exacto - corroborou Anne. - Concentre-se em descer pela corda.

Carrie assentiu.

- Sim, está bem. - Afastou a chávena de chá e pôs-se de pé. - Devíamos ir andando. Chega de empatar.

Anne agarrou na mão de Carrie.

- Correrá tudo bem. Vai ver.

Sorrindo, Carrie apertou-lhe a mão. Mau, mau. Os olhos de Anne estavam de novo a ficar vidrados. Provavelmente tomara um dos comprimidos para as dores. Quando Carrie fora lá acima à procura de uma saída, reparara nos frascos de medicamentos alinhados em cima da cómoda de Anne. Eram em número suficiente para abrir uma pequena farmácia.

- Lembrou-se de pôr os medicamentos no seu casaco? perguntou Carrie.

- Sim, claro que me lembrei.

- Eu posso guardar alguns frascos no meu casaco.

- Não é preciso - asseverou Anne.

- E as cartas? - perguntou Sara a Carrie. - Enfiou-as no bolso?

- Sim, tenho-as aqui.

- Muito bem. Vamos então a isto - disse Sara.

Já tinham decidido que Sara devia ir em primeiro lugar. Uma extremidade da corda de lençóis fora presa à mesa da cozinha, que não passava pela porta, mas, ainda assim, Carrie e Anne seguraram na corda enquanto Sara descia. Anne fizera grandes nós de trinta em trinta centímetros, para terem algo a que se agarrar.

Carrie foi a segunda porque Anne argumentara que, como era a mais leve, a probabilidade de conseguir descer sozinha se a corda se soltasse da mesa era maior.

Carrie queria ir em último, mas Anne não permitiu.

- Se a corda não aguentar ou se eu cair, você e a Sara talvez consigam agarrar-me, mas eu não poderia ajudar a apanhá-la a si ou a Sara. Tenho de ir no fim.

- Oh, céus, não pense em cair! Fez uma corda boa e forte, Anne. Vai aguentar.

- Sim, vai correr tudo bem.

Anne parecia estranhamente animada. Estaria de novo a enlouquecer ou a culpa seria do analgésico?

Sara foi à frente até à despensa. Carrie e Anne viram-na pegar na ponta da corda e atá-la à cintura.

- Espero que isto seja suficientemente comprido. Sara ajoelhou-se, depois avançou para a abertura.

- Ponha-se de barriga para baixo - murmurou Carrie. E vá devagar, com os pés à frente.

- Pôs a lanterna no bolso? - perguntou Anne.

- Sim, pus.

Carrie sentou-se no chão e fincou os pés na parede. Anne pôs-se atrás dela para segurar a corda. Quando Carrie começava a pensar que Sara nunca mais chegaria ao chão, a corda ficou leve. Carrie chocou com Anne. Recuperando o equilíbrio, respirou fundo.

- Acho que agora é a minha vez.

Pôs-se de barriga para baixo e aproximou-se do buraco.

- Espere - murmurou Anne. Agarrou no blusão de Carrie, enfiou um envelope grosso no bolso e correu o fecho.

- O que está a fazer?

- Você é a mais forte de nós as três, por isso, se eu e a Sara não nos safarmos, certifique-se...

- Sim? - insistiu Carrie. - Vá lá. Do quê?

- Certifique-se apenas. Agora vá.

Carrie não perdeu tempo a discutir. Descobriria o que Anne queria dizer quando se afastassem da casa.

Tinha as mãos em ferida e a sangrar, e estava demasiado assustada para chorar. Foi descendo lentamente. Anne tentou ajudá-la, mas quando tentou içar a corda para se poder agarrar melhor, quase caiu de cabeça.

Carrie chegou lá abaixo.

A corda ficou leve e Anne tombou para trás. Endireitando-se rapidamente, olhou para baixo, tentando ver as duas mulheres. Ficou um momento de gatas e ouviu os chamamentos delas.

Depois puxou a corda para cima. Recuou um pouco.

- Três ratinhos cegos, três ratinhos cegos - cantarolou. Vejam como correm, vejam como correm...

Levantou-se, sacudiu o pó das calças do fato de treino emprestado e voltou para a cozinha.

- Vejam como correm - cantou.

Que estranho, lembrara-se da canção naquele momento e não conseguia tirá-la da cabeça. Ela e Eric tinham decidido não ter filhos, mas ela agora pusera-se a cantar uma canção de embalar.

O pai costumava cantar-lha. Como é que era o resto? Seria Correram todos atrás da mulher do agricultor, e ela cortou-lhes a cabeça com uma faca de trinchar! Ou seria Fugiram todos da mulher do agricultor. E porque não se lembrava ela do resto da canção?

- Três ratinhos cegos - cantarolou baixinho, ajoelhando-se e tentando desfazer os nós dos lençóis. Percebendo que podia partir uma unha, levantou-se, foi à bancada buscar a tesoura que Carrie trouxera para baixo e cortou a corda da perna da mesa da cozinha.

- Três ratinhos cegos. - Pôs-se novamente de pé, deteve-se para beber um gole do chá morno e depois, porque sabia que Carrie e Sara a aguardavam ansiosas, foi até à abertura e atirou o lençol lá para baixo. Elas iriam com certeza perceber o significado do seu gesto. Ouviu uma delas gritar, calculou que fosse Sara pois, das duas, Sara parecia a mais meiga.

- Três ratinhos cegos. Céus, não sou capaz de tirar o raio da música da cabeça - disse, ao fechar a porta da despensa. Reparando na desarrumação da cozinha, foi até ao lava-louça, encheu-o de água quente e detergente e lavou os pratos. Depois de terminar, endireitou a mesa e as cadeiras, pôs individuais lavados diante de cada cadeira, apagou as velas e dirigiu-se para as escadas.

Sentia-se tão cansada, velha e abatida. Uma boa sesta resolveria isso, pensou. Tinha de fazer qualquer coisa em relação ao seu ar cansado. Não compreendia como mulheres elegantes e com dinheiro, como Carrie e Sara, eram capazes de usar fatos de treino. Ora, até o nome era feio. As senhoras não deviam treinar. Só as mulheres vulgares e rudes faziam coisas nojentas como transpirar, arrotar e furar a pele... ou deixavam que outros, como os médicos, mutilassem os seus corpos. O seu querido Eric não lhe dissera o que achara? Adorava o corpo dela e não podia permitir o que o médico queria fazer.

Sentindo-se um pouco tonta, Anne agarrou-se ao corrimão e subiu lentamente os degraus. Depois de um duche longo e bem quente, secou o cabelo com o secador, enrolando-o, depois escovou-o e pôs-lhe laca. Pareceu levar uma hora a decidir qual dos seus novos fatos queria vestir. Ganhou o verde com os botões prateados, porque o achava elegante e chique. Calçando os sapatos de salto alto prateados, pegou nos seus brincos preferidos, de platina e diamantes, e colocou-os. Tinham sido uma prenda de Eric no último aniversário de casamento.

Já ia no corredor quando se lembrou de que não pusera perfume. Voltando para trás, borrifou os pulsos. Suspirando de contentamento, apressou-se a descer as escadas, mas parou no último degrau. O Sol nascente transformara a sala num templo dourado. A tonalidade deixou-a sem fôlego. Eric devia estar ali para ver aquilo, pensou ela. Sim, devia.

Anne não soube quanto tempo ali ficou. Podiam ter passado dez minutos, vinte ou mais. O efeito do segundo analgésico começara finalmente a fazer-se sentir, e ela avançou aos ziguezagues pela sala, rindo-se por achar divertido não ser capaz de avançar em linha recta. Seria como estar pedrada? Estaria ela pedrada? Tentando concentrar-se, chegou ao sofá e sentou-se. Adormeceu segundos mais tarde.

Embora não achasse que tal fosse possível, Anne percebeu que chorara enquanto dormira porque, ao acordar, tinha o rosto molhado pelas lágrimas. Endireitou-se a custo e limpou-se com as pontas dos dedos. Reparando que borrara a maquilhagem, decidira voltar lá acima para se retocar quando ouviu o som de um carro a aproximar-se da casa. Ainda um pouco desorientada, levantou-se, ajeitou a gola do casaco e foi até à sala para espreitar pela janela. Os seus passos eram rígidos e desajeitados.

Um Cadillac DeVille prateado aproximava-se.

- Ora, quem poderá ser tão cedo? - perguntou Anne. Viu as horas no seu relógio Bulgari - outra prenda do seu querido Eric -, e ficou espantada ao ver que eram nove da manhã.

Anne recuou para as sombras quando o carro parou. A porta abriu-se e saiu uma mulher com uma expressão medonha. Bateu com a porta e a seguir abriu a porta de trás.

A mulher parecia-lhe vagamente familiar, mas Anne não conseguiu recordar-se onde a tinha visto. O seu rosto estava distorcido pela fúria e, embora Anne não conseguisse ouvir o que ela dizia, percebia que estava a falar porque os seus lábios se moviam.

Seria Jilly? A desconhecida tinha cabelo louro, era alta e elegante, como Carrie descrevera, mas não era o que Anne consideraria uma beldade. Talvez se a sua expressão não fosse tão hostil e exibisse um sorriso, pudesse ser considerada engraçada. Mas não bonita.

Tinha uma pele maravilhosa; Anne teve de reconhecer isso. Ao longe parecia quase perfeita, e Anne decidiu que iria descobrir que produtos de limpeza ela utilizaria para ter uma pele tão perfeita. Ou seria base? Iria descobrir.

O corte de cabelo era demasiado curto e espetado, mas a cor era linda. ”Madeixas”, pensou Anne, perguntando a si mesma se a mulher lhe daria o nome do seu cabeleireiro. Seria capaz de tudo para ter umas madeixas daquelas. Sentindo-se de repente mal com a sua aparência, ajeitou o cabelo, certa de que o despenteara a dormir.

- Céus - murmurou Anne quando viu o que a mulher transportava. Tinha uma lata vermelha de gasolina numa mão e um machado na outra. - O que julga ela que vai fazer?

A mulher tinha a cabeça baixa e ainda não a vira mas quando subiu os degraus, Anne recordou-se onde a tinha visto. Fora num dos recortes que encontrara na arca. Oh, sim, agora lembrava-se. A mulher e o ex-marido lutavam pela posse daquela casa.

Anne correu para a entrada e parou junto dos painéis de vidro que emolduravam a porta. Agora conseguia ouvir o que a mulher estava a dizer. Anne levou a mão à garganta. Ficara abismada com a sua má-criação. A mulher devia ter dito a palavra começada por F uma dezena de vezes, furiosa com o juiz por ter decidido contra si.

Ah!... agora Anne compreendia. A casa fora atribuída ao marido. Anne não sentiu pena daquela mulher ordinária. Obviamente fora uma má esposa. Não devia o marido tomar todas as decisões importantes? Fora ele que pagara a casa. Devia ficar com ela.

A mulher subiu as escadas do alpendre aos berros.

- Aquele filho-da-puta acha que vai ficar com a minha casa e deixar-me sem um tostão? Que se foda o acordo pré-nupcial! Acha que estou a fazer bluff. Eu disse-lhe que ele nunca viveria aqui. Surpresa, surpresa, estupor! - Viu Anne e estacou. Quem raio é você e o que está a fazer na minha casa?

- Olá! - cumprimentou Anne. - O que vai fazer com esse machado e essa lata?

- Não é da porra da sua conta.

- Agradecia que não dissesse obscenidades na minha presença. Ofende-me.

A mulher pousou a lata de gasolina, largou o machado e tirou a chave do bolso.

- O estupor arranjou uma governanta? - gritou ela para que Anne a ouvisse.

- Asseguro-lhe que não sou a governanta.

- Abra a porra da porta.

- Oh, acho que não é boa ideia.

A mulher enfiou a chave na fechadura e tentou rodá-la.

- Raios o partam! - gritou quando percebeu que não conseguia. - Como se atreveu a mudar a fechadura? Como se atreveu? Ele sabia... tinha o juiz comprado. Bem, ele que se foda!

Tirou a chave da fechadura, atirou-a para o chão e olhou furiosa para Anne.

- Se não abrir a porta, uso o machado. Você não há-de querer irritar-me, sua cabra. Hoje não.

- Está a ameaçar-me?

- Abra o raio da porta.

O sorriso desdenhoso foi a gota de água. As lágrimas encheram os olhos de Anne quando abriu a porta e tentou sorrir.

- Quer entrar?

Houve um intervalo de um segundo, suficiente para a mulher empurrar Anne para trás e entrar.

A explosão arrasou metade da montanha.

 

                                       CAPÍTULO 24

Acompanhar Jilly era uma actividade a tempo inteiro, mas Monk considerava-a bastante recompensadora. Há anos que não se sentia tão vivo. Ele era o elemento cauteloso, claro, ao passo que ela, com o entusiasmo de uma novata, planeava os seus grandes esquemas, sem nunca se preocupar com as pequenas coisas, como o facto de o FBI ter detectado um dos cartões de crédito que ela utilizara.

Monk não podia culpá-la por esse erro. Culpou-se a si mesmo porque devia ter destruído os cartões depois de os ter utilizado. Guardava todos os cartões de crédito com os seus vários nomes e moradas na pasta, e Jilly servira-se dos primeiros em que a sua mão havia tocado.

No entanto, o resultado não fora tão mau quanto seria de esperar. John Paul Renard estava agora envolvido, e Monk ficou encantado com essa reviravolta. Sabia que Renard andava a tentar detectar os seus movimentos há mais de um ano. Interceptara várias perguntas que Renard fizera a várias forças policiais na Europa. Agora Monk tinha a oportunidade de livrar-se daquele chato antes que ele causasse problemas sérios, e podia fazer as vontades a Jilly durante algum tempo.

Antes de terem decidido usar o Utopia para atrair as mulheres a Aspen, a sua querida namorada divertira-se à grande, sentada à secretária hora após hora, a ler os apontamentos. Oh, como ela adorava a intriga, a excitação e, acima de tudo, o perigo; tentava também ensinar Monk a divertir-se. Sempre que ele fazia alguma coisa para lhe agradar, como concordar com uma mudança de última hora nos planos complicados, ela recompensava-o de formas bastante criativas. Todas elas de natureza sexual. Ele corava como um adolescente só de pensar em alguma das coisas que ela lhe fizera e deixara que ele lhe fizesse.

Ela estava a transformá-lo num verdadeiro romântico, mas ele não considerava isso uma fraqueza, pois a sua obsessão era em relação a Jilly e a mais ninguém. Acreditava de todo o coração que, se os jogos eróticos disputados na cama não o matassem, envelheceriam juntos.

Oh, sim, ela era uma obsessão. Todos os minutos que passava acordado pensava nela. Desde que se mantivesse atento e corrigisse os seus erros estariam a salvo.

Monk tivera de dissuadir Jilly de um plano. Ela brincara fugazmente com a ideia de raptar Avery e de se sentar junto dela para lhe contar a verdade sobre Carrie. Jilly era tão inocente. Acreditava ser capaz de converter a filha. Monk explicou-lhe que, depois de vários anos de lavagens ao cérebro efectuadas por Carrie, Jilly nunca conseguiria convencer a filha de que era, na verdade, uma mãe extremosa.

Jilly estava longe de ser perfeita. Tinha uma visão retorcida da maternidade, pois acreditava que como dera à luz Avery esta lhe pertencia. Falava de Avery como algo que possuía, não como uma pessoa, e Carrie roubara-lhe esse tesouro precioso. Durante anos, a raiva pela irmã crescera, mas Jilly era paciente no que tocava à vingança. Por muito tempo que levasse, iria vingar-se.

Insistiu em ser ela a carregar no botão que faria explodir a casa. Prometeu a Monk que não verteria uma lágrima por causa da morte da irmã. Carrie era culpada do que lhe estava a acontecer. Fora por sua causa que Jilly nunca conseguira ser bem-sucedida; era por sua causa que Avery a odiava. Ela era a razão de todos os fracassos de Jilly. E por isso era justo que Jilly visse a irmã morrer.

Monk não ficou abalado com a honestidade brutal de Jilly. Como podia ele atirar a primeira pedra? Ela aceitara-o com todos os seus pecados, e ele não podia fazer menos por ela.

Agora andava a tentar corrigir os erros na mina abandonada. Jilly tivera a certeza que eles iriam descer pelo poço abandonado para encontrar a pista seguinte a respeito do paradeiro de Carrie, e, nessa altura, Monk poderia ter atirado uns explosivos para o buraco, selando-o e seguindo Jilly até ao retiro.

Monk não acreditara que Renard iria entrar no poço, e tivera razão. No entanto, pensara que poderia ter alvejado os dois e lançado os corpos para o poço, mas perdera a sua oportunidade quando eles se tinham atirado para o rio.

Naquele momento andava atrás deles. Perdera tempo precioso a regressar ao carro e a atravessar o rio, mas com o carro conseguira ganhar algum tempo e chegara ao local para onde esperava que eles se dirigissem.

Renard não deixara pistas, mas Monk conhecia bem o ex-fuzileiro e não esperava outra coisa dele. Quando o investigara, lera a sua história e ficara impressionado. Acreditava que, em circunstâncias diferentes, poderiam ser amigos. Eram, afinal de contas, muito parecidos. Monk matara por dinheiro, Renard, por uma questão de honra. No entanto, isso não o tornava superior. Quando muito, fazia dele um idiota.

Ainda assim, ele gostaria de ter tido a oportunidade de se sentar com ele, de partilharem umas cervejas geladas e falarem sobre as suas proezas. Contudo, Renard nunca alinharia em tal coisa. O homem era demasiado honrado para seu próprio bem. Segundo o seu dossiê, a que Monk tivera acesso, Renard sofria de um esgotamento. Monk não acreditava num disparate desses. Achava que Renard abandonara o emprego quando percebera que começava a gostar do poder que sentia de cada vez que puxava o gatilho. A honra que se lixasse.

Teria Renard a mesma curiosidade quanto a ele? Gostaria que se sentassem para discutir a excitação da caçada, a satisfação da matança? Monk desejava descobrir. Talvez conseguisse feri-lo, paralisá-lo, e sentar-se então ao lado dele - os dois a conversarem como bons amigos até Renard se esvair em sangue. Não seria extraordinário poder fazer isso com alguém igual a si, comiserarem-se, vangloriarem-se?

Monk riu-se. Quem estava agora com fantasias? Olhou para o relógio e abanou a cabeça. Se não avistasse aqueles dois em breve, teria de ir buscar o carro e ir até ao local onde Jilly o aguardava. Ela estava desejosa de regressar ao retiro na montanha para ver como a irmã estaria a aguentar-se. Naquela altura, as mulheres já se deviam ter atirado umas às outras como gatas assanhadas, cada uma mais aterrorizada que a outra. Pelo menos era isso que Jilly esperava.

”Pára com os devaneios”, ordenou a si próprio. Pegou no binóculo potente e observou de novo o terreno. Voltara-se para norte quando viu a torre de observação à distância, talvez a uns dois quilómetros. Dela descia um guarda-florestal. Monk continuou a observá-lo até ele chegar ao solo.

- Bem, bem - murmurou ao fazer os cálculos. - És do meu tamanho.

Uma hora depois, encontrava-se no cimo da torre, a observar o terreno circundante. Olhou para os arbustos em baixo e viu a T-shirt branca do guarda-florestal que matara com um tiro nas têmporas e a seguir despira.

Estava prestes a desistir da perseguição quando de repente avistou o casal. O cabelo louro de Avery, tão parecido com o da mãe, brilhava à luz do Sol. Monk mal podia acreditar na sua sorte. Ali estavam eles, a descer a montanha, com um aspecto exausto. A sua gargalhada ecoou em redor. Iria contar a Jilly e saberia o que ela lhe diria: que ele era um homem cheio de sorte.

Ele concordaria, claro, muito embora soubesse que a sorte pouco tinha a ver com o facto de ter encontrado a presa. Depois de observar o mapa, calculara que se eles sobrevivessem ao mergulho no rio, sairiam da água antes da queda em Coward’s Crossing.

Monk decidira ir esperá-los. Desceu a escada da torre de observação e dirigiu-se ao carreiro, a pala do boné a ocultar-lhe o rosto.

Quando chegou à clareira entre as árvores, virou-se devagar e fingiu vê-los pela primeira vez. Levantou a mão para acenar.

- Atira-te para o chão, Avery. Já! - ordenou John Paul. Ela não hesitou. Fingindo tropeçar, baixou-se sobre um joelho. John Paul imitou-a e segurou-a pelos ombros.

- Finge que te magoaste.

Rolando, ela agarrou-se ao tornozelo e fez uma careta. Apetecia-lhe gritar de desapontamento.

- Ele não é um guarda-florestal, pois não?

- Não.

Continuou a esfregar o tornozelo.

- Como é que sabes?

- Vi a espingarda dele. Os guardas-florestais não têm miras telescópicas nas espingardas.

Ela fitou-o.

- Conseguiste ver a mira a esta distância?

- A luz do sol bateu nela - explicou John Paul. - Acho que é ele. Não estou a dizer que seja o Monk, mas...

- Pensar que talvez seja é suficiente para mim.

- Muito bem. Agora vou ajudar-te a levantar. Amparas-te a mim, e começamos a descer, mas viramos para oeste. Quando chegarmos às árvores, desatamos a correr.

- Ele há-de vir atrás de nós.

- Pronta?

Não lhe deu tempo para responder e içou-a, amparando-a ligeiramente.

- Mexe-te - ordenou quando começaram de novo a andar. Caminharam como dois bêbedos para oeste.

John Paul tentava manter-se fora do alcance de Monk. Tinha agora a certeza de que o homem vestido de guarda-florestal era o assassino, porque ele não se movera. Os guardas-florestais eram prestáveis, não eram?

- Ele está à espera que fiquemos ao alcance de um tiro.

- Oh, meu Deus!

- Estás com medo?

- Não!

A resposta dela fê-lo sorrir.

- Isso é bom - disse ele. - Muito bem, querida, começa a correr.

Ela desatou a correr para a segurança das árvores. John Paul seguia-a de perto, mas olhou rapidamente para baixo e viu Monk correr na direcção deles. Tinham um bom avanço. Avery foi descendo com firmeza, esperando interceptar a estrada abaixo de Monk, e rezando para verem campistas ou guardas-florestais que os pudessem ajudar.

Os seus ouvidos zuniam. Que som era aquele? O vento a assobiar por entre as árvores? Ou seria o som de tiros? Não, não era.

O barulho parou tão subitamente como começara; a seguir recomeçou, mas mais intenso. Parecia um assobio.

- Ouves... aquilo? - ofegou ela.

- Sim.

Depois Avery ouviu uma trombeta. Estaria a perder o juízo?

Continuou a correr, respirando a custo, os pés a bater na terra macia.

Doíam-lhe os músculos das pernas. De súbito, desequilibrou-se. Teria mergulhado de cabeça se John Paul não tivesse reagido instintivamente, levantando-a sem abrandar o passo.

Abrandou um pouco ao largá-la, depois manteve-se ao seu lado não fosse ela tornar a desequilibrar-se. De repente, saíram das árvores, atravessaram a estrada... e viram-se no meio de um acampamento de escuteiros. Antes de conseguir parar, John Paul derrubou uma tenda e o chefe dos escuteiros, que ficou sem fôlego. A trombeta que ele tinha na mão voou na direcção de outra tenda.

- Telemóvel! - gritou Avery ao homem esparramado no chão. - Precisamos do seu telemóvel.

- Aqui não há rede - respondeu ele, erguendo-se nos cotovelos. Tinha o rosto vermelho de fúria. - Quem raio julgam vocês...

John Paul vigiava a estrada. Monk não teria qualquer pejo em limpar o sebo a uns miúdos, desde que chegasse aos seus alvos principais. Um dos rapazes gritou quando viu a arma enfiada no cós das calças de John Paul. Um olhar mortífero silenciou o rapaz.

Avery ajoelhou-se ao lado do chefe.

- Ouça, precisamos de ajuda. Vem aí um assassino. Onde está o vosso transporte? Responda-me, por favor.

Ele percebeu o pânico dela.

- Temos aqui uma caravana, mas o meu jipe está estacionado junto à estrada, a uns oitocentos metros daqui. As chaves estão no meu casaco, dentro daquela tenda com os números pintados.

John Paul levantou Avery.

- Meta-se na caravana e leve os rapazes daqui! - gritou ele para o homem, enquanto empurrava Avery para o declive seguinte, mantendo-se protegido no meio das árvores.

- Vá até um telefone e peça ajuda! - exclamou Avery.

As suas pernas tremiam, e ela achava que não seria capaz de correr durante muito mais tempo. Concentrando-se em pôr um pé à frente do outro, sentindo o coração acelerado, lembrou-se de repente que não tinham ido buscar as chaves.

- Temos de voltar para trás... as chaves.

- Não precisamos delas. Agora mexe-te, miúda. Começas a arrastar-te.

Ela ainda pensou em esconder-se algures e esperar que John Paul regressasse com o carro. Conseguiria encontrar um esconderijo onde Monk não a iria descobrir, não?

”Aguenta-te. Bolas, não quero! Eu sou capaz. Sou capaz.” Manteve o ritmo até a dor de lado na barriga se tornar excruciante. Perguntou a si mesma se poderia morrer na vertical. Claro que sim.

As lágrimas vieram-lhe aos olhos ao ver o jipe parado na berma junto a uma curva. John Paul ultrapassou-a. Partiu o vidro de trás, enfiou lá a mão e destrancou a porta da frente.

Avery correu para o outro lado enquanto ele lhe destrancava a porta. Levou menos de quarenta e cinco segundos a fazer uma ligação directa, a meter a mudança e a arrancar.

Ela estava impressionada.

- Eras delinquente em miúdo?

Assim que descreveram a curva, ela deixou-se cair contra o banco e foi-se abaixo, soluçando.

- Estás a chorar?

- Não.

- Parecia que estavas - insistiu ele, observando-a.

- Estou contente. - Ela limpou rapidamente as lágrimas de alívio.

John Paul sorriu. Sentia o mesmo, mas foi sol de pouca dura.

- Raios!

- O que foi?

- A estrada volta para trás... ele pode já vir a descer, estar em posição... ah, gaita, é isso que ele vai fazer, e aqui é impossível sairmos da estrada.

Inclinou-se para a frente, tirou a arma do cós das calças e pô-la no regaço. Baixou o vidro e pegou na arma. Ela pegou também na sua arma e baixou o vidro.

- O que diabo estás a fazer? - perguntou ele.

- A preparar-me, como tu.

- Não. Afasta-te da porta e baixa-te. Se ele aparecer, será do teu lado.

Ela ignorou a sua ordem.

- Diz-me só quando devo começar a disparar. Assim mantemo-lo agachado até passarmos.

Parecia um óptimo plano, e ela disse-o com ênfase, mas apenas por não acreditar que Monk fosse capaz de descer a colina tão depressa.

Estava enganada. Viu-o antes de John Paul.

- Baixa-te! - gritou John Paul.

A resposta dela foi destravar a arma. Encostando-se à porta, pôs o braço de fora da janela, apoiou o cano no espelho lateral e aguardou. Baixou-se o mais que pôde.

Quando Monk se agachou e levantou a espingarda, John Paul gritou:

- Agora!

Dispararam ao mesmo tempo várias vezes enquanto se aproximavam do assassino. Monk atirou-se para o chão, a fim de se proteger, depois rolou e levantou a arma. Avery continuou a disparar.

A estrada descrevia uma curva ascendente. Havia uma estrada de terra que virava subitamente para sul e que os levaria para longe da montanha, mas John Paul sabia que àquela velocidade o jipe capotaria se tentasse meter para lá.

- Estou sem munições.

Ela virara-se para o olhar quando ele lhe pôs a mão na nuca e a obrigou a baixar a cabeça.

- Para baixo - ordenou no momento em que o vidro de trás se estilhaçou.

Continuavam a subir e tinham feito outra curva apertada quando Monk rebentou o pneu traseiro esquerdo.

O carro começou a fazer um pião. Derraparam para fora da estrada, na direcção dos arbustos, livrando-se por pouco de um choque frontal com uma árvore, e pararam quando bateram numa pedra.

- Mexe-te! - gritou ele ao saltar do carro e desatar a correr para o lado dela. Avery não sabia para onde iam, só que estavam de novo a subir. O coração batia-lhe violentamente. Correu pelo declive íngreme acima, e parou.

- Não! - exclamou. John Paul parara ao seu lado.

- Ah, raios!

Ela sentiu vontade de chorar quando olhou para a água lá em baixo. Não, outra vez não!

- Não salto - declarou, abanando a cabeça. - Não podes obrigar-me.

Ele olhou-a cheio de pena antes de a agarrar.

- Claro que posso.

 

                                             CAPÍTULO 25

Pitoresco uma ova. Se Avery visse mais torrentes de água tinha a certeza de que iria começar a gritar e talvez nunca mais parasse. Naquele momento, também não lhe agradavam os pinheiros. Odiava-os todos. Não gostava igualmente de John Paul. Ele atirara-a do penhasco abaixo como se ela fosse papel de rebuçado, e enquanto caía Avery jurara que, se sobrevivesse, o mataria, apenas por uma questão de prazer.

Sabia que estava a ser irracional. Não se importou. O seu mau humor intensificou-se quando fez um golpe numa rocha afiada. Se estivessem no mar, o sangue que saía da ferida teria sido um chamamento para os tubarões. Tentando ter pensamentos positivos enquanto procurava manter-se à tona da água, disse a si mesma para dar graças por não haver tubarões por perto. E a perna não lhe doía assim tanto se comparada com a cãibra que quase a fizera afogar-se. John Paul puxou-a para a margem, carregou-a para junto das árvores, onde estariam protegidos, e largou-a. Ela aterrou de rabo.

Ele sentou-se ao seu lado.

- Não foi assim tão mau, pois não?

Como ela engolira água que dava para encher uma piscina, não conseguiu responder àquela pergunta estúpida. Afastando o cabelo dos olhos, fitou-o furiosa.

- Não foi tão mau como o primeiro salto, pois não? Acho que a queda foi inferior a seis metros - disse ele.

- Empurraste-me de um precipício.

Na verdade, ele não a empurrara. Tanto quanto John Paul se lembrava, atirara-a para ela não bater nas rochas lá em baixo. No entanto, achou que não era boa ideia referir isso.

- Achas que tive alternativa?

Ela não estava pronta para admitir que não houvera de facto alternativa. As pistolas nada podiam fazer contra a espingarda de Monk, e ele estivera quase a apanhá-los.

- Não quero falar nisso. Ele sorriu.

- Afinal, onde está a tua atitude positiva?

- No fundo do rio.

Ele pôs-se de pé e estendeu-lhe a mão.

- Anda. Vamos sair daqui.

Avery não sabia se tinha forças para se levantar. Estava tão cansada, gelada e molhada. ”Aguenta”, pensou.

- Está bem - respondeu, agarrando na mão dele. Quando ele a içou, ela tombou contra ele. John Paul abraçou-a com força enquanto decidia que direcção deviam tomar.

- Não estás cansado?

- Sim, estou.

- Talvez ele desista agora - disse ela, olhando para o rio. John Paul abanou a cabeça.

- Isso não vai acontecer. Ele é um profissional. Aceitou o contrato, e não deixará de nos perseguir até...

- Até ser bem-sucedido?

- Ou até eu o matar.

- Voto na segunda opção.

Ouviram gargalhadas de crianças. Avery afastou-se dele e começou a correr na direcção do barulho.

- Espero que tenham um telefone.

- Duvido que haja rede. Ela sorriu.

- Aí está a negatividade de que tanto gosto. Já estava a ficar preocupada, John Paul. Por momentos, pensei...

- O quê?

- Que estavas animado.

- Uma ova é que estava!

Até parecia que ela o insultara. Avery ia a rir-se quando correu na direcção do som. A razão do seu súbito bom humor era alegria ou histeria. Uma família de cinco pessoas estava a montar as tendas junto a um pequeno riacho.

Após uma breve explicação, todos se meteram na carrinha da família e dirigiram-se para a povoação que o homem se recordava de ter atravessado no caminho.

Meia hora mais tarde chegaram à pequena e tranquila comunidade de Emerson. A Baixa eram quatro ruas. O pai parou a carrinha diante de um edifício de pedra de dois andares. Assim que eles desceram e fecharam a porta, o homem arrancou.

- Acho que deves tê-lo assustado - observou Avery.

- Quanto mais depressa ele afastar a família de nós, mais em segurança ficam.

Surpreendentemente, por causa do tamanho da povoação, havia uma esquadra. A esquadra partilhava o edifício com os bombeiros, de um lado, e o Bud’s Burgers do outro. Havia três portas com cartazes em cima. Entraram pela do meio e viram-se num corredor amplo. Havia portas de vaivém de ambos os lados. Uma dava para o restaurante, a outra, para os bombeiros. A esquadra ficava em frente.

O aroma dos hambúrgueres, da cebola e das batatas fritas impregnava o ar, mas não abriu o apetite de Avery. Deixou-a até um pouco enjoada. A falta de comida, a corrida de vários quilómetros, o frio e o medo haviam deixado a sua marca. Avery sentia-se exausta. Ir da porta até ao balcão era mais difícil do que sobreviver às correntes. Parecia que os seus pés pesavam cem quilos, e precisou de toda a sua determinação para se conseguir mexer.

John Paul percebeu que ela estava com dificuldades. Parecia murchar diante dos seus olhos.

- Estás bem? - perguntou, passando-lhe um braço pela cintura.

- Parece que estou com rigor mortis - respondeu ela. Ainda não morri, pois não?

- Pelo menos ainda respiras - disse ele com um sorriso. Olhou através da vidraça e viu um chefe da polícia sentado à secretária. Tinha uma pilha de papéis à frente e estava a analisá-los. De tantos em tantos segundos olhava para um televisor pendurado na parede atrás do balcão. Com umas calças azul-escuras e uma camisa branca com uma chapa a dizer ”chefe Tyler”, o homem de meia-idade franziu o sobrolho quando pegou numa folha.

Atrás do balcão estava uma sexagenária de costas para a porta.

Tinha o cabelo tão branco quanto o rosto de Avery. Parecia hipnotizada pelo programa na televisão.

John Paul ouviu-a falar quando abriu a porta.

- Não te disse que ia acontecer uma coisa má? Não te disse, Bud?

- Sim, Verna, disseste.

- E não te disse que foi ele o causador? A cortar todas aquelas árvores lindas e a escavar a montanha só para construir um monumento a si próprio? Parece que a mãe natureza decidiu vingar-se, não?

O chefe não estava a prestar muita atenção.

- Sim - disse numa voz arrastada enquanto continuava a olhar para a folha que tinha à frente.

- Se queres saber a minha opinião, ele é o mau da fita. Tenho pena da mulher dele.

- Queres dizer ex-mulher, não é?

- Isso. Livrou-se dela para ir viver com uma modelo mais nova. Se queres saber a minha opinião, ele é um criminoso. Pobrezinha. Ele habituou-a à boa vida e depois tirou-lhe o tapete de baixo dos pés.

O chefe da polícia estava claramente a ficar exasperado. Pousou a folha na mesa e olhou para a televisão.

- ”Pobrezinha”? Não viste a entrevista que lhe fizeram a semana passada? Tiveram de censurar todas as palavras que ela disse. Ele foi maluco por ter casado com ela.

- Mas como é que ela se vai aguentar agora?

- Pode arranjar um emprego e começar a trabalhar como nós. Ninguém lhe encostou uma arma à cabeça para assinar o acordo pré-nupcial.

John Paul e Avery tinham estado a escutar à porta. Entraram quando Verna estava a dizer ao chefe da polícia que aquilo era uma grande vergonha. O chefe viu-os, hesitou, depois levantou-se.

- O que é que vos aconteceu?

- É uma longa história.

- Terei todo o gosto em ouvi-la.

Avery libertou-se de John Paul e dirigiu-se ao balcão. Verna ficou de olhos arregalados quando ela se aproximou.

- Chamo-me Avery Delaney - disse ela.

- Está encharcada! O que é que lhe sucedeu? Coitada! Avery não sabia por onde começar. Viu John Paul apertar a mão ao polícia e sentar-se na cadeira que ele lhe indicava, Decidiu deixá-lo explicar.

- Posso usar o vosso telefone? - perguntou. - Tenho de ligar para o FBI.

Os olhos de Verna pareciam sair das órbitas.

- Bud? - perguntou ela por cima do ombro. - A senhora quer ligar para o FBI.

- Deixa-a usar o telefone - respondeu o chefe da polícia. Estava inclinado para a frente a ouvir atentamente as explicações de John Paul.

Verna colocou um telefone preto antigo em cima do balcão.

- Há duches no primeiro andar por cima dos bombeiros e divãs confortáveis também. Enquanto faz o telefonema, eu vou buscar-vos uns cobertores. Os seus lábios estão a tremer. Vai ficar com hipotermia se não aquecer em breve.

- Obrigada - respondeu Avery. - É muito simpático da sua parte.

Avery pegou no auscultador e voltou a pousá-lo. Exausta, não era capaz de se lembrar do número de telefone dos colegas. Fechou os olhos e tentou concentrar-se. Seria três nove um ou nove três um?

Talvez pudesse ligar a Cárter. Qual era o número particular dele? Então ouviu John Paul perguntar ao chefe da polícia se ele já ouvira falar numa propriedade chamada Terra Entre os Lagos.

- Todas as pessoas do Colorado ouviram falar nessa propriedade.

- A que distância fica daqui?

- Bastante longe - respondeu o homem. - E com todos os curiosos que lá estão, você não conseguiria sequer aproximar-se. A polícia já selou a zona. O melhor é ver na televisão.

John Paul não sabia do que é que o outro estava a falar. Olhou para o ecrã.

Nove três um. Era isso. Avery pegou no auscultador e começou a marcar. Quase o encostara à orelha quando olhou para o televisor. Imobilizou-se, o número de telefone de novo esquecido.

Um apresentador local anunciava que tinham imagens novas da tragédia recolhidas junto a Aspen por um montanhista que captara a explosão na câmara de vídeo.

- A decisão do juiz foi anunciada às oito e um quarto da manhã de hoje, atribuindo a posse da mansão a Dennis Parnell. Para quem acabou de se juntar a nós, repetimos que, no final desta manhã, a mansão Parnell, conhecida como Terra Entre os Lagos, foi destruída numa explosão.

O telefone caiu no chão ao mesmo tempo que Avery.

 

                                                          CAPÍTULO 26

Atordoada com o choque e o desespero, Avery era incapaz de se mexer. Carrie estava morta. Carrie, que lhe dera o seu amor incondicional, sempre, por muito furiosa que Avery a tenha deixado com a escolha da sua carreira profissional.

E Avery não conseguira salvá-la. Carrie ainda estaria viva se Avery se tivesse mexido mais depressa ou tivesse sido mais esperta. Aquele tempo todo desperdiçado a correr de um lado para o outro a mando da maluca ao telefone que a atormentara dizendo-lhe que ela poderia salvar Carrie. Devia ter arranjado forma de salvar Carrie e as outras mulheres. Agora era demasiado tarde.

John Paul segurou-a nos braços e deixou-a falar enquanto ela repetia uma e outra vez que a culpa era sua.

Verna fez sopa e praticamente alimentou Avery à força, depois levou-a para o andar de cima e ficou à porta como uma guarda prisional enquanto ela tomava duche.

- Coitadinha - repetiu a mulher várias vezes ao ouvir os soluços de Avery.

Quando ela terminou, Verna entregou-lhe uma das T-shirts cinzentas do chefe da polícia e levou as suas roupas para lavar.

Manteve-se perto de Avery como uma mãe ansiosa. Sentou Avery numa das camas e ajoelhou-se no chão com o estojo de primeiros socorros. O corte na perna não era profundo, mas precisava de ser desinfectado. Aplicou bastante tintura de iodo e passou uma ligadura em volta.

Depois de terminar, aconchegou os cobertores a Avery e foi preparar uma chávena de chá bem quente. Quando chegou à porta e se voltou para perguntar se ela queria um pouco de leite no chá, Avery já adormecera.

John Paul estava sentado ao fundo das escadas.

- Ela está bem?

- Está a dormir, e agora isso é o melhor. Parecia de rastos.

Assentindo, John Paul regressou à esquadra. O chefe da polícia encontrava-se ao telefone, a confirmar que John Paul era quem dizia ser. Quando obteve a informação pretendida, a sua atitude tornou-se mais aberta e simpática.

- Os reforços vêm a caminho - disse ele. - Sei que deve estar com fome, por isso liguei para o restaurante e um dos empregados vai-lhe trazer comida.

- Obrigado - disse John Paul.

- Investiguei-o. Você foi fuzileiro.

- Sim.

- Eu estive no exército. Passei por West Point, depois estive algum tempo na Alemanha. O meu melhor amigo era fuzileiro. Morreu no ano passado e tenho muitas saudades dele. Era um bom homem.

John Paul não sabia porque é que o outro estava a contar-lhe aquilo.

- Ouvi dizer que você é bom atirador - prosseguiu Tyler.

- Acha que vêm aí sarilhos? Até o FBI chegar, estamos por nossa conta.

- Se o Monk souber onde estamos, talvez queira acabar connosco aqui. Mas não creio que ele saiba, e calculo que tenha voltado para trás para se reorganizar. Era isso que eu faria.

- Não podemos correr riscos - retorquiu Tyler levantando-se e dirigindo-se para um armário do outro lado da sala. Tirou uma chave do bolso e abriu o cadeado. Quando as portas se abriram, John Paul sorriu. O chefe Tyler tinha um arsenal à sua disposição.

- Gosta de estar preparado para qualquer eventualidade, não gosta? - perguntou num tom de aprovação.

O chefe da polícia sorriu.

- As vezes aparecem por aí uns ursos irritadiços e tenho de ir atrás deles.

- Vai atrás deles com uma M mil novecentos e onze?

- Não, isso é uma relíquia dos meus tempos no exército. Escolha o que quiser. - Virando-se para a assistente, disse: Verna, vai para casa, para junto da tua filha, e fica lá até isto ter terminado.

- Não quero deixar aquela pobre rapariga sozinha. Precisa de ser confortada. Tenho medo de que entre em choque.

- Ela é mais rija do que parece - disse John Paul. - Eu cons... eu tomo conta dela.

Quase se amaldiçoou por ter dito que consolaria a mulher, mas contivera-se a tempo. O que se passava consigo? Não tinha ideia do que podia fazer para ajudar Avery a sentir-se melhor, só sabia que não queria que ela chorasse no ombro de ninguém. Nada daquilo fazia sentido para si. Ela confundia-o, fazia-o agir de maneira diferente e punha na sua cabeça ideias malucas e impossíveis. Não compreendia como nem porquê ela se tornara tão importante para si, sabia apenas que queria salvá-la do perigo... a todo o custo.

Proteger e servir. Se continuasse a pensar assim, acabaria de novo do lado da lei e da ordem. Estremeceu ante a possibilidade.

O chefe da polícia interrompeu os seus pensamentos.

- Tenho umas portas sólidas com umas boas fechaduras. Há uma saída nas traseiras e essa porta tem uma vidraça, mas mandei instalar um alarme por causa das armas todas que aqui tenho e ele ouve-se em toda a cidade se alguém tentar entrar.

John Paul foi inspeccionar as portas e as janelas. Quinze minutos mais tarde, ele e Tyler estavam satisfeitos, com tudo fechado. John Paul comeu, foi ao primeiro andar tomar duche e vestiu as calças de fato de treino e a T-shirt que Tyler lhe dera. Quando saiu da casa de banho, Verna estava à espera com um saco de plástico para as roupas molhadas.

- O meu genro passa por cá a deixá-las, juntamente com as da Avery, quando estiverem secas - disse ela ao começar a descer as escadas. - Tome conta dela, ouviu?

- Assim farei - prometeu ele.

Foi-se embora pouco depois com a filha.

Tyler insistiu que seria capaz de se aguentar sozinho enquanto John Paul passava pelas brasas.

Ele não discutiu. Tentou não fazer barulho ao entrar na camarata onde Avery estava a dormir. Havia quatro camas, todas com roupa lavada, encostadas a uma parede. Tyler dissera-lhe que quando o edifício fora construído a povoação julgara que iriam ter bombeiros a tempo inteiro, mas como a povoação não se desenvolvera conforme o esperado, o orçamento não podia suportar bombeiros assalariados. Agora eram voluntários.

John Paul reparou que a janela estava destrancada. Dava para a viela nas traseiras, e havia uma escada de incêndio alguns metros para a esquerda. Trancou a janela e sentou-se na cama ao lado da de Avery.

Ela dormia de barriga para cima. Tinha o rosto lavado e o cabelo ainda húmido, e ele achou que Avery era a mulher mais bonita que ele já vira. Parecia um anjo, mas havia nela um pouco de azedume, sempre a querer dar ordens. Ele gostava que ela lhe fizesse frente, que tentasse fazer prevalecer a sua opinião. Também gostava da atitude dela. Via o mundo como ele o vira quando ainda era ingénuo.

Estava cansado, e com certeza a sua fadiga era a razão por que tinha aqueles pensamentos idiotas. Quando o FBI chegasse, ele ir-se-ia embora. Tão simples como isso. Avery gostava de trabalhar em equipa, por isso iria deixar que a sua equipa tratasse dela.

- Bolas! - exclamou ao deitar-se.

Dormiu duas horas antes de Tyler o acordar. John Paul ouvira-o subir as escadas e tinha a arma apontada e pronta a disparar quando ele abriu a porta.

Tyler esperou que John Paul pousasse a arma. Depois entrou.

- Temos companhia - murmurou. - O FBI chegou e o manda-chuva quer falar consigo.

Avery continuava a dormir. Afastara o cobertor e tinha uma perna pendurada. Tinha uma ligadura acima do tornozelo. A ligadura estava suja de sangue. Quando é que ela se ferira?, pensou ele ao levantar-lhe a perna e ao metê-la debaixo do cobertor. E porque não lhe contara?

Sabia a resposta. Ela seria incapaz de se queixar.

Combatendo a vontade de a beijar, foi à casa de banho lavar o rosto com água fria.

Irritou-se ao pensar nas perguntas do FBI a que teria de responder. Se o líder da equipa fosse como muitos outros que John Paul conhecera, seria um estupor arrogante, cheio de opiniões, que só aceitaria que as coisas fossem feitas à sua maneira.

Quando secou a cara e as mãos, estava pronto para um combate. Aliás, ansiava por isso. Deu por si a desejar que o tipo se revelasse um estupor porque estava subitamente com vontade de bater em alguém.

Infelizmente, o agente Knolte não era nem um estupor nem um sabichão. O agente sardento era inteligente, atencioso e sincero, e parecia saber do que estava a falar, no que tocava a estratégia. Estudara o dossiê de Monk e sabia quase tanto a respeito dele como John Paul.

Havia apenas dois problemas com o agente Knolte. O primeiro era que parecia ter doze anos. Tinha até uma franjinha toda penteada e aparelho nos dentes. O que andavam a fazer agora no FBI? A recrutar miúdos de liceu? O segundo problema era enorme: Knolte seguia todas as regras.

- Mister Renard, é uma honra conhecê-lo - disse Knolte, estendendo a mão, rodeado de mais quatro agentes. - Ouvimos falar do seu salvamento dos reféns na América do Sul, e quero que saiba que considero um privilégio trabalhar consigo.

John Paul olhou para os olhos castanhos de Knolte.

- Eu nunca estive na América do Sul.

- Mas falei com...

- Nunca lá estive.

- Sim, senhor. Se o diz - apressou-se Knolte a concordar. Outro agente avançou.

- Senhor, sabemos que a agência ficou contente ao saber que tinha decidido voltar ao trabalho depois de uma licença tão prolongada.

John Paul não olhou para o homem quando respondeu.

- Eu não tirei uma licença. Aposentei-me e continuo aposentado. - Depois, sem uma pausa, perguntou: - Que idade tem, agente Knolte?

A pergunta não pareceu perturbar o outro.

- Sou mais velho do que pareço - respondeu. - Deixe-me apresentar-lhe a equipa.

John Paul viu-se subitamente rodeado de agentes que queriam apertar-lhe a mão. Não gostou de tanta atenção. O chefe Tyler observava o espectáculo lá de trás. Quando John Paul olhou para ele, o homem de meia-idade abanou a cabeça e murmurou qualquer coisa sobre um maldito clube de fãs.

- Vamos ter de interrogar Miss Delaney - disse o agente Brock.

- Só quando ela acordar - respondeu John Paul. - Até lá podem falar comigo.

A conversa durou uma hora. Houve várias interrupções à medida que Knolte recebia relatórios actualizados de outro agente no local da explosão. Disse a John Paul que tinham levado cães e andavam à procura de corpos. Até àquele momento, haviam sido encontrados dois. Pelo que restava do veículo junto à casa, sabiam que uma das mulheres era a ex-mulher de Dennis Parnell, o dono da casa.

A espera pela descoberta dos outros corpos foi tensa. A seguir Knolte recebeu outra chamada e passou o telefone a John Paul.

- Vai querer ouvir isto.

Um minuto mais tarde, John Paul subiu as escadas a correr. Knolte podia jurar que o carrancudo esboçara um breve sorriso.

A porta da camarata bateu na parede quando ele a abriu, mas o barulho não acordou Avery.

Ele abanou-a.

- Querida, abre os olhos. Vá lá, Avery, acorda.

Ela foi lenta a reagir. Sentia-se drogada e desorientada. Abriu finalmente os olhos e tentou sentar-se.

- São horas de irmos?

- A Carrie está viva.

Ela olhou-o de esguelha, abanando a cabeça enquanto tentava perceber as palavras dele.

- Viva? Como é que ela pode estar viva? A casa...

- Ela saiu antes da explosão. Não sei como conseguiu, mas está bem.

Avery desatou a chorar. John Paul sentou-se ao lado dela e puxou-a para si. Abraçou-a enquanto ela o enchia de lágrimas.

- Saíram todas? - perguntou Avery quando conseguiu acalmar-se. - Onde está a Carrie? Já ligaram ao tio Tony? O pobrezinho vai ficar radiante! Primeiro, dizem-lhe que ela está morta, e depois que está viva. Espero que o coração dele aguente.

John Paul não sabia a que responder primeiro.

- A Carrie está num hospital em Aspen. Avery libertou-se dos braços dele.

- Porque está no hospital? Disseste-me que ela estava bem?

- E está - insistiu ele. - Mas a outra mulher estava ferida. A juíza deu cabo de um dos joelhos quando caíram numa ravina.

A Carrie torceu o tornozelo e partiu o braço, mas ainda foi capaz de se cobrir a ela e à outra com uns ramos, para poderem passar a noite escondidas. Um dos cães descobriu-as - acrescentou. - Foram levadas para o hospital e a juíza está a ser operada.

- Mas a outra mulher? Elas eram três... não eram?

- Anne Trapp. Ela ficou dentro de casa.

- Porquê? Porque havia ela de lá ficar?

- Não sei. Vais ter de perguntar à Carrie, ou talvez o Knolte já saiba o motivo.

Avery pôs-se de pé e tropeçou na mochila e no saco de viagem.

- Como é que isto aqui veio parar?

- O chefe da polícia telefonou a um amigo. Pôs o meu carro a funcionar e trouxe-o para cá.

Avery estava tão aliviada e tão contente por Carrie que se sentia fraca e tonta. Apetecia-lhe rir e chorar e beijar John Paul. Oh, apetecia-lhe mesmo beijá-lo, e muito mais. O que havia de errado consigo? Talvez fossem as endorfinas. Sim, era isso.

Tentou recompor-se. Agora precisava de se concentrar em Carrie. E no tio Tony.

- Alguém telefonou ao meu tio?

- Sim - respondeu John Paul. - Ele está feliz, mas assustado. Quer meter-se no próximo voo para Aspen.

Ela assentiu.

- Quem é que está lá em baixo? - perguntou, ajoelhando-se junto ao saco de viagem e abrindo o fecho.

- O FBI - respondeu John Paul. - Estão lá cinco agentes, todos a falar ao telemóvel. Tomaram conta da esquadra, e o chefe Tyler não ficou muito contente. O Tyler é um tipo porreiro - acrescentou. - Também não gosta muito do FBI.

Avery revirou os olhos.

- O teu preconceito é uma coisa juvenil, John Paul. - Pegou num par de calças caqui. - Eu vou lá para baixo tentar saber o que é que eles já descobriram. Fazem ideia do paradeiro de Monk?

- Não - respondeu John Paul. Estava a olhar para as pernas dela, reparando como eram compridas e bonitas. Um pensamento levou a outro, e depois a outro, e, antes de conseguir conter-se, estava a imaginar as pernas dele em volta das suas coxas.

Olhou para a parede atrás da cabeça dela. - Não podes ir lá para baixo assim.

- Assim como? Vou vestir umas calças. E desde quando te importas com o meu aspecto?

- Não me importo - respondeu ele com voz rouca. Mas consigo ver através dessa T-shirt puída.

Ela olhou para baixo.

- Oh, meu Deus! - murmurou, agarrando na ponta do lençol e puxando-o com toda a força para o tirar de baixo de John Paul. Largou as calças quando se embrulhou com o lençol.

- Porque não disseste nada antes? - perguntou ela muito corada.

- Ora, porque havia eu de fazer isso?

O sorriso dele era lascivo. Avery abanou a cabeça.

- Tenho de ver a Carrie o mais depressa possível. Ela deve estar atordoada depois do que passou.

O sorriso dele desvaneceu-se.

- Isso não é boa ideia - declarou ele. - Senta-te, Avery, temos de falar.

O tom dele indicava que o assunto era sério. Ela sentou-se ao seu lado.

- Não achas que eu devo ir ver a Carrie?

- Não, não acho. Fala com ela pelo telefone, se queres confirmar que se encontra bem, mas não vás ter com ela.

- Porque não?

- Porque é isso que o FBI quer que faças. O agente que está à frente das operações em Aspen disse ao Knolte...

- Quem é o Knolte? - interrompeu ela.

- O agente novinho que está lá em baixo a controlar as operações. Ele contou-me o plano. Querem colocar a Carrie e a juíza sob protecção, e a ti também, até apanharem o Monk, e isso não é boa ideia.

- John Paul, eles são bons no que fazem.

- Ai sim? Bem, o Monk também é. E se ficarem juntas tornam-se um alvo fácil para ele.

Avery ficou em silêncio. Concordava com ele, mas estaria a ser desleal para com o FBI se admitisse as suas reservas.

Tentou levantar-se, mas ele pousou as mãos nos seus ombros.

- O que estás a fazer?

- A agarrar-te, para não bateres com a cabeça e desmaiares.

- Ouve. Lá em baixo... quando desmaiei... foi a primeira vez na vida que isso me aconteceu. Não sou fraca. Precisava de dormir e estava tensa... muito tensa. Não vou voltar a desmaiar. Agora larga-me. Quero vestir-me e ir lá abaixo falar com o agente Knolte.

- Daqui a pouco - prometeu ele. Segurou-a com mais força. - Há outra coisa que precisas de saber.

- Sim.

Subitamente, John Paul ficou sem palavras. Qual seria a melhor maneira de lhe contar?

- Vai ser difícil...

- Eu aguento. Diz-me. - Descontraiu os ombros e acrescentou: - Desculpa, não queria implicar contigo. O que foi?

- A Carrie sabe quem é a mulher que está com o Monk. Ela inclinou a cabeça.

- Conhece-a?

- Sim. - Ele respirou fundo. - Tu também a conheces.

- Vá lá, John Paul. Deixa-te de hesitações. Diz-me!

- Jilly. A Carrie disse que ela se chama Jilly.

A reacção de Avery surpreendeu John Paul. Não desmaiou; não chorou; não discutiu nem se pôs a negar tudo. Rugiu.

 

                                                 CAPÍTULO 27

- Arranja-me uma arma, John Paul! Quero uma arma já! E grande!

Parecia um anjo vingador a andar de um lado para o outro. Parou a centímetros dele, espetou-lhe um dedo no peito, e tornou a exigir uma arma.

O chefe Tyler estava junto à porta, mudando o peso do corpo de um pé para o outro enquanto esperava que dessem pela sua presença.

- Ela há-de continuar morta quando eu acabar com ela arengou Avery. - Quero uma arma!

O chefe foi incapaz de se impedir de tentar acalmar a jovem.

- Vá lá, Miss Delaney, não devia dizer essas coisas. E se alguém dispara contra a sua mãe? Consigo a fazer ameaças, de quem julga que a polícia virá à procura? Sei que está muito abalada, mas...

Ela virou-se para confrontar o polícia.

- A Jilly não é a minha mãe. É a mulher que me deu à luz, mas nunca foi nem será a minha mãe. Estamos entendidos?

Tyler apressou-se a concordar. A ira dela era fulminante, e ele ficou tão admirado com a mudança que se operara na rapariga que não sabia como prosseguir. Parecera uma rapariga tão doce e afável quando a conhecera, mas agora cuspia fogo.

O chefe virou-se para John Paul à procura de ajuda.

- Esta não pode ser a mesma mulher que vi lá em baixo. Por acaso não será gémea?

- Lamento, mas não. Tem é mau feitio - disse, fazendo com que o comentário parecesse um elogio.

O chefe achou que ele estava a ser simpático.

- Não pode argumentar com ela? Não pode sair daqui a correr com uma arma na mão, a pensar se pode matar a m... Calou-se a tempo. - Se ela não é a sua mãe...

- Não é.

- O que lhe hei-de chamar? Avery não hesitou.

- Uma alucinada! Uma sociopata, uma psicopata! É só escolher. Só não diga que é minha mãe.

- Sim, senhora.

Mais calma, Avery apertou ainda mais o lençol à sua volta, agarrou no saco de viagem e caminhou de cabeça erguida até à casa de banho.

- John Paul?

- Sim?

- Arranja-me uma arma.

A porta fechou-se antes de ele conseguir responder. Tyler coçou o queixo.

- O que vai fazer com ela? John Paul encolheu os ombros.

- Arranjar-lhe a arma.

Tyler entrou no dormitório e fechou a porta.

- Vai deixá-los levá-la para Aspen? Você ouviu-os. Querem pô-la, juntamente com a tia e a juíza, numa casa vigiada até apanharem o homem contratado para as matar.

- Sim, ouvi.

- Se quer a minha opinião, eles estão a pôr os ovos todos no mesmo cesto, e calculo que seja por motivos orçamentais. Menos homens se as mantiverem juntas, mas estamos perante um assassino profissional... como é que ele se chama?

- Monk - respondeu John Paul.

- Se ele for bom, há-de encontrá-las. Só precisa de esperar junto ao hospital e seguir a juíza. Era isso que eu faria.

John Paul concordou.

- Ouvi o Knolte dizer que as vão pôs juntas.

- Mas não ouviu o resto dos planos porque já tinha vindo a correr dizer à Avery que a tia estava viva. Sabe que se aproxima a data de um julgamento importante?

- Não, não sabia.

O chefe baixou a voz antes de prosseguir. Embora conseguisse ouvir o secador na casa de banho e duvidasse que Avery conseguia ouvi-los, aproximou-se de John Paul.

- Vão julgar pela segunda vez um homem chamado Skarrett. Sabe quem é?

John Paul ficou tenso.

- Sim. Então vai ter um novo julgamento? Quando?

- De hoje a três semanas. O Knolte estava a discutir ao telefone com o outro agente que manda neles. Bem, depois de desligar, viu que eu o observava e fechou-se em copas até lhe dizer que vinha cá acima ver como estava a rapariga. - Sorriu ao acrescentar: - Claro que não vim logo. Subi alguns degraus a bater com os pés, depois voltei a descer e fiquei no corredor para ouvir o que eles diziam. - Olhou para a porta da casa de banho antes de continuar: - Se não tiverem apanhado o Monk até o julgamento começar, não vão deixar que a Avery e a tia deponham, e, por aquilo que percebi, o manda-chuva não acha assim tão mau que o Skarrett saia em liberdade.

John Paul ficou abismado.

- Está a falar a sério?

- Oh, sim!

- Por que raio haviam eles de...

- Esperam que o Skarrett os conduza até uma pipa de massa que ele tem escondida. Parece que o Skarrett assaltou uma ourivesaria e roubou vários milhões de pedras preciosas por lapidar. Espero que ele tente recuperá-las.

- Então vão facilitar a vida ao Skarrett para ele sair em liberdade?

- A Avery é uma testemunha muito importante - observou Tyler. - E se ela não depuser...

John Paul estava estarrecido com o que poderia correr mal.

- Ora, é óbvio que esse plano está condenado ao fracasso

- disse ele cheio de sarcasmo.

Tyler concordava.

- Sou da mesma opinião. Vai dizer à Avery? Assim que a meterem naquela casa vigiada ela não poderá sair.

- Vou deixar que seja o Knolte a dizer-lhe. A Avery trabalha para o FBI e acredita no trabalho de equipa.

- Uma idealista, hem?

- Parece que sim.

- Isso não é bom. E você? O que vai fazer?

- Acho que me vou embora. Já não tenho motivo para aqui ficar.

- Acha que o Monk recuou?

- Sim, mas não por muito tempo. Aceitou os contratos, e quando souber que a Carrie e a juíza continuam vivas, vai voltar a atacar. Terá de o fazer. É a sua reputação que está em jogo. E também vai continuar atrás da Avery.

Oh, sim, ele atacaria uma e outra vez até o trabalho estar feito.

Parecia que Tyler lhe lera o pensamento.

- Então acha bem deixarmos aqueles rapazes lá em baixo tomarem conta da Avery? Acha que ela fica bem?

- Ela é uma mulher inteligente e forte. Sabe tomar conta de si.

Tyler parecia desapontado com ele.

- Se decidir que isso é a opção acertada, mas, caso queira fazer alguma coisa por sua conta, aproveito para o informar que tenho uma cabana simpática no meio das montanhas. Tencionava lá ir passar umas duas semanas, e acabei de encher a despensa. Só precisa de encher o frigorífico, com leite e ovos, por exemplo, para ficar melhor. Se se dirigir para Denver, não fica muito fora de mão. Seria um óptimo local para se esconderem até decidirem o que fazer... a respeito do julgamento e isso.

John Paul tentou interrompê-lo, mas Tyler apressou-se a continuar.

- Guardo o meu carro num celeiro, e posso dar-lhe as indicações para lá chegar e dizer-lhe onde se encontra escondida a chave... se estiver interessado. Pense nisso e diga-me qualquer coisa antes de se ir embora. Eu vou lá para baixo escrever as indicações, para o que der e vier.

Dito isto, Tyler virou-se e dirigiu-se para as escadas. John Paul não sabia o que raio iria fazer. Ficou parado a pensar na situação durante vários minutos, depois soltou uma imprecação enquanto pegava nos seus sacos e os levava para o carro. O assistente do chefe deixara lá a sua roupa lavada. Estava dobrada ao lado da de Avery no último degrau. Ele guardou a sua no saco, foi lá acima deixar a dela numa das camas e saiu.

O amigo do chefe estacionara o carro de John Paul na viela entre os prédios, mesmo por baixo das janelas da camarata. Ele atirou a bagagem para a parte de trás do jipe e depois decidiu que devia despedir-se de Avery. Não podia arrancar sem mais nem menos. Despedir-se e desejar-lhe boa sorte era o que devia fazer.

”Se ela me pedir para ficar, fico”, decidiu ele. ”Mas se não pedir, vou-me embora. É tão simples como isso. Ela não precisa de mim. Mas se pedir...”

Entrou na camarata e estacou. Quase tropeçou quando a viu. Avery estava parada à janela de braços cruzados, à espera dele.

- Porque estás a olhar para mim dessa maneira? - perguntou ele mal-humorado.

- Vi-te pôr as malas no carro - disse ela, indicando a janela com a cabeça. - Então vais-te embora? - Deu um passo na direcção dele, mas parou quando o viu ficar tenso. - Gostava de uma resposta.

- Queres que eu fique?

- Queres ficar?

- Que raio de resposta é essa? Não estou com disposição para jogos, Avery. - Depois, antes de ela poder responder, semicerrou os olhos e perguntou: - O que aconteceu à tua cara?

Ela levou a mão à face.

- O que se passa com a minha cara?

- Nada. Está... diferente.

- Lavei-a, pus creme hidratante e um pouco de maquilhagem. Mais nada.

- Maquilhagem? Porque havias de pôr maquilhagem? Queres ficar bonita para os teus colegas do FBI?

Oh, bolas, ele estava de mau humor.

- O que é que tens?

Ele não foi capaz de responder porque não conseguia pôr em palavras o que lhe ia na cabeça nem o que estava a sentir. Não percebia por que motivo ansiava tanto por um combate. Sabia apenas que estava furioso porque ela conseguira fazer-lhe o que nenhuma outra mulher conseguira antes. Dera-lhe vários nós no estômago. E o pior de tudo era que ele deixara.

O que viria a seguir? O seu coração? Nem pensar.

- Já falaste com o agente Knolte?

- Não, estava à espera que voltasses para cima. Ias-te embora sem dizer adeus? - O parvo. Ela não iria chorar, por muito furiosa que ele a pusesse. Respirou fundo para se aguentar, atravessou a sala e estendeu a mão. - Obrigada por tudo o que fizeste.

Ele ignorou a mão dela.

- Avery... se quiseres... Ela interrompeu-o.

- O chefe Tyler veio cá acima à tua procura. Queria falar contigo, disse que era importante.

- Falei com ele ainda não há cinco minutos. Ela encolheu os ombros.

- Ele devia ter outra coisa qualquer para te dizer. Está à tua espera no restaurante.

- Sim, está bem.

- Faz boa viagem - disse ela. Virou-se e voltou para junto da janela. - Adeus, John Paul.

Ele não acreditava que ela estava a despachá-lo. Olhou para as costas dela um minuto, depois virou-se abruptamente e desceu as escadas. A despedida fria dela fora a de uma estranha, e ele estava demasiado chateado para perceber por que motivo a atitude dela se modificara.

Felizmente, não encontrou agentes quando atravessou a esquadra. Knolte e mais dois colegas estavam a olhar para mapas e a falar ao telemóvel. Um agente ainda tentou conversar com ele, mas John Paul ignorou-o, abrindo a porta de vaivém e dirigindo-se ao restaurante. A parte da frente estava deserta, mas ele ouvia assobiar na cozinha. Foi para trás do balcão de fórmica vermelha e viu o chefe junto ao grelhador. O aroma da carne a grelhar enchia o ar.

- Está pronto para se ir embora? - perguntou o chefe da polícia.

- Sim.

- Quer levar um hambúrguer para o caminho?

- Não, obrigado. Onde estão os outros?

- Os empregados do restaurante? Mandei-os embora há um bocado. Se o Knolte e os amigos quiserem alguma coisa para comer, eles que a façam.

- Queria falar comigo acerca de alguma coisa?

Tyler franziu o sobrolho.

- Já disse o que tinha a dizer. Adiantei-me e pus a folha com as indicações no seu carro, para o caso de você mudar de ideias e decidir aceitar a minha oferta. Devia pensar nisso - incitou ele. - Só posso ir para lá daqui a um mês, por causa dos familiares da minha mulher. Ela informou-me ontem à noite que temos de ir a dois casamentos e a uma reunião.

- Sim, vou pensar nisso - respondeu ele. - Obrigado pela sua ajuda, chefe, e pela comida e pela cama.

- Ainda bem que pude ajudar - respondeu Tyler. Abriu a porta das traseiras e saiu para a viela com John Paul.

- Tenha cuidado.

- Vou ter - respondeu ele, abrindo a porta e sentando-se ao volante. Reparou na folha dobrada que o chefe da polícia pusera no banco ao seu lado e pegou nela, tencionando devolvê-la.

- Tem a certeza de que a rapariga fica bem?

Era a terceira vez que o homem lhe fazia aquela pergunta. John Paul deu-lhe a mesma resposta.

- Ela fica bem.

Não acreditava nisso, e pela expressão de Tyler percebeu que ele também não.

- Até um dia destes - disse Tyler, levantando a espátula que tinha na mão num gesto de despedida.

John Paul meteu a chave na ignição, pousou o papel no banco e depois ficou ali sentado, a pensar. A sua consciência não lhe dava tréguas. Avery tomara uma decisão, recordou a si mesmo. Sim, ela deixara bem claro que não precisava dele nem o queria.

Havia apenas um problema com a decisão dela. Ele precisava dela e queria-a.

Julgara ter-se visto livre dos seus sentimentos há alguns anos quando a desilusão se instalara, mas agora percebia que andara a iludir-se com a sua atitude de odiar toda a gente, de não precisar de ninguém, e que era tão humano e tinha tantos defeitos como os outros. Quem havia de dizer?

Será que gostava de Avery? Sim, gostava, admitiu. A mulher era uma espertinha. Como podia ele não gostar dela?

Abanou a cabeça e rodou a chave na ignição. O motor ronronou como um gatinho bem alimentado quando ele engatou a mudança.

Ele bem tentava, mas era incapaz de arranjar coragem para arrancar. Bolas, ela estava a dar consigo em louco! Era tal como um piolho, a fazer comichão e a irritar. Queria que ele se fosse embora. Certo? Raios, sim! Tinha a certeza de que iria ficar bem com aquela equipa maravilha a tratar da sua segurança... Que Deus a ajudasse!

Avery era uma lutadora, e seria com certeza capaz de resolver os problemas que lhe surgissem pela frente. Mas conseguiria controlar as acções dos agentes incumbidos de a proteger? Conseguiria evitar que eles estragassem tudo? E enquanto os vigiava, quem estaria a vigiá-la?

Voltou a desengatar a mudança e desligou o motor. O que raio estava ele a fazer?

O FBI que se preocupasse com ela. Isso mesmo. Era precisamente o que ele iria fazer. Ligou de novo o motor, mas desta vez não engatou a mudança. Ficou ali sentado como um bloco de gelo, imóvel devido à indecisão, com o motor a trabalhar.

Que fraco jogador ele saíra. Estava desesperadamente a tentar convencer-se de que não se importava com o que lhe iria acontecer.

Ela fazia-o rir. Fazia-o desejar coisas que ele julgara nunca poder ter.

Caramba, ela tornara-o humano!

John Paul bem lutou, mas no fim perdeu a batalha. Baixou a cabeça, submisso, quando percebeu a verdade dos seus sentimentos.

”Admite, Renard, não vais a lado nenhum sem ela.”

Desligou o motor e estendeu o braço para o fecho da porta.

A voz deteve-o.

- Importas-te de arrancar? Despacha-te, Renard! Estou a sufocar aqui atrás, e o teu saco-cama cheira a folhas mortas.

Ele virou-se para trás.

- O que julgas que estás a fazer?

- Não comeces, John Paul. Põe o carro a trabalhar e tira-nos daqui. Não me obrigues a dizer-te outra vez.

O sorriso dele foi lento e fácil. A tensão abandonou os seus ombros e a dor o seu estômago. O mundo voltara a estar direito. Avery sorria-lhe como uma gata, segura de si.

Ele ligou o motor e engatou a mudança, mas não acelerou.

- Se fores comigo, miúda, eu é que mando, e tu fazes o que eu disser. Consegues aguentar isso?

- Quando saltei da escada de incêndio, aterrei no tejadilho do teu jipe e fiz uma mossa. Aguenta.

Ele sorriu ao arrancar com o carro. Como podia não estar louco por ela?

 

                                                    CAPÍTULO 28

Jilly aguardava ansiosa a contagem do número de vítimas. Andava de um lado para o outro no quarto do hotel enquanto a televisão, sintonizada num canal local do Colorado, prosseguia arrastadamente a emissão, mas de cada vez que aquele vídeo era passado e mostrava a explosão da casa, ela sentava-se de imediato na beira da cama. Entusiástica e avidamente, devorava todos os segundos daquele magnífico filme.

Que sorte um montanhista estar a filmar a paisagem no momento em que a casa se desintegrara! A objectiva filmara toda a parte de trás da casa. Jilly teria ficado furiosa se não tivesse conseguido ver aquilo na televisão. Admitia que continuava um pouco irritada porque quisera ser ela a carregar no botão, mas aquelas imagens que o canal transmitia uma e outra vez eram quase tão boas.

O telefone tocou quando a reportagem chegou ao fim. Ela tirou o som à televisão antes de atender.

- Olá, querido.

Seguiu-se uma pausa de um segundo.

- Viste aquilo na televisão?

Ele parecia desejoso de agradar, mas também um pouco nervoso.

- Sim, claro que vi. Não foi uma maravilha?

- Sim... sim - respondeu ele. - Até agora encontraram dois corpos.

- Só falta um - disse ela. - Pareces nervoso, querido. O que se passa?

- Estava preocupado que, depois do facto consumado, pudesses sentir-te mal. Folgo em saber que estás bem.

- Sentir-me mal por causa da Carrie? Ela deu cabo da minha vida e roubou-me a minha filha. Estou radiante.

- Tenho saudades tuas - disse ele. - Quero... A voz dela transformou-se num murmúrio gutural.

- Eu sei o que queres. Estás no carro?

- Sim - respondeu ele também num murmúrio.

- É melhor encostares - disse ela. A seguir, com todos os pormenores eróticos, contou-lhe o que lhe iria fazer quando estivessem juntos. A respiração dele divertia-a. O ofegar rápido de um cão no cio, pensou ela. O poder que tinha sobre os homens excitava-a. - Isto agrada-te? - perguntou ela também numa voz ofegante, para ele pensar que ela estava igualmente descontrolada.

E a seguir deu-lhe mais até ele estar a gemer de desejo. Um súbito silêncio foi seguido de um gemido mais intenso. Ela percebeu o que estava a acontecer e sorriu satisfeita. Podia ter tido uma carreira maravilhosa a fazer sexo pelo telefone, pensou, mas com certeza não ganharia o dinheiro que queria. Mesmo assim, era agradável saber que tinha opções.

- Sentes-te menos sozinho agora, querido?

- Sim - respondeu ele com um suspiro. - Vejo-te daqui a pouco. Amo-te, Jilly.

- Eu sei que me amas, querido. Também te amo.

Desligou o telefone e começou novamente a andar de um lado para o outro. A polícia conseguiria identificar as pessoas com o pouco que restava dos corpos? Sabia que o crânio e os dentes eram uma das formas de identificar as vítimas, mas, e se tivessem também sido destruídos com a explosão?

Hum, o que fariam então?

O vídeo apareceu de novo na televisão. Jilly correu para a cama e sentou-se para assistir. Oh, era lindo, mesmo lindo!

Quando o noticiário chegou ao fim, ela tirou do saco de viagem a sua querida cassete de vídeo. Levava-a sempre para todo o lado. Meteu-a no leitor de vídeo e ajoelhou-se diante da televisão para assistir. Quantas vezes já a vira? Cem? Mil? E, no entanto, nunca se fartava dela... nem dos sentimentos que provocava.

- Estás a ver agora por que motivo tens de morrer? murmurou para o ecrã.

Reparou que tinha o verniz de uma unha lascado e correu para a casa de banho para resolver o problema. Olhando para as horas, percebeu que Monk chegaria em breve. Precisava de se preparar para o saudar devidamente. E recompensá-lo, claro. Como um cão que executara uma habilidade difícil estaria ansioso pela recompensa.

Branco virginal, decidiu ela tirando do saco o negligée. Ele haveria de gostar disso. Mas também gostava de tudo o que ela lhe fazia, não era?

Não devia esquecer-se de pôr o batom vermelho. Oh, como os homens adoravam lábios vermelhos.

Adoravam o seu corpo perfeito. Adoravam o seu rosto angelical.

Adoravam-na todos.

 

                                       CAPÍTULO 29

Os paramédicos disseram a Carrie que ela se encontrava em estado de choque. Ela não concordava, mas percebia por que motivo haviam chegado àquele diagnóstico. Havia algo de estranho no seu comportamento. Quando a retiraram da ravina, ela soluçava descontroladamente. Sabia o que queria dizer, mas não conseguia pôr as palavras na ordem devida nem dizê-las na altura certa. Mesmo assim, a conclusão a que haviam chegado era um disparate. Não eram médicos. O que raio sabiam? A sua cabeça funcionava perfeitamente.

As luzes das câmaras incidiram-lhe no rosto enquanto era transportada na maca e colocada junto a Sara na ambulância. Carrie tentou sentar-se, mas percebeu que um dos paramédicos a amarrara. No entanto, era capaz de mexer um dos braços. Estendendo-o, agarrou na mão de Sara.

A amiga estava cheia de dores. Os dois paramédicos ocupavam-se da sua perna.

- Ela vai ficar bem? Vai ficar bem? - A pergunta transformou-se numa mantra que ela não conseguia interromper. Embora os dois homens tentassem assegurar-lhe que sim, que ela ia ficar bem, Carrie sentiu-se impelida a continuar a perguntar.

Um deles deu uma injecção a Sara e ela fechou os olhos um segundo mais tarde. A sua mão ficou inerte na mão de Carrie. Depois de lhe terem imobilizado a perna, um deles mediu-lhe a tensão, enquanto o outro se ocupava de Carrie.

- Ele vai matar a Avery. Detêm-no. Ouvem o que eu digo? Ele vai... ele vai...

Carrie desmaiou. O terror daquilo por que passara, aliado à falta de sono, tinham-na finalmente atingido. O seu corpo rebelou-se e desligou-se.

Quando voltou a abrir os olhos, estava na cama do hospital. E, oh, como estava dorida. Parecia que todos os músculos no seu corpo latejavam. Alguém lhe batera?

Tentou desesperadamente fazer desaparecer o nevoeiro na sua mente. Avery. Oh, céus, tinha de encontrar a sobrinha antes que fosse tarde de mais. Viu o botão para chamar as enfermeiras do seu lado esquerdo, e tentou chegar-lhe. Sentiu uma dor no antebraço e gritou. Olhando para baixo, viu que tinha o braço engessado e soltou uma imprecação.

Como acontecera aquilo?

A ravina, claro. Caíra de cabeça naquele fosso, e lembrava-se de ter estendido o braço para tentar amortecer a queda. Sabia que magoara o pulso, mas julgara que fora apenas uma entorse. Na altura não doera tanto, pois não? Não se lembrava. Talvez tivesse ficado dormente, tal como a maior parte do seu corpo. No entanto, lembrava-se de ter caído em cima de Sara. A amiga contorcera-se de dores, e Carrie tapara-lhe a boca com a mão para tentar abafar os gritos, com medo que Monk estivesse à espreita no escuro para as apanhar.

Onde estava Sara? Carrie ouvia vozes de homem no corredor, e não conseguia chegar ao botão para chamar a enfermeira. Estava prestes a gritar quando a porta se abriu e entrou um jovem médico de bata branca e roupa azul descartável por baixo. Tinha uma prancheta na mão.

Chamava-se Dr. Bridgeport e parecia não dormir há uma semana. ”Isso não pode ser bom”, pensou ela. Depois reparou nas mãos dele. Eram enormes, como se tivessem sido transplantadas de um corpo maior, bem como a nova fila de implantes capilares no crânio.

- O senhor é o meu médico?

- Sou um neurologista. Vi as suas radiografias e a sua TAC

- começou ele.

- Eu fiz esses exames? - interrompeu Carrie. Ele assentiu.

- Sofreu uma concussão ligeira. Vou mantê-la aqui esta noite para observação. Não vi nada de preocupante na tomografia - acrescentou.

- E o meu braço?

- Partiu-o.

- Obviamente.

- O seu médico virá observá-la daqui a nada - disse ele enquanto escrevia qualquer coisa na prancheta. - Entretanto, estão ali uns agentes ansiosos por falar consigo. Vou deixar dois entrar no quarto... isto se se sentir em condições.

- Dói-me a cabeça. Posso tomar um analgésico?

- Daqui a pouco - prometeu ele.

Carrie sabia o que isso significava. Quando Avery era pequena e queria alguma coisa que ela não lhe queria dar, usava a mesma frase. Na altura não resultara com Avery, e não resultava com Carrie agora.

- Quero qualquer coisa.

- A senhora sofreu uma concussão, Mistress Salvetti, e preferia...

Ela interrompeu-o.

- Oh, não interessa. Senhor doutor, veio uma amiga comigo na ambulância. Tinha a perna magoada. Onde está ela? O que sabe?

O médico assentiu.

- A juíza Collins está na cirurgia - explicou ele. bateram à porta.

O médico deixou de escrever, sorriu-lhe e preparou-se para sair.

- Precisa de descansar - disse ele, abrindo a porta e deixando entrar dois homens de fatos escuros. - Dez minutos declarou ele aos agentes -, depois ela tem de dormir.

Moviam-se como soldados num desfile, braços hirtos, cabeças levantadas. Também traziam roupa parecida, com excepção da cor das gravatas. Um tinha uma cinzenta e preta às riscas e a outra era aos quadrados.

O agente chamado Hillman era o responsável. Havia uma perspicácia nos seus olhos que ela achou reconfortante. Pensou que ele não deixaria escapar muita coisa.

O agente mais novo carregou no botão para lhe erguer as costas, serviu-lhe um copo com água e ficou junto da cama enquanto Hillman a interrogava. Ele reviu com ela a sequência de acontecimentos, interrompendo-a raramente quando ela fazia uma pausa para ordenar as ideias. Carrie queria contar-lhe tudo ao mesmo tempo, impaciente por fazer as suas próprias perguntas, mas Hillman mostrou-se firme e não a deixou desviar-se do assunto.

Ela virou-se para o agente mais colaborante e pediu-lhe para ir buscar o seu casaco.

- As cartas estão no bolso.

Hillman encontrou o casaco pendurado no roupeiro. Calçou luvas e colocou os envelopes num saco de plástico com fecho que o outro agente tinha na mão.

- A Anne deu-me uma carta. Quero lê-la.

- O laboratório irá procurar primeiro impressões digitais disse o ajudante.

Ela julgara que ele seria mais maleável que Hillman, mas percebeu que era igualmente tenaz.

- Só quero saber o que aquele estupor do marido dela lhe escreveu. Ele contratou o Monk para a matar, sabe? Têm de o prender.

Ignorando o pedido dela, Hillman continuou com as perguntas. Carrie estava farta.

- Não, agora é a minha vez. Quero saber onde está a minha sobrinha.

- Andamos à procura dela...

- Encontrem-na.

Vendo como Carrie estava abalada, o ajudante ofereceu-lhe um gole de água, aproximando-lhe a palhinha da boca. Ela virou a cara.

- Diga-me o que sabe sobre... - tentou novamente Hillman, tentando fazê-la voltar ao assunto.

- Quero uma actualização sobre o estado da juíza Collins, e quero-a já.

Os agentes entreolharam-se.

- Ela saiu do bloco operatório e está nos cuidados intensivos - respondeu Hillman.

- Até agora, está tudo bem - acrescentou o outro homem. Ela fitou-o.

- Como é que se chama?

- Bean, minha senhora. Agente Peter Bean.

Não admirava que não se tivesse apresentado. Se tivesse um nome daqueles, ela também não o diria a ninguém. Deviam ter gozado imenso com ele na escola...

Hillman recomeçou com as perguntas. Continuou durante uma hora, pressionando-a, obrigando-a a repetir vezes sem conta os mesmos factos até ela começar a achar que era a criminosa que eles queriam obrigar a confessar.

Doía-lhe a cabeça.

- Acabou. Já não sou capaz de responder a mais perguntas agora.

Hillman pareceu desiludido, mas concordou em deixá-la repousar um pouco. Carrie não estava com disposição para ser cordata. Disse-lhes para não lhe aparecerem até terem notícias de Avery. Para a acalmar - ela já estava aos gritos - Hillman deixou-a ligar ao marido. Bean marcou o número. Assim que ouviu a voz de Tony ao telefone, ela desatou a chorar.

- Preciso de ti, Tony. Tens de vir a Aspen.

- Querida, disseram-me que eu não podia - respondeu ele com a voz embargada. - Disseram-me que assim que tiveres alta irão mudar-te, e à juíza, para uma casa vigiada algures. Carrie, meu amor, estás bem? Gostava de poder estar aí contigo. Gostava... Lamento teres de passar por isto sozinha.

- Tiveste notícias da Avery?

- Não. Nem sabia que ela ia ter contigo ao spa. Um dos agentes que veio falar comigo disse que ela perdeu o avião.

- Não sei onde ela está - soluçou Carrie.

- Havemos de a encontrar - prometeu ele. - Não lhe vai acontecer nada. Prometo-te. E vou manter o telefone desimpedido. Ela há-de telefonar. Tenho a certeza.

- Tony... não percebi... lamento tudo o que aconteceu. Podes ficar com a Star Catcher. Podes geri-la como quiseres. Já não me importa. Devia ter confiado em ti. Tenho sido uma idiota.

Soluçava, e sentia-se furiosa por os agentes estarem a ouvir tudo.

- Amo-te - murmurou. - Amo mesmo, Tony. Amo-te muito. Por favor... diz-me que não é tarde de mais.

- Não, não é. Eu posso... Também te amo - gaguejou ele. - Vou meter-me no próximo avião. O nosso casamento há-de voltar a ser o que era dantes. Tudo é possível com o teu amor. Tudo.

 

                                             CAPÍTULO 30

Qualquer esperança de que o FBI mantivesse os nomes dos sobreviventes fora dos jornais e da televisão desapareceu quando uma equipa de televisão filmou Carrie e a juíza a serem metidas na ambulância próximo do local da explosão.

Avery ouviu a notícia na rádio quando ela e John Paul viajavam pelas montanhas. Assim que saíram da povoação adormecida, ela sentara-se à frente, batendo-lhe com o pé esquerdo quando passou para o banco do passageiro. O sapato caiu no regaço dele. Abanando a cabeça com a falta de jeito dela, ele entregou-lhe o sapato enquanto ela pedia desculpa.

Continuaram a ouvir a emissão até perderem a sintonia.

- Será que agora todos os americanos andam com câmaras de vídeo? - perguntou, aborrecido. - Algumas pessoas adoram invadir a privacidade dos outros.

- As equipas de filmagens das televisões costumam andar com câmaras - retorquiu ela.

- Não precisas de ser sarcástica, miúda.

- Não estava a ser sarcástica, apenas a constatar um facto. A Carrie deve ter detestado ver uma câmara apontada para a sua cara. Alguém do FBI devia ter confiscado a película. Os tipos da polícia científica não chegaram lá a tempo.

- Deviam, podiam - disse ele. - Esse é o lema do FBI.

- Não vais irritar-me. Ele riu-se.

- Não estava a tentar fazê-lo.

Avery abriu a janela e deixou entrar o ar fresco da noite.

- Estavas sim. Finalmente percebi quem és.

- Achas que sim? Ela sorriu.

- Quando te conheci, pensei que devias ter alguma coisa contra o FBI, mas agora que te conheço melhor, sei que isso não é verdade. A tua fobia é muito maior do que isso.

- Ai é? Ela assentiu.

- Tu não gostas de nenhuma agência governamental.

- Isso não é verdade.

- Quando falámos do facto de o teu cunhado trabalhar para o Departamento de Justiça, tu fizeste um ar desdenhoso.

- O departamento tem demasiado poder.

- E a CIA? Sei que trabalhaste para eles. Ele não argumentou nem negou.

- As prioridades deles mudam com demasiada frequência, e por vezes deixam agentes e civis pendurados.

- E as Finanças?

- Toda a gente odeia as Finanças.

Ela foi forçada a concordar com ele. Continuou a enumerar agências governamentais, e ele continuou a dizer-lhe o que havia de errado com cada uma delas.

- Acho que defendi o meu caso. Sabes qual é o teu maior problema?

- Não, mas tu vais esclarecer-me, não vais?

- Sim - respondeu ela. - Não gostas de ninguém numa posição de autoridade.

Ele não ficou ofendido com a análise dela.

- Sabes como é: o poder absoluto corrompe.

- O FBI não tem poder absoluto.

- Mas julga que tem.

- Queres saber a minha opinião?

- Sim.

- Terapia. Devias falar com um psicólogo que te ajudasse a libertares-te da tua hostilidade.

Antes de ele poder dizer-lhe que também detestava terapia, ela mudou de assunto.

- Preciso de ir a um telefone e ligar à Carrie.

- Porque não lhe telefonaste da esquadra?

- Porque tu ter-te-ias ido embora sem mim. Ainda me custa a acreditar que ias abandonar-me. Fico furiosa de cada vez que me lembro.

Deveria ele dizer-lhe a verdade ou não? Rangeu os dentes enquanto pensava no assunto. Parecia tão desiludida, tão magoada.

- Olha... - começou ele, interrompendo-se.

- Sim?

- Talvez eu fosse ficar.

- Talvez? - Ela deu-lhe uma cotovelada no braço. O que quer isso dizer?

- Quer dizer que eu ia ficar. Agora é a tua vez de falares. Porque decidiste abandonar a tua superequipa?

- Pára de lhe chamar isso. Tenho a certeza de que o agente Knolte e os outros agentes são capazes de fazer um bom trabalho.

- Ai sim? Então, repito, porque decidiste vir comigo? Ela encolheu os ombros.

- Pensei no que disseste, e concordei. Não é boa ideia pôr-nos a todas na mesma casa.

- E?

- E o quê? Estás à espera de um elogio?

Antes de ele poder dizer-lhe que nem sequer pensara nisso, ela continuou:

- Está bem. Acho que tenho mais hipóteses de sobreviver contigo.

- O que te fez passar para o lado negro? - perguntou ele com um sorriso. - O Knolte disse ou fez alguma coisa que te transformou numa agente renegada?

- Eu não sou uma agente. Sou uma analista, e ele não disse nem fez nada. Continuo a ter confiança no FBI. Ninguém é mais leal do que eu.

- Hum. Então porque te vieste embora? Ela teve de pensar um pouco.

- Tomei uma iniciativa. Ensinam-nos a fazer isso no FBI.

- Sim, pois - desdenhou ele. Assentiu na direcção de uma placa na berma da estrada. - Há um restaurante a sete quilómetros. Preciso de fazer um telefonema para arranjar ajuda.

O solitário ia pedir ajuda a alguém? Que choque!

- E depois?

- Podes ligar à Carrie, mas não lhe digas para onde vamos.

- Como podia dizer? Nem sei para onde vamos! Ele pegou no papel dobrado.

- O chefe Tyler tem uma cabana a umas duas horas daqui. Tem um celeiro e podemos esconder o jipe lá dentro. Passamos lá a noite.

Ela tornou a olhar para a janela de trás para se certificar de que não eram seguidos. Há muito tempo que não viam outro carro, e ela calculou que estivesse a ser um pouco paranóica, mas continuava alerta. Nunca se era demasiado cuidadoso, pensou.

- Fazes ideia de onde o Monk possa estar?

- Deve continuar no Colorado, e a esta hora já sabe que a tua tia e a juíza continuam vivas.

- O FBI também há-de andar à nossa procura.

- À nossa não, querida, à tua.

- Deixei o chuveiro ligado para o caso de um dos agentes ir lá acima, e tranquei a porta da camarata, mas o Knolte vai acabar por reparar que desapareci e fará soar o alarme.

E depois tudo ficaria um caos. Quando Cárter descobrisse o que se passava, fritá-la-ia. Ela já ensaiara o que lhe diria em sua defesa. Insistiria que não era insubordinação. Cárter não era um homem fácil, mas era razoável. Com certeza perceberia o mérito de ela ter tomado uma iniciativa... outra vez.

- O chefe irá contar ao Knolte que pôs a cabana à tua disposição? - perguntou ela.

- Não. Ele sabia que tu ias sair pela janela?

- Não.

John Paul saiu da estrada e parou o carro no parque de estacionamento do restaurante. As letras a néon piscavam ABERTO.

- Vais falar-me da Jilly? - Ele evitara falar no assunto até àquele momento porque vira de que forma Avery reagira quando Tyler dissera que era sua mãe. Ela não respondeu. - Tens de me dizer o que vou enfrentar.

- O que vamos enfrentar - corrigiu ela. - Sim, eu digo-te o que sei, mas não de estômago vazio. Amanhã conto-te tudo - prometeu ela.

- Está bem.

Pegou na mão dela enquanto caminharam na direcção do restaurante. As cores lá dentro fizeram-nos franzir o sobrolho. As paredes eram púrpura e cor de laranja, e os balcões de fórmica branca. Junto à porta encontrava-se uma juke box. Elvis Presley cantava A Shook Up enquanto avançaram pelo corredor estreito.

John Paul escolheu uma mesa junto à parede, para poder estar de olho no parque de estacionamento. Esperou que Avery se sentasse no banco cor de laranja e sentou-se à frente dela.

A empregada era uma adolescente, mas movia-se como uma nonagenária. Tinha um piercing na língua que a fazia falar de forma estranha.

- O que desejam?

Pediram sandes de peru e chá gelado. Assim que a empregada foi para trás do balcão, Avery tirou umas moedas da carteira e dirigiu-se para o telefone que vira ao fundo do corredor, entre as casas de banho.

A conversa com Carrie foi praticamente um monólogo. A tia estava uma pilha de nervos.

- Onde estás? - perguntou. - Estás bem? Já sabes? A Jilly está viva. Aquele demónio fingiu a própria morte. Não pensei que fosse tão inteligente. É como um gato, Avery. Sim, é isso que ela é. Sabes que se tivesses chegado ao spa na altura prevista terias ficado presa naquela casa connosco?

- Carrie, abranda - pediu Avery quando a tia fez por fim uma pausa.

Carrie respirou fundo e depois contou-lhe algumas das coisas que tinham acontecido desde o momento em que se tinha metido no carro com Monk e as outras mulheres. Avery não disse nada enquanto escutava os pormenores assustadores.

- Quando estiver contigo, conto-te tudo - prometeu Carrie. - Que tal estás?

- Bem.

- Estava cheia de medo e preocupada contigo, mas tu estás bem.

- Sim, estou - respondeu Avery, a olhar para John Paul.

- Carrie, quem é o agente que está a vigiar-te?

A tia falou ao mesmo tempo que Avery fez a pergunta.

- Disseram que nos vão pôr sob protecção. Calculo que nos metam num avião para a Florida.

- Porquê a Florida?

- Por causa do julgamento.

- Que julgamento?

- Oh, Avery, não sabias? Aqueles estupor do Skarrett tem um novo julgamento marcado. Não foste notificada? A mim não me telefonaram!

Avery ficou espantada com a notícia. Soubera da possibilidade de um novo julgamento, mas não pensara que acontecesse tão depressa.

- Não, não fui notificada. Carrie estava furiosa.

- Disseram-me que esse assassino que a Jilly contratou não vai parar até estarmos mortas!

- Ou até nós o apanharmos. E iremos apanhar, Carrie. Agora, por favor, tenta acalmar-te. Já falaste com o Tony?

A voz de Carrie suavizou-se.

- Ele está raladíssimo - murmurou ela, fungando. Quer que lhe ligues assim que puderes, para ouvir a tua voz. Quero ir para casa, Avery, e quero que venhas comigo, mas eles não deixam. Nem sequer sei se deixam o Tony vir para o pé de mim. Estou a tentar colaborar...

- Como está a juíza? - interrompeu Avery.

- O quê? Oh, a Sara. Ela chama-se Sara. Está a aguentar-se. Deu cabo de um joelho e teve de ser operada, mas já está melhor. Vão mantê-la nos cuidados intensivos durante mais algumas horas por causa da idade dela, mas é apenas uma precaução. Os médicos já me deixaram falar com ela uns minutos. Oh, meu Deus, esqueci-me de te dizer. A Sara Collins é a juíza que condenou o Skarrett.

- Não, isso não pode ser verdade. Lembro-me do juiz, chamava-se Hamilton.

- Sim, o juiz Hamilton ouviu o caso e condenou o Skarrett. Voltámos para Bel Air depois de o veredicto ser lido, lembras-te?

- Sim.

- Mas o Skarrett ainda não tinha sido condenado. Bom, entretanto o Hamilton morreu e quando o Skarrett foi a tribunal para ouvir a sentença, a juíza era a Sara.

- Então essa é a ligação. E a outra mulher?

- A Anne Trapp não quis sair connosco. É uma história muito comprida e conto-ta assim que chegares. Vão trazer-te para o hospital ou encontramo-nos no aeroporto? Se nos quiserem meter num avião para a Florida, eu não vou sem ti. Teremos três semanas para pôr a conversa em dia antes de eles decidirem se nos deixam depor ou não. Se o Monk continua à solta...

- Três semanas? - interrompeu Avery. - Estás a dizer-me que o novo julgamento irá começar daqui a três semanas?

- Sim - respondeu ela. - Tenho a certeza de que nos vão pôr numa casa perto do tribunal para que, no caso de irmos depor, seja mais fácil levar-nos até lá.

Avery não conseguia processar toda a informação.

- E estás a dizer que há uma possibilidade de não nos deixarem depor?

- Querida, o que se passa contigo? Não estás a ouvir? Sim, existe uma possibilidade de não depormos. Está bem? Seríamos alvos fáceis e seria a oportunidade ideal para o Monk nos fazer mal.

Avery agarrou o auscultador com toda a força.

- Ninguém vai impedir-me de depor.

- Sê razoável.

- Queres que o Skarrett saia em liberdade? - A voz dela tremia de fúria.

- A tua segurança é mais importante para mim.

- Não o vou deixar sair em liberdade.

- Teremos muitas oportunidades para falar do julgamento

- disse Carrie. - Porque não me fazes perguntas sobre a Jilly?

- Não quero falar sobre ela.

- Espero que quando a apanharem me deixem falar com ela cinco minutos.

- Ela dava cabo de ti.

- Mas não de ti, com todo o tai chi e o karaté que aprendeste. - Carrie suspirou. - Não tenhas medo dela.

Avery teve vontade de rir. Depois de todas as histórias que ouvira acerca de Jilly ao longo dos anos, teria de ser louca como ela para não ter medo.

- Viste-a? Ela esteve dentro da casa?

- Sim - respondeu Carrie. - Conto-te tudo quando te vir.

- Quero que prometas fazer tudo o que os agentes te disserem. Okay, Carrie? Promete.

- Sim, claro que farei.

- Não... dificultes o trabalho deles. Sabes como ficas quando estás perturbada ou assustada.

- Não estou assustada; estou zangada. Muito, muito zangada. Por que raio não pôde a Jilly continuar morta?

- Ela não chegou a morrer - observou Avery.

- É melhor não nos meterem numa barraca cheia de pulgas quando estiverem a proteger-nos. O refúgio é na Florida, por isso quero uma casa na praia.

- Carrie, a decisão não é tua.

- Se não for agradável, tu podes puxar uns cordelinhos. Estou ansiosa por ver-te.

Avery preparou-se mentalmente. A tia tinha um rastilho muito curto quando as coisas não corriam de feição, e Avery estava prestes a acendê-lo.

- Eu não vou ter contigo. Não vou contigo para a casa... Não conseguiu dizer mais nada. O grito de Carrie fê-la encolher-se, e ela teve de afastar o auscultador da orelha.

John Paul, da mesa, conseguia ouvir a tia de Avery aos gritos. Avery empalideceu. Ele levantou-se, dirigiu-se para o telefone e tirou-lho suavemente das mãos.

- Despede-te, querida.

- Ela está muito perturbada.

- Pois.

- Adoro-te, Carrie, e ver-te-ei em breve. Adeus. Ainda ouviu Carrie gritar:

- Avery Elizabeth, não ouses desligar... John Paul pousou o auscultador no descanso.

- Parece simpática - disse ele muito sério.

A empregada observava-os enquanto levava os pedidos para a mesa. Avery afastou-se de John Paul e foi à casa de banho lavar as mãos. Quando se sentou à mesa, ele já devorara a sandes e estava a acabar o chá.

- Não quero que fiques com uma ideia errada da minha tia. Admito que às vezes é uma pessoa difícil, mas tenho a certeza de que quando a conheceres vais gostar tanto dela como eu.

Ele sorriu.

- Não vejo isso acontecer.

Ela deu uma dentada na sandes de peru, achou que sabia a serradura, e pegou no copo de chá para empurrar a comida que tinha na boca.

- Queres isto? - perguntou ela, empurrando o prato da sandes na direcção dele.

John Paul voltou a empurrá-lo para ela.

- Precisas de comer - disse ele, servindo-se de uma das batatas fritas.

Avery viu que ele olhava para a estrada.

- Isto não é um sítio muito movimentado, pois não?

- Fecham daqui a quinze minutos. Talvez seja por isso que não estejam aqui mais clientes. Diz-me uma coisa, Avery. Quando te candidataste ao FBI, o teu objectivo era vires a ser agente?

- Sim.

- Então porque não te tornaste agente?

Ela pensou em dar-lhe a resposta habitual, mas a seguir decidiu ser completamente honesta com ele. Para além disso, tinha a certeza de que ele perceberia as patranhas e saberia que ela não estava a dizer a verdade.

- Achei que queria ser agente. Um agente do FBI salvou-me a vida, e acho que foi nessa altura que meti na cabeça que queria ser como ele. Sabes, salvar pessoas.

- Então ias salvar o mundo. Que idade tinhas quando tomaste essa grande decisão?

- Doze. Tinha acabado de fazer doze anos.

- Isso é espantoso.

- O quê?

- Não teres mudado de ideias, teres mantido sempre o mesmo objectivo ao longo do secundário e da faculdade.

- Lembras-te do que querias ser quando tinhas essa idade?

- Não me recordo que idade tinha quando decidi que devia ser fantástico ser astronauta. Talvez dez ou onze.

- O plano não resultou? - perguntou ela, provocadora.

- A vida atravessou-se no meu caminho. Acabei a estudar Engenharia em Tulane, e depois fui para os fuzileiros.

- Porquê os fuzileiros?

- Estava bêbedo. Ela não acreditou.

- Diz-me qual a verdadeira razão.

- Achei que podia ser diferente. Gostava da disciplina e queria algo distinto de Bowen, na Luisiana.

- Mas agora vives em Bowen, não vives?

- Sim, vivo. Tive de me afastar para perceber o que queria da vida. Por acaso vivo fora de Bowen, no pântano.

- Quase abandonaste a vida, não foi?

- Gosto de solidão.

- Calculo que não tenhas muita companhia no pântano.

- Isso também me agrada. Onde é que estudaste?

- Em Santa Clara. Depois em Stanford. - Deu outra dentada na sandes e engoliu a custo aquela comida horrível. O pão estava mole, a alface murcha e o peru seco. - Nenhum de nós foi para muito longe. Mantivemo-nos ambos perto de casa. A Carrie quis que eu estudasse em Los Angeles, para poder trabalhar em part-time na empresa dela.

- A fazer o quê?

Ela corou. Aquela reacção imediata deixou-o ainda mais curioso.

- Queria que eu fizesse anúncios. Lá cedi uma vez quando ela estava numa situação difícil.

- E o que tiveste de fazer nesse anúncio?

- Segurar um sabonete, pestanejar e cantar um jingle idiota. Ele não se riu, mas quase.

- Canta-o para mim.

- Não - respondeu ela. - É horrível e detesto-o. Acho que sou introvertida - acrescentou com um encolher de ombros. - Como sempre sonhei ser agente do FBI, a Carrie lá acabou por ceder e deixou de me pressionar. Cedemos ambas.

Afastou o prato para o lado, e John Paul esticou o braço para lhe roubar mais algumas batatas.

- Cedeste em quê?

Ela dobrou o guardanapo e colocou-o em cima da mesa.

- Fiz um trabalho numa escola primária em San José para uma das minhas cadeiras, e gostei tanto de trabalhar com crianças que até pus a hipótese de vir a ser professora. Saí-me bem com elas - acrescentou, ligeiramente surpreendida. - Fui ao ponto de ter algumas das aulas de que iria precisar para conseguir o certificado de professora. Achei que podia ensinar História. Mas não disse à Carrie.

- Porque não? O que tem ela contra os professores?

- Nada. Só não queria que eu me tornasse um deles.

John Paul inclinou-se para a frente e fitou-a.

- Avery, o que estás a esconder-me?

Ignorando a pergunta, ela pediu à empregada que trouxesse a conta.

- Vá lá, miúda, responde. Porque não queria ela que desses aulas?

- O ordenado é muito baixo.

- E que mais?

- Os professores não são muito respeitados. Sabes o que se diz. Há quem ensine bem, há quem ensine mal. A Carrie achava que dar aulas não tinha grande... prestígio. A minha tia não é uma megera. Sei que estou a dar uma péssima imagem dela, mas ela não é nada assim, a sério.

- Então foi só isso? Foi essa a única razão por que não foste dar aulas? Por não ter prestígio suficiente?

- A Carrie achava que não era boa ideia eu dar-me com crianças.

- Porque não? Ele não ia desistir.

- Ela achou que seria muito difícil para mim.

- Ah.

- O que quer isso dizer? Ele foi certeiro.

- Não podes ter filhos, pois não?

Ela quis dizer-lhe. Sentiu um desejo avassalador de lhe contar tudo, de esvaziar a alma, como diria o tio Tony. Nunca antes sentira aquela necessidade, mas John Paul não era um homem qualquer. Estava-se nas tintas para coisas como prestígio. Não era um jogador, nem um manipulador. Era o que aparentava ser. Talvez fosse por esse motivo que ela se sentia tão atraída por ele. E tão bem na sua companhia.

- Não sei como é que chegaste a essa conclusão.

- Disseste-me que nunca irias casar, o que eu achei estranho.

- Porquê? - perguntou ela furiosa. - Porque todas as mulheres devem ambicionar casar? Não acredito nisso. Muitas são felizes solteiras.

Ele levantou as mãos.

- Calma. Não discordo, mas quando me disseste que não querias casar parecias estar bastante à defesa. Foi isso que achei estranho. Agora percebo porquê. Não podes ter filhos, e é por esse motivo que a Carrie não quer que trabalhes com crianças. Estou certo, não estou?

- Sim.

Avery estava com vontade de discutir. Deixara-o perceber a sua vulnerabilidade e sabia que se ele se mostrasse muito compreensivo ou com pena de si, se iria abaixo. Puxaria os cabelos dele ou os seus. Pior ainda, poderia chorar. Sabia que a sua reacção era um mecanismo de defesa, mas não se importava. Fitando-o, aguardou, desafiando-o a mostrar-se simpático.

Ele retribuiu o olhar.

- Então? - perguntou Avery quando ele continuou calado.

- Isso é uma estupidez. Ela pestanejou.

- Desculpa?

- Ouviste, miúda. Adoras trabalhar com crianças, e é isso que devias fazer. Dares ouvidos à tua tia e quereres fazer-lhe as vontades é uma estupidez.

- Mas eu sou boa no meu trabalho no FBI.

- E depois? Tens mais que um talento, não tens? Podes ser boa a fazer coisas diferentes.

Levantou-se para pagar a conta e fazer um telefonema, mas sem nunca tirar os olhos do parque de estacionamento. Avery observou a empregada, que fez um balão com a pastilha do dobro do tamanho da cara e a seguir se encostou ao balcão a olhar para John Paul.

Cinco minutos depois ele desligou.

- Vá, temos de ir andando. Ela seguiu-o até ao carro.

- Em que coisas és bom? - perguntou Avery antes de ele lhe abrir a porta do jipe.

- Em muitas.

- Trabalhaste para a CIA. Qual era a tua especialidade na altura?

- Tiro. Era um bom atirador. Não, isso não é verdade. Não era apenas bom. Era excelente. Tinha uns olhos de lince.

- És bom a fazer mais alguma coisa?

- Sim - respondeu ele. Pôs-lhe um braço à volta da cintura e puxou-a lentamente para si. - Também sou muito bom em mais uma ou duas coisas.

- Tais como?

Ele aproximou os lábios da orelha dela.

- Se as coisas correrem conforme o planeado, tu serás a primeira a ver - murmurou ele.

- Ena pá - respondeu ela, ofegante.

Será que ele sentia a pele de galinha dela? Provavelmente, pensou, suspirando e fitando-o nos olhos.

Sorrindo, ele beijou os lábios macios e quentes dela, levando algum tempo a obter reacção. Estava a tornar-se impossível resistir a Avery. A expressão de atordoamento dela fê-lo sentir-se arrogantemente satisfeito consigo próprio.

- É melhor saírmos daqui antes que eu me entusiasme e te mostre já aqui.

Abriu-lhe a porta e a seguir sentou-se ao volante. Saíram do parque de estacionamento rumo a Denver.

- Temos de nos afastar rapidamente daquele restaurante comentou ele. - A empregada há-de lembrar-se de ti.

- Achas que sim?

- Sim. Ninguém se esquece de ti.

- Tenho uma notícia para te dar, querido - disse ela, tentando imitar o sotaque dele. - A menina da pastilha elástica estava era a olhar para ti.

Ele encolheu os ombros.

- Vamos demorar pelo menos mais uma hora a chegar à cabana do Tyler. Se vir uma loja pelo caminho, paramos para comprar mantimentos.

- Duvido que haja alguma coisa aberta a esta hora.

- E isso é importante porque...?

- Devias ter vergonha. Vais arrombar a porta?

- Nunca saberão que eu lá estive.

Ela não tentou dissuadi-lo. Estava demasiado ocupada a pensar no comentário dele. O que aconteceria se as coisas corressem conforme o que ele planeara?

Quarenta quilómetros à frente, encontraram uma loja com artigos de pesca e de mercearia. O interior encontrava-se às escuras.

As habilidades de John Paul pareciam não ter fim. Abriu a porta sem fazer um risco, fez festas ao doberman preto que estava de guarda e agarrou em tudo o que quis. Ela ajudou-o a transportar o leite e dois sacos cheios de comida.

Ele calculou a despesa e deixou quatro notas de vinte sob a caixa registadora.

- Quanto tempo vamos ficar na cabana do Tyler? - perguntou ela quando iam de novo na estrada. - Temos comida que chegue para um mês.

- Ficamos lá pelo menos uma noite, talvez duas - respondeu ele. - O Tyler disse-me que há uma pequena vila a vinte quilómetros da cabana. Pedi ao Theo que me investigasse umas coisas, e quando souber o que se passa, decidiremos o que fazer.

- Não vou faltar àquele julgamento.

- Compreendo. Posso perguntar-te uma coisa?

- Sim.

- É por causa do Skarrett que não podes ter filhos?

- Sim - respondeu ela. - A bala acertou em cheio, mas sabes que mais? Eu nunca teria tido filhos na mesma. O problema da Jilly pode ser genético. Por isso, como vês, não importa.

- Importa sim - retorquiu ele. - O Skarrett tirou-te a possibilidade de escolheres. É isso que importa.

Falava num tom irado, mas ela não se importou. O que ele dizia era verdade.

Mudou para um tema menos doloroso, falando sobre as coisas idiotas que lhe tinham acontecido em criança. Ele contou-lhe histórias sobre a sua vida e a sua família, e quando falou do pai ela fartou-se de rir.

- As pessoas chamam-lhe mesmo Grande Pai?

- Sim, chamam. Vais gostar dele.

Partia do princípio de que um dia Avery iria conhecer o seu pai. Ela haveria de gostar. Queria saber mais coisas sobre a família dele, a casa e o trabalho. Queria saber tudo sobre ele. Antes de poder continuar a conversa, viu dois pares de faróis aproximarem-se.

Ele guinou para uma estrada lateral e desligou os faróis do jipe.

Aguardaram em silêncio até os carros passarem.

- Quando pediste ajuda ao teu cunhado, tiveste receio de que ele dissesse ao FBI para onde vamos?

- Porque trabalha para o Departamento de Justiça?

- Sim.

- A família está em primeiro lugar, miúda. Sempre.

- Mesmo assim...

- Ele não vai dizer nada, e irá ajudar-nos. Eu expliquei-lhe o que ele precisava de fazer e ele concordou.

- Óptimo. Ainda bem que podemos confiar nele. Esperaram no escuro durante mais alguns minutos, antes de acharem que era seguro prosseguirem viagem.

Avery não conseguia deixar de pensar nas palavras que ele lhe murmurara ao ouvido. Talvez se deixasse de olhar para ele fixamente conseguisse pensar noutra coisa. Há muito tempo que não estava com um homem na intimidade, e julgara ter-se tornado especialista em afastar esses pensamentos e vontades.

Fora uma especialista, pelo menos até ele ter entrado na sua vida. Agora as portas tinham-se escancarado e ela só conseguia pensar em tocar-lhe. Em todo o lado.

Durante mais meia hora esforçou-se por pensar noutra coisa que não sexo. Reviu mentalmente os cheques que passara nas últimas semanas, depois calculou quanto tempo mais conseguiria ficar no seu apartamento sem receber o ordenado. Três ou quatro meses? Se fosse despedida.

Começou a bater com o pé no chão. Quem estava ela a enganar? Claro que iria ser despedida. Não podiam despedi-la por insubordinação, mas Cárter poderia acusá-la de prejudicar uma investigação.

John Paul pousou-lhe uma mão no joelho.

- Porque estás tão nervosa? - Depois, antes de ela conseguir responder, disse: - Ali está.

Meteu por uma estrada de terra. Via melhor à noite do que Avery. Ela nem reparara na estrada.

- Tens a certeza?

A mão dele continuava na sua perna, mas Avery não tinha vontade de a tirar de lá. Olhava em frente, fingindo observar a estrada enquanto se imaginava a arrancar-lhe a roupa.

Estaria a transformar-se numa galdéria? Abanou a cabeça. Não, estava apenas com desejos normais, como qualquer outra mulher, mas, porque não os sentia há muito, não sabia lidar com eles.

- No que estás a pensar?

”Em sexo, bolas. Estou a pensar em sexo.”

- Nada de especial.

- Ai sim?

Até a voz dele era sensual. Enfiando os dedos no cabelo, Avery percebeu como estava tensa e se sentia terrivelmente insegura.

Contornaram umas árvores e depois a estrada ficou ladeada pelo que devia ser um prado. Era impossível ter a certeza no escuro. Ela começou a bater de novo com o pé no chão. Sentia-se nervosa por ir ficar sozinha com ele naquela cabana isolada.

O jipe parou junto da porta. Quando John Paul desligou o motor e os faróis, ficaram às escuras. Avery nem conseguia ver a mão diante do rosto.

- Ficas aqui até eu ir buscar a chave ao degrau.

Ela não conseguiria mover-se, nem que a sua vida dependesse disso. As suas pernas pareciam feitas de borracha, e julgou que iria entrar em pânico. Felizmente, já conseguira controlar os seus pensamentos loucos quando ele abriu a porta da frente e acendeu as luzes no interior. Ela desceu e ajudou-o a levar os sacos.

A cabana era encantadora e cheirava a pinho e a desinfectante. Em frente à porta havia uma lareira de pedra ladeada por duas cadeiras de vime com almofadas aos quadrados amarelos e vermelhos. O sofá verde já vira melhores dias, pois os braços estavam puídos e o tecido desbotado, mas parecia bastante confortável. A direita da porta havia uma mesa de pinho redonda e quatro cadeiras de espaldar alto.

A seguir à mesa havia uma cozinha estreita com uma porta. Ela pousou um saco em cima da bancada, e atravessou depois a sala até ao outro lado da cabana. Havia duas portas no pequeno corredor. A da esquerda dava para uma casa de banho. Abriu a outra porta ao fundo e entrou. Viu-se num quarto espaçoso, com uma cama de ferro coberta por uma colcha multicolorida.

Quanto mais tempo olhava para a cama, mais depressa o seu coração batia. Ouvia John Paul guardar os mantimentos, sabia que devia ir ajudá-lo, mas não conseguia mexer-se.

- É só uma cama, por amor de Deus. Qual é o drama? Chateada por se sentir tão nervosa, agarrou no saco de viagem e foi à casa de banho tomar um duche.

Não se dera ao trabalho de trazer camisa de dormir nem roupão. Depois de ter secado o cabelo e lavado os dentes, vestiu umas cuecas cor-de-rosa e a velha T-shirt de Santa Clara. Era no mínimo três tamanhos acima do seu, largueirona e dando-lhe quase pelos joelhos.

Olhando para o espelho, examinou-se e decidiu que lhe faltava encanto feminino. Pela primeira vez na vida, quis parecer bonita. Bolas, como Carrie haveria de rir-se agora! Ela criticara sempre a forma como a sobrinha se vestira e, naquele momento, Avery concordou com ela.

Nada podia fazer em relação ao seu aspecto. Com um suspiro, pôs o saco a um canto do quarto para não tropeçar nele e chegou à sala no instante em que a porta da rua se abriu e John Paul entrou. Ele fechou a porta, trancou-a, depois virou-se e estacou.

- O que te aconteceu? - perguntou ela. Ele não respondeu. - Parece que andaste a rebolar-te na terra. - O que aconteceu?

John Paul era incapaz de desviar os olhos das pernas dela. A sua mente fervilhava de fantasias.

- Pus o carro no celeiro, e pensei... o óleo... os pneus...

- Sim?

- O quê?

Conseguiu finalmente fitá-la, sabendo que devia parecer um veado hipnotizado por faróis. Quando a vira ali parada quase ficara sem forças nos joelhos. Aquele ar limpinho era inebriante. Ela era linda. Será que fazia ideia do poder que detinha sobre ele?

- O que se passa com o óleo e os pneus?

- Exactamente.

Parecia um idiota a falar, e ela era responsável pela diminuição abrupta do seu QI. Passou por ela rapidamente, murmurando palavras incoerentes, entrou na casa de banho e fechou a porta.

Avery tirou uma garrafa de água do frigorífico, apagou as luzes da cozinha e da sala e foi para o quarto. Disse várias vezes a si mesma para se descontrair enquanto dobrava a colcha. Encontrou lençóis lavados no armário e pô-los na cama, com um cobertor leve que tirou da arca de cedro. Subindo para a cama, dobrou as pernas e ficou na posição de lótus. Precisava de limpar a mente e de se concentrar na sua respiração. Quando estava prestes a sentar-se no balouço do seu alpendre imaginário, sem a menor preocupação, foi interrompida.

- Vais para o teu lugar feliz?

Os olhos dela abriram-se. John Paul estava parado junto à porta a olhar para ela. Vestia apenas uns boxers. Nem se dera ao trabalho de os abotoar. Fizera a barba, reparou ela, e também lavara o cabelo. Havia gotas de água no pescoço e nos ombros bronzeados.

Ela ficava em desvantagem ali sentada na cama. Se iam abordar a situação como adultos, ela queria estar em pé de igualdade. Levantou-se rapidamente.

- Sim, ia. Estava a tentar descontrair-me. Ele bocejou ruidosamente.

- Avery?

- Sim?

John Paul encostou-se à ombreira da porta, cruzando as pernas e os braços. Ela tentou não olhar para o remoinho negro junto ao umbigo dele.

- Eu durmo no sofá ou na cama?

Teria ela coragem de ser completamente franca com ele, de dizer-lhe o que queria? ”É agora ou nunca”, pensou ela. Pigarreou.

- Na cama... comigo, se quiseres.

Bolas, parecia tão vulnerável, até um pouco receosa. Não era capaz de o fitar nos olhos.

- Se quiseres - repetiu com voz rouca.

- Sim, quero.

John Paul deu um passo na direcção de Avery, mas estacou quando ela levantou a mão.

- Calma aí, Renard.

- O que foi? - perguntou ele com um suspiro.

- Há duas regras que temos de estabelecer primeiro.

Ela não estava a brincar. John Paul ter-se-ia rido se ela não estivesse com um ar tão sério.

- Regras? Como não bater abaixo do cinto? - Ao ver que ela não respondia, perguntou: - Vamos lutar boxe ou vais deixar-me...

- Vou ficar com a T-shirt vestida. Está bem?

- Está, se quiseres, mas se mudares de opinião e quiseres despi-la, também está bem.

- Se quiser, dispo, mas não quero e, provavelmente, não vou querer. Percebido?

Nesta altura ele perdeu o fio à meada.

- Sim, claro - respondeu, dando outro passo na direcção dela.

- Ainda não acabei. Ele sorriu.

- Foi o que pensei. Muito bem, que mais?

- Tens de usar protecção. Não posso ter filhos, mas não fizemos análises ao sangue e...

- Eu tencionava usar protecção - disse ele quando ela começou a gaguejar.

- Tencionavas?

- Sim. - Tirou o preservativo do cós dos boxers e atirou-o para cima da cama. - Mais alguma coisa?

- Isso é que foi presunção.

- Avery, se não te tocar imediatamente, fico maluco, por isso despacha-te lá com as regras.

O coração dela galopava.

- Se ficares desiludido...

- Não ficarei...

- Mas se ficares, guarda isso para ti. Não te venhas queixar.

- Querida, és sempre assim tão tensa antes do sexo?

- Concordas?

- Sim, não irei queixar-me. - Esperara o máximo que pudera. - Agora é a minha vez - disse, agarrando-lhe na T-shirt e puxando-a para si. - Tu estás algures aqui debaixo, não estás?

Largou a T-shirt e abraçou-a pela cintura. A sua mão deslizou por baixo do tecido e pousou nas suas costas. Avery não tentou libertar-se quando os dedos dele tocaram nas suas cicatrizes. John Paul inclinou-se e beijou-lhe o pescoço, logo abaixo da orelha.

Avery sentiu arrepios. Fechara as mãos, mas, enquanto ele brincava com o lóbulo da sua orelha com a língua, começou a descontrair-se. O hálito doce e quente dele contra a sua pele sensível intensificava ainda mais os arrepios. Sentia a força, o poder daqueles músculos de aço sob a ponta dos dedos. Como é que uma pessoa tão forte podia ser tão meiga? Suspirou junto ao pescoço dele e pousou a cabeça no seu ombro.

- Presta atenção, querida. Também tenho umas regras.

Ela levantou a cabeça e fitou-o nos olhos. Como é que não reparara que eles eram lindíssimos? Quando ele sorria, os olhos pareciam iluminar-se.

- Sim?

- Confias em mim?

Confiar nele? Estava a apaixonar-se perdidamente por ele. Claro que confiava nele. No entanto, tinha medo de o admitir.

- Isso não é uma regra.

Ele não a deixou fugir à pergunta, e quando ela tentou distraí-lo encostando-se às suas virilhas e beijando-o, ele abanou a cabeça.

- Já sei a resposta, mas quero... não, preciso de te ouvir dizer as palavras.

- És o homem mais casmurro, obstinado e exasperante que já conheci, mas, desde o momento em que nos conhecemos que sinto uma ligação estranha entre nós. Parece que esperei toda a vida para me sentir tão segura... e livre. Não consigo explicar sussurrou.

Ele levantou-lhe o queixo e beijou-a ao de leve nos lábios.

- Então confia em mim - murmurou. - É essa a minha regra. Tens de confiar em mim.

Ela julgou compreender o que John Paul lhe pedia. E ele tinha razão. O amor e a confiança andavam lado a lado.

Era agora ou nunca. ”Por favor, meu Deus, não permitas que ele fique repugnado.” Recuou para junto da luz suave do candeeiro da mesa-de-cabeceira, esperou até ele a largar, e então, antes que a coragem a abandonasse completamente, despiu a T-shirt e atirou-a para o chão. Virou-se para ele poder ver as suas costas cheias de cicatrizes.

A maior parte dos danos encontrava-se no fundo das costas. As cicatrizes feias arrepanhavam-lhe a pele. Estava com medo de se virar, de o fitar nos olhos.

- Querida?

Havia um sorriso na sua voz. Confusa com aquela reacção, ficou hirta, com as mãos pendentes ao lado do corpo, a olhar para a parede.

- Sim? - perguntou a medo. Ele pousou-lhe a mão no ombro.

- Neste momento estou mais interessado na parte da frente.

- O que...

Ele virou-a suavemente e puxou-a para si. Os seios macios dela fizeram pressão no seu peito. Ele fechou os olhos.

- Bolas, tenho sonhado com isto... - murmurou. - Mas é melhor que no sonho. Muito melhor.

- Mas as minhas costas... tu viste...

- Já lá iremos - prometeu ele. - Tenho muito território para cobrir - sussurrou, beijando-lhe uma lágrima do rosto. Mas no meu estado actual, tenho de seguir as prioridades.

Antes de ela poder discutir, ou preocupar-se, ou gritar, a boca dele apoderou-se da sua num beijo pecaminosamente carnal. A língua dele entrava e saía da boca dela num ritual de amor que a deixou trémula de desejo.

As mãos dele estavam por toda a parte, a acariciar, a afagar, a provocar, enquanto a sua boca não abandonava a dela. Libertou-a das suas inibições e retribuiu o beijo com avidez. Afagou-lhe o peito, adorando o toque dos seus pelos escuros sob a ponta dos dedos.

John Paul gemeu baixinho de prazer quando Avery lhe apertou um dos mamilos, por isso ela repetiu o gesto.

Estavam ambos ofegantes quando ele terminou o beijo e recuou. Ele fez deslizar os boxers até ao chão, fitando-a nos olhos, deliciado com a paixão que viu neles.

Avery não desviou o olhar enquanto levou as mãos à cintura para despir as cuecas. O seu olhar surpreendido quando as viu já no chão fê-lo sorrir, orgulhoso da sua habilidade.

Ela deixou-o saborear o momento.

- És bom - murmurou ela com voz trémula.

Ele seguiu-a até à cama. Deitaram-se e ele levantou o tronco, com Avery entre os seus braços retesados.

- Ainda não viste nada.

Tinha uma expressão de luxúria e essa expressão fez Avery sentir-se ousada.

- Nem tu - retorquiu, movendo-se contra ele, as suas mãos deslizando-lhe pelas coxas. O corpo dele era tão quente quanto o seu olhar.

John Paul adorava a forma como ela lhe tocava. Adorava tudo nela. Avery punha-o louco. Ela puxou-o para baixo, para mais um beijo, e desta vez ele deixou-a ser a agressora. As suas línguas degladiaram-se enquanto as suas mãos aprendiam os segredos dos seus corpos.

Quando ela tocou na erecção dele, John Paul achou que iria perder o controlo e tentou fazê-la parar, mas ela não cedeu. Mal conseguia respirar com o êxtase que as mãos dela provocavam. Pôs uma mão entre as coxas dela, os seus dedos acariciando-a intimamente até ela erguer as coxas da cama e gritar.

John Paul aguentou o mais que pode até ficar desesperado por entrar nela. Beijou faminto os lábios doces e macios dela enquanto com um joelho lhe afastava as coxas. Agarrando-lhe nas nádegas, ergueu-se um pouco para poder vê-la. Com um impulso lento, penetrou-a, e depois foi mais fundo.

Ela ergueu as coxas ao mesmo tempo, gritando de prazer e envolvendo-o com as pernas, apertando com força.

John Paul agarrou o rosto dela com as mãos, a sua boca cobrindo a dela, e sua língua mergulhou naquela boca quente. Levou o seu tempo. Impulsos longos e lentos que o faziam sofrer. Tinha o rosto transpirado e, enquanto fazia amor com ela, percebia que nunca antes fora tão incrível. Nunca.

Avery estava extasiada com as sensações que a invadiam. Eram tão intensas, tão novas. Não podia deixá-lo continuar com aquele ritmo lento. Estava louca nos braços dele e começou a mover-se com mais rapidez, exigindo mais, cravando as unhas nos ombros dele enquanto impulsionava as coxas com uma paixão que igualava a dele.

Determinado a agradar a Avery e a satisfazê-la antes do seu êxtase, ele tentou abrandar, mas ela não quis. O sexo entre eles tornou-se descontrolado, primitivo, quase selvagem. John Paul estava extasiado.

Avery sentia o seu controlo desaparecer, mas não tinha medo. Era maravilhoso sentir-se tão desinibida e deixar-se ir sem medo ou preocupações. Sabia que estava segura nos braços dele, e quando chegou ao precipício e o seu corpo começou a estremecer, arqueou as costas de encontro a ele. Ondas de prazer puro percorreram-na.

Impossível de reprimir, o orgasmo dele foi despoletado pelo dela, e John Paul atingiu o clímax dentro dela, cerrando os dentes de prazer.

Ficaram unidos durante vários minutos. Ofegavam e nenhum tinha forças para se mexer. Os corações batiam em uníssono. Ele enterrou o rosto no cabelo sedoso de Avery, e fechou os olhos enquanto inalava aquela fragrância maravilhosa.

- Bolas! - murmurou ele. Ela roubara-lhe todas as suas forças. Quando tentou mover-se para não a esmagar com o seu peso, os seus ossos pareciam ter-se liquefeito.

Ela parecia não se importar com o peso, pois apertou-o com as pernas quando ele tentou mudar de posição.

- Ainda não - murmurou.

Teria ele sido demasiado bruto com ela? O pensamento ocorreu-lhe e já não o abandonou. Podia ter sido mais meigo, mas ela mostrara-se tão maravilhosamente desinibida que ele se descontrolara um pouco.

- Avery? Estás bem?

Ela sorriu ao se aperceber da preocupação na voz dele.

- Então aquela conversa toda era por causa disto - murmurou.

E quando soltou uma gargalhada de prazer ele sorriu, apesar da exaustão.

Com um suspiro, rolou de cima dela, depois levantou-se e foi à casa de banho.

Ela puxou o lençol para cima, ajeitou a almofada e deitou-se. Ainda estava um pouco avassalada com o que acabara de experimentar. O sexo, decidiu, pelo menos o sexo com John Paul, podia tornar-se viciante.

As molas do colchão queixaram-se quando John Paul se deitou ao lado dela. Avery abriu os olhos e sorriu. Ele parecia tão arrogantemente orgulhoso. Deitara-se de lado, e fitava-a com a cabeça apoiada no braço.

Ela estava exausta. A paixão continuava nos seus olhos e tinha os lábios inchados dos beijos dele.

Avery sabia que o satisfizera, mas ainda precisava que ele lho dissesse. Era estranho como ainda há pouco se sentira tão poderosa e agora estava já com as antigas inseguranças. Não, ela não o desiludira. Mas porque não lhe dizia ele isso?

Ele percebeu o que se estava a passar. Os olhos dela. Tinham perdido o brilho. Não lhe parecia que ela estivesse arrependida... talvez um pouco preocupada.

- No que estás a pensar? - perguntou Avery.

Ele percebeu que adivinhara. Baixou o lençol até aos mamilos dela. Ela puxou-o para cima.

- Aposto que consigo tirar-te isso de cima mais depressa do que um vestido no baile dos finalistas - murmurou.

- Já cá faltava. Estás muito satisfeito contigo, não estás?

- Podes crer que estou - respondeu ele, inclinando-se para a beijar. A ponta da sua língua fez cócegas no céu da boca dela. Quando ele voltou a levantar a cabeça, Avery estava ofegante; mas ele também.

Oh, como ela adorava aquele homem! Ele era tão perfeito para si! Levantou a mão para lhe afastar o cabelo da testa, uma desculpa para continuar a tocar-lhe. Não se fartava disso.

- ”Ai a minha vida”? Foi isso que disseste, querida, quando estavas a desfazer-te nos meus braços. Aliás, gritaste.

Ela riu-se.

- Não gritei nada.

- Gritaste sim.

- Eu sei o que tu gritaste, mas não vou repeti-lo. O sorriso dele era lascivo.

- Adivinha.

Os dedos dela percorriam a parte lateral musculada do pescoço de John Paul, e depois deslizaram para o seu ombro.

- O quê?

- O vestido do baile de finalistas já desapareceu. Surpreendida, ela levantou a cabeça e olhou para baixo. Tinha o lençol nos tornozelos.

- Tu és bom!

Ele baixou-se e beijou-lhe os seios. Com os dedos, descreveu círculos em torno do seu umbigo. Uma cicatriz aos ziguezages atravessava a parte de baixo do abdómen dela. O centro mais elevado indicava que fora uma bala a fazer os estragos. Provavelmente de calibre.38. Ou talvez uma.45.

Fora um milagre ela ter sobrevivido. Ele inclinou-se para a frente e beijou a sua barriga, sorrindo quando ela inspirou profundamente. Voltou a deitar-se de lado para poder observar o rosto dela enquanto a sua mão deslizava até aos seus caracóis macios.

Avery estava com alguma dificuldade em conseguir respirar.

- Queres...

- Oh, sim. Quero.

Gemendo baixinho, ela esfregou-se contra ele, as pontas dos pés tocando-lhe nos tornozelos.

Tentou tocar-lhe, mas ele agarrou-lhe na mão.

- Descontrai-te, querida. Deixa-me...

Não chegou mais longe. Ela era surpreendentemente forte. E ousada. Deitou-o de costas e inclinou-se para cima dele.

- Descontrair-me? Não me parece, John Paul. Isto é um desporto de equipa, não é?

Ele não conseguiu responder-lhe. As mãos dela seguravam a sua erecção e enlouqueciam-no com carícias.

- E... - murmurou ela, sentando-se em cima dele e beijando-o apaixonadamente.

- E o quê? - perguntou ele numa voz tão áspera como lixa.

- Eu gosto de jogar em equipa - disse ela com os olhos a brilhar.

 

                                                 CAPÍTULO 31

O homem era insaciável. Avery acordou ao meio-dia. Não costumava dormir até tão tarde, mas John Paul não a deixara descansar muito durante a noite.

Encontrava-se deitada de barriga para baixo, com um braço pendurado. Ele fazia-lhe cócegas nas costas. Os seus dedos eram leves como penas. Estaria ele a tentar pô-la louca, ou a ser tão meigo por causa das cicatrizes dela?

Oh, céus, as cicatrizes! Até Carrie, que a amava como uma mãe, não conseguia impedir-se de fazer uma careta quando as via.

- Já estás acordada? - perguntou ele. - Avery? Ela não lhe deu os bons-dias.

- O que achas?

- Acerca do quê?

- Das minhas costas.

- És capaz de aguentar a verdade?

Oh! Não lhe agradou nada o tom dele. Sentia-se começar a ficar à defesa.

- Sim, sou capaz - respondeu, tensa. - No que é que estás a pensar?

- No teu rabinho lindo. Ela rolou na cama e fitou-o.

- Foi a primeira coisa que reparei em ti quando entraste a pavonear-te no átrio do spa.

- Eu não me pavoneio - retorquiu ela com um sorriso.

- Claro que sim.

- És um pervertido!

- E tu uma liberal. Acho que assim ficamos quites. Quanto às cicatrizes...

- Sim? - perguntou ela ainda com um sorriso.

- São apenas cicatrizes. Não definem a pessoa que és. Agora levanta-te. O pequeno-almoço está pronto daqui a dez minutos. Mexe-te - disse ele, levantando-se.

Estava nu e parecia feliz com isso. Era lindo. Todo músculos e virilidade.

- Veste-te, por favor!

- Porquê?

- Costumas andar assim nu no pântano?

- Quem me dera, mas não posso, por causa dos aligátores e das cobras.

Tirou as calças de ganga da cadeira e foi para a sala. Avery tomou um duche rápido e vestiu uns calções azul-escuros e uma blusa amarelo-clara. Prendera o cabelo atrás das orelhas quando entrou descalça na cozinha.

John Paul foi à cozinha e voltou com um prato de comida que pousou à frente dela. Depois deu-lhe um frasco de molho Tabasco.

Preparara ovos mexidos com muita pimenta. Ela deu uma dentada e empurrou rapidamente a comida com sumo de laranja.

- Gostas de comida picante - comentou ela com um sorriso.

- Na Luisiana, a comida picante é um estilo de vida.

- Como é crescer em Bowen com um pai a quem toda a gente da cidade chama Grande Pai Jake?

- Interessante - respondeu ele. - O meu pai é um personagem, está sempre a planear qualquer coisa, sabes? É um bocado vigarista, mas tem um bom coração.

Contou-lhe algumas histórias engraçadas sobre as travessuras que ele e o irmão Remy tinham feito em miúdos. Falou várias vezes no pai e na irmã mais nova, e ela reparou que a sua voz se suavizava um pouco sempre que isso acontecia.

- A Mike é tão mandona como tu. - O sorriso dele dava a entender que achava isso uma qualidade. - É cirurgiã acrescentou com orgulho. - Chama-se Michelle, mas todos a tratam por Mike, toda a gente menos o marido. Estão à espera do primeiro filho em Setembro.

- Theo - disse Avery. - Ela é casada com o Theo, que é advogado no Departamento de Justiça.

- Exacto.

Contou-lhe outra história enquanto ela acabava o pequeno-almoço, e a seguir Avery ajudou-o a lavar a louça.

- Choveu muito esta manhã. Os trovões fizeram abanar os caibros.

- Não ouvi nada.

- Eu deixei-te exausta.

Soou petulante. Ela decidiu fazer-lhe a vontade.

- Pois deixaste - concordou ela, dobrando o pano da louça e pousando-o na bancada. - Temos de fazer planos.

- Eu sei - concordou ele, seguindo-a até à sala.

Avery enroscou-se no sofá, e ele sentou-se numa cadeira, descalçou os sapatos e pousou os pés na outra ponta do sofá. Era um homem tão grande que a cadeira não se via.

- Mas hoje não - disse John Paul. - Hoje descansamos e conversamos. Amanhã fazemos planos.

- Do que vamos falar?

- Não é do quê, mas sim de quem. Temos de falar sobre a Jilly.

Ela adiara o mais que pudera.

- A Carrie tinha um diário - disse ela, assentindo. - Era muito nova, devia ter uns onze anos quando começou a escrevê-lo. No entanto, o diário não falava das esperanças, sonhos e paixonetas dela. Não, falava apenas da Jilly. Cada página descrevia um incidente horrendo que envolvia a maluca da irmã. A Carrie contou-me que queria ter uma espécie de registo... uma prova, acho, na esperança de que um dia a Jilly fosse apanhada, presa. Achava que se os médicos lessem o diário perceberiam como Jilly era perigosa e certificar-se-iam de que ela ficaria atrás das grades durante o resto da vida, mas creio que era mais do que isso. Creio que, lá no fundo, a Carrie acreditava que a Jilly iria matá-la.

- Não cresceste num ambiente muito agradável... Avery concordou.

- A Carrie deixou de escrever o diário quando a Jilly se foi embora, mas manteve-o guardado, não fosse ela voltar. Eu sabia onde ele estava escondido, mas a Carrie não me deixava lê-lo.

- Mas leste-o, não é verdade?

- Sim. Mas quem me dera não o ter feito. Era suficientemente crescida para julgar que era capaz de aguentar tudo, mas havia ali tantas coisas assustadoras e doentias...

- Que idade tinhas?

- Catorze. Li tudo, e tive pesadelos durante meses. A Carrie descreveu imensos pormenores, e fiquei a saber quem realmente era a Jilly.

Cobrira o peito e a barriga com uma almofada que apertava com imensa força. A tristeza nos seus olhos era devastadora.

- Detesto falar dela - murmurou.

- Eu sei.

Avery curvou os ombros.

- Há mesmo monstros neste mundo. Predadores. A Jilly é um deles. Sabes o que me assustou mais depois de ter lido o diário?

- O quê?

- Que um dia acordasse e fosse igual a ela. Sabes, como o Doutor Jekyll e o Mister Hyde. Geneticamente estou ligada a ela.

- Isso nunca irá acontecer, Avery.

- Como é que sabes?

- Tu tens uma consciência. Isso não desaparece. És muito diferente dela.

- Foi isso que o doutor Hahn me disse.

- Quem é o doutor Hahn?

- Um psiquiatra. Eu acordava a gritar todas as noites e a Carrie, desesperada, levou-me às consultas. Fez-me prometer não contar a ninguém, porque não queria que as pessoas pensassem que eu era maluca.

- Ela estava preocupada com o que as outras pessoas poderiam pensar? - perguntou ele, tentando manter o tom de censura afastado da voz.

- O doutor Hahn foi maravilhoso, e ajudou-me a... aguentar. A Carrie não sabia por que motivo eu tinha aqueles pesadelos, pois eu não lhe contei que lera o diário, e creio que foi na terceira ou na quarta sessão que o doutor Hahn a mandou entrar e lhe contou o que eu fizera. Ela ficou furiosa, claro, mas quando o psiquiatra conseguiu acalmá-la, pediu-lhe para ler o diário e ela concordou. Teria feito qualquer coisa para me ajudar a ver-me livre daquilo a que chamava os meus terrores nocturnos.

Sorriu a John Paul e pousou os pés no chão.

- Acho que o psiquiatra teve pesadelos depois de o ler. Eu cresci sabendo que a Jilly era maluca, e a Carrie contava-me histórias, mas elas nada eram quando comparadas com o que estava no diário.

- O que disse o Hahn sobre a Jilly depois de ter lido o diário? Qual foi a reacção dele.

- Ficou excitado.

- Excitado? - repetiu ele, sem compreender.

- Tinha a certeza de que a Jilly era uma sociopata pura, e gostaria de ter a oportunidade de a estudar. Por aquilo que lera, concluíra que a Jilly era moral e emocionalmente atrasada, e era por isso que ele acreditava que era incapaz de sentir culpa ou remorsos. A dor das outras pessoas não a fazia sentir-se mal. Pelo contrário, gostava de magoar os outros sem motivo. Gostava e pronto. Era muito boa a culpar os outros e a reescrever a história, e, sobretudo, muito matreira.

John Paul pousou os pés no chão e inclinou-se para a frente, apoiando os cotovelos nos joelhos.

- Ela era... espantosa na forma como conseguia manipular as pessoas. Toda a gente gostava dela, independentemente do que fazia. Era tão esperta.

- Dá-me um exemplo.

- Quando era muito miúda, começou a divertir-se com animais. Torturou e matou o gato da Carrie com gasolina e um fósforo. Contou à Carrie o que fizera, mas, diante da mãe, pôs-se a chorar porque, disse, adorava o gato. Um dos vizinhos levou-a a comer um gelado para ela se sentir melhor. Quando já estava no fim do secundário, tornara-se maior e melhor. Era a rapariga mais popular da escola, claro. Toda a gente adorava a Jilly. Uma rapariga chamada Heather Mitchell foi eleita rainha da escola, e Jilly primeira dama de honor. Segundo a Carrie, na escola, a Jilly pareceu aceitar tudo muito bem, mas quando chegou a casa nessa tarde teve um ataque de fúria que durou horas. Quase destruiu a casa. O quarto da Carrie sofreu a maior parte dos danos. Não o dela, claro. Depois de jantar, ficou muito quieta, com aquela expressão matreira no olhar, e fingiu aceitar.

Avery respirou fundo. Doíam-lhe os músculos dos braços e percebeu que estava a apertar a almofada. Largou-a.

- No dia seguinte desapareceu uma embalagem de ácido sulfúrico do laboratório de química. Depois das aulas, a Jilly apanhou a Heather sozinha, mas a Carrie viu-a pegar-lhe pelo braço e puxá-la. A Jilly disse à Heather para não aparecer na escola no fim-de-semana da coroação, ou arrepender-se-ia. A Heather era uma miúda muito doce e estava a atravessar uma fase muito difícil. A mãe morrera duas semanas antes com um aneurisma, e a pobre rapariga continuava em estado de choque. Quando a Jilly deixou de a atormentar, a Heather trancou-se no quarto, mas o pai conseguiu finalmente que ela lhe dissesse o que se passava. Ele disse que a Jilly admitira ter roubado o ácido. Ameaçara esperar pela Heather um dia depois das aulas quando estivesse sozinha em casa e atirar-lhe o ácido à cara.

- Céus! Avery assentiu.

- A Carrie não se baseou em boatos. Falou com a Heather.

- O que fez o pai da Heather?

- Foi falar com o director da escola na manhã seguinte e exigiu que a Jilly fosse expulsa. E foi também à polícia.

- E o que fizeram eles?

- Nada - respondeu Avery. - O chefe da polícia era muito amigo da minha avó, e não quis fazer nada que a perturbasse. Além disso, era a palavra de uma rapariga contra a de outra. A Jilly, é claro, negou o incidente. A minha avó e a Jilly foram chamadas ao gabinete do director nessa tarde. A minha avó obrigou a Carrie a ir com elas.

- A Jilly foi expulsa?

- Não! - exclamou Avery. - O director da escola, Mister Bennett, era um homem muito infeliz no casamento. A mulher dele era fria e difícil, segundo a Carrie escreveu.

- O que aconteceu? - perguntou John Paul, trazendo-a de volta à escola.

- A Carrie viu a Jilly seduzir o Bennett. A Jilly ficou histérica. Desatou a chorar, mas era tudo fachada. O director correu para o sofá onde a Jilly estava e sentou-se ao lado dela. Pôs-lhe um braço sobre os ombros para a confortar, mas foi a linguagem corporal da Jilly... e a reacção de Bennett, que fascinaram a Carrie.

- Abanou a cabeça. - Já alguma vez viste uma mulher mover-se como um gato? A Carrie escreveu que a Jilly era assim. Quando o Bennett lhe pôs um braço nos ombros, ela esfregou-se contra ele de forma obscena.

- O que fez a tua avó?

- Não percebeu nada, como de costume, segundo a Carrie. Saíra do gabinete para ir buscar um copo de água à Jilly, mas mesmo que tivesse ficado não teria reparado em nada porque não queria reparar. A Carrie escreveu que a Jilly se agarrara ao Bennett a chorar. Pousara a cabeça no ombro dele, mas olhava para a Carrie, que estava atrás do director, e exibia um enorme sorriso. Quando aquilo acabou, o Bennett ameaçou suspender a Heather por inventar aquela mentira.

- Credo!

- Tal como eu disse, a Jilly tinha muito jeito para os homens. Alguns ficaram obcecados por ela. Ligavam-lhe a qualquer hora do dia e da noite. De vez em quando, a Carrie esgueirava-se até ao quarto da avó Lola e escutava a conversa noutro telefone. Ela escreveu que os homens choravam e imploravam, e que depois de desligar, a Jilly desatava a rir-se. Oh, como ela adorava o poder que detinha. Adorava manipular, e utilizava o sexo para obter o que queria. A sua especialidade era destruir homens casados. Aposto que adivinhas quem foi um desses homens.

- O Bennett.

- Sim.

- Meu Deus! E tudo isso se passava enquanto ela ainda estava no secundário? E o que aconteceu à Heather? - perguntou ele antes de ela ter tido tempo de responder à outra pergunta.

- Ela não apareceu na coroação e a Jilly foi coroada rainha, mas isso não lhe bastou. A Heather incomodara, por isso tinha de ser castigada. Passara um mês, e quando a Heather começou a pensar que a Jilly já se esquecera dela, chegou um dia a casa das aulas e subiu para o quarto. Costumava ter um velho ursinho de peluche em cima da cama. Alguém lhe deitara ácido em cima. Esse alguém fora, claro está, Jilly.

John Paul esfregou o queixo e esperou que Avery continuasse.

- A Carrie soube da notícia na escola, no dia seguinte. Foi falar com o pai da Heather. Ele tivera de ficar com a filha em casa por ela estar muito perturbada, e a Carrie disse-lhe que a Jilly não deixaria de perseguir a Heather e que ele tinha de tirar a filha da cidade, sem dizer a ninguém para onde tinha ido. A Heather estava destroçada. Andava a consultar um psicólogo. E este também achava que faria bem a Heather sair de Sheldon Beach. Foi-se embora durante as férias do Natal e não voltou.

- E a coisa acabou?

- Oh, não! O pai da Heather fez outra queixa na polícia dois meses mais tarde. Parece que lhe andavam a roubar o correio. Um sábado à tarde, espreitou lá para fora e viu a Jilly a abrir a caixa do correio. Andava à procura de cartas da Heather, para descobrir para onde ela tinha ido.

- Ela não desiste, pois não?

- Não. Nunca fora para a cama com nenhum dos rapazes da escola. Todos os amigos achavam que ela era querida e virtuosa. A Carrie ouviu alguns boatos sobre a Jilly, mas nunca de ninguém da escola. A Heather foi a hostilizada, não a Jilly. Ela era mesmo cruel. - Levantou-se e esticou os braços. - Queres beber alguma coisa?

Depois da história que ela acabara de lhe contar apetecia-lhe uma coisa forte, mas contentou-se com uma Coca-Cola light. Ela foi buscar uma garrafa de água para si e trouxe-lhe a lata.

Ele abriu-a e bebeu um gole.

- Os teus pais tentaram pedir alguma ajuda quando ela era pequena, ou sabiam que ela já tinha um problema?

- O meu avô saiu de casa quando a Carrie e a Jilly eram pequenas, e a minha avó vivia no mundo da fantasia, segundo a Carrie. Arranjava desculpas para todas as atrocidades que a Jilly cometia.

- Quando é que a Jilly ficou grávida de ti?

- No último ano do secundário. A Carrie achou que a gravidez salvou a Heather porque a Jilly passou a ter outras coisas em que pensar. A Jilly tentou fazer um aborto, mas o médico recusou-se porque a gravidez já ia muito avançada. Ela deu à luz e saiu da cidade três dias depois. E essa foi a última entrada do diário. - acrescentou. - O facto de ela me ter abandonado foi a gota de água para a minha avó. Deitou todas as coisas da Jilly no caixote do lixo. Quando tirou as coisas do armário, encontrou uma caixa de sapatos cheia de correio da casa da Heather, e adivinha que mais?

- O ácido. Avery assentiu.

- O frasco estava apenas meio, mas teria sido mais do que suficiente para matar a Heather. Acho que a Jilly não se esqueceu da rapariga. Estava apenas a dar tempo ao tempo.

Um trovão assustou-a. Estremeceu e levantou-se para ir espreitar pela janela. No céu deslizavam nuvens escuras. Um relâmpago iluminou o céu, e seguiu-se outro trovão.

- A Carrie não achava que a Jilly fosse muito esperta disse ela sem se voltar. - Servia-se do corpo para obter o que queria. Parece que foi ficando mais matreira e esperta com o passar dos anos. A Carrie disse que não havia um único homem que ficasse indiferente aos encantos dela.

- Acreditas nisso?

- O Skarrett ficou obcecado por ela, e olha onde ele se encontra! Quando eu tinha cinco anos, a Jilly e o Skarrett foram lá a casa. A Jilly disse à minha avó que ela tinha de pagar para ficar comigo. Felizmente, a Carrie estava em casa. Disse à Jilly que ela não tinha qualquer direito legal sobre mim e empurrou-a porta fora. Tiveram uma discussão terrível, mas o Skarrett não se meteu... na altura. A Jilly gritou várias vezes: ”És uma mulher morta, Carrie. És uma mulher morta.”

- E onde estavas tu quando isso aconteceu? Ela virou-se e fitou-o.

- Não me lembro de nada, mas a Carrie disse que me encontrou escondida debaixo da cama. Depois de eles se irem embora, a Carrie prometeu-me que nunca mais iriam voltar.

Bebeu um gole de água, tapou a garrafa e olhou para a mão. Tinha um vinco na pele, de ter apertado a tampa com força.

- Mas eles voltaram, não voltaram?

- Sim.

John Paul viu-a fechar os olhos e contar-lhe o que acontecera no dia catorze de Fevereiro, muitos anos antes.

- O Skarrett é o fantoche dela - disse Avery quando terminou. - E acho que ela também pôs o Monk a fazer-lhe todas as vontades. Anda a brincar com os dois para conseguir o que quer.

Pousou a garrafa em cima da mesa e deu um passo na direcção de John Paul.

- Então agora já sabes.

- Agora já sei...

- E? Diz-me o que pensas. Ele encolheu os ombros.

- Acho que tens razão. A Jilly é maluca.

Ela enfiou os dedos no cabelo e deu outro passo na direcção dele.

- Não, não era isso que eu estava a perguntar.

- Então o que era?

Ela parou a trinta centímetros dele.

- Não lamentas?

- Não lamento o quê?

- Teres-te envolvido comigo. É uma situação temporária, mas mesmo assim...

- Bolas, não! Ela recuou.

- John Paul, não podes deixar de sentir uma certa repulsa...

- Lamento, mas não. Ela fitou-o.

- Porque não? Não venho de uma família normal. Geneticamente falando, sou defeituosa.

- Querida, não precisas de ser tão melodramática nem de gritar comigo. Ouço-te perfeitamente.

- Como é que podes sorrir depois do que acabaste de ouvir? Como é que podes...

- Avery, não fizeste nenhuma daquelas coisas. Foi a Jilly. John Paul achava que estava a ser bastante lógico, mas ela não parecia interessada em mostrar-se razoável.

- Agora já percebes porque é que nunca hei-de casar?

Antes de ela conseguir recuar mais um passo, ele agarrou-a; pousou-lhe as mãos nas ancas e puxou-a para si.

- Não, não percebo.

Ela tentou afastar as mãos dele, mas estas estavam cimentadas ao seu corpo.

- Vais ter de mo explicar. Tens medo de te tornares uma sociopata?

- Não, claro que não, mas não posso ter filhos, e mesmo que pudesse...

- Já sei - disse ele com meiguice. - Não correrias esse risco.

- Os homens querem filhos.

Estava parada entre as pernas dele, franzindo o sobrolho enquanto mudava o peso do corpo de um pé para o outro.

- Alguns querem - concordou ele. - Outros não.

- Tu queres?

Ele não lhe iria mentir.

- Sempre pensei em assentar um dia e ter um ou dois filhos. Talvez isso ainda aconteça. Mas Avery, há por aí muitas crianças a precisar de bons lares.

- Achas que depois de investigares a minha família eu me qualificaria para isso?

- Sim, acho.

- Não me vou casar.

O desafio voltara à voz dela. Tentava ocultar a sua vulnerabilidade, mas não estava a conseguir. Ele sabia que ela sofria.

- Pedi-te para casares comigo?

- Não.

- Então muito bem. Acho que já chega de assuntos pesados por hoje. E acho também que precisas de desanuviar um pouco.

Ocorreu a Avery que ele estava a comportar-se como quando ela lhe mostrara as costas. As cicatrizes pareciam não tê-lo incomodado. Obviamente, nem as histórias que ela lhe contara a respeito de Jilly.

O que raio se passava com ele?

- Precisas de te descontrair - disse John Paul. Levantou-lhe a camisola acima do umbigo e inclinou-se para a frente para lhe beijar a barriga.

- É para isso que serve o ioga. Ajuda-me a descontrair.

- Arranjei uma maneira melhor de me descontrair. Desabotoou os calções dela e preparou-se para lhe abrir o fecho. Ela agarrou-lhe na mão.

- O que julgas que estás a fazer?

O sorriso dele fazia-lhe galopar o coração. A mão de Avery tombou e ela ficou a vê-lo abrir o fecho.

- É simples, querida. Vou para o meu lugar feliz.

 

                                                           CAPÍTULO 32

Os segredos partilhavam-se no quarto. Fizeram amor, e depois de ele ter beijado e acariciado todo o seu belo corpo, ela estava exausta.

- Eu disse-te que chegaríamos às tuas costas - disse ele, deitando-se ao lado dela.

Avery riu-se porque ele soou bastante presunçoso.

- És insaciável - murmurou ela, ainda ofegante.

- Contigo, sou - respondeu ele com um sorriso arrogante. Aquilo era quase um elogio, pensou ela.

- Chega-te para lá, estou quase a cair da cama. A cama de casal não era lá muito larga.

- Vamos ter de comprar uma cama gigante. A disposição dela alterou-se de imediato.

- Porquê? - perguntou, tensa.

- Porque sou demasiado grande para uma cama de casal. Fico com os pés pendurados. Que mal há numa cama gigante?

- Sabemos que não podemos ter uma relação duradoura.

- Eu perguntei-te alguma coisa?

- Não, mas sugeri...

- Querida, preocupas-te demasiado.

Ela concordou. Claro, preocupava-se... com tudo. Mas o que a apavorava mais era estragar tudo. Admitir que amava John Paul fora o suficiente para a deixar em pânico. O que iria acontecer quando se separassem? Ela conseguiria recuperar?

- Não acredito no casamento. Olha o que faz a algumas pessoas.

- Que pessoas?

- Pessoas como os Parnell...

- Querida, esses não representam aquilo a que chamamos um casal típico.

- E a taxa de divórcios?

- E os casais que ficam juntos?

- Eu estragaria tudo - explodiu ela.

Como ele não respondeu, ela ergueu-se sobre um cotovelo, inclinou-se para ele e ficou à espera. Teria adormecido?

- Ouviste o que eu disse?

Ele exibia um sorriso adorável e estava nu. Exsudava autoconfiança, provavelmente porque não se preocupava com o que os outros pensavam. Ela vivera a tentar agradar sempre a toda a gente. John Paul era a sua antítese. Não queria agradar a ninguém.

- Não tens muita fé em ti própria, pois não? Não faz mal

- acrescentou antes de ela conseguir responder. - Eu tenho fé suficiente pelos dois.

Avery pousou a mão na barriga dura dele e descreveu movimentos circulares em torno do umbigo com os dedos. Ele fazia tudo parecer tão fácil.

Não conseguia deixar de lhe tocar. Quase via a força a irradiar dos seus músculos, mas não se sentia intimidada por ele. Quando estava nos seus braços, não se sentia dominada nem diminuída. Pelo contrário, ele fazia-a sentir-se poderosa. Era uma sensação incrível não ter de se preocupar em agradar-lhe, sabendo que tudo o que fazia estava certo... A confiança que depositava nele era absoluta, e percebeu que ele lhe dera algo de valor incalculável.

- John Paul?

- Hummm?

- Estás a dormir?

- Quase...

- Eu quero...

- Está bem, querida. Dá-me só uns minutos e já serei capaz...

O corpo dela ainda não recuperara da última vez.

- Não é isso - respondeu com uma gargalhada. - Quero que me digas uma coisa.

Ele bocejou.

- Foste perfeita, Avery, mas tens de saber... Ela beliscou-o.

- Não estou a pedir um comentário. Quero saber por que motivo te foste embora. - Antes de ele fingir que não percebia, acrescentou: - Contei-te os meus segredos, pelo menos a maior parte, e agora é a tua vez. Porque te aposentaste?

- É um assunto maçador. Ela tornou a beliscá-lo.

- Conta-me.

Ele abriu os olhos e fitou os dela. A determinação que viu neles disse-lhe que não iria poder esgueirar-se a dar uma resposta. Além disso, achava que estava em dívida para com ela.

- Não foi nenhuma missão importante que correu mal respondeu. - Foram vários pequenos erros que me fizeram... reavaliar o que eu queria da vida. Tive um problema grave.

- Qual foi?

- Comecei a pensar de mais. Tinha imenso tempo para o fazer enquanto aguardava naqueles fins de mundo pela missão seguinte. Normalmente eram generais - explicou ele. - Pequenos ditadores que se rodeavam de pulhas. Não me importei de os matar, pois a sua morte beneficiava o mundo - acrescentou com sarcasmo. - E gostava de ir salvar reféns. Havia justiça nisso, mas uma noite, quando estava a passar um frio desgraçado, reparei que começava a ficar com o dedo calejado. O dedo que puxava o gatilho - acrescentou. - Foi isso que me assustou.

- Então o que fizeste?

- Terminei a missão, disse-lhes que estava despachado, e fui para casa.

- Foi assim tão fácil? Não tentaram fazer-te mudar de ideias?

- Sim e não - respondeu. - E na altura, foi fácil, porque trabalhava para um homem bom e honesto. Ele sabia que eu estava farto. Acho que a forma que arranjou de contornar a burocracia foi dar-me uma licença prolongada.

- Mas continuam a querer que voltes?

- De vez em quando - concordou ele. - Mas não vou voltar. - Fechou os olhos. - Fiz coisas muito más, Avery.

- Imagino que sim - murmurou ela. - E não acreditavas que aquilo que fazias mudasse alguma coisa, pois não?

Acertara em cheio.

- Não, não acreditava. Os ditadores são como ervas daninhas. Arranca-se um e, durante a noite, surgem mais dois.

Tornou a abrir os olhos e observou-a enquanto lhe contava uma das missões mais sangrentas. Quando terminou, reparou que ela não retirara a mão. Continuava a afagar-lhe o peito. O toque dela era reconfortante.

- Então agora és carpinteiro - disse Avery.

- Sim.

- E és bom?

- Sim, sou. Continuo a usar as mãos, mas agora construo coisas que irão durar. Não torço pescoços. É estranho.

- O quê?

- A vontade de matar. Nunca a tive antes, mas tenho-a agora.

Os olhos dela arregalaram-se. Ele fizera a confissão com um ar tão casual.

- Oh? E quem é que queres matar?

- O Skarrett. Ela estremeceu.

- Não! Não quero que ele morra.

- Deves estar a brincar.

- Estou a falar a sério. Quero que ele passe o resto da vida atrás das grades.

- Pois, mas se eu tiver a oportunidade...

- Não - retorquiu ela com firmeza.

- Está bem - disse John Paul quando percebeu que Avery estava a ficar incomodada.

- Estou a falar a sério.

- Eu disse está bem.

- Não me importo se matares o Monk - disse ela então.

- Mas espero que alguém o prenda com vida. Imaginas o que ele confessaria?

John Paul abanou a cabeça.

- Ele não falaria. Não é o tipo de homem que goste de se vangloriar. Talvez se os interrogadores o pressionarem, se o tratarem como um profissional, ele lhes conte alguma coisa, mas, francamente, não me parece provável. - Encolheu os ombros.

- Acho que deviam esmagá-lo como a um insecto.

- E a Jilly?

- Tu é que sabes.

- Ela precisa de ser internada num manicómio para criminosos, e ficar lá o resto da vida.

- Não queres que ela morra?

- Não, não quero. Acho que ela não consegue evitar ser assim. Só quero certificar-me de que não faz mal a mais ninguém.

Ele passou levemente o polegar pelos lábios dela.

- Tens um coração meigo.

- Tu também.

- Não, não tenho! - protestou ele. - Mas tenho umas óptimas mãos - acrescentou, estendendo-as para ela.

Avery deu-lhe uma palmada na mão.

- Já sei que és bom com as mãos.

Tinha um brilho travesso nos olhos quando se deitou em cima dele.

- Agora vou mostrar-te as minhas habilidades - murmurou ela.

Não foi uma ameaça vã. Avery tinha uma imaginação fértil e o que lhe fez com as mãos e a boca foi magia, e provavelmente ilegal nalguns estados, mas é claro que ele não lhe referiu isso.

Nessa noite dormiram nos braços um do outro, embora soubessem ambos que o interlúdio chegaria ao fim pela manhã. Não conseguiam manter a realidade afastada por mais tempo.

Avery acordou antes de John Paul, tomou um duche e vestiu-se na casa de banho para não o incomodar. Depois foi para a sala, fechando a porta devagar, e olhou para o relógio digital na parede por cima da mesa. Esperava que estivesse certo. Cinco e quarenta cinco no Colorado, o que significava que eram sete e quarenta e cinco na Virgínia.

Julgou ouvir o chuveiro quando se aproximou do telefone.

- Mantém-te previsível, Margo - murmurou. - Não te armes agora em espontânea.

Marcou o número das informações, obteve o número que pretendia, depois desligou e esperou com os olhos postos no relógio.

As sete e cinquenta em ponto, Avery marcou o número. Atenderam ao terceiro toque.

Avery inventou um nome, disse ao empregado que era uma emergência e que ele precisava de pedir ao Margo para chegar ao telefone. Descreveu a amiga, e acrescentou:

- Ela vai aí todas as manhãs às sete e cinquenta.

- Sim, aquela senhora baixinha, não é?

- Sim.

- Ela acabou de sair.

- Vá atrás dela! - gritou Avery. - Despache-se. Traga-a de volta, vá!

O auscultador bateu na parede quando o funcionário o largou. Ouviu-o gritar o nome de Margo, e depois, um minuto mais tarde, ouviu Margo discutir.

- Ninguém sabe que aqui estou. Como é que pode ser uma emergência? Está lá?

- Margo, sou eu, a Avery.

- Oh, meu Deus, Avery. Como é que soubeste que eu estava aqui... como é que... - Estava perplexa.

- Tu vais sempre comprar donuts a caminho do escritório.

- Fazes ideia do sarilho em que estás metida?

- Não fiz nada de mal - retorquiu Avery.

- Porque saíste daquela esquadra no Colorado? Os agentes estavam lá para te proteger

- Eu tenho protecção.

- O Renard?

- Sim - respondeu ela impaciente. - Diz-me o que sabes.

A porta do quarto abriu-se, e John Paul parou à entrada, olhando-a com uma expressão incrédula. Ela levantou a mão quando ele começou a aproximar-se.

- Espera aí, Margo. - Tapou o bocal com a mão. - Confia em mim - disse a John Paul. Em seguida, voltou a destapá-lo. - Muito bem, Margo, continua.

- O julgamento começa a dez de Julho. Mas, Avery, vai haver a audiência para a liberdade condicional. O Skarrett pode safar-se desta vez. Pode sair em liberdade.

- Só por cima do meu cadáver.

- Credo, não fales assim!

- A audiência continua agendada para dia dezasseis?

- Acho que sim.

- Tens a certeza?

- Tenho. Não sejas agressiva comigo, Avery. Eles sabem da Jilly. A tua tia contou-lhes. Deve ter sido um grande choque. Lamento imenso...

Avery interrompeu-a. Não queria que ninguém a lamentasse.

- Fazes ideia de onde podem estar a Jilly e o Monk?

- Não.

- E a minha tia? Já a tiraram do hospital?

- Não, ainda não. Não te preocupes com ela. Ninguém conseguirá entrar naquele hospital. A segurança é incrível.

- Não estou preocupada. O Monk não pode estar em dois sítios ao mesmo tempo.

- O que quer isso dizer?

- Vou mantê-lo ocupado. Ele vai ter de tentar impedir-me de testemunhar no julgamento do Skarrett.

- O que se importa ele com o Skarrett?

- Não se importa, mas está a trabalhar para a Jilly e ela quer o Skarrett fora da prisão. Aposto que se investigares as visitas que ele recebeu no último ano verás que teve várias de uma pessoa do sexo feminino. Acho que ela fez uma espécie de acordo com ele.

- Por causa dos milhões em pedras que ele roubou - disse Margo.

- Tenho a certeza de que o Skarrett acha que vão partilhar o saque e que vai viver feliz para sempre com a Jilly. Quando tiverem o que querem, a Jilly deixará o Monk matá-lo.

- Avery, estás a exagerar.

- Talvez - murmurou ela. - Mas agora não posso parar. Quanto ao julgamento...

- Sim?

- Descobre quem é o delegado do Ministério Público e certifica-te de que estou na lista de testemunhas dele.

- Está bem. Posso dizer ao Cárter que falei contigo?

”Vais dizer-lhe de qualquer maneira”, pensou Avery. Margo era sua amiga, mas Avery sabia que ela acharia estar a ajudar se informasse Cárter.

- Sim, podes.

- Onde estás agora? Ele vai perguntar.

- No Alabama - mentiu ela. - Agora tenho de desligar. Diz ao Cárter que lhe hei-de telefonar.

- Espera! - exclamou Margo. - O que vais fazer?

Avery sabia o que queria fazer. Só ainda não sabia como. Recordou-se da conversa com Jilly. O que lhe chamara ela? Ah, sim, como poderia esquecer-se?

- Vou ser uma desmancha-prazeres.

John Paul confiava nela. De outra forma ter-lhe-ia arrancado o telefone da mão e desligado. Sentara-se no sofá ao lado dela e esperara impaciente que ela terminasse. Pareceu aliviado quando ela lhe disse que apanhara a Margo na pastelaria.

- Inteligente - observou em tom de aprovação.

- Ela é uma criatura de hábitos. - Contou-lhe o que Margo dissera. - Prometi que telefonaria ao Cárter - acrescentou

- quando chegássemos à Florida.

- Mas não antes.

- É melhor pensares bem antes de concordares em ir comigo, John Paul. A coisa pode ficar...

- Sangrenta? Ela assentiu.

- Conta comigo - disse ele. - Até ao fim.

Estendeu o braço, pôs a mão no pescoço dela e puxou-a para si, beijando-a de forma possessiva.

- Ouviste? Estou nisto até ao fim. E, quer gostes quer não, também tu estás.

- Até apanharmos o Monk e a Jilly. Ele largou-a.

- Não era a isso que me referia, e tu sabes muito bem.

Ela levantou-se e foi até à cozinha. Preparou o pequeno-almoço, cereais e torradas, e depois, como se sentia inquieta, lavou a louça enquanto ele estudava o mapa, calculando o melhor caminho para Sheldon Beach,

Ela estava a guardar as tigelas no armário quando ele a chamou.

- Temos companhia.

Avery largou o pano e correu para a sala. John Paul estava junto da janela, a espreitar cautelosamente lá para fora. Tinha a arma na mão, encostada à perna.

Viu o carro quando ele saiu de trás das árvores e descontraiu-se.

- É melhor fazermos as malas - disse ele, voltando a travar a arma e metendo-a na parte de trás do cós. - A nossa boleia chegou.

”Que boleia?”

- Estavas à espera de alguém?

Ele assentiu. Ainda não conseguia ver o condutor por causa do reflexo do sol no pára-brisas, mas a marca e o modelo condiziam. Era um Honda novo, cinzento.

- Quem é?

Ele encolheu os ombros.

- Eu disse ao Theo que precisávamos de transporte. A polícia há-de andar à procura do meu carro, e achei que não havias de querer que ficássemos detidos até o FBI vir buscar-te.

- O FBI só faria isso se tivesse a minha autorização.

John Paul fungou. Ela calculou que isso quisesse dizer que ele discordava.

- Não iriam ignorar os meus direitos de cidadã.

- Claro que iriam. E depois diziam-te que só fizeram o que achavam ser o melhor para ti.

Avery não estava com paciência para ter uma discussão sobre o FBI naquele momento. Além do mais, no fundo, temia que houvesse uma certa verdade no que ele dissera. Não estava disposta a arriscar.

- O Theo veio de carro desde a Luisiana? - perguntou ela.

- Não - respondeu John Paul. - Queria vir, mas eu dissuadi-o. Lembrei-lhe que estava prestes a ser pai e que tinha uma péssima pontaria. Se ele fosse morto, eu passaria a ser uma espécie de pai da criança. Disse-lhe que educaria o filho ou a filha para ser como eu.

- E isso assustou-o?

- Sim - respondeu. - E, como já disse, ele tem uma péssima pontaria. Provavelmente daria um tiro nele próprio ao tirar a arma do coldre.

- E tu não queres que ele se magoe. É melhor tomares cuidado. Estás a começar a parecer uma boa pessoa.

Ele semicerrou os olhos para tentar ver o condutor.

- O Theo disse que conhecia uma pessoa discreta capaz de ajudar. Que não se importaria de infringir algumas regras. Oh, bolas! - exclamou quando finalmente conseguiu ver o condutor. - Ele não. Aquele filho-da...

- Quem?

- O Theo. O meu cunhado tem um sentido de humor muito doentio.

- John Paul, do que estás a falar?

- O Theo mandou-o - disse ele, espetando um dedo no ar.

- Quem? - perguntou. Começava a sentir-se um papagaio.

- O Clayborne. Ele mandou o Noah Clayborne. - Cuspiu o nome como se tivesse um gosto desagradável na boca.

Ela ficou bastante confusa com aquela atitude.

- Mas ligaste ao Noah do spa. Ouvi-te ao telefone. Porque estás agora zangado?

- Sim, liguei-lhe, mas achei que não tinha de vê-lo - murmurou. Virou-se para ela, olhou-a de cima a baixo, e exclamou:

- Vê se vestes qualquer coisa!

Avery olhou para o corpo. Sim, estava vestida. Ténis brancos, calções azul-escuros, T-shirt branca.

- O que há de errado com esta roupa?

- Mostra demasiada pele. Ah, até podias estar vestida de freira. Ele vai atirar-se a ti. E depois terei de o matar. - Aproximou-se da porta, batendo com os pés no chão, e quase a arrancou das dobradiças ao abri-la, saindo para o alpendre. - Vais ver se não mato.

Oh, céus!

- Ele trouxe-nos um carro! - exclamou ela. - Pára de te queixar.

- Sim, tens razão. Vamos obrigá-lo a ficar aqui ou a levar o meu carro. Ele não precisa de ir connosco.

Avery voltou para junto da janela. John Paul deixara-a curiosa relativamente ao amigo de Theo. Sabia que Noah não podia ser tão execrável como John Paul sugerira. Ninguém podia ser assim.

O carro parou diante da casa, e Noah Clayborne abriu a porta e saiu.

Avery sentiu vontade de assobiar. Alto, de ombros largos, cabelo alourado, o homem estava vestido informalmente com calças de ganga e uma T-shirt cinzenta. Tinha um coldre antiquado ao ombro e usava uns Ray-Ban. John Paul olhou-o com uma expressão desdenhosa, mas Clayborne sorriu, como se estivesse a gozar com ele. O homem tinha uma covinha no queixo e exalava sensualidade.

Não estava interessada nele, claro, não dessa maneira. John Paul era mais sensual - tudo nele lhe agradava -, mas Noah poderia ser um adversário à sua altura. Claro, a análise dela era estritamente clínica. Nunca antes tivera tempo para reparar num homem dessa forma, ou, se tivera, nunca conseguira admiti-lo. Será que o sexo transformara a sua mente?

- Vou precisar de ir ao psicólogo quando isto acabar murmurou ela. - E durante muito tempo.

Endireitando os ombros, foi lá fora cumprimentá-lo. Ele chegara aos degraus, mas parou quando Avery parou no patamar.

A cortesia de John Paul precisava de ser afinada. Ela esperou uns segundos para que ele a apresentasse, até que percebeu que isso não iria acontecer. Teria dado um passo em frente, mas John Paul pousou-lhe o braço nos ombros e puxou-a para si,

A resposta de Noah àquele gesto ridiculamente possessivo foi alargar o sorriso. Tirou os óculos e olhou para ela. Olhos azuis. O homem tinha uns olhos intensamente azuis. ”Aposto que destroça imensos corações”, pensou ela, sentindo John Paul apertá-la ainda mais.

Seria casado? Ela esperava que não, pois tinha pelo menos três amigas que podia apresentar-lhe, desde que, claro, ele não fosse uma cabeça oca. Margo não se importaria com isso, mas Peyton, a sua amiga de infância, haveria de querer um homem com cérebro.

- Para onde diabo estás a olhar, Clayborne? - rosnou John Paul.

Ela pôs fim àquele concurso. Libertou-se do braço dele e avançou até ao fim do alpendre.

- Obrigada por ter vindo. - Estendendo a mão, acrescentou: - Chamo-me Avery Delaney.

Noah subiu os degraus e apertou-lhe a mão. Não a largou enquanto se apresentou.

- Tenho de saber - disse ele.

- Sim?

Noah olhou para John Paul.

- Como é que uma coisa doce como você foi acabar com ele?

- Porque tem sorte - respondeu John Paul. - Agora larga-a.

Noah sorriu a Avery e continuou a agarrar-lhe na mão. Estava a divertir-se a provocar John Paul. Parecia saber em que botões carregar para fazer afinar John Paul. De facto, não era preciso muito.

- Agradecemos a sua ajuda, não é verdade, John Paul? Teve de lhe dar uma cotovelada para o obrigar a responder.

- Sim, claro.

- Por favor, entre. Tem sede? - perguntou ela, entrando na cabana à frente deles.

- Se tiver sede, pode perfeitamente ir servir-se - respondeu John Paul. - Não tens de te armar em anfitriã, Avery.

Ela deu meia volta.

- Para de te armares em idiota - ordenou. - Estava apenas a ser educada, algo que não sabes bem o que é.

Ele cedeu imediatamente.

- Sim, está bem. Noah tentou não se rir.

- Ela é muito temperamental - disse John Paul a Noah com um ar ligeiramente envergonhado.

- Pois - respondeu Noah.

- Não é o que estás...

- É sim. Nunca pensei que te apaixonasses. Bolas, nunca pensei que uma mulher havia de querer...

- Chega, Noah.

- Olha, só cá vim fazer um favor ao Theo - explicou ele.

- Não descarregues em mim as tuas frustrações. - A questão era que simpatizava com John Paul, e respeitava-o. Talvez até o admirasse um pouco porque ele tivera coragem de largar uma profissão que normalmente dá cabo de um homem.

Avery fora à cozinha buscar um refrigerante gelado para Noah. Parou à porta. Os homens tinham regressado ao alpendre, e ela não conseguia ouvir o que diziam. Voltou a meter a garrafa no frigorífico e foi preparar a mochila.

Ouviu umas quantas exclamações rudes; a seguir, gargalhadas. ”São malucos”, pensou, entrando no quarto e fechando a porta. A cama parecia ter sido palco de acrobacias. Tirou rapidamente os lençóis, substituiu-os por outros limpos, e colocou os sujos num cesto.

Não havia muito para guardar. Trocou os calções por umas calças caqui e procurou no saco a camisola cor-de-rosa. As roupas que a senhora na esquadra levara para casa para lavar encontravam-se dobradas junto ao saco.

Fora muito simpático da parte dela lavar-lhe as roupas. Quando aquilo chegasse ao fim, ela teria de agradecer a muitas pessoas. Teria de fazer qualquer coisa especialmente simpática pelo chefe da polícia. Deixá-los usar a cabana fora mais do que simpático.

Foi à casa de banho recolher os artigos de higiene. Olhando para o espelho, ficou admirada ao ver como estava pálida e cansada. Pôs um pouco de maquilhagem para cobrir as olheiras, acrescentou blush e batom cor-de-rosa. Depois penteou o cabelo, pegou na escova e na pasta de dentes e guardou-os no estojo. Pôs a escova de John Paul por cima.

Estava pronta para sair quando John Paul entrou no quarto. Ele fechou a porta, encostou-se a ela e fitou-a.

Depois de correr o fecho do saco, ela endireitou-se e passou nervosa os dedos pelas calças, como se tentasse fazer desaparecer alguns vincos.

- Algum problema?

- Não quero ir-me embora. - John Paul olhou para a cama quando fez o comentário.

- Eu também não - admitiu ela.

- Anda cá - murmurou ele.

Avery não hesitou. Correu para John Paul, lançou-lhe os braços ao pescoço e beijou-o.

Quando por fim se separaram, ela tinha lágrimas nos olhos. Nunca sentira aquele tipo de desespero tão avassalador; receava ir-se abaixo e desatar a soluçar.

Como se permitira ficar tão vulnerável? O amor não devia acontecer tão depressa, pois não? Porque não se tinha ela protegido? ”O amor não presta”, pensou ela. Tantas canções estúpidas a dizerem como era maravilhoso. Ela sentia apenas dor e medo, medo de que alguma coisa acontecesse a John Paul. Raios, não iria amá-lo.

- Devias ir para casa - disse ela. Recuou, e depois repetiu o que dissera, mas desta vez com mais convicção. - Estou a falar a sério. Quero que vás para casa.

- Porquê?

Ele fizera uma pergunta clara, mas ela deu-lhe uma resposta obscura.

- Porque devias. Eu posso ir de carro sozinha para a Florida. Não preciso que tu ou o Noah me acompanhem.

Quanto mais explicava, mais forte se tornava a sua voz. John Paul reagiu à explosão dela limitando-se a agarrar no saco, atirá-lo para a cama e começando a enfiar lá dentro a sua roupa.

Noah encontrava-se encostado ao balcão da cozinha, a beber de um pacote de leite. Preparara uma sandes grande e acabava de a comer quando ela levou a mochila até a porta. John Paul vinha atrás com os dois sacos de viagem.

- Vamos - disse ele a Noah.

- Estou mesmo atrás de ti.

Ela seguiu John Paul até ao carro. Ele abriu a porta do condutor e puxou a alavanca que abria o porta-bagagem; depois, detendo-se para a fitar, atirou os sacos de viagem de ambos lá para dentro e fechou-o.

- John Paul, eu... Ele abanou a cabeça.

- Não.

- Não o quê? - perguntou ela.

- Não me voltes a insultar. Disse-te pelo menos três vezes que estava nisto até ao fim. Não me ouviste?

Ela olhou para a porta, a fim de se certificar de que Noah não se encontrava ali.

- Não quero que te magoes, está bem? Não iria suportar se alguma coisa te acontecesse... Acho que não seria...

- Também te amo, Avery.

- É demasiado cedo... não podes.

- Posso.

- Como podes amar-me? - sussurrou ela.

A mão esquerda dele pousou na parte de trás do pescoço dela e puxou-a para junto de si.

- Queres que conte as várias maneiras?

Ela tinha lágrimas nos olhos. John Paul não iria ser razoável.

- És teimoso.

- Também tu.

- Não vai resultar.

- Faremos com que resulte.

- Sou uma liberal - murmurou ela, desesperada. Ele beijou-a.

- Posso viver com isso, mas não posso viver sem ti. Tão simples como isso, querida.

A boca maravilhosa dele cobriu a dela num beijo longo, quente e excitante. Não a dominou com a sua força, não a prendeu a si. Não, estava a ser extremamente meigo. Ela podia ter-se afastado, mas não quis. Retribuiu o beijo com avidez.

Ele emitiu um som que a fez ser ainda mais ousada. Quando finalmente ele levantou a cabeça, ela tombou contra ele.

Afastou-se quando a porta de rede se abriu.

Noah saiu para o alpendre, fechou a porta e atirou as chaves a John Paul.

- Tu guias enquanto eu ponho o sono em dia.

Ele apanhou as chaves sem desviar os olhos de Avery.

- Vais casar comigo.

- Não, não posso casar contigo.

- Eu perguntei-te alguma coisa?

- Acabaste de dizer...

Noah observou-os, abanou a cabeça e deixou-se cair no banco de trás.

- Arrufo de namorados? - perguntou.

- Não! - responderam ambos ao mesmo tempo. Ela tirou as chaves da mão de John Paul.

- Conduzo eu.

Ele não discutiu. O relacionamento entre eles fascinava Noah. Quem haveria de pensar que o urso acabaria por tombar? Afinal o ditado devia ser verdadeiro. Havia sempre alguém para toda a gente. Uma alma gémea. Estava ansioso por contar a Theo. Ele também não iria acreditar. O urso estava apaixonado.

Não conseguiu conter uma gargalhada.

- Onde está a piada? - resmungou John Paul.

- Em ti. Tu és engraçado. Avery, já ouviste aquela do fuzileiro...

John Paul encostou a cabeça ao banco e fechou os olhos. Ia ser uma longa viagem.

 

                                           CAPÍTULO 33

Os planos estavam sempre a mudar. Carrie não gostava de alterações de qualquer espécie, a menos, é claro, que fosse ela que estivesse a implementá-las. O agente Hillman era o manda-chuva, e o agente Bean o seu ajudante. A primeira ordem de Hillman quando ficou responsável por Carrie foi mandar Bean dizer-lhe que fora decidido mantê-la no Colorado.

Depois de Bean ter informado Mrs. Salvetti da decisão do FBI e de ter testemunhado a sua reacção, regressou para junto do agente Hillman e ameaçou entregar o seu pedido de demissão se Hillman o mandasse fazer aquilo novamente.

- Vou pedir subsídio de risco... - anunciou Bean. Ouviam ambos Carrie a gritar.

- Ela não percebe que há pessoas doentes neste hospital? perguntou Hillman, escandalizado com a conduta da mulher.

- Está-se nas tintas - retorquiu Bean. - Exige ir para a Florida e ficar numa casa vigiada com a sobrinha.

- Deduzo, então, que não lhe disse que não conseguimos encontrar a sobrinha.

- Não, senhor. Achei melhor ser o senhor a explicar-lhe.

- Por amor de Deus, homem! Você é agente do FBI. Com certeza é capaz de lidar com uma mulher rabugenta!

- Com o devido respeito, senhor, ela não é apenas uma mulher rabugenta. E...

- É o quê?

”Um demónio”, quis Bean dizer, mas não teve coragem. Hillman não acreditaria nele. Além do mais, iria descobrir em breve do que é que a Salvetti era capaz quando não estava feliz.

- Não é aquilo a que eu chamo uma mulher normal. As mulheres normais não lançam fogo com o olhar.

Hillman ficou aborrecido.

- Ela fará o que lhe mandarmos fazer.

”Queres apostar?” O zunido nos ouvidos dele fora reduzido para um ligeiro eco.

- Sim, senhor, estou certo de que ela lhe dará ouvidos. Conseguiu dizer a frase sem sorrir, e ficou muito orgulhoso.

- Nós queremos o melhor para ela. Com certeza explicou-lhe os nossos motivos, não explicou, Bean?

- Ela não me deu a oportunidade de explicar a nossa posição.

- Quando ela se acalmar...

Ouviram outro grito. Bean fez uma careta.

- Quem está lá dentro com ela? - perguntou Hillman.

- O Gorman - respondeu ele. - Deve ter-lhe dito que não conseguimos localizar a sobrinha.

A porta da sala de espera abriu-se e Gorman surgiu. Hillman e Bean encontravam-se ao fundo do corredor e viram o colega fechar a porta rapidamente. Tinha o rosto muito vermelho.

Viu Hillman, encheu o peito de ar, exibindo o seu metro e oitenta e cinco, e avançou pelo corredor.

- Ela também está a causar-lhe problemas? - perguntou Hillman.

Bean tentou não se rir. Claro que ela estava a causar-lhe problemas. Bastava olhar para a cara dele.

- É... uma mulher difícil - respondeu Gorman, tentando ser diplomático. - Recusa-se a colaborar. Disse-me que vai para a Florida, com ou sem Hill of Beans.

- Hill of Beans? - perguntou Hillman. Gorman pigarreou.

- É o que ela lhe chama a si e ao agente Bean. Hill of Beans. Também exige uma casa na praia.

- Uma casa na praia? Ela quer uma casa na praia? - perguntou Hillman incrédulo.

Bean lançou-lhe um olhar presunçoso que dizia ”eu avisei-o”. Agora talvez o seu superior concordasse que a Salvetti era tão difícil como ele dissera.

- E o que respondeu você?

- Disse-lhe que isso não era possível, que, uma vez que o depoimento dela não é obrigatório, ela vai ficar no Colorado. Expliquei que o advogado de defesa tem gravações do primeiro julgamento do Skarrett e que, por esse motivo, não há necessidade de ela ir à Florida.

- E a resposta dela? - perguntou Bean.

- Tentou tirar-me a arma.

- Tenho a certeza de que ela estava a fazer bluff- declarou Hillman. - Vamos dar-lhe alguns minutos para se acalmar

- sugeriu.

Carrie ia levar mais do que alguns minutos a acalmar-se. Aquelas explosões de mau humor eram a sua reacção ao medo que lhe apertava o estômago. O que diabo iria Avery fazer? Achava que podia entrar no tribunal calmamente e depor contra Skarrett? Carrie estava sempre a ver a sobrinha a ser abatida nas escadas do tribunal.

Se Monk... ou Jilly... a apanhassem... Carrie correu para o telefone, obteve linha e ligou para o marido, a pagar no destinatário. Rezou para que ele não tivesse ido já para o aeroporto.

Devia estar sentado ao pé do telefone, porque atendeu ao primeiro toque.

Carrie não perdeu tempo com preliminares.

- Vão enfiar-me numa casa e manter-me aqui, no Colorado - exclamou ela.

- No Colorado onde?

- Não me disseram, mas ouvi um deles falar ao telemóvel. Não sabia que eu estava a ouvir, mas falou num sítio chamado Wedgewood. Deve ser um subúrbio qualquer.

- Aspen é demasiado pequena para ter subúrbios - retorquiu ele.

- Não sei onde raio é. Procura na Internet, por favor! Usa a cabeça! Não deve haver mais de um subúrbio chamado Wedgewood no Colorado. - Irrompeu em lágrimas. - Se eu tiver de ficar sob vigilância muito tempo, o que acontecerá à minha empresa? Não posso ficar afastada muito tempo. Não posso...

- Querida, eu consigo tratar de tudo aqui. Já fui director de uma empresa antes.

- Mas eu preciso de te ter aqui, Tony. Tens de vir.

- Está bem, irei - prometeu ele, - Não te vou deixar passar por isso sozinha. Queres que vá ter ao hospital? Podem esperar que eu aí chegue para te mudarem?

- Eu faço-os esperar - disse ela. - A Sara já foi transferida para a nova ala de fisioterapia. Ainda não está aberta a outros doentes, por isso a segurança não põe dificuldades. Eu fico lá com ela até nos mudarem a ambas. Não deixarei que me levem daqui até tu chegares.

- Sim, está bem - disse ele, parecendo aliviado.

- Sabes que não conseguem encontrar a Avery? Quando ela me ligou, disse que não iria para uma casa vigiada comigo. Já falaste com ela?

- Não, ainda não. Tenho estado ao pé do telefone à espera. Não é nada normal a Avery deixar-me assim preocupado. Não percebo porque é que ainda não ligou.

- Ela sabe que vais ralhar com ela por me pôr nervosa disse Carrie. - Não gosta de desapontar nenhum de nós.

- Eu sei, querida, mas estou raladíssimo com ela.

- Eu também. Ela há-de ligar, e quando isso acontecer, diz-lhe para não ir para Sheldon Beach. Fá-la perceber o quanto isso será perigoso.

- Sim, está descansada. Não vou deixar que nada de mal lhe aconteça.

- E se a Avery te ligar quando já tiveres saído para o aeroporto?

- Querida, ela tem o número do meu telemóvel.

Claro que tinha. Carrie estava tão perturbada que era incapaz de pensar.

- Até breve.

Carrie desligou e decidiu ligar para o gabinete de Avery, a fim de tentar saber se algum dos colegas tivera notícias dela, mas foi impedida de fazer mais chamadas quando o agente Hillman entrou no quarto e lhe disse que a juíza Collins desejava falar com ela.

- Vamos mudá-la para uma ala nova dentro de minutos.

- Sim, está bem. O que quiser.

Hillman ficou admirado e agradado com a colaboração dela. Sentia-se também um pouco ufano, pois tivera razão. Dissera a Bean e a Gorman que assim que Mrs. Salvetti se acalmasse iria colaborar, e era precisamente isso que ela estava a fazer nesse momento.

Afinal, talvez aquela missão não fosse ser tão desagradável.

 

                                         CAPÍTULO 34

Jilly acabara de ser massajada e encontrava-se agora enrolada em algodão egípcio com o logo do Utopia estampado na bainha. Estava de barriga para cima, olhos fechados, enquanto a esteticista lhe aplicava uma máscara facial de abacate. A estúpida da mulher não era capaz de estar calada. Fartou-se de elogiar Jilly pela sua pele extraordinária e pelo seu corpo tão perfeito.

Jilly nunca se fartava de ouvir elogios de homens, mas estava-se nas tintas para o que as mulheres pensavam a seu respeito, e quando estava prestes a mandar a esteticista calar-se, ela acabou de aplicar a máscara.

- Vamos deixar isto actuar durante um quarto de hora anunciou.

Jilly ficou finalmente sozinha. Levantando um pouco o lençol, deixou que o ar lhe refrescasse o corpo. Sabia bem descontrair-se, especialmente depois de ter ficado tão abalada com a notícia de que Carrie e a juíza tinham sobrevivido à explosão. Felizmente, Monk não estava junto dela quando a notícia passara na televisão, por isso ela não tivera de se comportar bem. Ele nunca a vira fazer uma birra a sério, e ela não fazia ideia de como reagiria. Não queria assustá-lo, pelo menos por enquanto, uma vez que ele era tremendamente útil. Havia ainda muita coisa a ser feita e Monk tinha de continuar a ser o seu cão fiel.

Carrie costumava chamar fúrias às suas birras, mas Jilly aprendera a controlar-se ao longo dos anos. Não muito, mas alguma coisa. Claro que se um dos empregados tivesse aparecido no quarto depois de Jilly ter ouvido a notícia acerca de Carrie, Jilly tê-lo-ia atacado. E saboreado cada momento.

Jilly nunca matara ninguém. Deixava que os homens tratassem dos seus problemas. Não era para isso que eles existiam? Contudo, perguntara-se várias vezes como seria matar alguém com uma arma, ou até mesmo só com as mãos. Se alguém a fazia infeliz, ver essa pessoa morrer parecia justo. Porque haveria ela de se negar esse prazer e essa alegria? Percebeu que Monk sempre tivera razão. Ele quisera matar cada uma das mulheres separadamente e fazer com que as mortes parecessem acidentes, mas Jilly implorara até ele concordar em fazer as coisas à sua maneira. Como podia não resultar um plano tão brilhante? Era tão perfeito, tão simples, tão... fantástico.

Carrie. Carrie era a razão por que o seu plano não resultara. A cadela egoísta estragara tudo.

Jilly atirara-se para a cama e batera com os punhos nas almofadas. Parara de repente. Ouviu o jornalista da CNN dizer que iam passar de novo as imagens. Endireitou-se, limpou as lágrimas do rosto, e olhou para o ecrã. O filme centrava-se na juíza, mas Jilly não estava interessada nela, por muito famosa que ela fosse. Aguardara gemendo, até que finalmente a câmara se virara para a cabra da sua irmã, enquanto era transportada numa maca para a ambulância. Homens, paramédicos sem dúvida, mas, ainda assim, homens, ocupavam-se dela. Como ousavam dar-lhe atenção? Como ousavam? Jilly ficou mais furiosa por causa do comportamento dos homens do que com o facto de a irmã continuar viva.

A câmara fizera zoom no rosto de Carrie. Jilly julgou que ela estava a sorrir, e isso fora a gota de água. Gritando obscenidades, pegara num candeeiro e atirara-o contra a parede.

Carrie estava a estragar tudo.

Levara uma hora a acalmar-se. Depois ligara para o spa e pedira a um massagista que fosse ao bungalow. A massagem ajudara, e agora estava capaz de pensar num novo plano. Este não seria tão complicado, decidiu.

Porque não cedera ao impulso e não matara Carrie com a tesoura? Porque isso não teria sido tão divertido. Depois de tudo o que a irmã lhe fizera, merecia sofrer durante bastante tempo antes de morrer. Não era justo. Homens a preocuparem-se com ela, a tomarem conta dela. Não conseguiam ver quanto ela era feia?

Jilly sentia-se de novo furiosa. A máscara que tinha no rosto começava a fazer comichão. O telemóvel tocou no momento em que a esteticista regressou.

- Vá-se embora - ordenou Jilly. - Eu lavo isto. Feche a porta quando sair.

Jilly tombou uma pilha de toalhas quando estendeu a mão para o telefone.

- Sim?

- Achei que havias de querer receber boas notícias. Descobri onde a Carrie e a juíza estão.

Ela animou-se de imediato.

- Sabes? Onde, querido? Eu tinha razão? - perguntou antes de ele poder responder. - Vão para Sheldon Beach? É lá que vão esconder a Carrie até ao julgamento?

- A tua irmã não vai para a Florida porque não vai testemunhar no julgamento.

Jilly riu-se, maravilhada.

- Ela tem medo.

- Sim.

A máscara no rosto estalou quando ela sorriu.

- Isso são óptimas notícias. Agora conta-me tudo.

Ela ouviu atentamente, e, quando ele terminou, disse-lhe para não se preocupar, que ela iria inventar um novo plano ainda melhor.

- Mas uma coisa menos complicada - prometeu ela. Depois numa voz semelhante à de uma pomba no cio, disse: Tenho saudades tuas, querido.

- Vejo-te em breve?

- Claro.

- Amo-te.

Ela tornou a sorrir.

- Sim, eu sei.

Desligou, atirou a toalha para o chão e foi tomar um duche. Embrulhando-se num roupão felpudo de turco, mandou chamar uma empregada para limpar a confusão que fizera. O custo dos estragos seria debitado no seu cartão de crédito.

Duas horas mais tarde, quando Monk entrou no quarto, ela estava pronta para ele. Envergava um vestido preto de chiffon e sapatos de salto alto, e nada por baixo. Quando parou junto à porta com a luz do quarto a incidir-lhe por trás, soube que ele conseguia ver através do tecido fino. Confirmara isso para ter a certeza.

Monk estava cansado quando chegou, mas, assim que viu o amor da sua vida, rejuvenesceu. Sabia o trabalho que ela tivera só para lhe agradar. Jilly percebera que ele precisaria de fazer amor consigo e preparara o quarto. Havia velas a arder para criar ambiente, e ela pusera o vestido preferido dele. Era igual ao vermelho que ela tivera, até ele o rasgar. Quando Monk avançou, disse a si mesmo para não estragar aquele.

Observou a boca dela. Esfregava devagar o lábio superior com a ponta da língua. Jilly sabia que ele também gostava disso.

Fizeram amor de forma selvagem. Como animais no cio, lançaram-se um ao outro. O vestido dela caiu ao chão, desfeito. E quando ele ficou finalmente satisfeito, rolou de cima dela, pôs um braço por cima da cabeça e fechou os olhos.

Ela satisfizera-o, e agora era a vez de ele a satisfazer.

- Acho que devíamos esperar uns dois dias - disse Jilly -, e então, quando tiveres descansado, podes tratar da Carrie e da juíza. Nessa altura já elas julgarão que o perigo passou. Não concordas? Não deves ter muita dificuldade em entrar e fazer o que tem de ser feito.

- Preciso de pelo menos duas semanas para organizar e planear.

- Não acabei de te fazer feliz?

- Sabes que sim, querida.

- Então faz-me feliz. Eu posso talvez esperar uma semana, mas daria em louca se tivesse de esperar mais tempo. A Carrie ia a sorrir quando a meteram na ambulância. Não gostei de a ver sorrir.

- Compreendo.

- Ela falou de mim à polícia. Agora sabem que estou viva e hão-de andar à minha procura. Tinhas razão - murmurou ela.

- Não devia ter insistido nas cartas, e não devia tê-la deixado ver-me. Mas julguei que ela iria morrer na explosão, e quis que ela soubesse...

- Não chores, Jilly - disse ele tomando-a nos braços. Vai correr tudo bem.

- Sim - respondeu ela, aninhando-se contra ele. – Assim que ela estiver morta, tudo correrá bem. Ela fez-me tão infeliz durante tanto tempo. Promete-me que a matas em breve.

- Prometo - respondeu ele. - Sabes que faço tudo por ti. Ela sorriu. As suas mãos moveram-se habilidosamente pelo corpo dele.

- Então iremos a Sheldon Beach.

Monk começava a ficar agitado por tentar agradar-lhe, mas ao mesmo tempo sentia que podia fazer qualquer coisa e ser bem-sucedido por causa da fé dela em si. Ela dizia-lhe muitas vezes que o achava brilhante e que ele se subestimava. Monk percebeu que ela tinha razão. Iria conseguir. Poderia entrar e sair sem ser visto, independentemente do número de agentes do FBI presentes.

Podia até tornar-se invisível.

 

                                           CAPÍTULO 35

A viagem para a Florida levou três dias. Podiam ter ido mais depressa, mas como tinham tempo, seguiram pelas estradas panorâmicas ao longo da Geórgia.

Passaram duas noites em motéis limpos, mas sem luxos, em pequenas povoações. Na primeira noite, cada um teve o seu quarto. Avery não convidara John Paul a partilhar a sua cama, e ele não perguntara nem partira do princípio de que estava convidado. Ela tentava desesperadamente afastar-se dele porque acreditava que isso tornaria a despedida final menos dolorosa, mas não conseguia. Andava apenas a iludir-se. Amava-o e não sabia o que fazer. Não dormiu nada nessa primeira noite, passou o tempo às voltas na cama até ficar tonta, e de manhã estava com uma péssima disposição. Na segunda noite, John Paul não perguntou. Limitou-se a pagar por dois quartos, enquanto Noah falara com um dos seus superiores ao telemóvel.

John Paul seguiu Avery até ao quarto e pousou o saco ao lado do dela.

- Vamos só dormir. Nada de sexo - disse ela. Sorrindo, ele despiu-se e foi para o chuveiro.

- Eu perguntei alguma coisa? - retorquiu ele, fechando-lhe a porta na cara.

O ar condicionado não funcionava bem, o quarto estava gelado, e, por volta das duas da manhã, ela acordou nos braços dele, bem quente e romântica. Ele era simplesmente irresistível. Fizeram amor, e foi ainda melhor do que da última vez, porque agora sabiam do que o outro gostava, e minutos depois estavam sintonizados nos desejos um do outro.

A parede que separava o quarto deles do de Noah era muito fina. Ela tentou não fazer barulho, mas quando sentiu aqueles primeiros tremores de prazer a percorrerem-lhe o corpo, a sensação foi tão intensa que ela lhe mordeu o ombro para evitar que o grito de êxtase lhe fugisse.

Foi tão maravilhoso que, quando ela acordou às seis, rolou para os braços dele e, como dizia Margo, tornou a saltar-lhe para a espinha.

Ele adormeceu novamente. Avery foi para a casa de banho e, depois de ter tomado duche, deteve-se diante do espelho a olhar para o rosto. Tinha as faces vermelhas por causa de as esfregar na barba dele, e os lábios inchados dos seus beijos.

Suspirando, abanou a cabeça.

- Olá - murmurou. - Chamo-me Avery e sou viciada em sexo.

Só podia culpar-se a si mesma. Prometendo deixá-lo em paz, pegou na escova de dentes e tentou não pensar nele enquanto se preparava para o dia.

John Paul estava muito mais bem-disposto quando seguiram viagem. Foi até quase simpático para Noah. Quase. Avery achava que os dois homens agiam como adversários numa espécie de concurso, mas não levou muito tempo a perceber que eles adoravam trocar mimos.

Depois de pararem para almoçar, ela sentou-se no banco de trás, cobriu os olhos com a pala do boné de basebol e decidiu dormir uma sesta.

Os homens baixaram as vozes para não a perturbarem. Noah já sabia de Jilly. Lera o dossiê de Avery e viera preparado.

Especularam sobre a forma como ela se teria relacionado com Monk e sobre qual seria a sua relação. Noah, claro, sabia também tudo sobre Skarrett, e achava que talvez fosse ele o responsável por tudo. John Paul discordou, observando que assim que Monk aceitara o contrato passara a fazer as coisas à sua maneira.

Um assunto levou ao outro.

- Vais perder o teu emprego por nos estares a ajudar? perguntou John Paul. - O FBI anda à procura da Avery.

- Eu não trabalho para o FBI. Sou aquilo a que podes chamar trabalhador independente.

John Paul ficou exasperado.

- Não, tu trabalhas para o FBI. Para que raio achas que serve esse crachá?

- Para arranjar melhores lugares de estacionamento. É a única razão por que ando com ele.

- Deixa-te de brincadeiras.

- Alguma vez sentiste saudades?

- Do quê?

- Da acção.

- Bolas, não!

- Ainda vives no pântano?

- Vivo em Bowen.

- No pântano.

- Sim, acho que sim.

- Achas que ela vai querer viver lá? Ele fingiu não compreender.

- Quem?

Ele esquecera-se de que Noah podia ser muito directo.

- Da mulher com quem andas a dormir. Da mulher de quem não consegues tirar os olhos mesmo a conduzir. Olhas pelo espelho retrovisor de dez em dez segundos desde que te sentaste ao volante. Ainda nos matas se não prestares atenção à estrada.

John Paul estava decidido a não falar sobre Avery.

- Quanto falta para aquela povoação que escolheste para passarmos a noite? Como é que se chamava? Walden Point?

- Eu cá acho que nunca vou assentar. Há demasiado peixe no mar.

- E Walden Point fica a quê? Vinte ou trinta minutos de Sheldon Beach?

- Nunca pensei que encontrasses uma mulher capaz de te aturar, mas afinal enganei-me.

John Paul não podia continuar a fingir que não o estava a ouvir.

- Tu nem sequer me conheces, Noah.

- Claro que conheço. Sei tudo a teu respeito.

- Leste o meu dossiê? A palavra ”secreto” já não significa nada hoje em dia? - murmurou.

- Acho que não - respondeu Noah. Não tivera acesso ao dossiê de John Paul, mas falara com Theo a respeito do seu cunhado reservado. Uma vez que John Paul parecia ter ficado aborrecido com o facto de o seu dossiê ter sido aberto, Noah não lhe contou a verdade. Gostava de o chatear.

- Então, achas que ela vai gostar de viver em Bowen? Tinha descrito um círculo. John Paul agarrou-se ao volante enquanto tentou controlar o temperamento.

- Não vamos ter de parar para meter gasolina. Noah sorriu.

- Ena pá, como isso está! Tens a cara toda vermelha.

- Não é nada disso - disse John Paul com vontade de o esmurrar.

- Ai não? Vocês não combinaram nada?

John Paul não queria discutir a sua relação com Avery.

- Não.

- Nem planos futuros? Ele fitou Noah.

- Não - respondeu, furioso, virando-se depois para a frente. - Estás pronto para falar de outra coisa?

- Claro. De que queres falar?

- Pára de dar em cima da Avery.

Arrependeu-se assim que as palavras lhe saíram da boca. Noah riu-se.

- Porque haveria eu de querer parar de fazer isso? Acabaste de dizer...

- Eu sei o que disse.

- E ela é uma mulher linda.

Talvez conseguisse esticar o braço bem depressa, abrir a porta de Noah e empurrá-lo para fora. Isso devia calá-lo.

- E também é muito sensual.

- Sim, bem, deixa-a em paz. Agora, a que distância fica Walden Point?

- Não faço ideia. - Noah reclinou o banco, ajustou os óculos escuros no nariz e fechou os olhos.

- Tu és o navegador. Olha para o mapa.

- Pois.

Adormecera um segundo depois.

O resto da tarde foi agradavelmente calmo. Chegaram a Walden Point pelas seis horas. A pequena povoação ficava a quarenta quilómetros da ponte que entrava em Sheldon Beach.

Avery não se recordava se já ali estivera em criança. As ruas eram ladeadas por palmeiras, a erva era castanha devido à água salgada e as casas nas ruas laterais estavam em mau estado. Era um local lúgubre, esquecido, até que chegaram à zona mais antiga e populosa. As casas nessas avenidas tinham sido pintadas. À relva estava viçosa e as flores embelezavam os vasos de barro nos alpendres recém-pintados. Ali existia um sinal de progresso.

Havia vários bed-and-breakfast pela rua principal até ao mar, mas Noah não estava interessado em parar ali. Encontrou um motel a doze quarteirões da praia e mandou John Paul meter para o parque de estacionamento.

Avery achou que Noah estava a brincar. O Motel Milt’s Flamingo tinha paredes de cimento rosa-vivo e chão de azulejos vermelhos a precisar de ser reparado. Havia flamingos pintados à mão em diferentes cores em cada porta verde-lima. A estrutura em forma de U com doze unidades tinha um parque de estacionamento de gravilha. A pessoa que escolhera aquela combinação de cores devia ser daltónica.

Não se viam outros carros por ali. Avery achava que o proprietário, Milt, devia ter abandonado aquela espelunca.

- Tens a certeza de que isto está aberto?

- Vi um tipo espreitar quando parámos - respondeu Noah. - É fácil chegar e sair daqui. Estacionamos atrás, e o carro não é visto da rua. O que achas?

Como estava a fazer a pergunta a John Paul e não a ela, Avery guardou para si a sua opinião. Depois de ter passado pelo encantador bed-and-breakfast alguns quarteirões atrás, com a bonita vedação branca e cadeiras de balouço no alpendre em volta da casa, achava que a escolha de Noah era horrenda. Esperou que John Paul protestasse.

- Gosto - disse ele, deitando por terra as suas esperanças.

- Lembra-me o bar do meu pai. Tem um flamingo grande no telhado.

- Sim, lembro-me de o ver. Pensei que era um pelicano. Vou fazer o check-in.

- Há um bed-and-breakfast aqui perto - interveio ela. Parecia agradável e asseado. Tinha uma placa a dizer que havia vagas.

- Isto serve, não serve? - perguntou John Paul.

Se Noah não estivesse com eles, ela teria respondido que não, que não servia, mas não queria queixar-se diante de um agente.

- Sim, serve.

Ele sorriu com o desânimo dela.

- Não é tão agradável como a cabana do Tyler?

- Serve - repetiu ela.

Noah acabara de sair do carro quando o telemóvel tocou. John Paul dirigiu-se à recepção, mas Avery ficou com Noah. Esticou os braços e as pernas, perros da longa viagem.

Noah, de cabeça baixa, afastou-se, por isso a conversa devia ser particular. Reparou na expressão dele, percebeu que devia haver um problema, e aguardou com ansiedade.

A conversa durou bastante tempo. John Paul regressou com duas chaves.

- O que foi? - perguntou ele assim que olhou para Avery.

- Qualquer coisa - responde ela, encostando-se a ele. Noah terminou o telefonema e regressou para junto do carro.

- A tua tia e a juíza estão bem - disse ele, olhando para Avery.

- O que aconteceu?

- Houve uma entrega; uns tanques que iam ser instalados atrás da ala de fisioterapia.

- Ah, raios! - exclamou John Paul. Já sabia o que vinha a seguir. - Explodiram, não foi?

Noah assentiu.

- A explosão destruiu a maior parte da ala.

- Como é que o Monk passou pela segurança? - perguntou Avery.

- Não passou - respondeu Noah. - O homem encarregado das entregas foi morto quando estava a descarregá-los. O Monk chegou àqueles tanques antes de serem instalados.

- Quantos mortos? - perguntou John Paul.

- Dois. Um agente chamado Gorman ficou ferido, mas vai safar-se. É só o que sei.

- Como diabo aconteceu isso? - inquiriu John Paul.

- Eu digo-te como aconteceu. O Monk tem estado este tempo todo no hospital a vigiar. Deve ter sabido que não poderiam mudar a juíza logo depois da operação. Quando os agentes puseram aquelas mulheres no carro e arrancaram, ele deve ter percebido que elas não eram a Carrie e a juíza.

Noah foi à frente até aos quartos. Ficavam na extremidade e tinham uma porta de ligação.

O quarto deles estava surpreendentemente limpo. Havia uma cama de casal com uma colcha às flores, duas cadeiras junto à janela com vista para o parque de estacionamento, com uma pequena mesa e um candeeiro no meio. Não havia roupeiro. Numa das paredes havia cabides e prateleiras.

- A Carrie e a juíza não ficaram feridas? - perguntou Avery assim que Noah entrou no quarto deles. - Estás a contar-me tudo?

- Sim - respondeu ele. - A tua tia tinha acabado de levar a juíza à casa de banho na cadeira de rodas quando se deu a explosão. As paredes impediram-nas de serem incineradas.

Avery sentiu-se doente. O telefone de Noah voltou a tocar, e ele foi para o seu quarto. Ela aguardou até ele estar de costas, depois aproximou-se de John Paul, pôs-lhe os braços à volta da cintura e apertou-o com força.

Ele sentia-a tremer.

- Este pesadelo vai acabar em breve - prometeu. Ao ver que ela não dizia nada, perguntou. - Queres sair daqui?

- Sim.

- Onde queres ir?

- Não sei - murmurou ela. - Não consigo pensar... preciso de...

Ele beijou-lhe a testa.

- Precisas de um balouço num alpendre, não é? Ela assentiu.

- Com lilases - acrescentou John Paul.

Avery sorriu porque ele se recordara do seu lugar feliz.

- Não posso dar-te lilases, e não posso fazer-te um balouço, mas água... posso dar-te muita.

Vinte minutos mais tarde, ela e John Paul caminhavam de mãos dadas pela praia. Envergavam ambos calções e tinham deixado os sapatos nos degraus, junto a Noah.

Nuvens negras tapavam o Sol. A praia estava praticamente deserta e, quando Avery se sentou na posição de lótus, John Paul não se intrometeu. Regressou para os degraus e sentou-se ao lado de Noah.

- O que raio está ela a fazer? - perguntou Noah ao fim de ver Avery imóvel vários minutos.

- A pensar.

- Está bem.

Quando o Sol se pôs, levando a luz, John Paul levantou-se e foi ter com Avery. Ela tinha os olhos fechados. Ele acocorou-se diante dela e ficou à espera, sabendo que ela pressentiria a sua presença.

Um momento depois isso aconteceu. Avery abriu os olhos e fitou-o. Uma lágrima correu-lhe pelo rosto. Respirou fundo.

- Tenho de fazer um telefonema.

 

                                     CAPÍTULO 36

Monk estava pronto para avançar.

Na janela do gabinete do gerente havia uma tabuleta a dizer ”completo” e, pregada à porta, outra a dizer ”Fechado para obras”.

Monk sabia que os alvos se encontravam no interior. Já passara a área a pente fino, conhecia-a como a palma da mão. Havia três carros estacionados nas traseiras do motel. Tinha a certeza de que dois deles pertenciam a agentes federais destacados para proteger Avery. O terceiro era o de Renard.

Monk passou com Jilly de carro pelo motel, para que ela pudesse ver onde tudo iria acontecer, e ela mal poude conter a sua excitação quando viu luz por detrás dos cortinados do quarto que Monk lhe indicou.

- Ela está ali - murmurou, incapaz de conter o entusiasmo. Monk entrou no parque de estacionamento um pouco mais acima do Motel Milt. O parque servia os clientes do cineteatro estilo espanhol, com campanário e tudo, e os devotos da Igreja dos Ascendidos. Estacionou o carro de frente para a rua, depois entregou a Jilly o binóculo e bebeu um gole de chá gelado.

- Estás oficialmente de vigia. Ela riu-se.

- Isto é maravilhoso.

O entusiasmo dela encantou-o.

- Estás a divertir-te?

- Oh, sim! É melhor do que eu imaginara, muito melhor! Entrou um carro no parque de estacionamento e ela baixou rapidamente o binóculo.

- Tens a certeza de que aqui estamos em segurança?

- Claro que sim. Eu mantenho-te sempre livre de perigo. Sorriram ambos, e Jilly tornou a levantar o binóculo. Ainda conseguia ver a luz a sair pela janela, e tentou imaginar o que estaria a acontecer no quarto.

Estacionou outro carro três filas atrás deles. Havia missa na igreja e um filme a ser exibido no cinema, com bilhetes a um dólar. O parque estava agora quase cheio.

Jilly estendeu-lhe o binóculo, mas ele não precisou de olhar. Já passara um dia e uma noite a fazer reconhecimento. Não era suficiente, mas teria de bastar. Normalmente, ele teria passado pelo menos duas semanas a seguir o alvo, a aprender a sua rotina, mas aquela não era uma situação normal. O tempo estava a esgotar-se e Jilly sentia-se demasiado impaciente para esperar mais tempo. Tal como uma criança, queria uma recompensa imediata.

- Quantos polícias estão lá dentro com ela? - perguntou.

- Agentes - corrigiu ele. - Não são polícias. Quatro.

- E vais apanhá-los todos?

- Sim.

Eram alvos fáceis. À mercê de Monk.

Na noite anterior, Monk vira Renard esgueirar-se pela porta das traseiras, meter-se no carro e arrancar. Monk não conseguira disparar contra ele, mas não o teria feito mesmo que conseguisse, pois não queria que os seus alvos principais se pusessem de novo em movimento. Tinha uma coisa especial planeada para eles. Era uma pena não saberem o que os tinha atingido.

Renard regressara ao motel meia hora mais tarde, com quatro pizas grandes e um saco de plástico que Monk calculou estar cheio de cerveja ou refrigerantes.

Estava desiludido com a atitude descuidada de Renard. Tinha a certeza de que o outro não fazia ideia de que estava a ser observado. Era demasiado presunçoso e seguro de si. Monk ficou desiludido. Esperara melhor do seu adversário e cometera o erro de acreditar que Renard era um profissional. Um rival à sua altura. Percebia agora que essa esperança fora tola. Nunca ninguém poderia igualá-lo ou chegar-lhe sequer aos calcanhares. Jilly sempre tivera razão. Ele era uma lenda.

- Julgo que será boa ideia avançar esta noite - disse Jilly.

- Estás ansiosa.

- Sim.

- Amanhã - prometeu ele.

- Não quero esperar muito mais.

- Eu sei.

- Será que a Carrie se sente de novo em segurança? Imaginas como ela e a Avery se devem sentir claustrofóbicas neste momento? Fechadas numa espelunca pulguenta noite e dia? Devem estar a dar em doidas!

- Eu esperei propositadamente para que os agentes começassem a sentir-se aborrecidos... e letárgicos - explicou Monk.

- Sim, é essa a palavra, letárgicos.

- Hora após hora sentados naquele quarto minúsculo, à espera, preocupados. Nunca chegaram a deixá-las vir cá fora, pois não?

- Não enquanto eu estive de vigia.

- Ainda bem que ela não morreu naquele hospital - disse Jilly. - Isto vai ser melhor, porque poderei ver.

Monk assentiu.

- A Carrie exigiu vir para a Florida.

- Quer morrer com a Avery.

- Ela não sabe que vai morrer amanhã. Acha que vai sentar-se naquele tribunal com a Avery quando o julgamento comeÇar.

Jilly tornou a pegar no binóculo.

- À terceira é de vez - disse ela com um sorriso.

Monk reprimiu um bocejo. Estava exausto, mas não ousava queixar-se. Jilly achava-o invencível, sobre-humano, e ele estava decidido a manter a sua imagem de cavaleiro de armadura reluzente.

Sabia que estava a correr riscos que nunca antes considerara, mas era difícil ser cauteloso com Jilly sempre a pedir que se esforçasse mais. Acreditava que ele conseguia fazer tudo, fê-lo acreditar em si próprio.

De vez em quando uma dúvida incomodativa surgia na sua mente. Ele nunca deixara antes de honrar um contrato. A sua palavra significava tudo. Se não fosse uma pessoa de confiança, o seu futuro correria perigo, a sua reputação estaria arruinada. Contudo, a ideia não o assustou. Tinha dinheiro mais do que suficiente para proporcionar a Jilly a vida que ela merecia. Talvez pudesse deixar aquele alvo com vida e afastar-se.

- Sabes, querida, não precisamos do dinheiro - disse ele, hesitante.

Ela percebeu onde ele queria chegar.

- Sabes o que acho?

- O quê?

- Quando nos despacharmos disto, damos uma saltada ao México e casamos. O julgamento durará pelo menos uma semana. O Dale não vai a lado nenhum. Que tal?

Sabia o quanto ele queria um casamento. A fadiga de Monk desapareceu e ele sorriu subitamente, animado.

- Sim, sim - respondeu. Sentiu-se atrapalhado por soar tão ansioso, mas acrescentou: - Conheço o sítio ideal... vais adorar, prometo.

- Desde que case contigo, nada mais importa.

Pousou a mão na coxa dele, inclinou-se e beijou-o. A sua mão deslizou para cima, para o acariciar.

Monk ficou rapidamente com uma erecção. Satisfeita com a reacção dele, Jilly retirou a mão.

- Porque não acabamos com eles esta noite? - perguntou, fazendo beicinho.

Monk levou vários segundos a perceber o que ela acabara de dizer.

- Verás tudo amanhã. É melhor com a luz do dia. Além disso, tenho de fazer algumas alterações, pequenas coisas, antes de avançar. Queres que seja perfeito, não queres, querida?

- Sim, claro. Mas porque é melhor com a luz do dia?

- Ninguém espera ser atingido com o Sol a brilhar, e no passado sempre tentei entrar e sair durante a noite. Aqueles agentes julgam conhecer os meus hábitos.

- Achas que eles te estudaram?

- Sim. Quando anoitecer, eles estarão mais atentos. Ela suspirou.

- Está bem, vou ter de esperar até amanhã. Lembra-te, prometeste que eu podia ver. Não vais mudar de ideias, pois não?

- Não, não vou - tranquilizou-a ele. - Estarás em segurança, mas num sítio maravilhoso de onde poderás assistir a tudo. E tenho uma surpresa para ti. Ia esperar até amanhã, mas...

- Diz-me já - implorou ela. - Por favor!

- Está bem. Sei que ficaste desiludida quando viste explodir a casa do Colorado. Mas desta vez vai ser diferente. Vou deixar-te carregar no botão.

Ela riu-se, maravilhada.

- Vais espantar-me? Ele assentiu.

- Oh, sim. Sou uma lenda, lembras-te? Vou espantar toda a gente.

 

                                     CAPÍTULO 37

Depois de Monk ter levado Jilly ao hotel no lado oposto de Walden Point, meteu-se no carro e foi até uma zona residencial a dois quilómetros do Motel Milt.

Correu dois quilómetros até ao seu esconderijo e subiu silenciosamente as escadas. Ainda tinha de dar os últimos retoques aos fios. O trabalho levara muito mais tempo do que o calculado, sem dúvida por ele estar cansado, mas quando finalmente terminou, ficou satisfeito com o resultado. Desta vez nada correria mal.

Passava das três da manhã quando se foi deitar. Com cuidado, para não incomodar Jilly, sentou-se na cama ao lado dela, vendo-a dormir. Oh, como a amava. Ela era tão bonita, tão extraordinária... tão perfeita. Deitou-se ao seu lado pensando de novo que era o homem mais sortudo do mundo. Adormeceu com os braços à volta dela, o aroma do seu perfume envolvendo-o, e sonhou com a lua-de-mel.

Os contos de fadas podiam tornar-se realidade. Ele e Jilly seriam felizes para sempre.

Jilly vestiu-se com esmero na manhã seguinte. Afinal de contas, ia à igreja, por isso colocou uma saia e uma camisa brancas e sandálias de salto alto. Enquanto escovava o cabelo e o enrolava, Monk pôs a bagagem no carro.

- Não te esqueças da minha cassete - lembrou ela.

- Nunca me esqueceria disso - asseverou ele, embora, de facto, se tivesse esquecido. Ela teria ficado furiosa se a perdesse. Estava tão obcecada com aquilo a que chamava provas que insistia em levá-la sempre consigo. Uma peculiaridade que ele suportava, tal como ela suportava as suas. Uma relação sólida e estável era assim, não era? Dar e receber.

Ele tirou a cassete do vídeo, meteu-a na caixa e pousou-a na cama ao lado da mala de palhinha dela.

Jilly estava diante do espelho, a arranjar-se. Monk viu-a aplicar o batom vermelho e sorriu porque sabia que ela só usava aquela cor para o agradar. Fora ela quem lho dissera.

Jilly guardou o batom na mala com a cassete, pegou no chapéu de palha com a fita branca e foi até ao meio do quarto.

- Achas que estou pronta para a igreja? - perguntou ela, rodopiando, corada de excitação.

- Estás linda - murmurou ele. - Estás sempre linda. Jilly aproximou-se dele e ajustou-lhe o nó da gravata, como qualquer esposa dedicada.

- Ficas lindo de fato. Devias usá-los mais vezes.

- Se gostas, assim farei.

Ela pegou-lhe na mão e foram lado a lado até ao carro. Ele gostava de coisas assim, pensou Monk. Que ela lhe pegasse na mão. Era um sinal de confiança... A admiração com que ela o olhava... isso também lhe agradava.

- Já estacionei o outro carro perto da igreja - disse ele. Apenas como medida de precaução. A chave está atrás da pala.

- Não vamos precisar de o utilizar - respondeu ela. - Tu previste todas as possibilidades.

Ele tinha a certeza de que o fizera, por isso assentiu; porém, havia qualquer coisa a preocupá-lo em relação aos fios. Sentira-se tão cansado que apenas efectuara um teste, mas isso era o suficiente.

O vento aumentou enquanto seguiam viagem. Monk olhou para o campanário por cima do teatro quando dobrou a esquina. Entrou no parque de estacionamento, deixando o carro de forma a que Jilly pudesse ver tudo. Ninguém poderia bloquear-lhe o carro, e se ele tivesse de passar por cima do passeio para chegar à estrada, poderia fazê-lo sem ficar encurralado.

Desligou o motor.

- Estás pronta?

- Oh, sim.

- O controlo remoto está no porta-luvas.

Ela tirou-o com cuidado.

- Parece o comando do portão de uma garagem.

- E é mesmo. Mas modificado, claro.

- Quando é que carrego no botão?

- Achei que seria agradável esperarmos até o sino tocar. Jilly virou-se no banco para ver os homens, mulheres e crianças apressarem-se para a igreja. Não queriam chegar atrasados, pensou ela.

O espectáculo era cá fora. Uma pena não o poderem ver.

- Que horas são?

- Mais cinco minutos.

- Não quero esperar. Quero fazê-lo já.

Monk enfiou a mão debaixo do assento e tirou de lá o binóculo.

- Quando estiveres pronta.

Jilly humedeceu os lábios ao levantar o binóculo. Ajustou as lentes até focar a janela que tivera luz na noite anterior.

- Vou recuperar o meu sonho - murmurou ela. Carregou no botão. Nada aconteceu, por isso ela carregou outra vez. Depois, outra vez ainda com mais força, mantendo-o premido.

- Bolas! - murmurou Monk. - O vento deve ter soltado um dos fios. Não carregues mais no botão. Vou ter de ir lá cima arranjar tudo. Fica quietinha. Está bem? - Tirou-lhe o comando da mão. - Se alguma coisa correr mal...

- Preocupas-te demasiado. Arranja o fio - disse ela, com mais aspereza do que queria. - Desculpa, não devia sentir-me tão ansiosa. Posso esperar mais uns minutos.

- Assim é que é - respondeu ele. - Mas se acontecer alguma coisa, lembras-te do que tens de fazer?

- Vou até à igreja, depois saio pela porta lateral e meto-me no outro carro.

- E segues pela rua secundária que te mostrei. Não passes à frente do motel.

- Não saio daqui sem ti.

A lealdade dela era reconfortante. Monk fez-lhe uma festa na mão, pousou o comando no chão junto ao banco e saiu do carro. Enfiando a mão no bolso, atravessou com ar descontraído o parque de estacionamento e subiu os degraus da igreja.

Os sinos tocaram quando ele entrou. Trinta segundos depois, ele saiu pela porta lateral, atravessou a estrada e caminhou três quarteirões para norte, antes de ter a certeza de que não estava a ser seguido. Atravessou a rua e dirigiu-se para o cineteatro.

A porta das traseiras estava trancada, claro. Ele serviu-se das suas ferramentas para abrir a fechadura, entrou, e fechou rapidamente a porta.

Estava no corredor das traseiras. A porta que dava para as escadas do campanário ficava do outro lado do átrio. Manteve-se curvo e em silêncio.

Permaneceu alguns minutos na sombra atrás do bar, à escuta dos ruídos, e quando se convenceu de que estava sozinho, avançou até à porta. Também esta estava trancada, tal como ele a deixara. Abriu-a rapidamente e olhou para cima. O fio castanho que deixara no terceiro degrau continuava lá. Ninguém descobrira aquele seu pequeno esconderijo. Passou por cima do fio e começou a subir devagar e cautelosamente, ciente de que o quinto degrau rangia. Sabia que estava sozinho - o cineteatro só abriria para a matiné às duas da tarde - mas, mesmo assim, evitou o degrau.

Havia outro fio lá em cima, tão fino que era quase invisível à vista desarmada. Monk soltou o fio para que, quando abrisse a porta, não fosse pelos ares.

Ainda bem que o dono não quisera mudar o toldo naquele dia, pensou ele com um sorriso. Só mudava os filmes à quarta, mas Monk colocara a armadilha na mesma. Nunca se era demasiado cauteloso, independentemente daquilo que a sua querida Jilly achava.

Abriu uma frincha da porta e olhou lá para dentro. A espingarda com a mira telescópica ainda continuava no canto, encostada ao pilar.

O seu olhar pousou no mecanismo de gatilho sob o míssil caseiro. Tal como suspeitara, um dos fios soltara-se ligeiramente, mas o bastante para interromper a ligação.

Iria arranjá-lo em dois segundos. Abriu a porta, avançou e agachou-se sobre um joelho. Depois imobilizou-se. A voz veio da sua esquerda, do outro lado do sino.

- Tens aí um belo foguete.

Monk ficou demasiado atordoado para se mexer. Uma voz na sua mente gritava ”Não, não, não. O fio... o cordel... nada fora tocado. Como é...”

Outra voz do seu lado direito.

- Acho que ele está com dificuldade em pôr aquilo a funcionar.

Monk lançou-se para a espingarda. Nenhum dos homens tentou detê-lo. Rolou enquanto carregava no gatilho.

Nada aconteceu. O carregador estava vazio. Noah avançou para a luz. Monk viu-o e recuou.

- Tu - murmurou. - Eu conheço-te. John Paul avançou também.

- Como é que soubeste? - O rosto de Monk desfigurara-se devido à fúria, e a sua voz tremia.

- Fácil. Sou mais esperto do que tu.

A arma de Noah estava apontada para a testa de Monk. John Paul viu a expressão de Noah e soube exactamente quais eram os seus pensamentos.

- Algema-o - disse. - Depois lê-lhe os direitos. Noah abanou a cabeça.

- Vou matá-lo primeiro. Depois algemo-o e leio-lhe os direitos.

- Pois, mas não podes.

- Filho-da-mãe! - Noah travou a arma e guardou-a no coldre. Tinha as algemas na mão e avançava para Monk quando ouviram um agente gritar.

Monk esticou a perna, desequilibrando Noah. Este cambaleou diante do assassino, impossibilitando John Paul de disparar.

Alguns agentes começaram a subir as escadas enquanto Monk tentava tirar a pistola do coldre no tornozelo, mas John Paul antecipara aquela reacção e prendeu a perna de Monk ao chão com o pé.

- Deixa-te de brincadeiras! - gritou. - Sai da frente dele para eu lhe conseguir dar um tiro.

- Eu é que dou - ripostou Noah. Deu um soco a Monk, grunhindo de prazer ao ouvir a cartilagem partir. Deu-lhe outro, tentando atingir o mesmo sítio, para que a dor fosse maior.

A porta bateu no pilar quando o primeiro agente apareceu. Monk aproveitou a oportunidade. Reunindo todas as suas forças, tirou Noah de cima dele e lançou-se da torre, de cabeça.

Aterrou no telhado mais abaixo. Rolou, ficando de gatas, e avançou como um gorila até ao toldo. Bateu num suporte com o pé direito, aguentou-se e tentou sacar a arma. Estava a levantá-la quando John Paul e Noah, atirando-se para o telhado, dispararam em simultâneo. As balas sacudiram o corpo de Monk, fazendo-o dançar como uma marioneta. Rodou e caiu para a frente, tombando sobre o toldo.

Ofegando, Noah guardou a arma.

- Tens o direito de permanecer calado...

- Podes crer - murmurou John Paul.

- O sujeito está em movimento - disse um agente lá de cima da torre.

Noah tirou o walkie-talkie do cinto. Repetiu o que o agente lhe dissera.

- Entendido.

- Era a voz da Avery? Era, não era? - perguntou John Paul.

- Avery? És tu, querida? - perguntou Noah para o walkie-talkie.

Empregou o termo carinhoso só para enfurecer John Paul e sorriu ao ver a reacção dele. Se o olhar matasse, ele estaria agora deitado em cima do toldo com Monk.

John Paul agarrou no walkie-talkie.

- O que raio estás a fazer, Avery? Devias estar a...

- Tu estás bem?

- Sim, estamos os dois bem. Onde te encontras?

- Entendido. Terminado.

- Gaita! Ela vai num dos carros.

Estavam os dois deitados no telhado. Noah riu-se.

- Percebeste isso pelo ”entendido, terminado”? John Paul ignorou-o e carregou de novo no botão.

- Kelly?

O agente encarregado da operação respondeu rapidamente.

- Aqui Kelly.

- A Avery vai num dos carros? - perguntou John Paul. Filho-da-mãe, sei que vai. Eu mandei-a ficar naquele maldito barco.

- Entendido. Terminado. Noah riu-se.

- Acho que a Avery não gosta que pensem por ela. - Inclinou-se para a beira do telhado, a fim de calcular a distância até ao chão. - Como raio vamos...

John Paul empurrou-o do telhado. Seguiu-o e aterrou em cima de uns arbustos secos, ao lado do agente. Kelly falava de novo pelo walkie-talkie.

- Têm o Monk preso?

- Não, senhor - respondeu John Paul.

- Onde está ele?

John Paul olhou para o toldo.

- Foi ao cinema.

 

                                               CAPÍTULO 38

Jilly estava farta de esperar por Monk no carro. Porque demoraria ele tanto? Pegou no binóculo e observou a torre. Onde estaria ele? Sabia o quanto ela detestava esperar.

- Arranja o raio da coisa - murmurou. - Despacha-te. Monk apareceu subitamente. Jilly ficou boquiaberta ao vê-lo saltar para o telhado. Achou que ele iria partir o pescoço. Ele desceu da torre a voar, mas enquanto ainda estava no ar, rodou e aterrou como um gato, de pé. Desequilibrou-se e deslizou pelo telhado de gatas. Jilly pensou que Monk iria cair, mas ele conseguiu agarrar-se a tempo.

Dois homens saltaram para o telhado, um pouco acima de Monk. Moviam-se tão depressa que ela não conseguiu distinguir-lhes o rosto.

- Mata-os - murmurou ela para Monk. - Mata-os agora. Vá.

Soaram disparos. Jilly julgou ouvir Monk gritar o nome dela, e observou com uma curiosidade desprendida. Ele caiu de forma pouco elegante no toldo, jorrando sangue. Morreu com o rabo espetado no ar. Ela amaldiçoou a sua alma incompetente.

Como ousava ele fazer-lhe aquilo? A desilusão era demasiado grande e Jilly sentiu lágrimas nos olhos. O controlo remoto. Agarrou-o à pressa e carregou no botão. Uma vez, depois outra e mais outra. Nada aconteceu.

Bolas! Como podia Monk ser tão descuidado? Sabia a importância dos seus sonhos.

Batendo com os pés no chão, Jilly amaldiçoou-o porque ele estragara tudo. Pior, fizera-a infeliz.

- Que ardas no inferno!

Ele deixara as chaves na ignição. Ignorando a indicação dele, de levar o outro carro se houvesse problemas, Jilly arregaçou a saia e passou para o banco do condutor. Homens, agentes do FBI, corriam na direcção do cineteatro e havia pessoas a sair da igreja para tentar saber qual a causa de tanta agitação. Ninguém a veria sair dali. Avançou com o carro para a estrada e, para não chamar a atenção, manteve-se abaixo do limite de velocidade.

Assim que chegou à entrada da auto-estrada, carregou a fundo no acelerador. Praguejando, bateu no volante, tentando libertar a raiva.

Tinha outra pessoa pronta a ajudá-la, claro. Ninguém voltaria a roubar os seus sonhos. Ninguém. Sabia que Monk tinha armas na mala e, se fosse necessário matar Carrie e Avery com as próprias mãos para recuperar os sonhos, então fá-lo-ia.

- Monk estúpido - murmurou ela. - Grande estúpido.

O carro que seguia Jilly ia a uma boa distância. Avery ia acompanhada de três agentes. Kelly conduzia, e ela ia ao lado. Tentou não mostrar a sua ansiedade, mas era bastante difícil.

Tivera a sensação de que o seu coração parara quando ouvira os disparos, e só voltou a respirar ao ouvir a voz de John Paul no rádio. Sentiu um enorme alívio, mas ficou novamente aflita.

- Acha que ela nos viu? - perguntou a Kelly.

- Tenho a certeza de que ela não sabe que está a ser seguida

- respondeu ele.

Jilly ia tão à frente deles que Avery mal lhe via a nuca.

- Vai em excesso de velocidade, não vai?

- Sim. Pelo menos a cem à hora.

- Se houver uma brigada...

- Não há - tranquilizou ele.

- Como é que sabe?

- Sei.

- Não devia aproximar-se mais?

- Não vou perdê-la de vista, Delaney. Veja se se descontrai.

- Ela está a virar.

- Já vi.

Avery esforçou-se por parar de dizer ao agente o que fazer. Tudo estaria acabado dentro de alguns minutos. Se conseguisse manter a calma durante esse tempo, poderia depois passar um mês com uma crise de nervos. ”Mantém a calma”, disse a si própria.

Jilly quase deixou passar a entrada do motel Windjammer. Avery viu-a abrandar e atravessar o parque de estacionamento. Perdeu-a de vista depois, quando Kelly acelerou, circundou o motel e estacionou junto ao restaurante adjacente ao parque de estacionamento.

- Ela parou diante dos degraus - comentou Kelly. Avery observava o edifício. As portas davam todas para a rua.

Depois olhou para Jilly. Desejou estar mais perto para poder vê-la melhor.

- O que está ela a fazer? - perguntou inclinando-se para a frente.

- A escovar o cabelo.

Avery semicerrou os olhos por causa da luz do sol. Viu Jilly baixar a pala.

- Está a pôr batom?

- Sim, está - respondeu Kelly.

Avery encostou-se quando o agente desligou o motor e abriu a janela.

- Se sair do carro, Delaney, juro que...

- Não vou sair daqui - interrompeu ela.

Olhou de novo para Jilly. Esta devia ter ficado satisfeita com o seu aspecto porque abriu finalmente a porta do carro e saiu.

- E agora - murmurou Kelly.

Jilly subiu os degraus a correr, até encontrar o número que procurava e parou. Avery viu-a esticar a gola para o decote ficar maior. Alisou a saia e em seguida bateu à porta.

Avery sentiu um aperto no estômago. Ouviu Jilly.

- Querido, sou eu, a Jilly. Tony Salvetti abriu a porta.

 

                                                 CAPÍTULO 39

O julgamento em Sheldon Beach não se arrastou por muito tempo. O advogado de acusação era competente e eficiente, e com as provas de que dispunha, foi capaz de convencer o segundo júri de que Dale Skarrett arrombara a casa de Lola Delaney com a intenção de raptar Avery Delaney. Durante o processo, causara a morte prematura de Lola Delaney.

Skarrett insistiu em depor, o que foi um grande erro. Ele balbuciou e contorceu-se, e, quando o advogado de acusação acabou as perguntas, o homem gritava obscenidades, dizendo que o outro deturpara tudo o que ele dissera.

Skarrett insistiu que não usara Avery como escudo e que estava a ajudar a criança a levantar-se quando a avó dela disparara. Não foi capaz de explicar por que motivo tirara o cinto e a espancara quase até à morte, excepto para dizer que estava apenas a tentar convencê-la a ir com ele ver a mãe.

As fotografias de Avery no hospital provaram, sem sombra de dúvida, que Skarrett a deixara às portas da morte. Em menos de uma hora, o juiz chegara ao veredicto e Skarrett foi reconduzido à prisão, que era o seu lugar.

John Paul ficou em Sheldon Beach com Avery durante o julgamento, e Carrie chegou de avião na véspera do depoimento de Avery. A tia passara por momentos difíceis, e ele esperara ver uma mulher destroçada. Mas tal não se passou. Se ela estava destroçada com a traição do marido, não o mostrou.

Entre os telefonemas de Carrie para os funcionários em Bel Air, John Paul disse-lhe que ia casar com Avery. Ela não gostou. Se a sobrinha iria casar-se, deveria arranjar um homem com potencial... e dinheiro. Que tipo de vida iria ter casada com um carpinteiro?

Oh, sim, Carrie era dura de roer e má como as cobras quando não conseguia o que queria.

Ele gostou bastante dela.

 

                                 CAPÍTULO 40

- Mister Cárter irá vê-la agora.

- Obrigada. - Avery endireitou a saia e sorriu à secretária a caminho da porta.

- Queres que vá contigo? - perguntou John Paul. Ela abanou a cabeça.

- Ficas aqui à espera?

- O tempo que for preciso.

Ela abriu a porta e entrou na sala gelada. Desta vez viera preparada e trazia um casaco.

- Bom dia, senhor.

- Sente-se, Delaney.

Não parecia muito feliz, mas ela também nunca o vira rir antes, por isso não sabia se ele continuava zangado ou não.

Ela sentou-se na cadeira de frente para a secretária e uniu as mãos no regaço.

- Senhor, se vai despedir-me, gostaria de ter a oportunidade de me demitir primeiro.

- Porquê?

Ele levantara-se quando ela entrara, mas naquele momento sentou-se atrás da enorme secretária.

- Uma demissão ficaria melhor no meu currículo.

- Não, estou a perguntar-lhe por que motivo acha que vou despedi-la?

- Porque não segui o protocolo.

As mãos tremiam-lhe, não sabia se do frio do gabinete, se do nervosismo. Ele tinha a capacidade de a fazer sentir-se insegura apenas com um olhar.

- Eu devia ter percebido tudo mais cedo, mas devo dizer em minha defesa que andava muito ocupada a saltar para rápidos e a desviar-me de balas. Não tive tempo para analisar os dados, mas devia ter arranjado - acrescentou rapidamente para que ele soubesse que ela se responsabilizava pelos seus erros. Também utilizei o seu nome para forçar o agente Kelly a deixar-me acompanhá-lo na perseguição, e o senhor foi bastante claro quando disse que eu nunca mais deveria fazer isso. Não segui a hierarquia. Não deixei que os agentes que tinham sido incumbidos de me proteger fizessem o seu trabalho. Fugi deles. Sim, fugi. Oh, e também o importunei no seu jogo mensal de póquer quando lhe liguei de Walden Point naquela noite, e toda a gente no FBI sabe como os jogos de póquer são sagrados para o senhor.

Julgou ver o canto da boca dele subir um pouco. Seria um sorriso ou um esgar de desdém?

Ele inclinou-se para a frente e pousou as mãos na secretária.

- Para que saiba, eu tinha um full house, Delaney, mas como você usou o código prioritário, tive de sair da mesa. Porque me ligou, em vez de seguir os trâmites habituais?

Mais valia dizer-lhe a verdade. Nada tinha a perder.

- Sabia que me ouviria e me diria se eu estava certa ou errada. Também sabia que me iria ajudar, e tínhamos de avançar rapidamente. Como o senhor deu o seu consentimento, pudemos fazer isso.

- Continue.

- Enquanto os agentes preparavam as coisas na Florida, liguei à minha tia Carrie e disse-lhe que eu e o John Paul estávamos hospedados no Motel Milt, em Walden Point, e que ela iria ficar lá connosco até ao julgamento. Sabia que ela iria ligar ao marido, Tony, a pedir-lhe para vir. E, quando ela fez isso, havia agentes a controlar os telefonemas e os e-mails de Tony.

- E se ela não lhe tivesse ligado? - perguntou Cárter.

- Então ligaria eu. Mas ela ligou-lhe e, tal como suspeitei, o Tony contactou a Jilly e disse-lhe que eu e a Carrie estaríamos juntas na Florida. Ele próprio foi para lá de avião. - Respirou fundo. - Quando os agentes localizaram Jilly, ela e Monk tinham desaparecido, mas é claro que sabíamos para onde se dirigiam.

- Para Walden Point.

- Sim - concordou ela. - Detestei ter de usar a minha tia daquela maneira, mas era a única coisa que eu podia fazer. Depois de estar tudo em movimento, graças ao agente que o senhor pôs à frente do caso, Tom Kelly, voltei a ligar à Carrie e disse-lhe que ela ia ficar mais uns dias no Colorado e expliquei-lhe porquê.

- Como é que ela recebeu as notícias do marido? ”Destrocei-lhe o coração”, pensou Avery.

- Foi... difícil. Mas ela é uma mulher forte - acrescentou.

- Há-de sobreviver.

- Foi o John Paul Renard que adivinhou de que forma o Monk iria atacar, não foi?

- Sim. Mudámo-nos para um barco enquanto a armadilha era preparada no motel. Os agentes fizeram com que parecesse que ainda lá estávamos. Foi John Paul que descobriu o arame nas escadas que davam para a torre e pôs-se em posição com o agente Clayborne.

- Muito bem, quero saber. Como é que você percebeu tudo?

- Os Políticos, senhor.

Ele arqueou uma sobrancelha. Avery assentiu.

- Estava na praia... a pensar na situação, e lembrei-me do caso. Eles tinham os seus planos, recorda-se? Queriam que todos pensassem que tinham motivações políticas, mas na verdade só lhes interessava o dinheiro. Isso pôs-me a pensar em planos. Percebi que não estava a ver a floresta por causa das árvores. Por isso fiz o que tinha feito quando estava a trabalhar no caso dos Políticos. Separei tudo e analisei cada uma das coisas. Todos tinham os seus planos - acrescentou. - O Monk e a Jilly, o Skarrett e o Tony Salvetti. - Não suportava continuar a chamar tio àquele estupor depois do que ele fizera. - Cada um queria desesperadamente uma coisa.

”Foi o que a Jilly queria que fez com que tudo se encaixasse. A Carrie falou-me da carta que a Jilly lhe deixara. Disse que a Jilly a acusava de lhe roubar o sonho. Isso intrigava-me. Li todos os diários da Carrie, e sabia do que a Jilly era capaz. Também sabia como ela era paciente. Esperaria anos para se vingar. Perguntei a mim mesma o que quereria ela acima de tudo. Dinheiro? Vingança? Depois percebi. A Jilly queria ser uma estrela.

Ambicionava adulação e atenções. A Carrie roubou-lhe esse sonho. Foi para Hollywood e tornou-se bem-sucedida e poderosa. Transformou pessoas em estrelas. Na cabeça de Jilly, a irmã roubara-lhe o sonho. Culpava a Carrie por todos os seus fracassos. Encontrámos provas da sua obsessão quando os agentes apreenderam os seus haveres. Cárter assentiu.

- O agente Kelly disse-me que encontraram uma cassete na mala de Jilly. Era uma cópia do anúncio onde você entrou quando era adolescente.

- Sim - assentiu Avery. - Acho que o anúncio começou tudo. A Jilly viu-o na televisão, e imagino que tenha ficado furiosa. Começou com os planos nessa altura. Sabia quem eu era. Achou que a Carrie me dera o sonho dela e quis vingar-se.

- Acalentou esse sonho durante mais de vinte anos? - perguntou Cárter.

- Oh, sim. Tem uma opinião distorcida e exagerada de si própria. Perguntei-me quem pensaria Jilly que poderia devolver-lhe o seu sonho? Quem poderia transformá-la numa estrela?

- O Tony Salvetti.

- Sim. Continuava a ser co-proprietário da Star Catcher. Não quis acreditar que o Tony estava envolvido nisto. O John Paul disse que, no meu subconsciente, eu devia sabê-lo há muito, porque nunca liguei ao Tony a dizer onde estava. - Olhou para o anel de noivado e rodou-o carinhosamente no dedo.

”Foi tão fácil para a Jilly. Quando conheceu o Tony, encontrou um homem zangado, amargo. A Carrie e ele tinham juntado duas empresas. Quando se casaram, o combinado era dirigirem o negócio como sócios com partes iguais, mas a Carrie começou aos poucos a atrair mais clientes. Empurrou lentamente o Tony para fora da operação, até ele ficar sem poder. Ele contou ao agente Kelly que a Carrie estava a tentar emasculá-lo. Sabia que perderia tudo quando se divorciassem, e isso era inevitável porque ela estava cada vez mais desconfiada, sobretudo depois de ter descoberto que faltavam mais de cem mil dólares numa das contas. O Tony disse à Carrie que o dinheiro estava no banco e que fora um engano de contabilidade, mas é claro que ela iria mandar fazer uma auditoria às contas.

”A Jilly disse ao Tony que tinha um contacto capaz de resolver o problema de ambos. Conhecia um homem a cumprir pena numa prisão da Florida que poderia ajudá-los a contratar o assassino.

- O Dale Skarrett?

- Sim. Ela foi ter com o Skarrett e prometeu ajudá-lo a sair da prisão. Se ele lhe desse o nome de um assassino, ela poderia livrar-se da Carrie e de mim, e não havia ninguém para depor contra ele. Disse-lhe que o Tony Salvetti estava disposto a pagar para se livrar da mulher. AJilly também prometeu ao Skarrett que estaria à espera dele quando ele saísse. Ele continuava obcecado por ela. Tenho a certeza de que ela teria arranjado maneira de o convencer de que ainda o amava para conseguir deitar a mão aos diamantes roubados. Também lhe prometeu que se livraria da juíza que o condenara.

”E isso traz-nos ao Monk. Quando a Jilly o conheceu, encontrou um assassino a soldo, mas também um homem solitário. Foi muito fácil conquistá-lo. E nem sequer teve de lhe oferecer o dinheiro que o Tony lhe dera. Ele apaixonou-se loucamente e estava disposto a fazer tudo o que ela pedisse. Assim, ela pôde ficar com o dinheiro para ela.

- Quem teve a ideia de pôr aquelas mulheres na casa do Colorado?

- A Jilly. Ela gosta de complicar as coisas. O drama atraía-a, e fazer a Carrie sofrer era um bónus. O Monk já aceitara o contrato para matar a Anne Trapp, e também recebera dinheiro de Dennis Parnell para fazer explodir a casa. O Parnell estava convencido de que o juiz daria a casa à sua ex-mulher - explicou Avery. - E imagino o que deve ter sentido quando o juiz lhe atribuiu a casa.

- O Monk andou muito atarefado.

- Oh, sim - concordou ela.

- Viu as notícias? - perguntou Cárter. - O Eric Trapp acabou por confessar. Vai ficar preso muito tempo. Se a sua tia não nos tivesse entregado a carta de Anne, não teríamos as provas de que precisávamos. O Trapp disse ao agente que o interrogou que a mulher estava a levar demasiado tempo a morrer.

- Tal como com Os Políticos, a ganância motivava-os a todos - disse Avery.

- É espantosa a forma como a Jilly manipulou o Salvetti, o Monk e o Skarrett. Era a flautista e eles dançavam ao som da melodia dela, sem fazerem ideia dos seus planos. Falei há pouco com o agente Kelly. O Skarrett ainda não admitiu muita coisa, mas o Salvetti já começou a falar. O mais estranho é que...

- Sim?

- Nenhum deles disse uma palavra contra a Jilly. Continuam a tecer-lhe os maiores elogios.

Isso não surpreendeu Avery.

- Mas aposto que ela ainda não disse nada.

- Pois não. Você vai dar uma excelente agente de campo, Delaney.

- Talvez, com o treino adequado, eu pudesse vir a ser boa, mas já não quero. Se aprendi algo durante estas semanas foi que a vida é demasiado curta e não quero perder mais tempo a andar atrás de homens e mulheres incapazes de se arrependerem. Quero fazer qualquer coisa útil antes que seja tarde de mais.

Levantou-se e esperou que ele contornasse a secretária. Apertou-lhe a mão.

- Obrigada, senhor.

- Vai mesmo demitir-se? Não consigo convencê-la a ficar?

- Já tomei uma decisão. Tenho de me ir embora.

- Já decidiu o que vai fazer?

- Agora que o julgamento e a audiência chegaram ao fim e o Skarrett voltou para o lugar que lhe compete, vou passar umas semanas com a minha tia, e a seguir vou para a Luisiana, e voltar a estudar; quero ser professora.

- Vou sentir a sua falta - disse Cárter. - Boa sorte.

- Obrigada, senhor.

Ele abriu-lhe a porta e, quando Avery passou por ele, disse:

- Só mais uma coisa, Delaney.

- Sim?

- Bom trabalho.

 

                                         CAPÍTULO 41

O detective conduziu Avery e John Paul por um longo corredor até uma sala com um vidro espelhado.

- Vão poder vê-la pelo vidro, mas ela não vos poderá ver - explicou ele antes de abrir a porta e os deixar entrar.

Avery não se mexeu.

- Está a ser interrogada por dois detectives - disse o homem.

Ela continuou imóvel.

O detective olhou para John Paul.

- Vou deixar-vos à vontade - disse ele, antes de dar meia volta e afastar-se.

- Não tens de fazer isto - disse John Paul.

- Tenho, sim.

Ela ficou parada mais um minuto, depois endireitou os ombros e entrou. A sala era bastante pequena. Ela virou-se para o vidro espelhado, as mãos cerradas em punhos junto às pernas, e olhou para a mulher que lhe dera a vida e que depois tentara desesperadamente roubar-lha.

John Paul deu-lhe a mão.

- Lembras-te dela?

- Não. Tinha cinco anos quando ela foi lá a casa - murmurou Avery. - Foi há muito tempo.

Jilly sentou-se à mesa, de frente para os dois detectives. Tinha as costas direitas, a perna traçada, as mãos em cima da mesa. Os três botões de cima encontravam-se abertos e o decote abria-se cada vez mais à medida que ela se mexia. De repente, ela virou-se e olhou para o espelho. Avery inspirou, e recuou como se sentisse a bílis a subir-lhe à garganta.

- Olha - murmurou Avery.

- Estou a ver - disse John Paul. Avery abanou a cabeça.

- Não é para ela, é para os detectives. Olha como estão a reagir.

Os dois detectives tinham-se inclinado para a frente, como se tentassem inconscientemente aproximar-se dela. Um disse qualquer coisa, e em seguida estendeu o braço, tocando na mão de Jilly.

- Ela está a trabalhá-los - disse Avery.

Um polícia abriu a porta da sala. Jilly olhou para ele e, em seguida, como um gato persa lânguido, esticou o corpo esbelto e pôs-se de pé. Enquanto o seguia, olhou por cima do ombro e sorriu aos dois detectives. Eles retribuíram o sorriso. Observaram todos os movimentos dela até a porta se fechar.

Avery fitou John Paul nos olhos.

- Estou pronta.

Saiu da esquadra à frente dele. Não olhou para trás.

 

                                                 EPÍLOGO

O fim da tarde, quando o Sol se punha, era o momento favorito de Avery. Ela ia lá para fora e sentava-se no balouço do alpendre que John Paul lhe fizera. Ouvia a água bater no molhe atrás da casa, e, se fechasse os olhos, quase conseguia cheirar os lilases que ele plantara.

A porta de tela abriu-se e fechou-se, e o marido sentou-se ao seu lado. Pôs-lhe o braço nos ombros, encostou-se e empurrou o balouço com os pés.

- Estás pronta para a escola amanhã, querida?

- Sim.

- No que estavas a pensar? Foste para o teu lugar feliz? Ela pousou a cabeça no ombro dele e sorriu.

- Já lá estou.

 

                                                                                Julie Garwood 

 

 

                      

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