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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM BRINDE DE CIANURETO / Agatha Christie
UM BRINDE DE CIANURETO / Agatha Christie

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UM BRINDE DE CIANURETO

 

                   ÍRIS MARLE

 

Íris Marle estava pensando na irmã, Rosemary.

Durante quase um ano, havia deliberadamente tentado afasta-la da memória. Não desejava recordar. Era por demais doloroso — por demais horrível! O rosto azulado, cianótico, os dedos convulsos, em garra...

O contraste entre aquela Rosemary e a do dia anterior, feliz e encantadora... Bem, talvez não exatamente feliz. Estava saindo de uma gripe, que a deixara fraca e deprimida, como foi depois declarado, durante o inquérito. A própria Íris dera ênfase ao fato. Era o bastante para justificar o suicídio de Rosemary, não era?

Tão logo acabara o inquérito, Íris havia tentado, com determinação, afastar todo o assunto de sua memória. De que adiantava recordar? “Esqueça tudo! Esqueça todo o horrível episódio!”

Mas agora, sabia, era obrigada a se lembrar. Tinha que mergulhar, de volta, no passado... Recordar, cuidadosamente, cada pequeno incidente, por mais insignificante que pudesse parecer...

Aquela extraordinária conversa com George, na noite passada, precisava ser resolvida na memória. Havia sido tão inesperada, tão assustadora! Um instante — fora mesmo tão inesperada assim? Não houvera indícios, antes? A crescente introspecção de George, suas distrações e atitudes inexplicáveis, sua — bem, esquisitice era a única palavra para defini-lo!... Tudo culminando na noite passada, no momento em que a chamou ao seu escritório e retirou as cartas da gaveta da escrivaninha.

Agora, portanto, não havia escapatória possível. Tinha que pensar em Rosemary — recordar...

Rosemary — sua irmã...

Com um choque, Íris percebeu de repente que esta era a primeira vez na sua vida em que pensava em Rosemary. Ou melhor, em que meditava a seu respeito, objetivamente, como pessoa.

Sempre havia aceitado Rosemary, sem tecer considerações sobre ela. Você não pensa no seu pai, sua mãe, irmã, ou tia. Eles simplesmente existem, incontestados, em razão do próprio relacionamento. Você não pensa neles como pessoas. Nem mesmo se pergunta como eles são, realmente.

Como fora Rosemary? Isto poderia ser muito importante, agora. Muita coisa poderia depender deste conhecimento. Íris voltou sua mente para o passado. Ela e Rosemary, meninas... Rosemary era mais velha seis anos.

 

Fragmentos do passado, voltaram: breves lampejos, cenas curtas. Ela própria, uma garotinha, comendo pão e leite, e Rosemary, importante em seu rabo-de-cavalo, “fazendo lições” numa outra mesa. Um verão à beira-mar — Íris invejando Rosemary, que era uma “garota crescida” e sabia nadar! A ida de Rosemary para o internato, suas vindas para casa nas férias. Depois, ela própria na escola, e Rosemary indo acabar sua educação em Paris. Rosemary, garota — desajeitada, toda braços e pernas; a Rosemary “pronta e acabada” que voltou de Paris, sua elegância estranha e intimidadora, a voz suave, graciosa, o andar ondulante, seguro, o cabelo castanho, com reflexos de ouro velho, e os grandes olhos azuis, emoldurados por longos cílios negros. Uma linda e perturbadora criatura — adulta — num mundo diferente!

Daí em diante, pouco se tinham visto, e os seis anos que as separavam nunca se fizeram sentir com tanta intensidade como então. Íris ainda estava na escola, e Rosemary em pleno turbilhão da !temporada. Mesmo quando Íris vinha para casa, a distância permanecia. A vida de Rosemary consistia em preguiçosas manhãs na cama, almoços com outras debutantes, danças quase todos os dias, Íris ficava na sala de estudos com Mademoiselle, fazia caminhadas no parque, ceava às nove e ia para a cama às dez da noite. O relacionamento entre as duas irmãs se limitava a breves trocas de palavras, como: “Íris, minha querida, telefone pedindo um táxi para mim; vou chegar terrivelmente atrasada”, ou “Não gosto de sua roupa nova, Rosemary. Não combina com você. É só ramalhetes e espalhafato.”

Viera então o noivado de Rosemary com George Barton. Excitação, compras, rios de embrulhos, vestidos de damas-de-honra. O casamento. A caminhada, pelo centro da igreja, atrás de Rosemary, ouvindo os sussurros: “Como está linda, a noiva!”

O que levara Rosemary a se casar com George? Mesmo na época, Íris ficara vagamente surpresa. Tinha havido tantos rapazes excitantes, telefonando para Rosemary, saindo com ela. Por que escolher George Barton, quinze anos mais velho, bondoso, agradável, mas definitivamente desinteressante? George tinha uma boa situação econômica, mas não fora esse o motivo. Rosemary tinha seu próprio dinheiro, uma verdadeira fortuna. O dinheiro de tio Paul...

Íris rebuscou na memória, cuidadosamente, procurando separar o que sabia agora e o que soubera então. Tio Paul, por exemplo?

Ele não era um tio de verdade, disso ela sempre havia sabido. Conhecia certos fatos, sem que eles jamais lhe tivessem sido explicitamente contados. Paul Bennett amara sua mãe, que havia preferido outro homem, embora mais pobre que ele. Paul aceitar a derrota, de modo romântico. Havia permanecido amigo da família, adotando uma atitude platônica e romântica devoção. Tinha-se transformado no “Tio Paul”, servindo de padrinho para a primogênita, Rosemary. Quando morreu, descobriu-se que deixara toda sua fortuna para a pequena afilhada, então com treze anos.

Rosemary, além de bela, fora uma herdeira. E, com tudo isso, tinha-se casado com o bom e apagado George Barton.

Por quê? Íris se perguntara então, e ainda o fazia agora. Não achava que Rosemary tivesse jamais amado George; mas parecera muito feliz ao seu lado, e gostara dele — sim, decididamente gostara dele. Íris tivera boas oportunidades de constatá-lo, pois, um ano após o casamento, sua mãe — Viola Marle, linda e delicada — havia morrido, e Íris, então com dezessete anos, fora morar com a irmã, Rosemary Barton, e o marido.

Dezessete anos. Íris procurou rever-se com essa idade. Como era, então? O que havia sentido, pensado, visto?

Chegou à conclusão de que aquela jovem Íris Marle fora lenta em desenvolver-se — não procurava pensar, aceitava as coisas como elas se apresentassem. Ressentira-se, por exemplo, da anterior absorção de sua mãe por Rosemary? De modo geral, achava que não. Aceitara, sem hesitação, o fato de que Rosemary é que era a importante: Rosemary estava “fora” — naturalmente sua mãe tinha que se preocupar, tanto quanto a saúde o permitia, com a filha mais velha. Isso era bastante lógico. Sua própria vez chegaria, um dia.

Viola Marle sempre fora o tipo de mãe algo remota, preocupada principalmente com a própria saúde, relegando as meninas a babás, governantas, escolas — mas invariavelmente encantadora com as filhas, quando deparava com elas. Hector Marle morrera quando Íris tinha cinco anos. O conhecimento de que ele bebia mais do que o aconselhável infiltrara-se tão sutilmente em sua consciência que Íris não tinha a menor idéia sobre como realmente chegara a sabê-lo.

A Íris Marle de dezessete anos aceitava a vida como esta se apresentasse; chorou a morte da mãe, como convinha, usou luto e foi morar com a irmã e o cunhado na casa de Elvaston Square.

A vida ali fora, em algumas ocasiões, muito entediante. Íris não seria apresentada à sociedade, oficialmente, senão no ano seguinte. Nesse meio tempo, tinha lições de francês e alemão três vezes por semana, e também assistia a aulas de ciência doméstica. Houve ocasiões em que não tinha nada a fazer, ninguém com quem conversar. George era gentil, invariavelmente carinhoso e fraternal. Sua atitude nunca mudava. Ainda era o mesmo, agora. E Rosemary? Íris via bem pouco a irmã. Rosemary saía muito: costureiras, coquetéis, bridge...

O que ela realmente sabia de Rosemary, agora que pensava no assunto? De seus gostos, suas esperanças, seus medos? Era realmente assustador quão pouco se podia saber de uma pessoa, depois de se morar na mesma casa com ela! Tinha havido pouca, ou nenhuma intimidade entre as duas irmãs.

Mas agora, ela era obrigada a pensar. Tinha que lembrar-se. Isto poderia ser importante.

Certamente, Rosemary parecera ser bastante feliz...

 

Até aquele dia — uma semana antes de tudo acontecer.

Íris nunca esqueceria aquele dia. Tudo em sua mente permanecia claro como cristal — cada detalhe, cada palavra. A mesa de mogno brilhante, a cadeira empurrada para trás, a letra característica, apressada... Íris fechou os olhos, e deixou a cena voltar.

Sua entrada na sala de estar de Rosemary, a parada súbita — ficara tão espantada com o que vira! Rosemary, sentada junto à mesa, a cabeça apoiada nos braços estendidos. Rosemary chorando, em profundos soluços, cheios de abandono. Nunca a vira chorar antes, e este pranto amargo e violento a assustara.

Era bem verdade que Rosemary estava saindo de uma forte gripe. Só se levantara há um ou dois dias. E todo mundo sabe que gripes deixam a pessoa deprimida. Ainda assim...

— Oh, Rosemary, o que aconteceu? — exclamou Íris, numa voz infantil, sobressaltada.

Rosemary endireitou-se, afastou o cabelo do rosto transtornado. Lutou para recuperar o autocontrole. Falou rapidamente: — Não é nada. Nada! Não fique me olhando desse jeito! — Levantou-se e, passando pela irmã, correu para fora dali.

Perplexa, atordoada, Íris adiantou-se mais, na sala. Seus olhos, atraídos inquisitivamente para a mesa, perceberam seu nome, escrito na letra da irmã. Então, Rosemary estivera escrevendo para ela?

Aproximou-se mais, olhou o papel azul de anotações, a letra grande, característica, ainda mais esparramada que o normal, pela pressa e agitação dominando a mão, que segurara a caneta.

 

                   Querida Íris:

     Não há sentido em fazer um testamento, pois, de qualquer forma, meu dinheiro vai todo para você, mas gostaria que algumas coisas fossem dadas a certas pessoas.

     Para George, deixo as jóias que ele me deu, e o porta-jóias esmaltado que compramos juntos quando éramos noivos.

     Para Glória King, minha cigarreira de platina.

Para Maísie, meu cavalinho de cerâmica chinesa, que ela sempre admi—

 

O texto parava aí, num frenético risco, produzido quando Rosemary largara a caneta, abandonando-se a um choro incontrolável.

Íris ficou imóvel, petrificada.

O que significa aquilo? Rosemary não estava morrendo, não é mesmo? Estivera doente, com gripe, mas agora já estava bem. E, de qualquer modo, ninguém morre de gripe — ou, pelo menos, só algumas pessoas, mas não seria este o caso de Rosemary. Já estava bem, agora, apenas fraca e deprimida.

Seus olhos procuraram de novo o papel, e desta vez uma frase se destacou, surpreendendo-a. De qualquer forma, meu dinheiro vai todo para você...

Foi esta a primeira insinuação que teve sobre os termos do testamento de Paul Bennett.

Desde criança, sempre soubera que Rosemary herdara o dinheiro de Tio Paul, que Rosemary era rica, enquanto ela, em comparação, era pobre. Até este momento, porém, nunca se havia perguntado sobre que destino teria o dinheiro quando Rosemary morresse. Se alguma vez lho perguntassem, teria respondido que imaginava que tudo iria para George, como marido de Rosemary; mas teria também acrescentado que parecia absurdo imaginar-se Rosemary morrendo antes de George!

Mas aqui estava, preto no branco, escrito pela própria mão de Rosemary: com a morte da irmã, o dinheiro viria todo para ela, Íris. Na verdade, porém, isso provavelmente não podia ser legal — maridos e mulheres é que devem herdar qualquer fortuna porventura existente, e não uma irmã. A não ser, é claro, que Paul Bernnett assim o tivesse estabelecido no testamento. Sim, devia ser isso. Tio Paul, com certeza, havia determinado que o dinheiro seria dela, se Rosemary morresse. Isso sem dúvida tornaria tudo bem menos injusto...

Injusto? Surpreendeu-se quando a palavra surgiu, inesperadamente, em sua consciência. Quer dizer, então, que todo esse tempo seu subconsciente achara injusto Rosemary ficar com toda a fortuna do Tio Paul? Supunha que, lá no fundo, devia vir sentindo exatamente isso. Era, na verdade injusto. Ela e Rosemary eram irmãs. Ambas eram filhas de Viola Marle. Por que Tio Paul deveria deixar tudo para a mais velha?

Rosemary sempre tinha sido a protegida do destino. Sempre tivera tudo o que desejasse: festas, vestidos, jovens apaixonados e um marido que a adorava. A única coisa desagradável que jamais lhe acontecera havia sido aquela gripe — e mesmo isto não durara mais do que uma semana!...

Íris hesitou, de pé junto à mesa. Aquele papel — Rosemary não gostaria que ficasse à toa, onde pudesse ser visto pelos criados. Após um minuto de indecisão, apanhou o papel e, dobrando-o ao meio guardou numa das gavetas da mesa.

O papel foi ali encontrado, após a fatal festa de aniversário, fornecendo prova adicional — se é que provas eram necessárias — de que Rosemary estivera deprimida e infeliz depois da doença, talvez já então pensando em suicídio.

Depressão aguda, após uma gripe. Foi este o motivo apresentado no inquérito, o motivo que a prova de Íris ajudou a estabelecer. Um motivo inadequado, talvez, mas o único disponível e, conseqüentemente, aceito. A gripe daquele ano fora severa. Nem Íris nem George Barton poderiam ter sugerido qualquer outro motivo — naquela época.

Agora, rememorando o incidente do sótão, que ocorrera mais tarde, Íris se perguntava como podia ter sido tão cega. A coisa toda devia ter-se desenrolado sob seus olhos! E ela nada havia visto, não havia percebido nada!

Sua memória pulou, rapidamente, a tragédia da festa de aniversário. Não havia necessidade de pensar naquilo! Já havia passado — estava acabado. Afastou todo o horror daquela cena, o inquérito, o rosto crispado de George, seus olhos injetados. Foi diretamente ao episódio do baú no sótão.

 

O incidente no sótão ocorreu cerca de seis meses após a morte de Rosemary.

Íris continuava morando na casa de Elvaston Square. Depois do funeral, o advogado dos Marle, um senhor idoso, cortês, com uma careca lustrosa e olhos surpreendentemente sagazes, viera conversar com ela. Explicara com admirável clareza que, segundo o testamento de Paul Bennett, Rosemary havia recebido a fortuna em confiança, devendo passá-la, por sua morte, a quaisquer filhos que viesse a ter. Se não houvesse filhos, a herança inteira seria da irmã. Era uma fortuna muito grande e, explicou o advogado, pertenceria toda a Íris, tão logo completasse vinte e um anos ou se casasse.

Nesse ínterim, a primeira coisa a ser acertada era onde deveria morar. George Barton mostrara-se ansioso para que continuasse morando com ele, e havia mesmo sugerido que a tia paterna de Íris, Mrs. Drake — então atravessando dificuldades financeiras, devido às extorsões do filho (a ovelha negra da família Marle) — viria também morar ali, para acompanhá-la na sociedade. Íris aprovava este plano?

Ela apreciara muito a solução, grata por não ter que fazer novos planos. Lembrava-se de Tia Lucilla como uma velhinha dócil, amável, com pouca vontade própria.

O assunto, portanto, estava resolvido. George Barton ficara tocantemente feliz por mantê-la junto a si, e tratava-a afetuosamente, como a uma irmãzinha mais nova. Mrs. Drake, se não era uma companhia estimulante, pelo menos mostrava completa subserviência aos desejos de Íris. A vida na casa retomara seu curso, numa atmosfera de tranqüilidade.

Fora então que, cerca de seis meses mais tarde, Íris havia feito sua descoberta no sótão.

O sótão da casa de Elvaston Square era usado como depósito de bugigangas, restos de mobília, alguns baús e malas.

Íris subiu lá, um dia, depois de procurar inutilmente um velho pulôver vermelho do qual gostava. George pedira-lhe para não usar luto pela irmã. Rosemary sempre fora contra isso, alegara. Reconhecendo a razão do cunhado, Íris concordara em continuar usando roupas comuns, apesar da desaprovação de Lucilla Drake. Antiquada, Tia Lucilla apreciava que se respeitasse o que chamava de “as conveniências”; ela própria ainda se inclinava a usar luto por um marido que já morrera há uns bons vinte anos atrás!

Íris sabia que muitas roupas, não mais usadas, ficavam guardadas num baú, no sótão. Rebuscando nele, à procura do pulôver, encontrou várias peças esquecidas: um casaco cinza, com a respectiva saia, uma pilha de meias, seu material de esqui e uma ou duas roupas de banho antigas.

Foi então que achou um velho robe de Rosemary. Era em seda estampada, de corte masculino, com grandes bolsos, e, por um motivo qualquer, deixara de ser dado junto com seus outros pertences.

Íris sacudiu-o, notando que estava em perfeitas condições. Dobrou-o cuidadosamente, recolocando-o no baú. Ao fazer isso, sentiu algo crepitando num dos bolsos. Enfiou a mão e achou um pedaço de papel amarrotado. Percebendo a letra de Rosemary, alisou o papel e leu o que estava escrito:

 

“Querido Leopardo, Você não pode estar realmente querendo agir assim... Não pode — não pode... Nós nos amamos! Pertencemos um ao outro! Você sabe disso tão bem como eu. Não podemos simplesmente dizer adeus e ir adiante, friamente, com nossas próprias vidas. Você sabe que isso é impossível, querido — totalmente impossível. Nós nos pertencemos para sempre, sempre... Não sou uma mulher convencional, não me importo com o que possam dizer. O amor é, para mim, mais importante do que qualquer outra coisa. Fugiremos juntos, e seremos felizes — eu o farei feliz. Você uma vez me disse que a vida, sem mim, era como pó e cinzas — lembra-se, meu querido Leopardo? E agora, você calmamente escreve que é melhor acabar com tudo — que é o mais justo para comigo. Justo? Mas se eu não posso viver sem você! Lamento por George — ele sempre foi tão gentil comigo! — mas ele vai compreender. George tem que devolver minha liberdade. Não está certo viver com alguém quando já não há amor. Deus nos fez um para o outro, querido — sei que foi Ele que quis assim. Seremos maravilhosamente felizes — mas para isso devemos ser corajosos. Eu mesma contarei a George; quero colocar tudo às claras — mas não até depois do meu aniversário. Sei que estou fazendo o que é certo, querido Leopardo — e não posso viver sem você. Não posso, não posso, NÃO POSSO! Foi tolice minha escrever tudo isso. Duas linhas seriam o bastante. Simplesmente: ‘Eu o amo. Nunca o deixarei ir embora.’ Oh, querido...”

 

A carta parava aí.

Íris ficou imóvel, olhando o papel em suas mãos. Quão pouco se pode saber da própria irmã!

Então, Rosemary tivera um amante — escrevera-lhe apaixonadas cartas de amor — havia até planejado fugir com ele? O que teria acontecido? Afinal, Rosemary não enviara aquela carta. Que outra carta teria mandado? O que havia finalmente ficado decidido entre ela e este desconhecido? (“Leopardo!” Como são extraordinárias as fantasias dos apaixonados... Que tolice! “Leopardo!”).

Quem seria esse homem? Será que ele amava Rosemary tanto quanto ela o amava? Certamente que sim. Rosemary era tão incrivelmente adorável! E, no entanto, de acordo com a carta de Rosemary, ele havia proposto “acabar com tudo”. Isto sugeria — o quê? Prudência? Evidentemente, ele havia dito que o rompimento era para o bem de Rosemary, que seria o mais justo para com ela. Sim, mas os homens não costumam dizer esse tipo de coisas, para salvar as aparências? Não estaria ele, na verdade, simplesmente cansado de tudo? Talvez para esse homem, quem quer que fosse ele, o caso não tivesse passado de uma mero divertimento. Talvez nunca tivesse realmente se importado. Alguma coisa dava a Íris a impressão de que aquele desconhecido estivera firmemente determinado a romper definitivamente com Rosemary.

Mas Rosemary não havia concordado, e não iria medir conseqüências para evitar a separação. Ela também estivera decidida.

Íris sentiu um calafrio.

Pensar que ela, Íris, de nada havia sabido! Não havia sequer suspeitado! Dera por certo que Rosemary era feliz e realizada, e que ela e George estavam perfeitamente satisfeitos um com o outro. Cega! Devia estar mesma cega, para não perceber que uma coisa destas estava acontecendo com sua própria irmã!

Mas quem seria o homem?

Volveu a memória para o passado, pensando, lembrando. Tinha havido tantos admiradores em torno de Rosemary, telefonando-lhe, levando-a a passeios. Aparentemente, não houvera nenhum em especial — mas devia ter havido, e todos os outros serviriam apenas para camuflar um deles, o único que realmente importava. Íris franziu as sobrancelhas, perplexa, examinando cuidadosamente suas recordações.

Dois nomes de destacaram. Sim, positivamente, só poderia ser um ou outro. Stephen Farraday? Tinha que ser ele. Mas o que Rosemary poderia ter visto em Stephen? Um jovem extremamente formal, pomposo — e nem tão jovem assim, afinal de contas. É verdade que todos os consideravam brilhante. Um político em ascensão, com a perspectiva de um subsecretariado num futuro próximo, e toda a influencia dos Kidderminster a apóiá-lo. Possivelmente, um futuro primeiro-ministro. Teria sido isso que lhe emprestara fascínio, aos olhos de Rosemary? Certamente, ela não podia ter-se apaixonado, de modo tão desenfreado, apenas pelo homem — aquele individuo tão frio, cheio de autocontrole... No entanto, dizia-se que a esposa de Stephen o amava desesperadamente, tendo mesmo desafiado os desejos de sua própria e poderosa família, ao desposa-lo — um João-ninguém, com ambições políticas! Se ele podia despertar tais sentimentos em uma mulher, por que não em outra? Sim, tinha que ser Stephen Farraday.

Porque senão, afastando Stephen, só restava Anthony Browne — e Íris não queria que fosse ele.

Na verdade, Anthony tinha sido quase um escravo aos pés de Rosemary, constantemente à sua disposição, expressando no rosto moreno e atraente ima espécie de divertido desespero. Mas, certamente, aquela devoção fora muito óbvia, muito francamente declarada para ser realmente profunda...

Estranho, o modo como ele desaparecera após a morte de Rosemary. Nunca mais o tinham visto.

Pensando bem, não era tão estranho – afinal, ele viajava muito. Havia-lhes falado sobre a Argentina, o Canadá, Uganda e os Estados Unidos. Na verdade, Íris tinha a impressão de que era americano ou canadense, embora não tivesse, praticamente, qualquer sotaque. Não, realmente não era estranho que ninguém mais o tivesse visto desde então.

Rosemary é que fora sua amiga. Não havia qualquer motivo para continuar visitando-os. Ele fora amigo de Rosemary — mas não seu amante! Íris não queria que fosse Anthony o amor secreto de Rosemary. Isto seria doloroso — terrivelmente doloroso.

Baixou os olhos para a carta, ainda em sua mão. Amassou-a. Iria jogá-la fora, queima-la... Foi puro instinto que a impediu.

Algum dia, poderia ser importante mostrá-la a alguém...

Alisou o papel, levou-o consigo para baixo e trancou-o em seu porta-jóias.

Poderia ser importante, um dia, mostrar por que Rosemary se suicidara.

 

  • “E o que mais, senhorita?”

A frase ridícula formou-se espontaneamente no pensamento de Íris, provocando-lhe um meio sorriso. Esta típica pergunta de balconista prestimosa parecia se aplicar tão exatamente aos seus próprios processos mentais, de curso cuidadosamente dirigido... Não era precisamente o que estava tentando fazer, na sua investigação do passado?

Já havia rememorado a surpreendente descoberta do sótão. E agora — “o que mais, senhorita?” O que teria vindo a seguir?

Sem dúvida, devia ter sido a crescente estranheza no comportamento de George, a qual já vinha de muito tempo. Pequenas coisas que a intrigavam, mas que haviam ficado esclarecidas na perturbadora conversa da noite anterior. Observações e atitudes, até então aparentemente desconexas, situadas, desde a véspera, em seus devidos lugares no curso dos acontecimentos.

Havia também o reaparecimento de Anthony Browne. Sim, talvez isso tivesse vindo primeiro, ocorrendo cerca de uma semana após a descoberta da carta.

Íris podia lembrar-se, com absoluta clareza, de tudo o que sentira ao revê-lo.

Rosemary havia morrido em novembro. No mês de maio seguinte, Íris, sob as asas protetoras de Lucilla Drake, iniciara sua vida social. Comparecera a almoços, chás e bailes sem, contudo, aprecia-los muito. Sentira-se indiferente, insatisfeita. Foi então que, num baile meio enfadonho, lá pelo fim de junho, ouviu uma voz dizendo, às suas costas:

— Você é Íris Marle, não é?

Voltou-se, corando, e deparou com o rosto moreno e divertido de Anthony — Tony...

— Não ouso esperar que se lembre de mim — disse ele — porém...

Ela o interrompeu:

— Mas é claro que me lembro perfeitamente de você!

— Esplendido! Estava com medo que você não me reconhecesse mais. Faz tanto tempo, desde que a vi pela ultima vez...

— Sim, eu sei. Não o vejo desde a festa de aniversário de Rosema...

Parou no meio da palavra. A frase tinha vindo alegremente, descuidadamente, à sua boca. A cor fugiu-lhe do rosto, deixando-a pálida e exangue. Os lábios começaram a tremer, os olhos subitamente cresceram e ficaram tristes.

— Lamento muito — falou Anthony Browne, rapidamente. — Fui um desastrado, por fazê-la lembrar-se!

Íris engoliu em seco. (“Desde a noite da festa de Rosemary. Desde o suicídio...” Não, não iria pensar naquela tragédia. Decididamente, não riria permitir-se pensar nisso!)

— Está tudo bem — respondeu.

Anthony insistiu:

— Estou terrivelmente arrependido. Por favor, desculpe-me. Vamos dançar?

Íris concordou com a cabeça. Embora já tivesse prometido a outro a dança que estava começando, flutuou, nos braços de Tony, para o salão. Ainda teve tempo de ver seu par procurando por ela — um rapaz imaturo e tímido, com um colarinho que parecia engoli-lo. “O tipo de cavalheiro”, refletiu com desprezo, “que debutantes tem que agüentar.” Em nada parecido com esse homem — o amigo de Rosemary.

Uma dor aguda a trespassou. O amigo de Rosemary. Aquela carta... Teria sido escrita para o homem em cujos braços estava agora? Alguma coisa na graça felina e espontânea com que ele dançava parecia justificar o apelido de “Leopardo”. Será que ele e Rosemary...

Perguntou bruscamente:

— Onde você esteve, todo este tempo?

Ele a afastou um pouco de si, abaixando a cabeça, de modo a poder olhá-la, diretamente nos olhos. Estava sério agora, havia uma nova frieza em sua voz.

— Estive viajando... a negócios.

— Entendo...

E, sem conseguir controlar-se, ela prosseguiu:

— Por que voltou?

Anthony sorriu, então, e respondeu num tom brincalhão:

— Talvez para vê-la, Íris Marle.

Com um gesto rápido, apertando-a mais contra seu corpo, rodopiava audaciosamente através do salão, deslizando por entre os outros pares, num prodígio de calculo e perícia. Íris se perguntava o que a fizera sentir, então, de mescla a uma sensação de quase puro prazer, um laivo de medo.

Desde essa ocasião, Anthony se tornara, definitivamente, uma parte de sua vida. Viu-o pelo menos uma vez por semana. Encontrava-o no parque, em vários bailes, descobria-o colocado junto a ela nos jantares.

O único lugar onde Anthony nunca aparecia era a casa de Elvaston Square. Íris levou algum tempo para notar o fato, tamanha era a habilidade dele em fugir a convites ou recusa-los. Quando finalmente percebeu, começou a tecer conjecturas: “Seria porque ele e Rosemary...”

Então, para sua surpresa, George — o complacente George, que procurava nunca interferir — interrogou-a a respeito de Tony.

— Quem é esse rapaz, Anthony Browne, com quem você tem saído? O que você sabe a respeito dele?

Olhou-o firmemente.

— O que eu sei a seu respeito? Ora, ele era amigo de Rosemary.

O rosto de George se crispou. Seus olhos piscaram. Falou numa voz pesada, lenta:

— Sim, é lógico; era amigo de Rosemary...

— Oh, George, lamento muito! — exclamou Íris, arrependida. — Não deveria ter despertado suas recordações.

George Barton balançou a cabeça, falando suavemente:

— Não, não, eu não quero que ela seja esquecida. Isso nunca! Afinal — disse, numa voz embaraçada, desviando os olhos — é isso que o nome “Rosemary” significa: “recordação” — olhou diretamente para ela. — Não quero que você se esqueça de sua irmã, Íris.

Respirando fundo, ela respondeu:

— Nunca esquecerei.

George prosseguiu:

— Mas voltando a esse rapaz, Anthony Browne. Rosemary pode tê-lo apreciado, mas não creio que soubesse muito a seu respeito. Como você bem sabe, Íris, precisa ser cuidadosa. Você é uma garota muito rica.

Uma raiva ardente a invadiu.

— Tony — Anthony — tem seu próprio dinheiro, e não é pouco. Ele até se hospeda no Claridge, quando está em Londres!

George Barton sorriu, levemente. Murmurou?

— Eminentemente respeitável — e caro. De qualquer modo, minha cara, ninguém parece saber muita coisa sobre ele.

— Anthony é americano.

— Talvez. E, se for, é estranho que não receba mais cobertura de sua embaixada. Não tem vindo muito a esta casa, não é mesmo?

— Não — e posso perfeitamente entender o motivo, se você sabe ser tão desagradável a seu respeito.

George meneou a cabeça.

— É, parece que meti os pés pelas mãos. Bem, que seja. Só queria preveni-la a tempo. Vou ter uma conversa com Lucilla.

— Lucilla!... — disse Íris, com desprezo.

— Está tudo bem, com vocês duas? — perguntou George, ansiosamente. — Lucilla procura proporcionar-lhe tudo o que você deve ter? Festas, esse tipo de coisas?

— Sim, sem dúvida, ela é esforçada como um castor.

— Porque, se não for esse o caso, basta você dizer, minha menina. Poderíamos conseguir outra pessoa. Alguém mais jovem, mais moderno. Não quero que você deixe de se divertir.

— Eu me divirto bastante. George, pode ficar tranqüilo.

Ele falou, meio gravemente:

— Então está tudo bem. Eu próprio não sou muito chegado a essas coisas — nunca fui. Mas faço questão que você tenha tudo o que desejar. Não há necessidade de medir despesas.

Aquele sim era exatamente o velho George: bondoso, desajeitado, atrapalhando-se.

De acordo com sua promessa, ou ameaça, tivera “uma conversa” com Mrs. Drake, a respeito de Anthony Browne, mas, por um capricho do destino, o momento escolhido não fora o mais propício para captar a atenção de Lucilla.

A pobre senhora tinha acabado de receber um telegrama do filho, que era a sua menina dos olhos. Eternamente metido em encrencas, ele sabia perfeitamente como fazer soar as cordas do coração materno, segundo a música de suas próprias finanças.

 

“Pode me mandar duzentas libras? Desesperado. Vida ou morte. Victor.”

 

Lucilla estava chorando.

— Victor é tão nobre. Ele sabe como minha situação está apertada, e nunca se dirigiria a mim, a não ser em ultimo recurso. O pobrezinho deve estar mesmo num beco sem saída. Vivo sempre com tanto medo que ele acabe enfiando uma bala na cabeça!

— Não seria capaz disso — declarou George, imperturbável.

— Você fala assim porque não o conhece. Sou sua mãe, e, naturalmente, conheço meu filho melhor que ninguém. Jamais me perdoaria, se não fizesse o que ele está pedindo. Na verdade, poderia arranjar o dinheiro, vendendo aquelas ações...

George suspirou.

— Escute aqui, Lucilla. Vou telefonar para um dos meus correspondentes, e tomar todas as informações. Vamos descobrir exatamente em que tipo de embrulhada Victor se meteu, desta vez. Mas meu conselho é que você o deixe se enforcar na própria corda. Ele nunca vai tomar jeito, enquanto você não parar de correr em seu auxílio.

— Você é tão duro, George. O pobre menino sempre teve tão pouca sorte...

George preferiu calar suas opiniões a este respeito. Não adiantava mesmo discutir com mulheres. Disse simplesmente:

— Vou pedir a Ruth que trate do assunto imediatamente. Amanhã já deveremos ter alguma resposta.

Lucilla ficara parcialmente tranqüilizada.

As duzentas libras foram eventualmente reduzidas a cinqüenta, mas Mrs. Drake não se deixara dissuadir de enviar pelo menos essa quantia. Íris sabia que o próprio George é que havia fornecido o dinheiro, embora dizendo a Lucilla que havia vendido suas ações. Admirara muito o cunhado, por sua generosidade, e assim lho disse. A resposta de George foi simples:

— Meu modo de encarar a coisa é que, em toda família, há sempre uma ovelha negra — sempre alguém a ser sustentado. E alguém vai ter que sustentar Victor até que ele morra.

— Mas não precisava ser você. Ele não é seu parente.

— A família de Rosemary é a minha família.

— Você é um amor, George. Mas por que não poderia ser eu a fazê-lo? Você está sempre me dizendo que estou nadando em dinheiro.

Ele abriu um largo sorriso.

— Bem, mocinha, você não pode fazer nada no gênero, até completar vinte e um anos. E, se for inteligente, nem mesmo então. Vou-lhe ensinar um segredo: quando alguém escreve que vai acabar com a vida, se não conseguir duzentas libras, você pode ter certeza que, geralmente vinte libras serão mais do que suficientes – talvez até dez! Não se pode impedir uma mãe de fornecer o dinheiro, mas pode-se reduzir a quantia — lembre-se disso. É claro que Victor Drake seria a ultima pessoa no mundo a se matar! Essa gente que ameaça suicídio nunca o pratica.

Nunca? Íris pensou em Rosemary. Afastou, então, a lembrança. George não estava pensando na esposa, e sim num jovem inescrupuloso e enganador, lá no Rio de Janeiro.

O saldo positivo de todo o incidente, no ponto de vista de Íris, fora que as preocupações maternas de Lucilla a impediam de prestar a devida atenção à amizade de Íris com Anthony Browne.

Retomou, então, o fio do pensamento. “E o que mais, senhorita?” A mudança em George — não podia mais adiar o momento de analisá-la. Quando havia começado? O que a provocara?

Mesmo agora, olhando para trás, não podia precisar o momento exato em que a mudança tivera início. Desde a morte de Rosemary, George tinha estado distraído, sujeito a crises de ensimesmação e alheamento. Parecera mais velho, mais grave. Tudo isso era bastante natural. Mas quando, exatamente, esse alheamento havia ultrapassado os limites da normalidade?

Íris achava que a primeira vez que notava algo realmente estranho fora quando, após a discussão sobre Anthony Browne, certa vez percebera o olhar de George fixado nela, de um modo intrigado, perplexo. A partir de então, ele desenvolveu um novo hábito de voltar cedo do trabalho para casa, trancando-se no seu gabinete. Não parecia fazer nada, ali dentro. De certa feita, Íris havia entrado lá, e o encontrara sentado à escrivaninha, os olhos perdidos, como se olhasse para um ponto à sua frente. Quando ela entrou, ele voltou os olhos, sombrios e sem brilho, em sua direção. Seu comportamento era o de alguém que havia recebido um choque, mas, quando Íris lhe perguntou o que havia acontecido, respondeu brevemente: “Nada.”

ÀA medida que os dias passavam, ele seguia sua rotina, com a aparência atormentada de alguém que carrega, na consciência, uma preocupação bem definida. Ninguém havia prestado muita atenção ao seu jeito diferente — Íris, ainda menos. Preocupações eram sempre convenientemente atribuídas a “negócios”.

Então, a intervalos variados e sem nenhuma razão aparente, George começou a fazer perguntas. Foi a partir daí que Íris começou a achar seu comportamento decididamente esquisito.

— Escute aqui, Íris, Rosemary costumava conversar com você?

Olhou-o, intrigada.

— Ora, mas é claro, George. Pelo menos — bem sobre o quê, especificamente, você pergunta?

— Rosemary costumava lhe falar sobre ela própria, seus amigos, como as coisas estavam correndo para ela? Se era feliz ou infeliz — esse tipo de confidencias?

Íris pensou responder o que ele tinha em mente. Com certeza, já devia ter ouvido alguma insinuação a respeito do fracassado caso amoroso de Rosemary... Respondeu, lentamente:

— Ela nunca falou muito sobre si mesma. Quero dizer — Rosemary estava sempre tão ocupada cheia de afazeres...

— E, naturalmente, você era apenas uma garota. Sim, eu entendo. De qualquer forma, achei que ela podia ter dito alguma coisa.

Seus olhos estavam fixos nela, cheios de interrogação e suplica, lembrando os de um cão esperançoso. Não queria magoá-lo, e, de qualquer modo, Rosemary nunca havia dito coisa alguma. Negou com a cabeça.

George suspirou. Disse, pesadamente:

— Bem, na verdade, não importa.

Em outra ocasião, ele lhe perguntou quais tinham sido as melhores amigas de Rosemary. Íris pensou um pouco, antes de responder:

— Gloria King, Mrs. Atwell — Maisie Atwell, Jean Raymond.

— Qual era o grau de intimidade que sua irmã tinha com elas?

— Bem, não sei exatamente.

— Mais precisamente, você acha que Rosemary poderia ter feito confidencias a alguma delas?

— Para ser franca, não posso afirmar. Não acho muito provável... Mas a que tipo de confidencias você se refere?

Arrependeu-se imediatamente, tão logo lhe escapou esta ultima pergunta. A resposta de George, porem, a surpreendeu.

— Rosemary alguma vez lhe confessou ter medo de alguém?

— Medo? — Íris olhou-o, espantada.

— Aonde eu estou querendo chegar é: Rosemary tinha algum inimigo?

— Entre as outras mulheres?

— Não, não, não esse tipo de inimigos. Inimigos de verdade. Não havia ninguém, que você saiba, que — bem, que a odiasse?

O evidente espanto de Íris pareceu desconcertá-lo. Ficou vermelho, e murmurou:

— Bem sei que, dito assim, soa idiota. Melodramático. Mas é que eu estava pensando...

Um ou dois dias depois desta conversa, George começou a fazer perguntas sobre os Farraday.

— Rosemary costumava vê-los muito?

Íris ficou na duvida.

— Realmente, não sei lhe dizer, George.

— Ela alguma vez falou neles?

— Não, acho que não.

— Havia qualquer intimidade entre os três?

— Rosemary era muito interessada em política...

— Sim, mas esse interesse só começou depois que conheceu os Farraday, na Suíça. Antes disso, nunca tinha prestado a mínima atenção ao assunto.

— É verdade. Acho que foi Stephen Farraday quem a interessou na política. Tinha i hábito de dar-lhe panfletos, e coisas no gênero.

George prosseguiu:

— O que Sandra Farraday achava disso?

— Disso, o quê?

— De o seu marido ficar dando panfletos a Rosemary.

Íris respondeu, desconfortavelmente:

— Não sei.

Ele insistiu:

— Sandra Farraday é uma pessoa muito reservada. Parece fria como gelo, mas dizem que é louca por Stephen — o tipo de esposa, na verdade, que poderia se ressentir de ele manter amizade com outra mulher.

— Talvez...

— Como era o relacionamento entre as duas?

— Não creio que houvesse, verdadeiramente, um relacionamento — disse Íris, lentamente. — Rosemary zombava de Sandra. Dizia que era uma dessas emproadas esposas de político, e que parecia um cavalinho de balanço. (Aliás, você sabe, ela lembra mesmo um cavalo!) Rosemary costumava dizer que “se alguém espetasse Sandra Farraday, iria sair serragem”...

George emitiu um som rouco, e perguntou, mudando de assunto:

— Você tem visto muito Anthony Browne, ultimamente?

— Bastante — a voz de Íris ficou fria, mas George não repetiu os conselhos, como temera. Ao contrário, pareceu interessado:

— Ele já rodou meio mundo, não é mesmo? Deve ter tido uma vida bem interessante. Alguma vez já conversou com você sobre isso?

— Não especialmente. Sei apenas que ele viaja bastante, é claro.

— A negócios, suponho.

— Acho que sim.

— O que ele faz?

— Não sei.

— Tem alguma coisa a ver com firmas de armamentos, não tem?

— Ele nunca disse nada, a respeito.

— Bem, você não precisa contar-lhe que andei fazendo perguntas. Estava só pensando. No ultimo outono, ele parecia muito às voltas com Dewsbury, que é presidente da United Arms Ltd. Rosemary costumava ver Anthony com bastante freqüência, não?

— Sim — sim, ela costumava.

— Mas seu conhecimento não datava de muito tempo — na verdade, ele não passava, de certo modo, de um conhecido fortuito. Costumava leva-la a dançar, não é mesmo?

— Sim.

— Fiquei bastante surpreso, sabe, quando Rosemary o convidou para a festa de aniversário dela. Não tinha percebido que o conhecia a esse ponto.

Íris falou, baixinho:

— Ele dança muito bem...

— Sim — sim, é claro.

Apesar de toda a sua determinação, Íris não pôde evitar que a cena da noite do aniversario lhe atravessasse a memória: a mesa redonda, no Luxembourg, as luzes suaves, as flores; a orquestra, com seu ritmo insistente; as sete pessoas à volta da mesa — ela própria, Anthony Browne, Rosemary, Stephen Farraday, Ruth Lessing, George e, à direita deste, a esposa de Stephen, Lucy Alexandra Farraday, com seus cabelos claros e lisos, as narinas levemente arqueadas, a voz cristalina e arrogante... Fora um grupo tão alegre — ou será que não? E, bem no meio da festa, Rosemary...

Não, não, era melhor não recordar aquilo. Era melhor só se lembrar de si mesma, na mesa, sentada ao lado de Tony. Aquela fora a primeira vez em que, realmente, o conhecera. Antes disso, ele havia sido apenas um nome, uma sombra no vestíbulo, uma figura de costas, descendo com Rosemary os degraus da casa, até um táxi à espera. Tony...

Voltou a si, com um sobressalto. George estava repetindo uma pergunta:

— Achei estranho que ele tivesse sumido logo depois. Você sabe para onde ele foi?

Falou, vagamente:

— Para o Ceilão, eu creio, ou Índia...

— Não tocou no assunto, naquela noite?

— E por que deveria? — respondeu Íris, bruscamente. — Além do mais, será que temos mesmo que falar sobre... aquela noite?

O rosto de George ficou rubro como um pimentão.

— Não, não, é claro que não. Desculpe-me, minha cara. Por falar nisso, convide Browne para jantar conosco qualquer noite destas. Gostaria de encontrá-lo novamente.

Íris ficou deliciada — George estava cedendo. O convite foi devidamente transmitido e aceito, mas, no ultimo minuto, Anthony teve que ir para o norte, a negócios, e não pôde comparecer.

Um dia, no final de julho, George surpreendeu tanto Lucilla como Íris, com a notícia de que havia comprado uma casa de campo.

— Comprou uma casa? — Íris estava incrédula. — Mas eu havia pensado que iríamos alugar aquela casa em Goring, por dois meses?

— Vai ser bem melhor ter uma casa só nossa, não? Podemos ir para lá durante todo o ano, nos fins de semana.

— E onde é a casa? No rio?

— Não exatamente. Para dizer a verdade, não tem nada a ver com o rio. Sussex — Marlingham. O nome do lugar é Little Priors: são doze acres, com uma pequena casa georgiana.

— Você está querendo dizer que a comprou, sem que nós sequer a tivéssemos visto?

— Foi por mero acaso. Tinha acabado de ser posta à venda — agarrei a oportunidade.

— Imagino que vai precisar de uma porção de reformas, e redecoração — falou Mrs. Drake.

George respondeu, despreocupadamente:

— Oh, quanto a isso, está tudo bem. Ruth já providenciou tudo.

Elas receberam com um silencio respeitoso a menção do nome de Ruth Lessing, a eficiente secretária de George. Ruth era uma instituição, praticamente uma pessoa da família. Era bonita, de um modo severo, no gênero preto-e-branco, a própria encarnação da eficiência combinada com o tato...

Quando Rosemary estava viva, acostumara-se a dizer: “Vamos pedir a Ruth que providencie isto. Ela é maravilhosa. Podemos deixar tudo por sua conta.” Todas as dificuldades podiam sempre ser aplainadas pelos dedos capazes de Miss Lessing. Sorridente, agradável, reservada, conseguia vencer qualquer obstáculo. Dirigia o escritório de George e, suspeitava-se, o próprio George. Este lhe era muito devotado, e confiava em suas opiniões, sobre todos os assuntos. Ela não parecia ter carências, nem desejos próprios.

Dessa vez, entretanto, Lucilla Drake ficou amolada.

— Meu caro George, por mais eficiente que Ruth seja... Bem, você sabe — as mulheres da casa, na verdade, gostam de escolher, elas mesmas, o esquema de cores dos seus quartos. Íris deveria ter sido consultada. Já não falo nem por mim — eu não conto. Mas é desagradável, para Íris.

George ficou aflito, a consciência incomodando.

— Mas eu queria tanto fazer uma surpresa!

Lucilla teve que sorrir.

— Você é mesmo um garoto crescido, George.

Íris tranqüilizou-o:

— Não estou me importando com esquemas de cores. Tenho certeza que Ruth fará tudo perfeito. Ela é tão eficiente! Mas o que há para se fazer lá? Imagino que haja uma quadra de tênis.

— Sim, e campos de golfe a seis milhas de distância. Estaremos a apenas quatorze milhas do mar. Além de tudo, vamos ter vizinhos. É sempre sábio ir para um lugar onde se conheça alguém, eu acho.

— Que vizinhos? — perguntou Íris, abruptamente.

George desviou os olhos.

— Os Farraday — disse. — A casa deles fica a mais ou menos uma milha e meia de distancia, através do parque.

Íris olhou-o, especulativamente. Num minuto, chegou à conclusão de que todo esse negócio tão elaborado, a compra e a preparação de uma casa de campo, tinha obedecido a um único objetivo: possibilitar a George um relacionamento íntimo com Stephen e Sandra Farraday. Vizinhos próximos no campo, com propriedades contíguas, as duas famílias forçosamente ganhariam intimidade. A única alternativa para isso seria uma frieza deliberada.

Mas por quê? Por que essa persistente fixação nos Farraday? Por que escolher este método tão caro, para alcançar um objetivo incompreensível? Será que George suspeitava que Rosemary e Stephen Farraday tinham sido algo além de simples amigos? Seria esta uma estranha manifestação de ciúme póstumo? Certamente, tal idéia era muito extravagante, para ser sequer formulada.

Mas então o que George queria dos Farraday? Qual era o sentido de todas as estranhas perguntas que continuamente fazia a Íris? Não havia qualquer coisa muito estranha em George, ultimamente? O estranho jeito aturdido com que ele ficava, de noite! Lucilla atribuía-o a um copo a mais de Porto — bem típico de Lucilla! Mas não podia ser isso.

Não, decididamente havia algo de estranho em George, nesses últimos tempos. Parecia estar agindo numa aura de excitação, intercalada com grandes períodos de completa apatia, quando ficava sentado, inerte, afundado numa espécie de coma.

Passaram no campo a maior parte daquele mês de agosto, em Little Priors. Aquela casa horrível! Íris sentiu um calafrio. Ela a detestava. Era uma casa graciosa, bem construída, harmoniosamente mobiliada e decorada (Ruth Lessing nunca falhava!). E curiosamente, assustadoramente vazia. Eles não moravam lá — simplesmente ocupavam a casa, tal como soldados, na guerra, ocupam um posto de sentinela.

O que tornava tudo mais horrível era a aparência exterior de um veraneio comum, sem maiores implicações. Gente que vinha para o fim de semana, reuniões de tênis, jantares informais com os Farraday. Sandra fora encantadora — o comportamento perfeito para com vizinhos que, antes disso, já eram amigos. Mostrou-lhes a região, dava conselhos a George e Íris sobre cavalos, prestava a Lucilla a deferência devida a uma senhora mais velha. E, no entanto, por trás da máscara de seu rosto pálido e sorridente, ninguém podia saber o que ela estava pensando. Era uma esfinge em forma de mulher.

Stephen, eles viam mais raramente. Estava muito ocupado, se ausentava freqüentemente, às voltas com a política. Parecia claro, a Íris, que ele deliberadamente evitava encontrar o pessoal de Little Priors mais do que o estritamente necessário.

Assim se escoaram agosto e setembro, ficando decidido que em outubro voltariam para a casa de Londres. Íris soltara um profundo suspiro de alívio, ante essa perspectiva. Talvez, quando voltassem para lá, George reassumisse sua personalidade normal.

E então, na noite passada, ela havia sido acordada por uma discreta batida na porta. Acendeu a luz e olhou o relógio. Era apenas uma hora da manhã. Tendo ido para a cama às dez e meia, parecera-lhe que já era muito mais tarde. Enrolou-se num robe e foi até à porta. De certa maneira, isso lhe pareceu mais natural do que simplesmente gritar: “Entre!”.

George estava de pé, do lado de fora. Ainda não devia ter-se deitado, pois estava completamente vestido. Respirava em arrancos irregulares, e o rosto apresentava uma curiosa coloração azulada. Falou:

— Desça comigo até o escritório, Íris, por favor. Tenho que falar com você. Tenho que falar com alguém.

Intrigada, ainda tonta de sono, obedeceu.

No escritório, George fechou a porta e indicou-lhe a cadeira em frente à dele, do outro lado da escrivaninha. Empurrou a caixa de cigarros em sua direção, ao mesmo tempo retirando um e acendendo-o, depois de uma ou duas tentativas, com a mão trêmula.

— Alguma coisa o está perturbando, George? — perguntou Íris. Estava realmente alarmada, agora. A aparência dele era chocante.

George falou, entre pequenos arquejos, como alguém exausto de uma corrida:

— Não posso prosseguir sozinho. Não consigo mais guardar tudo só para mim. Você precisa me dizer o que acha a respeito: se é verdade — se é possível...

— Mas do que você está falando, George?

— Você deve ter notado algo, visto alguma coisa. Ela deve ter dito alguma coisa. Tem que ter havido um motivo.

Íris ficou olhando o cunhado, tentando imaginar o que estava querendo dizer.

Ele passou a mão pela testa.

— Você não sabe do que estou falando. Posso ver isso. Não fique tão assustada, minha menina. Você precisa me ajudar. Tem que procurar lembrar-se de cada maldito detalhe. Vamos, vamos, sei que estou parecendo bastante incoerente, mas você vai compreender num minuto — assim que eu lhe mostrar as cartas.

Destrancou uma das gavetas laterais da escrivaninha, retirando duas folhas de papel, de um azul inócuo e pálido, com letras pequenas, cuidadosamente impressas.

— Leia esta aqui — disse George, estendendo-lhe uma das folhas.

Íris olhou o papel. O que estava escrito ali era bem claro, sem qualquer rodeio:

“VOCÊ PENSA QUE SUA ESPOSA COMETEU SUICÍDIO. NÃO É VERDADE. ELA FOI MORTA.”

A segunda dizia:

“SUA ESPOSA, ROSEMARY, NÃO SE MATOU, FOI ASSASSINADA.”

George continuou, enquanto Íris não conseguia desprender os olhos dos papéis:

— Esses bilhetes chegaram há cerca de três meses. A principio pensei que fosse brincadeira — uma brincadeira cruel e desagradável. Então, comecei a pensar. Por que Rosemary teria querido se matar?

Íris respondeu, mecanicamente:

— Depressão aguda, após uma grupe.

— Sim, mas se você realmente pensar no caso, parece muito tolo, não é mesmo? Quer dizer, muita gente tem gripe e se sente um pouco deprimida depois, mas e daí?

Íris falou, com esforço:

— Ela talvez estivesse... infeliz?

— Sim, suponho que pudesse estar — George considerou a hipótese, com bastante calma. — Mesmo assim, não consigo imaginar Rosemary se matando, simplesmente por se sentir infeliz. Ela poderia ameaçar, mas não creio que realmente chegasse às últimas conseqüências.

— Mas só pode ter sido isso, George! Que outra explicação poderia haver, se eles até acharam o veneno na bolsa de Rosemary?

— Eu sei. Tudo se encaixa. Mas desde que essas cartas anônimas chegaram — bateu nelas com a unha — tenho repassado todos os fatos na minha cabeça. E, quanto mais penso no assunto, mais certo fico de que pode existir algo por trás disso. Foi por esse motivo que lhe fiz todas aquelas perguntas — se Rosemary tinha algum inimigo, se ela havia dito alguma coisa que sugerisse estar com medo de alguém. Não importa quem tenha sido o assassino, deve ter tido um motivo...

— Mas, George, isso é uma loucura!

— Algumas vezes, penso mesmo que é; outras, acho que estou no caminho certo. Mas tenho que saber. Tenho que descobrir. Você precisa me ajudar, Íris. Precisa pensar, recordar. Sim, é isso — recordar. Rever aquela noite, minuto a minuto, muitas e muitas vezes — pois você percebe, não é, que, se ela foi morta, deve ter sido por um dos que estavam na mesa, naquela noite? Pode percebê-lo, não pode?

Sim, ela podia. Não havia como adiar, por mais tempo, a memória daquela cena. Deveria lembrar-se de tudo: a música, o ritmo dos tambores, as luzes diminuídas, o show, o reacender das luzes... e Rosemary caída para a frente, sobre a mesa, o rosto azul e convulso.

Íris estremeceu. Estava com medo, agora — horrivelmente assustada...

Tinha que pensar — voltar atrás — recordar...

Rosemary significa recordação.

Não rira haver possibilidade de esquecimento.

 

                 RUTH LESSING

 

Ruth Lessing, fazendo uma breve pausa no meio do seu dia atarefado, estava recordando a esposa do chefe, Rosemary Barton.

Sempre antipatizara bastante com ela, mas nunca havia percebido o quanto, até aquela manhã de novembro, quando pela primeira vez falou com Victor Drake. A entrevista com Victor fora o começo, o ponto de partida de tudo o que se seguiu. Antes disso, todos os seus sentimentos em relação a Mrs. Barton estavam enterrados tão fundo, tão abaixo do limiar da consciência que, na verdade, ela não os percebia.

Ruth era devotada a George Barton — sempre o fora, desde o primeiro dia em que, começando a trabalhar para ele, então uma fria e competente jovem de vinte e três anos, percebera que George precisava de ser cuidado. Assumira, naquele momento, o encargo de zelar por ele. Poupou-lhe tempo, dinheiro e preocupações, escolhendo seus amigos, dirigindo-o para distrações convenientes. Impedia-o de entrar em negócios arriscados e, ocasionalmente, estimulava-o a correr riscos prudentes. Nem uma única vez, em todo seu longo relacionamento, deixou George suspeitar que fosse algo mais do que uma subserviente e atenta secretária, completamente dirigida por ele. Sua aparência agradava ao patrão: os cabelos escuros e brilhantes, cuidadosamente arrumados, as blusas elegantes, feitas sob medida, os pequenos brincos de pérola nas orelhas bem formadas, o rosto pálido, com uma discreta camada de pó, o suave rosado do batom.

George a considerava absolutamente perfeita. Gostava de seu jeito impessoal, neutro, da completa ausência de emoção ou familiaridade. Em conseqüência, costumava falar-lhe sobre seus assuntos particulares, e ela o escutava com simpatia, sempre oferecendo um conselho útil.

Ruth não foi, entretanto, consultada sobre seu casamento com Rosemary. Não o aprovou, mas, de qualquer forma, teve que aceita-lo, e sua ajuda foi incalculável nos preparativos da cerimônia, poupando a Mrs. Marle muito trabalho.

Depois do casamento, suas relações com o patrão ficaram em termos um pouco menos confidenciais. Procurava restringir-se estritamente aos assuntos do escritório, que George deixava, em boa parte, nas suas mãos. Tamanha era sua eficiência, porém, que Rosemary logo descobriu na secretária do marido uma ajuda inestimável, sob todos os pontos de vista. Miss Lessing era sempre tão amável, sorridente e gentil!

George, Rosemary e Íris a convidavam freqüentemente para ir almoçar em Elvaston Square. Estava agora com vinte e nove anos, mas sua aparência em nada diferia do que fora aos vinte e três.

Sem que jamais qualquer palavra íntima fosse trocada entre eles, Ruth estava sempre perfeitamente a par das menores flutuações emocionais de George. Percebeu quando sua exaltação inicial com a vida de casado se transformou numa satisfação estática, e percebeu também quando esta satisfação deu lugar a algo que não era muito fácil definir. Por essa época, George começou a apresentar uma certa desatenção a detalhes, sempre corrigida pela previdência de Ruth. No entanto, por mais distraído que estivesse, a secretária nunca parecia percebê-lo, e George lhe ficava grato por isso.

Foi numa manhã de novembro que George pela primeira vez falou com Victor Drake.

— Gostaria que você resolvesse, por mim, um assunto bastante desagradável, Ruth.

Ela o olhou, interrogativamente. Não era necessário dizer que certamente o faria — já estava subentendido.

— Toda família tem uma ovelha negra — continuou George.

Ruth concordou com a cabeça.

— Trata-se de um primo de minha esposa; um tipo da pior espécie, receio. Quase arruinou a mãe, uma alma ingênua e sentimental, que, por sua causa, vendeu a maior parte das poucas ações que possuía. O rapaz começou falsificando um cheque, em Oxford. O assunto foi abafado, e, desde então, ele tem corrido o mundo inteiro, nunca dando certo em lugar nenhum.

Ruth escutava, sem muito interesse. O tipo lhe parecia bastante familiar: devia ser mais um daqueles que começam uma plantação de laranjas, depois resolvem criar galinhas, vão em seguida trabalhar em criação de gado, na Austrália, e então arranjam emprego num frigorífico na Nova Zelândia. Nunca dão certo em nada, nunca ficam muito tempo no mesmo lugar, e sempre liquidam com qualquer dinheiro neles investido. Essa espécie de gente nunca a interessara muito. Ruth preferia o sucesso.

— Ele agora apareceu em Londres, e descobri que vem importunando minha esposa. Rosemary não o vê desde menina, mas ele é um patife muito convincente, e tem escrito à minha esposa, pedindo dinheiro — mas isso eu não vou aturar. Marquei um encontro com ele para hoje, ao meio-dia, no hotel onde está hospedado. Gostaria que você tratasse disso, por mim. A verdade é que não quero entrar em contato com este indivíduo. Nunca o encontrei, não pretendo faze-lo e não quero que Rosemary o veja. Acho que o assunto poderá ser mantido em termos estritamente de negócios, se for arranjado por uma terceira pessoa.

— Sim, essa é sempre uma boa política. Qual vai ser o acordo?

— Cem libras em dinheiro vivo, e uma passagem para o Rio de Janeiro. O dinheiro só deverá ser entregue quando já estiver a bordo do navio.

Ruth sorriu.

— Muito bem. Assim poderemos ficar absolutamente certos de que vai mesmo zarpar.

— Vejo que me entendeu.

— Não é um caso incomum — respondeu Ruth, indiferentemente.

— Tem razão, há muita gente assim, por aí — ele hesitou: — Tem certeza de que não se importa de fazer isso por mim?

— É claro que não — achou graça, percebendo sua preocupação. — Posso garantir-lhe que sou perfeitamente capaz de resolver o assunto.

— Nada é impossível para você, Ruth.

— Que tal reservar logo a passagem? Por falar nisso , qual é o nome dele?

— Victor Drake. O bilhete está aqui. Telefonei ontem mesmo para a companhia de navegação. O navio é o San Cristobal, que sai de Tilbury amanhã.

Ruth apanhou a passagem, examinou-a rapidamente, para ter certeza de que estava tudo certo, e colocou-a na bolsa.

— Está combinado. Pode deixar por minha conta. Meio-dia. Qual é o endereço?

— Hotel Rupert, em Russell Square.

Anotou o nome.

— Ruth, minha cara, não sei o que faria sem você... — George colocou a mão no seu ombro, afetuosamente. Era a primeira vez que fazia isso. — Você é a minha mão direita, o meu outro eu.

Ela corou, satisfeita.

— Nunca tive oportunidade de lhe dizer essas coisas. Sempre aceitei tudo que você faz como natural — mas não é bem assim. Não sabe o quanto dependo de você para tudo — tudo! Você é a garota mais bondosa, querida e prestativa do mundo!

Rindo, para esconder seu prazer e embaraço, Ruth falou:

— Vai me estragar, dizendo coisas tão bonitas.

— Oh, mas é o que eu realmente sinto. Você é uma parte da firma, Ruth. A vida sem você seria inconcebível.

Foi sob o cálido e estimulante efeito destas palavras que a jovem saiu do escritório. Ainda se sentia assim, quando chegou ao Hotel Rupert, no cumprimento de sua missão.

O que estava para vir não a embaraçava. Confiava na própria capacidade de lidar com qualquer situação, e histórias de pessoas perseguidas pelo destino não a comoviam. Estava preparada para enfrentar Victor Drake, como tudo o mais no seu dia de trabalho.

Ao vê-lo, achou que se parecia bastante com o retrato que pintara na imaginação — só que bem mais atraente, talvez. Tampouco errara na estimativa do seu caráter. Não havia muita coisa de bom em Victor Drake. Por trás da simpatia da sua máscara travessa, estava disfarçada a pessoa mais insensível e calculista que poderia existir. O que Ruth não havia previsto, entretanto, era o dom que ele possuía de ler o pensamento das pessoas, e a experiente facilidade com que jogava com as emoções alheias. Talvez tivesse também superestimado sua própria capacidade de resistir aos encantos do rapaz — sim, pois Victor era, inegavelmente, fascinante.

Recebeu-a com um ar de deliciada surpresa.

— A enviada de George? Mas que surpresa maravilhosa!

Em termos secos, tranqüilos, Ruth expôs as condições do chefe.

— Cem libras? Nada mal... Pobre George! Eu me contentaria com sessenta — mas não lhe conte isso! Condições: “Não aborreça a adorável prima Rosemary; não contamine a inocente prima Íris; não incomode o digno primo George”. Concordo com todas! Quem vai assistir à minha partida no San Cristobal? A senhorita, minha querida Miss Lessing? Formidável...

Franziu o nariz, os olhos escuros piscando, simpaticamente. Seu rosto era magro e queimado pelo sol, e — que idéia romântica! — alguma coisa nele fazia lembrar um toureiro. Atraía as mulheres e sabia disso perfeitamente.

— A senhorita já está com Barton há algum tempo, não é verdade, Miss Lessing?

— Seis anos.

— E aposto que ele não sabe o que faria sem a senhorita, não é mesmo? Oh, sim, eu sei. Sei tudo a seu respeito, Miss Lessing.

— Como assim? — perguntou Ruth, rispidamente.

Victor sorriu.

— Rosemary me contou.

— Rosemary? Mas...

— Exatamente. Não pretendo voltar a importuná-la. Rosemary já foi muito gentil comigo — bastante simpática, mesmo. Na verdade, consegui arrancar-lhe cem libras.

— O senhor... !

Ruth não conseguiu completar o que estava dizendo, e Victor achou graça. Sua risada era contagiosa. Ao dar-se conta, Ruth estava rindo com ele.

— Não foi nada bonito de sua parte, Mr. Drake!

— Sou um parasita extremamente talentoso. Aprimorei bastante a técnica... Minha velha, por exemplo, sempre solta dinheiro quando lhe mando um telegrama, sugerindo que estou à beira do suicídio.

— O senhor devia envergonhar-se.

— Eu me censuro profundamente, Miss Lessing. Tenho plena consciência de que não presto. Gostaria apenas que a senhorita soubesse o quanto.

— Por quê? — ela estava curiosa.

— Não sei. A senhorita é diferente. Não poderia tentar impingir-lhe a tática habitual. Estes seus olhos francos — a senhorita não cairia no logro. Não, a velha história de “mais vítima do que culpado” não iria adiantar. Não há piedade na senhorita.

A expressão dela endureceu.

— Desprezo a piedade.

— Apesar do seu nome? A senhorita se chama Ruth, não é mesmo? Que ironia! Ruth, a impiedosa...

— Não tenho simpatia pelos fracos.

— E quem disse que sou fraco? Não, não, minha cara, agora você se enganou. Mau-caráter, talvez. Mas há uma coisa que pode ser dita a meu favor?

Ela curvou ligeiramente os lábios. A inevitável desculpa.

— E o que é?

— Eu me divirto. Sim — disse ele, balançando a cabeça, — eu me divirto bastante. Já aproveitei muito a vida, Ruth. Já fiz quase tudo. Fui ator, balconista, garçom, biscateiro, carregador e contra-regra de um circo. Já trabalhei como marinheiro num cargueiro a vapor. Já fui candidato a presidente, numa república sul-americana. Já estive na cadeia. Até hoje, só há duas coisas que nunca fiz na vida: um dia de trabalho honesto, e pagar minhas contas.

Olhou para ela, rindo. Ruth sentia que o certo seria estar revoltada. Mas a força de Victor Drake era a do demônio: podia fazer o mal parecer divertido. Estava olhando para ela, agora, com estranha perspicácia.

— Não precisa parecer tão altiva, Ruth! Você não tem assim tanto senso moral como imagina! O sucesso é a sua religião. Você é o tipo da garota que acaba casando com o patrão. Era isso que deveria ter feito. George não devia ter-se casado com aquela tolinha da Rosemary, e sim com você. Teria feito um negócio muito, muito melhor.

— Acho que o senhor está sendo ofensivo.

— Rosemary é uma tonta, sempre foi. Linda como um paraíso, mas com o cérebro de um coelhinho. É o tipo por quem os homens se apaixonam, mas nunca se prendem. Você, porém... Você é diferente. Meu Deus, se um homem se apaixonasse por você, nunca se cansaria.

Atingira o ponto vulnerável. Ruth falou, com súbita e crua sinceridade:

— Se! Mas não foi o que aconteceu...

— Refere-se a George? Não se iluda, Ruth. Se alguma coisa acontecesse a Rosemary, George casaria com você num piscar de olhos.

Sim, foi então. Foi aí que tudo começou.

Victor falou, observando suas reações:

— Mas, na certa, você deve saber disso tão bem quanto eu...

A mão de George entre as suas, a voz afetuosa, quente... Sim, sem dúvida era verdade... Ele se voltava para ela, dependia de sua ajuda!

Victor falou, gentilmente:

— Devia ter mais confiança em si mesma, querida menina. Poderia conseguir qualquer coisa dele. Rosemary é apenas uma bobinha.

“É verdade”, pensou Ruth, “se não fosse por Rosemary eu poderia fazer George me pedir em casamento. Seria uma boa esposa. Cuidaria bem dele.” Subitamente, sentiu-se invadida por uma raiva cega, uma onda de desesperado ressentimento.

Victor Drake a estava observando, divertindo-se bastante com o que via. Gostava de colocar idéias na cabeça das pessoas. Ou, como neste caso, de mostrar-lhes idéias que já estavam lá.

Sim, fora desse modo que tudo começara: o encontro casual com um homem que no dia seguinte iria para o outro lado do mundo. A Ruth que voltou para o escritório não era bem a mesma que havia saído, embora não se pudesse notar qualquer diferença na sua atitude ou aparência.

Pouco tempo depois de estar de volta ao escritório, Rosemary Barton telefonou.

— Mr. Barton acabou de sair para o almoço. Posso ser-lhe útil em alguma coisa?

— Oh, Ruth, você poderia me ajudar? Aquele aborrecido Coronel Race mandou um telegrama dizendo que não vai voltar a tempo para a minha festa. Pergunte a George quem ele gostaria de convidar para substituí-lo. Precisamos arranjar outro cavalheiro. Vamos ser quatro mulheres à mesa: Íris, eu, Sandra Farraday e... Por Deus, quem é a outra? Não consigo lembrar-me!

— Sou eu a quarta, suponho. A senhora teve a gentileza de me convidar.

— Oh, é claro! Tinha-me esquecido completamente de você.

A risada de Rosemary veio alegre e musical, pelo telefone. Não podia ver o súbito afogueamento e a dura linha do queixo de Ruth Lessing.

Com que então, havia sido convidada para a festa de Rosemary como um favor — uma concessão a George! “Oh, sim, vamos chamar a sua querida Ruth Lessing. Afinal de contas, ela vai ficar muito contente de ter sido convidada, e Miss Lessing é terrivelmente útil. Além do mais, é bastante apresentável.”

Naquele exato momento, Ruth Lessing ficou sabendo que odiava Rosemary Barton.

Odiava-a por ser rica, bela, despreocupada e tola. Nada de trabalho duro, rotineiro, num escritório, para Rosemary — tudo lhe era oferecido numa bandeja de ouro. Casos amorosos, um marido louco por ela. Nenhuma necessidade de trabalhar, planejar.

Detestável, condescendente, uma beldade frívola e afetada...

— Gostaria que você estivesse morta! — falou Ruth, em voz baixa, para o telefone desligado. Foi apanhada de surpresa pelas próprias palavras. Destoavam tanto do seu modo de ser! A paixão, a veemência eram novas para ela, que nunca fora senão fria, controlada e eficiente. “O que está acontecendo comigo?”, perguntou, para si mesma.

Odiara Rosemary Barton naquela tarde. Ainda a odiava hoje, um ano depois.

Algum dia, talvez, conseguiria esquecer Rosemary — mas não por enquanto. Deliberadamente, voltou o pensamento para aqueles dias de novembro.

Reviu-se sentada, olhando o telefone — sentindo o ódio surgir e crescer no coração; transmitindo a George o recado de Rosemary, numa voz agradável e controlada; sugerindo que não compareceria, igualando assim o número de homens e mulheres à mesa (George havia rapidamente recusado esta hipótese). Sua entrada no dia seguinte, falando da partida do San Cristobal. O alívio e gratidão de George.

— Então, ele viajou mesmo?

— Sim. Entreguei-lhe o dinheiro imediatamente antes de retirarem a prancha de desembarque — hesitou um instante, e prosseguiu: — Ele acenou com a mão, enquanto o navio se afastava do cais, e gritou: “Mande lembranças e beijos para George, e diga-lhe que hoje à noite vou beber à sua saúde!”

— Que descaramento! — comentou George. Perguntou, curioso: — O que achou dele, Ruth?

A voz da jovem estava propositalmente neutra, ao responder:

— Ora, bem como eu esperava. Um fraco.

E George não havia visto coisa alguma, não percebera nada! Ruth sentira vontade de gritar: “Por que me mandou vê-lo? Não sabia o que ele poderia fazer comigo? Não percebe que desde ontem sou uma pessoa diferente? Não pode ver que sou perigosa? Que não há como prever do que sou capaz?” Em vez disso, falou no seu tom mais profissional:

— A respeito daquela carta para São Paulo...

Era de novo a secretária competente, cheia de eficiência...

Passaram-se cinco dias, e então — o aniversário de Rosemary.

Um dia tranqüilo no escritório, uma ida ao cabeleireiro, a estréia de um vestido preto, um pouco de maquilagem habilmente aplicada. Um rosto no espelho que não era bem o seu. Um rosto pálido, determinado, amargo.

Victor Drake estava certo. Não havia piedade, nela.

Mais tarde, quando olhara por cima da mesa para o rosto azulado e convulso de Rosemary, também não tivera compaixão.

Agora, onze meses depois, pensando em Rosemary Barton, Ruth subitamente sentiu medo...

 

                             ANTHONY BROWNE

 

Longe DALI, Anthony Browne também estava pensando em Rosemary Barton. Franzia o cenho, ao recordá-la.

Havia sido um grande tolo, deixando-se envolver com ela. Mas quem poderia resistir? Rosemary era uma festa para os olhos... Naquela noite, no Dorchester, Anthony não fora capaz de olhar para mais nada: linda como uma huri – e, na certa, não mais inteligente...

De qualquer forma, enamorara-se violentamente, não medindo esforços até achar alguém que os apresentasse. Isso fora mesmo imperdoável, pois, na verdade, deveria estar dirigindo toda sua energia estritamente aos negócios. Afinal de contas, não era à toa que estava passando aqueles dias no Claridge.

Mas, em sã consciência, Rosemary Barton era linda o bastante para justificar qualquer lapso momentâneo com o dever. Era muito fácil, agora, zombar daqueles arroubos, ficar-se perguntando como pudera ser tão tolo. Graças a Deus, não havia nada a lamentar. Quase ao mesmo tempo em que conseguira falar com ela, o fascínio começara a murchar, pouco a pouco. As coisas reassumiam as devidas proporções. Não se tratava de amor – nem mesmo paixão. Tudo se resumiria simplesmente a uma boa diversão para ambos.

Bem, ele havia-se divertido. E Rosemary, idem. Ela dançava como um anjo, e, onde quer que a levasse, os homens se viravam para admirá-la. Era o tipo de coisa que fazia bem ao ego de um sujeito ­ — enquanto ela não abrisse a boca. Agradecia aos céus não estar casado com Rosemary. Depois que se acostumasse com toda aquela perfeição de rosto e forma, como ficaria? Rosemary não sabia sequer escutar, de um modo inteligente. Era dessas mulheres que esperam ouvir, toda manhã, na mesa do café, que você continua loucamente apaixonado.

Ora, muito fácil pensar assim, agora... Na ocasião, tinha caído direitinho por ela. Fizera suas menores vontades: telefonara-lhe, levara-a festas, dançara com ela, beijara-a num táxi.

Estivera a pleno caminho de fazer alguma tolice — até aquele dia surpreendente, inacreditável, cuja lembrança, ainda hoje, estava nítida em sua memória.

Recordava com exatidão a mecha de cabelo castanho de Rosemary, solta sobre uma orelha, os cílios semicerrados, deixando passar o brilho azul escuro dos olhos. Os lábios macios, vermelhos, fazendo biquinho.

— Anthony Browne... É um bonito nome.

— Eminentemente estabelecido e responsável — respondera, com desenvoltura. — Henrique VIII teve um camareiro que se chamava assim.

— Um antepassado seu, quem sabe?

— Não me atreveria a jurá-lo.

— Realmente, seria melhor que não o fizesse...

Ele ergueu as sobrancelhas.

— Sou do ramo da família que emigrou.

— O ramo italiano, imagino.

— Ora! — achou graça. —Por causa de minha pele azeitonada? Minha mãe era espanhola.

— Então, isso explica.

— Explica o quê?

— Muita coisa, Mr. Anthony Browne.

— Parece apreciar, de fato, meu nome.

— Já disse que sim... É um nome bonito — e então, rápido como uma flecha que saísse do nada, completou: — Mas bonito que “Tony Morelli”.

Por um instante, ele não conseguiu acreditar no que acabara de ouvir. Era extraordinário! Impossível!

Agarrou-a pelo braço, tão rudemente que ela recuou.

— Ei, você está-me machucando!

— Onde ouviu este nome? — sua voz rude era ríspida, ameaçadora.

Rosemary riu, deliciada com o efeito que havia produzido. Aquela incrível tolinha!

— Quem lhe contou?

— Alguém que reconheceu você.

— Quem foi? Vamos, Rosemary, isso é sério. Tenho que saber. Ela o olhou, de soslaio.

— Um primo meu, de péssima reputação: Victor Drake.

— Jamais conheci alguém com esse nome.

— Suponho que não devia estar usando o nome verdadeiro, quando você o conheceu. Para poupar os sentimentos da família, entende?

Anthony falou, lentamente:

— Estou percebendo. Foi... na prisão?

— Sim. Eu estava repetindo para Victor o sermão do libertino, dizendo que ele nos desgraçava a todos. Não se importou nem um pouco, é claro. Apenas riu e falou: “Você mesma não é sempre assim tão exigente, queridinha! Outra noite eu a vi dançando com um ex-presidiário — um dos seus namorados prediletos, para falar a verdade. Pelo que ouvi por aí, está usando o nome de Anthony Browne, mas, no xadrez, era Tony Morelli”.

Anthony comentou, num tom superficial:

— Preciso renovar relações com este velho amigo. Nós, os ex-gaiolados, devemos ser solidários.

Rosemary abanou a cabeça.

— Tarde demais. Já o mandaram num navio para a América do Sul. Viajou ontem.

— Entendo — Anthony soltou um profundo suspiro. — Assim, você é a única pessoa que sabe de meu tenebroso segredo?...

Concordou com a cabeça.

— Não vou entregá-lo.

— É melhor, mesmo, que não, para o seu próprio bem — a voz do rapaz ficou dura. — Escute aqui, Rosemary, isto pode ser perigoso. Não quer ver seu lindo rostinho retalhado, não é mesmo? Há muita gente que não recuaria por uma coisa tão simples como arruinar a beleza de uma garota. E existe uma coisa chamada empacotar alguém, que não acontece só em filmes e livros. Acontece na vida real, também.

— Está, por acaso, me ameaçando, Tony?

— Simplesmente prevenindo.

Iria ela aceitar o aviso? Compreenderia que ele estava falando terrivelmente sério? Aquela bobinha... Não havia nenhum juízo em sua adorável cabecinha oca. Era impossível confiar em que mantivesse a boca fechada. De qualquer forma, tinha que tentar enfiar na cabeça de Rosemary o sentido do que estava querendo dizer.

— Esqueça-se de que jamais ouviu o nome de Tony Morelli, entendeu?

— Mas eu não me importo nem um pouco, Tony! Sou bastante liberal! É tão emocionante conhecer um criminoso! Você não precisa se sentir envergonhado.

Aquela absurda idiotinha! Olhou-a friamente. Naquele momento, não conseguia entender como jamais tinha podido pensar que gostava dela. Nunca soubera suportar gente tola — nem mesmo quando tivesse um rostinho lindo.

— Esqueça-se de Tony Morelli — repetiu, severamente. — Estou falando sério. Nunca volte a mencionar esse nome.

Seria forçado, agora, a levantar acampamento. Era a única coisa a fazer. Não havia como confiar no silêncio de Rosemary — falaria quando quer que se sentisse inclinada a isso.

Estava sorrindo para ele. Um sorriso encantador, mas que o deixou imperturbável.

— Não seja tão malvado. Leve-me ao baile dos Jarrow, semana que vem.

— Impossível. Estou de partida.

— Mas não antes da minha festa de aniversário, não é mesmo? Não me decepcione! Estou contando com você. Vamos, vamos, não diga que não. Estive miseravelmente doente, com aquela gripe horrível, e ainda estou muito fraca. Não posso ser contrariada. Você tem que ir.

Poderia ter-se mantido firme. Poderia ter largado tudo... ido embora direto. Em vez disso, por uma porta aberta, vira Íris descendo as escadas.

Íris, correta e frágil, com seu rosto pálido, os negros cabelos e os olhos acinzentados. Íris, muito menos bela que Rosemary, mas com todo o caráter que a irmã jamais teria. Naquele momento, ele se detestara por ter caído vítima, por mínimo que fosse, do fácil encanto de Rosemary. Percebeu, então, o que Romeu deveria ter sentido sobre Rosalina, ao encontrar Julieta pela primeira vez.

Anthony Browne mudou de idéia.

No espaço de um segundo, resolveu seguir um caminho totalmente diverso.

 

                     STEPHEN FARRADAY

 

Stephen Farraday estava pensando em Rosemary — e a imagem evocada despertava nele, como sempre, um espanto incrédulo. Costumava banir de sua memória, sistematicamente, todos os pensamentos sobre Rosemary, tão logo estes surgiam; mas havia ocasiões em que, persistente na morte como o fora em vida, ela se recusava a ser assim arbitrariamente rejeitada.

A primeira reação de Stephen, quando isso acontecia, era sempre a mesma. Com um rápido, irresponsável dar de ombros, afastava a lembrança da cena do restaurante — pelo menos, não precisava pensar novamente naquilo. Seus pensamentos recuavam mais, revendo Rosemary viva, Rosemary sorrindo, respirando, seu olhar perdido no dele...

Que tolo, que incrível tolo havia sido!

O espanto o envolvia, então — um absoluto e desnorteante espanto. Como tudo tinha acontecido? Não conseguia entendê-lo, simplesmente. Era como se sua vida fosse dividida em duas partes: uma delas, a maior, consistia numa progressão ordenada, equilibrada, sadia; a outra, uma breve e incaracterística loucura. As duas partes simplesmente não se ajustavam.

Apesar de toda sua capacidade, e de seu brilhante e arguto intelecto, Stephen não tinha suficiente discernimento interior para reconhecer que, na verdade, as duas partes se ajustaram perfeitamente.

Algumas vezes ele recapitulava sua existência, avaliando-a friamente e sem qualquer indevida emoção, mas com uma tendência pedante para o auto-aplauso. Desde muito cedo, havia decidido vencer na vida, e, apesar das dificuldades e relativas desvantagens iniciais, realmente vencera... Tivera sempre um raciocínio meio simplista, no que dizia respeito a crenças e perspectivas. Acreditava no poder da vontade. Tudo o que um homem verdadeiramente desejasse, conseguiria fazer!

Em menino, Stephen Farraday cultivara firmemente sua Vontade. Não podia esperar que a vida lhe desse muita ajuda, além da que ele mesmo conseguisse, com seu próprio esforço. Um garotinho pequeno, pálido, com uma boa testa e um queixo determinado, decidira, aos sete anos, que iria subir na vida — e subir bem alto.

Seus pais, bem sabia, em nada lhe poderiam ser úteis. Sua mãe se casara com alguém abaixo do seu nível social, e o lamentava. O pai, um pequeno construtor, esperto, astucioso e sovina, era desprezado tanto pela esposa como pelo filho. A mãe, uma figura imprecisa, sem objetivos na vida, dada a extraordinárias flutuações de humor, despertava em Stephen somente uma perplexa incompreensão — e mesmo isto se desfizera, no dia em que a encontrou debruçada num canto da mesa, tendo a seu lado, no chão, um vidro vazio de água-de-colônia, que lhe caíra das mãos.

Até então, nunca pensara na bebida como uma explicação para o comportamento da mãe. Ela nunca tomava cerveja, nem qualquer bebida alcoólica, e nunca ocorrera a Stephen que sua paixão por água-de-colônia tivesse alguma origem que não sua vaga justificativa, sobre dores de cabeça.

Compreendera, naquele momento, que tinha pouca afeição pelos pais. Suspeitava, com argúcia, que eles lhe retribuíam na mesma moeda. Era pequeno para a idade, quieto, com tendência a gaguejar. O pai o achava piegas — um garoto bem-comportado, que não dava trabalho em casa. Teria preferido uma criança mais turbulenta: “eu, quando tinha sua idade, vivia metido em encrencas”. Algumas vezes, olhando para Stephen, sentia, desconfortavelmente, sua inferioridade social em relação à mulher. O menino saíra ao lado materno.

Calmamente, com crescente determinação, Stephen traçara o mapa de seu futuro. Iria vencer na vida. Como um primeiro teste de força de vontade, decidiu dominar a gagueira. Praticou falar lentamente, fazendo uma ligeira pausa entre cada palavra. Com o tempo, seus esforços, foram coroados de êxito — já não gaguejava maios.

Na escola, dedicou-se às lições. Pretendia aprender tudo o que pudesse — “a educação é a mola de sucesso”. Seus professores logo se interessaram, e o encorajavam. Ganhou uma bolsa-de-estudo. As autoridades educacionais procuraram seus pais: o garoto prometia, disseram. Mr. Farraday, em boa situação financeira, graças à construção de uma série de casas mal-acabadas, foi convencido a investir dinheiro na educação do filho. Aos vinte e dois anos, Stephen caíra de Oxford com um diploma, uma reputação de eloqüente e espirituoso orador, e uma queda para escrever artigos. Fizera também amigos muito úteis...

O que mais o atraía era a política. Aprendera a sublimar sua timidez natural, cultivando um admirável comportamento em sociedade: modesto, simpático, e com aquele toque de brilhantismo que fazia as pessoas dizerem — “Este moço vai longe...”

Embora por natureza um liberal, Stephen compreendera que, pelo menos por enquanto, este Partido esta morto. Filiou-se então, aos Trabalhistas. Seu nome logo ficou conhecido como o de um jovem “com futuro”. Mas o Partido Trabalhista não o satisfizera — achara-o menos aberto a novas idéias, mas preso às tradição do que os seus grandes e poderosos rivais: os Conservadores. Estes, por outro lado, estavam à procura de um jovem talento promissor. Aprovaram entusiasticamente Stephen Farraday — era exatamente do que estavam precisando.

Disputou aos Trabalhistas um eleitorado onde eles gozavam de sólido prestigio, e conquistou-o por margem bem estreita de votos. Foi com uma sensação de triunfo que tomou lugar na Câmara dos Comuns. Sua carreira estava lançada, e havia escolhido a profissão certa. Nela poderia aplicar toda sua ambição. Sentia em si mesmo a capacidade de governar, e governar bem. Tinha o dom de saber lidar com as pessoas, de saber quando agradar e quando fazer oposição. Um dia, prometera a si próprio, chegaria ao Gabinete.

No entanto, quando passou a excitação inicial de estar realmente no Parlamento, sentiu-se repentinamente desiludido. A eleição duramente conquistada pusera-o na luz da ribalta: agora, caíra na rotina, era apenas um membro insignificante na multidão, subserviente aos líderes do partido, e mantido em seu lugar. A juventude, aqui, despertava suspeitas. Capacidade, apenas, não bastava: era preciso influência. Havia certos interesses, certas famílias — fazia-se necessário arranjar um padrinho.

Considerou a possibilidade de casamento. Até então, pensara muito pouco no assunto. Limitara-se a uma tênue imagem, no fundo de sua mente, de uma bela criatura com quem, de mãos dadas, repartiria sua vida e suas ambições; que lhe daria filhos e a quem poderia confiar pensamentos e dúvidas; alguém que compartilhasse seus sentimentos, que desejasse ardentemente seu sucesso e se orgulhasse dele, quando o atingisse.

Então, um belo dia, foi convidado para uma das grandes festas da mansão dos Kidderminster. O clã dos Kidderminster era o mais poderoso da Inglaterra. Eles eram, e sempre tinham sido, uma das grandes famílias da política. A figura alta e distinta de Lorde Kidderminster, com sua barbicha, era reconhecida onde quer que fosse. O rosto largo de Lady Kidderminster, que parecia o de um cavalinho de pau, era familiar em tribunas e comitês de toda a Inglaterra. Tinham cinco filhas — três delas bonitas, mas todas esmeradamente educadas — e um filho, ainda em Eton. Os Kidderminster faziam questão de encorajar os jovens promissores do Partido, e assim surgira o convite feito a Stephen Farraday.

Não conhecia muita gente na festa. Vinte minutos após sua chegada, viu-se sozinho, de pé, junto a uma janela. Quando o grupo em torno da mesa de chá se dispersou, em direção a outras salas, Stephen percebeu ali uma jovem alta, vestida de preto. Sozinha, parecia, por um instante, ligeiramente perdida.

Stephen tinha boa memória para rostos. Naquela mesma manhã, no metrô, uma passageira, a seu lado, deixara sobre o banco um exemplar do Home Gossip. Folheara-o, levemente divertido com os mexericos que eram o prato forte do jornal. Encontrara nele uma borrada reprodução de Lady Alexandra Hayle, terceira filha do Conde de Kidderminster, abaixo do qual vinham comentários a seu respeito: “Sempre de temperamento tímido e reservado... devotada aos animais... Lady Alexandra fez um curso de Ciência Doméstica, pois Lady Kidderminster considera interessante que suas filhas sejam devidamente instruídas sobre todos os aspectos da vida de um lar.”

Ali de pé estava, portanto, Lady Alexandra Hayle. Com a infalível percepção dos tímidos, para se detectarem entre si, Stephen sentiu que ela também pertencia à espécie. Sendo a menos bela das cinco irmãs, Alexandra sempre sofrera de um complexo de inferioridade. Apesar de ter recebido educação e preparo iguais aos das outras, nunca havia conseguido realmente igualá-las em savoir-faire, o que desgostava consideravelmente sua mãe: “Sandra devia fazer um esforço – é um absurdo parecer tão desajeitada, tão gauche.”

Stephen não conhecia esses detalhes, mas sabia que a jovem estava pouco à vontade e in feliz. Repentinamente, uma onda de convicção o invadiu. Esta era sua grande oportunidade! “Agarre-a, seu tolo, agarre-a! É agora, ou nunca!”

Atravessou a sala, até o grande bufê. Colocando-se ao lado da moça, apanhou um sanduíche. Então, virando-se e falando nervosamente, com esforço (não havia representação aí — ele estava nervos), Stephen disse:

— Desculpe, importa-se de conversar comigo? Não conheço muita gente aqui, e posso perceber que a senhorita também não. Por favor, não me vá repelir... Para falar a verdade, sou horrivelmente tí-tímido — (sua gagueira de infância reapareceu, no momento mais oportuno — e acho que a senhorita também-bém é ti-tímida, não é?

A jovem corou. Abriu a boca, mas — como ele havia calculado — não conseguiu arranjar palavras para identificar-se. Era muito difícil descobrir um jeito de dizer: “Sou filha do dono da casa.” Em vez disso, ela admitiu calmamente:

— Na verdade, eu... eu sou tímida. Sempre fui.

Stephen continuou, rapidamente:

— É uma sensação horrível. Não sei se alguém pode dominá-la, um dia. Algumas vezes sinto minha língua completamente presa.

— Eu também.

Ele foi em frente, falando rápido, gaguejando um pouco. Seu jeito era pueril, encantador, de um modo que lhe fora natural, alguns anos atrás, e agora era conscientemente conservado e cultivado. Mostrou-se jovem, ingênuo, capaz de desarmar qualquer um.

Logo dirigiu a conversa para o teatro, mencionando uma peça então em cartaz, que havia despertado muito interesse. Sandra já a conhecia. Discutiram a peça. Como nela eram abordados problemas sociais, eles rapidamente mergulharam numa discussão sobre o tema.

Stephen soube não ir muito longe. Vira Lady Kidderminster entrar na sala, procurando a filha com os olhos. Não estava em seus planos ser apresentado agora. Murmurou uma despedida:

— Gostei muito de conversar com a senhorita. Estava simplesmente detestando tudo isso, até que a encontrei. Obrigado.

Deixou a casa, sentindo-se radiante. Havia aproveitado sua oportunidade. Restava, agora, consolidar o que já havia começado.

Durante vários dias após a festa, assediou os arredores da mansão Kidderminster. Uma vez, viu Sandra saindo com uma das irmãs; outro dia, saiu sozinha, mas num passo apressado. Ele abanou a cabeça: aquela ocasião ainda não servira aos seus planos — a moça estava, obviamente, a caminho de algum compromisso.

Então, cerca de uma semana após a festa, sua paciência foi recompensada. Sandra saiu de casa, de manhã, para passear com seu cãozinho, um pequeno e negro terrier escocês; dirigia-se, a passos lentos, em direção ao parque.

Cinco minutos mais tarde, o jovem, andando rapidamente na direção oposta, estacou, de súbito, em frente à Sandra. Exclamou, alegre:

— Ora veja, mas que sorte! Estava pensando se algum dia tornaria a encontrá-la!

Seu tom era tão delicado que ela corou levemente. Stephen inclinou-se para o cachorro:

— Que bonitinho! Qual é o nome dele?

— MacTavish.

— Ah! Bem escocês.

Conversamos um pouco sobre o cachorro. Stephen disse então, parecendo ligeiramente embaraçado:— Não cheguei a me apresentar, naquele dia. Meu nome é Farraday, Stephen Farraday. Sou um obscuro membro do Parlamento.

Olhou-a curiosamente, vendo o rubor reaparecer no rosto da jovem, ao falar:

— Sou Alexandra Hayle.

A reação dele foi perfeita — surpresa, reconhecimento, consternação, embaraço... Poderia estar de volta à Sociedade Dramática de Oxford.

— Oh! Você... A senhorita é Lady Alexandra Hayle? Santo Deus! Como deve ter-me achado um completo idiota, no outro dia!

A resposta dela era inevitável. Não podia ser diferente — sua educação e bondade natural forçavam-na a fazer todo o possível para colocá-lo à vontade, devolver-lhe a segurança.

— Devia ter-lhe contado, na ocasião.

— Absolutamente, eu é que tinha a obrigação de saber. Como deve estar-me achando um imbecil!

— Mas como é que o senhor poderia saber? Por favor, Mr. Farraday, não fique tão desconcertado. Vamos andar até o lago Serpentina. Veja, MacTavish está-me puxando.

Depois disso, encontraram-se muitas vezes no parque. Stephen contou a Sandra sobre suas ambições, discutiram política. Achou-a inteligente, bem-informada e simpática. Seu raciocínio era claro e singularmente livre de idéias preconcebidas. Tornaram-se amigos.

O próximo avanço foi quando recebeu um convite para ir jantar na mansão Kidderminster, e dali seguir para uma festa. O cavalheiro anteriormente convidado havia-se desculpado no último instante; enquanto Lady Kidderminster, quebrava a cabeça para arranjar um substituto, Sandra sugeriu calmamente:

— E que tal chamarmos Stephen Farraday?

— Stephen Farraday?

— Sim, ele veio aqui outro dia, em sua festa, e o vi uma ou duas vezes, depois disso.

Lorde Kidderminster foi então consultado, mostrando-se inteiramente favorável a que se encorajasse um daqueles jovens e promissores políticos:

— Um rapaz brilhante... muito brilhante. Nunca ouvi falar de sua família, mas ele vai acabar tornando-se conhecido, qualquer dia destes...

Convidado, portanto, Stephen se saiu bem da prova. “Um jovem que é útil conhecer” — foi o comentário, inconscientemente arrogante, de Lady Kidderminster.

Dois meses mais tarde, Stephen resolveu jogar com a sorte. Estavam juntos no lado Serpentina, MacTavish sobre as patas traseiras, a cabeça apoiada no pé de Stephen.

— Sandra, você bem sabe... Você deve saber que eu a amo. Quero que se case comigo. Não sonharia em pedi-lo, se não tivesse certeza de que ainda vou subir muito na vida — estou certo disso. Você não se envergonhará de sua escolha — eu o prometo.

— Não estou envergonhada – disse ela.

— Então você gosta de mim?

— Não sabia?

— Tinha esperança que sim — mas não podia ter certeza. Sabe, eu a amo desde o primeiro momento em que a vi do outro lado da sala, e, tomando coragem, fui falar com você. Nunca fiquei tão apavorado em toda a minha vida...

— Acho que também me apaixonei naquele momento — respondeu a jovem.

A partir dali, nem tudo foi um mar de rosas. A calma declaração de Sandra, de que iria casar-se com Stephen Farraday, provocou imediatos protestos na família. Quem era ele, afinal de contas? O que sabiam a seu respeito?

Com Lorde Kidderminster, Stephen foi bastante franco a propósito de sua família e origens. Não pôde evitar que, por um breve instante, lhe atravessasse a consciência o pensamento de que era tanto melhor, para seus planos, que ambos os pais já estivessem mortos, agora.

— Bem, poderia ser pior — comentou Lorde Kidderminster, com a esposa. Conhecia muito bem a filha, sabia que sua aparência tranqüila escondia uma vontade inflexível. Se Sandra havia-se decidido casar com aquele rapaz , assim o faria. Nada poderia fazê-la mudar de idéia. — O jovem tem uma boa carreira à sua frente. Com um pouco de ajuda, poderá ir longe. Só Deus sabe como estamos precisando de sangue novo... Além do mais, ele parece ser um sujeito decente.

Lady Kidderminster concordou, a contragosto, com o marido. Aquela não era, absolutamente, a idéia que fazia de um bom casamento para uma de suas filhas. Mesmo Assim, tinha que reconhecer que Sandra era, sem dúvida, o caso mais difícil da família: Susan era linda; Esther, inteligente; Diana, aquela garota esperta, casara-se com o jovem Duque de Harwich, o melhor partido da temporada. Sandra era, de fato, a menos atraente; havia, também, o problema da timidez — e, se este rapaz tinha mesmo futuro, como todos pareciam supor... Deu-se por vencida, murmurando:

— Bem, que seja. Mas teremos que usar influência...

Assim, Alexandra Catherine Hayle uniu-se a Stephen Leonard Farraday, para o melhor e para o pior, vestida de cetim branco e rendas de Bruxelas, com seis damas-de-honra, dois pequenos pajens e todos os requisitos de um casamento da moda.

Passaram a lua-de-mel na Itália e, na volta, foram morar numa encantadora casa em Westminster. Pouco tempo depois, morria a madrinha de Sandra, deixando-lhes um lindo e aconchegante solar no campo, no estilo Rainha Ana. Tudo ia às mil maravilhas, para o jovem casal.

Stephen mergulhou na vida parlamentar, com renovado ardor. Sandra o ajudava e estimulava de todas as maneiras, identificando-se de corpo e alma com suas ambições. Algumas vezes Stephen se dava conta, quase com incredulidade, de como a sorte o favorecera! A aliança com o poderoso clã dos Kidderminster assegurava uma rápida ascensão em sua carreira; sua própria capacidade e brilhantismo se encarregariam de consolidar a posição que o acaso lhe proporcionara. Acreditava sinceramente em seu potencial, e estava preparado para trabalhar, sem poupar esforços, em prol do bem da nação.

Freqüentemente, contemplando-a por cima da mesa, sentia prazer ao refletir que maravilhosa parceria encontrara na esposa — exatamente como sempre havia imaginado. Apreciava os traços encantadoramente regulares da cabeça e do pescoço de Sandra, seus olhos francos, da cor de avelã, a testa bem alta e clara, e a tênue arrogância de seu nariz aquilino. Achava que a esposa sugeria um cavalo de raça — tão bem treinada, tão instintivamente refinada, tão altiva... Encontrava nela a companhia ideal: suas mentes chegavam, juntas às mesmas rápidas conclusões. Sim, pensava, Stephen Farraday — aquele menino desconsolado — havia-se arranjado muito bem. Sua vida estava seguindo exatamente os rumos que traçara. Com apenas trinta e um, ou trinta e dois anos, o sucesso já estava na palma da sua mão.

Neste espírito de triunfante satisfação, fora, com a mulher, passar uma quinzena em Saint Moritz. E então, através do vestíbulo do hotel, vira Rosemary Barton.

Nunca pôde entender o que lhe aconteceu naquele instante. Numa espécie de vingança política, as palavras que uma vez dissera a outra mulher se tornaram verdade: apaixonou-se, à primeira vista, por alguém do outro lado da sala. Estava profunda, completa e loucamente apaixonado. Era o tipo de amor desesperado, imaturo, impetuoso e adolescente que já deveria ter sentido — e superado — há vários anos atrás.

Sempre dera por certo que não era um homem capaz de grandes paixões. Um ou dois casos efêmeros, um flerte discreto — era isso, tanto quanto sabia, tudo o que a palavra “amor” significava para ele. Os prazeres sensuais não o atraíam. Dizia, com seus botões, que era muito seco para esse tipo de coisas.

Se lhe perguntassem se amava a esposa, responderia: “Certamente.” No entanto, possuía plena consciência de que não teria sequer sonhado em casar-se com Sandra se ela fosse, digamos, filha de um senhor rural sem vintém. Apreciava a mulher, admirava-a e sentia profunda afeição por ela, ao lado de uma gratidão bem real pelo que a posição de Sandra lhe havia trazido.

Foi para Stephen, uma verdadeira revelação que pudesse apaixonar-se com o abandono e tormento de um garoto inexperiente. Não conseguia desviar o pensamento de Rosemary — seu rosto sorridente, encantador, o profundo castanho de seu cabelo, a figura insinuante, voluptuosa... Não podia mais comer, nem dormir. Iam esquiar juntos> Dançava com ela. Percebia, quando a sentia junto a seu corpo, que a desejava mais do que tudo, no mundo. Então, o amor era isto, este sofrimento, esta agonia dolorosa e expectante!

Mesmo imerso no seu martírio, abençoava o destino por lhe haver dado uma aparência naturalmente imperturbável. Ninguém deveria suspeitar, ninguém podia saber o que estava sentindo — a não ser a própria Rosemary.

Os Barton partiram uma semana antes dos Farraday. Stephen disse, então, a Sandra, que Saint Moritz não estava muito divertido. Não seria melhor antecipar a partida, e voltar a Londres? A esposa concordara, muito amavelmente. Duas semanas após o regresso, ele se tornou amante de Rosemary.

Fora um período estranho, frenético, de puro êxtase — uma época de exaltação e irrealidade. Durara... quanto tempo, mesmo? Seis meses, no máximo. Seis meses, durante os quais Stephen continuou trabalhando como sempre. Visitava seu eleitorado, dava apartes na Câmara, falava em várias reuniões, discutia política com Sandra — e tinha um só pensamento: Rosemary. Os encontros secretos no pequeno apartamento, as declarações apaixonadas que Stephen derramava sobre a amante, a sua beleza, os beijos longos e apaixonados... Foi tudo um sonho — um sonho sensual, desvairado.

E então — o despertar. Parecia ter ocorrido bem subitamente, como se saísse de um túnel, para a luz do sol.

Num dia, era um homem estupidificado pela paixão; no seguinte, voltara a ser Stephen Farraday, achando que talvez não devesse ver Rosemary tão freqüentemente. Céus, vinham assumindo alguns riscos tremendos! Se Sandra algum dia suspeitasse... Observou-a, disfarçadamente, por sobre a mesa de café. Graças a Deus, ela de nada suspeitava, não fazia a menor idéia do que se estava passando... No entanto, ultimamente, algumas das desculpas que ele dera, para explicar sua ausência, tinham sido bem fracas — algumas mulheres teriam sentido que algo não estava cheirando bem; graças a Deus, Sandra não era desconfiada... Soltou um profundo suspiro. Na verdade, ele e Rosemary haviam sido muito imprudentes! Era de admirar que Barton não tivesse percebido nada — um desses sujeitos tolos, ingênuos, bem mais velho que a esposa... E que criatura encantadora era Rosemary!

Pensou, de repente, em campos de golfe. Ar fresco soprando sobre dunas de areia, ele caminhando com os tacos — balançando o taco de cabeça de madeira, preparando um lance longo... uma bela tacada inicial... um leve toque, com o taco de ferro número cinco... Homens. Homens em calças folgadas, presas pelos tornozelos, fumando cachimbos — e a entrada de mulheres, no campo, terminantemente proibida!

Dirigiu-se subitamente a Sandra:

— O que acharia de irmos para Fairhaven?

Ela levantou a cabeça, surpresa.

— Você gostaria? Seria possível afastar-se de Londres?

— Poderia pegar o meio da semana. Estou com vontade de jogar golfe. Venho-me sentindo fora de forma.

— Podemos ir amanhã, se você quiser. Vai ser preciso adiar os Astley, e vou ter que cancelar aquela reunião na terça-feira — mas o que faremos com os Lovat?

— Ora, despache-os, também. Basta inventar alguma desculpa. Estou realmente precisando afastar-me daqui.

Passara um período cheio de paz, em Fairhaven, com Sandra e os cachorros no terraço, o velho jardim cercado de muros, o golfe em Sandley Heath, as caminhadas no campo, ao anoitecer, com MacTavish nos calcanhares... Sentia-se como alguém convalescendo de uma doença.

Então, chegara a carta de Rosemary. Franziu o cenho, quando viu o envelope com sua letra. Dissera-lhe para não escrever — era muito arriscado. Sandra jamais lhe fazia perguntas sobre suas correspondências, mas, de qualquer forma, era imprudente; nem sempre se pode confiar nos criados... Levando a carta para o seu escritório, rasgou o envelope, meio aborrecido. Páginas — simplesmente páginas!

À medida que lia, porém, sentiu-se envolver, novamente, pelo velho encanto. Ela o adorava, amava-o mais do que nunca, não podia suportar cinco longos dias sem vê-lo. Ele também sentia o mesmo? O Leopardo sentia saudades de sua Etíope?

Deus um misto de suspiro e sorriso. Aquela brincadeira ridícula... Surgira quando, ao dar a Rosemary um robe de seda estampada, de feitio masculino, Stephen o comparara a um leopardo mudando as manchas, dizendo: “Mas você não deve trocar de pele, querida.” A partir daí, ela o apelidara de “Leopardo”, e ele a chamava de sua “Beldade Negra”. Terrivelmente bobo, na verdade. Sim, tolo demais.

Fora muito gentil, da parte de Rosemary, escrever tantas e tantas páginas — mas, ainda assim, não devia ter feito isso. Ora bolas, tinham que ser discretos! Sandra não era o tipo de mulher que agüentaria essa espécie de coisas. Se viesse a ter uma sombra de suspeita... Era perigoso escrever cartas. Havia prevenido Rosemary! Por que não podia esperar até que ele voltasse a Londres? Maldição, só faltavam dois ou três dias!

Na manhã seguinte, havia outra carta, na mesa do café. Desta vez, Stephen praguejou, intimamente. Teve a impressão de que os olhos de Sandra pousaram, alguns segundos, sobre a carta — mas ela não disse nada. Graças a Deus, nunca tivera o hábito de perguntar ao marido quem lhe escrevia...

Após o café, Stephen foi de carro até à cidade, oito milhas além. Não poderia ter-se arriscado a telefonar para Rosemary, dali mesmo.

— Alô? É você, Rosemary? Não escreva mai9s nenhuma carta, sim?

— Stephen, meu querido, que maravilha ouvir sua voz!

— Cuidado! Alguém pode escutá-la?

— É claro que não. Oh, m eu anjo, como sinto sua falta! Você tem sentido saudades minhas?

— Sim, sem dúvida. Mas pare de escrever. É muito arriscado.

— Gostou da minha carta? Teve a impressão de que eu estava a seu lado? Quero estar junto de você todo o tempo, meu amor! Também se sente assim, querido?

— Sim, mas não no telefone, minha cara.

— Você é tão ridiculamente cheio de precauções... O que importa?

— Estou zelando por você também, Rosemary. Não poderia suportar a idéia de lhe trazer qualquer problema.

— Não me importo com o que possa acontecer. Você sabe disso.

— Bem, eu me importo, querida.

— Quando você vai voltar?

— Terça-feira.

— Então, vamos nos encontrar no apartamento, na quarta.

— Sim... hum — sim.

— Meu amor, mal posso esperar! Não poderia dar alguma desculpa, e voltar hoje mesmo? Oh, Stephen, você bem que podia! Política, ou qualquer outro pretexto assim estúpido?

— Lamento, mas está fora de cogitação.

— Não acredito que você esteja sentindo nem metade das minhas saudades!

— Que bobagem, é lógico que sim.

Sentiu-se cansado, ao desligar. Por que as mulheres tinham de insistir em ser tão audaciosas? Rosemary e ele deveriam ser mais cuidadosos, no futuro, encontrar-se com menos freqüência.

A partir daí, as coisas se tornaram difíceis. Estava ocupado — muito ocupado. Era-lhe completamente impossível dedicar tanto tempo a Rosemary, e o pior é que ela parecia incapaz de compreender. Stephen tentava explicar, mas recusava-se a ouvi-lo!

— Ora, a sua estúpida política... Como se isso fosse importante!

— Mas é importante!

Ela não conseguia entender. Não se importava. Não tinha o menor interesse pelo seu trabalho, suas ambições, sua carreira. Tudo o que queria era ouvi-lo repetir, sempre e sempre, que a amava. “Você continua amando-me como antes? Diga, de novo, que realmente me ama!”

Certamente, pensava ele, Rosemary já devia ter-se convencido disso, a esta altura dos acontecimentos. Uma criatura tão adorável, tão encantadora — o único problema era que não se podia conversar com ela.

O erro todo era que se estavam vendo com exagerada assiduidade. Não se pode manter um caso amoroso continuamente em ponto de ebulição. Era preciso espaçar mais os encontros — afrouxar um pouco o ritmo.

Mas isso a deixava ressentida, e muito. Vivia censurando-o, agora: “Você não me ama tanto quanto antes.” Então, era obrigado a tranqüilizá-la, a jurar que sim. E Rosemary fazia questão de ressuscitar tudo aquilo que ele lhe havia dito, no passado:

— Lembra-se daquele dia em que disse que seria maravilhoso morrermos juntos? Adormecer para sempre, nos braços um do outro? Você se lembra de quando falou que seguiríamos numa caravana, para o deserto? Só as estrelas, os camelos... e como esqueceríamos o resto do mundo?

Que malditas tolices as pessoas falam, quando estão apaixonadas! Não parecem exageradas, no momento em que são ditas; mas ter que ouvi-las repetidas, a sangue-frio!... Por que as mulheres não sabem guardar as conveniências? Um homem não gosta de ser continuamente relembrado de como bancou o palhaço.

Rosemary começou a fazer, inesperadamente, solicitações absurdas: Stephen não poderia viajar para o sul da França, onde ela iria encontrá-lo, mais tarde? Ou para a Sicília, ou Córsega — um desses lugares onde é impossível encontrar algum conhecido? Ele respondeu, sombriamente, que não havia nenhum lugar assim, no mundo:

— Nos lugares mais improváveis, sempre se depara com algum velho amigo de escola, que já não víamos há anos.

A reação de Rosemary o assustou:

— E daí? Que diferença faria?

Subitamente alerta, atento, ele sentiu um frio interior.

— O que quer dizer com isso, Rosemary?

Ela estava sorrindo, o mesmo sorriso encantador que, antes, possuía o dom de abalar seu coração e fazer os ossos doerem de desejo. Agora, só conseguia deixá-lo impaciente.

— Leopardo, meu amor, às vezes penso que somos estúpidos em continuar com essa brincadeira de polícia-e-ladrão. Vamos parar de fingir. Vou divorciar-me de George, você se divorcia de sua esposa, e poderemos casar.

Então, era isso! Desastre — ruína! E ela não podia percebê-lo?

— Não a deixaria fazer uma coisa dessas.

— Ora, querido, eu não me importo! Na verdade, não sou muito convencional.

“Mas eu sou. Eu sou!” — gemeu Stephen, em pensamento.

— Acredito, firmemente, que o amor é a coisa mais importante do mundo. Não importa o que possam pensar de nós.

— A mim importa, querida. Um escândalo assim poderia acabar com a minha carreira.

— E isso seria muito importante, realmente? Há centenas de outras coisas que você poderia fazer.

— Não diga bobagens.

— Além do mais, para que precisaria de um emprego? Sou muito rica, você sabe — e estou-me referindo ao meu próprio dinheiro, não ao do George. Poderíamos viajar por todo o mundo, ir aos lugares mais remotos e encantadores — aonde, talvez, ninguém mais tivesse ido antes. Ou, quem sabe, uma ilha no Pacífico — imagine só... o sol quente, o mar azul, os recifes de coral...

Stephen podia perfeitamente imaginar. Uma ilha nos mares do sul! Não poderia haver idéia mais idiota. Que tipo de homem ela achava que ele era? Um rato de praia?

Via-a, agora, com olhos completamente desvendados. Uma encantadora criatura, com o cérebro de um passarinho! Havia sido um louco — total e completamente louco! Mas recuperara a sanidade, agora — e tinha que descobrir um jeito de sair dessa enrascada. Se não fosse prudente, ela arruinaria toda sua vida.

Apelou para todos os argumentos que centenas de homens já haviam usado, antes dele. Deveriam acabar com tudo — escreveu; era o mais justo para ela; não queria arriscar-se a acarretar-lhe problemas; ela, com certeza, poderia compreender — e assim por diante.

Estava tudo acabado. Precisava fazê-la compreender isto.

Mas tal coisa era, exatamente, o que Rosemary se recusava, terminantemente, a entender. Não ia ser tão simples assim. Ela o adorava, amava-o mais do que nunca, não poderia jamais viver sem ele! A coisa honesta a fazer seria contar toda a verdade ao marido, e Stephen fazer o mesmo com a mulher.

Stephen recordava perfeitamente bem a sensação de frio que sentira, ali sentado, segurando a carta que ela lhe escrevera. Aquela doidinha! Uma criança boba e possessiva... Quer dizer, então, que ela pretendia simplesmente chegar ate George Barton e despejar toda a história; George, em seguida, pediria o divórcio — citando-o como cúmplice no adultério! Sandra, forçosamente, também iria querer divorciar-se — disto ele não tinha a menor dúvida. Certa vez, falando de uma amiga, ela comentara, levemente surpresa: “Mas, é lógico, quando descobriu que o marido estava tendo um caso com outra mulher, que mais poderia ela fazer, senão pedir o divórcio?” Seria assim que Sandra se sentiria. Ela era orgulhosa. Jamais concordaria em dividir um homem.

Aí, ele estaria realmente acabado, sem apelação. Perderia o influente apoio dos Kidderminster. Seria o tipo de escândalo do qual não iria conseguir salvar nada, ainda que a opinião pública, hoje em dia, tivesse vistas mais largas do que antigamente — mas não num caso tão clamoroso como esse! Adeus aos sonhos, às ambições. Seria sua ruína, sua destruição _ e tudo por causa de uma paixão maluca, por uma tolinha! Apenas um amor adolescente, contraído na idade errada...

Perderia tudo o que havia jogado no tabuleiro da vida. Fracasso! Ignomínia!

Perderia Sandra...

Subitamente, com um choque de surpresa, percebeu que era isto o que mais lhe importava. Perderia Sandra, com sua pálida testa quadrada, e seus olhos límpidos, cor de avelã, a querida amiga e companheira, sua arrogante, orgulhosa, leal Sandra. Não, ele não a perderia — não era possível... Tudo, menos isso!

Gotas de suor surgiram-lhe na testa.

De algum modo, tinha que sair dessa confusão. Era indispensável descobrir um jeito de fazer Rosemary escutar a voz da razão... Mas seria isso possível? Rosemary e razão eram duas coisas que não combinavam. E se lhe dissesse que, afinal de contas, amava a esposa? Não. Ela simplesmente não acreditaria. Rosemary era tão estúpida, tola, possessiva, sufocante! E, para completar, ela ainda o amava — era isso que tornava tudo mais diabolicamente difícil!

Uma raiva cega o dominou. Como seria humanamente possível mantê-la quieta? Como fechar sua boca? Nada mais suave do que uma boa dose de veneno conseguiria isso, pensou amargamente.

Próximo a ele, uma vespa estava zumbindo. Olhou-a, absorto. A vespa caiu num pote de geléia, e ficou lutando para sair. “Igualzinha a mim”, pensou, “apanhada na armadilha da doçura — e agora não consegue escapar, pobre coitada.”

Mas ele, Stephen Farraday, descobriria um modo de se safar. Precisava apenas de tempo — tinha que ganhar tempo...

Rosemary, no momento, estava de cama, com gripe. Stephen havia, convencionalmente, mandado saber notícias dela — e enviara um grande buquê de flores. Isso lhe dera uma breve folga. Na semana seguinte, ele e Sandra iriam jantar com os Barton — um jantar de aniversário, para Rosemary. Ela havia dito: “Não vou tomar qualquer atitude, até depois do meu aniversário. Seria muito cruel para com George — tem estado tão animado com isso! Ele é um amor. Depois de passada a festa, vamos ter um entendimento.”

E se ele lhe dissesse, brutalmente, que estava tudo acabado, que não mais a amava? Sentiu um calafrio. Não, não ousaria fazer tal coisa. Ela poderia ficar histérica e ir contar tudo a George; poderia até procurar Sandra! Já podia imaginar Rosemary chorosa, falando numa voz espantada: “Ele diz que não me ama mais. Sei, porém, que não é verdade. Está apenas tentando ser leal a você. Mas acho que a única saída, quando duas pessoas se amam, é a honestidade — e sei que você concorda comigo. É por isso que estou aqui, pedindo-lhe para devolver sua liberdade.”

Seria exatamente, o tipo de discurso nauseante que ela despejaria. EW Sandra, o rosto orgulhoso e cheio de desdém, responderia: “Ele está livre.”

Sandra não iria acreditar — como poderia? Mas, se Rosemary trouxesse aquelas cartas — as cartas que ele fora suficientemente idiota para lhe escrever... Só Deus sabia o que havia escrito! Era mais do que o bastante para convencer Sandra — o tipo de carta que nunca escrevera para ela...

Precisava pensar em algo: um modo de manter Rosemary quieta!

“É uma pena”, pensou sombriamente, “Que não vivamos na época dos Bórgia...”

Uma taça de champanha envenenada seria, talvez, a única coisa capaz de assegurar o silencio de Rosemary. Sim, ele realmente pensara isso.

Cianureto de potássio na taça de champanha. Cianureto de potássio na sua bolsa. Depressão aguda, após uma gripe.

E, através da mesa, os olhos de Sandra, encontrando os dele.

Quase um ano atrás — e Stephen não conseguia esquecer.

 

                   ALEXANDRA FARRADAY

 

Sandra Farraday não esquecera Rosemary Barton.

Neste exato momento, estava pensando nela — revendo-a como naquela noite, caída para a frente, sobre a mesa do restaurante. Podia recordar seu próprio suspiro, profundo, vindo do mais íntimo do seu ser, e como, erguendo os olhos, percebera que Stephen a estava observando. Teria ele podido ler a verdade em seus olhos? Teria visto o ódio, e o misto de horror e triunfo?

Já fazia quase um ano agora — e tudo permanecia fresco em sua memória, como se fosse ontem! “Aqui está o alecrim, quer traz a recordação”* — quão horrivelmente verdadeiro era isso... De que valia uma pessoa ter morrido, se continuava vivendo, na memória dos outros? Era o que Rosemary havia feito. Estava, bem viva, na mente de Sandra — e será que na Stephen, também? Sandra não sabia, mas achava que sim.

O Luxembourg — aquele lugar detestável, com sua excelente comida, seus hábeis e velozes garçons, suas instalações luxuosamente decoradas... Impossível evitar o maldito restaurante, quando os amigos a viviam convidando para ir lá.

Gostaria de poder esquecer, mas tudo conspirava para fazê-la lembrar-se. Mesmo Fairhaven não era mais um lugar isento de recordações, agora que George Barton viera ocupar Little Priors.

Essa havia sido, realmente, uma atitude extraordinária da parte dele. Decididamente, George Barton era um homem estranho — nem por sombra o tipo de vizinho que gostaria de ter. Sua presença em Little Priors estragara, para Sandra, o encanto e a paz de Fairhaven. Até este verão, Fairhaven, sempre fora um lugar de recuperação e repouso, um lugar onde ela e Stephen haviam sido felizes — se é que eles jamais o foram.

Seus lábios se apertaram num ricto. Sim, mil vezes sim! Seriam felizes, se não fosse por Rosemary Barton. Fora Rosemary quem derrubara a delicada estrutura de carinho e confiança mútua, que ela e Stephen estavam começando a construir.

 

* N.T.: “Alecrim”: “Rosemary”, em inglês.

 

Alguma coisa, algum instinto sempre fizera Sandra esconder de Stephen a paixão, a devoção exclusiva que sentia por ele. Amara-o desde o momento em que Stephen havia atravessado o salão da casa de seus pais, fingindo ser tímido, fingindo não saber quem ela era — pois lógico que ele sabia!

Sandra não poderia precisar quando, exatamente, admitira este fato pela primeira vez. Um dia, algum tempo depois de estarem casados, Stephen estava discorrendo sobre uma habilidosa manobra política, para a aprovação de um certo projeto de lei. Um pensamento atravessara, então, o cérebro de Sandra: “Isso me faz lembrar alguma coisa. O que?” Mais tarde, havia compreendido que aquela era, em essência, a mesma tática usada por ele naquela noite, na mansão Kidderminster. Aceitara o fato sem surpresa, como se fosse algo que sempre havia sabido, mas que só agora lhe aflorara à superfície da consciência.

Desde o próprio dia do casamento, compreendera que Stephen não retribuía seu amor com semelhante intensidade. Conformara-se, por achar que o marido era, simplesmente, incapaz de tal amor. Tamanha capacidade de paixão pertencia só a ela, era sua exclusiva, infeliz herança — amar com um desespero, com uma intensidade que eram, bem sabia, raros entre as mulheres! Poderia, de bom grado, morrer por Stephen; estava pronta a mentir por ele, conspirar a seu favor, sofrer em seu lugar, se preciso fosse. Em vez disso, aceitara com orgulho e discrição o papel que o marido lhe destinara. Stephen queria sua cooperação, sua simpatia, sua ativa ajuda intelectual. Não desejava o coração da esposa, mas o seu cérebro, e as vantagens materiais que possuía, por nascimento.

Uma coisa Sandra jamais faria: embaraçar Stephen, exibindo uma devoção que ele nunca seria capaz de retribuir adequadamente. Além do mais, acreditava sinceramente que o marido gostava dela, que encontrava prazer na sua companhia. Podia mesmo antever um futuro em que seu fardo seria imensamente aliviado — um futuro de ternura e amizade. À sua maneira, pensava, Stephen a amava...

E então apareceu Rosemary.

Às vezes Sandra ficava pensando, os lábios contorcidos, como era possível que Stephen imaginasse, que ela não sabia de nada. Soubera desde o primeiro instante — lá mesmo, em Saint Moritz, ao perceber o jeito como ele olhava para aquela mulher... No próprio dia em que se tornaram amantes, Sandra ficou sabendo — conhecia o perfume daquela sem-vergonha.

No rosto polido de Stephen, nos seus olhos distraídos, podia ler exatamente quais eram as recordações que povoavam a mente do marido, os pensamentos que estava dirigindo a... àquela mulher. Àquela mulher de cujos braços tinha acabado de sair!

Seria difícil, pensava desapaixonadamente, avaliar o sofrimento por que havia passado. Dia após dia, suportara torturas infernais, sem nada para sustentá-la senão sua crença na coragem — o orgulho que lhe era natural. Não, nunca mostraria o que estava sentindo. Perdeu peso, ficou mais magra e pálida, os ossos do crânio e dos ombros mais salientes, sob a pele bem esticada. Obrigava-se a comer, mas não podia forçar o sono. Passou longas noites deitada, os olhos secos, contemplando a escuridão. Desprezava o recurso a soporíferos — seria um sinal de fraqueza. Agüentaria, calada. Abominava a simples idéia de mostrar-se ferida, pedir, protestar.

No meio de todo aquele martírio, havia uma migalha de conforto, um pobre consolo: Stephen não desejava deixá-la. Era bem verdade que assim agia pela preservação de sua carreira, e não por amor a ela, mas, de qualquer forma, o fato permanecia. Stephen não queria deixá-la.

Um dia, talvez, aquela paixão passaria...

Afinal de contas, o que podia ele ver em Rosemary? Era linda e atraente — mas havia outras mulheres assim. O que vira de especial em Rosemary Barton, para ficar tão enfeitiçado?

Rosemary não tinha um pingo de inteligência, era uma tola e nem sequer podia ser considerada particularmente divertida. Era a esse último ponto que Sandra se agarrava. Se Rosemary tivesse espírito, o dom de agradar, estimular — estas, sim, eram qualidades que prendiam os homens. Sandra agarrava-se à convicção de que o romance acabaria — mais cedo ou mais tarde. Stephen iria cansar-se.

Estava convencida de que o principal interesse na vida do marido era o trabalho. Ele fora talhado para fazer grandes coisas, e sabia disso. Possuía um arguto cérebro de estadista, e deleitava-se em usá-lo. Era esta a sua missão na vida — e, certamente, tão logo o feitiço começasse a perder força, ele o compreenderia.

Nunca, nem por um minuto, Sandra considerou a hipótese de deixá-lo; a idéia nem sequer lhe passou pela cabeça. Pertencia a Stephen, de corpo e alma, quer ele a quisesse ou não. Ele era sua vida, sua existência. O amor queimava dentro dela, com uma força medieval.

Por um momento, chegara a ter esperança: haviam ido para Fairhaven, e o marido parecera voltar a ser o Stephen de antes. Sandra sentira, de súbito, a renovação da velha simpatia que houvera entre eles. A esperança crescera em seu coração. Stephen ainda a queria, sentia prazer em tê-la a seu lado, confiava no seu julgamento. Pelo menos por enquanto, ele havia escapado das garras da outra. Stephen parecia mais feliz, mais no seu natural. Nada estava irremediavelmente perdido. Ele estava conseguindo superar. Se ao menos conseguisse tomar a decisão de romper com aquela mulher...

Então, com a volta a Londres, o marido recaíra. Parecia abatido, preocupado, doente. Começou a não mais conseguir concentrar-se no trabalho.

Sandra pensava saber o motivo: Rosemary devia estar querendo que Stephen fugisse com ela. Com certeza, ele estava tentando decidir-se a dar o passo final — romper com tudo o que mais lhe importava. Insensatez! Loucura! Stephen seria sempre o tipo do homem para quem o trabalho vinha sempre em primeiro lugar. Era bastante britânico, a esse respeito — e, lá no fundo de si mesmo, devia sabê-lo. Mas havia Rosemary, muito linda... e muito burra. Stephen não seria o primeiro a jogar fora sua carreira, por uma mulher, e se arrepender mais tarde.

Um dia, num coquetel, conseguira interceptar uns trechos de conversa entre os dois: “Contar a George... temos que tomar uma decisão.” Pouco depois, Rosemary caíra de cama, com gripe.

Uma tênue esperança surgira no coração de Sandra. E se Rosemary pegasse pneumonia? Era bem possível, após uma gripe — ainda no inverno anterior, uma jovem amiga sua havia morrido assim. Se Rosemary morresse...

Não tentara reprimir este pensamento, não ficara horrorizada consigo mesma. Era medieval o bastante para odiar com firmeza e sem remorsos. Odiava Rosemary Barton. Se pensamentos matassem, ela a teria assassinado.

Mas pensamentos não matam — eles não são o suficiente.

Como Rosemary estivera linda, naquela noite no Luxembourg, com a pele de raposa prateada escorregando-lhe dos ombros, no toalete das senhoras! Um pouco mais magra e pálida, após a doença — um certo ar de fragilidade, que tornava sua beleza mais etérea. Ficara na frente do espelho, retocando a pintura.

Sandra, por trás dela, contemplara seus respectivos reflexos no espelho. Seu próprio rosto lembrava o de uma estátua, frio, sem vida, parecendo isento de qualquer emoção — uma mulher fria e dura.

Rosemary falara, então:

— Oh, Sandra, estou tomando todo o espelho, não é? Já acabei. Essa gripe horrível me deixou muito abatida. Estou parecendo um fantasma. Ainda continuo com fraqueza e dor de cabeça.

Sandra perguntou, com polido interesse:

— Está com dor de cabeça, hoje?

— Um pouco. Você teria uma aspirina, por acaso?

— Tenho sempre comigo um analgésico, o Cachet Faivre.

Abrindo a bolsa, retirou o remédio. Rosemary aceitou-o, agradecendo:

— Vou guardá-lo na bolsa, para o caso de a dor aumentar.

Miss Lessing, a secretária de Barton — uma jovem competente, de cabelos escuros — presenciara a breve cena. Viera, por sua vez, até o espelho, para colocar um pouco de pó. Tinha uma aparência agradável, quase bela. Sandra teve a impressão de que Miss Lessing não gostava de Rosemary.

Saíram, então, do toalete: Sandra na frente, em seguida Rosemary, depois Miss Lessing e... sim, é claro, a pequena Íris, irmã de Rosemary. Ela também estivera lá. Muito excitada, com grandes olhos acinzentados e um vestido branco, que a fazia parecer uma colegial.

Reuniram-se aos cavalheiros, na entrada.

O maître acorrera, pressurosamente, e os levara até a mesa, num recanto do salão. Entraram, passando sob o grande arco — e não houvera nada, absolutamente nada, para prevenir uma delas de que jamais sairia por aquela porta, viva...

 

                               GEORGE BARTON

 

“Rosemary”...

George Barton pousou o copo e ficou olhando o fogo, pensativamente. Bebera o suficiente para ficar sentimental, com pena de si mesmo.

Que linda mulher fora Rosemary! Sempre havia sido louco pela esposa; ela o sabia, mas George sempre achara que a exibição do seu sentimento apenas a divertiria.

Mesmo quando a pediu em casamento, o fez sem qualquer convicção. Comportava-se como um perfeito idiota, resmungando as palavras, cortando as frases ao meio:

— Sabe, minha cara, a qualquer tempo... basta você dizer. Mas sei que não vai adiantar — você nem olharia para mim. Sempre fui um grande tolo; além disso, tenho um pouco de barriga. Mas você sabe como me sinto, não sabe? Quero dizer — vou estar sempre à sua disposição. Reconheço que não tenho a menor possibilidade, mas achei que era bom pelo menos mencionar o fato...

Rosemary rira, beijando-o no alto da cabeça:

— Você é um amor, George, e prometo lembrar-me de seu gentil pedido; mas, por enquanto, não estou pensando em casamento.

Ele respondera, sério:

— Está certo. Não se apresse, olhe bem à sua volta — você pode escolher.

Nunca tivera realmente esperança — daí porque ficou tão incrédulo, tão deslumbrado quando Rosemary declarou, afinal, que ia casar-se com ele. Não o amava, é claro, e George sabia disso perfeitamente. Na verdade, ela própria admitia o fato:

   — Você compreende, não é? Quero sentir-me estável, feliz, segura... Sei que vou ter tudo isso, a seu lado. Já estou farta de me apaixonar. Sempre acaba dando errado, por qualquer motivo, e a coisa termina numa grande confusão. Gosto de você, George. Você é bom, doce, e me acha maravilhosa. Isso é tudo que desejo.

Ele respondera, meio incoerentemente:

— Estabilidade, eu garanto. Vamos ser felizes como reis!

Tal afirmativa aproximara-se bastante da verdade. Haviam sido felizes. George sempre se sentira humilde, por dentro; sempre repetira, para si mesmo, que era inevitável haver problemas — Rosemary nunca iria se satisfazer com um sujeito tão sem graça como ele. Haveria incidentes! Disciplinara-se, para aceitá-los. Firmar-se-ia, sempre, no pensamento de que essas aventuras não durariam; Rosemary sempre voltaria para ele. Uma vez aceito esse modo de ver as coisas, tudo estaria bem.

Rosemary gostava do marido, com uma afeição que era constante e sem variações, independente dos flertes e casos amorosos. George treinara-se para aceitar os deslizes da esposa; repetia, com seus botões, que eram inevitáveis, em se tratando de alguém com o temperamento suscetível e a rara beleza de Rosemary. Não contara, porém, com as suas próprias reações.

Flertes com este ou aquele rapaz não significavam nada — mas quando pela primeira vez suspeitou que a coisa agora era séria...

Havia sabido logo, sentindo a modificação que se processara na esposa: a crescente excitação, a nova beleza, toda a brilhante radiância... E então, aquilo que seu instinto já lhe dissera acabou sendo confirmado pela crueza do fato concreto.

Tudo aconteceu naquele dia em que, entrando na sala de estar de Rosemary, George a vira cobrir com a mão, instintivamente, a página da carta que estava escrevendo. Concluíra, de imediato, que o destinatário só podia ser um: amante. Logo depois, a esposa saíra da sala, levando a carta consigo. George fora olhar o mata-borrão — ainda estava úmido! Levando-o até o espelho, do outro lado da sala, vira as terríveis palavras, na enérgica letra de Rosemary: “Meu querido amor...”

O sangue lhe subira à cabeça. Compreendera, naquele momento, exatamente o que Otelo devia ter sentido... Resoluções sábias? Bah! Só o homem primitivo contava. Gostaria de estrangulá-la. Gostaria de matar o sujeito, a sangue-frio? Quem seria ele? O tal de Browne? Ou o empertigado Stephen Farraday? Ambos vinham arrastando a asa a Rosemary...

Percebera, então, seu rosto no espelho: os olhos estavam injetados de sangue, parecia na iminência de ter um ataque!

Ao lembrar-se daquele momento, George Barton deixou o copo cair de suas mãos. Sentia, mais uma vez, a sensação de estar sendo sufocado, o sangue pulsando nas têmporas. Mesmo agora...

Com um esforço, afastou a recordação. Não precisava voltar a suportar tudo aquilo. Já havia passado — terminara. Jamais sofreria tanto, novamente!

Rosemary estava morta. Morta, descansando em paz. E ele, por sua vez, também finalmente encontrara o descanso. O sofrimento acabara. Engraçado pensar que era isso o que a morte da esposa tinha significado para ele — paz...

Nunca falara sobre isso com Ruth. Boa garota, aquela. Uma excelente cabeça. Na verdade, não sabia o que faria sem ela — o modo como ajudava, como mostrava simpatia. E, nunca, sequer uma sugestão de sexo. Não era louca por homens, como Rosemary...

Rosemary, Rosemary, sentada à mesa redonda do restaurante. O rosto um pouco mais fino, após a gripe — um pouco abatida — mas encantadora, tão encantadora! E, apenas uma hora depois...

Não iria pensar nisso. Não agora. Seu plano — pensaria somente no plano!

Falaria com Race, primeiro. Mostraria as cartas. Qual seria a opinião do amigo, sobre elas? Íris chegara a perder a voz, de espanto — evidentemente, não fazia a menor idéia do assunto.

Bem, ele agora estava no comando da situação. Já tinha tudo sob controle.

O Plano. Tudo preparado. A data. O lugar. Primeiro de novembro, Dia de Todos os Santos — isso daria um toque especial. O Luxembourg, é claro. Tentaria conseguir a mesma mesa. Os mesmos convidados: Anthony Browne, Stephen e Sandra Farraday; além, é claro, dele próprio, Íris e Ruth. O sétimo convidado seria Race — Race, que também tinha sido chamado para o outro jantar...

E haveria um lugar vago.

Seria esplêndido! Dramático! Uma repetição do crime — bem, não exatamente uma repetição...

Sua memória recuou.

O aniversário de Rosemary... Rosemary, caída para a frente, sobre a mesa — morta!...

 

                   O DIA DE TODOS OS SANTOS

           “Aqui está o alecrim, que traz a recordação”

 

Lucilla Drake estava chilreando. Era este o termo sempre usado na família — na verdade, uma ótima descrição para os sons que saíam dos simpáticos lábios de Lucilla.

Nesta manhã, em particular, estava preocupada com muitas coisas — tantas, que achava difícil concentrar a atenção numa, de cada vez. Havia a iminente volta à cidade, com todos os problemas domésticos envolvidos nessa mudança. Empregados, a direção da casa, a armazenagem para o inverso, mil pequenos detalhes — todos eles disputando, em sua atenção, o lugar ocupado pela preocupação que a aparência de Íris lhe causava.

— Realmente, minha querida, estou muito ansiosa a seu respeito. Está tão branca e abatida, como se não tivesse dormido! Você dormiu bem? Se não, deve tomar aquele ótimo remédio para dormir, do Dr. Wylie — ou será do Dr. Gaskell? Aliás, isso me lembra: tenho que ir, eu mesma, falar com o merceeiro; ou as empregadas estão encomendando coisas por conta própria, ou é uma descarada ladroeira da parte dele. Pacotes e pacotes de sabão em pó — e eu nunca encomendo mais do que três, por semana. Mas talvez um tônico fosse melhor? O Xarope Easton — era o que se usava, quando eu era pequena. E espinafre, é claro. Vou mandar a cozinheira fazer espinafre para o almoço de hoje.

Íris estava por demais apática e acostumada ao estilo discursivo de Mrs. Drake, para perguntar por que a menção do nome do Dr. Gaskell a teria feito lembrar do merceeiro. Se, porém, fizesse a pergunta, receberia uma pronta resposta: “Porque o nome do merceeiro é Cranford, minha querida.” O raciocínio de Tia Lucilla era sempre claro como cristal, para ela própria...

Assim, Íris disse apenas, com toda a energia que conseguiu reunir:

— Estou perfeitamente bem, Tia Lucilla.

— Você está com olheiras — respondeu Mrs. Drake. — Está-se desgastando demais.

— Há semanas que não faço nada!

— Isso é o que você pensa, querida. Acontece que tênis, em excesso, pode ser exaustivo, para mocinhas. E acho que o ar daqui tende a ser enervante — esse lugar fica num buraco. Se George tivesse consultado a mim, em vez daquela moça...

— Que moça?

— A tal de Miss Lessing, que George coloca num pedestal. No escritório, pode estar muito certo — mas é um grande erro fazê-la sair do seu lugar. Só serve para encorajá-la a pensar que faz parte da família — não que ela necessite de muito encorajamento, aliás.

— Ora, Tia Lucilla, mas Ruth é, praticamente, da família!

Mrs. Drake fungou.

— Ela tem a intenção de ser — isto é mais do que claro. Pobre George! Não passa de um bebê de colo, no que se refere a mulheres. Mas não vai ser assim, Íris. George tem que ser protegido de si mesmo; e, se eu fosse você, deixaria bem claro que, por mais perfeita que seja Miss Lessing, qualquer idéia de casamento está fora de questão.

O espanto fez Íris sair de sua apatia, por um momento.

— Nunca imaginei George se casando com Ruth.

— Minha criança, você não enxerga o que está embaixo do seu nariz. Mas, é claro, você não tem minha experiência da vida.

Íris sorriu, a despeito de si mesma. Tia Lucilla era realmente muito engraçada, às vezes.

— Aquela senhorita está de olho no altar — continuou Lucilla.

— E que importância tem isso?

— Importância? É lógico que importa.

— Mas esse casamento não seria ótimo, na verdade? — perguntou Íris.

A tia olhou-a surpreendida, Íris prosseguiu:

— Ótimo para George, quero dizer. Sabe, acho que a senhora está certa, a respeito de Ruth: tenho a impressão de que gosta dele. E daria uma excelente esposa, cuidaria bem de George...

Mrs. Drake resfolegou. Uma expressão quase indignada apareceu em seu rosto, habitualmente amável como o de um cordeirinho:

— George já está sendo muito bem cuidado. Ótimas refeições, e roupa cerzida. O que mais poderia ele desejar, se me permite saber? É muito agradável, para ele, ter uma jovem atraente como você, pela casa; e, quando um dia você se casar, espero estar ainda em condições de zelar pelo conforto dele, e cuidar de sua saúde — tão bem ou melhor, até, do que uma secretariazinha saída de um escritório. O que é que ela sabe da direção de uma casa? Números, arquivos, taquigrafia, datilografia... De que vale tudo isso, no lar de um homem?

Íris sorriu, abanando a cabeça, mas não discutiu esse ponto. Estava pensando na seda macia e escura dos cabelos de Ruth, na sua pele clara e no corpo bem realçado pelos severos costumes que usava, feitos em alfaiate. Pobre Tia Lucilla, tão preocupada com o conforto e a administração da casa, tão distante da juventude que, provavelmente, esquecera o significado da palavra “romance”... Lembrando-se de seu tio por afinidade, Íris chegava a duvidar que isso jamais tivesse significado muita coisa, para Lucilla.

Lucilla Drake era meia-irmã de Hector Marle, filha de um casamento anterior de seu pai. Quando a madrasta morreu, desempenhou o papel de mãe, para Hector, muito mais novo. Cuidando do pai, enrijeceu-se no celibato; estava beirando os quarenta anos, ao conhecer o Reverendo Caleb Drake, ele próprio já passado dos cinqüenta. Sua vida de casada havia sido bem curta: apenas dois anos mais tarde, já era uma viúva, com um filho.

A maternidade, acontecendo tardia e inesperadamente, foi a suprema experiência da vida de Lucilla. Com o tempo, o filho tornou-se, para ela, uma ansiedade, uma fonte de sofrimento, uma constante sangria financeira — mas nunca um desapontamento.

Mrs. Drake recusava-se a reconhecer em Victor qualquer coisa mais séria do que uma amável fraqueza de caráter. Victor era por demais confiante — deixava-se arrastar facilmente pelas más companhias, devido à confiança que nelas depositava; Victor era azarado; Victor era enganado; Victor era trapaceado... Não passava de um joguete de homens maus, que exploravam sua inocência.

Quando ouvia qualquer crítica a ele, o rosto de Mrs. Drake, agradável e simplório como o de um cordeirinho, se endurecia, de pura obstinação. Conhecia bem o filho — era um menino querido, cheio de boas intenções, e aqueles que se diziam seus amigos se aproveitavam dele. Lucilla sabia, melhor do que ninguém, como Victor detestava ter que pedir-lhe dinheiro. Mas o que poderia ele fazer, quando estava realmente numa situação tão terrível? Não era como se tivesse alguém mais a quem recorrer, senão a ela.

De qualquer forma, admitia Lucilla, o convite para vir morar na casa de George, e cuidar de Íris, havia sido um presente dos céus — recebido num momento em que, na verdade, passava os desesperados apertos de uma pobreza digna. Sua vida no último ano, ali naquela casa, fora muito feliz e confortável — e não estava na natureza humana ver com bons olhos a possibilidade de ser desalojada por uma jovem ambiciosa, cheia de moderna eficiência e capacidade; de resto, Lucilla tinha certeza de que Ruth casaria com George apenas pelo dinheiro.

Lógico que era isso o que a moça queria! Um bom lar, e um marido rico e indulgente. Ninguém convenceria Tia Lucilla, na sua idade, de que uma jovem pudesse realmente gostar de trabalhar para viver! Garotas eram sempre as mesmas, através dos tempos: se conseguissem um homem, para garantir seu conforto, iriam preferir de longe essa alternativa... A tal de Ruth Lessing era muito esperta, cavando seu caminho até uma posição de confiança, aconselhando George sobre a decoração da casa, tornando-se indispensável — mas, graças a Deus, havia pelo menos uma pessoa que podia ver quais eram suas intenções!

Lucilla Drake concordou com a cabeça, várias vezes, fazendo tremer o flácido queixo duplo; ergueu as sobrancelhas, com um ar de sapiência sobre-humana, resolvendo abandonar o assunto, por outro igualmente interessante — e talvez ainda mais premente.

— São os cobertores q       eu estão-me botando indecisa, minha querida. Sabe, ainda não consegui apurar se vamos voltar aqui apenas na próxima primavera, ou se George pretende vir para os fins de semana. Ele teima em não dizer claramente quais são seus planos.

— É provável que, na verdade, ele próprio não o s saiba — Íris tentou concentrar a atenção neste ponto, que lhe parecia totalmente sem importância. — Com bom tempo, talvez fosse agradável vir para cá, às vezes. No entanto, não creio que fizesse muita questão. De qualquer forma, a casa estará aqui, se decidirmos vir.

— Sim, minha garota, mas é preciso saber. Porque, você entende, se não formos voltar até o ano que vem, os cobertores devem ser guardados com bolas de naftalina; mas, se viermos para os fins de semana, isso não será necessário, pois os cobertores vão ser usados — e o cheiro de naftalina é tão desagradável!

— Nesse caso, desista da naftalina.

— Acontece que o verão foi tão quente que isso aqui está cheio de traças! Todo mundo diz que este é um mau ano, no que se refere a traças; e as vespas também, é claro. Hawkins me disse ontem que destruiu trinta ninhos de vespas, este verão... trinta, imagine!

Íris pensou em Hawkins, de tocaia, na penumbra, com cianureto na mão... cianureto — Rosemary! Por que tudo sempre voltava ao mesmo ponto?

O fio de voz de Tia Lucilla estava prosseguindo, já tendo agora alcançado outro assunto:

— ... e se deveríamos, ou não, mandar a prataria para o banco? Lady Alexandra estava falando de tantos assaltos — embora, é claro, tenhamos janelas seguras... Não gosto do jeito dela pentear o cabelo: faz seu rosto parecer tão duro! Mas acho que ela é, realmente, uma pessoa dura; e nervosa, também. Todo mundo é nervoso, hoje em dia. Quando eu era menina, ninguém sabia o que significavam nervos. Isso me recorda que ultimamente não venho gostando da aparência de George. Será que ele vai ficar gripado? Uma ou duas vezes, fiquei imaginando se ele não estaria com febre — mas talvez seja alguma preocupação de negócios. Na verdade, ele dá a impressão de estar com alguma coisa em mente.

Íris estremeceu, e Lucilla Drake exclamou, triunfante:

— Aí está! Bem que eu disse que você estava resfriada!

 

— Gostaria que nunca tivéssemos vinda para cá!

Sandra Farraday resmungou estas palavras com uma amargura tão incomum que o marido se voltou para olhá-la, surpreso. Era como se seus próprios pensamentos tivessem sido finalmente verbalizados — os pensamentos que vinha, com tanto afinco, tentando esconder. Quer dizer, então, que Sandra também se sentia como ele? Também achava que aqueles novos vizinhos, uma milha para lá do parque, haviam estragado Fairhaven, perturbado sua paz?

Não conseguindo deixar de exprimir sua surpresa, Stephen comentou, num impulso:

— Não sabia que você sentia o mesmo que eu, a respeito deles!

Imediatamente — ou assim lhe pareceu — a esposa se retraiu:

— Vizinhos são tão importantes, no campo... Ou se é rude, ou se é cordial — não é possível, como em Londres, mantê-los apenas como amáveis conhecidos.

— Realmente — disse Stephen — não se pode fazer isso.

— E agora estamos amarrados a esse extraordinário trio!

Em silencio, ficaram os dois rememorando a cena do almoço. O comportamento de George Barton fora amistoso, até mesmo exuberante, com uma espécie de excitação subliminar, que não passara despercebida a ambos. Andava mesmo muito estranho, ultimamente...

Stephen nunca reparara muito nele, antes da morte de Rosemary. Ficava simplesmente em segundo plano — o marido, bondoso e sem graça, de uma esposa jovem e bela. Jamais sentira sequer uma pontada de inquietação, por traí-lo. George era o tipo do marido que nasceu para ser enganado — tão mais velho... tão carente dos atrativos necessários para prender uma caprichosa e encantadora mulher! Será que percebera alguma coisa? Stephen achava que sim. Parecia-lhe que George conhecia Rosemary muito bem; amava-a, e não era homem de se iludir quanto à própria capacidade para manter o interesse da esposa. De qualquer forma, devia ter sofrido.

Stephen pôs-se a imaginar o que, exatamente, George sentira, quando Rosemary morrera. Pouco o tinham visto, nos meses seguintes à tragédia. Não fora senão com seu súbito aparecimento como vizinho, em Little Priors, que ele reentrara em suas vidas. Desde logo, parecera diferente: mais vivo, mais positivo, e — sim, decididamente estranho.

Estivera estranho, hoje. Aquele convite, subitamente lançado — uma festa pelos dezoito anos de Íris. Fazia questão de que Stephen e Sandra comparecessem — ambos haviam sido tão gentis com eles, aqui no campo.

Sandra respondera que, sem dúvida, seria ótimo. Naturalmente, Stephen estaria bastante ocupado, quando voltassem para Londres, e ela própria teria um sem-número de compromissos maçantes — mas sinceramente esperava conseguir dar um jeito de comparecer.

— Então, que tal marcar o dia agora?

O rosto de George... corado, sorridente, insistindo.

— Tinha pensado num dia da semana depois da próxima; que tal quarta ou quinta-feira? Quinta será dia primeiro de novembro. Estaria bom, assim? Mas podemos combinar qualquer data que sirva para vocês dois.

Era o tipo de convite que forçava uma definição — havia nele uma certa falta de savoir-faire social. Stephen percebera que Íris Marle ficara vermelha, parecendo embaraçada. Sandra fora perfeita. Rendera-se, sorridentemente, ao inevitável, dizendo que primeiro de novembro, quinta-feira, estaria perfeito para eles.

Colocando agora o pensamento em palavras, Stephen falou, abruptamente:

— Não somos obrigados a ir.

Sandra voltou ligeiramente o rosto para o marido, com um ar de pensativa especulação:

— Você acha que podemos escapar?

— É fácil dar alguma desculpa.

— Barton simplesmente insistiria para que fôssemos qualquer outra hora, ou trocaria a data. Ele... ele parece fazer muita questão da nossa presença.

— Não consigo imaginar por quê. É o aniversário de Íris — e não posso acreditar que ela esteja particularmente ansiando por nossa companhia.

— Não... não — a voz de Sandra soava pensativa. Falou, em seguida:

— Sabe onde vai ser a festa, Stephen?

— Não.

— No Luxembourg.

Stephen quase perdeu a voz, com o choque. Podia sentir o sangue subindo-lhe às maçãs do rosto. Recompôs-se, e enfrentou os olhos da esposa. Seria imaginação sua, ou havia mesmo alguma coisa naquele olhar tão imperturbável?

— Mas é um absurdo! — esbravejou, para tentar esconder sua própria emoção. — O Luxembourg, onde... Reviver tudo aquilo? O homem deve estar maluco!

— Cheguei a considerar essa hipótese — falou Sandra.

— Bem, nesse caso, certamente nos recusaremos a ir. Aquilo... a coisa toda foi terrivelmente desagradável. Você se lembra da publicidade, dos retratos nos jornais?

— Sim, foi muito desagradável — disse ela.

— Será que Barton não percebe como seria constrangedor, para nós?

— Na verdade, Stephen, ele tem um motivo — um motivo que me confiou.

— E qual é

Stephen sentiu-se agradecido pelo fato de a esposa não estar olhando para ele, quando respondeu:

— Depois do almoço, Barton me levou para um canto, dizendo que queria dar uma explicação. Contou-me que a mocinha — Íris — nunca se recuperou totalmente do choque da morte da irmã.

Sandra fez uma pausa, e Stephen comentou, involuntariamente:

— Pode ser verdade, Íris está com uma péssima aparência. No almoço, achei-a com um ar de doente.

— Sim, eu também notei — embora, no conjunto, venha parecendo em boa forma física e mental, nesses últimos tempos. De qualquer forma, estou simplesmente repetindo o que George Barton falou. Disse-me que, desde então, Íris tem sistematicamente evitado o Luxembourg, tanto quanto possível.

— Não é de admirar.

— Mas, segundo Barton, isto está errado. Parece que ele consultou um especialista de nervos, a respeito — um desses sujeitos modernos — e o conselho do médico foi que, após um choque de qualquer espécie, não se deve evitar o problema, e sim encará-lo. Pelo que entendi, é o mesmo princípio de fazer um piloto voltar a voar, imediatamente após um desastre de avião.

— Então esse médico está sugerindo outro suicídio?...

Sandra respondeu, calmamente:

— Ele sugere apenas que as associações do lugar devem ser superadas — afinal de contas, é um simples restaurante. Propôs uma reunião comum, agradável, se possível com os mesmos convidados.

— Ótimo para os convidados!...

— Você se importaria tanto assim, Stephen?

Um toque de alarme soou dentro dele. Falou, rapidamente:

— É lógico que não me importo. Simplesmente achei que era uma idéia horripilante. Pessoalmente, eu não me importaria o mínimo... Na verdade, estava pensando era em você. Se você não se importa...

Ela o interrompeu:

— Pois eu me importo — e muito. Mas o modo como George Barton colocou as coisas tornou difícil recusar. Afinal, tenho ido freqüentemente ao Luxembourg, desde então — e você também. Somos constantemente convidados para ir lá.

— Mas nunca nessas circunstancias!

— Não.

Stephen continuou:

— Como você disse, é difícil recusar — e, se adiarmos, o convite será renovado. Mas não há nenhum motivo, Sandra, pelo qual você tenha que suportá-lo. Eu posso ir, e você se desculpa no último instante: uma dor de cabeça, um resfriado... qualquer coisa no gênero.

Viu o queixo da esposa se erguer.

— Isso seria covardia. Não, Stephen, se você for, eu vou. Afinal de contas — ela colocou a mão em seu braço — por menos que nosso casamento signifique, deveria pelo menos significar dividir nossas dificuldades.

Mas Stephen não respondeu. Estava com o olhar perdido no dela, emudecido pela frase tão plangente, que lhe escapara com tamanha facilidade, como se expressasse um fato antigo, familiar e não muito importante. Recuperando o autocontrole, falou:

— Por que disse isso? “Por menos que nosso casamento signifique”?

Ela o olhou com firmeza.

— Não é verdade?

— Não, mil vezes não! Nosso casamento significa tudo, para mim.

A esposa sorriu.

— Acho que está dizendo a verdade — de um certo modo. Somos uma boa parceria, Stephen. Produzimos um resultado satisfatório.

— Não era a isso que me estava referindo. — Sentiu que sua respiração estava ficando irregular. Tomou as mãos dela nas suas segurando-as bem apertadas. — Sandra, você não sabe que significa tudo no mundo, para mim?

E, num clarão, Sandra Farraday realmente o soube. Incrível, imprevisto... mas era verdade!

Estava nos braços do marido, e ele a apertava junto a si, beijando-a, murmurando palavras incoerentes.

— Sandra... Sandra... querida! Eu a amo... Tenho vivido com tanto medo... com tanto medo de perder você!

Ela ouviu sua própria voz, dizendo:

— Por causa de Rosemary?

— Sim — Stephen a largou, e deu um passo atrás; seu rosto, de tão consternado, chegava a estar ridículo. — Você sabia... sobre Rosemary?

— Claro que sim. Todo o tempo.

— E pôde compreender?

Ela abanou a cabeça.

— Não, eu não compreendo, e não creio que jamais o possa. Você a amava?

— Não realmente. Era você que eu amava.

Uma onda de amargura a invadiu. Citou as velhas palavras:

— Desde o primeiro momento em que me viu, do outro lado da sala? Não repita esta mentira — pois foi mesmo uma mentira!

A súbita agressão não desconcertou Stephen. Pareceu considerar, pensativamente, as palavras da esposa.

— Tem razão, foi uma mentira — e, ainda assim, de um estranho modo, não foi. Estou começando a acreditar que, inconscientemente, sempre foi verdade. Oh, tente compreender, Sandra! Conhece esse tipo de pessoa que nunca deixa de arrumar um pretexto nobre e bom, para mascarar suas ações mais mesquinhas? Pessoas que “têm que ser honestas”, quando querem ser impiedosas, que “imaginaram ser seu dever repetir tal e tal coisa”, que são tão hipócritas consigo mesmas que chegam ao fim da vida convencidas de que todas as suas ações mesquinhas e cruéis foram praticadas num espírito de generosidade? Agora, tente compreender que também pode existir o tipo posto: criaturas tão cínicas, tão desconfiadas de si próprias e da vida que só conseguem acreditar nos seus maus motivos... Você era a mulher de que eu precisava — isso, ao menos, era real. E, olhando para trás, honestamente acredito, agora, que, se não tivesse sido verdade, eu nunca poderia ter ido adiante.

Ela falou, amargamente:

— Você não me amava.

— Não, eu nunca amara ninguém. Era uma criatura faminta, assexuada, e me orgulhava — sim, é verdade! — da minha natureza seca e fria. Foi então que eu realmente me apaixonei “através da sala”: uma paixão tola, violenta, infantil. Algo como uma tempestade de verão, breve, irreal que logo acaba. — Acrescentou, amargamente: — Não passou de uma “história contada por um idiota, cheia de tumulto e fúria, não significando coisa alguma”. — Fez uma pausa, e continuou: — Foi aqui, em Fairhaven, que acordei e percebi a verdade.

— A verdade?

— Que a única coisa na vida que realmente importava, para mim, era você... e conservar o seu amor.

— Se ao menos eu tivesse sabido... — murmurou Sandra.

— O que você pensou?

— Imaginei que estava planejando fugir com ele.

— Com Rosemary? — Stephen deu uma risadinha. — Isto teria sido, de fato, uma pena de prisão perpétua!

— Ela não queria que vocês fugissem?

— Sim, vivia insistindo nisso.

— O que aconteceu, então?

Stephen soltou um profundo suspiro. Ali estavam eles, de volta ao mesmo ponto — encarando mais uma vez a ameaça intangível.

— Aconteceu o Luxembourg.

Ficaram ambos calados, relembrando, sabiam, a mesma cena: o rosto azul, cianótico, de uma mulher que já fora linda; o olhar fixo sobre o cadáver; e então, erguendo a vista, o encontro dos olhos um do outro...

Stephen foi o primeiro a falar:

— Esqueça, Sandra, pelo amor de Deus, vamos esquecer!

— Não adianta tentar. Isso não nos será permitido.

Houve uma pausa, e então Sandra perguntou:

— Que vamos fazer?

— O que você disse, ainda agora: encarar as coisas — juntos. Comparecer a essa horrível reunião, qualquer que seja o seu objetivo.

— Não acredita no que George Barton falou sobre Íris, não é?

— Não. E você?

— Poderia ser verdade — mas, de qualquer forma, não é a razão real.

— E qual seria o verdadeiro motivo?

— Não sei, Stephen. Mas estou com medo.

— De George Barton?

— Sim, acho que ele... sabe.

— Sabe o quê? — disse Stephen, bruscamente.

Ela virou a cabeça, devagar, até que seus olhos encontraram os dele. Falou, num sussurro:

— Não devemos ficar com medo. Precisamos ter coragem... toda a coragem possível. Você vai ser um grande homem, Stephen — um homem do qual o mundo precisa. Nada vai interferir com isso. Sou sua esposa, e o amo.

— O que você acha que esta reunião significa, Sandra?

— Creio que é uma armadilha.

— E vamos entrar nela?

— Não podemos mostrar que sabemos ser uma armadilha.

— Tem razão.

De repente, Sandra jogou a cabeça para trás, e soltou uma risada. Exclamou

— Faça todo o mal que puder, Rosemary! Você não vai vencer!

Stephen agarrou-a pelo ombro.

— Acalme-se, Sandra! Rosemary está morta.

— Está mesmo? Pois parece bem viva, às vezes...

 

No caminho de volta da casa dos Farraday, Íris falou, chegando ao meio do parque:

— Você se importaria se eu não o acompanhasse até em casa, George? Estou com vontade de dar uma caminhada... talvez, subir por Friar’s Hill e descer pelo bosque. Passei o dia inteiro com uma horrível dor de cabeça.

— Pobre menina! Vá, sim. Infelizmente, não vou poder acompanhá-la. Estou esperando uma pessoa que deve chegar esta tarde, a qualquer momento, e não tenho certeza de que quando vai aparecer lá por casa.

— Muito bem. Então, até à hora do chá!

Voltando-se, rapidamente, Íris tomou a direção da colina, coberta, daquele lado, por uma faixa de lariços. Ao atingir o cume, inspirou profundamente. Era um desses dias fechados e úmidos de outubro. Uma película de umidade cobria as folhas das árvores, e nuvens cinzentas, já baixas, apareciam sobre sua cabeça, prometendo ainda mais chuva, para breve. Na verdade, aqui em cima não havia muito mais ar do que no vale, mas, de qualquer forma, Íris tinha a impressão de poder respirar mais livremente, agora.

Sentou-se no tronco de uma árvore caída e ficou olhando para o vale, lá embaixo, onde Little Priors se aninhava, recatadamente, numa depressão de terreno cercada por árvores. Mais para esquerda, o solar de Fairshaven era um clarão branco.

Sombriamente, com o queixo apoiado nas mãos, Íris ficou a contemplar a paisagem. O leve farfalhar às suas costas não foi muito mais alto que o som de folhas caindo, mas ela voltou abruptamente a cabeça, ao escutá-lo: viu os galhos se separarem, dando passagem a Anthony Browne. Exclamou, meio zangada:

— Tony! Por que você sempre tem que aparecer assim, como... como um fantasma, num pantomima?!

Anthony deixou-se cair ao chão, a seu lado. Puxando a cigarreira, ofereceu-lhe um cigarro; ela negou, com a cabeça. Retirou um, ele mesmo, e o acendeu. Só então, inalando a primeira baforada, respondeu:

— É porque sou o que os jornais chamariam de “um Homem Misterioso”. Gosto de surgir do nada.

— Como sabia onde eu estava?

— Um excelente par de binóculos. Ouvi dizer que você estava almoçando com os Farraday, e fiquei observando-a, da encosta da colina, quando saiu.

— Por que você não foi até lá em casa, como uma pessoa comum?

— Não sou uma pessoa comum! — brincou Anthony, num tom chocado. — Sou bastante extraordinário!

— Concordo.

Olhou-a, rapidamente, e perguntou:

— Alguma coisa a está perturbando?

— Não, claro que não. Pelo menos... — Íris fez uma pausa.

Anthony repetiu, interrogativamente:

— Pelo menos...?

A jovem soltou um grande suspiro.

— Estou cansada de ficar aqui. Detesto esse lugar. Quero voltar para Londres.

— Vai embora por esses dias, não é?

— Semana que vem.

— Então, era uma festa de despedida, na casa dos Farraday?

— Não era uma festa. Apenas eles e uma parente idosa.

— Você gosta dos Farraday, Íris?

— Não sei. Não creio que goste muito... embora, na verdade, não devesse falar assim, pois foram bastante gentis conosco.

— E quais serão os sentimentos deles?

— Acho que nos detestam.

— Interessante...

— Você acha?

— Oh, não me refiro ao ódio — se é que existe. Interessante foi o sentido que você deu à minha pergunta. Incluindo-se, com George, nas simpatias ou antipatias deles. O que eu estava querendo saber era o que você acha que eles sentem a seu respeito, pessoalmente.

— Ah, compreendo... Bem, acredito que os Farraday até apreciam bastante a mim, embora de um jeito meio negativo. Do que eles não gostam, eu acho, é de nós, como uma família, morando ao seu lado. Nunca fomos particularmente seus amigos — a amizade deles era com Rosemary.

— Sim — disse Anthony. — Como você diz, eles eram amigos de Rosemary... Mas não devo acreditar que Sandra Farraday e Rosemary jamais tenham sido amigas íntimas, não é?

— Não — respondeu Íris.

Ela parecia levemente apreensiva, mas Anthony fumava placidamente. Dali a pouco, o rapaz falou:

— Sabe o que mais me impressiona nos Farraday?

— O quê?

— Exatamente isso: que eles sejam “os Farraday”. Sempre penso neles assim — não como Stephen e Sandra, dois indivíduos unidos pelo Estado e a Igreja, mas sim como uma entidade dupla, bem definida: os Farraday. Isso é mais raro do que você possa imaginar. São duas pessoas com um objetivo comum, o mesmo modo de vida e idênticos meios, esperanças e crenças. O mais estranho de tudo é que, na verdade, são bastante diferentes em caráter. Stephen Farraday, eu diria, é um homem de capacidade intelectual muito vasta, extremamente sensível à opinião alheia, horrivelmente inseguro de si próprio, e, até certo ponto, carente de coragem moral. Sandra, por outro lado, tem a mente estreita, medieval, capaz de fanática devoção e corajosa até as raias da temeridade.

— Ele sempre me pareceu, ao contrário, pomposo e estúpido — disse Íris.

— Stephen não tem nada de estúpido. Ele é apenas desses sucessos infelizes, tão comuns.

— Infeliz?

— A maioria das pessoas bem-sucedidas é infeliz. E é exatamente por isso que são sucessos: precisam tranqüilizar-se a seu próprio respeito, conseguindo algo que o mundo vá notar.

— Que idéias estranhas você tem, Anthony!

— Basta examiná-las, para ver que são bastante verdadeiras. As pessoas felizes são fracassos porque estão em tão bons termos consigo mesmas que não se importam com nada — como eu. Elas são, geralmente, uma companhia agradável — como eu, novamente...

— Você tem uma ótima opinião sobre si mesmo!

— Estou apenas chamando sua atenção para os meus pontos bons, para o caso de você não os ter ainda percebido.

Íris achou graça. Sentia um novo ânimo; a sombria depressão e o medo haviam sido banidos de seu coração. Deu uma olhada no relógio.

— Venha tomar chá comigo, e dê a mais algumas pessoas o privilégio de sua companhia extraordinariamente agradável...

Anthony abanou a cabeça:

— Hoje, não. Tenho que voltar.

Íris o atacou, subitamente:

— Por que você nunca vai à minha casa? Deve haver alguma razão.

Anthony deu de ombros:

— Vamos colocar as coisas dessa maneira: sou muito esquisito em minhas idéias sobre hospitalidade. Seu cunhado não gosta de mim — ele já o deixou bem claro.

— Ora, não ligue para George. Se Tia Lucilla e eu o convidássemos... Ela é uma velhinha adorável. Você gostaria dela.

— Tenho certeza que sim — mas a minha objeção permanece.

— Você costumava ir, no tempo de Rosemary.

— Aquilo — disse o rapaz — era muito diferente.

Pareceu a Íris que uma fria garra lhe apertava o coração. Perguntou:

— O que o fez vir para o campo, hoje? Tinha negócios nesse canto do mundo?

— Um negócio muito importante — com você. Vim aqui para lhe fazer uma pergunta, Íris.

A mão fria desvaneceu-se. No seu lugar, surgiu uma ligeira excitação, aquele palpitar de expectativa que as mulheres conhecem desde tempos imemoriais. Seu rosto, porém, tomou o mesmo aspecto de muda interrogação que sua tataravó devia ter mostrado alguns minutos antes de exclamar: “Oh, Mr. X, foi tão inesperado!”

— Sim? — Virou-se para Anthony, a expressão cheia daquela impossível inocência.

O rapaz a estava observando, com olhos graves, quase duros.

— Responda-me com a verdade, Íris. Minha pergunta é muito simples: você confia em mim?

Íris ficou decepcionada — não era isso que havia esperado. Anthony pôde percebê-lo:

— Não era isso que você achava que eu ia dizer, não é mesmo? Mas é uma pergunta muito importante, Íris; a pergunta mais importante do mundo, para mim. Repito-a: você confia em mim?

Ela hesitou uma fração de segundo e respondeu, baixando os olhos:

— Sim.

— Agora, vou-lhe fazer a segunda pergunta: estaria disposta a me acompanhar até Londres e casar-se comigo, sem contar nada a ninguém?

Olhou-o, espantada:

— Mas eu não poderia! Simplesmente não poderia!

— Não poderia casar-se comigo?

— Não desse jeito.

— E, no entanto, você me ama. É verdade, não é?

Íris ouviu a própria voz, respondendo:

— Sim, eu o amo, Anthony.

— E, ainda assim, você não quer casar-se comigo na igreja de Santa Elfrida, Bloomsbury, na paróquia onde estou morando há semanas — e onde, portanto, posso conseguir uma licença de casamento, a qualquer hora?

— Mas como eu poderia fazer uma coisa dessas? George ficaria terrivelmente magoado, e a Tia Lucilla nunca me perdoaria. De qualquer forma, eu não teria idade. Tenho apenas dezoito anos.

— Seria preciso mentir sobre a idade; não sei em que penalidade eu incorreria, por casar-me com uma menor, sem consentimento. Quem é seu tutor, por falar nisso?

— George. É meu curador, também.

— Como estava dizendo, não importa quais sejam as penalidades para tal coisa, não poderiam descasar-nos — e isso é tudo o que me interessa!

Íris abanou a cabeça.

— Eu não poderia agir assim. Seria tão cruel! E, de qualquer forma, por quê? Qual seria o sentido de tudo isso?

Anthony respondeu:

— Foi por essa razão que lhe perguntei, primeiro, se você confiava em mim: teria que aceitar meus motivos, sem questioná-los — isto simplificaria o caso, digamos. Mas não importa...

Íris arriscou, timidamente:

— Se, ao menos, George ficasse conhecendo você um pouco melhor... Venha comigo, agora! Só vão estar lá George e Tia Lucilla.

— Tem certeza? Pensei... — Anthony fez uma pausa. — Quando estava subindo a colina, vi lá embaixo um homem caminhando em direção à sua casa; e o engraçado é que imaginei reconhecer nele alguém que eu... alguém que já conheci antes.

— Mas é claro! Eu havia esquecido... George disse que estava esperando uma visita.

— A pessoa que o tal indivíduo me lembrou chama-se Race — Coronel Race.

— É bastante provável que seja o próprio — concordou Íris. — George realmente conhece um Coronel Race. Ele havia sido convidado para o jantar daquela noite em que Rosemary...

Interrompeu a frase ao meio, a voz tremula. Anthony tomou-lhe a mão.

— Não pense mais naquilo, minha querida!” Foi terrível, eu sei.

Íris negou, com a cabeça.

— Não consigo evitá-lo. Anthony...

— Sim?

— Alguma vez lhe ocorreu... Você, por acaso, já pensou... — A jovem encontrava dificuldade em colocar em palavras o que queria dizer. — Nunca lhe pareceu... que a morte de Rosemary talvez não fosse suicídio? Que ela poderia ter sido assassinada?

— Meu Deus, Íris, onde foi arranjar esta idéia?

Íris não deu resposta; continuou, simplesmente:

— Isso nunca lhe ocorreu?

— Claro que não! É lógico que Rosemary se suicidou.

A jovem não disse nada.

— Quem anda botando essas coisas na sua cabeça?

Por um instante, sentiu-se tentada a contar-lhe a incrível história de George. Conteve-se, porém, e respondeu, lentamente:

— Foi apenas uma idéia.

— Pois esqueça-a, minha querida tolinha — puxou-a pela mão, fazendo-a ficar de pé, e beijou-lhe suavemente o rosto. — Minha querida e mórbida tolinha! Esqueça-se de Rosemary... Pense apenas em mim.

 

Soltando baforadas com o cachimbo, o Coronel Race estava pensativamente observando George Barton.

O tio de Barton fora vizinho dos Race, no campo, e o Coronel conhecera George menino. Havia entre eles uma diferença de quase vinte anos. Race já passara dos sessenta; era uma figura marcial — alto, ereto, o rosto curtido pelo sol, o cabelo cinza-chumbo aparado bem rente, os olhos escuros e argutos.

Nunca houvera uma real intimidade entre os dois homens, mas Barton permanecia para Race “o jovem George” — uma dessas muitas e vagas figuras associadas com o passado.

Neste exato momento, Race estava pensando que, na verdade, não tinha a menor idéia sobre como “o jovem George” realmente era. Nas breves ocasiões em que se haviam encontrado, nos últimos anos, descobriram-se pouca coisa em comum. Race era um homem do ar livre, essencialmente o tipo do construtor de impérios — a maior parte da sua vida fora passada no estrangeiro. George era, decididamente, o tipo do cavalheiro de cidade. Seus interesses eram díspares, e, quando se encontravam, era para trocar mornas reminiscências sobre “os velhos tempos”, após o que geralmente caíam num silencio embaraçado. O Coronel Race não tinha jeito para conversinhas sociais, e poderia mesmo ter servido de modelo para o personagem do homem forte e silencioso, tão do agrado da geração anterior de romancistas.

Em silencio, agora, estava conjecturando por que, exatamente, “o jovem George” insistira tanto nesse encontro. Pensava, também, que tinha ocorrido alguma sutil mudança no homem, desde que o vira há um ano atrás. George Barton sempre lhe parecera a essência do tédio — cauteloso, prático, sem imaginação. Devia estar havendo algo muito errado com o sujeito. Parecia sobressaltado, superexcitado... Já havia acendido o mesmo charuto três vezes — e isso não era nada típico de Barton.

Race tirou o cachimbo da boca.

— Muito bem, meu jovem George, qual é o problema?

— Acertou, Race: trata-se de um problema. Preciso imensamente do seu conselho — e de sua ajuda.

O Coronel assentiu, com a cabeça, e esperou.

— Há quase um ano atrás, você deveria ter ido jantar conosco, em Londres — no Luxembourg. Na última hora, teve que viajar para o exterior.

Race concordou, novamente, com a cabeça.

— África do Sul.

— Naquele jantar, minha esposa morreu.

O Coronel remexeu-se, desconfortavelmente, na cadeira.

— Eu sei. Li a respeito. Não mencionei o assunto agora, nem lhe apresentei condolências, porque não queria mexer de novo na ferida. Mas lamento muito, meu velho, você sabe disso.

— Oh, sim, sim... Não é esse o ponto. Minha esposa, supostamente, cometeu suicídio.

Race percebeu a palavra-chave. Ergueu as sobrancelhas:

— Supostamente?

— Leia isto aqui.

George colocou as duas cartas na mão do amigo. As sobrancelhas de Race se elevaram ainda mais.

— Cartas anônimas?

— Sim. E acredito nelas.

O Coronel abanou a cabeça, lentamente.

— É o tipo de coisa perigosa de se fazer. Você se surpreenderia, se soubesse quantas cartas mentirosas, malévolas, são escritas após qualquer acontecimento que tenha recebido alguma publicidade na imprensa.

— Sei disso. Mas estas não foram escritas na ocasião — recebi-as seis meses depois.

Race assentiu.

— Isso já é um ponto a considerar. Tem idéia de quem as escreveu?

— Não sei, nem me interessa. O importante é que acredito que elas dizem a verdade. Minha esposa foi assassinada.

O Coronel pousou o cachimbo. Sentou-se um pouco mais ereto na cadeira.

— Agora, vejamos: por que, exatamente, você pensa assim? Suspeitou de alguma coisa, na ocasião? E a polícia?

— Eu estava aturdido, quando tudo aconteceu... completamente arrasado. Simplesmente aceitei o veredicto, no inquérito. Rosemary havia tido uma gripe, estava deprimida... Ninguém suspeitou de nada, além de suicídio — o veneno foi encontrado em sua bolsa, percebe?

— Cianureto.

— Ah, sim, lembro-me agora... Ela o tomou com champanha.

— Exatamente. Na época, tudo pareceu muito claro.

— Sua esposa alguma vez ameaçara cometer suicídio?

— Não, nunca! Rosemary — prosseguiu Barton — amava a vida.

Race concordou, com a cabeça. Vira a esposa de Barton apenas uma vez. Ela lhe parecera uma bobinha singularmente encantadora — mas, por certo, não tinha nada de melancólica.

— Qual foi o parecer médico em relação ao seu estado de espírito, etc?

— O médico mesmo de Rosemary — um velhinho que atendia os Marle desde pequenos — estava fora, num cruzeiro marítimo. Foi o seu jovem assistente quem cuidou de Rosemary, quando ela teve a gripe. Segundo me recordo, no inquérito ele declarou apenas que aquele tipo de gripe podia deixar uma depressão muito séria.

George fez uma pausa, e prosseguiu:

— Não foi senão após ter recebido estas cartas que fui procurar o verdadeiro médico de minha esposa. Não lhe falei nada das cartas, é claro — simplesmente discuti o que havia acontecido. Ele me contou, então, que ficara muito surpreendido com o suicídio. Não conseguia acreditar: Rosemary não era, absolutamente, um tipo suicida. “Isso servia para mostrar”, falou, “que mesmo um paciente bem conhecido pode agir de modo totalmente incaracterístico.”

Fazendo uma nova pausa, George continuou:

— Foi depois de conversar com ele que percebi como o suicídio de Rosemary era, por completo, inconvincente, para mim. Afinal, eu a conhecia muito bem: era uma pessoa sujeita a violentos acessos de infelicidade, podia ficar bastante deprimida com algumas coisas e, ocasionalmente, agir de modo muito irrefletido, inconsiderado — mas nunca percebi nela o estado de espírito de quere “ficar livre de tudo isso”.

Race murmurou, um pouco embaraçado:

— Sua mulher não poderia ter tido outro motivo para se matar, além de mera depressão? Quero dizer, não estaria realmente infeliz, por alguma coisa?

— Hum... Não; talvez estivesse, isso sim, bastante nervosa.

Evitando encarar o amigo, Race insistiu?

— Não poderia ter sido um pouco... melodramática? Eu a vi apenas uma vez, você sabe; mas há pessoas que... bem, podem encontrar prazer na idéia de tentar suicídio, principalmente quando brigaram com alguém. O motivo, bastante infantil, do “vou fazer com que se arrependa”.

— Rosemary e eu não havíamos brigado.

— Não? De qualquer forma, devo reconhecer que o fato de ter sido usado cianureto praticamente afasta a possibilidade. Não é o tipo de substancia com que se pode brincar impunemente — e todo mundo sabe disso.

— Há ainda outro ponto: se, em todo caso, minha esposa houvesse considerado a idéia de se matar, certamente não teria escolhido esse jeito, não é mesmo? Doloroso e... feio. Um frasco de pílulas para dormir seria bem mais provável.

— Concordo. Surgiu alguma evidencia de ter comprado ou conseguido, de alguma forma, o veneno?

_ Não exatamente; mas Rosemary passara alguns dias no campo, em casa de amigos, e, nesse ínterim, eles haviam destruído um ninho de vespas. Sugeriu-se, no inquérito, que ela poderia ter-se apoderado, então, de um punhado de cristais de cianureto de potássio.

— Não seria difícil, realmente. A maioria dos jardineiros mantém um estoque da substância.

O Coronel fez uma pausa, e prosseguiu:

— Deixe-me resumir a situação: o resultado da investigação foi todo negativo; não havia qualquer prova quanto à disposição para o suicídio, ou preparativos neste sentido. Por outro lado, se existisse algum indício concreto de homicídio, a polícia teria descoberto. Eles não brincam em serviço, você sabe...

— A simples idéia de assassinato teria sido fantástica.

— Mas não lhe pareceu assim, seis meses depois.

George respondeu lentamente:

— Creio que devo ter estado insatisfeito, todo o tempo. Inconscientemente, vinha-me preparando de tal forma que, ao ver a coisa escrita ali, preto-no-branco, aceitei-a sem nenhuma reserva.

— Certo — concordou Race, balançando a cabeça. — Muito bem, então, vamos em frente. Você suspeita de alguém?

George inclinou-se para ele, o rosto crispado.

— Isso é que é o mais terrível! Se Rosemary foi assassinada, uma das pessoas à volta da mesa — um de nossos amigos — deve ter sido o culpado. Ninguém mais chegou perto da mesa.

— E os garçons? Quem serviu o vinho?

— Charles, o maître do Luxembourg — você o conhece.

Race assentiu. Todo mundo conhecia Charles. Parecia completamente impossível imaginá0lo tentando envenenar um cliente.

— E o garçom que serviu a nossa mesa foi Giuseppe. Há anos que o conheço: é sempre ele quem me atende, quando vou lá. Um ótimo sujeito, permanentemente de bom humor.

     — Nesse caso, resta-nos o grupo do jantar. Quem eram os convidados?

— Stephen Farraday, membro do Parlamento; sua esposa, Lady Alexandra Farraday; minha secretária, Ruth Lessing; um indivíduo chamado Anthony Browne; Íris, a irmã de Rosemary; e eu próprio. Sete pessoas ao todo, contando com Rosemary. Seríamos oito, se você tivesse ido. Quando desmarcou, não conseguimos lembrar-nos de ninguém que pudéssemos chamar à última hora.

— Entendo. Bem, George, quem você pensa que praticou o crime?

— Não sei! — exclamou o outro. — Garanto-lhe que não sei. Se eu fizesse a menor idéia...

— Está certo, está certo. Pensei apenas que você podia ter uma suspeita definida. Bem, não deve ser difícil. Como estavam sentados — começando por você?

— À minha direita, é claro, estava Sandra Farraday; a seu lado, Anthony Browne; em seguida, Rosemary, Stephen Farraday, Íris e, finalmente, Ruth Lessing, à minha esquerda.

— Compreendo. E sua esposa já havia tomado champanha, no decorrer do jantar?

— Sim. Os copos tinham sido cheios várias vezes. Aquilo... Aquilo aconteceu durante o show. Havia muito barulho; era um desses números africanos, e estávamos todos assistindo. Rosemary caiu para a frente, sobre a mesa, logo antes do reacender das luzes. Talvez tenha gritado, ou gemido — mas ninguém escutou nada. O médico disse que a morte deve ter sido praticamente instantânea. Graças a Deus, por isso...

— Sim, de fato. Muito bem, George: em vista disso, parece bastante óbvio.

— Como assim?

— Foi Stephen Farraday, é claro. Estava à direita da vítima. A taça de champanha de Rosemary ficava junto à mão esquerda de Stephen. Seria a coisa mais fácil do mundo colocar o veneno, tão logo as luzes fossem diminuídas e a atenção geral se voltasse para o palco. Não acho que outra pessoa pudesse ter tido uma oportunidade boa. Conheço as mesas do Luxembourg: há muito espaço à sua volta. Duvido muito que alguém pudesse ter-se debruçado sobre a mesa, por exemplo, sem ter sido visto, mesmo com as luzes diminuídas. O mesmo raciocínio se aplica ao sujeito à esquerda de Rosemary, Anthony Browne. Ele teria que se debruçar à frente dela, para colocar qualquer coisa em seu copo. Existe uma outra possibilidade, mas vamos considerar primeiro o suspeito óbvio. Sabe de algum motivo pelo qual Stephen Farraday, membro do Parlamento, desejasse mandar Rosemary para o outro mundo?

George falou, numa voz abafada:

— Eles... eles haviam sido amigos bem chegados. Se... se minha esposa o tivesse repelido, por exemplo, ele poderia ter querido vingar-se.

— Soa bastante melodramático. É esse o único motivo que pode sugerir?

— Sim — respondeu George, o rosto muito vermelho.

Race lançou-lhe um olhar dos mais discretos, e continuou:

— Examinemos, então, a Possibilidade Número Dois: uma das mulheres.

— E por que seria uma delas?

— Meu caro George, por acaso não percebeu que, num grupo de sete pessoas — quatro mulheres e três homens — provavelmente deve ter havido um ou dois períodos, durante a noite, em que três duplas estavam dançando — e, forçosamente, uma das mulheres teria ficado sentada, sozinha, na mesa? Vocês todos dançaram, não foi?

— Oh, sim.

— Ótimo. Agora, vejamos: pode recordar quem ficou sentada sozinha, qualquer tempo, antes do show?

George pensou um minuto.

— Acho que... Sim, Íris foi a última a ficar sozinha, e, antes dela, Ruth.

— Você não lembra qual foi a última vez que sua esposa bebeu champanha?

— Deixe-me ver... Rosemary estivera dançando com Browne. Lembro-me dela voltar, dizendo que havia sido meio extenuante — Browne dança muito bem. Rosemary tomou, então, o vinho que estava em seu copo. Alguns minutos mais tarde, começaram a tocar uma valsa, e ela... ela dançou comigo. Sabia que este é o único ritmo no qual sou realmente bom. Farraday dançou com Ruth, e Lady Alexandra, com Browne. Íris ficou sentada. Imediatamente depois disso, foi a hora do show.

— Então, vamos considerar sua cunhada. Ela recebeu algum dinheiro, com a morte da irmã?

George ficou indignado:

— Meu caro Race! Não seja absurdo! Íris era uma criança, uma garota de escola.

— Já conheci duas garotas de escola que praticaram assassinato.

— Mas Íris! Ela era devotada a Rosemary.

— Não importa, Barton. A moça teve oportunidade — quero saber se também teve motivo. Sua esposa, acredito, era rica. Quem foi o herdeiro — você?

— Não, Íris. A fortuna de Rosemary lhe fora legada em confiança, para passar, por sua morte, aos filhos — ou, na falta destes, à irmã.

Race ouviu atentamente a explicação. Comentou:

— Uma posição bastante curiosa, essa: a irmã rica e a irmã pobre... Algumas jovens ter-se-iam ressentido disso.

— Estou certo de que não foi o caso de Íris.

— Talvez não — mas, de qualquer forma, sua cunhada tinha um motivo. Vamos tentar este outro caminho, agora: quem mais poderia ter desejado matá-la?

— Ninguém, absolutamente ninguém... Rosemary não possuía um único inimigo nesse mundo: tenho certeza disso. Já andei pesquisando a respeito — fazendo perguntas — tentando descobrir... Até mesmo comprei esta casa, perto dos Farraday, de modo a...

George parou no meio da frase. Race pegou seu cachimbo e começou a limpá-lo.

— Não seria melhor você me contar tudo, meu jovem amigo?

— O que quer dizer?

— Você está escondendo alguma coisa: isto salta aos olhos. Pode ficar aí sentado , defendendo a reputação de sua mulher — ou pode tentar descobrir se ela foi, ou não, assassinada. Se a segunda alternativa é a que lhe interessa, tem que se abrir.

Houve um silencio.

— Muito bem, então — murmurou George, a voz abafada. — Você venceu.

— Alguma coisa o fez suspeitar de que sua esposa tinha um amante, não é isso?

— Sim.

— Stephen Farraday?

— Não sei! Juro-lhe que não sei! Poderia ter sido ele, como poderia ter sido o outro sujeito, Browne. Não consegui descobrir qual dos dois. Foi um inferno...

— Conte-me o que sabe desse tal de Anthony Browne. Engraçado, o nome me parece familiar...

— Não sei nada a seu respeito. Ninguém sabe! É um tipo simpático, de boa aparência — mas ninguém conhece nada sobre ele. Supõe-se que seja americano, mas não tem nenhum sotaque.

— Bem, talvez a embaixada nos possa fornecer alguma informação. Você não tem nenhuma idéia sobre qual dos dois... teria sido o amante?

— Não, não tenho. Vou-lhe contar como foi, Race. Rosemary estava escrevendo uma carta, e eu... eu examinei o mata-borrão, depois. Era mesmo uma carta de amor — mas não havia nome algum.

Race desviou os olhos, discretamente:

— Muito bem, isso nos fornece mais dados para prosseguir. Lady Alexandra, por exemplo, passa a ficar envolvida, se o marido estava tendo um caso com Rosemary. Como sabe, Mrs. Farraday é uma dessas mulheres que sentem as coisas com muita intensidade: aquela espécie de pessoa calada, profunda — o tipo capaz de um assassinato, numa emergência. Estamos avançando: já temos o Misterioso Browne, Farraday, a esposa e a jovem Íris Marle. E quanto à outra mulher, Ruth Lessing?

— Ruth não poderia ter nada a ver com o caso. Pelo menos, não teria o menor motivo.

— É sua secretária, você disse? Que tipo de pessoa é ela?

— A moça mais preciosa deste mundo — falou George, com entusiasmo. — Faz praticamente parte da família. É minha mão direita. Não sei de outra pessoa por quem eu tenha maior admiração, ou mais absoluta confiança.

— Você gosta dela — declarou Race, observando-o pensativamente.

— Sou-lhe devotado. Aquela moça, Race, é ótima! Dependo dela sob todos os aspectos. É a criatura mais sincera, mais formidável deste mundo.

Murmurando algo que soava como “hum-hum”, Race deixou de lado o assunto. Não havia nada em seu jeito que pudesse mostrar a George que, mentalmente, ele já havia estabelecido um ótimo motivo para a desconhecida Ruth Lessing. Imaginava perfeitamente que “a moça mais preciosa deste mundo” poderia ter uma razão bem definida para desejar a transferência de Mrs. George Barton para o outro mundo... Poderia ser um motivo mercenário — estaria planejando tornar-se a segunda Mrs. Barton — ou talvez estivesse genuinamente apaixonada pelo patrão. De qualquer forma, havia ali um bom motivo para a morte de Rosemary.

Abstendo-se de comentá-lo, falou suavemente:

— Suponho que já lhe ocorreu, Gheorge, que você mesmo poderia ter tido razões para querer a morte de sua esposa.

— Eu?! — George parecia estupefato.

— Bem, lembre-se de Otelo e Desdêmona.

— Percebo o que quer dizer; entretanto, não era assim, entre nós dois. Eu a adorava, é claro, mas sempre soube que haveria coisas que... bem, que eu teria de suportar. Não que ela não gostasse de mim — ela na verdade gostava muito, e sempre foi bastante doce, para comigo. Mas, sem dúvida, eu sou enfadonho, e não há como escapar do fato. Não sou do tipo romântico, você sabe. De qualquer forma, quando casei com ela, foi com plena consciência de que não iria ser tudo um mar de rosas. Rosemary praticamente me preveniu. Foi doloroso, é lógico, quando aconteceu — mas daí a sugerir que eu poderia ter tocado num fio de seu cabelo...

Fez uma pausa e prosseguiu, num tom diferente:

— De qualquer modo, se eu o tivesse feito, por que cargas d’água estaria revolvendo o assunto? Quero dizer, após um veredicto de suicídio, e tudo certo e encerrado... Seria uma loucura!

— Exatamente. Eis porque não suspeito seriamente de você, meu caro amigo. Se fosse um assassino bem-sucedido e recebesse um par de cartas como estas, iria jogá-las calmamente no fogo, sem falar nada a respeito. Isso me traz ao que considero o aspecto mais interessante de todo o caso: quem escreveu estes bilhetes?

— Hein? — George parecia bastante surpreendido. — Não faço a menor idéia.

— Esse ponto não parecer ter-lhe interessado — mas interessa a mim: foi a primeira pergunta que fiz. Acho que podemos dar por estabelecido que não foram escritos pelo assassino. Por que iria ele estragar sua própria jogada se, como você disse, já estava tudo acertado e o veredicto de suicídio universalmente aceito? Então, quem escreveu os bilhetes? Quem estaria interessado em reavivar todo o assunto?

— Algum empregado? Arriscou George, vagamente.

— É possível. E, nesse caso, que empregado, e o que ele sabe? Rosemary tinha alguma criada de confiança?

George abanou a cabeça.

— Não. Na época tínhamos uma cozinheira — Mrs. Pound, que ainda está conosco — e um par de empregadas. Creio que ambas já foram embora. Não ficaram muito tempo no emprego.

— Pois muito bem, George — se, como creio, quer meu conselho, aqui vai: no seu lugar, reexaminaria cuidadosamente toda a questão. Por um lado, há o fato de que sua mulher está morta. Não poderia trazê-la de volta, por mais que fizesse. Se a evidencia para suicídio não é muito boa, tampouco o é a que existe para homicídio. Digamos, para efeito de argumentação, que Rosemary foi assassinada. Você realmente deseja revolver tudo? Poderia significar muita publicidade desagradável, um bocado de roupa suja lavada em público, os casos amorosos de sua esposa caindo na boca do povo...

Barton estremeceu. Falou, com violência:

— Você está realmente me aconselhando a deixar, que algum porco escape ileso de tudo isso? Aquele empertigado Farraday, com seus discursos pomposos, sua preciosa carreira — e todo o tempo, talvez, não passando de um assassino covarde...

— Só desejo que você fique absolutamente esclarecido sobre tudo que isto envolve.

— Quero chegar à verdade.

— Muito bem. Nesse caso, eu iria até à polícia, com as cartas. Eles provavelmente poderão descobrir, com bastante facilidade, quem as escreveu, e se essa pessoa sabe de alguma coisa. Lembre-se apenas de que, uma vez tendo colocado a polícia na trilha, não poderá dispensá-la.

— Não pretendo procurar a polícia. Foi por isso que quis vê-lo: vou preparar uma armadilha para o assassino.

— O que, em nome de Deus, você está querendo dizer?

— Escute, Race: vou dar uma reunião no Luxembourg. Quero que você compareça. Seremos as mesmas pessoas: os Farraday, Anthony Browne, Ruth, Íris e eu próprio. Já planejei tudo.

— Que pretende fazer?

George deu uma risadinha:

_ Este é o meu segredo. Estragaria tudo, se contasse, antes, a qualquer pessoa — até mesmo você. Quero que vá com o espírito aberto, para observar imparcialmente o que acontecer.

Race inclinou-se para a frente. Sua voz ficou repentinamente severa:

— Não gosto disso, George. Essas idéias dramáticas, saídas de livro, não funcionam. Procure a polícia — não há ninguém mais indicado. Eles sabem como lidar com esses problemas. São profissionais. Espetáculos amadores não são aconselháveis, em se tratando de crime.

— Eis que desejo sua presença, lá! Você não é amador.

— Ora, meu jovem amigo, só por que já trabalhei para o M.I.5? E, de qualquer forma, pretende manter-me no escuro?

— É necessário.

O Coronel abanou a cabeça.

— Lamento, mas eu me recuso. Não gosto do seu plano, e não tomarei parte nele. Vamos, George, tenha juízo e desista.

— Não vou desistir. Já tenho tudo planejado.

— Não seja tão malditamente obstinado! Entendo um pouco mais do que você sobre esse tipo de encenação. Não aprecio a idéia. Não vai dar certo. Pode até ser... perigoso. Já pensou neste aspecto?

— Vai ser mesmo perigoso — para alguém.

Race suspirou.

— Você não sabe o que está fazendo. Bem, não diga que não o avisei. Pela última vez, peço-lhe para desistir desta sua idéia amalucada.

George Barton simplesmente negou com a cabeça.

 

O dia primeiro de novembro amanheceu úmido e sombrio. Estava tão escuro na sala de jantar da casa de Elvaston Square que tiveram de tomar o café da manhã com as luzes acesa.

Íris, contrariamente aos seus hábitos, não mandara subir seu café com torradas; descera para a sala, e estava sentada ali, pálida e fantasmagórica, revolvendo a comida no prato. George farfalhava seu Times, com as mãos nervosas, e, do outro lado da mesa, Lucilla Drake chorava copiosamente, o rosto afundado num lenço.

— Tenho certeza de que o pobre rapaz vai fazer alguma coisa horrível... Victor é tão sensível — e não iria dizer que se trata de uma questão de vida ou morte, se isto não fosse verdade.

Agitando o jornal, George falou, bruscamente:

— Por favor, não se aflija, Lucilla. Já disse que vou providenciar.

— Eu sei, meu caro George, você é sempre bondoso! Mas o problema é que realmente sinto que qualquer demora pode ser fatal. Todas essas investigações que você quer fazer — elas vão tomar tempo!

— Não, não, vamos correr com elas.

— Ele telegrafou que tinha de ser “sem falta, até dois de novembro” — e amanhã já é dia dois! Nunca perdoaria a mim mesma se alguma coisa acontecesse ao meu querido menino.

— Não vai acontecer nada — George tomou um grande gole de café.

— E temos ainda aqueles meus fundos, para lançar mão...

— Escute aqui, Lucilla, deixe tudo por minha conta, sim?

— Não se preocupe, Tia Lucilla — interveio Íris. — George vai resolver tudo. Afinal, isso já aconteceu antes.

— Faz algum tempo, e...

— Três meses — interrompeu George.

— A última vez foi quando o pobre rapaz foi enganado por aqueles horríveis trapaceiros dos seus amigos, naquela fazenda pavorosa.

George limpou o bigode no guardanapo, levantou-se e deu umas palmadinhas amigáveis nas costas de Mrs. Drake, enquanto se dirigia para a porta:

— Vamos, anime-se, minha cara. Vou providenciar para que Ruth telegrafe imediatamente.

Saiu para o vestíbulo, e Íris o acompanhou.

— George, você não acha que deveríamos adiar essa reunião de hoje à noite? Tia Lucilla está tão deprimida! Não seria melhor ficarmos em casa, com ela?

— Certamente que não! — o rosto rosado de George ficou purpúreo. — Por que aquele vigaristazinho, aquele execrável trapaceiro, haveria de atrapalhar toda nossa vida? Chantagem _ pura chantagem, é o que é. Por mim, ele não conseguiria um tostão furado.

— Tia Lucilla nunca aceitaria isso.

— Lucilla é uma tola — sempre foi. Essas mulheres que têm filhos depois dos quarenta parecem nunca aprender a ter juízo. Estragam os piralhos desde o berço, dando-lhes todas as malditas coisas que desejam. Se o “pobre Victor” tivesse ouvido, alguma vez, que tinha de se safar sozinho das suas enrascadas, poderia ter-se corrigido. Vamos, Íris, não discuta. Vou procurar deixar a coisa resolvida antes de hoje à noite, para que Lucilla possa ir para a cama contente. Se necessário, a levaremos conosco ao jantar.

— Oh, não, ela detesta restaurantes — e fica com tanto sono, a pobre querida! Além do mais, não gosta do calor, e a fumaça faz mal à sua asma.

— Sei disso; não estava falando sério. Vá animá-la, Íris. Diga-lhe que tudo vai ficar bem.

Virou-se, então, saindo pela porta da frente. Íris voltou, a passos lentos, para a sala de jantar. No meio do caminho, o telefone tocou. Foi atendê-lo:

— Alô... quem? — Seu rosto se transformou, a pálida melancolia dissolvendo em prazer, — Anthony!

— O próprio. Telefonei ontem, mas não pude alcançá-la. Você anda trabalhando George?

— Como assim?

— Bem, ele foi tão insistente no convite para essa tal reunião hoje à noite! Bastante diferente do seu estilo usual de “tire as mãos de cima da minha querida menina!”... Fez questão absoluta do meu comparecimento. Pensei que talvez isto fosse resultado de algum trabalho diplomático de sua parte, Íris.

— Não... não. Não teve nada a ver comigo.

— Uma espontânea mudança de sentimentos, então?

— Não exatamente. É que...

— Alô...? Você desligou?

— Não, estou aqui.

— Você estava dizendo algo. Qual é o problema, querida? Posso ouvi-la suspirando, pelo telefone. Está acontecendo alguma coisa?

— Não... nada. Estarei bem, amanhã. Tudo ficará bem, amanhã!

— Que esperança comovente... Não há um ditado que diz “o amanhã nunca chega”?

— Oh, por favor, Tony!

— Íris... Está havendo algum problema?

— Não, nada. Não posso contar. Eu prometi, compreende?

— Conte-me, doçura!

— Não — realmente não posso. Anthony, você me responderia uma coisa?

— Se puder.

— Alguma vez já esteve... apaixonado por minha irmã?

Houve uma pausa momentânea, seguida de uma risada.

— Então é isso! Sim, Íris, estive um bocado apaixonado por Rosemary. Era uma criatura adorável, bem sabe. Aí, um belo dia, quando eu estava conversando com ela, vi você descendo a escada — e, num momento, estava tudo acabado e esquecido: não havia mais ninguém no mundo, alem de você! Esta é a verdade pura e simples. Não fique remoendo um bobagem dessas... Mesmo Romeu, você sabe, teve sua Rosalina, antes de se entregar, de uma vez por todas, a Julieta.

— Obrigada, Anthony. Isso me deixa feliz.

— Até à noite, então. É seu aniversário, não é?

— Na verdade, só faço anos na semana que vem; mas, de qualquer forma, é minha festa de aniversário.

— Não parece estar muito entusiasmada a respeito.

— E realmente não estou.

— Suponho que George saiba o que está fazendo, mas me parece uma idéia maluca escolher o mesmo lugar onde...

— Oh, já fui ao Luxembourg várias vezes desde... desde que Rosemary... Quero dizer, não se pode evitá-lo.

— É, tem razão. Comprei-lhe um presente de aniversário, Íris. Espero que vá gostar! Au revoir...

Anthony desligou.

Íris voltou até onde estava Lucilla, para conversar, persuadir, tranqüilizar...

Enquanto isso, George, chegando ao escritório, mandava imediatamente chamar Ruth Lessing. A expressão preocupada de seu rosto se desanuviou um pouco, ao vê-la entrar, calma e sorridente, num elegante costume preto.

— Bom dia!

— Bom dia, Ruth. Mais problemas — olhe só isso aqui!

Ruth segurou o telegrama que ele lhe estendeu.

— Victor Drake, de novo!

— Sim, aquele maldito...

Ruth ficou em silencio, por um minuto, segurando o telegrama. Aquele rosto moreno, magro, formando preguinhas em torno do nariz, quando ele ria... A voz trocista, falando “o tipo de garota que deveria casar com o patrão”... Como tudo lhe voltava, nitidamente, à memória! “Poderia ter sido ontem”, pensou.

A voz de Barton a trouxe de volta à realidade.

— Não foi há cerca de um ano atrás que o embarcamos para lá?

Ela refletiu um instante.

— Creio que sim. Na verdade, acho que foi no dia vinte e nove de outubro.

— Que garota surpreendente você é! Que memória!

Ruth pensou, com seus botões, que tinha mais motivos, para lembrar-se do que ele podia supor. Havia sido ainda sob a influencia de seu encontro com Victor, que ela escutara a voz descuidada de Rosemary, no telefone, — e decidira, naquele momento, que detestava a mulher do patrão.

— Acho que tivemos sorte de Victor ter ficado tanto tempo por lá — falou George. — Ainda que isso nos tenha custado mais cinqüenta libras, na semana passada.

— Mas desta vez são trezentas libras! Parece muito.

— Oh, sim... Ele não vai conseguir tudo isso. Vamos ter que fazer as investigações usuais.

— É melhor, então, eu me comunicar logo com Mr. Ogilvie.

Alexandre Ogilvie era o agente deles em Buenos Aires — um escocês diligente e compenetrado.

— Sim, Ruth. Telegrafe imediatamente. A mãe de Victor está daquele jeito, como sempre, nessas ocasiões — praticamente histérica. Isso está tornando as coisas difíceis, em relação à reunião de hoje à noite.

— Gostaria que eu ficasse com ela?

— Não! — George afastou a idéia, enfaticamente. — Não, de forma alguma. Você é exatamente a pessoa que tem que estar lá. Preciso de você, Ruth... _ Pegou sua mão. _ Você é muito abnegada...

— Não sou nada disso, em absoluto.

Ruth deu um sorriso, e sugeriu:

— Não valeria a pena tentar uma comunicação telefônica com Mr. Ogilvie? Poderíamos ter a situação toda esclarecida antes de hoje à noite.

— Boa idéia! Vale bem a despesa.

— Vou providenciar imediatamente.

Com muita gentileza, Ruth desprendeu as mãos de entre as dele e saiu.

George ainda ficou cuidando de vários assuntos que reclamavam sua atenção. Quando deu meio-dia e meia, saiu e tomou um táxi até o Luxembourg.

Charles, o notório e popular maître, veio recebê-lo, curvando a imponente cabeça, num sorriso de boas-vindas.

— Bom dia, Mr. Barton.

— Bom dia Charles. Tudo certo, para hoje à noite?

— Acredito que ficará satisfeito, senhor.

— A mesma mesa?

— A mesa central, no recanto do salão, não é isso?

— Sim; e você entendeu o que recomendei, sobre a cadeira extra?

— Já foi providenciada.

— E já conseguiu o... o alecrim?

— Perfeitamente, Mr. Barton. Receio apenas que não vá ficar muito decorativo. O senhor não preferiria que acrescentássemos umas amoras bem vermelhas — ou, digamos, uns poucos crisântemos?

— Não, não, só o alecrim.

— Muito bem, senhor. Gostaria de ver o cardápio? — Giuseppe!

Com um aceno do polegar, Charles fez aparecer um italiano baixinho, sorridente, de meia-idade.

— O menu, para Mr. Barton.

Veio o cardápio. Ostras, Consomê, Linguado à Luxembourg, Galo Silvestre, Poires Hélène, Fígado de Galinha com Bacon.

George dispensou à lista um olhar indiferente, devolvendo-a.

— Sim, sim, está ótima.

Charles o acompanhou até à porta. Abaixando um pouco a voz, murmurou:

— Poderia tomar a liberdade de expressar o quanto apreciamos, Mr. Barton, que o senhor esteja — hum — voltando para nós?

Um sorriso meio macabro aflorou ao rosto de George. Respondeu:

— Temos que esquecer o que passou — não se pode viver no passado. Tudo aquilo já acabou e foi encerrado.

— Uma grande verdade, Mr. Barton. O senhor sabe que ficamos tristes e chocados, na ocasião. Certamente espero que Mademoiselle tenha uma festa de aniversário muito feliz, e que tudo saia como o senhor deseja.

Com uma graciosa curvatura, Charles se despediu, arremessando-se, como uma libélula zangada, para uma mesa próxima à janela, onde um espécime de hierarquia mais inferior de garçons estava fazendo alguma coisa.

Havia um arremedo de sorriso nos lábios de George, ao deixar o Luxembourg. Não era imaginativo o bastante para sentir uma ponta de piedade pelo restaurante. Afinal de contas, não era culpa da casa que Rosemary tivesse resolvido suicidar-se ali, ou que alguém escolhesse aquele lugar, para assassiná-la. Fora decididamente duro, para o Luxembourg. Mas, como a maioria das pessoas com uma idéia fixa, George não pensava em outra coisa além do seu plano.

Almoçou no clube, seguindo depois para uma reunião de negócios. No caminho de volta ao escritório, parou num telefone público e ligou para um número de Maida Vale. Deixou a cabina, com um suspiro de alívio. Tudo estava saindo como planejado. Voltou ao escritório.

Ruth o procurou imediatamente:

— A respeito de Victor Drake...

— Sim?

— Receio que o caso seja sério. Existe a possibilidade de um processo criminal. Victor vem-se servindo do dinheiro da firma, por um período de tempo considerável.

— Foi isso que Ogilvie disse?

— Sim. Telefonei-lhe esta manhã, e ele ligou agora à tarde, cerca de dez minutos atrás. Falou que Victor estava encarando tudo com o maior descaramento.

— Bastante típico, por sinal.

— Mas ele insiste em que não haverá processo, se o dinheiro for devolvido. Mr. Ogilvie procurou a firma, e parece que a informação é correta. A verdadeira quantia em questão é de cento e sessenta e cinco libras.

— Quer dizer, então, que o senhor Victor estava pretendendo embolsar mais cento e trinta e cinco, na transação?

— Temo que sim.

— Bem, pelo menos conseguimos evitar isso — comentou George, com sombria satisfação.

— Disse a Mr. Ogilvie para ir em frente e resolver o negócio. Fiz bem?

— Pessoalmente, eu ficaria deliciado em ver aquele jovem trapaceiro de uma figa ir parar na cadeia — entretanto, temos que pensar em sua mãe. Uma tola, mas muito querida. Assim, o Sr. Victor venceu mais uma vez, como sempre.

— Como sabe ser generoso! — disse Ruth.

— Eu?

— Considero-o melhor homem do mundo.

O cumprimento comoveu George. Sentiu-se feliz e embaraçado, ao mesmo tempo. Num impulso, tomou a mão de Ruth e beijou-a.

— Querida Ruth... Minha querida e melhor amiga! O que seria de mim, sem você?

Ficaram assim, bem juntos.,

“Eu poderia ter sido feliz, com ele”, pensou Ruth. “Poderia tê-lo feito feliz. Se ao menos...”

Mentalmente, George se perguntava: “Deverei seguir o conselho de Race? Desistir de tudo? Não seria, na verdade, o melhor a fazer?”!

A indecisão pairou sobre ele e se desvaneceu. Falou, então:

— Às nove e meia, no Luxembourg.

 

Todos haviam comparecido.

George soltou um suspiro de alívio. Até o último instante, receava que alguém faltasse — mas estavam todos aqui. Stephen Farraday, alto e empertigado, um pouco pomposo. Mrs. Farraday, num severo vestido preto, com um colar de esmeraldas em torno do pescoço; Sandra tinha berço, sem dúvida... Parecia absolutamente natural, talvez um pouco mais gentil do que de costume. Ruth também estava de preto, sem qualquer ornamento senão um broche; os cabelos escuros e macios contrastavam com a alvura da cabeça, do pescoço e dos braços — mais brancos que os das outras mulheres. Trabalhando no escritório o dia inteiro, não tinha muito tempo livre para se bronzear...

Os olhos de George encontraram os de Ruth e esta sorriu-lhe, tranquilizadoramente, como se adivinhasse a sua ansiedade. Sentiu o coração mais leve — a leal Ruth! Ao lado dele, Íris estava estranhamente calada. Era a única a mostrar consciência de que esta não era uma reunião comum. Estava pálida, mas, de certa forma, isto lhe caía bem, conferindo-lhe uma beleza grave, natural. Usava um vestido simples, verde-folha. Por último, Anthony Browne... Aos olhos de George, ele chegara com o passo lépido e furtivo de uma criatura selvagem — uma pantera, talvez, ou um leopardo. O homem não parecia, realmente, muito civilizado.

Estavam todos lá — seguros na armadilha de George. Agora, a peça podia começar...

Tomaram os coquetéis, levantaram-se e passaram, através do amplo arco, para o restaurante propriamente dito.

Pares dançando, música suave, garçons eficientes e atarefados... Charles se adiantou e, sorridentemente, guiou-os até sua mesa. Esta ficava no extremo do salão, num pequeno recanto formado por um arco, e que abrigava três mesas — uma grande, no centro, ladeada por duas outras pequenas, para duas pessoas. A mesa redonda, central, havia sido reservada para o grupo de Barton.

Solicitamente, George designou-lhes os lugares:

— Sandra, quer sentar-se aqui, à minha direita? Browne ficará ao seu lado. Íris, querida, a festa é sua — quero tê-la aqui à minha esquerda. Ao lado da aniversariante, Farraday e, em seguida, você, Ruth.

Fez uma pausa: entre Ruth e Anthony havia um lugar vago — a mesa havia sido posta para sete pessoas.

— Meu amigo Race vai chegar um pouco atrasado. Pediu que não esperássemos por ele. Virá assim que puder. Gostaria que todos o conhecessem — é um sujeito esplendido, já correu o mundo inteiro e pode contar-lhes algumas boas histórias.

Ao sentar-se, Íris tinha plena consciência da raiva que estava sentindo. George separara-a de Anthony — fizera isso de propósito! Era Ruth que devia ter sido colocada ali, junto ao anfitrião. George, portanto, ainda não gostava de Anthony, desconfiava dele...

Íris arriscou um olhar furtivo, por cima da mesa. Anthony estava franzindo as sobrancelhas. Não olhara para ela: lançara apenas um olhar agudo, de esguelha, para a cadeira vazia ao lado, dizendo então:

— Ainda bem que espera outro cavalheiro no grupo, Barton. Há uma possibilidade de eu ter que sair cedo. Talvez não possa evitar. O caso é que avistei aqui um conhecido...

George observou, com um sorriso:

— Misturando negócios e prazer? Ainda está muito novo para isso, Browne — embora eu jamais tenha sabido quais são, exatamente, os seus negócios...

Por coincidência, nesse momento houve uma pausa na conversação geral. A resposta de Anthony veio deliberada e fria:

— Crime organizado, Barton, é o que sempre respondo quando me fazem essa pergunta. Assaltos a combinar, furtos encenados, serviços a domicílio...

Sandra Farraday interveio rindo:

— O senhor tem algo a ver com armas, não tem, Mr. Browne? Um rei de armamentos é sempre o vilão da peça, hoje em dia.

Íris percebeu, por um instante, os olhos de Anthony se arregalarem de surpresa. O rapaz falou, em tom de brincadeira:

— A senhora não deve me denunciar, Lady Alexandra, é tudo muito secreto! Os espiões das potencias estrangeiras estão por toda parte. Não se pode falar assim, sem precauções... — abanou a cabeças, com uma solenidade fingida.

O garçom retirou os pratos de ostras. Stephen perguntou a Íris se queria dançar; logo todos os seguiram. A atmosfera ficou mais leve. Pouco depois, chegou a vez de Íris dançar com Anthony. A jovem aproveitou para desabafar:

— Foi mesquinho, da parte de George, não nos sentar juntos.

— Foi bondade dele: desse modo, posso olhá-la todo o tempo, por cima da mesa.

— Vai ter mesmo que sair cedo?

— Pode ser necessário.

Dali a pouco, Anthony perguntou:

_ Você sabia que esse Coronel Race viria?

— Não, não tinha a menor idéia.

— Bastante estranho, isso.

— Você o conhece? Oh, sim, você já o disse, outro dia — exclamou Íris, continuando: — Que tipo de homem é ele?

— Ninguém sabe, realmente.

Voltaram para a mesa. A noite prosseguiu. Lentamente, a tensão, que havia relaxado, parecia acentuar-se novamente. Uma atmosfera de nervos esticados dominava toda a mesa; apenas o anfitrião parecia jovial e despreocupado. Íris percebeu-o consultar o relógio.

Subitamente, um rufar de tambores — as luzes se apagaram. Um palco se ergueu, no salão. As cadeiras foram empurradas um pouco para trás, colocadas de lado. Três casais surgiram em cena, dançando. Foram seguidos por um homem que sabia imitar ruídos: trens, rolos compressores, aviões, máquinas de costura, vacas tossindo — fez um sucesso. A seguir, vieram Lenny e Flo, numa dança estilizada que mais parecia um número de trapézio. Mais aplausos. Então, um outro número, pelos Seis do Luxembourg. As luzes voltaram a se acender.

Todos piscaram.

Ao mesmo tempo, uma onda de súbito alívio de tensão pareceu varrer o grupo em volta da mesa. Era como se, subconscientemente, todos tivessem estado esperando algo, que acabara não se concretizando — da outra vez, o reacender das luzes havia coincidido com a descoberta de um cadáver, caído sobre a mesa. Era como se, agora, o passado houvesse realmente passado, desfazendo-se no esquecimento. O fantasma de uma tragédia antiga se desvanecera.

Sandra virou-se para Anthony, animadamente; Stephen fez uma observação a Íris, e Ruth curvou-se para a frente, entrando na conversa. Apenas George ficou recostado na cadeira, observando... observando, os olhos fixos no lugar vazio à sua frente. Uma cotovelada de Íris o despertou.

— Acorde, George! Vamos dançar... Você ainda não dançou comigo.

George se levantou. Sorrindo para ela, ergueu seu corpo.

— Primeiro, vamos fazer um brinde — à jovem cujo aniversário estamos celebrando. À prosperidade de Íris Marle — ou, como diriam os persas, “que sua sombra nunca diminua”!

Beberam a isto, rindo, e então todos se levantaram para dançar: George e Íris, Stephen e Ruth, Anthony e Sandra. Era um ritmo alegre de jazz.

Voltaram juntos para a mesa, rindo e conversando. Sentaram-se.

Então, de súbito, George se inclinou para a frente.

— Quero fazer um pedido a todos. Há cerca de um ano atrás, estivemos reunidos aqui, numa noite que acabou tragicamente. Não desejo rememorar tristezas antigas, mas, simplesmente, não quero que pensem que Rosemary está completamente esquecida. Peço-lhes que bebam à sua memória — um brinde à recordação.

Ergueu a taça. Os outros, obedientemente, o imitaram. Seus rostos eram máscaras polidas. George falou:

— Rosemary, como símbolo de recordação!

As taças foram levadas aos lábios. Beberam.

Houve uma pausa — e, em seguida, George oscilou para a frente... Afundou na cadeira, as mãos erguidas agarrando freneticamente o pescoço, o rosto ficando purpúreo, enquanto lutava para respirar.

Levou um minuto e meio para morrer.

 

                            ÍRIS

           “Pois eu pensava que os mortos tinham paz

           “Mas não é bem assim...”

 

O Coronel Race apareceu na porta da Nova Scotland Yard. Preencheu o formulário que lhe foi apresentado e poucos minutos mais tarde estava cumprimentando o Inspetor-Chefe Kemp, na sala deste.

Os dois se conheciam bem. Kemp fazia lembrar, ligeiramente, aquele grande e antigo veterano, Battle. Na verdade, tendo trabalhado sob a sob a direção de Battle por muitos anos, Kemp talvez houvesse copiado, inconscientemente, um bom número de maneirismos do velho. Dava a mesma impressão de ter sido talhado num só bloco de madeira — mas, enquanto Battle lembrava teca ou carvalho, o Inspetor-Chefe sugeria algo mais vistoso: mogno, digamos, ou um bom e antiquado pau-rosa.

— Foi muita gentileza sua procurar-nos, Coronel — disse Kemp. — Vamos precisar de toda a ajuda que pudermos conseguir, nesse caso.

— Ele parece ter caído em mãos muito ilustres — falou Race.

Kemp não se preocupou em fazer negativas modestas. Aceitava, com simplicidade, o fato incontestável de que somente casos de extrema delicadeza, grande publicidade ou suprema importância chegavam até ele. Explicou:

— Foi por causa do clã Kidderminster. Pode imaginar como isso nos obriga a agir com muito cuidado.

Race concordou com a cabeça. Havia encontrado Lady Alexandre Farraday muitas vezes. Era uma dessas mulheres discretas, de categoria indiscutível, que nunca imaginamos associada a publicidade sensacionalista. Ouvira-a falar em público — sem eloqüência, mas clara e competentemente, com amplo domínio do assunto e excelente capacidade de transmiti-lo. O tipo de mulher cuja vida social estava em todos os jornais e cuja vida privada era praticamente inexistente, a não ser como um ameno pano de fundo doméstico. “No entanto”, pensou, “tais mulheres também têm uma vida particular. Conhecem o desespero, o amor, as agonias do ciúme. Podem perder o controle e arriscar a própria vida, num jogo desesperado”. Indagou, curioso:

— E se foi ela quem fez aquilo, Kemp?

— Lady Alexandra? Acredita nessa hipótese?

— Não faço a menor idéia. Mas suponhamos que tenha sido ela — ou seu marido, também ao abrigo do manto dos Kidderminster.

Os olhos firmes, verde-mar, do Inspetor-Chefe Kemp se fixaram, imperturbáveis, nos olhos escuros de Race.

— Se qualquer um dos dois foi o culpado, não mediremos esforços até vê-lo enforcado. Sabe disso, melhor do que ninguém. Não tememos nem acobertamos assassinos, neste país. Entretanto, precisaremos estar absolutamente certos de nossas provas — o promotor público fará questão disso.

Race assentiu com a cabeça, dizendo:

— Vamos aos fatos, então.

— George Barton morreu envenenado com cianureto — da mesma forma que a esposa, há um ano atrás. É verdade que você também estava presente, na noite de ontem, no restaurante?

— Sim. Barton me convidara para tomar parte na sua reunião. Recusei. Não gostava do que ele estava planejando. Protestei e tentei convencê-lo de que, se tinha dúvidas sobre a morte da esposa, deveria vir procurar as pessoas indicadas: vocês.

Kemp concordou, dizendo:

— Era o que devia ter feito.

— Em vez disso, levou em frente sua própria idéia — construir uma armadilha para o assassino. Nada o faria contar-me que armadilha era aquela. Sentia-me inquieto sobre todo o assunto — tanto assim que fui no Luxembourg, na noite de ontem, de modo a poder manter as coisas sob vigilância. Minha mesa ficava, necessariamente, um pouco distante — não queria arriscar-me a ser visto. Infelizmente, não tenho nada a contar-lhe. Não percebi absolutamente nada de suspeito. Os próprios convidados e os garçons foram as únicas pessoas que se aproximaram da mesa.

— Sim — disse Kemp — isso limita as possibilidades, não é? Só pode ter sido um deles ou o garçom, Giuseppe Balsano. Chamei-o aqui, hoje de manhã — pensei que você poderia querer interrogá-lo — mas não acho que ele tenha algo a ver com o caso. Está no Luxembourg há doze anos — boa reputação, casado pai de três filhos, uma ficha limpa. Dá-se bem com todos os clientes.

— O que nos deixa apenas com os convidados.

— Sim. O mesmo grupo que estava presente quando Mrs. Barton... morreu.

— E como foi aquilo, exatamente, Kemp?

— Venho reexaminando o caso de Mrs. Barton, já que parece bastante óbvio o relacionamento entre as duas mortes. Foi Adams quem cuidou daquela investigação. Não era o que se pode chamar de um caso claro de suicídio, mas, sendo esta a solução mais provável, e na ausência de qualquer indício concreto de assassinato, tivemos que deixá-lo passar por suicídio. Não podíamos agir de outro modo. Temos muito outros casos assim, em nossos arquivos, bem sabe — suicídio com um ponto de interrogação. O público não sabe do ponto de interrogação — mas nós o mantemos em mente. Às vezes, prosseguimos numa boa caçada, secretamente. Em alguns casos surge um fato novo — em outros, não. Naquele, não surgiu nada.

— Até agora.

—Até agora. Alguém “deu o serviço” a Mr. Barton de que sua esposa havia sido assassinada. Ele começou a se mexer, por conta própria: praticamente anunciou que estava na trilha certa. Se estava, ou não, eu não sei — mas o culpado deve ter pensado assim. Então, o assassino ficou assustado e eliminou Mr. Barton. Tanto quanto posso ver, foi isso que se passou. Concorda comigo, espero.

— Oh, sim! — respondeu Race. — Esse aspecto da questão parece bastante claro. Só Deus sabe qual era a tal armadilha. Percebi que havia um lugar vago, na mesa _ talvez à espera de alguma testemunha inesperada. De qualquer modo, deu mais resultado do que se pretendia. Alarmou tanto o culpado que ele — ou ela — não esperou que a armadilha fosse colocada.

— Bem — disse Kemp — temos cinco suspeitos. E temos ainda que prosseguir com o primeiro caso: Mrs. Barton.

— Acredita, definitivamente, que não foi suicídio?

— Este assassinato parece provar que não foi. No entanto, não acho que você nos pudesse censurar, na ocasião, por aceitarmos a teoria do suicídio como a mais provável. Havia alguma evidência nesse sentido.

— “Depressão após uma gripe”?

O rosto lenhoso de Kemp encrespou-se num sorriso.

— Isso foi para o tribunal... Concordava com o relatório médico e poupava os sentimentos de todo mundo. Faz-se assim, todos os dias. E havia também uma carta , inacabada, para a irmã, na qual explicava a destinação que desejava para seus objetos pessoais — mostrando que tinha em mente a idéia de se matar. Estava mesmo deprimida, não duvido, a pobre senhora — e com mulheres, nove vezes em dez, trata-se de um caso amoroso. Com os homens, são principalmente preocupações financeiras.

— Então, vocês sabiam que Mrs. Barton tinha um amante?

— Sim, descobrimos logo isso. Foi um relacionamento discreto, mas não muito difícil de averiguar.

— Stephen Farraday?

— Exatamente. Costumavam encontrar-se num pequeno apartamento, para lá de Earl’s Court. O caso já durava seis meses. Digamos que tivessem brigado — ou talvez ele estivesse ficando cansado dela — bem, RS. Barton não seria a primeira mulher a tirar a própria vida, num assomo de desespero.

— Mas com cianureto de potássio, num restaurante público?

— Sim, se quisesse ser dramática a respeito — com ele presenciando a cena, e tudo o mais. Algumas pessoas têm uma queda pelo espetáculo... Segundo pude descobrir, ela não ligava muito para convenções — todas as precauções vinham da parte dele.

— Alguma evidência no sentido de Mrs. Farraday saber o que se estava passando?

— Tanto quanto pudemos averiguar, ela não sabia de nada.

— Mesmo assim, Kemp, ela pode ter sabido. Não é o tipo de mulher que traz os sentimentos estampados no rosto.

— Oh, é bem verdade! Conte os dois como possibilidade: ela, por ciúmes; ele, pela carreira. O divórcio o teria arrasado — não que hoje o divórcio importe tanto quanto antigamente, mas, nesse caso em especial, teria significado o antagonismo do clã Kidderminster.

— E quanto à secretária de George?

— É uma possibilidade — respondeu Kemp. — Podia ter uma queda por George Barton. Eram unha e carne, no escritório, e acredita-se por lá que ela gostava imensamente do patrão. Na verdade, na tarde de ontem, uma das telefonistas do escritório estava fazendo uma imitação de Barton segurando a mão de Ruth Lessing e dizendo que não poderia viver sem ela... Então, Miss Lessing deu-lhe um mês de salário e mandou-a embora. Parece que Miss Lessing é muito sensível a respeito.

Fazendo uma pausa, Kemp mudou de tópico:

— Há também a irmã de Mrs. Barton, que ganhou uma bolada de dinheiro — não podemos nos esquecer disso. Parece uma boa garota, mas nunca se pode dizer... E temos ainda o outro namorado de Mrs. Barton.

— Estou ansioso por ouvir o que sabe a seu respeito.

Kemp respondeu, lentamente:

— Notavelmente pouco — mas o que já temos não é muito bom. O passaporte dele está em ordem: é um cidadão americano sobre quem nada pudemos descobrir, bom ou mau. Veio para cá, hospedou-se no Claridge e tanto fez que conseguiu ficar amigo de Lorde Dewsbury.

— A ponto de lhe merecer confidencias?

— Pode ser que sim. Dewsbury parece ter caído por ele — convidou-o para sua casa. Foi numa reunião bem crítica, por sinal.

— Armas — comentou Race. — Houve aquele problema com os testes dos novos tanques, na fábrica de Dewsbury.

— Precisamente. Esse tal de Browne apresentou-se como interessado em armamentos. Foi logo depois de ele ter estado lá que descobriram aquela sabotagem — no último momento. Browne conheceu muitos amigos de Dewsbury — parece ter cultivado todos os que estavam relacionados a empresas de armamentos. Em conseqüência, deve ter-lhe sido mostrada muita coisa que, na minha opinião, ele jamais deveria ter visto — e, num ou dois casos, houve sérios problemas nas fábricas, não muito tempo depois de ele aparecer nas vizinhanças.

— Um a figura interessante, Mr. Anthony Browne...

— Sim. Aparentemente, sabe cativar as pessoas, e tira disso o máximo proveito.

— Mas onde entra Mrs. Barton nessa história? — indagou Race.— George Barton tinha lago a ver com a indústria de armamentos?

— Não — mas eles parecem ter sido bastante íntimos. George nunca deixou escapar alguma observação a esse respeito, na sua presença, Coronel? Sabe, melhor do que ninguém, o que uma bela mulher pode arrancar de um homem.

O Coronel Race concordou com a cabeça, tomando, acertadamente, as palavras do Inspetor-Chefe como uma referencia ao Departamento de Contra-Espionagem, que uma vez chefiara — e não, como um desavisado poderia imaginar, a indiscrições que pudesse ter pessoalmente cometido.

Falou, após um ou dois minutos:

— Chegou a ver as cartas que George Barton recebeu?

— Sim. Estavam na escrivaninha dele, quando fui à sua casa, ontem à noite. Miss Marle as encontrou, para mim.

— Sabe que tenho interesse nessas cartas, Kemp. Qual é a opinião do perito, sobre elas?

— Papel barato, tinta ordinária... As impressões digitais mostram que George e Íris Marle as manusearam. Há também um sem-número de impressões não identificadas, no envelope — carteiros, etc. Foram escritas em letra de imprensa e, seguindo os peritos, por alguém instruído, com boa saúde.

— Boa instrução... Não um criado, nesse caso?

— Presumivelmente, não.

— Então isso torna tudo ainda mais interessante.

— Significa que alguém mais tinha suspeitas, no mínimo.

— Alguém que não procurou a polícia... Alguém que estava disposto a despertaras suspeitas de George, mas que não queria ficar envolvido no assunto. Há algo estranho aí, Kemp. George não poderia tê-las escrito, ele mesmo — ou sim?

— Poderia. As por quê?

— Como uma preliminar para o seu suicídio — um suicídio que pretendia fazer parecer assassinato, talvez?

— E assim mandar Stephen Farraday para a forca? É uma idéia — mas ele ter-se-ia assegurado bem de que tudo apontasse Farraday como o assassino; e o fato é que não temos coisa alguma contra Farraday.

— O que sabe sobre o cianureto? Foi achada alguma embalagem?

— Sim; um embrulhinho de papel branco, embaixo da mesa. Traços de cristais de cianureto, no interior. Nenhuma impressão digital. Num livro de mistério, é claro, teria sido algum tipo especial de papel, ou dobrado de alguma forma característica... Eu gostaria de ministrar a esses escritores de histórias detetivescas um curso sobre trabalho de rotina. Eles logo aprenderiam que a maioria das coisas é de origem ignorada, e que ninguém jamais percebe nada em lugar algum!

Race sorriu:

— Uma afirmação por demais genérica, talvez. Alguém notou alguma coisa, ontem à noite?

— Na verdade, é isso que vou começar a investigar. Ontem à noite, tomei breves declarações de todos eles e voltei com Miss Marle para Elvaston Square, onde examinei a escrivaninha e os papéis de Barton. Hoje, tomarei depoimentos mais completos de todos os envolvidos — incluindo as pessoas sentadas nas outras duas mesas daquele recanto do salão.

O Impostor remexeu em alguns papéis, e prosseguiu:

— Sim, eis aqui: Gerald Tollington, da Guarda Real dos Granadeiros, e a Honorável Patrícia Brice-Woodworth — um jovem casal de noivos; aposto que só tiveram olhos um para o outro. Mr. Pedro Morales, um mexicano desagradável — até o branco de seus olhos é amarelo — e Miss Christine Shannon — uma loura e adorável cavadora de ouro; aposto que também ela não viu nada — parece mais tapada do que se poderia imaginar, exceto no que diz respeito a dinheiro. É de um para cem a possibilidade de que algum deles tenha percebido algo, mas, mesmo assim, anotei seus nomes e endereços, para uma tentativa. Começaremos pelo garçom, Giuseppe. Ele já chegou. Vou mandá-lo entrar.

 

Giuseppe Balsano era um homem de meia-idade, com um rosto inteligente, que lembrava o de um macaquinho. Estava nervoso, embora não mais do que se poderia esperar, nas circunstancias. Seu inglês era fluente, pois, como explicou, residia no país desde os dezesseis anos e casara-se com uma inglesa.

Kemp tratou-o com simpatia.

— Então, Giuseppe, vejamos se algo mais lhe ocorreu sobre este assunto.

— É tudo muito desagradável para mim, senhor. Sou eu que sirvo aquela mesa; eu que sirvo o vinho. As pessoas vão começar a dizer que perdi a cabeça, que fico pondo veneno nos copos de vinho... Não é verdade, mas é isso que vão dizer. Mr. Goldstein já disse que é melhor eu me afastar do trabalho uma semana — para os clientes não ficarem fazendo perguntas, apontando para mim. Ele é um homem justo, imparcial, e sabe que não é minha culpa, que já trabalho lá há muitos anos — por isso ele não me demite, como outros donos de restaurante fariam. Mr. Charles também tem sido bondoso, mas, de qualquer forma, é uma grande desgraça para mim — e me assusta. Será que tenho um inimigo, eu me pergunto?

— Bem, — falou Kemp, com a expressão mais imperturbável — você tem?

O rosto triste de símio se torceu numa grande risada. Giuseppe abriu os braços:

— Eu? Não tenho um só inimigo neste mundo. Muitos e bons amigos, mas nenhum inimigo.

Kemp pigarreou.

— Agora, quanto à noite passada. Fale-me tudo sobre o champanha.

— Era Cliquot 1928 — um vinho muito bom e caro. Mr. Barton era assim, gostava de boa comida e boa bebida — a melhor.

— Ele havia encomendado o vinho com antecedência?

— Sim. Já tinha combinado tudo com Charles.

— E o lugar vazio, na mesa?

— Aquilo também foi determinado por ele. Combinou com Charles, e este me contou. Uma jovem iria ocupá-lo, maios tarde.

— Uma jovem? — Race e Kemp se entreolharam. — Sabe quem era ela?

Giuseppe abanou a cabeça.

— Não, não sei mais nada a respeito. Ela deveria chegar mais tarde, foi tudo o que ouvi.

— Continue falando do vinho. Quantas garrafas?

— Duas, e uma terceira de reserva, se fosse necessário. A primeira acabou bem rápido. Abri a segunda, não muito antes do show. Enchi as taças de champanha e coloquei a garrafa no balde de gelo.

— Quando foi a última vez que viu Mr. Barton bebendo de sua taça?

— Deixe-me ver... O show acaba, eles bebem à saúde da mocinha — era aniversário dela, pelo que entendi. Então, eles vão dançar. É depois disso, quando eles voltam para a mesa, que Mr. Barton bebe novamente e, um minuto depois — assim, num estalar de dedos! — ele está morto.

— Você encheu as taças, enquanto eles estavam dançando?

— Não, Monsieur. Elas estavam cheias, quando brindaram à saúde de Mademoiselle — e não beberam muito, só uns poucos goles. Sobrou bastante nas taças.

— Alguém — qualquer pessoa — chegou perto da mesa, enquanto estavam dançando?

— Absolutamente ninguém, senhor. Estou certo disso.

— Foram todos dançar ao mesmo tempo?

— Sim.

— E voltaram para a mesa também ao mesmo tempo?

Giuseppe olhou para o teto, num esforço de memória.

— Mr. Barton voltou primeiro, com a mocinha — era mais corpulento que os outros, e não conseguia dançar tanto tempo, o senhor compreende. Em seguida, vieram o cavalheiro louro, Mr. Farraday, e a moça de preto. Lady Alexandra Farraday e o cavalheiro moreno foram os últimos.

— Você conhece Mr. Farraday e Lady Alexandra?

— Sim, senhor. Vejo-os freqüentemente, no Luxembourg. São pessoas muito ilustres.

— Agora, Giuseppe, pense bem: você teria notado se alguém tivesse colocado alguma coisa na taça de Mr. Barton?

— Não posso afirmar, senhor. Tinha meu serviço, as outras duas mesas daquele recanto do restaurante, e mais duas no salão principal; havia pratos para servir... Não fiquei observando a mesa de Mr. Barton. Depois do show, quase todo mundo se levantou e foi dançar, de modo que nessa hora fiquei parado, em pé — é por isso que posso ter certeza de que, nesse período, ninguém se aproximou da mesa. Mas, assim que as pessoas se sentaram, voltei imediatamente a ficar ocupado.

Kemp assentiu, com a cabeça.

— Acho, no entanto — continuou Giuseppe — que seria muito difícil alguém fazer isso, sem ser observado. Parece-me que só o próprio Mr. Barton teve oportunidade. Mas os senhores não pensam assim, não é?

Olhou inquisitivamente o policial.

— Então, é essa a sua teoria? — perguntou Kemp.

— Naturalmente, não sei de nada — mas fico imaginando. Há um ano atrás, a linda Mrs. Barton se suicidou. Não poderia ser que Mr. Barton estivesse tão infeliz que também decidisse se matar, do mesmo jeito? Seria poético. É claro que não é bom para o restaurante — mas um cavalheiro que vai-se suicidar não iria pensar nesse detalhe.

Ansiosamente, ele alternou o olhar, de Kemp para Race.

Kemp sacudiu a cabeça.

— Duvido que seja tão simples assim — falou.

Após mais algumas perguntas, Giuseppe foi dispensado.

Quando a porta se fechou atrás do garçom, Race comentou:

— Será que era isso que pretendiam que pensássemos?

— “Marido inconsolável se mata no aniversário da morte da esposa”? Não que fosse o dia mesmo do aniversário — mas suficientemente perto.

— Era Dia de Todos os Santos — falou Race.

— É verdade. Sim, é possível que fosse esta a idéia... Mas, nesse caso, o assassino — quem quer que tenha sido — não devia saber de nada a respeito daquelas cartas anônimas, nem que Barton consultara você, nem que ele as mostrara a Íris Marle.

Olhou o relógio.

— Deverei estar na mansão Kidderminster às doze e trinta. Antes disso, temos tempo de ir procurar os ocupantes das outras duas mesas — alguns deles, pelo menos. Vem comigo, não vem, Coronel?

 

Mr. Morales estava hospedado no Ritz. Dificilmente era o que se poderia chamar de uma visai agradável, a esta hora da manhã, com a barba ainda por fazer, os olhos injetados, e todos os sinais de uma severa ressaca.

Tinha a cidadania americana, e se expressava numa variante do inglês falado naquele país. Embora se declarasse desejoso de recordar tudo o que pudesse, suas lembranças da noite anterior eram as mais vagas possíveis.

— Fui lá com Chrissie — aquela garotinha é mesmo colossal! Disse-me que o lugar era bacana. “Meu doce de coco”, falei, “iremos onde você quiser”. Era bastante classudo, isto eu admito — e eles sabem como esvaziar o bolso do freguês. Saí de lá quase trinta dólares mais pobre. A música, porém, era uma droga — eles simplesmente pareciam não saber o que é ritmo...

Desviado das recordações da sua própria noitada, Mr. Morales foi instado a lembrar-se da mesa central, naquele recanto do salão. Nesse ponto, não foi de muita valia:

— É claro que havia uma mesa no centro, com algumas pessoas, mas não me lembro das caras. Não liguei muito para eles, até que aquele sujeito apagou. Pensei, primeiro, que ele não tinha agüentado a bebida. Ei, agora me lembro de uma das mulheres: cabelo escuro, e o resto era tudo o que um homem pode desejar.

— Está-se referindo à moça de vestido verde, de veludo?

— Não, não, essa era magricela. A bonequinha era a de preto, com belas curvas.

Havia sido Ruth Lessing, portanto, que atraíra os olhos errantes de Mr. Morales.

Ele franziu o nariz, apreciativamente:

— Observei-a dançando — e, amigos, como a gatinha sabia dançar! Fiz-lhe sinais uma ou duas vezes, mas o olhar da garota era gelado — olhou simplesmente através de mim, nesse jeito britânico de vocês...

Nada mais de valor poderia ser extraído de Mr. Morales, e ele admitiu francamente que, por volta do show, seu estado etílico já era bem avançado.

Kemp agradeceu e preparou-se para sair.

— Estou de partida para Nova Iorque amanhã — disse Morales. — O senhor não desejaria — perguntou, esperançosamente — que eu ficasse mais uns tempos por aqui?

— Obrigado, mas não creio que seu depoimento vá ser necessário no inquérito.

— O senhor entende, estou gostando muito daqui — e, se fosse por um assunto de polícia, a firma não iria chiar. Quando a polícia manda alguém ficar quieto no lugar, a gente não pode arredar pé. Talvez eu pudesse lembrar de alguma coisa, se pensasse bastante.

Kemp, no entanto, recusou-se a engolir a isca, e dirigiu-se com Race para Brook Street, onde foram recebidos por um cavalheiro indignado, o pai da Honorável Patrícia Brice-Woodworth.

O General Lorde Woodworth brindou-os com um bom número de observações francas. Que raio de idéia era essa de sugerir que sua filha — sua filha! — estava envolvida nesse tipo de coisa? Para onde estava indo a Inglaterra, se uma moça não podia mais sair com o noivo, para jantar num restaurante, sem se submetida a interrogatório, por detetives e toda a Scotland Yard? Ela nem sequer conhecia aquela gente — qual era mesmo o nome? Hubbard? Barton? Um desses sujeitos da City... Servia para mostrar que nunca se pode ser por demais cuidadoso com os lugares aonde se vai — o Luxembourg era tido como um restaurante distinto, mas, aparentemente, já era a segunda vez que uma coisa dessas acontecia lá. Gerald devia ser um tolo, para ter levado Pat àquele lugar — esses rapazes pensam que sabem de tudo! Mas, de qualquer forma, não iria permitir que sua filha fosse atormentada, intimidade, interrogada exaustivamente _ não sem um mandado judicial. Iria ligar para o velho Anderson, em Lincoln’s Inn, e perguntar-lhe...

Nesse ponto, o General parou abruptamente e, fixando o olhar em Race, falou:

— Conheço o senhor de algum lugar. Mas de onde poderia ser!...

A resposta de Race veio imediata, acompanhada de um sorriso:

— Badderapore, 1923.

— Macacos me mordam — exclamou o General — se não é Johnnie Race! O que é que você está fazendo, metido nessa confusão?

O Coronel Race sorriu.

— Estava com o Inspetor-Chefe Kemp, quando foi levantada a questão de entrevistar sua filha. Sugeri que seria muito mais agradável para a jovem se o Inspetor viesse aqui, do que ela ter de deslocar-se à Scotland Yard, e pensei que eu também deveria vir junto.

— Oh — hum — bem, foi muito gentil de sua parte, Race.

— Naturalmente, desejávamos incomodar a senhorita sua filha o mínimo possível — acrescentou o Inspetor Kemp.

Neste instante, porém, a porta se abriu, e Miss Patrícia Brice-Woodworth entrou em cena, assumindo o controle da situação, com a indiferença e a naturalidade dos muito jovens.

— Olá! — disse ela. — Vocês são da Scotland Yard, não são? É a respeito da noite passada? Estava torcendo para que viessem. Papai está estrilando muito? Vamos, papai, não fique assim — o senhor sabe muito bem o que o médico falou de sua pressão. Não sei por que tem de ficar desse jeito a propósito de qualquer coisinha. Vou simplesmente levar os Inspetores, ou Superintendentes, ou o que quer que eles sejam, lá para cima, e mandar Walters trazer um uísque com soda para o senhor.

O General teve um colérico desejo de soltar uma porção de impropérios ao mesmo tempo, mas só conseguiu pronunciar: “Um velho amigo meu, Major Race”. Após esta apresentação, Patrícia perdeu todo interesse em Race e concentrou-se, com um beatífico sorriso, no Inspetor-Chefe Kemp.

Com sua imperturbável liderança, tangeu-os para sua própria saleta de estar, confinando firmemente o pai ao escritório.

— Pobre papai! — observou. — Ele insiste em fazer barulho. Mas, na verdade, é bem fácil de manobrar.

A conversa prosseguiu, então, em linhas mais agradáveis — porém com muito pouco proveito.

— É realmente de enlouquecer! — disse Patrícia. — Provavelmente esta foi a única oportunidade que jamais terei, em toda a minha vida, de estar bem no lugar onde está sendo cometido um assassinato — foi homicídio, não foi? Os jornais foram muito cautelosos e vagos, mas falei a Gerry, no telefone, que devia ter sido um assassinato. Imaginem só, um crime sendo praticado bem ao meu lado, e eu nem sequer estava olhando!

Era indisfarçável a decepção em sua voz.

Conforme o Inspetor-Chefe havia pessimistamente antecipado, era bastante evidente que os dois jovens, noivos há apenas uma semana, só tinham tido olhos um para o outro.

Com a maior boa vontade do mundo, a única coisa de que Patrícia Brice-Woodworth conseguiu lembrar-se foi de algumas pessoas:

— Sandra Farraday estava muito elegante, como sempre. O vestido, aliás, era um modelo Schiaparelli.

— A senhorita conhece Lady Alexandra? — perguntou Race.

Patrícia abanou a cabeça.

— Apenas de vista. Sempre achei que o marido parece um chato — tão pomposo, como a maioria dos políticos!

— E os outros? Conhecia algum de vista?

Ela sacudiu a cabeça, novamente.

— Não, nunca os tinha visto — pelo menos, acho que não. Na verdade, creio que não teria sequer notado Sandra Farraday, se não fosse pelo Schiaparelli.

— E você vai ver, Race — comentou o Inspetor-Chefe Kemp, sombriamente, ao deixarem a casa — que, com o jovem Tollington, vai ser exatamente a mesma coisa... apenas, não vai haver nem o detalhe do Skipper — skipper — como é mesmo? Soa como uma sardinha — para atrair a atenção dele.

Race concordou:

— Também não creio que o corte do terno do Stephen Farraday tenha feito o seu coração bater mais forte.

— Muito bem — disse o Inspetor. — Vamos tentar Christine Shannon, e assim teremos encerrado com as pessoas não diretamente envolvidas.

Miss Shannon era, como o Inspetor Kemp já havia declarado, uma loura adorável. Os cabelos claros, cuidadosamente arrumados, emolduravam feições suaves, vazias de expressão, como as de um bebê. Miss Shannon podia ser, como afirmara o Inspetor-Chefe, uma tola — mas era uma festa para se ver, e havia uma certa esperteza nos grandes olhos azuis claros, indicadora de que sua burrice se limitava apenas a assuntos intelectuais: no que se referia a bom senso e tino financeiro, Chritine Shannon era perita.

Recebeu os dois homens com a máxima delicadeza, oferecendo-lhes bebidas e, como estas fossem recusadas, insistindo para que aceitassem cigarros. O apartamento era pequeno, de um moderníssimo barato.

— Adoraria poder ajudá-lo, Sr. Inspetor-Chefe. Por favor, faça todas as perguntas que desejar.

Kemp começou pelas costumeiras perguntas sobre a aparência e comportamento dos ocupantes da mesa do centro.

Imediatamente, Christine se revelou uma observadora excepcionalmente perspicaz e atenta.

— A reunião não estava indo bem, podia-se logo ver isso. O grupo não poderia estar mais contrafeito... Fiquei até com bastante pena do sujeito — o dono da festa. Estava dando tudo de si, para animar o pessoal, e tão nervoso como um gato em cima de um fio — mas nada do que fizesse parecia dar resultado. A mulher alta, à sua direita, estava tão dura como se tivesse engolido um taco; e saltava aos olhos que a garota à esquerda dele estava maluquinha de raiva, por não estar sentada junto ao bonitão, de cabelos escuros, do outro lado da mesa. Quanto ao sujeito louro e alto junto a ela, parecia que não estava passando bem do estomago, e engolia a comida como se pensasse que iria ficar entupido. A outra mulher, entre o louro e a cadeira vazia, estava se esforçando ao máximo: dava corda nele, mas parecia que ela própria também estava sobressaltada.

— A senhorita parece ter observado muita coisa, Miss Shannon — comentou o Coronel Race.

— Vou-lhe contar um segredo: eu mesma não estava me divertindo muito. Já vinha saindo com aquele cavalheiro há três noites seguidas e estava ficando cansada dele. Estava doido para ver Londres — especialmente o que chamava de lugares “classudos”.

Christine fez uma pausa, e continuou:

— Tenho que dizer, a seu favor, que não era mesquinho. Champanha todas as vezes. Fomos ao Comprador, ao Mile Fleures e, finalmente, ao Luxembourg — e posso afirmar que ele se divertiu bem. De um certo modo, era meio patético... A conversa dele, porém, não era o que se podia chamar de interessante: apenas longas histórias sobre negócios que havia realizado no México — ouvi a maioria delas três vezes — e todas as mulheres que havia conhecido, e como eram loucas por ele... Mas uma garota fica cansada de escutar, após algum tempo, e os senhores hão de convir que Pedro não tem muita coisa para se olhar — de modo que me concentrei na comida e deixei meus olhos correrem tudo à volta.

— Bem, isso foi excelente, do nosso ponto de vista, Miss Shannon — falou o Inspetor-Chefe. — Espero apenas que tenha visto algo que nos ajude a solucionar nosso problema.

Christine abanou a cabecinha loura.

— Não faço idéia de quem empacotou o sujeito — a menor idéia. Ele simplesmente tomou um gole de champanha, ficou roxo e como que desmaiou.

— Lembra-se de qual foi a última vez em que ele havia bebido, antes disso?

A garota refletiu.

— Bem... Sim. Foi logo depois do show: as luzes acenderam, ele ergueu a taça, falou qualquer coisa, e os outros o imitaram. Pareceu-me que era uma espécie de brinde.

O Inspetor-Chefe concordou com a cabeça.

— E então ?

— Então começou a música, todos se levantaram e foram dançar, empurrando as cadeiras para trás e rindo. Pareciam estar animados, pela primeira vez — maravilhoso o que o champanha pode fazer pelas festas mais desanimadas!

— Eles foram todos juntos — deixando a mesa vazia?

— Sim.

— E ninguém tocou na taça de Mr. Barton?

— Absolutamente ninguém — a resposta dela veio rápida. — Tenho certeza disso.

— E ninguém — ninguém, mesmo — chegou perto da mesa, enquanto eles estavam dançando?

— Ninguém — exceto o garçom, é claro.

— Um garçom? Que garçom?

— Um dos ajudantes, de avental, aparentando uns dezesseis anos. Não era um garçom de verdade, entende? O garçom mesmo era um sujeito baixinho, obsequioso, com cara de macaco — acho que era italiano.

O Inspetor-Chefe Kemp acolheu essa descrição de Giuseppe Balsano com um aceno de cabeça.

— E o que fez esse ajudante de garçom? Encheu os copos?

Chritine abanou a cabeça.

— Oh, não! Ele não tocou em coisa alguma da mesa. Simplesmente apanhou a bolsa que uma das senhoras havia deixado cair, quando todos se levantaram.

— De quem era a bolsa?

Christine levou um ou dois minutos pensando. Disse, então:

— É isso...! Era a bolsa da mocinha — verde e ouro. As outras duas estavam com bolsas pretas.

— O que o garçom fez com a bolsa?

Christine pareceu surpreendida.

— Ora, colocou de volta na mesa, e foi tudo.

— A senhorita está bem certa de que ele não tocou em nenhum dos copos?

— Absolutamente certa. Apenas jogou a bolsa em cima da mesa, rapidamente, e saiu correndo, porque um dos garçons de verdade estava gritando com ele para ir a algum lugar, ou pegar alguma coisa, senão tudo iria ser culpa...

— E foi essa a única ocasião em que alguém chegou perto daquela mesa?

— Exato.

— Mas, é claro, alguém poderia ter-se aproximado dela, sem que a senhorita houvesse notado.

Christine, porém, sacudiu a cabeça com muita determinação.

— Não, tenho certeza que não. O senhor entende, Pedro havia sido chamado ao telefone, e ainda não tinha voltado — de modo que eu não tinha nada a fazer, senão olhar em volta e me sentir entediada. Sou bastante boa em observar as coisas e, de onde estava sentada, não havia muito mais coisa para ver, senão a mesa vazia, próxima à nossa.

— Quem voltou primeiro para a mesa? — perguntou Race.

— A garota se verde e o sujeito de meia-idade; depois que estavam sentados, voltaram o homem louro e a moça de preto; por último, a mulherzinha arrogante e o moreno bonitão — bom dançarino, ele! Quando todos voltaram para a mesa, e o garçom estava, feito um louco, esquentando um prato no fogareiro a gás, o dono da festa se inclinou para a frente, fez uma espécie de discurso e todos ergueram as taças, novamente. E então aquilo aconteceu...

Christine parou um instante, e acrescentou vivamente:

— Horrível, não foi? É claro, pensei que fosse um ataque do coração — minha tia teve um, e caiu igualzinho. Pedro voltou naquela hora, e falei: “Olhe, Pedro, aquele homem teve um ataque!” E tudo que Pedro encontrou para dizer foi: “Está só apagando — bebeu demais — não é nada.” Aliás, isso era exatamente o que ele próprio estava quase fazendo. Eu tinha que mantê-lo de olho. Num lugar como o Luxembourg, não gostam que alguém apague. É por esse motivo que não gosto de latinos: depois que bebem muito, perdem logo a linha — aí, uma garota nunca pode saber que coisas desagradáveis a esperam...

Remoeu a idéia, por um momento, e então, olhando para o vistoso bracelete no seu pulso direito, completou:

— Ainda assim, deve reconhecer que são bastante generosos.

Gentilmente desviando Christine do tema das provações e recompensas da vida de uma garota, Kemp fê-la repetir a história mais uma vez.

— Lá se vai, Race, nossa última oportunidade de ajuda externa — disse Kemp, ao deixarem o apartamento de Miss Shannon. — E teria sido uma boa oportunidade, se tivesse dado certo. Essa garota é o tipo da boa testemunha: vê as coisas e lembra-se delas com exatidão. Se tivesse havido alguma coisa a ser vista, não lhe teria escapado. Assim, a resposta é que não havia nada a ser visto. É inacreditável... É um truque de mágica! George Barton bebe champanha e vai dançar; volta, bebe do mesmo copo, no qual ninguém tocou — e eis que, de repente, está cheio de cianureto! É uma loucura, eu lhe digo. Não poderia ter acontecido, mas aconteceu.

Parou um minuto.

— Aquele jovem garçom — o ajudante... Giuseppe nunca o mencionou. Eu poderia investigar isso... Afinal de contas, o rapaz foi a última pessoa que chegou perto da mesa enquanto eles todos estavam dançando. Poderia haver alguma coisa, aí.

Race abanou a cabeça.

— Se ele tivesse colocado alguma coisa no copo de Barton, Miss Shannon teria visto — é uma observadora nata de detalhes. Não tem nada dentro da cabeça para pensar, e, portanto, usa os olhos... Não, Kemp, deve haver uma explicação bem simples, se ao menos conseguirmos achá-la.

— Sim, há uma: ele próprio colocou o veneno na taça.

— Estou começando a acreditar que foi isso que aconteceu — que é a única coisa que pode ter acontecido. Mas nesse caso, Kemp, estou convencido de que não devia saber que era cianureto.

— Está sugerindo que alguém deu o veneno a ele, dizendo-lhe que era para sua indigestão, pressão alta, ou coisa que o valha?

— Talvez.

— Então, quem foi esse alguém? — indagou o Inspetor. — Não poderia ser nenhum dos Farraday.

— Certamente, isso não parece provável.

— Eu diria, ainda, que o Mr. Anthony Browne seria igualmente improvável — falou Kemp. — Isso nos deixa com duas pessoas: uma querida cunhada...

— E uma devotada secretária — completou Race.

Kemp olhou para ele.

— Sim — ela poderia ter-lhe impingido alguma coisa no gênero. Tenho que ir agora para a mansão Kidderminster. E você? Vai ver Miss Marle?

— Acho que vou procurar a outra — no escritório. Condolências de um velho amigo... Poderia levá-la a almoçar.

— Então, é isso que você está pensando?

— Ainda não penso nada. Estou apenas procurando pistas.

— De qualquer modo, deveria ir ver Íris Marle.

— Irei visitá-la — mas preferiria ir à sua casa, pela primeira vez, numa hora em que ela não estivesse lá. Sabe por que, Kemp?

— Asseguro-lhe que não.

— Porque há alguém lá que chilreia — chilreia como um passarinho... “Um passarinho me contou” — esta é uma expressão da minha juventude. É uma grande verdade, Kemp: esses passarinhos podem nos contar muitas coisas, se apenas os deixarmos... chilrear!

Os dois homens se separaram. Race chamou um táxi e foi para o escritório de George Barton, na cidade. O Inspetor-Chefe Kemp, cônscio de sua verba de despesas, tomou um ônibus até bem perto da mansão Kidderminster.

O rosto do Inspetor estava carrancudo, ao subir os degraus e tocar a campainha. Iria entrar, sabia, em terreno perigoso. O grupo dos Kidderminster tinha imensa influência política e suas ramificações se espalhavam como uma rede por todo o país.

O Inspetor-Chefe Kemp acreditava plenamente na imparcialidade da justiça britânica. Se Stephen ou Alexandra Farraday fossem responsáveis pela morte de Rosemary ou George Barton, nenhum “empurrãozinho” ou “influencia” lhes permitiria escapar às conseqüências do seu ato. Mas, se não fossem culpados, ou se as provas contra eles fossem muito vagas para garantir uma condenação, então o policial responsável teria que tomar a máxima cautela com o lugar onde estava pisando, ou ficaria sujeito a levar um sabão dos superiores. Nessas circunstancias, era bem compreensível que ao Inspetor não agradasse muito a idéia do que estava por vir. Parecia-lhe bastante provável que os Kidderminster iriam ser um osso duro de roer.

Logo descobriu, no entanto, que sua previsão fora algo ingênua. Lorde Kidderminster era um diplomata por demais tarimbado, para recorrer a grosserias.

Tão logo declarou ao imponente mordomo o propósito de sua visita, Kemp foi conduzido até um aposento escuro, forrado de livros, no fundo da casa. Encontrou ali Lorde Kidderminster, a filha e o genro, à sua espera.

Adiantando-se, Lorde Kidderminster apertou-lhe a mão, dizendo com cortezia:

— O senhor foi absolutamente pontual, Inspetor-Chefe. Permita-me declarar que aprecio deveras sua gentileza ao vir aqui, em vez de solicitar que minha filha e o marido fossem à Scotland Yard. É desnecessário dizer que, sem dúvida, eles estariam prontos a comparecer, se assim fosse preciso — mas apreciaram muito sua delicadeza.

Sandra falou, numa voz calma:

— Sim, realmente, Inspetor.

Sentada ali, no seu vestido escuro e aveludado, com a luz da janela alta e estreita filtrando-se por trás dela, recordava a Kemp uma figura de vitral que vira, certa vez, numa catedral estrangeira. O longo rosto oval e a ligeira angulação dos seus ombros reforçavam a ilusão. Santa Fulana-de-Tal, haviam-lhe dito — mas Lady Alexandra não era nenhuma santa — estava longe disso. Ainda assim, alguns daqueles santos de antigamente haviam sido criaturas estranhas, na opinião do Inspetor — não eram cristãos comuns, bondosos e decentes, mas, pelo contrário, intolerantes, fanáticos e cruéis para consigo mesmos e para com os outros.

Stephen Farraday estava junto da esposa. Seu rosto não exprimia qualquer emoção. Parecia correto e formal, a imagem de um legislador escolhido pelo povo. O homem primitivo estava bem escondido dentro dele, mas nem por isso deixava de existir, como o Inspetor-Chefe bem sabia.

Lorde Kidderminster estava falando, dirigindo com muita habilidade o curso da conversa:

— Não esconderei do senhor, Inspetor-Chefe, que este é um assunto muito doloroso e desagradável para todos nós. Foi a segunda vez que minha filha e meu genro estiveram relacionados com uma morte violenta, num local público — o mesmo restaurante, e dois membros da mesma família. Esse gênero de publicidade é sempre prejudicial para um homem que vive sob os olhos da opinião pública. A publicidade, é claro, não pode ser evitada. Todos compreendemos isto, e tanto minha filha como Mr. Farraday estão ansiosos para lhe dar a ajuda possível, na esperança de que o assunto possa ser rapidamente esclarecido e o interesse público esmoreça.

— Muito obrigado, Lorde Kidderminster. Aprecio profundamente a atitude que os senhores adotaram. Certamente torna as coisas mais fáceis, para nós.

Sandra Farraday falou:

— Por favor, faça-nos todas as perguntas que desejar, Sr. Inspetor-Chefe.

— Obrigada, Lady Alexandra.

— Apenas uma coisa, Inspetor — interveio Lorde Kidderminster. — O senhor tem, é claro, suas próprias fontes de informação, e, pelo que depreendi da conversa com meu amigo, o Comissário, a morte desse tal de Barton foi considerada homicídio — embora, pelo que transpirou para o público em geral, a hipótese de suicídio parecesse uma explicação mais provável. Você pensou que fosse suicídio, não foi mesmo, minha querida Sandra?

A figura gótica assentiu ligeiramente com a cabeça. Sandra respondeu, num tom pensativo:

— Isto me pareceu tão óbvio, na noite passada... Estávamos lá, no mesmo restaurante — e, na verdade, na mesma mesa _ onde a pobre Rosemary Barton se suicidou, ano passado. Encontramos Mr. Barton várias vezes, no campo, durante o verão, e ele estava realmente muito esquisito — bastante diferente do seu natural — e todos pensamos que era a morte da esposa que estava torturando seu espírito. Ele gostava muito dela, o senhor sabe, e não acredito que jamais tenha conseguido superar o trauma de sua morte. Assim, a idéia de suicídio me pareceu, senão natural, pelo menos possível — enquanto não posso imaginar por que alguém iria desejar matar George Barton.

Stephen Farraday apoiou, rapidamente:

— Eu também não consigo imaginá-lo. Barton era um excelente sujeito — estou certo de que não tinha um só inimigo neste mundo.

O Inspetor-Chefe Kemp olhou para os três rostos inquiridores, voltados em sua direção, e refletiu um momento, antes de falar, pensando consigo mesmo: “É melhor deixar as coisas correrem à maneira deles.” Respondeu, então:

— Estou convencido de que a senhora disse uma verdade, Lady Alexandra. Mas, compreenda, há algumas coisas que os senhores, provavelmente, ainda desconhecem.

Lorde Kidderminster apressou-se a intervir:

— Não devemos constranger o Inspetor. É de sua inteira competência decidir quais os fatos que pode tornar públicos.

— Obrigado, milorde, mas não há qualquer razão que me impeça de explicar a situação um pouco mais claramente. Vou resumir os fatos. George Barton, antes de sua morte, expressou a duas pessoas a convicção de que sua esposa não havia cometido suicídio, como se pensara, mas fora propositalmente envenenada. Acreditava, também, estar na trilha do culpado, e o jantar e a celebração da noite passada, ostensivamente em homenagem ao aniversário de Miss Marle, era, na verdade, parte de um plano que havia traçado para descobrir a identidade do assassino da esposa.

Houve um momento de silencio; e nesse silencio, o Inspetor-Chefe Kemp — que, apesar de sua aparência dura, era um homem sensível — captou a presença de algo que classificou de consternação.

Lorde Kidderminster foi o primeiro a se recuperar, falando:

— Mas, certamente, esta mesma idéia poderia indicar que o pobre Barton não estava — hum — em pleno domínio de suas faculdades. Ficar remoendo a morte da esposa poderia tê-lo perturbado um pouco, mentalmente.

— É verdade, Lorde Kidderminster, mas isso mostra, pelo menos, que seu estado de ânimo não era, absolutamente, suicida.

— Sim... Sim, concordo com seu raciocínio.

E novamente se fez silencio. Stephen Farraday falou, então, abruptamente:

— Mas de onde George foi tirar essa idéia? Afinal, Mrs. Barton cometeu suicídio!

O Inspetor-Chefe Kemp voltou um olhar plácido, em sua direção:

— Mr. Barton não pensava assim.

Lorde Kidderminster interveio:

— Mas a polícia se dera por satisfeita! Não se aventou nada além de suicídio, na ocasião.

O Inspetor respondeu, tranquilamente:

— Os fatos eram compatíveis com suicídio. Não havia evidencia de que a morte de Mrs. Barton fosse devida a qualquer outra causa.

Kemp estava seguro de que um homem do calibre de Lorde Kidderminster saberia captar o sentido exato dessa declaração. Tornando-se um pouco mais formal, o Inspetor continuou:

— Agora, gostaria de fazer-lhe algumas perguntas, se me permite, Lady Alexandra.

— Certamente — Sandra virou ligeiramente a cabeça, em sua direção.

— A senhora não teve qualquer suspeita, na época, de que a morte de Mrs. Barton pudesse ter sido assassinato, e não suicídio?

— Absolutamente não. Estava bem certa de que fora suicídio. — Fez uma pausa, acrescentando: _ E ainda estou.

Kemp deixou passar a observação. Perguntou:

— A senhora recebeu alguma carta anônima, no ano que passou, Lady Alexandra?

A calma que Sandra vinha mostrando pareceu ser quebrada, de pura surpresa:

— Cartas anônimas? Oh, não...

— Estas bem certa disso? Essas cartas são muito desagradáveis, e as pessoas geralmente preferem ignorá-las, mas podem ser particularmente importantes no presente caso. É por isso que desejo enfatizar que é absolutamente essencial que me fale a respeito, se a senhora tiver recebido alguma carta desse tipo.

— Compreendo... Mas posso apenas assegurar-lhe, Inspetor, que não recebi nada no gênero.

— Muito bem. Passemos, então, a outro assunto. A senhora declarou que o comportamento de Mr. Barton havia sido estranho, nesse verão. De que modo, exatamente?

Ela pensou, um minuto:

— Bem, estava sobressaltado, nervoso... Parecia ter dificuldade em concentrar sua atenção no que se estava falando. — Voltou a cabeça na direção do marido. — Não foi assim que lhe pareceu, Stephen?

— Sim, eu diria que a descrição foi perfeita. O homem também parecia fisicamente doente. Tinha emagrecido.

— Notou alguma diferença na atitude dele em relação à senhora, ou ao seu marido? Menos cordialidade, por exemplo?

— Não, pelo contrário. Mr. Barton havia comprado uma casa, o senhor sabe, bem próxima à nossa, e parecia muito agradecido pelo que pudemos fazer por ele — apresentações sociais, quero dizer, e tudo o mais. É claro que tivemos o máximo prazer em fazer tudo o que podíamos, nesse sentido, tanto por ele como por Íris Marle, que é uma jovem encantadora.

— A falecida Mrs. Barton era grande amiga sua, Lady Alexandra?

— Não, não éramos muito íntimas — respondeu Sandra, soltando uma risadinha. — Na verdade, ela era mais amiga de Stephen. Estava interessada em política, e ele... — bem, meu marido ajudou a educá-la politicamente, no que, estou certa, ele teve muito prazer. Mrs. Barton era muito encantadora e atraente.

“E a senhora é muito esperta”, pensou o Inspetor-Chefe, apreciativamente, com seus botões. “Fico imaginando o quanto deve saber sobre aqueles dois... Bastante, calculo.” Ele prosseguiu:

— Mr. Barton nunca expressou, para a senhora, a hipótese de que a esposa não se havia suicidado?

— Não, realmente. Foi isso que fiquei tão espantada, ainda há pouco.

— E Miss Marle? Ela também nunca falou sobre a morte da irmã?

— Não.

— Tem alguma idéia sobre o que levou George Barton a comprar uma casa no campo? A senhora ou seu marido teriam feito alguma sugestão neste sentido?

— Não. Foi uma verdadeira surpresa.

— E o comportamento dele, em relação aos senhores, foi sempre amigável?

— Na verdade, bastante amigável.

— Agora, Lady Alexandra, o que sabe a respeito de Mr. Anthony Browne?

— Nada, para ser franca. Encontrei-o casualmente, e isso é tudo.

— E o senhor, Mr. Farraday?

— Creio que, provavelmente,ainda sei menos sobre ele do que minha esposa. Ela, pelo menos, dançou com Browne. Parece ser um tipo agradável — americano, suponho.

— Pelo que pôde observar na época, o senhor diria que ele estivesse em termos de especial intimidade com Mrs. Barton?

— Não tenho, absolutamente, nenhum conhecimento sobre o fato, Sr. Inspetor-Chefe.

— Estou pedindo apenas sua impressão, Mr. Farraday.

Stephen franziu as sobrancelhas.

— Eles eram amigos — isto é tudo que posso dizer.

— E a senhora, Lady Alexandra?

— Simplesmente minha impressão, Inspetor?

— Apenas isso.

— Então, devo confessar-lhe que sempre me pareceu que eles eram muito amigos e estavam em termos bastante íntimos. Não sei se esta impressão poderá ter algum valor para o senhor, pois me baseio apenas no jeito com que olhavam um para o outro — não tenho qualquer prova concreta.

— As mulheres são geralmente bons juízes nesses assuntos — disse Kemp. O sorriso meio presunçoso com que fez esta observação teria divertido o Coronel Race, se estivesse presente. — E quanto a Miss Lessing, Lady Alexandra?

— Miss Lessing, pelo que sei, era secretária de Mr. Barton. Conheci-a na noite em que Mrs. Barton morreu. Depois disso, encontrei-a outra vez, quando foi passar uns dias no campo, e, novamente, na noite de ontem.

— Se me permite uma outra pergunta pouco formal, ela por acaso lhe deu a impressão de estar apaixonada por George Barton?

— Realmente não faço a menor idéia.

— Então, vamos aos acontecimentos da noite passada.

O inspetor interrogou Stephen e a esposa, minuciosamente, sobre o desenrolar da trágica reunião. Como já esperava, tudo o que conseguiu foi uma confirmação dói que já lhe havia sido contado. Todos os relatos concordavam nos pontos importantes — Barton havia proposto um brinde a Íris, bebera à sua saúde e, imediatamente após, levantara-se para ir dançar; todos tinham deixado a mesa ao mesmo tempo, e George e Íris haviam sido os primeiros a voltar. Ninguém tinha qualquer explicação a dar sobre a cadeira vazia, senão que George Barton dissera, claramente, estar esperando um amigo — um tal de Coronel Race — que deveria chegar mais tarde, no decorrer da noite. O Inspetor sabia, porém, que essa explicação de George não era verdadeira.

Apoiada pelo marido, Sandra Farraday declarou que após o show, ao se acenderem as luzes, George havia olhado para a cadeira vazia, de um modo peculiar: por alguns momentos, parecera tão longe dali que nem sequer havia escutado, quando lhe dirigiram a palavra — e então, recompondo-se, propusera o brinde a Íris.

A única informação extra que o Inspetor-Chefe conseguiu foi o relato de Sandra sobre sua conversa com George, em Fairhaven — o pedido que ele lhe fizera, e ao seu marido, para que colaborassem com seu plano de realizar aquela reunião, pelo bem de Íris.

“Um pretexto bastante plausível”, pensou o Inspetor-Chefe, “embora não fosse verdadeiro”. Fechando seu caderninho de anotações, onde rabiscara um ou dois hieróglifos, ele se levantou.

— Estou-lhe muito agradecido, milorde, e a Mr. Farraday e Lady Alexandra, por sua ajuda e colaboração.

— A presença de minha filha vai ser necessária, no inquérito?

— De início, serão cumpridas apenas as formalidades de praxe. Vão ser apresentadas as conclusões do exame de identificação, o relatório-médico, e então o inquérito será adiado por uma semana. Nessa altura — continuou o Inspetor-Chefe, seu tom se alternando ligeiramente — estaremos, espero, mais adiantados.

Virou-se para Stephen Farraday.

— A propósito, Mr. Farraday, há um ou dois pequenos pontos onde acho que o senhor poderia ajudar-me. Não há necessidade de incomodarmos Lady Alexandra. Se o senhor me der um telefonema, lá para a Scotland Yard, poderemos combinar a hora que melhor lhe convier. Sei que o senhor é um homem ocupado.

Apesar das suas palavras terem sido proferidas amavelmente, no tom mais casual possível, três pares de ouvidos julgaram perceber o verdadeiro propósito nelas implícito.

— Certamente, Inspetor-Chefe — conseguiu dizer Stephen, num ar de amigável cooperação. Consultando o relógio, murmurou: — Tenho que ir para a Câmara.

Após a precipitada saída de Stephen, seguido, logo depois, pelo Inspetor-Chefe, Lorde Kidderminster se virou para a filha e perguntou, sem rodeios:

— Stephen estava tendo um caso com aquela mulher?

Sandra ficou em silencio, por uma fração de segundo, antes de responder:

— É claro que não! Eu teria sabido, se assim fosse — e, de qualquer forma, Stephen não é desse tipo.

— Vamos, querida, não adianta esconder o jogo. Essas coisas não conseguem ser abafadas... Precisamos saber exatamente em que terreno estamos pisando, neste assunto.

— Rosemary Barton era amiga daquele homem, o tal de Anthony Browne. Iam juntos a todos os lugares.

— Bem — falou Lorde Kidderminster, lentamente — você é quem sabe.

Não acreditou na filha. Retirou-se vagarosamente, o rosto envelhecido e perplexo, subindo para a saleta de estar da esposa. Proibira a presença de Lady Kidderminster na biblioteca, por saber muito bem que seus ares arrogantes poderiam despertar antagonismo — e, na presente conjuntura, ele considerava de vital importância manter relações harmoniosas com o oficial de polícia.

— E então? — perguntou a esposa. — Como foi tudo?

— Muito bem, em vista das circunstancias — respondeu Lorde Kidderminster, lentamente. — Kemp é um sujeito cortês, com modos muito agradáveis. Conduziu a coisa toda com tato — até demais, talvez, para o meu gosto...

— É sério, então?

— Sim, é sério. Nunca deveríamos ter deixado Sandra se casar com aquele sujeito, Vicky.

— Foi isso que eu disse, na ocasião.

— Sim,sim... — respondeu ele, aceitando a observação. — Você estava certa, e eu, errado. Mas não deve esquecer que ela o teria conseguido, de qualquer forma. Não se pode conter Sandra, quando está decidida a fazer alguma coisa. Foi um desastre ela ter conhecido Farraday — um homem sobre cuja família e antecedentes nós nada sabemos. Quando surge uma crise, como podemos saber de que modo um homem desses vai reagir?

— Estou entendendo — disse Lady Kidderminster. — Você acha que acolhemos um assassino na família?

— Não sei. Não quero condenar o sujeito, precipitadamente — mas é isso que a polícia pensa, e eles são muito vivos. Stephen teve um caso com a tal Mrs. Barton — isto ficou mais do que claro. Agora, quanto a ela ter-se suicidado por sua causa, ou ele... bem, o que quer que tenha acontecido, Barton ficou sabendo, e estava preparando uma divulgação escandalosa. Suponho que Stephen simplesmente não pudesse se arriscar a isso, e...

— Envenenou-o?

— Sim.

Lady Kidderminster abanou a cabeça.

— Não concordo com você.

— Espero que esteja certa... Mas alguém o envenenou.

— Se deseja minha opinião — falou Lady Kidderminster — Stephen não teria fibra para fazer uma coisa dessas.

— Acontece que ele dá extraordinária importância à carreira. É bastante dotado, você sabe, e tem tudo o que é necessário para um verdadeiro estadista. Não se pode dizer do que alguém é capaz, quando encurralado.

A esposa abanou a cabeça, mais uma vez.

— Continuo achando que ele não teria fibra suficiente. Se quisermos descobrir o culpado, temos que procurar por alguém com o espírito de um jogador, alguém capaz de uma temeridade... Estou com medo, William, muito medo.

Ele a olhou fixamente:

— Você está sugerindo que Sandra... Sandra...?!

— Detesto até pensar uma coisa dessas — mas não adianta ser covarde, ter medo de encarar as possibilidades. Sandra está enfeitiçada por aquele homem — sempre esteve — e há qualquer traço estranho na personalidade dela. Nunca a compreendi realmente... mas sempre temi por Sandra. Ela arriscaria qualquer coisa — qualquer coisa — por Stephen, sem considerar as conseqüências. E, se foi louca e impiedosa o bastante para fazer isso, tem que ser protegida.

— Protegida? O que você quer dizer — “protegida”?

— Por você. Temos que fazer algo por nossa própria filha, não temos? Ainda bem que você pode mexer todos os pauzinhos necessários...

Lorde Kidderminster a estava encarando, fixamente. Embora pensasse conhecer bem o caráter da esposa, ficou, de qualquer forma, estarrecido com a força e a coragem do seu realismo, com sua determinação de não fugir aos fatos mais desagradáveis — e também com sua falta de escrúpulo.

— Se minha filha é uma assassina, você está sugerindo que eu deveria usar minha posição oficial para salvá-la das conseqüências do seu ato?

— É lógico! — respondeu Lady Kidderminster.

— Minha cara Vicky! Você não compreende? Não se pode fazer uma coisa dessas! Seria uma falta de... de honra!

— Tolices! — disse Lady Kidderminster.

Ficaram olhando um para o outro, tão divididos que nenhum dos dois podia compreender o ponto de vista alheio. Assim deveriam ter-se olhado Agamenon e Clitemnestra, com a palavra “Efigênia” em seus lábios...

— Você poderia fazer o Governo pressionar a polícia, de modo que o assunto fosse arquivado e se conseguisse um veredicto de suicídio. Já foi feito antes — não finja que não.

— Apenas em questões políticas — no interesse do Estado. Este é um caso pessoal, privado. Eu duvido muito que pudesse fazer uma coisa dessas.

— Poderia, se estivesse suficientemente disposto.

Lorde Kidderminster enrubesceu, zangado.

— Mesmo que pudesse, não o faria! Seria abusar de meu cargo público.

— Se Sandra fosse presa e julgada, você não contrataria o melhor advogado, não faria todo o possível para fazê-la safar-se, por mais culpada que fosse?

— É claro, é claro... Isso é inteiramente diferente. Vocês, mulheres, nunca conseguem entender essas coisas!

Lady Kidderminster ficou em silêncio, sem se deixar perturbar pela alfinetada. Sandra era a menos querida de suas filhas, mas nesse momento, de qualquer forma, ela era mãe, e apenas mãe — querendo defender o filhote por todos os meios, honrosos ou não. Lutaria com unhas e dentes por Sandra.

— Em qualquer caso — prosseguiu Lorde Kidderminster — Sandra não será acusada, a menos que haja provas absolutamente convincentes contra ela — e, por mim, recuso-me a acreditar que uma filha minha seja uma assassina. Estou surpreendido que você, Vicky, tenha considerado tal idéia,, mesmo por um momento.

A esposa continuou calada, e Lorde Kidderminster deixou o aposento, sentindo-se inquieto. Pensar que Vicky — Vicky, a quem ele conhecera intimamente, por tantos anos! — viesse a dar provas de ter em si tão insuspeitas e perturbadoras profundezas...!

 

Race encontrou Ruth Lessing ocupada com papéis, numa grande escrivaninha. Vestia saia e casaco pretos, com uma blusa branca, e ele ficou impressionado com sua eficiência tranqüila, sem pressa. Notou-lhe círculos escuros sob os olhos e um rictus triste na boca, mas nela a tristeza — se era disso que se tratava — estava tão sob controle como todas as outras emoções.

Race explicou o motivo de sua visita, e ela respondeu prontamente:

— Foi muito gentil em ter vindo. É claro que me lembro do senhor! Mr. Barton estava esperando que se reunisse a nós, na noite passada, não é mesmo? Recordo-me de tê-lo ouvido dizer isso.

— Ele havia falado algo nesse sentido, antes da noite de ontem?

— Não. Na verdade, foi quando estávamos tomando lugar ao redor da mesa. Lembro-me de ter ficado um pouco surpresa... — fez uma pausa, corando ligeiramente. — Não, é claro, por ele o haver convidado; o senhor é um velho amigo, eu sei, e era para ter estado presente na festa, no ano passado. O que eu quis dizer foi que, visto o senhor estar sendo esperado, estranhei que Mr. Barton não tivesse convidado mais uma dama, para equilibrar os pares — mas, é lógico, se o senhor ia mesmo chegar atrasado, ou talvez nem aparecesse...

Ela interrompeu o que estava dizendo. Exclamou:

— Oh, que tola eu sou! Por que ficar pensando nessas bobagens sem importância? Estou mesmo embotada, esta manhã...

— Mas veio trabalhar, como de costume?

— É claro! — Ruth parecia surpresa, quase chocada. — É meu trabalho. Há tanta coisa para arrumar, jogar fora!

— George sempre me falou do quanto ele dependia da senhora — disse Race, gentilmente.

Ruth se virou para o outro lado. Race percebeu a jovem engolir em seco, rapidamente, e piscar os olhos. A ausência de maiores demonstrações de emoção, por parte dela, quase o convenceu de sua inocência — quase, mas não totalmente. Já encontrara, antes, boas atrizes, mulheres cujas olheiras e pálpebras avermelhadas eram devidas a artifícios, e não a causas naturais. Evitando fazer um julgamento apressado, disse consigo mesmo: “Pelo menos, ela é um tipo bem frio”.

Ruth se voltou novamente para a escrivaninha e, respondendo à última observação dele, falou simplesmente:

— Eu já estava com Mr. Barton há muitos anos — iria fazer sete anos, em abril próximo — e conhecia seus gostos. Acho que ele... confiava em mim.

— Estou certo disso — declarou Race, e continuou: — Está quase na hora do almoço. Eu apreciaria que a senhorita fosse almoçar comigo, em algum lugar tranqüilo. Há muita coisa que gostaria de lhe dizer.

— Obrigado. O prazer será todo meu.

O Coronel a levou a um pequeno restaurante seu conhecido, onde as mesas ficavam bem distantes umas das outras, e se podia conversar em paz. Fez os pedidos e, quando o garçom se afastou, observou sua acompanhante, do outro lado da mesa. Decidiu que Ruth era uma moça bonita, com seu cabelo escuro brilhante, a boca e o queixo firmes.

Enquanto não chegava a comida, Race falou um pouco, sobre vários assuntos, e ela o acompanhou, mostrando-se inteligente e sensível.

Então, após uma pausa, Ruth perguntou:

— O senhor deseja conversar comigo sobre a noite passada? Por favor, não hesite em fazê-lo. A coisa toda é tão incrível que eu gostaria mesmo de discutir a respeito. Se não fosse pelo fato de haver acontecido, e de eu tê-lo visto acontecer, jamais acreditaria.

— A senhorita já esteve com o Inspetor-Chefe Kemp, naturalmente?

— Sim, na noite passada. Ele parece inteligente e experimentado... — Fez uma pausa. — Foi realmente assassinato, Coronel Race?

— Kemp lhe disse isso?

— Ele não deu qualquer informação, mas suas perguntas deixaram bastante claro o que tinha na mente.

— A opinião da senhorita sobre se foi suicídio, ou não, é tão importante quanto a de qualquer outra pessoa, Miss Lessing. Conheceu Barton bem, e passou com ele a maior parte do dia de ontem, presumo. Como ele parecia? Como sempre? Ou se mostrava perturbado... deprimido... excitado?

Ela hesitou.

— É difícil julgar. Ele estava, realmente nervoso e transtornado — mas havia motivo para isso.

Explicou então a situação que havia surgido, em relação a Victor Drake, e fez um breve resumo das peripécias do rapaz.

— Hum — comentou. — A inevitável ovelha negra. E Barton estava perturbado, por causa dele?

Ruth falou, lentamente:

— É difícil de explicar. Sabe, eu conhecia Mr. Barton tão bem... Estava aborrecido e incomodado com esse assunto, e, pelo que entendi, Mrs. Drake tinha estado muito chorosa e transtornada, como sempre fica nessas ocasiões — de modo que, logicamente, ele queria ver tudo logo resolvido. Mas eu tive a impressão...

— Sim, Miss Lessing, quais foram suas impressões? Estou certo de que serão corretas.

— Bem, nesse caso, aqui as tem: pensei perceber que sua contrariedade não era a habitual, se posso falar assim, pois já tínhamos enfrentado a mesma situação antes, de uma forma ou de outra. No ano passado, Victor Drake estava aqui, com problemas, e tivemos que embarcá-lo para a América do Sul; em julho passado, telegrafou para casa, pedindo dinheiro. Assim, como pode ver, as reações de Mr. Barton a esses problemas me eram bastante familiares — e, desta vez, o seu aborrecimento parecia ser principalmente pelo fato de o telegrama ter chegado num momento em que estava preocupado, exclusivamente, com os preparativos para o jantar que ia oferecer. Ele parecia tão absorvido por esses preparativos que se ressentia de qualquer outra preocupação que surgisse.

— Alguma coisa lhe sugeriu, Miss Lessing, que houvesse algo estranho sobre esse jantar?

— Sim, de fato... Mr. Barton estava muito esquisito em relação a ele — excitado como uma criança.

— Ocorreu-lhe que essa reunião pudesse ter um propósito especial?

— O senhor se refere ao fato de ela ser uma réplica do jantar do ano passado, em que Mrs. Barton se suicidou?

— Sim.

— Francamente, achei que era uma idéia muito extravagante.

— Mas George, não deu nenhuma explicação, nem lhe fez qualquer confidencia?

Ruth negou com a cabeça.

— Diga-me, Miss Lessing, algumas vez duvidou de que a morte de Mrs. Barton fosse suicídio?

Ela parecia assombrada:

— Oh, não!

— George Barton não lhe contou que acreditava que a esposa tivesse sido assassinada?

Ruth o encarou:

— George achava isso?

— Percebo que é novidade, para a senhorita. Sim, Miss Lessing, George havia recebido cartas anônimas declarando que a esposa não se suicidara — fora assassinada.

— Então foi por isso que ele ficou tão estranho, nesse verão! Eu não conseguia atinar com o que poderia estar acontecendo...

— A senhorita não sabia de nada, sobre essas cartas anônimas?

— Nada. Foram muitas?

— Ele me mostrou duas.

— E pensar que eu não sabia coisa alguma a respeito!...

Havia uma nota de amargura e mágoa, na voz de Ruth. Race a observou por um ou dois minutos, e então falou:

— Bem, Miss Lessing, o que me diz? É possível, na sua opinião, que George tenha resolvido tirar a própria vida?

Ela abanou a cabeça.

— Não — oh, não!

— Mas a senhorita declarou que ele estava excitado... transtornado?

— Sim, mas ele já vinha desse jeito há algum tempo — e agora sei o motivo. Posso entender também, nesse caso, por que estava tão excitado com a festa de ontem à noite. Devia ter algo especial, em mente — com certeza, esperava que, reproduzindo a situação, pudesse obter algum dado extra... Pobre George, devia estar tão confuso, com aquilo tudo!

— E quanto a Rosemary Barton, Miss Lessing? A senhorita ainda pensa que sua morte foi suicídio?

Ruth franziu as sobrancelhas.

— Nunca sonhei que pudesse ser outra coisa! Pareceu tão natural...

— Depressão após uma gripe?

— Bem, talvez muito mais do que isso. Ela, decididamente, estava muito infeliz. Podia-se perfeitamente notá-lo.

— E seria possível adivinhar a causa?

— Bem... sim — pelo menos eu pude. É claro que talvez estivesse enganada, mas Mrs. Barton era dessas mulheres muito transparentes, que não se dão ao trabalho de esconder seus sentimentos. Graças a Deus, acho que Mr. Barton não suspeitou de nada... Oh, sim, ela estava muito infeliz! E, naquela noite, além de sentir-se abatida pela gripe, ainda estava com dor de cabeça.

— Como sabe disso?

— Ouvi-a queixando-se a respeito, com Lady Alexandra _ no toalete, onde estávamos tirando os agasalhos. Rosemary estava dizendo que precisava de uma aspirina, e, por sorte, Lady Alexandra tinha na bolsa um analgésico, o Cachet Faivre, para lhe dar.

A mão com que o Coronel Race segurava o copo ficou imobilizada no ar.

— E ela aceitou?

— Sim.

Race pousou o copo, sem chegar a beber, e olhou para a moça, por cima da mesa — parecia calma, inconsciente das implicações do que havia dito. Mas aquele, fato novo, aparentemente corriqueiro, era muito importante: significava que Sandra — cuja posição na mesa tornava mais difícil colocar, sem ser percebida, Alguma coisa no copo de Rosemary — tivera outra oportunidade para administrar o veneno. Poderia tê-lo dado a Rosemary, dizendo ser o Cachet Faivre. Ordinariamente, uma cápsula levaria apenas alguns minutos para se dissolver — mas talvez aquela fosse um tipo especial, com um revestimento gelatinoso, ou de outra substancia qualquer; ou ainda, Rosemary poderia não tê-la ingerido na hora, e sim mais tarde...

Race perguntou abruptamente:

— A senhorita viu Mrs. Barton tomar o remédio?

Ruth pareceu um pouco surpreendida.

— Eu... bem — não, na verdade não vi. Ela apenas agradeceu a Lady Alexandra.

Assim, Rosemary poderia ter guardado a cápsula na bolsa, e então, durante o show, com a dor de cabeça aumentando, poderia tê-la dissolvido na taça de champanha. Suposição — pura suposição — mas era uma possibilidade!

Ruth falou:

— Por que o senhor me pergunta isso?

Os olhos da moça estavam subitamente alerta, cheios de indagações. Race podia observar, ou assim lhe parecia, a inteligência de Ruth funcionando. A jovem falou, finalmente:

— Oh, entendo... Então, foi por isso que George comprou aquela casa, vizinha à dos Farraday; foi por isso que não me disse nada, sobre aquelas cartas — estava estranhando tanto, que ele não o tivesse feito! Mas, é claro, se acreditou no que elas diziam, isso significava que um de nós, uma das cinco pessoas em volta da mesa, devia ser o assassino. Poderia... poderia mesmo ter sido eu!

Race perguntou, numa voz muito gentil:

— A senhorita tinha algum motivo para matar Rosemary Barton?

Pensou, a principio, que Ruth não havia escutado a pergunta. Estava sentada tão imóvel, com os olhos baixos... Mas de súbito, com um suspiro, ela os levantou, olhando-o diretamente:

— Não é algo que se goste de comentar — disse ela — mas acho que é melhor o senhor ficar sabendo. Eu amava George Barton. Apaixonei-me por ele ainda antes de aparecer Rosemary. Não creio que ele jamais tenha sabido — e, certamente, não me corresponderia. Gostava de mim — muito, até — mas nunca desse jeito, suponho. Ainda assim, eu pensava que daria uma boa esposa, que poderia tê-lo feito feliz... Ele amava Rosemary, mas não era feliz com ela.

Race falou, gentilmente:

— E a senhorita não gostava de Rosemary?

— Não, de fato. Oh, era linda, muito atraente, e podia ser encantadora, à sua maneira — embora nunca se desse ao trabalho de se mostrar assim, comigo. Eu não gostava dela nem um pouco. Fiquei chocada, quando morreu, com o tipo de morte que teve, mas não lamentei muito. Pelo contrário, até receio ter ficado contente. — Ruth fez uma pausa. — Por favor, não poderíamos falar de outra coisa?

O Coronel replicou, rapidamente:

— Gostaria que a senhorita me contasse, com detalhes, tudo de que se lembra sobre ontem — desde a manhã, até o fim — especialmente qualquer coisa que George tenha feito, ou dito.

Ruth respondeu prontamente, repassando os acontecimentos daquela manhã: o aborrecimento de George com a importunidade de Victor, os telefonemas que ela mesma dera a América do Sul, as providencias tomadas e o prazer de George quando tudo ficara resolvido. Descreveu, então, sua chegada ao Luxembourg e o comportamento agitado, excitado, de George, como anfitrião. Continuou a narrativa até o momento final da tragédia. Seu depoimento corroborava, em todos os pontos, os que ele já havia escutado.

Franzindo preocupadamente o cenho, Ruth colocou em palavras sua própria perplexidade:

— Não foi suicídio — estou certa que não — mas como poderia ter sido assassinato? Quero dizer, como seria possível ter sido praticado? A resposta é: não seria possível, não por um de nós Então, teria sido alguém que se aproveitou de nossa ausência e pôs o veneno na taça de George, enquanto estávamos dançando? Mas, nesse caso, quem seria essa pessoa? Não parece fazer sentido...

— Pelo que sabemos, ninguém se aproximou da mesa enquanto vocês estavam dançando — observou Race.

— Mas então não faz mesmo sentido Cianureto não entra sozinho num copo!

— A senhorita não tem absolutamente nenhuma idéia, ou mesmo suspeita, de quem poderia ter colocado o veneno? Pense, novamente, na noite passada. Não houve nada, nenhum pequeno incidente, que desperte suas suspeitas, em qualquer grau, por menor que seja?

Viu o rosto da moça mudar; percebeu, por um instante, a incerteza aflorar em seus olhos. Houve uma pequena pausa, quase imperceptível, antes de Ruth responder:

— Nada.

As tinha havido alguma coisa — estava certo disso. Algo que Ruth vira, escutara ou percebera e que, por uma ou outra razão, ela decidira não contar.

Race não a pressionou. Sabia que isso não iria adiantar, com alguém como Ruth. Se, por algum motivo, ela tivesse resolvido manter silencio, não iria mudar de idéia _ disso ele tinha certeza. Mas houvera alguma coisa — e o conhecimento desse fato o animou, infundindo-lhe uma nova confiança. Era o primeiro sinal de uma rachadura no muro liso à sua frente.

Deixou Ruth, após o almoço, e dirigiu-se a Elvaston Square, o pensamento ainda na mulher com quem acabara de conversar.

Seria Ruth Lessing a culpada? De um modo genérico, ele estava predisposto a seu favor — a jovem lhe parecera inteiramente franca e direta.

Seria capaz de matar? Grande parte das pessoas o é, se pararmos para pensar. Capazes, não de assassinatos em geral, mas de um determinado assassinato, bem individualizado — era isso que tornava tão difícil afastar alguém como suspeito. Havia uma certa dureza, naquela moça; e Ruth possuía um motivo — ou melhor, uma série deles. Afastada Rosemary, ela teria uma ótima oportunidade de se tornar Mrs. George Barton. Não importando se para casar-se com um homem rico, ou com o homem que amava, a eliminação de Rosemary era o primeiro passo essencial.

Race inclinava-se a pensar que a hipótese de casamento por dinheiro não era suficientemente boa. Ruth Lessing era muito cabeça-fria e cautelosa para arriscar o pescoço apenas para conseguir uma vida mais confortável, como esposa de um homem rico. Amor? Talvez. Apesar de todo o jeito frio e impessoal de Ruth, o Coronel suspeitava que ela fosse uma dessas mulheres que se podem inflamar com uma imprevista paixão por um determinado homem. Sentindo amor por George, e ódio por Rosemary, Ruth poderia ter friamente planejado e executado a morte de Mrs. Barton. O fato de tudo haver saído sem uma falha, e de a hipótese de suicídio ter sido universalmente aceita, sem reservas, provava sua inerente capacidade.

E, então, George havia recebido as cartas anônimas... ( Quem as escrevera? Por quê? Era o problema exasperante, desanimador, que não parava de importunar Race.) Ficando desconfiado, George planejava uma armadilha — e Ruth o silenciara.

Não, não estava certo. Não soava verdadeiro. Tal procedimento sugerira pânico — e Ruth Lessing não era mulher de se apavorar. Tinha mais cérebro do que George, e poderia ter evitado, com a maior facilidade, qualquer armadilha que ele viesse a preparar.

Tudo considerado, parecia que Ruth não se encaixava.

 

Lucilla Drake ficou encantada em ver o Coronel Race.

As cortinas estavam corridas, e Lucilla entrou na sala vestida de preto, levando um lenço aos olhos; explicou, enquanto lhe estendia uma tremula mão, que, é claro, não poderia receber ninguém — absolutamente ninguém — exceto um amigo tão antigo do querido, querido George; e era tão horrível não ter um homem em casa! Realmente, sem uma presença masculina, não se sabe como resolver coisa alguma. Eram apenas ela, uma pobre e solitária viúva, e Íris, uma garota desprotegida — E George sempre cuidara de tudo. O Coronel Race fora tão gentil em ter vindo, e ela estava realmente tão agradecida — não tinha idéia do que deveriam fazer. É claro, Miss Lessing se encarregaria de todos os assuntos de negócios, e do funeral a ser providenciado — mas, e quanto ao inquérito? Era também tão horrível ter policiais dentro mesmo da casa — à paisana, é lógico, e na verdade muito delicados.

Mas ela estava aturdida, a coisa toda era uma tragédia tão absoluta, e o Coronel Race não achava que podia ser tudo fruto de sugestão? Era assim que os psicanalistas diziam, não era, que tudo não passava de sugestão? E o pobre George, naquele pavoroso lugar, o Luxembourg, com praticamente o mesmo grupo, lembrando-se de como a pobre Rosemary morrera ali — e, subitamente, tudo aquilo devia ter sido demais para ele... Se, ao menos, tivesse escutado os conselhos que ela, Lucilla, lhe dera, e tivesse tomado aquele excelente tônico do prezado Dr. Gaskell... Estivera abatido, todo o verão — sim, bastante abatido.

Nesse ponto, a corda de Lucilla acabou, por uns instantes, e Race aproveitou a oportunidade de falar. Declarou quão profundamente sentia, e que Mrs. Drake podia contar com ele, em todos os sentidos.

Com isso, a loquacidade de Lucilla foi novamente desencadeada: disse que era mesmo muito gentil, da parte dele, e que o mais terrível havia sido o choque — hoje aqui, amanhã morto, como dizia na Bíblia, crescendo como grama e ceifado ao anoitecer — talvez a expressão não fosse bem esta, mas o Coronel Race, com certeza, entenderia o que estava querendo dizer... E era tão bom sentir que havia alguém em quem se podia confiar! Miss Lessing era bem intencionada, é claro, e muito eficiente, mas de um jeito nada simpático, e às vezes tentava controlar demais as coisas — na opinião de Lucilla, George sempre dependera exageradamente de Miss Lessing, e certa vez chegara a temer que ele pudesse fazer alguma tolice, o que teria sido uma grande pena, e provavelmente Miss Lessing o teria maltratado sem piedade, tão logo estivessem casados.

Naturalmente ela, Lucilla, pudera ver que isso estava no ar. A querida Íris era tão inexperiente! Mas, na verdade, era bonito — o Coronel Race não achava? — que mocinhas fossem tão puras e simples. Íris sempre fora muito infantil, para a idade, e muito calada — a metade do tempo, não se podia saber o que ela estava pensando. Rosemary, tão linda e alegre, saía muito, e Íris era deixada vagando pela casa, o que, na verdade, não era bom para uma jovem. Mocinhas devem ir a aulas — culinária, talvez corte e costura — isso ocupa suas mentes, e nunca se sabe quando poderá vir a ser útil. Fora mesmo um sorte que ela, Lucilla, tivesse vindo morar aqui, após a morte de Rosemary — aquela horrível gripe, um tipo de gripe especial, segundo o Dr. Gaskell: um homem tão inteligente, com maneiras tão joviais... Ela havia insistido para que Íris fosse consultá-lo, nesse verão. A menina parecera tão pálida e abatida!

— Mas, realmente, Coronel Race, acho que era devido à localidade daquela casa. Baixa, o senhor sabe, e úmida, com um verdadeiro miasma, ao anoitecer.

O pobre George a comprara, por conta própria, sem pedir a opinião de ninguém — fora mesmo uma pena. Ele havia dito que desejara fazer uma surpresa, mas, de fato, teria sido melhor se tivesse pedido o conselho de uma mulher mais experiente. Homens não entendem nada de casas!       George deveria ter compreendido que ela, Lucilla, estaria disposta a ajudá-lo de todas as formas — pois, afinal de contas, o que era sua vida, agora? O saudoso marido falecera anos atrás, e Victor, o querido menino, estava longe, na Argentina — seria mesmo Argentina, ou Brasil? Um rapaz tão carinhoso e bonito...

O Coronel Race conseguiu dizer que já ouvira falar que Lucilla tinha um filho no exterior.

Durante todo o quarto de hora seguinte, foi brindado com um relato completo das inúmeras atividades de Victor. Um rapaz tão vigoroso, disposto a trabalhar em qualquer coisa — e aqui se seguiu uma lista das diferentes ocupações de Victor. Nunca uma sombra de maldade, nem guardava ressentimento de ninguém...

— Ele sempre foi azarado, Coronel Race. Foi injustiçado pelo diretor, lá em Oxford, e acho que as autoridades se comportaram de maneira lamentável — as pessoas parecem não entender que um garoto inteligente, que gosta de desenhar, poderia achar uma excelente brincadeira imitar a letra de alguém! Victor fizera aquilo por achar divertido, e não pelo dinheiro.

Mas sempre fora um ótimo filho, e nunca deixara de recorrer à mãe quando estava com algum problema, o que mostrava — não era mesmo? — como confiava nela. Apenas parecia curioso — o Coronel não achava? — que os empregos que lhe arranjavam o obrigassem, tão freqüentemente, a se afastar da Inglaterra. Ela não podia deixar de pensar que, se ao menos Victor houvesse conseguido um bom emprego — no Banco da Inglaterra, por exemplo — teria sido mais acomodado; moraria, quem sabe, nos arredores de Londres, e possuiria um carrinho...

Passaram-se bem uns vinte minutos até que Race, tendo escutado todas as perfeições e infortúnios de Victor, conseguisse desviar Lucilla do assunto de “filhos” para o de “empregados”.

Sim, era bem verdade o que ele havia dito, não se encontravam mais empregados como os de antigamente. Na verdade, que problemas se tinha hoje em dia! Não que ela pudesse reclamar, pois realmente haviam tido muita sorte. Mrs. Pound, apesar da infelicidade de ser ligeiramente surda, era uma excelente pessoa. Suas massas eram, às vezes, um pouco pesadas, e tinha uma tendência a colocar um pouco de pimenta demais, na sopa, mas, na verdade, era alguém em quem se podia confiar — e econômica, também. Estava lá desde o casamento de George, e não fizera barulho por ter de ir para o campo, este ano — embora surgissem problemas com os outros empregados, a esse respeito, e a copeira tivesse ido embora. Pensando bem, até fora melhor assim: era uma garota impertinente e respondona, além de ter quebrado seis dos melhores copos de vinho — não um por um, ocasionalmente, o que poderia acontecer a qualquer pessoa, mas todos de uma só vez, o que mostrava realmente uma grande falta de cuidado, o Coronel não concordava?

— Muito descuidada, de fato.

— Foi isso que eu disse a ela; e ainda acrescentei que teria o maior prazer em declarar o fato nas suas referencias — pois realmente acho que é nosso dever, Coronel Race3. Quero dizer, não se deve enganar os futuros empregadores. Os defeitos devem ser mencionados, tanto quanto as boas qualidades. Mas a mocinha era, na verdade — bem, muito insolente, e disse que, de qualquer forma, ela esperava que seu próximo emprego não fosse numa casa onde as pessoas são “empacotadas” — uma expressão horrível, grosseira, aprendida no cinema, eu acho, e ridiculamente inadequada, pois a pobre Rosemary, se suicidou — embora, na ocasião, não fosse responsável pelas suas atitudes, como o magistrado acertadamente salientou; e aquela horrível expressão se refere a bandidos se executando uns aos outros com metralhadoras... Fico tão agradecida por não termos nada desse gênero acontecendo na Inglaterra! E assim, como disse, coloquei, nas suas referencias, que Betty Archdale entendia de todos os seus deveres como copeira, era séria e honesta, mas tinha grande tendência as quebrar coisas, e nem sempre era respeitosa nas suas maneiras. Pessoalmente, no lugar de Mrs. Rees-Talbot, eu teria lido nas entrelinhas, e não a teria contratado — mas as pessoas, hoje em dia, simplesmente avançam no que conseguem arranjar, e às vezes aceitam alguém que, em três empregos seguidos, não ficou mais de um mês em cada um.

Enquanto Mrs. Drake fazia uma pausa para recobrar fôlego, o Coronel Race perguntou, rapidamente, se se tratava de Mrs. Richard Ress-Talbot. Conhecera uma pessoa com esse nome, falou, na Índia.

— Na verdade, não poderia dizer. O endereço era Cadogan Square.

— Então é mesmo a esposa do meu amigo.

Lucilla comentou que o mundo era tão pequeno — não era mesmo? — e que não havia amigos como os velhos amigos. A amizade era uma coisa maravilhosa! Ela sempre achara tão romântico o caso de Viola e Paul... A querida Viola tinha sido uma pessoa adorável, e com tantos apaixonados — mas, oh céus! O coronel Race não podia mesmo saber de quem ela estava falando. É tão grande o impulso de reviver o passado...

Race pediu-lhe que continuasse e, em troca de sua gentileza, recebeu a história da vida de Hector Marle: como fora criado pela irmã, suas peculiaridades e fraquezas e, finalmente — quando Race já se havia quase esquecido de Viola — seu casamento com a linda órfã. O Coronel ficou sabendo de como Paul Bennett, vencendo seu desapontamento pela recusa de Viola, se transformara de enamorado em amigo da família; de sua ternura pela afilhada, Rosemary; de sua morte, e dos termos do testamento.

— Sempre achei isso tão romântico — prosseguiu Lucilla. — Uma fortuna tão grande! Não, é claro, que o dinheiro seja tudo — não, realmente — basta pensar na trágica morte da pobre Rosemary; e mesmo a querida Íris, não estou muito tranqüila a seu respeito.

Race a interrogou com o olhar.

— Minha responsabilidade em relação a Íris me preocupa muito... É um fato bem conhecido que ela é uma grande herdeira. Mantendo os olhos bem abertos quanto a rapazes indesejáveis, mas o que se pode fazer, Coronel Race? Não se pode zelar pelas mocinhas, como antigamente... Íris tem amigos sobre os quais eu não sei quase nada. “Convide-os para vir aqui, minha querida”; é o que eu sempre digo — mas, pelo que vejo, alguns desses jovens se recusam a freqüentar a casa. O pobre George se preocupava, também — a respeito de um rapaz chamado Browne. Eu própria nunca lhe fui apresentada, mas parece que ele e Íris têm-se visto muito... E não posso evitar de pensar que ela poderia arranjar um melhor partido.

— George não gostava dele _ continuou Lucilla. _ Estou bem certa disso. E sempre achei, Coronel Race, que os homens são muito melhores para avaliar outros homens. Lembro-me de sempre ter apreciado tanto o Coronel Pusey, um dos nossos paroquianos; meu marido, porém, mantinha uma atitude muito distante em relação a ele, e me fazia agir do mesmo modo — e, dito e feito, num domingo, quando estava fazendo a coleta do ofertório, Pusey caiu direto ao chão; completamente bêbado, parece. Depois disso — é claro, sempre se sabe dessas coisas depois; seria tão melhor se soubéssemos delas antes! — descobrimos que uma dúzia de garrafas vazias eram levadas de sua casa toda semana! Foi realmente muito triste, pois ele era genuinamente religioso, embora tendesse a ser evangélico, em suas opiniões. Ele e meu marido tiveram uma terrível discussão, certa vez, sobre os detalhes do serviço religioso na Dia de Todos os Santos. Oh, céus, e hoje é Dia de Finados — dois de novembro... Valha-me Deus! Pensar que hoje é Dia das Almas, e que ontem foi o de Todos os Santos!

Um leve ruído fez com que Race olhasse, por cima da cabeça de Lucilla, para a porta aberta. Já havia visto Íris antes — em Little Priors. No entanto, parecia como se a estivesse vendo agora pela primeira vez. Ficou impressionado com a extraordinária tensão por trás de sua impassibilidade; e nos grandes olhos da jovem, encontrando os seus, Race percebeu uma expressão que, sentiu, deveria reconhecer, embora não conseguisse.

Por sua vez, Lucilla Drake voltou a cabeça.

— Íris, querida, não a ouvi entrar. Você conhece o Coronel Race? Ele está sendo tão amável...

Íris veio apertar-lhe a mão, gravemente; seu vestido preto a fazia parecer mais magra e pálida do que a imagem que dela guardara.

— Vim até aqui para ver se poderia lhes prestar alguma ajuda — disse Race.

— Obrigada. Foi muita bondade sua — falou mecanicamente, sem emoção.

Íris recebera um grande choque, era evidente, e estava sofrendo ainda os seus efeitos. Mas teria gostado tanto de George que a morte do cunhado pudesse afetá-la tão profundamente? A jovem se voltou para a tia e Race notou que seus olhos estavam atentos. Ela perguntou:

— Do que estavam falando — ainda agora, quando entrei?

Lucilla ficou vermelha, atrapalhada, e Race adivinhou que estava ansiosa por evitar qualquer menção àquele rapaz, Anthony Browne. Mrs. Drake exclamou:

— Bem, deixe-me ver... Oh, sim, Dia das Almas — e ontem ter sido Dia de Todos os Santos! Pareceu-me uma coisa tão estranha — uma dessas coincidências em que nunca se acredita, na vida real.

— A senhora está querendo dizer — falou Íris — que Rosemary voltou ontem, para buscar George?

Lucilla deu um gritinho.

— Íris, querida, não fale assim! Que idéia terrível — tão pouco cristã!

— Por quê? É o Dia dos Mortos. Em Paris, as pessoas costumavam ir levar flores aos túmulos.

— Oh, eu sei, querida, mas elas eram católicas, não eram?

Um ligeiro sorriso apareceu nos lábios de Íris. Disse, então, diretamente:

— Pensei que talvez estivessem falando de Anthony — Anthony Browne.

— Bem — o chilreio de Lucilla tornou-se muito agudo, como o de um passarinho — de fato, nós apenas o mencionamos. Eu comentei, por acaso, você sabe, que desconhecemos tudo a respeito dele.

Íris a interrompeu, com dureza na voz:

— E por que a senhora deveria saber alguma coisa sobre Anthony?

— Não, querida, é claro que não... Ao menos — quero dizer — bem, seria melhor, não seria, se eu soubesse?

— A senhora terá toda a oportunidade para isso, no futuro — disse Íris — pois vou-me casar com ele.

— Oh, Íris! — exclamou Lucilla, num misto de lamentação e balido. — Você não deve fazer nada precipitadamente! Quero dizer, nada pode ser acertado, no momento...

— Já está acertado, Tia Lucilla.

— Não, minha cara, não se pode falar de coisas como casamento, enquanto o enterro ainda nem se realizou! Não seria decente. Há também este horrível inquérito, e tudo o mais... E na verdade, Íris, não creio que o querido George aprovaria. Ele não gostava desse tal de Mr. Browne.

— Não — falou Íris — George não aprovaria, e ele não apreciava Anthony, mas isso não faz qualquer diferença. Trata-se da minha vida, e não da de George — além do mais, de qualquer forma, George está morto...

Mrs. Drake soltou um outro gemido:

— Íris, Íris, o que aconteceu com você? Essa foi mesmo a coisa mais insensível que poderia dizer...

— Lamento, Tia Lucilla — respondeu a jovem, cansadamente. — Sei que deve ter soado assim, mas não era minha intenção. Queria apenas dizer que George está em paz, em algum lugar, e não precisa mais se preocupar comigo, nem com meu futuro. Tenho que tomar decisões por mim mesma.

— Tolices, minha cara, nada pode ser decidido numa ocasião destas — seria tremendamente impróprio. A questão nem mesmo se apresenta.

— Mas se apresentou. Anthony me pediu em casamento, antes de deixarmos Little Priors. Queria que eu viesse com ele para Londres, e nos casássemos no dia seguinte, sem dizer nada a ninguém. Como eu gostaria de ter feito isso, agora!

— Certamente foi um pedido muito curioso — observou o Coronel Race, numa voz gentil.

A jovem voltou os olhos, desafiadores, em sua direção.

— Não, não foi. Teria poupado muita discussão. Por que não pude confiar nele? Anthony me pediu que confiasse, e eu não o fiz... De qualquer forma, agora vou casar com ele, tão logo peça.

Lucilla explodiu num transbordamento de protestos incoerentes. Suas bochechas gorduchas tremiam, e os olhos se encheram d’água. O Coronel Race assumiu, rapidamente, o controle da situação:

— Miss Marle, poderia ter uma palavrinha com a senhorita, em particular, antes de ir embora? Um assunto estritamente oficial.

Surpresa, a moça murmurou que sim, e viu-se caminhando para a porta. Quando ela saiu, Race recuou alguns passos, e disse a Lucilla:

— Não se preocupe, Mrs. Drake. Quanto menos se fala, a senhora entende, mais cedo se corrige... Veremos o que é possível fazer.

Deixando-a um pouco mais confortada, ele seguiu Íris, que o guiou, através do vestíbulo, até uma saleta voltada para os fundos da casa, onde um melancólico olmo estava perdendo as últimas folhas.

Race falou, no seu tom mais formal:

— O que eu tinha a dizer, Miss Marle, é que o Inspetor-Chefe Kemp é meu amigo pessoal, e estou seguro de que o achará prestativo e atencioso. Tenho certeza de que ele desempenhará seu dever, por mais desagradável que possa ser, com a máxima consideração.

Íris o olhou em silencio, por alguns instantes, e então falou, abruptamente:

— Por que o senhor não veio juntar-se a nós, na noite passada, como George esperava?

Race abanou a cabeça.

— George não me esperava.

— Mas ele disse que sim!

— George pode ter dito isso, mas não era verdade. Sabia perfeitamente bem que eu não iria.

— Mas aquela cadeira vazia... Para quem era?

— Não para mim.

Os olhos da jovem se entrefecharam, e o rosto ficou muito branco. Murmurou:

— Era para Rosemary... Entendo... Era para Rosemary...

O Coronel pensou que Íris fosse cair. Veio rapidamente em seu auxílio, segurou-a e, então forçou-a a sentar-se.

— Vamos, acalme-se...

Ela falou, numa voz baixa, sem alento:

— Estou bem... Mas não sei o que fazer... Não sei o que fazer!

— Posso ajudá-la?

Íris ergueu os olhos, suplicantes e sombrios, para o seu rosto. Disse então:

— Preciso enxergar as coisas claramente, colocá-las em seqüência — fez, com a mão, o gesto de quem marca etapas. — Primeiro que tudo, George achava que Rosemary não se suicidara, mas fora assassinada. A suspeita teve origem nas cartas que recebeu. Quem escreveu aquelas cartas, Coronel Race?

— Não sei. Ninguém sabe. A senhorita não tem qualquer idéia?

— Simplesmente não posso imaginar. De qualquer forma, George acreditou no que elas diziam, preparou a reunião de ontem, e havia uma cadeira vazia... Dia de Todos os Santos, Dia de Finados — o espírito de Rosemary poderia ter voltado... e contado a ele a verdade.

— A senhorita não deve dar asas à imaginação.

— Mas eu própria senti sua presença! Senti-a bem próxima, algumas vezes — sou sua irmã — e acho que ela está tentando dizer-me alguma coisa...

— Acalme-se, Íris.

— Tenho que falar nisso. George bebeu à saúde de Rosemary — e morreu. Talvez ela tivesse vindo... e o levado consigo.

— Os espíritos dos mortos não colocam cianureto de potássio numa taça de champanha, minha cara.

Essas palavras pareceram restaurar o equilíbrio de Íris. Falou, num tom mais normal:

— Mas é tão incrível! George foi assassinado — sim, assassinado! É isso que a polícia pensa, e deve ser verdade, pois não há alternativa. As não faz sentido.

— A senhorita acha que não? Se Mrs. Barton foi morta, e George estava começando a suspeitar do culpado...

Ela o interrompeu:

— Sim, mas acontece que Rosemary não foi assassinada. É por isso que não faz sentido. George acreditou naquelas cartas estúpidas, em parte porque “depressão após uma gripe” não é razão muito convincente para alguém se matar — mas a verdade é que Rosemary tinha motivo! Espere, vou-lhe mostrar...

Saiu correndo da sala, e voltou alguns minutos mais tarde, com uma carta dobrada na mão. Estendeu-a a Race:

— Leia. Veja por si mesmo.

Ele desdobrou o papel, um pouco amassado.

 

             “Querido Leopardo... ”

 

Leu a carta duas vezes, antes de devolvê-la.

A jovem falou, ansiosamente:

— Está vendo? Ela estava infeliz _ com o coração partido! Não queria continuar vivendo...

— Sabe para quem era essa carta?

Íris fez que sim, com a cabeça.

— Stephen Farraday. Não era Anthony. Minha irmã estava apaixonada por Stephen, e ele foi cruel com ela; assim, Rosemary levou consigo o veneno para o restaurante, e o bebeu ali onde ele a pudesse ver morrendo. Talvez esperasse que Stephen então se arrependeria...

Race concordou com a cabeça, pensativamente, mas não disse nada. Logo depois, perguntou:

— Quando descobriu essa carta?

— Cerca de seis meses atrás. Estava no bolso de um velho robe.

— Não a mostrou a George, não é mesmo?

Íris exclamou, apaixonadamente:

— E como poderia? Como poderia?... Rosemary era minha irmã. Como poderia denunciá-la a George? Ele estava tão certo de que ela o amava... Como poderia mostrar-lhe a carta, se ela estava morta? George entendera tudo errado, mas eu não podia dizer isso a ele! No entanto, o que desejo saber é: o que devo fazer agora? Mostrei-a ao senhor, por ter sido amigo de George — mas, e quanto ao Inspetor Kemp? Devo mostrar-lhe?

— Sim. Kemp deve ficar com essa carta> É uma prova, você sabe.

— Mas, nesse caso, eles irão... Eles poderiam lê-la, no tribunal?

— Não necessariamente. Não é assim uma conseqüência automática. É a morte de George que está sendo investigada — nada será divulgado se não for estritamente relevante. O melhor seria que me deixasse levar logo essa carta.

— Muito bem.

Acompanhou-o até a porta da frente. Quando Race abriu a porta, ela falou, subitamente:

— Isso realmente mostra — não é? — que a morte de Rosemary foi suicídio?

Race respondeu:

— Certamente mostra que sua irmã tinha um motivo para tirar a própria vida.

Íris soltou um profundo suspiro. Race desceu os degraus. Olhando rapidamente para trás, pouco depois, viu-a de pé, emoldurada pela porta aberta, observando-o atravessar a praça.

 

Mary Rees-Talbot recebeu o Coronel Race com um gritinho de incredulidade.

— Meu caro, não o vejo desde que você desapareceu tão misteriosamente de Allahabad, naquela vez. E que bons ventos o trazem aqui, hoje? Não é para me ver, estou certa. Você nunca faz visitas puramente sociais. Vamos, diga logo, não precisa ser diplomata.

— Métodos diplomáticos seriam uma perda de tempo com você, Mary. Sempre apreciei seu cérebro de Raio-X.

— Deixe de conversa mole e vá ao assunto, meu caro.

Race sorriu.

— A empregada que me fez entrar chama-se, por acaso, Betty Archdale? — perguntou ele.

— Então é isso! Vamos, não me diga que essa mocinha, saída diretamente do extremo leste de Londres, é uma famosa espiã européia, pois simplesmente não iria acreditar!

— Não, não, nada no gênero...

— E não me diga que ela faz parte da nossa contra-espionagem, pois também não acreditaria.

— Com toda razão. A moça é uma simples copeira.

— E desde quando você está interessado em simples copeiras? Não que Betty seja simples — pelo contrário, é uma espertalhona muito viva.

— Achei que ela talvez pudesse me contar algo...

— Se você assim lhe pedisse, gentilmente? Não me surpreenderei se estiver certo. Ela desenvolveu em alto grau a “arte-de-estar-perto-da-porta-quando-alguma-coisa-interessante-está-acontecendo”. O que a sua humilde Mary pode fazer por você?

— Mary pode gentilmente me oferecer uma bebida, e mandar Betty trazê-la.

— E quando Betty trouxer a bebida?

— Por essa altura, Mary terá gentilmente se retirado.

— Para escutar um pouco, atrás da porta, por sua vez?

— Se ela quiser...

— E depois disso estarei estourando de informações secretas sobre a última crise européia?

— Receio que não. Não há qualquer questão política envolvida nisso.

— Que decepção! Muito bem. Vou entrar no seu jogo.

Quando Betty Archdale voltou, trazendo a bebida numa bandeja, Mrs. Rees-Talbot estava de pé, do outro lado do aposento, na porta que dava para a saleta de estar.

— O Coronel Race tem algumas perguntas a lhe fazer — falou Mary e saiu.

Betty voltou os olhos impudentes, onde havia uma nota de alarme, para o militar alto e grisalho. Este pegou o copo da bandeja e sorriu:

— Já leu os jornais hoje? — perguntou Race.

— Sim, senhor — Betty o observava, desconfiada.

— Viu que Mr. George Barton morreu na noite passada, no restaurante Luxembourg?

— Oh, sim, senhor! — os olhos de Betty brilhavam, com o prazer das grandes tragédias. — Não foi horrível?

— Esteve a seu serviço, não esteve?

— Sim, senhor. Deixei a casa dele no inverno passado, logo depois que Mrs. Barton morreu.

— Ela também morreu no Luxembourg.

Betty concordou, com a cabeça, e comentou:

— Engraçado, não é mesmo?

Race não via nada de engraçado, mas entendeu o que ela pretendia dizer. Falou gravemente:

— Posso ver que a senhorita tem bons miolos. Sabe somar dois e dois...

Betty juntou as mãos, e jogou a discrição pelos ares.

— Ele também foi assassinado? Os jornais não foram claros.

Dirigiu a Race um rápido olhar, com o canto dos olhos. “Meio velho, mas bem apresentável”, pensou. “O tipo silencioso. Um verdadeiro gentleman. O tipo de cavalheiro que me teria dado uma moeda de ouro, quando era moço. Engraçado, nem mesmo sei com que se parece um soberano de ouro! O que será que ele está querendo, exatamente?” E continuou, solícita:

— Sim?...

— A senhorita, com certeza, nunca acreditou que tivesse sido suicídio — ou acreditou?

— Bem, não, senhor. Pensei logo em assassinato, para falar a verdade.

— Muito interessante... Muito interessante, mesmo. E por que achou que não era suicídio?

Betty hesitou, os dedos começando a torcer o avental.

— Por favor, conte-me. Pode ser muito importante.

Ele falou isso tão gentilmente, com tanta seriedade... Fazia a pessoa se sentir importante, desejando ajudá-lo. E, de qualquer forma, ela fora mesmo esperta, em relação à morte de Rosemary Barton. Nunca se deixara enganar — ela, não!

— Mrs. Barton foi assassinada, não foi?

— É possível. Mas como a senhorita chegou a essa conclusão?

— Bem... — Betty hesitou. — Foi algo que escutei uma vez.

— Sim? — a voz dele era calmamente encorajadora.

— A porta não estava fechada, ou coisa parecida. Quero dizer, eu nunca iria ficar escutando atrás das portas: não gosto desse tipo de coisa — declarou Betty, virtuosamente. — Mas eu estava passando pelo vestíbulo, em direção à sala de jantar, carregando a prataria numa bandeja, e os dois estavam falando bem alto. Ela estava dizendo alguma coisa — é a Mrs. Barton que me refiro — sobre o nome dele não ser Anthony Browne. E então, Mr. Browne ficou zangado. Não poderia imaginar que ele pudesse se transformar assim — era sempre tão bonito, com um modo de falar tão agradável! Disse qualquer coisa sobre retalhar o rosto dela — ooh! — e então falou que se ela não fizesse o que ele estava mandando, iria “empacotá-la”. Assim mesmo! Não escutei mais nada, porque Miss Íris estava descendo as escadas, e, é claro, não achei a coisa muito importante na ocasião. Mas depois, com toda aquela história de Mrs. Barton ter cometido suicídio, no tal jantar, e eu soube que ele estivera presente, na ocasião... Bem, isso me fez, sentir um frio na espinha, posso-lhe assegurar!

— Mas a senhorita não contou nada?

A jovem abanou a cabeça.

— Não queria me envolver com a polícia; e, de qualquer forma, não sabia de nada — não realmente. E, talvez, se tivesse dito qualquer coisa, poderia ter sido também “empacotada” — ou eles me levariam para dar um “longo passeio”, como dizem por aí...

— Entendo — Race fez uma pausa, por uns instantes, e continuou, no seu tom mais amável: — Então, a senhorita resolveu simplesmente escrever uma carta anônima a Mr. George Barton?

Betty fixou os olhos em Race, que não pôde detectar neles qualquer vestígio de culpa: nada havia ali, senão puro assombro.

— Eu? Escrever para Mr. Barton? Nunca.

— Vamos, não tenha medo de contar. Foi realmente uma ótima idéia — fez com que ele ficasse prevenido, sem que você se denunciasse. Foi muito inteligente, de sua parte.

— Mas eu não fiz isso, senhor! Nunca pensei numa coisa dessas. O senhor está perguntando, não é, se eu escrevi para Mr. Barton dizendo que a esposa dele tinha sido assassinada? Céus, a idéia nunca me passou pela cabeça...

Foi tão firme, em sua negativa, que, a despeito de si mesmo, Race ficou abalado. Tudo encaixaria tão bem — tudo poderia ser explicado tão naturalmente, se Betty tivesse escrito as cartas! Entretanto, ela persistia em suas negativas, não com veemência ou inquietude, mas serenamente, sem qualquer protesto exagerado. A contragosto, viu-se acreditando nela. Mudou o assunto.

— Falou com alguém, sobre o que escutou?

— Ninguém. Vou-lhe confessar francamente, senhor: eu estava assustada. Achei que seria melhor ficar de boca fechada. Tentei esquecer o assunto. Só toquei nele uma vez — quando fui pedir demissão a Mrs. Drake. Ela vinha fazendo o maior estardalhaço com qualquer ninharia, mais do que qualquer garota poderia agüentar, e agora, ainda por cima, queria que eu fosse me enterrar naquela casa de campo, onde nem mesmo passa um ônibus! E então, ela foi grosseira, dizendo que ia botar, nas referencias, que eu vivia quebrando coisas. Aí, falei, bem sarcástica, que, pelo menos, eu iria procurar um emprego onde as pessoas não são “empacotadas” — depois fiquei com medo, por ter dito isso, mas ela não prestou atenção. Talvez eu devesse ter contado tudo, na ocasião, mas na verdade não pude. Quero dizer, a coisa toda podia ter sido uma brincadeira. As pessoas dizem mesmo toda sorte de bobagens, e Mr. Browne sempre foi, na verdade, tão delicado, tão brincalhão, e assim eu não podia contar, não é mesmo, senhor?

Race concordou que ela não poderia, e indagou:

— Mrs. Barton disse que o nome dele não era Browne. Mencionou, por acaso, qual era o verdadeiro?

— Sim, é mesmo! Pois ele falou: “Esqueça-se de Tony...” — Agora, como foi mesmo? Tony-Qualquer-Coisa... Me fez lembrar de uma geléia de cerejas que a cozinheira havia feito.

— Tony Cheriton? Cherable?

Ela abanou a cabeça.

— Um nome mais extravagante. Começava com M. E parecia estrangeiro.

— Não se preocupe. Talvez lhe volte à memória, mais tarde. Se isso acontecer, avise-me. Aqui está o meu cartão, com o endereço. Se se lembrar do nome, escreva-me para este endereço.

Estendeu-lhe o cartão e uma gorjeta.

— Farei isso, senhor, obrigada.

“Um cavalheiro”, pensou ela, enquanto corria para o andar de baixo. “Uma nota de uma libra, e não dez xelins. Como devia ser bom, na época em que havia soberanos de ouro...”

Mary Rees-Talbot voltou à sala?

— E então? Conseguiu alguma coisa?

— Sim, mas há ainda um pequeno obstáculo a ser vencido. Poderia ajudar-me, com sua engenhosidade? Você consegue imaginar um nome que lhe sugerisse geléia de cerejas?

— Que pedido mais estranho!

— Pense, Mary. Não entendo desses assuntos domésticos. Procure concentrar-se no preparo de geléias — geléias de cereja, em particular.

— Não se faz geléia de cereja com freqüência.

— E por que não?

— Bem, costuma ficar muito doce — a não ser que se usem cerejas escuras, cerejas morello.

Race soltou uma exclamação:

— É isso! Aposto que é isso! Até à vista, Mary. Fico-lhe infinitamente grato. Você se importa, se eu tocar a campainha, para que a moça venha-me acompanhar até a porta?

Mrs. Rees-Talbot gritou, ao vê-lo sair às pressas:

— Por todos os miseráveis ingratos! Você não vai me contar do que se trata?

Ele gritou, em resposta:

_ Virei mais tarde, contar-lhe tudo!

— Assim o diz — murmurou Mrs. Rees-Talbot.

No andar de baixo, Betty estava esperando, com o chapéu e a bengala de Race. Ele agradeceu, e foi saindo. Na soleira da porta, parou:

— A propósito — falou — aquele nome seria Morelli?

O rosto de Betty se iluminou.

— Exatamente, senhor! Era isso mesmo... Tony Morelli, foi este o nome que ele mandou Mrs. Barton esquecer; e disse ainda que havia estado na prisão.

Race desceu os degraus, sorrindo. Da cabina telefônica mais próxima, ligou para Kemp.

A conversa foi breve, mas satisfatória. O Inspetor-Chefe falou:

— Mandarei um telegrama imediatamente. Logo teremos a resposta. Devo dizer que será um grande alívio, se você estiver certo.

— Acho que estou. A seqüência parece bem clara.

 

O Inspetor Kemp não estava de muito humor.

Passara a última meia hora interrogando um assustado frangote de dezesseis anos, que, em virtude da alta posição de seu tio Charles, aspirava vir a ser, um dia, um garçom da categoria requerida pelo Luxembourg.

Por enquanto, o pobre tinha de se contentar em ser um dos seis humildes ajudantes que corriam pelo restaurante, com aventais na cintura — para distingui-los de seus superiores hierárquicos — e cujo dever era receber a culpa de tudo que acontecia, ir apanhar ou levar o quer fosse necessário, providenciar pãezinhos e bolas de manteiga, além de ser contínua e sistematicamente repreendido em Frances, italiano e, às vezes, inglês. Charles, como convinha a um grande homem, ao invés de mostrar favoritismo pelo sobrinho, repreendia-o, xingava-o, amaldiçoava-o ainda mais do que aos outros. Entretanto, no fundo do coração, Pierre abrigava a esperança de se tornar, ele próprio, no futuro, nada mais nada menos que o maître de um restaurante grã-fino.

No momento, porém, sua carreira havia sofrido um rude golpe, e, pelo que estava entendendo, era suspeito de ter praticado um... assassinato!

Kemp o virou pelo avesso, e, relutantemente, convenceu-se de que o rapaz fizera tão-somente o que havia dito — ou seja, apanhara do chão uma bolsa de senhora e a recolocara junto ao prato.

— Foi quando eu estava correndo com o molho, para Monsieur Robert, e ele já estava impaciente; aí, a mocinha deixou a bolsa cair da mesa, e então eu corri, pois M. Robert estava fazendo sinais frenéticos para mim. Isso é tudo, Monsieur.

E havia sido tudo. Kemp, de má vontade, deixou-o ir embora, sentindo-se fortemente tentado a acrescentar: “Mas não me deixe apanhá-lo fazendo esse tipo de coisa, novamente!”

O Sargento Pollock o distraiu de seus pensamentos, anunciando que haviam telefonado para avisar que uma senhorita estava querendo falar com ele, ou melhor, com o oficial encarregado do caso Luxembourg.

— Quem é ela?

— O nome é Chloe West.

— Faça-a subir — disse Kemp, resignadamente. — Posso conceder-lhe dez minutos. Depois disso, será a vez de Mr. Farraday. Aliás, esperar alguns minutos não faria nenhum mal a ele... Pelo contrário — isso serve para abalar a autoconfiança das pessoas.

Quando Miss Chloe West entrou na sala, Kemp foi imediatamente tomado pela impressão de que a conhecia; mas, um momento depois, decidiu que era engano. Não, nunca vira a moça antes — estava certo disso. O entanto, uma sensação de familiaridade, vaga e persistente, continuou a incomodá-lo.

Miss West devia ter uns vinte e cinco anos, era alta, morena e muito bonita. Sua voz era a de quem se preocupa com a dicção, e parecia decididamente nervosa.

— Bem, Miss West, em que lhe posso ser útil? — indagou Kemp, sem mais delongas.

— Li no jornal, sobre o Luxembourg — o homem que morreu lá.

— Mr. George Barton? Sim? A senhorita era sua amiga?

— Bem, não exatamente. Quero dizer, nunca fomos íntimos, ou algo assim, o senhor entende.

Kemp a observou, cuidadosamente, e descartou sua primeira dedução. Na verdade, Chloe West parecia muito fina e virtuosa — até mesmo um pouco austera. Pediu-lhe, amavelmente:

— Por favor, senhorita, vamos então pela ordem. Poderia, antes de mais nada, dizer-me seu nome completo e endereço?

— Chloe Elizabeth West. O endereço é Merryvale Court, número 15, Maida Vale. Sou atriz.

O Inspetor a observou novamente, com o rabo dos olhos, e decidiu que era exatamente isso que sua aparência sugeria. “Atriz de teatro”, imaginou — pois, apesar de bonita, era do tipo sério.

— E então, Miss West?

— Quando li sobre a morte de Mr. Barton e que... a polícia estava investigando, achei que talvez devesse vir aqui, contar-lhe uma coisa. Falei sobre isso com uma amiga, e ela achou que valia a pena. Não acredito que possa ter qualquer relação com o caso, mas... — Miss West fez uma pausa.

— Deixe-nos julgar isso — falou Kemp, gentil. — Simplesmente conte-me do que se trata.

— Não estou trabalhando em nenhuma peça, no momento... — começou Miss West.

O Inspetor Kemp quase comentou “está no desvio”, para mostrar que sabia o termo corrente, mas se absteve de fazê-lo.

— Entretanto, meu nome fica nas agencias, e meu retrato saiu no Spotlight... Foi ali, com certeza, que Mr. Barton o descobriu. Entrou em contato comigo e explicou o que desejava que eu fizesse.

— Sim?

— Disse-me que iria dar um jantar no Luxembourg, e queria fazer uma surpresa aos convidados. Mostrou-me uma fotografia e falou que eu deveria me arrumar como o original — aliás, comentou que minha cor de pele era semelhante à dela.

Um clarão iluminou o cérebro de Kemp — a fotografia de Rosemary, que ele havia visto sobre a escrivaninha de George, em Elvaston Square! Era isso que a moça o fazia recordar... Miss West era parecida com Rosemary Barton — não uma semelhança assombrosa, talvez, mas o tipo geral e o conjunto de traços era o mesmo.

— Ele também me levou o vestido que deveria usar — tenho-o aqui comigo: seda verde, acinzentada. Teria de ajeitar o cabelo, como na fotografia _ era colorida — e acentuar a semelhança, com maquilagem, Então, deveria ir ao Luxembourg e, na hora do primeiro show, dirigir-me à mesa de Mr. Barton, onde haveria um lugar vago, à minha espera. Ele me levou para almoçar lá, e mostrou-me onde ficaria a mesa.

— E por que a senhorita não cumpriu o combinado, Miss West?

— Porque às oito horas, naquela noite, alguém — Mr. Barton — telefonou e disse que a coisa toda havia sido adiada. Falou que me avisaria da noiva data. Então, na manhã seguinte, vi a notícia de sua morte, no jornal.

— E, muito ajuizadamente, veio-nos procurar — completou Kemp, com amabilidade. — Bem, muito obrigado, Miss West. A senhorita esclareceu um mistério — o mistério da cadeira vazia. A propósito, ainda agora a senhorita disse “alguém” e, depois, “Mr. Barton”. Por que foi isso?

— Porque, a principio, não pensei que fosse Mr. Barton. A voz parecia diferente.

— Era uma voz de homem?

— Oh, sim, acho que era... Pelo menos, era bastante rouca, parecendo a de alguém resfriado.

— E ele disse mais alguma coisa?

— Não, foi tudo.

Kemp fez ainda algumas perguntas, sem obter novas informações. Quando a jovem saiu, ele comentou com o Sargento:

— Então era esse o famoso “plano” de George Barton! Compreendo agora por que todos disseram que, após o show, ele ficou olhando para a cadeira vazia, de um modo estranho e distraído... Seu precioso plano havia falhado.

— O senhor, então, não acredita que tenha sido ele quem a dispensou?

— Por nada nesse mundo! E tampouco estou muito certo de que fosse uma voz de homem. Rouquidão é um bom disfarce, pelo telefone... Muito bem, estamos progredindo. Faça entrar Mr. Farraday, se ele já tiver chegado.

 

Apesar de sua aparência exterior de frieza e impassibilidade, Stephen Farraday se sentia pequenininho por dentro, ao chegar à Nova Scotland Yard. Um peso incontrolável lhe oprimia o espírito. Naquela manhã as coisas tinham parecido ir tão bem! Por que então, o Inspetor Kemp teria solicitado sua vinda aqui, de modo tão significativo? De que sabia ele, ou suspeitava? Não poderia ser nada mais sério do que uma vaga suspeita — o melhor a fazer seria manter a cabeça fria e não admitir coisa alguma.

Sentia-se estranhamente despojado e solitário, sem Sandra... Quando enfrentavam um perigo juntos, era como se este perdesse a metade de seu terror. Juntos, possuíam força, coragem, poder; sozinho, ele era nada, menos que nada. E Sandra — sentir-se-ia do mesmo modo? Estaria agora sentada, na mansão Kidderminster, silenciosa, reservada, altiva, mas, no íntimo, sentindo-se horrivelmente vulnerável?

O Inspetor Kemp o recebeu com gentileza, mas gravemente. Numa outra mesa, havia um homem uniformizado, com lápis e papéis. Convidando Stephen a sentar-se, Kemp falou, num tom bastante formal:

— Proponho-me, Mr. Farraday, a colher seu depoimento: ele será devidamente anotado e, antes de sair, deverá lê-lo e assiná-lo. Ao mesmo tempo, é meu dever informar-lhe que tem inteira liberdade de se recusar a prestar declarações, e que tem direito a solicitar a presença de seu advogado, se assim o desejar.

Stephen ficou bastante desconcertado, mas não o demonstrou. Forçou um sorriso gelado:

— Estou impressionado, Sr. Inspetor-Chefe.

— Preferimos que as coisas fiquem perfeitamente claras, Mr. Farraday.

— Tudo que eu disser poderá ser usado contra mim, não é isso?

— Preferimos não empregar a palavra “contra”. Tudo o que o senhor disser poderá vir a ser usado como evidência.

— Compreendo — falou Stephen, calmamente. — Mas não posso imaginar, Inspetor, por que necessitaria de mais declarações de minha parte. O senhor já ouviu tudo o que eu tinha a dizer, esta manhã.

— Aquela foi uma entrevista bem informal — útil como um ponto de partida, uma preliminar. Além disso, Mr. Farraday, há certos fatos que, segundo imaginei, o senhor preferiria deixar para discutir comigo, aqui. Procuramos ser discretos a respeito de tudo que seja irrelevante para o caso, até onde isso não prejudique o trabalho da justiça. O senhor entende ao que me estou referindo?

— Receio que não.

O Inspetor-Chefe Kemp soltou um suspiro.

— É muito simples: o senhor mantinha relações bastante íntimas com a falecida Mrs. Rosemary Barton...

Stephen o interrompeu:

— Quem afirma isso?

Inclinando-se para a frente, Kemp apanhou, de cima da sua escrivaninha, um documento datilografado.

— Esta é a cópia de uma carta encontrada nos pertences da falecida Mrs. Barton. O original está aqui, e nos foi entregue por Miss Íris Marle, que reconheceu a letra como sendo da irmã.

Stephen leu:

 

                 “Querido Leopardo... “

 

Uma onda de náusea o invadiu. A voz de Rosemary... falando — implorando... O passado nunca iria morrer? Jamais consentiria em ser enterrado?

Conseguiu recompor-se, e olhou para Kemp.

— O senhor pode estar certo ao pensar que Mrs. Barton tenha escrito essa carta — mas não há nenhum indício de que fosse endereçada a mim.

— Nega ter pago o aluguel do número 21 da Malland Mansions, em Earl’s Court?

Então, eles sabiam! Perguntou-se se teriam sabido, todo o tempo... Deu de ombros.

— Os senhores parecem estar muito bem informados. Poderia indagar o motivo de meus assuntos particulares estarem sendo trazidos a público?

— Eles não o serão, a menos que se demonstrem relevantes em relação à morte de George Barton.

Compreendo. Está sugerindo que fui amante da esposa dele, e depois o matei?

— Vamos, Mr. Farraday — serei franco. O senhor e Mrs. Barton eram amigos muito íntimos; romperam por sua vontade, e não pela falecida. Como esta carta evidencia, ela estava disposta a fazer barulho. Muito convenientemente, ela morreu.

— Mrs. Barton se suicidou. Reconheço que eu talvez tenha tido uma parcela de culpa, nisso. Posso eu próprio me censurar, mas, de qualquer forma, o assunto não é da alçada da lei.

— Pode ter sido suicídio — e pode ser que não. George Barton achava que não. Começou a investigar... e morreu. A seqüência dos fatos é bastante sugestiva.

— Não vejo por que o senhor deveria — bem, escolher a mim!

— Admite que a morte de Mrs. Barton veio numa hora muito conveniente, para o senhor? Um escândalo, Mr. Farraday, teria sido altamente prejudicial à sua carreira.

— Não haveria escândalo. Mrs. Barton acabaria ouvindo a voz da razão.

— Tenho minhas dúvidas... Sua esposa sabia desse caso, Mr. Farraday?

— Certamente que não.

— Está absolutamente seguro do que diz?

— Sim, estou. Minha esposa não fazia a menor idéia de que houvesse algo mais do que amizade entre mim e Mrs. Barton. Espero que nunca venha a saber.

— Sua esposa é ciumenta, Mr. Farraday?

— De modo algum — ela jamais demonstrou qualquer ciúme a meu respeito. É muito sensata, para isso.

O Inspetor se absteve de comentar esta declaração. Falou, apenas:

— Durante o ano passado, o senhor alguma vez teve cianureto em seu poder, Mr. Farraday?

— Não.

— Mas conserva um estoque do veneno, na sua casa do campo?

— Pode ser que o jardineiro o faça. Não sei de nada, a esse respeito.

— O senhor mesmo jamais comprou cianureto, numa farmácia, ou para fotografia?

— Não entendo de fotografia — e volto a repetir que jamais comprei isso.

Kemp ainda o pressionou um pouco mais, antes de finalmente dispensá-lo. Comentou, então, pensativamente, com seu subordinado:

— Mr. Farraday foi muito rápido em negar que a esposa soubesse de seu caso com a tal de Barton. Por que motivo, é o que eu me pergunto...

— Talvez porque ficou aterrorizado, ao pensar que ela pudesse vir a saber, senhor...

— Pode ser; mas acho que ele é bastante inteligente para perceber que, se a esposa ignorava tudo — e se era provável que fosse criar problemas, ao descobrir — isso daria a ele ainda mais motivo de querer silenciar Rosemary Barton. Na verdade, a linha que Mr. Farraday deveria ter adotado, para salvar a própria pele, era a de que a esposa sabia mais ou menos do caso, e preferia ignorá-lo.

— Vai ver que ele não percebeu isso, senhor.

Kemp abanou a cabeça. Stephen Farraday não era nenhum tolo. Possuía um cérebro claro e astuto — e, mesmo assim, mostrara-se firmemente decidido a dar ao Inspetor a impressão de que Sandra não sabia de nada...

— Bem — disse Kemp — o Coronel Race parece satisfeito com a trilha que descobriu, e, se estiver certo, os Farraday estão fora — ambos. Ficarei contente, se assim for — gosto desse sujeito. E, pessoalmente, não acredito que seja um assassino.

 

         Abrindo a porta de sua sala de estar, Stephen chamou:

         — Sandra?

Ela surgiu da escuridão, agarrando-o, subitamente, pelos ombros.

— Stephen!

— Por que você estava no escuro?

— Não conseguia suportar a claridade. Conte-me!

— Eles sabem — falou Stephen, simplesmente.

— Sobre Rosemary?

— Sim.

— E o que acham?

— Percebem, é claro, que eu tinha um motivo... Oh, minha querida, veja aonde a arrastei! É tudo minha culpa. Se ao menos eu tivesse me afastado, após a morte de Rosemary — ido embora — deixado você livre — de modo que, de qualquer forma, você não fosse envolvida em toda esta horrível confusão!

— Não, Stephen, isso não! Nunca me abandone... Nunca!

Agarrou-se ao marido, chorando, as lágrimas escorrendo-lhe pelo rosto. Ele a sentiu estremecer.

— Você é minha vida, Stephen, toda minha vida... Nunca me abandone...

— Então, você me ama tanto assim, Sandra? Nunca imaginei!...

— Não queria que você soubesse. Mas agora...

— Sim, agora... Estamos juntos nisso, Sandra. Enfrentaremos tudo, juntos... Juntos — não importa o que esteja para vir!

Uma nova força desceu sobre eles, enquanto ficaram ali, abraçados, no escuro.

Sandra falou, com determinação:

— Isso não vai destruir nossas vidas. Não vai. Não vai!

 

Anthony Browne olhou para o cartão de visitas que o menino de recados do hotel lhe estendia. Franziu as sobrancelhas, e então deu de ombros. Disse ao garoto:

— Muito bem, faça-o subir.

Quando o Coronel Race entrou, Anthony estava de pé, junto à janela, com o sol brilhante se projetando, obliquamente, sobre seu ombro.

O visitante era um homem alto, de aspecto marcial, o rosto enérgico, bronzeado, e cabelos cinza-chumbo — alguém que já vira anteriormente, embora há muito tempo, e a cujo respeito sabia bastante.

Race, por sua vez, pôde distinguir uma figura elegante, morena e o contorno de uma cabeça bem formada. Anthony falou, a voz agradável e indolente:

— Coronel Race? Era amigo de George Barton, eu sei. Ele falou no senhor, na noite passada. Aceita um cigarro?

— Sim, obrigado.

Anthony comentou, enquanto riscava um fósforo:

— O senhor era a pessoa que estava sendo esperada, no jantar de ontem, mas que não apareceu — sorte sua...

— Está enganado. Aquele lugar vazio não era para mim.

As sobrancelhas de Anthony se ergueram.

— É mesmo? Mas Barton disse...

Race o interrompeu:

— Não importa o que George Barton possa ter dito, seus planos eram bem diferentes. Aquela cadeira, Mr. Browne, destinava-se a ser ocupada, quando as luzes se apagassem, por uma atriz chamada Chloe West.

Anthony o olhou, surpreendido:

— Chlow West? Nunca ouvi falar nela. Quem é?

— Uma jovem atriz, não muito conhecida, que possui uma certa semelhança, superficial, com Rosemary Barton.

Anthony assobiou.

— Estou começando a entender...

— Barton dera a ela uma fotografia da esposa — para que imitasse o estilo do penteado — e também o vestido que Rosemary estava usando na noite em que morreu.

— Então, era esse o plano de George? As luzes se acendem, e... surpresa! Gemidos de terror sobrenatural: Rosemary voltou! O assassino começa a gritar: “É verdade — é verdade — eu a matei!” — Anthony fez uma pausa, e acrescentou: — Péssimo — mesmo para um tolo como o nosso pobre George!

— Não estou certo de compreender seu ponto de vista.

Anthony sorriu.

— Ora, vamos senhor! Um criminoso empedernido não se iria comportar como uma colegial histérica. Se alguém envenenou Rosemary Barton, a sangue-frio, e estava-se preparando para administrar a George Barton a mesma dose fatal de cianureto, essa pessoa devia ter nervos de aço. Seria necessário muito mais do que uma atriz fantasiada de Rosemary para que ele, ou ela, perdesse o controle.

— MacBeth, lembre-se, era um assassino calejado, mas caiu em pedaços quando viu o fantasma de Banquo, no banquete.

— Ah, mas o que MacBeth viu era mesmo um fantasma — não um ator canastrão usando as roupas de Banquo! Estou pronto a admitir que um fantasma de verdade pudesse trazer sua própria atmosfera, de um ou outro mundo. Na verdade, até reconheço que passei a acreditar em fantasmas, desde seis meses atrás — um fantasma, em particular.

— Realmente? E de quem seria esse fantasma?

— De Rosemary Barton. Pode rir, se quiser. Não a vi, de fato — mas senti sua presença. Por algum motivo, Rosemary, pobre alma, não pode descansar em paz.

_ Eu poderia sugerir um motivo.

— Por ela ter sido assassinada?

— Em outras palavras, porque ela foi “empacotada”. O que me diz disso, Mr. Tony Morelli?

Fez-se um silencio. Anthony se sentou, jogou o cigarro na lareira, e acendeu outro. Falou, finalmente:

— Como o senhor descobriu?

— Admite, então, que é Tony Morelli?

— Não sonharia em perder meu tempo negando isso. Obviamente, telegrafou para a América e eles lhe deram todo o “serviço”.

— Admite também que, quando Rosemary descobriu sua identidade, ameaçou “empacotá-la”, se não mantivesse a boca fechada?

— Fiz tudo o que pude imaginar para assustá-la tanto que ela ficasse calada — concordou Tony, cortesmente.

Uma estranha sensação dominou o Coronel Race. A conversa não estava marchando como deveria. Fixou o olhar na figura à sua frente, reclinada muito à vontade na cadeira — e teve uma estranha impressão de familiaridade.

— Permite-me recapitular o que sei a seu respeito, Morelli?

— Poderia ser divertido.

— Foi condenado, nos Estados Unidos, por tentativa de sabotagem na fábrica de aviões Ericson. Depois de cumprir sua pena, deixou a prisão, e as autoridades o perderam de vista. A próxima notícia a seu respeito foi de que estava em Londres, morando no Caridge, sob o nome de Anthony Browne. Aqui, conseguiu ganhar a estima de Lorde Dewsbury e, através dele, conheceu outros proeminentes fabricantes de armamentos. Hospedando-se na casa de Lorde Dewsbury, graças a sua posição foram-lhe mostradas coisas que nunca deveria ter visto! É uma curiosa coincidência, Morelli, que, após suas visitas a várias fábricas e instalações importantes, tenha ocorrido uma série de acidentes inexplicados, e se tenham evitado, por um Dio, alguns desastres em larga escala.

— Coincidências — observou Anthony — são mesmo coisas extraordinárias...

— Então, após novo lapso de tempo, reapareceu em Londres e renovou seu conhecimento com Íris Marle, dando desculpas para não ir à sua casa, de modo que a família da moça não pudesse perceber quão íntimos estavam ficando. Finalmente, tentou induzi-la a se casar secretamente.

— Sabe — falou Anthony — é realmente incrível como conseguiu descobrir tudo isto! Não me refiro ao caso dos armamentos, mas às minhas ameaças a Rosemary e às ternas tolices que sussurrei nos ouvidos de Íris. Certamente elas não são da competência do M.I.5!

Race o encarou, firmemente:

— Tem muita coisa a explicar, Morelli!

— Absolutamente. Mesmo que seus fatos estejam corretos, e daí? Cumpri minha pena, na cadeia. Fiz alguns amigos interessantes. Apaixonei-me por uma garota encantadora, e estou naturalmente impaciente para me casa com ela.

— Tão impaciente que preferiria que o casamento se realizasse antes que a família pudesse descobrir alguma coisa sobre seus antecedentes... Íris Marle é uma jovem muito rica.

Anthony assentiu, amavelmente:

— Eu sei. Quando há muito dinheiro envolvido, as famílias tendem a ser abominavelmente intrometidas... E Íris, o senhor entende, ignora completamente o meu sombrio passado. Para ser franco, preferiria que continuasse assim.

— Receio que ela vá ficar sabendo de tudo.

— Uma pena — disse Anthony.

— Provavelmente, não está percebendo que...

Anthony o interrompeu, com uma risada:

— Ora! Posso perfeitamente pôr os pingos nos is. Rosemary Barton sabia de meus antecedentes criminais, e por isso a matei. George Barton estava começando a suspeitar de mim, e então também o matei. Agora, estou atrás do dinheiro de Íris! Tudo muito convincente, e se ajusta às mil maravilhas, mas o senhor não tem uma migalha de prova.

Race o analisou, atentamente, por um s minutos. Levantou-se, então:

— Tudo que falei é verdade — disse ele. — E, ao mesmo tempo, está tudo errado.

Anthony o observou de perto.

— O que está errado?

— Sua pessoa. — Race começou a andar vagarosamente no quarto, para lá e para cá. — Tudo se encaixava muito bem, até chegar aqui. Mas agora, que o conheço, não serve mais. Não é um bandido — e, se não é um fora-da-lei, então é um dos nossos! Acertei, não foi?

Anthony o olhou em silencio, enquanto seu rosto se abria lentamente num sorriso. Cantarolou, então, suavemente:

— “Pois a esposa do Coronel e Judy Grade são uma só pessoa...” Sim, é engraçado como nos reconhecemos, em nossa profissão! Foi por isso que evitava encontrá-lo: temia que me reconhecesse pelo que realmente sou. Era importante que ninguém soubesse — até ontem. Agora, graças a Deus, já foi tudo resolvido. Conseguimos que nossa quadrilha de sabotadores internacionais caísse na rede. Há três anos que venho trabalhando para isso — freqüentando certas reuniões, agitando os trabalhadores, construindo para mim mesmo uma reputação adequada. Finalmente, foi decidido que eu devia dar um grande golpe, e ser preso — e o negócio tinha que ser genuíno, para estabelecer minha boa-fé.

— Quando saí da cadeia, as coisas começaram a progredir. Pouco a pouco, fui avançando até o centro da conspiração — uma grande trama internacional, sediada na Europa Central. Foi como agente deles que vim para Londres e me hospedei no Claridge. Tinha ordens de estabelecer relações de amizade com Lorde Dewsbury — serviu-me de joguete, aquela mariposa social!

— No desempenho de meu papel de rapaz atraente à solta na cidade, vim a conhecer Rosemary Barton. Subitamente, para meu horror, descobri que sabia que eu estivera na cadeia, na América, sob o nome de Tony Morelli. Fiquei aterrorizado, por causa dela! As pessoas com quem eu estava trabalhando a matariam sem hesitar um segundo, se desconfiassem que ela sabia de algo. Fiz o que pude para assustá-la tanto que mantivesse a boca fechada — mas não tinha muita esperança. Rosemary nascera para ser indiscreta! Achei que o melhor a fazer seria sumir — foi então que vi Íris descendo a escada, e jurei a mim mesmo que, assim que acabasse meu trabalho, voltaria e me casaria com ela.

— Quando a parte ativa de meu trabalho acabou, apareci em Londres novamente, e entrei em contato com Íris. Mantive, porém, distancia da casa e de sua família, pois sabia que iriam fazer perguntas a meu respeito, e ainda precisava conservar meu disfarce por algum tempo. No entanto, comecei a ficar preocupado com Íris: parecia doente, assustada — e George Barton, pelo que pude saber, vinha-se comportando de modo muito estranho. Insisti com ela para que fugisse comigo, e nos casássemos. Bem, Íris recusou. Talvez estivesse certa.

— Então, lançaram-me para aquela festa. Foi quando tomávamos nossos lugares à mesa que George mencionou que o senhor estava sendo esperado. Declarei, apressadamente, ter encontrado um conhecido, e falei que talvez tivesse de ir embora mais cedo. Na verdade, avistara mesmo um sujeito que conheci na América — chamavam-no “Coleman, o Vigarista” — embora ele não se tivesse lembrado de mim. De qualquer forma, não desejava encontrar-me com o senhor: minha tarefa ainda não estava encerrada. Sabe, tão bem como eu, o que aconteceu em seguida — George morreu. Ao tive nada a ver com a sua morte, nem com a de Rosemary. Também não sei quem os matou.

— Não faz nem mesmo uma idéia? — perguntou Race.

— Só poderia ser o garçom, ou uma das cinco pessoas em volta da mesa. Não acho que tenha sido o garçom; não fui eu, nem Íris. Poderia ter sido Sandra Farraday, ou Stephen Farraday, ou os dois juntos. Mas a melhor aposta, na minha opinião, é Ruth Lessing.

— Tem alguma coisa em que possa fundamentar esse palpite?

— Não. Ela simplesmente me parece a pessoa mais provável — embora eu não possa imaginar como poderia tê-lo conseguido! Nos dois crimes, estava colocada de tal forma, na mesa, que lhe seria praticamente impossível tocar na taça de champanha — e, quanto mais penso no que aconteceu a noite passada, mais parece incompreensível que George pudesse ter sido envenenado... mas, ainda assim, ele o foi! — Anthony fez uma pausa. — E há também outra coisa que me confunde: o senhor conseguiu descobrir quem escreveu aquelas cartas anônimas, que puseram George na trilha?

Race abanou a cabeça.

— Não. Pensei ter descoberto — mas estava errado.

— Porque, o senhor entende — continuou Anthony — a coisa tem um aspecto muito interessante: alguém, em algum lugar, sabe que Rosemary foi assassinada — e, se não tomarmos cuidado, essa pessoa será a próxima da lista!

 

Pelo que conseguiu apurar, ao telefone, Anthony sabia que Lucilla Drake sairia de casa às cinco horas, para ir tomar chá com uma amiga. Dando um desconto para possíveis contingências (voltar para apanhar uma bolsa; decidir, afinal de contas, levar um guarda-chuva, para o caso de chover; e conversinhas de última hora, na saída), Anthony calculou sua chegada em Elvaston Square para as cinco e vinte e cinco, em ponto. Queria ver Íris, e não a tia — e, pelo que todos diziam, uma vez na presença de Lucilla, teria muito pouca oportunidade de conversar com sua garota, sem ser interrompido.

Soube, pela copeira — uma mocinha que não possuía o impudente verniz de Betty Archdale — que Miss Íris tinha acabado de chegar, e estava no escritório.

Ao ouvi-lo entrar, Íris se voltou de um pulo, sobressaltada.

— Oh, é você!

Veio até ela, prontamente:

— O que está havendo, querida?

— Nada — Íris fez uma pausa e tornou a falar, rapidamente: — Nada... Só que por pouco fui atropelada. Oh, foi minha própria culpa! Acho que estava tão concentrada em meus pensamentos, tão no mundo da lua, que atravessei sem olhar — um carro veio cantando os pneus na curva, e quase me pegou.

Gentilmente, ele deu um ligeiro aperto em sua mão.

— Não deve fazer esse tipo de coisas, Íris. Estou preocupado com você — ora, não por haver milagrosamente escapado das rodas de um carro, mas pelo motivo que a faz distrair-se, no meio do trânsito. Do que se trata, meu amor? Há alguma coisa em especial, não é?

A jovem concordou, com a cabeça. Seus olhos, erguidos tristemente para ele, estavam grandes e escuros, cheios de temor. Anthony reconheceu-lhes a mensagem, antes mesmo de ela dizer muito ligeiramente, baixinho:

— Estou com medo.

Anthony recobrou seu jeito calmo e sorridente. Sentou-se ao lado de Íris, num largo canapé.

— Vá em frente — falou. — Conte-me tudo.

— Acho que não quero contar, Anthony.

— Vamos, meu bem, não banque a heroína dessas histórias de mistério de terceira categoria, que começam, no primeiro capítulo, tendo um segredo que não podem revelar de forma alguma — sem nenhuma outra razão para isso, senão a de provocar o mocinho e fazer o livro se estender por mais de cinqüenta mil palavras...

Íris deu um leve e pálido sorriso.

— Gostaria de poder dizer-lhe tudo, Anthony, mas não sei o que você iria pensar — não sei se iria acreditar...

Anthony ergueu a mão, e começou a contar nos dedos:

— Número um: um bebê ilegítimo; número dois, chantagens de um ex-amante; número três...

Interrompeu-o, indignada:

— Claro que não! Não é nada disso!

— Você acaba de tranqüilizar meu espírito... — brincou Anthony. — Vamos, tolinha!

O rosto de Íris se anuviou, novamente.

— O assunto não tem nada de engraçado. É... é sobre a outra noite.

— Sim? — a voz dele ficou mais atenta.

— Você estava no inquérito, hoje de manhã — você ouviu... — Ela fez uma pausa.

— Muito pouco — interveio Tony. — O médico-legista dando detalhes técnicos sobre os efeitos dos cianuretos em geral, e o efeito do cianureto de potássio em George. As evidências reunidas pela polícia, como relatadas por aquele primeiro inspetor; não Kemp, aquele do bigode elegante, que chegou primeiro no Luxembourg e tomou conta da situação. Identificação do corpo, pelo chefe do escritório de George. O magistrado, adequadamente cordato, adiou então o inquérito por uma semana.

— É ao Inspetor que estou-me referindo — falou Íris. — Ele declarou ter achado um envoltório de papel, embaixo da mesa, com traços de cianureto de potássio.

Anthony pareceu interessado.

— Sim... Obviamente, quem quer que tenha colocado o veneno no copo de Barton, apenas deixou cair o invólucro para baixo da mesa: era a coisa mais simples que tinha a fazer. Ele, ou ela, não se podia arriscar a ser encontrado com aquilo.

Para surpresa do rapaz, Íris começou a tremer violentamente.

— Oh, não, Anthony! Não foi assim...

— O que quer dizer, querida? O que sabe sobre isso?

Íris falou, simplesmente:

— Fui eu que joguei o papel debaixo da mesa.

Os olhos dele a fitavam, cheios de assombro.

— Escute, Anthony. Lembra-se de como George bebeu a champanha, e então tudo aconteceu?

Ele concordou com a cabeça, e Íris prosseguiu:

— Foi horrível — como um pesadelo. E veio logo quando tudo parecia estar bem!... Quero dizer, depois do show, quando as luzes se acenderam — sentira-me aliviada! Porque, da outra vez, tinha sido nessa hora, você sabe, que havíamos visto Rosemary morta — e, de certo modo, não sei por que, tinha a impressão de que tudo iria repetir-se... Podia sentir que ela estava ali, morta, na mesa...

— Querida...

— Oh, eu sei! Foram meus nervos... Mas, de qualquer forma, ali estávamos: nada de horrível acontecera, e subitamente parecia que aquela tragédia toda havia finalmente acabado, e podíamos — não sei como explicar, exatamente — começar de novo. Assim, dancei com George, comecei realmente a me divertir, e voltamos para a mesa. Foi aí que George, de repente, falou em Rosemary, pediu-nos para beber à sua memória — e então ele morreu, e todo o pesadelo havia voltado...

Íris fez uma pausa, e continuou:

— Acho que me senti simplesmente paralisada. Fiquei ali, tremendo. Você veio examiná-lo, eu recuei um pouco, chegaram os garçons, alguém chamou por um médico... E, todo o tempo, fiquei ali, em pé, como que congelada. Então, subitamente, senti um grande nó na garganta, as lágrimas começaram a me escorrer pelo rosto, e abri minha bolsa, para pegar um lenço. Simplesmente remexi dentro dela, sem prestar atenção, tirei o lenço... e junto com ele veio um papel branco, dobrado, do tipo que os farmacêuticos usam para embrulhar pozinhos. Só que — percebe, Anthony? — aquilo não estava em minha bolsa, quando saí de casa. Não tinha nada sequer parecido! Eu mesma havia colocado as coisas, na bolsa vazia: um pó compacto, um batom, meu lenço, um estojinho com pente, um xelim e duas moedas de meio-xelim. Alguém havia colocado aquele embrulhinho em minha bolsa — só podia ser isso.

— Aí me lembrei de que haviam achado um papel daqueles na bolsa de minha irmã, quando ela morreu, e que continha cianureto. Fiquei assustada, Anthony, terrivelmente assustada! Meus dedos ficaram moles, e o papelzinho caiu do lenço, para baixo da mesa. Deixei-o ali, e não disse nada — estava por demais assustada!Alguém pretendia fazer parecer que eu havia matado George, e não era verdade.

Anthony soltou um assobio prolongado.

— E ninguém a viu? — perguntou ele.

Íris hesitou.

— Não estou muito certa — respondeu, vagarosamente. — Acho que Ruth notou: mas ela parecia tão atordoada que não sei se realmente percebeu — ou se estava, simplesmente, olhando na minha direção, sem ver.

Anthony assobiou, novamente.

— Uma boa confusão — observou.

— E foi ficando pior, e pior... Tenho estado com tanto medo que eles descubram!

— Não entendo como suas impressões não estavam no papel. A primeira providência da polícia deve ter sido procurar impressões digitais...

— Suponho que foi porque eu o segurei com o lenço.

Anthony concordou.

— Sim, nisso você teve sorte.

— Mas quem poderia tê-lo colocado na minha bolsa? Não me separei dela, toda a noite.

— Não é tão difícil como imagina. Quando você foi dançar, após o espetáculo, deixou a bolsa na mesa — alguém pode ter mexido nela, então. E há, também as outras mulheres. Você poderia levantar-se e reproduzir, para mim, como as mulheres se comportam, num toalete? É o tipo de coisa que não sei. Vocês se juntam, para conversar, ou vai cada uma para um espelho diferente?

Íris pensou, um instante.

— Havia uma longa bancada de vidro; fomos todas para lá, pousamos as bolsas e examinamos nossos rostos no espelho — você sabe como é...

— Para ser sincero, não. Continue.

— Ruth empoou o nariz, Sandra ajeitou um grampo no cabelo, eu entreguei meu casaco de pele de raposa para a encarregada, e então, percebendo que havia um sujo na minha mão, fui para a pia.

— Deixando a bolsa na bancada de vidro?

— Sim. Lavei as mãos. Enquanto isso, creio que Ruth ainda estava retocando a maquilagem; Sandra foi entregar seu casaco, e voltou para o espelho. Aí, Ruth, por sua vez, também veio lavar as mãos, e eu voltei para junto do espelho, para dar um jeito no cabelo.

— Portanto, qualquer uma das duas poderia ter colocado alguma coisa em sua bolsa, sem que você percebesse?

— Sim, mas como o envoltório estava vazio, certamente deve ter sido posto ali depois que o champanha de George foi envenenado. De qualquer forma, não posso acreditar que Ruth ou Sandra fossem capazes de fazer uma coisa dessas.

— Você faz um juízo elevado demais, das pessoas. Sandra é o tipo de criatura gótica, a qual teria queimado seus inimigos na fogueira, na Idade Média; e Ruth daria a envenenadora mais devastadoramente hábil que já pisou na face da Terra.

— Se foi Ruth, por que ela não declarou que me viu deixando cair o papel?

— Agora me pegou, nesse ponto. Se Ruth, propositalmente, plantou cianureto na sua bolsa, procuraria certificar-se de que você não se livrasse dele. Assim, parece que não foi Ruth. Na verdade, o garçom é, de longe, o melhor palpite. O garçom, o contratado para apenas aquela noite! Mas, em vez disso, temos Giuseppe e Pierre — e eles simplesmente não se encaixam...

Íris suspirou.

— Estou contente de ter-lhe contado. Ninguém jamais vai saber, não é? Só eu e você?

Anthony a olhou, com uma expressão meio embaraçada.

— Não vai ser bem assim, Íris. Na realidade, você vem comigo, agora, num táxi, para ver o velho Kemp. Não podemos esconder uma coisa dessas, sob nossas mangas.

— Oh, não, Anthony! Eles vão pensar que matei George...

— Certamente vão pensar isso, se descobrirem, mais tarde, que você ficou aí sentadinha, e não falou nada! Sua história vai parecer, então, bastante esfarrapada. Se, porém, contá-la agora, de livre e espontânea vontade, é possível que acreditem em você.

— Por favor, Anthony!

— Escute aqui, Íris: você está numa enrascada. Mas, à margem de qualquer outra consideração, há uma coisa que se chama a verdade. Não pode proteger-se, e pensar apenas em salvar a própria, quando se trata de uma questão de justiça.

— Oh, Anthony, você precisa mesmo ser tão pomposo?

— Este foi um soco bem dado, mocinha! Mas, de qualquer forma, vamos procurar Kemp. Agora!

A contragosto, Íris o seguiu até o vestíbulo. O casaco dela estava jogado sobre uma cadeira. Anthony o apanhou, e ajudou-a a vesti-lo.

Havia revolta e medo nos olhos da jovem, mas Anthony não se deixou comover. Falou:

— Vamos apanhar um táxi, na saída da praça.

Ao se encaminharem para a porta da rua, a campainha tocou.

Íris soltou uma exclamação:

— Tinha-me esquecido! Deve ser Ruth. Vinha para cá, na saída do escritório, para acertar os detalhes do funeral, que vai ser depois de amanhã. Achei que poderíamos resolver melhor as coisas, com Tia Lucilla fora de casa — ela faz tanta confusão!

Anthony se adiantou e abriu a porta, interceptando a copeira, que, ouvindo a campainha, viera correndo atendê-la.

— Pode deixar, Evans — disse Íris; e a mocinha se retirou, novamente.

Ruth parecia cansada, meio em desalinho. Estava carregando uma grande pasta.

— Lamento estar atrasada, mas a condução estava tão cheia! Tive de deixar passar três ônibus, e não havia um táxi à vista.

Era bem pouco característico da auto-suficiente Ruth pedir desculpas, pensou Anthony. Outro sinal de que a morte de George conseguira abalar aquela eficiência quase sobre-humana.

— Não posso ir com você agora, Anthony, Ruth e eu temos que acertar umas coisas — disse Íris.

Anthony respondeu, com firmeza:

— Receio que isto seja mais importante. Lamento profundamente, Miss Lessing, arrancar Íris daqui, desse jeito, mas é realmente importante.

Ruth falou, rapidamente:

— Não há problema, Mr. Browne. Posso combinar tudo com Mrs. Drake, quando ela voltar. — Sorriu, ligeiramente: — Sei controlá-la muito bem, o senhor entende.

— Estou certo de que poderia controlar qualquer um, Miss Lessing — comentou Anthony, admirativamente.

— Talvez, Íris, você tenha alguma sugestão especial? — perguntou Ruth.

— Não, nenhuma. Combinei esse nosso encontro, simplesmente porque Tia Lucilla muda de opinião, a cada dois minutos, e achei que seria duro para você — está sempre tão atarefada! Mas, na verdade, não me importo com o tipo de cerimônia que vai ser. Tia Lucilla gosta de funerais, mas eu os detesto! É lógico que temos de enterrar os mortos, mas odeio que se faça muita confusão a esse respeito. Não pode fazer a menor diferença, para os próprios defuntos; estão livres disso tudo. Os mortos não voltam.

Ruth não respondeu, e Íris repetiu, desafiadoramente, numa estranha insistência:

— Os mortos não voltam!

— Vamos — disse Anthony, e a empurrou porta afora.

Um táxi vazio vinha descendo, vagarosamente, a praça. Anthony fez sinal, e ajudou Íris a entrar.

— Diga, meu bem — disse ele, depois de ter dado ao motorista o endereço da Scotland Yard. — De quem foi, exatamente, a presença que sentiu ali no vestíbulo, quando achou tão necessário afirmar que os mortos estão mortos? Foi George, ou Rosemary?

— Ninguém! Absolutamente ninguém! Apenas odeio funerais, isto é tudo.

Anthony fungou.

— Decididamente — comentou — devo ser médium!

 

Três homens estavam sentados junto a uma mesinha redonda, com tampo de mármore. O Coronel Race e o Inspetor-Chefe Kemp bebiam chá bem forte, rico em tanino; para acompanhá-los em pé de igualdade, em sua conferencia, Anthony se esforçava por suportar uma xícara do que os ingleses chamam de um bom café — julgamento esse que, infelizmente, não coincidia com suas próprias idéias sobre o assunto.

O Inspetor-Chefe Kemp, tendo cuidadosamente examinado as credenciais de Anthony, consentira em reconhecê-lo como colega.

— Se querem minha opinião — disse o Inspetor, jogando vários torrões de açúcar na escura beberagem à sua frente, e depois mexendo com capricho — este caso nunca será levado a julgamento: não conseguiremos reunir evidências suficientes.

— Acha que não? Perguntou Race.

Kemp abanou a cabeça, e tomou um aprovativo gole de seu chá.

— Minha última esperança era com seguir provas concretas de um dos cinco ter comprado cianureto ou obtido, por qualquer forma, o veneno. Fui malsucedido em todas as tentativas, nesse sentido. Vai ser um daqueles casos onde sabemos quem foi, mas nunca chegamos a prová-lo.

— Então, sabe quem foi o assassino? — Anthony o observava, com interesse.

— Sim, estou certo disso, lá no meu íntimo: Lady Alexandra Farraday.

— Ah! É nela, portanto, que aposta! — falou Race. — Motivos?

— Aqui os tem: na minha opinião, ela é dessas mulheres furiosamente ciumentas. E autocráticas, também, como aquela rainha da história — Leonor Qualquer-Coisa, que foi à procura da bela Rosamunda e a mandou escolher entre um punhal e uma taça de veneno.

— Só que neste caso — comentou Anthony — ela não ofereceu nenhuma escolha à bela Rosamunda.

O Inspetor-Chefe Kemp prosseguiu:

— Alguém dá a deixa a Mr. Barton, que começa a suspeitar — e, diria eu, suas suspeitas deviam ser bem definidas. Não teria chegado ao ponto de comprar uma casa de campo, a menos que quisesse manter-se de olho nos Farraday. Deve ter deixado bem claro, para Mrs. Farraday, que estava na sua trilha — falando toda hora sobre aquele jantar, e insistindo para que comparecessem. Ela não é do tipo que espera para ver. Novamente autocrática, liquida com ele! Vocês poderiam dizer que tudo isso é puramente teórico, baseado apenas em caráter. Mas responderia às suas objeções com um argumento muito simples: a única pessoa que poderia ter tido qualquer oportunidade de colocar algo no copo de Mr. Barton, logo antes de ele beber, seria a dama à sua direita.

— E ninguém a viu fazendo isso? — indagou Anthony.

— Exatamente. Poderiam ter visto, mas não viram. Digamos, se quiserem, que ela foi bastante hábil.

— Um verdadeiro truque de mágica.

Race deu uma tossezinha. Pegou o cachimbo e começou a enchê-lo.

— Há apenas um pequeno detalhe. Admitindo-se que Lady Alexandra seja autocrática, ciumenta e passionalmente devotada ao marido; supondo-se mesmo que não recuaria diante de um homicídio, acha que ela seria capaz de escorregar evidência incriminatória na bolsa de uma garota? Uma jovem perfeitamente inocente, que nunca lhe fizera mal algum? Estaria isso na tradição dos Kidderminster?

O Inspetor Kemp se agitou desconfortavelmente na cadeira, e desviou os olhos para a xícara de chá.

— Mulheres não jogam críquete — falou — se é a isso que se refere.

— Na verdade, muitas o fazem — retorquiu Race, sorrindo. — Mas fico satisfeito de ver que consegui despertar suas dúvidas...

Kemp escapou de seu dilema, virando-se para Anthony, com um ar de graciosa condescendência.

— A propósito, Mr. Browne — se não se importa, vou continuar a chamá-lo assim — quero dizer que lhe fico extremamente grato, pela sua presteza em ter levado Miss Marle até a Yard, esta noite mesmo, para nos contar aquela história.

— Tive que fazer isso imediatamente — falou Anthony. — Se tivesse esperado, provavelmente não teria mais conseguido levá-la.

— Ela não queria ir, é claro — observou o Coronel Race.

— Está muito assustada, a pobre criança — retrucou Anthony. — Bastante natural, na minha opinião.

— Muito natural — repetiu o Inspetor, servindo-se de outra xícara de chá.

Anthony tomou mais um cauteloso gole de café.

— Bem — continuou Kemp _ acho que a tranqüilizamos: voltou para casa bem contente.

— Depois do funeral — disse Anthony — espero que ela vá passar uns tempos no campo. Creio que lhe fariam bem vinte e quatro horas, pelo menos, de paz e sossego, longe do ininterrupto falatório de Tia Lucilla.

— O falatório de Tia Lucilla tem suas utilidades — comentou Race.

— Pois faça bom proveito dele — retorquiu Kemp. — Ainda bem que não achei necessário tomar por escrito seu depoimento, quando a interroguei — o pobre taquígrafo, a esta hora, estaria no hospital, com “cãibra de escritor”...

— Bem — disse Anthony — inclino-me a concordar com o senhor, Inspetor-Chefe, em que este caso nunca irá a julgamento — mas é um final muito insatisfatório. E há mais uma coisa que ainda não sabemos: quem escreveu a George Barton aquelas cartas, contando que a esposa fora assassinada? Não temos a menor idéia a tal respeito.

— Suas suspeitas ainda são as mesmas, Browne? — indagou Race.

— Ruth Lessing? Sim, continua a ser minha candidata preferida. Pelo que o senhor me contou, Miss Lessing reconheceu sua paixão por George; a opinião geral é de que detestava Rosemary. Digamos que, subitamente, viu uma boa oportunidade para se livrar de Rosemary — e que, ao mesmo tempo, estava razoavelmente convencida de, afastada a rival, não encontrar qualquer dificuldade em casar com George.

— Admito todos esses pontos — falou Race. — Reconheço que Ruth Lessing possui a eficiência e calma que se faz necessária para planejar e executar um assassinato; talvez também lhe falte aquela espécie de piedade que é, essencialmente, produto da imaginação. Sim, aceito que possa estar certo quanto ao primeiro crime, Browne — mas simplesmente não consigo imaginá-la cometendo o segundo. É-me impossível concebê-la entrando em pânico e envenenando o homem que amava, e com quem queria casar-se! Outro ponto que a elimina: por que ficou calada ao ver Íris deixar cair o papel do cianureto para baixo da mesa?

— Talvez ela não o tenha visto — sugeriu Anthony, num tom incerto.

— Estou seguro de que viu tudo — contestou Race. — Quando a interroguei, deu-me a impressão de estar escondendo algo; e a própria Íris Marle acha que Ruth Lessing a vira.

— Vamos, Coronel — interveio Kemp. — Diga-nos agora qual é a sua teoria. Já tem alguma, não é mesmo?

— Está certo, chegou minha vez de falar. Até agora, só escutei as de vocês — e levantei objeções.

Os olhos de Race se desviaram, pensativamente, do rosto de Kemp para o de Anthony, e permaneceram ali.

Anthony ergueu as sobrancelhas:

— Não vá-me dizer que ainda acha que sou o vilão da peça!

Lentamente, Race abanou a cabeça.

— Não posso imaginar qualquer motivo que o levasse a assassinar George Barton. Creio que sei quem o matou — e Rosemary Barton, também.

— Quem foi?

Race comentou, num tom pensativo:

— Curioso como todos nós escolhemos mulheres para suspeitas. Minha escolha também recaiu sobre uma mulher. — Fez uma pausa e disse, calmamente: — Penso que a assassina é Íris Marle.

Anthony recuou violentamente na cadeira. Por um momento, seu rosto ficou vermelho escuro — e então, com um esforço, recuperou o autodomínio. Quando falou, sua voz apresentava um ligeiro tremor, embora fosse, deliberadamente, tão casual e trocista como sempre.

— Sem dúvida, devemos discutir a possibilidade. Por que Íris Marle? E, nesse caso, o que a levaria a me contar, de livre e espontânea vontade, que jogou o envoltório do cianureto sob a mesa?

— Por que sabia que Ruth Lessing a pegara em flagrante — disse Race.

Inclinando a cabeça para um lado, Anthony considerou a resposta. Finalmente assentiu:

— Eu passo. Continue. Por que suspeitou dela, em primeiro lugar?

— Motivo! — respondeu Race. — Rosemary recebera uma enorme fortuna, em que Íris não tinha qualquer participação. Pelo que sabemos, pode ter lutado durante anos com sentimento de injustiça. Além do mais, sabia que, se Rosemary não deixasse filhos, todo dinheiro viria para ela, por morte da irmã. E Rosemary estava deprimida, infeliz, enfraquecida pela gripe — exatamente no estado de espírito em que um veredicto de suicídio seria aceito sem estranheza.

— Muito bem, faça-a parecer um monstro! — disse Anthony.

— Não é minha intenção — falou Race. — Há outro motivo pelo qual suspeitei dela, embora lhes possa parecer forçado: Victor Drake.

— Victor Drake?! — assombrou-se Anthony.

— Sangue ruim. Como pode ver, não escutei Lucilla Drake em vão. Sei tudo sobre a família Marle: Victor Drake, não tanto um fraco, mas, positivamente, perverso; a mãe, pobre de intelecto e incapaz de concentrar-se; Hector Marle, fraco, viciado, alcoólatra; Rosemary, emocionalmente instável... Uma história familiar de fraqueza, vício, falta de equilíbrio. Fatores predisponentes.

Anthony acendeu um cigarro. Suas mãos estavam trêmulas.

— Não acredita que possa surgir um fruto sadio, mesmo numa árvore doente — ou até estragada?

— É claro que sim — mas não estou certo de que Íris Marle seja um fruto sadio.

— E minha palavra não conta — falou Anthony, lentamente — porque estou apaixonado por ela. George mostrou-lhe as cartas e Íris, aterrorizada, o matou. Foi isso que se passou, na sua opinião, não foi?

— Sim. A hipótese de pânico não seria de estranhar, em se tratando dela.

— E como teria podido envenenar a bebida de George?

— Isso, confesso, não sei.

— Ainda bem que reconhece não saber alguma coisa! — Anthony se balançou na cadeira, para trás e para a frente. Seus olhos estavam escuros, ameaçadores. — É muita ousadia, de sua parte, me dizer tudo isso.

Race respondeu, calmamente:

— Reconheço. Entretanto, achei que tinha de ser dito.

Kemp observava ambos, com interesse, mas se absteve de intervir. Ficou absorto, mexendo interminavelmente o chá.

— Muito bem! — Anthony se endireitou na cadeira. — As coisas mudaram. Não se trata mais de ficar sentado em volta de uma mesa, bebendo esses líquidos intragáveis e aventando teorias acadêmicas. Este caso tem que ser resolvido. Somos obrigados a suplantar todos os empecilhos, e atingir a verdade! Esta vai ser minha tarefa — e a levarei a cabo, custe o que custar. Preciso repisar os pontos que desconhecemos — pois, quando conseguirmos decifrá-los, tudo ficará claro.

Fez uma pausa, e continuou:

— Vou expor novamente o problema: quem sabia que Rosemary fora assassinada? Quem escreveu a George, contando-lhe isso — e por quê? Agora, quanto aos crimes em si. Esqueçamos, por ora, o primeiro — foi há muito tempo, e não sabemos exatamente o que se passou. Mas o segundo foi cometido sob meus olhos! Eu o vi acontecer — portanto, deveria saber como aconteceu. O momento ideal para colocar o cianureto na taça de George teria sido durante o show — mas não pode ter sido então, pois ele tomou um gole do champanha, imediatamente depois, e cada aconteceu. Vi-o bebendo. Depois disso, ninguém poderia ter colocado nada em sua bebida; e, embora ninguém tivesse tocado em sua taça, na vez seguinte em que bebeu, estava cheia de cianureto... George não poderia ter sido envenenado — mas o foi! Havia cianureto em seu copo — mas ninguém poderia tê-lo posto ali! Estamos progredindo?

— Não — respondeu o Inspetor-Chefe Kemp.

— Sim! — contradisse Anthony. — A coisa entrou no terreno dos truques de mágica... ou de manifestações do além! Vou agora desenvolver minha teoria espírita. Enquanto estamos dançando, o fantasma de Rosemary paira sobre o copo de George, e joga ali o cianureto, habilmente materializado — qualquer espírito consegue fazer cianureto, a partir de ectoplasma. George volta para a mesa, bebe a memória da esposa e — oh, Deus!

Os outros dois o encararam, com curiosidade. Anthony estava segurando a cabeça, com ambas as mãos. Balançava-se na cadeira, para a frente e para trás, numa aparente agonia mental. Falou:

— É isso... é isso... a bolsa... o garçom...

— O garçom? — Kemp ficou alerta.

Anthony abanou a cabeça.

— Não, não, não é isso que estou querendo dizer. Realmente, cheguei a pensar que o que nos faltava era um garçom que nunca o tivesse sido antes. Em vez disso tínhamos um garçom que sempre trabalhou como tal: um jovem garçom, saído diretamente da mais nobre linhagem de garçons — angelical — acima de qualquer suspeita... E ele ainda está acima de qualquer suspeita — mas desempenhou seu papel! Oh, Deus, sim, ele desempenhou o papel principal!

Encarou os outros dois.

— Não percebem aonde quero chegar? Um garçom poderia ter envenenado o champanha, mas o garçom não o fez; ninguém tocou na taça de George, mas George foi envenenado. “Um”, artigo indefinido — “o”, artigo definido! “A taça de George” — “George!” Duas coisas distintas. O dinheiro — rios e rios de dinheiro... E, quem sabe — também amor? Não fiquem olhando para mim como se eu estivesse maluco! Vamos, vou-lhes mostrar...

Empurrando a cadeira para trás, levantou-se de um salto e segurou Kemp pelo braço.

— Venha comigo.

Kemp dirigiu um olhar pesaroso à sua xícara, ainda cheia pela metade.

— Tenho que pagar — murmurou.

— Não , não, voltaremos num minuto. Vamos! Preciso mostrar-lhe algo lá fora. Vamos, Race!

Chegando a mesa para o lado, arrastou-os consigo para a entrada.

— Estão vendo aquela cabina telefônica ali?

— Sim.

Anthony tateou nos bolsos.

— Droga! Não tenho moedas... Não importa. Pensando melhor, prefiro não fazer desse jeito. Vamos voltar.

Retornaram ao interior do café, Kemp na frente, e em seguida Race, com a mão de Anthony em seu braço.

Kemp estava com a testa franzida, quando se sentou e apanhou seu cachimbo. Esvaziou-o cuidadosamente, e começou a limpá-lo com um grampo que tirou do bolso do paletó.

Race olhava Anthony, com uma expressão intrigada. Reclinou-se, então, e, erguendo a xícara, tomou o resto do seu conteúdo.

— Maldição! — exclamou, violentamente. — Está com açúcar!

Por cima da mesa, seus olhos encontraram o sorriso que lentamente se abria no rosto de Anthony.

— Ei! — disse Kemp, bebendo um gole de sua xícara. — Que diabo é isso?

— Café — respondeu Anthony. — E não creio que vá apreciá-lo. Eu não gostei.

 

Anthony teve o prazer de ver o lampejo da compreensão surgir nos olhos de seus dois companheiros. A satisfação, porém, não durou muito, pois outro pensamento o atingiu, com a força de um soco. Gritou:

— Meu Deus! Aquele carro!

Num pulo, ficou de pé.

— Que tolo eu fui... que idiota! Ela me contou que um carro quase a havia atropelado — e mal a escutei... Vamos, rápido!

Kemp observou:

— Miss Marle falou que iria diretamente para casa, ao sair da Scotland Yard.

— Sim... Meu Deus, por que não fui com ela?

— Quem está na casa? — perguntou Race.

— Ruth Lessing estava lá, ao sairmos, esperando por Mrs. Drake. É possível que as duas ainda estejam discutindo os preparativos do funeral.

— Além de muitos outros assuntos, se bem conheço Mrs. Drake — falou Race. Acrescentou, abruptamente: — Íris Marle tem outros parentes?

— Não que eu saiba.

— Nesse caso, creio perceber o que está pensando. Mas... seria fisicamente possível?

— Acho que sim. Considere, por si mesmo, quanta coisa tomamos por certa, baseados apenas na palavra de uma só pessoa.

Kemp estava pagando a conta. Instantes depois, ao saírem correndo dali, o Inspetor perguntou:

— Imagina que o perigo seja imediato? Para Miss Marle?

— Acredito que sim.

Anthony praguejou, baixinho, e fez sinal para um táxi. Os três homens entraram, ordenando ao motorista que voasse, o mais rápido possível, para Elvaston Square.

A caminho, Kemp falou, lentamente:

— Por enquanto, formei apenas a idéia geral do caso. Os Farraday estão afastados.

— Sim.

— Graças a Deus, por isso... Mas não é muito cedo para o assassino fazer outra tentativa?

— Quanto mais cedo, melhor para ele — disse Race. — Não pode correr o risco de nos dar tempo para acharmos a trilha certa. A terceira vez dá sorte: é essa a idéia. — Acrescentou, então, dirigindo-se a Anthony: — Íris Marle me declarou, na frente de Mrs. Drake, que se casaria com você, tão logo a pedisse.

Falavam aos arrancos, pois o motorista do táxi estava seguindo suas instruções ao pé da letra, rangendo os pneus nas curvas e arremessando-se através dos tráfegos com imenso entusiasmo. Entrando, com uma última guinada, em Elvaston Square, freou, violentamente, na porta da casa.

Elvaston Square nunca parecera tão pacífica.

Recuperando, a custo, seu habitual controle, Anthony murmurou:

— Bem como nos filmes! Faz-me sentir bobo, de certo modo.

Mas já estava no alto da escada, tocando a campainha, enquanto Race pagava o táxi e Kemp subia os primeiros degraus.

A copeira abriu a porta.

Anthony perguntou imediatamente:

— Miss Íris já voltou?

Evans pareceu surpresa.

— Oh, sim, senhor! Chegou já faz hora e meia.

Anthony soltou um suspiro de alívio. Tudo na casa estava tão calmo e normal que se sentiu envergonhado de seus recentes temores melodramáticos.

— Onde está ela?

— Acho que na sala, com Mrs. Drake.

Anthony agradeceu, com a cabeça, e voou escada acima, seguido de perto por Race e Kemp.

Na pálida meia-luz da saleta de estar, Lucilla Drake esquadrinhava todos os recantos da escrivaninha, com a esperançosa concentração de um cão de caça, murmurando baixinho: “Meu Deus, meu Deus, onde será que botei a carta de Mrs. Marsham? Deixe-me ver...”

— Onde está Íris? — perguntou Anthony, abruptamente.

Lucilla se virou, para olhá-lo.

— Íris? Ela... Um instante! — Mrs. Drake se empertigou. — Posso saber quem é o cavalheiro?

Dando um passo à frente, Race apareceu por trás de Anthony, e o rosto de Lucilla se iluminou. Ainda não vira o Inspetor-Chefe Kemp, que fora o último a entrar na sala.

— Oh, meu caro Coronel Race! Quanta gentileza a sua, em ter vindo! Mas teria sido ainda melhor se tivesse chegado um pouco mais cedo: certamente gostaria de ter podido consultá-lo sobre os preparativos do funeral — a opinião masculina é tão valiosa! Na verdade, estava-me sentindo perturbada, como disse a Miss Lessing, que realmente não conseguia nem pensar — e devo dizer que, pelo menos dessa vez, Miss Lessing se mostrou mesmo bastante simpática, e ofereceu sua ajuda em tudo que fosse possível para tirar o peso de meus ombros. Só que — como ela própria observou, muito razoavelmente — sem dúvida seria eu a pessoa mais indicada para saber quais eram os hinos favoritos de George; não que eu o soubesse, na verdade, pois receio que George não fosse à igreja com muita freqüência — mas, naturalmente, sendo esposa de um clérigo — ou melhor, viúva — sei o que seria apropriado.

Race se aproveitou da pausa momentânea para escorregar uma pergunta:

— Onde está Íris Marle?

— Íris? Chegou algum tempo atrás. Disse que estava com dor de cabeça e ia subir direto para o quarto. Hoje em dia, as mocinhas, o senhor sabe, não parecem ter muita resistência — não comem bastante espinafre. Além disso, ela parece detestar, positivamente, o assunto dos preparativos do funeral. Mas, afinal de contas, alguém tem que providenciar essas coisas — e qualquer um deseja sentir que tudo saiu o melhor possível, e que foi mostrado o devido respeito pelo morto! Para ser sincera, nunca achei que carros fúnebres fossem adequadamente reverentes — não tanto quanto os coches puxados a cavalo, com suas longas caudas negras... Mas, é claro, respondi logo a Íris que não havia problema, que eu e Ruth (tratei-a assim, e não de Miss Lessing) estávamos cuidando de tudo esplendidamente, e que poderia deixar tudo por nossa conta.

— Miss Lessing já foi embora? — perguntou Kemp.

Enquanto Lucilla retomava sua enxurrada de palavras, Anthony se esgueirou, discretamente, para fora da sala. Já havia saído, quando Lucilla, subitamente interrompendo sua narrativa, fez uma pausa para perguntar:

— Quem era aquele jovem que estava aqui? A principio, não havia percebido que viera com os senhores. Achei que podia ser um daqueles horríveis repórteres. Temos tido tantos problemas com eles!

Anthony estava subindo a escada, rapidamente. Ouvindo passos às suas costas, virou a cabeça e sorriu ao ver o Inspetor-Chefe Kemp.

— Também desertou? Pobre do Race!

Kemp resmungou:

— Ele faz essas coisas tão bem! Não sou nada popular, nesse terreno.

Estavam no segundo andar, preparando-se para subir ao terceiro, quando Anthony percebeu que alguém descia lá de cima, a passos leves. Empurrou Kemp para dentro de um banheiro próximo, escondendo-se também ali. Os passos prosseguiram, já agora descendo a escada que levava ao primeiro andar.

Anthony saiu do esconderijo e subiu, voando, o outro lance. O quarto de Íris, sabia, ficava no terceiro andar — era o pequeno, nos fundos. Bateu levemente na porta.

— Ei... Íris!

Não houve resposta — bateu de novo, mais forte, chamando por ela. Tentou, em seguida, abrir a porta, mas, ao girar a maçaneta, percebeu que estava trancada. Com verdadeira ansiedade, agora, começou a dar socos na porta:

— Íris — Íris!

Após um ou dois segundos, parou e olhou para o chão. Tinha, sob os pés, um daqueles antigos tapetes de lã, usados para vedar as portas, por fora, impedindo correntes de ar. O tapete estava bem junto à porta, e Anthony o chutou para longe. O espaço que havia entre a porta e o chão era bem largo — algum dia, imaginou, devia ter sido aberto para deixar penetrar uma passadeira.

Tentou olhar pela fechadura, mas não conseguiu ver nada. Subitamente, ergueu a cabeça e cheirou o ar. Então, jogou-se ao chão e comprimiu o nariz contra a fenda sob a porta.

Levantando-se de um pulo, gritou:

— Kemp!

Não havia sinal do Inspetor-Chefe. Anthony gritou novamente.

Foi o Coronel Race, no entanto, que subiu correndo as escadas. Anthony não lhe deu tempo de falar. Gritou:

— Gás... escapando! Temos que arrombar a porta!

O físico de Race era apreciável. Junto com Anthony, eliminou rapidamente o obstáculo. Com um estalido de coisas se estilhaçando, a fechadura cedeu. Recuaram, por um momento, e então Race falou:

— Ela está junto à estufa. Vou entrar correndo, e abrir a janela. Você a apanha.

Íris Marle estava caída junto ao bico de gás — a boca e o nariz estavam recebendo em cheio o jato que escapava pela torneira totalmente aberta.

Um ou dois minutos mais tarde, engasgando-se e ofegando, Anthony e Race pousaram a jovem, sem sentidos, no chão do corredor, em frente à janela escancarada.

— Vou tentar reanimá-la — disse Race. — Arranje um médico imediatamente.

Anthony se lançou escada abaixo, enquanto Race lhe gritava:

— Não se preocupe! Acho que ela vai ficar boa. Chegamos a tempo.

No vestíbulo, segundos mais tarde, Anthony falava ao telefone, atrapalhado por um coro de exclamações de Lucilla Drake. Desligou, finalmente, dizendo com um suspiro de alívio:

— Consegui encontrar o médico. Mora bem do outro lado da praça. Vai estar aqui em minutos.

— Mas preciso saber o que aconteceu! Íris está doente? — suplicou Lucilla, pela milésima vez.

Anthony respondeu:

— Ela estava no quarto — com a porta trancada, a cabeça junto ao bico do gás, e o gás aberto.

— Íris? — Mrs. Drake soltou um grito agudo. — Íris se suicidou? Não posso acreditar. Não acredito!

Uma leve sombra do velho sorriso de Anthony reapareceu:

— Não precisa acreditar — disse ele — pois não é verdade.

 

— E agora, Tony, quer por favor contar-me tudo sobre o caso?

Íris estava recostada num sofá, e o valente sol de novembro oferecia um belo espetáculo, através das janelas de Little Priors.

Olhando para Race, sentado no peitoril da janela, Anthony sorriu, cativante.

— Não me importo de admitir, Íris, que estava ansiando por este momento. Sinto que vou explodir, se não mostrar logo a alguém como fui esperto. Não adianta esperar modéstia, na minha narrativa: será um despudorado soar de trombetas, com pausas adequadas, para que você possa dizer “Anthony, como foi inteligente”, “Tony, que maravilha”, ou qualquer coisa do gênero. Tan-tan-ran-ram! O espetáculo vai começar. Aqui vamos nós.

— A coisa toda, no conjunto, parecia bastante simples. Quero dizer, dava a impressão de ser um caso bem nítido de causa e efeito. A morte de Rosemary não havia sido suicídio, embora na época fosse aceita como tal; George ficou desconfiado, começou a investigar, estava presumivelmente chegando próximo à verdade e, antes de poder desmascarar o criminoso, foi, por sua vez, assassinado. A seqüência, se posso falar assim, parecia perfeitamente clara.

— Mas, quase ao mesmo tempo, nos defrontamos com algumas aparentes contradições, tais como: a) George não poderia ter sido envenenado; b) George foi envenenado — e: a) ninguém tocou na taça de George; b) havia veneno na taça dele.

— Na verdade, estávamos passando por cima de um fato muito significativo: o uso variado do possessivo. A orelha de George é a orelha dele, indiscutivelmente, porque está presa à sua cabeça e não pode ser removida sem uma cirurgia! Mas, comecei a perceber, quando se fala “a taça de George”, ou “a xícara de George”, isso é muito vago: significa apenas “a taça, ou xícara, da qual George está bebendo” — e não tem nada que possa extingui-la de várias outras taças, ou xícaras, do mesmo modelo.

— Para ilustrar minha teoria, tentei uma experiência. Race estava bebendo chá sem açúcar; Kemp, chá com açúcar; e eu, café. O aspecto das três bebidas era semelhante. Estávamos sentados em volta de uma mesinha redonda, com tampo de mármore, em meio a várias outras mesinhas redondas, com tampo de mármore. Alegando uma súbita inspiração, fiz com que os dois se levantassem, rapidamente, e me acompanhassem até a entrada do bar; a caminho, empurrei as cadeiras para o lado e, sem que me vissem, consegui mudar o cachimbo de Kemp, que estava junto a seu prato, para uma posição semelhante, junto ao meu prato. Uma vez lá fora, dei uma desculpa qualquer, e voltamos. Kemp nos precedendo por alguns passos. Puxou a cadeira para perto da mesa e sentou-se em frente ao prato assinalado pelo cachimbo, que deixara ao sair. Race se sentou à direita de Kemp, como antes, e eu à esquerda — mas reparem no que tinha acontecido: uma nova contradição a/b!... a) A xícara de Kemp continha chá com açúcar; b) a xícara de Kemp continha café. Duas declarações conflitantes, que não podiam ser ambas autênticas — mas eram. A causa do aparente paradoxo estava no uso da expressão “a xícara de Kemp”. A xícara de Kemp, quando deixou a mesa, não era o mesmo objeto que a xícara de Kemp, quando voltou!

— E foi isso, Íris, que aconteceu no Luxembourg, naquela noite. Depois do espetáculo, quando todos foram dançar, sua bolsa caiu no chão. Um garçom a apanhou. Não o garçom que nos estava atendendo, e sabia onde você estava sentada — mas um garçom, um jovem ajudante, ansioso e apressado, maltratado por todo mundo, correndo com um molho — e que rapidamente estacou, apanhou a bolsa e colocou junto de um prato: na verdade, não o seu prato, note bem, mas o que estava à esquerda.

— Você e George foram os primeiros a voltar para a mesa, e você se dirigiu diretamente, sem sentir, para o lugar assinalado por sua bolsa — exatamente como Kemp fez, com o lugar marcado pelo cachimbo. George se sentou no que imaginou ser o lugar dele, à sua direita, Íris. Assim, quando propôs o brinde em memória de Rosemary, George bebeu do que pensava ser o copo dele, mas que na verdade era o seu copo, querida — o qual poderia ter sido facilmente envenenado, sem necessitar de um truque de mágica para explicá-lo, porque a única pessoa que não bebeu após o espetáculo, antes de irmos dançar, foi, necessariamente, a pessoa a cuja saúde se havia bebido: você!

— Agora, à luz desse fato novo, recapitulemos o que se passou, e o caso muda inteiramente! Você é a vítima visada, e não George! Dá a impressão — não é mesmo? — de que estavam usando George. Se as coisas não tivessem saído errado, o que se teria passado, na opinião geral? Uma repetição da festa do ano anterior — e uma repetição de... suicídio! “Havia claramente uma tendência suicida na família”, as pessoas diriam. Um papelzinho com traços de cianureto seria encontrado em sua bolsa. Um caso bem claro! “A pobre jovem estava perturbada pela morte da irmã. Tudo muito triste — mas essas mocinhas milionárias são às vezes bastante neuróticas!”

Íris o interrompeu, exclamando:

— Mas por que alguém iria querer matar-me? Por quê? Por quê?

— Toda aquela maravilhosa fortuna, meu anjo! Dinheiro, dinheiro, dinheiro! Você recebeu integralmente a herança de Rosemary, quando ela morreu. Agora, suponhamos que você morresse — solteira. O que aconteceria ao dinheiro?A resposta é: iria todo para seu parente mais próximo — sua Tia Lucilla. Acontece que, por tudo o que ouvi sobre a boa senhora, não conseguia imaginá-la como a Grande Assassina! Nesse caso, haveria mais alguém que se beneficiasse com o crime? Sim, de fato! Victor Drake. Lucilla ter dinheiro é exatamente a mesma coisa que Victor possuí-lo — disse ele se encarrega! Sempre fez o que quis, com a mãe. E não há nenhuma dificuldade em imaginar Victor como o Grande Assassino. Todo o tempo, desde o início do caso, tem havido menção de Victor, referencias a ele. Tem-se mantido ao largo, uma figura nebulosa, insubstancial e perversa...

— Mas Victor está na Argentina! Já faz mais de um ano que embarcou para a América do Sul...

— Embarcou mesmo? Chegamos, nesse ponto, àquilo que já se disse ser o enredo básico de todas as histórias: “a mocinha e o mocinho se encontram”! Esta história, em particular, começou quando Victor conheceu Miss Lessing. Ganhou absoluto domínio sobre ela. Acho que Ruth deve ter-se apaixonado seriamente por ele — essas mulheres calmas, equilibradas, respeitadoras da lei freqüentemente se deixam atrair por um verdadeiro mau-caráter.

— Pense um pouco, Íris, e perceberá que toda a evidencia que tínhamos de Victor estar na América do Sul dependia da palavra de Ruth. Nada foi investigado, por que nunca pareceu importante. Ruth falou que embarcara Victor no San Cristobal, antes da morte de Rosemary! Foi Ruth quem sugeriu o telefonema para Buenos Aires, no dia da morte de George — e depois demitiu a telefonista, pois esta poderia, inadvertidamente, deixar escapar que não havia feito qualquer ligação.

— Logicamente, a partir daí, tornou-se muito fácil esclarecer tudo. Victor Drake chegou ao Rio a bordo de um navio que deixara a Inglaterra no dia seguinte à morte de Rosemary. Ogilvie, em Buenos Aires, não teve nenhuma conversa telefônica com Ruth, a respeito de Victor Drake, no dia da morte de George. E Victor Drake saíra de Buenos Aires, com destino a Nova Iorque, algumas semanas antes. Ser-lhe-ia bastante fácil arranjar que um telegrama fosse mandado, em seu nome, num determinado dia — um desses telegramas já tão conhecidos, pedindo dinheiro, que serviria como prova positiva de que estava a milhares de milhas de distância. Em vez disso...

— Sim, Anthony?

— Em vez disso — continuou, aproximando-se, com visível prazer, do clímax de sua narrativa — ele estava sentado no Luxembourg, na mesa vizinha à nossa, em companhia de uma loura, que não era tão boba como parecia!

— Não vá-me dizer que era aquele homem horroroso!

— Uma pele amarelada, cheia de manchas, e olhos injetados são fáceis de conseguir, e modificam bastante a aparência de um homem. Na verdade, era eu a única pessoa do nosso grupo, com exceção de Ruth Lessing, que já vira Drake, alguma vez — e, mesmo assim, não com esse nome! De qualquer forma, estava sentado de costas para ele. Realmente pensei ter reconhecido lá fora, no salão de coquetéis, quando chegamos, um homem que havia encontrado nos meus tempos de cadeia: Coleman, o Vigarista. No entanto, como eu levava agora uma vida altamente respeitável, não estava nada ansioso para que ele me reconhecesse. Nem por um momento suspeitei que o Vigarista Coleman tivesse alguma coisa a ver com o crime — e, ainda menos, que ele e Victor Drake fossem uma só pessoa.

— Mas não vejo como ele pôde fazê-lo!

O Coronel Race tomou a palavra:

— Foi a coisa mais fácil do mundo. Durante o show, saiu para telefonar, passando pela mesa de vocês. Drake havia sido ator e também algo ainda mais importante: garçom. Maquilar-se como Pedro Morales, e representar esse papel, era brincadeira de criança para um ator — mas, para mover-se agilmente, à volta de uma mesa, com o passo e a desenvoltura de um garçom, enchendo as taças de champanha, era necessário o genuíno conhecimento, a técnica de alguém que realmente já fora um garçom. Um movimento em falso, um gesto inábil, teriam atraído as atenção de vocês; mas, como um autêntico garçom, ninguém reparou nele. Estavam assistindo ao show, sem notar aquela parte da mobília de um restaurante — o garçom!

Íris falou, com a voz hesitante:

— E Ruth?

Anthony respondeu:

— Foi Ruth, é claro, quem colocou o papel do cianureto em sua bolsa — provavelmente no toalete, no início da noite. A mesma técnica que havia empregado há um ano atrás — com Rosemary.

— Sempre achei estranho — observou Íris — que George não tivesse contado a Ruth sobre aquelas cartas. Sempre a consultava a respeito de tudo!

Anthony deu uma risadinha.

—E lógico que contou — foi a primeira coisa que fez. Ela já o havia previsto, e foi por isso que as escreveu. Então, arquitetou para George todo o seu famosos “plano” ... tendo, primeiramente, preparado bem o terreno. Assim, Ruth já tinha o cenário armado — tudo lindamente arranjado para o Suicídio Número Dois — e se George resolvesse acreditar que você havia assassinado Rosemary e estava-se suicidando por remorso, ou pânico... bem, não faria nenhuma diferença para ela!

— E pensar que eu gostava de Ruth — muito, até Chegava mesmo a desejar que se casasse com George!

— Provavelmente, daria uma ótima esposa para ele, se não tivesse cruzado com Victor — falou Anthony. — Moral da história: toda assassina já foi antes uma boa moça.

Íris estremeceu:

— Tudo isso por dinheiro!

— Minha querida inocente, é exatamente por dinheiro que se fazem essas coisas! Foi, sem dúvida, o motivo de Victor. Quanto a Ruth, foi em parte por dinheiro, em parte por Victor, e, acredito, em parte porque odiava Rosemary. Sim, ela já havia percorrido um longo caminho, quando chegou ao ponto de tentar, deliberadamente, atropelá-la com o carro — e mais ainda quando, deixando Lucilla na sala de estar, bateu a porta da frente e subiu para o seu quarto. Como estava ela? Notou alguma excitação?

Íris refletiu.

— Acho que não. Simplesmente deu umas batidinhas na porta, entrou e disse que tudo estava combinado, e esperava que eu me sentisse melhor. Respondi que sim, que estava apenas um pouco cansada. Então, ela pegou na minha lanterna elétrica — a grande, revestida de borracha — e comentou que linda lanterna era aquela. Depois disso, não consigo lembrar-me de mais nada.

— Simplesmente, querida — falou Anthony — porque ela lhe desfechou um lindo golpe na nuca, não muito forte, com sua linda lanterna. Então, arrumou você ao lado da estufa, artisticamente, fechou bem as janelas, abriu o gás, saiu e trancou a porta, passando em seguida a chave por baixo; empurrou o tapete de lã, de modo a vedar o espaço entre a porta e o chão, para impedir a passagem de ar, e desceu silenciosamente as escadas. Kemp e eu nos escondemos no banheiro bem em tempo. Aí, corri para seu quarto e Kemp seguiu Miss Ruth Lessing, sem ser visto, até onde ela havia estacionado o carro... Sabe, na ocasião achei que havia algo incomum e suspeito no modo como Ruth nos tentou convencer de que viera de ônibus!

Íris sentiu um calafrio.

— É horrível! Pensar que alguém estivesse assim tão decidido a me matar... Então, ela também já me odiava, nessa altura?

— Oh, eu não pensaria assim... Mas Ruth Lessing é uma jovem muito eficiente. Já havia sido cúmplice em dois homicídios e não apreciava ter arriscado o pescoço por nada. Não tenho a menor dúvida de que não demorou muito para que Lucilla Drake deixasse escapar, em conversa, que você pretendia casar-se comigo, de um momento para o outro — e, nesse caso, não havia tempo a perder. Uma vez casada, seria eu o seu parente mais próximo, e não Mrs. Drake.

— Pobre Lucilla! Lamento tanto, por ela.

— Creio que todos lamentamos. É uma criatura bondosa, inofensiva.

— Victor já foi mesmo preso?

Anthony olhou para Race, que concordou com a cabeça, dizendo:

— Esta manhã, quando desembarcou em Nova Iorque.

— Iria casar-se com Ruth — depois?

— Era essa a idéia de Ruth. Acredito que ela o teria conseguido, também.

— Anthony... Acho que não gosto muito do meu dinheiro.

— Muito bem, doçura — faremos algo nobre, com ele, se desejar. Tenho bastante dinheiro para viver e sustentar uma esposa, com razoável conforto. Vamos doar toda a fortuna, se quiser: construir orfanatos, distribuir tabaco de graça, para os velhinhos, ou, quem sabe, fazer uma campanha para que seja servido um café melhor, em toda a Inglaterra...

— Vou conservar uma pequena parte — brincou Íris — de modo que, se alguma vez assim o desejar, possa bancar a orgulhosa, e abandonar você.

— Não creio, Íris, que seja esse o estado de espírito correto para ingressar na vida de casada... Por falar nisso, você não exclamou uma só vez “Tony, que maravilha”, ou “Anthony, como foi inteligente”!

O Coronel Race sorriu e se levantou.

— Vou tomar chá com os Farraday — explicou. Havia um brilho divertido em seus olhos, quando disse a Anthony: — Acho que não quer vir comigo, não é mesmo?

Anthony abanou a cabeça, e Race saiu da sala, parando um instante, na porta, para dizer, por cima do ombro:

— Foi um bom espetáculo.

— Acabo de receber a suprema aprovação britânica! — observou Anthony, quando a porta se fechou atrás do Coronel.

Íris perguntou, numa voz calma:

— Ele pensava que eu era a culpada, não é mesmo?

— Não deve censurá-lo por isso — respondeu Anthony. — Compreenda, Race já conheceu tantas espiãs encantadoras, todas elas roubando fórmulas secretas e arrancando segredos de generais-de-divisão, que isso azedou seu espírito e deformou-lhe o julgamento. Simplesmente acredita que a culpada sempre tem que ser a moça bonita, envolvida no caso!

— E você, Tony, como pôde saber que não tinha sido eu?

— Amor, talvez! — disse Anthony, alegremente.

A expressão dele se alterou, então, ficando subitamente séria. Apontou para um pequeno vaso, ao lado de Íris, no qual havia apenas um galhinho verde-escuro, com uma flor cor de malva.

— Como é que isso pode estar florindo nessa época do ano?

— Acontece, às vezes — apenas um broto isolado — quando o outono é ameno.

Anthony retirou a plantinha do vaso e a segurou um instante, junto ao rosto. Semicerrando os olhos, viu um brilhante cabelo castanho, sorridentes olhos azuis e lábios vermelhos, sensuais... Falou, num tom calmo, coloquial:

— Ela não está mais por aqui, está?

— A quem se refere, Tony?

— Você sabe a quem: Rosemary... Acho que ela sabia, Íris, que você corria perigo.

Tocou com os lábios a plantinha... verde e cheirosa, e a atirou pela janela.

— Adeus, Rosemary, obrigado...

Íris falou, docemente:

— “Aqui está o alecrim, que traz a recordação...”

E, mais suavemente ainda:

— “Recorde, meu bem, por favor...”

 

                                                                                Agatha Christie  

 

                      

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