Translate to English Translate to Spanish Translate to French Translate to German Translate to Italian Translate to Russian Translate to Chinese Translate to Japanese

  

 

Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM CADÁVER NO CONVENTO Catherine Aird
UM CADÁVER NO CONVENTO Catherine Aird

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A irmã Maria Santa Gertrudes estendeu a mão e travou o pequeno relógio-despertador muito antes de ele atingir a hora em que devia desencadear o toque de alarme. Eram cinco horas e estava bastante escuro. A freira deslizou rapidamente para fora da cama, tremendo um pouco com o frio. O Convento de Santo Anselmo não era totalmente desprovido de aquecimento, mas às cinco horas duma manhã de Novembro era como se o fosse.

A irmã vestiu-se muito sossegadamente, molhando a cara com um pouco de água fria que se encontrava numa bacia situada num canto do seu quartinho. A água estava realmente gelada e, depois disso, ela acabou de vestir-se mais apressadamente. Depois de estar devidamente metida no seu hábito, ajoelhou em frente de um prie-dieu em frente da janela e fez as suas primeiras devoções particulares do dia. Em seguida, correu as cortinas da janela para deixar entrar a claridade do dia que ia nascer e abriu a cama.

Nesse momento passavam vinte e cinco minutos das cinco horas. Profundamente habituada a um dia ordenado por uma combinação de tradição e de relógio, pegou no breviário e esteve a ler nele durante cinco minutos exactos. Quando os ponteiros do relógio se aproximavam das cinco e meia, a freira fechou o livro e deslizou para fora do quarto. A missão da irmã Gertrudes neste mês era acordar o convento.

Ela própria dormia no andar de cima da casa e a primeira coisa que fez foi abrir todas as cortinas do patamar. A uns oitocentos metros de distância, a aldeia de Cullingoak ainda dormia na escuridão. Havia apenas uma luz visível do ponto onde ela se encontrava e essa era na padaria. Ainda se passaria outra meia hora antes que aparecesse a luz seguinte - no quiosque dos jornais, onde o complemento do dia sobre desastres e mexericos chegava de Berebury por uma carrinha. A irmã Gertrudes arranjou devidamente as cortinas afastadas para os lados das janelas e voltou-se. Os jornais não tinham sido uma coisa de que ela tivesse tido saudades quando deixara o mundo.

 

 

 

 

A freira desceu para o patamar de baixo e afastou outro par de cortinas do outro lado da casa. Nessa direcção, dois campos cultivados mais além, ficava o Instituto de Agricultura de Cullingoak. Também este era invisível na escuridão, mas nesse momento, o rapaz que estava encarregado de cuidar do gado nessa semana devia estar a começar a ordenha. Ocasionalmente, no convento, podia-se ouvir os mugidos do gado quando percorria em passo pachorrento os campos. A irmã Gertrudes desceu para um corredor, começando a contar as portas à medida que ia passando por elas. Seis, cinco, qua... quatro. A quatro portas de distância não havia qualquer dúvida sobre o ressonar da irmã Maria Santa Hilda.

Esse ressonar elevava-se num crescendo fantástico e depois parava repentinamente - para recomeçar alguns segundos depois ganhando força e embalagem para atingir um novo clímax. A irmã Boaventura chamava-lhe a resposta do convento às vacas do instituto, mas a mesma irmã apressava-se sempre a acrescentar que aquele ressonar podia ser ouvido a seis portas de distância num dia bom.

Era possível que ela tivesse razão. Era verdade que a única pessoa no Convento de Santo Anselmo que nada sabia sobre o ressonar da irmã Hilda era a própria irmã Hilda. Era, pensava criticamente a irmã Gertrudes, um verdadeiro exame de comportamento religioso dormir sem um queixume a quatro - ou mesmo cinco - portas de distância dela e ysaudar a alegre e ignorante irmã Hilda com verdadeira paridade cristã todas as manhãs. A irmã Gertrudes tinha tido que fazer isso ela própria e sabia como era. Mas como havia desejado ter sido capaz de entrar no quarto dela e voltá-la para o outro lado...

Agora, o seu desejo era acordá-la a ela em primeiro lugar; no entanto, havia uma ordem determinada para isto, tal como para tudo o resto da vida do convento. Estava determinado que a primeira porta a que ela devia bater todas as manhãs era a da Reverenda Madre. O motivo por que assim era, ela não o sabia. Talvez fosse porque era inimaginável que a Madre Superiora dormisse enquanto qualquer das suas filhas na religião estivesse acordada. Talvez fosse uma das coisas - uma das muitas coisas - cuja origem se perdesse nas profundezas da antiguidade quando a Ordem fora fundada.

A irmã Gertrudes teve de dobrar mais duas esquinas antes de chegar à porta da Reverenda Madre. Bateu levemente.

- A sua bênção, minha Madre.

- Deus a abençoe, minha filha. - A resposta veio rápida do outro lado da porta, numa voz calma e profunda. Nunca era preciso bater duas vezes para acordar a Reverenda Madre.

A porta seguinte a que tinha de bater era a da irmã da sacristia. Esta tinha de estar sempre levantada a tempo.

- Deus a abençoe, irmã.

- Deus a abençoe, irmã - respondeu prontamente a irmã da sacristia.

Depois a Despenseira. Ela também tinha de começar a trabalhar cedo.

- Deus a abençoe, irmã.

E a Mestra das Noviças. Nenhuma resposta.

Outro batimento, mais alto.

- Deus a abençoe, irmã - numa voz ensonada. A voz da Mestra das Noviças soava como se ela tivesse sido despertada de um sonho agradável.

A irmã Tesoureira, a Procuradora, a mão direita da Madre Superiora, a irmã Lúcia.

- Deus a abençoe, irmã. - Nenhuma demora aqui. A irmã Lúcia parecia completamente desperta.

Seguidamente, a irmã Gertrudes ia começar com as portas atrás das quais se encontravam freiras sem qualquer graduação especial. Eram ainda cinquenta.

Batimento.

- Deus a abençoe, irmã - num tom interrogativo.

O inconfundível ruído de dentaduras a serem tiradas de uma caneca de lata. Pausa. Depois triunfalmente:

- Deus a abençoe, irmã.

Batimento, bênção, resposta. Batimento, bênção, resposta.

De uma certa maneira, a fórmula tornava o trabalho mais simples. "Cinco e meia duma manhã de Novembro e tudo vai bem" teria, sem dúvida, o seu cabimento, mas não num convento. A irmã Gertrudes abriu mais um jogo de cortinas de outro patamar e sentiu-se satisfeita por não ter de dizer qualquer coisa sobre o tempo cinquenta e cinco vezes todas as manhãs. Não era uma manhã particularmente bonita, mas não era má para Novembro, nada má mesmo. Dava a impressão que o tempo ia ficar bom lá para a noite que era a Noite da Fogueira. A irmã Gertrudes não estava há tanto tempo afastada do mundo que não fosse capaz de recordar-se da importância para as crianças de uma boa noite para as suas fogueiras festivas. Além disso, um Cinco de Novembro húmido era uma experiência penosa para todos - nunca se sabia quando os rapazes iam deitar o fogo-de-artífício. Perguntava a si mesma o que seria que os estudantes do Instituto de Agricultura estavam a planear. No ano transacto tinham deitado fogo ao velho abrigo da paragem dos autocarros no centro da aldeia. Não inoportunamente, segundo ouvira dizer, pois agora estava lá outro novinho em folha.

Batimento, bênção, resposta. Batimento, bênção, resposta.

Quanto mais velha era a irmã, mais rápida era a resposta. A irmã Gertrudes já tinha descoberto isso há muito tempo. Chamava primeiro as mais velhas - em parte porque essas dormiam nos pisos inferiores, em parte porque podia ainda recordar-se de quando aqueles minutos de sono a mais tinham significado para ela quando era uma jovem freira. O sono tinha sido, então, a coisa mais preciosa para ela.

Batimento, bênção, resposta ininteligível. Era a velha madre Maria Santa Teresa, com uma idade provecta cuja exactidão era apenas do conhecimento de Deus, e que professara antes de a irmã Gertrudes ter nascido e que tinha uma memória comparável a um arquivo. Mostrava-se contrária a qualquer Reverenda Madre com inclinação para as inovações. Madre Teresa tinha sobrevivido a uma série de prioresas, cada uma das quais, arranjava ela forma de inferir (sem qualquer lapso aparente de caridade cristã), não chegava aos calcanhares das suas antecessoras. Havia agora dias em que ela não era capaz de sair do quarto. Nessas ocasiões, a Reverenda Madre visitava-a e ouvia-a pacientemente falar com intermináveis recitações nas virtudes da madre Helena de abençoada memória, em cujo tempo parecia que a vida no Convento de Santo Anselmo tinha sido perfeita.

Batimento, bênção, resposta.

Voltou para trás para o corredor onde a irmã Hilda era a mais profundamente adormecida. O ressonar continuava a subir e a baixar "como todas as trombetas", pensou a irmã Gertrudes antes de se ter dado conta de que era uma comparação irreverente e que a vigilância da mente era tão importante como a vigilância dos olhos, mesmo que fossem cinco horas da manhã e ela se encontrasse sozinha num corredor escuro.

Batimento, bênção, resposta.

Essa era a porta a seguir à da irmã Hilda, a da irmã Jerónima. A irmã Gertrudes imaginou que espécie de noite teria ela tido. Talvez que o ressonar a não incomodasse, mas se o fizesse não poderia dizê-lo declaradamente depois de se ter comprometido solenemente a viver em paz para sempre com as suas irmãs na religião. Batimento, bênção, resposta. Porta da irmã Hilda.

O ressonar parou subitamente, seguiram-se dois roncos chocantes e depois a voz agradável da irmã Hilda entoou calorosamente:

- Deus a abençoe, irmã.

Era estranho, mas verdadeiro, que a irmã Hilda tivesse uma das vozes mais melífluas do convento quando falava. A irmã Gertrudes abanou a cabeça ao pensar neste fenómeno e passou para a porta seguinte.

Batimento, bênção... nenhuma resposta. Batimento (mais forte), bênção (mais insistente)... nada de resposta.

Os dentes da irmã Ana não eram postiços. A irmã Gertrudes não conseguia pensar noutra razão qualquer para uma demora na resposta e empurrou a porta: o quarto estava vazio, a cama feita. Um arreganhar de dentes muito humano iluminou a cara da irmã Gertrudes. A irmã Ana não tinha conseguido aguentar por mais um minuto aquele ressonar e tinha-se escapado lá para fora cedo. Estritamente proibido, é claro. Tal como também o era fazer a cama para poupar correrias antes das orações da hora sexta. A irmã Gertrudes tomou mentalmente nota para lhe fazer notar isso mais tarde e, dando uma rápida vista de olhos ao relógio, apressou-se a dirigir-se para a porta seguinte. Ainda faltava acordar todo o noviciado, isto para não se falar duma álea de postulantes - e essas nunca queriam levantar-se.

Às seis menos dez, a irmã Gertrudes deslizava silenciosamente para o seu lugar na capela mergulhada em silêncio e ficou ajoelhada até o serviço começar. Não havia uma procissão formal até à capela para este serviço. Cada irmã ia ocupar o seu próprio lugar e ajoelhava até soarem as badaladas das seis horas. A irmã Gertrudes ouviu lá fora o ruído das rodas dum carro a pisarem o cascalho. Era o padre MacAuley que chegava para dizer a missa. A freira baixou a cabeça. Sentia-se contente por poder ajoelhar-se em paz depois de ter completado a sua primeira tarefa do dia. Gradualmente, nos poucos minutos que decorreram antes do serviço se iniciar, esvaziou a mente de tudo que não se relacionasse com as suas preces e veneração e, quando o antiquíssimo ritual prosseguiu, ela tinha-se esquecido completamente de tudo que não fosse a ordem própria das invocações e respectivas respostas.

Até ao momento em que a irmã Pedro avançou.

A irmã Pedro era a Cantora, cargo que pesava imenso nos frágeis ombros dela. Era ainda muito jovem e com tendência para começar a falar nervosamente quando era interpelada.

Depois da Epístola, a irmã Pedro dirigiu-se para a álea central e encaminhou-se depois para os degraus do altar para a antífona. O seu manuscrito de música - cheio de iluminuras e velho - encontrava-se já lá, aberto e pronto, na estante.

As irmãs puseram-se de pé, com os olhos postos na Cantora, esperando que ela iniciasse o Gradual.

A voz da irmã Pedro deu-lhes o tom e a antífona começou. As irmãs iam cantando sempre que chegava a vez delas de responderem à solista. Nos degraus do altar, a irmã Pedro estendeu a mão direita para voltar a folha do manuscrito musical, tocou-lhe... e retirou-a bruscamente como se tivesse sido picada.

As freiras continuaram a cantar.

O rosto da irmã Pedro empalideceu visivelmente. Primeiro, ficou com os olhos fixos no manuscrito, depois na sua própria mão. Era como se não acreditasse naquilo que estava a ver ali. Continuou a olhar fixamente para o manuscrito. Não fez qualquer tentativa para voltar a página, limitando-se a ficar em frente da estante, imóvel, com uma expressão incrédula no rosto, até que as freiras tivessem terminado a parte do seu canto do Gradual.

Depois, a irmã Pedro fez uma profunda genuflexão, voltou-se e encaminhou-se de regresso ao seu lugar, com o rosto perturbado, tragicamente branco, com as mãos encla-vinhadas na frente mas, mesmo assim, a tremerem visivelmente.

A congregação sentou-se para a leitura do Evangelho.

A vida do convento, reflectiu a irmã Gertrudes, nunca era desprovida de interesse.

Saíram da capela duas a duas, mãos apertadas à frente, fazendo uma vénia em frente do altar. Encaminharam-se para o refeitório onde fizeram uma reverência à cadeira abacial e depois ficaram de pé, de costas voltadas para os bancos que iriam ocupar, enquanto eram entoadas as graças.

- Ámen - entoou a comunidade em uníssono.

Seguiu-se um ruído do amarfanhar dos hábitos e, finalmente, as freiras ficaram sentadas. Uma sentou-se à parte num pequeno estrado, com uma mesa de leitura à sua frente. Quando tudo ficou sossegado, ela começou a ler alto no Martirológio. A irmã encarregada do refeitório estava de pé junto do guichet que dava para a cozinha, com os olhos postos na Reverenda Madre. A Leitora começou a descrever os pormenores dos sofrimentos dos mártires dos primeiros tempos do cristianismo. No final da primeira página fez uma pausa. A Reverenda Madre deu uma pancada na mesa. A porta do guichet foi logo aberta e a encarregada do refeitório pegou numa enorme chaleira, foi depô-la no centro de uma das mesas e voltou para ir buscar outra. Uma irmã muito jovem apareceu com o primeiro de vários cestos de pão. Estes foram passados rapidamente ao longo das mesas compridas.

As incríveis torturas infligidas aos mártires ficaram obscurecidas pelo estalar dos pães e pelo ruído do chá a ser sorvido das chávenas. A Leitora ergueu a voz para falar de azeite a ferver e de decapitações. A chaleira foi levada para ser novamente cheia e os cestos de pão esvaziados. Apenas a frágil irmã Pedro parecia estar toda entregue à leitura do Martirológio. A sua expressão teria deixado profundamente satisfeito qualquer carrasco torturador.

Foi nesse momento que a irmã Gertrudes deu conta do lugar vazio. Era entre a irmã Damião, angular, intensa e inexcedivelmente devota, e a irmã Micaela, rechonchudinha, plácida e bastante surdinha. O lugar da irmã Ana. Devia ter sido acometida de doença durante a noite e fora-se meter na pequena enfermaria do convento. O olhar da irmã Gertrudes deslizou ao longo do banco até se deter na austera figura da irmã Radigundes, a Enfermeira. Ia pedir-lhe informações no fim do Silêncio Geral.

A ração da manhã de pão e chá chegou ao fim. A' Leitora estava a recordar o exemplo dos restantes mártires em geral, não mencionados individualmente, com o final "E noutros lugares e noutros tempos outros mártires, confessores e virgens sagradas a cujas preces e merecimentos nós, humildemente, nos recomendamos."

- Deo gratias - respondeu a comunidade.

Nesse momento a irmã Pedro levantou-se, fez uma vénia à Madre Superiora e, dando lentamente a volta à mesa, foi postar-se em frente da cadeira abacial. A Madre Superiora ergueu o olhar para ela e acenou com a cabeça. A irmã Pedro prostrou-se de joelhos e enclavinhou as mãos à sua frente.

- Confesso o meu pecado - começou a irmã Pedro numa voz que estava longe de ser firme - perante Deus e perante vós, Madre Abadessa, bem como perante todas as irmãs. Cometi o grande pecado de enxovalhar o Gradual...

Seguiu-se uma série de inspirações profundas que teriam feito jus a um coro na sua unidade.

-... ao deixar nele a marca do dedo polegar - continuou a irmã Pedro corajosamente. - Por este e por todos os meus outros pecados e ainda por aqueles que ocasionei aos outros, humildemente peço perdão a Deus e uma penitência a vós, Madre Abadessa, pelo amor de Deus. - Acabou a toda a pressa e deixou-se ficar ajoelhada, com os olhos cravados no chão. A Reverenda Madre observou longamente a figura ajoelhada.

- Que o Senhor possa perdoar-lhe as suas faltas, minha querida filha, e conceder-lhe a graça de merecer a sua graça. Diqa um miserere e...-fez uma pausa e correu o olhar pelo refeitório - peça à irmã Jerónimo para ela ir ver rapidamente essa marca, Talvez seja possível fazê-la desaparecer sem qualquer dano.

No alvoroço geral do fim do silêncio após o pequeno-almoço, a irmã Gertrudes foi ter com a irmã Radiqundes.

- A irmã Ana? Não está doente, pelo menos que eu saiba. Talvez se tenha dirigido para a enfermaria, é claro, por sua própria iniciativa, se bem que não seja normal...

Era expressamente proibido que isso acontecesse, mas teria sido pouco caritativo da parte da irmã Radigundes ter dito isso.

-... irei até lá depois do ofício, se a irmã quiser, para me certificar.

- Obrigada - disse a irmã Gertrudes com gratidão. Perguntava a si mesma se devia ou não ter comunicado o quarto vazio. A sua mente estava mais atenta a isso do que à Sexta e, depois disso, ficou ansiosamente à espera, no fundo das escadas, pela irmã Radigundes.

- Não está na enfermaria - informou a irmã Enfermeira - mas também não voltou para a cela. Fui verificar.

- Penso - opinou a irmã Gertrudes - que o melhor era irmos até ao salão, não acha?

Não eram elas as únicas irmãs que iam ficar à espera à porta da Reverenda Madre. A irmã Jerónima, a maior autoridade do convento em iluminuras de manuscritos, e a irmã Pedro já se encontravam as duas lá também. Bateram à porta e uma pequena campainha tocou. A irmã Gertrudes suspirou. Era nessas coisas que o mundo e o convento diferiam. No convento, a cada som e a cada fala havia sempre uma resposta. No mundo - bem...

As quatro irmãs entraram em grupo. A Madre Superiora estava a trabalhar no correio da manhã com a irmã Lúcia, a Tesoureira. Havia várias rimas de papel em cima da mesa e a irmã Lúcia estava inclinada sobre um bloco-notas.

A Madre Superiora ergueu o olhar vivamente.

- Ah, sim, irmã Pedro. A marca no Gradual. Tenho a certeza que a irmã Jerónimo será capaz de fazê-la desaparecer, seja ela do que for. Esses erros dignos de censura é necessário que sejam expostos mas não podemos estar... hum, a falar neles a cada momento, pois não? Se o fizéssemos, eles tornar-se-iam por si próprios indulgências e isso nunca deveria acontecer. - Esboçou um rápido sorriso. - Não é assim, irmã Jerónimo? Bom, deixe de assumir a expressão de uma Rainha de Tragédia e volte para...

A irmã Pedro desfez-se em lágrimas.

- O problema é esse mesmo, madre - choramingou.- A irmã Jerónimo diz... - A sua fala tornou-se incoerente numa ameaça de novo paroxismo de lágrimas.

- Que diz a irmã Jerónimo? - perguntou a Reverenda Madre muito suavemente.

A irmã Jerónimo pigarreou antes de falar.

- Aquela marca, minha madre. Penso que é sangue.

Os joelhos da irmã Gertrudes ficaram prestes a dobrarem-se.

- E nós não conseguimos encontrar em nenhum lado a irmã Ana - articulou com dificuldade.

 

O inspector C. D. Sloan nunca tinha estado anteriormente num convento.

Tinha estado, recordava-se, no interior de muitos lugares de clausura feminina no desempenho da sua profissão: hospitais, prisões, orfanatos, escritórios e mesmo - uma vez - um internato para raparigas. (Isso tinha acontecido quando perseguia uma menor à ordem do tribunal que era perseguida igualmente por muitas outras pessoas ao mesmo tempo. Sloan tinha sido o primeiro a chegar lá, se bem que tivesse sido por uma pequeníssima diferença.)

Contudo nunca entrara em nada semelhante a um mosteiro quanto mais um convento.

A chamada telefónica fora recebida na central da polícia de Berebury quando estavam prestes a bater as dez horas da manhã. O Departamento de Investigação Criminal (C. I. D.) da Divisão de Berebury da Corporação de Calle-shire não era grande e o sargento que nele prestava serviço encontrava-se ocupado com as actividades frenéticas de um bígamo, de forma que não lhe restava outra alternativa sobre quem escolher para o acompanhar até ao convento: o cabo-detective Crosby, William. Jovem, vivo e representando conscienciosamente a nova geração na força policial, era um daqueles que provocava no superintendente Leeyes o desejo de fazer a observação (pelo menos uma vez por ano) de que estes jovens cabos já não são o que eram dantes.

- Você acompanhar-me-á e cumprirá, suponho - observou Sloan resignadamente. - Vamos embora. - Subiu para o carro da polícia e o cabo Crosby guiou os nove quilómetros até à aldeia de Cuilingoak. Abrandou a marcha à vista dum decrépito edifício de tijolo vermelho à entrada de Cuilingoak e preparava-se para rodar o volante. Sloan ergueu o olhar.

- Não é aqui. Mais à frente.

Crosby mudou de velocidade.

- Desculpe, senhor, pensei...

- Ali é o Instituto de Agricultura. Onde os jovens cavalheiros aprendem a ser fazendeiros. Ou os jovens fazendeiros aprendem a ser cavalheiros. - Soltou um resmungo. - Não sei bem qual das duas coisas. O convento fica na próxima curva, à direita.

Não foi exactamente uma viagem bonançosa quando encontraram a entrada.

Havia uma sebe alta, muito cerrada, correndo ao longo da estrada, ficando o convento invisível por detrás dela. Os portões duplos fixos nela eram altos e estavam fechados à chave. Crosby rodou e puxou a aldraba inutilmente.

- Não parece que estejam à nossa espera.

- Por aquilo que ouvi - replicou Sloan secamente - deviam estar.

Logo depois, Crosby descobriu a maneira de entrar: havia uma porta pequena metida num dos grandes portões.

- Vou abri-los por dentro para o carro entrar - gritou de lá, mas um minuto depois reapareceu a resfolegar.- Não consigo, Inspector. Tem uma engenhoca qualquer muito complicada...

- Uma armadilha? - sugeriu Sloan.

- Talvez. A verdade é que não se consegue abrir.

O superintendente não gostava dos seus gracejos e os cabos não os apreciavam, o que era pior.

- Nesse caso teremos que ir a pé - declarou.

- A pé?

- A pé, Crosby. Como você costumava andar nos felizes dias de antigamente antes de o terem nomeado para o C. I. D. De facto, pode considerar-se muito feliz por não ter de descalçar os sapatos.

Crosby olhou para baixo para os sapatos da ordem.

- Pé descalço - amplificou Sloan.

A testa de Crosby desfranziu-se e o seu rosto iluminou-se num sorriso.

- Como aquele parceiro da história que teve de andar a pé por cima da neve?

- Henrique Quarto.

- Ele tinha feito zangar alguém, não tinha?

- O Papa.

O sorriso de Crosby era agora de grande satisfação.

- Estou a compreendê-lo, senhor. Peregrinação ou qualquer coisa no género, não foi?

- Penitência, para ser exacto.

Crosby não parecia interessado na diferença e os dois homens puseram-se em marcha pela álea que corria entre renques de rododendros. Não estava molhada, mas uma humidade desagradável escorria das folhas das árvores que conservavam o relento da noite. Nada crescia debaixo dos arbustos. A álea curvava para a esquerda, depois para a direita e, a princípio, eles não conseguiam ver mais nada que não fossem arbustos e árvores.

Sloan olhou à sua volta profissionalmente.

- Tudo muito bem cuidado, não há dúvida. Canteiros perfeitamente demarcados. Nada de ervas ruins. Aquela sebe de arbustos foi devidamente tosquiada.

- Trabalho de escravos - ripostou Crosby, pisando a areia da álea ao lado do inspector. - Estas mulheres não são obrigadas a fazerem o que lhes mandam? Voto de obediência ou lá o que é? - Deu um pontapé numa pedra, fazendo-a entrar destramente por entre dois arbustos. - Assim qualquer um pode ter um belo jardim.

- Qualquer um pode dizer que você ainda é solteiro, Crosby. Deixe-me dizer-lhe que um voto de obediência não seria capaz de tratar do seu jardim. Minha mulher prometeu obedecer... conseguiu que o vigário metesse isso de propósito na cerimónia do casamento... mas isso não quer dizer nada. E - acrescentou desapaixonadamente - se pensa que aquele chuto seria capaz de fazer passar a bola para além do guarda-redes do Calleford no próximo sábado, está muito enganado. Ele tem pés e mãos.

Acabaram de percorrer uma curva e o convento apareceu à frente deles, com a álea a alargar-se à medida que se aproximavam, acabando num largo terreiro em frente dum pórtico imponente.

- Caramba! - pronunciou Crosby expressivamente.

- Bonito, não é? - concordou o inspector Sloan. - Um jovem solar de família, poder-se-ia dizer. A família Faine viveu aqui em tempos, mas depois um deles, suponho que deve ter sido o avô, prendeu-se pelos cavalos... ou talvez tivesse sido pelas cartas. Seja como for, qualquer coisa muito dispendiosa e eles foram obrigados a vender. - Sloan era um homem de Calleshire, ali nado e ali criado. - A família ainda continua a viver por aí, em qualquer parte.

Havia uma meia dúzia de degraus baixos e largos em frente do pórtico, ladeados por um par de leões de pedra. E um grande brasão por cima da porta.

Crosby soletrou o letreiro por baixo dele:

- "Pax Intrantibus, Salus exeuntibus." Esta deve ser a divisa da família, suponho.

- É mais provável que seja das boas irmãzinhas, Crosby. Pax significa paz e eu não creio que os Faines fossem particularmente pacíficos nos velhos tempos.

- Sim, senhor, mas e quanto ao resto?

Crosby não ia apanhar Sloan assim com tanta facilidade.

- Leia-o com atenção, cabo - observou deslealmente-, e depois poderá recordar-se dele melhor, não é?

- Sim, senhor.

Sloan subiu o último degrau e avançou' para a porta.

- Inspector...

- Sim, Crosby?

- Hum... que se passou aqui?

- Não recebeu a mensagem? - Sloan carregou no botão da campainha. - Aconteceu qualquer coisa desagradável a uma das freiras.

Inesperadamente, uma luzinha acendeu-se num dos lados da porta. Crosby inclinou a cabeça para ver melhor e leu em voz alta o letreiro por baixo dela: "Abra a porta e entre para o átrio."

- Avance ao reconhecimento - interpretou Sloan que tinha prestado serviço no Exército.

Empurraram a porta e encontraram-se no interior de um vestíbulo brilhantemente iluminado. A seguinte porta dupla era de vidro. Havia outro letreiro indicativo nesta: "Quando soar o besouro empurre estas portas." Para além delas ficava um pequeno átrio e do outro lado deste encontrava-se um guarda-vento que se estendia desde o soalho até ao tecto. No centro do guarda-vento havia uma grade de ferro.

Sloan teve subitamente consciência duma cara que os olhava através do gradeamento. Os dois polícias estavam de pé em plena luz e, para além da grade, era tudo sombrio, por isso eles pouco podiam ver da cara excepto que ela se encontrava lá - a observá-los. O escrutínio terminou com um besouro a soar bastante alto - e a fechadura da porta de vidro abriu-se com um estalido.

Sloan empurrou as portas e avançou para o átrio.

A cara por detrás da grade retirou-se um pouco para sombras do fundo e ele não conseguiu distingui-la melhor

Sloan pigarreou para aclarar a voz.

- Sou o inspector-detective Sloan, do C. I. D. de Berbury.

- Sim? - A voz não se mostrava nada convidativa.

- Julgo saber que uma das freiras...

- A irmã Ana.

Por detrás do ouvido direito, ouviu Crosby lutando para estrangular à nascença um arroto.

- A irmã Ana - continuou Sloan apressadamente.- Disseram-me que ela... infelizmente... tinha encontrado uma...

- A irmã Ana morreu - declarou o rosto na escuridão.

- Ah, exactamente - replicou Sloan, que estava a achar profundamente desconcertante falar com alguém que não podia ver.

- Ela está na despensa - adiantou a voz.

- Foi isso que me disseram.

A voz proveniente daquela cara era irlandesa e isso era tudo quando Sloan seria capaz de dizer.

- Penso que o melhor é o senhor falar com a Madre Superiora - decidiu ela.

- Sou da mesma opinião - concordou Sloan. Seguiu-se um ligeiro "dique" e uma portada de madeira desceu para tapar a grade. Os dois polícias ficaram à espera.

Havia mais duas portas que davam para fora do átrio mas estavam também fechadas. Crosby fixou a sua atenção na fechadura das portas de vidro.

- Electricidade, inspector. É assim que funciona.

- Nunca supus que fosse por magia - replicou Sloan irritadamente. - Você supôs?

Não era este o género de demora que ele apreciava quando existia um cadáver. O superintendente Leeyes também não iria gostar. Estaria sentado no seu gabinete, à espera - e imaginando a razão por que ainda não tinha tido notícias deles.

Continuaram à espera. O átrio estava perfeitamente silencioso. Encontravam-se lá duas cadeiras e, numa das paredes, uma pequena Nossa Senhora em gesso com uma pequena lanterna vermelha acesa em frente dela. Nada mais. Crosby acabou a sua inspecção de todo o compartimento e voltou para junto de Sloan onde ficou em atitude de repouso.

- Por este andar, inspector, dá a impressão que não vão deixar que o cão dê ao menos uma vista de olhos ao coelho...

Houve um discreto som de tossicadelas a chamarem a atenção por detrás do ouvido direito dele e Crosby deu meia volta. Em qualquer parte, de qualquer modo, uma porta devia ter-se aberto e duas freiras haviam saído por ela, mas nem um nem outro dos dois polícias tinham ouvido nada.

- Desculpem, cavalheiros, se os surpreendemos...

Sloan teve a impressão duma imensa autoridade - qualquer coisa rara numa mulher - e a calma que a acompanhava. Ela encontrava-se perfeitamente imóvel, autêntica encarnação da dignidade, com as mãos cruzadas, num abandono repousante, à frente do seu hábito negro, a expressão perfeitamente tranquila.

- Não tem nada de que pedir desculpa - respondeu ele desconcertado.

- Como está... - o convencional "minha senhora" ficou por pronunciar por parecer despropositado ao polícia.

A mãe de Sloan era uma vigorosa mulher com os seus setenta anos já ultrapassados. Ele lutou para utilizar essa fórmula, mas não conseguiu.

-... Ma - concluiu, inspirado.

- E esta é a irmã Maria Santa Lúcia.

Assim era mais fácil. Podia pronunciar a palavra toda "irmã".

- A irmã Lúcia é a nossa Tesoureira e Procuradora...

Sloan viu o ar sobressaltado de Crosby e lançou-lhe um olhar que pretendia obrigá-lo a manter-se silencioso.

A Madre Superiora deu uma rápida vista de olhos à volta do átrio.

- Peço desculpa de a irmã Porteira os ter deixado ficar à espera. Devia tê-los mandado entrar para o salão. - Esboçou um pequeno sorriso. - Ela interpreta os seus deveres de vigilante muito seriamente. Além de que... - novamente o esboço dum sorriso -... nutre sérias objecções de raiz pelos polícias.

A experiência de Sloan dizia-lhe que o mesmo acontecia com muita gente, mas isso, duma maneira geral, não era dito com tanta franqueza.

- Não compartilhada, assim o espero, Ma, por todas as outras irmãs...

- Não sei dizer-lho, inspector - respondeu ela com toda a simplicidade. - Esta é a primeira vez que algum passou o limiar desta porta. - Voltou-se para uma das portas.- Assim sendo, pouco sei do vosso procedimento habitual mas suponho que hão-de gostar de ver a irmã Ana...

- Nem pensar - cochichou Crosby nas costas dela.

- E também a irmã Pedro, se bem que receie que ela não deve constituir ajuda imediata para os senhores. Ela está muito perturbada, de forma que a mandei para a cozinha. Lá ficam sempre muito satisfeitas por disporem de mais um par de mãos nesta altura do dia. Por aqui, se fazem favor.

Conduziu-os através da mais próxima das duas portas para aquilo que tinha sido o primitivo átrio de entrada da velha mansão. Tinha a altura de dois andares, com um pequeno patamar numa das extremidades. Um par de portas duplas dava para o interior da capela no outro extremo, mas o centro de atracção era a grande escadaria de carvalho negro, trabalhada. A sua única passadeira era brilhante e descia numa série de lanços majestosos desde a galeria com uma magnífica balaustrada no alto até um magnífico pilar de apoio no fundo, com um requintado trabalho de talha, rematado no cimo por um globo ornamental.

A Madre Superiora não perdeu tempo a dar-lhe uma vista de olhos sequer, mas, logo seguida de perto pela irmã Lúcia, guiou-os para além da escadaria através dum corredor escuro que cheirava a cera. Sloan seguia-as, guiado mais pelo barulho dos rosários enormes que lhes pendiam das cinturas do que pela vista. Em determinada altura passaram por outra freira que vinha em sentido contrário. Sloan tentou ter uma boa visão do seu rosto, mas quando viu a Madre Superiora e o seu séquito, ela afastou-se silenciosamente para um lado e ficou imóvel, com os olhos postos no chão, até todos terem passado. Depois, eles puderam ouvir o leve chocalhar do rosário quando ela se pôs novamente em marcha.

- Inspector - sussurrou Crosby ao ouvido dele -, todas elas usam anel de noivado.

- Noivas de Cristo - sussurrou em resposta Sloan.

- O que é isso?

- Digo-lhe depois.

A Reverenda Madre tinha parado em frente de uma das várias portas que desembocavam no corredor.

- É este o caminho para a despensa, inspector. A irmã Ana, que Deus tenha a sua alma em descanso, encontra-se ao fundo das escadas.

Assim era.

A irmã Lúcia abriu a porta e Sloan viu uma figura que jazia no soalho. Duas freiras estavam ajoelhadas junto do corpo numa atitude de prece. O inspector desceu as escadas cuidadosamente. Eram íngremes e a luz não era das mais brilhantes.

Quando viram os que chegavam, as duas freiras que tinham estado em vigília junto do cadáver puseram-se de pé silenciosamente e recuaram um pouco.

O corpo da freira estava todo espalhado no chão de pedra, com a cara voltada para baixo, o hábito subido, com o véu repuxado sem ordem para o lado e para trás. As mãos brancas, exangues, foram o primeiro sinal de morte que ele pôde ver. Havia um largo anel de prata lisa no dedo anelar da mão esquerda.

A Reverenda Madre e a irmã Lúcia desceram também e, depois, afastaram-se um pouco, a observá-lo.

Sloan não era capaz de dizer, à fraca luz que ali havia, onde começava e onde acabava o sangue que manchava o seu hábito negro, mas não havia qualquer dúvida de onde ele tinha vindo. A parte de trás da cabeça dela. Mesmo a essa luz, o inspector podia ver que havia qualquer coisa errada na sua configuração. Havia um buraco onde não devia haver buraco nenhum.

Ajoelhou-se ao lado dela e inclinou-se para lhe observar a cara. Havia também sangue lá, mas ele não via qualquer...

- Teríamos gostado de a remover daqui - observou a Reverenda Madre - ou, pelo menos, tê-la coberto, mas o Dr. Carrett disse que, de forma nenhuma, devíamos tocar em qualquer coisa antes de os senhores chegarem.

- Exactamente - respondeu ele distraidamente. - Crosby, trouxe uma lanterna consigo?

Iluminou com ela a cara da freira morta. Sangue tinha escorrido da parte de trás do crânio dela para a frente, em volta do tecido de linho branco que ela usava por baixo do véu e também em volta da cabeça e das faces. Havia uma palavra para isso que ele tinha ouvido pronunciar uma vez em qualquer parte... t... t... touca... era isso. Bem, a touca dela tinha sustido uma quantidade de sangue, mas uma porção dele tinha escorrido pela cara dela e depois - sem dúvida - caíra no chão. Só que aí é que estava o interessante do caso. O sangue não chegara a atingir o chão. Sloan fez incidir novamente o foco da lanterna sobre aquele ponto. Não havia qualquer vestígio de sangue no chão. O que se encontrava na cara, estava congelado e seco, mas tinha brotado o suficiente para que algum tivesse escorrido para o chão.

E não escorrera.

- Assim, é claro, não tocámos em nada até o senhor a vir ver. - A calma voz da Reverenda Madre intrometeu-se nos seus pensamentos. - Mas, agora, depois de o senhor a ter visto, seria conveniente que nós...

- Não - interrompeu-a Sloan um tanto agressivamente. - Não seria conveniente para vós que fizessem qualquer coisa. - Pôs-se novamente de pé. - Quero mandar vir aqui um fotógrafo da Polícia antes de mais nada e qualquer mexida que tenha de ser feita, sê-lo-á pelos homens do cirurgião da Polícia.

- Talvez então, nessa altura, as chaves possam ser devolvidas à irmã Lúcia, inspector?

- Chaves?

A irmã Lúcia ruborizou-se.

- Tinha-as emprestado à irmã Ana ontem a tardinha. Ela vinha cá para dar uma vista de olhos pelas prateleiras a fim de arranjar algumas ofertas de Natal. Temos irmãs que trabalham nas missões, o senhor sabe, e elas ficam muito contentes com as coisas que recebem para os seus fiéis nesta altura do ano. A irmã Ana fazia isso todos os anos. O senhor pode ver as extremidades delas debaixo do hábito, aqui...

- Não.

- O senhor tem de desculpar-nos - intrometeu-se a Madre Superiora simpaticamente. - Por vezes estamos aqui fora do contacto com os procedimentos civis e nunca tínhamos cá tido um acidente fatal. Não temos o mínimo desejo de transgredir qualquer lei.

Sloan fitou-a atentamente.

- Não é uma questão de se infringir qualquer regulamento, Madre. É muito simplesmente porque não me sinto satisfeito quanto a saber exactamente como morreu a irmã Ana. Além disso, também me disseram que têm cá uma freira com sangue nas mãos que diz ser incapaz de explicar...

- Exactamente - replicou a Madre Superiora apologeti-camente. - Num dos dedos polegares.

- E - prosseguiu majestosamente Sloan - a Madre quer que eu a autorize a mexer num cadáver e a remover dele indícios que possam ou não ser materiais. Não madre, receio que as chaves tenham de esperar até que o cirurgião da Polícia tenha passado por aqui. Têm cá um telefone?

A Madre Superiora esboçou o seu habitual frágil sorriso.

- Nesse sentido, pelo menos, inspector, estamos em contacto com o mundo.

 

- Espere um pouco, espere um pouco - resmungou a irmã Policarpo. - Estou a ir o mais depressa que posso.- Andava aos tropeções em direcção da porta. - Tocarem a campainha desta maneira! É o bastante para acordarem os mortos. - Interrompeu-se subitamente.- Não, não é, bem sabem. Não será capaz de acordar a pobre irmã Ana.- Destapou a grade. - Oh, é o senhor, padre. Entre, padre. Estão à sua espera no salão. É por causa da pobre irmã Ana. Ela, pobre alma, partiu para receber a sua recompensa da vida e nós temos cá a Polícia.

- Uma bela justaposição de cláusulas - comentou o padre MacAuley.

- O que é isso?

- Nada irmã, nada. - O padre MacAuley passou para dentro do átrio. - Apenas uma observação...

- Oh, estou a ver. Devia tê-los feito estar à espera lá fora, mas a madre disse que isso não serviria de nada. Não se pode fazer esperar a Polícia.

- Está cheia de preconceitos, Policarpo. Ninguém já se preocupa nos dias de hoje com os tumultos. Não vai acreditar-me, mas a questão irlandesa já não é, neste momento, um assunto inflamável. A irmã está desactualizada.

A irmã Policarpo pareceu ficar novamente picada.

- Talvez seja assim. O padre é demasiadamente jovem para se recordar. No entanto, eu nunca pensei que a Polícia pudesse andar por aí a meter o nariz, isso posso garantir-lhe. Prender a pobre irmã Pedro, é isso o que eles vão fazer.

- Sim, realmente? - O padre MacAuley olhou pensativamente para a freira. - Essa é aquela pequenina que dá gritinhos quando se fala com ela, não é? E porque é que haviam de prendê-la?

- Oh, o padre sabe como eles são. Ela tinha um pouco de sangue na mão e não sabe como apareceu lá.

- Aborrecido - concordou o padre MacAuley.

- Se assim não fosse, teria sido muito simplesmente uma queda nas escadas da arrecadação e ter-se-ia posto ponto final no assunto. Infelizmente, é claro... a irmã Policarpo deu-se conta de que não só estava a falar sobre a morte, mas também de morte recente e emendou-se a si própria - não podemos mandar a Polícia arrumar as malas. E tal como estão as coisas, dá a impressão que os vamos ter a pisarem-nos os calos durante muito tempo.

- Estão cá agora? - O padre MacAuley despiu o sobretudo.- Nesse caso...

- Não interessaria nada - resmungou a irmã Policarpo - que alguém soubesse.

O padre MacAuley levantou um dedo reprovador.

- Policarpo, creio realmente que está preocupada com aquilo que os vizinhos pensem.

A irmã Policarpo refreou-se.

- Não é muito bonito, pois não, que as pessoas vejam a Polícia num convento.

 

Enquanto que uma mulher menos importante teria corrido para o salão, a Reverenda Madre conseguiu lá chegar à frente do seu próprio hábito, do rosário e da ajudante sem fôlego, a irmã Lúcia.

- Padre... obrigada por ter vindo tão rapidamente. A pobre irmã Ana jaz morta ao fundo das escadas da despensa e parece que nós nos encontramos numa situação muito delicada...

- A irmã Pedro quer pedir a liberdade sob fiança?

- Não, por enquanto, obrigada. Não, eu creio que não é tanto a presença de sangue no Gradual mas antes a ausência dele em qualquer outra parte que vai constituir problema. Não concorda comigo, irmã?

A irmã Lúcia acenou com a cabeça em concordância.

- Sim, Madre - pronunciou. O padre MacAuley sentou-se.

- A irmã Ana, essa era aquela que usava óculos, não era?

- Exactamente - respondeu a irmã Lúcia. - Não conseguia ver sem eles. As missões eram o grande interesse dela, sabe.

Ele franziu o sobrolho em reflexão.

- Bastante alta?

- Mais ou menos da minha altura, creio - informou a irmã Lúcia.

- Mas mais velha?

- Exactamente. Ela já tinha professado antes de eu entrar na Ordem. Talvez que a Madre Superiora possa dizer-lhe quando foi isso...

- Não, não, não posso assim, de repente. No entanto, sei como ela teria ficado desgostosa por ser a causa de toda esta confusão. Ela não provocava o mínimo distúrbio, como sabe. De facto - a Madre Superiora fez uma pausa - ela não era a espécie de freira a quem acontecesse fosse o que fosse.

- Até agora - fez notar o padre MacAuley.

- Até agora - concordou sombriamente a Madre Superiora.

Houve um leve batimento na porta do salão. A irmã Lúcia abriu-a e no limiar apareceu uma freira muito jovem.

- Por favor, Madre, a irmã Despenseira diz que, se não pode ter acesso às prateleiras da despensa, teremos de comer parkins à sobremesa que já estão feitas desde ontem.

- Obrigada, irmã, diga à irmã Despenseira que isso servirá muitíssimo bem, obrigada. - A porta voltou a fechar-se após a partida da freira e a Reverenda Madre voltou-se para a irmã Lúcia. - O que é um parkin?

- Um prato à base de pão de especiarias que se faz no Norte.

- E que se come especialmente na Noite de Guy Fawkes - acrescentou o padre MacAuley. - Um claro exemplo, se assim se pode dizer, em que a tradição se sobrepõe à teologia.

- Acontece muitas vezes - observou a Madre Prioresa placidamente - mas não é este o momento mais indicado para se falar nisso a uma cozinheira que não pode ir buscar à despensa as coisas de que precisa. - A Madre Superiora relatou ao padre a questão das chaves. - No entanto, o inspector Sloan está a telefonar agora para a central da Polícia. Talvez que depois disso nos seja permitido fazer uso delas.

As chaves do convento não figuraram, de facto, na conversa que o inspector Sloan teve com o seu superior.

- Fale mais alto, Sloan, não consigo ouvi-lo.

- Lamento, senhor, mas estou a falar do convento. O telefone aqui é um tanto ou quanto público.

Houve um resmungo do outro lado da linha.

- Ai é isso? Há um raio de tempo que não comunicava connosco. O que aconteceu?

- Esta freira está realmente morta. Já está há bastantes horas, em minha opinião. O corpo está frio, se bem que a despensa não seja muito quente. Isso, no entanto, não é grande coisa para que se comece a trabalhar no caso. Gostaria de ter cá alguns fotógrafos e o Dr. Dabbe também...

- Todas as coisinhas do costume?

- Sim, se fizer o favor... ela está caída ao fundo dum lanço de escadas com uma amachucadela horrível na parte de trás da cabeça.

- Muito bem, Sloan, estou comprador. A vítima caiu ou foi empurrada?

- Nesse ponto é que a coisa se mostra interessante, senhor. Não creio que seja uma ou outra coisa.

- Não como a lua e o queijo verde?

- Perdão, senhor?

- Ou é feita de queijo ou não é.

- Não, senhor, não o creio.

- Se não é nenhuma de duas possíveis alternativas, nesse caso deve ser a outra, tendo sempre em conta, é claro, que...

Sloan suspirou. O superintendente tinha começado a frequentar um curso de Lógica numa escola de educação de adultos naquele Outono e isso estava a provocar grandes estragos nos seus poderes de raciocínio.

- Deixei Crosby lá em baixo, na despensa, com o cadáver, senhor, até que o Dr. Dabbe cá chegue.

- Muito bem, Sloan, sei quando estão a querer ver-se livres de mim. No entanto, lembre-se... o fracasso em seguir uma linha de pensamento até a sua conclusão lógica significa confusão.

- Sim, senhor.

- Oiça... Como se chamava a mulher?

- Irmã Ana - respondeu Sloan cautelosamente.

- Ah! - O superintendente correu para se juntar à formatura.- Talvez ela não tivesse visto alguém aproximar-se, hem?

- Talvez não, senhor.

- E qual era o verdadeiro nome dela?

- Não sei, por enquanto. A Reverenda Madre foi tratar de saber isso.

- Muito bem. Mantenha-se informado. A propósito, Sloan, quem a encontrou na despensa?

- Já receava que me fizesse essa pergunta, senhor.

- Porquê?

- Não vai gostar de ouvir, senhor.

- Não?

- Não, senhor - replicou Sloan em tom de tristeza.- Foi a irmã São Bernardo.

O telefone transmitiu uma rosnadela raivosa.

- Não gosto disto, Sloan. Se venho a descobrir que você se meteu nos copos, vai haver sarilhos, compreende?

- Sim, senhor.

- E, Sloan...

- Senhor?

- Se espera que isso seja incluído no relatório oficial, o melhor é trazer de volta o pequeno barril de brande.

Sloan esperou pelo Dr. Dabbe ao cimo das escadas da despensa e desejava ardentemente ter voltado ao internato de raparigas em vez de se encontrar no convento. Era capaz de compreender os regulamentos dum internato. Não muito tempo depois, o cirurgião da Polícia apareceu no corredor escuro escoltado por uma nova irmã.

- Bom dia, Sloan. Há qualquer coisa para mim, segundo me parece, na despensa.

- Uma freira, doutor. Ao fundo destas escadas.

- Ah-ah - pronunciou o Dr. Dabbe, alerta. - E ninguém lhe mexeu?

- Nós, não - respondeu Sloan.

- Ai ele é isso? Muito bem.

Sloan abriu a porta para dentro, deixando à vista um cenário que, exceptuando a estólida figura de Crosby, podia ter sido extraído - quase - de uma ilustração dum artista para uma novela histórica. As duas freiras assistentes ainda lá continuavam ajoelhadas e a irmã morta jazia no soalho. A lâmpada eléctrica solitária e desnuda reflectia grotescamente as suas sombras contra as paredes caiadas de branco.

- Perfeitamente medieval - observou Dabbe. - Devemos observar bem os degraus quando descermos?

- Não há grande coisa para ver - informou Sloan.- Várias irmãs e o médico loca!, o Dr. Carrett, andaram para cima e para baixo antes de nós chegarmos aqui. Contudo, há uma marca na parte lateral do sétimo degrau que podia ser do pé dela e há algum pó no sapato direito que podia ser do degrau. Na biqueira do sapato, por cima.

- Assim parece - concordou Dabbe, seguindo a direcção do foco da lanterna eléctrica de Sloan. - Os degraus foram varridos recentemente, mas não muito recentemente.

A irmã que estava junto deles tossicou.

- Provavelmente são varridos uma vez por semana, doutor.

- Obrigado. - Desviou o olhar dos degraus para o corpo. - Caiu de cabeça, Sloan, não acha?

- Talvez.

- Compreendo. - O patologista chegou ao último degrau, fez um aceno de cabeça a Crosby, inclinou-se gravemente na direcção das duas freiras ajoelhadas e voltou a sua atenção para o cadáver. Olhou para ele durante um longo espaço de tempo, de vários ângulos, e depois observou em tom coloquial:

- Interessante.

- Sim - concordou Sloan.

- Imenso sangue.

- Sim.

- Excepto no único lugar onde se esperava que houvesse.

Sloan aquiesceu com um aceno de cabeça.

- Os rapazes das fotografias vêm a caminho.

- Eu sei - replicou Dabbe sem levantar a voz. - Passei por eles. - O patologista era reconhecido como o volante mais rápido de Calleshire. - Não obstante as belas fotografias que eles possam fazer, posso assegurar-lhe que, seja qual for a origem da morte desta mulher, ela não morreu no lugar onde agora se encontra.

- Era isso - retorquiu Sloan - o que eu pensava.

Sloan pareceu aliviado por encontrar outro homem no salão.

- O nosso vigário, inspector, o padre Benedito MacAuley. - O rosário da Reverenda Madre chocalhou quando ela avançou um pouco. - Pedi-lhe para vir cá, pois senti que tinha necessidade de alguma ajuda para tratar... hum... de assuntos externos. Importa-se se ele estiver presente?

- De maneira nenhuma, Madre. Deixei o cirurgião da Polícia na despensa. Entretanto, talvez a Madre nos queira falar um pouco sobre a... irmã Ana.

Sloan não teria escolhido o salão do convento para uma entrevista com quem quer que fosse. Ele era a antítese de intimidade. A Reverenda Madre e a irmã Lúcia foram sentar-se em cadeiras duras, de costas direitas e ofereceram outras duas aos polícias. O padre MacAuley tinha-se acomodado na única que parecia remotamente confortável. Sloan reparou que eram os polícias que estavam expostos à luz provinda da janela e que a Reverenda Madre se encontrava na sombra. Pensamentos vagos relacionados com a Inquisição perpassaram-lhe pela mente e, depois, esfumaram-se. A sala era nua, tal como o átrio de entrada, e o soalho estava encerado de forma a brilhar. Na maior parte das salas vulgares havia sempre qualquer coisa que dava a um bom polícia uma ideia acerca do tipo de pessoa que estava a entrevistar: a idade, o sexo, nível de vida, posição social. Aqui não havia absolutamente nada. A impressão que continuava a sobrepor-se a qualquer outra era o cheiro a cera.

A Reverenda Madre cruzou as mãos sobre o regaço e disse tranquilamente:

- O nome da irmã Ana era Josefina Maria Cartwright. Isto é tudo quanto posso dizer-lhe sobre a vida dela antes da sua vinda para o convento. Temos uma Casa-Mãe, como sabe, em Londres, e os nossos registos são lá guardados. Eu teria de telefonar para lá a fim de saber o seu último endereço e a data em que professou. Lamento, mas isso parece um pouco...

A irmã Lúcia levantou ligeiramente a cabeça e observou para a Reverenda Madre:

- Era inglesa.

- Por oposição a quê? - perguntou rapidamente Sloan.

- A irlandesa ou francesa.

- Frequentemente oposta a ambas - informou a Reverenda Madre inesperadamente. - Quando tudo o resto fica submerso, esse género de nacionalidade permanece. É uma faceta curiosa da vida do convento.

- Ah, sim? Bom, recebemos uma mensagem esta manhã...

- Deve ter sido o Dr. Carrett. Ele é sempre muito amável para nós. Mandámos chamá-lo imediatamente.

- Quando foi isso, Madre?

- Após o serviço religioso da manhã. Nada sabíamos a respeito da noite passada.

- O que há sobre a noite passada?

- Ela pode ter estado a jazer lá desde essa altura.

- O que a leva a pensar isso?

- O Dr. Carrett, inspector. Ele disse que fora isso o que acontecera provavelmente.

- Compreendo. Mas não deram pela falta dela?

- Não, até esta manhã.

- Quando?

- A irmã Gertrudes, a encarregada do despertar, encontrou a cela dela vazia, esta manhã. A princípio pensou que ela apenas se levantara muito cedo, mas quando não a viu também à mesa do pequeno-almoço falou no caso à irmã Enfermeira.

- E depois?

- Depois do serviço religioso, a irmã Enfermeira foi à cela dela para ver se ela estava doente.

- E?

- E foi comunicar-me que a ceia estava vazia.

- A cama dela apresentava sinais de terem dormido nela?

- Não creio que a irmã Enfermeira estivesse em situação de saber isso. Todas as camas são feitas, logo de manhã, pelas próprias irmãs...

- Podia ser que estivesse quente. - Sloan mudou de posição na dura cadeira. - Normalmente, pode-se dizer, pelo apalpar, mesmo que a cama tenha sido arejada, especialmente no Inverno.

A atitude da Madre Superiora sofreu uma alteração perceptível, pois ficou subitamente hirta.

- Não creio que um tal procedimento tivesse ocorrido à irmã Enfermeira.

- Claro que não - apressou-se Sloan a apaziguá-la. Foi imaginação sua o olhar simpático do vigário? Por tudo quanto sabia, a palavra "cama" podia constituir um tabu neste convento... em qualquer convento. Provavelmente era. Resolveu refugiar-se numa fórmula. - Gostaria de falar com a irmã enf... Enfermeira. E também com essa irmã Pedro.

- Ah, sim, a irmã Pedro. - Os olhos da Reverenda Madre pousaram-se no inspector com expressão pensativa. - Parece que o sangue lhe apareceu no polegar antes da missa e parte dele foi transferido para o Gradual durante o serviço religioso...

- Deixou-o lá ficar? - interrompeu-a Sloan.

- Sim, inspector - respondeu ela com amabilidade.- Deixámo-lo lá para si.

- Que fez a Ma quando tomou conhecimento da questão do sangue e soube que faltava a irmã Ana?

- Pedi à irmã Lúcia que me ajudasse a procurá-la.

- Apenas à irmã Lúcia?

- A princípio. Um convento é um lugar onde toda a gente está sempre atarefada, inspector.

- Sim, Ma, com certeza - declarou com desconfiança.

- Quando as buscas se revelaram inúteis para a encontrar em qualquer dos lugares onde se podia esperar que ela tivesse sido acometida de doença súbita, pedi a outras irmãs que revistassem todo o convento e os terrenos em volta com todo o cuidado.

- Compreendo.

- Isto é uma casa muito grande e demorou algum tempo, mas, como sabe, a irmã São Bernardo abriu a porta da despensa e acendeu a luz... quer falar com ela também, suponho?

- Sim, se fizer o favor, Ma.

- Telefonámos ao Dr. Carrett e ele veio imediatamente. Foi ele que insistiu muito para que a deixássemos lá estendida naquele chão frio.

- Muito bem, Ma. - Pensou ter respondido assim, o melhor que podia, à censura não expressa. - Receio que este assunto seja do foro da polícia até que descubramos exactamente o que aconteceu. Diga-me, Ma, a que horas devia toda a gente ter-se metido na cama na noite passada?

No internato feminino era quando "as luzes se apagavam".

- Nove horas.

- E depois disso, ninguém teria ido até ao quarto outra...

- Ninguém tem licença de entrar na cela de qualquer irmã, a qualquer hora, excepto a irmã Gertrudes, a que desperta as outras, a Enfermeira e eu própria.

- Compreendo. Presumo, claro, que ninguém verifica se as irmãs se encontram nas suas celas?

- Ninguém.

Isto não era, no final de contas, um colégio interno.

- Estou a procurar estabelecer, Ma, a hora em que a irmã Ana foi vista viva pela última vez.

- No serviço religioso das vésperas, às oito e meia.

- Por quem?

- Pela irmã Micaela e pela irmã Damião. Os seus lugares ficam de um e outro lado do da irmã Ana.

- E a Ma não pode dizer-me nada sobre o que poderia ter causado a saída da cela da irmã Ana na noite passada?

- Nada. O facto é que é proibido.

Isto, chegou Sloan a uma conclusão, arrumava o assunto. Por enquanto...

- Compreendo, Ma, obrigado. - Pôs-se de pé. - Agora, se quiser ter a grande amabilidade de entrar em contacto com o seu... hum, escritório central...

- Inspector...

- Sim, Ma? - Sloan estava preparado com uma boa quantidade de frases de rotina sobre inquéritos, autópsias e coisas no género.

O rosário da Madre Prioresa chocalhou.

- É um dos privilégios da vida do convento que pessoas estranhas organizem o Último Serviço. Somos nós próprias que sempre fazemos isso em favor das nossas irmãs.

Era qualquer coisa que ele nunca considerara.

 

A despensa estava bastante cheia de gente na altura em que Sloan e Crosby voltaram para lá. Dois fotógrafos da polícia tinham-se juntado à turma dos sorumbáticos e andavam por lá, de um lado para o outro, manejando pesadas máquinas fotográficas. O Dr. Dabbe continuava a contemplar o cadáver de todos os ângulos. As duas irmãs continuavam a rezar - e os fotógrafos não estavam a gostar nada disso.

- Ouça, inspector - sussurrou-lhe um deles ao ouvido. - Chame os seus cães para fora daqui, está bem? Estão a provocar-nos arrepios ali ajoelhadas. E também nos estorvam. Quero tirar algumas fotografias daquele lado, mas diabos me levem se me vou ajoelhar ao lado delas.

- Podia ser que elas ficassem com uma ideia errada, Dyson - concordou Sloan em voz baixa. - Elas não o conhecem tão bem como eu. - Olhou para o outro lado da despensa. - A verdade é que não estão a incomodar o doutor. ,

- Ele é um exibicionista nato. Todos os patologistas o são e nada o perturba. Absolutamente nada. Às vezes pergunto a mim mesmo se é humano. - Dyson meteu uma nova lâmpada de flash na máquina. - Além disso, não quero que qualquer daquelas duas figure nalgum boneco que eu faça. De outra forma, terei de passar o resto da minha vida a explicar que elas não são corvos da Torre de Londres nem membros do Klu Klux Klan ou outra coisa no género.

- Demasiada imaginação, Dyson, o seu mal é esse.

No entanto, voltou a subir as escadas e foi falar no assunto à irmã Lúcia.

- Com certeza, inspector - declarou ela, depois de ter ouvido a explicação. - Vou pedir às irmãs para continuarem as suas preces e a vigília na capela.

Sloan murmurou que isso seria muito simpático da parte dela.

A uma palavra dela, as duas irmãs que se encontravam na despensa puseram-se de pé com um movimento económico, benzeram-se e foram-se embora.

- Assim está melhor - comentou Dyson, mudando rapidamente de chapas.- Bem sabe, inspector, trata-se do nosso temperamento artístico. Somos muito sensíveis ao ambiente.

- Guarde-o para si - rosnou Sloan.

Dyson espetou um dedo para o seu assistente e pôs-se de joelhos numa atitude que recordava surpreendentemente a das duas freiras. Em vez de terem as mãos enclavinhadas à sua frente, as dos fotógrafos seguravam pesadas câmaras. Dyson carregou num botão e, durante um momento, a despensa toda ficou iluminada por uma luz ofuscante e desagradável.

Pouco depois, o patologista aproximou-se de Sloan.

- Nada sei sobre o Sr. Fox que está além - observou o Dr. Dabbe - mas quanto a mim, o meu trabalho aqui acabou. Fiz uma leitura das temperaturas... A propósito, deu-se conta de que ela se encontrava numa corrente de ar?... E tenho tudo quanto preciso sobre a posição do cadáver. Aqui em baixo está frio mas não há humidade. Neste momento não lhe posso dizer muito mais que Carrett... um bom parceiro, a propósito. O que posso dizer é que ela morreu ontem à noite. O corpo está bastante frio. Tem de esperar por pormenores mais exactos, o que é uma pena porque me parece que é muito importante...

- Sim - pronunciou Sloan.

- Vou andar o mais depressa que possa - prometeu o médico. Fez uma pausa. - Por aquilo que posso ver aqui há um pequeno ferimento post-mortem. Penso que ela estava morta antes de ser metida na despensa e depois sofreu danos provocados pela queda, etc.

- Óptimo - replicou Sloan secamente.

- Oh, sim - concordou o patologista.

- Causa da morte?

- Fractura do crânio por contusão.

- Posso citar as suas palavras?

- Bom Deus, claro que pode. Não preciso dela na mesa da autópsia para dizer isso. Pode-se ver mesmo aqui. Isto não quer dizer que ela não tenha outras lesões também, mas para começar isso é o suficiente, ou não?

Sloan acenou com a cabeça lugubremente. Dabbe pegou no chapéu.

- Apanhei uma amostra da poeira daquele degrau e do sapato... poderei dizer-lhe mais qualquer coisa sobre o assunto depois. E quanto à hora da morte...

O silêncio da despensa foi subitamente quebrado pelo toque duma sineta. Ainda mal ele tinha acabado e já estavam a ouvir os passos de muitas pessoas a andarem por cima deles.

- Em alguns aspectos - observou sentenciosamente Sloan - este lugar tem muita coisa em comum com um colégio interno de raparigas.

- Não me diga. - Dabbe lançou um longo olhar austero ao cadáver estendido no chão. - É claro, eu não ando metido em tantas coisas como vocês... Para que foi a campainha? Exercícios físicos?

- Meditação.

- Podiam começar com uma ou as duas coisas aqui em baixo. Vou agora concentrar-me na impressão digital dum dedo polegar num manuscrito e vou ver se o meu assistente começa a trabalhar na análise para determinação do grupo sanguíneo.

Sloan acompanhou-o até ao corredor, depois regressou à despensa.

- Dyson...

- Inspector?

- Como se chama o seu assistente?

- Williams.

- Bem me parecia. Quem é o Sr. Fox?

Dyson pôs a máquina fotográfica no ombro e preparou-se para se ir embora.

- Fox foi um dos inventores da fotografia, diabos o levem.

A porta da despensa fechou-se com estrondo atrás dos dois fotógrafos, deixando Sloan e Crosby sozinhos, finalmente, com a irmã Ana.

- Então, Crosby, qual é a situação?

Crosby tirou um bloco-notas da algibeira.

- Temos o cadáver duma mulher... duma freira, conhecida por irmã Ana, aliás Josefina...

- Nada de aliás, Crosby.

- Com o nome de solteira de... não, isso também não soa bem. Elas são todas solteiras, não são?

- Assim o creio.

- Bem, nesse caso...

- Secular.

- Oh, não me diga! Nome secular de Josefina Maria Cartwright. Altura um pouco acima da média, idade incerta...

- Desconhecida.

- Idade desconhecida, com uma fractura do crânio...

- Pelo menos...

- Pelo menos... sofrida não sabemos como, mas em qualquer outra parte que não aqui.

- Não muito bem apresentado, mas concordo consigo.

- Tal como vejo as coisas, senhor, é tudo quanto há.

- Veja outra vez, Crosby, porque há mais.

- Há?- Crosby parecia ofendido.

- Há - repetiu Sloan.

Esperaram na despensa até que apareceram dois homens com uma maca e depois ajudaram-nos no trabalho difícil de carregarem o corpo pelas escadas acima. Depois...

- Inspector, tenho estado a pensar...

- Óptimo. Pensei que havia de chegar lá finalmente.

- Se foi a ponta do sapato dela que bateu no sétimo degrau, nesse caso ela nem sequer morreu em qualquer ponto da despensa.

- Isso é garantido.

- Alguém a atirou por aquelas escadas depois de ela estar morta?

- É isso o que o Dr. Dabbe pensa.

- Essa é uma maneira esquisita de alguém se comportar num convento.

- Bárbara - concordou Sloan, ficando à espera. Crosby, sem estar entravado por aulas de lógica, seria capaz de ir mais além que isso por si próprio.

- A queda não a matou? - perguntou, tentando uma sugestão.

- Não esta queda. - O inspector olhou para as escadas íngremes. - O mais provável é ter havido uma arma.

- Uma arma parece aqui deslocada.

- Também um cadáver na despensa parece - replicou secamente Sloan. - Especialmente um que não morreu lá.

Crosby também quis explorar esse ponto.

- Quer dizer - pronunciou ele lentamente - que a guardaram em qualquer lado, antes de a terem atirado pelas escadas abaixo?

- Quero. Durante quanto tempo?

Desta vez Crosby foi mais rápido.

- O tempo suficiente para que o sangue da cabeça dela secasse, pois não escorreu para o chão?

- Está a portar-se bem, Crosby.

Crosby sorriu.

- Portanto, vamos procurar um sítio qualquer onde alguém tenha metido uma freira a sangrar e ou aquilo, seja o que for, com que ela foi atingida?

- Mesmo que tenhamos de deitar isto tudo abaixo - afirmou Sloan.

No desenrolar dos acontecimentos, não foi preciso isso.

Procurando qualquer coisa no chão do escuro corredor, no cimo das escadas da despensa, encontrava-se o padre MacAuley. O vigário estava de gatas quando Sloan quase caiu sobre ele.

- Ah, inspector - disse desnecessariamente -, é o senhor?

- Sim, senhor, sou eu e o senhor também é o senhor, se assim me posso exprimir. - Observou inexpressivamente a figura ajoelhada. - Se a informação pode poupar-lhe qualquer problema, senhor, já me certifiquei que este corredor foi varrido e encerado esta manhã muito cedo.

- Realmente? - O padre pôs-se de pé. - Bom. Nesse caso podemos começar com a coisa seguinte.

- Que coisa, padre?

- Descobrir onde é que ela foi deixada antes de a deitarem pelas escadas abaixo, é claro. Deve ser em qualquer parte deste corredor.

- Porquê, senhor?

- É demasiado arriscado arrastar um corpo através daquele átrio enorme, não acha? Alguém poderia sair da capela de um momento para o outro e há aquela galeria no cimo das escadas. Alguém poderia estar a observar de lá. Não, eu penso que ela... hum, foi morta mais ou menos aqui à volta, ou então talvez mais além em qualquer ponto das cozinhas.

- Vamos ver, padre, não vamos?

Sloan abriu a porta mais próxima, mas o vigário abanou a cabeça.

- Não, inspector, não pode ser aí. Aí é o... hum... para as necessidades. Não é suficientemente grande. Além disso, a porta só se fecha pelo lado de dentro e haveria sempre o risco de alguém precisar de se servir dela, não acha?

A segunda e terceira portas puseram à mostra uma pequena biblioteca e um jardim-de-inverno com porta exterior de vidro, um regador e vasos.

Descobriram o que procuravam por detrás da quarta porta. Esta abria-se para um grande armário para guardar vassouras. O foco da lanterna eléctrica de Crosby saltitou para cima da mancha castanha que se via nas tábuas do fundo do armário.

MacAuley espreitou inquisitivamente por cima dos ombros deles.

- Alguém agarrou na cabeça dela... dá a impressão que ela foi aqui metida, a cabeça em primeiro lugar para que o sangue ficasse o mais longe possível da porta.

Crosby desviou um pouco o foco da lanterna e comentou:

- Essas freiras estiveram aqui esta manhã para virem buscar as vassouras, posso jurá-lo.

Sloan cheirou a cera que andava no ar.

- Posso garantir isso - afirmou. - No entanto, elas não poderiam ter visto este sangue sem uma luz. Vamos ver se o médico já se foi embora.

- Cabo, se pudesse emprestar-me a sua lanterna...- MacAuley tirou-a destramente da mão de Crosby e começou a revistar a arrecadação das vassouras centímetro por centímetro.

Crosby recuou para o corredor.

- Inspector...

- Sim?

- Porque é que, seja quem for, a meteu aqui e depois a veio tirar de cá para a pôr noutro local?

- Talvez leve um pouco mais de tempo para descobrirmos isso.

- E isso interessará?

- Não sei, por enquanto, mas mesmo as mais distraídas do grupo teriam dado logo pela presença dela quando vieram aqui esta manhã para tratarem das limpezas.

Sloan mantinha, ao mesmo tempo, sob uma atenta observação os movimentos do padre Benedito MacAuley.

- Além disso, uma pessoa pode às vezes sofrer mesmo fractura do crânio ao cair por umas escadas como as desta despensa, mas muito raramente por tropeçar e bater com a cabeça numa arrecadação de vassouras.

- Esperavam que nós pensássemos que ela tinha caído por aquelas escadas?

- Não me surpreenderia nada. A maior parte das pessoas espera que a polícia chegue logo a conclusões erradas. E se você nunca o fizer, Crosby, acabará... - Fez uma pausa. O padre MacAuley estava a recuar para sair do armário.

- Onde, inspector? - Crosby era ambicioso. Sloan fitou-o atentamente.

- Exactamente onde agora se encontra: como cabo-detective em Berebury do C. I. D., porque não será suficientemente humano para conseguir uma promoção. Então, padre MacAuley, descobriu aquilo que procurava?

- Não, não sou capaz de saber o que foi feito deles.

- Deles, de quê? - perguntou pacientemente Sloan.

- Dos óculos da irmã Ana. Ela não era capaz de ver sem eles e, no entanto, agora não se encontram em nenhum lado.

 

Tendo em consideração o pouco de carne de uma freira que podia ser visto, Sloan maravilhava-se por ter uma ideia tão clara das personalidades distintas da Madre Prioresa e da irmã Lúcia. Em ambos os casos, uma boa estrutura óssea sobressaía por detrás da fita branca apertada em volta da testa. Havia também um autodomínio nas linhas firmes das duas bocas, mas, no caso da irmã Lúcia, ainda havia mais do que um traço de beleza. Ela devia ter sido muito bonita, sem dúvida, em tempos não muito distantes. Sloan abriu o bloco-notas.

- Agora, Ma, no que diz respeito às idas e vindas, para assim me exprimir... diga-me com exactidão qual a privacidade das vossas vidas aqui?

Isso seria a primeira coisa que o superintendente Leeyes quereria saber: se tinha sido um trabalho "de dentro" ou "de fora". Muitas coisas estavam pendentes da resposta a esta questão.

- A nossa ordem não é daquelas que exigem uma reclusão estrita, inspector. As irmãs são autorizadas a sair do convento para efectuarem trabalhos necessários e de caridade, etc. Têm entrevistas aqui, no salão, a menos que se trate de questões de vestuário que são tratadas na capela. A nossa capela era a antiga capela particular dos Faine e, actualmente, a Srª Faine e a filha ainda continuam a assistir aos nossos serviços, tal como outras pessoas de Cullingoak. - A Madre Superiora sorriu delicadamente.- Na verdade, vamos mesmo ter cá, no mês que vem, um serviço muito especial. Miss Faine vai casar-se com o Sr. Ranby, director do instituto, e o bispo já deu autorização para que a nossa capela seja utilizada, como o teria sido se os Faínes continuassem a viver cá.

- Como entram essas pessoas? - inquiriu Sloan com interesse.

- Há uma porta que dá directamente para o exterior da capela. A irmã Policarpo abre-a antes do serviço religioso.

- Comerciantes?

- As mercadorias são-nos todas entregues. A irmã Despenseira trata com eles na porta das traseiras e é a irmã Lúcia, aqui presente, que lhes paga.

- Mais ninguém?

- Apenas Hobbett... é o nosso factótum. Há algumas tarefas (apenas uma ou duas, como compreende) que estão para além das nossas capacidades.

Sloan acenou com a cabeça em concordância.

- Esse Hobbett... ele tem de entrar no convento todos os dias?

- Passando pela irmã Policarpo? Não, não, o trabalho dele é nas traseiras. Ele tem uma chave para abrir a porta da casa das caldeiras e o seu trabalho de rotina: levar as latas do lixo, varrer as escadas, limpar a parte de fora das janelas dos pisos superiores, etc. E três quartas partes do tempo está ocupado com a caldeira.

- Três quartas partes?

- A irmã Inácio é a única pessoa capaz de conseguir convencer a caldeira a funcionar quando o vento está de leste. As devoções dela são frequentemente interrompidas.

Foram encontrar Hobbett num compartimento pequeno, desconfortável, ao fundo de um pequeno lanço de escadas exteriores que desciam até ao nível da despensa, não muito longe da porta da cozinha. Estava cheio de toros de lenha e uma grande quantidade de pequenas achas partidas de madeira cobriam o chão. Também lá havia uma cadeira com um braço partido e uma mesa velha. Hobbett estava sentado em frente desta a descansar no seu intervalo a meio do dia. Uma caneca de chá fumegante encontrava-se em cima da mesa. Hobbett estava a ler um diário popular com grandes tradições no sensacionalismo.

- Sou o inspector Sloan.

O homem sorveu um pouco de chá com ruído e voltou a pousar cuidadosamente a caneca na mesa.

- Hobbett - pronunciou.

Não tinha feito a barba nessa manhã.

- Estamos a investigar sobre a morte da irmã Ana.

Hobbett sorveu mais um pouco de chá.

- Ouvi dizer que uma delas tinha caído pelas escadas da despensa abaixo. - Voltou a cabeça na direcção da porta do canto. - Eu próprio não vou até tão longe como isso, pois caso contrário, talvez a tivesse encontrado.

- Até onde costuma ir lá dentro?

- Apenas até à caldeira... tenho que a manter a trabalhar. Também vou até ao depósito de carvão para atiçar o lume e essas coisas. A maior parte do tempo, passo-o a trabalhar lá fora.

Para Sloan, ele não tinha o aspecto de trabalhar fosse onde fosse.

- O que andou a fazer ontem?

- Ontem? - Hobbett parecia surpreendido. - Tenho de pensar. - Bebeu uma longa golada de chá. - Primeiro, estive a desentupir um cano. A caleira do telhado da capela estava entupida com folhas e eu tive de ir buscar a escada para lá chegar. Um trabalho demorado, isso é que foi. Mal tinha acabado quando a irmã Lúcia me mandou arranjar uma janela que tinha ficado emperrada.

- No andar de cima ou em baixo?

- Em cima. Eu já tinha ido arrumar a escada. No entanto, ela não quis que o trabalho ficasse para mais tarde. Disse que era perigoso. Uma delas podia escapar-se por ela, suponho. - Bebeu o resto do chá num longo sorvo e depois passou a língua pelos lábios. - Não que haja muito para onde elas possam fugir, pois não?

- Essa irmã Ana - observou Sloan com secura. - Costumava vê-la muitas vezes?

- Não seria capaz de o dizer, mesmo que isso acontecesse. Não consigo distingui-las umas das outras, não sei se me compreende. Há umas quatro que me dão ordens. As outras não me aborrecem muito.

- A que horas se foi embora a noite passada?

- Pouco depois das cinco. Não se pode trabalhar quando já é escuro.

- Um tipo simpático - comentou Crosby quando regressavam.

- E quatro portas - murmurou Sloan em tom aborrecido. - E cerca de trinta janelas.

A irmã Gertrudes estava a passar um mau dia. Em primeiro lugar, se bem que ninguém tivesse falado no assunto, estava profundamente consciente da sua negligência ao ignorar a cela vazia da irmã Ana. E agora estava perturbada com outra coisa. Quando era postulante, muito nervosa, tinha imaginado confiantemente que num convento não haveria aborrecimentos, que o caminho por onde seguia estava livre de escolhos e que a obediência às regras a levariam a trilhar esse caminho, se não com facilidade, pelo menos decididamente.

E agora parecia que estava enganada. Estaria? Não se supunha que qualquer freira carregasse com inquietações que pertenciam por direito à Reverenda Madre. As instruções dela eram muito simples. A Reverenda Madre devia ser informada das suas apoquentações e as suas determinações eram absolutas. Depois, a irmã em questão não tinha necessidade de se apoquentar mais.

O que eles tinham esquecido de regulamentar, pensava a irmã Gertrudes, era em que momento uma inquietação se tornava suficientemente substancial para ser comunicada à Reverenda Madre. Aquilo que a preocupava era apenas um pensamento incómodo.

Tinha-lhe ocorrido logo depois do lanche. Não havia qualquer recreio propriamente dito até à noitinha, mas depois da refeição havia um breve descanso de silêncio sob o qual elas trabalhavam. Durava cerca de quinze minutos até elas voltarem a ocupar-se dos seus deveres da tarde. E a pessoa que tinha estado a falar com ela era a irmã Damião.

Na tradição do convento, um lugar vago era deixado na mesa do refeitório onde a irmã Ana se tinha sentado sempre, com o guardanapo estendido a toda a largura. Devia ser assim durante sete dias e, depois, as freiras iriam mudar de lugar avançando um cada uma até ficarem todas seguidas, como se a morte nunca lá tivesse estado. E a irmã Damião e a irmã Micaela que se tinham sentado durante vários anos de um e outro lado da irmã Ana iriam agora sentar-se até ao resto das suas vidas ao lado uma da outra, às refeições, na capela e em qualquer outro lugar onde se juntassem na comunidade.

- Penso que agora vamos ter o nosso claustro - tinha observado a irmã Damião, na altura em que as duas faziam a limpeza do refeitório.

- O nosso claustro? Agora? - A irmã Gertrudes parou e olhou para ela. O convento sempre tivera falta dum claustro, mas construir um tal como elas gostariam, juntando as duas alas do edifício, estava muito para além das suas disponibilidades.- Necessitaremos de um prementemente se começarem a fazer construções aqui ao lado, mas de onde virá o dinheiro?

A irmã Damião procurava tirar afanosamente algumas migalhas que se encontravam em cima das mesas.

- Da irmã Ana - replicou.

- Da irmã Ana?

A irmã Damião apanhou outra migalha com os dedos finos.

- Ela sabia que nós precisávamos dum claustro - informou.

- Todas nós sabíamos que precisávamos dum claustro - replicou a irmã Gertrudes com uma certa aspereza.- É muito difícil passarmos o Inverno sem um, mas isso não quer dizer que...

- A irmã Ana ia ficar com algum dinheiro duma herança e deixou-o a nós.

- Como sabe?

- Foi ela que me disse - respondeu a irmã Damião com simplicidade. - Ela não tinha dote mas sabia que iria herdar um dia esse dinheiro.

A irmã Gertrudes apertou os lábios. A palavra dinheiro nunca era mencionada no convento na acepção da posse dele. Cálculos de carências e necessidades, meios e formas, sim, mas nunca relacionados com uma determinada irmã. E o montante do dote era um assunto tratado unicamente entre a Madre Superiora e a noviça.

- Assim, vamos poder ter o nosso claustro agora e sem preocupações quanto à construção - continuou a irmã Damião esquecida do efeito que estava a criar. - É bom, não é?

A irmã Gertrudes atarefou-se a endireitar uma cadeira.

- Sim - respondeu em tom neutro. - Excepto para a irmã Ana.

A irmã Damião rodou sobre si mesma e agarrou-lhe num braço.

- Mas ela está no Céu, irmã. Não lamenta isso, pois não?

No entanto, a irmã Gertrudes não soube o que era que lamentava e, ao primeiro toque da sineta do convento, saiu a toda a pressa do refeitório.

Foi uma infelicidade para a sua paz de espírito que a primeira pessoa com quem se esbarrasse fosse com a pequena irmã Pedro. Esta vinha a subir a grande escadaria parecendo ainda menos alegre que a Rainha Maria da Escócia quando subia para o cadafalso em Fotheringhay. Levava a mão erguida à sua frente com o dedo polegar estendido numa perfeita falta de harmonia com o resto do corpo.

- O inspector ainda não acabou com o seu dedo polegar, irmã? - perguntou a irmã Gertrudes.

- Oh, sim - respondeu ela lugubremente. - Tirou as impressões digitais dos meus dedos e confirmou que o sangue foi posto no Gradual pelo meu dedo polegar.

- Bem, nesse caso - observou a irmã Gertrudes tentativamente -, certamente que pode já lavá-lo.

A irmã Pedro olhou para o membro ofendido.

- Ele não sabe como o sangue veio aqui parar e eu também não. Já lhe mostrei tudo em que toquei desde que a irmã me acordou de manhã: a minha porta, os dois lanços de escada, desde o patamar lá de cima, a galeria, esta escadaria e o caminho a direito para a capela. A porta da capela estava aberta, é a irmã Policarpo que faz isso. A irmã da sacristia tinha já o Gradual pronto, como faz todos os dias. Além disso, a estas horas já tudo foi devidamente limpo. Não sei mesmo... - Esta última palavra foi pronunciada em tremolo.

- Nem eu - replicou a irmã Gertrudes com firmeza.- Mas a irmã ajudou o melhor que pôde...

- Não posso fazer ideia do motivo por que alguém quereria fazer mal à pobre irmã Ana.

- Nem eu - retorquiu a irmã Gertrudes com menos firmeza. - Podia ter sido um acidente, é claro...

A irmã Pedro pareceu pouco convencida e continuou o seu caminho.

- Bem, irmã São Bernardo, compreendo perfeitamente que este assunto possa ter-lhe provocado um choque desagradável, mas gostaria que me descrevesse a maneira como descobriu a irmã Ana.

Sloan tinha voltado para o salão na companhia de Crosby e enfrentava agora a Reverenda Madre que tinha ao seu lado a irmã Lúcia. A irmã São Bernardo estava em pé no meio das duas. Haveria de chegar uma altura em que ele quereria falar com uma freira sozinha mas esse momento não tinha ainda chegado. A irmã Lúcia parecia ansiosa e tensa, mas a Reverenda Madre mantinha-se calma e cheia de dignidade, com uma expressão de perfeita intemporalidade.

Sloan estava a comportar-se como o perfeito polícia que está a falar com a testemunha nervosa. Não havia qualquer dúvida de que a irmã São Bernardo estava nervosa. As suas mãos de palmas suadas tremiam ligeiramente antes de lhe ter ocorrido a ideia de as apertar uma na outra à sua frente, mas não lhe foi tão fácil esconder um leve tremor na sua voz.

- Foi-nos pedido para ajudarmos a procurar a irmã Ana cerca de uma hora depois da missa da manhã, dado o caso de ela ter sido acometida de doença em qualquer parte. A irmã Lúcia e as outras irmãs foram ver nos quartos lá de cima e a irmã Perpétua e eu verificámos os de baixo...

Sloan estava pronto para apostar que a irmã Perpétua era tão jovem como a irmã São Bernardo e que ninguém tinha esperado que qualquer delas encontrasse a irmã que faltava.

- Não sei o que me levou a abrir a porta da despensa... Tinha já entrado em todos os compartimentos ao longo do corredor e...

- Estava fechada?

- Estava.

- À chave?

- Não.

- Tem a certeza?

-Oh, tenho, sim. Foi por ela estar normalmente fechada à chave que eu acendi a luz quando a abri. De outro modo, não creio que tivesse visto a irmã Ana.

- A porta encontra-se normalmente fechada à chave - explicou a Reverenda Madre num tom de voz muito seco - por causa do perigo de uma queda por aquelas escadas íngremes na escuridão.

- Compreendo, Ma, obrigado. E que fez depois, irmã?

Tinha feito muito pouco, chegou Sloan à conclusão, excepto dar o alarme e encorajar a destruição de indícios úteis ao abrir e fechar a porta da despensa e juntando-se às pessoas que desciam e subiam as escadas.

E a irmã Pedro pouco mais útil se mostrara.

Depois de ela se ter ido embora, a Reverenda Madre fez sinal à irmã Lúcia para se pôr ao seu lado.

- Como é o endereço?

- Praça Strelitz, dezassete, Madre.

A Madre Prioresa acenou com a cabeça.

- Inspector, foi esse o endereço de onde a irmã Ana veio até nós.

- É um endereço muito bom - comentou Sloan involuntariamente.

- Ela era uma freira muito boa - replicou secamente a Reverenda Madre. - Foi, é claro, há já bastante tempo que ela saiu da casa dela, mas no desenvolvimento normal dos acontecimentos eu telefonaria para lá a fim de saber se ela ainda tinha ou não família.

Sloan deu uma rápida vista de olhos ao relógio.

- Talvez que eu próprio telefone para lá, Ma.

De pé, no escuro corredor onde as freiras tinham mandado instalar o telefone, Sloan perguntava a si mesmo se não seria mais avisado deslocar-se a Londres. Depois de ter feito uma chamada para o nº 17 da Praça Strelitz ficou certo que era a única coisa a fazer.

- Residência da Srª Alfred Cartwright - informou uma voz feminina.

- Posso falar com a Srª Cartwright, se faz favor?

- Quem lhe devo anunciar?

- Convento de Santo Anselmo. - Isto seria o suficiente para começar.

- Vou ver se a senhora está em casa.

Seguiu-se uma pausa. Sloan ouviu o ruído de passos a afastarem-se. Soalho de parquet. Depois regressaram.

- A senhora - informou a voz feminina - Não Está em Casa.

- É a respeito da filha dela - explicou Sloan rapidamente.- Julgo que se ela soubesse que...

- A senhora não tem qualquer filha - cortou a voz, desligando imediatamente.

Sloan voltou para o salão. Apenas Crosby se encontrava lá.

- Uma sineta tocou, inspector, e as duas foram-se embora... assim mesmo. Não sabia se o senhor queria que as detivesse.

- Você? Detê-las? - exclamou Sloan agressivamente.- Não podia fazer uma coisa dessas. Agora, ouça uma coisa...

Houve um batimento na porta do salão e o padre MacAuley entrou.

- Ah, inspector, encontrou os óculos?

- Ainda não, senhor - respondeu laconicamente Sloan.

Era já bastante mau investigar uma morte no ambiente desconhecido dum convento sem ter um vigário a andar a pisar os calcanhares duma pessoa. E MacAuley não era o único a querer saber onde se encontravam os óculos da irmã Ana. O superintendente Leeyes daria pela ausência deles num abrir e fechar de olhos e seria um trabalho bastante difícil explicar-lhe que ele e Crosby os tinham procurado por toda a parte.

- Conseguiu arrancar alguma coisa a Lady Macbeth? - perguntou o vigário.

- Confirmámos todas as declarações da irmã Pedro - replicou Sloan tensamente.

- Ela anda a passear no corredor para baixo e para cima a murmurar: "O quê! Estas mãos nunca mais ficarão limpas?" Olhou de lado para Sloan. - Todos os perfumes da Arábia serão incapazes de purificar aquela mãozinha.

- Acha que não, senhor? A Madre Prioresa experimentou um velho remédio do exército.

- Ah sim?

- Descascar batatas.

- Uma mulher às direitas para comandar, a Madre Prioresa - declarou o padre MacAuley sorrindo subitamente. - Ouvi dizer que o parceiro do outro lado do caminho... Ranby, do Instituto de Agricultura, ordenou que os estudantes ficassem lá fechados durante a noite. Todos os festejos devem decorrer nos seus próprios terrenos por volta das quatro da tarde.

- Não posso censurá-lo por isso - observou Sloan.- No ano passado, deitaram fogo ao abrigo da paragem de autocarros e as despesas foram enormes.

- E também estiveram quase a deitar fogo à estação dos correios - recordou Crosby.

- A irmã Policarpo diz que todos os edifícios ardem bem, mas os edifícios do governo ardem melhor - disse o padre.

Sloan pôs-se de pé para se despedir.

- Não creio que a Noite das Fogueiras no Instituto de Agricultura seja coisa que nos diga respeito, senhor.

Nesse ponto estava enganado.

 

Os terrenos ainda estavam húmidos e Sloan sentia-se grato por esse facto. Isso significava que as pegadas que Crosby tinha descoberto não longe da porta da despensa estavam perfeitamente preservadas.

- Dois pares, inspector. - Crosby endireitou as costas. Estavam marcadas por debaixo de um dos rododendros de maior envergadura. - Um deles ficou parado no mesmo lugar durante algum tempo. A terra está bastante mole aqui... - Tirou do bolso uma fita métrica. - De homens...

- Talvez.

- Era o sapato dum homem, senhor...

- Mas seria um homem que o calçava? Não se esqueça que estas mulheres usam todas sapatos de homem, todas.

Crosby mediu a profundidade.

- Se foi uma mulher, era muito pesada.

- Faça um molde e então certificar-nos-emos. - Olhou à sua volta. - Seria um bom sítio onde se poderia postar alguém para vigiar as traseiras. - De onde se encontrava, Sloan podia ver a porta da cozinha, as escadas da despensa, uma magnífica colecção de latas de lixo e uma pequena porta de vidro que, presumivelmente, dava para o compartimento onde estava o jardim-de-inverno. Um largo caminho dava a volta ao edifício até à porta de entrada principal e ao longo dele vinha caminhando agora a encarregada do despertar, a irmã Gertrudes.

- Inspector, a Madre pede-lhe o favor de lá chegar. Ela recebeu uma carta.

- Foi entregue à irmã Policarpo há apenas alguns minutos - informou a Reverenda Madre... por um dos garotos da aldeia por encargo de um cavalheiro que se encontra hospedado no The Buli. Diz na carta que é sua intenção comparecer no convento às quatro e meia desta tarde na esperança de poder avistar-se com a irmã Ana.

- Ah sim? - exclamou Sloan com interesse. - Quem é ele?

A Madre Prioresa entregou-lhe a carta.

- Está assinada por "Harold Cartwright". Um parente, provavelmente.

- Conhece-o? Ele já cá esteve antes?

A Madre Superiora abanou a cabeça.

- Não. Não me recordo de a irmã Ana ter tido alguma visita. A irmã lembra-se?

A irmã Lúcia levantou o olhar.

- Nunca, Madre - declarou.

- Ela ter-se-ia avistado com este homem normalmente?

- Não, se ela não quisesse, inspector. Ou então se eu não permitisse. Às vezes, os visitantes não constituem grande ajuda... especialmente para as jovens postulantes e noviças e, portanto, não é concedida autorização.

- Ele diz aqui que espera que não seja levantado qualquer impedimento à sua visita que é de considerável importância- observou Sloan, citando a carta.

- Para ele - replicou a Reverenda Madre. - Os visitantes raramente são importantes para nós. No entanto, penso que nas actuais circunstâncias o melhor é pedirmos à irmã Policarpo para o acompanhar até ao salão quando chegar.

Chegou pontualmente às quatro e meia, um homem com cerca de cinquenta e cinco anos de idade, vestindo um fato cinzento-escuro. Era bastante corpulento e o seu cabelo começava a ficar grisalho. Não perdeu tempo com rodeios, indo directamente ao problema.

- Sou Harold Cartwright, primo da irmã Ana, e gostaria de avistar-me com ela durante alguns momentos...

- Receio - interrompeu-o a Reverenda Madre - que isso não seja possível...

- Eu sei - apressou-se o homem a dizer - que, provavelmente, ela não quer ver-me nem a ninguém da família, mas trata-se dum assunto de bastante importância. Foi essa a razão por que vim pessoalmente cá em vez de escrever-lhe...

- Quando fez a viagem para cá? - perguntou Sloan. Cartwright voltou-se.

- A noite passada. Hospedei-me no The Buli.

- A que horas chegou?

- Isso é coisa que interesse a...

- Sou inspector da polícia e estou a investigar uma morte súbita.

- Compreendo. - O homem não perdeu novamente qualquer tempo com rodeios. - Cheguei ao The Buli por volta das sete e meia, jantei e bebi um pouco no bar, depois fui para a cama.

- Foi direito para a cama?

- Não. Se está interessado, posso dizer-lhe que fui dar uma volta rápida pela aldeia para apanhar um pouco de ar antes de me meter no quarto.

- Estou a compreender, obrigado.

- Sr. Cartwright - a Madre Prioresa inclinou ligeiramente a touca -, há quanto tempo viu a irmã Ana pela última vez?

- Há quase vinte anos. Fui a outro convento visitá-la. Herseley, acho que era.

- Sim, deve ser isso. Temos uma Casa lá.

- Fui lá para lhe perguntar se precisava de alguma coisa, se podíamos fazer qualquer coisa por ela. - A sua boca ficou um pouco torcida. - Disse-me que tinha tudo quanto desejava e eu vim-me embora.

- Sr. Cartwright, deve estar preparado para um choque.

Ele soltou uma pequena risada.

- Sei muito bem que ela deve ser uma mulher diferente. Ninguém fica na mesma passados vinte anos. Eu próprio não sou o mesmo homem que era, já que falamos nisso.

A Madre Prioresa baixou a cabeça.

- Não tenho qualquer dúvida que grandes alterações foram produzidas em ambos pela passagem do tempo, mas a questão não é essa. Lamento ter de lhe dizer que a morte súbita que o inspector Sloan está a investigar é a da sua prima, a irmã Ana.

Harold Cartwright manteve-se sentado sem se alterar.

- Quer dizer que Josefina morreu?

- Sim, Sr. Cartwright.

- Quando?

- Morreu a noite passada.

- Porquê a polícia?

- Foi encontrada morta ao fundo de um lanço de escadas.

- Um acidente, sem dúvida?

- Assim o esperamos.

- Não poderia ser outra coisa, aqui. Quero dizer, num convento.

- Gostaria de pensar que não - concordou a Madre Prioresa -, mas esse assunto ainda não está resolvido.

Cartwright voltou-se novamente para Sloan.

- Porque é que não poderia ser um acidente? Alguém quereria fazer mal à minha prima?

- Não sei, senhor. Estava com esperança que o senhor pudesse dizer-nos.

- Eu? Não a vi nem a ouvi desde há vinte anos.

- O senhor não é o único parente dela?

- Não. O pai dela, meu tio, morreu há bastantes anos, mas a mãe ainda é viva.

- A Srª Alfred Cartwright, da Praça Strelitz, 17?

- Exactamente. Como soube?

- Os registos do convento - informou laconicamente Sloan.

- Elas não se falavam.

- Deduzi isso.

- A minha tia é uma mulher com um espírito muito decidido. Ficou muito ressentida por a minha prima ter professado. Não creio que ela lhe tenha perdoado.

- Tenho a certeza que ela foi perdoada - intrometeu-se a Reverenda Madre.

- Perdão?

- Pela irmã Ana.

- Oh, compreendo o que quer dizer. Sim, claro. - Não parecia que Harold Cartwright tivesse pensado nesse ponto. Fez um gesto vago com a mão. - Antes de morrer, quer dizer...

- Há muitos anos - observou a Madre Prioresa firmemente.- Não seria possível viver uma vida de verdadeira religiosidade e clausura se não existisse esse perdão.

- Não, claro, compreendo isso perfeitamente.

Sloan tossicou.

- Agora, senhor, talvez queira dizer-nos o que era assim tão importante para o senhor ter de se avistar com ela depois de todos esses anos.

Contudo, isso era qualquer coisa que Harold Cartwright não queria obviamente fazer.

- O quê? Oh, sim, é claro. A razão por que vim falar com ela?

- Sim.

- Bom, não é uma coisa relevante, agora que ela está morta. Apenas um assunto de família, nada mais. Nada que interesse a alguém, agora, como compreende. - Esboçou um rápido sorriso. - A morte põe ponto final em todo esse género de coisas, não é?

- Não - replicou directamente a Madre Prioresa.- Pela minha experiência, não.

- Não? Talvez não, mas altera-as e a verdade é que alterou tudo aquilo de que vinha falar com ela.

Sloan deixou passar aquilo. Era apenas o princípio.

- Vai-se embora de Cullingoak esta noite? - perguntou-lhe.

- Não. Não agora... penso que o melhor é ficar, não acha? - Franziu o sobrolho. - No entanto, há a minha tia. Talvez deva voltar a Londres para lhe comunicar...

- Eu encarrego-me disso - decidiu subitamente Sloan.

- Obrigado - respondeu Harold Cartwright.

Voltou a fixar o olhar na Madre Superiora e observou timidamente:

- Haverá funeral, suponho... é-me permitido participar nele?

A Madre Prioresa acenou friamente com a cabeça.

- Claro que sim, Sr. Cartwright. Mas primeiro ainda vai haver, segundo creio, a autópsia...

Cartwright deu uma rápida mirada ao inspector.

- Para determinar a causa exacta da morte - declarou Sloan.

Era já escuro quando Sloan se dirigiu para Cuilingoak pela segunda vez naquele dia. Havia fogueiras festivas e fogo-de-artifício por toda a parte quando o carro da Polícia rolava pelas ruas de Berebury a caminho do campo, na direcção de Cuilingoak.

- Ande para a frente, homem - resmungou irritadamente quando Crosby abrandou a marcha ao aproximar-se dum cruzamento. Estava sentado ao lado do cabo, com os ombros erguidos, as mãos profundamente enterradas nas algibeiras, a pensar a todo o vapor.

Quando desembocaram na Rua Larga de Cuilingoak, ouviram o toque alarmante da sereia de um carro de bombeiros. Avistaram este a sair duma rua lateral lá à frente, com os bombeiros a calçarem as botas enquanto se penduravam de vários lados do veículo. Este fez uma curva apertada e entrou a todo o gás por entre os portões do Instituto de Agricultura. Crosby rodou atrás dele e entrou na álea logo a seguir.

O fogo ardia à direita deles, longe dos edifícios do instituto. Estava bastante ateado, com as chamas subindo bastante alto na noite. De pé, à volta dele, constituindo uma espécie de círculo votivo, estavam os estudantes. As caras deles sobressaíam na escuridão, num anel branco, com as chamas revoluteantes a reflectirem-se nelas.

Sloan apeou-se do carro num salto e correu para junto dos bombeiros.

- Quero aquele fogo apagado - gritou. - Depressa.

- Ora, ora - disse o comandante dos bombeiros.- É apenas uma fogueira.

- Eu sei - replicou Sloan secamente -, mas quero-a apagada antes que o boneco arda. Isto é um assunto da Polícia, de forma que é preciso actuar com urgência. Quero aquele boneco inteiro, aconteça o que acontecer.

- Vai precisar de sorte - disse o homem por cima do ombro, afastando-se.

Do outro lado da fogueira, alguns rapazes continuavam a alimentar as chamas e Sloan também lhes gritou.

Os bombeiros estavam a estender as mangueiras na direcção do fogo, fazendo-as deslizar por entre os espectadores. Os rapazes dividiam a sua atenção por eles e pelo fogo. Este último atingira agora proporções gigantescas com as chamas a quererem já lamber a figura amarrada no cimo dum mastro.

Houve um suspiro geral da multidão quando a primeira chama dançou em volta dos pés do boneco.

- Depressa - incitou Sloan.

Procurou ver por entre o fogo e a escuridão. Impossível dizer se os tecidos já estavam a arder ou não. Uma língua de chama subiu no ar lá atrás, em direcção da cabeça do boneco. Sloan, já muito perto, mergulhou nas chamas para ir salvá-lo.

Subitamente alguns rapazes à sua esquerda afastaram-se rapidamente para um lado e ele viu uma das mangueiras entrar em movimento.

O ruído da fogueira cedeu lugar ao ruído da água a zumbir sobre as chamas e o aroma agradável da fogueira de lenha foi substituído por uma mistura acre de fumo e vapor. As chamas baixaram.

- Não acerte no boneco, se puder evitá-lo - pediu Sloan ao homem que manejava a mangueira.

- O senhor não está a pedir pouco, governador - replicou o homem, continuando a lançar o jacto de água na direcção que desejavam. - Se ela cair lá de cima no meio disto tudo, era uma vez... Além disso, um pouco de água não lhe fará mal nenhum, pois não? Suponho que estava bastante quente lá onde ela foi posta.

Minutos depois, o comandante dos bombeiros aproximou-se dele com o boneco nos braços.

- O trabalho de salvamento mais idiota que fiz na minha vida, mas aqui a tem.

Sloan ficou a embalar nos braços a efígie molhada e chamuscada duma freira. Havia um par de óculos ridiculamente presos por cima da cara que provocava o riso.

Um homem chegou junto dele.

- Inspector? Sou Marwin Ranby, director do instituto. Lamento muito tudo isto. Num certo sentido, sinto-me um tanto culpado. Compreende, no ano passado...

- Sei tudo a respeito do ano passado - interrompeu-o Sloan bruscamente.

Tinha visto qualquer coisa que o deixara realmente mal disposto: Harold Cartwright.

Marwin Ranby seguiu à frente para indicar o caminho para o seu escritório. Devia andar à volta dos quarenta anos, calculou Sloan, com a cabeça coberta dum cabelo loiro que o fazia parecer mais novo do que era. O escritório era uma sala agradável, com uma lareira a arder num dos topos, um sofá e algumas cadeiras em frente dela. No outro topo encontrava-se uma secretária e estantes cheias de pesados volumes sobre questões agrícolas. Por cima da lareira estava pendurado um Rowland Ward e num canto via-se uma bandeja com uma garrafa de água e alguns copos.

Ranby apontou uma cadeira a Sloan e preparou-se para se sentar noutra.

- Que vai tomar, inspector? Nada? Não se importa se eu beber, pois não? - O seu tom de voz era queixoso.- Não sei o que vai acontecer quando Célia tiver conhecimento disto. Ou a Madre Superiora.

Sloan pousou o boneco no sofá com tanto cuidado como se ele fosse humano. Não ia fazer nada bem ao tecido do sofá, mas Ranby não estava em situação de queixar-se.

- O culpado fui eu - continuou o director. - Mantive-os fechados cá dentro, como sabe, devido ao que aconteceu o ano passado. Tinha esperança que, dessa maneira, poderíamos minimizar qualquer estrago. Poder-se-ia pensar que o velho abrigo da paragem de autocarros era um monumento nacional pela forma como a empresa de transportes se comportou. E veja o que aconteceu. - Olhou fixamente para o boneco e estremeceu. - Vou casar-me no fim do mês na capela do convento, por autorização especial só Deus sabe de quem e vão eles, queimam uma freira numa fogueira na Noite de Guy Fawkes. O que irá dizer Célia, isto é, Miss Faine, como sabe? E o que irá pensar a Madre Prioresa?

Começou a passear para trás e para diante. Sloan examinou o boneco atentamente. O hábito era genuíno e perfeitamente igual ao que usavam as freiras do edifício ao lado. A cara tinha sido feita com uma meia velha cheia de palhoça, com um par de botões pretos cosidos no lugar dos olhos e os óculos seguros por cima deles por meio de uma guita cujas extremidades se iam atar na parte de trás. O resto do hábito estava vestido por cima dum enorme saco completamente cheio de palha comprimida. Não tinha sido feita qualquer tentativa para pôr-lhe uns pés e a figura - rechonchuda e atarracada -tinha uma semelhança notória com a Rainha Vitória dos fins dos Gloriosos Sessenta Anos.

- Suponho que era minha obrigação calcular que ia passar-se qualquer coisa deste género -declarou Ranby depois de um minuto ou dois de silêncio. -Nenhum deles é assim tão novo como isso. Além disso, aceitaram muito bem a questão de ficarem com os portões fechados.

- Quando lhes comunicou isso, senhor?

- No domingo à noite, depois do jantar. -Soltou uma curta gargalhada. -Dei-lhes mais ou menos um dia para maquinarem qualquer coisa. Ela cheira mal, não cheira?

- As chamas chamuscaram-na um pouco.

- Inspector...

- Senhor?

- Não pense que sou curioso, mas como teve conhecimento disto? O senhor está em Berebury, não está?

- Exactamente, senhor. Houve alguém que nos telefonou.

- O diabo é que telefonaram! Quem faria uma coisa dessas? E porquê?

- A pessoa que fez a chamada não disse o nome. Apenas disse pensar que nós devíamos ter interesse.

- Mas porquê? Não é um crime, pois não, queimar um boneco? Ou será considerado um acto de sedição? Ou então um complot contra o papa ou qualquer coisa obscura nesse género?

- Não, senhor, pelo menos que eu saiba.

- Bem, inspector, ainda que não possa censurá-lo por salvá-lo, não tenho a certeza se não teria sido melhor, sob o meu ponto de vista, deixá-lo arder até ficar em cinzas. Depois não haveria qualquer possibilidade de, quer a Casa-Mãe quer o convento daqui, tomarem conhecimento do sucedido. - Acabou de beber o que tinha no copo. - Contudo, suponho que, no final de tudo, a notícia sempre lhes chegaria aos ouvidos.

- O senhor sabe qual dos seus estudantes teria sido o responsável por isto? Refiro-me à ideia, ao arranjo do hábito, etc.

- Não. - O director franziu o sobrolho. - Temos cá dentro cerca de cento e cinquenta homens com mais ou menos uma dúzia de chefes naturais entre eles. O curso dura três anos, mas os novatos só estão cá a residir há um mês, de forma que eu diria que foi certamente um secundanista ou um terceiranista. Esse é o primeiro ponto. Quanto ao hábito... Não me diga que o foram roubar ao convento! - Passou a mão por cima do cabelo. - Isso nunca me teria passado pela cabeça. Mas eles não podiam, inspector. Como é que conseguiriam entrar lá e sair?

- Não sei se o hábito veio de lá ou não, senhor, mas vou saber isso dentro em pouco.

- E eu vou descobrir o homem responsável pelo boneco e levá-lo-ei até ao convento amanhã de manhã para apresentar desculpas. Penso que será melhor eu próprio contar a Miss Faine. É uma rapariga muito devota, como sabe.

- Ela não veio até cá esta tarde?

- Não, graças a Deus. Não, foi a Londres passar o dia para fazer uma prova do vestido.

Sloan pôs-se de pé.

- Obrigado, senhor, foi realmente uma grande ajuda da sua parte. Há apenas mais uma coisa. Esse chefe de grupo. Quero falar com ele pessoalmente, antes de alguém da direcção da escola o fazer. Isso é importante.

- Sinto-me um pouco desnorteado, inspector, mas se é assim que quer, vou identificá-lo e mandá-lo falar consigo.

- Se fizer o favor. O meu cabo já está a ver até onde avançar esta noite.

- Ah sim? - Marwin Ranby pareceu momentaneamente aborrecido, mas depois voltou a sorrir. - Talvez que seja bem sucedido, se bem que eu receie que ambos representemos a autoridade. No entanto, inspector, porque esse interesse por um boneco? Não é normal que a Polícia...

- Não teve conhecimento, senhor? Uma das irmãs do convento morreu a noite passada devido a lesões cujas origens nós não pudemos identificar imediatamente.

- Não! - Baixou o olhar para o boneco vestido de freira em cima do sofá. - Nesse caso temos complicações. Isto torna as coisas muito piores, não é?

- E também mais interessantes, senhor, não acha? Agora, se quiser fazer o favor de segurar a porta aberta, vou pô-lo no carro.

O carro dos bombeiros já tinha partido e alguns rapazes estavam a tentar reacender a fogueira. Crosby apareceu saindo da escuridão próxima e ajudou Sloan a acomodar o boneco no assento de trás do carro da Polícia.

- Não a perca de vista, Crosby.

- Inspector-Salva-Vidas - murmurou Crosby, mas felizmente Sloan estava fora do alcance da voz. Andava aos tropeções por entre as árvores à procura de Harold Cartwright. Foi encontrá-lo no recanto mais afastado em volta da fogueira reacesa e puxou-o para um lado.

- Quero apenas fazer-lhe uma pergunta, senhor. Foi o senhor que nos telefonou por causa deste boneco?

- Eu, inspector? Não. Não... Ouvi falar no assunto lá no The Buli e vim até cá para ver o que se estava a passar. Ter-lhes-ia telefonado assim que vi o boneco, é claro, se não tivesse ouvido a sereia dos bombeiros.

- Claro.

Cartwright dirigiu-lhe um vago sorriso.

- Sinto-me satisfeito por ver que a Senhora-Não-É-Para-Arder. Engraçado que eles tivessem feito isto, não é?

- Muito. - Sloan regressou para junto do carro e subiu para o lado de Crosby. Fungou. - Cheira a queimado... o boneco...

- Não, senhor, sou eu. - Crosby corou na escuridão. - Uma bicha-de-rabear. Um desses brincalhões atou-me ao casaco.

- Apanhou-o?

- Não.

- Esperemos que isso não seja um mau agouro.

 

De regresso a Berebury, Sloan dissecou o boneco com o mesmo cuidado com que o Dr. Dabbe efectuara a autópsia. O superintendente Leeyes foi ter com ele.

- Quem é esse Cartwright? - perguntou.

- Diz que é primo dela, senhor.

- E cai exactamente do céu neste momento a pedir para falar com ela, logo depois de ela ter sido assassinada, quando não a via há vinte anos?

- Sim, senhor.

- Para que queria ele falar com ela?

- Não sei, por enquanto, senhor.

- Informe-se a respeito dele, para começar. Se ele não tivesse ido ao convento esta tarde, havia alguma coisa que o relacionasse com essa mulher?

- Apenas o nome e o endereço no registo do hotel. Não havia necessidade de ser o nome verdadeiro, mas era.

- Nesse caso ele tem uma razão (uma boa razão) para vir cá, Sloan, não tem? De outra maneira, ter-se-ia posto a andar a toda a velocidade. - Leeyes resmungou.- Talvez fosse para se certificar de que ela estava mesmo morta.

- Ou que tinha acertado naquela que queria.

- Se ele tivesse esperado as notícias sobre aquela morte, para tomar conhecimento dela pelas vias normais, podia ter de esperar bastante, é claro. Não há qualquer obrigação da parte das freiras para comunicarem a quem quer que seja, suponho. - Encolheu os ombros. - Chamam àquilo Morte em Vida, de forma que talvez não haja assim uma grande diferença.

- Seja como for, temos uma indicação, o que já é alguma coisa. Vou avistar-me com a mãe dela amanhã de manhã e descobrir também mais qualquer coisa sobre este homem. Já verificámos os passos dele no The Buli. Chegou por volta das sete e meia, demorou uma hora a comer, tomou duas bebidas no bar e depois saiu para um passeio a pé.

O superintendente endireitou a cabeça com um esticão.

- Quando foi que disse que ela tinha sido vista pela última vez em vida?

- Por volta das nove menos um quarto... no fim da missa de vésperas.

- Quando é que ele voltou para o hotel?

- O patrão não deu por isso. Disse que estava atarefado com a multidão do costume.

- Como é ele?

- Não é parvo nenhum.

O superintendente também não era parvo.

- O que estava ele a fazer junto dessa fogueira?

Sloan abanou a cabeça.

- Não sei, senhor.

- E quem foi que telefonou para cá a comunicar-nos?

- Uma voz de homem, sem dúvida, mas isso é tudo quanto a telefonista é capaz de nos dizer.

Leeys apontou para o boneco.

- Alguém queria que nós víssemos isto antes que fosse reduzido a cinzas. Porquê?

- Não sei, senhor. Por enquanto. Há uma coisa: as pegadas que encontrámos não eram de Cartwright.

- Esses óculos, são os que faltavam?

- Também ainda não sei isso, senhor. - Sloan dobrou-os com todo o cuidado. - Vamos ver se têm quaisquer impressões digitais, mas duvido que encontremos alguma coisa que valha a pena. - Tirou o hábito e o véu ao boneco, deixando sobre o banco um enorme saco atulhado de palha. O hábito, bastante chamuscado em alguns pontos, estava velho e remendado. Sloan apalpou o tecido para verificar a sua espessura.

O superintendente Leeyes resmungou.

- Não sou capaz de compreender, Sloan. Essa mulher, a irmã Ana, não estava nua ou coisa no género?

- Oh não, senhor - respondeu Sloan, profundamente chocado. - Aquele lugar não é nada desse género.

- Talvez ela tivesse sido morta com a farda número um - sugeriu Leeyes. - Ou talvez esta brincadeira dos rapazes não tenha nada a ver com o caso e você esteja a desperdiçar tempo, Sloan. Nesse caso - o superintendente espetou o indicador na direcção do hábito - daria a impressão que não é o hábito verdadeiro que está a cobrir o saco, hem?

- Sim, senhor - respondeu Sloan com ar de dúvida.

 

Sloan estava casado há quinze anos.

Há tempo suficiente para ver o ritual da noite da mulher com os cremes de beleza, com paciente indiferença.

Há tempo suficiente para que ela ficasse surpreendida quando ele se meteu na cama ao lado dela e puxou o lençol branco de forma a que lhe cobrisse a cabeça e lho passasse por cima da testa.

- Denis, que demónio estás tu a fazer?

Sloan aconchegou-lhe o lençol por baixo do queixo de forma a tapar-lhe completamente o pescoço e observou-a.

- Isto é tudo quanto se pode ver duma freira.

- Sou da mesma opinião. Que mais queres?

- É engraçado que se possa ter uma ideia duma mulher por este bocadinho que se vê dela.

Ela abanou a cabeça.

- Não acredites nisso, querido. Os homens sempre julgam isso. Não é verdade?

- Assim não se vêem os cabelos brancos.

- Patetice - replicou a mulher sem levantar a voz.- Também não podes ver-me os tornozelos. - Margaret Sloan tinha uns tornozelos muito bem feitos e poucos cabelos brancos.

Sloan largou o lençol e deitou-se de costas.

- Margaret...

- Sim?

- O que é que levaria uma mulher a meter-se num convento?

- Não chamam a isso vocação ou coisa assim? É como ser enfermeira ou professora.

- Nem todas elas podem ter sentido um apelo, pois não? Há lá mais de cinquenta.

- Não sei - observou ela com ar de dúvida. - Talvez já tivessem um espírito de religiosidade e depois aconteceu qualquer coisa que as levou a entrarem para lá.

- Por exemplo, como diria Crosby?

- O facto de ficar só no mundo, penso eu, ou ser traída pelo namorado, ou o homem da vida delas gostar de outra... Esse género de coisa. - Puxou a almofada para a ajeitar.- Ou, antes de mais nada, por não haver lá qualquer homem.

Sloan bocejou.

- Fuga também, não é assim que se diz? Não desejar enfrentar os acontecimentos. Fugir da vida.

- Há sempre esse motivo, suponho.

- Não é essa a minha ideia da vida. O superintendente chamou-lhe a morte em vida. - Sloan puxou para cima o édredon. - Não consigo fazer uma ideia de te ver entrar lá, mulher.

- Oh, não sei - replicou a Srª Sloan.

- Que queres dizer?

- Supõe que te tinha acontecido qualquer coisa depois de termos ficado noivos. O que teria eu feito então, não me dizes? Uma morte em vida não me teria ralado grande coisa nessa altura, não achas?

Sloan voltou-se para a encarar, profundamente desconcertado.

- Eu... eu não tinha pensado nisso.

Ela estendeu-se na cama aconchegando-se com as roupas.

- Mas vou dizer-te uma coisa - observou ela numa voz sonolenta. - Não creio que tivesse dado uma boa freira.

 

O escritório de Marwin Ranby no Instituto de Agricultura parecia quase tão confortável à luz do dia como parecera sob a luz íntima de um candeeiro com quebra-luz na noite anterior. Junto dele encontrava-se uma rapariga. Esta tinha cabelo pálido, dourado, e uma pele delicada, quase translúcida, que frequentemente se harmoniza com esse tipo de cabelo. As roupas que tinha vestidas eram decepcionante-mente, ridiculamente simples e Sloan não se surpreendeu absolutamente nada quando foi apresentado a Miss Célia Faine, a última da sua linhagem, e noiva de Marwin Ranby.

- Tenho estado a contar a Miss Faine alguma coisa do que se passou a noite passada - informou o director.

- Suspeito, no entanto, que nem tudo - observou Célia Faine com um sorriso. Tinha uma voz agradável, sem qualquer afectação. - Marwin está a ser muito discreto, inspector.

- Agrada-me muito ouvir isso, miss - respondeu Sloan.

- Ou devo dizer antes "misterioso"? Faz isso porque pensa que eu fico perturbada. Mas eu sei muito bem que os rapazes fazem todo o género de diabruras. Não seriam rapazes se as não fizessem, não acha? Não creio que as irmãs também dêem muita importância ao assunto se ouvirem falar nele. São muito boazinhas, como sabe... muito equilibradas, se é que compreende o que quero dizer. Uma pessoa sente que elas não se interessam pelas coisas mesquinhas, triviais. Não é como se fosse uma demonstração contra essas coisas ou assim. Ninguém se importou que elas viessem para Cullingoak e nós tivemos de fazer qualquer coisa do edifício. De facto, penso que as pessoas estão satisfeitas num sentido.

- Célia pensa que a santidade delas faz equilibrar as maldades feitas pelos meus rapazes - explicou Ranby alegremente, procurando falar no mesmo tom dela. - Contudo, eu não estou assim tão certo. Até à noite passada, eu não teria pensado que eles até soubessem da existência delas. Ouvimos a sineta delas tocar num dia claro, e isso geralmente provoca uma ou duas piadas sobre a hora do recolher das vacas .. mas nada mais.

- E quanto à noite passada? - inquiriu Sloan.

- Nenhuma novidade, inspector. Ninguém da direcção sabia qualquer coisa sobre o boneco.

- Tem outros meios para descobrir?

- Naturalmente. Posso, se for necessário, falar com todos eles. No entanto, isso leva tempo. Estava a planear apelar para eles esta noite, ao jantar, pois é a primeira refeição em que eles estarão todos juntos. Já verifiquei que nenhum teve autorização de saída na quarta-feira à noite.

- Isso é infalível? A minha experiência diz-me que isso não constitui uma regra.

- Diz-se por aí que a janela do laboratório de biologia pode ser convencida a deixar-se abrir se for aplicada judiciosamente uma pequena pressão no ponto exacto.

- Vou mandar o meu cabo imediatamente lá para procurar impressões digitais.

- Os senhores querem realmente apanhar esse parceiro, não querem?

- Queremos - respondeu Sloan secamente.

A Praça Strelitz era uma praça no sentido que o seu criador georgiano tinha pretendido, conservando ainda um jardim no meio. As casas eram altas, de aparência digna e - mais significativo de tudo - ainda eram habitadas. Sloan e Crosby tocaram a campainha quando eram exactamente dez e meia da manhã seguinte. Uma criada já idosa, de avental, veio atendê-los.

Desta vez, Sloan não mencionou o convento.

- Inspector-detective Sloan - apresentou-se. - Ficaria muito grato se a Srª Cartwright quisesse conceder-me um minuto ou dois.

A mulher percorreu-os com o olhar como que avaliando-os e depois convidou-os a entrarem. Ia ver se a Srª Cartwright se encontrava em casa.

- Uma maneira interessante de fazer as coisas - comentou Crosby.

- Oiça, cabo, você agora está na alta sociedade e não se esqueça disso. Há imenso dinheiro aqui. - Sloan deu uma vista de olhos rápida em volta da sala para onde tinham sido levados. - Quadros, louça da China, mobiliário... tudo.

Crosby apontou para uma cadeira finamente trabalhada.

- É esta a moda, senhor?

- Foi - respondeu Sloan - há uns duzentos anos. É antiga, assim como tudo quanto se encontra na sala.- Apontou para um jogo de pastoras em porcelana de Dresde.

- Deve valer mais que a sua pensão de reforma. Não pense que compraram aquela escrevaninha de nogueira por meia dúzia de escudos ou aqueles pratos...

- Bom dia, inspector. - Uma mulher de idade avançada apareceu no limiar da porta. - Está a admirar os meus Meissen? São encantadores, não acha?

- Bom dia, minha senhora - respondeu Sloan, não se querendo comprometer com Meissen, fosse ele quem fosse.

A Srª Cartwright era velha, de costas direitas e magra. Pousou a mão, que lembrava uma garra, nas costas da cadeira apenas o tempo suficiente para que Sloan pudesse ver a bateria de anéis que havia nos dedos, depois sentou-se. Estava vestida - e muito bem vestida sem qualquer dúvida - de cinzento com alguns toques vermelhos. Sloan perscrutou o seu rosto em busca duma semelhança de feições com as da irmã Ana, mas apenas descobriu uma espessa maquilhagem e as finas marcas de sutura duma antiga operação plástica para esticar a pele. O cabelo dela era cor do mogno e o efeito total da sua imagem bastante perturbante. - Tem qualquer coisa para me dizer, inspector.

- Sim, minha senhora. - Sloan voltou à realidade presente. Ela devia ter mais de oitenta anos e o inspector pensava que tinha más notícias para lhe dar. - Creio que teve um telefonema ontem à tarde, do Convento de Santo Anselmo?

Nem um músculo na cara dela se mexeu.

- E a senhora recusou-se a atender essa chamada.

- Isso é exacto. - A voz dela era mais áspera do que seria de esperar.

- Porquê, minha senhora?

- É alguma coisa que diga respeito ao senhor?

- Receio bem que sim.

- Realmente, inspector, não consigo ver qualquer razão para que...

- A senhora tinha lá uma filha.

A Srª Cartwright pôs-se de pé e encaminhou-se para a campainha que se encontrava sobre a prateleira do fogão de sala.

- Não tenho nenhuma filha.

- Um momento, minha senhora...

Ela parou e fitou-o.

- Não tem nenhuma filha. Mas teve uma.

Ela manteve-se rigidamente direita em frente do fogão de sala e declarou novamente num tom de voz perfeitamente controlado:

- Não tenho nenhuma filha. - Estendeu o dedo para carregar no botão da campainha.

- Srª Cartwright!

- Sim? - O dedo dela estava parado.

- A senhora teve uma filha chamada Josefina Maria.

Um espasmo de emoção perpassou-lhe no velho rosto.

- Inspector, perdi a minha filha há trinta anos.

- Perdeu-a?

- Perdi-a. Ela deixou-me, abandonou tudo.- A Srª Cartwright fez um gesto com o dedo de unha pintada, apontando em volta da sala. - Abandonou tudo. Mais ainda, inspector, o nome dela nunca mais foi mencionado nesta casa desde esse dia até hoje. Agora, se quiser dizer ao que vem ou ir-se embora...

- Quando a viu pela última vez, minha senhora?

- No dia em que saiu de casa.

- Há trinta anos?

- Trinta e um. Ela tinha dezoito anos e meio de idade.

Portanto, a irmã Ana tinha quarenta e nove anos. Não parecia ter essa idade.

- E a senhora não voltou a vê-la depois disso? - Sloan esperava que o seu espanto não transparecesse na voz.

- Nem uma única vez. Tinha-lhe dito que não precisava de esperar que a visitasse. E nunca o fiz.

- Teve... tem mais filhos?

- Ela foi a única, inspector, e abandonou-me. Era uma convertida, claro. Ninguém conseguiu persuadi-la. Ninguém. - Os olhos dela moveram-se numa dança rápida. - Ela queria evitar o Mundo, a Carne e o Diabo, inspector, e conseguiu-o. Quando tinha dezoito anos e meio, sem conhecer nada sobre qualquer dessas três coisas. Espero que ela tenha desfrutado isso, é tudo. Estando emparedada em vida com uma quantidade de outras mulheres a rezar todo o dia em vez de se casar e dar filhos ao mundo. Que fez ela, inspector? Fugiu de lá depois destes anos todos?

- Não, minha senhora.

- Porque se assim foi, não precisa de vir aqui à procura dela. - Havia uma nota de satisfação no tom da sua voz. - Ela não voltaria para aqui, inspector. Posso garantir-lhe isso. Mesmo que fosse o último lugar na Terra.

- Não, minha senhora, não é nada disso...

- Não me diga que ela fez qualquer coisa que não devia! Isso seria difícil de acreditar. Não o imagino a prender por aí muitas freiras, inspector, mas se ela fosse uma delas, devo dizer que extrairia do facto uma certa dose de divertimento. Ela era tão piedosa!

- Vim aqui para lhe comunicar que ela morreu.

A boca cerrou-se-lhe.

- Para mim, ela tinha morrido no dia em que saiu de casa.

- E que, provavelmente, foi assassinada.

- Pobre Josefina - pronunciou ela lugubremente. - No final de contas, não escapou ao mundo cheio de maldade, pois não, inspector?

Regressaram a Berebury onde chegaram à hora do almoço.

- Conseguiu alguma coisa? - perguntou o superintendente Leeyes.

- Não sei - respondeu Sloan. - Não posso dizer que a censure por ter abandonado a casa. Eu também teria fugido. A mãe não a viu mais desde há trinta anos... pelo menos foi o que ela disse.

- Verifique isso.

- Dinheiro e mais dinheiro é o que se vê lá.

A cabeça do superintendente endireitou-se.

- Vê-se lá agora? Verifique também isso, Sloan. Dinheiro é um factor no equacionamento dum crime.

- Sim, senhor. - No Inverno passado, o superintendente tinha frequentado um curso sobre "A Matemática para o Adulto Médio". Este tinha deixado as suas marcas.

- Quem herda?

- Vou saber.

Leeyes fitou-o com os olhos incendiados.

- Podia ser o convento, suponho?

- Não agora que ela está morta. Não é o que se pode pensar?

- Talvez não. Seria interessante saber se ela teria herdado se estivesse viva. A mãe... é velha?

- Muito. E não a constituiria sua única herdeira... pelo menos foi o que pude deduzir da conversa dela.

Leeyes resmungou.

- Podia dar-se o caso de ela não poder ter a palavra decisiva. É viúva?

- É.

- Onde entra o primo Harold?

- Não sei, por enquanto.

- Nesse caso, descubra, homem. Pode ser importante.

- Sim senhor.

- E descubra quem é que lucra, se não for o convento. Isso também pode ser importante. - Tamborilou com os dedos em cima da mesa. - Não creio que consiga saber por alguém do convento que espécie de dote a irmã Ana levou consigo quando professou.

- Dote?

- Bens ou valores em dinheiro ou em espécie que são oferecidos para um contrato de casamento, Sloan. Existe o mesmo costume quando uma rapariga entra num convento. Na Índia são duas vacas ou alguns carneiros. O meu sogro ofereceu-me umas acções sem nenhum valor.

Sloan corou. Havia um par de candelabros de latão que a mulher tinha trazido de casa dos pais, tão feios como o pecado, e que tinham dominado a prateleira do fogão da sala de estar durante toda a sua vida de casado.

- Sei o que quer dizer, senhor. Vou tentar descobrir.

- É claro - acrescentou Leeyes, trilhando agora um caminho diferente - que as desta ordem podem ter feito votos de pobreza perpétua ou qualquer outra idiotice do género.

- Espero que não - observou Sloan piedosamente.- Viria confundir demasiadamente os motivos habituais.

- O quê? Oh, sim, confundiria. Tenhamos esperança que elas não tenham feito uma tal maluqueira.

Sloan voltou para o seu gabinete. Crosby apresentou-se.

- O Dr. Dabbe quer falar consigo, inspector, e há também um recado do convento.

Sloan levantou a cabeça.

- E então?

- Elas perguntam se não lhes podemos devolver as chaves.

 

Uma faca, um garfo, uma colher e um guardanapo não utilizados marcavam o lugar na mesa do refeitório onde a irmã Ana se tinha sentado durante a maior parte da sua vida religiosa. A irmã Micaela e a irmã Damião sentavam-se de um e outro lado do lugar vazio. Uma tinha professado imediatamente antes da irmã Ana, e a outra imediatamente depois. Era a refeição do meio-dia e a Leitora ia prosseguindo a leitura do Martirológico.

As vicissitudes dos primitivos fiéis pareciam não ser nada quando comparadas com as tentativas para se conseguir dar conta do pudim deste dia. Um guisado razoável tinha sido consumido com o mesmo sabor daqueles que haviam sido sempre servidos, mas o pudim era obviamente diferente.

O costume decretava que tinha de ser comido (muitos mártires tinham morrido de inanição - ou envenenados); o credo delas proibia qualquer crítica. Deste modo, cinquenta freiras lutavam contra uma mistura pastosa indefinível a que faltavam os principais ingredientes de um doce.

A irmã Despenseira foi logo para o salão assim que a refeição acabou.

- Madre, espero que não esteja a faltar-me habilidade nem humildade, mas estou a achar inexcedivelmente difícil cozinhar sem os elementos essenciais.

- Não é falta de habilidade, minha filha. Ninguém pode dizer isso.

A irmã Despenseira enrubesceu.

- É quase impossível...

- Nada é impossível, irmã. Pode ser difícil, mas impossível é uma palavra que nenhuma verdadeira religiosa deve usar de ânimo leve.

- Não, Madre. - A irmã Despenseira baixou os olhos. - Peço desculpa...

- Quanto à humildade, não tenho bem a certeza.- A Madre Prioresa contemplou a cozinheira corada e enfadada.- Sentiu que a Comunidade a censuraria pelas faltas que houve no nosso jantar? Se assim foi, irmã, sugiro que examine os motivos que estão na origem das suas queixas. Penso que se os observar atentamente, descobrirá que há neles um elemento de orgulho. Orgulho quanto a um atributo pessoal é assunto perigoso num convento. Todo o trabalho e engenho que aqui há devem ser oferecidos a Nosso Senhor do qual nos vem a força para tudo. O pecado do orgulho não é daqueles que eu esperaria encontrar em si.

A irmã Despenseira, arrependida, caiu de joelhos.

- Peço-lhe perdão, minha Madre. Devia ter pensado nisso.

A Madre Prioresa fez um gesto com a mão.

- Que Deus lhe perdoe, irmã. Na verdade, já mandei um recado por causa das chaves, mas pode acontecer que não as entreguem por enquanto. Compreendo que a polícia tenha necessidade de saber se elas têm qualquer significado.

- Elas não têm absolutamente nada a ver com a irmã Ana - afirmou a irmã Despenseira. - A irmã Lúcia tinha-lhas emprestado apenas naquela noite.

- Eu comuniquei-lhes isso - informou pacientemente a Reverenda Madre - mas enquanto não souberem como foi que a irmã Ana morreu penso que têm uma justificação para as reterem.

A irmã Despenseira levantou-se.

- Sem dúvida - respondeu sobriamente. - Isso é o que interessa. Pobre irmã Ana. Não parece possível que ainda anteontem nada disto tivesse acontecido.

- O dia de anteontem parece já muito distante no tempo. - A Madre Prioresa agarrou no hábito e levantou-o um pouco num gesto preparatório para se dirigir para qualquer parte com a sua habitual velocidade. - Quer fazer o favor de dizer à irmã da sacristia para ir ter comigo à capela e também a irmã Cantora, se a vir por aí?

Sloan pôs-se em contacto telefónico com o Dr. Dabbe.

- A irmã Ana morreu de uma fractura contusa do crânio - informou o médico - causada pela aplicação do tradicional instrumento contundente. Teve também uma fractura post-mortem do fémur direito quase certamente causada pela queda pelas escadas da despensa e ainda diversos hematomas...

- Hema quê?

- Nódoas negras. A maior parte delas também provocadas depois da morte. Nessas condições não há hemorragias, claro.

- Não.

- Eu diria que ela foi atingida por trás e ligeiramente por cima, provavelmente por alguém mais alto que ela.

- Homem ou mulher? - perguntou Sloan ansiosamente, recebendo a habitual tergiversação médica.

- É difícil dizer, inspector. Ela não recebeu uma pancada tão forte que fosse possível ser apenas vibrada por um homem... e, por outro lado, as condições eram especiais. A touca, por exemplo, e a ausência completa de cabelo. Foi uma pancada forte, mas numa boa posição, com um balanço razoável não se poderia pôr de parte a hipótese de ter sido uma mulher, especialmente uma mulher alta.

- Arma?

- O senhor tem de procurar qualquer coisa redonda, lisa e pesada.

Sloan virou uma página do bloco-notas.

- Hora da morte?

- Entre as seis e as sete da noite passada.

- Quando?

- Não posso dizer-lhe com exactidão até ao minuto, como compreende. Ponhamos a coisa assim: ela estava morta há aproximadamente dezasseis ou dezassete horas quando a vi logo depois das onze desta manhã.

- Mas elas jantaram às seis e um quarto e...

- Ela tinha jantado - replicou laconicamente o patologista. - Morreu com o estômago cheio, se isso serve de consolação a alguém. A refeição estava quase toda por digerir. Eu próprio não teria imaginado isso. Demasiadas ervilhas.

Sloan voltou novamente a atenção para o bloco-notas.

- No entanto, ela compareceu a uma ou outra cerimónia religiosa... tenho isso aqui apontado... ah, assistiu à missa de vésperas, às oito e meia.

- Não, se comeu bife e pudim de rins com ervilhas às seis e um quarto - declarou o patologista. - O processo de digestão mal tinha começado. Vou pôr tudo isso no relatório que lhe vou mandar.

- Obrigado. Isso altera algumas das minhas ideias.

- As autópsias normalmente provocam isso.

Sloan pousou o auscultador no descanso com uma expressão profundamente pensativa.

A irmã Policarpo mostrou-se satisfeita, desta vez, com um escrutínio mais rápido.

- Ah, é o senhor, inspector. E o cabo. Entrem. Devem querer ir para o salão, suponho? - Fechou a grade e apareceu pessoalmente no limiar duma das portas. - Por aqui. A Madre Prioresa está na capela mas a irmã Lúcia falará consigo.

Os dois homens seguiram-na até ao salão.

- Suponho que não vê passar muitos homens por estas portas - observou Sloan inquisitivamente.

- O canalizador - disse a irmã Policarpo com relutância. - Não podemos passar sem ele, assim como sem o médico. Este vem visitar a velha madre Teresa.

- E quanto ao Instituto de Agricultura? Não recebeu qualquer visitante de lá?

A irmã Policarpo abanou a cabeça.

- Não, isso não. Rebentos de Satã, é isso o que os estudantes são.

- E quanto ao Sr. Ranby?

- Oh, esse veio cá no outro dia para falar a respeito do casamento. Levei-o até ao salão para falar com a Reverenda Madre e com a irmã da sacristia. Nunca aqui tivemos um casamento, compreende... Penso que o Sr. Ranby também vem à capela, mas, é claro, não o tinha visto antes.

- Porque é que diz "é claro"?

Ela fitou-o com os olhos muito abertos.

- As grades. A toda a largura da capela. Ainda não esteve lá?

- Sim, eu vi as grades.

- Bem, a comunidade senta-se à frente, depois há as grades e é atrás delas que fica o público.

- Portanto, não podem ver as pessoas?

- Claro que não.

-E elas podem ver as irmãs?

- Claro que não. Isso não seria próprio, pois não?

- Portanto, não fazem a mínima ideia de quem é que têm nas vossas costas?

- Só sabemos que são pessoas que vivem na localidade e que vêm cá sempre. Eu abro a porta lateral antes de começar o ofício e depois volto a fechá-la.

- Sempre?

Ela fitou-o directamente nos olhos.

- Sempre, inspector. E eu faço sempre uma ronda para verificar portas e janelas, é a última coisa que faço à noite.

- A que horas é isso?

- Às oito.

Sloan recordou-se que se encontrava em cuecas quando as oito horas tinham batido.

- E Hobbett?

- Esse vem e vai conforme o tempo e o trabalho que tem. Hobbett tem uma chave da porta da casa da caldeira.

A irmã Policarpo fechou a porta do salão atrás deles. Crosby bateu no soalho nu e encerado com o pé e apontou para as paredes lisas.

- Foi uma mudança considerável para a irmã Ana, depois da Praça Strelitz.

- Calculo que tenha sido essa a razão por que veio. A irmã Lúcia chegou ao salão na companhia da irmã Gertrudes. Fizeram uma pequena vénia, depois sentaram-se, com as mãos apertadas uma na outra, no regaço, e ficaram a olhar para ele na expectativa.

Sloan desfez um embrulho de papel pardo que tinha trazido consigo.

- Este hábito. Podem dizer-me qualquer coisa sobre ele?

A irmã Lúcia inclinou-se para a frente e Sloan teve, pela primeira vez, uma boa visão da cara dela. A estrutura óssea era perfeita. Ele não sabia quanto à irmã Ana, mas a irmã Lúcia seria uma figura bastante atraente numa sala de visitas. Tentou imaginar cabelos onde agora apenas se podia ver um véu branco. Com a irmã Gertrudes era mais fácil. Esta tinha uma cara redonda e bem disposta de "boa pessoa", de mestra de jogos num colégio de raparigas, de filha solteirona...

- Sim, inspector, creio que posso. - A voz da irmã Lúcia era sossegada e inexpressiva. - Este é o hábito sobressalente que guardamos no piso inferior. Se alguma irmã quiser ir lá fora trabalhar um pouco na terra, ao voltar pode vestir este depois de pedir autorização para secar o seu próprio hábito na lavandaria. Está pendurado num cabide por detrás da porta. Agora já é muito velho e usado, mas nem por isso deixa de ser uma bênção para nós.

- Obrigado, irmã. Agora, veja isto.

- Os óculos da irmã Ana! - A irmã Lúcia e a irmã Gertrudes benzeram-se ao mesmo tempo.

- Ambas confirmam isso?

As duas freiras acenaram com a cabeça.

- Os óculos dela eram excepcionalmente grossos, inspector- informou a irmã Lúcia. - Penso que ela era o único membro da comunidade com eles assim tão grossos. - A mão dela desapareceu no interior do hábito, depois voltou a emergir. - A maior parte de nós usamos óculos como estes. Para ler e costurar, compreende, mas a irmã Ana tinha realmente uma vista muito fraca. Não conseguia ver absolutamente nada sem os óculos.

- Obrigado, irmãs. Têm sido duma grande ajuda.

Elas responderam a isto com outra ligeira vénia. ("É como estar a falar com dois mandarins chineses", disse Sloan mais tarde.)

- Agora gostaria de comunicar à Madre Prioresa onde foram encontrados.

- Ela está na capela - informou a irmã Lúcia - a tratar da missa de requiem pela irmã Ana. É o Grande Ofício dos Mortos. Quando uma irmã morre de morte violenta há umas certas alterações nas respostas e outras coisas.

Sloan permitiu-se esboçar um sorriso.

- Isso não pode acontecer muitas vezes.

- Pelo contrário, inspector. Cantámos exactamente o mesmo serviço em meados do Verão.

- Ah sim? Por quem?

- Pela irmã São João da Cruz.

- Porquê?

- Foi morta a golpes de catana.

- O quê! Onde?

- Em Ungadina.

Sloan voltou a respirar normalmente.

- Isso é diferente - comentou.

Um pequeno calafrio pareceu percorrer quantos se encontravam no salão.

- Também houve a madre São Teobaldo, logo depois da Páscoa - recordou a irmã Gertrudes timidamente. - Eu era noviça quando ela professou, de forma que me recordo muito bem. Ela morreu na prisão, às mãos dos comunistas.

- Partimos do princípio - acrescentou a irmã Lúcia sossegadamente - que ela tenha morrido de forma violenta, se bem que não tenhamos ainda pormenores exactos.

- Lamento - pronunciou Sloan pouco à vontade.

- E é claro - persistiu a irmã Lúcia-, há membros da nossa ordem que estavam na China. Não temos possibilidade de saber se eles podem ou não ser contados entre os eleitos. - Puseram-se de pé. - Vamos ver se a madre já acabou na capela...

Crosby distendeu-se na cadeira dura.

- Coisa engraçada, senhor. Elas não fazem qualquer pergunta. A maior parte das pessoas havia de querer saber onde é que o inspector tinha encontrado esses óculos e essa coisa para vestir, não acha?

- A não ser que soubessem.

- Não tinha pensado nisso.

A Madre Prioresa regressou na companhia da irmã Lúcia.

- Tem novidades para nós, inspector?

- Não sei se são novidades ou não, Ma, mas pensamos que a irmã Ana foi assassinada.

Sloan teve consciência do corte súbito na respiração da irmã Lúcia, mas a Reverenda Madre limitou-se a acenar com a cabeça.

- Não, inspector, isso não é novidade. O padre MacAuley tinha-me já confidenciado que a irmã Ana tinha morrido duma morte não natural. E também me contou sobre o que se passou com a fogueira da noite passada.

- A irmã Lúcia acabou de identificar o hábito e os óculos da irmã Ana.

- É muito curioso que as duas coisas tenham sido encontradas num boneco no Instituto de Agricultura. Relaciona-as com a morte da irmã Ana?

- Não posso dizer-lho, Ma, nesta altura das investigações. Os óculos eram dela, ela não era capaz de ver sem eles; foi assassinada na quarta-feira à noite e, na quinta-feira à noite, foram encontrados no tal boneco.

- Se - pronunciou lentamente a Madre Prioresa - todo esse episódio do boneco tivesse sido uma manifestação antipapista, nós, como uma comunidade, teríamos tido consciência dos sentimentos hostis a nós. No final de contas, são muito vulgares. As irmãs das nossas outras casas têm tido tais enfrentamentos, mas não sem terem conhecimento dos sentimentos existentes. O ódio é uma coisa que se comunica com muita facilidade. O Sr. Ranby também teria sabido, suponho.

- Absolutamente, Ma. Contudo, alguém levou de cá o velho hábito e os óculos.

A Madre Superiora inclinou a cabeça.

- Daria a impressão que o mundo veio até nós ou que uma de nós foi até ao mundo.

- Voltando à irmã Ana, Ma, pode dizer-me alguma coisa sobre ela? Como pessoa, quero dizer,

A Madre Prioresa esboçou um vago sorriso.

- Nós tentamos com toda a força não sermos pessoas aqui, como sabe. Conquistar o nosso eu e submergir a personalidade fazem parte da nossa batalha diária que travamos connosco próprias na procura da verdadeira humildade. Eu diria que a irmã Ana, que Deus tenha a sua alma em descanso, conseguiu isso tão bem como qualquer de nós.

- Hum... sim, compreendo. - Era óbvio que não compreendia.- Voltemos à sua morte. Alguém poderia lucrar com ela?

- Apenas a irmã Ana.

- A ir...

- É uma parte da nossa convicção, inspector, que todos os verdadeiros cristãos lucram com a morte.

Sloan forçou um sorriso.

- Claro, claro. Mas além da própria irmã Ana?

- Não posso conceber que alguém possa lucrar com a sua morte. No sentido mundano, talvez?

- Suponho que se refere a lucros financeiros? É isso o que as pessoas pensam geralmente.

- Sim.

- A questão de dispor de qualquer valor material seria inteiramente um assunto que apenas diria respeito à irmã em questão.

- A irmã Ana era rica?

- Não faço a mínima ideia, inspector.

- Ela veio duma casa rica.

- Isso nem sempre constitui uma medida.

- Quem poderia saber?

- Apenas a Madre Prioresa no tempo em que ela fez os seus votos.

- E essa foi?

- A madre Helena...

- Já morreu?

- ... de saudosa memória - concluiu simultaneamente a Madre Prioresa.

Aquilo significava a mesma coisa. Sloan estava a ficar frustrado.

- Não há qualquer forma de descobrir?

A irmã Lúcia tossicou.

- Madre, as contas da tesouraria. Podem mostrar qualquer coisa desse tempo. Sabemos a data em que professou. Demoraria um pouco, mas se tivesse sido recebido um dote isso verificar-se-ia nas contas.

- Obrigado - agradeceu Sloan, tomando como certa a concordância da Madre Prioresa. - Isso constituiria uma boa ajuda. E quanto a testamento?

- Isso - informou a Reverenda Madre - é assunto que diz respeito à nossa Casa-Mãe. Não está nas nossas intenções não nos conformarmos com as leis da terra onde a nossa casa se situa.

- Compreendo.

- A irmã Lúcia telefonará para lá a pedir informações.

- Ma, há ainda outra questão que tem estado a atrapalhar-nos. A Ma disse-me que a irmã Ana tinha estado na capela na quarta-feira à noite e que foi essa a última vez que ela foi vista em vida.

- Exactamente. Na missa das vésperas pela irmã Micaela e pela irmã Damião.

- Recorda-se do que comeram ao jantar de quarta-feira?

Era óbvio que não sabia. Voltou-se para a irmã Lúcia, que franziu o sobrolho.

- Não foi um dia de jejum, Madre. Não foi bife e pudim de rins? Acho que foi isso. Sim, tenho a certeza. Com ervilhas e batatas. E depois um pudim de pão e manteiga.

- Obrigada. Sim, recordo-me agora. Isso é importante, inspector?

- A que horas comeram isso?

- As seis e um quarto. Isto é, à hora habitual.

- Nesse caso, foi a essa hora que a irmã Ana comeu?

- Sim, claro.

- Não podia ter-se dado o caso de ela ter jantado mais tarde?

- Não sem o meu conhecimento.

- Que acontece logo depois do jantar?

- Recreio. Desde as sete menos um quarto até às oito em ponto. As irmãs trazem qualquer trabalho de costura ou outra coisa semelhante para a antiga sala de visitas e são autorizadas a andar por aí e a conversarem se lhes apetecer.

- Compreendo - declarou Sloan. Era bom para elas, sem dúvida. - E depois?

- Têm algumas pequenas tarefas a desempenhar: prepararem o refeitório para o pequeno-almoço, verificarem se todas as portas e janelas estão fechadas, limpeza geral do fim do dia e outras coisas nesse género. Quando acabam estes pequenos trabalhos, as irmãs vão para a capela para fazerem as suas meditações até à missa de vésperas, às oito e meia.

- Obrigado, Ma, era isso o que eu queria saber. E a irmã Micaela e a irmã Damião sentavam-se uma de cada lado da irmã Ana na missa de vésperas?

- Exactamente.

- Com o maior respeito que lhe devo, Ma, deixe-me dizer-lhe que não foi assim. O Dr. Dabbe, o patologista, diz-me que a irmã Ana morreu imediatamente após o jantar. A refeição dela estava quase toda por digerir.

Houve um silêncio na sala, depois a Madre Superiora falou:

- Alguém esteve sentado entre a irmã Micaela e a irmã Damião.

- Assim nos informou, Ma.

- Assim me informaram, inspector.

- Onde era o lugar da irmã Ana na capela?

- Na última fila.

- Nesse caso, ninguém mais teria reparado na presença dela?

- Não. Suponho que não. Como já lhe disse, as irmãs entram depois de executadas as suas tarefas e ajoelham até começar o serviço da missa.

- Penso que devíamos ir ver a capela e falar com as duas irmãs.

- Certamente. A irmã Lúcia vai acompanhá-los lá.

A Madre Prioresa ficou sentada no salão vazio, profundamente mergulhada nos seus próprios pensamentos. Quase que não ouviu o leve batimento na porta. Pôs-se de pé mecanicamente.

- Entre!

Era a irmã Despenseira.

- Ele trouxe as chaves, Madre?

A Madre Superiora fitou-a com os olhos muito abertos.

- Sabe, irmã?, esqueci-me completamente de lhe perguntar.

 

O padre MacAuley foi o visitante seguinte a aparecer no salão. Foi a irmã Gertrudes que o acompanhou até lá.

- Foi um trabalhão para poder entrar. A princípio, a irmã Policarpo pensou que eu era da imprensa. Temos de arranjar uma palavra de passe. "Viva a Irlanda" ou qualquer outra frase que seja agradável ao ouvido dela.

- Apareceram aí, esta manhã, dois repórteres e um fotógrafo - informou a Madre Prioresa - mas ela mandou-os embora.

- Foi o que ela me disse. Não sabia se o fotógrafo conseguiu ou não uma fotografia dela antes que ela lhe fechasse a grade na cara. O flash, disse ela, recordou-lhe os belos dias de antigamente na Irlanda. Aparentemente, o último flash realmente bom que ela viu foi no dia em que o I.R. A. fez ir a ponte pelos ares...

- Eu preveni a comunidade - prosseguiu a Madre Prioresa - de que deviam ir lá fora apenas aos pares como precaução para a possibilidade de serem... como direi, surpreendidas, pelos repórteres. Pressinto que vão aparecer mais.

- Realmente, regra geral, eles andam à caça em grupos.

- Houve também aquilo que eu julgo denominar-se um novo desenvolvimento do caso.

- Houve?

- O patologista informou que a irmã Ana morreu imediatamente após o jantar que acaba por volta das sete menos um quarto. A irmã Micaela e a irmã Damião dizem que ela se sentou entre elas na missa de vésperas, às oito e meia.

O vigário acenou com a cabeça pensativamente.

- A imprensa vai gostar disso.

- Eu não, padre. As implicações são muito perturbantes.

Se a irmã Ana estava morta às oito e meia, quem é que se sentou no seu banco na missa de vésperas?

O padre sentou-se pesadamente.

- Não sei. O facto de nós não acreditarmos em... hum... manifestações, dificilmente exercerá influência no público... que não sabe em que acreditar. Esse público e, portanto, a imprensa, adoraria criar um fantasma. Não está a ver os títulos?

A Madre Prioresa estremeceu.

Nos intervalos das inspecções por todo o convento, Sloan recebeu uma chamada telefónica e fez outra pelo aparelho de modelo já fora de moda que se encontrava no corredor. Foram ambas ligações com Londres, mas nenhuma delas revelou grande coisa à Srª Briggs da estação dos correios de Cullingoak, que, na verdade, controlava todas as chamadas.

- Com referência ao seu inquérito - informou a voz de Londres - descobrimos um testamento muito interessante na Somerset House, feito por um tal Alfred Cartwright, pai de Josefina Maria Cartwright. Foi feito há já muito tempo e, na realidade, alguns anos antes da sua morte. Dá a impressão que ele e o irmão Joe eram dois sujeitos muito cautelosos. Fizeram tudo com uns cuidados extremos. Se Alfred fosse o primeiro a morrer, a sua viúva devia receber a parte que a ele cabia na sociedade que tinha com o irmão na Consolidated Carbon, durante o tempo que vivesse. Se ele tivesse filhos, seriam eles a ficarem com as acções da sociedade depois da morte dela. Se ele não tivesse filhos ou se esses filhos falecessem antes dele ou do irmão Joe, nesse caso as acções sobre a patente Cartwright passariam para Joe e depois para os seus herdeiros e sucessores.

- Mantendo a coisa em família - comentou Sloan.

- É esse o espírito da coisa, meu velho. Bom, parece que eles foram andando para a frente com o negócio, mas muito devagarinho... Tudo isto, recorde-se, passou-se logo depois da morte da velha Rainha. Por volta do fim do século passado, começos deste. Depois, subitamente (e sem qualquer aviso ou previsão) Alfred cai de cama e morre. Pneumonia, foi o que foi. Demos uma vista de olhos à certidão de óbito, também, já que estávamos com as mãos na massa e...

- Obrigado.

- Não deixou uma grande fortuna, mas era o bastante para a viúva não ter preocupações. Não se tinham passado muitos anos e dá-se então a Primeira Guerra Mundial e a Consolidated Carbon dos Cartwright começa a fazer dinheiro aos montes. É claro, o nosso Alfred não beneficia nada com isso, visto estar morto, mas o dinheiro continua a acumular-se. Devem ter ficado cheios dele até às orelhas quando a guerra acabou em 1918.

- E o irmão Joe?

- Não há registo de qualquer testamento dele, de forma que, presumivelmente, ele ainda está vivo. Provavelmente fez um testamento recíproco ao mesmo tempo que o irmão, mas, é claro, pode tê-lo modificado depois disso... A propósito, confirmámos a declaração da Srª Alfred Cartwright a dizer que havia apenas uma filha do casamento. É essa Josefina Maria. O marido morreu pouco tempo depois de a criança ter nascido.

- E o irmão Joe?

- Teve um filho cujo nome é Harold. Deve ter agora uns cinquenta e cinco anos.

- Nós já nos encontrámos com o filho Harold. - Um pensamento ocorreu subitamente a Sloan. - Assim, Joe Cartwright deve ter uma idade muito avançada.

- Deve estar praticamente gagá - concordou a voz do outro lado.

- E como está a firma agora?

- Ah, você quer falar com aquele a quem chamamos o editor da City. Eu sou apenas historiador. Fred Jenkins é o parceiro indicado para lhe dar todos os pormenores dessa geringonça. É o único polícia que faz o seu serviço com calças de fantasia e chapéu de coco. E também não usa gabardina. Diz que o guardachuva é muito melhor. Vou dar-lhe o número do telefone dele.

- Muito obrigado - respondeu Sloan. Ligou para ele imediatamente.

- A Consolidated Carbon dos Cartwright? Muito sólida, inspector. Uma firma duma boa família. Um pouco antiquada mas a maior parte das boas firmas familiares são assim. Bem administrada, de qualquer modo. Não têm ideias fechadas, se compreende o que quero dizer. Não estão completamente convencidos de que um computador seja capaz de fazer o trabalho de cinquenta homens, mas se alguém lhes provar isso. eles comprarão o computador e procurarão arranjar maneira de os cinquenta homens não sofrerem com isso.

- É a família que continua a administrá-la?

- Bom Deus, é sim. Harold Cartwright é o presidente. Conhece o negócio de trás para diante e da frente para trás. Aprendeu tudo da maneira mais difícil. Deixe-me ver... Penso que há dois filhos e uma filha. É isso mesmo. A filha casou-se bem. Minas de ferro. Creio que foi isso. Os rapazes frequentaram um bom colégio e uma universidade ainda melhor. O mais velho esteve um ano em Harvard para ver como é que os nossos primos americanos fazem negócios e o mais novo esteve um ano no Rand.

- Você sabe imensas coisas deles de cor.

- É uma das maiores companhias privadas em todo o país, inspector, a razão é essa - replicou Jenkins prontamente.- Estão sempre a receber sugestões nas páginas dos jornais da City para que se abram a uma subscrição pública das acções, mas nunca se decidiram a isso. Constituiriam uma boa aquisição, é claro, é por isso que há um interesse tão grande.

- Penso - observou pausadamente Sloan - que posso dizer-lhe a razão por que se mantiveram privados durante tantos anos.

Não havia qualquer mistificação no tom de surpresa do outro lado do fio.

- Pode?

- Havia uma herdeira universal aqui, num convento em Calleshire. - Sloan sentia-se muito satisfeito por poder dar uma novidade a Londres.

- Então é isso. Que parte lhe caberia?

- Se ela sobrevivesse ao tio, creio que ficaria com metade.

Jenkins assobiou entre dentes.

- Comprar a parte dela constituiria um enorme obstáculo. Não creio que eles tivessem liquidez bastante para efectuarem essa operação. Esse é o grande problema que se depara a esse género de indústria pesada. Por outro lado, se decidissem pôr as acções deles ao alcance do público, deixando a parte dela intocada, seria uma embrulhada dos diabos. Podiam perder o controlo da empresa, como compreende. Complicado.

- Agora já não é assim tão complicado - observou Sloan. - Ela foi assassinada na quarta-feira à noite. Não sei como é que estas coisas se movimentam, mas gostaria de saber se essa questão de a empresa se tornar pública volta a pôr-se.

- Vou meter o nariz aqui pelas casas de câmbios. Pode ser que apanhe qualquer coisa. Onde posso contactar consigo?

- Central da Polícia de Berebury.

Sloan voltou a juntar-se a Crosby e à irmã Lúcia, que saíam da capela. Esta aceitou o dinheiro que ele lhe ofereceu para pagamento da chamada telefónica, sem qualquer embaraço ou hesitação.

- Obrigada, inspector. As contas são para nós um grande problema.

Os três regressaram ao salão.

- Segundo, parece, Madre - informou a irmã Lúcia cautelosamente -, a irmã Ana não trouxe qualquer dote quando entrou na ordem. As contas da tesouraria respeitantes a esse ano não mostram qualquer entrada de dinheiro que pudesse ser dela.

- Obrigada, irmã.

- Pedi que me lessem o testamento dela pelo telefone - continuou a irmã Lúcia. - Foi feito na nossa Casa-Mãe no ano em que ela fez votos. Por ele são legados à nossa ordem todos os bens que ela possuísse aquando da sua morte.

- Qual o montante que pode estar envolvido nisso? - perguntou Sloan casualmente.

A irmã Lúcia fitou-o com ar de espanto.

- Por aquilo que sei - replicou ela - absolutamente nada. A irmã Ana nada trouxe consigo e não tinha quaisquer espécies de rendimentos enquanto cá esteve.

O padre MacAuley tossiu.

- Não estaremos a esquecer-nos dos bens potenciais?

- Que bens potenciais? - perguntou a Madre Prioresa.

- A Consolidated Carbon dos Cartwright. Não é assim, inspector?

- Exactamente, padre. Não sei onde recolheu as suas informações, mas...

- Não se vive na Praça de Strelitz com um rendimento de cinco tostões por semana.

A Madre Prioresa inclinou-se para a frente inquisitiva-mente.

- A irmã Ana tinha qualquer coisa a ver com... hum... a Consolidated Carbon dos Cartwright?

- Tinha sim, Ma. É uma empresa da indústria química que foi fundada pelo tio e pelo pai para explorar um invento deles relativo a um método de combinar carbone com várias outras substâncias para a indústria química.

- Compreendo. - A Madre Prioresa acenou com a cabeça. - Essa era, provavelmente, a fonte de rendimentos da família?

- Sim, Ma. Não sabia?

- Não pessoalmente. A minha antecessora pode ter sido informada pela própria irmã Ana. Não creio - acrescentou delicadamente - que isso nos dissesse respeito, fosse de que maneira fosse.

- Dizia sim - intrometeu-se inesperadamente a irmã Gertrudes. - Sim, madre, podia interessar-nos.

Subitamente, sentindo-se o alvo de todos os olhares das pessoas que se encontravam no salão, a irmã Gertrudes enrubesceu e baixou a cabeça.

- Peço-lhe o favor de explicar, irmã.

- Esses bens potenciais de que falaram era um dinheiro qualquer que a irmã Ana havia de herdar, não era?

Sloan acenou afirmativamente.

- Bem, ela sabia isso. Disse à irmã Damião que o convento havia de recebê-lo um dia e então já poderíamos ter o nosso claustro.

Seguiu-se um silêncio.

A irmã Gertrudes desviou o olhar do inspector Sloan para o padre MacAuley, voltando ao ponto de partida.

- Não sei se seria suficiente para se construir um claustro ou não - pronunciou nervosamente - mas a irmã Damião assim pensou e o mesmo se passava com a irmã Ana.

- Penso - declarou a Madre Prioresa em tom firme - que será melhor falarmos já com a irmã Damião e com a irmã Micaela.

A irmã Damião foi a primeira a chegar. Alta, magra e parecendo muito tesa mesmo sob as pregas suaves do hábito, varreu as pessoas ali reunidas com uma rápida vista de olhos e fez uma reverência à Madre Prioresa.

- O inspector tem algumas perguntas para lhe fazer, irmã. Peço-lhe o favor de lhe responder o melhor que possa.

A irmã Damião voltou um olhar expectante para Sloan.

- Desejaria que fixasse a sua mente nos acontecimentos de quarta-feira passada à noite - começou o inspector rapidamente.- O jantar, por exemplo... que comeram?

- Bife e pudim de rins e pudim de pão e manteiga. A leitura foi o martírio de São Dinis.

- E a irmã Ana sentou-se ao seu lado?

- Naturalmente.

- Falou com ela nessa altura?

- Não é permitido falar às refeições.

Havia um brilho de irritação de dignidade ofendida no olhar dela que Sloan teria gostado de apagar. Em vez disso, perguntou:

- Quando voltou a vê-la?

- Só na missa de vésperas.

- E no recreio?

- Não a vi nessa altura. Estive a falar com a irmã Jerónimo sobre os dizeres que deviam ser escritos nos postais. Estamos autorizadas - acrescentou insofridamente - a conversar durante o recreio.

- Quando foi para a capela?

- Por volta das oito e um quarto.

- A irmã Ana encontrava-se lá nesse momento?

- Não. Chegou muito mais tarde. Pensei que ia chegar atrasada.

- Mas não foi assim?

- Não completamente.

- Falou com ela? - perguntou Sloan, e gostaria de o não ter feito.

- Não é permitido conversar na capela - respondeu inevitavelmente a irmã Damião.

- Reparou em qualquer coisa especial nela?

- Não, inspector, mas nós praticamos o recato dos olhos.

- Recato dos olhos?

A Madre Prioresa inclinou-se para a frente.

- Pode tomar isso como o contrário de observação. É a única forma de adquirir a verdadeira concentração duma religiosa.

Sloan inspirou profundamente. O recato dos olhos não o ajudava absolutamente nada.

- Compreendo - murmurou.

- Houve apenas uma coisa, inspector...

- Sim?

- Penso que ela podia estar com um começo de constipação. Assoou-se várias vezes.

- Quanto ao claustro...

Um brilho completamente diferente apareceu nos olhos da irmã Damião. Alisou uma prega invisível do hábito.

- Sim, inspector, agora já poderemos vir a ter um. A irmã Ana disse que, quando morresse, nós ficaríamos com dinheiro suficiente para construirmos o nosso claustro. Disse-me isso várias vezes. E que também haveria algum para as missões. Ela mostrava grande interesse pelo trabalho missionário.

- Disse-lhe alguma vez de onde provinha esse dinheiro? - inquiriu Sloan.

- Não. Apenas que iria ser devolvido àqueles a quem fora tirado. -A irmã Damião parecia capaz de acompanhar cada observação que fazia com um trejeito de santidade.

- E que então a restituição teria sido feita.

A irmã Micaela era gorda, mais velha e respirava com dificuldade. Não ouvia muito bem. Ofegando um pouco, concordou que a irmã Ana tinha chegado quase atrasada. Fora a última a entrar na capela, pensava. Não tinha notado nada de extraordinário, mas a verdade é que nunca notava. Era um pouco surda, haviam de compreender, e tinha de se concentrar fortemente no serviço para poder acompanhá-lo devidamente.

Mas a irmã Ana estivera lá?

A irmã Micaela pareceu perturbada e ofegou um pouco mais. Um serviço é muito semelhante ao seguinte, inspector, mas ela pensava que conseguiria recordar-se se a irmã Ana não tivesse lá estado, se é que ele compreendia o que ela queria dizer.

No entanto, ela tinha acabado de dizer que a irmã Ana chegara atrasada.

Bem, sim, a irmã Damião tinha-lhe feito recordar isso naquela manhã.

E quanto a ontem de manhã quando a irmã Ana não se encontrava realmente lá? Tinha reparado nisso?

Bom, na verdade, não. De manhã, ela nunca se sentia em boas condições. Precisava de algum tempo para entrar no ritmo normal, se é que ele compreendia o que ela queria dizer. A surdez, se bem que ela soubesse que essas pequenas deficiências eram mandadas para experimentar os fracos e nada eram comparadas com os sofrimentos dos santos e dos mártires, era de facto uma grande provação e levava a um sentimento de inferioridade. É claro, em certos aspectos isso tornava uma pessoa mais fácil de ser recordada, se é que compreendia o que ela queria dizer. Não compreendia. Desistiu.

 

Harold Cartwright recebeu-os nos seus aposentos do The Buli. Parecia ter estado a trabalhar afanosamente. A mesa estava coberta de papéis e havia mais em cima da cama. Havia um gravador de som ligado em cima da cómoda e ele estava a falar para o aparelho quando os dois polícias lá chegaram. Desligou-o imediatamente.

- Queiram sentar-se, senhores. - Desocupou duas cadeiras.- Não é muito confortável, mas é o melhor que Cullingoak tem para oferecer. Não creio que The Buli receba muitos visitantes.

- Obrigado, senhor. - Sloan tirou um bloco-notas da algibeira. - Estamos apenas a verificar a questão tempo e gostaríamos que nos relatasse novamente os seus movimentos na quarta-feira.

Cartwright fitou-o com um olhar penetrante.

- Como lhe disse antes, vim ao volante do meu carro desde Londres...

- A que horas saiu de lá?

- Não sei com exactidão. Por volta das quatro e meia. Queria evitar as horas de ponta.

- Alguém pode confirmar a hora a que saiu de lá?

- Assim o espero - replicou ele com impaciência. - A minha secretária, para já. E o meu director-adjunto. Estive em conferência a maior parte da tarde e saí de lá assim que foram resolvidos os problemas que lá se levantaram. Isso é importante?

- E quanto tempo levou a chegar cá?

Harold Cartwright fez uma careta.

- Muito mais do que tinha pensado. Várias centenas de outros automobilistas tiveram a mesma ideia de saírem de Londres antes das horas de ponta. Entrei no pátio do The Buli alguns minutos depois das sete e meia.

- Três horas? Isso é muito tempo.

- Havia muito tráfego.

- Mesmo assim...

- E não sabia o caminho.

- Ah - comentou Sloan em tom suave. - Há esse factor. Por acaso meteu por alguma estrada errada?

- Não - respondeu Cartwright laconicamente. - Não me enganei no caminho. Mas não tinha pressa. Tinha planeado reservar a noite para mim próprio assim como a manhã seguinte. Não sei o bastante sobre a vida dos conventos para determinar qual a melhor hora para ir visitá-las, mas com os acontecimentos isso não interessou, pois não?

- Esse assunto que o fez percorrer todo este caminho a fim de falar nele com a sua prima, importar-se-ia de nos dizer que assunto é esse?

- Importo sim, inspector - respondeu ele com decisão. - Não lhe direi. Não posso conceber que isso tenha qualquer relação com a morte dela. Era um assunto de família.

- Mas vai continuar aqui?

- Sim, inspector, vou cá continuar. - Ficou sentado, perfeitamente imóvel, uma figura não desprovida de dignidade mesmo num quarto de hotel. - A Madre Prioresa deu-me autorização para tomar parte no funeral de Josefina mas não (como se poderia pensar) para pagá-lo. Aparentemente, o enterro duma freira é uma cerimónia muito simples.

O superintendente Leeyes mostrou-se pouco simpático.

- Já se passaram mais de vinte e quatro horas, Sloan. As probabilidades de um crime ser solucionado diminuem na proporção directa do tempo que decorre depois dele e não, como você poderia pensar, na razão inversa.

- Não, senhor. - Aquilo fora aprendido no "Curso de Matemáticas Para Adultos" ou no "Curso de Lógica".

- E Debbe diz que ela morreu antes das sete e essas mulheres dizem que a viram depois das oito e meia?

- É apenas uma mulher que diz isso, senhor.

- E então as restantes cinquenta?

- Tinham os olhos postos no chão. A irmã Ana sentava-se sempre na fila de trás e, aparentemente, não se pode olhar em volta. Recato dos olhos, chamam-lhe elas.

Leeyes teve um resmungo.

- E então essa mulher que realmente a viu, que estava ela a fazer? A espreitar por entre os dedos?

- Podia estar a mentir - respondeu Sloan cautelosamente.- Não tenho a certeza. E até podia ser maluquinha se fez uma coisa dessas.

- Nenhuma delas pode ser completamente normal, ou acha que pode? - replicou Leeyes com convicção. - Pedirem para ficarem encerradas para toda a vida... Não é natural.

- Não, senhor, mas se alguém, que não a irmã Ana, tivesse comparecido na missa de vésperas, isso explicaria a questão dos óculos, ou não?

- É melhor do que "A-Irmã-Continua-A-Andar" que é o que pensei que me ia dizer.

- Não, senhor, não acredito em fantasmas.

- Nem eu, Sloan - disse secamente Leeyes. - Posso parecer praticamente senil, também, mas não compreendo como é que isso explicaria a questão dos óculos.

- Disfarce - sugeriu Sloan. Durante um tentador segundo, considerou a hipótese de pedir ao superintendente que cobrisse a cabeça com um lenço de bom tamanho para ver se podia passar por uma freira, mas depois pensou melhor. O seu ordenado era muito importante. - Sou de opinião, senhor, que ou não esteve absolutamente ninguém no lugar da irmã Ana na missa de vésperas, ou então esteve lá alguém disfarçado.

- Bem pensado - reconheceu Leeyes contra vontade. - Devia ir comigo às segundas-feiras, Sloan. Aprender um pouco de lógica. E foi o primo Harold que esteve lá?

- Não sei, senhor.

- Se foi, por que diabo não se pôs a cavar? Nós não sabíamos que ele estava cá. Era possível que nunca viéssemos a descobrir.

- Aquelas pegadas não são dele.

- Não está a fazer grandes progressos, pois não, Sloan?

- Não, senhor, desde que o Dr. Dabbe fez o relatório. Pela primeira vez o superintendente mostrou um pouco de simpatia.

- Os médicos são geralmente assim - resmungou ele enfadado. - Tente fazê-los fixar em qualquer coisa e eles classificar-lhe-ão cada simples cláusula de cada frase simples que pronunciarem. Depois, quando a coisa se torna realmente frustrante, eles mostrar-se-ão tão dogmáticos como... como... - baixou os olhos para a secretária, à procura de um termo de comparação e concluiu:-como uma mulher-magistrado.

Sloan ficou a ver o superintendente a afastar-se no carro em direcção de casa e voltou para o seu gabinete. Crosby encontrava-se lá com duas grandes chávenas de chá e algumas sanduíches.

- Então, Crosby, o que é que você aproveitou da história da irmã Damião?

- Alguém queria que nós pensássemos que a irmã Ana ainda estava viva às oito e meia.

- Ah, sim, mas foi a irmã Damião que quis que nós pensássemos isso? Ou foi outra pessoa?

Crosby pegou numa sanduíche e não quis emitir uma opinião.

- E porque é que queriam que nós pensássemos isso?

- Álibi? - sugeriu Crosby.

- Talvez. Ninguém deu pela falta da irmã Ana no recreio, de forma que, presumivelmente, elas podem andar dum lado para o outro mais ou menos à vontade.

- Mais ou menos, senhor - ecoou Crosby sombriamente.

Sloan sorriu. O homem, afinal de contas, tinha sentido de humor.

- Devolveu-lhes as chaves? - inquiriu.

- Sim, senhor. Andei a ver todos aqueles armários delas com a irmã Lúcia e abri-os. Não havia grande coisa lá: artigos de mercearia e outros víveres, mais nada. Não há dúvida que eram um molho pesado de metal. A irmã Lúcia trá-las sempre penduradas à cintura. Ficaram satisfeitas por voltarem a tê-las na sua posse.

- Em que consideração são elas tidas localmente?

- São muito consideradas, senhor. Falei com bastantes pessoas da aldeia. Gostam delas. Não constituem qualquer fonte de problemas. O seu crédito é elevado e pagam tudo a pronto. Vivem com grandes cuidados, não fazendo desperdícios, e fazem a maior parte das compras em Cullin-goak.

- Isso sempre cai bem.

- Também falei com o Dr. Carrett. Mas só pelo telefone. Tinha saído quando fui lá. Quando a irmã Ana foi encontrada, elas chamaram-no ao convento. Ele verificou que ela não tinha caído pelas escadas duma maneira normal e mandou chamar-nos.

- Manifestou-se muito observador, sem dúvida. Você é suficientemente considerado pela encarregada da cantina para que ela nos forneça mais duas chávenas de chá?

Aparentemente, era, porquanto Crosby voltou passados poucos minutos com outras duas chávenas cheias. Sloan pegou num lápis.

- Agora, Crosby, em que ponto estamos?

- Bem, senhor, ontem tínhamos aquele cadáver que nós pensávamos que tivesse sido assassinado. Hoje sabemos que foi assim mesmo. A arma: qualquer objecto duro, mas liso, provavelmente tocado pela irmã Pedro ontem de manhã.

- E que ainda não foi encontrado.

- Sim, senhor. Sabemos que a irmã Ana era também Jjosefina Maria Cartwright e que a mãe disse: "Há muito e muito tempo que não entrou por esta porta." E sabemos também que quando a mãe dela morresse, a irmã Ana herdaria uma grande quantidade de dinheiro.

- Apenas se lhe sobrevivesse, Crosby. Se morresse primeiro, o dinheiro reverteria em favor do tio Joe e dos seus herdeiros, um dos quais está acampado no The Buli por qualquer razão que ainda não nos foi revelada.

- Bem, há dinheiro para alguém em qualquer parte, senhor.

- Mostre-me um caso em que não haja dinheiro envolvido, Crosby, e talvez eu não saiba resolvê-lo.

- Senhor, aquela magrinha, a Damião, sabia que, se a irmã Ana morresse antes do tio, seria este que receberia tudo?

Sloan acenou com a cabeça aprovativamente.

- Essa é uma coisa que eu próprio gostaria muito de saber. Você dá-se conta que só temos a palavra dela a indicar que a irmã Ana, ou alguém que ela pensava ser a irmã Ana, esteve na missa de vésperas às oito e meia? A outra, a irmã Micaela, o que ela disse não constitui qualquer indiciação séria. Dá mais a impressão que foi por ouvir dizer.

Crosby imobilizou-se com a chávena a meio do caminho para os lábios.

- Quer dizer que a irmã Damião podia estar a mentir? - Obviamente, era uma ideia nova para ele.

- Não fique assim tão espantado, Crosby.

- Nunca pensei que elas mentissem, senhor.

- Alguém, em qualquer ponto - observou sarcastica-mente o inspector-, está a esconder-nos a verdade, não acha?

- Oh, sim, senhor, mas nunca pensei que as freiras mentissem.

- Se - continuou Sloan - a irmã Damião sabia que o, convento herdaria uma quantidade grande de dinheiro quando a irmã Ana morresse, ou se pensasse que seria assim, talvez pudesse ter pensado que estava a fazer uma boa obra em favor do convento (e o mesmo se passaria com a própria irmã Ana) ao apressar as coisas. - Acabou de beber o chá e concluiu profundamente: - Quem pode dizer o que farão as pessoas se estiverem encarceradas umas com as outras daquela forma, ano após ano, sem terem qualquer válvula de escape? O que faria você, Crosby, se começasse a ficar farto das pessoas? Diria mais algumas preces?

- Vi uma vez um filme sobre um campo de concentração - informou Crosby, procurando contribuir com alguma coisa para ajudar - onde os prisioneiros mataram um deles apenas porque fungava.

 

Três pesadas pancadas na mesa dadas pela Madre Prioresa no final duma refeição indicavam que ela queria falar à comunidade. Meia centena de caras femininas voltaram-se atentamente na direcção da cadeira abacial. Havia caras redondas, caras ovais, caras cujo formato era conhecido fora do convento (mas nunca, nunca lá dentro) como do tipo de Nossa Senhora, caras gordas, caras magras.

Havia tantas caras a olharem na expectativa para a Reverenda Madre como havia de tipos de mulher-quase - desde a cara limpa e bem recortada da irmã Inácio até ao rosto alegre da irmã Hilda; desde as feições calmas da irmã Jerónimo até à eficiência tranquila da irmã Radigundes, a enfermeira; desde a expressão ainda ansiosa da irmã Pedro até à intensa concentração da irmã Damião.

- Minhas filhas... - O olhar da Reverenda Madre percorreu a toda a volta o escuro refeitório. Já tinha escurecido há muito lá fora e os irrisórios candeeiros eléctricos metidos em esconsos na parede forneciam apenas o mínimo de luz. - Minhas filhas, através dos séculos, aquelas que pertenceram à nossa ordem passaram por muitas provações e atribulações, comparadas com as quais nada são os nossos actuais incómodos. Aquilo que suportamos agora não nos é familiar e desgosta-nos (a intrusão e os interrogatórios são uma anátema para a vida religiosa) mas não nos compete queixar-nos agora ou em qualquer outro momento daquilo que sofremos. - O olhar dela percorreu as filas de freiras. - Quando renunciámos ao mundo, não deixámos automaticamente para trás nem dúvidas nem tristezas. Nem deixámos de ser imunes às leis físicas da causa e efeito. Nem desejaríamos sê-lo.

Uma das noviças, aquela que estava sentada mais perto do pimenteiro, espirrou subitamente. A mestra das noviças inclinou-se ligeiramente para a frente para identificar a culpada.

- A irmã Ana - continuou a Madre Prioresa imperturbável - morreu na quarta-feira à noite, algum tempo depois do jantar, provavelmente no corredor que vai desde o átrio grande até às cozinhas. O corpo dela foi metido na arrecadação das vassouras e, mais tarde, atirado pelas escadas da despensa. Como sabem, ela foi lá encontrada depois duma busca efectuada na quinta-feira de manhã. Estamos em sexta-feira à noite. Gostaria que todas vós fixassem as vossas mentes na noite de quarta-feira e que se recordassem se viram ou ouviram alguma coisa fora do comportamento normal da nossa vida religiosa. - Não fez aqui qualquer pausa, como poderia ter feito, mas antes continuou imediatamente para dizer: - Na quinta-feira à noite, Noite de Guy Fawkes, foi queimada a efígie duma freira numa fogueira feita pelos estudantes do Instituto de Agricultura. Se os acontecimentos se tivessem desenrolado normalmente, eu não estaria a perturbar a comunidade com esta informação, ficando com a convicção de que o incidente teria sido provocado mais pela natureza duma brincadeira do que por uma questão de intolerância, mas o boneco estava vestido com o hábito que está habitualmente pendurado atrás da porta do jardim-de-inverno.

Era evidente que isto era uma novidade para algumas freiras.

- Mais ainda, o boneco tinha os óculos da irmã Ana.

Isto foi como a explosão duma bomba. Cabeças ergueram-se. Olhares graves foram trocados entre as irmãs mais velhas. As mais novas pareciam excitadas ou assustadas, de acordo com o temperamento de cada uma.

- As irmãs não irão ficar, portanto, surpreendidas ao saberem que a polícia pretende conhecer com exactidão os movimentos de cada uma desde a hora do jantar de quarta-feira até se retirarem para as suas celas. Se alguma falou com a irmã Ana depois do jantar ou se tem qualquer outra informação, deve ser-me comunicado a mim e apenas a mim. Estarei no salão até à hora das vésperas. - Fez uma pausa. - A polícia também quer ser informada do nome secular de cada membro da comunidade, a data em que professou e o endereço que tinha antes de vir para o Convento de Santo Anselmo.

 

A sala de jantar do Instituto de Agricultura também era conhecida pelo nome de refeitório, mas as semelhanças acabavam aí. Estava brilhantemente iluminado e havia muito barulho. Cento e cinquenta rapazes saudáveis estavam a chegar ao fim duma refeição abundante. Catorze funcionários estavam abancados a uma mesa assente num estrado, numa das extremidades da comprida sala. Várias criadas estavam a passar pratos sujos a toda a pressa, através dum guichet, para a cozinha, mostrando claramente que, na sua opinião, qualquer refeição que tivesse começado às sete' e um quarto devia terminar por volta das oito horas.

Marwin Ranby, sentado no lugar do meio da mesa principal, deixou que as criadas acabassem antes de se pôr de pé. Os estudantes eram fáceis de acalmar, as criadas muito mais difíceis.

- Meus senhores, na sua curta existência, este instituto adquiriu a reputação de praticar ultrajes na noite em que se comemora o fracasso da Conspiração da Pólvora...

Ouviram-se alguns risos.

- Habitualmente, os prejuízos podem ser reparados com a utilização duma mercadoria simples. O dinheiro.

Mais risos.

- E desculpas, é claro.

- Viva o velho Ranby - gritou um dos estudantes. Ranby mostrou um fraco sorriso.

- Bem, desta vez não há vivas para ninguém. Fica assente desde já que, se as coisas tivessem decorrido normalmente, podíamos ter-nos ficado com um simpático pedido de desculpas à Madre Superiora e com uma contribuição ainda mais simpática para os fundos do convento...

Resmungos vários.

- Desta vez a questão é muito mais séria...

Mais resmungos.

- Ontem como sabem muito bem, foi o dia cinco de Novembro. Na noite anterior, quarta-feira, uma freira morreu no convento. A polícia que, como sabem, executou um excelente trabalho.de salvação do boneco...

Gargalhadas entrecortadas por vaias.

- A polícia - continuou Ranby com firmeza - disse-me que aquele hábito veio do convento, provavelmente no mesmo dia em que a freira morreu. Bom, eles não estão a acusar seja quem for de estar implicado nesta morte mas têm necessidade de saber quem foi que esteve no convento, como é que entrou lá e quando. Penso que todos podem compreender isso. - O seu olhar percorreu rapidamente os rostos voltados para si. - Portanto, estou a pedir aos responsáveis, sejam lá quantos forem os que deram uma ajuda no caso, para se apresentarem no meu gabinete às nove horas desta noite.

 

Célia Faine encontrava-se no gabinete do director com Marwin Ranby quando Sloan e Crosby chegaram. Uma criada tinha acabado de pousar uma bandeja em cima da mesa com uma cafeteira fumegante e chávenas.

- Entre, inspector, entre. Como vai a caçada?

- Está a aquecer lindamente, senhor, obrigado.

Ranby fitou-o com ar pensativo.

- Sinto-me satisfeito por ouvir isso. E eu também tenho boas notícias para si. Apanhámos os culpados que fizeram o boneco. - Voltou-se. - Célia, minha querida, queres fazer as vezes de anfitriã enquanto eu falo ao inspector no Tewn e nos outros?

Célia Faine sorriu e pegou na cafeteira.

- Não te mostres demasiado severo com eles, está bem? São bons rapazes e eu tenho a certeza que a intenção deles não era maldosa.

Ranby franziu o sobrolho.

- Não, não creio que tivessem más intenções, mas não se pode ter a certeza. William Tewn é o cavalheiro que os senhores procuram, inspector. Por aquilo que me é dado saber, foram três os que estiveram metidos no esquema: um terceiranista chamado Parker, e Tewn e Bullen que são secundanistas. Parker é o mais inteligente dos três, suficientemente inteligente para organizar a expedição sem ele próprio correr qualquer risco. Bullen e Tewn saltaram por cima da sebe para os terrenos do convento, na quarta-feira à noite, enquanto Parker ficava de vigilância. Bullen foi até ao muro exterior do edifício, enquanto que Tewn entrou lá mesmo. Depois saiu trazendo o hábito.

- Um momento, por favor. Como descobriu isso?

O director soltou uma gargalhada forçada.

- Eles... hum... entregaram-se, por assim dizer, respondendo ao meu apelo depois do jantar desta noite. Acabei há bocadinho de falar com eles. Ficaram à espera no gabinete do meu secretário para o senhor lhes falar.

- Açúcar? - Célia Faine entregou em volta com gestos experientes as chávenas de café. Sloan viu que ela seria uma grande ajuda para o director, demasiado eficiente.- Diga-me, inspector, onde pensa que eles guardaram o boneco até quinta-feira à noite?

- Eu sei a resposta a essa pergunta - informou Marwin Ranby um pouco secamente. - Num dos currais das vacas. Foi aí que eles o fizeram com palha e um saco velho. Tinham já preparada a lenha da fogueira. Eu não tinha posto qualquer objecção a que fizessem uma fogueira decente, compreendem...

- Ninguém pensa que a culpa foi tua, querido - interrompeu-o ela meigamente.

- No entanto - continuou Ranby mais filosoficamente - suponho que devia ter pensado que poderia acontecer qualquer coisa deste género... de qualquer modo, não gosto nada disto. Do que eu gostaria, inspector, era que a primeira coisa que aqueles rapazes fizessem amanhã de manhã fosse irem pessoalmente ao convento apresentar desculpas à Madre Prioresa e à comunidade. É o mínimo que nós podemos fazer...

- Certamente, senhor - concordou Sloan apaziguador. Ranby tinha boas razões para querer manter-se do lado direito da Reverenda Madre. - Se assim o desejar... Não vejo que isso possa fazer qualquer mal.

Mas, uma vez mais, estava enganado.

Os estudantes Parker, Bullen e Tewn não se apresentavam demasiado consternados ao saberem que Sloan e Crosby mostravam interesse pela sua expedição.

- Foi apenas um grande azar termos escolhido uma noite em que uma das freiras se deixou assassinar - resmungou Parker. - De outra maneira, teríamos todas as probabilidades de nos safarmos da coisa sem complicações.

- Tem de admitir que foi uma boa piada, inspector.- Tewn era um rapaz de cara fresca, com cabelo ondulado e algumas sardas que lhe haviam ficado da infância. - Especialmente com o velho Ranby... com o director a ir casar-se no convento no fim do mês. Era mesmo uma coisa gira.

Havia muito, muito tempo que a ideia de Sloan sobre uma boa piada tinha sido uma coisa assim tão primitiva.

- E? - inquiriu sem entusiasmo.

- Bem - prosseguiu Tewn. - Foi tão fácil como comer um pastel, não foi?

Os outros dois concordaram com um aceno de cabeça. Bullen, um rapaz bem constituído, de falas mansas declarou:

- Absolutamente nenhuma dificuldade.

- Ora vamos - comentou Sloan secamente. - Como é que fizeram? Tocaram à porta principal e pediram um hábito que estivesse sem serventia?

- Não, entrámos pela porta das traseiras - informou Tewn prontamente.- Isto é, aquela que dá para a despensa.

- E limitaram-se a abri-la, suponho. Sem baterem.

- Sim - concordou Tewn em tom suave. - Sim, foi exactamente isso que fizemos.

- A que horas foi essa excursão?

- Por volta das nove e meia da noite de quarta-feira.

- E esperam que acredite que essa porta não estava fechada à chave?

- Oh, sim - respondeu Tewn enfaticamente. - Mal pousei a mão na porta, ela abriu-se.

- E o hábito?

- Estava lá.

- À vossa espera?

As sardas de Tewn ficaram vermelhas.

- Exactamente.

- E você limitou-se a pegar nele e a vir-se embora?

- Exacto. - Tewn apontou um dedo para Bullen. - Só estive lá dentro meio minuto, não foi?

- Ainda menos, talvez - declarou Bullen. - Como eu disse, não houve nenhum problema.

- Nenhum problema! - ecoou Sloan irritado. - Aí é que vocês estão enganados. Há imensos problemas.

- Mas se o Tewn só esteve lá dentro meio minuto e o Bullen confirma isso - observou o terceiro estudante - não podem ter qualquer coisa a ver com a tal freira, ou podem?

Sloan voltou-se para ele.

- Você é o Parker, suponho? Bem, há apenas uma falha no seu raciocínio. Como é que sabe que os dois não estão a mentir? Suponhamos que você me diz onde se encontrava nessa altura?

- Aqui, no instituto - respondeu Parker.

- No laboratório de biologia, suponho?

Parker corou.

- Sim, por acaso estava aí.

- Tem alguma testemunha para provar isso?

- Não... não. Não creio que alguém me tenha visto lá.

- Bem, nesse caso... - Sloan deixou a frase inacabada enquanto os seus olhos observavam os três rapazes.- Assim, os três planearam o roubo do hábito, não foi? E levaram a cabo a operação de acordo com o plano e sem qualquer dificuldade?

- Exactamente - respondeu Tewn. - Não vimos vivalma.

- Depois de se terem apoderado do hábito, que fizeram?

- Bullen e eu trouxemo-lo connosco. Guardei-o no meu quarto até ontem de manhã e depois fizemos um boneco para lho vestirmos. Foi fácil-comentou Tewn engenhosamente - porque as freiras não têm uma figura que se distinga muito bem, pois não?

- E os óculos? - inquiriu Sloan em tom coloquial.- Onde os encontraram?

- Que óculos? - perguntou Tewn.

- O boneco que foi salvo das chamas tinha óculos - disse Sloan impacientemente. - Donde vieram eles?

Parker acenou com a cabeça.

- Assim era - concordou. - Estavam postos nela... isso, quero dizer, estavam nela quando a transportámos para a fogueira.

- Não vi nenhuns óculos - afirmou Tewn. - Pusemos dois botões a fazerem as vezes dos olhos.

Bullen excitou-se.

- Ela estava com óculos quando Parker e eu a fomos buscar para a fogueira. Pensámos que tinhas sido tu a pô-los lá, Tewn... pareciam antigos e indicados para o boneco.

- Eu não - teimou Tewn. - Não voltei ao estábulo depois de termos feito o boneco de manhã. Estava nas pocilgas dos porcos, recordam-se? Tivemos uma ninhada de leitões às seis e meia e eu quase que ia perdendo o jantar.

- Pensei que tinhas fanado algumas cangalhas velhas à governanta - informou Parker.- Ela usa umas que são mesmo iguais àquelas.

Ranby tinha razão: Parker era o mais inteligente dos três.

- Portanto, não os trouxe do convento, juntamente com o hábito? - inquiriu Sloan.

- Oh, não - apressou-se Tewn a responder. - Além disso, nós não teríamos sabido que andavam à procura deles, pois não?

- Tal como sabiam que também não procurariam o hábito? - sugeriu Sloan suavemente. - E tal como sabiam que a porta se abriria quando vocês a empurrassem...

As sardas de Tewn ficaram novamente vermelhas, Parker pareceu taciturno e Bullen impassível. Os três mantiveram-se silenciosos.

- Se, por acaso, qualquer um de vocês os três se recordar de como aconteceu que aquela porta da despensa estivesse aberta para vocês lá entrarem na quarta-feira à noite, e como aquele velho hábito por cuja falta ninguém daria se encontrava mesmo ali para ser apanhado, talvez queiram fazer o favor de me dizer. Podia ser, já que estamos a falar nisso, no vosso próprio interesse, se é que me estão a compreender.

Sloan e Crosby voltaram para o gabinete do director. Célia Faine estava sentada junto da lareira. Sorriu-lhes.

- Cá está o inspector novamente. Como achou esses pequenos criminosos do Marwin?

- Culpados, assim o espero - observou Ranby. - Não creio que houvesse qualquer dúvida de que foram eles que tiraram o hábito do convento?

- Absolutamente nenhuma, senhor. Eles confessaram isso.

- Foi a ideia deles duma boa piada, suponho.

- Exactamente, senhor, mas afirmam que não tiraram de lá os óculos... aqueles que tinham sido postos no boneco, lembra-se?

- Sim, inspector, lembro-me. Não é costume meu esquecer-me, mas não sei quem vai poder ajudá-lo nesse ponto.

- O senhor.

- Eu? - Ranby parecia sobressaltado. - Como?

- Informando-me de quem podia ter acesso aos estábulos das vacas durante o dia.

- Estábulos das vacas? - A fronte desanuviou-se-lhe.- O boneco... é claro. Mas, qualquer pessoa, suponho. Há todos aqueles que vão lá proceder à ordenha e os que vão fazer as limpezas e ainda aqueles que estão a aprender os cuidados a ter com o leite. E há também as pessoas que pertencem ao Conselho de Gestão da Comercialização do Leite. Um número considerável em cada dia.

- Os estábulos nunca são fechados à chave?

- Duvido mesmo que haja qualquer chave - respondeu Ranby. - Não há lá nada para roubar, compreende...

- Portanto, qualquer pessoa poderia ir até lá a qualquer hora do dia sem atrair as atenções?

- Qualquer pessoa do instituto, evidentemente. Não sei sobre estranhos. O veterinário vem cá frequentemente, assim como alguns inspectores esquisitos... do Ministério, claro.

- Estou a ver. Obrigado. Penso que é tudo quanto necessito de saber por agora. Boa noite, miss, boa noite, senhor... desculpe ter vindo incomodá-lo a uma hora tão tardia...- À porta, voltou-se e olhou para trás. - Esses seus estudantes... têm autorização para irem à aldeia?

- Oh, sim, inspector, mas têm de cá estar às nove num dia de semana e às dez e meia no fim-de-semana. É cedo, eu sei, mas também nos levantamos muito cedo. Se eles pretendem vir a ser produtores de leite, podem ir-se já acostumando a essa vida, é assim que nós o entendemos.

Hobbett vivia numa casita de aspecto arruinado mesmo ao lado da Rua Larga de Cuilingoak. Nem ele nem a mulher se mostraram satisfeitos com a visita de Sloan e Crosby. Os dois polícias foram conduzidos até à cozinha. Não estava limpa. Uma pilha de pratos sujos tinha sido levada até ao lava-louças, mas aí ficara intocada. Partes de um pão antigo e de outro fresco estavam em cima da mesa ao lado de duas canecas sujas. Havia duas cadeiras junto do fogão. A Srª Hobbett acomodou-se numa delas, que imediatamente se revelou ser de balouço. Ela balouçou-se para trás e para a frente, sem perder de vista os dois polícias.

- Apenas mais algumas perguntas, Hobbett - começou Sloan amigavelmente.

- Então?

- Estamos interessados nessa sua chave do convento.

- Que tem ela?

- Para começar, onde a guarda?

Hobbett espetou o dedo polegar na direcção da porta das traseiras.

- Ali, num prego.

- Está lá agora?

- O senhor tem olhos, não tem? Claro que está lá.

- Está sempre lá?

- Excepto quando está no meu bolso.

- Nunca a empresta a ninguém?

- Eu? Para quê? Já se viu alguma pessoa que queira entrar num lugar daqueles? Nunca. E é minha opinião que algumas das que estão lá dentro, estariam muito melhor cá fora.

- Seja como for, você sempre fecha a porta de lá à chave todas as noites?

Hobbett franziu o sobrolho.

- Fecho, sim, compadre. Todas as noites.

Sloan manteve-se silencioso na viagem de volta a Berebury e Crosby não conseguiu determinar se ele reflectia ou se dormitava.

- Hobbett é a melhor aposta - pronunciou Sloan subitamente.

Reflectia, afinal.

- Sim, senhor.

- Ele podia ter entrado naquele jardim-de-inverno sem que parecesse estranho, levando de lá para a despensa o velho hábito. Depois, tudo quanto tinha a fazer era deixar a porta apenas encostada antes de voltar para casa.

- E aquele dragão da porta...

- A irmã Policarpo.

- Ela não verifica essa porta?

- Não tem necessidade disso, Crosby. A porta que dá comunicação da despensa com o convento propriamente dito está sempre fechada à chave. A Madre Superiora assim o disse.

- Nesse caso, porque não se limitou ele a trazer o hábito?

- Ele? Se o apanhassem a fazer uma coisa desse género, perdia logo aquele rico emprego que lá tem. Não seja pateta. Veja as coisas desta maneira: Tudo quanto ele tem a fazer é transportar um velho hábito do jardim-de-inverno, ou lá como é que se chama, para o lugar onde trabalha. Não há aí nada de criminoso.

- E depois dar a chave àqueles rapazes?

- Dar nada, homem. Esquece-se apenas de fechar a porta à chave, só isso. Também não há nada de criminoso nisso. "Lamento muito, irmã. Devo ter-me esquecido completamente. Nunca mais voltará a acontecer." Isto é, se elas viessem um dia a saber, pois havia muitas probabilidades de tal não acontecer. Além disso, dessa maneira, Tewn, Parker e o outro, como é que ele se chama...

- Bullen.

- ...ficariam todos satisfeitos por poderem ir eles próprios lá dentro. Muito mais emoção, diabos os levem. Heróis, provavelmente é isso que pensam que são. Homens valentes. Estiveram dentro dum convento. Qualquer coisa que poderão contar aos netos. Pergunto a mim mesmo o que ganhou Hobbett com isto?

- Algumas bebidas? - sugeriu Crosby.

- E - continuou Sloan, prosseguindo ainda na mesma linha de pensamento - não pensou que isso pudesse trazer qualquer problema pois sabia que eles não poderiam passar dali.

- Porque a porta da despensa está sempre fechada à chave - replicou Crosby. - Acho que isso é um ponto, que diz, senhor? Quero dizer, antes de mais nada, quem abriu a porta da despensa?

Sloan resmungou.

- Pode ser que ainda façamos de você um detective, Crosby. Quem pensa que a abriu?

Crosby mostrou-se desanimado.

- Não sei, senhor.

- Nem eu - ripostou Sloan laconicamente. - O facto é que foi aberta lá de dentro.

- Isso limita um pouco o campo de operações, não é, senhor?

- Acha que sim, Crosby?

- Bem, não se pode imaginar qualquer pessoa a andar lá dentro, pois não?

- Não.

- Bom, nesse caso...

- Está a esquecer-se da mulher de César, Crosby.

Crosby meteu uma mudança para se conceder a si próprio um pouco de tempo.

- Quem, senhor?

- A mulher de César. Está acima de qualquer suspeita.

 

No princípio, a manhã de sábado revelou-se um dia rotineiro.

Harold Cartwright recebeu no The Buli uma quantidade enorme de correspondência e gastou muito mais do que os habituais três minutos a falar com Londres pelo telefone. A Srª Briggs da estação dos correios de Cullingoak teve um trabalho duro para tomar conta das chamadas dele e, ao mesmo tempo, atender os clientes habituais dos sábados de manhã.

O sector do Instituto de Agricultura que fora destacado para os serviços da manhã, levantou-se e começou a desempenhar as tarefas, lamentando ter nascido para a terra e ter casado com a terra, invejando a vida dos homens da cidade que nunca têm de se levantar muito cedo e que, aos sábados, nem sequer precisam mesmo de sair da cama.

A vida no convento continuou com toda a normalidade. A irmã Gertrudes acordou a comunidade à hora determinada e todas as irmãs começaram a desempenhar as suas tarefas imutáveis, sempre as mesmas. Com uma diferença. Cada irmã tinha de escrever numa folha de papel o seu nome secular e endereço, data em que professara e a localização exacta da sua pessoa imediatamente após o jantar de quarta-feira à noite. Apenas a velha Madre Santa Teresa, para quem todos os dias eram iguais, achou isso difícil.

Foi também pura rotina o começo do dia na esquadra da Polícia de Berebury. O superintendente Leeyes mandou chamar Sloan assim que chegou ao seu gabinete. Estava com a má disposição das manhãs. Também isso era rotina.

- Já viu os jornais? - Leeyes apontou uma fotografia verdadeiramente sepulcral da irmã Policarpo por detrás das grades, apanhada pelo flash da câmara com os olhos fechados e a boca aberta. Por baixo dela havia uma fotografia muito mais sofisticada tirada de muito longe, com lentes telescópicas, do exterior do convento por entre as árvores. O efeito era realmente sinistro.

- O seu inquérito prossegue, Sloan, é o que eles dizem que você está a fazer.

- Sim, senhor. - Sloan inclinou-se para ler a reportagem. Era um polícia demasiado bom para desprezar quaisquer factos que os jornalistas pudessem revelar. Além disso, comparativamente, eram homens livres - não tinham de obedecer a regulamentos policiais.

Não havia grande coisa no jornal. Uma notícia breve de que uma freira (nome não mencionado) tinha morrido no Convento de Santo Anselmo em Cullingoak (uma curta notícia histórica sobre a Ordem e a sua Fundadora - ver qualquer livro sobre o assunto), antigamente a mansão familiar dos Faines (três parágrafos sobre a família Faine tirados do guia mais à mão sobre a Fidalguia Rural) e aquilo que lhes apetecia chamarem uma coincidência espantosa- o sacrifício pelo fogo dum boneco a imitar uma freira logo na noite seguinte - no Instituto de Agricultura vizinho (administrado pela Câmara de Calleshire, director, Sr. Ranby, antigo director-adjunto da escola de West Laming). O Sr. Ranby, dizia a reportagem, não estava disponível no instituto para comentar o assunto. "Homem esperto", pensou Sloan. Seguia-se depois uma narrativa muito circunstanciada da queima do boneco por "um estudante" que preferia não revelar o seu nome. A história terminava com algumas generalidades sobre brincadeiras de estudantes e com a informação de que um inquérito teria lugar na próxima segunda-feira de manhã, em Guild-hall, Berebury. Sloan endireitou-se.

- Podia ser pior - comentou.

Leeyes resmungou. Não gostava da imprensa.

- Espere até saírem os de domingo. Especialmente se souberem dessa questão do tempo.

- Ou do trio que se apoderou do hábito. Não há dúvida que fariam uma rica fotografia. A propósito, senhor, as pegadas que Crosby descobriu eram de Tewn e de Bullen. Crosby limitou-se a fazer a verificação. Bullen ficou debaixo dos rododendros enquanto Tewn foi à despensa buscar o hábito. Foi isso que eles nos disseram e as pegadas estão de acordo.

- Não são de Harold Cartwright?

- Não, senhor.

- Não sou capaz de compreender o que diabo está ele aqui a fazer, Sloan.

- Não sei o que está a fazer, mas não há dúvida que está a trabalhar - declarou Sloan. - Tenho um homem que não o perde de vista. Uma quantidade enorme de papéis escritos, chamadas telefónicas, gravações, etc.

- Terá muita sorte se conseguir chegar a qualquer resultado dessa maneira. Eu nunca consigo. Uma reflexão calma é aquilo que faz marchar as coisas, Sloan. Há mais coisas forjadas por... hum... um pensamento calmo do que você poderia imaginar.

- Sim, senhor.

- Pensamento lógico, é claro, Sloan.

- Claro, senhor.

- Há um aspecto deste caso em que tenho estado a pensar muito...

- Sim, senhor?

- Essa arma de que Dabbe fala...

Sloan acenou com a cabeça.

- Disse que era qualquer coisa lisa, redonda e pesada.

- Isso descreve um pesa-papéis e uma bala de canhão - observou o superintendente irritadamente. - Nós ainda o não encontrámos, pois não?

- Ainda não, senhor. - Sloan gostou do "nós" - Fizemos uma busca na quinta-feira de manhã, mas não encontrámos nada. Aquela irmã Pedro não foi aquilo que se possa chamar uma boa testemunha. Em primeiro lugar, estava muito excitada. Jurou que nos tinha mostrado todos os sítios onde tinha estado, e isso não foi muito excitante, mas nenhum sinal de qualquer instrumento sem arestas.

- Tem que ter lá estado, Sloan.

- Tinha que ter lá estado quando ela lhe tocou, senhor. Crosby e eu não o vimos. Fomos lá dar uma vista de olhos depois disso, quando ela se foi embora para ir contar as suas desditas a outra pessoa qualquer, mas não conseguimos encontrar a mínima pista.

- Limita um pouco o campo das investigações, não é? - observou o superintendente Leeyes, tal como Crosby o fizera.

- Não vejo porquê - replicou Sloan obstinadamente.- Alguém tinha apenas de saber que aquilo... fosse lá o que fosse... estava lá, não é assim? A coisa vem a dar no mesmo.

Leeyes recostou-se na cadeira.

- Ah, portanto, pensa que foi um trabalho feito do exterior, hem?

Sloan abanou a cabeça.

- Não sei, senhor. Por enquanto. Tenho um espírito aberto.

- Ah tem? - Leeyes fitou-o atentamente. - Espero que não queira dizer vazio.

- Não, senhor. Pelo contrário, as possibilidades continuam a ser infinitas.

O conceito de infinito tinha já sido estudado no curso de lógica que o superintendente estava a frequentar. Era agora uma palavra que ele tratava com respeito e que já não compreendia. Deixou que o inspector chegasse à porta.

- Sloan...

- Senhor?

- Sabe de que são feitos os hábitos das freiras?

- De lã, suponho, senhor.

- Ah, mas que espécie de lã?

- Não sei dizê-lo, senhor.

- De ovelhas negras, Sloan.

O dia era ainda relativamente jovem quando Sloan e Crosby chegaram ao convento. A Madre Superiora e a irmã Lúcia receberam-nos como se já tivesse decorrido grande parte dele. A Madre Superiora entregou-lhe uma lista de nomes.

- Obrigado, Ma. Sinto que temos necessidade de todas as informações que possamos obter neste campo.

- Tais conhecimentos, desde que eu os possua, estão, é claro, à sua inteira disposição, inspector.

- Em primeiro lugar, Ma, tenho algumas notícias para si. O Sr. Ranby descobriu os culpados do incidente da noite de quinta-feira: três dos estudantes foram responsáveis pelo fabrico do boneco. É intenção dele trazê-los cá esta manhã para pedirem pessoalmente desculpas.

Ela inclinou graciosamente a cabeça.

- Não tinha necessidade de se incomodar dessa maneira, mas se o deseja... A brincadeira deles teve alguma relação com a morte da irmã Ana?

- Se - respondeu cautelosamente Sloan -, por acaso, ela tivesse deparado com eles nos terrenos do convento, podia ser que sim... mas eu penso que isso é pouco provável.

- Eu também - concordou a Madre Superiora com firmeza. - A irmã Ana (que Deus tenha a sua alma em descanso) ter-me-ia comunicado tal intrusão imediatamente. Não gosto de pensar que os estudantes reagiriam com um assassínio contra quem descobrisse a sua presença.

- Não, Ma, eu também não.

Ficaram a olhar um para o outro no salão. Irrelevante-mente, perpassou pela mente de Sloan a ideia de que nunca tinha visto uma pele tão fina em duas mulheres. A cara mais velha e mais flácida da Madre Superiora fazia-lhe recordar cremes, a pele mais jovem e mais firme da irmã Lúcia lembrava-lhe a dos pêssegos. Recordava-se de ter lido em qualquer parte que a boa pele - tal como um bom carro - apenas necessitava de ser lavada com água. Tinha de tomar nota para falar à mulher sobre o assunto.

- Ma, há uma pergunta que sou obrigado a fazer-lhe.

- Sim, inspector?

- Tem cá alguma irmã que não devesse cá estar?

- Não o creio.

- Nenhuma que... hum... metaforicamente falando, é claro, quisesse saltar por cima do muro?

- Não, inspector. Nós somos aqui uma comunidade no seu verdadeiro sentido. Não creio que alguma irmã pudesse atingir um estado de espírito que a levasse a querer ser liberta dos seus votos sem que a comunidade se desse conta disso. Isto é assim mesmo, não é, irmã Lúcia?

- Sim, madre. É uma coisa que não pode ser escondida.

- Simpatias e antipatias? - apressou-se Sloan a sugerir. A Madre Superiora esboçou um sorriso.

- Nem uma nem outra coisa são permitidas.

- Dá-se conta, Ma - pronunciou Sloan em voz mais agressiva -, que qualquer... digamos, desafeição... poderia ser pertinente para o meu inquérito e que o meu inquérito tem que continuar até que se consiga determinar a forma como morreu a irmã Ana?

A Madre Prioresa inclinou a cabeça.

- Certamente, inspector, mas se nós tivéssemos cá alguma irmã que sentisse desafeição, ou mesmo que fosse incapaz de dominar as suas fortes simpatias e antipatias, ela teria sido mandada embora. Há muito menos fechaduras num convento do que aquelas que a imprensa popular quer que as pessoas pensem.

Sloan ergueu subitamente o olhar.

- Saiu alguma ultimamente?

- Sim, por acaso saiu.

- Quem? - Já devia ter sido informado disso. Ela fitou-o de frente.

- Não posso compreender como a saída do convento de uma irmã antes dos infaustos acontecimentos da semana passada possa ter qualquer relação com o seu inquérito.

- Eu é que devo ser o juiz nessa matéria.

A Madre Prioresa fez um gesto de concordância.

- A irmã Lúcia vai saber o nome secular dela para poder dar-lhe essa informação. Era a irmã Berta.

- Quando saiu ela?

- Há cerca de três semanas.

- Para onde foi ela?

- Não sei.

- Não sabe? - ecoou Sloan involuntariamente.

- Não nos dizia propriamente a nós respeito informar-nos disso - explicou a Madre Superiora. - Ela sentiu que não podia continuar na vida religiosa e pediu para ser libertada dos votos. Isto foi feito através das vias normais e ela foi-se embora.

- Apenas assim? - perguntou Sloan estupidamente.

- Apenas assim, inspector.

Sloan dominou-se.

- Ela tinha qualquer relação especial com a irmã Ana? Era amiga dela, por exemplo?

- A amizade não é permitida num convento. Aqui todas nós somos irmãs. Ela conheceria a irmã Ana tão bem como nós a conhecíamos. Nem mais nem menos.

- E sabiam que ela queria ir-se embora... isto é, a comunidade sabia?

- Sim, sabíamos que ela se queria ir embora.

- Ma - persistiu ele -, se a irmã Ana se sentisse na mesma disposição de espírito, pensa que teriam sabido?

- Sim, inspector - respondeu ela com uma firme certeza. - Provavelmente, o senhor não se dá conta de como são íntimas as vidas que levamos aqui. A vida privada, no sentido habitual, não existe cá. Portanto, estamos perfeitamente cientes dos pensamentos, para não dizer da condição espiritual, de cada uma das irmãs. É inevitável e, muitas vezes, nem sequer requere a sua formulação em palavras. A irmã Ana, asseguro-lhe, não estava a considerar uma renúncia aos seus votos.

Sloan e Crosby voltaram para a esquadra de Polícia de Berebury. Sloan espalhou em cima da mesa as listas dos nomes que a Reverenda Madre lhe tinha dado. Mal tinham acabado de se sentarem quando o telefone ao lado de Sloan começou a tocar.

- Sim. O próprio. Quem? - Não era uma chamada local.

- Jenkins - informou uma voz. - O senhor telefonou-me para Londres ontem, recorda-se? A respeito duma família chamada Cartwright. Ainda está interessado?

- Estou. Continue.

- Penso que o senhor tocou em qualquer coisa, inspector. A Consolidated Carbon dos Cartwright efectuou um movimento.

- Ah sim? - perguntou Sloan cautelosamente. - Que espécie de movimento?

- Com vista a tornar-se uma empresa pública. Parece-me, e creio que isto lhe interessará, que têm tudo preparado para qualquer momento.

- Esperando apenas que alguém dê a ordem?

- Assim parece - concordou o homem de Londres.- Estas coisas levam o seu tempo, como sabe. Os banqueiros têm de receber instruções, os corretores têm de ser interessados e assim por diante, isto para não falar na organização de uma campanha de publicidade, fazendo a operação a toda a pressa. Claro, sempre hão-de receber alguma dos jornais de domingo. Creio que é para aí que estão virados.

- Há datas para essa pressa?

- De acordo com o meu informador, que é normalmente de confiança - informou Jenkins-, as inscrições serão abertas às dez horas em ponto da próxima quinta-feira e fecharão passado um minuto. Não sei com que números, mas atrevo-me a dizer que a subscrição estará mais que esgotada. É uma firma muito bem organizada.

- Quer fazer o favor de dizer isso novamente? - pediu Sloan secamente, - Como? Oh, sim, estava a esquecer-me do seu objectivo.

- Portanto, a empresa vai tornar-se pública às dez horas e um minuto da próxima quinta-feira?

- Exacto. Desde que, é claro, depositem os necessários estatutos, escrituras e registos e cumpram todas as leis e regulamentos em vigor.

- Oh, vão cumprir - garantiu-lhe Sloan.- Não tenha dúvidas. Não creio que tenhamos de nos preocupar com isso.

- Vai ficar com algumas? - perguntou Jenkins.

- Algumas quê?

- Acções.

Sloan deu uma gargalhada.

- Não sou jogador.

- Não há qualquer risco - replicou o outro seriamente. - A Consolidated Carbon dos Cartwright deve ser uma das firmas mais seguras da indústria.

- Não estava a pensar nos carbones deles.

- Não, não, claro que não. Há apenas uma coisa, inspector. Se o senhor tem quaisquer reservas sobre a companhia e a City ouvir falar nelas antes de quinta-feira, isso custará a alguém uma grande quantidade de dinheiro.

- E depois de quinta-feira?

- Custará também uma grande quantidade de dinheiro mas serão outras pessoas a perdê-lo.

- E isso é que é negócio?

- Isto é negócio, inspector.

- Creio que vou continuar a trabalhar exclusivamente na Polícia.

- Eu também o faria - concordou Jenkins. - É mais limpo.

Sloan pousou o telefone.

- Muito curioso, muito curioso mesmo, Crosby. Precisamos de pensar um pouco no assunto. - Alisou as listas dos nomes pela segunda vez. - Você apontou o nome daquela que se foi embora?

Crosby mostrou o bloco-notas.

-Miss Eileen Lome, sem endereço fixo...

- Certamente que...

- Nesse caso, senhor, o último endereço conhecido.

- Isso já é melhor.

- Rua Frederik, 144, Luston. Era esse o da irmã Berta.

- Temos de ir falar com ela, Crosby, dado o caso de ela poder dizer-nos qualquer coisa.

- Sim, senhor. - O telefone tocou novamente. Crosby atendeu e depois estendeu o auscultador. - É para si, inspector, creio. Não consegui perceber bem quem era .. a voz é muito fraquinha.

- Fala o inspector Sloan. Quem fala daí?

- É do Convento de Santo Anselmo, inspector. É a irmã Gertrudes que está a falar. Pode vir até cá depressa, inspector? Por favor. É a irmã Ninian. Ia a passar por entre os arbustos... - a voz sumiu-se.

- Que aconteceu à irmã Ninian? - perguntou Sloan rapidamente.

- Está? Inspector? Ainda aí está? Daqui fala a irmã Gertrudes do convento. É por causa da irmã Ninian...

- Ouvi isso. O que é que aconteceu à irmã Ninian?

- Nada, inspector, a ela nada. Foi a outra pessoa...

- Que aconteceu? - gritou Sloan.

- Outro acidente - informou a voz da irmã Gertrudes, parecendo muito distante.

- Ouça com atenção, irmã. Mantenha a parte inferior do telefone em frente dos seus lábios enquanto está a falar e diga-me que acidente foi esse.

A resposta veio numa voz tão forte que ele até deu um salto.

- Não sabemos quem ele é.

- Ele? Quer dizer que é um homem?

-Exactamente, inspector. Está morto no meio dos arbustos, como lhe disse. Foi a irmã Ninian que o encontrou.

- Isto é muito importante, irmã. Que género de homem? Pode descrever-mo?

-Oh, sim, inspector, facilmente. Jovem, com cabelos encaracolados, oh... e algumas sardas. Conhece-o?

Sloan soltou um resmungo forte.

 

Foi uma irmã Policarpo amansada que abriu a porta de grades e depois a porta do salão e uma irmã Lúcia de cara branca e ligeiramente tremente que os recebeu lá. Uma freira jovem e silenciosa encontrava-se ao lado dela.

- A Madre disse-me para o levar directamente até aos arbustos, inspector, assim que chegasse. - O decoro religioso ainda continuava visível, mas estava a ceder um pouco aos interesses da rapidez. - É mais rápido se formos através do edifício e sairmos pelo jardim-de-inverno.

A irmã Lúcia pôs-se à frente para ensinar o caminho através do edifício, passaram pela imponente escadaria, desceram o escuro corredor onde a irmã Ana tinha morrido e entraram no compartimento onde se viam os vasos de flores.

Aí, virou para ele uma face consternada.

- Não sabemos o que aconteceu, inspector. Nem quando.

Ele acenou com a cabeça sem abrandar a passada.

- Provavelmente, não conhece a irmã Ninian, inspector. Ela é uma das nossas irmãs mais antigas. Gosta muito de tratar do jardim e muitas vezes vai dar uma volta pelos terrenos para dar uma vista de olhos. Ia a caminhar exactamente por aqui quando deu a volta para cortar para ali.

"Para ali" revelou-se um caminho estreito que corria em volta do perímetro dos terrenos do convento. Sloan avistou algumas figuras de hábitos negros entre as árvores despidas de folhas. Estavam agrupadas em volta de uma forma imóvel que estava estendida estranhamente, meio dentro meio fora dos arbustos.

A Madre Superiora voltou-se quando o ouviu.

- Receio que esteja morto, inspector.

Sloan aproximou-se dela e olhou para baixo. Não havia qualquer dúvida de que estava morto. As sardas que a irmã Gertrudes tinha descrito deviam ser aquelas que se viam nos braços dele. Ela não podia ter-lhas visto na cara. Esta estava toda vermelha de sangue, que ali afluíra, um horrível amálgama de vermelho e azul. Uma língua inchada saía-lhe por entre os lábios distorcidos no esgar sardónico da morte.

- Estrangulado - pronunciou ele laconicamente.

- Inspector... - Subitamente, parecia que ela necessitava de fazer um grande esforço para poder falar. - Este pode ser William Tewn?

- O que a leva a perguntar isso, Ma? Já tinha visto alguma vez este rapaz?

- Não, não. Nunca. O Sr. Ranby veio visitar-me esta manhã depois de o senhor se ter ido embora. Trouxe dois rapazes com ele para pedirem desculpas pelo boneco, mas ele devia ter sido acompanhado por três. Disse que não tinham conseguido encontrar William Tewn. - Desviou os olhos para contemplar a figura jazente. - Disse que ia mandá-lo sozinho logo que ele aparecesse.

Olhando para baixo, para o jovem morto, Sloan sentiu-se subitamente velho e cansado.

- Sim, Ma, este é William Tewn. Agora, querem todas fazerem o favor de se afastarem daqui sem revolverem o terreno? É muito importante...

Havia um numeroso grupo de freiras: a irmã Gertrudes, a irmã Lúcia e mais três ou quatro que ele não conhecia. Sloan conduziu-as delicadamente para o caminho principal e deixou a Crosby o encargo de isolar com uma corda a área à volta do cadáver.

- Bom, se alguém quiser dizer-me agora o que aconteceu...

Para começar, foi a irmã Ninian a contar a sua história. Era uma mulher limpa e sensata de cerca de sessenta anos, económica no discurso.

- No Inverno, quando está bom tempo, todas nós fazemos um pouco de exercício antes da refeição do meio-dia. Eu trato um pouco do jardim e tenho por hábito percorrer cada dia um caminho diferente. Desta maneira posso ver as coisas que precisam de ser feitas antes que seja tarde de mais. Este caminho, como pode ver, inspector, dá a volta a todos os terrenos do convénto. O Instituto de Agricultura fica do outro lado daquele campo. Às vezes, há vacas que se tresmalham e há também ramos de árvores que caem. É para ver essas coisas que eu mantenho os olhos abertos.

Sloan acenou com a cabeça num gesto de aquiescência. Não os tinha abertos é claro, para ver corpos de homens mortos. Isso fora um acaso.

- Tinha acabado de cortar para este lado quando avistei um sapato espetado...

Era surpreendente, pensou Sloan academicamente, o grande número de vezes que um sapato chamava a atenção. As solas de um par de sapatos eram uma coisa conspícua num terreno tratado.

- Aproximei-me e descobri o corpo. Voltei por este caminho até que encontrei outras duas irmãs, a irmã Gertrudes e a irmã Hilda, aqui presentes. Elas voltaram comigo ao local e a irmã Gertrudes dirigiu-se então ao convento para contar à madre.

- E eu - informou a Madre Superiora, concluindo a história - pedi à irmã Gertrudes para que o chamasse enquanto eu vinha até aqui para me certificar pessoalmente.

- Trazendo a irmã Lúcia consigo? - perguntou subitamente Sloan.

A Madre Prioresa fitou-o curiosamente.

- Não,, inspector, por acaso não trouxe a irmã Lúcia comigo. Deixei-a à espera no salão para o trazer a si até aqui assim que chegasse. A irmã Gertrudes veio até cá com a notícia de que o tinha encontrado na esquadra e que o senhor já vinha a caminho. Ficámos muito aliviadas quando ouvimos isso.

Nesse caso, a irmã Lúcia estava branca e a tremer toda sem ter visto o cadáver? Sloan fez recuar a sua mente até à manhã de quinta-feira. Ela não tinha reagido daquela maneira perante o cadáver da irmã Ana.

- Mal o Sr. Ranby e os dois estudantes se tinham ido embora, não tendo sequer tempo de chegar ao instituto - disse a Madre Superiora - entrou logo a irmã Gertrudes.

Sloan consultou o relógio.

- Estiveram muito tempo consigo?

- Não. Os dois rapazes disseram que estavam muito arrependidos da sua intrusão; o Sr. Ranby pediu desculpas em nome do instituto e depois foram-se embora. Eu tinha sido obrigada a fazê-los esperar um pouco por causa do Sr. Cartwright.

- Ele também cá esteve, esta manhã?

- Sim, inspector, ele e o padre MacAuley vieram falar comigo depois de o senhor ter saído.

Sloan suspirou.

- Penso que o melhor é irmos todos lá para dentro, Ma, e Crosby pode encarregar-se disto tudo aqui. Além disso, o Dr. Dabbe deve estar a chegar dum momento para o outro.

- O quê? - gritou o superintendente Leeyes. - Não acredito nisso.

- Está morto - replicou Sloan em tom inexpressivo.- Estrangulado e arrastado para fora do caminho até ficar meio metido nos arbustos.

Sloan sentia a impressão de que tinha passado os últimos três dias de pé, no corredor sombrio e ventoso onde o convento tinha instalado o telefone.

- Tewn? Tewn? - pronunciou o superintendente. - Esse não é um dos três que entraram no convento para se apoderarem do hábito?

- Exactamente, senhor.

Leeyes utilizou uma expressão que teria surpreendido a comissão de vigilância.

- Sim, senhor. - Sloan sancionou o sentimento, com a comissão de vigilância ou sem ela.

- Tinha de ser ele.

- Sim, senhor. - Em tom amargo. - Tinha mesmo.

- Até onde conseguiu esclarecer as coisas com ele a noite passada?

- Até ao ponto de ele dizer que foi uma brincadeira de criança entrar pela porta da despensa e tirar de lá o hábito. Não houve qualquer dificuldade, disseram eles.

- Ele deve ter visto qualquer coisa - observou Leeyes.

- Sim, senhor.

- Não tem qualquer indicação do que poderia ter sido, quando falou com ele a noite passada?

- Absolutamente nenhuma, senhor. Tenho a certeza de que aqueles três combinaram com o Hobbett - é o homem dos sete ofícios aqui - para ele deixar a porta da despensa apenas encostada e o hábito lá dentro. Não vejo qualquer outra possibilidade... não havia o mínimo sinal de a entrada ter sido forçada. E dava a impressão que tudo tinha decorrido de acordo com o plano. Parker ficou de vigia até eles voltarem para o instituto, Bullen ficou de guarda à porta da despensa e da linha de retirada e Tewn foi lá dentro.

- E por isso morre.

- Sim, senhor.

- Aborrecido, Sloan. Não gosto disso. No entanto, diga-me uma coisa: se ele ia ser assassinado, porque esperar até hoje? Estamos em sábado e foi na quarta-feira que eles entraram no convento...

Sloan pensou rapidamente.

- Eu não sabia quem ele era até depois das nove horas da noite passada. Alguém mais podia também não saber isso...

- Isso é verdade. Alguém ficou à espera que ele fosse identificado e, depois, quando o foi, matou-o.

- Devia ter estado escuro naquela despensa, na quarta-feira à noite - observou Sloan. - Ninguém o poderia ter reconhecido.

- E quanto ao caso de hoje? - perguntou o superintendente em tom grave.

- Até agora apenas falei com a Madre Superiora. E com as irmãs que estavam junto do cadáver quando cá cheguei. Ela disse que o director tinha tomado medidas para que os três estudantes viessem cá com ele para lhe apresentarem desculpas pela intrusão de quarta-feira, mas Tewn não apareceu. Ranby estava um pouco aborrecido, aparentemente, e disse que mandaria Tewn apresentar-se cá sozinho mais tarde.

- Não admira que ele não aparecesse.

- Não, senhor. Vou directamente para lá assim que tenha falado com o Dr. Dabbe. Vou necessitar de todas as informações que ele me possa fornecer...

Não foi grande coisa.

Sloan foi juntar-se ao patologista junto dos arbustos. -Estrangulamento - concordou Dabbe. - Não manual. Penso que foi com um fio eléctrico, mas não tenho a certeza. A pele ficou vincada e inchada dos lados. Um lanço rápido por cima da cabeça, um apertão com força e pronto.

- Horrível.

- Rápido e limpo - observou Dabbe. - E certo. E também sem barulho. Não teve tempo para dar um grito. Não que houvesse alguém para poder ouvi-lo.

Olharam à volta deles os terrenos silenciosos.

- O convento naquela direcção - assinalou Sloan.- O instituto do outro lado. Nem um nem outro ao alcance dum som.

- Não havia aqui qualquer freira na altura?

- Elas não podem vir cá para fora antes do meio-dia. Pelos regulamentos. Há o Hobbett, o factótum que trabalha no jardim. Ele podia andar cá por fora, em qualquer parte...

Isso não era coisa que dissesse respeito ao patologista e ele voltou logo à sua observação do cadáver.

- Morto neste caminho, pode-se dizer, e arrastado para dentro dos arbustos pelos sovacos. Ainda se pode ver onde a blusa dele foi arrepanhada para cima. Os saltos dos sapatos deixaram também rastos no chão.

Sloan olhou para baixo, para as últimas marcas patéticas feitas pelo estudante que em vida se chamava William Tewn.

- Na verdade, um belo lugar - continuou o patologista. - Era só preciso arrastá-lo um ou dois metros para ficar praticamente invisível em toda esta vegetação. E seja quem for que fez isso lembrou-se de pôr os pés nesse mato seco. Duvido que consiga encontrar uma pegada lá. Quanto ao caminho é duro de mais para deixar marcas.

- Crosby já tentou - informou Sloan -, mas não conseguiu nada. Quando é que aconteceu tudo?

O patologista consultou o relógio.

- Não foi há mais de duas horas... ponhamos três como limite máximo.

- Nesse caso, depois das nove e meia...

- E há não menos de uma hora... uma hora e meia é o mais provável.

- Ainda não é meio-dia e meia hora. Isso faria com que os limites se situassem, mais ou menos, entre as nove e meia e as onze e meia, só que ele não se apresentou até logo depois das onze quando o grupo do instituto saiu de lá, de forma que deve ter sido antes das onze, não concorda?

Contudo, a especulação abstracta não era coisa que interessasse ao patologista. Entre todos os trabalhos, o seu tinha que ser feito à base de factos, factos demonstráveis.

- Talvez que eu possa encurtar esses limites, mais tarde - replicou cautelosamente.

Sloan acenou com a cabeça e fez a pergunta da qual tudo estava pendente.

- Alguma indicação... qualquer indicação mínima que seja sobre quem poderia ter feito isto?

O Dr. Dabbe observou o cadáver longamente.

- Ele não é muito alto, pois não? Qualquer pessoa poderia tê-lo arrastado por tão curta distância. Quanto a passar um pedaço de fio eléctrico em volta do pescoço de alguém... isso não depende tanto da força como da estratégia. Um indivíduo só poderia fazer isso se o seu gesto fosse completamente inesperado. Se insiste quanto a qualquer indicação sobre a pessoa que pode ter feito isto... - Sloan manteve-se silencioso, o que era tão bom como insistir -... nesse caso tudo quanto lhe posso dizer com uma certa segurança - ofereceu o patologista - é que essa pessoa era provavelmente da mesma altura ou mais alta que Tewn e esta é uma conclusão a que qualquer um chegaria. Não posso dizer-lhe se foi um homem ou uma mulher, mas posso afirmar-lhe que não teria sido impossível para uma mulher, especialmente se fosse alta. Uma pequena torção do pulso e tudo ficaria acabado.

- E ninguém suspeita duma mulher, não é assim? - observou Sloan lentamente. - Quero dizer, as defesas da vítima estariam baixas, pois há sempre a tendência para se confiar numa mulher...

O Dr. Dabbe soltou uma curta gargalhada, desprovida de alegria.

- Meu caro amigo, não tenho qualquer dúvida que seria assim, mas a verdade é que os nossos trabalhos são completamente diferentes, não é?

As notícias tinham chegado ao instituto antes de Sloan. Compreendia-se logo isso pela maneira urgente como o porteiro conduziu Sloan e Crosby ao gabinete do director, pelos olhares curiosos dos estudantes que se encontravam ocasionalmente no átrio da entrada e pela atitude do próprio Marwin Ranby. Tudo isso indicava aos polícias que ali já se sabia.

O director estava visivelmente transtornado.

- Tenho estado a tentar entrar em contacto com os pais dele, inspector, mas não consegui que me atendessem. São horas do almoço de sábado, quando ninguém se encontra em casa. Eu próprio, teria ido passar o fim-de-semana fora... Pode ser que eles tenham feito o mesmo. São agricultores lá para o Oeste, o senhor e a senhora Tewn quero dizer, o que representa uma grande distância para eles virem até cá, receio.

- Um caso chocante, senhor.

- Horrível. Os últimos dias já tinham sido suficientemente maus, mas isto agora é um pesadelo.

- Talvez que se o senhor puder dizer-nos o que aconteceu...

- O problema é mesmo esse, inspector. Não aconteceu nada. Tinha disposto as coisas de forma a ir esta manhã visitar a Madre Superiora para que os três apresentassem desculpas pela intrusão no convento e por terem tirado de lá o hábito que podia ser velho mas que, certamente, tinha um grande significado para elas. Célia, isto é, Miss Faine, como sabe, diz-me que estes vestuários são considerados muito preciosos para as irmãs... são passados de umas para as outras. Segundo julgo saber, um grande número delas beija efectivamente cada peça do seu hábito antes de a vestir e outras coisas no género... e eu achei que seria correcto que esses rapazes fossem lá pessoalmente pedir desculpas. Não vale a pena dizer aos jovens que estas coisas não interessam, pois eles sabem-no.

Sloan acenou a cabeça em concordância.

- Pensei que onze e um quarto seria uma boa hora. Eles têm apenas dois períodos de estudo aos sábados de manhã, acabando às onze. De qualquer modo, essa hora parecia-me tão boa como qualquer outra para visitar a Madre Superiora. Disse-lhes que deviam apresentar-se aqui às onze e cinco minutos para que tivéssemos tempo de ir a pé até lá e...

- Um momento, senhor. A quem disse para vir até cá?

Ranby franziu o sobrolho.

- Bullen, Parker e Tewn, é claro.

- Ah, eu não queria dizer exactamente isso. A qual dos três deu o recado a respeito da hora?

- Oh, compreendo. Foi a Bullen. Disse-lhe para avisar os outros dois. Contudo, apenas Bullen e Parker apareceram. Devo dizer, inspector, que na altura fiquei bastante irritado. E surpreendido. Eu não teria pensado que Tewn fosse capaz de recusar estar presente numa entrevista como aquela, por mais desagradável que lhe pudesse parecer. É horrivelmente claro, agora, o motivo por que não se apresentou.

- E então resolveu irem ao convento sem ele?

- De maneira nenhuma. Mandei Parker ao quarto dele para ver se estava lá e mandei Bullen lá abaixo à sala de estar. Ambos voltaram dizendo que não conseguiram encontrá-lo e foi então que partimos sem ele.

- Quanto tempo levou isso?

- A apresentarmos as nossas desculpas? Cerca de cinco minutos. A Madre Superiora foi muito amável, agradeceu-lhes por terem ido lá e desculpou-os com uma gentileza e graça de espírito que - se me recordo correctamente - Bullen classificou de "muito decente em tais circunstâncias".

- A irmã morta... a Madre falou nela?

- De maneira nenhuma.

- Ela disse-me que foi obrigada a fazê-los esperar.

- Exactamente. Estava a falar com outro homem. Um sujeito forte, de cabelos grisalhos. Roupas da cidade. Ia a sair do salão quando nós entrámos.

Parker e Bullen estavam a aceitar muito mal a morte de Tewn. Estavam os dois juntos, sentados num canto da sala de estar deserta. Sloan pôde ouvir, à distância, o almoço a ser servido, mas parecia que nem Bullen nem Parker tinham fome.

- Eu estive sentado ao lado dele ao pequeno-almoço - informou Bullen em tom lamentoso. - Não parece possível, pois não?, que depois disso alguém tenha ido ter com ele para o matar.

- Quando lhe deu o recado sobre a questão de irem ao convento?

Bullen descontraiu-se lentamente.

- Tenho de pensar. Sabe, parece-me que a minha cabeça não está a funcionar muito bem, agora. Engraçado, não é?

Sloan recordou-se da primeira morte súbita que lhe tinha ido parar às mãos quando ainda era um jovem cabo. Durante anos, depois disso, bastava-lhe apenas fechar os olhos para que tudo voltasse a desfilar na sua mente. Tinha sido um acidente de tráfego.

- Sentir-se-á melhor dentro dum dia ou dois - disse automaticamente -, mas tem de tentar pensar com força porque nós precisamos de saber com exactidão o que aconteceu.

- Ele pensou que lhe tinha dito antes do primeiro período de estudo, pelo menos foi isso que me disse logo depois. - Toda a vitalidade de Parker também se tinha esvaído. Ele estava a fazer o melhor que podia para ajudar. [-Não voltou a ver Tewn depois disso.

Sloan olhou para Bullen.

- Foi assim?

- Sim, inspector. Ele devia ter estado connosco no [segundo período de estudo, nós estamos... - Interrompeu-se e corrigiu-se - estávamos ambos no segundo ano, [compreende. Mas eu não voltei a ver o menor sinal dele I depois que saímos das aulas às dez horas. Nem ninguém mais o viu.

 

- Calculo - observou Sloan sem se dirigir a ninguém em particular - que parecia uma boa ideia, para começar, e quanto mais pensaram nela melhor a acharam. No final de contas, vocês já estavam dispostos a terem uma boa fogueira - tinham de fazer uma na noite de Guy Fawkes - haviam ficado fechados no instituto e lá estava o convento mesmo ali à mão... Vocês quase podiam dizer que era uma tentação da Providência. - Fez uma pausa. - Um hábito velho nada era comparado com um abrigo de paragem de autocarro.

Bullen inteiriçou-se.

- Não pensámos que estivéssemos a fazer nada de mau. Não pensámos que ia acabar assim.

Parker dominava-se melhor.

- Mas porque é que Tewn tinha de ser morto? No final de contas, apenas fanámos um velho hábito... não é um grande crime, pois não?

- Penso - replicou Sloan - que o crime de Tewn foi ele ter visto qualquer coisa.

- O quê? - perguntou Bullen lugubremente.

- Não sei, mas espero que vocês os dois possam saber. Ouçam: Vocês os três planearam entrar no convento na noite de quarta-feira para irem lá tirar um hábito velho. Dos três, apenas Tewn entrou realmente lá. Dos três, apenas Tewn foi assassinado.

- E isso não é coincidência, é o que quer dizer? - inquiriu Bullen, de raciocínio lento. Estava agora a prestar uma maior atenção, mas continuava a ter a aparência de alguém que tinha levado uma paulada com força.

- A Polícia não gosta de coincidências - declarou Sloan. - Tewn foi lá dentro e Tewn foi assassinado.

- Tewn e uma freira - recordou-lhe Parker. - Tivemos logo de escolher uma noite em que foi assassinada uma freira. Para si é uma coincidência. Compreendo, no entanto, onde quer chegar, inspector. Quer dizer que...

Sloan não estava a ouvi-lo. Um novo e interessante pensamento tinha-lhe ocorrido. O que é que ele tinha dito? "A Polícia não gosta de coincidências". Havia uma coincidência a mais naquilo que Parker tinha dito.

- Ouçam os dois. Quero que vocês voltem ao princípio de tudo e me digam como é que lhes surgiu a ideia do hábito. E quando.

- Não sei como nem onde foi - respondeu Bullen - mas sei quando. Domingo, depois do jantar. O director disse que tínhamos de ficar no instituto a partir das quatro horas, na noite de Guy Fawkes, por causa do que tínhamos feito o ano passado.

- Até essa altura, que tencionavam fazer?

Bullen pareceu um pouco envergonhado.

- Conhece a Vivenda das Cerejeiras? Fica mesmo à esquina da estação dos correios.

- Não conheço.

- É uma casinha muito engraçada, mas onde vive uma mulher horrorosa. Não sei qual a palavra que melhor a possa descrever, mas...

- Bruxa - informou Parker laconicamente.

- É isso mesmo. Bom, ela tem o jardim cheio dessas coisas horríveis.

- Que coisas horríveis? - inquiriu Sloan.

- Gnomos - disse Parker.

- E fadas - acrescentou Builen. - E sapos e outras coisas. Está cheio disso. Pensámos... isto é...

- Que era a boa causa para este ano? - sugeriu Sloan.

- Isso mesmo - respondeu Builen agradecido.

- Estou a ver. E quando o Sr. Ranby os proibiu de saírem?

- Então tivemos de pensar noutra coisa qualquer a toda a pressa.

- De quem foi a ideia de fazerem a efígie duma freira?

Builen abanou a cabeça.

- Não me recordo. Mas minha não foi.

- Nem minha - disse Parker rapidamente. Com demasiada rapidez.

- É capaz de recordar-se - inquiriu Sloan manhosamente - de onde foi que essa ideia não foi sua?

- Oh, sim - respondeu Builen. - Foi no The Buli. Foi aí que... - Interrompeu-se.

- Foi aí que se encontraram com o Hobbett - concluiu Sloan por ele.

Builen corou. Sloan continuou:

- Foi aí que vocês os dois e o Tewn combinaram para que o Hobbett levasse o velho hábito do jardim-de-inverno para a despensa e para deixar a porta da despensa - a única de que ele tinha a chave - encostada apenas, na noite de quarta-feira. Vocês iriam lá sem ninguém ver e apoderar-se-iam dele. Provavelmente mostraram a vossa gratidão perante a... hum... gentileza de Hobbett da maneira habitual. Não estou absolutamente nada interessado neste momento quanto à bondade ou maldade da acção. O que eu quero saber é: quantas pessoas sabiam que vocês iam entrar no convento naquela noite?

Parker fitou-o intensamente.

- Estou a compreender, inspector. Muito poucas, posso dizer-lhe. Um ou dois parceiros cá de dentro, o camarada que estava encarregado de tratar da fogueira...

- Alguém no The Buli?

Parker franziu o sobrolho.

- Atrevo-me a dizer que um ou dois homens. Hobbett não é o género de pessoa com quem a gente goste de se sentar a uma mesa a conversar como é habitual, pois não? É um tipo zaragateiro e a maior parte das pessoas afasta-se dele. Sentámo-nos com ele a um canto durante um bocado e convencemo-lo a entrar no jogo. Há lá muita gente nos fins-de-semana, pois é o único lugar do género em Cullingoak e, para começar, quase toda a malta do instituto vai até lá. Suponho que alguém que nos tivesse visto juntos teria logo somado dois com dois... na altura pensámos que seria uma boa piada.

- Penso que é possível - observou Sloan - que outra pessoa também pensasse isso mesmo.

O dia que tinha começado como rotineiro continuou dessa maneira, se bem que num ritmo diferente, mais veloz. O superintendente Leeyes cancelou o seu habitual jogo de golfe a quatro, dos sábados de tarde, para melhor superintender àquilo que se tinha tornado rapidamente conhecido por o Caso do Convento.

O Sr. Marwin Ranby cancelou o seu passeio de fim-de-semana, passou a maior parte da tarde agarrado ao telefone, tentando entrar em contacto com uma longínqua herdade do Oeste, e finalmente, convenceu Miss Célia Faine a vir tomar chá ao instituto. Isso, pelo menos, não foi difícil.

Para as irmãs, as coisas talvez tivessem sido mais fáceis. O sábado à tarde era para elas uma preparação para o domingo, um dia sem o significado dum dia santo ou de desporto ou de descanso. Depois de o Dr. Dabbe ter partido e do seu próximo objecto de trabalho fúnebre ter sido levado numa carrinha completamente negra, as grades do convento fecharam-se e cinquenta mulheres retiraram-se para o seu silêncio bem ordenado. Para elas não existiam as especulações que corriam de boca em boca no instituto nem os boatos que se espalharam rapidamente pela aldeia. {Das duas instituições. Cullingoak sentia-se satisfeita por exagerar o que se passava no convento e para condenar imediatamente o que ia pelo instituto).

Tudo o que, de facto, se passava no convento era aquilo que em qualquer outra parte seria denominado de conselho de guerra. A Madre Prioresa convocou as irmãs envolvidas na descoberta do morto William Tewn para comparecerem no salão. Elas entraram silenciosamente, distribuindo-se ordeiramente num círculo: a impecável Lúcia, uma jovem irmã que estivera na companhia da irmã Lúcia quando o inspector Sloan lá chegara, a irmã Policarpo, a guarda da porta que sabia de todas as idas e vindas, e três outras que, por acaso, se encontravam perto do cenário do crime. Faltando-lhes qualquer orientação sobre o correcto comportamento religioso naquelas circunstâncias fora do habitual, as três tinham ficado lá e, mais ainda, tinham-se esquecido lamentavelmente de praticarem o recato dos olhos. Agora perguntavam a si mesmas se, depois de terem visto aquilo, deviam ter-se afastado imediatamente dali... na verdade era um caminho difícil aquele que elas tinham decidido trilhar quando haviam deixado o mundo.

A Madre Prioresa começou, como sempre o fazia, sem qualquer preâmbulo.

- Houve outro crime. Não, como sabem, um membro da comunidade, mas um estudante. Ele foi assassinado nos nossos terrenos em qualquer momento antes do recreio desta manhã. Pelo menos é essa a opinião da Polícia. A alternativa é que ele foi assassinado noutro lugar qualquer e trazido para os terrenos do convento. Aquelas de vós que tiveram ocasião de o ver concordarão que isso é pouco provável. Não, receio que a nossa relacionação com aquele estudante em especial seja mais íntima do que isso. Foi ele que entrou no convento na noite de quarta-feira para levar o velho hábito que, subsequentemente, foi salvo do fogo pelo inspector Sloan. Falei com clareza?

Era uma pergunta desnecessária. A Madre Prioresa falava sempre com clareza.

- Portanto - continuou ela lucidamente - ainda continuamos a ter um grave problema mesmo junto de nós. A irmã Ana foi assassinada aqui, no convento. Esse rapaz, William Tewn, que Deus tenha a sua alma em descanso, que foi aquele que entrou no convento na quarta-feira, também foi assassinado. Enquanto os dois crimes não forem solucionados completamente nenhuma de nós se encontra em situação de saber se algum membro da comunidade está ou não envolvido.

Esperou que este ponto mais oblíquo fosse apreciado.

- Mais ainda, estamos confrontadas com outras determinadas considerações. O assassínio não é normalmente a acção dum ser normal e, ainda menos, de uma religiosa. Contudo, pode ser uma acção anormal duma pessoa anormal. Isto é um facto que não podemos deixar de considerar, por mais que não desejássemos fazê-lo.

A cara alegre da irmã Hilda ficou toda anuviada quando o significado desta observação a atingiu.

- Em circunstâncias normais - prosseguiu a Madre Prioresa - não seria necessário que eu lhes pedisse para me relatarem qualquer coisa fora do vulgar no comportamento das vossas irmãs, mas as actuais circunstâncias não são normais. Longe disso. Encontramo-nos fora das nossas experiências habituais e não poderemos ter paz de espírito enquanto a infeliz alma que perpetrou esses dois crimes não tenha sido descoberta e aliviada do terrível peso da sua culpa.

Não teria sido assim que Sloan apresentaria a questão, mas o resultado seria o mesmo.

- Quer dizer, Madre, que pode ser uma de nós que tenha feito aquilo? - A irmã Hilda parecia cheia de espanto.

- Confio que não, mas uma aberração temporária, ou permanente, nunca é impossível.

A irmã Ninian acenou gravemente com a cabeça.

- Qualquer uma de nós poderia ter ido, sem ninguém ver, até aos terrenos antes do recreio e ficado lá à espera, entrando depois juntamente com as outras...

- Certamente que não! - exclamou a irmã Lúcia.

A irmã Policarpo olhou para baixo, para as suas fortes mãos.

- Dizem que ele não era muito grande.

A irmã Lúcia estremeceu, arrepiada.

- Mas quem... qual de nós poderia possivelmente ter querido...

- Ter necessitado?

- ...ter necessitado de fazer uma coisa tão terrível como essa?

- Duas coisas terríveis - corrigiu a Madre Prioresa calmamente.

A irmã Ninian franziu o sobrolho. O cabelo dela, se é que ela tinha algum cabelo, teria sido agora grisalho devido à passagem dos anos, tal como acontecera às sobrancelhas que se tinham tornado numa mancha cinzenta-pálida por cima dos seus olhos azuis.

- Isso quer dizer, Madre, não é assim?, que há uma relação entre as duas mortes.

- Uma forte relação - respondeu a Madre Prioresa.- Tão forte que a Polícia se sente no dever de entrevistar cada uma das irmãs hoje. Estão particularmente ansiosos que os pormenores do segundo crime do qual as irmãs presentes já têm conhecimento não sejam comunicados ao resto da comunidade. Comprometi-me, assegurando que vós não ireis discutir o assunto com as outras irmãs ou com quem quer que seja. Não preciso de recordar-lhes que me devem obediência nestes casos.

Uma série de acenos de assentimento foi a resposta.

- A Polícia - disse ainda a Madre Prioresa - declarou-me que considera essencial que essas entrevistas sejam conduzidas por ela com cada irmã sozinha. Não é um procedimento ao qual, em circunstâncias normais, eu tivesse dado alguma vez o meu consentimento. Como já disse há pouco, não nos encontramos em circunstâncias normais. Estive em comunicação com a Muito Reverenda Madre-Geral na nossa Casa-Mãe e com o padre MacAuley. Ambos são de opinião que este pedido não deixa de ser razoável. E o inspector Sloan mandou buscar a Calleford uma... hum... mulher-polícia.

 

- Luston? - rosnou o superintendente Leeyes. - Para que diabo quer ir a Luston?

- Para falar com miss Eileen Lome, senhor.

- Vai dizer-me porque quer falar com ela, Sloan, ou tenho de perguntar-lhe?

- Ela era freira, senhor, até há cerca de três semanas, quando deixou o Convento de Santo Anselmo.

- Porquê?

- Não sei dizer porquê, senhor. A Madre Prioresa disse que ela tinha pedido para ser libertada dos votos e foi.

A cabeça de Leeyes ergueu-se como a de um perdigueiro ao receber um cheiro.

- Sarilhos lá dentro?

- Talvez.

- Já devíamos ter sido informados antes.

- Sim, senhor.

- Luston não fica muito longe.

- Não, senhor. Pensei que podia dar um salto até lá enquanto esperava que o sargento Perkins viesse de Calleford.

O superintendente mostrou um sorriso de lobo.

- Mandou chamar a Bela Polly, hem?

- Sim, senhor. Não posso fazer qualquer progresso numa entrevista com a Madre Prioresa a supervisar e com mais duas ou três das outras sentadas à volta por causa das dúvidas. Quero vê-las tal como são, sem se sentirem guardadas.

Leeyes acenou em concordância.

- E quanto ao instituto? - inquiriu.

- Nenhuma novidade boa daí, senhor. Os outros companheiros de Tewn na conspiração não podem ou não querem ajudar. Não podem, penso. Bullen não consegue recordar-se de uma coisa qualquer que Tewn disse a respeito do interior do convento naquela noite e que podia fornecer-nos qualquer indicação. Pode ser que se venha a lembrar, suponho, se bem que não haja grande coisa entre as orelhas dele. Excepto osso. Estão ambos a tentar pensar com força em tudo quanto Tewn disse ou fez desde então.

- Cartwright?

- Foi até Berebury passar a tarde. Saiu do The Buli assim que acabou de almoçar.

- Antes de você chegar lá?

- Sim, senhor. - Sloan não ia começar a desculpar-se neste estádio do caso. - Disse que voltaria cedo e deixou lá os papéis, as roupas, etc. Além disso, tenho um homem em Londres que está encarregado de investigar tudo sobre a Consolidated Carbon dos Cartwright e sobre a questão de eles irem abrir a empresa a uma subscrição pública de acções, na quinta-feira. Ele também não estava nada satisfeito por ter de ficar por lá num sábado de tarde.

- O dever em primeiro lugar - declarou o superintendente virtuosamente. Consultou o relógio. Os seus velhos companheiros de golfe estariam agora na décima sétima pancada. O superintendente Leeyes tinha lá perdido duas bolas no passado sábado à tarde - tinha-as atirado direitinhas para o mato. - Cartwright vai voltar, suponho? Porque, se não...

- O nosso problema, em primeiro lugar, é ele ter cá estado sempre - objectou Sloan. - Praticamente debaixo dos nossos pés, é que é. Não há dúvida que ele tinha um motivo. Mas também tem miolos. Miolos suficientes para não vir bater à porta do convento pedindo para falar com a prima Josefina se lhe tinha dado uma martelada na cabeça na noite anterior.

- É muito bom para ele que ela esteja morta - observou Leeyes.- Muito bom. Agora pode andar para a frente e transformar a sua empresa privada numa importante sociedade anónima, sabe Deus com que benefícios para os principais accionistas.

- A vontade do morto - comentou Sloan distraidamente. - Pelo testamento do pai dela, a parte da irmã Ana reverte em favor do tio após a morte dela sem deixar filhos, o que é bastante justo. Se eles se transformassem numa empresa pública enquanto ela era viva, ela teria uma palavra a dizer em tudo, pois tinha cinquenta por cento do capital. E não se pode administrar uma empresa industrial de dentro dum convento. Se deixassem que a empresa continuasse privada, ela e o tio teriam de pagar uma percentagem elevadíssima do valor total da firma para satisfazerem os encargos de sucessão por óbito, mais cedo ou mais tarde.

- E assim? - perguntou Leeyes mansamente.

- Assim, transformam-se numa empresa pública, na quinta-feira, e transferem grandes lotes de acções por toda a gente da família: os filhos de Harold, alguns netos, segundo creio, e também alguns membros de confiança do conselho de administração... esse género de coisa.

- E suponho que também me pode dizer qual a razão por que não venderam todas essas acções há anos?

- Sim, senhor. Nesse caso não teria havido o lugar de presidente do conselho de administração para o nosso Harold Cartwright e eu imagino que ele gosta muito de ser presidente do conselho de administração da Consolidated Carbon. Além disso, a autorização da irmã Ana teria sido necessária, calculo, mas ela não a daria.

- Bem - pronunciou secamente Leeyes, voltando-se para o fitar-, nesse caso porque não prendeu Cartwright? Tem aí um caso.

- Um caso por prendê-lo - concedeu Sloan.- Mas não um caso contra ele.

- Sloan.

- Senhor?

- Você não está a arrranjar um caso contra uma daquelas freiras, pois não? Não me agradaria nada ter todo o nosso pessoal excomungado.

- Não estou a arranjar um caso contra quem quer que seja, senhor. Não creio que possamos, por enquanto, riscar alguém da lista. O único motivo aparente é o de Harold Cartwright, mas para o meu gosto é um pouco aparente de mais. É claro que pode não ser o único...

- Tá-tá-tá - trombeteou Leeyes. - Ainda não há nada a provar que as freiras não estão envolvidas. Uma delas foi morta dentro do próprio convento, assassinada com uma arma que foi lá deixada para que outra das delas lhe tocasse... ainda não encontrámos essa arma, pois não, Sloan?

- Não, senhor.

- E depois o estudante que entrou no convento é ele próprio morto com uns cinquenta centímetros de fio eléctrico... suponho que há imenso no convento?

- Muito mesmo, senhor. Um rolo inteiro junto da caixa dos fusíveis ao lado da porta onde Hobbett trabalha...

- Hobbett... É claro que o Hobbett está sempre a aparecer. O que há sobre o Hobbett? Também não o deixou escapar, pois não?

- Não exactamente escapar, senhor. Ele foi para Bere-bury à hora do almoço com a mulher, como faz todos os sábados.

- Antes de Tewn ter sido encontrado?

- Tinha partido antes de nós chegarmos lá. Eu diria que ele se porta como um velhaco.

- Mas não tem a certeza sobre ele?

- Não, senhor. Seja como for, temos todos os agentes de Berebury à procura dele.

- Há sempre uma esperança - sentenciou o superintendente Leeyes.

 

Ironicamente, o primeiro a aparecer foi Harold Cartwright. Na esquadra, Crosby acompanhou-o até ao gabinete de Sloan.

- Tiveram outra morte - observou ele abruptamente.

- Receio que sim.

- Onde vai acabar tudo isto, inspector?

- Quem me dera saber, senhor.

- Primeiro, a minha prima Josefina e agora esse estudante. Não faz sentido.

- O assassínio nunca faz sentido.

- Esse rapaz... a minha prima conhecia-o?

Habitualmente era Sloan que fazia as perguntas e as outras pessoas que respondiam. Sloan deixou que as coisas continuassem dessa maneira. As perguntas revelavam quase tanto como as respostas; especialmente aquelas que lhe não eram feitas.

- William Tewn? Não, senhor, não temos qualquer razão para supor que a irmã Ana o conhecesse. O senhor tem?

- Eu, inspector? Disse-lhe que não tinha visto nem ouvido Josefina há vinte anos.

- Disse, sim, senhor. Tinha-me esquecido.

Cartwright fitou-o desconfiadamente.

- E é verdade - afirmou.

- Sim, senhor. Nós sabemos isso. Os visitantes e as cartas são coisas supervisadas no convento.

- Como numa prisão - replicou Cartwright mordazmente.- Pobre Josefina.

Sloan empurrou um mata-borrão para um lado. Não esta noite, Josefina. Não qualquer outra noite, Josefina. Apenas pobre Josefina.

- E, no entanto - continuou Cartwright-, Josefina e esse jovem Tewn foram ambos assassinados esta semana.

- Isso é verdade - reconheceu Sloan.

- Tewn viu qualquer coisa que lhe desse uma indicação sobre o assassino de Josefina?

- Essa é a conclusão óbvia, não acha, senhor? Estamos a trabalhar nesse sentido. - Tão óbvia que nem mesmo a Polícia podia deixar de a fazer?

- Portanto, alguém matou Tewn para evitar que ele falasse?

- Exactamente - respondeu Sloan. Podia ser mesmo assim.

- Hoje é sábado. Como é que ele... hum... fosse lá quem fosse sabia que Tewn não tinha ainda falado sobre o que vira?

- Há pelo menos três respostas para isso, não há, senhor? - Sloan estava na sua faceta judiciosa. - A primeira é que essa pessoa não sabia se Tewn tinha falado ou não; outra é que Tewn viu realmente qualquer coisa na quarta-feira mas não a registou como importante até ter ouvido dizer que uma freira tinha morrido naquela noite...

- E a terceira?

- A terceira é que, seja quem for que matou Tewn, podia não ter sabido até ontem o nome do estudante que tinha entrado no convento. Podia não ter sabido quem era que tinha de matar, tal como nós próprios o não sabíamos até ontem à noite. Tal como o senhor também não sabia quem era.

- Mas eu sabia - disse inesperadamente Cartwright.

- Sabia? Quem lho disse? - Sloan ganhou animação.

- Foi ele próprio. Pelo menos, parto do princípio que foi o mesmo rapaz.

- Quando?

- Na quinta-feira à noite, na fogueira. Eles estavam todos à volta dela a observarem - como acontece com qualquer grupo em volta de qualquer fogueira - à espera que o boneco pegasse fogo. Foi antes de os senhores chegarem e terem procedido ao salvamento.

- E então?

- Eu encontrava-me junto dum grupo deles quando me dei conta de que tinham lá posto como boneco a efígie duma freira. Eu fiz uma observação qualquer meia parva, dizendo que aquele não era o caminho que iria dar a Roma e como é que eles tinham conseguido uma vestimenta completa. Um deles disse que ele próprio e outro companheiro tinham feito isso e que tinha sido canja.

- O vocabulário está certo - comentou Sloan, inclinando-se para a frente. - Vejamos, que mais disse ele? Pense bem, senhor, isso pode ser importante.

Cartwright franziu o sobrolho.

- Macacos me mordam se sou capaz de me lembrar. Não, espere um pouco. Houve qualquer coisa. O outro parceiro que estava ao lado dele fez uma observação qualquer... "Foi tão fácil como roubar o leite a um bebé cego." Foi isso mesmo, e o primeiro parceiro, aquele que me tinha dito que arranjara o hábito...

- Tewn.

- Deu uma gargalhada e disse estar convencido que era tudo uma questão de conseguir aquecer o leite o suficiente... se se fizesse isso, o resto não custaria nada.

- Sabe o que ele queria dizer?

- Não, inspector, mas os outros todos começaram a rir-se às gargalhadas. Parecia uma piada referente ao instituto. Ou então sobre a agricultura.

Sloan tomou apressadamente uma nota.

- E agora quanto ao fogo, senhor. O senhor disse-me como se tinha dado o caso de se encontrar lá, não disse?

- Disse, inspector - respondeu ele sem qualquer rancor. - Mas posso dizer-lhe outra vez se o desejar.

Sloan inclinou a cabeça; depois arrependeu-se do gesto. A eterna amabilidade das freiras era bastante contagiosa. Ele, um polícia endurecido, tinha que se vigiar.

- Encontrava-me no bar do The Buli, sentado a uma mesa - relatou Cartwright - na quinta-feira à noite, sem ter nada que fazer. É muito pouco habitual que eu disponha de algum tempo livre, o senhor compreende. E também tinha sido informado por si, algumas horas antes, da morte prematura da minha prima e não sabia bem o que havia de fazer a tal respeito. Estava a pensar dar uma volta pela aldeia para aclarar as minhas ideias, mas quando ouvi um velhote, a um canto do bar, falar numa grande fogueira que se ia fazer no instituto, pensei que podia dar um passeio até lá.

- Acrescente "sujo" a "velhote" - observou Sloan - e pode ser que esteja a mencionar um homem a quem quero falar.

- Hobbett era o nome dele - declarou Cartwright - Descobri isso mais tarde. Um indivíduo quezilento. Estava lá sentado a dar palpites sobre os jogos e as brincadeiras do instituto. Aparentemente, a fogueira dos estudantes o ano passado...

- Sei tudo a esse respeito - interrompeu-o Sloan.

- Esse homem estava a dizer, mais ou menos, que por uma bebida era capaz de contar uma história e foi então que me decidi de vez a ir dar o meu passeio.

Sloan acenou com a cabeça. Podia-se ver perfeitamente a razão por que Cartwright era um barão da indústria. Não gastava palavras, indo logo direito ao objectivo. Ele estava a dar a impressão de querer ajudar, também, mas até agora tinha dito a Sloan apenas uma coisa que ele não sabia. Sloan observou a figura do visitante. Os almoços de negócios não lhe tinham deixado grandes marcas. Era de altura mediana, mas suficientemente forte para acertar uma pancada com uma arma qualquer (desde um pesa-papéis a uma bala de canhão) na cabeça duma mulher desprevenida. Não era uma pêra doce para qualquer um, mas também não era qualquer um que podia dirigir uma das maiores empresas privadas do país. Não se podia alcançar grande coisa quando havia escrúpulos e falta de resolução - e talvez não houvesse muito de uns mas havia demasiado da outra. Sloan não sabia. Era apenas um polícia.

- Mas aquilo que me intriga acima de tudo - dizia Cartwright - é saber quem poderia ter querido matar a minha prima Josefina.

- Apenas o senhor - replicou Sloan bem disposto.

Não houve qualquer explosão de revolta ou censura.

- Não a matei - afirmou tranquilamente Harold Cartwright.

- Talvez não - concedeu Sloan. - Mas o facto de ela estar morta poupou-lhe uma série de complicações, não é verdade?

O homem fitou-o pensativamente.

- Ainda não tenho a certeza, por enquanto. Foi por isso que vim falar consigo. Queria pedir-lhe uma coisa.

- O senhor não quer - observou Sloan amavelmente - que o presidente do conselho de administração da Consolidated Carbon seja publicamente relacionado com a falecida irmã Ana do Convento de Santo Anselmo, de Cullingoak, que morreu em circunstâncias duvidosas na quarta-feira - foi essa a razão por que o senhor ficou aqui nesta aldeia, pronto para qualquer interrogatório, em vez de ter voltado para Londres onde seria possível que nós fôssemos ter consigo.

- Inspector, se o senhor algum dia deixar a Polícia e quiser um emprego, vá falar comigo.

- Obrigado, senhor, mas sinto que tenho direito à minha pensão de reforma. E vou gozá-la. Esse pedido para que não haja qualquer publicidade... suponho que o senhor gostaria que ela ficasse suspensa até um minuto depois das dez horas da manhã de quinta-feira?

Cartwright expirou audivelmente.

- Exactamente até esse momento, inspector. É muito importante.

- Também o assassínio é muito importante - replicou Sloan.

Bullen veio ao telefone com muita rapidez.

- Leite quente? - ecoou estupidamente.

- Qualquer coisa sobre leite - explicou Sloan. - Pense, homem, pense. O que foi que Tewn disse exactamente a respeito de leite quente?

- Nada - respondeu Bullen prontamente.

Sloan suspirou.

- Uma testemunha disse-me que, enquanto vocês todos estavam a ver o boneco pegar fogo, Tewn fez qualquer observação sobre leite quente...

- Oh, isso - pronunciou Bullen. - Não sabia que se estava a referir a isso.

- É a isso mesmo que me refiro.

- Tenho de pensar, inspector.

Sloan ficou à espera com toda a paciência de que era capaz enquanto Bullen forçava a sua memória.

- Estava lá aquele homem...

- Que homem? Lá onde?

- Um parceiro qualquer da cidade, um estranho, que foi ver a fogueira. Disse qualquer piada sobre o hábito da freira e espantou-se que nós o tivéssemos arranjado. Eu disse que tinha sido canja.

- Tão fácil como roubar o leite a uma criança cega?

- Exactamente, inspector, e então Tewn disse que era tudo uma questão de se conseguir aquecer o leite o suficiente.

- Que queria ele dizer com isso?

- Estava a brincar, inspector. Nós tínhamos tido naquela tarde uma aula sobre a criação de vitelos. Tínhamos estado todos a discutir o assunto, isto é, todo o segundo ano, quando o director entrou e disse que era tudo uma questão de se conseguir aquecer o leite o suficiente, pois nesse caso tudo o resto correria bem.

- Oh, estou a ver - comentou Sloan.

- Foi uma saída inteligente do pobre Tewn, não foi? Fez todos nós começarmos às gargalhadas. Pelo menos, todos os do segundo ano. Havia mais alguma coisa, inspector, que quisesse saber?

- O quê? Oh, não. Não, obrigado, Bullen. Era tudo.

Luston era a maior cidade de Calleshire. Calleford tinha o seu mosteiro, a sua administração do distrito, a sua história. Luston estava voltada para o trabalho.

Sloan e Crosby descobriram a Rua Frederick num bairro da cidade que fora outrora elegante, mas que era agora sujo e arruinado, entrecortado aqui e além por supermercados de grandes montras de vidro e com alguns espaços vazios para novas construções modernas. Chegaram lá muito antes das quatro da tarde, tendo tido dificuldades com o trânsito desde o centro da cidade até aos subúrbios. A maior parte dos habitantes de Luston parecia ter saído para fazer compras, mas entre esses não se contava a ocupante do nº 144 da Rua Frederick. A cortina de renda tremeu quando o carro parou à porta, mas, para além disso, pareceu decorrer um ano antes que a porta fosse aberta. Uma mulher apareceu no limiar, descuidadamente vestida com roupas sem qualquer feitio ou adorno e com o cabelo liso muito curto e espetado.

- Boa tarde! - cumprimentou ela timidamente.

- Miss Eileen Lome? - Não podia ser outra pessoa, pensou Sloan, não com aquele cabelo.

Ela acenou afirmativamente.

- Quer fazer o favor de nos conceder um minuto ou dois? Viemos falar consigo sobre o Convento de Santo Anselmo.

O rosto dela iluminou-se durante um momento, mas depois enevoou-se.

- Não são dos jornais?

- Não. Eu sou o inspector-detective Sloan, do C. I. D. de Berebury e este é o cabo Crosby, meu adjunto.

- Isso é diferente. Querem entrar? - Dirigiu-se à frente deles até à sala de estar. - Não quero falar com os jornalistas. Não seria correcto.

- Compreendemos perfeitamente. - Sloan mostrava-se muito mansinho. - Não vamos demorá-la muito.

A sala de estar mostrava-se agressivamente nua. Miss Lome apontou-lhes duas cadeiras de braços estofadas e escolheu para si uma com assento de madeira e costas direitas.

- Não consigo habituar-me a essas cadeiras moles - observou.

Sloan distendeu-se sem qualquer conforto numa cadeira que ele nunca teria deixado entrar em sua casa, quanto mais sentar-se nela.

- Não, miss?

- Querem tomar uma chávena de chá? - sugeriu Miss Lome. - A minha irmã ainda não voltou das compras, mas eu creio saber onde se encontra tudo.

- Não, obrigado, miss. Gostaríamos antes de falar consigo.

Ela pôs a cabeça de lado numa expressão de quem se dispõe a ouvir com toda a atenção. Sloan calculava que ela tivesse uns quarenta e cinco anos, talvez um pouco mais. Havia nela qualquer coisa indefinivelmente jovem que tornava os cálculos difíceis.

- Quando saiu do convento?

- Há vinte e quatro dias.

- Porquê? Desculpe... é uma pergunta muito pessoal, .eu sei, mas tenho de...

- Comecei a ter dúvidas sobre se a minha vocação era realmente verdadeira.

- Quanto tempo lá esteve?

- Vinte e cinco anos.

- Vinte e cinco anos?

- O tempo lá tem um significado diferente - declarou ela inexpressivamente.

- Seja como for - persistiu Sloan, já não tão amavelmente -, ainda é um grande período de tempo, ou não? Uma pessoa pensaria...

- É diferente - respondeu ela na defensiva - para aquelas que entram para lá mais tarde. Parecem mais... bem, mais seguras. Sabem muito bem o que querem e o que querem é estar lá. Provaram isso a si próprias e, de qualquer modo, são mais velhas.

Sloan concordou com um aceno de cabeça. A palavra de que ela estava à procura era "maduras". Não a sugeriu.

- Mas as restantes de nós - continuou ela - pensamos que temos a certeza aos dezassete anos... ninguém pode deixar de espantar-se, é claro. E então cresce dentro de nós o sentimento de que não somos verdadeiras filhas da Igreja. - Abanou a cabeça com tristeza. - É uma coisa horrível perder-se a vocação.

A cara de Crosby era um autêntico campo de batalha.

- Tenho a certeza que sim, miss - apressou-se a dizer Sloan. E não valia a pena perguntar a um polícia onde descobrir uma delas. Eles não tratavam de vocações perdidas. - E elas deixaram-na sair, miss?

- Não foi assim tão simples como isso, mas foi isso o que realmente veio a acontecer. - Passou uma das mãos pelo cabelo espetado. O gesto dela era canhestro e sem graça. - Agora as coisas estão a ficar um pouco menos estranhas. A minha irmã recebeu-me, como sabem. Ela tem-se mostrado muito boa, se bem que não compreenda como tudo é diferente aqui e lá. As mínimas coisas.

- Sim, miss, deve ser.

A perda de vocação da antiga irmã Berta, agora já de posse do seu verdadeiro nome de Eileen Lome, não parecia ter qualquer relação com a morte da irmã Ana. Nesse aspecto, a Madre Superiora parecia ter razão. Sloan suspirou. Tinha parecido uma pista tão interessante. Além de ficar com a certeza...

- Não sei se tem tido notícias do convento, ultimamente?- perguntou ele.

- Refere-se à irmã Ana? A minha irmã mostrou-me o jornal esta manhã. - Sorriu timidamente.- Pensou que podia interessar-me.

- Conhecia-a bem, é claro?

- Evidentemente, inspector. Compartilhámos a mesma vida da comunidade durante mais de vinte e cinco anos.

- Fale-me dela - pediu Sloan.

Miss Lome não necessitou de qualquer persuasão.

- Ela tinha professado cerca de quatro anos antes de mim - no ano em que eu me tornei postulante, segundo julgo, se bem que seja um período de tempo demasiado longo para que eu me recorde com exactidão. Ela tinha desistido duma vida muito divertida em Londres, como sabem, para se tornar freira. - Miss Lome olhou em volta da modesta sala de estar, economicamente mobilada, parcamente decorada. - Bailes, festas, Londres... todas essas coisas. A família dela tinha dinheiro, creio...

Sloan acenou com a cabeça.

- Isso preocupava muito a irmã Ana - observou Miss Lome.

- O que é que a preocupava?

- Todo aquele dinheiro.

Sloan leu a expressão no olhar de Crosby com tanta facilidade como se ela estivesse impressa. Uma boa porção de dinheiro não o teria preocupado a ele, dizia o seu olhar. Dessem-lhe a possibilidade e ele provaria isso.

- De que forma é que ela estava preocupada? - inquiriu Sloan.

- Era de onde ele tinha vindo todo, inspector. Ela pensava que o mal residia aí. O dinheiro tinha provindo dum processo de fabrico qualquer que se mostrara muito valioso para fabricar munições durante a Primeira Guerra Mundial. Mas metade da firma seria dela um dia e, então, ela tencionava fazer a restituição.

Sloan sentiu uma momentânea simpatia pelo primo Harold.

- Ela sempre teve grande interesse pelas missões religiosas no estrangeiro - continuou Miss Lome. - Ela pensou que esse era um meio que ela podia utilizar.

A expressão no rosto de Crosby, se bem que ainda de leitura fácil, tinha mudado para incredulidade.

- Ela tinha a intenção de vender a sua parte na firma?

- Exactamente. Assim que lhe chegasse às mãos.

- E isso era do conhecimento de todas?

Miss Lome acenou rapidamente com a cabeça.

- Sabíamos que isso era uma coisa que a preocupava.

- Durante todos esses anos?

- O tempo - repetiu Miss Lome tristemente - tem um significado diferente num estabelecimento religioso.

Ela podia ter deixado o convento, mas tinha trazido consigo o treino duma vida inteira. Quando não estava a falar, os seus olhos voltavam-se para o chão e as suas mãos pendiam, cruzadas, no seu regaço. Num vestuário sem formas e sem graça, a cara completamente limpa de qualquer maquilhagem, a sua atitude sem artifícios, tudo isto tornava grotesca a figura da freira que perdera a vocação.

- Não obstante - observou Sloan pedantemente - a senhora deve ter ficado muito surpreendida e chocada quando leu a notícia do assassinato...

Outro rápido aceno de cabeça.

- Tinha estado a tentar com toda a força não pensar no passado... até hoje. Agora, não sou capaz de pensar noutra coisa que não seja a irmã Ana. - Conseguiu recompor-se com um esforço. - No entanto, não devemos estar sempre a pensar em coisas más, pois não? Também houve momentos muito felizes. - Miss Lome fitou o inspector através dum véu de lágrimas e acrescentou pensativamente: - Quando tudo parecia perfeito.

- Sim, miss, tenho a certeza que houve momentos desses. Diga-me uma coisa: já esteve alguma vez tentada a voltar para lá depois que se veio embora?

Uma cor avermelhada espalhou-se-lhe pelas faces e Crosby pareceu sobressaltado. Miss Lome sentia-se envergonhada.

- Fui só até ao portão, inspector. Não até lá dentro. Há uma parte do convento que se pode ver da estrada se uma pessoa souber por onde olhar...

- O fotógrafo do jornal descobriu esse lugar.

- Exactamente. Cheguei até esse ponto... apenas para dar uma vista de olhos, o senhor compreende. Foi uma patetice sentimental da minha parte, suponho.

- Quando?

- O engraçado é que foi mesmo esta manhã.

 

- Muito bem, muito bem - comentou o superintendente Leeyes, erguendo a voz. - Fale-me agora de alguém que não tenha estado no convento esta manhã, para variar. Se quer saber a minha opinião, toda essa malta de suspeitos esteve lá: Hobbett, Cartwright, MacAuley, Ranby, Bullen, Parker, cinquenta freiras e, agora, essa mulher. Qualquer um deles poderia ter morto Tewn. Qualquer. É de espantar como ele não foi espezinhado até morrer por essa multidão toda.

- Esta mulher diz que chegou apenas ao portão, senhor.

- Tewn também não chegou muito mais longe, pois não? E veja o que lhe aconteceu.

- Sim, senhor.

- E quanto a ela ter dito que só tinha chegado até ao portão, como é que sabe que foi assim? Como é que sabemos que não foi mais longe do que aquele portão, na quarta-feira? Suponha que ela é a resposta para o caso de ser um trabalho de dentro e um trabalho de fora... um pouco das duas coisas, de facto? O que é que impediria que ela tivesse ido até lá dentro na quarta-feira, metendo-se sem ser apercebida na parte de trás da capela para comparecer a um desses eternos serviços religiosos e, depois disso, ficar lá à espera? Você disse-me que as freiras não sabem quem entra naquela capela, ido de fora, para assistir a esses serviços. Depois, tudo quanto ela tinha a fazer era ficar à espera em qualquer parte até logo a seguir ao jantar. Ela sabia onde podia encontrar o velho hábito. E como vesti-lo.

- Sim, senhor.

- Então, depois do jantar, espera naquele corredor com uma arma que, você já mo provou, deve ter provindo do próprio convento, se bem que não consiga encontrá-la.

- Não, senhor.

- Depois mata a irmã Ana, ouve alguém aproximar-se e mete-a à força na arrecadação das vassouras. Provavelmente fica lá dentro com ela. E às oito e meia sai de lá sorrateiramente para assistir a mais um desses serviços.

- Missa de vésperas.

- Para que não seja dado o alarme antes da manhã seguinte. É a última a entrar, sabendo que as outras são demasiadamente senhoras para erguerem os olhos, finge que apanhou uma constipação e mantém a cara metida num lenço. Provavelmente é também a última a sair, depois, enquanto as outras sobem para se irem deitar, ela desce o corredor silenciosamente e esconde-se em qualquer parte até tudo estar sossegado.

- O necessário? - sugeriu Sloan.

- O quê?

- A casinha, senhor.

O superintendente ficou com o rosto purpúreo.

- Muito provavelmente, Sloan, muito provavelmente. Estava a esquecer-me - acrescentou selvaticamente - que elas não são fadas. Depois, quando todas as outras estão Já metidas nas suas celas bonitas e quentinhas, ela sai de lá, vai até à arrecadação das vassouras, atira com o cadáver da irmã Ana pelas escadas da despensa e volta a toda a velocidade para Luston.

Sloan examinou o tecto.

- Deixando o hábito na despensa para Tewn, que chega dez minutos depois e o leva?

Leeyes arregalou os olhos.

- Ou, alternativamente - continuou Sloan, desviando os olhos para o soalho -, ela atira, por acaso, o hábito para ali e, por acaso também, Tewn aparece para o levar?

- Tewn foi lá por uma combinação prévia, não foi? - Leeyes pisava o caminho com subtileza.

- Combinação feita com Hobbett, senhor. Ele prometera deixar o hábito lá para os estudantes e deixar a porta da despensa apenas encostada.

- Alguém tomou conhecimento dessa conspiraçãozita, Sloan.

- Sim, senhor, a menos que...

- A menos que, o quê?

- A menos que fosse um trabalho completamente de dentro. Nessa altura não interessaria nada aquilo que acontecera à porta de fora da despensa e ao hábito.

- Quem teria estado a mentir?

- A irmã Damião.

Leeyes encolheu os ombros.

- Não gosto de coincidências. Nunca gostei.

- Nem eu, senhor, mas deve concordar que elas acontecem.

O superintendente soltou um resmungo sem um significado definido.

- Que vai fazer agora?

- Vou voltar ao convento com o sargento Perkins, senhor.

- Já trouxeram Hobbett?

- Ainda não, senhor.

- Há sempre a possibilidade, suponho - observou Leeyes esperançosamente -, que ele esteja a pisar os calos duma delas... - Os outros três parceiros de golfe deviam estar agora a chegar ao décimo oitavo buraco, sem ele. - Sloan...

- Senhor?

- Essa mulher, Eileen Lome, porque saiu ela do convento?

- Perdeu a vocação - respondeu Sloan, fechando a porta atrás de si muito devagarinho.

O sargento Perkins encontrava-se no gabinete do inspector quando Sloan lá regressou.

Fez um cumprimento de cabeça.

- Que sabe sobre conventos, sargento?

- Sei que não é permitido ter espelhos lá - respondeu ela. Era uma rapariga muito atraente.

- Pobrezinha - comentou Sloan sem a mais pequena simpatia.- Bom, quanto ao nosso caso...

Ela dirigiu um sorriso para o adjunto do inspector.

- O cabo Crosby já esteve a descrever-me o quadro, inspector.

Sloan resmungou.

- Não é um quadro muito bonito. Dois assassínios em quatro dias. Não sei o que se passa lá para os vossos lados, mas para nós isto sai da vulgaridade.

- Também para nós, senhor. Normalmente, as nossas questões são relativas a marido e mulher.

Sloan pegou nas folhas de papel que a Madre Superiora lhe tinha mandado naquela manhã.

- Deram-nos uma lista de todas as freiras que se encontram lá, onde está registado o... o nome de origem e o nome religioso e o que cada uma disse que estava a fazer depois do jantar de quarta-feira. Agora suponho que precisamos de saber o que é que elas dizem que estavam a fazer esta manhã.

- Não se preocupe com isso, senhor, pois é mais recente que quarta-feira. Não é natural que se tenham esquecido.

- Há essa vantagem - admitiu Sloan. Obviamente, a sua interlocutora era uma optimista, o que era uma mudança em relação ao superintendente.

- Quantas são elas, senhor?

- Um pouco mais de cinquenta. - Este número desanimaria logo alguém quanto às entrevistas. - E todas elas sempre com os olhos metidos no chão para não serem consideradas curiosas, inquisitivas ou seja lá o que for que lhes queiram chamar.

Ela acenou com a cabeça.

- E - acrescentou ele para dar bem a medida de tudo - elas não parecem pensar que é correcto ter sentimentos humanos normais em relação às pessoas. Já alguma vez tentou entrevistar pessoas sem sentimentos humanos normais, sargento?

- Muitas vezes, inspector. A maior parte do trabalho relativo aos adolescentes vem parar às minhas mãos.

Ele não riu. Nunca ninguém ria na força policial de Calleshire quando se pronunciava a palavra "adolescente". Voltou-se para Crosby.

- Conseguiu alguma coisa dessa lista?

- Sim, senhor. Há quatro freiras que entraram na ordem já com certa idade, como disse Miss Lome. São a irmã Margarida, a irmã Lúcia, a irmã Ágata e a irmã Filo-mena. A julgar pelas datas e idades de todas as outras, essas vieram para lá directamente da escola.

- Pobrezinhas! - comentou o Sargento Perkins impulsivamente.

- E essas quatro?

- Na casa dos vinte e muitos, uma; de trinta e tais, duas; e uma na casa dos quarenta.

- Qual é essa?

- A irmã Ágata. Veio para cá do - desfolhou as listas - Burrapurindi Mission Hospital.

- É agora uma república - observou Sloan laconica-mente. - E as outras que entraram já com certa idade?

- A irmã Filomena e a irmã Margarida parece que foram professoras antes.

- A selva do quadro preto.

- E a irmã Lúcia - tornou a desfolhar as listas - não tem aqui registada qualquer ocupação... apenas que veio de West Laming House, West Laming. Não é um dos melhores endereços, apesar de tudo, senhor.

- Não?

- Não, senhor. Uma delas veio dum castelo. Engraçado deixar um castelo para ir viver num convento.

- Provavelmente é a única que não sentiu o ambiente frio. Qual delas é essa?

- A irmã Radigundes.

Sloan acenou com a cabeça.

- Poder-se-ia pensar que a irmã Ágata seria aquela que se encarregaria das doentes, dado ter sido enfermeira, mas suponho que isso seria simples de mais para elas.

- Há também uma lady, senhor.

- Todas elas são ladies, Crosby, esse é o problema delas.

- Não, senhor. Refiro-me a uma lady autêntica. Consta aqui isso mesmo. Lady Millicent.

- E que é ela agora?

- Madre Maria Santa Brísida.

O sargento Perkins inclinou-se para a frente.

- Algumas são madres, não é, inspector?

- Um título dado por cortesia, sargento, garanto-lhe. Em compensação dos longos anos de serviço, suponho,

Crosby produziu um ruído qualquer que podia ser um soluço.

Sloan favoreceu-o com um olhar gelado.

- Há aí mais alguma coisa, Crosby?

- Apenas a Madre Superiora, senhor.

- O que há sobre ela?

- O nome dela era Smith, senhor. Maria Smith, do Bar Potter.

Os três pararam no patamar da entrada do convento e tocaram a campainha. Estava já bastante escuro. Podiam ouvir a campainha ecoar através do edifício e, depois, os passos lentos da irmã Policarpo a vir na direcção deles.

O sargento Perkins tremeu, arrepiada.

- A outra única coisa que sei a respeito das freiras é que antigamente eram emparedadas vivas se cometiam algum pecado.

Sloan não estava interessado. Como oficial da polícia interessava-se pelo crime, não pela punição.

- Houve aquela freira que foi assassinada em mil trezentos e cinquenta e um - proferiu Crosby inesperadamente. - Por um jovem filho enlouquecido. !

- Qual foi essa? - inquiriu Sloan.

Na luz que se reflectia no patamar da entrada, podia ver-se que Crosby tinha corado. Deglutiu e entoou:

Uma freira muito zaragateira Queria vingar-se à sua maneira; E as pessoas que iam lá visitá-la Encontravam-na logo à entrada da sala.

- O orfeão da polícia - gaguejou ele a toda a pressa. - Nós cantávamos isso... quatro de nós... é de Noel Coward.

A irmã Policarpo destrancou a porta e abriu-a.

- Desculpem tê-los feito esperar. Estava na cozinha.

- Não faz mal nenhum - replicou Sloan. - Aqui o cabo Crosby esteve a entreter-nos com um refrão do Sr. Noel Coward.

- Coward? - A irmã Policarpo fungou. - Creio que nunca ouvi esse nome. Devia conhecê-lo?

Sloan fitou-a respeitosamente.

- Oh, irmã, não faz ideia daquilo que perdeu quando deixou o mundo.

- Oh, sei, sim jovem. Pode acreditar que sei.

A antiga Maria Smith do Bar Potter, agora Madre Superiora do Convento de Santo Anselmo, encontrava-se no salão para os receber.

Sloan apresentou o sargento Perkins.

- Lamento muito mais esta intrusão, Ma, mas o superintendente insiste...

- E o nosso bispo concorda, inspector, de forma que não precisa de preocupar-se com isso. Compreendemos as suas dificuldades.

Uma hora mais tarde, Sloan perguntava a si mesmo se seria realmente assim.

Era um trabalho lento, penoso, falar com uma freira após outra, cada uma delas com os olhos timidamente pregados no chão, com as vozes num tom baixo e discreto, tendo de se fazer a cada uma perguntas específicas.

- O que fez imediatamente depois do jantar de quarta-feira, irmã?

- Fiquei a lavar a louça.

- Estive a descascar os legumes para o dia seguinte, inspector.

- Fui preparar a capela, inspector.

- Varri o refeitório, inspector.

- Escrevi orações em alguns cartões de boas-festas, inspector.

- Fiz um pouco de crochet, inspector.

- Fui autorizada a escrever uma carta, inspector.

- Estive a estudar um livro sobre a vida da nossa fundadora, inspector.

E a cada uma:

- Quando foi a última vez que viu a irmã Ana?

Como se fossem uma única, todas responderam:

- Ao jantar, inspector.

Alguém tinha estado no seu lugar na missa de vésperas, elas sabiam agora isso, mas não tinham qualquer sugestão para fazer. Nenhuma tinha visto nada fora do normal, quer naquele momento quer em qualquer outra altura. Ou se tinham, não iam comunicá-lo a Sloan e àquela mulher jovem e bonita que se encontrava ao lado dele.

As respostas também não eram muito diferentes quando ele lhes perguntou sobre os acontecimentos daquela mesma manhã.

A mesma cantilena da lavagem da louça, dos trabalhos culinários, das rezas.

- Tudo coisas rotineiras - observou para o sargento Perkins num intervalo entre duas freiras.

- Elas não parecem infelizes - observou ela.

- Não creio que o sejam. Desde que uma pessoa se habitue, tenho a certeza que é uma bela vida.

Ela sorriu.

- Para mim não, senhor.

- Não - concordou Sloan. - Não creio que o fosse.-Mande entrar a seguinte, Crosby.

Havia rostos que ele começava a conhecer agora. Algumas características próprias identificavam-nas apesar dos esforços estrénuos delas para as suprimirem.

A irmã Hilda, cujos olhos vivos e móveis, assim como a voz harmoniosa, desmentiam o seu hábito sombrio. Ela nada tinha visto, nem na quarta-feira nem no sábado.

- Mas isso não é coisa que surpreenda, inspector, pois não? Aquele corredor é escuríssimo de dia, calcule o que não será de noite. E nós aqui não dispomos de uma iluminação muito clara, pois não? Quanto a esta manhã, desde que se fique fora do alcance das janelas, praticamente tudo pode acontecer.

- Alguém poderia sair do edifício sem ser observado?

- Provavelmente não, mas - declarou ela francamente - qualquer uma pode ir até aos terrenos lá de fora sem que alguém pergunte porquê. Não seria assunto que dissesse respeito às outras, o senhor compreende, de forma que elas não reparariam nesses movimentos, se é que o senhor compreende o que quero dizer.

Havia também a irmã Damião, de lábios muito finos, que não se curvava nem um milímetro se não se encontrasse na presença restritiva da Madre Superiora.

- Se eu tivesse visto qualquer coisa suspeita, tê-la-ia comunicado à madre imediatamente - declarou.

- E esta manhã?

- Estive a limpar o pó na biblioteca. Não vi nem ouvi nada fora do habitual.

- Conhece Miss Eileen Lome, é claro?

Ela abanou a cabeça.

- O nome não me diz nada, inspector.

- A irmã Berta, era ela...

- Ah, sim. - As suas feições esguias assumiram uma curiosa expressão que era uma mistura de pena e de desaprovação.- A antiga irmã Berta.

- Voltou a vê-la depois de ela ter ido embora daqui?

- Nenhuma de nós voltou a vê-la, inspector, desde que ela renunciou aos votos. Não teria sido próprio.

E quase das últimas, a irmã Lúcia. Entrou, sentou-se, com as mãos serenamente entrecruzadas em cima do regaço, esperando que Sloan falasse.

- É um pouco estranho, irmã, entrevistá-la no seu próprio salão, mas... hum, é absolutamente necessário. Esta é o sargento Perkins que veio de Calleford.

Duas mulheres vestidas com uniformes muito diferentes olharam uma para a outra. Cada uma tinha a sua própria personalidade, concluiu Sloan, mas normalmente os uniformes acentuavam-na.

- Já está novamente de posse das suas chaves, irmã, estou a ver.

Ela deu uma pancadinha no pesado molho que pendia da sua cintura.

- Sim, inspector, este é o distintivo do meu trabalho. Sem elas sentir-me-ia perdida.

- Irmã... esse rapaz que morreu, William Tewn, conhecia-o?

- Não, inspector. Nunca tinha ouvido falar nele até hoje de manhã.

- Nem o tinha visto?

Ela abanou a cabeça.

- Nunca. Nem os dois outros rapazes que vieram com o Sr. Ranby. Os estudantes podem ser vistos dos terrenos do convento quando estão a trabalhar nas terras do instituto, mas nunca estão suficientemente perto para que possam ser identificados e tenho a certeza que nenhuma irmã...

- No nosso trabalho, somos obrigados a fazer muitas perguntas - interrompeu-a ele implacavelmente. - E elas podem parecer irrelevantes. - No entanto, não o eram, disse para si próprio. Ela estava pálida e a tremer quando ele se encontrara com ela à porta do convento nessa mesma manhã, depois do segundo assassínio. Tinha observado isso com os seus dois olhos, o que tornava o assunto uma prova fria e dura.

- A irmã veio para o convento em idade mais avançada que a maior parte...

Ela baixou a cabeça.

- Foi assim mesmo. Professei há apenas dez anos.

Era quase cómico ver a mulher-sargento Perkins fazer um cálculo rápido da idade da irmã Lúcia tendo em vista o material que estava à sua disposição.

- Anos felizes? - inquiriu Sloan.

- A princípio, era tudo muito estranho, inspector, mas gradualmente vai-se tornando uma vida compensadora.

- A maior parte das suas... hum, colegas, vieram para aqui directamente da escola; nesse caso é permitido entrar mais tarde?

Ela acenou com a cabeça.

- É permitido, inspector. Não acontece com muita frequência. Eu não tinha qualquer intenção de vir a ser freira quando saí da escola, compreende, mas a minha tia (fui criada com uma tia) conseguiu obter a dispensa da muito Reverenda Madre Geral.

- Compreendo - observou Sloan. - Obrigado, irmã.

Ele não viu, mas o sargento Perkins viu.

- O que é que uma mulher tão bonita como esta está a fazer num convento? - perguntou astutamente depois de a irmã Lúcia se ter ido embora. - É um grande desperdício. Meta-a num vestido decente e ela até fará parar o trânsito. Aposto que tem também umas pernas bem boas...

- Nunca saberemos - replicou Sloan. - Ou acha que sim?

- É claro - continuou o sargento Perkins -, toda aquela conversa da timidez que elas representam (sobrolho franzido, olhar no chão e tudo o resto) é muito atraente, mas não há dúvida que ela é mesmo bonita, não acha?

- É um duplo assassínio que estamos a investigar - recordou Sloan secamente. - Não recolhimento. E também não foi a bonita que apanhou a sua conta. Foi aquela que tinha cinquenta por cento das acções da Consolidated Carbon dos Cartwrights.

- E essa era feia?

- Não tanto como algumas que vimos esta tarde - declarou Sloan, querendo mostrar-se justo - mas bastante feia.

O sargento Perkins suspirou.

- Portanto, não foi o Galaad dela que esteve na missa de vésperas, disfarçado de freira, para a raptar do convento?

- Se foi realmente alguém - disse Sloan - foi o assassino.

- Tal como diz a história?

- Que história?

O sargento Perkins arregalou os olhos.

- Ainda não a ouviu, senhor?

- Por enquanto, não - respondeu lugubremente Sloan -, mas vou ouvir. Vejamos - desviou o olhar dela para o cabo. - Crosby já a ouviu?

- Sim, senhor. Muitas vezes. - Tossiu atrapalhado.- Cantam-na sempre que eu entro na cantina.

- Ah sim? Suponhamos que a canta para mim agora...

- Cantá-la, não, senhor. Não sei cantar.

- Quero ouvi-la, Crosby, e depressa.

Crosby aclarou a garganta e conseguiu cantarolar:

Podes beijar uma freira uma vez, Podes beijar uma freira duas vezes, Mas não deves entrar no 'hábito'.

 

- É você, Sloan?

O inspector manteve o auscultador do telefone do convento a uma distância conveniente dos berros do superintendente.

- Daqui fala Leeyes - informou a voz desnecessariamente.

- Boa noite, senhor.

- É só para lhe dar a conhecer - trombeteou o superintendente - que o resto da força não tem estado a descansar enquanto você esteve sentado aí no salão com o sargento Perkins.

- E cinquenta freiras, senhor.

Leeyes preferiu ignorar isto.

- Apanhámos Hobbett. Está à sua disposição.

- Óptimo - respondeu Sloan calorosamente. - Preciso de trocar umas palavras com ele.

- Apanharam-no no The Dog and Duck logo a seguir à hora da abertura.

- Mantenham-no aí, senhor, eu volto já para aí.

- Eu não estava disposto a deixá-lo ir embora, Sloan, se bem que ele tenha estado a invocar todos os nomes que você conhece. E mais alguns. Disseram-me que ele mal teve tempo de beber o primeiro copo, de forma que está realmente a bufar.

- Isso convém-nos realmente, senhor. Pode fazer o favor de o deixar esfriar por aí mais um pouco enquanto eu vou ali ao instituto? Há uma coisa que quero perguntar lá.

- Não me importo, Sloan, se bem que julgue que o sargento de serviço não é da mesma opinião. Contudo, você pode depois amansá-lo. E por falar em sargentos, Sloan...

- Senhor?

- O sargento Gelden apareceu de volta, finalmente. Com o tal bígamo. O parvo idiota.

É claro que ele devia querer referir-se ao bígamo...

- Quer que ele vá substituir o Crosby?

Sloan suspirou.

- Não, senhor. Nesta altura do caso, não. Ficarei com Crosby, agora que ele está dentro do assunto, mas se o senhor puder dispensar Gelden, gostaria muito que ele fosse a West Laming em meu lugar.

- Esta noite? - Osoutros deviam estar já a passar o décimo nono buraco antes que o superintendente tivesse tempo de chegar ao clube de golfe. - Lugar estranho para se mandar um homem num sábado à noite.

- Sim, senhor. - Sloan voltou rapidamente as folhas do seu bloco-notas, olhando para a sua própria caligrafia. As lâmpadas eléctricas naquele corredor eram piores que candeias de azeite. - Quero que ele descubra tudo quanto possa sobre uma tal Felicity Ferling que saiu de lá há cerca de dez anos.

- Suponho que sabe o que está a fazer, Sloan.

- Sei, sim, senhor. - Alguém tinha dito um dia: "Nunca peças desculpa, nunca expliques." Alguém com maior confiança em si próprio que ele. Disraeli, teria sido? - E diga-lhe - acrescentou Sloan sem pressas - para me telefonar de lá. Que não espere até estar de volta.

- Ele não estará de volta, pelo menos esta noite. West Laming deve ficar a mais de cento e cinquenta quilómetros.

- Sim, senhor, mas se ele partir agora, poderei ter notícias dele antes das dez.

O superintendente tomou outro caminho.

- Conseguiu alguma coisa dessas mulheres todas?

- Não tenho a certeza, senhor - respondeu Sloan.- São um grupo muito estranho. Não são nada como as testemunhas habituais. Elas não se admiram seja com o que for porque acham que isso não é correcto.

- Não se deve olhar para não pecar, hem?

- Exactamente, senhor.

O sargento Perkins acompanhou-os ao instituto.

- Posso precisar de si - explicou Sloan. - Espero que a noiva de Ranby se encontre lá. Tem boas pernas e, pelo menos, você pode vê-las.

- Não tem uniforme?

- Eu não diria isso. Um conjunto clássico de lã, um fio de pérolas, uma saia discreta...

- Uma dessas da alta - observou Perkins com ar de compreensão.

- Simpática rapariga, de qualquer modo, é a minha opinião. Ela não abandonaria Ranby numa ocasião destas.

Não só encontraram Célia Faine com Ranby no gabinete do director, mas também o padre MacAuley.

- Um caso triste, muito triste - comentou o vigário.

- Terrível - acrescentou Ranby. - Uma vida tão jovem, ceifada desta maneira... Não faz sentido. Pode-se perguntar se está a fazer progressos, inspector?

- Em alguns sentidos - respondeu Sloan ambiguamente.

- Os pais dele estarão cá por volta do meio-dia de amanhã. Não que isso sirva para alguma coisa. Já sabemos bem quem ele é. - O director parecia agora muito mais velho.

- No entanto, não sabemos grande coisa a respeito dele - comentou Sloan inexpressivamente.

- Nós também não, posso dizê-lo. A nossa tendência é conhecer melhor aqueles que se rebelam contra a autoridade (é triste mas é verdade) e Tewn não era desses. Parecia um rapaz em quem se podia confiar; não um estudante excepcional, note bem, mas aplicado.

- Ele tinha-se recordado de uma coisa que o senhor lhe ensinou - observou Sloan.

Ranby torceu os lábios num sorriso forçado.

- Sinto-me muito satisfeito por saber isso. O que foi?

- Qualquer coisa sobre criação de vitelos. É tudo uma questão de se conseguir o leite suficientemente quente.

A cara do director ficou tensa.

- Conseguir o leite suficientemente quente? - ecoou.

- Exactamente, senhor. Quando se alimentam vitelos com biberão, o senhor ensinou-lhes (na quinta-feira à tarde, seria?) que fazer os vitelos beberem o leite era tudo uma questão de se ter o leite suficientemente quente.

- Assim foi, realmente - admitiu Ranby enfadado -, mas o que é que isso tem a ver com a morte de Tewn?

- Não sei dizer-lho - murmurou Sloan equivocamente. - Não sei dizer-lhe absolutamente nada. Agora, senhor, sabe se esse rapaz tinha inimigos?

- Apenas um - respondeu Ranby secamente.

- O quê? Oh, sim, senhor, compreendo o que quer dizer. Muito interessante. - Sloan não parecia nada divertido.

- Pobre garoto - observou Célia Faine. - Pelo menos não deve ter sofrido muito. A morte por estrangulamento é uma coisa muito rápida, não?

- Assim mo disseram, miss. - Fitou-a. - A irmã Ana também não deve ter sofrido muito, já que estamos a falar nisso. Apenas uma pancada na cabeça dada com força.

Célia estremeceu.

- Não parece possível. Cuilingoak foi sempre uma aldeia tão pacífica, tão feliz. E agora... - Fez um gesto de desespero. - Duas pessoas inocentes, inofensivas são assassinadas.

- Inocentes, sim - replicou Sloan vivamente -, mas não inofensivas. O problema é esse, não?

O padre MacAuley concordou com um aceno de cabeça.

- O rapaz era inofensivo antes de ter estado no interior do convento. A irmã Ana... podemos ter pensado que ela era inofensiva, mas havia alguém que a queria ver morta. Não foi um acidente. Não podia ter sido.

- Assassínio - afirmou Sloan com firmeza. - Bem planeado e bem executado. - Seguiu-se um pequeno silêncio. - No entanto, não há dúvida que descobriremos oportunamente a pessoa responsável e que é igualmente o assassino desse rapaz, Tewn.

O vigário fez um gesto de concordância.

- Oportunamente, estou certo que sim. Acabo de deixar o convento... não se sentem muito felizes lá por serem deixadas sozinhas esta noite, sem qualquer protecção masculina, mas segundo me informaram o senhor não pode dispensar nenhum homem.

Sloan abanou a cabeça.

- Lamento. É impossível num sábado à noite. O senhor não tem possibilidade de voltar para lá, padre?

- Eu? Certamente, inspector. Compreendo perfeitamente como elas se sentem. As experiências que sofreram nos últimos quatro dias são suficientes para que qualquer um fique apreensivo.

Ranby acenou com a cabeça.

- Eu também as não censuro. Irei até lá consigo, padre, e veremos se conseguimos combinar qualquer coisa para esta noite. E aquele jardineiro ou lá que é que elas costumam lá ter?

- Hobbett? Não - informou Sloan penalizado. - Não podem contar com ele. Encontra-se lá na esquadra para ser interrogado esta noite. De qualquer modo, eu não me responsabilizaria por ele como protector.

- Ranby e eu iremos até lá depois de elas terem jantado e assistido à missa de vésperas - decidiu o padre -, e então disporemos as coisas de forma que se sintam em segurança - A que fiquem em segurança - rectificou o director.

- Obrigado. - Sloan levantou-se para se ir embora.- Havia apenas uma coisa que queria perguntar a Miss Faine...

Célia Faine franziu o sobrolho inquisitivamente.

- Conhece o edifício melhor que ninguém, não é verdade, miss?

- Talvez conheça - concordou ela. - Passei ali a minha infância e as crianças gostam de explorar tudo.

- Diga-me uma coisa... É uma casa velha, eu sei, mas haverá lá algum sítio onde alguém se pudesse esconder? Um pequeno subterrâneo ou qualquer coisa no género?

Ela sorriu.

- Não que eu saiba, inspector. Nada de tão romântico. Ou excitante. - Franziu o sobrolho em reflexão. - É muito grande, eu sei, como eram as mansões antigamente, mas tudo com linhas direitas: o átrio, a capela, a sala de jantar (é agora o refeitório, é claro) um ou dois quartos mais pequenos... a sala de visitas era no piso superior. Espero que seja agora um dormitório. Há ainda a Grande Galeria. Não faço a mínima ideia da serventia que lhe deram agora. E mais nada. Nenhum mistério. - Voltou a sorrir. - A única coisa que descobri quando era criança foi o pilar de suporte ao fundo da grande escadaria. O meu primo e eu estávamos lá a brincar um dia e descobrimos que a esfera que rematava o topo desse pilar podia ser levantada. Está assente num encaixe qualquer e é só rodá-la um pouco e erguê-la. Costumávamos brincar muito com ela.

- Redonda, lisa e pesada e mesmo debaixo dos vossos olhos - ironizou o superintendente Leeys. - Bom, há sangue nela?

- O Dr. Babbe está a examiná-la agora - informou Sloan. - No entanto, já foi limpa três vezes desde quarta-feira à noite e quando estas freiras dizem que limpam, limpam mesmo.

- Aquela irmã com sangue na mão...

- Irmã Pedro.

- Ela tocou na esfera naquela manhã?

- Ela pensa que sim. Ela não pode jurá-lo, mas pensa que toca nela algumas vezes.

- Ela pensa que toca nela algumas vezes - arremedou o superintendente. - Que gente! E ela tocou-lhe alguma vez na quinta-feira de manhã?

- Não consegue recordar-se com exactidão. Pode tê-lo feito.

- Quando foi limpa a esfera?

- É a primeira coisa que fazem logo após o pequeno-almoço. Antes do Terço e da Sexta.

- Que é...?

- Os serviços religiosos delas, senhor.

- Antes de terem dado conta que havia sangue naquele livro?

- No Gradual? Sim, senhor. Não examinaram o livro senão depois. A grande escadaria, os patamares e o átrio são sempre limpos imediatamente após o pequeno-almoço, todos os dias.

Leeyes tamborilou com os dedos na mesa.

- Portanto, continua a poder ser qualquer um, Sloan.

- Qualquer um, senhor, que soubesse que aquela parte do pilar da escada podia ser tirado e que constituiria uma bela arma pesada, ideal para o assassínio.

Hobbett foi realmente uma coisa fácil.

- Não pode deter-me aqui, inspector. Não fiz nada de mal e posso prová-lo. E também não estava a querer fugir. Eu costumo vir até Berebury todos os sábados à tarde.

- O que você fez de mal, Hobbett, foi aceitar que aqueles cavalheiros pudessem entrar no convento. Eu sei que um hábito velho não tem grande valor, mas repare nos sarilhos que provocou. E agora encontra-se envolvido num caso de duplo homicídio quer queira quer não, hem?

- Eu não tenho nada a ver com nenhum homicídio. Apenas me esqueci de fechar a porta à chave na quarta-feira à noite, mais nada. Esqueci-me completamente.

- Você concordou, através duma pequena contribuição - proferiu Sloan em tom firme - em deixar o velho hábito na sua arrecadação da lenha, na despensa, e em esquecer-se de fechar a porta à chave. E os três estudantes, chamados Parker, Bullen e Tewn deviam entrar lá sem ninguém os ver e tirar o hábito. Foi Tewn que entrou lá e Tewn está morto.

- Isso nada teve a ver comigo - protestou Hobbett. - Eu apenas fiz o que o senhor disse. Mudar um pedaço de pano velho dum sítio para outro e esquecer-me de fechar uma porta à chave... isso não é um crime, pois não? Que teve isso a ver com os assassínios?

- Tudo - respondeu Sloan tristemente. - Forneceu a oportunidade.

O telefone estava a tocar quando Sloan voltou para o seu gabinete.

Crosby estendeu-lhe o auscultador.

- Para si, inspector. De Londres.

- Inspector Sloan? Óptimo. Quanto aos nossos amigos Cartwrights e a sua Consolidated Carbon...

- Sim?

- Há uma coisa que eu penso que lhe interessa, inspector.

- Sim?

- Harold, o principal sujeito do nosso inquérito, é altamente considerado, um respeitável homem de negócios. Duro mas honesto.

- E então?

- O pai dele, Joe, não é um tão bom homem de negócios, mas bastante conhecedor da indústria química, no seu tempo. Que já passou, é claro.

- Evidentemente. Ele deve ter à volta de oitenta e cinco anos.

- É essa a idade exacta dele. E teve uma trombose na terça-feira à noite. Ainda continua vivo, mas não se espera que recupere.

Sloan assobiou baixinho.

- Nesse caso foi isso que precipitou os acontecimentos!

- É isso o que eu suponho.

- Obrigado - disse Sloan. - Muito obrigado.

Sloan afastou o telefone para o lado.

- Portanto, Crosby, se a irmã Ana morresse antes do tio Joe, tudo bem. Se ela consentisse que a firma fosse aberta à subscrição pública, nem tudo estaria bem mas era melhor do que poderia ter sido. Se não morresse nem consentisse, o primo Harold herdaria a metade do pai, depois de deduzidas as despesas com a transmissão, deixando a irmã Ana com a metade dela intacta e uma forte inclinação para as missões e para a restituição.

- Complicado - comentou Crosby.

- Complicado? O primo Harold podia ter suado a valer se o pai dele morresse antes de ele chegar a Cuilingoak e junto da irmã Ana.

- Senhor, e quanto àquela mulher horrível com quem estivemos em Londres... a mãe da irmã Ana? Ela não entra nisto?

Sloan abanou a cabeça.

- Não. Ela tem apenas usufruto para toda a vida de bens que reverterão ou para a filha, ou para o cunhado ou para o sobrinho, de acordo com a ordem por que sobrevivem. Podemos deixá-la fora disto. Passe para cá o telefone outra vez, sim? Vou pedir ao primo Harold para ir ter ao convento.

- Esta noite?

- Esta noite, Crosby. Depois das boas irmãs terem jantado e Ouvido a missa de vésperas.

Crosby começou a desfolhar a lista telefónica.

- Crosby, onde está o sargento Perkins?

- Na cantina, senhor.

- Vá até lá para guardarem alguma coisa para mim e depois diga a ela que quero falar-lhe. Vou voltar ao gabinete do superintendente depois de ter falado com o primo Harold.

- Com que então era sangue, Sloan?

- Sim, senhor. O Dr. Dabbe acabou de mandar o relatório. Vestígios diminutos, secos agora e misturados com cera, mas indubitavelmente sangue.

- Grupo?

- O mesmo do da irmã Ana, o mesmo do que estava no Gradual.

- E como arma possível?

- Ideal. - Sloan deu umas pancadinhas no relatório do patologista. - Ele não jura que seja a exacta, mas...

- Claro que não - replicou Leeyes sarcasticamente. - Eles nunca o fazem.

- Mas condiz em todos os pormenores.

- Suficientemente bom para o júri, mas não para os advogados?

- Sim, senhor.

- E que se propõe fazer agora?

Sloan disse-lhe.

 

Nem a Madre Superiora nem a irmã Lúcia estiveram presentes na missa de vésperas daquele sábado. Se qualquer membro da comunidade se esquecesse de si próprio para se aperceber do facto, tomaria todas as precauções para não olhar uma segunda vez para os lugares vazios. O bem-estar do Convento de Santo Anselmo necessitava algumas vezes que elas estivessem presentes no salão para receberem alguns visitantes. Isso acontecia nessa noite.

Eram três esses visitantes e a irmã Policarpo a resmungar entre dentes, abrira-lhes a porta e acompanhara-os até ao salão. O Convento de Santo Anselmo não tinha habitualmente visitantes a uma hora tão adiantada da noite como as oito e meia e ela ressentiu-se com a quebra dessa rotina. E ter-se-ia ressentido ainda mais - se tivesse sabido isso - por dois outros visitantes terem entrado secretamente por outra porta, um pouco mais cedo. Estes tinham batido levemente à porta do jardim-de-inverno que a irmã Policarpo fechara tão cuidadosamente à chave e trancara apenas uma hora antes. Mas ela foi misteriosamente aberta e eles entraram, um homem e uma mulher, fechando-a depois novamente, com o mesmo cuidado com que a irmã Policarpo o fizera de forma que, se ela quisesse ir lá fazer uma nova verificação, não houvesse qualquer sinal de ter sido aberta e voltada a fechar.

A Madre Superiora recebeu aqueles que tinham entrado pela porta principal, mantendo a irmã Policarpo ao seu lado.

- É muita gentileza da sua parte ter vindo, padre, e o senhor Ranby também.

- Não podíamos suportar a ideia que ficassem aqui sozinhas toda a noite, com um criminoso ao largo.

Ela inclinou a cabeça numa vénia.

- É realmente difícil adormecer com esse pensamento. Temos andado mais que perplexas - confidenciou ela, baixando a voz. - Compreendem, não podemos excluir a possibilidade de... hum, o autor desses ultrajes se encontrar dentro da nossa própria casa.

Ambos os homens concordaram com um aceno de cabeça.

- Especialmente - continuou a Madre Superiora - agora, depois que a polícia descobriu que a arma do crime esteve sempre aqui.

- Descobriu? - exclamou Ranby.

- Era o globo que fica no topo do pilar de suporte da escada. O inspector Sloan levou-o.

- Bem, sobre esta noite... - começou o vigário.

- O Sr. Cartwright também veio da aldeia - informou a Madre Superiora. - Neste momento está a verificar as despensas. Nós sentíamo-nos um pouco desconfiadas quanto às despensas.

- Sim, sem dúvida - concordou o padre MacAuley brandamente. - Penso que seria bom que Cartwright, Ranby e eu organizássemos um esquema para patrulharmos o edifício, incluindo as despensas e tudo o resto.

- Já tínhamos decidido fazer isso nós próprias - declarou a Madre Superiora - mas se os senhores quiserem ser tão amáveis que não queiram aumentar os nossos esforços... femininos, seria uma grande ajuda.

- Uma hora cada um - sugeriu Ranby - enquanto dois descansam. Isto é, se Cartwright concordar.

- Certo - disse o padre MacAuley.

- Com uma das irmãs...

- Com duas irmãs - interrompeu-o a Madre Superiora com firmeza.

- Com duas irmãs na galeria por cima da escadaria.

- Obrigada, cavalheiros. Isso manter-nos-á em segurança durante a noite. Vou escalar as irmãs imediatamente. Elas estão bastante habituadas às vigílias nocturnas, como sabem. Na Quaresma, mantemo-las entre os ofícios das Completas e das Laudes.

O sargento Gelden telefonou a Sloan, ainda na esquadra de Berebury, às dez menos um quarto.

- Está, inspector? É sobre uma tal Felicity Ferling de West Laming House.

- Estou à escuta, sargento.

- O caso é este, senhor...

Sloan ouviu e escreveu e, no fim, agradeceu ao sargento Gelden. Depois meteu-se no carro e dirigiu-se para Cullingoak. Estacionou o carro no The Buli e, daí, foi a pé até ao convento, medindo o tempo da caminhada. Depois, também ele, deu a volta até à porta do jardim-de-inverno e bateu nela muito levemente. Foi admitido por uma personagem nada menos importante que a Madre Superiora em pessoa.

Ela apresentou-lhe uma lista.

- Das dez até às onze, o padre MacAuley e as irmãs Ninian e Fidélia; das onze à meia-noite, o Sr. Cartwright e as irmãs Damião e Perpétua; e da meia-noite até à uma, o Sr. Ranby e as irmãs Lúcia e Gertrudes.

- E depois novamente por essa ordem toda a noite?

- Sim, inspector, a menos que aconteça qualquer coisa inesperada. A irmã Despenseira mandou um fornecimento de café quente e sanduíches para o salão, para aqueles que não estão de vigilância.

- Algumas dificuldades?

- Nenhuma. Todos os três cavalheiros concordaram com as minhas sugestões.

- Esperemos que tenham engolido tudo. E o resto da comunidade?

- Foram todas para a cama, inspector, como habitualmente.

- Óptimo. E as disposições, é uma maneira de falar, para que se faça a rendição das vigilantes?

- As irmãs que se retiram devem bater às portas daquelas que as substituirão, dez minutos antes da hora.

- Magnífico. A irmã Lúcia está na cama?

- A irmã Lúcia já deve estar forçosamente na cama há algum tempo, inspector.

Sloan endereçou-lhe um rápido sorriso.

- Estamos quase a chegar ao fim, Ma.

- Deus permita que sim - replicou ela sobriamente.

Sloan acomodou-se o mais confortavelmente possível no jardim-de-inverno e preparou-se para esperar. E para imaginar.

Se abrisse a porta apenas uma fracção mínima, poderia ver o átrio e a respectiva sentinela. Primeiro, foi o padre MacAuley que passeou para trás e para diante durante um bocado, no átrio e, depois, foi fazer uma verificação metódica a todas as portas e janelas. Sloan teve de se esconder atrás duma cortina nesse momento. Depois, Harold Cartwright, mais barulhento que o vigário, percorrendo conscienciosamente o corredor e falando em voz baixa lá para cima, para as irmãs Damião e Perpétua.

Ouviu-os por volta da meia-noite e um quarto e novamente quando faltava um quarto para a uma.

- Aí em cima vai tudo bem?

- Vai sim, obrigada, Sr. Cartwright. Está tudo sossegado, graças a Deus. - O sussurrar da irmã Damião pareceu descer flutuando, em resposta. - Estamos a preparar-nos para ir chamar as outras. Cá estaremos novamente às duas horas.

- Até logo.

Sloan ouviu-o fazer uma última ronda rápida e depois voltar os passos de regresso ao salão. Depois, a porta do salão abriu-se e Ranby saiu de lá. Veio directamente para o jardim-de-inverno e Sloan teve dificuldade em ir esconder-se atrás da cortina a tempo. Ranby destrancou a porta, rodou a chave e deixou a porta levemente aberta, voltando seguidamente para o átrio.

- Está aí, irmã Lúcia?

A irmã Gertrudes aproximou-se da balaustrada e inclinou-se sobre ela.

- Estamos ambas cá, Sr. Ranby. Há alguma novidade?

- Não. Queria apenas trocar duas palavras com a irmã Lúcia sobre o Tewn. Foi qualquer coisa que ela disse esta manhã. Ocorreu-me que poderia ser importante.

A irmã Gertrudes retirou-se e a irmã Lúcia apareceu no seu lugar, no patamar, e começou a descer lentamente os degraus encerados, com a cabeça bem inclinada para o chão, o seu pesado molho de chaves pendendo da cintura.

Ranby recuou um pouco enquanto ela descia, afastando-se da pequena claridade produzida pela lâmpada do átrio e para fora do alcance do olhar da irmã Gertrudes. Dirigiu-se, como Sloan tinha pensado, para o escuro corredor onde a irmã Ana tinha morrido, o corredor onde Sloan estava à espera e vigilante.

- Felicity - sussurrou Ranby apressadamente para ela. - Vem para aqui. Preciso de falar contigo.

A freira voltou-se obedientemente na direcção dele e encaminhou-se exactamente para o local onde ele se encontrava.

- Para aqui - apressou-a ele. - Para que as outras não possam ouvir-nos.

Ela estava agora quase ao nível dele, com os olhos dele a observarem cada movimento, não vendo a figura escura e sombria que a seguia na descida da escada, toda encostada à parede.

Quando ela chegou ao alcance dele, Ranby levantou um braço como se pretendesse abraçá-la. O gesto transformou-se rapidamente num aperto selvático enquanto a outra mão se dirigia para o pescoço dela, procurando a cartilagem macia, vulnerável e vital do tubo respiratório.

Os dedos nervosos e investigadores foram obrigados a ficar desapontados em relação à presa.

A freira fez um movimento rápido de torção e contracção e Ranby soltou um grito de dor. O braço tombou, mas ele avançou o outro. Esse também não obteve um bom resultado. A freira apanhou-o e puxou por ele com um movimento rápido e forte. Ranby caiu desamparadamente com o peso dela por cima.

E então, Sloan estava já ali e a sombra escura encostada à parede transformou-se no cabo-detective Crosby com as algemas prontas. Ao fundo do corredor, a porta do salão abriu-se e o padre MacAuley e Harold Cartwright saíram de lá a correr.

A freira fez Ranby pôr-se de pé, arregaçando o hábito num gesto que nada tinha de freirático.

- Estas malditas saias - praguejou ela - não há dúvida que atrapalham uma rapariga. - Tirou da cabeça, com um movimento violento o véu e sacudiu a cabeça para soltar o cabelo. - Mas isto é pior. Não sei como se pode viver com isto.

- Não é a irmã Lúcia - exclamou Ranby num arquejo.

- Não - concordou Sloan. - É o sargento da polícia Perkins com o hábito da irmã Lúcia.

 

- Nunca pensei que a coisa aconteceria pela segunda vez - observou Sloan modestamente.

O superintendente resmungou. Geralmente, não acedia a comparecer na esquadra num domingo de manhã, mas a verdade é que o seu Departamento de Investigação Criminal não prendia um duplo assassino todos os dias da semana. Sloan, Perkins, Gelden e Crosby estavam todos presentes - e parecendo lamentavelmente satisfeitos com eles próprios.

- Não houve qualquer dificuldade? - perguntou Leeyes.

- Tudo correu sobre esferas - respondeu Sloan alegremente. - Ele ficou completamente convencido com a figura do sargento Perkins. Até eu cairia. E qualquer um.

- Acha realmente que sim? - inquiriu Leeyes. - O sargento Perkins dá uma boa freira, hem?

O sargento Perkins ruborizou-se.

- Aquela coisa na cabeça...

- O véu - esclareceu Sloan, agora um perito.

- Esse véu foi a coisa mais incómoda que já vesti na minha vida.

- Mas não vestiu a camisa de estopa dela - observou Leeyes acidamente.

- Não, senhor. Por outro lado, senhor, não se pode censurar Ranby por se ter enganado da primeira vez. Não se consegue ver a cara duma freira a menos que se tenha uma vista frontal dela e eu não creio que ele quisesse actuar nessa posição.

- Não se esqueça também, senhor - acrescentou Sloan -, que as freiras não envelhecem tão rapidamente como nós. Não sei porquê. A verdade é que a irmã Ana parecia ter a idade e a aparência que a irmã Lúcia tem.

- E ainda mais uma coisa - lembrou o sargento Perkins. - Aquele corredor é o sítio mais escuro que eu tenho visto.

- É o subconsciente delas que deseja voltar à luz das velas - comentou Sloan em voz baixa.

Leeyes ignorou a observação.

- Portanto, Ranby assassinou por engano a irmã Ana, na quarta-feira?

- Foi pura e simplesmente um caso de confusão de identidade, senhor. Tudo encaixa. Ele foi até lá para matar a irmã Lúcia, a Tesoureira e Procuradora, que traz sempre com ela aquele grande e pesado molho de chaves pendurado na cintura. Sempre.

- Excepto nas noites das quartas-feiras?

- Não, apenas naquela única quarta-feira, porque a irmã Ana queria ir arranjar alguns presentes para enviar para as missões a tempo de lá chegarem pelo Natal. Suponho que normalmente ela teria ido lá com ela, mas na quarta-feira à noite estava muito atarefada.

- Que coisas eram essas em que estava tão atarefada?

Sloan não sabia. Pensava que nunca viria a saber o que é que as fazia andar tão atarefadas num convento.

- De qualquer modo, senhor, ela entregou o distintivo do seu serviço (um distintivo muito conspícuo) à irmã Ana e, dessa forma, Ranby pensou que era ela. Pegou no globo do pilar e...

- Ele sabia tudo a respeito desse globo, hem?

- Oh, sim, senhor. Através de Célia Faine. Atingiu a irmã Ana com toda a força, na parte de trás da cabeça, e voltou a pô-lo no seu lugar. Nem sequer se preocupou a limpá-lo convenientemente. Se fosse descoberto, era uma pista a apontar para um trabalho de interior, não era?

- Não foi descoberto - fez notar o superintendente indelicadamente.- Só o foi quando alguém lho serviu num prato.

- É verdade, senhor - concordou Sloan. - Mas, por outro lado, não nos induziu no erro de pensarmos que era um trabalho de dentro, pois não? Depois disso - prosseguiu a toda a pressa, pois não estava a gostar da expressão do superintendente - empurrou de qualquer maneira o cadáver para dentro da arrecadação das vassouras e levou os óculos. Estava muito escuro também lá e, dessa forma, ele ainda não sabia que acertara num alvo errado.

- E depois?

- Voltou para o instituto, estando presente ao jantar.

- Voltou para o instituto?

- Sim, senhor.

- Nesse caso, quem a atirou pelas escadas abaixo?

- Foi ele.

- Quando?

- Depois do jantar.

- Porquê?

- Para adiar a descoberta do cadáver, para confundir-nos sobre o tempo, para nos fazer pensar que ela tinha caído... esse género de coisas. Para implicar Tewn, também, se fosse necessário. Não teria sido nada complicado arrastá-la por aquele corredor e atirá-la pelas escadas abaixo, já que se encontrava lá.

- E como é que ele conseguiu lá entrar, sabe?

- Voltou para lá depois de ter jantado no instituto - explicou Sloan - para assistir à missa de vésperas. Não queria que o cadáver fosse encontrado antes dos rapazes terem entrado no convento. Ele não tinha qualquer álibi para as sete menos um quarto, ou cerca disso, quando a matou, mas se se pensasse que ela ainda estava viva às nove, quando todas foram para a cama, isso iria provocar uma confusão grande nos cálculos.

- Está a tentar dizer-me, Sloan... não muito claramente, se posso exprimir-me francamente... que Ranby entrou no convento duas vezes, na noite de quarta-feira?

- Estou, sim, senhor. Compareceu àquela missa que elas têm exactamente antes do jantar, tal como um qualquer devoto (é a Bênção, creio que lhe chamam) e provavelmente, deixou-se ficar depois lá. As freiras vão todas para o refeitório às seis e um quarto para jantarem e ele meteu-se pelo corredor, abriu a porta da despensa, foi lá abaixo buscar o hábito, vestiu-o e regressou novamente ao corredor. Depois é que vem o momento crítico. Ele tem de esperar que a irmã Lúcia apareça. Tira o globo do pilar.

- Ninguém deu por falta dele?

- Duvido que, se elas perdessem qualquer coisa, mesmo que fosse o fogão da cozinha, dariam por falta dela até ao momento em que tivessem necessidade de se servir dela. Não. Penso que ele ficou escondido na arrecadação das vassouras até que a viu aproximar-se.

- Ela tinha de estar sozinha - objectou Leeyes incrédulo.

- Sim, é verdade, mas não se esqueça que, depois do jantar, elas têm o recreio. Têm autorização para andarem à sua vontade durante um certo espaço de tempo. Era o único risco que ele corria: que ela não aparecesse por ali. Mas, se isso não acontecesse, ele podia sempre ir à procura dela.

- No convento?

- Não é difícil passar por freira se se tiver um hábito vestido. De qualquer modo, ele tem uma pele muito clara, o cabelo não se pode ver e os sapatos que traz são pretos, assim como as meias. Se pusesse os óculos da irmã Ana, pode acreditar-me, senhor, ninguém daria pelo engano. As freiras são as testemunhas menos observadoras que eu tive a infelicidade de encontrar. Parece pensarem que é pecado observar qualquer coisa. E a luz é tão fraca que nunca se tem uma visão realmente clara de qualquer coisa depois de escurecer. Ranby não viu suficientemente bem a cara da irmã Ana, em nenhum momento, para saber que não era a irmã Lúcia. Não há, por assim dizer, qualquer luz no corredor e ele não se atreveria a acender uma lanterna eléctrica. Isso seria o mesmo que pedir sarilhos.

- Portanto, ele mata a irmã Ana, volta para o instituto para jantar...

- Exactamente, senhor. Dariam pela falta dele se ele se não encontrasse lá, principalmente tratando-se do jantar.

- Porquê?

- São catorze os elementos que constituem a administração, incluindo Ranby, e se algum falta...

- Sei aritmética, Sloan...

- Sim, senhor. - Sloan tossicou. - Assim que o jantar do instituto acabou, ele voltou lá, vestiu o hábito e pôs os óculos da irmã Ana. Bastava-lhe ser o último a entrar na capela para saber qual era o lugar dela. - Tomou uma funda inspiração. - E foi mesmo o último, assim o disse a irmã Damião. Depois, ficou à espera que todas as freiras fossem para a cama, arrastou o cadáver até à porta da despensa, atirou-o pelas escadas abaixo, foi deixar o hábito no sítio onde Tewn o havia de ir buscar, meteu os óculos no bolso e voltou para os seus aposentos no instituto. Calculo que tenha tocado a campainha a chamar pela criada para que levasse dali a chávena de café ou para que fosse chamar alguém da administração ou algum estudante... qualquer coisa que demonstrasse que ele tinha estado ali sempre. Contudo, não era provável que alguém lhe fizesse quaisquer perguntas, pois ele pensou que não havia absolutamente nada que o relacionasse com o convento.

- Mas havia?

- Devia haver qualquer coisa, caso contrário ele não teria sido obrigado a matar Tewn.

- Ah, Tewn. Tinha-me esquecido de Tewn. - O superintendente nunca se esquecia de nada.

- Penso que Tewn tinha de morrer porque viu qualquer coisa que relacionava Ranby com o convento.

- O quê?

Sloan deu umas pancadinhas no bloco-notas.

- Não tenho a certeza absoluta, mas penso ser capaz de fazer uma ideia.

- E então?

- Ranby saiu de dentro daquele hábito por volta das nove horas e um quarto, nove horas e vinte, depois de ter estado dentro dele durante quase uma hora. Tewn tirou-o de lá às nove e meia.

-E então?

- O hábito ainda devia estar quente, senhor. Penso que Tewn reparou nisso.

- Aquela piada a respeito do leite quente - explodiu Crosby involuntariamente.

Sloan aquiesceu.

- Ranby deve ter tido boas razões para pensar que Tewn sabia ou desconfiava de alguma coisa. Seria bastante fácil para ele apanhar o Tewn num intervalo entre os períodos de estudo, ontem de manhã, e dizer-lhe que tinham de ir ao convento apenas os dois, sem os outros. - Encolheu os ombros. - Nunca saberemos o que é que Tewn sabia. A não ser que Ranby nos diga. No entanto, senhor, não creio que ele o faça. A única coisa que ele disse até agora foi: "Quero o meu advogado."

- Vai-lhe valer de muito - comentou o superintendente. - Você apanhou-o sem margem para dúvidas, assim o espero.

- Eu também o espero, senhor - respondeu Sloan piamente.- Contudo, é uma longa história.

O superintendente suspirou audivelmente.

- Suponhamos que volta mesmo ao princípio...

- Na realidade, há dois princípios, senhor.

- Um bastar-nos-á lindamente, Sloan. Ouçamos primeiramente o mais antigo.

- Isso foi há doze anos, senhor, em West Laming. Onde o sargento Gelden esteve a noite passada.

O sargento Gelden corroborou com um aceno de cabeça

- Diz respeito a duas pessoas - explicou Sloan. - O Sr. Marwin Ranby, então director-adjunto da escola de West Laming, e uma tal Miss Felicity Ferling, sobrinha de Miss Dora Ferling, de West Laming House. Foi o facto de os dois terem vindo de West Laming que me pôs na peugada de Ranby. Esse par relacionou-se realmente muito bem até se tornarem amigos muito íntimos... Miss Ferling era uma rapariga encantadora, muito bonita, muito querida da tia que a tinha criado. Ficou noiva deste prometedor jovem professor e tudo foi tratado para se realizar o casamento. Duas semanas antes da data marcada para ele, Miss Dora Ferling teve uma visita... a mulher do Sr. Ranby. Ele já era casado. O casamento desfez-se e Miss Felicity Ferling ficou com o coração destroçado.

- E então levou esse coração destroçado para o convento?

- Não logo. Elas não gostam de admitir lá mulheres por esse motivo, mas aparentemente ela tinha sido sempre muito devota e interessada pela vida religiosa.

- Ele parece gostar delas assim - comentou o superintendente.- Há homens que gostam. E o segundo começo?

- Foi há dez dias. Durante um inquérito público para se planificar o desenvolvimento urbano dos terrenos existentes entre o convento e o instituto. Ambas as instituições mandaram lá os seus representantes. O instituto mandou o Sr. Ranby e mais alguém do Departamento de Educação Rural. O convento mandou a Madre Superiora e...

- Não me diga - pronunciou o superintendente. - Posso imaginar.

- A irmã Lúcia, a Tesoureira delas. Exactamente o pior momento possível para ela aparecer, do ponto de vista de Ranby. Ele está novamente noivo... desta vez de Miss Célia Faine que tem muitas probabilidades de vir a ser rica se este plano de urbanização for aprovado.

- Um terrível choque para ele, ver a sua antiga paixão aparecer lá.

- Terrível mesmo. E vestindo um hábito de freira. Os conventos são lugares praticamente inexpugnáveis.

- Ah-ah! Estou a ver onde quer chegar, Sloan.

- Exactamente, senhor. Ranby volta para casa a ruminar na forma e nos meios.

- E são os seus próprios estudantes que fornecem a resposta?

- É isso mesmo, senhor. Noite da Conspiração em mais do que um sentido. Penso que havemos de descobrir que Ranby, ou ouviu directamente ou soube por alguém da combinação deles com Hobbett, e arriscou a sua sorte naquela noite. A outra única coisa que ele precisava de saber era como identificar a irmã Lúcia sem ter de olhar cada freira na cara. Uma pequena observação judiciosa de Hobbett ter-lhe-ia fornecido a solução para isso também... ela trazia sempre consigo um grande molho de chaves. O senhor já deve ter reparado no outro facto enganador, tenho a certeza.

Leeyes resmungou qualquer coisa que significava não estar de acordo.

- Hobbett - continuou Sloan - não sabia que a irmã Lúcia não usa óculos sempre. Não mais do que o próprio Ranby. Ela devia tê-los postos quando esteve presente no inquérito e sempre que pagava ao Hobbett.

- Você faz parecer tudo isso muito simples - queixou-se o superintendente.

- Foi-o, senhor. Motivo, meios, oportunidade, tudo. Ele não pode arriscar-se a fracassar numa segunda tentativa para se casar com uma rapariga desprotegida e com um futuro prometedor. Esse é o motivo. Os meios estão ali mesmo à mão, até mesmo a arma, e os seus próprios estudantes forneceram-lhe a oportunidade.

- Está a tentar dizer-me, Sloan, que Ranby pode ter ido até àquela capela várias vezes com a sua prometida e que aquelas freiras não o conheciam?

- Exactamente, senhor. As irmãs sentam-se na parte da frente dum gradeamento e a congregação apenas pode ver-lhes as costas. E elas não podem ver quem fica da parte de trás.

- Bom, não quero que o seu caso seja baseado numa falsa premissa, Sloan.

- Não, senhor. - Lá estava novamente o curso de lógica a voltar-lhe à cabeça.

Leeyes voltou-se para Crosby.

- Isto não se compara nada com aquela conversa do "quando é que você deixa de bater na sua mulher", pois não, cabo?

Crosby pareceu magoado.

- Não sou casado, senhor.

Harold Cartwright ainda continuava no The Buli.

- Uma mulher formidável, a Madre Superiora. Fez-me rever algumas das minhas ideias a respeito daquela vida que iam um pouco na direcção de Maria Católica, sabe?

Sloan não sabia e, em vez de responder, perguntou:

- Teve notícias do seu pai, senhor?

Cartwright lançou-lhe um olhar acerado.

- O senhor sabia?

- Sabia, sim.

- Continua mais ou menos na mesma, inspector. Obrigado. Vou regressar a casa hoje, mas hei-de cá voltar... Inspector Sloan?

- Senhor?

- Foi Ranby que telefonou para a polícia na Noite das Fogueiras, não foi?

- Foi, sim, senhor. Penso que ele queria que nós víssemos o hábito e os óculos, dado o caso de ele ter de atirar as culpas para cima de alguém. No final de contas, não era muito provável que uma freira matasse outra.

- E era mais seguro do que atirar os óculos fora.

- Ele estava um pouco ansioso de mais para implicar os estudantes. Sugeriu que eles poderiam ter saído pela janela do laboratório de biologia muito tempo antes de se imaginar que ele sabia as horas a que eles tinham ido até ao convento.

Cartwright endereçou-lhe o seu rápido sorriso habitual.

- O tal emprego continua em aberto para si, inspector.

- Não, obrigado, senhor. Há porém, como lhe hei-de chamar?, uma alma perdida que necessita dele urgentemente. Uma fugitiva de Santo Anselmo. Eu próprio duvido que ela possa desempenhar qualquer trabalho.

- Posso ver isso - prontificou-se Cartwright.

- O nome dela é Lome, Miss Eileen Lome. Vou dar-lhe o endereço dela.

- E eu vou dar-lhe o meu de Londres.

Sloan tossicou.

- Eu tenho-o, senhor, obrigado.

Cartwright acenou com a cabeça gravemente.

- Estava a esquecer-me. Contudo, eu hei-de voltar ao The Buli. Coisa engraçada, sabe?, o Buli nada tem a ver com o animal.

- Não, senhor?

- Não. Refere-se a Bula Papal. Não acha interessante? Foi a Madre Superiora que me disse.

Sloan voltou para o carro e deu uma pancadinha no ombro de Crosby.

- Quem quer vento vai a um convento - recitou.

 

A irmã Gertrudes encaminhou-se na direcção do salão. Deviam lá estar visitantes novamente. Normalmente era a irmã Lúcia que ia para lá, mas hoje a irmã Lúcia estava muito atarefada junto da Madre Superiora por causa de tratarem da questão relacionada com o custo do claustro. E desta vez sabiam de onde vinha o dinheiro. Do Sr. Harold Cartwright. Geralmente, quando o Convento de Santo Anselmo gastava algum dinheiro, elas não faziam a mínima ideia de onde é que ele havia de vir. Ele aparecia sempre, é certo, mas isso não era fácil de explicar a um empreiteiro.

Ela apressou-se a descer a grande escadaria e perguntou a si própria quanto tempo decorreria ainda antes que ela pudesse olhar para o pilar da escadaria sem um arrepio. Havia um retrato no fundo das escadas, emoldurado e coberto com um vidro. Se uma pessoa se pusesse numa certa posição, veria nele o seu próprio reflexo. A irmã Gertrudes parou, apreciou-se a si própria e endireitou o véu na cabeça. Muito mau da parte dela, é claro. Procuraria nunca mais voltar a fazer isso. Mas era uma tentação.

Juntou-se à Madre Superiora e as duas entraram no salão.

- Então, sempre foi o Sr. Ranby, desde o princípio - observou a Madre Superiora directamente.

- Sim, Ma - respondeu Sloan. - Ele engoliu o isco, que era o sargento Perkins, o anzol, a linha e a chumbada. O padre MacAuley tem um verdadeiro talento para dissimular, se me é permitido exprimir-me assim. Ranby nunca desconfiou que a ideia da vigilância nocturna era apenas uma ratoeira.

- Inspector, não há qualquer dúvida, pois não?

- Não, Ma, já descobrimos mais outras coisas. Ele fez duas vezes a barba naquele dia e outras coisinhas no género.

- Pobre alma - pronunciou ela compassivamente - estar assim tão agarrada às coisas deste mundo.

- Sim, Ma. - Tossiu. - Miss Faine... como...

- O padre MacAuley foi falar com ela esta manhã depois da missa. Devemos rezar por ela.

Sloan mexeu-se desconfortavelmente na cadeira.

- É claro - replicou.

- Os dois rapazes do instituto? - inquiriu ela. A cara de Sloan desanuviou-se.

- Estão a encarar as coisas muito bem. Já quase esqueceram o que aconteceu a Tewn.

- Inspector, quando começou a suspeitar...?

- A irmã Lúcia estava branca e a tremer quando cá cheguei ontem, depois do corpo de Tewn ter sido encontrado. Não era por isso que ela estava transtornada, pois não o vira. O que ela tinha visto, é claro, era Ranby. E Ranby tinha-a visto a ela e verificara que matara alguém por ela.

- Devia estar desesperado na noite passada.

- Estava mesmo, Ma. Tentou matar o sargento Perkins. Não há qualquer dúvida a esse respeito.

A Madre Superiora inclinou a cabeça.

- O sargento Perkins é uma mulher muito corajosa.

- No cumprimento do dever, Ma - apressou-se ele a dizer. - É uma disciplina diferente e uma educação completamente diferente da das irmãs, mas, de qualquer maneira, ela mostrou uma grande dedicação. Quanto a Hobbett...

- Daqui para o futuro - informou secamente a Madre Superiora - ele tem de chamar a irmã Policarpo para lhe abrir a porta.

Uma sineta ecoou subitamente através do convento. As duas freiras puseram-se de pé, a irmã Gertrudes com um sobressalto perceptível. Ela tinha estado a imaginar quem seria aquela, entre as freiras da comunidade, que deveria mudar-se para a cela da irmã Ana, a cela ao lado da irmã Hilda, a ressonadora. Seria pecado pedir a Deus para não ser ela?

A irmã Policarpo acompanhou à porta os dois polícias.

- Bom dia, cavalheiros...

Foi imaginação de Sloan ou ela bateu mesmo com a porta de grades atrás deles?

Crosby olhou para trás, para o convento.

- O senhor não teria pensado que, no final de contas, viria a verificar-se que era um crime passionnel, pois não? - A sua pronúncia de crime era esquisita. - Não aqui.

- Não - replicou Sloan laconicamente. - Ninguém teria pensado.

- Aquela inscrição na porta, inspector...

- Sim?

- Sabe o que significa realmente?

Sloan deu meia volta e olhou para a inscrição.

- "Pax Intrantibus, Salus Exeuntibus." Você não conseguiu saber isso, Crosby? Devia ter procurado nos livros. Muito esclarecedor.

- Por favor, senhor...

- Paz para os que entram - traduziu Sloan -, salvação para os que saem.

 

 

                                                                  Catherine Aird

 

 

              Voltar à “Página do Autor"

 

 

                                         

O melhor da literatura para todos os gostos e idades