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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM DESTINO IGNORADO / Agatha Christie
UM DESTINO IGNORADO / Agatha Christie

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UM DESTINO IGNORADO

 

O homem sentado à mesa moveu alguns centíme­tros para um lado o grande pesa-papéis de vidro. Sua fisionomia parecia mais sem expressão que abstrata ou pensativa. A sua compleição era pálida como a dos que ficam quase todo o dia sob a luz artificial. Ele dava a impressão de viver sempre entre quatro paredes. Era um homem que vivia entre mesas e arquivos. Parecia natural que para se chegar a sua sala fosse preciso andar por corredores subterrâneos e tortuosos. Seria difícil precisar a sua idade. Não parecia nem velho nem moço. Seu rosto era liso e sem rugas mas havia um grande cansaço em seus olhos.

O outro homem na sala era mais velho. Era moreno e tinha um pequeno bigode militar. Emanava vivacidade e energia. Não podia estar quieto. Andava de um lado para outro e, de vez em quando, fazia uma observação em tom nervoso.

— Relatórios — disse subitamente. — Relatórios, re­latórios e mais relatórios e nenhum deles vale um caracol.

O homem sentado à mesa olhou para os papéis a sua frente. Sobre eles havia uma pasta marcada “Betterton, Thomas Charles”. Depois do nome havia um ponto de interrogação. O homem sacudiu a cabeça, pensativo. Disse, então:

— Você investigou todos estes relatórios e nenhum deles vale nada?

O outro encolheu os ombros:

— Quem poderá saber? — perguntou.

O homem sentado à mesa suspirou.

— Sim — disse ele, — isto é verdade. Não se pode ter certeza.

O homem mais velho falou com a rapidez súbita de uma metralhadora:

— Relatórios de Roma, relatórios da Tourraine, visto na Riviera; percebido em Antuérpia; positivamente iden­tificado em Oslo; reconhecido em Biarritz; observado quando agia de forma suspeita em Strasburgo; avistado na praia em Ostende, em companhia de uma linda loura; notado nas ruas de Bruxelas com um galgo. Só não foi visto, até agora, no Jardim Zoológico abraçando uma zebra, mas isto não tardará.

— Você não tem nenhum palpite, Wharton? Eu tinha esperanças no relatório de Antuérpia, mas deu em nada. É claro que já agora...

O homem mais moço parou de falar e pareceu com­pletamente alheio a tudo. Subitamente saiu do transe e disse, enigmaticamente:

— Sim, provavelmente...   entretanto... eu me per­gunto...

O Coronel Wharton sentou-se bruscamente no braço de uma poltrona.

— Mas temos que achar a solução — disse com ve­emência. — Temos que descobrir todos esses como, por que e onde? Não se pode perder um cientista pacato cada mês, ou coisa que o valha, sem que se tenha uma idéia de como eles vão, do por que eles vão ou para onde vão! Será para onde nós pensamos, ou não? Sempre presumimos que o destino fosse esse, mas já não estou tão seguro. Você leu tudo que chegou ultimamente da América sobre Betterton?

O moço sentado à mesa aquiesceu, com a cabeça.

— As mesmas tendências esquerdistas que todos os jovens de certo período. Tanto quanto foi possível averi­guar, nada de duradouro ou permanente. Fez trabalhos sérios antes da guerra mas nada de espetacular. Quando Mannheim fugiu da Alemanha, Betterton foi designado para seu auxiliar e acabou casando com a filha dele. Depois da morte de Mannheim continuou a trabalhar só e de forma brilhante. Deu um salto para a fama com a surpreendente descoberta da Fissão ZE. A Fissão ZE era uma descoberta brilhante e absolutamente revolucionária Elevou Betterton ao topo do mundo científico. Tudo in­dicava que teria uma carreira notável na América, mas sua mulher morreu pouco depois do casamento e ele ficou profundamente chocado e magoado. Mudou-se para a Inglaterra. Trabalhou em Harwell durante os últimos dezoito meses. Seis meses atrás casou-se novamente.

— Haverá algo nisso? — perguntou Wharton, brus­camente.

O outro sacudiu a cabeça.

— Nada descobrimos. Ela é filha de um advogado. Antes de casar trabalhava numa agência de seguros. Tanto quanto podemos averiguar não tinha idéias nem ligações políticas extremadas.

— Fissão ZE — disse o Coronel Wharton aborrecido e com ar de desagrado. — O que eles querem dizer com todas essas palavras é além da minha compreensão. Eu sou antiquado, nem sequer concebo mentalmente o que seja uma molécula, mas eles, hoje em dia, falam em reben­tar o universo! Bombas atômicas, fissão nuclear, Fissão ZE e o que mais seja. E o Betterton era um dos maiorais. Que pensam dele em Harwell?

— Um tipo simpático. Quanto ao seu trabalho, nada de excepcional ou espetacular. Somente variações sobre as aplicações práticas da FZE.

Os dois ficaram calados alguns momentos. A sua con­versa fora sem importância, quase automática. Os relató­rios da Segurança formavam uma pilha sobre a mesa. Eles nada continham de útil ou valioso.

— Ele foi rigorosamente investigado quando aqui che­gou, é claro — disse Wharton.

— Sim, tudo foi considerado plenamente satisfatório.

— Há dezoito meses — disse Wharton, pensativo. — Eles ficam deprimidos, você sabe. Precauções de seguran­ça. A sensação de estar sempre sendo vigiados como se estivessem sob as lentes de um microscópio, a vida como se estivessem num claustro. Ficam irritadiços e estranhos. Eu já vi isso mais de uma vez. Começam a pensar num mundo ideal. Liberdade e Fraternidade, troca de todas as; informações científicas para o bem da humanidade. Nada de segredos! É justamente num desses momentos que al­guém, pertencendo à escória da humanidade, percebe a oportunidade e a aproveita. — Coçou o nariz. — Não há ninguém tão crédulo quanto um cientista — disse ele. — Todos os falsos médiuns assim o afirmam. Não posso en­tender por quê.

O outro sorriu. Um sorriso muito cansado.

— Sim — disse ele, — é natural que assim seja. Eles pensam que sabem, compreende? Isto é sempre perigoso. Nós somos outro tipo de gente. Somos homens de mentali­dade humilde. Não pretendemos salvar o mundo. Servi­mos apenas para apanhar alguns pedaços quebrados ou para tirar corpos estranhos que estão provocando engui­ços na máquina

Tamborilou com os dedos sobre a mesa.

— Se ao menos eu soubesse um pouco mais sobre o Betterton — disse ele. — Não sobre a sua vida e seu modo de agir, mas sobre as coisas quotidianas que podem ser tão reveladoras. Que tipo de piada o fazia rir. O que o fazia blasfemar. Quais as pessoas que ele admirava e quais as que o irritavam.

Wharton, curioso, olhou para ele.

— E a mulher? Já conversou com ela?

— Várias vezes.

— Ela não pode ajudar?

O outro sacudiu os ombros.

— Até este momento, não.

— Você acha que ela sabe alguma coisa?

— Evidentemente ela não diz que sabe qualquer coisa. Mostra todas as reações que se podem esperar: preocupa­ção, tristeza, grande ansiedade, nenhum indício ou sus­peita anterior, vida do marido perfeitamente normal, ne­nhuma espécie de tensão... e assim por diante. A sua idéia é que o marido foi raptado.

— E você não acredita nela?

— Eu tenho preconceitos — disse com ar amargo o homem sentado à mesa. — Eu nunca acredito em ninguém.

— Bem — disse Wharton, vagarosamente, — eu penso que se deve ter a mente sem muitos preconceitos. Que tal é ela?

— Um tipo comum de mulher. Daquelas que se vêem todos os dias jogando bridge.

Wharton indicou, com um gesto da cabeça, que com­preendia.

— Isto torna as coisas mais difíceis — disse ele.

— Ela está aqui agora, para ver-me. Falaremos nova­mente sobre as mesmas coisas.

— É a única maneira — disse Wharton. — Eu não po­deria fazê-lo, entretanto. Não tenho bastante paciência. — Levantou-se. — Não vou mais tomar seu tempo. Não avançamos muito, não é verdade?

— Infelizmente não. Você poderia mandar estudar mais a fundo o relatório de Oslo. Parece ser um lugar prometedor.

Wharton fez que sim com a cabeça e saiu. O outro homem levou o fone, que estava perto, ao ouvido e disse:

— Verei a Sra. Betterton agora. Mande-a entrar.

Ficou fitando o espaço até que bateram à porta e a Sra. Betterton entrou. Era uma mulher alta, aparentando uns vinte e sete anos de idade. O que mais chamava a atenção nela era a sua magnífica cabeleira ruiva. Sob o esplendor da cabeleira, o rosto parecia quase insignifican­te. Tinha os olhos azuis e os cílios claros que tão freqüen­temente acompanham os cabelos ruivos. Ele notou que ela não usava nenhuma maquilagem. Pensou no que isto po­deria significar, enquanto a cumprimentava e fazia sentar confortavelmente numa cadeira próxima a sua mesa. O fato inclinava-o, ligeiramente, a pensar que a Sra. Better­ton sabia mais do que dizia saber.

Sabia, por longa experiência, que as mulheres, mes­mo quando sofrendo agonias e ansiedades, não descuida­vam a sua maquilagem. Sabendo o quanto o sofrimento marcava os seus rostos, faziam o melhor possível para melhorar a aparência. Pensou que, talvez, a Sra. Betterton tivesse deixado de se maquilar para melhor representar o papel da esposa desesperada. Quase sem fôlego ela per­guntou:

— Oh, Sr. Jessop, espero que tenha alguma notícia.

Ele sacudiu a cabeça e disse, delicadamente:

— Peço desculpas por ter pedido que viesse aqui no­vamente, Sra. Betterton. Lamento dizer que não temos notícias positivas a dar.

Olive Betterton disse, falando com rapidez:

— Eu sei. O senhor o disse em sua carta. Mas eu ima­ginava que talvez, depois que o senhor escreveu... oh, foi um alívio vir até cá. Ficar só em casa pensando e preo­cupada... é o pior de tudo porque nada se pode fazer!

O homem chamado Jessop disse, com voz tranqüili­zante:

— A senhora deve desculpar-me, Sra. Betterton, se eu falo as mesmas coisas novamente e se faço as mesmas per­guntas e repiso os mesmos pontos. A senhora compreende que é sempre possível que possa surgir um pequeno ponto. Alguma coisa que a senhora não tivesse pensado antes ou talvez julgasse tão insignificante que não valesse a pena mencionar.

— Sim. Sim, eu compreendo. Pode perguntar nova­mente tudo o que quiser.

— A última vez que a senhora viu seu marido foi no dia 23 de agosto?

— Sim.

— Isso foi quando ele partiu da Inglaterra para to­mar parte em uma conferência, em Paris?

— Sim.

Jessop prosseguiu, rapidamente.

— Ele esteve presente aos dois primeiros dias da con­ferência. No terceiro dia não apareceu. Parece que disse a um dos seus colegas que iria fazer um passeio em um bateau mouche em vez de comparecer.

— Um bateau mouche? Que é um bateau mouche?

Jessop sorriu.

— Uma das pequenas embarcações que navegam no Sena — olhou atentamente para ela. — Parece-lhe pouco provável que seu marido fizesse tal coisa?

Ela respondeu, com ar de dúvida.

— Francamente, parece-me. Eu diria que ele estava muito interessado nas discussões da conferência.

— Possivelmente. Entretanto os assuntos a serem de­batidos naquele dia não eram de seu especial interesse e é razoável que ele tirasse um descanso. Mas a senhora acha que isso não está muito de acordo com o feitio do seu marido?

Ela sacudiu a cabeça.

— Naquela noite ele não voltou para o hotel — conti­nuou Jessop. — Tanto quanto foi possível averiguar, não atravessou nenhuma fronteira, pelo menos com o seu passaporte. A senhora acha que ele poderia ter um outro passaporte, possivelmente com outro nome?

— Oh, não, para que ele precisaria disso?

Ele a observava.

— A senhora nunca viu tal passaporte em poder dele?

Ela sacudiu a cabeça, com força.

— Não, e eu não acredito nisso. Absolutamente não acredito. Não acredito que tenha ido embora deliberada­mente, como os senhores todos pretendem insinuar. Al­guma coisa aconteceu-lhe, ou então... ou então talvez ele tenha perdido a memória.

— A saúde dele era normal?

— Sim. Ele estava trabalhando muito e algumas vezes sentia-se algo cansado. Nada além disso.

— Ele não parecia preocupado ou de qualquer forma deprimido?

— Não estava preocupado nem deprimido por coisa alguma! — Com dedos trêmulos ela abriu a bolsa e tirou um lenço. — É uma coisa terrível. — Tremia-lhe a voz. — Não posso acreditar. Ele nunca teria partido sem me dizer nada. Alguma coisa aconteceu. Foi raptado ou talvez atacado. Procuro não pensar nisso mas algumas vezes acredito ser esta a única solução. Ele deve estar morto!

— Por favor, Sra. Betterton, por favor, ainda não há motivo algum para pensar assim. Nada justifica tal supo­sição. Se ele estivesse morto o seu corpo já teria sido encontrado.

— Talvez não. Coisas horríveis sempre acontecem.. Pode ter sido afogado ou jogado no esgoto. Qualquer coisa pode acontecer em Paris.

— Posso assegurar-lhe, Sra. Betterton, que Paris é uma cidade muito bem policiada.

Ela retirou o lenço dos olhos e fitou-o com indisfarçá­vel rancor.

— Eu sei o que o senhor pensa, mas não é verdade. Tom nunca venderia segredos ou trairia segredos. Ele não é comunista. Sua vida é um livro aberto.

— Quais eram as suas opiniões políticas, Sra. Better­ton?

— Na América, creio que ele era democrata. Aqui ele votava no Partido Trabalhista. Não se interessava por política. Era um cientista, pura e simplesmente. — Acres­centou com ênfase: — Era um cientista brilhante!

— Sim — disse Jessop, — ele era um cientista brilhan­te. Aí está o âmago de toda a questão. Pode ser que lhe te­nham oferecido grandes vantagens e atrativos para deixar este país e ir para outro.

— Não é verdade — a cólera surgiu novamente. — É isso que os jornais procuram insinuar. É isso que todos os senhores pensam quando me fazem perguntas. Não é verdade. Ele nunca iria embora sem me dizer, sem ao me­nos me dar alguma idéia.

— E ele nada disse?

Novamente ele a olhava com grande atenção.

— Não sei onde ele está. Penso que foi raptado ou, como receio, assassinado. Se está morto preciso saber. Preciso saber sem demora. Não posso continuar neste suplício de esperar e imaginar o pior. Não posso dormir nem comer. Não suporto mais tantas preocupações. Os senhores não me podem ajudar? Não podem ajudar de forma alguma?

Ele se levantou e contornou a mesa. Em voz baixa disse:

— Lamento muito, Sra, Betterton, lamento profunda­mente. Posso assegurar que estamos fazendo o máximo que é possível para descobrir o que aconteceu ao seu ma­rido. Estamos recebendo relatórios diários de vários lu­gares.

— Relatórios de onde? — perguntou ela vivamente. — Que dizem esses relatórios?

Ele sacudiu a cabeça.

— Todos eles exigem novas diligências e investiga­ções. Têm que ser estudados e verificados. De um modo geral, lamento dizê-lo, até agora só temos informações muito vagas.

—Eu preciso saber — murmurou ela quase soluçante. — Não posso continuar assim.

— A senhora gosta muito do seu marido, Sra. Better­ton?

— É claro que eu gosto dele. Há apenas seis meses que estamos casados. Só seis meses.

— Sim, eu sei. Perdoe a pergunta: não havia brigas ou discussões de qualquer espécie entre a senhora e seu marido?

— Oh, não.

— Nenhum problema por causa de outra mulher?

— É claro que não. Eu já disse ao senhor, nós só esta­mos casados desde abril.

— Peço que acredite que eu não estou sugerindo que tal coisa seja provável, mas temos que examinar todas as possibilidades que possam explicar a sua partida tal como se deu. A senhora diz que ultimamente ele não parecia transtornado ou preocupado; não demonstrava qualquer espécie de nervoso?

— Não, não, não.

— A senhora sabe que trabalhando como o seu mari­do, sob condições irritantes de segurança e fiscalização, muitas pessoas ficam nervosas. De fato, o normal é que assim seja — disse ele, sorrindo.

Ela não correspondeu ao sorriso.

— Ele era o mesmo de sempre — disse ela friamente.

— Estava contente com o trabalho? Conversava com a senhora sobre as suas atividades?

— Não. O seu trabalho era demasiado técnico e com­plicado para mim.

— A senhora acredita que ele tivesse preocupação ou lamentasse, digamos, as possibilidades destrutivas do que estava fazendo? Alguns cientistas têm tais sentimentos, não é?

— Ele nunca deu a entender tal coisa.

— Veja bem, Sra. Betterton — ele se debruçou sobre a mesa e o seu rosto perdeu a impassividade, — o que es­tou tentando fazer é compreender o seu marido. Que espécie de homem ele era, mas tenho a impressão de que a senhora não me quer ajudar.

— Mas... que mais posso dizer ou fazer? Respondi a todas as suas perguntas.

— Sim, respondeu a todas as minhas perguntas mas principalmente com negativas. Eu preciso de algo positivo, algo construtivo. Compreende o que eu quero dizer? É mui­to mais fácil procurar por um homem quando se sabe como ele é, como ele age.

Ela pensou alguns instantes.

— Eu compreendo. Pelo menos creio ter compreendido. Bem, Tom era alegre e tinha bom humor. É claro que era muito inteligente.

Jessop sorriu.

— A senhora enumerou qualidades. Vejamos algo de mais pessoal. Ele lia muito?

— Bastante.

— Que tipo de livros?

— Oh, biografias, livros recomendados por clubes de bibliófilos e, quando estava cansado, livros policiais.

— O tipo normal de leitor. Tinha alguma preferên­cia especial? Jogava cartas ou xadrez?

— Jogava bridge. Costumávamos jogar com o Dr. Evans e sua esposa, uma ou duas vezes por semana.

— Seu marido tinha muitos amigos?

— Sim, ele era bastante gregário.

— Não era bem isto que eu queria saber. Pergunto se ele era muito ligado a seus amigos?

— Ele jogava golfe com alguns dos nossos vizinhos.

— Não tinha alguns amigos especiais ou companhei­ros habituais?

— Não. O senhor sabe que ele viveu muito tempo nos Estados Unidos e que nasceu no Canadá. Não conhecia muita gente aqui.

Jessop consultou um papel que estava a seu lado.

— Segundo estou informado, três pessoas vindas dos Estados Unidos o visitaram recentemente. Tenho seus nomes aqui. Tanto quanto nos foi possível averiguar, es­sas três pessoas foram as únicas de fora, por assim dizer, com as quais ele teve contato. É por isso que lhes demos uma atenção especial. A primeira foi Walter Griffiths. Ele foi visitá-los em Harwel.

— Sim, ele veio visitar a Inglaterra e foi procurar o Tom.

— E qual foi a reação do seu marido?

— Ficou surpreendido com a visita, mas muito satis­feito. Eles se visitavam muito nos Estados Unidos.

— Que lhe pareceu esse Griffiths? Pode descrevê-lo?

— Mas o senhor certamente sabe tudo a respeito dele.

— Sim, sabemos tudo a respeito dele. Mas eu gosta­ria de conhecer a sua opinião.

Ela pensou por alguns momentos.

— Bem, ele é um tipo solene e muito falador. Foi muito delicado comigo e pareceu gostar muito do Tom. Queria contar tudo que acontecera depois que Tom veio para a Inglaterra. Todos os mexericos locais, suponho eu. Não foi muito interessante para mim porque eu não co­nhecia as pessoas de quem falava. Além disso, eu estava preparando o jantar enquanto eles trocavam reminis­cências.

— Não falaram em política?

— O senhor está querendo insinuar que ele é comu­nista — Olive Betterton corou violentamente. — Estou segura de que não é. Ele tem um cargo qualquer junto ao Procurador Distrital, creio eu. Quando o Tom gracejou sobre a Caça de Feiticeiras nos Estados Unidos, ele disse, com ar muito sério, que nós não compreendíamos essas coisas na Inglaterra mas que elas eram necessárias. Isto prova que ele não era comunista.

— Por favor, Sra. Betterton, não se exalte.

— Tom não era comunista, eu já o disse muitas ve­zes, mas o senhor não acredita.

— Acredito sim, mas este assunto fatalmente voltará à baila. Agora falemos da segunda pessoa vinda de fora e que conversou com seu marido. Refiro-me ao Dr. Mark Lucas. A senhora e seu marido o encontraram em Lon­dres. No Dorset, não foi?

— Sim. Nós fôramos ao teatro em Londres e depois fomos jantar no Dorset. Subitamente esse Sr. Luke, ou Lucas, surgiu e cumprimentou Tom. Ele é um químico trabalhando em pesquisas não sei de que e a última vez que vira o Tom fora nos Estados Unidos. Era um refu­giado alemão, naturalizado americano. Mas certamente o senhor...

— Certamente eu sei disso? Sim, sei, Sra. Betterton. Seu marido ficou surpreendido ao vê-lo?

— Sim, muito surpreendido.

— Agradavelmente?

— Sim, creio que sim.

— A senhora não tem certeza? — insistiu.

— Bem, Tom disse-me depois que não simpatizava muito com ele.

— O encontro foi casual? Não combinaram ver-se no­vamente?

— Não, foi um encontro puramente casual.

— Compreendo. A terceira pessoa vinda de fora que encontrou seu marido foi uma mulher, a Sra. Carol Speeder, também dos Estados Unidos. Como foi esse encontro?

— Creio que tem um cargo na ONU. Ela conhecera Tom nos Estados Unidos e telefonou-lhe de Londres para dizer que havia chegado e perguntando se nós não po­deríamos ir almoçar com ela qualquer dia...

— Os senhores foram?

— Não.

— A senhora não, mas seu marido foi.

— Que! — olhou-o fixamente.

— Ele não lhe disse?

— Não.

Olive Betterton parecia abismada e perturbada. O ho­mem que a interrogava teve pena dela, mas não abando­nou o ataque. Pela primeira vez parecia-lhe que come­çava a conseguir alguma coisa.

— Eu não compreendo — disse ela, pouco segura. — É muito esquisito que ele não me tenha contado nada.

— Eles almoçaram juntos, no Dorset, onde a Sra. Speeder estava hospedada, na quarta-feira, 12 de agosto.

— Doze de agosto?

— Sim.

— É verdade, ele foi a Londres, mais ou menos nessa ocasião. Mas nunca falou nisso — interrompeu o que es­tava dizendo e, subitamente, perguntou: — Como é ela?

Ele respondeu rapidamente e em tom tranqüiliza­dor.

— Não é absolutamente uma mulher bonita, Sra. Betterton. Uma mulher competente, de pouco mais de trinta anos que não é nenhuma beleza. Não há a menor indicação de que as suas relações com seu marido pudes­sem ser íntimas. Justamente por isso é que é estranho que ele não lhe tivesse falado sobre o encontro.

— Sim, sim, eu também acho.

— Agora pense com cuidado, Sra. Betterton. A se­nhora notou alguma modificação em seu marido mais ou menos nessa época? Em meados de agosto? Isso foi, mais ou menos, uma semana antes da conferência.

— Não, não, eu não notei nada. Não havia nada pa­ra notar.

Jessop suspirou.

A campainha do telefone de mesa soou discretamen­te. Ele levou o fone ao ouvido.

— Sim — disse ele.

Uma voz falou-lhe.

— Há um homem aqui que quer falar com alguém responsável pelo caso Betterton, senhor.

— Qual é o seu nome?

A voz ao telefone tossiu discretamente.

— Bem, eu não estou seguro de como se pronuncia o nome, Sr. Jessop. Talvez seja melhor que eu soletre.

— Certo. Pode começar.

Escreveu num papel as letras, à medida que as ouvia.

— Polonês? — perguntou.

— Ele não o disse, senhor. Fala inglês bastante bem, mas com um ligeiro sotaque.

— Peça que espere.

— Muito bem, senhor.

Jessop desligou o telefone e depois olhou para Olive Betterton. Ela continuava sentada, quieta, com uma placidez desesperada. Ele arrancou a folha do bloco onde es­crevera o nome e entregou a ela.

— Conhece alguém com esse nome?

Ela arregalou os olhos ao fitar o papel. Por um ins­tante ele pensou que ela estivesse com medo.

— Sim — disse ela, — conheço, Ele me escreveu.

— Quando?

— Ontem. Ele é primo da primeira mulher de Tom. Acaba de chegar à Inglaterra. Está muito preocupado com o desaparecimento de Tom. Escreveu perguntando se eu tinha alguma notícia e para exprimir a sua profun­da simpatia.

— A senhora nunca ouviu falar nele, antes?

— Não.

— Então é possível que ele nem sequer seja primo do seu marido?

— Bem, suponho que sim. Eu não havia pensado nisso.

Ela parecia perturbada.

— A primeira mulher de Tom era estrangeira. Filha do Professor Mannheim. Pela carta o homem parecia sa­ber tudo sobre Tom e ela. A carta era muito formal e correta; mostrava ter sido escrita por um estrangeiro. Ti­ve a impressão de que a carta dizia a verdade. De qual­quer forma, qual seria o objetivo da carta se não fosse genuína?

Jessop esboçou um sorriso.

— Nós, aqui, estamos sempre fazendo esse tipo de pergunta. Temos tantas dúvidas que as menores coisas nos parecem, algumas vezes, completamente fora de pro­porção.

— Acredito perfeitamente nisto.

Ela teve um súbito tremor.

— É curioso como esta sua sala aqui, no meio de um labirinto de corredores, parece um desses sonhos que nunca terminam...

— Sim, sim, admito que este ambiente possa dar uma sensação de claustrofobia — disse Jessop, com ar amá­vel.

Olive Betterton ergueu uma das mãos e ajeitou os ca­belos que lhe caíam sobre a testa.

— O senhor deve compreender que eu não posso su­portar esta situação — disse ela; — esperar, esperar. Pre­ciso mudar de ambiente. Ir ao estrangeiro, por exemplo. Ir para algum lugar onde não seja importunada, a cada momento, por jornalistas, onde todos não estejam sempre me fitando. Todos os amigos que encontro estão sempre perguntando se tenho qualquer notícia.

Fez uma pausa e continuou.

— Sinto que vou ter uma crise nervosa. Tenho ten­tado ter coragem, mas já não tenho mais forças. O meu médico concorda comigo. Ele acha que eu devo ir para fora por três ou quatro semanas. Posso mostrar a carta que me escreveu.

Nervosamente ela abriu a bolsa donde retirou um en­velope que colocou sobre a mesa e empurrou na direção de Jessop.

— Veja o que diz o médico.

Jessop tirou a carta do envelope e a leu.

— Sim, sim, eu compreendo.

Recolocou a carta no envelope.

— Então... posso ir?

Seus olhos o fitavam atentamente.

— Mas é claro, Sra. Betterton — respondeu ele. Er­gueu as sobrancelhas denotando surpresa. — Por que não?

— Pensei que o senhor fizesse objeção.

— Objeção... por quê? É um assunto que só depende da senhora. Só peço que me informe como poderei encontrá-la, caso tenha alguma notícia enquanto estiver fora.

— Mas, naturalmente.

— Para onde a senhora estava pensando ir?

— Para algum lugar onde haja sol e eu não encon­tre muitos ingleses. Para a Espanha ou para Marrocos.

— Isto seria ótimo e estou certo de que lhe faria mui­to bem.

— Oh, muito obrigada. Muito obrigada.

Ela se levantou excitada, contente mas ainda de­monstrando nervosismo.

Jessop levantou-se, apertou-lhe a mão e tocou a cam­painha chamando alguém que a acompanhasse para sair. Tornou a sentar-se. Por alguns momentos sua fisionomia continuou sem expressão mas, pouco a pouco, um sorriso veio-lhe aos lábios. Ele levantou o fone.

— Mande entrar o Major Glydr — disse.

 

- Major Glydr?

Jessop hesitou um pouco para pronunciar o nome.

— É difícil, sim.

O visitante falava de forma a indicar que compreen­dia a dificuldade.

— Durante a guerra os seus compatriotas chama­vam-me de Glider. Agora que vivo nos Estados Unidos, trocarei meu nome para Glyn. Será mais conveniente para todos.

— O senhor acaba de chegar dos Estados Unidos?

— Sim, cheguei há uma semana. O senhor é... quei­ra desculpar... o Sr. Jessop?

— Sim, sou Jessop.

O outro olhou-o com atenção.

— Bem — disse ele, — já ouvi falar no senhor.

— Talvez eu esteja indo depressa demais. Antes que o senhor permita que lhe faça algumas perguntas, quero mostrar esta carta da Embaixada dos Estados Unidos.

Com uma mesura entregou a carta.

Jessop pegou a carta, leu as primeiras linhas de deli­cada apresentação e colocou-a sobre a mesa. Olhou para o seu interlocutor com cuidado. Era um homem alto, de cerca de trinta anos, de postura algo rígida. Os cabelos louros estavam cortados muito curtos, à moda do con­tinente europeu. A sua maneira de falar era vagarosa e cuidada, e embora gramaticalmente certa, tinha um claro sotaque estrangeiro. Não demonstrava qualquer nervo­sismo ou falta de segurança. Este fato, por si só, era pou­co usual. Quase todos os que vinham a este gabinete mos­travam-se nervosos, excitados ou apreensivos. Alguns de­monstravam desconfiança e outros falavam com dema­siada veemência.

Aí estava um homem perfeitamente controlado, um homem cuja fisionomia nada mostrava e que sabia o que estava fazendo e por quê. Um homem a quem não seria fácil fazer dizer o que não queria, que só diria o que ti­nha a intenção de dizer. Jessop disse com tom amável:

— Que podemos fazer para o senhor?

— Vim perguntar se o senhor tinha notícias de Tho­mas Betterton, que desapareceu recentemente de maneira aparentemente misteriosa e sensacional. Não se pode acre­ditar piamente no que dizem os jornais. Indaguei onde poderia ter informações fidedignas. Disseram-me que com o senhor.

— Lamento dizer que não temos informações positi­vas sobre Betterton.

— Pensei que talvez ele tivesse sido enviado ao ex­terior em alguma missão — fez uma pausa e acrescentou: — Uma dessas missões muito secretas.

— Meu caro senhor — Jessop deu a impressão de es­tar ressentido. — Betterton era um cientista e não um di­plomata ou agente secreto.

— Considero-me repreendido justamente. Os rótulos nem sempre estão certos. O senhor perguntará qual é o meu interesse no caso. Thomas Betterton era meu pa­rente por afinidade. Foi casado com minha prima.

— Sim. Creio que o senhor é sobrinho do falecido Professor Mannheim.

— Ah, o senhor já sabia isto. Os senhores aqui estão bem informados.

— Pessoas vêm aqui e nos contam coisas — murmu­rou Jessop. — A mulher de Betterton esteve aqui. Ela me contou que o senhor lhe escreveu.

— Para exprimir a minha simpatia e indagar se ti­nha alguma notícia.

— Muito atencioso de sua parte.

— Minha mãe era a única irmã do Professor Mann­heim. Eles eram muito ligados. Quando eu era um meni­no ia muito à casa do meu tio, em Varsóvia, e Elsa era co­mo se fosse minha irmã. Quando meus pais morreram fui viver com o meu tio e minha prima. Tivemos dias muito felizes. Depois veio a guerra, a tragédia, os horro­res... Mas não falemos nessas coisas. Meu tio e Elsa fu­giram para os Estados Unidos. Eu permaneci na Resis­tência subterrânea e, depois da guerra, foram-me confia­das algumas missões. Apenas uma vez fui à America ver meu tio e minha prima. Finalmente terminaram meus trabalhos na Europa e eu pretendia viver nos Estados Uni­dos, perto do meu tio, de minha prima e seu marido. Quando lá cheguei... — abriu os braços — meu tio ti­nha morrido, minha prima também e seu marido viera para a Inglaterra e casara novamente. Mais uma vez eu estava sem família. Foi então que li que o conhecido cientista Thomas Betterton havia desaparecido e eu vim para saber se podia fazer alguma coisa.

Parou e olhou para Jessop como a interrogá-lo.

Jessop olhou-o sem qualquer expressão no rosto.

— Por que motivo ele desapareceu. Sr. Jessop?

— Isto — respondeu Jessop delicadamente — é exa­tamente o que queremos saber.

— Talvez o senhor realmente saiba.

Jessop refletiu de como os papéis dos dois poderiam estar invertidos. Naquele gabinete ele é que estava acos­tumado a interrogar os outros. Esse estrangeiro não era o inquiridor. Sempre sorrindo amavelmente, Jessop res­pondeu:

— Posso assegurar que não.

— Mas o senhor tem suspeitas?

— É possível — disse Jessop cautelosamente — que haja certas coincidências... Têm havido casos semelhan­tes.

— Eu sei.

Rapidamente o visitante citou meia dúzia de casos.

— Todos eram cientistas — disse ele com ênfase.

— Sim.

— Eles foram para trás da Cortina de Ferro?

— Possivelmente, mas não temos a certeza.

— Mas, eles foram por sua livre vontade?

— Mesmo isso — disse Jessop — é difícil afirmar.

— O senhor acha que isto não é de minha conta?

— Ora, por favor.

— Mas o senhor tem razão. O assunto só me inte­ressa por causa de Betterton.

— Queira desculpar-me — disse Jessop, — se eu não entendo bem o motivo do seu interesse. Afinal de contas Betterton só é seu parente por afinidade. O senhor nem sequer o conhecia.

— Isto é verdade. Mas para nós, poloneses, a família é coisa muito importante. Há obrigações.

Levantou-se e curvou-se meio duro.

— Lamento ter tomado o seu tempo e agradeço a sua amabilidade.

Jessop também se levantou.

— Sinto não podermos ajudá-lo — disse — mas asse­guro que estamos sem qualquer informação segura. Se eu vier a saber alguma coisa, como poderei comunicar-me com o senhor?

— Aos cuidados da Embaixada Americana por favor.

Fez uma nova curvatura formal.

Jessop tocou a campainha. O Major Glydr saiu. Jes­sop levou o fone ao ouvido.

— Peça ao Coronel Wharton para vir a minha sala.

Quando Wharton entrou Jessop disse:

— Finalmente parece que as coisas começam a an­dar.

— Como?

— A Sra. Betterton quer ir para o estrangeiro.

Wharton assoviou.

— Ao encontro do maridinho?

— Espero que sim. Ela veio trazendo uma carta mui­to conveniente, escrita pelo seu médico. Precisa de um repouso completo e de mudar de ambiente.

— Parece animador.

— Naturalmente, pode ser verdade — Jessop pre­veniu .

— Nós aqui não aceitamos como tal — disse Wharton.

— Não. Mas ela age de maneira a mais convincente. Não teve um só lapso.

— Suponho que não conseguiu mais nada dela?

— Um leve indício. A mulher chamada Speeder com quem Betterton almoçou no Dorset.

— Sim?

— Ele nada disse à mulher sobre esse almoço.

— Oh — murmurou Wharton. — Você acha que isto pode ter importância?

— Pode ser que sim. Carol Speeder foi chamada a depor perante a comissão sobre Atividades Anti-americanas. Ela deu esclarecimentos satisfatórios mas... ape­sar de tudo ficou marcada ou, pelo menos, alguns pen­sam que ficou. É remotamente possível que se trate de um contato. Foi o único que, até agora, encontramos com relação a Betterton.

— E quanto às pessoas que tiveram contato com a Sra. Betterton ultimamente? Alguma delas poderia ter influído para essa idéia de ir para o estrangeiro?

— Nenhum encontro pessoal. Ela recebeu ontem uma carta de um polonês. Um primo da primeira mulher de Betterton. Ele esteve aqui, há pouco, querendo saber de­talhes etc...

— Como é ele?

— Não parece um personagem real — disse Jessop. — Muito correto e muito estrangeiro mas parece um ser irreal.

— Você acha que ele possa ser o “contato” que veio avisá-la?

— Não sei, mas pode bem ser. Ele me intriga.

— Vai mandar segui-lo?

Jessop sorriu.

— Sim, eu apertei a campainha duas vezes.

— Você é uma velha aranha, cheia de artimanhas.

Wharton falou sério, mais uma vez.

— Bem, qual é o programa?

— Creio que Janet e a mesma técnica. Espanha e Marrocos.

— E a Suíça?

— Desta vez não.

— Eu julgava que Espanha e Marrocos seriam mais difíceis para eles.

— Não devemos subestimar nossos adversários.

Wharton, com ar aborrecido, deu um peteleco no ar­quivo de aço, que continha documentos secretos.

— Dois dos poucos países onde Betterton não foi visto — disse em tom de lástima. — Bem, preparamos tu­do. Mas por Deus, se não formos bem sucedidos desta vez...

Jessop reclinou-se na cadeira.

— Há muito tempo não tenho férias — disse ele. — Mal posso suportar este gabinete. Eu poderia fazer uma pequena viagem ao estrangeiro...

 

— Vôo108 para Paris. Air France. Por aqui, façam o favor.

As pessoas na sala de espera do Aeroporto de Hea­throw ergueram-se. Hilary Craven apanhou a sua ma­leta de couro de lagarto e acompanhou os outros para o ponto de embarque, perto da pista. Em contraste com a sala aquecida, o vento soprava bastante frio.

Hilary teve um estremecimento e aconchegou me­lhor o casaco de peles. Ela acompanhou os outros passa­geiros em direção ao avião que os esperava. Este era o momento. Ela ia viajar — escapar. Ia para onde havia sol, céu azul e uma vida nova. Deixaria para trás todo aquele peso — o terrível peso da miséria e da frustração. Subiu a escada do avião, curvou a cabeça para entrar e foi acompanhada pelo aeromoço até sua poltrona. Pela primeira vez em vários meses ela se sentiu aliviada da­quela opressão tão forte que parecia um sofrimento fí­sico.

— Eu conseguirei ir embora — disse para si mesma. — Eu irei embora.

O ronco dos motores causara-lhe excitação. Pa­recia que o ruído tinha algo da selvageria dos elemen­tos. A miséria civilizada é a pior das misérias. Cinzenta e sem esperança.

Mas agora — pensou ela — vou escapar, fugir.

O avião começou a rolar vagarosamente pela pista.

A aeromoça disse:

— Queiram colocar os seus cintos, por favor.

O avião fez meia volta e ficou aguardando a permis­são para partir. Hilary pensou:

Talvez o avião sofra um acidente. Talvez ele se es­patife antes de levantar vôo. Isto será o fim, a solução para tudo.

A espera do sinal de partida era interminável. Espe­rando a permissão de partir para a liberdade Hilary pen­sou, absurdamente:

Não conseguirei partir, nunca. Terei que ficar aqui — prisioneira...

Ah, até que enfim.

Os motores roncaram violentamente e o avião co­meçou a rolar. Rapidamente, cada vez mais veloz. Hi­lary pensou:

Ele não levantará vôo. Não pode... Isto é o fim.

Ah, parecia que tinham deixado o solo. O avião não parecia estar-se erguendo, era a terra que estava baixan­do e ficando com seus problemas e desapontamentos en­quanto o orgulhoso aparelho se aproximava das nuvens. O avião se erguia descrevendo uma curva sobre o aero­porto que parecia um ridículo brinquedo infantil. Estradinhas engraçadas, estranhos caminhos de ferro com trenzinhos de brinquedo. Um mundo ridículo e infantil onde pessoas amavam e odiavam, despedaçando os corações. Nada disso tinha agora importância porque era tudo tão pequeno, ridículo e sem importância. As nuvens ficaram, agora, por baixo deles, massas densas de um cinzento es­branquiçado. Já deviam estar sobre o Canal da Mancha. Hilary recostou-se e cerrou os olhos. Escapar, fugir. Ela deixara a Inglaterra, deixara Nigel, deixara o triste mon­tículo que era a sepultura de Brenda. Tudo ficara para trás. Entreabriu os olhos e tornou a fechá-los, suspirando longamente. Adormeceu...

 

Quando Hilary despertou o avião estava descendo.

Paris — pensou Hilary aprumando-se na poltrona e apanhando a maleta. Mas não era Paris. A aeromoça, caminhando entre as poltronas, falou com o tom alegre de professora de Escola Maternal, que alguns passageiros acham tão irritante:

— Vamos aterrar em Beauvais porque o aeroporto de Paris está fechado pela névoa.

A sua voz sugeria algo como:

— Não é formidável, crianças?

Hilary espiou pela pequena janela a seu lado. Qua­se nada podia ver. Beauvais também parecia coberta pe­la cerração. O avião fazia grandes voltas, com velocidade reduzida. Levou algum tempo para aterrar. Os passa­geiros foram, então, levados através da fria e úmida né­voa, para uma tosca construção de madeira onde havia algumas cadeiras e um longo balcão de madeira.

Hilary sentia-se deprimida mas tentava reagir. Um homem, a seu lado, murmurou:

— Um antigo campo militar. Não há conforto ou aquecimento aqui. Em todo caso, como estamos na Fran­ça, eles servirão bebidas.

Era verdade. Apareceu um homem com chaves e, pouco depois, eram servidas bebidas alcoólicas para le­vantar o moral dos passageiros. Isto ajudou a animá-los para a longa e irritante espera.

Passaram-se algumas horas antes que algo aconteces­se. Outros aviões que também se destinavam a Paris pou­saram no campo. Em pouco tempo a pequena sala estava lotada de pessoas tremendo de frio, irritadas com a lon­ga espera.

Para Hilary tudo parecia irreal. Parecia que ela es­tava sonhando e, por felicidade, desligada da realidade. Era só uma questão de esperar. Ela continuava em sua viagem — sua viagem de fuga. Continuava fugindo de tudo em busca do lugar onde sua vida iria recomeçar. Essa sensação perdurou durante a fatigante demora, con­tinuou durante os momentos de caos quando foi anunciado, quando já era noite, que viriam ônibus para levar os passageiros até Paris.

Houve uma grande confusão de passageiros, funcio­nários e carregadores, todos levando bagagens, empurran­do-se e esbarrando na escuridão. Finalmente Hilary, com os pés e as pernas geladas, viu-se num ônibus, rodando lentamente através do nevoeiro, em direção a Paris.

Foi uma longa e fatigante viagem de quatro horas. Era meia-noite quando chegaram à Estação dos Inválidos e Hilary ficou aliviada, apanhando sua bagagem e toman­do um táxi para dirigir-se ao hotel onde tinha quarto re­servado. Estava demasiado cansada para comer — to­mou um banho quente e atirou-se na cama.

O avião para Casablanca deveria partir do Aeroporto de Orly às dez e meia na manhã seguinte, mas quando os passageiros chegaram a Orly reinava a maior confusão. Aviões tinham ficado retidos no solo em muitos lugares da Europa; chegadas e partidas tinham ficado atrasadas.

Um funcionário do balcão de partidas, já meio tonto de tanto trabalho, deu de ombros e disse-lhe:

— Lamento mas a senhora não poderá seguir no avião para o qual tinha reserva. Os horários foram todos alte­rados. Peço à senhora que se sente por alguns instantes. Tudo será resolvido rapidamente, assim o espero.

Finalmente ela foi chamada e informada de que havia um lugar no avião para Dacar que normalmente não pa­rava em Casablanca mas que, devido às circunstâncias, faria uma descida especial.

— A senhora terá um atraso de três horas seguindo nesse avião.

Hilary concordou, sem protestar, e o funcionário ficou surpreso e muito contente com a sua atitude.

— A senhora não calcula as dificuldades que eu te­nho tido esta manhã — disse ele. — Enfin, como os passa­geiros são exigentes e pouco razoáveis minha senhora... Eu não tenho culpa do nevoeiro. É claro que tudo ficou transtornado. As pessoas deveriam ficar conformadas quando os seus planos são alterados pelas circunstâncias. Pelo menos assim penso eu. Après tout que importância tem um atraso de duas ou três horas? Que importância tem chegar a Casablanca neste ou naquele avião?

Entretanto, naquela manhã, o fato tinha muito mais importância do que julgava o pequeno funcionário fran­cês. Quando Hilary, finalmente, dirigia-se para o avião, sob os raios agradáveis do sol, o carregador, que a seu lado empurrava um carrinho cheio de malas, observou:

— A senhora teve muita sorte em não tomar o avião antes deste, o da linha regular para Casablanca.

— Por quê? Que aconteceu?

O homem olhou com cuidado para todos os lados mas nunca pudera guardar um segredo. Baixou a voz e disse, em tom confidencial:

— Mauvaise affaire! — resmungou. — Caiu, quando aterrava. O piloto e o navegador morreram e quase todos os passageiros. Quatro ou cinco foram levados para o hos­pital, alguns em estado grave.

A primeira reação de Hilary foi de uma cólera que cegava. Sem que o quisesse, um pensamento veio-lhe à mente:

Por que não estava naquele avião? Se eu estivesse tudo estaria terminado agora e eu livre de tudo. Acaba­dos os sofrimentos, acabada a miséria. Os passageiros da­quele avião queriam viver. E eu — eu pouco me importo. Por que não fui eu?

A passagem pela inspeção da Alfândega foi facílima e ela, com sua bagagem, dirigiu-se para o hotel. Era uma tarde ensolarada e linda e o sol começava a mergulhar no poente. O ar transparente e a luz dourada eram exata­mente como ela imaginara. Ela tinha chegado! Tinha dei­xado o fog, o frio e a escuridão de Londres; tinha deixado para trás a sua miséria, a indecisão e o sofrimento. Aqui havia uma vida pulsante, havia cor, havia sol.

Atravessou o quarto, escancarou a janela e olhou para a rua. Sim, era tudo como ela imaginara que seria. Len­tamente, ela se afastou da janela e se sentou na cama. Es­capar, evadir-se. Era esse o refrão que não saía de sua ca­beça desde que deixara a Inglaterra. E agora ela sentia uma certeza, fria e horrível, que não havia fuga possível.

Tudo aqui era o mesmo que em Londres. Ela própria, Hilary Craven, era a mesma. Era de Hilary Craven que ela estava tentando escapar e Hilary Craven era Hilary Craven em Marrocos, tanto como o tinha sido em Londres. Baixinho ela disse a si mesma:

— Que tola eu tenho sido... que tola eu sou. Por que pensei que me sentiria diferente se saísse da Inglaterra?

O túmulo de Brenda, aquele patético e pequeno mon­tículo estava na Inglaterra e, muito em breve, Nigel es­taria casado com sua nova mulher, na Inglaterra. Por que tinha ela pensado que essas duas coisas teriam menos im­portância para ela em outras paragens? Era apenas o que ela desejaria que fosse, nada mais. Mas agora tudo estava acabado. Ela estava frente à frente com a realidade. A realidade que era ela e do que ela podia suportar. E do que não podia suportar. É possível suportar as coisas, pen­sou ela, quando há uma razão para suportá-las. Ela supor­tara sua longa doença, suportara o abandono de Nigel e a forma cruel e brutal como ocorrera. Tinha suportada essas coisas porque havia Brenda. Depois veio a longa batalha para salvar a vida de Brenda e a derrota final... Agora não havia mais nada que justificasse viver. A via­gem a Marrocos acabava de provar isso. Em Londres ela tinha a idéia estranha e confusa de que se ela fosse para outro país poderia deixar tudo para trás e recomeçar tudo. Por isto ela fizera a viagem para este lugar que não tinha nenhuma ligação com o passado e possuía as quali­dades que ela tanto amava: sol, ar puro e a novidade de coisas e gente estranhas. Aqui, pensara ela, tudo seria di­ferente. Mas não era. Tudo era o mesmo. Os fatos eram muito simples, inevitáveis, e não havia escapatória. Ela, Hilary Craven, não tinha mais nenhuma vontade de con­tinuar vivendo. Era a conclusão, simples e lógica a que podia chegar.

Se o nevoeiro não tivesse sobrevindo; se ela tivesse tomado o avião no qual tinha lugar reservado, todos os seus problemas estariam resolvidos. Ela estaria agora em um necrotério francês, um corpo mutilado e cheio de fra­turas mas o seu espírito estaria em paz, ela não estaria mais sofrendo. É verdade que esse mesmo objetivo poderia ser alcançado mas, para tanto, ela teria algum tra­balho.

Seria muito simples se ela tivesse consigo compri­midos para dormir. Ela relembrou quando pedira uma receita ao Dr. Grey, da expressão estranha em sua fisio­nomia quando ele respondeu:

— Acho melhor não. É preferível que você se acos­tume a dormir sem remédios. Talvez seja difícil, no prin­cípio, mas você se acostumará.

A expressão estranha do rosto do médico. Saberia ele, já então, ou suspeitava que ela chegasse a tal reso­lução? Não seria difícil. Levantou-se com firmeza. Iria procurar uma farmácia.

 

Hilary sempre pensara que fosse fácil comprar drogas nas cidades do estrangeiro. Ficou muito admirada ao ve­rificar que não era assim. A primeira farmácia que ela procurou vendeu-lhe apenas dois comprimidos. O farma­cêutico disse-lhe que para maior quantidade seria neces­sária uma receita médica. Ela agradeceu sorrindo des­preocupada e ia saindo rapidamente quando esbarrou em um rapaz alto, de rosto algo solene, que se desculpou em inglês. Ela ainda ouviu, quando saía da farmácia, que o rapaz pedia pasta de dentes.

De certa forma, o fato pareceu-lhe interessante. Pasta de dentes. Parecia tão ridículo, tão normal, tão vulgar. Subitamente ela sentiu como uma dor aguda porque a pasta de dentes que ele pedira era a mesma que Nigel usava. Ela atravessou a rua e entrou em outra loja. Es­teve em quatro farmácias antes de voltar ao hotel. Na terceira farmácia ela achou divertido ver novamente o rapaz com fisionomia de coruja que continuava obstina­damente procurando a marca de pasta de dentes que preferia e que, evidentemente, não era facilmente encon­trada nas farmácias francesas de Casablanca.

Hilary sentia-se quase descuidada enquanto trocava o vestido e retocava o rosto antes de descer para jantar. Ela, propositadamente, desceu o mais tarde possível por­que não queria encontrar nenhum dos seus companheiros de viagem ou tripulantes do avião. De qualquer forma isto seria pouco provável visto como o aparelho prosse­guira para Dacar e ela julgava ser a única pessoa que fi­cara em Casablanca.

O restaurante estava quase vazio, quando ela chegou, mas o rapaz com cara de coruja estava terminando a sua refeição em uma mesa junto à parede. Ele parecia absor­vido na leitura de um jornal francês.

Hilary encomendou uma boa refeição e meia garrafa de vinho. Sentia-se ligeiramente excitada. Pensou:

Afinal isto é apenas a última aventura.

Mandou que lhe levassem uma garrafa de água de Vichy para o quarto e, imediatamente depois, deixou o restaurante e subiu.

O garçom trouxe a água mineral, abriu a garrafa e, desejando-lhe boa noite, retirou-se. Hilary suspirou, alivia­da. Quando o garçom saiu, ela foi até a porta e fechou-a girando a chave. Retirou da gaveta da mesa de cabeceira os quatro pacotinhos que trouxera das farmácias e abriu-os. Colocou os comprimidos sobre a mesa e encheu um copo com água mineral. Como o remédio era em comprimidos ela só teria que colocá-los na boca e engoli-los com goles de água de Vichy.

Despiu-se, enfiou um roupão e tornou a sentar-se junto à mesa. Seu coração batia mais rapidamente. Co­meçava a sentir algo como medo, mas um medo que era uma espécie de fascínio e não um sentimento que a fizes­se abandonar o seu plano. Estava perfeitamente calma e decidida. Iria, finalmente, escapar, realmente escapar. Olhou para a escrivaninha procurando decidir se deixaria uma nota. Resolveu que não. Ela não tinha parentes, nem amigos íntimos e queridos a quem quisesse dizer uma pa­lavra de despedida. Quanto a Nigel, ela não queria causar-lhe um remorso inútil, o que certamente aconteceria se lhe deixasse um bilhete. Provavelmente Nigel leria nos jornais que uma Sra. Hilary Craven tinha morrido em Casablanca por haver tomado, em excesso, comprimidos para dormir. Seria, certamente, um pequeno parágrafo no jornal. Ele receberia a notícia sem grande choque.

— Pobre Hilary — diria ele — que falta de sorte.

E talvez, secretamente, ele sentisse um certo alívio. Isto porque, pensava ela, Nigel devia ter um pequeno peso na consciência e ele era um homem que gostava de estar em paz consigo mesmo.

Mas Nigel já lhe parecia muito distante e, curiosa­mente, sem qualquer importância. Nada mais restava a fazer. Ela engoliria os comprimidos, deitar-se-ia na cama e dormiria. Desse sono nunca mais acordaria. Não tinha, ou julgava não ter, nenhum sentimento religioso. A mor­te de Brenda havia fechado a porta a tudo isto. Não havia, por conseguinte, nada mais a considerar. Mais uma vez ela era uma viajante, tal como fora no Aeroporto de Hea­throw, um passageiro esperando a partida para um des­tino ignorado, sem bagagens para incomodar e sem amassada das despedidas. Pela primeira vez em sua vida ela estava livre, inteiramente livre para agir como bem o entendesse. O passado já estava longe dela. A longa e do­lorosa miséria que a atormentava sempre que estava acor­dada tinha acabado. Sim. Leve, livre e sem complicações. Pronta para começar a sua jornada.

Estendeu a mão para o primeiro comprimido. No mes­mo instante bateram leve e discretamente à porta. Hilary franziu a testa. Sua mão parou no ar, a meio caminho. Quem seria — a criada de quarto? Não, a cama já estava preparada. Alguém, talvez, para falar sobre papéis ou passaporte? Deu de ombros. Não abriria a porta. Para que incomodar-se? Fosse quem fosse iria embora e voltaria noutra ocasião.

Bateram, novamente. Desta vez um pouco mais forte­mente. Hilary não se moveu. Não podia haver assunto tão urgente e quem estava batendo acabaria indo embora.

Ela olhava para a porta e, subitamente, seus olhos se arregalaram de espanto. A chave estava lentamente gi­rando para trás, depois avançou e caiu ao chão com ruído metálico. A maçaneta girou, a porta foi aberta e um ho­mem entrou no quarto. Ela o reconheceu. Era o moço com ares de coruja que ela vira comprando pasta de dentes. Hilary fitou-o. Naquele instante ela estava tão assombrada que não poderia fazer ou dizer qualquer coisa. O rapaz virou-se e fechou a porta; apanhou a chave do chão, en­fiou-a na fechadura e girou-a. Depois dirigiu-se em dire­ção a ela, sentou-se numa cadeira do outro lado da mesa. O que ele disse pareceu a ela completamente absurdo.

— Meu nome é Jessop.

A cor voltou, violentamente, ao rosto de Hilary. Ela se inclinou para frente e disse, com cólera e frieza:

— Que pretende fazer aqui?

Ele a olhou, solenemente — e piscou.

— É curioso — disse ele; — eu vim perguntar a mes­ma coisa.

Ele olhou de lado, e rapidamente, para os preparati­vos sobre a mesa.

Hilary disse, irritada:

— Não sei o que o senhor pretende dizer.

— Sabe. Sabe muito bem.

Hilary ficou calada, tentando encontrar palavras. Ha­via muita coisa que ela queria dizer. Mostrar indignação. Mandá-lo sair do quarto. Mas, estranhamente, foi a curio­sidade que predominou. A pergunta chegou a seus lábios com tal naturalidade que ela quase não percebeu que a fazia.

— A chave — disse ela — virou sozinha na fechadura?

— Ora, foi isso!

O rosto do homem pareceu transformar-se com um sorriso de menino. Enfiou a mão no bolso e de lá retirou um instrumento de metal que entregou a ela para exa­minar.

— Aí está — disse ele; — uma pequena ferramenta muito útil. É só enfiá-la na fechadura, ela prende a ponta da chave e a faz girar.

Pegou de volta o instrumento e o colocou no bolso.

— Os arrombadores usam esta ferramenta — disse ele.

— Então o senhor é um arrombador?

— Não, não, Sra. Craven, seja justa comigo. Eu bati na porta. Arrombadores não batem. Só quando me pare­ceu que a senhora não me ia deixar entrar é que eu usei isto.

— Mas, por quê?

Uma vez mais os olhos do visitante viraram-se para os preparativos sobre a mesa.

— Eu não o faria, se fosse a senhora — disse ele. — Não é nada como pensa, sabe? A senhora pensa que ador­mece e não acorda mais. Mas não é bem assim. Há uma porção de efeitos desagradáveis. Algumas vezes convul­sões. Gangrena da pele. Se a pessoa tem resistência à droga o efeito é muito demorado, alguém pede socorro e acontecem muitas coisas desagradáveis: lavagem estoma­cal, óleo de rícino, bofetadas e empurrões. Tudo muito humilhante.

Hilary recostou-se na cadeira, semicerrando os olhos. Apertou os punhos e forçou um sorriso.

— O senhor é um homem ridículo — disse ela. — O senhor imagina que eu ia-me suicidar, ou coisa que o valha?

— Não estou apenas imaginando — disse o homem chamado Jessop — Estou absolutamente seguro. Eu es­tava na farmácia quando a senhora entrou. Eu ia comprar pasta de dentes. Como eles não tinham a marca que eu queria fui a outra casa. Lá estava a senhora, novamente comprando comprimidos para dormir. Achei o fato um pouco estranho e a segui. Todos esses comprimidos para dormir em farmácias diferentes. A conclusão só podia ser uma.

O seu tom era casual, amistoso, mas denotava per­feita segurança no que dizia. Olhando para ele, Hilary deixou de fingir.

— E o senhor não acha que é uma intromissão imper­doável de sua parte tentar impedir que eu faça o que quero?

Ele pensou no assunto por alguns instantes e, depois, sacudiu a cabeça.

— Não, é uma dessas coisas que não se pode deixar de fazer. É claro que a senhora me entende.

Hilary respondeu com energia.

— Nesse momento o senhor poderá impedir. Quero dizer que pode levar os comprimidos... atirá-los pela janela, ou coisa que o valha... mas não poderá impedir que eu compre mais, amanhã ou depois; que eu me atire do último andar ou que me jogue na frente de um trem.

O rapaz pensou por um instante.

— Não — disse ele. — Concordo que não a poderia impedir de fazer nenhuma dessas coisas. Mas é uma ques­tão de saber se a senhora iria fazer isto. Quero dizer... que a senhora provavelmente não faria isto amanhã.

— O senhor acha, então, que amanhã eu estarei pen­sando de modo diferente? — perguntou Hilary em tom amargo.

— Acontece a muitas pessoas — disse Jessop em tom de quem pede desculpas.

— Sim, talvez — observou ela. — Se alguém fosse fazer isso num assomo repentino de desespero. Mas não quando é um desespero frio e permanente. Eu não tenho nenhuma razão para viver, compreende?

Jessop inclinou a cabeça, que lembrava uma coruja e piscou.

— Interessante — observou.

— Nada disso. Não há nada interessante. Eu não sou uma mulher interessante. Meu marido, a quem eu amava, abandonou-me; minha filha única morreu de meningite, após sofrer muito. Não tenho parentes próximos nem ami­gos íntimos. Não tenho nenhuma vocação, não tenho ne­nhum hobby e não sei de nenhum trabalho de que eu gostasse.

— É muito duro — disse Jessop mostrando compre­ensão.

Hesitando um pouco, ele acrescentou:

— Mas a senhora não acha que cometer tal ato é errado?

Hilary replicou acaloradamente:

— Errado, por quê? É a minha vida, não é?

— Oh, sim, sim — Jessop repetiu apressadamente. — Quem sou eu para falar em altos princípios de moral? Mas a senhora bem sabe que há pessoas que condenam tal coisa.

Hilary respondeu:

— Eu não sou uma delas.

Jessop disse, meio fora de propósito:

— Perfeitamente.

Ele continuava sentado, olhando para ela e piscando os olhos, pensativo.

Hilary disse:

— Talvez agora, senhor... ah...

— Jessop — disse o rapaz.

— Então o senhor agora me deixa em paz?

Mas Jessop sacudiu a cabeça.

— Ainda não — disse ele. — Eu queria saber o que havia por trás de tudo. Agora compreendo tudo com cla­reza, não é? A senhora não tem interesse pela vida; não quer mais viver e, de certa forma, acha uma boa idéia morrer.

— Sim.

— Muito bem — disse Jessop com ar satisfeito. — Agora sabemos a quantas andamos. Passemos ao passo se­guinte. A senhora acha que só pode ser com comprimidos para dormir?

— Que quer dizer?

— Bem, eu já lhe disse que não é tão romântico quanto parece. Jogar-se do alto de um prédio também não é muito bom. Nem sempre se morre instantaneamente. O mesmo pode acontecer atirando-se debaixo de um trem. O que eu queria insinuar é que há outras maneiras.

— Eu não entendo o que quer dizer.

— Estou sugerindo outro método. Um método real­mente mais esportivo. Um método muito mais excitante. Serei mais claro e honesto com a senhora. Haverá uma probabilidade em cem de a senhora não morrer. Mas eu creio que, dadas as circunstâncias, a senhora acabará não fazendo objeções a isso.

— Eu não tenho a mínima idéia do que o senhor está falando.

— É claro que não — disse Jessop. — Eu ainda não comecei a dizer do que se trata. Acho que terei de fazer alguns rodeios... contar-lhe uma história. Posso con­tinuar?

— Acho que sim.

Jessop não deu atenção à relutância do consentimento. Ele começou, parecendo cada vez mais com uma coruja.

— Creio que a senhora é o tipo de mulher que lê jor­nais e está a par das coisas — disse ele. — A senhora deve ter lido sobre o desaparecimento de cientistas. Vários de­les sumiram em pouco tempo. Houve o caso daquele ita­liano, há um ano e, há cerca de dois meses, desapareceu um jovem cientista chamado Thomas Betterton.

— Sim — concordou Hilary, — li a esse respeito nos jornais.

— Mas têm havido mais coisas que as publicadas nos jornais. Quero dizer que mais pessoas desapareceram. Nem todos eram cientistas. Alguns eram moços que se de­dicavam a importantes pesquisas médicas. Outros eram pesquisadores no campo da física e da química. Houve também um advogado. Muitos desapareceram, em vários lugares. O nosso país é um país livre. Quem quiser pode deixá-lo. Mas nessas circunstâncias peculiares precisamos saber por que essas pessoas viajaram e para onde foram. E, o que é muito importante, como foram. Partiram por sua livre vontade? Teriam sido raptadas? Foram vítimas de chantagens que as obrigaram a partir? Que caminhos tomaram... que tipo de organização está provocando isto e quais os seus verdadeiros objetivos? Muitas interroga­ções. Precisamos achar as respostas para elas. A senhora poderia ajudar-nos a achar tais respostas.

Hilary fitou-o.

— Eu? Como? Por quê?

— Falemos sobre o caso de Thomas Betterton. Ele de­sapareceu de Paris há pouco mais de dois meses. Deixou a mulher na Inglaterra. Ela estava desesperada, ou disse que estava desesperada. Jurou que não sabia por que ele tinha partido, para onde e como tinha ido. Tudo isto pode ser verdade e pode não ser. Algumas pessoas... e eu sou uma delas... acham que ela não falou a verdade.

Hilary inclinou-se na cadeira. Embora contra a vonta­de, estava ficando interessada. Jessop continuou.

— Nós mantivemos uma vigilância discreta sobre a Sra. Betterton. Há cerca de quinze dias ela me procurou para dizer que o seu médico recomendara que ela fosse para o estrangeiro descansar e procurar alguma distração. Não adiantava nada ficar na Inglaterra onde estava sempre importunada... jornalistas, parentes e amigos bon­dosos.

Hilary disse secamente:

— Eu bem posso imaginar.

— Sim, muito penoso. Muito natural que ela quisesse passar algum tempo fora.

— Muito natural, eu também acho.

— Mas no nosso departamento temos mentalidade maldosa. Suspeitamos de todos. Providenciamos para sa­ber onde iria a Sra. Betterton. Ontem ela deixou a Ingla­terra com destino a Casablanca.

— Casablanca?

— Sim, a caminho de outros lugares em Marrocos, é claro. Tudo perfeitamente às claras. Reservas, passagens etc. Mas pode ser que esta viagem a Marrocos possa ser o primeiro passo da Sra. Betterton para o desconhecido.

Hilary deu de ombros.

— Não percebo que ligação eu possa ter com tudo isso.

Jessop sorriu.

— A ligação é que a senhora tem uma magnífica ca­beleira ruiva, Sra. Craven.

— Cabelos?

— Sim. É o aspecto predominante da Sra. Better­ton... o seu cabelo. A senhora sabe, talvez, que o avião antes do seu espatifou-se ao aterrar?

— Eu sei. Deveria estar naquele avião. Tinha passa­gem reservada nele.

— Curioso — disse Jessop. — Bem, a Sra. Betterton estava naquele avião. Foi retirada dos escombros ainda com vida e está no hospital. Segundo os médicos, ela já não estará viva amanhã de manhã.

Hilary percebeu um leve raio de luz. Olhou para Jes­sop como quem interroga.

— Sim — disse ele, — talvez agora a senhora esteja percebendo a forma de suicídio que eu lhe estou ofere­cendo. Estou sugerindo que a Sra. Betterton continue a sua viagem. Estou sugerindo que a senhora passe a ser Sra. Betterton.

— Mas — disse Hilary — isto seria impossível. Eles saberiam logo que eu não sou ela.

Jessop inclinou a cabeça para o lado.

— Isto, evidentemente, depende inteiramente de quem a senhora chama “eles”. É uma palavra muito vaga. Quem é ou quem são “eles”? Existe tal coisa, existem essas pessoas denominadas “eles”? Não sabemos. Mas posso informá-la de alguma coisa. Se a explicação mais popular e aceita do que venham a ser “eles” é verdadeira então sabemos que trabalham em pequenas células auto-suficientes. Eles agem assim para garantir a própria se­gurança. Se a viagem da Sra. Betterton tinha um objetivo e foi planejada, é certo que as pessoas encarregadas do assunto aqui nada sabem sobre as pessoas agindo na In­glaterra. Na hora combinada elas entrarão em contato com uma certa mulher, em certo lugar, e prosseguirão, daí em diante, de acordo com as ordens que têm. A des­crição no passaporte da Sra. Betterton indica uma mulher de um metro e setenta de altura, cabelos ruivos, olhos azuis, boca regular e nenhum sinal especial. Muito bom.

— Mas as autoridades aqui. Elas certamente...

Jessop sorriu.

— Quanto a isto não haverá problemas. Os franceses também perderam alguns jovens cientistas e químicos de valor. Eles cooperarão. Os fatos serão os seguintes. A Sra. Betterton, sofrendo de Concussão, é levada para o hospital. A Sra. Craven, outra passageira do avião sinistrado, tam­bém é levada para o hospital. Dentro de um ou dois dias a Sra. Craven morrerá no hospital e a Sra. Betterton terá alta, sofrendo de uma ligeira Concussão mas perfeitamente capaz de continuar sua viagem. O desastre foi verdadeiro, a Concussão é verdadeira e uma Concussão será um bom disfarce para a senhora. Explicará muitas coisas como lapsos de memória ou qualquer modo de agir inesperado.

Hilary disse:

— Isto seria uma loucura.

— É claro — disse Jessop — que será uma loucura. É uma missão arriscadíssima e, se as nossas suspeitas forem confirmadas, a senhora será liquidada. Como vê, eu estou sendo absolutamente franco mas, segundo a senho­ra disse, está pronta e mesmo ansiosa para deixar esta vida. Penso que como alternativa entre o que sugiro e atirar-se sob as rodas de um trem, ou coisa que o valha, a senhora achará a minha idéia muito mais divertida.

Súbita e inesperadamente Hilary começou a rir.

— Acabo pensando que o senhor tem toda a razão.

— A senhora, então, concorda?

— Sim. Por que não?

— Neste caso — disse Jessop levantando-se rapida­mente, — não temos nem um minuto a perder.

 

Não fazia frio no hospital mas sentia-se uma sen­sação de frio. O ar cheirava a desinfetante. No corredor ouvia-se, de vez em quando, um chocalhar de vidros e de instrumentos quando um carrinho passava, empurrado por um servente. Hilary Craven estava sentada em uma ca­deira de ferro, junto a uma cama.

Na cama, com a cabeça envolta em ataduras e sob uma luz amortecida, estava Olive Betterton, inconsciente. De um lado da cama estava uma enfermeira e do outro um médico. Jessop estava sentado a um canto do quarto. O médico virou-se para ele e disse, em francês:

— Não vai demorar muito. O pulso está muito mais fraco.

— E ela não recobrará os sentidos?

O francês encolheu os ombros.

— É impossível dizê-lo. Talvez sim, quando o fim estiver próximo.

— E não há nada que o senhor possa fazer, nenhum estimulante?

O médico sacudiu a cabeça e saiu do quarto. A enfer­meira o seguiu. Foi substituída por uma freira que se postou junto à cabeceira da cama e lá ficou dedilhando o seu rosário. Hilary olhou para Jessop e, atendendo a um sinal de seus olhos, acercou-se dele.

— Ouviu o que disse o médico? — perguntou ele em voz baixa.

— Ouvi, sim. Que é que o senhor pretende dizer a ela?

— Se ela recobrar a consciência eu quero qualquer informação que a senhora possa conseguir. Um sinal, uma mensagem, uma senha, qualquer coisa. Compreende? É mais provável que ela fale com a senhora do que comigo.

Hilary, subitamente emocionada, disse:

— O senhor quer que eu traia uma pessoa que está morrendo?

Jessop inclinou a cabeça para um lado, como fre­qüentemente o fazia; a pose lhe dava um ar de pássaro.

— Então é essa a impressão que a senhora tem? — disse ele pensativo.

— É, sim.

Ele a olhou com ar pensativo.

— Muito bem, a senhora dirá e fará o que desejar. Quanto a mim não posso ter escrúpulos. A senhora com­preende isso?

— Naturalmente. É o seu dever. O senhor pode fazer as perguntas que bem entender, mas não me peça para fazê-las.

— A senhora agirá como entender.

— Há um ponto que precisamos decidir. Diremos a ela que está morrendo?

— Não sei. Tenho que pensar e resolver.

Ela assentiu, com a cabeça, e voltou para junto da cama. Sentia, agora, uma grande compaixão pela mulher que ali estava, morrendo. A mulher que estava a caminho para juntar-se ao homem que amava. Mas não poderiam todos eles estar enganados? Teria ela vindo a Marrocos simplesmente para procurar um alívio, para passar o tem­po até que alguma notícia positiva chegasse ao seu co­nhecimento, esclarecendo se o marido estava vivo ou morto? Hilary não sabia bem o que pensar.

O tempo foi passando. Umas duas horas mais tarde o ligeiro ruído das contas do rosário da freira parou subi­tamente.

A freira saiu do quarto, Jessop dirigiu-se para o lado oposto e encostou-se à parede de forma a ficar fora do campo visual da agonizante.

As pálpebras da mulher tremeram e ergueram-se. Uns olhos de um azul pálido olharam para Hilary, sem curiosidade. Fecharam-se e tornaram a se abrir. Uma certa perplexidade pareceu invadi-los.

— Onde...?

A palavra apenas fez tremer os lábios justamente quando o médico entrava. Ele tomou-lhe a mão, com os dedos no pulso, e olhou para ela.

— A senhora está no hospital — disse ele. — Houve um acidente com o avião.

— Com o avião?

As palavras foram repetidas, como num sonho, e a voz era tênue e sem fôlego.

— Há alguém que a senhora queira ver aqui em Casablanca, minha senhora? Quer mandar algum recado?

Com esforço ela ergueu os olhos para o médico. Disse:

— Não.

Olhou novamente para Hilary.

— Quem... quem...

Hilary inclinou-se e falou com clareza:

— Eu também vim de avião da Inglaterra. Posso aju­dá-la, de alguma forma? Diga-me.

— Não... nada... nada... a não ser...

— Sim?

— Nada.

As pálpebras tremeram, novamente, e semicerraram-se. Hilary ergueu a cabeça e encontrou o olhar insistente e imperioso de Jessop. Com firmeza ela fez que não com a cabeça.

Jessop andou em direção à cama. Colocou-se ao lado do médico. Os olhos da agonizante abriram-se, novamente. Subitamente ela reconheceu Jessop e disse.

— Eu o conheço.

— Sim, Sra. Betterton. A senhora me conhece. Quer dizer-me alguma coisa sobre o seu marido?

— Não.

Seus olhos fecharam-se outra vez. Silenciosamente Jessop virou-se e saiu do quarto.

O médico olhou para Hilary. Em voz baixa e suave ele disse:

— C’est le fin.

Os olhos da moribunda reabriram-se. Com esforço per­correram o quarto e, finalmente, fixaram-se em Hilary. Olive Betterton fez um pequeno gesto e Hilary, instinti­vamente, segurou aquela branca e fria mão com as suas. O médico, erguendo os ombros e inclinando-se ligeiramen­te, deixou o quarto. As duas mulheres estavam sós. Olive Betterton estava tentando falar:

— Diga-me... diga-me...

Hilary compreendeu o que ela queria saber e, subita­mente, soube, claramente, o que devia fazer. Inclinou-se sobre a mulher deitada.

— Sim — disse ela, falando clara e enfaticamente. — Você está morrendo. Era isto que você queria saber, não era? Agora escute. Eu vou tentar encontrar o seu ma­rido. Caso eu o consiga, há algum recado que você queira que eu lhe dê?

— Diga-lhe... diga-lhe... que tenha cuidado Boris... Boris... perigoso...

A respiração era quase imperceptível. Hilary aproxi­mou-se ainda mais.

— Há alguma coisa que você possa dizer para me aju­dar, ajudar na viagem. Ajudar a encontrar o seu marido?

— Neve.

A palavra soou tão fracamente que Hilary ficou sem entender. Neve? Neve? Repetia ela, sem compreender. Um som, parecendo um leve riso de fantasma, saiu dos lábios de Olive Betterton. Palavras quase inaudíveis se­guiram-se rapidamente:

Neve pura neve, linda neve que cai

Desliza na neve e p’ro chão você vai,

Ela repetiu a última palavra:

— Vai... vai... vai e conta a ele sobre Boris. Eu não acreditei. Eu não queria acreditar. Talvez seja ver­dade... se for... se for...

Uma interrogação dolorosa assomou a seus olhos que fitavam Hilary.

— ...tome cuidado...

Um leve gargarejo chegou-lhe até a garganta. Seus lábios tremeram. Olive Betterton estava morta.

 

Os cinco dias que se seguiram foram de grande es­forço mental e inatividade física. Isolada num quarto par­ticular do hospital, Hilary foi posta a trabalhar. Todas as noites tinha que passar um exame sobre o que estudara durante o dia. Todos os detalhes sobre a vida de Olive Betterton, pelo menos tudo o que fora possível saber, estavam escritos e ela tinha que decorar palavra por pala­vra. A casa onde morara, a empregada que trabalhava por hora, seus parentes, o nome do seu cachorro de estima­ção, o seu canário, todos os detalhes dos seis meses que estivera casada com Thomas Betterton. Seu casamento, os nomes das demoiselles d’honneur, os vestidos, os pa­drões das cortinas, dos tapetes e passadeiras. Os gostos de Olive Betterton, suas predileções e suas atividades diá­rias. Suas preferências em comidas e bebidas. Hilary não podia deixar de ficar assombrada com a quantidade de informações (algumas pareciam sem qualquer sentido) que tinha sido acumulada. Certa vez ela disse a Jessop:

— Alguma dessas coisas pode ter qualquer espécie de importância?

Ao que ele respondeu, calmamente:

— Provavelmente não. Mas você tem que se trans­formar no artigo genuíno. Imagine o caso da seguinte maneira, Hilary. Você é uma escritora. Está escrevendo um livro sobre uma mulher. A mulher é Olive. Você des­creve cenas da sua infância, sua juventude; descreve o seu casamento e a casa onde morava. À medida que você a vai descrevendo, ela se torna, mais e mais, um persona­gem real para você. Depois, você escreve uma segunda vez. Dessa feita como uma autobiografia. Você escreve na primeira pessoa. Compreende o que quero dizer?

Ela acenou que sim, com a cabeça, impressionada, sem o querer, com os argumentos.

— Você não pode pensar em si mesma como Olive Betterton enquanto não for Olive Betterton. Seria me­lhor se você tivesse mais tempo para aprender, mas nós não temos tempo. Você tem que aprender intensiva e rapidamente. Aprender intensamente como um estudante que se prepara para um exame importante.

E acrescentou:

— Graças a Deus você tem um cérebro que assimila rapidamente e uma boa memória.

Olhou-a, calmamente, como que avaliando a sua ca­pacidade.

As descrições de Olive Betterton e Hilary Craven, nos respectivos passaportes, eram quase idênticas mas, na rea­lidade, os dois rostos eram inteiramente diferentes. Olive Betterton era bonita, de uma beleza comum e insignifi­cante. Tinha um ar de determinação mas não de inteli­gência. O rosto de Hilary mostrava resolução e algo de misterioso. Os olhos profundos, de um azul esverdeado, sob as sobrancelhas regulares e escuras, tinham brilho e a chama da inteligência. Sua boca curvava-se, ligeira­mente, para cima e era grande, denotando generosidade. Os planos do queixo eram pouco comuns — um escultor acharia interessante os ângulos do seu rosto.

Jessop pensou:

Aí existe paixão e coragem — certamente, amorte­cido mas não morto, há um espírito alegre e valente — que gosta da vida e procura aventuras.

— Você serve — disse ele. — Você é uma ótima dis­cípula .

O desafio a sua inteligência e a sua memória tinham estimulado Hilary. Ela estava, agora, interessada e ansiosa por alcançar êxito. Uma ou duas objeções vieram-lhe à mente e ela as explicou a Jessop.

— Você diz que eu não serei rejeitada como Olive Betterton. Que eles não sabem como ela é, a não ser de um modo vago e sem detalhes. Mas você pode ter a cer­teza disso?

Jessop encolheu os ombros.

— Não se pode ter certeza... de nada. Mas nós sa­bemos alguma coisa sobre como são preparados esses pla­nos e é de todo aparente que internacionalmente há mui­to pouca comunicação entre um país e outro. Isso repre­senta, na realidade, uma grande vantagem para eles. Se nós encontramos um elo mais fraco, na Inglaterra (e note bem, em qualquer organização haverá sempre um elo fraco), esse elo fraco nada sabe sobre o que se está pas­sando na França, ou na Itália, ou na Alemanha, ou onde quer que seja. Acabamos esbarrando num muro intrans­ponível. Eles sabem a sua pequena parcela do todo, e nada mais. O mesmo acontece com as outras células. Posso mes­mo jurar que a célula que aqui opera sabe apenas que Olive Betterton chegará no avião tal e deverá receber tais e tais instruções. E preciso compreender que ela não é importante por si mesma. Se eles a querem levar até o marido é porque ele a quer perto de si e eles acham que ele trabalhará melhor nessas condições. Ela não passa de um pião no jogo. Você precisa também estar segura de que a idéia de apresentar uma falsa Olive Betterton foi uma improvisação de momento — que só foi levada avan­te devido ao desastre do avião e a cor dos seus cabelos. O nosso primitivo plano de operações era seguir Olive Bet­terton, verificar onde ela iria, como iria, quem encontra­ria... e assim por diante. É isto que o outro lado estará esperando que aconteça.

— Vocês não tentaram isso antes?

— Sim. Foi tentado na Suíça. Da forma a mais dis­creta. Fracassamos quanto ao nosso objetivo principal. Se alguém entrou em contato com ela na Suíça nós não soubemos. Portanto o contato, se houve, foi muito rápi­do. É evidente que eles esperam que Olive Betterton es­teja sendo vigiada. Estão preparados para isso. Cabe a nós fazer um trabalho melhor que da última vez. Temos que fazer o possível para sermos mais ardilosos que os nossos adversários.

— Então eu estarei sendo seguida?

— É lógico.

— Como?

Ele sacudiu a cabeça.

— Isto eu não direi a você. É preferível que não o saiba. O que você não sabe não pode revelar.

— Você pensa que eu revelaria?

Jessop tomou aquele seu ar de coruja.

— Eu não sei se você é uma boa atriz... se é boa mentirosa. Não é fácil, sabe? Não se trata de dizer alguma coisa que seja uma indiscrição. Pode ser qualquer coisa, uma súbita aspiração de ar, uma pausa momentânea em qualquer gesto — acender um cigarro, por exem­plo. Reconhecer um nome ou um amigo. Você poderia corrigir rapidamente, mas uma fração de segundo pode­ria ser o bastante.

— Eu compreendo. Quer dizer que é preciso estar sempre em guarda, sem uma distração, cada minuto, ca­da fração de segundo.

— Exatamente. Mas, por enquanto, continuemos as lições. É como se você estivesse de volta à escola, não é? Como Olive Betterton você já está praticamente perfeita. Passemos a outros assuntos.

Códigos, senhas; vários equipamentos. A lição conti­nuava, as perguntas, as repetições, as tentativas para atrapalhá-la, confundi-la ou fazê-la cometer algum en­gano. Depois vieram planos hipotéticos para ver quais seriam as suas reações. Finalmente Jessop fez que sim, com a cabeça, e declarou-se satisfeito.

— Você serve — disse ele.

Bateu-lhe no ombro como um mestre satisfeito com o discípulo.

— Você é uma excelente aluna. E lembre-se de uma coisa: algumas vezes você julgará que está inteiramente só mas provavelmente não estará. Digo provavelmente porque não quero dar uma certeza. Eles são uns demônios muito espertos.

— Que acontecerá se eu chegar ao fim da jornada? — perguntou Hilary.

— Que quer você dizer?

— Quero dizer quando finalmente eu estiver frente à frente com Tom Betterton.

Jessop, com ar sério e compenetrado, assentiu com a cabeça.

— Sim — disse ele. — Esse é o momento de perigo. Só posso dizer que nesse momento, se tudo tiver corrido bem você deverá ter proteção. Se. quero dizer, as coisas tiverem andado tal como esperamos; mas a própria base dessa operação, como você deve estar lembrada, era que as probabilidades de sair com vida eram diminutas.

— Você não disse uma probabilidade em cem? — disse Hilary secamente.

— Acho que podemos aumentar um pouco as proba­bilidades. Eu não a conhecia bem naquela ocasião.

— Sim, eu calculo que não.

Ela estava pensativa.

— Para você suponho que eu era apenas...

Ele acabou a frase por ela:

— Uma mulher com uma notável cabeleira ruiva e que não tinha coragem e força de vontade para continuar a viver.

Ela enrubesceu.

— Isso é um julgamento severo.

— Mas é verdadeiro, não? Eu não sou do tipo que tem pena das pessoas. Acho que isto é mesmo um insulto. Só se tem pena das pessoas quando elas têm pena de si pró­prias. A pena de si mesmo é um dos maiores obstáculos que o mundo enfrenta, hoje em dia.

Hilary, pensativa, disse:

— Talvez você tenha razão. Você permitirá a si mes­mo ter pena de mim quando eu for liquidada, ou qualquer que seja o termo adequado, tentando executar esta mis­são?

— Pena de você? Não. Vou é dizer muito palavrão por termos perdido alguém que merecia que cuidásse­mos dela.

— Finalmente um cumprimento.

Contra a sua vontade, ela ficou contente. Mas conti­nuou, em tom calmo e sério:

— Há ainda outra coisa que me ocorreu. Você diz não ser provável que alguém saiba como é Olive Betterton, mas se eu for reconhecida como eu mesma? Eu não co­nheço ninguém aqui em Casablanca mas há pessoas que viajaram comigo no avião. Ou, por acaso, posso encontrar um conhecido entre os turistas que estão aqui.

— Você não precisa preocupar-se com os passageiros do avião. As pessoas que vieram com você de Paris eram homens de negócio que seguiram para Dacar e o único que aqui saltou já voltou para Paris. Quando você sair daqui irá para um outro hotel, o mesmo onde a Sra. Betterton tinha quarto reservado. Usará as roupas dela e es­tará penteada tal como ela. Além disso você usará uma ou duas tiras de esparadrapo, o que alterará a sua aparên­cia. Tinha esquecido de dizer que um médico virá aqui fazer um pequeno trabalho em você. Com anestesia local você não vai sentir nada mas é necessário que tenha al­gumas marcas genuínas do acidente.

— Você não esqueceu de nada — disse Hilary.

— Tem que ser assim.

— Você nunca me perguntou — disse Hilary — se Olive Betterton me dissera alguma coisa antes de morrer.

— Eu sabia que você tinha escrúpulos sobre esse as­sunto.

— Sinto muito.

— Eu a respeito por isso. Eu também gostaria de tê-los mas, infelizmente, isto não pode existir em minha pro­fissão .

— Ela disse alguma coisa que talvez eu lhe deva con­tar. Ela disse: Diga-lhe... ela se referia a Betterton... diga-lhe que tenha cuidado... Boris... perigoso...

— Boris.

Jessop repetiu o nome com interesse.

— Ah! O nosso estrangeiro muito correto, o Major Boris Glydr.

— Você o conhece? Quem é ele?

— Um polonês que me procurou em Londres. É su­posto ser um primo por afinidade de Tom Betterton.

— Suposto?

— Para falar mais claro, se ele é quem diz ser. é pri­mo da falecida Sra. Betterton. Mas só temos a sua pala­vra quanto a isto.

— Ela estava com muito medo — disse Hilary, fran­zindo a testa. — Você pode descrevê-lo? Eu gostaria de poder reconhecê-lo.

— Sim, talvez seja melhor. Um metro e oitenta e três, setenta e três quilos, aproximadamente. Louro... cara que não se altera... olhos claros... ar de estrangei­ro empertigado... fala inglês corretamente mas com acen­tuado sotaque, porte militar.

Acrescentou:

— Mandei-o seguir quando ele saiu do meu escritó­rio. Nada feito. Foi diretamente à Embaixada dos Esta­dos Unidos, o que seria muito correto pois trouxera de lá uma carta de apresentação. O tipo normal de carta que eles mandam, quando querem ser delicados mas sem de­monstrar maior interesse. Suponho que ele tenha saído da Embaixada no carro de uma outra pessoa ou pela por­ta dos fundos, disfarçado de empregado. De qualquer for­ma ele nos escapou. Sim... eu diria que Olive Betterton tinha razão quando disse que Glydr era perigoso.

 

No pequeno salão, decorado de maneira formal, do Hotel St. Louis, havia três senhoras sentadas, cada uma ocupada a seu modo. A Sra. Baker, baixa, gorda, e com os cabelos tintos de azul, estava escrevendo cartas, mis­ter a que dedicava a mesma energia que aplicava a tudo quanto fazia. Ninguém poderia tomar a Sra. Calvin Ba­ker por outra coisa senão uma turista americana, abasta­da, com uma verdadeira mania de conseguir informações exatas sobre tudo que pudesse existir.

Numa cadeira pouco confortável do estilo império, es­tava tricotando a Srta. Hetherington que também nin­guém tomaria por outra coisa senão uma viajante ingle­sa. O que ela estava fazendo era uma dessas melancólicas e indescritíveis peças de vestuário que as velhotas ingle­sas parecem estar sempre tricotando. A Srta. Hetherington era magra, alta, tinha o pescoço fino e enrugado, os cabelos mal penteados e um ar de quem desaprova, de for­ma geral, e por princípios morais, tudo que se passa no Universo.

Mademoiselle Jeanne Maricot estava graciosamente sentada em uma cadeira comum, olhando para a janela e bocejando. Mademoiselle Maricot era uma morena com os cabelos tintos de louro, com um rosto comum que uma hábil maquilagem tornava interessante. Estava elegan­temente vestida e não dava absolutamente a mínima aten­ção as duas outras ocupantes do salão que, mentalmente, ela considerava insignificantes por serem exatamente o que eram. Ela estava planejando uma importante modi­ficação em sua vida sexual e não tinha tempo a perder pa­ra esse gênero de animal chamado turista.

A Srta. Hetherington e a Sra. Calvin Baker, que já estava há dois dias no Hotel St. Louis, já tinham travado relações. A Srta. Hetherington, embora gostando muito de companhia, só falava com ingleses ou americanos de uma certa posição social. A Sra. Calvin Baker, com a expansividade dos americanos, falava com todo o mundo. A Srta. Hetherington só se dirigia a franceses que pro­vassem uma vida altamente respeitável, apresentando vá­rios filhos que com eles sentassem à mesa da sala de jan­tar.

Um francês, que parecia um próspero homem de ne­gócios, olhou para o salão e pareceu intimidado pelo seu aspecto de solidariedade feminina. Lançou um olhar in­teressado para Mademoiselle Jeanne Maricot e retirou-se.

Em voz baixa, a Srta. Hetherington começou a con­tar os pontos.

— Vinte e oito, vinte e nove. Onde é que eu estou? Ah, já sei.

Uma mulher alta e com cabelos ruivos olhou para o salão e hesitou um instante, antes de continuar pelo cor­redor em direção à sala de jantar.

A Sra. Calvin Baker e a Srta. Hetherington ficaram imediatamente alertas.

A Sra. Baker virou-se e disse, num sussurro cheio de excitação:

— Viu a mulher de cabelos vermelhos que olhou pa­ra cá, Srta. Hetherington? Dizem que é a única sobrevi­vente do horrível desastre de avião da semana passada.

— Eu vi quando ela chegou, esta tarde — disse a He­therington, que de tão nervosa perdeu mais um ponto em seu tricô — numa ambulância.

— O gerente disse que ela veio diretamente do hos­pital. Eu fico pensando se teria sido prudente... sair do hospital tão depressa. Ela teve uma Concussão, creio eu.

— Ela tem curativos no rosto, também... certamen­te cortes de vidro. Foi um milagre ela não se ter queimado. Esses acidentes aéreos causam queimaduras terríveis, creio eu.

— Nem é bom pensar nessas coisas. Pobre moça. O marido estaria com ela no avião e teria morrido no de­sastre?

— Acho que não — disse a Srta. Hetherington, sa­cudindo a cabeça grisalha e amarelada. — O jornal fa­lava somente de uma passageira.

— É verdade. Dava até o nome dela. Uma Sra. Be­verly... Betterton é o seu nome.

— Betterton — disse a Srta. Hetherington pensativa. — Esse nome lembra-me alguma coisa. Nos jornais. Mas, é claro, estou certa de que era esse o nome.

— Tant pis pour Pierre — Mademoiselle Maricot dis­se para si mesma. — II est vraiment insuportable. Mais le petit Jules, lui il est bien gentil. Et son père est rès bien placé dans les affaires. Enfin je me decide.

E com passadas largas e elegantes Mademoiselle Ma­ricot saiu do pequeno salão e da nossa história.

 

A Sra. Betterton tinha deixado o hospital nessa tar­de, cinco dias após o acidente. Uma ambulância a levara até o Hotel St. Louis.

Pálida, parecendo ainda doente, seu rosto coberto de curativos, foi levada imediatamente para o quarto que lhe fora reservado, pelo próprio gerente do hotel, que tudo fa­zia para lhe ser útil.

— Calculo as emoções que deve ter sentido, Madame — disse ele, depois de amavelmente perguntar se o quar­to reservado era de seu agrado e de ter ligado, sem ne­nhuma necessidade, todas as luzes. — Mas que milagre! Que felicidade! Só três sobreviventes, creio eu, e um de­les ainda em estado gravíssimo.

Hilary deixou-se cair, cansada, em uma cadeira.

— Sim, é verdade — murmurou ela. — Ainda não posso acreditar. Mesmo agora quase não me recordo de nada. Só tenho noções muito vagas das vinte e quatro ho­ras antes do desastre.

O gerente assentiu com a cabeça, denotando simpatia.

— Ah, sim. Isso é a conseqüência da Concussão. Aconteceu a uma das minhas irmãs. Ela estava em Lon­dres, durante a guerra. Uma bomba caiu perto e ela foi atirada ao chão, sem sentidos. Rapidamente ela se le­vantou, caminhou a esmo pela cidade e na estação de Euston tomou um trem e, figurez-vous, foi dar conta de si em Liverpool e não se recordava da bomba, de ter er­rado por Londres, de ter tomado o trem e chegado a Li­verpool. A última coisa de que se lembrava era de ter pendurado a saia no armário, em Londres. São casos mui­to curiosos, não acha?

Hilary concordou que certamente eram casos muito curiosos. O gerente curvou-se e saiu. Hilary levantou-se e olhou para sua imagem no espelho. Tão imbuída es­tava ela na sua nova personalidade que sentiu a fraqueza nas pernas que seria natural em uma pessoa que acabava de sair do hospital depois de uma grande provação.

Ela havia indagado na portaria mas não havia nem cartas nem recados. Em seu novo papel, os primeiros pas­sos tinham que ser todos às escuras. Era possível que Olive Betterton tivesse recebido instruções para telefo­nar ou entrar em contato com alguém em Casablanca. Quanto a isso não havia qualquer indicação. Toda a informação que tinha, para começar a agir, era o passaporte de Olive Betterton, sua carta de crédito e a Caderneta de Viagens Cook, com passagens e reservas de quartos. Na caderneta estavam previstos dois dias em Casablanca, seis dias em Fez e cinco dias em Marrakesh. Essas reservas, agora, já não eram mais válidas e novas providências de­veriam ser tomadas. O passaporte, a carta de crédito e a carta de identificação que a acompanhavam tinham sido convenientemente alterados. A fotografia do passaporte era, agora, a de Hilary, a assinatura na carta de crédito era Olive Betterton mas na caligrafia de Hilary. Seus do­cumentos estavam em ordem. Sua tarefa era representar bem o seu papel, e esperar. Seu grande triunfo tinha que ser o desastre de avião, a perda da memória e uma natu­ral insegurança mental.

O desastre tinha sido verdadeiro e não havia dúvida de que Olive Betterton estava no avião sinistrado. O fato de ela ter sofrido uma Concussão seria uma explicação e uma razão para não ter agido conforme instruções rece­bidas.

Estarrecida, tonta e fraca, Olive Betterton aguarda­ria ordens.

A coisa lógica a fazer seria repousar. Assim pensan­do, ela deitou-se na cama. Durante duas horas repassou, na memória, tudo que lhe haviam ensinado. A bagagem de Olive fora destruída no desastre. Hilary tinha consigo algumas coisas que lhe tinham conseguido no hospital. Levantou-se, passou um pente nos cabelos, retocou os lá­bios com batom e desceu para jantar no salão do hotel.

Notou que olhavam para ela com curiosidade e inte­resse. Homens de negócio que ocupavam algumas mesas mal olharam para ela. Mas os turistas que ocupavam ou­tras mesas sussurravam e falavam em voz baixa, a sua passagem:

— Aquela mulher, querida... a de cabelos ruivos... é um dos poucos sobreviventes do desastre de avião. É a que chegou do hospital em uma ambulância. Eu vi quan­do chegou. Não parece estar nada bem, e não sei por que a deixaram sair tão cedo. Ela parece terrivelmente aba­lada. Escapou por um milagre.

Depois do jantar Hilary sentou-se, por alguns mo­mentos, na pequena sala de visitas. Indagava a si própria se alguém iria aproximar-se dela. Havia poucas senhoras na sala e uma delas, pequena, gorda e com os cabelos brancos tintos de azul, veio sentar-se na cadeira perto da sua. Começou logo a falar com uma voz decidida e agra­dável de americana.

— Espero que a senhora me desculpe mas eu não po­dia deixar de dizer algumas palavras. Foi a senhora, não foi, que escapou milagrosamente do desastre de avião há poucos dias?

Hilary baixou a revista que estava lendo.

— Sim — disse ela.

— Oh, não foi terrível? Quero dizer, o desastre. Ape­nas três sobreviventes. Está certo, não?

— Apenas dois — respondeu Hilary. — Um dos três morreu no hospital.

— Oh, não diga. Se permite que eu pergunte Srta... Sra...

— Betterton.

— Bem, se não se incomoda que eu pergunte, em que parte do avião estava sentada? Estava na frente, ou per­to da cauda?

Hilary sabia que resposta devia dar a essa pergunta e disse, sem hesitar:

— Perto da cauda.

— Todos dizem, não é verdade, que é o lugar mais seguro. Eu agora sempre insisto para que me dêem um lugar perto da porta de trás. Ouviu isto, Srta. Hetherington? — virou a cabeça para falar com a outra senhora de meia-idade. Esta última era indubitavelmente inglesa, com um rosto alongado, eqüino e triste.

— É exatamente o que eu estava dizendo outro dia. Quando entrar num avião não deixe que essas aeromoças a levem diretamente para um lugar na frente.

— Mas alguém tem que sentar-se à frente — disse Hilary.

— Bem, mas não serei eu — disse a sua nova amiga americana, imediatamente. — É verdade, o meu nome é Baker, Sra. Calvin Baker.

Hilary agradeceu a apresentação e a Sra. Baker de­sandou a falar, monopolizando a conversa, com a maior facilidade.

— Eu acabo de chegar aqui, vindo de Mogador e a Srta. Hetherington chegou de Tânger. Travamos conhe­cimento aqui. Vai visitar Marrakesh, Sra. Betterton?

— Eu tinha planejado essa visita — disse Hilary. — Mas, naturalmente, o desastre atrapalhou todos os meus projetos e itinerários.

— É claro, eu compreendo bem. Mas a senhora não pode deixar de ver Marrakesh, não está de acordo Srta. Hetherington?

— Marrakesh é terrivelmente caro — disse a Srta. Hetherington. — A ridícula quota de câmbio que nos dão para viajar torna tudo mais difícil.

— Há um hotel maravilhoso, o Mamounia — conti­nuou a Sra. Baker.

— Incrivelmente caro — disse a Srta. Hetherington. — Não posso nem pensar nesse hotel. Evidentemente é diferente para si, Sra. Baker... dólares, quero dizer. Mas alguém indicou-me lá um pequeno hotel, muito agradá­vel e limpo, onde a comida parece não ser nada má.

— Onde mais pensa ir, Sra. Betterton? — perguntou a Sra. Calvin Baker.

— Gostaria de visitar Fez — disse Hilary cautelosa­mente. — Preciso, é claro, conseguir novas reservas.

— Oh, sim, a senhora não pode deixar de ver Fez ou Rabat.

— Já esteve lá?

— Ainda não. Pretendo ir muito brevemente e a Srta. Hetherington também.

— Penso que a velha cidade ainda não está estraga­da — disse a Srta. Hetherington.

A conversa continuou desinteressante por mais algum tempo, até que Hilary, alegando cansaço, por ser o seu primeiro dia fora do hospital, desculpou-se e foi para seu quarto.

A noite, até aquele ponto, nada tinha apresentado de interessante. As duas mulheres que haviam falado com ela eram tipos tão clássicos de turistas que não podia pen­sar que fossem outra coisa. No dia seguinte, decidiu ela, se não recebesse informação ou notícia de qualquer es­pécie, iria à Agência Cook para tratar do caso de novas reservas em Fez e Marrakesh.

Na manhã seguinte, até às onze horas, não havia ne­nhum recado ou chamado telefônico. Dirigiu-se, pois, à agência de viagens. Havia uma pequena fila mas, quando ela chegou junto ao balcão e começou a falar com o fun­cionário, houve uma interrupção. Um funcionário de maior categoria e usando óculos afastou, com o cotovelo, o seu subordinado. Sorriu amavelmente para Hilary.

— É a Sra. Betterton, não? Já tenho todas as suas reservas preparadas.

— Receio — disse Hilary — que as datas estejam erradas. Estive no hospital e...

— Ah, mais oui, eu sei disto. Permita que eu a feli­cite por ter escapado, minha senhora. Mas eu recebi o seu recado telefônico sobre as novas reservas e já está tu­do pronto a sua disposição.

Hilary sentiu a aceleração do seu pulso. Não tinha pedido a ninguém para telefonar para a agência. Era, portanto, o primeiro sinal evidente de que alguém estava supervisionando os planos de viagem de Olive Betterton. Ela disse:

— Eu não estava segura se eles tinham telefonado, ou não.

— Mas sim, Madame. Vou mostrar-lhe.

Ele lhe entregou passagens de trem e talões para acomodações em hotel; rapidamente, o assunto ficou re­solvido. Hilary deveria partir para Fez no dia seguinte.

A Sra. Calvin Baker não apareceu no restaurante, nem para o almoço, nem para o jantar. A Srta. Hetherington estava presente. Respondeu ao cumprimento de Hilary quando esta passou por sua mesa mas não fez qual­quer tentativa para dirigir-lhe a palavra. No dia seguinte, depois de comprar algumas roupas indispensáveis, Hilary seguiu de trem para Fez.

 

Foi no dia em que Hilary partiu que a Sra. Calvin Baker, ao chegar ao hotel com seu ar decidido, encontrou a Srta. Hetherington cujo longo e fino nariz tremia de excitação.

— Lembrei-me do nome Betterton... o cientista que desapareceu. Todos os jornais falaram no caso. Há mais ou menos dois meses.

— É verdade, agora eu me recordo também. Um cien­tista inglês... sim... estava em alguma conferência, em Paris.

— Sim, é isto mesmo. Eu estou pensando, a senho­ra acha que a moça seria a sua mulher? Eu vi o livro de registro de hóspedes e o seu endereço é Harwell, a se­nhora sabe... Harwell é onde há o centro de estudos atômicos. Eu acho errado tudo isso de bombas atômicas. E o cobalto. Uma cor tão bonita e que eu usava para pintar quando era menina: parece que o pior de tudo, dizem, é que ninguém pode escapar. Os homens não foram feitos para essas experiências. Uma amiga contou-me outro dia que o seu primo, que é um homem muito instruído, dissera que toda a terra pode ficar radioativa.

Meu Deus — disse a Sra. Calvin Baker.

 

Casablanca tinha, de certa forma, sido um desa­pontamento para Hilary. Era uma próspera cidade fran­cesa sem nada de oriental e misterioso, a não ser as mul­tidões das ruas.

O tempo continuava perfeito, claro e ensolarado, e dava-lhe prazer olhar a paisagem através da janela do trem em que viajava para o norte. Um francês, de pe­quena estatura, e que parecia ser um caixeiro-viajante, estava em frente a ela. A um canto uma freira desfiando o seu rosário, e mais longe duas senhoras marroquinas, com muitos embrulhos, conversavam alegremente. Eram esses os ocupantes do vagão. Oferecendo-lhe o isqueiro para acender o cigarro o francês baixote puxou conver­sa. Mostrou-lhe pontos de interesse por onde passavam e forneceu informações sobre o país. Ela o achou interes­sante e inteligente.

— Deveria ir a Rabat, Madame, é um grande erro não ir a Rabat.

— Vou tentar fazê-lo. Mas eu não tenho muito tem­po. Além disso — ela sorriu — o dinheiro é pouco. Como o senhor sabe, nós só podemos viajar com quantias limi­tadas.

— Mas isto é fácil. Pode-se arranjar dinheiro com um amigo, aqui.

— Mas eu não tenho um amigo nessas condições em Marrocos.

— Na próxima vez que viajar, Madame, mande-me uma palavra. Aqui está o meu cartão. Posso arranjar tu­do. Vou freqüentemente à Inglaterra, a negócios, e a se­nhora poderá pagar-me lá. Não há nada mais fácil.

— É muito amável de sua parte e eu espero fazer uma segunda viagem ao Marrocos.

— Deve ser uma grande mudança para a senhora deixar a Inglaterra e vir até aqui. Lá faz frio, há o fog tão desagradável.

— Sim, é uma grande mudança.

— Eu também vim de Paris há três semanas. Lá chovia, havia fog e estava muito desagradável. Cheguei aqui e tudo estava ensolarado. Isto apesar do ar ser frio. Mas é puro. Ar bom e puro. Como estava o tempo na In­glaterra quando a senhora partiu?

— Como o senhor já disse — replicou Hilary. — O fog.

— Ah, sim, é a época dos fogs. E neve... tem caído neve este ano?

— Não — disse Hilary, — não tem havido neve.

De si para si pensou se aquele pequeno e muito via­jado francês estava seguindo o que considerava a boa norma de conversação inglesa, tratando principalmente do tempo. Fez-lhe uma ou duas perguntas sobre a situa­ção política em Marrocos e na Algéria e ele respondeu com facilidade, mostrando-se bem informado.

Olhando para o outro canto do vagão Hilary notou, com o rabo de olho, que o homem a fitava com ar de re­provação. As senhoras marroquinas saltaram e outros passageiros entraram. Já anoitecia quando chegaram a Fez.

— Permita que eu a ajude, minha senhora.

Hilary estava algo atarantada com o rebuliço e o ba­rulho da estação. Carregadores árabes tiravam-lhe as malas das mãos, gritando, berrando, chamando e reco­mendando vários hotéis. Virou-se, agradecida, para o seu novo conhecido francês.

— Vai para o Palais Jamail, n’est-ce-pas, Madame?

— Sim.

— Muito bem. Fica a oito quilômetros daqui, sabia?

— Oito quilômetros? — Hilary ficou assustada. — Então não é na cidade?

— É perto da cidade velha — explicou o francês. — Eu fico num hotel na nova cidade comercial. Mas pa­ra férias, descanso e prazer deve-se ir para o Palais Jamail. Trata-se da antiga residência de um nobre marro­quino. Tem magníficos jardins e, ao sair, a senhora es­tará na velha cidade de Fez, que não foi tocada ou alterada. Não me parece que o hotel tenha mandado alguém ao encontro deste trem. Se a senhora permite vou pro­videnciar um táxi para levá-la.

— O senhor é muito amável, mas...

O francês falou em árabe aos carregadores e, pouco depois, Hilary estava sentada num táxi, onde colocaram suas malas. O francês disse-lhe exatamente quanto de­via dar aos carregadores gananciosos e fê-los calar quan­do pretenderam reclamar que a paga era pouca. Tirou um cartão do bolso e o entregou a ela.

— Aí tem o meu cartão, Madame, e se eu puder ser útil a qualquer momento, é favor avisar-me. Estarei aqui, no Grande Hotel, durante quatro dias.

Ergueu o chapéu e retirou-se. Hilary olhou para o cartão que ainda pôde ler antes que o táxi se afastasse da estação iluminada.

Monsieur Henri Laurier.

O táxi rodou, rapidamente, para fora da cidade, atra­vés de campos, e galgou um morro. Hilary tentou ver, pela janela, para onde estava indo mas a noite já caíra e a escuridão era completa. A não ser quando passavam por um edifício iluminado, pouco ou nada se podia ver. Seria agora o momento em que a sua viagem saía do nor­mal para entrar no desconhecido? Seria o Sr. Laurier um emissário da organização que tinha persuadido Tho­mas Betterton a abandonar o seu trabalho, seu lar e sua mulher? Sentada a um canto do táxi ela estava nervosa, apreensiva, imaginando para onde a estariam levando.

O táxi, entretanto, levou-a sem qualquer transtorno, ao Palais Jamail. Ela desceu, passou sob a arcada de um portão e encontrou-se, com grande sensação de prazer, num interior oriental. Havia longos divãs, mesas para café e tapetes marroquinos. Do balcão da recepção ela foi conduzida, através uma série de salas, até um terraço externo junto ao qual havia laranjeiras e flores aromá­ticas. Depois, subindo uma escada em caracol, foi leva­da a um agradável quarto de dormir, mobiliado e deco­rado em estilo oriental mas dotado de todos os conforts modernes tão necessários aos viajantes do século vinte.

O jantar, informou o empregado, seria servido a par­tir das sete e meia. Ela retirou algumas coisas das ma­las, lavou-se, penteou os cabelos e desceu, atravessando o salão de fumar, que dava para o terraço externo; su­bindo alguns degraus chegou a uma bem iluminada sa­la de jantar que formava um ângulo reto com o terraço.

O jantar foi excelente e, enquanto Hilary comia, vá­rias pessoas entraram e saíram do restaurante. Ela es­tava demasiado fatigada para examinar e classificar es­sas pessoas mas uma ou duas personalidades chamaram-lhe a atenção. Um homem idoso, muito amarelo e com uma barbicha pontuda. Ela o notou pela deferência co­mo era tratado por todos os empregados. Pratos eram re­tirados e colocados a um mero aceno de sua cabeça. À menor elevação de sobrancelha fazia um garçom acorrer pressuroso a sua mesa. Ela imaginava quem poderia ser ele. A maioria dos presentes era, sem dúvida, composta de turistas viajando por prazer. Havia um alemão sen­tado à grande mesa do centro, havia um homem de meia-idade com uma jovem loura e muito bonita que ela jul­gou serem suecos ou dinamarqueses. Havia uma família inglesa, com dois filhos, e vários grupos de viajantes americanos. Havia três famílias francesas.

Depois do jantar ela tomou café no terraço. Estava ligeiramente frio, mas não em demasia, e ela sentia, com prazer, a fragrância das flores.   Foi para a cama cedo.

Na manhã seguinte, sentada no terraço sob um gran­de guarda-sol listrado de vermelho que a protegia, Hilary pensava como tudo que lhe estava acontecendo era fan­tástico. Aqui estava ela, pretendendo fazer-se passar por uma morta e esperando que acontecesse algo de melodra­mático e fora do comum. Afinal de contas seria muito natural que Olive Betterton, a pobre vítima do desastre, tivesse viajado para tirar do pensamento e do coração as idéias tristes que a afligiam. Provavelmente a pobre mu­lher ignorava realmente o que havia ocorrido.

As palavras que ela dissera, antes de morrer, pode­riam ter uma explicação perfeitamente simples. Ela que­ria que Thomas Betterton fosse alertado contra alguém chamado Boris. A sua mente divagara e ela recitara um estranho jingle. Depois dissera que a princípio não pude­ra acreditar. Não podia acreditar em quê? Talvez no fa­to de Thomas Betterton ter sido raptado como o foi.

Não houve insinuações sinistras nem qualquer indí­cio que pudesse ajudar. Hilary baixou os olhos para o jardim. Aqui havia beleza. Era belo e cheio de paz. Cri­anças tagarelavam e corriam no terraço, de um lado pa­ra outro; as mamães francesas chamavam por elas ou ralhavam. A loura sueca sentou-se a uma mesa e bocejou. Tirou da bolsa um batom rosa-pálido e retocou os lábios já primorosamente pintados. Fitou-se num pequeno es­pelho e franziu a testa.

Logo após, chegou o seu acompanhante — marido, ou talvez mesmo pai, pensou Hilary. Ela o recebeu sem um sorriso. Inclinou-se para frente e falou com ele, aparen­temente reclamando alguma coisa. Ele deu uma expli­cação e pediu desculpas.

O velho com cara amarela e a barbicha subiu do jar­dim para o terraço. Dirigiu-se para uma mesa junto à parede e sentou-se. Imediatamente um garçom correu para atendê-lo. O velho deu uma ordem e o garçom cur­vou-se antes de sair apressado para executá-la. A moça loura segurou, nervosa, o braço do seu companheiro e olhou para o velho.

Hilary pediu um martini e, quando este chegou, per­guntou em voz baixa ao garçom:

— Quem é aquele senhor velho, lá junto à parede?

— Ah! — com ar quase dramático o garçom inclinou-se para ela. — Aquele é o Monsieur Aristides. Ele é enor­memente... sim enormemente... rico.

O garçom suspirou extaticamente, contemplando tan­ta riqueza, e Hilary olhou para a figura murcha e curva­da na mesa distante. Era um pedaço de humanidade cheio de rugas, ressecado e mumificado. Entretanto, por causa da sua enorme fortuna os garçons saltavam, corriam e fa­lavam com assombro na voz. O velho Monsieur Aristides virou-se um pouco. Por um momento seus olhos encontra­ram os dela. Ele a olhou, por um instante, e logo olhou noutra direção.

Afinal de contas ele não é tão insignificante — pen­sou Hilary. Aqueles olhos, mesmo a distância, eram ex­traordinariamente vivos e inteligentes.

A moça loura e o seu acompanhante levantaram-se de sua mesa e dirigiram-se para o salão de jantar. O gar­çom, que agora parecia considerar-se como o guia e men­tor de Hilary, parou junto a sua mesa e, enquanto reco­lhia os copos, deu-lhe mais informações.

— Ce Monsieur lá é um grande homem de negócios da Suécia. Muito rico, muito importante. E a senhora que está com ele é uma estrela de cinema... dizem que ê outra Garbo. Muito chique, muito bonita mas as cenas que ela faz com ele, que horror. Nada a agrada. Ela está, como se diz, chateada de estar aqui, em Fez, onde não há grandes joalherias nem outras mulheres caras para inve­jar e admirar seus vestidos. Ela exige que amanhã ele a leve a algum lugar mais divertido. Ah, não é sempre que os ricos podem ter tranqüilidade e paz de espírito.

Mal acabou a sua frase, em tom sentencioso, o gar­çom percebeu um dedo indicador que o chamava e preci­pitou-se pelo terraço.

— Monsieur?

A maioria dos hóspedes já tinha ido para o almoço mas Hilary, que tomara o seu café um pouco tarde, não tinha pressa em comer. Encomendou outro drinque. Um jovem e bonito francês saiu do bar e atravessou o terraço lançando um olhar rápido e discreto na direção de Hilary, Um olhar que, muito disfarçadamente parecia dizer:

— Haverá algum futuro por ali?

O rapaz desceu os degraus para o terraço inferior. Ao descer cantarolou, em voz baixa, um trecho de uma ópera francesa:

Le long des lauriers roses.

Revant de douces choses.

As palavras fizeram lembrar alguma coisa. Algo que gravara em seu cérebro. Le long des lauriers roses. Lau­rier. Laurier? Era o nome do francês que conhecera no trem. Haveria alguma conexão ou tratava-se de uma sim­ples coincidência? Abriu a bolsa e procurou o cartão que ele lhe tinha dado. Mons. Henri Laurier, 3 Rue des Croissants, Casablanca. Virou o cartão e pareceu-lhe ver le­ves marcas feitas a lápis. Era como se algo tivesse sido escrito e depois apagado com uma borracha. Ela tentou decifrar as marcas: — On sont — começava a mensagem; depois havia algo que não conseguiu ler; finalmente leu as palavras — D’antan. Por instantes pensou que poderia ser uma mensagem mas acabou sacudindo a cabeça e guardando novamente o cartão. Certamente era alguma coisa que o homem havia escrito e depois apagado.

Uma sombra caiu sobre ela que, assustada, ergueu a cabeça. Monsieur Aristides estava de pé, entre ela e o sol. Ele não estava olhando pára ela mas sim para além dos jardins abaixo dos terraços, para as silhuetas das co­linas distantes. Ela ouviu quando ele suspirou e virou-se rapidamente, andando em direção ao restaurante. Ao vi­rar-se, porém, a manga do seu casaco roçou no copo em cima de sua mesa e o copo espatifou-se no chão. Ele vi­rou, rapidamente, e disse com delicadeza:

— Ah, mille pardons, Madame.

Hilary respondeu, em francês, que não tinha a me­nor importância. Com um gesto rápido dos dedos, ele chamou um garçom que, como de costume, veio correndo. Mandou que substituíssem a bebida de Madame, descul­pou-se, mais uma vez, e caminhou para o restaurante.

O jovem francês, sempre cantarolando, subiu nova­mente a escada. Diminuiu perceptivelmente o passo ao se aproximar de Hilary mas, como esta não se movesse, ele continuou a caminho do seu almoço com um filosó­fico e pequeno dar de ombros.

Uma família francesa atravessou o terraço, os pais chamando os filhos.

— Mais viens donc, Bobo. Qu’est-ce que tu fais? Dé-pêche-toi.

— Laisse ta baile, cherie, on va de jeuner.

A família subiu os degraus para o restaurante. Um pequeno núcleo contente e feliz. Hilary sentiu-se subita­mente só e amedrontada.

O garçom trouxe-lhe o drinque e ela perguntou se Monsieur Aristides estava só, no hotel.

— Oh, Madame, é claro que um homem tão rico co­mo Monsieur Aristides nunca viaja só. Ele está aqui com o seu criado particular, dois secretários e o motorista.

O garçom estava absolutamente chocado com a idéia de que Monsieur Aristides pudesse viajar só.

Hilary notou, entretanto, quando finalmente foi al­moçar, que o velho, tal como o fizera na noite anterior estava sozinho à mesa. Numa mesa próxima estavam sentados dois moços que ela achou que seriam os secre­tários, isto por que um deles estava sempre alerta, olhan­do para a mesa onde Monsieur Aristides, enrugado e simiesco, comia o seu almoço sem tomar conhecimento da existência deles. Evidentemente, para Monsieur Aristi­des, secretários não eram seres humanos.

A tarde correu quase sem que Hilary se apercebesse. Passeou pelos jardins, descendo de terraço em terraço. A beleza e a paz eram admiráveis. Havia o ruído das águas correntes, o brilho das laranjas douradas e inúme­ras fragrâncias e perfumes. Aquela atmosfera de solidão oriental era sumamente agradável para Hilary. Tal como um jardim fechado é minha irmã, minha esposa... Era assim que um jardim deveria ser, um lugar isolado do mundo — cheio de verde e ouro...

Se eu pudesse ficar aqui, pensou Hilary. Se pudesse ficar aqui para sempre...

Não eram os próprios jardins do Palais Jamail que ela tinha no pensamento; era o estado de espírito a que eles induziam. Quando não mais procurava a paz ela a encontrara. E a paz de espírito só lhe chegara quando ela estava irremediavelmente engajada numa jornada de aventuras e perigos.

Mas talvez não houvesse nem aventuras nem peri­gos...

Talvez ela pudesse ficar aqui por algum tempo e na­da acontecesse... e depois...

E depois...

E depois — quê?

Uma brisa fria começou a soprar e Hilary teve um arrepio. Por um acaso ela fora levada ao jardim da vida pacífica mas, afinal, tinha que ser traída pelo que lhe ia na alma. O turbilhão do mundo, a dureza da vida, os ar­rependimentos e o desespero ela os trazia dentro de si.

A tarde já ia findando e o sol perdera o seu calor. Hi­lary subiu os vários terraços e entrou no hotel.

Na meia-luz do salão oriental, quando os olhos de Hi­lary se acomodaram à semi-obscuridade, reconheceu a Sra. Calvin Baker, com seus cabelos azulados e aparência ima­culada de sempre.

— Acabei de chegar de avião — explicou ela. — Eu simplesmente não suporto os trens... levam um tempo interminável. E os passageiros, que falta de higiene. Eles não têm a menor idéia do que seja higiene nestes países. Você precisava ver, querida, a carne que vendem nos souks... coberta de moscas. Parece que eles acham a coisa mais natural do mundo que as moscas pousem em cima de tudo.

— Acredito que sim — disse Hilary.

A Sra. Calvin Baker não ia deixar sem resposta uma declaração que, para ela, era uma heresia.

— Eu dou o meu inteiro apoio à Campanha pela Ali­mentação Pura. No meu país tudo que é perecível é em­brulhado em celofane... mas mesmo em Londres os pães e os bolos são deixados nos balcões sem qualquer prote­ção. Agora, conte-me, você tem passeado? Certamente vi­sitou hoje a cidade velha, não?

— Na realidade eu não fiz nada — disse Hilary sor­rindo. — Fiquei todo o dia sentada e apanhando sol.

— Ah, naturalmente... esqueci-me de que você aca­bou de sair do hospital.

Evidentemente para a Sra. Calvin Baker só uma mo­léstia recente podia desculpar o fato de não se verem as curiosidades locais.

— Foi uma pergunta tola a que fiz. É claro que de­pois de uma Concussão deve-se ficar quase todo o tempo deitada num quarto escuro. Mas breve poderemos fazer umas expedições juntas. Eu sou das que gostam de um dia realmente cheio... tudo planejado e combinado. Nem um minuto sem ter o que fazer.

No estado de espírito em que estava Hilary, a idéia pareceu-lhe algo muito semelhante ao inferno mas ela cumprimentou a Sra. Baker pela energia que demonstrava,

— Para uma mulher da minha idade eu acho que te­nho bastante vitalidade. Raramente sinto cansaço. Lem­bra-se da Srta. Hetherington, em Casablanca?   Uma in­glesa de rosto comprido? Ela chegará esta noite. Prefere o trem ao avião. Que tipo de hóspedes há no hotel? Supo­nho que franceses, na maioria.   E casais em lua-de-mel. Bom, preciso ir ver o meu quarto. Não gostei do que me reservaram e prometeram trocar.

Como um diminuto redemoinho de energia, a Sra. Calvin Baker afastou-se.

Quando Hilary entrou no salão de jantar naquela noite, a primeira coisa que viu foi a Srta. Hetherington sentada a uma pequena mesa junto à parede, comendo o seu jantar e com um pequeno livro das Edições Penguin a sua frente.

As três senhoras tomaram juntas o café, depois do jantar, e a Srta. Hetherington estava toda excitada a res­peito do magnata sueco e a loura estrela do cinema.

— Segundo soube não são casados — murmurou ela disfarçando o prazer que sentia com um tom de reprova­ção. — Estas coisas são freqüentes nos países estrangeiros. Aquela família francesa, que estava na mesa perto da porta, pareceu-me muito simpática. As crianças pareciam gostar tanto do pai. Mas os franceses deixam as crianças ficarem acordadas até tarde. Algumas vezes ainda estão acordadas às dez horas e comem todos os pratos do car­dápio, ao invés de comerem apenas biscoitos e tomarem um copo de leite como seria lógico.

— Mas, apesar de comerem de tudo, parecem gozar de magnífica saúde — disse Hilary rindo.

A Srta. Hetherington sacudiu a cabeça e fez ouvir uma espécie de gargarejo de desaprovação.

— Mais tarde eles sofrerão as conseqüências — disse ela fazendo a sua grave previsão. — Imaginem que os pais permitem, até, que eles bebam vinho.

Não podia existir coisa mais horrível.

A Sra. Calvin Baker começou a fazer planos para o dia seguinte.

— Não creio que vá à cidade velha — disse ela. — Já visitei tudo da outra vez que aqui estive. Muito inte­ressante e um terrível labirinto, sabem? Se eu não tives­se um guia comigo, creio que nunca chegaria de volta ao hotel. Perde-se o sentido de orientação. Mas o guia era muito simpático e contou-me muitas coisas interessantes. Ele tem um irmão nos Estados Unidos... creio que ele disse ser em Chicago. Quando nós acabamos de ver a ci­dade ele me levou a uma espécie de restaurante ou casa de chá, bem em cima do morro e donde se via a cidade velha — uma vista maravilhosa. Fui obrigada a beber aquele horrível chá de hortelã que, como sabem, é detes­tável. E eles queriam que eu comprasse várias coisas, al­gumas bastante interessantes mas a maioria não valia nada. Nessas ocasiões é preciso agir com firmeza.

— Sim, certamente — disse a Srta. Hetherington. E acrescentou, com certa pena: — E naturalmente não se pode gastar muito comprando lembranças. Essas restri­ções cambiais são muito incômodas.

 

Hilary esperava evitar ser forçada a visitar a parte velha da cidade de Fez na deprimente companhia da Srta. Hetherington. Por sorte a Sra. Baker convidou a Srta. Hetherington para uma excursão em automóvel. Como a Sra. Baker tornara claro que pagaria as despesas, a Srta. Hetherington, cuja quota de câmbio para a viagem se es­vaía assustadoramente, aceitou imediatamente. Hilary, através da portaria, conseguiu um guia e foi visitar a ci­dade de Fez. Partindo do terraço e descendo pelos jardins em grandes patamares, chegaram a uma enorme porta no muro que delimitava a parte inferior dos jardins. O guia tirou do bolso uma enorme chave, abriu a fechadura e o portão por ele empurrado, moveu-se lentamente. Com um gesto, o guia convidou Hilary a passar.

Foi como se entrassem em um outro mundo. De todos os lados Hilary via os muros da velha Fez. Ruas estreitas e tortuosas, altos muros e, de vez em quando, através de uma porta entreaberta, um relance de um interior ou de um pátio. Ao redor dele passavam burros carregados, ho­mens com grandes volumes às costas, crianças, mulheres com véu, ou sem véu, toda a vida secreta e ativa dessa mocidade mourisca.

Perambulando pelas estreitas ruas, ela se esqueceu de tudo. Da sua missão; da tragédia que morava na sua vida; até de si mesma. Só via e ouvia, vivendo e vagando em um mundo de sonhos. Só a perturbava o tagarelar incessante do guia, que insistia para que ela entrasse em várias lojas que absolutamente não a interessavam.

— Olha, senhora. Este homem tem coisas muito ba­ratas, muito bonitas, verdadeiramente antigas, mouriscas de verdade. Ele tem vestidos e sedas. Gosta de contas bo­nitas?

O eterno comércio do Este vendendo ao Oeste estava por todos os lados, mas nada perturbava o encantamento de Hilary. Em seguida perdeu completamente a noção do tempo e o sentido de orientação. Dentro desta cidade cer­cada de muralhas, ela não sabia se estava caminhando para o norte ou para o sul ou se estava voltando por ca­minhos já percorridos. Estava francamente exausta quan­do o guia fez a sua última sugestão, que era evidentemen­te parte de uma rotina.

— Agora eu vou levá-la a uma casa ótima, muito su­perior. São amigos meus. A senhora tomará chá de horte­lã e eles lhe mostrarão muitas coisas lindas.

Hilary reconheceu o truque que a Sra. Calvin Baker tinha descrito. Entretanto, estava disposta a ver, ou ser levada a ver, qualquer coisa que lhe fosse sugerida. Ama­nhã, ela prometeu a si mesma, ela voltaria à cidade velha para flanar à vontade, sem um guia a seu lado. O guia a levou, por uma subida em ziguezague junto às muralhas da cidade, até chegarem a uma bela casa estilo árabe, circundada por um jardim.

Ali, numa ampla sala, donde se descortinava uma bela vista da cidade, insistiram para que ela se sentasse a uma mesa para café. Pouco depois serviram copos de chá de hortelã. Para Hilary, que não gostava de chá com açúcar, era um sacrifício beber o chá de hortelã. Mas, tirando a idéia de chá da cabeça e pensando, simplesmente, que se tratava de um refresco, conseguiu beber quase com pra­zer. Gostou, também, das coisas que lhe mostravam: ta­petes, contas, tapeçarias, bordados e vários outros objetos Por uma questão de boas maneiras fez uma ou duas pe­quenas compras. O incansável guia disse, então:

— Tenho carro pronto para levar a senhora para um curto e agradável passeio. Uma hora apenas, para ver lindas paisagens e lugares. E depois voltamos para o hotel.

E acrescentou, tomando um ar discreto:

— Esta moça aqui a levará primeiro a um toalete para senhoras que é excelente.

A moça que servira o chá estava em pé, perto deles, sorrindo. Disse em bom inglês:

— Sim, sim, Madame. Venha comigo. Temos um toa­lete muito, muito bom. Igual aos de Hotel Ritz. Tão bem como em Nova York ou Chicago. A senhora verá.

Sorrindo, Hilary acompanhou a moça. O lavatório di­ficilmente seria o que tinham dito mas, pelo menos, tinha água corrente. Havia uma pia e um espelho rachado que destorcia as imagens de tal forma que Hilary levou grande susto ao ver o próprio rosto. Depois de lavá-lo e as mãos e enxugá-los com o lenço, pois a toalha era de aparência mais que duvidosa, ela se virou para sair.

A porta do toalete, entretanto, parecia estar comple­tamente emperrada e não abria. Ela girou e forçou a ma­çaneta, mas nada adiantou. A porta não se movia. Pensou que a porta poderia ter sido fechada pelo lado de fora. Ficou irritada. Que idéia seria esta de trancá-la ali? Nisto, ela verificou que havia uma outra porta a um canto da peça. Dirigiu-se para ela e girou a maçaneta. Dessa vez a porta abriu-se com facilidade. Atravessou-a e entrou num pequeno aposento de aspecto oriental e onde só en­trava luz por duas longas frestas no alto da parede. Sen­tado num divã, fumando, estava o pequeno francês que ela encontrara no trem, Monsieur Henri Laurier.

 

Ele não se levantou para cumprimentá-la. Apenas disse, com um tom de voz que já não era o mesmo:

— Boa tarde, Sra. Betterton.

Por um instante Hilary ficou imóvel. Estava com­pletamente confusa. Então a coisa — começava agora. Con­seguiu readquirir o controle. Pensou: — Isto é o que você estava esperando. Deve agir como julga que ela agiria.

Adiantou-se e disse, com ansiedade:

— Tem notícias para mim? Pode ajudar-me?

Ele fez que sim, com a cabeça, e depois falou em tom de quem faz crítica:

— No trem, Madame, eu achei que a senhora era um tanto obtusa. Talvez esteja demasiado acostumada a falar sobre o tempo.

— O tempo? — fitou-o completamente confusa. Que tinha ela dito no trem sobre o tempo? Frio? Fog? Neve.

Neve. Foi o que Olive Betterton murmurara quando morria. E ela recitara um pequeno e tolo jingle — como era mesmo?

Neve pura neve, linda neve que cai

Desliza na neve e p’ro chão ele vai.

Hilary, hesitante, repetiu o jingle.

— É isto mesmo... por que não o disse logo, de acor­do com as ordens?

— O senhor não entende. Eu estive muito mal. Tive um desastre de avião e fui para o hospital com uma Con­cussão. A minha memória foi muito afetada. O que se pas­sou há muito tempo eu recordo muito bem mas há fa­lhas... períodos que não me ocorrem.

Levou as mãos à cabeça e prosseguiu com voz trê­mula, sem que precisasse esforçar-se:

— O senhor não pode imaginar como é terrível e as­sustador. Tenho sempre a impressão de que estou esque­cendo coisas importantes — coisas realmente importantes. Quanto mais me esforço para lembrá-las mais distantes elas parecem ficar.

— Sim — disse Laurier. — O desastre de avião foi uma infelicidade — ele falava em tom frio e positivo. — Agora será uma questão de saber se a senhora terá a re­sistência e a coragem necessárias para continuar a sua viagem.

— É claro que vou continuar a viagem — gritou Hi­lary. — Meu marido — sua voz fraquejou.

Ele sorriu, mas não foi um sorriso agradável. Parecia com um gato mostrando os dentes.

— Segundo penso, o seu marido a espera com ansie­dade.

A voz de Hilary saiu entrecortada.

— O senhor não faz idéia do que têm sido esses me­ses, desde que meu marido foi embora.

— A senhora acha que as autoridades britânicas che­garam a alguma conclusão quanto ao que a senhora sabe, ou não sabe?

Hilary abriu os braços, num gesto largo:

— Como posso saber... como posso imaginar? Eles pareciam estar satisfeitos com o que eu disse.

— Em todo o caso... — ele interrompeu o que ia di­zer.

— Penso que é muito possível que eu tenha sido se­guida até aqui — disse Hilary vagarosamente. — Não con­segui ver ninguém, precisamente, mas tenho a impres­são, desde que deixei a Inglaterra, de que estou sendo observada.

— É claro — disse Laurier, friamente. — Não espe­rávamos outra coisa.

— Eu achei que devia avisar ao senhor.

— Prezada Sra. Betterton, nós não somos crianças. Sabemos o que estamos fazendo.

— Desculpe — disse Hilary com humildade. — Creio que sou muito ignorante.

— Não faz mal que a senhora seja ignorante, contan­to que seja obediente.

— Eu serei obediente — disse Hilary em voz baixa.

— A senhora estava sob rigorosa observação, na In­glaterra, desde o dia em que seu marido partiu. Mas a mensagem chegou até a senhora, não foi?

— Sim — respondeu Hilary.

— Agora — disse Laurier em tom categórico. — eu lhe darei as instruções.

— Pode dizer, por favor.

— A senhora partirá daqui para Marrakesh, depois de amanhã. Isto é o que a senhora planejara, de acordo com as reservas que tem.

— Sim.

— No dia seguinte ao da sua chegada receberá um telegrama da Inglaterra. Eu não sei o que dirá o telegrama mas será o suficiente para que a senhora tome providências para regressar rapidamente à Inglaterra.

— Eu devo voltar à Inglaterra?

— Faça o favor de ouvir, eu ainda não terminei. A senhora reservará um lugar no avião que parte de Casa­blanca no dia seguinte.

— Mas suponha que não consiga a passagem... su­ponha que todos os lugares já estejam tomados?

— Não estarão todos tomados. Tudo já está arran­jado. Compreendeu bem as instruções?

— Compreendi.

— Então faça o favor de voltar para onde o seu guia está esperando. Já demorou bastante aqui. Mais uma coisa: a senhora ficou amiga de uma americana e de uma in­glesa que estão hospedadas no Palais Jamail?

— Sim. Foi um erro? Foi difícil evitar.

— Absolutamente não. Serve admiravelmente para os nossos planos. Se a senhora puder persuadir uma delas a que a acompanhe a Marrakesh, tanto melhor. Adeus, Ma­dame.

— Até à vista.

— É pouco provável — disse Monsieur Laurier, com absoluto desinteresse — que eu torne a vê-la.

Hilary voltou ao toalete das senhoras. Desta vez a outra porta não estava trancada. Minutos depois reen­controu o guia na sala de chá.

— Tenho um bom carro à espera — disse o guia. — Agora vou levá-la a um passeio agradável e instrutivo.

O passeio correu tal como fora planejado.

 

— Então a senhora parte amanhã para Marrakesh — disse a Srta. Hetherington. — Não ficou muito tempo em Fez, não é? Não teria sido mais fácil ter ido a Marrakesh primeiro e depois a Fez, voltando depois a Casablanca?

— Creio que sim — disse Hilary, — mas é tão difícil conseguir reservas. Aqui está sempre cheio de gente.

— Mas não de ingleses — disse a Srta. Hetherington, meio desconsolada. — É simplesmente terrível mas. hoje em dia, quase não se encontra um conterrâneo.

Olhou em redor com pouco caso, e disse:

— Só se vêem franceses.

Hilary esboçou um sorriso. O fato de Marrocos ser uma colônia francesa parecia nada significar para a Srta. Hetherington. Ela julgava que os hotéis, no estrangeiro, lá estavam para servir aos viajantes ingleses.

— Os franceses, os alemães e os gregos — disse a Sra. Calvin Baker com um riso cacarejado. — Aquele pequeno velho raquítico é um grego, creio eu.

— Disseram-me que ele é grego — disse Hilary.

— Parece ser uma pessoa importante — disse a Sra. Baker. — Basta ver como os empregados correm para atendê-lo.

— Hoje em dia não dão quase nenhuma atenção aos ingleses — disse a Srta. Hetherington, com ar pesaroso. — Só lhes dão os piores quartos dos fundos... os que an­tigamente davam aos empregados e empregadas.

— Bem, eu não me posso queixar das acomodações que me deram desde que cheguei a Marrocos — disse a Sra. Calvin Baker. — Sempre tenho conseguido um bom quarto com banheiro.

— A senhora é americana — disse rapidamente a Srta. Hetherington com um traço de veneno na voz.

— Eu gostaria de persuadi-las a irem comigo a Mar­rakesh — disse Hilary. — Foi um prazer conhecê-las aqui e conversar com as senhoras. Fica-se tão isolada viajan­do só.

— Eu já estive em Marrakesh — disse a Srta. Hethe­rington, meio chocada.

A Sra. Calvin Baker, entretanto, pareceu interessar-se pela idéia.

— Até que é uma boa idéia — disse ela. — Já faz um mês que eu estive em Marrakesh. Eu gostaria de ir até lá outra vez para poder mostrar-lhe a cidade e impe­dir que seja explorada. É preciso ter estado num lugar e visto as coisas para saber como agir. Acho que vou até a portaria para ver se posso arranjar tudo.

Quando ela saiu, a Srta. Hetherington disse acida­mente:

— Essas mulheres americanas são sempre assim. Cor­rendo de um lugar para outro sem parar em nenhum. Hoje no Egito, amanhã na Palestina. Creio que, às vezes, elas nem sabem em que país estão.

Fechou a boca com um estalinho, levantou-se e, jun­tando a lã e as agulhas, deixou a sala turca com um pe­queno aceno de cabeça para Hilary ao passar por ela. Hi­lary olhou para o relógio. Não estava com vontade de tro­car de vestido para jantar, como geralmente fazia. Um garçom entrou na sala e, depois de acender duas lâm­padas, retirou-se. Apesar das lâmpadas acesas a sala es­tava agradavelmente na penumbra. Havia uma sereni­dade oriental. Hilary inclinou-se no divã, pensando no futuro.

Ainda ontem ela tinha dúvidas se toda essa história em que estava metida não seria pura fantasia. Aquela lâmpada de luz fraca ali a seu lado! Se ela a apanhasse e esfregasse o latão não lhe apareceria o gênio da Lâm­pada de Aladin? Subitamente, aparecendo por trás da lâmpada ela viu a pequena e enrugada cara e a barbicha pontiaguda de Monsieur Aristides. Ele se inclinou, deli­cadamente, antes de sentar-se a seu lado, dizendo:

— A senhora permite?

Hilary concordou, com polidez.

Ele retirou do bolso uma cigarreira e ofereceu-lhe um cigarro. Ela aceitou e ele também acendeu o seu.

— Gosta deste país, Madame? — perguntou ele após um momento.

— Estou aqui há muito pouco tempo — disse Hilary. — Até agora estou verdadeiramente encantada.

— Ah! Esteve na Cidade Velha? Gostou?

— Achei maravilhoso.

— Sim, é maravilhoso. Lá se encontra o passado... o passado do comércio, da intriga, de vozes sussurrantes de mulheres, atividades invisíveis, todos os mistérios e as paixões de uma cidade contida entre velhas muralhas e ruas estreitas. Quer saber, Madame, o que penso quando passeio pelas ruas de Fez?

— Sim.

— Penso na sua Grande Estrada do Oeste, em Lon­dres. Penso nas suas grandes fábricas, dos dois lados da estrada.   Penso nesses grandes edifícios iluminados por lâmpadas de néon e nas pessoas que estão lá dentro e que se vêem tão bem quando se passa de carro. Não há nada escondido, nada misterioso. Nem mesmo cortinas há nas janelas. Não, elas lá estão, trabalhando, à vista de todo o mundo. É tal como se fosse cortado o topo de um formigueiro.

— Quer dizer, então, que é o contraste que o interes­sa? — perguntou Hilary, curiosa.

Monsieur Aristides concordou com a cabeça, que pa­recia a de uma velha tartaruga.

— Sim — disse ele. — Lá tudo é às claras e nas velhas ruas de Fez nada é à jour. Tudo é escondido, escuro... Mas — ele se inclinou para a frente e bateu com o dedo no latão da mesinha de café — as mesmas coisas aconte­cem. As mesmas crueldades, as mesmas opressões, o mes­mo anseio pelo poder, as mesmas barganhas e discussões.

— O senhor acha que a natureza humana é a mesma em toda a parte? — perguntou Hilary.

— Em todos os países. Tanto no passado quanto no presente duas coisas sempre dominaram a vida: a cruel­dade e a benevolência. Uma ou outra. Às vezes ambas —> ele continuou quase sem alterar o tom: — Disseram-me, Madame, que a senhora sofreu um grave acidente de avião, há dias, em Casablanca.

— Sim, é verdade.

— Eu a invejo — disse Monsieur Aristides inespera­damente.

Hilary olhou-o muito admirada. Novamente ele fez que sim com a cabeça, de forma enérgica.

— Sim — acrescentou, — devemos invejá-la. A se­nhora teve uma aventura. Eu gostaria da experiência de ter chegado tão perto da morte.   Ter passado por isso e ainda estar vivo... a senhora não se sente diferente desde então, Madame?

— De forma um tanto desagradável — disse Hilary. — Tive uma Concussão e ainda tenho fortes dores de ca­beça e a minha memória também está afetada.

— Isto são meros inconvenientes — disse Monsieur Aristides, abanando a mão — mas foi uma aventura do espírito o que a senhora passou, não foi?

— É verdade que — disse Hilary pausadamente — eu passei por uma aventura espiritual.

Ela estava realmente pensando numa garrafa de água Vichy e num montinho de comprimidos para dormir.

— Eu nunca tive uma experiência semelhante — dis­se Monsieur Aristides com voz de quem está pouco sa­tisfeito. — Passei por muitas outras coisas, mas isso não.

Levantou-se, curvou-se, disse:

— Mes homages, Madame — e deixou-a.

 

Como são parecidos todos os aeroportos, pensava Hilary. Todos são estranhamente impessoais. Todos es­tão a uma certa distância da cidade a que servem e, por conseguinte, têm um ar estranho e esquisito de não es­tarem em parte alguma. Pode-se voar de Londres para Madri, para Roma, para Istambul, para o Cairo, ou para qualquer outro lugar e, se continuar no mesmo avião, nunca se terá a mínima idéia de como é qualquer das ci­dades. Pode-se ver, rapidamente, um pedaço de algumas delas, pela janela do avião, e avistar uma espécie de mapa, em escala grande, algo assim como o que fazem as crian­ças com tijolos de brinquedo.

E, por que, pensou ela irritada e olhando em redor, devem os passageiros chegar com tanta antecedência?

Elas já estavam há meia hora no salão de espera. A Sra. Calvin Baker, que decidira acompanhar Hilary, ha­via falado sem parar. Hilary respondera quase que meca­nicamente. Mas agora ela reparou que o curso da tagare­lice tinha mudado. A Sra. Calvin Baker desviara a atenção para dois outros viajantes que estavam sentados perto dela. Ambos eram altos e louros. Um era americano e tinha um largo e franco sorriso: o outro era um dinamar­quês ou norueguês de aspecto um tanto solene. O dina­marquês falava, com sotaque carregado, um inglês cuida­doso e pedante. O americano estava, evidentemente, en­cantado por encontrar uma viajante compatriota. Logo a Sra. Calvin Baker virou-se para Hilary.

— Senhor...? quero apresentar-lhe minha amiga, a Sra. Betterton.

— Andrew Peters... Andy para os amigos.

O outro moço levantou-se, curvou-se um tanto sem jeito e disse:

— Torquil Ericsson.

— Agora já somos todos conhecidos — disse alegre­mente a Sra. Baker. — Vamos todos para Marrakesh? É a primeira vez que a minha amiga vai até lá.

— Eu também — disse Ericsson. — Eu também estou indo pela primeira vez.

— Eu também vou pela primeira vez — disse Peters.

O alto-falante começou a fazer um aviso, em francês, em voz muito rouca. Mal se distinguiam as palavras mas parecia ser a chamada para o avião deles.

Além da Sra. Baker e de Hilary havia mais quatro passageiros. Além de Peters e Ericsson; havia um francês alto e magro e uma freira com ar severo.

O dia estava claro e ensolarado e as condições de vôo eram boas. Recostando-se em uma poltrona, com os olhos semicerrados, Hilary estudou seus companheiros de via­gem, procurando, dessa forma, não pensar muito nas in­terrogações que lhe vinham à mente.

Do outro lado da passagem e uma poltrona à frente da sua, a Sra. Calvin Baker, no seu costume cinzento de via­gem parecia um pato feliz. Um pequeno chapéu com duas asinhas estava pousado sobre seus cabelos azuis e ela folheava uma revista. De vez em quando se inclinava para frente para bater no ombro do passageiro a sua fren­te e que era o alegre e louro americano, Peters. Quando isso acontecia, ele se voltava mostrando o seu bem-humo­rado sorriso e respondia com entusiasmo as suas obser­vações. Como os americanos são bem-humorados e amis­tosos, pensou Hilary. Tão diferentes do viajante inglês. Ela não podia conceber a Srta. Hetherington, por exemplo, travando facilmente conversa com um moço, mesmo que ele fosse de sua nacionalidade, em um avião, e tinha dú­vidas se o moço responderia com a mesma cordialidade que o americano estava demonstrando.

O norueguês, Ericsson, estava na mesma linha que ela no outro lado da passagem. Seus olhares se encontraram e ele fez um cumprimento, meio duro, e inclinando-se, ofe­receu-lhe a revista que estava lendo. Ela agradeceu e acei­tou a revista. Na poltrona atrás da sua estava o magro e moreno francês. Suas pernas estavam espichadas e ele parecia dormir.

Hilary virou-se. A freira de fisionomia severa estava sentada atrás dela e o seu olhar, impessoal e sem a menor curiosidade, cruzou-se com o de Hilary. Ela estava sen­tada, imóvel. Pareceu a Hilary um anacronismo que uma mulher em trajes tradicionais e medievais estivesse via­jando pelo ar, em pleno século vinte.

Seis pessoas, pensou Hilary, viajando juntas por al­gumas horas, para lugares diferentes e com objetivos di­ferentes, separando-se ao fim dessas horas para, prova­velmente, nunca mais se tornarem a ver. Recordou-se de já ter lido uma novela baseada num tema semelhante mas na qual a vida dessas pessoas era seguida depois da viagem. O francês, pensou ela, deve estar em férias. Ele parecia muito cansado. O jovem americano devia ser um estudante. Ericsson talvez estivesse indo para começar a trabalhar em algum lugar. A freira, sem dúvida, ia para o convento.

Hilary fechou os olhos e esqueceu os companheiros de viagem. Procurava entender, tal como o fizera duran­te toda a noite anterior, as instruções que recebera. Ela deveria voltar para a Inglaterra! Parecia uma idéia louca! Que teria talvez acontecido que fez que não confiassem nela; será que de alguma forma tinha falhado, tinha dei­xado de proferir certas palavras ou de apresentar qualquer tipo de credenciais que a verdadeira Olive não deixaria de fazer? Ela suspirou, e nervosamente mexeu-se na pol­trona.

Bem, pensou ela, não posso fazer mais do que estou fazendo. De qualquer forma fiz o melhor que podia.

Um outro pensamento ocorreu-lhe. Henri Laurier tinha aceito como natural e inevitável que ela fosse rigorosa­mente vigiada em Marrocos — seria isto uma maneira de desfazer suspeitas? Com a volta repentina da Sra. Betterton à Inglaterra certamente pensariam que ela não tinha vindo a Marrocos para desaparecer, tal como o seu marido. As suspeitas afrouxariam — ela seria considera­da como uma inocente viajante.

Ela partiria, pela Air France, via Paris — e talvez em Paris.

Sim, sem dúvida — em Paris. Em Paris onde Tom Betterton tinha sumido. Seria muito mais fácil arranjar um desaparecimento em Paris. Talvez Tom Betterton nunca tivesse saído de lá. Talvez — cansada de especulações inúteis Hilary adormeceu. Acordou, cochilou novamente e tornou a olhar, sem interesse, para a revista que tinha na mão. Acordando, subitamente, de um sono mais pesado, ela viu que o avião perdia altura rapidamente e fazia uma grande curva. Olhou para o relógio e verificou que ainda não era hora da chegada. Olhando pela janela também não avistou um aeroporto.

Por um instante ela ficou apreensiva. O francês mo­reno e magro levantou-se, bocejou, esticou os braços, olhou para fora e disse algo em francês que ela não entendeu. Mas Ericsson, inclinando-se para o lado, disse:

— Parece que estamos descendo.

O avião circulava, cada vez mais baixo. A região, embaixo, parecia praticamente deserta. Não havia nem sinal de casas ou aldeias. As rodas tocaram o solo, um tanto violentamente; o aparelho correu aos saltos redu­zindo a velocidade até parar. Tinha sido uma aterragem algo violenta mas uma aterragem no meio do nada.

Teria havido algum defeito no motor, pensou Hilary, ou teria acabado a gasolina? O piloto, um rapaz moreno e bonitão, abriu a porta da cabina de comando e entrou no compartimento dos passageiros.

— Por favor — disse ele, — queiram todos descer.

Ele abriu a porta do avião, desceu uma pequena es­cada e esperou que todos saíssem. Os passageiros forma­ram um pequeno grupo, em terra, tremendo de frio. Fazia realmente frio, com o forte vento que soprava, vindo das montanhas ao longe. Hilary notou que as montanhas estavam cobertas de neve e eram de uma beleza singular. O ar era frio, seco e estimulante. O piloto finalmente também desceu e dirigiu-se a eles, falando em francês:

— Estão todos aqui? Sim? Queiram desculpar mas provavelmente terão que esperar alguns minutos. Ah, não, vejo que ela está chegando.

Apontou para o horizonte, onde um pequeno ponto aumentava de tamanho gradualmente. Hilary, com a voz denotando espanto perguntou:

— Mas por que descemos aqui? Que aconteceu? Quan­to tempo vamos demorar?

O viajante francês disse:

— Lá vem, creio eu, uma camioneta. Continuaremos a viagem nela.

— O motor enguiçou? — perguntou Hilary.

Andy Peters sorriu, cheio de bom humor.

— Acho que não — disse ele; — o ruído do motor pa­receu-me perfeitamente normal. Entretanto, eles saberão arranjar as coisas.

Ela o fitou, sem entender bem. A Sra. Calvin Baker murmurou:

— Puxa! Faz frio aqui no chão. Este clima é muito esquisito. Parece que há sempre sol mas faz frio logo que começa a cair a tarde.

O piloto dizia algo, por entre dentes. Pareceu a Hi­lary que ele praguejava. Ele disse algo como:

— Toujours des retards insuportables.

— A camioneta aproximou-se a grande velocidade. O motorista bérbere fê-la parar com os freios guinchan­do. Saltou do carro e imediatamente o piloto começou a discutir raivosamente com ele. Com grande surpresa pa­ra Hilary, a Sra. Baker meteu-se na discussão, falando em francês.

— Não percam tempo — disse ela em tom peremptó­rio. — Não adianta nada discutir. Queremos é sair da­qui.

O motorista deu de ombros e dirigindo-se à camioneta soltou os ganchos e baixou a parte posterior. Dentro ha­via uma grande caixa de madeira. Juntamente com o pi­loto e mais a ajuda de Ericsson e Peters eles colocaram a caixa no chão. Pelo esforço que fizeram a caixa parecia ser muito pesada. A Sra. Calvin Baker segurou o braço de Hilary e, quando o motorista começou a levantar a tampa do caixão, disse-lhe:

— Eu não olharia, querida. Não é nada bonito de ver.

Ela levou Hilary para um pouco mais longe, para o outro lado da camioneta. O francês e Peters juntaram-se a elas. O francês perguntou, em sua própria língua:

— Que espécie de manobra estão eles fazendo?

A Sra. Baker disse:

— O senhor é o Dr. Barron?

O francês inclinou-se.

— Prazer em conhecê-lo — disse a Sra. Baker. Es­tendeu-lhe a mão como se fosse uma anfitriã recebendo um convidado.

Hilary disse, em tom de quem está pasmada:

— Mas eu não entendo. Que há naquele caixote? Por que é melhor que não se olhe?

Andy Peters olhou-a de forma pensativa. Ele tinha um rosto simpático, pensou Hilary. Uma cara um tanto quadrada mas que inspirava confiança. Ele disse:

— Eu sei o que é. O piloto contou-me. Talvez não seja muito bonito, mas é necessário.

E acrescentou com voz calma:

— Há cadáveres no caixote.

— Cadáveres! — disse ela fitando-o.

— Oh, não foram assassinados, ou coisa que o valha — ele sorriu tranqüilizadoramente. — Foram obtidos de modo perfeitamente legal para pesquisas, pesquisas mé­dicas, entende?

Mas Hilary continuava a fitá-lo.

— Não consigo entender.

— Ah. A senhora sabe, Sra. Betterton, é aqui que termina a viagem. A nossa viagem, quero dizer.

— Termina?

— Mas certamente — era o Dr. Barron quem lhe falava agora. — Mas certamente a senhora sabe para on­de vamos?

A Sra. Baker aproximou-se e disse em tom animado:

— Certamente que ela sabe. Talvez não esperasse que acontecesse tão cedo.

Depois de uma curta pausa de estupefação, Hilary disse:

— Quer dizer... todos nós? — olhou em redor.

— Nós somos fellow travellers(1) — disse Peters em voz calma.

O jovem norueguês concordou, com a cabeça, e disse, com entusiasmo quase fanático:

— Sim, somos todos fellow travellers.

 

(1) Nota do Tradutor — A expressão inglesa fellow traveller que, literalmente, significa companheiro de viagem, o que viaja junto, designa partidários do credo comunista ou seus simpatizantes mais ativos. A autora faz um jogo de palavras pois, no caso, as pessoas estavam realmente via­jando. Por não haver expressão em português que se apro­xime da inglesa, foi esta mantida.

 

O piloto aproximou-se deles.

— Os senhores partirão imediatamente, por favor — disse ele. — O mais depressa possível. Há muito o que fazer e já estamos com nosso horário atrasado.

Por um momento Hilary ficou assustada. Levou a mão ao pescoço nervosamente. A gargantilha de pérolas que usava quebrou-se com a pressão dos dedos. Apanhou as pérolas caídas ao chão e as enfiou no bolso.

Entraram todos na camioneta. Hilary sentou-se em um longo banco, apertada entre Peters de um lado e a Sra. Baker do outro. Virando-se para a americana, Hila­ry disse:

— Então a senhora... então a senhora é o que se po­deria chamar de Oficial de Ligações, Sra. Baker?

— É exatamente isto. E sem falsa modéstia posso di­zer que sou perfeitamente qualificada para a função. Nin­guém fica admirado ao ver uma americana viajando mui­to.

Ela continuava gorda e sorridente mas Hilary sentiu, ou julgou sentir, uma diferença. A leve fatuidade e a convencionalidade superficial tinham desaparecido. Ali es­tava uma mulher eficiente e provavelmente sem piedade.

— Os cabeçalhos serão sensacionais — disse a Sra. Baker e riu-se com satisfação. — Quero referir-me a você, minha querida. Dirão que a má sorte a perseguiu, sem tréguas. Primeiro quase morrendo no desastre de Casa­blanca e logo a seguir morta em outro acidente.

Hilary percebeu, subitamente, o quanto o plano era hábil.

— E estes outros? — murmurou ela. — São quem pretendem ser?

— Mas, certamente. O Dr. Barron é um bacteriologista, creio eu. O Sr. Ericsson, um jovem e brilhante físico, o Sr. Peters é pesquisador em química, a Srta. Needheim, evidentemente, não é uma freira; é uma endocrinologista. Eu, como já disse, sou apenas um Oficial de Ligações. Na­da tenho com esta chusma de cientistas.

Riu, novamente, quando disse:

— Aquela pobre mulher, a Hetherington, nunca teve a menor chance.

— A Srta. Hetherington... ela era... ela era...

A Sra. Baker aquiesceu, enfaticamente, com a ca­beça.

— Se quer saber, ela também a estava seguindo. Re­tomou em Casablanca o serviço de um outro qualquer que a vigiou até lá.

— Mas não veio conosco hoje, embora eu tivesse in­sistido com ela.

— Isto a teria feito sair do seu papel — disse a Sra. Ba­ker. — Teria parecido demasiado óbvio o fato de ela vol­tar a Marrakesh pouco tempo depois de ter estado lá. Não. ela certamente mandou um telegrama ou telefonou para Marrakesh, de sorte que lá estará outra pessoa a sua espera, quando você chegar. Quando você chegar. É uma boa piada, não acha? Olhe. Olhe para lá. Lá vai ele.

Eles tinham estado rodando velozmente pelo deserto e, quando Hilary inclinou-se para a frente para espiar pela pequena janela, viu um grande clarão atrás deles. O ruído distante de uma explosão chegou aos seus ouvidos. Peters jogou a cabeça para trás e riu. Depois disse:

— Seis pessoas morrem quando o avião para Marra­kesh se espatifa no solo.

Hilary disse, de forma quase inaudível:

— É... é aterrador.

— Caminhando para o desconhecido? — era Peters quem falava, agora em tom bastante sério. — Sim, mas é a única maneira. Estamos deixando o Passado e entrando no Futuro. — Seu rosto refletia entusiasmo. — Temos que abandonar todas as coisas más e as maluquices antigas. Governos corruptos e os mercadores de guerras. Te­mos que ir para o mundo novo — o mundo da ciência, definitivamente livres das escórias e das sujeiras.

Hilary respirou fundo.

— Isto é exatamente como as coisas que meu mari­do costumava falar — disse ela intencionalmente.

— Seu marido? — olhou rapidamente para ela. — Ele era Tom Betterton?

Hilary fez que sim com a cabeça.

— Isto é formidável. Eu não cheguei a conhecê-lo pessoalmente, nos Estados Unidos, embora eu tivesse che­gado a lugares onde ele esteve, logo depois de sua partida. A Fissão ZE é uma das mais brilhantes descobertas desta era... sim, eu o admiro enormemente. Ele trabalhou com o velho Mannheim, não foi?

— Sim — disse Hilary.

— Disseram-me que ele se casara com a filha de Mannheim. Mas a senhora não é...

— Eu sou a sua segunda mulher — disse Hilary, co­rando levemente. — Ele... sua... Elsa morreu na Amé­rica.

— Agora me recordo. Depois ele foi trabalhar na Inglaterra. Agora irritou a todos, desaparecendo. — Deu uma gargalhada — Saiu de uma conferência em Pa­ris e simplesmente sumiu. — E acrescentou denotando admiração. — Puxa, não se pode dizer que eles não or­ganizam bem as coisas.

Hilary concordou com ele. A excelência da organi­zação deles estava fazendo com que ela sentisse que a in­vadia uma fria onda de apreensão. Todos os planos, códi­gos e sinais preparados com muito trabalho e cuidado se­riam agora inúteis pois não haveria rastro a seguir. As coisas tinham sido arranjadas de tal forma que todos a bordo do avião fatal eram fellow travellers a caminho do Destino Desconhecido para onde Thomas Betterton tinha ido, antes deles. Nenhum vestígio ficaria. Nada; Nada senão um avião completamente queimado. Poderiam eles — seria possível que Jessop e sua organização pudessem pensar que ela, Hilary, não era um daqueles corpos carbo­nizados? O desastre era absolutamente convincente — haveria até corpos queimados no avião.

Peters falou, novamente. Havia um entusiasmo ju­venil em sua voz. Para ele não existiam arrependimen­tos. Nada de olhar para trás. Só havia a ansiedade de continuar, para frente.

— Estou curioso — disse ele — por saber para onde iremos agora.

Hilary também estava ansiosa por saber porque mui­ta coisa dependeria disso. Mais cedo ou mais tarde ha­veria, forçosamente, contatos com outros seres humanos. Mais cedo ou mais tarde, se investigações fossem feitas, o fato de uma camioneta levar seis pessoas parecidas com as descrições das vítimas do avião poderia ser notado por alguém. Ela se virou para a Sra. Baker e perguntou-lhe, num tom que pretendia imitar a juvenil animação do ra­paz americano que estava ao seu lado:

— Para onde estamos indo... que vai acontecer, ago­ra?

— Você verá — disse a Sra. Baker com voz muito amável mas que, de certa forma, parecia dar um sentido ameaçador às palavras.

Continuaram rodando. Atrás deles ainda se via no céu o clarão do avião incendiado. Via-se ainda melhor porque o sol acabava de sumir. A noite caiu. O carro continuava rodando. Os solavancos eram muitos porque, evidentemente, não estavam sobre uma estrada princi­pal. Algumas vezes parecia que estavam sobre atalhos e outras vezes rolavam em campo aberto, sem estrada.

Por muito tempo Hilary ficou acordada com pensa­mentos e apreensões rodopiando em seu cérebro. Mas fi­nalmente, sacudida e atirada de um lado para outro, o cansaço a dominou e ela adormeceu. Alguns sulcos mais fundos e os buracos da estrada a acordaram novamente. Novamente dormitou mas de forma intermitente, saindo do sono para tentar imaginar onde poderia estar. Depois adormecia novamente para ser novamente acordada por um solavanco mais forte e pensar, confusamente, com os pensamentos em rodopio. Dormiu, mais uma vez.

Foi acordada, subitamente, quando o carro parou de repente. Delicadamente Peters sacudiu o seu braço.

— Acorde — disse ele, — parece que chegamos a al­gum lugar.

Saíram todos da camioneta. Estavam doloridos e can­sados. Ainda estava escuro mas, aparentemente, tinham parado perto de uma casa cercada de palmeiras. Um pou­co mais longe podiam divisar algumas luzes fracas como se lá houvesse uma aldeia. Guiados por uma lanterna fo­ram levados ao interior da casa. Era uma casa tipicamen­te marroquina onde estavam duas mulheres bérberes que, rindo nervosamente, fitavam Hilary e a Sra. Baker com curiosidade. Não deram a menor atenção à freira.

As três mulheres foram levadas até um pequeno quar­to no andar de cima. Havia três colchões no chão e alguns cobertores amontoados, mas não havia qualquer móvel.

— Confesso que estou toda doída — disse a Sra. Ba­ker. — Viajar como nós viajamos faz sentir câimbras.

— A falta de conforto não tem a menor importância — disse a freira.

Ela falava com voz áspera e gutural mas mostrando estar segura de si. O seu inglês, Hilary notou, era bom e fluente, embora o sotaque fosse mau.

— A senhora está representando bem o seu papel, Srta. Needheim — disse a americana. — Posso vê-la no convento, ajoelhada sobre pedras duras, às quatro da ma­nhã.

A Srta. Needheim sorriu, desdenhosamente.

— O cristianismo transformou as mulheres em to­las — disse ela. — Tanta adoração da fraqueza, tanta hu­milhação degradante. As mulheres pagãs eram fortes. Ti­nham alegria e conquistavam. E para conquistar não há desconforto insuportável. Não há sofrimento invencível.

— Neste momento — disse a Sra. Baker, bocejando, — gostaria de estar em minha cama no Palais Jamail, em Fez. Que diz a isto, Sra. Betterton? Aposto que as sacudidelas da viagem não foram nada boas para a sua Con­cussão .

— Não foram nada boas — disse Hilary.

— Eles vão trazer-nos alguma coisa para comer e eu lhe darei uma aspirina. A senhora precisa dormir lo­go.

Ouviram-se passos subindo a escada e risadinhas de mulheres. Logo depois as duas mulheres bérberes entra­ram no quarto. Traziam uma travessa com um pirão de semolina e carne cozida. Colocaram a comida no chão, saíram e voltaram, em seguida, com uma bacia de metal com água e uma toalha. Uma delas apalpou o casaco de Hilary, examinando o tecido, e falou com a outra que con­cordou com a cabeça. O mesmo fizeram com a roupa da Sra. Baker. Nenhuma delas deu a menor atenção à frei­ra.

— Fora — disse a Sra. Baker, gesticulando para que saíssem. — Fora, fora.

Era exatamente como se ela estivesse espantando ga­linhas. As mulheres, sempre rindo, recuaram e saíram do quarto.

— Criaturas tolas — disse a Sra. Baker, — perde-se a paciência com elas. Acho que os únicos interesses que têm na vida são crianças e roupa.

— Só servem para isso — disse a Srta. Needheim; — são de uma raça de escravos. A sua única utilidade é para servir seus superiores, nada mais.

— Não acha que está sendo injusta? — disse Hilary, irritada com a atitude da mulher.

— Eu não suporto sentimentalismo. Há os que são feitos para mandar, e que são poucos, e as multidões que devem obedecer.

— Mas, seguramente...

A Sra. Baker, em tom autoritário, interrompeu a dis­cussão.

— Todos nós temos opiniões sobre esses assuntos e talvez opiniões interessantes — disse ela. — Mas este não é o momento para discuti-las. Precisamos é de descan­sar, se for possível.

Veio o chá de hortelã. Hilary engoliu comprimidos de aspirina porque a dor de cabeça que sentia não era fingida. Depois, as três mulheres deitaram-se nos col­chões e, em pouco tempo, adormeceram.

Dormiram até tarde. A Sra. Baker informou que só recomeçariam a viagem depois de anoitecer. Do lado de fora do quarto onde estavam havia uma escada que subia para um terraço que era o teto da casa. De lá, podia-se ver um pouco do que havia em redor. A certa distância via-se uma aldeia mas a casa onde estavam era cercada por um grande bosque de palmeiras. Quando acordaram a Sra. Baker mostrou três montinhos de roupas que ti­nham sido colocados junto à porta.

— Iremos vestidas como nativas, durante a próxima etapa — explicou ela. — Deixaremos nossas roupas aqui.

Por conseguinte, o costume bem talhado da inteli­gente e gorducha americana, a saia e o casaco de tweed de Hilary, e o hábito da freira foram postos de lado e três mulheres com vestes marroquinas estavam senta­das no pátio do telhado da casa e conversavam. A situa­ção dava a impressão de algo curiosamente irreal.

Agora que a Srta. Needheim tinha deixado a anonimidade de seu hábito de freira, Hilary procurou estudá-la melhor. Era uma mulher mais moça do que Hilary jul­gara. Não teria mais que trinta e três ou trinta e qua­tro anos. A sua aparência era de uma pessoa cuidada. A pele pálida, os dedos curtos e olhos que, de quando em vez tinham um brilho de fanatismo, e longe de atrair, re­peliam. Seu modo de falar era brusco e severo. Com re­lação à Sra. Baker e a Hilary, ela mostrava um certo desprezo como se fossem pessoas indignas de associar-se a ela. Hilary achava tal arrogância muito irritante mas a Sra. Baker parecia nada notar. De uma maneira estranha, Hilary sentia mais simpatia pelas sorridentes mu­lheres bérberes que lhes traziam comida que pelas suas companheiras do mundo ocidental. A mulher alemã, evi­dentemente, era completamente indiferente à opinião que se pudesse fazer dela. Denotava impaciência e estar an­siosa para prosseguir na viagem e que não tinha o menor interesse pelas duas companheiras.

Quanto a julgar a atitude da Sra. Baker pareceu a Hilary coisa muito mais difícil. Comparada à especialis­ta alemã, com a sua falta de humanidade, a Sra. Baker, a princípio, parecera uma pessoa natural e normal. Mas, à medida que passava o tempo, ela começava a sentir-se mais intrigada e sentia mais repulsão pela Sra. Baker que por Helga Needheim. A maneira de agir socialmente da Sra. Baker era quase tão perfeita como se ela fosse um robô. Todos os seus comentários e observações eram per­feitamente normais e naturais, mas davam a impressão de que tudo provinha de uma atriz representando um pa­pel pela setingentésima vez. Era uma atuação automá­tica, que nada tinha a ver com o que a Sra. Baker esti­vesse sentindo, ou pensando. Quem era a Sra. Calvin Ba­ker? pensava Hilary. Como teria ela chegado a repre­sentar o seu papel com a perfeição de uma máquina? Se­ria ela, também, uma fanática? Sonharia ela com um mun­do novo e melhor? Estaria ela revoltada contra o siste­ma capitalista? Teria ela abandonado uma vida normal por causa de suas convicções? Era impossível dizê-lo.

Naquela noite prosseguiram na viagem. Já não era mais na camioneta. Agora era num carro de turismo, aberto. Todos estavam vestidos à moda do país, os ho­mens envoltos em jelabas, as mulheres com os rostos co­bertos. Espremidos no carro, continuaram a viajar du­rante toda a noite.

— Como está-se sentindo, Sra. Betterton?

Hilary sorriu para Andy Peters. O sol acabara de despontar e eles tinham parado para uma primeira re­feição de pão à moda do país, ovos e chá, preparado num fogareiro Primus.

— Tenho a impressão de fazer parte de um sonho — disse Hilary.

— Sim, parece uma espécie de sonho.

— Onde estamos?

Ele encolheu os ombros.

— Quem sabe? A Sra. Calvin Baker, sem dúvida, e ninguém mais.

— É um país muito ermo.

— Sim, praticamente deserto. Mas teria que ser as­sim mesmo, não é?

— Quer dizer de modo a não ficarem vestígios?

— É claro. Compreende-se que tudo foi muito bem pensado e planejado, não é verdade? Cada etapa de nos­sa viagem é, se assim posso dizer, completamente inde­pendente da outra. Um avião incendeia-se. Uma velha camioneta viaja durante a noite. Se alguém notar, a sua placa indica que ela pertence a uma expedição arqueológica fazendo escavações na região. No dia seguinte há um carro aberto, cheio de bérberes, uma das coisas mais normais por aqui. Para a próxima etapa — ele deu de ombros — quem sabe?

— Mas, para onde estamos indo?

Andy Peters sacudiu a cabeça.

— Não adianta perguntar. Acabaremos sabendo.

O francês, Dr. Barron, juntou-se a eles.

— Sim — disse ele, — nós o saberemos. Mas é ver­dade que não podemos deixar de perguntar. Isto está em nosso sangue ocidental. Nós nunca podemos dizer “por hoje basta”. Queremos sempre saber o que nos reserva o amanhã. Queremos deixar o ontem para trás e avan­çar para o amanhã. É isto que exigimos.

— O senhor quer forçar o mundo a andar mais de­pressa, não é, doutor? — perguntou Peters.

— Há tanto para fazer — disse o Dr. Barron, — a vida é curta demais. Precisamos de mais tempo. Mais tempo, mais tempo. Atirou os braços para os lados, num gesto impetuoso.

Peters virou-se para Hilary.

— Quais são as quatro liberdades que são tão men­cionadas em seu país? Liberdade da necessidade, liber­dade do medo...

O francês interrompeu.

— Liberdade dos tolos — disse ele amargamente. — Isto e o que eu quero. É disto que o meu trabalho precisa. Liberdade das ridículas e míopes economias! Liberdade das irritantes restrições que atrapalham os trabalhos importantes.

— O senhor é um bacteriologista, não é Dr. Barron?

— Sim, eu sou um bacteriologista. Ah, você não faz idéia, meu amigo, de como é fascinante esse estudo! Mas requer paciência, uma paciência infinita, experiências re­petidas... e dinheiro... muito dinheiro. Precisamos ter equipamentos, assistentes, matérias-primas. Se nos de­rem tudo que pedimos poderemos alcançar coisas admirá­veis.

— A felicidade? — perguntou Hilary.

Ele dirigiu-lhe um rápido sorriso e tornou-se, nova­mente, humano.

— Ah, a senhora é uma mulher, Madame. São as mulheres que sempre pedem a felicidade.

— E poucas vezes alcançam? — perguntou Hilary.

Ele encolheu os ombros.

— Talvez seja assim.

— A felicidade individual não tem importância — disse Peters com ar sério. — É essencial que haja felici­dade para todos, a fraternidade do espírito. Os trabalha­dores livres e unidos donos dos meios de produção, livres dos mercadores de guerras e dos ambiciosos e insaciá­veis que têm tudo em suas mãos. A ciência é para todos e não deve ser a propriedade, guardada zelosamente por uma ou outra potência.

— Isso mesmo — disse Ericsson concordando, .— o senhor tem razão. Os cientistas devem ser os senhores. Eles devem controlar e governar. Eles e somente eles são os super-homens. Só os super-homens importam. Os es­cravos devem ser bem tratados, mas são escravos.

Hilary afastou-se do grupo. Um ou dois minutos de­pois Peters foi ao seu encontro.

— A senhora parece estar um tanto assustada — disse ele meio gracejando.

— Acho que sim — riu um pouco, sem respirar. — É claro que o que disse o Dr. Barron era verdadeiro. Sou apenas uma mulher. Não faço pesquisas nem cirurgia ou, bacteriologia. Creio que não sou muito inteligente. Estou procurando, como disse o Dr. Barron, encontrar a felici­dade... como qualquer outra tola mulher.

— E, que há de errado nisso? — disse Peters.

— Bem, sinto que estou fora do meu ambiente neste grupo. O senhor compreende, sou apenas uma mulher que quer ir para junto do seu marido.

— Está certo — disse Peters. — A senhora represen­ta as coisas fundamentais.

— O senhor é amável, pensando assim.

— Bem, é a verdade — disse ele e perguntou, bai­xando a voz: — A senhora gosta muito do seu marido?

— Estaria eu aqui, se não gostasse?

— Creio que não. A senhora tem as mesmas opiniões que ele? Presumo que ele seja um comunista, não?

Hilary evitou dar uma resposta direta.

— Falando em ser comunista — disse ela, — não notou nada de curioso em nosso pequeno grupo?

— Que é?

— É que, embora sigamos para um mesmo destino, as opiniões dos nossos companheiros de viagem não pa­recem coincidir.

Peters, pensativo, disse:

— É mesmo. A senhora notou bem. Eu não tinha pensado exatamente assim... mas creio que a senhora tem razão.

— Não me parece — disse Hilary — que o Dr. Bar­ron tenha interesse pela política. Ele quer é dinheiro pa­ra as suas experiências. Helga Needheim fala como uma fascista e não como uma comunista. E Ericsson...

— Que há com Ericsson?

— Eu o acho aterrador... ele tem uma mentalidade perigosa e orientada num único sentido. Parece um des­ses cientistas loucos que vemos nos filmes.

— E eu acredito na Irmandade dos Homens; a senhora é uma esposa que ama seu marido; e a nossa Sra. Calvin Baker, como a classificaria a senhora?

— Realmente não sei. Eu a acho mais difícil de clas­sificar que qualquer dos outros.

— Eu não diria isto. Penso que ela é fácil de deci­frar.

— Que quer dizer?

— Diria que no seu caso o dinheiro é a única coisa que importa. Ela é simplesmente uma engrenagem, bem paga, de uma máquina.

— Ela também me assusta — disse Hilary.

— Mas, por quê? Não vejo qualquer motivo para ter medo dela. Ela não tem nada de cientista louco.

— Ela me assusta por ser tão comum. Ela é exata­mente como todo o mundo, entende? Entretanto, está me­tida em tudo isso.

Peters disse, com convicção:

— Como a senhora sabe, o Partido é realista. Usa sempre o melhor homem, ou mulher, para uma determi­nada tarefa.

— Mas, será uma pessoa que só se interessa pelo di­nheiro a mais indicada para uma tarefa? Não poderia tal pessoa desertar para o campo inimigo?

— Isto seria correr um grande perigo — disse Pe­ters com voz calma. — A Sra. Calvin Baker é esperta. Não creio que ela se arriscaria.

Subitamente Hilary teve um arrepio.

— Está-se sentindo bem?

— Sim. Está fazendo um pouco de frio.

— Vamos andar um pouco.

Andaram de um lado para outro. Quando caminha­vam, Peters abaixou-se e apanhou alguma coisa.

— Aqui tem. A senhora está deixando cair coisas.

Hilary apanhou o objeto da mão dele.

— Ah, é uma pérola do meu colar, que rebentou, no outro dia. Não, foi ontem. Parece que já foi há muito tempo.

— Espero que não sejam pérolas verdadeiras.

Hilary sorriu.

— É claro que não. Pérolas de fantasia.

Peters tirou do bolso uma cigarreira.

— Pérolas de fantasia — disse ele — é uma curiosa designação.

Ofereceu-lhe um cigarro.

— Parece ridículo, pérolas neste lugar. — Aceitou o cigarro. — Que cigarreira fora do comum... e como é pesada.

— É porque é feita de chumbo. É uma lembrança de guerra... feita com um pedaço de uma bomba que quase me mandou pelos ares.

— Então, o senhor esteve na guerra?

— Eu era um dos que ficavam longe dos combates, mexendo em coisas para ver se elas faziam burn. Mas não falemos em guerra. Falemos no que vai acontecer amanhã.

— Para onde vamos? — perguntou Hilary. — Nin­guém me disse nada. Vamos...

— Palpites não são bem recebidos. Vamos para onde nos mandam e fazemos o que nos mandam.

Com repentino ardor, Hilary disse:

— O senhor gosta de ser dirigido, de ser mandado e de não ter opinião própria?

— Estou pronto a aceitar isso, se for necessário. E é necessário. Precisamos conseguir a Paz Mundial, Disci­plina Mundial e Ordem Mundial.

— E isso é possível? Pode ser conseguido?

— Qualquer coisa é melhor que a confusão e a in­justiça que prevalecem. Não concorda com isto?

Por um instante, levada pelo cansaço, pela solidão que a cercava e pela estranha beleza do amanhecer, Hila­ry quase desabafou, numa negativa veemente.

Ela queria dizer:

— Por que despreza o mundo em que vivemos? Exis­tem pessoas boas. Não é a confusão um ambiente me­lhor para criar bondade e individualismo que uma ordem mundial que é imposta, uma ordem que hoje pode estar certa e errada amanhã? Eu prefiro um mundo de gente com defeitos mas bondosa a um mundo de robôs superio­res que não sabem o que seja a piedade e a simpatia.

Controlando-se a tempo, ela disse, em vez do que pensava, aparentando entusiasmo controlado:

— O senhor tem razão. Eu estava muito cansada. Devemos obedecer e seguir adiante.

Ele sorriu.

— Assim é que se fala.

 

A viagem parecia um sonho. A cada dia que passa­va Hilary mais e mais pensava que estava sonhando. Pa­recia-lhe que estivera toda a vida viajando com os cinco companheiros, tão diferentes uns dos outros. Eles tinham deixado um mundo conhecido e, subitamente, entraram no vácuo. De certo modo a jornada que empreendiam não podia ser chamada de uma fuga. Eram todos, assim ela supunha, pessoas livres, livres para ir para onde quisessem. Tanto quanto sabia, nenhuma delas tinha come­tido um crime, não eram procuradas pela polícia. No en­tanto, grandes precauções tinham sido tomadas para que seu caminho não fosse conhecido e para apagar qualquer vestígio de sua passagem. Algumas vezes ela ficava intri­gada, imaginando o “por quê” de tantas precauções, visto que não se tratava de fugitivos. Era como se essas pes­soas estivessem sendo submetidas a um processo para serem transformadas em outros seres.

Em seu caso pessoal isso era a pura verdade. Ela dei­xara a Inglaterra como Hilary Craven, tinha-se transfor­mado em Olive Betterton e, possivelmente, a sua estra­nha sensação de irrealidade fosse devida a isso. A cada dia que passava os chavões e slogans políticos afloravam a seus lábios com maior facilidade. Ela sentia que fica­va cada vez mais firme e decidida, e atribuía isto à influên­cia dos seus companheiros.

Sabia, agora, que tinha medo deles. Nunca tivera a oportunidade de conviver com gênios. Tinha que estar junto deles e o gênio, sendo algo acima do normal, causa aos normais uma grande tensão em suas mentes. Cada um dos cinco era diferente do outro mas todos tinham essa curiosa qualidade de uma chamejante “intensidade”, de uma dedicação absoluta ao seu objetivo que causa uma impressão aterradora. Ela não sabia se isso era devido a uma qualidade cerebral ou a uma maneira de ver as coi­sas. Cada um deles, pensou ela, é, a seu modo, um idealis­ta apaixonado. Para o Dr. Barron a vida era um desejo irreprimível de voltar ao seu laboratório, fazer experiên­cias e trabalhar com recursos financeiros ilimitados e to­do o equipamento e material de que precisasse. Trabalhar com que objetivo? Ela duvidava que ele algum dia o ti­vesse perguntado a si mesmo. Certa vez ele lhe falou da enorme destruição que poderia lançar sobre um grande continente e que caberia dentro de um pequeno frasco.

Ela lhe perguntou:

— Mas o senhor algum dia faria tal coisa? Realmen­te faria tal coisa?

E ele respondeu, olhando-a com alguma surpresa:

— Sim. É claro que sim, desde que fosse necessário.

Ele falou com a maior naturalidade e continuou:

— Seria tremendamente interessante observar o percurso exato, o progresso exato. — E acrescentou, com um leve suspiro: — A senhora compreende, há tanta coisa mais a saber, tanta coisa a conhecer.

Por um instante Hilary compreendeu. Por um mo­mento ela se colocou no lugar dele, impregnada com aque­le desejo fixo e profundo de saber que não levava em consideração a vida ou a morte de milhões de seres hu­manos, por julgar tal coisa, em essência, sem importân­cia. Era um ponto de vista que, de certa forma não po­dia ser considerado ignóbil. Com relação a Helga Needheim ela sentia mais antagonismo. A soberba arrogância da jovem mulher a revoltava. Gostava de Peters mas, de quando em vez, sentia repulsa e medo do brilho fanático dos seus olhos. Certa vez ela lhe disse:

— Não é um mundo novo que você quer criar. É a destruição do velho que lhe dará prazer.

— Você está errada, Olive. Como pode dizer uma coi­sa destas?

— Não, eu não estou errada. Há ódio em você. Eu posso senti-lo. Ódio. O desejo de destruir.

Quanto a Ericsson, ela o considerava o mais enigmático de todos. Ericsson, pensava ela, era um sonhador, me­nos prático que o francês e sem a paixão destruidora do americano. Ele tinha o estranho e fanático idealismo dos escandinavos.

— Precisamos conquistar — disse ele, — precisamos conquistar o mundo. Depois nós poderemos governar.

— Nós? — perguntou ela.

Ele assentiu com a cabeça, o rosto com ar estranho e suave e com uma enganadora doçura no olhar:

— Sim — respondeu, — nós, os poucos que realmen­te contamos. Os cérebros. Só isto importa.

Hilary pensou: Para onde vamos? Para onde nos con­duz tudo isso? Essa gente está louca mas cada um tem uma loucura diferente. É como se cada um tivesse um objeti­vo. Cada um perseguisse uma miragem diferente. Sim, a palavra certa era Miragem. Passou deles, em pensa­mento, para a Sra. Calvin Baker. Nela não havia fanatis­mo, ódio, sonho, arrogância ou aspiração. Não havia nada que Hilary pudesse descobrir ou notar. Ela era uma mu­lher, pensou Hilary, sem coração e sem consciência. Era um instrumento eficiente nas mãos de uma poderosa e desconhecida força.

Era o fim do terceiro dia. Chegaram a uma peque­na cidade e desceram à porta de um pequeno hotel mar­roquino. Neste ponto, Hilary foi informada, deveriam voltar a vestir roupas européias. Nessa noite ela dormiu num pequeno quarto caiado e sem móveis. Parecia uma cela. Logo ao amanhecer a Sra. Baker a despertou.

— Vamos partir imediatamente — disse ela. — O avião está a nossa espera.

— O avião?

— Sim, querida. Graças a Deus tornamos a viajar de forma civilizada.

Depois de uma hora de viagem em automóvel che­garam ao aeroporto. Parecia um campo militar abandonado. O piloto era francês. Voaram durante algumas ho­ras, quase sempre sobre montanhas. Olhando para baixo, Hilary pensou como o mundo era curiosamente igual, quando visto de cima. Montanhas, vales, estradas, casas. A não ser para um aviador perito todos os lugares pare­ciam semelhantes. A única diferença bem visível é que, em alguns pontos, a população era mais densa que em outros. Além do mais, freqüentemente, nada se via devido às nuvens.

No princípio da tarde começaram a perder altura, fazendo voltas para descer. Ainda estavam sobre terre­no montanhoso mas percebia-se uma planície. Podia-se ver, distintamente marcada, a pista de aterragem, ao lado da qual havia um edifício branco. A descida foi per­feita.

A Sra. Baker os conduziu para o edifício junto ao qual estavam dois possantes carros com seus motoris­tas. Tratava-se, evidentemente, de um aeroporto particular, pois não havia funcionários para recebê-los.

— Fim da jornada — disse a Sra. Baker, alegremen­te. — Vamos todos entrar, lavar as mãos, escovar a roupa. Os automóveis estão a nossa espera.

— Fim da jornada? — Hilary fitou-a. — Mas nós... nós não atravessamos o mar!

— Esperava fazê-lo? — a Sra. Baker parecia ter achado graça.

Hilary, um pouco atrapalhada, disse:

— Bem, sim. Sim, eu esperava. Eu pensei... — ela interrompeu o que ia dizendo.

A Sra. Baker aquiesceu, com a cabeça.

— Muita gente tem a mesma idéia. Diz-se muita coi­sa tola a respeito da cortina de ferro, mas na realidade uma cortina de ferro pode estar em qualquer lugar. As pessoas não pensam nisso.

Dois criados bérberes atenderam aos viajantes. De­pois de lavar as mãos e ajeitar as roupas, sentaram-se para café, sanduíches e biscoitos. A Sra. Baker olhou pa­ra o relógio.

— Bem, até a vista, amigos — disse ela. — Separo-me de vocês, aqui.

— Vai regressar a Marrocos? — perguntou Hilary surpresa.

— Isso não seria muito lógico, levando em conta que se supõe tenha eu morrido queimada num acidente de avião. Não; irei por outros caminhos, para outra ativi­dade.

— Mas alguém poderá reconhecê-la — disse Hilary. — Alguém que já a tivesse encontrado nos hotéis de Ca­sablanca ou Fez.

— Ah — disse a Sra. Baker, — tais pessoas estariam enganadas. Eu tenho um novo passaporte. Aconteceu que minha irmã, uma Sra. Calvin Baker, perdeu a vida des­sa maneira. Minha irmã e eu somos muito parecidas... — E acrescentou: — Para as pessoas que se encontram, ca­sualmente, nos hotéis, uma viajante americana é muito parecida com qualquer outra.

Sim, pensou Hilary, era bem verdade. Todas as ca­racterísticas exteriores e sem importância estavam es­tampadas na Sra. Baker. O ar de limpeza, o vestuário bem cuidado, o cabelo azulado e bem penteado, a voz monótona e a tagarelice. As características íntimas es­tavam cuidadosamente encobertas, ou talvez não esti­vessem A Sra. Calvin Baker apresentava a todo o mundo e a seus companheiros uma fachada, mas o que havia por trás dessa fachada não era fácil perceber. Era como se ela, deliberadamente, tivesse acabado com os sinais de in­dividualidade pelos quais uma personalidade se distin­gue de outra.

Hilary teve vontade de dizer o que estava pensando. Ela e a Sra. Baker estavam um pouco afastadas dos de­mais .

— Não se sabe — disse Hilary — a menor coisa sobre como a senhora realmente é.

— E por que deveria você saber?

— Sim. Por que deveria eu saber? Entretanto, te­nho a impressão de que eu deveria sabê-lo. Temos viaja­do juntas em condições de bastante intimidade e parece-me estranho que eu nada saiba a seu respeito. Nada, que­ro dizer, de como a senhora essencialmente é, sobre o que a senhora sente e pensa, sobre o que a senhora gosta ou não gosta, sobre o que a senhora julga ou não importante.

— Você tem uma mente muito inquisitiva, querida — disse a Sra. Baker. — Se eu fosse você, pode acreditar, dominaria essa tendência.

— Eu não sei, sequer, de que parte dos Estados Uni­dos a senhora é.

— Isto, também, não tem a menor importância. Eu nada mais tenho a ver com o país onde nasci. Há motivos para que eu nunca mais volte lá. Se eu puder vingar-me de certa queixa que tenho contra aquele país, terei mui­to prazer nisso.

Por um instante, um segundo ou dois, a maldade che­gou, tanto a sua expressão quanto a sua voz. Depois ela readquiriu aquele tom alegre de turista.

— Bom, Sra. Betterton, até breve. Desejo que a se­nhora tenha um agradável reencontro com o seu marido.

Hilary disse, em tom ansioso:

— Eu nem ao menos sei onde estou. Em que parte do mundo.

— Oh, isto é fácil. Agora já não há mais motivos pa­ra segredos. Estamos num ponto remoto do Alto Atlas, querida. Por enquanto é uma indicação bastante apro­ximada ...

A Sra. Baker afastou-se e começou a despedir-se dos outros. Com um alegre aceno de mão, dirigiu-se para a pista. O avião tinha sido reabastecido e o piloto estava de pé, esperando por ela. Hilary sentiu um leve calafrio. Lá se ia o último elo que a ligava ao mundo exterior. Pe­ters, que estava a seu lado, pareceu perceber a sua rea­ção.

— O ponto de onde não se pode mais voltar — dis­se ele novamente. — É a nossa situação agora.

O Dr. Barron disse, em tom calmo:

— A senhora ainda tem coragem, ou gostaria de cor­rer atrás de sua amiga americana, entrar com ela no avião e voltar... voltar para o mundo que abandonamos?

— Poderia eu voltar, se tivesse vontade? — pergun­tou Hilary.

O francês encolheu os ombros.

— Eu me pergunto.

— Quer que eu a chame? — perguntou Peters.

— É claro que não — disse Hilary energicamente.

Helga Needheim disse, com menosprezo na voz:

— Aqui não há lugar para mulheres fracas.

— Ela não é fraca — disse o Dr. Barron calmamente — mas faz, a si mesma, perguntas que qualquer mulher inteligente faria.

Ele acentuou a palavra “inteligente”, como se fizesse uma comparação com a alemã. Esta, entretanto, pareceu não lhe dar importância. Ela desprezava a todos os fran­ceses e tinha absoluta segurança do seu próprio valor. Ericsson disse, com sua voz alta e nervosa:

— Quando alguém, finalmente, alcança a liberdade, como pode sequer pensar em voltar?

Hilary disse:

— Mas, se não se pode voltar ou mesmo querer vol­tar, isto não é liberdade.

Um dos criados aproximou-se deles e disse:

— Por favor, os carros estão prontos para seguir.

Saíram pela porta que havia no outro lado do edifí­cio. Lá estavam dois automóveis Cadillac, com motoris­tas uniformizados. Hilary disse que preferia viajar no banco da frente, ao lado do motorista. Explicou que os balanços de um carro grande provocavam-lhe enjôo. A explicação pareceu ser aceita por todos. Enquanto o car­ro andava Hilary conversava, de vez em quando. Falou sobre o tempo e sobre o excelente automóvel. Ela fala­va francês bastante bem e com facilidade e o motorista respondia delicadamente. Os seus modos eram perfeita­mente naturais, sem qualquer constrangimento.

— Quanto tempo demoraremos? — perguntou ela.

— Do aeroporto ao hospital? Gastaremos mais ou menos duas horas, Madame.

As palavras causaram a Hilary uma surpresa um pou­co desagradável. Ela havia reparado, sem dar maior im­portância ao fato, que Helga Needheim havia trocado de roupa, na última parada, e vestia agora um uniforme de enfermeira. O que dizia o motorista combinava com isso.

— Conte alguma coisa sobre o hospital — pediu ela ao motorista.

A sua resposta foi entusiástica.

— Ah, Madame, é magnífico. O equipamento é o mais moderno do mundo. Muitos médicos vêm visitá-lo e todos eles não se cansam de elogiar. É uma obra que beneficia toda a humanidade.

— Deve ser — disse Hilary, — certamente deve ser.

— Os pobres miseráveis — disse o motorista — an­tigamente eram mandados para acabar seus dias numa ilha solitária. Mas aqui, com o novo tratamento do Kolini a maioria tem conseguido curar-se. Mesmo os que estão muito mal.

— Parece um lugar ermo para um hospital — disse Hilary.

— Mas teria que ser num lugar ermo devido às cir­cunstâncias. As autoridades o teriam exigido. Mas o ar aqui é bom, o ar é maravilhoso. Veja agora, Madame, já pode ver para onde vamos. — Apontou com a mão.

Eles se aproximavam dos contrafortes de uma cor­dilheira; ali, bem junto ao morro, estava um longo e bri­lhante edifício, todo branco.

— Foi um trabalho enorme construir um edifício co­mo este, aqui neste lugar. O dinheiro gasto deve ter sido um colosso. Devemos muito a homens ricos e generosos de todo o mundo. Eles não são como os governos que sem­pre fazem coisas baratas, para economizar. Aqui gastaram dinheiro, sem contar. O nosso patrono é um dos homens mais ricos do mundo, como assim dizem. Ele certamente fez uma obra magnífica para aliviar o sofrimento humano.

O carro subiu uma pista ziguezagueante e, finalmen­te, parou diante de um enorme portão de ferro.

— A senhora tem que saltar aqui, Madame — disse o motorista. — É proibido passar o portão com o carro. As garagens ficam a um quilômetro daqui.

Os viajantes saltaram do carro. Havia uma grande alça de metal na pilastra do portão, para se tocar um si­no mas, antes que a tocassem, o portão abriu-se, lentamen­te. Um preto, com uma túnica branca e face sorridente, curvou-se e pediu que entrassem. Atravessaram o por­tão. Logo adiante, de um lado, havia uma alta cerca de arame atrás da qual se via um grande pátio, cheio de homens que andavam de um lado para o outro. Quando eles viraram-se para ver os recém-chegados Hilary quase en­gasgou de horror.

— Mas eles são leprosos. — gritou ela. — Leprosos!

Um arrepio de horror sacudiu-a dos pés à cabeça.

 

Os portões da colônia de leprosos fecharam-se, com ruído metálico, por trás dos viajantes. O barulho pareceu repercutir na mente de Hilary como uma nota horrível e final. Parecia dizer: Abandonai toda a espe­rança, oh vós que entrais... Isto, pensava ela, é o fim... realmente o fim. Qualquer meio de retirada que porven­tura houvesse estava agora cortado.

Ela agora estava inteiramente só entre inimigos e, dentro de alguns minutos, teria fracassado e seria des­mascarada. No subconsciente, pensou ela, a inevitabili­dade do fracasso estivera presente durante todo o dia, mas algum invencível otimismo do espírito humano, al­guma persistência na crença de que a entidade propria­mente dita não poderia de forma alguma deixar de exis­tir, tinham impedido que ela reconhecesse os fatos.

Em Casablanca, ela perguntara a Jessop — E quando encontrarei Tom Betterton? — e ele lhe dissera, com ar grave, que então o perigo tornar-se-ia iminente. Ele acres­centara que tinha esperanças de, nesse momento, poder protegê-la, mas tal esperança, Hilary agora via, não se ti­nha tornado realidade.

Se a “Srta. Hetherington” tinha sido o agente no qual Jessop confiava, a “Srta. Hetherington” tinha sido completamente iludida e fora forçada a confessar o seu fracasso em Marrakesh. Além disto, em qualquer hipó­tese, que poderia ter feito a Srta. Hetherington?

O grupo de viajantes tinha chegado ao lugar de onde não se voltava. Hilary tinha jogado com a morte e per­dera. Agora percebia que o diagnóstico de Jessop fora certo. Ela não queria mais morrer. Queria viver. O in­teresse pela vida tinha voltado intensamente. Podia pen­sar em Nigel, no pequeno monte de terra que era o túmu­lo de Brenda, com muita pena e saudade, mas não com o frio desespero que a levara a procurar o esquecimento na morte. Ela pensou: Estou viva outra vez, sã de espí­rito, inteira... e agora estou como um rato numa ratoei­ra. Se ao menos houvesse uma maneira de sair...

Refletia muito sobre o problema. Mas, embora com relutância, não podia deixar de pensar que, uma vez fren­te à frente com Betterton, não poderia haver escapató­ria...

Betterton diria: — Mas, esta não é minha mulher — E tudo estaria perdido. Olhos que a fitariam... a evidên­cia... uma espiã entre eles...

Mas que outra solução poderia haver? Suponhamos que ela falasse primeiro? Suponhamos que, antes que Tom Betterton pudesse dizer uma palavra, ela gritasse: — Quem é você? Você não é o meu marido! Se ela pu­desse simular indignação, surpresa e horror, com bastan­te perfeição — não poderia isso levantar alguma dúvida? Uma dúvida se Betterton era Betterton — ou algum ou­tro cientista enviado para representar o seu papel. Em outras palavras: um espião. Mas se eles acreditassem nis­so as conseqüências seriam duras para Betterton. Mas, pensou ela, com o cérebro cansado e girando, se Betterton era um traidor, um homem capaz de vender os segredos de sua pátria, podia alguma punição ser injustamente du­ra para ele?

Como era difícil, pensava ela, fazer qualquer avaliação de lealdade — ou mesmo qualquer julgamento de pessoas, ou de fatos... De qualquer forma valeria a pena tentar. Criar uma dúvida...

Ainda um pouco tonta, conseguiu afastar seus pen­samentos e voltar à realidade. As idéias haviam corrido em seu cérebro freneticamente como um rato em uma armadilha. Mas, durante todo esse tempo, a corrente de superfície de sua consciência desempenhara o papel que lhe cabia.

O pequeno grupo chegado do mundo exterior tinha sido amavelmente recebido por um homem de elevada estatura e de belo aspecto e que era, evidentemente, um poliglota, pois falara com cada pessoa em sua própria língua.

— Enchanté de faire votre connaissance, mon cherdocteur — disse ele ao Dr. Barron e, depois, virou-se pa­ra ela:

— Ah, Sra. Betterton, temos muito prazer em dar-lhe as boas-vindas. Receio que tenha tido uma longa e complicada viagem. Seu marido está muito bem e a es­pera com natural impaciência.

Ele sorriu discretamente e ela notou que o sorriso não atingira seus claros e frios olhos.

— A senhora — acrescentou ele — deve estar an­siosa para vê-lo.

O estado de vertigem aumentou — via o grupo que a cercava afastar-se e aproximar-se, como ondas do mar. Andy Peters, que estava a seu lado, segurou-a pelo bra­ço, para equilibrá-la.

— Suponho que o senhor não tenha sabido — disse ele ao homem que lhes dera as boas-vindas, — a Sra. Betterton sofreu um grave acidente em Casablanca — Concussão. A viagem não foi boa para ela. A tensão cau­sada pela ansiedade de ver o marido também não lhe fez bem. Penso que a melhor coisa para ela seria descansar um pouco num quarto com as janelas fechadas.

Hilary sentiu a bondade em sua voz e no braço que a apoiava. Cambaleou ligeiramente. Seria fácil, tão fá­cil, deixar-se cair sobre os joelhos, tombar ao chão, mo­lemente... fingir que perdera os sentidos — ou que es­tava quase desmaiando. Ser carregada para uma cama num quarto em meia obscuridade — adiar, por algum tem­po, o momento fatal em que seria descoberta a sua frau­de... Mas Betterton viria até o quarto — qualquer ma­rido agiria assim. Chegaria perto da cama e inclinar-se-ia sobre ela. Ao primeiro sussurro de sua voz ou logo que os olhos dele se acostumassem à penumbra e vissem o seu perfil, saberia que ela não era Olive Betterton.

Hilary retomou coragem. Endireitou o corpo. A cor voltou a suas faces. Ergueu a cabeça.

Se o fim estava próximo, vamos enfrentá-lo com co­ragem. Iria ao encontro de Betterton, e quando este a re­pudiasse, tentaria a última mentira, com confiança, sem terror. Diria:

— Não, é claro que eu não sou sua mulher. É terrí­vel e eu lamento dizê-lo... ela morreu. Eu estava com ela no hospital, quando morreu. Eu lhe prometi que, de alguma forma viria a seu encontro e daria os seus últi­mos recados. Vim porque quis. Estou de acordo com o que o senhor fez — com o que todos os outros estão fa­zendo. Politicamente estou de acordo com o senhor. O meu desejo é ajudar...

Coisas vagas, tudo muito vago... E as coisas difíceis de explicar — o passaporte falso — a carta de crédito forjada. Sim, mas algumas vezes as mentiras mais au­daciosas eram acreditadas se fossem ditas com bastante coragem — se a pessoa fosse dessas com audácia e per­sonalidade para convencer os outros. O mínimo que podia fazer era perder lutando.

Ergueu o corpo, afastando-se do apoio do braço de Peters.

— Não, não. Tenho que ver o Tom — disse ela. — Tenho que ir vê-lo... agora... imediatamente, por favor.

O homem de estatura elevada concordou, com modo simpático. (Muito embora seus olhos claros e frios per­manecessem alertas).

— É claro, é claro, Sra. Betterton. Compreendo per­feitamente como a senhora está ansiosa. Ah, aqui está a Srta. Jennsen.

— Srta. Jennsen, apresento a Sra. Betterton, Fraulein Needheim, o Dr. Barron, o Sr. Peters e o Dr. Erics­son. Quer fazer a fineza de levá-los ao Registro? Ofere­ça-lhes um drinque. Eu irei encontrá-los dentro de pou­cos minutos. Leve a Sra. Betterton ao encontro do ma­rido. Daqui a pouco, estarei com os senhores.

Virou-se para Hilary e disse:

— Queira seguir-me.

Ele caminhou e ela o seguiu. Na primeira volta do corredor ela olhou por cima do ombro. Andy Peters olha­va para ela. Tinha um ar meio embaraçado e infeliz — por um instante Hilary pensou que ele viria com ela. Ele deve ter chegado à conclusão de que havia algo erra­do, percebido algo nela, mas ele não sabe o que é.

Com um leve tremor ela pensou: — Será provavel­mente, a última vez que eu o vejo...

E assim pensando, antes de dobrar o canto do corre­dor para seguir o seu guia, ela ergueu a mão e acenou um adeus...

O homem alto falava em tom alegre:

— Por aqui, Sra. Betterton. Receio que, no princí­pio, a senhora ache o nosso edifício meio complicado. Tantos corredores e todos parecidos.

Como um sonho, pensou Hilary, um sonho de corre­dores brancos e higiênicos que se percorrem para sem­pre, virando, continuando, sem jamais encontrar uma saí­da...

Ela disse:

— Eu nunca pensei que seria... um hospital.

— Não. naturalmente. A senhora não poderia saber nada, não é?

A sua voz parecia ter um leve tom de sadismo:

— A senhora teve que fazer o que se costuma cha­mar de “um vôo cego”. Eu ainda não disse quem sou; meu nome é van Heiden. Paul van Heiden.

— É tudo muito estranho... um pouco assustador — disse Hilary. — Os leprosos...

— Sim, sim, é claro. Pitoresco, e quase sempre, ines­perado. Assusta alguns recém-chegados. Mas, com o tem­po, a senhora se acostumará com eles... certamente se acostumará. — Riu entre os dentes. — É uma ótima piada, acho eu.

Parou repentinamente:

— Agora subamos um lance de escada... mas não se apresse. Suba devagar. Já estamos quase chegando.

Quase chegando... quase chegando... a alguns de­graus da. morte — para cima, para cima, degraus altos, mais altos que os europeus. E agora mais um dos corre­dores higiênicos e van Heiden parava junto a uma por­ta. Bateu, esperou um pouco e depois abriu a porta.

— Ah, Betterton, por fim aqui estamos. Sua mu­lher.

Afastou-se, com uma leve mesura, para que ela en­trasse .

Hilary entrou no quarto. Não podia mais recuar. Queixo levantado. Avante, para fazer face ao destino.

Um homem estava em pé, meio virado para ela mas com a luz da janela fazendo ressaltar suas feições, um homem com um rosto extraordinariamente belo. A bele­za do rosto causou-lhe surpresa. Não era assim que ela imaginara Tom Betterton. Certamente as fotografias de­le que lhe foram mostradas não eram nada...

Foi essa confusão e a surpresa que a decidiram: ela arriscaria tudo, numa tentativa desesperada.

Fez um rápido movimento para a frente e depois re­cuou. Sua voz soou, admirada e assustada...

— Mas, esse não é Tom. Não é o meu marido...

Sentiu que tinha representado bem. Dramático, mas sem exagero. Seus olhos fitaram van Heiden, numa in­terrogação confusa.

E, então, Tom Betterton riu. Um riso calmo de quem está-se divertindo, um riso quase de triunfo.

— Formidável, não é, van Heiden — disse ele, — se nem mesmo a minha própria mulher me reconhece.

Em quatro rápidos passos ele foi ao encontro dela e a tomou nos braços, apertando fortemente.

— Olive, minha querida. Você tem que me reco­nhecer. Eu sou mesmo o Tom, embora não tenha mais a cara que tinha.

Seu rosto estava encostado ao dela, os lábios jun­to ao seu ouvido. Ela pôde entender o que ele acrescen­tava, tão baixo que parecia um sopro:

— Continue representando. Pelo amor de Deus. Perigo.

Soltou-a por um momento e abraçou-a novamente.

— Querida! Parece que se passaram anos e anos. Mas, finalmente você está aqui.

Ela sentia os dedos dele fazendo pressão em sua espádua, advertindo-a, querendo transmitir uma mensagem urgente.

Finalmente ele a afastou e olhou bem para o seu ros­to.

— Eu ainda custo a acreditar — disse ele com um riso nervoso. — Mas agora você sabe que sou eu mesmo, não sabe?

Os seus olhos, brilhando intensamente, continuavam querendo transmitir aquela mensagem de aviso, de aler­ta.

Ela não entendia — não podia entender. Mas era um milagre dos céus e ela tomou coragem para representar o seu papel.

— Tom — disse ela, com uma dificuldade de arti­cular que seus ouvidos atentos aprovaram. — Oh, Tom... mas que...

— Cirurgia plástica! Hertz, de Viena, está aqui. Ele é uma verdadeira maravilha. Não diga que sente falta do meu velho nariz esborrachado.

Beijou-a de novo, levemente; virou-se para van Heiden que os observava e disse com um sorriso de quem pede desculpas:

— Desculpe os meus arroubos, van Heiden.

— Mas é claro, é claro — o holandês sorriu com be­nevolência.

— Demorou tanto — disse Hilary — e eu — ela cam­baleou ligeiramente, — por favor, posso sentar-me?

Com solicitude Tom ajudou-a a sentar-se numa ca­deira.

— Naturalmente, querida. Você está esgotada. A terrível viagem. O desastre do avião. Meu Deus, foi um milagre você ter escapado.

(Por conseguinte eles tinham todas as informações. Sabiam tudo sobre o desastre).

— Eu fiquei com a cabeça um pouco atrapalhada — disse Hilary com um sorriso de desculpas. — Esqueço coisas, fico um pouco confusa e tenho terríveis dores de cabeça. E agora, encontrar você parecendo um perfeito estranho, estou meio sem rumo querido. Só espero que não seja um estorvo para você.

— Você um estorvo? Nunca! Você precisa é descan­sar algum tempo e nada mais. Aqui nós dispomos de... todo o tempo.

Van Heiden dirigiu-se, calmamente, para a porta

— Vou deixá-los, agora — disse ele. — Daqui a pou­co, Betterton, você levará sua mulher ao Registro. Por enquanto vocês, certamente, preferem estar a sós.

Saiu, fechando a porta.

Imediatamente Betterton ajoelhou-se aos pés de Hi­lary e encostou o rosto em seu ombro.

— Querida, querida — disse ele.

Mais uma vez ela sentiu aquela pressão dos dedos que a advertiam. O murmúrio, tão fraco que mal podia ser ouvido, foi insistente e ansioso:

— Continue representando, pode haver um micro­fone escondido... não se pode saber.

Então não podia haver dúvida. Não se pode saber... Medo — insegurança — incerteza — perigo — sempre o perigo — ela podia sentir o perigo na atmosfera.

Tom Betterton sentou-se sobre as pernas dobradas.

— É maravilhoso tornar a ver você — disse ele com voz suave. — Entretanto, ainda me parece um sonho, algo irreal. Você também sente o mesmo?

— Sim, é essa a sensação que tenho... um sonho... estar aqui... com você afinal. É mesmo Tom, não pare­ce real.

Ela colocara as mãos nos ombros dele. Olhava-o, com um leve sorriso nos lábios. (Poderia haver um buraco para espiarem, além do microfone).

Calma e friamente ela examinou o que via. Um belo homem de trinta e pouco anos que estava muito assus­tado — um homem no limite de sua resistência — um ho­mem que, provavelmente, teria chegado a este lugar cheio das maiores esperanças e que agora, estava reduzido — a isto.

Tendo vencido o seu primeiro obstáculo, Hilary sen­tia uma curiosa exaltação em representar o seu papel. Tinha que ser Olive Betterton. Agir como Olive Better­ton teria agido, sentir o que Olive Betterton teria senti­do. E a vida era uma coisa tão irreal que isto parecia natural. Alguém, que se chamava Hilary Craven, tinha morrido em um desastre de avião. De agora em diante nem sequer se lembraria dela.

Em vez disso, lembrou-se das lições que tinha estu­dado com tanto afinco.

— Parece-me que há anos deixei Firbank — disse ela. — Whiskers — você se lembra de Whiskers? Teve gati­nhos logo depois que você partiu. Há muitas coisas, pe­quenas e tolas da vida de todo o dia, que você desconhe­ce. É isto que parece estranho.

— Eu sei. É o fato de acabar com uma vida velha e começar uma nova.

— E... isto aqui é bom? Você está feliz?

Era uma pergunta natural de uma esposa. Qualquer uma a faria.

— É maravilhoso — Tom Betterton aprumou-se e er­gueu bem a cabeça. Os olhos, infelizes e assustados, des­mentiam o rosto sorridente e confiante. — Todas as fa­cilidades. Compram tudo que necessitamos. Condições ideais para trabalhar. E a organização! É simplesmente inacreditável.

— Tenho a certeza de que é. A minha viagem... você veio da mesma forma?

— Não falemos dessas coisas. Eu não a estou repreen­dendo, querida. Mas... você compreende, não é? Terá que aprender como são as coisas aqui.

— Mas, os leprosos? Trata-se, realmente, de uma colônia de leprosos?

— Claro que sim. Uma verdadeira colônia de lepro­sos. Há uma equipe de médicos fazendo excelentes estu­dos e pesquisas sobre a moléstia. Mas é completamente separada do resto. Não se deve preocupar com ela. É ape­nas ... hábil camuflagem.

— Compreendo — Hilary olhou em redor. — São esses os nossos aposentos?

— Sim. Sala de estar, o banheiro ali e mais adiante o quarto de dormir. Venha, vou mostrar-lhe.

Ela se levantou e o acompanhou, visitando um ba­nheiro onde nada faltava, um quarto de dormir de bom tamanho, onde havia duas camas, dois grandes armários embutidos, uma penteadeira e uma estante de livros, próxima às camas.

Hilary olhou para dentro dos armários e disse, em tom de gracejo:

— Realmente eu não sei o que vou botar nos armá­rios. Tudo o que tenho é o que estou vestindo.

— Isto não tem importância. Você pode obter tudo que quiser. Há um departamento de modas com todos os acessórios, perfumarias, tudo. Tudo da melhor qualida­de. A Unidade é perfeitamente auto-suficiente... tudo que precisar encontrará aqui. Não há necessidade de sair daqui, nunca mais.

Ele pronunciou as palavras de forma normal e qua­se descuidada, mas pareceu aos ouvidos sensíveis de Hi­lary que havia desespero por trás delas.

Não há necessidade de sair daqui, nunca mais. Ne­nhuma possibilidade de rever o que havia lá fora. Aban­donai toda a esperança, oh vós que entrais... A jaula confortável! Teria sido para isso que aquelas pessoas, de caráter tão diferente, tinham abandonado suas pátrias, suas lealdades, sua vida quotidiana? O Dr. Barron, Andy Peters, o jovem Ericsson com seu olhar sonhador, a in­suportável Helga Needheim? Sabiam eles o que iriam en­contrar? Ficariam contentes? Era isto que eles tinham desejado?

Ela pensou: É melhor que eu não faça perguntas de­mais... Talvez haja alguém ouvindo. Estaria alguém ou­vindo? Estavam sendo espionados? Tom Betterton, evi­dentemente, julgava que poderia ser assim. Mas, estaria ele certo?

Ou seriam os seus nervos — histeria? Tom Betterton parecia-lhe estar próximo a um colapso nervoso.

Sim, pensou ela, sem admitir dúvidas — e você tam­bém poderá estar no mesmo estado, dentro de uns seis meses...

Tom Betterton perguntou:

— Você gostaria de deitar-se... de descansar?

— Não — ela hesitou. — Creio que não.

— Então seria melhor você vir comigo ao Registro.

— Que é o Registro?

— Todos aqui devem passar pelo Registro. Eles ano­tam tudo a seu respeito. Estado de saúde, dentes, pressão arterial, grupo sanguíneo, reações psicológicas, gostos, o que não se gosta, alergia, aptidões e preferências.

— Parece ser muito militar... ou deveria eu dizer muito médico?

— Ambas as coisas — disse Tom Betterton. — Am­bas as coisas. Esta organização... é realmente formidável.

— Sempre ouvi dizer isto — disse Hilary. — Quero dizer, que tudo por trás da Cortina de Ferro é realmen­te bem planejado.

Ela tentou dar um ar de entusiasmo a sua voz. Afi­nal de contas era de presumir que Olive Betterton sem­pre fora uma simpatizante do Partido embora, talvez agindo sob ordens, não tivesse sido conhecida como mem­bro do Partido.

Betterton disse, de forma evasiva:

— Há muita coisa que você precisará compreender. — E acrescentou, rapidamente: — É melhor não querer saber demais logo no princípio.

Beijou-a novamente; um beijo curioso, aparentemen­te carinhoso e apaixonado mas, na realidade, frio como o gelo, e murmurou baixinho, a seu ouvido:

— Continue assim, continue — e elevando a voz, disse: — Agora vamos até o Registro.

 

O registro era dirigido por uma mulher que pare­cia uma severa governanta de jardim da infância. Seu cabelo era enrolado e preso atrás, de maneira feiíssima e usava pince-nez de aspecto muito eficiente. Fez um gesto de aprovação com a cabeça quando os Betterton entra­ram em seu severo gabinete.

— Ah — disse ela, — trouxe a Sra. Betterton. Fez muito bem.

— Seu inglês era muito bom mas era falado com uma precisão exagerada, o que fez Hilary pensar que ela, provavelmente, fosse estrangeira. Na realidade ela era de nacionalidade suíça. Fez um gesto, indicando uma cadeira a Hilary, abriu uma gaveta de onde tirou vá­rios formulários que começou a preencher com rapidez. Um tanto desajeitado, Tom Betterton disse:

— Bem, Olive, agora vou deixá-la.

— Sim, é favor, Dr. Betterton. É preferível termi­nar logo com todas as formalidades.

Betterton saiu fechando a porta. O Robô — foi assim que Hilary a considerou — continuou a escrever.

— Agora comecemos — disse ela com ar eficiente. — Nome por inteiro, por favor. Idade. Quando nasceu. Nome do pai e da mãe. Teve alguma doença grave? Do que gosta? Tem algum hobby? Lista dos cargos que ocupou. Diplomas de quaisquer universidades. Preferência em ma­téria de comidas e bebidas.

E continuaram as perguntas que pareciam não aca­bar mais. Hilary respondia quase que mecanicamente. Agora ela agradecia todas as lições que recebera de Jes­sop. Ela tinha aprendido tudo tão bem que as respostas vinham automaticamente, sem que ela parasse para pen­sar.

Finalmente o Robô disse:

— Muito bem, isto é tudo quanto ao meu departa­mento. Agora vou entregá-la à Dra. Schwartz para exa­me médico.

— Não diga! — exclamou Hilary. — Isso tudo será necessário? Parece-me completamente absurdo.

— Ora, nós acreditamos em fazer tudo completo e certo, Sra. Betterton. Gostamos de ter tudo registrado. Vai gostar muito da Dra. Schwartz. Depois dela a senho­ra irá ao Dr. Rubec.

A Dra. Schwartz era loura, amável e femi­nina. Fez um meticuloso exame em Hilary e depois, disse:

— Pronto. Está terminado. Agora a senhora vai ver o Dr. Rubec.

— Quem é o Dr. Rubec? — perguntou Hilary. — Outro médico?

— O Dr. Rubec é um psicólogo.

— Eu não preciso de um psicólogo. Não gosto de psicólogos.

— Por favor, Sra. Betterton, não fique aborrecida. A senhora não vai ser submetida a nenhum tratamento. Trata-se apenas de um teste de inteligência e a classifica­ção da sua personalidade “por tipo e grupo”.

O Dr. Rubec era um suíço alto e melancólico, de seus quarenta anos. Cumprimentou Hilary, relanceou os olhos pelo cartão que lhe entregara a Dra. Schwartz e sacudiu a cabeça em sinal de aprovação

— Vejo, com prazer, que sua saúde é boa — disse ele. — A senhora teve um acidente de avião, recente­mente, creio eu?

— Sim — respondeu Hilary, — estive quatro ou cin­co dias no hospital em Casablanca.

— Quatro ou cinco dias não são suficientes — disse o Dr. Rubec em tom de reprovação. — Deveria ter fica­do mais tempo.

— Eu não queria ficar mais tempo. Queria con­tinuar minha viagem.

— Bem, eu posso compreender perfeitamente, mas nos casos de Concussão é necessário bastante repouso. Po­de-se parecer perfeitamente bem e normal, depois de um acidente, porém conseqüências sérias podem advir. Ve­jo que os seus reflexos nervosos não são o que seria de desejar. Em parte isto é devido à excitação da viagem e em parte à Concussão. A senhora tem dores de cabeça?

— Sim. Muito fortes. E, de vez em quando eu fico meio confusa e não consigo lembrar as coisas.

Hilary achou que seria bom insistir neste último pon­to. O Dr. Rubec, calmamente, aquiesceu com a cabeça.

— Sim, sim. Mas não se preocupe. Tudo passará. Agora façamos alguns testes de associação para verificar o seu tipo de mentalidade.

Hilary sentiu-se um pouco nervosa mas, aparente­mente, tudo correu bem. Os testes pareciam ser rotinei­ros. O Dr. Rubec preencheu um longo formulário.

— É realmente um prazer — disse ele finalmente — lidar com alguém (peço não interpretar erradamente o que vou dizer) lidar com alguém que, positivamente, não é um gênio!

Hilary riu.

— Ora, eu certamente não sou um gênio.

— Felizmente para a senhora — disse o Dr. Rubec. — Posso assegurar que a sua existência será muito mais tranqüila. — Suspirou. — Aqui, como a senhora provavel­mente sabe, eu lido com inteligências aguçadas, mas um tipo de intelectualidade sensível e que facilmente perde o equilíbrio e na qual o stress emocional é muito forte. O cientista, Madame, não é o tipo calmo e frio dos livros de ficção. Na verdade — disse o Dr. Rubec em tom pen­sativo. — entre um grande jogador de tênis, uma prima-dona da ópera e um físico nuclear, há muito pouca dife­rença no que diz respeito à instabilidade emocional.

— Talvez o senhor tenha razão — disse Hilary lem­brando-se de que ela supostamente vivera durante alguns anos em contato íntimo com cientistas. — É verdade, al­gumas vezes eles são realmente temperamentais.

O Dr. Rubec ergueu as mãos.

— A senhora não acreditaria nas tempestades emo­cionais que se desencadeiam aqui. As brigas, os ciúmes, a sensitividade! Temos que agir para poder controlar tu­do isso. Mas a senhora, Madame — sorriu. — A senhora pertence a uma classe que aqui está em minoria. Uma classe afortunada, se assim posso dizer.

— Eu não o entendi bem. Que tipo de minoria?

— Esposas — disse o Dr. Rubec. — Não há muitas es­posas aqui. Só dão permissão a um pequeno número. Elas são agradavelmente livres das tempestades intelectuais de seus maridos e dos colegas dos maridos.

— Que fazem as esposas aqui? — perguntou Hilary. E acrescentou, como quem se desculpa: — O senhor en­tende. É tudo novidade para mim. Ainda não entendo nada.

— Não, naturalmente. Naturalmente. É lógico que seja assim. Há hobbies, recreação, divertimentos e cur­sos instrutivos. Um campo muito vasto. Espero que a se­nhora ache a vida aqui muito agradável.

— O senhor acha?

Era uma pergunta e uma pergunta audaciosa, e logo depois de fazê-la, Hilary duvidou se teria sido prudente. Mas o Dr. Rubec pareceu apenas achar divertido.

— Tem razão, Madame — disse ele, — para mim a vida aqui é calma e extremamente interessante.

— Nunca tem saudades da Suíça?

— Não, não tenho saudades. Isto é devido, no meu caso, a que as condições no meu lar eram más. Tinha mu­lher e vários filhos. Eu não fui talhado, Madame, para ser um homem de família. Aqui, as condições são infini­tamente mais agradáveis. Tenho as melhores oportunida­des para estudar alguns aspectos da mente humana, que me interessam e sobre os quais estou escrevendo um li­vro. Não tenho preocupações domésticas, coisas que perturbam a concentração, ou interrupções. Tudo me con­vém, admiravelmente.

— E agora, para onde devo ir? — perguntou Hilary enquanto ele se levantava e amavelmente apertava-lhe a mão.

— Mademoiselle La Roche a levará ao departamen­to de roupas. O resultado, estou certo — curvou-se, — será magnífico.

Depois das mulheres severas, que ela encontrara até o momento, e que mais pareciam robôs, Hilary teve uma agradável surpresa ao ver Mademoiselle La Roche. Ma­demoiselle La Roche fora vendeuse de um dos estabele­cimentos de haute couture em Paris e os seus modos eram agradavelmente femininos.

— É um grande prazer conhecê-la, Madame. Espero poder ajudá-la. Como a senhora acaba de chegar, e certa­mente está cansada, sugiro que, por enquanto, escolha apenas algumas coisas essenciais. Amanhã e durante a próxima semana, a senhora poderá, com toda a calma, examinar o que temos. É muito cansativo, acho eu, esco­lher coisas às pressas. Tira todo o prazer de la toilette. Se a senhora está de acordo, eu sugiro apenas um jogo de roupas de baixo, um vestido para jantar e, talvez, um tailleur.

— É delicioso ouvir isto — disse Hilary. — Nem sei explicar como a gente se sente não tendo nada senão uma escova de dentes e uma esponja.

Mademoiselle La Roche riu gostosamente. Tomou rapidamente algumas medidas e levou Hilary para uma grande sala forrada de armários embutidos. Havia rou­pas e vestidos de todos os tipos, de bons tecidos, ótimo fei­tio e de todos os tamanhos. Depois que Hilary escolheu o essencial para la toilette, passaram para a seção de perfumarias onde Hilary escolheu pós, cremes e vários ou­tros produtos de beleza. O escolhido foi entregue a uma jovem marroquina, de pele escura e brilhante, vestida de branco, que recebeu instruções para levar tudo para o apartamento de Hilary.

Tudo que lhe estava acontecendo, parecia a Hilary, ser cada vez mais como um sonho.

— Espero ter o prazer de vê-la novamente, muito breve — disse Mademoiselle La Roche, com ar gracioso. — Será um grande prazer ajudá-la na escolha dentre os nossos modelos, Madame. Entre nous, o meu trabalho, algumas vezes, é um desapontamento. Essas senhoras ci­entistas raramente têm interesse por la toilette. Há me­nos de meia hora aqui esteve uma sua companheira de viagem.

— Helga Needheim?

— Sim, era este o nome. Ela é evidentemente uma boche e os boches não simpatizam conosco. Ela não é re­almente feia e, se cuidasse um pouco da silhueta e sou­besse escolher o que veste, poderia ter muito boa apa­rência. Mas não. Não dá a menor importância ao que veste. Parece que ela é uma doutora... Uma especialista em qualquer coisa. Só espero que tenha mais interesse pelos seus pacientes do que tem na sua aparência... Ah, aquela mulher, aposto que nenhum homem olha para ela duas vezes.

Neste momento entrou no salão de modas a Srta. Jennsen, a moça magra, morena e de óculos, que recebera os viajantes quando chegaram.

— Já acabou aqui, Sra. Betterton? — perguntou.

— Sim, obrigada — disse Hilary.

— Então, talvez a senhora queira ir ver o Diretor Ad­junto .

— Quem é o Diretor Adjunto? — perguntou Hilary.

Todos aqui, pensou Hilary, são doutores em alguma coisa.

— Quem é exatamente o Dr. Nielson? — perguntou ela. — Médico, cientista ou quê?

— Oh, ele não é médico, Sra. Betterton. Ele é o en­carregado da administração. Todas as reclamações che­gam até ele. É o chefe administrativo da Unidade. Ele sempre entrevista todos os que chegam. Depois disso, não creio que a senhora o torne a ver, a não ser que algo mui­to importante aconteça.

— Compreendo — disse Hilary humildemente.

Tinha a impressão de que a haviam severamente, co­locado em seu lugar.

Para chegar ao Dr. Nielson, passaram por duas antes-salas onde havia estenógrafas trabalhando. Ela e a sua guia foram, finalmente, admitidas ao semi-sagrado gabinete do Dr. Nielson, que se levantou de junto à enor­me mesa que tinha a sua frente. Era um homem alto, co­rado e de maneiras afáveis. Devia ser originário do outro lado do Atlântico mas pareceu a Hilary que ele quase não tinha sotaque americano.

— Ah — disse ele, dirigindo-se para Hilary e apertan­do-lhe a mão. — A senhora é... deixe-me ver... sim, a Sra. Betterton. É um prazer dar-lhe as boas-vindas aqui, Sra. Betterton. Esperamos que seja muito feliz entre nós. Lamento o acidente que teve durante a viagem mas estou contente por não ter sido pior. Na verdade a senhora teve muita sorte. Realmente muita sorte. Seu ma­rido a tem esperado com impaciência e espero que, ago­ra que a senhora chegou, os dois serão muito felizes en­tre nós.

— Muito obrigada, Dr. Nielson.

— Gostaria de fazer-me algumas perguntas?

O Dr. Nielson inclinou-se sobre a mesa, parecendo querer encorajá-la. Hilary riu um pouco.

— Isto é uma coisa dificílima de responder — disse ela. — A verdadeira resposta é, evidentemente, que eu tenho tantas perguntas a fazer, que não sei por onde co­meçar.

— Sim, sim. Eu compreendo isto. Se a senhora qui­ser aceitar o meu conselho, quero repetir, apenas um con­selho e nada mais... eu não perguntaria nada. Procure adaptar-se e espere. É a melhor maneira, pode acreditar.

— Eu sinto que sei tão pouco — disse Hilary. — Tu­do foi tão inesperado.

— Sim. A maioria tem essa impressão. Quase todos pensavam que iam chegar a “Moscou”. — Riu alegremen­te. — O nosso lar no deserto é uma surpresa para a maio­ria.

— Para mim foi, certamente, uma surpresa.

— Bem, nós não contamos muita coisa às pessoas que se preparam para vir para cá. Poderiam não ser discre­tas e a discrição é muito importante. Mas a senhora verá que aqui terá todo o conforto. Qualquer coisa de que não goste — ou que gostaria de ter... é só fazer uma requisição e nós faremos o possível para atendê-la. Qual­quer coisa sobre arte, por exemplo. Pintura, es­cultura ou música. Temos um departamento especial­mente para tratar desses assuntos.

— Receio não ter nenhum talento artístico.

— Bem, há também muita atividade social. Jogos, sabe? Temos quadras de tênis e para squash. As pessoas, em geral, levam umas duas semanas para se ambienta­rem, especialmente as esposas. Seu marido tem o traba­lho que o ocupa. As esposas, às vezes, levam algum tem­po para encontrar outras com idéias e interesses parecidos. Bem, a senhora compreende o que quero dizer.

— Mas, as pessoas... as pessoas ficam aqui?

— Ficar aqui? Eu não entendi bem, Sra. Betterton.

— Quero dizer, fica-se aqui ou pode-se ir para outro lugar?

O Dr. Nielson tornou-se um tanto vago.

— Ah, isto depende do seu marido. Sim, sim, depen­de muito dele. Há possibilidades. Várias possibilidades. Mas é melhor não falarmos nisto, por enquanto. Eu sugi­ro que a senhora... bem... volte a falar comigo, dentro de umas três semanas. Para dizer-me como já se acostu­mou e acomodou.

— Pode-se, ou não, sair do recinto?

— Sair, Sra. Betterton?

— Sim, ir para fora das muralhas. Sair pelo portão.

— Uma pergunta muito natural — disse o Dr. Niel­son. Seus modos tornaram-se acentuadamente paternais. — Sim, muito natural. A maioria faz a mesma pergunta quando aqui chega. Mas o âmago da questão, o que se de­ve considerar, é que a nossa Unidade, por si só, é um mun­do. Não há lugar algum para onde ir. Fora daqui só há o deserto. Eu não a estou culpando, Sra. Betterton. Muitas pessoas sentem a mesma coisa logo que aqui chegam. Ligei­ra claustrofobia. É assim que o Dr Rubec classifica. Mas posso assegurar-lhe que isso passa. É uma espécie de atra­ção pelo mundo que se deixou. Já observou um formiguei­ro, Sra. Betterton? Muito interessante e muito instrutivo. Centenas de pequenos insetos correndo de um lado para outro, com tanta determinação, tanta ansiedade e tão cheios de bons propósitos. E entretanto tudo aquilo é desordem e desorganização. Assim é o velho e mau mun­do que a senhora deixou. Aqui, há calma, objetividade e tempo sem fim. Posso assegurar-lhe — ele sorriu, — um paraíso terrestre.

 

— Tenho a impressão de estar no colégio — disse Hilary.

Ela estava novamente em seus aposentos. As roupas e os acessórios que ela tinha escolhido estavam a sua es­pera no quarto de dormir. Ela pendurou as roupas no ar­mário e colocou o resto onde lhe pareceu melhor.

— Eu sei — disse Betterton. — Senti a mesma sen­sação no princípio.

A conversa entre eles era cuidada e quase cerimonio­sa. A possibilidade de um microfone era uma barreira entre eles. Ele disse, de maneira indireta, oblíqua:

— Creio que está tudo bem, sabe? Talvez eu estives­se imaginando coisas. Mas, em todo o caso...

Ele não levou seu pensamento adiante mas Hilary compreendeu que o que ele queria dizer era: — Mas, em todo o caso, é melhor termos cuidado.

O que estava acontecendo era, pensou Hilary, um fantástico pesadelo. Aqui estava ela compartilhando um quarto com um estranho, mas a sensação de incerteza e perigo era tão forte que a nenhum dos dois a intimidade forçada pareceu embaraçosa. Era o mesmo, pensou ela, que acontece quando se escalam montanhas suíças e to­dos, guias e alpinistas, compartilham de uma cabana, na maior intimidade e como se fosse a coisa mais natural. Depois de um ou dois minutos, Betterton disse:

— É preciso que nos acostumemos, não é? Precisa­mos ser muito naturais. Muito normais. Quase como se ainda estivéssemos em casa.

Ela compreendeu o bom senso de suas palavras. A sensação de irrealidade persistia e continuaria a persistir, pensou ela, por mais algum tempo. Os motivos que leva­ram Betterton a deixar a Inglaterra, as suas esperanças e sua desilusão não eram assuntos para serem abordados neste momento. Eles eram duas pessoas representando seus papéis e com uma ameaça indefinida sobre as cabe­ças. Ela disse:

— Passei por uma série de formalidades. Exames mé­dicos, psicológicos e tudo mais.

— Sim. Sempre acontece isso. É natural, penso eu.

— Acontece o mesmo a você?

— Mais ou menos o mesmo.

— Depois eu fui ver o Diretor Adjunto. Creio que é assim que o chamam.

— É assim mesmo. Ele dirige tudo aqui. Um admi­nistrador muito competente e capaz.

— Mas ele não é, realmente, o chefe de tudo?

— Oh não, há o verdadeiro Diretor.

— Mas alguém... eu por exemplo... chegarei a ver o Diretor?

— Mais cedo ou mais tarde, suponho eu. Mas ele só aparece raramente. Faz palestras para nós, de vez em quando... tem uma personalidade extraordinariamente estimulante.

A testa de Betterton estava ligeiramente franzida e Hilary achou melhor não continuar o assunto. Olhando para o relógio, Betterton disse:

— O jantar é às oito. Entre oito e oito e meia, isto é. É melhor descermos, se você está pronta.

Ele lhe falou exatamente como se estivessem num hotel.

Hilary estava com o vestido que escolhera. Era de uma leve tonalidade de azul-cinzento que ia muito bem com seus cabelos ruivos. Pôs no pescoço um belo colar de fantasia e disse que estava pronta. Desceram as esca­das, seguiram corredores e chegaram, finalmente, a um grande salão de jantar. A Srta. Jennsen veio a seu en­contro.

— Eu arranjei uma mesa um pouco maior para você, Tom — disse ela a Betterton. — Dois dos companheiros de viagem de sua mulher sentarão com vocês... e os Murchisons, naturalmente.

Dirigiram-se para a mesa indicada. Em sua maioria as mesas do salão eram pequenas, onde sentavam quatro, oito ou dez pessoas. Andy Peters e Ericsson, que já esta­vam sentados, levantaram-se quando eles chegaram. Hi­lary apresentou o seu “marido” aos dois homens. Senta­ram-se e, logo depois, apareceu um casal que Betterton apresentou como o Dr. a Sra. Murchison.

— Simon e eu trabalhamos no mesmo laboratório — disse ele, à guisa de explicação.

Simon Murchison era um rapaz magro, de aspecto anê­mico, de cerca de vinte e seis anos. Sua mulher era mo­rena, baixa e gordota. Ela falava com forte sotaque es­trangeiro e Hilary presumiu que fosse italiana. Seu pri­meiro nome era Bianca. Cumprimentou a Hilary com amabilidade mas com aparente reserva.

— Amanhã, eu a levarei para dar uma vista d’olhos. A senhora não é uma cientista, pois não? — disse ela.

— Não tive uma educação científica — respondeu Hi­lary. E acrescentou: — Eu trabalhava como secretária, antes de me casar.

— Bianca estudou Direito — disse o marido. — Es­tudou economia e legislação comercial. Algumas vezes ela faz conferências aqui mas é difícil achar trabalho bastan­te para ocupar todo o tempo.

Bianca encolheu os ombros.

— Eu me arranjarei — disse ela. — Afinal de con­tas, Simon, eu vim para cá para estar com você e acho que há muita coisa que poderia ser mais bem organizada. Estou estudando as condições. Talvez a Sra. Betterton, que não está empenhada em trabalhos científicos, goste de colaborar comigo.

Hilary apressou-se em concordar com a idéia.

Andy Peters fez todo mundo rir ao dizer com ar tris­tonho:

— Acho que me sinto um menino que acaba de en­trar para um colégio interno. Ficarei contente quando começar a trabalhar.

— É um lugar maravilhoso para se trabalhar —. dis­se Simon Murchison, com entusiasmo. — Não há inter­rupções e temos toda a aparelhagem que quisermos.

— Qual é a sua especialidade? — perguntou Andy Peters.

E logo a seguir, os homens estavam falando em um jargão que era difícil entender, pelo menos para Hilary. Ela se virou para Ericsson que estava reclinado na ca­deira e com o olhar abstrato.

— E o senhor? — perguntou ela. — Também se sente como um menino com saudades de casa?

Ele olhou para ela como se o fizesse de uma grande distância.

— Eu não preciso de um lar — respondeu ele. — To­das essas coisas: lar, laços afetivos, pais, filhos não pas­sam de um grande estorvo. Para se poder trabalhar é preciso estar livre de tudo.

— E sente que aqui terá essa liberdade?

— Ainda não sei dizer. Espero que sim.

Bianca dirigiu-se para Hilary.

— Depois do jantar há várias coisas a escolher. Há uma sala de jogos, onde se pode jogar bridge, e há um ci­nema. Três vezes por semana temos representações tea­trais, e algumas vezes, dança-se.

Ericsson franziu a testa, como desaprovando.

— Todas essas coisas são desnecessárias — disse ele. — Só servem para gastar energias.

— Não para as mulheres — disse Bianca. — Para nós mulheres elas são necessárias.

Hilary pensou: Para ele, as mulheres também são desnecessárias.

— Vou deitar-me cedo — disse Hilary, forçando um bocejo. — Não tenho vontade de ver filmes ou de jogar bridge esta noite.

— Não, querida — disse Tom Betterton apressada­mente. — O melhor para você é deitar cedo e repousar bastante. Lembre-se de que teve uma viagem muito fa­tigante.

Quando se levantaram da mesa, Betterton disse:

— O ar da noite é maravilhoso aqui. Geralmente da­mos uma ou duas voltas nos jardins do terraço, depois do jantar, antes de começarem as diversões ou os estudos. Vamos subir um pouco e depois você irá para a cama.

Subiram em um elevador guiado por um nativo de belo aspecto que vestia túnica branca. Os criados eram mais escuros e mais corpulentos que os esguios bérberes — tipos do deserto, pensou Hilary. Ela foi surpreendida pela beleza inesperada do jardim e também pela enorme soma que deviam ter gasto para criá-lo. Toneladas de ter­ra tinham sido trazidas para ali. O resultado era como um conto das Mil e Uma Noites. Havia o murmúrio da água, altas palmeiras e as folhas tropicais de bananeiras e ou­tras plantas. Os caminhos tinham o piso de, mosaico com desenhos de flores persas.

— É inacreditável — disse Hilary. — Aqui em pleno deserto. — E pronunciou as palavras que pensara: — É um conto das Mil e Uma Noites.

— Concordo com a senhora — disse Murchison, — parece que foi criado por alguém que tivesse invocado um Gênio. Bem, eu suponho que, mesmo no deserto, não há nada que não se possa fazer, havendo água e dinheiro... bastante das duas coisas.

— De onde vem a água?

— Fonte captada na profundeza da montanha. Esta é a raison d’être da Unidade.

Havia um número regular de pessoas no jardim, mas pouco a pouco, elas foram-se retirando. Os Murchisons despediram-se. Iam assistir a um ballet.

Agora restavam poucas pessoas. Betterton guiou Hi­lary, segurando-a pelo braço, até um espaço vazio junto do parapeito. As estrelas brilhavam acima deles e o ar, agora, estava frio e revigorante. Estavam sós. Hilary sentou-se no banco de concreto e Betterton ficou de pé, em frente a ela.

— Agora — disse ele em voz baixa e nervosa, — di­ga-me que raio de pessoa é você?

Ela o fitou, por um momento, antes de responder. An­tes de responder a pergunta dele havia alguma coisa que ela precisava saber.

— Por que motivo você1 me reconheceu como sendo sua mulher?

Olharam-se mutuamente. Nenhum queria ser o pri­meiro a responder ao outro. Era um duelo de esperteza entre os dois, mas Hilary sabia que o Tom Betterton que tinha diante dela não era o mesmo que deixara a Ingla­terra, tivesse ele sido o que fosse e a sua força de vonta­de era, agora, inferior à dela. Ela tinha chegado confian­do em si e julgando-se capaz de traçar sua própria vida — Tom Betterton estivera levando uma existência total­mente planejada. Ela era a mais forte.

Finalmente, ele olhou noutra direção e murmurou, contrafeito:

— Foi... simplesmente um impulso. Provavelmen­te eu agi como um idiota. Imaginei que você pudesse ter sido mandada... para tirar-me daqui.

— Então, você quer sair daqui?

— Meu Deus, você ainda pergunta!

— Como veio você de Paris para cá?

Tom Betterton riu. Uma pequena risada infeliz.

— Eu não fui seqüestrado, ou nada que se pareça... se é isso que você quer dizer. Vim por minha livre von­tade e pelos meus próprios pés. Vim cheio de interesse e entusiasmo.

— Você sabia que estava vindo para este lugar?

— Não sabia que estava vindo para a África, se é isso que você quer dizer. Fui apanhado pelo engodo usual. Paz na terra, livre troca de segredos entre os cien­tistas do mundo; supressão dos capitalistas e dos fazedo­res de guerras... todo o jargão habitual. Aquele rapaz, Peters, que veio com você, está no mesmo caso; ele en­goliu a mesma isca.

— E quando você aqui chegou... as coisas não eram assim?

Outra vez ele riu com amargor.

— Você verá por si mesma. Oh, talvez seja mais ou menos assim. Mas não da maneira que você pensava que seria. Não é a liberdade.

Ele se sentou ao lado dela, franzindo a testa.

— Foi o que me derrotou em nosso país, sabe? To­das aquelas precauções de segurança. Ter que prestar contas de suas ações, explicar quem era um amigo... Tu­do necessário, suponho, mas que acaba por aniquilar a gente... Então quando alguém chega com uma proposta você presta atenção... tudo parece ótimo... — Riu nervosamente . — E você acaba... aqui.

Hilary disse, vagarosamente:

— Você quer dizer que encontrou exatamente a mes­ma situação que aquela que você tentou deixar para trás. Você está sendo vigiado e espionado da mesma forma... ou ainda mais?

Betterton, com gesto nervoso, tirou os cabelos da tes­ta.

— Eu não sei — disse ele. — Honestamente, não sei. Não posso ter certeza. Talvez tudo se passe penosamente dentro da minha cabeça. Não sei se estou sendo vigiado. Por que iriam vigiar-me? Por que teriam esse trabalho? Eles me têm aqui... na prisão.

— Não é absolutamente como você imaginava?

— Esta é a parte muito estranha. Suponho que, de certa forma, isto aqui é como eu imaginava. As condições de trabalho são perfeitas. Você tem todas as facilidades, toda a sorte de aparelhagem. Você pode trabalhar muitas horas, se assim o quiser, ou muito poucas. Você tem todo o conforto e todos os acessórios. Comida, roupa, aposen­tos, mas todo o tempo você tem consciência de que está na prisão.

— Eu sei. Senti uma horrível sensação quando ouvi o barulho do portão que se fechava — disse Hilary es­tremecendo.

— Bem — Betterton pareceu ter recobrado a calma. — Respondi as suas perguntas. Agora responda a minha. Que está fazendo aqui pretendendo ser Olive?

— Olive... — ela parou, procurando por palavras.

— Sim. Que há a respeito de Olive? Que aconteceu a ela? Que está tentando dizer?

Ela olhou com compaixão, para o seu rosto desespe­rado e nervoso.

Tenho tido receio de ser forçada a dizer-lhe.

— Quer dizer... aconteceu alguma coisa a ela?

— Sim. Lamento, lamento muito... sua mulher está morta... Vinha ao seu encontro quando o avião caiu. Foi levada para o hospital e morreu dois dias depois.

Ele fixou o olhar para a frente. Era como se estivesse decidido a não demonstrar qualquer emoção. Disse, em voz baixa:

— Então Olive morreu? Compreendo...

Houve um longo silêncio. Depois, ele se virou para ela.

— Bem, compreendi até esse ponto. Você tomou o seu lugar e veio para cá. Por quê?

Desta vez Hilary tinha a resposta pronta. Tom Bet­terton tinha acreditado que ela tinha sido mandada “para tirá-lo daqui”, conforme ele mesmo dissera. Mas isto não era a verdade. A função de Hilary era a de uma espiã. Tinha vindo para obter informações e não para planejar a fuga de um homem que, voluntariamente, tinha-se colocado na posição em que estava. Além do mais, ela não dispunha de qualquer meio para conquistar a liberdade. Ela era, tal como ele, um prisioneiro.

Confiar inteiramente nele seria perigoso. Betterton estava muito próximo de um colapso nervoso. A qualquer momento poderia ficar completamente descontrolado. Em tais circunstâncias seria uma loucura esperar que ele guardasse um segredo.

Ela disse:

— Eu estava no hospital com sua mulher quando ela morreu. Ofereci-me para tomar o seu lugar e tentar chegar até você. Ela estava ansiosa para que você recebesse uma mensagem.

Ele franziu a testa.

— Mas, seguramente...

Ela se apressou em continuar, antes que ele pu­desse sentir os pontos fracos da narrativa.

— Não é tão incrível quanto pode parecer. Eu tinha muita simpatia por todas as idéias... as idéias sobre as quais você há pouco falou. Troca de segredos científicos entre todas as nações... uma Nova Ordem no mundo. Eu estava entusiasmada com tudo isso. E, depois, o meu cabelo... se o que esperavam era uma ruiva de determinada idade, eu teria possibilidade de passar. Pare­ceu-me que valia a pena tentar.

— Sim — disse ele. — Seus olhos dirigiram-se para a cabeça dela. — Seus cabelos são exatamente como os de Olive.

— Além do mais, você compreende, sua mulher insis­tia... sobre a mensagem que ela queria que eu trou­xesse a você.

— Oh, sim, a mensagem. Qual é a mensagem?

— Para dizer a você que tivesse cuidado... muito cuidado... que você corria perigo... o perigo... o perigo é alguém chamado Boris.

— Boris? Você quer dizer Boris Glydr?

— Sim. Você o conhece?

Ele sacudiu a cabeça.

— Eu nunca o vi. Mas conheço-o de nome. É um pa­rente de minha primeira mulher. Já ouvi falar nele.

— Mas por que seria ele perigoso?

— Quê?

Ele falou distraído.

Hilary repetiu a pergunta.

— Ah, é isto? — ele pareceu voltar de muito longe.

— Não sei por que ele poderia ser perigoso para mim mas é verdade, ao que sei, que ele é realmente um indivíduo perigoso.

— De que maneira?

— Bem, ele é um desses idealistas meio malucos, que não hesitaria em matar metade da humanidade se achasse, por qualquer motivo, que isso seria uma boa coisa.

— Eu conheço este tipo de gente.

Ela sentiu, nitidamente, que conhecia (mas por quê?)

— Olive chegou a vê-lo? Que lhe disse ele?

— Não sei dizê-lo. Já contei tudo que ela disse. Sobre o perigo... ah, sim, ela também disse que não podia acreditar.

— Acreditar o quê?

— Não sei — hesitou por um instante e depois disse: — você compreende, ela estava morrendo...

Um espasmo de dor convulsionou o rosto dele.

— Eu sei — eu sei... com o tempo eu me acostuma­rei. Mas, agora, não me posso convencer do que aconteceu. Mas estou intrigado a respeito de Boris. De que maneira poderá ele ser perigoso para mim, aqui? Se ele viu Olive... é que esteve em Londres, suponho eu?

— Sim, ele esteve em Londres.

— Então, eu não consigo entender... mas que impor­tância pode isso ter? Aqui estamos nós, presos nesta mal­dita Unidade e cercados por uma porção de robôs desu­manos...

— Foi assim que eles me pareceram.

— E não podemos sair — bateu com os punhos sobre o concreto. — Nós não podemos sair.

— Podemos, sim — disse Hilary.

Ele se virou e fitou-a, com surpresa.

— Que diabo quer você dizer?

— Acharemos uma maneira.

— Querida menina — o seu riso era desdenhoso, — você não tem a mais vaga idéia do que tem que enfrentar neste lugar.

— Pessoas escaparam dos lugares mais impossíveis, durante a guerra — disse Hilary teimosamente. Ela não admitia entregar-se ao desespero. — Eles fizeram túneis, ou coisa que o valha.

— Como abrir túneis na rocha viva? E para onde? Só há o deserto em volta de nós.

— Então terá que ser “ou coisa que o valha”.

Ele a olhou. Ela sorriu com uma confiança que era mais de pura bravata que verdadeira.

— Você é uma moça realmente extraordinária. Pa­rece ter absoluta confiança em si mesma.

— Há sempre um meio, mas precisaremos de tempo e muito planejamento.

O rosto dele tornou-se novamente sombrio.

— Tempo — disse ele. — Tempo... É o de que eu não disponho.

— Por quê?

— Não sei se você poderá entender... Eu não posso fazer o meu verdadeiro trabalho...

Ela franziu a testa.

— Que quer dizer?

— Como poderia explicar? Eu não posso trabalhar. Eu não consigo pensar. Na minha especialidade é neces­sário um alto grau de concentração. Uma grande parte é... bem... trabalho criativo. Desde que aqui cheguei perdi o incentivo. Tudo o que consigo é um bom e sólido trabalho vulgar. A espécie de trabalho que qualquer cien­tista de meia pataca pode executar. Mas não foi para isto que eles me trouxeram para cá. Querem trabalho original e eu não posso fazer trabalhos originais. E quanto mais nervoso e amedrontado eu fico mais incapacitado me torno para produzir qualquer coisa que realmente valha a pena. E isto está-me levando à loucura, entende?

Sim, ela agora entendia. Lembrou-se das observações do Dr. Rubec, sobre prima-donas e cientistas.

— Se eu não produzir o que esperam de mim, que providência tomará uma organização como esta? Eles me liquidarão.

— Oh, não.

— Certamente que o farão. Não são sentimentalistas. O que me salvou, até agora, foi este negócio de cirurgia plástica. Tem que ser feita um pouco de cada vez, sabe? E, é natural que de um sujeito que está sendo submetido a pequenas mas constantes operações não se possa espe­rar concentração. Mas agora as operações acabaram.

— Mas por que fizeram as operações? Qual o objetivo?

— Simplesmente por motivos de segurança. A minha segurança, quero dizer. Usam este método quando o ho­mem é “procurado”.

— Então você é um homem “procurado”?

— Sim. Você não sabia? Oh, suponho que não anun­ciaram o fato nos jornais. Talvez a própria Olive não soubesse. Mas não há dúvida de que sou um homem “pro­curado”, de verdade.

— Você quer dizer por... traição, é o termo, não é? Você quer dizer que lhes vendeu segredos sobre o átomo?

Ele evitou os olhos dela.

— Eu nada vendi. Eu lhes dei o que sabia sobre os nossos processos... dei por livre e espontânea vontade. Se você puder acreditar, eu queria dar-lhes o que sabia. Era parte de toda a idéia, de toda a concepção... a livre troca de todo o conhecimento científico. Oh, não poderá você compreender?

Ela podia entender. Podia compreender Andy Peters fazendo o mesmo. Podia ver Ericsson, com seus olhos de sonhador fanático, traindo a sua pátria com a alma cheia de elevado entusiasmo.

Entretanto, era-lhe difícil conceber Tom Betterton fazendo tal coisa — e percebeu, com um choque, que isto mostrava a diferença do Tom Betterton de alguns meses atrás, chegando cheio de ânimo e entusiasmo e o Better­ton de agora, nervoso, derrotado, quase prostrado — um homem comum, cheio de medo.

Quando chegava ao fim do seu raciocínio, que aceitou como lógico, Betterton olhou nervosamente em redor e disse:

— Todos já desceram. Acho melhor...

Ela se levantou.

— Sim. Mas não tem importância. Eles acharam isto normal... dadas as circunstâncias.

Ele disse, meio sem jeito:

— Temos que continuar com isto, sabe? Quero dizer, você tem que continuar sendo minha mulher.

— Naturalmente.

— E teremos que dormir no mesmo quarto. Mas tudo correrá bem. Quero dizer, você não precisa ter receio de que...

Ele engoliu em seco, encabulado.

Como ele é bonito, pensou Hilary vendo o seu perfil, — e como isto não me interessa...

— Não devemos preocupar-nos com isto — disse ela com voz animada. — O importante é sair daqui com vida.

 

Num quarto do Hotel Mamounia, em Marrakesh, o homem chamado Jessop conversava com a Srta. Hether­ington. Era uma Srta. Hetherington diferente da que Hi­lary conhecera em Casablanca e em Fez. A mesma apa­rência, o mesmo jeito e o mesmo penteado deprimente. Mas os modos tinham mudado. Era, agora, uma mulher viva, competente e representando vários anos a menos que a sua aparência indicava.

A terceira pessoa presente era um homem moreno, atarracado e com olhos inteligentes. Ele batia levemente com os dedos sobre a mesa e murmurava uma canção francesa, com a boca fechada.

— ...e, ao que você sabe — Jessop estava dizendo, — são essas as únicas pessoas com quem ela falou, em Fez.

Janet Hetherington concordou com a cabeça.

— Havia aquela mulher, Calvin Baker, que nós tínha­mos encontrado em Casablanca. Devo dizer, francamente, que ainda não sei o que pensar a respeito dela. Fazia o máximo para se mostrar amiga de Olive Betterton e, tam­bém, minha amiga. Mas os americanos são sociáveis e amistosos, falam com todo o mundo nos hotéis e gostam de juntar-se aos outros para excursões.

— Sim — disse Jessop, — é demasiado às claras para ser o que procuramos.

— Além disso — continuou Janet Hetherington, — ela também estava no mesmo avião.

— Você está presumindo — disse Jessop, — que o aci­dente foi planejado. — Olhou de lado para o homem mo­reno e atarracado. — Que pensa você, Leblanc?

Leblanc parou por um instante de murmurar a can­ção e de tamborilar na mesa.

— Ça se peut — disse ele. — O motor pode ter sido sabotado, causando a queda. Nunca poderemos saber. O avião caiu, incendiou-se totalmente, matando todos que estavam a bordo.

— Que sabe você sobre o piloto?

— Alcadi?... moço e razoavelmente competente. Nada mais. Mal remunerado. — Fez uma pausa antes de dizer as duas últimas palavras.

Jessop disse:

— Disposto, portanto, a aceitar outro emprego, não um candidato ao suicídio.

— Foram encontrados sete corpos — disse Leblanc. — Muito queimados, irreconhecíveis mas eram sete. Quan­to a isso não há dúvida.

Jessop virou-se, novamente, para Janet Hetherington:

— Você ia dizendo?

— Havia uma família francesa em Fez, com a qual a Sra. Betterton trocou algumas palavras. Havia um rico sueco com uma pequena glamorosa. E o velho e rico magnata Monsieur Aristides.

Ah — disse Leblanc, — esse homem fabuloso em pessoa. Eu freqüentemente me pergunto como se sentirá uma pessoa com uma fortuna fabulosa. Quanto a mim — ele acrescentou com franqueza, — teria cavalos de cor­rida, mulheres e tudo que o mundo pode oferecer. Mas o velho Aristides tranca-se em seu castelo na Espanha... li­teralmente seu castelo na Espanha, mon cher, e segundo dizem, coleciona porcelanas chinesas da dinastia Sung. Mas devemos lembrar-nos — acrescentou, — que ele tem pelo menos setenta anos. É possível, nessa idade, que as porcelanas chinesas sejam a única coisa que o interesse.

— De acordo com os próprios chineses — disse Jes­sop, — os anos entre os sessenta e os setenta são os mais belos da vida e o período em que mais se apreciam as belezas e os deleites da vida.

— Pas moi — disse Leblanc.

— Havia também alguns alemães em Fez — conti­nuou Janet Hetherington, — mas ao que sei eles não fa­laram com Olive Betterton.

— Um garçom ou um criado, talvez — disse Jessop.

— Isto é sempre possível.

— E segundo você, ela foi sozinha à cidade velha?

— Ela foi com um dos guias profissionais. Alguém pode ter falado com ela durante esse passeio.

— De qualquer forma, ela decidiu, repentinamente, ir a Marrakesh.

— Não foi repentinamente — ela corrigiu. — Já tinha feito as reservas.

— Ah, eu me enganei — disse Jessop. — O que quero dizer é que a Sra. Calvin Baker decidiu, um tanto subi­tamente, que iria com ela. — Levantou-se e andou de um lado para o outro. — Ela voou para Marrakesh — disse ele — e o avião caiu ao solo em chamas. Parece haver um mau agouro para qualquer pessoa que se chame Olive Betterton quando viaja pelo ar. Primeiro o desastre de Casablanca e depois esse outro. Foi um acidente ou foi simu­lado? Se havia pessoas interessadas em se verem livres de Olive Betterton, parece que haveria maneira mais simples do que destruir um avião.

— Nunca se sabe — disse Leblanc. — Compreenda, mon cher. Quando se chega a um estado de espírito para o qual vidas humanas nada mais valem, então é mais simples colocar uma carga explosiva debaixo de um as­sento de avião que esperar numa esquina, durante uma noite escura e enterrar uma faca em alguém. Pensando assim, colocam a carga e o fato de mais seis pessoas mor­rerem não é sequer levado em consideração.

— Bem sei — disse Jessop — que estou numa mino­ria de um, mas continuo pensando que deve haver uma terceira solução... que eles simularam o desastre.

Leblanc olhou-o com curiosidade.

— Isto poderia ser feito, sim. O avião poderia ter aterrado e depois ser incendiado. Mas não se pode fugir aos fatos, mon cher Jessop. Havia pessoas no avião. Os corpos meio carbonizados lá estavam.

— Eu sei — disse Jessop. — Essa é a dificuldade, o obstáculo. Ora, bem sei que minhas idéias são fantásticas mas este final da nossa caçada está-me parecendo muito completo e simples. Claro e simples demais. Ele nos diz que tudo acabou. Podemos escrever “Descansem em Paz” à margem dos nossos relatórios e tudo acabou. Não há mais pistas a seguir. — Virou-se, novamente, para Leblanc. — Você mandou fazer aquelas buscas?

— Há dois dias — disse Leblanc. — Homens muito bons. Foi num lugar muito ermo que o avião caiu. Por falar nisso, o avião estava fora do curso.

— O que é muito significante — disse Jessop.

— As aldeias mais próximas, as habitações mais pró­ximas, os rastros mais próximos de um automóvel, tudo está sendo cuidadosamente averiguado. Aqui como em sua terra, damos a maior importância às investigações. Nós na França, também perdemos alguns dos nossos melhores cientistas jovens. Na minha opinião, mon cher, é mais; fácil controlar temperamentais cantoras de ópera que um cientista. Esses moços são brilhantes, instáveis, rebeldes e finalmente, o que é mais perigoso, são de uma creduli­dade completa. Que pensam eles que se passa là-bas? Do­çura, luz, desejo da verdade e o nirvana? Pobres rapazes, quantas desilusões os esperam.

— Vamos ler, mais uma vez, a lista dos passageiros — disse Jessop.

O francês esticou o braço, tirou a lista de dentro de uma cesta de arame e colocou-a diante do colega. Os dois juntos fixaram o papel.

— Mrs. Calvin Baker, americana. Mrs. Betterton, in­glesa. Torquil Ericsson, norueguês... que sabe você so­bre ele?

— Nada que me possa lembrar — disse Leblanc. — Ele era moço, no máximo vinte e sete ou vinte e oito anos.

— Conheço esse nome — disse Jessop franzindo a testa. — Creio... estou quase certo... que ele leu um trabalho perante a Royal Society.

— Depois vem a religieuse — disse Leblanc voltando à lista. — Irmã qualquer coisa. Andrew Peters, também americano. Dr. Barron. Este é um nome célebre, le docteur Barron. Um homem muito brilhante. Um perito em virologia.

— Guerra biológica — disse Jessop. — A coisa com­bina. Tudo está combinando.

— Um homem mal pago e descontente — disse Leblanc.

— Quantos estão indo para Saint Yves? — murmu­rou Jessop.

O francês lançou-lhe um olhar de espanto e ele sor­riu à guisa de desculpas.

— Apenas uns versos para crianças — disse ele. — Saint Yves, no caso, significa ponto de interrogação. Via­gem para o ignorado.

A campainha do telefone, sobre a mesa, soou e Le­blanc apanhou o fone.

— Alô — disse ele. — Qu’est ce qu’il y a? Ah, sim. Mande-os subir. — Virou-se para Jessop com o rosto ra­diando energia e vivacidade. — Um dos homens trazendo informações. Encontraram alguma coisa. Mon cher collègue, é possível... não vou além disto... é possível que o seu otimismo seja justificado.

Momentos depois, dois homens entraram no quarto. O primeiro parecia-se, um pouco, com Leblanc. Tinha o mesmo tipo atarracado, moreno e inteligente. A sua ma­neira era respeitosa mas não escondia seu júbilo. Trajava à européia mas sua roupa estava amarrotada, muito man­chada e coberta de poeira. Era evidente que acabava de chegar de uma viagem. Com ele estava um nativo com as costumeiras vestes brancas. Tinha a dignidade natural dos habitantes de pontos remotos. Seus modos eram cor­teses mas não subservientes. Ele olhou, com ligeira admi­ração, em redor do quarto, enquanto o outro explicava os acontecimentos falando rapidamente, em francês.

— A recompensa foi oferecida e a notícia circulada — explicou o homem. — Este homem, sua família e mui­tos dos seus amigos têm procurado com afinco. Eu deixei que ele mesmo lhe trouxesse seu achado porque talvez haja perguntas a fazer.

Leblanc virou-se para o bérbere.

— Você fez um bom trabalho — disse ele, falando, agora, na língua do nativo. — Você tem os olhos do falcão, meu pai. Mostre-nos o que descobriu.

De uma dobra em sua túnica branca o homem tirou um pequeno objeto e, dando um passo à frente, colocou-o sobre a mesa diante do francês. Era uma grande pérola artificial de coloração cinzenta rosada.

— É igual à que foi mostrada a mim e a outros — disse ele. — É valiosa e eu a achei.

Jessop estendeu a mão e pegou a pérola. De seu lado retirou outra idêntica e examinou as duas. Depois, foi até a janela e examinou-as com uma poderosa lente.

— Sim — disse ele, — tem a marca. — Havia con­tentamento em sua voz enquanto voltava para a mesa. — Moça valente — disse ele, — moça corajosa. Ela conse­guiu fazê-lo.

Leblanc, falando rapidamente em árabe, interrogava e era respondido pelo bérbere. Finalmente ele se virou para Jessop.

— Apresento minhas desculpas, nom cher collègue — disse ele. — A pérola foi achada a uma distância de cerca de oitocentos metros do lugar onde o avião se incendiou.

— Isto prova que Olive Betterton escapou com vida — disse Jessop, — e que embora sete pessoas tenham par­tido de Fez no avião e sete corpos queimados fossem acha­dos, um desses sete corpos não era positivamente o dela.

— Agora vamos ampliar as buscas — disse Leblanc. Falou novamente com o bérbere e este sorriu, feliz. Jun­tamente com o homem que o trouxera, o bérbere saiu do quarto. — Tal como foi prometido, ele será generosamente recompensado — disse Leblanc, — e haverá uma grande batida para procurar essas pérolas numa vasta área. Esta gente tem olhos de falcão e a notícia de boas recompensas será rapidamente circulada entre eles. Pareceu-me... pa­rece-me mon cher collègue, que conseguiremos resulta­dos. Contanto que não tenham descoberto o que ela estava fazendo.

Jessop sacudiu a cabeça.

— Seria um fato tão comum — disse ele. — Um colar de fantasia, parecido com os que quase todas as mulheres usam, quebra-se. A dona apanha no Chão as pérolas que consegue encontrar e coloca-as no bolso. Depois, pode haver um pequeno furo no bolso. Além do mais, por que iriam suspeitar dela? Ela é Olive Betterton, ansiosa por encontrar-se com o marido.

— Devemos reexaminar o caso sob um novo aspecto — disse Leblanc. Apanhou a lista dos passageiros. — Olive Betterton. Dr. Barron — disse ele. — Dois, pelo menos dois que estão indo... para onde quer que estejam indo. A mulher americana, Sra. Calvin Baker. Com relação a ela nada podemos conjeturar. Segundo você disse, Torquil Ericsson leu trabalhos perante a Royal Society. O ame­ricano, Peters, é descrito em seu passaporte como pes­quisador químico. A religiosa... bem... não há melhor disfarce. Na realidade temos um grupo de pessoas, cuida­dosamente encaminhadas de pontos diferentes, para via­jar nesse mesmo avião, nesse dia exato. Depois o avião é encontrado em chamas, e dentro dele o número neces­sário de corpos queimados. Como teriam eles conseguido fazer isto? Enfin, c’est colossal!

— Sim — disse Jessop, — foi o toque final convin­cente. Mas agora sabemos que seis ou sete pessoas come­çaram uma nova jornada e sabemos de onde partiram. Que faremos agora... iremos a esse ponto de partida?

— Exatamente — disse Leblanc. — Lá estabelecere­mos nosso quartel-general. Ou eu estou muito enganado ou vamos conseguir novas informações, agora que esta­mos na pista. Se os nossos cálculos estão certos — con­tinuou ele, — deveremos obter resultados.

Os cálculos eram muitos e complicados. O progresso da marcha de um automóvel, de quantos em quantos qui­lômetros ele precisaria ser reabastecido, aldeias onde via­jantes poderiam ter pernoitado. As pistas eram muitas e confusas, os desapontamentos se sucediam, mas, de vez em quando, surgia um resultado positivo.

— Voilà, mon capitaine! Uma busca nas latrinas, como você mandou. Num canto escuro da latrina da casa de Abdul Mohamed, foi encontrada uma pérola segura num pouco de goma de mascar. Ele e os filhos foram interrogados. A princípio negaram mas acabaram por confessar. Um carro com seis pessoas, que diziam pertencer a expedição arqueológica alemã, pernoitou em sua casa. Pagaram-lhes muito dinheiro e eles não deveriam dizer nada a ninguém. A desculpa que deram era que pretendiam fazer escavações sem permissão. Crianças da aldeia de El Kaif também trouxeram mais duas pérolas. Agora sabemos em que direção viajam. Mas há mais, mon capi­taine. Como você previa, foi vista a Mão de Fátima. Este homem, aqui, falará a respeito.

“Este homem” era um bérbere com aspecto decidi­damente feroz.

— Eu estava com o meu rebanho — disse ele, — era de noite e eu ouvi um carro. Passou por mim, e nesse momento, eu vi o sinal. De um lado do carro via-se o contorno da Mão de Fátima. Juro que brilhava na es­curidão.

— A aplicação de matéria fosforescente numa luva pode ser muito eficaz — murmurou Leblanc. — Eu o fe­licito, mon cher, pela idéia.

— É eficaz mas perigosa — disse Jessop. — Pode ter sido facilmente percebida pelos próprios fugitivos.

Leblanc, encolheu os ombros.

— Não poderia ser percebida à luz do dia.

— Não, mas se fizessem uma parada à noite e des­cessem do carro, na escuridão...

— Mesmo nesse caso... é uma grande superstição árabe. Freqüentemente é pintada em carros e vagões. A única coisa que pensariam era que algum árabe devoto a tinha pintado, com tinta fosforescente, no lado do seu carro.

— Isto é verdade. Mas devemos ficar alertas. Se os nossos inimigos perceberam o fato é muito provável que nos tenham preparado uma pista falsa com Mãos de Fá­tima em tinta fosforescente.

— Concordo inteiramente com você. Precisamos estar alertas. Sempre, sempre alertas.

Na manhã seguinte recuperou mais três pérolas falsas, presas em goma de mascar e formando um triângulo.

— Isto indica — disse Jessop, — que a etapa seguinte da viagem foi em avião. — Ele olhou para Leblanc como a interrogá-lo.

— Você está absolutamente certo — disse Leblanc. — Isto foi encontrado num campo de aviação militar aban­donado, num local remoto e desolado. Havia sinais de que um avião lá pousara, pouco tempo antes. — Encolheu os ombros. — Um avião desconhecido — disse, — e que le­vantou vôo para destino ignorado. Isto nos obriga, nova­mente, a fazer alto e a ficar sem saber onde achar a pista.

 

É incrível — pensou Hilary, — incrível que eu já esteja aqui há dez dias.

Era simplesmente assustador como, na vida, uma pes­soa podia adaptar-se a qualquer situação. Ela se lembrou de ter visto, na França, um aparelho de tortura da Idade Média, uma gaiola de ferro na qual um homem tinha sido encerrado e onde não podia deitar-se, sentar-se ou ficar em pé. O guia, que lhe mostrara a gaiola, contou que o último homem que a ocupara estivera encerrado durante dezoito anos e vivera mais vinte, depois que foi liberado, e morreu de velhice. Essa capacidade de adaptação, pensou Hilary, era o que diferenciava o homem dos outros ani­mais. O homem podia viver em qualquer clima, comer qualquer coisa, sob qualquer condição. Ele podia viver como escravo ou livre.

Nos primeiros dias em que viveu na Unidade ela sentira um pânico horrível, uma sensação apavorante de clausura e frustração e o fato de que a prisão era camu­flada pelo luxo tornara, de certa forma, a situação ainda mais horrível para ela. Agora, entretanto, decorrido um decêndio, ela passou, insensivelmente, a aceitar as suas con­dições de vida como normais. Era uma existência esqui­sita, como se fosse um sonho. Nada parecia ser verdadei­ramente real mas ela já tinha a sensação de que o sonho começara há muito tempo e que duraria ainda muito mais. Talvez durasse para toda a eternidade... Ela viveria sempre na Unidade, a vida era isto, e do lado de fora não ha­via nada.

A perigosa aceitação dos fatos provinha, pensou ela, parcialmente, de que era uma mulher. As mulheres eram adaptáveis, por natureza. Era essa a sua fortaleza e a sua fraqueza. Elas examinavam o meio ambiente, aceitavam-no e, como realistas, procuravam tirar o melhor partido possível. O que mais a interessava eram as reações das pessoas que tinham chegado junto com ela. Helga Need­heim ela via raramente, exceto algumas vezes, à hora das refeições. Quando se encontravam, a alemã apenas cum­primentava com um rápido movimento da cabeça. Tanto quanto podia julgar, Helga Needheim parecia contente e feliz. Evidentemente a Unidade era tal como ela ima­ginara. Era o tipo de mulher absorta em seu trabalho e perfeitamente amparada pela sua arrogância. O artigo número um do seu credo era a superioridade dela e dos seus colegas cientistas. Não tinha interesse na fraternidade dos homens ou numa era de paz, liberdade de pensamento e de opinião. Para ela o futuro era uma senda estreita que levaria à conquista total. A super-raça, à qual ela perten­cia, a tudo dominando, o resto do mundo na servidão e tratado com condescendência benévola, contanto que se portasse bem. Se os seus companheiros de trabalho tinham opiniões diferentes, se as suas idéias eram comunistas, em vez de fascistas, Helga dava pouca importância. Se traba­lhavam bem, eram necessários e as suas idéias mudariam.

O Dr. Barron era mais inteligente que Helga Need­heim. Ocasionalmente, Hilary o encontrava e trocavam algumas palavras. Estava absorto em seu trabalho, muito satisfeito com as facilidades de que dispunha, mas a sua mente francesa levava-o a ponderar e fazer especulações sobre o ambiente em que se encontrava.

— Não era isto que eu esperava. Não, francamente — disse ele certo dia, — entre nous, Sra. Betterton, eu não gosto do ambiente de uma prisão, embora, digamos assim, a gaiola seja muito dourada.

— Não se pode dizer que aqui exista a liberdade que o senhor procurava — sugeriu Hilary.

Ele sorriu, um sorriso rápido e tristonho.

— Mas a senhora está enganada — disse ele; — eu não vim realmente procurar a liberdade. Sou homem civi­lizado. O homem civilizado sabe que tal coisa não exis­te. Somente as nações mais jovens e menos esclarecidas colocam a palavra Liberdade em suas bandeiras. É neces­sário que haja um bem planejado arcabouço de seguran­ça. E a essência da civilização é que o modo de viver deve ser moderado. E o caminho do meio, nem muito pa­ra um lado, nem para o outro. Sempre se volta ao cami­nho do meio, do equilíbrio. Não, serei franco com a se­nhora. Eu vim para cá por causa do dinheiro.

Hilary, por sua vez, sorriu. Ergueu as sobrancelhas.

— E de que serve o dinheiro?

— Para pagar o caríssimo equipamento do meu la­boratório — disse o Dr. Barron. — Não preciso tirar di­nheiro do meu próprio bolso, e assim sirvo à causa da ciência e posso satisfazer a minha curiosidade intelectual. É verdade que amo o meu trabalho mas não o amo para o bem da humanidade. Tenho que os que têm esta idéia são um tanto confusos, intelectualmente, e não raro, são também incompetentes. Não, o que gosto é do puro pra­zer intelectual da pesquisa. Além do mais, pagaram-me uma elevada quantia antes da minha partida da França. Está segura, guardada num banco sob um outro nome e eventualmente, quando tudo isto acabar, terei o dinheiro para gastar como me aprouver.

— Quando tudo isto acabar? — repetiu Hilary. — Mas por que irá acabar?

— É preciso que tenhamos bom senso — disse o Dr. Barron, — nada é permanente, nada dura. Cheguei à con­clusão de que este lugar é dirigido por um louco. Um lou­co, permita que o diga, pode ser muito lógico. Se alguém e rico, lógico e também louco, poderá manter viva, du­rante muito tempo a sua ilusão. Mas no fim — ele enco­lheu os ombros — no fim isto será desmantelado. Veja bem, o que acontece aqui foge à razão. Tudo que não é razoável acaba mal. Enquanto isto — novamente enco­lheu os ombros — estou admiravelmente bem por aqui.

Torquil Ericsson, que segundo Hilary pensara, deve­ria estar profundamente desiludido, parecia estar muito satisfeito na atmosfera da Unidade. Menos prático que o francês, ele vivia na sua própria e única ilusão. O mundo de idéias onde ele vivia era tão estranho para Hi­lary que ela não podia, de forma alguma, chegar á com­preendê-lo. Esse mundo dava-lhe uma espécie de felici­dade austera, uma completa absorção em cálculos mate­máticos e uma visão de possibilidades infinitas. A estra­nha e impessoal falta de piedade de seu caráter causava medo a Hilary. Ele era o tipo de homem, pensava Hilary, que num momento de idealismo não hesitaria em man­dar para a morte três quartas partes da humanidade para que a quarta parte que sobrevivesse pudesse participar de uma utopia impossível e que só existia na mente de Ericsson. Com o americano, Peters, Hilary sentia ter mui­to mais afinidades. Possivelmente, por que Peters fosse talentoso más não um gênio. Pelo que ouvira dizer, ele era um elemento de primeira ordem, um hábil e compe­tente químico, mas não um pioneiro. Da mesma forma que Hilary, Peters, logo de início, passou a detestar e a temer o ambiente da Unidade.

— A verdade é que eu não sabia para onde estava in­do — disse ele. — Pensei que soubesse mas estava enga­nado. O Partido nada tem a ver com este lugar. Não te­mos nenhum contato com Moscou. Isto aqui é uma or­ganização isolada... talvez uma organização fascista.

— Você não acha — perguntou Hilary — que se está preocupando muito com rótulos?

Ele pensou um momento.

— Talvez você tenha razão — disse ele. — Pensan­do bem, essas designações usadas com tanta facilidade na realidade pouco significam. Mas uma coisa eu sei. Quero sair daqui e pretendo sair daqui.

— Não será fácil — disse Hilary, em voz baixa.

Estavam passeando perto das fontes dos jardins do terraço. A escuridão e a noite estrelada davam-lhes a ilu­são de estarem nos jardins de um sultão. As construções funcionais, de concreto, não eram visíveis de onde estavam.

— Não — disse Peters, — não será fácil, mas não há nada impossível.

— Gosto de ouvir você dizer isto — disse Hilary. — Oh! como gosto de ouvir você dizer isto.

Ele a olhou com simpatia.

— Isto aqui a está deprimindo? — perguntou ele.

— Sim, e muito. Mas não é disso que eu tenho me­do.

— Não, então que e?

— Tenho medo de ficar acostumada — disse Hilary.

— Sim — disse ele pensativo. — Sim, compreendo o que quer dizer. Há uma espécie de sugestão em massa agindo neste lugar. Acho que você tem razão.

— Parece-me que seria muito mais natural que as pessoas se rebelassem.

— Sim, sim, já pensei da mesma forma. Na verdade, uma ou duas vezes passou-me pela cabeça que há alguma tapeação por aqui.

— Tapeação? Que quer dizer com isso?

— Bem, para falar francamente, drogas.

— Quer dizer um entorpecente, ou algo assim? —

— Sim. Seria possível, sabe? Alguma coisa na comi­da ou na água, algo que provoque, como direi, docilidade.

— Mas, existe semelhante droga?

— Bem, isto não é a minha especialidade. Há subs­tâncias que acalmam as pessoas, que as tornam meio in­diferentes antes de uma operação, por exemplo. Se há alguma coisa que pode ser tomada durante longos perío­dos, e que ao mesmo tempo, não interfira com a eficiên­cia, isto eu não sei dizer. Estou mais inclinado a acreditar que o efeito é conseguido por processos mentais. O que queria dizer é que alguns dos dirigentes e admi­nistradores são peritos em hipnose e psicologia e, sem que nós o percebamos, estamos constantemente sendo sugestionados no sentido de pensar que estamos muito felizes e que breve atingiremos nossos objetivos finais (o que quer que eles sejam) e que tal coisa realmente produz efeito. É incrível o que se pode conseguir com tais métodos, principalmente quando eles são aplicados Por quem é perito no assunto.

— Mas nós não nos devemos submeter — disse Hila­ry com veemência. — Não devemos pensar, por um mi­nuto sequer, que estamos felizes neste lugar.

— Como se sente e como pensa o seu marido?

— Tom? Oh, realmente não sei. É tão difícil. Eu... — e ela ficou silenciosa.

Ela não podia contar ao homem com que estava fa­lando a vida fantástica que estava vivendo. Há dez dias ela vivia num apartamento com um homem que era um estranho. Dormiam no mesmo quarto e, enquanto ficava acordada, pensando, em sua cama, podia ouvir a respira­ção do homem que estava na outra. Os dois tinham aceito a situação como algo inevitável. Ela era uma impostora, uma espiã, pronta a desempenhar qualquer papel e a se fazer passar por qualquer pessoa. Quanto a Tom Better­ton ela, francamente, não o entendia. Ele lhe parecia um terrível exemplo do que poderia acontecer a um jovem talentoso forçado a viver na deprimente atmosfera da Unidade. De qualquer forma, ele não parecia aceitar resignadamente o seu destino. Longe de ter prazer no trabalho que estava fazendo, parecia, cada vez mais, preo­cupado pelo fato de não conseguir concentrar-se no que estava executando. Uma ou duas vezes reafirmara o que tinha dito na primeira noite.

— Não consigo pensar. Parece que o meu raciocínio secou completamente.

Sim, pensava ela, sendo um gênio, Tom Betterton ti­nha mais necessidade de liberdade que a maioria. Somen­te gozando de perfeita liberdade é que ele podia produzir trabalho original, criador. A sugestão não tinha com­pensado a falta de liberdade. Somente em plena liberda­de é que ele podia produzir, criar.

Parecia a ela que ele estava muito perto de um esgo­tamento nervoso. Tratava a Hilary com curiosa indife­rença. Para ele, Hilary não era uma mulher e nem sequer um amigo. Ela chegava a duvidar se ele tinha realmente sofrido com a morte da mulher. A única coisa que o preo­cupava, sem cessar, era o confinamento. Era, praticamen­te, o único assunto que mencionava, dizendo:

— Tenho que sair daqui. Tenho que sair. Tenho que sair. — E, outras vezes: — Eu não sabia. Não tinha a me­nor idéia de que seria assim. Como poderei sair daqui? Como? Tenho que sair, tenho absolutamente que sair.

Era em essência, o que Peters tinha dito. Mas era dito de forma muito diferente. Peters falara como um jo­vem enérgico, cheio de cólera, desiludido, com confiança em si mesmo e disposto a enfrentar com a sua inteligên­cia os cérebros do estabelecimento onde se achava. Mas as palavras de rebeldia de Tom Betterton eram as de um ho­mem no limite de sua resistência, de um homem que estava enlouquecendo porque tinha que escapar. Mas, pensou Hi­lary subitamente, provavelmente ela e Peters estariam nas mesmas condições, dentro de seis meses. Talvez aquilo que começava como uma natural rebelião e uma boa par­cela de confiança na própria habilidade, estaria transfor­mado finalmente, no desespero frenético de um rato na ratoeira.

Ela gostaria de poder falar de tudo isso com o homem que estava ao seu lado. Se, ao menos, ela lhe pudesse di­zer: — Tom Betterton não é meu marido. Nada sei a seu respeito. Não sei como ele era antes de vir para cá e, por conseguinte, estou às escuras. Não o posso ajudar por­que não sei o que fazer e o que dizer. — Mas na situação em que estava, tinha que ter muito cuidado com as palavras. Disse:

— Tom, agora, parece ser um estranho para mim. Ele... não me conta nada. As vezes acredito que a sen­sação de confinamento, de ser um prisioneiro, o está le­vando à loucura.

— É possível — disse Peters secamente, — pode ter esse efeito.

— Mas, diga-me, você fala com tanta confiança em fugir daqui. Como poderemos sair, que possibilidade po­de haver?

— Não quero dizer que poderemos sair daqui, ama­nhã ou depois, Olive. As coisas têm que ser pensadas e planejadas. Pessoas têm escapado em circunstâncias qua­se impossíveis. Muitos autores, dos dois lados do Atlânti­co, escreveram sobre fugas de fortalezas na Alemanha.

— As situações eram diferentes.

— Não tanto. Onde se pode entrar também se pode sair. Evidentemente aqui é impossível fazer um túnel e isto reduz bastante as nossas possibilidades. Mas, como já disse, onde há uma maneira de entrar há uma maneira de sair. Com engenhosidade, camuflagem, representando um papel, iludindo, pagando ou corrompendo não pode deixar de haver um meio. É uma situação na qual é pre­ciso estudar e pensar. Uma coisa eu garanto a você, eu sairei daqui, garanto.

— Acredito que você conseguirá — disse Hilary, acrescentando: — mas poderei eu conseguir?

— Bem, concordo que o seu caso é diferente — o tom de voz denotava embaraço. Por um instante ela ficou sem saber o que ele queria dizer. Depois, chegou à conclusão de que ela tinha vindo para juntar-se ao homem que ti­nha amado e, uma vez que conseguira isso, a sua neces­sidade de fugir não deveria ser tão grande. Ela teve von­tade de dizer a verdade a Peters — mas um instinto de precaução a impediu.

Disse boa noite e saiu do terraço.

 

— Boa noite, Sra. Betterton.

— Boa noite, Srta. Jennsen.

A moça magra e de óculos parecia excitada. Seus olhos brilhavam por trás das grossas lentes.

— Haverá uma reunião esta noite — disse ela. — O diretor em pessoa vai-nos dirigir a palavra.

— Boa notícia — disse Andy Peters que estava per­to. — Estava ansioso para dar uma olhada nesse Dire­tor.

A Srta. Jennsen lançou-lhe um olhar de surpresa e de reprovação.

— O Diretor — disse ela com austeridade — é um homem maravilhoso.

Enquanto ela se retirava por um dos longos e inevi­táveis corredores brancos, Andy Peters assobiou baixinho.

— Posso estar enganado, mas não havia uma suges­tão de Heil Hitler na atitude dela?

— Pelo menos o tom era parecido.

— O que há de errado na vida é que nunca sabemos realmente para onde vamos. Se eu soubesse, quando dei­xei os Estados Unidos cheio de entusiasmo juvenil pela causa da Fraternidade entre os Homens, que viria cair nas garras de mais um desses Ditadores enviados pelo céu... — ele ergueu os braços.

— Você ainda não está certo disso — lembrou-lhe Hilary.

— Mas sinto o cheiro... no ar — disse Peters.

— Oh! — disse Hilary, — como estou contente por você estar aqui.

— Ela corou quando ele a olhou como se a interro­gasse.

— Você é tão simpático e tão comum — disse Hilary muito sem jeito.

Peters parecia estar achando graça.

— No meu país — disse ele — a palavra comum não tem o sentido que você lhe dá. Pode significar que uma pessoa é simplesmente ordinária.

— Você sabe que não foi essa a minha intenção. Quis dizer que você é igual a todo mundo. Oh! Meu Deus, isto também pode parecer indelicado.

— Então você procura o homem comum? Já não pode mais suportar o gênio?

— Sim, e você também mudou depois que aqui che­gou. Já não tem mais aquele tom de amargura, de ódio.

Imediatamente o seu rosto tornou-se sombrio.

— Não esteja certa disso — disse ele. — Eles ainda existem, escondidos. Ainda posso odiar. Acredite-me, há coisas que devem ser odiadas.

A Reunião, como a Srta. Jennsen a chamava, reali­zou-se depois do jantar. Todos os membros da Uni­dade reuniram-se na grande sala de conferências.

A audiência não incluía o que se poderia chamar o pessoal técnico: assistentes de laboratório, o corpo de bailados, o pessoal dos diversos serviços e o pequeno gru­po de belas prostitutas que trabalhavam na Unida­de, atendendo às necessidades sexuais dos homens que não tinham mulheres com eles ou não tivessem estabelecido ligações com funcionárias.

Sentada junto a Betterton, Hilary esperava com grande curiosidade a chegada à plataforma da figura qua­se mitológica do Diretor. As perguntas que fizera a Bet­terton obtiveram respostas vagas e pouco satisfatórias quanto à personalidade do homem que controlava a Uni­dade.

— Sua aparência não é grande coisa — disse ele. — Mas causa um impacto tremendo. Realmente, eu só o vi duas vezes. Ele não aparece freqüentemente. Sente-se que ele é um homem notável mas, francamente, não sei explicar por que.

Pelo modo reverencioso com que a Srta. Jennsen, e outros, tinham falado dele, Hilary tinha formado uma va­ga imagem mental de um homem alto, com uma barba loura e usando uma túnica branca — uma espécie de abs­tração parecida com Deus.

Ficou muito admirada quando a audiência levantou-se e um homem moreno, corpulento e de meia-idade su­biu calmamente para a plataforma. A sua aparência na­da tinha de especial; poderia ser um negociante da parte central da Inglaterra. Não se podia distinguir a sua na­cionalidade. Falou-lhes em três línguas, alternadamente, e sem repetir o que dizia. Falou em francês, inglês e ale­mão, falando fluentemente as três línguas.

— Em primeiro lugar — disse ele, — quero dar as boas-vindas aos colegas que vieram juntar-se a nós.

Depois, disse algumas palavras elogiosas para cada um dos recém-chegados.

Em seguida, falou dos objetivos e das convicções da Unidade.

Mais tarde, tentando recordar-se de suas palavras, Hilary verificou que não o podia fazer, nem mesmo de forma aproximada. Ou talvez fosse porque as palavras, como ela as recordava, parecessem vulgares e comuns. Mas ouvi-las era uma coisa muito diferente.

Hilary recordou-se do que lhe contara uma amiga que vivera na Alemanha, antes da guerra, e que certo dia, por mera curiosidade, fora a um comício ouvir aquele ab-surdo Hitler, e que, subitamente, viu que estava choran­do histericamente, presa de intensa emoção. Ela descre­veu como cada palavra lhe parecera sábia e estimulante mas que, depois, as palavras de que se recordava pare­ciam muito banais.

Algo parecido estava acontecendo agora. Contra a sua vontade, Hilary sentia-se comovida e exaltada. O Di­retor falou com muita simplicidade. Falou, principal­mente da Mocidade. O futuro da humanidade estava nas mãos da Mocidade.

— Riqueza acumulada, prestígio, famílias influentes, tinham sido as forças do passado. Mas hoje, o poder está com a Mocidade. O poder está nos cérebros. Os cérebros dos químicos, dos físicos, dos médicos. Dos laboratórios provém o poder da destruição em larga escala. Com tal poder é possível proclamar: — Rendam-se ou Pereçam! — Tal poder não deve ser conferido a esta ou aquela na­ção. O poder deve ficar nas mãos dos que o criaram.   A Unidade é o ponto de reunião do Poder do mundo. Os senhores vieram de todas as partes do mundo, trazen­do o vosso conhecimento científico e o vosso poder cria­dor. E, com os senhores veio a Mocidade. Não há ninguém aqui com mais de quarenta e cinco anos. Quando o dia chegar, criaremos um Conselho. O Conselho de Cérebros Científicos. E nós dirigiremos todo o Mundo. Daremos nossas ordens a Capitalistas, a Reis, aos Exércitos e à In­dústria. Daremos ao mundo a Pax Científica!

E as palavras continuavam — estimulantes e intoxicantes — mas não eram as palavras em si — era a força do orador que empolgava uma platéia que poderia ser fria e inclinada a criticar se não tivesse sido arrebatada por uma força, que não tem nome, sobre a qual tão pouco se sabe.

O Diretor terminou abruptamente:

— Coragem e Vitória. Boa Noite.

Hilary deixou o salão cambaleando e como se ainda estivesse num sonho de exaltação. Nas fisionomias de muitas outras pessoas pôde ler os mesmos sentimentos. Notou, particularmente, que Ericsson tinha a cabeça er­guida, exultante, e que seus pálidos olhos brilhavam.

Nesse momento sentiu a mão de Andy Peters em seu braço e ouviu a sua voz dizer-lhe ao ouvido:

— Vamos para o terraço. Precisamos respirar.

Subiram no elevador, sem trocar palavras, e começa­ram a andar entre as palmeiras e sob as estrelas.

— Sim — disse ele. — É disso que precisamos. Ar para dissipar as nuvens de glória.

Hilary suspirou profundamente. Ela ainda se sentia num mundo irreal.

Ele sacudiu amistosamente o braço dela.

— Saia deste transe, Olive.

— Nuvens de glória — disse Hilary. — Sabe, foi algo como isso!

— Não pense mais nisso, por favor. Seja uma mu­lher realista, com os pés no chão. Quando os efeitos do Gás Venenoso da Glória passarem você verá que esteve ouvindo as mesmas baboseiras de sempre.

— Mas foi magnífico, quero dizer, um magnífico ideal.

— Bolas para os ideais. Veja os fatos. Mocidade e Cérebro, Aleluia! Aleluia! E que são a Mocidade e o Cé­rebro? Helga Needheim, uma egoísta sem escrúpulos. Torquil Ericsson, um sonhador sem nenhum senso prá­tico. O Dr. Barron, que venderia a sua avó a um fabri­cante de rações para cachorros a fim de comprar equipa­mento para seu laboratório. Veja-me a mim, por exem­plo, um homem comum, como você mesma disse, com­petente com um tubo de ensaio ou um microscópio mas sem qualquer capacidade para dirigir eficientemente um escritório e muito menos um Mundo. Veja o seu mari­do... sim, eu vou dizê-lo... um homem cujos nervos es­tão em frangalhos e que só pensa no medo de um dia ser castigado. Mencionei as pessoas que nós conhecemos me­lhor, mas todos aqui são parecidos, pelo menos os que já conheço. Alguns são verdadeiros gênios, formidáveis em suas especialidades, mas quanto a serem os Dirigentes do Mundo, só mesmo rindo. O que nós estivemos ouvindo não passa de idiotices perniciosas.

Hilary sentou-se no parapeito de concreto. Passou a mão pela testa.

— Quer saber de uma coisa? — disse ela. — Eu acho que você tem razão... mas as nuvens de glória ainda dei­xaram vestígios. Como é que ele consegue? Ele próprio acreditará nas coisas que diz? Deve acreditar.

Peters disse, com um ar triste:

— Penso que é a mesma história de sempre. Um lou­co que julga ser Deus.

— Talvez sim. Entretanto... a explicação não pa­rece ser muito satisfatória.

Ele a olhou como que interrogando.

— Mas isso acontece, minha cara. No correr da His­tória tem acontecido várias vezes. E domina as pessoas. Quase fui dominado esta noite. E você ficou completa­mente convencida. Se eu não a tivesse quase arrastado para cá... — seu modo mudou bruscamente. — Acho que eu não devia ter feito isto. Que irá dizer Betterton? Vai achar estranho.

— Creio que não. Duvido, mesmo, que ele tenha no­tado.

Ele a interrogou com o olhar.

— Sinto muito, Olive. Deve ser um verdadeiro in­ferno para você vê-lo decair assim.

Hilary falou com hesitação.

— Temos que sair daqui.   Temos que sair. Temos que sair.

— Sairemos.

— Você já disse isto antes... mas não temos adian­tado um só passo.

— Temos sim. Eu não tenho ficado parado.

Ela o olhou com surpresa.

— Não tenho um plano certo mas já comecei uma ação subversiva. Há muito descontentamento aqui, muito mais do que sabe o nosso semideus, Herr Direktor. Que­ro referir-me aos membros mais modestos da Unidade. Comida, dinheiro, luxo e mulheres não representam tudo, sabe? Eu ainda a tirarei daqui, Olive.

— E o Tom também?

O rosto de Peters se enuviou.

— Escute Olive, e acredite no que digo. Para Tom será melhor ficar aqui. Ele está... está... mais seguro aqui que no mundo exterior.

— Mais seguro? Que expressão curiosa!

— Mais seguro — disse Peters, — eu o disse delibe­radamente.

Hilary franziu a testa.

— Eu não entendo bem o que você quer dizer.   Tom não está... você não está pensando que ele vai ficar lou­co, está?

— Nada disso. Ele está muito nervoso mas eu o con­sidero tão equilibrado quanto você e eu.

— Mas, então, por que você diz que ele aqui estará mais seguro?

Peters disse pausadamente:

— Uma jaula, você sabe, é um lugar muito seguro para se estar.

— Oh! não — exclamou Hilary. — Não me diga que você, também, vai acreditar nisto. Não me diga que o hip­notismo ou a sugestão em massa está agindo sobre você. Seguro, domesticado, satisfeito. Nós temos que nos rebe­lar algum dia.   Temos que ter a vontade de ser livres.

Peters disse, pausadamente:

— Sim. Eu sei. Mas...

— Tom, de qualquer forma, tem um desejo quase desesperado de sair daqui.

— Talvez Tom não saiba o que seria melhor para ele.

Subitamente, Hilary recordou-se do que Tom, vela­damente, lhe dissera. Se ele tinha-se apoderado de infor­mações secretas, estaria sujeito a ser processado confor­me as Leis contra a Espionagem. — Era isto que Peters estava querendo indicar com seu modo algo encabulado. Mas Hilary não tinha dúvidas. Tudo era preferível a fi­car neste lugar, mesmo sofrer uma pena de prisão. Obsti­nadamente, ela disse:

— Tom também tem que sair.

Ficou muito admirada quando Peters, em tom amar­go, disse:

— Seja como você quiser. Eu a avisei. Gostaria mui­to de saber o que faz você querer tanto a esse homem.

Consternada, ela o fitou. Palavras saltaram a seus lábios mas ela as reteve. Compreendia que o que real­mente queria dizer era: — Eu não o amo. Ele nada sig­nifica para mim. Ele era o marido de outra mulher e eu devo cumprir a promessa feita a ela. — Ela queria di­zer: — Seu tolo, se há alguém que eu ame é você...

— Divertiu-se com seu americano domesticado?

Tom Betterton como que lhe atirou as palavras quan­do ela voltou ao quarto. Ele estava deitado na cama, fumando.

Hilary corou, ligeiramente.

— Nós chegamos aqui juntos — disse ela, — e pen­samos da mesma maneira sobre diversos assuntos.

Ele riu.

— Ora, eu não a estou culpando — pela primeira vez ele a olhava com algum interesse. — Você é uma bonita mulher, Olive.

Desde o princípio Hilary tinha insistido para que ele a chamasse pelo nome da sua mulher.

— Sim — continuou ele olhando-a de alto a baixo. — Você é uma mulher muito bonita.   Antigamente, eu já teria notado isto.   Mas agora nada disto parece ter qual­quer influência sobre mim.

— Talvez seja melhor assim — disse Hilary seca­mente.

— Eu sou um homem perfeitamente normal, ou pelo menos, o era, minha cara. Só Deus sabe o que sou agora.

Hilary sentou-se junto dele.

— Que há com você, Tom? — perguntou ela.

— Eu vou dizer. Não consigo concentrar-me. Como um cientista eu não valho mais nada. Este lugar...

— Os outros... ou a maioria deles... não parecem sentir o mesmo que você.

— Porque são uns insensíveis, penso eu.

— Alguns deles são bastantes temperamentais — dis­se Hilary, secamente. E continuou: — Se ao menos você tivesse um amigo aqui... um amigo de verdade.

— Posso mencionar o Murchison, embora ele seja muito taciturno.   E ultimamente tenho conversado bas­tante com Torquil Ericsson.

— Não diga?

Por algum motivo Hilary sentiu surpresa.

— Sim. Por Deus, ele é formidável. Gostaria de ter um cérebro como o dele.

— Ele é um tipo estranho — disse Hilary. — Ele me parece assustador.

— Assustador? Torquil? Ele é manso como um cor­deiro. Sob certos aspectos é uma criança.   Nada sabe so­bre o mundo.

— Bem, eu acho que ele é assustador — repetiu Hila­ry, obstinadamente.

— Seus nervos também estão ficando abalados.

— Ainda não, mas acho que estou caminhando para isso. Tom... não se torne muito amigo de Torquil Ericsson.

— Mas, por quê?

— Não sei explicar. É um pressentimento.

 

Leblanc encolheu os ombros.

— É fora de dúvida que saíram da África.

— Não temos certeza.

— As probabilidades assim o indicam — o francês sacudiu a cabeça. — Além do mais, nós sabemos muito bem para onde eles devem ter ido.

— Se o destino deles é o que nós pensamos, por que motivo iniciar a viagem da África? Qualquer ponto da Europa seria mais adequado e mais simples.

— Isto é verdade. Mas há um outro lado. Ninguém pensaria que eles se reuniriam e partiriam daqui.

— Eu ainda penso que há algo mais, além disso — Jessop insistia, de mansinho. — Além do mais, só um pequeno avião poderia usar aquele campo. Teria que pou­sar e ser reabastecido antes de atravessar o Mediterrâ­neo. E se tivessem aterrado em algum lugar teriam dei­xado algum sinal, alguma pista.

— Mon cher, temos feito buscas rigorosas... em to­da a parte tem havido...

— Os homens com os contadores Geiger acabarão por descobrir alguma coisa. O número de aviões a serem examinados é limitado. Basta um vestígio de radioativi­dade e saberemos que é o avião que procuramos.

— Se o meu agente tiver podido usar o pulverizador. Raios! Encontramos sempre tantos se...

— Acabaremos conseguindo resultados — disse Jes­sop, obstinadamente. — Eu me pergunto...

— Sim?

— Nós presumimos que eles foram para o Norte. em direção ao Mediterrâneo; suponha que, em vez disso, eles tenham voado para o Sul.

— Andado em sentido contrário? Mas, neste caso para onde poderiam eles ter voado? Há as montanhas do Alto Atlas... e depois disso as areias do deserto.

 

— Sidi, o senhor jura que ganharei o que me prome­teu? uma bomba de gasolina na América em Chicago? Isto é garantido?

— É garantido, Mohamed, contanto que saiamos daqui.

— O êxito depende da vontade de Allah.

— Esperemos, então, que a vontade de Allah seja que você tenha uma bomba de gasolina em Chicago. Mas, por que em Chicago?

— Sidi, o irmão da minha mulher foi para a Améri­ca e tem uma bomba de gasolina em Chicago.   Por que irei eu passar o resto dos meus dias num lugar atrasado? Aqui há dinheiro, muita comida, muitos tapeies e mulhe­res... mas não é moderno. Não é americano.

Peters olhou, pensativamente, para o rosto negro e cheio de dignidade. Mohamed, com a sua túnica branca, era um tipo magnífico. Que estranhos desejos brotavam, no coração humano!

— Não sei se você está agindo com prudência — dis­se ele, com um suspiro, — mas que assim seja. É claro que se nós formos descobertos...

Um sorriso no rosto negro fez aparecer lindos den­tes brancos.

— Então será a morte... para mim, sem qualquer dúvida. Para o senhor não, Sidi, porque o senhor é va­lioso.

— Eles aqui matam com facilidade, não é?

Os ombros do outro homem ergueram-se e baixaram, com indiferença.

— Que é a morte? Ela, também, depende da vontade de Allah.

— Você sabe o que deve fazer?

— Sei, Sidi, devo levá-lo ao terraço, no telhado, de­pois de escurecer. Também devo levar ao seu quarto rou­pas iguais às que eu e os outros criados usamos. Depois... haverá outras coisas.

— Certo. É melhor que você me deixe sair do ele­vador agora. Alguém pode notar que estamos andando para cima e para baixo. Podem desconfiar.

 

Naquela noite estavam dançando. Andy Peters dan­çava com a Srta. Jennsen. Ele a mantinha bem junto a si e parecia murmurar em seu ouvido. Quando o par, gi­rando lentamente, passou pelo ponto onde Hilary estava em pé, ele a viu e piscou, ostensivamente.

Hilary, mordendo os lábios para evitar sorrir aber­tamente, desviou rapidamente o olhar.

Seus olhos relancearam para o outro lado do salão, onde Betterton estava falando com Torquil Ericsson. Hi­lary franziu o cenho ao vê-los juntos.

— Quer dançar comigo, Olive? — disse a voz de Mur­chison, perto dela.

— Com prazer Simon.

— Mas olhe que eu não sou bom dançarino — ele avisou.

Hilary concentrou sua atenção em evitar que ele lhe pisasse os pés.

É um bom exercício, lá isto é — disse Murchison um pouco ofegante. Ele dançava energicamente.

— Muito bonito o seu vestido, Olive.

A sua conversa sempre parecia um trecho de uma ve­lha novela.

— Fico contente por saber que você gosta dele.

— Encontrou-o no Departamento de Modas?

Resistindo à tentação de responder: — Onde mais po­deria ter sido, Hilary respondeu com um simples:

— Sim.

É forçoso confessar — disse Murchison, que ofe­gava enquanto giravam pelo salão, — que eles nos dão de tudo por aqui. Foi o que eu disse a Bianca no outro dia. É muito melhor que o Estado Paternalista. Não há pre­ocupações com dinheiro, imposto de renda, manutenção ou conservação de casa. Tudo que possa incomodar é aten­dido por eles. Acho que, para uma mulher, deve ser uma vida maravilhosa.

— Bianca acha que é?

— Bem, por algum tempo ela ficou um pouco nervo­sa, mas depois conseguiu organizar algumas comissões e outras coisas... para debates e conferências, sabe? Ela acha que você não está participando das atividades, co­mo poderia.

— Lamento, mas não sou desse tipo, Simon. Eu nun­ca tive muito espírito associativo.

— Sim, mas vocês mulheres precisam ter distrações de alguma espécie. Bem, eu não queria dizer exatamente distrações.

— Ocupações?

— Sim... quero dizer que a mulher moderna gosta de ter alguma atividade. Sei, muito bem, que mulheres como você e Bianca fizeram um grande sacrifício vindo para aqui... nenhuma de vocês, graças a Deus, é cien­tista. Ah! essas mulheres cientistas! São quase todas o cúmulo!   Eu disse a Bianca: é preciso dar algum tempo à Olive, ela tem necessidade de um período de adaptação. É preciso algum tempo para ficar acostumado com este lugar. No princípio, sente-se uma certa claustrofobia. Mas passa, acaba passando.

— Você quer dizer que podemos acostumar-nos a qualquer coisa?

— Bem, algumas pessoas sentem mais que outras. Tom. por exemplo, parece sentir muito. Onde está o ve­lho Tom, hoje? Ah! lá está ele com o Torquil. Os dois estão ficando inseparáveis.

— Preferia que não fossem. Quero dizer, não me parecia que eles tivessem muita coisa em comum.

— O jovem Torquil parece estar fascinado por seu marido. Segue-o por toda a parte.

— Já notei isso e me pergunto: por quê?

— Bem, ele sempre tem uma teoria fantástica que precisa comunicar a alguém. Eu não o consigo entender porque, além do mais, o seu inglês não é muito bom, corno sabe. Mas o Tom o ouve e parece compreender tudo.

A dança acabou. Andy Peters apareceu e convidou Hilary para a seguinte.

— Eu observei você sofrendo por uma boa causa — disse ele. — Levou muitas pisadas?

— Oh! eu fui bastante ágil.

— Observou como eu fazia o meu trabalho?

— Com a Jennsen?

— Sim. Creio que posso afirmar, sem falsa modés­tia, que consegui um belo sucesso. Essas mulheres sem beleza, angulosas e míopes reagem otimamente, quando o tratamento é adequado.

— Você, certamente, dava a impressão de estar caído por ela.

— Era essa a idéia. Aquela moça, Olive, se for tra­tada com jeito, pode ser muito útil. Ela está bem infor­mada sobre tudo que se passa aqui. Por exemplo: ama­nhã devem chegar alguns personagens muito importan­tes: doutores, alguns altos funcionários do governo e um ou dois ricos patrocinadores.

— Andy, você acredita que pode haver uma possibi­lidade...

— Não, não creio. Aposto como tomarão todas as precauções. Não alimente falsas esperanças. Mas será valioso porque ficaremos fazendo uma idéia de como cor­rem as coisas. E, na próxima oportunidade, bem, talvez se consiga alguma coisa. Enquanto a Jennsen estiver caí­da por mim poderei tirar dela muitas informações inte­ressantes.

— As pessoas que vão chegar sabem alguma coisa sobre o que isto aqui realmente é?

— Sobre nós, quero dizer, a Unidade nada. Pelo me­nos assim creio. Eles inspecionam a povoação e os labo­ratórios de pesquisas médicas. Isto aqui foi propositalmente construído como um labirinto, de sorte que nin­guém que chegue possa, sequer remotamente, ter uma idéia do tamanho real. Penso que há umas espécies de comportas que podem separar completamente o nosso setor.

— Tudo parece simplesmente inacreditável.

— Eu bem sei. A metade do tempo, temos a impres­são de estar sonhando. Uma das coisas irreais, aqui, é que nunca se vê uma criança. Graças a Deus que não há. Você deve-se regozijar por não ter um filho.

Ele notou que ela ficara rígida ao ouvir suas pa­lavras.

— Oh, peço desculpas... não devia ter dito isso.

— Não é nada, você não tem nenhuma culpa.

Ele a levou para uma cadeira.

— Eu sinto muito — repetiu ele. — Eu a fiz sofrer, não foi?

— Você não precisa pedir desculpas. Eu tive uma filha e ela morreu.

— Você teve uma filha? — ele a olhou com surpresa. — Eu pensei que você só estivesse casada com Betterton há seis meses.

— Sim, é verdade. Mas eu fui casada antes. Divor­ciei-me do meu primeiro marido.

— Agora percebo. Neste lugar não se sabe nada so­bre a vida das pessoas antes de sua chegada, e acontece que se pode dizer o que não se devia. Parece-me estra­nho pensar, algumas vezes, que eu nada sei a seu res­peito.

— Eu também nada sei sobre você. Como foi edu­cado... onde.. sua família...

— Eu cresci num ambiente estritamente científico. Pode-se dizer que fui alimentado com tubos de ensaio. Ninguém pensava ou falava em outra coisa senão ciên­cia. Mas eu nunca fui o menino inteligente da família. O gênio estava com outro.

— Com quem?

— Uma menina. Ela era brilhante. Poderia vir a ser uma nova Mme. Curie. Poderia ter rasgado novos ho­rizontes.

— Ela... que aconteceu com ela?

Ele respondeu laconicamente:

— Ela foi morta.

Hilary imaginou uma tragédia da guerra. Com muita doçura disse:

— Você gostava dela?

— Mais do que gostei de qualquer outra pessoa.

Repentinamente, ele voltou à realidade.

— Mas que diabo, nós temos bastante complicações no presente, aqui mesmo e agora mesmo. Veja só o nosso amigo norueguês. A não ser os seus olhos, parece todo feito de pau. Quando ele faz aquela sua maravilhosa re­verência, parece que alguém puxou um barbante.

— É porque ele é tão alto e tão magro.

— Não é tão alto assim. Deve ter minha altura. Um metro e oitenta ou oitenta e três.

— A altura de uma pessoa engana muito.

— É verdade. Como a descrição nos passaportes. To­memos Ericsson. Altura: um metro e oitenta e três. Ca­belos louros. Olhos azuis. Rosto comprido. Aparência de madeira. Nariz médio. Boca comum. Acrescente, se quiser, o que o passaporte não diz: fala corretamente mas de forma pedante... com tudo isto você não teria a menor idéia de como Torquil realmente é. Que houve?

— Nada.

Ela fitava Ericsson que estava do outro lado do salão. Aquela descrição de Boris Glydr! Quase que, palavra por palavra, o que ouvira de Jessop. Seria por isso que ela ficava nervosa com a presença de Torquil Ericsson? Seria possível que... Virando-se bruscamente para Peters, ela disse:

— Tem certeza de que ele é Ericsson? Não poderia ser outra pessoa?

Peters olhou-a abismado.

— Outra pessoa? Quem?

— Quero dizer... não poderia ele ter vindo para cá simulando ser Ericsson?

Peters ficou pensativo.

— Eu julgo... não, não creio que isso fosse possível. Ele teria que ser um cientista... e além do mais Ericsson é bastante conhecido.

— Mas ninguém aqui parece tê-lo visto antes; supo­nho que ele possa ser Ericsson e também ser outra pessoa.

— Você quer dizer que Ericsson poderia ter uma espécie de vida dupla? Isso talvez fosse possível, creio eu. Mas não é muito provável.

— Não — disse Hilary, — não, evidentemente não é provável.

Evidentemente, Ericsson não era Boris Glydr. Mas, por que então, teria Olive Betterton insistido tanto em prevenir Tom contra Boris? Teria ela sabido que Boris estava a caminho da Unidade? E supondo que o homem que viera a Londres dizendo ser Boris Glydr não fosse Boris Glydr? Supondo que ele fosse Torquil Ericsson? A descrição coincidia. Desde que chegara à Unidade con­centrara suas atenções em Tom. Ela tinha certeza de que Ericsson era um homem perigoso... ninguém podia saber o que se passava por trás daqueles olhos claros e sonha­dores ...

Ela teve um arrepio.

— Olive, que há? Que está acontecendo?

— Nada. Veja, o Diretor Adjunto vai fazer uma co­municação.

O Dr. Nicholson estava erguendo a mão, pedindo si­lêncio. Falava ao microfone que havia no palco do salão.

— Amigos e colegas. Amanhã vocês deverão, por obséquio, permanecer no Setor de Emergência. Queiram reunir-se às onze horas da manhã quando será feita a chamada. A ordem de Emergência durará apenas vinte e quatro horas. Lamento causar-lhes incômodo. Um aviso já foi colocado no quadro.

Afastou-se, sorrindo. A música continuou.

— Tenho que me dedicar novamente à Jennsen — disse Peters. — Lá está ela, muito séria, junto a uma coluna. Quero saber como são essas acomodações de Emergência.

Ele se afastou. Hilary ficou sentada, pensando. Esta­ria ela imaginando coisas sem nexo? Torquil Ericsson? Boris Glydr?

 

A chamada foi na grande sala de conferências. Todos estavam presentes e responderam quando seus nomes foram mencionados. Depois, formando uma longa coluna, começaram a caminhar.

O caminho, como de costume, seguia um labirinto de corredores. Hilary, andando ao lado de Peters, sabia que ele tinha uma pequena bússola escondida na mão. Olhan­do para a bússola, sem chamar atenção, procurava veri­ficar em que direção estavam caminhando.

— Não adianta muito — disse ele em voz baixa e meio triste. — De qualquer forma não nos ajuda, neste momen­to. Mas poderá ser útil... noutra ocasião.

No fim do corredor por onde iam havia uma porta. O grupo parou, por um momento, até que a porta fosse aberta.

Peters tirou a cigarreira do bolso mas, imediatamente, ouviu-se a voz de van Heiden, alta e peremptória:

— Não fumem, por favor. Os senhores já tinham sido avisados.

— Perdão, senhor.

Peters parou, com a cigarreira na mão. Depois todos prosseguiram.

— Exatamente como carneiros — disse Hilary enojada.

— Anime-se — murmurou Peters. — Bé, bé, há uma ovelha negra no rebanho, pensando em fazer diabruras.

Ela lhe lançou um olhar agradecido e sorriu.

— O dormitório das mulheres fica à direita — disse a Srta. Jennsen. Ela levou as mulheres na direção indi­cada.

O dormitório era um grande salão de aspecto higiê­nico e que parecia ser uma enfermaria. Havia camas junto às paredes com cortinas de matéria plástica que podiam ser corridas para resguardar os ocupantes. Junto a cada cama havia um pequeno armário.

— As acomodações são um tanto simples — disse a Srta. Jennsen, — mas não demasiado primitivas. Os ba­nheiros e lavatórios ficam ali à direita. A sala de estar fica atrás daquela porta, lá no fundo.

A sala de estar comum, onde todos se reuniram depois, era mobiliada com simplicidade. Parecia a sala de espera de um aeroporto. Havia, de um lado, um bar e o balcão de uma lanchonete. Do outro, estavam estantes com livros.

O dia correu bastante agradavelmente. Exibiram fil­mes numa pequena tela portátil.

A iluminação era do tipo chamado luz solar que dis­farçava o fato de não existirem janelas. Quando a tarde chegou, acenderam outras lâmpadas que produziam uma luz suave e discreta como a do crepúsculo.

— Inteligente — disse Peters com admiração. — Aju­da a diminuir a sensação de se estar emparedado vivo.

Como eles estavam isolados e abandonados, pensou Hilary. Em algum lugar, bem perto deles, estava um grupo de pessoas vindas do mundo exterior. E não havia meios de se comunicarem com elas, de pedir socorro. Tudo ali fora impiedosa e eficientemente planejado.

Peters estava sentado perto da Srta. Jennsen. Hilary sugeriu aos Murchisons jogarem brigde. Tom Betterton recusou jogar, alegando que não podia concentrar-se, mas o Dr. Barron aceitou ser o quarto parceiro.

Pareceu-lhe estranho, mas Hilary gostou de jogar. Já eram onze e meia quando acabaram o terceiro rubbler sendo ganhadores Hilary e o Dr. Barron.

— Gostei muito do jogo — disse ele, olhando para o relógio. — Já é bem tarde e suponho que os visitantes importantes já terão ido embora, ou será que eles vão pernoitar aqui?

Realmente não sei — disse Simon Murchison. — Su­ponho que um ou dois dos médicos mais interessados fi­quem. De qualquer forma, todos terão partido até amanhã ao meio-dia.

— E então seremos, novamente, postos em circulação?

— Sim. E não será sem tempo. Essa espécie de con­tratempo atrapalha a nossa rotina de trabalho.

— Mas foi tudo bem organizado — disse Bianca.

Ela e Hilary levantaram-se e deram boa noite para os homens.

Hilary recuou um pouco para deixar Bianca entrar na penumbra do dormitório. Neste momento sentiu que lhe tocavam levemente no braço.

Virou-se rapidamente e viu um dos criados altos e de cara escura a seu lado.

Ele falou em voz baixa, mas insistente.

— S’il vous plait, Madame, a senhora deve acompa­nhar-me.

— Acompanhar? Para onde?

— Faça o favor de seguir-me.

Ela ficou indecisa, por uns momentos.

Bianca entrara no dormitório. Na sala de estar ainda havia algumas pessoas conversando.

Novamente sentiu aquele toque, leve e insistente, em seu braço.

— A senhora virá comigo, por favor.

Ele deu alguns passos, parou e olhou para ela, fa­zendo um gesto para que o seguisse. Com certo receio, Hilary o acompanhou.

Notou que o criado estava muito mais ricamente ves­tido que os outros. Sua túnica era ricamente bordada com fio de ouro.

Ele a levou até uma pequena porta num canto da sala de estar e, depois, através dos infindáveis e anôni­mos corredores brancos. Pareceu-lhe que não seguiam o mesmo caminho pelo qual tinham vindo para o Setor de Emergência, mas era difícil ter certeza porque todos os corredores eram semelhantes. Olhou para trás para fazer uma pergunta mas o guia sacudiu a cabeça, com impa­ciência, e andou mais depressa.

Finalmente, ele parou no fim de um corredor e aper­tou um botão na parede. Um painel se abriu revelando um pequeno elevador. Ele fez um gesto para que ela en­trasse, seguiu-a e o elevador começou a subir rapidamente.

Hilary disse, com rispidez:

— Para onde está-me levando?

Os olhos escuros fitaram-na como uma espécie de reprovação.

— Até o Patrão, Madame. — É uma grande honra para a senhora.

— Quer dizer o Diretor, não é?

— O Patrão...

O elevador parou. Ele abriu a porta e fez um gesto para que ela saísse. Seguiram um outro corredor e che­garam a uma porta. O guia bateu e a porta foi aberta. Ali estava outro criado com vestes brancas bordadas de ouro e o rosto negro e impassível. O homem conduziu Hilary sobre o tapete vermelho da ante-sala e abriu uma cortina de fios pendentes. Hilary passou e encontrou-se, inesperadamente, num interior quase oriental. Havia baixos divãs, mesas para café e um ou dois lindos tapetes na parede. Sentado num divã estava uma figura que ela fitou com completa incredulidade. Pequeno, amarelo, en­rugado e velho. Ali estava, sorrindo para ela, com olhos brilhantes, Monsieur Aristides.

 

— Asseyez-vous, chère madame — disse Monsieur Aristides.

Ele fez um gesto com sua pequena mão, que parecia uma garra, e Hilary, como num sonho, sentou-se num divã, em frente a ele. Ele fez ouvir um leve cacarejo, que era uma risada.

— Está surpreendida — disse ele. — Não esperava por isto, não é?

— Certamente que não — disse Hilary. — Eu nunca pensei... nunca imaginei...

Mas a surpresa já estava diminuindo.

Ao reconhecer Monsieur Aristides o mundo de sonhos que estivera vivendo por alguns dias quebrou-se em pe­daços. Sabia agora que a Unidade lhe parecera irreal porque era irreal. Nunca fora o que parecia ser. O Herr Direktor com sua voz arrebatadora também era irreal — um mero personagem de ficção ali colocado para esconder a verdade. A verdade estava aqui, nesta sala oriental e secreta. Um pequeno velho sentado e rindo mansamente. Com Monsieur Aristides no centro do quadro tudo pas­sava a ter sentido... sentido prático e evidente.

— Agora percebo — disse Hilary. — Isto... é tudo seu, não é?

— Sim, Madame.

— E o Diretor. O assim chamado Diretor?

— Ele é muito bom — disse Monsieur Aristides, com convicção. — Eu lhe pago um salário muito alto. Ele, antes, pregava religião a multidões.

Fumou, pensativo, por alguns momentos. Hilary ficou silenciosa.

— Há Delícias Turcas perto da senhora, Madame. E outros doces, se os preferir. — Houve uma nova pausa e depois ele falou: — Eu sou um filantropo, Madame. Como sabe, sou rico. Um dos mais ricos, ou talvez o ho­mem mais rico do mundo atual. Com a minha riqueza sinto a obrigação de servir à humanidade. Estabeleci aqui, neste lugar remoto, uma colônia de leprosos e um grande centro de pesquisas sobre o problema e a cura da lepra. Alguns tipos de lepra são curáveis. Outros, entretanto, são, até hoje, incuráveis. Mas estamos trabalhando cons­tantemente e obtendo bons resultados. A lepra não é uma moléstia que se transmite com facilidade. Não é, nem de longe, tão contagiosa como a varíola, o tifo, a peste e tantas outras. Entretanto, se dissermos a muita gente uma colônia de leprosos quase todos estremecerão e pas­sarão o mais longe que lhes for possível. É um temor muito antigo. Um temor que se encontra na Bíblia e que vem subsistindo todo esse tempo. O horror aos leprosos. Ele me foi útil na criação deste lugar.

— Foi por esse motivo que o criou?

— Sim, temos também um departamento de pesqui­sas sobre o câncer e trabalhos muito importantes estão sendo feitos sobre a tuberculose. Temos, além disso, pes­quisas sobre os vírus... para encontrar curas, bien en­tendu, a guerra biológica não é sequer mencionada. Tudo é humanitário, tudo é aceitável e reflete de maneira muito honrosa para mim. Os mais renomados médicos, cirurgiões e pesquisadores químicos aqui vêm, de vez em quando, tal como aconteceu hoje, para verificar os resul­tados que estamos obtendo. As construções foram habil­mente concebidas, de sorte que uma boa parte é comple­tamente isolada e invisível, até mesmo para um obser­vador aéreo. Os laboratórios mais secretos foram escavados na rocha viva. De qualquer maneira, estou acima de qualquer suspeita. — Sorriu e concluiu, com simplici­dade: — Sou muito rico, compreende?

— Mas, por quê? — perguntou Hilary. — Por que esta ânsia de destruição?

— Eu não tenho ânsia de destruição, Madame. A se­nhora está sendo injusta para comigo.

— Mas então... eu positivamente não entendo.

— Sou um homem de negócios — disse Monsieur Aristides com naturalidade. — Sou também um colecio­nador. Quando a riqueza começa a oprimir, é a única coisa a fazer. Tenho colecionado muitas coisas em minha vida. Quadros... tenho a melhor coleção da Europa. Alguns tipos de cerâmica. Filatelia... minha coleção de selos é famosa. Quando uma coleção chega a ser real­mente representativa, quase completa, passa-se para outra coisa. Sou um velho, Madame, e não há muitas outras coisas para eu colecionar. Assim sendo eu resolvi, final­mente, colecionar cérebros.

— Cérebros?

Ele fez que sim, com a cabeça.

— Sim, é a coisa mais interessante para colecionar. Pouco a pouco, Madame, estou reunindo aqui todos os cérebros do mundo. Os homens jovens, são esses que trago para cá. Jovens que prometem, jovens que realizam. Um dia as nações cansadas do mundo acordarão e verificarão que os seus cientistas estão velhos, ultrapassados, mofa­dos e que todos os cérebros moços do mundo, os médicos, os pesquisadores da química, os físicos e os cirurgiões estão aqui, sob a minha tutela. Se quiserem um cientista, ou um cirurgião plástico, ou um biólogo, terão que vir aqui e comprá-lo a mim.

— Quer dizer... — Hilary inclinou-se para a frente, fitando-o. — Quer dizer que tudo isto é uma gigantesca operação financeira?

Novamente Monsieur Aristides sacudiu a cabeça, concordando.

— Sim — disse ele. — Naturalmente. De outra forma não teria sentido, não é?

Hilary suspirou profundamente.

— Não —- disse ela. — Não teria nenhum sentido.

— Afinal de contas, a senhora compreende — disse Monsieur Aristides, quase como que pedindo desculpas, — é a minha profissão. Eu sou um financista.

— Então o senhor quer dizer que isto tudo não tem nenhum ângulo político? O senhor não pretende dominar o mundo?

Ele ergueu os braços em protesto.

— Eu não quero ser Deus — disse ele. — Sou um homem religioso. Os ditadores é que pegam esta molés­tia: querer ser Deus. Eu ainda não a contraí. — Pensou um momento e disse: — Poderá acontecer... mas, até agora, felizmente, não.

— Mas como consegue que todas essas pessoas venham para cá?

— Eu as compro, Madame. No mercado livre. Como qualquer outra mercadoria. Algumas vezes eu as compro com dinheiro. Mais freqüentemente eu as compro com idéias. Os jovens são sonhadores. Têm ideais. Têm cren­ças. Algumas vezes eu os compro com a segurança... nos casos em que tenham transgredido as leis.

— Isto esclarece tudo — disse Hilary. — Quero dizer que explica o que eu não conseguia atinar, durante a via­gem para cá.

— Ah! Então a senhora ficou intrigada durante a viagem, não é?

— Sim. As diferenças de objetivos. Andy Peters, o americano, parecia ser completamente esquerdista. Mas Ericsson era um crente fanático, um super-homem. E Hel­ga Needheim era uma fascista do tipo mais fanático e arrogante. O Dr. Barron... — ela hesitou.

— Sim, ele veio por dinheiro — disse Aristides. — O Dr. Barron é civilizado e cínico. Não tem ilusões mas tem verdadeiro devotamento ao seu trabalho. Ele queria quantias ilimitadas para levar avante suas pesquisas. — E acrescentou: — A senhora é inteligente, Madame. Eu logo percebi isto, em Fez.

Riu, cacarejando baixinho.

— A senhora não sabia, Madame, mas eu fui a Fez apenas para observá-la... ou dizendo melhor, eu a fiz trazer a Fez para poder observá-la.

— Entendo — disse Hilary.

Ela notara como ele havia modificado a frase, dan­do-lhe um tom oriental.

— Foi agradável pensar que a senhora viria para aqui Porque... não sei se a senhora me compreende bem... eu não encontro neste lugar muitas pessoas inte­ligentes para conversar. — Fez um gesto. — Esses cien­tistas, esses biólogos, esses químicos não são interessantes. Talvez sejam até gênios em seus campos de atividade mas são pessoas pouco interessantes para se conversar.

— As mulheres deles — acrescentou, com ar pensa­tivo — são, geralmente, cacetes também. Não encoraja­mos a vinda de esposas para cá. Só deixo vir esposas por um motivo.

— Que motivo?

Monsieur Aristides disse, secamente:

— Nos raros casos em que um marido não pode tra­balhar convenientemente porque está pensando demais em sua mulher. Este parecia ser o caso de seu marido, Thomas Betterton. Ele é conhecido, em todo o mundo, como um rapaz genial, mas desde que aqui chegou só tem produzido trabalho medíocre e de segunda categoria. Sim, Betterton desapontou-me.

— Mas o senhor não tem visto isso acontecer fre­qüentemente? Estas pessoas, afinal de contas, estão aqui numa prisão. Certamente, rebelam-se. Pelo menos, no princípio.

— Sim — concordou Monsieur Aristides. — Isto é apenas lógico e inevitável. Acontece quando se bota um passarinho numa gaiola, pela primeira vez. Mas, se o pas­sarinho for colocado num viveiro bastante grande, se tem tudo de que precisa: uma companheira, sementes, água e gravetos, tudo de que necessita para viver, acaba por esquecer que algum dia foi livre.

Hilary teve um arrepio.

— O senhor me assusta — disse ela. — Realmente me assusta.

— A senhora acabará por entender muitas coisas aqui, Madame. Posso assegurar-lhe que embora todos esses homens de ideologias diferentes cheguem aqui e fiquem desiludidos e rebeldes, acabarão por agir como eu desejo.

— O senhor não pode ter certeza disso — disse Hilary.

— Concordo com a senhora que não se pode ter cer­teza absoluta em nada neste mundo. Neste ponto pen­samos da mesma maneira. Mas é uma probabilidade de noventa e cinco por cento.

Hilary olhou-o com uma espécie de horror.

— É pavoroso — disse ela. — Como nos grandes es­critórios há os chamados reservatórios de datilógrafas que são mandadas para qualquer departamento onde delas precisem, o senhor tem aqui um reservatório de cérebros.

— Exatamente. A senhora definiu muito bem, Ma­dame.

— E com este reservatório o senhor pretende, algum dia, fornecer cientistas a quem melhor lhe pagar pelos seus serviços?

— De uma forma geral, é esta a idéia, Madame.

— Mas o senhor não pode mandar um cientista para outro lugar, como mandaria uma datilógrafa!

— E por que não?

— Porque, uma vez chegando novamente ao mundo livre o cientista poderia recusar trabalhar para o seu novo empregador. Ele estaria novamente livre.

— Isto é verdade, até certo ponto. Talvez seja neces­sário haver um certo... condicionamento, digamos assim.

— Condicionamento... que quer dizer com isto?

— Já ouviu falar em lobotomia, Madame?

Hilary franziu a testa.

— É uma operação no cérebro, não é?

— Exatamente. Foi originalmente praticada para curar a melancolia. Vou falar sem usar termos médicos mas sim palavras que a senhora e eu entendemos. Depois da operação o paciente não tem mais vontade de suici­dar-se, nem sentimentos de culpa. Ele se torna despreo­cupado, sem consciência e, na maioria dos casos, obediente.

— Mas o êxito não tem sido completo, não é?

— Antigamente, não. Mas nós aqui temos feito gran­des progressos na investigação do assunto. Tenho aqui três cirurgiões, um russo, um francês e um austríaco. Com diversos enxertos e manipulações no cérebro, eles estão gradualmente chegando ao ponto de assegurar a docilidade e o controle da vontade, sem afetar o brilho da inteligência. Parece provável que chegaremos a poder condicionar um ser humano de forma que seu poder inte­lectual fique inalterado, mas ele será completamente dócil. Aceitará qualquer sugestão que lhe seja feita.

— Mas isto é horrível — gritou Hilary. — Horrível!

Ele a corrigiu com serenidade.

— É útil. Sob certos aspectos é até benéfico. Isto porque o paciente será feliz, contente, sem receios, anseios, ou inquietação.

— Não acredito que isto possa acontecer — disse Hilary com convicção.

— Chère Madame, queira perdoar, mas a senhora não pretende ter competência para discutir este assunto.

— O que eu quero dizer é que não acredito que um animal satisfeito e sugestionável possa produzir tra­balho original, criador e realmente brilhante.

Aristides sacudiu os ombros.

— Talvez. A senhora é inteligente. Pode ter alguma razão. O tempo provará. As experiências estão sendo feitas constantemente.

— Experiências? Quer dizer experiências com seres humanos?

— Evidentemente. É a única maneira prática.

— Mas... que seres humanos?

— Sempre há os inadaptáveis — disse Aristides. — Os que não se acostumam com a vida aqui, os que não cooperam. Eles são bom material para as experiências.

Hilary segurou a almofada do divã, com toda a força. Sentia profundo horror pelo sorridente homenzinho, de cara amarela e idéias desumanas. Tudo que ele dizia pa­recia tão razoável, tão lógico e tão certo que tornava a horror ainda maior. Ela não estava diante de um louco delirante, mas sim de um homem para o qual seus seme­lhantes não passavam de matéria-prima.

— O senhor não acredita em Deus? — perguntou ela.

— É claro que acredito em Deus! — Monsieur Aris­tides ergueu as sobrancelhas. O seu tom de voz era o de quem estava chocado com a pergunta. — Eu já lhe tinha dito. Sou um homem religioso. Deus abençoou-me com, um poder supremo. Com dinheiro e a oportunidade.

— O senhor lê a Bíblia? — perguntou Hilary.

— Certamente, Madame.

— Lembra-se do que Moisés e Aarão disseram ao Faraó? Deixe ir o meu povo.

Ele sorriu.

— Então... eu sou o Faraó... e a senhora é Moisés e Aarão em uma só pessoa? É isto que me está dizendo, Madame? Que eu deixe esta gente ir, todos eles, ou ape­nas... uma pessoa em particular?

— Eu diria... todos eles — disse Hilary.

— Mas a senhora bem sabe, chère Madame — disse ele, — que isto seria pura perda de tempo. Então, a se­nhora está apenas apelando em favor de seu marido?

— Ele não lhe pode ser útil — disse Hilary. — O se­nhor já deve estar convencido disso.

— Talvez o que a senhora está dizendo seja a verda­de, Madame. Estou muito desapontado com Thomas Bet­terton. Eu pensava que a sua presença iria restituir o bri­lho do seu talento, porque é indiscutível que ele tem um talento brilhante. A reputação que tinha, na América, não permite duvidar disso. Mas a sua chegada parece ter pro­duzido quase nenhum, ou mesmo nenhum efeito. Não es­tou falando do que sei pessoalmente, mas baseado nos re­latórios de homens competentes no assunto. Seus colegas cientistas que trabalham junto com ele. — Encolheu os ombros. — Ele faz um trabalho consciencioso e medíocre. Nada mais que isto.

— Há pássaros que não cantam no cativeiro — disse Hilary. — Talvez haja cientistas que, sob certas circuns­tâncias, não consigam raciocinar de forma criadora. O se­nhor não pode excluir essa possibilidade.

— Pode ser. Eu não a nego.

— Neste caso, inclua Thomas Betterton entre os seus fracassos. Deixe que ele volte para o mundo exterior.

— Isto não seria conveniente, Madame. Ainda não chegou o momento de permitir que todo o globo terrestre saiba da existência deste lugar.

— Ele poderia prometer que nada diria. Poderia ju­rar que nunca deixaria escapar uma palavra.

— Poderia jurar... sim. Mas quebraria o juramento.

— Não quebraria! Certamente, nunca quebraria.

— Eis uma esposa falando. Nesses casos não se pode aceitar a palavra das esposas. Mas é claro que — ele in­clinou-se no divã e juntou as pontas dos dedos, — é ló­gico que ele poderia deixar aqui um refém e que isto se­laria os seus lábios.

— Quer dizer?

— Refiro-me à senhora, Madame... se Thomas Bet­terton fosse embora e a senhora ficasse como refém... que lhe parece tal acordo? A senhora aceitaria?

Hilary olhou para além dele, para a escuridão. Mon­sieur Aristides não podia perceber o quadro que ela via. Ela estava, novamente, num quarto de hospital, sentada perto de uma moribunda. Ela estava ouvindo Jessop e de­corando as suas instruções. Se houvesse uma possibilida­de, agora, de conseguir a liberdade de Thomas Betterton, não seria essa a maneira de cumprir a sua missão? Por­que ela sabia (o que Monsieur Aristides não podia sus­peitar) que não haveria um refém, no sentido usual da palavra. Ela, pessoalmente, nada representava para Tho­mas Betterton. A esposa que ele amara estava morta.

Ela ergueu a cabeça e olhou para o pequeno velho no divã.

— Eu aceitaria — disse ela.

— A senhora tem coragem, Madame, lealdade e de­votamento. São grandes qualidades. Quanto ao resto... — ele sorriu. — Falaremos sobre o assunto em outra opor­tunidade.

— Oh! não, não — Hilary escondeu o rosto com as mãos e os soluços sacudiram seus ombros. — Eu não pos­so suportar, eu não posso suportar isso. É uma coisa de­sumana.

— A senhora não se deve importar tanto, Madame — a voz do velho era suave, quase consoladora. — Eu condescendi, com prazer, em contar-lhe esta noite quais os meus objetivos e aspirações. Para mim foi interessante observar o efeito sobre uma mente totalmente despreve­nida. Uma mente, como a sua, bem equilibrada, sã e inteligente. A senhora ficou horrorizada. Sentiu repulsa. Creio, entretanto, que foi um plano sensato o de causar-lhe um choque. A princípio, a senhora repele a idéia, de­pois pensa sobre ela e, finalmente, a achará natural; co­mo se sempre tivesse existido e fosse muito natural.

— Isso nunca! — gritou Hilary. — Isso nunca!

— Ah — disse Monsieur Aristides. — Fala com a pai­xão e a rebeldia que caracterizam os cabelos ruivos. Mi­nha segunda mulher — acrescentou pensativo — tinha cabelos ruivos. Era uma linda mulher e amava-me. Es­tranho, não é? Sempre admirei as ruivas. Seus cabelos são muito bonitos. Há outras coisas que eu admiro na se­nhora. A sua decisão, a sua coragem e o fato de ter muita personalidade. — Ele suspirou. — É pena mas as mulhe­res, como mulheres, pouco me interessam, hoje em dia. Tenho aqui duas jovens com quem me distraio algumas vezes, mas é o estímulo mental de uma boa companhia que eu agora prefiro. Creia-me, Madame, a sua compa­nhia fez-me um grande bem.

— Suponha que eu conte ao meu marido tudo o que o senhor falou?

Aristides sorriu, com indulgência.

— Sim, suponhamos que faça isso. Mas, a senhora o fará?

— Não sei, eu... Oh! eu não sei...

— Ah — disse Monsieur Aristides. — A senhora é prudente. Há algumas coisas que as mulheres devem guar­dar para si. Mas a senhora está cansada e nervosa. Pe­riodicamente, quando eu aqui vier, a senhora será tra­zida a minha presença e discutiremos sobre muitos assun­tos.

— Deixe-me sair deste lugar... — Hilary estendeu as mãos para ele. — Oh! deixe-me ir embora. Deixe que vá com o senhor, quando for. Por favor. Por favor.

Ele sacudiu a cabeça levemente. Sua expressão era indulgente mas mostrava um forte desprezo.

— Agora está falando como uma criança — disse ele, em tom de reprovação. — Como poderia eu deixá-la sair? Como poderia permitir que fosse espalhar, por todo o mundo, o que aqui viu?

— Não acreditaria, se eu jurasse, que não diria uma palavra a ninguém?

— Não, certamente que não acreditaria — disse Mon­sieur Aristides. — Eu seria um tolo se fosse acreditar em tal coisa.

— Eu não quero estar aqui. Não quero ficar aqui nes­ta prisão. Quero sair daqui.

— Mas a senhora tem o seu marido. Veio para cá pa­ra estar perto dele, deliberadamente, por sua livre von­tade.

— Mas eu não sabia para onde estava indo. Não fa­zia a menor idéia.

— A senhora não sabia — disse Aristides, — mas eu posso assegurar que a vida aqui, neste mundo para onde veio, é muito mais agradável que por trás da Cortina de Ferro. Aqui, tem tudo de que precisa! Luxo, ótimo clima e distrações...

Levantou-se e bateu levemente no ombro dela.

— A senhora vai ficar acostumada — disse ele com convicção. — Ah! sim. o pássaro com a cabeça vermelha vai-se acostumar. Dentro de um ano, dentro de dois anos no máximo, a senhora estará muito feliz. Embora, possi­velmente — acrescentou pensativo, — não tão interessan­te quanto agora.

 

Na noite seguinte Hilary acordou com um sobres­salto. Apoiando-se na cama com o cotovelo, ela tentava ouvir.

— Tom, você ouviu?

— Ouvi. É um avião voando baixo. Não é nada de extraordinário. De vez em quando passam por aqui.

— Eu me pergunto... — não acabou a frase.

Ela ficou acordada, pensando e repassando na cabe­ça aquela estranha entrevista com Aristides.

O velho tomara-se de um estranho capricho por ela.

Poderia ela utilizar-se disto?

Poderia, finalmente convencê-lo a leva-la consigo para o mundo livre?

Na próxima vez que ele viesse ela o induziria a falar sobre sua falecida mulher de cabelos ruivos. Não seriam os atrativos físicos que poderiam cativá-lo. O sangue que lhe corria nas veias era frio demais. Além disso, ele ti­nha as duas jovens para suas distrações sexuais. Mas os velhos gostam de relembrar, de que insistam para que fa­lem dos tempos passados...

O tio George, que vivera em Cheltenham...

Hilary sorriu, na escuridão, ao lembrar-se do tio Ge­orge.

Haveria uma diferença profunda entre o tio George e Aristides, o homem dos milhões? O tio George tivera uma governante... uma mulher calma e nada perigosa, minha querida, ela é simples e não tem nada de sexy ou coisa parecida. Calma, simples e segura! Mas o tio George sur­preendeu desagradavelmente toda a família ao casar com aquela mulher simples e que não oferecia perigo. Ela era uma mulher que sabia ouvir...

Que tinha Hilary dito a Tom? Eu acharei uma manei­ra de sair daqui! Seria curioso se essa maneira fosse o pró­prio Aristides.

 

— Uma mensagem — disse Leblanc. — Finalmente uma mensagem.

Seu ordenança acabara de entrar e colocar um papel dobrado sobre a mesa. Ele abriu o papel e começou a fa­lar, excitado:

— É uma informação de um dos nossos pilotos de reconhecimento. Ele tem estado voando sobre uma das áreas do território, que dividimos em quadrados. Quando sobrevoava uma região montanhosa, observou que lhe fa­ziam sinais luminosos. Eram em Código Morse e foram repetidos duas vezes. Aqui estão eles.

Colocou o papel diante de Jessop.

C.O. G. L. E. P.R.O. S.T. E. S. L.

Separou as duas últimas letras com um risco de lá­pis.

— S.L.. Isto é o nosso código para: Não acuse recep­ção.

— E as letras C. O. G. do início da mensagem — disse Jessop — são o nosso sinal de identificação.

— Por conseguinte, o resto é a verdadeira mensa­gem.

Ele a sublinhou. L.E.P.R.O.S.T.E. Olhou para o papel com ar de dúvida.

— Lepra — disse Jessop.

— Que quererá dizer isto?

— Vocês têm alguma grande colônia de leprosos. Ou mesmo uma pequena?

Leblanc abriu um grande mapa e apontou para um ponto, com um dedo grosso e manchado de nicotina.

— Aqui — disse ele, — está a área sobre a qual o nosso avião estava voando. Deixe-me ver. Creio que re­cordo...

Saiu rapidamente e voltou, pouco depois.

— Já sei — disse. — Há uma famosa instituição de pesquisas médicas, fundada e mantida por conhecidos filantropos e localizada nessa área, uma região muito de­serta. Estudos muito importantes têm sido lá realizados. Há um leprosário, com cerca de duzentos doentes. Exis­te também um hospital para investigações sobre o câncer e um sanatório para tuberculosos. Mas é preciso que você saiba que tudo é absolutamente autêntico. O estabe­lecimento goza da mais alta reputação. O próprio Presi­dente da República é um dos patronos.

— Sim — disse Jessop. — Um ótimo trabalho, sem dúvida.

— Mas está aberto para inspeção a qualquer momen­to. Médicos que se interessam por estes assuntos freqüen­temente fazem visitas.

— E não vêem nada que não devem ver. E por que veriam? Não há melhor camuflagem para um negócio du­vidoso do que uma atmosfera da maior respeitabilidade.

— Pode ser — disse Leblanc com ar duvidoso. — Po­deria ser um ponto de parada para pessoas com outro des­tino. Talvez um ou dois médicos vindos da Europa Cen­tral tenham organizado algo nesse sentido. Um pequeno grupo de pessoas, como o que estamos procurando, pode ficar perdu em tal lugar, durante algumas semanas antes de recomeçar a viagem.

— Acho que pode ser algo mais que isso — disse Jessop. — Acho que pode ser o fim da jornada, o ponto ter­minal.

— Você acha que pode ser alguma coisa.... impor­tante?

Uma colônia de leprosos está-me parecendo muito sugestiva... Parece-me que o tratamento moderno da lepra pode ser feito em casa.

— Nas comunidades civilizadas, talvez. Mas, não aqui, neste país.

— Não. Mas a palavra lepra ainda está associada à Idade Média, quando os leprosos andavam com uma cam­painha no pescoço para que os outros saíssem do seu ca­minho. A simples curiosidade não faz com que as pessoas visitem uma colônia de leprosos; as pessoas que a visi­tam são, como você diz, médicos interessados nas pesqui­sas científicas que lá estão sendo feitas e, talvez, alguns as­sistentes sociais que querem saber como vivem e são aten­didos os leprosos. Certamente tais condições são admi­ráveis. Por trás dessa fachada de filantropia e caridade tudo pode estar acontecendo. Por falar nisso, quem é o dono da instituição? Quais são os filantropos que contri­buíram para a construção e a manutenção?

— Isso pode ser rapidamente verificado. Espere um instante.

Ele voltou, pouco depois, com um livro nas mãos.

— A instituição foi fundada por particulares. Por um grupo de filantropos liderados por Aristides. Como sabe, ele é fabulosamente rico e faz doações vultosas a instituições de caridade. Fundou hospitais em Paris e Sevilha. Pode-se dizer que essa fundação é dele, os outros benfeitores são seus associados em negócios.

— Então é uma organização de Aristides. E Aristi­des estava em Fez quando Olive Betterton lá esteve.

— Aristides! — Leblanc parecia estar animadíssimo com o que aquilo poderia significar. — Mais, c’est colos­sal!

— Sim!

— C’est fantastique!

— Sem dúvida.

— Enfin, c’est formidable!

— Sem sombra de dúvida.

— Mas você faz idéia de como isto é formidável! — Leblanc, excitado, sacudiu o dedo diante do rosto do ou­tro. — Esse Aristides está em todas. Bancos, governos, indústrias, armamentos, transportes. Nunca é visto e ra­ramente se ouve falar nele! Fica sentado num quarto bem aquecido do seu castelo, na Espanha, fumando, e as vezes rabisca algumas linhas num pedaço de papel que ati­ra ao chão. Um secretário se arrasta pelo chão, apanha-o e, alguns dias depois, um banqueiro, em Paris, estoura os miolos. É mais ou menos assim.

— Você é formidavelmente dramático, Leblanc. Mas, realmente, não é tão surpreendente assim. Presidentes e Ministros fazem declarações, banqueiros sentados diante de mesas suntuosas preparam balanços opulentos... mas ninguém se admira ao saber que, por trás de tanta impor­tância, há algum homenzinho de aspecto insignificante que detém a verdadeira força e puxa os cordões. Não é realmente de admirar que Aristides esteja por trás desse negócio de desaparecimentos. Pensando bem, se nós ti­véssemos um pouco de raciocínio, já teríamos pensado nisso muito antes. Trata-se, pura e simplesmente, de uma grande malandragem comercial. Não há política nesse ca­so. Mas a questão é a seguinte — acrescentou ele, — que poderemos nós fazer?

O rosto de Leblanc ficou sombrio.

— Não vai ser fácil, você compreende? Se estiver­mos enganados... nem ouso pensar nisso. E mesmo que estejamos certos... teremos que provar que estamos cer­tos. Se fizermos investigações, elas podem ser interrom­pidas por ordens superiores, compreende? Não, não vai ser fácil... Mas — sacudiu o indicador, enfaticamente, — nós faremos as investigações.

 

Os automóveis subiram a estrada da montanha e pararam diante do grande portão encaixado na rocha. Eram quatro carros. No primeiro estavam um Ministro do Governo francês e o Embaixador americano; no se­gundo estavam o Cônsul inglês, um Deputado inglês e o Chefe de Polícia. No terceiro estavam dois membros de uma Comissão Real e dois conhecidos jornalistas. Nes­ses três primeiros carros estavam, também, os indispen­sáveis secretários e satélites. No quarto carro estavam certas pessoas que o público não conhecia mas que eram notáveis em suas profissões. Entre eles estavam o Capi­tão Leblanc e o Sr. Jessop. Os motoristas, impecavelmente fardados, abriram as portas dos carros para que os ilustres visitantes descessem.

— É de esperar — murmurou o Ministro apreensivo — que não haverá qualquer possibilidade de contato.

Um dos satélites murmurou algumas palavras tranqüilizadoras:

— Du tout, Monsieur le Ministre. Todas as precau­ções foram tomadas. A inspeção será feita a distância.

O Ministro, que era velho e estava apreensivo, pare­ceu aliviado. O Embaixador disse alguma coisa sobre o maior conhecimento e o melhor tratamento dessas molés­tias, nos dias de hoje.

O grande portão foi aberto. Um pequeno grupo aguar­dava os visitantes e deu-lhes as boas-vindas. O Diretor, moreno e troncudo; o Diretor Adjunto alto e louro; dois ilustres médicos e um renomado químico pesquisador. As saudações foram feitas em francês, rebuscadas e longas.

— Et ce cher Aristides? — perguntou o Ministro. — Espero sinceramente que a saúde não o tenha impedido de cumprir a promessa de nos encontrar aqui.

— Monsieur Aristides chegou ontem de avião, vindo da Espanha — disse o Diretor Adjunto. — Ele está a vos­sa espera. Permita, Sr. Ministro, guie Vossa Excelência.

O grupo seguiu o Diretor Adjunto. O Ministro que estava apreensivo olhou através das fortes grades a sua direita. Os leprosos estavam alinhados, o mais longe pos­sível das grades. O Ministro ficou aliviado. As suas ati­tudes com relação à lepra eram ainda medievais.

Na moderna e bem mobiliada sala de visitas Mon­sieur Aristides os esperava. Houve curvaturas, cumpri­mentos e apresentações. Os criados negros, com suas tú­nicas brancas e turbantes, serviram aperitivos.

— O senhor tem aqui um magnífico estabelecimen­to — disse um dos jovens jornalistas a Aristides.

O velho fez um dos seus gestos orientais.

— Tenho orgulho desta obra — disse ele. — Ela re­presenta, provavelmente, o meu canto de cisne. O meu último presente à Humanidade. Não se fez economia na construção e nas instalações.

— Eu posso assegurar isto — disse convicto um dos médicos da instituição. — Este lugar é o sonho de um profissional. Temos boas instalações nos Estados Unidos mas... comparadas com as que temos aqui... E estamos conseguindo resultados. É indiscutível que estamos ob­tendo resultados.

O seu entusiasmo era contagioso.

— Devemos reconhecer os êxitos da iniciativa pri­vada — disse o Embaixador, curvando-se delicadamente diante de Aristides.

Monsieur Aristides falou com humildade:

— Deus tem sido muito bom para mim — disse ele.

Sentado, meio agachado, em sua cadeira, ele parecia um pequeno sapo amarelo. O Deputado murmurou ao membro da Comissão Real, que era muito velho e surdo, que Aristides representava um curioso paradoxo.

— O velho patife provavelmente já arruinou mi­lhões de pessoas e, tendo ganho tanto dinheiro, não sabe o que fazer com ele e o está devolvendo, com a outra mão.

O velho Juiz com quem ele falava murmurou:

— Fica-se pensando a que ponto os resultados justi­ficam grandes despesas. A maior parte das grandes in­venções que beneficiaram a raça humana foi feita com equipamento muito simples.

— E agora — disse Aristides, depois da troca de civilidades e de terem sido bebidos os aperitivos, — ficarei muito honrado se aceitarem a refeição simples que os espera. O Dr. van Heiden será o anfitrião porque eu, hoje em dia, como muito pouco e estou em dieta. Depois da refeição os senhores começarão a visita do nosso edi­fício.

Guiados pelo alegre Dr. van Heiden, os convidados encaminharam-se, com satisfação, para o salão de jantar. Tinham voado durante duas horas e andado mais de uma hora de automóvel. Estavam com muita disposição e ape­tite. A comida estava deliciosa e o Ministro a elogiou calorosamente.

— Temos um conforto razoável — disse van Hei­den, — recebemos frutas e legumes frescos, por avião, duas vezes por semana. Não nos faltam carne e galinhas e dispomos, é claro, de amplas câmaras frigoríficas. O corpo tem direito aos recursos da ciência.

Durante a refeição foram servidos vinhos de colhei­tas especialmente boas. Por fim, foi servido café à mo­da turca. O grupo foi, então, convidado a fazer a visita de inspeção. A visita foi completa e durou duas horas. O Ministro, particularmente, ficou satisfeito quando aca­bou de andar. Ele estava um pouco tonto, com os laboratórios, que brilhavam, a alvura ofuscante dos interminá­veis corredores e ainda mais perturbado com a quantida­de de informações científicas que lhe haviam dado.

Embora o Ministro não demonstrasse senão um ligei­ro interesse, outros da comitiva manifestaram maior curio­sidade. Perguntaram, por exemplo, sobre as condições de vida dos funcionários e sobre outros detalhes. O Dr. van Heiden demonstrou a maior boa vontade em mostrar tudo que havia para ver. Leblanc, que era da comiti­va do Ministro, e Jessop, que acompanhava o Cônsul in­glês, ficaram um pouco para trás, quando chegaram à sa­la de estar.

— Não há nenhum vestígio aqui, nada — murmurou Leblanc agitado.

— Nenhum sinal.

— Mon cher, se nós, como se diz na gíria, comemos gambá errado, será uma catástrofe. Depois de tantas se­manas que levamos para arranjar tudo isto. Para mim... será o fim da minha carreira.

— Ainda não estamos derrotados — disse Jessop. — Nossos amigos estão aqui, estou certo.

— Mas não há nenhum sinal deles.

— É claro que não há sinal. Os outros não poderiam permitir que houvesse sinais deles. Tudo está arranjado e preparado para essas visitas oficiais.

— Mas como poderemos conseguir provas? Estou di­zendo a você que, sem provas, ninguém vai-se meter nes­te caso. Todos estão incrédulos. O Ministro, o Embaixa­dor americano, o Cônsul inglês, todos eles dizem que um homem como Aristides está acima de qualquer suspeita.

— Calma, Leblanc, calma. Afirmo que ainda não es­tamos derrotados.

Leblanc encolheu os ombros.

— Você é um otimista, meu amigo — disse ele. Virou-se uns instantes para falar com um dos rapazes que fazia parte da comitiva e voltou-se novamente para Jessop, per­guntando, com ar de quem suspeita alguma coisa: — Por que está sorrindo?

— Já ouviu falar num contador Geiger?

— É claro. Mas eu não sou um cientista, sabe?

— Nem eu tampouco. É um detector muito sensível à radioatividade.

— E daí?

— Nossos amigos estão aqui. O contador Geiger é que o diz. Transmite uma mensagem, dizendo que eles estão aqui. Este edifício foi propositalmente construído para causar confusão. Todos os corredores e salas são tão parecidos que é difícil saber onde se está e como poderá ser a planta. Há uma parte do edifício que nós não vimos. Não nos foi mostrada.

— Mas você supõe que ela exista, por causa das in­dicações de radioatividade?

— Exatamente.

— É a repetição da história das pérolas de Madame?

— Sim. Pode-se dizer que estamos brincando de João e Maria. Mas os sinais deixados aqui não podem ser tão aparentes ou tão evidentes como as contas de um colar de pérolas falsas ou o da mão de tinta fosforescente. Não podem ser vistos mas podem ser sentidos... pelo nosso detector de radioatividade.

— Mas, mon Dieu, Jessop, será isto suficiente?

— Deveria ser — disse Jessop. — O que temos a re­cear... — parou de falar.

— O que você quer dizer é que essa gente não quer acreditar. Não tem querido, desde o princípio. Oh, sim, isto é verdade. Até o seu Cônsul britânico é um homem cauteloso. O seu Governo deve alguns favores a Aristi­des, Quando ao nosso Governo — ele encolheu os om­bros. — Bem sei que será muito difícil convencer a Mon­sieur le Ministre.

— Não iremos depositar a nossa fé nos governos — disse Jessop. — Governos e diplomatas têm as mãos ata­das. Mas precisamos deles aqui; são os únicos que têm autoridade. Mas quanto a acreditar em nós, estou depo­sitando nossa esperança noutro setor.

— Mas onde, então, deposita você a sua fé?

O rosto solene de Jessop iluminou-se, com um sorri­so.

— Existe a imprensa — disse ele. — Os jornalistas são bons farejadores de notícias. Não querem que elas sejam escondidas do público. Estão sempre prontos a acre­ditar em qualquer coisa que pareça verossímel. A outra pessoa em quem confio — continuou — é naquele velho muito surdo.

— Ah, já sei qual é. Deve ser aquele que parece es­tar à beira do túmulo.

— Sim, ele é surdo, enfermo e meio cego. Mas gosta da verdade. É um antigo Ministro do Supremo Tribunal e embora possa estar surdo, cego e cambaleante, a sua in­teligência é tão brilhante como antes... ele tem aquele aguçado sentido que os luminares adquirem, de saber quando paira algo de insólito no ar e alguém está tentan­do impedir que venha à luz do dia. É um homem que ouvirá e quererá conhecer os fatos.

Eles tinham voltado à sala de visitas. Chá e aperiti­vos foram servidos. O Ministro felicitou, com belas frases, Monsieur Aristides. O Embaixador americano tam­bém fez seu discurso. Foi então que o Ministro disse, com voz ligeiramente nervosa:

— E agora, senhores, creio que chegou o momento de deixarmos nosso amável anfitrião. Já vimos tudo que há para ver... — o seu tom de voz acentuou as últimas palavras, — tudo aqui é magnífico. Verdadeiramente, um estabelecimento da mais alta categoria. Somos muito gratos pela hospitalidade que nos foi dispensada e felici­tamos o nosso anfitrião pelo que já foi feito e está sendo feito aqui. Assim sendo, apresentamos as nossas despedi­das e vamos partir. Estão de acordo, pois não?

Mas uma voz quebrou o silêncio. Era a voz britâni­ca, respeitosa, calma e bem educada de Mr. Jessop. Ele se dirigiu ao Ministro em bom francês, embora com leve sotaque inglês.

— Com a sua permissão, senhor — disse ele, — e se me é permitido, gostaria de pedir um favor ao nosso amável anfitrião.

— Certamente, certamente. É claro que sim, se­nhor... ah... Jessop... pois não?

Jessop dirigiu-se solenemente ao Dr. van Heiden. Não olhou ostensivamente para Monsieur Aristides.

— Nós fomos apresentados a muitas pessoas aqui — disse ele. — Isto causa uma certa confusão. Mas há aqui um velho amigo meu com quem gostaria de falar. Pode­ria ter essa oportunidade, antes de partirmos?

— Um amigo seu? — perguntou o Dr. van Heiden, em tom delicado, mas surpreso.

— Bem, realmente, trata-se de dois amigos — disse Jessop. — Há uma mulher, a Sra. Betterton, Olive Bet­terton. Creio que seu marido está trabalhando aqui. Tom Betterton. Ele esteve em Harwell e, antes disso, nos Estados Unidos. Gostaria muito de falar com eles, antes de partir.

As reações do Dr. van Heiden foram perfeitas. Seus olhos se abriram, mostrando surpresa. Ele franziu a tes­ta, admirado.

— Betterton... Sra. Betterton, não, não há ninguém aqui com esse nome.

— Há também um americano — disse Jessop. — An­drew Peters. Químico pesquisador, creio que é a sua es­pecialidade. Estou certo, não estou?

Ele se virou respeitosamente para o Embaixador ame­ricano. O Embaixador era um homem de meia-idade, in­teligente e com olhos azuis. Era um homem de caráter e um hábil diplomata. Seus olhos fixaram-se nos de Jes­sop. Refletiu durante todo um minuto, antes de se deci­dir, e depois falou:

— Sim, é verdade — disse ele. — É isto mesmo. An­drew Peters. Gostaria de vê-lo.

A atrapalhação de van Heiden aumentou. Jessop, sem chamar a atenção, lançou um olhar para Aristides. O pequeno rosto amarelo não demonstrava notar que ha­via algo errado, nem surpresa ou inquietação. Ele pare­cia simplesmente não estar interessado.

— Andrew Peters? Receio que Vossa Excelência la­bore em equívoco. Não temos ninguém aqui com este no­me. Creio que nunca ouvi tal nome.

— Conhece o nome de Thomas Betterton, não co­nhece?

Van Heiden hesitou durante um segundo. A sua ca­beça fez um movimento em direção ao velho da cadeira, mas ele se conteve a tempo.

— Thomas Betterton — disse ele. — Sim, creio que sim...

Um dos repórteres aproveitou, imediatamente, a dei­xa:

— Thomas Betterton — disse ele. — Eu diria que ele é notícia e das mais importantes. Foi notícia impor­tante há seis meses, quando desapareceu. Esteve nos ca­beçalhos de todos os jornais da Europa. A polícia o tem procurado por toda a parte. Você quer dizer que durante todo este tempo ele estava aqui?

— Não — disse van Heiden, com rispidez. — Receio que alguém lhe tenha dado informações falsas. Uma brin­cadeira talvez. Os senhores viram hoje todos os que tra­balham na Unidade. Viram tudo.

— Não foi bem tudo, creio eu — disse Jessop, cal­mamente. — Há também um moço chamado Ericsson — acrescentou — e o Dr. Louis Barron e, possivelmente a Sra. Calvin Baker.

— Ah! — o Dr. van Heiden pareceu ter atinado com a solução. — Mas essas pessoas morreram em Mar­rocos... num desastre de avião. Agora, recordo bem. Recordo-me, pelo menos, que Ericsson e o Dr. Barron estavam no avião acidentado. Ah, a França sofreu uma grande perda naquele dia. Um homem como Louis Bar­ron não é fácil de substituir. — Ele sacudiu a cabeça. — Nada sei sobre a Sra. Calvin Baker, mas tenho a vaga idéia de que havia uma senhora americana, ou inglesa, no avião. Talvez fosse essa Sra. Betterton de quem fa­la. É verdade, foi um caso muito triste. — Ele olhou pa­ra Jessop como se o interrogasse. — Não sei por que mo­tivo, cavalheiro, o senhor supõe que essas pessoas tenham vindo para cá. Talvez seja por que o Dr. Barron falou, certa vez, que gostaria de visitar o nosso estabelecimento durante sua viagem pela África. Isso talvez tenha sido a causa de uma má interpretação.

— Então o senhor afirma — disse Jessop — que es­tou enganado? Que nenhuma dessas pessoas está aqui?

— Mas como poderiam estar aqui, caro senhor, se to­dos morreram no desastre de avião. Os corpos foram en­contrados, creio eu.

Houve um ligeiro movimento atrás dele. Uma voz fina, clara e débil, disse:

— Eu entendi bem quando o senhor disse que não houve uma identificação positiva dos corpos?

Lord Alverstoke inclinou-se para frente, levando a mão à orelha para ouvir melhor. Por baixo das espessas sobrancelhas, seus pequenos e vivos olhos fitaram Jes­sop.

— Não foi possível uma identificação, meu Lord — disse Jessop, — e tenho razões para acreditar que essas pessoas escaparam com vida.

— Acreditar? — disse Lord Alverstoke mostrando desagrado no tom de sua voz fina e alta.

— Eu deveria ter dito que tenho provas de sobrevi­vência .

— Provas? De que espécie, Sr.... er... Jessop?

— A Sra. Betterton tinha no pescoço, no dia em que deixou Fez para Marrakesh, uma gargantilha, ou colar de pérolas falsas — disse Jessop. — Uma dessas pérolas foi encontrada a oitocentos metros do avião incendiado.

— Como pode o senhor assegurar que a pérola en­contrada era do colar da Sra. Betterton?

— Porque todas as pérolas daquele colar tinham sido marcadas. Marcas invisíveis a olho nu, mas perfei­tamente discerníveis com uma boa lente.

— E quem as marcou?

— Fui eu, Lord Alverstoke, na presença do meu co­lega aqui presente, Monsieur Leblanc.

— O senhor fez as marcas? Tinha motivo para agir desta forma?

— Sim, meu Lord. Eu tinha razões para acreditar que a Sra. Betterton me guiaria até onde estivesse seu marido, Thomas Betterton, contra quem há um mandado de prisão. — Jessop continuou: — Mais duas dessas pé­rolas foram encontradas, partindo do ponto onde o avião foi sinistrado até chegar a este lugar onde estamos. Inves­tigações nos lugares onde as pérolas foram encontradas resultaram na descrição das seis pessoas supostamente queimadas no avião. Uma dessas pessoas tinha uma luva com tinta fosforescente, a qual lhe fora anteriormente for­necida. A marca da luva foi encontrada num dos carros que transportaram esses passageiros numa parte do per­curso até aqui.

Lord Alverstoke observou, com sua voz seca e de tom judiciário:

— Muito notável.

Monsieur Aristides mexeu-se em sua grande cadei­ra. Suas pálpebras piscaram uma ou duas vezes. Depois, fez uma pergunta:

— Em que lugar foram encontrados os últimos ves­tígios da passagem dessas pessoas?

— Num campo de aviação abandonado, senhor — disse Jessop e indicou a localização exata.

— Este lugar fica a centenas de quilômetros daqui — disse Monsieur Aristides. — Presumindo que as suas in­teressantes especulações estejam certas e que, por algum motivo, o acidente foi simulado, os passageiros, segundo entendo, voaram para algum destino ignorado, partindo desse campo abandonado. Mas como o campo está a cen­tenas de quilômetros daqui, não percebo qual a base do seu raciocínio de que tais pessoas estejam aqui. Por que motivo estariam neste lugar?

— Há algumas razões muito plausíveis, senhor. Uma mensagem foi captada por um dos nossos aviões de bus­ca. A mensagem foi trazida ao Sr. Leblanc, aqui presen­te. A mensagem, que começava com algumas letras do nosso código especial de identificação, informava que as pessoas em questão estavam numa colônia de leprosos.

— Eu acho tudo isto notável — disse Monsieur Aris­tides. — Muito notável mesmo. Mas quer-me parecer que houve uma tentativa para ludibriá-lo. Essas pessoas não estão aqui. — Ele falava com voz calma mas absolu­tamente decidida. — O senhor tem plena liberdade para dar uma busca em toda a parte, se assim o quiser.

— Eu duvido que encontremos alguma coisa, senhor — disse Jessop, — uma busca superficial nada revelará, muito embora — acrescentou ele em tom convicto, — eu saiba onde deveremos começar a procurar.

— Sabe, hein? E onde deve ser?

— No quarto corredor, partindo do segundo laborató­rio, virando à esquerda, no fim da passagem.

O Dr. van Heiden fez um movimento brusco. Dois copos caíram da mesa e se espatifaram no chão. Jessop olhou para ele, sorrindo.

— Como vê, doutor, estamos bem informados — dis­se ele.

Van Heiden disse, em tom brusco:

— É ridículo. Absolutamente ridículo. O senhor es­tá insinuando que estamos detendo pessoas contra a von­tade. Nego, categoricamente, tal coisa.

Meio constrangido, o Ministro disse:

— Parece que chegamos a um impasse.

Monsieur Aristides disse, com grande calma:

— Não há dúvida de que é uma teoria interessante, mas não passa de uma teoria. — Olhou para o relógio. — Peço desculpas mas chegou a hora de partirem, cava­lheiros. Ainda têm que percorrer uma boa distância até o aeroporto e, certamente, causará preocupações o fato de o seu avião demorar a voltar.

Tanto Leblanc quanto Jessop sentiram que o momen­to era decisivo. Aristides estava usando toda a potência de sua grande personalidade. Ele os estava desafiando a se oporem a sua vontade. Se insistissem, seria porque es­tavam dispostos a enfrentá-lo, abertamente. O Ministro, agindo conforme instruções recebidas, estava pronto a capitular. O Chefe de Polícia só desejava agradar ao Mi­nistro. O Embaixador americano não estava convencido mas, por motivos diplomáticos, hesitava e não queria in­sistir. O Cônsul britânico seria forçado a concordar com eles dois.

Os jornalistas. Aristides pensou nos jornalistas — poderiam ouvir a voz da razão. O preço seria elevado mas, na sua opinião, eles poderiam ser comprados. E se não fosse possível comprá-los — sempre haveria outras maneiras.

Quanto a Leblanc e Jessop, era claro que eles sabiam. Isto era evidente. Mas eles não podiam agir sem o apoio das autoridades. Seus olhos se dirigiram para outro pon­to e encontraram os olhos de um homem tão velho quan­to ele, os olhos frios de um jurista. Aquele homem, ele bem o sentia, não podia ser comprado. Mas, afinal de contas... seus pensamentos foram interrompidos pelo som daquela voz fraca mas fria e clara.

— Na minha opinião — disse a voz, — não devería­mos apressar desnecessariamente a nossa partida. Pare­ce-me que temos aqui um assunto que merece ser investigado. Alegações muito sérias foram feitas e considero que não devem ser simplesmente esquecidas.

— Cabe aos senhores — disse Monsieur Aristides., fazendo um gesto elegante que incluía todos os presen­tes — provar as alegações. Uma acusação ridícula foi fei­ta, sem qualquer prova que a confirme.

— Sem provas, não.

Surpreso, van Heiden virou-se rapidamente. Um dos criados marroquinos tinha-se adiantado. Era um belo ho­mem, com uma túnica branca bordada e um alvo turban­te na cabeça. Seu rosto brilhava, negro e oleoso.

Todos os presentes olharam-no estupefatos, porque dos seus grossos lábios negróides saía uma voz de origem puramente transatlântica.

— Não faltam provas — disse a voz; — os senhores podem receber o meu testemunho aqui e agora mesmo. Estes senhores negaram que Andrew Peters, Torquil Erics­son, Thomas Betterton e sua mulher, e o Dr. Louis Bar­ron estejam aqui. É falso. Estão todos aqui e eu falo em nome deles. — Deu um passo em direção ao Embaixa­dor americano. — O senhor talvez tenha dificuldade em reconhecer-me — disse ele — mas eu sou Andrew Peters.

Um leve som sibilante saiu dos lábios de Aristides. Mas, logo ele se acomodou na cadeira com o rosto nova­mente impassível.

— Há uma porção de pessoas escondidas aqui — dis­se Peters. — Aqui estão Schwartz, de Munique, Helga Needheim, Jeffreys e Davidson, Paul Wade, dos Estados Unidos, os italianos Ricochetti e Bianco e também Mur­chison. Estão todos aqui neste edifício. Há um sistema de portas blindadas impossível de notar a olho nu. Há uma verdadeira rede de laboratórios secretos, escavados no interior da montanha.

— Com mil raios! — exclamou o Embaixador ame­ricano. Olhou atentamente para a figura cheia de digni­dade do africano e depois começou a rir. — Mesmo ago­ra, não tenho certeza de que o reconheço.

— É por causa das injeções de parafina nos lábios, para não falar do pigmento preto.

— Se você é Peters, qual é o seu número no F.B.I.?

813471, senhor.

— Certo — disse o Embaixador, — e as iniciais do seu outro nome?

— B. A. B. P. G., senhor.

O Embaixador concordou com a cabeça.

— Este homem é Peters — disse ele, virando-se para o Ministro.

O Ministro hesitou e pigarreou.

— O senhor afirma — perguntou ele a Peters — que as pessoas estão detidas, aqui, contra a vontade?

— Alguns estão aqui porque querem, Excelência; ou­tros estão contra a vontade.

— Neste caso — disse o Ministro, — é preciso tomar depoimentos... ah... sim, depoimentos precisam ser to­mados.

Olhou para o Chefe de Polícia, que deu um passo à frente.

— Um momento, por favor — Monsieur Aristides er­gueu a mão. — Está parecendo — disse ele com sua voz calma e segura, — que abusaram enormemente da minha confiança. — Seu olhar frio foi de van Heiden até o Di­retor e havia nele qualquer coisa de dominador e impla­cável. — Quanto ao que os senhores tomaram a liberda­de de fazer, senhores, com seu entusiasmo pela ciência, eu ainda não sei bem. As minhas doações a este estabele­cimento foram, puramente, no interesse da ciência e da pesquisa. Nunca tive qualquer ingerência na política se­guida para tal fim. Eu o aconselharia, Sr. Diretor, no caso de as acusações serem confirmadas pelos fatos, a apresentar imediatamente as pessoas que se suspeita es­tarem aqui detidas, contra a vontade e ilegalmente.

— Mas, Monsieur, é impossível. Eu... isto seria...

— Toda e qualquer experiência desse gênero — dis­se Monsieur Aristides — está definitivamente acabada. — Seus olhos calmos de financista correram por todo o grupo presente. — Julgo ser quase desnecessário assegu­rar-lhes, senhores — disse ele, — que, se algo ilegal acon­tecia aqui, era sem meu conhecimento.

Era uma ordem e foi recebida como uma ordem, de­vido a sua fortuna; devido a sua influência; devido ao seu poder. Monsieur Aristides, a figura mundialmente famo­sa, não estaria implicado nos fatos ocorridos. Entretanto, muito embora ele, pessoalmente, escapasse incólume, não deixaria de ser uma derrota. Derrota do seu objetivo, derrota para o celeiro de cérebros com o qual esperava obter enormes lucros. Monsieur Aristides não se pertur­bou com a derrota. Durante a sua carreira, isto já lhe acontecera, algumas vezes. Sempre aceitava o revés fi­losoficamente e partia para um novo empreendimento.

Fez, com as mãos, um gesto ocidental.

— Lavo as mãos no que concerne a este assunto — disse ele.

O Chefe de Polícia adiantou-se. Sabia, agora, o que fazer, de acordo com as instruções que tinha e informa­ções recebidas. Estava pronto a agir com toda a autori­dade de seu cargo oficial.

— Não quero que me criem dificuldades — disse ele. — Cumprirei meu dever.

Com o rosto muito pálido, van Heiden adiantou-se.

— Queiram acompanhar-me — disse ele. — Mostrar-lhes-ei nossas acomodações de reserva.

 

— Oh! sinto como se tivesse acordado e acabado com um pesadelo — suspirou Hilary.

Estendeu os braços bem alto, acima da cabeça. Eles estavam sentados no terraço do hotel, em Tânger. Ti­nham chegado de manhã, por avião. Hilary continuou:

— Tudo aquilo aconteceu, realmente? Parece impos­sível .

— Aconteceu sim — disse Tom Betterton, — mas concordo com você que foi um pesadelo. Bem, agora es­tou livre daquilo.

Jessop veio caminhando pelo terraço e aproximou-se deles.

— Onde está Andy Peters? — perguntou Hilary.

— Não demora a chegar — disse Jessop. — Ele ti­nha que cuidar de alguns assuntos.

— Então Peters era um dos seus homens — disse Hilary, — e fez coisas com material fosforescente e uma cigarreira de chumbo que esguichava material radioativo. Eu nunca desconfiei de nada.

— Não — disse Jessop, — tanto você quanto ele fo­ram muito discretos, um com o outro. Entretanto, para dizer a verdade, ele não é um dos nossos. Ele representa os Estados Unidos.

— Então era isso que o senhor queria dar a entender quando disse que esperava que eu pudesse ter proteção, caso chegasse até onde estava Tom? Referia-se a Andy Peters?

Jessop concordou, com a cabeça.

— Espero que não me esteja culpando — disse Jessop, com seu ar de coruja, — por não lhe ter dado os meios para findar a sua aventura como desejava.

— Que fim? — perguntou Hilary intrigada.

— Uma forma mais desportiva de suicídio — disse de.

— Oh! era isto? — sacudiu a cabeça, incrédula. — Isto parece tão irreal quanto o resto do que sucedeu. Fui Olive Betterton por tanto tempo que fico muito confusa ao voltar novamente a ser Hilary Craven.

— Ah! — disse Jessop, — aí está o meu amigo Le­blanc. Preciso falar com ele.

Deixou-os e caminhou pelo terraço. Tom Betterton falou, rapidamente.

— Faça-me mais um favor, Olive. Eu ainda a chamo de Olive. Fiquei acostumado.

— Sim, com prazer. Do que se trata?

— Caminhe comigo pelo terraço e depois volte e di­ga que fui para o quarto deitar-me um pouco.

Ela o olhou, interrogando.

— Por quê? Que vai você...

— Vou-me embora, minha querida. Enquanto posso ir embora.

— Embora, para onde?

— Qualquer lugar.

— Mas, por quê?

— Use a cabeça, minha cara. Tânger tem uma situa­ção toda especial que não conheço bem. É um lugar es­tranho, que não está sob a jurisdição de nenhum país. Mas sei muito bem o que acontecerá comigo se eu for com vocês para Gibraltar. A primeira coisa que aconte­cerá é que eu serei preso.

Hilary olhou-o com ar preocupado. Na excitação de terem escapado da Unidade ela esquecera os problemas de Tom Betterton.

— Você se refere à Lei dos Segredos de Estado, ou que nome tenha? Mas você não pode pretender fugir, pode Tom? Para onde poderá ir?

— Eu já disse. Qualquer lugar.

— Mas, será isso possível? Há muitas dificuldades e você precisaria de dinheiro.

Ele riu.

— Quanto ao dinheiro não há problema. Está em lu­gar seguro e sob um nome falso.

— Então, você recebeu dinheiro?

— É claro que recebi.

— Mas, eles o perseguirão.

— Vai ser difícil. Você bem sabe que a minha des­crição é muito diferente da minha aparência atual. É por isso que eu estava tão interessado naquela história de ci­rurgia plástica. O plano todo era este. Sair da Inglater­ra, guardar o dinheiro e alterar a minha aparência, a fim de ficar livre de perigo para o resto da vida.

Hilary olhou-o, com ar de dúvida.

— Você não tem razão — disse ela. — Estou segu­ra de que não tem razão. Seria melhor voltar e enfren­tar as conseqüências. Não estamos em tempo de guerra. Acho que só teria um curto período de prisão. Que vida levará sabendo que estará sempre sendo perseguido?

— Você não compreende — disse ele, — você não compreende nada disso. Vamos andando. Não há tempo a perder.

— Mas como conseguirá sair de Tânger?

— Darei um jeito. Não se preocupe.

Ela se levantou e os dois caminharam devagar, pelo terraço. Ela se sentia inibida e incapaz de falar. Tinha cumprido as suas promessas a Jessop e também as que fizera à mulher que morrera, Olive Betterton. Agora, na­da mais tinha a fazer. Ela e Tom Betterton tinham pas­sado semanas de íntima associação, entretanto, sentia que eram dois estranhos. Não surgira nenhum laço de camaradagem ou de amizade entre eles.

Chegaram ao fim do terraço onde havia uma estreita porta que dava para uma estrada que descia, em curvas, para o porto.

— Vou sair por aqui — disse Betterton, — não há ninguém olhando. Até a vista.

— Boa sorte para você — disse Hilary vagarosamen­te.

Ficou parada, olhando para Betterton que se dirigiu para a porta e girou a maçaneta. Quando a porta se abriu, ele recuou um passo e parou. Três homens estavam no limiar. Dois deles entraram e vieram em sua direção. O primeiro falou em tom formal:

— Thomas Betterton, tenho um mandado de prisão contra o senhor. Ficará aqui, em custódia, enquanto cor­rer o processo de extradição.

Betterton virou-se rapidamente mas o outro homem já se postara atrás dele. Betterton voltou-se para o pri­meiro homem e disse, rindo:

— Está tudo certo, a não ser que eu não sou Thomas Betterton.

O terceiro homem entrou pela porta e veio juntar-se aos outros.

— Ora, é sim. Você é Thomas Betterton.

Betterton riu.

— O que quero dizer é que durante o último mês vo­cê viveu comigo e ouviu chamarem-me de Thomas Bet­terton e ouvindo a mim mesmo chamar-me de Thomas Betterton. O fato é que eu não sou Thomas Betterton. Conheci Betterton em Paris e vim para cá, tomando o seu lugar. Se não me acredita pergunte a esta senhora — disse ele. — Ela veio para cá dizendo ser minha mulher e eu a reconheci como tal. Foi o que aconteceu, não foi?

Hilary concordou com a cabeça.

— Isto aconteceu — disse Betterton, — porque não sendo Betterton eu, logicamente, não conhecia a mulher de Thomas Betterton. Depois, eu tive que inventar umas desculpas que a satisfizessem. Mas isto é a verdade.

— Então foi por isso que você fingiu que me conhe­cia — exclamou Hilary. — Quando me pediu que conti­nuasse representando... que mantivesse o embuste.

Betterton riu novamente, com ar confiante.

— Eu não sou Betterton — disse ele. — Vejam qual­quer fotografia de Betterton e verificarão que estou di­zendo a verdade.

Peters deu um passo à frente. Quando falou, sua voz era completamente diferente da voz do Peters que Hilary conhecera tão bem. Era de uma calma implacável.

— Eu já vi fotografias de Betterton — disse ele, — e concordo que não o teria reconhecido como a mesma pessoa. Mas, de qualquer forma, você é Thomas Better­ton e eu o provarei.

Segurou Betterton, subitamente, com mãos fortes, e rasgou-lhe o casaco.

— Se você é Thomas Betterton — disse ele, — tem uma cicatriz em forma de Z na parte interna do braço, à altura do cotovelo direito.

Enquanto falava ele rasgou a manga da camisa de Betterton e segurou-lhe o braço.

— Aqui está ela — disse ele apontando com ar triun­fante. — Há dois assistentes de laboratório nos Estados Unidos que testemunharão sobre este fato. Eu sei disto porque Elsa escreveu-me quando você se cortou.

— Elsa? — Betterton fitava-o e começou a tremer nervosamente. — Elsa? Que há sobre Elsa?

— Pergunta qual é a acusação contra você? — O agen­te de polícia adiantou-se, novamente. — A acusação — disse ele — é assassinato no primeiro grau. Assassinato de sua esposa, Elsa Betterton.

 

— Eu sinto muito, Olive. Acredite que eu sinto muito, por sua causa. Em atenção a você eu teria dado a ele uma oportunidade. Eu a avisei de que teria sido mais seguro, para ele, permanecer na Unidade e, entre­tanto, eu tinha viajado a metade do mundo para pegá-lo e tinha o firme propósito de prendê-lo pelo que ele fez a Elsa.

— Eu não entendo. Não entendo mais nada. Quem é você?

— Pensei que você soubesse. Sou Boris Andrei Pav­lov Glydr, o primo de Elsa. Fui mandado da Polônia para os Estados Unidos, para completar minha educação numa universidade. E do jeito que as coisas estavam na Europa meu tio julgou melhor que eu me naturalizasse. Adotei o nome de Andrew Peters. Quando começou a guerra re­tornei à Europa e combati na Resistência. Consegui fazer meu tio e Elsa escaparem da Polônia e eles foram para os Estados Unidos. Elsa... eu já lhe falei de Elsa, era uma das grandes cientistas do nosso tempo. Foi Elsa que descobriu a Fissão ZE. Betterton era um jovem canaden­se que ajudava Mannheim em suas pesquisas. Conhecia a sua profissão mas não era brilhante ou excepcional. Deliberadamente, ele namorou Elsa e casou-se com ela para ficar seu associado no trabalho científico que ela estava fazendo. Quando as experiências que ela vinha empreendendo estavam quase terminadas, compreendeu ele a grande importância da Fissão ZE; então deliberada­mente, a envenenou.

— Oh! não, não, não!

— É verdade. De nada se suspeitou, na ocasião. Bet­terton parecia desesperado e atirou-se ao trabalho com redobrado afinco. Logo depois anunciou a descoberta da Fissão ZE, como trabalho unicamente seu. Isso lhe trouxe o que almejava. A fama e a reputação de um cientista de primeira linha. Julgou ser prudente deixar a América e ir para a Inglaterra. Foi trabalhar em Harwell. Eu tive que ficar na Europa por algum tempo, depois do fim da guerra. Como eu falava bem o alemão, o russo e o polo­nês, podia fazer trabalho muito útil. A carta que Elsa me escreveu antes de morrer causou-me inquietação. A moléstia que a atacou, e acabou causando-lhe a morte, pareceu-me misteriosa e inexplicável. Quando, finalmen­te, voltei aos Estados Unidos, comecei a fazer investiga­ções. Não vou entrar em detalhes mas o fato é que en­contrei o que procurava. O suficiente para requerer uma ordem de exumação do corpo. Havia um rapaz, no gabi­nete do Procurador Distrital, que tinha sido um grande amigo de Betterton. Nessa época ele viajou para a Euro­pa e penso que, visitando Betterton, mencionou a exuma­ção. Betterton ficou assustado. Suponho que já tivesse sido procurado por agentes do nosso amigo Monsieur Aristides. De qualquer forma, ele achou que essa seria a sua melhor possibilidade de não ser preso e julgado por assassinato. Aceitou as condições oferecidas mas exigiu que a sua expressão facial fosse completamente alterada. O que realmente aconteceu foi que ele acabou realmente um prisioneiro. Além do mais, a sua situação era perigosa porque ele não tinha capacidade para fazer o trabalho científico que era esperado. Ele não era, e nunca fora, um homem genial.

— E você o seguiu?

— Sim. Quando os jornais estavam cheios de notí­cias sobre o desaparecimento do cientista Thomas Better­ton, eu fui para a Inglaterra. Um amigo meu, que é um grande cientista, fora procurado por uma Sra. Spender, que trabalhava na ONU e que lhe fizera algumas insinuações. Quando cheguei à Inglaterra soube que ela tivera um encontro com Betterton. Eu me aproximei dela, demonstrando idéias esquerdistas e, talvez, exagerando a minha competência como cientista. Eu pensava, você com­preende, que Betterton tinha ido para trás da Cortina de Ferro, onde ninguém o poderia alcançar. Bem, se nin­guém o podia alcançar, eu o faria.

Seus lábios cerraram-se, formando uma linha severa.

— Elsa era uma cientista de primeira ordem e era uma mulher boa e linda. Tinha sido roubada e assassi­nada pelo homem que amava e em quem confiava. Se fosse necessário, eu iria matar Betterton com minhas próprias mãos.

— Eu compreendo — disse Hilary, — agora eu en­tendo tudo.

— Eu escrevi a você — disse Peters — quando cheguei à Inglaterra. Escrevi usando meu nome polonês e nar­rando os fatos — olhou para ela. — Penso que você não acreditou no que eu dizia. Você nunca respondeu a minha carta. — Ele deu de ombros. — Depois eu fui ao Serviço Secreto. Quando lá fui pela primeira vez, eu representei um papel. Oficial polonês. Empertigado, estrangeiro, formal e correto. Naquela ocasião eu suspeitava de todo o mundo. Entretanto, Jessop e eu nos entendemos e nos aliamos. — Fez uma pausa. — Esta manhã a minha busca terminou. A extradição já foi pedida e Betterton irá para os Estados Unidos para ser julgado. Se ele for absolvido, nada mais tenho a dizer. — E acrescentou com um ar severo: — Mas não será absolvido. As provas são muito fortes.

Parou de falar e olhou, por sobre o jardim ensola­rado, em direção ao mar.

— Mas o diabo é que você foi ao seu encontro, eu a conheci e fiquei apaixonado por você. Tem sido um in­ferno para mim. Pode acreditar, Olive. E aqui estamos. Eu sou o homem responsável por mandar o seu marido para a cadeira elétrica. Não podemos esquecer-nos disso. É uma coisa que você nunca poderá esquecer, mesmo que chegue a perdoar. — Levantou-se. — Bem, eu queria que você ouvisse toda a história de minha própria boca. Só me resta dizer adeus. — Virou-se bruscamente, ao mesmo tempo que Hilary lhe estendia a mão.

— Espere — disse ela, — espere. Há algo que você não sabe. Eu não sou a mulher de Betterton. A mulher de Betterton, Olive Betterton, morreu em Casablanca. Jessop convenceu-me a tomar o lugar dela.

Ele se virou e ficou parado, fitando-a.

— Você não é Olive Betterton?

— Não.

— Santo Deus — disse Andy Peters. — Santo Deus! Caiu pesadamente numa cadeira junto a ela:

— Olive — disse ele, — Olive minha querida.

— Não me chame de Olive. Meu nome é Hilary. Hi­lary Craven.

— Hilary — ele disse o nome como se fizesse uma pergunta. — Eu terei que me acostumar a isto. Pôs a mão sobre a dela.

Na outra extremidade do terraço, Jessop que discutia com Leblanc sobre dificuldades técnicas da situação do momento, parou de falar no meio de uma frase.

— Você estava dizendo? — perguntou meio distraído.

— Eu disse, mon cher, que aparentemente nada po­deremos fazer contra esse animal de Aristides.

— Não, não, Aristides sempre acaba vencendo. Isto é, sempre consegue sair das encrencas. Mas, certamente, perdeu muito dinheiro e ele não gosta disso. Mas eu acho que ele não tardará em comparecer perante a Suprema Justiça. Não deve ter muito tempo de vida, a julgar pelo seu aspecto.

— Que está desviando a sua atenção, caro amigo?

— Aqueles dois — disse Jessop. — Eu mandei Hilary Craven para uma jornada com um destino desconhecido, mas parece que o fim de sua jornada, afinal de contas, é o de sempre.

Leblanc pareceu intrigado, por um instante, e depois disse:

— Ah! sim, o seu Shakespeare.

— Vocês franceses são muito versados em literatura — disse Jessop.

 

                                                                                Agatha Christie  

 

                      

O melhor da literatura para todos os gostos e idades

 

 

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