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UM FURO JORNALÍSTICO Agatha Christie
UM FURO JORNALÍSTICO Agatha Christie

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

UM FURO JORNALÍSTICO

 

                   PELO TELEFONE

     Os escritórios do Morning Star — o indômito diário londrino — estavam, naquele fim da tarde de 9 de novembro, agitados pelo corre-corre que atingia seu clímax às 18:00. Hemingway, que desempenhava as funções de editor do noticiário — uma espécie de corte suprema de apelação — estava sentado em seu gabinete, organizando a paginação final. A recepção do prefeito merecia a manchete principal e as colunas iniciais da primeira página, com fotografia, naturalmente. O caso da exumação de Newcastle resultara decepcionante — a autópsia não encontrara qualquer sinal de veneno no cadáver. Impossível ir além de um simples registro do resultado. Assim, seria melhor que a coluna quinta fosse destinada para a história do arcebispo que denunciou as uniões ilegais — coabitações à margem do sacramento do matrimônio. Contudo, permanecia a possibilidade de alguma noticia de última hora a respeito do Mistério do Bangalô Isolado.

     No departamento administrativo a pressão não era tão acentuada. A Srta. Beryl Blackwood, secretária do gerente, encontrara tempo para ir ao toalete, a fim de retocar a maquilagem e empoar um narizinho petulante e atraente. Lá, ela encontrou a Srta. Irene Timmins, sua colega, empenhada na mesma tarefa. Beryl abandonou provisoriamente seu sisudo ar profissional e se permitiu uns momentos de mexericos.

     — Reparei que eles designaram o seu querido Sr. Johnson para encarregado da história do Bangalô Isolado — disse a Srta. Timmins. — Você pode me emprestar o seu creme evanescente, meu bem?

     — Está ali no meu armário — replicou a Srta. Blackwood — mas, por favor, não chame o Sr. Johnson de meu querido. Ele não é propriedade minha.

     — Não mesmo? Pensei que ainda fosse; desculpe. O caso é que fiquei um pouco surpresa com a decisão do Sr. Hemingway, designando o Sr. Johnson. É que ele me parece ainda muito jovem, você não acha? Quero dizer, ele não tem a experiência do Sr. Oliver, por exemplo. Se você quisesse saber minha opinião, diria que o Sr. Oliver e não o Sr. Johnson é quem deveria ter ido a Jumbles tratar do caso.

     — O Sr. Oliver estava às voltas com a exumação em Newcastle — respondeu a Srta. Blackwood pacientemente, embora revelando no tom da voz maior interesse pelo assunto.

     — É verdade, mas essa é uma história ultrapassada. Afinal, qual o seu interesse? Um pobre velho de 84 anos. Já estava em tempo de ir embora. Entretanto, o caso do Bangalô Isolado, em Jumbles, esse, sim, é o tipo de crime que me interessa. Aquela pobre moça encontrada sozinha, apunhala no coração... São fatos assim que me horrorizam. Veja só: poderia ter sido você ou eu.

     — A moral da história — comentou a Srta. Blackwood — é que quem não anda direito pelo menos deveria ter mais cuidado.

     — É justamente o que eu acho. Mesmo que o tal de Tracey fosse o marido dela... e, nesse caso, seria um marido muito estranho, somente vindo para casa nos fins de semana e não aparecendo nem dando sinal de vida quando foi noticiado o assassinato; enfim, ele merece o benefício da dúvida. Mas, então, o que é que uma mulher casada estava fazendo com aquele outro sujeito, o tal de Fisher? Na noite de sábado, quando ela foi assassinada, ele se encontrava lá, não é? E eu gostaria de saber de que negócio ele estava tratando, ainda mais porque a moça se achava sozinha, sem sequer uma criada.

     — Fisher deve saber mais do que contou — disse a Srta. Blackwood.

     — É claro que sabe! Não me admirarei se ele estiver a par de toda a história. É capaz até de ser o criminoso. Aquela cara não engana. Vê-se pela fotografia que é daquele tipo de gorducho amável. Não me surpreenderei se ele tiver dado cabo também de Tracey. Isso explicaria o fato de ele não ter aparecido, você não acha? Tome nota do que estou dizendo. Qualquer dia destes o corpo de Tracey vai ser encontrado em algum lugar, com um punhal cravado nas costas, como a moça.

     — Não havia punhal algum nas costas da moça — corrigiu a Srta. Blackwood.

     — Bem, era um ferimento produzido por um punhal, uma faca ou qualquer coisa assim. Você não precisa tomar as palavras tão ao pé da letra; sabe muito bem o que quero dizer. O que acho é que essas histórias acontecem Quando uma garota salta fora dos trilhos, na certa acabará se complicando. Olhe, se eu resolvesse enveredar por esse caminho, faria tudo em alto estilo, com apartamento em Park Lane ou uma vila na Riviera, pelo menos. Chego a tremer só ao pensar naquele horrível bangalô, longe de tudo, isolado e úmido. Gosto dos lugares iluminados. Bem, desejo que o seu estimado Sr. Johnson... desculpe, o nosso estimado Sr. Johnson... consiga alguma coisa, embora eu continue a achar que eles deveriam ter mandado o Sr. Oliver. Mas estou atrasada, minha querida. Obrigada pelo creme.

     A Srta. Blackwood voltou para sua sala e passou a arquivar a correspondência. Trabalhou tranqüilamente até 6:45, quando o gerente saiu para fazer um lanche. Ela resolveu imitá-lo mas, ao levantar-se, o telefone tocou.

     — Alô! Sim, é o ramal 148, escritório do gerente. Sim... A secretária dele falando... Quem?... Ah! É o Sr. Johnson! Onde é que o senhor está?... O quê? Em Jumbles?... Ah! Agora estou entendendo... O senhor conseguiu o quê?... Um formidável furo jornalístico?... Oh, que ótimo!... Não estou ouvindo bem... Sim, a ligação está horrível... O senhor achou o quê?... Ah, a arma! Santo Deus!... Eu nunca poderia imaginar! O senhor está certo de que pode identificá-la?... Como?... Sim... Onde?... Ouvi, sim... O senhor acha que a viu em uma vitrine, mas não se lembra onde... Broad Street?... O quê?... Olhe, espere um minutinho. Vou pedir uma nova ligação. Telefonista! Pode dar um jeito nesta linha? Mais parece uma barragem de metralhadora... Ah, agora, sim! Está bem melhor, obrigada... Alô, Sr. Johnson. Repita, por favor... Sim, estou ouvindo muito bem. Sim... Sim... O que o Sr. Hemingway pensa a respeito disto?... O quê? Não dar conhecimento ao Sr. Hemingway? Mas meu caro rapaz, você não deve perder seu tempo falando comigo... Não... Não... Está enganado... É claro que você deve falar diretamente com o Sr. Hemingway... O quê?... Não... não posso... Não. Sr. Johnson, não diga bobagens... Não me chame de querida... Não seja ridículo... Vou transferir a ligação... Telefonista! Alô, telefonista! Por favor transfira esta chamada para o escritório do Sr. Hemingway... Sim... Vou desligar... Pronto!

     A Srta. Blackwood repôs o fone no lugar. Esse moço, Johnson, estava fazendo uma complicação dos diabos. Mas o engraçado é ele conseguir um furo daquela natureza. Encontrar a arma do crime! E, além disso, teve a sorte de identificá-la. Apesar de tudo, era uma pena que o Sr. Oliver não tivesse tido sua oportunidade. Ela deu um suspiro de resignação e foi apanhar o chapéu e o casaco.

     Entrementes, a ligação foi transferida para a sala do editor do noticiário. Hemingway, alerta e decidido como sempre, o eterno cigarro pendurado no canto da boca, gritou logo no fone:

     — Alô!... Quem é?... Johnson?... Sim... O que há?... Ótimo!... Encontrou o homem?... Ah, a arma?... Onde?... É um punhal?... Você acha o quê?... Pode identificá-lo? Como? Não perca tempo... Como é? Espere um momento.

     Apanhou um bloco de memorando e retomou o fone.

     — Johnson! Faça um resumo rápido dessa história... Sim... Sim... Continue... Sim... Sabe o nome da loja?... Está bem... Talvez daqui a pouco você se lembre. Agora, preste atenção. Naturalmente você não falou a ninguém a respeito disto... Não?... Correto... Watkins, dê-me uma tabela de horários. Obrigado Alô, Johnson! De onde você está falando? De um botequim? Quanto tempo você levará para voltar para Brighton?... Ah, compreendo... Bem, parece melhor você vir diretamente para a cidade. Traga a arma e escreva sua reportagem durante a viagem. Será que dá para apanhar o 7:35?... Bem, se perder esse, há o 8:35... Chega às 9:48... Ainda a tempo. Providenciarei para que tudo esteja aqui esperando a sua reportagem... Certo... Vou dar uma saída mas o Sr. Redman estará a postos... Correto... Isso mesmo... Até logo.

     Rabiscou apressadamente algumas instruções e chamou com urgência o chefe da tipografia, que se apressou a vir, com uma porção de provas na mão.

     — Olhe aqui, Bill. O Johnson chegará mais tarde com uma reportagem a respeito do Crime do Bangalô de Jumbles. Vou querer duas colunas na primeira página para um grande furo. Cancele a manchete sobre a recepção do prefeito e transfira tudo para as colunas cinco, seis e sete, pondo a fotografia na página dois. Perks, preciso de um fotógrafo e de paginadores prontos para um trabalho urgente. Simmonds está na casa? Mandem chamá-lo. Está tudo bem claro? Perfeito. O Sr. Redman resolverá qualquer problema que surgir. Alô! Simmonds? Johnson telefonou, avisando que tem um furo... O assassinato em Jumbles... Ele encontrou a arma... Vamos aos detalhes... Reserve uma manchete e um título em duas colunas. Bill se encarregará de tudo, está bem? Johnson deve chegar aqui com a arma e o resto da história dentro de uma ou duas horas, o mais tardar às 10.

     Desligou e, com um gesto, despediu o tipógrafo. De» pois, consultou o relógio.

     — Sete e cinco. Digamos que ele pegue o 7:35. Haverá tempo de sobra. Onde está aquela reportagem sobre o choque de trens?

     Às 7:25, com todas as providências tomadas, Hemingway se levantou e decidiu ir para casa. O editor noturno do noticiário ainda não havia chegado; na ausência dele, Hemingway chamou o subchefe, entregando-lhe as notas que havia rabiscado durante o telefonema.

     — Entregue isto ao Sr. Redman, quando ele chegar. Não se esqueça de que Johnson acha que pode identificar a arma, porque a viu em uma vitrine. Infelizmente, como não consegue lembrar-se do nome da loja, não podemos aproveitar o resto da noite para obter maiores detalhes. Entretanto, quando ele chegar, talvez possamos fazer mais alguma coisa. Tenho de sair agora. Tome conta.

     Redman, o editor noturno do noticiário, entrou apressadamente na sala um pouco depois das 10. Ele já havia estado lá às 7:30, para saber das novidades da noite: informado de que Johnson não deveria chegar com sua reportagem antes das 10, saíra novamente, deixando recado de que estaria no Cheshire Cheese. Agora, passava os olhos pela papelada em cima da mesa.

     — Onde está a reportagem sobre o caso de Jumbles? — perguntou, irritado.

     — Ainda não chegou — informou o subchefe.

     — Por quê? — quis saber Redman.

     — Johnson não veio no trem das 7:35. Talvez tenha apanhado o que sai de Brighton às 8:35 e chega às 9:48.

     — Às 9:48? Então já deveria estar aqui. Vá ver o que aconteceu com ele. Deveria ter vindo da estação diretamente para cá. Talvez esteja na sala dos repórteres.

     Johnson não foi encontrado em lugar algum do edifício. O relógio marcava 10:15. Bill, o chefe da tipografia, entrou com ar desanimado na sala do editor do noticiário.

     — O que vamos fazer com a primeira página, Sr. Redman? Não vão me entregar o material? Preciso começar a rodar as máquinas dentro de meia hora.

     — Não é melhor telefonar para a Estação Vitória? — sugeriu o subchefe. — Talvez o trem esteja atrasado. Eles poderão informar a hora da chegada.

     — É uma boa idéia. Telefone — respondeu Redman. — Se Johnson não chegar a tempo, devemos arranjar-nos com as notas que Hemingway deixou.

     Folheou, nervosamente, os papéis espalhados sobre a mesa, perguntando:

     — Há alguém aí que possa escrever uma reportagem com base nestas notas?

     — O Sr. Oliver já chegou de Newcastle.

     — Peça que ele venha cá.

     O subchefe conseguiu a ligação com Vitória justamente no momento em que Oliver entrava na sala — um jovem alto, com fartos cabelos vermelhos e a fama de melhor repórter de polícia do Morning Star.

     — Eles informaram — disse o subchefe — que o 9:48 atrasou, tendo chegado somente às 10 horas.

     — Que azar! — exclamou Redman. — Bem, não adianta chorar. Se ele não estiver aqui dentro de 10 minutos, Oliver, você terá de fazer o melhor possível com estas notas. É isto o que temos: um punhal encontrado em um toco de árvore; Johnson pensa que foi adquirido em uma loja de Bond Street. Explore isso o quanto puder. Temos de dar a notícia mesmo sem a fotografia. Espere, talvez seja Johnson.

     O telefone tocava, estridente. Redman atendeu, ouviu por uns instantes e se voltou alegremente para Oliver:

     — É da Estação Vitória. Encontraram um corpo em uma cabine telefônica. Pode haver uma história aí. É melhor você dar um pulo até lá, Oliver, para ver o que há. Pegue um táxi. Telefone logo que souber alguma coisa.

     Dez horas e 20 minutos; 25; 10:30.

     Somente então o telefone tocou na sala do editor de noticias — um som agudo, insistente.

     — Pronto... Sim, é do Morning Star... O editor de notícias falando... Como é mesmo?

     — Oliver falando de Vitória. O cadáver encontrado na cabine telefônica é de Johnson. Apunhalado pelas costas. Bem no coração. O mesmo tipo de ferimento da moça de Jumbles. O caderno de notas dele foi roubado, assim como a arma que trazia. Também não se achou a que produziu o ferimento. O assassino deve ter entrado na cabine e matado Johnson para se apossar da prova. Continuo investigando.

     — Santo Deus! — exclamou Redman. — Johnson assassinado! O criminoso de Jumbles o matou também.

     Ficou imóvel por uns instantes, consternado, mas o instinto jornalístico foi mais forte. Começou a apertar os botões do interfone.

     — bem, temos uma grande reportagem. Simmonds, suba logo. Avise ao pessoal da composição para aguardar novas ordens. Peters, tome nota.

     Ditou a reportagem rapidamente, com um sentido de triunfo. O lápis grosso desenhou as manchetes:

REPÓRTER DO MORNING STAR APUNHALADO O ASSASSINO DE JUMBLES ESTA SOLTO EM LONDRES MATA JORNALISTA A FIM DE SUPRIMIR PROVA REVELADORA CARREGADOR ENCONTRA O CORPO EM UMA CABINE TELEFÔNICA

     Redman sacudiu a cabeça, aprovando.

     — Leve para a tipografia... Rápido... Mande Bill subir... Veja se há uma fotografia de Johnson no arquivo. Olhe aqui, Mathews... dê uma busca e obtenha uma entrevista com a mãe dele, se é que ela existe. Quem sabe uma namorada? Vamos, mexam-se. Não fiquem olhando para mim.

     Bill, o tipógrafo-chefe, deteve-se por um momento na amurada da galeria, contemplando no andar de baixo as máquinas que eram o orgulho de sua vida. As páginas externas, recém-saídas do prelo, estavam sendo empilhadas, prontas para compor os cadernos. Eram 11 horas da noite. Ele levantou a mão para acionar o botão de comando

     — Tudo pronto aí?

     — Pronto.

     — Vamos lá.

     Ouviu-se um estalido. Com um ronco crescente e firme, as máquinas começaram a rodar. O papel foi passando pelos rolos. Todo o grande edifício estremecia sob o impacto da reverberação.

     Com o orgulho de sua enorme circulação, dois milhões de exemplares do Morning Star pareciam formar um enorme coro, festejando seu êxito. Afinal, fora obtido um grande furo jornalística

 

                   O INQUÉRITO

     O inquérito sobre a morte de Geraldine Tracey teve início na manhã de quarta-feira, 11 de novembro. Oliver, desleixado como de costume, o velho chapéu caído sobre os olhos, escolheu cuidadosamente seu lugar. Perto dele estava sentada uma gorda mulher de meia-idade, acompanhada de uma amiga franzina e nervosa. Oliver gostava de ouvir os comentários de pessoas estranhas ao caso, para ter uma impressão das reações do público. A mulher gorducha pertencia ao tipo das que duvidam de tudo e discordam com muita convicção das observações dos outros — o que provocava uma firme reação de sua companheira.

     — Lá estão as testemunhas — apontou a gorda. — Aquele é Fisher, o tal que costumava sair de carro com a moça. Parece que é dado à bebida, você não acha?

     — Aquele não é o Fisher. Vi a fotografia dele no jornal esta manhã. Não é ele.

     — Você sempre convencida de que sabe tudo, Maria. É capaz de duvidar até de um santo. É ele, sim. Olhe: está roendo as unhas. Dizem que isso revela mau caráter em um homem.

     — Está muito desfigurado.

     — E não é para menos. Ele sabe o que estão pensando a seu respeito. Mais parece uma lesma, não acha? Dessas que a gente encontra na folha de alface, ao preparar a salada. Minha sobrinha casou com um sujeito parecido com ele. E por falar nisso, agora me lembrei que ele morreu de repente. Disseram que foi de indigestão, mas agora já estou desconfiada...

     Maria sacudiu a cabeça energicamente.

     — Ele não é o assassina

     — Como é que você sabe?

     Antes que Maria respondesse, a sessão foi aberta e as duas amigas ficaram em silêncio, as cabeças esticadas para a frente, respirando nervosamente, inebriadas pelo espetáculo.

     Depois das preliminares normais, foi chamada a primeira testemunha — uma figura de discutível elegância, vestida de preto e usando, equilibrado na cabeça, um chapeuzinho de veludo.

     — Seu nome é Mary Evans?

     Em resposta ao delegado, ela confirmou que se chamava Mary Evans e dirigia uma loja de artigos femininos, sob o nome de Madame Evanalda. Identificou a moça assassinada, que ela havia empregado como sendo Geraldine Potts e que se demitira três meses antes. Pelo que sabia, Geraldine não era casada e nunca ouvira qualquer referência a algum parente, exceto um irmão.

     O primeiro jurado pediu permissão para fazer uma pergunta:

     — A senhora acha que ela era uma moça virtuosa?

     — Ora essa! — exclamou Madame Evanalda, visivelmente perturbada com uma pergunta feita em linguagem vitoriana. — Não sei aonde o senhor quer chegar. A Srta. Potts sempre se conduziu com grande correção nas horas de serviço. Eu nem sonharia em permitir qualquer conduta menos digna.

     — E fora das horas de serviço?

    — Não tenho nada com isso. Mas não sei nada, absolutamente nada,

     Madame Evanalda foi dispensada e retirou-se caminhando com muita elegância. Foi então chamado Henry Vaughan Fisher. Não podia haver a menor dúvida: o homenzinho estava assustado.

     Esses grã-finos se perturbam facilmente, pensou Oliver.

     Ele podia imaginar que Fisher fosse um atilado e próspero negociante, respeitado por sua sagacidade e previdência. Uma lojinha de jóias em Birmingham dera início a sua fortuna. Podia também vê-lo como um atencioso anfitrião, oferecendo um jantar no Savoy, extrovertido e amável, no seu papel de quem está pagando o champanha. Ou um generoso “boa-praça” que, entretanto, sabe empregar seu dinheiro. Haverá um terceiro Fisher? Um amante ciumento que chegou a assassinar? Neste mundo, pensou Oliver, nada é impossível.

     O delegado procurava amavelmente ajudar o Sr. Fisher a completar seu depoimento. Com sua experiência, Oliver percebeu qual era a intenção. A polícia não queria que o Sr. Fisher se perturbasse. Em princípio, sua história deveria ser aceita integralmente.

     Sim, o Sr. Fisher fora visitar a Sra. Tracey na noite de sábado. O marido dela, segundo ele supunha, não estaria em casa. Nessa altura, a testemunha não escondia sua apreensão, mas não foi feita qualquer pergunta indiscreta.

     Não, ele não conhecia o Sr. Tracey. Segundo fora informado, o Sr. Tracey era um caixeiro viajante.

     Orientado pelo delegado, Fisher narrou os acontecimentos daquela noite de sábado. Ele viera de carro, tendo chegado ao bangalô às nove horas, mais ou menos. Bateu na porta, tocou a campainha, mas não obteve resposta. Finalmente, já aborrecido, tentou abrir a porta. Para sua grande surpresa, não estava trancada. Ele entrou e acendeu as luzes, atravessando o vestíbulo e entrando na sala de jantar. Ali, para seu horror, quase tropeçou no corpo da Sra. Tracey. A impressão é que ela estava morta já fazia algum tempo.

     — E depois, Sr. Fisher? — perguntou o delegado, amavelmente.

     — Bem... passados alguns minutos, eu... voltei para Brighton.

     Fisher enxugou o suor da testa.

     — Que vergonha! — exclamou a senhora gorda. Outras pessoas, perto dela, manifestaram seu apoio.

     — Silêncio, por favor! — ordenou o delegado rispidamente.

     — O senhor não fez qualquer comunicação à policia até então?

     — Não.

     — Ah, entendo!

     Fisher prosseguiu, hesitante:

     — Foi um grande choque para mim... um choque enorme. Sofro do coração. — (“Bebida”, murmurou a gorducha). — Tenho palpitações. Eu... continuei guiando durante muito tempo, procurando descobrir qual a melhor coisa a fazer.

     — Ah, entendo! — repetiu o delegado. Com essas duas palavras externou toda a censura de que era capaz. Lamentava amargamente as limitações que impunham à policia.

     — Mas afinal o senhor resolveu dar parte à polida, Sr. Fisher?

     — Sim... de fato... eu... lá pela meia-noite decidi telefonar.

     — Ah, entendo! — repetiu o delegado pela terceira vez, com uma entonação aperfeiçoada pela prática. Suspirou fundo. — É tudo, Sr. Fisher.

     Seguiram-se os testemunhos oficiais. Como resultado do telefonema, a polícia local chegou ao bangalô pouco depois da uma hora da madrugada.

     A testemunha seguinte a ser chamada foi Gladys Sharp.

     — Você era a cozinheira da falecida?

     — Não, apenas arrumadeira, durante o dia — respondeu ela friamente.

     — Há quanto tempo estava empregada no bangalô?

     — Uns dois meses.

     — E foi a última pessoa que viu a Sra. Tracey viva?

     — Como é que vou saber?

     — Por favor, limite-se a responder as perguntas que lhe são feitas. Quando viu a falecida pela última vez?

     — Às três da tarde. Eu estava indo embora, como de costume.

     — Você saia sempre a essa hora?

     — Não... normalmente era mais cedo, porém ela me pediu para arrumar umas coisas para o fim de semana e me atrasei um pouco.

     — Você não deveria voltar antes da manhã de segunda-feira, não é verdade?

     A Srta. Sharp piscou o olho, num gesto vulgar.

     — O que é que o senhor acha? Que eu não iria atrapalhar?

     — Faça o favor de responder as perguntas de maneira adequada.

     — Está muito bem.

     — Era assim que fazia normalmente?

     — Sim, sempre que ela planejava uma festinha.

     O delegado esteve para protestar ainda uma vez, mas afinal decidiu que era melhor deixar que a Srta. Sharp depusesse a seu modo.

     — Estava sendo esperado um visitante para o fim de semana?

     — Estava.

     — A Sra. Tracey mencionou o nome do visitante?

     — Disse que seria o marido, mas é claro que essa eu não engoli.

     — O que você quer dizer com isso?

     — Ora, não sou tão boba. Evidentemente era o Sr. Fisher quem viria; se fosse Tracey, ela não teria feito tantos preparativos, a não ser que ele não fosse o marido, isso eu posso garantir...

     — Por favor, limite-se a responder minhas perguntas. Diga-me: você tem absoluta certeza de que o Sr. e a Sra. Tracey não eram casados?

     — Acho que não tenho o que o senhor chama de absoluta certeza, mas a gente percebe as coisas, não é mesmo? Esses homens que só vêm para casa nos fins de semana e dizem que são caixeiros viajantes... Belos tipos de marido, hem?

     — Este ponto já está esclarecido. Agora, vamos adiante. Você declarou que viu a Sra. Tracey pela última vez às três horas da tarde. O estado dela era normal?

     — Completamente.

     — Não mostrou sinais de aborrecimento ou preocupação?

     — Pelo contrário, quando sai, ela estava fazendo as unhas e se embonecando toda. Oh! É claro que o Sr. Fisher viria.

     — Quando foi que você soube do que havia acontecido?

     — No dia seguinte. Foi minha tia quem me contou. O marido dela ouviu a história no bar, quando vinha para casa. Levei um susto enorme e comentei: “O quê? Assassinada?”

     — Obrigada, Srta. Sharp. É tudo.

     Não muito feliz por ter sido interrompida justamente quando ia soltar a língua, a Srta. Sharp deixou o banco das testemunhas.

     O laudo médico encerrou a parte preliminar. Era um documento técnico e sem comentários. Traduzido em linguagem para leigos, o relatório dizia que a falecida fora apunhalada com um instrumento afiado, de lâmina triangular, que lhe atingira o coração. O ferimento não poderia ter sido produzido pela própria vítima. O médico não se julgava em condições de opinar a respeito da natureza da arma. Não fora encontrado qualquer instrumento que pudesse ter sido utilizado. O exame do corpo se realizou à 1:30 da madrugada. A morte ocorrera entre quatro e seis horas antes. Impossível determinar exatamente.

     O inquérito foi então suspenso por uma semana.

     Muitas pessoas, além de Beryl Blackwood, achavam que Oliver tinha “um jeito especial” para conquistar simpatias. Gladys Sharp não escapou à lábia do repórter.

     Ela mesma não saberia explicar como tudo aconteceu, tão ansiosa estava para abrir-se com alguém que fosse capaz de escutá-la. O fato é que, quando deu conta de si, já aceitara o convite e se encontrava sentada a uma pequena mesa do Café Lido, tendo à frente um simpático jovem de cabelos vermelhos.

     Oliver percebeu o fraco da Srta. Sharp e pediu à garçonete que servisse chá, bolos, massas folheadas e, depois de muitas explicações, duas misteriosas iguarias com os nomes de Manhã Gloriosa e Doce de Chocolate Delícia.

     Quando a Srta. Sharp deu a primeira dentada em uma apetitosa fatia de bolo coberta de sorvete, Oliver puxou a conversa.

     — Foi um espetáculo extraordinário este de hoje. Na minha opinião, o delegado não soube conduzir o interrogatório. Você poderia ter dado um depoimento muito mais valioso, se ele não atrapalhasse, evidentemente de propósito.

     — Justamente o que eu acho. Interrompendo-me daquela maneira! Se eu tivesse contado tudo o que sei... — acrescentou ela, sacudindo a cabeça.

     — Ah! Percebi logo que você é discreta por natureza. Conheço as pessoas.

     — Não sei como foi o que o senhor percebeu, mas é a pura verdade. Sempre desconfiei daqueles dois. Quando chegava no sábado, ela me dispensava e não queira saber o estado da louça na segunda de manhã! Nem sequer uma colher lavada. Tudo empilhado na pia da cozinha a ela toda empoada!

     — Incrível — comentou Oliver. — E Tracey, como era ele?

     — Só botei os olhos nele uma única vez. Um sujeito do tipo comum.

     — Assim como eu?

     — Ora, o que é isso? Imagine. Como o senhor! Vê-se logo que é uma pessoa fina. Boa pinta, como dizem por aí. Mas esse tal de Tracey... Bem, ele era do tipo comum.

     — Louro ou moreno?

     — Oh, bem moreno.

     — Alto ou baixo?

     — Altura média.

     — Os olhos, de que cor?

     — Azuis, acho eu... não, parece que eram castanhos. Na verdade, não me lembro. Nunca cheguei muito perto dele, entende?

     — Prove mais um destes — ofereceu Oliver, aproximando mais dela o prato.

     — Bem, já que o senhor insiste... — disse ela, apanhando outra fatia.

     — Ele não tinha qualquer traço característico? Orelhas de apagar vela, caminhar coxeando, coisas assim?

     — Não — respondeu Gladys — mas usava bigode! — acrescentou entusiasmada.

     — Bom, mas é tão fácil raspá-lo, não lhe parece? É estranho que ele não tivesse aparecido, não acha?

     — Ele não se arriscaria assim.

     — O que quer dizer?

     — Que foi ele, é claro. Quem mais poderia ter sido?

     — Bem... Há o nosso amigo Fisher, o homem que esteve lá.

     — O Sr. Fisher é uma excelente pessoa.

     — Ah! — exclamou Oliver, vendo mentalmente uma nota de uma libra escorregada para a mão dela. — Claro que é um sujeito distinto.

     — Foi Tracey quem a matou, não tenha dúvidas. Brigavam muito, sabe? Como cão e gato. Não que eu tivesse ouvido alguma coisa, mas percebi sinais várias vezes nas manhãs de segunda-feira. Os homens querem as coisas sempre à moda deles. Deixam uma garota sozinha em um fim de mundo a semana inteira... Para mim, ele voltou naquele dia, houve briga e ele a liquidou. Segundo ela me disse, o sujeito era muito ciumento.

     — Sim, talvez você tenha razão. A intuição feminina é uma coisa muito séria. Entretanto, tenho um palpite de que Tracey já está morto. O corpo vai aparecer a qualquer momento. O terceiro assassinato...

    — Manhã Gloriosa — disse a garçonete, com um sorriso de cumplicidade.

     Oliver contemplou com fascinado horror a montanha de sorvete de creme e morango, uma rodela de abacaxi, duas ou três cerejas, molho de chocolate, algumas nozes, uma banana em fatias e os restos de uma lata de ameixas cozidas.

     — Não é de admirar — murmurou Oliver — que as mulheres tenham intuição. Elas bem que precisam disso.

     — O senhor não está comendo nada.

     — Dieta — apressou-se Oliver a explicar. — Tenho a impressão — acrescentou com ar pensativo — de que deve ser muito triste morar em um lugar tão isolado.

     — Ah, para mim era um sacrifício. Tinha de caminhar até o ônibus, que passava só de hora em hora. Depois, 45 minutos para chegar em Brighton. Não é de admirar que ela se enchesse. Os homens são uns egoístas, não se pode negar. Retirar uma garota do meio de seus amigos e esperar que ela fique feliz metida em um buraco, sem nada para fazer o dia inteiro! Naturalmente ela se apoiou no Sr. Fisher. Olhe: não serei eu quem vai condená-la.

     — Você é muito bondosa.

     — É claro que eu não teria ficado se o lugar não fosse respeitável. Sou uma pessoa de bom gênio, desde que não me pisem nos calos. Ainda na tarde da última sexta-feira ela veio falar comigo, furiosa, apenas porque eu estava usando, para prender os cabelos, um desses grampos ornamentais, com uma cabeça de jade. Que mal havia nisso, pelo amor de Deus? Pois ela ficou possessa.

     — Que injustiça! — comentou Oliver. — Você deve ter uma enorme experiência a respeito da natureza humana. Como era a sua patroa anterior?

     — O sobrenome era Catsby. Uma fera! Imagine que...

     — Doce de Chocolate Delícia — interrompeu a garçonete.

     — Parece muito gostoso, não acha? — comentou Gladys.

    Oliver estremeceu, apavorado. Nunca tinha visto um sorvete assim.

     — Catsby... — disse Oliver, olhando para o teto. — Será daqueles Catsby que moram em Monmouth Drive?

     — Não. É a Sra. Walter Catsby, da Avenida Maidstone, 18. Como eu ia dizendo... O que era mesmo que eu ia dizendo?

     Nesse momento Oliver levantou-se da cadeira e olhou para o relógio de pulso com uma exclamação de pesar.

     — Santo Deus! Tinha-me esquecido completamente de um encontro muito importante. Você não leva a mal se eu me retirar agora? Tive o máximo prazer em conhecê-la.

     — Oh, não se preocupe — respondeu Gladys, saboreando o Chocolate Delícia.

     Oliver pôs uma cédula no bolso da garçonete e saiu apressadamente do Café Lido. Havia uma porção de coisas que ele queria fazer antes de regressar a Londres.

     Começou dando um telefonema para a Avenida Maidstone e tendo a sorte de conseguir uma entrevista com a Sra. Catsby. Improvisando uma história a respeito de uma irmã inválida, Oliver conseguiu alguns detalhes sobre a personalidade de Gladys Sharp. A Sra. Catsby — uma matrona respeitável — foi muito franca:

     — Perigosa, muito perigosa. Tenho o dever de alertar o senhor. Ela fala demais. Mexeriqueira.

     Oliver disse que tivera essa impressão.

     — E se o senhor reclamar, ela se torna vingativa. Tive vários exemplos. Pura maldade. Um bico de gás deixado aceso a noite inteira, apenas para aumentar a conta. E quebrou uma porção de minhas melhores porcelanas. Não se pode provar nada, naturalmente. Também tenho sérias dúvidas de que ela seja uma moça séria. Eu mesma tive ocasião de vê-la acompanhada de homens de aspecto muito estranho. E imagine onde ela esteve empregada ultimamente? Talvez tenha escondido de sua irmã este fato. No Bangalô Isolado, Sr. Oliver! Agora eu pergunto ao senhor: uma moça decente iria envolver-se em um caso de assassinato? Quanto à honestidade — apressou-se a Sra. Catsby a acrescentar, sem dar tempo a Oliver de responder à última pergunta — devo confessar que jamais dei falta de nada. Mas fora isso, acho que ela é capaz de tudo. Não queira saber as coisas impertinentes que ela me dizia!

     — Então ela não era de confiança?

     — Adotei como norma nunca acreditar no que ela dizia — respondeu a Sra. Catsby. — É sempre assim que procedo e olhe que tenho uma larga experiência. Estou sempre trocando de empregada.

     — Entendo — disse Oliver. — Muito natural

     — Adeus, senhor — arrematou a Sra. Catsby, estendendo-lhe a mão. — Fiquei muito contente porque veio pessoalmente. Se fosse por escrito, eu seria obrigada, naturalmente, a dizer que ela era honesta e digna de confiança. A língua é mais poderosa que a pena, Sr. Oliver.

     — Estou começando a acreditar que a senhora tem toda a razão — respondeu o repórter, retirando-se.

     Antes de regressar a Londres, ele resolveu ir até a cena do crime — deserta àquela hora da noite. Como Gladys dissera, o lugar era muito isolada

     Oliver identificou sem dificuldade o toco de árvore onde Johnson fizera sua sensacional descoberta. Foi uma pena que ele não tivesse descrito os detalhes quando telefonou! Infelizmente, parece que o telefonema foi feito do botequim mais próximo e, como é natural, ele falou o menos possível, com receio de que pudesse estar sendo seguido.

     Será que havia alguém escutando? Alguém que tivesse visto quando ele achou a arma?

     Oliver olhou em torno de si, com um ligeiro arrepio. O bangalô estava situado apenas a algumas centenas de metros. O repórter aproximou-se. De repente, suspendeu a respiração. Como uma sombra imprecisa, ele viu o vulto de um homem que tentava forçar uma das janelas. Silenciosamente, Oliver atravessou o pátio gramado. O homem pressentiu a presença dele e voltou-se. O repórter projetou a luz de sua lanterna em cheio no rosto do outro. Era um homem de meia-idade, bem barbeado, com uma feia cicatriz em uma das faces.

     — Que diabo é você? — berrou o sujeito.

     — E que diabo você está fazendo aí, forçando essa janela? — retorquiu Oliver.

     O homem deu uma risadinha debochada:

     — E por que não posso fazer? Pode estar certo de que tenho mais direitos que você. Este bangalô era de Geraldine Tracey e eu sou irmão dela, Arthur Potts. O que tem a dizer?

 

                   O ÁLIBI DE FISHER

     Na manhã seguinte à do inquérito em Brighton, Oliver, o repórter policial, estava novamente em sua sala no edifício do Morning Star, empenhado em uma acesa discussão com Hemingway, o editor do noticiário, a respeito do crime. Àquela hora — pouco antes do meio-dia — os escritórios estavam relativamente silenciosos. Hemingway já despachara uma dezena de repórteres para várias missões; discutira asperamente pelo telefone com uma agência de notícias e uma firma de fotografias, cujos trabalhos, segundo ele, deixaram muito a desejar, prejudicando o jornal; ouviu calado, também pelo telefone, algumas ásperas recriminações do principal acionista e recebeu várias pessoas que queriam oferecer informações muito valiosas sobre os mais absurdos assuntos. No momento, caminhava de um lado para outro da sala, como era de seu costume, e no grande cinzeiro de sua mesa já se amontoava a pilha de pontas de cigarros que ele continuamente tornava maior.

     — Bem, e o que sabe você desse tal de Potts? — perguntou a Oliver, que relatava os acontecimentos da véspera. — Disse que era irmão dela, não foi? Nessa é que não caio.

     Hemingway trabalhara em jornais dos estados do oeste e suas reações guardavam traços dessa experiência.

     — Também desconfiei, mas o que ele contou me pareceu bastante razoável. Disse que era camaroteiro em um navio que faz a linha de Southampton ao Havre e me deu seu endereço em Southampton. É claro que ele compreendeu que a maneira como o surpreendi exigia uma boa explicação. Declarou que há muitos anos não tinha notícias de sua irmã, até aquela tarde, quando fora a Brighton tratar de uns negócios. Ao ler a notícia do inquérito, no jornal da tarde, tomou conhecimento de que o nome de solteira da vítima, Sra. Tracey, era Geraldine Potts, e sabia que ela trabalhara na loja Evanalda. Por isso, foi até o bangalô, ver se havia alguém que lhe pudesse dar alguma informação; não negou que tentara forçar a entrada na casa, para dar uma olhada. Acrescentou que tinha de voltar logo para Brighton, a fim de apanhar o trem de 7:15 para Southampton, uma vez que seu navio partiria ás 11 horas; não fez a menor objeção quando eu disse que voltaria com ele. Conversamos durante toda a viagem e tive oportunidade de constatar que ele entendia do serviço de camaroteiro e estava familiarizado com o percurso até Havre, que eu conheço muito bem.

     — Ora essa! — resmungou Hemingway. — Então você poderia contar a mesma história, se fosse surpreendido no lugar dele. Acreditou no homem?

     — Bem... — desculpou-se Oliver — acompanhei-o até que ele embarcou no trem que havia mencionado. Depois, telefonei para o escritório da companhia em Southampton e disse que precisava falar com um camaroteiro que trabalha com eles, chamado Potts, e que ficava muito agradecido se pudessem me ajudar. Então eles me deram o nome todo, Arthur Potts, e seu endereço, que era o mesmo que ele me havia dito, acrescentando que o homem estava de serviço no navio que deveria partir às 11 horas naquela noite. Ante tantas provas, não me preocupei mais com o nosso amigo Potts. É claro que ele não é boa coisa mas sua história estava absolutamente correta, inclusive a profissão de camaroteiro.

     Hemingway estava com a testa franzida.

     — Tomara que você tenha razão. De qualquer modo, não há lugar para Potts neste caso. Trata-se de um crime simples e não devemos deixá-lo complicar-se com misteriosos irmãos, a menos que haja completa evidência. É claro que o homem é Fisher, está na cara. A história que ele contou! Você já ouviu alguma coisa mais absurda? Não comunicou imediatamente à polícia a descoberta do corpo, oh, não! O prudente Sr. Fisher tinha de pensar um pouco, primeiro. Precisava forjar as desculpas que iria apresentar.

     — Também acho que as coisas se apresentam assim — disse Oliver — mas a gente precisa levar em conta a impressão do público e não me parece que Fisher seja tido como o culpado. Você se lembra, Hemingway, quando você mesmo era repórter e estava sempre procurando obter mais informações que os outros. Pouco lhe importava se havia ou não provas contra determinado suspeito, se você tinha certeza de que ele não era o criminoso.

     Hemingway sorriu um tanto amargurado.

     — É verdade. Sempre segui minhas pistas e, em geral, elas estavam certas. Mas pode ter certeza de que, por um lado, nunca topei um caso assim, com tantas provas contra Fisher, não havendo mais nenhum suspeito; por outro lado... ora, meu rapaz, não me leve a mal por eu dizer que não tenho tanta confiança nas suas pistas, como eu tinha, naquele tempo, nas minhas.

     — Mas como que não há outros suspeitos? — protestou Oliver. — Posso muito bem citar aquela venenosa Gladys Sharp, a criada, como uma possível criminosa. Conforme eu lhe dizia há pouco, não seria a primeira empregada a dar cabo de sua patroa, com a qual vive sozinha em uma casa, como sabemos. E não esqueça que ela, conforme relatei a você, insistiu muito em lançar suspeitas sobre o marido da vítima: Tracey deve ter sido o assassino. E naturalmente, além da acusação da criada, há uma porção de coisas que apontam o marido como sendo o criminoso. A meu ver, ele é muito mais alvo de suspeitas do que qualquer outra pessoa.

     Hemingway deu uma risadinha.

     — Como é que você chegou a essa conclusão? Tracey, nem qualquer sujeito parecido com ele, foi visto no local antes ou depois do crime; a criada declarou que ele passava fora de casa a maior parte do tempo; dada a sua profissão de caixeiro viajante, poderia estar a centenas de quilômetros de distância e a própria visita de Fisher naquele fim de semana comprova que Tracey estaria ausente. O que me diz de tudo isto?

     — Nada. A história de um crime misterioso começa justamente por não se saber muita coisa a respeito dele, não é? Mas me explique uma coisa: já faz quatro dias que o assassinato foi cometido e todos os jornais estão falando a respeito dele; como é que o marido da vítima não dá sinais de vida?

     — Ah, isso não é de causar surpresa — replicou Hemingway. — Se ele for casado com outra mulher, o que está parecendo muito provável, não terá a mínima pressa em se ver envolvido na história. É isso o que eu acho.

     Nesse momento o telefone tocou. Hemingway atendeu e 15 segundos depois já tinha terminado a conversa com um interlocutor desconhecido, tendo-lhe dito que o preço seria de cinco guinéus ou nada feito.

     Oliver retomou a discussão:

     — Não sei por que devemos admitir que Tracey não é o marido. Ninguém levantou essa suspeita, a não ser essa mulherzinha intrigante, a tal de Gladys, que estive recheando de sorvetes ontem. Mas casado ou não, que belos argumentos Tracey teria, se viesse a saber do romance dela com Fisher! Matar a mulher ou a amante por motivo de ciúmes não é coisa rara hoje em dia e, para falar a verdade, não vejo outra razão.

     Hemingway sacudiu os ombros, impaciente.

     — Você está sofismando contra os fatos. O que realmente sabemos é que a conduta de Fisher, depois de haver encontrado o corpo no bangalô, segundo seu depoimento, foi muito suspeita. Sabemos que ele mora em Brighton; sabemos que o pobre Johnson descobriu a arma do crime e talvez alguma outra prova: sabemos que nada seria mais fácil para o assassino do que esperar por Johnson na estação de Brighton, viajar no mesmo trem e chegar com ele a Londres, em cuja estação o repórter foi assassinado. Sabemos tudo isso, o que para mim representa muito. Agora, o que quero de você é que vá procurar Fisher e descubra o que ele andou fazendo na noite em que Johnson foi morto. Ele deve ter uma história, naturalmente, e a polícia já deve conhecê-la, pois qualquer pessoa ligada ao primeiro crime está no rol dos suspeitos dos dois. E deve ter sido uma história bem contada, pois, caso contrário, Fisher não estaria agora em liberdade. Descubra essa novela, Oliver, e faça bom proveito!

     Às quatro horas daquela tarde Oliver estava procurando localizar a firma do Sr. Fisher, na Rua Norte, em Brighton. Não foi uma tarefa difícil; se a joalheria não era a melhor de Brighton, pelo menos procurava sê-lo. Sua vitrine e a decoração externa deviam ter custado um bom dinheiro e, embora houvesse uma grande variedade de bijuterias, estas eram estocadas no balcão do fundo, deixando em primeiro plano as jóias de maior valor. O ambiente dava a impressão de um estabelecimento respeitável e Oliver concluiu que, se o Sr. Fisher era o responsável por tudo aquilo, é que realmente conhecia seu ofício.

     O repórter dirigiu-se ao jornaleiro da esquina e comprou um vespertino já lido. Graças à experiência em situações dessa natureza, não teve dificuldade em puxar conversa, abordando um assunto que fosse do interesse do jovem e gorducho vendedor. Passando os olhos pela página das notícias do turfe, praguejou, fingindo-se irritado; a seguir, analisando os palpites para as corridas do dia seguinte, percebeu que despertara a atenção do jornaleiro.

     — Você parece que sabe de alguma barbada — arriscou Oliver.

     — No segundo páreo — replicou o jovem. — Vai dar Diabo Manco na cabeça.

   Poucos minutos depois ele e Oliver estavam empenhados em detalhada análise dos diferentes páreos, até que o repórter conseguiu mudar de assunto.

     — Aquela joalheria Fisher & Flensburger, ali adiante... Esse Fisher é o que depôs no inquérito?

     O jornaleiro mostrou-se condescendente em falar a respeito de Fisher, não escondendo sua admiração por um freguês que também gostava de corridas e entendia muito do assunto. Mais de uma vez eles haviam trocado palpites com bons resultados. A joalheria era muito conceituada e dizia-se que, discretamente, emprestava dinheiro a juros módicos. Fisher era bem-visto por aqueles que não condenam um homem que gosta de divertir-se — e era evidente que o jornaleiro pertencia a essa classe de admiradores. Ninguém se surpreendeu ao saber que Fisher estava tendo um romance com uma mulher casada — que não era, evidentemente, o primeiro — mas, quanto a incluí-lo no rol dos suspeitos, quem conhecesse o homem não teria idéia tão absurda. Fisher era a bondade em pessoa, incapaz de matar uma mosca. Além disso, qual a necessidade de andar apunhalando garotas de quem ele tanto gostava? Acontecia ainda que Fisher era solteiro e morava em Hove, na zona de luxuosos edifícios de apartamentos.

     Oliver agradeceu a preciosa colaboração do jornaleiro e pouco depois apresentava sua carteira de jornalista na joalheria Fisher & Flensburger, solicitando que o Sr. Fisher o recebesse por uns poucos minutos.

     Conforme Oliver esperava, o Sr. Fisher não se fez de rogado e conversou durante mais tempo que “uns poucos minutos”.

     O joalheiro estava evidentemente passando por maus momentos. O rosto redondo e o bigodinho levemente oleado deveriam, em situação normal, apresentar um aspecto alegre; agora, porém, havia rugas de ansiedade em suas faces e as olheiras revelavam horas de angústia. Ao abrir a porta do gabinete, no fundo da loja, ele procurou endireitar o corpo e ajeitou, com um gesto instintivo, o alfinete da gravata, onde brilhava uma pérola. A sala era de tamanho médio e mobiliada com bom gosto, tendo ao centro uma mesa envernizada e uma escrivaninha perto da janela.

     — Meu sócio utiliza esta sala — explicou Fisher — e é aqui que recebemos as pessoas para tratar de assuntos particulares. Vamos passar para meu escritório, mais atrás, onde poderemos ficar à vontade.

     Abriu outra porta, com a metade superior envidraçada, e passaram para uma sala menor e mais simples, exceto quanto a uma larga mesa sobre a qual um cidadão, despreocupado quanto a questões de estilo, podia espalhar à vontade seus objetos de estimação.

     Depois de oferecer a Oliver um charuto de boa marca, Fisher foi muito franco em confessar por que recebia tão cordialmente um repórter do Morning Star.

     — Sei que estou sob suspeita e quero que toda a verdade a respeito de minha atitude seja conhecida o mais detalhadamente possível, de modo que ficarei muito grato por tudo o que vocês divulgarem a esse respeito. Qualquer pessoa que me conheça sabe que nada tenho a ver com esses dois assassinatos mas há muita gente que nunca ouviu falar em mim e passa a me olhar, desconfiada, toda a vez que sou identificado. Isso está dando cabo de meus nervos. Ora, como o senhor sabe, tudo se resume em provar onde eu estava na noite de segunda-feira, quando aquele pobre repórter foi seguido até Londres e assassinado. Se não cometi o segundo crime, então também não cometi o primeiro.

     — Realmente — concordou Oliver. — Todo mundo aceita que o álibi será válido para os dois assassinatos.

     — Pois é — continuou Fisher. — Acontece que Flensburger e eu estamos em negociações para aumentar a loja, admitindo mais um sócio. Inesperadamente, a pessoa que tínhamos em vista telegrafou, na segunda-feira, avisando que estaria em Brighton na manhã de terça e pedindo que discutíssemos então as condições da nova sociedade. Ora, Flensburger entende de contabilidade mais do que eu, porém não é muito bom em contratos, de modo que tive de me encarregar pessoalmente do problema, muito mais que algumas de nossa transações são tão confidenciais que somente os sócios tomam parte nelas. É claro — apressou-se Fisher a acrescentar — que este detalhe não é para ser publicado.

     — Evidentemente que não — confirmou Oliver, lembrando-se da alusão do jornaleiro às atividades de agiotagem da firma.

     — Vi logo que teria de passar a noite aqui — continuou Fisher — e até que achei uma boa idéia, pois eu tiraria da cabeça aquela preocupação com os malfadados acontecimentos da noite de sábado. Trouxe todos os livros e documentos para esta sala e comecei a trabalhar. Quando os empregados foram embora, no fim do expediente, fiquei sozinho aqui, sem contar a faxineira que vem fazer a limpeza todas as noites. Pelas sete horas telefonei para o Royal Cambridge Hotel, aqui perto, onde sou muito conhecido, e pedi que me mandassem o jantar e meia garrafa de Pommery. O prato do dia era galinha à caçarola e queijo Camembert e o mâitre assegurou que me enviaria a refeição dentro de uma hora. Quando o garçom chegou com o jantar, exatamente ás 8:15, suspendi o trabalho. Abri a porta e disse-lhe que pusesse os pratos na mesa grande da outra sala e que viesse para levá-los de volta, mas não antes das nove. Trocamos algumas palavras enquanto ele punha a mesa. Depois de sua partida, sentei-me para comer e, ao terminar, retomei o trabalho. Ouvi, quando o garçom voltou mais tarde, os ruídos dos pratos colocados na bandeja e a batida da porta. Não reparei que horas eram e havia recomendado que ele não me interrompesse. Todavia, é claro que ele viu, através da vidraça da porta, que a luz estava acesa e meu chapéu e o sobretudo estavam em cima da cadeira. Bem, acabei o serviço aproximadamente às 11:45 e então, precisando de um pouco de ar fresco, fui a pé até meu apartamento em Hove. Não posso precisar que horas eram, quando lá cheguei, mas deveria ser mais de meia-noite; tomei um drinque reforçado e fui dormir, bastante cansado. Esta é toda a história — concluiu Fisher, olhando ansiosamente para seu visitante.

     Oliver disse para si mesmo que, se o ar de perfeita sinceridade de Fisher fosse fingido, o homenzinho seria um excelente ator. Apesar de tudo...

     — Foi realmente uma pena — comentou o repórter, com os olhos na brasa do charuto — que o garçom não tenha falado com o senhor, quando veio buscar os pratos.

     — Então não sei? — exclamou Fisher, agitado. — Se ele me tivesse visto, ninguém seria capaz de pensar que fui eu quem viajou com Johnson daqui para Londres, no 8:35; e eu não sofreria o vexame de ver as pessoas olhando para mim como se eu fosse um leproso. Mas o senhor não acha, Sr. Oliver, que o que lhe contei é mais do que suficiente para inocentar-me, desde que não haja má vontade? É por isso que desejo que a história seja bem divulgada. O lugar onde moro dista da estação uns bons 10 minutos a pé; meu carro estava na garagem e, naturalmente, se eu tivesse tomado um táxi, logo se ficaria sabendo. Assim, eu não teria tido tempo para ir até a estação, apanhar aquele trem, depois de o garçom haver trazido o jantar e se retirado; não poderia fazer isso, a menos que, logo que o rapaz saiu, eu tivesse feito todo o percurso correndo — mas infelizmente já vai longe o tempo em que eu era capaz de correr um quilômetro, ainda mais em subida, Sr. Oliver. Além disso, a faxineira estava trabalhando na parte da frente, justamente àquela hora, e fatalmente me teria visto, se eu passasse. E há ainda o jantar. Comi e bebi tudo o que o garçom trouxe, conforme ele pôde verificar, quando veio buscar os pratos.

     Oliver contemplou pensativamente aquele rosto ansioso. Não lhe podia passar pela cabeça que o homem estivesse mentindo.

     — Está bem, Sr. Fisher, esta história é perfeitamente lógica e não quero roubar mais o seu tempo, mas me diga uma coisa: o que pensa a polícia a respeito de tudo isso que o senhor me contou?

     — Só posso imaginar que eles pensam que está tudo correto — respondeu Fisher, enquanto os dois se levantavam. — Tomaram nota do nome e do endereço do nosso novo sócio, a fim de verificarem aquele detalhe da história. Interrogaram a faxineira e, quanto ao garçom, fizeram uma porção de perguntas durante mais de meia hora, conforme fiquei sabendo depois. Olhe — acrescentou Fisher com entusiasmo — o senhor pode falar com ele pessoalmente, bastando ir ao Cambridge na hora do jantar. Ele atende exatamente as mesas do lado oposto de quem entra. É um rapaz de cara comprida, sempre sorrindo; o senhor vai identificá-lo imediatamente. Bem, adeus, Sr. Oliver. Foi um grande prazer conhecê-lo. Outro charuto? Não? Então adeus e, se houver alguma coisa mais que o senhor queira perguntar, não hesite em visitar-me outra vez.

     O gorducho amigo de Oliver, dentro da banca de jornais, olhou para ele com maior respeito, ao ver a maneira efusiva com que Fisher lhe apertava a mão, despedindo-se na porta da joalheria.

     — Está-se vendo que ele quer conquistá-lo — comentou o jornaleiro, quando Oliver se aproximou. — O senhor é da polícia ou jornalista, uma coisa ou outra, sou capaz de jurar.

     — Tenho minhas ligações com a imprensa, como você também tem — replicou Oliver, provocando um sorriso de satisfação no jornaleiro. — Fisher é um sujeito decente, conforme você já me havia informado. Tivemos uma longa conversa. Chegou mesmo a dizer-me que a firma estava admitindo um novo sócio.

     — É verdade. Eu já sabia, porque o sujeito esteve lá por mais de uma hora na terça-feira de manhã. Veio de Londres em um belo carro, que ficou estacionado bem ali perto da esquina. O motorista veio conversar comigo, assim como o senhor fez. Falamos sobre corridas e ele me disse que seu patrão iria entrar na firma, se achasse que tudo estava em ordem.

     Oliver jantou, uma hora mais tarde, em uma das mesas do Royal Cambridge, que Fisher mencionara. Ainda era um pouco cedo, o restaurante estava quase vazio, de modo que o sorridente garçom pôde dar-lhe inteira atenção. Parecia não haver dúvida relativamente à hora em que o jantar fora deixado na sala ao lado do gabinete de Fisher e também ficou comprovado que o garçom viera apanhar os pratos às 9:15. A luz estava acesa no gabinete; o sobretudo e o chapéu de Fisher estavam realmente sobre uma cadeira, em um lugar que, como acentuou o garçom, não seria possível deixar de vê-los. Quanto à comida e à bebida, não sobrou nada.

     — Tudo o que encontrei — disse o garçom, alargando o sorriso — foi uma boa gorjeta para mim. E o senhor não precisa perder seu tempo, como fez a polícia, imaginando que ele pudesse ter engolido tudo de uma assentada só. Todos os pratos e talheres foram usados de maneira regular. Um garçom tem prática dessas coisas e pode afirmar com segurança. Muito obrigado, senhor. Boa-noite.

     Fechado na cabine telefônica do hotel, Oliver entrou logo em ligação com Redman, o editor noturno do noticiário em Londres. Entretanto, mal começara a contar a história de Fisher, foi interrompido.

     — Venha para cá no próximo trem e escreva sua reportagem no caminho. Precisamos de você aqui. A arma foi encontrada.

 

                   A ARMA DO CRIME

     — Encontrada? — perguntou Oliver. — Onde?

     — Atirada em cima da cabine telefônica na Estação Vitória.

     — Uma solução inteligente — admitiu Oliver. — Tão simples... Impressões digitais?

     — Bem, a polícia não costuma fazer de nós seus confidentes. Ademais, há certo ressentimento por ter Johnson guardado segredo a respeito de sua descoberta. Temos de ir com jeito, mas acho que não há impressões.

     — Realmente, não é provável que haja. Assassino sem luvas é uma espécie tão extinta quanto um dinossauro. Algum detalhe quanto ao tipo da arma?

     — Qualquer coisa assim como um punhal ou grampo de cabelo oriental com cabeça de jade. Não se usa mais isso, eu acho. Venha logo e trate de agir.

     — Já vou — respondeu Oliver, desligando.

     Um grampo oriental com cabeça de jade... A descrição lhe soava familiar. Sentado no trem, tirou do bolso um amarrotado caderno de notas e escreveu: “Oriental”, acrescentando em seguida “Bond Street” e, depois, “Tentar a Casa Araby”.

     Às 11 horas da manhã seguinte, a Srta. Beryl Blackwood atendeu o telefone que tocava.

     — É o seu estimado Sr. Oliver — gracejou sua colega, Srta. Timmins.

     — Aqui é a Srta. Blackwood falando — respondeu Beryl secamente,

     — Alô — disse Oliver no outro lado da linha. — O telefonema é para informar uma derrota com pesadas perdas. A polícia não quer nada comigo. Minha simpática presença e meus brilhantes argumentos não conseguiram impressionar ninguém. Entretanto, fui levar-lhes idéias luminosas e pistas inteligentes. Se o tal de grampo ou punhal foi comprado em Bond Street, há apenas duas joalherias que vendem esse tipo de enfeite, a Takurami e a Araby. Ambas trabalham com objetos orientais. Segundo um princípio que aprendi no jogo de bridge, supor que determinada carta se encontre na mão de quem a gente quer que esteja, meu palpite é a Araby. O dono é um velho amigo meu e, quando um oriental é amigo de alguém, é amigo para valer. Ele me ajudará no que for possível, tenho a certeza.

     — Parece uma excelente idéia — disse Beryl, no mesmo tom seco com que atendera. — O senhor telefonou... quero dizer... apenas para conversar sobre o assunto?

     — Não. Telefonei para convidá-la para almoçarmos juntos. A informação valiosa a respeito de Bond Street foi apenas a isca para atrair você. Atraiu?

     Combinaram encontrar-se em um restaurante que ambos conheciam.

     A Casa Araby estava situada quase na esquina da Piccadilly com Bond Street. Um balconista, muito insinuante, foi ao encontro de Oliver, ao vê-lo entrar. Oliver disse-lhe que desejava falar com o proprietário. Minutos depois o repórter entrava em um gabinete, no fundo da loja, acompanhando a figura austera do Sr. Araby.

     O oriental convidou Oliver para sentar-se e ofereceu-lhe um cigarro, sentando-se também. Por alguns minutos guardaram silêncio, o silêncio do Oriente, onde é considerado como falta de educação entrar logo no assunto da visita. Como que hipnotizado pelo ambiente, Oliver procurou não perturbá-lo com a rispidez do estilo ocidental.

     — Não quero roubar muito de seu tempo — começou ele.

     O Sr. Araby fez um gesto de quem não tem a mínima pressa, como querendo dizer que, por ele, ficariam os dois ali o dia inteiro, fumando.

     — Queria pedir que o senhor me ajudasse, se possível — continuou Oliver.

     — Meus préstimos estão sempre a seu serviço — replicou Araby.

     — É a respeito do Crime do Bangalô Isolado. Encontraram a arma na Estação Vitória, ontem à noite. Foi comprada aqui, não foi?

     Araby assentiu com um grave movimento de cabeça.

     — Realmente. O Inspetor da Scotland Yard... ele esteve aqui. Contei-lhe tudo o que eu sabia.

     — Pode descrever-me o objeto?

     — Propriamente falando, trata-se de um grampo, não de um punhal. Um comprido alfinete de metal com uma cabeça de jade... jade verde... muito bem lavrada... o desenho de peixes entrelaçados, representando o deus tutelar dos rios.

     — Imagino que se trata de uma jóia rara — arriscou Oliver.

     — Aqui no Ocidente, talvez sim. As mulheres não costumam usá-la, como acontece no país de origem, onde prendem os cabelos geralmente com um par desses grampos. O Deus dos Rios assegura fertilidade e uma longa vida, com a Deusa Serpente representando a imortalidade.

     — O Deus dos Rios não parece haver oferecido proteção desta vez — observou Oliver. — Talvez tenha sido insultado ou qualquer coisa assim.

     Ele anotou em seu caderninho: “A maldição do Deus dos Rios” e achou que o título era bem bolado. Uma grande parte dos leitores é constituída de pessoas crédulas que adoram amores ocultos e misteriosas maldições orientais.

     — A moda oriental parece que foi adotada no Ocidente — comentou Araby. — Foi para servir como grampo de prender cabelos que eu vendi a jóia.

     — Como é que o senhor sabe disso? — perguntou Oliver bruscamente.

     — Por intermédio do cavalheiro que a comprou. Ele chegou mesmo a gracejar, comentando que voltara a moda dos cabelos longos e que as mulheres estão sempre dispostas a usar os ornamentos mais excêntricos, desde que consigam inventar uma razão qualquer para isso.

     — E como era esse cavalheiro? — quis saber Oliver.

     — Um homem corpulento, com um bigodinho oleado, sócio da firma Fisher & Flensburger, de Brighton. Identificou-se e pediu um desconto, por trabalharmos no mesmo ramo.

     — É estranho — observou Oliver, surpreendido pela maneira ostensiva com que fora feita a compra. — E quando foi isso?

     — Na sexta-feira passada, pelas cinco horas da tarde.

     — Na tarde de sexta-feira — murmurou Oliver. — Na véspera do assassinato em Jumbles.

     Permaneceu sentado ainda uns minutos, pensando. Depois levantou-se. O Sr. Araby, calmo, impassível, não demonstrando qualquer reação, levantou-se também.

     — Sou muito grato ao senhor.

     — Não há de quê — respondeu Araby, sacudindo as mãos.

     — Imagino que... — disse Oliver, hesitante. — Não há dúvida de que os dois crimes foram cometidos com o mesmo grampo?

     — O Inspetor parece que estava convencido disso. O senhor deve ter notado que o grampo não era redondo mas retangular e também levemente torcido. Conheço um pouco de cirurgia, meu amigo. Um médico não se deixaria enganar. Deve ter achado o ferimento muito característico.

     Meia hora mais tarde, Oliver e Beryl estavam sentados no restaurante.

     — E então? — perguntou Beryl ansiosamente, depois que o garçom anotou os pedidos e se retirou. — Como é que foi a entrevista? Correu tudo bem?

     Oliver respondeu afirmativamente com um movimento de cabeça.

     — Era mesmo da Casa Araby.

     — Que ótimo! — exclamou Beryl, entusiasmada. — É que eu estava um tanto temerosa... você compreende... a ligação estava péssima... Mal podia ouvir o que o Sr. Johnson estava dizendo. A princípio, pensei que fosse Broad Street. Seria horrível se eu cometesse um engano.

     — Sempre achei que uma mulher deveria interessar-se pelo trabalho de seu marido — disse Oliver. — Você tem vocação para jornalista, Beryl. É um bom augúrio para o nosso futuro.

     — O que você quer dizer com isso? — perguntou ela.

     — Casamento.

     — Ora, vamos falar sobre coisas mais interessantes.

     Oliver relatou sua entrevista com o dono da joalheria.

     — Veja só — arrematou ele. — Não sei como Fisher conseguiu arranjar um álibi, mas não tenho dúvida de que ele é certamente o assassino.

     — Ele comprou o grampo na sexta-feira e a moça foi morta no sábado... Sim, isso parece que encaixa direitinho — disse Beryl.

     — Entretanto, ele se identificou e até pediu um desconto... Isso é coisa de doido.

     Beryl não concordou.

     — Não. Isso prova apenas que o crime não foi premeditado. Ele comprou o grampo como um presente e levou-o para a Sra. Tracey, depois tiveram uma discussão e Fisher a matou, enterrando-lhe o grampo no coração.

     — Realmente... — murmurou Oliver. — Está tudo muito bem, mas... há qualquer coisa que não encaixa.

     — O que você quer dizer com isso?

     — É que, teoricamente, está tudo certo mas, na prática, não joga com Fisher. Ele não pertence a esse tipo de homens. O gesto contraria a natureza humana.

     — Tem razão — concordou Beryl pensativamente. — Mas as pessoas não têm geralmente um lado escondido, uma faceta que a gente não conhece ?

     — O ego oculto? Sim, talvez tenha razão. O tigre acorrentado. — Seu rosto se alterou por um momento e, com raiva, Oliver fincou o garfo em uma fatia de pão. — E há esse álibi. Sabemos que os dois crimes foram cometidos pela mesma pessoa.

     — Foram mesmo? — perguntou Beryl. — Suponhamos, apenas para argumentar, que alguém quisesse matar o Sr. Johnson. Vinham há muito tempo aguardando uma oportunidade. De repente, ela apareceu. Johnson estava voltando para Londres e trazia consigo a arma com que já fora cometido um assassinato. Se ele fosse encontrado morto pela mesma arma, qual a conclusão natural? Que ele fora apunhalado pelo primeiro criminoso, evidentemente.

     — Quando, na realidade, os dois crimes são independentes entre si — arrematou Oliver. — A propósito, há em favor de Fisher um detalhe importante, que parece que ninguém está levando em conta.

     — Qual é?

     — O seguinte: Johnson tinha a arma consigo, não é? Ora, se Fisher o seguiu desde Brighton, como é que ele se apossou da arma, a fim de usá-la contra sua vítima?

     — Está aí um ponto bem interessante — concordou Beryl.

     — Johnson não iria entregar seu precioso achado a uma pessoa totalmente estranha e é claro que não houve luta na Estação Vitória. Johnson deve ter sido apunhalado completamente desprevenido.

     — Como o seria se se tratasse de alguém que ele conhecesse — completou Beryl.

     — De fato. O diabo é que ninguém sabia que ele viria de trem, exceto o pessoal do Morning Star. Por isso mesmo, a polícia nos interrogou a respeito das atividades de cada um de nós à hora do crime. Mas você já sabia disso.

     — Não, não sabia.

      — Bem, foi o que a polícia fez, de acordo com a rotina. Mas não surgiu nenhuma circunstância discordante. Realmente, o que não encaixa é...

     Hesitou por um momento, olhando interrogativamente para Beryl.

     — Sei qual é — disse ela, meneando a cabeça. — A principal objeção à minha teoria está em que não se conhece uma única pessoa que possivelmente quisesse matar o Sr. Johnson. Falta o motivo.

     — Mas podemos examinar o problema ao contrário. Johnson tinha um motivo para me matar. O rival que o desbancou.

     — Você é realmente um sujeito muito convencido.

     — E você uma garota muito ardilosa. E por falar em garotas, você sabe que talvez Johnson tenha sido assassinado por uma mulher?

     — Por quê?

     — Porque isso resolveria tudo. Apunhalar pelas costas é um crime tipicamente feminino e um grampo com cabeça de jade é uma arma também feminina. Imagine o seguinte: a garota e Johnson perto da cabine telefônica... Ele mostra a descoberta que fizera, identificando a arma do crime... A garota se apossa do grampo, elogiando a inteligência do repórter. O pobre coitado, sem suspeitar de nada, vira-lhe as costas e entra na cabine, sendo logo apunhalado. Estou vendo a cena. Johnson era o tipo do sujeito que confiaria cegamente em uma mulher.

   — É, mas infelizmente não existe mulher alguma para confirmar sua teoria — atalhou Beryl, impiedosamente, acabando com as fantasias de Oliver.

     — Realmente, não existe — disse ele, desconsolado. Depois, consultou o relógio. — Já está na minha hora. Vamos apenas resumir o caso, como ele se encontra agora. Hipótese n.º 1: Fisher cometeu os dois crimes, fez camaradagem com Johnson no trem e perguntou o que havia naquele esquisito embrulho que ele colocara sobre os joelhos. Ou então, apanhou o grampo que estava dentro da pasta de Johnson, quando este se encontrava fora do vagão.

     Parou por um momento e bateu com a ponta do dedo na mesa.

     — Hipótese nº 2: Fisher cometeu o primeiro crime e um desconhecido inimigo de Johnson cometeu o segunda Hipótese abandonada, porque não acreditamos que Johnson tivesse qualquer espécie de inimigo. Hipótese nº 3: Tracey...

     — Essa é a sua hipótese favorita. Você sempre quis que o criminoso fosse Tracey.

     — Ora, e por que não poderia ter sido? A ausência de Tracey é muito sintomática. Toda a Inglaterra procurando por ele, inutilmente. Parece até que se trata de um ser mítico. Entretanto, sabendo que está sendo procurado, ele acabará por se entregar. Salvo se...

     — O quê?

     — Salvo se também já estiver morto — concluiu Oliver gravemente.

     Houve um longo silêncio. Afinal, ele retomou a palavra, em tom mais alegre:

     — E temos assim completada nossa lista de suspeitos.

     — Não — disse Beryl. — Falta aquele tal de Potts.

     — Um tipo desagradável — comentou Oliver. — Mas realmente não vejo como encaixá-lo.

     — A menos que... Beryl hesitou, encabulada. — A menos que Tracey seja Potts.

     — Mas, minha querida, a cicatriz...

     — É muito fácil simular uma cicatriz. Sinto que estou na pista certa. Potts é Tracey. Ele voltou ao bangalô porque havia esquecido alguma coisa lá... alguma coisa que o incriminava. Quando você o surpreendeu, ele se atrapalhou um pouco mas logo inventou uma história. Durante o inquérito tinha ouvido falar que a vítima tinha um irmão. Assim, ousadamente, se apresentou como sendo esse irmão.

     — Você está esquecendo que telefonei para Southampton e verifiquei sua história.

     — Isso pode ser explicado. Ele talvez seja mesmo Potts e tenha adotado o nome de Tracey para freqüentar o bangalô.

     — Mas por que eles alugaram um bangalô com o nome de Tracey? — insistiu Oliver, já fascinado pela teoria de Beryl, mas sentindo-se no dever de apresentar todas as objeções possíveis.

     — Ah, isso eu não sei — confessou a moça.

     — Deve haver alguma razão suspeita, algo assim como chantagem. Fisher talvez esteja envolvido nisso. Tenho de ir embora — acrescentou Oliver, levantando-se. — Não vou me esquecer de sua idéia, Beryl. Você vai ficar?

     — Apenas alguns minutos mais — respondeu ela, consultando o relógio. — Ainda não está na hora de reabrir o expediente e gostaria de repassar alguns pontos que não entendi bem.

     Oliver assentiu com um movimento de cabeça e, apanhando o sobretudo e o chapéu, deixou o restaurante. Depois que ele passou pela mesa ao lado, ouviu-se o ruído característico de um jornal quando é dobrado apressadamente.

     Beryl se surpreendeu e levantou os olhos. A mesa vizinha estava ocupada por um freguês solitário, sentado de costas para eles. Naquele momento, o homem segurava o jornal de um modo esquisito e parecia muito absorvido em sua leitura. Beryl observou que, mantido naquela posição, o jornal escondia o rosto de seu leitor para quem passasse pelo intervalo das mesas.

     Uma invencível curiosidade tomou conta dela. Levantou-se, como se fosse sair; depois fez a volta da mesa, olhando para o chão, fingindo que procurava uma luva. Desse modo, sem despertar suspeitas no misterioso ocupante da mesa vizinha, pôde ver-lhe claramente o rosto refletido em um espelho na parede.

     Sentindo-se coberto pelo jornal que mantinha à sua frente, o homem não tirara os olhos da porta por onde Oliver acabara de sair. A expressão de seu rosto era muito estranha — uma espécie de satisfeito triunfo, mas com um traço de outro sentimento que mais se assemelhava ao temor. Assim pareceu a Beryl. O homem era moreno, de meia-idade e na face direita havia, no sentido diagonal, uma feia cicatriz vermelha.

     Potts! Era ele, com certeza!

     Beryl esperou que ele pagasse a conta e se retirasse. Depois, a uma discreta distância, seguiu atrás dele. A moça não receava que o homem desconfiasse de alguma coisa. Se, como ela supunha, Potts houvesse seguido Oliver até o restaurante e tentado ouvir a conversa, provavelmente teria prestado pouca atenção à garota com quem o repórter estava conversando.

     Em frente à estação Holborn do metrô o homem se deteve e ficou esperando. Uma porção de gente estava saindo da estação. A Beryl pareceu que Potts, no meio de toda aquela gente, entregara uma folha de papel a um dos passageiros. A moça pensou que talvez se tivesse enganado, mas pouco depois, tendo atravessado a rua, o homem repetiu o mesmo procedimento em frente à estação do Museu Britânico.

     Potts continuou seu caminho. Na esquina de Tottenham Court Road, Beryl colocou-se ao lado dele, suspeitando que a mesma manobra iria ser novamente executada. Desta vez não houve dúvida. Beryl viu perfeitamente quando a folha de papel branco mudou de mãos. A pessoa que a recebeu era uma mulher bem vestida, muito elegante. Nem olhou para o papel que recebera e se dirigiu para a bilheteria. Potts fez o mesmo e Beryl os seguiu mas não a tempo de ouvir para qual estação Potts comprara os bilhetes. Pelas dúvidas, Beryl resolveu pedir uma passagem até o fim da linha.

     Na plataforma de Hampstead os três ficaram esperando a chegada do trem. Havia muita gente. Quando as portas se abriram, Potts entrou logo. No momento em que a mulher quis fazer o mesmo, o papel lhe escapou das mãos e, sem que ela o percebesse, caiu no chão. Rapidamente, Beryl se abaixou e o apanhou mas, com isso, perdeu a oportunidade de entrar no trem. As portas já estavam fechadas.

     Beryl permaneceu imóvel, com a folha de papel na mão, enquanto o trem passava por ela ganhando velocidade. De repente, divisou o rosto de Potts, os olhos fixos nela e no papel. Um sorriso sardônico contorcia-lhe o rosto desfigurada

     Ansiosamente, Beryl olhou para o que ela julgara um grande achado e experimentou uma penosa decepção. Era uma folha impressa com os seguintes dizeres:

TER RELIGIÃO É MELHOR DO QUE TER UM EMPREGO.

SUA ALMA ESTA SALVA?

 

                   TRAÇANDO TRACEY

     Lorde Ludgate deu um soco violento na mesa.

     — Temos de encontrar esse tal de Tracey antes que a policia o faça!

     O editor-chefe, mais o editor do noticiário e o repórter policial sacudiram a cabeça em solene assentimento. Foi para comparecer a essa importante reunião que Oliver teve de interromper seu encontro com Beryl.

     — Com todos os diabos! Um de nossos próprios homens assassinado dessa maneira! Dobro a recompensa.

     O editor-chefe, lacônico por natureza, limitou-se a continuar sacudindo a cabeça. Oliver manteve-se em silêncio mas Hemingway comentou:

     — Tenho minhas dúvidas de que isso vá adiantar alguma coisa.

     O Morning Star, sentindo-se profundamente atingido, já oferecera uma recompensa de 500 libras por qualquer informação que desse como resultado a descoberta de Tracey. Em meio a uma enxurrada de cartas, apareceram umas poucas informações de certa utilidade. Umas 10 pessoas diferentes registraram as viagens normais de Tracey às segundas-feiras, de Jumbles para Brighton, de Brighton para Vitória e dai, no metrô, para Charing Cross. Nessa altura terminavam as informações e Tracey era deixado como se continuasse viajando sempre para leste. Nem o mais histérico informante do Morning Star foi capaz de assinalar a presença dele em qualquer ponto mais longe.

     O detalhe mais interessante para Oliver, nessa viagem, era o fato de o trem em que Tracey costumava embarcar em Brigton partir às 9:40, chegando à estação Vitória às 10:59. Assim, somente muito depois das 11 é que poderia alcançar Charing Cross e, bem mais tarde, seu destino final. Se esse destino fosse algum escritório no centro, como parecia mais provável, a inferência era lógica: ele deveria ocupar um cargo elevado; somente quem exercesse funções de chefia poderia chegar ao escritório àquela hora.

     Oliver expôs seu ponto de vista na reunião.

     — Pode ser um indício — concordou Lorde Ludgate. — De qualquer modo, vamos explorá-lo. Exploraremos tudo. Estou decidido a agarrar o bandido que matou Johnson.

     — E o senhor continua pensando que foi Tracey? — perguntou Hemingway, que já expusera sua convicção de que o assassino era Fisher.

     — Não devemos esquecer — atalhou o editor-chefe, pausadamente — a hipótese de os dois crimes serem afinal independentes.

     — Já pensei nisso — respondeu Lorde Ludgate secamente. — Não tem sentido. Se fosse esse o caso, não está vendo a inferência? Depois do crime em Jumbles, as únicas pessoas que sabiam que Johnson estava viajando de trem para cá eram justamente as daqui do jornal. Não creio que os dois crimes possam ser separados. Em qualquer caso, Johnson era um sujeito muito popular, não é verdade? Não tinha inimigos? Era estimado por todos? Ou será que ouvi uns rumores de certa desavença entre ele e um dos seus colegas?

     — Ah, o senhor se refere a Redman? Realmente, houve certa vez uma pequena discussão a respeito de uma garota, creio eu. Nada sério — estava esclarecendo o editor-chefe, quando a campainha do telefone o interrompeu. — Entendido — disse ele por fim, depois de haver escutado atentamente a informação. — Obrigado, Graves.

     Recolocou o fone no lugar e voltou-se para Lorde Ludgate:

     — A polícia trouxe Fisher de Brighton e o levou para a Scotland Yard. Parece que ele ainda não está preso mas há qualquer coisa no ar.

     — Deve ser a respeito da arma — disse Oliver. — É melhor eu ir até lá.

     Em rápidas palavras, contou o resultado de sua entrevista com Araby, naquela manhã. Hemingway sacudiu a cabeça, em sinal de aprovação, olhando para Lorde Ludgate, como se dissesse: É Fisher! Como eu sempre disse.

     No trajeto até a Scotland Yard, Oliver concluiu que havia uma única razão possível para justificar a convocação de Fisher: ter sido identificado por Araby como sendo o freguês que comprara o grampo. Provavelmente, Fisher havia negado a compra. As possibilidades eram agora mais interessantes.

     Entretanto, transcorreu bastante tempo antes que Oliver pudesse satisfazer sua curiosidade. Graças a cuidadosa investigação, descobriu que iria realizar-se uma acareação, o que confirmava sua hipótese. Era absolutamente necessário que ele soubesse do resultado.

     Enquanto procurava resolver esse problema, um homenzinho muito agitado apareceu na entrada do edifício, com um guarda-chuva em uma das mãos e um chapéu-coco na outra, gesticulando nervosamente para o policial que o acompanhava. Vendo o sargento com quem Oliver estava conversando, correu a seu encontro, exclamando:

     — Não posso esperar aqui o resto da vida. Meu tempo é precioso, vocês devem compreender. Tenho meus direitos como cidadão. Vocês têm de achar alguém para substituir-me no testemunho desta acareação. Estou com muita pressa.

     Antes que o sargento pudesse replicar, Oliver se adiantou e respondeu por ele:

     — É claro, senhor. Concordo plenamente. Isso é uma prepotência. Apoio integralmente seu protesto e me ofereço com prazer para tomar o seu lugar.

     Piscou o olho para o sargento e bateu com o cotovelo em suas costas. O sargento hesitou por um momento, mas acabou por dar a permissão, deixando o homenzinho partir, agitando seu guarda-chuva em triunfo. Depois que Fisher foi identificado por Araby, Oliver, para seu desgosto, foi posto para fora da sala, sem ficar sabendo se, afinal, Fisher fora ou não detido. Não conseguiu qualquer informação a esse respeito e teve de conformar-se em esperar.

     Finalmente, cerca de duas horas mais tarde, o próprio Fisher apareceu, sem qualquer escolta. Oliver correu para ele, como um cão para um osso. Fisher, aparentemente satisfeito por encontrar um rosto amigo, concordou imediatamente em ir para um bar, a fim de tomar qualquer coisa. Oliver não teve a menor dificuldade em ficar conhecedor de toda a história. Fisher, trocando gradualmente seu papel de um homem assustado para o de alguém satisfeito com o seu desempenho, entrou em detalhes.

     A princípio, negou que tivesse comprado o grampo. Foi uma tolice, como verificou mais tarde. Entretanto, como seguira essa linha em um momento de alarme, sentiu-se obrigado a sustentá-la. Naturalmente, isso despertou suspeitas na policia. Nada mais lógico. Entretanto, agora, depois que ele, de um modo franco e sincero, admitira a compra e explicara tudo, eles se mostraram inteiramente satisfeitos.

     Oliver concordou, demonstrando sua integral simpatia. Percebera claramente que Fisher, insistindo a respeito da completa satisfação da polícia, estava realmente procurando convencer-se a si próprio; o que ele desejava era que a polícia estivesse satisfeita. À medida que ouvia os detalhes da história, Oliver passou a alimentar suas dúvidas.

     Em resumo, Fisher contou que a polícia, com desagradável rudeza, havia-lhe apresentado, naquela manhã, em seu próprio escritório, um grampo com cabeça de jade e marcas de sangue, perguntando-lhe se já o tinha visto antes. Foi somente nessa ocasião que Fisher tomou conhecimento da natureza da arma; chegou mesmo a perguntar se o crime fora cometido com ela.

     — Não se preocupe com isso — replicou o policial asperamente. — Já a tinha visto alguma vez?

     Fisher, sem poder desviar os olhos daquelas manchas de sangue, perdeu a cabeça por uns instantes e respondeu que não. Perguntado a respeito do fato de o comprador haver apresentado o cartão de Fisher, este ponderou (e a polícia foi obrigada a concordar) que qualquer pessoa poderia ter feito isso.

     Depois que, em conseqüência da acareação com Araby, ele admitiu ter sido o comprador, a policia tentou fazê-lo confessar que levara o grampo consigo, por ocasião de sua visita a Jumbles, no sábado à noite, porém mais uma vez Fisher tinha argumentos a seu favor. O grampo fora enviado pelo correio, na sexta-feira. O detalhe, reforçando a suspeita de que aquela era a arma do crime, pareceu agradar à polícia, mas inocentava Fisher, pois ele tivera a precaução de registrar a remessa e guardara o recibo. A polícia então lhe perguntou se vira o grampo outra vez, depois de havê-lo posto no correio, mas Fisher — que realmente nunca mais pusera os olhos na arma — respondeu que não, sem hesitar. Assim, embora a contragosto, as autoridades policiais foram obrigadas a liberá-lo.

     Oliver sabia muito bem que a polícia não podia estar satisfeita, mas soltara Fisher simplesmente porque não conseguira uma prova concreta contra ele; entretanto, era mais do que certo de que o manteria sob observação. As possibilidades eram óbvias, mas continuavam apenas como tais; que o pacote remetido sob registro, por exemplo, bem poderia conter qualquer outra coisa que não o grampo; que Fisher o teria realmente enviado mas o apanhara novamente em Jumbles e com ele cometera o crime; que o reconhecera, cravado no corpo de Geraldine Tracey, ao chegar no bangalô naquela noite, às 9:00 e o removera, escondendo-o depois na árvore onde mais tarde Johnson o encontraria; e assim por diante. Contudo, Oliver não disse uma palavra a respeito desses pontos. Limitou-se a extrair de Fisher o maior número possível de informações e se despediu.

     Consultando o relógio, ao chegar à rua, viu que faltavam 10 minutos para as seis, tempo bastante para a outra entrevista que ele queria fazer, antes de voltar para o escritório, a fim de escrever a reportagem.

     A Butique Evanalda não ficava na Praça Hanover nem na Rua Hanover mas sim distante de qualquer das duas. Já passavam das 6:00 quando Oliver conseguiu chegar lá. Felizmente encontrou, no momento em que ela saía, a vendedora que ele já tivera o cuidado de identificar.

     O repórter sabia como adaptar seus métodos aos indivíduos. Se bolos e sorvetes constituíam iscas excelentes para Gladys Sharp, o indicado para a Srta. Amethyst Mainwaring eram drinques em Picadilly Palace.

     A Srta. Mainwaring — uma moça alta e muito loura — além de ser o principal manequim de Evanalda, considerava-se a melhor amiga de Geraldine Potts na butique. Depois de alguns comentários a respeito de uma exposição em Monte Cario, do fracasso da última temporada de corridas e dos méritos comparativos de John Galsworthy e A. S. M. Hutchinson, que Oliver ouviu pacientemente, pois sabia que ela precisava expor para alguém suas idéias, a Srta. Mainwaring consentiu em contar-lhe o que sabia a respeito de Tracey.

     Infelizmente, as informações que ela prestou não acrescentaram muito ao que já era sabido. Geraldine — segundo a Srta. Mainwaring — falara abertamente sobre Tracey, mas como ela mesma não sabia muita coisa, pouco havia o que contar. As duas amigas se referiam ao casamento como se ele tivesse mesmo se realizado, pois Geraldine jamais deixara escapar qualquer indício em contrário; a Srta. Mainwaring, porém, nunca se iludira.

     — Pois veja só, Sr. Oliver — disse ela, saboreando um canapé com extrema delicadeza — o senhor acha que Geraldine iria se casar sem me convidar? Acha isso possível?

     — Realmente, parece inadmissível — concordou Oliver.

     No mesmo tom, a Srta. Mainwaring deixou perceber que o detalhe de Tracey ser um caixeiro viajante fazia parte da história. A própria Geraldine não se detinha muito nesse ponto, dando a entender que a área de ação de Tracey abrangia altos negócios, tais como vendas de navios ou blocos de apartamentos. A esse respeito, a Srta. Mainwaring também não se iludira. Estava certa de que Tracey não era caixeiro viajante e que Geraldine estava farta de saber disso.

     — A verdade é que ele era um perfeito cavalheiro — arrematou a Srta. Mainwaring — como Geraldine não se cansava de acentuar.

     — Então qual a profissão que ele exercia? — perguntou Oliver, fingindo-se de ingênuo. — Com escritório no centro da cidade? Um corretor ou coisa assim?

     A Srta. Mainwaring, porém, não achava que ele fosse corretor. Não tinha cara disso.

     — Como é que você sabe qual a cara dele? — perguntou Oliver, já em tom de muita ingenuidade.

     — Porque o vi pessoalmente. Geraldine me mostrou quando ele estava na calçada do Forum, conversando com um amigo. Geraldine ia encontrar-se com ele em Charing Cross, mas nós o vimos quando passamos de ônibus em frente ao Forum.

     Oliver mal podia conter a excitação

     — Você o viu? Eu não sabia disso. Pode descrevê-lo para mim? Você o reconheceria se o encontrasse outra vez?

     A Srta. Mainwaring não tinha muita certeza. Fora apenas um rápido golpe de vista. Pareceu-lhe que ele era jovem, bem jovem, mas naturalmente, naquela distância... Um tipo comum, talvez mais para louro do que para moreno, mas era difícil dizer, ainda mais que ele estava de chapéu.

     Oliver reconheceu que a descrição, embora vaga, diferia da prestada por outras testemunhas oculares de Tracey; entretanto, talvez houvesse uma razão para isso. A pergunta veio logo.

     — E o homem com quem ele estava conversando? Pode descrevê-lo?

     A Srta. Mainwaring sorriu com ar superior.

     — Bem... as pessoas são muito parecidas, vistas de costas, não acha? Na verdade, poderia ter sido o senhor ou qualquer outro cavalheiro, Sr. Oliver.

     — E virando-me de costas, não vai adiantar nada? — gracejou Oliver.

     A Srta. Mainwaring não respondeu.

     Vinte minutos mais tarde, ao despedir-se dela, Oliver resolveu guardar segredo a respeito das informações que obtivera da Srta. Mainwaring. Elas, no momento, não tinham qualquer valor; talvez se tornassem úteis mais tarde, inclusive a própria informante. Era melhor guardar essa possibilidade do que divulgá-la prematuramente.

     Oliver apanhou um ônibus que se dirigia para Fleet Street. Por uma dessas coincidências que acontecem sobretudo nos ônibus, o repórter encontrou um lugar vago ao lado da loquaz Srta. Timmins, a colega de Beryl, que logo anunciou suas teorias sobre o crime, julgando que Oliver deveria explorá-las.

     — Então comece logo a expô-las — disse Oliver, divertido. — Já descobriu quem é o criminoso?

     — Claro — respondeu a Srta. Timmins prontamente.

     — Não pode haver dúvida. Está na cara que é o tal de Potts.

     — Ah! — exclamou Oliver, demonstrando o máximo interesse e recordando-se das observações de Beryl sobre o assunto. — O próprio irmão dela?

     — Ora, Sr. Oliver, não me diga que o senhor acredita mesmo que Potts seja realmente irmão dela, acredita?

     — Então quem você pensa que ele seja? — perguntou ele sorrindo.

     — O marido dela! Ora, Sr. Oliver, não precisa sorrir. Tenho absoluta certeza. Acho que não há nada mais claro. Era casado com ela e a matou, juntamente com o amante. Claríssimo!

     — Será mesmo? — perguntou Oliver, sentindo um pouco mais de respeito por sua irrequieta companheira de viagem. A hipótese era plausível e não havia qualquer prova que a contrariasse.

     — Acho que não é justo impedir que o pessoal do jornal faça jus à recompensa pela descoberta de Tracey — lamentou a Srta. Timmins.

     — Espere um pouco! Você quer dizer que também sabe onde Tracey se encontra?

     — Sei quem é ele — corrigiu a Srta. Timmins — pois é claro que usava um nome falso, quero dizer, não se chamava realmente Tracey.

     — Então qual o seu verdadeiro nome?

     — A idéia me veio quando eu comentava o crime cora a Srta. Blackwood. Eu dizia: “Tome nota de minhas palavras, querida” (sempre chamei Beryl de querida; ela é um amor, não acha, Sr. Oliver?). “Tome nota do que estou dizendo: A Sra. Tracey foi assassinada e o Sr. Tracey desapareceu. Sabe por que não encontram o corpo? Ora, o pobre do Sr. Johnson também foi assassinado, não foi?”

     — Srta. Timmins! — exclamou Oliver, atônito. — O que está sugerindo?

     — Mas qual é a dúvida? — estranhou a Srta. Timmins, ante tamanha obtusidade. — O Sr. Johnson era Tracey, evidentemente.

 

                   AS INVESTIGAÇÕES DA SCOTLAND YARD

     Enquanto o Morning Star continuava a explorar o caso de Jumbles, a Scotland Yard se empenhava ao máximo para resolvê-lo. O Inspetor-Chefe Bradford fora designado para dirigir as investigações e, no momento, se encontrava sentado em seu gabinete, presidindo uma reunião.

     — Vamos fazer uma repassada completa sobre o que sabemos — começou ele — mas o ponto principal desta reunião é organizarmos uma relação atualizada dos suspeitos. Conhecemos o quadro geral do crime. Esse sujeito, Tracey, instala a moça em um bangalô em Jumbles. Então, quando ele vira as costas, um outro homem, Fisher, entra em cena. A moça tenta manter-se nessa perigosa situação, até que é assassinada e o Inspetor Smallpiece inicia as investigações. Agora, Smallpiece, conte-nos tudo o que você fez.

     — Fui ao bangalô e dei uma olhada — começou Smallpiece. — É uma casa de campo, de quatro peças, escondida em um vale da Baixada do Sul, um lugar muito deserto, o bastante para que, ao fim de uma semana, a moça não agüentasse mais. Depois, dei uma volta pela redondeza e procurei conversar com pessoas da região, criados, vizinhos mais próximos, fornecedores etc... Assim, consegui as primeiras informações. Tracey foi visto, saindo do bangalô, às 7:30 da noite do crime.

     — Não me diga! — exclamou o chefe. — Isso é novidade para mim. Quem foi que o viu?

     — O motorista de um ônibus que faz a linha de Newhaven para Brighton — replicou Smallpiece. — O rapaz tem uma garota que mora na estrada que passa em Jumbles e foi por meio dela que cheguei ao motorista. Havia algum falatório na região a respeito dos Traceys e, por isso, a garota, ao ver o homem, mostrou-o ao namorado. O motorista o reconheceu logo como sendo um passageiro que entrava no ônibus na estrada de Jumbles e saltava em Brighton.

     — Às 7:30? — repetiu o chefe. — E o crime foi cometido entre 7:00 e 9:30. É uma pena. Não é uma prova conclusiva.

     — E há mais, senhor. O carro de Fisher foi visto na estrada para Jumbles às 9:00 da noite, aproximadamente.

     — Sim, foi isso o que ele disse na delegacia de Brighton, o que, em resumo, quer dizer que tanto Tracey como Fisher podem ter cometido o crime. Entretanto, não temos condições de acusar qualquer um deles, muito mais que umas 50 outras pessoas poderiam também ter estado lá.

     Smallpiece não participava dessa opinião. Para ele, o assassino era Tracey.

     — Em que você se baseia, Smallpiece? — perguntou o chefe.

     — No seguinte, senhor: Tracey instala a garota no bangalô e pouco depois ela inicia um romance com Fisher. Ora, o que acontece, quando Tracey sabe do caso? Suponhamos que naquele sábado Tracey vê o grampo que Fisher deu à moça e pergunta onde foi que ela o comprou. Aí começa a confusão, Tracey descobre que é traído. Apanha o grampo e apunhala a garota.

     — Essa é uma boa teoria, mas podemos formular outra, alterando as premissas. Fisher impõe que a garota acabe seu romance com Tracey. Ela concorda e, mais tarde, declara que está livre. Então, um dia, Fisher chega e encontra, digamos, as luvas de Tracey; conclui que a garota o traiu e decide matá-la. Não é muito provável, Smallpiece, mas é possível e não podemos desprezar esta hipótese.

     Smallpiece admitiu que o chefe tinha razão.

     — E quanto ao tal de Potts? — prosseguiu Bradford. — Foi o sujeito que aquele jornalista, Oliver, descobriu e fez um mistério a respeita

     Smallpiece não escondeu certa indignação contra a conduta do repórter.

     — Ele pensou que havia descoberto uma pista e guardou todas as informações para o Morning Star. Nem sequer se dignou comunicar o fato à polícia. Encontrou o homem tentando entrar no bangalô e dai por diante fez uma trapalhada dos diabos. Se tivesse o raciocínio de um chimpanzé, teria deixado o homem entrar, achar o que procurava e somente então o agarraria. O pior é que deixou que ele fosse embora! Fico furioso só em pensar na oportunidade que perdemos.

     — Tem razão — concordou o chefe — mas devemos ao Morning Star um punhado de informações sobre o casa Quem está nas pegadas de Potts? Ah, é você, Tinsley. Soube de alguma coisa?

     Um policial alto e corpulento levantou a cabeça.

     — Acho que Potts é inocente, senhor, mas ainda não consegui provar. Ele disse a Oliver que era camaroteiro de um navio da linha Southampton—Havre. Há realmente um camaroteiro com esse nome mas, enquanto não o pusermos frente a frente com Oliver, não saberemos se é o mesmo homem. Quanto ao que ele procurava no bangalô, não sei, mas o senhor deve lembrar-se de que no inquérito foi mencionado que a moça tinha um irmão, embora não o visse há muito tempo. Estou investigando e provavelmente ele é esse irmão desaparecido.

     O chefe concordou com um sinal de cabeça.

     — Considere esse ponto como aceito — ordenou ele. — Entrementes, manterei Potts na minha lista de suspeitos. Agora, Smallpiece, termine o relato que você nos estava apresentando.

     — Obtive ainda outras informações do motorista do ônibus, senhor. Ele se lembrava de haver levado Tracey em uma segunda-feira de manhã. Tomei o mesmo ônibus na segunda-feira seguinte e procurei conversar com os passageiros habituais. Afinal, encontrei um homem que viajara com Tracey até a cidade e, por acaso, os dois deveriam apanhar o mesmo trem na Estação Vitória. O homem saltou em Charing Cross mas Tracey continuou no trem. Assim, concluímos que ele trabalha em algum lugar depois de Charing Cross.

     — Perfeito, Smallpiece — aprovou o chefe. — Alguma coisa mais, no caso de Jumbles? — Esperou um momento, olhando para cada um de seus auxiliares, e prosseguiu: — Agora, com relação ao crime da Estação Vitória. Aqui, a meu ver, a questão se resume na seguinte: quem sabia que Johnson descobrira qualquer coisa e estava vindo para a cidade no trem das 8:35?

     Houve murmúrios de aprovação e o chefe continuou:

     — Vamos começar com nossos três suspeitos de Jumbles. Será que Tracey ou Fisher ou Potts poderia ter sabido da viagem de Johnson?

     — Facilmente, senhor — respondeu Smallpiece. — Imagine o seguinte: o assassino, tendo perdido a cabeça, procura livrar-se da arma e a esconde no toco de uma árvore, um lugar onde ela poderia ser facilmente achada. Depois de retirar-se, o criminoso se arrepende e resolve voltar, a fim de descobrir um lugar melhor. Por acaso, chega justamente no momento em que Johnson encontrava a arma. O que fazer, então? Seguir Johnson, a fim de dar cabo dele; chega, porém, até à Estação Vitória sem encontrar uma oportunidade.

     — Sim, essa hipótese é plausível — admitiu o chefe. — Muito bem, suponhamos que foi assim. Agora, pelo que sabemos, tanto Tracey como Potts poderiam ter feito o serviço. E Fisher? Ele tem um álibi para o crime de Vitória.

     — Examinei esse ponto, senhor — interveio uma voz. — O homem tem realmente um álibi, mas acho que posso destruí-lo. Isso não quer dizer que não ache que ele seja inocente.

     — Vejamos os detalhes.

     — Antes de tudo, registre-se que não havia ninguém na joalheria de Fisher, no intervalo entre a saída dos empregados e a entrada em serviço da faxineira. Nesse meio tempo ele poderia ter ido até Jumbles e visto Johnson apanhar a arma. Quanto ao jantar: se Fisher estava fingindo, poderia ter jogado a comida no lixo, e sair do edifício em cinco minutos. Ele declarou que a faxineira estava trabalhando na parte da frente, o que é verdade, mas há uma porta nos fundos, que ele prudentemente não mencionou. Assim, poderia ter apanhado o 8:35, cometido o crime em Vitória e retornado para Brighton no 11:05. A seguir, dirigiu-se para o escritório, apagou as luzes e apanhou o sobretudo e o chapéu. Não esqueça, senhor, que ele somente chegou em casa depois da meia-noite.

     O chefe sacudiu a cabeça, concordando em silêncio.

     — Além disso — prosseguiu o policial — se Fisher não estivesse forjando um álibi, por que não foi jantar no hotel? É apenas no outro lado da rua. E há também o fato de ele não ter comunicado o crime, somente tendo admitido que o descobrira três horas mais tarde. Somem-se a tudo isso suas mentiras e a negativa inicial a respeito da compra do grampo.

     — Então, por que você acha que ele é inocente?

     — Por três razões, senhor. A primeira é sua própria personalidade. Fisher não parece ser do tipo que comete assassinatos. A segunda é que ele é muito conhecido em Brighton e não foi visto na estação. A terceira é que sua história a respeito do novo sócio que deveria comparecer no dia seguinte é verdadeira. Naturalmente, bem sei que nenhum desses detalhes é conclusivo.

     — Manteremos Fisher em nossa relação — resmungou o chefe. — Vejamos agora o pessoal do Morning Star. Quem está tratando deste ângulo em Londres? É você, Smart? Muito bem, conte-nos o que sabe.

     Smart* era um policial cujo nome afinava com sua personalidade. Era tido como um dos mais competentes da Scotland Yard.

    

* Esperto, em inglês. (N. do T.)

    

     — Comecei, senhor, por fixar a hora do crime. Como o senhor sabe, Johnson estava justamente dando um telefonema, quando foi apunhalado. Ele chegara a tirar o fone do gancho mas não teve tempo para anunciar o número à telefonista. Procurei informar-me e verifiquei que a tentativa de chamada ocorrera às 10:04, isto é, quatro minutos após a chegada do trem. A seguir, dei uma busca na cabine telefônica e, além de encontrar a arma em cima do teto, como já foi divulgado, achei apenas mais uma pista. O assassino havia pendurado na porta um aviso de NÃO FUNCIONA, naturalmente para evitar que alguém entrasse e descobrisse o corpo. O aviso estava escrito em um pedaço de papelão, cortado de uma folha maior, e as palavras NÃO FUNCIONA escritas apressadamente com um lápis de cor. Infelizmente, o papelão era muito áspero, não permitindo impressões digitais.

     — Isso tudo é muito interessante, Smart — comentou o chefe — mas não nos afastemos do ponto que estamos examinando, isto é, quais as pessoas, no jornal, que sabiam da vinda de Johnson naquele trem?

     — Sim, senhor. Bem... Realmente uma porção de gente estava a par da chegada de Johnson naquela noite. O editor diurno do noticiário, Hemingway, certamente sabia, pois foi quem recebeu o telefonema de Johnson. O editor da noite, Redman, ficou sabendo, quando chegou, às 7:30. O subeditor, também. De fato, pelo menos uma dúzia de repórteres tomaram conhecimento do telefonema, o nosso amigo Oliver entre eles.

     O chefe sacudiu os ombros.

     — Não interessa enumerar quem sabia do telefonema, uma vez que ninguém deixou o edifício do jornal.

     — Foi isso justamente o que procurei apurar, senhor: se alguém havia saído. Foram quatro, a saber: Hemingway e Redman, editores do dia e da noite, o repórter Oliver e um outro, chamado Peters. Depois, falei com os quatro, perguntando onde se encontrava cada um deles às 10 horas, quando o trem chegou. Dois tinham álibis; os outros dois, não.

     Todos estavam prestando a máxima atenção. Smart tinha uma reputação mais do que justificada.

     — Vamos ouvir todo o seu raciocínio — disse o chefe. — Mesmo que não conduza a um resultado final, é interessante conhecermos os detalhes. Quais os que tinham álibis?

     — Hemingway e o repórter Peters.

     — Bem. Vejamos Hemingway. Ele é o editor diurno, com quem Johnson falou ao telefone. Qual é o álibi dele?

     — Hemingway esteve em seu clube naquela noite e depois foi para casa, em Hampstead, aproximadamente às 10 horas. Tudo para mim se resumia em determinar a que horas ele realmente chegou em casa. Consegui provas de que eram, no máximo, 10:10. O crime foi cometido às 10:40. Ora, seria fisicamente impossível para qualquer pessoa ir daquela cabine telefônica em Vitória até Hampstead em apenas seis minutos.

     — Como você tem certeza de que ele chegou em casa às 10:10?

     — Pelo seguinte, senhor. Quando ele entrou em casa, ligou o rádio, e, cinco minutos depois, ouviu-se o apito característico da BBC, anunciando 10:15.

     — Está bem — concordou o chefe. — Vimos Hemingway. Qual o próximo? O repórter Peters?

     — Ele foi diretamente do escritório para casa — esclareceu Smart. — Isso foi confirmado por sua mulher, sua mãe, duas irmãs e um amigo que estava lá em visita.

     — Muito bem.

   — Sim, mas apenas para o crime de Vitória, senhor, pois nem Hemingway nem Peters têm álibis para o de Jumbles.

     — Se foi o mesmo homem que cometeu ambos os crimes, o álibi para um deles é suficiente Deixemos esses dois de lado.

     — O seguinte, senhor, é Oliver, o repórter policial.

     — O jornalista que mais nos incomodou em toda esta história — comentou o chefe amargamente.

     — Ele mesmo. Oliver não tem álibi para o crime de Vitória. Segundo seu depoimento, jantou na própria redação e, pelas nove horas, foi dar uma caminhada, regressando para o jornal às 10:20. Assim, teve tempo para cometer o crime. Acontece, porém, que ele tem um álibi para o crime de Jumbles: esteve na redação trabalhando naquele sábado e há o testemunho de mais de 10 pessoas.

     O chefe aprovou com um sinal de cabeça.

     — O seguinte — ordenou laconicamente.

     — É a vez de Redman, o editor da noite. Relativamente a álibis, ele é o que está em piores condições, pois não tem para nenhum dos crimes. É um sujeito esquisito esse tal de Redman. Não que seja do tipo carrancudo; ao contrário, é bastante amável mas mora em um apartamento sozinho e parece não ter amigos. Ainda assim, não seria de estranhar que ele fosse visitar uma bela garota em um bangalô isolado. Ademais, o fato de viver só o deixa completamente livre para passar fora os fins de semana, sem que ninguém tome conhecimento de sua ausência.

     — Há qualquer indicio que o ligue aos crimes?

     — Nenhum, senhor, embora deva referir que ele e Johnson não se davam bem. Ainda não consegui saber a razão de malquerença, mas vou apurar.

     O chefe assobiou pensativamente e acrescentou mais uma nota a sua lista.

     — Essa história está mal contada. Temos de manter Redman na relação. Assim, ficamos com quatro suspeitos: Tracey, Fisher e Potts para o crime de Jumbles, mais Redman, do jornal. Você eliminou todos os outros, Smart?

     — Não cheguei a tanto, senhor — admitiu Smart, hesitante. — Devo confessar que tenho pensado muito em Oliver. É que os dois crimes podem ter autores diferentes e Oliver haver cometido o de Vitória. Como o senhor sabe, ele e Johnson estavam muito caídos pela secretária do gerente, a Srta. Beryl Blackwood. Eram rivais também no trabalho e o furo jornalístico que Johnson conseguiu deve ter deixado Oliver muito aborrecido. Se Oliver quisesse ver-se livre de seu rival, não poderia achar uma oportunidade melhor. E como disse, ele não tem álibi.

     O chefe se manteve pensativo por uns instantes.

     — Tire isso a limpo — disse ele, afinal. — Você é capaz de fazer isso facilmente. Incluo mais um suspeito. Ficamos com cinco. Cinco suspeitos — repetiu lentamente — mas, na minha opinião, Fisher, Potts e Oliver não são tão prováveis como os outros dois.

     Houve um murmúrio geral de aprovação.

     — Desse modo — concluiu o chefe — ficamos provisoriamente com Tracey e Redman na cabeça da fila. — Interrompeu-se por um instante, coçando o queixo e olhando interrogativamente para seus auxiliares. — E o que há de errado — perguntou de repente — se se imaginar que Tracey é Redman?

 

                   BERYL EM BROAD STREET

     A uma hora da tarde de um nevoento sábado de novembro, a Srta. Beryl Blackwood, elegantemente vestida mas cansada, parou por um momento na porta do edifício do Morning Star para comprar um ramo de violetas de um florista ambulante. Pregando o ramo no casacão, como se anunciasse que estava começando seu fim de semana, ela recompensou o florista com um sorriso e mergulhou no nevoeiro.

     Não era em vão que a Srta. Beryl Blackwood, do Morning Star, tinha um belo narizinho arrebitado. Também alguma coisa significava a ruga que havia entre suas cuidadas sobrancelhas, bem como a maneira como ela mordia os lábios com belos dentes brancos, sem falar na firmeza do queixo voluntarioso.

     Uma garota menos resoluta teria sido logo conquistada pelo impetuoso Oliver ou pelo coitado do carinhoso Johnson. A Srta. Blackwood, porém, conseguira equilibrar as escalas de suas afeições igualmente entre os dois jovens, até que o destino se intrometera, sob a forma de um grampo com cabeça de jade, alterando o equilíbrio com a exclusão do infeliz Johnson. Como ele havia saído da competição de modo tão trágico, a moça pensava nele com ternura e se tornava mais crítica em relação a Oliver.

     Apesar de tudo o que Oliver estava pensando e das pistas que a polícia seguia, ela conhecia muito bem a voz de Johnson e confiava na própria memória. Johnson lhe havia dito, ao telefone, Broad Street e não Bond Street Ela pouco se importava se o grampo viera de Bond Street ou de Timbuktu, mas podia jurar que Johnson falara em Broad Street

     Ela estava pensando nessas coisas, enquanto caminhava pela Fleet Street. Havia resolvido ir a pé para casa, naquele sábado, em parte para fazer um pouco de exercício e em parte porque nas ruas de menor movimento ela podia mais facilmente fazer as compras para sua despensa: frutas, um tipo especial de queijo, peixe defumado, salsichas e outras iguarias que uma moça solteira gosta de comer de quando em vez. Foi então que viu, em uma conhecida loja de especialidades, uns vidros de geléia feita em casa. Sem muito refletir, comprou três e achou que já estava carregando muito peso. Logo depois, umas espigas de milho vieram aumentar sua sacola. Na esquina seguinte ela se deixou ficar uns bons 10 minutos observando, em uma casa de venda de animais vivos, a tristeza dos pobres bichinhos, presos em gaiolas e como que pedindo para serem libertados. Havia, em particular, um cãozinho felpudo, com uns olhos suplicantes, que a emocionaram. O pobre animal olhava para ela exatamente como Johnson costumava fazer. Beryl perguntou quanto custava. Uma libra! Muito caro. Pobre cãozinho e pobre Johnson!

     O nevoeiro se tornara mais denso e ela apressou o passo, já nervosa, atenta ao menor ruído estranho. Todavia, o nevoeiro que a cercava não era mais intenso do que a sensação que a deprimia e que se apossara dela desde a morte do infeliz e apaixonado Johnson. Para Beryl, esse sentimento de pesar não desapareceria enquanto ela não fizesse alguma coisa que afastasse aquela idéia fixa. De repente, foi tomada de rancor contra o trabalho do escritório, contra Hemingway e mesmo Oliver; sobretudo, contra o grande jornal e seu enorme público. Tudo o que desejavam — o jornal e os leitores que ele servia — era o furo. Ninguém estava se importando com Johnson, responsável pela manchete sensacional. O repórter não era mais do que o personagem sacrificado para gáudio do leitor — mas Johnson dissera Broad Street e não Bond Street! Ela estava cada vez mais convencida disso. Seu pensamento, então, voltou para o cãozinho de olhos suplicantes; nessa altura, porém, ela já não sabia onde se encontrava. O nevoeiro se tornara tão pesado que ela perdera o senso da direção. Chegou a pensar que, se passasse um táxi, poderia tomá-lo, mas logo afastou a idéia, considerando que o preço da corrida seria pelo menos de meia coroa. E o cãozinho custaria oito meias coroas. E novamente, lembrando-se dos olhos tristes do animal, a imagem do amigo assassinado voltou a seu pensamento e, desta vez, ela não pôde apagá-la. Na verdade, nem mesmo tentou fazê-lo. Tinha a impressão de que o nevoeiro se tornara propositadamente mais denso a fim de isolá-la do mundo dos vivos, criando uma câmara privada em pleno coração de Londres. Nessa câmara, ela e o amigo morto — mas tão nitidamente vivo em seu pensamento — iriam ter o último encontro.

     Beryl pensou com seus botões: “Se eu fosse espírita, diria que estava entrando em transe.” Então, obedecendo a um impulso, parou de súbito na rua deserta, onde não enxergava um palmo adiante do nariz, e disse para a parede de névoa: “Está bem. Se ele deseja dizer-me alguma coisa, que fale agora. Estou pronta a ouvi-lo.” E, supersticiosamente, permaneceu imóvel, esperando que algum tipo de resposta brotasse do silêncio que a cercava.

     Nada aconteceu, é claro. Depois de um momento de espera, ela se deu conta de sua tolice, sacudiu os ombros e recomeçou a caminhar, mas logo percebeu que estava completamente perdida, dentro de um nevoeiro tão forte que são conseguia sequer ler o nome da rua.

     O que fazer? O braço lhe doía, sob o peso da sacola e ela estava perdendo seu precioso fim de semana.

     Nesse momento de indecisão, ela ouviu o som de uns passos conhecidos, o som confortador dos passos do policial londrino, e viu surgir à sua frente o mais real dos fantasmas — um uniforme azul se destacando no ambiente cinzento. Beryl revelou seu contentamento mostrando uma dupla fileira de belos dentes brancos.

     — Moço! — disse ela. — Estou meio perdida. Sabe qual o nome desta rua?

     — Broad Street, Senhorita.

     — Broad Street! — Ela sentiu um ligeiro estremecimento. Era fantástico ter estado durante o último quarto de hora pensando em um homem assassinado e em suas últimas palavras e, de repente, ouvir essas mesmas palavras como um eco, na voz sonora de um policial certamente bem vivo. — Broad Street... Há alguma loja de bijuterias por aqui? — perguntou ela, afinal.

     — Sim, Senhorita. Um pouco mais adiante, nesta mesma calçada.

     Ela agradeceu e retomou sua caminhada, sentindo-se estranhamente excitada e comentando consigo mesma:

     — Oliver naturalmente vai dizer que foi uma coincidência. Até pode ser que seja mas não deixa de ser estranho. Agora, tenho de comprar aquele cãozinho, porque foi ele que me trouxe sorte. Poderei ter o dinheiro, se economizar nos almoços durante uma quinzena. Broad Street... Estou certa de que ele disse Broad Street Ah! É aqui

     Não passava de uma pequena loja, com uma portinha estreita e um ar de liquidação. “O meu contrato acaba dentro de cinco anos”, parecia dizer a lojinha, “de modo que não vou me preocupar com nova pintura.”

     Apesar disso, a vitrine estava repleta de toda espécie de bugigangas que atraem os colecionadores de coisas exóticas: meia dúzia de estranhas miniaturas, um belo daguerreótipo em uma moldura moderna, alguns vasos boêmios falsificados, uma escova de cabo de marfim, uma bandeja de quinquilharias baratas e uma bola de cristal amarelada.

     “Bem o tipo de lojinha de que gosto”, pensou Beryl, que adorava bugigangas. “E ou compro essa bola de cristal ou morro de pesar.”

     Entrou, fazendo soar uma campainha presa à porta. Uma cortina de contas, no fundo da loja, deu passagem à proprietária. Beryl jamais havia estado ali mas teve a impressão de que conhecia muito bem aquela matrona, com sua blusa floreada, um ar desleixado, o cabelo corrido, a maquiagem apressada, sua cupidez e loquacidade. Beryl, entretanto, tinha muito jeito para enfrentar esse tipo de vendedoras. Seu ar despreocupado, o sorriso, tudo nela parecia dizer: “Não tenho muito dinheiro, sei muito bem o que quero comprar e será ótimo para nós duas que não percamos tempo.”

     A moça não tomou a devida precaução contra a loquacidade da dona da loja e esta começou logo a oferecer bugigangas. Beryl escolheu uma cigarreira para dar de presente a Oliver e começou a discutir o preço da bola de cristal, oferecendo duas libras menos do que o preço marcado. Nessa altura, as duas já estavam íntimas e Beryl achou que poderia iniciar seu interrogatório com vistas ao grampo chinês. Ia começar a jogada!

     — A senhora compreende — disse Beryl. — Eu gostaria de levar a bola de cristal para dar de presente, mas estou certa de que é uma extravagância, quero dizer, a minha amiga vai-se surpreender, pois sabe que um presente desse valor...

     — Depende da categoria dessa sua amiga. Mas e que posso dizer é que, quando se topa com uma oportunidade, não se deve deixá-la passar. Eu somente posso fazer um abatimento maior porque comprei por um preço muito baixo.

     — É o trabalho de remeter — alegou Beryl. — A senhora coloca em uma caixa para mim?

     — Ah, não! — disse a dona da loja, firmemente. — Isso eu não faço. Se fosse apenas embrulhar em uma folha de papel pardo...

     — Quem sabe a senhora tem algum artigo menos volumoso... um adorno qualquer...

     — O que acha de uns brincos? Tenho uns de topázio oriental.

     — As orelhas dela não são furadas.

     — Ora, meu bem, é apenas uma questão de colocar tarraxas.

     — A senhora pode providenciar isso para mim? — perguntou Beryl ousadamente.

     — Desculpe, mas não posso. Se eu tivesse de andar por aí, mandando colocar tarraxas em brincos... Quero dizer que perco meu dia inteiro procurando coisas para vender e se fosse atender o gosto de cada freguês... Houve um no mês passado, que se interessou por um grampo chinês, que estava na vitrine. “A senhora não pode me conseguir um par?”, perguntou ele. “Impossível”, respondi. “Este grampo é muito raro. Se o senhor quer uma réplica, tem de ir a Birmingham. Não há um único artigo vendido aqui nesta loja que não seja autêntico e garantido.” O homem ainda desculpou-se e eu insisti em afirmar que a jóia era muito rara.

     — Como era o feitio desse grampo? — perguntou Beryl.

     — Bem... Um desses ornamentos orientais — respondeu a matrona vagamente. — Há gente que consegue prender o cabelo com essa coisa, que mais parece um espeto do que um grampo! Foi por isso que vendi tão barato. Ainda mais com toda esta onda de cabelos curtos...

     — É justamente o tipo de presente que eu estava procurando — disse Beryl, controlando sua excitação. — Um grampo para cabelo, a senhora disse?

     — Sim, meu bem. Para o cabelo. De jade.

     — Quanto custou?

     — Deixei por duas coroas — informou a dona da loja, satisfeita com o pesar daquela freguesa por não ter chegado antes. — Foi barata Você iria gostar. Muito artístico. Uma cabeça de mulher envolta em serpentes. Tudo lavrado.

     Beryl se surpreendeu. Estava certa de que Oliver havia descrito de maneira diferente o grampo que matara o pobre Johnson. Sim, era chinês e com o cabo de jade, mas representando uma cabeça de homem em um corpo de peixe. Assim, se o falecido Johnson estava certo e se o grampo que ele encontrara — o grampo que indiscutivelmente fora utilizado contra a moça em Jumbles — fora comprado na Broad Street, então a arma que o matara tinha de ser outra. No grampo de Johnson o cabo representava uma cabeça de mulher envolta por uma serpente. Parecido, mas não o mesmo. Nesse caso... um assassinato e dois grampos? Dois assassinatos e um grampo? Essa terrível aritmética era demais para ela. Imediatamente seu ressentimento contra Oliver se amorteceu. Ele tinha um raciocínio tão rápido! Sempre sabia o que deveria ser feito. Beryl lamentou não tê-lo a seu lado. Enquanto puxava pela cabeça, procurando uma pergunta inteligente que Oliver faria sem esforço, a dona da loja lhe poupou o trabalho.

     — Se eu fosse você, não me preocuparia, meu bem. Afinal, precisava de um pequeno conserto. Essa é a regra de todos os fregueses — lamentou ela, amargamente. — Primeiro, querem um artigo tão velho quanto as Escrituras e então esperam que ele esteja novinho em folha. E você tem de providenciar o conserto — continuou a matrona, elevando a voz e encarando Beryl ameaçadoramente. — “Naturalmente, você tem de fazê-lo funcionar; naturalmente vai desamassá-lo; naturalmente mandará enfiar as contas novamente” Nem queira saber, às vezes ficam mais de uma hora regateando preços de cada artigo e afinal se decidem por um broche vulgar de meia coroa e ainda pedem que eu mande soldar um alfinete nele. Parece que mantenho esta loja apenas para servi-los. Estou cansada de repetir que esta é uma casa de antiguidades e não de reparos. Foi isso mesmo que disse para o homem que comprou o grampo chinês...

     — Ah! Foi um homem? — perguntou Beryl.

     — Devo dizer que era um homem. Desses que têm o rei na barriga. “Se o senhor quer que o grampo seja desentortado, por que não o leva a alguma oficina? Onde é que o senhor costuma levar seus óculos, quando eles se quebram? Eles lá farão o conserto que o senhor quer.” Tive vontade de fazer a comparação, porque ele estava usando óculos com aros de ouro... Todavia, ele podia aborrecer-se e Deus me livre de perder um freguês. Então eu disse: “Está bem, deixe o seu endereço que eu vou providenciar. Qual é o seu nome?” Ele me olhou, espantado, como se eu lhe tivesse pedido para explicar a teoria de Einstein. Gaguejou: “Dedham” ou “Deadman”, uma coisa assim, mas antes que eu pudesse anotar o nome, ele pareceu mudar de idéia. Disse que não queria causar incômodo, imagine só! Depois de me fazer perder 20 minutos de meu precioso tempo, atirou sobre o balcão uma nota de 10 xelins e foi embora. Os homens, os homens! — exclamou dramaticamente a dona da loja — mas a gente tem de se conformar com certas coisas. E se você quer o meu conselho, meu bem, leve a bola de cristal. É um presente original.

     Beryl, alegando que já estava com muitos pacotes, prometeu voltar outro dia. Na hora do almoço estava bem? Mesmo que ela não pudesse vir pessoalmente, pediria a um amigo chamado Oliver para vir em lugar dela. Entrementes, se o Sr. Deadham, Deadman, ou lá o nome que fosse, aparecesse para trocar sua compra (isso acontece algumas vezes, não é mesmo?) Beryl gostaria muito de saber. Para tanto, deixou seu nome, endereço e o melhor sorriso, ao sair da loja, a cabeça em um redemoinho.

     O que foi que ela ficou sabendo? Alguma coisa? Nada? Quem fora o comprador do grampo? O homem de óculos de aros de ouro, que não quis deixar seu endereço dera um nome parecido com Redman... Dedham, Deadman, Redman! Mas isso era trabalho para Oliver, não para ela. E somente então se lembrou de que convidara Oliver para o chá e, àquela hora, ele certamente estaria sentado na porta do apartamento, esperando por ela. Bem. Ele podia esperar mais um quarto de hora, pois Beryl não iria esquecer quem fora sua mascote.

     Voltou sobre seus passos, rapidamente, pois o nevoeiro estava levantando, como acontece de repente em Londres, e ela não demorou a encontrar a loja de animais. Lá estava o cãozinho, esperando por ela. Era uma extravagância gastar uma libra daquela maneira, sem falar no trabalho que daria: mingau de aveia, potes de leite e biscoitos especiais durante uma porção de tempo, até ficar maior. Beryl pesou todos os prós e contras, depois entrou na loja e comprou o cãozinho. E como ficara difícil carregar o pequeno animal, pulando de contentamento, mais a geléia e as hortaliças na sacola! Beryl coroou suas extravagâncias indo de táxi para casa.

     Sua previsão fora perfeitamente acertada. Oliver estava sentado na escada, de mau humor e tiritando de frio. Mostrou no relógio que já se haviam passado sete minutos e assumiu aquela posição de mártir conformado. Depois que Beryl lhe pediu bastante desculpa, ele tomou a chave das mãos dela, com aquele ar superior de quem mostra que sabe fazer as coisas — o que, nele, indicava perdão.

     — Comprei um cãozinho — disse Beryl, ofegante, deixando o pequeno animal saltar de seu colo.

     — Minha querida Beryl, por que diabo fez isso? Detesto cães — disse Oliver, enquanto acariciava o bichinho, da maneira como eles gostam, deixando-o agitado, a correr de um lado para outro, como demonstrando que gostava dos dois. Então Beryl sorriu para Oliver e Oliver sorriu para Beryl, enquanto o cãozinho, sentindo-se desprezado, começou a latir.

     — Onde você o arranjou? — perguntou Oliver.

     — Em uma loja da Broad Street — respondeu ela em tom misterioso.

     — Broad Street? — repetiu ele, desconfiado. — O que quer dizer com isso? Você está escondendo alguma coisa. Desembuche.

     — Se eu lhe disser que o Sr. Redman comprou um grampo chinês exatamente igual ao que Johnson viu em uma loja da Broad Street, o que você vai responder?

     — Que não acredito.

     — Mas eu posso provar — disse Beryl.

     — Redman? — perguntou Oliver, incrédulo.

     — Dedham foi o nome que a dona da loja me disse, mas é muito semelhante a Redman e a descrição que ela me fez corresponde perfeitamente à dele. Será mesmo, Oliver?

     Os dois ficaram olhando um para o outro, enquanto o cãozinho latia mais furiosamente.

 

                   A TRISTE VERDADE A RESPEITO DE POTTS

     Por algum tempo, depois de ouvir a estranha história de Beryl a respeito do segundo grampo e de seu comprador, tão sintomaticamente chamado Dedham ou Deadman, Oliver refletiu sobre o assunto. A idéia de que Redman pudesse estar de algum modo envolvido em um ou nos dois crimes era totalmente nova. Mas seria digna de exame? A semelhança do nome, segundo se lembrava a dona da loja, constituía um detalhe impressionante, muito mais que a descrição que ela fizera do comprador afinava com a de Redman. Oliver, entretanto, reconhecia que tal descrição servia igualmente para milhares de outros homens, que não têm uma característica que chame atenção. Quanto ao ridículo nome de Deadman, seria o de Redman o que ela queria se lembrar? Por que não Steadman — um sobrenome muito mais comum — ou Denman, ou ainda Denham?

     Por outro lado, havia aquela velha rixa entre Redman r o jovem Johnson. No caso de um sujeito esquisito e reservado como era Redman, quem poderia imaginar do que ele seria capaz? E, como Oliver bem sabia, era verdadeira a história que ele contara à polícia, quanto a seus movimentos depois de haver deixado o Morning Star, na noite do crime da Estação Vitória.

     A conclusão de Oliver foi que ele não deveria seguir a pista relativa a Redman, se é que se tratava mesmo de uma pista. Os dois homens mantinham relações cordiais e eram colegas em um conjunto que atribui a maior importância à lealdade de seus membros. Ademais, Oliver não era pago pelo Star para verificar atitudes suspeitas de quaisquer outros funcionários do jornal. Se isso tivesse de ser feito, era encargo da polícia.

     Um trabalho bem mais substancial, na opinião de Oliver, era o que dizia respeito a Arthur Potts. Beryl e a Srta. Timmins, em suas conversas, renovavam suas suspeitas relativamente ao camaroteiro. Oliver, por sua vez, nunca descartara completamente Potts da relação dos possíveis culpados. Todavia, o homem contara uma história tão verídica a respeito de si mesmo e de seus movimentos, que parecia melhor seguir outras linhas de investigação. Agora, porém, Potts voltara à cena. Surgia a hipótese de que o homem visto por Oliver no bangalô e que dissera chamar-se Arthur Potts, irmão da vítima, tinha apenas assumido a identidade do verdadeiro Potts. Se aquele homem o conhecia com intimidade, estando a par dos detalhes do emprego de camaroteiro, bem que poderia fazer-se passar por ele. A farsa acabaria, naturalmente, se Oliver o tivesse seguido até Southampton, na noite do encontro deles, e verificado qual o verdadeiro Potts que entrava de serviço no navio para o Havre.

     E se o suposto Potts estivesse simplesmente fugindo de uma situação embaraçosa? Se ele fosse, de fato, o misterioso Tracey?

     Ou, ainda, se Potts fosse mesmo Potts e verdadeira a sua história, apenas com uma exceção: ao invés de ser o irmão da vítima, ele fosse o marido? A opinião de Oliver quanto à inteligência da Srta. Timmins não era muito lisonjeira, mas ele se sentia na obrigação de reconhecer que aquele palpite dela estava longe de ser absurdo. Potts se casa com Geraldine, embora, por motivos desconhecidos, somente fique em casa durante curtos intervalos; Potts descobre que é traído; Potts aparece no bangalô para acusar a mulher e a encontra pronta para receber Fisher, o usurpador dos direitos conjugais; Potts, louco de raiva, Geraldine apanhada em flagrante; Potts transformado em assassino; Potts retornando a Brighton no dia do inquérito, dominado pelo receio de haver deixado algum indício de sua presença no bangalô e disposto a correr o risco de entrar no local do crime e destruir aquele indício. Oliver tinha de reconhecer que tudo se encaixava perfeitamente.

     Mas quem era, então, o misterioso sujeito que Beryl surpreendeu no Restaurante Holborn, seguindo Oliver? Quem era o homem assustado que disse chamar-se Potts? O que fazer de todas estas pistas?

     Evidentemente, segundo Oliver, a primeira coisa seria procurar o verdadeiro Potts em Southampton e verificar o elo inicial da corrente. Se esse Potts fosse um homem que Oliver nunca vira, então não haveria dúvida de que o repórter deixara o assassino escapar, o que seria altamente humilhante e não esclareceria nada. Se, porém, o verdadeiro Potts fosse o homem do bangalô, então seria necessário um meticuloso trabalho de investigação da história e dos movimentos daquele empregado da Southern Railway Company.

     De manhã, depois da visita à Scotland Yard e à Butique Evanalda, Oliver foi discutir com Hemingway os novos aspectos do caso. Encontrou-o em seu gabinete, disposto a expor seus próprios pontos de vista.

     — Repare só — disse ele. — Com o que nós e a polícia descobrimos a respeito de Fisher e da compra do grampo, há cada vez menos dúvida de que ele é o criminoso. Mas Fisher não pode escapar; eles o têm fisgado. E essa hipótese de Potts ser o marido é um prato bom demais para não ser aproveitado. Se o fato for verdadeiro, teremos uma bela história. Naturalmente, Fisher continuará como o suspeito mais provável, mesmo que se encontre um caminhão de maridos andando por aí. Vá em frente, Oliver.

     Em Southampton, naquela tarde, Oliver começou suas investigações no escritório da companhia, perto do cais. Fazendo-se passar por um passageiro para o Havre, ele verificou que o serviço era principalmente noturno; que a hora de partida dos navios, como informara o sujeito que dizia ser Potts, era às 11:15 da noite, com a chegada prevista para as 6:20 da manhã seguinte, iniciando-se o retorno em Southampton nessa mesma noite às 11:30 e chegando às 6:30 do outro dia. Assim, um camaroteiro passaria alternadamente os dias em Southampton e no Havre, com tempo de sobra para descansar, divertir-se ou tratar de interesses particulares. No caso pouco provável de um empregado da companhia trabalhar mais de oito horas, sobraria muito tempo para ele, segundo o raciocínio maldoso de Oliver, se meter em encrencas no restante das 24 horas, isso sem contar o dia de folga semanal, qualquer que fosse. Como membro do sindicato, Potts estaria com seus horários bem registrados.

     A residência de Potts — que tanto o homem do bangalô como a companhia tinham fornecido a Oliver — se localizava em uma rua muito estreita e era cercada de casas na maior parte de aspecto decente, perto do cais.

     Cortinas claras, janelas bem pintadas, gaiola com canários pendurada na varanda e um vaso com flores contribuíam para a impressão de limpeza e respeitabilidade. Oliver se apresentou como um velho amigo de Potts, demonstrando ansiedade por encontrá-lo e carregando no sotaque de Yorkshire. Não se surpreendeu quando foi informado de que Potts estava naquele dia no Havre e somente voltaria para o café da manhã seguinte. A senhora que abriu a porta para Oliver era uma velhinha simpática, das que não desprezam uma boa conversa. O Sr. Potts, tinha certeza, ficaria muito contente em revê-lo, muito mais que raramente recebia visitas. Não, o Sr. Potts não se casara, durante aqueles anos, desde que Oliver o vira pela última vez. A impressão era que ele se sentia satisfeito com a vida que levava.

     Não houve a menor dificuldade para Oliver prolongar a conversa, sabendo então que a velhinha cuidava da casa já havia 18 meses, como empregada de Potts. Partindo desse detalhe, Oliver ficou à vontade para elogiar o aspecto da casa, com especial referência aos canários. Foi o bastante para que, sem pedir, Oliver fosse convidado para entrar, a fim de ver melhor a varanda e os recentes melhoramentos na mobília e na decoração. Quando Oliver comentou que Potts parecia ser um homem em boa situação econômica, ela informou logo que seu patrão recebera uma herança, não fazia ainda um ano. Fora ele mesmo quem lhe dissera, acrescentando que poderia deixar de trabalhar e viver de rendas.

     O que parecia bem claro a Oliver era que Potts desfrutava, sem qualquer mistério, de um padrão de vida acima dos recursos de um camaroteiro. O repórter notou, particularmente, um aparelho de rádio que, segundo lhe pareceu, devia ter custado muito mais do que a empregada, que pensando em impressionar o visitante, disse que Potts havia pago; também não escapou ao olho observador do repórter um pequeno cofre no fundo da sala.

     Oliver sugeriu que talvez a melhor ocasião para uma visita a Potts fosse em seu dia de folga, pois assim eles poderiam programar uma noitada juntos. A informação foi que o dia de folga do Sr. Potts era aos sábados, mas que, após a sesta, ele geralmente arrumava a maleta e ia visitar alguém, regressando apenas no dia seguinte. O Sr. Potts queria conhecer um pouco o mundo, conforme confessara à empregada, e passar a noite em um hotel, para variar. E por que não podia se dar a essas extravagâncias?

     Quando Oliver chegou ao fim de uma visita que lhe rendeu muito mais informações do que esperava, a empregada se prontificou a transmitir ao Sr. Potts o nome do amável visitante, que disse chamar-se Sam Beasley e que voltaria à hora do chá no dia seguinte.

     Oliver dispunha agora de abundante material para conjeturas. Mais do que nunca era preciso ficar de olho no misterioso Potts e provar se ele era ou não o homem do bangalô. Um Potts relativamente humilde, irmão da mulher assassinada, era uma coisa; mas um Potts com bons recursos financeiros, que normalmente passava fora de casa as noites de sábado... Qual o verdadeiro?

     Oliver remoia essas idéias, um tanto excitado, enquanto bebia um drinque no bar de um hotel perto do cais. O lugar era bem freqüentado e de repente o repórter deu com os olhos em uma pessoa que lhe pareceu conhecida. Menos de meia hora antes, ao despedir-se da empregada de Potts na porta da casa, ele inconscientemente notou um homem que passava na calçada. Era baixo, moreno, usando um pequeno bigode e tendo um ar mais de soldado do que de marinheiro. O homenzinho, percebendo que Oliver o observava, cumprimentou amavelmente e veio com seu drinque para a mesa onde estava o repórter.

   — Vi que o senhor estava de visita na casa de Arthur Potts — disse o visitante, sem mais preâmbulos. — É amigo seu, sem dúvida?

     Oliver olhou para ele com a fisionomia carregada.

     — Não sei — respondeu, após um momento de silêncio. — O que o senhor tem com isso? A não ser que...

     Sua memória funcionou, confirmando a suspeita sobre a identidade do estranho personagem.

     O cartão que seu interlocutor lhe apresentava trazia o nome do Inspetor C. F. S. Oates e, no canto esquerdo, a inscrição: “Ministério do Interior. Cairo.”

     Oliver olhou para seu visitante, espantado.

     — Cairo? — conseguiu balbuciar.

     — Capital do Reino Independente do Egito — explicou o homenzinho, com um sorriso amável. — Mas não se importe com isso agora. Não creio que o senhor seja um amigo de Potts; está-se vendo que é uma pessoa respeitável. Mas se o senhor estivesse apenas fazendo uma visita de amigo, por que aquele sotaque de Yorkshire... muito bem imitado, diga-se de passagem... para enganar a velhinha?

     — Eu estava falando com sotaque de Yorkshire simplesmente porque nasci lá.

     — Eu também — replicou o Inspetor Oates. — A saúde!

     Os dois homens esvaziaram os copos.

     — Também resolvi acentuar o sotaque — explicou Oliver — porque, se eu falasse como nós estamos fazendo agora, aquela velhinha jamais se abriria comigo nem acreditaria que eu era amigo íntimo de Arthur Potts. Tais são as dificuldades da democracia nesta nossa terra, Inspetor. Veja o meu caso — acrescentou, apresentando seu próprio cartão.

     O outro olhou rapidamente, verificando a profissão do jornalista.

     — Realmente, tive a impressão de que o senhor era repórter. Estou a par, naturalmente, do crime de Jumbles, embora tenha chegado recentemente do Egito. O que me admira, porém, é que o senhor dispense tanto interesse ao irmão de Geraldine Potts.

     — Ora — contestou Oliver — o senhor não está interessado em falar comigo?

     — De fato — replicou o Inspetor — como estou interessado em falar com qualquer pessoa que conheça Arthur Potts. Bem, acho que irei encontrá-lo amanhã de manhã, na hora da chegada do navio.

     — Pretendo encontrar-me com Potts — anunciou Oliver.

     — É mesmo? Duvido que o consiga — disse o Inspetor friamente. — O senhor talvez o veja, acho eu, se se interessar por uma cena desagradável.

     Com isto, o Inspetor terminou o drinque, cumprimentou o repórter com um aceno de cabeça e se retirou bruscamente.

     O navio que encostou no cais na manhã seguinte, às 6:30, vinha repleto de passageiros. Misturando-se à pequena multidão que os esperava, Oliver se colocou perto do Inspetor Oates, que se dignou saudá-lo com um breve movimento de cabeça. As escadas foram estendidas e um enxame de carregadores invadiu o barco, enquanto os passageiros iniciavam a lenta procissão desde o cais até os armazéns da Alfândega. Logo depois, Oliver divisou o rosto, marcado pela cicatriz, do homem do bangalô, o verdadeiro Potts, em seu uniforme de camaroteiro, lutando com uma pesada mala e várias sacolas, e acompanhado de um homem alto e magro, com ar de estrangeiro, evidentemente dono da bagagem e cuja opulência era acentuada por um rico sobretudo de astracã. A revista na Alfândega se processou sem novidade e logo após o camaroteiro arrumava a bagagem do homem alto em um compartimento de primeira classe do trem de Londres, estacionado junto ao cais. Oliver percebeu que o Inspetor por um instante sequer deixou de acompanhar os passos dos dois homens, desde o momento em que desceram do navio, e continuava agora a observá-los atentamente, postado na plataforma onde se aglomeravam os que esperavam os passageiros.

     O homem alto tomou o seu lugar no trem e deu uma gorjeta que Potts recebeu com evidente prazer. Logo em seguida, o passageiro entregou-lhe também um maço de jornais amassados e uma revista com uma capa colorida, como se lhe perguntasse: “Você se interessa por isso?” Nesse momento, o Inspetor Oates levantou a mão direita acima da cabeça e imediatamente dois homens corpulentos se aproximaram de Potts. Um deles disse qualquer coisa, que fez o camaroteiro empalidecer. O Inspetor, avançando rapidamente, arrancou-lhe das mãos os papéis que o passageiro acabara de entregar e folheou as páginas amarrotadas. Um simples olhar foi o bastante. O Inspetor levantou novamente a mão e mais dois homens avançaram até a porta do compartimento onde se sentara o passageiro. A troca de palavras foi também rápida e ele desceu para a plataforma, pálido e silencioso. Logo após, os dois detidos foram levados para a delegacia do cais, com o Inspetor Oates caminhando atrás.

     Uma hora mais tarde, sentado a uma mesa do restaurante do South Western Hotel, o Inspetor Oates não apenas concordou em receber Oliver mas ainda o convidou para o almoço. O policial estava muito bem-humorado e não opôs qualquer dificuldade em relatar, não oficialmente, o golpe daquela manhã.

     — Não há ninguém aqui que possa acusar-me de intromissão — disse ele. — Meu chefe no Cairo deseja que seja elogiado esse trabalho dos senhores.

     Explicou, então, os malefícios do tráfico de drogas no Egito, com seu meio milhão de viciados; a criação do Departamento de Narcóticos por Russell Pasha e seus esforços no sentido de descobrir as fontes fornecedoras de drogas, solicitando a cooperação dos órgãos policiais de outros países para seguir a pista dos verdadeiros organizadores do comércio, os “cabeças”. O Inspetor fora designado para entrar em contato com a Scotland Yard, onde encontrou, entre outros suspeitos da distribuição no varejo, um cama-roteiro chamado Potts. Com a confissão de um de seus clientes, a polícia dispunha de provas suficientes para condená-lo, mas ficou resolvido adiar-se sua prisão até que o Inspetor Oates, com seus conhecimentos especializados sobre os membros da quadrilha no continente, viesse observá-lo em Southampton, no Havre e nas viagens entre os dois portos.

     A sorte coroou seus esforços desde o início. Pela descrição que tinha de Potts, foi fácil identificá-lo naquela manhã; mas o homem alto era um estrangeiro muito seu conhecido sob o nome de Crescenzi, austríaco e figura de destaque no tráfico de drogas, embora nunca tivesse sido apanhado. A prisão de Potts, quando os papéis mudaram de mãos, não envolvia qualquer risco, pois o camaroteiro já estava fichado; entretanto, no momento em que o Inspetor encontrou entre os jornais e a revista uns pacotinhos quadrados e bem fechados — justamente o que ele estava procurando — teve a prova que faltava. Crescenzi fora apanhado também e sua maleta de mão, com fundo falso, entrou como prova para que fosse aberto o inquérito.

     Oliver não cabia em si de satisfação. Era uma excelente reportagem, de sua inteira exclusividade.

     — Há apenas uma coisa que está me faltando — disse ele para o Inspetor. — Preciso provar que Potts estava nas proximidades de Brighton na noite de sábado, sete, data do crime de Jumbles.

     — Esta o senhor não pode carregar em cima dele — declarou o Inspetor com convicção. — Potts refazia seus estoques duas vezes por semana em Londres, encontrando seus clientes em lugares combinados por telefone. Depois, ele tomava o 7:30 de volta para Southampton ou, se fosse sábado, dormia em um hotel na cidade. Na noite a que o senhor se refere, Potts, em companhia de uma garota, foi ao Radiant Palace, ver o filme Let’s All Get Divorced.

 

                   BOND STREET OU BROAD STREET?

     Oliver fora a Southampton e Beryl, pelo menos desta vez, sentiu sinceramente sua ausência. Não havia ninguém mais com quem ela pudesse trocar idéias a respeito dos problemas que se tinham tornado uma obsessão para ela: o grampo de Broad Street e o misterioso “Deadman” que fora mencionado como seu comprador.

     Na verdade, qualquer discussão adicional com Oliver daria algum resultado, pensava Beryl, sentada sozinha à mesa de almoço. Oliver a decepcionara. A princípio, quando lhe contara sua aventura de véspera, ele parecera tão impressionado quanto ela. Depois, aos poucos, como se estivesse persuadindo a si mesmo, aquela impressão fora gradualmente se enfraquecendo até que, por fim, ele positivamente troçara dos temores dela e deixara de lado suas suspeitas. Segundo ele, o incidente não passara de uma coincidência. Era ridículo imaginar que Redman — logo quem! — estivesse metido na história. Ela estava se deixando levar pela imaginação.

     No momento, a convicção de Oliver produzira seus resultados mas, com a ausência dele, as suspeitas retornaram. Não era assim tão impossível que Redman estivesse envolvido nos crimes, como não foi impossível que o jovem e alegre Johnson aparecesse em uma cabine telefônica da Estação Vitória assassinado com um grampo de cabelo. Depois disso, qualquer coisa lhe parecia possível.

     Ademais, havia aquela confusão entre Bond Street e Broad Street. Seria ridículo dizer que tudo não passava de uma coincidência, principalmente depois que um grampo de jade fora comprado em Broad Street, justamente o nome da rua que Johnson lhe pareceu ter mencionado em seu telefonema. Se coincidência houve, então foi com o grampo de Bond Street, não com o de Broad Street. Apesar disso, Hemingway ouvira Johnson dizer Bond Street e realmente aparecera um grampo comprado lá. Tudo isso era muito confuso. Beryl tamborilou com os dedos na mesa e deixou esfriar o café enquanto sua imaginação vagava de uma possibilidade para outra, sem se fixar em nenhuma.

     “Houve um freguês o mês passado...”, dissera a mulher da loja de Broad Street. Mês passado... Mas Fisher havia comprado o grampo na Casa Araby justamente na véspera do dia em que Geraldine Potts fora assassinada com ele. Seria o mesmo grampo? Poderia esse grampo ter percorrido um incrível itinerário, passando da Broad Street para o desconhecido Deadman, de Deadman para Araby, de Araby para Fisher, de Fisher para Geraldine? Mas as descrições das cabeças dos grampos eram diferentes. Indiscutivelmente, tratava-se de dois grampos, não de apenas um. Então, por que ela estava tão certa de que era o segundo grampo o que tinha ligação com o crime? Deadman era tão parecido com Redman e a descrição do comprador se ajustava tanto com Redman... Nada mais do que isso. Nada mais, excetuando sempre aquela certeza de que Johnson, quando falara ao telefone com ela, dissera Broad Street. E Oliver repetia, com muita convicção, que os indícios eram muito fracos.

     Oliver estava errado. Beryl se atirou para trás na cadeira, quase entornando a xícara de café com o cotovelo. Como eles tinham sido estúpidos, incrivelmente estúpidos! Havia uma prova que estivera todo o tempo bem na frente do nariz de cada um deles e ninguém percebera. Isso era importante, terrivelmente importante. A informação deveria ser imediatamente transmitida para quem tivesse condições de utilizá-la. O próprio Oliver concordaria com ela agora. Era uma pena que ele estivesse ausente, pois seria capaz de expor o caso com muito mais competência do que ela. Oliver jamais perdia a cabeça. Bem, não havia outro remédio — ela teria de fazê-lo pessoalmente. De repente, sentiu que não havia um segundo a perder; era evidente, porém, que não adiantava sair correndo àquela hora; o editor de noticias só regressaria do almoço no mínimo dentro de meia hora. Com toda a paciência que pôde reunir, Beryl decidiu-se a enfrentar aquele intervalo, até que pudesse transferir o novo fardo de seus frágeis ombros para as costas largas de Hemingway.

     O detalhe que havia assumido de repente tamanha importância foi uma observação casual que Oliver lhe fizera, uns dois dias antes, quando ambos discutiam o caso, logo após a polícia haver descoberto a arma do crime. “Um grampo com cabeça de jade”, acentuara Oliver, com aquele ar, por vezes irritante, de quem percebe as coisas um pouco antes dos outros. “Sim, já tinha ouvido falar desse grampo.” E contou para Beryl que Gladys Sharp, a empregada do bangalô, mencionara o grampo ao comentar o temperamento de sua falecida patroa. Gladys Sharp experimentara o grampo em seus próprios cabelos na tarde de sexta-feira e Geraldine “avançara contra ela como uma fera”. Em outras palavras, a Sra. Tracey já estava de posse de um grampo de jade antes que Fisher tivesse sequer comprado o outro — um grampo que desde então havia desaparecido e do qual não havia qualquer referência oficial, pelo menos quanto ao que Beryl sabia. Ademais, tratava-se de um grampo que o criminoso procurava ocultar, pois quem mais, a não ser ele, tinha interesse em que a existência da arma não fosse conhecida? Beryl tinha a impressão de que, com esse detalhe, a solução do mistério estava em suas mãos.

     A meia hora acabou por passar, finalmente, e ela se apresentou no gabinete de Hemingway, trêmula de excitação ante tamanha responsabilidade.

     Hemingway olhou para ela com ar de surpresa, quando a moça fechou a porta atrás de si e se aproximou da escrivaninha dele.

     — O que há, Srta. Blackwood? — perguntou o editor amavelmente. — Algo especial?

     — Muito, Sr. Hemingway. Quero contar-lhe uma coisa.

     Sucintamente, friamente, quase com tanta competência como o faria Oliver, Beryl pôs o editor a par dos fatos e das idéias dela a respeito dos dois grampos.

     A atenção que Hemingway lhe dispensou foi certamente mais gratificante do que a de Oliver. Antes que ela tivesse completado meia dúzia de frases, Beryl percebeu no rosto de seu intelocutor que ele considerava o problema com a mesma importância que a moça lhe atribuía. Esperou, em silêncio, até que ela terminasse; depois disse.

     — Faça o favor de sentar, Srta. Blackwood. É uma coisa muito séria o que está me contando. Quero ficar conhecendo os menores detalhes. Deixemos de lado por um momento o fato de haver dois grampos; você disse que Johnson lhe falou pelo telefone. Não teria sido um engano da telefonista? Será que ela ligou para o ramal correto?

     Beryl sentara-se na cadeira em frente à escrivaninha, conforme Hemingway lhe havia indicado com um movimento da cabeça. Já repetira uma porção de vezes a conversa com Johnson pelo telefone. Na verdade, não tinha culpa de Johnson ter ligado primeiro para ela e não para o editor de notícias; também não ignorava que isso constituía uma grave violação das normas disciplinares e que Hemingway era muito rigoroso a esse respeito.

     — Não — respondeu ela, um tanto nervosamente. — Acho que o Sr. Johnson pediu mesmo o número de meu ramal.

     — Por quê?

     — Bem... não sei — gaguejou a moça, embaraçada.

     — Foi antes de ele ter falado comigo? — insistiu Hemingway, irritado.

     — Sim — admitiu Beryl, ainda mais constrangida.

     — Ele falou com você antes de falar comigo! Não posso compreender uma coisa dessas. Por que será que ele fez isso?

     Beryl não respondeu. Se Hemingway não era realmente capaz de compreender a importância da informação, então ele era um tolo. De qualquer maneira, não era correto mostrar-se irritado, como se ela fosse a culpada de tudo. A moça não podia evitar que os repórteres jovens preferissem falar com ela ao invés de com seus editores.

     — Quanto tempo durou essa conversa? — perguntou Hemingway a seguir.

     — Ah, não mais do que alguns segundos — replicou Beryl apressadamente, sem muita veracidade. — Tudo não passou de duas ou três frases. E o curioso da história é que eu pensei que ele tivesse dito Broad...

     — Por que não me relatou isto antes, Srta. Blackwood?

     Com a pergunta, Hemingway cortou a tentativa de Beryl, no sentido de mudar de assunto.

     — Mesmo que fossem apenas duas ou três frases, como agora está afirmando, você deveria transmitir a informação imediatamente a mim ou ao Sr. Lucas.

     O Sr. Lucas era o editor-chefe, a quem Beryl jamais imaginaria dirigir-se, por mais importante que fosse a informação.

     — Mas nunca pensei que fosse alguma coisa importante, Sr. Hemingway — protestou ela. — O que quero dizer é que, quando o senhor entendeu que o Sr. Johnson dissera Bond Street e que um grampo fora vendido em uma loja dessa mesma rua, eu naturalmente pensei que tinha havido algum engano...

     A voz dela foi sumindo aos poucos. Beryl estava se sentindo repreendida e não merecia isso. Esperava ser louvada por sua astúcia e agora era criticada por sua estupidez. O Sr. Hemingway estava visivelmente aborrecido com ela, o que por certo não era justo.

     — Qualquer detalhe é importante em um caso de assassinato — continuou Hemingway asperamente. — Pensei que, pelo tempo que você trabalha aqui, já deveria ter aprendido pelo menos isso. Foi uma grande demonstração de desleixo e de incúria não ter relatado essa informação, tão logo você soube da morte de Johnson. E quando falo em relatar, quero dizer a alguém que tenha competência para tratar do assunto, pois não tenho dúvida — Hemingway esboçou um sorriso de sarcasmo — de que, com relação a este importante detalhe que chegou ao seu conhecimento, dizendo respeito a um destacado colega de trabalho, você deve ter batido com a língua nos dentes, transmitindo a informação a qualquer funcionariozinho. Vai ver que, na realidade, as únicas pessoas que não ficaram sabendo do fato foram o Sr. Lucas e eu. Não me admirarei se, a esta hora, o Courier já esteja a par de tudo.

     O Courier era o maior rival do Morning Star.

       — Eu não costumo “bater com a língua nos dentes”, Sr. Hemingway — protestou Beryl, indignada.

     — Bem, então a quantas pessoas você contou a história? — insistiu o editor, implacavelmente. — Quantas, hein?

     — Não falei com ninguém! — exclamou Beryl, alarmada. Hemingway jamais a perdoaria se soubesse que ela já havia conversado com Oliver, pois isso representava uma violação da disciplina muito pior que a de ter falado com Johnson. Era preferível sacrificar a verdade do que seu emprego, não se esquecendo de avisar Oliver para não denunciá-la. — Não falei com ninguém! — repetiu.

     — Então você até que tem mais juízo do que pensei — rosnou Hemingway. — E não conte para ninguém.

     — Certamente que não — replicou Beryl, procurando retomar sua dignidade.

     Hemingway tamborilava na mesa com o corta-papéis e parecia mergulhado em profunda meditação.

     — Tenho de falar pessoalmente com essa mulher — anunciou por fim.

     — Também acho — apressou-se Beryl a dizer. — O senhor saberá arrancar muito mais informações do que eu fui capaz. Todos sabemos — acrescentou com intenção conciliatória — que o senhor foi dos melhores repórteres policiais que já trabalharam no Star, Sr. Hemingway.

     — Ah, sim... — resmungou o editor, distraidamente.

     Beryl permaneceu em respeitoso silêncio, aguardando nova observação.

     Ela veio sob a forma de uma série de perguntas. Hemingway esmerou-se em realizar um meticuloso exame da história de Beryl, analisando cada parte, aprofundando cada detalhe, até que ela se convenceu de que não abrigava um único pensamento que não fosse do conhecimento dele.

     — É isso — disse Hemingway por fim. — Pela firmeza de suas declarações, estou certo de que Johnson lhe deve ter dito Broad Street. Pelo menos não posso imaginar como você poderia meter em sua cabeça um nome que ele não pronunciou. Broad... Bond... Afinal, não são palavras tão parecidas que possam ser confundidas uma com a outra.

     — Mas o senhor pensou que ele tivesse dito “Bond” — ponderou Beryl.

     — Pensei, realmente, mas pode ter sido por uma associação de idéias — admitiu Hemingway, generosamente.

     — Essa sua informação, porém, me deixa em dúvida. De qualquer modo, um de nós dois se enganou e não vou dizer que não fui eu. Você já percebeu, naturalmente, que agora o caso se alterou completamente, de alto a baixo? Quero dizer que, mesmo deixando o Sr. Redman provisoriamente de fora, a possibilidade de haver dois grampos significa que tudo o que a polícia e nós mesmos estamos fazendo pode estar apoiado em bases completamente falsas, devendo, pois, todas as investigações serem revistas de fio a pavio.

     — Tem razão — apoiou Beryl com ar compenetrado. — Também penso assim.

     — Então, creio que não preciso recomendar-lhe a necessidade de absoluto segredo — disse Hemingway, em tom muito amável. — Você cumpriu sua parte e agora o problema fugiu de suas mãos. Vou falar com o Sr. Lucas, naturalmente, e ele talvez mande chamá-la para esclarecer um ou dois pontos. Fora disso, porém, a melhor coisa que você tem a fazer é esquecer que um dia soube qualquer coisa a respeito desta história.

     — Sim, senhor — concordou Beryl. — O senhor pode não acreditar, mas sei bem como guardar um segredo.

     O Sr. Hemingway sorriu discretamente.

     — Quanto ao Sr. Redman — acrescentou ele — parece a mim, como também pareceu a você, que é uma hipótese absurda considerá-lo como envolvido no caso. Pura fantasia. Afinal de contas, temos apenas a coincidência de uma pequena semelhança de nomes e de aparência, o que aliás poderia aplicar-se a centenas de pessoas. Naturalmente, porém, isso não significa que ele seja excluído e o fato de todos gostarmos dele e de tratar-se de um companheiro de trabalho não deve influir no problema.

     — É claro que não — apressou-se Beryl em concordar. Essa era precisamente sua opinião. A expressa relutância e mesmo a recusa de Oliver, para levar a cabo investigações capazes de envolver algum funcionário do jornal, pareciam a Beryl um tipo de lealdade despropositado e prejudicial.

     — Como disse — continuou Hemingway — falarei com o Sr. Lucas a respeito da linha de ação que devemos adotar, mas estou certo de que ele concordará com a minha idéia de ter uma conversa particular com o Sr. Redman. Posso sondá-lo de tal maneira, que ele não perceberá que suspeitamos de alguma coisa. Mas devo confessar — acrescentou Hemingway, em um tom de voz muito humano — que é uma espinhosa missão, Srta. Blackwood. Desejaria que tudo isso estivesse terminado, mas receio que...

     A entonação de suas últimas palavras revelaram sua descrença.

     — É terrível — concordou Beryl — mas é nosso dever. Afinal, não podemos esquecer o pobre Sr. Johnson.

     Um soluço interrompeu sua frase. Hemingway veio em seu auxílio.

     — Tem toda a razão. Faremos o possível.

     Seguiu-se um pequeno silêncio. A entrevista evidentemente chegara ao fim. Visivelmente aliviada, Beryl levantou-se e deixou a sala. Apesar da repreensão que recebera, sentia-se descontraída pela primeira vez, desde que deixara a loja de Broad Street. Sem dúvida, Oliver fora desbancado.

     Depois que a secretária se retirou, Hemingway se manteve durante alguns minutos mergulhado em profunda meditação. As informações de Beryl, por mais que ele tivesse deplorado a falha da moça em avisá-lo desde logo, o deixavam em uma situação muito desagradável. Não chegara a uma conclusão quanto à maneira de resolvê-la. Por fim, sacudiu os ombros, como se se tratasse de escrúpulos ridículos, e levantou-se com um suspiro resignado.

     Seu olhar deteve-se na larga escrivaninha que ele e Redman utilizavam. Em cada uma das extremidades, da tampa até embaixo, havia uma série de gavetas, não muito estreitas, como nas escrivaninhas comuns, mas largas e compridas. A maioria delas continha objetos próprios da profissão — resmas de papel, borrachas, lápis de cor etc. — mas a última em cada lado era reservada para os pertences pessoais, a de Hemingway à direita, a de Redman à esquerda. Hemingway contornou lentamente a escrivaninha, abriu a última gaveta da esquerda e ficou olhando para ela.

     A primeira vista, ela parecia conter nada mais do que uns objetos masculinos normais: um par de cachimbos, luvas, algumas cartas, dois ou três retratos, uma lata de fumo, um maço de cigarros e coisas assim, enchendo a gaveta até a metade pelo menos. Hemingway se abaixou e lentamente empurrou para o fundo todos os objetos, deixando à mostra o que se encontrava embaixo deles. Aparentemente não se tratava de nada importante — nada mais do que uma folha de papelão cinzento que fora cortado de maneira a encaixar-se nos contornos da gaveta e servir como uma espécie de forro. Com a ajuda da unha, Hemingway levantou a ponta do papelão e puxou-o para fora.

     Era evidente que a folha não cobria totalmente o fundo da gaveta. Faltava-lhe um pedaço, talvez uns 20 centímetros. Hemingway examinou a extremidade. Ela também fora cortada por uma faca, mas, ao passo que nos lados e na parte da frente os cortes eram bem-feitos, na de trás notava-se que o trabalho fora realizado sem cuidado, apressadamente.

     Hemingway ficou por uns instantes olhando para a folha de papelão, especialmente a parte cortada. Depois, dirigiu-se cautelosamente para a porta, passou a chave, voltou com o papelão para junto da lareira e começou lentamente a fazê-lo em pedacinhos, com auxilio de um canivete. Terminado o trabalho, riscou um fósforo e queimou totalmente a pequena pilha do que restara da folha rasgada. Afinal, com um lápis, misturou as cinzas.

     A polícia registrara o fato de que o aviso “NÃO FUNCIONA”, que estava pendurado na porta da cabine telefônica na Estação Vitória, fora feito com um pedaço de papelão cinzento.

 

                     BERYL SOFRE AS CONSEQÜÊNCIAS

     Beryl Blackwood deu um suspiro de profunda satisfação. Chegara a noite de sábado e novamente o apartamento era apenas dela. A satisfação não resultava de qualquer restrição que ela pudesse ter relativamente à encantadora garota com quem repartia seu pequeno lar. Entretanto, a melhor qualidade dessa companheira estava no fato de que ela passava os fins de semana com os pais, permitindo assim que Beryl e o cãozinho fizessem exatamente o que lhes passava pela cabeça. Enquanto ele arranhava a lata de lixo, ela cozinhava mais comida do que seria necessário, para atender à remota hipótese de que alguém viesse visitá-la — ou, para falar francamente, que Oliver chegasse de repente. Já fazia uma semana que ela não punha os olhos nele. E quando telefonava, era sempre apressadamente, falando aos borbotões, o que queria dizer que estava com a cabeça cheia de problemas e que, mais cedo ou mais tarde, viria desabafar tudo. Tinha esperanças de que, naquela noite, ele viria certamente, pois agora a necessidade de desabafar passara a ser dos dois.

     Quanto mais pensava na entrevista com Hemingway, menos satisfeita ficava com o papel que havia representado. Não adiantava querer iludir-se. O melhor mesmo era enfrentar a situação. Ela, uma moça moderna, maior, eleitora, independente, com idéias formadas sobre a vida, deixara-se tolamente dominar. E nem ao menos por um homem de quem gostasse! Ela estava coberta de razão e tinha se comportado com absoluta correção; todavia, aquele bobalhão pretensioso, aquele fiscal da disciplina, aquele tolo Hemingway havia conseguido obrigá-la a pregar uma mentira. Não era uma estupidez?

     Quanto mais remoia a tal mentira, mais aborrecida e furiosa ficava — aborrecida consigo mesma e realmente furiosa com Denis Oliver, cuja preocupação com suas próprias teorias e cuja recusa em considerar importante a descoberta fizeram com que ela fosse falar com Hemingway. Percebia agora o quanto fora insensata. Jamais deveria ter ido a Hemingway. Mas já que fizera a tolice de ir, pelo menos não deveria ter-se deixado intimidar. Sobretudo, não deveria ter mentido. O que foi que lhe passou pela cabeça, ao dizer que não contara a ninguém sua aventura na Broad Street, quando sabia perfeitamente que relatara tudo a Denis? Sentia vergonha de si mesma. Não era de seu feitio fazer uma coisa assim. Nem queria pensar no que diria Denis, quando soubesse de tudo! É que, embora não fosse nada agradável confessar-lhe tamanha tolice, era obrigada a fazê-lo, Hemingway ou não Hemingway. Os dois estavam praticamente noivos. Não é direito ter segredos com o futuro marido. Beryl pedia a Deus que Oliver viesse logo.

     Ao aproximar-se a hora da chegada dele, Beryl passou a prestar atenção no ruído dos passos dos transeuntes na rua, com uma ansiedade que até a surpreendeu. Quando a campainha do telefone tocou, ela correu para o aparelho, mal escondendo sua alegria. Talvez o telefonema significasse que ele não viria mas pelo menos tivera a gentileza de avisar.

     — Alô, Denis, é você, meu bem? — disse ela irrefletidamente. — Fique quieto — acrescentou para o excitado cãozinho que latia aos seus pés. Entretanto, como o animal continuasse a latir, Beryl desculpou-se no telefone: — Espere um minuto. Preciso fazer este bichinho calar a boca.

     Depois, estouvadamente, ela soltou o fone, pegou o cãozinho no colo, levou-o para o quarto, fechou a porta e só então, ofegante, retomou a ligação.

     — Alô, Denis, você está-me ouvindo? — Percebeu então que fizera outra tolice. Não era Denis. Ela dera uma demonstração de sua vida privada a ninguém menos do que seu próprio chefe! Procurou apressadamente corrigir o mal-entendido. — Oh, queira desculpar-me. É o Sr. Hemingway quem está falando?

     Não houve resposta imediata, apenas uma pausa e o ruído do telefone; depois uma voz meio abafada repetindo “alô”, como se não a tivesse ouvido.

     — Alô! Agora, sim. É a Srta. Blackwood? Redman falando.

     — Quem? — exclamou ela, tão surpresa que chegou a esquecer seu desgosto. — Ah! É o Sr. Redman? Engraçado! A princípio me pareceu que fosse o Sr. Hemingway.

     Veio do outro lado da linha um risinho amável.

     — É mesmo? Desculpe se a estou incomodando. Pareceu-me que estava com visitas.

     — Oh, não. Está tudo bem — respondeu Beryl imediatamente. — Estou sozinha... Mas — acrescentou com uma incerteza que surpreendeu a si mesma — é mesmo Sr. Redman quem está falando?

   — Naturalmente. Por que pergunta?

     — É que sua voz me pareceu diferente.

     — Estou um pouco gripado.

     Realmente, pela manhã ela lhe tinha dado um comprimido, quando o vira fungando. Apesar de tudo, Beryl não podia evitar uma estranha impressão de que as inflexões daquela voz não pareciam naturais. Enfim, uma gripe é bem capaz de alterar o tom normal.

     Tudo isso passou rapidamente pela cabeça dela, enquanto ouvia Redman, um Redman muito menos patronal do que de costume. Talvez, imaginou Beryl, fosse porque estivesse constrangido por ter interrompido o tempo de folga da secretária com seu inoportuno telefonema.

     — Alô! Está-me escutando, Srta. Blackwood? Sinto muito incomodá-la a esta hora da noite, mas acabei de falar com Hemingway e soube das informações que você nos forneceu.

     — O quê? — estranhou ela, realmente espantada. A necessidade de guardar segredo fora tão recomendada na entrevista poucas horas antes, que ela se recusava a acreditar que Hemingway tivesse contado tudo a Redman.

     — Como é que o senhor sabe? Foi por intermédio do Sr. Hemingway?

     — Foi. Ele me disse que você relatara uma conversa telefônica que tivera com Johnson.

     — Mas o Sr. Hemingway me recomendou muito que não contasse nada a ninguém.

     — É verdade, mas ele naturalmente resolveu discutir o caso comigo — respondeu a voz, um tanto irritada, seguindo-se um acesso de tosse, antes que as palavras tornassem a ser ouvidas. — Agora, quero pedir-lhe um favor, Srta. Blackwood. Bem sei que deve estar cansada de tratar deste assunto, mas será que não se importa de discutir uns pequenos detalhes comigo? Queria falar-lhe a respeito da conversa que você teve com Johnson.

     — Mas já contei ao Sr. Hemingway tudo o que eu sabia — protestou ela.

     — Eu sei, mas me ocorreu que, dadas as circunstâncias...

     — Que circunstâncias? — perguntou Beryl, irritada.

     — Ora, minha cara Srta. Blackwood, não vai-me dizer que o pobre Johnson não conversou com você um bocado de tempo.

     — Bem, posso repetir para o senhor tudo o que sei — disse ela, constrangida — mas, honestamente, acho que não falta contar mais nada.

     — Estou certo de que você acha isso mesmo.

     — É claro que acho.

     — Srta. Blackwood, você se lembra daquele brinquedo do dedal escondido, no seu tempo de criança?

     — O que o senhor quer dizer com isso?

     — Minha cara Srta. Blackwood, quando você estivesse certa de que o dedal não se encontrava escondido em determinado lugar, então, se fosse esperta, procuraria novamente no mesmo lugar. Agora, ouça esta...

     — O quê?

     — Estive interrogando a telefonista. Não é verdade que Johnson conversou com você durante uns três minutos, antes que a ligação fosse transferida para Hemingway?

     Beryl, embora mais aborrecida do que nunca, não pôde esconder certa admiração por aquela insistência.

     — O senhor é ainda mais detalhista que o Sr. Hemingway.

     — Ah! Ele também observou isso? Não pense que a estou repreendendo. Foi um ato perfeitamente natural. Entretanto, me ocorreu que, embora você tivesse relatado ao Sr. Hemingway a essência da conversa, provavelmente não desceu ao detalhe de repetir exatamente as palavras empregadas por Johnson. Será que você pode tentar recordar o que ele disse? Suas próprias palavras, ainda que não pareçam importantes, talvez pudessem ajudar.

     — Ele não falou muito — desculpou-se a moça, com relutância.

     — Não faz mal. Tente repetir tudo o que ele disse.

     Beryl manteve-se em silêncio, hesitando. A voz insistiu, no outro lado da linha:

     — E então?

     — Bem... A ligação não estava muito boa. Ele começou dizendo que estava falando de uma casa de campo e que obtivera um verdadeiro furo jornalístico; que havia encontrado a arma do crime e achava que podia identificá-la. Mas o senhor já sabe de tudo isso por intermédio do Sr. Hemingway.

     — Não faça caso. Quero a suo versão. De que modo ele pretendia identificar a arma, quero dizer, o grampo chinês?

     — Achava que tinha visto um igual na vitrine de uma loja.

     — Onde foi que ele disse que era a loja?

     Novamente a voz se alterou e novamente a moça teve a impressão de que havia algo estranho, mas respondeu:

     — Bem... A ligação continuava péssima, mas me pareceu que ele descrevia uma lojinha de bugigangas na Broad Street.

     — Você tem certeza quanto ao nome da rua?

     — Certeza absoluta.

     — Por que absoluta?

     — Porque ele soletrou.

     Seguiu-se um longo silêncio. Por mais que Beryl insistisse em dizer “alô”, não obtinha qualquer resposta. O telefone se mantinha mudo.

     Ele ligará de novo, se estiver interessado, pensou ela filosoficamente. O problema é dele e não vou me incomodar mais com isso.

     Dirigiu-se para a cozinha e, ao passar pela porta do quarto, libertou o cão, que ainda estava preso.

     — Já são 10 horas — murmurou ela. — Ele não virá mais. Ou quem sabe ainda venha... É melhor eu preparar o jantar.

     Tirou os ingredientes da geladeira, cortou uns pedaços de presunto, quebrou alguns ovos, acrescentou sal e pimenta e deixou a omelete pronta para ir ao fogo, tão logo ele chegasse. Durante todo esse tempo, ela não tirou os olhos do relógio. Não deixava de ser curioso que Redman não tivesse ligado outra vez. Curioso também que a ligação sempre caísse quando mais se precisava dela. Vinte e cinco para as onze. Não, Denis certamente não viria mais. Era melhor ir para a cama.

     Decepcionada — e ainda mais por não poder conter a decepção — Beryl estava começando a guardar a louça do jantar, não utilizada, quando a campainha da porta tocou Não a do telefone, como ela a princípio pensara, pois sempre confundia as duas. Não, era a bendita campainha da porta do apartamento.

     Alegremente, o cãozinho correu na frente dela até a pequena saleta de entrada, mas, enquanto a moça se apressava em correr o ferrolho, o animalzinho começou a rosnar e a latir em direção ao corredor escuro. Beryl ficou imóvel na porta. Não havia ninguém.

     Resolveu então percorrer o corredor até a escada, chamando:

     — É você, Denis? Quem está aí?

     Como uma espécie de resposta, houve um ruído na curva da escada acima da cabeça dela, e um latido mais forte do cão. Ao tentar fugir, uma escuridão a envolveu. Beryl ainda tentou com a mão afastar aquela nuvem que a sufocava mas sentiu um pano tapando-lhe o rosto, um clarão dentro da cabeça e, depois, a escuridão completa.

     O cãozinho, entretanto, percebera que havia algo errado, que seu universo se alterara. Antes de ser incluído no paraíso do apartamento de Beryl, com refeições regulares, exercícios incertos e um montão de guloseimas, tivera uma vida muito dura. Tendo sido abandonado, antes de ser exposto na loja de vendas de animais, conheceu todas as humilhações dos pontapés e das lutas na escuridão, em busca de um osso. Ao receber um violento chute, na escada, recordou-se dos velhos tempos e desceu os degraus aos saltos, escondendo-se no saguão da entrada, até que o susto desaparecesse. Mas o tempo passava e nenhuma voz familiar o chamava de volta no alto da escada. Ao invés disso, ouviu uns passos e reconheceu, pelo ruído, a pesada bota que lhe dera o pontapé. “Não vou deixar que aconteça outra vez”, pensou o cãozinho. Dominado pelo terror, saiu correndo para dentro da noite, desviando-se das pernas dos transeuntes e das rodas dos carros, enfrentando o nevoeiro, a umidade, o frio, sempre correndo, até que, de súbito, farejou a bênção de um cheiro conhecido. O excitado animalzinho começou a pular em torno das pernas da criatura que, no seu mundo, ocupava o lugar logo abaixo do de sua dona, o homem cujos sapatos ele tão bem conhecia, que o chamava pelo nome e lhe pegava no colo.

     Oliver, caminhando apressadamente, quis desviar-se do animal, mas logo o reconheceu. Apreensivo, procurou uma explicação para aquele fato inusitado: o cãozinho de Beryl encontrar-se tão longe do apartamento. Estaria ela ali por perto? Teria sido por isso que o telefone dela não atendera, quando ele chamara, 10 minutos antes? Realmente, se Beryl andava na rua, justamente na hora em que prometera esperá-lo em casa, tratava-se de uma grave falta de consideração.

     Apressou-se até ver, tranqüilizado, a luz acesa, como de costume, na janela da sala de estar do segundo pavimento. Beryl então estava em casa. Oliver subiu as escadas correndo, com o cãozinho em seus calcanhares. Entretanto, embora a luz estivesse acesa e a campainha tocasse ruidosamente, Beryl não viera logo abrir a porta. Ele tentou ainda, com o auxilio do isqueiro, achar o aviso costumeiro “Voltarei em cinco minutos”, pregado na fechadura. Finalmente, levantou a tampa da fresta da caixa da correspondência e começou a chamar:

     — Beryl! Sou eu, Beryl! Onde está você? Beryl! Aconteceu alguma coisa?

     Nenhuma resposta. O cãozinho gania e Oliver, mais preocupado do que desejava parecer, ajoelhou-se para ver se conseguia divisar alguma coisa através da fresta. Seu pé escorregou, fazendo com que ele se apoiasse no chão, sentindo-o estranhamente úmido. Hesitou ainda um instante; depois, com um gesto de impaciência — recomendara tanto a Beryl que reclamasse do porteiro a lâmpada queimada! — acendeu ainda uma vez o isqueiro. Horrorizado, percebeu por que havia escorregado; pisara em uma poça de sangue e sua mão estava manchada de vermelho.

     Ele permaneceu imóvel por um instante, dominado por aquela sensação que uma mulher sofre, ao ver o filho à beira de um precipício. Depois, como seu instinto avisou que não adiantaria tentar arrombar a porta, correu escada abaixo, sempre seguido do cãozinho, e alcançou a rua, onde seu subconsciente havia notado uma barraca, na calçada do outro lado, 10 metros adiante, onde operários estavam, com arames e maçaricos, soldando fios telefônicos.

     Apanhando um pé-de-cabra e gritando que chamassem a polícia, Oliver tornou a atravessar a rua e, subindo rapidamente as escadas, com poucos golpes arrombou a porta e conseguiu entrar.

     Foi um choque encontrar vazia a sala fartamente iluminada, até que se lembrou do quarto; este se encontrava às escuras e, procurando o interruptor com mãos trêmulas, ele continuava chamando:

     — Beryl! Onde está você?

     Uma vez mais, porém, não encontrou sinais da moça. Restava apenas a cozinha e certamente ela não poderia estar vazia, embora mergulhada em silêncio. É que um forte cheiro de gás inundava o compartimento. Beryl estava deitada em frente ao pequeno forno, o queixo apoiado na grade, desmaiada, as mãos crispadas e o rosto manchado de graxa.

     Oliver teve tempo apenas para arrastá-la, livrando-a da ação direta do gás. Já soavam passos e se ouviam vozes na saia; a polícia e o vigia noturno acabavam de chegar.

 

                   AS DESCOBERTAS DO INSPETOR SMART

     O repórter Oliver ficou gelado de pavor, quando encontrou Beryl Blackwood inconsciente, com a cabeça dentro do forno na cozinha de seu apartamento. Sem hesitar sequer por um segundo, deitou no chão a garota desmaiada e começou a aplicar-lhe vigorosamente respiração artificial, enquanto gritava para o policial que telefonasse primeiro para um médico, depois para a Scotland Yard.

     Meia hora depois o Inspetor Smart chegava ao apartamento. Beryl acabara de recobrar os sentidos e já podia, embora com alguma dificuldade, relatar sua história. Smart percebeu logo que se tratava de uma bem planejada tentativa de assassinato. O crime não fora completado devido apenas a um desses extraordinários descuidos que os criminosos parece que não podem evitar. O assaltante esquecera de colocar uma moeda no medidor, de modo que o gás foi cortado no momento exato!

     Smart deu, a seguir, dois telefonemas: um para a Scotland Yard, chamando técnicos em impressões digitais para que examinassem os objetos possivelmente tocados pelo frustrado assassino; outro, para a central telefônica local, procurando descobrir quem telefonara para Beryl naquela noite. Depois, correu para o Morning Star.

     Já se registrara um considerável progresso nas investigações, desde o dia em que o Inspetor-Chefe Bradford presidira a reunião da qual resultaram, como suspeitos, Tracey, Fisher, Potts, Redman e Oliver. Três deles estavam agora eliminados da relação. Na noite do crime de Vitória, Fisher, conforme provara, estivera trabalhando durante três horas, das nove à meia-noite; Oliver fora visto em Oxford Circus às 10 horas. Na noite do crime de Jumbles, Potts se encontrava em Londres. Fora aceita a premissa de que a inocência em um dos crimes implicava inocência no outro; assim, os suspeitos ficaram reduzidos a Tracey e Redman. A seguir, aceitou-se que Tracey, como tal, não tinha existência independente, mas que alguém se disfarçava, usando esse nome. A sugestão do chefe, de que Tracey pudesse ser realmente Redman, ainda estava de pé, pois os que haviam visto Tracey não foram capazes de assegurar se se tratava ou não de Redman. Era verdade que a polícia não conseguira provar que Redman fora o comprador do grampo na loja de Broad Street. A velha senhora proprietária da loja afirmou com segurança que nunca vira antes aquele homem. Smart, entretanto, continuava impressionado com as declarações de Beryl e, quando ouviu o nome de Redman ligado ao ataque à moça, achou que o caso estava chegando ao fim.

     Ao chegar na redação do Morning Star, viu suas esperanças desmoronarem. Havia provas irrefutáveis de que Redman não saíra do edifício durante toda a noite. Essa constatação acabou com a alegria de Smart. Se Redman era inocente no caso do ataque a Beryl, quem era então o culpado?

     Smart lembrou-se então de que Beryl dissera que a voz do desconhecido se parecia com a de Hemingway. Será que ela estava certa? Smart ficou desanimado ao pensar na confusão que ele iria criar. Se Hemingway tivesse comprado o grampo e planejado o ataque a Beryl para evitar que o fato fosse conhecido, então Hemingway deveria ser o homem procurado, o responsável pelos dois crimes, o sujeito que usava o nome de Tracey!

     A seguir, Smart recordou um detalhe que o fez pensar ainda mais furiosamente. Naquele mesmo dia, Hemingway obtivera uma informação que, se ele fosse realmente o criminoso, deveria tê-lo deixado em pânico. É que ele ficara sabendo dos detalhes que Johnson contara a Beryl, relativamente ao grampo de Broad Street. Ora, se ele tivesse de fato comprado um grampo na loja de Broad Street, teria de concluir que a informação de Beryl, se conhecida, acabaria com ele. Seria levado até a loja e identificado como o comprador. Seria também levado a Jumbles, onde alguém o reconheceria como sendo Tracey. Assim, era indispensável silenciar Beryl. Entretanto, Smart não demorou em reconhecer que toda esta especulação nada valia. O homem tinha um álibi. Hemingway era inocente pelo menos do assassinato da Estação Vitória, pois não se encontrava lá à hora do crime.

     Smart voltou para o apartamento de Beryl, a fim de encontrar-se com o Inspetor-Chefe Bradford, que acabara de chegar.

     — O que você conseguiu, Smart? — perguntou o chefe.

     Smart fez o relato, mencionando suas dúvidas. Para seu espanto, o chefe se mostrou entusiasmado.

     — Você resolveu tudo! Hemingway é certamente o nosso homem!

     — Mas ele tem um álibi, senhor. Indestrutível.

     — Olhe aqui, Smart — respondeu o chefe, lentamente — é claro que foi Hemingway, pois, com Redman excluído, não há mais ninguém que pudesse ser. Hemingway está inocente do ataque a Beryl?

     — Ainda não verifiquei, senhor.

     — Pois então verifique e preste atenção no que estou lhe dizendo. Se Hemingway não provar que não atacou Beryl, pode estar certo de que ele é culpado dos dois assassinatos. Quanto ao tal álibi — acrescentou o chefe, sacudindo os ombros — ele tapeou você. Tente outra vez.

     Smart não pensava assim. Estava certo de que não fora enganado quanto ao álibi. O chefe tinha cada idéia! Enfim, não teve outra solução, a não ser tomar um táxi até a casa de Hemingway, em Hampstead.

     — Boa-noite, inspetor. Qual é o problema agora? — saudou-o Hemingway.

     — Ainda o mesmo, senhor. O chefe mandou que eu viesse visitá-lo. Ele acha que o senhor deveria saber que a tentativa de assassinato de Beryl Blackwood fracassou Ela vai ficar boa.

     Fora um tiro dado às escuras. Smart sorria amavelmente, mas seus olhos agudos não se afastaram do rosto do outro e perceberam que o alvo fora atingido. Hemingway recuou um passo, como se tivesse sido atingido por um golpe, e o sangue lhe fugiu completamente do rosto. Depois de um instante, conseguiu recobrar-se.

     — A tentativa de assassinato de Beryl Blackwood? — repetiu, com voz um tanto trêmula. — Santo Deus, Inspetor! Isso é novidade para mim. Que ataque?

     Smart se encheu de desculpas.

     — Ah, o senhor não sabia? Pensei que tivesse sido avisado logo do escritório. — Começou a dar detalhes. — Felizmente há uma pista. A Srta. Blackwood tinha muitos admiradores e um deles, que ela recusara, foi visto nas proximidades de seu apartamento à hora do crime.

     Hemingway estava positivamente intrigado. Smart, entretanto, se mostrava tão seguro da culpabilidade do rejeitado admirador, que o editor começou a voltar à calma. Quando, afinal, Smart se despediu, os modos de Hemingway eram praticamente normais.

     Do primeiro telefone que encontrou, Smart fez seu relatório ao chefe.

     — Ótimo. Olho nele — recomendou Bradford. — Fique vigiando a casa até que chegue aí o substituto que vou mandar. Depois, vá reexaminar aquele álibi.

     Com um suspiro de resignação Smart se dispôs a obedecer. Era uma tolice pôr em dúvida o álibi. Em pensamento, repassou uma a uma todas as providências que havia tomado para testá-lo, nada mais conseguindo do que convencer-se de sua veracidade.

     Começara com a reconstrução do crime. Com um automóvel veloz e acompanhado de um sargento, fora até a Estação Vitória, aproximando-se da cabine telefônica às 10:04, hora do crime. O sargento então atirou-se no chão da cabine e Smart puxou rapidamente o corpo para dentro, revistou-lhe os bolsos, pendurou o cartão de aviso e fechou a porta. Caminhando não muito apressadamente para não despertar atenção, voltou para o carro e partiu. Em Hampstead, estacionou o automóvel em uma rua transversal — pois Smart não acreditava que Hemingway fosse deixar o carro em frente á casa — e correu até a porta. Eram precisamente 10:23. Somando dois minutos para que Hemingway abrisse a porta, tirasse o sobretudo e chegasse à sala de estar, o total daria 10:25. Assim, não havia hipótese possível de que o homem fosse capaz de estar de volta às 10:10.

     Smart passou então a verificar a hora em que Hemingway chegara em casa, vindo do escritório. Estava um pouco atrasado para o jantar às 8:15 e recomendou aos outros que fossem ocupando seus lugares à mesa, pois ele não demoraria. Depois do jantar, dera uma saída, tendo regressado às 10:10 e imediatamente ligado o rádio. Era um entusiasta dos aperfeiçoamentos dos aparelhos e gostava de verificar-lhes as válvulas e circuitos. Estava sendo irradiado um concerto sinfônico, mas o som se mostrava defeituoso, fazendo com que Hemingway fosse buscar algumas ferramentas para ajustar as conexões. Logo depois que ele deixou a sala, ouviu-se o sinal de 10:15 do sistema de hora certa da BBC. Hemingway retornou e deu início a seu trabalho mas, infelizmente, uma válvula escapou de suas mãos e quebrou-se, impedindo o funcionamento do aparelho.

     Tudo isso foi testemunhado pela Sra. Hemingway, pela empregada e pela sogra de Hemingway, que estava de visita. O incidente foi relembrado, porque a velha senhora ficara muito pesarosa por não poder ouvir o resto da sinfonia.

     Smart não tinha dúvida de que as senhoras estavam dizendo a verdade, não apenas porque se mantinham serenas mas também porque ignoravam de todo qual o objetivo das perguntas. Mesmo assim, antes de aceitar o álibi, Smart colheu numerosos fatos que o confirmavam. Primeiro, o relógio da sala estava certo com os sinais da BBC. Segundo, os relógios do saguão e da sala bateram horas ao mesmo tempo, não apenas naquela noite, mas em todas as demais, antes e depois. Terceiro, os relógios estavam certos porque a Sra. Hemingway, que fora ao centro naquele dia e no dia seguinte, havia, nas duas ocasiões, controlado a hora por intermédio de seu relógio de pulso. Quarto, não havia possibilidade de confundir aquela noite com outra, pois fora a da festa do Prefeito. E quinto, naquela noite o programa regional fora de música sinfônica até às 10:15.

     E agora, depois de todas estas provas cumulativas, o Inspetor-Chefe insinuava que Smart fora tapeado com um falso álibi. Pois não fora e lá estavam as provas para quem quisesse ver.

     Durante algumas horas, Smart se sentiu como um leão preso em uma jaula. O que mais poderia fazer, que já não tivesse feito? Fora testada a mínima possibilidade de engano na longa série de investigações. O inspetor não sabia mais que novos recursos poderia utilizar.

     Ocorreu-lhe, então, que havia um detalhe que não fora verificado. Ele havia perguntado à Sra. Hemingway e à empregada qual a música que estava sendo irradiada naquela noite, mas elas não souberam informar. Julgando que tal detalhe era sem importância, Smart deixou-o de lado. Agora, porém, resolveu fazer a mesma pergunta à idosa Sra. Kent, sogra de Hemingway. Como ficara decepcionada pelo fato de a música ter sido interrompida, ela provavelmente sabia qual era. Uma hora depois Smart batia na porta da casa dela em Surbiton, para onde já havia regressado.

     A Sra. Kent não teve dúvidas em responder à pergunta. Tratava-se da Quinta Sinfonia, de Beethoven. E mais: ela sabia exatamente a parte que fora tocada durante os cinco minutos que mediaram entre o momento em que o rádio foi ligado e o acidente com a válvula. A velha senhora se lembrava claramente de ter ouvido a longa nota sustentada entre o terceiro e o quarto movimentos. Acontecera justamente no momento em que a irradiação fora interrompida.

    A visita seguinte feita por Smart foi à sede da BBC, em Savoy Hill, onde foi atendido por um atencioso funcionário do Departamento de Música.

     — Gostaria de saber — perguntou o inspetor — a que horas foi irradiada a Quinta Sinfonia, de Beethoven, na noite de nove de novembro?

     O jovem funcionário consultou alguns registros.

     — Desculpe, mas essa sinfonia não constou de nossos programas da noite de nove.

     O coração de Smart bateu mais aceleradamente.

     — Será que foi irradiada de qualquer outra estação, na mesma noite?

     Novas pesquisas nos registros e a informação segara:

     — Na Rádio Paris. Uma noite de Beethoven. O último número foi precisamente a Quinta Sinfonia. Acho que é o que o senhor procurava, inspetor.

     Um calafrio percorreu a espinha de Smart, mas ele insistiu:

     — Seria possível saber-se a que horas começou a irradiação?

     — Aqui nos meus registros não possuo esse dado, mas é fácil perguntar a Paris, se o senhor pagar a ligação.

     — Com muito prazer.

     Menos de uma hora depois Smart recebia a informação desejada. A sinfonia começara às 10:10.

     O calafrio já não era mais de dúvida mas de confiante certeza. Com os dentes cerrados, Smart prosseguiu em suas investigações. Depois de muitos apelos, conseguiu que um dos programadores da BBC rodasse o disco da sinfonia, desde o começo até a nota interrompida. O tempo foi precisamente de 20 minutos

     A conclusão foi que a interrupção ocorrera na noite do crime exatamente às 10:30. Se a Sra. Kent não estava enganada, fora um programa de Paris — e não o da BBC — que estava sendo ouvido pela família Hemingway; além disso, a hora da interrupção fora às 10:30 e não às 10:15.

     Smart assobiou baixinho. Se Hemingway chegou em casa cinco minutos antes de a música ter sido interrompida, então seriam 10:25. Nesse caso, o álibi fora forjado e ele poderia ter assassinado Johnson na Estação Vitória!

     Entretanto, havia ainda os relógios e aquele maldito sinal de hora certa às 10:15. Smart voltou à casa de Hemingway e deu início a novas investigações. Primeiro, se concentrou nos relógios e, após rigorosos interrogatórios, conseguiu duas descobertas. A primeira foi que, na noite do crime da Estação Vitória, o relógio da cozinha parara misteriosamente durante o jantar; a segunda: à hora de deitar-se, a empregada verificou que seu relógio tinha rebentado a corda. Tanto ela como a Sra. Hemingway somente usavam seus relógios de pulso quando saíam e naquela noite, como havia a visita da Sra. Kent, tinham permanecido em casa. Assim, os dois relógios permaneceram nos respectivos quartos durante o jantar.

     Smart sentou-se no gabinete de Hemingway e reexaminou o problema. Durante muito tempo não percebeu qualquer novo indício, até que se lembrou de que Hemingway se atrasara para o jantar e recomendara que a refeição fosse iniciada sem a presença dele.

     Aí então percebeu o quadro completo. No começo do jantar, toda a família estava reunida na sala. O que impediria Hemingway de atrasar todos os relógios um quarto de hora, exceto o da cozinha? Se a empregada preparasse o jantar para as 8:15 e depois descobrisse que eram apenas 8:05, a confusão estaria criada.

     Smart concluiu que, se Hemingway atrasara os relógios 15 minutos, teria logicamente de acertá-los mais tarde. Mas quando? Tinha de ser no meio da noite. Entretanto, ele não poderia correr o risco de ir ao quarto da empregada, àquela hora. A solução seria rebentar-lhe a corda.

     Restava ainda o exasperante detalhe do sinal da hora certa.

     As duas senhoras afirmavam que Hemingway acabara de deixar a sala quando soou o sinal marcando 10:15. Hemingway deveria estar no saguão naquele momento. Smart, então, concentrou suas buscas no pequeno compartimento. E foi assim que compreendeu tudo.

     Pendurado no cabide dos chapéus estava um desses chicotinhos de criança, em cujo cabo há um apito. Smart soprou-o. O som era perfeitamente idêntico ao do sinal de hora certa da BBC! Seis apitos no lado de fora da porta aberta da sala faziam o mesmo efeito.

      Smart compreendeu então por que Hemingway deixara quebrar-se a válvula. Era preciso esconder o fato de que não haveria o noticiário costumeiro, após o sinal da hora certa.

     A verdade final se apresentava agora claramente. Nem queria pensar nas observações irônicas de seu chefe! Todavia, os comentários de Bradford, depois de ouvir o relato de Smart, foram de outra ordem:

     — Está bem. Então foi assim que aconteceu. Entretanto você não tem provas, Mexa-se e arranje algumas que possam ser apresentadas no tribunal.

     Smart, ressentido e humilhado, foi tratar de conseguir provas.

 

                   O FURO JORNALÍSTICO FINAL

     O Inspetor Smart encontrou Oliver no corredor da nova Scotland Yard.

     — Alô! — disse o repórter. — Justamente o homem que eu estava procurando. Tenho boas novas para o senhor. A respeito de Hemingway. Descobri que ele era Tracey.

     O Inspetor segurou Oliver pelo braço, amavelmente.

     — Vamos entrar, por favor.

     — Eu agora pertenço ao corpo redatorial do Daily Courier. não sei se o senhor sabe — informou Oliver, logo que os dois entraram no gabinete de Smart. — Tive de pedir demissão, quando soube que as suspeitas estavam recaindo sobre Redman. Não podia continuar trabalhando lá, tratando de um crime em que o acusado era o meu próprio chefe, entende? É um negócio meio esquisito. Entretanto — acrescentou o repórter — depois daquele ataque covarde na noite passada, pouco me importa quem sofrerá as conseqüências. E, apesar de tudo, acho que escrevi uma boa reportagem — concluiu com orgulho.

     — É, eu li — disse o Inspetor. Espero que a Srta. Blackwood esteja passando bem.

     — Muito bem — replicou Oliver. — E a propósito, estamos pensando em nos casar no Ano-Novo.

     O Inspetor apresentou suas congratulações, mas não deixou de perguntar:

     — E a respeito de Hemingway?

     — Pois é. Quando descobrimos que o agressor da Srta. Blackwood não podia ser Redman, comecei a pensar na possibilidade de o homem ser Hemingway. E que ele fosse também o misterioso viajante que trabalhava além de Charing Cross. Afinal, ele não tinha álibi para a noite do crime de Jumbles.

     — Não tinha — confirmou Smart. — Sua declaração foi que havia ido ao cinema e voltado para casa às 11 da noite. Não conseguimos provar nem uma coisa nem outra. Todavia, se ele fosse Tracey, teríamos como prova os outros fins de semana que ele passou no bangalô. Rebuscamos tudo isso e concluímos que, quando ele não ficava em casa, ia jogar golfe com um amigo chamado Pyecraft, que mora perto de Guildford. Pyecraft confirmou tudo direitinho. Até costumava ir buscar Hemingway em seu carro. A Sra. Hemingway estava bem a par de tudo.

     — Tudo muito bonito — replicou Oliver. — Mas o senhor não granjeou a confiança de Pyecraft. Eu consegui que ele batesse com a língua nos dentes. O obsequioso Pyecraft vinha já há algum tempo cobrindo os pecadilhos de Hemingway. Seu trabalho era apanhar Hemingway nos sábados pela manhã, levá-lo para sua casa, dar-lhe almoço e jogar com ele uma partida de golfe. Logo depois, levá-lo à estação, onde ele pegava um trem cujo destino Pyecraft nunca procurou saber. Se havia um telefonema da mulher desconfiada, a resposta era que o Sr. Hemingway estava em companhia do Sr. Pyecraft, ausente no momento, mas que chamaria tão logo regressasse. Hemingway, por sua vez, telefonava regularmente todas as noites em que se ausentava. Dizia que estava falando da casa de Pyecraft. Tipo do marido atencioso, não acha?

     — Hum — resmungou Smart, francamente aborrecido.

     — Não creio que Pyecraft seja um cúmplice — continuou Oliver. — Apenas um salafrário. Declarou-me que jamais procurou saber onde Hemingway se metia nos sábados, apenas que tinha um caso amoroso em algum lugar isolado. Parece que certa vez Hemingway confidenciou-lhe que conhecera a garota em Hyde Park e a impressão de Pyecraft era que seu amigo estava desesperadamente apaixonado pela moça.

     — Entendo. Isso elimina alguns pontos obscuros. Mas se Hemingway era realmente Tracey, o que você acha que aconteceu exatamente naquele bangalô, na noite do assassinato? Aqueles dois grampos, por exemplo... Como é que eles apareceram?

     — Imagino que as coisas se tenham passado assim — replicou Oliver. — Hemingway “descobriu” a garota, como disse Pyecraft, e Geraldine percebeu as vantagens que podia usufruir. Sem dúvida, uma casa própria, perto de Brighton, com uma mesada regular e uma empregada para ajudar na cozinha, era bem melhor do que sua situação de vendedora. Todavia, Jumbles não é Brighton, muito longe disso, e o depoimento da empregada o confirma; em breve Geraldine se sentiu farta de tanta solidão. Hemingway, naturalmente, somente podia estar lá esporadicamente e nos fins de semana, de modo que, quando o gato se encontrava ausente, o ratinho arranjava umas brincadeiras com nosso amigo Fisher. Quanto aos grampos... Hemingway comprou o primeiro em Broad Street...

     — Espere um minuto — interrompeu Smart. — Por que foi que ele disse chamar-se Dedham ou Deadman, quando fez a compra?

     — Um simples reflexo de precaução, acho eu — replicou Oliver. — De repente, a mulher da loja perguntou qual o nome dele e ele deu o primeiro que lhe veio à cabeça. Desconfio até que ele disse Redman, talvez mesmo com a idéia de aproveitar a sua ligeira semelhança com Redman como uma espécie de cobertura para suas atividades, no caso de alguém suspeitar de alguma ligação entre o bangalô de Jumbles e o Morning Star. Do que tenho certeza é que, quando ele ia a Jumbles, virava as pontas de seus bigodes para baixo, do jeito que Redman usa, ao invés de conservá-las espetadas para cima. Pyecraft achava muita graça nisso e dizia que esse simples detalhe alterava bastante sua fisionomia. Os óculos de aros de ouro também faziam parte da imagem de Redman. Hemingway costumava usar pincenê.

     — Segundo entendi — disse Smart — ele compra o grampo em Broad Street e dá de presente a Geraldine. Quando ficamos sabendo da história desse grampo, interrogamos Fisher a respeito. Ele declara que um dia viu o grampo no bangalô e interpelou Geraldine. Parece que a moça não dera muita importância ao presente, até que ele lhe disse que era uma jóia valiosa e devia ser usada aos pares. Ela então ficou louca para ter o segundo grampo e Fisher prometeu que iria arranjá-lo. Bem, na sexta-feira, 6 de novembro, ele descobre um grampo semelhante na Casa Araby, em Bond Street, e o envia pelo correio para Geraldine. Junto com o presente foi uma carta, sugerindo uma visita na noite seguinte, como uma espécie de recompensa por todo o trabalho que ele tivera. Agora, preste atenção. Hemingway... isto é, Tracey, não estava programado para vir naquele sábado, de modo que Fisher pensou que tudo ficara arrumado.

     — Por que Hemingway avisou que não viria? — perguntou Oliver.

     — Na minha opinião — respondeu Smart — ele estava começando a desconfiar da ligação de Geraldine com seu amigo Fisher e resolveu aparecer de repente, para certificar-se do que estava acontecendo.

     — Isso é muito provável — concordou Oliver. — Então ele chega, digamos, às 7:30 ou 8:00 da noite e encontra a moça toda enfeitada com seu par de grampos, esperando o generoso amigo Fisher.

     — Precisamente. E percebe que ela está nervosa e nada contente por vê-lo. Hemingway pergunta o que há com ela e então repara no segundo grampo e pergunta quem foi que lhe deu a jóia. Ela confessa que o generoso e rico Sr. Fisher comprou para ela em Bond Street. Então houve a natural explosão.

     — Estou vendo a cena — disse Oliver. — Hemingway arranca dos cabelos de Geraldine o grampo que Fisher lhe dera e o crava no coração dela.

     — Não, não — protesta Smart — O grampo que Johnson encontrou foi o da Broad Street. Ele o reconheceu.

     — É verdade. Sei como foi. Hemingway tomou o grampo de Geraldine e disse que iria devolvê-lo ao amiguinho dela. Então a moça atirou-lhe no rosto o grampo que ele lhe dera e teve uma crise de nervos, dizendo que nunca mais queria ver de novo aquele presente, preferindo o ofertado pelo Sr. Fisher. Foi então que, desesperado, Hemingway feriu-a com o grampo... o próprio, comprado por ele, atingindo-lhe o coração.

     — E há mais — acrescentou Smart. — Hemingway perde a cabeça e sai correndo, com o grampo de Broad Street na mão e o de Fisher no bolso.

     — Sim... é possível... E então se dá conta do que está fazendo e esconde o grampo de Broad Street na árvore onde mais tarde Johnson o encontra.

     — Formidável! — exclamou Smart. — Tudo se encaixa direitinho. Depois, a primeira noticia que ele tem é que Fisher encontrou o corpo de Geraldine e é considerado suspeito de tê-la assassinado. Nada mais conveniente para Hemingway. Mas então, na noite de segunda-feira, acontece o telefonema de Johnson, mencionando o grampo de Broad Street.

     Oliver bateu com a mão espalmada na mesa.

     — Mas está claro! — exclamou. — E agora compreendo uma coisa que sempre me intrigou. Foi por isso que Hemingway fez questão de receber pessoalmente o telefonema de Johnson, ao invés de fazê-lo ditar para o estenógrafo, como de costume. É que ele queria alterar Broad Street para Bond Street, a fim de incriminar Fisher. Foi por isso também que ele fez todo aquele espalhafato, relativo à chegada de Johnson com sua reportagem, em lugar de encaminhá-la diretamente para a redação e para a tipografia.

     — Acho que você tem razão — comentou o Inspetor.

     — Bem, nesse caso, Hemingway deve ter preparado sua manobra antes de ter deixado o escritório. Foi em casa, apanhou o grampo de Bond Street, o grampo de Fisher, escreveu o aviso NÃO FUNCIONA para a cabine e se dirigiu para a Estação Vitória, a fim de encontrar-se com Johnson. O que ele teria dito, quando chegou lá?

     — Deve ter pedido para ver a arma — sugeriu Oliver — e conversado sobre a reportagem, a manchete, coisas assim. Depois, levou Johnson para a cabine.

     — Sob que pretexto?

     — Ora, poderia ter sugerido um telefonema para a loja de Broad Street, perguntando se a proprietária estava disposta a reconhecer o grampo. Empurrou Johnson para dentro e paft! Um único golpe e adeus Johnson e sua prova. Repare que foi utilizado não o grampo de Broad Street, mas o de Bond Street, o grampo de Fisher, que foi deixado no local, adequadamente manchado de sangue e em condições de ser logo encontrado, documentando a culpabilidade de Fisher. Desse modo, tudo se encaixaria direitinho, não fosse o detalhe de a Srta. Blackwood haver recebido aquele telefonema... Devo confessar — interrompeu-se Oliver — que pensei que Hemingway tivesse um álibi para todo esse tempo que gastou para ir à Estação Vitória.

     — Eu também — admitiu Smart, constrangidamente — mas o álibi é forjado.

     Contou então a Oliver o truque do sinal da hora certa e o atraso dos relógios.

     — Essa é ótima! — exclamou o repórter. — Sensacional! Dê-me licença, mas tenho de ir imediatamente para o Courier, completar a reportagem. Eu...

     — Não pode fazer isso, Sr. Oliver. Estou seguindo para Jumbles, para trazer Gladys Sharp; se ela identificar Hemingway como sendo Tracey, poderemos prendê-lo ainda esta tarde.

     Hemingway, regressando para a redação do Morning Star depois do almoço, passou os olhos, como se acostumara a fazer, pelo grupo de curiosos que se aglomeravam junto ao tabique que protegia as obras de demolição do velho edifício do Morning Star, a fim de que fosse erguida, no mesmo local, a nova e sofisticada sede do jornal. Sim, o homem estava lá. Um sujeito grandalhão, que Hemingway havia notado, nos últimos dois dias, andando por ali — realmente, desde que o nome de Redman fora mencionado em conexão com o ataque a Beryl Blackwood. Um curioso muito persistente.

     Ao entrar no edifício pela porta da frente, ele deparou com outro sujeito cujo corpanzil lhe era vagamente familiar — um camelô, empurrando um carrinho cheio de maçãs.

     Hemingway franziu o cenho. Procurara convencer-se de que toda aquela vigilância era dirigida contra Redman, mas sofria agora a desagradável sensação de estar sendo vigiado durante toda a manhã, tanto em sua casa em Hampstead como durante o percurso pelo metrô.

     Tomou o elevador para seu gabinete mas, ao invés de despachar o expediente, deixou-se ficar imaginando coisas, comportando-se de maneira muito pouco habitual. Aquele tal de Smart estivera de novo no escritório, fazendo perguntas. Felizmente, o álibi para aquela noite do assassinato de Johnson era absolutamente perfeito. Havia, porém, outras coisas.

     Com a mão direita verificou o conteúdo do bolso do paletó. Havia uma providência que ele já devia ter tomado, algo de que tinha de livrar-se. Mas onde e como? Passou os olhos pela sala. O subeditor lá estava, discutindo com o chefe da tipografia e agitando umas folhas impressas. Não havia a menor privacidade naquela sala de redação. Também era arriscado esconder qualquer coisa em Hampstead. E ele desconfiava que a polícia já obtivera um mandado de busca.

     A campainha do telefone tocou. Dois navios haviam colidido no meio do Canal da Mancha. O que mais se poderia esperar daquele nevoeiro todo? Hemingway tomou as decisões que devia e deu suas ordens mecanicamente.

     A tarde parecia escoar-se com uma lentidão enervante. Trouxeram-lhe uma taça de chá, que ele bebeu sofregamente. Houve um problema na composição da página nove. Preocupado em resolvê-lo, ele quase esqueceu suas ansiedades e, quando a campanha do telefone tocou outra vez, Hemingway atendeu naturalmente.

     — O Inspetor Smart deseja vê-lo, senhor.

     Hemingway engoliu em seco.

     — Peça-lhe que suba.

     O subeditor levantou os olhos, interrogativamente.

     — Sim — disse Hemingway com a garganta seca. — É melhor você sair, Perkins. E avise que não deveremos ser perturbados.

     Perkins saiu pela porta de vidro que ligava o escritório à sala da redação. Hemingway olhou para trás de sua escrivaninha, onde havia uma segunda porta, agora fechada, porque conduzia aos antigos escritórios, ora em processo de demolição. Hemingway dirigiu-se rapidamente para a porta, abriu-a e passou a chave para o lado de fora.

     Nesse momento, o Inspetor Smart entrava no escritório, com outra pessoa meio oculta atrás dele.

     — Como vai, Inspetor? — exclamou Hemingway espalhafatosamente. — É um inesperado prazer.

     — Boa-tarde, senhor — respondeu Smart, dando um passo para o lado e deixando visível a pessoa que o acompanhava.

     — Ora vejam só — disse esta. — Sim, não há dúvida, é o Sr. Tracey. Quase que não o reconheci por causa do bigode com as pontas viradas ao contrário.

     Hemingway hesitou, a mão procurando o bolso; depois, deu alguns passos para trás da escrivaninha.

     — Não adianta reagir, senhor — preveniu Smart — É melhor entregar-se. Assassinato em Jumbles, Sr. Hemingway, e na Estação Vitória também. Estivemos verificando aquela história da hora certa... Oh, não! Espere aí!

     Os dois homens correram para a porta de trás. A mão de Hemingway mergulhou no bolso do paletó. Houve um brilho de aço e um grito de dor. A seguir, ele abriu a porta, passou e fechou-a por fora, cortando o caminho de Smart que, com um braço escorrendo sangue levava o apito â boca e, com o outro, procurava forçar a porta.

     Hemingway correu ao longo dos corredores desertos, subiu e desceu escadas, tentando uma saída após outra. Um ruído distante atrás dele avisou-o de que a porta fora arrombada, mas ainda havia esperanças. A escada de ferro para a tipografia, depois a escavação do novo edifício. Com certeza poderia escapar por ali.

     E correu. Atravessou os escritórios agora vazios, passou para a nova sala de redação e alcançou a porta da escada de ferro. Arquejando, chegou ao topo e se deteve.

     O antigo bloco que era ligado pela escada de ferro fora demolido. O ronco do tráfego de Londres subia até ele, como se furasse o nevoeiro. Um enorme guindaste se balançava sobre sua cabeça. Sessenta metros mais abaixo, um grupo de operários ultimava a demolição.

     Hemingway ouviu alguém gritar atrás dele. Soaram passos no corredor. Ele saltou, em desespero, para o andaime. Alertado por um apito, o guindasteiro girou o enorme braço de ferro, transportando uma escada para junto do andaime. Aquela possível saída estava agora fechada. Hemingway decidiu, desesperado, enfrentar seus perseguidores mas, ao voltar-se, escorregou na prancha engraxada.

     Suas mãos se agitaram no ar durante um instante crucial. E então, tudo girou em torno dele, como uma roda perdida, enquanto o chão subia velozmente a seu encontro.

     No momento em que o Inspetor Smart, com o braço improvisadamente colocado em uma tipóia, se inclinava sobre o corpo de Hemingway, percebeu a presença de Oliver junto dele.

     — Que pena! — exclamou o Inspetor. — Lá se foi o meu caso. Justamente quando consegui a última prova que me faltava!

     Esticou o braço livre. Na palma da mão estava um punhal fino e comprido — um grampo oriental com a cabeça de uma deusa entalhada em janela verde.

     — Tem razão — disse Oliver, contemplando com um estremecimento o corpo mutilado de Hemingway. Entretanto, o instinto profissional fez-se sentir. — Tem razão, mas veja só, já posso publicar minha reportagem!

     O chefe da tipografia do Daily Courier vigiava, do alto da galeria, a preparação do serviço de suas máquinas. As páginas externas, ainda quentes da impressão, tinham sido retiradas dos cilindros, colocadas em pilha, prontas para a composição dos cadernos. Eram 11 horas. Ele levantou a mão para acionar o interruptor.

     — Tudo pronto aí embaixo? Vamos lá!

     Ouviu-se um estalido. Com um ronco crescente e firme, as máquinas começaram a rodar. O papel foi passando pelos rolos. Milhares e milhares de exemplares do Courier foram-se amontoando, para contarem, a um inundo sedento de sensacionalismo, os crimes de um editor da Fleet Street e sua morte trágica. Por todo o edifício, o pessoal esfregou as mãos, satisfeito.

     — Foi um belo furo para o Courier, sem dúvida. Um furo jornalístico sensacional!

 

                                                                                 Agatha Christie  

 

                      

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