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UM GOSTO E SEIS VINTÉNS / William Somerset Maugham
UM GOSTO E SEIS VINTÉNS / William Somerset Maugham

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

Confesso que quando conheci Charles Strickland nem por um momento percebi que havia nele algo de diferente. Agora, porém, poucos são aqueles que negam sua grandeza. Não falo daquele tipo de grandeza alcançada por um político bem-sucedido ou por um bom soldado; essa é uma qualidade que faz parte da posição que ocupam e não do homem em si; e com a modificação das circunstâncias, tal grandeza é reduzida a proporções bem menores. O primeiro-mimstro fora de seu cargo não passa, na maioria das vezes, de um retórico pomposo, e um general sem exército não passa de um insignificante herói de uma cidadezinha. A grandeza de Charles Strickland foi autêntica. Talvez você não aprecie sua arte, mas mesmo assim não pode deixar de reconhecer que ela é capaz de provocar seu interesse. Ele perturba e arrebata. Foi-se o tempo em que ele era objeto de ridicularização, e não se trata mais de excentricidade defendê-lo, nem de perversidade elogiá-lo. Seus defeitos são considerados como um complemento necessário a seus méritos. É possível que ainda se discuta seu lugar na arte, e que a adulação de seus admiradores seja tão inconstante quanto a depreciação de seus calumadores; mas uma coisa não pode ser negada: ele possuía genialidade. Para mim o mais interessante na arte é a personalidade do artista; e se ela é incomum, estou pronto a desculpar milhares de defeitos neste. Suponho que Veiasquez foi um pintor melhor que El Greco, mas a rotina acaba com a admiração que se sente por ele: o Cretense, sensual e trágico, oferece o mistério de sua alma como um sacrifício permanente. O artista, pintor, poeta ou músico, com seu trabalho, sublime ou belo, satisfaz o senso estético; mas isto é semelhante ao instinto sexual, e tem em comum seu barbarismo: ele também expõe a seus olhos a maior dádiva de si mesmo. Descobrir seu segredo tem algo do fascínio de uma história policial. É um enigma que partilha com o um verso o mérito de não ter resposta. O trabalho mais insignificante de Strickland sugere uma personalidade estranha, atormentada e complexa; e certamente é isso que impede aqueles que não gostam de seus quadros de ficarem indiferentes a eles; foi isso que motivou tamanho interesse por sua vida e personalidade.

 

 

 

 

Só depois de passados quatro anos da morte de Strickland, Maurice Huret escreveu no Mercure de France o artigo que salvou o pintor desconhecido do esquecimento e mostrou o caminho que outros escritores, com maior ou menor fidelidade, seguiram. Durante muito tempo, nenhum crítico na França gozou de uma autoridade tão incontestável, e era impossível não se deixar impressionar por suas declarações, que pareciam extravagantes, mas julgamentos posteriores confirmaram sua avaliação, e a reputação de Charles Strickland agora está solidamente firmada nas linhas que ele estabeleceu. A ascensão de tal reputação é um dos incidentes mais românticos da história da arte. Mas não me proponho tratar da obra de Charles Strickland, exceto na medida em que se refere à sua personalidade .[Não concordo com^ «•os pintores que afirmam com arrogância que o leigcTnãcT consegue entender nada de pintura, e que a melhor forma de demonstrar admiração por suas obras é através do silêncio e do talão de cheques. Isto é um grotesco malentendido que vê na arte nada mais que um ofício conhe-

cido apenas por aquele que o pratica: a arte é uma "manifestação de emoção, e a emoção fala uma língua que muitos são capazes de entender. Mas admito que o crítico que não tenha um conhecimento prático de técnica de pintura dificilmente será capaz de dizer alguma coisa válida sobre o assunto, e minha ignorância de pintura é extrema. Felizmente, não há necessidade de me arriscar nessa empreitada, já que meu amigo, o Sr. Edward Leggatt, escritor capaz e admirável pintor, escreveu exaustivamente sobre a obra de Charles Strickland num pequeno livro* que é um exemplo encantador de um estilo menos cultivado de forma tão feliz na Inglaterra do que na França.

Maurice Huret em seu famoso artigo faz um bem estudado esboço da vida de Charles Strickland para estimular o interesse dos curiosos. com sua paixão desinteressada pela arte, ele possuía um desejo verdadeiro de chamar a atenção dos expertos para um talento original no mais alto grau; mas, por ser um ótimo jornalista, sabia que o "interesse humano" lhe facilitaria levar avante seu propósito. E quando aqueles que haviam estado em contato com Strickland no passado - escritores que o conheceram em Londres, pintores que o encontravam nos cafés de Montmartre - descobriram, para sua surpresa, que onde haviam visto apenas um artista medíocre, como outro qualquer, existia um génio autêntico que privara com eles, começou a aparecer nas revistas francesas e americanas uma sucessão de artigos: remimscências de um, apreciação de outro, que aumentaram a notoriedade de Strickland e alimentaram, sem satisfazer, a curiosidade do público. O assunto tinha boa receptividade e o inteligente Weitbrecht-Rotholz, em sua respeitável monografia,** foi capaz de dar uma notável lista de testemunhas.

A faculdade de criar mitos é inata à raça humana. Esta, agarra-se com avidez a qualquer incidente, surpreendente ou misterioso, ocorrido na carreira daqueles que se distinguiram das outras pessoas de alguma forma e

 

* A Modern Artist: Notes on the work of Charles Stricfeland, de Edward Leggatt, A.R.H.A. Martin Secker, 1917.

** Karl Strickland: sein Leben und seine Kunst, de Hugo WeitbrechtRotholz, Ph.D. Schwingel und Hanisch. Leipzig, 1914.

 

inventa uma lenda à qual se vincula então uma crença fanática. É o protesto do romance contra a rotina da vida. Os incidentes da lenda tomam-se o mais seguro passaporte do herói para a imortalidade. O filósofo irónico reflete com um sorriso que Sir Walter Raleigh é mais endeusado na memória da humanidade por ter posto seu casaco para a Rainha Virgem caminhar do que por ter levado o nome da Inglaterra a terras desconhecidas. Charles Strickland viveu obscuramente. Fez mais inimigos do que amigos. Não é de se estranhar, então, que aqueles que escreveram sobre ele tenham suplementado suas escassas lembranças com alguma fantasia mais vívida, e é evidente que no pouco que se sabia dele havia o suficiente para fornecer uma oportumdade ao escritor romântico; havia muita coisa estranha e terrível em sua vida, algo violento em seu caráter, e nada patético em seu destino. Logo surgiu uma lenda tão bem elaborada que o historiador sábio hesitaria em contestá-la.

Mas tal qualidade não pertence ao historiador que foi o Reverendo Robert Strickland. Ele escreveu a biografia* de seu pai com o objetivo específico de "modificar certos mal-entendidos que se tomaram correntes" em relação aos últimos anos da vida do pai, e que haviam "causado muito mal a pessoas ainda vivas". É evidente aue muita coisa do que se dizia a respeito da vida de Strickland era suficiente para embaraçar uma família respeitável. Esse livro distraiu-ms bastante, e quanto a isso congratulo-me, uma vez que é um livro maçante e cansativo. O Sr. Strickland pintou o retrato de um excelente marido e pai, um homem de temperamento afável, hábitos saudáveis e boa moral. O clérigo moderno adquiriu em seu estudo da ciência, que creio ser chamado de exegese, uma surpreendente facilidade para justificar as coisas, mas a sutileza com que o Reverendo Robert Strickland "interpretou" todos os fatos da vida de seu pai, que

 

*   Strickland: The Man and Hte Worfe, de seu filho, Robert Strickland. Wm Heinemann, 1913

 

um filho respeitador pudesse achar conveniente lembrar, deve certamente conduzi-lo no auge de sua vida aos mais altos cargos da Igreja. Já posso vê-lo com suas pernas musculosas envoltas nas botinas episcopais. Tal atitude foi algo arriscada, apesar de louvável, uma vez que provavelmente a lenda comumente transmitida não tenha tido qualquer participação na elevação da reputação de Strickland; pois existem muitos que foram atraídos para sua arte pela repulsa que sentiam por seu caráter ou pela compaixão que sua morte suscitou; e os esforços bemintencionados do filho contribuíram para esfriar o que sentiam os admiradores de seu pai. Não foi acidental que uma de suas mais importantes obras, A Mulher de Somaria,* tenha sido vendida ã Christie, pouco depois da polémica que se seguiu à publicação da biografia do Sr. Strickland, por 235 libras a menos do que havia sido apurado nove meses antes, quando foi adquirida pelo conhecido colecionador cuja morte levou o quadro novamente a leilão. Talvez o poder e a originalidade de Charles Strickland não tivessem sido suficientes paral determinar o destino de suas obras se a faculdade humana de criar mitos não tivesse posto de lado, com impaciência, uma história que frustrava todo seu desejo pelo inusitado. E naquele momento o Dr. Weitbrecht-Rotholz pertence àquela escola de historiadores que acreditam ser a natureza humana não só tão má quanto parece, mas muito pior; e na certa o leitor tem mais garantias de se divertir nas mãos desses escritores do que nas daqueles que se comprazem em conceber os grandes personagens de romance como exemplos de virtudes domésticas. De minha parte, ficaria desapontado em pensar que não

 

* Esse quadro foi descrito no catálogo da Christie assim: Uma mulher nua, nativa das Ilhas Society, deitada no chão ao lado de um riacho. Atrás vê-se uma paisagem tropical com palmeiras, bananeiras, etc., 150mxl, 25m.

 

houve nada entre António e Cleópatra além de interesses económicos; e serão precisas muito mais provas do que as que possam existir, graças a Deus, para persuadir-me de que Tibério foi um monarca tão irrepreensível quanto o Rei George V. O Dr. Weitbrecht-Rotholz fez um tal julgamento da inocente biografia do Reverendo Robert Strickland que é difícil deixar de sentir uma certa simpatia pelo pobre pastor. Sua decente reserva é tachada de hipocrisia, seus rodeios são chamados severamente de mentiras, e seu silêncio de traição. E com base nas pequenas faltas, repreensíveis num autor, mas desculpáveis num filho, a raça anglo-saxônica é acusada de hipócrita, falsa, pretensiosa e esperta. Eu pessoalmente acho que foi leviano da parte do Sr. Strickland, ao refutar o que se dizia a respeito de uma certa "desarmonia" entre seu pai e sua mãe, afirmar que Charles Strickland numa carta escrita de Paris a tinha descrito como "uma excelente mulher", já que o Dr. Weitbrecht-Rotholz conseguiu um fac-símile da carta, e a passagem referida de fato era a seguinte: Maldita se/a minha mulher. Ela é uma excelente mulher. Queria que fosse para o inferno. Não é assim que a Igreja na época de seu esplendor tratava de provas que não eram satisfatórias.

O Dr. Weitbrecht-Rotholz era um admirador entusiástico de Charles Strickland e não havia qualquer perigo de que fosse encobrir seus defeitos. Ele possuía olhos de lince para detectar os motivos vis que culminaram em atos que tinham toda a aparência de inocência. Era um psicopatologista e um estudioso de arte, e o subconsciente tinha poucos segredos para ele. Nenhum místico jamais viu o significado mais profundo nas coisas simples. O místico vê o inefável e o psicopatologista o indescritível. Existe uma estranha fascinação em observar a avidez com que este autor experiente procura descobrir todas as circunstâncias que possam desmoralizar seu herói. Ele sente seu corpo animar-se quando pode trazer à baila algum exemplo de crueldade ou de mesquinharia, e exulta como um inquisidor no auto-de-fé de um herege quando pode, com alguma história esquecida, destruir a piedade filial do Reverendo Robert Strickland. Sua engenhosidade foi surpreendente. Nada foi demais insignificante para escapar-lhe, e você pode ter certeza de que se Charles Strickland deixou alguma conta de lavanderia por pagar, o caso será contado detalhadamente, e se deixou de devolver alguns centavos, nenhum detalhe da transação será omitido.

 

Quando tanto já foi escrito sobre Charles Strickland, pode parecer desnecessário que eu escreva mais. O monumento de um pintor é sua obra. É verdade que eu o conheci mais intimamente do que a maioria: conheci-o antes de se tomar pintor e via-o frequentemente durante os anos difíceis que passou em Paris; mas não creio que jamais escreveria minhas lembranças se o acaso da guerra não me tivesse levado ao Taiti. Lá, como se sabe, ele viveu os últimos anos de sua vida; e lá encontrei pessoas que o conheciam bem. Encontro-me numa posição de poder esclarecer aquela parte de sua trágica carreira que ficou mais obscura. Se aqueles que acreditam na grandeza de Strickland estiverem certos, as narrativas dos que o conheceram pessoalmente não podem ser supérfluas. O que não daríamos pelas remimscências de alguém que tivesse sido tão intimamente relacionado com El Greco como fui com Strickland?

Mas não busco refúgio em tais desculpas. Não me lembro quem foi que recomendou aos homens, para o bem de suas almas, fazer todos os dias duas coisas de que não gostassem: foi um homem sábio, e é um preceito que tenho seguido regularmente; todos os dias me levanto e me deito na cama. Mas existe em minha natureza uma tendência de ascetismo, e submeto minha carne todas as semanas a uma mortificação mais severa. Nunca deixo de ler o Suplemento Literário do Times. É uma disciplina salutar ver o grande número de livros que é escrito, as esperanças com que seus autores os vêem publicados e o destino que os espera. Qual é a chance que existe de um livro se destacar entre tantos? E os livros de sucesso são apenas sucessos de uma temporada. Sabe Deus o que o autor sofreu, por que experiências desagradáveis passou e que dores de cabeça teve, para dar a um leitor qualquer algumas horas de descanso, ou para aliviar o tédio de uma viagem. E pelo que posso julgar das críticas, muitos desses livros são bem escritos; exigiram muita reflexão em sua composição; muitos são mesmo o resultado do trabalho angustioso de uma existência. A moral que deduzo daí é a de que o autor deve buscar sua recompensa no prazer de executar sua obra e na libertação do fardo de seus pensamentos; e, indiferente a tudo o mais, não se importar com elogios ou críticas, fracasso ou sucesso.

Agora veio a guerra, trazendo com ela uma nova atitude. A juventude voltou-se para deuses que nós mais velhos não conhecíamos, e já é possível se antever a direcão que os que nos seguirão irão tomar. A geração jovem, consciente da força e do tumulto, cansou-se de pedir licença; entrou à força e tomou nossos lugares. O ar está cheio de seus brados. Dentre os mais velhos, alguns, imitando os atos jovens, lutam por convencer-se de que sua época ainda não passou; gritam com os mais fortes, mas os gritos de guerra esvaem-se em suas bocas; são como pobres palhaços tentando, com lápis, tinta, pó-de-arroz e brincadeiras barulhentas recuperar a ilusão de sua primavera. Os mais sábios seguem seu caminho decentemente . Em seus sorrisos moderados existe uma zombaria indulgente. Lembram-se de que também eles derrubaram uma geração estabelecida, com o mesmo clamor e o mesmo escárnio, e prevêem que esses bravos líderes também terão que ceder seus lugares futuramente. Não existe uma última palavra. O novo evangelho estava velho quando Nínive elevou sua grandeza ao céu. Essas nobres palavras, que parecem tão novas àqueles que as dizem, foram ditas da mesma forma centenas de vezes antes. O pêndulo da balança para trás e para frente. O círculo sempre se repete novamente.

Algumas vezes um homem sobrevive durante muito tempo de uma época em que teve seu lugar para uma que lhe é estranha, e então os curiosos assistem a um dos mais inusitados espetáculos da comédia humana. Quem agora, por exemplo, se lembra de George Crabbe? Ele foi um poeta famoso no seu tempo, e o mundo reconheceu sua genialidade com uma unanimidade pouco comum na complexidade da vida moderna. Ele aprendeu seu ofício na escola de Alexandre Pope e escreveu histórias de moral em rimadas parelhas. Então seguiram-se a Revolução Francesa e as Guerras Napoleônicas, e os poetas passaram a cantar novas canções. O Sr. Crabbe continuou a escrever histórias de moral em rimadas parelhas . Creio que deve ter lido os versos desses jovens que estavam causando tanta agitação no mundo e considerado-os péssimos. É evidente que grande parte deles o era, realmente. Mas as odes de Keats e de Wordsworth, um poema ou dois de Coleridge, e mais alguns de Shelley, revelaram vários campos do espírito anteriormente inexplorados. O Sr. Crabbe estava morto, mas continuou a escrever histórias de moral em parelhas rimadas. Li sem muita atenção os poemas da jovem geração. Pode ser que entre eles um Keats mais intenso, um Shelley mais etéreo tenham publicado algo de que o mundo se lembrará com prazer. Não posso afirmar. Admiro sua cultura - sua juventude é tão perfeita que parece absurdo falar de promessa - maravilho-me com a boa qualidade de seu estilo; mas com toda essa prolixidade (seu vocabulário faz crer que já folheavam o Thesaurus de Roget em seus berços), não me dizem nada: no meu entender, sabem demais e sentem de forma muito óbvia; não consigo engolir a força com que me agridem, nem a emoção com que se atiram sobre meu peito; a paixão desses jovens me parece muito fraca e seus sonhos insignificantes. Não os admiro. Estou fora de moda. Vou continuar a escrever histórias de moral em parelhas rimadas. Mas seria um tolo se o fizesse por outro motivo que não o prazer.

Mas nada disso vem ao caso.

Era muito jovem quando escrevi meu primeiro livro. Por sorte ele fez sucesso e várias pessoas passaram a me procurar.

É com uma certa melancolia que me recordo do mundo das letras em Londres quando fui apresentado a ela, tímido, porém ávido. Faz muito tempo que o frequentei, e se os romances que descrevem suas características atuais forem precisos, muita coisa mudou. O ponto de encontro é outro. Chelsea e Bloomsbury tomaram o lugar de Hampstead, Notting Hill Gate e High Street em Kensington. Naquela época, era uma honra ter 40 anos, mas agora ter mais de 25 é absurdo. Acho que naquele tempo éramos um pouco tímidos ao demonstrar nossas emoções, e o medo do ridículo contrabalançava as tendências à pretensão. Não creio que houvesse naquela boémia um culto à castidade, mas não me lembro de tamanha promiscuidade como a que é praticada hoje. Não achávamos que houvesse hipocrisia em praticar nossas excentricidades em um silêncio decente. A vulgaridade não tomara conta de nossa linguagem. A mulher ainda não se havia liberado completamente.

Eu morava perto de Victoria Station e lembro-me dos longos passeios de ônibus para as hospitaleiras casas dos literatos. Em minha timidez, andava de um lado para outro da rua até criar coragem de tocar a campainha; e então, cheio de nervosismo, era encaminhado a uma sala cheia de gente. Era apresentado a várias pessoas famosas, e os elogios que faziam ao meu livro deixavam-me constrangido. Sentia que esperavam que eu dissesse coisas inteligentes, e nunca conseguia pensar em nenhuma antes de a festa acabar. Tentava esconder meu embaraço distribuindo xícaras de chá e torradas com manteiga. Não queria que ninguém prestasse atenção em mim, para que pudesse observar à vontade aquelas pessoas famosas e ouvir as coisas inteligentes que diziam.

Lembro-me de grandes mulheres empertigadas, de narizes compridos e olhos vorazes, que usavam os vestidos como se fossem armaduras; e de pequenas solteironas, de vozes suaves e olhar inteligente. Nunca me cansei de observar com fascinação sua persistência em comer torradas cobertas de manteira, de luvas, e assistia admirado como limpavam seus dedos na cadeira despreocupadamente quando pensavam que ninguém estava olhando. Isso devia causar dano à mobília, mas imagino que a dona da casa se vingasse nos móveis dos amigos quando fosse sua vez de visitá-los. Algumas delas se vestiam bem e diziam não admitir que só por ter escrito um livro se devesse andar desalinhado; se se possuía uma boa aparência, podia-se tirar o melhor proveito dela, pois um sapato elegante num bonito pé nunca havia impedido os editores de publicarem um livro. Mas outras achavam isso frívolo e usavam roupas e jóias rústicas. Os homens, em sua maioria, não eram excêntricos no modo de vestir. Tentavam parecer o menos possível escritores. Gostavam de passar por homens comuns, e em qualquer lugar poderiam passar por funcionários de uma firma qualquer. Pareciam sempre um pouco cansados. Nunca havia conhecido escritores antes e achava-os muito estranhos, mas não creio que alguma vez me pareceram reais.

Lembro-me de que achava a conversa deles brilhante e costumava ouvir admirado o humor sardónico com que arrasavam um colega no momento em que este virava as costas. O artista leva essa vantagem sobre o resto do mundo: a de que seus amigos submetem não só sua aparência e personalidade às suas críticas, mas também sua obra. Não tinha esperanças de algum dia me expressar com tamanho desembaraço. Naquele tempo, a conversação ainda era cultivada como uma arte; um aparte inteligente era muito valorizado; e o epigrama, não transformado ainda num artifício com o qual os medíocres podem aparentar sagacidade, dava espirituosidade à conversa da gente da cidade. É triste que eu não consiga lembrar de nada dessa mostra de inteligência. Creio porém que a conversa nunca ficava tão agradável como quando se concentrava nos detalhes comerciais que representavam o outro lado da arte que praticávamos. Quando acabávamos de discutir os méritos do último livro publicado, era natural imaginar quantas cópias haviam sido vendidas, que adiantamento o autor recebera e quanto iria lucrar com a obra. Então falávamos de um e de outro editor, comparando a generosidade de um com a mesquinharia de outro; discutíamos se seria melhor procurar um que desse direitos autorais polpudos ou outro que "promovesse" um livro por tudo que valia. Uns faziam uma boa publicidade, outros não. Uns eram atualizados, outros ultrapassados. Então conversávamos sobre agentes literários e as ofertas que obtinham para nós; sobre editores e o tipo de remuneração que recebiam, quanto pagavam por mil exemplares e se pagavam em dia ou não. Para mim, isso era muito romântico. Dava-me a sensação de ser membro de uma irmandade mística.

 

Ninguém foi mais amável comigo naquela época do que Rose Waterford. Ela possuía um misto de indulgência máscula e perversidade femimna, e os romances que escrevia eram originais e desconcertantes. Foi em sua casa que um dia conheci a mulher de Charles Strickland. A Sr.ta Waterford estava oferecendo um chá, e sua pequena sala de estar estava mais cheia do que de costume. Todos pareciam estar conversando e eu, sentado em silêncio, sentia-me sem jeito; era muito tímido para intrometer-me em qualquer dos grupos, que pareciam imersos em seus próprios negócios. A Sr.ta Waterford era uma boa hostess e, vendo meu embaraço, veio até mim.

- Quero que conheça a Sr.a Strickland - disse está entusiasmada com seu livro.

- O que ela faz? - perguntei.

Tinha consciência de minha ignorância, e se a Sr.a Strickland fosse uma escritora famosa, queria me certificar disso antes de ir falar com ela.

Rose Waterford baixou os olhos com certa reserva para produzir maior efeito com sua resposta.

- Ela dá almoços. É só chamar um pouco de atenção e ela o convidará.

Rose Waterford era uma cínica. Encarava a vida como uma oportumdade para escrever romances e o público como sua matéria-prima. De vez em quando convidava pessoas do público para sua casa, se demonstrassem alguma admiração por seu talento, e recebia com prodigalidade. Encarava a fraqueza do público por celebridades com um menosprezo bem-humorado, mas fazia seu papel de conhecida mulher de letras com decoro.

Fui levado a Sr.a Strickland e durante 10 minutos conversamos. A única coisa que reparei nela era que possuía uma voz agradável. Tinha um apartamento em Westminster, de frente para a catedral inacabada, e, como morávamos no mesmo bairro, sentimos uma simpatia mútua. As Lojas do Exército e da Marinha são um elo da umão entre aqueles que moram entre o rio e o Parque de St. James. A Sr.a Strickland pediu meu endereço e alguns dias depois recebi um convite para almoçar.

Tinha poucos compromissos e fiquei feliz em aceitar. Quando cheguei, um pouco tarde, porque em meu medo de chegar muito cedo dei três voltas na catedral, encontrei o grupo já completo. A Sr.ta Waterford estava lá, juntamente com a Sr.a Jay, Richard Twining e George Road. Éramos todos escritores. O dia estava bonito, era começo da primavera, e todos estávamos de bom humor. Falamos de centenas de coisas. A Sr.*3 Waterford, num conflito entre a estética de sua juventude, quando costumava ir a festas de verde, segurando uma flor, e a irreverência de seus anos mais maduros, que tendia para saltos altos e vestidos parisienses, usava um chapéu novo. Isso deixou-a de bom humor. Nunca a tinha visto mais maliciosa a respeito de nossos amigos comuns. A Sr.a Jay, consciente de que a impropriedade é a alma da inteligência, fazia observações em tons de sussurro capazes de fazer corar a alva toalha da mesa. Richard Twining tagarelava sobre tolices, e George Road, cônscio de que não precisava exibir um brilhantismo de que ninguém duvidava, abria a boca apenas para comer. A Sr.a Strickland não falava muito, porém possuía o dom de manter a conversa; e quando havia uma pausa, sempre dizia a coisa certa para reatá-la. Era uma mulher de uns 37 anos, alta e cheia, sem chegar a ser gorda; sem ser bonita, seu rosto era agradável, principalmente, talvez, pelos olhos castanhos. Sua pele era bem pálida e o cabelo escuro bem penteado. Era a única das três mulheres que não usava maquiagem, e ao contrário das outras parecia simples e natural.

A sala de jantar era decorada de acordo com o gosto da época: uma decoração sóbria. As paredes eram revestidas de lambri de madeira branca e na parte superior de papel verde, sobre o qual havia gravuras de Whistler com molduras pretas. As cortinas verdes com desenhos de pavões pendiam retilíneas, e o tapete verde, em cuja padronagem coelhos brancos corriam por entre árvores, sugeria a influência de William Morris. Sobre a lareira havia peças de louça azul holandesa. Naquela época devia haver 500 salas de jantar em Londres decoradas da mesma maneira. Era puro, artístico e monótono.

Quando saímos, fui caminhando com a Sr.ta Waterford, e o belo dia e seu novo chapéu levaram-nos a passear pelo parque.

- Foi uma reumão muito agradável - disse eu.

- Você gostou da comida? Eu disse a ela que se quisesse cercar-se de escritores, devia oferecer boa comida.

- Um excelente conselho - respondi. - Mas por que ela gosta de escritores?

A Sr.ta Waterford deu de ombros.

- com certeza ela os acha divertidos. Gosta de frequentar o nosso meio. Acho que é uma pessoa simples, coitada, e nos acha maravilhosos. De qualquer maneira, ela gosta de nos convidar para almoçar e isso não nos faz mal nenhum. Admiro-a por isso.

Relembrando aquela época, acho que a Sr.a Strickland era a mais inofensiva de todos os que andam atrás de celebridades e perseguem a presa das alturas de Hampstead aos mais inferiores estúdios de Cheyne Walk. Passara a juventude no campo, e os livros da Biblioteca Mudie que chegavam até lá levavam com eles não só seu romance como o romance de Londres. Tinha uma verdadeira paixão pela leitura (coisa rara no seu caso, pois a maioria está mais interessada no autor e no pintor do que no livro e nos quadros) e criava um mundo de imaginação no qual vivia com uma liberdade que nunca atingiu no dia-a-dia. Quando começou a conhecer escritores, foi como aventurar-se num palco que até então só conhecia do outro lado dos refletores. Via-os como num drama e realmente sentia como se vivesse uma vida mais ampla ao recebê-los e visitá-los em suas casas. Aceitava suas regras do jogo da vida como válidas para eles, mas nunca por um momento pensou em reger sua conduta pela deles. Suas excentricidades morais, assim como a maneira estranha de vestir, suas visionárias teorias e paradoxos, eram uma forma de distraí-la, mas não exerciam a mínima influência em suas convicções.

- Existe um Sr. Strickland? - perguntei.

- Ah, sim; ele trabalha na cidade. Acho que é corretor. É um homem medíocre.

- Eles se dão bem?

- Se adoram. Você vai conhecê-lo, se alguma vez for jantar lá. Mas ela não costuma receber pessoas para jantar. Ele é muito fechado. Não tem o mínimo interesse na literatura ou nas artes.

- Por que será que mulheres simpáticas se casam com homens medíocres?

- Porque os homens inteligentes não se casam com mulheres simpáticas.

Não sabia o que responder a isso, logo, perguntei se a Sr.a Strickland tinha filhos.

- Tem, um menino e uma menina. Os dois estão no colégio.

O assunto estava esgotado, e começamos a conversar sobre outras coisas.

Durante o verão encontrei a Sr.a Strickland com frequência. De vez em quando ia aos simpáticos almoços que ela oferecia em seu apartamento e a chás ainda melhores. Simpatizamos um com o outro. Eu era muito jovem, e talvez ela gostasse da ideia de guiar meus passos no difícil caminho das letras; enquanto para mim era agradável ter alguém com quem pudesse repartir meus pequenos problemas, seguro de ter um ouvido atento e um conselho sensato. A Sr.a Strickland tinha o dom da simpatia É uma qualidade encantadora, mas da qual aqueles que sabem possuí-la abusam: pois existe algo de sádico na avidez com que estes se agarram à desgraça dos amigos, para que possam exercitar sua qualidade, que jorra como um poço de petróleo. E os simpáticos derramam sua simpatia com um abandono que às vezes embaraça suas vítimas. Existem ombros que já consolaram tantas lágrimas que não servem mais para as minhas. A Sr.a Strickland fazia uso de sua simpatia com tato. Fazia-me sentir que era uma honra para ela eu aceitar sua simpatia. Quando, na euforia de minha juventude, comentei isto com Rose Waterford, ela disse:

- Leite é muito bom, principalmente com algumas gotas de licor, mas a vaca leiteira se sente aliviada de livrar-se dele. Uma mama inchada é muito incómoda.

Rose Waterford tinha uma língua ferina. Nenhuma outra pessoa conseguia dizer coisas tão mordazes; por outro lado, nenhuma outra conseguia fazer coisas mais fascinantes.

Havia outra coisa que me agradava na Sr.a Strickland: ela sabia receber com elegância. Seu apartamento estava sempre bem arrumado, enfeitado com flores, e as forracões da sala de estar apesar da padronagem sóbria, estavam sempre limpas e bonitas. As refeições na artística sala de jantar eram agradáveis: a mesa bem posta, as empregadas impecáveis e a comida bem-feita. Era impossível não perceber que a Sr.a Strickland era uma excelente dona-de-casa. E não havia dúvidas de que era uma mãe dedicada. Havia fotografias do filho e da filha na sala de estar. O filho, chamado Robert, tinha 16 anos e estudava em Rugby; em um dos retratos, estava de calças de flanela e quepe de críquete, e, num outro, de paletó e colarinho duro. Tinha o olhar suave da mãe e seus olhos bonitos e tranquilos. Parecia limpo, sadio e normal.

- Não sei se ele é muito inteligente - disse ela um dia, quando eu via sua fotografia - mas sei que é um bom rapaz. Tem um ótimo caráter.

A filha tinha 14 anos. O cabelo, cheio e escuro como o da mãe, caía em profusão sobre os ombros. Tinha a mesma expressão suave e os olhos ternos e tranquilos da mãe.

- Todos os dois são a sua imagem - disse eu.

- É, acho que são mais parecidos comigo do que com o pai.

- Por que você nunca me apresentou a ele? - perguntei .

- Você gostaria de conhecê-lo?

Sorriu, seu sorriso era realmente muito doce, e corou um pouco; era estranho que uma mulher daquela idade corasse por tão pouco. Talvez sua ingenuidade fosse seu maior encanto.

- Sabe, ele não é nem um pouco interessado nas letras - disse ela. - É um perfeito filisteu.

Disse isso sem depreciação, mas afetuosamente, como se, reconhecendo o que havia de pior nele, desejasse protegê-lo da maledicência dos amigos.

- Ele trabalha na Bolsa de Valores e é um típico corretor. Acho que ele o deixaria entediado.

- Ele a entedia? - perguntei.

- Sabe como é, sou sua mulher. Gosto muito dele Sorriu para esconder sua timidez, e imaginei que

tinha medo que eu fizesse o tipo de zombaria que tal confissão provocaria em Rose Waterf ord, com toda certeza. Hesitou um pouco. Seus olhos ficaram ainda mais ternos.

- Ele não tem a pretensão de se fazer passar por um génio. Nem mesmo consegue ganhar muito na Bolsa. Mas é muito bom e amigo.

- Acho que Vou gostar muito dele.

Vou convidá-lo para jantar conosco uma noite dessas, mas não esqueça que você mesmo é que pediu; não me culpe se passar uma noite monótona.

 

Mas quando finalmente conheci Charles Strickland, foi em circunstâncias que não me permitiram senão conhecê-lo superficialmente. Uma manhã a Sr.a Strickland enviou-me um bilhete, dizendo que daria um jantar naquela noite e que um de seus convidados não poderia ir. Pedia-me que fosse no lugar dele. O bilhete dizia:

É meu dever avisá-lo que será muito maçante para você. É uma reumão completamente sem atrativos, mas se vier ficarei muito grata. E nós dois poderemos conversar um pouco.

Era uma questão de delicadeza aceitar.

Quando a Sr.a Strickland apresentou-me ao marido, ele apertou minha mão com indiferença. Virando-se para ele alegremente, ela tentou fazer um pouco de graça:

- Convidei-o para mostrar-lhe que eu tinha mesmo um marido. Acho que já estava começando a duvidar disso.

Strickland deu o riso polido com que as pessoas reconhecem um gracejo em que não vêem nada de engraçado, mas não disse nada. A chegada de outros convidados exigiu a atenção de meu anfitrião e fiquei sozinho. Quando finalmente estávamos reumdos, esperando que o jantar fosse anunciado, eu refletia, enquanto conversava com a senhora que acompanharia para a mesa, que o homem civilizado pratica um estranho hábito em desperdiçar o tempo curto de sua vida em programas aborrecidos. Era o tipo de festa que nos faz pensar no motivo que levou a anfitriã a se incomodar em convidar as pessoas, e no motivo que levou os convidados a comparecerem. Havia 10 pessoas. Encontraram-se com indiferença, e quando fossem embora o fariam aliviadas. Era, evidentemente, uma reumão puramente social. Os Strickland "deviam" jantares a algumas pessoas, nas quais não tinham o menor interesse, logo, convidaram-nas; as pessoas haviam aceitado . Por quê? Para evitar o tédio de jantar a dois, para dar um descanso aos empregados, porque não havia nenhuma razão para recusar, porque lhes "deviam" um jantar.

A sala de jantar estava cheia demais. Havia um membro do Conselho Real e sua mulher, um funcionário do governo e mulher, a irmã da Sr.a Strickland e o marido, o Coronel MacAndrew e a mulher de um membro do Parlamento. Foi porque o membro do Parlamento achou que não poderia ir que fui convidado. A respeitabilidade da reumão era prodigiosa. As mulheres eram muito simpáticas para estarem bem vestidas e muito seguras de suas posições para serem divertidas. Os homens eram circunspectos. Havia em torno de todos eles um ar de prosperidade.

Todos conversavam um pouco mais alto do que de costume por um desejo instintivo de animar a festa, e havia muito barulho na sala. Mas a conversa não era geral.Cada um conversava com o vizinho; com o vizinho da direita durante a sopa, o peixe e a entrada; com o vizinho da esquerda durante a carne e a sobremesa. Falavam da situação política, de golfe, dos filhos e da última peça de teatro em cartaz, dos quadros da Academia Real, do tempo e de seus planos para as férias. Nunca faziam uma pausa, e o barulho crescia. A Sr.a Strickland podia congratular-se de que a reumão estava perfeita. O marido fez sua parte como devia. Talvez não conversasse muito, e achei que no fim da refeição havia uma aparência de cansaço nos rostos das mulheres que sentavam a seu lado. Achavam-no maçante. Por umas duas vezes a Sr.a Strickland dera uma olhada para ele com certa ansiedade. Finalmente ela levantou-se e acompanhou as senhoras para fora da sala. Strickland fechou a porta quando elas se retiraram, e, encaminhando-se para a outra ponta da mesa, sentou-se entre o membro do Conselho Real e o funcionário do governo. Passou-nos o vinho do Porto novamente e ofereceu-nos charutos. O conselheiro fez um comentário sobre a ótima qualidade do vinho, e Strickland disse-nos onde o comprara. Começamos a conversar sobre vinhos e charutos. O conselheiro contou-nos um caso em que estava trabalhando, e o coronel falou sobre pólo. Eu não tinha nada a dizer, logo, fiquei calado, tentando demonstrar interesse na conversa; e como achei que ninguém estava muito interessado em mim, pude observar Strickland à vontade. Era maior do que eu pensava: não sei por que o imaginei como um homem franzino e insignificante; na verdade, era forte e pesado, de mãos e pés grandes e parecia desajeitado em sua roupa de noite. Dava a impressão de um cocheiro bem vestido para uma ocasião de cerimónia. Era um homem de 40 anos, pouco atraente, sem ser feio, pois tinha feições bem-feitas, apesar de um pouco maiores do que deviam, e no todo não lhe caíam bem. Estava bem barbeado, e seu rosto parecia desagradavelmente despido. O cabelo era avermelhado, cortado bem curto, e os olhos pequenos, azuis ou cinza. Tinha uma aparência comum. Não me admirava mais de a Sr.a Strickland sentir um certo embaraço em relação a ele; não servia como uma boa apresentação para uma mulher que queria adquirir uma posição no mundo da arte e das letras. Era evidente que não tinha traquejo social, embora um homem possa passar sem isso; não possuía também nenhuma excentricidade que o fizesse ter algo de diferente; era apenas um homem bom, simples, honesto e comum. Podia-se admirar suas excelentes qualidades, mas isso não nos impediria de evitar sua companhia. Era uma pessoa completamente insignificante.

Era provavelmente um bom membro da sociedade, um bom marido e pai, um corretor honesto; mas não havia razão para se perder tempo com ele.

 

A estação estava chegando ao fim, e todas as pessoas que eu conhecia preparavam-se para viajar, A Sr.a Strickland ia com a família para a costa de Norfolk, para que as crianças pudessem desfrutar da praia e o marido do golfe. Despedimo-nos e combinamos encontrar-nos no outono. Mas no último dia de minha estada em Londres, ao sair das lojas da Marinha e do Exército encontrei-a com o filho e a filha; como eu, ela estava fazendo as últimas compras antes de viajar, e estávamos ambos encalorados e cansados. Convidei-os a tomar um sorvete no parque.

Acho que a Sr.a Strickland sentia-se contente de me apresentar os filhos e aceitou o convite com entusiasmo. Os dois filhos eram ainda mais bonitos do que nas fotografias, e ela tinha razão em se orgulhar deles. Eu era muito jovem para que os dois ficassem encabulados, e tagarelaram alegremente sobre assuntos diversos. Eram crianças encantadoras e saudáveis. Estava muito agradável sob as árvores.

Quando uma hora depois eles tomaram um táxi para ir para casa, caminhei lentamente até o clube. Estava um tanto solitário, e foi com uma certa inveja que pensei na agradável vida familiar da qual tinha acabado de ter um vislumbre. Pareciam gostar uns dos outros. Faziam pequenas brincadeiras entre si, incompreensíveis para um estranho, que os divertia enormemente. Talvez Charles Strickland fosse uma pessoa medíocre à luz de um padrão social que exigia acima de tudo brilhantismo de expressão, mas sua inteligência era apropriada ao seu meio, e isso é um grande passo, não apenas para um sucesso relativo, porém ainda mais para a felicidade. A Sr.a Strickland era uma mulher encantadora e o amava. Imaginei suas vidas, imunes a quaisquer adversidades, honestas, decentes e, devido àquelas duas crianças maravilhosas, destinadas a seguirem as tradições normais de sua classe e posição, não sem a devida significância. Envelheceriam sem sentir, assistiriam à chegada dos filhos à idade da razão, casando-se na época certa - um com uma bela moça, futura mãe de filhos saudáveis; a outra, com um rapaz atraente e viril, na certa militar; e finalmente, na prosperidade de uma aposentadoria digna, amados por seus descendentes, após uma vida feliz e útil, descansariam em seus túmulos.

Essa deve ser a história de inúmeros casais, é um tipo de vida atraente. Lembra um riacho plácido, correndo suavemente através de verdes pastagens, à sombra de árvores frondosas, até finalmente desaguar no oceano; mas o mar é tão calmo, tão silencioso, tão indiferente que de repente se sente uma certa inquietação. Talvez fosse uma peculiaridade minha, mais forte ainda naquela época, que eu sentisse nesse tipo de vida, que a maioria das pessoas levam, a falta de alguma coisa. Reconhecia seu valor social, sua felicidade metódica, mas uma febre em meu sangue exigia algo mais vibrante. Para mim havia algo alarmante em tais alegrias serenas. Em meu coração havia um desejo de viver mais perigosamente. Não estava despreparado para rochas pontiagudas e bancos de areia traiçoeiros se pudesse ter mudanças - mudanças e a emoção do inesperado.

 

Ao reler o que escrevi sobre os Strickland, estou cônscio de que devem parecer pessoas sem vida. Não fui capaz de dar a eles nenhuma daquelas características que fazem as pessoas de um livro terem uma vida própria; e procurando ver se a falha foi minha faço força para lembrar-me de características que pudessem lhes dar mais vida. Sinto que se frisasse algum aspecto de seu modo de falar, ou algum hábito diferente, conseguiria dar-lhes uma significância própria. Como os descrevi, parecem figuras de uma velha tapeçaria; não podem separar-se do todo, e à distância parecem perder seus contornos, restando apenas a cor. Minha única desculpa é a de que a impressão que me deixaram foi esta. Em torno deles havia a mesma descaracterização que se encontra em pessoas cujas vidas são parte de um organismo social, de forma que só existem nele e através dele. São como células do corpo, essenciais apenas enquanto saudáveis e partes de um todo. Os Strickland eram uma família média dentro da classe média. Uma mulher agradável e hospitaleira, com um interesse inofensivo pelas pequenas celebridades do meio literário; um homem pouco interessante, cumprindo seu dever dentro da posição em que a Providência o colocara; duas crianças bonitas e saudáveis. Nada podia ser mais comum. Não acredito que houvesse alguma coisa neles que pudesse chamar a atenção dos curiosos.

Quando penso em tudo que aconteceu depois, pergunto-me se era tão cego para não ver que havia em Charles Strickland pelo menos alguma coisa fora do comum. Talvez. Creio que adquiri, nos anos vividos de lá para cá, um razoável conhecimento da humanidade, mas mesmo que na época em que conheci os Strickland tivesse a experiência que tenho agora, não acredito que os teria julgado de maneira diferente. Mas como aprendi que o homem é imprevisível, não ficaria tão surpreso pelas notícias que recebi quando voltei para Londres no começo do outono.

Ainda não estava na cidade há 24 horas quando encontrei Rose Waterford em Jermyn Street.

- Você parece muito alegre e bem disposta - disse eu. - O que aconteceu?

Ela sorriu, e seus olhos brilharam com uma malícia que eu já conhecia. Isso significava que sabia de algum escândalo sobre uma das amigas, e o instinto da escritora estava alerta.

- Você conheceu Charles Strickland, não conheceu? Seu rosto e corpo irradiavam entusiasmo, Anuí com a cabeça.   Perguntava-me se o pobre-diabo teria ido à falência na Bolsa ou sido atropelado por um ônibus.

- Não é terrível? Ele abandonou a mulher.

A Sr.te Waterford certamente sentiu que não poderia falar do assunto como devia na calçada de Jermyn Street, sendo assim, como uma artista, contou-me o caso à queima-roupa e disse que não sabia de mais detalhes. Eu não podia lhe fazer a injustiça de supor que tal circunstância tão insignificante a impediria de dar detalhes, mas ela permaneceu obstinada.

- Repito que não sei de nada - disse, em resposta a minhas perguntas, e então, com um afetado encolher de ombros: - Soube que uma jovem empregada de uma casa de chá deixou o emprego.

Deu um sorriso e, com a desculpa de que tinha hora marcada no dentista, despediu-se alegremente. Eu fiquei mais curioso do que penalizado. Naquela época minha experiência da vida era pouca, e excitava-me tomar conhecimento de um incidente igual ao que lia nos livros, ligado a pessoas que conhecia. Confesso que o tempo se encarregou de me acostumar a esse tipo de incidente com relação a pessoas conhecidas. Mas também estava um pouco chocado. Strickland estava beirando os 40 anos, e eu achava de mau gosto um homem de sua idade envolver-se em casos amorosos. com a arrogância da juventude, considerava que o limite para um homem apaixonar-se, sem cair no ridículo, eram os 35 anos. E esta notícia era especialmente desconcertante para mim, pois escrevera do campo para a Sr.a Strickland, anunciando minha volta, e acrescentara que, a menos que ela me dissesse para não fazê-lo, iria visitá-la num determinado dia, para tomarmos chá, juntos. Este era o dia marcado, e eu não recebera nenhuma carta da Sr.a Strickland. Será que gostaria de ver-me ou não? com certeza, com os problemas que enfrentava no momento, havia esquecido de meu bilhete por completo. Talvez fosse melhor não ir. Por outro lado talvez preferisse fazer segredo do assunto e seria muito indiscreto de minha parte dar a entender que já sabia de tudo. Em minha mente, travava-se um conflito entre o medo de magoar os sentimentos de uma mulher tão agradável e o medo de me intrometer em assuntos que não me diziam respeito. Imaginava que ela estivesse sofrendo e não queria presenciar uma dor sem nada poder fazer; mas em meu coração havia uma curiosidade, que me envergonhava, de saber como ela havia reagido. Não sabia o que fazer.

Finalmente decidi visitá-la como se nada tivesse acontecido, dizendo à empregada que perguntasse à Sr.a Strickland se queria receber-me. Isso lhe daria a oportumdade de mandar-me embora. Mas fiquei vexado ao falar com a empregada o que havia planejado e, enquanto esperava a resposta, tive que me mumr de forças para não sair correndo e fugir dali. A empregada voltou, e pelo seu comportamento pude concluir que sabia perfeitamente o que estava acontecendo na casa.

- O senhor quer me acompanhar, por favor?

Eu a segui até a sala de estar. Os postigos estavam parcialmente fechados para escurecer a sala, e a Sr.a Strickland estava sentada de costas para a luz. Seu cunhado, o Coronel MacAndrew, em frente à lareira, aquecia as costas num fogo inexistente. Para mim, minha entrada pareceu por demais estranha. Imaginei que minha chegada os apanhara de surpresa, e a Sr.a Strickland rne recebera apenas porque se esquecera de adiar minha visita. Achei que o coronel lamentou a interrupção.

- Não estava certo se a senhora me esperava eu disse, tentando parecer despreocupado.

É claro que estava. Anne vai trazer o chá num minuto.

Mesmo na escuridão da sala, não pude deixar de notar o rosto da Sr.a Strickland inchado de tanto chorar. Sua pele, que nunca fora muito maquiada, estava ao natural.

- Você se lembra de meu cunhado, não? Conheceu-o num jantar aqui em casa, antes das férias.

Cumprimentei-o. Estava tão acanhado que não conseguia dizer nada, mas a Sr.a Strickland veio socorrerme. Perguntou-me o que havia feito no verão e com isso consegui conversar sobre alguma coisa até chegar o chá. O coronel pediu um uísque com soda.

- Você também devia tomar um, Amy - disse ele.

- Não, prefiro chá.

Essa foi a primeira sugestão de que algo desagradável tinha acontecido. Não dei importância e fiz o possível para fazer a Sr.a Strickland conversar. O coronel, ainda de pé em frente à lareira, não deu uma palavra. Esperava a primeira oportumdade para me retirar e me perguntava por que a Sr.a Strickland havia me recebido. Não havia flores na sala, e vários objetos, retirados durante o verão, não tinham sido recolocados no lugar; o ambiente estava triste e pesado na sala que sempre fora tão aprazível; dada a estranha sensação de que havia algum morto no outro lado da parede. Terminei o chá.

- Aceita um cigarro? - perguntou a Sr.a Strickland.

Olhou em volta, procurando a cigarreira, mas não a encontrou.

- Desconfio que não tenho cigarro para oferecer. De repente desatou a chorar e saiu correndo da sala. Fiquei surpreso. Agora creio que a falta dos cigarros, que eram sempre comprados pelo marido, fez com que se lembrasse dele, e a nova sensação de que os pequenos confortos a que estava acostumada haviam acabado provocara-lhe uma angústia repentina. Deu-se conta de que a velha vida terminara de vez. Era impossível continuar a fingir agora.

- O senhor gostaria que eu me fosse, não é? - perguntei ao coronel, levantando-me.

- Suponho que já soube que o salafrário a abandonou - explodiu o coronel.

Hesitei.

- O senhor sabe como as pessoas falam - respondi.

- Soube ligeiramente que algo desagradável tinha acontecido .

- Ele fugiu. Foi para Paris com uma mulher. Deixou Amy sem um tostão.

- Sinto muito, realmente - disse eu, sem saber o que mais poderia dizer.

O coronel tomou o uísque de um gole. Era um homem alto e magro, de uns 50 anos, com um bigode caído e cabelos grisalhos. Tinha olhos azuis-claros e a boca mole. Lembrava-me, do primeiro encontro com ele, que tinha cara de bobo e que se orgulhava de ter jogado pólo três vezes por semana nos 10 anos antes de deixar o exército.

- Não creio que a Sr.a Strickland queira ser incomodada agora - eu disse. - O senhor pode dizer-lhe o quanto lamento e que se houver algo que possa fazer terei o maior interesse?

Ele não prestou a menor atenção no que falei.

- Não sei o que vai ser dela. E ainda há as crianças. Vão viver de ar? Dezessete anos.

- Como assim?

- Há 17 anos que estavam casados - respondeu o coronel bruscamente.   - Nunca simpatizei com ele. É claro que sendo meu cunhado fazia o possível para não demonstrar. O senhor o considera um cavalheiro? Ela nunca deveria ter-se casado com ele.

- É definitivo?

A única coisa que ela tem a fazer agora é divorciar-se. Era isso que eu dizia quando o senhor chegou: "Peça o divórcio, minha querida Amy", disse eu. "É o que deve fazer, por você e por seus filhos." É bom que ele não apareça na minha frente. Eu lhe daria uma surra daquelas.

Não pude deixar de pensar que o Coronel MacAndrew talvez encontrasse alguma dificuldade em fazer isso, já que Strickland me parecera um homem forte, mas não disse nada. É sempre lamentável que a moral ultrajada não possua força física suficiente para admimstrar uma pumção direta no pecador. Estava pensando numa outra tentativa de me retirar, quando a Sr.a Strickland voltou. Enxugara os olhos e empoara o nariz.

- Lamento ter me descontrolado - disse. - Ainda bem que você não se foi.

Sentou-se. Eu não tinha a menor ideia do que dizer. Sentia-me um tanto acanhado em falar de assuntos que não me diziam respeito. Na época não sabia que um dos pecados da mulher é a paixão de discutir seus assuntos privados com alguém que se interesse em ouvir. A Sr.a Strickland pareceu fazer um esforço sobre-humano.

- As pessoas estão comentando alguma coisa sobre o assunto? - perguntou.

Fiquei surpreso por sua dedução de que eu sabia tudo sobre seu infortúnio.

- Acabei de chegar. A única pessoa que encontrei foi Rose Waterford.

A Sr.a Strickland torceu as mãos.

- Diga exatamente o que ela lhe disse. - E como eu hesitasse, ela insistiu. - Faço questão de saber.

- A senhora sabe como as pessoas falam. Não se pode acreditar no que ela diz, não é? Ela disse que seu marido a abandonou.

- Foi só isso?

Preferi não dizer nada sobre o que Rose Waterford comentara a respeito da moça da casa de chá. Menti.

- Ela não falou nada sobre ele ter fugido com alguém?

- Não.

- Era isso que eu queria saber.

Estava um pouco confuso, mas de qualquer forma percebi que agora poderia me retirar. Quando apertei a mão da Sr.a Strickland, disse-lhe que se pudesse fazer alguma coisa por ela, ficaria feliz. Ela sorriu ligeiramente.

- Muito obrigada. Acho que ninguém pode fazer nada por mim.

Muito acanhado para exprimir minha solidariedade, virei-me para me despedir do coronel. Ele não apertou minha mão.

- Estou de saída também. Se o senhor vai por Victoria Street, Vou acompanhá-lo.

- Está bem - disse eu. - Vamos.

- É uma situação muito desagradável - disse ele, assim que chegamos à rua.

Percebi que ele tinha saído comigo a fim de conversar mais uma vez sobre o que já estivera falando com a cunhada há horas.

- Não sabemos quem é a tal mulher, compreende - disse ele. - Tudo que sabemos é que o salafrário foi para Paris.

- Pensei que se davam muito bem.

- E se davam mesmo. Ora, pouco antes de o senhor chegar, Amy disse que nunca tiveram uma briga em toda a vida de casados. O senhor conhece Amy. Não existe mulher mais perfeita no mundo.

Uma vez que ele estava me fazendo tantas confidências, não vi mal nenhum em fazer algumas perguntas.

- Mas o senhor quer dizer que ela não suspeitava de nada?

- De nada. Ele passou o mês de agosto com ela e as crianças em Norfolk. Portou-se como sempre. Estivemos lá por uns dois ou três dias, minha mulher e eu, e joguei golfe com ele. Voltou para a cidade em setembro, para que o sócio pudesse tirar férias, e Amy ficou no campo. Tinham alugado a casa por seis semanas e, ao fim desse prazo, ela escreveu para ele, avisando o dia em que chegaria em Londres. Ele respondeu de Paris. Disse que tinha decidido não viver mais com ela.

- Qual foi a explicação que deu?

- Meu caro, ele não deu qualquer explicação. Eu li a carta. Não tinha mais de 10 linhas.

- Mas isso é espantoso.

Iamos atravessar a rua e o trânsito impediu-nos de falar. O que o Coronel MacAndrew me relatara parecia muito pouco plausível, e desconfiei que a Sr.a Strickland, por alguma razão, escondera dele parte dos fatos. Era evidente que um homem após 17 anos de casado não abandona a mulher sem ter dado indícios que a fizessem suspeitar de que as coisas não iam bem com o casamento. O coronel recomeçou a conversa.

- É claro que não havia outra explicação, exceto a de ter fugido com uma mulher. Suponho ter ele pensado que ela poderia descobrir isso sozinha. É esse o tipo de homem que ele era.

- O que a Sr.a Strickland vai fazer agora?

- Bem, a primeira coisa a fazer é conseguir provas. Vou a Paris falar com ele.

- E quanto ao emprego dele? - com esse ele foi bem esperto. Já vinha se retirando do negócio há um ano.

- Ele disse ao sócio que ia deixar o negócio?

- Não, nem uma palavra.

O Coronel MacAndrew tinha um conhecimento muito superficial de negócios, e eu então não tinha nenhum, sendo assim não sabia bem em que condições Strickland tinha deixado os negócios. Pelo que entendi, o sócio estava muito zangado e ameaçava processá-lo. Pelo visto, quando tudo ficasse acertado, ele perderia umas 400 ou 500 libras.

- Felizmente os móveis do apartamento estão no nome de Amy. São dela, haja o que houver.

- Foi isso que o senhor quis dizer quando disse que ela iria ficar sem um tostão?

- É claro. Ela ficou com umas 200 ou 300 libras e a mobília.

- Mas como é que vai viver de hoje em diante?

- Sabe Deus...

O assunto estava ficando cada vez mais complicado, e o coronel, com suas injúrias e sua indignação, em vez de me esclarecer, confundia-me. Dei um suspiro de alívio quando, ao ver as horas no relógio das Lojas do Exército e da Marinha, ele lembrou de um encontro marcado para jogar cartas no clube, e despediu-se, deixando-me só para atravessar o Parque St. James.

Um ou dois dias depois, a Sr.a Strickland enviou-me um bilhete, perguntando-me se eu poderia ir vê-la naquela noite após o jantar. Encontrei-a sozinha. Seu vestido preto, de uma simplicidade austera, demonstrava seu estado de abandono, e fiquei surpreso de ver que, apesar de uma emoção verdadeira, ela pudesse representar o papel que devia de acordo com sua noção de aparência.

- Você disse que eu podia lhe pedir qualquer coisa que você não se importaria de fazê-lo - disse ela.

- É verdade.

- Você pode ir até Paris para falar com Charlie?

- Eu?

Fui apanhado de surpresa. Lembrei-me de que só o havia visto uma vez. Não sabia o que ela queria que eu fizesse.

- Fred está resolvido a ir. - Fred era o Coronel MacAndrew. - Mas sei que ele não é a pessoa certa para ir. Só vai piorar as coisas. Não sei a quem mais posso pedir.

Sua voz estava um pouco trémula, e eu sentia-me um bruto só pelo fato de hesitar.

- Mas eu não cheguei a trocar 10 palavras com seu marido. Ele não me conhece. Na certa vai me dizer pra ir pró inferno.

- Isso não vai afetá-lo. - disse a Sr.a Strickland, sorrindo.

- O que a senhora quer que eu faça exatamente? Ela não deu uma resposta direta.

- Acho que é uma grande vantagem ele não o conhecer. Compreenda, ele nunca simpatizou com Fred, achava que ele era um bobo; não compreendia os militares. Fred ficaria tomado de raiva, e haveria uma briga, e as coisas ficariam piores ainda. Se você disser que vai de minha parte, ele não pode deixar de ouvi-lo.

- Eu não a conheço há muito tempo - respondi.

- Não acho que alguém possa cuidar de um caso como esse, a menos que conheça todos os detalhes. Não quero me intrometer naquilo que não me diz respeito. Por que a senhora mesma não vai até lá e conversa diretamente com ele?

- Você se esquece que ele não está sozinho. Contive-me. Já podia ver-me indo procurar Charles

Strickland e enviar-lhe meu cartão; vi-o entrar na sala, segurando o cartão:

- A quem devo a honra?

- Vim vê-lo para falar de sua mulher.

- Veja só. Quando ficar um pouco mais velho, o senhor sem dúvida vai aprender que não deve se meter naquilo que não é da sua conta. Se fizer o favor de se virar para a esquerda, vai ver a porta. Uma boa-tarde.

Previ que seria difícil sair dali com dignidade, e lamentei profundamente não ter voltado para Londres depois de a Sr.a Strickland ter resolvido seus problemas. Lancei-lhe um olhar furtivo. Estava imersa em seus pensamentos. Naquele momento olhou para mim, suspirou profundamente e sorriu.

- Foi tudo tão inesperado - disse ela. - Estávamos casados há 17 anos. Nunca me passou pela cabeça que Charles fosse o tipo de homem que perdesse a cabeça por alguém. Sempre nos demos tão bem. É claro que eu me interessava por coisas que ele não compartilhava comigo.

- A senhora já descobriu com quem - não sabia como me expressar - com quem, com que mulher ele fugiu?

- Não. Ninguém sabe. É tão estranho. Geralmente quando um homem se apaixona por alguém, as pessoas vêem os dois juntos, almoçando ou fazendo qualquer outra coisa, e os amigos da outra vêm e contam à mulher. Eu não recebi nenhum aviso... nada. A carta dele chegou como um trovão. Pensei que ele fosse muito feliz.

Começou a chorar, coitadinha, e fiquei com muita pena. Mas logo ela se acalmou.

- Não adianta nada bancar a boba - disse, enxugando os olhos. - A única coisa é decidir qual a melhor coisa a fazer.

Continuou falando, sem muito nexo, uma hora do passado recente, outra hora de seu primeiro encontro e do casamento; mas agora eu começava a formar uma ideia coerente de suas vidas, e pareceu-me que minhas conclusões não foram erradas. A Sr.a Strickland era filha de indiano, que ao se aposentar estabeleceu-se no interior, mas costumava levar a família no mês de agosto para Eastbourne para mudarem de ares; e foi nesse local, quando tinha 20 anos, que conheceu Charles Strickland. Ele estava com 23 anos. Jogavam ténis juntos, passeavam, ouviam serenatas; e ela resolveu aceitar sua proposta de casamento quando ele a fez uma semana depois. Moraram em Londres, primeiramente em Hampstead, e depois, quando melhoraram de vida, no centro. Tiveram dois filhos.

- Ele sempre pareceu gostar muito deles. Mesmo que estivesse cansado de mim, não compreendo como teve coragem de deixá-los. É inacreditável. Mesmo agora ainda não consigo acreditar que é verdade.

Finalmente mostrou-me a carta que ele escrevera. Estava curioso por vê-la, mas não me atrevera a pedir que a mostrasse para mim.

Minha cara Amy,

Acho que você vai encontrar tudo em ordem no apartamento. Dei suas instruções a Anne, e o jantar estará pronto para você e as crianças quando chegarem. Não estarei lá para encontrá-la. Decidi me separar de você e Vou para Paris esta manhã. Vou enviar a carta pelo correio assim que chegar. Não voltarei. Minha decisão é irrevogável.

Afetuosamente, Charles Strickland.

- Nem uma palavra de explicação ou remorso. Você não acha que isso é desumano?

- É uma carta muito estranha em tais circunstâncias - repliquei.

- Só há uma explicação: a de que ele não é mais o mesmo. Não sei quem é a mulher que o levou a isso, mas ela o transformou num outro homem.   É evidente que isso já vinha acontecendo há muito tempo.

- O que a faz pensar assim?

- Fred descobriu isso. Meu marido dizia que ia ao clube três ou quatro noites por semana para jogar bridge. Fred conhece um dos sócios e falou qualquer coisa sobre Charles ser um grande jogador de bridge. O homem ficou surpreso. Disse que nunca tinha visto Charles no salão de jogo. Agora eu sei, quando pensava que ele estava no clube, estava mesmo é com ela.

Fiquei calado por um momento. Então pensei nas crianças.

- Deve ter sido difícil explicar tudo a Robert disse eu.

- Ah, não disse uma palavra a nenhum deles. Chegamos na cidade um dia antes de voltarem para o colégio. Tive a presença de espírito de dizer que o pai tinha feito uma viagem a negócios.

Não devia ter sido fácil ficar tranqiiila e despreocupada com tal segredo no coração, nem dar atenção a todas as coisas que precisavam ser feitas para que as crianças viajassem confortavelmente. Sua voz ficou trémula outra vez.

- E o que vai acontecer a eles, coitadinhos? Como vamos viver?

Lutava para controlar-se, e observei-a torcer e destorcer as mãos sem parar. Era uma cena de dar pena.

- É claro que Vou a Paris se a senhora acha que posso fazer alguma coisa, mas tem que me dizer exatamente o que quer que eu faça.

- Quero que ele volte.

- Soube pelo Coronel MacAndrew que decidiu divorciar-se.

- Nunca - respondeu ela com uma repentina violência . - Pode dizer isso a ele por mim. Ele nunca vai poder se casar com a tal mulher. Sou tão obstinada quanto ele, e não pretendo me divorciar nunca. Tenho que pensar em meus filhos.

Creio que ela acrescentou isso para se justificar comigo, mas sua decisão se devia mais ao ciúme do que à solicitude materna.

- A senhora ainda o ama?

- Não sei. Quero que ele volte. Se ele voltar, tudo pode ser esquecido. Afinal de contas, estamos casados há 17 anos. Sou uma mulher tolerante. Não me importaria com o que ele fizesse se não ficasse sabendo de nada. Ele devia saber que essa paixão não vai durar muito. Se voltar agora, tudo pode ser remediado, e ninguém vai ficar sabendo de nada.

Surpreendi-me um pouco de que a Sr.a Strickland se preocupasse com os comentários dos outros, pois ainda não tinha ideia, naquela época, de como a opinião dos outros é importante para as mulheres. Isso as leva a encobrir as emoções mais profundas com uma capa de fingimento.

Não era segredo o Jugar em que Strickland estava. Seu sócio, numa carta violenta, mandada a seu banco, insultara-o, dizendo que estava escondendo seu paradeiro; e Strickland, cinicamente, respondera-lhe, enviando seu endereço. Aparentemente estava morando num hotel.

- Nunca ouvi falar desse hotel - disse a Sr.a Strickland - mas Fred conhece bem. Diz que é um hotel muito caro.

Suas faces ruborizaram-se fortemente. Imagino que tenha visto o marido instalado numa luxuosa suíte, jantando em diferentes restaurantes caros, passando os dias assistindo a corridas e as noites a peças de teatro.

- Isso não pode ir longe na sua idade - disse ela.

- Afinal, ele tem 40 anos. Seria compreensível num homem jovem, mas acho degradante num homem da idade dele, com os filhos quase adultos. Sua saúde não vai aguentar.

Em seu peito a raiva misturava-se à dor.

- Diga a ele que sua casa clama por ele. Tudo continua como era e, entretanto, tudo mudou. Não posso viver sem ele. Prefiro morrer. Fale sobre o passado e tudo que passamos juntos. O que Vou dizer às crianças quando perguntarem por ele? Seu quarto está como o deixou. Está esperando por ele. Todos nós estamos esperando por ele.

Agora ela dissera exatamente o que eu deveria dizer. Deu-me respostas prontas para qualquer possível observação dele.

- Você vai fazer tudo que puder por mim? - disse, desconsolada. - Fale sobre o estado em que estou.

Compreendi ser seu desejo que eu apelasse para os sentimentos dele com todas as armas que possuísse. Agora soluçava sem parar. Fiquei extraordinariamente sensibilizado. Sentia-me indignado com a crueldade fria de Strickland e prometi fazer tudo que pudesse para trazê-lo de volta. Concordei em partir dois dias depois e ficar em Paris até conseguir alguma coisa. Então, como já estava ficando tarde e nós dois estávamos exaustos de tanta emoção, fui embora.

 

Durante a viagem, recapitulei o objetivo de minha ida a Paris com arrependimento. Agora que estava longe do espetáculo do infortúnio da Sr.a Strickland, podia refletir sobre o assunto com mais calma. Estava confuso com as contradições que reparei em seu comportamento. Ela demonstrava estar muito infeliz, mas para incitar minha simpatia conseguiu dar um show de infelicidade. Era evidente que se preparara para chorar, pois trouxera um estoque de lenços; admirava sua previsão, mas ao relembrar-me da cena suas lágrimas não me sensibilizaram tanto. Ainda não chegara à conclusão se ela desejava a volta do marido porque o amava ou se por temer o escândalo; e estava desconfiado de que a angústia do amor desprezado aliava-se em seu coração à dor da vaidade ferida, algo sórdido no entender de minha mente jovem. Ainda não havia aprendido o quanto a natureza humana é contraditória; não sabia quanta hipocrisia existe nas pessoas sinceras, quanta baixeza existe nos nobres de espírito, nem quanta bondade existe nos maus.

Mas havia um pouco de aventura em minha viagem, e me animava à medida que me aproximava de Paris. Via-me também, do ponto de vista dramático, e agradava-me o papel de amigo fiel, trazendo de volta o marido errante à mulher, pronta a perdoar. Decidi ir procurar Strickland na noite seguinte, pois instintivamente sentia que a hora devia ser escolhida com cuidado. Um apelo à emoção antes do almoço tem menos probabilidade de surtir efeito. Meus próprios pensamentos na época estavam sempre ocupados com o amor, mas nunca imaginei êxtase conjugal antes do chá.

Perguntei no hotel onde me hospedei, a localização do de Charles Strickland. Este chamava-se Hotel dês Belges. Mas o porteiro, para minha surpresa, nunca ouvira falar dele. Pelo que me dissera a Sr.a Strickland, era um hotel grande e suntuoso que ficava atrás da Rue de Rivoli. Procuramos no catálogo. O único hotel com aquele nome ficava na Rue dês Moines. O lugar não era elegante, e nem mesmo muito recomendável. Sacudi a cabeça.

- Tenho certeza que não é esse - disse.

O porteiro deu de ombros. Não havia nenhum outro hotel com aquele nome em Paris. Ocorreu-me que Strickland tivesse dado o endereço errado. Ao dar ao sócio esse endereço, talvez estivesse pregando-lhe uma peça. Não sei por que, tive a intuição de que trazer um corretor furioso a Paris, inutilmente, para uma casa mal-afamada, numa rua pobre, iria apelar ao senso de humor de Strickland. Ainda assim, achei melhor ir até lá e tirar a dúvida com meus próprios olhos. No dia seguinte, por volta de

6h, peguei um táxi e me dirigi à Rue dês Moines, mas saltei do carro na esquina, pois queria caminhar até o hotel e dar uma olhada por fora antes de entrar. Era uma rua de lojas pequenas com capacidade de prover apenas as necessidades de pessoas pobres, e no meio dela, à esquerda de onde eu estava, ficava o Hotel dês Belges. O meu hotel era bem simples, mas perto desse parecia de luxo. Era um prédio alto e velho, que não recebia pintura há anos, e tinha uma aparência tão ruim que as casas vizinhas pareciam limpas e bem conservadas. As janelas sujas estavam todas fechadas. Não era num lugar assim que Charles Strickland vivia no luxo com a desconhecida que o fizera abandonar a honra e o dever. Eu me sentia vexado, pois pensava que me haviam feito de bobo e quase fui embora sem perguntar nada. Entrei apenas para poder dizer a Sr.a Strickland que tinha feito todo o possível .

A porta ficava ao lado de uma loja. Estava aberta e logo na entrada havia uma tabuleta dizendo: Bureau au premier. Subi as escadas estreitas, e entre os dois lances de escadas havia uma cabina de vidro, com uma mesa e duas cadeiras. Do lado de fora, havia um banco no qual presumia-se que o porteiro da noite passasse horas inquietas. Não havia ninguém por perto, mas sob uma campainha estava escrito Garçon. Toquei-a e logo em seguida apareceu um camareiro. Era um rapaz jovem de olhos furtivos e olhar emburrado. Estava em mangas de camisa e chinelos.

Não sei por que fiz a pergunta de forma tão casual.

- O Sr. Strickland por acaso mora aqui? - perguntei .

- Número 32. Sexto andar.

Fiquei tão surpreso que por um momento não respondi .

- Ele está no momento?

O rapaz olhou para uma tabuleta no escritório.

- Ele não deixou a chave. Pode subir e ver. Achei por bem fazer mais uma pergunta.

- Madame est lá?

- Monsieur est seul.

O rapaz me olhou desconfiado quando me dirigi para o andar de cima. As escadas eram escuras e abafadas. O ar cheirava a mofo. Três andares acima, uma mulher de camisola e cabelos desgrenhados abriu a porta e olhou para mim silenciosamente quando passei. Finalmente cheguei ao sexto andar e bati na porta de número 32. Houve um barulho do lado de dentro e a porta se abriu parcialmente. Charles Strickland apareceu à minha frente . Não disse uma palavra. Obviamente não me conhecia.

Disse-lhe meu nome. Fiz o possível para parecer natural .

- O senhor não se lembra de mim. Tive o prazer de jantar em sua companhia no mês de julho último.

- Entre - disse ele interessado. - Prazer em vê-lo. Sente-se.

Entrei. Era um quarto pequeno, cheio de móveis no estilo que os franceses conhecem como Luís Filipe. Havia uma grande cama de madeira coberta por um edredom vermelho, um armário grande, uma mesa redonda, uma pequena pia e duas cadeiras estofadas de seda vermelha.

Tudo era sujo e velho. Não havia qualquer sinal do luxo que o Coronel MacAndrew descrevera tão confiante. Strickland jogou no chão as roupas que ocupavam uma das cadeiras, e sentei-me nela.

- Em que posso ser útil? - perguntou.

Naquele pequeno quarto ele parecia ainda maior do que eu me lembrava. Usava um velho paletó de Norfolk e não se barbeava há dias. Quando o vira pela última vez, estava impecável, mas parecia pouco à vontade: agora, desarrumado e sem trato, parecia perfeitamente à vontade . Não sabia como ele receberia o que eu preparara, para dizer.

- Vim procurá-lo em nome de sua mulher.

- Eu estava prestes a sair para tomar um drinque antes do jantar. É melhor o senhor vir também. Gosta de absinto?

- Gosto.

- Então vamos.

Pôs um chapéu-coco que precisava ser escovado com urgência.

- Podemos jantar juntos. O senhor me deve um jantar, não é?

- É claro. Está sozinho?

Congratulei-me por ter feito aquela pergunta tão importante naturalmente.

- Ah, sim. Na verdade não falo com ninguém há três dias. Meu francês não é o que se pode chamar de brilhante.

Perguntava-me ao descer as escadas, o que teria acontecido à jovem senhora da casa de chá. Já teriam se desentendido? Ou será que a paixão acabara? Era pouco provável, se, como parecia, ele já vinha tomando providências há um ano para essa atitude tão desatinada. Fomos até a Avenue de Clichy e sentamos numa das mesas da calçada de um grande café.

 

A Avenue de Clichy estava cheia àquela hora, e com uma alegre fantasia podia-se ver nos passantes os personagens de vários romances sórdidos. Havia balconistas e vendedores; velhos que pareciam sair das páginas do Honoré de Balzac; membros, masculinos e femimnos, das profissões que vivem à custa das fraquezas humanas. Existe nas ruas dos quarteirões pobres de Paris uma vitalidade na multidão que excita o sangue e prepara a alma para o inesperado.

- O senhor conhece bem Paris? - perguntei.

- Não. Estivemos aqui na lua-de-mel. Desde então não voltei mais.

- Como descobriu aquele hotel então?

- Me recomendaram. Eu queria um lugar barato.

O absinto chegou, e com a devida solenidade pusemos água no xarope.

- Achei que era melhor dizer logo o motivo de vir vê-lo - disse eu, não sem algum embaraço.

Ele piscou os olhos.

- Achei que viria alguém mais cedo ou mais tarde. Recebi várias cartas de Amy.

- Então o senhor já sabe exatamente o que Vou dizer.

- Não li nenhuma das cartas.

Acendi um cigarro para pensar um pouco. Não sabia bem como começar, agora que me encontrava diante dos fatos. As frases eloquentes que preparara, patéticas ou indignadas, pareciam fora de propósito na Avenue de Clichy. De repente ele deu uma risada.

- Tarefa desagradável a sua, não é?

- Ah, não sei - respondi.    

- Bem, acabe com isso e então podemos ter uma noite agradável.

Hesitei.

- Já lhe ocorreu que sua mulher está tremendamente infeliz?

- Ela vai superar isto.

Não tenho palavras para descrever a indiferença com que ele disse isso. Deixou-me desconcertado, mas fiz o possível para não demonstrar. Adotei o tom usado por meu tio Henry, um padre, quando pedia a um dos parentes donativos para a Sociedade dos Curas.

- O senhor não se importa se eu falar francamente? Sacudiu a cabeça, rindo.

- Ela mereceu ser tratada dessa maneira?

- Não.

- O senhor tem alguma reclamação a respeito dela?

- Nenhuma.

- Então, não é monstruoso abandoná-la assim, após 17 anos de casados, sem que ela lhe tenha feito nada?

- Monstruoso.

Olhei-o surpreso. Sua presteza em concordar com tudo que eu dizia deixou-me sem argumentos. Tomou minha posição difícil, para não dizer ridícula. Estava preparado para ser persuasivo, comovente e exortatório, admoestativo e exprobatório, se necessário até injurioso, indignado e sarcástico, mas o que pode fazer aquele que se propõe aconselhar quando o pecador não se importa de confessar seu pecado? Não tinha experiência no assunto, já que eu mesmo sempre negara tudo.

- E então? - perguntou Strickland. Tentei demonstrar uma atitude pensativa.

- Bem, se o senhor reconhece isso, parece não haver muito mais a dizer.

- Não acho que haja.

Sentia que não estava me desempenhando de minha tarefa com muita habilidade. Estava visivelmente irritado.

- Que diabo, não se pode abandonar uma mulher sem um tostão.

- Por que não?

- Como ela vai viver?

- Eu a sustentei durante 17 anos. Por que é que agora ela não pode se sustentar um pouco?

- Porque não.

- Vamos fazer com que tente.

É evidente que eu poderia ter respondido muitas coisas a isso. Poderia ter falado da posição económica da mulher, do contrato, tácito e aberto, que um homem aceita ao se casar, e de muito mais, mas sentia que havia apenas uma coisa que realmente importava.

- Você não gosta mais dela?

- Nem um pouco - respondeu.

O assunto era muito sério para ambas as partes, mas havia nas respostas dele uma tal afronta irónica que eu tinha que morder os lábios para não rir. Lembrei a mim mesmo que seu comportamento era abominável. Assumi uma atitude de indignação moral.

- Pelo amor de Deus, e seus filhos? Nunca lhe fizeram nenhum mal. Não pediram pra nascer. Se você jogar tudo pró alto dessa maneira, eles vão ficar desamparados.

- Eles tiveram muitos anos de conforto.  Tiveram mais do que a maioria tem. Além disso, alguém vai cuidar deles. Quando chegar a hora, os MacAndrew vão pagar seus estudos.

- Mas você não gosta deles? São crianças ótimas. Está me dizendo que não quer mais saber deles?

- Eu gostava deles quando eram pequenos, mas; agora que estão crescidos não sinto mais nada por eles.

- É desumano.

- Também acho. !

- Você não parece nem um pouco envergonhado.

- E não estou. Tentei outra tacada.

- Todo mundo vai considerá-lo um crápula.

- Problema deles.

- Não o afeta saber que as pessoas o odeiam e o desprezam?

- Não.

Sua resposta curta era tão cheia de escárnio que fez minha pergunta, embora natural, parecer absurda. Refleti por alguns minutos.

- Não sei como é que se pode viver tranquilamente sabendo que os outros nos desaprovam? Tem certeza que isso não vai começar a incomodá-lo? Todas as pessoas têm alguma consciência, e mais cedo ou mais tarde ela vai se revelar a você. E se por acaso sua mulher morresse, você não ficaria torturado pelo remorso?

Ele não respondeu e esperei algum tempo para que dissesse algo. Finalmente tive que falar eu mesmo.

- O que você me diz a isso?

- Apenas que você é um bobo.

- De qualquer maneira, você pode ser obrigado a sustentar sua mulher e filhos - retorqui, um tanto ofendido. - Imagino que a lei possa oferecer-lhe alguma proteção.

- Será que a lei é capaz de tirar sangue de uma pedra? Não tenho dinheiro nenhum. Tenho apenas umas 100 libras.

Comecei a ficar mais confuso do que antes. Era verdade que o hotel que ele se hospedava demonstrava uma situação das mais precárias.

- O que vai fazer quando esse dinheiro acabar?

- Ganhar mais algum.

Estava completamente frio, e seus olhos tinham aquele sorriso sardónico que faziam minhas palavras parecerem tolas. Parei um pouco para pensar o que seria melhor dizer em seguida. Mas foi ele que falou primeiro.

- Por que Amy não se casa outra vez? Ela é bem jovem ainda e não é feia. Posso recomendá-la como excelente mulher. Se ela quiser o divórcio, não me importo.

Agora foi minha vez de sorrir. Era muito esperto, mas era obviamente isso que ele queria. Tinha alguma razão para esconder o fato de que tinha fugido com uma mulher e estava tendo toda precaução para esconder seu paradeiro. Respondi decididamente:

- Sua mulher disse que nada do que você fizer a induzirá a pedir o divórcio. Ela já decidiu. Você pode tirar isso da cabeça.

Ele me olhou com uma surpresa que não era fingida. Deixou de sorrir e falou com seriedade:

- Mas, meu caro, não ligo a mínima. Não faz diferença pra mim.

Ri.

- Ah, essa não, não pense que nós somos tão bobos assim. Sabemos que fugiu com uma mulher.

Ele ficou um pouco perplexo e então caiu na gargalhada. Ria de maneira tão espalhafatosa que as pessoas sentadas perto de nós olharam para ele e algumas começaram a rir também.

- Não vejo nada de engraçado nisso.

- Pobre Amy - disse, rindo. Então seu rosto ficou com uma expressão escarnecedora. - Como as mulheres têm pouca imaginação! Amor. Sempre o amor. Acham que os homens as abandonam apenas porque desejam outras. Você acha que eu seria tão tolo assim, para fazer o que fiz por uma mulher?

- Quer dizer que você não a deixou por outra mulher?

- É claro que não.

- Dá sua palavra de honra?

Não sei por que fiz essa pergunta. Foi muito ingénuo de minha parte.

- Palavra de honra.

- Então por que razão a deixou?  

- Quero pintar.

Olhei-o longamente. Não compreendia. Pensei que estava louco. Devo lembrar que eu era muito jovem, e via-o como um homem de meia-idade. Esqueci tudo a não ser minha própria surpresa.

- Mas você tem 40 anos.

- Foi por isso que achei que já estava mais do que na hora de começar.

- Você já pintou alguma vez?

- Sempre quis ser pintor quando era menino, mas meu pai me obrigou a ser corretor porque dizia que arte não dava dinheiro. Comecei a pintar um pouco há um ano. Frequentei umas aulas notumas no ano passado.

- Era a essas aulas que você ia quando a Sr.a Strickland pensava que estava jogando bridge no clube?

- Isso mesmo.

- Por que não lhe disse?

- Preferi não contar.

- Você sabe pintar?

- Ainda não. Mas Vou aprender. Foi por isso que vim pra cá.   Não conseguia o que queria em Londres. Talvez consiga aqui.

- Você acha que alguém pode conseguir pintar bem quando começa na sua idade? A maioria das pessoas começa a pintar aos 18 anos.

- Posso aprender mais rápido do que quando tinha 18 anos.

- Quem lhe garante que você tem talento?

Ele não respondeu logo. Estava com o olhar fixo na multidão dos passantes, mas não creio que os estivesse vendo. Sua resposta não respondeu nada:

- Tenho que pintar.

- Será que não está correndo um risco muito grande?

Então olhou para mim. Seus olhos tinham algo estranho que me fizeram ficar pouco à vontade.

- Quantos anos você tem? Vinte e três? Pareceu-me que a pergunta não tinha nada a ver com a conversa. Era natural que eu corresse riscos; mas ele já não era mais jovem, um corretor com uma posição respeitável, mulher e filhos. Uma atitude que para mim seria natural, era absurda no seu caso. Tentei ser justo.

- É claro que pode acontecer um milagre e você se tornar um grande pintor, mas você há de convir que é uma possibilidade entre mil. Vai ser bem desagradável se no fim você descobrir que estragou tudo por nada.

- Tenho que pintar - repetiu ele.

- Supondo-se que você nunca passe de um pintor de terceira categoria, você acha que terá valido a pena desistir de tudo? Afinal de contas, em outras profissões não faz diferença se não se tem muita vocação; podemos viver confortavelmente se fizermos o trabalho razoavelmente; mas com um artista é diferente.

- Idiota - disse ele.

- Não sei por que, a menos que seja idiotice dizer o óbvio.

- Já lhe disse que tenho que pintar. É mais forte do que eu. Quando um homem cai dentro dlágua, não interessa se nada bem ou mal, tem que se safar senão morre afogado.

Sua voz denotava uma paixão verdadeira, e fiquei impressionado, apesar de tudo. Pensei sentir nele uma força veemente que lutava no seu interior; dava-me a sensação de algo muito forte, dominante, que o possuía, contra sua vontade. Não conseguia compreender. Ele parecia estar realmente possuído por um demónio, e eu sentia que este poderia de repente virar-se e destruí-lo.

Entretanto, ele parecia normal. Não lhe causava nenhum embaraço ao observá-lo com curiosidade. Imaginei o que um estranho teria pensado dele, sentado ali com seu velho paletó de Norfolk e com o chapéu empoeirado; suas calças estavam amassadas, suas mãos sujas, e o rosto - com o tufo vermelho do queixo barbado, os olhos pequenos e o nariz grande e proeminente - era rude e grosseiro. A boca, grande; os lábios, grossos e sensuais. Não, eu não poderia imaginar quem fora.

- Você não vai voltar pra sua mulher? - disse eu finalmente.

- Nunca.

- Ela está disposta a esquecer tudo que aconteceu e começar vida nova. Ela nunca irá repreendê-lo.

- Por mim ela pode ir pró inferno.

- Você não se importa se os outros o considerarem um salafrário? Não se importa se ela e seus filhos tiverem de pedir esmola?

- Nem um pouco.

Fiquei calado por um momento para dar maior força a minhas palavras. Falei com a maior franqueza que pude.

- Você é um crápula.

- Agora que conseguiu desabafar, vamos jantar.

 

Concordo que teria sido mais adequado recusar o convite. Talvez devesse demonstrar toda a indignação que sentia, e tenho certeza de que o Coronel MacAndrew teria apreciado se eu pudesse relatar minha firme recusa de sentar-me à mesma mesa que um homem com tal caráter. Mas o medo de não conseguir agir com a devida firmeza sempre me deixava acanhado em assumir a atitude moralista; e nesse caso, com Strickland, a certeza de que meus sentimentos seriam vãos deixou-me inibido para exprimi-los. Só o poeta ou o santo conseguem regar o asfalto com a confiança de que conseguirão colher lírios como recompensa de seu trabalho.

Paguei as bebidas e nos dirigimos para um restaurante barato, cheio e alegre, onde jantamos com prazer. Eu tinha o apetite da juventude e ele o de uma consciência pesada. Depois fomos para um bar tomar café e licor.

Eu já disse tudo que tinha para dizer sobre o assunto que me trouxera a Paris, e embora achasse que era uma traição a Sr.a Strickland não voltar a falar nisso, não conseguia lutar contra a indiferença dele. É preciso ter o temperamento femimno para repetir a mesma coisa três vezes com a mesma energia. Consolava-me, achando que seria útil descobrir o que pudesse sobre o estado de espírito de Strickland. E também me interessava muito mais. Mas não era fácil, pois Strickland tinha dificuldade para conversar. Parecia não conseguir expressar-se, como se as palavras não fossem um meio pelo qual sua mente se comumcasse; e era preciso adivinhar as intenções de sua alma por frases toscas, gíria e gestos vagos e inacabados. Mas embora não dissesse nada de peso, havia alguma coisa em sua personalidade que não o deixava ser uma pessoa insignificante. Talvez fosse sinceridade. Ele parecia não ligar muito para a Paris que estava vendo agora pela primeira vez (não contava com a visita feita com a mulher) , e via as paisagens que deviam ser estranhas para ele sem qualquer perplexidade. Já fui a Paris umas 100 vezes, e nunca deixo de sentir emoção; não consigo passar por suas ruas sem sentir que estou para viver uma aventura. Strickland permanecia tranquilo. Relembrando aquele tempo, acho agora que ele não enxergava nada senão uma visão perturbadora de sua alma.

Aconteceu um incidente bastante absurdo. Havia algumas prostitutas no bar: umas estavam sentadas com homens e outras sozinhas; e reparei que uma dessas estava olhando para nós. Quando encarou Strickland, sorriu. Não creio que ele a tenha visto. Pouco depois ela saiu, mas num minuto voltou e, ao passar por nossa mesa, pediu-nos que lhe pagássemos uma bebida. Sentou-se e comecei a conversar com ela, mas estava claro que se interessara por Strickland. Expliquei-lhe que ele não sabia mais de duas palavras de francês. Ela tentou conversar com ele, por meio de gestos e de gírias, que, por alguma razão, ela achava que seriam mais compreensíveis para ele, e conhecia meia dúzia de frases em inglês. Fez-me traduzir o que só conseguia expressar em sua própria língua, e perguntava interessada o que ele respondia. Ele, de bom humor, se divertia um pouco com a conversa, mas sua indiferença era clara.

- Acho que você fez uma conquista - disse eu, rindo.

- Não fico lisonjeado.

Em seu lugar eu ficaria mais embaraçado e menos calmo. Ela possuía olhos alegres e uma boca encantadora. Era jovem. Perguntava a mim mesmo o que ela achara atraente em Strickland. Não fazia segredo de seus desejos, e eu era obrigado a traduzir.

- Ela quer que você vá para casa com ela.

- Não Vou levar ninguém - replicou ele. Transmiti sua resposta da melhor forma que pude.

Parecia-me um pouco indelicado recusar um convite daque^es, e justifiquei sua recusa como se fosse por falta de dinheiro.

- Mas eu gosto dele - ela falou. - Diz a ele que é por amor.

Quando traduzi isso, Strickland deu de ombros impaciente .

- Mande-a pró inferno - disse.

Seus modos deixaram sua resposta bem clara, e a garota jogou a cabeça para trás com um gesto repentino. Talvez tenha enrubescido sob a maquiagem. Levantou-se.

- Monsieur ríest pás poli - disse ela. Saiu do bar. Eu fiquei um pouco sem jeito.

- Não havia necessidade de ofendê-la.   Afinal de contas, estava lhe fazendo um cumprimento.

- Esse tipo de coisa me aborrece - falou ele asperamente.

Olhei-o curioso. Havia um desprezo verdadeiro em seu rosto, e entretanto era o rosto de um homem rude e sensual. Acho que a garota se sentiu atraída por uma certa brutalidade existente nele.

- Eu podia ter tido todas as mulheres que quisesse em Londres. Não vim aqui pra isso.

 

Durante a viagem de volta à Inglaterra, pensei muito em Strickland. Tentei pôr em ordem o que iria dizer à sua mulher. Era insatisfatório, e eu não imaginava que ela pudesse ficar contente comigo; eu mesmo não estava contente comigo. Strickland me deixara perplexo. Não conseguia compreender seus motivos. Quando perguntei o que lhe dera a ideia de ser um pintor, não conseguiu ou não quis me dizer. Não pude concluir nada. Tentei persuadir-me de que um obscuro sentimento de revolta tinha gradativamente tomado corpo em sua mente, mas, por outro lado, havia o fato indubitável de que nunca demonstrara impaciência em relação à monotonia de sua vida. Se, tomado de um tédio intolerável, tivesse decidido ser um pintor apenas para quebrar os laços de monotonia, teria sido compreensíve1, e vulgar, mas vulgar era precisamente o que eu sentia que ele não era. Finalmente, por ser romântico, inventei uma explicação que reconhecia ser forçada, mas que era a única que me satisfazia. Era essa: perguntei-me se não haveria em sua alma algum profundo instinto de criação, que as circunstâncias de sua vida houvessem obscurecido, mas que crescera implacavelmente, como um câncer nos tecidos vivos, até que finalmente se apoderou de todo o seu ser e o forçou a agir. O cuco põe os ovos no ninho de um pássaro estranho, e quando o mais novo é chocado, empurra os irmãos de criação para fora e finalmente destrói o ninho que o acolheu.

Mas como era estranho que o instinto criativo se apossasse desse corretor medíocre, para sua própria ruína, talvez, e para a infelicidade daqueles que dependiam dele; e, entretanto, não era mais estranho do que a maneira que o espírito de Deus se apossa dos homens, poderosos e ricos, perseguindo-os com obstinação até que por fim, vencidos, abandonam os prazeres mundanos e o amor das mulheres pela austeridade da clausura. A conversão pode se processar sob várias formas, e se concretizar de várias maneiras. com alguns homens é preciso um cataclismo, como uma pedra se quebra em pedaços com a fúria de uma tempestade; com outros, porém, ela se processa gradativamente, assim como uma pedra que se vai desgastando sob a constante queda de uma gota dlágua. Strickland tinha a objetividade de um fanático e a ferocidade do apóstolo.

Mas para minha mente prática, teria que confirmar se a paixão que o obcecava seria justificada com seus trabalhos. Quando perguntei o que os colegas do curso noturno que frequentara em Londres achavam de sua pintura, ele respondeu com um riso:

- Acharam que era uma piada.

- Você já começou a ir a algum estúdio aqui?

- Já. Esta manhã apareceu o sujeito que supervisiona, o mestre. Quando viu meu desenho, só fez levantar as sobrancelhas e sair andando.

Strickland riu. Não parecia perturbado. A opinião dos outros não lhe importava.

E foi justamente isso que mais me desconcertou quando conversei com ele. Quando as pessoas dizem que não ligam para o que os outros pensam, na maioria das vezes enganam-se a si próprias. Geralmente querem dizer com isso que pretendem agir da forma que bem entendem, acreditando que ninguém vai ficar sabendo de suas excentricidades; e, quando muito, apenas estão dispostas a agir ao contrário da opinião da maioria por serem apoiadas pelo aval dos mais próximos. Não é difícil ser diferente aos olhos do mundo quando a falta de convencionalismo é a própria convenção do grupo. Isso proporciona então uma grande auto-estima. Temos a auto-satisfação da coragem sem a inconveniência do perigo. Mas o desejo de aprovação talvez seja o instinto mais profundo do homem civilizado. Ninguém se apega mais à capa de respeitabilidade do que a mulher que se expôs às flechadas da propriedade ultrajada. Não acredito nas pessoas que dizem que não se importam com a opinião dos outros. São bravatas da ignorância. Dizem com isso apenas que não temem as críticas de pequenas faltas que sabem que ninguém ficará sabendo.

Mas aqui estava um homem que realmente não se importava com o que os outros pensassem dele; sendo assim, não era escravo da convenção, era como um lutador que tivesse o corpo coberto de óleo: não se conseguia segurá-lo. Isso lhe dava uma liberdade que era uma afronta. Lembro-me de ter dito:

- Pense bem, se todos agissem como você, o mundo não poderia continuar.

- Isso é uma besteira. As pessoas não desejam agir como eu. A grande maioria se satisfaz em agir normalmente.

E numa das vezes tentei ironizar.      

- Está claro que você não acredita na máxima: Aja da forma que todas as suas ações possam se transformar numa regra umversal.

- Nunca ouvi isso antes, mas é uma grande besteira.

- Bem, foi Kant que disse.

- Não me diz nada, é uma besteira.

com um homem assim, não se podia esperar que o apelo à consciência pudesse surtir efeito. Era o mesmo que querer obter um reflexo sem ter um espelho. Penso que a consciência no indivíduo é a guardiã das regras que a comumdade desenvolveu para sua própria preservação. É o policial que existe em nosso coração para evitar que não cumpramos as leis. É o espião situado na parte central do ego. O desejo do homem pela aprovação de seus semelhantes é tão forte, o temor à censura tão violento, que ele mesmo trouxe o inimigo em seu próprio interior; e esse, toma conta dele, sempre alerta no interesse de seu dono em esmagar qualquer desejo de se soltar do rebanho. Força-o a pôr o bem da sociedade à frente do seu. É o forte elo que prende o indivíduo ao todo. E o homem, subserviente aos interesses de que se convenceu serem maiores do que o seu próprio interesse, torna-se um escravo desse dono. Coloca-o num lugar de honra. Finalmente, como um cortesão que bajula o poder real, orgulha-se da sensibilidade de sua consciência. Então não mede críticas para aquele que não age da mesma forma; pois, como membro da sociedade agora, dá-se conta de que é impotente contra ele. Quando vi que Strickland era realmente indiferente às críticas que sua conduta iriam provocar, só podia encolher-me horrorizado como se fugisse de um monstro.

As últimas palavras que me disse, ao me despedir, foram:

- Diz a Amy que não adianta vir atrás de mim. De qualquer forma, Vou mudar de hotel, para que ela não consiga me encontrar.

Tenho impressão de que ela está bem melhor longe de você - disse eu.

- Meu caro, só espero que você consiga fazê-la entender isso. Mas as mulheres são tão pouco inteligentes.

 

Quando cheguei a Londres, encontrei esperando por mim um pedido urgente de que fosse à casa da Sr.a Strickland logo depois do jantar. Encontrei-a com o Coronel MacAndrew e a mulher. A irmã da Sr.a Strickland era mais velha do que ela. Parecia com ela, porém estava mais envelhecida; e tinha o ar imponente de quem carrega o rei na barriga, típico das mulheres de oficiais mais velhos, pela consciência de pertencer a uma casta superior. Tinha maneiras secas e, apesar da boa educação, não conseguia esconder a convicção de que se você não fosse um soldado não era lá grande coisa. Odiava a Guarda da Rainha, pois achava-os convencidos, e era suspeita ao falar de suas mulheres, tão negligentes com as visitas. Seu vestido era caro e deselegante.

A Sr.a Strickland estava visivelmente nervosa.

- Bem, conte-nos as novidades - disse ela.

- Falei com seu marido. Receio que esteja decidido a não voltar. - Fiz uma pausa. - Ele quer pintar.

- O quê? - gritou a Sr.a Strickland, com a maior surpresa.

- A senhora já tinha ouvido falar alguma vez que ele gostava de pintar?

- Deve estar tão louco quanto o chapeleiro louco!

- exclamou o coronel.

A Sr.a Strickland franziu as sobrancelhas. Tentava lembrar-se de alguma coisa.

- Lembro que antes de nos casarmos ele costumava andar com uma caixa de tintas. Mas nunca se via seus rabiscos. Costumávamos zombar dele. Não tinha o menor talento.

- É claro que isso é apenas uma desculpa - disse a Sr.a MacAndrew.

A Sr.a Strickland refletiu profundamente por algum tempo. Era evidente que não conseguia entender nada do que eu tinha dito. Já havia posto alguma ordem na sala de estar, seu instinto de dona-de-casa tendo superado o desânimo ante a separação, e a sala já não tinha aquele ar abandonado, como uma casa mobiliada há muito para alugar, que eu notara na minha primeira visita depois da catástrofe. Mas agora que tinha visto Strickland em Paris, era difícil imaginá-lo nesse ambiente. Achei que não era possível que nunca tivessem percebido alguma coisa diferente nele.

- Mas se ele queria ser um artista, por que não me disse? -perguntou a Sr.a Strickland finalmente.   Acho que eu seria a última pessoa a ver com maus olhos uma ... uma aspiração dessas.

A Sr.a MacAndrew apertou os lábios. Suponho que nunca aprovou a tendência da irmã de se dar com pessoas que cultivassem as artes. Falava de seu hábito de se envolver com artistas com ironia.

A Sr.a Strickland continuou:

- Afinal de contas, se ele tivesse algum talento, eu seria a primeira a encorajá-lo. Não ia me importar com sacrifícios. Preferia estar casada com um pintor do que com um corretor. Se não fosse pelos meus filhos, nada mais importaria. Podia ser tão feliz num estúdio velho em Chelsea quanto aqui neste apartamento.

- Minha querida, não tenho paciência com Você gritou a Sr.a MacAndrew. - Não me diga que acredita nessa bobagem.

- Mas acho que é verdade - disse eu com ponderação .

Ela me olhou com um certo desprezo.

- Um homem não joga o emprego pró alto e abandona a mulher e os filhos aos 40 anos para se tornar um pintor, a menos que haja uma mulher envolvida. Suponho que ele tenha conhecido uma de suas... suas amigas artistas, e ela lhe tenha virado a cabeça.

As faces pálidas da Sr.a Strickland ficaram avermelhadas .

- Como ela é?

Hesitei um pouco. Sabia que tinha uma bomba para contar.

- Não existe mulher alguma.

O Coronel MacAndrew e a mulher se mostraram incrédulos, e a Sr.a Strickland levantou-se bruscamente,

- Quer dizer que nunca a viu?

- Não há ninguém para ver. Ele está sozinho.

- Isso é ridículo - gritou a Sr.a MacAndrew.

- Sabia que quem devia ter ido era eu - disse o coronel. - Podem ter certeza de que eu a teria descoberto rapidamente.

- Gostaria que o senhor tivesse ido - repliquei, um tanto asperamente. - O senhor teria visto que todas as suas suposições eram erradas. Ele não está num hotel caro. Está vivendo num pequeno quarto da forma mais precária. Se abandonou o lar, não foi pra viver uma vida de prazeres. Está praticamente sem dinheiro.

- O senhor acha que ele fez alguma coisa que não sabemos e está escondido por causa da polícia?

A hipótese deu um raio de esperança a todos eles, mas não tinha nada a ver com isso.

- Se fosse o caso, ele não teria sido tão bobo pra dar o endereço ao sócio - retorqui com sarcasmo. - De qualquer maneira, de uma coisa tenho certeza: ele não fugiu com ninguém. Não está apaixonado. Isso nem lhe passa pela cabeça.

Houve uma pausa enquanto refletiam sobre o que eu dissera.

- Bem, se o que o senhor diz é verdade - disse a Sr.a MacAndrew finalmente - as coisas não são tão ruins como pensei.

A Sr.a Strickland olhou para ela, mas não disse nada. Estava muito pálida agora, e sua bela expressão estava carregada. Eu não conseguia entender por quê. A Sr.a MacAndrew continuou:

- Se for apenas um capricho, isso passa.

- Por que você não vai procurá-lo, Amy? - aventurou-se a dizer o Coronel. - Não há razão para você não passar um ano com ele em Paris. Nós tomamos conta dos meninos. Garanto que ele vai se cansar. Mais cedo ou mais tarde, ele vai querer voltar para Londres, e não haverá qualquer prejuízo.

- Eu não faria isso - disse a Sr.a MacAndrew.

- Eu lhe daria bastante corda. Ele vai voltar com o rabo entre as pernas e se acomodar novamente. - A Sr.a MacAndrew 0lhou para a irmã friamente. - Talvez você não tenha sabido compreendê-lo algumas vezes. Os homens são criaturas estranhas e temos que saber como levá-los.

A Sr.a MacAndrew pensava, como todas as mulheres, que o homem que abandona a mulher é um bruto, mas que a mulher também é muito culpada se ele fizer isso. Lê coeur a sés raisons que Ia raison ne connait point.

A Sr.3 Strickland olhou lentamente para cada um de nós.

- Ele não vai voltar nunca mais - disse ela.

- Ah, minha querida, lembre-se do que acabamos de ouvir. Ele está habituado ao conforto e a ter alguém que cuide dele. Quanto tempo você acha que vai levar pra ele se cansar de um quarto sujo num pardieiro? Além disso, ele não tem dinheiro. Vai voltar na certa.

- Enquanto pensei que ele tinha fugido com uma mulher, achei que havia uma chance. Não acredito que esse tipo de coisa dure muito tempo. Ele se cansaria dela em três meses. Mas se ele não foi embora por amor, então está tudo terminado.

- Ah, acho que isso é uma bobagem - disse o coronel, expressando com suas palavras todo o desprezo que sentia por uma característica tão estranha às tradições de sua vocação. - Não pense assim. Ele vai voltar, e, como Dorothy disse, aposto que não lhe vai fazer mal ter dado uma escapulida.

- Mas eu não quero que ele volte - disse ela.

- Amy!

A Sr.a Strickland estava irada, e sua palidez era a palidez de uma raiva fria e repentina. Agora falava rapidamente, de maneira ofegante.

- Eu podia perdoá-lo se tivesse se apaixonado perdidamente por alguém e fugido com ela. Acharia isso natural. Não o curparia realmente. Acharia que tinha sido levado a isso. Os homens são tão fracos, e as mulheres tão sem escrúpulos. Mas isso é diferente. Eu o odeio. Nunca Vou perdoá-lo.

O Coronel MacAndrew e a muTher começaram, juntos, a falar com ela. Estavam atónitos. Diziam-lhe que era louca. Não conseguiam compreender. A Sr.a Strickland virou-se desesperadamente para mim:

- Você não percebe? - gritou ela.

- Não estou bem certo. A senhora está tentando dizer que poderia tê-lo perdoado se ele a tivesse deixado por uma mulher, mas não se ele a deixou por uma ideia? A senhora acredita que no primeiro caso poderia competir com a outra, mas que no segundo não?

A Sr.a Strickland olhou-me de maneira não muito amigável, mas não respondeu. Talvez eu tenha tocado no ponto básico do problema. Ela continuou com voz baixa e trémula:

- Nunca pensei que pudesse odiar tanto uma pessoa como odeio agora. Sabe, tinha me consolado com a ideia de que embora o caso durasse, ele me chamaria no final. Sabia que quando estivesse morrendo, mandaria me chamar, e estava pronta pra ir; eu o teria tratado como sua mãe, e no último momento lhe diria que não me importava com o que ele me fizera, sempre o amara e perdoava tudo.

Sempre me surpreendi um pouco com a paixão que as mulheres têm por se comportar de maneira tão perfeita no leito de morte daqueles que amam. Às vezes parece que lamentam a longevidade que adia sua oportumdade de representar uma cena tão comovente.

- Mas agora... agora está acabado. Sou tão indiferente a ele como se fosse um estranho. Gostaria que morresse miseravelmente, pobre e faminto, sem um amigo. Espero que apodreça com alguma doença horrível.

Achei por bem dizer o que Strickland tinha sugerido.

- Se quiser se divorciar, ele está disposto a fazer o necessário para isso.

- Por que eu deveria lhe dar a liberdade?

- Não acho que ela queira. Apenas pensou que poderia ser mais conveniente para a senhora.

A Sr.a Strickland deu de ombros impacientemente. Acho que fiquei desapontado com ela. Esperava mais das pessoas naquela época do que agora, e entristecia-me ver tamanho desejo de vingança numa pessoa tão encantadora. Não me dava conta de como são variadas as características que compõem um ser humano. Agora sei que mesquinharia e grandeza, maldade e caridade, ódio e amor podem encontrar-se lado a lado no mesmo coração.

Perguntava-me se havia algo que pudesse dizer para diminuir o sentimento de humilhação que naquele momento atormentava a Sr.a Strickland. Achei que devia tentar.

- A senhora sabe, não estou certo se seu marido é responsável por suas ações. Acho que não é ele mesmo. Pareceu-me estar possuído por algum poder que o está usando para seus próprios fins, e em cujas mãos ele é tão impotente quanto uma mosca numa teia de aranha.   É como se alguém o tivesse enfeitiçado. Ele me fez lembrar daquelas histórias estranhas, que às vezes são contadas, de uma outra personalidade se apossando de um homem e eliminando a antiga. A alma vive no corpo de maneira instável, e é capaz de misteriosas transformações. Na Idade Média as pessoas diriam que Charles Strickland estava possuído pelo demónio.

A Sr.a MacAndrew ajeitou a fazenda do vestido, e pulseiras de ouro rolaram-lhe pelo braço.

- Isso tudo me parece muito forçado - disse sarcasticamente. - Não nego que talvez Amy tenha confiado muito no marido. Se não estivesse tão ocupada com os próprios interesses, creio que teria desconfiado que algo estava acontecendo. Não creio que Alec poderia ficar com alguma coisa na cabeça durante um ano ou mais sem que eu tivesse uma boa ideia do que fosse.

O coronel olhava para o vazio, e perguntei-me se alguém podia ser tão inocente como ele parecia.

- Mas isso não impede que Charles Strickland seja um bruto sem coração. - Olhou para mim severamente.

- Sei exatamente por que ele deixou a mulher... por puro egoísmo e nada mais.

- Essa talvez seja a explicação mais simples - eu falei. Mas achei que não explicava nada. Quando disse que estava cansado e levantei-me para ir embora, a Sr.a Strickland não fez qualquer gesto para deter-me.

 

O que aconteceu em seguida demonstrou que a Sr.a Strickland era uma mulher de personalidade. Fosse lá o que estivesse passando, conseguiu esconder. Percebeu inteligentemente que o mundo logo se aborrece com a infelicidade e evita de bom grado a visão da tristeza. Aonde quer que fosse - e a compaixão por seu infortúnio fez com que seus amigos desejassem entretê-la - comportava-se com perfeição. Era corajosa, mas não muito obviamente; animada, mas não em excesso; e parecia mais interessada em ouvir os problemas dos outros do que em discutir os seus. Sempre que falava do marido era com pena. Sua atitude em relação a ele no começo confundiu-me. Um dia ela me falou:

- Sabe, estou convencida de que você estava enganado quanto a Charles estar sozinho. Pelo que pude saber de algumas fontes que não posso revelar, ele não deixou a Inglaterra sozinho.

- Nesse caso ele é muito astuto para esconder suas pegadas.

Ela olhou para outro lado e enrubesceu ligeiramente.

- O que eu quero dizer é que se alguém conversar com você sobre isso, por favor não os contradiga se disserem que fugiu com alguém.

- É claro que não.

Ela mudou de conversa como se não desse importância ao assunto. Descobri posteriormente que andava circulando entre seus amigos uma determinada história. Diziam que Charles Strickland tinha se apaixonado por uma dançarina francesa, que vira pela primeira vez num bale na Inglaterra, e a acompanhara até Paris. Não pude descobrir de que maneira tal história tinha surgido, porém o mais estranho era que ela gerara simpatia pela Sr.a Strickland e, ao mesmo tempo, dava-lhe prestígio. Isso não deixou de lhe ser útil na profissão que resolveu seguir.

O Coronel MacAndrew não exagerara ao dizer que ela ficaria sem um tostão e que seria necessário trabalhar para viver o mais rápido possível. Ela decidiu aproveitar o relacionamento com tantos escritores, e sem perda de tempo começou a aprender taquigrafia e datilografia. Sua educação contribuiu para que fosse uma datilógrafa melhor do que a média, e sua história tomava sua necessidade mais atraente. Seus amigos prometeram-lhe enviar trabalho e se preocuparam em recomendá-la a outros amigos. Os MacAndrew, que não tinham filhos e estavam bem de vida, passaram a sustentar as crianças, e a Sr.a Strickland precisava apenas cuidar dela mesma. Deixou o apartamento e vendeu os móveis. Estabeleceu-se em duas pequenas peças em Westminster e enfrentou a nova vida. Era tão eficiente que na certa teria sucesso.

 

Foi cerca de cinco anos depois disso que resolvi ir morar em Paris por algum tempo. Estava ficando entediado em Londres. Não aguentava mais fazer a mesma coisa todos os dias. Meus amigos seguiam sua vida rotineiramente, não tinham mais surpresas para mim, e quando os encontrava sabia exatamente o que iriam dizer, até mesmo seus casos amorosos eram de uma banalidade monótona. Éramos como bondes correndo nos fios de um terminal a outro, podendo-se calcular dentro de poucos limites o número de passageiros que levariam. A vida estava bem ordenada demais. Fui tomado de pânico. Deixei meu pequeno apartamento, vendi os poucos móveis que tinha e decidi começar vida nova.

Fui visitar a Sr.a Strickland antes de partir. Não a via há algum tempo e reparei algumas mudanças nela: não só estava mais velha, mais magra e elegante, mas acho que sua personalidade também se modificara. Tinha feito sucesso com seu negócio e agora possuía um escritório em Chancery Lane; ela própria quase não batia à máquina; em vez disso, corrigia o trabalho das quatro moças que empregara. Tivera a ideia de dar um toque femimno ao trabalho, e usava tinta azul e vermelha; encadernava a cópia em papel que parecia seda, em várias cores claras; e adquirira uma reputação de limpeza e precisão . Estava ganhando bem. Mas não conseguia deixar de achar que trabalhar para viver era um tanto indigno, e gostava de fazer lembrar que era uma dama. Não podia deixar de falar nos nomes de pessoas que conhecia, o que demonstrava que não descera de posição social. Envergonhava-se um pouco de sua coragem e eficiência profissional, mas regozijava-se de ir jantar na noite seguinte com um conselheiro real que morava em South Kensington. Gostava de dizer que seu filho estudava em Cambridge, e era com alegria que falava das festas a que a filha, que acabara de sair do colégio, era convidada. Acho que falei algo que não devia.

- Ela vai trabalhar com a senhora? - perguntei.

- Oh, não, eu não a deixaria fazer isso - respondeu a Sr.a Strickland. - Ela é tão bonita. Tenho certeza que vai fazer um bom casamento.

- Pensei que fosse ser uma ajuda para a senhora.

- Várias pessoas sugeriram que ela seguisse a carreira artística, mas é claro que não consenti. Conheço todos os grandes dramaturgos e podia conseguir um papel para ela amanhã, se quisesse, mas não quero que se misture com todo o tipo de gente.

Fiquei um pouco incomodado com o esnobismo da Sr.a Strickland.

- A senhora tem ouvido falar de seu marido?

- Não, não soube mais dele. Pode ter até morrido que não sei de nada.

- Pode ser que o encontre em Paris. A senhora gostaria que eu lhe desse notícias dele?

Ela hesitou um minuto.

- Se ele estiver passando necessidades, estou em condições de ajudá-lo. Eu lhe enviaria uma certa quantia de dinheiro, e você poderia ir dando a ele conforme precisasse.

- É muito generoso de sua parte - disse eu. Mas -sabia que não era generosidade que a fizera oferecer tal ajuda. Não é verdade que o sofrimento enobrece o caráter, a felicidade às vezes faz isso, mas o sofrimento, na maioria dos casos, torna as pessoas vingativas e mesquinhas.

 

Na verdade, encontrei Strickland antes de completar 15 dias em Paris.

Encontrei logo um pequeno apartamento no quinto andar de uma casa na Rue dês Dames, e por 200 francos comprei uns móveis de segunda mão suficientes para tomar o apartamento habitável. Tratei com o porteiro o café da manhã e a limpeza do apartamento. Depois fui visitar meu amigo Dirk Stroeve.

Dirk Síroeve era uma daquelas pessoas que, de acordo com nosso caráter, provocava uma risada de deboche ou um dar de ombros embaraçado sempre que nos vinha à cabeça. A natureza fizera-o um bufão. Era pintor, dos piores. Conheci-o em Roma e ainda me lembrava de seus quadros. Tinha um gosto genuíno pelo comum. Sua alma palpitava com o amor à arte, e ele pintava os modelos que transitavam nas escadarias de Bernini na Piazza di Spagna, sem se abalar por serem comuns demais e, portanto, pouco pitorescos; e seu estúdio estava cheio de telas em que retratava camponeses de olhos e bigodes grandes com chapéus pontudos, moleques esfarrapados e mulheres de saias coloridas. Às vezes, vadiavam nos degraus de uma igreja, e outras vezes divertiam-se entre os cipestres sob um céu limpo; às vezes se amavam próximo a uma fonte da Renascença, e outras vezes vagavam pelos campos ao lado de um carro de bois. Eram desenhados e pintados cuidadosamente. Uma fotografia não podia ser mais perfeita. Um dos pintores da Villa Mediei chamara-o de Lê Maitre de Ia Boite à Chocolats. Ao olhar para seus quadros, pensaríamos que Monet, Manet e o resto dos impressionistas não pintavam nada.

- Não me considero um grande pintor - dizia ele.

- Não sou um Miguelângelo, não, mas tenho alguma coisa. Eu vendo. Levo um certo romantismo aos lares de todo tipo de pessoas. Sabia que meus quadros são vendidos não só na Holanda, mas na Noruega, Suécia e Dinamarca? A maioria das pessoas que os compram são comerciantes ricos. Você não pode imaginar como são os invernos naqueles países, tão longos, escuros e frios. Gostam de pensar que a Itália é como os meus quadros. É o que esperam. Era o que eu esperava que a Itália fosse antes de vir para cá.

E acho que essa era a visão que permanecera com ele sempre, ofuscando seus olhos de tal forma que não conseguia enxergar a verdade; e apesar da brutalidade do fato, continuava a ver com os olhos do espírito uma Itália de salteadores românticos e ruínas pitorescas. Era um ideal que ele pintava - um ideal pobre, comum e tosco, mas ainda assim um ideal; e dava a seu caráter um encanto definido.

Era por sentir isso que Dirk Stroeve não era para mim, como para os outros, apenas um objeto de ridicularização. Seus colegas de profissão não faziam segredo do desprezo que sentiam por seus quadros, mas ele ganhava muito dinheiro e eles não hesitavam em fazer uso de sua carteira. Era generoso, e os necessitados, que riam dele porque acreditava piamente em suas histórias tristes, pediam-lhe dinheiro emprestado sem o menor escrúpulo. Era muito emotivo, entretanto seus sentimentos, tão facilmente estimulados, tinham algo de absurdo, de forma que se podia aceitar sua generosidade sem sentir qualquer gratidão. Tirar dinheiro dele era como roubar uma criança, e ele inspirava desprezo por ser tão tolo. Suponho que um punguista, orgulhoso de seus dedos ágeis, deve sentir um certo- desprezo pela mulher descuidada que esquece num táxi a bolsa com as jóias. A natureza fizera-o alvo de ridículo, mas negara-lhe insensatez. Sofria com as peças dos outros, sempre feitas à sua custa, mas nunca deixava de se expor a elas. Estava sempre magoado, mas sua boa índole impedia-o de ser malicioso; a víbora o picava, mas nunca aprendia, e tão logo se recuperava da dor, punha-a novamente no colo. Sua vida era uma tragédia escrita nos termos de uma farsa engraçada. Como eu não zombava dele, sentia-se grato e costumava desabafar comigo a longa lista de aborrecimentos. O mais triste a respeito desses é que eram grotescos, e quanto mais patéticos, mais vontade de rir provocavam.

Mas embora fosse um pintor muito ruim, tinha uma grande sensibilidade pela arte, sendo um ótimo programa acompanhá-lo às galerias de arte. Seu entusiasmo era sincero e sua crítica severa. Era católico. Não só apreciava os velhos mestres, mas também os modernos. Era perspicaz para descobrir novos talentos, e seu elogio, generoso. Acho que nunca conheci um homem cujo julgamento fosse mais seguro. E era mais instruído do que a maioria dos pintores. Não era, como muitos deles, ignorante das outras artes, e seu gosto por música e literatura davam profundidade e variedade à sua compreensão da pintura. Para um jovem como eu, seu conselho e orientação tinham um valor incomparável.

Quando parti de Roma, correspondi-me com ele, e de dois em dois meses recebia longas cartas escritas num inglês um pouco estranho, que me davam a impressão de egtar falando diretamente com ele, com sua conversa vívida, entusiástica e cheia de gesticulação. Pouco antes de eu ir para Paris, ele casou-se com uma inglesa, e agora morava num estúdio em Montmartre. Não o via há quatro anos e nunca vira sua mulher.

 

Não avisei Stroeve de minha chegada, e quando toquei a campainha de seu estúdio, ao abrir a porta, ele não me reconheceu. Então deu um grito de surpresa e me fez entrar. Era agradável ser recebido com tanto entusiasmo. Sua mulher estava sentada perto do fogão, costurando, e levantou-se quando entrei. Ele me apresentou:

- Não se lembra? - disse. - Falei com você várias vezes sobre ele. - E então para mim: - Mas por que não me avisou que vinha? Há quanto tempo está aqui? Quanto tempo vai ficar? Por que não veio uma hora mais cedo, e tínhamos jantado juntos?

Bombardeou-me com perguntas. Fez-me sentar numa cadeira, dando-me palmadinhas nas costas como se eu fosse uma almofada, ofereceu-me charutos, bolos, vinhos . Não me deixava um minuto. Ficou com muita pena de não ter uísque, quis fazer café para mim, esforçou-se por pensar em a1guma coisa que pudesse fazer por mim. Estava radiante e, na exuberância de seu entusiasmo, transpirava por todos os poros.

- Você não mudou nada - disse eu, sorrindo, ao olhar para ele.

Tinha a mesma aparência ridícula que eu guardara na lembrança. Era um homem pequeno e gordo, com pernas curtas, jovem ainda - não podia ter mais de 30 anos mas já prematuramente calvo. O rosto era bem redondo, de cores acentuadas, uma pele branca, faces vermelhas e lábios vermelhos. Os olhos eram azuis e também redondos, usava óculos de armação grande, e as sobrancelhas eram tão louras que não se conseguia vê-las. Lembrava aqueles comerciantes gordos e felizes que Rubens pintava.

Quando lhe disse que pretendia morar em Paris por algum tempo, censurou-me por não tê-lo avisado. Teria procurado um apartamento para mim e poderia emprestar-me os móvejs - era verdade mesmo que eu tivera a despesa de comprá-los? - e poderia ter-me ajudado a mudar. Achava realmente indelicado de minha parte não lhe dar uma oportumdade de ser útil. Enquanto isso, a Sr.a Stroeve, sentada tranquilamente, costurava suas meias, sem falar nada, e escutava tudo que ele dizia com um sorriso nos lábios.

- Como vê, estou casado - disse repentinamente - o que você acha de minha mulher?

Sorriu radiante para ela e empurrou os óculos para cima do nariz. O suor fazia-os escorregarem constantemente.

- O que você espera que eu responda? - disse eu, rindo.

- Por favor, Dirk - a Sr.a Stroeve falou, sorrindo.

- Mas ela não é maravilhosa? Vou lhe dizer uma coisa, meu caro, não perca tempo, case-se assim que puder. Sou o homem mais feliz do mundo. Olhe para ela sentada ali. Não parece uma pintura de Chardin, hein? Conheci todas as mulheres mais belas do mundo, nunca vi nenhuma mais bela que a senhora Dirk Stroeve.

- Se você não parar com isso, Dirk, Vou sair daqui.

- Mon petit chau - ele falou.

Ela corou um pouco, embaraçada com a paixão do tom de voz dele. Suas cartas me deram a entender que ele estava muito apaixonado pela mulher, e vi que não conseguia tirar os olhos dela. Não podia afiançar se ela o amava. Pobre tolo, ele não era uma pessoa que inspirasse amor, mas o sorriso nos olhos dela era afetuoso, e era possível que sua reserva escondesse um sentimento muito profundo. Não era a criatura arrebatadora que a fantasia apaixonada dele o fazia ver, no entanto tinha uma graça suave. Era bem alta, e seu vestido cinza, simples e bem-feito, deixava transparecer um corpo bonito, que na certa atrairia mais o escultor do que a modista. O cabelo, castanho e cheio, estava bem penteado, o rosto era pálido e as feições belas, sem serem marcantes. Tinha olhos cinzentos. Não chegava a ser bonita. Mas quando Stroeve falou de Chardin, tinha uma certa razão: ela me fez lembrar curiosamente aquela simpática dona-de-casa de touca e avental que o grande pintor imortalizara. Podia imaginá-la serenamente ocupada entre pratos e panelas, fazendo um ritual de seus afazeres domésticos, de forma que adquiriam um valor moral; não a supunha inteligente ou mesmo divertida, mas havia algo em sua atitude grave que me inspirava interesse. Sua reserva tinha algo de misterioso. Perguntava-me por que se casara com Dirk Stroeve. Embora fosse inglesa, eu não conseguia dizer exatamente de que classe social provinha, não estava claro qual fora sua educação, nem como vivera antes de se casar. Era muito calada, mas quando falava possuía voz agradável e suas maneiras eram naturais. Perguntei a Stroeve se estava trabalhando.

- Trabalhando? Estou pintando melhor do que nunca.

Sentamo-nos no estúdio e ele apontou para um quadro inacabado sobre um cavalete. Tive um ligeiro sobressalto . Estava pintando um grupo de camponeses italianos, vestidos à moda das planícies romanas, vadiando nos degraus de uma igreja de Roma.

- É isso que você está fazendo agora? - perguntei.

- É.   Consigo meus modelos tão bem aqui quanto em Roma.

- Não acha muito bonito? - falou a Sr.a Stroeve.

A tola de minha mulher pensa que sou um grande

artista - disse ele.

Sua risada apologética não disfarçara o prazer que sentia. Seus olhos permaneciam sobre o quadro. Era estranho que seu senso crítico, tão apurado quando se tratava dos trabalhos dos outros, se satisfizesse em seus quadros com o que era comum e vulgar sem sombra de dúvida.

- Mostre a ele alguns outros quadros seus - disse ela.

- Você acha que devo?

Embora já tivesse sofrido muito com a ridicularização dos amigos, Dirk Stroeve, ávido de elogios e ingenuamente auto-satisfeito, não podia resistir a mostrar seu trabalho. Trouxe um quadro de dois moleques italianos de cabelos encaracolados jogando bolinhas de gude.

- Não são uns amores? - perguntou a Sr.a Stroeve. Então ele mostrou-me mais trabalhos. Percebi que

em Paris estivera pintando as mesmas coisas sem graça e excessivamente pitorescas que pintara durante anos em Roma. Eram todas falsas, pretensiosas e de má qualidade. E entretanto não havia ninguém mais honesto, sincero e franco do que Dirk Stroeve. Quem poderia resolver essa contradição?

Não sei o que passou em minha cabeça para perguntar:

- Você por acaso conhece um pintor chamado Charles Strickland?

- Não me diga que você o conhece - gritou Stroeve.

- Um grosseirão - disse sua mulher. Stroeve riu.

- Ma pauvre chéríe. - Foi até ela e beijou-lhe as mãos. - Ela não gosta dele. Que engraçado você conhecer Strickland!

- Não gosto de falta de educação - acrescentou a Sr.a Stroeve.

Dirk, ainda rindo, virou-se para mim para explicar:

- Sabe, um dia pedi a ele que viesse até aqui para ver meus quadros. Bem, ele veio, e eu lhe mostrei tudo o que tinha. - Stroeve hesitou um momento, um pouco embaraçado. Não sei por que resolvera me contar uma história desagradável a seu respeito. Sentia vergonha de terminá-la. - Ele olhou pra... prós meus quadros e não disse nada. Pensei que estava reservando seu julgamento para o fim. E finalmente eu disse: "Bem, é tudo!" Ele disse: "Vim aqui pra lhe pedir 20 francos."

- E Dirk emprestou - a mulher dele falou, indignada.

- Estava tão surpreso. Não quis recusar. Ele pôs o dinheiro no bolso, bateu a cabeça, disse "Obrigado" e saiu.

Dirk Stroeve, ao contar a história, tinha uma aparência tão atónita no rosto redondo e tolo que era quase impossível não rir.

- Não ficaria aborrecido se ele tivesse dito que meus quadros eram ruins, mas ele não disse nada... nada.

- E você ainda conta essa história, Dirk - disse a mulher.

Era lamentável que a figura ridícula do holandês provocasse graça, quando o que se devia sentir era indignação pela grosseria de Strickland.

- Espero não vê-lo nunca mais - comentou a Sr.a Stroeve.

Stroeve sorriu e sacudiu os ombros. Já havia recobrado seu bom humor.

- O fato é que ele é um grande artista, um grande artista.

- Strickland? - exclamei. - Não pode ser a mesma pessoa.

- Um sujeito alto, de barba vermelha.   Charles Strickland. Um inglês.

- Ele não tinha barba quando o conheci, mas se a deixou crescer, deve ser vermelha.   O homem do qual estou falando só começou a pintar há cinco anos.

- Isso mesmo. É um grande artista.

- Impossível.

- Alguma vez já me enganei quanto a isso? - perguntou-me Dirk. - Estou lhe dizendo que ele tem talento. Tenho certeza disso. Daqui a 100 anos, se você e eu formos lembrados, vai ser por ter conhecido Charles Strickland.

Eu estava perplexo e, ao mesmo tempo, nervoso. Lembrei-me de repente de minha última conversa com ele.

- Onde é que se pode ver seus trabalhos? - perguntei. - Ele está tendo sucesso? Onde ele mora?

- Não, ele não é famoso. Acho que nunca vendeu um quadro. Quando se fala com outras pessoas sobre ele, apenas riem. Mas eu sei que ele é um grande artista. Afinal, riram de Manet. Corot nunca vendeu um quadro. Não sei onde mora, mas posso levar você para vê-lo. Ele costuma ir a um café na Avenue de Clichy às 7h, todas as noites. Se você quiser, podemos ir até lá amanhã.

- Não estou certo se ele deseja me ver. Acho que talvez eu lhe lembre uma época que prefere esquecer. Mas Vou assim mesmo. Será que há possibilidade de ver algum dos seus quadros?

- Não por intermédio dele. Não vai lhe mostrar nada. Existe um vendedor que conheço que tem dois ou três de seus quadros. Mas você só deve ir vê-los comigo. Não os compreenderia. Tenho que mostrá-los eu mesmo.

- Dirk, você me deixa impaciente - disse a Sr.a Stroeve. - Como é que pode falar assim dos quadros dele quando o tratou tão mal? - Virou-se para mim. - Sabe, quando vieram uns holandeses aqui para comprar os quadros de Dirk, ele tentou persuadi-los a comprar os de Strickland. Insistiu para trazê-los aqui e mostrar-lhes es quadros.

- O que a senhora achou deles? - perguntei-lhe, sorrindo.

- Eram horríveis.

- Ah, querida, você não entende de pintura.

- Bem, os seus amigos ficaram furiosos com você. Pensaram que estava fazendo troça deles.

Dirk Stroeve tirou os óculos e enxugou-os. Seu rosto corado brilhava de alegria.

- Por que você acha que a beleza, que é a coisa mais preciosa do mundo jaz como uma pedra na praia à mercê de um passante descuidado que a pegue casualmente? A beleza é algo maravilhoso e estranho que o artista capta do caos do mundo no tormento de sua alma. E quando faz isso, não é dado a todos conhecê-la. Para reconhecê-la, é preciso repetir a aventura do artista. É uma melodia que ele canta para você, e para ouvi-la novamente em seu próprio coração é preciso conhecimento, sensibilidade e imaginação.

- Por que eu sempre achei seus quadros bonitos, Dirk? Eu os admiro desde a primeira vez que os vi.

Os lábios de Stroeve tremeram um pouco.

- Vai dormir, minha jóia. Vou dar uma volta com nosso amigo e depois volto.

 

Dirk Stroeve concordou em apanhar-me na noite seguinte e levar-me ao café em que Strickland podia ser encontrado com toda certeza. Achei interessante que fosse o mesmo no qual Strickland e eu tomáramos absinto quando fui a Paris para vê-lo. O fato de não ter mudado de hábitos parecia-me característico dele.

Lá está ele - disse Stroeve, ao chegarmos ao café.

Embora fosse outubro, a noite estava quente, e as mesas da calçada, lotadas. Corri os olhos pelas mesas, mas não vi Strickland.

- Veja. Lá no canto. Está jogando xadrez.

Vi um homem debruçado sobre um tabuleiro de xadrez, mas só pude ver um grande chapéu de feltro e uma barba vermelha. Passamos com dificuldade por entre as; mesas até chegar a ele.

- Strickland. Ele levantou os olhos.

- Alo, gordo. O que quer?

- Trouxe um velho amigo para vê-lo.

Strickland deu uma olhada para mim e evidentemente não me reconheceu. Voltou a prestar atenção no tabuleiro de xadrez.

- Sentem aí e não façam barulho - ele disse.

Moveu uma peça e logo ficou absorto no jogo. O coitado do Stroeve me olhou preocupado, mas eu não fiquei desconcertado por tão pouco. Pedi algo para beber e esperei tranquilamente até Strickland terminar. Apreciei a oportumdade de observá-lo à vontade. Nunca o teria conhecido. Em primeiro lugar, a barba vermelha, maltratada e despenteada, escondia boa parte do rosto, e o cabelo estava comprido, mas o que mais surpreendia nele era a magreza extrema. Fazia o nariz ficar protuberanter dando-lhe mais arrogância; acentuava as bochechas; fazia os olhos parecerem maiores. Havia sulcos profundos nas têmporas. Seu corpo estava cadavérico. Usava o mesma terno com que eu o vira há cinco anos; agora rasgado e manchado, puído e tão folgado no corpo dele que parecia ter sido feito para outra pessoa. Reparei em suas fortes e grandes mãos ossudas e cheias de nervos, sujas e de unhas grandes, mas havia me esquecido que eram tão bem-feitas. Sentado ali, com a atenção voltada para o jogo, ele me deu uma impressão extraordinária: de força; e não entendia por que o seu emagrecimento contribuía para tornar tal impressão mais chocante.

Naquele momento, depois de mover a peça, ele se inclinou para trás e olhou com singular atenção para seu adversário. Este era um francês gordo e barbudo. O francês refletiu sobre sua posição, e então de repente explodiu com algumas imprecações, e com um gesto impaciente, recolhendo as peças, jogou-as dentro da caixa. Rogou umas pragas a Strickland abertamente e então, chamando o garçom, pagou as bebidas e saiu. Stroeve puxou a cadeira para mais perto da mesa.

- Agora suponho que podemos conversar - disse ele.

Os olhos de Strickland estavam pousados nele com uma expressão maliciosa. Percebi claramente que estava procurando fazer alguma troça dele, mas como não conseguia pensar em nenhuma foi obrigado a ficar em silêncio.

- Trouxe um velho amigo para vê-lo - repetiu Stroeve, sorrindo.

Strickland olhou pensativo para mim durante quase um minuto. Não falei nada.

- Nunca o vi antes - disse ele.

Não sei por que ele disse isso, pois tive certeza de que me reconheceu. Eu já não ficava confuso tão facilmente como há alguns anos atrás.

- Estive com sua mulher outro dia - eu falei. Achei que você gostaria de saber notícias dela.

Ele deu uma pequena risada. Piscou os olhos.

- Passamos uma noite divertida juntos - disse ele.

- Há quanto tempo foi mesmo?

- Cinco anos.

Pediu outro absinto. Stroeve, com sua tagarelice, explicou como ele e eu nos conhecíamos e de que forma casual descobrimos que ambos conhecíamos Strickland. Não sei se Strickland ouviu. Olhou para mim uma ou duas vezes, pensativo, mas a maior parte do tempo parecia absorto em seus pensamentos, e certamente sem a tagarelice de Stroeve a conversa teria sido difícil. Meia hora depois, o holandês, olhando para o relógio, avisounos que precisava ir embora. Perguntou se eu ia também. Achei que, sozinho, poderia fazer Strickland falar alguma coisa e respondi que ainda ia ficar.

Quando Stroeve foi embora, eu disse:

- Dirk Stroeve acha você um grande artista.

- E desde quando isso me interessa?

- Vai me deixar ver os seus quadros?

- E por que deveria?

- Eu posso querer comprar um.

- Eu posso não querer vender nenhum.

- Você está ganhando bem? - perguntei, sorrindo. Ele deu uma risada.

- Eu aparento isso?

- Você parece esfomeado.

- Estou esfomeado.

- Então vamos jantar.

- Por que está me convidando?

- Não é por caridade - respondi, friamente. Não ligo a mínima se você passa fome ou não.

Seus olhos se reanimaram.

- Então vamos - disse, levantando-se. - Preciso de uma refeição decente.

 

Deixei-o levar-me a um restaurante de sua escolha, mas no caminho comprei um jornal. Depois que ele pediu o jantar, escorei o jornal numa garafa de St. Galmier e comecei a ler. Comemos em silêncio. Senti que ele olhava para mim de vez em quando, mas nem dei atenção. Queria obrigá-lo a falar.

- Tem alguma novidade no jornal? - ele perguntou, ao chegarmos ao fim da refeição silenciosa.

Achei que havia em seu tom de voz uma leve nota de desespero.

- Sempre gosto de ler o feuilleton sobre teatro eu disse.

Dobrei o jornal e coloquei-o ao meu lado.

- Gostei do jantar - comentou ele.

- Acho que podemos tomar o café aqui, não é?

Acendemos os charutos. Fumei em silêncio. Reparei que de vez em quando os olhos dele pousavam em mim com um leve e alegre sorriso. Esperei pacientemente.

- O que você tem feito desde a última vez que nos vimos? - perguntou finalmente.

Eu não tinha muito a dizer. Foram anos de muito trabalho e poucas aventuras, de experiências nesse e naquele sentido, de gradativa aquisição de conhecimento de livros e pessoas. Tive o cuidado de não perguntar nada a Strickland sobre o que ele próprio andara fazendo. Não demonstrei o menor interesse por ele e finalmente fui recompensado: começou a falar de si mesmo. Mas com sua dificuldade de se expressar, dava apenas algumas indicações do que passara, tendo eu que complementar as lacunas com minha própria imaginação. Era torturante só conseguir algumas pistas de uma personaHdade que tanto me interessava. Era como tentar recompor um manuscrito mutilado. Recebi a impressão de uma vida que precisava ser uma luta amarga contra todo tipo de dificuldades, mas percebi que muita coisa, horrível para a maioria das pessoas, nem ao menos afetava Strickland. Ele se diferenciava da maioria dos ingleses por sua completa indiferença ao conforto; não o incomodava viver num quarto velho e mal arrumado; não tinha necessidade de se cercar de coisas belas. Não creio que alguma vez tenha reparado como era sujo o papel de parede do quarto em que o visitei da primeira vez. Não precisava de poltronas para sentar-se; sentia-se melhor num banco de cozinha. Comia com apetite, sendo indiferente ao que comia; para ele era apenas comida que devorava para acalmar a dor da fome; e quando não podia comer, parecia capaz de passar sem comida. Soube que durante seis meses ele passou a pão e leite. Era um homem sensual, e entretanto indiferente ao sexo. Não encarava a privação como uma dificuldade. Havia algo admirável na maneira como vivia uma vida inteiramente espiritual.

Quando o pouco dinheiro que trouxera de Londres consigo acabara, não se abalara. Não vendeu um quadro. Creio que não fazia muita força para vendê-los. Tentou descobrir uma forma de ganhar um pouco de dinheiro. Contou-me com humor negro o tempo que passou servindo de guia a ingleses de baixa classe que queriam conhecer o submundo de Paris - era uma ocupação que condizia com seu temperamento sardónico - e de uma forma ou de outra adquirira um amplo conhecimento dos lugares de baixa reputação da cidade. Falou-me das longas horas que passara andando pelo Boulevard de La Madeleine à procura de ingleses, de preferência os de pior aparência, que desejassem ver coisas proibidas pela lei. Quando tinha sorte, conseguia obter um bom dinheiro, mas suas roupas maltrapilhas por fim assustaram os turistas, e não conseguiu mais encontrar pessoas aventureiras o suficiente para confiar nele. Depois conseguiu um emprego de tradutor de anúncios de remédios franceses que eram transmitidos pelo rádio para os médicos na Inglaterra.

Durante uma greve, conseguiu emprego como pintor de paredes.

Enquanto isso, nunca parara de pintar; mas cansando-se logo dos estúdios, passou a pintar por conta própria. Nunca ficou tão pobre a ponto de não poder comprar telas e tinta, e de fato não precisava de nada mais. Pelo que pude concluir, pintava com muita dificuldade, e com sua má vontade em aceitar qualquer ajuda de outras pessoas, perdia muito tempo para descobrir por ele próprio a solução de problemas técnicos que as gerações anteriores já tinham resolvido um por um. Tinha um objetivo, eu não sabia qual, e talvez nem ele mesmo soubesse e mais uma vez tive a forte impressão de um homem possuído. Não parecia uma pessoa sã. Pareceu-me que não mostrava os quadros por não estar interessado neles. Vivia num sonho, e a realidade não tinha o menor significado para ele. Tive a impressão de que ele trabalhava na tela com toda a força de sua personalidade violenta, indiferente a tudo em seu esforço de obter o que via com os olhos da mente; e então, terminando - não o quadro talvez, pois eu tinha a impressão de que raramente completava alguma coisa, mas a paixão que o incendiava perdia todo o interesse por ele. Nunca estava satisfeito com o que havia feito: parecia-lhe que a obra não representava nada, comparada com a visão que o obcecava.

- Por que você nunca apresenta seus trabalhos em exposições? - perguntei. - Penso que gostaria de saber o que as pessoas acham deles.

- É mesmo?

Não posso descrever o desprezo desmedido com que ele pronunciou as duas palavras.

- Não pretendia ter fama? A maioria dos artistas não consegue ficar indiferente a isso.

- Infantilidade. Como é que se pode ligar para a opinião da multidão quando não se liga a mínima para a opinião do indivíduo?

- Não somos todos seres racionais - disse eu, rindo.

- Quem tem fama? Críticos, escritores, corretores, mulheres.

- Não lhe daria uma sensação agradável pensar que pessoas que você não conhecia e nunca tinha visto poderiam receber emoções, sutis e fortes, do trabalho feito por suas mãos? Todo mundo gosta de poder. Não existe coisa mais extraordinária do que motivar as almas dos homens para a piedade ou o terror.

- Melodrama.

- Por que você se importa se pinta bem ou mal?

- Não me importo. Só quero pintar o que vejo.

- Gostaria de saber se conseguiria escrever numa ilha deserta, com a certeza de que somente eu mesmo veria o que escrevi.

Strickland não falou durante muito tempo, mas seus olhos tinham um brilho estranho, como se visse algo que levasse sua alma ao êxtase.

- Às vezes imagino uma ilha perdida, num mar sem fim, onde eu pudesse viver nalgum vale perdido, entre árvores estranhas, em silêncio. Lá, creio que eu poderia encontrar o que desejo.

Ele não se expressou exatamente assim. Usava gestos em vez de adjetivos, e parava de falar bruscamente. Disse com minhas palavras o que acho que ele quis dizer.

- Olhando pra trás, nos últimos cinco anos, você acha que valeu a pena? - perguntei.

Ele olhou para mim, e vi que não sabia o que eu queria dizer. Expliquei-me melhor:

- Você abriu mão de uma casa confortável e de uma vida feliz. Seus negócios prosperavam. Você parece ter tido uma vida difícil em Paris. Se tivesse que começar tudo de novo, faria o que fez novamente?

- Certamente.

- Sabia que não perguntou nada sobre sua mulher e seus filhos? Nunca pensa neles?

- Não.

- Queria que não fosse tão monossilábico. Nunca teve um momento de remorso por toda infelicidade que causou a eles?

Deu um sorriso e sacudiu a cabeça.

- Pensei que às vezes não pudesse deixar de pensar no passado. Não digo o passado de sete ou oito anos atrás, mas a época anterior, quando conheceu sua mulher, apaixonou-se e casou com ela. Não se lembra da alegria com que a tomou nos braços pela primeira vez?

- Não penso no passado. A única coisa que importa é o presente.

Pensei um pouco sobre esta resposta. Talvez fosse obscura, mas achei que podia entendê-la vagamente.

- Você é feliz? - perguntei.

- Sou.

Fiquei calado. Observei-o, pensativo. Ele sustentou meu olhar, e naquele momento seus olhos iluminaram-se com um brilho sardónico.

- Receio que você me censura, não é?

- Bobagem - respondi. - Não censuro a jibóia, pelo contrário, me interesso pelos seus processos mentais.

- É apenas interesse profissional que tem por mim?

- Umcamente.

- É certo que você não me censura. Você tem um caráter desprezível.

- Talvez seja por isso que você se sinta à vontade comigo - retorqui.

Sorriu secamente, mas não disse nada. Gostaria de poder descrever seu sorriso. Não acho que fosse atraente, mas iluminava seu rosto, mudando a expressão, que era normalmente sombria, e lhe dava uma aparência de malícia . Era um sorriso demorado, começando e às vezes terminando nos olhos. Muito sensual, sem ser cruel ou doce, mas sugeria o prazer desumano do sátiro. Foi seu sorriso que me fez perguntar:

- Nunca se apaixonou desde que veio pra Paris?

- Não tenho tempo pra esse tipo de coisa. A vida não é longa o suficiente para o amor e a arte.

- Sua aparência não lembra o eremita.

- Esse negócio de sexo me enoja.

- A natureza humana é um transtorno, não é? disse eu.

- Por que você está rindo de mim?

- Porque não acredito em você.

- Então é um idiota.

Fiz uma pausa e olhei-o, perscrutador.

- O que você ganha, tentando me enganar? - perguntei.

- Não sei o que quer dizer. Sorri.

- Pois então deixa que eu explico. Imagino que durante meses o assunto nem passe pela sua cabeça, e você consegue persuadir-se que não pensa mais nisso definitivamente. Regozija-se em sua liberdade e sente finalmente poder dizer que sua alma lhe pertence. Parece caminhar com a cabeça entre as estrelas. E então, de repente, não consegue suportar mais, e percebe que todo tempo seus pés têm caminhado na lama. E você quer rolar nela. E encontra uma mulher, baixa e vulgar, alguma criatura em que todo o horror do sexo seja gritante, e cai sobre ela como um animal selvagem. Você se inebria até ficar cego de raiva.

Ele me fitava sem se mover. Encarei-o. Falei lentamente.

- Vou lhe dizer o que deve parecer estranho, que quando tudo está terminado, você se sente extraordinariamente puro, como um espírito livre do corpo, imaterial, e parece capaz de tocar a beleza como se ela fosse uma coisa palpável; e sente uma comunhão íntima com a brisa, com as árvores desabrochando em folhas e com a iridescência do rio. Sente-se como Deus. Você pode me explicar isso?

Ele conservou os olhos fixos em mim até eu terminar, e então olhou para outro lado. Havia em seu rosto um aspecto estranho, e achei-o semelhante a alguém que morresse sob tortura. Ficou calado. Percebi que nossa conversa tinha terminado.

 

Instalei-me em Paris e comecei a escrever uma peça. Levava uma vida regular, trabalhando durante a manhã e descansando à tarde nos jardins do Luxemburgo, ou passeando pelas ruas. Passava longas horas no Louvre, a mais agradável de todas as galerias de arte e a mais conveniente para meditação; perambulava pelo cais, folheando livros de segunda mão que não pretendia comprar nunca. Lia uma página aqui, outra ali, e ficava conhecendo autores que me contentava em conhecer dessa forma casual. À noite, ia ver os amigos. Visitava os Stroeve frequentemente e algumas vezes jantava com eles. Dirk Stroeve gabava-se de seus pratos italianos, e confesso que seus spaghetti eram bem melhores que seus quadros. Era um jantar para um rei, que ele trazia numa grande travessa, suculento, com tomates, e o saboreávamos com o pão gostoso da casa e uma garrafa de vinho tinto. Tornei-me mais íntimo de Blanche Stroeve e creio que, como eu era inglês e ela conhecia poucos ingleses, ficava feliz em ver-me. Era agradável e simples, mas permanecia sempre praticamente calada e, não sei por que, dava-me a impressão de estar escondendo alguma coisa. Mas eu achava que talvez não fosse mais que uma reserva natural acentuada pela franqueza verbal do marido. Dirk nunca escondia nada. Falava dos assuntos mais íntimos sem ficar envergonhado. Às vezes embaraçava a mulher, e a única vez que a vi perder a calma foi quando ele insistiu em me contar que tinha tomado um purgante, e entrou em alguns detalhes sobre o assunto. A seriedade com que narrou seu infortúnio fez-me contorcer-me de rir, e isto aumentou a irritação da Sr.a Stroeve.

- Você gosta de passar por bobo - disse ela. Seus olhos redondos ficaram ainda mais redondos, e franziu a testa consternado por ver que ela estava zangada.

- Querida, eu a deixei envergonhada? Nunca mais Vou tomar purgante. Foi só porque estava passando mal do fígado. Levo uma vida sedentária. Não faço bastante exercício. Durante três dias eu não...

- Pelo amor de Deus, pára de falar nisso - interrompeu ela, com lágrimas de aborrecimento nos olhos.

Ele ficou desapontado e fez beiço, como se fosse uma criança repreendida. Olhou para mim, pedindo ajuda, mas, incapaz de me controlar, desatei a rir.

Um dia fomos até a loja de um marchand onde Stroeve pensou que poderia mostrar-me pelo menos dois ou três quadros de Strickland, mas quando chegamos soubemos que o próprio Strickland os tinha levado embora. O marchand não sabia por quê.

- Mas não pensem que me incomodei com isso. Fiquei com eles para fazer a vontade a Monsieur Stroeve e disse que os venderia se pudesse. Mas na verdade...

- deu de ombros. - Me interesso pelos jovens, mas voyons, o senhor mesmo, Monsieur Stroeve, o senhor não acha que existe algum talento ali.

- Dou-lhe minha palavra de honra que não existe ninguém pintando atualmente em cujo talento eu confie mais. Pode escrever isso, o senhor está perdendo um bom negócio. Algum dia aqueles quadros vão valer mais do que todos os que o senhor tem na loja. Lembre-se de Monet, que não conseguia achar alguém que lhe comprasse os quadros por 100 francos. Quanto valem agora?

- É verdade. Mas havia naquela época uns 100 pintores tão bons quanto Monet que não conseguiam vender seus quadros, e estes continuam não valendo nada hoje. Como é que se pode saber? O mérito é suficiente para que se tenha sucesso? Não acredito. Du reste, ainda tem que ser provado que esse seu amigo tem mérito. Ninguém acha isso a não ser Monsieur Stroeve.

- E como é então que o senhor reconhece o mérito?

- perguntou Dirk, vermelho de raiva.

- Só há uma maneira... pelo sucesso.

- Filisteu - gritou Dirk.

- Mas pense nos grandes artistas do passado: Rafael, Miguelângelo, Ingres, Delacroix... todos tiveram sucesso.

- Vamos embora - disse-me Stroeve - senão eu sou capaz de matar esse homem.

 

Via Strickland de vez em quando e às vezes jogava xadrez com ele. Possuía um temperamento instável. Às vezes ficava sentado em silêncio, abstraído, sem prestar atenção a ninguém; outras, quando estava de bom humor, conversava de seu jeito desconexo. Nunca dizia coisas inteligentes, porém possuía a veia do sarcasmo brutal que não deixava de surtir efeito, e sempre dizia exatamente o que pensava. Era indiferente às susceptibilidades dos outros, e se divertia, quando os feria. Estava sempre ofendendo Dirk Stroeve de maneira tão mordaz que este sumia, jurando que nunca mais falaria com ele novamente, mas havia uma força em Strickland que atraía o holandês contra sua vontade, e ele voltava, como um cachorrinho, embora sabendo que só levaria as patadas que temia.

Não sei por que Strickland me aturava. Nosso relacionamento era peculiar. Um dia ele me pediu 50 francos emprestados.

- Nem pense nisso - repliquei.

- Por que não?

- Não gosto de emprestar dinheiro.

- Estou numa situação muito difícil, sabe.

- Não me interessa.

- Você não liga se eu morrer de fome?

- E por que razão devia ligar? - perguntei por minha vez.

Ele olhou para mim por um ou dois minutos, coçando a barba despenteada. Sorri para ele.

- Está achando graça de quê? - disse ele, com um brilho de raiva nos olhos.

- Você é tão simples. Não acredita em obrigações, Ninguém as tem com você.

- Você não se sentiria mal de saber que me enforquei porque fui despejado do quarto por não pagar o alugue!?

- Nem um pouco. Ele riu.

- Está blefando. Se eu fizesse mesmcf isso VQcê ficaria cheio de remorso.

- Pois tente e verá - retorqui.

Um sorriso passou rapidamente por séijs olhos, e ele mexeu a bebida em silêncio.

- Quer jogar xadrez? - perguntei.

- Quero.

Arrumamos as peças, e quando o tabuleiro estava pronto ele o considerou com prazer. Dá uma sensação de satisfação olhar para as peças prontas para o ataque.

- Você pensou mesmo que eu ia lhe emprestar dinheiro? - perguntei.

- Não sei por que não.

- Você me surpreende.

- Porquê?

- É decepcionante ver que no fundo você é sentimental . Preferia que não tivesse feito esse ingénuo apelo aos meus sentimentos.

- Eu o teria desprezado se você se sensibilizasse com ele - respondeu.

- Assim é melhor eu disse, rindo. Começamos a jogar.   Ficamos absortos no jogo.

Quando terminou, eu falei:

- Olhe aqui, se você está em má situação, deixe-me ver os seus quadros. Se gostar de algum, eu compro.

- Vá pró inferno - respondeu.

Levantou-se e estava para ir embora. Eu o fiz parar.

- Você não pagou sua bebida - comentei, sorrindo.

Ele me rogou uma praga, jogou o dinheiro na mesa e saiu.

Não o vi durante vários dias depois disso, mas uma noite, quando lia o jornal sentado num café, ele apareceu e sentou-se ao meu lado.

- Afinal você não se enforcou - comentei.

- Não. Consegui um trabalho.   Estou pintando o retrato de um bombeiro aposentado por 200 francos.*

- Como conseguiu isso?

- A mulher que me vende pão me recomendou a ele. Ele disse a ela que estava procurando alguém que pintasse o seu retrato. Vou dar a ela 20 francos.

 

* Este quadro, primeiramente em poder de um rico industrial em Lille, que fugiu daquela cidade com a chegada dos alemães, encontra-se agora na Galeria Nacional de Estocolmo. O sueco é mestre na arte sutil de dar um jeitinho quando a situação está tumultuada.

 

- Como é que ele é?

Esplêndido. Tem uma cara vermelha e grande como a coxa de um carneiro, e na bochecha direita tem uma enorme mancha cheia de cabelos.

Strickland estava de bom humor, e quando Dirk Stroeve chegou e sentiu-se conosco, atacou-o com zombarias ferozes. Tinha uma habilidade de que nunca o pensei capaz: descobrir os pontos fracos do pobre holandês. Strickland não empregava a sutileza do sarcasmo mas o golpe da injúria. O ataque era tão gratuito que Stroeve, apanhado desprevenido, ficava indefeso. Lembrava um carneiro assustado correndo de um lado para outro. Ficava alarmado e pasmado. No final as lágrimas corriam de seus olhos. E o pior de tudo, embora se sentisse ódio de Strickland e a cena fosse horrível, é que era impossível não achar graça. Dirk Stroeve era uma daquelas pessoas infelizes cujas emoções mais sinceras são ridículas.

Mas apesar de tudo, quando me lembro daquele inverno em Paris, minha recordação mais agradável é de Dirk Stroeve. Havia algo muito atraente em sua casa. Ele e a mulher formavam um quadro que dava largas à imaginação, e a simplicidade de seu amor por ela tinha uma beleza espontânea. Ele não deixava de ser ridículo, mas a sinceridade de sua paixão inspirava simpatia. Podia compreender como sua mulher se sentia em relação a ele e ficava feliz por sua afeição ser tão terna. Se ela tivesse algum senso de humor, devia divertir-se com o fato dele colocá-la num pedestal e venerá-la com uma idolatria tão sincera, mas mesmo enquanto risse, devia sentir-se feliz e sensibilizada. Ele era o amante constante, e quando ela envelhecesse, perdendo as lindas curvas e graça, ela certamente não mudaria para ele. Seria sempre a mulher mais adorável do mundo. Havia beleza em suas organizadas vidas. Tinham apenas um estúdio, um quarto e uma pequena cozinha. A Sr.a Stroeve fazia todo o trabalho de casa, e enquanto Dirk pintava seus quadros ruins, ela ia às compras, fazia o almoço, costurava, trabalhava como uma formiga atarefada todo o dia, e à noite sentava-se no estúdio, costurando outra vez, enquanto Dirk tocava música que, acredito, estava muito além da compreensão dela. Ele tocava com gosto, mas com mais sentimento do que o necessário, e sua música expressava toda a honestidade, sentimento e exuberância de sua alma.

A vida deles a seu modo era um idílio, e conseguia ter uma beleza singular. O ridículo que envolvia tudo que se relacionava a Dirk Stroeve dava à vida do casal uma nota curiosa, como uma desarmonia sem solução, mas tornava-a de certa maneira mais moderna, mais humana - como uma piada forte jogada numa cena séria, isso aumentava a pungência que toda beleza tem.

 

Pouco antes do Natal, Dirk Stroeve foi me procurar e convidou-me a passar a data com ele, pois achava muito bonita e gostava de passá-la entre amigos, festejando-a adequadamente. Nenhum de nós via Strickland há umas duas ou três semanas - eu, por que andara ocupado com amigos que tinham vindo passar uns tempos em Paris, Stroeve, porque, tendo discutido com ele com mais violência do que nunca, decidira não procurá-lo mais. Strickland estava impossível, Stroeve jurou não falar com ele novamente. Mas a época inspirava seus bons sentimentos e odiava pensar que Strickland passaria o dia de Natal sozinho; atribuía seus sentimentos a ele, e não podia admitir que numa ocasião dedicada ao companheirismo o pintor solitário ficasse abandonado à própria melancolia. Stroeve armara uma árvore de Natal no estúdio, e eu desconfiava que nós dois íamos encontrar ridículos presentinhos pendurados nos galhos ornamentados da árvore; mas ele estava envergonhado de ver Strickland outra vez: era um pouco humilhante perdoar tão facilmente insultos tão injuriosos, e queria que eu estivesse presente à reconciliação a que se propôs.

Fomos juntos à Avenue de Clichy, mas Strickland não estava no café. Fazia muito frio para sentar na parte de fora, e sentamos em bancos de couro no lado de dentro, quente e abafado, e o ar era cinzento de fumaça. Strickland não apareceu, mas encontramos o pintor francês que de vez em quando jogava xadrez com ele. Traváramos amizade, e ele sentou-se à nossa mesa. Stroeve perguntou-lhe se havia visto Strickland.

- Ele está doente - disse o outro. - Não sabiam?

- É coisa grave?

- Muito, pelo que sei. Stroeve empalideceu.

- Por que ele não me escreveu avisando? Que tolice a minha ter discutido com ele! Temos que ir vê-lo imediatamente . Talvez não tenha ninguém para cuidar dele. Onde ele mora?

- Não tenho a menor ideia - disse o francês. Descobrimos que nenhum de nós sabia como encontrá-lo. Stroeve ficava cada vez mais triste.

- Pode até morrer e ninguém ia ficar sabendo de nada. É horrível. Não gosto nem de pensar no assunto. Temos que encontrá-lo imediatamente.

Tentei fazer Stroeve entender que era um absurdo sair procurando-o por Paris sem nenhuma pista. Primeiro devíamos traçar um plano.

- É, mas todo esse tempo ele pode estar morrendo e quando chegarmos lá pode ser tarde demais para fazer alguma coisa.

- Sossega um pouco e vamos pensar - falei, impaciente .

O único endereço que eu conhecia era o Hotel dês Belges, mas Strickland já saíra de lá há muito tempo, e não deviam lembrar-se dele. com aquela sua mania esquisita de fazer segredo de seu paradeiro, era pouco provável que, ao sair, tivesse dito para onde ia. Além disso, já fazia cinco anos. Eu tinha certeza de que ele não se mudara para longe. Se continuava a ir ao mesmo café que frequentava quando ficara no hotel, talvez fosse por ser o mais próximo. De repente lembrei-me de que tinha conseguido um trabalho de pintar um retrato através da padaria onde comprava pão, e achei que lá poderíamos conseguir seu endereço. Pedi um catálogo e procurei as padarias. Havia cinco na vizinhança, e o que tínhamos que fazer era passar em todas elas. Stroeve acompanhoume de má vontade. Seu plano era andar por todas as ruas que davam na Avenue de Clichy e perguntar em todas as casas se Strickland morava ali. Meu simples estratagema foi, entretanto, bem-sucedido, pois na segunda loja a mulher que estava atrás do balcão disse que o conhecia. Não tinha certeza de onde morava, mas era numa das três casas do outro lado da rua. A sorte estava do nosso lado, e na primeira que tentamos a senhoria disse que podíamos encontrá-lo no andar de cima.

- Parece que está doente - disse Stroeve.

- Talvez esteja - respondeu a mulher com indiferença. - En effet, não o vejo há vários dias.

Stroeve subiu as escadas correndo à minha frente, e quando cheguei no andar de cima encontrei-o falando com um trabalhador de mangas de camisa que abrira a porta em que Stroeve batera. Ele indicou a outra porta. Achava que a pessoa que morava lá era um pintor. Não o via há uma semana. Stroeve fez menção de bater à porta, então virou-se para mim como se fosse incapaz de fazê-lo. Percebi que estava em pânico.

- E se estiver morto?

- Não ele - eu disse.

Bati. Não houve resposta. Tentei a maçaneta e descobri que a porta não estava trancada. Entrei, e Stroeve seguiu-me. Ò quarto estava no escuro. Só então pude ver que era um sótão, com um teto inclinado e uma luz muito fraca, nada mais do que uma obscuridade menos intensa, vinha de uma clarabóia.

- Strickland - chamei.

Não houve resposta. Era realmente um mistério, e parecia-me que Stroeve, logo atrás de mim, tremia. Por um momento hesitei em acender a luz. Percebi com dificuldade uma cama no canto, e perguntava-me se a luz iria revelar um corpo morto deitado nela.

- Não tem um fósforo, seu idiota?

A voz de Strickland, vindo da escuridão, bruscamente, provocou-me um sobressalto. Stroeve disse alto:

- Ah, meu Deus, pensei que você estava morto. Risquei um fósforo e olhei em volta, procurando uma

vela. Tive um rápido vislumbre de um pequeno apartamento, metade quarto, metade estúdio, no qual havia apenas uma cama, telas viradas para a parede, um cavalete, uma mesa e uma cadeira. Não havia tapete no chão. Nem lareira. Em cima da mesa, cheia de tintas, palhetas e milhares de coisas, havia um cotoco de vela. Acendia. Strickland estava deitado na cama, pouco confortável por ser muito pequena para ele, e pusera todas as roupas por cima para se aquecer. Era evidente, num rápido olhar, que tinha febre alta. Stroeve, emocionado, foi até ele.

- Ah, meu pobre amigo, o que houve com você? Não sabia que estava doente. Por que não me avisou? Devia saber que eu faria tudo por você. Ficou preocupado com o que eu disse? Não queria dizer aquilo. Estava errado. Foi tolice minha ficar ofendido.

- Vá à merda! - disse Strickland.

- Agora, seja razoável. Deixe-me ajeitá-lo mais confortavelmente. Você não tem ninguém pra cuidar de você.

Olhou à volta, Consternado, para a sordidez do sótão. Tentou arrumar a roupa de cama.

Strickland, respirando de maneira ofegante, continuava em silêncio, emburrado. Lançou-me um olhar de raiva. Fiquei em pé, quieto, olhando para ele.

- Se quiser fazer algo por mim, pode me arranjar um pouco de leite - disse finalmente. - Não consigo sair há dois dias.

Havia uma garrafa vazia, que contivera leite, ao lado da cama, e num pedaço de papel algumas migalhas.

- O que você tem comido? - perguntei.

- Nada.

- Há quanto tempo? - gritou Stroeve.   - Quer dizer que não tem o que comer e beber há dois dias? É horrível.

- Tenho bebido água.

Seus olhos pousaram por um momento numa lata grande ao alcance de um braço esticado.

- Vou agora mesmo - disse Stroeve. - Gostaria de alguma outra coisa?

Sugeri que trouxesse um termómetro, e algumas uvas e pão. Stroeve, feliz por poder ser útil correu escada abaixo.

- Imbecil - murmurou Strickland.

Examinei o seu pulso. Batia rápido e febrilmente. Perguntei-lhe uma ou duas coisas, mas não respondia, e quando insisti virou o rosto, irritado, para a parede. A única coisa a fazer era esperar em silêncio. Em 10 minutos Stroeve, ofegante, voltou. Além do que eu sugerira, trouxera velas, caldo de carne e um lampião a álcool. Era um homem de expediente, e sem demora preparou leite com pão. Tirei a temperatura de Strickland. Estava com 40°. Estava mesmo muito doente.

 

Pouco depois saímos. Dirk ia para casa para jantar, e eu propus buscar um médico e trazê-lo para ver Strickland, mas quando chegamos à rua, fresca em relação ao sótão abafado, o holandês pediu-me para ir imediatamente até seu estúdio. Tinha algo em mente que não me dizia, mas insistiu em que eu fosse com ele. Como achava que no momento um médico não poderia fazer nada além do que tínhamos feito, concordei. Encontramos Blanche Stroeve pondo a mesa para o jantar. Dirk foi até ela e pegou-lhe as mãos.

- Querida, quero que me faça um favor - ele falou. Ela olhou para ele com a jovialidade grave que era

um de seus encantos. O rosto vermelho dele brilhava de suor, e tinha um ar cómico de agitação, mas havia em seus olhos redondos uma luz ávida.

- Strickland está muito doente. Talvez esteja morrendo. Está sozinho num sótão imundo, e não tem ninguém para cuidar dele. Quero que você me deixe trazê-lo para cá.

Ela puxou as mãos rapidamente - eu nunca a tinha visto ter um movimento tão rápido - e suas faces ficaram ruborizadas.

- Ah não!

- Ah, minha querida, por favor. Não posso deixá-lo onde está.   Não conseguiria nem dormir, só de pensar nele.

- Não faço nenhuma objeção a que você trate dele. Sua voz era fria e distante.

- Mas ele vai morrer.

- Que morra!

Stroeve deu um pequeno suspiro. Enxugou o fosto. Virou-se para mim para que-ó apoiasse, mas eu não sabia o que dizer.

- Ele é um grande artista.

- E eu com isso? Eu o odeio.

- Ah, meu amor, minha jóia, você não está falando com sinceridade. Eu suplico que me deixe trazê-lo para cá. Ele não vai lhe dar nenhum trabalho. Vou cuidar de tudo. Podemos arrumar uma cama para ele no estúdio. Não podemos deixá-lo morrer como um cachorro. Seria desumano.

- Por que ele não pode ir pra um hospital?

- Um hospital! Ele precisa do cuidado de mãos amigas. Tem que ser tratado com muito tato.

Fiquei surpreso de ver como ela ficou perturbada. Continuou a pôr a mesa, mas as mãos tremiam.

- Não tenho paciência com você. Você acha que se estivesse doente ele moveria uma palha para ajudá-lo?

- Mas que importa isso? Eu teria você para cuidar de mim. Não seria necessário. E além disso, sou diferente, não tenho a menor importância.

- Você não tem mais dignidade do que um vira-lata. Se deita no chão para os outros lhe pisarem.

Stroeve deu uma pequena risada. Pensou que entendia a razão da atitude da mulher.

- Ah, minha pobre querida, você está pensando naquele dia que ele veio aqui ver os meus quadros. O que interessa se ele não gostou deles? Foi estupidez minha mostrá-los a ele. Sei que não são bons.

Ele olhou para o estúdio, pesaroso. Sobre um cavalete havia um quadro quase pronto de um risonho camponês italiano, segurando um cacho de uvas sobre a cabeça de uma garota de olhos escuros.

- Mesmo que ele não tivesse gostado deles, devia ter um pouco de educação. Não precisava insultar você. Ele mostrou que o desprezava, e você lambe sua mão. Ah, eu o odeio.

- Minha criança, ele tem talento. Você não pensa que eu acredito ter também. Gostaria de possuir; mas o reconheço quando vejo, e o reverencio de todo coração. É a coisa mais extraordinária do mundo. É um fardo pesado. Devemos ser tolerantes com ele, e muito pacientes .

Eu fiquei de lado, um tanto embaraçado com a cena doméstica, e não entendia por que Stroeve tinha insistido para que eu viesse com ele. Percebi que sua mulher estava a ponto de chorar.

- Mas não é só por ele ter talento que estou lhe pedindo para trazê-lo para cá, é porque ele é um ser humano, está doente e necessitado.

- Não Vou recebê-lo em minha casa nunca... nunca. Stroeve virou-se para mim.

- Diga a ela que é um caso de vida ou morte. É impossível deixá-lo naquele lugar miserável.

- É claro que seria muito mais fácil cuidar dele aqui

- disse eu - mas seria muito inconveniente. Tenho a impressão de que alguém teria que ficar com ele dia e noite.

- Meu amor, não é você que ia se furtar ao trabalho.

- Se ele vier pra cá, eu Vou embora - acrescentou a Sr.a Stroeve com violência.

- Você nem parece a mesma. É tão boa e generosa.

- Ah, pelo amor de Deus, me deixe em paz. Você está me deixando nervosa.

Então finalmente vieram as lágrimas. Ela afundou numa cadeira e escondeu o rosto entre as mãos. Seus ombros tremiam convulsos. Num momento Dirk estava de joelhos a seu lado, com os braços em torno dela, beijando-a, chamando-a de todo o tipo de nomes carinhosos, e as lágrimas correram-lhe pelo rosto. Naquele momento ela se controlou e enxugou os olhos.

- Me esquece - disse ela, sem ser grosseira, e então, voltou-se para mim, tentando sorrir: - O que você não deve estar pensando de mim?

Stroeve, olhando para ela perplexo, hesitou. Sua testa estava toda enrugada, e sua boca vermelha formava beiço. Lembrou-me, por estranho que pareça, um porquinho-da-India nervoso.

- Então é não, querida? - disse ele finalmente. Ela fez um gesto de cansaço. Estava exausta.

- O estúdio é seu. Tudo aqui pertence a você. Se quiser trazê-lo para cá, como posso impedi-lo?

De repente um sorriso passou rapidamente pelo rosto dele.

- Então você consente? Sabia que ia consentir. Ah, minha jóia.

De repente, ela recuperou as forças. Olhou para ele com um olhar cansado. Apertava as mãos sobre o coração, como se suas batidas fossem intoleráveis.

- Ah, Dirk, desde que eu o conheci nunca pedi nada pra mim.

- Você sabe que não há nada no mundo que eu não faria por você.

- Eu lhe suplico para não deixar Strickland vir pra cá. Qualquer outra pessoa sim. Traga um ladrão, um bêbado, qualquer proscrito da rua, e prometo que faço tudo por eles com prazer. Mas eu suplico que não traga Strickland.

- Mas por quê?

- Tenho medo dele. Não sei por quê, mas há algo nele que me dá medo. Ele vai nos fazer muito mal. Sei disso. Sinto isso. Se você o trouxer para cá, só pode acabar mal.

- Mas que bobagem!

- Não, não, sei que tenho razão. Alguma coisa terrível vai nos acontecer.

- Por praticarmos uma boa ação?

Ela ofegava, e em seu rosto havia um terror inexplicável . Não sei o que pensava. Sentia que estava possuída por um temor que a descontrolava por completo. Normalmente ela era calma; sua agitação era surpreendente, Stroeve olhou para ela durante algum tempo com uma consternação confusa.

- Você é minha mulher, é a pessoa que mais prezo no mundo. Ninguém vai vir pra cá sem o seu consentimento .

Ela fechou os olhos por um momento, e pensei que fosse desmaiar. Estava um pouco impaciente com ela. Não pensei que fosse uma mulher tão neurótica. Então ouvi a voz de Stroeve novamente. Pareceu quebrar o silêncio estranhamente.

- Você não estava passando por situação difícil quando uma vez uma amiga mão a ajudou? Sabe o quanto isso significa. Não gostaria de fazer o mesmo quando tivesse uma oportumdade?

As palavras dele foram bastante simples, e para mim tinham um tom tão exortatório que quase sorri. Fiquei surpreso de ver o efeito que tiveram sobre Blanche Stroeve. Ela teve um ligeiro sobressalto, e olhou longamente para o marido. Os olhos dele estavam fixos no chão. Não sabia por que ele parecia embaraçado. O rosto dela coloriu-se ligeiramente e então empalideceu - parecia a palidez de um morto; sentia-se que o sangue tinha fugido de toda a superfície do corpo; e até mesmo as mãos estavam pálidas. Teve um arrepio. O silêncio do estúdio parecia ganhar corpo, de tal forma que parecia quase uma presença palpável. Eu estava perplexo.

- Traga Strickland para cá, Dirk. Vou fazer tudo o que estiver ao meu alcance por ele.

- Minha jóia - disse ele, sorrindo.

Quis pegá-la nos braços, mas ela o evitou.

- Não faça isso na frente de estranhos, Dirk - ela falou. - Fico me sentindo uma boba.

Sua atitude voltara ao normal, e ninguém poderia afiançar que pouco antes estivera perturbada por tamanha emoção.

 

No dia seguinte transportamos Strickland. Foi preciso ter muita força de vontade e paciência para convencê-lo a vir, mas ele estava realmente muito mal para oferecer resistência suficiente às súplicas de Stroeve e à minha determinação. Nós o vestimos, enquanto ele, sem forças, nos rogava pragas, e o conduzimos para baixo para um táxi e finalmente para o estúdio de Stroeve. Estava tão exausto quando chegamos que nos deixou colocá-lo na cama sem uma palavra. Ficou doente seis semanas. Às vezes parecia que não viveria mais que umas poucas horas, e estou convencido de que só conseguiu se recuperar devido à dedicação de Stroeve. Nunca vi um paciente mais difícil. Não que fosse exigente e lamuriento, pelo contrário, nunca reclamava, não pedia nada, ficava calado, mas parecia não gostar das atenções que recebia. Respondia a todas as perguntas, sobre o que sentia e sobre o que precisava, com deboche, ironia ou pragas. Eu o achava detestável, e logo que ficou fora de perigo não hesitei em dizer-lhe isso.

- Vá pró inferno - respondeu secamente.

Dirk Stroeve, deixando de lado seu trabalho inteiramente, cuidava de Strickland com carinho e atenção. Sabia como fazê-lo sentir-se confortável e tinha um tato que nunca o imaginara capaz de obrigar Strickland tomar os remédios prescritos pelo médico. Nada era trabalho demais para ele. Embora tivesse os meios necessários para ele e a mulher, não tinha dinheiro suficiente para gastar, mas agora extravagar na compra de guloseimas, fora de estação e caras, que pudessem tentar o apetite difícil de Sírickland. Nunca Vou me esquecer da paciência com que persuadia o doente a se alimentar. Nunca se deixava abater pela rudeza de Strickland. Se fosse apenas irritação, ele fingia não perceber; se fosse agressividade, ele apenas ria. Quando Strickland, já recuperado em parte, estava de bom humor e se divertia rindo dele, ele fazia coisas ridículas deliberadamente para fazê-lo rir. Então lançava rápidos olhares radiantes, para que eu reparasse como o paciente estava melhorando. Stroeve era sublime. Mas foi Blanche que mais me surpreendeu. Provou que era não só uma enfermeira capaz, mas também dedicada. Nada em sua atitude demonstrava que se opusera de forma tão veemente ao desejo do marido de trazer Strickland para o estúdio. Insistia em fazer sua parte das tarefas necessárias para cuidar do doente. Arrumava a cama para que pudesse mudar de lençol sem perturbá-lo. Lavava-o. Quando comentei sobre sua competência, disse-me, com aquele seu sorriso agradável, que durante algum tempo trabalhara num hospital. Não deu mostras de odiar Strickland de forma tão exagerada. Não falava muito com ele, mas era solícita em satisfazer seus desejos. Durante 15 dias foi preciso que alguém ficasse com ele toda a noite, e ela revezava com o marido. Imaginava o que ela pensava na longa escuridão ao sentar-se ao lado da cama. Strickland parecia uma figura estranha deitado ali, mais magro do que nunca, com sua barba vermelha despenteada e os olhos febris fixos no vazio sua doença parecia tê-los aumentado, e tinham um brilho diferente.

- Ele fala com você durante a noite? - perguntei a ela uma vez.

- Nunca.

- Você ainda o detesta e como antes?

- Mais do que tudo.

Ela me olhou com seus olhos cinzentos tranquilos. Sua expressão era tão plácida que era difícil acreditar que fosse capaz da emoção violenta que eu presenciara.

- Alguma vez ele lhe agradeceu pelo que está fazendo por ele?

- Não - disse ela, sorrindo.

- Ele é desumano.

- É abominável.

Stroeve obviamente estava encantado com ela. Não media esforços para demonstrar gratidão pela dedicação extrema com que aceitara o fardo que ele lhe impusera. Porém se sentia um pouco surpreso com o comportamento mútuo de Blanche e Strickland.

- Sabe, tenho visto os dois sentados juntos durante horas sem dizer uma palavra.

Numa ocasião, quando Strickland já melhorara tanto que poderia se levantar brevemente, sentei-me com eles no estúdio. Dirk e eu conversávamos. A Sr.a Stroeve costurava, e eu reconheci a camisa que ela remendava como sendo de Strickland. Ele estava deitado, não falava. Uma vez vi que seus olhos fitavam Blanche Stroeve, e havia neles uma ironia curiosa. Sentindo os olhos dele sobre ela, levantou o olhar e durante um momento eles se fitaram. Não entendi bem a expressão dela. Seus olhos tinham uma estranha perplexidade e talvez - mas por quê? - medo. Num momento, Strickland olhou para outro lado e passou a observar o teto, mas ela continuou a olhar para ele, e agora seu olhar era inexplicável.

Em poucos dias Strickland começou a levantar-se. Estava pele e osso. Suas roupas, quando vestidas pareciam trapos sobre um espantalho. com a barba e o cabelo comprido em desalinho, as feições, sempre tendo sido maiores do que deviam, agora mais proeminentes devido à doença, ele possuía um aspecto extraordinário, mas era tão estranho que não chegava a ser feio, Havia algo notável em sua deselegância. Não sei como expressar precisamente a impressão que me causava. Não era exatamente a espiritualidade que era óbvia, embora o espelho da carne parecesse quase transparente, porque havia em seu rosto uma sensualidade selvagem, mas, embora soe como um absurdo, parecia que sua sensualidade era curiosamente espiritual. Havia nele algo primitivo. Parecia ter aquelas forças obscuras da natureza que os gregos personificavam em formas meio humanas, meio animais, o sátiro e o fauno. Pensei em Marsias, que foi castigado pelo deus por ter ousado competir com ele na música. Strickland parecia ter no coração estranhas harmonias e modelos, e eu previa para ele um fim de tortura e desespero. Tive novamente a sensação de que estava possuído pelo demónio, mas não se podia dizer que fosse um génio do mal, pois era uma força primitiva que existiu antes do bem e do mal.

Ainda estava muito fraco para pintar, e sentava no estúdio, calado, sonhando só Deus sabe com o que, ou lendo. Os livros de que gostava eram estranhos. Às vezes, encontrava-o lendo poemas de Mallarmé, e ele os lia como uma criança, formando as palavras com os lábios, e eu me perguntava que emoção estranha ele sentia com aquelas cadências sutis e frases obscuras. De outra vez, encontrei-o absorto nos romances policiais de Gaboriau. Distraía-me pensando que na escolha dos livros ele demonstrava os lados irreconciliáveis de sua natureza fantástica. Era interessante notar que mesmo no estado de fraqueza física em que estava, não procurava conforto. Stroeve gostava de sentir-se à vontade, e no seu estúdio havia duas poltronas estofadas e um grande divã. Strickland nem chegava perto destes, não por querer demonstrar um estoicismo fingido, pois encontrei-o sentado num banco de três pernas quando fui ao estúdio uma vez e o encontrei sozinho, mas porque não gostava deles. Sentava-se numa cadeira de cozinha sem braços, por gosto. Sempre me exasperava ao vê-lo. Nunca conheci alguém tão indiferente ao seu meio.

 

Passaram-se duas ou três semanas. Certa manhã, fazendo uma pausa no trabalho, achei que podia dar-me ao luxo de um feriado e fui até o Louvre. Passeei por lá, apreciando os quadros que conhecia tão bem, e deixei minha imaginação ocupar-se com as emoções que inspiravam. Caminhava despreocupadamente pela grande galeria, quando de repente vi Stroeve. Sorri, pois sua aparência tão rotunda e, porém, tão assustada, nunca deixava de provocar um sorriso, e então, quando me aproximei, percebi que ele parecia desconsolado. Parecia triste, porém ridículo, como um homem que caiu dentro dlágua de roupa, e sendo salvo da morte, ainda assustado, sente que parece apenas um tolo. Virando-se, olhou para mim, mas percebi que não me viu. Seus olhos azuis redondos pareciam embaçados por trás dos óculos.

- Stroeve - disse eu.

Ele teve um ligeiro sobressalto, e então sorriu, mas o sorriso era triste.

- Por que está andando dessa maneira? - perguntei jovialmente.

- Faz muito tempo que não vinha ao Louvre. Resolvi vir e dar uma olhada para ver se havia algo de novo.

- Mas você falou que devia terminar um quadro esta semana.

- Strickland está pintando no meu estúdio.

- E daí?

- Fui eu que sugeri isso. Ainda não está forte o suficiente para voltar para o lugar dele. Achei que nós dois podíamos pintar juntos. Tem vários artistas no Quartier que dividem o estúdio.   Achei que seria divertido. Sempre achei que seria agradável ter alguém com quem conversar quando se está cansado de trabalhar.

Disse isso lentamente, destacando frase por frase com um silêncio estranho, e mantinha os olhos tolos fixos nos meus. Estavam cheios de lágrimas.

- Acho que não entendi - disse eu.

- Strickland não sabe trabalhar com mais ninguém no estúdio.

- Ora, porra, é o seu estúdio. Isso é problema dele. Ele me olhou tristemente. Seus lábios tremiam.

- O que aconteceu? - perguntei asperamente.

Ele hesitou e ficou vermelho. Olhou, infeliz, para um dos quadros da parede.

- Não me deixou continuar a pintar. Mandou-me sair.

- Mas por que você não o mandou à merda?

- Ele me empurrou pra fora. Eu não podia lutar com ele. Jogou meu chapéu atrás de mim e fechou a porta.

Apesar de furioso com Strickland e indignado comigo mesmo, eu tinha vontade de rir, pois Dirk Stroeve estava uma figura muito ridícula.

- Mas o que disse sua mulher?

- Ela saiu para fazer compras.

- Ele vai deixá-la entrar?

- Não sei. . Olhei para Stroeve, perplexo. Ele estava parado à

minha frente como um colegial repreendido pelo professor.

- Quer que eu bote Strickland pra fora pra você?

- perguntei.

Ele deu um pulo, e seu rosto brilhante ficou muito vermelho.

- Não. É melhor você não fazer nada.

Bateu a cabeça e saiu dali. Estava claro que por alguma razão ele não queria discutir o assunto. Não entendi.

A explicação veio uma semana depois. Eram quase lOh da noite, tinha jantado num restaurante, e tendo voltado para o meu pequeno apartamento sentei-me na sala de estar, lendo. Ouvi a campainha e dirigindo-me para o corredor fui abrir a porta. Stroeve estava diante de mim.

- Posso entrar? - perguntou.

Na penumbra da escada não conseguia enxergar muito bem, mas havia algo em sua voz que me surpreendeu . Sabia que ele não era de beber, senão teria pensado que tinha bebido. Levei-o até a sala de estar e mandei que se sentasse.

- Graças a Deus eu o encontrei - ele falou.

- O que houve? - perguntei, surpreso com sua veemência .

Agora podia vê-lo bem. Normalmente era uma pessoa bem-arrumada, mas agora suas roupas andavam em desalinho. Parecia sujo. Eu estava certo de que andara bebendo, e sorri. Quase fiz troça de seu estado.

- Eu não sabia pra onde ir - explodiu ele. - Vim até aqui antes, mas você não estava.

- Jantei tarde - expliquei.

Mudei de opinião: não era bebida que o levara a esse estado. Seu rosto, geralmente tão rosado, estava estranhamente manchado. As mãos tremiam.

- Aconteceu alguma coisa? - perguntei.

- Minha mulher me deixou.

Quase não conseguiu pronunciar as palavras. Teve um pequeno engasgo, e as lágrimas começaram a descer pelas bochechas redondas. Eu não sabia o que dizer. Meu primeiro pensamento foi o de que ela não aguentara mais seus cuidados com Strickland e, levada pelo comportamento cínico deste último, tivesse insistido em que ele fosse embora. Sabia que era capaz de tal atitude tempestuosa, apesar da aparência calma, e se Stroeve recusasse, poderia ter abandonado o estúdio, jurando não voltar nunca mais. Mas o homenzinho demonstrava estar tão desconsolado que eu não conseguia achar graça.

- Meu caro, não fique triste. Ela vai voltar. Você não deve levar tão a sério o que as mulheres dizem quando estão fora de si.

- Você não compreende. Ela está apaixonada por Strickland.

- O quê! - Fiquei tão atónito com isso, mas tão logo me dei conta da ideia, vi que era absurda. - Como você pode ser tão bobo? Não me diga que está com ciúmes de Strickland. - Quase ri. - Você sabe muito bem que ela não o suporta.

- Você não compreende - gemeu ele.

- Você é uma besta histérica - disse eu, um pouco impaciente. - Deixe-me preparar para você um uísque com soda, e você vai se sentir melhor.

Supus, por uma razão ou por outra - e sabe Deus o que pensam os homens para se torturar - que Dirk tinha posto na cabeça que a mulher gostava de Strickland, e com a sua capacidade de meter os pés pelas mãos talvez a tivesse ofendido, e ela, para irritá-lo, talvez tivesse feito alguma coisa para levantar suas suspeitas.

- Olhe aqui - disse eu - vamos voltar ao seu estúdio. Se você fez papel de bobo, deve pedir desculpas. Sua mulher não me parece do tipo de guardar rancor.

- Como posso voltar ao estúdio? - ele falou, exausto. - Eles estão lá. Deixei o estúdio pra eles.

- Então não foi sua mulher que o deixou, foi o inverso.

- Pelo amor de Deus, não fale assim comigo. Ainda não conseguia levá-lo a sério.   Nem por um momento acreditei no que dizia. Mas ele estava realmente desesperado.

- Bem, você veio aqui pra conversar comigo sobre o assunto. É melhor contar toda a história.

- Esta tarde não aguentei mais. Fui até Strickland e disse-lhe que já estava bom para voltar pra sua casa. Eu queria o estúdio.

- Só mesmo Strickland precisaria que alguém íhe dissesse isso - afirmei. - O que ele respondeu?

- Riu um pouco. Você sabe como ele costuma rir, não como se estivesse achando graça de alguma coisa, mas como se você fosse um idiota, e disse que ia sair imediatamente. Começou a arrumar as coisas. Você lembra que eu trouxe do quarto dele as coisas que mais precisava, e pediu a Blanche um pedaço de papel e um barbante pra fazer um embrulho.

Stroeve parou, ofegante, e pensei que fosse desmaiar. Não era essa a história que eu esperava ouvir.

- Ela estava muito pálida, mas pegou o papel e o barbante. Ele não disse nada. Fez o embrulho e assobiou uma música. Não ligava a mínima pra nenhum de nós. Seus olhos tinham um sorriso irónico. Meu coração pesava como chumbo. Temia que algo acontecesse, e desejava que não tivesse dito nada. Ele procurou o chapéu. Então ela falou: "Vou embora com Strickland, Dirk. Não posso mais viver com você." Tentei falar, mas as palavras não saíam. Strickland não dizia nada. Continuava assobiando como se não tivesse nada a ver com aquilo.

Stroeve parou novamente de falar e enxugou o rosto. Continuei calado. Agora acreditava nele e estava perplexo. Mas mesmo assim não entendia.

Então ele me contou, com a voz trémula, as lágrimas correndo-lhe pelo rosto, como tinha ido até ela, tentando pegá-la nos braços, mas ela se afastara e lhe implorara para não tocá-la. Ele suplicou que não o abandonasse. Disse-lhe como a amava, e lembrou toda a dedicação com que a tratara. Falou da felicidade que viveram. Não estava zangado. Não a reprovava.

Por favor, deixe-me ir sossegada, Dirk – disse ela finalmente. - Você não compreende que eu amo Strickland? Aonde ele for eu Vou também.

- Mas você sabe que ele nunca vai fazê-la feliz. Para o seu próprio bem, não vá. Não sabe o que a espera.

A culpa é sua. Você insistiu para que ele viesse pra cá.

Ele virou-se para Strickland.

- Tenha piedade dela - implorou-lhe. - Não pode deixar que faça uma coisa tão impensada assim.

- Ela pode fazer o que quiser - disse Strickland.

- Não é obrigada a vir.

- Já fiz a minha escolha - disse ela numa voz seca. A calma irritante de Strickland fez Stroeve perder o pouco controle que ainda lhe restava. Uma raiva cega apossou-se dele, e sem saber o que estava fazendo jogouse para cima de Strickland que, apanhado de surpresa, cambaleou, mas era muito forte, mesmo após ter ficado doente, e num momento, sem saber como exatamente, Stroeve viu-se no chão.

- Seu bobalhão - falou Strickland.

Stroeve levantou-se. Reparou que a mulher tinha ficado impassível, e sua humilhação aumentou por ter sido ridicularizado na frente dela. Seus óculos tinham caído na luta, e não conseguiu achá-los logo. Ela pegou-os e entregou-os a ele em silêncio. De repente ele pareceu dar-se conta de sua infelicidade, e embora soubesse estar fazendo um papel ainda mais ridículo, começou a chorar. Escondeu o rosto nas mãos. Os outros observavam sem dizer palavra. Não se moveram.

- Ah, minha querida - ele disse, gemendo, finalmente - como você pode ser tão cruel?

- É mais forte do que eu, Dirk - respondeu ela.

- Eu a idolatrei como nenhuma mulher jamais foi idolatrada. Se alguma coisa que fiz não a agradou, por que você não me disse, e eu teria me modificado. Fiz tudo que pude por você.

Ela não respondeu. Seu rosto estava impassível, e ele viu que apenas a aborrecia. Ela pôs o casaco e o chapéu. Andou em direção à porta, e ele viu que num momento ela se iria. Correu até ela e caiu de joelhos à sua frente, segurando-lhe as mãos: abandonou todo o amorpróprio.

- Ah, não vá, minha querida. Não posso viver sem você, Vou me matar. Se fiz alguma coisa que a ofendeu, suplico-lhe que me perdoe. Dê-me outra oportumdade. Vou fazer um esforço ainda maior para fazê-la feliz.

- Levante-se, Dirk. Você está fazendo papel de bobo.

Ele levantou-se, cambaleando, mas ainda não a deixou ir.

- Pra onde você vai? - falou rapidamente. - Você não imagina como é o lugar onde Strickland mora. Não pode morar lá. Seria horrível.

- Se eu não me importo, não vejo por que você é que vai se importar.

- Fique mais um minuto. Tenho que falar uma coisa. Afinal de contas, você não pode ficar com raiva de mim por isso.

- O que é que adianta? Eu já me decidi. Nada do que você disser vai me fazer mudar de ideia.

Engoliu seco e pôs a mão no coração para diminuir suas dolorosas batidas.

- Não Vou lhe pedir pra mudar de ideia, mas quero que você me ouça um minuto. É a última coisa que Vou pedir. Não me negue isso.

Ela parou, olhando para ele com aqueles olhos reflexivos, agora tão indiferentes a ele. Voltou para o estúdio e encostou-se na mesa.

- Bem?

Stroeve fez um grande esforço para se controlar.

- Você deve ser razoável. Não pode viver de ar. Strickland não tem um centavo.

- Eu sei.

- Você vai sofrer as mais duras privações. Você sabe por que ele demorou tanto a se recuperar. Estava quase morto de fome.

- Posso ganhar dinheiro pra ele.

- Como?

- Não sei. Vou encontrar um meio.

Uma ideia horrível passou pela cabeça do holandês, e ele estremeceu.

- Acho que você deve estar louca. Não sei o que lhe deu.

Ela deu de ombros.

- Agora posso ir?

- Espera mais um segundo.

Ele deu uma olhada à sua volta, desanimado. Amara o estúdio porque a presença dela tinha feito dele um lar. Fechou os olhos por um instante. Então olhou para ela longamente, como se fosse para imprimir sua imagem na mente. Levantou-se e pegou o chapéu.

- Não, eu Vou.

- Você?

Ela ficou surpresa. Não sabia o que ele queria dizer.

- Não posso suportar a ideia de você morando naquele sótão imundo. Afinal, esta casa é tão sua quanto minha. Você vai ficar confortável aqui. Pelo menos será poupada das piores privações.

Foi até a gaveta onde guardava dinheiro e tirou várias notas.

- Gostaria de lhe dar metade do que tenho. Colocou-as na mesa. Nem Strickland nem sua mulher disseram uma palavra.

Então lembrou-se de outra coisa.

- Você pode me fazer o favor de arrumar minhas roupas e deixá-las com a senhoria? Amanhã venho pegálas   - Tentou sorrir. - Adeus, minha querida. Agradeço-lhe por toda a felicidade que me proporcionou no passado.

Saiu e fechou a porta. Imaginei a cena que se seguiu: Strickland jogando o chapéu na mesa e sentando-se para fumar um cigarro.

 

Continuei calado por um curto período, pensando no que Stroeve me contara. Não podia engolir sua fraqueza, e ele viu minha desaprovação.

- Você sabe tão bem quanto eu, como Strickland vivia - disse ele com a voz trémula. - Eu não podia deixá-la viver naquelas circunstâncias... simplesmente não podia.

- Isso é problema seu - respondi.

- O que você teria feito? - perguntou.

- Ela sabia o que a esperava. Se tivesse que passar por certas inconveniências era problema dela.

- É, mas você não a ama.

- Você ainda a ama?

- Ah, mais do que nunca. Strickland não é homem pra fazer nenhuma mulher feliz. Não vai durar muito. Quero que ela saiba que nunca Vou abandoná-la.

- Quer dizer que você está pronto pra recebê-la de volta?

- Não hesitaria em fazer isso. Ora, ela vai me querer mais do que nunca. Quando estiver só, humilhada e arrasada, seria horrível se não tivesse pra onde ir.

Parecia não ter o menor ressentimento. Acho que já era típico de minha parte ficar indignado com sua falta de amor-próprio. Talvez ele tenha adivinhado o que se passava em minha mente, pois disse:

- Não podia esperar que ela me amasse tanto quanto eu a amava. Sou um bufão. Não sou o tipo de homem que as mulheres amam. Sempre soube disso. Não posso culpá-la por ter se apaixonado por Strickland.

- Você tem menos vaidade do que todos os homens que já conheci - falei.

- Eu a amo mais do que a mim mesmo. Acho que quando existe vaidade misturada ao amor é porque realmente amamos mais a nós mesmos do que ao outro. Afinal, sempre acontecem casos em que um homem casado se apaixona por outra pessoa; quando se recupera, volta para a mulher e ela o recebe de volta, e todos acham muito natural. Por que deve ser diferente com as mulheres?

- Confesso que é lógico - disse eu, sorrindo - mas a maioria dos homens é diferente e não consegue tolerar isso.

Mas enquanto eu falava com Stroeve, intrigava-me com a rapidez do caso. Não podia imaginar que ele não tivesse reparado em nada até então. Lembrava-me do olhar estranho que tinha visto nos olhos de Blanche Stroeve; talvez o motivo desse olhar fosse a gradativa conscientização de um sentimento que a surpreendia e alarmava.

- Você não suspeitou de alguma coisa antes de hoje? - perguntei.

Ele não respondeu durante um certo tempo. Havia um lápis na mesa e, inconscientemente, ele desenhou uma cabeça no mata-borrão.

- Por favor, avise se não quiser que lhe faça perguntas - disse eu.

- Isso me ajuda a falar. Ah, se você soubesse a angústia que estou sentindo. - Largou o lápis. - É, eu sabia de tudo há 15 dias. Soube antes dela.

- Por que então não mandou Strickland embora?

- Não conseguia acreditar. Parecia tão impossível, era inacreditável. Pensei que fosse apenas ciúme. Sempre tive ciúmes, mas me controlava para não demonstrar. Tinha ciúmes de todos os homens que ela conhecia, até de você. Sabia que ela não tinha por mim o mesmo amor que eu possuía por ela. Isso era natural, não era? Mas ela deixava que eu a amasse, e isso era suficiente pra me fazer feliz. Fazia força de ficar horas fora de casa pra deixá-los a sós. Queria me castigar pelas suspeitas que eram indignas de mim. E quando voltava, percebia que não me queriam. Não Strickland, ele nem ligava se eu estava lá ou não, mas Blanche. Ela estremecia quando eu a beijava. Quando finalmente tive certeza, não sabia o que fazer, sabia que iam apenas rir de mim se eu fizesse uma cena. Achei que se ficasse calado e fingisse não ver, tudo acabaria bem. Decidi fazê-lo sair tranquilamente, sem brigas. Ah, se você soubesse o que eu sofri!

Então ele contou novamente como pedira a Strickland para ir embora. Escolheu com cuidado o momento certo e tentou fazer seu pedido parecer casual, mas não conseguiu controlar o tremor da voz e sentiu nas palavras que desejava fossem joviais e amigáveis insinuar-se o amargor do ciúme. Não esperava que Strickland atendesse seu pedido tão prontamente e se preparasse para sair imediatamente. Acima de tudo, não esperava que sua mulher decidisse acompanhá-lo. Percebi que agora ele desejava de todo coração não ter falado nada. Preferia a angústia do ciúme à angústia da separação.

- Tive vontade de matá-lo, e só fiz papel de bobo. Ficou calado por muito tempo e então disse o que eu

sabia que devia estar passando por sua cabeça.

- Se eu tivesse esperado, talvez tudo acabasse bem. Não devia ter sido tão impaciente. Ah, pobre criança, o que a induzi a fazer?

Dei de ombros, mas não disse nada. Não simpatizava com Blanche Stroeve, mas sabia que só iria magoar o pobre Dirk se lhe dissesse exatamente o que pensava dela.

Ele chegar àquele ponto de exaustão em que não se consegue parar de falar. Repetiu todas as palavras da outra hora, falava sobre o que devia ter dito em vez da cena. Uma hora ocorria-lhe algo que não me dissera antes, que disse, depois, lamentava sua cegueira. Lamentava ter deixado de fazer outras. Isso foi até altas horas, e no final fiquei tão cansado quanto ele.

- O que você vai fazer agora? - perguntei finalmente.

- O que é que posso fazer? Vou esperar até ela me chamar.

- Por que não viaja um pouco?

- Não, não. Preciso estar por perto pra quando ela me quiser.

No momento ele parecia perdido. Não fizera qualquer plano. Quando sugeri que fosse para cama, ele disse que não conseguiria dormir. Queria sair e andar pelas ruas até o dia clarear. Era evidente que não estava em condições de ficar sozinho. Eu o persuadi a passar a noite comigo e o acomodei em minha própria cama. Tinha um divã na sala de estar e podia muito bem dormir nele. Ele, àquela altura, já estava tão esgotado que não teve forças para resistir à minha persistência. Dei-lhe uma dose de veronal suficiente para fazê-lo dormir por várias horas. Achei que era o melhor serviço que eu podia prestar-lhe .

 

Mas a cama que preparei para mim foi tão desconfortável que tive uma noite de insónia, e pensei bastante no que o holandês me contara. Não fiquei muito surpreso com a atitude de Blanche Stroeve, pois para mim era apenas o resultado de uma atração física. Não creio que gostasse realmente do marido, e o que eu pensara ser amor não era senão a reação femimna a carinho e conforto que nas mentes da maioria das mulheres passa por isso. É um sentimento passivo capaz de ser estimulado por qualquer objeto, assim como a trepadeira cresce em qualquer árvore. E a sabedoria do mundo reconhece a força desse sentimento quando ele leva uma moça a se casar com o homem que a quer com a certeza de que o amor virá. É uma emoção resultante da satisfação com a segurança, o orgulho de propriedade, o prazer de ser desejada, a gratificação de um lar, e é apenas por simples presunção que as mulheres levam em consideração seu valor espiritual. É uma emoção impotente ante a paixão. Eu suspeitava que a forte antipatia de Blanche Stroeve por Strick^and tinha um vago elemento de atração sexual desde o início. Quem sou eu para procurar deslindar as misteriosas complicações do sexo? Talvez a paixão de Stroeve excitasse, sem satisfazer, aquela parte de sua natureza, e ela odiasse Strickland por sentir nele o poder de lhe dar o que precisava. Creio que foi sincera quando se opôs ao desejo do marido de trazê-lo para o estúdio; penso que tinha medo dele, embora não soubesse por quê; e lembrava-me de como previra uma tragédia. Acho que de alguma forma curiosa o horror que ele lhe provocara era uma transferência do horror que sentia por si mesma por ele perturbá-la tão estranhamente. A aparência de1 e era selvagem e maltratada; havia indiferença em seus olhos e sensualidade em sua boca; era grande e forte; dava a impressão de uma paixão indómita; e talvez ela sentisse nele, também, aquele elemento sinistro que me fizera pensar naqueles seres selvagens da história primitiva do mundo, quando a matéria, retendo sua inicial ligação com a terra, parecia possuir ainda um espírito próprio. Se ele por acaso a afetou, era inevitável que ela o amasse ou odiasse. Ela o odiava.

E então imagino que o contato diário com o homem doente perturbou-a estranhamente. Ela levantava sua cabeça para lhe dar comida, e esta pesava em sua mão.

Quando o alimentava, enxugava sua boca sensual e sua barba vermelha. Lavava seus braços, cobertos de pêlos grossos; e quando secava suas mãos, mesmo em sua fraqueza elas eram fortes e vigorosas. Seus dedos eram compridos; eram os dedos capazes e bem-feitos do artista; e não sei que pensamentos perturbadores eles provocaram nela. Ele dormia muito quieto, sem um movimento, parecendo estar morto, e era como uma criatura selvagem da floresta, descansando após uma longa caçada; e ela se perguntava quais fantasias passavam em seus sonhos. Será que sonhava com a ninfa, fugindo pelas matas da Grécia com o sátiro a persegui-la ferozmente? Fugia, rápida e desesperada, mas ele a alcançava pouco a pouco, até que ela sentia seu hálito quente em sua face, e ainda assim ela fugia silenciosamente, e silenciosamente ele a perseguia, e quando finalmente a alcançava, o que se apossava de seu coração seria terror ou êxtase?

Blanche Stroeve estava presa na garra cruel do desejo. Talvez ainda odiasse Strickland, mas desejava-o, e tudo que vivera até então de nada importava. Deixou de ser mulher, complexa, dócil e rebelde; sensata e tola: era uma bacante. Era toda desejo.

Mas talvez isso seja muito fantasioso e talvez estivesse apenas cansada do marido e procurasse Strickland por uma curiosidade indiferente. Talvez não sentisse nada de especial por ele, mas tenha sucumbido a seu desejo por afinidade ou ócio, descobrindo então que estava indefesa numa armadilha armada por ela própria. Como eu podia saber quais eram os pensamentos e emoções existentes por trás daquela testa serena e daqueles frios olhos cinzentos?

Embora não se possa ter certeza de nada com respeito a criaturas tão imprevisíveis como os seres humanos, havia explicações sobre o comportamento de Blanche Stroeve que eram, de qualquer maneira, plausíveis. Por outro lado, não compreendia Strickland de forma alguma. Fazia um esforço para pensar numa razão, mas não conseguia de nenhum modo justificar uma ação tão contrária à minha concepção dele. Não estranhava ter ele traído de forma tão cruel a confiança do amigo, nem por não hesitar em satisfazer um capricho à custa da infelicidade dos outros. Isso era bem próprio de seu caráter. Era um homem sem a mínima noção de gratidão. Não tinha compaixão. As emoções comuns à maioria de nós simplesmente não existiam dentro dele, e seria tão absurdo culpá-lo por não senti-las como culpar o tigre por ser cruel. Mas era o capricho que eu não compreendia.

Não acreditava que Strickland tivesse se apaixonado por Blanche Stroeve. Não o achava capaz de amar. Essa é uma emoção em que a ternura é uma parte essencial, e Strickland não tinha ternura nem por si nem pelos outros. Existe no amor uma sensação de fraqueza, um desejo de proteger, um desejo de fazer o bem e dar prazer - se não chega a ser falta de egoísmo, de qualquer modo é um egoísmo que se esconde de maneira perfeita; tem nele uma certa timidez. Essas não eram características que eu pudesse imaginar em Strickland. O amor absorve, tira o amante de si mesmo; os mais esclarecidos, embora talvez saibam, não se dão conta de que tal amor possa terminar. Ele dá corpo à ilusão, e, sabendo que não é nada mais do que isso, a prefere à realidade. Ele faz um homem ser um pouco mais do que ele mesmo, e ao mesmo tempo um pouco menos. Deixa de ser ele próprio. Não é mais um indivíduo, mas uma coisa, um instrumento útil a algum fim estranho a seu ego. O amor nunca é destituído de sentimentalismo, e Strickland era o menos inc^nado àquela enfermidade que qualquer outro homem que já conheci. Não acreditava que algum dia ele sofresse dessa posse de si mesmo que é o amor. Nunca poderia suportar um domínio estranho. Achava-o capaz de arrancar de seu coração, embora fosse com agonia e ficasse destruído e arrasado, qualquer coisa que se interpusesse entre ele e aquele desejo desconhecido que o incitava constantemente a algo que nem ele sabia. Se de alguma forma consegui transmitir a impressão complicada que Strickland me dava, não será exagerado dizer que eu o achava ao mesmo tempo muito elevado e muito pequeno para o amor.

Mas suponho que a concepção de paixão de cada um se forma a partir de suas próprias idiossincrasias e é diferente para cada pessoa. Um homem como Strickland devia amar de uma maneira peculiar. Era inútil buscar a análise de sua emoção.

 

No dia seguinte, apesar de eu insistir para que ficasse, Stroeve foi embora. Ofereci-me para apanhar suas coisas no estúdio, mas ele insistiu em ir. Acho que alimentava esperanças de que não tivessem se lembrado de arrumálas, para ter uma oportumdade de ver a mulher novamente e talvez convencê-la a voltar para ele. Mas encontrou suas coisas esperando por ele na casa do porteiro, e a senhoria lhe disse que Blanche havia saído. Acho que não resistiu à tentação de contar-lhe seu infortúnio. Percebi que vivia contando seus problemas a todas as pessoas que conhecia, esperando simpatia, mas apenas se expunha ao ridículo.

Comportou-se de maneira insensata. Sabendo a que horas a mulher fazia as compras, e não conseguindo mais ficar sem vê-la, um dia escorou-a na rua. Ela não queria falar com ele, que insistiu. Desculpou-se por algum erro que tivesse cometido, disse que a amava com devoção e implorou que voltasse para ele. Ela não respondeu. Caminhou rapidamente, com o rosto virado. Imaginei-o com suas pernas curtas e gordas tentando alcançá-la. Ofegante com a pressa, disse-lhe o quanto estava infeliz, implorou-lhe que tivesse piedade dele, prometeu, se ela o perdoasse, fazer tudo que ela quisesse. Ofereceu-se para levála numa viagem. Disse-lhe que Strickland logo se cansaria dela. Quando me contou toda a cena sórdida, fiquei indignado. Não demonstrara nem sensatez nem dignidade. Não omitira nada que pudesse fazer a mulher desprezá-lo. Não existe crueldade maior do que a de uma mulher com um homem que a ama e o qual ela não ama. Ela não tem qualquer consideração nesses casos, nem mesmo tolerância, apenas uma grande irritação. Bianche Stroeve parou subitamente, e esbofeteou o marido com toda força. Aproveitou-se de sua confusão para fugir, e correu pelas escadas para o estúdio. Não dissera uma palavra.

Quando ele contou isso, pôs a mão no rosto como se sentisse ainda a dor da bofetada, e em seus olhos havia uma mágoa de cortar o coração e uma perplexidade ridícula. Parecia um colegial machucado, e embora eu sentisse muita pena deTe, tive vontade de rir.

Então começou a andar pela rua em que ela costumava passar para fazer compras e ficava parado na esquina, do outro lado, quando ela passava. Não ousou dirigir-se a ela novamente, mas procurava deixar transparecer nos olhos o apelo de seu coração. Creio que achava que a visão de sua infelicidade a influenciaria. Ela nunca demonstrou que o via. Nem mesmo trocou o horário de suas saídas ou procurou um outro caminho. Acho que havia uma certa crueldade em sua indiferença. Talvez se divertisse com a tortura que lhe infligia. Eu me perguntava por que ela o odiava tanto.

Pedi a Stroeve que se comportasse de maneira mais sensata. Sua falta de dignidade era exasperante.

- Você não está fazendo bem a ninguém desse jeito - disse eu. - Acho que você teria sido mais sensato se tivesse dado uma paulada na cabeça dela. Ela não o desprezaria tanto.

Sugeri que fosse para sua cidade por algum tempo. Sempre falara da cidadezinha tranquila, em algum lugar no Norte da Holanda, onde seus pais ainda viviam. Eram pessoas pobres, pai carpinteiro, e moravam numa casinha velha de tijolos, limpa e arrumada, à beira de um indolente canal. As ruas eram largas e vazias; há 200 anos o lugar estava em decadência, mas as casas tinham a mesma pompa de seu tempo. Ricos comerciantes, que enviavam suas mercadorias para as índias distantes, tinham vivido ali vidas serenas e prósperas, e em sua decadência digna as casas mantinham ainda um ar de seu esplendor passado . Andava-se ao longo do canal até chegar a grandes campinas verdes, com moinhos espalhados, nas quais o gado, preto e branco, pastava preguiçosamente. Achei que naqueles arredores, com as lembranças da infância, Dirk Stroeve esqueceria sua tristeza. Mas ele nem pensava no passado.

- Tenho que estar aqui quando ela precisar de mim - repetia. - Seria horrível se alguma coisa ruim acontecesse e eu não estivesse por perto.

- O que você acha que vai acontecer? - perguntei.

- Não sei. Mas tenho medo. Sacudi os ombros.

Apesar de toda a dor, Dirk Stroeve continuava sendo uma pessoa ridícula. Teria inspirado simpatia se tivesse ficado magro e envelhecido. Mas nada disso aconteceu. Continuou gordo, e suas bochechas vermelhas brilhavam como maçãs maduras. Tinha muito trato e continuava a usar seu paletó preto impecável e o chapéu-coco, sempre um pouco pequeno para ele, de maneira garbosa. Estava ficando um tanto barrigudo, e a tristeza não ajudava em nada. Parecia mais do que nunca um próspero caixeiro viajante. É triste que a aparência de um homem às vezes não condiga em nada com o que se passa em sua alma. Dirk Stroeve tinha a paixão de Romeu com o corpo de Sir Toby Belch. Tinha uma natureza sensível e generosa, e entretanto era sempre desajeitado; uma sensibilidade autêntica pelo belo e a capacidade de criar apenas o comum; uma peculiar delicadeza de sentimentos e maneiras grotescas. Tinha tato ao tratar dos negócios dos outros, mas nenhum quando se tratava dos seus próprios. Que peça cruel a velha natureza pregou quando reumu tantos elementos contraditórios e deixou o homem face a face com a insensibilidade do um verso.

 

Não vi Strickland durante várias semanas. Estava revoltado com ele, e se tivesse tido uma oportunidade ficaria feliz em dizer-lhe isso pessoalmente, mas não vi razão para procurá-lo. Sou um pouco tímido para assumir qualquer atitude de indignação moral. Existe nesta, um elemento de auto-satisfação que a toma estranha para qualquer pessoa que tenha senso de humor. É necessário uma paixão muito vívida para me cobrir de ridículo. Havia uma sinceridade sardónica em Strickland que me fazia sensível a qualquer coisa que pudesse sugerir uma atitude pretensiosa.

Mas uma noite, quando passava sozinho pela Avenue de Clichy em frente ao café que Strickland frequentava e que eu agora evitava, dei com ele. Estava com Blanche Stroeve, e se dirigiam justamente para o canto favorito de Strickland.

- Por onde diabos você andou? - disse ele. Pensei que estava fora.

Sua cordialidade era uma prova de que sabia que eu não tinha a mínima vontade de falar com ele. Não era um homem com que se devesse desperdiçar educação.

- Não - falei - não estava fora.

- Por que não tem vindo aqui?

- Existem vários cafés em Paris onde passar o tempo.

Blanche então estendeu-me a mão e deu boa-noite. Não sei por que eu esperava que ela estivesse um pouco amuada; usava o mesmo vestido cinza de sempre, vistoso e limpo, e sua testa estava tão tranquila e os olhos tão serenos como quando eu a via ocupada com os afazeres domésticos no estúdio.

- Vamos jogar uma partida de xadrez - disse Strickland.

Não sei por que naquele momento não consegui pensar em nenhuma desculpa. Acompanhei-os um tanto emburrado até a mesa em que Strickland sempre sentava, e ele pediu o tabuleiro e as peças. Ambos encaravam a situação com tanta naturalidade que achei absurdo agir de maneira diferente. A Sr.a Stroeve observava o jogo com um rosto inescrutável. Ficou calada, mas sempre fora calada. Procurei em sua boca uma expressão que me desse uma pista do que sentia; observei seus olhos em busca de algum sinal de tristeza ou amargura; examinei sua testa, tentando descobrir alguma ruga que pudesse indicar uma emoção persistente. Seu rosto era uma máscara que não revelava nada. Suas mãos pendiam no colo imóveis, uma na outra, relaxadas. Sabia pelo que tinha ouvido, que era uma mulher de emoções violentas, e aquela bofetada que dera em Dirk, o homem que a amara com tanta dedicação, traía um temperamento impetuoso e uma crueldade terrível. Abandonara o abrigo seguro da proteção do marido e o conforto de uma casa em que nada faltava por uma vida sem a menor segurança. Isso demonstrava uma sede de aventura, uma disposição para a mera sobrevivência, que não combinavam com o cuidado demonstrado com a casa e o amor pela vida doméstica . Devia ser uma mulher de caráter complexo, e havia algo dramático no contraste deste com sua aparência reservada.

Estava nervoso com o encontro, e minha imaginação trabalhava sem parar enquanto eu procurava me concentrar no jogo. Sempre fiz o possível para vencer Strickland, porque era um jogador que desprezava o oponente que ele derrotasse; sua exultação com a vitória tomava a derrota mais difícil de suportar. Por outro lado, se vencido, aceitava o fato de bom humor. Era um mau ganhador e um bom perdedor. Quem crê que um homem demonstra seu caráter melhor do que nunca quando joga, poderia tirar algumas conclusões sutis desse seu comportamento.

Quando terminamos, chamei o garçom para pagar as bebidas e deixei-os. Não acontecera qualquer incidente durante o encontro. Nenhuma palavra deu-me razão para refletir, e quaisquer conclusões que tirasse seriam por minha conta. Estava intrigado. Não podia dizer como era o relacionamento entre eles. Daria tudo para ser um espírito e poder vê-los na intimidade do estúdio e ouvir o que falavam. Não tinha a mínima informação sobre a qual minha imaginação pudesse trabalhar.

 

Dois ou três dias mais tarde, Dirk Stroeve foi me visitar.

- Soube que esteve com Blanche - ele falou.

- Como é que você descobriu?

- Soube por uma pessoa que viu você sentado com eles. Por que não me contou?

- Achei que isso só iria magoá-lo.

- O que me importa se magoar? Você sabe que gosto de saber qualquer coisa sobre ela.

Esperei que ele me fizesse perguntas.

- Como é que ela está? - disse ele.

- A mesma coisa.

- Parece feliz? Dei de ombros.

- Como é que posso saber? Estávamos num café; jogamos xadrez; não tive oportumdade de conversar com ela.

- Ah, mas você pode ter percebido pelo rosto dela.

Sacudi a cabeça. Só pude dizer que ela não dera nenhuma indicação de seus sentimentos, fosse por uma palavra ou por um gesto. Ele devia saber melhor do que eu como ela era capaz de se autocontrolar. Ele torceu as mãos nervoso.

- Ah, estou com muito medo. Sei que alguma coisa vai acontecer, algo terrível, e não posso fazer nada para evitar.

- Que tipo de coisa? - perguntei.

- Ah, não sei - queixou-se ele, segurando a cabeça com as mãos. - Estou prevendo uma catástrofe terrível.

Stroeve sempre fora nervoso, mas agora estava fora de si; não raciocinava mais. Eu achava bem provável que Blanche Stroeve não fosse longe com Strickland, mas um dos provérbios mais errados é o de que cada um prepara sua própria cama. A experiência da vida demonstra que as pessoas estão sempre fazendo coisas que têm más consequências, e entretanto, com um pouco de sorte, conseguem furtar-se dos resultados de sua loucura. Quando Blanche brigasse com Strickland, só precisaria abandoná-lo, e o marido estaria esperando humildemente para perdoar e esquecer. Não sentia muita simpatia por ele.

- Você não a ama - disse Stroeve.

- Afinal de contas, não há nenhum indício de que não está feliz. Pelo que sabemos, parece que estão vivendo como um casal normal.

Stroeve olhou-me com seus olhos tristes.

- É claro que isso não interessa a você, mas pra mim é muito importante, muito importante mesmo.

Lamentei ter parecido impaciente ou impertinente.

- Você é capaz de me fazer um favor? - perguntou Stroeve.

- Com prazer.

- Pode escrever pra Blanche por mim?

- Por que você mesmo não escreve?

- Já escrevi várias vezes. Não esperava que ela respondesse. Não creio que leia minhas cartas.

- Você não leva em conta a curiosidade femimna. Acha que ela resistiria?

- Às minhas, sim.

Olhei para ele rapidamente. Baixou os olhos. Aquela resposta parecia-me estranhamente humilhante. Ele possuía consciência de que ela o encarava com uma indiferença tão profunda que, à vista de sua letra, ela não daria a mínima importância.

- Você acredita realmente que ela algum dia vai voltar pra você? - perguntei.

- Quero que ela saiba que se acontecer o pior pode contar comigo. É isso que quero que você diga.

Peguei uma folha de papel.

- O que você quer que eu diga exatamente? Eis o que ele escreveu:

Cara Sr.a Stroeve,

Dirk pediu-me que lhe dissesse que se a qualquer época a senhora precisar dele, ficará grato pela oportumdade de lhe ser útil. Não tem nenhum ressentimento pelo que aconteceu. Seu amor pela senhora permanece inalterado. Pode encontrá-lo sempre no seguinte endereço.

 

Mas embora estivesse tão certo quanto Stroeve que a ligação entre Strickland e Blanche terminaria desastrosamente, não esperava que o caso tomasse as proporções trágicas que tomou. Veio o verão, quente e abafado, e mesmo durante a noite não havia um frescor que acalmasse os nervos exaustos. As ruas ressecadas pelo sol pareciam devolver o calor que recebiam durante o dia, e os transeuntes arrastavam-se por elas com desânimo. Não via Strickland há semanas. Ocupado com outras coisas, parara de pensar nele e no seu caso. Dirk, com seus lamentos inúteis, começava a aborrecer-me, e evitava sua companhia. Era um caso sórdido, e eu não estava querendo me preocupar mais com isso.

Certa manhã eu estava trabalhando. De pijama. Meus pensamentos vagavam, e pensava nas praias ensolaradas da Bretanha e no frescor do mar. Ao meu lado, a xícara de café com leite trazida pela senhoria e o pedaço de um croissant que não tinha tido fome suficiente para comer. Ouvi a senhoria no banheiro esvaziando a banheira. A campainha tocou, e deixei-a abrir a porta. Num momento ouvi a voz de Stroeve perguntando se eu estava em casa. Sem me mexer, gritei para que entrasse. Ele entrou rapidamente e veio até a mesa onde eu me encontrava.

- Ela se matou - disse ele, rouco.

- O quê? - gritei, assustado.

Moveu os lábios como se estivesse falando, mas não emitiu nenhum som. Falava de maneira ininteligível, como um idiota. Meu coração batia desenfreado e, não sei por que, me irritei.

- Pelo amor de Deus, controle-se, homem - eu falei. - De que você está falando?

Fazia gestos desesperados com as mãos, mas as palavras não saíam de sua boca. Parecia ter ficado mudo. Não sei o que deu em mim, peguei-o pelos ombros e sacudi-o. Ao relembrar a cena, fico vexado de ter feito um tal papel. Creio que as noites inquietas tinham abalado meus nervos mais do que pensava.

- Deixe-me sentar - ele conseguiu dizer finalmente. Enchi um copo com St. Galmier e dei para que ele o

bebesse. Levei-o à sua boca como se ele fosse uma criança. Deu um gole, e um pouco do vinho derramou em sua camisa.

- Quem se matou?

Não sei por que perguntei, pois sabia quem era. Ele fez um esforço para se controlar.

- Tiveram uma briga a noite passada. Ele foi embora.

- Ela está morta? *

- Não, levaram-na pra um hospital.

- Então o que você está falando? - gritei, impaciente . - Por que disse que ela se matou?

- Não fique irritado assim comigo. Não posso contar tudo que aconteceu se você ficar falando desse jeito.

Torci as mãos, procurando controlar minha irritação. Tentei sorrir. - Desculpe. Tenha calma. Não tem pressa.

Seus olhos azuis redondos por trás dos óculos estavam horrorizados. As lentes de aumento que usava distorciam-nos .

- Quando a senhoria foi até lá em cima esta manhã para levar uma carta, não obteve resposta. Ouviu alguém gemendo. A porta não estava fechada, e ela entrou. Viu Blanche deitada na cama, muito doente. Havia um vidro de ácido oxálico em cima da mesa.

Stroeve escondeu o rosto nas mãos e inclinava-se para frente e para trás gemendo.

- Ela estava consciente?

- Estava. Ah, se você soubesse como ela está sofrendo. Não posso suportar. Não posso.

Sua voz tomou-se um guincho.

- Porra, não é você que tem que aguentar - gritei, impaciente. - É ela.

- Como é que você pode ser tão cruel?

- O que você fez?

- Chamaram um médico e a mim, e depois a polícia. Eu tinha dado à senhoria 20 francos para me chamar caso acontecesse algo.

Parou de falar um minuto, e deduzi: o que ele queria me dizer era muito difícil.

- Quando entrei, ela não falava comigo. Disse que me mandassem embora. Jurei que perdoava tudo, mas ela não me escutava. Tentou bater com a cabeça na parede. O médico disse que eu devia sair dali. Ela continuou dizendo: "Mandem ele embora!" Eu fui, e esperei no estúdio. E quando a ambulância chegou e a puseram na maca, fizeram-me ir pra cozinha para que ela não soubesse que eu estava lá.

Enquanto me vestia - pois Stroeve queria que eu fosse imediatamente com ele para o hospital - ele disse ter conseguido instalar a mulher num quarto particular, para que pelo menos fosse poupada da promiscuidade sórdida de uma enfermaria. No caminho, explicou por que desejava minha presença: se ela continuasse recusando-se a vê-lo, talvez concordasse em me receber. Implorou que eu lhe dissesse que ele ainda a amava, que não a reprovaria por nada, mas desejava apenas ajudá-la, que não exigia nada dela, e quando se recuperasse não procuraria convencê-la a voltar para ele, ela seria inteiramente livre.

Mas quando chegamos ao hospital - um prédio feio e triste, cuja aparência já era suficiente para deixar um coração apertado - e depois de sermos levados de um funcionário a outro, por infindáveis escadas e corredores compridos, encontramos o médico encarregado do caso e soubemos que a paciente estava muito mal para receber visitas naquele dia. O médico era um homem baixo e barbudo, vestido de branco, de maneiras francas. Evidentemente considerava um caso como um caso, e os parentes ansiosos como um incómodo que deve ser tratado com firmeza. Além disso, para ele era uma ocorrência de rotina: apenas uma mulher histérica que havia brigado com o amante e tomado veneno. Ocorria com frequência. No começo, pensou que Dirk fosse a causa do incidente, e foi desnecessariamente brusco com ele. Quando expliquei que ele era o marido, ansioso por perdoar, o médico mediu-o com olhos curiosos e perscrutadores. Pareceu-me ver em seus olhos um sinal de zombaria. Era óbvio que Síroeve tinha a cabeça do marido enganado. O médico deu de ombros ligeiramente.

- Não há perigo imediato - comentou em resposta a nossas perguntas. - Não se sabe quanto ela ingeriu. Talvez escape por medo. As mulheres estão sempre tentando se suicidar por amor, mas geralmente tomam cuidado para não ter sucesso. Geralmente fazem isso para provocar piedade ou terror nos amantes.

Havia em seu tom de voz um desprezo frio. Era óbvio que para ele Blanche Stroeve era apenas uma umdade a ser acrescentada na estatística de tentativas de suicídio da cidade de Paris naquele ano. Estava ocupado e não podia perder mais tempo conosco. Disse-nos que se viéssemos no dia seguinte a uma determinada hora, caso Blanche estivesse melhor, o marido podia vê-la.

 

Não sei como passamos aquele dia. Stroeve não suportava ficar sozinho, e usei de todos os esforços para distraí-lo. Levei-o ao Louvre, e ele fingiu admirar os quadros, mas percebi que seus pensamentos estavam voltados para a mulher todo tempo. Obriguei-o a comer, e depois do almoço convenci-o a descansar, mas ele não conseguiu dormir. Aceitou de bom grado meu convite para ficar alguns dias em meu apartamento. Dei livros para ele ler, mas após uma página ou duas largava-os e 0lhava para o vazio, desesperado. Durante a noite jogamos várias partidas de um jogo de cartas, e ele, corajosamente, para não me desapontar, tentava parecer interessado. Finalmente deilhe um calmante, e ele mergulhou num sono inquieto.

Quando fomos novamente ao hospital, encontramos uma freira-enfermeira, que nos disse que Blanche parecia um pouco melhor, e entrou no quarto para perguntar se ela queria ver o marido. Ouvimos vozes no quarto, e a enfermeira voltou dizendo que a paciente recusava-se a ver qualquer pessoa. Tínhamos falado que se Blanche se recusasse a ver o marido, perguntasse se estaria disposta a me receber, mas também não quis. Os lábios de Dirk tremiam.

- Não Vou insistir - disse a enfermeira. - Ela está muito doente. Talvez daqui a um ou dois dias mude de ideia.

- Existe alguém que ela queira ver? - perguntou Dirk, numa voz tão baixa que mais parecia um sussurro.

- Ela disse que só quer que a deixem em paz.

As mãos de Dirk moviam-se de maneira estranha, como se não tivessem nada a ver com o corpo, com um movimento próprio.

- A senhora pode lhe dizer que se houver alguém que ela deseje ver, eu o trarei aqui? Só quero que seja feliz.

A enfermeira olhou para ele com seus olhos tranquilos e afáveis, que tinham presenciado todo o horror e dor do mundo, e entretanto, cheios da visão de um mundo sem pecados, permaneciam serenos.

- Transmito o recado quando ela estiver um pouco mais calma.

Dirk, cheio de compaixão, suplicou-lhe que transmitisse o recado imediatamente.

- Isso pode curá-la.   Peco-lhe que fale com ela agora.

com um leve sorriso de pena, a enfermeira entrou novamente no quarto. Ouvimos sua voz baixa, e então, numa voz que não reconheci, a resposta:

- Não. Não. Não.

A enfermeira voltou novamente e sacudiu a cabeça negativamente.

- Foi ela que falou? - perguntei. - Sua voz pareceu tão estranha.

- Parece que suas cordas vocais foram queimadas com o ácido.

Dirk deu um grito de dor. Pedi-lhe que saísse e me esperasse na porta, pois queria dizer uma coisa à enfermeira. Ele não perguntou o que era, e saiu em silêncio. Parecia ter perdido toda forca de vontade. Era como uma criança obediente.

- Ela disse por que fez isso? - perguntei.

- Não. Ela não fala. Fica deitada de costas sossegada. Fica imóvel durante horas às vezes.   Mas chora sempre. Seu travesseiro está todo molhado. Está muito fraca para usar um lenço, e as lágrimas correm-lhe pelo rosto.

Fiquei com o coração apertado. Podia ter matado Strickland naquele momento, e sabia que minha voz estava tremendo quando me despedi da enfermeira.

Encontrei Dirk esperando na escada. Parecia não estar vendo nada, e não reparou em minha chegada até eu tocá-lo no braço. Caminhamos em silêncio. Tentei imaginar o que poderia ter acontecido para levar a pobre criatura àquele ponto. Presumi que Strickland sabia o que acontecera, pois alguém da polícia deve ter ido procurá-lo, e ele prestado seu depoimento. Não sabia onde ele estava. Imaginei que tivesse voltado ao sótão velho que lhe servia de estúdio. Era curioso que ela não quisesse vê-lo. Talvez se recusasse a mandar chamá-lo por saber que ele não viria. Imaginei em que doloroso abismo ela devia se encontrar para se recusar a viver.

 

A semana seguinte foi horrível. Stroeve ia ao hospital duas vezes por dia para saber da mulher, que se recusava ainda a vê-lo, e voltava no começo aliviado e esperançoso por ter sabido que ela parecia estar melhorando, e depois desesperado porque - devido à complicação de seu estado, que o médico temera - a recuperação era impossível. A enfermeira tinha pena de sua tristeza, porém pouco podia dizer para consolá-lo. A pobre mulher permanecia imóvel, recusando-se a falar, com os olhos atentos como se esperasse a morte. Agora era questão de um dia ou dois. E quando uma noite já bem tarde Stroeve veio verme, percebi que era para dizer que ela havia morrido.

Ele estava exausto. Sua tagarelice esgotara-se finalmente, e ele mergulhou desanimado no sofá. Senti não adiantar dizer palavras de condolências e deixei-o quieto. Temi que ele achasse indiferença de minha parte ler, então sentei-me perto da janela, fumando um cachimbo, até que ele se sentisse disposto a falar.

- Você foi muito bom pra mim - disse finalmente.

- Todos têm sido muito bons.

- Bobagem - retruquei, um pouco embaraçado.

- No hospital disseram-me que podia esperar. Deram-me uma cadeira e fiquei do lado de fora do quarto. Quando ela ficou inconsciente, disseram que eu podia entrar. Sua boca e seu queixo foram queimados pelo ácido. Era horrível ver sua pele macia toda machucada. Ela morreu em paz, e eu só o soube quando a irmã me comumcou.

Ele estava muito cansado para chorar. Deitou-se de costas, todo curvado, como se toda força de seu corpo tivesse se esvaído, e vi que adormecera. Foi a primeira vez que dormiu naturalmente naquela semana. A natureza, às vezes tão cruel, é, em algumas circunstâncias, piedosa. Eu o cobri e apaguei a luz. De manhã quando acordei, ele ainda dormia. Não se movera. Seus óculos dourados ainda estavam no nariz.

 

As circunstâncias da morte de Blanche Stroeve exigiram várias formalidades, mas finalmente pudemos enterrá-la. Dirk e eu fomos os únicos a seguir o carro funerário até o cemitério. Fomos a passo, mas no caminho de volta viemos mais rápido, e para mim havia algo horrível na forma como o cocheiro do carro funerário chicoteava os cavalos. Parecia descartar-se dos mortos com um dar de ombros. De vez em quando, eu via o carro balançando à nossa frente, e o nosso cocheiro fazia os cavalos andarem mais depressa para não ficarmos atrás. Tive o desejo de tirar aquilo tudo da cabeça. Estava começando a me cansar com uma tragédia que não me dizia respeito, e fingindo para mim mesmo que falava para distrair Stroeve, mudei de assunto, aliviado.

- Você não acha que seria bom viajar um pouco? disse eu. - Não há motivo pra você ficar em Paris agora.

Ele não respondeu, mas eu continuei implacavelmente:

- Você já fez algum plano para o futuro?

- Não.

- Deve tentar refazer a vida. Por que não vai pra Itália e começa a pintar?

Novamente ele não respondeu, mas o cocheiro do nosso carro veio em meu socorro. Diminuindo a velocidade por um momento, ele inclinou-se e disse algo. Não consegui ouvir o que dizia, então pus a cabeça para fora da janela: ele queria saber onde nós desejávamos descer. Disse-lhe para esperar um minuto.

- É melhor você vir almoçar comigo - falei a Dirk.

- Vou dizer que nos deixe na Place Pigalle.

- Prefiro não ir. Quero ir até o estúdio. Hesitei um momento.

- Você quer que eu vá com você? - perguntei então.

- Não, prefiro ficar sozinho.

- Está bem.

Dei ao cocheiro as instruções necessárias, e continuamos em silêncio. Dirk não ia ao estúdio desde a triste manhã em que haviam levado Blanche para o hospital. Fiquei feliz que ele não quisesse que eu o acompanhasse, e quando o deixei na porta caminhei aliviado. Sentia um novo prazer nas ruas de Paris, e olhava com olhos sorridentes para as pessoas que corriam de um lado para outro.

O dia era bonito e ensolarado, e sentia em mim um prazer maior pela vida. Não podia evitar isso: tirei Stroeve e suas tristezas da cabeça. Queria aproveitar o dia.

 

Não o vi novamente por quase uma semana. Então uma noite logo depois das 7:00 ele me apanhou para irmos jantar. Estava de luto fechado e pusera no chapéu uma fita preta. Até no lenço pusera uma tira preta. Seu traje de luto fazia pensar que perdera numa catástrofe todos os parentes que possuía no mundo, mesmo os primos mais distantes. Sua obesidade e suas bochechas vermelhas e gordas destoavam do luto. Era cruel que sua grande infelicidade tivesse algo de ridículo.

Comentou que decidira ir embora, não para a Itália, como eu sugerira, mas para a Holanda.

- Vou partir amanhã. Esta talvez seja a última vez que vamos nos encontrar.

Repliquei como devia, e ele sorriu ligeiramente.

- Não ia até minha casa há cinco anos. Acho que havia até me esquecido de lá. Parecia ter vindo para tão longe que ficava um pouco envergonhado de voltar, mas agora sinto que é meu único refúgio.

Estava amargo e magoado, e seus pensamentos voltavam-se para a ternura do amor materno. O ridículo que suportara durante anos parecia pesar-lhe agora e o golpe final da traição de Blanche tirou-lhe a esportividade que o fizera aceitar tudo sem se incomodar. Não conseguia mais rir com aqueles que riam dele. Era um rejeitado. Contou-me sobre sua infância na arrumada casa de tijolos e sobre o capricho de sua mãe. Sua cozinha era uma pérola de limpeza. As coisas sempre em seus devidos lugares, e não se via uma poeirinha. Tinha mania de limpeza. Eu imaginei uma pequena senhora asseada, com bochechas vermelhas como maçãs, trabalhando de sol a sol, através dos anos, para manter a casa limpa e arrumada. Seu pai era um velho económico, de mãos ásperas após uma vida inteira de trabalho, calado e honesto. À noite lia o jornal alto, enquanto a mulher e a filha (agora casada com o capitão de um navio pesqueiro), para não perder um momento, inclinavam-se sobre a costura. Nada acontecia naquela cidadezinha, esquecida pelo avanço da civilização, e um ano seguia-se ao outro até que viesse a morte, como um amigo, para dar descanso àqueles que trabalharam com tanto zelo.

- Meu pai queria que eu fosse carpinteiro também. Há cinco gerações seguimos a mesma profissão, de pai para filho. Talvez esta seja a sabedoria da vida, seguir as pegadas do pai, sem se desviar. Quando eu era garoto, dizia que ia me casar com a filha de um seleiro que morava na casa ao lado da nossa. Era uma menina de olhos azuis e tranças louras. Ela teria cuidado de minha casa com esmero e eu teria tido um filho para continuar meu trabalho.

Stroeve suspirou um pouco e calou-se. Pensava na vida que poderia ter levado e a segurança que recusara enchia-o de saudades.

- O mundo é duro e cruel. Estamos aqui sem saber por que e vamos para um lugar desconhecido. Devemos ser muito humildes. Devemos dar valor à beleza do sossego . Devemos passar pela vida de maneira imperceptível para que o destino não se aperceba de nós. E procurar o amor de pessoas simples e ignorantes. A ignorância delas é melhor do que todo nosso conhecimento. Devemos ficar sossegados, satisfeitos em nosso canto, submissos e dóceis como eles. Esta é a sabedoria da vida.

Para mim era o seu espírito ferido que se expressava, e revoltava-me contra sua renúncia. Mas guardei minha opinião.

- O que o levou a ser pintor? - perguntei.

Deu de ombros.

- Tinha jeito pra desenhar. Ganhei uns prémios na escola. Minha mãe, pobrezinha, tinha orgulho de meu talento, e me deu uma caixa de aquarelas de presente. Mostrava meus desenhos ao pastor, ao médico e ao juiz. Eles me enviaram pra Amsterdã a fim de tentar uma bolsa de estudos e ganhei. Pobre alma, ela possuía muito orgulho, e embora ficasse triste de me ver partir, sorriu e não demonstrou tristeza. Sentia-se feliz de ver seu filho se tomar um artista. Economizaram para que eu tivesse o bastante pra viver, e quando expus meu primeiro quadro, foram a Amsterdã para vê-lo: minha mãe, meu pai e minha irmã, e mamãe chorou ao vê-lo. - Seus olhos bondosos brilharam. - E agora em todas as paredes da velha casa têm um quadro meu numa bela moldura dourada.

Ele corou de orgulho. Pensei naquelas cenas frias de seus quadros, com os camponeses, ciprestes e oliveiras pitorescas. Deviam parecer estranhos em suas molduras decoradas nas paredes de uma casa simples.

- A pobre querida pensou que me fazia grande coisa quando me ajudou a ser artista, mas talvez, apesar de tudo, fosse melhor pra mim se a vontade de meu pai tivesse prevalecido e eu fosse agora um honesto carpinteiro.

- Agora que você sabe o que a arte pode oferecer, seria capaz de mudar de vida? Gostaria de ter perdido toda a alegria que ela lhe proporcionou?

- A arte é a coisa mais grandiosa do mundo respondeu, depois de uma pausa.

Olhou para mim por um minuto, refletindo - parecia hesitar - então disse:

- Sabia que fui ver Striddand?

- Você?

Fiquei surpreso. Pensei que não pudesse vê-lo nunca mais. Stroeve sorriu ligeiramente.

- Você já sabe que não tenho amor-próprio.

- O que quer dizer?

Ele contou uma história singular.

 

Quando o deixei, depois do enterro da pobre Blanche, Stroeve entrou em casa com o coração pesado. Algo impelia-o para o estúdio, algum desejo obscuro de se autotorturar, entretanto temia a dor que iria sentir. Arrastou-se pelas escadas, os pés pareciam não ter forças para carregá-lo, e ficou bastante tempo do lado de fora do quarto, tentando reumr coragem para entrar. Sentia-se mal. Teve vontade de descer as escadas correndo para me alcançar e pedir-me que o acompanhasse. Tinha a sensação de que havia alguém no estúdio. Lembrava-se de quantas vezes tinha esperado um minuto ou dois para respirar depois da subida, e como sua impaciência em ver Blanche o deixara sem respiração outra vez. Vê-la era um prazer que nunca diminuía, e embora não tivesse ficado fora por uma hora que fosse, ficava tão nervoso como se não se vissem há um mês. De repente, ele não conseguia acreditar que estivesse morta. Ò que acontecera parecia um sonho, um sonho terrível. E quando virasse a chave e abrisse a porta, vê-la-ia inclinada ligeiramente sobre a mesa na atitude graciosa da mulher no Benedicite de Chardin, que sempre lhe parecera tão bela. Tirou a chave do bolso rapidamente, abriu a porta e entrou.

O apartamento não tinha aparência de abandono. O esmero da mulher era um de seus traços que muito o agradavam. Sua educação fizera-o apreciar o gosto pela arrumação. E quando vira o desejo instintivo da mulher de pôr em seu devido lugar cada coisa, sentira uma sensação de calor no coração. O quarto estava como se ela tivesse acabado de deixá-lo: as escovas arrumadas na penteadeira, uma de cada lado do pente; alguém tinha arrumado a cama na qual ela passara a última noite no estúdio, e sua camisola dobrada estava em cima do travesseiro. Era impossível acreditar que ela nunca mais entraria naquele quarto.

Mas ele ficou com sede e foi até a cozinha para pegar água. Aí, também, tudo estava em ordem. Numa prateleira, viam-se os pratos que ela usava para o jantar na noite da briga com Strickland, e tinham sido cuidadosamente lavados. Garfos e facas estavam guardados numa gaveta. Sob um pano havia os restos de um pedaço de queijo, e numa lata havia um pedaço de pão. Ela fazia compras todos os dias, comprando apenas o que era estritamente necessário, para que não sobrasse nada de um dia para outro. Stroeve sabia pelo interrogatório da polícia que Strickland tinha saído da casa logo depois do jantar, e o fato de Blanche ter lavado as coisas como sempre, o fez estremecer de horror. Seu método tomava o suicídio mais deliberado. Seu sangue-frio era atemorizante. Uma dor repentina apossou-se dele, e seus joelhos ficaram tão fracos que quase caiu. Voltou para o quarto e atirou-se na cama. Gritou pelo seu nome:

- Blanche, Blanche.

A ideia do sofrimento dela era intolerável. Teve uma visão repentina de Blanche em pé na cozinha - esta era pouco maior do que um armário - lavando pratos e copos, garfos e colheres, afiando facas rapidamente no afiador, e em seguida guardando tudo, esfregando a pia e pendurando o pano de pratos para secar - ele ainda estava lá, um trapo cinza e rasgado. E então, olhando à sua volta para ver se tudo estava limpo e arrumado, ele a viu desenrolar as mangas e tirar o avental, que ficava pendurado num pregador atrás da porta, e pegar o vidro de ácido oxálico e levá-lo para o quarto.

A agonia deste pensamento fez com que saísse da cama e do quarto. Foi até o estúdio. Estava escuro, pois as cortinas tinham sido corridas e cobriam a janela, e ele as puxou rapidamente, porém deu um soluço quando, com um olhar rápido, passou os olhos pelo lugar onde tinham sido tão infelizes. Nada tinha sido modificado aí também. Strickland era indiferente ao seu meio e vivera no estúdio do outro sem pensar em mudar nada. Este era deliberadamente artístico. Representava a noção de Stroeve de um ambiente próprio para um artista. Havia pedaços de brocado nas paredes e o piano era coberto com um pedaço de seda, bonita e trabalhada. Em um canto havia uma cópia da Vénus de Milo, no outro, da Vénus de Mediei. Aqui e ali, uma vitrine italiana com louça holandesa de Delft, e aqui e ali um baixo-relevo. Numa bela moldura dourada, uma cópia do inocente X de Velasquez, que Stroeve tinha feito em Roma; e colocados de forma a terem o máximo de seu efeito decorativo valorizado, alguns dos quadros de Stroeve, todos em esplêndidas molduras. Stroeve sempre fora orgulhoso de seu gosto. Nunca perdera sua admiração pela atmosfera romântica de um estúdio, e embora agora a visão deste fosse como uma punhalada no coração, sem pensar mudou ligeiramente a posição de uma mesa Luís XV que era um de seus tesouros. De repente deu com uma tela virada para a parede. Era muito maior do que as que costumava usar, e ficou intrigado com a mesma. Foi até ela e inclinou-a à sua frente para que pudesse ver a pintura. Era um nu. Seu coração começou a bater rapidamente, pois adivinhou imediatamente que era um dos quadros de Strickland. Jogou-o contra a parede, irado. O que ele pretendia deixando esta tela ali? Mas seu movimento brusco fez com que a tela caísse no chão virada para cima. Fosse de quem fosse o quadro, ele não podia deixá-lo ali na poeira, e pegou-o. A curiosidade porém foi mais forte. Achou que gostaria de vê-lo como devia e colocou-o no cavalete. Então afastou-se um pouco para apreciá-lo bem.

Levou um susto. Era o retraio de uma mulher deitada num sofá, com um braço debaixo da cabeça e o outro esticado ao longo do corpo. Um joelho estava levantado e a outra perna estendida. A pose era clássica. A cabeça de Stroeve ficou zonza. Era Blanche. Ficou tomado de tristeza, ciúme e raiva e gritou com voz rouca. Não conseguia falar. Cerrou os punhos e levantou-os ameaçadoraniente contra um inimigo invisível. Gritou com toda força. Estava fora de si. Não podia suportar. Era demais. Olhou à sua volta, irado, procurando algum instrumento: queria cortar a tela em pedaços, não podia deixá-la existir nem mais um minuto. Não viu nada que servisse para o que queria. Procurou nas suas coisas de pintura. Por alguma razão, não conseguia achar nada. Estava furioso. Finalmente descobriu o que procurava: uma grande raspadeira, e lançou-se sobre ela com um grito de triunfo. Agarrou-a como se fosse um punhal e correu na direção do quadro.

Quando Stroeve me contou isso, ficou tão excitado como no momento do incidente, e pegou uma faca do jantar, brandindo-a no ar. Levantou o braço como se fosse dar um golpe, e depois, abrindo a mão, deixou-a cair no chão. Olhou para mim com um sorriso trémulo. Não disse nada.

- Continue - disse eu.

- Não sei o que aconteceu comigo. Estava prestes a fazer um buraco na tela: meu braço, pronto para o golpe, quando de repente eu vi.

- Viu o quê?

- O quadro. Era uma obra de arte. Não podia tocá-lo. Fiquei com medo.

Stroeve ficou calado outra vez, e olhou-me de boca aberta e com os olhos redondos esbugalhados.

- Era um quadro estupendo! Fiquei tomado de pavor. Quase tinha cometido um crime horrível. Afastei-me um pouco pra ver melhor, e meu pé bateu na raspadeira. Estremeci.

Realmente senti algo da emoção que ele sentira. Estava estranhamente impressionado. Era como se de repente eu fossse transportado para um mundo em que os valores fossem outros. Permanecia perdido, como um estranho numa terra onde as reações do homem a coisas conhecidas são diferentes daquelas que conhecemos. Stroeve tentou falar-me sobre o quadro, mas foi incoerente, e tive de adivinhar o que queria dizer. Strickland tinha se soltado dos laços que até então o prendiam. Encontrara, não a si mesmo, como diz o dito, mas uma nova alma com poderes insuspeitados. Não era apenas o desenho em si que demonstrava uma personalidade tão rica e tão singular, não era apenas a pintura, embora a carne estivesse pintada com uma sensualidade ardente que tinha algo de milagroso. Não era apenas a solidez, pois sentia-se extraordinariamente o peso do corpo. Havia também uma espiritualidade, perturbadora e nova, que conduzia a imaginação por caminhos novos e sugeria espaços vazios e obscuros, iluminados apenas pelas estrelas eternas, onde a alma, toda nua, aventurava-se receosa à descoberta de novos mistérios.

Se sou retórico é porque Stroeve foi retórico. (Não é fato sabido que o homem em momentos de emoção se expressa naturalmente em termos de um pequeno romance?) Stroeve procurava demonstrar um sentimento que nunca experimentara antes, e não sabia como expressá-lo em palavras. Era como o místico procurando descrever o inefável. Mas uma coisa ficou clara para mim: as pessoas falam da beleza normalmente, sem nenhum sentimento pelas palavras, usando-as com descuido, de modo que ela perde a força, e aquilo que representa - partilhando seu nome com centenas de objetos triviais - perde a dignidade. Chamam de belo um cachorro, um vestido, um sermão - e quando estão frente a frente com a Beleza não conseguem reconhecê-la. A ênfase falsa com que tentam adornar seus pensamentos sem valor embota sua sensibilidade. Como o charlatão que finge ter uma força espiritual algumas vezes sentida, elas perdem o poder de que abusaram. Mas Stroeve, o invencível bufão, tinha um amor e uma compreensão da beleza tão honestos e sinceros quanto sua própria alma honesta e sincera. A beleza significava para ele o que Deus significa para o crente, e quando a via tinha medo.

- O que você disse a Strickland quando esteve com ele?

- Pedi-lhe que viesse comigo pra Holanda. Fiquei perplexo. Olhei para Stroeve estupefato.

- Nós dois amamos Blanche. Haveria lugar pra ele na casa de minha mãe. Acho que a companhia de pessoas pobres e simples faria à sua alma um grande bem. Acho que ele poderia aprender com eles algo muito útil.

- O que foi que ele disse?

- Sorriu um pouco. Creio que me achou muito bobo. Alegou ter outros peixes pra vender.

Gostaria que Strickland tivesse usado uma outra frase como desculpa.

- Ele me deu o quadro de Blanche.

Não entendia por que Strickland fizera isso. Mas não fiz nenhum comentário, e durante algum tempo ficamos em silêncio.

- O que você fez com todas as suas coisas? - disse eu finalmente.

- Chamei um judeu e ele comprou tudo. Vou levar os meus quadros. Além deles, só o que tenho é uma mala de roupas e alguns livros.

- Fico satisfeito de você voltar pra casa - acrescentei .

Eu sentia que sua oportumdade de se recuperar daquele golpe era deixar o passado para trás. Esperava que a tristeza, agora intolerável, se suavizasse com o passar do tempo, e o esquecimento o ajudasse a enfrentar a vida novamente. Ainda era jovem, e em poucos anos poderia encarar toda sua infelicidade com uma tristeza não muito desagradável. Mais cedo ou mais tarde ele se casaria com alguma moça honesta da Holanda, e eu tinha certeza de que seria feliz. Sorri ao pensar no grande número de quadros ruins que ele ainda pintaria antes de morrer. No dia seguinte levei-o ao embarque para Amsterdã.

 

No mês seguinte, ocupado com meus próprios interesses, não encontrei ninguém ligado a esse incidente lamentável, e parei de pensar no assunto. Mas um dia, quando andava pela rua, com destino a algum lugar, cruzei com Charles Strickland. Só de vê-lo veio-me à cabeça todo o horror que eu fazia questão de esquecer, e senti uma repulsa por sua causa. Acenando com a cabeça, pois seria tolice cortar relações com ele, passei rapidamente. Mas num minuto senti sua mão no meu ombro.

- Está com pressa, hein - disse ele cordialmente.

Era um traço característico dele demonstrar cordialidade com quem não estivesse disposto a falar, e a frieza de meu cumprimento não deixava dúvidas quanto a isso.

- Estou - falei secamente.

- Vou acompanhá-lo - disse ele,

- Por quê? - perguntei.

- Pelo prazer de sua companhia.

Não respondi, e ele caminhou ao meu lado em silêncio. Continuamos assim por uns 500 metros. Comecei a me sentir um pouco ridículo. Finalmente passamos por uma papelaria e me ocorreu que poderia comprar papel. Seria uma desculpa para me livrar dele.

- Vou entrar aqui - disse. - Até logo.

- Vou esperar.

Dei de ombros e entrei na loja. Refleti que o papel francês era ruim e que, como minha desculpa não dera resultado, não precisava comprar uma coisa sem necessidade . Pedi algo que sabia que não iria encontrar, e num minuto voltei para a rua.

- Conseguiu o que queria? - ele perguntou.

- Não. Continuamos o caminho em silêncio e chegamos a um

ponto em que havia um cruzamento de várias ruas. Parei no meio-fio.

- Pra que lado você vai? - perguntei.

- Pró mesmo que você - falou sorrindo.

- Vou pra casa.

- Vou com você e aproveito pra fumar um pouco.

- Devia esperar ser convidado - retorqui com frieza.

- Esperava se achasse que tinha alguma chance de ser.

- Está vendo aquele muro ali na frente? - disse eu, apontando para o mesmo.

- Estou.

- Nesse caso acho que também já viu que não estou interessado na sua companhia.

- Desconfiava vagamente, confesso.

Não pude deixar de rir. Esse é um dos meus defeitos: não consigo antipatizar com uma pessoa que me faz rir. Não me controlei.

- Acho você detestável. É o sujeito mais desprezível que já tive a infelicidade de conhecer. Por que é que você gosta da companhia de alguém que o odeia e o despreza?

- Meu caro, e por que cargas dlágua você acha que eu me importo com o que você pensa de mim?

- Vá à merda! - disse eu, com mais impetuosidade, porque tinha a impressão de que meus motivos não eram muito fortes. - Não quero me dar com você.

- Está com medo que eu o corrompa?

Seu tom de voz me fez sentir ridículo. Sabia que me olhava de esguelha com um sorriso sardónico.

- Pelo visto está precisando de dinheiro - disse eu com provocação.

- Eu seria um idiota se pensasse ter alguma chance de pedir dinheiro a você.

- Você está ficando por baixo, se deu agora pra bajular.

Ele riu.

- Você nunca vai me desprezar realmente enquanto eu lhe der uma oportumdade de discutir à altura de vez em quando.

Tive que morder o lábio para não rir. O que ele disse tinha alguma verdade - um outro defeito meu é apreciar a companhia daqueles que, embora depravados, possam me dar a oportumdade de uma discussão de bom nível. Comecei a sentir que meu asco por Strickland só seria mantido por um esforço de minha parte. Reconhecia minha fraqueza moral, mas via que minha desaprovação tinha algo de falso. E sabia que se eu sentia isso, o próprio instinto dele também já descobrira. com certeza estava rindo de mim lá por dentro. Deixei-lhe a última palavra e procurei refúgio num dar de ombros e num ar taciturno.

 

Chegamos à minha casa. Eu não seria quem iria convidá-lo a me acompanhar, e subi as escadas sem dizer palavra . Ele me seguiu e entrou no apartamento logo atrás de mim. Não tinha estado lá antes, mas nem ligou para a sala que me dera tanto trabalho para arrumar. Havia uma lata de fumo na mesa. Tirando seu cachimbo, ele o encheu. Sentou-se na única cadeira sem braços e inclinou-a sobre as pernas traseiras, balançando-se.

- Se vai se instalar como se estivesse em casa, por que não senta numa poltrona? - perguntei, irritado.

- Por que é que você se preocupa tanto com o meu conforto?

- Não me preocupo com o seu - retorqui - mas com o meu. Fico me sentindo mal quando vejo alguém sentar numa cadeira desconfortável.

- Ele riu, mas não se moveu. Fumava em silêncio, sem me dar a mínima atenção, e aparentemente estava absorto em seus pensamentos. Perguntava-me por que teria vindo. Até que o hábito embota a sensibilidade, existe algo desconcertante para o escritor no instinto que o faz interessar-se pelas singularidades da natureza humana, interesse tão absorvente que sua noção de moral fica impotente ante ele. Reconhece em si uma satisfação artística na contemplação do mal que o assusta um pouco, mas a sinceridade o obriga a confessar que a desaprovação sentida por certas ações não é tão forte quanto a curiosidade pelas razões que motivaram tais ações. A personalidade de um perfeito patife tem um fascínio para seu criador que é um ultraje à lei e à ordem. Suponho que Shakespeare criou lago com um prazer nunca sentido quando, entrelaçando os raios de lua com sua imaginação, criou Desdêmona. É provável que com seus maus elementos o escritor recompense instintos latentes, que os costumes de um mundo civilizado empurraram para os recessos misteriosos do subconsciente. Ao dar ao personagem de sua criação carne e osso, ele está dando vida àquela parte de si mesmo que não encontra nenhum outro meio de expressão. Sua satisfação é uma sensação de libertação .

O escritor preocupa-se mais em saber do que em julgar.

Havia em minha alma um horror genuíno por Strickland, e ao mesmo tempo uma curiosidade fria de descobrir seus motivos. Estava intrigado com ele e ávido de saber como encarava a tragédia que causara na vida de pessoas que o trataram tão bem. Apliquei o golpe com arrojo.

- Stroeve comentou que o quadro que você pintou da mulher dele foi o melhor trabalho que já fez.

Strickland tirou o cachimbo da boca, e um sorriso iluminou seus olhos.

- Foi muito divertido pra mim.

- Por que deu a ele?

- Tinha terminado. Não valia mais nada pra mim.

- Sabia que Stroeve quase o destruiu?

- Não ficou muito bom mesmo.

Ficou calado por um momento ou dois, então tirou o cachimbo da boca outra vez e riu.

- Sabia que o homenzinho veio me ver?

- Você não se tocou pelo que ele podia dizer?

- Não, achei tudo muito bobo e sentimental.    

- Creio que você se esqueceu que arruinou a vida dele - comentei.

Ele alisou a barba, pensativo.

- Ele é um péssimo pintor.

- Mas é um bom homem.

- E um excelente cozinheiro - acrescentou Strickland com zombaria.

Sua indiferença era desumana, e em minha indignação não me dispus a medir as palavras.

- Apenas por simples curiosidade queria que você me dissesse uma coisa: sentiu um pouquinho de remorso que seja pela morte de Blanehe Stroeve?

Observei seu rosto para ver se havia alguma mudança de expressão, mas ele continuava impassível.

- E por que deveria? - perguntou.

- Deixe-me expor os fatos. Você estava morrendo, e Dirk Stroeve levou-o pra casa dele. Tratou-o como uma mãe. Sacrificou seu tempo, seu conforto e seu dinheiro por você. Tirou-o das garras da morte.

Strickland deu de ombros.

- O ridículo do homenzinho gosta de fazer coisas pelos outros. É a vida dele.

- Supondo-se que você não lhe devesse qualquer gratidão, precisava lhe tomar a mulher? Até você aparecer em cena, eles eram felizes. Por que não podia deixá-los em paz?

- O que o faz pensar que eles eram felizes?

- Era óbvio.

- Você é um sujeito sensato. Acha que ela podia perdoá-lo pelo que ele fez a ela?

- O que está querendo dizer?

- Você não sabe por que ele se casou com ela? Sacudi a cabeça.

- Ela era governanta da família de um príncipe romano, e o filho desse príncipe seduziu-a. Ela pensou que ele iria casar com ela. Puseram-na na rua sem a menor consideração. Estava esperando um filho e tentou se suicidar . Stroeve encontrou-a e casou com ela.

- Isso é bem dele. Nunca conheci alguém com um coração tão generoso.

Sempre me perguntara por que aqueles dois, diferentes como eram, tinham se casado, mas tal explicação nunca me ocorrera. Essa talvez fosse a causa do amor peculiar de Dirk pela mulher. Eu reparara que em seu amor existia algo mais do que paixão. Lembrava-me também de como sempre tivera a impressão de que a reserva de Blanche Stroeve escondia algo, mas agora percebia que em sua reserva havia algo mais que o desejo de esconder um segredo. Sua tranquilidade era como a calma ressentida que se abate sobre uma ilha após um furacão. Sua disposição era a do desespero. Strickland interrompeu minhas reflexões com uma observação cujo profundo cinismo me espantou.

- Uma mulher pode perdoar um homem pelo mal que lhe faz - disse ele - mas não consegue perdoá-lo jamais pelos sacrifícios que faz por sua causa.

- Deve ser reconfortante pra você saber que não corre riscos de provocar ressentimentos nas mulheres que se ligam a você - retorqui.

Um leve sorriso aflorou a seus lábios.

- Você está sempre pronto a sacrificar seus princípios por uma réplica à altura - respondeu ele.

- O que aconteceu com a criança?

- Ah, nasceu morta, três ou quatro meses depois que se casaram.

Então perguntei o que me parecia mais inexplicável.

- Será que você pode me dizer por que se interessou por Blanche Stroeve?

Ele demorou tanto a responder que quase perguntei novamente.

- E como é que posso saber? - disse finalmente. Ela não aguentava olhar pra mim. Isso me divertia.

- Compreendo.

Ele me olhou subitamente com raiva.

- Que merda, eu a desejava.

Mas recuperou o bom humor imediatamente, e olhou para mim sorrindo.

- No começo ela estava horrorizada.

- Você disse a ela?

- Não tinha necessidade.   Ela sabia.   Nunca disse uma palavra.   Ela estava amedrontada.   No final eu a possuí.

Não sei o que havia no modo como ele me contou isso que sugeria extraordinariamente a violência de seu desejo. Era desconcertante e terrível. Sua vida era estranhamente divorciada de coisas materiais, e era como se o corpo às vezes se vingasse do espírito. De repente o sátiro que havia nele dominava, tomando-o impotente nas garras de um instinto com todo o poder das forças primitivas da natureza. Era uma obsessão tão grande que não havia lugar para prudência ou gratidão.

- Mas por que quis levá-la com você? - perguntei.

- Eu não quis - respondeu, franzindo a testa. Quando ela disse que ia comigo, fiquei tão surpreso quanto Stroeve. Avisei-a de que quando tivesse saciado meu desejo, ela teria que ir, e ela respondeu que correria o risco. - Fez uma pausa. - O corpo dela era espetacular, e eu queria pintar um nu. Quando terminei o quadro, perdi o interesse nela.

- E ela o amou de todo coração.

Ele se levantou e ficou andando de um lado para outro da sala.

- Eu não quero amor. Não tenho tempo pra isso. É uma fraqueza. Sou homem e às vezes preciso de mulher. Quando sacio meu desejo, estou pronto pra outras coisas. Não consigo superar o desejo, mas eu o odeio ele tolhe o meu espírito. Anseio pelo dia em que puder me libertar de todo desejo e me entregar sem nenhum obstáculo ao meu trabalho. Como as mulheres não sabem fazer nada senão amar, dão ao amor uma importância ridícula. Querem nos convencer que o amor é tudo na vida. É uma parte insignificante. Conheço a luxúria. Esta, é normal e saudável. O amor é uma doença. As mulheres são instrumentos de prazer. Não tenho paciência pra mania que elas têm de ser companheiras e amigas.

Nunca tinha visto Strickland falar tanto de uma só vez. Ele falava com uma indignação ardente. Mas nem aqui nem em outras partes do livro pretendo relatar suas palavras exatas. Seu vocabulário era pequeno, e ele não tinha o dom de formular frases completas, de forma que era necessário deduzir o que queria dizer de interjeições, expressões do rosto, gestos e frases desconexas.

- Você devia ter vivido na época em que as mulheres eram vendidas como escravas e os homens eram os senhores de escravos - disse eu.

- Sou apenas um homem normal.

Não pude deixar de rir com tal observação, feita com toda seriedade. Mas ele continuou, andando de um lado para outro como uma fera enjaulada, decidido a expressar o que sentia, mas encontrando muita dificuldade em colocar seus pontos de vista coerentemente.

- Quando uma mulher está apaixonada, só se satisfaz quando possui a alma do homem que ama. Como ela é fraca, tem vontade de dominar e nada mais consegue satisfazê-la. Tem uma mente limitada, e inveja a abstração que é incapaz de ter. Ocupa-se de coisas materiais e tem inveja do idealismo. A alma do homem vagueia pelas regiões mais longínquas do umverso, e ela tenta aprisioná-lo no círculo de seu livro de anotações. Você lembra de minha mulher? Vi Blanche tentar pouco a pouco todos os seus truques. com uma enorme paciência, ela se preparava pra prender-me num laço e atar-me. Queria me fazer descer ao seu nível. Não ligava a mínima pra mim, só queria que eu fosse dela. Estava disposta a fazer tudo por mim, exceto a única coisa que eu desejava: deixar-me sozinho.

Fiquei calado durante algum tempo.

- O que você esperava que ela fizesse quando você a deixou?

- Podia ter voltado pra Stroeve - disse ele, irritado.

- Ele estava pronto para recebê-la de volta.

- Você é desumano - respondi. - É tão inútil falar com você sobre essas coisas como descrever as cores pra um homem que tenha nascido cego.

Ele parou em frente a minha cadeira e ficou olhando para mim com uma expressão na qual eu lia uma surpresa desprezível.

- Você realmente se importa se Blanche Stroeve está viva ou morta?

Refleti sobre a pergunta dele, pois queria responder com sinceridade, pelo menos para mim mesmo.

- Pode ser que seja por falta de sentimento de minha parte que sua morte não faça diferença pra mim. A vida tinha muito a oferecer a ela. Acho terrível que tenha perdido a vida daquela maneira cruel, e me envergonho por não ligar nem um pouco.

- Você não tem a coragem de suas convicções. A vida não tem valor. Blanche Stroeve não se suicidou porque eu a deixei, mas por ser uma mulher tola e desequilibrada. Mas já falamos muito sobre ela. Era uma pessoa completamente sem importância. Venha, e Vou lhe mostrar meus quadros.

Ele falou como se eu fosse uma criança que precisava de distração. Fiquei amargurado, mas não tanto com ele quanto comigo. Pensava na vida feliz que aquele casal levava no confortável estúdio de Montmartre, em Stroeve e sua mulher, sua simplicidade, gentileza e hospitalidade. Parecia-me cruel que tudo tivesse acabado por um acaso do destino. O mais cruel de tudo, porém, era que de fato isto não fazia grande diferença. A vida continuava, e ninguém havia parado por causa de toda aquela tragédia. Tinha impressão de que Dirk, um homem mais de reações emocionais do que de profundidade de sentimento, logo esqueceria. E a vida de Blanche, que começara com sabe Deus que sonhos e esperanças, era como se nunca tivesse existido. Tudo parecia vão e tolo.

Strickland apanhara o chapéu e me olhava.

- Você vem?

- Por que está interessado na minha companhia? perguntei-lhe. - Você sabe que eu o odeio e desprezo.

Ele riu bem humorado.

- A sua única birra comigo é por eu não me incomodar nem um pouco com o que você pensa de mim.

Senti meu rosto ficar vermelho de raiva. Era impossível fazê-lo entender que se pudesse ficaria indignado com seu egoísmo frio. Eu tinha vontade de penetrar em sua armadura de indiferença. Sabia também que no fim havia verdade no que ele dizia. Inconscientemente, talvez, nós apreciamos o poder que temos sobre as pessoas pelo valor que dão à nossa opinião sobre elas, e odiamos aqueles que não se deixam influenciar por nós. Creio ser isso o que mais fere o orgulho humano. Mas não ia deixá-lo perceber meu descontrole.

- É possível que alguém consiga viver sem dar a menor importância à opinião dos outros? - disse eu, embora mais para mim mesmo do que para ele. - Dependemos dos outros pra tudo na vida. É muita pretensão tentar viver apenas pra si mesmo e por si mesmo. Mais cedo ou mais tarde, você vai ficar doente, velho e cansado e então vai voltar pró rebanho se arrastando. Não vai ficar envergonhado quando sentir no seu coração o desejo de conforto e amizade? Você está tentando uma coisa impossível . Mais cedo ou mais tarde, o ser humano que existe em você vai sentir necessidade de se umr aos laços da humanidade.

- Vamos ver os meus quadros.

- Você alguma vez já pensou na morte?

- Pra quê? Não me interessa.

Olhei para ele, diante de mim, imóvel, com um sorriso irónico nos olhos, mas, apesar disso, por um momento tive a impressão de um espírito ardente, torturado, visando a algo maior do que podia ser concebido por qualquer coisa ligada à carne. Tive um relance furtivo de uma busca do inefável. Olhei para o homem à minha frente com suas roupas velhas, com nariz grande e olhos brilhantes, sua barba vermelha e cabelo despenteado, e tive a estranha sensação de que sua aparência era apenas um invólucro, e eu estava na presença de um espírito sem corpo.

- Vamos ver os seus quadros - disse eu.

 

Não sabia por que Strickland de repente resolvera mostrar seus quadros para mim. Apreciei a oportunidade. O trabalho do homem revela o próprio homem. No convívio social, o homem mostra apenas uma aparência que deseja que o mundo aceite, e só se pode conhecê-lo verdadeiramente por inferências de pequenos atos, dos quais não tem consciência, e de expressões furtivas, que passam por seu rosto sem que se dê conta. Algumas vezes as pessoas usam a máscara que assumiram de maneira tão perfeita que acabam tornando-se aquilo que aparentam. Mas com seu livro ou seu quadro, o homem se entrega indefeso. Seu fingimento apenas poderá demonstrar sua estupidez. As ripas pintadas para parecerem ferro não passam de fato de ripas. Nenhuma afetação de peculiaridade consegue esconder uma mente comum. Para o observador arguto, ninguém consegue produzir a obra mais casual sem revelar os segredos íntimos da alma.

Ao subir as intermináveis escadas da casa em que morava Strickland, confesso que estava um pouco nervoso. Parecia-me estar prestes a viver uma aventura surpreendente. Observei o quarto com curiosidade. Era ainda menor e mais simples do que eu pensava. Imaginava o que diriam aqueles meus amigos que exigiam estúdios amplos, e afirmavam não conseguir trabalhar a menos que tivessem condições perfeitas para isso.

- É melhor você ficar ali - disse ele, apontando para um lugar do qual, presumivelmente imaginava, eu poderia ver melhor o que tinha para mostrar.

- Creio que você prefere que eu não diga nada comentei.

- Não, porra! Quero que fique de boca fechada. Colocou um quadro no cavalete e deixou que eu o observasse por um ou dois minutos. Depois, tirou-o e colocou outro em seu lugar. Acho que me mostrou cerca de 30 telas. Era o resultado de seis anos em que estivera pintando. Nunca vendeu um quadro. As telas eram de tamanhos diferentes. Havia cerca de meia dúzia de retratos .

- É tudo - disse ele finalmente.

Gostaria de poder dizer que imediatamente reconheci a beleza e a grande originalidade de seus quadros. Agora que vi muitos deles novamente e conheço os restantes de reproduções, fico surpreso de ter ficado tão desapontado à primeira vista. Não senti nada da emoção excitante que a arte tem o poder de transmitir. A impressão que me davam os quadros de Strickland era desconcertante, e tenho que confessar, embora me condene por isso, que nunca pensei em comprar algum. Perdi uma oportumdade estupenda. A maioria deles encontra-se em museus, e o resto faz parte dos bens de ricos colecionadores. Tento achar desculpas para mim. Acho que tenho bom gosto, mas tenho consciência de que ele não tem a mínima originalidade. Conheço muito pouco de pintura e sigo as trilhas dos outros. Naquela época, tinha a maior admiração pelos impressionistas. Desejava possuir um Sisley e um Degas, e venerava Manet. Seu quadro OZympia pareciame o maior quadro dos tempos modernos, e admirava profundamente o Lê Déjeuner sur VHerbe. Essas obras pareciam-me a última palavra em pintura.

Não Vou descrever os quadros que Strickland me mostrou. As descrições de quadros são sempre aborrecidas, e aqueles, além disso, são familhares a todos os que se interessam por pintura. Agora que a influência de Strickland já afetou enormemente a pintura moderna, agora que outros já seguiram as trilhas que ele foi o primeiro a explorar, seus quadros, vistos pela primeira vez, encontrariam a mente mais preparada para eles. No entanto devo lembrar que nunca tinha visto nada daquele tipo. Em primeiro lugar, fiquei surpreso com o que me pareceu a imperfeição de sua técnica. Acostumado ao traço dos velhos mestres, e convencido de que Ingres era o maior desenhista dos tempos modernos, achei que Strickland desenhava muito mal. Não entendia nada da simplificação existente em sua mente. Lembrava-me de uma natureza-morta de laranjas sobre um prato, e fiquei intrigado porque o prato não era redondo e as laranjas eram assimétricas. Os retratos eram um pouco maiores do que um rosto normal, e isso dava-lhes uma aparência distorcida. Para mim, os rostos pareciam caricaturas, pintados de uma forma inteiramente nova. As paisagens intrigaram-me mais ainda. Havia dois ou três quadros da Floresta de Fontainebleau e várias das ruas de Paris. Minha primeira sensação foi a de que pareciam pintadas por um motorista de táxi bêbado. Fiquei perplexo. A cor parecia ser muito forte. Passou por minha cabeça que aquilo tudo era uma farsa estupenda e incompreensível. Agora, ao olhar para trás, fico mais impressionado do que nunca com a perspicácia de Stroeve. Ele percebeu desde o começo que aqui estava uma revolução na arte, e reconheceu de início o génio que agora todo o mundo reverencia.

Mas embora estivesse confuso e desconcertado, não deixava de estar impressionado. Até mesmo eu, em minha colossal ignorância, não podia deixar de sentir que aqui, tentando expressar-se, havia uma força verdadeira. Eu estava nervoso e interessado. Sentia que os quadros tinham para me dizer, algo muito importante que eu soubesse, mas não sabia o que era. Pareciam-me feios, mas sugeriam um segredo de grande significância, embora não o revelassem. Eram estranhamente torturantes. Davam-me uma emoção que eu não conseguia descrever. Diziam algo que as palavras eram incapazes de pronunciar. Imagino que Strickland via vagamente algum significado espiritual tão estranho nas coisas materiais que só conseguia sugeri-lo com símbolos desconexos. Era como se ele encontrasse no caos do umverso um novo padrão, e estivesse tentando desajeitadamente, com a angústia da alma expressá-lo. Eu via um espírito atormentado lutando pela libertação da expressão. Virei-me para ele.

- Tinha vontade de saber se você não se enganou de meio de expressão - disse.

- Que diabo quer dizer com isso?

- Acho que você está tentando falar alguma coisa. Não sei bem o que é, mas não estou certo se o melhor meio de dizê-la é através da pintura.

Quando pensei que ao ver os seus quadros teria uma pista para compreender seu estranho caráter, me enganei. Eles simplesmente aumentaram a perplexidade que ele me causava. Fiquei mais confuso do que nunca. A única coisa que me parecia clara, e talvez até isso fosse imaginação minha, era sua luta ardente tentando libertar-se de alguma força que o tolhia. Mas que força era essa e que curso tal libertação seguiria eram coisas que permaneciam obscuras. Cada um de nós está só no mundo. Estamos presos numa torre de bronze e só conseguimos nos comumcar com o próximo por sinais, e os sinais não têm um valor comum, de forma que seu sentido é vago e incerto. Procuramos transmitir aos outros os tesouros de nosso coração, mas eles não têm o poder de aceitá-los, e assim seguimos solitários, lado a lado mas não juntos, incapazes de conhecer nossos semelhantes e sempre estranhos para eles. Somos como pessoas que vivem num país cuja língua conhecem tão pouco que, todas as maneiras para dizer coisas belas e profundas, ficam condenadas às banalidades da conversação por meio de gestos. Seus cérebros estão cheios de ideias, e só conseguem dizer que o guarda-chuva da tia do jardineiro está dentro de casa.

A última impressão que tive foi de um esforço prodigioso para expressar um estado de alma, e nesse ponto, eu imaginava, deve-se procurar a explicação do que tanto me intrigava. Era evidente que aquelas cores e formas tinham uma importância para Strickland que lhe era peculiar. Tinha uma necessidade intolerável de transmitir alguma coisa que sentia, e as criava apenas com essa intenção. Não hesitava em simplificar ou distorcer se pudesse chegar mais perto da coisa desconhecida que procurava. Os fatos não eram nada para ele, pois sob a massa de incidentes irrelevantes ele procurava algo sdgnificante para si. Era como se tivesse se tornado consciente da alma do umverso e se visse levado a expressá-la. Embora esses quadros me confundissem e intrigassem, não deixava de ficar tocado pela emoção patente neles. E não sei por que, sentia em mim uma sensação em relação a Strickland que era a última que eu jamais esperara experimentar. Sentia uma enorme compaixão.

- Acho que sei agora o motivo de você ter cedido ao seu sentimento por Blanche Stroeve - falei.

- Qual foi?

- Acho que sua coragem falhou. A fraqueza do corpo transmitiu-se à alma. Não sei qual é o desejo infinito que o possui, para que seja levado a uma busca perigosa e solitária de algum objetivo em que espera encontrar uma libertação final do espírito que o atormenta. Vejo você como o eterno pioneiro de um templo que talvez não exista. Não sei a que Nirvana inescrutável você almeja. Você conhece a si mesmo? Talvez seja a Verdade e a Liberdade que você procure, e por um momento achou que poderia encontrar a libertação no Amor. Acho que sua alma cansada buscou descanso nos braços de uma mulher, e quando você não encontrou nenhum descanso ali, odiou-a. Não teve pena dela, pois não tem pena de si mesmo. E matou-a por medo, porque ainda tremia com o perigo a que escapara por pouco.

Ele sorriu secamente e alisou a barba.

- Você é um terrível sentimental, meu pobre amigo. Uma semana depois, soube por acaso que Strickland

tinha ido para Marselha. Nunca mais o vi.

 

Olhando para trás, dou-me conta de que o que escrevi sobre Charles Strickland deve parecer muito insatisfatório. Falei de incidentes chegados ao meu conhecimento, mas permanecem obscuros por não conhecer a razão que os motivou. O mais estranho, a determinação de Strickland de se tornar um pintor, parece ser arbitrário. E embora deva ter tido causas nas circunstâncias de sua vida, ignoro-as. Da própria conversa dele não pude concluir nada. Se eu estivesse escrevendo um romance, em lugar de estar narrando fatos que conheço, de uma curiosa personalidade, teria inventado muita coisa para justificar essa mudança de objetivo. Acho que teria mostrado uma forte vocação durante a infância, esmagada pela vontade do pai ou sacrificada pela necessidade de ganhar a vida; eu o teria mostrado rebelde às restrições da vida; e na luta entre sua paixão pela arte e os deveres de sua posição poderia ter provocado simpatia por ele. Dessa forma, eu o teria tornado uma figura mais marcante. Talvez tivesse sido possível ver nele um novo Prometeu. Havia aqui, talvez, a oportumdade de fazer uma versão moderna do herói que pelo bem da humanidade se expõe às agonias dos amaldiçoados. Esse é um assunto que sempre emociona. Por outro lado, poderia ter encontrado seus motivos na infuência das relações do casamento. Existem várias maneiras de se arranjar isso. Um talento latente poderia ter-se revelado através do relacionamento com pintores e escritores cuja companhia a mulher procurava; ou uma incompatibilidade doméstica poderia tê-lo modificado; um caso amoroso poderia atiçar um fogo que já existisse em seu coração. Acho que então teria apresentado a Sr.a Strickland de maneira bem diferente. Teria abandonado os fatos, fazendo-a uma mulher chata, ou limitada, sem qualquer interesse pelas coisas do espírito. Teria transformado o casamento de Strickland num longo tormento que só desse margem à fuga. Creio que teria enfatizado sua paciência com a companheira inadequada e a compaixão que não lhe dera forças para quebrar os laços que o oprimiam. Na certa eliminaria os filhos.

Também daria uma boa história fazê-lo ter contato com um velho pintor que tivesse sacrificado o talento da juventude por pressão de necessidade ou pelo desejo de sucesso comercial e que, vendo em Strickland as possibilidades que ele perdera, influenciara-o a largar tudo e seguir a divina tirania da arte. Penso que haveria algo de irónico na figura de um velho rico, honrado e bem-sucedido, vivendo, através de outra pessoa, a vida que, embora soubesse ser a melhor, não tivera a coragem de levar.

Os fatos são muito menos interessantes. Strickland, ao sair da escola, entrou para um escritório de corretagem sem qualquer sentimento de contrariedade. Antes de se casar levava a vida normal dos homens de sua idade, jogando na Bolsa, apostando algumas libras nas corridas de Derby ou de Oxford e Cambridge. Acho que praticava um pouco de boxe nas horas livres. Na prateleira sobre a lareira, tinha retratos da Sr.a Langry e Mary Anderson. Lia o Punch e o Sporting Times. Frequentava festas em Hampstead.

É de pouca importância eu tê-lo perdido de vista durante tanto tempo. Os anos que passou lutando para adquirir proficiência numa arte difícil foram monótonos, e não creio ter havido alguma coisa significante nos biscates que fez para se sustentar. Um relato desses seria apenas um relato das coisas que ele vira acontecer com outras pessoas. Não acredito terem exercido alguma influência em seu caráter. Deve ter adquirido experiências que formariam material abundante para uma novela picaresca da Paris moderna, mas ele permaneceu indiferente, e a julgar por sua conversa, não ocorreu nada naqueles anos que tenha deixado nele uma impressão especial. Talvez já estivesse muito velho quando foi para Paris, para ser vítima do fascínio de seu ambiente. Embora pareça estranho, ele sempre me pareceu não apenas prático, mas imensamente indiferente. Creio que sua vida durante essa época foi romântica, mas ele não via nenhum romance nela. Talvez seja necessário ter-se algo de um ator para perceber o romance da vida; e sendo capaz de se desligar de si mesmo, uma pessoa consiga observar suas ações com um interesse ao mesmo tempo engajado e não-engajado. Mas ninguém era mais preocupado com um único objetivo do que Strickland. Nunca conheci alguém menos autoconsciente. Mas é pena eu não poder relatar os passos árduos que ele deu para chegar a tal domínio de sua arte; pois se pudesse mostrá-lo inabalável com o fracasso, com um incessante arrojo capaz de dominar o desespero, persistente ante as dúvidas, que são os maiores inimigos do artista, poderia inspirar alguma simpatia em relação a uma personalidade que, tenho plena consciência, deve parecer destituída de charme. Mas não tenho nada em que me basear. Nunca vi Strickland trabalhando, e acho que ninguém viu. Ele guardava o segredo de sua luta para si mesmo. Se na solidão do seu estúdio ele lutava desesperadamente com o Anjo do Senhor, nunca deixou transparecer sua angústia.

Quando chego à sua ligação com Blanche Stroeve, fico exasperado com a falta de fatos ao meu alcance. Para dar coerência à minha história, devia descrever o desenrolar dessa umão trágica, mas não sei nada do que se passou nos três meses em que viveram juntos. Não sei como viveram nem do que falaram. Afinal de contas, o dia tem 24 horas, e apenas em pequenos intervalos a emoção alcança o seu auge. Só posso imaginar como passavam o resto do tempo. Enquanto havia luz e a resistência de Blanche durava, creio que Strickland pintava, e ela devia ficar irritada de vê-lo concentrado no trabalho. Nessas horas, ela não existia para ele como amante, mas apenas como modelo; e havia as longas horas em que viviam lado a lado em silêncio. Isso deve tê-la amedrontado. Quando Strickland sugeriu que ela, ao entregar-se a ele, teve uma sensação de triunfo sobre Stroeve, pois ele a ajudara quando em dificuldades, deu margem a terríveis suposições. Gostaria que não fossem verdadeiras. Parece-me horrível. Mas quem pode penetrar nas profundezas do coração humano? Não aqueles que esperam deste órgão apenas bons sentimentos e emoções normais. Quando Blanche viu que, com exceção de seus momentos de paixão, Strickland permanecia indiferente, deve ter-se sentido desapontada, e mesmo naqueles momentos acho que se dava conta de que para ele não era uma pessoa, mas um instrumento de prazer. Ele ainda era um estranho, e ela tentou prendê-lo com artimanhas patéticas. Esforçava-se por prendê-lo com o conforto e não via que o conforto não significava nada para ele. Fazia tudo para proporcionar-lhe as coisas que gostava de comer, e não via que ele era indiferente à comida. Tinha medo de deixá-lo sozinho. Perseguia-o com atenções, e quando sua paixão adormecia procurava excitá-la, pois então pelo menos tinha a ilusão de prendê-lo. Talvez ele soubesse com sua inteligência que os laços que forjava apenas estimulavam o instinto de destruição dele, assim como as vidraças provocam desejo de quebrá-las com pedras; mas seu coração, incapaz de raciocinar, a fez continuar agindo de maneira que sabia ser fatal. Deve ter sido muito infeliz. Mas a cegueira de seu amor a fez acreditar no que queria que fosse verdade, e seu amor era tão grande que lhe parecia impossível não inspirar em troca um amor igual.

Mas minha análise do caráter de Strickland sofre de um erro maior que minha ignorância de muitos fatos. Falei sobre suas relações com as mulheres, por terem sido marcantes; entretanto representaram apenas uma parte insignificante em sua vida. É uma ironia que tenham afetado outras pessoas de forma tão trágica. Sua verdadeira vida consistia de sonhos e trabalho árduo.

Nisto consiste a irrealidade da ficção, pois para os homens geralmente o amor é apenas uma das coisas que acontecem entre outras, e a ênfase que lhe dão os romancês envolve-o de uma importância que na vida real inexiste. Existem poucos homens que o consideram a coisa mais importante do mundo, e esses não são pessoas muito interessantes; até mesmo as mulheres, para as quais o amor é de extrema importância, desprezam tais homens. São cortejadas por eles, mas têm a sensação inquietante de que são pessoas medíocres. No entanto, mesmo durante os breves intervalos em que estão amando, os homens fazem outras coisas que lhes distraem o pensamento: a profissão toma-lhes a atenção; dedicam-se a esportes; interessam-se por arte. Na maioria dos casos, fazem várias atividades em vários setores, e podem dedicar-se a uma de cada vez. Têm a capacidade de concentrar-se naquilo que os ocupa no momento, e irritam-se quando uma atividade interfere na outra. Como amantes, a diferença entre os homens e as mulheres é que as mulheres conseguem amar o dia inteiro, os homens, só de vez em quando.

Com Strickland o desejo sexual ocupava um lugar muito pequeno. Não era uma coisa de importância. Era maçante. Sua alma tinha outros objetivos. Tinha paixões violentas, e às vezes o desejo se apossava de seu corpo e era levado a uma orgia de luxúria, mas ele odiava os instintos que o roubavam de seu autodomínio. Acho que odiava até mesmo a inevitável parceira de sua orgia. Quando recuperava o domínio de si mesmo, tremia à vista da mulher que servira de seu instrumento de prazer. Seus pensamentos flutuavam então serenamente para o céu, e sentia pela mulher o horror que talvez a borboleta colorida, flutuando por entre as flores, sente pela crisálida asquerosa da qual emergiu triunfantemente. Creio que a arte é uma manifestação do instinto sexual. É a mesma emoção inspirada no coração humano por uma bela mulher, pela Baía de Nápoles sob a lua amarela, e pelo Entombment de Ticiano. É possível que Strickland odiasse as relações sexuais normais por lhe parecerem brutais em comparação com a satisfação da criação artística.

Parece estranho até a mim mesmo, quando descrevi um homem cruel, egoísta, brutal e sensual, dizer que ele era um grande idealista. Mas é um fato.

Ele vivia de maneira mais precária do que um artesão. Porém trabalhava mais duramente. Não ligava a mínima para as coisas que para a maioria das pessoas tornam a vida agradável e bela. Era indiferente ao dinheiro. Não ligava para a fama. Não se pode elogiá-lo por ter resistido à tentação de ter qualquer compromisso com o mundo a que a maioria de nós se sujeita. Não tinha tal tentação. Nunca passou por sua cabeça ser possível comprometerse. Vivia em Paris mais solitário que um eremita nos desertos de Tebas. Não pedia nada aos outros, a não ser que o deixassem em paz. Só tinha um objetivo na vida, e para persegui-lo estava disposto a sacrificar não apenas a si mesmo - coisa que muitos são capazes de fazer mas aos outros. Tinha uma visão.

Strickland era um homem odioso, mas ainda acho que era um grande homem.

 

Existe uma certa importância nas opiniões dos pintores sobre a arte, e este é o ponto em que devo falar do que sei sobre a opinião de Strickland a respeito dos grandes artistas do passado. Receio não ter muito a dizer. Strickland não tinha o dom de conversar e não era capaz de expressar o que tinha para dizer numa frase marcante que o ouvinte lembrasse. Não tinha sagacidade. Seu humor, como se pode ver, caso eu tenha sido feliz em reproduzir seu modo de conversar, era sardónico. Suas respostas, rudes. Conseguia fazer-nos rir às vezes apenas dizendo a verdade, mas esse tipo de humor ganha força apenas por ser incomum; deixaria de ser divertido se fosse mais usual.

Strickland não era, devo dizer, um homem de grande inteligência, e suas opiniões sobre pintura não eram diferentes das de outras pessoas. Nunca o ouvi falar daqueles cuja pintura tinha uma certa semelhança com a dele de Cézanne, por exemplo, ou de Van Gogh - e não creio que alguma vez tenha visto seus quadros. Não se interessava muito pelos impressionistas. A técnica deles o impressionava, mas creio que considerava sua atitude vulgar. Quando Stroeve falou detalhadamente sobre a técnica de Monet, ele disse: "Prefiro Winterhalter." Creio porém que ele disse isso só para causar aborrecimento. E se o fez com esse intuito, conseguiu.

Lamento não poder contar nenhuma extravagância de suas opiniões a respeito dos velhos mestres. Existe tanta coisa estranha em seu caráter que sua imagem ficaria completa se suas opiniões fossem excêntricas. Sinto a necessidade de atribuir-lhe teorias fantásticas sobre seus predecessores, e é com uma certa decepção que confesso que ele tinha a mesma opinião do que qualquer outra pessoa a respeito deles. Não creio que conhecesse El Greco. Tinha uma grande admiração, um tanto impaciente, por Velasquez. Chardin o entusiasmava, e Rembrandt o levava ao êxtase. Descrevia a impressão que Rembrandt lhe dava com uma rusticidade que não consigo reproduzir. O único pintor que o agradava, inteiramente incomum, era Brueghel, o Velho. Conhecia muito pouco sobre ele naquela época, e Strickland não tinha capacidade de se explicar. Lembro-me o que disse sobre ele por ter sido completamente insatisfatório.

- Ele é bom - falou Strickland. - Aposto que achava que pintar era o máximo.

Quando, posteriormente, em Viena, vi vários dos quadros de Peter Brueghe1, achei que compreendia por que ele atraíra a atenção de Strickland. Aqui, também, estava um homem com uma visão sui generis do mundo. Fiz algumas anotações na época, tencionando escrever algo sobre ele, mas perdi as mesmas, e agora só tenho a lembrança de uma emoção. Ele parecia ver seus semelhantes grotescamente, e irritava-se com eles por serem grotescos. A vida era uma confusão de acontecimentos ridículos e sórdidos, um assunto digno de riso, e entretanto deixava-o triste demais para rir. Brueghel dava-me a impressão de um homem lutando para expressar, por um meio, sentimentos mais apropriados à expressão por outro meio, e talvez tenha sido a obscura conscientização disso que inspirava simpatia em Strickland. Talvez ambos estivessem tentando colocar na pintura ideias mais adequadas à literatura.

Strickland nessa época devia ter quase 47 anos.

 

Já disse anteriormente que se não fosse pelo acaso de uma viagem ao Taiti provavelmente nunca teria escrito este livro. Strickland foi para lá, depois de vagar por tantos lugares, e lá pintou os quadros que se tornaram mais famosos. Creio que nenhum artista alcança por completo a realização do sonho que o obceca, e Strickland, constantemente atormentado por sua luta com a técnica, conseguiu, talvez, menos que os outros, expressar a visão que via com a mente; mas no Taiti as circunstâncias lhe foram favoráveis: encontrou em seu ambiente os acidentes geográficos necessários à sua inspiração, e seus últimos quadros dão pelo menos uma ideia do que ele procurava. Oferecem à imaginação algo novo e estranho. É como se nesse país longínquo seu espírito, que vagara sem corpo, procurando um outro corpo, finalmente tenha conseguido achar o que buscava. Para usar um cliché, aqui ele se encontrou.

Parecia natural que minha visita a essa ilha remota revivesse imediatamente meu interesse em Strickland, mas o trabalho que eu vinha fazendo ocupava minha atenção, não me deixando pensar em mais nada, e só depois de estar lá por alguns dias é que lembrei de sua ligação com a ilha. Afinal de contas, não o via há 15 anos, e fazia nove anos que morrera. Entretanto acho que minha chegada ao Taiti teria tirado de minha cabeça assuntos de importância muito mais imediata para mim, e mesmo depois de uma semana ainda tinha dificuldades em pôr a cabeça em ordem. Lembro-me de que na primeira manhã que passei lá acordei cedo, e quando fui até a varanda do hotel não havia ninguém por perto. Dei uma volta até a cozinha, mas estava trancada, e num banco do lado de fora um menino nativo dormia. Não havia qualquer possibilidade de o café sair tão cedo, então caminhei até a praia. Os chineses já estavam atarefados em suas lojas. O céu ainda tinha a cor esbranquiçada da aurora, e havia um silêncio espectral na lagoa. Há 16 km dali, a ilha de Murea, como uma fortaleza do Santo Graal, guardava seu mistério.

Eu não acreditava no que via. Os dias passados desde que deixara Wellington pareciam extraordinários e incomuns. Wellington é um porto tipicamente inglês. Lembra uma cidade costeira da costa sul da Inglaterra. E posteriormente, durante três dias, o mar ficou de ressaca. Nuvens cinzentas se aglomeravam no céu. Então veio o vento, e o mar ficou tranquilo e azul. O Pacífico é mais desolador do que outros oceanos; seus espaços parecem maiores, e a viagem mais simples dá uma sensação de aventura. O ar que se respira é um elixir a nos preparar para o inesperado. E nem existe nada permitido ao conhecimento do homem que mais sugira os campos dourados da fantasia do que a chegada ao Taiti. Murea, a ilha vizinha, surge em seu esplendor rochoso, erigindo-se do mar deserto misteriosamente, como a poeira mágica de uma varinha de condão. com seu contorno recortado, parece uma Montserrat do Pacífico, e dá a impressão de que lá existem cavaleiros polinés-ios guardando, com rituais estranhos, mistérios profanos para o conhecimento do homem. Á beleza da ilha se descortina à medida que a distância diminui, podendo-se ver de forma mais nítida seus belos picos, porém ela conserva seu segredo ao nos aproximarmos de barco e, inviolável, parece fechar-se numa penumbra rochosa inacessível. Não nos surpreenderia se, ao chegar perto procurando uma abertura no recife, ela desaparecesse de vista de repente, restando apenas a solidão azul do Pacífico.

O Taiti é uma ilha verde, imponente, com recôncavos profundos de um verde mais escuro, nos quais adivinha-se a existência de vales silenciosos. Há mistério em suas profundezas sombrias, para as quais correm riachos frios e sente-se que naqueles lugares sombrios vive-se a vida de tempos antigos de acordo com modos de vida imemoriais. Mesmo aqui, existe algo triste e terrível. Todavia a impressão é fugaz, e só serve para dar mais intensidade ao desfrutar do momento. É como a tristeza que se vê nos olhos do palhaço quando pessoas alegres riem de suas brincadeiras; seus lábios sorriem e suas brincadeiras são mais engraçadas porque na comunhão das risadas ele se sente menos só. Pois o Taiti é sorridente e amigável; é como uma bela mulher exibindo graciosamente seu charme e sua beleza; e nada é mais aprazível do que a entrada no porto de Papeete. As escunas ancoradas no cais são bem tratadas, a pequena cidade à beira da baía é branca e movimentada, e os flamboyants, escarlates contra o céu azul, exibem sua cor como um grito de paixão. São sensuais, com uma violência arrogante que nos deixa sem respiração. E a multidão que se amontoa no cais, com a chegada do vapor, é alegre e jovial; é um grupo barulhento, animado e acolhedor. É um mar de rostos morenos. Tem-se a impressão de um movimento colorido contra o azul flamejante do céu. Tudo transcorre com muita algazarra, o desembarque da bagagem, a vistoria da alfândega, e todos parecem sorrir para você. É muito quente. A cor é ofuscante.

 

Fazia pouco tempo que estava no Taiti quando encontrei o Capitão Nichols. Ele veio até o hotel certa manhã, quando eu tomava café na varanda, e apresentou-se. Ouvira dizer que eu estava interessado em Charles Strickland e disse que viria ter uma conversa comigo. No Taiti as notícias se espalham tão rapidamente quanto nos vilarejos da Inglaterra, e uma ou duas perguntas sobre quadros pintados por Strickland foram suficientes para que todos ficassem sabendo do meu interesse por ele. Perguntei ao estranho se já tomara café.

- Já. Tomo café cedo - respondeu - mas não me importo de tomar um pouco de uísque.

Chamei o empregado chinês.

- Você não acha que é cedo demais pra isso, acha?

- disse o capitão.

- Você e o seu fígado é que devem decidir isso repliquei.

- Quase não bebo - ele acrescentou derramando a metade de um Canadian Club no copo.

Quando riu. mostrou uns dentes quebrados e manchados . Era um homem muito magro, de altura mediana, cabelos grisalhos curtos e um bigode grosso também grisalho . Não se barbeava há uns dois dias. Seu rosto era bem enrugado, queimado de sol, e seus pequenos olhos azuis se moviam de maneira surpreendente. Moviam-se com rapidez, seguindo o meu menor gesto, davam-lhe a aparência de um velhaco. Porém no momento ele era todo simpatia. Usava um terno caqui amarrotado, e suas mãos ficariam melhores se estivessem limpas.

- Conheci bem Strickland - disse ele, ao encostar-se na cadeira e acender o charuto que eu lhe oferecera.

- Foi por meu intermédio que ele veio pras ilhas.

- Onde você o conheceu? - perguntei.

- Em Marselha.

- O que você fazia lá?

Ele deu um sorriso amigável.

- Bem, acho que estava na praia.

O aparecimento de meu amigo sugeriu que andava fazendo a mesma coisa agora, e preparei-me para cultivar um relacionamento agradável. A companhia de vagabundos de praia sempre recompensa os pequenos problemas que são necessários contornar-se para apreciar tal companhia . São pessoas fáceis de se fazer amizade e afáveis para conversar. Raramente são antipáticas e é só oferecer um drinque para que se tornem amigáveis. Não é preciso muita coisa para nos familiarizarmos com eles, e podemos ganhar não só sua confiança, mas sua gratidão, dando atenção à sua conversa. Consideram a conversa um dos maiores prazeres da vida, comprovando a excelência de sua civilização através dela, e em sua maioria têm uma boa conversa. A extensão de suas experiências é contrabalançada com a fertilidade de sua imaginação. Não se pode dizer que são pessoas honestas, mas têm um certo respeito pela lei, quando esta é sustentada pela força. É um risco jogar pôquer com eles, mas sua ingenuidade acrescenta um prazer peculiar ao melhor jogo do mundo. Passei a conhecer muito bem o Capitão Nichols antes de deixar o Taiti, e fui o que mais lucrei com a amizade. Não acho que os charutos e o uísque consumidos às minhas custas (sempre recusava coquetéis, já que praticamente não bebia), e os poucos dólares, tomados emprestados com ar de conferir um favor a mim, que passaram do meu bolso para o dele tenham sido equivalentes ao entretenimento que me proporcionou. Sou seu devedor. Teria lamentado se minha consciência, insistindo numa atenção rígida ao assunto em questão, me levasse a falar dele em poucas linhas apenas.

Não sei por que o Capitão Nichols deixou a Inglaterra. Era um assunto sobre o qual não falava muito, e com pessoas do seu tipo não é muito discreto fazer uma pergunta direta. Ele deu a entender que passou por dificuldades sem merecê-las, e não há dúvida de que se considerou vítima de injustiça. Imaginei vários tipos de fraude e violência e concordei solidariamente com ele quando comentou que as autoridades da velha terra eram tão técnicas.

Mas fazia gosto ver que os maus pedaços passados na terra natal não tinham diminuído seu ardente patriotismo. Dizia sempre que a Inglaterra era o melhor país do mundo, e sentia uma agradável superioridade em relação aos americanos, colonos, holandeses e taitianos. Mas não creio que fosse um homem feliz. Sofria de dispepsia e estava sempre chupando um tablete de digestivo. De manhã, seu apetite era péssimo. Tal problema por si só dificilmente afetária sua vivacidade. Sua insatisfação tinha outra causa. Há oito anos casara apressadamente. Existem homens que nasceram para viver solteiros, mas que, por vontade própria ou por circunstâncias que não podem evitar, acabam contrariando seu destino. Não existe objeto mais digno de pena que o solteirão casado. O Capitão Nichols era um desses. Conheci sua mulher. De cerca de 28 anos, creio eu, embora de um tipo cuja idade é sempre duvidosa, pois não devia parecer diferente aos 20 anos e nem pareceria mais velha aos 40. Dava-me a impressão de tensão. Seu rosto com lábios finos era tenso; sua pele, esticada sobre os ossos; seu sorriso, tenso; seu cabelo, bem esticado; suas roupas eram apertadas, e o brim branco que usava tinha o efeito de veludo preto. Não compreendia por que o Capitão Nichols se casara com ela. E depois de casado, por que não a abandonara. Talvez tivesse feito isso várias vezes, e sua melancolia resultasse do fato de não ter conseguido. Fosse para onde fosse, e se escondesse onde se escondesse, tenho certeza de que a Sr.a Nichols, inexorável como o destino e com a consciência inabalável, o encontraria. Ele tinha tão poucas possibilidades de escapar dela quanto a causa do efeito.

O vagabundo, como o artista e talvez o cavalheiro, não pertence a nenhuma classe. Não fica embaraçado pela sem-cerimônia do imigrante, nem pela etiqueta do príncipe. Mas a Sr.a Nichols pertencia à classe bem definida, que ultimamente tornou-se expressiva, conhecida como média baixa. Seu pai, na verdade, era um policial. Tenho certeza de que era um policial eficiente. Não sei como ela segurou o capitão, mas não creio que tenha sido por amor. Nunca a ouvi falando, mas talvez na intimidade conversasse muito. De qualquer maneira o Capitão Nichols morria de medo dela. Às vezes, quando nos sentávamos na varanda do hotel, percebia que ela estava passando na rua. Ela não o chamava, não dava nenhum sinal de que o tinha visto ali, apenas andava de um lado para outro tranquilamente. Então o capitão ficava tomado de uma estranha inquietação, olhava para o relógio e suspirava.

- Bem, tenho que ir - dizia.

Nem a conversa nem o uísque seriam capazes de detê-lo então. Entretanto era um homem que já enfrentara sem medo furacões e tufões, e não hesitaria em lutar com uma dúzia de negros desarmados tendo apenas um revólver. Algumas vezes a Sr.a Nichols mandava até o hotel a filha, uma garota branqueia e emburrada de sete anos.

- Mamãe está chamando - ela falava, com um ganido.

- Está bem, minha querida - dizia o Capitão Nichols.

Levantava-se imediatamente e ia atrás da filha pela rua. Creio que esse era um bom exemplo do triunfo do espírito sobre a matéria, e sendo assim, minha digressão tem pelo menos a vantagem de uma moral.

 

Tentei pôr em ordem as coisas que o Capitão Nichols contou sobre Strickland, e Vou contá-las da melhor forma que puder. Conheceram-se no final do inverno seguinte ao meu último encontro com Strickland em Paris. Como ele passou os meses entre um e outro encontro não sei dizer, mas sua vida devia estar muito difícil, pois o Capitão Nichols encontrou-o pela primeira vez no Asile de Nuit. Havia uma greve em Marselha na época, e Strickland, com o término de seus recursos, aparentemente não conseguira ganhar o pouco dinheiro que precisava para sobreviver.

Asile de Nuit é um grande prédio de pedra onde os pobres e vagabundos podem dormir durante uma semana, se seus documentos estiverem em ordem e conseguirem convencer os frades encarregados da casa que são trabalhadores. O Capitão Nichols reparou em Strickland devido a seu tamanho e sua aparência singular entre a multidão que esperava as portas se abrirem; esperavam indiferentemente, uns andando de um lado para outro, outros encostados na parede, e outros sentados no meiofio com os pés no esgoto; e quando entraram no escritório, ouviu o padre que lia os documentos dirigir-se a ele em •inglês. Mas não teve oportumdade de falar com ele, pois, ao entrar na sala, apareceu um monge com uma grande Bíblia nos braços, subiu no púlpito que havia no fim da sala e começou a rezar uma missa, preço que os miseráveis tinham que pagar pelo alojamento. Ele e Strickland foram designados para quartos diferentes, e quando foi tirado da cama às 5:00 da manhã por um robusto monge, fez a cama e lavou o rosto, Strickland já desaparecera. O Capitão Nichols vagou pelas ruas durante uma hora de frio cortante, e então foi até a Place Victor Gélu, onde os marinheiros costumam reumr-se. Viu Strickland cochilando, encostado no pedestal de uma estátua. Deu-lhe um pontapé para acordá-lo.

- Vamos tomar café, companheiro - disse ele.

- Vá à merda! - respondeu Strickland. Reconheci o vocabulário limitado de meu amigo, e

comecei a achar que o Capitão Nichols era uma testemunha em quem se podia confiar.

- Está sem dinheiro? - perguntou o capitão.

- Vá pró inferno! - respondeu Strickland.

- Vem comigo. Vou lhe arranjar um café.

Depois de um momento de hesitação, Strickland levantou-se e foram até o Bouchée de Pain, onde os famintos recebem um pedaço de pão que devem comer ali mesmo naquele momento, pois é proibido levar o pão para outro lugar; e depois até a Cuillère de Soupe, onde durante uma semana, às 11 e às 4 h pode-se obter um prato de sopa rala e salgada. Os dois prédios ficam distantes um do outro, para que só os esfomeados se sintam tentados a fazer uso deles. Assim tomaram café, e assim começou a estranha amizade de Charles Strickland e o Capitão Nichols.

Devem ter passado uns quatro meses em Marselha na companhia um do outro. Suas vidas transcorreram destituídas de aventura, se por aventura entendermos incidentes excitantes e inesperados, pois seus dias eram ocupados na tentativa de ganhar dinheiro suficiente para conseguir um teto de noite e comida para matar a fome. Mas gostaria de poder transmitir aqui as imagens, coloridas e vívidas, que a narrativa do Capitão Nichols oferecia à imaginação. Seu relato das descobertas que fizeram no submundo de uma cidade costeira dariam um livro interessante, e o estudioso poderia encontrar com facilidade nos diversos personagens que cruzaram seus caminhos assunto para um dicionário completo de vagabundos. Devo contentar-me porém com alguns parágrafos. Recebi a impressão de uma vida intensa e brutal, selvagem, multicolorida e dinâmica. Esta transformou a Marselha que eu conhecia, animada e ensolarada, com seus hotéis confortáveis e seus restaurante cheios de pessoas ricas, numa cidade insípida e sem graça. Invejei os homens que tinham visto com os próprios olhos o que o Capitão Nichols descrevera.

Quando as portas do Asile de Nuit fecharam-se para eles, Strickland e o Capitão Nichols procuraram a hospitalidade de Tough Bill, o dono de um hotel de marinheiros, um mulato grande de punho pesado, que dava aos marinheiros que desembarcavam comida e abrigo até que encontrassem outro trabalho em navio. Moraram com ele durante um mês, dormindo com mais de uma dúzia de outros - suecos, negros, brasileiros - no chão dos dois quartos da casa; e todos os dias iam com ele à Place Victor Gélu, para onde iam capitães de navios à procura de homens. Era casado com uma americana, gorda e relaxada, que chegara até esse ponto sabe Deus por que processo de degradação, e todos os dias os hóspedes se revezavam para ajudá-la nos trabalhos domésticos. O Capitão Nichols achou que foi inteligente da parte de Strickland conseguir se livrar disso, pintando um retrato de Tough Bill. Tough Bill não só comprou a tela, as tintas e os pincéis, como deu a Strickland uma libra de tabaco contrabandeado pelo trabalho. Pelo que sei, esse quadro talvez ainda esteja enfeitando a sala da pequena casa velha que ficava em algum lugar perto do Quai de Ia Joliette, e creio que agora valeria umas 1500 libras. A ideia de Strickland era pegar algum navio que fosse para a Austrália ou Nova Zelândia, e de lá ir para Samoa ou Taiti. Não sei como tivera a ideia de ir para os mares do sul, embora me lembre que sua imaginação vivia presa a uma ilha, verde e ensolarada, cercada de um mar mais azul do que os que existem no hemisfério norte. Creio que acompanhou o Capitão Nichols porque ele conhecia aqueles lados, e foi quem o persuadiu de que ficaria melhor no Taiti.

- Sabe, o Taiti é francês - explicou-me. - E os franceses não são tão técnicos.

Achei que compreendia.

Strickland não tinha passaporte, mas isso não era problema para Tough Bill quando via a possibilidade de algum lucro (ficava com o primeiro salário dos marinheiros quando conseguia lugar para eles num navio), e arranjou para Strickland o passaporte de um mecânico inglês que morrera providencialmente em suas mãos. Mas tanto o Capitão Nichols quanto Strickland queriam ir para o Leste, e as únicas oportumdades que apareceram foram em navios que iam para o Oeste. Por duas vezes Strickland recusou trabalho em cargueiros que iam para os Estados Umdos, e por uma vez num navio carvoeiro que ia para Newcastle. Tough Bill não tinha paciência com uma obstinação que só podia resultar em prejuízo para si mesmo, e da última vez pôs Strickland e o Capitão Nichols para fora de casa sem mais delongas. Viram-se mais uma vez sem destino.

A comida que Tough Bill dava não era muita, e levantavam-se da mesa quase tão famintos como quando se sentavam, mas por uns dias os dois tiveram boas razões para sentir falta daquele prato. Souberam o que era realmente a fome. A Cuillère de Soupe e o Asile de Nuit estavam fechados para eles, e a única coisa que lhes sobrou foi o pedaço de pão que o Bouchée de Pain dava. Dormiam onde podiam, às vezes em algum caminhão vazio num pátio perto da estação, outras vezes numa carroça atrás de um depósito, mas fazia muito frio, e depois de uma ou duas horas de sono inquieto começavam a vagar pelas ruas outra vez. Sentiam mais falta era do tabaco, e o Capitão Nichols, por seu lado, não podia passar sem ele; passou a rondar o Can ol Beer atrás de guimbas de cigarro e charuto que os frequentadores da noite anterior jogavam fora.

- Já provei misturas de fumo piores num cachimbo - acrescentou com um filosófico dar de ombros, ao tirar dois charutos do pacote que eu lhe ofereci, pondo um na boca e o outro no bolso.

De vez em quando conseguiam ganhar um pouco de dinheiro. Às vezes chegava um vapor, e o Capitão Nichols tendo feito amizade com o apontador do porto, conseguia trabalho para eles dois como estivadores. Quando era um navio inglês, imiscuíam-se no alojamento dos marinheiros e conseguiam um bom café da manhã com a tripulação. Corriam o risco de encontrar um dos oficiais do navio e serem postos para fora com um pontapé para apressar a saída.

- Não faz mal nenhum levar um pontapé no traseiro quando se tem a barriga cheia - disse o Capitão Nichols

- e eu pessoalmente não levo isso a mal. Um oficial tem que pensar em disciplina.

Imaginei a cena do Capitão Nichols voando navio afora com o pontapé do oficial zangado e, como um inglês genuíno, rejubilando-se com o espírito da Marinha Mercante .

Existiam sempre alguns trabalhos disponíveis no mercado de peixe. Uma vez, cada um ganhou um franco para carregar caminhões com várias caixas de laranjas que tinham sido descarregadas no cais. Um dia tiveram um golpe de sorte: um dos capitães de bordo conseguiu um contrato para pintar um cargueiro vindo de Madagáscar pelo Cabo da Boa Esperança, e eles passaram vários dias numa tábua pendurada do lado de fora, cobrindo de tinta o casco enferrujado. Foi uma situação que deve ter apelado para o humor sardónico de Strickland. Perguntei ao Capitão Nichols como ele se comportou durante esses trabalhos duros.

- Nunca o ouvi dizer uma palavra de reclamação

- respondeu o capitão. - Às vezes ficava meio de cara amarrada, mas quando não conseguíamos comer nada desde de manhã e nem ao menos conseguíamos dormir no Chinkls, ele ficava tão alegre como um grilo.

Não me surpreendi com isso. Strickland era o tipo do homem que ficava acima das circunstâncias, quando estas eram tais que dariam desânimo à maioria das pessoas, mas era difícil dizer se isso devia-se a serenidade de aíma ou a um espírito de contradição.

Chinkls Head era o nome que os vagabundos davam a uma pensão miserável, próxima à Rue Bouterie, de um chinês de um olho só, onde por seis sous podia-se dormir numa cama de lona, e por três no chão. Aí faziam amizade com outros na mesma desesperada situação que eles, e quando estavam sem um tostão e a noite era fria, ficavam felizes ao conseguir emprestado, de alguém que tivesse ganho um franco a mais durante o dia, o dinheiro para pagar o teto que os abrigaria. Esses vagabundos não eram mesquinhos e aquele que tivesse dinheiro não hesitava em dividi-lo com o resto. Eram de todos os países do mundo, mas isso não constituía uma barreira para o bom entendimento entre eles, pois sentiam-se como homens livres de um país cujas fronteiras incluíam todos eles, o grande país da Cocanha.

- Mas acho que Strickland era de lascar quando o provocavam - disse o Capitão Nichols, refletindo. Um dia encontramos Tough Bill na Place, e ele pediu a Charlie que devolvesse os documentos que lhe dera. "É melhor você vir pegá-los se quiser", falou Charlie. Tough Bill era um sujeito forte e não gostou muito do jeito de Charlie, então começou a xingá-lo. Chamou-o de quase todos os nomes que conseguiu lembrar, e quando Tough Bill começava a xingar valia a pena escutá-lo. Bem, Charlie esperou um pouco, depois deu um passo pra frente e disse apenas: "Sai daqui, seu porco imundo." Não foi bem a expressão, mas a maneira como a emitiu. Tough Bill não falou mais uma palavra; ficou pálido e saiu dali como se lembrasse que tinha um encontro.

Strickland, de acordo com o Capitão Nichols, não disse exatamente as palavras que usei, mas como esse livro é para ser lido em casas de família achei melhor, embora sacrificando a verdade, pôr em sua boca expressões conhecidas no círculo familiar.

Ora, Tough Bill não era homem de aturar humilhação de um marinheiro qualquer. Seu poder dependia de seu prestígio, e primeiro um, depois um outro dos marinheiros que viviam em sua casa disseram que ele jurara matar Strickland.

Uma noite o Capitão Nichols e Strickland estavam sentados num dos bares da Rue de Bouterie. A Rue de Bouterie é estreita, com casas de um andar, cada casa consistindo de um quarto; são como barracas numa feira cheia ou jaulas de animais num circo. Em todas as portas há uma mulher. Umas ficam encostadas preguiçosamente nas portas, cantarolando baixinho ou chamando os passantes numa voz rouca, outras lêem com indiferença. São francesas, italianas, espanholas, japonesas, negras; umas são gordas, outras magras; e sob a maquiagem pesada do rosto e dos olhos, e o batom vermelho dos lábios, vêem-se as rugas da idade e as marcas da vida dissoluta. Umas usam combinações pretas e meias coloridas, outras, de cabelo encaracolado, tingido de louro, vestem-se como garotinhas, com vestidos curtos de algodão. Pela porta aberta vê-se um chão de cerâmica vermelha, uma grande cama de madeira, e numa mesa um jarro e uma bacia. Uma multidão heterogénea caminha pela rua: marinheiros indianos, escandinavos louros de um barco sueco, japoneses de um navio de guerra, marinheiros ing^ses, espanhóis, sujeitos de boa aparência de um cruzador francês, negros de um cargueiro americano. Durante o dia a rua é apenas sórdida, mas à noite, iluminada pelas luzes das pequenas casas, tem uma beleza sinistra. A horrenda luxúria que empesteia o ar é opressiva e terrível, e entretanto há algo misterioso na visão que assombra e atemoriza. Sente-se uma força primitiva que repele e fascina. Aqui todas as decências da civilização são postas de lado, e sente-se que os homens estão face a face com uma realidade sombria. Há uma atmosfera ao mesmo tempo intensa e trágica.

 

No bar em que Strickland e Nichols estavam sentados, um piano automático tocava desanimadamente música para dançar. Em volta da sala as pessoas sentavamse às mesas, aqui uma meia dúzia de marinheiros bêbados fazendo algazarra, ali um grupo de soldados, e no meio, amontoados, dançavam uns casais. Marinheiros barbudos com rostos morenos e mãos grandes seguravam os pares num abraço apertado. As mulheres não usavam nada além de uma combinação. De vez em quando, dois marinheiros levantavam-se e dançavam juntos. O barulho era ensurdecedor. As pessoas cantavam, gritavam e riam, e quando um homem dava um beijo demorado na garota sentada nos seus joelhos, os assobios dos marujos ingleses aumentavam o barulho. O ar era pesado da poeira levantada com as pesadas botas dos homens e cinzento de fumaça. Estava muito quente. Atrás do bar, sentada, uma mulher ninava um bebé. O garçom, um jovem baixo de cara chata e sardenta, corria de um lado para outro carregando uma bandeja cheia de copos de cerveja.

Pouco depois, Tough Bill, acompanhado de dois negros grandes, entrou, e dava para perceber facilmente que ele já estava parcialmente bêbado. E procurando encrenca. Jogou-se contra uma mesa em que estavam sentados três soldados e derrubou um copo de cerveja. Houve uma discussão feia, e o dono do bar mandou Tough Bill ir embora. Era um sujeito forte, habituado a não aguentar o mau comportamento dos fregueses, e Tough Bill hesitou. Não tinha interesse em brigar com o dono, pois a polícia estava do lado dele, e, com uma praga, deu meia-volta. De repente viu Strickland. Dirigiu-se até ele. Não disse nada. Cuspiu em cheio na cara de Strickland. Strickland pegou o copo e jogou em cima dele. As pessoas que dançavam pararam de repente. Houve um instante de silêncio geral, mas quando Tough Bill jogou-se para cima de Strickland, todos começaram a brigar, e num momento o tumulto era generalizado. As mesas foram viradas para o ar, os copos caíram no chão e quebraram. Foi uma confusão infernal. As mulheres correram para a porta e para trás do bar. Pessoas que passavam na rua apareceram na porta. Ouviam-se palavrões em todas as línguas, o barulho dos murros, gritos, e no meio da sala uns 12 homens brigavam com toda a disposição. De repente chegou a polícia, e todos aqueles que puderam correram para a porta. Quando o bar já estava mais ou menos vazio, Tough Bill jazia no chão sem sentidos com um grande corte na cabeça. O Capitão Nichols arrastou Strickland para a rua, sangrando com uma ferida no braço e com as roupas em farrapos. Ele próprio tinha o rosto coberto de sangue, por causa de um soco que levou no nariz.

- É melhor você dar o fora de Marselha antes que Tough Bill saia do hospital - disse a Strickland, quando haviam voltado para o Chinkls Head e estavam se lavando.

- Esta barrou a briga de galo - comentou Strickland.

Eu podia ver seu sorriso sardónico.

O Capitão Nichols estava preocupado. Conhecia Tough Bill e sabia que se vingaria. Strickland tinha derrotado o mulato duas vezes, e este, sóbrio, era um homem perigoso. Iria esperar uma oportumdade pacientemente. Não teria pressa, mas uma noite Strickland acabaria com uma faca nas costas, e um ou dois dias depois o corpo de um vagabundo desconhecido seria encontrado na água suja do porto. Nichols foi até a casa de Tough Bill na noite seguinte e fez algumas perguntas. Ele ainda estava no hospital, mas a mulher, que tinha ido visitá-lo, disse que ele jurara matar Strickland quando tivesse alta.

Passou-se uma semana.

- É o que eu sempre digo - refletiu o Capitão Nichols - quando se machuca um homem, deve ser pra valer. Dá tempo de pensar o que se deve fazer em seguida.

Então Strickland teve um pouco de sorte. Um navio que rumava para a Austrália pedira no Sailorls Home um foguista para substituir o outro que se jogara no mar, em Gibraltar, num ataque de delirium-tremens.

- Vá direto pró porto, meu chapa - disse o capitão para Strickland - e se inscreva. Você tem os documentos.

Strickland foi imediatamente, e foi a última vez que o Capitão Nichols o viu. O navio só ficou no porto seis horas, e à noite o Capitão Nichols viu a fumaça do navio afastando-se, ao rumar para o leste através do mar gelado.

Narrei tudo isso da melhor forma que pude, pois gosto do contraste desses episódios com a vida que vira Strickland levar em Ashley Gardens, quando cuidava de ações; entretanto tenho consciência de que o Capitão Nichols era um grande mentiroso, e creio não haver um pingo de verdade na história que me contou. Não ficaria surpreso de saber que nunca viu Strickland em toda sua vida, e devia seu conhecimento de Marselha às páginas de uma revista.

 

Foi nessa altura que me propus terminar o livro. Minha ideia inicial foi começá-lo com os últimos anos de Strickland no Taiti e com sua morte horrível, e então voltar ao passado e relatar tudo que sabia sobre sua vida anterior. Pretendia fazer isso, não por gosto, mas porque desejava deixar Strickland começar com as fantasias que se passavam em sua alma solitária em relação a ilhas desconhecidas que enchiam sua imaginação. Gostava de sua imagem, começando com a idade de 47 anos vida nova num mundo novo, época em que a maioria dos homens já se estabeleceu confortavelmente numa rotina de vida. Eu o vi, o mar cinzento sob o sopro do mistral e cheio de espuma, observando a costa da França desaparecer, lugar que estava destinado a não ver nunca mais. E achei que havia algo galante em sua atitude e algo destemido em sua alma. Desejava dessa forma terminar com uma nota de esperança. Parecia enfatizar o espírito invencível do homem. Mas não consegui fazê-lo. Por alguma razão, não consegui escrever a história, e depois de tentar uma ou duas vezes tive que desistir; comecei normalmente do início e decidi só poder contar o que sabia da vida de Strickland na ordem em que soube dos fatos.

Os que tenho agora são fragmentários. Estou na posição do biólogo que precisa reconstituir, com um único osso não só a aparência de um animal extinto, mas seus hábitos. Strickland não deixou qualquer impressão especial nas pessoas que estiveram em contato com ele no Taiti. Para elas, ele não passava de um vagabundo sempre precisando de dinheiro, diferente apenas pela peculiaridade de pintar quadros que lhes pareciam absurdos. E só depois de já estar morto por alguns anos, e agentes dos marchands em Paris e Berlim virem procurar quadros seus que ainda pudessem estar na ilha, é que tiveram uma vaga ideia de que entre eles tinha estado um homem de valor. Lembraram-se então de que poderiam ter comprado por uma ninharia quadros agora muito valiosos, e não se perdoavam por ter perdido tal oportumdade. Havia um comerciante judeu chamado Cohen que veio a possuir, de maneira singular, um dos quadros de Strickland. Era um velhinho francês, de olhos bondosos e sorriso agradável, metade comerciante, metade navegante, que possuía um veleiro no qual navegava por entre as Paumotus e as Marquesas, trocando mercadoria por copra, ostras e pérolas. Fui vê-lo por ter sido informado da existência de uma grande pérola negra que ele desejava vender barato, e quando vi que estava acima de minhas posses comecei a conversar sobre Strickland. Ele o conhecera bem.

- Sabe como é, interessei-me por ele por ser um pintor - disse-me. - Não temos muitos pintores nas ilhas, e tive pena dele por pintar tão mal. Arranjei-lhe seu primeiro trabalho. Eu tinha uma plantação na península e precisava de um branco que a supervisionasse. Não se consegue nada dos nativos se não se tiver um homem branco para tomar conta deles. Disse a ele: "Você vai ter bastante tempo para pintar e pode ganhar um pouco de dinheiro." Sabia que estava faminto e ofereci um bom salário.

- Não creio que ele fosse um bom empregado para supervisionar - comentei sorrindo.

- Tive uma certa condescendência. Sempre simpatizei com artistas. Está no nosso sangue, sabe. Mas ele só ficou uns poucos meses. Quando conseguiu dinheiro suficiente pra comprar tintas e telas deixou o emprego. Estava entusiasmado com o lugar e queria infiltrar-se pelas matas. Mas continuei a vê-lo vez por outra. Aparecia em Papeete de vez em quando e ficava por uns tempos. Conseguia dinheiro com uma pessoa ou com outra e depois desaparecia novamente. Foi numa dessas visitas que me procurou e pediu um empréstimo de 200 francos. Parecia não comer há uma semana, e não tive coragem de recusar. É claro que nunca esperei ver o dinheiro novamente. Bem um ano depois ele veio me ver outra vez e trouxe um quadro. Não mencionou o dinheiro que me devia, mas disse: "Aqui está um quadro de sua plantação que pintei pra você." Olhei pró quadro. Não sabia o que dizer, mas é claro que agradeci, e quando ele foi embora mostrei-o à minha mulher.

- Como ele era? - perguntei.

- Não me pergunte. Não entendi nada. Nunca vi coisa igual em minha vida. "O que vamos fazer com isso?", disse minha mulher. "Não podemos pendurá-lo", ela acrescentou. "As pessoas iriam rir de nós." Então ela o levou para o sótão e deixou-o lá com toda sorte de trastes, pois minha mulher não joga nada fora. É mania dela. Então, imagine o senhor, pouco antes da guerra, meu irmão me escreveu de Paris, dizendo: "Você sabe alguma coisa sobre um pintor inglês que viveu no Taiti? Parece que era um génio, e os seus quadros valem muito. Veja se consegue descobrir algum e manda para mim. É um negócio vantajoso." Então falei pra minha mulher: "O que aconteceu com o quadro que Strickland me deu? Será que ainda está no sótão?" "Sem dúvida", respondeu ela, "você sabe que não jogo nada fora. É mania minha." Subimos até o sótão e lá, entre bugigangas que tinham sido juntadas durante os 30 anos que moramos naquela casa, estava o quadro. Olhei novamente pra ele e disse: "Quem diria que o vigia da minha plantação na península, a quem emprestei 200 francos, era um génio? Você vê alguma coisa no quadro?" "Não", disse ela, "não parece a plantação e nunca vi cocos com folhas azuis, mas eles estão loucos em Paris e talvez seu irmão consiga vendê-lo pelos 200 francos que você emprestou a Strickland." Bem, embalamos o quadro e o enviamos a meu irmão. Quando finalmente recebi resposta, o que acha que ele disse? "Recebi o seu quadro, e confesso que pensei que você tivesse me pregado uma peça. Não teria pago nem o preço do envio postal por ele. Fiquei um pouco receoso de mostrá-lo ao cavalheiro que falara comigo sobre isso. Imagine a minha surpresa quando ele disse que era uma obra-prima e me ofereceu 30 mil francos. Confesso que ele teria pago mais, mas, francamente, eu estava tão surpreso que perdi a cabeça: aceitei a oferta antes de conseguir me recobrar."

Então o senhor Cohen falou uma coisa admirável:

- Gostaria que o pobre Strickland ainda estivesse vivo. Imagino o que ele teria dito quando eu lhe desse 29 800 francos pelo quadro.

 

Eu morava no Hotel de Ia Fleur, e a Sr.a Johnson, a proprietária, tinha uma triste história para contar sobre oportunidades perdidas. Depois da morte de Strickland, alguns de seus pertences foram vendidos em leilão no mercado de Papeete, e ela estava presente porque entre as bugigangas havia um fogão americano que ela queria. Pagou

27 francos por ele.

- Havia uns 12 quadros - disse-me ela - mas estavam sem moldura e ninguém os queria. Alguns foram vendidos por no máximo 10 francos, mas a maioria foi vendida por cinco ou seis francos. Imagine, se eu os tivesse comprado seria uma mulher rica agora.

Mas Tiaré Johnson nunca ficaria rica. Não conseguia guardar dinheiro. Filha de uma nativa e um capitão inglês estabelecido no Taiti, quando a conheci era uma mulher de 50 anos, que parecia mais velha, e de grande tamanho. Alta e corpulenta, seria uma presença marcante se a aparência agradável de seu rosto não lhe tornasse impossível expressar nada além de bondade. Seus braços eram como pernas de carneiro, seus seios como repolhos gigantes, seu rosto, largo e gordo, dava a impressão de uma nudez quase indecente, e tinha vários queixos. Não sei quantos eram. Caíam volumosamente no seu colo gordo. Usava geralmente um vestido largo cor-de-rosa, e durante todo o dia um grande chapéu de palha. Porém quando soltava o cabelo, o que fazia de vez em quando, pois achava-o bonito, via-se que era comprido, castanho e ondulado, e seus olhos permaneceram jovens e cheios de vida. Seu riso era o mais contagiante que eu já ouvira: começava com um som baixo na garganta e crescia mais e mais até que todo o seu grande corpo estremecia. Gostava de três coisas: uma piada, um copo de vinho e um homem atraente. Conhecê-la foi um privilégio.

Era a melhor cozinheira da ilha e gostava de boa comida. Ficava sentada numa cadeira baixa da cozinha desde a manhã até à noite, cercada por um cozinheiro chinês e duas ou três nativas, dando ordens, conversando com todos informalmente e provando as comidas gostosas que inventava. Quando queria fazer as honras da casa a um amigo, preparava o jantar ela mesma. A hospitalidade era sua paixão, e não havia ninguém na ilha que saísse de lá sem um jantar quando houvesse qualquer coisa para comer no Hotel de Ia Fleur. Nunca expulsava os fregueses de sua casa por não pagarem a conta. Sempre tinha esperanças de que pagariam quando pudessem. Havia um homem lá que estivera em dificuldades financeiras, e ela lhe dera comida e teto durante vários meses. Quando o tintureiro chinês recusou-se a lavar suas roupas de graça, ela passou a mandar as roupas dele junto com as dela para lavar. Não podia permitir que o pobre sujeito andasse de camisas sujas, dizia, e como era homem, e os homens gostam de fumar, dava-lhe um franco por dia para comprar cigarros. Tratava-o com a mesma afabilidade com que tratava os outros fregueses que pagavam a conta todas as semanas.

A idade e a obesidade deixaram-na inapta para o amor, mas interessava-se pelos casos amorosos dos jovens. Considerava o sexo como uma função natural de homens e mulheres, e estava sempre pronta para dar exemplos de sua ampla experiência no assunto.

- Ainda não tinha 15 anos quando meu pai descobriu que eu tinha um amante - ela comentou. - Ele era o terceiro oficial do Tropic Bird. Um rapaz atraente.

Suspirou um pouco. Dizem que as mulheres sempre se lembram do primeiro amor com carinho, mas talvez nem sempre se lembrem dele.

- Meu pai era um homem sensato.

- O que ele fez? - perguntei.

- Deu-me uma surra daquelas e fez com que eu me casasse com o Capitão Johnson. Não me importei. Ele era mais velho, é claro, mas também era atraente.

Tiaré - seu pai dera-lhe o nome da flor branca e perfumada que, segundo dizem, uma vez cheirada, sempre o fará voltar ao Taiti, mesmo que se tenha ido para bem longe - Tiaré lembrava-se bem de Strickland.

- Ele costumava vir aqui de vez em quando, e eu o via sempre vagando por Papeete. Tinha pena dele, era tão magro, e nunca tinha dinheiro. Quando ouvia dizer que estava na cidade, costumava mandar um garoto para procurá-lo e trazê-lo pra jantar comigo. Consegui trabalho para ele uma ou duas vezes, mas ele não se fixava em qualquer lugar. Depois de algum tempo, queria voltar pra mata, e uma manhã desaparecia.

Strickland chegou ao Taiti seis meses depois de sair de Marselha. Conseguiu passagem num navio que fazia a linha Auckland-São Francisco e chegou com uma caixa de tintas, um cavalete e 12 telas. Tinha algumas libras, pois encontrara traba^o em Sidney, e alugou um pequeno quarto na casa de um nativo, fora da cidade. Acho que no momento em que chegou ao Taiti, sentiu-se em casa. Tiaré disse-me que ele comentara com ela uma vez:

- Estava esfregando o convés, e de repente um sujeito me disse: "Ora, lá está ela." E levantei os olhos e vi o contorno da ilha. Senti no mesmo instante que aquele era o lugar que eu estivera procurando toda minha vida. Então chegamos mais perto, e pensei reconhecê-la. Às vezes quando ando pela ilha, ela me parece familiar. Podia jurar que já morei aqui antes.

- Às vezes a ilha os conquista desse jeito - disse Tiaré. - Conheço homens que desembarcaram por algumas horas, enquanto o navio era carregado, e nunca mais voltaram. E conheço homens que vieram pra cá pra trabalhar por um ano e detestavam o lugar, e quando iam embora juravam que preferiam se enforcar a voltar pra cá, seis meses depois voltavam e diziam que não podiam morar em outro lugar.

Acho que alguns homens nascem no lugar errado. Vivem acidentalmente em certos lugares, mas sentem sempre uma nostalgia por um lar que não conhecem. São como estranhos nos lugares em que nasceram, e as alamedas que conheceram na infância ou as ruas movimentadas em que brincaram não são senão um lugar de transição. Passam a vida inteira como estranhos entre seus parentes e permanecem indiferentes às únicas paisagens que conheceram. Talvez seja essa sensação de estranheza que leve os homens para longe, à procura de algo permanente, a que possam prender-se. Talvez algum atavismo profundo leve os que perambulam pelo mundo de volta a terras que seus ancestrais deixaram nos primórdios da história. Às vezes um homem chega num lugar ao qual sente misteriosamente pertencer. Esse é o lar que procurava, e ele se estabelece entre paisagens que nunca viu antes, entre homens que, igualmente, nunca viu, como se os conhecesse desde que nasceu. Aí ele encontra sossego finalmente.

Contei a Tiaré a história de um homem que eu conhecera no Hospital de St. Thomas. Era um judeu chamado Abraham, um homem louro, jovem, um tanto corpulento, tímido e modesto, no entanto dono de talentos notáveis. Entrou no hospital com uma bolsa de estudos e durante os cinco anos do currículo ganhou todos os prémios a seu alcance. Tornou-se clínico e médico-cirurgião do hospital. Todos reconheciam sua capacidade. Finalmente foi indicado para um cargo na equipe, e sua carreira estava assegurada. De acordo com a lei das probabilidades, era certo que ele chegaria aos mais altos cargos da profissão. Tinha pela frente honrarias e fortunas. Antes de assumir seu novo encargo, quis tirar umas férias, e como não tinha meios seguiu num cargueiro a vapor, como cirurgião, para o Levante. O navio geralmente não levava nenhum médico na tripulação, mas um dos cirurgiões mais graduados do hospital conhecia um dos diretores da linha, e Abraham conseguiu ir, por um favor especial.

Em poucas semanas as autoridades receberam sua demissão do cargo na equipe. Isso gerou uma profunda surpresa, e espalharam-se vários rumores. Sempre que um homem faz algo inesperado, seus semelhantes atribuem isso aos motivos mais impossíveis. Havia porém um homem pronto para assumir o cargo de Abraham, e ele foi esquecido. Não se ouviu mais falar dele. Ele desapareceu .

Uns 10 anos mais tarde, talvez, estando a bordo de um navio, prestes a desembarcar em Alexandria, tive que fazer um exame médico juntamente com os outros passageiros. O médico era um homem corpulento de roupas velhas, e quando tirou o chapéu reparei que era muito calvo. Tive a impressão de já tê-lo visto antes. De repente me lembrei.

- Abraham - disse.

Ele se virou para mim com um olhar desconfiado e então, me reconhecendo, apertou minha mão. Depois de expressões de surpresa de ambos os lados, ao saber que eu pretendia passar a noite em Alexandria, ele me convidou para jantar com ele no English Club. Quando nos encontramos novamente, demonstrei minha surpresa de encontrá-lo ali. Ocupava uma posição muito modesta, e parecia viver em condições precárias. Então ele me contou sua história. Quando saiu de férias pelo Mediterrâneo, tinha intenção de voltar para Londres e para seu cargo no St. Thomas. Uma manhã o cargueiro ancorou em Alexandria, e do tombadilho ele viu a cidade, branca à luz do sol, e a multidão no cais; viu os nativos com suas roupas gastas, os negros do Sudão, a multidão barulhenta de gregos e itaHanos, os turcos com seus barretes, o sol e o céu azul; e algo ocorreu com ele. Não podia descrevê-lo. Era como um trovão, ele afirmou, e então, não satisfeito com essa comparação, disse que era como uma revelação. Alguma coisa parecia estar comprimindo seu coração, e de repente ele sentiu uma exultação, uma sensação de liberdade extraordinária. Sentiu-se em casa, e decidiu naquele minuto viver o resto da vida em Alexandria. Não teve dificuldade em deixar o navio, e em 24 horas, estava em terra com todos os pertences.

- O capitão deve ter pensado que você era maluco

- disse eu, sorrindo.

- Não ligava pró que os outros achavam. Não era eu que agia, mas algo mais forte dentro de mim. Achei que iria pra pequeno hotel grego, enquanto me ambientava, e senti que sabia onde encontrar um. E sabe que caminhei direto pra lá e o reconheci imediatamente quando o vi?

- Você já havia estado em Alexandria antes?

- Não, nunca tinha saído da Inglaterra em toda minha vida.

Passou a trabalhar para o governo e está lá até hoje.

- Nunca se arrependeu?

- Nunca, nem por um minuto. Ganho o suficiente para viver e estou satisfeito. Não peço nada mais além de ficar aqui até morrer. Tenho uma vida maravilhosa.

Saí de Alexandria no dia seguinte e me esqueci de Abraham até pouco tempo, quando jantava com um outro velho amigo da profissão, Alec Carmichael, que estava de licença na Inglaterra. Encontrei-o na rua e cumprimentei-o por ter recebido o título de Cavaleiro pelos eminentes serviços prestados durante a guerra. Combinamos passar uma noite juntos para relembrar os velhos tempos, e quando aceitei jantar com ele, propôs que eu não falasse com mais ninguém, para que pudéssemos conversar tranquTamente. Tinha uma bela casa em Queen Anne Street, e como era um homem de bom gosto a mobiliara admiravelmente. Nas paredes da sala de jantar vi um Bellotto, e havia um par de Zoffanys que me causaram inveja. Quando sua mulher, uma criatura alta e adorável, vestida de dourado nos deixou, comentei galhofeiramente a respeito da diferença de sua vida atual em relação à vida que levava quando éramos estudantes de Medicina. Naquela época, era uma extravagância jantar num velho restaurante italiano que ficava em Westminster Bridge Road. Agora Alec Carmichael fazia parte da equipe de meia dúzia de hospitais. Imagino que estivesse ganhando uns 10 mil dólares por ano, e sua condecoração para a Ordem de Cavaleiro não era senão a primeira das honrarias que inevitavelmente receberia.

- Tenho me dado muito bem - afirmou - porém o mais estranho é que devo tudo a um golpe de sorte.

- O que quer dizer com isso?

- Bem, você se lembra de Abraham? Era ele que tinha futuro. Quando éramos estudantes, ele me passava em todas as notas.   Conseguia os prémios e bolsas de estudo que eu almejava. Sempre ficava em segundo lugar em relação a ele. Se tivesse continuado, ele estaria na posição em que estou agora. Aquele homem tinha talento pra operar. Ninguém tinha chance com ele. Quando foi indicado para a equipe do St. Thomas, eu não tive oportumdade de entrar para a mesma. Teria que me tornar um clínico geral e você sabe quais são as possibilidades de um clínico geral conseguir algum dia se sobressair. Mas Abraham caiu fora e eu consegui o emprego. Deram-me a minha oportunidade.

- É verdade.

- Foi pura sorte. Creio que Abraham era um pouco maluco. Pobre diabo, decaiu muito. Conseguiu um emprego como médico em Alexandria, ganhando uma micharia... funcionário da Saúde Pública ou algo parecido. Soube que vive com uma grega velha e feia e tem 12 moleques. O fato é que, creio eu, não basta ser inteligente . O que conta é a personalidade. Abraham não tinha personalidade.

Personalidade? Acho que era preciso muita personalidade para jogar fora uma carreira depois de refletir por meia hora, porque um outro modo de viver tinha uma significância mais intensa. E era preciso ter mais personalidade ainda para nunca sentir arrependimento por um passo tão precipitado. Mas não disse nada, e Alec Carmichael continuou, pensativamente:

- É claro que seria hipocrisia de minha parte fingir que lamento o que Abraham fez. Afinal de contas, fui eu que saí ganhando. - Deu uma baforada no longo Corona que fumava. - Mas se eu não estivesse envolvido pessoalmente, lamentaria a perda. Parece mentira que um homem possa estragar a vida desse jeito.

Eu tinha minhas dúvidas se Abraham teria realmente estragado sua vida. Será que fazer o que se deseja, viver da forma que mais agrada, em paz consigo mesmo, é estragar a vida? E será que o sucesso é ser um eminente cirurgião, ganhando 10 mil dólares por ano, e ter uma mulher bonita? Creio que isso depende do significado que se dê à vida: satisfazer a reivindicação da sociedade ou a do indivíduo. Mas novamente eu me contive, pois quem sou eu para discutir com um Cavaleiro?

 

Tiaré, quando lhe contei essa história, elogiou minha prudência, e durante alguns minutos trabalhamos em silêncio, pois estávamos descascando ervilhas. Então seus olhos, sempre alertas em relação ao que se passava na cozinha, caíram no cozinheiro chinês, que fazia algo que provocou seu descontentamento. Virou-se para ele com uma torrente de desaforos. O chinês revidou para se defender, e começou a briga. Falavam na língua nativa, da qual eu conhecia apenas meia dúzia de palavras, e parecia que o mundo vinha abaixo, mas depois se acalmaram e Tiaré deu um cigarro ao cozinheiro. Ambos fumaram confortavelmente.

- Você sabia que fui eu que lhe arranjei uma mulher? - disse Tiaré de repente, com um sorriso que tomava todo o seu rosto.

- Pró cozinheiro?

- Não, pra Strickland.

- Mas ele já possuía uma.

- Foi isso que ele falou, mas eu disse que ela estava na Inglaterra e a Inglaterra fica no outro extremo do mundo.

- É verdade - repliquei.

- Ele vinha a Papeete de dois em dois meses, quando queria tintas, fumo ou dinheiro, e então perambulava por aí como um cachorro perdido. Ficava com pena dele. Eu tinha uma moça aqui, chamada Ata, que arrumava os quartos; tinha um certo parentesco comigo, e seu pai e sua mãe haviam morrido, então chamei-a pra morar comigo. Strickland costumava vir aqui de vez em quando pra jantar ou jogar xadrez com um dos garotos. Eu reparei que ela o olhava quando ele vinha, e perguntei-lhe se gostava dele. Ela disse que sim. Você sabe como são essas moças, sempre gostam de andar com homens brancos.

- Ela era uma nativa? - perguntei.

- Era. Não tinha nem uma gota de sangue branco. Bem, depois que falei com ela, mandei chamar Strickland e disse a ele: "Strickland, já é hora de você se estabelecer . Um homem da sua idade não deve ficar andando por aí com garotas. Elas não prestam, e você só pode arranjar problemas com elas. Você não tem dinheiro e não consegue ficar num emprego mais de um ou dois meses. Ninguém mais vai querer empregá-lo agora. Você diz que pode morar na mata com um ou outro nativo e que eles gostam de morar com você, porque é um homem branco, mas não é uma vida decente pra um homem branco. Agora, ouça, Strickland."

Tiaré misturava francês e inglês na conversa, pois usava as duas línguas com a mesma facilidade. Falava-as com um sotaque cantado que não era agradável ao ouvido. Tinha-se a impressão de que um pássaro, se pudesse falar inglês, falaria com a mesma entonação. E Tiaré prosseguiu:

"Então, o que me diz de casar com Ata? Ela é uma boa moça e só tem 17 anos. Nunca viveu na promiscuidade como algumas dessas moças que vivem por aí. Teve um capitão ou a^um oficial como amantes, sim, mas nunca se deixou tocar por um nativo. Elle se respecte, vois-tu. O comissário de bordo do Oahu afirmou na última viagem, que nunca conheceu moça tão boa nas ilhas. É tempo dela se estabelecer também, e além disso os capitães e os oficiais gostam de uma mudança de vez em quando. Não fico com minhas moças muito tempo. Ela tem uma pequena propriedade perto de Taravao, pouco antes de se chegar à península, e com a copra pelo preço que está agora vocês podem viver confortavelmente. Existe uma casa lá e você pode ter o tempo que quiser pra pintar. O que me diz disso?"

Tiaré parou de falar para respirar.

- Foi então que ele me falou da mulher na Inglaterra. "Meu pobre Strickland", disse a ele, "todos têm uma mulher em algum lugar, é por isso que geralmente vêm pras ilhas. Ata é uma moça sensata e não espera nenhuma cerimónia com o prefeito. Ela é protestante, e você sabe que eles não ligam pra essas coisas como os católicos." Então ele perguntou: "Mas o que é que ela acha disso?" "Parece que ela tem uma queda por você", eu respondi. "Ela aceita, se você aceitar. Posso chamá-la?" Ele riu da maneira engraçada e seca que costumava rir, e eu a chamei. A danada sabia sobre o que eu falava, e a vi com o rabo-do-olho, escutando com toda a atenção, enquanto fingia passar uma blusa que lavara pra mim. Ela veio. Estava rindo, porém achei-a um pouco acanhada, e Strickland olhou pra ela sem dizer nada.

- Ela era bonita? - perguntei.

- Não era má.   Mas você deve ter visto quadros dela. Ele a pintou várias vezes, algumas com um páreo e outras com nada. É, ela era bem bonita. E sabia cozinhar. Eu mesma ensinei. Percebi que Strickland estava pensando nisso, então lhe disse: "Eu paguei bons salários a ela, que economizou o que ganhou, e o capitão e os oficiais que conheceu davam-.lhe alguma coisa de vez em quando. Ela economizou centenas de francos." Ele alisou a barba e sorriu. "Bem, Ata", disse ele, "você me quer pra marido?" Ela não disse nada, apenas riu. "Mas eu lhe garanto, meu pobre Strickland, que a moça tem uma queda por você", eu acrescentei. "Vou bater em você", disse ele, olhando pra ela. "E de que outra maneira eu ia saber que você gosta de mim?", ela respondeu.

Tiaré parou de contar a história e dirigiu-se a mim pensativamente.

- Meu primeiro marido, o Capitão Johnson, costumava me surrar regularmente. Ele era um homem. Era atraente, tinha l,80m de altura, e quando estava bêbado, ninguém o segurava. Eu ficava toda roxa durante dias. Ah, eu chorei quando ele morreu. Pensei que nunca fosse me recuperar. Mas só quando me casei com George Rainey é que soube o que havia perdido. Não se pode imaginar como é um homem antes de se conviver com ele. Nunca me enganei tanto com um homem como com George Rainey. Era um homem atraente também. Quase tão alto quanto o Capitão Johnson, e parecia bem forte. Mas era só aparência. Nunca bebia. Nunca levantou a mão pra mim. Devia ter sido um missionário. Eu me metia com os oficiais de todos os navios que aportavam na ilha, e George Rainey nunca via nada. No final, fiquei cansada dele e pedi o divórcio. Pra que servia um marido como aquele? Tem homens que tratam as mulheres de maneira terrível.

Concordei com Tiaré e comentei que os homens sempre enganavam, depois pedi-lhe que continuasse com sua história sobre Strickland.

- Eu lhe disse: "Não há pressa. Pense no assunto. Ata tem um bom quarto no anexo. Viva com ela durante um mês e veja se gosta dela. Pode fazer as refeições aqui.

E no fim de um mês, se resolver casar com ela, pode ir e se estabelecer em sua propriedade." Bem, ele concordou com minha sugestão. Ata continuou a fazer o trabalho doméstico, e eu dei a ele as refeições como o combinado. Ensinei Ata a fazer um ou dois pratos que sabia que ele gostava. Ele não pintava muito. Perambulava pelos morros e tomava banho no riacho. Sentava-se na entrada, olhando pra lagoa, e ao cair da tarde descia e olhava para Murea. Costumava ir pescar nos recifes. Gostava de passar o tempo pelo porto, conversando com os nativos. Era um sujeito sossegado. E todas as noites depois do jantar ia para o anexo com Ata. Vi que estava louco pra voltar pra mata e no fim do mês perguntei-lhe o que pretendia fazer. Ele falou: se Ata desejasse ir com ele, estava pronto pra ir com ela. Então ofereci a eles um jantar de casamento. Preparei-o eu mesma. Fiz uma sopa de ervilhas e uma lagosta à portuguesa, um curry e uma salada de cocos - você nunca comeu minha salada de cocos, não é? Vou preparar uma antes de você ir embora - e fiz um sorvete. Bebemos todo o champanha que aguentamos e os licores de acompanhamento. Ah, eu resolvi fazer as coisas direito. E depois dançamos na sala de estar. Eu não era tão gorda na época e sempre gostei de dançar.

A sala de estar do Hotel de Ia Fleur era uma sala pequena, com um piano também pequeno e um conjunto de móveis de mogno, cobertos de veludo estampado, bem arrumados em volta da sala. Sobre mesas redondas havia álbuns de fotografias, e nas paredes retratos ampliados de Tiaré e seu primeiro marido, o Capitão Johnson. Ainda agora, embora Tiaré estivesse velha e gorda, em certas ocasiões enrolávamos o tapete de Bruxelas, trazíamos as empregadas e um ou dois amigos de Tiaré, e dançávamos. Agora, porém, ao som de um gramofone. Na varanda, o ar cheirava ao perfume forte da tiaré, e acima de nós o Cruzeiro do Sul brilhava num céu limpo,

Tiaré sorriu indulgentemente ao lembrar-se da festa ocorrida há tanto tempo.

- Dançamos até às 3:00 da madrugada, e quando fomos pra cama acho que não havia ninguém sóbrio. Eu avisara que eles podiam ir com a minha carroça até o fim da estrada, porque depois tinham que andar bastante. A propriedade de Ata ficava num dos recôncavos da montanha . Saíram ao raiar do dia, e o garoto que mandei com eles só voltou no dia seguinte.

- É, foi assim que Strickland se casou.

 

Creio que os três anos que se seguiram foram os mais felizes da vida de Strickland. A casa de Ata ficava a 8 km da estrada que contorna a ilha, e chegava-se a ela por um caminho tortuoso cercado de árvores luxuriantes dos trópicos. Era um bangalô de madeira crua, com dois quartos pequenos, e do lado de fora havia uma choupana que servia de cozinha. Não havia móveis, exceto as esteiras que usavam como camas e uma cadeira de balanço, na varanda. As bananeiras, com suas grandes folhas rasgadas, como as vestes esfarrapadas de uma imperatriz decadente, cresciam perto da casa. Havia um abacateiro bem atrás, e por toda a volta, os coqueiros que davam à ilha sua fonte de renda. O pai de Ata tinha plantado cróton em volta da casa, e eles cresciam em profusão, coloridos e brilhantes - cercavam a terra com sua cor flamejante. Em frente à casa crescia uma mangueira, e na ponta da clareira havia dois flamboyants gémeos, que competiam com o dourado dos cocos com suas flores vermelhas .

Aqui Strickland vivia do produto da terra, indo raramente a Papeete. Havia um pequeno riacho que corria não muito longe, no qual se banhava, e por onde às vezes vinha um cardume de peixes. Então os nativos se reuniam com lanças, e com muita gritaria pegavam os peixes ao descerem para o mar. Às vezes Strickland descia até os recifes e voltava com uma cesta de peixes pequenos e coloridos que Ata fritava com gordura de coco, ou com uma lagosta; e às vezes ela fazia um prato saboroso com os grandes caranguejos que passavam correndo próximos aos pés dele. No alto da montanha, havia laranjas silvestres, e de vez em quando Ata ia até lá com duas ou três mulheres da cidade e voltava com muitas frutas verdes, doces e saborosas. Então os cocos amadureciam, seus primos (como todos os nativos, Ata tinha vários parentes) subiam nas árvores e jogavam os frutos maduros no chão. Eles os abriam e os punham ao sol pra secar. Então arrancavam a copra e a punham em sacos, e as mulheres carregavam-nos para o comerciante da cidade à beira da lagoa, que lhes dava em troca arroz, sabão, carne enlatada e um pouco de dinheiro. Às vezes havia uma festa nas vizinhanças, e matavam um porco. Então eles iam e comiam até não poder mais, dançavam e cantavam.

Mas a casa ficava muito longe da cidade, e os taitianos são preguiçosos. Gostam de viajar e de falar, mas não de andar, e às vezes Strickland e Ata ficavam sozinhos durante semanas. Ele pintava e lia, e à noite, quando estava escuro, sentavam-se juntos na varanda, fumando e admirando a noite. Então Ata teve um filho, e a velha que veio para ajudá-la ficou. Depois a neta da velha veio para ficar com ela, e então apareceu um jovem - ninguém sabia bem de onde vinha e quem era - mas ele passou a viver com eles despreocupadamente, e todos ficaram morando juntos.

 

- Tenez,voilà lê Capitaine Brunot - disse Tiaré um dia quando eu estava escrevendo o que ela me contou sobre Strickland. - Ele conhecia bem Strickland; ele o visitou em sua casa.

Vi um francês de meia-idade com uma grande barba preta, listada com cabelos grisalhos, rosto queimado de sol e grandes olhos brilhantes. Usava um impecável terno de linho. Eu o vira durante o almoço, e Ah Lin, o garoto chinês, disse-me ter ele vindo do Paumotus no barco que chegara naquele dia. Tiaré apresentou-me, e ele me deu seu cartão, um cartão grande no qual se via impresso Réné Brunot, e abaixo, Capitaine au Long Cours. Estávamos sentados numa varandinha do lado de fora da cozinha, e Tiaré cortava um vestido para uma das moças da casa. Ele sentou-se conosco.

- É verdade, eu conhecia bem Strickland - disse ele. - Gosto muito de jogar xadrez, e ele sempre estava pronto pra uma partida. Venho ao Taiti três ou quatro vezes ao ano a negócios, e quando ele estava em Papeete, vinha até aqui e jogava. Quando se casou - o Capitão Brunot sorriu e sacudiu os ombros - enfim, quando foi viver com a moça que Tiaré lhe deu, pediu-me pra ir visitá-lo. Fui um dos convidados da festa de casamento. Olhou para Tiaré, e ambos riram. - Depois disso ele quase não vinha a Papeete, e cerca de um ano depois por acaso tive que ir até aquela parte da ilha pra fazer um negócio que agora não me vem à cabeça, e quando terminei, falei pra mim mesmo: "Voyons, por que não Vou ver o pobre Strickland?" Perguntei a um ou dois nativos se sabiam onde ele morava e descobri que sua casa não ficava a mais de 5 km de onde eu estava. Então, fui. Nunca Vou esquecer a impressão que minha visita me deixou. Vivo num atol, uma ilha baixa, que é uma faixa de terra que contorna uma lagoa, e sua beleza é a beleza do mar e do céu, e das cores variadas da lagoa e da graça dos coqueiros; mas o lugar em que Strickland vivia tinha a beleza do Jardim do Éden. Ah, gostaria que você pudesse ver o encanto daquele lugar, escondido de todo o mundo, com o céu azul acima e as árvores ricas e luxuriantes. Era uma festa de cores, perfumado e fresco. Não existem palavras pra descrever aquele paraíso. E aí morava ele, sem se preocupar com o mundo e esquecido por este. Creio que aos olhos europeus o lugar teria parecido surpreendentemente sórdido. A casa estava caindo aos pedaços e não era lá muito limpa. Quando me aproximei, vi três ou quatro nativos na varanda. Você sabe como os nativos gostam de viver amontoados. Havia um jovem deitado, fumando um cigarro, e usava apenas um páreo.

O páreo é uma tira comprida de algodão, vermelho ou azul, estampado de branco. É usado em torno da cintura e vai até o joelho.

- Uma garota de uns 15 anos, talvez, trançava folhas de pandano pra fazer um chapéu, e havia uma velha sentada no chão, fumando um cachimbo. Então vi Ata, amamentando um bebé recém-nascido; e uma outra criança, completamente nua, brincando a seus pés. Quando me viu, chamou Strickland, e ele veio até a porta. Ele também usava apenas um páreo. Era uma figura extraordinária com sua barba vermelha e cabelos despenteados, e seu peito cabeludo. Seus pés estavam cheios de calosidades e arranhões, de forma que percebi que andava sempre descalço. Tornara-se um nativo por completo. Pareceu satisfeito em me ver, e mandou Ata matar um frango pró jantar. Levou-me para dentro da casa pra mostrar o quadro que estava pintando quando cheguei. Num canto do quarto havia a cama, e no meio um cavalete com a tela. Como eu tinha pena dele, comprara um par de quadros por uma quantia pequena, e enviara outros pra amigos meus da França. E embora os tivesse comprado por pena, depois de conviver com eles, comecei a apreciá-los. Na verdade, via uma beleza estranha neles. Todo mundo pensou que eu era louco, mas no fim eu estava certo. Fui o seu primeiro admirador nas ilhas.

Sorriu maliciosamente para Tiaré, e ela contou-nos novamente como se arrependia de no leilão das coisas de Strickland ter negligenciado seus quadros e, em vez deles, ter comprado um fogão americano por 27 francos.

- Você ainda tem os quadros? - perguntei.

- Tenho, Vou guardá-los até minha filha se casar, e então Vou vendê-los. Vão ser o seu dote.

Então continuou com o relato de sua visita a Strickland .

- Nunca mais Vou esquecer a noite que passei com ele. Não tinha intenção de ficar mais de uma hora, mas ele insistiu para eu passar a noite lá. Hesitei, pois confesso não ter gostado muito da aparência das esteiras em que ele propôs que eu dormisse; mas deixei pra lá. Quando construía minha casa em Paumotus, dormi várias semanas numa cama mais dura do que aquela, com nada pra me abrigar a não ser os arbustos; e quanto aos insetos, minha pele grossa estava preparada contra eles.

Fomos até o riacho pra tomar banho enquanto Ata preparava o jantar, e depois de comer sentamos na varanda. Fumamos e conversamos. O rapaz tinha uma sanfona e tocou músicas de sucesso há cerca de 12 anos. Pareciam estranhas na noite tropical a milhares de quilómetros da civilização. Perguntei a Strickland se não se aborrecia de viver naquela promiscuidade. Não, disse ele; gostava de ter os seus modelos a mão. Depois, quando já haviam bocejado bastante, os nativos foram dormir, e Strickland e eu ficamos sozinhos. Não tenho palavras pra descrever o intenso silêncio da noite. Na minha ilha no Paumotus, nunca há durante a noite o sossego completo que havia ali. Existe o ruído dos inúmeros animais da praia, todos aqueles seres pequenos que se arrastam sem parar, e há a correria barulhenta dos caranguejos de terra. De vez em quando na lagoa, ouve-se um peixe pular, e algumas vezes um barulho rápido na água quando um tubarão escuro aparece, atemorizando todos os peixes e fazendo-os fugir. E acima de tudo, interminável como o tempo, há o barulho das ondas quebrando-se nos recifes.

Mas ali não havia um som, e o ar era perfumado pelas flores-da-noite. Era uma noite tão bonita que a alma parecia não se prender mais ao corpo. Sentia-se que a alma estava pronta pra flutuar no ar imaterial, e a morte tinha todo o aspecto de um amigo querido.

Tiaré suspirou.

- Ah, queria ter 15 anos novamente.

Então ela deu com um gato tentando alcançar um prato de camarões grandes na mesa da cozinha, e com um gesto rápido e uma torrente de desaforos jogou um livro no rabo do velhaco.

- Perguntei se ele estava feliz com Ata. "Ela me deixa sozinho", disse ele. "Faz a minha comida e cuida dos bebés. Faz o que eu digo. Me dá o que eu espero de uma mulher." "E você nunca tem saudades da Europa? Não sente falta às vezes da luz das ruas de Paris ou de Londres, da companhia dos amigos e de pessoas iguais a você, que &ais-je? De teatros e jornais, do barulho dos ônibus nas ruas pavimentadas?" Ficou calado durante muito tempo. Então respondeu: "Vou ficar aqui até morrer." "Mas nunca se sente aborrecido nem sozinho?", perguntei. Ele riu. "Mon pauvre ami", disse. "É evidente que você não sabe o que é ser um artista."

O Capitão Brunot virou-se para mim com um sorriso afável, e havia um brilho admirável em seus olhos castanhos e bondosos.

- Ele me fez uma injustiça, pois eu também sei o que é ter sonhos.   Tenho minhas visões também.   Sou um artista à minha maneira.

Ficamos todos em silêncio durante algum tempo, e Tiaré pegou em seu bolso enorme alguns cigarros. Deu um para cada um de nós, e fumamos. Finalmente, ela disse:

- Já que cê monsieur está interessado em Strickland por que não o leva pra ver o Dr. Coutras? Ele pode lhe dizer alguma coisa sobre a doença e a morte de Strickland.

- Volontiers - falou o capitão, olhando para mim, Eu agradeci, e ele olhou para o relógio.

- Já passa das 6h. A essa hora podemos encontrá-lo em casa, se quiser ir agora.

Levantei-me sem mais delongas, e pegamos a estrada que levava à casa do médico. Ele morava fora da cidade, mas o Hotel de Ia Fleur ficava nos limites da mesma e logo chegamos no interior. A estrada ampla era cercada de pimenteiras, e de cada lado havia plantações de coco e baumlha. Pássaros guinchavam por entre as folhas das palmeiras. Chegamos a uma ponte de pedra sobre um rio raso e paramos por alguns minutos para ver os garotos nativos tomando banho. Brincavam de pegar aos gritos e risadas, e seus corpos morenos e molhados, brilhavam à luz do sol.

 

Ao caminhar, refletia numa circunstância que, com tudo o que eu ouvira ultimamente a respeito de Strickland, me chamava atenção. Aqui, nessa ilha remota, ele parecia ter inspirado não o desprezo que inspirara em sua terra mas compaixão; e suas excentricidades eram aceitas com tolerância. Para essas pessoas, nativos e europeus, ele era um sujeito estranho, mas estavam habituadas a sujeitos estranhos, e o aceitavam normalmente; o mundo possuía muitas pessoas estranhas, que faziam coisas estranhas; e talvez soubessem que um homem não é aquilo que deseja ser, mas aquilo que deve ser. Na Inglaterra e na França, ele era um peixe fora dlágua, mas aqui havia pessoas de todos os tipos, e ninguém ficava fora de seu ambiente. Não creio que ele fosse melhor aqui, menos egoísta ou menos cruel, mas as circunstâncias eram mais favoráveis. Se tivesse passado a vida nesse ambiente, poderia ter passado por um homem como outro qualquer. Recebia aqui o que não esperava nem desejava de sua própria gente: simpatia.

Tentei dizer ao Capitão Brunot algo da surpresa que isso me causava, e durante algum tempo ele não respondeu .

- Não é estranho que eu, de qualquer maneira, tivesse tido simpatia por ele - disse finalmente - pois, embora talvez nenhum de nós soubesse, almejávamos a mesma coisa.

- O que será que duas pessoas tão diferentes como você e Strickland podiam almejar? - perguntei, sorrindo.

- Beleza.

- Uma categoria ampla - murmurei.

- Você sabe como os homens podem ficar tão obcecados pelo amor que chegam a ficar surdos e cegos a tudo o mais? São tão pouco donos de si mesmos quanto os escravos acorrentados aos bancos de uma galera. A paixão que escravizava Strickland não era menos tirânica que o amor.

- Que estranho você dizer isso! - respondi. - Pois há muito tempo atrás eu tive a impressão de que elestava possuído pelo demónio.

- E a paixão que escravizava Strickland era uma paixão por criar beleza. Ela não lhe dava paz. Levava-o de um lado pra outro. Era eternamente um peregrino, assombrado por uma nostalgia divina, e o demónio que tinha dentro de si era implacável. Existem homens cuja ânsia pela verdade é tamanha que para alcançá-la destroem todas as bases de seu mundo. Strickland era assim, só que com ele a beleza ficava no lugar da verdade. Só podia sentir uma profunda compaixão por ele.

- Isso também é estranho. Um homem a quem ele fez muito mal disse-me que sentia uma grande piedade dele. - Fiquei calado por um momento. - Pergunto-me se você não encontrou aí a explicação de uma personalidade que sempre me pareceu inexplicável. Como chegou a essa conclusão?

Ele virou-se para mim com um sorisso.

- Eu não falei que também sou um artista à minha maneira? Percebi em mim o mesmo desejo que havia nele. Mas enquanto o meio de expressão dele foi a pintura, o meu foi a vida.

Então o Capitão Brunot contou-me uma história que devo repetir, uma vez que, mesmo que seja por meio de um contraste, acrescenta algo à impressão que tenho de Strickland. Para minha memória tem também uma grande beleza.

O Capitão Brunot era bretão e fora da Marinha francesa. Deixou-a quando se casou, e se estabeleceu numa pequena propriedade perto de Quimper para viver o resto de seus dias em paz; mas o fracasso de um advogado deixou-o de repente na miséria, e nem ele nem a mulher estavam dispostos a viver na penúria onde tinham gozado de consideração. Durante a época em que vivera em navio, ele passara pelos mares do sul, e resolveu então procurar fortuna por lá. Passou alguns meses em Papeete para fazer planos e adquirir experiência; então, com o dinheiro emprestado de um amigo da França, comprou uma ilha no Paumotus. Era um anel de terra em torno de uma lagoa funda, desabitado, e cheio de arbustos e goiabeiras silvestres. com a mulher corajosa que tinha e alguns nativos, ele se estabeleceu ali e começou a construir uma casa e a derrubar os arbustos para limpar o lugar e plantar coqueiros. Isso foi há 20 anos, e agora o que fora uma ilha estéril era um jardim.

- No começo foi um trabalho difícil e extenuante, e trabalhamos duramente, nós dois. Todos os dias eu acordava de madrugada, limpava, plantava, trabalhava na casa, e à noite, quando me jogava na cama, dormia como uma pedra até de manhã. Minha mulher trabalhou tanto quanto eu. Então tivemos dois filhos, primeiro um menino, depois uma menina. Nós lhes ensinamos tudo que sabíamos. Trouxemos um piano da França, e ela ensinou-os a tocar e a falar inglês, e eu ensinei latim e matemática, e líamos história juntos. Eles sabem dirigir um barco. Sabem nadar tão bem quanto os nativos. Conhecem tudo a respeito da terra. Nossas árvores se desenvolveram, e existem ostras no meu recife. Vim ao Taiti agora pra comprar uma escuna. Posso conseguir ostras suficientes que compensem o trabalho de pescá-las, e, quem sabe, talvez encontre pérolas. Transformei um lugar que não valia nada num lugar fértil. Também criei beleza. Ah, você não sabe o que é olhar pra todas aquelas árvores altas e cheias de frutos e pensar que plantei cada uma delas.

- Posso lhe perguntar a mesma coisa que você perguntou a Strickland? Nunca sentiu saudades da França nem de sua casa na Bretanha?

- Algum dia, quando minha filha estiver casada e meu filho tiver sua mulher e for capaz de tomar o meu lugar na ilha, nós vamos voltar e terminar os nossos dias na velha casa em que nasci.

- Vai poder se lembrar de uma vida feliz - disse eu.

- Évidemment, a vida que levamos aqui não é uma vida movimentada, e estamos muito afastados do mundo, mas somos felizes. Imagine que levo quatro dias pra vir ao Taiti. São poucos aqueles que conseguem aquilo que têm em mente. Nossa vida é simples e inocente. Não temos ambição, e o orgulho que sentimos é apenas o de contemplar o trabalho feito com nossas próprias mãos. Somos imunes à malícia e à inveja. Ah, mon cher monsieur, dizem que o trabalho é uma bênção, e é apenas uma frase sem qualquer significado, mas pra mim tem um profundo significado. Sou um homem feliz.

- Tenho certeza que merece ser. - Eu sorri.

- Gostaria de poder pensar assim. Não sei como tive a sorte de ter uma mulher que foi amiga e companheira perfeita, a amante perfeita e a mãe perfeita.

Refleti algum tempo sobre a vida que o capitão me apresentara à imaginação.

- É claro que para levar uma vida assim, e ter tanto sucesso, vocês dois precisaram ter força de vontade e persistência.

- Talvez, mas sem um f ator não teríamos conseguido nada.

- E qual foi?

Ele parou, um tanto dramaticamente, e esticou o braço.

- Fé em Deus. Sem isso estaríamos perdidos. Então chegamos à casa do Dr. Coutras.

 

O Dr. Coutras era um velho francês alto e gordo. Seu corpo tinha o formato de um grande ovo de pato, seus olhos, inteligentes, azuis e bondosos, de vez em quando pousavam com satisfação na enorme barriga. Tinha o rosto corado e cabelos brancos. Era um homem que imediatamente inspirava simpatia. Recebeu-nos numa sala que parecia a de uma casa das pequenas cidades da França, e os únicos objetos polinésios que havia ali pareciam estranhos. Pegou minha mão entre as dele - eram grandes - e me olhou com simpatia: reparei que seu olhar era um olhar inteligente. Quando apertou a mão do Capitão Brunot, perguntou cortesmente por Madame et lês enfants. Durante alguns minutos houve uma troca de gentilezas, e falou-se sobre coisas do lugar, as perspectivas de copra e a safra de baumlha; então chegamos à finalidade de minha visita.

Não Vou dizer o que o Dr. Coutras contou com as palavras dele, mas com as minhas, pois não tenho a pretensão de dar em segunda mão a impressão de seu modo de falar animado. Sua voz era grave e ressonante, adequada a seu tamanho, e ele possuía um senso aguçado do dramático. Ouvi-lo era, como dizem, semelhante a assistir a uma peça dramática, e muito melhor do que ver a maioria delas.

O Dr. Coutras foi um dia a Taravao para ver uma velha nativa que estava doente, e ele descreveu vividamente a senhora gorda, deitada numa grande cama, fumando cigarros e cercada de vários nativos. Depois de vê-la, foi levado a um outro aposento e serviram-lhe um jantar: peixe cru, bananas fritas e frango - que sais-je? o jantar típico do indigène - e, enquanto comia, viu uma jovem ser levada para fora em prantos. Não ligou para o caso, mas quando saiu para pegar a carroça e ir para casa, viu-a novamente, de pé, um pouco afastada dali; olhou-o com ar triste, e as lágrimas correram-lhe pelo rosto. Ele perguntou a alguém o que havia de errado, e soube que ela viera do alto do morro para pedir-lhe que visitasse um homem branco que estava doente. Eles tinham lhe dito que o médico não podia ser incomodado. Ele a chamou e perguntou pessoalmente o que queria. Ela falou que Ata a enviara, a que morava no Hotel de Ia Fleur, e que o homem de barba vermelha estava doente. Ela jogou em suas mãos um pedaço de jornal amassado, e quando ele o abriu, encontrou uma nota de 100 francos.

- Quem é o homem de barba vermelha? - ele perguntou a um dos nativos que estavam por ali.

Disseram-lhe que era assim que chamavam o inglês, um pintor, que vivia com Ata no vale no alto do morro, a

7 km dali. Ele reconheceu Strickland pela descrição. Mas era necessário andar. Ele não podia ir, era por isso que tinham mandado a moça embora.

- Confesso - disse o médico, virando-se para mim - que hesitei. Não me agradava a ideia de andar 14 km por uma estrada ruim, e não havia possibilidade de poder voltar para Papeete naquela noite. Além disso, não simpatizava com Strickland. Era um malandro inútil, que preferia viver com uma nativa a trabalhar para viver conosco. Mon Dieu, como podia saber que um dia o mundo chegaria à conclusão de que era um génio? Perguntei à moça se ele não estava em condições de descer o morro para me ver. Perguntei o que ela achava que ele tinha. Ela não respondia. Insisti, um pouco zangado talvez, mas ela olhou pró chão e começou a chorar. Então sacudi os ombros, afinal de contas, talvez fosse meu dever ir e, de mau humor, disse pra me mostrar o caminho.

Seu humor certamente não tinha memorado quando ele chegou, transpirando muito e sedento. Ata estava à sua espera e veio ao seu encontro.

- Antes de ver qualquer pessoa me dê algo pra beber ou Vou morrer de sede - gritou ele. - Pour Vamour dei Dieu, me dê um coco.

Ela chamou um garoto, que veio correndo, trepou num coqueiro e jogou um fruto maduro lá de cima. Ata fez um furo no coco, e o médico tomou um grande gole refrescante. Então enrolou um cigarro e se sentiu melhor.

- Bem, onde está ele? - perguntou.

- Está dentro da casa, pintando. Não lhe disse que o senhor vinha. Pode entrar e vê-lo.

- Mas do quê que ele reclama? Se está bem o suficiente pra pintar, tinha condições de descer a Tavaro e me poupar essa terrível caminhada. Acho que o meu tempo é tão precioso quanto o dele.

Ata não disse nada, mas seguiu-o até a casa com o garoto. A moça que o trouxera estava sentada agora na varanda, e ali havia também uma velha, encostada na parede e fazendo cigarros nativos. Ata apontou para a porta. O médico irritado por não saber por que se comportavam de maneira tão estranha, entrou e encontrou Strickland limpando sua paleta. Havia um quadro no cavalete. Strickland, usando apenas um páreo, estava em pé de costas para a porta, mas se virou quando ouviu o barulho de botas. Olhou para o médico, irritado. Surpreso ao vê-lo, não gostou da intromissão. Mas o médico engoliu seco, ficou preso ao chão e olhava-o perplexo. Não esperava isso. Estava horrorizado

- O senhor vai entrando assim sem-cerimônia disse Strickland. - O que posso fazer pelo senhor?

O médico voltou a si, mas teve que fazer um grande esforço para falar. Sua irritação desaparecera e sentia eh bien, oui, je ne lê me pás - uma enorme piedade.

- Sou o Dr. Coutras. Fui a Taravao pra ver a chefe nativa, e Ata mandou chamar-me pra vê-lo.

- Ela é uma tola. Tive algumas dores ultimamente e um pouco de febre, mas isso não é nada, vai passar. Da próxima vez que alguém fosse a Papeete eu ia pedir que trouxessem quinino.

- Dê uma olhada em você no espelho. Strickland olhou para ele, sorriu e foi até um espelho

barato com uma pequena moldura de madeira que ficava pendurado na parede.

- E daí?

- Não está vendo uma mudança em seu rosto? Não vê que está com as feições inchadas e tem uma aparência, como posso descrevê-la, os livros chamam cara de leão. Mora pauvre ami, devo dizer-lhe que está com uma doença horrível.

- Eu?

- Quando você se olha no espelho vê a aparência típica do leproso.

- O senhor está brincando - disse Strickland,

- Gostaria que estivesse.

- Está querendo me dizer que estou com lepra?

- Infelizmente, não há dúvida quanto a isso.

O Dr. Coutras já dera a sentença de morte a vários homens, e nunca conseguiu superar o horror que isso lhe causava. Sentia sempre o ódio violento que deve se apossar de um homem condenado quando se compara ao médico, saudável e cheio de vida, dono do inestimável privilégio da vida. Strickland olhou para ele em silêncio. Seu rosto não deixava transparecer emoção, já desfigurado pela horrível doença.

- Eles sabem? - ele perguntou finalmente, apontando para as pessoas da varanda, que agora sentadas faziam um silêncio anormal.

- Esses nativos conhecem bem os sinais - disse o médico. - Estavam com medo de dizer a você.

Strickland foi até a porta e olhou para fora. Devia haver algo terrível em seu rosto, pois de repente todos desataram a chorar e a se lamentar. Levantavam as vozes e soluçavam. Strickland não disse nada. Depois de olhálos por um momento, voltou para dentro.

- Quanto tempo acha que Vou durar?

- Quem sabe? Às vezes a doença dura 20 anos. Ê uma felicidade quando mata a pessoa logo.

Strickland foi até o cavalete e olhou pensativo para o quadro que estava sobre ele.

- O senhor teve uma longa viagem. É natural que alguém que trouxe informações tão importantes seja recompensado. Tome este quadro. Não tem nenhum valor pró senhor agora, mas pode ser que um dia se sinta feliz em possuí-lo.

O Dr. Coutras protestou que não precisava de nenhum pagamento pé1 a viagem; já havia devolvido para Ata a nota de 100 francos, mas Strickland insistiu em que ficasse com o quadro. Então fomos juntos até a varanda As nativas soluçavam violentamente.

- Fique quieta, mulher. Enxugue as lágrimas disse Strickland, dirigindo-se a Ata. - Não há problema. Vou deixar você logo.

- Eles não vão levar você embora? - gritou ela. Naquele tempo não havia um isolamento rígido nas

ilhas, e os leprosos, se quisessem, podiam ficar soltos.

- Vou pró alto da montanha - revelou Strickland. Então Ata levantou-se e fitou-o.

- Os outros podem ir embora se quiserem, mas eu não Vou deixar você. Você é meu homem e sou sua mulher. Se você me deixar, eu me enforco na árvore que fitía atrás de casa. Juro por Deus.

Havia muita energia no seu modo de falar. Não era mais a moça nativa, dócil e submissa, mas uma mulher determinada. Tinha se transformado de maneira extraordinária .

- Por que você há de ficar comigo? Pode voltar pra Papeete, e logo vai encontrar outro homem branco. A velha pode tomar conta de suas crianças, e Tiaré ficará feliz de ter você de volta.

- Você é meu homem e sou sua mulher. Aonde você for, eu Vou.

Durante um momento, Strickland ficou abalado. Em cada olho seu apareceu uma lágrima, que rolaram por seu rosto. Então ele deu aquele sorriso sardónico que lhe era peculiar.

- As mulheres são estranhas como bestas - disse ao Dr. Coutras. - Pode-se tratá-las como cachorros, pode-se espancá-las até ficar com o braço doendo, e mesmo assim elas nos amam. - Deu de ombros. - É evidente que uma das ilusões mais absurdas do cristianismo é a de que as mulheres têm alma.

- O que você está dizendo pró doutor? - perguntou Ata, desconfiada. - Você não vai, vai?

- Se isso lhe agrada eu fico, pobre criança.

Ata jogou-se de joelhos à sua frente, abraçou suas pernas e beijou-as. Strickland olhou para o Dr. Coutras com um ligeiro sorriso.

- No fim elas nos pegam, e ficamos impotentes em suas mãos. Brancas ou escuras, são todas iguais.

O Dr. Coutras pensou ser absurdo dizer palavras de consolo numa situação tão terrível, e decidiu ir embora. Strickland disse a Tané, o garoto, para levá-lo até a cidade. O Dr. Coutras fez uma pequena pausa, e então dirigiu-se a mim:

- Eu não gostava dele. Disse ao senhor que não simpatizava com ele, mas ao voltar lentamente pra Taravao, não pude deixar de sentir admiração pela coragem estóica que o fazia suportar talvez a pior das aflições humanas. Quando Tané me deixou, falei que ia mandar um remédio que podia ser útil, mas não tinha esperança de Strickland concordar em toma-lo, e menos ainda que, se o fizesse, o remédio lhe proporcionasse algum bem. Dei ao garoto o recado para Ata de que viria sempre que ela me chamasse. A vida é dura, e a Natureza às vezes se regozija em torturar seus filhos. Foi com o coração apertado que voltei pra minha casa confortável em Papeete.

Durante muito tempo nenhum de nós disse nada.

- Mas Ata não mandou me chamar - continuou o médico, finalmente - e eu não tive oportumdade de ir para   aqueles lados   da ilha por muito tempo.   Não tive notícias de Strickland. Uma ou duas vezes, soube que Ata tinha estado em Papeete pra comprar material de pintura, mas não a vi. Passaram-se mais de dois anos antes que eu fosse a Taravao novamente, e foi pra ver a velha chefe mais uma vez. Perguntei se haviam ouvido alguma coisa sobre Strickland. A essa altura, todos sabiam que ele estava com lepra. Tané, o garoto, deixara a casa em primeiro lugar, e depois saíram a velha e a neta. Strickland e Ata ficaram sozinhos com seus bebés. Ninguém chegava perto da plantação, pois, como você sabe, os nativos têm horror da doença, e antigamente, quando era descoberta, matavam o doente; mas às vezes, quando os garotos da cidade brincavam pelos morros, viam o homem branco, com sua grande barba vermelha, perambulando. Fugiam aterrorizados. Às vezes Ata vinha até a cidade à noite e acordava o comerciante, pra comprar várias coisas que precisava. Sabia que os nativos tinham por ela a mesma aversão que sentiam por Strickland, e não aparecia na frente deles. Uma vez umas mulheres, que chegaram mais perto da plantação do que de costume, viram-na lavando roupas no riacho, e jogaram-lhe pedras em cima. Depois disso mandaram o comerciante lhe dizer que se usasse o riacho novamente os homens iriam até lá e queimariam a casa.

- Que raça bárbara - disse eu.

- Mais non, mon cher monstcur, os homens são sempre os mesmos. O medo os torna cruéis.... Resolvi ir ver Strickland, e quando acabei de ver a chefe pedi que um garoto me mostrasse o caminho. Mas ninguém quis ir, e fui obrigado a encontrá-lo sozinho.

Quando o Dr. Coutras chegou à plantação, sentiu uma certa inquietação. Embora estivesse sentindo calor com a caminhada, estremeceu. Havia algo hostil no ar que o fez hesitar, e sentiu forças invisíveis barrando seu caminho. Mãos invisíveis pareciam segurá-lo. Ninguém chegava perto agora para apanhar cocos, e eles apodreciam no chão. Em toda parte havia desolação. O mato estava crescendo, e parecia que muito em breve a extinta floresta retomaria aquela faixa da terra, desmatada à custa de tanto trabalho. Teve a sensação de que aqui era o lugar onde vivia a dor. Ao aproximar-se da casa, surpreendeu-se com o silêncio sinistro, e a princípio pensou que o lugar estava deserto. Então viu Ata, sentada no chão, no alpendre que lhe servia de cozinha, cozinhando alguma coisa numa panela. Perto dela, um garoto pequeno brincava silenciosamente na lama. Ela não sorriu quando o viu.

- Vim ver Strickland - ele falou.

- Vou avisá-lo.  

Foi até a casa, subiu os degraus que levavam a varanda e entrou. O Dr. Coutras seguiu-a, mas esperou do lado de fora como ela pediu. Quando ela abriu a porta, ele sentiu o cheiro doce, desagradável, que torna nauseante o contato com o leproso. Ouvia-a falar, e então a resposta de Strickland, mas não reconheceu a voz. Tornara-se rouca e indistinta. O Dr. Coutras levantou as sobrancelhas. Imaginou que a doença já tinha afetado as cordas vocais. Então Ata saiu novamente.

- Ele não quer vê-lo. O senhor deve ir embora.

O Dr. Coutras insistiu, porém ela não o deixava passar. Ele deu de ombros, e depois de refletir por um momento, virou-se. Ela caminhou a seu lado. Ele sentiu que também ela queria se ver livre dele.

- Não há nada que eu possa fazer? - perguntou.

- O senhor pode mandar algumas tintas - ela falou.

- É só isso que ele deseja.

- Ainda pode pintar?

- Ele está pintando as paredes da casa.

- É uma vida terrível pra você, minha pobre criança.

Então finalmente ela sorriu, e havia em seus olhos um sobre-humano olhar de amor. O Dr. Coutras ficou assustado com isso, e perplexo. E estava horrorizado. Não sabia o que dizer.

- Ele é o meu homem - disse ela.

- Onde está seu outro filho? - perguntou ele. Quando vim aqui da última vez, você possuía dois filhos.

- É, ele morreu. Nós o enterramos debaixo da mangueira .

Depois de acompanhá-lo por algum tempo, ela comentou que precisava voltar. ODr. Coutras percebeu-lhe o medo em ir mais longe, pois poderia encontrar alguma pessoa da cidade. Ele novamente lhe disse que se precisasse dele, era só chamá-lo, que viria imediatamente.

 

Então mais dois anos se passaram ou talvez três, pois o tempo no Taiti passa imperceptivelmente, e é difícil dar conta dele, mas finalmente o Dr. Coutras recebeu um recado de que Strickland estava morrendo. Ata escorou o carro que levava o correio para Papeete, implorou ao homem que o dirigia para chamar o médico imediatamente. Mas o médico estava fora quando o homem chegou, e só recebeu o recado à noite. Era impossível ir àquela hora, e só na manhã seguinte, logo após o raiar do dia, é que pôde ir. Chegou a Taravao e andou os 7 km que conduziam à casa de Ata pela última vez. O caminho estava coberto de vegetação, demonstrando que durante anos ninguém passara por ali. Não foi fácil achar o caminho. Por vezes, ele teve que caminhar à beira do rio, e outras vezes que passar por entre os arbustos, densos e espinhosos; várias vezes subiu nas rochas para evitar os ninhos de vespas que pendiam das árvores acima de sua cabeça. O silêncio era intenso.

Foi com um suspiro de alívio que finalmente chegou à casinha sem pintura, agora maltratada; mas aqui também o silêncio era intolerável. Ele subiu os degraus; um garotinho que brincava despreocupadamente ao sol assustou-se com sua chegada e saiu correndo dali: para ele, o estranho era o inimigo. O Dr. Coutras teve a sensação de que a criança o observava furtivamente por detrás de uma árvore. A porta estava aberta. Ele chamou, mas ninguém respondeu. Entrou. O mau cheiro que o assaltou deixou-o terrivelmente nauseado. Pôs o lenço no nariz e fez um esforço para entrar. A luz era fraca, e depois do brilho do sol teve dificuldades por algum tempo para enxergar. Então teve um sobressalto. Não podia imaginar onde se encontrava. Parecia ter entrado de repente num mundo mágico. Teve a vaga impressão de uma grande floresta primitiva e de pessoas nuas caminhando sob as árvores. Então viu que havia pinturas nas paredes.

- Mon Dieu, espero que o sol não tenha me afetado - murmurou.

Um leve movimento atraiu sua atenção, e viu Ata deitada no chão, soluçando baixinho.

- Ata - ele chamou. - Ata.

Ela não se movia. Novamente o mau cheiro horrível quase o fez desmaiar, e ele acendeu um charuto. Seus olhos foram-se acostumando à escuridão, e sentiu uma sensação extraordinária ao olhar para as paredes pintadas . Não conhecia nada de pintura, mas havia algo nessas que o afetava extraordinariamente. As paredes estavam cobertas, do chão ao teto, com um desenho estranho e elaborado. Era indescritivelmente maravilhoso e misterioso. Deixava-o sem respiração. Enchia-o de uma emoção que não conseguia compreender ou explicar. Sentia o medo e o êxtase que um homem devia sentir ao assistir ao começo de um mundo. Era espantoso, sensual, ardente; e entretanto tinha algo de horrível também, algo que lhe dava medo. Era o trabalho de um homem que investigara as profundezas da natureza e descobrira segredos belos e atemorizantes. Era o trabalho de um homem que conhecia coisas profanas para o conhecimento do próprio homem. Ali havia algo primitivo e terrível. Não era humano. Trazia à sua mente vagas lembranças de magia negra. Era belo e obsceno.

- Mon Dieu! Isso é genial!

As palavras foram-lhe arrancadas à força, e não sabia que havia falado.

Então deu com a cama de esteiras no canto do quarto, e foi até ela. Viu o objeto horroroso e mutilado que havia sido Strickland. Estava morto. O Dr. Coutras teve que fazer um esforço sobre-humano para inclinar-se sobre aquele horror. Então teve um violento sobressalto, e o terror apossou-se de seu coração, pois sentiu haver alguém atrás de si. Era Ata. Ele não a ouvira levantar-se. Estava em pé junto dele, olhando para o corpo de Strickland como ele,

- Deus meu, meus nervos estão à flor da pele disse ele. - Você quase me mata de susto.

Olhou mais uma vez para o triste ser morto que havia sido um homem, e então deu um passo para trás, consternado .

- Mas ele estava cego.

- Estava; estava cego há quase um ano.

 

Naquele momento fomos interrompidos pela Sr.a Coutras, que estivera fazendo umas visitas. Ela chegou, como um barco navegando a todo vapor, uma criatura chamativa, alta e forte, com um grande busto e a gordura apertada num espartilho. Tinha um nariz aquilino e três queixos. Andava de maneira empertigada. Nem por um instante cedera ao encantamento debilitante dos trópicos, mas, pelo contrário, era mais ativa, mais decidida do que qualquer um num clima temperado conseguiria ser. Era obviamente uma pessoa de conversa fácil, e agora desatara a falar sem parar. Fez a conversa que acabáramos de ter parecer distante e irreal.

Pouco depois o Dr. Coutras virou-se para mim.

- Ainda tenho em meu escritório o quadro que Strickland me deu - disse. - Você gostaria de vê-lo? - com prazer.

Levantamo-nos, e ele me levou pela varanda que cercava a casa. Paramos para olhar as flores que enchiam seu jardim.

- Durante muito tempo não consegui esquecer a extraordinária decoração com que Strickland pintou as paredes de sua casa - falou pensativamente.

Eu também estava pensando nisso. Parecia-me que aí Strickland finalmente conseguira expressar-se por completo. Trabalhando em silêncio, sabendo ser sua última oportumdade, creio que deve ter expressado tudo que sabia da vida e tudo que imaginava. E penso que aí, talvez, ele finalmente tenha encontrado a paz. O demónio que o possuía fora, enfim, exorcizado, e com o término do trabalho, para o qual toda sua vida fora uma preparação dolorosa, veio o descanso para sua alma torturada. Estava pronto para morrer, pois realizara seu objetivo.

- Qual era o tema? - perguntei.

- Não sei ao certo. Era estranho e fantástico. Uma visão dos primórdios do mundo, o Jardim do Éden, com Adão e Eva - que sais-je? - era um hino à beleza da forma humana, masculina e femimna, e o elogio à Natureza, sublime, -indiferente, adorável e cruel. Dava uma sensação horrível da infinidade do espaço e da eternidade do tempo. Como ele pintou as árvores que eu vejo à minha volta todos os dias, os coqueiros, as figueiras, os flamboyants, os abacateiros, desde então vejo-as de maneira diferente, como se houvesse nelas um espírito e um mistério de que estou sempre prestes a me apossar e que sempre me escapam. As cores eram as que conheço, e entretanto eram diferentes. Tinham uma significância própria. Todos aqueles homens e mulheres nus. Pessoas da terra, de cujo barro foram criados, e ao mesmo tempo tinham algo divino. O homem na nudez de seus instintos primitivos, e dava medo, pois era como se estivéssemos vendo a nós mesmos.

O Dr. Coutras sacudiu os ombros e sorriu.

- Você vai achar graça. Sou materialista, e um homem gordo e corpulento - Falstaff, hein? - o estilo lírico não combina comigo. Torno-me ridículo. Mas nunca vi uma pintura que me deixasse uma impressão tão profunda. Tenez, tive a mesma sensação quando fui à Capela Sistina em Roma. Lá também fiquei maravilhado com a grandeza do homem que pintou aquele teto. Era genial, estupendo e extasiante. Senti-me pequeno e insignificante . Mas para a grandeza de Miguelângelo estamos preparados. Nada me havia preparado para a enorme surpresa dessas pinturas numa cabana nativa, distante da civilização, num recôncavo da montanha acima de Taravao. E Miguelângelo é saudável. Suas grandes obras têm a calma do sublime; mas aqui, apesar da beleza, havia algo inquietante. Não sei o que era. Deixou-me pouco à vontade. Deu-me a impressão que se tem quando se está sentado ao lado de um quarto que sabemos estar vazio, mas no qual, não sei por quê, sente-se que, apesar de tudo, existe alguém. Nós nos censuramos, sabemos que são apenas os nervos, e entretanto, e entretanto... Em pouco tempo é impossível resistir ao terror que se apossa de nós, e ficamos impotentes nas garras de um medo invisível. É, confesso que não fiquei muito triste quando soube que aquela obra-prima fora destruída.

- Destruída? - gritei.

- Mais oui; não sabia?

- Como podia saber? É verdade que nunca tinha ouvido falar desse trabalho, mas pensei que talvez tivesse se tornado propriedade particular. Mesmo agora não se tem uma lista certa das pinturas de Strickland.

- Quando ele ficou cego, sentava-se hora após hora naqueles dois quartos que pintara, olhando pra seu trabalho com olhos sem visão, e enxergando, talvez, melhor do que jamais havia enxergado em toda sua vida. Ata me falou que ele nunca reclamou de seu destino, nunca perdeu a coragem. No fim, sua mente estava serena e despreocupada. Mas ele a fez prometer que quando ela o enterrasse - eu lhe disse que fiz sua cova com minhas próprias mãos, porque nenhum dos nativos queria se aproximar da casa infecta, e nós o enterramos, ela e eu, enrolado em três páreos costurados, sob a mangueira? - ele a fez prometer que ela poria fogo na casa e não a deixaria enquanto não estivesse completamente destruída.

Eu não falei nada durante algum tempo, pois estava pensando. Então disse:

- Ele continuou sendo o mesmo até o fim, pelo visto.

- Você compreende? Achei que era meu dever dissuadi-la disso.

- Mesmo depois do que acabou de dizer?

- É; pois eu sabia que aqui estava o trabalho de um génio e achava que não tínhamos o direito de privar o mundo disso. Mas Ata não quis me ouvir. Tinha prometido. Não fiquei para presenciar aquele feito bárbaro, e só depois fiquei sabendo que ela havia queimado tudo. Pôs parafina no chão seco e nas redes de pandano, e então ateou fogo. Em pouco tempo nada sobrou a não ser cinzas, e uma grande obra-prima foi destruída.

- Acho que Strickland sabia que era uma obra-prima . Conseguiu o que queria. Sua vida estava completa. Criou um mundo e viu que era bom. Então, por orgulho e desprezo, destruiu-o.

- Mas deixe-me mostrar-lhe meu quadro - disse o Dr. Coutras, continuando a caminhar.

- O que aconteceu a Ata e seu filho?

- Foram pras Ilhas Marquesas. Ela possuía parentes lá. Soube que o menino trabalha numa das escunas de Cameron. Dizem que se parece muito com o pai.

Na porta que dava para o consultório, ele parou e sorriu.

- É um quadro sobre frutas. Você talvez não ache muito adequado para o consultório de um médico, mas minha mulher não me deixou colocá-lo na sala de estar. Ela diz que o quadro é obsceno.

- Um quadro sobre frutas! - exclamei surpreso. Entramos no consultório, e imediatamente vi o quadro. Observei-o durante muito tempo.

Era uma pilha de mangas, bananas, laranjas e não sei o que mais; e à primeira vista era um quadro bastante inocente. Teria passado, numa exposição de pós-impressionistas, por um exemplar muito bom, mas não marcante, aos olhos de uma pessoa desatenta; mas talvez depois o quadro voltasse à sua lembrança, e ela ficasse intrigada. Penso que então não conseguiria mais esquecê-lo.

As cores eram tão estranhas que é difícil explicar com palavras a emoção inquietante que transmitiam. Havia tons de azul-claro, opacos como uma bacia delicadamente esculpida em lápis-lazúli, e entretanto com um brilho trémulo que sugeria a palpitação de uma vida misteriosa; havia tons de púrpura, horríveis como carne crua e pútrida, e entretanto com uma paixão sensual que trazia vagas lembranças do Império Romano de Heliogábalo; havia tons de vermelho, penetrantes como os frutos de azevim - lembravam o Natal na Inglaterra, a neve, os votos de felicidade, o prazer das crianças - e entretanto suavizados por algum feitiço de forma a ficarem delicados como um peito de pomba; havia tons de amarelo forte que se desmanchavam com uma paixão anormal num verde tão perfumado quanto a primavera e tão puro quanto a água borbulhante de um riacho de uma montanha. Quem pode dizer que imaginação angustiada criou esses frutos? Pertenciam a um jardim polinésio de Hespérides. Havia neles algo estranhamente vivo, como se tivessem sido criados num estágio obscuro da história da terra, quando as coisas não estavam permanentemente determinadas em suas formas. Eram extravagantemente luxuriantes. Fortes, com odores tropicais. Pareciam possuir uma paixão sombria própria. Eram frutos encantados, que ao serem provados abririam o portão para segredos da alma e misteriosos palácios da imaginação. Eram sombrios, cheios de perigos inesperados, e comêfos poderia transformar um homem num animal ou num deus. Tudo que era saudável e natural, tudo que se relacionasse à felicidade e às alegrias puras dos homens, afastava-se deles desalentadoramente; e no entanto exerciam uma atração atemorizante, e como o fruto da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal, eram terríveis ante as possibilidades do Desconhecido.

Finalmente eu me virei. Sentia que Strickland tinha levado seu segredo para o túmulo.

- Voyons, René, mon ami - chegou até nós a voz alta de Madame Coutras - o que estão fazendo aí todo esse tempo? Aqui estão os apéritifs. Pergunte ao Monsieur se ele não quer tomar um copo de Quinquina Dubonnet.

- Voíoníiers, Madame - disse eu, indo para a varanda.

O encantamento fora quebrado.

Chegou o dia de partir do Taiti. De acordo com o costume da ilha, recebi presentes das pessoas com quem estivera em contato: cestas feitas de rolhas de coqueiro, esteiras de pandano, ventarolas; e Tiaré me deu três pequenas pérolas e três potes de geléia de goiaba feita por ela. Quando o navio, que parara por 24 horas na sua rota de Wellington a São Francisco, apitou para avisar os passageiros que subissem a bordo, Tiaré apertou-me de encontro a seu vasto peito, senti-me mergulhar num mar encape^do. Beijou-me na boca. Seus olhos estavam úmidos de lágrimas. E quando nos afastamos lentamente da lagoa, passando cautelosamente pela abertura dos recifes, dirigindo-nos para o mar aberto, uma certa melancolia abateu-se sobre mim. A brisa ainda tinha os aromas agradáveis da terra. O Taiti é muito distante, e eu sabia que nunca mais veria a ilha. Estava encerrado um capítulo da minha vida, e sentia-me mais próximo da morte inevitável.

Cheguei em Londres pouco mais de um mês depois, e após resolver certos assuntos mais urgentes, escrevi para a Sr.u Strickland, achando que talvez gostasse de tomar conhecimento do que eu soubera sobre os últimos anos de seu marido. Não a via desde muito antes da guerra, e tive que procurar seu endereço no caderno de telefones. Ela marcou um encontro comigo, e fui visitá-la em sua pequena casa em Campden Hill, onde morava agora. Estava com 60 anos feitos, mas como era bem conservada ninguém lhe daria mais de 50. Seu rosto, fino e pouco enrugado, era do tipo que envelhece graciosamente, fazendo-nos pensar que na juventude fora uma mulher mais bonita do que realmente o fora. Seu cabelo, não muito grisalho ainda, estava bem penteado, e o vestido preto era elegante. Lembrava-me de ter ouvido dizer que sua irmã, a Sr.a MacAndrew, que vivera apenas mais dois anos que o marido, deixara dinheiro para a Sr.a Strickland; e pela aparência da casa e da empregada bem uniformizada que abriu a porta, achei que ela recebera uma herança suficiente para viver confortavelmente.

Quando fui levado até a sala de estar, vi que a Sr.a Strickland tinha uma outra visita, e quando descobri de quem se tratava, adivinhei que havia sido convidado, propositadamente, para vir à mesma hora que ele. O visitante era o Sr. Van Busche Taylor, um americano, e a Sr.a Strickland apresentou-me com um encantador sorriso de desculpas para ele.

- O senhor sabe, nós ingleses somos terrivelmente mal-informados. Deve me perdoar se é necessário explicar. - Então virou-se para mim. - O Sr. Van Busche Taylor é o famoso crítico americano. Se você não leu o seu livro, sua cultura foi muito negligenciada, deve reparar o erro imediatamente. Ele está escrevendo algo sobre o meu querido Charlie, e veio até aqui pra pedir-me que eu o ajude.

O Sr. Van Busche Taylor era um homem muito magro, com uma grande cabeça, calva e brilhante; e sob a grande abóbada de seu crânio, seu rosto, amarelo, muito enrugado, parecia muito pequeno. Era um homem calado e muito educado. Falava com o sotaque da Nova Inglaterra, e seu comportamento era de uma tal frieza que eu me perguntava a razão de estar .interessado em Charles Strickland. O carinho com que a Sr.a Strickland mencionou o nome do marido divertiu-me ligeiramente, e enquanto os dois conversavam, reparei na sala em que estávamos. A Sr.a Strickland tinha-se modificado de acordo com a época. Em sua sala já não havia mais os papéis Morris e as forrações de cretone sóbrio, nem as estampas Arundel que adornavam as paredes de sua outra sala de estar em Ashley Gardens; esta brilhava com cores fantásticas, e perguntava-me se ela saberia que esses tons variados, que a moda lhe impusera, deviam-se aos sonhos de um pobre pintor de uma ilha dos mares do sul. Ela mesma respondeu à minha pergunta.

- Que belas almofadas a senhora tem - disse o Sr. Van Busche Taylor.

- O senhor gosta? - ela perguntou, sorrindo. São de Bakst, o designer russo.

E nas paredes havia reproduções coloridas de vários dos melhores quadros de Strickland, graças ao trabalho de um editor de BerMm.

- Você está admirando meus quadros - disse ela, seguindo meus olhos. - É claro que os originais estão fora de meu alcance, mas é um consolo ter estes comigo. O editor os enviou. São um conforto pra mim.

- Deve ser muito agradável conviver com eles o Sr. Van Busche Taylor comentou.

- È, são tão decorativos.

- Esta é uma das minhas convicções mais profundas

- disse o Sr. Van Busche Taylor. - A verdadeira arte é sempre decorativa.

Seus olhos pousaram numa mulher nua, que amamentava um bebé, enquanto uma mocinha ajoelhada ao lado deles segurava uma flor para a criança indiferente. Olhando para elas, havia uma velha magra e encarquilhada. Era a versão de Strickland da Sagrada Família. Desconfiei disso, pois as figuras do quadro haviam composto seu lar em Taravao, e a mulher e o bebé eram Ata e seu primeiro filho.

Perguntava-me se a Sr.a Strickland teria alguma suspeita dos fatos.

A conversa prosseguiu, e maravilhava-me com o tato com que o Sr. Van Busche Taylor evitava todos os assuntos que pudessem ser embaraçosos, e com engenhosidade com que a Sr.a Strickland, sem dizer uma palavra que não fosse verdadeira, insinuava que suas relações com o marido sempre haviam sido perfeitas. Finalmente o Sr. Van Busche Taylor levantou-se para ir embora. Segurando a mão da dona-de-casa, ele fez um gentil discurso de agradecimento, embora talvez muito pomposo, e nos deixou.

- Espero que ele não o tenha aborrecido - disse ela, quando a porta se fechou atrás dele. - É claro que às vezes é cansativo, mas me sinto no dever de dar as informações que posso sobre Charlie. Ser a mulher de um génio implica uma certa responsabilidade.

Ela me olhou com aqueles seus olhos agradáveis, que continuavam tão cândidos e simpáticos como haviam sido há mais de 20 anos. Perguntava-me se não estava me fazendo de bobo.

- É evidente que a senhora deixou seu negócio afirmei.

- Ah sim - respondeu, despreocupadamente. Era mais um hobby do que qualquer outra coisa, e meus filhos convenceram-me a passá-lo adiante. Achavam que eu estava me desgastando desnecessariamente.

Percebi que a Sr.a Strickland se esquecera de que algum dia fizera algo tão desagradável como trabalhar para viver. Tinha a convicção de que só é decente para uma mulher viver do dinheiro de outras pessoas.

- Eles estão aqui agora - disse ela. - Achei que gostariam de ouvir o que você teria a dizer sobre seu pai.

Você se lembra de Robert, não? Estou orgulhosa de dizer que ele foi recomendado para a Cruz Militar.

Ela foi até a porta e chamou-os. Apareceu na sala um homem alto de roupa caqui, com colarinho de pastor, atraente de certa forma, mas com os mesmos olhos francos que tinha quando menino. A irmã veio em seguida. Devia estar com a mesma idade que a mãe tinha quando a conheci, e era muito parecida com ela. Também dava a impressão de que devia ter sido mais bonita em menina do que realmente o fora.

- Creio que não se lembra nem um pouco deles disse a Sr.a Strickland, orgulhosa e sorridente. - Minha filha agora é a Sr.a Ronaldson. O marido dela é major.

- Ele está se preparando pra ser um verdadeiro soldado - falou a Sr.a Ronaldson alegremente. - É por isso que é apenas major.

Lembrava-me de minha antiga intuição de que ela se casaria com um soldado. Era inevitável. Tinha todo o jeito da mulher de um militar. Educada e afável, porém não conseguia esconder a convicção íntima de que não era como as outras. Robert estava alegre.

- Foi muita sorte eu estar em Londres justamente quando o senhor chegou - ele disse. - Só tenho três dias de licença.

- Ele está louco pra voltar - acrescentou a mãe.

- Bem, não me importo de confessar, gosto muito de ficar no front. Fiz vários amigos. É uma vida de primeira classe. É claro que a guerra é terrível e tudo o mais, mas ela traz à tona as melhores qualidades do homem, ninguém pode negar.

Então lhes contei o que soubera sobre Charles Strickland no Taiti. Achei desnecessário dizer alguma coisa sobre Ata e o menino, mas em relação ao resto fui o mais preciso que pude. Depois de narrar sua morte lamentável, parei de falar. Por um ou dois minutos ficamos todos em silêncio. Então Robert Strickland riscou um fósforo e acendeu um cigarro.

- Os moinhos de Deus moem lentamente, mas deixam os grãos bem moídos - disse ele, um tanto comoventemente.

A Sr.a Strickland e a Sr.a Ronaldson baixaram os olhos com uma expressão ligeiramente piedosa, indicando, tive certeza, que achavam ser a citação da Sagrada Escritura . De fato, eu pensava que Robert Strickland também possuía tal impressão. Não sei por que de repente pensei no filho que Strickland tivera com Ata. Disseram-me que ele era um jovem alegre e jovial. Eu o imaginei, na escuna em que trabalhava, com apenas um par de calças de algodão; e à noite, quando o barco navegava calmamente com uma leve brisa, e os marinheiros se reuniam no convés, enquanto o capitão e o comissário de bordo refestelavam-se em cadeiras no convés, fumando seus cachimbos, vi-o dançando com outro jovem, dançando animadamente, ao som da música ruidosa da sanfona. Acima, o céu azul e as estrelas, e por toda volta o deserto do Oceano Pacífico.

Veio-me à cabeça uma citação da Bíblia, mas contive-me, pois sei que os padres consideram uma blasfémia os leigos invadirem seus domínios. Meu tio Henry, vigário de Whitstable durante 27 anos, nessas ocasiões costumava dizer que o demónio podia citar as escrituras no seu interesse. Ele lembrava os dias em que se podia obter 13 nativos reais por um shilling. 

 

                                                                  William Somerset Maugham

 

 

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