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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM LONGO ENTARDECER / Sandra Brown
UM LONGO ENTARDECER / Sandra Brown

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

Lydia e Ross se dirigiam ao Texas em uma caravana. O destino escolheu um modo peculiar de reuni-los: ela acaba de dar à luz uma criança natimorta, ele, o pai de um recém-nascido, que perdeu sua esposa no parto. Os colonos se dirigiam a Far West, cuja única lei é a sobrevivência, a solução é óbvia, então Lydia primeiro se converte na mãe menino e, em seguida, inevitavelmente, esposa de Ross. Surge entre eles um amor ardente, mas quando a felicidade parece estar ao alcance das mãos, o passado invade suas vidas de encontro às suas esperanças.

 

 

 

 

«Por que quis Deus que morrer fosse tão doloroso?», perguntou-se a jovem.

 

Segurou abdômen distendido quando outra descarga de dor percorreu a parte inferior de seu torso e se propagou às coxas. Quando passou, a moça ofegava trabalhosamente, como um animal ferido que tentava reunir forças para o seguinte ataque, que sabia que ocorreria dentro de poucos minutos. Seria assim, sem dúvida, pois não acreditava que a deixassem morrer antes que o menino nascesse.

 

Estremeceu-se convulsivamente. A chuva era fria, cada gota um diminuto alfinete que aguilhoava sua pele, e tinha empapado o vestido puído e os poucos objetos interiores que tinha conseguido sujeitar com nós desajeitados. Os farrapos se pegavam a ela como um sudário úmido, um desagradável peso que a ancorava ao terreno pantanoso com tanta força como aquela implacável dor. Estava gelada até os ossos, mas o suor cobria sua pele depois das intermináveis horas de parto.

 

Quando tinha começado? A noite anterior, pouco depois do ocaso. Ao longo da noite a dor na parte inferior de suas costas se intensificou e se estendeu até lhe rodear a cintura e lhe retorcer o útero entre seus punhos encolerizados. O céu coberto impedia de determinar a hora do dia, mas supôs que seria por meio da manhã.

 

Quando a seguinte contração retorceu suas vísceras, concentrou-se nos desenhos que formavam os ramos das árvores contra o céu cinzento. As nuvens seguiram passando, alheios à mulher de apenas vinte anos que jazia sozinha nos pântanos do Tennessee, dando a luz a um ser no que não queria pensar como um menino, nem sequer como um ser humano.

 

Apoiou a face em seu travesseiro de folhas molhadas e podres, restos do último outono, e deixou que suas lágrimas se mesclassem com a chuva. Seu filho tinha sido concebido com vergonha e humilhação, e não merecia nascer em uma situação mais feliz que aquela.

 

Deixe morrer já, Jesus rogou ao notar outra sacudida abdominal. Como um trovão do verão, a dor retumbou em seu interior e ganhou ímpeto antes de estelar se contra os muros de seu corpo, igual ao trovão parecia se chocar contra as ladeiras das montanhas. A dor se propagou por todo seu corpo, como reverberava o trovão de contraforte em contraforte.

 

A noite anterior tinha tentado fazer caso omisso das dores e tinha continuado caminhando. Ao emanar a água entre suas coxas, viu-se obrigada a se cuidar. Não tinha querido parar. Cada dia significava uns quantos quilômetros mais de distancia entre ela e o cadáver, que as essas alturas já teriam descoberto. Albergava a esperança de que apodrecesse e jamais o encontrassem, mas não confiava em ter tanta sorte.

 

Sem dúvida a dor impiedosa que sofria nesse momento era o castigo de Deus por alegrar-se de que um de seus seres morrera. Por isso, e por não desejar a vida que tinha levado em seu seio durante nove meses. Em que pese a que fosse um pensamento pecaminoso, rezou para não ver nunca a vida que lutava com tanto rancor por ser expulsa de seu corpo. Rezou para morrer antes.

 

A seguinte contração foi a pior e a obrigou a adotar uma posição semi-erguidas. A noite anterior, quando o sangue rosado tinha estragado suas calças, as tinha tirado e jogado a um lado. Naquele instante voltou a agarrá-la e se secou com elas o rosto, empapado de chuva e suor. Tremia de uma forma incontrolável, tanto de dor como de medo. Levantou o bordo desfiado do vestido e os restos das anáguas sobre seus joelhos elevados, baixou uma mão vacilante entre suas pernas e tocou o ponto.

 

OH! Gemeu, e começou a chorar. Estava totalmente aberto. Com as pontas dos dedos havia tocado a cabeça do bebê. Sua mão se apartou, coberta de sangue e limo. Abriu a boca, aterrorizada, mas o som que surgiu foi um uivo agônico enquanto seu corpo se esticava e retorcia, tentando expulsar ao ser que se converteu em algo alheio depois de havê-lo hospedado durante nove meses.

 

Apoiou-se sobre os cotovelos para elevar-se, abriu as pernas e aumentou a pressão. O sangue martelava em seus ouvidos e detrás de seus olhos, que mantinha fechados. Doía-lhe a mandíbula de tanto apertar os dentes; os lábios desenhavam uma máscara horripilante. Durante um breve interlúdio, inspirou e expulsou ar de seus pulmões. Depois a dor voltou. E voltou.

 

Gritou e empregou suas últimas energias em um empurrão final, para concentrar todo o peso de seu corpo naquele estreito lugar que se rasgava.

 

E de repente ficou livre da tortura.

 

Desabou exausta, tragou ar e agradeceu as gotas de chuva que refrescavam seu rosto. Não se ouvia o menor ruído no espesso bosque, salvo sua respiração agitada e o tamborilar insistente da chuva. A ausência de sons era sinistra, surpreendente, estranha. O menino que acabava de nascer não tinha emitido nenhum grito de vida, nem realizado o menor movimento.

 

Desprezou sua anterior oração, esforçou-se por levantar-se de novo e apartou a um lado sua saia. Sons animais de dor e desdita foram aos seus lábios machucados quando viu o bebê, pouco mais que uma bola de carne azul, morto entre suas coxas sem ter conhecido a vida. O cordão que lhe tinha alimentado tinha sido seu instrumento de morte. Estava enrolado ao redor de sua garganta. Tinha o rosto esmagado. Tinha realizado um mergulho suicida no mundo. A moça se perguntou se teria optado por morrer, sabendo por instinto que até sua mãe o desprezaria. Tinha preferido a morte a uma vida de degradação.

  

Ao menos, pequeno, não teve que padecer a vida sussurrou. Estendeu-se de novo sobre o chão esponjoso e contemplou sem vê-lo o céu soluçando. Sabia que tinha febre e talvez delirasse, e que as idéias sobre bebês que se suicidava no útero eram absurdas, mas se sentia melhor se pensava que seu menino não tinha desejado viver mais que ela, que tinha desejado morrer como ela nesse momento.

   Queria pedir perdão por alegrar-se da morte de seu único filho, mas estava muito cansada. Seguro que Deus o compreenderia. Ao fim e ao cabo, tinha sido Ele quem lhe tinha infligido tanto dor. Não merecia descansar um pouco?

   Seus olhos se fecharam para proteger-se da chuva, que caía sobre seu rosto como um bálsamo consolador. Não recordava ter experimentado tanta paz. Deu boas vindas.

Agora já podia morrer.

 

Acredita que está morta? Perguntou a voz rouca do jovem.

Não sei - sussurrou outra voz mais adulta. Move-a.

Move-a você.

   O moço alto e forte se ajoelhou junto à silueta imóvel que se achava recostada. Com cuidado, tal como lhe tinha ensinado seu pai, apoiou o rifle contra o tronco da árvore, com o canhão para cima. Suas mãos tremeram quando as estendeu para a garota.

 

Está assustado, né? Desafiou o moço mais jovem.

 

Não, não estou assustado vaiou o mais velho. Para demonstrar, estendeu o dedo indicador e o colocou junto ao lábio superior da jovem, quase sem tocá-la. Respira disse, aliviado. Não está morta.

 

O que crê ... ? Deus todo poderoso! Bubba, sai sangue por debaixo de seu vestido!

 

Bubba saltou para trás como um autômato. Seu irmão Luke tinha razão. Um rio de sangue estava formando um atoleiro cor púrpura sob o bordo de seu vestido, que apenas lhe cobria os joelhos. Não levava meias, e a pele de seus sapatos estava gretada e cortada. Os cordões se grampearam depois de romper-se várias vezes.

 

Crê que lhe dispararam ou algo assim? Possivelmente deveríamos olhar...

 

Sei, sei disse impaciente Bubba. Fecha o seu fodido pico.

 

Direi a mamãe que disse palavrões se...

 

Cala! Bubba girou em círculo e dirigiu um olhar ameaçador ao seu irmão mais novo. Eu lhe direi que se mijou na água para lavar-se da velha Watkins, depois que brigou com você por fazer muito ruído perto do acampamento.

 

Luke se acovardou e Bubba voltou a fixar sua atenção na garota. Com cautela, sem acreditar que aquela manhã tivesse tido autêntico desejos de ir caçar, elevou o bordo do puído vestido marrom.

 

Demônios, gritou.

 

Deixou cair a saia e ficou em pé de um salto. Por desgraça, o tecido manchado não chegou a cobrir a forma sem vida que jazia entre as esbeltas coxas da moça. Os dois meninos contemplaram horrorizados ao bebê morto. Luke emitiu um som gutural.

 

Vais vomitar? Perguntou Bubba.

 

Não. Luke tragou saliva. Não, creio - disse, com menos segurança.

 

Vá procurar mamãe. Papai também. Terá que carregá-la até o carro. Saberá voltar?

 

Claro, replicou Luke, carrancudo.

 

Pois te mova. Poderia morrer, sabe?

 

Luke inclinou a cabeça e examinou a cara pálida da jovem.

 

É bonita. Vais tocar mais enquanto eu não esteja?

 

Vai embora! Gritou Bubba, e encarou com seu irmão de forma ameaçadora.

 

Luke se afastou ruidosamente entre as árvores, até que pôde lançar um desafio sem perigo ao seu irmão.

 

Se olhar algo que não deveria, saberei, e o direi a mamãe.

 

Bubba Langston agarrou um abacaxi e o atirou contra o seu irmão, dois anos mais novo que ele. Não chegou ao seu objetivo e Luke pôs pés em empoeirada. Quando se perdeu de vista, Bubba se ajoelhou junto à moça. Mordiscou o lábio inferior antes de voltar a olhar o bebê morto. Depois, utilizando tão somente os extremos do polegar e o índice, levantou o bordo de sua saia e a moveu para tampar ao menino.

 

O suor escorria de sua testa, mas se sentiu melhor quando já não pôde ver o pequeno.

 

Senhora - sussurrou em voz baixa. Ouça-me, senhora?

 

Moveu um pouco seu ombro, atemorizado. A jovem gemeu e moveu a cabeça de um lado a outro.

 

Nunca tinha visto um cabelo como o daquela moça. Embora cheio de ramos e folhas, e molhado pela chuva, era muito bonito; encaracolado e de aspecto selvagem. Tampouco tinha visto aquela cor. Não era vermelho nem castanho, mas sim de um tom intermediário.

 

Agarrou o cantil, que tinha pendurada ao redor de seu pescoço mediante uma correia de couro, e a desentupiu.

 

Senhora, quer beber?

 

O moço se encheu de coragem e aproximou a boca metálica aos flácidos lábios da mulher e verteu água sobre eles. Sua língua lambeu ávida o líquido reconfortante.

 

Bubba olhava fascinado como seus olhos se abriam desconcertados e lhe contemplavam vagamente. A moça viu um menino de uns dezesseis anos, com os olhos totalmente abertos, que a olhava com angústia. Seu cabelo era tão claro que parecia quase branco. Era um anjo? Estava no céu? Em tal caso, o céu era tão decepcionante como a terra. O mesmo céu, as mesmas árvores, o bosque empapado pela chuva. A mesma dor entre suas coxas. Ainda não estava morta! «Não, não, menino, vá embora. Quero morrer.» Fechou os olhos de novo e não se inteirou de nada mais.

 

Temeroso pela vida daquela mulher, e com uma sensação de impotência, Bubba se sentou sobre a terra molhada, debaixo da árvore. Seus olhos não abandonaram o rosto da desconhecida nem um só instante, até que ouviu as vozes de seu pai e sua mãe, que tentavam abrir passo entre o capim e a abundante vegetação do princípio do verão.

 

Onde está essa garota da que nos falou Luke, filho? Perguntou Zeke Langston ao seu filho mais velho.

 

Olhem. Eu não disse. Mamãe, papai disse Luke, muito excitado, aí está.

 

Afastem-se todos e me deixem dar uma olhada a esta pobre garota. A senhora Langston empurrou aos homens com impaciência e se agachou junto à moça. Primeiro, apartou o cabelo molhado que se pegava às faces pálidas.

É bonita. Pergunto-me que demônios faz aqui sozinha.

 

Há um bebê, mamãe.

 

A senhora Langston olhou Bubba, depois ao seu marido, e fez um gesto com a cabeça para indicar que distraísse aos meninos. Quando se voltaram de costas, levantou o vestido até o colo da jovem. Tinha visto coisas piores, mas aquilo era bastante desanimador.

 

Que Deus tenha piedade dela, mumurou. Zeke, me dê uma mão. Meninos, voltem para carro e digam a Anabeth que prepare um colchão. Acendam um bom fogo e ponham uma panela a ferver.

 

Decepcionados por perder o mais interessante da aventura, Bubba e Luke protestaram ao uníssono.

 

Mas mamãe...

 

Fora, disse.

 

Para não incorrer na ira de sua mãe, que os dois tinham experimentado ao outro extremo de um suavizador de navalhas, afastaram-se para a caravana, que havia! Tomavam o domingo livre para descansar.

 

Está mau, verdade? Perguntou Zeke, ajoelhando-se ao lado de sua mulher.

 

Sim. Primeiro pelo nascimento do menino. É possível que ela mora de todos os modos por causa do desgosto.

 

Marido e mulher ajudaram em silencio a aquela moça que se achava em um estado de inconsciência.

 

O que faço com isto, Mamãe? Perguntou Zeke. Tinha envolto os resíduos naturais junto com o bebê morto em uma mochila, e a tinha fechado.

 

Enterra-o. Duvido que a moça esteja em condições de visitar uma tumba durante vários dias. Assinala o lugar se por acaso quiser voltar a vê-lo.

 

Porei um canto rodado em cima, para que os animais não o desenterrem - disse Zeke com solenidade, e começou a cavar uma tumba pouco profunda com a pequena pá que havia trazido. Como está a garota? Perguntou quando terminou, enquanto secava as mãos com um lenço.

 

Segue sangrando, mas a enfaixei bem. Fizemos tudo que se podia fazer aqui. Poderia levá-la até a caravana?

 

Se me ajudar a levantá-la.

 

A moça voltou para a vida e protestou. Agitou os braços fracamente quando Zeke a elevou em braços até seu peito. Depois os esbeltos membros da jovem se desabaram e ela voltou a perder a consciência. Sua garganta se arqueou quando a cabeça caiu sobre o braço de Zeke.

 

Tem um cabelo estranho - comentou Zeke, sem má intenção.

 

Não tinha visto essa cor antes replicou distraída a mãe, enquanto recolhia as coisas que haviam trazido. Será melhor que nos apressemos em voltar. Começa a chover outra vez.

 

Sentia uma queimação entre suas coxas. Tinha a garganta rasgada e dolorida. Experimentava a sensação de que ardia e lhe doía todo o corpo. Não obstante, existia certa impressão de comodidade ao seu redor. Estava seca e quente. Tinha chegado ao paraíso? Tinha-a abandonado o menino loiro para que morrera? Era por isso que se sentia tão segura e em paz? Claro que no céu não se conhecia a dor, e, entretanto ela seguia sentindo-a.

 

Abriu apenas os olhos. Um teto de lona branco se curvava sobre ela. Um abajur brilhava sobre uma caixa, perto da cama de armar onde estava deitada. Estirou as pernas tanto como a dor que sentia entre elas o permitiu, e se familiarizou com a branda cama. Tinha os pés e as pernas nus, mas a tinham vestido com uma camisola branca. Suas mãos se removeram inquietas sobre seu corpo, e se perguntou por que se sentia tão estranha. Depois se deu conta de que seu estômago estava liso.

 

Uma quebra de onda de lembranças terríveis se abateu sobre ela. O medo, a dor, o horror de ver o bebê morto entre suas pernas, azulado e frio. As lágrimas se amontoaram em seus olhos.

 

Bom, bom, não vais voltar a chorar outra vez, verdade? Leva horas chorando, cada vez que desperta.

 

Os dedos que secaram as lágrimas de sua face eram grandes, ásperos e vermelhos à luz suave do abajur, mas seu tato no rosto era agradável, igual à voz, cheia de bondosa preocupação.

 

Gosta de um pouco de caldo? Está feito com um dos coelhos que os meninos caçaram esta manhã, antes de te encontrar.

 

A mulher aproximou uma colher à moça, que tragou o espesso líquido para não engasgar-se e descobriu que conhecia bem. Tinha fome.

 

Onde estou? Perguntou, entre colherada e colherada.

 

Em nosso carro. Sou Mamãe Langston. Meus filhos a encontraram. Lembra de algo? Deu-lhes um susto de morte. Lançou uma risada. Luke contou a história por toda a caravana. Disse que formamos parte de uma caravana que se dirige a Telhas?

 

Muita informação para assimilar de repente, assim que a jovem se concentrou em engolir o caldo. Encheu seu estômago de calor, aumentou a sensação de comodidade e segurança. Fazia semanas que fugia, tão atemorizada com ser perseguida que, exceto durante uns poucos dias, não tinha procurado refúgio, mas tinha adormecido ao ar Úbere, comendo os produtos do verão que encontrava no bosque.

 

O rosto ossudo a olhava era severo e bondoso ao mesmo tempo. Poucos ganhariam uma discussão com aquela mulher, mas por outro lado muito poucos encontrariam nela um trato desconsiderado. Levava o escasso cabelo castanho salpicado de cinza preso com um coque na nuca. Era uma mulher grande, com um enorme busto que pendurava até sua grossa cintura. Vestia de um vestido limpo, embora desbotado. Finas rugas sulcavam sua pele, mas as faces possuíam um tom rosado próprio de uma moça. Era como se um deus duro mas benévolo tivesse considerado muito rude a sua obra e pintado aquelas faces rosadas para suavizá-la.

 

É o suficiente? A moça assentiu. A mulher apartou a terrina de caldo. Eu gostaria de saber seu nome disse, e sua voz se suavizou de forma perceptível, como se pressentisse que o tema não ia ser bem recebido.

 

Lydia.

 

Sobrancelhas irregulares se arquearam em uma pergunta silenciosa.

 

É muito bonito, mas terá um sobrenome? Quem é sua família?

 

Lydia inclinou a cabeça. Recreou em sua mente o rosto de sua mãe, tal como a recordava de sua infância: bela e jovem, em lugar do rosto atordoado e pálido de uma mulher moribunda de desespero.

 

Só Lydia disse em voz baixa. Não tenho família. Mamãe digeriu aquilo. Agarrou a mão da moça e a agitou um pouco. Quando os olhos castanhos claro se voltaram para ela, insistiu.

 

Deu a luz um bebê, Lydia. Onde está seu homem?

 

Morto.

 

Meu Deus! Sinto muito.

 

Não. Eu me alegro de que esteja morto.

 

Mamãe ficou perplexa, mas preferiu não escavar mais, temerosa pelo estado físico da jovem.

 

O que fazia no bosque sozinha? Aonde se dirigia?

 

Lydia encolheu seus estreitos ombros.

 

A nenhum sítio. Dava-me igual. Queria morrer.

 

Tolices! Eu não te deixarei morrer. É muito bonita para morrer.

 

Mamãe puxou com rapidez a manta sobre o frágil corpo, para dissimular a súbita emoção que experimentava por aquela estranha moça, que despertava sua compaixão. A tragédia estava estampada em seu rosto, pálido e abatido à luz do abajur.

 

Papai e eu enterramos ao seu menino no bosque. Lydia fechou os olhos. Um menino. Nem sequer se tinha dado conta. Se quiser, quando se sentir com força, podemos atrasar a caravana uns dias para que veja a tumba.

 

Lydia sacudiu a cabeça, furiosa.

 

Não, não quero vê-la.

 

Brotaram lágrimas de seus olhos.

 

Mamãe lhe aplaudiu a mão.

 

Sei o que está sofrendo, Lydia. Tive sete filhos, mas enterrei a dois. É o mais duro que pode ocorrer a uma mulher.

 

«Não, não o é pensou Lydia para si. Há coisas muito piores que uma mulher pode sofrer.»

 

Dorme um pouco mais. Suspeito que pegou um bom resfriado no bosque. Ficarei contigo.

 

Lydia contemplou o rosto compassivo daquela mulher.

 

Ainda não era capaz de sorrir, mas seu olhar se suavizou.

 

Obrigado.

 

Quando se recuperar, terá muito tempo para me agradecer.

 

Não posso ficar com vocês. Tenho que... partir.

 

Durante um tempo, não poderá ir a nenhuma parte. Pode ficar com enquanto nos aguente. Até Telhas, se quiser.

 

Lydia quis protestar. Não era feita para viver com pessoas decentes como aquela mulher. Se averiguavam algo sobre ela, algo a respeito de... Seus olhos se fecharam.

 

Suas mãos estavam sobre ela, sobre todo seu corpo. Abriu a boca para gritar, mas a mão dele, salgada e suja, a fechou. Aferrou com a outra mão o pescoço de sua camisa até que a abriu. Sua mão odiosa e úmida, que obtinha prazer de infligir dor, espremeu seus seios. Ela afundou os dentes em sua mão e foi castigada com uma bofetada que lhe deixou a mandíbula dolorida e os ouvidos zumbantes.

 

Não me rechace, Ou contarei sobre nós a sua afetada mamãe. Não quererá que se inteire do que fazemos, verdade? Acredito que seria um golpe definitivo para ela. Estou seguro de que morreria se inteirasse de que te estou fodendo, não te parece?

 

Não, Lydia não queria que sua mãe se inteirasse, mas como podia suportar que lhe voltasse a fazer aquilo? Ele já estava esmagando os quadris contra suas coxas, obrigava-a a abri-los. Seus dedos a exploravam brutal, insistente, dolorosamente. E aquele repugnante apêndice estava se afundando de novo em sua carne. Quando lhe arranhou o rosto, ele riu e tratou de beijá-la.

 

Posso ser mais rude, se quiser se burlou.

 

Ela se revolveu.

 

Não, não soluçou. Basta! Não, não, não...

 

O que acontece, Lydia? Acordada. Só é um pesadelo.

 

A voz tranqüilizadora chegou até o poço infernal onde seu sonho a tinha jogado e a resgatou. Tinha voltado para a placidez do carro dos Langston.

 

Não era a violação de Clancey a que a torturava, a não ser a dor resultante do nascimento, de seu filho. OH, Deus! Como podia seguir vivendo com a lembrança dos abusos sexuais de Clancey? Tinha engendrado um filho de sua asquerosa semente, e sentia que não merecia seguir vivendo por mais tempo.

 

Mamãe Langston não pensava o mesmo. Quando a moça, temerosa do pesadelo, aferrou-se às mangas do gasto vestido da senhora Langston, esta embalou a cabeça de Lydia sobre seu enorme busto.

 

Só foi um sonho murmurou brandamente. Tem um pouco de febre e isso te produz pesadelos, mas ninguém vai ter fazer dano enquanto esteja comigo.

 

O terror de Lydia se dissipou. Clancey estava morto. Ela o havia visto morto, o sangue brotava de sua cabeça e cobria sua feia cara. Nunca mais voltaria a tocá-la.

 

Deixou que sua cabeça caísse sobre o busto de Mamãe. Quando estava quase adormecida, a senhora Langston a estendeu sobre o incômodo travesseiro, que Lydia desejou estar cheio de plumas. Durante os dois últimos meses, sua cama tinha consistido em agulhas de pinheiro ou palha. Algumas noites, nem sequer tinha tido aquela sorte, mas tinha adormecido o melhor possível apoiada contra o tronco de uma árvore.

 

Um doce e negro esquecimento a atraiu as suas profundidades, enquanto Mamãe continuava sujeitando sua mão.

 

O balanço da pradaria despertou a Lydia ao dia seguinte. Tachos e panelas repicavam a cada rotação rítmica das rodas. Arnês de couro chiavam, seus fixadores metálicos atraíam alegremente. Mamãe gritava instruções a parelha de cavalos. Indicava cada direção com um estalo do látego. Quase no mesmo tom, mantinha um animado diálogo com um de seus filhos. Era um bate-papo consultivo e repressor ao mesmo tempo.

 

Lydia se removeu inquieta em seu leito e inclinou um pouco a cabeça. Uma moça de cabelo loiro e curiosos olhos azuis estava sentada ao alcance de sua mão, olhando-a.

 

Mamãe, despertou, gritou. Lydia deu um salto por efeito do inesperado ruído.

 

Faz o que disse - respondeu Mamãe. Agora não podemos parar.

 

A garota voltou a olhar à surpreendida a Lydia.

 

Sou Anabeth.

 

Eu sou Lydia.

 

Tinha a garganta como papel de lixa.

 

Sei. Mamãe nos disse isso durante o café da manhã e nos advertiu que não voltássemos a te chamar «a garota», ou nos bateria na moleira. Tem fome?

 

Lydia sopesou sua resposta.

 

Não. Sede.

 

Mamãe disse que teria sede, pela febre. Tenho um cantil de água e outro de chá.

 

Primeiro água.

 

Lydia bebeu um bom gole. Assombrou-se do muito que lhe custava tragar, e voltou a deitar-se.

 

Pode ser que mais tarde tome um pouco de chá.

 

Os Langston realizavam com toda naturalidade as funções vitais. Sentiu-se turvada quando Anabeth deslizou um urinol sob seus quadris para que fizesse suas necessidades, mas à moça não pareceu incomodá-la absolutamente ter que esvaziar o recipiente pela parte posterior da carroça.

 

Durante a hora da comida, quando a caravana se deteve para que homens e animais descansassem, Mamãe subiu para trocar as vendagens que tinha colocado entre as coxas de Lydia.

 

Já não sangra tanto. Parece que suas partes femininas estão cicatrizando bem, mas ainda te doerá durante uns dias mais.

 

Não havia nada de grosseiro na franqueza de Mamãe, mas a Lydia ainda a turvava ser escrutinada daquela maneira. Alegrou-se de que certa parte de sua sensibilidade tivesse ficado intacta, tendo em conta onde tinha vivido durante os últimos dez anos. Sua mãe devia lhe haver inculcado certo refinamento antes de transladar-se à granja dos Russell. Sabia que muita gente, por associação de idéias, considerava-a uma desgraçada. Dirigiam-lhes sarcasmos desagradáveis a ela e a sua mãe sempre que iam a cidade, o qual, por fortuna, não era muito freqüente. Lydia não tinha compreendido o significado de todas as palavras, mas tinha aprendido a reconhecer e temer o tom insultante.

 

Uma e outra vez tinha desejado gritar que sua mãe e ela não eram como os Russell. Elas eram diferentes. Mas quem teria acreditado em uma moça suja, esfarrapada e descalça? Seu aspecto era tão ignóbil como o dos Russell, assim também a tinham ridicularizado.

 

Mas ao que parece nem todo mundo julgava com tanto pressa. Os Langston, por exemplo. Não lhes tinha importado suas roupas sujas e puídas. Não a tinham desprezado por ter um filho sem marido. Tinham-na tratado como a uma pessoa respeitável.

 

Ela não se sentia respeitável, mas era o que mais desejava ser no mundo. Demoraria anos em desembaraçar-se da influência dos Russell, mas o obteria, embora morresse no intento.

 

Com o passar do dia foi conhecendo os membros do clã Langston. Os dois moços que a tinham encontrado colocaram a cabeça com acanhamento na carroça, quando seu pai lhes apresentou.

 

Esse é o mais velho Jacob, embora todo mundo o chame de Bubba. O outro é Luke.

 

Obrigado por ajudar - disse Lydia em voz baixa. Já não guardava rancor por salvar sua vida. A vida não parecia tão horrível agora que se livrou da última lembrança de Clancey.

 

Os meninos se ruborizaram até a raiz de seu cabelo loiro.

 

Bem-vinda, murmuraram.

 

Anabeth era uma afável e ativa menina de doze anos. Também estavam Marynell, Samuel e Atlanta, que levavam apenas um ano entre si. O pequeno, Micah, contava três anos.

 

Aquela noite Zeke tirou o chapéu que cobria sua cabeça calva e falou do outro extremo da carreta.

 

Alegro-me de tê-la conosco, senhorita... Lydia.

 

Sorriu, e Lydia reparou em que só tinha dois dentes na parte dianteira.

 

Lamento lhes haver causado tantos problemas.

 

Nenhum absolutamente.

 

Deixarei de lhes estorvar o antes possível.

 

Não tinha nem idéia do que faria ou aonde iria, mas não podia impor sua presença a aquela generosa família que devia alimentar a tantas bocas.

 

Deixe de preocupar-se por isso. Fique bem, e então já pensaremos em algo.

 

Todos os Langston pareciam refletir aquela atitude, mas Lydia se perguntou a respeito de outros membros da caravana. Sem dúvida teriam surgido especulações sobre a moça que a família Langston havia trazido depois de dar a luz um menino morto em pleno bosque e sem a companhia de um marido. Mamãe tinha rechaçado inclusive aos visitantes mais amáveis, que deviam perguntar pela pobre garota”, e se limitava a dizer que já se recuperaria e não demorariam para conhecê-la.

 

O primeiro encontro que teve Lydia com alguém da caravana alheio aos Langston se produziu em plena noite, quando uma pessoa golpeou com força as madeira da carroça. Sentou-se muito rígida, com o lençol apertado contra os seios, convencida de que Clancey havia voltado entre os mortos para procurá-la.

 

Tranqüila, Lydia disse Mamãe, e a deitou de novo.

 

Mamãe Langston! Gritou uma impaciente voz masculina. Um pesado punho golpeou a comporta. Mamãe, por favor. Está aí?

 

Por todos os fogos do inferno, o que são esses berros? Ouviu Lydia que grunhia Zeke do exterior da carroça. Os meninos e ele dormiam debaixo, em sacos de dormir.

 

Zeke, Vitória está de parto. Pode ir ver a Mamãe? A voz era oca cheia de angústia. Começou a sentir-se mal depois do jantar. Não é uma simples indigestão, a não ser o parto.

 

Mamãe já tinha chegado ao extremo da carroça e afastado a um lado as lonas.

 

É você, senhor Coleman? Diz que sua mulher está de parto? Acreditava que ainda não...

 

Eu também pensava que não lhe tocava ainda. Está... Lydia ouviu que o terror vibrava na voz daquele homem. Sofre uns dores espantosos. Pode vir?

 

Já vou. Mamãe voltou para interior da carroça, procurou suas botas e calçou a toda pressa. Você, descanse - disse a Lydia com uma calma que contrastava com seus bruscos movimentos. Anabeth ficará aqui. Irá me buscar se me necessitar. Elevou um xale de crochê sobre seus volumosos ombros. Parece que vai nascer outro pequeno.

 

Mamãe ainda não tinha retornado quando as carroças ficaram em movimento à manhã seguinte. Correu a voz pelo acampamento de que a senhora Coleman ainda não tinha dado a luz, embora tinha insistido em que a caravana não perdesse nem um dia de viagem por sua culpa. Bubba se ofereceu a conduzir em lugar do senhor Coleman, enquanto Zeke se encarregava da carroça dos Langston.

 

Na ausência de Mamãe, Anabeth, como filha mais velha, ocupou-se de cozinhar e cuidar dos meninos pequenos. Atendeu a Lydia com a mesma competência que sua mãe tinha demonstrado. Lydia ficou surpreendida dos conhecimentos da menina sobre o processo de dar a luz.

 

Lamento que tenha que fazer isto por mim, se desculpou, quando Anabeth lhe trocou as vendagens molhadas.

 

Cale-se, tenho-o feito por mamãe quando teve os dois últimos meninos e tenho a regra desde os dez anos. Não é nada.

 

Quando a caravana se deteve ao meio-dia, Mamãe voltou para lhes dar a triste noticia de que a senhora Coleman tinha morrido apenas meia hora depois de dar luz a um menino.

 

Era tão delicada... O senhor Coleman ficou como louco. Sente-se culpado por havê-la trazido nesta viagem. Havia lhe dito que não daria a luz até setembro, muito depois de que chegássemos a Jefferson. Ele não tem culpa, mas o está tomando muito mal.

 

E o menino? Perguntou Zeke, enquanto mastigava uma bolacha dura e seca que tinha sobrado do café da manhã.

 

O pequeno mais fraco que vi. Apenas tinha forças para chorar. Não me surpreenderia que sua pequena alma abandonasse hoje a terra. Entrou na carroça para falar com Lydia, que tinha escutado a conversação. Como está, Lydia?

 

Bem, senhora Langston.

 

Me chame Mamãe, por favor. Anabeth te cuidou como é devido? Sinto não poder ficar contigo, mas esse pequeno está bastante mal.

 

Não se preocupe murmurou Lydia. Encontro-me bem. Assim que possa, deixarei-a em paz.

 

Não, sempre que eu possa dizer algo a respeito. Está segura de que te encontra bem? Parece um pouco congestionada. Apoiou uma mão calejada sobre sua testa. Ainda tem febre. Direi a Anabeth que esta tarde ponha um pano úmido sobre a cabeça.

 

Lydia sofria um novo mal-estar, mas não queria carregar a Mamãe com mais preocupações, de maneira que não falou de seus seios inchados e doloridos. Dormiu durante todo o dia, pois a caravana se deteve em deferência ao senhor Coleman. Anabeth preparou um jantar abundante, embora apressado. Todo mundo ia reunir-se depois de jantar para enterrar à senhora Coleman.

 

O silêncio caiu sobre o acampamento. Lydia, deitada na cama, contemplava o teto de lona. Não ouviu nada da cerimônia fúnebre, salvo o cântico de Rocha dos tempos. Surpreendeu-se seguindo a letra. Quanto tempo fazia que não pisava em uma igreja? Dez, doze anos? Não obstante, recordava a letra do hino. Experimentou uma grande alegria por isso. Dormiu sorridente e nem sequer despertou quando o clã Langston voltou com ar pesaroso a carroça.

 

O dia seguinte transcorreu de forma muito similar ao anterior, mas Lydia não se sentiu tão bem. Seus seios se incharam como balões debaixo da camisola e procurava escondê-los sempre que Anabeth a atendia e lhe trazia comida ou bebida. Lydia tinha a sensação de que iriam explodir. Deu uma olhada no interior da camisola e ficou alarmada ao ver seus mamilos, avermelhados e irritados. Estavam tão sensíveis que até o peso da camisola os machucava.

 

Mamãe continuava cuidando do menino dos Coleman e não voltou até muito depois de que os meninos e Zeke tivessem improvisado suas camas sob a carroça. Anabeth, Marynell e Atlanta dormiam ao outro lado do carro. Lydia estava acordada, inquieta e dolorida. Lançou um fraco gemido quando Mamãe subiu a carroça.

 

Deus misericordioso, Lydia. O que te passa? Encontra-te mau?

 

Mamãe se inclinou sobre a jovem.

 

Sinto muito. Meus seios.

 

Mamãe desabotoou imediatamente a camisola e examinou os seios de Lydia, cheios de leite.

 

Senhor. Não sei no que estive pensando. Tem leite, claro, e dói se não dar de...

 

Interrompeu-se com brutalidade e inclinou a cabeça com o veloz movimento de um pardal que acaba de ver um verme.

 

Vamos, Lydia. Vais vir comigo.

 

Aonde? Lydia emitiu uma exclamação afogada quando Mamãe apartou as mantas e a levantou. Seus movimentos não eram bruscos, mas sim eficazes. Não tenho roupa.

 

Dá igual replicou Mamãe, que respirava trabalhosamente enquanto agarrava Lydia por debaixo dos braços e a ajudava a adotar uma postura erguida, embora um pouco encurvada. Tem leite materno, mas não tem um menino, e há um bebê neste acampamento que está às portas da morte. Precisa mamar.

 

Mamãe planejava levá-la junto ao menino dos Coleman, que quase não parava de chorar fazia dois dias. Os lastimosos gemidos se ouviam agora em todo o acampamento adormecido. Mamãe ia conduzi-la junto a aquele homem da voz frenética. Não queria ir. Não queria que ninguém a olhasse com curiosidade e se perguntasse por que tinha dado a luz no bosque e sem ninguém que a acompanhasse. Depois de conhecer a segurança da carroça dos Langston, tinha medo de abandoná-la.

 

Mas pelo visto não tinha outra eleição. Mamãe atou um xale sobre seus ombros e a empurrou com suavidade para os degraus da parte posterior do carro.

 

Esses sapatos que leva não são melhores que ir descalça, assim tira isso, com cuidado de não tropeçar com alguma pedra.

 

A sensação repentina de seus pés tocando o chão pela primeira vez fazia dias fez que cambaleasse. Notou dor nos seios, que penduravam sem sustentação sob a camisola, seu único objeto além do xale de crochê. Não tinha escovado o cabelo, que sabia que devia parecer uma massa emaranhada. Mamãe tinha lavado o sangue e os fluidos do parto que tinham manchado a parte interior de suas coxas, mas Lydia não se banhava fazia dias. Estava muito suja.

 

Afundou os pés na terra branda e úmida, a modo de protesto.

 

Por favor, Mamãe, não quero que ninguém me veja.

 

Tolices. Mamãe a arrastou pelo braço para a única carroça do acampamento em cujo interior se via luz. Pode ser que salve a vida desse bebê. A ninguém importará seu aspecto.

 

Sim que lhes importaria, e Lydia sabia. Tinham-na chamado desgraçada em ocasiões anteriores. Sabia como as pessoas podeiam ser má.

 

Senhor Grayson chamou em voz baixa Mamãe quando chegaram a carroça iluminada. Apartou a lona que pendurava sobre a abertura. Dê-me uma mão.

 

Empurrou Lydia para cima, e a moça não teve outro remédio que entrar no carro. A pele tensa de entre suas coxas se estirou um pouco mais e Lydia se encolheu de dor. Um par de fortes braços, embutidos em uma camisa de mangas azul, ajudaram-na a subir. Mamãe a seguiu.

 

Produziu-se um momento de confusão quando os três se encontraram cara a cara. O homem de cabelo cinza olhou assombrado à moça. A mulher magra que estava ao seu lado lançou uma exclamação de surpresa. Lydia baixou a vista para não ver seus olhares de estupefação.

 

Este é o senhor Grayson, o chefe da caravana explicou Mamãe a Lydia.

 

Lydia manteve a cabeça encurvada, contemplou seus pés descalços e sujos, apoiados sobre o chão de madeira da carreta, e assentiu.

 

E esta é a senhora Leoa Watkins.

 

Mamãe falava em sussurros por respeito ao homem sentado em um tamborete baixo, que tinha a cabeça morena sepultada em suas mãos e os cotovelos apoiados sobre seus joelhos.

 

Foi a senhora Watkins quem falou primeiro.

 

Quem demônios... e por que anda por aí virtualmente nua? Ah, é a garota que seus filhos encontraram e trouxeram para a caravana. Surpreende-me que haja trazido para esta... pessoa a carroça do senhor Coleman, sobre tudo em um momento como este, em que choramos uma morte e...

 

Talvez não - replicou Mamãe, sem que sua voz dissimulasse o evidente desagrado que sentia por aquela mulher. Senhor Grayson, esta moça deu a luz anteontem. Tem leite. Pensei que se o filho do senhor Coleman mamasse...

 

OH, Meu Deus exclamou a senhora Watkins, desanimada, Por debaixo de suas pestanas, Lydia viu que levava uma mão esquelética ao seu magro peito e aferrava o seu vestido como se quisesse afastar a um espírito maligno.

 

Mamãe fez caso omisso da desaprovação que mostrava Leoa Watkins, e continuou falando com o chefe da caravana.

 

O pobre pequeno poderia sobreviver se Lydia lhe desse de mamar.

 

Leoa Watkins a interrompeu antes que o chefe da caravana pudesse responder. Enquanto se desenvolvia uma violenta discussão, Lydia examinou de soslaio a carroça. As colchas amontoadas no canto eram feitas de tecido utilizados para cobri-la na carroça dos Langston. Uma cortina de cetim serpenteava através dos quadros. Havia um par de elegantes sapatos brancos de pelica junto a uma caixa de pratos de porcelana da China.

 

Seus olhos prosseguiram a exploração e se posaram sobre um par de botas negras. Bastante altas até o joelho, e cobriam umas panturrilhas largas. Estavam gastas, mas a pele era da melhor qualidade. Adaptavam-se a uns pés largos e bem formados. Os saltos mediam uns três centímetros de altura, e eram de madeira negra polida. O homem que utilizava aquelas botas devia ser alto, se a longitude de suas pernas não mentia.

 

Digo-lhe que não é correto.

 

Os protestos da senhora Watkins tinham aumentado de volume e intensidade. Uma mão semelhante a uma garra se apoderou do queixo de Lydia e levantou sua cabeça. Olhou um rosto de que tinha desaparecido todo rastro de carne e de vida. Era estreito e enrugado. A ponte do esquelético nariz era tão afiado e cortante como a folha de uma faca. Os lábios, de tanto expressar severa desaprovação, tinham produzido uma rede de finas rugas que irradiavam deles. Os olhos eram como a voz, sensores e malévolos.

 

Basta olhando-a. É lixo. Seu aspecto o diz tudo. Deve ser uma..., uma prostituta, Deus me perdoe por pronunciar a palavra. E teve um filho. Deve ter matado ela mesma para desembaraçar-se dele. Duvido que saiba quem foi o pai.

Estupefata pelas palavras da mulher, Lydia a olhou em silencio antes de murmurar um suave «não» em voz baixa.

 

Senhora Watkins, por favor, interveio com diplomacia o senhor Grayson.

 

Era um homem caridoso, embora nesta ocasião se sentisse inclinado a dar a razão à senhora Watkins. A garota tinha um aspecto selvagem. Não havia nenhuma pingo de refinamento em sua forma de vestir ou no descaramento com que lhes olhavam aqueles estranhos olhos cor âmbar.

 

Não é verdade! Replicou Mamãe E embora o fosse, Leoa Watkins, quem mais da caravana poderia alimentar a este menino? Você?

 

Jamais!

 

Tem razão. É provável que nunca pudesse reunir nenhuma gota de leite nessas tetas murchas...

 

Mamãe, por favor, atravessou o senhor Grayson, cansado.

 

Os olhos de Leoa Watkins relampejaram de fúria, mas guardou silêncio, rígida e com o nariz enrugado para manifestar o desagrado que lhe causava toda a situação.

 

Mamãe não fez conta.

 

Senhor Grayson, seu dever é proteger todas as vistas desta caravana, incluindo a desse menino. Escute a pobre criatura. Das vinte famílias, só há uma mulher que tem leite e está dando de mamar aos seus gêmeos. Lydia é a única esperança desse bebê. Bem, vai salvar sua vida, ou lhe deixará morrer de fome?

 

Leoa Watkins cruzou os braços sobre o peito em um gesto de desprezo. Lavava as mãos de toda responsabilidade pelas conseqüências, se o senhor Grayson acessava ao que a intrometida da Mamãe Langston sugeria. Sempre tinha pensado que Mamãe era de uma vulgaridade insofrível, e agora o estava demonstrando.

 

A única opinião que conta é a do senhor Coleman disse Hal Grayson. Ross, o que diz? Quer que a garota dê o seio ao seu filho, por si existe a remota possibilidade de que possa lhe salvar a vida?

 

Lydia tinha dado as costas a todos. Dava-lhe igual o que pensassem dela. Assim que se tivesse recuperado, iria a algum lugar onde ninguém a conhecesse, onde poderia começar de novo, sem um passado. Aproximou-se sem dar-se conta ao canto da carroça onde o menino jazia em uma caixa de maçãs vazia, forrada de flanela. Estava contemplando a diminuta vida, quando ouviu que seu pai se levantava.

 

Lydia dava as costas Ross Coleman quando este elevou a cabeça, levantou e olhou para a moça que tinha causado tanto escândalo em seu carro e interrompido sua dor pela morte de Vitória. Reparou primeiro em seu cabelo, um verdadeiro sarçal de cachos indisciplinados, com folhas secas e Deus sabia que mais enredado em sua massa. Em primeiro lugar, que classe de mulher vai pelo mundo com o cabelo solto? Ross Coleman só conhecia uma.

 

De costas, a moça parecia terrivelmente magra com aquela camisola. Os tornozelos eram estreitos; os pés, pequenos e sujos. Deus! Não necessitava aquela desordem depois do espantoso dia que tinha padecido.

 

Não quero que essa garota toque a meu filho murmurou enojado. Façam o favor de partir e nos deixar tranqüilos a mim e ao meu filho. Se tiver que morrer, que o faça em paz.

 

Graças a Deus que alguém conserva ainda o sentido comum.

 

Cale a boca - disse Mamãe a Leoa Watkins, enquanto a empurrava a um lado para aproximar-se de Ross. Você parece um homem razoável, senhor Coleman. Por que não deixa que Lydia dê o seio ao seu filho e trate de salvar sua vida? Do contrário, o menino morrerá de fome.

 

Provamos tudo respondeu Ross, impaciente. Acariciou o espesso cabelo negro. Não tomou o leite de vaca engarrafada, nem a água com açúcar que lhe demos ontem à noite.

 

Necessita leite materno, e os mamilos dessa garota gotejam.

 

OH, Senhor! Choramingou Leoa Watkins.

 

Ross dirigiu outro olhar à moça. Achava-se de pé entre ele e a pálida luz do abajur, de forma que o contorno de seu corpo se desenhava sob a tênue camisola. Seus seios pareciam cheios. Seu voluptuosidade lhe repeliu. Por que ia pelo mundo vestida só com uma camisola? Embora estivesse indisposta depois de dar a luz, nenhuma mulher decente permitiria que ninguém, sobre tudo os homens, vissem-na assim. Seu lábio se curvou de asco, e se perguntou de que toca tinha saído aquela garota. Vitória teria ficado horrorizada só de vê-la.

 

Não quero que uma puta dê de mamar ao filho de Vitória disse, tenso.

 

Você não sabe nada dela, nem eu tampouco.

 

É lixo! Gritou Ross. A ira que albergava contra o mundo pela morte injusta de Vitória estalou por fim. A moça era um cabrito expiatório muito oportuno. Não sabe de onde vinho, nem quem era. Só uma classe de mulher dá a luz sem um marido presente para cuidar.

 

Talvez em outro tempo fosse assim, mas não da guerra, nem desde que renegados, malvados e aventureiros ianques, convencidos de que todo o Sul lhes pertence, percorrem o país. Não sabemos o que esta jovem sofreu. Recorde que perdeu seu filho faz só dois dias.

 

Lydia não emprestava atenção à discussão, a não ser ao menino. Sua pele possuía uma palidez doentia. Lydia não tinha visto outro recém-nascido além do seu. Este era ainda mais pequeno, e seu escasso tamanho a alarmou. Poderia sobreviver algo tão diminuto?

 

Seus dedos, engarfiados como se quisessem formar punhos, eram quase transparentes. Tinha os olhos fechados enquanto respirava com ofegos graves e descontínuos. Seu estômago subia e baixava com brutalidade. Seu pranto era entrecortado, como se tivesse que parar freqüentemente para descansar e reunir um pouco de ar. Entretanto, o débil pranto era incessante. Para a Lydia, era como um canto de Lorelei. Inexoravelmente, atraía-a para o menino.

 

Sentiu um puxão no interior de seu útero; não se diferenciava muito das contrações do parto, mas sem dor. Teve a impressão de que seu coração se dilatava e enchia os seus já inchados seios, que formigavam, não com o fluido do leite materno, a não ser com a necessidade de socorrer, uma compulsão de proporcionar consolo maternal.

 

Olhava-o, inconsciente de que se estava movendo, de que seu dedo tocava o suave rosto do bebê Depois sua mão se deslizou sob a cabeça, que cabia com facilidade na palma. Pouco a pouco, temerosa de lhe fazer dano, deslizou a outra mão sob seu traseiro e lhe levantou da caixa. Contemplou o rosto enrugado e salpicada, e se sentou em um tamborete de três pernas.

  

   As magras pernas do menino se agitaram e seus pés lhe chutaram o estômago. Pô-lhe de lado no oco de seu braço. A cabecinha se meneou e o rosto enrugado se apoiou sobre seu peito. Lydia viu, fascinada e surpreendida, que a boca, similar a de um pássaro, voltava-se para ela. Estava aberta e procurava.

  

   Elevou a mão com serenidade para o primeiro botão da camisola emprestada e o desabotoou. Depois o segundo. Seguiram outros, até que o deslizou por cima do ombro esquerdo e deixou ao descoberto um seio, que elevou com a mão livre para o rosto do bebê, cuja boca se abriu, vagou e procurou, até que encontrou por fim seu mamilo. O bebê o aferrou imediatamente e começou a chupar ansiosamente.

  

   O repentino emudecimento dos soluços do menino cortaram de raiz a virulenta discussão que se desenvolvia na parte posterior da carroça. O coração de Ross se partiu. Seu primeiro pensamento foi que seu filho tinha morrido. Girou em redondo, à espera de ver o menino rígido e morto, mas o que viram seus preocupados olhos ainda lhe surpreendeu mais.

  

   A garota sustentava ao seu filho sobre o colo. O bebê estava chupando com prazer o generoso seio. Borbulhas leitosas se formavam em sua boca ansiosa e ao redor da escura aréola. A jovem arrulhava ao menino em voz baixa enquanto introduzia mais o peito em sua boca. Ross não podia ver seu rosto por culpa do cabelo revolto que a cobria.

  

   Bem rugiu Mamãe, satisfeita, acredito que esta cena o diz tudo. Senhor Grayson, por que não acompanha a Leoa a sua carroça? Eu me ocuparei de que Lydia se acomode aqui.

  

   -Acomodar-se aqui? Gritou Leoa. Não vai ficar na carreta do senhor Coleman. Não é decente.

 

- Venha, senhora Watkins disse Hal Grayson. Estava ansioso por voltar para o seu colchão. Amanheceria em breve e aqueles dias e a morte da senhora Coleman tinha escurecido a aventura de viajar até Telhas. Em realidade, ele não desejava o trabalho de chefe da caravana, mas lhe tinham eleito, e se esforçava por não decepcionar as pessoas que tinham depositado sua confiança nele. Arrumaremos tudo isto pela manhã. Estou seguro de que nada indecente acontecerá enquanto isso.

 

Grayson jogou virtualmente à encolerizada mulher da carroça.

 

Quando se foram, Mamãe olhou Ross Coleman, o qual contemplava com expressão séria à moça. Mamãe conteve o fôlego e se perguntou o que ia fazer agora aquele homem. Parecia simpático, bastante cordial, e tinha tratado a sua esposa como se fosse a rainha de Sabá.

 

Mas existia uma turbulência constante em seus olhos que induzia a Mamãe a acreditar que algo mais se ocultava baixo aquela superfície. Coleman se movia com excessiva rapidez, seus olhos eram muito penetrantes e ágeis para não pertencer a um homem que tivesse visto o suficiente na vida de casado para andar com cautela. Naquele momento dava a impressão de que estava liberando uma batalha consigo mesmo, porque cada um de seus bem formados músculos se destacava na pele.

 

Ross obrigou aos seus pés a mover-se pelo abarrotado piso da carroça. Seu filho mamava com ânsia. Já não chorava. Aquela garota desastrada, aquela estranha, sustentava ao seu filho e lhe dava de mamar, e ele, Ross, estava-o permitindo. O que diria Vitória se o visse?

 

Ross se encolheu de dor ao pensar em seu corpo retorcido, inchado e suado, em seu estertor final ao tempo que seu filho saía ao mundo. Não, nenhuma outra mulher, sobre tudo uma mulher de moral dissoluta, ia criar ao filho de Vitória Gentry Coleman. Seria um sacrilégio. Como ia viver consigo mesmo se permitia que aquilo acontecesse? E como ia viver consigo, mas sim se deixasse que o menino morresse por ser fiel aos seus princípios?

 

Esmigalhado pela decisão que devia tomar, agachou testa ao tamborete e viu que a boca de seu filho chupava avidamente o generoso seio. Quão único manchava sua perfeição cremosa eram as tênues veias azuis que discorriam como rios até o mamilo escuro, como linhas em um mapa. Ross ficou fascinado e teve que obrigar-se a levantar a vista para o rosto da moça.

 

Contemplou suas pálpebras enquanto estes se levantavam com lentidão, com uma lentidão dolorosa. Elevou-se por fim a espessa cortina de pestanas, e então Coleman a pôde olhar diretamente aos olhos. A reação de ambos foi de idêntica surpresa e intensidade, em que pese a que os dois se esforçaram em dissimulá-la.

 

Ross experimentou a sensação de que se afundou em um poço de feminilidade. Envolveu-lhe, alagou seu olfato, sua garganta. A moça personificava a sensualidade, e Ross descobriu que se derrubava nela e, tendo em conta o falecimento recente de sua esposa, detestou-a. Emergiu à superfície como um homem que procurasse ar em um charco de areias movediças. Quando pôde respirar de novo, examinou-a com forçada indiferença.

 

Seus olhos estavam orlados de espessas pestanas marrons, douradas nos extremos. As íris eram da cor do bourbon antigo, ou, da classe cara que descende pela garganta de um homem e se enrola ao redor de suas vísceras em um abraço quente. Quase eram da mesma cor pouco comum de seu cabelo rebelde, que, suspeitou, proclamava sua natureza selvagem.

 

Sua pele era clara, mas tinha o aspecto de ter estado muito tempo exposta ao sol em datas recentes. Seu nariz de forma perfeita, embora algo impudica, estava semeada de sardas. O que mais te incomodou foi sua boca. O grosso lábio superior exigia atenção, e um homem teria que estar morto para não conceder-lhe. Não o tentou, em conseqüência, com a esperança de envergonhá-la pela descarada sensualidade de sua boca. Entretanto, a língua da jovem apareceu para umedecer aquele sedutor lábio. Ross sentiu que seu estômago se revolvia e voltou a olhá-la aos olhos.

 

Ela não parecia absolutamente envergonhada do que era ou de estar sentada com os seios ao ar se ele queria olhar, o qual ele jurou não fazer. Os olhos da jovem eram ousados enquanto lhe estudavam profundamente como Ross tinha feito. Não piscou com modéstia, não agachou a cabeça com acanhamento, não insinuou recato.

 

Era uma puta dos pés a cabeça. Nascida para sê-lo. Coleman tinha estado com muitas para não reconhecer os sinais, para não ver a provocação muda que espreitava em seus olhos, para não sentir o sangue quente que corria por suas veias. Era a antítese de sua elegante e afetada Vitória, motivo suficiente para desprezar a moça.

 

Lydia pensou que, se suavizasse um pouco aquela expressão carrancuda, o do Coleman seria um dos rostos mais bonitos que tinha visto. Era um dos mais impressionantes, certamente. Ficou sem fôlego a primeira vez que seus olhos se encontraram, e ignorava a origem de tal nervosismo.

 

Necessitava desesperadamente barbear-se. Uma barba escura despontava em sua mandíbula, Um espesso bigode negro se curvava sobre as comissuras de seu lábio superior. O lábio inferior era reto e severo, agora que a transpassava com seus olhos verdes.

 

Os olhos. Examinou-os. Eram estranhos. Tão verdes como nunca tinha visto. Pestanas negras e curtas os rodeavam. Estavam unidas em pequenos grupos arrepiados. Experimentou a tentação de passar um dedo por cima para ver se estavam úmidas, como aparentavam. As sobrancelhas eram povoadas e ameaçadoras.

 

Seu cabelo negro como a noite, que não dava proteção a nenhum outro tom, ondulava-se sobre sua cabeça e formava cachos sobre os extremos das orelhas e com o passar do pescoço da camisa.

 

Teve a impressão de que era enorme quando se plantou frente a ela, mas não olhou seu corpo. Os corpos masculinos a assustavam, repeliam-na. A dureza de seu olhar não contribuiu a mitigar seus temores. Enquanto lhe olhava, seus olhos se entreabriram ameaçadores, como se pensasse em algum castigo severo, embora ela não pudesse imaginar a causa. Os olhos da jovem vacilaram um momento, antes de descer para o bebê, que seguia chupando seu seio.

 

Lydia, é hora de trocar de lado disse em voz baixa Mamãe, e conseguiu interpor seu corpanzil entre a Lydia e o pai do menino.

 

- O que? Perguntou a moça com voz oca.

 

Aquele homem a perturbava, não como Clancey, mas a perturbava de todos os modos. Quando ficou de pé e se separou dela, sua imensa silueta pareceu diminuir o interior da carroça. Seus limites se encolheram de repente, e Lydia descobriu que sua respiração era entrecortada, como a do bebê antes.

 

Primeiro um peito, e depois o outro. Assim se equilibra o fluxo do leite.

 

Mamãe levantou o menino. Sua boca tinha formado uma marca profunda ao redor do mamilo e, quando o apartou, começou a chorar de novo. Quando se acomodou no outro braço de Lydia, apoderou-se imediatamente do outro seio.

 

Uma gargalhada alegre e espontânea encheu a carroça. Lydia jogou o cabelo para trás e lançou uma gargalhada rouca. Seus olhos refletiram a luz do abajur. Cintilaram como o uísque ao ser atravessado pela luz do sol. Depois, encontraram-se com os de Ross, e toda luz desapareceu imediatamente deles. Estava-a olhando com manifesta hostilidade do outro extremo da carroça.

 

- Quando o pequeno terminar, acomodarei-te para que passe a noite disse Mamãe, sorrindo a jovem e ao bebê.

 

Não vai ficar. Quando o menino terminar, a levará daqui. A voz masculina cortou a atmosfera da carroça com a precisão de uma navalha.

 

Mamãe se voltou para o Ross, com os punhos apoiados sobre seus volumosos quadris.

 

- Não acredita que seu filho voltará a ter fome, senhor Coleman? O que se propõe fazer, obrigá-la a voltar para a carroça cada vez que o menino tenha vontade de comer, ou o levará você mesmo? Penso que é desnecessário dar tantos passos, por não mencionar as moléstias para o menino. Não me importa alojar a Lydia e teria recolhido também ao seu bebê se tivesse vivido, mas não penso dar proteção ao seu filho,   que tem, mas espaço, calma e silêncio em sua carroça - concluiu a mulher, mal-humorada.

 

Ross se ergueu com orgulhosa dignidade, mas ainda assim teve que agachar a cabeça e os ombros para não tocar o teto. Não pretendia abusar de sua caridade para meu filho, mas a garota não pode ficar.             

 

- Chama-se Lydia replicou Mamãe. Por que não pode ficar? Quem cuidará do menino durante o dia? Você sai para caçar e explorar.Quem se ocupará dele se começar a gritar?

 

O senhor Coleman capturou entre seus dentes e mordiscou a esquina de seu bigode, enquanto as objeções se passavam em sua mente.

 

Nem sequer esta limpa.

 

- Não, não o está. Deu a luz no bosque, sozinha. Acredita que Pode estar muito limpa? E não a banhei porque teve febre e não queria me encontrar com outra morte em minhas mãos.  

Se refere-se a sua hemorragia, não tem feito nada que sua encantadora e pulcra esposa não tivesse feito. Parará dentro de um ou dois dias, e Anabeth ou eu viremos a curá-la até então.

 

Lydia continuava com a cabeça inclinada sobre o menino, enquanto todo seu corpo avermelhava de confusão. Pelo visto, a franqueza de Mamãe tinha deixado também sem palavras ao senhor Coleman, porque este calou durante um momento. A tensão reinava na carroça. O homem irradiava antagonismo, ao igual a um forno irradia calor no inverno.            

 

Por fim, o menino ficou satisfeito. Lydia fechou a camisola sobre seus seios e seguiu as instruções de Mamãe para lhe fazer arrotar.         

 

      Ross contemplou a cena com fúria crescente e impotente. Era impossível calcular a quantos homens teria acolhido em sua cama aquele estandarte, e, entretanto atuava como uma mulher decente que dava de mamar ao seu menino, seu filho. O filho de Vitória. Mas que alternativa ficava? Queria que seu filho vivesse. O menino seria o único vínculo com a mulher a que tinha amado com tanta paixão.

Tossiu em voz alta, desnecessariamente.

 

De acordo, que fique. Por um tempo. Assim que encontre um meio de alimentá-lo e cuidá-lo sem ajuda, irá, entendido? Eu tampouco estou à frente de um hospital da caridade. Além disso, não quero que uma mulher como ela se ocupe do menino de Vitória. Lamento pelo seu bebê, mas certamente foi melhor que morresse. Ou é uma prostituta, como disse a senhora Watkins, ou uma filha que desonrou a sua família, ou uma mulher que fugiu de seu marido. Em qualquer caso, não é a classe de mulher que quero para cuidar de nem filho. Se não fosse uma questão de vida ou morte, não estaria aqui. Bem, abaixo estas condições, quer ficar? Perguntou à moça, que embalava ao menino adormecido.

 

Ela levantou a cabeça e se encontrou com seus deslumbrantes olhos verdes.

 

Como se chama o menino?

 

A pergunta pegou de surpresa a Ross.

 

Em... Lee. Chamei-lhe Lee.

 

A jovem sorriu ao bebê e o abraçou. Acariciou sua cabeça, coberta de cabelo escuro.

 

- Lee murmurou com ternura. Olhou ao seu pai com expressão doce. Cuidarei de Lee até que ele já não me necessite, senhor Coleman. Fez uma pausa. - Embora isso signifique agüentar pessoas como você - acrescentou com orgulho.

 

«Agüentar pessoas como você. Agüentar pessoas como você.»

 

Ross puxou sem compaixão o arnês enquanto as palavras ressonavam em sua cabeça. Quem demônios acreditava que era para lhe falar daquela maneira? Aplaudiu a garupa do cavalo para lhe informar de que sua ira não ia dirigida a parelha que puxava a carroça.

 

Retornou à fogueira que tinha reacendido minutos antes, quando se insinuou no oeste a primeira luz rosada da aurora. O café ainda não fervia. Tinha o costume de acender o fogo cada manhã para preparar o café, inclusive para fritar o bacon com o fim de que Vitória dormisse um momento mais. Ela não estava acostumada a despertar cedo, nem muito menos a preparar o café da manhã, e os compridos e árduos dias de viagem a tinham esgotado.

 

Ross contemplou o fogo e se perguntou por enésima vez por que Vitória tinha mentido. Ela havia dito que estava grávida de poucos meses, e que não daria a luz até muito depois de chegar a Telhas. Graças a sua esbelteza, a mentira tinha resultado acreditável, mas ao cabo de escassas semanas de viagem, seu proeminente abdômen a tinha delatado. Inclusive quando Ross comentou o muito que estava engordando sendo ainda tão logo, e ela admitiu com acanhamento que ia mais adiantada do que lhe tinha confessado, ele não se deu conta de até que ponto estava avançada a sua gravidez. Ainda assim, era um fato incontestável que Vitória lhe tinha mentido para sair-se com a sua.    

 

Compreendia por que ela não tinha querido que seu pai soubesse do bebê. Ao seu pai, Vance Gentry, havia resistido aceitar seu matrimônio com um assalariado, mas por que demônios não tinha sido sincera com ele, seu próprio marido?

 

Ross agarrou a cafeteira esmaltada e verteu um pouco da forte bebida em uma xícara de lata. Durante a viagem, ele preferia aquele tipo de utensílio à porcelana que Vitória tinha insistido em levar. Bebeu o café quente e deixou que sua mente divagasse.

 

Não, Vance Gentry tomou muito mal que sua filha se apaixonasse por homem que ele tinha contratado para cuidar de seus estábulos. Gentry desejava para sua filha um marido de linhagem tão excelente como de Vitória, mas naqueles tempos escasseavam os homens em idade de casar de famílias sulinas de rançosa ascendência. A guerra se encarregou disso. Vitória se sentia feliz e, à medida que transcorriam os meses, todos os habitantes da granja se reconciliaram com a idéia de que Ross Coleman ia ser seu marido.

 

Todos, exceto Vance. Ele nunca se mostrava abertamente hostil, mas era incapaz de dissimular o rancor que sentia para com seu genro.

 

Vitória tinha percebido o rancor de seu pai, por isso tinha esperado que este partisse a Virginia a comprar cavalos para revelar sua gravidez a Ross. Quando ele tinha mencionado a terra do Texas, tinha sido idéia de Vitória partir antes que seu pai retornasse. Ross estava preocupado por sua gravidez e o bebê, mas lhe tinha assegurado que teriam muito tempo para instalar-se antes que o menino nascesse. Bem, o bebê tinha nascido. Tinha ao bebê, mas não a Vitória.

 

A Vitória não. Ross tentou imaginar como seria sua vida sem ela. Tinha irrompido de uma forma inesperada e partiu com igual brutalidade. Um presente que tinha sido seu por um tempo, antes de lhe ser arrebatado brutalmente. Em sua vida, agora, não havia luz, risadas nem amor. Nunca voltaria a ver seu rosto, nem tocaria o seu cabelo, nem ouviria os seus cânticos. Tinha-a perdido de uma forma irrevogável, e não sabia se poderia superá-lo.

 

Teria que fazê-lo por Lee. Cada dia havia maridos que perdiam a suas esposas quando davam a luz, e sobreviviam. Ele também. Daria ao seu filho uma boa vida. Só Lee e ele. Juntos. Não, não de tudo.

 

Agora, tinha que carregar aquela garota.

 

Bebeu o café de um gole, e já ia se servir outra taça quando Bubba Langston se agachou ao seu lado.

 

Bom dia, Ross.

 

Bubba tinha experimentado uma sensação de maturidade e importância quando o homem, a quem considerava um modelo a imitar, havia-lhe dito que lhe chamasse por seu nome de batismo.

 

- Bubba - respondeu Ross com laconismo, com a mente ainda centrada em seu problema.

 

- Crê que choverá hoje?

 

As nuvens que pressagiavam tormenta se refletiram nos olhos verdes que as examinavam.

 

- Talvez. Espero que não. Estou farto da chuva. Está-nos atrasando.

 

Bubba pigarreou.

 

Eu... sinto por sua mulher, Ross.

 

Ross se limitou a assentir.

 

Café?

 

Sem esperar a que o menino respondesse, agarrou outra xícara e serviu o café.

 

Beberam em silencio durante uns instantes. Outras pessoas do acampamento começavam a levantar-se. O ar úmido removeu a fumaça da lenha. O rangido do arnês, os relinchos dos cavalos, o rumor de conversações de maridos e mulheres antes que os meninos despertassem, o tinido de panelas e frigideiras de metal, invadiram a manhã de ruídos tranqüilizadores e familiares. Aquela familiaridade era consoladora. Ross pensou que todas as coisas de sua vida se converteram, de repente, em alheias.   

 

-Ocupaste-te já dos cavalos? Perguntou ao moço.

     

Pois claro. Levei-lhes aquela bolsa de aveia, como você me pediu.

 

Obrigado, Bubba.

 

Ross sorriu pela primeira vez. Perguntou-se como seria de ter tido que cuidar de um adolescente. Não muito diferente de agora, o mais provável. Algumas pessoas nasciam mau, nasciam para andar a provas e às cegas pela vida. Quando Vitória Gentry se apaixonou por ele e contraíram matrimônio, Ross pensou que lhe tinham concedido uma segunda oportunidade, para que fossem falando da boa sorte dos perdedores.

 

Tive sorte de que viesse na caravana e me ajudasse a cuidar de meus cavalos. Minha própria manada de éguas é a única coisa que tenho para começar quando chegarmos a Telhas.

 

A brisa da manhã agitou o cabelo loiro do moço.

 

Cale-se, Ross. Embora não me pagasse por cuidá-los, o teria feito de boa vontade. Papai quer que seja granjeiro como ele. Está decidido a encontrar uma nova granja em Telhas e começar de novo em um lugar onde não diluvie cada ano, como em nossa casa do Tennessee. Eu não quero cuidar da terra. Prefiro trabalhar com cavalos, como você, Ross. Serviu-se de outra taça de café, contente de ter monopolizado a atenção de seu ídolo. Como começou você?

 

A conversação com o moço mantinha a mente de Ross afastada de seus problemas. Enquanto falava, cortava fatias de bacon de um pedaço de porco salgado.

 

Bom, feriram-me...

 

Uma ferida de guerra? Perguntou Bubba, com os olhos totalmente abertos.

 

Os olhos de Ross adquiriram um brilho duro e frio quando olhou sem ver o espesso bosque que rodeava o acampamento. Respondeu em voz baixa. Seu tom era amargo.

 

Não. Uma espécie de acidente. Depositou o bacon na frigideira quente. Chispou e rangeu. Um velho chamado John Sachs me encontrou e me levou a sua cabana. Estava no alto das Smokies. Era um ermitão. Cuidou de mim até que me restabeleci. Ross riu. Sobre tudo graças ao raticida que destilava. Quando estive o bastante recuperado para trabalhar, sugeriu que baixasse ao vale e apresentasse a um homem chamado Vance Gentry. É o proprietário de uma das melhores cavalariças do Tennessee. Comecei a trabalhar para ele e me casei com Vitória.

 

E depois, o velho, Sachs, vendeu-te a terra do Texas.

 

Ross olhou ao moço com olhos risonhos.

 

Tinha-te contado já a história?

 

Claro que sim, Ross, mas eu gosto de escutá-la.

 

O velho Sachs tinha combatido na batalha de São Jacinto. A República do Texas recompensou com terras aos homens que tinham participado da batalha, mas Sachs voltou para o Tennessee e nunca teve o sentido comum de retornar e reclamá-la.

 

A idéia de um pedaço de terra situado no rico leste do Texas, ao que ninguém tirava partido, tinha interessado a Ross. Sabia que Vitória e ele viveriam sempre sob a influência de seu sogro se não partiam. Além disso, Ross desejava uma casa própria, um lugar onde iniciar sua manada de éguas, um lugar onde pudesse respirar com mais facilidade quando se encontrasse com estranhos.

 

Tinha falado ao velho solitário de comprar a terra. O homem, depois de lançar uma gargalhada, limitou-se a lhe entregar a escritura que o governo do Texas lhe tinha enviado anos antes.

 

Morrerei nesta cabana, filho havia dito. Não necessito para nada essa terra. Fui a Telhas ganhar cabelos brancos. Aquela guerra só significou para mim uma grande briga, onde me passa medo. Se quiser a terra, é tua.

 

Quando comentou a Vitória a possibilidade de mudar-se, ela mostrou mais entusiasmo do que ele tinha suspeitado. Ross preferia ir ele primeiro, ver a terra, começar a construir uma casa e, depois, voltar a procurá-la a ela e ao menino, mas Vitória tinha insistido em lhe acompanhar.

 

Será melhor partir enquanto papai estiver ausente, Ross. Vamos nos unir a essa caravana que estão organizando no condado de McMinn.

 

Em qualquer caso, Ross já tinha tido a mesma idéia. Viajar de grupo era mais seguro. Também constituía uma vantagem levar os pertences de casa, em lugar de tentar comprar coisas novas ao chegar. Muita gente emigrava a Telhas, mas ao chegar descobria que os utensílios domésticos não estavam disponíveis imediatamente.

 

Vitória o tinha considerado tudo como uma grande aventura e quis manter em segredo sua partida. Ross tinha discutido com ela. Não queria que seu sogro voltasse para casa e descobrisse que partiram sem dizer nenhuma palavra.

 

Por favor, Ross. A meu pai lhe ocorrerão mil motivos para não irmos, sobre tudo quando averiguar sobre o menino. Nunca nos deixará partir.

 

Ross introduziu duas fatias de bacon em um pão-doce restante e estendeu o sanduíche a Bubba.

 

Tinha economizado o bastante para comprar os cavalos com os que iniciar minha manada de éguas. Agora tenho ao Lucky e a cinco das éguas mais bonitas que vi em sua vida.

 

É claro que sim murmurou Bubba com a boca cheia.

 

Graças a quão cuidados você proporciona cada noite - riu Ross. Lucky está loucamente apaixonado por todas essas éguas.

 

A aprovação de Ross deleitou ao jovem. Os dois trocaram um sorriso de camaradagem. Então, ouviram o pranto do bebê, que tinha despertado, no interior da carroça.

 

Bubba virou a cabeça naquela direção. Através da lona ouviram tenros murmúrios maternais. Depois, silêncio. Bubba lançou um olhar inquisitivo a Ross, que tinha adotado uma expressão lúgubre enquanto cravava a vista na abertura da carruagem.

 

Essa..., essa garota, Lydia... Mamãe diz que vai ficar em sua carruagem para cuidar do menino a partir de agora.

 

Os lábios de Ross se apertaram sob o bigode negro.

 

-Sim, isso parece.

 

Inquieto e encolerizado, Ross sabia que devia desviar aquela energia em outra direção, do contrário estalaria. Levantou-se e caminhou até o final da carruagem. Abriu uma mala, tirou um espelho, uma navalha, uma broxa e uma jarra de barbear, e os colocou sobre a parte traseira. Depois, dobrou o pescoço da camisa para dentro. Uma panela com água se esquentava perto do fogo. Afundou a broxa de barbear na água, depois na jarra, e começou a produzir uma espuma espessa e abundante.

Aplicou-se a espuma no rosto e começou a eliminar o sabão da barba com destros movimentos da navalha. Bubba lhe contemplou, invejoso.

 

Estava em muito mal estado quando Luke e eu a encontramos disse, com o fim de cercar conversação.

 

Sim?

 

Ross introduziu a navalha na água e inclinou a cabeça para ver-se melhor no espelho que tinha pendurado em um prego.

 

É claro que sim. Atirada sob a chuva, pálida e imóvel como se estivesse morta.

 

A mandíbula que estava sendo barbeada se esticou.

 

Bem, parece que agora transborda de vida e boa saúde.

 

Ross desejava com todas suas forças não recordar a forma em que o abajur tinha jogado luzes e sombras sobre seus seios. A estranha cor dourada de seus olhos lhe tinha enfeitiçado para que não o esquecesse. Ross ordenou ao seu corpo que esquecesse. Não lhe obedeceu. Inclusive agora, reagiu.

 

Sua herança se estava manifestando. Não era decente se fixar no corpo da moça, quando o cadáver de sua esposa mal tinha começado a esfriar em sua tumba. Maldição! Aquela era a conseqüência de ser o filho de uma puta. Por mais que um se relacionasse com gente respeitável, por refinada que fosse a mulher com quem se casasse, mesmo que não o desejasse, a imoralidade que aninhava em seu interior acabava surgindo. Por mais rápido que corresse, não era possível afastar-se das raízes.

 

Bastava brincar um olhar a alguém como aquela rameira na carruagem, para que ele não tivesse mais controle que aparas metálicas atraídas para um ímã. Tinha fingido ser melhor do que era. Ele tinha surgido do lixo igual a ela, mas tinha conseguido deixar para trás.

 

Por Deus que preferia condenar-se antes que ser miserável de novo para aquela classe de vida. Por ela ou por quem fosse.

 

O menino soluçou e Ross soube que o tinha passado de um peito ao outro. Sua mão tremeu. Cortou-se com a navalha e amaldiçoou baixo. Bubba se removeu nervoso, e se perguntou o que haveria dito para que tivesse aparecido aquela profunda fenda no sobrecenho de Ross. Nunca tinha visto aquele homem tão fora de si. Sua mulher acabava de morrer claro. Essa devia ser a razão de seu cenho franzido quando se ajoelhou para ver-se melhor no espelho.

 

Quando crê que chegaremos ao Mississipi, Ross?

 

Pode ser que dentro de uma semana.

 

Viu alguma vez o Mississipi?

 

Várias vezes.

 

Ross secou o rosto com uma toalha e jogou ao chão a água do barbeado. Secou a navalha com cuidado e a guardou com outros utensílios na mala. Vitória lhe tinha presenteado o jogo de prata de lei no Natal passado. Tentou pensar nisso enquanto procurava não fazer caso da canção de ninar que se ouvia dentro do carro.

 

- Uau. Eu nunca o vi - disse Bubba, refirindo-se ao rio. Quase não posso esperar.

 

Ross olhou com afeto ao moço e os músculos de seu rosto se relaxaram.

 

O menino resplandeceu.

 

Quer que conduza hoje a carruagem?

 

Ross dirigiu um veloz olhar ao veículo.

 

Sim, agradeceria-lhe isso, a menos que seus pais lhe necessitem.

 

Não. Se mamãe tiver que fazer outra coisa, Luke conduzirá.

 

Nesse caso, selarei ao Lucky e irei caçar. Só comi o que me trouxeram outros desde... Fez uma pausa. Uma sombra de tristeza cruzou seu rosto. Tenho que conseguir um pouco de carne.

 

Vou avisar a minha família. Até mais tarde, Ross.

 

Bubba atravessou correndo o acampamento em direção à carreta dos Langston, onde se ouvia mamãe dar ordens como um sargento.

 

Ross olhou para a parte posterior da carreta. As lonas estavam fechadas. Tinha saído do carro ontem à noite, quando Mamãe acomodou à garota na carruagem que ele tinha compartilhado com Vitória. Não tinha entrado após.

 

Envolto-se em uma manta debaixo da carreta e utilizado a cadeira de montar a modo de travesseiro. Não lhe importava. Era sua forma quase habitual de dormir desde que era adolescente. O que não podia suportar era pensar que a moça estava na cama onde Vitória e ele tinham dormido, na cama onde Vitória tinha morrido.

 

Pensava que não agüentaria olhar Lydia, mas não ia permitir que aquela jovenzinha e sua língua obscena lhe expulsassem de sua propriedade. Abriu as cortinas de lona com resolução e cólera, e entrou na carreta.

 

Lydia estava dormindo. Lee, apenas um monte de carne infantil, se enrolava entre o braço protetor e o seio da moça. Sob o tênue algodão que o cobria, seu seio subia e baixava ritmicamente ao compasso de sua respiração. Seu cabelo se desdobrava detrás de sua cabeça em um matagal de cachos.

 

Não ia deixar que lhe surpreendesse olhando-a embevecido se despertava. Se ia caçar, necessitaria balas. Fez muito ruído para procurar a caixa de munições, embora soubesse exatamente onde estava. Deixou cair várias balas em sua mão e as guardou no bolso da jaqueta.

 

Quando se voltou, ela estava olhando. Jazia imóvel e em completo silêncio, o qual era muito irritante. Era como se ele fosse o intruso, e não ao reverso. Encolerizado, tirou um lenço de seu baú e o atou ao redor de seu pescoço. Ela não falou nem se moveu, mas seguiu com o olhar todos seus movimentos por que não dizia, algo? Tampouco havia dito grande coisa à noite anterior. Talvez fosse atrasada.

 

Gostaria de um pouco de café? Perguntou irritado, quando já não pôde agüentar por mais tempo aquele olhar intenso e silencioso.

 

A moça assentiu, e os cachos que rodeavam sua cabeça se agitaram.

 

Sim.

 

Detestou-se, por seu oferecimento e saiu disparado da carreta. Não tinha querido ser cordial, nem muito menos a tratar com atenção como se fosse um fodido criado. Levantou o pote de café e verteu o líquido quente em outra xícara de lata. Algumas gotas caíram sobre sua mão, e lhe deram bons motivos para blasfemar como um possesso. Sentiu-se melhor. Esforçou-se por reprimir as blasfêmias desde que Vitória Gentry se fixou nele pela primeira vez, quando jogava feno nos estábulos de seu pai.

 

Ross procurou conter seu mau humor, entrou com a xícara na carreta, agachou-se para acomodar sua estatura à altura do carro e ofereceu o café à moça.

 

Lydia umedeceu os lábios com a língua.

 

Possivelmente deveria você apartar Lee. Tenho medo de derramar o café sobre ele.

 

Ross olhou primeiro a taça fumegante, logo ao menino, e depois à garota deitada na cama. Nunca havia sentido tão torpe e impotente, exceto possivelmente quando tinha jantado pela primeira vez com Vitória e seu pai em seu elegante comilão, mas nem sequer então tinha experimentado a sensação de que seus braços se alargaram e suas mãos aumentado de tamanho até extremos exagerados.

 

Resmungou algumas blasfêmias, deixou a xícara a um lado e se ajoelhou para agarrar ao seu filho. Parou em seco de repente, o com as mãos esdeitadas, mas imóveis, enquanto olhava ao bebê adormecido. Era impossível levantar Lee sem tocá-la.

 

A moça pareceu dar-se conta disso ao mesmo tempo em que Ross, porque levantou os olhos até que se encontraram com os dele. Baixou-os imediatamente. Tentou apartar do menino, pôr distância entre ambos, mas seu corpinho rodou e voltou a amoldar-se com o da jovem.

 

Maldição! Sempre ia ser assim? Ia permitir que lhe pusesse nervoso e assustadiço como um gato em sua própria casa? Ross lançou as mãos adiante. Uma se dirigiu às costas do menino. Deslizou a outra entre Lydia e a cabecinha de Lee. Os nódulos se afundaram na exuberante curva de seu seio. Sua testa se cobriu de suor. Levantou o menino a toda pressa e se virou.

 

Espere! Chamou em voz baixa Lydia.

 

Ross a olhou. Com pressas, tinha pego o tecido de sua camisola junto com a manta de Lee. O objeto se esticou sobre seus seios, de forma que seus grandes mamilos escuros ficaram perfilados com detalhe. Ross a contemplou como enfeitiçado.

 

Lydia estendeu a mão, puxou o tecido e a liberou de seus dedos, que não podiam afrouxar sua presa por temor que Lee caísse. Quando por fim a camisola se soltou, Ross caminhou por volta de um dos tamboretes e se sentou. De fato, desabou-se. Todo seu corpo tremia.

 

- Apresse e bebe o café - murmurou, sem olhá-la enquanto a moça se sentava.

 

Lydia se encolheu levemente ao notar a sensação de tensão entre suas coxas, mas a dor diminuía cada dia. Aquela manhã' tampouco se sentia febril. Agradecida, agarrou a xícara que o senhor Coleman tinha ofertado e bebeu.

 

Olhou ao homem por cima do bordo da taça. Ross contemplava ao seu filho adormecido com uma expressão que suavizava o seu rosto arisca.

 

Dormiu toda a noite - disse em voz baixa.

 

Acredito que não lhe ouvi até esta manhã.

 

Despertou faminto.

 

Vibravam risadas em sua voz, e Ross voltou a cabeça para ela. Olharam-se confusos e depois desviaram a vista.

 

-Está molhado, verdade?        

 

Ross lançou uma risada quando elevou ao menino e viu uma mancha úmida na perna da calça.

 

Sim.

 

Não sei trocar suponho que Mamãe pode me ensinar. Tem fraldas?     

 

Ross pareceu perplexo por um momento.

 

Não sei. Procurarei. Pode ser que Vitória. Fez uma pausa depois de pronunciar seu nome. Pode ser que tenha posto algumas na bagagem.

 

Lydia bebeu lentamente seu café

 

Lamento por sua esposa - o seus olhos eram sombrios e duros quando ele a olhou, antes de voltar a vista para o seu filho. Acariciou-lhe a testa com o dedo. Sua mão avultava o dobro do rosto do bebê. Via-se escura ao lado da pele avermelhada do menino.   

 

Está pensando. Por que não morri eu no lugar de sua mulher, verdade?

 

Sua cabeça morena se elevou com brutalidade O movimento foi tão súbito que o bebê se sobressaltou embora voltasse a relaxar-se sobre o colo de seu pai. Ross se sentiu envergonhado de que ela tivesse adivinhado seus pensamentos, mas foi incapaz de desculpar-se. Em lugar de negar o que era tão evidente, formulou uma pergunta.

 

O que estava fazendo no bosque dando a luz completamente sozinha?

 

Não tinha outro lugar aonde ir. Ocorreu onde me deixei cair.     

 

A resposta lhe irritou. Era injusto que Vitória estivesse enterrada em sua tumba, enquanto aquela mulher, que não lhe chegava nem à sola dos sapatos, dava de mamar ao seu filho. As víceras de Ross queimavam ante essa cruel realidade.

De quem foge? Da lei?

 

-Não! Gritou ela, estremecida.

 

De um marido?

 

A jovem evitou seus olhos.

 

Nunca tive marido.

 

-Hummm...! Grunhiu o homem

 

Um brilho iluminou os olhos da jovem quando se voltou para ele de novo. Como se atrevia a julgá-la? Como podia saber o que tinha sofrido? Um homem a tinha submetido à degradação; não voltaria a ocorrer nunca mais.

 

Tinha razão ontem à noite, senhor Coleman, quando disse que foi melhor para meu filho morrer. Também tivesse sido melhor que eu tivesse morrido. Eu o desejava. Mas não morri.

 

Lydia ergueu o queixo, e o cabelo se ondulou ao redor de sua cabeça.

 

Em qualquer caso, eu estou aqui, e sua mulher não. Deus quis que acontecesse dessa forma. Eu tenho tanta culpa como você. O pequeno Lee necessita dos cuidados de uma mãe, e eu vou dar.

 

Dará-lhe de mamar e basta. Ele tinha uma mãe.

 

Que está morta!

 

Ross se levantou de um salto do tamborete lançando um grunhido que torceu seus lábios

 

Como sua experiência com as mãos de Clancey lhe tinham ensinado o que devia fazer, Lydia se enrolou em um rincão da carreta e cobriu a cabeça com os braços.

 

Não, por favor!

 

Que demônios ... ?

 

O que passa aqui? Perguntou Mamãe, enquanto entrava no interior da carreta. Os dois são a fofoca de toda a caravana. Leoa Watkins está escandalizada porque passaram a noite juntos.

 

Eu dormi fora - disse Ross entre dentes. A garota pensou que eu ia bater nela!

 

Sei - replicou Mamãe, e também todo mundo, porque eu me preocupei que todos se inteirassem. Bem, passe-me a esse menino. É um milagre que não quebrou o pescoço, pela forma em que o sustenta. Agarrou Lee dos braços de seu pai. Por que esta Lydia encolhida ali, como se a tivessem golpeado? Perguntou ao homem apertando os lábios. Que lhe passa,Lydia?

 

-Nada - contestou em voz baixa a jovem, envergonhada de sua covardia aparente.

 

Mamãe a examinou com atenção; depois, voltou-se para Ross e o olhou de cima abaixo, a modo de recriminação silenciosa. Saia daqui. Anabeth e eu cuidaremos de Lydia. Bubba diz que hoje vai conduzir por você porque quer sair a caçar, e a verdade, acredito que é uma boa idéia. Afastar-se daqui pode ser que esclareça suas idéias a respeito de algumas coisas. Saia.

 

Poucos se opunham às ordens de Mamãe. Ross lançou um olhar sinistro em direção à moça, que já não parecia aterrorizada, mas lhe observava com cautela. Depois, saiu como uma exalação Uma vez fora, colocou o chapéu, jogou a cadeira de montar sobre o ombro, apoiou o rifle sobre o outro e se encaminhou à zona onde tinham reunido aos cavalos para passar a noite.

 

Os dois filhos maiores dos Langston o viram sair poucos minutos depois do acampamento, no lombo do poderoso garanhão, em direção ao espesso bosque.

                 

Sabe o que penso? Pergunto Luke ao seu irmão.

 

Não, e não me interessa, mas estou seguro de que me vais dizer isso igualmente.

 

Acredito que o senhor Coleman é um exímio filho da puta quando quer..

 

Bubba contemplou com ar pensativo a imagem cada vez, mas longínqua do cavalo e seu cavaleiro. Também tinha visto aquela feroz expressão no rosto de seu ídolo.    

 

Pode ser que tenha razão, Luke admitiu. Pode ser que tenha razão.

 

...e pelas noites, quando todo mundo tinha jantado, eles passeavam pelo acampamento, agarrados pela mão, e paravam e conversavam com as pessoas, como se estivessem de excursão e não em uma caravana.

 

Lydia estava deitada e escutava o bate-papo de Anabeth. A moça estava tirando as pertences pessoais de Vitória Coleman de uma cômoda e as guardava em um baú. Mamãe tinha sugerido que o fizesse para deixar mais lugar a Lydia e o bebê na carreta. Ross tinha acessado a contra gosto.

 

«Ele dizia e fazia tudo a contra gosto» pensou Lydia com um suspiro de cansaço. Tinha passado os últimos três dias deitada na carreta, recuperando-se de suas penosas experiências e dando de mamar a Lee. Anabeth ficava com ela durante o dia. Mamãe ia ver a cada manhã e lhe levava comida pelas noites. Ross caçava para os Langston em troca de que Mamãe lhes cozinhasse.

Nunca comia dentro do carro com Lydia, que apenas o via. Ross trabalhava ao serviço da caravana. Saía freqüentemente de exploração ou cuidava de cavalos doentes pertencentes a pessoas que respeitavam seu conhecimento dos animais. Bubba conduzia a carreta de Coleman. Se Ross entrava no carro, procurava não olhá-la. Se o fazia, um brilho maligno iluminava os seus olhos.

 

Lydia atribuía sua aspereza à dor que sentia. Tornou-se muito mal a morte de sua esposa, Vitória Coleman deveria ter sido alguém muito especial. Uma autêntica dama, a julgar pela detalhada descrição de Anabeth.

 

Às vezes, quando o sol era forte, ela se sentava com esta sombrinha de renda sobre o ombro no assento da carreta. Anabeth abriu o objeto rosa de renda e seda. Lydia nunca tinha visto algo tão bonito em toda sua vida. Lamentou que Anabeth o fechasse e guardasse de novo no baú, Coleman e ela falavam entre sussurros, como se tudo o que se dissessem fosse um grande segredo para o resto do mundo. A moça exalou um profundo suspiro. Oxalá o senhor Coleman me olhasse como olhava a ela. Derreteria-me imediatamente.

 

A Lydia não lhe ocorria pensar em nada agradável procedente das olhadas Coleman lhe dirigia. Não lhe ocorria imaginar nada agradável que pudesse ocorrer entre um homem e uma mulher, mas de vez em quando recordava como tinha sido tudo quando seu verdadeiro papai estava vivo.

 

Viviam em uma cidade, em uma casa grande, com janelas amplas e cortinas de crochê. Mamãe e papai estavam acostumados a rir juntos. Os domingos, quando visitavam os vizinhos, papai segurava mamãe pela mão. Recordava-o, porque ela as separava e agarrava a cada um pela mão. Seus pais brincavam de levantá-la do chão. Lydia considerava que possivelmente fosse possível que os homens nem sempre fizessem coisas más às mulheres.

 

Anabeth voltou a falar.

 

A pele da senhora Coleman era tão suave e branca como a nata fresca. Era muito bonita, com aqueles grandes olhos castanhos. Seu cabelo era da cor da barba do milho, e parecia igualmente suave. Nunca usava um cabelo fora do lugar.

 

Lydia tocou seu cabelo. A manhã depois de transladar-se à carreta do senhor Coleman, Mamãe e Anabeth a tinham banhado. Tinham-na esfregado até que a pele lhe ardeu. Tinham dedicado certo tempo e esforços a eliminar resíduos de seu cabelo. Ao dia seguinte, agradecia que Anabeth levasse e trouxesse baldes de água, e tinham conseguido lavá-lo, mas nunca ia parecer com a barba do milho.

 

O senhor Coleman aparentou surpresa ao vê-la penteada e lavada aquela noite, quando entrou na carreta para procurar uma camisa limpa, mas não fez comentários. Limitou-se a emitir um grunhido.

 

Se estava acostumado a cabelos cuja textura recordava a barba de milho, Lydia compreendeu que o seu tinha devido lhe repelir. Embora fosse absurdo, incomodou-lhe.

 

Está cansada? Perguntou Anabeth quando se deu conta de que a atenção de seu público fraquejava. – Mamãe disse que se ficasse cansada e sonolenta, fechasse o pico e te deixasse descansar.

 

Lydia riu. Tinha chegado a apreciar a todos os Langston, em particular a aquela moça tão franca e sincera.... e tolerante.

           

Não, não estou cansada. Dormi bastante durante os últimos dias para não ter sono nunca mais, mas Lee despertará logo, com uma fome de urso.

 

Introduziu a mão na caixa que utilizavam a modo de berço e aplaudiu as costas do bebê. Era um milagre o muito que gostava do menino. Depois da morte de sua mãe, Lydia duvidou que voltasse a gostar de outro ser humano. Talvez gostasse do menino porque dependia por completo dela e era tão pequeno que não podia lhe fazer dano.

Não teria outro remédio que querê-lo a sua vez.

As carretas se detiveram justo quando Lee terminou de mamar. Lydia abotoou o vestido enquanto Bubba conduzia aos cansados cavalos até integrar o carro no círculo que formavam outros. Assim que os desenganchou, Mamãe entrou na carreta.

 

Você gostaria de sair daqui? Perguntou a Lydia.

 

Quer dizer me levantar? Sair da carreta? Perguntou Lydia, nervosa. Sua única experiência com outros membros da caravana tinha sido com o senhor Grayson e a senhora Watkins. Não estava preparada para enfrentar ao escrutínio e o desprezo das outras pessoas.

 

Não se sente com forças?

 

Acredito que sim respondeu Lydia com cautela, mas não tenho roupas.

 

Trouxe-te algo - disse Mamãe, e deixou cair um fardo. É roupa de Anabeth, provavelmente não seja de sua largura, mas terá que se arrumar com isso, a menos que queira usar essa camisola de agora em diante.

 

Lydia se levantou trêmula, mas logo esteve banhada e vestida com meias bem remendadas, calças e anáguas.

 

É miúda como um passarinho - comentou Mamãe, enquanto examinava os esbeltos quadris e coxas de Lydia. Nunca entenderei como pôde levar a um menino em seu seio.

 

Não se podia dizer o mesmo dos seios. O sutiã do vestido não os abrangia.

 

Maldição - disse Mamãe, irritada. Bem, abotoaremos até onde possamos.

 

Lydia acreditou que ia explodir por causa da pressão do tecido, mas ao menos ia coberta.

 

Luke tinha aplicado betume a suas botas e trocado os cordões. Lydia se sentou no tamborete para atá-los, enquanto Anabeth passava uma escova por seu cabelo.

 

Agora sim está bonita - disse Mamãe com orgulho. Cruzou os braços sobre o estômago enquanto examinava sua obra. O senhor Coleman me trouxe umas codornas que caçou hoje, e já pus a cozer um guisado em seu fogo. Seria um prazer para ele voltar para sua carreta e ver que lhe espera um caloroso jantar, verdade? Está cuidando de seus cavalos. Por que não aproxima a cama de Lee à parte posterior e sai para tomar um pouco de ar? Sentará-te bem.

 

Lydia permitiu com acanhamento que a puxassem para fora. Ficou assombrada pela atividade que se desenvolvia ao seu redor. Os sons que tinha escutado durante quase uma semana se aparelhavam agora com suas atividades correspondentes. As mulheres estavam inclinadas sobre as fogueiras e as cozinhas portáteis preparando o jantar. Os homens se dedicavam a desenganchar e escovar os cavalos, carregavam lenha, transportavam água. Os meninos brincavam e gritavam, corriam entre as varas dos carros.

 

Aí vem Luke, que te traz água do manancial - Mamãe tinha organizado bem as coisas. - Por que não põe a ferver o café? Estou segura de que o senhor Coleman agradecerá.

 

Sim, farei-o - aceitou sem fôlego Lydia. Tinha que fazer algo. As pessoas começavam a fixar-se nela. Foi consciente das cotoveladas, olhada-las curiosas e especulativas, as conversações sussurradas em voz baixa.

 

Tenho que ir preparar nosso jantar, estarei ali se me precisa indicou Mamãe.

 

Lydia ficou sozinha. Dedicou-se a atiçar o fogo, remover o aromático guisado, preparar o café e inspecionar sem necessidade a Lee. Quando não teve nada mais que fazer, sentou-se no tamborete que Luke tinha tirado da carreta e contemplou o fogo. Por nada do mundo levantaria os olhos para ver os olhares de curiosidade que todos lhe dirigiam.

 

Assim a encontrou Ross. Parou-se em seco quando a viu sentada, vigiando a caldeirão do guisado. O sol do entardecer prendia fogo ao seu cabelo vermelho. Suas faces estavam acesas por causa do acanhamento e o calor da fogueira. Sua silueta era muito mais esbelta do que ele tinha imaginado. A volumosa camisola tinha oculto a delicada estrutura óssea e as suaves curva da moça. Quase parecia uma menina, sentada como se obedecesse as ordens de um pai estrito. Até que se deu a volta. Então, a ilusão se fez pedacinhos. Era uma mulher.

 

Quando Lydia ouviu que o homem se aproximava, levantou-se de um salto e derrubou o tamborete. Por um momento, seus olhares se encontraram. Na dela, aparecia a cautela. O olhar de Ross era vítreo, como se acabasse de receber um golpe e não soubesse de onde tinha vindo.

 

O pescoço de Lydia estava um pouco arqueado para poder observá-lo melhor. Sua garganta era esbelta e larga, e possuía uma fragilidade que despertava o desejo de tocá-la. Ross não pôde evitar que seus olhos descendessem da base de seu pescoço, que palpitava em uma frenética cadência, para a profunda fenda de seus seios. O tecido e os botões se esticavam perigosamente para conter seu exuberante busto maternal. Ross descobriu que lhe resultava impossível apartar a vista de seus seios.

 

A mão de Lydia ascendeu vacilante para o último botão, que tinha capturado a atenção do homem.

 

Mamãe pensou que necessitava ar fresco.

 

Onde está Lee?

 

Estava enfurecido, e sua voz o delatava. Estava zangado porque a moça parecia pura e não perversa como bem sabia ela que era, e porque, por um segundo fugaz, alegrou-se de vê-la lhe esperando. Rogou a Deus que pudesse esquecer a boca de Lee chupando seu mamilo, que pudesse esquecer sua cor. Desejou não pensar em uísque ardente cada vez que olhava seus olhos. O mais enlouquecedor de tudo era o seu nervoso costume de passar a língua pelas comissuras dos lábios cada vez que falava.

 

Lee está aí. Assinalou à parte posterior, onde Lee dormia em sua cama improvisada. Assim posso lhe ouvir se chorar.

 

Apoiou as mãos sobre a saia do vestido de chita azul e esperou que Ross não a repreendesse ali fora, onde todo mundo se inteiraria. Porque o mais provável seria que gritasse a sua vez e se desacreditaria ainda mais diante de todos da caravana.

 

Ross se aproximou da caixa e olhou em seu interior. Um fugaz sorriso obteve que os extremos de seu bigode se agitassem. Aplaudiu com suavidade o traseiro do menino, que estava um pouco levantado. Lee preferia dormir de barriga para baixo, com os joelhos encolhidos sob o corpo.

 

Quando Ross deu a volta, viu que Lydia também sorria com ternura a Lee. Seus olhos se encontraram de novo, por um breve instante, antes de voltar a separar-se.

 

Há café feito.

 

A jovem assinalou o fogo.

 

Obrigado.

 

Ele pendurou de um gancho o laço que levava a ombro. Apoiou o rifle contra a roda do carro. desabotoou-se o cinturão do revólver e desenredou a correia que rodeava sua coxa. Lydia nunca tinha visto um homem que levasse a pistola sujeita à perna daquela maneira. Notou uma sensação estranha no estômago quando viu que a tirava.

 

Lydia serviu uma xícara de café e a estendeu, com cuidado de não derramar nenhuma gota, em que pese a que suas mãos tremiam. Os dedos de Ross eram largos e redondos, de aspecto forte. Os nódulos estavam salpicados de pêlo escuro, que ressaltavam contra sua pele bronzeada. Retirou a mão assim que ele segurou a xícara. Espremeu-a com a outra mão, nervosa.

 

O guisado cheira bem.

 

Preparou-o Mamãe.

 

Ah. Bom, em qualquer caso cheira bem.

 

Sim, é claro que sim.

 

Não se olharam. Ross terminou de beber o café em silêncio. Os ruídos do acampamento ressonavam ao seu redor. Os dois estavam surdos a quase tudo o que lhes rodeava e se sentiam dolorosamente conscientes de sua mútua presença.

 

Acredito que irei lavar-me - disse ele por fim.

 

- Luke trouxe água do rio. O guisado estará a ponto quando tiver terminado.

 

Ross ficou detrás da carreta e encheu uma bacia com água do balde. Tirou a camisa e se perguntou por que suava tanto. Molhou a cabeça e o peito com água uma e outra vez, mas sua pele se negava a esfriar-se.

 

Lydia escutou o ruído que Ross fazia ao lavar-se até que Marynell e Atlanta Langston chegaram correndo. A mão suada e suja de Marynell segurava um ramo de escrofularias e botões de ouro..

 

Trouxemos flores para você, Lydia disse Marynell, e exibiu um sorriso falhado. Dois dias antes, tinha mostrado a Lydia o dente ensangüentado que Zeke lhe tinha extraído a noite anterior.

 

Que bonitas! Exclamou Lydia. Agarrou o inclinado e molhado buquê de flores silvestres da mão estendida da menina.

 

- Cheira - ordenou Marynell, e empurrou as flores para o nariz de Lydia.

 

Com certeza cheiram bem - disse Atlanta, que era mais tímida.

 

Ela sabia o que as meninas tramavam, mas não ia estragar a sua diversão. Aproximou um ranúnculo ao nariz e fingiu cheirar. Quando baixou o ramo, viu o pólen amarelo pego ao seu nariz. As meninas estalaram em gargalhadas.

 

Enganamos você, enganamos você - cantaram a coro.

 

O que têm feito, suas travessas?

 

Lydia recordava que uma vez sua mãe e ela tinham feito o mesmo. Ela nunca tinha tido a ninguém com quem brincar. Era estupendo. Esfregou a mancha amarelada de seu nariz.

 

As flores sentariam muito bem no vestido- disse Marynell. Verdade, Atlanta?

 

Afundou o cotovelo nas costelas de sua irmã.

 

É claro que sim.

 

Eu também acredito.

 

Lydia desabotoou o último botão que Mamãe tinha conseguido sujeitar. Respirou com mais facilidade, mas se sentiu alarmada ao ver a quantidade de busto que transbordava do tecido. Quando introduziu os caules das flores pelo buraco do botão, os brotos encheram o espaço e cobriram em parte a fenda de seus seios.

 

Se tivesse olhado em um espelho, teria podido dar-se conta de como as flores contribuíam a dar um aspecto mais sensual a sua aparência, mas ela não teria sabido reconhecê-lo, nem sua sensualidade nem sua sedução. Tinha estado com um homem, tinha dado a luz, mas era inocente no referente a assuntos românticos. Tinham-na obrigado a copular. Era incapaz de imaginar que uma mulher convidasse por sua aparência a ser desejada.

 

Ross, que seguia ao outro lado da carreta, era consciente da conversação entre a moça e as meninas Langston, mas estava sumido em seus pensamentos. Tinha resultado agradável voltar para carro e encontrar o jantar no fogo e o café feito, mas a garota o devia. Ele a tinha acolhido, não? Quando ela não tinha nem um teto sob o que proteger-se, acaso ele não a tinha recolhido e permitido que passasse dias e noites em sua própria cama?

 

Vestiu uma camisa limpa. A garota estava se levando muito bem com Lee. Não podia negá-lo. O menino crescia um pouco mais a cada dia. Tinha engordado desde que lhe dava de mamar. Já não tinha aquele aspecto raquítico e doentio.

 

Ross levantou o espelho e penteou para trás o cabelo molhado. Quando se tinha penteado a última vez? Não se lembrava. Tampouco sabia, nem que lhe matassem, por que se tomava a moléstia agora de fazê-lo. Talvez porque Vitória lhe tinha ensinado que um cavalheiro devia fazer algum esforço por aparecer apresentável na hora do jantar, embora levasse suas roupas de trabalho. É obvio, não tinha nada que ver com o fato de que a moça se limpou. Não tinha nada que ver com ela. De todos os modos, os dois teriam que viver juntos durante um tempo. Assim Ross supunha que a vida seria mais agradável se eram amáveis um com o outro.

 

Mamãe tinha chamado a suas filhas do outro extremo do acampamento e as duas partiram a toda pressa. Lydia afundou um concha de sopa no guisado e o provou. Estava delicioso e quase no ponto.

 

- Boa noite.

 

A voz era masculina e melodiosa, com a pronúncia lenta do Sul. Não tinha nada de intimidadora. Não obstante o coração de Lydia se acelerou. Não queria que ninguém falasse com ela. Tão somente uns momentos antes, Leoa Watkins e uma adolescente que devia ser sua filha tinham passado muito perto, com a vista cravada na frente e o nariz levantado. A moça tinha arrojado um olhar de curiosidade a Lydia. A senhora Watkins lhe tinha beliscado o braço com força para repreendê-la. Se o homem que acabava de lhe falar pretendia ridicularizá-la, ela se em carregaria de lhe tirar a vontade.

 

Como não queria demonstrar seu temor, Lydia elevou os olhos em aberto desafio. O homem era jovem, talvez mais que o senhor Coleman. Tirou o chapéu de aba larga e deixou ao descoberto seu cabelo castanho, suave e encaracolado. Ia vestido com um traje branco e um colete azul; uma corrente de relógio dourada pendurava de seus bolsos. Tinha os olhos tristes, melancólicos e de um azul bondoso. A pele era pálida, salvo nas faces, que estavam vermelhas.

 

Lydia não disse nada. Ficou surpreendida ao descobrir em seu rosto uma franca curiosidade, talvez cordialidade, mas não censura.

 

Permita que me presente, senhorita Lydia. Winston Hill, ao seu serviço. Este é Moisés. Referia-se a um homem negro, alto e majestoso, que se erguia imóvel ao seu lado. Levava um fúnebre traje negro, camisa branca e gravata negra estreita. Seu cabelo e sobrancelhas estavam veteados de pêlos brancos, mas seu rosto carecia de rugas, eternamente jovem.

 

Lydia estava tão assombrada pela aparição daqueles dois homens e por suas educadas maneiras que disse a primeira coisa que lhe veio à cabeça.

 

Sabe meu nome.

 

Winston Hill sorriu.

 

Peço desculpas pelos falatórios que percorrem a caravana, mas sim, todo mundo ouviu falar de você e de sua notável beleza. Alegra-me dizer que, esta vez, os rumores não eram exagerados.

 

Lydia se ruborizou, pois jamais tinha ouvido semelhante elogio para sua aparência.

 

Encantada de lhe conhecer - respondeu.

 

O mesmo digo. Está cuidando do filho do senhor Coleman. Uma ocupação louvável e caridosa, tendo em conta sua recente perda.

 

Lydia nunca tinha ouvido alguém que falasse daquela maneira. Era bonito. As palavras brotavam de seus lábios bem formados pouco a pouco, como mel.

 

Obrigado, mas para mim não é nenhum problema. É um bebê encantador.

 

Não me cabe a menor duvida. Admirei a beleza e valentia de sua mãe, por não mencionar o ânimo de seu pai. Levou um lenço de linho à boca e tossiu várias vezes. Deu a impressão de que se sentia ferido por isso, mortificado. Moisés e eu lhe desejamos boa noite. Se puder-mos servi-la em algo, nos avise.

 

Obrigado - gaguejou Lydia, confundida por sua afetação. Farei-o.

 

Isso espero. Seu sorriso era inocente e sincero. OH, boa noite, senhor Coleman.

 

Lydia se voltou e viu o Ross detrás dela, ao final da carreta. Seu aspecto era tão duro e indomável como suave e cândido era o senhor Hill. Seu queixo se levantou apenas como saudação.

 

Senhor Hill, Moisés - disse - estamos lhe impedindo de jantar. Senhorita Lydia.

 

Antes que a jovem adivinhasse sua intenção, inclinou-se para frente, agarrou sua mão e a levou a boca. Seus lábios roçaram o dorso. Olhou-lhe estupefata enquanto o homem segurava o chapéu, dedicava-lhe uma inclinação de cabeça e se afastava, com o Moisés ao seu lado.   

 

Lydia ficou olhando a mão que lhe tinha beijado, desconcertada pelo gesto a secou com a outra manga e olhou ao senhor Coleman. Seu rosto estava sombrio e sinistro como uma nuvem de tormenta. Quando adotava aquela expressão, o bigode quase ocultava o seu lábio inferior.

 

O jantar está preparado - disse Lydia com voz rouca.

 

Voltou para fogo, agarrou um dos pratos de cerâmica que Mamãe lhes tinha deixado e serviu uma generosa porção de guisado. Deu meia volta e estendeu o prato para Coleman.

Ross não o segurou. Tinha os braços caídos aos lados, com os punhos fechados, como se quisesse golpear algo. Os ossos de sua mandíbula se destacaram quando apertou os lábios. O sol se pôs, dando passo ao crepúsculo. A luz purpúrea dava ao seu rosto um aspecto mais sombrio, mais ameaçador.

 

Seus olhos verdes brilhavam na escuridão. Lydia viu que se desviavam de seu rosto às flores sujeitas entre seus seios. Como estava agitada e sentia certo medo dele, sua respiração era irregular. Seus seios tremiam sob o vestido e as flores apoiadas contra sua pele vibravam como se estivessem vivas.

 

Ross as olhou durante um longo momento, em silêncio, e ela desejou que não o fizesse. Se não tivesse estado sustentando o prato, teria se escondido daqueles olhos clamejantes e acusadores.

 

Pequena puta – vaiou - Importa-me uma merda quem é ou de onde saiu, mas enquanto viva sob meu teto e dê de mamar para mim filho, não permitirei que atraia a clientes.

 

Vitória teria desmaiado se tivesse escutado aquelas palavras, mas Lydia não o fez. Seus olhos adquiriram um feroz brilho dourado e deu a impressão de que seu cabelo se encrespava de indignação. Avançou três passos para ele e lhe olhou à cara. De um golpe, afundou o bordo do prato em suas costelas. Ross logo que teve tempo de agarrar o prato, antes que ela o soltasse e se afastasse.

 

A moça girou em redondo, enfurecida; o bordo do vestido roçou suas canelas. Indiferente à dor que ainda rasgava a sua virilha, subiu à carreta de um salto e fechou as lonas.

 

Ross, enquanto blasfemava e se esfregava com ar ausente as costelas doloridas, deixou-se cair sobre o tamborete e começou a engolir o guisado. Não o saboreou, apenas o mastigou, mas com cada bocado se desfrutava em seu rancor, como um animal doente de uma pata ferida.

 

Maldita moça - disse, enquanto deixava o prato a um lado e se servia café. O que pretendia exibindo-se com aquele vestido ajustado, paquerando com o maricas presunçoso do Hill? Ao dia seguinte, a expulsaria a pontapés. Possivelmente conseguisse que a mulher dos gêmeos se encarregasse de dar o seio a Lee. Desfaria-se da garota embora tivesse que colocar leite de vaca no estômago de seu filho.

 

- Tenho a impressão de que não é você tão inteligente como eu tinha acreditado.

 

A voz de Mamãe surgiu da escuridão e interrompeu suas coléricas meditações. Entrou no círculo de luz que arrojava o fogo, com um pano para secar os pratos sobre o ombro. Suas mãos estavam avermelhadas porque tinha esfregado a fundo os tachos de cozinha.

 

- Terminou?

 

Indicou com uma sacudida de cabeça o seu prato sujo.

 

Ross assentiu e bebeu outro sorvo de café. Mamãe verteu água sobre o prato e o secou com o pano.

 

Vejo que podemos guardar o guisado para amanhã, posto que só um de vocês comeu.

 

Ross se removeu no tamborete, inquieto.

 

- Sim - continuou a mulher, é uma pena que você não seja tão inteligente como eu tinha pensado ao princípio.

 

Ross vaiou entre dentes, exasperado, mas mordeu o anzol.

 

- Por que não sou tão inteligente?

 

Assim proporcionou a Mamãe a oportunidade que desejava.

 

Teve a sorte de conseguir uma babá para o seu filho, quando sua mulher morreu. Há dias Lee teria morrido se não fosse pela moça, para quem não demonstra a menor compaixão ou amabilidade.

 

- Compaixão! Gritou Ross, que ficou em pé e começou a passear acima e abaixo como uma fera enjaulada. Todos os componentes da caravana são conscientes da falta de intimidade. Baixou a voz de maneira significativa. - Amabilidade? Ela se exibe diante de todos os homens da caravana. Leva esse vestido indecente, com essas... interrompeu-se com brutalidade. Exibe-se.

 

Se referere-se ao senhor Hill, fui testemunha da cena. Ele foi o primeiro em lhe dirigir a palavra, não ao reverso. E ela parecia temerosa como um coelho, tanto que não se atrevia nem a lhe olhar.

 

Os dentes de Ross mordiscaram o bigode, enquanto não cessava de caminhar em furiosos círculos.

 

Quanto ao seu vestido, é o único que pudemos lhe proporcionar. O que usava quando os meninos a trouxeram era um montão de farrapos.

 

Não podia ser pior que o que leva agora. As costuras estão apertadas.

 

Mamãe fez uma careta irônica, mas a escuridão a ocultou. O senhor Coleman estava muito abstraído em seu passeio para reparar em seu sorriso perspicaz.

 

É lixo e não quero tê-la perto de mim ou de meu filho.

 

O sorriso de Mamãe desapareceu. Agarrou ao homem do braço e lhe obrigou a voltar-se. Era quase tão alta como ele.

 

- Como sabe tudo isso? Ela não fala como se fosse lixo, verdade? Sua linguagem é instruída, se quer saber minha opinião. Fixou-se na forma em que move as mãos. Faz-o com muita graça. Come com educação. Nunca vi um lixo que caminhe e se mova como uma dama, igual a ela.

 

Mamãe soltou o braço de Coleman e se ergueu em toda sua estatura.

 

- Parece que você dá muita importância às origens e a família das pessoas. Eu nunca o tenho feito. Sempre pensei que o que conta é a pessoa, não seus pais. Será melhor que não a julgue com tanta dureza. Poderia ser a filha de alguém a quem você não quereria ofender. A garota se meteu em confusões e teve um filho. Acontece com muitas mulheres. É sabido que você e a senhora Coleman deram algumas quedas na palha do estábulo de seu pai antes de casar-se.

 

Ross apertou os lábios.

 

Vitória não era assim respondeu, irritado.

 

Mamãe se limitou a rir do que Ross havia dito e de como o havia dito.

 

Toda mulher é assim com o homem adequado. E se sua mulher não o era, teria que havê-lo sido.

 

Não a seguirei escutando...

 

Não vim para falar mal dos mortos - disse Mamãe, e suavizou o tom de forma considerável. Ross tinha o aspecto de um homem desventurado, e ela acreditava saber o motivo. Zeke estava de acordo com ela. Tinham discutido ontem à noite, quando tinham decidido dormir na carreta, com os meninos fora. - Só vim para lhe recordar que essa garota, seja quem for ou o que seja, salvou a vida de seu filho. Esta noite ela tentou lhe recompensar por havê-la acolhido. Queria ter um bom jantar preparado para você. - Não era de tudo certo. Tinha sido idéia de Mamãe, não de Lydia, mas a Mamãe não a preocupava desviar-se da verdade quando era necessário. - E você só soube comportar-se com a mesma altivez e arrogância da ressecada senhora Watkins.

 

Mamãe quadrou os ombros.

 

- Parece-me que não fica outra alternativa que fazer feliz à garota. Do contrário, ela poderia largar-se daqui e deixar que seu filho se arrumasse sozinho. Eu, em seu lugar, desculparia-me pelo comportamento de esta noite, senhor Coleman.

 

Deu meia volta e se afastou.

 

Ross se agachou junto ao fogo e terminou o café do pote. Uma a uma, as chamas das fogueiras dispersas pelo acampamento se foram convertendo em brasas fumegantes. Os ruidosos meninos foram deitar nas carretas ou debaixo delas. Algumas pessoas quiseram falar com Ross, mas ele respondeu em tom vago. Não convidava à conversação e, devido à morte recente de sua esposa, as pessoas respeitavam sua necessidade de meditar a sós.

 

A noite era tranqüila. Tão somente uma leve brisa agitava as folhas dos álamos, olmos, carvalhos e figueiras que rodeavam o claro onde seu guia contratado, Scout (o jovem só respondia a aquele nome) tinha sugerido ao senhor Grayson que acampassem para passar a noite.

 

Havia algo certo no que Mamãe Langston havia dito, e Ross sabia. Mas não queria admiti-lo. Torturava-lhe albergar a alguém que, cada vez que o olhava, recordava-lhe suas origens.

 

Ele tinha fugido de seu corrupto passado durante toda a vida. Vitória tinha conseguido que o esquecesse por um tempo. Agora, aquela garota de cabelo emaranhado, olhos desafiantes e corpo voluptuoso o fazia recordar coisas que ele desejava esquecer com todas suas forças.

 

Mas o que seria de Lee se não fosse por ela? O menino lhe dava um medo terrível, de tão pequeno que era. Ross não sabia nada a respeito de bebês. Só sabia o que era viver sem o amor de uma mãe. Tinha crescido com a idéia de que ser rechaçado era inato à vida. Podia negar ao seu filho os cuidados de uma mulher? De qualquer mulher? E a moça gostava de Lee, Ross sabia.

 

Cuspiu uma palavra que não se permitiu o luxo de pronunciar desde que tinha conhecido a Vitória. Sentou-lhe tão bem dizê-la que a repetiu. Cobriu o fogo com ar ausente, para que pela manhã bastasse um pouco de lenha seca e ventilá-lo para que se acendesse de novo. Quando ficou sem nada que fazer, olhou para o carro. Um abajur do interior ainda estava aceso, mas baixa. Caminhou para a parte posterior, tragou saliva e se secou as palmas suadas sobre as coxas.

 

Lydia cantava em voz baixa para Lee enquanto lhe dava de mamar. Teria sido privado de alimento no útero, porque ainda não se saciava desde que nasceu. Chupava ruidosamente, golpeava o peito da moça com o punho diminuto e, de vez em quando, esperneava de felicidade.

 

Lydia sentia orgulho, misturado com rancor, de poder alimentar ao pequeno, citando, ao que parece, aquela mulher de pele cremosa e cabelo como a barba do milho tinha sido incapaz de lhe satisfazer. Todo mundo tinha acreditado que Vitória Coleman era uma mulher ideal. Cada vez que ouvia o nome daquela mulher, a confiança que Lydia tinha em si mesmo sofria, mas Lee gostava dela. A ela, não a sua mãe natural.

 

Quisera que possuísse a coragem suficiente para esfregar aquele fato pelo rosto farisaico do pai de Lee. Tinha-a chamado algo vergonhoso. Acudiram lágrimas aos seus olhos, mas agora, como quando tinha entrado pela primeira vez na carreta, negou-se a que brotassem. Não ia chorar. Ela não era o que todos eles pensavam. Não o era!

 

Não, tinha podido evitar o acontecido, embora bem sabia Deus que o tinha tentado. Quantas vezes tinha lutado até o esgotamento, e despertava com o corpo machucado e dolorido por causa da luta? Às vezes, ganhava. Muitas vezes não, e...

 

Fechou os olhos. As dolorosas e degradantes lembranças lhe provocaram estremecimentos. Naquelas ocasiões, tinha desejado morrer, mas se houvesse se suicidado, ninguém teria cuidado de mamãe. Por isso não tirou a vida e tinha padecido toda classe de abusos, até que mamãe morreu e ficou em liberdade. Para fugir.

 

Como era possível que algo tão doce e inocente como Lee nascesse de um ato vil e violento? Enquanto acariciava a cabeça do bebê, perguntou-se se o senhor Coleman fez mal a Vitória durante a concepção de Lee. Não o imaginava violento e selvagem como Clancey. Não imaginava fazendo mal a Vitória, a que quase havia adorado, o relato de Anabeth a respeito de sua relação era certo.

 

As lonas abriram e Lydia ouviu a pegada de sua bota quando subiu a carreta. Virou a cabeça com rapidez e seu cabelo saiu disparado em todas direções até que pousou sobre sua cabeça e ombros nus como um manto de lã.  

 

Fosse qual fosse o discurso que Ross pensava recitar-se, ficou entupido em sua garganta.

 

Abriu a boca uma vez inutilmente antes de voltar para a entrada. Lydia estava sentada de costas à abertura da carreta. O vestido que tinha sido a causa de sua irritação estava atado ao redor de sua cintura, e deixava o torso ao descoberto.

 

Ross seguiu com os olhos a coluna de sua espinha até o ponto onde seu corpo se arqueava para formar a cintura.

 

Lydia tinha os olhos totalmente abertos, inquisitivos, os lábios úmidos e entreabertos. Olhava-lhe por cima de um ombro cor damasco e um matagal de cachos vermelhos.

 

- O que está fazendo?

 

As palavras gritaram desde umas cordas vocais que não pareciam dispostas a produzir nenhum outro som.

 

Dando-lhe de comer por última vez antes de lhe deitar - respondeu a moça com aquela voz tênue e suave que lhe tirava a inocência – Por que não tinha nem um ápice de vegonha? Por que não lhe gritava por invadir sua intimidade, por não chamar antes de entrar? Claro que aquilo ainda lhe sentaria pior, era o seu carro, Por Deus!

 

Ela deve ter visto a ira em seus olhos porque virou a cabeça, agachou-a e olhou ao bebê enganchado ao seu seio. Uma quebra de onda de calor percorreu todo o corpo de Ross e sua visão se nublou por um momento. Piscava para limpá-la vista quando lhe olhou de novo.                                          

 

- Queria algo?

 

O homem se removeu inquieto e desejou não ter que agachar-se.

 

Eu... Começou, para dizer que desejava desculpar-se, mas não o conseguiu. Quero falar contigo.

 

Já está. - A frase possuía um tom autoritário.

 

A garota não disse nada, o qual lhe incomodou quase tanto como quando falava com aquela voz suave, que parecia tocar a todos quem a ouvisse. Tinha os olhos cravados nele. Por que não se tampava, em nome de Deus? Embora só pudesse lhe ver as costas, sua imaginação se desbocou. Vitória nunca teria dado de mamar ao seu filho com alguém na frente. Apartou aquele pensamento. Se pensasse em Vitória um só instante, não seria capaz de dizer o que devia.

 

- Obrigado - disse.

 

Olhou para ele durante longo momento antes de responder em voz baixa.

 

- Por que, senhor Coleman? Por não trazer homens a sua carreta e me deitar com eles diante de você e de Lee?

 

- Maldição! A palavra surgiu por entre seus lábios apertados. Intento ser amável contigo.

 

Amável? Considera ser amável dar a entender que eu era uma puta?

 

Isso não se diz.

 

Nem tampouco se pensa.

 

Não deveria utilizar essa linguagem.

 

Nem você tampouco! Por que se sente inclinado de repente a ser amável? Tem medo de que fuja com um homem que me trate melhor e deixe morrer de fome a Lee?

 

Ross não respondeu por dois motivos. Primeiro, estava muito zangado. Segundo, ficou por um momento estupefato ao descobrir um temperamento tão enérgico em um pacote tão pequeno e delicado.

 

Lydia, temerosa de ter ido muito longe e intrigada pelo fato de que não a tivesse agredido, virou a cabeça e levantou o bebê de seu seio. O pequeno arrotou quase imediatamente, sem necessidade de lhe aplaudir as costas. Ela desceu do tamborete, ajoelhou-se, depositou ao menino com delicadeza na caixa e o cobriu com uma manta magra.

 

Ross tragou saliva quando a moça agarrou um pedaço de flanela e cobriu o torso. Depois, subiu o sutiã do vestido, deslizou os braços pelas mangas e inclinou a cabeça sobre os botões. Quando todos estiveram grampeados se levantou e deu a volta.

 

Por que me agradece?

 

Por salvar a vida de meu filho - respondeu Ross, rígido.

 

Lydia olhou aos olhos. Transpirava ira, mas não hipocrisia. Imediatamente, sentiu-se envergonhada de si mesma. O homem não a apreciava, Mas queria ao seu filho. Devia aceitar seu agradecimento.

 

Baixou a vista para o menino.

 

- De certa forma, ele também me salvou a vida - sussurrou. Levantou os olhos para Ross - Graças a Lee, já não quero morrer. Se não tivesse leite, não teria vivido. Tal como eu o vejo, Senhor Coleman estamos em paz.

 

Ross preferia que não mencionasse o leite. Porque assim que ouvia a palavra, seus olhos procuravam a fonte. O vestido ainda estava apertado sobre os globos de seus seios esmagava os mamilos. Era uma visão obscena e provocadora, embora bonita, e lhe custava tanto apartar a vista como deixar de respirar.

Lydia interpretou como repulsão aquela expressão ávida que aparecia em seu rosto.           

 

Sinto-o - disse de todo coração. Sei que o vestido não é decente. Não era minha intenção lhe ofender.

 

Cobriu cada seio com uma mão, como se tentasse escondê-los.           

 

Seus dedos se afundaram na carne branda e criaram túneis profundos. Ross imaginou os duros mamilos cobertos no travesseiro de suas palmas. Jesus! Amaldiçoou em silêncio e reprimiu a quebra de onda de vida que crescia em sua virilha. Apartou a vista só para ficar apanhado naqueles olhos brilhantes da jovem.

 

Boa noite - disse, com o desespero de um homem que trata de salvar sua vida.

 

Lamento que deva dormir debaixo da carreta. É muito incômodo?

 

Muito mais cômodo do que seria dormir na carreta, perto dela.

 

- Não - disse. Já estava a metade de caminho da abertura quando seu apressado boa noite chegou aos ouvidos de Lydia.

 

Minutos depois, deitado sobre as costas enquanto contemplava as estrelas, Ross amaldiçoou a tensa constrição que notava na virilha. Se a acusava de ser uma puta, por que a desejava? Como podia lhe trair seu corpo daquela maneira? Tinha amado a sua esposa, e fazia tão somente uma semana que ela tinha morrido.

 

A única justificativa era que desde o dia em que se inteirou da gravidez de Vitória não tinha estado com uma mulher. Ela tinha solicitado, quase se desculpando, que a relevasse de seus deveres conjugais durante a gravidez e Ross tinha concordado imediatamente. A sensibilidade de Vitória era um de seus aspectos que mais lhe tinham cativado além de sua incrível beleza aristocrática. Se tinha sofrido noite detrás noite deitado ao seu lado, sem aproveitar-se da circunstância, era porque ele também era um cavalheiro. Podia ter tomado uma amante, mas Ross gostava muito de Vitória para pensar sequer nessa possibilidade.    

Mas agora, depois de meses de abstinência, seu corpo reagia ante uma flagrante exibição de carne feminina e lasciva calidez. Que homem de carne e osso seria condenado por desejar a uma mulher como aquela? Não era culpa dela. Ele não podia controlar seu corpo.

 

Nem tampouco sua mente, ao que parece. Porque não podia tirar da cabeça a imagem daquela garota. Via-a em todo momento: o cabelo derramado sobre as costas, a graciosa forma em que sua espinha dorsal a dividia em duas metades perfeitas, o suave círculo da cintura aos esbeltos quadris. Afundou as palmas das mãos em seus olhos para apagar a imagem, mas o rosto, o perfume e a voz da moça não desapareceram.

 

O pior era a pontada de inveja que sentia de Lee. Seu filho sabia qual era o sabor dela.

 

À manhã seguinte, Lydia despertou justo antes do amanhecer. Lee seguia dormindo. Vestiu o único que tinha, o vestido de Anabeth, e calçou seus gastos sapatos. Não era fácil sujeitar em um coque sua massa de cabelo, mas o obteve graças a umas forquilhas roubadas de uma caixa de cosméticos e loções que tinha pertencido a Vitória. Não queria tocar nenhuma mais de suas coisas, e de não ter sido necessário, não teria pego aquelas forquilhas. Mamãe e Anabeth tinham empacotado quase todos os pertences da mulher de Coleman. Lydia se alegrou. Não necessitava que as relíquias de Vitória lhe recordassem suas próprias insuficiências.

 

Contemplou o apertado vestido e lançou um suspiro. Seria lógico que vestisse as roupas de Vitória, mas a lógica e o senhor Coleman, no referente a sua esposa, eram irreconciliáveis. Não tinha devotado os vestidos de sua falecida esposa a Lydia. Nem sequer a Mamãe, que nunca calava sua opinião sobre o que fosse, atreveu-se a sugeri-lo. Era como se adivinhasse que a idéia seria mal recebida.

 

Respirou tão fundo como lhe permitia o apertado tecido, apartou as lonas e saiu do carro. O sol estava aparecendo sobre as copas das árvores que perfilavam o horizonte.

 

Ross, inclinado sobre o fogo, que atiçava com cuidado, levantou a vista surpreso.

 

Bom dia – disse em voz baixa Lydia.

 

A aparente surpresa de Ross por vê-la à luz do dia a irritou. Tentava escondê-la na carreta a perpetuidade? A propósito, esqueceu que tão somente umas horas antes tinha tido medo de abandonar seus seguros limites. Sem lhe olhar aos olhos, saltou ao chão.

 

Bom dia.

 

Farei café.

 

Ross lhe reprovou em silêncio sua fria indiferença. Atuava como se fizesse o mesmo cada manhã, como a coisa mais normal do mundo. Passeou a vista pelo acampamento. Em quase todos os carros, havia casais que se dedicavam aos seus afazeres matutinos, falavam em voz baixa de suas coisas antes que começasse a jornada.

 

Seus olhos voltaram para ela, que introduzia colheradas de café no pote esmaltado. Da porta para fora, tudo parecia normal, sim, mas não eram um casal. Sentiu-se tão torpe e inexperiente como Luke Langston, e de maneira irracional a culpou por lhe fazer sentir assim.

 

Acredito que vou barbear-me.

 

Ela se ergueu para lhe olhar. Seu queixo estava escuro por causa da barba que tinha crescido durante a noite. Contemplou o bigode negro e se perguntou como seria o seu tato. Os homens que tinha conhecido levavam barba porque eram muito preguiçosos para barbear-se. Quando a barba começava a lhes irritar, eliminavam-na de qualquer maneira. O bigode de Ross estava bem cuidado, talhado e limpo. Embora fosse espesso, os cabelos pareciam sedosos.

 

Se me disser onde está a farinha, farei pão.

 

Enquanto Ross se barbeava na parte posterior da carreta, Lydia se dedicou a preparar um bom café da manhã com bacon frito e pão. Inclusive fez um molho espesso com a graxa do bacon. Seu café era muito melhor que o que Ross preparava. Ele não quis pensar nisso, mas também era melhor que o de Vitória. Nunca o tinha preparado bastante forte para o seu gosto e desconhecia a diferença, pois ela só bebia chá.

 

Ross não agradeceu nem felicitou a Lydia pelo café da manhã. Com em um tenso silêncio. Ele deixou limpo seu prato, e quando Lydia voltou a enchê-lo sem lhe consultar, não deixou nenhuma miolo.

 

Que dia é hoje? Perguntou Lydia, enquanto limpava e guardava os talheres.

 

Hoje? Quinta-feira.

 

Mamãe diz que a caravana não viaja aos domingos, que é o dia em que quase todo mundo lava as roupas. Acredito que não poderei esperar até então para lavar as fraldas de Lee.

 

Tinham encontrado roupas de bebê e fraldas em um baú da carreta dos Coleman. Vitória sabia que ia dar a luz durante a viagem.

 

Anabeth tinha levado as fraldas sujas a cada noite para lavá-los, mas o cesto onde armazenava os panos úmidos começava a desprender mau aroma. Sua hemorragia tinha cessado durante a noite, mas precisava lavar os panos que Anabeth e Mamãe não levaram. Tinha sido difícil conservar o hábito da limpeza na casa dos Russell, mas mamãe o tinha inculcado bem. Sabia que estava suja quando os Langston a tinham encontrado, e ninguém o lamentava tanto como ela.

 

Esquentaremos água depois de jantar. Se os pendurarmos de noite, secarão.

 

Lydia assentiu. Estava guardando a caixa de utensílios de cozinha no carro, quando ouviram os alaridos de Lee.

 

Bem a tempo - riu a jovem.

 

Apagarei o fogo e disporei os cavalos.

 

Ross se afastou, e se detestou por começar o dia com vontade de reparar no brilho da pele de Lydia sob o sol da manhã.

 

Lydia trocou Lee e se apoiou com satisfação contra as madeira do carro enquanto lhe dava o seio. O acampamento se encontrava em plena atividade. Quase todos os seus componentes tinham tomado o café da manhã. As mulheres estavam guardando os utensílios e açulavam aos seus filhos para que levassem a cabo suas tarefas. Os homens estavam prendendo os cavalos. Assobios agudos vibravam no ar enquanto os colocavam em seu lugar.

 

Os olhos de Lydia se fecharam. Encontrava-se em um mundo seguro e confortável, afastado do exterior, mais amplo e aterrador. Na caravana, era uma desconhecida. Ninguém a relacionaria com os Russell. Ninguém sabia nada sobre o cadáver com o crânio destroçado. Possivelmente não o tinham encontrado ainda. E em caso contrário, ninguém seguiria o seu rastro até ali. Estava a salvo, segura. Podia descansar.

 

Ross falava entre murmúrios a sua parelha de cavalos enquanto os prendia ao carro. Lydia gostou do timbre baixo e profundo de sua voz, em contraste com o agradável tinido dos arnês. O aroma de fumaça de lenha, cavalos e couro impregnava o ar. Não resultava uma combinação desagradável. Dava a impressão de que Lee opinava o mesmo. Chupava avidamente, mas a cadência dos puxões que sentia no peito era adormecedora e contribuía a acentuar a atmosfera de placidez.

 

Seus olhos se abriram, preguiçosos, e se alargaram imediatamente.

 

O senhor Coleman estava de pé junto a parelha, sujeitando os arnês. Não havia nenhum obstáculo que lhe impedisse de vê-la enquanto dava de mamar a Lee. Estava-a observando da sombra que proporcionava o seu chapéu de aba larga. Suas mãos enluvadas se imobilizaram um momento, quando sujeitaram as correias de couro.

 

Assim que ela surpreendeu seu olhar, voltou para a vida e apartou os olhos da jovem com tanta brutalidade como puxou a correia de couro que estava assegurando.

 

Uma vibrante sensação se abriu passo desde a sua feminilidade até os seios, e reteve o fôlego em sua garganta. Jamais tinha experimentado nada semelhante, e a surpreendeu tanto como ver o senhor Coleman olhá-la com tal intensidade. Voltou as costas um pouco até que Lee terminou, e não olhou de novo para a parte posterior da carreta.

 

Acabava de pôr um roupão limpo a Lee, quando se anunciou pela fila que estavam a ponto de partir. Mamãe lhe havia dito que a caravana percorria entre dezoito e vinte e três quilômetros ao dia, mas as chuvas da primavera tinham reduzido sua velocidade de uma forma drástica. Tinham deixado as estradas e prados enlameados, cheios de sulcos e difíceis de transitar. Os rios e seus afluentes estavam crescidos, e era perigoso cruzá-los. Por causa da guerra, as pontes que ainda ficavam encontravam em um estado lamentável e não agüentavam o peso dos carros.

 

Aquele dia, Ross conduzia a carreta, e integrou a parelha com perícia na fila. Começaram a um ritmo preguiçoso, mas não demoraram para acelerar até conseguir a velocidade que tentariam manter até que se detiveram para descansar ao meio-dia.

 

Lydia enrolou o colchão de dormir e o apartou a um lado do carro com o fim de deixar mais lugar para mover-se. Ordenou o interior do vagão, inclusive dobrou algumas camisas do senhor Coleman e decidiu quais lavaria aquela noite, junto com as coisas de Lee.

 

Aborreceu-se ao cabo de um momento. Lee dormia silencioso em sua caixa. Tinha efetuado todas as tarefas que lhe tinham ocorrido no interior do carro e temia a perspectiva de outro dia sem ter nada que fazer. A idéia de ar puro e espaços abertos a atraía sobremaneira.

 

Com acanhamento, colocou a cabeça pela abertura dianteira da carreta e tocou o ombro do senhor Coleman. O corpo deste se esticou como se lhe tivessem disparado e voltou a cabeça com brutalidade. A jovem retirou a mão a toda pressa.

 

- O que acontece? Perguntou o homem.

 

Lydia não gostou de seu tom áspero. Pensava que alguma vez se cansava de estar dentro? Poderia se sentasse ao seu lado, onde todo mundo pudesse vê-la, onde sua amada Vitória estava acostumada sentar-se com a sombrinha de renda?

 

- Eu gostaria de ir fora um momento - disse com aspereza.

 

Ross se afastou a um lado sem dizer uma palavra e lhe deixou lugar.

 

Era difícil apoiar os pés com firmeza por causa do balanço da carreta, mas Lydia se aferrou à lona com uma mão, em tanto colocava um pé sobre o assento e saía. Cambaleou um momento. O assento parecia muito longínquo. Não tinha dado conta de quão alto estava o assento da carreta. Reprimiu o medo e pôs o outro pé sobre o assento.

 

Naquele desgraçado momento, a roda dianteira esquerda tropeçou com uma pedra grande e o carro saltou sobre ela com uma repentina sacudida. Lydia perdeu seu precário equilíbrio e gesticulou no ar até que sua mão entrou em contato com o chapéu do senhor Coleman, que caiu sobre o assento da carreta um segundo antes que ela se desabasse sobre a madeira e se sentasse em cima de seu chapéu.

 

O impulso da queda a arrastou para o senhor Coleman. O braço do homem ficou apanhado entre seus volumosos seios, que o percorreram do ombro até os pulsos. Lydia tentou sujeitar-se, e para isso apoiou a mão sobre a coxa dele, mas escorregou e sua mão se afundou entre as pernas de Coleman. Quando por fim se deixou cair, encontrou-se deitada sobre seu colo, com o braço encaixado entre suas coxas e a face apoiada sobre seu quadril.

 

Permaneceu assim um momento, respirando profundamente, enquanto combatia a vertigem e tentava com grande valentia fingir que não tinha ocorrido nada. Por fim, endireitou-te e se afastou uns centímetros.

 

Seguia sentada sobre seu chapéu!

 

Foi no momento que apoiou de novo a mão sobre a coxa do Coleman para levantar-se e recuperar o enrugado chapéu quando o homem começou a resmungar blasfêmias.

 

Sinto-o - se desculpou a jovem sem fôlego, mortificada por sua estupidez. Eu... Nunca tinha estado em um carro tão grande.

 

Os olhos com os que Ross a olhou eram frágeis, brilhantes e furiosos. Sua boca era uma linha magra e severo sob o curvo bigode.

 

- Rogo-te que vá com mais cuidado a próxima vez disse.

 

Lydia reparou em que seus lábios apenas se moviam quando falou, e sua voz soou diferente. Teria-lhe machucado?

 

Devolveu sua forma original ao chapéu com destros movimentos e o estendeu com acanhamento. Era uma pena que cobrisse com seu chapéu aquela cabeça de cabelo escuro, que brilhava com franjas iridescentes à luz do sol, mas quando ele o inclinou sobre a testa, ela pensou que apesar de tudo ficava bem.

 

Levava roupas de trabalho, mas lhe sentavam bem. As calças escuras se ajustavam a suas pernas. Ross sempre utilizava as botas negras, altas até o joelho, que lhe tinha visto a primeira vez. Sua camisa era de um grosso algodão azul, mas o colete de veludo negro que a cobria parecia suave ao tato. Levava um lenço atado ao pescoço.

 

Temerosa de que ele se desse conta de que o estava olhando tão atentamente, Lydia baixou os olhos para as mãos que sujeitavam as rédeas. Borde-os das luvas de pele negra estavam dobrados e deixavam ao descoberto os ossos dos pulsos, salpicados de pêlo escuro. Ross sujeitava as rédeas com aparente negligência, mas com um leve movimento dos pulsos podia dirigir a parelha de cavalos. Pareciam possuir uma tremenda força, mas também eram capazes de ternura. Qual das duas coisas teria utilizado quando tocava a sua esposa?

 

Tal pensamento aturdiu de novo a Lydia, que desterrou suas meditações sobre o homem sentado ao seu lado e se concentrou no entorno. Levavam umas dez carretas diante. Voltou a cabeça para olhar atrás, mas se agarrou ao assento por medo a cair. Não via: ao seu redor o vulto do carro, e não estava disposta a inclinar-se muito pelo lado para vê-lo.

 

- Onde estamos? Perguntou.

 

A campina era exuberante e verde. Cresciam flores silvestres em qualquer parte. A terra que bordeaba o prado pelo que avançavam consistia em colinas suaves e espessos bosques.

 

Ao leste de Memphis.

 

Ross quase se recuperou, mas não de tudo. Tinha amaldiçoado sua suscetibilidade quando a tinha visto antes por acaso com seu filho ao peito. Graças a Deus que não baixou por completo a parte superior do vestido, como ontem à noite. O tinha desabotoado até a cintura e tirado o seio de que Lee mamava. Ross, face à aversão que sentia por ela, ficou surpreso pela expressão aprazível e radiante de seu rosto, pelo sorriso que elevava as comissuras de sua boca. Era a classe de expressão que um homem desejava ver no rosto de uma mulher.

 

Removeu-se inquieto no assento da carreta. Por que demônios tinha pensado nisso? Jamais uma mulher lhe tinha dispensado aquela espécie de sorriso sublime. Em sua juventude, indômita e indisciplinada, só tinha conhecido as prostitutas. Falando em termos gerais, elas eram mulheres de negócios, desejosas de que se desse pressa e terminasse o antes possível para receber ao seguinte cliente.

 

E depois, tinha aparecido Vitória. Nunca tinha esperado aquele tipo de paixão nela. As damas de sua classe nunca desfrutavam... com aquilo.... e se teria ficado estupefato se tivesse sido ao contrário. Vitória tinha sido atenta e paciente com ele, inclusive afetuosa. Nunca se tinha negado a fazer amor com ele, mas ela tampouco tinha tomado a iniciativa.

 

Ross nunca amaria a outra mulher. Não lhe cabia a menor duvida. Mesmo assim, seria bonito receber um sorriso acompanhado de uma expressão parecida com a que tinha visto na Lydia... Meu Deus! Tinha pensado nela como Lydia.

 

Por que merda teve que cair sobre ele daquela forma? Ainda sentia a mão dela deslizando-se por sua virilha. O braço ainda formigava a causa do contato com seus seios.

 

Pigarreou ruidosamente, como se ao fazê-lo pudesse afastar seus pensamentos.

 

- Talvez cruzemos o rio depois de amanhã.

 

O rio Mississipi?

 

A garota era estúpida?

 

Pois claro que o Mississipi - replicou.

 

- Bom, tampouco faz falta que seja.

 

Lydia se sentiu furiosa. Era como se a tivessem esbofeteado para pôr em evidência sua ignorância. Tinha ouvido falar do rio Mississipi, mas não tinha nem idéia de onde estava. Tinha passado só dois anos na escola primária, antes que mamãe e ela se mudassem a casa dos Russell. Não se devia a uma eleição voluntária que fosse inculta.

 

Se não puser um chapéu, pegara uma insolação - murmurou Ross ao ver a ponta de seu nariz, que já estava adquirindo um tom rosado.

 

Não tenho chapéu - respondeu a jovem, e lhe olhou daquela forma fria e altiva que sabia adotar.

 

Ross açoitou o lombo dos cavalos com as rédeas, para descarregar sua ira sobre eles. Não tinha nem idéia por que a moça lhe irritava tanto. Talvez estivesse relacionado com seus desconfortos físicas.

 

Durante toda a manhã não deixaram de passar cavaleiros junto ao seu carro. A maioria eram homens. Ross a apresentava a contra gosto.

 

- Chama-se Lydia. Está cuidando de Lee.

 

Os homens tiravam o chapéu com educação e se apresentavam. Ela sustentava o seu olhar com acanhamento, mas embora a examinassem com curiosidade, não descobria o desprezo que esperava.

 

O único que a pôs nervosa foi Scout. Olhou-a com atenção. Sorriu Ross com ironia.

 

Encantado de conhecê-la, Lydia disse.

 

Scout exibia umas costeletas largas e frisadas, da cor de manteiga, e um grande bigode quase branco. A Lydia não merecia nenhuma confiança aquele homem, e decidiu estar sempre o mais afastada possível dele. Por sorte, Scout se encontrava ausente da caravana a maioria do tempo. Todos pareciam agradados com o trabalho que levava a cabo. Tinha desenhado uma rota para que pudessem utilizar estradas sempre que fosse possível, e terras planas públicas em outras ocasiões. Tinha prometido que, se tudo fosse bem, acampariam perto de rios cada noite. Até o momento, Scout tinha completado sua promessa.

 

Bubba e Luke chegaram atropeladamente quando o sol quase tinha alcançado o cénit.

 

Esta noite, jantaremos frango - anunciou satisfeito Luke. Tinham encontrado dois frangos esquálidos no bosque. Sustentavam-nos por seus pescoços retorcidos.

 

Mamãe há dito que os fritará, e que venham a compartilhá-los conosco.

 

Lydia estava olhando Ross quando este sorriu ao ver a euforia do moço. Seu sorriso paralisou o seu coração e, ao vê-la, sentiu uma estranha agitação no peito. Não era que lhe subisse o leite, porque tinha experimentado o mesmo um momento antes. Tratava-se de uma inquietação estranha, como se algo tivesse removido suas vísceras e tudo tentasse encontrar de novo seu lugar correto. Os dentes de Ross se viam de um branco deslumbrante, entre seu bigode escuro e o rosto bronzeada.

 

Acredito que poderia aceitar o convite, se conduzisse o carro depois do descanso do meio-dia e me deixar desafogar um pouco a uma das éguas.

 

Eu adoraria ir cavalgar contigo Ross- gritou Bubba, nervoso.

 

Seus olhos azuis quase tinham saído das órbitas quando viu Lydia sentada no assento da carreta ao lado de Ross, no lugar habitual de Vitória. Mas foi o sutiã do vestido o que mais atraiu sua atenção. Sabia que sua mãe lhe esfolaria vivo se lhe pilhava espionando a garota, e tampouco estava seguro do que faria Ross. Tirou o chapéu gritando para liberar um pouco da energia que percorria o seu corpo.

 

Ross meneou a cabeça.

 

Não ficaria ninguém para conduzir a carreta.

 

Eu poderia fazê-lo - disse Luke.

 

Tinha ciúmes de que o senhor Coleman tivesse pedido ao seu irmão para cuidar dos cavalos. Mamãe havia dito que, por ser o mais velho, era justo que Bubba oferecesse primeiro o trabalho. De todos os modos, Luke não queria que lhe deixassem de lado, como se não tivesse mais importância na família que Samuel, Micah ou uma das meninas.

 

Ross refletiu sobre a sugestão, enquanto os dois moços aguardavam com expectativa sua resposta, quase sem atrever-se a respirar.

 

Parece-me bem. Poderia vigiar - disse a Luke - E exercitaríamos a dois cavalos em vez de um.

 

Bem! Exclamou Luke, e fez dar meia volta a seus arreios e se dirigiu à carreta dos Langston para comunicar a estupenda notícia.

 

Só se Mamãe te der permissão - gritou Ross.

 

Ao meio-dia se detiveram um momento. Lydia entrou no carro para dar o seio a Lee, que tinha despertado uns minutos antes. O pequeno estava em sua caixa, bastante irritado. Ross tinha sugerido a Lydia que não tentasse entrar na carreta até que parassem.

 

Luke lhe trouxe um chapéu de palha de aba larga quando retornou para substituir Ross.

 

O senhor Coleman disse a Mamãe que o sol te estava queimando o nariz. Trago-te um chapéu de Bubba, é velho, mas te protegerá do sol.

 

Lydia o agarrou e o contemplou sem fôlego, enquanto lhe dava voltas entre as mãos. Não sabia se estava mais comovida pela generosidade dos Langston ou pela preocupação do senhor Coleman.

 

Não o viu durante o resto do dia, só divisava um ponto que se movia com o passar do horizonte, e sabia que eram Bubba e ele que cavalgavam nos lombos das éguas para exercitá-las.

 

Sentiu-se cansada sob o sol da tarde, e Luke a convenceu para que se refugiasse na parte posterior da carreta. Desabotoou o apertado vestido, desenrolou o colchão e se deitou, com Lee ao seu lado. Quando despertou, Luke tinha detido o carro para formar um círculo com outros.

 

Deu o seio a Lee, colocou a caixa na parte posterior, à sombra, e se dedicou a acender o fogo e preparar o jantar. Ainda teve tempo de se pentear e lavar os braços, o rosto e o pescoço com água fria, antes que Ross voltasse, coberto de pó e suado.

 

Jogou uma olhada à panela de feijões que fumegava sobre o fogo.

 

- Acreditava que íamos jantar com os Langston.

 

O recebimento soou mal-humorado e crítico, mas não pôde evitá-lo. O aspecto doméstico da cena que se desenvolvia ante seus olhos (o jantar ao fogo, Lee adormecido e a moça, que tinha tomado a moléstia de limpar-se para ele) irritaram-lhe de uma forma irracional.

 

E assim é, mas tive em água estes feijões todo o dia e me pareceu uma vergonha não os cozer. Já disse a Mamãe que os levaríamos para colaborar no jantar.

 

Ross não gostou de sua utilização do plural, como se fossem um casal.

 

- Você pode levar os feijões. Eu vou ajudar Zeke a ferrar um cavalo depois de jantar.

 

- Muito bem, senhor Coleman replicou a jovem. Estava esquentando água para que se lavasse, mas acredito que a utilizarei para lavar as roupas de Lee.

 

Passou como um raio por seu lado, e apartou a saia como se não quisesse que se sujasse com suas botas poeirentas.

 

Ross esteve a ponto de agarrá-la pelo cabelo e lhe dizer que, por mais que cuidasse de seu filho, aquilo não tinha nada que ver com ele, mas Lydia já tinha subido à carreta antes que as palavras se formaram em sua boca. Além disso, não estava seguro do que faria, se chegava a lhe pôr a mão no cabelo.

 

Deu meia volta encolerizado, sem querer pensar em quão agradável seria lavar-se com água quente. Blasfemou repetidas vezes enquanto se dirigia à parte posterior do carro, onde gozava de certa intimidade, e tirou a camisa.

 

Lydia, com a roupa suja ao seu lado, tirou a panela do fogo antes que a água se esquentasse muito. Depois, esfregou cada objeto com uma pastilha de sabão e as introduziu na água. Quando todas estiveram dentro, removeu-as com um pau.

 

Seus ombros se elevaram e desceram em um suspiro de irritação. Ross havia tornado a comportar-se de uma forma odiosa, mas seria absurdo negar-se a lavar sua camisa. Exalou outro suspiro profundo e se encaminhou ao outro lado do carro.         

 

Ross estava em calças e botas. Seus braços e peito estavam cobertos de sabão. Durante uns breves momentos, antes que a visse, Lydia contemplou suas mãos enquanto se deslizavam sobre a carne ensaboada de seus amplos ombros e axilas. Seu peito estava povoado de pêlo escuro e encaracolado, que se enredava ao redor de seus dedos enquanto se lavava. Os músculos de seus braços se destacavam ao menor movimento, ao igual a suas costelas. Seu estômago era liso, sem um grama de gordura.

 

Quando Ross reparou em que a jovem lhe estava observando, ficou imóvel. Borbulhas de sabão gotejaram de seus dedos, sem vida repentinamente. Olharam-se durante um longo momento, paralisados pela mútua espionagem.

 

Lavarei-lhe a camisa - disse por fim Lydia.

 

Em lugar de discutir e prolongar sua contemplação, Ross agarrou a camisa e a deu.

 

Lydia evitou seu olhar, apoderou-se do objeto e desapareceu pelo outro lado da carreta. Ross se enxaguou e afundou a cabeça na água. Só se deu conta de que lhe faltava uma muda quando terminou de secar-se. Encaminhou-se à parte posterior, subiu à carreta e quase tropeçou com Lee, que dormia em sua caixa. Blasfemou quando golpeou a cabeça com uma das madeiras, e seu nervosismo aumentou quando não pôde localizar sua roupa.

 

Colocou a cabeça pelas lonas abertas.

 

Ei! Disse, com a esperança de chamar a atenção de Lydia, que estava espremendo a água da roupa molhada.

 

A moça deu a volta, ao tempo que jogava para trás uma mecha de cabelo com uma mão molhada.

 

Não encontro minha roupa - anunciou o homem.

 

Ah! Estendi esta manhã. Irei lhe buscar uma camisa.

 

Ross passeou, nervoso, o olhar pelo acampamento, e rogou a Deus que ninguém a visse subir ao carro enquanto ele estava sem camisa. Maldição! A senhora Watkins lhes estava olhando do outro lado do prado, com a boca esticada para cima como uma maçã podre e o aspecto de um caçador de bruxas. Sua filha Priscilla se erguia detrás dela, com uma expressão perspicaz e lambida em seu rosto petulante. Ross já tinha visto aquela expressão em anteriores ocasiões. Punha-lhe muito nervoso.

 

Lydia, sem dar-se conta de que lhes estavam observando, passou por diante dele e lhe roçou. Seu brusco movimento agitou o pêlo do peito e o estômago de Ross. Este desapareceu no interior da carreta. Deus! Esta garota era uma desavergonhada. Acaso não sabia comportar-se?

 

Guardei-a por aqui - disse Lydia, enquanto rebuscava entre os objetos que tinha ordenado. Ross reparou de repente em que o interior da carreta já não lhe trazia lembranças dolorosas de Vitória. Todo o rastro de sua desordem tinha desaparecido. As coisas estavam dispostas com o fim de deixar o maior espaço livre possível.

 

Lydia lhe estendeu uma camisa limpa que tinha dobrado com o maior cuidado possível. Reprimiu uma exclamação quando viu a cicatriz que Ross tinha em cima de seu mamilo esquerdo e que tinha rasgado parte do músculo. Tentou ocultar que a tinha visto.

 

Obrigado - disse Ross, rapidamente, com a esperança de que a jovem saísse do carro e todos a vissem fora, no lugar de que ela seguisse dentro com ele.

 

Teria que ter adivinhado que pedia muito.

 

Ensinaria-me a conduzir a carreta, senhor Coleman? - Perguntou Lydia, lhe olhando aos olhos. Embora Ross estivesse agachado, chegava-lhe à altura do esterno.

 

- Conduzir a carreta? Repetiu, aturdido. Perguntou-se se devia vestir a camisa ou esperar a que ela partisse. Melhor vestir em seguida. A forma em que os olhos da jovem escorregavam com curiosidade sobre seu peito estava conseguindo que suasse, em que pese a que acabava de lavar-se. - Acredito que não respondeu, enquanto colocava os braços pelas mangas. Estava-lhe olhando o mamilo ou a cicatriz?

 

- Por quê?

 

- Porque é muito provável que a parelha te jogue do assento. Não é... o bastante... corpulenta.

 

Seus dedos se moviam como se jamais tivessem fechado uma camisa.

 

- Sua esposa... Vitória conduzia a parelha?

 

Quando Ross chegou ao último botão, descobriu que os tinha abotoado todos errados. Amaldiçoou baixo e os desabotoou todos, antes de voltar a começar.

 

- Sim.

 

- Era corpulenta?

 

Não, maldição, não o era! Gritou. Olhou para trás, nervoso. Baixou a voz até um vaio. Não, não era corpulenta.

 

- E você lhe ensinou.

 

- Sim.

 

- Então, por que não pode me ensinar a mim?

 

- Porque não é teu assunto conduzir minha parelha.

 

- Por quê?

 

Sem dar-se conta, Ross desabotoou as calças para embutir as abas da camisa. Os homens que Lydia tinha visto utilizavam suspensórios para sujeitar suas calças. Também seu pai os usava, conforme recordava vagamente. Lydia cravou seus olhos nas mãos de Ross, enquanto este abotoava os botões e prendia a fivela de seu amplo cinturão de couro.

 

- Porque tem que cuidar de Lee.

 

A moça deslizou os olhos ao longo de seu torso, sem saber quão provocador resultava o movimento de suas pestanas.

 

- Mas se dormir quase sempre. Gostei de ir no assento. Poderia lhe ser útil, em lugar de estar sentada aqui. Desta forma, você poderia montar seus cavalos quando quisesse. Não digo que vá conduzir todo o momento. Se Lee ficar nervoso, não poderia, mas saberia fazê-lo.

 

- Pensarei-o - respondeu Ross, sobre tudo para concluir a conversação e sair ao ar livre, onde poderia respirar com mais normalidade. - Não é fácil, sabe?

 

Ross saiu como um raio da carreta e deixou à moça com um sorriso de satisfação nos lábios.

 

O ruído e o estado habitual de confusão que reinavam na carreta dos Langston serviram para dissimular a tensão que existia entre Ross e Lydia. Os dois frangos foram honrados com ferozes apetites que não deixaram nem um osso sem roer.

 

O único que não desfrutou do jantar foi Bubba. Depois de comer só meio prato, desapareceu na escuridão, em teoria para jogar uma olhada aos cavalos. Poucos minutos depois, Luke lhe encontrou apoiado contra uma árvore, dedicado a desprender um ramo de sua casca.

 

O que acontece, Bubba? Tem dor de barriga?

 

- Vá embora - suspirou Bubba. A intimidade de uma família tão numerosa era pouco freqüente e muito valiosa.

 

- Sei o que te passa anunciou Luke. Não pudeste comer porque estiveste olhando todo o momento as tetas de Lydia.

 

Bubba ficou em pé de um salto, adotando a postura de alguém disposto a combater corpo a corpo.

 

Fecha o bico, repugnante filho de puta! Gritou.

 

Luke se limitou a rir e afastar-se de seu irmão, dando saltos, em tanto boxeava com sua própria sombra para lhe provocar.

 

Não pode evitar as olhar, verdade? Qualquer pensaria que ficou satisfeito depois de olhar Priscilla Watkins todo o momento. Deixa-as muito grandes. Vi a forma em que as joga para fora cada vez que passas a cavalo junto ao seu carro, quer dizer, sempre que pode. Está louco por ela, verdade?

 

Bubba avançou para seu irmão e conseguiu lhe alcançar na mandíbula com o punho. Luke caiu ao chão, mas não estava disposto a render-se. Agarrou a Bubba pelo tornozelo, atirou dele e se produziu uma batalha campal. Ross os descobriu derrubando-se no chão uns momentos depois.

 

- O que passa aqui? Gritou.

 

Agarrou pela gola da camisa ao de cima, que naquele momento era Luke, e o pôs em pé. Bubba se levantou o momento. A respiração de ambos era agitada por causa do cansaço, e sangravam pelo nariz, a boca e diversos arranhões.

 

- É o único que sabem fazer? Perguntou Ross.

 

Conhecia as conseqüências das brigas. Primeiro, os punhos, e depois, as pistolas. Um círculo vicioso, a ver quem podia mais. Se alguém lhe tivesse domado quando era mais jovem, talvez as coisas teriam sido de outra maneira, mas ele à idade de Bubba já tinha desenvolvido um assombroso domínio da pistola.

 

- Pensava que foste ajudar-me com a ferradura desse cavalo, Bubba.

 

Bubba acariciou o lábio, cada vez mais inchado.

 

- Claro, Ross.

 

Luke - gritou Ross - vá procurar um pouco de água na minha carreta. Coloque uma corda para Lydia pendurar a roupa. Não parou a pensar na facilidade com que tinha surgido o nome de seus lábios. Mas antes, lhe dê a mão ao seu irmão.

 

Os moços obedeceram a contra gosto. Os dois temiam o momento de explicar a sua mãe o motivo de ter torcido e ensangüentado o rosto. Seria muito difícil.

Lydia o estava passando muito bem. Ignorava que as pessoas pudessem ser tão cordiais. Os «vizinhos» se aproximavam para conhecê-la. Alguns demonstravam uma franca curiosidade, outros eram cautelosos, e em todo momento ela foi consciente de que não a teriam aceito tão bem a não ser pelos Langston. Como Mamãe lhe tinha concedido sua aprovação, todo mundo se sentia obrigado nesse sentido. Era um fato não verbalizado que Mamãe governava quase tudo que ocorria na isolada comunidade. Quase tanto como o senhor Grayson. Seus instintos maternais se impunham a todos os membros da caravana. Mamãe adorava e repreendia a todos, velhos e jovens, como se fossem filhos deles.

 

Lydia tentou recordar os nomes e emparelhar aos meninos com seus pais. Conheceu os Sim e a suas duas meninas, muito tímidas, aos Rigsby, que tinham dois meninos e uma menina de curta idade. Também conheceu a mulher dos gêmeos. Ainda não contavam um ano de idade. As pessoas começavam a dar passos vacilantes, sempre em direção à fogueira do acampamento. Familiarizou-se com outros sobrenomes. Cox, Norwood, Appleton, Greer, Lawson. Todos admiraram Lee Coleman, que esteve adormecido todo o momento.

 

A senhora Greer lhe ofereceu alguns objetos de seu filho.

 

- Já não cabem. É uma pena jogar fora.

 

Lydia nunca tinha conhecido tanta generosidade, para ela a vida tinha sido sempre um contínuo esforço por sobreviver. As pessoas que ela tinha conhecido protegiam zelosamente todos os seus pertences.

 

- Antes que Lydia retornasse ao carro do senhor Coleman, Mamãe lhe deu uma camisa de Luke e uma saia velha de Anabeth.

 

Não são tão bonitos como o vestido, e bem sabe Deus que não têm nada de elegantes, mas suspeito que com eles postos ninguém poderá escandalizar-se ao ver-te.

 

Lydia conduziu Lee ao seu acampamento e ficou surpreendida ao ver que Luke estendia uma corda entre dois carvalhos próximos. O menino a viu e desviou a cabeça.

 

- O senhor Coleman me há dito que a pusesse para que pudesse pendurar a roupa.

 

-Obrigado, Luke - disse a jovem em voz baixa. Não fez nenhum comentário sobre seu rosto torcido e arroxeado, pois intuiu que Luke se sentia turbado por seu aspecto.

 

Lydia subiu à carreta depois de ter pendurado toda a roupa na corda. A escuridão e o silêncio tinham caído sobre o acampamento. Lydia deu de mamar a Lee e o acomodou em seu berço improvisado. Depois, vestiu a camisola que Mamãe lhe tinha presenteado. Doía-lhe a cabeça de agüentar o peso do cabelo todo o dia. Sacudiu-o e começou a escová-lo A escova também era um presente de Mamãe.

 

Não queria deitar-se até que Ross voltasse para a carreta. Sua presença no exterior fazia com que se sentisse segura, embora ignorasse o motivo. Durante semanas, antes que entrasse no bosque para dar a luz, tinha adormecido ao raso, às vezes em um estábulo, mas então, o medo tinha sido seu guardião. Tinha-a protegido do cansaço ou a despreocupação. Mas se tinha descuidado, e ele a tinha alcançado.

 

Nunca mais - sussurrou na escuridão. Ele está morto.

 

Justo quando seus olhos se estavam fechando, ouviu Ross fora. Seguiu com facilidade seus movimentos, enquanto apagava o fogo e estendia as mantas.

 

Caminhou de joelhos para o extremo da carreta e abriu as lonas. Ross estava sentado sobre as mantas enquanto tirava as botas.

 

Boa noite, senhor Coleman.

 

O homem levantou a cabeça com rapidez. A cabeça de Lydia se via emoldurada na abertura do carro e a luz da lua arrancava brilhos brancos da camisola. O cabelo, que rodeava sua cabeça, era um caos de cachos e ondas. Teve a impressão de que sua voz surgia das trevas para lhe acariciar as faces.

 

Boa noite - grunhiu, e se deixou cair em sua incômoda cama.

 

«Ainda mal-humorado», pensou decepcionada a moça, enquanto se acomodava sobre o colchão coberto com lençóis suaves. Estava ansiosa por cruzar o Mississipi. Amanhã, talvez o veriam. Então, sentiria-se em melhor disposição de ânimo.

 

Açularam sem clemência as parelhas durante os dois dias seguintes, com a esperança de chegar ao Mississipi. Significava um marco para todos. Uma vez o cruzassem e deixassem Tennessee a suas costas, convenceriam-se de que foram por bom caminho.

 

Ross permitiu que Bubba Langston conduzisse seu carro. Em nenhum momento entregou as rédeas a Lydia, mas lhe ensinou às sujeitar e as mover. Recitou as instruções com severidade, sem olhá-la. Embora a camisa de Luke e a saia velha deixassem muito que desejar no referente à elegância, Ross experimentou um enorme alívio ao ver que já não usava o vestido.

 

A jovem parecia decidida a não deixar-se intimidar por seu mau humor e a travar conversação com ele. Era evidente que a garota não sabia de nada, e Ross voltou a perguntar-se se era uma deficiente mental. Entretanto, desprezou aquela possibilidade. Uma vez que lhe dizia algo, nunca o esquecia, e intuiu ansiedade por aprender detrás de seus olhos inquisidores.

 

- Combateu na guerra?

 

Ross assentiu.

 

- Por Dixie.

 

- Então, queria que os negros continuassem sendo escravos?

 

Ele a olhou com incredulidade.

 

- Não. Não quero que ninguém seja escravo.

 

- Pois, por que lutou pelo Sul?

 

- Porque era o lugar onde eu vivia - replicou o homem, com impaciência crescente. Dava a impressão de que a moça adivinhava por instinto seus pontos débeis e os atacava com dolorosa precisão.

 

O patriotismo tinha tido muito pouco que ver com o bando eleito por Ross. A guerra lhe tinha proporcionado, como jovem temerário que era, uma boa desculpa para saquear e matar sem conseqüências. Ardia em desejos de encetar-se em uma briga, e o tinha conseguido. Quando um grupo de guerrilheiros lhe tinha recrutado, a nobreza não tinha tido capacidade naquela coalizão.

 

Lydia não queria que a considerasse uma ignorante total.

 

- Um dia, vi uma coluna de soldados que passava na nossa granja. Todos iam vestidos iguais. As pessoas levavam uma bandeira.

 

- Ianques. Para o final da guerra, nós já não tínhamos nem uniformize nem bandeiras.

 

Ross só tinha tido um uniforme, e o tinha obtido de um soldado morto em P Ridge. Tampouco tinha cavalgado em uma coluna de soldados, mas sim tinham atacado acampamentos despreparados pela noite, como fantasmas que surgiam repentinamente da escuridão e desapareciam imediatamente em seguida, deixando atrás deles a morte e a destruição. Não lhe importava morrer, porque para ele tudo era um jogo de azar. Era perfeito para essa classe de vida militar.

 

- Nunca vi mais soldados, mas lembro ter ouvido às vezes canhões e fuzis.

 

Onde ficava sua granja?

 

Lydia não queria estender-se em suas confidências, mas tampouco sabia onde estava a casa dos Russell.

 

Ao nordeste de Tennessee.

 

- Chegaram a saqueá-la-as tropas de algum bando?

 

 

A jovem lançou uma amarga gargalhada.

 

- Não. Não havia nada que valesse a pena roubar.

 

Ross tinha cavalgado com homens que teriam entregue comida em troca da moça, mas a guerra tinha terminado seis anos antes. Naquela época ela devia ser só uma menina.

 

- Quantos anos tem? Perguntou, surpreso de si mesmo.

 

- Farei vinte este ano. E você?

 

Muito mais velho - disse Ross, carrancudo. De um ponto de vista cronológico tinha trinta e dois anos. Preferia pensar que sua vida tinha começado quando John Sachs lhe encontrou.

 

Winston Hill chegou junto a sua carreta no lombo de um cavalo branco.

 

- Bom dia aos dois, senhorita Lydia, senhor Coleman.

 

- Olá, senhor Hill.

 

- Hill.

 

Hão-me dito que com sorte chegaremos ao Memphis ao anoitecer.

 

Simples rumores - replicou com brutalidade Ross.

 

A Lydia não gostou que Ross se comportasse com tanta grosseria. Não queria discutir com ele de novo por causa do Winston Hill, mas tampouco desejava imitar seus maus modos.

 

Acredita que nos custará muito cruzar, senhor Hill? Perguntou, e ao fazê-lo inclinou a cabeça para poder lhe ver por debaixo do chapéu.

 

Isso dependerá da corrente. Interrompeu-se para tossir em seu lenço. Quando tivermos cruzado, Moisés e eu teremos o prazer de lhes convidar aos dois a celebrá-lo conosco com uma taça de xerez.

 

Lydia se perguntou o que era o xerez. Se sabia tão bem como soava, gostaria. Estava a ponto de aceitar o convite, quando Ross interveio.

 

Não, obrigado. Lydia está ocupada quase todas as noites com Lee, e eu cuido de meus cavalos.

 

Os olhos do senhor Hill oscilaram entre os dois.

 

Bem, talvez outra noite, quando tiverem terminado todas suas tarefas - respondeu com elegância. Saudou com o chapéu a Lydia e se afastou.

 

A próxima vez que alguém convide a algo, responderei por mim mesma, obrigada, disse Lydia, assim que o homem não pôde ouvi-la.

 

- Enquanto durma em meu carro e coma o que eu trago, não - grunhiu Ross pelo bordo da boca. Não quero que flerte abertamente com ele ou com quem quer que seja enquanto cuide de Lee.

 

- Não estava flertando! Exclamou a jovem. Comportei-me com educação, um aspecto de sua personalidade que poderia melhorar.

 

- A educação não tem nada que ver com isto. Eu não gosto desse homem.

 

O senhor Hill só diz coisas amáveis sobre você e Vitória, entretanto, cada vez que vem, você fica à defensiva como um touro. O que lhe tem feito esse homem?

 

Ross afundou os ombros e calou. Winston Hill representava tudo que Ross aspirava ser. Winston era a classe de homem com quem Vitória teria que haver-se casado. Ross recordava a noite que Vitória e Hill se conheceram. Tinham mútuos conhecidos sobre os que fofocar, e tinham estado falando em uma linguagem culta que ele logo que pôde seguir. Havia-se sentido como um caipira junto a eles.

 

Embora não tivesse posto nome ao sentimento que Hill lhe suscitava, tinha tido ciúmes dele desde a primeira vez que o tinha visto. Hill passeava sua herança aristocrática como um escudo estendido, para que todo mundo a visse. Ross pensava que sua herança fosse evidente, embora ele se esforçasse em ocultá-la.

 

Por que tosse sempre? Perguntou Lydia. Fez caso omisso da tensão que agarrotava a mandíbula de Ross.

 

- É tuberculoso.

 

- Você... o que?

 

Tem tuberculose. Febre pulmonar. Pegou-a em um campo de prisioneiros ianque. Quando Hill retornou por fim a sua casa, na Carolina do Norte, acredito que em Raleigh, sua plantação tinha desaparecido. Só ficou o velho Moisés. Até a casa tinha sido destruída. Hill se transladou à cidade, mas a China era prejudicial para os seus pulmões. Agora vai em busca de um clima mais seco e quente.

 

Winston tinha parado a conversar na carreta de diante. Lydia estudou ao jovem, cujos olhos, embora bondosos, eram muito vícios em comparação com o resto de sua pessoa.

 

- Dá-me pena.

 

Aquelas palavras pareceram irritar muitíssimo ao senhor Coleman. Não voltou a lhe dirigir a palavra até o descanso do meio-dia.

 

A primeira impressão de Memphis que teve Lydia foi através de um véu de névoa, enquanto estava sentada na carreta. Olhou por cima do ombro do senhor Coleman em tanto que ele introduzia o seu veículo no círculo formado pelo resto de carretas, para passar a noite. Lydia nunca tinha visto uma cidade tão grande. Ainda desde aquela distância, era uma visão impressionante. Teria podido estar contemplando-a durante longo momento, mas havia trabalho que fazer, e depressa.

 

Acenderemos um fogo assim que encontre um pouco de madeira seca - disse Ross, em tanto esquadrinhava as nuvens carregadas de umidade que empurrava o frio vento.

 

Ross conseguiu acender por fim uma pequena fogueira com a lenha úmida que tinha recolhido. Lydia fritou um pouco mais de carne e preparou duas fornadas de pão.

 

Pode ser que este seja nosso último fogo de verdade durante dias disse.

 

A chuva se intensificou.

 

Todos os membros da caravana estavam abatidos. Podiam ver como corria o Mississipi desde seu acampamento, situado sobre uns penhascos. Tinham temido e desejado o momento de cruzar o rio, mas agora o Mississipi aparecia ante eles amedrontador e detestável. Ia crescido por causa das recentes chuvas torrenciais. Apenas se podia ver a borda de Arkansas por culpa da chuva que o velava. Os que tinham vivido em ou perto do feroz Tennessee durante toda sua vida ficaram sem fala ao ver a largura do Mississipi.

 

Em que pese a suas aterradoras proporções, agora que haviam chegado até ele e o viam estavam dispostos a cruzá-lo. Mas dava a impressão de que deveriam esperar dias, talvez semanas, para fazê-lo.

 

A primeira hora da manhã, um grupo irá com o Grayson ao transbordador - explicou Ross a Lydia, enquanto guardavam tudo o que podiam na carreta.

 

- O que acredita que ocorrerá?

 

Ross amaldiçoou.

 

Acredito terá que esperar a que a chuva termine. As pessoas que vivem nesse rio são muito supersticiosas a respeito. Não acredito que os transbordadores se atrevam a cruzá-lo até o próximo dia de sol.

 

Lydia intuiu seu estado de ânimo e tratou de não provocar seu aborrecimento.

 

Quando Ross entrou em procurar uma manta a mais, falou-lhe com suavidade do outro extremo do carro.

 

- É necessário que durma fora, senhor Coleman?

 

O homem a olhou sem dissimular seu estupor. Lydia estava dando de mamar a Lee, mas desde aquela manhã que a tinha visto em plena tarefa, a jovem tinha começado a tampar seu ombro, seu seio e a cabeça de Lee com uma manta de flanela. Ross se alegrava de que desse alguma amostra de decência, mas sua mente não esqueceria que a tinha visto apoiar a cabeça de seu filho naquele montículo de carne cremosa.

 

- O que pensaria as pessoas se ficássemos aqui juntos? Perguntou, mal-humorado.

 

- Provavelmente, pensaria que teve o sentido comum de proteger-se da chuva - replicou Lydia.

 

O tempo não contribuía a amansar seu gênio, nem tampouco sua teimosia. Pensava que tentava lhe atrair ao interior do carro? Deitar-se com um homem era quão último desejava fazer.

 

Bom, não posso dormir aqui com.. com... contigo. Voltou-se para a abertura. Até manhã.

 

Deitou sob o carro e se envolveu nas mantas. Estava molhado e gelado, mas quase constituía um alívio em comparação com a sensação febril que lhe tinha torturado durante dias.

 

Ross apareceu triste e sujo quando voltou para a carreta por volta do meio-dia. Uma cortina de água estava caindo. O senhor Norwood, o senhor Sims, o senhor Grayson e ele tinham cavalgado até a borda do rio e falado com o homem que dirigia o serviço de transbordadores. Tal como Ross havia predito, não tinha a menor intenção de cruzar o rio com aquela chuva e aquele vento. Carregar vinte carretas com parelhas, mulheres e meninos através da rápida corrente estava descartado.

 

Disse que deveríamos esperar a que a chuva amainasse - continuou Ross. Fez uma careta enquanto bebia o café que Lydia lhe tinha guardado.

 

- Tem fome?

 

O homem encolheu os ombros. A barba incipiente obscurecia o seu rosto, pois aquela manhã não se barbeou.

 

Suponho que deveria comer algo.

 

Lydia lhe passou um guardanapo de linho dobrado, dentro da qual encontrou um sanduíche de bacon.

 

Mamãe enviará depois aos seus dois filhos à cidade, a ver se podem comprar um pouco de carne enlatada. Te ocorre algo que Lee necessite? - Perguntou Ross.

 

Lydia meneou a cabeça, e pensou em uma dúzia de coisas que ela necessitava. Como uma camisa, por exemplo. Se tivesse uma, poderia forrá-la com um tecido suave para que, quando seus seios gotejassem, não tivesse que ocultar do senhor Coleman ou de qualquer que pudesse ver os dois círculos úmidos na parte dianteira de seu vestido.

 

- As senhoras da caravana lhe emprestaram coisas. Não necessitará nada mais até que cresça um pouco.

 

Ross teria gostado de muito ir à cidade, mas não se atrevia a correr o risco. Inclusive baixar a falar com o homem do transbordador tinha sido uma imprudência. Manteve escondido o seu rosto a babudo. Tinham transcorrido três anos, mas ainda assim...

 

As horas da tarde se alargavam de uma forma interminável. Lee dormia, em que pese a que Lydia lhe cantava, fazia cócegas o estômago e fazia o possível por lhe manter acordado. Estava aborrecida, sentada ali só na carreta sem meninos mais velhos ou um marido com quem falar. As demais mulheres utilizavam o dia para descansar, remendar ou especular com suas famílias a respeito de seu novo lar em Telhas, ou mais ao oeste. Ross tinha partido a cuidar os cavalos, e tinha deixado Lydia sozinha.

 

Luke e Bubba a chamaram da parte posterior do carro justo antes que obscurecesse. Lydia engatinhou até a abertura para levantar a lona e apareceu, então estalou em gargalhadas ao vê-los. As asas de seus chapéus de feltro se inclinavam para baixo devido aos riachos de água que caíam sobre quão impermeáveis levavam, mas suas caras empapadas pela chuva se viam tão animadas como sempre. Supôs que os dois teriam desfrutado em uma cidade como Memphis, e não deixariam de lhe relatar anedotas durante os dias vindouros.

 

Gastamos todo o dinheiro que Ross nos deu. Pêssegos, peras, quiabo com tomates e cebolas, e uma salsicha defumada - disse Bubba, enquanto extraía os artigos da mochila atada a sua cadeira e os entregava.

 

Nos enche a boca água de só cheirar essa salsicha - disse Luke.

 

Compraste-lhes uma?

 

Bubba lançou ao Luke um olhar assassino.

 

Não.

 

Lydia se sentiu afligida por ter extraído ao moço aquela confissão. Os Langston não podiam permitir-se o luxo de comprar uma salsicha. Sua mãe e ela tinham ajudado a matar porcos, e trabalhavam todo o dia por uma libra de bacon e uma salsicha. Ela não conhecia a coragem do dinheiro nem sabia o que custava uma salsicha ou qualquer outro artigo.

 

Bem, merecem-lhes uma recompensa por me trazer..., por trazer-lhe ao senhor Coleman.

 

Rebuscou na caixa de utensílios de cozinha, tirou uma faca de açougueiro, sujeitou a salsicha entre seu corpo e o braço, e cortou uma parte para cada um.

 

- Peguem. Desfrutem.

 

Luke se apoderou de sua rodela imediatamente e a introduziu em sua boca sem a menor vergonha. Bubba agarrou sua parte quase a contra gosto.

 

- Muito obrigado, senhorita Lydia.

 

O moço experimentou um grande alívio ao ver que Lydia já não levava aquele vestido ajustado, embora enchesse a parte dianteira da camisa velha do Luke com muita graça.

 

Os mistérios do corpo feminino lhe fascinavam e dominavam ultimamente seus pensamentos. Tinha estado pensando em Priscilla Watkins durante todo o dia. Tinha-a visto parada sob a chuva no dia anterior de noite. O vestido molhado se apertava ao seu corpo de forma que deixava adivinhar sua silueta. Quando Priscilla viu Bubba, voltou-se para ele, inconsciente de que o tecido se esmagava contra os seus seios e seus impudicos mamilos. Bubba tinha passado uma noite de cães, torturado pela pergunta do que se sentiria ao tocar um seio de mulher.

 

Agora a visão da calidez e a ternura de Lydia provocou violentas e vergonhosas reações em seu corpo.

 

- Será melhor que voltemos para nosso carro, ou Mamãe enviará uma partida em nossa busca.

 

Lydia sorriu.

 

- Sim, será melhor.

 

Os dois moços se afastaram na crescente escuridão.

 

Ross e ela compartilharam a comida, quando ele voltou para a carreta. Chegou tão empapado como os moços. Racionaram a comida para que durasse vários dias. Inclusive consumida fria com alguns pães restantes, eram deliciosas para Lydia. Antes que os Langston a encontrassem, nunca tinha gozado de uma comida tão saborosa, comida que outros consideravam do mais normal.

 

Lydia temia o momento em que Ross iria para fora a passar a noite, embora não tanto como o próprio Ross. A terra estava empapada e não gostaria de passar outra noite lutando por manter-se seco. A carreta era confortável com a suave luz do abajur, o aroma a recém-nascido de Lee e... Lydia. Sua presença feminina dotava ao carro de um ambiente caseiro.

 

Para alargar mais seu tempo de permanência dentro da carreta, Ross ficou a reparar uma brida que poderia ter resistido vários dias mais sem necessidade de seus cuidados. Demorou um tempo inusitado em realizar aquela singela tarefa, mas procurou em todo momento que as duas sombras jogadas sobre a lona pela luz do interior estivessem bem separadas, se por acaso alguém os estava espiando. Quando já não ficaram desculpas para atrasar-se mais, Ross agarrou suas mantas molhadas e se encaminhou à parte posterior da carreta.

 

- Não esqueça apagar o abajur.

 

Não a olhou ao dizê-lo, pois a moça estava sentada na esquina dianteira do carro, com Lee deitado sobre seu seio. O menino tinha terminado de mamar uns minutos antes, mas ela não tinha querido lhe deitar ainda. Gostava de sentir aquele peso precioso contra o seu corpo, os rápidos batimentos de seu coração contra si.

 

- Boa noite, senhor Coleman.

 

Viu-lhe desaparecer e sentiu uma pontada de culpabilidade. Ele poderia havê-la mandado a passar a noite sob a chuva e ocupado ele a carreta com todo o direito do mundo. Ela já tinha sugerido em uma ocasião que, por puro sentido comum, ficasse dentro, e Ross quase lhe tinha arrancado a cabeça por isso. Lydia podia ser tão teimosa como ele. Não lhe voltaria a dizer nada a respeito.

 

Não estava adormecida muito momento, quando seu colchão estremeceu por causa de um trovão. Trovejava a última vez que

Clancey se tinha deslizado no palheiro onde ela dormia e sujeito sua garganta com aquela mão imunda para impedir que falasse e se movesse. O suor cobriu a testa e o lábio superior de Lydia. Tinha estado sonhando com as mãos depredadoras de Clancey sobre seu corpo, com a dor, com a doentia culminação de sua resistência inútil.

 

Um trovão ressonou de novo, acompanhado de um vento glacial. A chuva repicou sobre a lona que cobria a carreta. Soava como mil diminutos tambores batentes. Lydia se estremeceu aterrorizada pela tormenta e inquieta ainda pelo pesadelo. Olhou a Lee. Dormia profundamente. Pensou no senhor Coleman, exposto à chuva, e sem pensá-lo duas vezes começou a engatinhar para o extremo do carro.

 

Mais ou menos quando Lydia despertava de seu sonho, Ross decidiu que era um imbecil por ceder o calor e a comodidade de seu carro a uma rameira que qualquer dia largaria. Estava impregnado até os ossos, percorriam-lhe calafrios cada vez que uma rajada de vento e chuva lhe alcançava debaixo da carreta. Que a garota fosse a merda, e também a senhora Watkins e toda a gente da caravana. Ia entrar. Saiu de debaixo do carro, e quando media em busca das cortinas de lona, Lydia as apartou.

 

Surpreendidos, os dois permaneceram petrificados um momento, indiferentes à chuva que empapava a Ross. Foi necessário um espantoso raio, que desenhou uma cicatriz trincada azul no chão, para lhes devolver à realidade.

 

Lydia lhe agarrou a mão e o puxou para dentro. Ross esteve a ponto de cair de joelhos, tremendo como um possesso, enquanto um grande atoleiro de água se formava ao seu redor.

 

Lydia se ajoelhou ao seu lado e começou a lhe desabotoar os botões da camisa, sem lhe importar o fato de que se estava molhando o bordo de sua camisola.

 

- Vai pegar um resfriado de morte - disse entre dentes, e puxou a empapada camisa. Tire essas calças.

 

Ross tinha o corpo e a mente muito intumescidos para protestar, e obedeceu como um autômato. Lydia jogou a camisa para os degraus de fora. Era impossível que se molhasse mais. Acendeu o abajur, mas só o suficiente para que arrojasse um débil resplendor. Olhou para trás e viu que Ross estava lutando com a fivela do cinturão.

 

Dê-me toda sua roupa. Deixarei-a fora.

 

Sem voltar-se, ouviu que Ross se despia. Suas calças deviam pesar cinco quilogramas com a água que continham, mas conseguiu agarrá-las com uma mão curvada para trás e lançá-los fora, junto com um par de meias três-quartos e cueca.

 

Quando se voltou, Ross se tinha envolto em uma manta.

 

Está tremendo. Segue molhado? Rebuscou no cesto onde guardava as toalhas e se aproximou dele com duas. Seque o cabelo.

 

Ross cobriu a cabeça com a manta e esfregou vigorosamente. Lydia apoiou a outra toalha sobre seu peito e ficou a deslizar as mãos sobre ela. Os movimentos de Ross se interromperam um segundo, mas logo se reataram, em tanto a moça esfregava os seus ombros, peito e estômago.

 

Surpreendeu-lhe a dureza de seu corpo. A pele bronzeada se esticava sobre tendões, músculos e ossos. Observou cortes, multidão de pequenas cicatrizes, e a que havia justo debaixo de seu ombro esquerdo, similar a um punhado de carne que tivesse sido arrancada por um punho gigantesco. Perguntou-se quanto teria sofrido Ross, e ardeu em desejos de tocar a cicatriz de poder lhe aliviar como fosse.

 

Também lhe intrigou o bosque de pêlo encaracolado que cobria o seu peito. Parecia uma nuvem escura, úmida e encrespada, E quanto mais baixavam suas mãos pelo torso, mais sedoso e fino era o seu pêlo, que se estreitava para o seu umbigo.

 

Ross conteve o fôlego quando a jovem tocou seu umbigo, e apertou os dentes quando sentiu suas mãos subir pelas costelas. Pendurou a toalha ao redor de seu pescoço e agarrou os pulsos da moça com seus dois punhos. Puxou ela para cima e adiante. Só tentava deter suas mãos. Não tinha contado agarrando-a despreparada por completo, com que não pesasse mais que um colibri, nem bastasse com aquele rápido puxão para que aterrissasse sobre seu colo, com os seios esmagados contra o seu peito e joelhos... Santo Deus! Notaria-o? Nu e ereto.

 

Olharam-se surpreendidos durante outro momento, suas respirações entrelaçadas os batimentos do coração tão violentos como os trovões que estalavam fora.

 

Malditos olhos. Ross escrutinou sua profundidade. O brilho como jóias lhe aturdiu e foi incapaz das contar. E por que tinha sua boca um aspecto tão suculento, como uma fruta única e linda da que os deuses extraíram néctar? A ponta de sua língua agonizava por penetrá-la e saboreá-la... uma e outra vez. Carecia de ossos? Todo seu corpo era tão suave e maleável, sem ângulos afiados que se sobressaíssem?

 

Desejou beijá-la, deformar a perfeição daquela boca com seus lábios. Ansiava fundir aquela incrível e bem-vinda calidez com seu inchado desejo. Morreria se não acessava à furiosa e maníaca exigência de seu corpo.

 

Mas se arrependeria toda a vida se emprestava ouvidos aquele grito. Desprezou da sua mente aquele desejo.

 

Pouco a pouco, afrouxou sua presa e a apartou. Lydia retrocedeu a toda pressa quando se sentiu livre. As faíscas que despediam as esquinas de seus olhos verdes a assustavam.

 

Sente-se melhor? - Sussurrou, quando se sentou de joelhos a uma prudente distancia.

 

Tudo dependia do ponto de vista de cada um.

 

- Um pouco.

 

Seus dentes já não batiam.

 

- Estou me aquecendo.

 

De fato, estava muito quente. Tão quente que ignorava por que não chamuscava o pêlo de seu corpo.

 

- Quisera que tivéssemos algo quente para beber.

 

Também gostaria. Possivelmente possa acender um fogo à hora do café da manhã.

 

Não acreditava possível, mas assim pôde dizer algo, algo em que os dois estiveram de acordo. Agora que a crise tinha passado, tinham que fazer-se à idéia de compartilhar o carro.

 

- Será melhor que ponha um pouco de roupa.

 

OH.

 

A jovem levou uma mão a sua garganta e pôde notar a agitação do sangue em suas veias. Não sabia por que seu coração estava acelerado, nem por que sua respiração era irregular, mas cada vez que olhava a teia de pêlos que desaparecia nas sombras da manta atada ao redor dos quadris daquele homem, todo seu corpo ficava a tremer.

 

- É obvio.

 

Deu-lhe as costas e fingiu alisar os lençóis do colchão.

 

Feito - disse Ross ao cabo de um minuto.

 

Estava sentado no chão, embutido em umas calças, a ponto de vestir as meias três-quartos. Não tinha posto outra camisa. Enquanto Lydia lhe olhava, sentiu que todo seu corpo se estremecia.

 

Senhor Coleman - disse, e se separou do colchão, meta-se aqui dentro antes que agarre uma pneumonia.

 

- Não. Envolverei-me aqui.

 

- Não. Já esquentei um lugar. - Isso temia Ross. - Ao fim e ao cabo, é sua cama.

 

Bom, ao menos ela se lembrava desse detalhe.

 

- Não, vê a...

 

- Não seja teimoso, por favor.

 

- Não sou teimoso.

 

- Sim, é-o. Se eu não tivesse ocupado sua cama, você não teria estado fora. Não me faça sentir mais culpado ainda. Viu que ele apertava os lábios, e ensaiou outra tática. Se ficar doente, sua chegada a Telhas poderia atrasar-se.

 

- Não me porei doente.

 

- Poderia morrer. O que seria de Lee?

 

- Não morrerei.

 

- Como sabe?

 

- De acordo, pelo amor de Deus! Estalou Ross. Dobrou-se pela cintura, avançou para o colchão, desabou-se sobre ele com mais cuidado do que desejava admitir e puxou as mantas quentes sobre seu corpo trêmulo.

 

- Feito. Satisfeita?

 

- Sim sorriu Lydia.

 

Secou o chão do carro com as toalhas úmidas, e depois as jogou fora, com a outra roupa. Era seguro que, depois de seguir molhando-se toda a noite, essas roupas demorariam um montão de tempo em secar-se, mas não podiam as deixar no carro. Apagou o abajur, engatinhou para a esquina oposta de onde se achava Ross, ali se envolveu em uma manta e se recostou contra um lado do carro.

 

      Maldição! Ross sabia o que devia fazer, mas como? Como podia convidar a aquela garota, que haveria deitado com Deus sabia quantos homens, que representava tudo o que ele odiava e tinha tentado deixar atrás durante toda sua vida, a compartilhar aquelas mantas com ele? Como podia lhe pedir que se deitasse ao seu lado, onde Vitória, refinada e formal inclusive na cama, embelezada com suas castas camisolas debruadas de laços de cetim e renda, tinha adormecido?

 

Claro que não seria o mesmo. Ele não desejava à garota. «Mais que nada no mundo», mofaram-se seus baixos instintos. De acordo, estava louco de desejo por ela. Era um desejo físico. Mas ele era um homem, não um animal. O amor de Vitória lhe tinha liberado de tudo o que mais odiava dele mesmo. Não podia controlar seu corpo, mas sim suas reações.

 

- Senhorita.... , Lydia - disse na escuridão.

 

- Sim?

 

Sua voz estava estrangulada de medo. O que ia fazer o senhor Coleman? Era sobre tudo de noite quando os homens faziam coisas às mulheres. Recordava os soluços de sua mãe, quando jazia com Otis Russell em sua cama. Recordava como Clancey tinha profanado seu colchão.

 

Não pode ficar aí sentada toda a noite. Se quiser, pode te deitar no outro lado do colchão.

 

- Estou bem.

 

- Não seja ridícula. Apoiou-se sobre os cotovelos para falar com a silhueta encolhida na escuridão. Faltam muitas horas para o amanhecer. Faz frio e umidade. Não pode ficar sentada aí toda a noite, ou estará doente pela manhã.

 

- Minha constituição é forte. Estarei bem.

 

Quão último necessitavam seus nervos a flor de pele era a estupidez da moça e uma nova discussão com ela. Tinha perdido em todas as que tinham mantido ultimamente. Seu mau gênio se desatou.

 

- Hei dito que venha aqui, maldição!

 

Estendeu a mão, fechou-a ao redor do braço de Lydia e a arrastou para si.

 

Os olhos de Lydia se alagaram de lágrimas. Ela tinha acreditado que o senhor Coleman não lhe faria quão mesmo Clancey, mas pelo visto se equivocou. Era um homem. Lutou até compreender que estava gesticulando no ar. O senhor Coleman tinha atirado as mantas sobre ela e estava deitado com o rosto voltado para o outro lado. Nem sequer a havia tocado.

 

Lydia jazeu acordada durante longos minutos e deixou que seu corpo se tranqüilizasse pouco a pouco. Quando a respiração do senhor Coleman adquiriu um ritmo regular, permitiu-se acreditar que não ia lhe fazer dano, e se encolheu dentro das mantas.

 

Seguia chovendo com força, embora os trovões se afastassem e já não cintilassem raios. Embora não se tocassem, o calor que emanava do corpo de Ross era agradável. Dormiu.

 

Quando Ross despertou, demorou um minuto em orientar-se. O primeiro que viram seus olhos foram as madeira laterais do carro. Através da abertura que separava o lado do carro da coberta de lona, viu que havia luz, mas ainda seguia chovendo com intensidade. Estava seco, quente e descansado, e se sentia muito bem...

 

Deu-se a volta imediatamente. Lydia jazia ao seu lado. Estava acordada, afastada dele e sustentava a Lee no oco do braço. A camisola estava desabotoada e aberta. Lee chupava avidamente de seu seio.

 

Ross inclinou um pouco a cabeça.

 

Lamento haver despertado. Dormia como um menino.

 

Não me despertou. Estou acostumado a me levantar cedo.

 

Ross tentou apartar os olhos dela, de seu filho satisfeito, de seu seio, mas não pôde. Não pensou que estavam deitados na mesma cama, meio vestidos. Não pensou em Vitória. Não pensou em nada, exceto em quão bonita era aquela moça quando sorria daquela maneira sonolenta.

 

É absurdo levantar-se cedo hoje - disse a jovem em voz baixa. Chove igual a ontem à noite.

 

Isso parece.

 

Perguntou-se como tinha podido pensar que seu cabelo carecia de atrativo. Apoderou-se dele a compulsão de tocar sua frisada confusão, e só conseguiu resistir graças a um esforço de vontade. Levantou-se sobre um cotovelo para ver melhor ao seu filho.

 

Está engordando - observou.

 

Lydia riu, uma gargalhada suave e gutural que arrepiou todas as zonas erógenas de Ross.

 

Não sente falta de nada. Quão único faz é comer e dormir.

 

Contemplaram um momento a Lee, que mamava feliz, inconscientes de que era algo tão importante como um vínculo de união entre dois estranhos. Tinha fome, e uma pérola de leite escapou de seus lábios, deslizou-se sobre sua face e se posou sobre o seio de Lydia.

 

Ross, sem pensá-lo, pois se havê-lo feito haveria se sentido horrorizado, estendeu sem dar-se conta o braço por diante de Lydia, levantou a gota de leite com o dedo, o levou a boca e o lambeu com a língua.

 

Quando, muito tarde, compreendeu o que tinha feito, ficou imóvel, paralisado por seu ato reflito. Lydia voltou a cabeça para lhe olhar com incredulidade. Baixou os olhos para o seu bigode, para sua boca, para o dedo que continuava apoiado sobre seus lábios, um criminoso culpado apanhado com as mãos na massa.

 

Não queria fazê-lo.

 

A voz de Ross era como uma serra ao entrar em contato com a madeira. Lydia continuou lhe olhando em silêncio, como se tentasse imaginar algo que superasse sua capacidade de raciocínio. Ross ignorava por que não elevava as mantas e se ia. Só sabia que era incapaz de apartar seus olhos ou seu corpo dela.

 

Por fim, Lydia se virou para o bebê.

 

Já tornou a dormir - murmurou, como se não tivesse ocorrido nada estremecedor.

 

Ross tombou de novo sobre o colchão e tampou os olhos com um braço. Seguiu escutando atentamente cada um dos movimentos de Lydia, quando elevou Lee de seu seio e o agasalhou na segurança da camisola. Voltou a fechá-lo. Colocou o menino ao seu lado. Dormiu de novo.

 

E Ross seguiu sem compreender o que tinha feito. E seguiu sem poder mover-se. E seguiu notando seu sabor.

 

O sonho se apoderou dele, ainda com aquele sabor em sua língua. De maneira inconsciente, baixou o braço e procurou calor sob as mantas, enquanto ficava de lado. Sem dar-se conta, sua face apanhou vários fios de cabelo vermelho que, a sua vez, enredaram-se em seu bigode. Seu corpo, por puro instinto, curvou-se ao redor da fonte mais próxima de calor, uma versão da espécie humana mais arredondada, suave e pequena que ele. Seu subconsciente a considerou agradável.

 

Os três continuaram dormindo.           

 

Assim os encontrou o senhor Grayson uma hora mais tarde.

 

Ross Coleman possuía o veloz instinto de uma serpente de cascavel. Durante seus anos de guerrilheiro e fugitivo tinha desenvolvido um sexto sentido sobre a presença dos intrusos. Aquela manhã, falhou-lhe por completo. Ainda continuava adormecido quando o chefe da caravana pigarreou estrondosamente.

 

Ross abriu os olhos e viu Hal Grayson de pé dentro do carro. Tinha a vista cravada no chão e, nervoso, dava voltas ao chapéu que tinha entre seus dedos.

 

A reação de Ross foi instantânea. Saltou do colchão, aplaudiu a coxa direita, em busca de algo que não estava, e se balançou sobre as pontas dos pés, em posição de ataque.

 

Os olhos e a boca do Grayson se abriram estupefatos. Nunca tinha visto um homem que se movesse com tamanha rapidez. Levantou ambas as mãos em sinal de rendição.

 

Eu... sinto muito. Hei... chamado... gaguejou.

 

Lydia engatinhou para um lado do carro e arrastou com ela a um desconcertado e raivoso Lee. Seus olhos refletiam incompreensão, e o cabelo caía desordenadamente ao redor de sua cabeça.

 

- Suas obrigações incluem entrar no carro de alguém sem ser convidado? Perguntou Ross ao pasmado Grayson.

 

- Não...

 

- Só quando tem que expulsar aos ocupantes.

 

A voz lambida pertencia a Leoa Watkins, cujos olhos acusadores se encontravam ao nível do chão da carreta, pois não tinha subido. Entrou no carro e contemplou Ross e a Lydia com virtuosa indignação.

 

Ross conseguiu com um grande esforço que seus músculos se relaxassem e seu coração se acalmasse.

 

Expulsar? Do que está falando? Perguntou ao Grayson, que evitou os olhos de Ross.

 

- Sinto muito, Ross, mas a senhora Watkins formou um comitê, cujos componentes votaram que você e a garota devem abandonar a caravana, posto que hão... hummm..., pensam... coabitar.

 

- Coabitar! Rugiu Ross. Compartilhamos o carro esta noite porque diluviana.

 

Compreendo... começou Grayson, mas Leoa lhe interrompeu.

 

Compartilharam uma cama! Gritou, e estendeu para eles um dedo ossudo. Voltou-se para o extremo do carro e falou com empapado grupo congregado no exterior. Eu lhes vi. Jaziam juntos na mesma cama. Ele nem sequer está vestido por completo. Acredito que Deus me cegará por ter sido testemunha de semelhante pecado.

 

Lydia já tinha agüentado o bastante. Viu dúzias de olhos curiosos que a olhavam pela abertura do carro. Saltou do colchão e apertou ao histérico Lee contra o seu peito.

 

Não viu nada, exceto a duas pessoas que dormiam na mesma cama! Gritou, quase sem fôlego.

 

Ao ver Lydia embelezada só com a camisola, com o cabelo desordenado, que caía de uma forma muito sedutora sobre seus ombros, Leoa Watkins ficou rígida como a corda de um violino. Lydia não se deu conta.

 

Achei errado utilizar a cama do senhor Coleman. Disse-lhe que dormisse no colchão, porque tinha frio e tremia. Isso é tudo. Estava deitada ao seu lado porque não tinha outro lugar onde dormir.

 

Sei muito bem o que vi - vaiou a mulher, e seu esquelético pescoço se estirou como o de uma galinha irada. Surgiu saliva de seus estreitos e beatos lábios.

 

Que demônios sabe você de como dorme uma mulher com um homem?

 

Mamãe projetou seu corpanzil no interior do carro, seguida de Zeke. O homem pôs as calças sobre os calções de lã, que tinha abertos. Eram de um vermelho esvaído. Com o cabelo que sobressaía em ângulos caprichosos de sua cabeça, compunha uma visão cômica. Leoa ficou ainda mais rígida quando lhe viu.

 

Só tem uma filha, o qual quer dizer que teve sorte a única vez que esteve com seu marido.

 

O rosto de Leoa se esvaziou de toda cor, e imediatamente em seguida se alagou de um profundo rubor. Seus lábios se moveram sem que surgisse nenhuma palavra.

 

Não penso escutar mais obscenidades - disse por fim, e se voltou para o Grayson. O que vai fazer você, como líder eleito, com esta perniciosa influência para os meninos da caravana?

 

Grayson suspirou, cansado, e sacudiu a cabeça. Sua própria esposa, embora tolerante, mostrou-se desgostada, quando despontou a alvorada, Watkins tinha ido a sua carreta para anunciar que o senhor Coleman e «aquela desgraçada rameira» estavam dormindo juntos no carro. Ao princípio, Grayson não acreditou. Tinha visto Ross sofrer durante o parto de Vitória. Tinha visto o desespero gravado no rosto daquele homem quando sepultaram a caixa de pinheiro sem adornos. Ross se tinha encolerizado quando Mamãe lhe levou a garota para que desse de mamar ao seu filho. Grayson não acreditava que Ross estivesse disposto a fornicar com nenhuma mulher, sobre tudo com aquela garota, pela que sentia um manifesto desprezo.

 

De todos os modos, Ross era um homem. Um homem jovem. Com mais tempero e, suspeitava Grayson, uma natureza mais sensual que a maioria. E a garota não tinha mau aspecto, agora que a tinham limpo e vestido. Olhou a Lydia e baixou os olhos, turbado. Que homem, na situação de Ross Coleman, não teria feito o mesmo? Ele teria experimentado fortes tentações de fazê-lo, como mínimo A moça, para o seu bem ou para o seu mau, era da matéria de que parecem as fantasias perversas. Olhou com valentia a Coleman e se encolheu ao perceber o ódio plasmado em todos os planos rígidos de seu rosto. Os olhos verdes de Ross flamejavam.

 

Sinto muito, Ross disse Grayson, e abriu as mãos em um gesto implorante. Se por mim fosse, daria-me igual, mas terá que pensar nos meninos e...

 

Elevou os braços em um gesto de impotência quando sua voz desfaleceu.

 

Esqueça - replicou Ross. Não quero ficar onde não me querem. Bem, se lhes largarem todos...

 

Esperem um maldito momento - interveio Mamãe - Até aqui chegamos. Voltou-se para o Ross. - Nesta caravana lhe querem. Quem sabe mais que você de cuidar cavalos? Voltou-se para Grayson. Quem, tem melhor pontaria? Quem traz sempre carne fresca? Vai expulsar a um homem por refugiar-se da chuva? Por isso lhe respeito, lhe teria considerado um imbecil se não o tivesse feito.

 

A verdade, senhor Grayson... interrompeu Leoa Watkins.

 

Cale-se, mulher - bufou Zeke. Era a primeira vez que lhe ouviam repreender a alguém. A surpresa, mais que outra coisa, deixou sem fala a senhora Watkins.

 

Bem, no referente a que estes dois jovens tenham feito algo vergonhoso, utilize o sentido comum que Deus lhe deu. Ela teve um bebê não faz nem duas semanas. Acredita que está o suficientemente restabelecida para fazer o amor com alguém?

 

A cara de Lydia se inflamou quando todos os olhos especulativos se voltaram para ela. Olhou a Ross, que se mantinha tão imperturbável e rígido como um índio, como indiferente ao que ocorria. Voltou-se para Leoa e reuniu quanta frieza pôde conter em seus olhos. A mulher foi primeira em apartar a vista, mas ainda não se rendeu.

 

Às que são como ela lhes dá igual! Exclamou.

 

A dor é igual para todas as mulheres - disse Mamãe. Cruzou os braços sobre seu gigantesco busto e respirou fundo. - Só há uma resposta prática a este problema. O senhor Coleman e Lydia poderiam casar-se.

 

Produziu-se uma instantânea gritaria.

 

E uma merda - vociferou Ross.

 

Não quero me casar com ninguém - exclamou Lydia.

 

Mamãe, esta vez acertou - disse Grayson.

 

Zeke riu agradado.

 

Senhor, Senhor cantarolou a senhora Watkins. Sua Santa esposa ainda não está fria em sua tumba.

 

Em realidade, a senhora Watkins tinha desprezado a Vitória Coleman por sua graça e sua beleza, mas agora estava disposta a defender a causa da falecida esposa injuriada.

 

Senhor Grayson, você crê que se casassem poderiam ficar resolvidos todos estes problemas?

 

Hal Grayson amaldiçoou o dia em que tinha aceito o cargo de chefe da caravana. Não sabia grande coisa de nada, exceto de cultivos. Sua opinião sobre a melhor época para plantar era valiosa, mas o que sabia ele sobre quem devia casar-se com quem?

 

Suponho que sim.

 

E para você, mesquinha e rancorosa intrometida? Perguntou Mamãe a Leoa Watkins.

 

A mulher cuspiu, irada. Dava a impressão de que sua pele ia se abrir de um momento a outro para que a raiva contida em suas vísceras se derramasse.

 

Acredito que seria uma desgraça. Impossível saber o que todos veríamos e ouviríamos neste carro.

 

Se estiver você tão interessada em ver e ouvir o que outros fazem em sua cama, por que não tenta fazer algo na sua?

 

_OH - Leoa cobriu o peito como se Mamãe a tivesse esbofeteado. Depois de lançar um olhar feroz a Grayson, com a que expressava sua decepção, saiu do carro. A Langston sugeriu que os dois se casem anunciou a outros. Eu lavo as mãos de todo este assunto e acredito que nós, os cristãos temerosos de Deus, deveríamos rezar para receber amparo contra os perigos que nos acossam.

 

Desculpa-nos, senhor Grayson? Disse Mamãe, sem fazer caso do confuso falatório que tinha estalado fora. Quero falar com a Lydia e Ross. Você também, Zeke. Vá à carreta e procura que aqueles pequenos não a destrocem. Ficam impossíveis quando estão encerrados muito momento.

 

Zeke e Grayson saíram da carreta. O pequeno Lee tinha estado chorando durante todo o incidente. Lydia se deixou cair sobre um tamborete, deu as costas Ross e Mamãe, e começou a lhe dar o seio.

 

Ross falou, feito uma fúria.

 

Disse-te que não queria dormir nessa maldita cama, mas não, tinha que me obrigar. Olhe o que aconteceu agora.

 

Lydia lhe lançou um olhar assassino por cima do ombro.

 

Eu! Falavam em voz baixa, e pontuavam sua ira com olhadas afiadas e modulações de voz. - Sim, quão único queria é que você dormisse em sua cama. Estava gelado, molhado e cansado, mas quem foi o que me obrigou a dormir também na cama? Responda-me. Quem esteve a ponto de me tirar os dentes a sacudidas e me atirou sobre o colchão?

 

Voltou-se para o menino e cantarolou em voz baixa.

 

Ross descarregou o punho sobre a palma da outra mão.

 

Do primeiro momento que te vi não paraste que me causar problemas.

 

OH, e você foi tão agradável, com seu mau gênio, seus olhares carrancudos e suas palavras insultantes. Um autêntico prazer, senhor Coleman.

 

Teria que haver despertado esta manhã quando deu de mamar a Lee. Teria me levantado e não teria passado nada.

 

A jovem lhe olhou estupefata.

 

Você despertou! Não foi culpa minha que se acomodasse de novo junto a mim e voltasse a dormir.

 

Eu não fiz tal coisa - resmungou entre dentes.

 

Não? Bom quase me matou de susto quando despertou. Saltou como uma pantera escaldada quando ouviu o senhor Grayson. Estava deitado tão perto que quase nos arrastou a Lee e a mim ao levantar-se. De fato, quase me arrancou o cabelo da cabeça...

 

Bem, se quer saber minha opinião, não lhe viria mal ao seu cabelo um bom estirão, com uma escova e um pente. Se não o levasse tão enredado, tão desgrenhado...

 

A gargalhada de Mamãe lhes interrompeu. Lydia e ele a olharam, perplexos, enquanto ela secava as lágrimas de seus olhos.

 

Já estão discutindo como se estivessem casados.

 

Ross começou a abotoar os botões da camisa. Durante uma das arengas da senhora Watkins a tinha posto, mas tinha esquecido de abotoá-la.

 

Na verdade, Mamãe, e a toda sua família. Foram muito amáveis comigo, e foram amáveis com Vitória antes que morrera, mas esta vez vou pedir lhe que não se meta em meus assuntos.

 

De acordo - foi a surpreendente resposta, mas antes vou dizer minha opinião e não irei deste carro até então.

 

Plantou os dois pés calçados com botas ante a abertura e Ross pensou que não poderia movê-la dali nem com dinamite Tampouco poderia regar muito longe aquele dia com o barro e a chuva, de modo que seria inútil ficar em ação cedo. Deixou-se cair sobre o outro tamborete e apoiou a cabeça nas mãos.

 

Quando Lydia lhe olhou, ficou surpreendida por sua postura. Era a mesma de quando lhe tinha visto pela primeira vez, como se carregasse o peso do mundo sobre os ombros.

 

Agora, me escute - disse Mamãe. Vai deixar que essa velha bruxa de Leoa lhe expulse da caravana?

 

Não - replicou Ross. - Essa mulher não tem nada que ver com minha decisão. Teria que me haver partido da caravana quando Vitória morreu. Posso chegar a Texas sozinho, e é provável que vá mais rápido.

 

Com Lee?

 

Arrumarei-me isso.

 

E de passagem matará ao menino, provavelmente. A menos que pense levar Lydia. E nesse caso, mais vale que fique na caravana, para gozar do amparo do grupo.

 

Ficar na caravana significa me casar com ela. Não posso fazê-lo.

 

Por quê?

 

Por quê? Ficou em pé e começou a passear, embora tivesse que encurvar-se para fazê-lo. Porque ela é lixo, por isso.

 

Estou farta de lhe ouvir dizer isso, Ross Coleman exclamou Lydia, enquanto dava meia volta e se afastava do berço onde acabava de depositar Lee, que se tinha ficado adormecido. Ficou diante de Ross com os braços em jarras. Você não sabe nada de mim.

 

Isso é verdade. Nem sequer seu nome completo.

 

E não quero dizer-lhe, mas eu não sou lixo - replicou a jovem, com a ferocidade de uma leoa. Você tampouco me contou nada sobre sua vida.

 

Não é o mesmo.

 

Não? Como sabemos que não oculta um passado vergonhoso? Talvez não tenha direito a estar com estas pessoas, como você pensa de mim, fosse quem fosse sua mulher.

 

Se a pele intensamente bronzeada de Ross podia empalidecer, naquele momento o fez. Seus olhos se desviaram de Lydia a Mamãe, como se aquelas mulheres fossem inimigos a ponto de lhe atacar. Todo seu corpo se esticou. Em lugar de render-se, aferrou-se ao último comentário.

 

Tive uma esposa - disse a Mamãe. Vitória Gentry foi minha mulher, minha única mulher. Eu a amava. Não faz nem duas semanas que morreu. Como pode me sugerir que traia sua lembrança e tome a outra mulher?

 

Não «tomará». Antes, matarei-lhe resmungou Lydia.

 

Vêem-no? Mamãe se lançou ao coração da discussão. Já há um problema solucionado. Ross, você não quer outra mulher, e Lydia não quer outro homem. Podem viver e trabalhar juntos para salvar as aparências. Ela cuidará de Lee. Você a alimentará. Parece-me que é uma solução singela ao problema. As bodas só se celebraria para apaziguar a esses que dizem cristãos temerosos de Deus. Moveu a cabeça para a abertura. Nós saberemos que não significa nada. Tal como eu o vejo, tudo seguiria como até agora.

Ross mordiscou o extremo de seu bigode, enquanto lançava olhares de desaprovação, primeiro a Mamãe e depois a Lydia. Agarrou o chapéu do gancho e o impregnou.

 

Tenho que ir ver meus cavalos.

 

Saiu do carro como uma exalação.

 

Não vou casar-me com ele disse em voz baixa Lydia. Conhecia as misérias do matrimônio. Sua mãe viveu durante anos submetida à servidão e a degradação, até que morreu de vergonha e humilhação. Lydia não queria seguir seus passos. Não vou casar-me com ninguém.

 

Tão horrível foi, moça?

 

O que?

 

Ter ao seu filho. Foi tão horrível para poluir sua opinião sobre os homens em geral?

 

Lydia olhou em silencio a Mamãe durante uns segundos, antes de desviar a vista para o exterior. Ross teria que haver levado sua impermeável. Tinha começado a chover de novo.

 

Sim - disse em um sussurro. Foi horrível.

 

Estremeceu-se de asco quando as lembranças foram a sua mente, lembranças que prometeu não voltar a conjurar nunca mais, se podia evitá-lo.

 

Mamãe suspirou.

 

Temia algo pelo estilo, mas não tem por que ser igual, Lydia. O senhor Coleman é...

 

Um homem. Um homem que não me quer, da mesma forma que eu não quero a ele.

 

Isso é discutível - disse Mamãe para si, e em voz alta: Necessitam-lhes mutuamente. Seria capaz de deixar Lee agora?

 

As lágrimas nublaram os olhos da Lydia quando olhou para a caixa que fazia as vezes de berço. Dentro de escassas semanas teria que encontrar outra caixa onde lhe colocar, ou Lee romperia os lados a chutes. Seguiria com ele por então? O senhor Coleman era um pai carinhoso, mas teria em conta as pequenas coisas necessárias para cuidar de um menino? Não possuía o instinto maternal que ela tinha.

 

Mamãe compreendeu que suas palavras estavam tendo efeito, de maneira que insistiu.

 

O que vais fazer se lhe expulsam? Acredito que nem sequer deixariam que ficasse conosco, sobretudo com meus dois impressionáveis moços.

 

Suas palavras feriram o amor próprio da moça, tal como Mamãe pretendia. Lydia ergueu a cabeça, desafiante,

 

Sei cuidar de mim mesma.

 

Bom, não o estava fazendo muito bem quando meus meninos lhe encontraram quase morta de esgotamento, gelada e cheia de sangue. Suas roupas estavam como farrapos. Não descobrimos nada de dinheiro. Nada de comida. Nestes tempos, é difícil para uma mulher arrumar-se sozinha. Mamãe esquadrinhou a Lydia com atenção. Sobre tudo se fugir de alguém.

 

A cautela apareceu nos olhos de Lydia e revelou seu temor. Mamãe o advertiu e compreendeu que sua intuição era correta.

 

Ninguém procuraria uma jovem esposa com um bebê, verdade? Deu meia volta para sair, mas se deteve para fazer uma última observação. A moça estava sentada em um tamborete, o olhar perdido na distância, absorta em seus pensamentos. - Poderia ser muito pior. Suspeito que o senhor Coleman tem um gênio do demônio, mas aprendeu a controlá-lo. Não acredito que te faça mal nunca, ao contrário que o outro homem. Pensa-o. Partiu.

 

Lydia sabia que Mamãe tinha razão em muitas das coisas que dizia. Se casava com o senhor Coleman, poderia ficar com Lee. Ela gostava do menino, e sabia que o pequeno a ia querer, ou como mínimo a apreciar. Bastava lhe falasse para que voltasse a cabecinha para sua voz.

 

O senhor Coleman não era um homem mau, não era como os homens com quem tinha vivido durante doze anos. Era um pouco nervoso, temperamental e orgulhoso, mas Lydia estava de acordo com Mamãe: poderia zangar-se com ela, mas nunca a bateria. Tinha gozado de amplas oportunidades, e não o tinha feito.

 

Seu rosto era bonito. Quando sorria, Lydia sentia que uma quebra de onda de calor a invadia. Tinha adormecido ao seu lado toda a noite, mas não lhe tinha tido medo. Seu corpo não a enojava. De fato, pensava que tinha um corpo muito bonito, e se havia sentido protegida por seu tamanho e força evidentes. Do ponto de vista físico, podia tolerar sua presença.

 

Se ela fosse a senhora Coleman, teria coisas que jamais havia possuído. Seria alguém, teria uma posição no mundo, um lugar próprio. Ser alguém implicava que as pessoas teriam para ela um certo respeito que lhe custaria obter de outra forma, sobre tudo ao carecer de família ou antecedentes.

 

Desejava um lar. Talvez com cortinas nas janelas. Várias habitações, amplas e luminosas. Um lar. Como ia poder obtê-lo ela, uma mulher sem marido, sem dinheiro, sem meios de sustento?

 

Mas não ia suplicar. Se ele se opunha ao plano, azar. Não ia iniciar o matrimônio lhe pedindo nada.

 

Ross sustentou o balde de aveia sob o focinho da égua, desejoso de que terminasse quanto antes.

 

Que confusão! Muito coerente com o resto de sua vida. O único bom que lhe tinha passado era Vitória. Os deuses deviam estar jogando uma sesta o dia que a conheceu, mas quando despertaram e lhe viram feliz, mataram-na.

 

Merda - disse em voz alta.

 

O que ia fazer com a garota? Melhor dizendo, o que ia fazer sem ela. Tudo o que havia dito Mamãe era certo. Não tinha medo de partir sozinho, deixar atrás o carro e todo o resto. Tinha vivido salto de arbusto desde que tinha quinze anos. Quatorze? Não se lembrava. Mas e Lee? Necessitava de Lydia para que se ocupasse do bebê.

 

Não devia pensar nela por seu nome. Apartou o balde de aveia da égua. Se era tão afetada, não devia ter muita fome. Aplaudiu seu pescoço e se encaminhou ao semental, que estava ao outro lado do curral provisório.

 

Começou a escovar a espessa crina de Lucky. Tinha ganhado o cavalo em uma partida de pôquer, daí o nome, Vance Gentry não sabia, e lhe tinha felicitado por ter economizado suficiente dinheiro para comprar o animal. Que seu sogro ignorasse a verdade não significava nenhuma deslealdade para ele.

 

A notícia da morte de Vitória lhe teria desolado. Ross lhe tinha enviado uma carta de um posto de correios rural. Perguntou-se como reagiria Gentry ante a notícia de que tinha um neto. Seu sogro não sabia que Vitória estava grávida. Ross duvidava de que o homem quisesse ver alguma vez ao menino, pois tinha deixado bem claro que, em sua opinião, Vitória se tinha casado com alguém de classe inferior. Ross não voltaria para o Tennessee. Agora que Vitória tinha morrido, não tinha nada que atasse a aquela terra. Nunca voltaria a ter notícias de Vance Gentry.

 

Se deixasse as considerações sentimentais a um lado e se concentrava no aspecto prático da situação, casar-se com Lydia lhe beneficiaria. Necessitava uma mulher que lhe cozinhasse e limpasse, e seria difícil encontrar alguma em Telhas que se mudasse com ele a suas terras antes de ter construído uma cabana. Deixar Lee com estranhos na cidade estava descartado. Não queria estar separado de seu filho, nem sequer por um tempo. Não, necessitava uma mulher. Lydia estava disponível.

 

Poderia ser pior. Seu aspecto não era desagradável. Era apresentável, em que pese a sua aparência extravagante, que chamava a atenção de todos os homens que a viam. Sua língua era afiada como uma navalha, e em ocasiões tinha um temperamento exaltado, mas o mais importante era que gostava de Lee. Este fato fazia que Ross considerasse a possibilidade de casar-se com ela. Não era alguém a quem ele tivesse contratado para cuidar do menino. Ela gostava de verdade do pequeno.

 

De um ponto de vista sentimental... Não existia ponto de vista sentimental, porque os sentimentos não tinham capacidade em sua decisão. Era uma questão prática.

 

Detestou-se pelo que tinha acontecido aquela manhã. Não tinha significado nada, é obvio. O amanhecer era gélido. Estava adormecido e ninguém podia lhe culpar por haver-se aproximado de Lydia..., a ela... daquela maneira. Tinha amado a Victoria e nunca voltaria a amar a ninguém como a ela.

 

E o amante, ou amantes, de Lydia? Embora aquela manhã ele tivesse se apertado contra ela a propósito, não tinha descoberto o menor convite sensual na atitude dela, nem em seu rosto. O que tinha visto naqueles olhos cor uísque era medo. Medo em estado puro, o terror que petrifica a um animal ferido por uma luz súbita e brilhante na escuridão. Ross desejava pensar o pior dela, mas agora já não estava seguro de que a moça tivesse estado com muitos homens. Possivelmente só com um. E a tinha maltratado.

 

Amaldiçoou. Acaso lhe estaria tomando por um idiota? Talvez aquela expressão aterrada só formasse parte de um jogo para lhe seduzir. Era uma puta bem adestrada que conhecia todos os truques de sua profissão? Ria a suas costas, porque sabia que ele a desejava? Contava as noites até que sucumbisse e se deitasse com ela? Bem, pois não ia fazer o, Por Deus que não o faria.

 

Nunca cederia aos impulsos físicos que se agitavam em seu interior. Nunca. Pagaria por uma mulher se fosse necessário, mas nunca mancharia a lembrança de Vitória e a ele mesmo, deitando-se com aquela moça.

 

Podia casar-se com ela e manter a distância. Sabia que podia. Não se aproximaria muito a ela, e ponto.

 

Lydia estava sozinha quando Ross entrou na carreta. Tinha as mãos elevadas sobre a cabeça tratando teimosamente de reunir seu cabelo em um coque. Sobressaíam-se alfinetes de sua boca quando se voltou para lhe ouvir entrar. Ross se arrependeu imediatamente do comentário sarcástico que lhe tinha feito antes sobre seu cabelo, mas o lamentava porque tinha sido grosseiro, ou porque ela o tinha tomado no peito e estava sujeitando o caos de seus cachos que ele tanto gostava? Era uma pergunta muito perigosa para formular a si mesmo.

 

A moça ajustou os alfinetes a toda pressa no cabelo recolhido na nuca e deu a volta, enquanto esfregava suas palmas nos flancos da saia.

 

- Estive pensando - começou Ross. Seus olhos se moveram de um objeto a outro do carro, incapaz de centrá-los, temeroso de que se detiveram nela. Possivelmente deveríamos considerá-lo.

 

Possivelmente.

 

Maldição! Ia começar outra vez com aquelas breves respostas, pronunciadas em voz baixa, que não revelavam nenhum pingo do que pensava.

 

E bem?

 

Eu também estive pensando.

 

Por Deus!

 

E?

 

A jovem respirou fundo.

 

E não sei como você vai cuidar de Lee, em caso contrário.

 

Eu também o pensei. Ross notou que seus músculos se relaxavam um pouco. Mas quero deixar claro que, se algum dos dois prefere deixá-lo em algum momento, tem todo o direito a fazê-lo.

 

Lydia não gostou daquela observação. Um dos motivos que a impulsionavam a dar aquele passo era por segurança e certa sensação de estabilidade. Entretanto, se aquela era uma de suas condições, teria que acessar e procurar não fazer nada que desse uma desculpa ao homem para expulsá-la.

 

Muito bem, mas eu também tenho uma condição.

 

Aquela descarada tinha fibra. Oferecia-lhe uma maneira de adquirir respeitabilidade, e ela punha condições.

 

Diga - disse, e inclinou a cabeça em um ângulo arrogante que irritou a Lydia.

 

Não me bata e nem nunca me maltrate - advertiu, com olhos soltando faíscas.

 

O que crê que sou? Um selvagem? Eu não maltrato as mulheres - gritou, muito ofendido.

 

Então, não há problema, verdade? Replicou a jovem.

 

Ross blasfemou, colocou o chapéu e arranhou os nódulos com o áspero teto de lona da carreta. Seguia blasfemando quando se voltou para sair.

 

Irei dizer a Mamãe e a Grayson.

 

As coisas começavam mau.

 

A cerimônia das bodas se fixou para as três da tarde, celebrar-se-ia ao ar livre, se o tempo o permitisse, ou na carreta de Coleman, se chovia. Mamãe se encarregou de que todo mundo fosse convidado. Proclamou que era uma feliz ocasião, e devia ser uma cerimônia celebrada por todos. Sublinhou o detalhe sentimental de que Deus tinha abençoado ao senhor Coleman com uma esposa que cuidaria dele e de seu filho Lee, depois de haver arrebatado a pobre Vitória. Quem dizia que a época dos milagres tinha terminado? De fato, Mamãe, com suas palavras, arrancou lágrimas dos olhos de algumas almas românticas.

 

Grayson se ofereceu voluntário para ir à cidade, tirar uma licença e ir a busca do ministro Batista. Uma hora antes das três, Mamãe apareceu no carro carregada com vários pacotes. Os dava a Lydia.

 

Para você - disse com orgulho Mamãe.

 

Lydia contemplou perplexa os pacotes. Recordava que seus pais lhe tinham dado presentes, mas as lembranças eram vagas e não sabia diferenciar a realidade da fantasia.

 

Para mim? Perguntou com um fio de voz.

 

Não vejo ninguém por aqui que vá casar-se dentro de uma hora. Será melhor que comece a abrir.

 

Vacilante ao princípio, e depois mais depressa à medida que ia surgindo tesouro detrás tesouro, Lydia examinou o conteúdo de cada pacote. Havia dois vestidos, duas saias e duas blusas, três pares de calças, duas camisas, uma camisa e duas anáguas, junto com um par de sapatos negros e três pares de meias de algodão.

 

O senhor Coleman lhe comprou isso tudo. Enviou minha Anabeth, é obvio. Os homens ficam nervosos como um gato de cauda larga em uma habitação cheia de cadeiras de balanço quando vão comprar roupa de mulher. Mamãe continuou tagarelando, enquanto fingia que não via as lágrimas que nublavam os olhos da jovem. Bem, pensei que este vestido amarelo de pérolas para as bodas.

 

À hora assinalada, Lydia apareceu ao exterior. Retrocedeu com acanhamento quando viu a multidão congregada em frente ao carro. Todos os olhos se voltaram para ela, mas aquelas pessoas que pela manhã a tinham acusado, agora exibiam sorrisos de desculpa.

 

Vamos, Lydia - disse com suavidade Mamãe, e puxou o seu braço. - Comecemos antes que volte a chover.

 

Lydia baixou os degraus e se deleitou com o rangido de sua roupa nova. A roupa interior acariciava com suavidade sua pele. A saia do vestido se agitava ao redor de suas pernas. Graças a Deus que o sutiã era de seu tamanho e seu busto não sobressaía como com o vestido de Anabeth, embora de todas as formas ficasse bastante ajustado. Os sapatos eram cômodos, foram atados por cima dos tornozelos. O couro novo rangia a cada passo que dava. Uma mulher de miras mais elevadas teria considerado que aquela roupa fosse vulgar, entretanto, para a Lydia, era o adorno de uma princesa.

 

Comprovou que Lee estivesse bem protegido. Anabeth o sustentava entre seus braços com a cabeça coberta com uma manta leve. Os meninos Langston estavam empelotados ao redor de seu pai, estranhamente sérios. Lydia imaginou que teriam sido ameaçados com um severo corretivo, se comportassem mau. Passeou a vista pela multidão. Era muito tímida para olhar aos olhos de alguém em concreto. Quando já não teve nada mais que olhar desviou a vista para Ross.

 

Erguia-se com ar sombrio, rígido como um pau. O coração de Lydia deu um tombo quando o viu. Estava muito bonito. Ainda levava as calças de trabalho, mas tinha posto uma camisa branca e uma gravata estreita. A cor de sua camisa fazia destacar seu cabelo e bigode negros, assim como seu rosto bronzeada. Só seus olhos, de um verde intenso que brilhava debaixo de suas povoadas sobrancelhas castanhas, davam uma nota de cor ao seu aspecto.

 

Um homenzinho com óculos e nariz bicudo estava ao seu lado. Lydia pensou que devia ser o sacerdote. O homem lhe dirigiu um sorriso afetuoso.

 

E aqui está a noiva, de forma que já podemos começar. Segure a mão de sua noiva, jovem - ordenou a Ross.

 

Lydia contemplou, hipnotizada, a mão morena de Ross, que envolvia a sua até colocar-se ambas sobre uma Bíblia de pele negra, que tinha aparecido como por arte de magia.

 

Notou que a mão de Ross estava quente, e também pôde sentir as calosidades de seus dedos, mas aquela realidade conseguiu que se sentisse menos em um sonho. Contemplou a mão dele, quase temerosa de que, se deixava de olhá-la, desapareceria.

 

Só seguiu umas poucas palavras, mas pelo visto deu as respostas corretas, porque ao cabo de um momento assombrosamente curto, o sacerdote disse:

 

Eu lhes declaro marido e mulher. O que Deus uniu, que não o separe o homem. Pode beijar a noiva.

 

Beijar! A palavra despertou ecos nas paredes de seu cérebro, ressonou em seu crânio e aumentou de intensidade, até experimentar a sensação de que sua cabeça ia estalar. Ninguém lhe tinha falado daquele detalhe.

 

Mas não teve tempo de perguntar a Mamãe se devia render-se a isso, porque Ross já tinha apoiado suas mãos com suavidade sobre seus ombros e a atraía para ele.

 

Viu sua cabeça muito perto. Desejou muito ocultar-se. Foi aproximando dela cada vez mais. Lydia fechou os olhos com força para afastar o pesadelo recorrente de um rosto de homem inclinado sobre o seu, que a asfixiava com sua fétida boca, que a esmagava com seu peso.

 

Então, sentiu o quente roce dos lábios de Ross sobre os seus. Atrasaram-se um instante, retrocederam, e tudo concluiu.

 

Leoa Watkins, que espiava desde detrás da lona de seu carro, pois não estava disposta a participar daquela flagrante brincadeira da instituição matrimonial, teve uma decepção. Os hipócritas estavam atuando como se não se houvessem tocado!

 

Mamãe também ficou decepcionada. Tinha esperado um beijo mais longo, de maior substância.

 

Bubba perdeu o controle de seu pomo de Adão. Moveu-se espasmodicamente, enquanto a parte dianteira de sua calça lhe delatava, mas rezou para que ninguém se desse conta.

 

Só a ameaça de Mamãe de lhe açoitar se não se comportasse bem conseguiu que Luke Langston reprimisse uma gargalhada.

 

Lágrimas de romantismo foram aos olhos de Anabeth.

 

Lydia se perguntava como era possível que o bigode do senhor Coleman não só tivesse feito cócegas seus lábios, mas também sua garganta, até o centro de seu corpo. O ponto situado entre suas coxas tinha adquirido um calor anormal, inchou-se e umedecido quando sua boca a tocou. Ficou vagamente decepcionada pela escassa duração do beijo.

 

Ross jurou que não passaria por mais prova. Convenceu-se de que podia beijá-la sem o menor sentimento, pelo bem da cerimônia e de frente aos olhos curiosos. Bem, já sabia. Não podia beijá-la sem o menor sentimento fosse pelo que fosse.

 

É uma pena que começasse a chover tão logo.

 

Por quê?

 

Lydia suspirou. Tinha esperado que pudessem conversar um momento depois de haver-se convertido legalmente em marido e mulher, mas desde que tinham voltado para sua carreta, a de ambos, o senhor Coleman se mostrava irritado com ela. Já se arrependia de haver-se casado? Bom, não tinha visto que ninguém lhe apontasse pelas costas com uma pistola.

 

Tinha a impressão de que algumas pessoas desejavam nos visitar, isso é tudo.

 

Ross lançou uma gargalhada desdenhosa.

 

Só queriam fofocar. Foram às bodas pela mesma razão que vão ao circo.

 

Lydia tinha desejado acreditar que todos quantos se apertavam ao seu redor depois da cerimônia estavam contentes de que se converteu na senhora Coleman, que a aceitavam como uma deles.

 

Contemplou o buquê de flores que tinha colocado em um vaso de cristal. Acariciou as frágeis pétalas. O senhor Hill o tinha dado enquanto beijava sua mão, depois da cerimônia.

 

Parabéns, senhora Coleman. Desejo-lhe muitos anos de felicidade.

 

Obrigado, senhor Hill. As flores são lindas - tinha respondido ela.

 

Agora, o senhor Coleman parecia propenso a destruir todas as boas sensações que Lydia tinha armazenado para saborear mais tarde.

 

Não acredito que só viessem para bisbilhotar.

 

Ross se encolheu de ombros.

 

Como queira.

 

Lydia olhou por última vez a Lee e se estendeu sobre a cama de armar. Ross tinha preparado uma igual ao outro lado do carro, o mais longe possível dela. «Não sou veneno», quis lhe dizer Lydia, mas conteve seu mau gênio. Estava muito excitada pelos acontecimentos do dia, por seu novo sobrenome, por sua nova roupa, para discutir com ele.

 

Obrigado pela roupa nova.

 

De nada, respondeu ele com aspereza. Não podia permitir que jogasse de correr por aí em panos menores.

 

Apagou o abajur. Lydia ouviu que se despia, e depois se aconchegou sob as mantas.

 

Agora que reinava o silêncio, a chuva produzia um estrépito maior. Pela manhã tinha desejado muito consoladora, como se cantasse uma canção de berço para que voltassem a dormir. Agora, seu som era triste. Lydia se sentiu mais só que nunca, e sabia que se ele houvesse dito vou deitar-se ao seu lado, não lhe teria dissuadido. Na escuridão, rodou de lado e esquadrinhou o vulto escuro de seu corpo, ao outro lado da carreta.

 

Boa noite..., Ross.

 

«Por que escolheu este momento para pronunciar pela primeira vez meu nome em voz alta? E por que soa como música, saindo de sua boca?» perguntou Ross. Por cima do sangue tumultuoso que fervia em suas veias e se concentrava em sua virilidade, apenas se ouviu responder:

 

Boa noite, Lydia.

 

O homem se sentou a uma mesa vazia do botequim saturado de fumaça e desdobrou com ar ausente sobre sua superfície trincada as enrugadas e amareladas folhas de papel. Seu companheiro ocupou a cadeira oposta depois de jogar uma olhada a outros clientes do bar. Era um hábito de sua profissão.

 

Uísque?

 

Sim, por favor - replicou distraído o primeiro homem, enquanto seguia examinando os pôsteres.

 

Emprestou tanta atenção a Howard Majors, enquanto indicava ao taberneiro que trouxesse uma garrafa e dois copos, como quando tinha chegado. Só levantou a vista quando Majors lhe serviu um copo e o empurrou para ele. Sua expressão era desolada, a de um homem que acaba de despertar de um pesadelo. Agarrou o copo e engoliu seu conteúdo de um gole. Sempre comedido como um cavalheiro no referente à bebida, estendeu não obstante a mão e se serviu outro copo da garrafa. Quando o uísque teve escavado um ardente atalho garganta abaixo, até chegar ao seu estômago, elevou os olhos cheios de ódio para o seu anfitrião.

 

Esse bastardo se casou com minha filha.

 

Descarregou o punho sobre a mesa. Tinha as unhas bem cuidadas, mas era uma mão masculina, e a forma em que os dedos se curvavam tensamente refletia sua personalidade. Era um homem acostumado a sair-se com a sua, a exercer controle sobre si mesmo e quantos lhe rodeavam, a deixar-se enganar poucas vezes, a vingar-se em caso necessário.

 

Deus! Quando penso nele deitado em sua carne.

 

Voltou a descarregar o punho sobre a mesa, esta vez com mais força, de maneira que os pôsteres rodaram sobre a superfície e o uísque da garrafa se agitou.

 

Não me fazia nenhuma graça passar - disse Majors, compassivo. Pensei lhe reconhecer imediatamente na foto de bodas que me deu, para me assegurar por completo, comparando a fotografia com estes pôsteres. Não cabe dúvida de que é o mesmo homem, em que pese o bigode. A lei lhe persegue há anos. A agência Pinkerton recebeu freqüentes petições de lhe capturar.

 

Ross Coleman é em realidade Sonny Clark disse com amargura Vance Gentry. Minha filha se casou com um pistoleiro, um foragido, um homem procurado por assassinato, assalto a bancos... Deus! Passou as mãos pelo rosto corado e deformou as aristocráticas facções que se desdobravam sob o arbusto de cabelo branco. O que tem feito com ela?

 

Majors, sem dizer nada, serviu ao outro homem um terceiro copo, que bebeu imediatamente.

 

Se a maltratou, matarei-o. Seus lábios apenas se moveram quando falou. Cada vez que o via tocá-la, vinham-me vontades de assassiná-lo. Soube que era lixo assim que o vi. Sabia dirigir os cavalos, do contrário nunca lhe teria contratado. Apertou os dentes, brancos e impecáveis. Por que não me deixei levar pela intuição?

 

Bem -disse o detetive de Pinkerton com frio profissionalismo, temos que lhes localizar antes de poder fazer nada.

 

Poderia havê-la matado e fugido com as jóias.

 

O homem estava perdendo os estribos, mas Majors não podia permiti-lo. A única forma de encontrar Clark era com a cabeça limpa e as idéias claras. O jovem era inteligente e tinha esquivado durante anos aos melhores agentes da lei. O detetive Majors ia jogar a luva, e não permitiria que um exaltado como Gentry entorpecesse suas pesquisas.

 

Não acredito que tenha assassinado a sua filha. Não é seu estilo. Sonny é indômito, temerário e malvado, e matou a muitos homens, mas sempre quando estava apanhado e tratava de escapar. Não matava por capricho. Além disso, você diz que adorava a sua filha.

 

Parecia adorá-la. Se nos enganou em todos outros aspectos, como posso acreditar que a amava de verdade? Os criados me disseram que, quando cheguei da Virginia, fazia várias semanas que partiram. Nenhuma nota. Nada. É esse o comportamento de um genro afetuoso? Não quero nem saber aonde a terá miserável.

 

Encontraremo-lhes.

 

A paciência de Majors estava se esgotando.

 

Bem, até agora não o encontrou, verdade? Ladrou Gentry. Em que pese a todos esses pôsteres disseminados pelo vale do Mississipi, você foi incapaz de encontrar Sonny Clark.

 

Deixamos de procurar porque pensamos que tinha morrido. Por isso tive que tirar pôsteres de um velho expediente. Foi alcançado por uma bala durante o ataque a um banco. Demos por sentado que o resto do bando de James lhe tinha deixado por morto em algum lugar. Ao que parece, isso foi o que ocorreu, porque nos seguintes golpes de Jesse e Frank, Sonny não ia com eles. Não voltamos a ouvir falar dele até que você entrou em meu escritório anteontem e me entregou a foto de sua filha e seu genro, Ross Coleman. Suponho que se escondeu em algum sítio até que se curou, trocou de aspecto e reapareceu sob a aparência de um cidadão receoso com a lei.

 

Os copos da mesa voltaram a tilintar, esta vez porque um homem bêbado tropeçou com ela. Esteve a ponto de cair sobre Majors antes de recuperar o equilíbrio.

 

Perdão - murmurou, enquanto se encaminhava para a mesa contígua e se derrubava sobre uma cadeira. Whisky! Vociferou.

 

Gentry o olhou com desagrado. Ia sujo e suas roupas estavam manchadas de sangue seco. Talvez seu passo vacilante não devesse atribuir-se por completo à embriaguez. O homem fedia a carne sem lavar. Seu cabelo espaçado e seu crânio estavam manchados de sangue coagulado. Gentry esteve a ponto de sugerir que Majors e ele fossem falar em outro lugar, mas Majors já tinha reatado a conversação.

 

Estive investigando. Fui ver o velho que vivia na montanha. Majors consultou sua caderneta. John Sachs. Estava morto, e ao que parece tinha transcorrido semanas desde que nosso homem chegasse a sua cabana. Nem o menor sinal de luta. Morreu de velho, não cabe dúvida. Não encontrei nenhuma pista de aonde podia haver-se dirigido Clark. O mês passado se organizou uma caravana no condado de McMinn.

 

Gentry bufou.

 

Não lhe conhece tão bem como supõe, Majors. Ross... Sonny é inquieto, ativo. Não pára de mover-se. Cavalga melhor que qualquer homem que eu conheça.

 

Isso ouvi dizer de muitos oficiais - replicou Majors com secura.

 

Não se uniria a algo tão lento como uma caravana.

 

Mas se o fizesse, estaria protegido. Viajava com sua mulher como um imigrante mais não atrairia a atenção de ninguém para ele.

 

Gentry sacudiu a cabeça com teima.

 

Conheço esse homem melhor que você. Se tiver os bolsos cheios de jóias, de um valor que alcança uma quantidade considerável, acredite, esse homem não irá à fronteira com elas. Talvez Nova Orleans, Nova Iorque, São Luis, lugares onde possa as vender e cobrar em metal.

 

Possivelmente tenha razão, mas carecemos de pistas.

 

Para isso lhe pago, senhor Majors disse Gentry com aspereza. Eu irei à Nova Orleans. Conheço bem a cidade.

 

Muito bem. Eu irei a São Luis. Comunicaremo-nos mediante telegramas enviados a meu escritório daqui, de Knoxville. Encarregarei-me de imprimir pôsteres com seu novo aspecto.

 

Não - exclamou Gentry, e conseguiu que o homem da mesa contígua lhes olhasse com olhos ardilosos. Não quero que ninguém saiba que minha filha se casou com um famoso foragido, que nos enganou e roubou valiosos objetos herdados.

 

Trabalhar sozinhos, sem ajuda das autoridades locais, dificultará nossa tarefa.

 

Mas pode ser que salve a vida de Vitória. Nunca lhe vi lhe levantar a mão, do contrário hoje não estaria vivo. Claro que tampouco lhe vi desesperado. Não quero lhe pôr sobre aviso. Não quero que o pânico se apodere de Ross Coleman.

 

Pode ser que tenha razão. As testemunhas tentaram descrever suas arrepiantes reações. Desafiam toda descrição. Encontrar Sonny Clark pode ser mim última missão oficial com a agência antes de minha aposentadoria. Não quero mortes sobre minha consciência.

 

Exceto esta.

 

O tom decidido de Gentry fez que um calafrio percorresse o espinho dorsal do veterano Majors, que experimentou a tentação de recordar a aquele homem que não devia tomar a justiça pela mão. Queria capturar vivo Clark e confiava em que, quando localizassem Vitória Gentry e ao seu marido, o ódio de seu pai teria se aplacado.

 

Vamos - disse. Levantou-se e arrojou várias moedas sobre a mesa.

 

Os dois homens seguraram o chapéu e saíram do botequim, que estava sendo preparada para receber aos numerosos clientes noturnos. O taberneiro lavava copos detrás da barra. Um jovem se dedicava a varrer sem muita vontade, em tanto contemplava o tráfico de Knoxville.

 

O homem da cabeça ferida se levantou, fazendo esses até que conseguiu recuperar o equilíbrio. Tropeçou a propósito com a mesa que os dois homens tinham deixado livre. Ao mesmo tempo, cobriu as moedas com a palma de sua mão e as varreu da mesa. Havia muito mais dinheiro do que ele devia pagar por sua bebida. Seus olhos nublados trataram de concentrar-se nos pôsteres desbotados que estavam atirados sobre a mesa. Não sabia ler, mas conhecia o significado daqueles anúncios. E tinha ouvido como aqueles homens falavam de objetos herdados que tinham sido roubados. Nunca teria que deixar passar a ocasião de obter algo em troca de nada. Ocultou as folhas debaixo de sua camisa manchada de sangue e se dirigiu cambaleando-se para a porta. Ninguém lhe tinha visto agarrar o dinheiro. Ninguém lhe emprestava a menor atenção. Até o momento, tudo ia bem.

 

Ouça, senhor.

 

Merda!

 

Sim?

 

Voltou-se com ar beligerante para o taberneiro.

 

Será melhor que lhe dê uma olhada a sua cabeça.

 

O homem se tranqüilizou e deixou que um sorriso revelasse seus dentes amarelados, irregulares e quebrados.

 

Seguro.

 

Como lhe abriram a cabeça dessa forma?

 

Voltou a sorrir, era o sorriso ardiloso e malvada de um carniceiro.

 

Passe-me um pouco com minha mulher. Golpeou-me a cabeça com uma pedra.

 

O taberneiro riu de boa vontade.

 

Eu não deixaria que ela se saísse com a sua.

 

O sorriso se transformou em uma careta malévola.

 

Não tenho essa intenção.

 

Embora fosse quão último fizesse, encontraria a aquela puta e lhe daria o seu castigo. Deu um passo mais para a porta, e logo se deteve. Algo mais que os dois almofadinhas – disse – e foi a sua cabeça, nublada pelo álcool e a dor.

 

Ouça, ouviu falar de uma caravana que se formou no condado de McMinn?

 

Pois não respondeu o taberneiro, enquanto tirava brilho a um copo com uma toalha de musselina, mas não me surpreenderia nada. Houve umas inundações brutais por ali a primavera passada. As pessoas tentaram salvar o que pôde que suas granjas, depois da guerra e as inundações. Muitos estão indo embora.

 

O homem da porta esfregou com ar pensativo sua mandíbula arrepiada de barba. Uma caravana de famílias em busca de um novo lar seria um estupendo esconderijo.

 

Acredito que me aproximarei por ali e darei uma olhada.

 

Saiu pela porta, riu para si e se perguntou quanto demoraria o simpático taberneiro em dar-se conta de que lhe tinham roubado.

 

Lydia gostava da forma em que o cabelo de Ross caía sobre sua testa. Tinha a cabeça inclinada enquanto limpava suas pistolas. O rifle, já engordurado e reluzente, encontrava-se apoiado contra o flanco do carro. Agora se dedicava à pistola. Lydia não sabia nada de armas, mas aquela em particular lhe assustava. Seu canhão metálico era comprido e esbelto, frio e letal. Ross o aproximou de seu rosto, olhou pelo canhão e soprou com suavidade. Depois se concentrou em esfregá-lo com um pano suave.

Seu primeiro dia de matrimônio tinha transcorrido sem pena nem glória. O tempo ainda era mau, mas já não chovia com tanta intensidade como em dias anteriores. Não obstante, fazia frio e umidade, e Lydia tinha passado quase todo o dia dentro do carro. Ross tinha levantado cedo, quando ainda não tinha amanhecido, e tinha estado removendo baús e caixas. Parecia concentrado na tarefa, e ela fingiu dormir, sem atrever-se a perguntar que fazia. Quando ela se levantou e começou a perambular pelo carro, observou que todos os pertences de Vitória tinham desaparecido. Não sabia o que tinha feito Ross com elas, mas não ficava nem rastro de Vitória na carreta.

 

Lydia o observou enquanto ele jogava o cabelo para trás com os dedos. Sempre levava o cabelo limpo e reluzente, inclusive quando seu chapéu o tinha amassado. Caía sobre o pescoço e as orelhas. Lydia pensou que o tato daquelas mechas negras contra os seus dedos seria delicioso, se alguma vez tivesse a ocasião de tocá-los, embora não se imaginava com o ânimo suficiente para fazê-lo, inclusive se ele o permitisse, embora duvidasse que ele o fizesse. Tratava-a com educação, mas nunca iniciava uma conversação e, por descontado, nunca a tocava.

 

Fale-me de suas terras do Texas - disse em voz baixa.

 

Ross desviou seus olhos verdes da pistola e a olhou à luz do único abajur. Lydia sustentava Lee, balançava-o com suavidade, já lhe tinha dado de mamar por última vez aquela noite e o menino dormiu. Estavam matando o tempo, até que fosse a hora de deitar-se.

 

Ainda não sei grande coisa - respondeu Ross, e se lançou a falar sobre seu projeto. Contou-lhe a mesma história que lhe tinha referido Bubba sobre o John Sachs. Pediu a escritura e, quando a remeteram por correio, incluía uma descrição do topógrafo.

 

Seu entusiasmo pela propriedade venceu a sua contenção, e as palavras surgiram com facilidade.

 

Parece bonita. Prados ondulantes, muita água. O cruzamento de um afluente do rio Sabine. O relatório diz que tem duas zonas boscosas com carvalhos, pacanas e álamos perto do rio, pinheiros, cornejos...

 

- Eu adoro os cornejos quando florescem na primavera exclamou Lydia, entusiasmada.

 

Ross se surpreendeu a si mesmo sorrindo, e voltou a agachar a cabeça.

 

O primeiro que farei será construir um curral para os cavalos e um abrigo para nós.

 

A palavra tinha surgido com naturalidade de seus lábios. «Nós.» Olhou-a furtivamente, mas a moça estava acariciando a cabeça de Lee e contemplava o cabelo escuro do menino, que recuperava suas ondas assim que deixava de tocá-lo. A cabeça de Lee estava apoiada sobre seus seios. Por um instante, Ross desejou ter sua cabeça ali, que lhe acariciasse o cabelo com aquela expressão tenra em seu rosto.

 

Removeu-se incômodo, no tamborete.

 

Depois, antes do inverno, construirei uma cabana. Nada elegante acrescentou, com mais energia da necessária, como se a advertisse de que não esperasse nada especial por sua parte.

 

Ela o olhou com silenciosa recriminação.

 

Estará bem, seja como for.

 

Ross esfregou o canhão do revólver com mais agressividade.

 

A primavera que vem, confio em que as éguas tenham parido. Assim iniciarei minha manada de éguas. E quem sabe, possivelmente possa vender madeira para ganhar um dinheiro a mais, ou alugar Lucky como garanhão.

 

Estou segura de que triunfará.

 

Oxalá não fosse tão otimista. Era contagioso. Notou que seu coração se acelerava ao pensar nas perspectivas limitadas de um lugar que lhe pertencesse, com bosques espessos e chão fértil, e uma valiosa manada de éguas. E já não teria que olhar para trás todo o tempo. Nunca tinha estado em Telhas. Não existiria a ameaça de que alguém lhe reconhecesse.

 

Perdido em suas lembranças, encaixou o canhão em seu lugar, fez girar a câmara de seis balas e deu voltas à pistola ao redor de seu dedo indicador com um talento sobrenatural, antes de apontar a um branco imaginário.

 

Lydia lhe olhou fascinada. Como sempre que Ross atuava instintivamente, levantou a cabeça com rapidez e passeou a vista em seu torno para ver se ela se fixou. Os olhos cor âmbar de Lydia refletiam uma imensa incredulidade. Ross embainhou a pistola, como se quisesse negar sua existência.

 

Ela umedeceu os lábios, nervosa.

 

Quanto... qual a distância da sua terra de Jefferson?

 

Um dia em carro, meio dia a cavalo. Ao menos, por isso se vê no plano.

 

O que faremos quando chegarmos a Jefferson?

 

Tinha escutado a outras pessoas da caravana o suficiente para saber que Jefferson era a segunda maior cidade do Texas. Era um porto interior na esquina nordeste do estado, que estava comunicado com o rio Vermelho mediante o rio Cipreste e o lago Caddo. O Vermelho desembocava no Mississipi na Luisiana. Jefferson era um centro comercial. Fabricantes de rodas de paleta traziam fornecimentos deste e de Nova Orleans, em troca de algodão o que vendiam nos mercados daquela cidade. Para os colonos que se transladavam ao estado, era um ponto de parada obrigatório, onde compravam as carretas e objetos domésticos antes de continuar sua viagem para o oeste.

 

Não nos custará nada vender o carro. Ouvi que há uma lista de espera. Há gente acampada vários quilômetros ao redor da cidade, à espera que se construam mais carros. Comprarei um reboque antes de prosseguir.

 

Lydia estava escutando, mas sua mente estava em outra parte.

 

Quer que corte o seu cabelo?

 

Como?

 

Ross levantou a cabeça como se uma mola a tivesse impulsionado. Lydia abandonou sua cautela.

 

Seu cabelo. Cai sobre os olhos. Quer que lhe corte isso?

 

Ross não acreditou que fosse uma boa idéia. Maldição! Sabia que não era uma boa idéia. De todos os modos, não podia deixar de lhe dar voltas na cabeça.

 

Tem as mãos ocupadas - murmurou, e assinalou Lee.

 

Ela riu.

 

Estou mimando ele. Teria que lhe haver deitado faz muito tempo.

 

Virou-se e cobriu ao bebê com uma manta fina para lhe proteger do ar úmido.

 

Levava uma das blusas e saias que lhe tinha presenteado no dia anterior. Ninguém diria que Ross Coleman descuidava de sua mulher, nem que ele dormia fora do carro quando tinha uma nova esposa que dormia dentro. Era um suplício, e Ross não sabia quantas noites mais ia poder sobreviver sem pegar olho. Mas devia guardar as aparências. Depois de um período adequado, quando já não despertasse suspeitas, começaria a dormir fora. Muitos homens o faziam, para ceder o carro a sua mulher e filhos.

 

Lydia gostava de suas roupas novas. Tinha-as dobrado e desdobrado umas dez vezes, com o passar do dia. Ross já não sabia se era uma mulher acostumada a usar roupas boas, ou uma mulher que nunca havia possuído roupas tão boas. De fato, não sabia nada sobre ela. Claro que ela tampouco sabia nada dele, ao igual a outros componentes da caravana.

 

Só sabia dela que um homem a havia tocado, beijado, conhecido intimamente. E quanto mais pensava nisso, mais se torturava. Quem era esse homem? Onde estava agora? Cada vez que Ross a olhava, imaginava a esse homem deitado sobre ela, beijando sua boca, seus seios, sepultando as mãos em seu cabelo, penetrando-a. O que mais lhe inquietava era que a imagem tinha começado a adquirir um rosto.

 

Tem umas tesouras?

 

Ross assentiu, consciente de que saltava da frigideira para cair nas brasas e se condenava a outra noite de insônia. Desejava com todas suas forças odiá-la. Também desejava com todas suas forças deitar-se com ela.

 

Voltou a sentar-se no tamborete depois de lhe dar as tesouras. Lydia estendeu uma toalha ao redor de seu pescoço e disse-lhe que a segurasse com uma mão. Depois se apartou e moveu a cabeça de um lado a outro para lhe examinar.

 

Quando levantou a primeira mecha de cabelo, Ross agarrou seu pulso com a mão livre.

 

Não vais despedaçar-me, verdade? Sabe o que faz?

 

Claro - respondeu a jovem, e um sorriso zombador brilhou como um raio de sol em seus olhos. Quem crê que corta meu cabelo? O rosto de Ross perdeu toda cor e adquiriu uma expressão aterrada. Lydia estalou em gargalhadas. Tem medo, né? Meneou a cabeça e efetuou o primeiro corte com as tesouras. Acredito que não vou te mutilar muito.

 

Colocou-se detrás dele para trabalhar primeiro na nuca.

 

O tato do cabelo ao enroscar-se em seus dedos era tão agradável como tinha esperado. Era áspero e grosso, mas sedoso. Brincou com ele mais que cortá-lo, com a esperança de prolongar o prazer. Conversaram a respeito de Lee, sobre os diversos membros da caravana e riram da última travessura de Luke Langston.

 

As mechas escuras caíam até seus ombros, e depois escorregavam para o chão da carreta, enquanto ela movia com destreza as tesouras ao redor de sua cabeça. Ross custava um grande esforço manter a voz serena quando ela esmagava os seus seios contra suas costas, inclinava-se para frente ou olhava o seu braço, em tanto se movia de um lugar a outro. Em um dado momento, uma massa de cabelos caiu sobre sua orelha. Lydia se inclinou e soprou com suavidade. O braço de Ross se elevou como impulsionado por uma mola e esteve a ponto de derrubá-la.

 

O que faz?

 

O fôlego quente de Lydia sobre sua pele tinha avivado espasmos de desejo que percorriam seu corpo como balas de canhão. Uma mão esteve a ponto de lhe estrangular com a toalha, a outra formou um punho e ficou apoiada sobre sua coxa.

 

A jovem estava estupefata.

 

Eu... Fui a... O que? O que tenho feito?

 

Nada - grunhiu Ross. Apresse-se e acaba de uma vez.

 

Lydia se sentiu desolada. Eles estavam passando tão bem. Tinha começado a abrigar a esperança de que acabaria gostando dela. Ficou diante dele, tratando de retificar o que lhe tinha sobressaltado tanto, mas tê-la na frente fez que a tensão de Ross aumentasse ainda mais.

 

Ross tinha pensado que, se a jovem ia cortar lhe o cabelo, seria necessário que ela deslizasse seus dedos através de seus cabelos. Inclusive sabia que Lydia precisaria apoiar sua mão sobre sua face para lhe mover a cabeça. Estava seguro de que seria uma sensação agradável, embora ele não o desejasse, e que o melhor seria ficar quieto e desfrutar de seus cuidados.

 

Mas quando havia sentido seu fôlego, quente, intenso e perfumado, sobre sua orelha, tinha sentido em seu corpo o impacto de um raio, que descendeu desde sua cabeça a virilha e a prendeu fogo.

 

Se por acaso não fosse pouco, agora a tinha diante dele, entre seus joelhos; era natural que as abrisse para que Lydia pudesse aproximar-se mais sem necessidade de estirar-se. Tinha-lhe posto os seios justo ante os olhos, e seu aspecto era tão tentador como de pêssegos amadurecidos, ao alcance da mão. Deus, é que ela não se dava conta do que estava fazendo? Não adivinhava pelo fino filme de suor que cobria o seu rosto que o estava enlouquecendo pouco a pouco? Cada vez que a garota se movia, Ross ficava hipnotizado por seu aroma, pela graça flexível de seus membros, pelo roce da roupa contra o seu corpo, que insinuava mistérios merecedores de serem descobertos.

 

Quase terminei - disse Lydia, quando ele se removeu inquieto sobre o tamborete. Seus joelhos estavam perigosamente perto de seu vulnerável virilha.

 

«OH, Deus, não!» Lydia se agachou para cortar o cabelo do alto da cabeça. Quando levantou os braços, seus seios também se elevaram. Se Ross se inclinasse apenas um centímetro para frente, poderia acariciá-la com o nariz, o queixo e a boca, sepultar o rosto em sua exuberância e aspirá-la, absorvê-la. Seus lábios se apoderariam por fim de seu mamilo.

 

Detestou-se. Investigou em suas lembranças, tentou rememorar alguma ocasião em que Vitória tivesse suposto uma tentação semelhante para ele, ou em que ele houvesse se sentido livre para pôr as mãos sobre seus seios por puro prazer. Não pôde. Tinha existido alguma vez uma ocasião assim?

 

Não. Vitória não era a classe de mulher que tentava de maneira deliberada a um homem, até lhe reduzir a um estado animal. Cada vez que Ross fazia amor com Vitória era com reverência e adoração. Tinha entrado em seu corpo como alguém que entra em uma igreja, um pouco envergonhado pelo que ele era, contrito porque não era merecedor de tal honra, suplicando compaixão, envergonhado de que sua presença manchasse semelhante templo.

 

Não havia nada espiritual no que sentia agora. Estava consumido pela mais pura carnalidade. Lydia era uma mulher que inspirava aqueles desejos em um homem, que os tinha inspirado como profissional, provavelmente, em que pese a que ela o negasse. Tratava de utilizar os truques de seu comércio com ele, graças ao seu aspecto inocente e virginal.

 

Pois não iriam funcionar, Por Deus!

 

Seu bigode também necessita um recorte.

 

O que? Perguntou como um estúpido, desorientado por completo. Só via a forma feminina ante ele, só ouvia o batimento do coração ensurdecedor de seu pulso.

 

Seu bigode. Não te mova.

 

Lydia se inclinou e cortou com cuidado alguns cabelos largos do bigode, ia movendo sua boca enquanto o fazia, para lhe indicar Ross como devia pôr os lábios a fim de lhe facilitar a tarefa.

 

De ter cuidado de sua boca, cômica e movediça, Ross teria rido, mas em troca tinha baixado a vista para o arco de sua garganta. A pele parecia cremosa na base, antes de fundir-se com a textura mais aveludada de seu peito, que desaparecia sob o decote da blusa. Cheirava a madressilvas ou a magnólias?

 

Cada receptor sensorial de seu corpo se disparou como um sino de incêndios quando a jovem tocou apenas seu bigode e roçou seus lábios, livres dos cabelos cortados, com as pontas dos dedos. A eleição estava em suas mãos. Podia detê-la ou explodir.

Apartou suas mãos.

 

Já está bem.

 

Mas fica um...

 

Hei dito que já está bem, maldição!

 

Agarrou a toalha e a jogou ao chão, enquanto se levantava de um salto do tamborete. Limpa este desastre.

 

Ao princípio, sua rudeza e a ordem de que limpasse pegaram despreparada a Lydia, mas a ira não demorou para sobrepor-se ao estupor. Agarrou a mão de Ross e deixou as tesouras sobre sua palma com um golpe seco.

 

Limpa-o você. É seu cabelo. Ouviste alguma vez a palavra «obrigado»?

 

Deu meia volta e, depois de tirar a saia e a blusa e as dobrar com esmero, se encolheu no colchão e lhe deu as costas, enquanto se cobria com as mantas.

 

Ross permaneceu imóvel com a vista cravada nela, furioso, e logo foi em busca da vassoura.

 

O sol brilhou durante todo o dia seguinte. E ao outro, cruzaram o Mississipi.

Todo mundo tinha os nervos a flor de pele, enquanto as carretas rodavam em fila para as bordas do lamacento rio. O senhor Grayson recolheu o pedágio de cada carreta, que, como todas as coisas da pós guerra, era excessivamente elevado. Dois transbordadores de vapor transladariam cada vez dois carros, com seus cavalos e a família.

 

Lydia estava tão entusiasmada como outros. Até que viu o rio. De ter sido um oceano, seu aspecto não teria sido mais imenso, ilimitado e ameaçador. Apertou Lee em um gesto protetor contra o seu coração acelerado, quando viu que guiavam as primeiras carretas até os transbordadores e asseguravam suas rodas com braçadeiras. Deste modo pôde observar como as águas turvas do rio lambiam o casco da embarcação.

 

A odiosa lembrança de sua infância avançou sobre ela. O sabor salobro da água que alagava sua boca e sua garganta era real? Podia respirar. Igual há aquele dia.

 

Aconteceu durante uma de suas escassas visitas à cidade. Por uma vez, o velho Russell tinha concordado que mamãe e ela lhes acompanhassem. Tinha aguardado com ânsia aquele dia durante toda uma semana. Tinham que cruzar um braço do Tennessee em um transbordador a vara. Lydia estava inclinada sobre o corrimão e contemplava a água, sobre cuja superfície dançava a luz do sol. Clancey se colocou detrás dela e a empurrou apenas, para que parecesse um acidente, mas o fez com a suficiente força, de forma que a Lydia perdeu o equilíbrio e caiu de cabeça na água.

 

Gesticulou até a superfície, cuspindo e gritando. A água se aferrava a sua saia e à única blusa que lhe pertencia. Através de seus olhos alagados de água viu que Otis e Clancey riam a mandíbula batente, davam-se palmadas sobre as coxas e se burlavam de seu apuro. Sua mãe se apertava a cabeça com as mãos e gritava que tirassem a Lydia. Quis agarrar-se ao bordo estilhaçado da barcaça, mas Clancey chutou sua mão com uma bota. Durante um minuto, teve que manter-se flutuando com um tremendo esforço sem que a ajudassem. Quando sua mãe o tentou, Clancey o impediu. Por fim, ele a agarrou pelo cabelo e a tirou.

 

Gostou do mergulho? Burlou-se.

 

Ela tinha uns onze anos quando aquilo aconteceu, mas ainda recordava o terror que tinha experimentado quando a água se fechou sobre seus olhos, seu nariz e sua boca, e ficou sem ar. Agora contemplava como em transe as águas opacas do Mississipi e se perguntava como conseguiria ter a suficiente força para subir ao transbordador.

 

Seguia tremendo quando Ross, que tinha ajudado a sujeitar os carros, apareceu ao seu lado.

 

Somos os seguintes. Fica com Lee, apoiada na cabine do motor. Os Langston cruzarão conosco.

 

Ross murmurou, quando ele deu meia volta para afastar-se.

 

Sim?

 

Olhou-a, algo impaciente.

 

Onde... onde estará?

 

Com meus cavalos.

 

A jovem assentiu, pálida e nervosa.

 

Sim, claro.

 

Ross a olhou com curiosidade durante um momento, e logo se dirigiu a assegurar as duas carretas no transbordador com a maior rapidez possível. Lydia subiu à embarcação, que oscilava brandamente, correu para a cabine do motor e se esmagou contra as paredes vibrantes, sujeitando com força Lee. Mamãe se reuniu com ela, embora os meninos ficassem o mais perto possível do corrimão. Para eles aquela era uma aventura que recordariam durante o resto de sua vida, e depois de um bom sermão, Mamãe deixou que se divertissem.

 

O transbordador tinha percorrido um terço de seu trajeto, quando Marynell chamou.

 

Vem olhar, Lydia.

 

Assinalava algo que derivava com a corrente do rio e divertia aos meninos com seu curso sinuoso.

 

Não, tenho que ficar com Lee.

 

Vê - disse Mamãe, e agarrou ao menino antes que ela pudesse protestar. Não é mais que uma menina. Divirta-se um pouco.

 

Como não queria ficar como uma covarde, aproximou-se centímetro a centímetro ao bordo da embarcação. Tentou localizar Ross, mas ele tinha desaparecido. Embora ensaiasse um trêmulo sorriso em honra dos meninos, a caixa de maçãs que seguia a esteira do transbordador não conseguiu acalmar seu medo. Quão único viu foram as profundidades insondáveis, as oscilações remolinantes das correntes, a água espumosa que lambia os flancos do navio. Começou a tremer. Experimentou a sensação de que a água se fechava de novo sobre sua cabeça, notou que seus pulmões ardiam.

 

O pânico se apoderou dela, deu meia volta e procurou um refúgio. Correu, sem dar-se conta de que apartava a empurrões aos pequenos Langston, para o carro. As fossas nasais dilatadas, os olhos totalmente abertos, os pulmões bombeando ar como foles, subiu pela roda do carro, avançou para a parte posterior, subiu e caiu no interior, ofegante.

 

Mamãe tinha presenciado a cena e gritou aos seus filhos, que perseguiam a Lydia como pintinhos, que ficassem onde estavam.

 

Atlanta, vá procurar ao senhor Coleman. Diga-lhe que deixe seus cavalos com Luke.

 

Bubba sujeitava o primeiro cavalo de parelha de Ross, em tanto seu pai fazia o mesmo com o seu.

 

Ao cabo de uns segundos, Ross corria sobre as toscas madeiras do transbordador. Por puro costume, apoiava a mão sobre a pistola sujeita a sua coxa.

 

O que acontece?

 

Lydia. Está em seu carro.

 

Lee?

 

Está bem. Ocupe-se de sua esposa, senhor Coleman.

 

Mamãe sustentou seu olhar durante um longo momento, antes que Ross se precipitasse para a carreta. Quando passou a perna por cima da comporta e entro, viu Lydia encolhida em uma esquina, a cabeça coberta com os braços. Chorava histericamente.

 

Lydia! Ladrou. Que demônios ... ?

 

Tirou o chapéu, jogou-o a um lado, passou finalmente todo seu corpo pela abertura da carreta e, quando esteve perto dela, se agachou para ficar a sua altura. Estendeu as mãos, com a intenção das apoiar sobre seus ombros para consolá-la, mas logo se conteve.

 

Lydia - disse com mais ternura. As lágrimas eram amargas. Surgiam da alma, do inferno. - Assustaste a todo mundo. O que te passa?

 

Como à maioria dos homens, as lágrimas sem explicação lógica lhe deixavam estupefato. Como a maioria dos homens, se irritava quando não obtinha explicação.

 

Lydia, pelo amor de Deus, me diga o que passou. Tem-te feito mal? Dói-te algo?

 

Teria golpeado a cabeça? Por que se cobria daquela forma? Tentou separar suas mãos, mas seus braços estavam tão rígidos como a morte.

 

Desesperado, agarrou-a pelos ombros e começou a sacudi-la com força, até que ela baixou os braços. Aturdida, olhou-lhe sem lhe ver e aferrou sua camisa com dedos intumescidos.

 

Não me jogue... ao... água.... ao rio. Por favor, não... jogue-me...

 

Ross, abatido, olhou-a em silêncio. Tinha visto homens a ponto de morrer, enfrentados ao canhão de uma pistola, segundos antes que lhes voasse o cérebro, mas nunca tinha visto tanto terror em um rosto como então. As pupilas de seus olhos estavam tão dilatadas que só um anel âmbar as rodeava. Tinha os lábios brancos. Dava a impressão de que não ficava nenhuma gota de sangue em seu rosto.    

 

Lydia, Lydia. Sua voz era como um murmúrio consolador, e nem sequer se deu conta de que rodeava sua cabeça entre as palmas das mãos. Do que está falando?

 

O rio, o rio murmurou a jovem, como presa de um delírio, sem soltar o tecido de sua camisa.

 

Ninguém vai jogar você ao rio. Está a salvo.

 

A moça tragou saliva. Ross compreendeu que tentava expulsar o nó de medo que bloqueava sua garganta. Esticou a língua para umedecê-los lábios. Seu peito subia e baixava com violência cada vez que respirava.

 

Ross?

 

Seu nome era uma pergunta. Olhou aos olhos, como se tentasse lhe identificar.

 

Sim.

 

O corpo de Lydia se derrubou por causa do alívio e deixou cair a cabeça sobre o esterno de Ross. Como este seguia com as mãos apoiadas sobre suas faces, aproximou-a mais, até que descansou sobre seu peito. Permaneceram imóveis até que a respiração de Lydia se normalizou.

 

Por que alguém iria querer jogar você ao rio? Perguntou por fim, em rouco sussurro.

 

Ela levantou os olhos, mas não falou, só olhou daquela forma que Ross considerava irritante e cativante ao mesmo tempo.

 

Não corríamos nenhum perigo... Acariciou suas maçãs do rosto com os polegares, para secar as lágrimas que ainda perduravam. Mamãe... Viu que seus olhos voltavam a umedecer-se, mas esta vez as lágrimas não tinham sido provocadas pelo terror. Seus olhos cor uísque se estavam desencardindo do pesadelo que acabava de reviver. Mamãe não teria permitido... Seus polegares se alternaram enquanto roçavam seus lábios. Estavam úmidos de passar sua língua por eles. A umidade se concentrou nas pontas de seus polegares. ...Que te acontecesse nada.

 

Então, Ross soube que ia beijá-la, e que não podia fazer nada por evitá-lo. Fazia muito tempo que a escolha tinha escapado de suas mãos. O momento tinha sido decretado, destinado, e resistir ao destino era impossível. Em conseqüência, dobrou sua vontade e deixou aos deuses a tarefa de ditar que sua cabeça descendesse pouco a pouco para a boca ofegante de Lydia.

 

Ao princípio, limitou-se a deixar apoiados os lábios sobre os seus. Os dedos de Lydia se fecharam com mais força sobre sua camisa. Esperou até que não pôde resistir mais. Depois, quando ela inclinou a cabeça para lhe dar mais facilidades, ele roçou seus lábios contra os dela, varreu-os com o bigode e, ao beijá-la com mais força, abriram-se.

 

O coração de Ross pulsava violentamente, mas não se apressou. Vacilou, atrasou-se para aspirar ao aroma de seu fôlego e especular sobre o que encontraria ao outro lado daquele suave portal.

 

Tocou seu lábio superior com o extremo da língua, com tanta leveza que não esteve seguro de ter estabelecido contato até que ouviu a entrecortada corrente de ar que escapava dos lábios da moça e se entrelaçava com a sua.

 

A esteira de outro navio que sulcava o rio provocou que o transbordador se bamboleasse. Perderam o equilíbrio. Ross estava de joelhos, e quando ela caiu sobre um montão de lençóis, seu corpo a seguiu. Ardentes olhos cor esmeralda escrutinaram seu rosto, seu cabelo, descenderam pela garganta, sobrevoaram seu seio, e depois retornaram para sua boca, a que ainda não se aproximou o suficiente. Lydia ficou deitada imóvel, sem emitir o menor som, como um cordeiro disposto para o sacrifício.

 

Os dedos de uma mão se internaram por seu cabelo até fechar-se sobre o crânio. A outra mão embalou seu queixo. Ross se foi deslizando para baixo, até que tocou com o peito as suaves ladeiras de seus seios em repouso.

 

Quando alinhou a boca com a sua de novo, o instinto se apoderou dele. Uma das amigas de sua mãe lhe tinha ensinado a beijar aos treze anos, no bordel. Uma tarde aborrecida, a puta tinha conduzido ao moço a sua habitação e se burlou dele sem piedade, ao tempo que o fazia uma demonstração sobre os aspectos mais sofisticados da arte de beijar. Ensinou-lhe a aplicar a quantidade de sucção precisa para selar duas bocas, a mover a língua em círculos como se recolhesse mel com ela, a atirar e parar estocadas a ritmos sempre cambiantes. Foi um aluno brilhante. Possuía um talento natural para aquela matéria, e antes que a tarde terminasse, Ross tinha aperfeiçoado sua arte. A puta também tinha aprendido algumas coisas.

 

Ross aplicou seus conhecimentos e anos de prática, pois nunca tinha temido ou desejado mais um beijo.

 

Mas seu desejo não lhe tinha preparado para o excelso êxtase. A realidade excedia com muito que ele tinha imaginado. Lydia tinha uma boca maravilhosa. Era uma gruta doce e úmida, que ele explorou por completo. Saboreou-a toda, pois se tinha consumido de ansiedade por fazê-lo. Percorreu com a língua o penhasco reto de seus dentes. Tocou o teto de sua boca, investigou o revestimento de seus lábios, brincou com a ponta de sua língua. E aplicou aquela sucção tão doce que a absorveria até a última gota, se podia.

 

Não foi consciente dos profundos rugidos de excitação que brotavam de sua garganta até que o transbordador tomou contato com o mole situado no lado do rio correspondente a Arkansas. O grunhido animal chegou aos seus ouvidos, e por um momento se perguntou de onde procedia.

 

Quando localizou sua origem, separou-se dela. Seus olhos seguiam igualmente grandes, igualmente interrogadores como antes de beijá-la, mas albergavam menos medo. Tinha a boca vermelha e úmida, brilhante por causa do beijo. A pele que rodeava os lábios se via irritada pelo roce de seu bigode.

 

Ross se tinha perdido por completo no beijo, nela.

 

Lydia tinha conseguido que o esquecesse tudo: quem era ele, quem era ela..., quem era Vitória.

 

Ficou em pé e recuperou o chapéu. O impregnou, e sem atrever-se a olhar Lydia, saiu pela abertura do carro e saltou à coberta do transbordador, justo quando Mamãe estava subindo.

 

E bem? Perguntou.

 

Está bem disse, antes de fugir a toda pressa.

 

Um amplo sorriso apareceu no rosto de Mamãe.

 

Aquela noite houve uma festa no acampamento. Haviam chegado a um ponto crítico e todo mundo se alegrava de havê-lo deixado atrás. Tiraram os violinos de seus estojos e tocaram. Cantaram. Uma jarra de uísque passou entre os homens que bebiam. Poucos se negaram a fazê-lo aquela noite. Permitiram aos meninos que se deitassem mais tarde que o habitual. A longa viagem começaria de novo ao dia seguinte, mas aquela noite estava dedicada a celebrar o glorioso dia.

 

Para Lydia também foi um dia glorioso. O beijo de Ross lhe tinha ensinado que nem todos os beijos eram repugnantes, que algumas intimidades entre um homem e uma mulher podiam ser maravilhosas.

 

Também recordaria aquele dia por outro motivo. Foi o dia em que seu leite deixou de subir.

 

Ao princípio Lydia pensou que Lee estava nervoso por causa do alvoroço comum reinava no acampamento. Não foi até depois, ao lhe dar de mamar antes de deitá-lo, quando compreendeu que o que lhe ocorria era que tinha fome. Não recebia bastante leite.

 

Espremeu seus seios até extrair o leite que pôde, e Lee dormiu por fim sobre seu seio. Muito cansada, e esgotada emocionalmente depois do ocorrido no transbordador, Lydia ficou adormecida abraçada a Lee sobre o colchão, sem forças para lhe pôr no berço ou despir-se.

 

Despertou quando Ross voltou, muito mais tarde. Na terra incerta que separa o sonho da vigília, só reparou em que ele cheirava a uísque. À manhã seguinte, Ross se queixou de uma dor de cabeça espantosa quando Lee lançou um uivo de fome.

 

Dê-lhe de mamar, pelo amor de Deus disse, enquanto calçava as botas.

 

Lydia sabia que já não tinha leite, mas desabotoou a blusa e ofereceu o peito a Lee. Temerosa da reação de Ross se soubesse, respondeu-lhe com fúria.

 

Não teria dor de cabeça se não tivesse bebido ontem à noite.

 

Ross ficou em pé e entreabriu os olhos para mitigar a dor, enquanto cambaleava para a abertura do carro.

 

Não me embebedei, mas te asseguro que o tentei - grunhiu.

 

Ao cabo de poucos minutos, Lee chorava como um possesso e agitava os braços e as pernas, presa da frustração e a fome. Lydia não sabia o que fazer. Não sabia nada de bebês, à exceção de sua curta experiência com Lee. Que fazia uma mãe quando seu leite deixava de subir? Leite de vaca? Sim, mas como a conseguiria sem que Ross se inteirasse?

 

Sentou-se no chão, com Lee apertado contra o seu peito, balançou-lhe e cantou as poucas canções que sabia. Por fim, o pequeno dormiu durante um momento, mas depois o instinto fez que fosse de novo em busca do mamilo, mas o bebê sentiu fome outra vez, e os soluços voltaram a começar.

 

O que acontece esta manhã? Perguntou Ross, quando entrou no carro depois de barbear-se.

 

Não sei - mentiu Lydia. Possivelmente lhe dói a barriga, ou pode ser que o alvoroço de ontem lhe tenha posto muito nervoso.

 

Seus olhos se encontraram um momento; ambos recordaram o beijo. Depois desviaram a vista com ar de culpabilidade.

 

Não te incomode em preparar o café da manhã disse Ross. Não tenho fome. Vou fazer café. Cuida de Lee.

 

O tempo não podia solucionar o problema de Lee. De fato, à medida que avançava a manhã, seus chiados pioraram. Enquanto Bubba conduzia, Lydia balançava ao menino no abarrotado carro. Tratou de lhe acalmar como pôde, sabendo de que não podia fazer nada que resolvesse seu problema.

 

Durante a parada do meio-dia, Mamãe se aproximou da carreta.

 

Esse menino esteve chorando toda a manhã. O que lhe passa?

 

Ross estava sujeitando o arnês da parelha. Lydia falou em frenéticos sussurros, alagada em lágrimas.

 

Mamãe, tem que me ajudar. Fiquei sem leite. Tem fome.

 

Mamãe olhou à moça, sem resposta por uma vez.

 

Está segura? Quando te deu conta?

 

Ontem à noite. Não mamou o suficiente antes de dormir. Esta manhã, não comeu nada. O que vou fazer?

 

Mamãe advertiu o olhar de preocupação que Lydia dirigia para a parte dianteira do carro, onde Ross estava falando com o senhor Cox. O temor da jovem era compreensível, mas Mamãe não queria pô-la mais nervosa ainda.

 

Conseguirei leite da vaca dos Norwood e daremos a Lee, embora fosse com um funil. Não se preocupe, ou ficará tão nervosa como o pequeno. Mantém a calma e segue falando com voz serena, do contrário intuirá que está inquieta e não servirá de nada.

 

Não diga...

 

Não. Agora não.

 

Mamãe partiu.

 

Voltou quando todos começaram a mover-se.

 

Ficarei esta tarde com Lydia e Lee, a ver se podemos lhe tranqüilizar um pouco.

 

Obrigado, Mamãe disse Ross, que tinha relevado a Bubba. Está doente?

 

A preocupação escavou uma profunda fenda entre suas sobrancelhas escuras, e Mamãe sorriu ao compreender a vulnerabilidade de um homem como ele, que se esforçava tanto em aparentar frieza e indiferença.

 

Não, só mal-humorado. Acredito que dentro de pouco se sentirá muito melhor.

 

Custou um pouco de esforço, mas Lydia o conseguiu por fim. Agarrou ao pequeno Lee e o apertou contra si como se lhe desse o peito, depois meteu em sua boca a teta que Mamãe tinha tentado lhe dar o dia depois de nascer. Era feita de uma luva de oleado e esticada sobre a boca de uma pequena jarra Mason.

 

Depois de muito salivar, engasgar-se e tossir, deu a impressão de que Lee e o artefato chegavam a um acordo, e o menino chupou ansiosamente até que seu estômago se encheu por fim e pôde ficar adormecido uma vez acalmada a sua ansiedade.

 

Mamãe e Lydia fixaram um horário. Mamãe traria leite fresco cada manhã, quando Ross fosse cuidar de seus cavalos. Se Lee despertava e começava a chorar antes, teria que agüentar-se. Traria outra garrafa ao meio-dia e às duas da madrugada. Mamãe as engenharia para fazer as chegar a Lydia às escondidas.

 

A primeira manhã, enquanto Ross se barbeava e Lydia preparava o café da manhã, sem fazer caso dos berros de Lee, o homem comentou a circunstância.

 

O que te passa? Como é que deixa chorar a Lee dessa maneira?

 

Lydia, que estava inclinada sobre o fogo, tornou-se para trás uma massa de cabelo encaracolado enquanto se endireitava. O garfo comprido que sujeitava gotejou de gordura de bacon.

 

Não me passa nada, e te agradeceria que não inicie uma conversação comigo nesse tom. Parece que me acusa de algo.

 

Sua consciência culpada e o calor do fogo tinham pintado uma cor saudável sobre suas faces.

 

Ross rogou a Deus para que Lydia não tivesse um aspecto tão são, já que seu corpo respondia à vitalidade da moça com energia própria.

 

É bom que um menino chore de vez em quando sem que ninguém se apresse a agarrá-lo - prosseguiu. Assim não fica mimado.

 

Ao menos isso era o que Mamãe lhe tinha aconselhado que dissesse, se Ross se dava conta do nervosismo incomum de Lee.

 

Ross secou o sabão de barbear de seu rosto. Lydia tinha razão, é obvio, mas ele sabia bem o que era ser deixado de lado, fazer um arranhão no cotovelo sem que nenhuma mãe lhe curasse porque estava ocupada com outra pessoa. Não lhe deixe chorar muito momento sem lhe dar uma olhada.

 

Crê que lhe deixaria chorar se soubesse que não estivesse bem?

 

Ross jogou a toalha e colocou o chapéu.

 

O principal e fundamental é que tem que cuidar de Lee. Esqueceste que por esse motivo me vi obrigado a me casar contigo?

 

Encaminhou-se para o curral provisório.

 

Bastardo - vaiou entre dentes Lydia.

 

-Pode ser que o seja - disse Mamãe atrás. - Lydia girou em redondo, ao dar-se conta de que alguém tinha ouvido o insulto. E muito suscetível a respeito. Seja o que for, esse homem atua de uma maneira mais estranha cada dia. Como o outro dia, quando cruzamos o rio. Nunca vi um homem tão assustado como quando pensou que te tinha passado algo, entretanto, quando saiu do carro, parecia que lhe tivessem atirado uma machadada entre os olhos. Contemplou a silhueta de Ross, rígida de ira, enquanto desaparecia entre as árvores. É para perguntar-se o que lhe corrói, verdade? Murmurou. Bem, vamos lhe dar o café da manhã a esse rapazinho.

 

O horário que Mamãe e Lydia tinham acordado funcionava à perfeição durante o dia, pois Ross sempre estava ocupado. A difícil era a mamadeira da noite. Lydia ficava de costas e abria o vestido como se fosse dar o peito, e depois tirava a garrafa de seu esconderijo. Até o momento, graças a Deus, Ross não se deu conta de nada. Não obstante, Lydia contou a Mamãe outra de suas preocupações.

 

O que lhe há dito aos Norwood?

 

Que um de meus meninos está um pouco adoentado e pensei que um pouco de leite fresco iria bem.

 

Tem que pagá-la, verdade?

 

Tenho algumas moedas economizadas. Não se preocupe por isso. Já me pagará quando o senhor Coleman se inteirar.

 

Lydia se estremeceu.

 

Ainda não, por favor.

 

Averiguá-lo-á cedo ou tarde, Lydia. Não pode seguir fingindo indefinidamente.

 

Sim, mas quero esperar um pouco mais, Mamãe, por favor.

 

Conseguiram prolongar o teatro durante uma semana.

 

Depois de um dia de trabalho particularmente árduo, a caravana tinha acampado perto de um riacho fresco e cristalino. Ross falava com Scout enquanto tomavam café quando Mamãe se aproximou do carro, com a garrafa de leite escondido em um bolso do avental.

 

Vamos dar um passeio, a ver se encontrarmos um pouco de sombra perto da água.

 

Lydia aprovou a sugestão com entusiasmo. A zona leste de Arkansas era bonita. Os prados estavam salpicados de flores silvestres, e uma espessa capa de maleza atapetava os bosques. Encontrar caça não representava nenhum problema. Poucas vezes voltavam Ross, os filhos dos Langston, ou os homens que caçavam para a caravana, com as mãos vazias. Os menus noturnos distavam muito de ser monótonos. Quando passavam por uma cidade, enviavam emissários a comprar mantimentos básicos, batatas e luxos ocasionais, como ovos frescos.

 

Lydia e Mamãe encontraram um imenso carvalho e se sentaram sobre a erva verde que rodeava sua base. Lydia apertou Lee contra si e lhe ofereceu a mamadeira improvisada. O menino se adaptou ao leite de vaca com surpreendente prontidão, e cada dia engordava mais.

 

Mamãe ficou a falar sobre uma de suas contrariedades favoritas, a afeição de Bubba a perseguir a filha de Watkins. Lydia escutava, mas sua mente estava em outra parte. Por isso levantou a vista, com indiferença preguiçosa, quando percebeu um movimento detrás de Mamãe. Todo seu corpo ficou em tensão quando viu Ross. Estava olhando ao seu filho e a fúria tinha transformado seus olhos verdes em pregos afiados que crucificavam Lydia no chão.

 

Mamãe, ao ver a repentina reação de Lydia, voltou-se e compreendeu a situação imediatamente. Levantou-se.

 

Que merda é isso? Resmungou Ross, e assinalou a garrafa.

 

A que se parece? É uma garrafa de leite de vaca respondeu Mamãe. Lydia, me dê esse menino. Levarei-lhe a rio para que termine de jantar em paz. Temo que tenha uma indigestão se ficar aqui.

 

Os braços e as mãos de Lydia tremiam de tal forma que logo que pôde depositar Lee nos braços estendidos de Mamãe. Não tinha afastado nem um momento a vista do rosto congestionado de Ross. Suas sobrancelhas franzidas quase lhe ocultavam os olhos. Os lábios tinham desaparecido sob o bigode, e todos os músculos de seu corpo se desenhavam sob sua pele.

 

Por que está Lee chupando uma garrafa?

 

Ameaçada por aquele olhar acusador, Lydia baixou a vista para o seu colo, onde seus dedos brancos e sem sangue se dedicavam a retorcer o tecido da saia.

 

O leite deixou de subir - murmurou.

 

A feroz blasfêmia de Ross provocou que se encolhesse.

 

Quando? Gritou.

 

O dia que cruzamos o rio. Mamãe disse...

 

Faz mais de uma semana?

 

Seu rugido dispersou a uma família de pássaros hospedados no alto da árvore. Gritaram-lhe, encolerizados.

 

Sim.

 

O dia depois de nos casar.

 

Ross lançou uma gargalhada desagradável, autocomiserativa.

                                

Lydia lhe olhou e se umedeceu os lábios, nervosa.

 

Uns dias depois.

 

Ross se apoiou contra o tronco da árvore e elevou a vista para os ramos, como se perguntasse ao céu que horrível pecado tinha cometido para merecer aquele castigo.

 

De maneira que agora estou encadeado a ti, uma esposa não desejada, e nem sequer serve para o propósito de nosso matrimônio?

 

Lydia ficou em pé de um salto.

 

Bem, paraste-te a pensar que eu também estou encadeada a ti?

 

Não é o mesmo.

 

Tem toda a razão. É muitíssimo pior.

 

Vê-o? Que homem deseja uma esposa que fala como um vagabundo?

 

Aprendi com você!

 

Ross lhe ensinou uma nova palavra, extremamente explícita, antes de continuar.

 

Por que você... já sabe... seu leite ... ? Olhou seus seios e ficou sem fala. Ergueu-se em toda sua estatura. Supõe-se que uma mulher é capaz de dar o seio ao seu filho indefinidamente. O que te passou?

 

Nada.

 

É claro que sim, ou não te teria ficado sem leite.

 

Mamãe disse que o cruzamento do rio provocou que meus seios se secassem. Fiquei muito nervosa e...

 

Interrompeu-se. Ambos recordaram imediatamente aqueles tumultuosos minutos na carreta.

 

Molesto porque Lydia lhe tinha recordado o que ele tratava de esquecer fazia uma semana, Ross se voltou para não ter que olhá-la. Não desejava ver seus olhos, abertos e eloqüentes, porque recordava muito bem como lhe tinham tocado antes e depois daquele beijo. Não queria ver seu cabelo, que rodeava sua cabeça como um halo chamejante, porque conhecia a sensação de afundar os dedos naquela massa sedosa. Não queria ver sua boca, porque inclusive naquele momento recordava o seu sabor. Não queria ver a turgidez que inchava o sutiã de seu vestido, porque a recordava suave e feminina sob seu corpo.

 

Maldição! Não queria recordar nada e o recordava tudo. A lembrança lhe tinha espreitado durante uma semana, de dia e de noite; cada detalhe voluptuoso lhe enfeitiçava.

 

Lydia aproveitou seu silêncio.

 

Mamãe diz que não tem nada de estranho. Às vezes, se uma mulher se assustar, como me passou no transbordador, pode ocorrer. Mas Lee está bem se apressou a acrescentar. Aprendeu a chupar a tetina. O leite de vaca não lhe deu dor de estômago. Cresce cada dia. Está...

 

Ross girou em redondo.

 

Mas isso não impede que continue casado contigo, quando eu não o desejo. Tinha uma esposa. Uma esposa de caráter aprazível e bem falada, que era uma senhora e usava o cabelo como as senhoras, que não...

 

Interrompeu-se. Ia dizer que Vitória não teria permitido que ele a beijasse com a mesma luxúria desatada com que tinha beijado Lydia, mas não desejava dizê-lo. Não queria admitir que ainda recordava aquele beijo.

 

Se sua intenção tinha sido calá-la, ferí-la no mais fundo, tinha-o obtido. Lydia desejou que a tivesse avassalado como fazia Clancey, porque a dor só teria sido física e ao final desapareceria. Entretanto, Ross lhe tinha infligido a pior classe de dor. Tinha-lhe recordado o que era, o que seria sempre, por mas que levasse roupa bonita ou outro sobrenome. No fundo, ela seguia sendo lixo.

 

A dor açulou seu rancor, como um animal ferido. Seus olhos flamejaram com o dourado aceso do crepúsculo. Jogou-se o cabelo para trás com um movimento altivo da mão.

 

- Bem, eu tampouco saí bem de tudo isto. Odeio-te, odeio suas más maneiras, a forma em que fere às pessoas sem motivo. Estou convencida de que não é melhor que eu, e isso é algo que você não pode suportar, senhor Coleman.

 

Ross emitiu um grunhido e avançou para ela. O primeiro impulso de Lydia foi fugir dele e de seu olhar assassino, mas estava muito encolerizada para fazer caso de seu sentido comum.

 

Não me ocorre nada pior que passar o resto de minha vida sendo sua esposa - gritou - Caipira fornicador.

 

Ross parou em seco, boquiaberto, como se lhe tivesse desencaixado a mandíbula.

 

Boa noite, senhora Coleman, senhor Coleman.

 

A voz do senhor Hill revoou sobre o ar sulfuroso que crepitava entre a Lydia e seu marido. Hill lhes tinha saudado em um tom muito agradável, mas lhes observou com os olhos entreabertos quando se voltaram para ele. Pareciam dois galos de briga a ponto de despedaçar-se com os afiados esporões.

 

A mulher tentou recuperar a compostura. Deslizou as mãos sobre a saia para dissimular sua confusão. Ross Coleman mordiscando a ponta de seu bigode.

 

Hill - disse tenso, e depois cabeceou em direção a Moisés.

 

Lydia saudou a ambos com uma breve sacudida de cabeça.

 

Bonita paisagem, verdade?

 

Sim, senhor Hill respondeu Lydia sem fôlego.

 

Tinha estado a ponto de esbofetear Ross. O que teria passado se o senhor Hill não tivesse aparecido? Teria ouvido os insultos que seu marido lhe tinha dirigido? Acreditou que ia morrer de mortificação, e confiou em que o calor que cortava suas faces fosse invisível.

 

As flores silvestres são muito bonitas disse, em um intento inútil de arrumar a situação.

 

Acabo de pegar estas junto ao rio. É tão amável das aceitar, senhorita Lydia? Moisés lhe estendeu o ramo. Alegrarão sua carreta.

 

A jovem lançou um olhar a Ross. Sua expressão era tão dura e implacável como o granito.

 

Obrigado, Moisés respondeu em voz baixa. Agarrou o ramo e o cheirou descuidadamente. As flores lhe fizeram cócegas em seu nariz, e o conseguinte espirro a turvou ainda mais.

 

O senhor Hill e Moisés riram. Ross se moveu inquieto, como ofendido.

 

Moisés admirou seu domínio dos cavalos, senhor Coleman disse Winston. Não era tão alto como Ross, mas sua atitude digna produzia a ilusão de aumentar sua estatura. Moisés sempre trabalhou na casa. Eu ia a cavalo, é obvio, mas nunca conduzi uma parelha de seis. Importaria-lhe ensinar a Moisés a técnica de dirigir a parelha? Os cavalos estão encetados em uma batalha de vontades desde que partimos.

 

Ross pigarreou, nervoso.

 

Suponho que poderia fazê-lo.

 

O agradeceria muito, senhor Coleman. Não poderia desejar melhor professor - disse Moisés com deferência.

 

Tentarei solucionar seu problema.

 

Estupendo, estupendo. Winston sorriu a Ross, e depois se voltou para a Lydia. Já viu o rio? Na borda corre um ar fresco e reconfortante. Eu adoraria acompanhá-la. Com permissão do senhor Coleman, é obvio.

 

Eu..., ummm..., precisamente estava a ponto de levá-la ali.

 

Lydia levantou a cabeça com brutalidade e olhou ao seu marido, que tinha pronunciado a frase com a espontaneidade de um homem acostumado a levar de passeio a sua mulher pelas noites. Quando seu braço se deslizou com ar protetor ao redor de sua cintura para atraí-la para ele, uma pluma teria bastado para derrubar a jovem.

 

Bem, nesse caso, desejamo-lhes boa noite respondeu Winston com elegância, e saudou com o chapéu a Lydia.

 

Boa noite disse Moisés, e acompanhou ao seu amo para a caravana.

 

Imediatamente, o braço de Ross abandonou a cintura de Lydia, que experimentou uma enorme decepção. Por um momento, passear até o rio tinha lhe parecido uma boa idéia. «Ele tinha dado passeios com Vitória ao cair a noite, não?», pensou afligida.

 

Não foram dar nenhum passeio agradável. Lydia supôs que, agora que o senhor Hill e Moisés se foram, reatariam a briga. Acreditou que não teria forças, mas lhe olhou com uma expressão desafiante, no caso disso.

 

Caipira fornicador? Perguntou Ross em um sussurro.

 

O que?

 

Estava-a confundindo a propósito? Não estava zangado. Um sorriso se desenhava sob seu bigode.

 

Onde demônios ouviste isso e como te atreveste a repeti-lo?

 

Era um insulto que os «vizinhos» do Otis e Clancey estavam acostumados a lhes dedicar. Lydia tinha pensado que, se era apropriado para eles, então devia ser o pior dos insultos.

 

É ruim? - Perguntou com acanhamento, pondo uns olhos arregalados.

 

Ross jogou para trás a cabeça e riu. Era a primeira vez que Lydia lhe via rir daquela maneira, e depois de lhe contemplar estupefata uns segundos, lhe fez coro.

 

Ruim? Disse por fim Ross, enquanto se secava as lágrimas com os nódulos. Sim, é. Eu em seu lugar, se quisesse que me tratassem como a uma dama, não voltaria a dizê-lo diante de ninguém.

 

Ficou a rir de novo, e quando as gargalhadas remeteram, apoiou-se contra a árvore e se deslizou tronco abaixo até ficar sentado sobre seus calcanhares. Olhou-a com uma expressão que não lhe tinha visto nunca. Era quase tenra.

 

Maldição, Lydia, o que vou fazer contigo? Passou os dedos pelo cabelo, e depois meneou a cabeça, como perplexo. Em um momento me enfureço contigo, a ponto de te estrangular com as mãos nuas, e ao seguinte consegue que ria como fazia muito tempo que não me passava.

 

Cravou a vista no chão durante um momento interminável, enquanto Lydia contemplava sua cabeça, desejosa de reunir a coragem suficiente para tocar seu cabelo, suavizar as rugas de preocupação que sulcavam sua testa. Quando ele voltou a olhá-la, seu rosto estava vazio de expressão.

 

Acredito que não fica outra eleição que seguir juntos até chegar Jefferson.

 

Eu penso o mesmo.

 

E depois o que? Lydia teve medo de perguntar. Casar-se com um estranho de caráter variável não era o ideal, mas ao menos não lhe batia. Preferia tê-lo ao seu lado que estar sozinha como o tinha estado um mês antes. De fato, começava a dar em falta quando o perdia de vista, fosse qual fosse o seu humor.

 

Lamento muito o de me... meu leite. Não podia sabê-lo quando nos casamos.

 

Os olhos de Ross se posaram sobre seus seios. Eram tão exuberantes, volumosos e sedutores como sempre.

 

Não, como poderia saber? Não me zanguei contigo, a não ser com o destino.

 

Zangou-se porque sua mulher tinha morrido prematura e injustamente. Tinha perdido os estribos porque se casou com aquela moça, dizendo-se que era lixo e jurando que não a desejava. E estava furioso porque, em que pese a todas aquelas afirmações, desejava-a muitíssimo.

 

Por que disse ao senhor Hill que iria ao rio? Por que me rodeou com o braço?

 

Formulou a última pergunta enquanto olhava os seus sapatos, porque já tinha baixado a cabeça com acanhamento.

 

«Porque não estava disposto a permitir que Hill te cortejasse. Porque só o fato de que te fizesse a proposta despertou meus ciúmes. Porque me proporcionou a oportunidade de te tocar.»

 

É muito provável que Moisés e ele nos ouvissem discutir. Não quis que ninguém pensasse que te trato mau.

 

Ah. Disse Lydia, decepcionada.

 

Voltemos para carro. Mamãe voltará com Lee em seguida.

 

Ante a surpresa de ambos, Ross fechou a mão sobre o braço de Lydia para guiá-la.

 

O espetáculo mais penoso que vi em minha vida.

 

A cabeça loira de Bubba Langston rompeu a superfície da água e saiu ao ar livre. A poucos pés dele, Priscilla Watkins; estava sentada na borda herbosa do rio. Tinha as mãos enlaçadas a suas costas e os joelhos encolhidos, indiferente a que o moço pudesse ver da água boa parte da tíbia e as anáguas.

 

O que faz me espiando? E o que é tão penoso?

 

Bubba se aproximou pouco a pouco à borda. Antes de entrar na água havia sentido a tentação de tirar toda a roupa. Agradeceu a sua boa estrela que se deixou postas as calças.

 

Não estava espiando a ninguém replicou a moça com ar petulante - baixei ao rio para tomar o afresco.

 

Priscilla fez a careta que nenhum homem podia deixar de olhar e endireitou o corpo. Levantou os braços sobre a cabeça e se estirou languidamente, de forma que o vestido se esticou sobre seus bem desenvolvidos seios. Baixou as pestanas sobre seus provocadores olhos cinza quando olhou a, Bubba com ira lamentável. .

 

E o que é penoso é seu peito, Bubba Langston. Não tem nem um cabelo. Uma vez vi o senhor Coleman quando se banhava no rio. Tem cabelo por todo o corpo. Sob os braços, no peito e em alguns lugares que uma senhorita não deveria ver.

 

Bocejou, fingindo aborrecimento, enquanto via que o pomo de Adão da Bubba se movia inverificado.

 

Sabe o que sinta muito bem? Perguntou, mais animada de repente. Acredito que tirarei os sapatos e as meias e me molharei os pés na água fria. As garotas não têm tanta sorte como os meninos. Não podemos ficar na pele e ir nadar quando nos dá a vontade.

 

Bubba contemplou em fascinado silêncio como Priscilla se desenredava os sapatos e os tirava. Subiu a saia e começou a baixar as meias lentamente. Todo o corpo da Bubba ficou rígido quando as mãos da Priscilla deslizaram a meias sobre o joelho e a panturrilha, depois a passou sobre seu esbelto pé, e quando Bubba viu a branca longitude nua de sua perna, pensou que ia morrer.

 

A jovem fechou os olhos, compôs uma expressão extasiada e colocou o pé na água. Umedeceu os lábios lascivamente com sua língua indolente. Bubba gemeu de aflição e avançou três passos para ela pela água. As pernas lhe pesavam como o chumbo.

 

Priscilla.

 

Não lhe fez caso e se dedicou a baixar a outra meia, com a saia recolhida ao redor da cintura. Ao cabo de pouco, teve os dois pés na água.

 

É quase tão estupendo como outras coisas que eu sei, verdade, Bubba?

 

O menino não estava pensando com claridade e não captou a insinuação.

 

Eu também tenho cabelo.

 

A moça sorriu com flerte.

 

Não.

 

Sim.

 

Bubba se encontrava a escassos centímetros dela. Por obra da correnteza, os pés de Priscilla se chocaram contra suas coxas e a braguilha de suas calças. Deus, ia morrer!

 

Vê-o?

 

Ela se inclinou para testa para examinar seu peito.

 

Bem, reconheço-o. Vejo que tem alguns pulverizados aqui e ali. Contemplou seu rosto febril desde debaixo de suas pestanas. Baixou a voz até convertê-la em um ronrono sedutor. Nota-os crescer? O que se sente?

 

Bubba sentia que sua língua era muito grande para sua boca, e que tinha esquecido como movê-la. Não teria podido cuspir, embora sua vida tivesse dependido disso.

 

Toca e saberá - conseguiu articular.

 

Um brilho de triunfo iluminou nos olhos da Priscilla. Olhou para trás com cautela.

 

Se o fizer, não o dirá a ninguém, verdade? Nem sequer ao bisbilhoteiro de seu irmão.

 

Juro- exclamou Bubba, com o entusiasmo de um santo que jurasse obediência.

 

De acordo, pois. Priscilla estendeu a mão, e justo quando estava a ponto de lhe tocar, retraiu-a. Não posso.

 

Meu Deus, estava lhe matando!

 

Claro que pode disse ele com voz estrangulada. Toca.

 

É um animal por me obrigar a fazer isto, Bubba Langston disse a moça com santidade.

 

Bubba estava muito enlouquecido para dar-se conta de que o papel de sedutor recaía agora nele. Só se inteirou do contato ardente daqueles dedos sobre seu peito. Seu corpo ficou ao vermelho vivo. Sua virilidade pulsava dolorosamente no interior de suas calças molhadas. Se a água não lhe tivesse chegado à cintura, a garota teria visto o tremendo efeito que seu contato estava obrando em sua fisiologia. Sem saber como, os dedos de um pé se alojaram em sua virilha.

 

OH, Bubba cantarolou a jovem. Fechou os olhos e deixou que seus dedos vagassem ao azar. Eu gosto de seu tato. É muito viril.

 

Seriamente?

 

Ummm... Priscilla suspirou com pesar e apartou as mãos. Não teria devido permitir que me convencesse. Estou-me pondo muito quente.

 

Sim?

 

Ela assentiu e deixou que seu cabelo loiro se derramasse como uma cascata sobre seus ombros.

 

Acredito que me atirarei um pouco de água por cima para me acalmar.

 

Priscilla evitou a propósito os olhos ávidos do menino, desabotoou com naturalidade os dois primeiros botões de seu vestido e se agachou fazia a água, procurando que Bubba visse os seios que transbordavam sobre o sutiã. Agarrou água nas mãos, a jogou sobre o peito e deixou que escorregasse.

 

-Ooooh exclamou em voz baixa. Não pensava que estivesse tão fria.

 

Seguiu atirando-se água até que a parte dianteira de seu vestido ficou molhada e se colou ao seu corpo.

 

Quando se levantou, lançou uma zombadora exclamação de surpresa ao ver os olhos dilatados da Bubba. Seguiu-os até seus seios. O algodão se amoldava sobre eles de uma forma farto tentadora. A água fria tinha endurecido seus mamilos, tal como ela tinha planejado.

 

OH, tenha piedade gemeu, e se cobriu os seios com as mãos. Não me olhe assim, Bubba. O brilho de seus olhos me dá vontade de desmaiar.

 

Você me olhou - respondeu o menino com voz rouca.

 

Priscilla baixou pouco a pouco as mãos, deslizou-as com deliberada lentidão sobre seus seios, para que as pontas dos dedos roçassem os mamilos rígidos.

 

E o que se o fiz? É um descarado por te aproveitar assim de uma garota, mas suponho que é justo.

 

Bubba, paralisado pela visão daqueles seios, não viu que Priscilla apertava os lábios, frustrada. O menino era lerdo, não cabia dúvida. Se Scout não tivesse partido à cidade mais próxima assim que acamparam, ela não estaria ali com aquele caipira, que ao que parece não sabia para que servia a ferramenta oculta em suas calças. Entretanto, ela sim sabia e ardia em desejos de utilizá-la.

 

Precisava lhe animar um pouco.

 

Também te hei tocado disse em voz baixa e trêmula, como se estivesse ao bordo das lágrimas, mas sei que você alguma vez me apertará contra isso, verdade, Bubba? Assinalou para baixo com os dedos dos pés e apoiou a impigem arqueada do pé sobre os botões das calças do jovem.

 

Bubba cravou seus olhos azuis nela.

 

Disse que era justo.

 

Priscilla umedeceu os lábios com a língua, procurando que ele visse o gesto. Agitou as pestanas e conseguiu que se formassem algumas lágrimas.

 

Sim que é como um animal, mas se me promete não contá-lo...

 

Juro-o replicou Bubba, com os olhos cravados de novo nos mamilos erguidos que se viam com tanta claridade através do vestido. Tirou as mãos da água com movimentos torpes. Molharei mais seu vestido.

 

Dá igual! Gritou Priscilla.

 

Se tivesse sido Scout, teriam posto mãos à obra uma hora antes, ou mais, mas agora tinha que guiar a aquele idiota por cada passada do caminho.

 

As mãos da Bubba se fecharam sobre ela com suavidade, e depois, ao ver sua reação, com mais firmeza. Esfregou, apertou, amassou, sem acabar de acreditar que a sensação pudesse ser tão estupenda. Reuniu a suficiente valentia para deslizar seus polegares sobre os mamilos.

 

Ummm..., Bubba, estou segura de que já o tinha feito antes disse Priscilla. Abriu as pernas, E ele se colocou com toda naturalidade entre elas. Os calcanhares de Priscilla encontraram a parte posterior dos joelhos da Bubba e lhe apertou mais contra ela.

 

Não, nunca.

 

Vamos, Bubba, pode me dizer isso.

 

Nunca. Juro-lhe isso, Priscilla. É a primeira garota que quis.

 

Mais forte resmungou a moça. Esfrega-os com mais força, Bubba, e te aproxime mais para...

 

Bubba Langston!

 

O nome ricocheteou na abóbada celeste e se desabou sobre a cabeça da Bubba, que caiu à água. Se Priscilla não se agarrasse a um punhado de erva, lhe teria acompanhado em sua queda.

 

Sim, mamãe? Disse Bubba, enquanto escorregava ao caminhar sobre as pedras do leito do rio quando tratava de dirigir-se para a borda.

 

Acredito que seu papai necessita um pouco de ajuda no carro.

 

Sim, mamãe.

 

Agarrou a camisa do arbusto onde a tinha pendurado depois de enxaguá-la. Suas calças molhadas pegaram às pernas quando correu entre as árvores.

 

Mamãe, com o aspecto indomável de uma fortaleza, em que pese a que levava Lee Coleman no oco do braço, encaminhou-se para a moça, que se estava pondo a toda pressa as meias.

 

Quando Bubba esteve o bastante longe para não poder ouvi-la, Mamãe agarrou a Priscilla pelo cabelo e a obrigou a ficar em pé.

 

Estou educando a um menino decente e tenho a intenção de que continue sendo decente, ouve-me, moça?

 

Solte-me.

 

Priscilla retorceu a cabeça, mas não conseguiu outra coisa que fazer-se machucar o couro cabeludo. Mamãe não afrouxou sua presa.

 

É uma putinha safada, e me dei conta a primeira vez que te vi, e quero que se mantenha afastada da Bubba.

 

Ele...

 

Ele está maturando, desenvolvendo sua virilidade, e você é justo a ceva que necessita para meter-se em montões de problemas. Não permitirei que isso ocorra.

 

Direi a mamãe que me falou desta forma.

 

Não, não o fará, ou seu joguinho com o Scout chegará a um brusco final.

 

Priscilla deixou de revolver-se imediatamente, e Mamãe, ao comprovar que tinha conseguido obter toda a atenção da moça, soltou-a.

 

A próxima vez que sentir esse comichão nas saias, agita-o ante a cara de outro e deixa aos Langston em paz.

 

Quando Mamãe devolveu Lee a Lydia e foi ao seu carro, encontrou ali Bubba. Não verbalizou seu rechaço, mas seus Olhos comunicaram ao seu filho o que pensava de seus flertes com Priscilla Watkins. Bubba tragou saliva convulsivamente e avermelhou até que as raízes de seus cabelos pareceram brancas em comparação com o resto do rosto.

 

Necessita que te ajude a preparar o jantar, mamãe? Disse.

 

Sim, claro que me lembro - disse o barqueiro, e passou um cilindro de tabaco ao homem que perguntava pela caravana. Faz umas duas ou três semanas.

 

O homem cortou com os dentes um generoso pedaço e o engoliu. Cortou outra parte e o guardou no bolso da camisa para depois. O barqueiro recuperou seu tabaco. Tal como estavam os preços, a generosidade tinha os seus limites.

 

Duas ou três semanas, diz? Repetiu o homem.

 

Mais ou menos, sim. Lembro-me porque tiveram que acampar nos penhascos até que a chuva parasse e se pudesse cruzar o rio sem perigo.

 

Recorda se viu uma garota como a que lhe hei descrito?

 

O barqueiro cuspiu uma fibra de tabaco à corrente do rio.

 

Acredito que sim. Tinha um bom arbusto de cabelo, e um menino. Um menino de colo.

 

Um menino?

 

Uma coisinha pequena. Eu diria que não tinha mais de um mês de idade.

 

O outro homem sorriu com perversa satisfação quando olhou para a borda de Arkansas.

 

Estou seguro de que é ela.

 

O barqueiro lançou uma risada.

 

Não é algo que um homem possa esquecer como a mijada de ontem, mas por que segue a essa jovem, que já tem um menino e tudo?

 

O outro homem lançou um desagradável escarro para o lamacento rio.

 

É a puta que me fez esta cicatriz na cabeça.

 

O barqueiro pensou que aquele homem era um dos bastardos mais piolhentos, sujos e repugnantes que tinha visto em sua vida, mas a cicatriz que quase partia sua testa só era um detalhe mais em seu contrário. Estava seguro de que aquele tipo era podre até a medula.

 

Pagará-me - vaiou isso.

 

O barqueiro tirou o chapéu de aba larga e se secou com a manga a testa suada.

 

Bem, eu em seu lugar me manteria afastado do homem com o que vai. É...

 

Um homem!

 

O barqueiro retrocedeu com cautela ao captar um tom ameaçador na voz do indivíduo. Não queria problemas com ninguém, sobre tudo com indivíduos renegados como aquele, com pinta de matar a um homem por pura diversão.

 

Sim, seu marido, acredito.

 

Não está casada grunhiu o homem.

 

Bom, levava um menino de colo e viajava no carro de um homem. Recordo-o porquê, a metade da travessia, assustou-se e se meteu na carroça. A todo mundo entrou pânico por um momento, e também aos cavalos. O homem correu atrás dela e ficaram no carro juntos durante o resto da viagem.

 

Os olhos do desconhecido, negros, ameaçadores, como duas gotas brilhantes, esquadrinharam a borda oposta. O barqueiro voltou a cuspir, contente de que aquele homem não estivesse perseguindo a ele. De todas as formas, não lhe resultaria fácil arrebatar a moça ao homem de bigode e os olhos brilhantes.

 

Parecia um completo filho de puta. Os olhos penetrantes, sabe? Como se nada escapasse a sua atenção. Desencapou um Colt com a velocidade do raio quando pensou que algo lhe tinha passado à garota. Um tipo sombrio e melancólico. Não disse grande coisa, mas nada lhe passava por cima. Eu não gostaria de ter que me enfrentar com ele.

 

O outro homem lhe escutava com atenção, sem deixar de olhar a borda oposta.

 

Tinha uns cavalos estupendos, e sabia como tratá-los. Um ruído, um movimento da mão, e os animais respondiam ao momento. Era fantástico ver como aqueles cavalos lhe escutavam. Claro, deixou-os a cargo de um guri quando sua mulher se meteu no carro como se todos os demônios do inferno a perseguissem. Nunca tinha visto ninguém que lhe assustasse tanto o rio.

 

O sorriso que o outro homem lhe dedicou era demoníaco.

 

Disse que o rio a assustou? Sua gargalhada áspera conseguiu que um calafrio percorresse o espinho dorsal do barqueiro. Só se equivoca em uma coisa, ela não é a mulher desse homem, a não ser a minha.

 

Pode ser que lhe custe lhe convencer disso. Voltou a cuspir. Eu em seu lugar, a daria de presente, por bom pedaço de mulher que seja, antes que me enfrentar a esse indivíduo.

 

Mas não está em meu lugar, verdade?

 

O barqueiro se encolheu de ombros ao ver o olhar maníaco daqueles olhos.

 

Vai cruzar agora? Perguntou nervoso.

 

Amanhã. Antes tenho que comprar algumas provisões. Fez gesto de partisse, mas deu meia volta. Sabe aonde se dirigiam?

 

Só ouvi que foram a Telhas.

 

O homem assentiu, olhou para a borda ocidental, sorriu e se encaminhou ao Memphis a pé, assobiando alegremente entre seus dentes manchados de tabaco.

 

Bom dia, senhora Coleman.

 

Winston Hill saudou com o chapéu a jovem que conduzia a parelha de cavalos, enquanto cavalgava junto à carreta. Admirou sua superioridade, sua silueta esbelta, seu perfil encantador. O que mais lhe surpreendia dela era que não fosse consciente do agradável que era contemplá-la.

 

Bom dia, senhor Hill.

 

Quando começará a me chamar Winston?

 

Quando você começar a me chamar Lydia.

 

Acredita que seu marido o passará?

 

Lydia suspirou e continuou com a vista cravada na frente, enquanto seus ombros subiam, e logo, pouco a pouco, baixavam quando expulsou o fôlego. Seu marido aprovava muito poucas coisas das que ela fazia. Uma transgressão mais, real ou imaginária não importaria. Além disso, estava farta de tentar lhe agradar.

 

Se eu te der permissão, Ross não poderá fazer nada ao respeito disse em tom desafiante, e dedicou um sorriso ao Hill. Flertava sem dar-se conta, e o coração de Winston saltou em seu peito quando viu o resplendor de seu rosto.

 

Trouxe-te algo disse, enquanto introduzia a mão no alforje e controlava os seus arreios com a outra.

 

Para mim? Perguntou Lydia, encantada.

 

Recorda que te fascinou o livro que eu estava lendo a outra noite, quando passeava com Lee pelo acampamento? Parou-te a comer um pouco do bolo de maçã preparada por Moisés.

 

Só porque acreditei que ele poderia ofender-se se não a provava lhe interrompeu a jovem.

 

Winston riu.

 

E assim teria sido.

 

Ross se enfureceu quando tropeçou com a feliz cena uns minutos mais tarde. Quase tinha arrancado Lydia para a carreta, o corpo tenso de ira. Às vezes, Lydia desejava que gritasse, e não ficasse rígido e silencioso, como uma panela a ponto de explodir.

 

Vi que olhava o livro que eu lia seguiu Winston. Tirou-o do alforje e se ergueu sobre os estribos para depositá-lo sobre o assento do carro. Assim que lhe empresto. Pode o ter todo o tempo que queira.

 

Lydia se ruborizou, turvada e agradecida ao mesmo tempo.

 

Senhor... Hill.... Winston gaguejou. Sim que admirei seu livro. Quisera que soubesse... ler.

 

O homem permaneceu em silêncio um instante, enquanto contemplava o rosto da jovem. Tinha cometido um engano imperdoável. A outra noite, tinha tocado o livro com a ansiedade de alguém que sabia ler e não o fazia por falta de tempo ou material de leitura. Não lhe tinha passado pela cabeça que ela não soubesse ler.

 

Perdoe-me, Lydia. Não queria te ofender. Supus que sabia ler.

 

Em outro tempo sabia - respondeu ela com acanhamento. Mamãe me estava ensinando a ler quando papai morreu e...

 

As tristes e dilaceradoras lembranças sossegaram sua voz. De todos os modos, já não me ensinou mais depois e nunca voltei para a escola. Ainda reconheço as letras e suponho que poderia ler algo. Não sei. Não vi um livro há... muito tempo.

 

Os olhos de Winston se iluminaram. Estava a ponto de falar quando um ataque de tosse lhe assaltou. Tossiu no imaculado lenço de linho até que pôde reatar a conversação.

 

Arrumado, a que recorda mais do que pensa. Agarra o livro, por favor, Lee o que possa, e se tiver alguma dificuldade, me peça ajuda.

 

Não poderia. Seria um aborrecimento tal e...

 

Nenhum aborrecimento. Eu adoraria.

 

Gostava de falar com ela do que fosse. Nunca quis albergar sentimentos de amor para a mulher de outro homem. Isso ofendia ao seu código de honra, e se a situação não fosse desesperada naquele sentido, era-o por outro. Até saber que seria capaz de sobreviver em um clima mais seco e quente, não tinha a intenção de curvar a uma mulher com a carga de sua enfermidade, estava doente, mas ainda não tinha morrido. Ainda era um homem. Gostava de olhar Lydia, escutar sua forma suave de falar, desfrutar de seu encanto inocente.

 

Lee não me deixaria muito tempo para ler, e tenho obrigações para com meu marido.

 

Agora foi Winston quem se ruborizou, ao confundir as obrigações as que ela se referia.

 

Não queria dizer que não estivesse ocupada com... com os trabalhos próprios de uma esposa e... de uma mãe. Só pensei que se ficava algum momento livre para descansar, possivelmente você gostaria do livro.

 

Lydia lhe olhou com nostalgia. Ainda recordava a habitação onde papai se sentava a ler. Estava abarrotada de livros. Gostava do aroma daquela habitação, o aroma do tabaco de seu pai, da tinta, do papel velho e as capas empoeiradas dos livros. Fazia anos que não pensava naquela habitação, e a lembrança lhe doeu.

 

Não sabe quanto avalio sua amabilidade, Winston. Possivelmente possa Lê-lo. Ao menos isso espero. Não quero ser uma ignorante o resto de minha vida.

 

Eu nunca te chamaria ignorante, Lydia respondeu Winston em voz baixa.

 

Então Ross apareceu montado sobre Lucky. Ao igual a ele, seu cavalo sempre parecia impaciente por mover-se, e esporeou com arrogância quando Ross o freou junto ao cavalo de Hill, que, respeitosamente, deixou espaço livre ao garanhão.

 

Bom dia, Ross. Vejo que caçou alguns coelhos - comentou Winston com um sorriso cordial.

 

Winston passou para me saudar - disse Lydia, nervosa, enquanto puxava as rédeas da parelha. Trouxe-nos um livro.

 

Possivelmente se Ross pensasse que o livro emprestado era para os dois, deixaria que ficasse.

 

Sim - interveio Winston. Trouxe uma caixa cheia de livros. É absurdo que não se utilizem.

 

É muito amável, Hill - disse Ross. Poderia ir caçar com você uma manhã? Sou um bom atirador afirmou com modo estranho. Meu pai e eu sempre íamos caçar juntos. Antes da guerra.

 

Claro - respondeu Ross.

 

Deus, como desejava odiar a aquele homem! Mas Hill nunca fazia nada que merecesse seu ódio. Inclusive estava entusiasmado com Lee. Ross não podia odiar a ninguém que admirasse ao seu filho.

 

Estou acostumado a sair assim que a caravana fica em movimento.

 

Avise-me a próxima vez que vá. Eu gostaria de lhe acompanhar. E obrigado por ajudar Moisés com a parelha. Sabia que os cavalos eram bons, mas até que você lhe ensinou a alinhá-los para que não se entorpecessem mutuamente, estavam-lhe dando muita dor de cabeça ao pobre Moisés.

 

Não foi nada.

 

Ross encolheu os ombros. Olhou Lydia e desejou que não se sentasse tão erguida no assento do vagão quando a ensinava a conduzir. A postura destaca os seus orgulhosos seios até enlouquecer seus sentidos, e supunha que os de qualquer homem que passasse por seu lado, Hill incluído.

 

Lydia, vou pendurar estes coelhos na parte posterior do carro e os esfolarei quando detivermos ao meio-dia.

 

A jovem não podia acreditar o que acabava de escutar. Esfolar a caça era uma tarefa que estava acostumado a delegar a ela, embora lhe revolvesse o estômago e odiava ter que fazê-lo.

 

Obrigado, Ross murmurou. Olhou-lhe com solenidade durante um longo momento, até que ele desviou a vista e esporeou ao Lucky para o final da caravana.

 

Que passe um bom dia, Lydia disse Winston. Saudou-a com o chapéu e se afastou.

 

O mesmo digo, Winston, e obrigado pelo livro respondeu distraída a moça, pensando ainda em Ross e seu estranho comportamento. Quando acreditava que já começava a conhecê-lo, ele fazia algo inesperado que a dissuadia de seu convencimento.

 

Durante as duas últimas semanas, desde que tinham decidido permanecer juntos até chegar ao seu destino, tinha-lhe ensinado com êxito a conduzir a parelha. Ao princípio, Lydia se tinha mostrado torpe e aterrorizada, mas, à medida que seguia suas bruscas instruções, começou a ter calos.

 

Depois do primeiro dia, em que ele tinha amaldiçoado sua inépcia e a inutilidade de lhe dar lições, tinha ido à cidade mais próxima e comprado umas luvas de pele.

 

Já tinham montado o acampamento para passar a noite e quase todas as fogueiras estavam apagadas quando Ross entrou no carro. Lydia estava deitada sobre o colchão, Mas acordada. Tinha deixado o abajur aceso, com a chama baixa Ross lhe jogou um pacote envolto.

 

Destroçará as mãos se não põe isso - disse e começou a tirar a camisa e as botas. Lydia tinha as mãos avermelhadas e maltratadas, com bolhas e erosões, mas ignorava que ele se desse conta.

 

Abriu o pacote, e quando as suaves luvas de pele caíram sobre seu colo, as lágrimas foram aos seus olhos.

 

Obrigado, Ross.

 

De nada.

 

Sem olhá-la, apagou o abajur e se deitou em seu colchão.

 

Significa isto que, em que pese a minha estupidez de hoje, ainda tentará me ensinar a conduzir?

 

Acredito que já passou o pior. Vais melhorar.

 

Não era grande coisa, mas sim um passo adiante em comparação com as maldições e olhares furiosos que lhe tinham inspirado sua estupidez. À manhã seguinte, pôs as luvas quando Ross se sentou ao seu lado no assento da carreta. Estava encantada com eles, não só porque seu tato era suave, mas sim porque os presenteado Ross. E os tinha eleito ele em pessoa.

 

Cada dia se davam melhor; às vezes, pelas noites, riam e conversavam como qualquer casal normal. Depois, ocorreu algo que devolveu a sua boca aquela terrível careta e cortou seu sobrecenho.

 

Uma noite, Scout advertiu aos condutores a respeito de um terreno baixo que deveriam atravessar ao dia seguinte.

 

É profunda, mas seca explicou ao grupo congregado ao seu redor. Ninguém terá problemas enquanto lhes tomem com calma. O assento é brando e não haverá muita fricção. É pouco profundo ao outro lado, de maneira que sair será fácil.

 

Face às palavras do Scout, um dos condutores não escapou bastante o freio e soltou muito as rédeas da parelha. Lançou-se sobre o carro de diante em um penhasco pronunciado, e provocou uma situação perigosa em potência, assim como uma gritaria que assustou as duas parelhas. Enviaram Ross para que acalmasse aos cavalos.

 

Ainda estava tratando de tranqüilizá-los e alinhá-los ao outro lado do terreno baixo, quando chegou turno de Lydia. Conduziu o carro de Coleman até o bordo do penhasco. Quando olhou por cima, descobriu que a altitude lhe enjoava. Não queria que Ross ou quem fosse a criticasse por atrasar ao resto da caravana. Respirou fundo, estalou a língua, açoitou aos cavalos com as rédeas e lhes animou a avançar.

 

Estava na metade da descida quando notou que as rodas começavam a escorregar na terra branda. Aplicou pouco a pouco o freio, mas não passou nada. Puxar as rédeas só serviu para desconcertar a parelha, que se negou a obedecê-la quando insistiu em que continuassem baixando. Angustiada, olhou para trás para ver se Lee dormia na caixa, situada justo ante a entrada da carreta. Bastou aquela muito breve distração para que os cavalos se assustassem mais. Puxou as rédeas com força.

 

Não, Lydia gritou Ross.

 

Tinha conduzido Lucky até o flanco do carro e pressentido problemas imediatamente. Lydia viu pela extremidade do olho que Ross passava uma perna por cima da cadeira e saltava ao carro. Ordenou a seus arreios com um assobio penetrante que se apartasse.

 

Não puxe com força as rédeas, a não ser pouco a pouco.

 

Os músculos dos braços de Lydia doiam, as costas e os ombros pelo esforço que supunha tentar recuperar o controle da parelha, mas os cavalos se inquietaram ainda mais e a carreta tornou mais velocidade à medida que descendia para o chão rochoso do terreno baixo.

 

Deixe a mim - disse Ross. Rodeou suas costas com uma mão para agarrar a de Lydia, e cobriu também a outra. Devagar, devagar.

 

Falava tanto para ela como para os nervosos animais. Tinha a face quase apoiada contra a sua. A jovem ouviu suas palavras, sentiu seu fôlego na orelha. Suas mãos seguiram as instruções que Ross sussurrava.

 

Vê? As solte um pouco. Ainda conserva o controle, devagar, devagar, não agite as rédeas, um puxão forte e enérgico. Assim, Lydia, assim. Boa garota. Já falta pouco.

 

Quando chegaram sem mais contratempos ao fundo, Lydia se voltou para Ross e lançou uma gargalhada de triunfo.

 

Tenho-o feito! Tenho-o feito! Verdade, Ross?

 

A aba de seu chapéu tropeçou com a de Ross e escorregou para trás. A massa de cabelo que tinha amontoado sob o chapéu se esparramou sobre seus ombros. Lydia tinha o seu seio apoiado contra o antebraço de Ross, que pôde sentir os batimentos do coração rápidos e irregulares de seu coração por causa da excitação.

 

O rosto elevado para ele tinha uma expressão animada e iludida, e talvez fosse a mais bonita que ele tinha visto. Sem dúvida era o rosto mais sedutor, com sua estranha combinação de inocência, que as sardas ressaltavam, e aberta sensualidade, não adquirida, a não ser inata. Sua boca sorridente era doce e úmida, feita para ser beijada. Deus, como recordava essa doçura, quando se fundiu sob seus lábios.

 

À luz do sol, seus olhos eram de uma cor indefinida entre castanho e dourado. Ross viu refletido neles a um homem hipnotizado. Um homem que ardia em desejos de saboreá-la e tocá-la. Um homem solitário que desejava uma mulher, mas não a qualquer uma, a não ser a aquela. Um homem ofegante do prazer que sua voz suave e seu corpo exuberante prometiam.

 

Viu a si mesmo. E o que viu lhe assustou.

 

Soltou-a imediatamente.

 

Sim, tem-no feito bem disse, com uma voz grave desconhecida para ambos. Agarrou as rédeas e se afastou uns centímetros dela. Conduzirei o resto do caminho.

 

Lydia não podia ler seus pensamentos. Por um momento agonizante, pensou que ia beijá-la de novo. Experimentou a sensação de que uma gigantesca flor se abria em seu peito. Desejava que ele a beijasse. Desejava sentir outra vez o bigode apertado contra os seus lábios, a boca que se abria sobre a sua, a língua dele no interior de sua boca. Só de pensá-lo, Lydia sentiu que suas vísceras se estremeciam de um maravilhoso prazer.

 

Mas não tinha ocorrido, e ele se mostrou anti-social após, até aquela manhã quando, diante do senhor Hill, ofereceu-se a esfolar os coelhos para que ela não tivesse que fazê-lo.

 

Ross conduziu a parelha até o descanso de meio-dia, sem dar amostras de desejar travar conversação. Lydia se encheu de coragem e tentou em várias ocasiões falar com ele, mas as respostas de Ross eram breves e concisas. Para matar o momento, abriu o livro de Winston e começou a examinar as páginas de bordo dourado. Conseguiu decifrar o título.

 

Ivanhoé sussurrou.

 

Ivanhoé - a ajudou Ross.

 

Ela se voltou.

 

Sabe ler, Ross?

 

Ele se encolheu de ombros, como se estivesse acostumado a fazer quando não queria seguir falando. Não queria explicar a Lydia que tinha aprendido a ler depois de conhecer Vitória Gentry, quem se sentiu horrorizada quando soube que Ross era analfabeto, e se dedicou a lhe dar aulas pelas noites, quando terminava de trabalhar.

 

Assim que aprendeu, Ross leu todos os livros da biblioteca dos Gentry, e sua educação abrangeu outras matérias. Vitória lhe tinha ensinado noções de geografia e história, a somar uma coluna de cifras e a subtrair. Se não tivesse amado Vitória por outros motivos, o teria feito porque lhe tinha ensinado sem burlar-se de sua ignorância absoluta.

 

O que significa? Perguntou Lydia.

 

O que?

 

Ivanhoé.

 

É um nome masculino.

 

Acariciou com reverência a suave pele. Tem alguma mulher na novela?

 

Duas. Rowena e Rebecca.

 

O que lhes passa?

 

Ross olhou o rosto embargado de curiosidade e respondeu como estava acostumado a fazer Vitória.

 

Lê e saberá.

 

Lydia não rechaçava nunca os desafios que Ross lhe lançava. Winston Hill não teria podido convencê-la melhor com suas educadas palavras. Lydia elevou o queixo com orgulho.

 

Muito bem - disse. Se me saltar uma palavra ou não entender algo, ajudar-me-á?

 

Ross assentiu.

 

Durante o resto do dia, Ross escutou enquanto ela avançava penosamente pelas duas primeiras páginas. Quando formaram o círculo de carros para passar a noite, os dois estavam cansados, mas Lydia sentia um grande júbilo por seu êxito.

 

Mamãe foi ao carro e deu a mamadeira a Lee, enquanto Lydia cortava batatas e assava os coelhos. Bubba veio correndo e as interrompeu.

 

Ross necessita pregos de ferradura. Diz que há um saco na carreta.

 

Eu os levarei disse Lydia.

 

Vá ajudar ao seu pai e deixa que Lydia leve os pregos ao seu marido disse Mamãe ao seu filho.

 

Bubba ficou decepcionado. Gostava de estar com o Ross todo o tempo possível, mas não queria discutir com Mamãe aqueles dias, depois de que lhe tivesse surpreendido com Priscilla.

 

Muito bem disse aflito, e se encaminhou ao carro dos Langston.

 

Terminarei de lhe dar a mamadeira a Lee para que possa ir fazer o jantar de sua família disse Lydia, quando em realidade seu coração tinha começado a pulsar mais depressa para ouvir a sugestão de Mamãe. Ross e ela passavam muito poucos momentos a sós. Sempre era o último da caravana em retirar-se, em ocasiões chegava ao carro muito depois que ela adormecia. Quase todas as manhãs se levantava para atender aos seus cavalos antes que ela despertasse para dar a mamadeira a Lee e preparar o café da manhã. Lydia começava a suspeitar que Ross detestava estar perto dela, sobre tudo na intimidade do carro.

 

Anabeth fará o jantar esta noite. Prefiro me ocupar de Lee que quebrar as costas sobre essa fogueira. Vá- replicou Mamãe.

 

Lydia alisou o cabelo e se tirou o avental. Mamãe sorriu para si ao ver aqueles gestos inspirados pela vaidade e seguiu com o olhar a jovem, que cruzou o acampamento em direção aos currais. Os membros da caravana a aceitavam já como à senhora Coleman, e assim era como se dirigiam a ela.

 

Ross estava sozinho no curral, pois todos outros tinham voltado para os seus carros. Viu-o de pé junto a uma das éguas, a que escovava a crina e falava em voz baixa. Sua atitude cortou a respiração a Lydia. Tirou o chapéu, e o sol do entardecer arrancava brilhos iridescentes de seu cabelo negro. Sua acentuada masculinidade harmonizava com o marco do bosque.

 

Lydia estava tão absorta em contemplar como as mãos de Ross se deslizavam sobre o flanco da égua que não viu a pedra. Tropeçou, caiu de joelhos, e os pregos se pulverizaram sobre a terra rochosa. Amaldiçoou sua estupidez e correu a recolhê-los. Justo quando estendia as mãos para aproximá-los, ouviu um chiado. Ficou petrificada. A cascavel estava enrolada na pedra com a que tinha tropeçado.

 

O grito de Lydia rompeu o silêncio. Saltou para trás. Voltou a cabeça para dirigir um último olhar a Ross, enquanto aguardava a dor da picada.

 

Ross se atirou ao chão quando ouviu o grito de Lydia e desencapou a pistola enquanto se deslizava rodando pela terra. Depois, sem quase apontar, disparou. Lydia voltou a gritar quando a certeira bala de Ross cerceou a cabeça da serpente. O corpo do animal se retorceu a escassos centímetros de seu sapato, até que ao fim ficou imóvel.

 

Suspensa no tempo, Lydia olhou Ross com os olhos totalmente abertos. Tinha disparado a pistola com o mesmo instinto que impulsiona a uma cascavel a atacar algo que se movia. Lydia não sabia o que era o que mais a tinha assustado.

 

Sem fala, paralisada, estupefata, viu que Ross se levantava e avançava para ela. Encolheu-se quando ele se ajoelhou ao seu lado. Aquele homem podia ser tão mortífero como a serpente.

 

Lydia, mordeu-te?

 

A pergunta surgiu de sua boca como se a tivessem extirpado da garganta por toda a dor que lhe causava. Suas facções estavam deformadas pela angústia da incerteza.

 

Outro reverso. Ante os olhos de Lydia, Ross tinha passado de assassino a consolador. O trauma foi muito para os nervos de Lydia.

 

Não, não gaguejou, e ficou a tremer de pés a cabeça, de uma forma violenta e incontrolável.

 

Arrastou-se para o peito de Ross, enlaçou as mãos sobre seus ombros e chorou sobre sua camisa. Os braços de Ross já a tinham rodeado, ajudado a levantar-se sobre seus joelhos e aconchegou seu corpo contra si. Sepultou o rosto na massa de seu cabelo e murmurou que tudo tinha passado. Notou um estremecimento em seus seios e a apertou com mais força, acalmou seu terror residual e o absorveu.

 

Lydia levantou a cabeça, com os olhos alagados em lágrimas.

 

Faz tão somente umas semanas queria morrer, mas quando vi a serpente, não quis morrer e deixar a Lee. Nem a ti... Ross.

 

Lydia gemeu em voz baixa - Ross, antes de esmagar a boca contra a sua, liberando toda a tensão acumulada durante semanas. Suas bocas se encontraram com a urgência do momento, com a feroz necessidade de persuadir-se de que tinham sobrevivido a um desastre. Respiravam com dificuldade, ofegantes, e Ross afundou a língua em sua boca. Os braços de Lydia se abriram, estenderam os dedos, esticaram-se, aferraram, e por fim se relaxaram enquanto se fechavam com força ao redor do pescoço de Ross.

 

Sons animais surgiram da garganta de Ross enquanto percorria com as mãos as esbeltas costas da moça. Estava enlouquecido pelo instinto primitivo masculino de reclamar, possuir, proteger, copular. Fechou a mão sob seus quadris e a elevou para sua fogueira, que encontrou alívio em sua ternura. Efregou-se contra a cavidade vulnerável que albergava sua feminilidade.

 

Ross acreditou que o ruído ensurdecedor que chegava aos seus ouvidos era o batimento do coração de seu coração, mas Lydia compreendeu que era o som de uns passos apressados, e liberou sua boca do beijo. Alguns membros da caravana deviam investigar o motivo do disparo. Mamãe, depois de depositar Lee nos braços de Anabeth e ordenar que o cuidasse, ia à frente do grupo que se congregou ao redor do casal, a que encontraram ajoelhados e abraçados.

 

Todos contemplaram o corpo retorcido da serpente, que falava por si só.

 

Uma sorte impressionate, se querem saber minha opinião.

 

Poderia ter acontecido com qualquer de nós. Não faz nem cinco minutos que andávamos por aqui.

 

Menos mal que não atacou a algum menino.

 

Menos mal que Ross disparou.

 

Como o fez, Ross?

 

De onde tiraste essa pontaria?

 

Lydia escrutinou os olhos verdes de Ross. Uma prece silenciosa e se desesperada iluminava neles. Ela a leu.

 

Estava-lhe rogando que não comentasse sua habilidade com a pistola. Naquele momento, intuiu algo novo sobre o caráter de seu marido, algo que tinha pressentido antes, mas carecia de provas. Ele também tinha algo que ocultar. Dirigir cavalos não era o seu único talento, mas não queria que ninguém soubesse.

 

Eu..., ummm..., não tinha tirado o cinturão desde que saí a caçar esta manhã. A pistola seguia carregada. Quando Lydia viu a serpente e me chamou, pude me aproximar de um salto e matá-la.

 

Não olhava ao seu público encantado, mas sim continuava esquadrinhando os olhos de Lydia, com a súplica de que não revelasse a verdade, que tinha acertado a cabeça da serpente de uma distância de doze metros.

 

Bem, tudo terminou e, por isso a mim basta, já tive muitos emoções por hoje anunciou Mamãe, indo ao resgate. Não sabia o que, mas intuía que algo importante tinha ocorrido entre Ross e Lydia. Reconhecia uma mentira quando a ouvia, e o senhor Coleman tinha mentido. Senhor Sims, tem um pouco de conhaque? Acredito que um bom gole acalmaria a senhora Coleman, enquanto seu marido tranqüiliza a esses cavalos assustados. Fica alguns com ele e olhem que não haja mais serpentes pela zona.

 

Ross, a contra gosto, apartou seus braços de Lydia.

 

Lydia, a contra gosto, deixou que a entregassem a Mamãe e a conduzissem de volta ao acampamento

  

Lydia despertou à manhã seguinte com o estômago revolto e o coração lhe batiam as asas. Ardia em desejos de ver Ross e ao mesmo tempo temia que chegasse esse momento. Por algum motivo absurdo, ela tinha fingido estar adormecida quando ele voltou tarde para carro a noite anterior. Não pôde reunir suficiente coragem para falar com ele. Não sabia se agora poderia.

 

   O que tinha acontecido ontem, depois do incidente da serpente de cascavel? Jamais tinha experimentado aquelas sensações secretas que se abriu em seu interior, como ovos diminutos. Programadas para reagir ao tato de Ross, ao seu beijo, tinham liberado uma substância nova e maravilhosa que tinha fluido por todo seu corpo lentamente, como cálida mel dourado. Tinha desejado que aquele beijo se prolongasse até...

  

   O que? No que culminava aquele tipo de abraço? No que tinha experimentado com Clancey não, certamente. Eram duas coisas muito diferentes. Ainda não tinha clara a diferença. Só sabia que estar com o Ross não se parecia em nada ao que tinha padecido antes.

  

   As lembranças daqueles detestáveis momentos que tinha vivido com Clancey eram agora mais dolorosos que nunca. Embora o seu agressor estivesse morto, feridas emocionais que lhe tinha infligido perduravam em seu coração. Ross a tinha beijado ontem. Só então ela tinha compreendido bem o alcance da brutalidade de Clancey. Se Ross e ela faziam algum dia... aquilo..., desejaria ser virgem para ele. Quereria que ele fosse o primeiro em conhecer seu corpo. Desejava lhe oferecer pureza. Era um presente que já não podia lhe dar.

 

O remorso por aquela circunstância a corroeu até que sentiu dor. Se tanto a torturava a ela, o que sentiria Ross pelo fato de que já tinha estado com um homem?

 

Aqueles pensamentos, perseguiram-na enquanto alisava o cabelo, observava sua imagem no pedaço de espelho e desejava com tristeza possuir uma beleza mais convencional. Então as lonas se abriram e Ross entrou no carro. Lydia, sobressaltada, retrocedeu de um salto. Pareceu-lhe enorme e muito próximo, deu-lhe a sensação de que Ross abrangia todo o espaço disponível da carreta.

 

Bom dia - disse a moça, sem fôlego. Considerou mais fácil falar com os botões de sua camisa que aos seus olhos. Dormi mais da conta?

 

Não. É que eu me levantei cedo. Quando Lydia se atreveu a levantar a vista, observou que ele tampouco a olhava. Dormiste bem? Teve conseqüências a... serpente?

 

Não. Lydia se umedeceu os lábios. Estou bem.

 

Ótimo. Ross se girou para voltar a partir. Bom...

 

Ross.

 

Avançou um passo para ele.

 

O que?

 

O homem girou em redondo e quase tropeçou com ela.

 

Obrigado.

 

Esta vez Lydia se atreveu a elevar a cabeça para a sua.

 

Por quê?

 

Os olhos de Ross brilharam por causa de algum fogo interno e esquentaram todo o corpo da moça.

 

Por me salvar da serpente.

 

As palavras logo que puderam sair de seus lábios, que de repente se intumesceram.

 

Ah.

 

Nunca recordaram quanto tempo permaneceram olhando-se. Só puderam especular sobre o que teria ocorrido se Bubba Langston não tivesse aparecido a cabeça e gritado:

 

Há alguém em casa? Trago o leite do menino.

 

Todo o dia foi igual. Trocaram frases breves, como temerosos de dizer muito, mas às vezes falavam com o temor de não dizer o suficiente. Observavam-se mutuamente às escondidas, mas lhes resultava difícil olhar aos olhos. Comportavam-se com extrema educação. Os dois eram estranhamente felizes. Os dois eram imensamente desventurados. Caminhavam sobre uma corda frouxa. Aquela espécie de equilíbrio precário não podia durar muito. Em algum momento um devia cair a um lado ou ao outro.

 

Como de costume, depois de acampar de noite, Ross foi ao outro lado do carro para lavar-se, enquanto Lydia preparava o jantar. Tinha chegado a gostar de ver como Ross, nu até a cintura, ensaboava-se e enxaguava, e tinha começado a inventar desculpas para dar a volta à carreta e falar com ele. Mas naquela noite, ainda chocada pelo beijo do dia anterior, a imagem semi desnuda de Ross adquiriu uma nova dimensão. As vísceras de Lydia se estremeceram quando recordou a maneira em que as mãos dele a tinham estreitado. Possivelmente a idéia de fazer o amor com ele não era detestável, porque Ross era mais atraente que Clancey. Fosse qual fosse a razão, Lydia admitia um franco interesse por seu corpo.

 

Decidiu que ia pedir sua opinião sobre o guisado. «prova isto, e me diga se necessita mais sal, por favor.» Uma petição muito própria de uma esposa, não? Uma desculpa plausível para falar com ele enquanto se lavava. Agarrou uma colherada de guisado e deu a volta à carreta.

 

Ross estava inclinado sobre a bacia. A flexível extensão de sua coluna dividia suas costas em duas metades de carne bronzeada. Os músculos de seus braços se destacavam a cada movimento que fazia para tornar-se água sobre a cabeça. De repente, ele se endireitou, jogou a cabeça molhada para trás e cobriu os olhos com as mãos. Gotas de água caíram sobre seu peito e escorregaram pelo pêlo que o cobria para aquela magra linha de cabelo escuro que desaparecia no interior das calças, avultados por seu sexo.

 

Lydia tragou saliva e seu coração se acelerou. Naquele momento só desejava lhe tocar. Tocar todo seu corpo. Porque era lindo.

 

E então viu Priscilla Watkins, apoiada contra uma árvore próxima ao carro. A moça olhava Ross com expressão extasiada, e tinha os olhos frágeis e sonhadores sob suas pálpebras meio caídas.

 

Lydia se enfureceu e experimentou a irresistível tentação de atirar o guisado quente à cara lasciva da garota. Como se atrevia Priscilla a olhar morta de desejo ao seu marido!

 

Quando a moça viu Lydia, fez uma careta com os lábios e desapareceu entre as árvores.

 

Lydia, de uma maneira irracional, descarregou sua cólera sobre o Ross.

 

Ainda não acabaste? Perguntou em tom altivo.

 

Ross baixou as mãos, olhou em sua direção e foi consciente pela primeira vez de sua presença. O cabelo molhado gotejava sobre suas orelhas e pescoço.

 

Não replicou. Há um horário estabelecido?

 

Apresse. O jantar está quase feito.

 

Girou em círculo com uma revoada da saia e voltou para o fogo, perguntando-se por que se zangou tanto.

 

E se cubra um pouco, pelo amor de Deus! –gritou sem voltar-se.

 

Ross só necessitava aquela provocação. Tinha os nervos a flor da pele. Se não podia encontrar um desafogo sexual, perder os estribos seria suficiente. Deu a volta ao carro feito uma fúria, enquanto vestia a camisa.

 

Pode ser que não te tenha se fixado, mas poucas vezes me lavo com a camisa posta.

 

Lydia introduziu a concha de sopa no guisado e se voltou.

 

Não, prefere se exibir meio nu para que garotas como a Watkins possam ver-te bem.

 

Ross meneou a cabeça, tentou decifrar do que estava falando, tentou aplacar a necessidade de esmagar seu corpo contra o dela e emudecê-la com outro beijo enlouquecedor.

 

De que merda fala? Não me estava exibindo. Não posso evitar que essa puta oferecida fareje quando me lavo.

 

O rosto de Lydia adquiriu um tom rosáceo. Suas mãos delicadas formaram uns punhos ridiculamente frágeis.

 

Quer dizer que já o tem feito antes?

 

Ross se encolheu de ombros, um gesto de pura presunção.

 

Claro. Montões de vezes.

 

Bem, pois não te verá mais. É um homem casado. Lavar-se-á dentro do carro.

 

Ross avançou um passo. Lydia teve que jogar a cabeça para trás para lhe olhar o rosto.

 

Mas o que diz? Grunhiu. O matrimônio não te dá plenos direitos sobre mim. Continuarei fazendo o que faço sempre, quer dizer, o que me dá a vontade, e você não dirá nada a respeito.

 

Tenho algo que dizer ao respeito vaiou a moça. Sou sua mulher.

 

Minha mulher está morta.

 

Ross se arrependeu imediatamente das palavras que acabavam de escapar de seus lábios. Lydia retrocedeu como se a tivesse golpeado, e Ross teve que reprimir o impulso de agarrá-la e atraí-la para ele.

 

Tinha tido que pronunciar aquelas odiosas palavras porque as levava recitando todo o dia. Desde que tinha beijado Lydia na tarde anterior, tinha sustentado conversações mentais com Vitória, desculpando-se por desejar a uma mulher com uma ânsia que lhe debilitava. Tinha justificado o desejo pela mulher que agora levava ao seu sobrenome ao fantasma que lhe atormentava. Só era um homem. Um homem bastante débil, por certo. Culparia Vitória por desejar e necessitar a outra mulher?

 

Sentia-se tão culpado como o pecado, mas isso não lhe impedia de desejar tomar o que era dele, por direito e por lei. Encontrava-se em um dilema moral, e embora tivesse deixado atrás uma vida delitiva, os dilemas morais ainda constituíam uma novidade para Ross, e os odiava com todas suas forças. Tinha que culpar a alguém pela guerra que se estava levando a cabo em sua consciência. Lydia era uma cabra expiatória muito conveniente para aliviar sua frustração.

 

Lágrimas de dor e raiva apareceram nos olhos de Lydia.

 

OH, claro. Alguma vez me deixará esquecer que sigo os passos santificados de Vitória, né?

 

Bubba Langston viu que a atmosfera estava carregada de animosidade. Os dois pareciam animais selvagens enlouquecidos pela fome, sujeitos por correias invisíveis, dispostos a despedaçar-se mutuamente. Sabia que ia entrar na toca do leão, mas lhe tinham enviado em busca de Ross. Esqueceu toda cautela.

 

Olá, Ross disse, em voz muito alta.

 

O homem voltou a cabeça com brutalidade e cravou seus olhos verdes, afiados como facas, na Bubba.

 

Sim?

 

O duro olhar de Ross acovardou a Bubba.

 

Enviaram-me para lhe buscar se apressou a explicar. Há uma carreta de... senhoras, mais ou menos...

 

Luke, que lhe tinha seguido, lançou uma gargalhada detrás dele. Bubba girou em redondo e lhe lançou um olhar de advertência. A gargalhada de Luke se reduziu às sacudidas de seus ombros e alguns sons afogados.

 

Tiveram um acidente junto ao rio. O senhor Grayson solicita sua ajuda.

 

Ross olhou a Lydia durante um longo momento, e depois agarrou o chapéu.

 

Levem-me lá disse aos pequenos.

 

Lydia o viu partir. Desolada, agarrou Lee, que dormia tranqüilamente em seu berço, e apertou o corpinho quente do pequeno contra o seu peito, com a esperança de obter consolo. Deixou-se cair sobre o tamborete e contemplou o fogo.

 

Transcorreu uma hora. Quase todo mundo tinha jantado e se dispunha a deitar-se. Não tinha fome, mas continuou de todas as formas, decidida a não permitir que Ross e suas odiosas palavras destruíssem seu bom apetite. O guisado tinha o sabor de serragem. Lee estava adormecido, e depois de lhe embalar um momento, deitou-lhe.

 

Saiu de novo a tomar o ar da noite, quando viu que Mamãe se aproximava a passo de carga, tão séria e lúgubre como um chefe índio.

 

Será melhor que vás ver seu marido disse sem trocar a expressão, e propinou um empurrão a Lydia.

 

Mas...

 

Vê. Esse carro cheio de rameiras está junto ao rio.

 

Rameiras?

 

Sim, rameiras. Mamãe estava a ponto de gritar. Vá. Eu ficarei com Lee.

 

Lydia, confusa, apressou-se a cruzar o acampamento. Todos a olhavam como se soubessem algo trágico, mas não se atrevessem a dizer-lhe.

 

A carreta que estava parada junto ao rio não se parecia com nenhuma das que Lydia tivesse visto. Estava adornada com uma alegre grinalda de flores silvestres, corações e pombas pintadas em seus flancos. As rodas eram vermelhas, com corações brancos pintados sobre os cubos. Até as lonas pareciam frívolas, com objetos interiores que penduravam de umas braçadeiras. Lydia nunca tinha visto umas roupas tão transparentes e adornadas de rendas, e se perguntou para que serviam muitas delas.

 

Ross estava sentado sobre Lucky, com uma perna levantada e apoiada sobre elas. Sua postura era indolente, fumava um cigarro, e tinha jogado o chapéu para trás. Os dentes brancos contrastaram com seu bigode quando lançou uma gargalhada, tudo isso enfureceu a Lydia. Aquela atitude de presunçosa confiança em si mesmo recordou Scout. E a vaidade de Scout sempre a tinha irritado.

 

Ross estava falando com cinco mulheres, as quais se achavam sentadas no assento da carroça ou escarranchadas sobre os cavalos da parelha, com as pernas nuas. A que Ross estava olhando naquele momento se estava dando ar com um enorme leque de plumas púrpuras. O decote de seu vestido era escandaloso, e deixava ao descoberto os dois montículos brancos de seu busto.

 

Lydia se precipitou para o carro como um pequeno soldado, com as costas retas e a cabeça erguida e inclinada no ângulo mais depreciativo possível.

 

A mulher foi primeira em vê-la. Deteve os preguiçosos movimentos do leque e admirou a moça que avançava para o grupo com tanta determinação em seu porte e expressão. Era uma perita em carne feminina, e reconhecia uma assim que a via. Maquiada, engravatada e vestida com algo que não fosse chita, aquela garota valia uma fortuna. Tinha uma cor de pele fabulosa.

 

Ross observou que tinha perdido a atenção de seu público. As jovens olhavam agora além dele. Voltou a cabeça e viu que Lydia se aproximava. Deteve-se escassos passos de seus estribos e lhe olhou.

Pensa jantar no carro, senhor Coleman?

 

Ross deu uma baforada ao cigarro e lançou uma nuvem de fumaça para o céu. Contemplou o cigarro enquanto respondia lentamente.

 

-Senhoras, apresento-lhes à senhora Coleman. Lydia, Madame LaRue e suas... pupilas.

 

As faces de Lydia se inflamaram quando as garotas murmuraram baixo.

 

Tinha visto algo parecido em sua vida? Ouviu que dizia uma.

 

Lydia passeou um olhar glacial pelo grupo de garotas, e depois a dirigiu à mulher do busto exuberante, que continuava examinando-a com olhos entreabertos e calculadores.

 

Emitiu um bufo de desdém e se voltou para o Ross.

 

E bem? Tenho-te feito uma pergunta.

 

Ross a contemplou e rogou a Deus que seu aspecto não fosse tão lindo, com o último raio de sol que se filtrava através de seu cabelo. Por que seu corpo parecia mais voluptuoso, com suas esbeltas curvas envoltas em tecidos singelos, que a variedade de carnes tão generosamente exibidas ante seus olhos cheios de cetim e renda transparentes? Parecia uma leoa zangada que precisava ser domada com toda urgência. Entraram-lhe o desejo de desmontar, atraí-la para si e começar a domá-la ali mesmo. O primeiro que faria seria beijar aqueles lábios desdenhosos.

 

Não, não vou jantar no acampamento. Estas damas - as saudou com o chapéu e as garotas riram ficaram entupidas no barro. Ajudei a tirar sua carroça do lamaçal e me ofereci às acompanhar à Cidade, onde as espera o proprietário de Shady Rest Saloon.

 

Esperam-nos todos esses trabalhadores da ferrovia com os bolsos cheios de moedas - ronronou uma das garotas.

 

Não é quão único enche seus bolsos acrescentou outra. Todas estalaram em gargalhadas, incluindo Ross.

 

Lydia apertou os dentes e cravou as unhas em suas palmas.

 

Como, queira disse. Deu meia volta e retornou ao acampamento por entre a erva alta e as flores silvestres.

 

Ross esmagou o cigarro e a seguiu com o olhar. Se tivesse atuado como se lhe importasse, se lhe tivesse suplicado, não teria ido; mas lhe importava bem pouco o que ele fizesse, e ele merecia um pouco de diversão. Não se tinha dado conta até aquele momento de quanto tinha sentido falta de beber, brincar e pegar putas. Sim, primeiro as putas, Vitória não tinha deixado que a tocasse durante meses. Agora vivia com uma mulher a que não podia suportar, que lhe tentava de forma deliberada sabendo de que não poderia fazer amor com ela.

 

Estava farto da vida familiar. Do matrimônio. Não podia agüentá-lo mais. Hoje podia escolher a mulher que lhe desse vontade, e por Deus que se deitaria com todas, embora não pudesse ficar em pé pela manhã.

 

Voltou-se e deixou que seus olhos verdes escorregassem sobre cada uma das garotas até que se posaram por fim em madame LaRue.

 

Quando quiserem, senhoras.

 

Vejo que o livro te interessa.

 

Lydia levantou a vista do livro que sujeitava perto do abajur.

 

Olá, Winston. Sim, é fascinante.

 

O jovem sorriu na escuridão.

 

Posso me sentar? Perguntou, e indicou o outro tamborete.

 

Lydia tragou um nó de gratidão, porque o senhor Hill falava com ela como se não tivesse passado nada. Aquelas alturas, todo mundo sabia que Ross tinha ido ao Owentown com as prostitutas. Evitavam a Lydia como se estivesse de luto. «Se soubessem o pouco que me importa». Pensou desafiante.

 

Estava mentindo. Sentia o coração como uma bola de chumbo em seu peito desde que Ross a tinha humilhado diante das prostitutas.

 

Sente-se, Winston, por favor disse, com um sorriso forçado. Gosta de café?

 

Sim, obrigado.

 

Lydia lhe serviu uma xícara.

 

Ler não deve te dar muitos problemas comentou Winston depois de beber, ou é muito orgulhosa para me pedir ajuda.

 

A suave reprimenda arrancou um sorriso de Lydia.

 

Recordo mais do que pensava. Quando uma palavra resiste, Ross... Calou de repente, depois de pronunciar seu nome. Contemplou o fogo, e se perguntou se estaria beijando a alguma daquelas mulheres como a tinha beijado a ela ontem. Ross me ajuda. Sabe ler - disse com orgulho.

 

Que sorte para os dois - comentou em voz baixa Winston.

 

Oxalá tivesse forças para golpear ao homem que tinha tingido seu rosto de desespero. Mas embora as tivesse, não era problema dele. De todos os modos, no que pensava aquele homem, insultando a daquela maneira diante de toda a caravana? Merecia umas chicotadas.

 

Lee está dormindo? Perguntou, para trocar de tema.

 

Conseguiu que Lydia apartasse a vista do fogo e um olhar mais animado apagasse a enorme tristeza que uns segundos antes tinha tingido seus olhos.

 

É um anjo. Cada noite dorme depois da última mamadeira. Dorme toda a noite, mas se acorda cedo.

 

É um menino estupendo.

 

Sim. Às vezes esqueço que não é meu.

 

Não tinha querido admiti-lo. Winston observou sua aflição imediatamente e se levantou.

 

Obrigado pelo café disse, e deixou a xícara pela metade sobre a parte posterior do carro. Devo partir. Como Lee, todos temos que nos levantar cedo pela manhã.

 

«Onde estará Ross pela manhã?», perguntou-se Lydia.

 

Sim.

 

Necessita ajuda para apagar o fogo?

 

Não se apressou a responder. Ainda albergava a esperança de que Ross voltasse. Farei-o dentro de um momento. Quero ler um pouco mais.

 

Winston se levou sua mão aos lábios e a beijou com doçura.

 

Boa noite, bonita Lydia.

 

Depois, desapareceu na escuridão e Lydia ficou sozinha, à espera de Ross.

 

Era o tipo de local que estava acostumado a freqüentar em seu passado, e antes de entrar já soube que estava flertando com o desastre. Não obstante entrou com uma necessidade quase compulsiva de auto castigar-se. Quando chegaram a Owentown, as «senhoras» já lhe tinham posto os nervos a flor de pele. Lançavam risadas, sorriam como idiotas e lhe assediavam com roce suaves, acidentais e bem dirigidos, que, em lugar de inflamar seus desejos, esfriavam-nos. Não deixava de pensar na Lydia e na valentia com que lhes tinha plantado cara a ele e às mulheres que quase juraram seduzir ao seu marido. Ao seu lado, todas elas eram patéticas.

 

Ross empurrou as portas M Shady Rest, afligido pela culpa e a insatisfação, e entrou no ruidoso antro. O aroma de fumaça, cerveja rançosa e corpos sem lavar impregnava o ar. Fazia muito tempo que o papel vermelho se desprendeu das paredes de tábua delgada, e que tinham tirado os olhos a tiros à moça que aparecia nua e reclinada no retrato, muito mal pintado, que pendurava sobre a barra. O tapete estava pegajoso por causa do tabaco cuspido. O pianista era uma abominação para qualquer um que tivesse meio ouvido para a música, e as bebidas estavam aguadas.

 

Dava a impressão de que os clientes não advertiam aquelas deficiências. Tinham ido para passá-lo bem e a chegada das cinco prostitutas novas tinha obtido que o sangue e os ânimos de todos os paroquianos se alterassem.

 

Era justo o tipo de atmosfera sórdida que Ross necessitava para convencer-se de que era desventurado em sua nova vida.

 

Agarrou uma garrafa de uísque na barra e se abriu passo entre um labirinto de corpos fedorentos até uma mesa onde se estava jogando uma partida de pôquer. Por sorte as apostas não eram altas. Participou da seguinte partida e ganhou. Quando já tinham transcorrido várias mãos e numerosos copos de uísque, reparou em um homem que estava ao outro lado da sala e lhe olhava com soma atenção. O homem parecia tão inofensivo que despertou as suspeitas de Ross imediatamente.

 

Todos os instintos que tinha desenvolvido ao longo dos anos entraram em ação. Inclusive depois de três anos de viver como uma pessoa decente, todo seu corpo estava preparado para reagir ante um perigo em potência. Quando voltou a levantar a vista, o homem lhe dava as costas, mas Ross sabia que talvez lhe tivesse reconhecido. Recolheu seus lucros, deixou a garrafa a outros como prova de camaradagem e se encaminhou para a porta lateral do botequim.

 

Saiu com cautela à escura ruela e seus olhos esquadrinharam os lugares onde um espião poderia esconder-se. Conhecia-os todos. Maldição! O homem que lhe tinha estado observando no botequim estava de pé na esquina do edifício, dedicado a acender um cigarro. Podia significar algo, mas Ross não queria correr riscos. Tinha deixado Lucky diante do salão. Mais tarde assobiaria para que o animal acudisse. De momento, o melhor seria seguir escondido.

 

Esmagou-se contra a parede, e sem apartar a vista da silhueta da esquina, dirigiu-se nas pontas dos pés para a parte posterior do edifício. Viu o carro de Madame estacionado ante a porta traseira. O suave resplendor do abajur que brilhava em seu interior revelou que a mulher estava de pé na parte posterior.

 

Ross se aproximou em silêncio.

 

Por que não está dentro, com as demais? Sussurrou.

 

E você?

 

A mulher estava fumando um cigarro, e a fumaça se enredava na massa de cabelo azeviche que se empilhava sobre sua cabeça. Levava ruge nas faces e pintura nos lábios. Seu rosto estava coberto de maquiagem que, se não se observava de perto, camuflava as rugas. Seu braço, cruzado sobre o estômago, mantinha fechada uma bata de cetim negro, com um dragão chamativo bordado sobre o ombro, que arrojava fogo pelo focinho' e cujos olhos avermelhados e enlouquecidos lhe olhavam de seu generoso busto.

 

Ross olhou para o botequim. Chiados de prazer, o tamborilar metálico do piano, rugidos de ira e gargalhadas se mesclavam de uma forma ofensiva.

 

Muita gente.

 

Madame atirou o cigarro ao chão.

 

Opino o mesmo. Estou muito cansada esta noite.

 

Ross se sentia sozinho. Pensou no homem que vigiava diante do botequim. Perseguidores, sempre, até o fim de seus dias, perseguidores. Pensou em Vitória, que ao morrer tinha deixado sem apoio, para que recaísse na vida da que tinha tentado escapar. Tratou de não pensar em Lee. Nem em Lydia. «Deus, não pense em Lydia.»

 

Tem uma garrafa?

 

Sim.

 

Madame deixou que seu braço escorregasse, de forma que a bata se abriu e revelou um corpo que em outro tempo teria sido desejável, mas agora estava fofo e inchado. Só seus seios eram bonitos. Tinha uns seios magníficos, e tinha aplicado aos mamilos o mesmo lápis que aos lábios. O arbusto de pêlo que brotava entre suas coxas era áspera, espesso e escuro. Tinha as coxas robustas, mas os tornozelos eram delicados.

 

Tenho muito uísque e tudo o que você necessita agora, senhor Coleman.

 

Era uma puta velha, mas o que era ele? O filho de uma puta. Além disso, um se consolava onde podia. Subiu ao carro e as lonas se fecharam a suas costas.

 

Reinava uma escuridão absoluta quando Ross saiu da carreta, cambaleante e bêbado. Piscou para acostumar-se ao negrume e avançou com passos vacilantes, finalmente decidiu que era absurdo seguir caminhando. Levou os dedos à boca, colocou-os no lugar adequado e assobiou entre seus lábios flácidos e intumescidos. O assobio ressonou no silêncio da noite como um trompete. Ficou tenso, mas se tranqüilizou quando seu cavalo apareceu pela esquina do edifício. Não percebeu nenhum outro movimento. Fazia muito momento que o botequim tinha fechado suas portas.

 

Depois de vários intentos frustrados, conseguiu subir ao cavalo e guiá-lo para a caravana. Deus, sentia-se morto. Cada tamborilar dos cascos de Lucky ricocheteava em seu crânio. Nunca se havia sentido mais contente de ver o círculo de carros.

 

Desmontou, agarrou as rédeas e conduziu Lucky ao curral.

 

É um amigo murmurou, enquanto lhe tirava a cadeira com movimentos torpes. Um verdadeiro amigo.

 

Depois de acomodar o cavalo, Ross caminhou ao redor do círculo de carretas, tratando de localizar a sua. De repente se sentiu marcado; o uísque que tinha bebido lhe queimava o estômago, e antes de saber o que lhe passava, correu para os arbustos e vomitou violentamente. Deus, em outro tempo, o que tinha bebido aquela noite lhe teria parecido um simples gole.

 

Arrastou-se para a carreta, cheio de remorsos pela forma em que tinha tratado Madame..., Madame o que seja. Tinha pensado que poderia superá-lo, pois dava igual em que corpo feminino ia descarregar sua frustração. Mas se equivocou.

 

A mulher tinha sido amável, havia-lhe dado o preparado, engenhoso, arrumado e forte que era. Tinha se gabado seu corpo, enquanto ele esvaziava a garrafa de uísque e tratava de conjurar o desejo com ela. Até a tinha beijado comparada com a boca de Lydia, a sua possuía um sabor azedo e desagradável. Tinha sepultado a cara nas dobras de carne de seu pescoço, e quase tinha sentido náuseas ao perceber a enjoativa fragrância. Já bêbado, tinha manuseado seus seios, mas em lugar de encontrar carne firme e amadurecida, tirou o chapéu sustentando globos de carne fofa que lhe desejaram muito repugnantes.

 

Nem seu aspecto, nem seu tato, nem seu sabor, nem seu aroma eram como os de Lydia. Não. Foda-se. Lydia não, Vitória. Vitória. Diga-o. Vitória. Lembra-te? Sua mulher. A mulher que amava. A mulher que ainda deseja.

 

Mas não tinha visto o rosto de Vitória, a não ser o de Lydia. Inclusive enquanto Madame lhe acariciava e manipulava pacientemente, Ross tentava convocar a imagem de Vitória, mas só via Lydia, que lhe olhava com a censura refletida em seu rosto dourada e os olhos âmbar. Quando a perseverança de Madame triunfou e sua mão obteve a ansiada ereção, ele gemeu o nome de Lydia, e voltou a repeti-lo enquanto se vestia e deixava Madame, que lhe amaldiçoou repetidas vezes.

 

Balançou-se de forma precária, chegou à parte posterior de carro e se içou ao interior. Apoiou as mãos no chão, em um intento inútil de impedir que se inclinasse. Depois, de quatro, sem apressar-se, se arrastou para o lugar da carreta que oferecia o consolo que ansiava e se deitou.

 

Suspirou uma vez com imenso prazer, e logo deixou que escuridão lhe envolvesse e dissolvesse seus pensamentos.

 

Lydia despertou por causa de um peso agradável que sentia sobre o seio. Ao princípio, pensou que estava sustentando Lee contra ela enquanto dormia, como ocorria quando o menino despertava em plena noite e queria mamar. Mas Lee não pesava tanto, em que pese a ter ganho uns quantos quilogramas. Meio adormecida, levantou a mão para o delicioso peso e tocou o cabelo sedoso. Enquanto seus dedos se afundavam na espessa massa, as mechas se encresparam ao redor de seus dedos acariciantes.

 

Suspirou de prazer e se removeu um pouco. Deu-se conta de que o peso se estendia sobre seu torso, até as pernas. A curiosidade começou a ganhar terreno ao sonho, mas não despertou de tudo. Não queria perturbar aquele estranho prazer.

 

Algo se agitou sobre seu peito e sua carne respondeu. Seu mamilo floresceu, e dele partiu um formigamento que percorreu todo seu corpo. Era o prazer mais profundo que havia sentido jamais. Começou a dobrar o joelho, e um gemido suave, bastante parecido ao que se estava iniciando em sua garganta, brotou do peso que a esmagava.

 

Bocejou e abriu os olhos. Piscou repetidas vezes, completamente imóvel, e contemplou o longo corpo deitado sobre o seu. A cabeça de Ross estava apoiada sobre um de seus seios, e sua enorme mão cobria o outro. Roncava brandamente. O cabelo molhado tinha umedecido sua camisola, e também sua pele. Uma larga perna, ainda com uma bota, estava estirada sobre o chão do carro, enquanto a outra, dobrada, aprisionava suas coxas. O joelho de Lydia estava encaixada na virilha do homem.

 

Lydia viu que sua mão, como por vontade própria, movia-se entre as ondas escuras do cabelo de Ross. Viu a mão de este curvada em um gesto protetor, quase carinhoso, ao redor de seu seio. Experimentou o impulso de cobrir aquela grande mão com a sua, de aprisioná-la, ao tempo que apertava mais a cabeça do homem contra o seu seio.

 

Possivelmente assim despertaria, olharia-a e a beijaria como no outro dia. Possivelmente deslizaria de novo sua língua entre os lábios dela e Lydia sentiria toda sua longitude aveludada na boca. Saborearia-a e sentiria o seu corpo duro contra ela, sentiria as carícias do bigode sobre seus lábios.

 

Mas então, recordou como a tinha tratado antes do alto do cavalo, quase rindo dela diante das prostitutas. Teria passado a noite em sua companhia e retornado poucos minutos antes. Não cheirava a uísque? E a algo mais, terrivelmente doce? Colônia?

 

Ross moveu a mão e murmurou algo em sonhos. Lydia o observou, sem atrever-se a respirar, enquanto os dedos dele procuravam a cúpula de seu peito. Ross roçou o mamilo com as pontas de seus dedos, que ficaram imóveis, e depois voltaram a cobrar vida, para deslizar-se com suavidade sobre sua carne tensa. Ross elevou a cabeça para aproximar mais a boca. Seus lábios se moviam procurando algo.

 

Lydia sentiu um nó na garganta. O sangue pulsava em suas veias. Se não lhe detinha agora, não seria capaz de fazê-lo.

 

Concentrou toda a raiva, a solidão e a confusão da noite no murro que descarregou sobre suas costas e o empurrão que propinou ao seu ombro.

 

Solte-me, touro bêbado!

 

Ross despertou sobressaltado do sonho provocado pelo álcool, rodou sobre suas costas, golpeou-se o cotovelo, sua cabeça tropeçou com uma tabela, e se levantou com uma maldição.

 

- Filho da puta - vaiou. Agarrou a cabeça, enquanto todo o exército da União parecia atravessá-la ao galope. Merda! Murmurou, e apertou os olhos para afastar a dor incessante.

 

Fecha sua suja boca - sussurrou Lydia. Estava a ponto de amanhecer e não queria que os vizinhos ouvissem as espantosas maldições que lançava Ross.

 

Este piscou, desviou os olhos injetados em sangre para a Lydia e tentou que as quatro imagens que via dela se convertessem em uma. Seu olhar era tão negro como a barba que despontava em seu queixo.

 

É você a responsável por despertar assim? Grunhiu Ross.

 

Não te levantava replicou a jovem com altivez. Ficou em pé e foi ver se Lee ainda dormia. Quando despertei pensei que tinha caído uma árvore em cima de mim.

 

Ross massageou as têmporas doloridas. Tinha adormecido sobre ela? Recordou vagamente que tinha entrado no carro e encontrado o travesseiro mais suave sobre a que recordava ter descansado a cabeça. Não tinha adormecido tão bem fazia meses. Olhou-a e cravou os olhos em seus seios. Notou que seu sangue fervia e desviou a vista antes que ela reparasse em sua obsessão.

 

Aquele maldito uísque barato lhe tinha feito dormir como um morto. Sentia-se como um imbecil. Pior ainda, sabia que o parecia.

 

Não te ocorra voltar a me pegar assim, Lydia disse, com um dedo acusador em sua direção. Tentou compor uma expressão severa, embora aquele ato lhe produzisse tal dor que se perguntou se valia a pena.

 

Não te ocorra voltar a me esmagar assim, sobre tudo se tiver passado toda a noite em companhia de prostitutas. Se queria te jogar sobre alguém, por que não ficou com elas?

 

Seguiam falando em sussurros, mas a discussão ia ser brutal igualmente, e ambos a estavam desejando. Face ao mal que se encontrava, Ross conseguiu ficar em pé, odiava ter que encurvar as costas para isso, mas mesmo assim se encarou com Lydia, que estava rígida como um fuso, com os braços em jarras, o queixo apontando com ar de desafio para o seu peito.

 

Por que não me pediu que não fosse?

 

Porque me dava igual o que fizesse.

 

Ah, sim? Então por que está tão zangada?

 

Dava-me igual, mas a outras pessoas da caravana não. Só estava preocupada com as aparências que tanto insiste em que eu guarde. Pelo visto, a mim não me aplicam as regras igual a ti.

 

Exato. Eu sou o homem.

 

Lydia emitiu um ruído de desagrado e deu meia volta. Muito irritada, tirou a camisola pela cabeça e lhe deu as costas, coberta só com as calças interiores.

 

E Ross, a quem um implacável demônio empurrava os olhos para fora do interior, não pôde por menos que fixar-se no perfeito, arrebatador e redondo que eram suas nádegas, e na esbelteza de suas panturrilhas. Ainda aturdido, estava a ponto de estender a mão para tocar sua pele e comprovar se era tão suave como parecia, quando a jovem falou.

 

Tire essa camisa. Cheira ao perfume de suas putas.

 

Não eram minhas putas. Eram mulheres em apuro e eu me limitei às ajudar.

 

Lydia vestiu a regata e se voltou. Enquanto gesticulava com os botões, fulminou-lhe com o olhar.

 

Que amável! Estava disposto a me chutar deste mesmo carro quando acreditava que eu era uma puta apesar de que necessitava de ajuda. Por que foi tão generoso com elas?

 

Os olhos de Ross ficaram cravados em seus seios, quando Lydia puxou o tecido e terminou de grampear-se. Mesmo assim, seus seios se transbordavam sobre o bordo de renda. Viam-se com claridade os círculos escuros das aréolas e os mamilos. Seguia hipnotizado quando ela se deixou cair sobre o colchão e começou a tirar meias; seus seios balançavam com suavidade a cada movimento apressado.

 

Só uma repentina ereção lhe arrancou de seu sonho.

 

Aprendo rápido. Ajudei-as porque não queria ficar inundado com elas como me fiquei contigo.

 

Lydia levantou a cabeça e lhe dirigiu um olhar de fúria do colchão. Ross foi o primeiro em desviar a vista, em tanto abria os botões da camisa e fazia uma bola com ela depois de tirar-lhe Procurou uma limpa e destruiu a ordem que Lydia tinha conseguido impor no interior do carro.

 

A Jovem se levantou, depois de calçar os sapatos e as meias, e agarrou as anáguas.

 

Eu fui é que fiquei inundada aqui ontem à noite e tive que dar a cara ante as pessoas decentes desta caravana, não você.

 

Ross girou em redondo e ficou sem fôlego ao ver que Lydia estava apertando os seios e olhava por cima deles para grampear o cinto das anáguas. Pigarreou e desejou com todas suas forças poder aliviar com tanta facilidade a congestão de seu membro.

 

Se quiser te largar cada vez que tenha vontade, não serei eu quem te detenha.

 

Olhou-o com ar beligerante, as anáguas já rodeadas ao redor de sua estreita cintura.

 

Não quero me pôr em ridículo como você, que vais se embebedar e se deitar com putas.

 

Ross esticou a mandíbula e falou com os dentes apertados.

 

Já disse que não me deitei com nenhuma puta. Se quisesse fazê-lo, teria ficado aqui.

 

O silêncio se podia apalpar no ar. Asfixiou Lydia e Ross cabeceou quando teve pronunciado sua triunfal frase final.

 

O que disparou a mão de Lydia foi a presunçosa satisfação que elevou seu bigode. Seu punho descreveu um amplo arco e se estrelou com grande estrépito sobre a maçã do rosto do homem.

 

Ross permaneceu imóvel, em tanto que novas quebras de onda de dor rodavam sobre as que já ondulavam em sua cabeça. Piscou para limpar a repentina escuridão. Deixou cair os punhos aos seus flancos para impedir que agarrassem a garganta de Lydia e a matasse.

 

Não sou uma puta - disse Lydia em voz baixa, e articulou cada palavra com soma claridade. - Nunca o fui. Já lhe disse isso.

 

Ross combateu outro ataque de náuseas.

 

Não estava casada quando concebeu a esse teu filho, verdade?

 

Não - disse movendo negativamente a cabeça, e tentou reprimir as lágrimas que pareciam ansiosas por ir aos seus olhos.

 

Aquilo conduziu Ross ao ponto crucial de seu dilema, e teve que lhe fazer frente. De quem era aquele menino? Que homem a havia possuído, quem a havia tocado? Aquele pensamento lhe estava enlouquecendo. Tinha que sabê-lo. Em que pese as suas boas intenções de não lhe pôr a mão em cima, aferrou-a pelos braços. Apertou-a contra o seu peito nu e baixou o rosto a escassos centímetros da sua.

 

Quem era o homem? Quem era, Lydia? Responda-me, maldição.

 

Quem é você, Ross Coleman?

 

Ross ficou quieto como um morto, embora suas mãos não soltassem a presa.

 

O que quer dizer? Perguntou com voz oca.

 

Lydia quase retrocedeu ao perceber o brilho frio e selvagem de seus olhos, mas já era tarde para dar marcha atrás.

 

Vive como um homem normal, com uma mulher e um filho, dedica às tarefas cotidianas como qualquer homem, mas não o é. Tem os olhos e os reflexos de um predador, Ross Coleman Não é um homem comum, embora finja sê-lo. Quem é?

 

Ross a soltou lentamente, empurrou-a para trás com suavidade, sem deixar de olhá-la todo o momento. Depois deu meia volta sem falar. Terminaram de vestir-se em um silêncio hostil.

 

Lydia saiu à luz rosada da manhã e começou a remover as brasas para que cobrassem vida. Estava colocando café no pote quando ouviu que Ross saía do carro e começava a barbear-se.

 

Quando ele se aproximou onde estava ela ao cabo de uns minutos e agarrou o pote de café, lhe olhou de esguelha e conteve a respiração. Sua pele tinha um tom esverdeado. As faces estavam afundadas, e sob os olhos apareciam sombras azuis. Lydia esqueceu sua ira e tocou sua manga.

 

Sinto te haver batido. Sei que não te encontra bem. Em realidade, não tinha direito a me zangar. É livre de fazer o que... Vamos, que o nosso não é um matrimonio real. Baixou os olhos. e... quero que saiba que, pese ao escândalo que montei, não me importou que... tenha adormecido em cima de mim esta noite.

 

Lydia...

 

Senhorita Lydia? Moisés repetiu seu nome

 

Ah, bom dia, Ross. O homem apareceu por um extremo do carro e lhes viu de pé junto à fogueira. Winston me pediu que lhe trouxesse este livro, senhorita Lydia. Diz que queria trazê-lo ontem à noite, quando a visitou, mas o esqueceu.

 

Os olhos de Lydia se desviaram do negro a Ross. Viu que a boca de este adotava uma expressão dura e a frieza retornava aos seus Olhos. Calçou as luvas com semblante áspero e partiu sem dirigir a palavra, a Lydia e só um brusco «Moisés» para o mensageiro que tinha chegado ao momento mais inoportuno.

 

Ross - gritou Lydia, mas ele não a ouviu ou preferiu ignorá-la.

 

As bitucas de puro esmagadas no cinzeiro eram tão antigas como o café. A atmosfera do abarrotado escritório era asfixiante. Howard Majors passou a mão por seu cabelo gordurento e respirou fundo. Desabotoou outro botão do colete. Estava cansado. Também o homem parado em frente à janela, mas Vance Gentry demonstrava o seu cansaço passeando.

 

Becos sem saída, um após o outro. Golpeou frustrado o sujo cristal da janela. Onde bolas estão?

 

Majors removeu os informes empilhados sobre seu escritório.

 

Só Deus sabe - disse cansado. Não encontramos nem rastro das jóias, em que pese a que todos quão informadores temos em lista os nomes que andam registrando as casas de empenhos. Um relatório atraiu sua atenção. Ao princípio o tinha considerado insignificante. Aqui há um de Arkansas... Owentown, seja onde for isso. Uma cidade ferroviária. Um de nossos agentes trabalha ali em segredo. Viu um homem, que lhe pareceu conhecido, jogando pôquer no botequim. O agente pensou que o tipo se fixou nele, assim que lhe deu as costas um momento. Quando voltou a olhar, o outro tinha desaparecido. Esperou pelos arredores, mas o jogador de pôquer não voltou a fazer ato de presença.

 

Gentry sacudiu a cabeça com veemência.

 

Se tenta tirar as jóias de cima, não estará em uma cidade ferroviária apartada. Quem poderia comprar em um lugar como esse? Sigo pensado que planeja ir a alguma cidade importante. Talvez fora do país.

 

Gentry estava sendo um estorvo em lugar de uma ajuda. Se fosse possível encontrar ao casal desaparecido, a agência Pinkerton a encontraria, mas não o fazia nenhuma falta um pai histérico e intrometido. Majors ficou em pé e rodeou o escritório.

 

Por que não volta para casa uma semana ou dois, senhor Gentry? Se ocorrer algo...

 

Não. Não posso voltar para casa sem Vitória.

 

Poderiam ter retornado. Possivelmente lhe esteja esperando ali.

 

Telegrafei a meu advogado de Knoxville para me certificar a respeito. Foi à granja e só estavam os criados. Não tinham sabido nada desde que Clark partiu com Vitória, sem dizer aonde iam.

 

Majors acendeu um novo cigarro e estudou o extremo aceso de cor rubi.

 

É possível que sua filha pegasse as jóias? Perguntou com cautela. Se queria seguir vivendo como antes, possivelmente quis contar com essa segurança.

 

Gentry se voltou para o detetive feito uma fúria.

 

Passa por cima o mais importante, senhor Majors. Ela não abandonaria o seu lar, nem a mim, a menos que esse foragido a tivesse obrigado. Conheço minha filha. Não o faria. Apoderou-se da jaqueta e o chapéu, que estavam pendurados em um cabide, caminho da porta. Acredito que já perdi bastante tempo...

 

Justo quando estendia a mão para a porta, abriram-na do outro lado. O ajudante do Majors entrou como uma exalação.

 

Perdoe a interrupção, senhor Majors, mas acaba de chegar este telegrama. Poderia ser importante, e sei que lhe interessará vê-lo.

 

Obrigado disse Majors. Agarrou o telegrama que seu ajudante lhe estendia.

 

Enquanto este saía, os olhos do Majors examinaram o papel. Ele pegou sobre o escritório e olhou sem vê-lo uns momentos, até que levantou a cabeça.

 

É de Baltimore. Encontraram o cadáver de uma jovem

 

O cadáver? Resfolegou Gentry.

 

Majors assentiu.

 

Encontraram-na morta em uma habitação de hotel que tinha compartilhado com um homem durante várias semanas. Tinham-na apunhalado.

 

Majors, que estava convencido de que podia agüentar tudo, logo que pôde olhar o rosto de Gentry, deformado pela angústia. Sim, estava-se abrandando. Tinha chegado o momento de retirar-se.

 

O homem desapareceu prosseguiu. A descrição concorda. Uma identificação positiva, certamente ...

 

Sim. Gentry pigarreou. Quando podemos sair para Baltimore?

 

 

                                                                                                       CONTINUA

 

 

Lydia estava estendendo roupa na corda que Ross tinha disposto entre a esquina do carro e um álamo jovem, quando Anabeth chegou correndo, quase sem fôlego, com um brilho de emoção nos olhos.

Sabe o que acaba de deter-se junto ao rio? E continuou, sem aguardar a resposta: A carreta de um mascate. Vai carregado com toda classe de coisas. Leoa Watkins já pôs o grito no céu porque é domingo, e se supõe que as pessoas não devem comprar no dia do Senhor, mas o senhor Grayson há dito que as circunstâncias não são normais e que as pessoas não podem ir às compras à cidade aos sábados. Vi com meus próprios olhos que Priscilla comprava uma barra de caramelo e a escondia no bolso. Mamãe há dito que fosse, porque já localizou um cilindro de tecido que te servirá para te fazer um bonito vestido e estreá-lo em 4 de julho.

 

 

 

 

Lydia fazia uma pausa em seu trabalho para escutar como a moça debulhava a notícia sem tomar fôlego. Ross, que estava remendando uma brida, também tinha feito um alto para ouvi-la. Os dois estalaram em gargalhadas ao mesmo tempo.

A relação entre ambos era tão tensa da manhã seguinte ao Owentown que sua risada lhes surpreendeu. Quando se olharam, as gargalhadas emudeceram, e os dois, turvados, desviaram a vista.

Bem, é que não vais baixar a ver o que tem? Perguntou com incredulidade Anabeth, enquanto Lydia voltava a reatar sua tarefa.

Não necessito nada - respondeu em voz baixa.

Mas Mamãe diz que esse tecido te sentaria melhor que a ninguém, porque é como dourado e com seu cabelo e tudo... Tem que ver as coisas maravilhosas que tem esse homem.

Tenho trabalho que fazer, Anabeth repôs com paciência Lydia, e olhou a Ross.

O homem deixou a um lado a brida e entrou na carroça. Lydia não necessitava nem desejava nada, mas...

 

 

 

                      

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