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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


UM RAPAZ DA GEÓRGIA / Erskine Caldwell
UM RAPAZ DA GEÓRGIA / Erskine Caldwell

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

Houve um grande reboliço em frente da casa, que soou como se alguém tivesse largado um carregamento de pedras nos degraus da nossa entrada. O edifício tremeu um pouco nas suas fundações, e depois tudo ficou em sossego. A Mãe e eu estávamos na porta das traseiras quando ouvimos o estrondo e não sabíamos que pensar daquilo. A Mãe disse que tinha medo de que fosse o dia de juízo e mandou que eu me despachasse e desse mais depressa à manivela do espremedor de rolos para que ela já tivesse a roupa da Sr. a Dudley torcida e pendurada na corda antes de acontecer algo de terrível.

- Quero ir ver o que é, Mãe - disse eu, dando à manivela do espremedor com quanta força tinha. - Não posso, Mãe? Não posso ir ver o que foi?

- Dá a essa manivela, William - respondeu ela, abanando a cabeça e alimentando o espremedor com um fato-macaco do Sr. Dudley. - Fosse o que fosse, pode esperar até esta roupa estar na corda a secar.

Eu dava à manivela o mais depressa que podia, e ao mesmo tempo estava à escuta. Ouvia falar alto em frente da casa, mas não conseguia perceber nada do que se dizia.

Nesse momento o meu velhote virou a esquina a correr.

- Que vem a ser isto, Morris? - perguntou a Mãe.

- Onde está o Handsome? - indagou o meu velhote, sem fôlego. - Onde pára o Handsome?

 

 

 

 

Handsome Brownx era o nosso servente negro e trabalhara para nós desde que eu me lembrava.

- O Handsome está a fazer limpezas na cozinha, que é onde deve estar - respondeu a Mãe. - Que é que tu lhe queres

- Preciso dele sem falta, para me dar uma ajuda - disse o Pai. - Preciso de Handsome depressa.

- Eu ajudo, Pai - disse eu, esgueirando-me do espremedor. - Deixe-me ajudar, Pai.

- William! - e a Mãe, agarrando-me por um braço, fez-me voltar para trás. - Trata de dar a essa manivela, como eu te mandei.

Nessa altura, Handsome deitou a cabeça fora da porta da cozinha. O meu velhote caçou-o logo.

- Handsome - disse o Pai -, larga tudo e vem ao lado da frente. Preciso que me dês uma ajuda.

Handsome fitou a minha mãe, antes de fazer um movimento, à espera de ouvir o que ela diria sobre o caso de ele largar o trabalho da cozinha. A Mãe, ocupada como estava em meter no espremedor uma das desbotadas e puídas batas de chita da Sr. a Dudley, não disse nada. O meu velhote agarrou Handsome pela manga e arrastou-o pelos degraus abaixo e pátio fora. Sumiram-se na esquina da casa em três tempos.

A mim apetecia-me ir com eles, mas de cada vez que levantava os olhos para a Mãe logo via que o melhor era não pedir. dava com toda a força à manivela, fazendo por acabar o mais depressa possível com o torcer da roupa.

Não tardou muito que os ouvíssemos abrir a porta da frente, e, logo após, um cavo estrondo na sala de entrada. Parecia mesmo que o telhado viera abaixo.

 

1 Handsome, aqui tanto alcunha como nome próprio, significa "belo", "elegante", "simpático", etc. Handsome Brown poderá significar: "belo preto" (n. do t.).

 

A Mãe e eu corremos para dentro de casa, a ver o que acontecera. Quando chegámos à entrada da sala, o meu velhote e o Handsome andavam às voltas com uma pesada e enorme caixa pintada de vermelho vivo como um camião e com uma grande roda de ferro ao cimo. A caixa era do tamanho de uma pianola dos bons tempos e tinha o mesmo aspecto estranho. Handsome deu-lhe um portentoso encontrão e o monstro passou a porta e aterrou tão pesadamente no chão da sala que sacudiu os quadros pendurados nas paredes. A Mãe e eu esgueirámo-nos pela porta ao mesmo tempo. O meu velho encostava-se à grande caixa vermelha, dando-lhe palmadinhas e arquejando como um cão que tivesse andado a manhã inteira atrás dos coelhos.

- Mas que vem a ser... Morris? - perguntou a Mãe, e andava à volta da caixa a ver se percebia o que aquilo era.

- Então não é uma beleza, Martha? - dizia ele, arquejando de palavra a palavra. E sentou-se numa cadeira de balanço, e fitava a caixa com admiração. - Mas então não é uma beleza?

- E donde veio isto, Pai? - perguntei eu; mas ele estava por demais ocupado em contemplar para me ouvir.

- Alguém te deu isto, Morris? - perguntou a Mãe, afastando-se para avaliar aquilo. - Onde é que desencantaste esta coisa?

- Comprei-a - respondeu o Pai. - Fechei o negócio há pedacinho. O tipo que faz vida de vender disto passou pela cidade esta manhã e comprei-lhe logo uma.

- E quanto pagaste? - inquiriu a Mãe, preocupada.

- Cinqüenta cêntimos à vista e mais cinqüenta por semana.

- Durante quantas semanas? - perguntou a Mãe.

- As semanas todas até um ano. Não é muito. Raios! Quando se faz uma idéia, nem vale a pena falar em tal! Um ano passa num ápice. Não custa nada.

- E para que é isto? - continuou a Mãe. - Que se faz com isto?

- É uma máquina de enfardar. Enfarda papel. A gente agarra em papéis velhos, assim uns jornais desfeitos ou coisa

parecida, depois aperta-se a roda em cima, e pelo fundo sai um fardo bem cheio, já atado com arame e tudo. É uma invenção prodigiosa.

- E que vai fazer do que sai pelo fundo, Senhor Morris? perguntou Handsome.

- Vendo, é claro! O tipo aparece por aí todas as semanas e compra quanto papel eu tenha enfardado. Paga-se dos seus cinqüenta cêntimos e dá-me a diferença devida.

- Pois sempre digo - afirmou Handsome - que é uma bela coisa, lá isso é.

- E onde vais tu arranjar esse papel todo para meter na máquina? - perguntou a Mãe.

- Raios! - disse o meu velho. - Isso é o mais fácil de tudo. Papel velho é o que mais há por toda a parte. Jornais atrasados e coisas que tais. Quando o vento levanta um papel na rua, para cá vem ele. Se alguma vez houve uma máquina de fazer dinheiro, é esta.

A Mãe aproximou-se mais e olhou para dentro. Depois deu um encontrão na roda, dirigiu-se para a porta e disse:

- A sala não é sítio para isso. Trate de tirar do melhor quarto da minha casa esse mostrengo, Morris Stroup.

O Pai foi atrás dela.

- Ó Manha, não há um sítio melhor! Não queres que eu a ponha ao tempo, para enferrujar e desfazer-se, pois não? É uma máquina valiosa.

- Ou a tiras daí ou mando o Handsome escavacá-la para lenha! - disse ela, e atravessou a entrada e saiu para o pórtico das traseiras.

O meu velhote voltou e pôs-se a contemplar a máquina de enfardar, e passava-lhe as mãos pelos flancos de madeira aplainada. Não dizia nada, mas, um momento depois, abaixou-se, deitou-lhe o gadanho e levantou-a. Handsome e eu agarrámos do outro lado. Transportámo-la pela porta da sala fora até à varanda da frente. O Pai pousou o seu lado e nós deixámos cair o outro.

- Está bem - disse o Pai. - Aqui no pórtico fica a coberto do sol e da chuva.

Começou a fazer desandar a grande roda do topo.

- Handsome, vai arranjar-me quanto papel velho consigas apanhar. A gente vai começar já.

Handsome e eu percorremos a casa, juntando os papéis que encontrámos. Num dos cubículos de arrumação havia uma pilha de jornais velhos, e acarretei-os para fora e o Pai meteu-os pela tremonha. Handsome voltou com uma braçada de papel de embrulho que descobriu em qualquer parte. O meu velhote pegou-lhe e lá ia atulhando a máquina.

- Enquanto o diabo esfrega um olho, a gente tem um fardo de cinqüenta quilos - disse o meu Pai. - Logo depois desse primeiro, tudo o mais há-de ser lucro. Ganhamos tanto dinheiro que nem havemos de saber que fazer dele. Talvez não fosse má idéia comprar mais umas três ou quatro máquinas destas ao tipo, quando ele voltar a Sycamore na semana que vem, pois a gente enfarda mais do que uma máquina pode. Havemos de ter, num ápice, tanto dinheiro que vai ser preciso pôr algum no banco. É uma vergonha que eu não soubesse desta maneira de ganhar dinheiro, que nunca ouvi falar doutra mais fácil. Hei-de enfardar tanto papel que não tarda que possa retirar-me, a gozar dos rendimentos.

Girou e empurrou Handsome para a porta.

- Handsome, despacha-te e traz mais papel velho. Handsome entrou e começou a procurar nas gavetas e nos

armários e por trás do lavatório. Eu, na mesa da sala, encontrei umas revistas antigas, que trouxe ao Pai.

- É assim mesmo, filho - disse ele. - Revistas antigas prestam tanto como os jornais velhos e pesam um bocado mais. Vai e traz quantas revistas encontres.

Na altura em que eu voltava com outro carregamento, o meu velho disse que já tínhamos para um segundo fardo. Metemos mãos à obra a apertar com força, e Handsome' atou os arames.

O Pai deitou-o para o chão e disse ao Handsome que o empilhasse em cima do primeiro fardo. Trabalhámos ainda mais uma hora e não tardou que tivéssemos três fardos amontoados a um canto do pórtico. Handsome declarou-nos que não era capaz de descobrir mais papel em parte nenhuma, na casa inteira, e o meu velho respondeu que iria ele mesmo ver. Demorou-se muito tempo, mas quando voltou trazia uma braçada de livros de cânticos que a Mãe encomendara para a sua aula da Escola Dominical1. Arrancámos-lhes as encadernações, porque eram forradas de pano e o meu velhote disse que não seria honesto dar pano por papel. Depois tornou a entrar, e não tardou que voltasse com uma braçada de cartas amarradas com laços de fita.

Arrancou as fitas e atirou as cartas para a tremonha. Uma vez enfardado aquilo tudo, era quase meio-dia, o Pai declarou que podíamos repousar por uma hora.

Recomeçámos logo a seguir ao jantar2. Andámos a passar busca à casa toda, mas não encontrámos mais nada que fosse feito de papel, a não ser, num dos quartos, algum papel de parede meio despregado, que o Pai declarou que devia ser arrancado, porque era velho e dava um aspecto pelintra às paredes. Após o que me mandou e ao Handsome a casa da Sr. a Price perguntar se ela não tinha papel velho que lhe não fizesse falta. Fizemos duas viagens a casa da Sr." Price. Nessa altura já estávamos todos estafados e o Pai disse que havíamos trabalhado bastante para um dia. Sentámo-nos nos degraus da entrada e contámos os fardos empilhados ao canto. Eram sete. O Pai disse que era muito bom para começar, e que, se todos os dias trabalhássemos assim, não tardaria que estivéssemos tão ricos como os mais ricos da cidade.

Ali ficámos sentados uma data de tempo, a pensar em todo o papel que tínhamos enfardado, e o meu velhote disse que na

 

1 A escola paroquial onde as crianças recebem as primeiras noções bíblicas (n. do t.).

2 Ainda o velho e rural costume do almoço, jantar e ceia, que persiste no mundo anglo-saxónico (n. do t.).

 

manhã seguinte era preciso levantarmo-nos cedo e talvez que à noite já pudéssemos contar uns doze fardos, em lugar de sete, por dia de trabalho. A Mãe apareceu cá fora dali a pouco e fitou a grande pilha de papel enfardado. O meu velho voltou-se e esperou que ela manifestasse o seu agrado por termos trabalhado tanto logo no primeiro dia.

- De onde veio este papel todo, Morris? - perguntou ela, avançando para os fardos e puxando alguns papéis.

- De toda a parte, Martha - respondeu o Pai. - Livrámo-nos de quanto papel velho andava para aí a atravessar-se-nos no caminho. Descobrimos uma data dele metido em sítios que só serviam para ninhos de ratos. Foi uma bela coisa eu ter arranjado esta máquina. A limpeza até faz a casa parecer outra.

A Mãe enfiou um dedo num dos fardos e puxou qualquer coisa. Era uma das ilustrações.

- O que é isto, Morris? - disse ela, olhando em volta. Puxou por outra revista.

- Tu sabes o que foste fazer, Morris Stroup? -exclamou ela. - Pegaste em todas as receitas e todos os "riscos" que eu tenho andado a juntar desde que pusemos casa!

- Mas tudo isso é tão velho que não presta para nada - observou o meu Pai.

Handsome ia a escapar-se pela porta da entrada. A Mãe olhou.

- Handsome! Desata cada um desses fardos! Quero ver que mais me tiraram. Faz o que te digo, Handsome!

- Mas, Martha - começou o Pai.

- Ó Mãe, então não podemos vender os jornais velhos e as revistas? - perguntei eu.

- Cala a boca, William. E deixa de tomar o partido do teu pai.

Handsome soltou o arame, e livros de cânticos e revistas começaram a desabar para o chão. A Mãe abaixou-se e pegou num dos livros.

- Céus! - gritou. - Estes são os livros novos para a Escola Dominical, para que se fez a subscrição! E aquelas pobres almas confiadas em que os livros estariam seguros em minha casa! Olhem para eles!

Começou a cavar na pilha de papéis e revistas. Depois, em cada um dos fardos. Rebentava os arames antes de Handsome ter ocasião de os quebrar.

- Que é isto, Morris - perguntou, levantando a voz e fitando uma das cartas que tínhamos enfardado.

- Ora, é um bocado de papel velho que eu achei metido num dos armários - respondeu o Pai. - As ratazanas e os ratos mais tarde ou mais cedo as roeriam

A Mãe fez-se vermelha e deixou-se cair pesadamente numa cadeira. Por instantes não disse uma palavra. Chamou então o Handsome.

- Handsome! - e mordia os lábios e limpava os olhos com o avental. - Desmancha imediatamente esse fardo!

Handsome saltou por cima do monte de papéis e puxou pelo arame. As cartas caíram no chão aos pés da Mãe, que se abaixou e apanhou uma mão-cheia. Mal viu a letra de uma das cartas, deu um grito.

- Que tens, Martha? - perguntou meu pai, levantando-se e atravessando o pórtico até onde ela estava.

- As minhas cartas! - disse a Mãe, limpando os olhos com o avental. - Todas as cartas de namoro, as cartas de amor, que eu tinha guardado, dos meus namorados! Todas as cartas que me escreveste, Morris! Olha, olha só para o que fizeste!

- Mas não passavam de cartas antigas, Martha - dizia meu pai. - Se quisesses, eu continuava a escrever-te outras, quase a toda a hora.

- Não quero outras! Quero guardar as antigas!

Desatou a chorar tão alto que o Pai não sabia que fazer. Foi até à outra ponta do pórtico e voltou.

A Mãe abaixou-se e apanhou quantas cartas lhe cabiam no avental.

- Eu escrevo-te outras, Martha. A Mãe levantou-se.

- Parece-me que devias, pelo menos, ter mais respeito pelas cartas que os outros meus namorados me escreveram, já que o não tens pelas que tu escreveste!

Agarrou nas pontas do avental cheio de cartas e foi para casa, atirando com a porta.

O meu velhote andou para trás e para diante na lixeira de papéis soltos e livros que arremessava com os pés. Durante algum tempo não disse nada, até que se aproximou da máquina de enfardar e lhe passou as mãos pelas paredes polidas.

- Parece que é uma vergonha não se aproveitar este papel todo, meu filho. É pena que a tua mãe se tenha zangado tanto por causa de velhas cartas e coisas que tais. Bem podíamos fazer uma data de dinheiro com as vendas ao tipo quando ele voltar à cidade na semana que vem.

 

Quando cheguei a casa vindo da escola, o Pregador Hawshaw, o pastor universalista, estava ao pórtico a falar com o meu velhote. Não prestei grande atenção a princípio, porque o Pregador Hawshaw estava sempre a aparecer em nossa casa a ver se levava meu pai a prometer que iria à igreja no domingo, mas o Pai arranjava sempre uma boa desculpa para não ir, em geral dizendo que Ida, a nossa mula, estava com a eólica e que não podia deixá-la enquanto não lhe passasse, ou que os porcos do Sr. Jess Johnson tinham embravecido e ele tinha de ficar em casa para os impedir de nos darem cabo da horta, e por isso calculei que discutiam o mesmo que sempre discutiam. Parei ao pé dos degraus a ouvi-los, a magicar em qual seria desta vez a desculpa do Pai, e a primeira coisa que ouvi foi o Pregador Hawshaw a dizer que o velho "Ti" Jeff Davis Fletcher, o servente preto da igreja universalista, fora ao condado vizinho passar uns dias com uns parentes doentes e que não havia quem tocasse o sino naquela tarde para o casamento da menina Susie Thing, que ia casar com Hubert Willy, o carteiro substituto. O meu velhote ouviu o que o Pregador Hawshaw tinha a dizer, mas não patenteava qualquer indício de querer tocar o sino.

- Pois sempre lhe digo, Senhor Stroup! - disse o Pregador Hawshaw, depois de esperar por largo tempo que o meu velhote dissesse alguma coisa. - Se tocar o sino esta tarde durante o casamento, não torno, até ao fim do ano, a andar atrás de si para que vá assistir aos serviços religiosos. Então, não é um bom contrato, Senhor Stroup?

- Seria ainda melhor se me prometesse que nunca mais andava atrás de mim para eu ir à igreja... este ano ou qualquer outro ano - declarou-lhe meu pai.

- Isso é pedir-me muito, Senhor Stroup - respondeu ele. É meu dever insistir com as pessoas até que freqüentem a igreja.

- Se quer que lhe toquem mal o sino-disse meu pai-considere-me um metodista ou um baptísta e deixe-se de insistir comigo para que vá à igreja universalista ouvi-lo pregar. Eu tenho cá uma religião muito minha, e, se me serve, ouvir pregar um pregador universalista só me faria ficar inquieto e descontente com o que arranjei. E o senhor não quer ser a causa de eu voltar costas à religião que tenho, pois não?

O Pregador Hawshaw encostou-se à parede como se estivesse exausto e pensou por largo tempo. O Pai continuou sentado onde estava, no corrimão, à espera que ele tomasse uma decisão.

- Não discutamos mais religião hoje, Senhor Stroup - disse o outro por fim. - Estou desfeito e tenho de celebrar esse casamento daqui a menos de meia hora. E não tenho já tempo de procurar outra pessoa que toque o sino, e se o senhor o não vai tocar estou metido num bom sarilho.

O meu velhote levantou-se do balaústre e. desceu os degraus para o terreiro. O Pregador Hawshaw foi atrás dele o mais depressa que podia.

- Toco-lhe o sino desta vez só para lhe dar uma ajuda disse o meu pai. - Nunca pude ser acusado de recusar auxílio aos aflitos.

- Oprimo! - e o Pregador Hawshaw resplandecia num sorriso. - Eu nunca duvidei de que podia contar consigo, Senhor Stroup!

Começou logo a sacudir-se do pó e a ajustar a gravata.

- Ora não é preciso fazer grande coisa - dizia. - Só tem de saber que toca o sino desde o instante em que eu começo a ler o texto litúrgico do matrimônio até que o noivo e a noiva tenham saído da igreja e desaparecido pela rua fora. Quando já não vir rasto deles, já sabe que é tempo de parar. Isto é ou não é claro, Senhor Stroup?

- Podia lá enganar-me com uma coisa assim tão simples!

- declarou-lhe o meu velhote. - É tão fácil como matar uma mosca.

O Pregador enfiou direito à rua.

- Tenho de me pôr na igreja em três tempos - disse, muito nervoso. - A cerimônia está marcada para daqui a uns vinte minutos. Arranje-se e venha o mais depressa que puder, Senhor Stroup. Eu estou à sua espera no vestíbulo, ao lado da corda do sino.

E virou costas e precipitou-se para a igreja universalista, que era três quarteirões adiante. O meu velho dirigiu-se para casa.

- Anda, filho - disse-me com um gesto largo que varria tudo. - Toca a preparar para o casamento. Preciso de ti para me ajudares à corda do sino. Anda!

Entrámos, e o Pai borrifou a cabeça no lavatório e acamou o cabelo com a escova. Mal acabou isto, estávamos prontos a partir.

- O Pai deixa-me tocar o sino sozinho um bocado? - perguntei, e corria ao lado dele para não ficar para trás. - Deixa, Pai?

- Quando lá estivermos, logo se vê. Se não for pesado demais Para tu puxares sozinho, deixo.

Já ia gente a caminho da igreja, que ultrapassámos toda para chegarmos muito a tempo de tocar o sino. Quando atingidos o adro havia lá um ajuntamento, mas meu pai apenas acenou, e enfiámos para o vestíbulo.

O Pregador Hawshaw estava mesmo ao lado da corda do sino, tal como dissera. Nessa altura estava já nervosíssimo a ponto de não ser capaz senão de se deixar ali especado. Assim que nos viu começou a andar de um lado para o outro, olhando constantemente para o seu relógio.

- Senhor Stroup, este casamento é importante - segredava ele muito alto a meu pai. - Os nubentes representam dois dos mais firmes pilares da minha igreja. Por nada deste mundo eu quereria que alguma coisa saísse mal. Este casamento é tanto para mim! Unirá duas famílias desavindas e sarará feridas que têm perturbado a congregação inteira.

- Pela minha parte, não precisa de se afligir - respondeu meu pai. - Trate lá da sua parte, que eu cá trato de tocar o sino. Quando fui contínuo da escola quem tocava o sino era eu, e de sinos não há nada que eu não saiba.

- Ainda bem que o ouço, Senhor Stroup - dizia o outro, limpando a cara com o lenço. - Que peso me não tira do espírito o saber que o sino fica entregue a um homem experiente!

Estava gente entrando na igreja e o órgão começou a tocar. Não tardou que eu visse a Susie Thing, coberta de roupagens brancas aos folhinhos e com uma grande braçada de flores, aparecer a uma das portas laterais. Quase ao mesmo tempo o Hubert Willy surgiu por outra. Era sinal de que o casamento ia começar, e avisei o meu velho de que de um momento para o outro era altura de tocar o sino. O Pregador Hawshaw veio a correr pela nave abaixo, a olhar para o relógio e quase a estatelar-se em cada pé que saísse do alinhamento dos bancos.

- Muito bem, Senhor Stroup! - segredou roucamente a meu pai, e toda a gente ouvia. - Mal me veja chegar lá e pegar no livrinho preto que está em cima da mesa já sabe que chegou o momento de começar a tocar o sino.

O meu pai acenou afirmativamente e agarrou-se com energia à grossa corda que descia do campanário através de um grande buraco no tecto.

- Agarra-te a ela com força, filho! Vamos ser precisos os dois para pôr isto a mexer. É muito maior que o sino da escola.

E ambos nos agarrámos o mais acima que podíamos.

- Agora - disse meu pai -, olha para o Pregador Hawshaw e avisa-me quando for altura de puxar a corda.

A Susie Thing e o Hubert Willy pararam em frente do Pregador Hawshaw. A cara do Hubert estava vermelha como um tomate; a da Susie, quase afogada no imenso ramo de flores, é que eu não via. O Pregador inclinou-se e agarrou no livrinho de capa preta em que nos falara.

- É a altura! -segredei o mais alto que me atrevi. - Estão a começar!

Puxámos a pesada corda até conseguirmos que o sino balouçasse no campanário. O Pai mostrou-me como é que se puxava a toda a força para depois a deixar fugir pelo buraco no tecto. Cinco ou seis puxões depois o badalo fez soar o sino e tínhamos a corda para baixo e para cima como queríamos.

O sino retumbava, em largas badaladas que soavam um tanto estranhamente, mas eu, levantando os olhos para meu pai, vi-o tão satisfeito que achei que o sino tocava como devia ser. Aconteceu, porém, que olhei também para a nave e vi o Pregador Hawshaw chamar um dos mordomos e segredar-lhe qualquer coisa. Uma data de gente se voltava nos bancos para nos fitar, como se estivéssemos a fazer alguma asneira. O mordomo veio a correr, e, mal chegou ao pé de nós, todo se espetou para segredar ao ouvido de meu pai.

O meu velho acenou com a cabeça e continuou a tocar o sino como havíamos feito desde o princípio. O mordomo correu para onde o Pregador Hawshaw estava em frente de Susie e de Hubert. O Pregador Hawshaw já deixara de ler o livrinho de capa preta, e, logo que o mordomo lhe cochichou qualquer coisa, pousou o livro na mesa e veio correndo, direito a nós, pela nave abaixo.

- Olhe lá, Senhor Stroup! Adisse muito alto. - Pare com esses dobres!

- Que está para aí a dizer? - perguntou meu pai. Largámos a corda e deixámo-la sumir-se pelo buraco tal como vinha acontecendo desde o início. - Estou a tocar o sino, como o senhor me pediu. Que mais há?

- Que mais há! - exclamou o Pregador Hawshaw, passando um dedo por dentro do colarinho para o alargar. - Não ouve esse dim-dom, dim-dom no campanário? - Nesta altura já as pessoas todas se haviam voltado para nós e algumas delas faziam sinais com as mãos. - O que o senhor está é a dobrar! Isso é para os enterros! Pare já com esse dim-dom!

- Mas que quer o senhor que eu faça? - perguntou o meu velhote. - Quando era continuo da escola sempre toquei assim e nunca ninguém me acusou de estar a tocar a finados.

- O sino da escola não é nada comparado com este em tamanho, Senhor Stroup - respondeu o Pregador Hawshaw. - Não há comparação. O sino da escola, puxasse o senhor como puxasse, lá tocava como devia. Ora deixe-se de tocar este sino assim. Entristece as pessoas. Não é próprio para um casamento.

- E que quer então que eu faça? - perguntou meu pai.

- Repique!

- Repique Que vem a ser isso

O Pregador Hawshaw voltou-se e deitou uma olhadela à gente que estava na igreja. Susie e Hubert continuavam diante do altar, à espera de que o Pregador Hawshaw fosse acabar de ler o texto litúrgico, mas Susie parecia que ia sumir-se de um momento para o outro e Hubert como se estivesse prestes a sair num pulo pelo vitral.

- Então o senhor nunca na sua vida fez repicar um sino?

- perguntava o Pregador Hawshaw.

- Mais ainda - declarou meu pai. - Nunca ouvi falar em semelhante coisa.

- É tim-ti-lim, tim-ti-lim - explicava o outro.

- Ah, é? - perguntava meu pai, continuando a puxar a corda como sempre. - Ora aí está uma coisa que eu não sabia.

- Pois pare com os dobres e comece com os repiques, Senhor Stroup! - exclamou o Pregador Hawshaw. - Está ali gente que já chora!

- Não posso assim mudar no meio das coisas - declarou meu pai. - Preciso de prática, é o que é. Tenho de continuar a fazer o mesmo. Para a outra vez então será.

O Pregador Hawshaw estendeu as mãos para a corda, mas nesse momento Jule, o irmão de Susie Thing, atirou-se ao Hubert Willy e levou-o de roldão pela porta lateral até ao cemitério, a acusá-lo de ser conivente na forma como o sino estava a tocar. Ainda ninguém tivera tempo de os seguir e já Jule começara à pancada ao Hubert, e não tardou que andassem ambos ao soco por entre os mausoléus e sepulturas. O nariz de Hubert sangrava e Jule rasgara as calças ao tropeçar na grade de um dos túmulos, que tinha um letreiro: AFASTE-SE.

O meu velhote determinou-me que continuasse a tocar o sino enquanto ele ia ver a briga. O Pregador Hawshaw, como todos, também foi. Eu fiquei a tocar o sino da mesma maneira, e já então podia afirmar que o dim-dom era exactamente igual ao do velho "Ti" Jeff Davis Fletcher para os funerais. Por essa altura, tanto o Jule como o Hubert tinham uma boa conta, mas ninguém tentava separá-los, porque todos achavam que o melhor era deixá-los baterem-se até pararem de comum acordo, quando não tivessem forças para mais. E eu ia puxando pela corda como meu pai me ordenara e pensando no mistério de um sino fazer dim-dom ou tim-tilim, quando o Pregador Hawshaw veio de corrida e me tirou a corda das mãos. O badalo ainda deu mais umas duas pancadas e parou.

- Já chega, Wüliam! - e agarrando-me pela camisa, fez-me voar pelo vestibulo e pelos degraus da entrada.

Nesse instante o meu velhote apareceu correndo ao virar da esquina. Deixara de ouvir o sino e ficara em ânsias.

- Porque largaste a corda, meu filho?

- O Pregador Hawshaw tirou-ma. E pôs-me fora.

- Ah, pôs? - exclamou, perdendo a cabeça.

O Pregador Hawshaw surgiu à porta e parou à beira das escadas. Parecia desfeito.

- Ora ouça cá, seu pregador! - começou meu pai. Quando aceitei tocar o sino dispus-me a tocar o sino ou a rebentar com os botões todos! Pois vou lá dentro e hei-de desempenhar-me da incumbência até ao fim, que foi o que eu prometi! Se não gosta da maneira como toco a culpa não é minha!

- Ai isso é que não vai! - disse o Pregador Hawshaw, e atravessava-se na porta. - Já desmanchou um casamento e provocou uma lamentável cena de pancadaria no cemitério. Os Things e os Willys estão outra vez a ferro e fogo, só por o senhor ter dobrado a finados. Não torna a pôr as mãos na corda do sino!

- E como é que eu havia de saber que queria que eu tocasse tim-ti-lim em vez de dim-dom?

- O senso comum que lhe dissesse como devia ser - respondia o outro, empurrando o meu velhote para fora. - Além de que um homem que não distingue um dobre de um repique não tem o direito de pôr as mãos no sino de uma igreja!

As pessoas que tinham vindo à igreja para assistirem ao casamento começaram então a discutir as culpas de meu pai no reatar da luta entre os Things e os Willys. A Susie, que estivera lavada em lágrimas ao pé do altar, desatou a correr pela rua fora, direita a casa, ainda com o grande ramo de flores na mão. O Jule e o Hubert é que eu não tornei então a ver, mas deviam ter recolhido a penates para se lavarem.

- Quer então dizer que não gosta da maneira como eu lhe toquei o sino? - perguntou meu pai ao Pregador Hawshaw.

- Nem mais, nem menos, Senhor Stroup - respondeu ele, dando ao meu velho um empurrão que o tirasse da porta e que o fez ir pelos degraus abaixo para não cair.

- Pois então não torne a pôr os pés na minha casa a suplicar-me que venha à igreja ouvir-lhe as prédicas! - exclamou meu pai, voltando-se e já meio de banda a caminho da rua. - Se não gosta dos meus toques também eu não preciso dos seus sermões.

O Pregador Hawshaw enfiou para o vestíbulo. E quase desaparecera quando o meu velhote o chamou.

- Que hei-de fazer acerca de praticar uma religião se isso me der na gana? - perguntou-lhe o meu pai. - Posso chegar à conclusão de que a prática de uma religião reconhecida, em vez daquela, muito minha, que eu tenho, é uma coisa que eu deva aceitar, para não ficar para aqui a secar quando os outros todos são salvos e despachados para o Céu.

O Pregador Hawshaw meteu a cabeça entre portas.

- Está melhor com os metodistas ou com os baptistas. Os universalistas passam muito bem sem o senhor.

 

- Se não é por uma coisa que o teu pai tenha feito - dizia a Mãe, com um ar perdido e cansado -, é por qualquer outra. Chego mesmo a pensar que não terei na vida um momento de sossego.

E andava para trás e para diante no quintal, torcendo as mãos, a ver se descobria uma solução.

As cabras que o Pai e o Handsome Brown haviam trazido da nossa quinta no campo estavam no telhado da casa, a ruminar e a contemplar-nos plàcidamente. O grande bode tinha umas barbaças que o faziam parecer-se exactamente com o Sr. Carter, que morava no outro lado da rua.

- Mas que hei-de eu fazer? - continuava a minha mãe, ainda de um lado para o outro. - Convidei o Círculo das Senhoras para se reunir cá em casa esta tarde, e se aquelas cabras estão no cocuruto da casa quando elas vierem morro pura e simplesmente de vergonha.

As duas cabras também ruminavam, mas as barbas não eram assim tão compridas como as do bode. A juntar aos outros três adultos no telhado havia lá os dois cabritinhos. Os cabritos tinham apenas dois meses e uma quarta parte do tamanho do bode, mas os cinco bichos no alto da casa pareciam um rebanho de cabras.

- William, diz ao Handsome que vá pela cidade à procura do teu pai e lhe diga que venha para casa ver se me põe aquelas cabras dali para baixo.

O Handsome estava a arrumar a cozinha, e bastou-me chegar à varanda e chamar por ele, que apareceu e me perguntou o que queríamos.

- A primeira coisa que eu quero, Handsome Brown - disse a Mãe, furiosa -, é que me digas a razão de teres trazido para aqui aquelas cabras!

-Eu só fiz o que o Senhor Morris me mandou, como sempre é o que faço quando a senhora ou Senhor Morris me mandam, "nhora" Martha - respondeu ele, ora num pé, ora no outro. - O Senhor Morris disse que queria as cabras cá em casa e mandou-me trazê-las para cá, e foi o que eu fiz. A senhora não deve ralhar muito comigo só porque fiz o que o Senhor Morris me mandou.

- E porque não respondeste ao Senhor Morris que devia perguntar-me primeiro, hem? Pensaste nisso, não pensaste?

- Sim, "nhora", lá isso pensei, mas quando ia mesmo a dizer ao Senhor Morris, o Senhor Morris disse "O diabo leve o que dizes", tal e qual, e foi assim que eu acabei por trazer as cabras para cá, como trouxe.

Minha mãe ficou mais danada ainda. Apanhou uma acha de lenha e atirou com ela às cabras, mas o pau caiu a meia distância de as atingir. Bateu contra a casa com grande estrondo e deixou uma marca na platibanda.

-Vai já à cidade e procura-me o Senhor Morris! - determinou ela ao Handsome. - E diz-lhe que me apareça já! Vê no barbeiro e na loja de ferragens e lá por onde ele costuma parar, até o encontrares. E não te atrevas a voltar sem ele, Handsome Brown! Desta vez não te aceito desculpas.

- Sim, "nhora" Dona Martha - e o Handsome partiu a trote, em busca de meu pai.

As cabras passeavam-se no telhado ao longo da cumieira ora olhando para o quintal e para mim e minha mãe, ora olhando pelo outro lado para a rua. Tinham subido para lá, saltando da pilha de lenha para o coberto, daí para o telhado do pórtico e, depois, para o corpo central da casa. Estavam quase uns dois andares e meio acima de nós, e era pândego ver as três grandes cabras e os dois cabritínhos a passear em fila indiana pelo cocuruto do telhado.

Da vez seguinte em que pararam a contemplar-nos, o bode ruminou um bocado mais, fazendo dançar as barbaças, e era tal e qual como se estivesse a fazer-nos caretas.

A Mãe procurou outro cavaco que lhe atirasse, mas a sua fúria era tanta que nem deu com nenhum. Ameaçou-o com o punho fechado e enfiou-se de corrida em casa.

Eu sentei-me nos degraus, mas não tardou que minha mãe voltasse e me levantasse por um braço.

- William, vai para diante da casa a ver se vem o teu pai

- e empurrava-me pelos degraus abaixo -, e logo que o vejas aparecer na rua vens a correr dizer-me. De um momento para o outro chegam aí as senhoras.

Dei a volta à casa e fiquei na cancela da frente a olhar para a rua. Não esperei muito, pois que ouvi o meu pai e o Handsome a falarem. Vinham a mata-cavalos.

- Então que há, filho? - perguntou meu pai, levantando os olhos para os cinco animais no telhado. - O que é que aconteceu?

- A Mãe diz que ponha cá em baixo às cabras antes de o mulherio chegar para a reunião.

- Isso é coisa fácil - comentou ele, apressando-se à volta da casa, a caminho do quintal. -Anda, Handsome, vê se te despachas.

- É comigo que fala, Senhor Morris? - perguntava o Handsome. Não podia correr. Costumava dizer que lhe doíam as cruzes se fazia por correr. Quando era preciso pressa trotava.

- Apressa-te, Handsome - dizia meu pai. - Deixa-te de lamúrias.

Chegámos ao quintal, e o Pai, durante algum tempo, estudou a situação das cabras na cumieira, sem proferir palavra. Gostava delas quase tanto como eu, e por isso as queria em casa, onde pudesse vê-las a toda a hora. Quando estavam na quinta, passava-se às vezes bem uma semana sem as vermos, porque não íamos lá todos os dias.

As cabras haviam suspendido os seus passeios e fitavam-nos como a ver se descobriam as nossas intenções.

- Handsome! - ordenou meu pai. - Vai buscar a escada e encosta-a ao telhado do pórtico.

Handsome foi buscar a escada e pô-la como meu pai havia dito.

- E agora, Senhor Morris? - perguntou.

- Agora sobe e enxota-as para baixo.

Handsome levantou os olhos para o bode. E afastou-se cautelosamente da escada.

- Tenho um certo medo de subir lá para onde está o bode, Senhor Morris - confessou. - É que nunca vi na vida um par de cornos tão malandros como os que ele tem. Se não lhe faz diferença, Sr. Morris, não me sinto disposto a ir lá para cima. As minhas cruzes têm passado o dia a doer-me. Não me sinto nada bem.

- Deixa-te de me impingir essas falácias, Handsome, e sobe, como eu te mandei. Nem hoje, nem nunca, tu sofres das cruzes.

Nesse momento apareceu minha mãe a prender no vestido a gola branca e engomada que costumava pôr quando se preparava para o convívio social. Veio até aos degraus e olhou para meu pai e para mim.

- Ora tu, Martha - apressou-se meu pai em dizer -, não te aflijas que não vale a pena. O Handsome e eu pomos essas cabras cá em baixo enquanto o diabo esfrega um olho.

- Pois é bom que as ponhas cá em baixo enquanto o diabo esfrega um olho. Nunca me vi em tais apuros na minha vida. Essas mulheres a chegar para a reunião do Círculo de um momento para o outro! Que dirá essa gente se vir uma data de cabras a passear-se no telhado da minha casa?

- Acalma-te, acalma-te - dizia meu pai - que o Handsome está a preparar-se para subir.

O Handsome continuava a vacilar diante da escada. Meu pai aproximou-se de onde ele estava e deu-lhe um encontrão.

- Despacha-te e faz o que eu te disse - e empurrava-o mais uma vez para a escada.

Handsome procurava atrasar a prova, matando o tempo que podia com puxar as calças, abotoar a camisa, até que, finalmente, teve de avançar para a escada. Subiu por ela acima e passou para o telhado da varanda. E, logo depois, começou a descer.

- Handsome Brown! - exclamou minha mãe, precipitando-se para o terreiro. - Se tu desces daí antes de correres com as cabras do telhado nunca mais te dou, anos que eu viva, um pedaço de pão que seja! Podes tratar de procurar outro poiso ou de morrer de fome se não fazes o que o Senhor Morris te mandou.

- Mas, "nhora" Martha, as cruzes começaram outra vez a doer-me de uma maneira medonha.

- Eu já te avisei, Handsome Brown - e minha mãe batia com o pé -, de que o que disse está dito.

- Mas, "nhora" Martha, eu

- Já te avisei de uma vez para sempre.

Handsome levantou os olhos para as cabras e depois baixou-os para minha mãe, após o que trepou para o telhado da cozinha, de onde, a uma distância das cabras que achava perigosa, nos lançou um olhar, a ver se o estávamos observando.

Foi então que minha mãe ouviu que algumas das damas já vinham na rua. Viriam um quarteirão mais longe, e ouviamo-las falar. Minha mãe ameaçou Handsome com o dedo e correu para casa, para fechar a porta da frente, não fossem elas entrar por ali dentro. Calculava que, assim, ficariam sentadas na varanda do Pórtico e não atravessariam, portanto, a casa até chegarem às traseiras e verem o que se passava.

Meu pai e eu sentámo-nos na lenha a observar o Handsome. Este passara para o cimo do telhado da cozinha e espojava-se na cumieira, agarrado às ripas. Parecia, no alto, pavorosamente pequeno.

- Não te atrevas a deixar que um desses bichos se magoe ou caia! - berrava-lhe meu pai. - E, vê lá, que esses cabritinhos não se espantem e venham parar ao chão! Se acontece algum mal às cabras esfolo-te vivo.

- Eu bem ouço tudo o que o Senhor Morris me diz - berrava Handsome. - O que eu nunca vi na minha vida foi um sítio tão escorregadio. Mas faço o que posso. De cada vez que me mexo até me parece que já estou a dar com as costas no chão, que é duro! Ai, o susto nem me deixa respirar, Senhor Morris!

E esperava, a ganhar tempo, a ver se meu pai se descosia com mais alguma coisa. Pouco depois, verificando que meu pai não tencionava responder-lhe, foi rastejando pela cumieira até ao telhado do corpo principal. Quando chegou ao pé do beirado, deitou mais uma olhadela para o chão. Fechou os olhos da altura e não tornou a baixá-los para nós.

- Vê lá se essas cabras se ferem! - berrava meu pai.

- Pois sim senhor, Senhor Morris -dizia o Handsome, como de muito longe -, há-de ser o melhor que eu puder.

Agarrou-se ao beirado e trepou. Daí até à cumieira do telhado principal a distância era quase tanto como o que ele trepara. Handsome içou-se pela água escorregadia e firmou os dedos na cumieira. Já era fácil trepar ao cimo. Quando lá chegou, passou uma das pernas e ficou a cavalo, agarrado à cumieira com quanta força tinha.

As cabras haviam ido para o mais distante extremo do telhado, furtando-se ao Handsome. Para as enxotar para baixo tinha ele de ir escorregando ao longo da cumieira até onde elas estavam, fazê-las virar de bordo e descer para o telhado da cozinha, de onde podiam saltar para o pórtico e o coberto, e daí finalmente para a lenha.

Handsome estava a meio caminho quando pareceu que ao bode se lhe metera em cabeça regressar por sua alta recreação.

Mal ele se pôs a caminho, vieram as cabras todas, o bode à frente, as de tamanho médio a seguir e os cabritinhos atrás. Handsome viu aquela comitiva, em especial o bode, porque o bode abaixou a cabeça até que os chifres se enfiavam pelo ar dentro como pára-raios.

- Espera aí! - gritou Handsome ao bode. -Espera aí, repito!

O bode continuou a avançar. Quando chegou aí a um metro e meio dele, parou, deu mais meia dúzia de ruminadelas e cravou o olhar nos olhos de Handsome.

Enquanto Handsome e o bode assim se fitavam lá no cocuruto, veio minha mãe a correr, para ver se as cabras já tinham sido enxotadas do telhado.

Nesse instante o bode tomou balanço e voou, de cabeça baixa e patas recuadas, contra o Handsome, que o viu vir a tempo de se abaixar, mas o caso é que não tinha para onde ir, a não ser meter a barriga para dentro. E agarrou-se às ripas com quanta força podia juntar nos dedos.

- Cuidado, Handsome! - gritou meu pai, quando viu o que ia acontecer, e pôs-se de pé a esbracejar para o bode. Nada pôde impedir que o bode marrasse a todo o vapor. Por momentos foi difícil prever a continuação, porque, depois de o bode ter atingido o Handsome, ambos como que ficaram siderados, quais tábuas que vêm juntas pelo ar.

- Aguenta-te, Handsome! - berrava o meu pai.

A seguir, vimos o Handsome vir escorregando com o rabo das calças pelo telhado abaixo, de costas. Escorregou assim meio caminho e depois começou a girar como um pião. Mal víramos isto, saiu ele do telhado e já vinha direito ao chão. O terreiro era de terra dura e não havia ali nada, como o monte de lenha no outro lado, que lhe amortecesse a queda. Antes, porém, de sabermos o que acontecera não chegou ao chão e desapareceu. Enfiara como uma bomba pela tampa do poço.

- Céus - gritou a Mãe. - O Handsome foi-se!

E vacilou, e caiu no ferreiro, desmaiada. Meu pai abaixou-se para levantá-la, mas largou-a logo após tê-la a meia altura, e correu para o poço, a ver o que restaria do Handsome. Tudo se passara tão rapidamente que nem houvera tempo para pensar. As tábuas que cobriam o poço tinham estourado como se nelas tivesse aterrado um pedregulho de uma tonelada.

O meu pai e eu atravessámos direitos ao poço. Quando lá chegámos e olhámos para baixo começámos por não ver nada. Era escuro como breu. Meu pai berrou pelo Handsome, e o eco saltou como uma bola de borracha e estalou-nos nos ouvidos.

- Responde, Handsome! - continuava a berrar meu pai. Responde!

Minha mãe levantou-se e veio a cambalear até onde nós estávamos. Passara um mau pedaço a recompor-se, e aproximou-se de nós aos bordos, como o Sr. Andy Howard aos sábados à noite. Ainda se sentia tonta do desmaio quando chegou junto de nós.

- Coitado do Handsome Brown! - dizia, agarrada à borda do poço, para se agüentar. - Coitado do Handsome Brown! Nunca tivemos um preto melhor! Coitado do Handsome Brown!

Meu pai ocupava-se com desandar o sarilho, pois queria a corda e o balde no fundo do poço o mais depressa possível.

- Cala-te, Martha! - exclamou pelo canto da boca. - Não vês como estou a ver se deito a corda e o balde?

- O Handsome Brown, pobre inocente! - dizia minha mãe, limpando uma lágrima e sem lhe prestar a mínima atenção. Agora é que eu vejo quanto lhe ralhava demais! Nunca tivemos um preto melhor! Pobre inocente!

- Cala a boca, Martha - berrou meu pai. - Então tu não vês como eu tenho mais que fazer?

Nessa altura já a Mãe dominara a sua indisposição e se agüentava bem sem segurar-se fosse ao que fosse. E debruçava-se no poço a olhar para o fundo.

- Estás aí, Handsome? -gritava meu pai para dentro do poço.

Durante algum tempo não houve qualquer resposta. Debruçámo-nos todos o mais que podíamos, a olhar para baixo. A princípio não se distinguia nada, mas, pouco a pouco, duas bolas brancas, redondas, grandes, começaram a brilhar lá no fundo. Pareciam a mais de um quilômetro de distância. Não tardaram em ficar muito brilhantes, como olhos de gato quando, numa noite escura, incide neles a luz de um furta-fogo.

- Tu és capaz de respirar bem, Handsome? - berrou-lhe meu pai lá para dentro.

- Respiro muito bem, Senhor Morris -respondeu Handsome. - As cruzes é que me doem horrorosamente!

- Doem, uma figa! - disse meu pai. - Não tens nada nas cruzes. E tu vês bem?

- Não vejo nada. Estou pitosga de todo. Não vejo um palmo adiante do nariz.

- Isso é por estares no fundo do poço - explicou meu pai. - Ninguém era capaz de ver aí um palmo adiante do nariz.

- Mas então é onde eu estou? - perguntou Handsome. Deus meu, Senhor Morris, é por isso que há aqui tanta água? E eu que, quando aqui cheguei, julgava que tinha descido às profundas! Palavra que julgava que era onde tinha vindo parar! Quando é que trata de me tirar daqui, Senhor Morris!

- Agarra-te aí à corda, e eu tiro-te enquanto o diabo esfrega um olho!

Handsome agarrou-se ao balde e sacudiu a corda até que eu pai voltasse a debruçar-se.

- Senhor Morris, faz-me o favor? - pediu Handsome.

- Que queres mais?

- Quando me tirar daqui, o senhor não torna a mandar-me Por esse telhado acima atrás das cabras, ou torna?

- Não - respondeu meu pai, dando ao sarilho. - Essas malfadadas cabras que se deixem estar pelo telhado, enquanto a fome as não fizer descer de livre vontade.

De entretidos que estávamos com o Handsome, havíamo-nos esquecido das cabras. A minha mãe voltou-se e levantou os olhos para o telhado. com ímpeto, ameaçou-as com o punho cerrado. Tinham atravessado todas para o outro extremo do telhado, o próximo da cozinha, e daí, muito especadas, olhavam para nós.

O bode cravou os olhos nos de minha mãe e parou de ruminar. A Mãe e o bode pareciam estar a jogar ao sisudo.

Nesse momento as cabeças de quinze ou vinte das mulheres que haviam comparecido à reunião do Círculo surgiram na esquina da casa e descobriram-nos no pano. Tinham-se juntado e decidido, depois de darem com a porta fechada, vir de volta ver o que se passava. Ao chegarem pela rua fora tinham todas descoberto as cabras no telhado e estavam ardendo de curiosidade por saberem a razão da barulheira que fazíamos nas traseiras.

- Deus me defenda, Martha Stroup! -disse uma delas. - Que se passa? Essas cabras no cocuruto do telhado da sua casa são a coisa mais pândega que jamais vi.

A minha mãe rodopiou e deu de cara com elas. Não proferiu palavra, tapou o rosto com as mãos, como se tentasse escondê-lo, e depois correu para casa, atirou com a porta traseira e fechou-se por dentro. Logo as mulheres se dirigiram à porta principal, mas, fartas de bater longamente, desistiram de entrar e debandaram pela rua abaixo. De vez em quando voltavam as cabeças para olhar as cabras no telhado e riam tão alto que o riso delas devia ouvir-se em todo aquele lado da cidade.

 

Quando o meu velho se levantava mais cedo do que era costume e saía de casa não dizia para onde ia, e minha mãe, ocupada em aprontar-se para a lavagem da roupa, nem pensava em perguntar-lhe.

Em geral, quando se esgueirava assim e minha mãe lhe perguntava para onde ia, respondia que tinha de falar com Fulano acerca de qualquer coisa na outra ponta da cidade, ou que arranjara um biscate não muito longe. Não sei que teria ele respondido nessa manhã se minha mãe não estivesse tão ocupada e tivesse perguntado.

Seja como for, levantou-se primeiro que nós e foi direito à cozinha preparar ele mesmo o seu almoço. Ao levantar-me e vestir-me já ele acabara de atrelar a Ida ao carro. Trepou para o assento e começou a guiar em direcção à rua.

- Não posso ir, Pai? -perguntei. E corria pela rua, ao lado do carro, agarrado ao taipal, a pedir para ir com ele. - Deixe-me ir, deixe, Pai - dizia eu.

- Desta vez, não -respondia-me, batendo na Ida com as rédeas até ela passar ao trote. - Se depois precisar de ti, mando-te chamar.

E, clape-clape pela rua abaixo, sumiram-se ao voltar da esquina.

Quando regressei a casa, minha mãe estava a cozinhar. Sentei-me e esperei pelo comer, sem dizer nada acerca do Pai. Sentia-me triste por ter ficado, quando ele e a Ida iam a qualquer sítio, e não me apetecia conversar, nem mesmo com a Mãe. Limitei-me a sentar-me à mesa ao pé do fogão e a esperar.

A Mãe comeu a correr e saiu para o pátio a espevitar o lume debaixo da barrela.

Ao principio da tarde, uma das nossas vizinhas, a Sr. a Singer, que vivia na esquina mais próxima, veio vindo pelo quintal dentro. Vi-a antes de minha mãe, porque estivera sentado nos degraus da entrada quase o dia todo à espera de que meu pai voltasse.

A Sr. a Singer chegou-se ao banco das lavagens. Ali ficou sem dizer palavra, por momentos. Depois ao mesmo tempo se debruçou sobre a selha e perguntou a minha mãe se sabia onde estava o meu pai.

- O mais certo é estar para aí a dormir em qualquer sombra - disse minha mãe, sem sequer se endireitar de cima da tábua de lavar. - A menos que a preguiça nem o deixe tirar-se do sol.

- Pois eu falo muito a sério, Martha - começou a Sr." Singer, aproximando-se mais de minha mãe. - Palavra que falo.

Minha mãe voltou-se e viu-me no pórtico.

- Vai para dentro de casa - disse, com tristeza.

Eu fui andando e cheguei-me à porta da cozinha. Daí ouvia da mesma maneira.

- Ora, Martha - e a Sr. a Singer debruçava-se sobre a selha, com as mãos na borda -, eu não sou de intrigas e não quero que julgue que afinal sou como as que o são. Mas pensei que gostaria de saber a verdade.

- E o que é? - perguntou minha mãe.

- O Senhor Stroup está neste momento em casa da tal Senhora Weatherbee - disse a outra, precipitadamente. - E não é só isso. Tem estado lá o dia inteiro, que é mais. Os dois sozinhos.

- E quem lhe disse -perguntou minha mãe, endireitando-se.

- Passei por lá e vi com os meus próprios olhos, Martha

- declarou a Srª Singer. - E logo no mesmo instante decidi que o meu dever era vir avisá-la.

A Sr. a Weatherbee era uma jovem esposa abandonada que vivia nos arrabaldes da cidade. Estivera casada dois meses, e uma manhã o marido deixara-a para não mais voltar.

- E que está o Morris Stroup a fazer nesse sítio? - inquiriu minha mãe, levantando a voz, como se a culpa fosse toda da Sr. a Singer.

- Isso não me compete dizer, Martha - e recuava. - Mas entendi que era um dever cristão avisá-la.

E saiu do quintal e não tardou a desaparecer na esquina da casa. Minha mãe debruçou-se e remexeu a água até fazer saltar uma data dela. Alguns instantes depois virou-se e disparou pelo quintal fora, limpando as mãos ao avental.

- William! Vais para casa e ficas lá dentro até eu voltar. Quero crer que me obedeces, William. Estás-me a ouvir?

- Estou, Mãe - disse eu, recuando para a porta.

Ela atravessou precipitadamente o quintal e saiu para a rua. Era aquela a direcção da casa da Sr. a Weatherbee, que vivia a uns mil e quinhentos metros de nós.

Deixei-me estar escondido no pórtico, enquanto a Mãe atravessava a rua na esquina seguinte, e depois corri em torno da casa e cortei pelos terrenos vagos do Sr. Joe Hammond, em direcção à ribeira. Conhecia um caminho mais curto para casa da Sr. a Weatherbee, porque passara por lá milhentas vezes quando ia aos coelhos com o Handsome Brown. O Handsome dizia sempre que era bom conhecer os caminhos mais curtos, porque nunca se sabia quando uma pessoa chega mesmo a tempo na altura em que mais é precisa. Foi uma satisfação eu conhecer aquele atalho, porque minha mãe me teria visto se eu tivesse ido atrás dela.

Fui sempre a correr, colado aos salgueiros, ao longo da ribeira, tal como eu e o Handsome fazíamos de cada vez que vínhamos aos coelhos. Quando ia a chegar à casa da Sr. a Weatherbee parei e pus-me a ver se descobria o meu pai. Não o vi em parte nenhuma por ali, ao pé da casa da Sr. a Weatherbee. E a ela também não via.

Atravessei então a ribeira e corri pelo prado, direito à casa, sempre encostado à vedação, que estava coberta de madressilvas. Não levei muito tempo a chegar à horta, e mal olhei por trás do poste da ponta vi a Ida parada ao portal, entretida a enxotar as moscas com a cauda. Julgo que me terá reconhecido logo, porque arrebitou as orelhas e assim as conservou muito espetadas enquanto me fitou.

Principiara eu a rastejar para contornar a vedação da horta quando, olhando para além do pátio traseiro da casa, vi minha mãe que se aproximava, e pernas para que vos quero. Saltava as fiadas do algodão no campo, que era uma beleza, mesmo aproada ao pátio.

Nessa altura ouvi cacarejar a Sr. a Weatherbee. Olhei para a casa e nem precisei de me levantar nos joelhos para a ver e ao meu velhote. Os cacarejos da Sr. a Weatherbee continuavam como se ela tivesse perdido a cabeça, tal e qual as pequenas da escola quando sabiam um segredo qualquer. Primeiro, não vi mais que as pernas nuas e os pés da Sr. a Weatherbee balouçando do pórtico. Logo depois vi o meu velhote, em pé, do lado de fora, a fazer-lhe cócegas com uma pena de galinha. A Sr. a Weatherbee estava deitada de costas no pórtico, e ele ali muito ocupado a fazer-lhe cócegas nos pés descalços. De cada vez que ela cacarejava mais alto ele até dava uma espécie de pulo. Ela tinha tirado os sapatos e as meias, porque eu bem os via em monte no pórtico.

A Sr. Weatherbee não era velha como as outras mulheres casadas, porque ainda andava no liceu da cidade quando casara naquela Primavera, e só havia uns três ou quatro meses que estava "viúva". E ei-la, deitada de costas no pórtico, a retorcer-se, a dar pontapés no ar, a berrar e a cacarejar, como se estivesse para morrer, se meu pai não deixasse de lhe fazer cócegas com a pena. De vez em quando ria muito alto, e a coisa era muito mais divertida , porque então o meu velho pulava no ar como um canguru.

Eu até me tinha esquecido da Mãe, entretido com ouvir a Sr. a Weatherbee e ver o meu velhote; mas nisto vi minha mãe atravessar o pátio, direita aonde eles estavam.

Tudo aconteceu tão vertiginosamente que foi difícil observar o que se passou. A primeira coisa em que reparei foi em que minha mãe agarrara o meu velho pelos cabelos e lhe dera um puxão que o levantou pelo ar. Depois, apoderando-se de um dos pés descalços da Sr. a Weatherbee, mordeu-o com quanta força tinha. A Sr. a Weatherbee deu um grito que deve ter-se ouvido em Sycámore inteira.

A Sr. a Weatherbee sentou-se, e minha mãe agarrou-a pelo decote do vestido de chita, que lhe ficou na mão como um pedaço de papel de parede descolado. A Sr. a Weatherbee, ao ver-se sem vestido, tornou a dar um berro.

Minha mãe voltou-se então de novo para o meu velho, que estava sentado no chão, num susto que nem o deixava levantar um dedo.

- Que vem a ser isto, Morris Stroup? - gritou-lhe.

- Oh, Martha, vim até aqui visitar uma pobre viúva, por caridade! -e levantava os olhos para minha mãe com aquele seu ar dos momentos de medo. - A horta dela precisava de trato, e, vai daí, atrelei a Ida e vim sachar um bocadinho, por pena dela!

Minha mãe rodopiou e atirou-se outra vez à Sr. a Weatherbee. Desta vez só conseguiu agarrá-la pelos cabelos.

- Pois fico sabendo, Morris Stroup - disse minha mãe, voltando a cabeça para olhar para o meu velho-, que fazer cócegas nos dedos dos pés de uma "viúva" com uma pena de galinha faz a horta dela mais viçosa!

- Mas, Martha - e deslizava pelo chão, a afastar-se cautelosamente -, não foi isso o que eu pensei. Quando vi a horta de uma pobre esposa abandonada, cheia de ervas más, só pensei em praticar uma obra de caridade.

- Cala a boca, Morris Stroup! Não tarda que deites as culpas à Ida!

- Mas, Martha - continuava o meu velho, sempre a deslizar nos fundilhos das calças -, isso não é ver as coisas como elas são. É uma pobre viúva coitadinha.

- Eu vejo as coisas como me apraz - e minha mãe batia o pé. - Passo a vida a dar cabo de mim para não morrermos de fome e tu andas por aí mais a mula a tratar das hortas das esposas abandonadas! Para já não falarmos de cócegas com penas em pés descalços! Sim senhor, isto é que é o que deve ser!

O meu velho ia a abrir a boca para dizer alguma coisa, mas a minha mãe largou a Sr. a Weatherbee e levantou-o pelas alças do fato-macaco sem lhe dar tempo. Levou-o em grande velocidade até ao poste ao qual estava presa a Ida. com uma das mãos pegou na rédea da mula e com a outra arrastava o meu velhote e assim se pôs a caminho de casa pelos campos de algodão fora. A Ida bem percebia que as coisas iam mal, porque trotava para acompanhar minha mãe e não precisava que lho dissessem.

Eu precipitei-me pelo prado fora até à ribeira e vim para casa pelo atalho. Cheguei lá apenas com um escasso minuto de avanço.

Quando minha mãe entrou no pátio, trazendo à trela a Ida e o meu velhote, não pude deixar de me rir um bocadinho do ar que ambos traziam. A Ida vinha tão humilde como o meu velho. A Mãe deitou-me um relance para o pórtico.

- William, deixa-te dessa troça - disse com amargura.

- Chego a pensar que és tão mau como o teu pai.

O meu velho, com um rodeio de olhos, levantou-os para mim. Piscou-me o direito e dirigiu-se para a cavalariça, seguindo minha mãe, mansinho como um cordeiro. Na altura de entrarem para o coberto abaixou-se e apanhou uma pena que uma das galinhas largara. E enquanto minha mãe conduzia a Ida para dentro, escondeu a pena na algibeira.

 

Minha mãe levantou-se cedo, fez-nos o almoço e deixou-no-lo em cima do fogão, para não arrefecer. Eu já estava acordado, mas o meu velho ainda tinha a cabeça metida debaixo da roupa quando ela foi de carro com o tio Ben, para passar o dia no campo em casa da tia Bess. Mal ela saíra, meu pai surgiu do cobertor e perguntou-me se a Mãe tinha dito alguma antes de se pôr a andar com o tio Ben. Respondi-lhe que não dissera palavra, porque nos julgava a ambos ainda a dormir.

Enquanto nos vestíamos, meu pai dizia que precisávamos de nos arranjarmos sozinhos o melhor possível, até ela voltar tarde da noite. A Mãe ia sempre passar o dia com a irmã, no Verão, uma vez, às vezes duas. Costumava dizer que não tinha outras férias e que bem gostaria de ir mais vezes se não temesse o que poderia acontecer na sua ausência.

- Não há nada como andar à solta - comentou meu pai nem que seja por um dia. Faz bem à saúde a gente ver-se livre do mulherio.

Depois do almoço, o meu velho saiu para o sol e espreguiçou-se. Já estava calor pela manhã e no céu não se via uma nuvem.

- É pela certa um rico dia - e voltou-se para me fitar.

- O sol brilha e temos o mundo inteiro por nossa conta. É pena que a tua mãe não arranje maneira de passar assim o dia mais vezes com a tua tia Bess.

Foi até à vedação e encostou-se. Vi-o olhar para a horta, a observar uns pardais que andavam a esgaravatar por baixo das couves. Pouco depois apanhou uma pedra e atirou-a a eles.

- Vamos à pesca, filho. Está um belo tempo. Atrela a Ida. Fui logo à estrebaria, trouxe para fora a Ida e comecei a passar-lhe a escova pelo pêlo. Meu pai disse-me para a tratar a preceito e atrelá-la depois ao carro.

- Eu estou pronto a partir mal volte da loja. Tenho de ir buscar uma onça de tabaco.

Entrou no galinheiro, tirou dos ninhos um par de ovos e meteu-os na algibeira para os trocar pelo tabaco.

- Escova a Ida até ela parecer novinha em folha, meu filho - disse-me ele, já pela rua abaixo. - Quero que a Ida esteja bonita num dia como o de hoje.

- E quem vai cavar para apanhar minhocas, ó Pai Parou a pensar e disse que cavasse o Handsome. O meu velho foi pela rua fora para a loja e eu chamei o Handsome. Este, quando se chegou aonde eu estava a escovar a Ida, desfazia-se em sorrisos.

- O caso é que é uma alegria o Senhor Morris ter dito que a gente ia à pesca - disse. - Há muito tempo que eu ando desejoso de ir à pesca.

Arranjou uma enxada e foi para as traseiras da cavalariça, onde, à sombra das árvores, a terra estava húmida. E desatou à procura de minhocas.

Conseguiu encher delas uma lata enquanto eu atrelava a Ida ao carro. Trepámos para o assento e ficámos à espera de que meu pai voltasse. Não demorou muito, mas vinha a andar com uma pressa que eu não lhe via havia imenso tempo. Quase corria. Precipitou-se para o carro e eu preparava-me para lhe entregar as rédeas quando ele conduziu pela brida a mula até um dos espeques da vedação, a que a prendeu num ápice.

- Mas o que é. Pai? - perguntei eu.

Tira da pesca o sentido. A pesca pode esperar. Temos muito que fazer com outra coisa, para já.

- Oh, Pai! Porque não vamos à pesca?

- Senhor Morris - disse Handsome, pondo-se de pé no carro -, enchi de cogulo uma lata das maiores minhocas como o senhor nunca viu! E é um prejuízo se não vamos à ribeira gastá-las. São formidàvelmente bonitas as minhocas, Senhor Morris!

O meu velho já ia direito ao pátio, a acenar-nos para o seguirmos. Descemos do carro para ver o que ele ia fazer.

Quando chegámos ao pátio, vi meu pai pôr-se de gatas e enfiar para debaixo do pórtico. Não sabia o que o levava para lá e fui de gatas atrás dele.

- O que está o Pai a procurar aqui? O que é que está debaixo da casa?

- Ferro velho, meu filho, ferro velho - e raspava com os dedos na terra seca e poeirenta. Não tardou que extraísse um pedaço de ferro enferrujado que parecia ter sido roda de uma velha máquina de costura. - Há uma data de ferro velho por aqui e chegou a altura de o juntar. Há um homem na cidade a comprar quanto ferro velho a gente lhe leve e a pagá-lo por bom dinheiro, a cêntimo o quilo. Não posso perder uma ocasião como esta sem fazer alguma coisa. O homem pode não tornar a aparecer em Sycamore e era um desastre não aproveitar para ganhar, assim, tanto dinheiro sem trabalho nenhum. Toca a apanhar e a juntar o ferro velho todo.

Voltei-me e vi Handsome de gatas atrás de nós, que se chegava a perguntar:

- Que estamos nós aqui a fazer debaixo da casa, Senhor Morris

- A apanhar ferro velho. Trata de fazer o mesmo.

- Mas quem é que pensa em perder tempo a apanhar ferro velho - disse Handsome -, quando está de partida para a pesca?

- Cala-te, Handsome. E vê se me falas com mais respeito. Trata de fazer o que eu te digo.

Handsome gatinhou para debaixo da porta principal da casa resmungou de si para si. Eu bem o via às vezes parar e procurar ferro velho na poeira, mas não me parecia que se preocupasse com apanhá-lo se o encontrava.

- Logo que a gente acabe de juntar o ferro velho, podemos ir à pesca, Pai?

- Vamos logo que ele esteja junto e vendido. Se todos nos dedicarmos a sério, acabamos em três tempos. Ainda temos a maior parte do dia para pescar, antes de a tua mãe voltar à noite.

Encontrámos três ou quatro pedaços de um velho fogão de cozinha e o aro de uma roda de carroça. Levámos tudo para o pátio e fizemos um monte ao pé da vedação. Depois, na casa da lenha, achámos ainda uns ferros, e Handsome descobriu, debaixo dos degraus do pórtico, um velho alguidar. Meu pai deu com uma pesada roda, que atirou para o monte. Ainda por quase uma hora trabalhámos a valer, respigando no lixo, juntando quantas ferraduras a Ida gastara e procurando por toda a parte coisas de ferro.

No meio da manhã o Pai parou a contemplar o monte que tínhamos empilhado.

Afinal não havia por aqui tanto ferro velho como eu pensara ao princípio - disse ele. - Já andamos com muita sorte se tudo aquilo que está no monte pesar uns cem ou cento e cinqüenta quilos. E precisávamos de uns quinhentos quilos para vermos dinheiro a valer. Quinhentos quilos dariam, vendidos ao homem, uns cinco dólares.

- Talvez não valha a pena a gente estar a ralar-se a procurar mais, Senhor Morris - disse Handsome. - Ainda tínhamos muito tempo para ir à pesca.

- Cala-te, Handsome - determinou meu pai. - Já me decidi a ganhar dinheiro vendendo a sucata ao homem e é o que vou fazer. Pois cala-te e procura mais.

Mandou-nos ir ver na frente da casa outra vez, e, enquanto fomos, passou ele a cancela das traseiras, pela álea abaixo. Handsome e e eu encontrámos umas dobradiças enferrujadas debaixo do pórtico principal, que atirámos para o monte.

Estávamos nós sentados a descansar, apareceu o meu velho na cancela, cambaleando ao peso de uma carrada de ferro. Trazia a alavanca de uma bomba, um par de ferros de engomar, um machado, uma banheira velha e uma data de coisas mais. Tudo parecia novo a comparar com o que tínhamos descoberto em nossa casa, e a banheira de lavar roupa ainda estava quente de ter tido lume por baixo. Atirou com as coisas para o monte e tornou logo a sair para a álea.

Quando seguidamente voltou trazia mais do que nunca. Vinha tão dobrado sob o peso, que os joelhos vergavam-lhe andando, e não pôde senão chegar à vedação e despejar a carga no monte. Nesta segunda carrada trouxera umas tenazes de fogão de sala, torniquetes, um atiçador, uma escudela pesadíssima, uma quantidade de outras coisas.

-Não percebo onde o Senhor Morris encontrou tantas coisas! -disse Handsome. - Fiz quanto pude, mas não encontrei nada que se parecesse.

Meu pai não respondeu e limpou a cara à manga da camisa.

- E que vamos agora fazer, Pai? - perguntei eu.

- Guia a Ida e o carro para aqui. Vamos carregar o carro, eu chego lá abaixo e recebo o dinheiro. Calculo que havemos de ter uns quinhentos quilos ou mais. Vai render-nos afinal um dinheiro que eu, primeiro, não tinha pensado.

Handsome e eu trouxemos a Ida até ao monte de sucata, que todos fomos levantando e metendo no carro. Mal acabámos, meu pai bebeu água do balde, subiu e agarrou nas rédeas.

- A gente ainda vai hoje pescar, Senhor Morris? - perguntou Handsome.

- Eu já volto - respondeu meu pai, tocando as ancas da

Ida com as rédeas. - Assim que receber do homem volto logo.

Handsome e eu sentámo-nos nos degraus a ver meu pai

afastar-se. Ali estivemos imenso tempo, e o Sol ia subindo cada vez mais. Momentos depois, Handsome entrou em casa para ver o relógio. Nessa altura já o Sol estava por cima das nossas cabeças.

Esperámos mais uma hora, até vermos as grandes orelhas de Ida balouçando-se abaixo e acima da vedação da horta. Levantámo-nos num pulo e corremos ao encontro do meu velhote, que bateu na Ida com as rédeas e deu a volta para o pátio.

-Estamos prontos para ir para a pesca, Senhor Morris -perguntou Handsome. - Se a gente não se apressa em chegar à ribeira, os peixes já não mordem a isca ao fim do dia.

Meu pai apeou-se, segurando um par de botas de borracha, novinhas em folha, altas até ao joelho. Pousou-as no chão, enquanto nós ficávamos a olhar para elas.

- Quando recebi do homem os quatro dólares pela sucata

- disse meu pai, afastando-se para melhor contemplar as botas de borracha -, a primeira coisa em que pensei foi neste par de botas que havia na loja do Frank Dunn. Há muito tempo que eu precisava de umas botas destas, tenho a certeza. Nem percebo como tenho passado tanto tempo sem elas.

- E que vai o senhor fazer com elas, Senhor Morris? - perguntou Handsome.

- Usá-las, que para isso há botas altas.

- É que eu nunca vi que, por aqui, onde tudo é areia, houvesse lama que chegasse para botas altas de borracha - disse Handsome.

- Porque nunca te deste ao trabalho de reparar em como tudo fica encharcado, às vezes, quando há chuva - replicou meu pai.

- Talvez seja assim, mas o caso é que tudo seca em meia hora e levaria mais tempo a gente a procurar tais botas e a calçá-las. Cá a mim, parece-me que podíamos muito bem ter passado o tempo perdido a pescar. A "Nhora" Martha volta outra vez logo à noite, e até ao ano que vem não tenho outra ocasião de ir à pesca. No tempo que o senhor passou a malucar por aí com as botas, tinha a gente pescado uma data de peixe.

- O melhor é veres como falas! Estou a pensar em ir à ribeira e te deixar cá ficar.

- Ai, por quem é, Senhor Morris, não faça isso! - disse Handsome. - Eu não falei mal das botas. São as botas de borracha mais bonitas que eu já vi em dias da minha vida. E são o melhor que é bom ter à mão quando chove. Quem me dera que fossem minhas, que ficava todo vaidoso!

Meu pai foi até ao poço beber do balde. Voltou e pousou a mão no carro.

- Onde está a lata das minhocas, filho?

Corri a buscar as minhocas e trepámos todos para o carro. Meu pai pegou nas rédeas e ia bater com elas na Ida quando, pela cancela da álea, entrou a correr a Sr. a Fuller. Era uma viúva que morava na rua seguinte, no extremo da álea, e recebia hóspedes para ganhar a vida. Teria uns cinqüenta ou sessenta anos e estava sempre a queixar-se de qualquer coisa.

- Ora espere lá, Morris Stroup! - disse ela, correndo para o carro e tirando as rédeas das mãos de meu pai.

Meu pai tentou apear-se do carro, mas ela barrava-lhe o caminho.

- Onde estão as coisas que levou das minhas traseiras, Morris Stroup? Não há em minha casa uma gota de água, nem pode haver, porque você se pôs a andar com a alavanca da minha bomba!

- Deve haver qualquer confusão - disse meu pai. - A senhora bem sabe que não sou desses vizinhos que levam a alavanca de uma bomba.

- Um dos meus hóspedes viu-o esgueirar-se para o meu pátio e safar-se com uma data de coisas, incluindo a alavanca da bomba, Morris Stroup - e ameaçava meu pai com o dedo.

Levou-me os ferros de engomar, as tenazes, o atiçador, e Deus sabe que mais. Ora trate de me devolver tudo, ou chamo já aqui a Polícia!

Handsome deixou-se escorregar do carro e escapou-se direito à casa da lenha. Ia a abrir a porta quando o meu velho se voltou e o viu.

- Anda cá, Handsome Brown! - disse o Pai. Handsome parou de fugir.

- Sem dúvida que lhe devo uma desculpa, Senhora Fuller começou meu pai. - Foi tudo o mais natural dos acidentes. Esta manhã, ao seguir pela álea, vi alguma sucata por ali espalhada. Pensei que a senhora tencionava deitá-la fora, e por isso tratei de lha tirar do caminho. Julguei que fazia um favor. Lembrei-me de que os rapazes andavam a limpar à volta de nossa casa e na álea, e foi assim que as suas coisas se misturaram com as nossas.

- Pois se não quer ir parar à cadeia - disse a Sr. a Fuller -, faça mas é o favor a si mesmo.

E, enquanto meu pai chamava o Handsome, a Sr. a Fuller virou de bordo e passou a cancela.

- Handsome! - disse meu pai. -Traz-me as botas de borracha.

Handsome foi ao pórtico e trouxe as botas.

- Que isto agora te sirva de lição - principiou meu pai.

- Devias saber que não se pode apanhar tudo o que se encontra por aí fora. Pode pertencer a alguém.

-: Eu? - Handsome tremia todo. - Está a falar comigo, Senhor Morris?

Meu pai tornou a dar-lhe as botas. Handsome pegou nelas, mas deixou-as cair ao chão.

- Leva essas botas à loja do Senhor Frank Dunn e diz-lhe que não te servem. Depois pede-lhe que te restitua o teu dinheiro.

- Eu - Handsome recuou. - Quer dizer eu, Senhor Morris

Meu pai acenou que sim.

- Depois, quando receberes em troca das botas o teu dinheiro

- continuou o meu velhote - pega nele, procura o homem que compra a sucata e diz-lhe que mudaste de idéias e queres o ferro outra vez. Dá-lhe os quatro dólares e procura no monte e tira as peças que lhe vendeste. Quando tiveres tirado tudo, em especial o braço da bomba, carregas o carro e vens direito para casa. assim que chegues podes entregar à Senhora Fuller as coisas que ela quer.

- Mas o senhor está a falar de mim, está, Senhor Morris? perguntava Handsome. - O senhor não estará um bocadinho confuso? Essas botas de borracha não são minhas, e eu

Meu pai pegou nas botas e pô-las nos braços de Handsome.

- Fizeste-me corar de tal vergonha por ter comprado umas botas de borracha quando não há lama que chegue para elas, que tas-dei.

- Deu E quando é que mas deu, Senhor Morris

- Há bocadinho.

- Garanto, Senhor Morris, que nunca na minha vida sonhei com botas de borracha! Coisa em quê eu nunca pensei!

E tentou dá-las a meu pai, que tornou a empurrá-las para ele. Handsome tremia dos pés à cabeça e queria dizer qualquer coisa.

- Deixa-te de discussões e faz o que te digo! Não me agradava nada ver-te na cadeia num dia tão bonito como o de hoje!

Meteu as rédeas nas mãos de Handsome e içou-o para dentro do carro. Depois agarrou nas botas e atirou-lhas para lá.

Deu umas palmadas na Ida e ela partiu a trote pelo terreiro e rua fora. Handsome desapareceu-nos da vista, agarrado ao assento com ambas as mãos e a chorar tão alto que o ouvimos até ele chegar ao centro da cidade.

O meu velho foi até onde estava à lata das minhocas e ficou-se a olhar. Pegou então na lata e disse-me que trouxesse a enxada. Fomos ao outro lado do coberto, onde Handsome cavara pela manhã, e meu pai despejou a lata no chão.

As minhocas desataram a rastejar para todos os lados, mas o meu velho, com uma varinha, empurrava-as para o buraco que Handsome abrira.

- Tapa-as bem, filho - disse. - Que elas se sintam outra vez à vontade. Hoje já é tarde para irmos à pesca, mas da próxima vez que a tua mãe for de visita à tua tia Bess, havemos de fazer por gozar o mais que pudermos.

Tapei o buraco e o meu velhote calcou a terra com força para que não perdesse a humidade lá onde as minhocas viveriam até à próxima vez em que tivéssemos ocasião de as usar.

 

Havia muito tempo que os pica-paus nos maçavam. Não é que, na verdade, fossem muitos, mas na Primavera tinham feito vários ninhos, e, por altura de os passaritos terem idade para picar madeira, faziam tal barulheira logo de manhã cedo que mais ninguém pregava olho. Os pica-paus viviam no velho sicômoro, já mono, que havia no nosso terreiro, e minha mãe costumava dizer que coisa atilada seria abatê-lo. O meu velhote sempre respondia que antes quereria ver os Republicanos ganharem as eleições todas até à eternidade que perder ele o sicômoro. Cuidara da árvore desde que eu me lembrava, cortando os ramos mortos, pintando os buracos dos pica-paus. Depois que o sicômoro morrera, havia anos, não tinha um único ramo sequer, e o tronco erguia-se pelo ar dentro como um poste telefônico.

Perto do cimo do sicômoro era onde os pica-paus viviam. Haviam picado tanto que eu nem era capaz de contar os buracos todos. Handsome Brown dizia que os contara uma vez e lhe parecia que seriam entre quarenta e cinqüenta. Naquela época do ano, princípio do Verão, depois de os pássaros novos terem largado os ninhos e começado a picar, havia sempre uma dúzia, ou mais, à volta da árvore. Mas de manhãzinha cedo é que era o pior. Os pica-paus acordavam ao mesmo tempo todos logo que raiava a aurora e desatavam a picar na madeira morta, e o meu velhote dizia que deveria haver sempre uns vinte ou trinta a trabalhar desde essa hora até às seis ou sete.

- Senhor Morris - disse Handsome ao Pai -, eu arranjava uma "sete e meio" e despachava-os em três tempos.

- Se disparas contra um desses pica-paus - avisou meu pai - o mesmo seria que dar um tiro no xerife. Levava-te de rastos para a grilheta até ao fim da tua vida!

- Ai, Senhor Morris, por quem é, não me faça isso! Que eu não tenho intenção nenhuma!

O rate-tate-tate no sicômoro era cada vez pior. Os dias iam sendo mais compridos, o que significava que os pica-paus começavam a picar, cada manhã, mais cedo. O meu velhote dizia que eles saiam para o trabalho às três e meia.

- Se os pica-paus fossem meus - disse Handsome havia de correr com eles e deitava abaixo a árvore. E acabava-se-Lhes a picagem.

- É melhor veres como falas, Handsome Brown - declarou meu pai. - Se acontece alguma coisa ao mais pequenino desses pica-paus, ou ao meu sicômoro, quem te dera nunca teres visto um pica-pau na tua vida!

Durante o dia, ninguém ligava muito aos pica-paus, porque andavam ocupados com voar à procura de comer ou repousavam simplesmente, e, se um deles se lembrava de picar um bocadito no sicômoro, os outros não se lhe juntavam, como era seu costume pela manhã, duas horas a fio. O meu velho dizia que apreciava ouvir um pica-pau solitário a picar, porque era como ter sempre companhia. Minha mãe pouco dizia, além de que trataria de mandar abater o sicômoro se o meu velho não dava remédio àquele rate-tate-tate que nos acordava antemanhã todos os dias.

Certa manhã, uma hora antes de romper o dia, ouvimos no sicômoro o mais tremendo estardalhaço que jamais tínhamos ouvido. Ecoava como se quarenta ou cinqüenta pessoas estivessem a bater com martelos pneumáticos na parede da casa. Minha mãe acendeu um fósforo e olhou para o relógio em cima do fogão do quarto, e eram três horas. O meu velhote levantou-se, enfiou os sapatos e as calças e acendeu a lanterna no pórtico das traseiras. Atravessou então o terreiro e chamou o Handsome. Handsome dormia no sótão da casa da lenha. Meu pai disse-lhe que se vestisse e viesse para fora imediatamente.

- Esses pica-paus não me deixam pregar olho - explicou meu pai a Handsome. - Vem daí comigo ao sicômoro ajudar-me a sossegá-los.

Levantei-me e olhei pela janela. O sicômoro estava apenas a uns três metros da janela, e à luz da lanterna eu via tudo o que se passava. O Handsome veio a arrastar os pés pelo chão e a bocejar.

- Handsome! - disse meu pai. - Temos de arranjar uma maneira de aquietar esses pica-paus.

- E qual pensa que é a maneira, Senhor Morris? - perguntou Handsome, encostando-se à árvore e bocejando mais.

- Trepa-te por aí acima e talvez eles parem.

- O quê, Senhor Morris! Subir a esse sicômoro?

- Pois claro! Marinha já por aí acima, que eu ainda quero dormir antes de a noite acabar.

Handsome afastou-se e perscrutou na escuridão o cimo da árvore. À luz da lanterna só a iluminava até meia altura, e não se via nada para cima, lá para onde estavam os pica-paus. Bem os ouvíamos a batucar na madeira e de vez em quando algumas grandes lascas e esquírolas choviam.

- Não sei como hei-de fazer - protestava Handsome. Nunca aprendi a subir a uma árvore que não tenha ramos. Escorregava para baixo mais depressa do que ia para cima. Não há um ramo a que a gente se agarre.

- Não te rales com isso - disse meu pai. - Quando estiveres a meia altura, já podes meter o pé nos buracos dos pica-paus e fazer isso com uma perna às costas.

E o meu velho empurrou Handsome para o sicômoro. Handsome abraçou o tronco, a medir-lhe a envergadura. Durante momentos estreitou-o assim e depois gemeu.

- Nunca tentei nada que se parecesse com isto, Senhor Morris -e recuou-, tenho medo.

E Handsome levantou os olhos para o cimo da árvore, lá no escuro. Ouvíamos os pica-paus desfazendo a madeira com quanta força tinham. Picavam com tal fúria que a árvore estremecia até ao chão, e não tardou que vibrassem também as vidraças da janela.

O meu velho deu a Handsome um forte empurrão e fê-lo começar a trepar pela árvore. Mal começou desapareceu como um esquilo. Depois é que não vi nem mais um palmo adiante do nariz, porque, mal ele desaparecera, o Pai apagou a lanterna. Disse que via melhor no escuro, sem luz.

Um instante depois não se ouviu um único som. Os pica-paus estavam quietos como ratos.

- Então que tal vai isso aí por cima, Handsome? - berrou meu pai.

Não houve resposta. O Pai e eu, à escuta, conseguíamos ouvir um ruído semelhante ao de um cão arquejando.

- Que se passa lá por cima, Handsome? - berrou o Pai. Uma chuvada de casca seca trove ou por ali abaixo e caiu-lhe

na cabeça.

- Senhor Morris - disse Handsome -, tem de fazer qualquer coisa para me salvar, e depressa!

- Mas o que é?

- Estes pica-paus desataram todos a picar em mim como picam na árvore! Não os ouve a picar em mim, Senhor Morris?

- Eu cá não ouço nada. Não os deixes batucar em ti. Não lhes ligues importância. Segura-te e faz com que estejam quietos. Já não fazem o barulho que faziam antes de tu subires para aí.

- Porque estão a picar em mim, em vez de picarem na árvore, Senhor Morris. E não posso enxotá-los porque se os i enxoto largo-me cá da árvore.

- Faz de conta que não dás por eles, e já te deixam.

- Mas estão mesmo a picar-me na nuca. Dói-me tanto que até me parece que vai abrir-se a cabeça em duas.

- Tudo isso são parvoíces - disse meu pai. - Já vivi muitos anos e nunca ouvi falar de um pica-pau que picasse gente e deu a volta à esquina, a caminho do pórtico das traseiras.

- Não há dúvida de que os aquietaste a valer, Handsome. Ora deixa-te aí ficar um pedaço, não comecem eles outra vez a picar na árvore.

- Senhor Morris! - gritava Handsome. - Para onde vai, Senhor Morris? Não se vá embora, não me deixe aqui na árvore, sozinho com estes pica-paus todos!

Meu pai entrou, e ouvi-o tirar os sapatos e largá-los ao pé da cama. Handsome desatou numa lamúria lá no cimo, mas, pouco a pouco, foi-se calando por completo. Meu pai enfiou-se na cama e puxou a roupa para a cabeça.

Mal nasceu o Sol saltei da cama e fui à janela. Handsome ainda estava no alto do sicômoro, mas, pela maneira como pendia, parecia que ia largar-se e cair de um momento para o outro. Ouvi então meu pai levantar-se e vestir-se. Pus a minha roupa a toda a pressa e vim atrás dele para o pátio.

Quando chegámos vimos o Handsome abraçado à árvore de pernas e braços. O dedo grande de um pé tinha-o metido num buraco do pica-pau, e estava pendurado como um espantalho.

mais cômico de tudo é que havia pica-paus por todo ele. Uns empoleiravam-se-lhe na cabeça e nos ombros, e outros agarravam-se aos braços e às pernas. Deveria haver uns vinte ou trinta em cima do Handsome.

Precisamente nessa ocasião um dos pica-paus acordou e soltou um forte guincho. O guincho acordou os outros todos, que desataram a picar no Handsome. Era como se tivessem adormecido de cansaço e, ao acordar, se tivessem lembrado da obrigação de picarem o Handsome. Handsome acordou sobressaltado.

- Senhor Morris! Senhor Morris! -gritava. - Onde está, Senhor Morris -Eu e meu pai andávamos à volta do sicômoro a olhar para cima. Os pica-paus esvoaçavam em volta de Handsome à procura de um melhor sítio para picar. Ele sacudiu um braço pela cabeça, tentando enxotá-los. Esvoaçavam todos por um instante e logo voltavam a picar com a mesma fúria.

- Desce cá para baixo, Handsome - disse meu pai. -Já me levantei da cama.

Handsome olhava para nós lá do alto. Depois deu ao braço para afastar os pássaros e tirou do buraco o dedo do pé. Escorregou devagar, tentando sempre enxotar os pica-paus.

Quando tocou o chão com os pés desabou como uma saca de batatas mal cheia. Meu pai apanhou-o e pô-lo outra vez direito.

- Estás estafado de todo, ó Handsome - observou meu pai. Handsome olhou por momentos para meu pai e para mim e

não disse palavra. Parecia sem forças para falar.

Minha mãe apareceu então na esquina da casa. Os pica-paus esvoaçavam à volta das nossas cabeças, agindo como se estivessem a ver se conseguiam chegar ao Handsome. E, de súbito, um dos pica-paus mais velhos, um grande macho de longa cauda branca, encheu-se de coragem para descer até nós, pousou no alto da cabeça de Handsome e desatou a picar com quanta força tinha. Handsome berrava tão alto que não terá havido na cidade quem o não ouvisse.

- Ó vida minha! - gritou minha mãe. - Olhem só para a cabeça do Handsome, coitado!

Ocupados a vê-lo descer da árvore não tínhamos reparado no aspecto dele. As roupas estavam em pedaços, o fato-macaco e a blusa pendiam em farrapos. Mas a cabeça é que era o mais extraordinário.

Havia quatro ou cinco grandes rodelas, como os buracos dos pica-paus no sicômoro, onde fora arrancado o cabelo do Handsome sem deixar vestígios.

- Mas porque não ficaste tu acordado e não enxotaste esses pica-paus de cima de ti, Handsome? A culpa foi tua: subires para ali e deixares-te adormecer assim! Nada disto teria acontecido se tivesses cumprido a tua obrigação na árvore, como eu te disse. Eu não te mandei ir dormir para cima da árvore.

- Mas também não me disse que queria que eu ficasse acordado - respondeu Handsome, abanando a cabeça. - Só me disse que fosse lá para cima e não deixasse os pica-paus fazerem barulho, Senhor Morris.

O meu velhote afastou-se e fitou minha mãe. Não trocaram ambos uma palavra e não tardou que ela fosse de volta para a cozinha. Fomos atrás dela, que não dizia nada. Pôs-nos os pratos à frente e serviu-me papas de milho e salsichas.

 

Durante a manhã inteira esteve ameaçando uma trovoada que desabou enquanto comíamos o jantar, mas afinal só chuviscou um pouco. Mal passou o aguaceiro, o meu velhote pôs o chapéu e saiu pela rua fora a caminho das lojas. O sol reaparecera e não tardou que fosse como se não tivesse caído um pingo de chuva.

Estava eu sentado à espera, ouvi, não muito longe, cavalos e carroças. Soavam como uma data delas, e o tropel das ferraduras e o estalar dos arreios aproximava-se a cada instante. Levantei-me e fui para o meio da rua ver melhor. A meia distância da esquina mais próxima vi o meu velhote, que vinha pelo meio da rua, de braços no ar a cada passo, e logo atrás dele cinco ou seis parelhas a puxar carroças com coberturas de lona. O meu velho acenava e dava corridinhas olhando por cima do ombro de vez em quando.

Quando chegaram à frente da casa, meu pai parou e acenou aos condutores, que guiaram as parelhas para o lado da rua e atracaram aos postes da vedação. Durante o tempo que eles levaram a prender os cavalos, meu pai dava aos braços, incitando-os a que se apressassem. Os condutores vieram então a correr atrás do meu pai, que os pilotava em volta da casa para o pátio das traseiras. Dentro das coberturas havia uma data de mulheres e miúdos, que começaram a apear-se.

Não tardou que houvesse umas vinte ou trinta pessoas a dirigirem-se para a casa. As mulheres vestiam compridas saias multicores que chegavam ao chão e todas traziam um lenço verde-claro, ou amarelo, ou vermelho, amarrado na cabeça. Os homens vestiam como toda a gente, com a diferença de usarem apenas os coletes desapertados e não terem casacos. Os miúdos não estavam grandemente vestidos. A gente crescida e a miudagem eram morenas como índios, e todos tinham cabelos pretos muito compridos.

Os homens seguiram meu pai até ao pátio e as mulheres espalharam-se por toda a parte, umas subindo ao pórtico, outras precipitando-se também para o pátio. Os pequenos, esses, enfiaram todos para debaixo da casa. A nossa casa, como as casas todas em Sycamore, era construída acima do chão, para o ar circular por baixo dos compartimentos e refrescá-los no Verão.

Duas das mulheres entraram pela porta principal dentro com um à-vontade de proprietárias. Eu abaixei-me, a ver o que a garotada estava a fazer, e vi três ou quatro aos pulinhos, de gatas, como coelhos. Nesse momento alguém bateu com o guarda-vento da porta principal e vi uma das mulheres correr pelas escadas abaixo com qualquer coisa nos braços. Foi direita a uma das carroças, largou lá aquilo e voltou a correr para a casa.

Fui de corrida ao pátio. Os homens metiam o nariz na casa da lenha, na cavalariça, por toda a parte. Alguns levantavam tábuas e achas de lenha, como se procurassem alguma coisa. Enquanto os observava, Handsome saltou da porta da cozinha, seguido de perto por uma das mulheres de saias compridas. Enfiou direito à casa da lenha e meteu-se lá dentro.

- Ora, vamos a tratar as coisas com calma - dizia meu pai a um dos homens de colete. - Claro que, como toda a gente, eu quero fazer negócio, mas com tais pressas nem sei o que faço. Vamos lá a tratar as coisas com calma.

Ninguém atendia ao que o meu velho dizia, ocupados que estavam todos em procurar coisas e a correr de um lado para o outro. Um dos homens foi à casa da lenha e entrou. O Handsome saiu correndo, pernas para que vos quero.

Nesse instante ouvi a minha mãe gritar a plenos pulmões dentro de casa. Estivera a dormir a sesta, e por certo que uma das mulheres a acordara e lhe pregara um susto. Pouco depois a Mãe precipitou-se para fora de casa.

- Mas que vem a ser isto, Morris? Quem é esta gente toda? Estava a dormir, ferrada no sono, quando acordo e vejo duas mulheres em quem nunca tinha posto a vista na minha vida! Estavam a levar-me os lençóis da cama!

- Ora, o que é preciso é calma, Martha - disse meu pai.

- Eu já ponho tudo na ordem em três tempos. Enquanto o diabo esfrega um olho, eu meto tudo na ordem.

- Mas quem é esta gente?

- São só uns ciganos que eu encontrei na cidade e que me disseram que queriam fazer negócio comigo. Convidei-os a vir até cá para falarmos à vontade. Há por aqui uma data de coisas sem préstimo, que já deviam ter sido trocadas seja pelo que for! É um alívio para mim vê-las ser levadas de cá para fora.

Duas das mulheres saíram de casa e foram direitas a minha mãe, que recuou. Mas encurralaram-na num canto e desataram a falar tão depressa que ninguém podia perceber o que elas diziam. Uma delas começou mesmo a dançar para baixo e para cima e a dar aos braços. Então um dos homens veio ao pórtico e explicou à minha mãe que elas queriam negociar o vestido dela. Minha mãe respondeu que o vestido não estava à venda, mas as mulheres não lhe ligavam nenhuma.

Os miúdos que tinham andado de gatas por baixo da casa apareceram com a minha pá de basebol e uma luva e correram em torno da esquina do pórtico direito às carroças. Fui atrás deles, mas quando cheguei à esquina achei que era melhor não ir assim atrás deles. Chamei o Handsome e disse-lhe o que eles tinham levado, mas ele respondeu-me que era melhor a gente não discutir. Alguns dos garotos eram, de facto, maiores do que qualquer de nós.

- Ora, esperem um momento, ó gentes! - dizia meu pai, tentando agarrar os homens pelas costas dos coletes. - Vamos lá a sossegar e a discutir o negócio. Quero saber o que me dão em troca daquilo que levam.

- Morris! - berrava a Mãe. - Põe esta gente daqui para fora! Tu estás-me a ouvir, Morris?

O meu pai estava tão entretido a sossegá-los que nem lhe ouvia uma palavra. Foi à casa da lenha e trouxe um velho machado com o cabo partido. Um dos homens pegou no machado, examinou-o cuidadosamente e passou-o a outro homem. O outro correu para as carroças com ele.

Ora, que é isso? - disse meu pai. - Isto não é maneira de fazer negócio! Ao que parece, eu não recebo nada no fim de contas. Isto não é negócio limpo. Lá isso não é!

Outro cigano pegou num velho balde de folha com o fundo furado, enquanto meu pai falava, e deu-o a outro, que o levou para as carroças. Meu pai agarrou um deles pelo colete e tentou discutir a sorte do machado e do balde. Entretanto, outro entrou na casa da lenha e saiu com a nossa serra. Meu pai viu a serra ir a caminho das carroças, mas já ela desaparecera antes de haver tempo de a agarrar.

- Negócio é negócio! - dizia o meu velhote. - Mas é toma lá dá cá, não é assim! Vocês têm estado a levar a vossa parte, mas eu é que ainda não recebi a minha.

Um dos ciganos aproximou-se, meteu a mão na algibeira e tirou um grande canivete. Meu pai procurou abri-lo para ver, mas ambas as lâminas estavam partidas.

- Ora, vamos lá - disse meu pai -, eu não troquei as minhas coisas por uma porcaria destas.

Os homens treparam ao sótão da casa da lenha, onde Handsome dormia, e meu pai foi atrás deles, ainda na esperança de que o ouvissem.

As ciganas já quase tinham posto de cabeça perdida a minha mãe. De dentro de casa haviam trazido a caixa de costura da Mãe, uma escova de cabelo e o jarro do lavatório. Minha mãe fazia o possível por arrancar-lhes estas coisas, mas elas não as largavam. Enquanto uma delas estendia a minha mãe um colar de contas, as outras despacharam-se com o jarro, a escova e a caixa de costura.

Um dos homens descia do sótão com o banjo do Handsome debaixo do braço. Handsome soltou um berro e agarrou-se ao banjo antes de o cigano se escapulir.

- Morris! - gritou minha mãe. - Põe esta gente daqui para fora. - Tu estás a ouvir, Morris? Estão a saquear isto tudo!

Uma das ciganas apoderou-se da mão de minha mãe e pôs-se a olhar para a palma. Começou a ler-lhe a sina, e minha mãe ficou tão interessada no que ela lhe dizia que não deu nem mais um grito. Enquanto aquela lia a sina as outras metiam-se em casa.

Meu pai, por essa altura, já estava tão desorientado que não viu um dos homens tirar a Ida da cavalariça. O homem passara um cabresto ao pescoço de Ida e esta seguia-o como se não soubesse o que estava a acontecer.

- Lá vai a Ida, Pai! - gritei eu. - Pai, não troque a Ida. Minha mãe ouviu-me e soltou um brado.

- Morris Stroup! -disse ela. - Tu perdeste a cabeça? Não te atrevas a deixar essa mula sair do pátio!

Meu pai voltou-se e viu a Ida passar e ficou com cara de quem não sabia o que havia de fazer. Handsome agarrou-se à corda do cabresto e tirou a Ida ao cigano.

- Não senhor! - dizia Handsome. - Ninguém leva daqui esta mula!

- Ó gentes, isto não é maneira honesta de tratar as coisas!

- repetia meu pai. - Eu estou bem disposto a negociar, enquanto for um toma lá dá cá, mas não vou admitir que isto continue. vou impor a minha vontade quanto ao que me hão-de dar.

O Handsome levou a Ida outra vez para a cavalariça e fechou a porta à chave.

Alguns dos rapazes irromperam da porta da cozinha com pãezinhos e batata doce que sobrara do almoço. Minha mãe viu-os, mas, de fúria, nem conseguiu proferir palavra. Uma das ciganas pôs o colar de contas ao pescoço de minha mãe e as outras procuravam tirar-lhe os sapatos. Minha mãe escouceava como uma mula quando elas tentavam fugir com os sapatos. Handsome chamou-me com um grito; voltei-me. Os ciganitos saíam debaixo do pórtico com as guias que nos serviam para lá brincar aos comboios. Mas não era tudo. Um deles trazia as máquinas e as carruagens. Mal tive tempo de ver o Handsome agarrar nos garotos e tirar-lhes as coisas. E deu-lhes um safanão que os fez voltar logo a esquina.

- Não estavam bons da cabeça quando pensaram que se punham a andar com isto - disse Handsome, apertando nos braços as guias e o comboio.

Nesse momento outra cigana que eu ainda não tinha visto entrou no pátio. Era semelhante às outras, mas vestia um cornprido vestido escarlate e usava nos braços uma data de pulseiras. Os outros ciganos afastaram-se todos quando ela avançou para meu pai, e as discussões acabaram no mesmo instante.

- Quem é você? - perguntou o Pai, olhando-a dos pés à cabeça.

- Eu sou a Rainha.

E a Rainha pegou na mão do Pai e contemplou-lhe a palma. Meu pai recuou até encostar-se à porta da cavalariça, enquanto ela fazia correr os dedos pela mão fora como se procurasse alguma coisa.

- Tem uma bela mão. Que linha da vida tão forte! Que futuro está à sua frente! É um homem de sorte!

Meu pai soltou um risinho e olhou em volta a ver se alguém tinha ouvido o que ela dissera. Os outros ciganos iam-se chegando todos para as carroças. As mulheres haviam deixado o pórtico. Atravessaram por dentro da casa até à porta da frente, mas minha mãe foi atrás para tomar conta em que elas não levassem de passagem alguma coisa.

Enquanto meu pai pensava no que a Rainha lhe dissera pegou-lhe ela no braço e levou-o para a casa da lenha. Entraram e fecharam a porta.

Handsome foi de volta para prevenir o caso de os garotos quererem voltar e levar alguma coisa mais de debaixo de casa. Eu ouvia a minha mãe dentro de casa de um lado para o outro como se andasse a ver o que faltava ou não. Estava eu ao pé da janela do quarto quando minha mãe se debruçou dela.

- William! Vai já buscar o teu pai! O xerife precisa de saber o que se passou! Hei-de meter essa ciganada na cadeia, nem que rebente! Já dei pela falta do retrato do teu avô, por cima da lareira, e não encontro o meu vestido de ver a Deus, que estava no armário! Deus sabe que mais faltará! Vai já buscar o teu pai! Tem de ir participar ao xerife enquanto é tempo!

Fui até à casa da lenha, onde estavam a Rainha e o meu velhote, e, quando tentei abrir a porta, estava ela fechada. Comecei a chamar o Pai, mas nesse momento ouvi-o rir como se lhe estivessem a fazer cócegas. Logo depois também a Rainha principiou com risinhos. E assim estavam ambos e a dizer coisas que eu não ouvia. Voltei para ao pé da janela onde estava a Mãe.

- O Pai está na casa da lenha, mas não me ouviu chamar.

- Que está ele a fazer na casa da lenha?

- Não sei. Ele e a cigana que disse que era a Rainha estão os dois lá dentro.

- Pois chama imediatamente o. teu pai para fora. Já se sabe para que ele se prepara.

Voltei à porta da casa da lenha e pus-me à escuta. Não ouvia nada, mas quando quis abrir a porta continuava fechada. Esperei um pedaço e tornei a chamar o meu velhote.

- Ó Pai, a Mãe quer que venha já. É melhor vir.

- Põe-te a andar, filho - disse meu pai. - Não me maces agora.

Voltei para dizer à Mãe, mas ao chegar à janela já ela lá não estava. Regressava à casa da lenha, ouvi minha mãe a sair de casa. Ficou, porém, na varanda das traseiras.

- Morris Stroup! - gritou. - Responde-me imediatamente! Durante muito tempo, não veio resposta nenhuma, até que

ouvi a chave mexer-se na fechadura da porta. Dali a pouco, a Rainha saiu. Lançou um longo olhar à Mãe e depois apressou-se a contornar a casa, a caminho das parelhas e das carroças. Mal chegou, logo os homens todos chicotearam os cavalos, e as carroças reboaram e desapareceram pela rua abaixo.

Olhei em volta e o meu velhote estava a espreitar por uma racha da porta. Minha mãe também o viu, atravessou o pátio e escancarou a porta. O meu velhote apareceu em cuecas e com um ar de não saber onde se havia de meter.

- Morris! - bradou minha mãe. - Que demônio! Meu pai tentou esconder-se atrás da porta, mas minha mãe

agarrou-o e puxou-o para onde o pudesse ver à sua vontade.

- Que vem a ser isto? Responde, Morris Stroup!

Meu pai balbuciou e gaguejou, à procura de qualquer coisa para dizer.

- A Rainha esteve a ler-me a sina - e olhava de esguelha para não lhe escapar o que minha mãe fazia.

- A sina, uma figa! - c minha mãe voltou-se para mim; William, mete-te em casa, fecha as janelas e as portas. E fica lá até eu te chamar!

- Mas, Martha, não é coisa para tamanha irritação! - dizia meu pai, ora num pé, ora noutro. - A Rainha

- Cala-te! Onde está a tua roupa?

- Será que ela a levou - disse meu pai, procurando com os olhos - mas quem ficou a ganhar fui eu.

Minha mãe voltou-se e empurrou-me para casa. Eu fui-me afastando tão devagar quanto possível.

- É que sem ela dar por isso - disse meu pai - agarrei-me

a isto.

E apresentou um relógio de ouro. Tinha uma comprida corrente de ouro e parecia novinho em folha.

- Um relógio como este vale um dinheirão - disse o Pai.

- Calculo que vale muito mais que o meu fato-macaco e a blusa e tudo o que eles levaram além disso. Esse machado velho não valia nada e aquele balde com o fundo furado também não.

Minha mãe pegou no relógio e examinou-o. Depois fechou a porta à chave por fora. Logo que ela se meteu em casa voltei à casa da lenha e espreitei por uma fenda. O meu velhote estava sentado num monte de lenha em cuecas, a desatar uma fita amarela que amarrava apertadamente um grande rolo de notas do banco.

 

Handsome andou a manhã inteira fora e dentro de casa, a esfregar o chão, a rachar lenha, a varrer o pátio com a vassoura de piaçaba, e não demos pela falta dele até perto da hora do jantar, quando o meu velho foi ao pórtico dizer-lhe que tirasse da capoeira dois ovos e fosse à loja do Sr. Charlie Thigpen trocá-los por uma onça de tabaco. O Pai chamou por ele umas quatro ou cinco vezes, mas o Handsome nem da última vez que meu pai chamou respondeu. O Pai pensou que ele estaria escondido no coberto, como era seu costume para não aparecer e ter de fazer qualquer coisa, mas, depois de procurar em todos os esconderijos habituais do Handsome, meu pai declarou que não o encontrava em parte nenhuma. Minha mãe começou logo a deitar ao meu velhote as culpas de o Handsome se ter ido embora. Dizia que o Handsome nunca teria ido se o Pai o tratasse com um mínimo de consideração, e não estivesse sempre a tirar-lhe o que lhe pertencia de facto, só porque ele era um órfão de cor e um garoto com medo de pugnar pelos seus direitos.

O meu velho, o Handsome e eu jogávamos às vezes ao belindre, e meu pai estava sempre a arreliar o Handsome e a acabar com o jogo, por lhe tirar os belindres todos, mesmo quando não estávamos a jogar a abafar.

- Tudo pode acontecer a um pobre rapaz de cor quando vai por esse mau mundo fora - disse minha mãe. - Se não o tivessem levado a isso nunca teria deixado o bom lar que procurei que ele encontrasse aqui.

- O Handsome não tinha o direito de fugir como fugiu declarou o meu velho. - Não importa se o levaram ou não a isso. E, para mais, devia ser ilegal um negralhaz pisgar-se assim sem dizer água-vai. Até me podia dever dinheiro.

- E que fizeste tu ao Handsome esta manhã que o levasse a fugir?

- Nada, pelo menos não me lembro de nada fora do vulgar.

- Alguma lhe fizeste - insistiu minha mãe, encolerizando-se e avançando para o meu velho. - Ora diz-me cá o que foi, Morris Stroup!

- Bem, Martha Muita coisa poderia ter irritado o Handsome e tê-lo feito fugir. Mas garanto que não me lembro de nenhuma.

- Pois puxa pela cabeça, Morris Stroup; o Handsome Brown nunca se teria ido embora se tu não lhe desses motivo!

- Bem é que a modos que ele me emprestou o banjo

- começou ele, devagar. - Eu pedi-lhe que mo desse por um bocado, mas ele não queria, e eu subi ao sótão onde ele o tem, no coberto, e trouxe-o para baixo.

- E onde está agora o banjo do Handsome?

- Isso é uma coisa que eu, na verdade, não sei dizer, Martha - respondeu ele, ora num pé, ora no outro. - Na noite passada, ia eu pela rua fora com o banjo debaixo do braço e um preto que eu nunca tinha visto na minha vida perguntou-me quanto é que eu pedia por ele. Eu respondi que um dólar, porque a modos que julgava que ele não tinha um dólar, mas o caso é que ele tinha mesmo o dinheiro na algibeira, e não era honesto desfazer o negócio, uma vez que até havia dito o preço.

- Pois vais à procura do preto a quem vendeste o banjo do Handsome para que to devolva.

- Isso é que eu não posso fazer - respondeu muito prontamente o meu pai.

- Não podes porquê?

- Como hei-de eu saber a que preto vendi o banjo? Estava escuro como breu na rua e não conseguia ver a cara do preto! Era o mesmo que procurá-lo num milhão de pretos!

Minha mãe estava tão desesperada que mal conseguia conter-se e não desancar o meu velho à vassourada. Suponho que não me queria a ouvir o que ia dizer-lhe, porque se voltou e me chamou.

- William! Vai já ao centro da cidade e pergunta às pessoas se viram o Handsome Brown. Não pode ter-se sumido pelo chão abaixo. Alguém o há-de ter visto.

- Está bem, Mãe. vou já.

Deitei a correr pela rua fora, deixando a Mãe e o meu velhote na varanda das traseiras, de olhos fitos um no outro, e fui o mais depressa que pude à loja do gelo, onde Handsome às vezes, nos dias de calor, ia refrescar-se na serradura húmida. Quando lá cheguei perguntei ao Sr. Harry Thompson, que era o dono, se tinha visto o Handsome, mas o Sr. Thompson disse-me que havia uns dois ou três dias que o não via. Estava a ponto de sair e dirigir-me para a porta traseira da peixaria da Sr. a Calhoun, onde o Handsome ia às vezes buscar uma das mugens tão pequenas que se não vendessem, quando um dos rapazes pretos que se empregavam a cortar o gelo do Sr. Thompson me contou que o Handsome passara, uma hora antes, para onde as diversões ambulantes tinham armado as barracas nessa manhã. Todos sabiam que as diversões estavam a chegar à cidade, e por isso mesmo o meu velhote vendera por um dólar o banjo de Handsome. Eu ouvira-o pedir ao Handsome cinqüenta cêntimos emprestados, mas o Handsome não tinha dinheiro nenhum, e o Pai ali decidira logo não ter outro meio de arranjar" dinheiro para ir às diversões que não fosse vender o banjo. O pior é que meu pai gastara o dólar antes de chegar a casa.

Voltei em grande velocidade para dizer à Mãe que sabia onde estava o Handsome. Quando cheguei, ela e o meu velho ainda estavam no pórtico das traseiras a discutir. Suspenderam o que estavam dizendo um ao outro, mal eu abri a cancela e corri pelas escadas acima.

- O Handsome foi para as diversões! - disse à Mãe. - Está lá agora!

Minha mãe ficou a pensar e não disse nada logo. O meu velhote afastou-se de ao pé dela até lhe estar bem fora do alcance.

- Morris - disse ela por fim -, vou confiar em ti mais esta vez. Vai a essas diversões e traz o Handsome para casa antes que lhe aconteça uma desgraça. Nunca viverei em paz com Nosso Senhor, nem morrerei com a consciência limpa, se acontecer alguma coisa a esse pobre inocente desse negro.

O meu velho precipitou-se pelas escadas abaixo.

- Também posso ir, Pai? - perguntei eu. Antes de ele poder responder falou minha mãe.

- Tu vai com o teu pai, William. Quero que alguém o tenha debaixo de olho.

- Anda, filho! - disse ele, acenando-me. - Vamos depressa. Fomos rua abaixo, atravessámos as linhas do caminho de

ferro e a direito para o terreno das diversões, onde as ervas, em certos sítios, chegavam ainda à altura dos joelhos.

Havia dúzias de barracas espalhadas no terreno e já se juntava gente diante delas. As barracas tinham vastas pinturas em grandes tiras de lona estendidas à frente de cada uma, onde, num estrado, alguém berrava e ao mesmo tempo vendia bilhetes. O meu velho parou numa das barracas, que tinha pintadas umas raparigas nuas.

- Tens por acaso aí na algibeira dez cêntimos, filho - segredou-me. - Pago-te logo na primeira altura.

Disse que sim com a cabeça e declarei-lhe que só tinha os vinte e cinco cêntimos que reservava para ver o Oeste Selvagem, quando, como agora, as diversões viessem à cidade.

- Pois empresta-me agora os vinte e cinco cêntimos, filho

 

- e metia-me o dedo na algibeira das calças. - Eu pago-te em três tempos. Tão depressa que nem dás conta.

- Mas eu quero ver o Oeste Selvagem, Pai! - e meti a nião na algibeira e guardei a moeda no punho cerrado. - Então não posso guardá-la para isso, Pai? Deixe-ma ficar! Poupei durante mais de duas semanas para a juntar!

O homem que vendia as entradas pegou num grande megafone amarelo e berrou por ele. O meu velho enervou-se, começou a saltar de um lado para o outro e a puxar-me pela algibeira.

- Ora olha lá, filho! Não faz sentido que a gente esteja para aqui a discutir por uma moeda de vinte e cinco cêntimos. Quando a quiseres gastar já eu tá dei outra vez. Nem lhe dás pela falta.

- Mas a Mãe mandou que a gente encontrasse o Handsome. O melhor é ir procurá-lo. Conhece a Mãe. Vai ficar de cabeça perdida se a gente não o encontra e não o leva para casa.

- Procurar um diabo de um negro pode ficar para depois

- respondeu ele, e agarrou-me no braço, a ver se conseguia tirar-me o punho cerrado da algibeira. - Sei muito bem o que estou a dizer, meu filho, quando te digo que me emprestes essa moeda que tens na algibeira e te deixes de discutir comigo. Não te emprestava eu sempre dez cêntimos, ou fosse o que fosse, de tempos a tempos, desde que os tivesse e tu mo pedisses? Ora está, pois, muito certo que tu me emprestes por um bocadinho os teus vinte e cinco cêntimos.

Dentro da barraca começaram a tocar, e o homem dos bilhetes a berrar outra vez.

- É entrar! É entrar! É entrar! - e tinha os olhos pregados no meu velhote. - O espectáculo vai começar! As bailarinas menos vestidas do mundo estão a preparar-se para aparecer! Não percam o melhor espectáculo da vossa vida! Não queiram viver com o desgosto de não o ter visto! Subam já e comprem um bilhete enquanto é tempo! As pequenas querem dançar não as façam esperar! É entrar! É entrar! É entrar!

- Vês, filho? - disse o meu velho, agarrando-me com força no braço e puxando à bruta. - O espectáculo vai começar e se não entro já não o vejo!

Tirou-me o punho para fora e torceu-me os dedos. Era bastante mais forte do que eu, que já não conseguia segurar mais tempo a moeda. Mal a apanhou precipitou-se para o homem dos bilhetes, pagou ansiosamente o bilhete logo que lho estenderam e atirou-se para o interior da barraca. Eu não podia fazer outra coisa senão esperar, e sentei-me à espera ao pé de uma das entradas da barraca. A música tocava cada vez mais alto e alguém rufava lá dentro num tambor. Passados uns cinco minutos a música parou de repente e levantaram as abas da entrada. Uma multidão de homens se despejou de lá, e logo atrás deles, a seguir ao último que saía, vinha o meu velhote. Parecia bastante mais calmo do que quando entrara, mas foi contra um poste da luz eléctrica antes de ver para onde ia.

- Pode dar-me o troco dos vinte e cinco cêntimos, Pai? perguntei, correndo para o apanhar. - Pode, Pai

- Agora não, filho - e esfregava a face que fora contra o poste. - Está perfeitamente seguro aqui na minha algibeira. Até o podias perder se fosses tu a levá-lo.

Fomos andando entre duas filas de barracas, sempre à procura do Handsomc. Só quando chegados quase à última é que o vimos.

- Ora bem, que diabo está o Handsome ali a fazer? - disse meu pai, parando a olhar para o Handsome.

O Handsome estava atrás de uma grande lona, com a cabeça espetada num buraco redondo, a uns dez ou quinze metros de uma bancada onde se empilhava uma data de bolas de madeira. Um homem com uma camisa de seda vermelha estava ao lado da bancada e levantava as mãos cheias de bolas.

- Três bolas, dez cêntimos, e um charuto dos bons, que ardem devagarinho, se acertar no preto! Ora venham, gentes, experimentar a pontaria! Se o preto não consegue escapar-se ganham um charuto!

- Como é que tu te meteste num sarilho desses, Handsome?

- berrou o meu velho. - Que raio de idéia foi essa

- Viva, Senhor Morris - disse Handsome. - Viva, ai, Senhor William.

Viva, Handsome - disse eu.

- Tu não estás amarrado, pois não? - perguntou meu pai.

- Não podes sair daí?

- Não quero sair daqui, Senhor Morris. Eu agora trabalho

aqui.

- Que diabo te fez pores-te a andar esta manhã, hem?

- O Senhor Morris sabe muito bem o que me fez pôr a andar. Fartei-me de trabalhar sem receber nada e de ficar sem o meu banjo ainda por cima. Fartei-me de ser tratado dessa maneira, pronto. Mas não lhe quero mal, Senhor Morris.

- Pois safa-te daí para fora e marcha para casa-disse meu pai. - Começou o trabalho a crescer por toda a parte e. não há lá quem o faça. Tu não podes pôr-te a andar sem mais nem menos.

Pois pus-me a andar sem mais nem menos, Senhor

Morris. Pergunte aí ao branco que vende as bolas se eu não

pus.

Dirigimo-nos ao homem da camisa vermelha. Apresentou-nos

as bolas, mas o meu velho abanou a cabeça.

- Vim buscar o meu preto para o levar para casa, que é o lugar dele - declarou o Pai. - Aquele além, com a cabeça metida no buraco.

O homem deu uma grande gargalhada.

O seu preto? Que vem a ser isso de seu preto?

- O Handsome Brown. Está connosco desde os onze anos de idade. Vim buscá-lo para o levar para casa.

O homem voltou-se para o Handsome e berrou: - Eh rapaz! Queres voltar a trabalhar para este homem?

- Não! - O Handsome sacudia a cabeça. - Claro que não! Arranjei outro trabalho e estou a pensar em receber dinheiro em vez de nunca receber nada, a não ser roupa velha e outras coisas que tais.

- Cala a boca, Handsome Brown! -berrou meu pai. - Que maneira é essa de me falares depois do carinho com que te tenho tratado? Devias ter vergonha!

- Não posso falar doutro modo, Senhor Morris - disse Handsome. - Estou a trabalhar a contado e daqui ninguém me tira.

- Não vens então, como eu te digo

- Não, senhor, não vou.

O meu velho tirou da algibeira os quinze cêntimos e pousou-os na bancada.

- Quantas bolas posso eu atirar por quinze cêntimos - perguntou.

- Por ser para o senhor - respondeu o homem -, faço um preço especial. Dou-lhe seis bolas pelos quinze cêntimos. Mas lembre-se de que tem de acertar no preto antes de ele se safar. Se a bola passar pelo buraco não conta. Para contar é preciso que a cabeça dele ainda esteja no buraco.

- Isso tanto me faz - disse meu pai, agarrando bem a bola.

- Ora ponha-se de largo para me dar campo.

Os olhos de Handsome faziam-se mais e mais brancos, enquanto o meu velhote atirava o braço em volta, para aquecer, como um lançador de basebol.

Meu pai largou uma bola rápida, que apanhou o Handsome em cheio na testa antes de ele ter tempo de se safar. O Handsome ficou tão espantado que nem percebia o que lhe acontecera. Ficou sentado no chão a esfregar a cabeça, até que o homem da camisa vermelha correu para ele a ver se lhe tinha acontecido alguma coisa séria. O Handsome então levantou-se, um pouco vacilante, e enfiou a cabeça outra vez pelo buraco.

- E aqui tem um charuto, meu caro senhor - disse o homem.

- Deve ter sido jogador de basebol, a julgar pela sua pontaria.

- Joguei um bocadito quando era novo - respondeu meu pai. - Já não sou o que era.

- Pois vamos a ver desta vez. Essa primeira pode ter sido! pura sorte.

- Ponha-se de largo e dê-me espaço.

Meu pai agarrou na bola, inclinou-se, cuspiu nos dedos e começou a tomar balanço. E atirou uma bolada tal que eu nem a vi. O Handsome também não deve tê-la visto, porque não se mexeu uma linha. A bola acertou-lhe do lado esquerdo da cabeça e soou como uma tábua num fardo de algodão. Handsome abateu com um gemido cavo.

- Olhe lá - disse o homem da camisa vermelha, correndo para onde o Handsome ficara estendido no chão -, acho que é melhor deixar-se de matraquear no preto. É capaz de o matar, se isto continua por mais tempo.

- Vendeu-me seis bolas - disse meu pai - e estou no meu direito de as jogar. Diga ao Handsome que se levante, que é para isso que lhe pagam.

O homem abanou o Handsome e pô-lo de pé. O Handsome balouçava para um lado e para o outro, até que balouçou para diante e se agarrou à lona. A cabeça ficou mesmo no meio do buraco.

- Afaste-se! - gritou meu pai ao tipo da camisa vermelha. Tomou balanço e a bola apanhou o Handsome antes de alguém

ter dado por isso. O Handsome foi pelos ares.

- Basta! - bradava o homem. - Mata o preto! Não quero morte de preto nas minhas barbas!

- Pois então ele que venha para casa, que é o lugar que lhe compete - disse meu pai -, e eu deixo de lhe dar com as bolas.

O tipo correu a buscar um balde de água, levantou-o e despejou-o todo na cara do Handsome. O Handsome torceu-se e abriu os olhos. Fitou-nos aos três com um ar estranho.

- Onde estou eu?

Ninguém disse uma palavra. Esperávamos, a olhar para ele. Handsome ergueu-se sobre um cotovelo e passeou os olhos em volta. Depois levou a mão à cabeça e começou a apalpar os grandes altos que as bolas haviam feito. Cresciam que pareciam ovos de galinha.

- Afinal não escolhi o bom caminho, Senhor Morris - disse ele, levantando o olhar para o meu velho, - Antes quero voltar e trabalhar para si e para a "nhora" Martha, como sempre fiz, que ficar aqui a apanhar sempre assim com essas bolas.

O meu velho acenou afirmativamente, e com um gesto mandou-o pôr-se de pé. O homem da camisa vermelha apanhou do chão as bolas e foi arrumá-las em cima do banco.

Lá fomos os três a caminho de casa, por um atalho que atravessava os terrenos traseiros às barracas. O Handsome trotava colado ao meu velhote sem dizer palavra e procurando quase pisar-lhe os calcanhares. Levava, volta e meia, a mão à cabeça, para apalpar um dos grandes galos.

Pouco antes de chegarmos a casa paramos, e meu pai fitou o Handsome com severidade.

- Ora estou com vontade de pôr tudo como dantes, Handsome. O que lá vai, lá vai. E, portanto, não me chateies mais com essa história de reaver o banjo.

- Mas, Senhor Morris - respondeu Handsome. - Eu é que não sei passar sem um banjo

- Deixa-te de remexer águas passadas, Handsome.

- Mas, Senhor Morris, se ao menos eu

- O que lá vai, lá vai... e esse banjo também se foi - declarou o meu velhote, e passou a cancela do pátio.

 

O meu velho, certa manhã, saltou da cama muito antes de romper o dia e foi à pesca sem dizer uma palavra à minha mãe ou a mim. Gostava sempre de se escapar assim cedinho, antes de minha mãe se levantar e andar a cirandar, porque bem sabia como ela fazia finca-pé se lhe descobria as tenções e acabava por não o deixar ir. Às vezes sumia-se por três ou quatro dias para a ribeira das Silvas, e quanto mais o peixe mordia mais ele se ficava por lá. O meu velho era doido por pescar.

Apanhava uma data de bogas e de percas e fritava-as num foguinho na margem da ribeira quase tão depressa quanto as sentia na ponta do anzol. Costumava dizer que não tinha pés nem cabeça trazer os peixes para casa, porque o mulherio nunca aprendera a embrulhar em farinha uma perca a seu gosto.

Nessa manhã, ao almoço, a Mãe deu por falta dele, mas não me disse nada e continuou de um lado para o outro como se não tivesse reparado na ausência dele. Depois do almoço fui para trás do coberto e ajudei o Handsome Brown a bater o trigo e a pôr feno à Ida. Andámos por fora a manhã inteira a cortar lenha de pinheiro e a falar no dinheiro que a gente ganhava se vendesse quanta sucata encontrasse.

Quando o apito do meio-dia soou na serração, minha mãe veio até atrás do coberto, onde nós estávamos, e perguntou ao Handsome se sabia para onde o Pai tinha ido. Eu não disse nada porque não gostava de contar coisas de meu pai. Claro que eu sabia muito bem, pois que o Handsome me dissera como o meu pai até o tentara, nessa manhã, a ir com ele.

- Handsome Brown - disse a Mãe -, não te fiques aí sentado sem me responderes quando eu falo contigo. Onde está o Senhor Morris, Handsome?

O Handsome olhou para mim e depois para o monte das achas que tinha passado a manhã a cortar.

- Então ele não anda por aí, "nhora" Martha? - perguntou, pouco depois, desviando primeiro os olhos e levantando-os então para minha mãe até o branco deles parecer grande como um prato.

- Tu sabes muitíssimo bem que ele não está cá, Handsome

- disse minha mãe, batendo o pé. - Que mania de fugir com o rabo à seringa! Não tens vergonha!

- "Nhora" Martha - e olhava a direito para a Mãe eu não estou a fugir com nenhum rabo

- Então diz-me onde está agora de manhã o Senhor Morris.

- Talvez tenha ido ao barbeiro, "nhora" Martha. Não há muito tempo que o ouvi dizer que estava precisado de uma boa tosquia.

- Handsome Brown - repetiu minha mãe, apanhando um pauzito, como sempre fazia quando se fartava de esperar pelo que queria saber -, eu quero que me digas a verdade.

- Mas eu estou a fazer o mais que posso por dizer a verdade, "nhora" Martha. Talvez o Senhor Morris tenha ido à serração. Não há muito tempo que ouvi dizer que precisava de umas tábuas para consertar o galinheiro.

Minha mãe afastou-se até à cancela e olhou para a varanda das traseiras. O meu velho guardava sempre a cana de pesca no canto do pórtico, e minha mãe sabia isso tão bem como os outros.

- "Nhora" Martha - disse Handsome -, o Senhor Morris disse que ia dar uma olhadela a umas vitelas, numa pastagem aí não sei onde.

Minha mãe voltou-se precipitadamente.

- E para que levou ele consigo a cana de pesca? - e fitava Handsome com dureza.

- Talvez o Senhor Morris tenha mudado de idéias sem se lembrar de me dizer. Talvez acabasse por achar que afinal o dia não estava bom para ver vitelas.

- Pois também não está bom para intrujices, Handsome Brown - e passou a cancela, em direcção à casa.

Handsome deu um pulo e correu atrás dela quanto podia.

- "Nhora" Martha, eu só estava a dizer o que o Senhor Morris me disse que dissesse. Sabe que eu, por mim, não lhe digo intrujices, pois não sabe, "nhora" Martha? Eu disse o que disse, porque o Senhor Morris me mandou, e eu faço sempre por cumprir o que me mandam. Às vezes é que misturo um bocado as coisas quando tenho de dizer a verdade para dois lados ao mesmo tempo.

Minha mãe foi para a cozinha e fechou a porta. Bem a ouvíamos a mexer nas panelas e frigideiras. Dali a pedaço abriu a porta e chamou por mim.

- O teu jantar está pronto, William. O do teu pai também está, mas ele não merece nem mais uma migalha, por anos que viva.

Aconteceu que nessa altura olhei para o terreiro e quase ia rebentando de pasmo. A cabeça do meu velho aparecia acima da vedação só o bastante para espreitar. Estava atrás do tabuado mais alto a ouvir tudo o que se passava. Dei uma cotovelada ao Handsome para que ele visse o meu velho antes de dizer alguma coisa que o metesse em sarilhos com o meu pai.

Minha mãe notou que havia alguém escondido atrás da vedação e veio à beira da escada a olhar nas pontas dos pés. O meu velho mergulhou a cabeça nesse mesmo instante, mas a Mãe já o tinha visto e correu pelo terreiro e abriu a cancela sem dar tempo a meu pai de se esgueirar para trás do coberto. Agarrou-o pelas alças e arrastou-o para os degraus do pórtico.

- William! -disse. -Vai já para casa e fecha as portas e corre as cortinas das janelas. E não saias enquanto eu não te chamar.

Levantei-me e atravessei a varanda tão devagar quanto possível. O Handsome começou a escapar-se para a esquina, mas minha mãe viu-o e chamou-o.

- Tu ficas aí onde estás, Handsome Brown!

O meu velho parecia mansinho como um cordeiro, ali no pátio, com as garras da Mãe nas alças do fato-macaco. com um desvio dos olhos fitou-me. Apeteceu-me dizer-lhe qualquer coisa, mas tive medo do que a Mãe me faria.

- Morris Stroup! - e puxava-o para o primeiro degrau.

- Que vem a ser isto de meter um pobre rapazito de cor em sarilhos mandando-o mentir por tua conta?

O meu velhote olhou para o Handsome e o Handsome olhou para o chão. Ficaram todos calados um pedaço, e eu a tremer de que a Mãe me fizesse ir para dentro antes de eu ouvir o que o meu pai diria.

- Oh, Martha - e erguia os olhos para ela -, mas tu estás enganada. Eu nunca na vida mandei o Handsome dizer uma mentira. Nunca me passaria tal coisa pela cabeça!

- Então para que o mandaste dizer-me que ias ver umas vitelas quando pegaste na cana e foste à pesca?

O meu velho tornou a olhar para o Handsome e o Handsome fez que olhava para os lados da horta.

- Se foi isso o que o Handsome te disse é a pura verdade das verdades, porque foi isso exactamente o que eu estive a fazer. Vi das mais lindas vitelas

Minha mãe olhou-o asperamente, mas não disse mais nada. Bem se via que não acreditava numa palavra dele.

Fitava o meu velhote tal e qual como costumava sempre que tinha lá dentro muito mais que dizer, mas a fúria não a deixava falar. Chamou-me então para jantar e foi para a cozinha. Meu pai e eu lavámo-nos no tanque, entrámos e sentámo-nos. Comemos o que a Mãe nos deu sem uma palavra. Quando acabámos, o meu velho saiu para o terreiro e encostou-se à vedação para dormir a sua sesta.

Durante algum tempo tudo ficou em paz e sossego.

Aconteceu, porém, que levantei os olhos e vi o Handsome a fazer-me sinais para ir ter com ele. Fui pé ante pé pelo terreiro fora e abri a cancela sem a deixar chiar nem um bocadinho.

Quando cheguei atrás do coberto, o Handsome segredou-me ao ouvido qualquer coisa e apontou-me para a árvore ao pé do galinheiro. Estava lá a mais linda vitela que eu já vira em dias da minha vida. A vitela teria um terço do tamanho das grandes, um pelinho sedoso e cor de laranja e um focinho redondo e brilhante. Estava à sombra, a enxotar as moscas com o rabo e a ruminar de um molho de erva acabadinha de cortar. Tinha um ar de quem nunca na vida se sentira tão bem.

O meu velho continuava a dormir do outro lado da vedação e nós tínhamos medo de o acordar se falássemos alto. O Handsome fazia-me sinais com as mãos. Era fácil perceber que gostava da vitela tanto como eu. Andou à volta dela várias vezes a dar-lhe palmadinhas nas ancas e a fazer-lhe festas no focinho.

Ainda estávamos a dar palmadinhas na vitela e a admirá-la quando ouvi alguém bater à porta da frente. Nesse momento, olhando por cima da vedação, vi a Mãe sair da cozinha, a limpar as mãos ao avental, e ir para a frente da casa. Dei a correr a volta ao coberto e fui nas pontas dos pés até ao pórtico da frente para ver quem nos vinha visitar.

À porta estava um homem de fato-macaco e chapéu de palha. Nessa altura a Mãe abriu o guarda-vento e saiu.

- Viva, Senhora Stroup - disse ele, descobrindo-se e segurando o chapéu atrás das costas. - Eu sou o Jim Wade, de ao pé da ribeira das Silvas.

Minha mãe apertou-lhe a mão e disse qualquer coisa que eu não consegui ouvir.

- Vim perguntar se a senhora ou o Senhor Stroup não viram por aqui, perto de casa, assim a modos que uma vitela. Perdi uma esta manhã, e várias pessoas me disseram que a tinham visto vir para estas bandas não há muito tempo.

- Não faço idéia nenhuma - disse a Mãe. - Que eu saiba não tem aparecido por aqui nenhuma vitela. Meu marido foi esta manhã à pesca e estou certa de que me teria falado na vitela se a tivesse visto.

O Sr. Wade voltou-se e olhou por instantes para a rua.

- É uma coisa curiosa, lá isso é - disse ele. - Tinha a certeza de que havia de a encontrar por aqui, em sua casa. Um homem numa das lojas disse-me que tinha visto uma vitela vir por estes lados pouco antes de a serração apitar para o meio-dia.

Minha mãe abanou e tornou a abanar a cabeça, declarando que durante o dia inteiro não vira uma vitela ao pé da casa.

- Sabe, Senhora Stroup - disse o Sr. Wade, dando à cabeça para um e outro lado -, tudo isto é muito estranho. Um dos meus trabalhadores disse que esta manhã um tipo atravessou o meu prado, cortou um molho de erva e o guardou na camisa, Não prestei grande atenção, mas, a meio da manhã, outro dos meus trabalhadores disse que tinha visto um homem passar na estrada, a caminho da cidade, com uma cana de pesca ao ombro e uma vitela atrás. E disse-me que o homem da cana, de vez em quando parava, tirava da camisa um molho de erva e amarrava-o à ponta da cana. E a vitela ia atrás dele pela estrada fora. E aqui está porque eu digo que tudo isto é muito estranho. Eu, por mim, não percebo nada. Mas não há dúvida que é esquisito.

A minha mãe começou a parecer aflita, mas não disse uma palavra.

- Eu não estaria para aqui a maçá-la assim, Senhora Stroup, se lá na cidade não me tivessem dito que unham visto uma vitela para estas bandas. Por isso é que eu cá vim perguntar se a teria visto.

Minha mãe apertou a mão ao Sr. Wade e abriu o guarda-vento. Depois de ela entrar, o Sr. Wade desceu devagar as escadas, olhando para um lado e outro da rua. Antes de voltar para a cidade abaixou-se e pôs-se a olhar para debaixo da nossa casa, que estava a mais de um metro do chão, e onde havia altura de sobra para o maior dos cães ou quase para uma cabra de bom tamanho. Esteve assim muito tempo a ver, até que se levantou, sacudiu o pó dos joelhos e desapareceu rua abaixo.

Eu voltei a correr para o coberto. O meu velho levara sumiço. O Handsome Brown estava sentado no cimo da vedação, de costas para a casa e a ver qualquer coisa do outro lado. Ouvi então minha mãe atravessar a casa, atirando com as portas, e escapei-me pela cancela antes que ela chegasse ao pórtico e me visse.

Fui de volta, e a primeira coisa que vi, atrás do coberto, foi o meu velhote, à sombra da árvore, a segurar num molho de erva acabadinha de cortar, para a vitela comer. O Handsome, sempre no cimo da vedação, observava sem dizer nada.

- Lindinha - chamava o meu velhote à vitela, esfregando-Lhe o nariz e dando-lhe palmadas no lombo.

Nesse momento apareceu minha mãe a correr. Parou fulminada quando viu o meu velho e a vitela.

- Lindinha... -dizia ele, fazendo festas à vitela. - Lindinha

Minha mãe gemeu, e todos se voltaram e a viram.

- Martha! - exclamou o meu velho, aproximando-se do coberto e olhando para ela. - Que é que te aflige? Não estás bem?

Minha mãe endireitou-se e cambaleou em direcção a nós.

- Morris... - disse, com voz fraca. - Oh Morris? Meu pai voltou à vitela e segurou a erva para ela comer.

- Foi uma coisa engraçada. Martha. Estive a pescar na ribeira das Silvas, de manhãzinha, e nem um peixe mordia o anzol. Decidi voltar para casa e experimentar noutra manhã. No caminho atravessei o prado mais lindo que tenho visto de há muito tempo para cá e arranquei uns punhados de erva, de bonita que a achei. Não tardou que, ao vir pela estrada fora, de uma vez que me voltei, visse uma vitela atrás de mim. Parecia que andava perdida. Não liguei grande importância até chegar a casa; volto-me outra vez, e lá estava ela, a mesmíssima vitela. Por essa altura, chegara eu aqui ao pátio, atrás do coberto, e, portanto, o que tinha a fazer era dar-lhe da erva que metera na camisa, de bonita que a tinha achado. Foi uma coisa engraçada, então não foi, Martha?

Minha mãe chegou-se mais, a olhar para a vitela, que continuava a comer sem ligar importância a ninguém.

- William! - disse minha mãe de repente, voltando-se para mim. - Mete-te em casa e fecha as portas e puxa as cortinas. Não te quero cá fora enquanto não chamar por ti.

Sempre que a Mãe me dizia para me meter em casa assim, isso significava que ia dar uma ensinadela ao meu velho. Eu detestava ir-me embora e deixá-lo quando minha mãe estava com a veneta, mas tinha de fazer o que ela mandava.

A Mãe, depois de falar comigo, voltou-se e viu o Handsome empoleirado na vedação. Handsome saltou para o chão num instante, sem ser preciso dizer-lhe nada.

- Handsome, vai para qualquer parte e deixa-te lá estar até eu te chamar.

O Handsome pôs-se logo a caminho pela horta fora.

- E se alguém te falar de uma vitela não quero que abras a boca, Handsome Brown! Começas por dizer mentirolas por tua conta, se não tens cuidado. Não te chegues a ninguém até eu te chamar. Ouviste, Handsome?

- Sim, "nhora" Martha - respondeu ele. - vou fazer o que a senhora me diz. Eu faço sempre o que à senhora e o Senhor Morris me dizem.

E atravessou a horta, mas ficou escondido atrás da vedação.

- E agora, Morris Stroup - disse a Mãe, rodando para o meu velho. - Que tens tu a dizer em tua defesa Depois de teres ido daqui e roubado a vitelinha do Jim Wade, já deves ter tido tempo de cozinhar uma história sem pés nem cabeça. O pior de tudo é que tornaste o Handsome Brown, pobre negrinho inocente, conivente na tua roubalheira, porque o fizeste mentir para te encobrir.

- Ora espera lá, Martha Não te precipites assim. Esta vitela seguiu-me livremente até casa. Não estava na minha mão, se

- Não estava na tua' mão depois de teres ido apanhar a erva do Senhor Wade para a tentares com ela, amarrada na ponta dessa tua cana de pesca, e balouçando-a em frente do nariz da bicha a cada passo do caminho até aqui!

O meu velhote fazia um ar muito humilde, de borrego, enquanto arranjava mais que dizer, e ao mesmo tempo matutava em como minha mãe sabia que ele tinha cortado a erva e o resto da história.

Minha mãe olhava-o severamente, sem dizer qualquer coisa, até que se pôs a observar a vitela a comer do molho da erva.

- A única explicação que eu posso dar - dizia o meu velho é que a vitela gosta, muito naturalmente, de estar ao pé de mim. Não vejo outra razão para

- Mal o Sol se ponha esta tarde, Morris Stroup, tu passas um cabresto a essa vitela e vais pô-la nas pastagens do Jim Wade, de onde a roubaste. E se pelo caminho encontrares alguém, preto ou branco, esconde-te nas ervas à espera que passe, porque não quero que ninguém saiba que roubaste uma vitela e a trouxeste para casa em pleno dia.

O meu velho voltou-se para a vitela e a vitela virou a cabeça e levantou para ele os olhos. E ficou-se a olhá-lo, ruminando sempre.

- Mas é uma bonita bicha, pois não é, Martha? - e fazia-lhe festas no focinho e no pescoço. - Lindinha Lindinha

A vitela rodou e pôs-se a olhar para minha mãe. Um ou dois minutos depois, a Mãe aproximou-se da vitela e fez-lhe festas no focinho. A vitela continuava a fitar minha mãe e minha mãe parecia não ser capaz de tirar os olhos dela.

Assim estiveram muito tempo a olhar uma para a outra, e o meu velho tirou da camisa mais um punhado de erva.

- Lindinha - disse a Mãe, tirando a erva ao meu velho e oferecendo-a à vitela. - Não parece bem levá-la para lá, obrigá-la a passar o tempo no prado. Deve ter imenso frio de noite e nos dias de chuva.

Meu pai foi sentar-se à sombra da árvore, a ver a Mãe e a vitela. Já não tinha um ar aflito.

- Lindinha - dizia a Mãe, fazendo festas à vitela no focinho e no pescoço. - Lindinha

 

Minha mãe, depois do almoço, foi até ao quarteirão de cima da rua falar com a Sr. a Howard por causa da reunião da Sociedade de Melhoramentos das Damas de Sycamore e saiu a dizer ao Handsome que tivesse os pratos lavados e pendurados a secar ao sol antes de ela voltar. Era dia de folga do Handsome, que nunca gozara dia de folga, apesar de trabalhar para nós desde os onze anos, porque sempre acontecia alguma coisa que o impedia de sair a dar ar à pluma um dia inteiro. Handsome gostava de limpar os pratos com o seu vagar, fosse um dia de serviço como os outros todos, ou na verdade o seu dia de folga, pois bem sabia que qualquer dos dias acabava por ser como os mais; e, em geral, arranjava sempre uma boa desculpa para não ter os pratos lavados mais depressa do que devia. Nessa manhã, depois de a Mãe ter ido para casa da Sr. a Howard, declarou que tinha fome; e foi à cozinha e preparou uma pratada de iscas de fígado de porco.

O meu velho preguiçava nos degraus do pórtico das traseiras, cabeceando ao sol, como era seu costume pelas manhãs, depois do almoço, quando tinha ocasião, porque, dizia ele, uma sesta depois do almoço fazia-o sentir-se melhor para o resto do dia. Handsome levou muito tempo a comer o seu fígado, pois sabia que, mal acabasse, lavaria a louça, e estava ainda sentado numa cadeira ao pé do fogão, a comer da frigideira, quando alguém bateu na porta da frente. Como tanto o meu pai como o Handsome estavam ocupados, fui eu de volta ver quem era.

Quando cheguei vi uma rapariga de ar esquisito, de uns dezoito a vinte anos, com a cara colada ao guarda-vento, a ver se espreitava para dentro. Trazia uma caixa de metal em forma de maleta e vinha em cabelo, um cabelo castanho muito comprido, encaracolado nas pontas. Logo concluí que nunca a tinha visto e calculei que seria pessoa de fora à procura da casa de alguém que ela vinha à cidade visitar. Fiquei-me a observá-la, até que ela, pondo a mão no trinco, tentou abrir o guarda-vento.

- Quem procura? - perguntei-lhe, parando ao pé dos degraus.

Virou-se num relâmpago.

- Olá, menino! - e veio até à beira da escada. - O teu pai está em casa?

- O Pai está a dormir a sesta na varanda das traseiras. Eu vou chamá-lo.

- Espera! - disse, muito excitada, e correu pela escada abaixo a segurar-me por um braço. - Mostra-me onde ele está. É muito melhor.

- Mas para que é que o quer ver? - perguntei, a matutar em quem seria ela, se de facto era o meu pai que ela queria ver.

- Anda à procura da casa de alguém?

- Não te preocupes, menino - e sorria; - leva-me até onde ele está.

Demos a volta à casa e passámos a cancela do pátio. A cada movimento dela uma grande vaga de perfume a rodeava, e as meias enrolavam-se-lhe abaixo dos joelhos. O meu velho dormia a sono solto, com o queixo pendurado e a nuca pousada no último degrau, porque dizia ser essa a única maneira de se sentir bem instalado para cabecear. Eu distinguia o Handsome no meio da cozinha, a olhar para nós através do guarda-vento e a comer da frigideira as iscas.

A rapariga pousou a mala, puxou as meias para baixo das ligas e foi pé ante pé até onde o meu velho se espapaçava nos degraus. Depois agachou-se ao lado dele e tapou-lhe os olhos com as mãos. O Handsome até parou de comer e ficou de grande colherada a meio caminho da boca.

- Quem sou eu? - gritou a rapariga.

O meu velho deu um salto para o lado, como em geral fazia quando a Mãe o acordava sem que ele esperasse. Mas não se levantou dos degraus porque, mal se endireitou, a rapariga empurrou-lhe para trás a cabeça e não o deixava ver nada. Eu bem via as narinas dele a abrir e a fechar como as do cão que fareja um esquilo numa árvore, logo que o perfume lhe cheirou.

- Quem sou eu? - repetiu a rapariga, a rir muito alto.

- Aposto que não é a Martha - disse o Pai, apalpando-lhe os braços até aos cotovelos.

- Veja se adivinha - disse ela, trocando.

O meu velho livrou-se das mãos dela e sentou-se estremunhado.

- Ora diabos me levem! Quem raio é você?

A rapariga levantou-se da escada, a rir, e foi buscar a maleta. Enquanto nós três seguíamos com os olhos o que ela fazia, abriu a tampa e tirou uma braçada de gravatas novinhas em folha. Tinha mais gravatas que uma loja.

Meu pai esfregou os olhos e aproveitou para dar uma boa olhadela à rapariga debruçada sobre a maleta.

- Esta há-de ficar-lhe maravilhosamente! -disse ela, escolhendo uma gravata verde-clara e amarela. Voltou ao pé do meu pai e passou-lha ao pescoço: - Foi feita para si!

- Para mim? - disse meu pai, levantando os olhos e aspirando o perfume que flutuava em redor dela.

- Claro que sim - e olhou de banda para meu pai mais a gravata. - Não podia ficar-lhe melhor.

- Eu não sei o que é que a senhora quer - disse meu pai -, mas de qualquer maneira está a perder o seu tempo. Eu preciso tanto de gravata como um porco precisa de carteira.

- Mas é uma gravata tão bonita! - insistiu ela, deixando cair na mala a braçada de gravatas e chegando-se mais ao meu velho. - Diz tão bem com a sua pele!

E sentou-se colada a ele, no degrau, e começou a dar-lhe o nó da gravata. Ali estiveram sentados, até que a cara do meu velho se fez vermelha como um tomate. Nessa altura já o perfume dela se espalhara pelo sítio todo.

- Ora, ora, que sabe você dessas coisas! -'dizia meu pai, com ar de quem não sabia o que dizia. - Quem havia de supor que uma gravata me ficava bem à pele!

- Pois vamos ver num espelho! - respondeu ela, compondo-lhe a gravata no peito, às palmadinhas. - Quando se vir ao espelho há-de reconhecer que não pode passar sem uma gravata! Se lhe fica tão bem!

O meu velho olhou de esguelha para casa da Sr. a Howard, na esquina da rua.

- Há lá dentro um espelho - disse ele, em voz baixa, como se não quisesse que o ouvissem.

- Então, venha - respondeu a rapariga, puxando-o por um braço.

Pegou na maleta e entrou, com o meu velho logo atrás. Mal entraram, Handsome saiu da cozinha e corremos para o outro lado da casa, para espreitarmos por uma das janelas.

- Que lhe dizia eu? Não lhe dizia que era uma beleza? Aposto que nunca teve uma gravata assim em dias da sua vida!

- ouvimos nós à rapariga.

- Parece-me que tem razão nisso - declarou o meu pai. É uma beleza, não haja dúvida. E assenta-me bem, pois não assenta?

- Pois claro! - dizia ela, ao lado do meu velho e a olhar para o espelho por cima do ombro dele. - Ora deixe-me arranjar um nó mais bem feito.

Passou para diante do meu velho e apertou-lhe o nó no pescoço. E depois deixou-se ficar com as mãos nos ombros, a sorrir para o meu velhote, que deixou de se mirar no espelho e a fitou. O Handsome começou a ficar excitado.

- A "nhora" Martha está a chegar a casa de um momento para o outro. O seu pai devia ter cuidado. É mais que certo que vai haver grande trovoada se a "nhora" Martha chega e ela ainda ali está às voltas com a gravata. Quem me dera ter já lavado a louça e estar de folga antes da "nhora" Martha chegar!

O meu velho inclinou-se, aspirou o perfume por cima da rapariga e passou-lhe os braços pela cintura.

- E quanto quer receber por isto? - perguntou.

- Cinqüenta cêntimos.

Meu pai abanou a cabeça de um lado para o outro.

- Não tenho de meu cinqüenta cêntimos - disse, com tristeza.

- Ora, ora, deixe-se de sovinices - replicou ela, a sacudi-lo com força. - Cinqüenta cêntimos não é nada.

- Mas é que os não tenho - repetiu ele, apertando-lhe mais a cintura. - Não os tenho, é o caso.

- E não sabe como os há-de arranjar?

- Não sei lá muito bem. O Handsome gemeu.

- Quem me dera que o seu pai se deixasse de maluqueiras por causa de uma gravata. Estou mesmo a ver que daqui não sai coisa boa. Sinto cá no fundo que não tarda a acontecer qualquer coisa má, e já sei que sou sempre eu quem se vê em sarilhos quando essas coisas acontecem. Garanto que bem queria que a minha folga tivesse começado antes de essa rapariga aparecer mais as gravatas.

A rapariga passou os braços ao pescoço do meu velho e espremia-se contra ele. Assim ficaram um bom pedaço.

- Está-me a parecer que sempre arranjarei um meio dólar. Tenho estado a pensar. No fim de contas talvez arranje - disse o meu velhote.

- Pois muito bem - respondeu ela, tirando os braços e recuando. - Vá depressa arranjar.

- E espera por mim aqui até eu voltar?

- Claro que sim. Mas não se demore muito.

O meu velho começou a recuar para a porta e a dizer:

- Espere aqui mesmo. Não dê um passo para fora deste quarto. vou num pé e venho noutro.

E quase na mesma altura já estava no pórtico das traseiras a berrar:

- Handsome! Handsome Brown!

Handsome gemeu como se estivesse a caminho da forca.

- Que quer de mim o Senhor Morris no meu dia de folga? perguntou, deitando a cabeça de fora da esquina.

- Não te rales com o que eu quero! - e meu pai precipitava-se pelas escadas abaixo. - Vem comigo, como eu te digo. Despacha-te!

- Mas que idéia é a sua, Senhor Morris? A "nhora" Martha disse-me que tratasse de ter a louça limpa antes de ela chegar. Não posso fazer outra coisa que não seja o que ela me mandou fazer.

- A louça pode esperar! Além de que a gente torna a comer e torna a sujá-la! - agarrou no Handsome pela manga e arrastou-o para a rua. - Desanda e faz o que eu te digo.

Fomos pela rua abaixo, com o Handsome a trote para nos acompanhar. Quando chegámos a casa do Sr. tom Owens, viramos para a horta. O Sr. Owens estava a sachar ervas más na sua horta.

- tom! - berrou meu pai por cima da vedação. - Decidi deixar o Handsome fazer um dia de trabalho para ti, como tu querias. Está pronto a começar neste instante!

Empurrou o Handsome para dentro da horta do Sr. Owens e fê-lo correr entre os alegretes de couves e nabos até onde estava o Sr. Owens.

- Dá ao Handsome o sacho, tom - disse o Pai, tirando-o das mãos do Sr. Owens e pondo-o nas mãos do Handsome.

- Mas, Senhor Morris, o senhor não estará esquecido que este é o meu dia de folga? - dizia o Handsome. - Garanto que não estou com disposição para sachar essas ervas daninhas!

- Cala-te, Handsome! - e meu pai deu-lhe um forte safanão ao ombro. - Trata da tua vida.

- Mas é da minha vida que eu estou a tratar, Senhor Morris! Então não é da minha vida eu ter um dia de folga?

- Tens a vida inteira à tua frente para dias de folga! Começa já a tirar essas ervas como eu te mandei!

Handsome levantou o sacho e deixou-o cair num tufo de ervas. Eram de tal força que a lâmina pulou quando as atingiu.

- E agora, tom - disse meu pai, voltando-se -, paga-me os cinqüenta cêntimos.

- Eu não pago nada antes do trabalho feito - e o Sr. Owens abanava a cabeça. - Sei lá se ele faz trabalho para meio dólar? Estava a deixar-me comer se ia agora pagar para depois ver que ele não tinha trabalhado quanto tinha recebido.

- Senhor Morris? - disse Handsome, levantando os olhos para meu pai.

- Que é, Handsome?

- Eu não quero andar nesta sacha das ervas, por favor. Quero o meu dia de folga.

Meu pai olhou-o duramente, e com o pé apontou o sacho.

- Ora passa-me para cá os cinqüenta cêntimos, tom.

- Mas que pressa é essa de receber a paga antes do trabalho feito?

- É que eu tenho de arrumar já um assunto. Se me desses o dinheiro, tom.

O Sr. Owens pôs-se a ver o Handsome a sachar as ervas e depois levou a mão à algibeira do fato-macaco e tirou uma mão-cheia de pregos, parafusos e moedas pequenas, E foi pesquisando no monte até ter extraído meio dólar em níqueis e pratas.

- É esta a última vez que emprego esse preto se ele não me trabalha a valer o dia inteiro! - declarou meu pai.

- Não hás-de arrepender-te de alugar o Handsome. O Handsome é um dos melhores trabalhadores que tenho encontrado por cá.

O Sr. Owens estendeu o dinheiro ao Pai e guardou o resto do monte na algibeira. O meu velho, mal se viu com o dinheiro, marchou para a cancela.

- Senhor Morris, por favor - disse Handsome.

- Que mais queres tu, Handsome? Não vês como estou com pressa - berrou-lhe da cancela meu pai.

- Não podia eu ter um bocadinho de folga ao princípio da tarde?

- Não! Não te quero ouvir falar mais em dias de folga! Tu nunca me viste ter um dia de folga, pois não?

E estava com uma tal pressa que nem disse mais palavra ao Sr. Owens. Correu pela rua fora e enfiou para casa. E, ao entrar, fechou o trinco do guarda-vento.

A rapariga estava sentada na cama a dobrar as gravatas uma a uma e a arrumá-las na maleta. Levantou os olhos quando o Pai se precipitou pelo quarto dentro.

- Aqui tem o dinheiro, como eu disse! - e sentou-se na cama ao lado dela e deixou-lhe cair na mão os níqueis e as pratas.

- Não levei muito tempo a arranjá-lo.

A rapariga meteu o dinheiro na bolsinha, dobrou mais umas gravatas e puxou as meias para cima.

- Aqui tem a sua gravata - disse ela, pegando na verde e amarela, que estava em cima da cama, e pondo-a na mão de meu pai. A gravata caiu no chão aos pés dele.

- Mas não vai -começou ele, comendo-a com os olhos.

- Não vou o quê?

O meu velhote ficou de boca aberta a olhar para ela, que se inclinou, dobrou o resto das gravatas e as meteu na mala.

- É que eu pensava que talvez me pusesse a gravata ao pescoço e me fizesse o nó outra vez, como há bocadinho - disse ele devagar.

- Ouça lá! Vendi, não vendi? Que mais queria por cinqüenta cêntimos? Tenho de correr até à noite a cidade inteira. Quantas vendas lhe parece que eu faria se passasse o tempo a dar o nó das gravatas ao pescoço dos tipos a quem já tinha vendido uma gravata?

- Mas... mas... eu pensava... - gaguejou o meu velho.

- Pensou o quê?

- A modos que eu pensava que talvez quisesse tornar a passar-me a gravata ao pescoço

- Ah sim? - troçou ela.

E levantou-se e atirou com a tampa da mala. O meu velho ficou sentado onde estava, a vê-la pegar na mala e sair do quarto para fora. Ouvimo-la atirar com a porta da frente e descer as escadas a correr. Em três tempos já estava diante da casa do Sr. Owens, a enfiar pelo quintal.

O meu velhote ficou sentado na cama por muito tempo, a olhar para a gravata verde e amarela caída no chão. Depois levantou-se e deu-lhe um pontapé que a atirou pelo quarto fora, veio para o pórtico e sentou-se nos degraus onde podia espreguiçar-se outra vez ao sol.

 

Estávamos sentados na varanda da frente, depois da ceia, quando Ben Simons apareceu na rua e entrou no nosso quintal. O meu velho não andara bem disposto a tarde inteira e não tinha falado grande coisa, embora eu o ouvisse resmungar lá com ele, de tempos a tempos. Tudo começara pela manhã, quando a Mãe lhe saltou em cima por ele não ter emprego nenhum e nem sequer ir à procura de um qualquer. Andara a atanazá-lo de um lado para o outro do pátio, a lamentar-se por passar a vida a lavar e a engomar e ser raro ele ganhar um chavo que fosse. As queixas de minha mãe tinham acabado por penetrar no meu pai, que lhe respondeu que, se era assim que ela pensava, punha-se a caminho para ganhar dinheiro e lhe mostrar do que era capaz quando o desafiavam. E mandou-nos logo, a mim e ao Handsome, arranjar encomendas de amoras silvestres. Disse-nos que arranjássemos tantas quantas pudéssemos e que voltássemos para lhe dizer o montante das encomendas. Handsome e eu passámos a tarde inteira a percorrer a cidade, casa por casa, a perguntar às pessoas se queriam comprar amoras frescas. A maior parte quis, porque o preço era baixo, e atendendo a que o meu velho nos recomendara que disséssemos que as amoras estavam limpas, sem formigas a passear pelo meio delas. Calculara ele que, se vendesse vinte e cinco galões de amoras, a vinte e cinco cêntimos o galão, faria um bocado para cima de seis dólares. E declarara que era muito dinheiro por um só dia de trabalho, e que, quando o recebesse e o mostrasse à Mãe, ela havia de ficar tão pasmada que retiraria as baixezas que lhe dissera no pátio nessa manhã. Handsome e eu acabámos por ter vinte galões de encomendas desde que fossem entregues, até à hora da ceia, no dia seguinte. Meu pai ficou um tanto desapontado quando voltámos e lhe dissemos que só tínhamos conseguido os vinte galões de encomendas, pois que, segundo afirmou, isso significava que apenas ganharia uns escassos cinco dólares, em vez dos seis com que estivera a contar. Todavia, continuou a garantir que era bem bom dinheiro num só dia de trabalho e mandou que na manhã seguinte, muito cedo, fôssemos para o campo apanhar as amoras. Quando a Mãe ouviu aquilo tudo veio cá fora e bateu o pé. Disse que não deixava o Handsome e eu ir dar cabo do canastro a apanhar amoras para ele vender, e que, para mais, levaríamos quase uma semana a apanhar vinte galões. Meu pai acusou a Mãe de o perseguir, e durante a ceia, nessa noite, não trocaram palavra os dois. Quando fomos para o pórtico o meu velho começou a resmungar. E ainda resmungava quando o Ben Simons, o chefe da Policia, entrou no quintal.

- Boa noite, ó gentes-disse Ben, aproximando-se das escadas.

- Viva, Ben - respondeu meu pai. - Entre e sente-se. Minha mãe não disse nada, porque desconfiava sempre de

políticos como o Ben enquanto não verificava ao que eles vinham.

- Bela fresquinha para a noite, não está, Senhora Stroup? disse Ben, procurando uma cadeira no escuro.

- Parece - disse a Mãe.

Ficaram todos calados. O Ben pigarreou várias vezes, como se quisesse dizer alguma coisa mas tivesse um certo receio de abrir a boca.

 

O galão vale 4,5 litros (n. do t.).

 

- Muito que fazer por agora, Ben? - perguntou meu pai.

- E muito, Morris! - respondeu ele logo e disparou como se tivesse estado à espera de que alguém lhe desse corda: -Pois garanto que até parece que nunca mais tenho tempo para me sentar a repousar um momento. Arranjo um bocadinho para dormir, outro bocadinho para meter uma garfada na boca, e o mais é trabalhar, trabalhar, trabalharj desde que rompe o dia até pela noite adentro. Minha mulher ainda anteontem me dizia que eu andava a cavar a minha sepultura com vinte anos de avanço se não parasse de trabalhar tanto. Tenho de patrulhar as ruas, ter a cadeia limpa, fazer prisões, ter debaixo de olho os afiançados, e Deus sabe que mais. Vivo num frenesi, Morris.

- Talvez precise de alguém que o ajude - observou o meu velho. - Ora veja-me a mim, por exemplo. De vez em quando tenho um tempito livre. É verdade que não é muito, porque ando sempre ocupado cá com as coisas da minha vida, mas ainda podia dispor, uma vez por outra, de um tempito para o ajudar.

Ben inclinou-se para diante na cadeira.

- A falar verdade, é por isso mesmo que eu cá vim esta noite procurá-lo, Morris. Ainda bem que foi você a falar.

- Ben Simons! - declarou minha mãe. - Não sei que tenção é a sua, mas, seja qual for, é melhor que não se pareça com aquele negócio tenebroso que foi o último sarilho em que meteu o Morris. Não quero tornar a ouvir falar nesses planos de ganhar dinheiro a vender caixões alargáveis para famílias. Ninguém de juízo quer um caixão que se abre e se alarga de cada vez que morre mais uma pessoa da família.

- O que eu trago na idéia não é nada que se pareça com isso, Senhora Stroup - disse Ben. - Do que eu venho falar é de um lugar político.

- Que espécie de lugar político? - perguntou ela, parando a cadeira de balanço e ficando-se muito tesa e direita.

- É o seguinte... - explicou o Ben. - Na noite passada a Câmara Municipal reuniu e votou o reforço da vigilância contra os cães vadios. Há três dias tive eu de perseguir e abater um cão raivoso, e a Câmara pensa que é perigoso ter tantos cães à solta. Mandaram-me reforçar a vigilância e prender cão vadio que apareça na rua. Eu disse logo aos vereadores que assim como até agora tem sido já eu tinha que chegasse para mim e concordaram em nomear um procurador de perdidos e achados.

- Procurador de perdidos e achados! - exclamou minha mãe, levantando-se da cadeira. - Pois pensa estar aí muito tempo sentado, Ben Simons, a dizer-me que o meu marido é o tipo de pessoa que serve para apanhar cães Parece-me que lhe vou pedir para se pôr fora da minha casa!

- Ora espere lá, Senhora Stroup! - suplicou Ben. - Para começar, a idéia não foi minha. Um dos vereadores é que se lembrou do Morris como sendo o cidadão ideal para o lugar e votaram...

- Que os cães têm a mania de andar atrás de mim - disse o meu velho - é coisa em que tenho reparado a vida inteira. Parece que é tendência deles gostarem de mim

- Cala-te, Morris! - berrou minha mãe. - Nunca ouvi uma coisa mais humilhante!

- Mas, Senhora Stroup -dizia Ben-, muitos políticos célebres começaram a vida a apanhar cães. O caso é que muitos dos maiores senadores, deputados e xerifes começaram as suas carreiras políticas a caçar cães. Não haverá hoje neste país um político altamente colocado que não tivesse começado por apanhar cães!

- Acredito lá nisso! - respondeu a Mãe. - Sempre tive dos políticos melhor opinião.

- A política é uma coisa extravagante - disse Ben. As normas que se aplicam às outras ocupações não parece que sirvam para a política. Um político pode ter começado por ser um caçador de cães e passar-se daí em três tempos. É o que faz a política ser aquilo que é.

Minha mãe ficou calada, e ouvi a cadeira de balanço recomeçar a chiar. Era fácil concluir que estava a meditar a valer no que o Ben dissera.

- Quanto mais penso - declarou o meu velho - mais me agrada a idéia. Há muito tempo que tenho andado a matutar que é meu dever intervir na vida pública. Andar à deriva de dia para dia, caindo aqui e levantando-me acolá, não é afinal grande coisa.

- Então deve aceitar a nomeação, Morris - disse logo o Ben. - Para si será uma grande coisa. Deve aceitar.

O meu velho, muito quieto, procurava distinguir no escuro as feições da minha mãe, que continuava a balouçar-se de trás para diante e a fazer a cadeira chiar tão regularmente como água a pingar de uma torneira.

- Bem - disse meu pai, devagar e observando à pouca claridade a minha mãe como podia. - Parece-me que é uma coisa que eu devo aceitar - e ficou à espera do que a minha mãe ia fazer. Mas ela não ligou importância ao que ele dissera.

- Pois aceito o lugar.

Ben levantou-se.

- Belo, Morris - disse depressa, já a atravessar direito aos degraus. - Belo. Ainda bem que o ouvi aceitar. Espero vê-lo amanhã pela manhã, logo a seguir ao almoço.

E desceu as escadas. Ia a pôr o pé no último degrau quando o meu velho se levantou de salto e o chamou.

- Ben! - exclamou ansioso, agarrando-se ao outro. - E quanto é o salário que eles pagam?

- Salário?

- Claro. Quanto é que eu recebo por ser o procurador dos perdidos e achados?

- bom... - e Ben falava devagar. - Não é exactamente um salário

- Então que é? Como é que se diz?

- Emolumentos, Morris.

- Emolumentos?

- Sim, Morris. É essa a paga dos melhores lugares políticos. Rendem emolumentos.

- E quanto de emolumento recebo eu?

- Vinte e cinco centimos por cada cão que apanhar e engaiolar.

O meu velho ficou-se calado um bocado, a olhar para a rua às escuras. O Ben esgueirava-se para fora.

- Confesso que estou um tanto desapontado, porque a modos que esperava receber salário ao sábado à noite.

- Mas o peculiar dos emolumentos, Morris, é que não há limite para aquilo que se pode ganhar. Quando a gente recebe um salário, já sabe que não passa dali. Mas, quando se é pago em emolumentos, não há limite para o que se ganha.

- Está certo! - exclamou o meu velho, animando-se. - Fico grato por esta oportunidade que você me deu.

Subimos as escadas. A Mãe fora já meter-se na cama.

- Toca a dormirmos um bom sono, filho, Amanhã vai ser um grande dia de trabalho. Não há descanso que chegue. Vem.

Entrámos, despimo-nos e metemo-nos na cama. O meu velho virava-se e revirava-se, e eu ouvia-o a dizer, de si para si, os nomes dos cães que ele conhecia na cidade, quando caí no sono.

Na manhã seguinte, mal o almoço acabou, meu pai pegou no chapéu e foi ao centro da cidade procurar o Ben Simons. Não perdemos tempo pela rua fora, mas o meu velho disse-me para não esquecer o Faísca, o perdigueiro que tínhamos visto a dormir na varanda do Sr. Frank Bean.

Acabámos por encontrar o Ben Simons no barbeiro, a ser escanhoado. Tinha a cara cheia de sabão quando entrámos, e durante um pedaço não pôde dizer nada. Mal se endireitou, acenou-nos, a meu pai e a mim.

- bom dia, Morris. Pronto para o trabalho?

- Pula-me o pé, Ben.

- Eu já me despacho.

Depois de sair da cadeira e de pôr o chapéu, disse a meu pai que juntasse os cães que andassem a vadiar pelas ruas e que os fechasse na cela grande da cadeia.

- É só isso que é preciso? - perguntou meu pai.

- Nada mais simples, não é?

Marchámos em direcção à outra ponta da cidade, andando devagar e de olho bem aberto para nenhum cão escapar. Mas a maior parte dos cães devia estar ainda a dormir àquela hora da manhã, porque não vimos nem um único nas ruas. Passada meia hora o meu velho levou a mão à algibeira e tirou uma prata de dez cêntimos.

- Olha, filho - disse, e estendeu-ma -, corre ao talho e compra dez cêntimos do maior pedaço de carne que tu possas comprar por dez cêntimos. Não precisa de ser fresco o que tem é de ser grande.

Corri pela rua abaixo e arranjei um bom pedaço de carne e voltei com ele onde deixara o meu velhote sentado à sombra de uma magnólia. Caíra no sono, mas acordou prontamente, num pulo, quando o sacudi e lhe mostrei a carne.

- Isso há-de fazê-los reparar e farejar a carne. Anda, filho!

Fomos por outra rua, com o meu velho balouçando a posta de carne. Não tardou nada que, ao olhar para trás, víssemos um cão malhado a seguir-nos e a farejar a carne.

- É tudo o que é preciso, filho - dizia o meu velhote. Não há nada como ter uma boa posta de carne em alturas destas.

Assobiou ao cão, e o cão arrebitou as orelhas e trotou mais depressa. Não tardou que o cão de outra gente cheirasse os ares da carne e começasse a trotar atrás de nós. Ao chegarmos à passagem de nível havia sete cães na nossa peugada. Meu pai sentia-se satisfeito e mandou-me ir à frente abrir, na cadeia, a porta da cela. Quando lá penetrou, guiou os cães e esgueirou-se porta fora com a posta de carne, antes de eles lhe porem o dente.

- Se déssemos mais uma volta como esta tirávamos dois dólares. Ganha-se dinheiro só a subir por uma rua e descer por outra. Já começo a ver porque é que um cargo político prende tanto uma pessoa. Aqui está um lugar que eu não trocava com ninguém por nada deste mundo. Ser um político deve ser a melhor maneira de ganhar a vida, que eu saiba.

Fomos por outra rua com a posta de carne, e, mal tínhamos passado um quarteirão, já um fraldiqueiro saía de debaixo de uma casa e vinha a trotar atrás de nós. De regresso à cadeia contei cinco cães a seguir-nos. Fizemos ainda uma viagem por diante da casa do Sr. Frank Bean, para dar ao Faísca uma oportunidade de cheirar a carne e vir connosco. Depois de os termos fechado a todos juntamente com os outros, o meu velho sentou-se e começou a fazer contas com um pau de fósforo na areia.

- É um bocadinho mais que três dólares, filho - declarou, atirando com o pau de fósforo. - É uma data de dinheiro para ser ganha em tão pouco tempo! Amanhã, se ganharmos o mesmo, teremos seis dólares. No sábado à noite já teremos uns dezoito ou vinte. É muito mais do que eu nunca sonhei tornar a ver na minha vida! Anda! Vamos para casa jantar. Já é meio-dia.

Fomos para casa e sentámo-nos à mesa; mas a minha mãe não disse uma palavra e o meu velho não se atreveu. Acabámos de comer e saímos para nos sentarmos à sombra.

Quase uma hora depois vi o Ben Simons que vinha em grande pressa pela rua fora. O meu velho adormecera, mas acordei-o, porque pensei que o Ben teria qualquer assunto importante a tratar com ele. O Ben viu-nos à sombra e atravessou de corrida o terreiro.

- Morris! - e bufava e falava sem fôlego. - Onde demônio arranjou você aqueles cães todos que fechou na cadeia?

- Oh, esses... - e o meu velho levantou-se sobre um cotovelo.

- Ora, ajuntei-os, como é minha obrigação. Tenho por dever engavetar quantos perdidos e achados eu veja a vadiar pelas ruas. Ora aconteceu que os perdidos e achados não eram nem vacas, nem cavalos, nem outros bichos quaisquer.

- Mas apanhou o setter de luxo do presidente da Câmara, do Senhor Foot! - exclamou o outro, excitadíssimo. - E, além disso, a Senhora Josie Hendricks disse que lhe desaparecera o fraldiqueiro, e achei-o na cadeia com os outros! O perdigueiro do Senhor Bean também lá estava! Não há nenhum daqueles cães que não pertença a qualquer pessoa, e os donos, essa é que é essa, pagam dois dólares de licença. Você não pode apanhar os cães de pessoas que pagaram as respectivas licenças!

- Mas andavam a vadiar pelas ruas - disse o Pai. - Passei por vários sítios a ver o que havia, e o caso é que dei com uma data de cães que parecia não terem morada certa. Era meu dever apanhá-los, como apanhei.

- E como é que os apanhou?

- Oh, a modos que os levei para lá. Os cães têm todos tendência para vir atrás de mim. Já lhe disse isso na noite passada.

- E não usou nenhuma isca?

- Isca propriamente não... Mas, pensando melhor, levava comigo um bocadito de carne.

- É o que eu julgava - disse Ben, tirando o chapéu e limpando a cara com o lenço. - Eu bem sabia que havia alguma coisa esquisita.

Durante muito tempo ninguém disse nada. Ben, então, pôs o chapéu na cabeça e baixou os olhos para o meu velhote.

- Parece-me que daqui por diante sempre poderei tomar a meu cargo a questão canina, Morris. Ser apanha-cães provavelmente tira-lhe muito do seu tempo.

- Mas, então, e os três dólares de emolumentos que eu ganhei? Ganhei os emolumentos, não ganhei?

- Não tenho bem a certeza. Não me parece que a Câmara esteja disposta, para já, a pagar-lhe o dinheiro. O presidente Foot até era capaz de me pôr na rua por ter deixado você meter na cadeia um cão que tem ido a concursos, se lhe apresento a conta dos emolumentos. Uma das primeiras coisas da política, que eu aprendi, foi que não é de boa política um político pisar os calos de outro político. Acho que será melhor deixarmos as coisas ficarem como estão. Não posso permitir-me perder o meu lugar por sua causa, Morris.

O meu velhote abanou a cabeça e encostou-a outra vez ao tronco da árvore.

- Parece-me que você tem razão, Ben. Isso de ser político é um emprego absorvente, e eu não quereria deixar-me escravizar por um emprego que me levasse o tempo todo.

 

Os cães ladraram um pedaço pouco antes da meia-noite e minha mãe levantou-se para ir ver à janela. Era uma noite de neve, cerca de duas semanas antes do Natal. O vento caíra um tanto depois da ceia, mas não a ponto de deixar de assobiar pelas goteiras de vez em quando.

A luz estava acesa no vestíbulo, porque sempre ficávamos com uma luz a noite inteira. Minha mãe não acendeu logo a luz do quarto. Podia, com o quarto às escuras, ver melhor o que se passava lá fora.

Durante algum tempo não disse uma palavra. Os cães rosnaram e depois começaram outra vez a ladrar. Passavam a noite acorrentados ao pé de casa; se ficassem soltos morderiam uma data de gente que, depois do escurecer, fizesse caminho pelo nosso lado. Para o meu velhote também era bom; tê-lo-iam feito em pedaços como a qualquer outra pessoa a quem nunca tivessem cheirado.

- Está claro que é ele - disse minha mãe, batendo com a chave da porta na ombreira da janela. Não estava mais furiosa do que de costume, mas já chegava. Quando batia na madeira com as coisas como com a chave não era preciso outro sinal para a gente saber qual a disposição dela.

Ouviu-se, então, um estardalhaço como uma carroça de parelha a passar uma ponte de pranchões. Depois, uma vibração sacudiu a casa, como se alguém tivesse pegado num malho e batido com ele nas fundações.

Era o meu velho a verificar os degraus da frente, e a varanda, no escuro, para ver se agüentavam com ele. Tinha sempre medo de que lhe tivessem armado alguma ratoeira, quando voltava para casa, assim uma coisa como despregar as tábuas do chão para que ele se enfiasse por ele abaixo e ficasse lá até que a minha mãe lhe chegasse com a vassoura.

- Mais uma vez volta para casa como tem voltado destas últimas vezes - comentou minha mãe. - Já começo a estar agoniada disto, farta.

- Quero levantar-me e vê-lo - pedi. - Mãe, deixe-me!

- Tu ficas aí onde estás, William, e tapa a cabeça com a roupa - respondeu a Mãe, batendo mais na ombreira com a chave. - Quando chegar aqui não é espectáculo decente para tu veres.

Pus-me de gatas e puxei a roupa para a cabeça. Quando achei que minha mãe já deixara de olhar para mim, puxei outra vez a roupa para trás o bastante para espreitar.

A porta da frente foi atirada, e quase se estilhaçava o vidro do painel de cima. O meu velho nunca procedia como se quisesse saber da porta, ou da mobília, ou de fosse o que fosse em casa. Uma vez voltou para casa e fez em pedaços a máquina de coser da Mãe, e a Mãe passou trinta mil por uma linha a economizar o dinheiro para a mandar consertar.

Nunca imaginei que o meu velho fosse capaz de fazer tamanho reboliço. Parecia que estava aos pulos no vestíbulo, a ver se conseguia enfiar pelo chão abaixo. Os quadros nas paredes dançavam todos e alguns até ficaram de banda. O próprio cadeirão tombou para um lado.

Minha mãe acendeu a luz e foi ao fogão espevitar o lume. Havia uma quantidade de luminárias a brilhar muito vermelhas nas cinzas quando minha mãe abanou com um jornal e pôs acendalhas em cima. Mal as acendalhas começaram a arder, pôs duas ou três achas e sentou-se à lareira, de costas para o fogo, à espera que o meu velhote entrasse no quarto.

Entretanto, andava ele a estrondear no vestíbulo, parecendo que fazia por atirar a pontapé com as cadeiras todas contra a parede contígua à da cozinha. A meio disto parou e disse qualquer coisa a alguém que trouxera consigo.

Minha mãe levantou-se precipitadamente e enfiou o roupão. Viu-se ao espelho umas duas vezes e compôs o cabelo. Era uma grande surpresa ele trazer assim alguém.

- Tapa a cabeça e dorme, como eu te mandei, William - disse a Mãe.

- Quero vê-lo - supliquei.

- Não discutas comigo, William - disse ela, batendo com o pé descalço no chão. - Faz o que já te mandei.

Puxei a roupa, mas deixei-a escorregar o suficiente para espreitar.

A porta que dava para o vestíbulo abriu-se uns centímetros. Pus-me outra vez de gatas, para ver melhor. Nesse momento meu pai abriu a porta a pontapé. A porta bateu contra a parede e fez cair poeira que ninguém sabia que lá havia.

- Que é que tu queres, Morris Stroup? - perguntou a Mãe, cruzando os braços e fuzilando-o com o olhar. - Que queres tu agora?

- Entra e põe-te à tua vontade - disse o meu velho, voltando-se e puxando alguém pelo braço para dentro do quarto. - Não faças cerimônia na minha casa.

E puxava uma rapariga que fazia metade da Mãe para dentro do quarto e empurrava-a, até que ficaram ambos encostados à máquina de costura da Mãe. Minha mãe rodava nos pés, seguindo-os com os olhos como teria seguido um cata-vento.

Era uma coisa séria ver o meu velhote bêbado, aos bordos, e ver a minha mãe tão furibunda que nem conseguia tirar da boca uma palavra.

- Diz "Viva" - determinou meu pai à rapariga. Ela é que não dava pio.

O meu velho passou-lhe o braço pelo pescoço e dobrou-a, forçando-a assim a fazer uma vénia à Mãe, e depois também ele se dobrou, e não tardou que desatassem a fazer vénias à compita. Repetiram tanto as vénias que a cabeça da Mãe começou a abanar para baixo e para cima, por mais que ela quisesse.

Suponho que devo ter casquinado alto, porque minha mãe ficou por instantes com um ar idiota e foi então sentar-se ao pé do lume.

- Quem é ela? - perguntou, como se estivesse ansiosa por saber. Até mesmo, por instantes, deixou de parecer triste.

- Quem é ela, Morris

O meu velho sentou-se pesadamente, quase a ponto de meter dentro o fundo da cadeira.

- Ela? É a Lucy. É a minha tipa, de hoje em dia. -Voltou-se na cadeira e viu-me de gatas debaixo da roupa. - Viva, filho! Como tens passado?

- Muito bem - respondi, encolhendo-me sobre os joelhos e à procura de qualquer coisa para dizer que lhe mostrasse quanto me sentia contente, por tornar a vê-lo.

- Sempre a crescer, hem?

- Um bocadinho, parece.

- Está certo. É o que tens a fazer. Continua, filho. Qualquer dia, mal te precatas, estás um homem.

- Pai, eu

Minha mãe pegou numa achazita e atirou-lhe com ela. Não lhe acertou e bateu na parede atrás dele. O meu velho levantou-se num pulo e saltaricou como se a acha lhe tivesse acertado, e não na parede. Andou assim aos bordos até perder o equilíbrio e escorgar pela parede abaixo e ficar sentado no chão.

Estendeu os braços e agarrou-se a uma cadeira de espaldar. Contemplou-a atentamente e começou a arrancar-lhe as travessas. De cada vez que conseguia tirar uma lançava-a ao fogão.

Quando as pernas e as travessas estavam todas tiradas, começou a arrancar os pinázios das costas e a lançá-los ao lume. A Mãe não disse uma palavra, muito sentada a olhar para ele o tempo todo.

- Vamos embora, Morris - pediu a rapariga. Era a primeira coisa que dizia desde que tinha lá entrado. Tanto a Mãe como eu olhámos para ela com certa surpresa, e o meu velho também relanceou o olhar, a modos que esquecido de que ela ali estava. - Morris, vamos embora - repetiu ela.

Lucy parecia não ter senão um medo mortal, via-se bem. Olhávamos todos tanto para ela, e minha mãe apresentava uma tal fúria, que não era para admirar.

- Senta-te e está à tua vontade - disse o meu velho. - Mas senta-te, Lucy.

Ela pegou numa das cadeiras e sentou-se como ele mandara.

Ela ali sentada, a fúria da Mãe a alastrar e o meu pai a fazer a cadeira em pedaços eram coisa digna de ver-se. Creio que devo ter cacarejado outra vez alto, porque a Mãe se voltou para mim, me ameaçou com o dedo e fez sinal de que tapasse a cabeça com a roupa e, julgo eu, também de que dormisse. Mas eu é que não podia adormecer com aquelas cenas todas, e a Mãe bem o devia saber. Encolhi-me o mais que pude e fiquei-me a olhar.

- Quando acabares de fazer essa cadeira em pedaços, Morris Stroup, o que te compete é dares-me sete dólares para comprar outra - disse a Mãe, para trás e para diante na cadeira de balanço.

- Bolas, Martha, bolas, não me parece que haja no mundo inteiro uma cadeira que valha para mim mais que um dólar, quando muito dois.

Minha mãe sacudiu-se do torpor, saltou como uma mola, agarrou na vassoura que estava ao lado do fogão e atirou-se a ele. Bateu-lhe na cabeça até se dar conta dos estragos que fazia na palha da vassoura, e então parou. Havia palha espalhada pelo chão todo. Pegou pelo cabo e desatou outra vez a bater no meu velho.

O Pai levantou-se apressadamente e cambaleou pelo quarto fora até ao cubículo, e, de passagem, atirou ao lume o que restava da cadeira. Abriu a porta e meteu-se lá dentro. Alguma coisa fez à fechadura, porque, por mais que a Mãe se esforçasse, não conseguia abri-la depois de ele a ter fechado.

A Mãe estava nessa ocasião tão furibunda que nem sabia o que fazia. Sentou-se na borda da cama e compôs um pouco os ganchos do cabelo.

- Isto é que são lindas coisas a esta hora da noite, Morris Stroup! - berrou-lhe através da porta. - Que espécie de criança hei-de eu criar com acontecimentos destes em casa?

Nem esperou que o meu velho respondesse. Girou para Lucy, a rapariga que ele tinha trazido.

- Pode ficar com ele -gritou a Mãe-, mas há-de levá-lo daqui para fora.

- Disse-me que não era casado - afirmou Lucy. - Sempre me disse que era solteiro.

- Solteiro! - bradou minha mãe.

Fez-se vermelha como um tomate e correu à lareira a buscar o atiçador. O nosso atiçador tinha um metro de comprido e era de ferro forjado. Enfiou-o pela fenda da porta e manejou-o.

O meu velho começou aos berros e aos pontapés. Nunca na minha vida ouvira um barulho como aquele, que fez os cães desatarem outra vez a ladrar. Quem os tenha ouvido há-de ter julgado que nessa noite os ladrões nos estavam a matar a todos.

Nessa altura a Lucy levantou-se em lágrimas, a gritar:

- Pare com isso! Está a feri-lo aí dentro! Minha mãe voltou-se para ela, a dar aos cotovelos.

- Deixe-me cá! Não se meta no que eu faço, mana!

Tive de me virar para o outro lado da cama para não perder pitada do que se passava ao pé da porta do cubículo. Nunca vira duas pessoas a agir tão còmicamente. Ambas estavam furibundas e com medo de se exceder. Pareciam dois galos novos que queriam combater e não sabiam como. Saracoteavam-se, a meter medo uma à outra.

Mas minha mãe era tão forte como a mais forte da sua envergadura. E quando se decidiu nada mais lhe restava senão largar o atiçador, atirar-se a Lucy e dar-lhe um safanão. Lucy voou pelo quarto fora e aterrou contra a máquina de costura, com a cabeça perdida de medo, por se ver ali tão depressa.

A Mãe pegou outra vez no atiçador e espevitou com a força toda, e zás! a porta escancarou-se. E lá estava o meu velho pregado à parede do fundo, enrodilhado nas roupas da Mãe e com um ar de quem tinha sido apanhado de surpresa com a boca na botija. Nunca na minha vida vi o meu velho tão humilhado.

Minha mãe, mal o arrancou do cubículo para o meio do quarto, virou-se para Lucy.

- E agora vou pô-la fora da minha casa e acabar de uma vez com isso de andar por aí com o meu marido. Isso é coisa que eu não admito!

E atirou-se a Lucy, que se agachou. E então afrontaram-se, exactamente como os galos novos que enfim arranjaram coragem para desatar às nicadas. Davam pulos, às voltas, com os braços a bater quais asas e o roupão da Mãe e a saia de Lucy a esvoaçarem como penas soltas. Saltaricaram em círculo tanto tempo que parecia que andavam as duas num carrocel. Lançaram depois as mãos aos cabelos uma da outra e desataram a puxar. Nunca eu tinha ouvido tamanha gritaria. Os olhos do meu velho já se iam habituando outra vez à luz, e também as via de vez em quando. A cabeça dele é que andava à volta e perdeu parte da cena.

Minha mãe e Lucy batalharam pelo quarto adiante e pela porta fora até ao vestíbulo. Aí ainda se agatanharam um pedaço. Durante isto tudo o meu velho andou aos bordos no quarto, à procura de outra cadeira. Agarrou na primeira que lhe chegou às mãos. Era a cadeira de balanço, de costas altas, da minha mãe, aquela em que ela sempre se sentava para coser ou só para repousar.

Por essa altura a Mãe e a Lucy bulhavam no pórtico. O meu velho fechou a porta que dava para o vestíbulo e deu a volta à chave. Era uma porta grossa e pesada, com trinco e fechadura.

- Não vale a pena dizer nada, filho - e sentou-se na cama a descalçar os sapatos. - Não há nada como um par de fêmeas a contas. Atirou com os sapatos para debaixo da cama e apagou a luz. Foi tacteando à volta da cama, arrastando juntamente a cadeira de espaldar da minha mãe. Eu ouvia a madeira estalar com os puxões que ele dava. Extirpou os estofos e começou a desfazer a cadeira e a atirar com os pedaços ao lume. Uma vez por outra, um dos pedaços acertava na cornija do fogão; e outras tantas, outro batia na parede.

A Mãe e a Lucy já tinham provocado novamente os cães. Deviam estar a bater-se no terreiro, porque não as ouvia na varanda.

- Às vezes, meu filho - disse o meu velhote -, às vezes chega a parecer-me que Nosso Senhor nunca devia pôr neste mundo mais que uma mulher de cada vez.

Acochei-me debaixo da roupa, apertando os joelhos com muita força e fazendo votos por que ele ficasse agora em casa e não se tornasse a ir embora.

O meu velho partiu as costas à cadeira e lançou-as no escuro para a lareira. Bateram primeiro no tecto e depois na cornija do fogão. A seguir, começava a desfazer o assento.

Mas sabia bem estar ali no escuro com ele.

 

Handsome Brown e eu tínhamos passado a tarde quase toda no moinho de água do Sr. Hawkins, e cerca de uma hora antes da ceia pusemo-nos a caminho de casa com o saco do trigo que o Sr. Hawkins moera à gente. A Mãe havia-nos mandado ao moinho logo depois do jantar com um alqueire de trigo que o meu pai guardava para dar à Ida quando ela se portava bem e não andava aos S pela rua nem aos coices ao tabuado das baias da estrebaria. Enquanto o Handsome e eu tínhamos enchido o saco, a Mãe havia dito que voltássemos mal o trigo estivesse moído porque queria fazer pão fino para a ceia dessa noite. Handsome e eu vínhamos pelo atalho que atravessava os terrenos vagos onde as diversões armavam as barracas quando passavam pela cidade e discutíamos o jogo de basebol da véspera em que o grupo da cidade jogara contra a turma dos bombeiros de Jessupvüle, no condado vizinho, e que à sexta partida acabara em desordem por um dos bombeiros de Jessupville ter dado com a raqueta na cabeça do nosso defesa, o Luke Henderson1. O Handsome dizia que o nosso defesa tinha apanhado uma mão-cheia de pó, e, quando julgava que ninguém

 

1 Estes períodos são, no original, construídos com designações técnicas de basebol - batter, catcher, pitcher, slugger bat -, jogo popularíssimo na América mas sem correspondência entre nós (n. do t.).

 

via, a atirara aos olhos do de Jessup quando o outro estava a tomar balanço para lançar a bola. Respondi ao Handsome que uma rabanada de vento levantara o pó e que o Luke Henderson, que trabalhava na mercearia do. Tudo a Cinco Cêntimos, não tinha tido a mínima culpa. Ainda continuávamos a discutir quando atravessámos as linhas do comboio. Um comboio de mercadorias da linha da Costa parará lá adiante no entreposto de Sycamore, mas não lhe ligámos grande importância e limitámo-nos a reparar em quantos vagões a máquina levava para o desvio ao lado do armazém do algodão. Parados na linha a ver a máquina e os vagões, notámos que alguém vinha, em passo apressado, direito a nós. Saltava a duas e duas pelas travessas fora.

- O melhor é a gente pôr-se a andar quanto antes com a farinha para a sua mãe - disse o Handsome, puxando-me pela manga. - Sabe que ela queria fazer uns pãezinhos para a ceia. O melhor é obedecer à sua mãe.

- Esperamos a ver quem é que vem assim depressa pela linha. E está a acenar para a gente esperar por ele.

- Não passa de um vadio qualquer que nos rouba este saco de farinha se não nos pomos a mexer para casa como a sua mãe nos mandou.

E Handsome começou a afastar-se. Tirou o saco das costas e agarrava-o com os braços.

- O melhor é dar-me ouvidos e fazer o que eu digo. Eu cá sei o que digo. Já tenho visto uma data de vadios e nunca nenhum fez bem a ninguém. Esse que aí vem não é melhor do que os outros, estou a ver. O melhor é vir para casa, como lhe digo.

Deixei-me estar onde estava e pouco depois o homem chegou ao pé de nós. Viera a correr tanto que estava mesmo sem fôlego, e quando parou só era capaz de estar parado a arquejar até ganhar fôlego outra vez. Era mais ou menos da idade do Pai, mas mexia-se mais depressa do que o meu pai nunca se mexera, e parecia nervoso, de olhar assustado. Vestia um fato-macaco muito velho, com um grande rasgão na frente de uma das calças, e o rasgão tinha aspecto de já existir havia muito tempo, sem que houvesse alguma vez ocasião de ser cosido. À banda trazia um boné castanho novo em folha que parecia acabado de sair da loja. Os sapatos estavam desfeitos e os dedos espetavam-se pelos buracos fora. Os buracos eram tão grandes que cada um dos sapatos parecia feito de duas metades. Trazia ao pescoço um lenço vermelho e amarelo, semelhante aos que os maquinistas dos comboios de mercadorias da linha da Costa usam para as cinzas não lhes entrarem pelo pescoço abaixo. Mas mais do que tudo precisava de fazer a barba, porque as suíças, negras e estupendas, eriçavam-se enoveladas como as flores do joio.

- Filho - e olhou-me a valer -, não és o rapaz do Morris Stroup, o William?

- Sim senhor - respondi logo, a pensar em como é que sabia o meu nome. - Sim senhor, sou eu.

- Onde está o teu pai? Onde está ele neste momento?

- O Pai foi hoje para o campo trabalhar um bocado na quinta. Quando foi disse que só voltava tarde da noite.

- Eu sou o teu tio Ned - disse ele, estendendo o braço e agarrando-me o ombro com força. -Não me conheces, meu filho?

- Não senhor - respondi a olhar-lhe para as suíças e torcendo o ombro para o aperto não me doer tanto.

- Da última vez que cá estive eras um pequenotito - e largou-me. - Talvez fosses pequeno demais para te lembrares do teu tio Ned.

- Se calhar era.

Voltou-se e olhou pela rua acima para a nossa casa.

- E a tua mãe como tem passado?

- Muito bem - e fazia esforços para me lembrar de já o ter visto. O Pai tinha uma data de irmãos espalhados, e metade deles nunca eu chegara a ver. A Mãe dizia que a gente do Pai o melhor que fazia era deixar-se estar onde estava e que não queria receber a visita de nenhum deles. Uma vez vira eu o tio Stet, que volta e meia trabalhava com os presidiários na estrada, mas a Mãe é que não o deixou passar da porta, e ele, depois de ter estado perto de uma hora sentado nas escadas, levantou-se, foi-se embora e nunca mais o tornei a ver.

- Quem é aquele escarumba ali parado? - perguntou o tio Ned, apontando de cabeça o Handsome.

- É o Handsome Brown, o nosso criado. O Handsome trabalha lá por casa quando há que fazer.

- Aposto que nunca trabalha, tudo somado, que chegue para pagar o que come num dia. Não é verdade, pá?

- Eu eu eu - gaguejou o Handsome, como gaguejava sempre que ficava em sustos. - Eu eu

- Vês? - disse o tio Ned. - Que te dizia eu? Nem tem força para mentir. O trabalho que esse escarumba tem feito cabe todo num dedal. Não é verdade, pá?

- Eu eu eu - e Handsome ia recuando.

- Ele bem sabe que nem lhe vale a pena mentir - declarou o tio Ned, já a andar.

Uma dúzia de passos adiante parou.

- Para que lado é a casa, ó filho

- Que casa?

- Essa agora, a casa de teu pai e da tua mãe - troçou. Parece-te bem que eu venha assim à cidade e não vá fazer uma visita à família?

- Talvez seja melhor eu ir à frente e dizer à Mãe que lá vai. A Mãe podia não gostar se eu não fosse primeiro avisá-la.

- Não - disse ele, logo. - Não faças isso. Se ela soubesse antes de tempo já não era uma surpresa. A melhor maneira de se aparecer de surpresa a uma pessoa é entrar por ali dentro quando menos esperam a gente. Podia ela pensar que ia ter uma data de trabalhos se soubesse que eu lá ia antes de eu lá chegar.

Pus-me a caminho de casa com o tio Ned colado a mim. O Handsome ficava para trás e não fazia por nos acompanhar. Passámos a vedação e viramos para a nossa rua. Quando estávamos quase a chegar, parei e esperei que o Handsome nos apanhasse.

- Handsome, vai à frente e dá a farinha à Mãe. Depois podes dizer-lhe que está cá o tio Ned.

- Eu dou à "nhora" Martha a farinha - declarou Handsome, passando ao largo do tio Ned -, mas lá quanto a dizer a outra coisa que me mandou O melhor é dizer-lhe em pessoa. A "nhora" Martha podia zangar-se e deitar-me as culpas, e garanto que não tenho nada com isso. Não quero meter-me em sarilhos sem ser por minha conta.

- Que estás tu para aí a falar, negro! - exclamou o tio Ned, abaixando-se e apanhando uma pedra do tamanho da mão. Nunca te atrevas a responder assim, por anos que vivas! Arrebita a orelha outra vez como agora e escaco-te a cabeça com esta pedra! Estás a ouvir, negro?

- Eu eu eu - gaguejou Handsome.

- E deixa-te de gaguejos. Se há coisa neste mundo que eu não suporto é um negro a gaguejar.

Handsome afastou-se e precipitou-se pela cancela dentro. Depois de ele ter ido, fomo-nos aproximando de casa e o tio Ned sentou-se nas escadas. Eu não sabia o que havia de fazer, porque tinha medo de que ele se enfurecesse comigo como se enfurecera com o Handsome se eu fizesse qualquer coisa de que ele não gostasse. Deixei-me ficar no terreiro, diante da escada, e esperei.

- Que espécie de quinta arranjou o teu pai no campo? - perguntou-me.

- Apanha uma colirja bem boa - respondi. - O Pai semeou um bocadito de trigo e umas ervilhas no ano passado e pouco mais há. O Pai diz que não tem tempo para desperdiçar com a lavoura. O Handsome Brown lavra aquilo uma vez por outra e pouco mais há.

- Os Stroups nunca foram muito dados à lavoura - comentou ele.

Esperámos, a ver o que a Mãe faria. Durante esse tempo todo não se ouvia nada dentro de casa, mas eu julgava que o Handsome ainda não chegara ao outro lado para dizer à Mãe que o tio Ned ali estava.

- Há muito tempo que não vejo o Morris - declarou ele -, mas não me parece que ele tenha mudado muito desde a última vez que o vi. E a tua mãe, rapaz? Sempre na mesma, hem?

- Parece-me que sim-e continuava de ouvido à escuta, aguardando o barulho que ela fazia quando o Handsome lhe dissesse do tio.

- Uma pessoa aqui sentada, no sossego da tarde, até pensa que não há aflições pelo mundo - disse o tio, de si para si, em voz alta. - Não há dúvida de que isto é uma paz podre.

Ouvi uma porta bater dentro de casa e percebi que a Mãe vinha a caminho. Afastei-me, pelo carreiro abaixo, dos degraus onde o tio Ned estava sentado com os cotovelos nos joelhos. Não tardou que o guarda-vento se encancarasse e a Mãe aparecesse na varanda a berrar: - com que então és tu, Ned Stroup!

O tio Ned deu um pulo dos degraus como se o tivessem espetado com um garfo. E aterrou a meio caminho entre mim e as escadas.

- Ora, espera lá, Martha! - pediu, recuando para junto de mim e guardando a mesma distância entre ele e a Mãe. - Eu só apareci para visitar-te e ao Morris, como irmão que sou. Não se pode levar a mal que um homem respeite os do seu sangue, pois não?

- Não estejas para aí com esse atrevimento de te dizeres do meu sangue, Ned Stroup! - bradou minha mãe.

- Vamos lá, Martha, não faz sentido a gente estar a discutir uma ninharia como os parentescos. Eu sou outro homem. Tenho tido muito tempo para pensar e reconheço que nem sempre me portei bem na vida. Mas tudo isso acabou, Martha.

- Põe-te a andar do meu pátio para fora. Não me fio numa palavra do que tu dizes. Estou amarrada por lei a um Stroup, mas não há poderes no céu e na terra capazes de me fazerem aturar dois Stroups. Já tenho a minha cruz e não consinto que ninguém ma torne mais pesada.

O tio Ned deixou cair a cabeça e ficou a olhar para o chão. Mexia pelo buraco do sapato um dos dedos do pé e assim esteve a contemplá-lo uma data de tempo. Enquanto mexia o dedo, a Mãe continuou diante dele a fuzilá-lo com os olhos.

- Talvez tenhas ao menos a bondade de achar que podes dar-me alguma coisa de comer antes de eu me pôr a caminho

- disse devagar, olhando de relance a Mãe por trás do sobrecenho a ver o que ela fazia. - Sou um homem com fome, Martha. Desde ontem pela manhã cedo que não trinco uma migalha. Não recusas a ninguém uma migalhinha para não morrer de fome; pois não, Martha?

- Desta vez, há quanto tempo saíste tu da gaiola? - perguntou a Mãe de repente.

- Oh, há uns dias - respondeu o tio Ned, surpreendido. Como soubeste que eu estive outra vez engaiolado, Martha?

- Onde é que uma pessoa de juízo calcula que tu estiveste?

- ripostou ela prontamente.

O tio Ned baixou de novo os olhos e mexeu o dedo do pé mais um pedaço. A Mãe não disse mais nada e deixou-se estar de olhos pregados nele. Depois levantou a mão e limpou os olhos quando imaginou que ninguém reparava.

- Vai de volta à porta da cozinha, Ned. Nosso Senhor nunca há-de dizer que eu não ajudei quem apelasse para mim, mesmo quando sei que não é o que eu devia fazer. O que eu devia era chamar o chefe da Polícia para que te metesse na cadeia. Voltou para dentro, fechando o trinco do guarda-vento, não fosse o tio Ned enfiar pelo vestíbulo atrás dela. Depois de ela ter ido, o tio levantou-se e foi de volta para o pátio. Quando lá chegámos, o Handsome estava sentado nos degraus da cozinha; mas, mal viu o tio Ned vir direito a ele, deu um pulo, correu pelo pátio e foi sentar-se no monte da lenha. Eu entrei; a Mãe enchia de cogulo um prato de ervilhas e salsichas, deu-mo e com a cabeça indicou-me o tio sentado na escada.

Levei para fora o prato e entreguei-o ao tio Ned, que não disse uma palavra e olhou para mim como o Pai às vezes olhava quando queria dizer alguma coisa mas não lhe apetecia pô-la em palavras. Fui para o canto e sentei-me a vê-lo comer as ervilhas e as salsichas. A Mãe chamou-me para dentro e deu-me uma chávena de café para eu levar ao tio Ned.

Depois de eu lhe dar a chávena e de ter bebido uma grande golada, tornou a levantar os olhos para mim.

- Meu rapaz! Trata de ser sempre um digno Stroup, por muito que vivas. Não há melhor família no mundo inteiro que a nossa, os Stroups, e o que a gente não quer é que aconteça seja o que for por onde os outros julguem que somos pessoas vulgares, iguais às outras. Nós, os Stroups, não temos fortuna como os outros têm, e às vezes alguns de nós metem-se nuns sarilhozitos e precisam pôr-se ao largo até a coisa abrandar, mas no fim das contas todas não me parece que haja por aí uma família melhor.

- Sim senhor, tio" Ned - e pensava no que diria a minha mãe se o ouvisse.

- Sou um homem feito, meu filho, e sei distinguir de ouvido um bom conselho. Por isso é que eu quero que te lembres sempre do que eu te disse de como se deve ser um bom Stroup. Não há muita gente por esse mundo fora que possa gabar-se de ser um Stroup.

- Muito bem, tio Ned. Não me hei-de esquecer.

A Mãe apareceu à porta da cozinha e esteve a ver o tio a limpar o prato.

- Ficaste satisfeito, Ned? - perguntou, e a voz dela tinha o mesmo som de quando ela falava ao meu velhote diante de gente. Se ainda tens fome torno a dar-te outra pratada.

- Portaste-te na linha, Martha - disse ele, voltando-se e fitando-a atentamente. - E garanto que te agradeço o que fizeste por mim. Sempre hei-de pensar bem de ti, Martha, aconteça o que acontecer. Trataste-me como um Stroup trata outro Stroup.

Nesse momento, eu, que olhei para o pátio, vi o Handsome levantar-se da lenha a correr e ir direito ao celeiro. Ainda estava a pensar na razão de ele se ir embora com tal pressa quando o Ben Simons, o chefe da Polícia, apareceu na esquina da casa, de pistola em punho, a apontá-la em cheio para o tio Ned.

- Mãos no ar, Ned Stroup! - berrou Ben. - E não faças um movimento para agarrares a tua arma. Juro por Deus que te estendo aí mesmo. Não estou para me arriscar com tipos que passam a vida a fugir da gaiola.

O tio Ned não disse uma palavra, enquanto o Ben se chegou e lhe tirou a pistola, que era um bacamarte, do cinto por dentro do fato-macaco. Deixou-se estar de mãos o mais no ar que podia e não fez um gesto para se pôr em fuga.

- Mas que vem a ser isto, Ben Simons ? - exclamou a Mãe, abeirando-se das escadas. - Mas por que demônio? ...

- Pois para o caso de o Ned lho não ter dito, sempre lhe digo que se escapou da gaiola há três dias e o director pediu aos juizes de paz deste Estado que o caçassem. Calculei que o Ned podia vir por aqui visitar o irmão e arranjar de comer e uma muda de roupa, e não há uma hora que ele saltou do mercadorias da tarde. Desde então que me anda debaixo de olho. São horas de marchar, Ned.

O tio Ned, sem uma palavra, deixou-se algemar pelo Ben, e então levantou-se. Voltou-se para mim, antes de se pôr a caminho da cidade.

- Meu filho! Nunca te esqueças do que eu te disse dos Stroups. Há tantos Stroups por esse mundo, de hoje em dia, que um de nós bem pode ver-se em apuros de vez em quando, o que não quer dizer que os Stroups não sejam a melhor gente que Deus deitou ao mundo. Caminha sempre em frente e sê um Stroup digno, como eu te disse.

- Sim senhor, tio Ned - disse eu, a vê-lo desaparecer na esquina da casa, com o Ben Simons a agarrá-lo com força por um braço. - Não me hei-de esquecer do que me disse.

 

Quando me levantei para comer o almoço, o meu velhote estava sentado ao pé do fogão da cozinha, balouçando-se nas duas pernas traseiras da cadeira e a comer desalmadamente pãezinhos quentes com melaço. Pusera o prato na tampa aberta do forno, como sempre fazia, porque assim bastava-lhe estender o braço para tirar um pãozinho quente. O meu velhote era doido por pãezinhos quentes com melaço.

Tinha a boca cheia quando, entrei, e primeiro não me disse nada. Mas olhou para mim e piscou-me o olho.

- Viva, Pai - disse eu, satisfeitíssimo por o ver. Estivera fora desta vez quase uma semana.

Não me respondeu enquanto não meteu a mão no forno para tirar mais um pãozinho. Àbriu-o ao meio, barrou-o de manteiga e pousou-o, aberto, num prato. Depois levantou do chão o jarro de melaço e despejou sobre o pão uma boa dose.

- Então como vão esses músculos, filho? - e apertou-me o braço com os dedos.

- Muito bem. Apalpou os músculos.

Estava bem contente por vê-lo outra vez. A mãe entrou, pousou o meu prato na mesa da cozinha e serviu-me pão, melaço e um bocadinho de presunto. Enquanto me arranjava o almoço não disse uma palavra a ninguém. Andou depois por ali a fazer uma data de barulho e reboliço com as panelas e as frigideiras. Estava pior que uma bicha.

 

O Pai olhava pela cozinha, deitando-lhe às vezes uma olhadela, à espera que ela dissesse alguma coisa. Eu e ele, ambos sabíamos que o melhor, quando esta estava assim, era esperar que ela se saísse. Só piorava as coisas obrigá-la a falar antes de estar disposta a que lhe falassem. O Pai, sentado de cadeira, esperava manso como um pobre que pediu de comer.

Quando eu já quase acabara de comer, a minha mãe aproximou-se do fogão, de mãos nas ilhargas, com os olhos a dardejar para o Pai.

- Onde esteve desta vez, Morris Stroup? - e levantou a mão de repente para afastar o cabelo da cara.

- Ora, Martha - e o Pai desviou a cabeça para um lado ao vê-la levantar a mão-, não andei por muita parte.

- Desaparecer de casa e andar sabe Deus por onde quatro ou cinco dias seguidos não será andar muito para si, mas para mim é. Por onde andou?

- Oh, Martha, fui ao campo, aqui perto.

- Onde está esse seu galo que não serve para nada?

- O Doutor está no galinheiro.

- Se alguma vez lhe deito a mão -disse a Mãe, batendo o pé - é para lhe cortar o pescoço.

O galo de combate do Pai, o Doutor, era o campeão do condado de Merryweather, Geórgia. A gente já o tinha havia uns seis meses; e quando da primeira vez o Pai o trouxe para casa disse que o galo era tão esperto como se tivesse andado na Universidade. Por isso o Pai lhe pôs o nome de "Doutor". Podia ter sido campeão nacional se o Pai tivesse tido possibilidades de o levar a todas as arenas. Mas meu pai nunca teve dinheiro para andar de comboio, não tínhamos automóvel, e meu pai não podia ir senão aos sítios onde chegava a pé. Era essa a razão de se demorar tantos dias fora de casa. Às vezes levava dias a andar até onde haveria um combate de galos, porque passavam a vida a mudar os sítios de um lado para o outro do condado para o xerife não apanhar o Pai nem os outros homens que tinham galos de combate e os treinavam.

O Pai não respondera à Mãe, porque bem sabia que era melhor não dar mostras de que tomávamos demasiado partido pelo Doutor. Para a Mãe, ver o galo era como ver o diabo.

- Se acha que não lhe estou a pedir um grande favor

- disse a Mãe - vá a casa da Senhora Taylor e traga a roupa suja se não tem vergonha de que o vejam trazer a roupa que eu preciso de lavar.

- Oh, Martha! Bem sabes que não te fica bem dizer isso. Sabes que eu até gosto de ajudar.

Minha mãe foi à porta da cozinha ver como o lume ardia debaixo da barrela.

- William - disse ela, voltando-se para mim. - Vai lá fora e deita umas pinhas para debaixo da barrela.

Levantei-me e avancei para fazer o que ela me mandara. Quando eu ia a chegar à porta, voltou-se ela outra vez para o Pai.

- E quando vir a Senhora Taylor, Morris Stroup, pode dizer-lhe, e à gente toda de Sycamore, como eu me mato a lavar roupa enquanto você vadia por aí com esse seu galo de uma figa debaixo do braço - fitava furiosamente o Pai. - Gostava de pôr os dedos no pescoço desse galaroz... e no seu também... uma vez que fosse!

- Oh, Martha

- Só Deus sabe o que seria de nós se eu não lavasse para fora. Em dez anos não trabalhaste a sério um só dia.

O Pai levantou-se e veio para onde eu espevitava o fogo debaixo da panela. E ficou-se a olhar para mim.

- Meu filho - e abaixava a voz para a Mãe não ouvir. Sabes onde é que hás-de arranjar um punhado de milho para o Doutor?

Nem esperou pela minha resposta, pois sabia que eu sabia. E saiu pela cancela das traseiras, rua abaixo a caminho da casa dos Taylors, três quarteirões adiante. Depois de a Mãe ter voltado para a cozinha, fui ao galinheiro, tirei um ovo e meti-o na algibeira. Sabia exactamente o que o Pai queria de mim, porque me mandava sempre à mercearia do Sr. Brown, na esquina, quando precisava de milho para o Doutor.

Levei o ovo à loja e troquei-o por um cartucho de milho, como o Pai fazia quando eu lá ia com ele. O Sr. Brown disse-me que soubera que o Pai tinha ganho três dólares na véspera, perto de Nortonsville, e quis saber porque trocávamos um ovo pelo milho, em vez de pagarmos do dinheiro que o meu pai arranjara. Respondi-lhe que disso não sabia eu nada, porque o Pai não contara palavra do que o Doutor fizera em Nortonsville. O Sr. Brown pediu-me para dizer ao Pai que queria ter ocasião de ver o Doutor da próxima vez que fosse perto de Sycamore. Voltei pela rua acima, com o cartucho escondido na camisa para a minha mãe não o topar e não mo tirar.

O Pai já tinha voltado de casa da Sr. a Taylor e estava à minha espera atrás do galinheiro, a ver se eu trazia o milho. O galinheiro estava a uns cinqüenta metros do pátio onde a Mãe estava a lavar, e podíamos estar lá sem sermos vistos. O que não podíamos era falar alto, ou ela ouvia-nos.

O Pai estava de cócoras a segurar o Doutor e a limpá-lo com um trapo húmido. O Doutor perdera uma data de penas e estava completamente estafado. Tinha a perna direita ferida onde a pele fora ao ar por a espora estar solta. O Pai disse que chegara ter medo de que o Doutor não fosse capaz de se agüentar, por causa da espora, mas o bicho, quando viu que não feria a direita, passou ao ataque com a esquerda. disse que tinha sido o combate mais duro que o Doutor tinha tido desde que combatera pela primeira vez. E disse que ia deixar o Doutor repousar até ter a perna curada, porque não queria correr riscos escusados.

O Pai limpou-o muito bem e deixou que eu o ajudasse. Quando acabou de servir-se do trapo, deixou-me pegar ao colo no Doutor. Era a primeira vez que me deixava tocar no galo, e perguntei ao meu pai se me deixava ir com ele ao próximo combate. O Pai respondeu que queria que eu esperasse até ser mais velho, o que já não demoraria muito.

- A tua mãe esfolava-me vivo se eu te levasse agora. Nem vale a pena pensar no que ela me faria e a ti.

Eu segurava o Doutor nos meus braços, e ele deixava-se estar como se não quisesse ir-se embora. Era um lindo galo, com penas muito vermelhas no pescoço e nas asas e outras amarelas por baixo. A crista dobrava-se-lhe para a direita como uma melena. Nunca tinha reparado na pequenez dele até então. Não era nem nada maior que um frango de tamanho médio, mas, segurando-o nos braços, bem se via como ele era forte e ágil. O Pai dizia que não havia no país inteiro um galaroz mais fino.

Entreguei-o ao Pai e o Pai mandou-me partir o milho. Arranjei uma chapa de ferro e uma pedra e parti o milho e o Pai agarrava nele e dava-o à mão ao Doutor. O Doutor comia como se não houvesse no mundo melhor manjar e parecia que nunca mais se fartava. Comia à velocidade com que eu partia.

Durante o tempo que estivemos atrás do galinheiro a Mãe esteve no pátio a fazer a barrela. A roupa que ela lavava era a da Sr. a Taylor, mas por semana lavava a roupa de mais seis ou sete casas. Era como se passasse o dia a lavar e a noite a passar a ferro. Ficámos ainda muito tempo a contemplar o Doutor, que tinha uma cama de pó num canto da capoeira, e gostava de lá se deitar à sombra, a levantar com as asas pó para debaixo das penas.

Eu disse ao Pai que esperava que ele não se fosse embora já, porque o queria em casa para me deixar ajudá-lo a partir milho e a dar de comer ao Doutor todos os dias. Respondeu-me que agora, durante um tempo, não ia, porque achava que o Doutor precisava pelo menos de repousar uma semana.

Ficámos sentados no chão à sombra muito tempo até ao meio-dia. A Mãe chamou-me então para o comer. ". Quando acabámos ela disse ao Pai que queria que ele fosse levar a roupa da Sr. a Dolan. A Sr. a Dolan vivia na outra ponta da cidade e era um estirão a ida e volta. Perguntei à Mãe se podia ir com ele ajudá-lo a levar a roupa e ela respondeu que eu podia.

Pegámos na roupa logo no fim de comer, e pensei que estaríamos de volta a tempo de ir ver o Doutor mais uma vez antes de escurecer demais. Mas era já tarde ao atravessarmos a cidade no regresso, e o meu pai declarou-me que queria parar no correio e palestrar um bocado com uns homens. Devemos ter-nos demorado umas duas ou três horas, porque era noite cerrada quando chegámos a casa. A Mãe ouviu-nos na varanda da frente e apareceu a pedir ao pai o dinheiro que recebera pela roupa da Sr. a Dolan. O Pai deu-lhe os cinqüenta cêntimos e perguntou-lhe quanto tempo ainda faltava para a ceia estar pronta. Ela respondeu que não tardava e sentámo-nos na varanda.

Sabia bem estar sentado na varanda com o velhote, porque ele passava tanto tempo fora de casa que eu não tinha muitas ocasiões de estar com ele. O meu velho acendeu uma ponta de charuto que andava poupando, e ali ficámos, com ele a soprar no escuro, e o fumo a derivar pela varanda e a cheirar bem na brisa da noite.

- Meu filho - disse ele, pouco depois -, pela manhã, logo que acabares de almoçar, quero que vás à mercearia do Brown. Tira outro ovo da capoeira e leva-o e troca-o por mais milho. Mal acabarmos o almoço, quero dar de comer ao Doutor. Está deitado abaixo e quero alimentá-lo bem para lhe restaurar as forças.

- Sim, pai. É que vou mesmo.

E estivemos sentados no escuro a pensar no galo.

A Mãe chamou por nós e entrámos e sentámo-nos para cear. Não havia na mesa muito que comer nessa noite, a não ser um grande empadão de galinha. Estava num tacho fundo, com uma grossa crosta dourada, e o pai serviu-me primeiro e depois à Mãe. A seguir, serviu-se ele de um bom pedaço.

Minha mãe não tinha grande coisa a dizer, e o Pai tinha medo de falar. De resto, nunca ele falava muito enquanto se não sentia seguro. Sentados à mesa fomos comendo o empadão até o termos rapado quase todo. O Pai recostou-se e olhou para mim; e bem se via que não pensava mal da cozinha da Mãe.

O sossego era como o da igreja depois de ter saído a gente toda.

- Morris -disse a Mãe, pousando a faca e o garfo, muito direitos, no prato -, espero que isto te sirva de lição.

- Esperas o quê, Martha?

Ela verificou a maneira como havia pousado no prato a faca e o garfo, ajeitou-os um pouco e depois olhou para ele de caras.

- Espero que nunca mais tornes a trazer outro galo de combate para casa, por anos que vivas. Tive de praticar um acto desesperado

- O quê? - exclamou ele, debruçando-se para ela sobre

a mesa.

- Fiz este empadão com o...

- Doutor! - disse o Pai, empurrando para trás a cadeira um pedaço.

A Mãe acenou afirmativamente.

A cara do meu velhote fez-se de cera e deixou cair as mãos. Abriu a boca para dizer qualquer coisa, mas não saiu nada. Não sei quanto tempo passou, mas parecia que metade da noite havia passado antes de alguém se mexer.

A Mãe foi a primeira a falar.

- Foi uma coisa dura, Morris mas eu tinha de fazer uma coisa decisiva.

- Mas era o Doutor, ó Mãe! Não devia

- Cala-te, William - disse ela, voltando-se para mim.

- Não devias ter feito isso, Martha - murmurou o Pai, empurrando a cadeira e pondo-se de pé. - Pelo menos ao Doutor. Era

E não disse mais nada depois disto. A seguir rodou e atravessou a casa e saiu pela porta da frente.

Levantei-me e fui pela casa fora atrás dele. No pórtico estava mais escuro do que nunca e não se via um palmo adiante do nariz, vindo da luz como eu vinha. A ponta do charuto que ele tinha deixado no balaústre quando tínhamos entrado para a ceia ainda ardia e cheirava tal e qual como o meu velhote. Apressei-me pelas escadas e corri pela rua abaixo a fazer por o apanhar, antes que fosse tarde demais para dar com ele na treva.

 

 

                                                                  Erskine Caldwell

 

 

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